Desafios colocados para a clínica psicanalítica (e seu futuro) no contexto da pandemia de
COVID-19: reflexões a partir de uma experiência clínica
O artigo intitulado Desafios colocados para a clínica psicanalítica (e seu futuro) no
contexto da pandemia de COVID-19: reflexões a partir de uma experiência clínica (2020), de autoria de Francisco Capoulade e Mário Eduardo Costa Pereira, possui como objetivo principal apresentar a implementação de um serviço de atendimento psicanalítico com suporte virtual no contexto nascente da pandemia de COVID-19 e as questões que dessa experiência surgiram, em especial o papel dos corpos e das tecnologias de comunicação na iniciação, manutenção e do final da análise. Em seu texto, Capoulade e Pereira (2020), discutem a incorporação das novas tecnologias na prática clínica da psicanálise, destacando que esse tema tem sido debatido por pelo menos duas décadas. Psicanalistas têm experimentado o uso de tecnologias de comunicação, como videoconferências, telefones e smartphones, em suas práticas clínicas, embora com algumas hesitações, especialmente em casos clínicos complexos. No entanto, a pandemia da COVID-19 provocou uma mudança abrupta na prática clínica, forçando a transição para atendimentos online em larga escala. Os autores ainda defendem que, devido à necessidade de isolamento social, a grande maioria dos psicanalistas passou a realizar atendimentos online, abandonando seus consultórios tradicionais. Isso gerou discussões sobre as diferenças entre o atendimento presencial e online, e questiona se as questões vão além da mera diferença de plataforma, envolvendo questões mais profundas sobre a presença e a virtualidade na prática psicanalítica. Além disso, o texto menciona a proliferação de transmissões ao vivo, como "lives", por psicanalistas nas redes sociais e a formação de debates online. Discute a importância de reconhecer que o "setting" tradicional não é o único meio para uma experiência psicanalítica, citando exemplos históricos de experiências clínicas inovadoras. O texto menciona, na sequência, a formação de coletivos de psicanalistas que oferecem suporte psicológico durante a pandemia e menciona um trabalho específico desenvolvido em Campinas para refletir sobre as experiências clínicas online no início da pandemia. Nesse sentido, Capoulade e Pereira (2020) apontam os critérios para o funcionamento do serviço de atendimento, a saber: 1) o atendimento seria individual, online e gratuito; 2) o atendimento teria a duração máxima de 3 meses (a partir do início da terapia); e 3) a frequência dos atendimentos seria decidida entre o(a) solicitante e o(a) psicanalista, assim como a tecnologia a ser utilizada, ou seja, a plataforma. Esses critérios, que funcionaram como uma espécie de diretrizes, foram amplamente divulgados nas redes sociais e no site do IPEP, bem como no do LaPSuS. No que tange ao funcionamento interno do serviço, os autores afirmam que procederam da seguinte maneira: criamos uma comissão de acolhimento que tinha como tarefa principal receber os solicitantes e encaminhá-los aos psicanalistas. Os solicitantes entravam em contato conosco única e exclusivamente pelo site do IPEP. Essa solicitação era encaminhada automaticamente para um dos participantes da comissão de acolhimento que entrava em contato com o solicitante para marcar uma entrevista. Após a realização dessa entrevista em que o(a) entrevistador(a) apresentava o funcionamento do serviço e escutava o(a) solicitante, o(a) psicanalista, membro dessa comissão, encaminhava o(a) solicitante para atendimento. Isto feito, quem recebeu o encaminhamento entrava em contato com o(a) solicitante e marcava a primeira entrevista. Logo depois, o(a) psicanalista enviava um formulário para a comissão de acolhimento relatando o primeiro atendimento e depois encaminhava um pequeno relatório quando os atendimentos estivessem encerrados. Em paralelo, criamos também um grupo dedicado à supervisão formado por oito psicanalistas mais experientes e que traziam na bagagem experiência de atendimento e supervisão no serviço público (SUS). A possibilidade da supervisão era a tentativa de garantir um mínimo de troca psicanalítica no cenário de incertezas que estávamos vivendo. E oficializar esse dispositivo pareceu o mais prudente a ser feito. Além disso, era também a possibilidade de contribuir para a formação de alguns que aderiram ao serviço e que se colocaram como analistas em formação. Na sequência do texto, os autores discutem a necessidade de criar um dispositivo clínico baseado na experiência limitada de terapia virtual e nos princípios éticos da psicanálise. Eles exploram a distinção entre o atendimento psicanalítico e outras abordagens terapêuticas oferecidas durante a pandemia, enfatizando a importância do acolhimento, da escuta e da gestão da angústia. Além disso, destacam a necessidade de não reduzir prematuramente o sofrimento do paciente a uma perspectiva meramente psicológica. O texto também menciona a duração limitada do tratamento proposto e a importância de permitir que o paciente se confronte com sua verdade subjetiva. Além disso, os autores abordam a questão do suporte tecnológico e a natureza virtual do tratamento, examinando as implicações éticas, teóricas, clínicas e políticas dessa experiência. De acordo com Capoulade e Pereira (2020), essa abordagem tecnológica se mostrou útil e promissora, mas levanta uma série de questões e desafios que precisam ser abordados. Entre as questões levantadas estão: O papel da presença física e dos corpos do analisante e analista nas sessões virtuais; A compreensão do termo "virtual" em um contexto psicanalítico, afastado de seu significado tecnológico; A influência de terceiros, como empresas de tecnologia, na clínica psicanalítica; A confidencialidade em tratamentos que dependem de terceiros comerciais, jurídicos e políticos; A integração de inteligência artificial e avatares humanos nas terapias à distância e como a psicanálise pode distingui-los de seres humanos reais; O impacto da mortalidade dos participantes na cura; e, o desafio ético de tornar a psicanálise mais acessível por meio de tecnologias de comunicação virtual, com riscos de práticas não regulamentadas e charlatanismo. O texto também destaca, na sequência, a necessidade de os psicanalistas e escolas de psicanálise abordarem esses desafios de forma ética e política, especialmente no que diz respeito à relação da psicanálise com a sociedade e a cultura, tornando-a mais acessível, mas ao mesmo tempo garantindo a qualidade e a ética das práticas. Como conclusão ao estudo, os autores sustentam que a exposição súbita a esse “admirável mundo novo” das relações da psicanálise com as tecnologias de comunicação exigirá de todos um grande esforço de serena elaboração, de explicitação cada vez mais precisa das exigências éticas da clínica psicanalítica e a altivez do espírito, que Lacan identificou em Antígona ao ter que escolher sobre seu próprio destino: para além do medo e da piedade. De fato, essas novas condições constituem um desafio para psicanálise, mas também uma grandiosa oportunidade para que a disciplina criada por Freud renove seu encontro com seus próprios fundamentos, evitando — mais uma vez — o risco de se cristalizar como uma língua morta.
Referências
CAPOULADE, F; PEREIRA, M. E. C. Desafios colocados para a clínica psicanalítica (e seu
futuro) no contexto da pandemia de COVID-19. Reflexões a partir de uma experiência clínica. Revista Latinoamericana de Psicopatologia Fundamental, v. 23, p. 534-548, 2020.