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Parte
1
— Nota-se que ela tem algo estranho, que não é uma mulher como as outras.
Parece muito jovem, uns vinte e cinco anos no máximo, uma carinha meio de
gata, o nariz pequeno, arrebitado, o feitio do rosto é... mais redondo que oval, a
testa larga, os pômulos também grandes mas depois vão para baixo em ponta,
como nos gatos.
— E os olhos?
— Claros, seguramente verdes, ela os aperta para desenhar melhor. Olha para
o modelo, a pantera negra do jardim zoológico, que antes estava quieta na jaula,
deitada.
Mas quando a jovem fez barulho com a prancheta e a cadeira, a pantera a viu
e começou a passear pela jaula e a rugir para ela, que até o momento não
acertara com o sombreado que ia dar ao desenho.
— E o animal não pôde farejá-la antes?
— Não, porque tem na jaula um enorme pedaço de carne, é a única coisa que
pode farejar. O guarda põe a carne perto das grades, e não pode entrar nenhum
cheiro de fora, de propósito para a pantera não se excitar. E é quando nota a raiva
da fera que a jovem começa a fazer traços cada vez mais rápidos, e desenha uma
cara que é de animal e também de diabo. E a pantera a olha, é uma pantera
macho e não se sabe se é para despedaçá-la e depois comê-la, ou se a olha levada
por outro instinto pior ainda.
— Não tem gente no jardim zoológico nesse dia?
— Não, quase ninguém. Faz frio, é inverno. As árvores do parque estão
descascadas. Sopra um vento frio. A jovem é quase a única pessoa lá, sentada no
banquinho dobrável que ela mesma traz, e com uma prancheta para apoiar a
folha de desenho. Um pouco mais adiante, perto da jaula das girafas, há umas
crianças com a professora, mas vão embora depressa, não aguentam o frio.
— E ela não sente frio?
— Não, nem se lembra do frio, está como que em outro mundo, concentrada,
desenhando a pantera.
— Se está concentrada não está em outro mundo. Isso é uma contradição.
— Sim, é verdade, está concentrada, metida no mundo que existe dentro dela
própria, e mal começa a descobri-lo. Está com as pernas cruzadas, os sapatos são
pretos, de salto alto e grosso, sem bico, aparecem as unhas pintadas de escuro.
As meias são brilhantes, daquele tipo de malha cristal de seda, não se sabe se o
cor-de-rosa é da carne ou da meia.
— Desculpe, mas lembra do que te falei, não faça descrições eróticas. Não
convém, sabe.
— Como quiser. Bem, continuo. Ela está de luvas, mas para poder continuar
desenhando tira a luva da mão direita. As unhas são compridas, o esmalte quase
preto e os dedos brancos, até que o frio começa a arroxeá-los. Deixa o trabalho
por um instante, enfia a mão debaixo do capote para esquentá-la. O capote é
grosso, de pelo preto, os enchimentos bem grandes, mas um veludo espesso
como o pelo de um gato persa, não, muito mais espesso. E quem está atrás dela?
Alguém tenta acender um cigarro, o vento apaga a chama do fósforo.
— Quem é?
— Espera. Ela ouve o estalo do fósforo e se sobressalta, vira-se. É um sujeito
boa-pinta, não é um galã bonito, mas de rosto simpático, chapéu de aba baixa e
um capotão, calças muito largas. Toca a aba do chapéu a título de cumprimento e
pede desculpas, lhe diz que o desenho é muito bom. Ela percebe que é um bom
sujeito, sua cara está dizendo, é um sujeito muito compreensivo, tranquilo.
Ajeita com a mão o penteado, meio desmanchado pelo vento. É uma franja
encaracolada e cabelo até os ombros, que é como se usava, também com
pequenos cachos nas pontas, quase como de permanente.
— Eu a imagino morena, não muito alta, rolicinha e movendo-se como uma
gata. Bem gostosa.
— Você não disse que não queria ficar assanhado?
— Continua.
— Ela responde que não se assustou. Enquanto isso, ao retocar o cabelo solta
a folha e o vento a carrega. O rapaz corre e a alcança, devolve-a à moça e pede
desculpas. Ela diz que não é nada e ele percebe que é estrangeira pelo sotaque. A
moça conta que é uma refugiada, estudou belas-artes em Budapeste, ao estourar
a guerra embarcou para Nova York. Ele lhe pergunta se sente falta de sua cidade.
É como se passasse uma nuvem pelos olhos dela, toda a expressão do seu rosto
se escurece, e diz que não é de nenhuma cidade, vem das montanhas, lá pela
Transilvânia.
— Do mesmo lugar que Drácula.
— Sim, essas montanhas têm bosques escuros, onde moram as feras que
durante o inverno enlouquecem de fome e têm de descer às aldeias, para matar. E
as pessoas morrem de medo, e põem ovelhas e outros animais mortos nas portas
e fazem promessas, para se salvar. Enquanto isso o rapaz quer tornar a vê-la e ela
diz que no dia seguinte, à tarde, vai continuar desenhando ali outra vez, como
toda aquela última temporada quando houve dias de sol. Então ele, que é
arquiteto, está em seu estúdio na tarde do dia seguinte com seus colegas
arquitetos e também uma colega, e quando batem três horas e já resta pouco
tempo de luz ele quer largar as réguas e compassos para atravessar até o jardim
zoológico que é quase defronte, lá no Central Park. A colega lhe pergunta aonde
vai, e por que está tão contente. Ele a trata como amiga, mas nota-se que no
fundo ela está apaixonada por ele, embora disfarce.
— É um bofe?
— Não, de cabelo castanho, cara simpática, nada do outro mundo mas
agradável. Ele sai sem lhe dar o prazer de dizer para onde vai. Ela fica triste mas
não deixa ninguém perceber e mergulha no trabalho para não se deprimir mais.
Já no jardim zoológico ainda não começou a cair a noite, tudo parece sobressair
com mais nitidez que nunca, as grades são pretas, as paredes das jaulas de
azulejo branco, o cascalho também é branco, e as árvores desfolhadas são
cinzentas. E os olhos das feras vermelho-sangue. Mas a jovem, que se chamava
Irena, não está. Passam-se os dias e o rapaz não consegue esquecê-la, até que um
belo dia, andando por uma avenida luxuosa, alguma coisa chama a sua atenção
na vitrine de uma galeria de arte. Estão expostas as obras de alguém que só
desenha panteras. O rapaz entra, lá está Irena, que é felicitada por outros
assistentes. E não sei direito como continua.
— Puxa pela memória.
— Espera um pouco... Não sei se é aí que ela é cumprimentada por uma
mulher que a assusta... Bem, então o rapaz também a felicita e acha Irena
diferente, parece feliz, não tem aquela sombra no olhar, como da primeira vez. E
a convida para um restaurante e ela deixa todos os críticos lá, e vão embora. Ela
dá a impressão de poder andar na rua pela primeira vez, como se tivesse estado
presa e agora, livre, pode ir a qualquer lugar.
— Mas você disse que ele a leva a um restaurante, não a qualquer lugar.
— Ah, não exija tanta precisão. Bem, quando ele para diante de um
restaurante húngaro ou romeno, sei lá, ela torna a se sentir esquisita. Ele pensava
agradá-la levando-a a um restaurante de patrícios dela, mas o tiro sai pela
culatra. E percebe que acontece algo com ela e lhe pergunta o que é. Ela mente e
diz que lhe faz lembrar a guerra, que ainda está em pleno fragor naquele
momento. Então ele diz que vão almoçar em outro lugar. Mas ela percebe que
ele, coitado, não tem muito tempo, está em sua hora livre para o almoço e depois
tem de voltar ao escritório. Então ela se domina e entra no restaurante, e tudo
perfeito, porque o ambiente é muito tranquilo e comem bem, e ela está outra vez
encantada da vida.
— E ele?
— Ele está contente, porque percebe que ela venceu um complexo para lhe
dar um prazer, ele justamente planejara de início ir lá para dar um prazer a ela.
Essas coisas que acontecem quando duas pessoas se conhecem e as coisas
começam a funcionar bem. E ele está tão entusiasmado que resolve não voltar ao
trabalho à tarde. Conta que passou pela galeria por acaso, que estava procurando
outra loja, para comprar um presente.
— Para a colega arquiteta.
— Como é que você sabe?
— Por nada, acertei, só isso.
— Você viu o filme.
— Não, te garanto. Continua.
— E a moça, a Irena, diz que então podem ir àquela loja. Ele pensa logo se o
dinheiro vai chegar para comprar dois presentes iguais, um para o aniversário da
colega e outro para Irena, assim acaba conquistando-a. Na rua, Irena diz que
naquela tarde, coisa estranha, não lastima notar que já está anoitecendo, são só
três da tarde. Ele pergunta por que lhe dá tristeza que anoiteça, se é porque tem
medo da escuridão. Ela pensa e responde que sim. Ela para na frente da loja
aonde vão, ela olha a vitrine com desconfiança, trata-se de uma casa de pássaros,
lindíssima, nas gaiolas que se podem ver de fora há pássaros de todo tipo,
voando alegres de um trapézio a outro, ou balançando-se, ou bicando folhinhas,
ou alpiste, ou bebendo aos goles a aguinha fresca, recém-trocada.
— Desculpa, tem água na jarra?
— Sim, enchi quando abriram para ir ao banheiro.
— Ah, então está bem.
— Quer um pouco? Está boa, fresquinha.
— Não, assim amanhã não há problema com o chimarrão. Continua.
— Mas não exagera. Chega para o dia todo.
— Mas você não deve me habituar mal. Me esqueci de trazer quando
abriram a porta para o banho de chuveiro, se não é você se lembrar nós
ficávamos sem água.
— Tem de sobra, te digo... Mas quando os dois entram na loja é como se
tivesse entrado quem sabe quem, o diabo. Os pássaros enlouquecem e voam
cegos de medo contra as gradezinhas das gaiolas, e machucam as asas. O dono
não sabe o que fazer. Os passarinhos gritam de terror, são como gritos de
abutres, não como cantos de pássaros. Ela segura na mão do rapaz e. o puxa para
fora. Os pássaros se acalmam logo. Ela lhe pede que a deixe ir embora. Marcam
encontro e se separam até a noite seguinte. Ele torna a entrar na loja de pássaros,
estes continuam cantando tranquilos, compra um passarinho para a
aniversariante. E depois ... bem, não me lembro muito bem como continua, estou
com sono.
— Continua um pouco mais.
— É que com o sono me esqueço do filme, que acha você se continuarmos
amanhã?
— Se você não se lembra, é melhor continuar amanhã.
— Continuo na hora do chimarrão.
— Não, é melhor de noite, durante o dia não quero pensar nessas besteiras.
Há coisas mais importantes em que pensar.
— Se não estou lendo e fico calado é porque estou pensando. Mas não vá me
interpretar mal.
— Não, está bem. Não vou distrair sua atenção, não há perigo.
— Percebo que você me entende, muito obrigado. Até amanhã.
— Até amanhã. Sonha com Irena.
— Gosto mais da colega arquiteta.
— Eu já sabia. Tchau.
— Até amanhã.
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1 O pesquisador inglês D. J. West considera que são três as teorias sobre a
origem física do homossexualismo — e rejeita as três.
A primeira tenta estabelecer que o comportamento sexual anormal provém de
um desequilíbrio da proporção de hormônios masculinos e femininos, ambos
presentes no sangue dos dois sexos. Mas os testes diretos realizados em
homossexuais não proporcionaram um resultado que confirme a teoria, isto é,
não demonstraram uma distribuição hormonal deficiente. Segundo
comprovações do Dr. Swyer, em seu trabalho Homossexualidade, aspectos
endocrinológicos, a medida de níveis hormonais em homossexuais e
heterossexuais não revelou diferenças. Além disso, se o homossexualismo
tivesse origem hormonal — os hormônios são segregados pelas glândulas
endócrinas —, poderia ser curado através de injeções que restituíssem o
equilíbrio endócrino. Mas não foi possível, e em seu trabalho Testosterona em
homossexuais masculinos psicóticos, o pesquisador Barahal explica que a
aplicação de hormônios masculinos em homossexuais homens só deu como
resultado o aumento do desejo que o indivíduo sente pelo tipo de atividade
sexual a que está habituado. Quanto às experiências realizadas com mulheres, o
Dr. Foss, em A influência de andrógenos urinários na sexualidade da mulher, diz
que grandes quantidades de hormônios masculinos aplicados em mulheres
produzem de fato uma mudança notável no sentido da masculinidade, mas só no
que diz respeito ao aspecto físico: voz mais grossa, barba, diminuição de seios,
crescimento do clitóris, ele. Quanto ao apetite sexual, este aumenta, mas
continua sendo normalmente feminino, isto é, o objeto de seu desejo continua
sendo o homem, se não se tratar, obviamente, de uma mulher já com hábitos
lésbicos. Por outra parte, no homem heterossexual, a administração em
quantidade de hormônios femininos não desperta desejos homossexuais, mas
reverte numa diminuição da energia sexual. Tudo isso indica que a aplicação de
hormônios masculinos nas mulheres e de hormônios femininos nos homens não
revela uma relação entre a percentagem de hormônios masculinos e femininos
no sangue e os correspondentes desejos sexuais. Pode-se assegurar, então, que a
escolha, do sexo por parte do sujeito amoroso não tem relação demonstrável com
a atividade endócrina, isto é, com as secreções hormonais.
A segunda teoria importante sobre a possível origem física do
homossexualismo é, segundo D. J. West, a referente ao intersexualismo. Em
vista de ter sido impossível comprovar uma anormalidade hormonal nos
homossexuais, tentou-se investigar outros determinantes físicos, alguma
anomalia desconhecida, e certos pesquisadores, então, resolveram enquadrar o
homossexualismo como forma de intersexualismo. Intersexuais ou hermafroditas
são aqueles que não pertencem fisicamente por inteiro a um dos sexos, embora
apresentem traços de ambos. O sexo ao qual um indivíduo pertencerá se
determina no momento da concepção, e depende da variedade genética a que
corresponda o espermatozoide que fecunda o óvulo. As causas físicas do
intersexualismo ainda não foram bem determinadas; normalmente ele é
provocado por um transtorno endócrino que se produz durante o estado fetal.
São variadíssimos os graus de intersexualismo: em alguns, as glândulas sexuais
internas (ovários ou testículos) e a aparência física são contraditórias; em outros,
as glândulas sexuais internas constituem misturas de testículos e ovários; e em
outros, ainda, os órgãos genitais externos podem apresentar todas as fases
intermediárias entre os masculinos e os femininos, até, inclusive, ter pênis e
útero simultaneamente. O pesquisador T. Lang, em Estudos sobre a
determinação genética da homossexualidade, por exemplo, concluiu que os
homossexuais masculinos seriam geneticamente mulheres cujos corpos sofreram
uma completa inversão sexual em direção à masculinidade; para demonstrar sua
hipótese, realizou pesquisas e chegou à conclusão de que existiam homossexuais
homens nas famílias que tinham excesso de irmãos e carência de irmãs, sendo
assim o homossexual homem um produto intermediário de compensação não
realizada. Embora o dado seja interessante, a teoria formulada por Lang perde
valor, fatalmente, por não conseguir explicar as características físicas normais da
grande maioria, noventa e nove por cento, dos homossexuais. O pesquisador C.
M. R. Pare se baseia neste fato, em Homossexualismo e sexo cromossomático,
para rebater a teoria de Lang. Pare, depois de aplicar modernos métodos
microscópicos, identificou como sendo biologicamente masculinos todos os
homens homossexuais examinados durante uma longa pesquisa, que incluía
homens heterossexuais. Por outra parte, a teoria de Lang é também refutada por
J. Money em seu trabalho Estabelecimento do papel do sexo, ao afirmar que os
intersexuais, apesar de sua aparência bissexual, não são bissexuais ao chegar o
momento de escolher o objeto de seu desejo amoroso; os impulsos sexuais destes
indivíduos, afirma Money, não seguem o modelo de suas glândulas sexuais
internas, conforme tenham ovários, testículos ou glândulas mistas. Os desejos do
intersexual se adaptam aos do sexo no qual foi educado, mesmo que seus
cromossomos e as características dominantes de seus órgãos sexuais externos e
internos sejam do sexo oposto. De tudo isto se pode concluir que o
heterossexualismo e o homossexualismo, em todos os casos, seja o indivíduo de
constituição física normal ou não, são atividades adquiridas através de um
condicionamento psicológico, e não predeterminadas por fatores endócrinos.
A terceira e última teoria sobre a origem física do homossexualismo de que
trata West é aquela que apresenta o fator hereditário. West assinala que apesar da
seriedade dos estudos realizados, entre os quais destaca Estudo comparativo dos
aspectos genéticos da homossexualidade masculina, de F. Kallman, a vaguidão
das provas apresentadas não permite estabelecer que o homossexualismo seja
uma característica constitucional de tipo hereditário.
2
— Você cozinha bem.
— Obrigado, Valentín.
— Mas vai me habituar mal. Isso pode me prejudicar.
— Você é maluco, vive o momento, aproveita! vai estragar a comida
pensando no que pode acontecer amanhã?
— Não acredito nisso de viver o momento, Molina, ninguém vive o
momento. Isso fica para o paraíso terrestre.
— Você acredita no céu e no inferno?
— Espera, Molina, se vamos discutir, que seja com certa ordem;
desconversar é coisa de garotos, discussão de colégio.
— Eu não estou desconversando.
— Perfeito, então primeiro deixa eu ajeitar as ideias, fazer uma colocação
geral.
— Estou ouvindo.
— Eu não posso viver o momento, porque vivo em função de uma luta
política, ou melhor, atividade política, digamos, entende? Tudo o que posso
aguentar aqui, que é bastante... mas que não é nada se você pensa na tortura...
que você não sabe o que é.
— Mas posso imaginar.
— Não, não pode imaginar... Bem, mas eu aguento tudo... porque há uma
planificação. Existe o importante, que é a revolução social, e o secundário, que
são os prazeres dos sentidos. Enquanto durar a luta, que talvez dure toda a minha
vida, não me convém cultivar os prazeres dos sentidos, entende? porque são, na
verdade, secundários para mim. O grande prazer é outro, é saber que estou a
serviço do que há de mais nobre, que é... bem... todas as minhas ideias...
— Como, tuas ideias?
— Meus ideais... o marxismo, se você quiser que eu defina tudo com uma
palavra. E esse prazer eu posso sentir em qualquer lugar, aqui mesmo nesta cela,
e até na tortura. E essa é minha força.
— E tua mulherzinha?
— Isso também tem que ser secundário. Para ela eu também sou secundário.
Porque ela também sabe o que é o mais importante.
— Você inculcou isso nela?
— Não, acho que nós dois fomos descobrindo juntos. Entendeu o que eu quis
dizer?
— Entendi...
— Não parece muito convencido, Molina.
— Não, deixa pra lá. vou dormir.
— Você está louco! E a pantera? Fiquei em suspense desde ontem à noite.
— Amanhã.
— Mas que é que há com você?
— Nada...
— Fala...
— Não, sou um bobo, só isso.
— Explica, por favor.
— Olha, eu sou assim, as coisas me ferem. Te fiz esta comida, com as
minhas provisões, e o pior de tudo: gostando como gosto de abacate, te dei a
metade, podia ter guardado a metade para amanhã. E para quê... para você me
jogar na cara que te habituo mal.
— Não seja assim, você é sensível demais...
— Que é que há de se fazer, eu sou assim, muito sentimental.
— Demais. Isso é coisa...
— Por que você se cala?
— Nada.
— Diga, eu sei o que você ia dizer, Valentín.
— Não seja tolo.
— Diga; ia dizer que isso é coisa de mulher.
— Isso mesmo.
— E o que é que tem de errado em ser frouxo como uma mulher? Por que
um homem, ou seja lá o que for, um cachorro, ou uma bicha, não pode ser
sensível se lhe der na telha?
— Não sei, mas ao homem esse excesso pode incomodar.
— Para quê? Para torturar?
— Não, para acabar com os torturadores.
— Sim, mas se todos os homens fossem como as mulheres não haveria
torturadores.
— E o que é que você faria sem homens?
— Você tem razão. São uns brutos, mas gosto deles.
— Molina, mas você diz que se todos fossem como as mulheres não haveria
torturadores. Está aí uma colocação ao menos, irreal mas finalmente uma
colocação.
— Que maneira de dizer as coisas.
— Que maneira como?
— Você é muito depreciativo quando fala: “está aí uma colocação ao
menos”.
— Bem, desculpa se te magoei.
— Não há nada que desculpar.
— Bem, então fica mais contente e não me põe de castigo.
— Castigo como? Está louco.
— Finge que nada aconteceu, então.
— Quer que continue o filme?
— Claro, homem.
— Que homem? onde está o homem, diz onde que eu não deixo fugir. , —
Bem, chega de brincadeira e conta.
— Onde estávamos mesmo?
— A arquiteta minha namorada não escutava mais passos humanos.
— Bem, aí ela começa a tremer de terror, está desnorteada, não ousa se virar
com medo de ver a pantera, para um momento para ver se torna a ouvir passos
humanos, mas nada, o silêncio é total, apenas um murmúrio de árvores mexidas
pelo vento... ou por outra coisa. Então lança um grito de desespero que é como
uma mistura de choro e queixa, quando o grito fica como que coberto pela porta
automática do ônibus que acaba de parar junto dela. Essas portas hidráulicas que
fazem como um barulho de ventosa — e está salva. O motorista a viu ali de pé e
abriu a porta; pergunta o que é que ela tem, ela diz que nada, que não se sente
bem, só isso. E sobe... Bem, e quando Irena volta para casa está desgrenhada, os
sapatos sujos de lama. Ele está totalmente desorientado, não sabe o que dizer, o
que fazer com esse bicho estranho com quem se casou. Ela entra, nota-o
esquisito, vai ao banheiro para deixar os sapatos enlameados, e ouve que ele diz,
tomando coragem de falar porque ela não o olha, que foi buscá-la no consultório
do médico e tomou conhecimento de que ela não tinha ido mais lá. Ela então
chora e lhe diz que está tudo perdido, que é o que sempre teve medo de ser, uma
louca, com alucinações, ou ainda pior... uma mulher-pantera.
Ele amolece de novo e a toma nos braços, e você tinha razão, para ele, ela é
como uma menina, porque quando a vê assim tão indefesa, tão perdida, sente de
novo que a ama loucamente e aconchega a cabeça dela em seu ombro, o ombro
dele, e lhe acaricia o cabelo e lhe diz para ter fé, que tudo vai se ajeitar.
— Até que o filme é bom.
— Mas continua, não acabou.
— Já sei, imagino que não vai ficar nisso. Sabe que eu gosto? é como uma
alegoria, aliás muito clara, do medo que a mulher tem de se entregar ao homem,
porque ao entregar-se ao sexo torna-se um pouco animal, entende?
— E daí...
— Existe esse tipo de mulher, que é muito sensível, espiritual demais, e foi
criada com a ideia de que o sexo é sujo, que é pecado, e esse tipo de mulher se
estrepa toda, se superestrepa, o mais provável é que seja frígida quando casar,
porque tem uma barreira dentro, fizeram-na erguer uma barreira, ou uma
muralha, e por ali não passa nem bala.
— Nem outras coisas ainda menos.
— Agora que estou falando sério, lá vem você com piadas, está vendo como
você também é?
— Continua, voz da sabedoria.
— Isso mesmo. Continua com a pantera.
— Bem, o caso é que ele a convence de tornar a ter fé e ir ao médico.
— A mim.
— Sim, mas ela diz que há qualquer coisa no médico que não lhe agrada.
— Claro, porque se a curar vai entregá-la à vida matrimonial, ao sexo.
— Mas o marido a convence de voltar. E ela vai, mas com medo.
— Você sabe de que é o medo, antes de mais nada?
— De quê?
— O médico é um tipo sexual, você disse.
— É.
— Aí está o problema, porque ele a excita, e por isso ela resiste a entregar-se
ao tratamento.
— Bem, ela vai ao consultório. E diz com toda a sinceridade que seu medo
maior é que um homem a beije e ela vire pantera. E o médico aí se engana, e
quer lhe tirar o temor demonstrando que ele próprio não tem medo dela, que tem
certeza de que é uma mulher encantadora, adorável e mais nada, isto é, o sujeito
escolhe um tratamento meio maroto, porque levado pelo desejo procura a
maneira de beijá-la, isso é que ele procura. Mas ela não se entrega, ao contrário,
percebe que sim, que o médico tem razão e que ela é normal e vai-se embora do
consultório na mesma hora e sai contente, vai direto ao escritório dos arquitetos,
como com o propósito, a decisão já tomada, de entregar-se ao marido naquela
noite. Está feliz, e corre, e chega quase sem fôlego. Mas fica paralisada na porta.
Já é tarde e todos foram embora, menos o marido e a colega, e estão falando, de
mãos dadas, não se sabe se é um sinal de amizade ou o quê. Ele está falando,
com o olhar baixo, enquanto a colega o escuta compreensiva. Não percebem que
alguém entrou. E aqui me falha a memória.
— Espera um pouco, volta logo.
— Lembro que tem uma cena de uma piscina, e outra lá no escritório dos
arquitetos, e mais outra, a última, com o psicanalista.
— Não vai dizer que no fim a pantera fica comigo.
— Não. Não se apresse. Bem, toda essa parte final, se você quiser, eu te
conto desconjuntada, só o que me lembro.
— Bem.
— Então, lá no escritório estão ele e a outra falando, e param de falar porque
escutam uma porta que range. Olham e não há ninguém, o escritório está escuro,
só a mesa deles, com aquela luz meio sinistra de baixo para cima. E se ouvem
pisadas de animal, que amassam algum papel ao pisá-lo e, sim, agora me lembro,
há uma cesta para papéis num canto escuro e a cesta vira e as pisadas fazem
ranger os papéis. A outra solta um grito e se refugia atrás dele. Ele grita: “Quem
está aí? Quem é?”, e então pela primeira vez se ouve a respiração do animal,
como um rugido entre dentes, entende? Ele não sabe com que se defender e pega
uma régua dessas grandes. E nota-se que inconscientemente ou seja como for ele
lembra do que Irena contou, que a cruz espanta o diabo e a mulher-pantera, e a
luz da mesa projeta umas sombras como de gigante em cima da parede, dele com
a colega agarrada a ele, e a poucos metros a sombra de uma fera de cauda
comprida, e parece que ele está segurando uma cruz na mão. São somente as
réguas de desenho que ele coloca em cruz, mas aí se ouve um rugido terrível e
na escuridão os passos do animal que foge espavorido. Bem, agora não me
lembro da continuação, se naquela mesma noite, acho que sim, a outra volta para
casa, que é como um hotel de mulheres muito grande, um clube de mulheres,
onde mora, com uma grande piscina de natação no subsolo. A arquiteta está
muito nervosa por tudo o que aconteceu, e aquela noite ao voltar ao hotel onde é
proibida a entrada de homens pensa que para acalmar seus nervos que estão tão
alterados a melhor coisa seria descer e nadar um pouco. Já é noite fechada e não
há absolutamente ninguém na piscina. Lá embaixo há vestiários e ela tem um
armário onde pendura a roupa e veste o maiô e a saída de banho. Enquanto isso,
abre-se a porta da rua e aparece Irena. Pergunta pela outra à mulher da portaria, e
a porteira diz, sem desconfiar de nada, que a outra acaba de descer para a
piscina. Irena, por ser mulher, não tem o menor problema para entrar, deixam ela
passar. Embaixo, a piscina está às escuras, a outra sai do vestiário e acende as
luzes, as da piscina, que ficam debaixo d'água. Está ajeitando o cabelo para
colocar a touca de banho quando escuta passos. Pergunta, um pouquinho
alarmada, se é a porteira. Não há resposta. Então fica aterrorizada, larga a saída
de banho e mergulha. Olha do meio da água para as bordas da piscina, que estão
escuras, e se ouvem os rugidos de uma fera preta que passeia enfurecida, quase
não se vê, mas uma sombra vai como que deslizando pela beirada. Os rugidos
mal se ouvem, são sempre rugidos como entre dentes, e brilham seus olhos
verdes olhando a outra na piscina que aí sim começa a gritar feito louca.
Enquanto isso a porteira desce e acende todas as luzes, pergunta o que está
acontecendo. Aqui não tem ninguém, por que essa gritaria toda? A outra está
envergonhada, não sabe como explicar o medo que sente, imagina como é que
vai dizer que apareceu ali uma mulher-pantera. E então diz que pensou que havia
alguém lá, um animal escondido. E a porteira a olha como que dizendo que é que
esta babaca está falando, veio uma amiga visitá-la e se assusta por causa disso,
por ouvir uns passos, e estão nisso quando avistam no chão a saída de banho em
farrapos e pegadas de patas de animal, que pisou no molhado... Está me
ouvindo?
— Sim, mas não sei por que esta noite só faço pensar em outra coisa.
— Em quê?
— Em nada, não posso me concentrar...
— Vamos, te abre um pouco.
— Penso em minha companheira.
— Como se chama?
— Não vem ao caso. Olha, nunca te falei dela, mas penso sempre nela.
— Por que ela não escreve?
— Como é que você sabe se ela não escreve! Posso te dizer que recebo
cartas de outra pessoa e são dela. Ou você revista as minhas coisas na hora do
banho?
— Está louco. Mas é que você nunca me mostrou carta dela.
— Bem, é que eu nunca quero falar nisso, mas não sei, agora tinha vontade
de comentar uma coisa... que quando você começou a contar que a pantera
seguia a arquiteta fiquei com medo.
— De quê?
— Não fiquei com medo por minha causa, mas pela minha companheira.
— Ah...
— Estou maluco, puxar um assunto desses.
— Por quê? Fale se quiser...
— Quando você começou a contar que a pantera seguia a moça, imaginei
que minha companheira estava em perigo. E me sinto tão impotente aqui, sem
condições de avisar que se cuide, que não se arrisque demais.
— Te entendo.
— Bem, você deve imaginar, se ela é minha companheira, é porque também
está na luta. Embora não devesse te falar, Molina.
— Não se preocupe.
— É que não quero te dar informações, é melhor que você não saiba. São
uma carga, e já basta o teu problema.
— Eu também, sabe, tenho essa sensação, daqui, de não poder fazer nada;
mas no meu caso não é uma mulher, quero dizer, uma moça: é minha mãe.
— Tua mãe não está sozinha, não? Ou está?
— Bem, está com minha tia, irmã de meu pai. Mas é que está doente. Tem
pressão alta e o coração falha um pouco.
— Mas essas coisas podem durar, aguentar anos, você sabe...
— Mas é preciso lhe evitar desgostos, Valentín.
— Que se há de fazer...
— Sim, pior do que já fiz não é possível.
— Por que diz isso?
— Imagina, a vergonha de ter um filho preso. E a causa.
— Não pensa mais nisso. O pior passou, não? Agora o negócio é se
conformar, mais nada.
— Mas é que ela sente muita falta de mim. Éramos muito unidos.
— Não pensa mais. Ou então... te consola pelo fato dela não estar em perigo,
como a pessoa de quem eu gosto.
— Mas ela tem o perigo dentro, leva o inimigo dentro dela, que é o coração
fraco.
— Ela te espera, sabe que você vai sair, oito anos passam, e com a esperança
de bom comportamento e tudo. Isso lhe dá forças para te esperar, pensa nisso.
— Sim, você tem razão.
— Senão, você fica louco.
— Fala mais de tua noiva, se te dá vontade...
— Que é que posso te dizer? Não tem nada a ver com a arquiteta, não sei por
que a associei.
— É bonita?
— É, sim.
— Podia ser feia, por que está rindo, Valentín?
— Nada, não sei por que estou rindo.
— Mas em que acha tanta graça?
— Não sei...
— Alguma coisa deve ser... você ri de alguma coisa.
— De você, e de mim.
— Por quê?
— Não sei, deixa eu pensar, porque não poderia te explicar.
— Bem, mas para com esse riso.
— É melhor eu falar quando souber direito de que é que eu estou rindo.
— Acabo o filme?
— Sim, por favor.
— Onde estávamos?
— A moça se salva na piscina.
— Bem, como era então... Agora vem o encontro com a pantera e o
psicanalista.
— Desculpa... Não vai ficar aborrecido.
— Que é que há?
— Melhor continuarmos amanhã, Molina.
— Falta pouco para acabar.
— Não posso me concentrar no que você conta. Desculpa.
— Você se encheu?
— Não, não é isso. Tenho uma confusão na cabeça. Quero ficar calado, para
ver se passa a histeria. Porque estava rindo de histerismo.
— Como quiser.
— Quero pensar em minha companheira, há uma coisa que não entendo e
quero pensar. Não sei se já te aconteceu, você sente que está por perceber algo,
que você tem a ponta da meada e que se não começa a puxar logo... ela foge.
— Bem, então até amanhã.
— Até amanhã.
— Amanhã acaba o filme.
— Você não sabe que pena me dá.
— A você também?
— Sim, gostaria que continuasse mais um pouco. E o pior é que vai acabar
mal, Molina.
— Mas você gostou de verdade?
— Bem, as horas passaram mais depressa, não é?
— Mas gostar mesmo, você não gostou.
— Gostei, e tenho pena que acabe.
— Mas que bobagem, posso contar outro.
— É mesmo?
— Sim, me lembro perfeito-perfeito de muitos.
— Então muito bem, pense agora num que tenha gostado muito, e enquanto
isso eu penso no que tenho que pensar, de acordo?
— Puxa a meada.
— Ótimo.
— Mas se a linha se emaranhar, menina Valentina, te dou zero em trabalhos
domésticos.
— Não se preocupe comigo.
— Está bem, não me meto mais.
— E não me chame de Valentina, que não sou mulher.
— Não tenho provas.
— Sinto muito, Molina, mas não faço demonstrações.
— Não se preocupe que não vou pedir.
— Até amanhã, descansa.
— Até amanhã.
....................................................
....................................................
....................................................
— Estou escutando.
— Bem, como já disse ontem, não me lembro direito dessa última parte. O
marido naquela mesma noite chama o psicanalista em casa, esperam por Irena,
que não está.
— Em que casa?
— Na do arquiteto. Então a colega chama o rapaz no hotel de mulheres para
irem juntos à polícia, porque acaba de acontecer a história da piscina, então o
rapaz deixa o psicanalista sozinho por algum tempo, e zás!, quando Irena chega
em casa encontra-se frente a frente com o psicanalista. É noite, o quarto está
iluminado só com uma lampadazinha. O psicanalista, que estava lendo, tira os
óculos, fita-a. Irena sente essa mistura de desejo e rejeição por ele, porque é
atraente, já te disse, um tipo sexual. E aí acontece uma coisa esquisita, ela se
atira nos braços dele, porque está desamparada, sente que ninguém gosta dela,
que o marido a abandonou. E o psicanalista interpreta que ela o deseja
sexualmente, e logo pensa se a beija e até se consegue fazer o serviço completo,
assim tirará da cabeça dela aquelas ideias estranhas de que é uma mulher-
pantera. E a beija e se esfregam, se abraçam e se beijam. Até que ela... vai como
que escorregando, fita-o com os olhos semicerrados, brilham seus olhos verdes
com desejo e ao mesmo tempo com ódio. E se desprende e vai para o outro lado
daquela sala de móveis tão bonitos fim de século. Tudo com sofás de veludo e
mesas com paninhos de croché. Mas ela vai para aquele canto porque lá não
chega a luz do abajur. E se joga no chão, o psicanalista quer se defender mas é
tarde demais, porque ali naquele canto escuro tudo se torna confuso um instante
e ela já se transformou em pantera, e ele chega a segurar o atiçador da lareira
para se defender mas a pantera já pulou em cima dele, ele quer dar golpes com o
atiçador mas já com uma garra ela lhe abriu o pescoço e o homem cai no chão
jorrando sangue aos borbotões, a pantera urra e mostra os caninos brancos
perfeitos e afunda outra vez as garras, agora no rosto, para estraçalhá-lo, as
bochechas e a boca que momentos antes a beijara. Enquanto isso a arquiteta já
está com o marido de Irena que foi a seu encontro e da recepção do hotel
telefonam para o psicanalista para avisá-lo que está em perigo, porque já não
resta a menor dúvida, não era só imaginação de Irena, ela é realmente uma
mulher-pantera.
— Não, é uma psicopata assassina.
— Bem, mas o telefone toca e toca e ninguém atende, o psicanalista está
deitado e morto, esvaindo-se em sangue. Então o marido, a colega e a polícia,
que já tinham ligado, vão até a casa, sobem devagar pela escada, encontram a
porta aberta e lá dentro o sujeito morto. Ela, Irena, não está.
— E então?
— O marido sabe onde pode encontrá-la, é o único lugar onde ela vai, e
embora já seja meia-noite vão até o parque, mais precisamente ao jardim
zoológico. Ah, mas me esqueci de contar uma coisa!
— O quê?
— Aquela tarde Irena foi ao jardim zoológico, como todas as tardes, para ver
a tal pantera que a deixa como que hipnotizada. E estava lá quando chega o
zelador com as chaves para dar a carne às feras. O zelador é aquele velho
desmemoriado de quem te falei. Irena manteve-se a certa distância, mas viu
tudo. O zelador aproximou-se com as chaves, abriu a fechadura da jaula, afastou
a tranca atravessada, abriu a porta e jogou lá dentro pedaços enormes de carne,
depois tornou a correr a tranca da porta da jaula, mas esqueceu a chave na
fechadura. Quando ele não está vendo, Irena se aproxima da jaula e esconde a
chave. Bem, tudo isso aconteceu de tarde, mas agora já é noite e o psicanalista já
está morto, quando o marido com a outra e a polícia se mandam para o jardim
zoológico, que fica a poucos quarteirões. Mas Irena está chegando na própria
jaula da pantera. Vai andando como uma sonâmbula. Está com as chaves na mão.
A pantera está dormindo, mas o cheiro de Irena a acorda, Irena olha para ela
através das grades. Aproxima-se da porta devagar, coloca a chave na fechadura,
abre. Enquanto isso, os outros vêm chegando, ouvem-se os automóveis se
aproximando com as sirenes para abrir caminho no meio do tráfego, embora
àquela hora o lugar já estivesse quase deserto. Irena puxa a tranca e abre a porta,
deixa o caminho livre à pantera. Irena está como que transportada a outro
mundo, tem uma expressão estranha, entre trágica e de prazer, os olhos úmidos.
A pantera de um pulo escapa da jaula, por um instante parece suspensa no ar,
diante dela não há outra coisa senão Irena. com o próprio impulso que traz, já a
derruba. Os automóveis estão se aproximando. A pantera corre pelo parque e
atravessa a estrada no exato momento em que passa a toda a velocidade um dos
carros da polícia. O automóvel a esmaga. Descem e dão com a pantera morta. O
rapaz vai até as jaulas e encontra Irena atirada no cascalho, lá mesmo onde a
conheceu. Irena tem o rosto desfigurado pela garra, está morta. A jovem colega
chega até onde ele está e vão embora juntos e abraçados, tratando de esquecer
aquele espetáculo terrível que acabam de presenciar, e fim.
—...
— Gostou?
— Sim...
— Muito ou pouco?
— Pena que tenha acabado.
— Passamos bons momentos, não é?
— É mesmo.
— Fico satisfeito.
— Eu estou louco.
— Que é que você tem?
— Me dá pena que tenha acabado.
— Bom, te conto outro.
— Não, não é isso. Você vai rir do que vou te dizer.
— Fala.
— Me dá pena porque me afeiçoei aos personagens. E agora acabou, e é
como se estivessem mortos.
— Finalmente, Valentín, você também curte as coisas.
— Tem que sair por alguma parte... a fraqueza, quero dizer.
— Não é fraqueza, meu chapa.
— É estranho que a gente não consiga deixar de se afeiçoar a alguma coisa...
É... como se a mente segregasse sentimento, sem parar...
— Você acredita?
— ... assim como o estômago segrega suco para digerir.
— Você acha?
— Sim, como uma torneira mal fechada. E essas gotas vão caindo em cima
de alguma coisa, não se pode pará-las.
— Por quê?
— Sei lá... porque já estão extravasando do corpo que as contém.
— E você não quer pensar em sua companheira.
— Mas é como se não pudesse evitar... porque me afeiçoo a qualquer coisa
que tenha algo dela.
— Conta um pouco como ela é.
— Daria... qualquer coisa para poder abraçá-la, ainda que fosse só por um
instante.
— O dia chegará.
— É que às vezes penso que não vai chegar.
— Você não está condenado à prisão perpétua.
— Pode acontecer alguma coisa com ela.
— Escreve, diz que não se arrisque, que você precisa dela.
— Isso nunca. Se você pensar assim nunca vai conseguir mudar nada no
mundo.
— E você acha que vai mudar o mundo?
— Sim... e não me incomodo que você ria. Dá vontade de rir, mas o que eu
tenho para fazer é mudar o mundo.
— Mas você não pode mudá-lo de repente, e sozinho não dá.
— Não estou sozinho, é isso!... está me ouvindo?... a verdade é essa, é isso o
importante!... Neste momento não estou sozinho, estou com ela e com todos
aqueles que pensam como ela e eu, é isso!... e não posso me esquecer. É esse o
fio da meada que às vezes me escapa. Mas por sorte já o agarrei. E não vou
soltá-lo... Não estou longe de todos os meus companheiros, estou com eles!
agora, neste momento!... não tem importância que não possa vê-los.
— Se é esse o jeito de você se conformar, ótimo.
— Como você é idiota!
— Que palavras...
— Então não seja irritante... Não fala assim, como se eu fosse um sonhador
que se deixa enganar por qualquer coisa, sabe que não é assim! Não sou um
charlatão que fala de política no bar, não é? a prova é que estou aqui, não num
bar!
— Desculpa.
— Está bem...
— Você ia falar sobre sua companheira e não falou mais nada.
— Não, é melhor esquecer isso.
— Como queira.
— Embora não tenha por que não falar. Não deve me fazer mal falar nela.
— Se te faz mal não...
— Não há de me fazer mal... A única coisa que é melhor não dizer é o nome.
— Agora lembrei do nome da atriz que faz o papel de arquiteta.
— Qual é?
— Jane Randolph.
— Nunca ouvi falar.
— É muito antiga, dos anos quarenta, por aí. Podemos chamar tua
companheira de Jane Randolph.
— Jane Randolph.
— Jane Randolph no... Mistério da cela sete.
— Uma das iniciais coincide...
— Qual?
— O que é que você quer que te conte sobre ela?
— O que quiser, que tipo de moça é.
— Tem vinte e quatro anos, Molina. Dois menos que eu.
— Treze menos que eu.
— Sempre foi revolucionária. Primeiro começou pela... bem, não vou fazer
cerimônia com você... começou pela revolução sexual.
— Conta, por favor.
— Ela é de família burguesa, gente não de muito dinheiro, mas sabe, que
vive folgada, casa de dois andares em Cabalito. Mas em toda a sua infância e
juventude se encheu de ver os pais se destruírem um ao outro. com o pai que
enganava a mãe, sabe o que quero dizer...
— Não, o que é que você quer dizer?
— Enganava-a pelo fato de não dizer que precisava de outras relações. E a
mãe deu de criticá-lo diante da filha, deu de bancar a vítima. Não acredito no
casamento, mais precisamente na monogamia.
— Eu acho tão bonito um casal que se ama para o resto da vida.
— Você gostaria disso?
— É meu sonho.
— Então por que é que gosta de homem?
— Não tem nada a ver... Eu queria me casar com um homem para o resto da
vida.
— Então, no fundo você é um senhor burguês?
— Uma senhora burguesa.
— Mas não percebe que tudo é uma falsidade? Se você fosse mulher não
gostaria disso.
— Estou apaixonado por um homem maravilhoso, e a única coisa que queria
era morar com ele para o resto da vida.
— E como isso é impossível, porque se ele é homem há de gostar de uma
mulher, bem, você nunca vai conseguir o que deseja.
— Continua com a história de tua companheira, não estou com vontade de
falar de mim.
— E bem, como ia dizendo, ah... como era o nome dela?
— Jane, Jane Randolph.
— Jane Randolph foi criada para ser uma dona de casa. Lições de piano,
francês e desenho, e acabado o ginásio a Universidade Católica.
— Arquitetura! Foi por isso que você a associou.
— Não, sociologia. Já aí começou a confusão em casa. Ela queria ir para a
faculdade do Estado mas a obrigaram a matricular-se na Católica. Lá conheceu
um rapaz, apaixonaram-se e tiveram relações. O rapaz também morava com os
pais mas saiu de casa, empregou-se como telefonista noturno e alugou um
apartamento pequeno, e aí começaram a passar o dia todo.
— E não estudaram mais.
— Aquele ano estudaram menos, no começo, mas depois ela estudou muito.
— Mas ele não.
— Exato, porque trabalhava. E um ano depois Jane foi morar com ele. Em
casa dela deu confusão no começo mas depois se conformaram. Pensaram que
como eles se gostavam tanto iam casar. O rapaz queria casar. Mas Jane não
queria repetir nenhum esquema antigo e tinha desconfiança.
— Abortos?
— Sim, um. Isso lhe deu mais segurança em vez de deprimi-la. Percebeu
com clareza que se tivesse um filho ela própria não ia conseguir amadurecer, não
ia poder seguir uma evolução. Sua liberdade ia ficar limitada. Foi trabalhar numa
revista como redatora, ou melhor, como informante.
— Informante?
— Sim.
— Que palavra feia.
— É um trabalho mais fácil que o de redator, em geral você vai para a rua à
cata de informações que depois vão ser usadas nos artigos. E aí conheceu um
rapaz da seção de política. Viu logo que precisava dele, que a relação com o
outro estava esvaziada.
— Por que esvaziada?
— Tinham dado um ao outro tudo o que podiam. Eram muito agarrados, mas
jovens demais para ficarem naquilo, ainda não sabiam direito... o que queriam,
nenhum dos dois. E... Jane propôs ao rapaz uma abertura na relação. E o rapaz
topou, e ela começou a se encontrar com o companheiro da revista também.
— Continuava dormindo em casa do garoto?
— Sim, e às vezes não. Até que foi morar definitivamente com o redator.
— De que tendência era o redator?
— De esquerda.
— E passou tudo para ela?
— Não, ela sempre tinha sentido necessidade da mudança. Bem, você sabe
que é tarde, não?
— Já são duas horas da manhã.
— Amanhã continuo, Molina.
— Você é vingativo.
— Não, boboca. Estou cansado.
— Eu não. Estou sem sono nenhum.
— Até amanhã.
— Até amanhã.
....................................................
— Já dormiu?
— Não, disse que estava sem sono.
— Tenho um pouco de insônia.
— Você disse que estava com sono.
— Sim, mas depois fiquei pensando, porque deixei você na mão.
— Me deixou na mão?
— Sim, parei de conversar.
— Não te preocupes.
— Está se sentindo bem?
— Sim.
— E por que não dorme?
— Não sei, Valentín.
— Olha, eu estou com um pouco de sono e vou dormir logo. E tenho uma
solução para você pegar no sono.
— Qual é?
— Pensa no filme que você vai me contar.
— Ótimo.
— Mas que seja bom, como o da pantera. Escolhe direito.
— E você vai me falar mais de Jane.
— Não, isso não sei... Vamos fazer uma coisa: quando eu sentir que posso te
contar algo, conto com o maior prazer. Mas não me peça, eu mesmo vou puxar o
assunto.
Tá?
Tá.
E agora pensa no filme.
bom.
Tchau.
Tchau.
3
— Estamos em Paris, os alemães ocuparam a cidade já há algum tempo. As
tropas nazistas passam bem no meio do Arco do Triunfo. Em toda parte, como
nas Tulherias e essas coisas, está tremulando a bandeira com a cruz suástica. Os
soldados desfilam, todos louros, bonitos, e as moças francesas os aplaudem ao
passar. Uma tropa de poucos soldados vai por uma ruazinha típica, e entra num
açougue, o açougueiro é um velho de nariz adunco, com a cabeça pontuda, e um
gorrinho lá no cocuruto.
— Como um rabino.
— E cara de sacana. E fica com muito medo quando vê que os soldados
entram e começam a revistar tudo.
— O que é que eles revistam?
— Tudo, e encontram um porão secreto cheio de mercadoria açambarcada,
que, está na cara, vem do mercado negro. E o povinho se junta do lado de fora da
loja, sobretudo donas de casa, e franceses de boina, com jeito de operários,
comentando a prisão do velho sem-vergonha, e dizem que não haverá mais fome
na Europa porque os alemães vão acabar com os exploradores do povo. E
quando os soldados nazistas saem, uma velhinha abraça o rapaz que os
Comanda, um tenente mocinho, com cara de bom, e lhe diz obrigada, meu filho,
ou algo assim. Enquanto isso, uma caminhonete vinha vindo por aquela
ruazinha, mas um homem que está do lado do sujeito que dirige, ao avistar os
soldados ou as pessoas aglomeradas, manda o motorista parar. O motorista tem
uma cara de assassino tremenda, meio caolho, cara entre de retardado e
criminoso. E o outro, nota-se que é ele quem manda, olha para trás e coloca uma
lona que cobre a carga que levam que é comida açambarcada. E dão marcha à ré
e fogem de lá, até que o sujeito que comanda desce da caminhonete e entra num
bar típico de Paris. É capenga, usa um dos sapatos com um salto anabela
altíssimo, com acabamento muito esquisito de prata. Fala pelo telefone para
avisar sobre o agiota que foi detido e, quando vai desligar, a título de
cumprimento, diz viva os maquis, porque são todos dos maquis.
— E onde foi que você viu?
— Aqui em Buenos Aires, num cinema de bairro em Belgrano.
— E antigamente levavam filmes nazistas?
— Sim, eu era pequeno mas durante a guerra chegavam filmes de
propaganda. Mas eu os vi depois, porque continuavam levando aqueles filmes.
— Em que cinema?
— Num pequeno que ficava na parte mais alemã do bairro de Belgrano, a
parte que era toda de casas grandes com jardim, na parte de Belgrano que não dá
para o lado do rio, que dá para o outro lado, para Villa Urquiza, sabe? Foi posto
abaixo há poucos anos. Minha casa fica perto, mas do lado onde mora a
gentinha.
— Continua com o filme.
— Bem, de repente aparece um teatro formidável em Paris, de luxo, todo
atapetado de veludo escuro, com barras cromadas nas frisas e escadas e varandas
também sempre cromadas. É de variedades, e há só um número musical de
coristas, com um corpo divino, e nunca vou esquecer porque de um lado estão
pintadas de preto e quando dançam segurando-se pela cintura e a câmara as
focaliza parecem pretas, com um saiote todo de bananas, mais nada, e quando
batem os pratos eles mostram o outro lado, e todas são loiras, e em vez de
bananas usam umas tirinhas de strass, e mais nada, um arabesco de strass.
— O que é strass?
— Não acredito que você não saiba.
— Não sei o que é.
— Agora está outra vez na moda, é como os brilhantes, só que sem valor,
pedacinhos de vidro que brilham, e com isso fazem tiras, e qualquer tipo de joia
falsa.
— Não perde tempo, me conta o filme.
— E quando acaba aquele número o cenário fica todo no escuro até que lá
em cima começa a levantar-se uma luz, como se fosse névoa, e se desenha uma
silhueta de mulher divina, alta, perfeita, mas muito apagada, que cada vez vai
aparecendo melhor, porque ao aproximar-se vai atravessando pendentes de tule,
e, claro, cada vez se pode distingui-la melhor, envolta numa roupa de lamé
prateado que se ajusta à silhueta dela como uma luva. A mulher mais linda que
você possa imaginar. E canta uma canção primeiro em francês e depois em
alemão. E está no alto da cena e de repente aos pés dela se acende como um raio
uma linha reta de luz, e ela vai dando passos para baixo e a cada passo, paf!,
mais uma linha reta de luz, e afinal todo o cenário fica atravessado por aquelas
linhas, e na realidade cada linha era a beira de um degrau, e se formou de um
momento para outro uma escada toda de luzes. E numa frisa tem um oficial
alemão jovem, não tão jovem como o tenente do começo, mas também muito
alinhado.
— Louro.
— Sim, e ela é morena, branquíssima mas de cabelo bem preto.
— E o corpo dela como é? magra ou bem-feita?
— Não, é alta mas bem formada, embora não fosse peituda, porque naquela
época se usava a silhueta lambida. E ao cumprimentar cruzam-se os olhares com
o oficial alemão.
E quando vai para o camarim encontra um belo buquê de flores sem cartão.
E aí bate na porta uma das coristas loiras, bem francesa. Bem, o que não te
contei é que o que ela cantou foi muito esquisito, fico com medo cada vez que
me lembro daquele número que ela canta, porque quando canta está como que
olhando fixo para o vácuo, e não com olhar de felicidade, não vai pensar que é
assim, não, está assustada, mas ao mesmo tempo não faz nada para se defender,
está como que entregue ao que vai acontecer.
— E o que é que ela canta?
— Não tenho ideia, uma canção de amor, na certa. Mas me impressionou.
Bem, e no camarim aparece uma das coristas loiras toda alvoroçada e conta o
que está acontecendo, porque quer que seja ela, a atriz que mais admira, a
primeira a saber o que está acontecendo. É que vai ter um filho. E, claro, a
cantora que se chama Leni, nunca vou esquecer, se alarma porque sabe que a
moça é solteira. Mas a outra diz para ela não se preocupar, que o pai da criança é
um oficial alemão, um rapaz jovem que gosta muito dela e vão ajeitar tudo para
se casarem. Nisso o rosto da corista se anuvia um pouco, e diz a Leni que tem
medo de outra coisa. Leni lhe pergunta se acha que o rapaz vai deixá-la. A moça
diz que não, que tem medo de outra coisa. Leni lhe pergunta de quê, mas a moça
lhe diz que não é nada, bobagens, e vai embora.
Então Leni fica sozinha e pensa se ela podia amar um invasor de sua pátria, e
fica pensando...
e aí vê as flores que lhe mandaram, e pergunta à sua criada pessoal que flores
são aquelas, e acontece que são dos Alpes alemães, trazidas especialmente a
Paris, caríssimas. Enquanto isso a corista loira anda pelas ruas de Paris, umas
ruas escuras à noite por causa da guerra, mas olha para cima e vê que no último
andar de um edifício antigo de apartamentos a luz está acesa, e seu rosto se
ilumina com um sorriso. Tem um reloginho antigo, como um clipe no peito, olha
para ele e vê que é justamente meia-noite. Então abre-se uma janela lá onde tem
luz e aparece o mesmo rapaz do começo, o tenentezinho alemão, e lhe sorri com
cara de muito apaixonado, e joga a chave que cai no meio da rua. E ela vai
apanhá-la. Mas desde o começo nessa rua tinha passado como que uma sombra.
Não, estava um carro estacionado perto, e na escuridão mal se entrevê que tem
alguém dentro daquele carro. Não, agora me lembro!, quando a moça vai
andando por aquele bairro acha que alguém a segue, e se ouve um passo
esquisito, primeiro uma pisada e depois algo que se arrasta.
— O capenga.
— E depois já aparece o capenga, que vê chegar um cupê, e quem dirige é o
caolho com cara de assassino. O capenga sobe no carro e faz sinal ao assassino.
O carro arranca a toda a velocidade. E quando a moça está no meio da ruazinha e
se abaixa para apanhar a chave, os caras do carro passam a toda a velocidade e a
atropelam.
E depois vão em frente e se perdem nas ruas escuras e sem movimento. O
rapaz, que viu tudo, desce desesperado. A moça está agonizando, ele a segura
nos braços, ela quer dizer alguma coisa, mal se entende, diz que não tenha medo,
que o filho vai nascer são e vai ser o orgulho do pai. E fica com os olhos abertos,
perdidos, já morta. Está gostando do filme?
— Ainda não sei. Mas continua, por favor.
— Bem. Então acontece que na manhã do dia seguinte chamam Leni para
declarar tudo o que souber à polícia alemã, porque sabem que ela era confidente
da moça morta.
Mas Leni não sabe nada, só que a moça estava apaixonada por um tenente
alemão, mais nada. Mas não acreditam, e a detêm por umas horas, mas como ela
é uma cantora conhecida uma voz pelo telefone ordena que a ponham em
liberdade vigiada, para que aquela noite possa trabalhar, como todas as noites.
Leni está assustada, mas canta aquela noite e ao voltar ao camarim encontra de
novo as flores dos Alpes alemães e está procurando o cartão quando uma voz de
homem lhe diz que não procure, que agora ele as trouxe pessoalmente. Ela se
vira, sobressaltada. É um oficial de alta hierarquia, mas bastante jovem, o
homem mais alinhado que se possa imaginar. Ela lhe pergunta quem é, mas,
claro, já percebeu que é o mesmo que a aplaudiu tanto na noite anterior, o da
frisa. Ele diz que é responsável pelos serviços alemães de contraespionagem em
Paris, e vem desculpar-se pelos transtornos daquela manhã. Ela pergunta se as
flores são de seu país, e ele diz que são do Alto Palatinado, onde nasceu, junto
de um lago maravilhoso entre montanhas de cumes nevados. Mas esqueci de te
dizer uma coisa, ele não está de uniforme, mas de smoking, e a convida para
jantar depois do espetáculo na boate mais fabulosa e pequenina de Paris. Tem
uma orquestra de músicos negros, e quase não se enxergam as pessoas na
escuridão, um refletor bem fraco cai sobre a orquestra e mostra o ar carregado de
fumaça. Tocam um jazz de antigamente, bem de negros, ele pergunta por que é
que ela tem nome alemão, Leni, e sobrenome francês, que não me lembro como
era. E ela diz que vem da Alsácia, na fronteira, onde às vezes tremulou a
bandeira alemã. Mas também diz que foi educada no amor à França, e que ela
quer o bem de seu país, e que não sabe se os ocupantes estrangeiros vão ajudá-
lo.
Ele diz que não tenha a menor dúvida, que o dever da Alemanha é libertar a
Europa dos verdadeiros inimigos do povo, que se ocultam às vezes sob a
máscara de patriotas.
Ele pede uma espécie de aguardente alemã, e naquele momento parece que
ela quer contrariá-lo porque pede uísque escocês. Ela não consegue engolir,
molha apenas os lábios com o uísque, diz que está cansada e ele a leva para casa,
numa enorme limusine, com chofer. Para diante da casa dela, um petit hotel
muito lindo, e ela lhe pergunta ironicamente se vai continuar outro dia o
interrogatório pessoal. Ele diz que não aconteceu tal coisa, nem acontecerá. Ela
desce do carro, ele beija-lhe a mão enluvada. Ela hierática, fria como um gelo.
Ele lhe pergunta se mora sozinha, se não tem medo. Ela responde que no fundo
do jardim há um casal de velhos caseiros.
Mas ao voltar-se para entrar em casa avista uma sombra na janela do andar
de cima, uma sombra que desaparece imediatamente. Ela estremece, só lhe
ocorre dizer a ele (que não viu nada, deslumbrado como está pela beleza dela),
que tem medo de ficar sozinha aquela noite, que a tire dali. E vão para o
apartamento dele, luxuosíssimo, mas muito estranho, com paredes branquíssimas
sem quadros e tetos muito altos, e poucos móveis, escuros, quase como caixotes
de embalagem, mas percebe-se que são finíssimos, e quase nenhum enfeite,
cortinados brancos de gaze, e umas estátuas de mármore branco, muito
modernas, não estátuas gregas, com figuras de homens como de um sonho. Ele
manda preparar o quarto de hóspedes por um mordomo que a olha esquisito.
Mas antes lhe pergunta se não quer uma taça de champanha, do melhor
champanha de sua França, que é como o sangue nacional que brota da terra. E
soa uma música maravilhosa, e ela diz que a única coisa que ama da pátria dele é
aquela música. E entra uma brisa pela janela, um janelão muito alto, com um
cortinado de gaze branca que flutua ao vento como um fantasma, e se apagam as
velas, que eram a única iluminação. E entra somente a luz da lua, e a ilumina, e
ela parece também uma estátua, alta como é com um vestido branco que lhe
modela bem o corpo, parece uma ânfora grega, claro que os quadris não são tão
largos, e um lenço branco quase até os pés que lhe envolve a cabeça, mas sem
amassar o cabelo, apenas emoldurando-o. E ele lhe diz que ela é um ser
maravilhoso, de beleza ultraterrena, e certamente com um destino muito nobre.
As palavras dele a fazem estremecer, todo um presságio a envolve, e tem como
que a certeza de que vão acontecer em sua vida coisas muito importantes, e
quase sem dúvida com um fim trágico. Sua mão treme, e o copo cai no chão, o
bacará se desmancha em mil pedaços. É como uma deusa, e ao mesmo tempo
uma mulher fragílima, que treme de medo. Ele lhe segura a mão, pergunta-lhe se
sente frio. Ela responde que não. Enquanto isso a música toma mais força, os
violinos soam sublimes, e ela pergunta o que significa aquela melodia. Ele diz
que é a sua predileta, aquelas espécies de ondas de violinos são as águas de um
rio alemão por onde navega um homem-deus, que não é mais que um homem
mas que seu amor à pátria lhe tira todo medo, é esse seu segredo, a ânsia de lutar
pela pátria o faz invencível, como um deus, porque desconhece o medo. A
música se torna tão emocionante que ele fica com os olhos cheios de água. E isso
é o mais bonito da cena, porque ela ao vê-lo comovido percebe que tem
sentimentos de homem, embora pareça invencível como um deus. Ele trata de
esconder a emoção e se dirige ao janelão. Há lua cheia sobre a cidade de Paris, o
jardim da casa parece prateado, as árvores pretas recortam-se contra o céu
cinzento, não é azul, porque o filme é em preto e branco. A fonte branca está
cercada por jasmineiros, também com flores brancas, prateadas, e então a câmara
mostra a cara dela em primeiro plano, em tons cinza maravilhosos, de um
sombreado perfeito, com uma lágrima que vai caindo. Ao escapar a lágrima do
olho não brilha muito, mas ao escorregar pelo pômulo altíssimo vai brilhando
tanto como os diamantes do colar. E a câmara torna a focalizar o jardim de prata,
e você está lá no cinema e faz de conta que é um pássaro que levanta voo porque
vai se vendo de cima o jardim cada vez mais pequenino, e a fonte branca
parece... como que de suspiro, e os janelões também, um palácio branco todo de
suspiro, como em alguns contos de fada onde as casas são comidas, é pena que
não se enxergam os dois porque pareceriam duas miniaturas. Está gostando do
filme?
— Ainda não sei. Por que é que você gosta tanto? Está todo arrebatado.
— Se me mandassem escolher um filme para ver de novo eu escolheria esse.
— E por quê? É uma imundície nazista, ou você não percebe?
— Olha... é melhor eu calar a boca.
— Não cala. Fala o que você ia falar, Molina.
— Chega, vou dormir.
— O que foi?
— Por sorte não tem luz e não tenho que olhar para tua cara.
— Era isso o que você queria me dizer?
— Não, que a imundície pode ser você e não o filme. E não fala mais
comigo.
— Desculpa.
—...
— De verdade, desculpa. Não pensei que você fosse se ofender desse jeito.
— Você me ofende porque pen... pensa que não... não percebo que é
propaganda na...zista, mas se eu gosto é porque está bem feito, além disso é uma
obra de arte, você não sabe pó... porque não viu.
— Você está louco, vai chorar por causa disso?
— Vou... vou... chorar... tudo o que me der na telha.
— Como quiser. Sinto muito.
— E não pensa que estou chorando por tua causa. Foi que me lembrei... dele,
de como seria bom estar com ele, e falar com ele sobre tudo is... isto que eu
gosto tanto, em vez de falar com você. Hoje passei o dia todo pensando nele.
Hoje faz três anos que o conheci. Por... isso estou chorando.
— Tomo a repetir, não tive intenção de te incomodar. Por que é que você não
fala um pouco sobre o seu amigo? Vai te fazer bem desabafar um pouco.
— Para quê? para você me dizer que ele também é uma imundície?
— Vamos, conta, em que é que ele trabalha?
— É garçom, num restaurante...
— É boa gente?
— É, mas tem seu caráter, tem sim.
— Por que é que você gosta tanto dele?
— Por causa de muitas coisas.
— Por exemplo...
— Vou te ser sincero. Em primeiro lugar porque é bonito. E depois porque
acho que ele é muito inteligente, mas não teve nenhuma oportunidade na vida e
está lá fazendo um trabalho de merda, quando merece muito mais. E me dá
vontade de ajudá-lo.
— E ele quer que você o ajude?
— O que é que você quer dizer?
— Se ele se deixa ajudar ou não.
— Você é adivinho, por que é que me faz essa pergunta?
— Não sei.
— Pôs o dedo na ferida.
— Ele não quer que você o ajude.
— Ele não queria, antigamente. Agora não sei de nada, sabe lá que é que ele
está fazendo...
— Não é o amigo que veio te visitar, que você me contou?
— Não, o que veio é uma amiga, é tão homem como eu. Porque o outro, o
garçom, tem que trabalhar na hora das visitas aqui.
— Nunca veio te visitar?
— Não.
— O coitado precisa trabalhar.
— Escuta, Valentín, você não acha que ele podia trocar o plantão com algum
companheiro?
— Não deixam.
— Vocês são bons para se defenderem, entre vocês.
— Quem são vocês?
— Os homens, boa raça de...
— De quê?
— De filhos da puta, com perdão de tua mãe, que não tem culpa.
— Olha, você é homem como eu, não chateia... Não estabeleça distâncias.
— Quer que me aproxime?
— Nem que se distancie nem que se aproxime.
— Escuta, Valentín, lembro muito bem que uma vez ele trocou o plantão
com um companheiro para levar a mulher ao teatro.
— É casado?
— Sim, é um homem normal. Fui eu quem começou tudo, ele não teve culpa
de nada. Eu me meti na vida dele, mas o que queria era ajudá-lo.
— Como foi que começou?
— Um dia fui a um restaurante e o vi. E fiquei louco. Mas é muito comprido,
outra vez eu conto, ou talvez não conto nada, quem sabe com o que você vem
para cima de mim.
— Um momento, Molina, você está enganado, se te pergunto é porque tenho
um... como te posso explicar?
— Uma curiosidade, é isso o que você deve ter.
— Não é verdade. Acho que para te compreender preciso saber o que
acontece com você. Se estamos nesta cela juntos é melhor a gente se
compreender, e eu sei muito pouco sobre pessoas com tuas inclinações.1
— Vou contar, então, como foi, mas rápido para não te chatear.
— Como se chama?
— Não, o nome não, isso é só para mim.
— Como quiser.
— É a única coisa dele que posso guardar, dentro de mim, estou com ele na
garganta, e guardo para mim. Não digo...
— Você o conhece há muito tempo?
— Faz três anos hoje, 12 de setembro. Fui ao restaurante aquele dia. Mas
fico sem jeito de te contar.
— Não tem importância. Se alguma vez você quiser falar sobre isso, você
me conta. Senão, não.
— Tenho uma espécie de pudor.
— Bem... acho que sempre acontece isso com os sentimentos muito
profundos.
— Eu estava com outros amigos, duas louquinhas jovens insuportáveis. Mas
lindas e muito espertas.
— Duas moças?
— Não, quando falo louca quero dizer bicha. E uma das duas estava
enchendo o saco do garçom, que era ele. Percebi logo de saída que era um rapaz
de boa presença, só isso. Mas quando a piranha ultrapassou os limites, aquele
homem, sem perder a calma, respondeu o que devia. Eu fiquei admirado. Porque
os garçons, coitados, têm sempre aquele complexo de criado e para eles fica
difícil responder a uma grosseria sem parecer um criado ofendido, entende?
Bem, o cara nada explicou por que a comida não estava como devia, mas com
uma elevação que a outra ficou com cara de pateta. Mas não pense que ele fez ar
de zombaria, nada, manteve-se distante, dono absoluto da situação. E eu logo
manjei que ali tinha alguma coisa, um homem de verdade... E na semana
seguinte fui sozinha ao restaurante.
— Sozinha?
— Sim, desculpa, mas quando falo sobre ele não posso falar como homem,
porque não me sinto homem.
— Continua.
— Quando o vi pela segunda vez achei-o ainda mais bonito, com um paletó
branco de gola Mao que lhe assentava divinamente. Era um galã de cinema.
Tudo nele era perfeito, a maneira de andar, a voz rouquinha mas de repente com
um tonzinho terno, não sei como dizer, e a maneira de servir. Olha, aquilo era
um poema, uma vez o vi servir uma salada, fiquei tonta. Primeiro ele ajeitou
para a freguesa, porque era uma mulher, muito nojenta! e ele primeiro ajeitou ao
lado da mesa grande uma mesinha, pôs lá a travessa de salada, perguntou se
azeite, se vinagre, se isto, se aquilo, e depois segurou os talheres de misturar a
salada, e não sei como explicar, era como carícias que ele fazia nas folhas de
alface e nos tomates, mas não carícias suaves, eram... como posso dizer? eram
movimentos tão seguros, e tão elegantes, e tão suaves, e tão de homem ao
mesmo tempo.
— Que significa para você ser homem?
— É muita coisa, mas para mim... bem, o mais bonito do homem é isso, ser
bonito, forte, mas sem fazer alarde da força, e que vai avançando com segurança.
Que caminhe com segurança como meu garçom, que fale sem medo, que saiba o
que quer, aonde vai, sem medo de nada.
— É uma idealização, não existe nenhum sujeito assim.
— Existe, ele é assim.
— Bem, dará essa impressão, mas por dentro, nesta sociedade, sem o poder
ninguém pode ir avançando com segurança, como você diz.
— Não seja ciumento, não se pode falar com um homem sobre outro
homem, porque fica impossível, nisso vocês são iguais às mulheres.
— Não seja bobo.
— Está vendo como cai mal, até me insulta. Vocês são tão competitivos
como as mulheres.
— Por favor, vamos manter o nível da conversa ou então calar a boca.
— Qual nível qual nada.
— Não se pode falar com você, só te deixando contar um filme.
— Por que não se pode falar comigo, hein?
— Porque você não tem nenhum método para discutir, não segue uma linha,
fala qualquer bobagem.
— Não é verdade, Valentín.
— Como queira.
— Você é um pedante.
— Como queira.
— Demonstra para mim, anda, que não tenho nível para falar com você.
— Não disse para falar comigo, disse que você não mantém uma linha para
conduzir uma discussão.
— Vai ver como mantenho sim.
— Para que continuar falando, Molina?
— Continuemos conversando e você vai ver que te provo o contrário.
— Vamos falar sobre quê?
— Bem... Fala o que é que é ser homem para você. — Você me apanhou.
— Vai... responde, o que é ser homem para você?
— Hum... não me deixar diminuir por ninguém, nem pelo poder... Não, é
mais ainda. Isso de não me deixar diminuir é outra coisa, não é o mais
importante. Ser homem é muito mais ainda, é não humilhar ninguém com uma
ordem, com uma gorjeta. É mais, é... não permitir que ninguém a teu lado se
sinta diminuído, que ninguém a teu lado se sinta mal.
— Isso é ser santo.
— Não, não é tão impossível como você pensa.
— Não entendo direito... explica mais.
— Não sei, não está muito claro neste momento. Você me pegou
desprevenido. Não encontro as palavras adequadas. Outro dia, quando tiver as
ideias mais claras, podemos voltar ao assunto. Conta mais do garçom do
restaurante.
— Onde estávamos?
— No caso da salada.
— Quem sabe o que andará fazendo. Me dá uma pena... coitadinho, lá,
naquele lugar...
— Este lugar é muito pior, Molina.
— Mas nós não vamos ficar sempre aqui, não é? e ele não tem outro futuro
na vida. Está condenado. E eu te disse que ele tem um temperamento muito forte
e que não tem medo de nada, mas não imagina, às vezes ele deixa transparecer
uma tristeza...
— Como é que você percebe?
— No olhar. Porque tem uns olhos claros, esverdeados, entre pardos e
verdes, enormes, parece que lhe comem a cara, e o olhar o trai. Nota-se às vezes
no olhar que ele se sente mal, triste. E aquilo foi também o que me atraiu, e
fiquei com mais e mais vontade de falar com ele. Sobretudo nas horas de pouco
trabalho eu notava aquela melancolia, ele ia para o fundo do salão onde havia
uma mesa em que os garçons sentavam, e ficava ali, calado, acendia um cigarro,
e os olhos iam se tornando mais esquisitos, mais embaçados. Comecei a ir lá
cada vez mais seguido e no começo ele mal falava comigo o indispensável. Eu
pedia sempre frios, sopa, um prato principal, sobremesa e café, para fazê-lo vir
até a mesa um monte de vezes, e pouco a pouco começamos a conversar mais.
Claro, ele percebeu logo como é que eu sou, porque se nota.
— Se nota o quê?
— Que meu nome verdadeiro é Carmen, versão de Bizet.
— E por causa disso começou a conversar mais.
— Ai, você não entende nada. Ele não queria me dar papo porque percebia
que eu era bicha. Porque ele é um homem normalíssimo. Mas pouco a pouco,
falando umas palavras ali, outras aqui, percebeu que eu o respeitava muito e
começou a contar coisas de sua vida.
— Tudo enquanto servia?
— Umas quantas semanas sim, até que um dia consegui que tomássemos um
café juntos, uma vez que ele estava no plantão de dia, que era o que mais odiava.
— Que horários tinha?
— Olha, ou entrava às sete da manhã e saía por volta das quatro da tarde, ou
entrava por volta das seis da tarde e ia até três da madrugada, mais ou menos. E
o dia que ele disse que gostava do plantão da noite, eu fiquei com a pulga atrás
da orelha, porque já tinha falado que era casado, embora não usasse aliança,
outro detalhe, e que a mulher trabalhava em horário de escritório normal, então o
que é que havia com a mulher? não queria vê-la e preferia trabalhar à noite?
Você não imagina como me custou convencê-lo que viesse tomar um café,
sempre dava desculpa que tinha muito que fazer, que o cunhado, que o carro, até
que afinal topou. E veio.
— E aconteceu o que tinha de acontecer.
— Você está louco. Não entende nada destas coisas. Começa porque eu já
disse que é um cara normal. Nunca aconteceu nada!
— De que é que vocês falaram no bar?
— Bem, agora não me lembro, porque depois nos encontramos um monte de
vezes. Mas a primeira coisa que eu queria perguntar era por que razão um rapaz
inteligente como ele estava fazendo aquele trabalho. E se você visse que história
mais terrível, bem, a história de tantos rapazes de família pobre que não têm
muitos meios para estudar, ou que não têm estímulo.
— Quem quer estudar sempre dá um jeito. Olha... na Argentina estudar não é
o maior problema, a universidade é de graça.
— Sim, mas...
— A falta de estímulo é outra coisa, aí estou de acordo, o complexo de classe
inferior, a lavagem de cérebro que a sociedade te faz.
— Espera que eu conte mais e você vai ver que espécie de pessoa ele é, de
primeira! Ele próprio está de acordo em que houve um momento na vida em que
entregou os pontos, mas também assim está pagando. Diz que lá por volta dos
dezessete anos, bem, esqueci de contar que trabalhou desde pequeno, desde a
escola primária, era de família pobre, num bairro de Buenos Aires, e depois do
primário entrou numa oficina mecânica, e lá aprendeu o ofício, e, como ia
dizendo, por volta dos dezessete anos, já era um garotão legal, e começou a
transar com as garotas, um sucesso enorme, e agora, sim, o pior: o futebol.
Jogava muito bem desde criança, e mais ou menos aos dezoito anos entrou como
profissional. E aqui está a chave de tudo; por que é que ele não fez carreira no
futebol profissional? Segundo ele, só percebeu lá dentro como aquilo era
nojento, um ambiente cheio de favoritismos, de injustiças, e aqui está a chave, a
chave-chave, do que acontece com ele: não consegue ficar calado, quando vê
alguma coisa malfeita o sujeito põe a boca no mundo. Não é espertinho, não sabe
ficar calado. Porque é um sujeito correto. E foi isso que eu saquei desde o
começo, percebeu?
— Nunca se meteu em política?
— Não, tem umas ideias muito estranhas, muito destrambelhadas, nem quer
ouvir falar do sindicato.
— Continua.
— E depois de uns anos, dois ou três, largou o futebol.
— E as garotas?
— Você parece adivinho, às vezes.
— Por quê?
— Porque ele largou o futebol também por causa das garotas. Muitas
garotas, e tinha treino, e estava mais a fim delas que do treino.
— Ele também não era muito disciplinado, é isso aí.
— Bem, mas tem uma coisa que não falei ainda: a noiva a sério, a moça com
quem ele casou depois, não queria que continuasse no futebol. E ele entrou para
uma fábrica, de mecânico, mas um emprego bastante importante, foi a noiva que
arranjou. E casou, e ficou vários anos na fábrica, logo passou para o lugar de
capataz, ou chefe de uma seção. E teve dois filhos. E a loucura dele era a
menina, a mais velha, que morreu aos seis anos. E ele sempre tinha tido
problemas na fábrica, porque começaram a despedir gente ou a favorecer
recomendados.
— Como ele.
— Sim, foi um mau começo, concordo. Mas vou te contar por que é que ele
cresceu para mim, eu lhe perdoo tudo, olha. É que ele tomou o partido de uns
operários velhos que trabalhavam por empreitada, fora do sindicato, e o patrão
lhe deu a alternativa de ir para o olho da rua ou cumprir ordens, e ele se demitiu.
E você sabe que quando a gente sai por vontade própria não recebe nem um
vintém de indenização nem porra nenhuma, e ficou na rua, tinha trabalhado
naquela fábrica mais de dez anos.
— E nessa época ele já tinha mais de trinta anos.
— Claro, trinta e poucos. Começou, imagina, a essa idade, a procurar
trabalho. No começo aguentou sem pegar qualquer coisa, mas afinal surgiu o
trabalho de garçom e ele teve de topar.
— Foi ele quem contou tudo isso?
— Foi, mas pouco a pouco. Acho que ele se sentiu aliviado, ter alguém a
quem se possa contar tudo, poder desabafar. Por causa disso foi tomando afeição
por mim.
— E você?
— Eu o adorava cada vez mais, mas ele não permitiu que eu fizesse nada por
ele.
— O que é que você ia fazer?
— Queria convencê-lo de que ainda estava em tempo de começar a estudar,
formar-se em alguma coisa. Porque tem outro negócio que esqueci de contar: a
mulher ganhava mais que ele. Tinha passado de secretária de uma empresa para
ser quase uma executiva, e aquilo lhe fazia mal.
— Você chegou a conhecer a mulher?
— Não, ele queria me apresentar, mas no fundo eu a odiava com toda a
minha alma. Só de pensar que dormia toda noite ao lado dele eu morria de
ciúme.
— Agora não?
— É estranho, mas não...
— Verdade?
— Sim, olha, não sei... estou contente porque ela está com ele, assim não
está sozinho, agora que não posso conversar um pouco, naquelas horas no
restaurante que não tem nada que fazer e se chateia tanto, e não faz mais nada
senão fumar.
— E ele sabe o que você sente por ele?
— É lógico, eu falei tudo, quando tinha esperança de convencê-lo de que
entre nós dois... fosse acontecer alguma coisa... Mas nunca aconteceu nada. Não
houve maneira de convencê-lo. Eu implorei, nem que fosse uma única vez na
vida... mas nunca quis. E depois eu tinha vergonha de insistir, me conformei com
sua amizade.
— Mas segundo você disse, ele não andava muito bem com a mulher.
— Passaram uma temporada meio brigados, mas ele no fundo gosta dela, e o
que é ainda pior, a admira porque ganha mais que ele. E um dia me disse uma
coisa que quase morri, era o dia dos pais, e eu queria lhe dar alguma coisa de
presente, porque ele é muito pai do filho, e achei legal aproveitar o pretexto
daquele dia para presenteá-lo com alguma coisa, e perguntei se queria um
pijama, e aí foi o desastre.
— Continua, não me cria suspense.
— Disse que não usava pijama, que dormia sempre nu. E dorme em cama
grande com a mulher. Aquilo foi a morte. Mas houve um momento em que
parecia que iriam se separar, e aí criei ilusões, e que ilusões! você nem imagina...
— Que espécie de ilusões?
— Que viesse morar comigo, com minha mãe e eu. E ajudá-lo, fazê-lo
estudar. E ocupar-me mais dele, todo santo dia só pendente das coisas dele, a
roupa, comprar livros, inscrevê-lo nos cursos, e convencê-lo pouco a pouco de
que tem que fazer uma coisa: não trabalhar mais. E que eu daria o dinheiro
mínimo que ele tem que dar à mulher para sustentar o filho, e que não pensasse
mais que numa coisa: nele próprio. Até se formar no que ele escolhesse e acabar
com a tristeza, não acha bonito?
— Sim, mas irreal. Olha, tem uma coisa: ele podia continuar sendo garçom e
não se sentir diminuído, nem nada no gênero. Porque por mais humilde que seja
o trabalho sempre existe uma saída, a luta sindical.
— Você acha?
— Claro, rapaz. Tem alguma dúvida?
— Mas ele não entende nada disso.
— Tem alguma ideia política?
— Não, é muito ignorante. Mas dizia cobras e lagartos do sindicato e talvez
tivesse razão.
— Qual razão! Se o sindicato não funcionar direito é preciso lutar para
modificá-lo, para que funcione.
— Já estou com um pouco de sono, e você?
— Não, nada. Será que você não me conta mais um pouco do filme?
— Não sei... Você não imagina como era bom para mim pensar que podia
fazer alguma coisa por ele. Sabe, o dia todo decorando vitrine, por mais que seja
divertido, quando o dia acaba dá a sensação de que é que adianta aquilo tudo, e
você sente um vazio por dentro. Enquanto que se pudesse fazer alguma coisa por
ele seria tão bom... Dar-lhe um pouco de alegria, não é? O que é que você acha
disso tudo?
— Não sei, teria que analisar um pouco, agora não poderia dizer nada, será
que você não me conta mais um pouco do filme e amanhã eu falo do garçom?
— Está bem...
— Apagam a luz cedo e estas velas soltam um cheiro ruim e estragam a
vista.
— E tiram o oxigênio, Valentín.
— Não posso dormir sem ler.
— Se você quiser conto mais um pouco. Mas o chato é que depois eu fico
com insônia.
— Um pouco mais, Molina.
— Bom. Onde está... vamos?
— Não boceja desse jeito, que dorminhoca.
— Que é que eu posso fazer se estou com sono.
— A... gora você me... faz bocejar a mim também.
— Se você também está com sono.
— Acha que po...derei dormir?
— Sim, e se te der insônia pensa no caso do Gabriel.
— Quem é Gabriel?
— O garçom, me escapou.
— Bem, então até amanhã.
— Até amanhã.
— Olha só como é a vida, vou ficar sem dormir e pensando em teu noivo.
— Amanhã você diz o que acha.
— Até amanhã.
— Até amanhã.
4
— E é esse o princípio do romance entre Leni e o oficial. Começam a se
amar com loucura. Ela lhe dedica toda noite suas canções em cena, sobretudo
uma. É uma habanera, o pano vai se levantando e entre as palmeiras feitas de
papel prateado, como o do cigarro, sabe?, bem, atrás das palmeiras, se avista a
lua cheia bordada de lantejoulas que se reflete no mar feito de uma fazenda
sedosa, e o reflexo da lua também é bordado de lantejoulas. Há um cais tropical,
um cais de uma ilha, e a única coisa que se ouve é o vaivém das ondas, que a
orquestra imita com maracas. E tem um veleiro luxuosíssimo, imitado em cartão,
mas que parece de verdade. Um homem maduro de têmporas grisalhas muito
alinhado no leme, de boné de capitão e fumando um cachimbo, e um foco
fortíssimo ilumina de repente ao lado dele a portinha aberta que dá para as
cabines e lá aparece ela, muito séria, olhando o céu. Ele lhe faz uma carícia, mas
ela se esquiva. Está com o cabelo solto, repartido no meio, um vestido comprido
de renda preta, mas não é transparente, sem mangas, duas alças fininhas e mais
nada, saia vaporosa. Aí começa a orquestra com uma espécie de introdução e ela
avista um rapaz da ilha que arranca, na praia, uma flor de uma planta de
orquídeas selvagens, e sorri e como que pisca o olho para a moça da ilha que se
aproxima. Ele põe a flor no cabelo dela e a beija, abraçam-se e vão para a selva
escura, sem perceber que a flor caiu do cabelo da moça. E aparece um primeiro
plano daquela orquídea selvagem mas finíssima, caída na areia, e em cima da
orquídea vai surgindo esfumada a cara de Leni, como se a flor se transformasse
em mulher. Então levanta-se um vento meio de temporal mas os marinheiros
gritam que é favorável e o veleiro vai partir e ela desce pelo cais até a areia, e
levanta a flor, que é bela, feita de veludo. E canta.
— Que é que ela diz?
— Sei lá... porque não traduziam as canções. Mas era triste, como de alguém
que perdeu um grande amor e quer consolar-se mas não pode, e que se deixa
conduzir pelo destino. Sim, devia ser isso, porque quando falam que o vento é
favorável ela sorri muito triste, porque já pouco lhe importa que o vento a leve
para onde quiser. E assim cantando retorna ao veleiro que pouco a pouco vai
saindo pelo lado do cenário, e ela na popa continua com o olhar perdido atrás das
palmeiras, que é onde começa a escuridão da selva.
— Ela acaba sempre com o olhar perdido.
— Mas você não sabe os olhos que essa mulher tem, muito negros, sobre
aquela pele tão branca. E me esquecia do melhor: quando aparece, já no fim, na
popa do veleiro, ela põe a flor de veludo no cabelo, de lado, e não se sabe o que
é mais suave, se o veludo da orquídea ou a pele dela, que é como de pétala de
alguma flor, acho que de magnólia. E depois continuam aplausos e cenas curtas
deles dois que são muito felizes, de tarde nas corridas de cavalo e ela toda de
branco com uma capelina transparente e ele de cartola, e depois brindando num
iate que corre pelo rio Sena, e depois ele de smoking e no reservado de uma
boate russa apaga os castiçais e na penumbra abre um estojo e puxa um colar de
pérolas que não se sabe como mas mesmo no escuro brilha horrores, por truques
de cinema. Bem, e depois vem uma cena em que ela está tomando o café da
manhã na cama, quando vem a empregada avisar que lá embaixo está esperando
por ela um parente que acaba de chegar da Alsácia. E que veio com mais outro
senhor. Ela desce com um roupão de cetim de listas pretas e brancas, a cena se
passa em casa dela. O rapazinho é um primo jovem, vestido muito
simplesmente, mas quem está com ele é o capenga.
— Qual capenga?
— Aquele que passou por cima da corista com o carro. E começam a falar e
o primo lhe diz que lhe pediram um grande favor: falar com ela, que é francesa,
para ajudá-los numa missão. Ela pergunta qual missão, e respondem que aquela
que a corista loura, tinha começado e se negou a acabar. Porque eles são dos
maquis. Ela morre de medo mas consegue disfarçar. Pedem-lhe para revelar um
segredo importante, que indague onde está um grande arsenal de armas dos
alemães ali na França., para que os inimigos dos nazistas possam bombardeá-lo.
E a corista loura estava naquela missão, porque era dos maquis, mas depois de
começar o caso com o tenente apaixonou-se e não cumpriu a missão, e foi por
isso que a mataram, antes que os denunciasse às autoridades de lá, da ocupação.
Então o capenga diz que ela deve ajudá-los, e ela diz que tem que pensar, que
não sabe nada daquilo tudo. Então o capenga diz “é mentira”, porque o chefe da
contraespionagem alemã está apaixonado por ela, e não lhe custaria nada obter
os dados. Ela se enche de coragem e diz ao capenga que não, definitivamente,
porque não tem temperamento para essas coisas. Então o capenga diz que se ela
não topar... vão ser obrigados a tomar represálias. Ela então percebe que o primo
tem o olhar abaixado, seu queixo treme, e está com a testa cheia de pequenas
gotas de suor. É que foi levado como refém! Então o capenga esclarece que o
pobre rapaz não fez nada, que seu único delito é ser parente dela. Porque os sem-
vergonha foram até a aldeia na Alsácia onde estava o pobre rapazinho e o
trouxeram, sei lá, sob falsas desculpas. O caso é que se ela não os ajudar, eles, os
maquis, matam o rapaz, que é inteiramente inocente. Então ela promete que vai
fazer o possível. E assim foi. Na próxima vez que se encontram, ela e o oficial
alemão, começa a revistar gavetas em casa dele, mas tudo isso com o maior
medo porque lá está o mordomo que desde o primeiro momento olhara para ela
de cara feia, e parece que não a perde de vista. Mas tem uma cena em que ela
está almoçando no jardim com o oficial e outros mais, e o mordomo, que é
alemão, recebe ordem do oficial para ir até a adega procurar um vinho raríssimo,
ah! me esqueci de dizer, porque é ela quem pede, um vinho que só o mordomo
sabe onde está. Então, quando o cara sai ela senta no piano de cauda branco que
está num salão daqueles que já te contei, e aparece atrás de uma cortina de renda
branca. Ela mesma se acompanha no piano porque ele lhe pediu para cantar. Mas
ela já preparou um truque, e põe um disco dela, também acompanhado pelo
piano, e, enquanto isso, entra no gabinete particular dele e começa a remexer nos
papéis. Mas acontece que o mordomo esqueceu as chaves, quando chega à porta
do porão onde fica a adega, e volta para procurá-las e ao passar pela balaustrada
onde começa o jardim olha pelo janelão e através da cortina de renda não chega
a perceber se ela está ou não sentada ao piano. Enquanto isso o oficial está no
jardim, ficou conversando com outros comandantes, é um jardim francês, com
canteiros sem flores, mas com ligustros todos podados em formas muito
estranhas, como que obeliscos.
— Isso é um jardim alemão, da Saxônia, mais exatamente.
— Como é que você sabe?
— Porque os jardins franceses têm flores, e as linhas são geométricas, mas
tendem um pouco ao firulado. Esse jardim é alemão, e se nota que o filme foi
feito na Alemanha.
— E como é que você sabe essas coisas? São coisas de mulher...
— Se estuda em arquitetura.
— E você estudou arquitetura?
— Sim.
— E se formou?
— Sim.
— E só agora você me conta?
— Não vinha ao caso. .
— Você não disse que estudou ciências da política?
— Sim, ciências políticas. Mas continua o filme, outro dia eu conto. E arte
não é coisa de mulher.
— Um destes dias vai se descobrir que você é mais bicha que eu.
— Pode ser. Mas agora continua com o filme.
— Bem, então o mordomo escuta ela cantar mas não está ao piano, e vai ver
onde é que ela está. E ela está justamente no gabinete remexendo os papéis, ah!
porque antes conseguiu a chave da escrivaninha, tirou do oficial, e encontra o
plano da zona onde estão escondidos todos os armamentos, o arsenal alemão, e
de repente ouve passos e consegue se esconder na sacada em frente ao gabinete,
mas fica à vista dos comandantes reunidos no jardim! Assim está entre dois
fogos, se as pessoas do jardim olharem, a descobrirão. O mordomo entra no
gabinete e espia, ela prende a respiração e está nervosíssima porque sabe que o
disco vai acabar, e você sabe que naquela época os discos só tinham uma canção,
não havia LP. Mas o mordomo sai e ela também, justamente a canção está
acabando. E todos os comandantes a estão ouvindo encantados, e quando o disco
acaba levantam-se para aplaudi-la e ela já está sentada ao piano e todos pensam
que não era o disco, que era ela quem cantava. E o que se segue é o encontro
dela com o capenga e o rapazinho, para entregar-lhes os planos dos alemães. O
encontro é num museu, grande à beça, com animais antediluvianos, e uns vidros
enormes que servem de parede e dão para o rio Sena, e quando se encontram ela
diz ao capenga que já está com a informação, e o capenga que se sente vitorioso
começa a dizer que aquele será o primeiro trabalho dela para os maquis, porque
quem entra de espião não pode mais sair, então ela quase que hesita em contar,
mas olha o rapazinho tremendo, e fala um nome de uma região da França e a
aldeia exata onde está o arsenal. Então o capenga, que é um sádico, começa a
dizer que o oficial alemão vai odiá-la de morte quando tomar conhecimento da
traição dela. E não me lembro quantas coisas mais. Então o rapazinho percebe
que Leni fica desesperada, que empalidece de indignação, então o rapazinho
olha pela janela, eles estão bem do lado do vidro, e num quinto ou sexto andar
daquele museu enorme, e antes que o capenga desconfie o rapazinho pega e o
empurra para que o capenga quebre o vidro e caia no vazio, mas o capenga
resiste e o rapazinho então se sacrifica e se atira junto com o capenga, pagando
com a própria vida. Ela se mistura entre as pessoas que correm para saber o que
foi quê aconteceu e como está de chapéu e véu ninguém a reconhece. Que bom o
rapazinho, não é?
— Bom para ela, mas traidor do seu país.
— Mas o menino percebia que os maquis eram uns mafiosos, só você vendo
as coisas que tem no filme mais adiante.
— Você sabe o que eram os maquis?
— Sim, já sei, eram os patriotas, mas no filme não. Deixa eu continuar.
Então... como é que continuava?
— Não te entendo.
— É que o filme era lindo, e para mim o que importa é o filme, porque
enquanto estou aqui trancafiado não posso fazer outra coisa senão pensar em
coisas bonitas para não ficar louco, não é? ... Responde.
— Que é que você quer que eu responda?
— Que me deixe fugir um pouco da realidade, para que ficar ainda mais
desesperado? Quer que eu fique louca? Porque bicha já sou.
— Não, eu concordo, é verdade que aqui a gente pode chegar a ficar louco
não só se desesperando... mas também se alienando, como você faz. Essa mania
que você tem de pensar em coisas bonitas, como você diz, pode ser perigosa.
— Por quê? Não é verdade.
— E fugir assim da realidade pode ser um vício, é como uma droga. Porque
escuta, tua realidade, tua realidade, não é somente esta cela. Se você está lendo
alguma coisa, estudando alguma coisa, já transcende a cela, entende? Por isso é
que eu leio e estudo o dia todo.
— Política... Olha como vai o mundo com os políticos...
— Não fala como uma senhora de antigamente, porque você não é nem
senhora... nem de antigamente; e conta mais um pouco o filme, falta muito para
acabar?
— Por quê? Te chateia?
— Não gosto, mas estou intrigado.
— Se você não gosta, então não conto mais.
— Como quiser, Molina.
— Claro que seria impossível acabar hoje à noite, falta muito, quase a
metade.
— Me interessa como material de propaganda, mais nada. De certa forma é
um documento.
— De uma vez por todas, continuo ou não continuo?
— Continua um pouco.
— Agora soa como se você me estivesse fazendo um favor. Lembra que foi
você quem pediu, não tinha sono e pediu para eu contar alguma coisa.
— E te agradeço muito, Molina.
— Mas agora perdi o sono, você me sacaneou bem.
— Então conta mais um pouco e nós dois vamos ficar com sono, se Deus
quiser.
— Os ateus só fazem falar em Deus o tempo todo.
— É uma maneira de dizer. Anda, conta.
— Bom, ela sem falar nada do que aconteceu pede ao oficial alemão que a
hospede em sua casa, porque está aterrorizada de medo dos maquis. Olha, esta
cena é ótima, porque não te disse que ele também toca piano, veste um roupão
de brocado que nem te conto, e como lhe ia bem! com um lenço de seda branco
no pescoço. E à luz dos castiçais ele está tocando uma coisa muito triste, porque
me esqueci de dizer que ela vai chegar atrasada ao encontro. E ele pensa que ela
não volta mais. Ah, porque não te disse que ela sai do museu quando não a veem
e começa a caminhar como louca por toda Paris, porque está confusa, com a
morte do pobre rapazinho, o priminho de quem gostava tanto. E vai caindo a
noite, e continua andando por todos os lugares de Paris, pela Torre Eiffel, e pelas
subidas e descidas dos bairros boêmios, e os pintores que pintam na rua olham
para ela e os casais sob os lampiões na beira do Sena. Olham para ela, porque vai
andando como uma pobre louca, como uma sonâmbula com o véu do chapéu
levantado, já não se incomoda que a reconheçam. Enquanto isso o rapaz está
mandando fazer o jantar para dois, com castiçais, e depois se vê que as velas já
estão pela metade, e ele está tocando o piano, aquela espécie de valsa lenta muito
triste. E é quando ela entra. Ele não se levanta para cumprimentá-la, continua
tocando no piano uma valsa maravilhosa que de muito triste vai se tornando
mais e mais alegre, romântica a mais não poder, mas bem, bem alegre. E a cena
acaba aí, sem que ele diga nada, vê-se seu sorriso de felicidade e se ouve a
música. Olha.
— Você não pode imaginar o que é essa cena.
— E depois?
— Ela acorda numa cama maravilhosa, toda de cetim claro, acho que seria
entre rosa-velho e esverdeado, capitoné, com lençóis de cetim. Que pena que
alguns filmes não sejam coloridos, não é? e cortinado de tule dos dois lados do
dossel, entende? e ela levanta toda apaixonada e olha pela janela, cai uma garoa,
vai ao telefone, levanta o fone e escuta sem querer ele falando com alguém.
Estão discutindo o castigo a ser dado a uns açambarcadores e mafiosos. E ela
não pode acreditar no que está ouvindo quando ele diz que os condenem à pena
de morte, então ela espera acabarem de falar e, quando desligam, ela também
desliga o aparelho, para que não percebam que ficou ouvindo. De repente ele
aparece no dormitório e a convida para tomarem juntos o desjejum. Ela está
linda, refletida no vidro da janela todo molhado por causa da garoa, e pergunta a
ele se realmente não tem medo de ninguém, como deve ser o soldado da nova
Alemanha, o herói de quem falou. Ele diz que pela pátria enfrenta qualquer
desafio. Ela pergunta então se é por medo que se mata um inimigo indefeso, por
medo de que num dado momento os papéis se invertam e tenham de enfrentá-lo,
talvez cara a cara. Ele responde que não compreende o que ela está dizendo.
Então ela muda de assunto. Mas, naquele dia quando fica sozinha, disca o
número do telefone do capenga para entrar em contato com alguém dos maquis e
contar o segredo do arsenal. Porque ao ouvir que ele é capaz de condenar alguém
à morte, ele se desmoralizou diante dela como homem. E já vai ao encontro de
um cara dos maquis, com hora marcada no teatro dela onde estão ensaiando,
para disfarçar, e ela avista o homem que se aproxima e ele faz o sinal
combinado, quando chega alguém pelo corredor do teatro vazio e chama a Sra.
Leni. E trazem um telegrama de Berlim e ela é convidada para estrelar um
grande filme nos melhores estúdios da Alemanha, e lá mesmo quem traz o
convite é um oficial do governo de ocupação e ela não pode falar nada com os
maquis, e tem que começar imediatamente os preparativos para ir a Berlim.
Gosta?
— Não, e já estou com sono. Continuamos amanhã, está bem?
— Não, Valentín, se não gosta não conto mais nada.
— Gostaria de saber como acaba.
— Não, se não gosta para quê... já está bem assim. Até amanhã.
— Amanhã conversamos.
— Mas sobre outra coisa.
— Como quiser, Molina.
— Até amanhã.
— Até amanhã.1
....................................................
....................................................
....................................................
— Ai... ai...
— Ai...
— O que é?
— Nada, esta mulher está fodida.
— Que mulher?
— Eu, boboca.
— Por que é que você se queixa?
— Estou com dor de barriga...
— Quer vomitar?
— Não...
— É melhor tirar o saquinho.
— Não, deixa... A dor é mais embaixo, nas tripas.
— Não será diarreia?
— Não... É uma dor muito forte, mas mais em cima.
— Então, chamo o guarda...
— Não, Valentín. Parece que já está passando...
— Que é que você sente?
— Umas pontadas... mas fortíssimas...
— De que lado?
— Na barriga toda...
— Não será apendicite?
— Não, já fui operado.
— A mim a comida não fez mal...
— Deve ser nervo. Hoje andei muito nervoso... Parece que já está
melhorando um pouco...
— Trata de relaxar. O mais possível. Afrouxa bem os braços e as pernas.
— Sim, parece que passa um pouquinho.
— Há muito tempo que começou a dor?
— Sim, bastante tempo. Desculpa eu ter te acordado.
— Mas não... Devia ter me acordado antes, Molina.
— Não queria encher... Ai...
— Dói muito?
— Foi uma pontada forte... mas acho que já está melhorando.
— Você quer dormir? poderá dormir?
— Não sei... Ui, que chato...
— Se quiser conversar talvez seja bom, para não pensar na dor.
. — Não, dorme você, não perde o sono.
— Não, eu já perdi.
— Desculpa.
— Não, eu acordo sozinho tantas vezes e não consigo dormir mais.
— Parece que está passando um pouquinho. Ai, não, que chato...
— Chamo o guarda?
— Não, já passa...
— Sabe de uma coisa?
— O quê?
— Fiquei furioso pelo fim do filme, o nazista.
— Não disse que não gostava?
— Sim, mas quero saber do mesmo jeito como é que acaba, para ver a
mentalidade dos que filmaram, a propaganda que queriam fazer.
— Você não imagina como era bonito, só vendo.
— Se te distrai, por que você não conta mais um pouco? Rápido, só o fim.
— Ai...
— Voltou forte?
— Não, está passando, mas ainda quando sinto uma pontada sinto forte, mas
depois já não dói quase nada.
— Como acaba o filme?
— Onde estávamos?
— Ela ia trabalhar para os maquis, mas surge o contrato para filmar na
Alemanha.
— Você gravou, hein?
— Não é um filme qualquer. Pode contar depressa, assim você chega ao fim.
— Bem, o que era que acontecia então? Humm... ai que chato, como dói...
— Conta, assim você não pensa na dor, dói menos se você se distrair...
— Você tem medo que eu morra antes de contar o final?
— Não, falo por tua causa.
— Bem, ela vai filmar na Alemanha, e gosta muitíssimo da Alemanha, e da
juventude que faz esporte. E perdoa tudo porque toma conhecimento de que
aquele que ele mandou matar era um grande criminoso, tinha feito sabe lá quanta
coisa. E lhe mostram a foto do outro criminoso que ainda não puderam capturar,
meio cúmplice daquele que o rapaz mandou matar... Ai... ainda me dói um
pouco...
— Então, deixa, trata de dormir.
— Não, que ilusão, tomara que eu pudesse... Ainda dói.
— Sente seguido esse tipo de dor?
— Cruz-credo, nunca tinha sentido essas pontadas... Olha, agora já está
passando...
— Vou tratar de pegar de novo no sono, então.
— Não, espera.
— Assim você também dorme.
— Não, não vou poder. Continuo com o filme.
— Está bem.
— Como era? Sim, ela parece reconhecer o criminoso, mas não sabe em que
lugar o viu e então volta para Paris, que é onde pensa tê-lo conhecido. E logo de
chegada entra em contato com os maquis, para ver se pode chegar ao próprio
chefe da organização, são todos do mercado negro e os que organizam o
açambarcamento de víveres. E tudo com a conversa que vai lhes dar o segredo
do arsenal dos alemães, o que o capenga tinha pedido, lembra?
— Sim, mas você sabe que os maquis eram verdadeiros heróis, não é?
— Você pensa que sou mais burra do que sou.
— Se fala feminino é porque a dor já passou.
— Bem, seja o que for, mas que fique claro que o filme era lindo pelas cenas
de amor, que eram um verdadeiro sonho, os caras do governo devem ter imposto
ao diretor a parte política, ou não sabe como são essas coisas?
— Se o diretor fez o filme já é culpado de cumplicidade com o regime.
— Bem, vou acabar de uma vez. Ai, você discutiu e a dor voltou... Ui...
— Conta, assim você se distrai.
— O caso é que ela, para dar o segredo do arsenal, exige um encontro com a
cúpula dos maquis. E um belo dia a levam para fora de Paris, a um castelo. Mas
combinou que o rapaz e os soldados fossem atrás dela, assim podem tomar de
assalto os maquis do mercado negro. Mas o motorista que a leva, que é aquele
assassino que andava sempre com o capenga, percebe que os estão seguindo e
faz uma manobra e aí os alemães que os estão seguindo com o rapaz à frente
perdem a pista deles. Bem, então chegam ao castelo e fazem Leni entrar, e
quando menos espera lá está o chefe dos maquis — que é aquele mordomo que a
vigiava tanto!
— Qual?
— Aquele da casa do rapaz. Então ela o olha bem e percebe que é o mesmo
sujeito horrível da barba e do filme daqueles criminosos que lhe mostraram em
Berlim. E lhe conta o segredo, porque tem certeza de que o rapaz com os
alemães chegam logo e a salvam. Mas como perderam a pista o tempo passa e
eles não chegam. Então ela percebe que o motorista asqueroso está falando em
segredo com o chefe, da suspeita que tem de que foram seguidos. Mas é claro,
ela lembra que o mordomo sempre a espionava em casa para vê-la nua, etc. e
joga a última cartada, que é seduzi-lo. Enquanto isso, o rapaz e a patrulha que
vai com ele tratam de seguir as marcas do carro na chuva. E depois de muito
procurar, não me lembro bem como é que fazem para encontrar o caminho. E ela
está sozinha com aquele assassino, o mordomo que é realmente o chefe de todos,
um personagem mundial do crime, e quando ele se atira em cima dela, naquela
salinha onde mandou preparar uma ceia íntima, ela pega o garfo de trinchar e o
mata. E já começam a chegar o rapaz e os outros, e ela abre uma janela para
fugir e lá mesmo está de plantão o motorista assassino, debaixo da janela, e o
rapaz o vê a tempo e atira nele, mas o capenga, não, perdão, o motorista, porque
o capenga já morreu no museu, então o motorista, moribundo, consegue atirar na
moça. Ela se segura nas cortinas e se aguenta sem cair, para que o rapaz a
encontre ainda de pé, mas quando ele chega e a toma nos braços ela perde as
poucas forças que lhe restam e diz que o ama, e que em breve estarão em Berlim
juntos outra vez. E ele só percebe que está ferida porque suas mãos estão se
manchando com o sangue dela, do tiro nas costas, ou no peito, não me lembro. E
a beija, e quando afasta os lábios de sua boca ela já está morta. E a última cena é
num panteão de heróis em Berlim, e é um monumento belíssimo, como um
templo grego, com estátuas grandes de cada herói. E lá está ela, uma estátua
enorme, ou antes de tamanho natural, belíssima com uma túnica grega, acho que
era ela mesmo fingindo de estátua com pó de arroz branco na cara, e ele coloca
flores nos braços dela, estão estendidos, como para abraçá-lo. E ele vai se
retirando e há uma luz que parece chegar do céu, e ele vai embora com os olhos
cheios de água e fica a estátua dela com os braços estendidos. Mas sozinha, e há
uma inscrição no templo, que diz algo assim como que a pátria não os esquecerá
nunca. E ele vai andando, só, mas por um caminho cheio de sol. Fim.
________________
1 Serviço publicitário dos estúdios Tobis-Berlim, destinado aos exibidores
internacionais de seus filmes, referente à superprodução Destino (páginas
centrais).
“A chegada da atriz estrangeira não foi anunciada com o alarde habitual,
mas, ao contrário, preferiu-se que Leni Lamaison chegasse incógnita à capital
do Reich.
Somente depois de testes de maquiagem e vestuário foi convocada a
imprensa. A diva máxima da canção francesa tinha de ser finalmente
apresentada aquela tarde aos mais destacados representantes da imprensa livre
internacional. No Grana Hotel de Berlim. Havia sido reservado para a ocasião
o Salão Imperial, situado na sobreloja, aonde chegavam débeis ecos da música
executada pela orquestra no jardim de chá. Leni fora identificada com os
frívolos gritos lançados pela moda parisiense, que se servira de sua beleza para
encarná-los. Todos esperavam, portanto, uma boneca encimada por diminutos
cachos permanentes em forma de caracoizinhos, dois pômulos avermelhados
pelo cosmético aplicado no rosto previamente laqueado de branco. Era de crer
que seus olhos mal se pudessem manter abertos, já que as pálpebras estariam
carregadas de sombra preta e pesadas pestanas postiças. Mas a maior
curiosidade se concentrava em sua indumentária, dado que era tida como
inevitável a profusão dos tradicionais drapeados inúteis ditados pelos
decadentes costureiros de além-Reno, cujo propósito conhecido é a desfiguração
da silhueta feminina. Mas ao escutar-se um murmúrio de profunda admiração
entre os assistentes, era uma mulher diferente aquela que aparecia diante dos
que lhe abriam rapidamente passagem. Sua cintura fina e suas cadeiras roliças
não se ocultavam sob trapos supérfluos, seu busto ereto não fora comprimido
por extravagâncias de desenho: ao contrário, a moça dir-se-ia proveniente de
Esparia, avançava envolvida numa simplíssima túnica branca que revelava a
plenitude de suas formas, e o rosto lavado nos falava da saúde de uma
montanhesa. O cabelo, por outro lado, estava dividido ao meio e amarrado
numa trança que circundava o crânio. Os braços da ginasta não eram
recobertos por mangas, mas uma ligeira capa do mesmo tecido branco
abrigava-lhe os ombros. Nosso ideal de beleza será sempre a saúde, dissera
nosso Führer, e, mais precisamente, no que diz respeito à mulher, sua missão é
ser bela e pôr filhos no mundo. Uma mulher que deu cinco filhos ao Volk, deu
mais que a mais notável jurista do mundo. Não há lugar para a mulher política
no mundo ideológico do nacional-socialismo, dado que levar a mulher à esfera
parlamentar, onde está deslocada, significa roubar-lhe a dignidade. A
ressurreição alemã é um evento masculino, mas o Terceiro Reich, que conta com
oitenta milhões de súditos, daqui a um século, no glorioso ano de 2040,
precisará de duzentos e cinquenta milhões de patriotas que conduzam os
destinos do mundo, tanto do Pai Estado como de nossas incontáveis colônias. E
esse será o evento feminino, após se assimilar a lição de outros povos, no que
diz respeito ao grave problema da decomposição de raças, que pode ser
resolvido através de um nacionalismo consciente do próprio povo. Síntese de
Estado e Povo. Estas mesmas palavras são repetidas à bela estrangeira, no
salão chamado Imperial, pelo delegado dos estúdios berlinenses que a
contrataram, palavras que impressionam Leni vivamente, assim como sua pura
beleza impressiona os representantes da imprensa ali presentes.
No dia seguinte sua nova imagem é exaltada nas primeiras páginas dos
jornais do mundo livre, mas Leni não perde tempo em ler os hinos que se entoam
à sua beleza, pega no telefone e — vencendo um forte temor — liga para Werner.
Pede-lhe que, naqueles breves dias que ele passará na capital antes de voltar a
Paris, ajude-a a descobrir as maravilhas do novo mundo alemão. Werner
começa por levá-la a uma gigantesca concentração da juventude, que se realiza
num estádio assombroso. Ele prefere abrir mão das comodidades de uma
limusine oficial, e levar Leni em seu veloz cupê branco. Seu propósito é que ela
se sinta somente uma dentre tantas pessoas em meio àquela multidão fervorosa,
e o que é mais: consegue-o. Todos os que passam junto de Leni a admiram, mas
não por causa de sua excentricidade de diva alambicada, mas pelo seu porte
majestoso de mulher sadia, que dispensa enfeites. De fato, Leni apresentou-se
com um simples costume de saia e blusa, com reminiscências de austero
uniforme militar. A fazenda, um pano típico da região alpina, tem alguma coisa
da rudeza do povo montanhês, mas apesar de tudo assinala, contudo, suas
formas femininas, e só os enchimentos dos ombros se afastam das linhas de sua
silhueta, tão-somente para fortalecê-las. Werner a contempla extasiado, porque
já contava com o deslumbramento de Leni diante da monumental fachada do
estádio, e ela, de fato, não pôde evitar o impacto.
Leni pergunta então a Werner como foi que sua nação conseguiu criar algo
tão puro e inspirado, enquanto no resto da Europa se impôs uma arte tão frívola
e efémera, tanto na pintura e escultura como em arquitetura, uma arte
meramente decorativa e abstrata destinada a perecer como as prescindíveis
modas femininas tramadas na capital de além-Reno. Ele sabe muito bem o que
responder, mas não o faz de imediato, pede-lhe para esperar uns instantes. E já
se acham diante do espetáculo inesquecível que lhes oferece a flor da juventude
alemã: sobre o campo verde desprendem-se linhas retas que se quebram e
tornam a se compor para logo dar lugar a curvas que ondulam ligeiramente e
por sua vez retomam a virilidade do traçado retilíneo. São jovens atletas de
ambos os sexos, vestidos de preto e branco, em suas exibições de ginastas, e
então Werner diz, a título de comentário sobre a visão olímpica da qual Leni não
pode afastar os olhos: Sim, o heroísmo ergue-se como futuro modelador dos
destinos políticos, e cumpre à arte ser a expressão desse espírito de nossa época.
A arte comunista e futurista é um movimento retrógrado, anárquico. A nossa é a
Cultura do Norte, contraposta às tentativas mongóis, comunistas, e à farsa
católica, produto da corrupção assíria. Ao Amor é preciso opor a Honra. E
Cristo será um atleta que expulsa a socos os mercadores do Templo. E em
seguida, os jovens, verdadeira tocha humana do nacional-socialismo, entoam
coros marciais vibrantes de patriotismo, .. flutuam novamente nossos pavilhões
de outrora, o jovem revolucionário deve atiçar as paixões vulcânicas, despertar
as cóleras, organizar desconfiança e ira com cálculo frio e certeiro, e assim
sublevar as massas humanas, citando um lema de nosso Chefe Supremo da
Propaganda, o Marechal Goebbels. E Leni, apesar do conflito que se aninha em
seu peito desde o dia que ouviu Werner pronunciar uma sentença de morte,
sente-se transportada de júbilo. Werner aperta-lhe a mão, a atrai contra si, mas
não se atreve a beijá-la, pois teme que os lábios dela ainda estejam frios.
Naquela mesma noite jantam em silêncio. Werner não entende mais nada, sente
que ela está distante, perdida em seus pensamentos secretos. Os dois quase não
provam a comida, Leni bebe um copo de suave vinho da Mosela. Mas depois de
beber a última gota atira com força o copo contra a lareira crepitante, o cristal
se esfacela. Sem nenhum preâmbulo Leni formula a pergunta que a queima por
dentro: Como é possível que você, um homem superior, tenha mandado matar
um ser humano? Werner replica logo, aliviado: Era isso que te mantinha
afastada de mim? À resposta afirmativa de Leni, Werner manda que ela o siga
até o Ministério de Assuntos Políticos, Leni obedece. Apesar da hora avançada,
as repartições do governo mantêm-se em plena atividade, porque a nova
Alemanha não descansa, nem de dia nem de noite. Todas as portas se abrem à
passagem de Werner, que veste seu arrogante uniforme militar. Poucos minutos
depois eles têm acesso a um subsolo onde se localiza um microcinema. Werner
ordena uma projeção imediata. A tela se ilumina de atrocidades. Trata-se de um
longo documentário sobre a fome, a fome no mundo. Fome na África do Norte,
fome na Espanha, fome na Dalmácia, no vale do Yang-Tsé-Kiang, na Anatólia. E
precedendo cada uma daquelas agonias, a passagem por essas mesmas terras
de dois ou três homens implacáveis, sempre os mesmos, os judeus errantes
portadores da morte. Tudo aquilo rigorosamente registrado pelas câmaras. Sim,
aqueles mercadores fúnebres, qual abutres, visitam regiões de seca, inundações,
qualquer tipo de catástrofe propícia, para organizar seu banquete satânico:
açambarcamento de víveres, agiotagem. E atrás deles, seus sequazes, todos os
malditos filhos de Abraão, repetindo com precisão matemática as mesmas
operações: o desaparecimento do grão de trigo, a seguir, dos outros cereais, até
os mais ordinários, portanto, destinados à alimentação dos animais. E a carne,
o açúcar, substâncias oleaginosas, frutas e legumes frescos ou enlatados. Assim
vai-se propagando a fome nas cidades, cujos habitantes se voltam para o
campo, onde só encontram o espetáculo vandálico que deixaram atrás de si os
gafanhotos de Jeová. E os rostos do povo vão sumindo, já ninguém consegue
andar erguido, por aqueles horizontes de holocausto recortam-se as silhuetas
vencidas dos famintos, que dão seus últimos passos em direção à miragem de
um duro pedaço de pão, que jamais conseguirão tocar.
Leni acompanhou a projeção com o sangue gelado, mas deseja que as luzes
se acendam para esclarecer uma dúvida. De fato, quer saber através de Werner
a quem pertence uma daquelas duas fisionomias infames. Leni refere-se aos dois
chefes da organização mortífera, e Werner se enche de ansiedade, pois pensa
que Leni reconhecera num deles o criminoso que ele próprio condenara à morte,
para consternação de sua amada. Mas não, Leni refere-se ao outro. Werner se
agita ainda mais, será que Leni conseguiu aquilo que todo o pessoal da
inteligência já está dando por impossível? porque Jacob Levy é o agente
antinazista mais procurado do momento. Leni não dá uma resposta clara, está
certa de ter visto em algum lugar aquele rosto depravado, com sua calva
engordurada e suas longas barbas de agiota. Fazem retroceder o filme e param
a imagem nos fotogramas onde aparece o criminoso. Leni faz esforços sobre-
humanos, mas não consegue localizar onde, como e quando viu o monstro.
Finalmente abandonam a sala, resolvem caminhar alguns passos sob uma
avenida cercada de tílias. Leni continua imersa no labirinto das recordações,
pensa com segurança ter visto antes Jacob Levy, seu único temor é tê-lo
conhecido, ou melhor, imaginado num pesadelo. Werner, por sua vez, cala: sua
intenção, ao projetar o filme para Leni, era demonstrar-lhe que vil inseto ele
mandara executar, depois de agarrá-lo numa aldeia próxima à fronteira suíça.
Mas só com um gesto Leni consegue afastar qualquer nuvem do céu amoroso de
Werner: segurou-lhe a mão direita, com suas duas mãos suaves e brancas,
pegou na palma rija de Werner e a levou contra seu coração de mulher.
Tudo já está definitivamente esclarecido, e Leni compreendeu que a morte de
um Moloc judeu significou a salvação de milhões de almas inocentes. Cai um
leve chuvisco sobre a Cidade Imperial, Leni pede a Werner que a proteja com
seu abraço, para poder descansar. Ajudados pela luz do dia seguinte
empreenderão a caçada da outra fera que ainda está solta. Mas naquele instante
não se ouvem rugidos provenientes da selva, não, porque se encontram na terra
eleita pelos deuses para levantar sua áurea mansão, ali onde a moral dos heróis
já ganhou a primeira batalha contra os mercadores. É uma manhã ensolarada
de domingo. Leni pediu a Werner que aquele fim de semana, o último que
passariam juntos, antes da volta dele a Paris, fosse dedicado a conhecer os
vales enfeitiçados do Alio Palatinado. São as mesmas montanhas encantadas
onde o Führer tem sua casa de descanso, ali, onde na época da clandestinidade
uma austera família de lavradores o acolhera. A grama é verde e perfumada, o
sol morno, a brisa, em compensação, traz o frescor das neves perpétuas que se
erguem nos cumes, qual sentinelas. Em cima da grama uma simples toalha de
mesa de aldeia. Em cima da toalha de mesa à alimentação frugal de um
piquenique. Leni já não estabelece limites à sua ânsia de saber, pergunta a
Werner tudo o que diz respeito ao Führer.
No início suas palavras soam difíceis de captar para a moça, ... o problema
socioeconômico nos Estados demoliberais desemboca num beco sem saída,
pode-se solucionar em essência muito mais facilmente, e com satisfação geral,
sob uma forma de governo autoritário radicado plenamente no povo e não em
grupos internacionais prepotentes, e ela, então, lhe pede que fale simplesmente
da personalidade do Führer, e da sua subida ao poder. Werner conta: ... as
folhas marxistas e as gazetas judias anunciavam somente caos e humilhações
para os alemães. De vez em quando publicavam também a notícia falsa da
detenção de Adolf Hitler. Mas aquilo não era possível, dado que ninguém podia
reconhecê-lo: ele nunca permitira ser fotografado. Atravessava todo o nosso
território para assistir a reuniões secretas. Algumas vezes eu o acompanhei, em
aviõezinhos precários. Lembro-me bem daquilo, o motor rugia e de repente nos
elevávamos do solo em direção à noite, às vezes em plena tempestade.
Mas ele não se incomodava com os relâmpagos e me falava absorto da sua
dor ante o povo humilhado pela loucura marxista, pelo veneno do pacifismo, por
qualquer ideia estrangeirizante... E quantas vezes fizemos de automóvel aquele
nosso caminho de ontem, e que repetiremos esta noite... dos Alpes a Berlim.
Todas as estradas lhe eram familiares, artérias da sua trajetória, rumo ao
coração do povo. Só fazíamos uma parada, como você está vendo aqui...
estendíamos uma toalha de mesa sobre a relva, sentávamo-nos debaixo das
árvores e comíamos um almoço frugal. Um pedaço de pão, um ovo cozido e um
pouco de fruta, era tudo o que o Führer comia. Em tempos chuvosos tomávamos
a pequena refeição dentro do próprio automóvel. E finalmente chegávamos ao
nosso destino e no comício aquele homem tão simples se agigantava, e pelas
rádios rebeldes as ondas do éter transmitiam suas marteladas de persuasão.
Arriscava a vida frequentemente, porque se propagava pelas ruas o sanguinário
terror marxista... Leni escuta fascinada, mas quer saber mais, como mulher lhe
interessa saber o segredo íntimo da força pessoal do Führer. Werner responde:
... o Führer se revela todo em cada uma de suas palavras. Acredita em si mesmo
e em tudo quanto diz. Ele é isto que é tão difícil de encontrar hoje em dia:
autenticidade. E o povo reconhece o que é autêntico e se apega a isso. O
verdadeiro Por Quê da personalidade do Führer, inclusive para nós que somos
os mais próximos, ficará sempre em mistério. Só tem explicação acreditando-se
em milagres. Deus abençoou este homem e a fé remove montanhas, a fé do
Führer é a fé no Führer ...
Leni se estende na relva e fita os olhos azuis límpidos de Werner, olhos de
mirada tranquila, confiante, pois estão voltados para a Verdade. Leni põe os
braços no pescoço dele e só lhe ocorre dizer, emocionada: ... agora compreendo
como foi que você entrou para a doutrina. Você captou a fundo o sentido do
nacional-socialismo...
Seguem-se para Leni semanas de trabalho extenuante nos estúdios
berlinenses. E com o último rodar da câmara precipita-se ao telefone para falar
com seu amado, absorvido pelas suas ocupações em Paris. Ele lhe reservou uma
surpresa maravilhosa, tirará uns dias de férias antes de reunir-se a ela em
Paris, e poderão passar esses dias em algum belo lugar daquele país que agora
a aclama, a República Nacional-Socialista. Mas Leni lhe reserva uma surpresa
maior ainda: desde o dia da projeção do documentário não deixou de pensar no
rosto do criminoso ainda por capturar, e cresceu dentro dela, dia a dia, a
certeza de ter visto aquele homem em Paris. Por isso é que ela quer voltar já a
essa cidade e iniciar a busca.
Werner concorda, apesar do temor que lhe causa a entrada de Leni em um
comando de espionagem. Mas Leni desce do trem com plena confiança na
missão embora a visão de sua França a aflija. De fato, já acostumada com o sol
que resplandece nos rostos da Pátria do Nacional-Socialismo, desagrada-lhe
ver sua França assim aviltada como se encontra por causa das contaminações
raciais. Sua França lhe parece inegavelmente negroide e judia. (Continua.)
5
— Você devia ter almoçado um pouco.
— É que não tinha nenhuma vontade.
— Por que não pede para ir ao ambulatório? Pode ser que te deem alguma
coisa que melhore.
— Já vai melhorar.
— Mas não me olha assim, Molina, como se eu fosse o culpado.
— Como é que eu estou olhando?
— Fixo.
— Você é louco, porque pelo fato de olhar não estou pondo a culpa de nada
em você. Culpa de quê? Está louco?
— Bem, se briga é sinal que já está melhor.
— Não, não estou melhor, ficou um abatimento enorme.
— Tua pressão deve ter baixado. Bem, vou estudar um pouco.
— Conversa um pouquinho, Valentín, anda.
— Não, esta é a hora de estudo. E tenho que cumprir o plano de leitura, você
sabe.
— Um dia só, que diferença faz...
— Não, se deixar um dia posso me acostumar.
— A preguiça cria hábito, dizia sempre minha mãe.
— Até logo, Molina...
— Que vontade de ver minha mãe, daria tudo por estar um pouco com ela
hoje.
— Vamos, cala um pouco a boca, tenho muito que ler.
— Você é um chato.
— Não tem uma revista à mão?
— Não, e ler me faz mal, fico tonto só de olhar as fotografias, não me sinto
bem.
— Desculpa, mas se se sente mal devia ir para a enfermaria.
— Está bem, Valentín. Estuda, você tem razão.
— Não seja injusto, nem fale comigo nesse tom.
— Desculpa. Estuda tranquilo.
— Hoje à noite conversamos, Molina.
— Você me conta um filme.
— Não sei nenhum, você conta.
— Eu gostaria muito que agora você me contasse um. Um que eu não tenha
visto.1
— Começando porque não me lembro de nenhum, e continuando porque
tenho que estudar.
— Tua vez chegará e você vai ver... Não, falo de brincadeira, sabe o que é
que eu vou fazer?
— O quê?
— Vou pensar para mim mesmo em algum filme, algum que você não goste,
bem romântico. E assim me distraio.
— Claro, é uma boa ideia.
— E hoje à noite você me conta algo sobre o que leu.
— Ótimo.
— Porque estou meio abobalhado, e não sei se vou me lembrar dos detalhes
de um filme para contar.
— Pensa em alguma coisa bonita.
— E você, estuda, não enche mais o saco... e lembra, porque a preguiça cria
hábito.
— De acordo.
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1 Depois de ter classificado em três grupos as teorias sobre a origem física do
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— uma mulher europeia, uma mulher inteligente, uma mulher bela, uma
mulher educada, uma mulher com conhecimentos sobre política internacional,
uma mulher com conhecimentos de marxismo, uma mulher a quem não é preciso
explicar tudo desde o á-bê-cê, uma mulher que estimula o pensamento do
homem com perguntas inteligentes, uma mulher de moral insubornável, uma
mulher de gosto impecável, uma mulher que se veste com discrição e elegância,
uma mulher jovem e madura ao mesmo tempo, uma mulher com conhecimento
de bebidas, uma mulher que sabe escolher o menu adequado, uma mulher que
sabe pedir o vinho adequado, uma mulher que sabe receber, uma mulher que
sabe dar ordens ao pessoal de serviço, uma mulher que sabe organizar uma
recepção para cem pessoas, uma mulher de classe e simpatia, uma mulher
desejável, uma mulher europeia que compreende os problemas de um latino-
americano, uma mulher europeia que admira um revolucionário latino-
americano, uma mulher mais preocupada, não obstante, com o tráfico urbano
de Paris que com os problemas de um país latino-americano colonizado, uma
mulher atraente, uma mulher que não se comove diante da notícia de uma
morte, uma mulher que esconde durante algumas horas o telegrama com a
notícia da morte do pai do seu amante, uma mulher que se recusa a deixar o
trabalho em Paris, uma mulher que se recusa a acompanhar seu jovem amante
na viagem de volta à selva dos cafezais, uma mulher que retoma sua vida
rotineira de executiva parisiense, uma mulher com dificuldade para esquecer um
grande amor, uma mulher que sabe o que quer, uma mulher que não se
arrepende da decisão, uma mulher perigosa, uma mulher que pode esquecer
rapidamente, uma mulher com recursos próprios para esquecer o que lá será
somente um lastro, uma mulher que até podia esquecer a morte do rapaz que
voltou à sua pátria, um rapaz que voa de volta à pátria, um rapaz que observa
do alto as montanhas azuladas da pátria, um rapaz emocionado até as lágrimas,
um rapaz que sabe o que quer, um rapaz que odeia os colonialistas de seu país,
um rapaz disposto a dar a vida para defender seus princípios, um rapaz que não
concebe a exploração dos trabalhadores, um rapaz que viu peões velhos serem
postos na rua por serem imprestáveis, um rapaz que se lembra de peões
encarcerados por terem roubado o pão que não podiam comprar e que se
lembra de peões alcoolizados para esquecerem depois a humilhação, um rapaz
que acredita sem vacilar na doutrina marxista, um rapaz com o firme propósito
de entrar em contato com as organizações guerrilheiras, um rapaz que observa
do ar as montanhas pensando que em breve se reunirá ali com os libertadores de
seu país, um rapaz que teme ser considerado um oligarca a mais, um rapaz que
por amarga ironia podia ser sequestrado por guerrilheiros para exigirem um
resgate, um rapaz que desce do avião e abraça a mãe viúva vestida de cores
berrantes, uma mãe sem lágrimas nos olhos, uma mãe respeitada por todo um
país, uma mãe de gosto impecável, uma mãe que se veste com discrição e
elegância, já que nos trópicos as cores berrantes não destoam, uma mãe que
sabe dar ordens a seus serviçais, uma mãe com dificuldade em olhar o filho de
frente, uma mãe com um conflito que a aflige, uma mãe que caminha com a
cabeça erguida, uma mãe cujas costas retas nunca tocam o encosto da cadeira,
uma mãe que a partir do divórcio mora na cidade, uma mãe que a pedido do
filho o acompanha até a fazenda de café, uma mãe que lembra ao filho casos da
infância, uma mãe que consegue sorrir novamente, uma mãe cujas mãos
crispadas conseguem distender-se para acariciar a cabeça do filho, uma mãe
que consegue reviver anos melhores, uma mãe que pede ao filho para
acompanhá-la num passeio pelo velho parque tropical projetado por ela
própria, uma mãe de gosto refinado, uma mãe que narra debaixo do palmeiral
como seu marido foi abatido pelos guerrilheiros, uma mãe que, junto das matas
floridas de antúrios conta como seu ex-marido matou com um balaço um
empregado insolente e assim provocou a vingança dos guerrilheiros, uma mãe
cuja fina silhueta se recorta contra uma colina distante e azulada além do
cafezal, uma mãe que pede ao filho para não vingar a morte do pai, uma mãe
que pede ao filho para voltar à Europa embora se afaste dela, uma mãe que
teme pela vida do filho, uma mãe que parte intempestivamente de volta à capital
para comparecer a uma festa de caridade, uma mãe que refestelada em seu
Rolls torna a suplicar ao filho que abandone o país, uma mãe que não consegue
esconder sua tensão nervosa, uma mãe sem motivos aparentes para estar tensa,
uma mãe que oculta alguma coisa ao filho, um pai que sempre foi bom para os
empregados, um pai que tentara melhorar a condição de seus empregados
fazendo caridade, um pai que fundara um hospital de campanha para os
trabalhadores da zona, um pai que construíra moradias para eles, um pai que
discutia amargamente com a mulher, um pai que falava pouco com o filho, um
pai que não descia para comer com a família, um pai que nunca perdoou as
greves de seus empregados, um pai que nunca perdoou o incêndio do hospital e
das moradias causado por um grupo de trabalhadores dissidentes, um pai que
concedeu o divórcio à mulher sob a condição de que partisse para a cidade, um
pai que recusou comunicar-se com os guerrilheiros por não lhes perdoar o
incêndio, um pai que arrendou suas terras a companhias estrangeiras e se
refugiou na Riviera, um pai que voltou a suas possessões por motivos ignorados,
um pai que encerrou a vida sob o signo da vergonha, um pai que foi justiçado
como um criminoso, um pai que talvez tenha sido um criminoso, um pai que
quase certamente foi um criminoso, um pai que cobre seu filho de ignomínia, um
pai cujo sangue criminoso corre pelas veias do filho, uma jovem camponesa,
uma jovem mestiça de índio com branco, uma jovem com a frescura da
juventude, uma jovem de dentes atingidos pela desnutrição, uma jovem de
maneiras tímidas, uma jovem que olha extasiada para o protagonista, uma
jovem que lhe entrega uma mensagem secreta, uma jovem que vê com profundo
alívio a reação favorável dele, uma jovem que o conduz aquela mesma noite ao
reencontro de um velho amigo, uma jovem que monta admiravelmente a cavalo,
uma jovem que conhece os caminhos da montanha como a palma da mão, uma
jovem que quase não fala, uma jovem à qual ele não sabe em que termos se
dirigir, uma jovem que em pouco menos de duas horas o conduz ao campo
guerrilheiro, uma jovem que chama o chefe guerrilheiro com um assobio, um
companheiro da Sorbonne, um companheiro de militância política estudantil, um
companheiro a quem não via desde aquela época, um companheiro convencido
da honestidade do protagonista, um companheiro que voltou à pátria para
organizar a rebelião camponesa, um companheiro que em poucos anos
conseguiu organizar uma frente guerrilheira, um companheiro que acredita na
honestidade do protagonista, um companheiro disposto a fazer-lhe uma
revelação incrível, um companheiro que intui uma intriga governamental por
trás do episódio obscuro que provocou a morte do pai e ao capataz, um
companheiro que lhe pede para voltar à fazenda e desmascarar o culpado, um
companheiro que talvez esteja enganado, um companheiro que talvez prepare
uma emboscada, um companheiro que talvez tenha sacrificado um amigo para
continuar sua luta de libertação, uma jovem que o conduz de volta à mansão,
uma jovem que não fala, uma jovem taciturna, uma jovem talvez simplesmente
cansada após uma jornada de trabalho e uma longa cavalgada noturna, uma
jovem que de vez em quando se volta e o observa com desconfiança, uma jovem
que possivelmente o odeia, uma jovem que o manda parar, uma jovem que lhe
pede silêncio, uma jovem que escuta ao longe rumores de uma possível patrulha
de reconhecimento, uma jovem que lhe pede para descer do cavalo e esperar
uns minutos escondido atrás de uma moita, uma jovem que lhe pede para
esperá-la em silêncio, segurando ambos os cavalos pelas rédeas enquanto sobe
a um penhasco e inspeciona, uma jovem que volta e o manda recuar até chegar
a uma curva na montanha, uma jovem que pouco depois lhe indica uma gruta
natural onde passar a noite posto que os soldados não levantarão acampamento
até o amanhecer, uma jovem que treme de frio na gruta úmida, uma jovem de
intenções indecifráveis, uma jovem que pode apunhalá-lo durante o sono, uma
jovem que sem fitá-lo nos olhos lhe pede com voz sufocada para deitar a seu
lado para aquecê-la, uma jovem que nem fala nem o olha de frente, uma jovem
intimidada ou sagaz, uma jovem de carnes frescas, uma jovem que está deitada
a seu lado, uma jovem que respira agitadamente, uma jovem que se deixa
possuir em silêncio, uma jovem tratada como uma coisa, uma jovem a quem não
se diz uma palavra amável, uma jovem com um gosto ácido na boca, uma jovem
com um cheiro de suor forte, uma jovem a quem se usa e depois se deixa de
lado, uma jovem na qual se descarrega sêmen, uma jovem que não ouviu falar
de anticoncepcionais, uma jovem explorada pelo patrão, uma jovem que não
pode fazê-lo esquecer de uma parisiense sofisticada, uma jovem a quem não se
tem vontade de acariciar após o orgasmo, uma jovem que narra uma história
infame, uma jovem que narra como o ex-administrador da fazenda a violou
apenas adolescente, uma jovem que narra como o ex-administrador da fazenda
agora está encarapitado no governo, uma jovem que garante que aquele homem
tem alguma coisa a ver com a morte do pai do rapaz, uma jovem que se atreve a
dizer que talvez a mãe do rapaz saiba tudo, uma jovem que revela a verdade
mais cruel, uma jovem que viu a mãe do rapaz nos braços do ex-administrador,
uma jovem a quem não se tem vontade de acariciar após o orgasmo, uma jovem
em quem se dá uma bofetada e se insulta por dizer coisas horríveis, uma jovem a
quem se usa e depois se deixa de lado, uma jovem explorada por um patrão
cruel em cujas veias corre sangue de assassino
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1 Em sua Teoria psicanalítica da neurose, O. Fenichel afirma que a
probabilidade de orientação homossexual é tanto maior quanto mais um menino
se identificar com a mãe. Esta situação se produz principalmente quando a
imagem materna é mais brilhante que a do pai, ou quando o pai está totalmente
ausente do quadro familiar, como nos casos de morte ou divórcio, ou quando a
figura do pai, embora presente, se torna repulsiva por algum motivo grave, como
o alcoolismo, a severidade excessiva ou a extrema violência de temperamento. A
criança precisa de um herói adulto que lhe sirva como modelo de
comportamento; através da identificação, a criança irá absorvendo as
características de comportamento dos pais, e embora de certa forma se rebele
contra a obediência às ordens deles, incorporará inconscientemente hábitos e
também manias de seus progenitores, perpetuando as características culturais da
sociedade em que vive. Uma vez identificado com o pai, continua Fenichel, o
menino adota a visão masculina ao mundo, e, em nossa sociedade, a ocidental,
essa visão tem um componente de agressividade — um rastro de sua condição de
amo, antes indiscutida — que ajuda o menino a impor sua nova presença. Ao
contrário, o menino que está adotando como modelo a imagem materna e não
encontra a tempo uma imagem masculina para contrabalançar a fascinação
materna, será socialmente menosprezado por seus traços efeminados, já que não
ostenta a rudeza própria de um rapazinho normal.
Freud comenta a respeito, na obra Da transformação dos instintos, que no
rapaz homossexual pode combinar-se às vezes a mais completa masculinidade
mental com a total inversão sexual, entendendo-se por masculinidade mental
traços como a coragem, o espírito de aventura e experimentação, e a dignidade.
Mas em sua obra posterior, Introdução ao narcisismo, elabora uma teoria
segundo a qual o homem homossexual começaria por fixação materna, efêmera,
para finalmente identificar-se ele próprio como mulher. Se o objeto de seus
desejos passa a ser um jovem, é porque sua mãe o amou, a ele que era um jovem.
Ou porque ele desejaria que sua mãe o tivesse amado assim. No fim de contas o
objeto de seu desejo sexual é sua própria imagem. Para Freud, então, tanto o
mito de Édipo como o de Narciso são componentes do conflito original que dá
origem ao homossexualismo. Mas de todas as observações de Freud sobre
homossexualidade foi esta a mais atacada, objetando-se, principalmente, que os
homossexuais cuja identificação é altamente feminina sentem como objeto de
desejo sexual tipos muito masculinos, ou pronunciadamente mais velhos.
Por outro lado, Freud, na obra citada em primeiro lugar, fala, do
desenvolvimento da sensibilidade erótica e dá outras pistas sobre a gênese do
homossexualismo. Afirma que o começo da libido nos bebés é de caráter
predominantemente difuso, e que daí até conseguir a educação de seu desejo e
fazer com que este recaia numa pessoa do sexo oposto, com quem o prazer será
obtido através da união genital, deverá passar por outras etapas. A primeira é a
oral, em que o prazer só deriva dos cantatas bucais, tais como a sucção. Depois
vem a etapa anal, em que a criança deriva sua satisfação dos movimentos do
intestino. A última e definitiva é a fase genital. Freud a considera a única forma
madura de sexualidade, afirmação que seria, anos depois, contestada por
Marcuse.
O próprio Freud ampliou esses comentários em Caráter e erotismo anal, onde
elabora a seguinte teoria: certos tipos de personalidade anormal, cujos traços
predominantes são a avareza e a obsessão pela ordem, podem sofrer a influência
de desejos anais reprimidos. O prazer que obtêm com a acumulação de bens
pode provir da nostalgia inconsciente pelo prazer que sentiram na infância ao
reter — fato muito frequente nas crianças — as fezes. Por outro lado, a obsessão
pela ordem e a limpeza seria a contrapartida da culpa que sentiram em
decorrência do impulso de brincar com fezes. Quanto ao papel que possa
desempenhar a fixação anal no desenvolvimento do homossexualismo, Freud
afirma que além dos influxos já enumerados — Édipo, Narciso — é preciso
levar em conta que todos estes empecilhos determinam uma interrupção do
desenvolvimento da criança, uma inibição afetiva que acarreta a fixação na fase
anal, sem possibilidade de chegar à fase final, ou seja, a genital.
West contesta essa afirmação dizendo que os homossexuais, ao sentirem
proibido o caminho que conduz às relações genitais normais, são obrigados a
experimentar zonas eróticas extragenitais, e encontram na sodomia — após uma
adequação progressiva — um tipo de gratificação mecânica direta, mas não
exclusiva. West acrescenta que o homem que pratica a sodomia não está
necessariamente fixado na fase anal, assim como o heterossexual que beija uma
amiga não está necessariamente fixado na fase oral. Finalmente, assinala que a
sodomia não é um fenômeno exclusivamente homossexual, já que os casais
heterossexuais também a praticam, enquanto que indivíduos de "caráter anal"
(ou seja, avaros, obsessivos de limpeza e ordem, etc.) não sentem
necessariamente inclinações pelo homossexualismo.
8
MINISTÉRIO DO INTERIOR DA REPÚBLICA ARGENTINA
________________
1 Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud assinala que a
repressão, em termos gerais, provém da imposição do domínio de um indivíduo
sobre outros, sendo esse primeiro indivíduo não outro que o pai. A partir de tal
domínio é que se estabelece a forma patriarcal da sociedade, baseada na
inferioridade da mulher e na forte repressão da sexualidade. Ademais, Freud
associa sua tese da autoridade patriarcal com o auge da religião, e
particularmente com a ascensão do monoteísmo no Ocidente. Por outra parte,
Freud se preocupa especialmente com a repressão sexual, pois considera os
impulsos naturais do ser humano muito mais complexos do que a sociedade
patriarcal admite: dada a capacidade indiferenciada dos bebês para obterem
prazer sexual de todas as partes de seu corpo, Freud os qualifica como
“perversos polimorfos”. Como parte deste conceito, Freud acredita também na
natureza essencialmente bissexual do nosso impulso sexual original... Na mesma
linha de pensamento, e no que diz respeito à repressão primeira, Otto Rank
considera o desenvolvimento que se processa na dominação paterna, até chegar-
se a um poderoso sistema estatal administrado pelo homem, como um
prolongamento da repressão primeira antes citada, cujo objetivo é a exclusão
cada vez maior da mulher. Por seu turno, Dennis Altman, em Homossexual,
opressão e libertação, falando especificamente da repressão sexual, relaciona-a
com a necessidade, no começo da humanidade, de produzir uma grande
quantidade de filhos para fins econômicos e de defesa.
A propósito do mesmo assunto, em O sexo na história, o antropólogo
britânico Rattray Taylor assinala que a partir do século IV a.C. verifica-se no
mundo clássico uma crescente repressão da sexualidade e um desenvolvimento
do sentimento de culpa, fatores que facilitaram a vitória do conceito hebreu,
mais repressivo do sexo, sobre o conceito grego. Segundo os gregos, a natureza
sexual de todo ser humano continha tanto elementos homossexuais como
heterossexuais.
Voltando a Altman, este, em sua obra já citada, sustenta que as sociedades
ocidentais se especializam na repressão da sexualidade, repressão legitimada
pela tradição religiosa judaico-cristã. Essa repressão se exprime de três maneiras
inter-relacionadas: associando sexo com 1) pecado e seu consequente sentimento
de culpa; 2) a instituição familiar e a procriação de filhos, como única
justificativa; 3) rejeição de tudo o que não for sexualidade genital e
heterossexual. Mais adiante acrescenta que os “libertários” tradicionais da
repressão sexual lutam por mudar os dois primeiros pontos, mas esquecem o
terceiro. Um exemplo seria Wilhelm Reich, com o livro A função do orgasmo,
quando afirma que a libertação sexual está radicada no orgasmo perfeito, o qual
só se poderia obter através do acoplamento genital heterossexual de indivíduos
pertencentes à mesma geração. E é sob a influência de Reich que outros
pesquisadores teriam desenvolvido sua hostilidade ao homossexualismo e aos
anticoncepcionais, já que dificultariam a conquista do orgasmo perfeito e,
portanto, seriam contrários à total “liberdade” sexual.
Sobre a libertação sexual, Herbert Marcuse, em Eros e civilização, esclarece
que ela implica mais que a simples ausência de opressão; a libertação requer
uma nova moralidade e uma revisão da noção de “natureza humana”. E
acrescenta que toda teoria real de libertação sexual deveria levar em conta as
necessidades essencialmente polimorfas do ser humano. Segundo Marcuse, em
desafio a uma sociedade que emprega a sexualidade como um meio para um fim
útil, as perversões sustentam a sexualidade como um fim em si mesmo; portanto,
colocam-se fora da órbita do férreo princípio de “performance” — termo técnico
talvez traduzível como “rendimento” —, ou seja, um dos princípios repressores
básicos para a organização do capitalismo, e assim questionam sem querer os
próprios fundamentos deste último.
Comentando esse ponto do raciocínio marcusiano, Altman acrescenta que
quando o homossexualismo se torna exclusivo e estabelece suas próprias normas
econômicas, deixando de assinalar criticamente as formas convencionais dos
heterossexuais para, em compensação, tentar uma cópia deles, torna-se uma
forma de repressão tão grande como o heterossexualismo exclusivo. E mais
adiante, comentando outro freudiano radical como Marcuse, Norman O. Brown,
e o próprio Marcuse, Altman deduz que em última instância aquilo que
concebemos como “natureza humana” é tão-somente o que dela resultou depois
de séculos de repressão, raciocínio que implica — e nisso Marcuse e Brown
concordam — a mutabilidade essencial da natureza humana.
Segunda Parte
9
— Olha o que estou trazendo!!!
— Não!... Tua mãe veio...
— Veio!!!
— Mas que bom... Então está boa.
— Sim, um pouco melhor... E olha o que me trouxe. Desculpa, nos trouxe.
— Obrigado, mas é para você, não chateia, rapaz.
— Cala a boca, peste. Hoje começa aqui uma nova vida, com os lençóis
quase secos, vê só... E tudo isto para comer. Olha dois frangos grelhados, dois,
que é que acha? E os frangos são para você, isso não pode te fazer mal, vai ver
que você fica logo bom.
— Nunca permitirei.
— Faz isso por mim, prefiro não comer frango mas salvar-me de teus cheiros
todo borrado... Não, estou falando sério, você tem que deixar de comer a porra
da comida daqui e vai ver como fica logo bom. Experimenta ao menos dois dias.
— Você acha?
— Claro, homem. E quando já estiver bom... fecha os olhos. Valentín, vê se
adivinha. Fala.
— Sei lá... não sei...
— Não abre os olhos. Espera que vou dar para você tocar e ver se adivinha.
Anda... toca.
— Dois potes... E pesadinhos. Desisto.
— Abre os olhos.
— Doce de leite!
— Mas para isso é melhor esperar, uma vez que te sintas bem, e isso sim
vamos comer nós dois. Olha só, corri o risco deixando os lençóis sozinhos,
enxugando, e não os roubaram. O que é que você acha? e já estão quase secos,
hoje à noite dormimos os dois com lençol.
— Genial.
— Bem, espera um pouquinho que vou ajeitar isto... faço um chá de
camomila que estou muito nervoso, e você come uma perninha de frango, ou
não, são só cinco horas... É melhor um chá comigo e umas bolachas que tenho
aqui, são as mais digestivas, as Express, me davam quando eu adoecia em
criança. Quando não existiam as Criollitas.
— Por favor, me dá uma já?
— Bem, uma e com doce e tudo, mas de laranja! Por sorte me trouxeram
tudo mais fácil de digerir, assim você pode atacar, menos no doce de leite, por
enquanto. E acendo o fogareiro já e vamos chupar os dedos.
— E a perna de frango, você não me daria, já?
— Não, cuidado, um pouco de medida, não é? Melhor deixar para mais
tarde, assim quando trouxerem o jantar você não fica tentado, porque mesmo que
seja nojento você comeu todos estes dias.
— É que você não sabe, depois das dores sinto um vazio no estômago e
morro de fome.
— Escuta, vamos ver se nos entendemos. Eu quero que você coma o frango,
não, os frangos, os dois, com a condição de não provar a comida do presídio, que
é a que te faz mal, de acordo?
— De acordo. Mas e você, fica com água na boca?
— Não, a comida fria não me tenta. No duro.
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1 Como variante do conceito de repressão, Freud introduziu o termo
“sublimação”, entendendo por isso a operação mental através da qual se
canalizam os impulsos libidinosos inconvenientes. Os canais da sublimação
seriam qualquer atividade — artística, esportiva, profissional — que permitisse o
emprego dessa energia sexual, excessiva segundo os cânones de nossa
sociedade. Freud estabelece uma diferença fundamental entre repressão e
sublimação ao considerar que esta última pode ser saudável, já que resulta
indispensável para a manutenção de uma comunidade civilizada.
Essa posição foi atacada por Norman O. Brown, autor de Vida contra morte,
o qual propicia um retorno àquela “perversão polimorfa” dos bebês descoberta
por Freud, o que implica uma total eliminação da repressão. Uma das razões que
Freud aduzia em sua defesa de uma repressão parcial foi a necessidade de
submeter os impulsos destrutivos do homem, mas tanto Brown como Marcuse
rejeitam esse argumento ao sustentar que os impulsos agressivos não existem
como tal se os impulsos da libido — preexistentes — encontram sua maneira de
realização, isto é, sua satisfação.
Por sua vez, a crítica que Brown recebeu parte da suposição de que uma
humanidade sem diques de contenção, isto é, de repressão, não poderia organizar
nenhuma forma de atividade permanente. Foi então que Marcuse interveio com
seu conceito de surplus repression, termos que designam aquela parte da
repressão sexual criada para manter o poderio da classe dominante, apesar de
não ser imprescindível para manter uma sociedade organizada que atenda às
necessidades humanas de todos os seus componentes.
Portanto, o avanço principal que suporíamos em Marcuse com respeito a
Freud consistiria em que este último tolerava certo tipo de repressão pelo fato de
preservar a sociedade contemporânea, enquanto Marcuse considera fundamental
a mudança da sociedade, na base de uma evolução que leve em conta os
impulsos sexuais originais.
Seria esta a base da acusação que os representantes das novas tendências
psiquiátricas formulam contra os psicanalistas ortodoxos freudianos, acusação
segundo a qual estes últimos teriam procurado com uma impunidade que se
esfacelou notavelmente em fins da década de 60 — que seus pacientes
assumissem qualquer conflito pessoal para facilitar a adaptação à sociedade
repressiva em que viviam, e não para perceber a necessidade de mudarem essa
sociedade.
Em O homem unidimensional, Marcuse afirma que originariamente o instinto
sexual não tinha limitações temporárias e espaciais de sujeito e objeto, dado que
a sexualidade é por natureza “perversão polimorfa”. Indo mais longe ainda,
Marcuse dá como exemplo de surplus repression não somente nossa
concentração total na cópula genital, mas também fenômenos como a repressão
do olfato e do sabor na vida sexual.
Por sua parte, Dennis Altman, comentando favoravelmente em seu livro já
citado essas afirmações de Marcuse, acrescenta que a libertação não somente
deveria eliminar a contenção sexual, como proporcionar a possibilidade prática
de realizar aqueles desejos. Ademais, sustenta que só recentemente advertimos
que a maior parte daquilo que se considerava normal e instintivo, principalmente
na estruturação familiar e nas relações sexuais, é, de fato, aprendido, razão pela
qual seria preciso desaprender muito daquilo que até agora foi considerado
natural, inclusive atitudes competitivas e agressivas fora do campo da
sexualidade. E dentro da mesma linha, a teórica da libertação feminina Kate
Mittet diz, em seu livro Política sexual, que o propósito da revolução sexual
deveria ser uma liberdade sem hipocrisias, não corrompida pelas bases
econômicas exploradoras das alianças sexuais tradicionais, ou seja, o casamento.
Ademais, Marcuse sustenta não apenas um livre fluir da libido, mas também
a transformação desta: ou seja, a passagem de uma sexualidade circunscrita à
supremacia genital a uma total erotização da personalidade. Refere-se, então, a
uma expansão mais do que a uma explosão da libido, uma expansão que chegue
a cobrir outras áreas das atividades humanas, privadas e sociais, por exemplo, as
trabalhistas. Acrescenta que a força total da moralidade civil se mobilizou contra
a utilização do corpo como simples objeto, meio e instrumento de prazer, já que
essa coisificação foi considerada tabu e relegada a desprezível privilégio de
prostitutas, degenerados e pervertidos.
À margem dessa posição, J. C. Unwin, autor de Sexo e cultura, após estudar
as regulações maritais de oitenta sociedades não-civilizadas, parece sustentar a
suposição muito generalizada de que a liberdade sexual conduz à decadência
social, já que, de acordo com a psicanálise ortodoxa, se o indivíduo não
sucumbir à neurose, a continência sexual imposta pode ajudar a canalizar as
energias por vias socialmente úteis, Unwin concluiu em seu exaustivo estudo
que o estabelecimento das primeiras bases de uma sociedade organizada, seu
desenvolvimento ulterior e sua apropriação de terrenos vizinhos, ou seja, as
características históricas de toda sociedade pujante, se dão somente a partir do
momento em que se implanta a repressão sexual. Ao passo que as sociedades
onde se permitem relações sexuais livres — pré-nupciais, extraconjugais e
homossexuais — permanecem num subdesenvolvimento quase animal. Mas ao
mesmo tempo Unwin sustenta que as sociedades estritamente monogâmicas e
altamente repressivas não conseguem sobreviver muito tempo, e, se
conseguirem, em parte, é através da submissão moral e material da mulher.
Portanto, Unwin afirma que entre a angústia suicida que provoca o minimizar
das necessidades sexuais e o extremo oposto, da desordem social por
incontinência sexual, deveria ser achado um caminho razoável que constituísse a
solução do grave problema. Ou seja, a eliminação da surplus repression de que
fala Marcuse.
10
— Bom dia...
— Bom dia!
— Que horas são?
— Dez e dez. Sabe, às vezes eu chamo minha mãe, coitada, de dez e dez,
porque ela anda com os pés para fora.
— Não posso acreditar que já seja tão tarde.
— Sim, Valentín, quando abriram para trazer o mate você se virou na cama e
continuou dormindo.
— Que foi que você disse de sua velha?
— Você ainda está dormindo. Nada, então dormiu bem?
— Sim, me sinto bem melhor.
— Não está tonto?
— Não... E dormi como um justo. Assim sentado na cama juro que não sinto
nada, nada de tonteira.
— Genial... Por que não experimenta andar, para ver o que acontece?
— Não, porque você vai rir.
— De quê?
— Está acontecendo uma coisa.
— O quê?
— Algo que acontece a um homem são, mais nada. Quando acorda de manhã
e tem excesso de energia.
— Está duro? que genial...
— Olha para o outro lado, fico sem jeito...
— Está bem, fecho os olhos.
— Foi graças a tua comida, senão nunca teria me restabelecido.
— Está tonto?
— Não... nada, estou de perna bamba, mas nada de tonteira.
— Que genial...
— Já pode olhar. Fico um pouco mais deitado.
— Esquento água para um chá.
— Não, esquenta o mate e pronto.
— Está louco, joguei fora quando fui ao banheiro, se você quiser sarar tem
que tomar coisas boas.
— Não, olha, fico com vergonha de gastar teu chá, e o resto todo. Isso não
pode continuar assim, agora já estou bem.
— Cala essa boca.
— Não, realmente...
— Realmente nada, agora minha mãe começa a trazer coisas de novo, de
modo que não há problema.
— Mas fico sem jeito.
— Também é preciso saber receber, não é? Também não se deve fazer tanta
cerimônia.
— Bem, obrigado.
— Se quiser aproveita para ir ao banheiro enquanto eu faço o chá. Mas fica
na cama, que eu peço para abrirem. Assim não se resfria.
— Obrigado.
— E quando você voltar, se quiser, continuo com os zumbis, não tem
vontade de saber como é que continua?
— Sim, mas é melhor tratar de estudar um pouco, quero ver se consigo
recomeçar a leitura, já que estou bem.
— Acha? não será muito esforço?
— Vamos ver.
— Como você é fanático.
....................................................
....................................................
....................................................
— Bom dia...
— Que tal? dormiu bem?
— Sim, ótimo.
— Embora você tenha lido demais. Como a vela é minha, da próxima vez
apago.
— Parece mentira eu ter podido ler de novo.
— Sim, é bom ler à tarde, você podia ler como grande comemoração, mas de
tarde. Mas depois que apagaram a luz você exagerou e continuou lendo umas
duas horas mais com a velinha.
— Bem, já sou crescidinho, não é? deixa eu administrar minha vida como
entender.
— Não podíamos ter continuado de noite com os zumbis? bem que você
gostava, não diga que não.
— Que horas são?
— Oito e quinze.
— E por que foi que o guarda não veio?
— Veio e você não acordou, dorme como um justo.
— Que incrível... que maneira de dormir... Mas onde estão as jarras? Você
está enchendo o saco, estão lá onde ficaram ontem à noite...
— Claro que estou enchendo teu saco, disse para o guarda não trazer mais
mate de manhã.
— Olha, resolva o que quiser pra você, mas eu quero que me tragam o mate,
mesmo que seja mijo.
— Você não sabe de nada. Se tomar as coisas daqui vai ficar doente, então
não se preocupe, enquanto eu tiver comida também há para você. E hoje tenho
visita do advogado, e na certa que mamãe vem com ele e um outro embrulhão.
— Realmente, velho, não gosto que mandem na minha vida.
— Hoje é importante o que o advogado disser. Não acredito, e estou falando
sério, nas apelações e essas coisas, mas se houver um bom pistolão, como me
prometeram, então sim, tenho esperanças.
— Tomara.
— Olha, se eu sair... Quem sabe a quem porão de companheiro.
— Já tomou o desjejum, Molina?
— Não, porque não queria fazer barulho, para que você dormisse.
— Então ponho água para os dois.
— Não! Você fica na cama que está convalescendo. Eu preparo. E a água já
está para ferver.
— É o último dia que permito isso.
— Conta o que foi que você leu ontem à noite.
— Que está preparando?
— Surpresa. Conta o que você leu ontem de noite.
— Nada. Coisas de política.
— Puxa, como você está pouco comunicativo...
— A que horas vem teu advogado?
— Falou que às onze... E agora... abrimos o embrulhinho secreto... que
estava escondido... com uma coisa muito gostosa... para acompanhar o chá...
bolo inglês!
— Não, obrigado, não quero.
— Como é que não vai querer... A água já está fervendo. Pede para ir ao
banheiro e volta depressa, que a água está pronta.
— Não me diga o que tenho que fazer, por favor...
— Mas rapaz, deixa eu te mimar um pouco...
— Basta!... porra!!!
— Está louco... qual é?
— Cala a boca!!!
— O bolo...
—...
— Olha o que você fez...
—...
— Se ficarmos sem fogareiro estamos liquidados. E o pratinho...
— E o chá...
— Desculpa.
—...
— Perdi o controle. Sério, te peço perdão.
—...
— O fogareiro não quebrou. Mas derramou todo o querosene.
—...
— O principal é que o depósito de querosene não quebrou.
— Molina, desculpa o estouro.
— Posso pôr querosene da tua garrafa?
— Pode...
— E desculpa, te peço de verdade.
— Não há nada a desculpar.
— Sim, enquanto eu estava doente se não fosse você quem sabe aonde teria
ido parar.
— Não há nada a agradecer.
— Sim, tenho que agradecer. E muito.
— Esquece. Não houve nada.
— Sim, claro, houve alguma coisa, e estou morrendo de vergonha.
—...
— Sou uma besta.
—...
— Olha, Molina, agora chamo o guarda e aproveito para encher o garrafão
porque estamos ficando sem água. E olha para mim, por favor, levanta a cabeça.
— Vou trazer água. Diz que me perdoa...
—...
— Perdoa, Molina.
—...1
________________
1 Numa pesquisa citada pelo sociólogo J. L. Simmons no livro Desvios,
estabelece-se que os homossexuais são objeto de uma rejeição, por parte das
pessoas, consideravelmente maior que os alcoólatras, jogadores compulsivos,
ex-presidiários e ex-doentes mentais.
Em Homem, moral e sociedade, J. C. Flugel diz a propósito que todos os que
durante a infância se identificaram a fundo com imagens paternas ou maternas
de comportamento muito severo abraçarão ao crescer causas conservadoras e
serão fascinados pelo regime autoritário. Quanto mais autoritário o líder mais
confiança lhes despertará; sentir-se-ão patriotas e muito leais ao lutar pela
manutenção das tradições e das diferenças de classe, assim como dos sistemas
educacionais de rígida disciplina e das instituições religiosas, enquanto
condenarão sem piedade os anormais sexuais. Em compensação, aqueles que
rejeitaram, na infância, de alguma maneira — em nível inconsciente, emotivo ou
racional — aquelas regras de comportamento dos pais, apoiarão as causas
radicais, repudiarão as diferenças de classe e compreenderão aqueles que têm
inclinações pouco convencionais, por exemplo, os homossexuais.
Por sua parte, Freud, em “Carta a uma mãe americana”, diz que a
homossexualidade, embora seja uma vantagem, também não deve considerar-se
motivo de vergonha, já que não é um vício nem uma degradação, nem sequer
uma doença; é apenas uma variante das junções sexuais produzida por uma
determinada contenção do desenvolvimento sexual. com efeito, Freud opina que
a superação da etapa de “perversão polimorfa” da criança — na qual estão
incluídos impulsos bissexuais —, devido a pressões socioculturais, é um sinal de
maturidade.
Discordam disso algumas escolas atuais da psicanálise, as quais vislumbram
na repressão da “perversão polimorfa” uma das razões principais de deformação
do caráter, sobretudo a hipertrofia da agressividade. Quanto à homossexualidade
mesma, Marcuse assinala que a função social do homossexual é análoga à do
filósofo crítico, já que só sua presença representa um indicador constante da
parte reprimida da sociedade.
A respeito da repressão da perversão polimorfa no Ocidente, Dennis Altman,
em seu livro acima citado, diz que os dois principais componentes da repressão
são, por um lado, a eliminação do erótico de todas as atividades humanas que
não forem definidamente sexuais, e, por outro, a negação da bissexualidade
inerente ao ser humano: a sociedade assume, sem se deter na menor reflexão,
que a heterossexualidade é a sexualidade normal. Altman observa que a
repressão da bissexualidade se realiza através da implantação forçada de
conceitos histórico-culturais prestigiosos de “masculinidade” e “feminilidade”
que conseguem sufocar os impulsos de nosso inconsciente e aparecer na
consciência como única forma de comportamento, ao mesmo tempo que
conseguem manter ao longo dos séculos a supremacia masculina. Em outras
palavras, papéis sexuais claramente delineados, que se vão aprendendo desde a
infância. Além do mais, continua Altman, ser macho, ou fêmea fica estabelecido,
antes de mais nada, através do outro: o homem sente que sua masculinidade
depende de sua capacidade de conquistar mulheres, e a mulher sente que sua
realização só pode ser alcançada ligando-se a um homem. Por outra parte,
Altman e a escola marcusiana condenam o estereótipo do homem forte que se
apresenta ao sexo masculino como modelo de emulação mais desejável, já que o
citado estereótipo sugere tacitamente a afirmação da masculinidade através da
violência, o que explica a vigência constante da síndrome agressiva no mundo.
Por último, Altman assinala a falta de qualquer forma de identidade para o
bissexual na sociedade atual, e as pressões que sofre de ambos os lados, dado
que a bissexualidade ameaça tanto as formas aburguesadas de vida homossexual
exclusiva como os heterossexuais, e essa característica explicaria o motivo pelo
qual a bissexualidade assumida é tão pouco comum. E quanto ao conveniente,
mas só ideal — até poucos anos atrás — paralelismo entre as lutas de libertação
de classes e as de libertação sexual, Altman lembra que apesar dos desvelos de
Lênin em favor da liberdade sexual na URSS — por exemplo, a rejeição da
legislação anti-homossexual —, essas leis foram reintroduzidas em 1934 por
Stálin, e o preconceito contra o homossexualismo como uma “degenerescência
burguesa” se firmou em quase todos os partidos comunistas do mundo.
Theodore Roszak, em sua obra O nascimento de uma contracultura, comenta
em outros termos o movimento de libertação sexual. Afirma que a mulher mais
necessitada, e desesperadamente, de libertação é a mulher que todo homem traz
trancada no calabouço de sua própria psique. Roszak assinala que seria essa e
não outra a forma seguinte de repressão que é preciso eliminar, e dá-se o mesmo
fenômeno com respeito ao homem manietado que existe dentro de toda mulher.
E Roszak não duvida de que tudo isso significaria a mais cataclísmica
reinterpretação da vida sexual na história da humanidade, já que poria em
questão tudo o que diz respeito aos papéis homossexuais e ao conceito de
normalidade sexual vigente na atualidade.
11
DIRETOR: Está bem, Suboficial, deixe-nos a sós.
SUBOFICIAL: Às ordens, senhor.
DIRETOR: Que tal, Molina? Como está?
SENTENCIADO: Bem, obrigado...
DIRETOR: Quais são as novidades?
SENTENCIADO: Não muitas, acho.
DIRETOR: Ahã...
SENTENCIADO: Mas noto que cada vez vou criando mais intimidade...
DIRETOR: Ahã...
SENTENCIADO: Sim, disso tenho certeza...
DIRETOR: O pior, Molina, é que estão me pressionando muito. E vou lhe
dizer mais, Molina, para que se coloque no meu lugar. De onde me pressionam é
da presidência. Querem ter notícias rapidamente. E me pressionam no sentido de
que é necessário tornar a interrogar Arregui, e duro. Você me entende.
SENTENCIADO: Sim, senhor... Espere mais uns dias, não o interrogue,
diga-lhes que está muito fraco, o que é verdade. Porque será pior se ele ficar no
interrogatório, diga-lhes isso.
DIRETOR: Sim, eu digo, mas isso não os convence.
SENTENCIADO: Dê-me mais uma semana, e com certeza terei algum dado.
DIRETOR: Todos os dados, Molina, todos os dados possíveis.
SENTENCIADO: Ocorreu-me uma ideia.
DIRETOR: Qual?
SENTENCIADO: Não sei se lhe parecerá...
DIRETOR: Fale...
SENTENCIADO: Arregui é muito duro, mas também tem seu lado
sentimental.
DIRETOR: Sim.
SENTENCIADO: Então... por exemplo, se ele tomar conhecimento, por
exemplo, chega um guarda e diz que daqui a uma semana vão me transferir de
cela, porque já entrei na categoria especial, pela história do indulto, ou mais
devagar ainda, pela questão de que meu advogado já apresentou a apelação,
então se ele acreditar que vão me transferir de cela vai amolecer mais. Porque
acho que está bastante afeiçoado a mim, e aí vai resolver e falar mais...
DIRETOR: Você acha?
SENTENCIADO: Acho que vale a pena experimentar.
DIRETOR: O que eu sempre achei um erro foi que você falasse sobre a
possibilidade do indulto. Isso talvez o tenha feito ligar as coisas.
SENTENCIADO: Não, não acredito.
DIRETOR: Por quê?
SENTENCIADO: Bem, achei...
DIRETOR: Não, fale por quê. Deve ter suas razões...
SENTENCIADO: Bem... assim eu também me cobri um pouco.
DIRETOR: Em que sentido?
SENTENCIADO: No sentido de que quando eu fosse embora ele não
desconfiasse, e depois me soltasse em cima os companheiros, que tomassem
represálias.
DIRETOR: Você bem sabe que ele não tem contato com os companheiros.
SENTENCIADO: Isso é o que nós acreditamos.
DIRETOR: Não pode escrever a ninguém sem que nós vejamos a carta, por
que tem medo então, Molina? Você está agindo fora da combinação.
SENTENCIADO: Lhe asseguro que é melhor ele pensar que vou ser solto...
Porque...
DIRETOR: Porque o quê?
SENTENCIADO: Nada...
DIRETOR: Vamos, Molina. Fale.
SENTENCIADO: Sei lá...
DIRETOR: Fale, Molina, fale claro. Se não falar claro não vamos nos
entender.
SENTENCIADO: Bem, nada, juro. É um palpite, se ele pensar que vou
embora vai ter mais necessidade de desabafar comigo. Os presos são assim,
senhor. Quando um companheiro vai embora... sentem-se mais desamparados
que nunca.
DIRETOR: Está bem, Molina, nos vemos daqui a uma semana.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor.
DIRETOR: Mas então falaremos em outros termos, desconfio.
SENTENCIADO: Sim, é claro.
DIRETOR: Muito bem, Molina...
SENTENCIADO: Senhor, vou abusar de novo... de sua paciência.
DIRETOR: O que foi?
SENTENCIADO: Conviria que eu voltasse à cela com um embrulho, e já fiz
a lista, se o senhor estiver de acordo. Preparei-a enquanto esperávamos lá fora,
desculpe a letra.
DIRETOR: Acha que isso possa ajudar?
SENTENCIADO: Tenho certeza que nada ajudaria mais, tenho certeza, de
verdade mesmo.
DIRETOR: Deixe-me ver.
Lista de coisas para embrulho de Molina, por favor tudo num embrulho,
como minha mãe traz:
....................................................
....................................................
....................................................
....................................................
________________
1 A qualificação de perversão polimorfa que Freud dá à libido infantil —
referindo-se à indiscriminação do bebê para gozar de seu corpo e do corpo dos
outros — é também aceita por estudiosos de projeção mais recente, como
Norman O. Brown e Herbert Marcuse. A diferença entre eles e Freud, já
apontada, consiste em que Freud considera positivo que a libido se sublime em
parte e seja canalizada por vias exclusivamente heterossexuais, e definidamente
genitais, ao passo que os pensadores mais recentes consideram e até propiciam
um retorno à perversão polimorfa e à erotização além da sexualidade
simplesmente genital.
De qualquer maneira, a civilização ocidental, afirma Fenichel, impõe à
menina ou ao menino os modelos de sua mãe ou seu pai, respectivamente, como
únicas identidades sexuais possíveis. A probabilidade de orientação
homossexual, segundo Fenichel, é tanto maior quanto maior for a identificação
da criança com o progenitor de sexo oposto, em vez de acontecer o comum. A
menina que não acha satisfatório o modelo sugerido pela mãe e o menino que
não acha satisfatório o modelo proposto pelo pai estariam, então, expostos ao
homossexualismo.
Aqui é conveniente assinalar os recentes trabalhos da doutora dinamarquesa
Anneli Taube, como Sexualidade e revolução, onde expressa que a rejeição que
um menino muito sensível pode experimentar com relação a um pai opressor —
símbolo da atitude masculina autoritária e violenta — é de natureza consciente.
O menino, no momento em que decide não aderir ao mundo que esse pai lhe
propõe — o lidar com armas, os esportes violentamente competitivos, o
desprezo pela sensibilidade como atributo feminino, etc. —, está tomando uma
determinação livre, e mais ainda, revolucionária, porquanto receita o papel do
mais forte, do explorador. Pois bem, esse menino não poderá vislumbrar, em
compensação, que a civilização ocidental, além do mundo do pai, não lhe
proporcionará outro modelo de comportamento nesses primeiros anos
perigosamente decisivos — dos três aos cinco anos, sobretudo — a não ser o da
mãe. O mundo da mãe — a ternura, a tolerância, as artes — resultará muito mais
atraente, sobretudo pela ausência de agressividade; mas o mundo da mãe, e é
aqui onde a intuição do menino falharia, é também o da submissão, dado que ela
forma um casal com um homem autoritário, que só admite a união conjugal
como subordinação da mulher ao homem. No caso da menina que decide não
aderir ao mundo da mãe, a atitude se deve a ela rejeitar o papel da submissão,
porque intui que é humilhante e antinatural, sem imaginar que, excluindo esse
papel, a civilização ocidental não lhe oferecerá outro senão o do opressor. Mas o
ato de rebeldia dessa menina ou desse menino representaria um indiscutível sinal
de valentia e de dignidade.
A Dra. Taube indaga, por outro lado, por que esse desfecho não é ainda mais
frequente, sendo o casal ocidental, em geral, um expoente da exploração.
Introduz aqui dois elementos que atuam como amortecedores: o primeiro se
apresentaria quando num lar a esposa é — por falta de educação, de inteligência,
etc. — realmente inferior ao marido, o que tornaria mais justificada a autoridade
inconteste daquele; o segundo elemento é constituído pelo desenvolvimento
tardio da inteligência e sensibilidade do menino ou menina, o que não lhe
permitiria captar a situação. Nessa observação está implícito que se, ao contrário,
num lar o pai é muito primitivo e a mãe muito refinada, mas submissa, o menino
muito sensível e precocemente inteligente escolherá forçosamente o modelo
materno. E respectivamente, a menina o rejeitará, por arbitrário.
Quanto à questão de por que num mesmo lar existem filhos homossexuais e
heterossexuais, a Dra. Taube afirma que em toda célula social se tende à
distribuição de papéis, e assim resultaria que um dos filhos assumiria o conflito
dos pais e deixaria os irmãos dentro de um quadro já um pouco neutralizado.
Pois bem, a Dra. Taube, após valorizar o motor primeiro da
homossexualidade e assinalar sua característica de inconformismo
revolucionário, observa que a ausência de outros modelos de comportamento —
e nesse ponto coincide com Altman e sua tese sobre o pouco comum da prática
bissexual por falta de modelos de comportamento bissexual à vista — faz com
que o futuro homossexual masculino, depois de rejeitar os defeitos do pai
repressor, se sinta angustiado pela necessidade de identificação com alguma
forma de comportamento e “aprenda” a ser submisso como a mãe. O processo
para a menina seria o mesmo: rejeita a exploração e por isso odeia ser submissa
como a mãe, mas as pressões sociais a levam pouco a pouco a “aprender” outro
papel, o do pai repressor.
Desde os cinco anos até a adolescência se produz nesses meninos e meninas
“aderentes” uma oscilação de sua bissexualidade original. Mas, por exemplo, a
menina “masculinizada” por sua identificação com o pai, embora se sinta
sexualmente atraída por um rapaz, não aceitará o papel de boneca passiva que
lhe imporá um homem convencional; sentir-se-á contrafeita e cultivará como
única forma de superar sua angústia um papel diferente, que só admitirá
brincadeiras com mulheres; quanto ao menino “feminilizado” por identificação
com a mãe, embora se sinta sexualmente atraído por uma menina, não aceitará o
papel de assaltante intrépido que lhe imporá uma fêmea convencional, sentir-se-á
contrafeito e cultivará um papel diferente, que só admitirá brinquedos com
homens.
Anneli Taube interpreta assim a atitude imitativa, praticada até pouco tempo
atrás pelos homossexuais em alta percentagem, principalmente como atitude
imitativa dos defeitos do heterossexualismo. Era característico dos homossexuais
masculinos o espírito submisso, conservador, amante da paz a qualquer preço,
sobretudo ao preço da perpetuação de sua própria marginalização ao passo que
era característico das mulheres homossexuais o espírito anárquico,
violentamente desconforme, embora basicamente desorganizado. Entretanto,
ambas as atitudes eram não deliberadas mas compulsivas, impostas por uma
lenta lavagem cerebral em que intervinham os modelos de comportamento
heterossexual burgueses, durante a infância e a adolescência, e, posteriormente,
ao assumir a homossexualidade, os modelos “burgueses” de homossexualidade.
Esse preconceito ou observação justa sobre os homossexuais conduziu a que
fossem marginalizados em movimentos de libertação de classes e, de um modo
geral, em toda ação política. É notória a desconfiança nos países socialistas em
relação aos homossexuais. A maior parte dessas situações — acrescenta a Dra.
Taube — começou a mudar na década de sessenta, com a irrupção do
movimento de libertação feminina, já que o consequente questionamento dos
papéis “homem forte” e “mulher fraca” desprestigiou aos olhos dos
marginalizados sexuais esses modelos tão inatingíveis quão tenazmente
imitados.
A posterior formação de frentes de libertação homossexual seria prova disso.
12
— Bom dia...
— Bom dia... Valentín.
— Dormiu bem?
— Dormi...
—...
— E você, Valentín?
— O quê?
— Se dormiu bem...
— Sim, obrigado...
— Já ouvi passar há pouco o mate, você não quer, não é?
— Não... não me inspira confiança.
—...
— Que é que você quer tomar? chá ou café?
— Que é que você vai tomar, Molinita?
— Chá. Mas se você quiser café é o mesmo trabalho. Ou antes, não dá
nenhum trabalho. O que você quiser.
— Muito obrigado. Me faz café, por favor.
— Quer ir ao banheiro antes, Valentín?
— Sim, por favor. Pede para abrirem a porta agora.
— Tá...
— Sabe por que é que eu quero café, Molinita?
— Não...
— Para ficar bem aceso e estudar. Não muito, umas duas horas, ou mais um
pouco, mas bem aproveitadas. Até retomar o ritmo de antes.
— Muito bem.
— ...E depois um descanso antes do almoço.
— Molina... como amanheceu?
— Bem...
— O mau humor passou?...
— Sim, mas estou meio abobalhado... Não penso, não posso pensar em nada.
— Isso é bom... de vez em quando.
— Mas estou bem... estou contente.
—...
— ... Tenho até medo de falar, Valentín.
— Não fala... nem pensa.
—...
— Se você se sente bem, não pense em nada, Molina. Qualquer coisa que
pense vai estragar a festa.
— E você?
— Eu também não quero pensar em nada, e vou estudar. com isso me salvo.
— Salvo de quê?... de se arrepender do que aconteceu?
— Não, não me arrependo de nada. Estou cada vez mais convencido que o
sexo é a própria inocência.
— Posso te pedir uma coisa... muito séria?
—...
— Para a gente não falar... de nada, não discutir nada, hoje. Só te peço isso
por hoje.
— Como quiser.
— Não pergunta por quê?
— Por quê?
— Porque acho... que estou... bem, estou... muito... bem, e não quero que
nada me tire essa sensação.
— Como quiser.
— Valentín... acho que desde pequeno não me sinto tão contente. Desde que
minha mãe me comprava algum brinquedo, ou algo assim.
— Sabe de uma coisa? Pensa em algum filme bom... e começa a contar
quando eu acabar de estudar, enquanto a comida fica pronta.
— Bom...
—...
— E que filme você quer que eu conte?
— Um que você goste muito, não pensa para mim.
— E se você não gostar?
— Não, se você gosta, Molina, eu vou gostar, mesmo que não goste.
—...
— Não fica tão calado. Quero dizer que se você gostar de alguma coisa, fico
contente, porque me sinto em dívida com você, não, que é que estou dizendo,
porque você foi bom comigo, e estou agradecido. E saber que alguma coisa pode
te deixar contente... já me alivia.
— É mesmo?
— É, Molina. E sabe o que é que eu gostaria de saber? É uma bobagem...
— Fala...
— Diga se você se lembra de algum brinquedo que você tenha gostado
muito, do que mais gostou... daqueles que tua mãe comprou.
— Uma boneca...
— Ui...
— Por que está rindo tanto?
— Ai, se não abrirem a porta depressa faço nas calças...
— Mas por que esse riso todo?
— Porque... ai, estou morrendo... ai, como sou bom psicólogo...
— Que foi?
— Nada... queria ver se existia alguma relação entre esse brinquedo... e mim.
— A culpa é tua...
— E tem certeza que não era um boneco?
— Não, uma boneca bem loura, de tranças, e que abria e fechava os olhos,
vestida de tirolesa.
— Ai, tomara que abram a porta, porque não aguento mais, ui...
— Acho que é a primeira vez que você ri desde que tive o azar de vir para a
tua cela.
— Não é verdade.
— Juro, nunca tinha te visto rir, nunca.
— Mas se ri tantas vezes... e de você.
— Sim, mas foi sempre com a luz apagada. Juro, nunca tinha te visto rir.
....................................................
....................................................
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....................................................
— Pobre Valentín, olha para minhas mãos.
— Não percebi. Foi sem querer.
— Você não pôde evitar, meu coitadinho.
— Que linguajar... E que tal? Conta alguma coisa, rápido!
— Não trouxeram embrulho. Você vai ter que me desculpar.
— A culpa não é tua...
— Ai, Valentín...
— O que foi?
— Ai, você não sabe...
— Anda, para que esse mistério todo?
— Não sabe...
— Anda... o que foi? Fala!
— Vou-me embora amanhã.
— Da cela?... que azar.
— Não, me deixaram sair, em liberdade.
— Não...
— Sim, me deram liberdade provisória.
— Mas é uma maravilha...
— Não sei...
— Mas não é possível... é a coisa mais genial que podia acontecer!
— Mas e você?... Vai ficar sozinho.
— Não, não é possível, que golpe de sorte, Molinita! é genial, genial... Fala
que é verdade, ou você está caçoando de mim?
— Não, é verdade.
— É genial.
— Você é muito bom de ficar tão contente por minha causa.
— Sim, fico satisfeito por sua causa, mas também por outra coisa... isso é
fabuloso!
— Por quê? o que é que tem de tão fabuloso...
— Molina, você vai me servir para uma coisa fabulosa, e te asseguro que não
vai correr risco nenhum.
— O que é?
— Olha... nesses últimos dias me ocorreu um plano de ação extraordinário, e
morri de raiva pensando que não podia transmitir a meu pessoal. Quebrava a
cabeça procurando uma solução... e você a traz na bandeja.
— Não, Valentín. Não sirvo para isso, você está louco. ?- Escuta um
momentinho. Vai ser fácil. Você decora tudo e pronto. Só isso já serve.
— Não, está louco. Podem me seguir, qualquer coisa, para ver se não estou
combinado com você.
— Dá-se um jeito. Pode deixar passar uns dias, duas semanas. E te ensino
como fazer para ver se estão te seguindo ou não.
— Não, Valentín, eu saio em liberdade condicional, qualquer coisa me
pegam de novo.
— Te asseguro que não haverá o menor risco.
— Valentín, te suplico. Não quero saber uma palavra de nada. Nem onde
estão, nem quais são, nada.
— Não gostaria que eu pudesse também sair um dia?
— Daqui?
— Sim, livre.
— Como é que eu não vou gostar...
— Então tem que me ajudar.
— Era a coisa que eu mais queria no mundo. Mas escuta, falo por teu bem...
não me dá nenhum dado, não me conta nada de teus companheiros. Porque eu
não tenho jeito para essas coisas, e se me pegarem solto tudo.
— Sou eu e não você o responsável por meus companheiros. Se te peço uma
coisa é porque sei que não há risco. Tudo o que você tem a fazer é deixar passar
uns dias, e dar um telefonema de um telefone público, não da tua casa. E marcar
um encontro com alguém num lugar falso.
— Como num lugar falso?
— Sim, caso a linha telefônica de meus companheiros estiver censurada. Por
isso você tem que dar um lugar em código, por exemplo fala na Confeitaria Rio
de Ouro e eles sabem que é outro lugar, porque a gente faz tudo assim por
telefone, entende? Se falamos de um lugar é que nos referimos de fato a outro.
Por exemplo o cinema Monumental é a casa de um de nós, e o Hotel Plaa é uma
esquina no bairro de Boedo.
— Tenho medo, Valentín.
— Quando eu te explicar tudo você vai ficar sem medo. Vai ver como é fácil
passar uma mensagem.
— Mas se o telefone estiver censurado eu me comprometo, ou não?
— Falando de um telefone público, não, e mudando a voz, que é a coisa mais
fácil do mundo, eu te ensino. Tem mil maneiras, com uma bala na boca, com um
palito debaixo da língua... Olha, isso não é nada.
— Não, Valentín...
— Falaremos mais tarde.
— Não!
— Como quiser...
—...
— O que foi?
—...
— Não deita desse jeito... Olha para mim, por favor.
— Não esconde a cara no travesseiro, te peço por favor.
—...
— Valentín....
— O que foi?
— Tenho pena de te deixar sozinho.
— Nada de pena. Fica contente que você vai ver sua mãe, e vai poder tomar
conta dela. Era isso o que queria, não é?
— Anda, olha para mim.
—...
— Não me toca.
— Bom, está bem, Molinita.
— ...Não vai sentir falta de mim?
— Claro que vou.
— Valentín, fiz uma promessa, não sei a quem, a Deus, embora não acredite
muito.
— Sim...
— E é que a coisa que eu mais queria na vida era poder sair para tomar conta
de minha mãe. E que sacrificava qualquer coisa por causa disso, eu ficava em
segundo plano, antes de nada pedi para poder tomar conta de minha mãe. E meu
desejo foi cumprido.
— Então deve ficar contente. Você é muito generoso de pensar primeiro em
outra pessoa, e não em você. Tem que estar orgulhoso de ser assim.
— Mas isso é justo, Valentín?
— O quê?
— Que eu fique sempre sem nada... Que não tenha nada na vida realmente
meu.
— Bem, você tem sua mãe, essa é uma responsabilidade, e tem de assumi-la.
— Sim, é verdade.
— Então?
— Escuta. Minha mãe já teve sua vida, já viveu, já teve marido, seu filho...
Já é velha, sua vida está quase encerrada...
— Sim, mas ainda é viva.
— Sim, e eu também sou vivo... Mas quando começa minha vida? quando
vai me caber alguma coisa, ter alguma coisa?
— Molinita, é preciso se conformar. Você tirou a sorte grande, te deixam ir
embora. Fica contente com isso. Lá fora vai poder começar de novo.
— Quero ficar com você. Agora, a única coisa que eu quero é ficar com
você.
— Você fica encabulado de eu falar assim?
— Não... bom, sim.
— Sim o quê?
— Isso, fico um pouco encabulado.
— Valentín, se eu passar a mensagem você acha que vai sair mais depressa?
— Bom, é uma maneira de ajudar nossa causa.
— Mas não significa que vão te deixar sair logo. Você acha que assim vão
fazer a revolução mais depressa.
— Sim, Molinita.
— Não quer dizer que vão te deixar sair por outro motivo.
— Não, Molina.
— Não quebra a cabeça, não pensa nisso. Mais tarde discutimos.
— Já não nos resta muito tempo para discutir.
— Temos a noite toda.
—...
— E você tem que acabar o filme, não esquece. Há dias que não quer me
contar nada.
— É que esse filme me deixa muito triste.
— Tudo te deixa triste.
— Tem razão... Tudo menos uma coisa, — Não fala besteira.
— Sim, uma desgraça, mas é assim. Tudo me deixa triste, que me troquem
de cela me deixa triste, que me deixem sair me deixa triste. Tudo menos uma
coisa.
— Agora você vai passar bem, vai esquecer tudo o que você sofreu no
presídio, vai ver só.
— É que não quero esquecer.
— Bem... chega de besteira! não enche mais o saco, por favor!!!
— Desculpe.
—...
— Por favor, Valentín, diz que me desculpa.
—...
— Te conto o filme, acabo, se você quiser. E prometo que depois não encho
mais com minhas coisas.
— Valentín...
— O que é?
— Não vou passar a mensagem.
— Está bem.
— Tenho medo que antes de sair me interroguem sobre você.
— Como quiser.
— Valentín...
—...
O que é?
— Está zangado comigo?
— Não.
— Quer que acabe o filme?
— Não, porque você está sem vontade.
— Sim, se quiser eu acabo.
— Não vale a pena, já imagino como é que acaba. .
— Acaba bem, não é?
— Não sei, Molina.
— Viu como não sabe? vou acabar.
— Como quiser.
— Em que parte estávamos?
— Não me lembro.
— Bem... Acho que quando ele vê que ela se tornou prostituta para lhe dar
de comer, e que ela percebe. E quando ela volta para casa de madrugada já não o
encontra.
— Sim, isso mesmo.
— Bem. Enquanto isso o magnata andou à procura dela, porque soube que
está na pior lona e o sujeito está arrependido do que fez. E aquela manhã chega
um carro luxuoso à casinha em frente ao mar. E é o motorista do magnata, que a
manda buscar. Ela se recusa, e pouco depois chega o próprio magnata. Pede
perdão, diz que fez tudo por amor, pelo desespero de perdê-la. Ela conta o que
aconteceu, chora amargamente. Então o magnata se sente arrependidíssimo, e diz
que se ela foi capaz de tais sacrifícios é porque ama aquele homem e o amará
para sempre. E lhe diz: “isto é teu”, e lhe entrega um cofre, com todas as joias,
dá-lhe um beijo na testa e vai embora. Ela, então, começa a procurar o rapaz por
toda parte que nem louca, porque com a venda das joias tem dinheiro de sobra
para ele fazer um tratamento com os melhores médicos e nas melhores casas de
saúde. Mas não o encontra em lugar nenhum, até que começa a percorrer as
prisões, e os hospitais. E o encontra finalmente numa sala de doentes graves. O
organismo dele está arruinado, em primeiro lugar pelo álcool, e depois pela fome
e pelo frio. O frio das noites dormindo à beira-mar, sem ter para onde ir. Quando
ele a vê, sorri e pede que se aproxime para abraçá-la. Ela ajoelha ao pé da cama e
se abraçam. Ele diz que na noite anterior teve medo de morrer, porque a doença
se agravou muito, mas de manhã, ao se sentir fora de perigo, pensou que logo
que melhorasse sairia à procura dela, porque tudo aquilo que os separou não
tinha importância, e que de alguma maneira iam começar juntos de novo. Então
a moça olha para a irmã enfermeira que está ao pé da cama, como que
procurando uma confirmação daquilo que ele diz, que vai ficar bom. Mas a freira
faz um sinal negativo com a cabeça, quase imperceptível. E ele continua falando,
começa a dizer que lhe ofereceram novos trabalhos, em jornais importantes, e
que também lhe propuseram mandá-lo como correspondente no exterior, que vão
partir juntos para longe de tudo, e vão esquecer os sofrimentos. Só então a moça
percebe que ele está delirando de febre, e gravíssimo. Ele diz que compôs outra
letra, mas ela tem que cantarolar, como canção, e ele sussurra as palavras aos
poucos e ela repete, e soa um fundo musical, que vem como que do mar, porque,
em seu delírio, imagina que está com ela num barraco de pescadores à luz
dourada do entardecer. E ele diz, e ela repete: “...Si tengo tristeza... me acuerdo
de ti... Si tengo alegria, me acuerdo de ti. Si miro otros ojos, si beso otra boca, si
aspiro un perfume ... me acuerdo de ti...”, e olham do barraco para o horizonte
porque um veleiro se aproxima... “...Te llevo muy dentro, muy dentro de mi... Te
llevo en el alma, me acuerdo de ti...”, e o veleiro atraca lá no pequeno cais dos
pescadores, e o capitão lhes faz sinais para subirem já porque partem logo,
aproveitando o vento favorável, que os levará para bem longe, num mar sereno,
e as palavras continuam: “... nunca pense... que me crearas... tanta, tanta
obsesión... nunca creí, que me robaras el corazón... Por eso mi vida... me
acuerdo de... de cerca y de lejos, me acuerdo de ti... De noche y de dia, como
melodia, te llevo en el alma... me acuerdo de ti...”, e ele imagina que juntos já no
veleiro olham abraçados para o infinito, não há mais que mar e céu, porque o sol
já se pôs atrás do horizonte. E a moça diz que a canção é belíssima, mas ele não
responde nada, está com os olhos abertos, talvez a última coisa que viu na vida
tenha sido os dois na borda do veleiro, abraçados para sempre, e rumo à
felicidade.
— Que triste...
— Mas ainda não acabou. Ela então o abraça, e chora desesperada. E deixa
todo o dinheiro das joias lá com as freiras do hospital, para os pobres, e caminha
e caminha, como uma sonâmbula, e chega até a casinha onde viveram os poucos
dias de felicidade, e começa a andar pela beira do mar, e já é o entardecer, e se
ouvem os pescadores que cantam as canções dele, porque ouviram e
aprenderam, e tem casais de jovens olhando para o cair da tarde e se ouvem
aquelas palavras que ele cantou no momento feliz do reencontro, que os
pescadores cantam agora e os casais apaixonados escutam: “...estás en mi...
estoy en ti... por que llorar... por que sufrir... Callar mi dicba quisiera, que el
mundo no Io supiera... mas grita dentro de mi, esta ansiedad de vivir...”, e um
velho pescador pergunta por ele, e ela diz que foi embora, mas que não tem
importância, porque sempre vai estar com eles, ainda que seja apenas na
lembrança de uma canção, e ela continua caminhando sozinha, com o olhar no
sol que já está se ocultando, e se ouve: “...estoy feliz, también lo estás... me
quieres tu... te quiero más... Estoy tan enamorada, que ya olvide Io pasado... y
hoy me siento feliz... porque te he visto... llorar... por mi...” E como já é quase
noite, mal se enxerga a silhueta dela, à distância, que continua andando sem
rumo, como uma alma penada. E de repente aparece grande em primeiro plano o
rosto dela, com os olhos cheios de lágrimas, mas com um sorriso nos lábios... E
acabou-se... a história.
— É.
— Que final mais enigmático, não é?
— Não, está bem, é a melhor coisa do filme.
— E por quê?
— Quer dizer que embora ela tenha ficado sem nada, está contente de ter
tido ao menos uma relação verdadeira na vida, mesmo que tenha acabado.
— Mas não se sofre mais, depois de ter sido feliz e ficar sem nada?
— Molina, há uma coisa que temos que levar em conta. Na vida do homem,
que pode ser curta e pode ser longa, tudo é provisório. Nada é para sempre.
— Sim, mas que dure um pouquinho, pelo menos.
— É preciso aceitar as coisas como elas são, e apreciar o bom que possa te
acontecer, embora não dure. Porque nada é para sempre.
— Sim, isso é fácil. Mas sentir é outra coisa.
— Mas você tem que raciocinar, e convencer-se.
— Sim, mas há razões do coração que a própria razão desconhece. Foi um
dos melhores filósofos franceses que falou isso. Sacou? E acho que até me
lembro do nome: Pascal. Por essa você não esperava!
— Vou sentir tua falta, Molinita...
— Mesmo que seja dos filmes.
— Mesmo que seja dos filmes...
—...
— Sempre que eu vir fruta cristalizada vou me lembrar de você.
—...
— E cada vez que eu vir um frango no espeto, numa vitrine.
—...
— Porque a minha vez também chegará, um dia me tiram daqui.
— Vou te dar meu endereço.
— Está bem.
— Valentín... se alguma vez aconteceu alguma coisa, eu procurei não
começar, porque não quis te pedir nada, se não partisse de você mesmo.
Espontaneamente, quero dizer.
— É.
— Bem, mas queria te pedir uma coisa de despedida...
— O quê?
— Uma coisa que você nunca fez, embora tenhamos feito coisas muito
piores.
— O quê? — Um beijo.
— É verdade.
— Mas amanhã, antes de ir embora. Não fica assustado, não estou pedindo
agora.
— Está bem.
— Tenho uma curiosidade... você sente muita repulsa em me dar um beijo?
— Hummm... Deve ser medo que você se transforme em pantera, como
aquela mulher do primeiro filme que você contou.
— Não sou a mulher-pantera.
— É verdade, você não é a mulher-pantera.
— É muito triste ser mulher-pantera, ninguém pode beijá-la. Nem nada.
— Você é a mulher-aranha, que agarra os homens em sua teia.
— Que lindo! Disso eu gosto.
—...
— Valentín, você e minha mãe são as duas pessoas de quem mais gostei no
mundo.
—...
— Você vai se lembrar de mim?
— Aprendi muito com você, Molinita...
— Está louco, se eu sou um burro...
— E quero que vá embora contente, e guarde uma boa recordação de mim,
como eu tenho de você.
— E o que foi que você aprendeu comigo?
— É muito difícil de explicar. Mas você me fez pensar muito, tenha certeza
disso...
— Está sempre com as mãos quentes, Valentín.
— E você sempre frias.
— Prometo uma coisa, Valentín... que sempre que eu me lembrar de você
será com alegria, como você me ensinou.
— E me promete uma coisa... que você vai se fazer respeitar, que não vai
permitir que ninguém te trate mal, nem te explore. Porque ninguém tem o direito
de explorar ninguém. Perdoa que eu repita, porque eu já falei uma vez e você
não gostou.
—...
— Molina, promete que não vai se deixar humilhar por ninguém.
— Prometo.
— Já está guardando os livros, tão cedo?
—...
— Não espera que apaguem a luz?
—...
— Não sente frio de tirar a roupa?
—...
— Como você é bonito...
—...
— Ah...
— Molinita...
— O quê?
— Nada... não te machuco?
— Não... Aí, sim, assim sim.
— Dói?
— É melhor como da vez passada, deixa eu levantar as pernas. Assim, em
cima dos ombros.
—...
— Assim...
— Calado... calado um pouquinho.
— Sim...
—...
—...
— Valentín...
— O quê?
— Nada... nada...
—...
—...
— Valentín...
—...
— Valentín...
— O que é?
— Não, nada, uma besteira que queria te dizer.
— O quê?
— Não, é melhor não.
— Molina, o que é? queria pedir o que você me pediu hoje?
— O quê?
— O beijo.
— Não, era outra coisa.
— Você não quer que te beije agora?
— Sim, se você não tiver nojo.
— Não diga bobagem. Assim eu me aborreço.
—...
—...
— Obrigado.
— Obrigado a você.
....................................................
....................................................
— Valentín...
—...
— Valentín, já está dormindo?
— O quê?
— Valentín.
— Fala.
— Tem que me dar todos os dados... para seus companheiros.
— Como quiser.
— Tem que me dizer tudo o que tenho que fazer.
— Está bem.
— Até que eu aprenda tudo bem de cor...
— Está bem... Era isso o que você queria me dizer há pouco?
— Era...
— Mas uma coisa, e isto é muito, mas muito sério... Valentín, tem certeza de
que não serei interrogado ao sair?
— Tenho certeza.
— Então vou fazer tudo o que você disser.
— Você não sabe a alegria que me dá.
15
Relatório sobre Luis Alberto Molina, sentenciado 3018, posto em liberdade
condicional a 9 do corrente mês, a cargo do serviço de vigilância CISL, em
colaboração com o serviço de vigilância telefônica TISL.
Dia 12. Sábado. Saiu com a mãe e a tia, tomaram um táxi, chegaram ao
cinema Gran Savoy da Avenida Cabildo às 15.25. Ficaram sentados e não
falaram com ninguém. Saíram às 17.40 e desta vez tomaram um lotação na
esquina da Monroe com a Cabildo. Desceram a um quarteirão de casa,
caminharam rindo. Pararam numa padaria e compraram doces. Às 19 o
processado telefonou para o restaurante, desta vez foi possível ouvir claramente
Restaurante Mallorquín, o suposto Gabriel veio ao telefone e o processado disse
não poder ir vê-lo porque tinha que fazer companhia à mãe. Gabriel disse que
segunda-feira estaria de plantão de dia, mas que amanhã, domingo, o restaurante
estaria fechado, como de costume. Pareceu um pouco desgostoso com o
adiamento. Como já consta em outro relatório, procedeu-se, através do serviço
CISL daquela zona, à averiguação da identidade de Gabriel. Amanhã chegará a
informação a esta repartição, segundo disposto.
Dia 20. Domingo. Telefonema de Lalo às 11h48, propôs sair de carro com
Mecha Ortiz como no domingo anterior. Supõe-se que é o apelido de quem
dirigia o Fiat no passeio anterior. Chamaram-se por nomes diferentes, mas não
acreditamos que constituam qualquer tipo de código. Esses nomes foram Delia,
Mirta, Silvia, Nini, Líber, Paulina, etc., referentes quase com certeza a atrizes do
cinema argentino de anos atrás, assim como a mencionada Mecha Ortiz. O
sentenciado recusou o convite por ter compromisso com a mãe. Às 15h15
assomou à janela, aberta desta vez, supomos porque havia sol e quase não fazia
frio, e ficou um longo tempo olhando na direção de costume. Às 17h04 saiu com
a mãe, tomaram um lotação na esquina da Pampa com a Avenida Triunvirato,
desceram na Avenida de Mayo com a Lima, caminharam dois quarteirões até o
Teatro Avenida, compraram entradas para o espetáculo de zarzuela, atravessaram
para olhar vitrines enquanto chegava a hora do espetáculo, 18h15. No intervalo,
o sentenciado foi ao banheiro mas não falou com ninguém. Depois de ficar na
plateia sem falar com ninguém, saíram às 20h40. Na confeitaria da Avenida de
Mayo esquina com a Santiago del Etero tomaram chocolate com churros, não
falaram com ninguém. Tomaram o mesmo lotação de volta, na esquina da
Avenida de Mayo com a Bernardo Irigoyen.
— ...vinte e nove, trinta, trinta e um, trinta e dois, trinta e... três, trinta e...
qual é o número que se segue? já não se ouve nenhum passo, será possível que
não estejam mais me seguindo? está tão escuro que se não fosse o senhor que
conhece o caminho e vai na frente, eu não avançaria, por medo de cair em
algum buraco, e como é possível que eu tenha percorrido todo este trecho se
estou esgotado, sem comer? e se adormeço de vez em quando, como é possível
eu andar e não cair? “não tenha medo, Valentín, o enfermeiro é boa pessoa e
vai tomar conta de você”, Marta... onde você está? quando chegou? não posso
abrir os olhos porque estou dormindo, mas por favor se aproxime de mim,
Marta... Não para de falar comigo, não pode me tocar? “não tenha medo, estou
te ouvindo, mas tudo com uma condição, Valentín”, qual? “que você não me
esconda nada do que pensa, porque neste momento, embora queira escutar, já
não vou poder”, ninguém está nos ouvindo? “ninguém”, Marta, passei muito
mal... “quero saber como é que você está agora”, e não haverá alguém
escutando, alguém esperando que eu delate meus companheiros? “não”, Marta
querida, te ouço falar dentro de mim, “porque estou dentro de ti”, não é
verdade?, e vai ser sempre assim? “não, isso acontecerá enquanto eu não tenha
segredos para você, como você não vai ter para mim”, então te conto tudo,
porque esse enfermeiro tão bom está me levando por um túnel longuíssimo até
uma saída, “está muito escuro?”, sim, ele disse que no final se vê uma luz, muito
distante, mas não sei se é verdade porque estou dormindo e por mais que faça
força não posso abrir os olhos, “em que é que você pensa neste momento?”,
estou com as pálpebras tão pesadas que é impossível abri-las, estou com tanto
sono, “ouço água correndo, e você?”, a água que corre entre pedras é sempre
limpa e se pudesse chegar com a mão até onde corre a água, molharia a ponta
dos dedos e depois as pestanas para desgrudá-las, mas tenho medo, Marta,
“você tem medo de acordar e estar na cela”, então não é verdade que alguém
vai me ajudar a fugir? não me lembro, mas este calorzinho que estou
começando a sentir nas mãos e no rosto é como aquele que o sol dá, “é possível
que o dia esteja chegando”, não sei se a água está limpa, tenho coragem de
beber um gole? “seguindo a direção da água certamente se poderá chegar até
onde desemboca”, é verdade, mas acho que estou vendo um deserto, não há
árvores, nem casas, só dunas que continuam e continuam até onde o olhar
alcança, “em vez de deserto, não será mar?”, sim, é mar, e há um trecho de
praia muito quente, tenho de correr para não queimar a sola dos pés, “que mais
você está vendo?”, nem de um lado da costa nem do outro se enxerga o veleiro
pintado de cartão, “e o que é que se ouve?”, nada, não se ouvem maracas, o
barulho das ondas e mais nada, às vezes são ondas maiores que quebram com
força e chegam até perto de onde começam as palmeiras, Marta... acho que caiu
uma flor na areia, “uma orquídea selvagem?”, se as ondas chegarem vão
carregá-la mar adentro, e como é possível que o vento a carregue logo no
momento em que eu ia pegá-la? e a carrega mar adentro, e não tem importância
que desapareça debaixo da água porque sei mergulhar e mergulho, mas no
mesmo lugar onde eu tenho certeza que a flor caiu... o que se avista agora é
uma mulher, uma nativa, poderia alcançá-la, se ela não escapasse nadando tão
depressa, não a alcanço, Marta, e é impossível gritar debaixo d'água e dizer-lhe
que não tenha medo, “debaixo d'água ouve-se aquilo que se pensa”, ela olha
pra mim sem medo, amarrou no peito uma camisa de homem, mas já estou tão
cansado, não tenho mais oxigênio nos pulmões depois de nadar debaixo d'água,
mas, Marta, a nativa me segura pela mão e me leva até a superfície, põe um
dedo nos lábios como sinal para eu não falar, os nós molhados amarrados com
tanta força que não pode desmanchá-los se não for com minha ajuda e enquanto
desamarro os nós ela olha para outro lado... eu não lembrava que estava nu e
estou encostando nela, a nativa rubra de vergonha se abraça a mim, minha mão
está quente e a toca e a enxuga, toco-lhe o rosto, o cabelo comprido até a
cintura, as nádegas, o umbigo, os seios, os ombros, as costas, o ventre, as
pernas, os pés, outra vez o ventre, “posso pedir para você pensar que ela sou
eu?”, sim, “mas não fala nada com ela, não lhe faça a menor censura, deixa ela
acreditar que sou eu, embora ela falhe em alguma coisa”, com um dedo nos
lábios a nativa me faz sinal para eu não falar nada, mas a você, Marta, eu conto
tudo, que sinto a mesma coisa que sentia com você, porque está comigo, e que
logo já me sai um jato branco e quente de dentro, vou inundá-la, ai, Marta, que
felicidade, te conto tudo assim você não vai embora, para que estejas comigo a
todo momento, sobretudo agora, neste instante, que não te ocorra ir embora
neste instante preciso! o mais belo de todos, já sim, não mexa, calada é melhor,
já, já, e depois, pouco depois, te conto também que a nativa fecha os olhos
porque está com sono, quer descansar, e se eu fechar os olhos quem sabe
quando os tornarei a abrir, as pálpebras me pesam tanto, se vier a noite não vou
perceber porque estou com os olhos fechados, “e não está com frio? é noite e
você está dormindo descoberto, o ar do mar está mais fresco, não sentiu frio a
noite toda? tem que contar para mim”, não, não senti frio, minhas costas tocam
este lençol tão liso e morno em cima do qual dormi todas as noites desde que
cheguei à ilha, e não sei como explicar, meu amor, mas acho o lençol... que é na
realidade uma pele muito suave e morna, de mulher, e não se enxerga mais nada
neste lugar que essa pele que chega até onde meu olhar alcança, não se enxerga
mais que a pele da mulher deitada, sou como um grãozinho de milho na palma
de sua mão, ela está deitada no mar e levanta a mão e daqui de cima posso ver
que esta ilha é uma mulher, “a nativa”, não consigo enxergar o rosto, está lá
longe, “e o mar?”, como sempre, vou nadando debaixo d'água e não se enxerga
o fundo de tão profundo que é mas debaixo d'água minha mãe ouve tudo o que
penso e estamos falando, quer que te conte o que ela me pergunta?, “sim”,
bem... pergunta se é verdade tudo aquilo que os jornais publicaram, que morreu
meu companheiro de cela, num tiroteio, e se foi culpa minha, e se não me dá
vergonha ter-lhe trazido tanto azar, “o que foi que você respondeu?”, que foi
culpa minha, e que estou muito triste, mas que não é preciso ficar triste porque
só quem sabe é ele, se estava triste ou contente de morrer assim, sacrificando-se
por uma causa justa, só ele terá sabido isso, e tomara, Marta, realmente desejo
com toda minha força, tomara que tenha morrido contente, “por uma causa
justa? hum... acho que se deixou matar porque assim morria como a heroína de
um filme, e nada disso de causa justa”, só ele saberá, e até é possível que nem
ele mesmo saiba, mas eu não consigo dormir na cela porque ele me habituou a
contar filmes toda noite, como para me ninar, e se algum dia eu for solto não
vou poder telefonar-lhe e convidá-lo para um jantar, ele me convidou tantas
vezes, “e neste momento, o que é que você gostaria mais de comer?”, vou
nadando com a cabeça fora d'água, assim não perco de vista a costa da ilha, e
ao chegar à areia estou muito cansado, não queima mais porque o sol já não
está tão forte e antes da noite chegar tenho que procurar alguma fruta na
floresta, não sabe como é bonita esta mistura de palmeiras, de cipós, de noite
fica tudo prateado, porque o filme é em preto e branco, “e a música de fundo?”,
maracas muito suaves, e tambores, “não será um sinal de perigo?”, não, é
música que anuncia, ao iluminar-se um foco muito forte, o aparecimento de uma
mulher muito estranha, de vestido longo brilhante, “de lamé prateado, justo na
cintura como uma luva?”, sim, “e o rosto?”, tem uma máscara, também ?
prateada mas... coitadinha... não pode se mexer, lá na floresta mais densa ela
está presa numa teia de aranha, ou não, a teia de aranha cresce do seu próprio
corpo, os fios saem da cintura e das cadeiras, é parte do corpo dela, uns fios
cabeludos como cordas que me dão muito nojo, embora talvez acariciando-os
sejam suaves como quem sabe o quê, mas me impressiona tocá-los, “não fala?”,
não, está chorando, ou não, está sorrindo mas uma lágrima resvala pela
máscara, “uma lágrima que brilha como um diamante?”, sim, e eu lhe pergunto
por que está chorando e num primeiro plano que ocupa a tela toda no final do
filme ela responde que é isso o que não se sabe, porque é um final enigmático, e
eu respondo que assim está bem, que é a melhor parte do filme porque significa
que... e aí não me deixou continuar, disse que eu queria achar uma explicação
para tudo, e que na realidade eu falava de fome, embora não tivesse coragem de
admitir, e me olhava, mas cada vez mais triste, e caíam mais lágrimas, “mais
diamantes”, e eu não sabia o que fazer para tirar-lhe a tristeza, “eu sei o que
você fez e não tenho ciúme, porque nunca mais na vida você vai vê-la”, é que
ela estava muito triste, não percebe? “mas você gostou e isso eu não devia
perdoar”, mas nunca mais na vida vou vê-la, “e é verdade que está com muita
fome?”, sim, é verdade, e a mulher-aranha me indicou com o dedo um caminho
na floresta, e agora não sei por onde começar a comer tantas coisas que
encontrei, “são muito saborosas?”, sim, uma perna de frango assado, bolachas
com pedaços grandes de queijo fresco e rodelas enroladas de presunto cozido, e
um pedaço tão bom de fruta cristalizada, de abóbora, e com uma colher
finalmente como todo o doce de leite que quiser, sem medo que acabe porque
tem muito, e estou ficando com tanto sono, Marta, não pode imaginar como
tenho vontade de dormir depois de comer tudo o que encontrei graças à mulher-
aranha, e depois de comer mais uma colherada de doce de leite e depois de
dormir... “já quer acordar?”, não, bem bem mais tarde, porque de tanto comer
estas coisas boas fiquei com um sono muito pesado, e vou continuar falando
com você no sonho, será possível? “sim, este é um sonho e estamos falando,
então depois também, não tenha medo, acho que já ninguém nos poderá separar,
porque já percebemos a coisa mais difícil”, o que é a coisa mais difícil de
perceber? “que moro dentro de teu pensamento e assim vou te fazer companhia
sempre, nunca vai ficar sozinho”, claro que sim, isso é o que eu não devo
esquecer nunca, se nós dois pensamos do mesmo modo vamos ficar juntos,
embora não te possa ver, “isso mesmo”, então quando eu acordar na ilha você
vai comigo, “não quer ficar para sempre num lugar tão lindo?”, não, assim esta
bem, chega de descanso, uma vez que eu coma tudo e depois de dormir vou ficar
forte de novo, que meus companheiros estão me esperando para começar a luta
de sempre, “isso é a única coisa que eu não quero saber, o nome de teus
companheiros”, Marta, ai, como eu gosto de você! isso era a única coisa que eu
não te podia dizer, tinha medo que me perguntasse e dessa maneira, sim, ia te
perder para sempre, “não, meu Valentín querido, isso não acontecerá, porque
este sonho é curto mas é feliz”
O autor e sua obra
No primeiro livro, onde as personagens buscavam no cinema as fantasiosas
soluções para a vida provinciana que levavam numa pequena cidade de interior,
o título era bastante sintomático: “A traição de Rita Hayworth”. Vieram depois
“Boquinhas pintadas” e “The Buenos Aires Affair”, autênticos roteiros
romanceados, repletos de flash-backs e imagens vivas, que juntamente com “O
beijo da mulher-aranha” deixam transparecer a realidade da obra do argentino
Juan Manuel Puig: a obsessão pelo cinema refletida na forma de sua linguagem.
Garoto ainda, Puig descobriu, maravilhado, o mundo do cinema. Sua
minúscula cidade natal, General Villegas, um povoado escondido nos pampas
argentinos, nada mais tinha do que vento e terra. Restavam os filmes, a que
assistia diariamente, levado pela mãe. Desenhava-os depois de vê-los, estudava-
os plano por plano, e a paixão era tamanha que, aos nove anos, começou a
aprender inglês, a língua das telas.
Aos treze anos, mudou-se para a capital. Queria estudar cinema, ser um
grande diretor, mas Buenos Aires nada tinha de Hollywood ou das suntuosas
produções da Metro da década de 30, e a solução foi atender aos pais,
matriculando-se na faculdade de filosofia. Dez anos depois, largou tudo e, com
uma bolsa do Centro Sperimentale de Cinema, foi para Roma, onde conheceu
Vittorio De Sica, com quem trabalhou tempos depois. Rodou por Paris, Londres,
foi assistente-estagiário de René Clement e Stanley Donen, escreveu alguns
roteiros, lavou pratos em Estocolmo e voltou à Argentina, para decepcionar-se
definitivamente com o cinema, depois de ter participado de três filmes como
assistente de direção.
Beirava os trinta anos de idade. A ilusão com o cinema, construída na
infância, tinha desabado. Não pensava em literatura, sequer lia com regularidade,
quando foi para Nova York, para escapar às dúvidas e crises, mas com um
emprego estável, e começou a escrever “A traição de Rita Hayworth”, quase uma
autobiografia, história passada na pequena e fictícia cidade de Coronel Vallejos.
Essa obra foi publicada na Argentina em 1967. Dois anos depois, surgiu
“Boquinhas pintadas”, uma crítica contundente à classe média argentina, tendo
como centro o drama de um jovem tuberculoso e suas relações com a sociedade
que o via morrer. Milhares de exemplares vendidos e inúmeras traduções em
diversos idiomas confirmaram o sucesso.
Acabaram-se as dúvidas. Morria o cineasta e nascia o escritor, ainda
apaixonado pelo cinema, mas escudado na inventividade e força de sua
narrativa, o que foi comprovado em seu terceiro livro proibido na própria
Argentina, “The Buenos Aires Affair” (já publicado pelo Círculo), em “Púbis
angelical” (premiado como o livro do ano pelo Instituto Ítalo-Latino-Americano
de Cultura) e no recente “Maldição eterna para quem ler estas páginas”.
“O beijo da mulher-aranha”, pungente e sensível mergulho no
relacionamento de um preso político com seu companheiro de cela homossexual,
é a quarta publicação de Manuel Puig e também seu momento de completa
maturidade literária.
No Brasil, além de ter entrado em voga, Manuel Puig acha que encontrou
respeito. A adaptação teatral de “O beijo da mulher-aranha”, em agosto de 1981,
chegou ao palco do Teatro Ipanema, no Rio (com Rubens Corrêa e José de
Abreu, direção de Ivan Albuquerque) no momento em que o livro, em oitava
edição, completava quase cinquenta semanas na lista dos mais vendidos no país.
Talvez por isso, Puig tenha resolvido fixar-se no Brasil. Aos quarenta e oito
anos, morador do Leblon, Rio, conclui o sétimo livro, sobre o pedreiro que
reformou seu apartamento. E não se cansa de repetir, em seu aparelho de
videocassete, relíquias cinematográficas como “King Kong”, “Belinda” e os
filmes estrelados por Hedy Lamarr. O cinema moderno não tem vez nas
preferências de Manuel Puig. “Os filmes novos — diz o escritor — são
intelectuais demais.”
Digitalização: Dores Cunha.
Correção: Edith Suli.
31/8/2012