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Quarta-feira, 14 de dezembro de 2022.

(13:15 — My Fondest Childhood Memories, Macy Gray)


Ontem foi um dia muito bom para mim. Eu adoro ter conversas longas sobre
assuntos complicados, sabe? descobrir novas possibilidades e ângulos
diferentes de ver o mesmo fato é tão interessante. Às vezes apenas mudar a
sua perspectiva sobre algo é a solução para tantas coisas. A questão que
andava martelando a minha mente era sobre como eu constantemente digo
que amo determinada coisa sem saber o por que eu uso o amor como
definição para isso, se sequer sei o que ele significa. Sei que ele está aqui
presente, mas quando paro para tentar dizer um conceito mais descritivo e
racional sobre o que ele é, me perco nas minhas palavras e não encontro
nada além de um silêncio ensurdecedor. Não falo isso da boca para fora,
literalmente passei incontáveis horas andando em círculos pelo meu quarto
tentando organizar os bilhões de novos questionamentos que surgiam a
cada pequeno passo que eu dava em direção a uma resposta concreta. Foi
como estar em um labirinto. Tentei encontrar alguma luz para me guiar
pedindo ajuda aos meus amigos e conhecidos sobre o que eles tinham a
dizer sobre isso, e caramba, eu genuinamente me emocionei com o que
trouxeram à tona. É comum que usemos nossas experiências pessoais para
responder a perguntas tão íntimas, então acho que no processo de aprender
sobre esse sentimento acabei conhecendo mais a fundo sobre as pessoas
com quem eu compartilhei essa conversa. Felipe me contou sobre uma
situação da sua vida que em mais de 2 anos de amizade eu nunca cheguei
nem perto de ter conhecimento sobre. Acho que a história dele foi de
extrema importância para formar a linha de pensamento que sigo agora,
portanto vou ir além de apenas resumir o que foi dito e tentar transcrever
parte da nossa conversa.

— O que você acha que é o amor?


— Acredito que deve variar muito de pessoa para pessoa e a troca de
sentimento que você teve. Não tenho experiência com o amor
romântico, mas talvez possa falar sobre o amor fraternal. Aquele que
não precisa de uma troca em específico ou afirmação.

Afirmação? Não tenho certeza se entendi. Ele continuou a falar.

— Uso como exemplo a minha relação com a minha família. Eu não


moro com meus pais há mais de 10 anos. Embora eles morem na
mesma cidade que eu, não tenho com eles a relação de pais e filhos.
Moro com a minha tia, meu primo e minha vó, que tem alzheimer.
Minha avó depende da minha tia para absolutamente tudo, ela já está
em estágio avançado e a relação dos meus outros tios (inclusive meu
pai) em relação a ela é totalmente irresponsável, porque para eles é
como se ela não existisse. Minha tia cuida dela há 15 anos, e por
conta disso, ela e todos da casa fizeram muitos sacrifícios pessoais,
porque sempre levamos ela em consideração antes de tomar qualquer
decisão. Ela abdicou de trabalho, vida a dois, lazer e viagens para
cuidar dela, e em momento algum ela fez por interesse no dinheiro.
Agora falando por mim, eu também abdiquei e ainda abro mão de
muitas coisas. Eu ajudo a minha tia a cuidar dela desde que me
entendo por gente, amanhã mesmo eu não vou para a aula de
exibição dos trabalhos do semestre, porque prefiro ficar em casa e
ajudar ela a levantar minha vó da cama. Entre a gente não existe a
todo momento uma troca de afirmação para dizer que nós nos
amamos, é praticamente uma dinâmica, e isso fala por si só. Eu perdi
a conta de quantas vezes chorei a noite do lado da cama da minha vó,
porque é triste você ver a pessoa que ama desaparecer a cada dia,
mas ainda continuar do seu lado. Mesmo ela tendo perdido
totalmente a memória, ela ainda demonstra amar a gente. Às vezes ela
olha para mim durante um tempo, como que reconhecendo, e isso
deve ser a forma dela de dizer que continua aqui, que ela ainda não
foi embora. Por conta disso tudo, eu não tive uma adolescência como
a maioria. Eu não saía muito, não mantinha muitas amizades. Tanto
que até hoje não tenho amigos a ponto de virem à minha casa, porque
eu sei que às vezes pode acabar sendo um incômodo por causa dos
horários da minha vó. Às vezes, não o tempo todo, eu me incomodo
comigo mesmo por causa da minha adolescência, porque a mídia
vende essa etapa da vida como um produto, e eu falo pra mim mesmo
que eu deveria ter dado mais trabalho, deveria ter saído mais, bebido,
usado drogas, mas aí lembro que se eu tivesse sido assim eu
machucaria quem eu amo, e não estaria ou pensaria como hoje. É um
tipo de amor que parece fácil, mas é mais complicado de explicar.
Parando para pensar, é como se sempre existisse, não tem como datar
um início.

Uau. O percurso da vida dele desde a infância foi definido pela negligência
dos seus familiares responsáveis que deveriam ter tido a decência de cuidar
de uma senhora de idade carente de ajuda. Se não fosse por isso, talvez ele
tivesse conseguido viver a sua adolescência com mais dignidade. Poderia ter
feito bons amigos e criado memórias reconfortantes. Quando Felipe
terminou de me contar sobre essa etapa que vem durando muito tempo, não
pude evitar sentir um apreço por ele fora do comum. Isso é definitivamente
amor. Amor dos mais bonitos e gentis que se pode encontrar. Abdicar de
felicidades em favor do bem estar de outro alguém? Isso é de um zelo e
cuidado admirável. A partir deste momento da conversa eu já me sentia
diferente de como era antes dela, meu carinho e respeito por ele cresceu.
Felipe me ajudou a compreender que o clichê "o amor está nos pequenos
detalhes" é mais do que uma frase de cinema. O amor está nas manhãs em
que ele acorda e o primeiro pensamento que vem a sua mente é que precisa
ajudar ela a levantar da cama, está nas oportunidades que negou, está nas
noites que dorme preocupado se ela o esqueceu mais um pouquinho, está
nas suas orações e preocupações diárias em relação a sua avó. Ele tem
razão, esse amor não precisa de afirmação, não precisa ser verbalizado, não
precisa que alguém diga em voz alta o que está acontecendo em seu íntimo.
Só está lá. Como uma dinâmica, um acordo silencioso que eles seguem
religiosamente. É esse o amor fraternal: a vida dos seus entes queridos indo
bem como uma condição para que você se sinta bem? Sem malícias. Sem
interesses. Sem uma negociação de trocas, diferente do amor romântico.
Nesse ponto da conversa eu tinha um pouco mais de clareza sobre o que
dizer sobre esse sentimento, mas fiquei pensando sobre quando ele disse
que a mídia vende a adolescência de um forma muito romantizada e isso faz
com que as pessoas se sintam frustradas no futuro achando que não
viveram a vida da forma "correta". O amor é uma outra forma enriquecedora
que a mídia vende para a população do jeito mais Disney possível. Em
determinado momento, quase que caindo do céu, você vai cruzar a sua alma
gêmea que será como um príncipe encantado do mundo das fadas. Vocês
vão viver felizes para sempre e se entenderão quase que como em telepatia,
sabendo exatamente como agir um com o outro e sem qualquer conflito
entre os dois. Será como um "clique". É lindo, não é? Pois é, mas só na
teoria. Essa ideia de fusão entre os amantes, em que os dois se transformam
num só, implica em total falta de respeito à individualidade do outro. Isso é
EXTREMAMENTE perigoso para qualquer pessoa, se anular para que o
outro esteja confortável é de uma negligência consigo mesmo quase que
imperdoável. O amor romântico contado em novelas, livros e filmes nos diz
que encontrando o amor da sua vida o trabalho de fazer a sua felicidade é
responsabilidade do outro. Se amar é tão difícil que a gente terceiriza. Eu
não posso cuidar de mim, mas o outro tem essa obrigação. Eu não gosto da
minha aparência, mas o outro precisa me achar linda. Eu não quero me
respeitar, impor meus limites e me posicionar, mas espero isso do outro. As
pessoas se odeiam tanto e querem que os outros as amem de uma forma
que nem elas mesmas conseguem. Não é no mínimo contraditório? Ninguém
tem o dever de suprir todas as lacunas alheias. A sua felicidade é uma
responsabilidade sua.
Acho que todos nós temos sugestões falsas em relação ao amor e
normalmente não damos a devida importância ao fato de que precisamos
aprender a amar. O girassol é a minha flor favorita, mas eu deveria dizer
que amo girassóis? O "amor" por "coisas" não se equipara ao amor por seres
humanos. Isso é predileção, não amor. Eu amo o girassol, mas o tiro de seu
habitat e o exibo por aí como quem não acabou de determinar a sua morte
iminente ao tirar ele do único lugar onde continuaria com vida. Logo a flor
se esvai como pó. Eu não amava o girassol, eu amava a beleza que eu via
nele, a sensação que ele me trazia. Isso é a luxúria:
amar o sentimento que aquilo/aquele alguém causa em você, não ao
indivíduo em si.
Acredite em mim, há muita diferença entre amar a pessoa e amar o
sentimento. Então depois desse longo textão do caralho eu diria que o amor
é, primordialmente, um sentimento, mas também uma construção que deve
ser cuidada e alimentada com outros ingredientes, sendo eles: o respeito, a
empatia, a confiança, a compreensão de que o outro é o outro, e que nunca
serão Um, mas que mesmo sem a NECESSIDADE do outro, escolham estar
lá. O amor é ação, é querer o bem do outro independente do seu eu pessoal.
Onde há abuso, onde há negligência, a prática amorosa fracassou.

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