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SCHNACKENBURG, Rudolf. Il Vangelo di Giovani. Parte Prima.

Brescia: Paideia Editrice, 1973,


pp. 126-131.

Evangelho de São João: a questão da autoria

4. Uma tentativa de solução: avaliação complexiva do problema do autor

Ao término da sua acurada monografia, F. M. Braun 1 escreve: “Se se presume que o


evangelho de João tenha sido escrito de uma só vez, este livro se torna impensável, sobretudo se
se atribui a obra a um galileu de formação exclusivamente hebraica. Mas o problema não deve
ser impostado desta forma”. Em seguida, o autor desenvolve a sua concepção acerca da origem
do evangelho. O kerygma de João teria primeiro se cristalizado em pequenas unidades literárias;
haveria transcorrido um tempo mais ou menos longo antes que João se decidisse a escrever uma
obra mais ampla. Neste trabalho, ele teria se servido de secretários e colaboradores, aos quais
indicava somente os traços do seu pensamento, confiando-lhes a ulterior redação; para atingir
este objetivo, ele (João) teria se servido, um após o outro, de mais de um discípulo. Ao término
destes preparativos e em virtude da situação na Ásia Menor, ele teria escolhido um escritor,
bom conhecedor da língua grega, do qual dependeria diretamente o texto atual. Este homem,
provavelmente um hebreu da diáspora, não foi capaz, talvez, de terminar a sua obra antes da
morte do apóstolo, e somente em seguida deu os últimos retoques, sem conseguir eliminar
algumas asperezas do texto. Devemos, também, a ele, o conhecimento do verdadeiro autor, isto
é, do “discípulo que Jesus amava”, o apóstolo João.

Aqui se procede com prudência (para não restringir o contributo do apóstolo),


afirmando que o nosso Evangelho de João não deriva diretamente do filho do pescador da
Galileia, ainda que dependa dele no seu conteúdo. O verdadeiro escritor é um outro, isto é, um
homem que conhecia bem o helenismo judaico, e de quem o velho apóstolo se serviu como
secretário. A ideia de fundo, segundo a qual se deveria distinguir entre “o autor espiritual”
(apenas uma forma de expressão) e o “evangelista” (aquele que escreveu materialmente o
evangelho), poderia ser exata;2 somente a hipótese do “secretário” não parece convincente. É
difícil que o corpo do evangelho e a observação conclusiva (cf. Jo 21,24) tenham sido escritas
pela mesma pessoa, porque o estilo e o caráter do capítulo de apêndice fazem pensar em uma
outra mão, a uma particular redação sucessiva. Este problema leva à constatação de que
também o evangelho escrito, enquanto tal, tem uma pré-história, na qual João de Zebedeu,
ainda que sem ser o responsável pela elaboração material do evangelho, tem o seu lugar. É, no
fundo, a mesma ideia que fazemos acerca do nosso evangelho de Mateus, onde a maioria dos
estudiosos católicos postula uma evolução longa, do “primeiro Mateus” até a forma atual, que
manifesta um autor de língua grega.

F.-M. Braun se preocupa muito em qualificar com o papel de “secretário” o


relacionamento do evangelista – último responsável ou “redator” do material joanino – com o

1
O autor refere-se à obra de François-Marie Braun (in saeculum Antoine Braun), sacerdote dominicano,
exegeta, especialista no Evangelho de São João, falecido em 1980. A obra em questão: BRAUN, F.-M. Jean,
le Théologien et son évangile dans l’église ancienne. Paris: Gabalda, 1959.
2
DV 18,19.
apóstolo. Mas, quando ele sublinha que este homem cresceu no judaísmo da Diáspora, pensa
evidentemente que a língua e o estilo possuem uma originalidade particular, que não pode ser
atribuída ao apóstolo João. A este discípulo helenístico do apóstolo, o qual escreveu o
evangelho, é necessário conceder uma maior autonomia; não se pode, de fato, separar a forma
do conteúdo e a língua dos conceitos. Não é necessário imaginar que ele tenha tido à disposição
somente informações estreitamente materiais do apóstolo, contidas e transmitidas em uma
ampla coleção e em parte já fixadas por escrito, mas se pode e se deve supor que ele tenha
elaborado de modo próprio as ideias conexas com a narração das ações e discursos de Jesus, e
portanto, a “interpretação apostólica” do evento salvífico; não se pode negar que o evangelista
(redator) tenha influenciado conceitualmente o conteúdo e o tenha impostado de forma
unitária, porque de outra forma ele não poderia ter cumprido o seu dever de explicar ao grupo
dos leitores, em uma forma adequadamente kerygmática, a narrativa e a mensagem do apóstolo
João. O evangelista seria, assim, de um lado, depositário da tradição e da mensagem do apóstolo
João e, de outro lado, seria ele mesmo teólogo e portador de anúncio para os leitores aos quais
se dirige.

Esta é somente uma hipótese, mas tem a vantagem de conciliar a tradição da igreja
antiga, que vê o autor no filho de Zebedeu, com os conhecimentos específicos sobre a obra que
nós hoje possuímos. Devemos verificá-la, ainda que brevemente, à luz das nossas conclusões
precedentes. No exame dos testemunhos externos da tradição, vimos que é necessário
distinguir a convicção de fundo, que remonta aos “anciãos” (presbíteros), segundo a qual João
de Zebedeu (que viveu até uma idade avançada em Éfeso na Ásia Menor) seria o autor do
evangelho de João, das lendas que se desenvolveram em torno a essa mesma convicção.
Também as opiniões, segundo as quais ele teria “ditado” o evangelho antes da sua morte,
publicando-o sob seu nome, fazem já certamente parte da configuração e objetivação da
tradição; de fato, se pode considerar que ele fosse já morto quando a redação conclusiva deixou
seu testemunho em Jo 21,24; além disso, uma solene proclamação do evangelho colide contra
uma dificuldade insuperável: no século II o evangelho de João não tinha ainda encontrado uma
acolhida favorável da parte de todos. As coisas devem ser consideradas de modo diverso, uma
vez que depois da sua morte surgiu uma obra que não revelava, à primeira vista, a origem que
descrevemos e sobre cuja publicação não existiam informações seguras.

Com esta hipótese podem concordar as observações internas ao mesmo evangelho de


João. As informações topográficas, elementos narrativos singulares e outros conhecimentos
sobre o que estava em torno a Jesus, fazem pensar em um depositário eminente da tradição; o
modo evolutivo de apresentar certas coisas, e ainda algumas descrições confusas e
inconsequentes, fazem supor um longo processo na tradição; as tendências e acentuações
teológicas nos recordam a interpretação (do apóstolo) e a formulação teológica (do evangelista),
que são compreensíveis se se considera a finalidade do evangelho escrito e a situação concreta
do anúncio. Certos logia ou certos trechos dos discursos performados poderiam igualmente
pertencer à primeira história da tradição, enquanto os discursos de Jesus tipicamente “joaninos”
manifestam de novo o influxo teológico dos intérpretes, seja que se trate de um venerado
pregador, o qual está, contudo, em segundo plano, seja que se trate do evangelista, que deu ao
todo a forma última, ou melhor, da escola e linha teológica, que aqui se manifesta e à qual
pertence a redação final do evangelho e da qual derivam também os demais escritos “joaninos”.
Naturalmente, é muito difícil nos casos individuais decidir a qual estrato da tradição ou a qual
mão se devem ligar determinadas perícopes; se obtém, contudo, ao menos um quadro
esquemático, no qual encontram justificativa os distintos momentos da obra (primeira tradições
independentes, traços secundários, sucessivas formulações teológicas).
A hipótese é importante, ainda, para a relação entre a tradição joanina e aquela lucana.
Se, de fato, por trás do evangelho de João há uma antiga autoridade apostólica e a obra se
desenvolveu a partir da pregação, primeiro oral e depois gradativamente escrita, de João de
Zebedeu, tornam-se mais compreensíveis também alguns pontos de contato com a tradição
representada por Lucas: estas remontam a um tempo no qual também a “tradição joanina” se
encontrava em um primeiro estágio, e se explicam em parte mediante contatos orais, em parte
talvez também mediante primitivas fontes escritas hoje perdidas, que também Lucas pôde
utilizar. Porque sabemos muito pouco a respeito da situação e dos acontecimentos dos últimos
decênios do primeiro século, não é seguro, como certos críticos sustentam, que Lucas tenha
podido dirigir-se ao apóstolo João no caso em que este tenha vivido na Ásia Menor, ainda que
longamente. O que se afirma a respeito da tradição lucana serve, também, para o
relacionamento entre o evangelho de João e o de Marcos. A hipótese não exclui como impossível
a eventual utilização de outras fontes, e precisamente de uma fonte de “sinais”, da parte do
quarto evangelista; não se compreende, de fato, porque aquele cristianismo helenístico, que
trabalhou sobre o material do apóstolo, não tenha podido também utilizar uma exposição
escrita que estivesse à sua disposição (e que poderia também estar em posse do apóstolo). Se
deve, contudo, levar em conta que tudo isto nos conduz ainda ao âmbito da suposição.

A hipótese é particularmente válida no que diz respeito ao problema do “discípulo que


Jesus amava”. Cai por terra a dificuldade levantada, segunda a qual o evangelista, com esta
pretenciosa qualificação, tenha querido apresentar-se a si mesmo; foram os discípulos, entre os
quais o próprio evangelista (redator), a falar assim do seu mestre João. É possível imaginar a
coisa concretamente: se as narrativas remontam ao apóstolo, fica claro que ele falava
simplesmente em primeira pessoa quando citava a si mesmo. Aqueles, contudo, que anotaram
e transmitiram as suas palavras, poderiam certamente inserir seu nome, mas se pode também
compreender que eles, no seu círculo interno, não pronunciassem o nome e, então, proferissem
aquela perífrase plena de respeito.

Esta hipótese não é, evidentemente, aceita por aqueles que refutam toda a tradição da
Igreja antiga e a consideram como lenda, olhando com muito ceticismo o evangelho de João e
acreditando que seu autor seja um teólogo posterior e desconhecido, cuja “evangelho” não tem
nenhum significado para a história de Jesus, ou um recolhedor de tradições transmitidas em
determinada comunidade, talvez, também, na liturgia, e dignas de interesse ao lado da tradição
sinótica. A situação hodierna dos estudos, contudo, não dá razão a esta desvalorização da
tradição joanina; o “problema joanino” permanece, todavia, complexo e não se pode resolvê-lo
tão simplesmente como pensavam aqueles que conservaram a atribuição do evangelho ao filho
de Zebedeu. Consideramos, assim, esta solução, como uma “solução intermediária”.

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