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Primeira

Parte
1
— Nota-se que ela tem algo estranho, que não é uma mulher como as outras.
Parece muito jovem, uns vinte e cinco anos no máximo, uma carinha meio de
gata, o nariz pequeno, arrebitado, o feitio do rosto é... mais redondo que oval, a
testa larga, os pômulos também grandes mas depois vão para baixo em ponta,
como nos gatos.
— E os olhos?
— Claros, seguramente verdes, ela os aperta para desenhar melhor. Olha para
o modelo, a pantera negra do jardim zoológico, que antes estava quieta na jaula,
deitada.
Mas quando a jovem fez barulho com a prancheta e a cadeira, a pantera a viu
e começou a passear pela jaula e a rugir para ela, que até o momento não
acertara com o sombreado que ia dar ao desenho.
— E o animal não pôde farejá-la antes?
— Não, porque tem na jaula um enorme pedaço de carne, é a única coisa que
pode farejar. O guarda põe a carne perto das grades, e não pode entrar nenhum
cheiro de fora, de propósito para a pantera não se excitar. E é quando nota a raiva
da fera que a jovem começa a fazer traços cada vez mais rápidos, e desenha uma
cara que é de animal e também de diabo. E a pantera a olha, é uma pantera
macho e não se sabe se é para despedaçá-la e depois comê-la, ou se a olha levada
por outro instinto pior ainda.
— Não tem gente no jardim zoológico nesse dia?
— Não, quase ninguém. Faz frio, é inverno. As árvores do parque estão
descascadas. Sopra um vento frio. A jovem é quase a única pessoa lá, sentada no
banquinho dobrável que ela mesma traz, e com uma prancheta para apoiar a
folha de desenho. Um pouco mais adiante, perto da jaula das girafas, há umas
crianças com a professora, mas vão embora depressa, não aguentam o frio.
— E ela não sente frio?
— Não, nem se lembra do frio, está como que em outro mundo, concentrada,
desenhando a pantera.
— Se está concentrada não está em outro mundo. Isso é uma contradição.
— Sim, é verdade, está concentrada, metida no mundo que existe dentro dela
própria, e mal começa a descobri-lo. Está com as pernas cruzadas, os sapatos são
pretos, de salto alto e grosso, sem bico, aparecem as unhas pintadas de escuro.
As meias são brilhantes, daquele tipo de malha cristal de seda, não se sabe se o
cor-de-rosa é da carne ou da meia.
— Desculpe, mas lembra do que te falei, não faça descrições eróticas. Não
convém, sabe.
— Como quiser. Bem, continuo. Ela está de luvas, mas para poder continuar
desenhando tira a luva da mão direita. As unhas são compridas, o esmalte quase
preto e os dedos brancos, até que o frio começa a arroxeá-los. Deixa o trabalho
por um instante, enfia a mão debaixo do capote para esquentá-la. O capote é
grosso, de pelo preto, os enchimentos bem grandes, mas um veludo espesso
como o pelo de um gato persa, não, muito mais espesso. E quem está atrás dela?
Alguém tenta acender um cigarro, o vento apaga a chama do fósforo.
— Quem é?
— Espera. Ela ouve o estalo do fósforo e se sobressalta, vira-se. É um sujeito
boa-pinta, não é um galã bonito, mas de rosto simpático, chapéu de aba baixa e
um capotão, calças muito largas. Toca a aba do chapéu a título de cumprimento e
pede desculpas, lhe diz que o desenho é muito bom. Ela percebe que é um bom
sujeito, sua cara está dizendo, é um sujeito muito compreensivo, tranquilo.
Ajeita com a mão o penteado, meio desmanchado pelo vento. É uma franja
encaracolada e cabelo até os ombros, que é como se usava, também com
pequenos cachos nas pontas, quase como de permanente.
— Eu a imagino morena, não muito alta, rolicinha e movendo-se como uma
gata. Bem gostosa.
— Você não disse que não queria ficar assanhado?
— Continua.
— Ela responde que não se assustou. Enquanto isso, ao retocar o cabelo solta
a folha e o vento a carrega. O rapaz corre e a alcança, devolve-a à moça e pede
desculpas. Ela diz que não é nada e ele percebe que é estrangeira pelo sotaque. A
moça conta que é uma refugiada, estudou belas-artes em Budapeste, ao estourar
a guerra embarcou para Nova York. Ele lhe pergunta se sente falta de sua cidade.
É como se passasse uma nuvem pelos olhos dela, toda a expressão do seu rosto
se escurece, e diz que não é de nenhuma cidade, vem das montanhas, lá pela
Transilvânia.
— Do mesmo lugar que Drácula.
— Sim, essas montanhas têm bosques escuros, onde moram as feras que
durante o inverno enlouquecem de fome e têm de descer às aldeias, para matar. E
as pessoas morrem de medo, e põem ovelhas e outros animais mortos nas portas
e fazem promessas, para se salvar. Enquanto isso o rapaz quer tornar a vê-la e ela
diz que no dia seguinte, à tarde, vai continuar desenhando ali outra vez, como
toda aquela última temporada quando houve dias de sol. Então ele, que é
arquiteto, está em seu estúdio na tarde do dia seguinte com seus colegas
arquitetos e também uma colega, e quando batem três horas e já resta pouco
tempo de luz ele quer largar as réguas e compassos para atravessar até o jardim
zoológico que é quase defronte, lá no Central Park. A colega lhe pergunta aonde
vai, e por que está tão contente. Ele a trata como amiga, mas nota-se que no
fundo ela está apaixonada por ele, embora disfarce.
— É um bofe?
— Não, de cabelo castanho, cara simpática, nada do outro mundo mas
agradável. Ele sai sem lhe dar o prazer de dizer para onde vai. Ela fica triste mas
não deixa ninguém perceber e mergulha no trabalho para não se deprimir mais.
Já no jardim zoológico ainda não começou a cair a noite, tudo parece sobressair
com mais nitidez que nunca, as grades são pretas, as paredes das jaulas de
azulejo branco, o cascalho também é branco, e as árvores desfolhadas são
cinzentas. E os olhos das feras vermelho-sangue. Mas a jovem, que se chamava
Irena, não está. Passam-se os dias e o rapaz não consegue esquecê-la, até que um
belo dia, andando por uma avenida luxuosa, alguma coisa chama a sua atenção
na vitrine de uma galeria de arte. Estão expostas as obras de alguém que só
desenha panteras. O rapaz entra, lá está Irena, que é felicitada por outros
assistentes. E não sei direito como continua.
— Puxa pela memória.
— Espera um pouco... Não sei se é aí que ela é cumprimentada por uma
mulher que a assusta... Bem, então o rapaz também a felicita e acha Irena
diferente, parece feliz, não tem aquela sombra no olhar, como da primeira vez. E
a convida para um restaurante e ela deixa todos os críticos lá, e vão embora. Ela
dá a impressão de poder andar na rua pela primeira vez, como se tivesse estado
presa e agora, livre, pode ir a qualquer lugar.
— Mas você disse que ele a leva a um restaurante, não a qualquer lugar.
— Ah, não exija tanta precisão. Bem, quando ele para diante de um
restaurante húngaro ou romeno, sei lá, ela torna a se sentir esquisita. Ele pensava
agradá-la levando-a a um restaurante de patrícios dela, mas o tiro sai pela
culatra. E percebe que acontece algo com ela e lhe pergunta o que é. Ela mente e
diz que lhe faz lembrar a guerra, que ainda está em pleno fragor naquele
momento. Então ele diz que vão almoçar em outro lugar. Mas ela percebe que
ele, coitado, não tem muito tempo, está em sua hora livre para o almoço e depois
tem de voltar ao escritório. Então ela se domina e entra no restaurante, e tudo
perfeito, porque o ambiente é muito tranquilo e comem bem, e ela está outra vez
encantada da vida.
— E ele?
— Ele está contente, porque percebe que ela venceu um complexo para lhe
dar um prazer, ele justamente planejara de início ir lá para dar um prazer a ela.
Essas coisas que acontecem quando duas pessoas se conhecem e as coisas
começam a funcionar bem. E ele está tão entusiasmado que resolve não voltar ao
trabalho à tarde. Conta que passou pela galeria por acaso, que estava procurando
outra loja, para comprar um presente.
— Para a colega arquiteta.
— Como é que você sabe?
— Por nada, acertei, só isso.
— Você viu o filme.
— Não, te garanto. Continua.
— E a moça, a Irena, diz que então podem ir àquela loja. Ele pensa logo se o
dinheiro vai chegar para comprar dois presentes iguais, um para o aniversário da
colega e outro para Irena, assim acaba conquistando-a. Na rua, Irena diz que
naquela tarde, coisa estranha, não lastima notar que já está anoitecendo, são só
três da tarde. Ele pergunta por que lhe dá tristeza que anoiteça, se é porque tem
medo da escuridão. Ela pensa e responde que sim. Ela para na frente da loja
aonde vão, ela olha a vitrine com desconfiança, trata-se de uma casa de pássaros,
lindíssima, nas gaiolas que se podem ver de fora há pássaros de todo tipo,
voando alegres de um trapézio a outro, ou balançando-se, ou bicando folhinhas,
ou alpiste, ou bebendo aos goles a aguinha fresca, recém-trocada.
— Desculpa, tem água na jarra?
— Sim, enchi quando abriram para ir ao banheiro.
— Ah, então está bem.
— Quer um pouco? Está boa, fresquinha.
— Não, assim amanhã não há problema com o chimarrão. Continua.
— Mas não exagera. Chega para o dia todo.
— Mas você não deve me habituar mal. Me esqueci de trazer quando
abriram a porta para o banho de chuveiro, se não é você se lembrar nós
ficávamos sem água.
— Tem de sobra, te digo... Mas quando os dois entram na loja é como se
tivesse entrado quem sabe quem, o diabo. Os pássaros enlouquecem e voam
cegos de medo contra as gradezinhas das gaiolas, e machucam as asas. O dono
não sabe o que fazer. Os passarinhos gritam de terror, são como gritos de
abutres, não como cantos de pássaros. Ela segura na mão do rapaz e. o puxa para
fora. Os pássaros se acalmam logo. Ela lhe pede que a deixe ir embora. Marcam
encontro e se separam até a noite seguinte. Ele torna a entrar na loja de pássaros,
estes continuam cantando tranquilos, compra um passarinho para a
aniversariante. E depois ... bem, não me lembro muito bem como continua, estou
com sono.
— Continua um pouco mais.
— É que com o sono me esqueço do filme, que acha você se continuarmos
amanhã?
— Se você não se lembra, é melhor continuar amanhã.
— Continuo na hora do chimarrão.
— Não, é melhor de noite, durante o dia não quero pensar nessas besteiras.
Há coisas mais importantes em que pensar.
— Se não estou lendo e fico calado é porque estou pensando. Mas não vá me
interpretar mal.
— Não, está bem. Não vou distrair sua atenção, não há perigo.
— Percebo que você me entende, muito obrigado. Até amanhã.
— Até amanhã. Sonha com Irena.
— Gosto mais da colega arquiteta.
— Eu já sabia. Tchau.
— Até amanhã.

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— Tínhamos parado na hora que ele entrou na loja e os passarinhos não se


assustaram com ele. Era dela que tinham medo.
— Eu não disse isso, foi você que imaginou.
— O que é que há, então?
— Bem, eles continuam se vendo e se apaixonam. Ela o atrai
tremendamente, porque é tão esquisita, por um lado ela faz muito charme com
ele, olha-o, acaricia-o, se encolhe em seus braços, mas quando ele a quer abraçar
com força e beijá-la ela escorrega e mal deixa que ele encoste os lábios nos dela.
Pede-lhe que não a beije, que deixe ela beijá-lo, beijos muito temos, mas como
de uma menina, com os lábios carnudos, suaves, mas fechados.
— Antigamente nunca havia sexo nos filmes.
— Espera, você vai ver. O negócio é que uma noite ele a leva outra vez
naquele restaurante que não é de luxo mas muito pitoresco, com toalhas de mesa
quadriculadas e tudo de madeira, ou não, de pedra, não, sim, agora sei, lá dentro
parece que a gente está numa cabana, e com lampiões de gás, e nas mesas
simples velas. E ele levanta o copo de vinho, um copo de estilo rústico, e brinda
porque aquela noite um homem muito apaixonado vai ficar noivo, se sua eleita
aceitar. Os olhos dela ficam cheios de lágrimas, mas de felicidade. Batem com os
copos e bebem sem dizer mais nada, seguram-se as mãos. De repente ela se
afasta. Viu alguém se aproximar da mesa. É uma bela mulher, à primeira vista,
mas logo depois se nota algo estranhíssimo no seu rosto, algo que dá medo e não
se sabe o que é. Porque é uma cara de mulher mas também é uma cara de gato.
Os olhos para cima, e estranhos, não sei como te dizer, não tem o branco do
olho, o olho é todo de cor verde, com a pupila negra no meio e mais nada. E a
pele muito pálida, como com muito pó de arroz.
— Mas você disse que era bonita.
— Sim, é bela. E nota-se que é europeia por causa da roupa esquisita, um
penteado de banana todo em redor da cabeça.
— O que é banana?
— Como um... como te posso explicar? um rolo assim como um tubo em
redor da cabeça, que levanta à frente e continua todo para trás.
— Não tem importância, continua.
— Mas talvez eu esteja enganado, acho que tem uma trança em volta da
cabeça, que é mais dessa região. E um vestido comprido até os pés, uma capa
curta de raposa em cima dos ombros. E chega até a mesa e olha para Irena como
que com ódio, ou não, um modo de olhar como quem hipnotiza, mas de qualquer
maneira é um olhar mal-intencionado.
E lhe fala numa língua estranhíssima, de pé ao lado da mesa. Ele, como
compete a um cavalheiro, levanta-se à chegada de uma senhora, mas a tal felina
nem o olha e diz uma segunda frase a Irena. Ele não entende nem uma palavra
do que falam. A mulher, então, para que ele também entenda, diz a Irena: “Te
reconheci logo, sabes por quê. Até breve...” E vai embora, sem ter olhado sequer
para o rapaz. Irena está como que petrificada, tem os olhos cheios de lágrimas,
mas turvos, parecem lágrimas de água suja de um charco. Levanta-se sem
proferir uma palavra e cobre a cabeça com um véu comprido, branco, ele deixa
uma nota na mesa, e sai com ela segurando-a pelo braço. Não falam nada, ele
percebe que ela olha com medo para o Central Park, a neve cai lentamente e
amortece todos os ruídos e sons, os automóveis passam pela rua como que
deslizando, silenciosos, o poste de luz da rua ilumina os flocos branquíssimos
que caem, muito ao longe parece que se ouvem rugidos de feras. E não seria
difícil que fosse verdade, porque a pouca distância dali fica o jardim zoológico,
no mesmo parque. Ela não continua, pede-lhe que a abrace. Ele a estreita em
seus braços. Ela treme, de frio ou de medo, embora os rugidos pareçam ter-se
aplacado. Diz, apenas num sussurro, que tem medo de ir para casa e passar a
noite sozinha. Passa um táxi, ele faz sinal para parar, os dois sobem sem dizer
uma palavra. Vão ao apartamento dele, não falam durante todo o trajeto.
Chegam ao edifício, é uma dessas casas de apartamentos muito antigas, muito
cuidadas, com tapetes, teto de vigas muito alto, uma escada de madeira escura
toda trabalhada e ao pé da escada uma planta grande, uma palmeira aclimada
num vaso divino. Acho que com uns desenhos chineses. A planta se reflete num
espelho alto, de moldura também muito trabalhada, como a escada. Ela se olha
no espelho, estuda o rosto, como que procurando algo em suas feições, não tem
elevador, ele mora no primeiro andar. Os passos no tapete quase não se ouvem,
como na neve. É um apartamento grande, com todas as coisas fim de século,
muito sóbrio, era o apartamento da mãe do moço.
— E ele o que é que faz?
— Nada, sabe que ela tem alguma coisa que a está atormentando. Oferece-
lhe bebidas, café, o que quiser. Ela não bebe nada, pede que ele se sente, tem
algo para lhe dizer. Ele acende o cachimbo e a fita com aquela bondade que se
nota nele a todo momento. Ela não tem coragem de olhá-lo nos olhos, deita a
cabeça nos joelhos dele. Então começa a contar que havia uma lenda terrível em
sua aldeia da montanha, que sempre a aterrorizou, desde pequena. E não me
lembro direito como era aquilo, uma coisa da Idade Média, que uma vez aquelas
aldeias ficaram isoladas pela neve meses e meses, e morriam de fome, e que
todos os homens tinham ido para a guerra, uma coisa assim, e que as feras da
floresta chegavam famintas até as casas, não me lembro direito, e o diabo
apareceu e pediu para uma mulher sair se queriam que trouxesse comida, e saiu
uma mulher, a mais valente, e o diabo tinha ao lado uma pantera faminta,
enfurecida, e aquela mulher fez um pacto com o diabo, para não morrer, e não
sei o que aconteceu e a mulher teve uma filha com cara de gata. E quando
voltaram os cruzados da Guerra Santa, o soldado que era casado com aquela
mulher entrou na casa e quando foi beijá-la ela o despedaçou vivo, como teria
feito uma pantera.
— Não entendo direito, você conta muito confusamente.
— É que me falha a memória. Mas não tem importância. O que Irena conta,
e disso eu me lembro direito, é que na montanha continuaram nascendo
mulheres-panteras. De qualquer modo aquele soldado já tinha morrido, mas
outro cruzado percebeu que era a mulher quem o tinha matado e começou a
segui-la pela neve e ela fugiu e primeiro eram marcas de mulher as pegadas que
deixava e ao aproximar-se da floresta eram de pantera, e o cruzado a seguiu e se
meteu na floresta que era de noite, até que avistou na escuridão os olhos verdes
brilhantes de alguém que o esperava na tocaia, e fez com a espada e o punhal
uma cruz e a pantera ficou quieta e virou de novo mulher, ali deitada meio
dormindo, como que hipnotizada, e o cruzado recuou porque ouviu outros
rugidos que se aproximavam e eram as feras, que farejaram a mulher e a
comeram. O cruzado chegou à aldeia quase desfalecendo e contou a história. E a
lenda é que a raça das mulheres-panteras não acabou e estão escondidas em
algum lugar do mundo, e parecem mulheres normais, mas se um homem as beija
podem transformar-se numa fera selvagem.
— E ela é uma mulher-pantera?
— A única coisa que sabe é que essas histórias a assustaram muito quando
era pequena, e viveu sempre com o pesadelo de ser uma descendente daquelas
mulheres.
— E o que foi que a mulher do restaurante falou com ela?
— Isso é o que o rapaz lhe pergunta. E então Irena se atira nos braços dele
chorando e diz que aquela mulher simplesmente a cumprimentou. Mas depois
não, enche-se de coragem e conta que no dialeto de sua aldeia lhe disse que
recordasse quem era, que só de olhar para a cara dela tinha percebido que eram
irmãs. E que tivesse cuidado com os homens. Ele começa a rir. “Não percebe?”,
diz, “ela viu que você era daquela zona porque todos os conterrâneos se
reconhecem, se eu vir um norte-americano na China também me aproximo e o
cumprimento. E porque era mulher, e um pouco estilo antigo, disse para você
tomar cuidado, não percebe?” Ele diz isso, e ela se tranquiliza bastante. E tão
tranquila se sente que adormece nos braços dele, e ele a deita lá no sofá, põe-lhe
uma almofada debaixo da cabeça e traz um cobertor de sua cama. Ela dorme.
Então ele vai para o seu quarto e a cena termina com ele de pijama e um robe de
chambre bom mas não de luxo, liso, e espia da porta ela dormindo e acende o
cachimbo e fica pensativo. A lareira está acesa, não, não me lembro, a luz deve
vir da lâmpada da mesa de cabeceira dele. Quando a lareira já está se apagando
Irena acorda, resta apenas uma brasa. Já está clareando.
— Acorda por causa do frio, como nós.
— Não, é outra coisa que a acorda, sabia que você ia dizer isso. Quem a
acorda é um canário que canta na gaiola. Irena primeiro tem medo de se
aproximar, mas vê que o passarinho está contente e cria coragem. Olha para ele,
e suspira profundamente, aliviada, contente porque o passarinho não se assusta
com ela. Vai até a cozinha e prepara torradas, com manteiga, e aveia e...
— Não fala em comida.
— E panquecas...
— Olha, estou falando sério. Nada de comidas nem de mulheres nuas.
— Bem, ela o acorda e ele está feliz ao vê-la tão à vontade na casa e lhe
pergunta se quer ficar morando ali para sempre.
— Ele ainda está deitado?
— Sim, ela levou o café na cama dele.
— Eu jamais gostei de tomar café logo que levanto, antes de mais nada
quero escovar os dentes. Continua, por favor.
— Bem, ele quer beijá-la. E ela não o deixa aproximar-se.
— Com certeza tem mau hálito, não escovou os dentes.
— Se você vai fazer caçoada não tem graça eu continuar.
— Não, por favor, estou ouvindo.
— Ele repete se ela quer casar. Ela responde que o ama com toda a força, e
que não quer mais ir embora daquela casa, sente-se tão bem ali, e olha e as
cortinas são de veludo escuro para repelir a luz, e para fazer entrar a luz ela vai e
as abre e atrás tem outro cortinado de renda. Vê-se então toda a decoração fim de
século. Ela pergunta quem escolheu aquelas coisas tão bonitas e me parece que
ele conta que a mãe está presente ali, em toda aquela decoração, a mãe era muito
boa e teria gostado de Irena como de uma filha. Irena se aproxima e lhe dá um
beijo quase como que de adoração, como se beija um santo, não? na testa. E lhe
pede para nunca a deixar, que ela quer ficar com ele para sempre, que a única
coisa que quer é poder acordar todo dia para tornar a vê-lo, sempre ao lado
dela... mas para ser uma mulher de verdade lhe pede que dê um pouco de tempo,
até todos os medos passarem...
— Você percebe o que acontece com ela, não?
— Tem medo de virar pantera.
— Bem, eu acho que ela é frígida, que tem medo de homem, ou tem uma
ideia do sexo muito violenta, e por isso inventa coisas.
— Espera, ele concorda, e casam. E quando chega a noite de núpcias, ela
dorme na cama e ele no sofá.
— Olhando para a decoração da mãe.
— Se você vai rir eu não continuo, estou contando a sério, porque gosto. E
além do mais tem outra coisa que não posso te dizer, que me faz realmente
gostar muito dessa fita.
— Me diz, seja o que for, o que é?
— Não, eu ia tocar no assunto mas agora vejo que você está rindo, e me dá
raiva, palavra que dá.
— Não, gosto do filme, mas é que você se diverte contando, e daí eu quero
participar um pouco, entende? Não sou um sujeito capaz de ouvir muito, sabe,
não? e de repente tenho que ficar horas escutando calado.
— Eu pensei que servia para te distrair e pegar no sono.
— Sim, perfeito, é verdade, as duas coisas, me distraio e pego no sono.
— Então?
— Mas se você não acha ruim, gostaria que fôssemos comentando um pouco
a história, à medida que você avança, assim eu posso descarregar um pouco com
alguma coisa. É justo, não acha?
— Se for para zombar de uma fita que eu gosto, então não.
— Não, olha, podíamos comentar, simplesmente. Por exemplo: eu gostaria
de perguntar como você imagina a mãe do sujeito.
— Só se você não rir mais.
— Prometo.
— Vamos ver... não sei, uma mulher muito boa. Um encanto de pessoa, que
fez a felicidade do marido e dos filhos, sempre muito bem arrumada.
— Você a imagina fazendo faxina na casa?
— Não, vejo-a impecável, com um vestido de gola alta, a renda disfarça as
rugas do pescoço. Tem aquela coisa tão bonita de algumas mulheres mais velhas,
que é esse pouquinho de faceirice, dentro da seriedade, por causa da idade, mas
nota-se que continuam sendo mulheres e querem agradar.
— Sim, está sempre impecável. Perfeito. Tem empregados, explora pessoas
que não têm outro remédio senão servi-la, por uns níqueis. E, claro, foi muito
feliz com o marido, que por sua vez a explorou, a fez fazer tudo o que ele quis,
ficar trancada em casa como uma escrava, à espera dele...
— Escuta...
— ...à espera dele toda noite, de volta do escritório de advocacia, ou do
consultório médico. E ela estava perfeitamente de acordo com aquele sistema, e
não se rebelou, e inculcou no filho todo aquele lixo e agora o filho topa com a
mulher-pantera. Que aguente.
— Mas você não gostaria, realmente, de ter uma mãe assim? carinhosa,
sempre cuidando bem de sua pessoa... Vamos, não chateie...
— Não, eu vou te explicar por quê, se você não entendeu.
— Olha, estou com sono, e me irrita que você se saia com essa porque até
você se sair com essa eu me sentia ótimo, tinha me esquecido desta cela nojenta,
de tudo, contando o filme.
— Eu também tinha me esquecido de tudo.
— E então, por que me cortar a ilusão, a mim, e a você também? que
bobagem é essa?
— Vejo que tenho de explicar as coisas mais claras, porque você não entende
os sinais.
— Você me faz sinais aqui no escuro, acho perfeito.
— Vou explicar.
— Sim, mas amanhã, porque agora fiquei na fossa de novo. Amanhã
continuamos. Por que não me coube como companheiro o noivo da mulher-
pantera, em vez de você?
— Ah, isso é outra história, e não me interessa.
— Tem medo de falar nessas coisas?
— Não, medo não. É que não me interessa. Eu já sei tudo a seu respeito,
embora você não tenha me contado nada.
— Bem, te contei que estou aqui por corrupção de menores, com isso disse
tudo, agora não banca o psicólogo.
— Vamos, confessa que gosta dele porque fuma cachimbo.
— Não, porque é um sujeito pacífico e compreensivo.
— A mãe o castrou, aí é que é.
— Gosto, e acabou-se. E você gosta da colega arquiteta, o que é que ela tem
de guerrilheira?
— Gosto, está bem, mais do que da pantera.
— Tchau, amanhã me explica por quê. Me deixa dormir.
— Tchau.
— Estávamos em que ela ia casar com o cara do cachimbo. Sou todo
ouvidos.
— Por que esse tonzinho de caçoada?
— Nada, conta, anda, Molina.
— Não, fala você do cara do cachimbo, já que o conhece melhor que eu, que
vi o filme.
— O cara do cachimbo não te convém.
— Por quê?
— Porque você o quer com fins não de todo castos, hein? Confessa.
— Claro.
— Bem, ele gosta de Irena porque ela é frígida e não tem que atacá-la, por
isso a protege e a leva para casa, onde a mãe está presente; embora morta está
presente em todos os móveis e cortinas e porcarias, não foi você mesmo que
falou?
— Continua.
— Se ele deixou todas as coisas da mãe em casa, intactas, é porque quer
continuar sendo sempre um menino em casa da mãe, e o que traz para casa não é
uma mulher, mas uma menina para brincar.
— Mas isso é tudo da tua cabeça. Sei lá se a casa era da mãe, eu disse isso
porque gostei muito daquele apartamento e como era de decoração antiga disse
que podia ser da mãe, mais nada. Talvez ele o alugue mobiliado.
— Então você está inventando a metade do filme.
— Não, não invento, te juro, mas há coisas que para te dar ideia, para que
você as veja como estou vendo, bem, de alguma forma tenho que explicar. A
casa, por exemplo.
— Confessa que é a casa onde você gostaria de morar.
— Sim, claro. E agora tenho que aguentar que você diga o que todos me
dizem.
— Vamos lá... o que é que eu vou te dizer?
— Todos são iguais, vêm com a mesma história, sempre!
— O quê?
— Que quando era garoto me mimaram demais, e por isso sou assim, que
fiquei grudado nas saias de minha mãe, e sou assim, mas que a gente sempre
pode endireitar, e o que preciso é de uma mulher, porque mulher é a melhor
coisa que há.
— Dizem isso?
— Sim, e aí respondo... ótimo! de acordo! já que as mulheres são a melhor
coisa que há... eu quero ser mulher. Pois então me poupa de ouvir conselhos,
porque sei o que se passa comigo e tenho tudo claríssimo na cabeça.
— Eu não vejo tão claro assim, pelo menos como você acaba de definir.
— Bem, não preciso que você me esclareça nada, e se quiser continuo o
filme, e se não quiser, paciência, conto para mim mesmo em voz baixa, e saluti
tutti, arrivederci, Sparafucile.
— Quem é Sparafucile?
— Você não sabe nada de ópera, é o traidor do Rigoletto.
— Me conta o filme e pronto, agora quero saber como continua.
— Onde estávamos?
— Na noite de núpcias. Ele não a toca.
— Isso mesmo, ele dorme no sofá da sala, ah, e o que não te disse é que
entraram em acordo, combinaram que ela vá a um psicanalista. E ela começa a
ir, vai a primeira vez e topa com um sujeito alinhadíssimo, um verdadeiro pão.
— Que é para você um sujeito alinhadíssimo? Gostaria de saber.
— Bem, é um moreno alto, de bigode, muito distinto, testa larga, mas com
um bigodinho meio de filho da puta, não sei se me explico, um bigode
safadinho, que dá a pinta dele. Bem, a propósito, não é meu tipo o sujeito que faz
o psicanalista.
— Qual é o ator?
— Não me lembro, é um papel secundário. É alinhado mas muito magro para
o meu gosto, se te interessa saber, esses sujeitos que ficam bem de terno com
paletó de jaquetão ou se for paletó comum tem que usar colete. É um sujeito que
agrada às mulheres. Mas se nota algo nesse filho da mãe, não sei, tem muita
certeza de agradar às mulheres, e, assim, mal aparece... choca, e também choca
Irena, ela lá no divã começa a falar de seus problemas mas não se sente à
vontade, não se sente ao lado de um médico, e sim ao lado de um sujeito, e se
assusta.
— O filme é notável.
— Notável de quê? de ridículo?
— Não, de coerente, é ótimo, continua. Não seja tão desconfiado.
— Ela começa a falar de seu medo de não ser uma boa esposa e combinam
que. na vez seguinte vai lhe contar seus sonhos, ou pesadelos, e que num sonho
virou pantera. Tudo tranquilo, despedem-se, mas na sessão seguinte ela não vai,
mente para o marido, e em vez de ir ao médico vai ao jardim zoológico, olhar a
pantera. E fica lá como que fascinada, ela está com aquele casaco de pelo preto
mas com reflexos como que de furta-cor, e a pele da pantera também é preta em
tom de tornassol. A pantera passeia na jaula enorme, sem tirar o olho de cima da
moça. Nisso aparece o zelador, e abre a porta da jaula que está do lado. Abre
apenas um segundo, atira a carne e torna a fechar, mas distraído com o gancho
onde trazia pendurada a carne esquece a chave na fechadura da jaula. Irena vê
tudo, fica calada, o zelador segura uma vassoura e começa a varrer os papéis e
pontas de cigarros espalhados por ali perto das jaulas. Irena se aproxima um
pouco, disfarçadamente, da fechadura. Tira a chave e olha-a, uma chave grande,
enferrujada, fica pensando, passam-se uns segundos.
— O que é que ela vai fazer?
— Mas vai até o zelador e a entrega. O velho, um sujeito pacato e bem-
humorado, agradece. Irena volta para casa, espera o marido chegar, está na hora
de ele voltar do escritório. E nisso tudo me esqueci de te dizer que toda manhã,
com o maior carinho, ela dá alpiste ao canário, e muda a água, e o canário canta.
E chega finalmente o marido e ela o abraça e quase o beija, tem um grande
desejo de beijá-lo, na boca, e ele se excita, e pensa que talvez o tratamento
psicanalítico esteja lhe fazendo bem, e se aproxima o momento de serem
realmente marido e mulher. Mas comete o erro de perguntar como foi a consulta
daquela tarde. Ela, que não foi, sente-se péssima, culpada, e logo se desprende
dos braços dele e mente, que foi sim e tudo correu bem. Mas se desprende e já
não há nada a fazer. Ele tem que aguentar o desejo. E no dia seguinte está no
trabalho com os outros arquitetos, e a colega que sempre atenta nele, porque
continua amando-o, nota-o preocupado e o convida a tomar um drinque na saída,
para levantar o moral, e ele diz que não, tem muito que fazer, vai ficar depois da
hora e então ela que sempre gostou dele lhe diz que também pode ficar para
ajudá-lo.
— Tenho simpatia por essa moça. Como as coisas são estranhas, você não
me disse nada sobre ela mas acho-a simpática. Coisas estranhas da imaginação.
— Ela fica lá com ele, mas não é que seja uma qualquer, depois que ele
casou ela se conformou, mas agora tem de ajudá-lo como amiga. E lá estão
trabalhando além do horário. O salão é grande, há várias pranchetas de desenho,
cada arquiteto tem uma, mas agora já foram embora e está tudo sumido na
escuridão, a não ser a prancheta do rapaz, que tem um vidro, e debaixo do vidro
vem a luz, então os rostos são iluminados por baixo, e os corpos projetam uma
sombra meio sinistra contra as paredes, sombra de gigantes, e a régua de
desenho parece uma espada quando ele ou a colega a seguram para traçar uma
linha. Mas trabalham calados. Ela lhe dá uma espiada de vez em quando, e
embora morrendo de vontade de saber o que é que o preocupa, não pergunta
nada.
— Está muito bem. É respeitosa, discreta, deve ser isso que eu gosto nela.
— Enquanto isso Irena espera, espera e afinal se decide e telefona para o
escritório. A outra atende e passa para o rapaz. Irena está com ciúme, procura
disfarçar, ele diz que telefonou cedo para avisar mas ela não estava. Claro, tinha
ido de novo ao jardim zoológico. Então, como ele a pega em falta ela tem que
ficar calada, não pode reclamar. E ele começa a chegar tarde seguido, porque
alguma coisa o faz atrasar a chegada em casa.
— Tudo tem tanta lógica, é fantástico.
— Então, em que ficamos... você está vendo que ele é bem normal, quer ir
pra cama com ela.
— Não, escuta. Antigamente ele voltava para casa com prazer porque sabia
que ela não ia dar, mas agora com o tratamento há possibilidade, e isso o
inquieta. Enquanto que se ela fosse sempre feito uma menina, como no começo,
só iam brincar, como crianças. E talvez brincando começassem a fazer algo
sexualmente.
— Brincando como crianças, ai, que coisa sem graça!
— Isso não me soa mal, da parte de teu arquiteto. Desculpe eu me
contradizer.
— O que é que não te soa mal?
— Que começassem como que brincando, sem tanto estardalhaço.
— Bem, volto ao filme. Mas uma coisa, por que agora ele acha prazer em
ficar com a colega?
— Porque se supõe que sendo casado não pode acontecer nada, a colega já
não é uma possibilidade sexual, porque aparentemente ele já é todo da esposa.
— É pura imaginação tua.
— Se você acrescenta coisas, por que é que eu não posso?
— Continuo. Certa noite Irena está com o jantar preparado, e ele não chega.
A mesa posta, com luz de velas. Ela não sabe de uma coisa, que ele, como é o
aniversário de casamento, foi buscá-la aquela tarde cedo na saída do psicanalista,
e, claro, não a encontra porque ela não vai nunca. E ele aí toma conhecimento de
que ela não vai há tempos e telefona para Irena, que não está em casa, é evidente
que ela saiu como toda tarde, irresistivelmente atraída pelo jardim zoológico.
Ele, então, voltou desesperado para o escritório, precisa contar tudo à
companheira. E vão a um bar próximo tomar um drinque, mas o que querem não
é beber, mas falar a sós e fora do escritório. Irena, quando percebe que já é tão
tarde, começa a passear pelo quarto como uma fera enjaulada, e telefona para o
escritório. Ninguém responde. Trata de fazer alguma coisa para distrair-se, está
nervosíssima, aproxima-se da gaiola do canário e percebe que o canário bate
asas desesperado ao senti-la aproximar-se e voa às cegas de um lado para outro
da gaiolinha, machucando as asas. Ela não resiste ao impulso, abre a gaiola e
enfia a mão. O pássaro cai morto, como que fulminado, ao sentir a mão se
aproximar. Irena se desespera, voltam todas as suas alucinações, sai correndo,
vai à procura do marido, somente a ele pode pedir ajuda, ele vai compreendê-la.
Mas para ir ao escritório passa inevitavelmente pelo bar e os vê. Permanece
imóvel, não pode dar mais um passo, treme de raiva, de ciúmes. O casal levanta
para sair, Irena se esconde atrás de uma árvore. Vê que eles se despedem e se
separam.
— Como se despedem?
— Ele a beija no rosto. Ela usa um chapéu de aba para baixo. Irena não está
de chapéu, o cabelo crespo brilha sob os postes de luz da rua deserta, porque está
seguindo a outra. A outra toma um caminho direto para sua casa, que fica do
outro lado do parque, o Central Park, uma rua que às vezes parece um túnel,
porque o parque tem como que umas lombadas, e aquele caminho é reto, e às
vezes está escavado nas lombadas, parece uma rua, com tráfego mas não muito,
como um atalho, e um ônibus que a atravessa. E às vezes a colega pega o ônibus
para não andar tanto, e outras vezes vai andando, porque o ônibus passa de
quando em quando. E daquela vez a colega resolve andar, para arejar um pouco
as ideias, porque sua cabeça está explodindo depois de falar com o rapaz, ele lhe
contou tudo, que Irena não se deita com ele, que tem pesadelos com mulheres-
panteras. E essa mulher, que está apaixonada pelo rapaz, sente-se realmente
muito confusa, já estava conformada em perdê-lo, mas agora não, tem
esperanças outra vez. E por um lado está contente, já que nem tudo se perdeu, e
por outro lado tem medo de criar de novo ilusões e depois sofrer, de ficar sempre
com as mãos vazias. E vai pensando nisso tudo, andando depressinha porque faz
frio. Não tem ninguém ali, dos dois lados do caminho está o parque escuro, não
há vento, nem uma só folha se move, a única coisa que se sente são passos atrás
da colega, um toque-toque de sapato de mulher. A colega volta-se e vê uma
silhueta, mas a certa distância, e com a luz escassa não percebe quem é. Mas por
lá a batida se ouve cada vez mais rápido. A colega começa a alarmar-se, porque
você sabe como é, quando se falou de coisas de assustar, como fantasmas ou
crimes, a gente fica mais impressionável, e se sugestiona por qualquer coisa, e
essa mulher se lembra das mulheres-panteras e aquilo tudo e começa a se
assustar e apressa o passo, mas está bem na metade do caminho, a uns quatro
quarteirões do fim, onde começam as casas porque acaba o parque. Então, se dá
uma de correr, quase que é pior.
— Posso interromper, Molina?
— Sim, mas já falta pouco, quer dizer, por esta noite.
— Só há uma coisa que me intriga um pouco.
— O quê?
— Não vai se zangar?
— Depende.
— É interessante saber. E depois se você quiser me pergunta também.
— Manda lá.
— Com quem você se identifica? Com Irena ou com a arquiteta?
— Com Irena, é evidente. É a protagonista, seu burro. Estou sempre com a
heroína.
— Continua.
— E você, Valentín, com quem? Está sem saber o que pensar, porque o rapaz
te parece um bobo alegre.
— Pode rir à vontade. Estou com o psicanalista. Mas não caçoa, eu respeitei
tua escolha, sem comentários. Continua.
— Depois a gente comenta, se você quiser, ou amanhã.
— Sim, mas continua mais um pouco.
— Só mais um pouquinho, o negócio é criar o suspense, assim você gosta
mais do filme. É preciso fazer assim com o público, senão ele não fica satisfeito.
Antigamente faziam sempre assim no rádio. E agora nas telenovelas.
— Vai.
— Bem, estávamos no seguinte: a mulher não sabe se começa a correr ou
não, quando de repente quase não se ouvem mais os passos, o toque-toque da
outra, quero dizer, porque são passos diferentes, quase imperceptíveis, os que a
arquiteta sente agora, como se fossem passos de um gato, ou algo pior. Volta-se e
não vê a mulher, como pôde desaparecer de repente? mas pensa ver outra
sombra, que desliza e desaparece também. E o que se ouve agora é o ruído de
pisadas entre o arvoredo do parque, pisadas de animal, que se aproximam.
— E aí?
— Amanhã continuamos. Tchau, durma bem.
— Você me paga.
— Até amanhã.
— Tchau.

________________
1 O pesquisador inglês D. J. West considera que são três as teorias sobre a
origem física do homossexualismo — e rejeita as três.
A primeira tenta estabelecer que o comportamento sexual anormal provém de
um desequilíbrio da proporção de hormônios masculinos e femininos, ambos
presentes no sangue dos dois sexos. Mas os testes diretos realizados em
homossexuais não proporcionaram um resultado que confirme a teoria, isto é,
não demonstraram uma distribuição hormonal deficiente. Segundo
comprovações do Dr. Swyer, em seu trabalho Homossexualidade, aspectos
endocrinológicos, a medida de níveis hormonais em homossexuais e
heterossexuais não revelou diferenças. Além disso, se o homossexualismo
tivesse origem hormonal — os hormônios são segregados pelas glândulas
endócrinas —, poderia ser curado através de injeções que restituíssem o
equilíbrio endócrino. Mas não foi possível, e em seu trabalho Testosterona em
homossexuais masculinos psicóticos, o pesquisador Barahal explica que a
aplicação de hormônios masculinos em homossexuais homens só deu como
resultado o aumento do desejo que o indivíduo sente pelo tipo de atividade
sexual a que está habituado. Quanto às experiências realizadas com mulheres, o
Dr. Foss, em A influência de andrógenos urinários na sexualidade da mulher, diz
que grandes quantidades de hormônios masculinos aplicados em mulheres
produzem de fato uma mudança notável no sentido da masculinidade, mas só no
que diz respeito ao aspecto físico: voz mais grossa, barba, diminuição de seios,
crescimento do clitóris, ele. Quanto ao apetite sexual, este aumenta, mas
continua sendo normalmente feminino, isto é, o objeto de seu desejo continua
sendo o homem, se não se tratar, obviamente, de uma mulher já com hábitos
lésbicos. Por outra parte, no homem heterossexual, a administração em
quantidade de hormônios femininos não desperta desejos homossexuais, mas
reverte numa diminuição da energia sexual. Tudo isso indica que a aplicação de
hormônios masculinos nas mulheres e de hormônios femininos nos homens não
revela uma relação entre a percentagem de hormônios masculinos e femininos
no sangue e os correspondentes desejos sexuais. Pode-se assegurar, então, que a
escolha, do sexo por parte do sujeito amoroso não tem relação demonstrável com
a atividade endócrina, isto é, com as secreções hormonais.
A segunda teoria importante sobre a possível origem física do
homossexualismo é, segundo D. J. West, a referente ao intersexualismo. Em
vista de ter sido impossível comprovar uma anormalidade hormonal nos
homossexuais, tentou-se investigar outros determinantes físicos, alguma
anomalia desconhecida, e certos pesquisadores, então, resolveram enquadrar o
homossexualismo como forma de intersexualismo. Intersexuais ou hermafroditas
são aqueles que não pertencem fisicamente por inteiro a um dos sexos, embora
apresentem traços de ambos. O sexo ao qual um indivíduo pertencerá se
determina no momento da concepção, e depende da variedade genética a que
corresponda o espermatozoide que fecunda o óvulo. As causas físicas do
intersexualismo ainda não foram bem determinadas; normalmente ele é
provocado por um transtorno endócrino que se produz durante o estado fetal.
São variadíssimos os graus de intersexualismo: em alguns, as glândulas sexuais
internas (ovários ou testículos) e a aparência física são contraditórias; em outros,
as glândulas sexuais internas constituem misturas de testículos e ovários; e em
outros, ainda, os órgãos genitais externos podem apresentar todas as fases
intermediárias entre os masculinos e os femininos, até, inclusive, ter pênis e
útero simultaneamente. O pesquisador T. Lang, em Estudos sobre a
determinação genética da homossexualidade, por exemplo, concluiu que os
homossexuais masculinos seriam geneticamente mulheres cujos corpos sofreram
uma completa inversão sexual em direção à masculinidade; para demonstrar sua
hipótese, realizou pesquisas e chegou à conclusão de que existiam homossexuais
homens nas famílias que tinham excesso de irmãos e carência de irmãs, sendo
assim o homossexual homem um produto intermediário de compensação não
realizada. Embora o dado seja interessante, a teoria formulada por Lang perde
valor, fatalmente, por não conseguir explicar as características físicas normais da
grande maioria, noventa e nove por cento, dos homossexuais. O pesquisador C.
M. R. Pare se baseia neste fato, em Homossexualismo e sexo cromossomático,
para rebater a teoria de Lang. Pare, depois de aplicar modernos métodos
microscópicos, identificou como sendo biologicamente masculinos todos os
homens homossexuais examinados durante uma longa pesquisa, que incluía
homens heterossexuais. Por outra parte, a teoria de Lang é também refutada por
J. Money em seu trabalho Estabelecimento do papel do sexo, ao afirmar que os
intersexuais, apesar de sua aparência bissexual, não são bissexuais ao chegar o
momento de escolher o objeto de seu desejo amoroso; os impulsos sexuais destes
indivíduos, afirma Money, não seguem o modelo de suas glândulas sexuais
internas, conforme tenham ovários, testículos ou glândulas mistas. Os desejos do
intersexual se adaptam aos do sexo no qual foi educado, mesmo que seus
cromossomos e as características dominantes de seus órgãos sexuais externos e
internos sejam do sexo oposto. De tudo isto se pode concluir que o
heterossexualismo e o homossexualismo, em todos os casos, seja o indivíduo de
constituição física normal ou não, são atividades adquiridas através de um
condicionamento psicológico, e não predeterminadas por fatores endócrinos.
A terceira e última teoria sobre a origem física do homossexualismo de que
trata West é aquela que apresenta o fator hereditário. West assinala que apesar da
seriedade dos estudos realizados, entre os quais destaca Estudo comparativo dos
aspectos genéticos da homossexualidade masculina, de F. Kallman, a vaguidão
das provas apresentadas não permite estabelecer que o homossexualismo seja
uma característica constitucional de tipo hereditário.
2
— Você cozinha bem.
— Obrigado, Valentín.
— Mas vai me habituar mal. Isso pode me prejudicar.
— Você é maluco, vive o momento, aproveita! vai estragar a comida
pensando no que pode acontecer amanhã?
— Não acredito nisso de viver o momento, Molina, ninguém vive o
momento. Isso fica para o paraíso terrestre.
— Você acredita no céu e no inferno?
— Espera, Molina, se vamos discutir, que seja com certa ordem;
desconversar é coisa de garotos, discussão de colégio.
— Eu não estou desconversando.
— Perfeito, então primeiro deixa eu ajeitar as ideias, fazer uma colocação
geral.
— Estou ouvindo.
— Eu não posso viver o momento, porque vivo em função de uma luta
política, ou melhor, atividade política, digamos, entende? Tudo o que posso
aguentar aqui, que é bastante... mas que não é nada se você pensa na tortura...
que você não sabe o que é.
— Mas posso imaginar.
— Não, não pode imaginar... Bem, mas eu aguento tudo... porque há uma
planificação. Existe o importante, que é a revolução social, e o secundário, que
são os prazeres dos sentidos. Enquanto durar a luta, que talvez dure toda a minha
vida, não me convém cultivar os prazeres dos sentidos, entende? porque são, na
verdade, secundários para mim. O grande prazer é outro, é saber que estou a
serviço do que há de mais nobre, que é... bem... todas as minhas ideias...
— Como, tuas ideias?
— Meus ideais... o marxismo, se você quiser que eu defina tudo com uma
palavra. E esse prazer eu posso sentir em qualquer lugar, aqui mesmo nesta cela,
e até na tortura. E essa é minha força.
— E tua mulherzinha?
— Isso também tem que ser secundário. Para ela eu também sou secundário.
Porque ela também sabe o que é o mais importante.
— Você inculcou isso nela?
— Não, acho que nós dois fomos descobrindo juntos. Entendeu o que eu quis
dizer?
— Entendi...
— Não parece muito convencido, Molina.
— Não, deixa pra lá. vou dormir.
— Você está louco! E a pantera? Fiquei em suspense desde ontem à noite.
— Amanhã.
— Mas que é que há com você?
— Nada...
— Fala...
— Não, sou um bobo, só isso.
— Explica, por favor.
— Olha, eu sou assim, as coisas me ferem. Te fiz esta comida, com as
minhas provisões, e o pior de tudo: gostando como gosto de abacate, te dei a
metade, podia ter guardado a metade para amanhã. E para quê... para você me
jogar na cara que te habituo mal.
— Não seja assim, você é sensível demais...
— Que é que há de se fazer, eu sou assim, muito sentimental.
— Demais. Isso é coisa...
— Por que você se cala?
— Nada.
— Diga, eu sei o que você ia dizer, Valentín.
— Não seja tolo.
— Diga; ia dizer que isso é coisa de mulher.
— Isso mesmo.
— E o que é que tem de errado em ser frouxo como uma mulher? Por que
um homem, ou seja lá o que for, um cachorro, ou uma bicha, não pode ser
sensível se lhe der na telha?
— Não sei, mas ao homem esse excesso pode incomodar.
— Para quê? Para torturar?
— Não, para acabar com os torturadores.
— Sim, mas se todos os homens fossem como as mulheres não haveria
torturadores.
— E o que é que você faria sem homens?
— Você tem razão. São uns brutos, mas gosto deles.
— Molina, mas você diz que se todos fossem como as mulheres não haveria
torturadores. Está aí uma colocação ao menos, irreal mas finalmente uma
colocação.
— Que maneira de dizer as coisas.
— Que maneira como?
— Você é muito depreciativo quando fala: “está aí uma colocação ao
menos”.
— Bem, desculpa se te magoei.
— Não há nada que desculpar.
— Bem, então fica mais contente e não me põe de castigo.
— Castigo como? Está louco.
— Finge que nada aconteceu, então.
— Quer que continue o filme?
— Claro, homem.
— Que homem? onde está o homem, diz onde que eu não deixo fugir. , —
Bem, chega de brincadeira e conta.
— Onde estávamos mesmo?
— A arquiteta minha namorada não escutava mais passos humanos.
— Bem, aí ela começa a tremer de terror, está desnorteada, não ousa se virar
com medo de ver a pantera, para um momento para ver se torna a ouvir passos
humanos, mas nada, o silêncio é total, apenas um murmúrio de árvores mexidas
pelo vento... ou por outra coisa. Então lança um grito de desespero que é como
uma mistura de choro e queixa, quando o grito fica como que coberto pela porta
automática do ônibus que acaba de parar junto dela. Essas portas hidráulicas que
fazem como um barulho de ventosa — e está salva. O motorista a viu ali de pé e
abriu a porta; pergunta o que é que ela tem, ela diz que nada, que não se sente
bem, só isso. E sobe... Bem, e quando Irena volta para casa está desgrenhada, os
sapatos sujos de lama. Ele está totalmente desorientado, não sabe o que dizer, o
que fazer com esse bicho estranho com quem se casou. Ela entra, nota-o
esquisito, vai ao banheiro para deixar os sapatos enlameados, e ouve que ele diz,
tomando coragem de falar porque ela não o olha, que foi buscá-la no consultório
do médico e tomou conhecimento de que ela não tinha ido mais lá. Ela então
chora e lhe diz que está tudo perdido, que é o que sempre teve medo de ser, uma
louca, com alucinações, ou ainda pior... uma mulher-pantera.
Ele amolece de novo e a toma nos braços, e você tinha razão, para ele, ela é
como uma menina, porque quando a vê assim tão indefesa, tão perdida, sente de
novo que a ama loucamente e aconchega a cabeça dela em seu ombro, o ombro
dele, e lhe acaricia o cabelo e lhe diz para ter fé, que tudo vai se ajeitar.
— Até que o filme é bom.
— Mas continua, não acabou.
— Já sei, imagino que não vai ficar nisso. Sabe que eu gosto? é como uma
alegoria, aliás muito clara, do medo que a mulher tem de se entregar ao homem,
porque ao entregar-se ao sexo torna-se um pouco animal, entende?
— E daí...
— Existe esse tipo de mulher, que é muito sensível, espiritual demais, e foi
criada com a ideia de que o sexo é sujo, que é pecado, e esse tipo de mulher se
estrepa toda, se superestrepa, o mais provável é que seja frígida quando casar,
porque tem uma barreira dentro, fizeram-na erguer uma barreira, ou uma
muralha, e por ali não passa nem bala.
— Nem outras coisas ainda menos.
— Agora que estou falando sério, lá vem você com piadas, está vendo como
você também é?
— Continua, voz da sabedoria.
— Isso mesmo. Continua com a pantera.
— Bem, o caso é que ele a convence de tornar a ter fé e ir ao médico.
— A mim.
— Sim, mas ela diz que há qualquer coisa no médico que não lhe agrada.
— Claro, porque se a curar vai entregá-la à vida matrimonial, ao sexo.
— Mas o marido a convence de voltar. E ela vai, mas com medo.
— Você sabe de que é o medo, antes de mais nada?
— De quê?
— O médico é um tipo sexual, você disse.
— É.
— Aí está o problema, porque ele a excita, e por isso ela resiste a entregar-se
ao tratamento.
— Bem, ela vai ao consultório. E diz com toda a sinceridade que seu medo
maior é que um homem a beije e ela vire pantera. E o médico aí se engana, e
quer lhe tirar o temor demonstrando que ele próprio não tem medo dela, que tem
certeza de que é uma mulher encantadora, adorável e mais nada, isto é, o sujeito
escolhe um tratamento meio maroto, porque levado pelo desejo procura a
maneira de beijá-la, isso é que ele procura. Mas ela não se entrega, ao contrário,
percebe que sim, que o médico tem razão e que ela é normal e vai-se embora do
consultório na mesma hora e sai contente, vai direto ao escritório dos arquitetos,
como com o propósito, a decisão já tomada, de entregar-se ao marido naquela
noite. Está feliz, e corre, e chega quase sem fôlego. Mas fica paralisada na porta.
Já é tarde e todos foram embora, menos o marido e a colega, e estão falando, de
mãos dadas, não se sabe se é um sinal de amizade ou o quê. Ele está falando,
com o olhar baixo, enquanto a colega o escuta compreensiva. Não percebem que
alguém entrou. E aqui me falha a memória.
— Espera um pouco, volta logo.
— Lembro que tem uma cena de uma piscina, e outra lá no escritório dos
arquitetos, e mais outra, a última, com o psicanalista.
— Não vai dizer que no fim a pantera fica comigo.
— Não. Não se apresse. Bem, toda essa parte final, se você quiser, eu te
conto desconjuntada, só o que me lembro.
— Bem.
— Então, lá no escritório estão ele e a outra falando, e param de falar porque
escutam uma porta que range. Olham e não há ninguém, o escritório está escuro,
só a mesa deles, com aquela luz meio sinistra de baixo para cima. E se ouvem
pisadas de animal, que amassam algum papel ao pisá-lo e, sim, agora me lembro,
há uma cesta para papéis num canto escuro e a cesta vira e as pisadas fazem
ranger os papéis. A outra solta um grito e se refugia atrás dele. Ele grita: “Quem
está aí? Quem é?”, e então pela primeira vez se ouve a respiração do animal,
como um rugido entre dentes, entende? Ele não sabe com que se defender e pega
uma régua dessas grandes. E nota-se que inconscientemente ou seja como for ele
lembra do que Irena contou, que a cruz espanta o diabo e a mulher-pantera, e a
luz da mesa projeta umas sombras como de gigante em cima da parede, dele com
a colega agarrada a ele, e a poucos metros a sombra de uma fera de cauda
comprida, e parece que ele está segurando uma cruz na mão. São somente as
réguas de desenho que ele coloca em cruz, mas aí se ouve um rugido terrível e
na escuridão os passos do animal que foge espavorido. Bem, agora não me
lembro da continuação, se naquela mesma noite, acho que sim, a outra volta para
casa, que é como um hotel de mulheres muito grande, um clube de mulheres,
onde mora, com uma grande piscina de natação no subsolo. A arquiteta está
muito nervosa por tudo o que aconteceu, e aquela noite ao voltar ao hotel onde é
proibida a entrada de homens pensa que para acalmar seus nervos que estão tão
alterados a melhor coisa seria descer e nadar um pouco. Já é noite fechada e não
há absolutamente ninguém na piscina. Lá embaixo há vestiários e ela tem um
armário onde pendura a roupa e veste o maiô e a saída de banho. Enquanto isso,
abre-se a porta da rua e aparece Irena. Pergunta pela outra à mulher da portaria, e
a porteira diz, sem desconfiar de nada, que a outra acaba de descer para a
piscina. Irena, por ser mulher, não tem o menor problema para entrar, deixam ela
passar. Embaixo, a piscina está às escuras, a outra sai do vestiário e acende as
luzes, as da piscina, que ficam debaixo d'água. Está ajeitando o cabelo para
colocar a touca de banho quando escuta passos. Pergunta, um pouquinho
alarmada, se é a porteira. Não há resposta. Então fica aterrorizada, larga a saída
de banho e mergulha. Olha do meio da água para as bordas da piscina, que estão
escuras, e se ouvem os rugidos de uma fera preta que passeia enfurecida, quase
não se vê, mas uma sombra vai como que deslizando pela beirada. Os rugidos
mal se ouvem, são sempre rugidos como entre dentes, e brilham seus olhos
verdes olhando a outra na piscina que aí sim começa a gritar feito louca.
Enquanto isso a porteira desce e acende todas as luzes, pergunta o que está
acontecendo. Aqui não tem ninguém, por que essa gritaria toda? A outra está
envergonhada, não sabe como explicar o medo que sente, imagina como é que
vai dizer que apareceu ali uma mulher-pantera. E então diz que pensou que havia
alguém lá, um animal escondido. E a porteira a olha como que dizendo que é que
esta babaca está falando, veio uma amiga visitá-la e se assusta por causa disso,
por ouvir uns passos, e estão nisso quando avistam no chão a saída de banho em
farrapos e pegadas de patas de animal, que pisou no molhado... Está me
ouvindo?
— Sim, mas não sei por que esta noite só faço pensar em outra coisa.
— Em quê?
— Em nada, não posso me concentrar...
— Vamos, te abre um pouco.
— Penso em minha companheira.
— Como se chama?
— Não vem ao caso. Olha, nunca te falei dela, mas penso sempre nela.
— Por que ela não escreve?
— Como é que você sabe se ela não escreve! Posso te dizer que recebo
cartas de outra pessoa e são dela. Ou você revista as minhas coisas na hora do
banho?
— Está louco. Mas é que você nunca me mostrou carta dela.
— Bem, é que eu nunca quero falar nisso, mas não sei, agora tinha vontade
de comentar uma coisa... que quando você começou a contar que a pantera
seguia a arquiteta fiquei com medo.
— De quê?
— Não fiquei com medo por minha causa, mas pela minha companheira.
— Ah...
— Estou maluco, puxar um assunto desses.
— Por quê? Fale se quiser...
— Quando você começou a contar que a pantera seguia a moça, imaginei
que minha companheira estava em perigo. E me sinto tão impotente aqui, sem
condições de avisar que se cuide, que não se arrisque demais.
— Te entendo.
— Bem, você deve imaginar, se ela é minha companheira, é porque também
está na luta. Embora não devesse te falar, Molina.
— Não se preocupe.
— É que não quero te dar informações, é melhor que você não saiba. São
uma carga, e já basta o teu problema.
— Eu também, sabe, tenho essa sensação, daqui, de não poder fazer nada;
mas no meu caso não é uma mulher, quero dizer, uma moça: é minha mãe.
— Tua mãe não está sozinha, não? Ou está?
— Bem, está com minha tia, irmã de meu pai. Mas é que está doente. Tem
pressão alta e o coração falha um pouco.
— Mas essas coisas podem durar, aguentar anos, você sabe...
— Mas é preciso lhe evitar desgostos, Valentín.
— Que se há de fazer...
— Sim, pior do que já fiz não é possível.
— Por que diz isso?
— Imagina, a vergonha de ter um filho preso. E a causa.
— Não pensa mais nisso. O pior passou, não? Agora o negócio é se
conformar, mais nada.
— Mas é que ela sente muita falta de mim. Éramos muito unidos.
— Não pensa mais. Ou então... te consola pelo fato dela não estar em perigo,
como a pessoa de quem eu gosto.
— Mas ela tem o perigo dentro, leva o inimigo dentro dela, que é o coração
fraco.
— Ela te espera, sabe que você vai sair, oito anos passam, e com a esperança
de bom comportamento e tudo. Isso lhe dá forças para te esperar, pensa nisso.
— Sim, você tem razão.
— Senão, você fica louco.
— Fala mais de tua noiva, se te dá vontade...
— Que é que posso te dizer? Não tem nada a ver com a arquiteta, não sei por
que a associei.
— É bonita?
— É, sim.
— Podia ser feia, por que está rindo, Valentín?
— Nada, não sei por que estou rindo.
— Mas em que acha tanta graça?
— Não sei...
— Alguma coisa deve ser... você ri de alguma coisa.
— De você, e de mim.
— Por quê?
— Não sei, deixa eu pensar, porque não poderia te explicar.
— Bem, mas para com esse riso.
— É melhor eu falar quando souber direito de que é que eu estou rindo.
— Acabo o filme?
— Sim, por favor.
— Onde estávamos?
— A moça se salva na piscina.
— Bem, como era então... Agora vem o encontro com a pantera e o
psicanalista.
— Desculpa... Não vai ficar aborrecido.
— Que é que há?
— Melhor continuarmos amanhã, Molina.
— Falta pouco para acabar.
— Não posso me concentrar no que você conta. Desculpa.
— Você se encheu?
— Não, não é isso. Tenho uma confusão na cabeça. Quero ficar calado, para
ver se passa a histeria. Porque estava rindo de histerismo.
— Como quiser.
— Quero pensar em minha companheira, há uma coisa que não entendo e
quero pensar. Não sei se já te aconteceu, você sente que está por perceber algo,
que você tem a ponta da meada e que se não começa a puxar logo... ela foge.
— Bem, então até amanhã.
— Até amanhã.
— Amanhã acaba o filme.
— Você não sabe que pena me dá.
— A você também?
— Sim, gostaria que continuasse mais um pouco. E o pior é que vai acabar
mal, Molina.
— Mas você gostou de verdade?
— Bem, as horas passaram mais depressa, não é?
— Mas gostar mesmo, você não gostou.
— Gostei, e tenho pena que acabe.
— Mas que bobagem, posso contar outro.
— É mesmo?
— Sim, me lembro perfeito-perfeito de muitos.
— Então muito bem, pense agora num que tenha gostado muito, e enquanto
isso eu penso no que tenho que pensar, de acordo?
— Puxa a meada.
— Ótimo.
— Mas se a linha se emaranhar, menina Valentina, te dou zero em trabalhos
domésticos.
— Não se preocupe comigo.
— Está bem, não me meto mais.
— E não me chame de Valentina, que não sou mulher.
— Não tenho provas.
— Sinto muito, Molina, mas não faço demonstrações.
— Não se preocupe que não vou pedir.
— Até amanhã, descansa.
— Até amanhã.

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— Estou escutando.
— Bem, como já disse ontem, não me lembro direito dessa última parte. O
marido naquela mesma noite chama o psicanalista em casa, esperam por Irena,
que não está.
— Em que casa?
— Na do arquiteto. Então a colega chama o rapaz no hotel de mulheres para
irem juntos à polícia, porque acaba de acontecer a história da piscina, então o
rapaz deixa o psicanalista sozinho por algum tempo, e zás!, quando Irena chega
em casa encontra-se frente a frente com o psicanalista. É noite, o quarto está
iluminado só com uma lampadazinha. O psicanalista, que estava lendo, tira os
óculos, fita-a. Irena sente essa mistura de desejo e rejeição por ele, porque é
atraente, já te disse, um tipo sexual. E aí acontece uma coisa esquisita, ela se
atira nos braços dele, porque está desamparada, sente que ninguém gosta dela,
que o marido a abandonou. E o psicanalista interpreta que ela o deseja
sexualmente, e logo pensa se a beija e até se consegue fazer o serviço completo,
assim tirará da cabeça dela aquelas ideias estranhas de que é uma mulher-
pantera. E a beija e se esfregam, se abraçam e se beijam. Até que ela... vai como
que escorregando, fita-o com os olhos semicerrados, brilham seus olhos verdes
com desejo e ao mesmo tempo com ódio. E se desprende e vai para o outro lado
daquela sala de móveis tão bonitos fim de século. Tudo com sofás de veludo e
mesas com paninhos de croché. Mas ela vai para aquele canto porque lá não
chega a luz do abajur. E se joga no chão, o psicanalista quer se defender mas é
tarde demais, porque ali naquele canto escuro tudo se torna confuso um instante
e ela já se transformou em pantera, e ele chega a segurar o atiçador da lareira
para se defender mas a pantera já pulou em cima dele, ele quer dar golpes com o
atiçador mas já com uma garra ela lhe abriu o pescoço e o homem cai no chão
jorrando sangue aos borbotões, a pantera urra e mostra os caninos brancos
perfeitos e afunda outra vez as garras, agora no rosto, para estraçalhá-lo, as
bochechas e a boca que momentos antes a beijara. Enquanto isso a arquiteta já
está com o marido de Irena que foi a seu encontro e da recepção do hotel
telefonam para o psicanalista para avisá-lo que está em perigo, porque já não
resta a menor dúvida, não era só imaginação de Irena, ela é realmente uma
mulher-pantera.
— Não, é uma psicopata assassina.
— Bem, mas o telefone toca e toca e ninguém atende, o psicanalista está
deitado e morto, esvaindo-se em sangue. Então o marido, a colega e a polícia,
que já tinham ligado, vão até a casa, sobem devagar pela escada, encontram a
porta aberta e lá dentro o sujeito morto. Ela, Irena, não está.
— E então?
— O marido sabe onde pode encontrá-la, é o único lugar onde ela vai, e
embora já seja meia-noite vão até o parque, mais precisamente ao jardim
zoológico. Ah, mas me esqueci de contar uma coisa!
— O quê?
— Aquela tarde Irena foi ao jardim zoológico, como todas as tardes, para ver
a tal pantera que a deixa como que hipnotizada. E estava lá quando chega o
zelador com as chaves para dar a carne às feras. O zelador é aquele velho
desmemoriado de quem te falei. Irena manteve-se a certa distância, mas viu
tudo. O zelador aproximou-se com as chaves, abriu a fechadura da jaula, afastou
a tranca atravessada, abriu a porta e jogou lá dentro pedaços enormes de carne,
depois tornou a correr a tranca da porta da jaula, mas esqueceu a chave na
fechadura. Quando ele não está vendo, Irena se aproxima da jaula e esconde a
chave. Bem, tudo isso aconteceu de tarde, mas agora já é noite e o psicanalista já
está morto, quando o marido com a outra e a polícia se mandam para o jardim
zoológico, que fica a poucos quarteirões. Mas Irena está chegando na própria
jaula da pantera. Vai andando como uma sonâmbula. Está com as chaves na mão.
A pantera está dormindo, mas o cheiro de Irena a acorda, Irena olha para ela
através das grades. Aproxima-se da porta devagar, coloca a chave na fechadura,
abre. Enquanto isso, os outros vêm chegando, ouvem-se os automóveis se
aproximando com as sirenes para abrir caminho no meio do tráfego, embora
àquela hora o lugar já estivesse quase deserto. Irena puxa a tranca e abre a porta,
deixa o caminho livre à pantera. Irena está como que transportada a outro
mundo, tem uma expressão estranha, entre trágica e de prazer, os olhos úmidos.
A pantera de um pulo escapa da jaula, por um instante parece suspensa no ar,
diante dela não há outra coisa senão Irena. com o próprio impulso que traz, já a
derruba. Os automóveis estão se aproximando. A pantera corre pelo parque e
atravessa a estrada no exato momento em que passa a toda a velocidade um dos
carros da polícia. O automóvel a esmaga. Descem e dão com a pantera morta. O
rapaz vai até as jaulas e encontra Irena atirada no cascalho, lá mesmo onde a
conheceu. Irena tem o rosto desfigurado pela garra, está morta. A jovem colega
chega até onde ele está e vão embora juntos e abraçados, tratando de esquecer
aquele espetáculo terrível que acabam de presenciar, e fim.
—...
— Gostou?
— Sim...
— Muito ou pouco?
— Pena que tenha acabado.
— Passamos bons momentos, não é?
— É mesmo.
— Fico satisfeito.
— Eu estou louco.
— Que é que você tem?
— Me dá pena que tenha acabado.
— Bom, te conto outro.
— Não, não é isso. Você vai rir do que vou te dizer.
— Fala.
— Me dá pena porque me afeiçoei aos personagens. E agora acabou, e é
como se estivessem mortos.
— Finalmente, Valentín, você também curte as coisas.
— Tem que sair por alguma parte... a fraqueza, quero dizer.
— Não é fraqueza, meu chapa.
— É estranho que a gente não consiga deixar de se afeiçoar a alguma coisa...
É... como se a mente segregasse sentimento, sem parar...
— Você acredita?
— ... assim como o estômago segrega suco para digerir.
— Você acha?
— Sim, como uma torneira mal fechada. E essas gotas vão caindo em cima
de alguma coisa, não se pode pará-las.
— Por quê?
— Sei lá... porque já estão extravasando do corpo que as contém.
— E você não quer pensar em sua companheira.
— Mas é como se não pudesse evitar... porque me afeiçoo a qualquer coisa
que tenha algo dela.
— Conta um pouco como ela é.
— Daria... qualquer coisa para poder abraçá-la, ainda que fosse só por um
instante.
— O dia chegará.
— É que às vezes penso que não vai chegar.
— Você não está condenado à prisão perpétua.
— Pode acontecer alguma coisa com ela.
— Escreve, diz que não se arrisque, que você precisa dela.
— Isso nunca. Se você pensar assim nunca vai conseguir mudar nada no
mundo.
— E você acha que vai mudar o mundo?
— Sim... e não me incomodo que você ria. Dá vontade de rir, mas o que eu
tenho para fazer é mudar o mundo.
— Mas você não pode mudá-lo de repente, e sozinho não dá.
— Não estou sozinho, é isso!... está me ouvindo?... a verdade é essa, é isso o
importante!... Neste momento não estou sozinho, estou com ela e com todos
aqueles que pensam como ela e eu, é isso!... e não posso me esquecer. É esse o
fio da meada que às vezes me escapa. Mas por sorte já o agarrei. E não vou
soltá-lo... Não estou longe de todos os meus companheiros, estou com eles!
agora, neste momento!... não tem importância que não possa vê-los.
— Se é esse o jeito de você se conformar, ótimo.
— Como você é idiota!
— Que palavras...
— Então não seja irritante... Não fala assim, como se eu fosse um sonhador
que se deixa enganar por qualquer coisa, sabe que não é assim! Não sou um
charlatão que fala de política no bar, não é? a prova é que estou aqui, não num
bar!
— Desculpa.
— Está bem...
— Você ia falar sobre sua companheira e não falou mais nada.
— Não, é melhor esquecer isso.
— Como queira.
— Embora não tenha por que não falar. Não deve me fazer mal falar nela.
— Se te faz mal não...
— Não há de me fazer mal... A única coisa que é melhor não dizer é o nome.
— Agora lembrei do nome da atriz que faz o papel de arquiteta.
— Qual é?
— Jane Randolph.
— Nunca ouvi falar.
— É muito antiga, dos anos quarenta, por aí. Podemos chamar tua
companheira de Jane Randolph.
— Jane Randolph.
— Jane Randolph no... Mistério da cela sete.
— Uma das iniciais coincide...
— Qual?
— O que é que você quer que te conte sobre ela?
— O que quiser, que tipo de moça é.
— Tem vinte e quatro anos, Molina. Dois menos que eu.
— Treze menos que eu.
— Sempre foi revolucionária. Primeiro começou pela... bem, não vou fazer
cerimônia com você... começou pela revolução sexual.
— Conta, por favor.
— Ela é de família burguesa, gente não de muito dinheiro, mas sabe, que
vive folgada, casa de dois andares em Cabalito. Mas em toda a sua infância e
juventude se encheu de ver os pais se destruírem um ao outro. com o pai que
enganava a mãe, sabe o que quero dizer...
— Não, o que é que você quer dizer?
— Enganava-a pelo fato de não dizer que precisava de outras relações. E a
mãe deu de criticá-lo diante da filha, deu de bancar a vítima. Não acredito no
casamento, mais precisamente na monogamia.
— Eu acho tão bonito um casal que se ama para o resto da vida.
— Você gostaria disso?
— É meu sonho.
— Então por que é que gosta de homem?
— Não tem nada a ver... Eu queria me casar com um homem para o resto da
vida.
— Então, no fundo você é um senhor burguês?
— Uma senhora burguesa.
— Mas não percebe que tudo é uma falsidade? Se você fosse mulher não
gostaria disso.
— Estou apaixonado por um homem maravilhoso, e a única coisa que queria
era morar com ele para o resto da vida.
— E como isso é impossível, porque se ele é homem há de gostar de uma
mulher, bem, você nunca vai conseguir o que deseja.
— Continua com a história de tua companheira, não estou com vontade de
falar de mim.
— E bem, como ia dizendo, ah... como era o nome dela?
— Jane, Jane Randolph.
— Jane Randolph foi criada para ser uma dona de casa. Lições de piano,
francês e desenho, e acabado o ginásio a Universidade Católica.
— Arquitetura! Foi por isso que você a associou.
— Não, sociologia. Já aí começou a confusão em casa. Ela queria ir para a
faculdade do Estado mas a obrigaram a matricular-se na Católica. Lá conheceu
um rapaz, apaixonaram-se e tiveram relações. O rapaz também morava com os
pais mas saiu de casa, empregou-se como telefonista noturno e alugou um
apartamento pequeno, e aí começaram a passar o dia todo.
— E não estudaram mais.
— Aquele ano estudaram menos, no começo, mas depois ela estudou muito.
— Mas ele não.
— Exato, porque trabalhava. E um ano depois Jane foi morar com ele. Em
casa dela deu confusão no começo mas depois se conformaram. Pensaram que
como eles se gostavam tanto iam casar. O rapaz queria casar. Mas Jane não
queria repetir nenhum esquema antigo e tinha desconfiança.
— Abortos?
— Sim, um. Isso lhe deu mais segurança em vez de deprimi-la. Percebeu
com clareza que se tivesse um filho ela própria não ia conseguir amadurecer, não
ia poder seguir uma evolução. Sua liberdade ia ficar limitada. Foi trabalhar numa
revista como redatora, ou melhor, como informante.
— Informante?
— Sim.
— Que palavra feia.
— É um trabalho mais fácil que o de redator, em geral você vai para a rua à
cata de informações que depois vão ser usadas nos artigos. E aí conheceu um
rapaz da seção de política. Viu logo que precisava dele, que a relação com o
outro estava esvaziada.
— Por que esvaziada?
— Tinham dado um ao outro tudo o que podiam. Eram muito agarrados, mas
jovens demais para ficarem naquilo, ainda não sabiam direito... o que queriam,
nenhum dos dois. E... Jane propôs ao rapaz uma abertura na relação. E o rapaz
topou, e ela começou a se encontrar com o companheiro da revista também.
— Continuava dormindo em casa do garoto?
— Sim, e às vezes não. Até que foi morar definitivamente com o redator.
— De que tendência era o redator?
— De esquerda.
— E passou tudo para ela?
— Não, ela sempre tinha sentido necessidade da mudança. Bem, você sabe
que é tarde, não?
— Já são duas horas da manhã.
— Amanhã continuo, Molina.
— Você é vingativo.
— Não, boboca. Estou cansado.
— Eu não. Estou sem sono nenhum.
— Até amanhã.
— Até amanhã.

....................................................

— Já dormiu?
— Não, disse que estava sem sono.
— Tenho um pouco de insônia.
— Você disse que estava com sono.
— Sim, mas depois fiquei pensando, porque deixei você na mão.
— Me deixou na mão?
— Sim, parei de conversar.
— Não te preocupes.
— Está se sentindo bem?
— Sim.
— E por que não dorme?
— Não sei, Valentín.
— Olha, eu estou com um pouco de sono e vou dormir logo. E tenho uma
solução para você pegar no sono.
— Qual é?
— Pensa no filme que você vai me contar.
— Ótimo.
— Mas que seja bom, como o da pantera. Escolhe direito.
— E você vai me falar mais de Jane.
— Não, isso não sei... Vamos fazer uma coisa: quando eu sentir que posso te
contar algo, conto com o maior prazer. Mas não me peça, eu mesmo vou puxar o
assunto.
Tá?
Tá.
E agora pensa no filme.
bom.
Tchau.
Tchau.
3
— Estamos em Paris, os alemães ocuparam a cidade já há algum tempo. As
tropas nazistas passam bem no meio do Arco do Triunfo. Em toda parte, como
nas Tulherias e essas coisas, está tremulando a bandeira com a cruz suástica. Os
soldados desfilam, todos louros, bonitos, e as moças francesas os aplaudem ao
passar. Uma tropa de poucos soldados vai por uma ruazinha típica, e entra num
açougue, o açougueiro é um velho de nariz adunco, com a cabeça pontuda, e um
gorrinho lá no cocuruto.
— Como um rabino.
— E cara de sacana. E fica com muito medo quando vê que os soldados
entram e começam a revistar tudo.
— O que é que eles revistam?
— Tudo, e encontram um porão secreto cheio de mercadoria açambarcada,
que, está na cara, vem do mercado negro. E o povinho se junta do lado de fora da
loja, sobretudo donas de casa, e franceses de boina, com jeito de operários,
comentando a prisão do velho sem-vergonha, e dizem que não haverá mais fome
na Europa porque os alemães vão acabar com os exploradores do povo. E
quando os soldados nazistas saem, uma velhinha abraça o rapaz que os
Comanda, um tenente mocinho, com cara de bom, e lhe diz obrigada, meu filho,
ou algo assim. Enquanto isso, uma caminhonete vinha vindo por aquela
ruazinha, mas um homem que está do lado do sujeito que dirige, ao avistar os
soldados ou as pessoas aglomeradas, manda o motorista parar. O motorista tem
uma cara de assassino tremenda, meio caolho, cara entre de retardado e
criminoso. E o outro, nota-se que é ele quem manda, olha para trás e coloca uma
lona que cobre a carga que levam que é comida açambarcada. E dão marcha à ré
e fogem de lá, até que o sujeito que comanda desce da caminhonete e entra num
bar típico de Paris. É capenga, usa um dos sapatos com um salto anabela
altíssimo, com acabamento muito esquisito de prata. Fala pelo telefone para
avisar sobre o agiota que foi detido e, quando vai desligar, a título de
cumprimento, diz viva os maquis, porque são todos dos maquis.
— E onde foi que você viu?
— Aqui em Buenos Aires, num cinema de bairro em Belgrano.
— E antigamente levavam filmes nazistas?
— Sim, eu era pequeno mas durante a guerra chegavam filmes de
propaganda. Mas eu os vi depois, porque continuavam levando aqueles filmes.
— Em que cinema?
— Num pequeno que ficava na parte mais alemã do bairro de Belgrano, a
parte que era toda de casas grandes com jardim, na parte de Belgrano que não dá
para o lado do rio, que dá para o outro lado, para Villa Urquiza, sabe? Foi posto
abaixo há poucos anos. Minha casa fica perto, mas do lado onde mora a
gentinha.
— Continua com o filme.
— Bem, de repente aparece um teatro formidável em Paris, de luxo, todo
atapetado de veludo escuro, com barras cromadas nas frisas e escadas e varandas
também sempre cromadas. É de variedades, e há só um número musical de
coristas, com um corpo divino, e nunca vou esquecer porque de um lado estão
pintadas de preto e quando dançam segurando-se pela cintura e a câmara as
focaliza parecem pretas, com um saiote todo de bananas, mais nada, e quando
batem os pratos eles mostram o outro lado, e todas são loiras, e em vez de
bananas usam umas tirinhas de strass, e mais nada, um arabesco de strass.
— O que é strass?
— Não acredito que você não saiba.
— Não sei o que é.
— Agora está outra vez na moda, é como os brilhantes, só que sem valor,
pedacinhos de vidro que brilham, e com isso fazem tiras, e qualquer tipo de joia
falsa.
— Não perde tempo, me conta o filme.
— E quando acaba aquele número o cenário fica todo no escuro até que lá
em cima começa a levantar-se uma luz, como se fosse névoa, e se desenha uma
silhueta de mulher divina, alta, perfeita, mas muito apagada, que cada vez vai
aparecendo melhor, porque ao aproximar-se vai atravessando pendentes de tule,
e, claro, cada vez se pode distingui-la melhor, envolta numa roupa de lamé
prateado que se ajusta à silhueta dela como uma luva. A mulher mais linda que
você possa imaginar. E canta uma canção primeiro em francês e depois em
alemão. E está no alto da cena e de repente aos pés dela se acende como um raio
uma linha reta de luz, e ela vai dando passos para baixo e a cada passo, paf!,
mais uma linha reta de luz, e afinal todo o cenário fica atravessado por aquelas
linhas, e na realidade cada linha era a beira de um degrau, e se formou de um
momento para outro uma escada toda de luzes. E numa frisa tem um oficial
alemão jovem, não tão jovem como o tenente do começo, mas também muito
alinhado.
— Louro.
— Sim, e ela é morena, branquíssima mas de cabelo bem preto.
— E o corpo dela como é? magra ou bem-feita?
— Não, é alta mas bem formada, embora não fosse peituda, porque naquela
época se usava a silhueta lambida. E ao cumprimentar cruzam-se os olhares com
o oficial alemão.
E quando vai para o camarim encontra um belo buquê de flores sem cartão.
E aí bate na porta uma das coristas loiras, bem francesa. Bem, o que não te
contei é que o que ela cantou foi muito esquisito, fico com medo cada vez que
me lembro daquele número que ela canta, porque quando canta está como que
olhando fixo para o vácuo, e não com olhar de felicidade, não vai pensar que é
assim, não, está assustada, mas ao mesmo tempo não faz nada para se defender,
está como que entregue ao que vai acontecer.
— E o que é que ela canta?
— Não tenho ideia, uma canção de amor, na certa. Mas me impressionou.
Bem, e no camarim aparece uma das coristas loiras toda alvoroçada e conta o
que está acontecendo, porque quer que seja ela, a atriz que mais admira, a
primeira a saber o que está acontecendo. É que vai ter um filho. E, claro, a
cantora que se chama Leni, nunca vou esquecer, se alarma porque sabe que a
moça é solteira. Mas a outra diz para ela não se preocupar, que o pai da criança é
um oficial alemão, um rapaz jovem que gosta muito dela e vão ajeitar tudo para
se casarem. Nisso o rosto da corista se anuvia um pouco, e diz a Leni que tem
medo de outra coisa. Leni lhe pergunta se acha que o rapaz vai deixá-la. A moça
diz que não, que tem medo de outra coisa. Leni lhe pergunta de quê, mas a moça
lhe diz que não é nada, bobagens, e vai embora.

Então Leni fica sozinha e pensa se ela podia amar um invasor de sua pátria, e
fica pensando...
e aí vê as flores que lhe mandaram, e pergunta à sua criada pessoal que flores
são aquelas, e acontece que são dos Alpes alemães, trazidas especialmente a
Paris, caríssimas. Enquanto isso a corista loira anda pelas ruas de Paris, umas
ruas escuras à noite por causa da guerra, mas olha para cima e vê que no último
andar de um edifício antigo de apartamentos a luz está acesa, e seu rosto se
ilumina com um sorriso. Tem um reloginho antigo, como um clipe no peito, olha
para ele e vê que é justamente meia-noite. Então abre-se uma janela lá onde tem
luz e aparece o mesmo rapaz do começo, o tenentezinho alemão, e lhe sorri com
cara de muito apaixonado, e joga a chave que cai no meio da rua. E ela vai
apanhá-la. Mas desde o começo nessa rua tinha passado como que uma sombra.
Não, estava um carro estacionado perto, e na escuridão mal se entrevê que tem
alguém dentro daquele carro. Não, agora me lembro!, quando a moça vai
andando por aquele bairro acha que alguém a segue, e se ouve um passo
esquisito, primeiro uma pisada e depois algo que se arrasta.

— O capenga.
— E depois já aparece o capenga, que vê chegar um cupê, e quem dirige é o
caolho com cara de assassino. O capenga sobe no carro e faz sinal ao assassino.
O carro arranca a toda a velocidade. E quando a moça está no meio da ruazinha e
se abaixa para apanhar a chave, os caras do carro passam a toda a velocidade e a
atropelam.
E depois vão em frente e se perdem nas ruas escuras e sem movimento. O
rapaz, que viu tudo, desce desesperado. A moça está agonizando, ele a segura
nos braços, ela quer dizer alguma coisa, mal se entende, diz que não tenha medo,
que o filho vai nascer são e vai ser o orgulho do pai. E fica com os olhos abertos,
perdidos, já morta. Está gostando do filme?
— Ainda não sei. Mas continua, por favor.
— Bem. Então acontece que na manhã do dia seguinte chamam Leni para
declarar tudo o que souber à polícia alemã, porque sabem que ela era confidente
da moça morta.
Mas Leni não sabe nada, só que a moça estava apaixonada por um tenente
alemão, mais nada. Mas não acreditam, e a detêm por umas horas, mas como ela
é uma cantora conhecida uma voz pelo telefone ordena que a ponham em
liberdade vigiada, para que aquela noite possa trabalhar, como todas as noites.
Leni está assustada, mas canta aquela noite e ao voltar ao camarim encontra de
novo as flores dos Alpes alemães e está procurando o cartão quando uma voz de
homem lhe diz que não procure, que agora ele as trouxe pessoalmente. Ela se
vira, sobressaltada. É um oficial de alta hierarquia, mas bastante jovem, o
homem mais alinhado que se possa imaginar. Ela lhe pergunta quem é, mas,
claro, já percebeu que é o mesmo que a aplaudiu tanto na noite anterior, o da
frisa. Ele diz que é responsável pelos serviços alemães de contraespionagem em
Paris, e vem desculpar-se pelos transtornos daquela manhã. Ela pergunta se as
flores são de seu país, e ele diz que são do Alto Palatinado, onde nasceu, junto
de um lago maravilhoso entre montanhas de cumes nevados. Mas esqueci de te
dizer uma coisa, ele não está de uniforme, mas de smoking, e a convida para
jantar depois do espetáculo na boate mais fabulosa e pequenina de Paris. Tem
uma orquestra de músicos negros, e quase não se enxergam as pessoas na
escuridão, um refletor bem fraco cai sobre a orquestra e mostra o ar carregado de
fumaça. Tocam um jazz de antigamente, bem de negros, ele pergunta por que é
que ela tem nome alemão, Leni, e sobrenome francês, que não me lembro como
era. E ela diz que vem da Alsácia, na fronteira, onde às vezes tremulou a
bandeira alemã. Mas também diz que foi educada no amor à França, e que ela
quer o bem de seu país, e que não sabe se os ocupantes estrangeiros vão ajudá-
lo.
Ele diz que não tenha a menor dúvida, que o dever da Alemanha é libertar a
Europa dos verdadeiros inimigos do povo, que se ocultam às vezes sob a
máscara de patriotas.
Ele pede uma espécie de aguardente alemã, e naquele momento parece que
ela quer contrariá-lo porque pede uísque escocês. Ela não consegue engolir,
molha apenas os lábios com o uísque, diz que está cansada e ele a leva para casa,
numa enorme limusine, com chofer. Para diante da casa dela, um petit hotel
muito lindo, e ela lhe pergunta ironicamente se vai continuar outro dia o
interrogatório pessoal. Ele diz que não aconteceu tal coisa, nem acontecerá. Ela
desce do carro, ele beija-lhe a mão enluvada. Ela hierática, fria como um gelo.
Ele lhe pergunta se mora sozinha, se não tem medo. Ela responde que no fundo
do jardim há um casal de velhos caseiros.
Mas ao voltar-se para entrar em casa avista uma sombra na janela do andar
de cima, uma sombra que desaparece imediatamente. Ela estremece, só lhe
ocorre dizer a ele (que não viu nada, deslumbrado como está pela beleza dela),
que tem medo de ficar sozinha aquela noite, que a tire dali. E vão para o
apartamento dele, luxuosíssimo, mas muito estranho, com paredes branquíssimas
sem quadros e tetos muito altos, e poucos móveis, escuros, quase como caixotes
de embalagem, mas percebe-se que são finíssimos, e quase nenhum enfeite,
cortinados brancos de gaze, e umas estátuas de mármore branco, muito
modernas, não estátuas gregas, com figuras de homens como de um sonho. Ele
manda preparar o quarto de hóspedes por um mordomo que a olha esquisito.
Mas antes lhe pergunta se não quer uma taça de champanha, do melhor
champanha de sua França, que é como o sangue nacional que brota da terra. E
soa uma música maravilhosa, e ela diz que a única coisa que ama da pátria dele é
aquela música. E entra uma brisa pela janela, um janelão muito alto, com um
cortinado de gaze branca que flutua ao vento como um fantasma, e se apagam as
velas, que eram a única iluminação. E entra somente a luz da lua, e a ilumina, e
ela parece também uma estátua, alta como é com um vestido branco que lhe
modela bem o corpo, parece uma ânfora grega, claro que os quadris não são tão
largos, e um lenço branco quase até os pés que lhe envolve a cabeça, mas sem
amassar o cabelo, apenas emoldurando-o. E ele lhe diz que ela é um ser
maravilhoso, de beleza ultraterrena, e certamente com um destino muito nobre.
As palavras dele a fazem estremecer, todo um presságio a envolve, e tem como
que a certeza de que vão acontecer em sua vida coisas muito importantes, e
quase sem dúvida com um fim trágico. Sua mão treme, e o copo cai no chão, o
bacará se desmancha em mil pedaços. É como uma deusa, e ao mesmo tempo
uma mulher fragílima, que treme de medo. Ele lhe segura a mão, pergunta-lhe se
sente frio. Ela responde que não. Enquanto isso a música toma mais força, os
violinos soam sublimes, e ela pergunta o que significa aquela melodia. Ele diz
que é a sua predileta, aquelas espécies de ondas de violinos são as águas de um
rio alemão por onde navega um homem-deus, que não é mais que um homem
mas que seu amor à pátria lhe tira todo medo, é esse seu segredo, a ânsia de lutar
pela pátria o faz invencível, como um deus, porque desconhece o medo. A
música se torna tão emocionante que ele fica com os olhos cheios de água. E isso
é o mais bonito da cena, porque ela ao vê-lo comovido percebe que tem
sentimentos de homem, embora pareça invencível como um deus. Ele trata de
esconder a emoção e se dirige ao janelão. Há lua cheia sobre a cidade de Paris, o
jardim da casa parece prateado, as árvores pretas recortam-se contra o céu
cinzento, não é azul, porque o filme é em preto e branco. A fonte branca está
cercada por jasmineiros, também com flores brancas, prateadas, e então a câmara
mostra a cara dela em primeiro plano, em tons cinza maravilhosos, de um
sombreado perfeito, com uma lágrima que vai caindo. Ao escapar a lágrima do
olho não brilha muito, mas ao escorregar pelo pômulo altíssimo vai brilhando
tanto como os diamantes do colar. E a câmara torna a focalizar o jardim de prata,
e você está lá no cinema e faz de conta que é um pássaro que levanta voo porque
vai se vendo de cima o jardim cada vez mais pequenino, e a fonte branca
parece... como que de suspiro, e os janelões também, um palácio branco todo de
suspiro, como em alguns contos de fada onde as casas são comidas, é pena que
não se enxergam os dois porque pareceriam duas miniaturas. Está gostando do
filme?
— Ainda não sei. Por que é que você gosta tanto? Está todo arrebatado.
— Se me mandassem escolher um filme para ver de novo eu escolheria esse.
— E por quê? É uma imundície nazista, ou você não percebe?
— Olha... é melhor eu calar a boca.
— Não cala. Fala o que você ia falar, Molina.
— Chega, vou dormir.
— O que foi?
— Por sorte não tem luz e não tenho que olhar para tua cara.
— Era isso o que você queria me dizer?
— Não, que a imundície pode ser você e não o filme. E não fala mais
comigo.
— Desculpa.
—...
— De verdade, desculpa. Não pensei que você fosse se ofender desse jeito.
— Você me ofende porque pen... pensa que não... não percebo que é
propaganda na...zista, mas se eu gosto é porque está bem feito, além disso é uma
obra de arte, você não sabe pó... porque não viu.
— Você está louco, vai chorar por causa disso?
— Vou... vou... chorar... tudo o que me der na telha.
— Como quiser. Sinto muito.
— E não pensa que estou chorando por tua causa. Foi que me lembrei... dele,
de como seria bom estar com ele, e falar com ele sobre tudo is... isto que eu
gosto tanto, em vez de falar com você. Hoje passei o dia todo pensando nele.
Hoje faz três anos que o conheci. Por... isso estou chorando.
— Tomo a repetir, não tive intenção de te incomodar. Por que é que você não
fala um pouco sobre o seu amigo? Vai te fazer bem desabafar um pouco.
— Para quê? para você me dizer que ele também é uma imundície?
— Vamos, conta, em que é que ele trabalha?
— É garçom, num restaurante...
— É boa gente?
— É, mas tem seu caráter, tem sim.
— Por que é que você gosta tanto dele?
— Por causa de muitas coisas.
— Por exemplo...
— Vou te ser sincero. Em primeiro lugar porque é bonito. E depois porque
acho que ele é muito inteligente, mas não teve nenhuma oportunidade na vida e
está lá fazendo um trabalho de merda, quando merece muito mais. E me dá
vontade de ajudá-lo.
— E ele quer que você o ajude?
— O que é que você quer dizer?
— Se ele se deixa ajudar ou não.
— Você é adivinho, por que é que me faz essa pergunta?
— Não sei.
— Pôs o dedo na ferida.
— Ele não quer que você o ajude.
— Ele não queria, antigamente. Agora não sei de nada, sabe lá que é que ele
está fazendo...
— Não é o amigo que veio te visitar, que você me contou?
— Não, o que veio é uma amiga, é tão homem como eu. Porque o outro, o
garçom, tem que trabalhar na hora das visitas aqui.
— Nunca veio te visitar?
— Não.
— O coitado precisa trabalhar.
— Escuta, Valentín, você não acha que ele podia trocar o plantão com algum
companheiro?
— Não deixam.
— Vocês são bons para se defenderem, entre vocês.
— Quem são vocês?
— Os homens, boa raça de...
— De quê?
— De filhos da puta, com perdão de tua mãe, que não tem culpa.
— Olha, você é homem como eu, não chateia... Não estabeleça distâncias.
— Quer que me aproxime?
— Nem que se distancie nem que se aproxime.
— Escuta, Valentín, lembro muito bem que uma vez ele trocou o plantão
com um companheiro para levar a mulher ao teatro.
— É casado?
— Sim, é um homem normal. Fui eu quem começou tudo, ele não teve culpa
de nada. Eu me meti na vida dele, mas o que queria era ajudá-lo.
— Como foi que começou?
— Um dia fui a um restaurante e o vi. E fiquei louco. Mas é muito comprido,
outra vez eu conto, ou talvez não conto nada, quem sabe com o que você vem
para cima de mim.
— Um momento, Molina, você está enganado, se te pergunto é porque tenho
um... como te posso explicar?
— Uma curiosidade, é isso o que você deve ter.
— Não é verdade. Acho que para te compreender preciso saber o que
acontece com você. Se estamos nesta cela juntos é melhor a gente se
compreender, e eu sei muito pouco sobre pessoas com tuas inclinações.1
— Vou contar, então, como foi, mas rápido para não te chatear.
— Como se chama?
— Não, o nome não, isso é só para mim.
— Como quiser.
— É a única coisa dele que posso guardar, dentro de mim, estou com ele na
garganta, e guardo para mim. Não digo...
— Você o conhece há muito tempo?
— Faz três anos hoje, 12 de setembro. Fui ao restaurante aquele dia. Mas
fico sem jeito de te contar.
— Não tem importância. Se alguma vez você quiser falar sobre isso, você
me conta. Senão, não.
— Tenho uma espécie de pudor.
— Bem... acho que sempre acontece isso com os sentimentos muito
profundos.
— Eu estava com outros amigos, duas louquinhas jovens insuportáveis. Mas
lindas e muito espertas.
— Duas moças?
— Não, quando falo louca quero dizer bicha. E uma das duas estava
enchendo o saco do garçom, que era ele. Percebi logo de saída que era um rapaz
de boa presença, só isso. Mas quando a piranha ultrapassou os limites, aquele
homem, sem perder a calma, respondeu o que devia. Eu fiquei admirado. Porque
os garçons, coitados, têm sempre aquele complexo de criado e para eles fica
difícil responder a uma grosseria sem parecer um criado ofendido, entende?
Bem, o cara nada explicou por que a comida não estava como devia, mas com
uma elevação que a outra ficou com cara de pateta. Mas não pense que ele fez ar
de zombaria, nada, manteve-se distante, dono absoluto da situação. E eu logo
manjei que ali tinha alguma coisa, um homem de verdade... E na semana
seguinte fui sozinha ao restaurante.
— Sozinha?
— Sim, desculpa, mas quando falo sobre ele não posso falar como homem,
porque não me sinto homem.
— Continua.
— Quando o vi pela segunda vez achei-o ainda mais bonito, com um paletó
branco de gola Mao que lhe assentava divinamente. Era um galã de cinema.
Tudo nele era perfeito, a maneira de andar, a voz rouquinha mas de repente com
um tonzinho terno, não sei como dizer, e a maneira de servir. Olha, aquilo era
um poema, uma vez o vi servir uma salada, fiquei tonta. Primeiro ele ajeitou
para a freguesa, porque era uma mulher, muito nojenta! e ele primeiro ajeitou ao
lado da mesa grande uma mesinha, pôs lá a travessa de salada, perguntou se
azeite, se vinagre, se isto, se aquilo, e depois segurou os talheres de misturar a
salada, e não sei como explicar, era como carícias que ele fazia nas folhas de
alface e nos tomates, mas não carícias suaves, eram... como posso dizer? eram
movimentos tão seguros, e tão elegantes, e tão suaves, e tão de homem ao
mesmo tempo.
— Que significa para você ser homem?
— É muita coisa, mas para mim... bem, o mais bonito do homem é isso, ser
bonito, forte, mas sem fazer alarde da força, e que vai avançando com segurança.
Que caminhe com segurança como meu garçom, que fale sem medo, que saiba o
que quer, aonde vai, sem medo de nada.
— É uma idealização, não existe nenhum sujeito assim.
— Existe, ele é assim.
— Bem, dará essa impressão, mas por dentro, nesta sociedade, sem o poder
ninguém pode ir avançando com segurança, como você diz.
— Não seja ciumento, não se pode falar com um homem sobre outro
homem, porque fica impossível, nisso vocês são iguais às mulheres.
— Não seja bobo.
— Está vendo como cai mal, até me insulta. Vocês são tão competitivos
como as mulheres.
— Por favor, vamos manter o nível da conversa ou então calar a boca.
— Qual nível qual nada.
— Não se pode falar com você, só te deixando contar um filme.
— Por que não se pode falar comigo, hein?
— Porque você não tem nenhum método para discutir, não segue uma linha,
fala qualquer bobagem.
— Não é verdade, Valentín.
— Como queira.
— Você é um pedante.
— Como queira.
— Demonstra para mim, anda, que não tenho nível para falar com você.
— Não disse para falar comigo, disse que você não mantém uma linha para
conduzir uma discussão.
— Vai ver como mantenho sim.
— Para que continuar falando, Molina?
— Continuemos conversando e você vai ver que te provo o contrário.
— Vamos falar sobre quê?
— Bem... Fala o que é que é ser homem para você. — Você me apanhou.
— Vai... responde, o que é ser homem para você?
— Hum... não me deixar diminuir por ninguém, nem pelo poder... Não, é
mais ainda. Isso de não me deixar diminuir é outra coisa, não é o mais
importante. Ser homem é muito mais ainda, é não humilhar ninguém com uma
ordem, com uma gorjeta. É mais, é... não permitir que ninguém a teu lado se
sinta diminuído, que ninguém a teu lado se sinta mal.
— Isso é ser santo.
— Não, não é tão impossível como você pensa.
— Não entendo direito... explica mais.
— Não sei, não está muito claro neste momento. Você me pegou
desprevenido. Não encontro as palavras adequadas. Outro dia, quando tiver as
ideias mais claras, podemos voltar ao assunto. Conta mais do garçom do
restaurante.
— Onde estávamos?
— No caso da salada.
— Quem sabe o que andará fazendo. Me dá uma pena... coitadinho, lá,
naquele lugar...
— Este lugar é muito pior, Molina.
— Mas nós não vamos ficar sempre aqui, não é? e ele não tem outro futuro
na vida. Está condenado. E eu te disse que ele tem um temperamento muito forte
e que não tem medo de nada, mas não imagina, às vezes ele deixa transparecer
uma tristeza...
— Como é que você percebe?
— No olhar. Porque tem uns olhos claros, esverdeados, entre pardos e
verdes, enormes, parece que lhe comem a cara, e o olhar o trai. Nota-se às vezes
no olhar que ele se sente mal, triste. E aquilo foi também o que me atraiu, e
fiquei com mais e mais vontade de falar com ele. Sobretudo nas horas de pouco
trabalho eu notava aquela melancolia, ele ia para o fundo do salão onde havia
uma mesa em que os garçons sentavam, e ficava ali, calado, acendia um cigarro,
e os olhos iam se tornando mais esquisitos, mais embaçados. Comecei a ir lá
cada vez mais seguido e no começo ele mal falava comigo o indispensável. Eu
pedia sempre frios, sopa, um prato principal, sobremesa e café, para fazê-lo vir
até a mesa um monte de vezes, e pouco a pouco começamos a conversar mais.
Claro, ele percebeu logo como é que eu sou, porque se nota.
— Se nota o quê?
— Que meu nome verdadeiro é Carmen, versão de Bizet.
— E por causa disso começou a conversar mais.
— Ai, você não entende nada. Ele não queria me dar papo porque percebia
que eu era bicha. Porque ele é um homem normalíssimo. Mas pouco a pouco,
falando umas palavras ali, outras aqui, percebeu que eu o respeitava muito e
começou a contar coisas de sua vida.
— Tudo enquanto servia?
— Umas quantas semanas sim, até que um dia consegui que tomássemos um
café juntos, uma vez que ele estava no plantão de dia, que era o que mais odiava.
— Que horários tinha?
— Olha, ou entrava às sete da manhã e saía por volta das quatro da tarde, ou
entrava por volta das seis da tarde e ia até três da madrugada, mais ou menos. E
o dia que ele disse que gostava do plantão da noite, eu fiquei com a pulga atrás
da orelha, porque já tinha falado que era casado, embora não usasse aliança,
outro detalhe, e que a mulher trabalhava em horário de escritório normal, então o
que é que havia com a mulher? não queria vê-la e preferia trabalhar à noite?
Você não imagina como me custou convencê-lo que viesse tomar um café,
sempre dava desculpa que tinha muito que fazer, que o cunhado, que o carro, até
que afinal topou. E veio.
— E aconteceu o que tinha de acontecer.
— Você está louco. Não entende nada destas coisas. Começa porque eu já
disse que é um cara normal. Nunca aconteceu nada!
— De que é que vocês falaram no bar?
— Bem, agora não me lembro, porque depois nos encontramos um monte de
vezes. Mas a primeira coisa que eu queria perguntar era por que razão um rapaz
inteligente como ele estava fazendo aquele trabalho. E se você visse que história
mais terrível, bem, a história de tantos rapazes de família pobre que não têm
muitos meios para estudar, ou que não têm estímulo.
— Quem quer estudar sempre dá um jeito. Olha... na Argentina estudar não é
o maior problema, a universidade é de graça.
— Sim, mas...
— A falta de estímulo é outra coisa, aí estou de acordo, o complexo de classe
inferior, a lavagem de cérebro que a sociedade te faz.
— Espera que eu conte mais e você vai ver que espécie de pessoa ele é, de
primeira! Ele próprio está de acordo em que houve um momento na vida em que
entregou os pontos, mas também assim está pagando. Diz que lá por volta dos
dezessete anos, bem, esqueci de contar que trabalhou desde pequeno, desde a
escola primária, era de família pobre, num bairro de Buenos Aires, e depois do
primário entrou numa oficina mecânica, e lá aprendeu o ofício, e, como ia
dizendo, por volta dos dezessete anos, já era um garotão legal, e começou a
transar com as garotas, um sucesso enorme, e agora, sim, o pior: o futebol.
Jogava muito bem desde criança, e mais ou menos aos dezoito anos entrou como
profissional. E aqui está a chave de tudo; por que é que ele não fez carreira no
futebol profissional? Segundo ele, só percebeu lá dentro como aquilo era
nojento, um ambiente cheio de favoritismos, de injustiças, e aqui está a chave, a
chave-chave, do que acontece com ele: não consegue ficar calado, quando vê
alguma coisa malfeita o sujeito põe a boca no mundo. Não é espertinho, não sabe
ficar calado. Porque é um sujeito correto. E foi isso que eu saquei desde o
começo, percebeu?
— Nunca se meteu em política?
— Não, tem umas ideias muito estranhas, muito destrambelhadas, nem quer
ouvir falar do sindicato.
— Continua.
— E depois de uns anos, dois ou três, largou o futebol.
— E as garotas?
— Você parece adivinho, às vezes.
— Por quê?
— Porque ele largou o futebol também por causa das garotas. Muitas
garotas, e tinha treino, e estava mais a fim delas que do treino.
— Ele também não era muito disciplinado, é isso aí.
— Bem, mas tem uma coisa que não falei ainda: a noiva a sério, a moça com
quem ele casou depois, não queria que continuasse no futebol. E ele entrou para
uma fábrica, de mecânico, mas um emprego bastante importante, foi a noiva que
arranjou. E casou, e ficou vários anos na fábrica, logo passou para o lugar de
capataz, ou chefe de uma seção. E teve dois filhos. E a loucura dele era a
menina, a mais velha, que morreu aos seis anos. E ele sempre tinha tido
problemas na fábrica, porque começaram a despedir gente ou a favorecer
recomendados.
— Como ele.
— Sim, foi um mau começo, concordo. Mas vou te contar por que é que ele
cresceu para mim, eu lhe perdoo tudo, olha. É que ele tomou o partido de uns
operários velhos que trabalhavam por empreitada, fora do sindicato, e o patrão
lhe deu a alternativa de ir para o olho da rua ou cumprir ordens, e ele se demitiu.
E você sabe que quando a gente sai por vontade própria não recebe nem um
vintém de indenização nem porra nenhuma, e ficou na rua, tinha trabalhado
naquela fábrica mais de dez anos.
— E nessa época ele já tinha mais de trinta anos.
— Claro, trinta e poucos. Começou, imagina, a essa idade, a procurar
trabalho. No começo aguentou sem pegar qualquer coisa, mas afinal surgiu o
trabalho de garçom e ele teve de topar.
— Foi ele quem contou tudo isso?
— Foi, mas pouco a pouco. Acho que ele se sentiu aliviado, ter alguém a
quem se possa contar tudo, poder desabafar. Por causa disso foi tomando afeição
por mim.
— E você?
— Eu o adorava cada vez mais, mas ele não permitiu que eu fizesse nada por
ele.
— O que é que você ia fazer?
— Queria convencê-lo de que ainda estava em tempo de começar a estudar,
formar-se em alguma coisa. Porque tem outro negócio que esqueci de contar: a
mulher ganhava mais que ele. Tinha passado de secretária de uma empresa para
ser quase uma executiva, e aquilo lhe fazia mal.
— Você chegou a conhecer a mulher?
— Não, ele queria me apresentar, mas no fundo eu a odiava com toda a
minha alma. Só de pensar que dormia toda noite ao lado dele eu morria de
ciúme.
— Agora não?
— É estranho, mas não...
— Verdade?
— Sim, olha, não sei... estou contente porque ela está com ele, assim não
está sozinho, agora que não posso conversar um pouco, naquelas horas no
restaurante que não tem nada que fazer e se chateia tanto, e não faz mais nada
senão fumar.
— E ele sabe o que você sente por ele?
— É lógico, eu falei tudo, quando tinha esperança de convencê-lo de que
entre nós dois... fosse acontecer alguma coisa... Mas nunca aconteceu nada. Não
houve maneira de convencê-lo. Eu implorei, nem que fosse uma única vez na
vida... mas nunca quis. E depois eu tinha vergonha de insistir, me conformei com
sua amizade.
— Mas segundo você disse, ele não andava muito bem com a mulher.
— Passaram uma temporada meio brigados, mas ele no fundo gosta dela, e o
que é ainda pior, a admira porque ganha mais que ele. E um dia me disse uma
coisa que quase morri, era o dia dos pais, e eu queria lhe dar alguma coisa de
presente, porque ele é muito pai do filho, e achei legal aproveitar o pretexto
daquele dia para presenteá-lo com alguma coisa, e perguntei se queria um
pijama, e aí foi o desastre.
— Continua, não me cria suspense.
— Disse que não usava pijama, que dormia sempre nu. E dorme em cama
grande com a mulher. Aquilo foi a morte. Mas houve um momento em que
parecia que iriam se separar, e aí criei ilusões, e que ilusões! você nem imagina...
— Que espécie de ilusões?
— Que viesse morar comigo, com minha mãe e eu. E ajudá-lo, fazê-lo
estudar. E ocupar-me mais dele, todo santo dia só pendente das coisas dele, a
roupa, comprar livros, inscrevê-lo nos cursos, e convencê-lo pouco a pouco de
que tem que fazer uma coisa: não trabalhar mais. E que eu daria o dinheiro
mínimo que ele tem que dar à mulher para sustentar o filho, e que não pensasse
mais que numa coisa: nele próprio. Até se formar no que ele escolhesse e acabar
com a tristeza, não acha bonito?
— Sim, mas irreal. Olha, tem uma coisa: ele podia continuar sendo garçom e
não se sentir diminuído, nem nada no gênero. Porque por mais humilde que seja
o trabalho sempre existe uma saída, a luta sindical.
— Você acha?
— Claro, rapaz. Tem alguma dúvida?
— Mas ele não entende nada disso.
— Tem alguma ideia política?
— Não, é muito ignorante. Mas dizia cobras e lagartos do sindicato e talvez
tivesse razão.
— Qual razão! Se o sindicato não funcionar direito é preciso lutar para
modificá-lo, para que funcione.
— Já estou com um pouco de sono, e você?
— Não, nada. Será que você não me conta mais um pouco do filme?
— Não sei... Você não imagina como era bom para mim pensar que podia
fazer alguma coisa por ele. Sabe, o dia todo decorando vitrine, por mais que seja
divertido, quando o dia acaba dá a sensação de que é que adianta aquilo tudo, e
você sente um vazio por dentro. Enquanto que se pudesse fazer alguma coisa por
ele seria tão bom... Dar-lhe um pouco de alegria, não é? O que é que você acha
disso tudo?
— Não sei, teria que analisar um pouco, agora não poderia dizer nada, será
que você não me conta mais um pouco do filme e amanhã eu falo do garçom?
— Está bem...
— Apagam a luz cedo e estas velas soltam um cheiro ruim e estragam a
vista.
— E tiram o oxigênio, Valentín.
— Não posso dormir sem ler.
— Se você quiser conto mais um pouco. Mas o chato é que depois eu fico
com insônia.
— Um pouco mais, Molina.
— Bom. Onde está... vamos?
— Não boceja desse jeito, que dorminhoca.
— Que é que eu posso fazer se estou com sono.
— A... gora você me... faz bocejar a mim também.
— Se você também está com sono.
— Acha que po...derei dormir?
— Sim, e se te der insônia pensa no caso do Gabriel.
— Quem é Gabriel?
— O garçom, me escapou.
— Bem, então até amanhã.
— Até amanhã.
— Olha só como é a vida, vou ficar sem dormir e pensando em teu noivo.
— Amanhã você diz o que acha.
— Até amanhã.
— Até amanhã.
4
— E é esse o princípio do romance entre Leni e o oficial. Começam a se
amar com loucura. Ela lhe dedica toda noite suas canções em cena, sobretudo
uma. É uma habanera, o pano vai se levantando e entre as palmeiras feitas de
papel prateado, como o do cigarro, sabe?, bem, atrás das palmeiras, se avista a
lua cheia bordada de lantejoulas que se reflete no mar feito de uma fazenda
sedosa, e o reflexo da lua também é bordado de lantejoulas. Há um cais tropical,
um cais de uma ilha, e a única coisa que se ouve é o vaivém das ondas, que a
orquestra imita com maracas. E tem um veleiro luxuosíssimo, imitado em cartão,
mas que parece de verdade. Um homem maduro de têmporas grisalhas muito
alinhado no leme, de boné de capitão e fumando um cachimbo, e um foco
fortíssimo ilumina de repente ao lado dele a portinha aberta que dá para as
cabines e lá aparece ela, muito séria, olhando o céu. Ele lhe faz uma carícia, mas
ela se esquiva. Está com o cabelo solto, repartido no meio, um vestido comprido
de renda preta, mas não é transparente, sem mangas, duas alças fininhas e mais
nada, saia vaporosa. Aí começa a orquestra com uma espécie de introdução e ela
avista um rapaz da ilha que arranca, na praia, uma flor de uma planta de
orquídeas selvagens, e sorri e como que pisca o olho para a moça da ilha que se
aproxima. Ele põe a flor no cabelo dela e a beija, abraçam-se e vão para a selva
escura, sem perceber que a flor caiu do cabelo da moça. E aparece um primeiro
plano daquela orquídea selvagem mas finíssima, caída na areia, e em cima da
orquídea vai surgindo esfumada a cara de Leni, como se a flor se transformasse
em mulher. Então levanta-se um vento meio de temporal mas os marinheiros
gritam que é favorável e o veleiro vai partir e ela desce pelo cais até a areia, e
levanta a flor, que é bela, feita de veludo. E canta.
— Que é que ela diz?
— Sei lá... porque não traduziam as canções. Mas era triste, como de alguém
que perdeu um grande amor e quer consolar-se mas não pode, e que se deixa
conduzir pelo destino. Sim, devia ser isso, porque quando falam que o vento é
favorável ela sorri muito triste, porque já pouco lhe importa que o vento a leve
para onde quiser. E assim cantando retorna ao veleiro que pouco a pouco vai
saindo pelo lado do cenário, e ela na popa continua com o olhar perdido atrás das
palmeiras, que é onde começa a escuridão da selva.
— Ela acaba sempre com o olhar perdido.
— Mas você não sabe os olhos que essa mulher tem, muito negros, sobre
aquela pele tão branca. E me esquecia do melhor: quando aparece, já no fim, na
popa do veleiro, ela põe a flor de veludo no cabelo, de lado, e não se sabe o que
é mais suave, se o veludo da orquídea ou a pele dela, que é como de pétala de
alguma flor, acho que de magnólia. E depois continuam aplausos e cenas curtas
deles dois que são muito felizes, de tarde nas corridas de cavalo e ela toda de
branco com uma capelina transparente e ele de cartola, e depois brindando num
iate que corre pelo rio Sena, e depois ele de smoking e no reservado de uma
boate russa apaga os castiçais e na penumbra abre um estojo e puxa um colar de
pérolas que não se sabe como mas mesmo no escuro brilha horrores, por truques
de cinema. Bem, e depois vem uma cena em que ela está tomando o café da
manhã na cama, quando vem a empregada avisar que lá embaixo está esperando
por ela um parente que acaba de chegar da Alsácia. E que veio com mais outro
senhor. Ela desce com um roupão de cetim de listas pretas e brancas, a cena se
passa em casa dela. O rapazinho é um primo jovem, vestido muito
simplesmente, mas quem está com ele é o capenga.
— Qual capenga?
— Aquele que passou por cima da corista com o carro. E começam a falar e
o primo lhe diz que lhe pediram um grande favor: falar com ela, que é francesa,
para ajudá-los numa missão. Ela pergunta qual missão, e respondem que aquela
que a corista loura, tinha começado e se negou a acabar. Porque eles são dos
maquis. Ela morre de medo mas consegue disfarçar. Pedem-lhe para revelar um
segredo importante, que indague onde está um grande arsenal de armas dos
alemães ali na França., para que os inimigos dos nazistas possam bombardeá-lo.
E a corista loura estava naquela missão, porque era dos maquis, mas depois de
começar o caso com o tenente apaixonou-se e não cumpriu a missão, e foi por
isso que a mataram, antes que os denunciasse às autoridades de lá, da ocupação.
Então o capenga diz que ela deve ajudá-los, e ela diz que tem que pensar, que
não sabe nada daquilo tudo. Então o capenga diz “é mentira”, porque o chefe da
contraespionagem alemã está apaixonado por ela, e não lhe custaria nada obter
os dados. Ela se enche de coragem e diz ao capenga que não, definitivamente,
porque não tem temperamento para essas coisas. Então o capenga diz que se ela
não topar... vão ser obrigados a tomar represálias. Ela então percebe que o primo
tem o olhar abaixado, seu queixo treme, e está com a testa cheia de pequenas
gotas de suor. É que foi levado como refém! Então o capenga esclarece que o
pobre rapaz não fez nada, que seu único delito é ser parente dela. Porque os sem-
vergonha foram até a aldeia na Alsácia onde estava o pobre rapazinho e o
trouxeram, sei lá, sob falsas desculpas. O caso é que se ela não os ajudar, eles, os
maquis, matam o rapaz, que é inteiramente inocente. Então ela promete que vai
fazer o possível. E assim foi. Na próxima vez que se encontram, ela e o oficial
alemão, começa a revistar gavetas em casa dele, mas tudo isso com o maior
medo porque lá está o mordomo que desde o primeiro momento olhara para ela
de cara feia, e parece que não a perde de vista. Mas tem uma cena em que ela
está almoçando no jardim com o oficial e outros mais, e o mordomo, que é
alemão, recebe ordem do oficial para ir até a adega procurar um vinho raríssimo,
ah! me esqueci de dizer, porque é ela quem pede, um vinho que só o mordomo
sabe onde está. Então, quando o cara sai ela senta no piano de cauda branco que
está num salão daqueles que já te contei, e aparece atrás de uma cortina de renda
branca. Ela mesma se acompanha no piano porque ele lhe pediu para cantar. Mas
ela já preparou um truque, e põe um disco dela, também acompanhado pelo
piano, e, enquanto isso, entra no gabinete particular dele e começa a remexer nos
papéis. Mas acontece que o mordomo esqueceu as chaves, quando chega à porta
do porão onde fica a adega, e volta para procurá-las e ao passar pela balaustrada
onde começa o jardim olha pelo janelão e através da cortina de renda não chega
a perceber se ela está ou não sentada ao piano. Enquanto isso o oficial está no
jardim, ficou conversando com outros comandantes, é um jardim francês, com
canteiros sem flores, mas com ligustros todos podados em formas muito
estranhas, como que obeliscos.
— Isso é um jardim alemão, da Saxônia, mais exatamente.
— Como é que você sabe?
— Porque os jardins franceses têm flores, e as linhas são geométricas, mas
tendem um pouco ao firulado. Esse jardim é alemão, e se nota que o filme foi
feito na Alemanha.
— E como é que você sabe essas coisas? São coisas de mulher...
— Se estuda em arquitetura.
— E você estudou arquitetura?
— Sim.
— E se formou?
— Sim.
— E só agora você me conta?
— Não vinha ao caso. .
— Você não disse que estudou ciências da política?
— Sim, ciências políticas. Mas continua o filme, outro dia eu conto. E arte
não é coisa de mulher.
— Um destes dias vai se descobrir que você é mais bicha que eu.
— Pode ser. Mas agora continua com o filme.
— Bem, então o mordomo escuta ela cantar mas não está ao piano, e vai ver
onde é que ela está. E ela está justamente no gabinete remexendo os papéis, ah!
porque antes conseguiu a chave da escrivaninha, tirou do oficial, e encontra o
plano da zona onde estão escondidos todos os armamentos, o arsenal alemão, e
de repente ouve passos e consegue se esconder na sacada em frente ao gabinete,
mas fica à vista dos comandantes reunidos no jardim! Assim está entre dois
fogos, se as pessoas do jardim olharem, a descobrirão. O mordomo entra no
gabinete e espia, ela prende a respiração e está nervosíssima porque sabe que o
disco vai acabar, e você sabe que naquela época os discos só tinham uma canção,
não havia LP. Mas o mordomo sai e ela também, justamente a canção está
acabando. E todos os comandantes a estão ouvindo encantados, e quando o disco
acaba levantam-se para aplaudi-la e ela já está sentada ao piano e todos pensam
que não era o disco, que era ela quem cantava. E o que se segue é o encontro
dela com o capenga e o rapazinho, para entregar-lhes os planos dos alemães. O
encontro é num museu, grande à beça, com animais antediluvianos, e uns vidros
enormes que servem de parede e dão para o rio Sena, e quando se encontram ela
diz ao capenga que já está com a informação, e o capenga que se sente vitorioso
começa a dizer que aquele será o primeiro trabalho dela para os maquis, porque
quem entra de espião não pode mais sair, então ela quase que hesita em contar,
mas olha o rapazinho tremendo, e fala um nome de uma região da França e a
aldeia exata onde está o arsenal. Então o capenga, que é um sádico, começa a
dizer que o oficial alemão vai odiá-la de morte quando tomar conhecimento da
traição dela. E não me lembro quantas coisas mais. Então o rapazinho percebe
que Leni fica desesperada, que empalidece de indignação, então o rapazinho
olha pela janela, eles estão bem do lado do vidro, e num quinto ou sexto andar
daquele museu enorme, e antes que o capenga desconfie o rapazinho pega e o
empurra para que o capenga quebre o vidro e caia no vazio, mas o capenga
resiste e o rapazinho então se sacrifica e se atira junto com o capenga, pagando
com a própria vida. Ela se mistura entre as pessoas que correm para saber o que
foi quê aconteceu e como está de chapéu e véu ninguém a reconhece. Que bom o
rapazinho, não é?
— Bom para ela, mas traidor do seu país.
— Mas o menino percebia que os maquis eram uns mafiosos, só você vendo
as coisas que tem no filme mais adiante.
— Você sabe o que eram os maquis?
— Sim, já sei, eram os patriotas, mas no filme não. Deixa eu continuar.
Então... como é que continuava?
— Não te entendo.
— É que o filme era lindo, e para mim o que importa é o filme, porque
enquanto estou aqui trancafiado não posso fazer outra coisa senão pensar em
coisas bonitas para não ficar louco, não é? ... Responde.
— Que é que você quer que eu responda?
— Que me deixe fugir um pouco da realidade, para que ficar ainda mais
desesperado? Quer que eu fique louca? Porque bicha já sou.
— Não, eu concordo, é verdade que aqui a gente pode chegar a ficar louco
não só se desesperando... mas também se alienando, como você faz. Essa mania
que você tem de pensar em coisas bonitas, como você diz, pode ser perigosa.
— Por quê? Não é verdade.
— E fugir assim da realidade pode ser um vício, é como uma droga. Porque
escuta, tua realidade, tua realidade, não é somente esta cela. Se você está lendo
alguma coisa, estudando alguma coisa, já transcende a cela, entende? Por isso é
que eu leio e estudo o dia todo.
— Política... Olha como vai o mundo com os políticos...
— Não fala como uma senhora de antigamente, porque você não é nem
senhora... nem de antigamente; e conta mais um pouco o filme, falta muito para
acabar?
— Por quê? Te chateia?
— Não gosto, mas estou intrigado.
— Se você não gosta, então não conto mais.
— Como quiser, Molina.
— Claro que seria impossível acabar hoje à noite, falta muito, quase a
metade.
— Me interessa como material de propaganda, mais nada. De certa forma é
um documento.
— De uma vez por todas, continuo ou não continuo?
— Continua um pouco.
— Agora soa como se você me estivesse fazendo um favor. Lembra que foi
você quem pediu, não tinha sono e pediu para eu contar alguma coisa.
— E te agradeço muito, Molina.
— Mas agora perdi o sono, você me sacaneou bem.
— Então conta mais um pouco e nós dois vamos ficar com sono, se Deus
quiser.
— Os ateus só fazem falar em Deus o tempo todo.
— É uma maneira de dizer. Anda, conta.
— Bom, ela sem falar nada do que aconteceu pede ao oficial alemão que a
hospede em sua casa, porque está aterrorizada de medo dos maquis. Olha, esta
cena é ótima, porque não te disse que ele também toca piano, veste um roupão
de brocado que nem te conto, e como lhe ia bem! com um lenço de seda branco
no pescoço. E à luz dos castiçais ele está tocando uma coisa muito triste, porque
me esqueci de dizer que ela vai chegar atrasada ao encontro. E ele pensa que ela
não volta mais. Ah, porque não te disse que ela sai do museu quando não a veem
e começa a caminhar como louca por toda Paris, porque está confusa, com a
morte do pobre rapazinho, o priminho de quem gostava tanto. E vai caindo a
noite, e continua andando por todos os lugares de Paris, pela Torre Eiffel, e pelas
subidas e descidas dos bairros boêmios, e os pintores que pintam na rua olham
para ela e os casais sob os lampiões na beira do Sena. Olham para ela, porque vai
andando como uma pobre louca, como uma sonâmbula com o véu do chapéu
levantado, já não se incomoda que a reconheçam. Enquanto isso o rapaz está
mandando fazer o jantar para dois, com castiçais, e depois se vê que as velas já
estão pela metade, e ele está tocando o piano, aquela espécie de valsa lenta muito
triste. E é quando ela entra. Ele não se levanta para cumprimentá-la, continua
tocando no piano uma valsa maravilhosa que de muito triste vai se tornando
mais e mais alegre, romântica a mais não poder, mas bem, bem alegre. E a cena
acaba aí, sem que ele diga nada, vê-se seu sorriso de felicidade e se ouve a
música. Olha.
— Você não pode imaginar o que é essa cena.
— E depois?
— Ela acorda numa cama maravilhosa, toda de cetim claro, acho que seria
entre rosa-velho e esverdeado, capitoné, com lençóis de cetim. Que pena que
alguns filmes não sejam coloridos, não é? e cortinado de tule dos dois lados do
dossel, entende? e ela levanta toda apaixonada e olha pela janela, cai uma garoa,
vai ao telefone, levanta o fone e escuta sem querer ele falando com alguém.
Estão discutindo o castigo a ser dado a uns açambarcadores e mafiosos. E ela
não pode acreditar no que está ouvindo quando ele diz que os condenem à pena
de morte, então ela espera acabarem de falar e, quando desligam, ela também
desliga o aparelho, para que não percebam que ficou ouvindo. De repente ele
aparece no dormitório e a convida para tomarem juntos o desjejum. Ela está
linda, refletida no vidro da janela todo molhado por causa da garoa, e pergunta a
ele se realmente não tem medo de ninguém, como deve ser o soldado da nova
Alemanha, o herói de quem falou. Ele diz que pela pátria enfrenta qualquer
desafio. Ela pergunta então se é por medo que se mata um inimigo indefeso, por
medo de que num dado momento os papéis se invertam e tenham de enfrentá-lo,
talvez cara a cara. Ele responde que não compreende o que ela está dizendo.
Então ela muda de assunto. Mas, naquele dia quando fica sozinha, disca o
número do telefone do capenga para entrar em contato com alguém dos maquis e
contar o segredo do arsenal. Porque ao ouvir que ele é capaz de condenar alguém
à morte, ele se desmoralizou diante dela como homem. E já vai ao encontro de
um cara dos maquis, com hora marcada no teatro dela onde estão ensaiando,
para disfarçar, e ela avista o homem que se aproxima e ele faz o sinal
combinado, quando chega alguém pelo corredor do teatro vazio e chama a Sra.
Leni. E trazem um telegrama de Berlim e ela é convidada para estrelar um
grande filme nos melhores estúdios da Alemanha, e lá mesmo quem traz o
convite é um oficial do governo de ocupação e ela não pode falar nada com os
maquis, e tem que começar imediatamente os preparativos para ir a Berlim.
Gosta?
— Não, e já estou com sono. Continuamos amanhã, está bem?
— Não, Valentín, se não gosta não conto mais nada.
— Gostaria de saber como acaba.
— Não, se não gosta para quê... já está bem assim. Até amanhã.
— Amanhã conversamos.
— Mas sobre outra coisa.
— Como quiser, Molina.
— Até amanhã.
— Até amanhã.1

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— Por que demoram a trazer o jantar? Me pareceu que já trouxeram há


muito tempo na cela do lado.
— Sim, eu também ouvi. Você não estuda mais?
— Não, que horas são?
— Passa das oito. Hoje não estou com muita fome, por sorte.
— Que coisa esquisita com você, Molina. Se sente mal?
— Não, é nervoso.
— Acho que vêm aí.
— Não, Valentín, são os da última cela que voltam do banheiro.
— Não me contou o que falaram na diretoria.
— Nada. Era para assinar os papéis do advogado novo.
— Uma procuração?
— Sim, como mudei de advogado tive de assinar.
— Como te trataram?
— Nada, como bicha, como sempre. Olha, acho que lá vêm eles.
— Sim, estão aí. Tira as revistas daí, que se as veem podem roubá-las.
— Estou morto de fome.
— Por favor, Valentín, não vá fazer queixa ao guarda.
— Não...
—...
—...
— Sirva-se.
— Polenta...
— Sim.
— Obrigado.
— Ei, quanta...
— Assim não se queixa.
— Bem, mas este prato... por que menos?
—...
—...
— Está bem assim. Qual é a vantagem de fazer queixa, cara.
— Não respondi nada por sua causa, Molina, senão, acho que atirava na cara
dele este grude de merda.
— De que adianta você se queixar.
— Um prato tem quase a metade do outro, esse guarda está louco, grande
filho da puta.
— Valentín, eu fico com o prato pequeno.
— Não, se você sempre come polenta, pega o grande.
— Não, te disse que estou sem fome. Pega você o grande.
— Pega. Não faça cerimônia.
— Não, te digo que não. Mas por que hei de ficar com o prato grande?
— Porque sei que você gosta de polenta.
— Estou sem fome, Valentín.
— Começa que vai te fazer bem.
— Não.
— Olha, hoje não está tão ruim.
— Não quero, estou sem fome.
— Está com medo de engordar?
— Não...
— Então come, Molina, hoje está bem boa a polenta ao grude. Para mim
chega de sobra o prato pequeno.

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— Ai... ai...
— Ai...
— O que é?
— Nada, esta mulher está fodida.
— Que mulher?
— Eu, boboca.
— Por que é que você se queixa?
— Estou com dor de barriga...
— Quer vomitar?
— Não...
— É melhor tirar o saquinho.
— Não, deixa... A dor é mais embaixo, nas tripas.
— Não será diarreia?
— Não... É uma dor muito forte, mas mais em cima.
— Então, chamo o guarda...
— Não, Valentín. Parece que já está passando...
— Que é que você sente?
— Umas pontadas... mas fortíssimas...
— De que lado?
— Na barriga toda...
— Não será apendicite?
— Não, já fui operado.
— A mim a comida não fez mal...
— Deve ser nervo. Hoje andei muito nervoso... Parece que já está
melhorando um pouco...
— Trata de relaxar. O mais possível. Afrouxa bem os braços e as pernas.
— Sim, parece que passa um pouquinho.
— Há muito tempo que começou a dor?
— Sim, bastante tempo. Desculpa eu ter te acordado.
— Mas não... Devia ter me acordado antes, Molina.
— Não queria encher... Ai...
— Dói muito?
— Foi uma pontada forte... mas acho que já está melhorando.
— Você quer dormir? poderá dormir?
— Não sei... Ui, que chato...
— Se quiser conversar talvez seja bom, para não pensar na dor.
. — Não, dorme você, não perde o sono.
— Não, eu já perdi.
— Desculpa.
— Não, eu acordo sozinho tantas vezes e não consigo dormir mais.
— Parece que está passando um pouquinho. Ai, não, que chato...
— Chamo o guarda?
— Não, já passa...
— Sabe de uma coisa?
— O quê?
— Fiquei furioso pelo fim do filme, o nazista.
— Não disse que não gostava?
— Sim, mas quero saber do mesmo jeito como é que acaba, para ver a
mentalidade dos que filmaram, a propaganda que queriam fazer.
— Você não imagina como era bonito, só vendo.
— Se te distrai, por que você não conta mais um pouco? Rápido, só o fim.
— Ai...
— Voltou forte?
— Não, está passando, mas ainda quando sinto uma pontada sinto forte, mas
depois já não dói quase nada.
— Como acaba o filme?
— Onde estávamos?
— Ela ia trabalhar para os maquis, mas surge o contrato para filmar na
Alemanha.
— Você gravou, hein?
— Não é um filme qualquer. Pode contar depressa, assim você chega ao fim.
— Bem, o que era que acontecia então? Humm... ai que chato, como dói...
— Conta, assim você não pensa na dor, dói menos se você se distrair...
— Você tem medo que eu morra antes de contar o final?
— Não, falo por tua causa.
— Bem, ela vai filmar na Alemanha, e gosta muitíssimo da Alemanha, e da
juventude que faz esporte. E perdoa tudo porque toma conhecimento de que
aquele que ele mandou matar era um grande criminoso, tinha feito sabe lá quanta
coisa. E lhe mostram a foto do outro criminoso que ainda não puderam capturar,
meio cúmplice daquele que o rapaz mandou matar... Ai... ainda me dói um
pouco...
— Então, deixa, trata de dormir.
— Não, que ilusão, tomara que eu pudesse... Ainda dói.
— Sente seguido esse tipo de dor?
— Cruz-credo, nunca tinha sentido essas pontadas... Olha, agora já está
passando...
— Vou tratar de pegar de novo no sono, então.
— Não, espera.
— Assim você também dorme.
— Não, não vou poder. Continuo com o filme.
— Está bem.
— Como era? Sim, ela parece reconhecer o criminoso, mas não sabe em que
lugar o viu e então volta para Paris, que é onde pensa tê-lo conhecido. E logo de
chegada entra em contato com os maquis, para ver se pode chegar ao próprio
chefe da organização, são todos do mercado negro e os que organizam o
açambarcamento de víveres. E tudo com a conversa que vai lhes dar o segredo
do arsenal dos alemães, o que o capenga tinha pedido, lembra?
— Sim, mas você sabe que os maquis eram verdadeiros heróis, não é?
— Você pensa que sou mais burra do que sou.
— Se fala feminino é porque a dor já passou.
— Bem, seja o que for, mas que fique claro que o filme era lindo pelas cenas
de amor, que eram um verdadeiro sonho, os caras do governo devem ter imposto
ao diretor a parte política, ou não sabe como são essas coisas?
— Se o diretor fez o filme já é culpado de cumplicidade com o regime.
— Bem, vou acabar de uma vez. Ai, você discutiu e a dor voltou... Ui...
— Conta, assim você se distrai.
— O caso é que ela, para dar o segredo do arsenal, exige um encontro com a
cúpula dos maquis. E um belo dia a levam para fora de Paris, a um castelo. Mas
combinou que o rapaz e os soldados fossem atrás dela, assim podem tomar de
assalto os maquis do mercado negro. Mas o motorista que a leva, que é aquele
assassino que andava sempre com o capenga, percebe que os estão seguindo e
faz uma manobra e aí os alemães que os estão seguindo com o rapaz à frente
perdem a pista deles. Bem, então chegam ao castelo e fazem Leni entrar, e
quando menos espera lá está o chefe dos maquis — que é aquele mordomo que a
vigiava tanto!
— Qual?
— Aquele da casa do rapaz. Então ela o olha bem e percebe que é o mesmo
sujeito horrível da barba e do filme daqueles criminosos que lhe mostraram em
Berlim. E lhe conta o segredo, porque tem certeza de que o rapaz com os
alemães chegam logo e a salvam. Mas como perderam a pista o tempo passa e
eles não chegam. Então ela percebe que o motorista asqueroso está falando em
segredo com o chefe, da suspeita que tem de que foram seguidos. Mas é claro,
ela lembra que o mordomo sempre a espionava em casa para vê-la nua, etc. e
joga a última cartada, que é seduzi-lo. Enquanto isso, o rapaz e a patrulha que
vai com ele tratam de seguir as marcas do carro na chuva. E depois de muito
procurar, não me lembro bem como é que fazem para encontrar o caminho. E ela
está sozinha com aquele assassino, o mordomo que é realmente o chefe de todos,
um personagem mundial do crime, e quando ele se atira em cima dela, naquela
salinha onde mandou preparar uma ceia íntima, ela pega o garfo de trinchar e o
mata. E já começam a chegar o rapaz e os outros, e ela abre uma janela para
fugir e lá mesmo está de plantão o motorista assassino, debaixo da janela, e o
rapaz o vê a tempo e atira nele, mas o capenga, não, perdão, o motorista, porque
o capenga já morreu no museu, então o motorista, moribundo, consegue atirar na
moça. Ela se segura nas cortinas e se aguenta sem cair, para que o rapaz a
encontre ainda de pé, mas quando ele chega e a toma nos braços ela perde as
poucas forças que lhe restam e diz que o ama, e que em breve estarão em Berlim
juntos outra vez. E ele só percebe que está ferida porque suas mãos estão se
manchando com o sangue dela, do tiro nas costas, ou no peito, não me lembro. E
a beija, e quando afasta os lábios de sua boca ela já está morta. E a última cena é
num panteão de heróis em Berlim, e é um monumento belíssimo, como um
templo grego, com estátuas grandes de cada herói. E lá está ela, uma estátua
enorme, ou antes de tamanho natural, belíssima com uma túnica grega, acho que
era ela mesmo fingindo de estátua com pó de arroz branco na cara, e ele coloca
flores nos braços dela, estão estendidos, como para abraçá-lo. E ele vai se
retirando e há uma luz que parece chegar do céu, e ele vai embora com os olhos
cheios de água e fica a estátua dela com os braços estendidos. Mas sozinha, e há
uma inscrição no templo, que diz algo assim como que a pátria não os esquecerá
nunca. E ele vai andando, só, mas por um caminho cheio de sol. Fim.

________________
1 Serviço publicitário dos estúdios Tobis-Berlim, destinado aos exibidores
internacionais de seus filmes, referente à superprodução Destino (páginas
centrais).
“A chegada da atriz estrangeira não foi anunciada com o alarde habitual,
mas, ao contrário, preferiu-se que Leni Lamaison chegasse incógnita à capital
do Reich.
Somente depois de testes de maquiagem e vestuário foi convocada a
imprensa. A diva máxima da canção francesa tinha de ser finalmente
apresentada aquela tarde aos mais destacados representantes da imprensa livre
internacional. No Grana Hotel de Berlim. Havia sido reservado para a ocasião
o Salão Imperial, situado na sobreloja, aonde chegavam débeis ecos da música
executada pela orquestra no jardim de chá. Leni fora identificada com os
frívolos gritos lançados pela moda parisiense, que se servira de sua beleza para
encarná-los. Todos esperavam, portanto, uma boneca encimada por diminutos
cachos permanentes em forma de caracoizinhos, dois pômulos avermelhados
pelo cosmético aplicado no rosto previamente laqueado de branco. Era de crer
que seus olhos mal se pudessem manter abertos, já que as pálpebras estariam
carregadas de sombra preta e pesadas pestanas postiças. Mas a maior
curiosidade se concentrava em sua indumentária, dado que era tida como
inevitável a profusão dos tradicionais drapeados inúteis ditados pelos
decadentes costureiros de além-Reno, cujo propósito conhecido é a desfiguração
da silhueta feminina. Mas ao escutar-se um murmúrio de profunda admiração
entre os assistentes, era uma mulher diferente aquela que aparecia diante dos
que lhe abriam rapidamente passagem. Sua cintura fina e suas cadeiras roliças
não se ocultavam sob trapos supérfluos, seu busto ereto não fora comprimido
por extravagâncias de desenho: ao contrário, a moça dir-se-ia proveniente de
Esparia, avançava envolvida numa simplíssima túnica branca que revelava a
plenitude de suas formas, e o rosto lavado nos falava da saúde de uma
montanhesa. O cabelo, por outro lado, estava dividido ao meio e amarrado
numa trança que circundava o crânio. Os braços da ginasta não eram
recobertos por mangas, mas uma ligeira capa do mesmo tecido branco
abrigava-lhe os ombros. Nosso ideal de beleza será sempre a saúde, dissera
nosso Führer, e, mais precisamente, no que diz respeito à mulher, sua missão é
ser bela e pôr filhos no mundo. Uma mulher que deu cinco filhos ao Volk, deu
mais que a mais notável jurista do mundo. Não há lugar para a mulher política
no mundo ideológico do nacional-socialismo, dado que levar a mulher à esfera
parlamentar, onde está deslocada, significa roubar-lhe a dignidade. A
ressurreição alemã é um evento masculino, mas o Terceiro Reich, que conta com
oitenta milhões de súditos, daqui a um século, no glorioso ano de 2040,
precisará de duzentos e cinquenta milhões de patriotas que conduzam os
destinos do mundo, tanto do Pai Estado como de nossas incontáveis colônias. E
esse será o evento feminino, após se assimilar a lição de outros povos, no que
diz respeito ao grave problema da decomposição de raças, que pode ser
resolvido através de um nacionalismo consciente do próprio povo. Síntese de
Estado e Povo. Estas mesmas palavras são repetidas à bela estrangeira, no
salão chamado Imperial, pelo delegado dos estúdios berlinenses que a
contrataram, palavras que impressionam Leni vivamente, assim como sua pura
beleza impressiona os representantes da imprensa ali presentes.
No dia seguinte sua nova imagem é exaltada nas primeiras páginas dos
jornais do mundo livre, mas Leni não perde tempo em ler os hinos que se entoam
à sua beleza, pega no telefone e — vencendo um forte temor — liga para Werner.
Pede-lhe que, naqueles breves dias que ele passará na capital antes de voltar a
Paris, ajude-a a descobrir as maravilhas do novo mundo alemão. Werner
começa por levá-la a uma gigantesca concentração da juventude, que se realiza
num estádio assombroso. Ele prefere abrir mão das comodidades de uma
limusine oficial, e levar Leni em seu veloz cupê branco. Seu propósito é que ela
se sinta somente uma dentre tantas pessoas em meio àquela multidão fervorosa,
e o que é mais: consegue-o. Todos os que passam junto de Leni a admiram, mas
não por causa de sua excentricidade de diva alambicada, mas pelo seu porte
majestoso de mulher sadia, que dispensa enfeites. De fato, Leni apresentou-se
com um simples costume de saia e blusa, com reminiscências de austero
uniforme militar. A fazenda, um pano típico da região alpina, tem alguma coisa
da rudeza do povo montanhês, mas apesar de tudo assinala, contudo, suas
formas femininas, e só os enchimentos dos ombros se afastam das linhas de sua
silhueta, tão-somente para fortalecê-las. Werner a contempla extasiado, porque
já contava com o deslumbramento de Leni diante da monumental fachada do
estádio, e ela, de fato, não pôde evitar o impacto.
Leni pergunta então a Werner como foi que sua nação conseguiu criar algo
tão puro e inspirado, enquanto no resto da Europa se impôs uma arte tão frívola
e efémera, tanto na pintura e escultura como em arquitetura, uma arte
meramente decorativa e abstrata destinada a perecer como as prescindíveis
modas femininas tramadas na capital de além-Reno. Ele sabe muito bem o que
responder, mas não o faz de imediato, pede-lhe para esperar uns instantes. E já
se acham diante do espetáculo inesquecível que lhes oferece a flor da juventude
alemã: sobre o campo verde desprendem-se linhas retas que se quebram e
tornam a se compor para logo dar lugar a curvas que ondulam ligeiramente e
por sua vez retomam a virilidade do traçado retilíneo. São jovens atletas de
ambos os sexos, vestidos de preto e branco, em suas exibições de ginastas, e
então Werner diz, a título de comentário sobre a visão olímpica da qual Leni não
pode afastar os olhos: Sim, o heroísmo ergue-se como futuro modelador dos
destinos políticos, e cumpre à arte ser a expressão desse espírito de nossa época.
A arte comunista e futurista é um movimento retrógrado, anárquico. A nossa é a
Cultura do Norte, contraposta às tentativas mongóis, comunistas, e à farsa
católica, produto da corrupção assíria. Ao Amor é preciso opor a Honra. E
Cristo será um atleta que expulsa a socos os mercadores do Templo. E em
seguida, os jovens, verdadeira tocha humana do nacional-socialismo, entoam
coros marciais vibrantes de patriotismo, .. flutuam novamente nossos pavilhões
de outrora, o jovem revolucionário deve atiçar as paixões vulcânicas, despertar
as cóleras, organizar desconfiança e ira com cálculo frio e certeiro, e assim
sublevar as massas humanas, citando um lema de nosso Chefe Supremo da
Propaganda, o Marechal Goebbels. E Leni, apesar do conflito que se aninha em
seu peito desde o dia que ouviu Werner pronunciar uma sentença de morte,
sente-se transportada de júbilo. Werner aperta-lhe a mão, a atrai contra si, mas
não se atreve a beijá-la, pois teme que os lábios dela ainda estejam frios.
Naquela mesma noite jantam em silêncio. Werner não entende mais nada, sente
que ela está distante, perdida em seus pensamentos secretos. Os dois quase não
provam a comida, Leni bebe um copo de suave vinho da Mosela. Mas depois de
beber a última gota atira com força o copo contra a lareira crepitante, o cristal
se esfacela. Sem nenhum preâmbulo Leni formula a pergunta que a queima por
dentro: Como é possível que você, um homem superior, tenha mandado matar
um ser humano? Werner replica logo, aliviado: Era isso que te mantinha
afastada de mim? À resposta afirmativa de Leni, Werner manda que ela o siga
até o Ministério de Assuntos Políticos, Leni obedece. Apesar da hora avançada,
as repartições do governo mantêm-se em plena atividade, porque a nova
Alemanha não descansa, nem de dia nem de noite. Todas as portas se abrem à
passagem de Werner, que veste seu arrogante uniforme militar. Poucos minutos
depois eles têm acesso a um subsolo onde se localiza um microcinema. Werner
ordena uma projeção imediata. A tela se ilumina de atrocidades. Trata-se de um
longo documentário sobre a fome, a fome no mundo. Fome na África do Norte,
fome na Espanha, fome na Dalmácia, no vale do Yang-Tsé-Kiang, na Anatólia. E
precedendo cada uma daquelas agonias, a passagem por essas mesmas terras
de dois ou três homens implacáveis, sempre os mesmos, os judeus errantes
portadores da morte. Tudo aquilo rigorosamente registrado pelas câmaras. Sim,
aqueles mercadores fúnebres, qual abutres, visitam regiões de seca, inundações,
qualquer tipo de catástrofe propícia, para organizar seu banquete satânico:
açambarcamento de víveres, agiotagem. E atrás deles, seus sequazes, todos os
malditos filhos de Abraão, repetindo com precisão matemática as mesmas
operações: o desaparecimento do grão de trigo, a seguir, dos outros cereais, até
os mais ordinários, portanto, destinados à alimentação dos animais. E a carne,
o açúcar, substâncias oleaginosas, frutas e legumes frescos ou enlatados. Assim
vai-se propagando a fome nas cidades, cujos habitantes se voltam para o
campo, onde só encontram o espetáculo vandálico que deixaram atrás de si os
gafanhotos de Jeová. E os rostos do povo vão sumindo, já ninguém consegue
andar erguido, por aqueles horizontes de holocausto recortam-se as silhuetas
vencidas dos famintos, que dão seus últimos passos em direção à miragem de
um duro pedaço de pão, que jamais conseguirão tocar.
Leni acompanhou a projeção com o sangue gelado, mas deseja que as luzes
se acendam para esclarecer uma dúvida. De fato, quer saber através de Werner
a quem pertence uma daquelas duas fisionomias infames. Leni refere-se aos dois
chefes da organização mortífera, e Werner se enche de ansiedade, pois pensa
que Leni reconhecera num deles o criminoso que ele próprio condenara à morte,
para consternação de sua amada. Mas não, Leni refere-se ao outro. Werner se
agita ainda mais, será que Leni conseguiu aquilo que todo o pessoal da
inteligência já está dando por impossível? porque Jacob Levy é o agente
antinazista mais procurado do momento. Leni não dá uma resposta clara, está
certa de ter visto em algum lugar aquele rosto depravado, com sua calva
engordurada e suas longas barbas de agiota. Fazem retroceder o filme e param
a imagem nos fotogramas onde aparece o criminoso. Leni faz esforços sobre-
humanos, mas não consegue localizar onde, como e quando viu o monstro.
Finalmente abandonam a sala, resolvem caminhar alguns passos sob uma
avenida cercada de tílias. Leni continua imersa no labirinto das recordações,
pensa com segurança ter visto antes Jacob Levy, seu único temor é tê-lo
conhecido, ou melhor, imaginado num pesadelo. Werner, por sua vez, cala: sua
intenção, ao projetar o filme para Leni, era demonstrar-lhe que vil inseto ele
mandara executar, depois de agarrá-lo numa aldeia próxima à fronteira suíça.
Mas só com um gesto Leni consegue afastar qualquer nuvem do céu amoroso de
Werner: segurou-lhe a mão direita, com suas duas mãos suaves e brancas,
pegou na palma rija de Werner e a levou contra seu coração de mulher.
Tudo já está definitivamente esclarecido, e Leni compreendeu que a morte de
um Moloc judeu significou a salvação de milhões de almas inocentes. Cai um
leve chuvisco sobre a Cidade Imperial, Leni pede a Werner que a proteja com
seu abraço, para poder descansar. Ajudados pela luz do dia seguinte
empreenderão a caçada da outra fera que ainda está solta. Mas naquele instante
não se ouvem rugidos provenientes da selva, não, porque se encontram na terra
eleita pelos deuses para levantar sua áurea mansão, ali onde a moral dos heróis
já ganhou a primeira batalha contra os mercadores. É uma manhã ensolarada
de domingo. Leni pediu a Werner que aquele fim de semana, o último que
passariam juntos, antes da volta dele a Paris, fosse dedicado a conhecer os
vales enfeitiçados do Alio Palatinado. São as mesmas montanhas encantadas
onde o Führer tem sua casa de descanso, ali, onde na época da clandestinidade
uma austera família de lavradores o acolhera. A grama é verde e perfumada, o
sol morno, a brisa, em compensação, traz o frescor das neves perpétuas que se
erguem nos cumes, qual sentinelas. Em cima da grama uma simples toalha de
mesa de aldeia. Em cima da toalha de mesa à alimentação frugal de um
piquenique. Leni já não estabelece limites à sua ânsia de saber, pergunta a
Werner tudo o que diz respeito ao Führer.
No início suas palavras soam difíceis de captar para a moça, ... o problema
socioeconômico nos Estados demoliberais desemboca num beco sem saída,
pode-se solucionar em essência muito mais facilmente, e com satisfação geral,
sob uma forma de governo autoritário radicado plenamente no povo e não em
grupos internacionais prepotentes, e ela, então, lhe pede que fale simplesmente
da personalidade do Führer, e da sua subida ao poder. Werner conta: ... as
folhas marxistas e as gazetas judias anunciavam somente caos e humilhações
para os alemães. De vez em quando publicavam também a notícia falsa da
detenção de Adolf Hitler. Mas aquilo não era possível, dado que ninguém podia
reconhecê-lo: ele nunca permitira ser fotografado. Atravessava todo o nosso
território para assistir a reuniões secretas. Algumas vezes eu o acompanhei, em
aviõezinhos precários. Lembro-me bem daquilo, o motor rugia e de repente nos
elevávamos do solo em direção à noite, às vezes em plena tempestade.
Mas ele não se incomodava com os relâmpagos e me falava absorto da sua
dor ante o povo humilhado pela loucura marxista, pelo veneno do pacifismo, por
qualquer ideia estrangeirizante... E quantas vezes fizemos de automóvel aquele
nosso caminho de ontem, e que repetiremos esta noite... dos Alpes a Berlim.
Todas as estradas lhe eram familiares, artérias da sua trajetória, rumo ao
coração do povo. Só fazíamos uma parada, como você está vendo aqui...
estendíamos uma toalha de mesa sobre a relva, sentávamo-nos debaixo das
árvores e comíamos um almoço frugal. Um pedaço de pão, um ovo cozido e um
pouco de fruta, era tudo o que o Führer comia. Em tempos chuvosos tomávamos
a pequena refeição dentro do próprio automóvel. E finalmente chegávamos ao
nosso destino e no comício aquele homem tão simples se agigantava, e pelas
rádios rebeldes as ondas do éter transmitiam suas marteladas de persuasão.
Arriscava a vida frequentemente, porque se propagava pelas ruas o sanguinário
terror marxista... Leni escuta fascinada, mas quer saber mais, como mulher lhe
interessa saber o segredo íntimo da força pessoal do Führer. Werner responde:
... o Führer se revela todo em cada uma de suas palavras. Acredita em si mesmo
e em tudo quanto diz. Ele é isto que é tão difícil de encontrar hoje em dia:
autenticidade. E o povo reconhece o que é autêntico e se apega a isso. O
verdadeiro Por Quê da personalidade do Führer, inclusive para nós que somos
os mais próximos, ficará sempre em mistério. Só tem explicação acreditando-se
em milagres. Deus abençoou este homem e a fé remove montanhas, a fé do
Führer é a fé no Führer ...
Leni se estende na relva e fita os olhos azuis límpidos de Werner, olhos de
mirada tranquila, confiante, pois estão voltados para a Verdade. Leni põe os
braços no pescoço dele e só lhe ocorre dizer, emocionada: ... agora compreendo
como foi que você entrou para a doutrina. Você captou a fundo o sentido do
nacional-socialismo...
Seguem-se para Leni semanas de trabalho extenuante nos estúdios
berlinenses. E com o último rodar da câmara precipita-se ao telefone para falar
com seu amado, absorvido pelas suas ocupações em Paris. Ele lhe reservou uma
surpresa maravilhosa, tirará uns dias de férias antes de reunir-se a ela em
Paris, e poderão passar esses dias em algum belo lugar daquele país que agora
a aclama, a República Nacional-Socialista. Mas Leni lhe reserva uma surpresa
maior ainda: desde o dia da projeção do documentário não deixou de pensar no
rosto do criminoso ainda por capturar, e cresceu dentro dela, dia a dia, a
certeza de ter visto aquele homem em Paris. Por isso é que ela quer voltar já a
essa cidade e iniciar a busca.
Werner concorda, apesar do temor que lhe causa a entrada de Leni em um
comando de espionagem. Mas Leni desce do trem com plena confiança na
missão embora a visão de sua França a aflija. De fato, já acostumada com o sol
que resplandece nos rostos da Pátria do Nacional-Socialismo, desagrada-lhe
ver sua França assim aviltada como se encontra por causa das contaminações
raciais. Sua França lhe parece inegavelmente negroide e judia. (Continua.)
5
— Você devia ter almoçado um pouco.
— É que não tinha nenhuma vontade.
— Por que não pede para ir ao ambulatório? Pode ser que te deem alguma
coisa que melhore.
— Já vai melhorar.
— Mas não me olha assim, Molina, como se eu fosse o culpado.
— Como é que eu estou olhando?
— Fixo.
— Você é louco, porque pelo fato de olhar não estou pondo a culpa de nada
em você. Culpa de quê? Está louco?
— Bem, se briga é sinal que já está melhor.
— Não, não estou melhor, ficou um abatimento enorme.
— Tua pressão deve ter baixado. Bem, vou estudar um pouco.
— Conversa um pouquinho, Valentín, anda.
— Não, esta é a hora de estudo. E tenho que cumprir o plano de leitura, você
sabe.
— Um dia só, que diferença faz...
— Não, se deixar um dia posso me acostumar.
— A preguiça cria hábito, dizia sempre minha mãe.
— Até logo, Molina...
— Que vontade de ver minha mãe, daria tudo por estar um pouco com ela
hoje.
— Vamos, cala um pouco a boca, tenho muito que ler.
— Você é um chato.
— Não tem uma revista à mão?
— Não, e ler me faz mal, fico tonto só de olhar as fotografias, não me sinto
bem.
— Desculpa, mas se se sente mal devia ir para a enfermaria.
— Está bem, Valentín. Estuda, você tem razão.
— Não seja injusto, nem fale comigo nesse tom.
— Desculpa. Estuda tranquilo.
— Hoje à noite conversamos, Molina.
— Você me conta um filme.
— Não sei nenhum, você conta.
— Eu gostaria muito que agora você me contasse um. Um que eu não tenha
visto.1
— Começando porque não me lembro de nenhum, e continuando porque
tenho que estudar.
— Tua vez chegará e você vai ver... Não, falo de brincadeira, sabe o que é
que eu vou fazer?
— O quê?
— Vou pensar para mim mesmo em algum filme, algum que você não goste,
bem romântico. E assim me distraio.
— Claro, é uma boa ideia.
— E hoje à noite você me conta algo sobre o que leu.
— Ótimo.
— Porque estou meio abobalhado, e não sei se vou me lembrar dos detalhes
de um filme para contar.
— Pensa em alguma coisa bonita.
— E você, estuda, não enche mais o saco... e lembra, porque a preguiça cria
hábito.
— De acordo.

— um bosque, lindas casinhas de pedra — e telhados de palha? De telhas,


neblina no inverno, se não houver neve é outono, só neblina, a chegada dos
convidados em confortáveis carros cujos faróis iluminam o caminho de
cascalho. O portão elegante, se estiverem abertas as janelas é verão, um dos
mais bonitos chalés da zona, ar embalsamado em perfume de pinheiros. A sala
de estar iluminada com castiçais, não foi acesa — dada a noite estival — a
lareira em volta da qual se dispõe a mobília de estilo inglês. Em vez de dar para
o fogo as poltronas estão de costas, ficam de frente para o piano de cauda de
madeira, de pinho? acaju?, sândalo! O pianista cego, cercado por seus
convidados, os olhos quase sem pupila não enxergam o que está na frente, isto é,
as aparências; enxergam outras coisas, aquelas que realmente contam. A
primeiríssima audição do concerto que o cego acaba de compor, a ser executado
para os amigos aquela noite: as mulheres com lindos vestidos longos, não de
grande luxo, apropriados para a ceia campestre. Ou talvez móveis rústicos,
estilo provençal, e ambiente iluminado por lampiões de querosene. Casais muito
felizes, jovens, maduros, e alguns velhos, olhando para o cego já pronto para
executar sua música. Silêncio, uma explicação do cego referente ao fato verídico
em que se inspira sua composição, uma história de amor ocorrida naquele
mesmo bosque. O relato, anterior ao concerto para permitir aos convidados
uma compreensão maior da música, “tudo começou numa manhã de outono em
que eu caminhava pelo bosque”, uma bengala e um cachorro como guia, muitas
folhas caídas das árvores formando um tapete, suave barulho dos passos,
craque-craque das folhas ao partir-se como que rindo, o riso do bosque?, nas
imediações de um velho chalé, o cego ao passar junto da porteira tateando com
sua bengala a certeza de achar-se diante de um fenômeno estranho, uma casa
embrulhada em algo esquisito, embrulhada em quê? em nada visível, dada sua
cegueira. Uma casa embrulhada em algo esquisito, de suas paredes tampouco se
desprende música, as pedras, as vigas, o reboco tosco, a hera colada às pedras
que palpitam, estão vivas, o cego permanece um momento imóvel. As
palpitações cessam, do bosque lentamente se aproximam passos tímidos em
direção àquela mesma casa. Uma jovem, “não sei se o senhor e seu cachorro
são os donos do chalé, ou os dois se perderam?”, e é tão doce a voz daquela
jovem, que modos finos, certamente é bela como uma alvorada, e embora não
consiga fitá-la nos olhos bastará eu tirar o chapéu para cumprimentá-la.
Coitadinho do cego, não sabe que sou uma pobre empregada e tira o chapéu, o
único ser que não disfarça sua admiração por me ver tão feia, “O senhor mora
nesta casinha?”, “Não, passava por aqui e resolvi fazer uma pausa”. “Será que
o senhor se perdeu? posso lhe mostrar o caminho, nasci na comarca”, ou se diz
aldeia? comarca e aldeia são de antigamente, e povoados são os da Argentina,
não sei qual será o nome destas povoações em bosques elegantes dos Estados
Unidos: minha mãe assim como eu era uma empregada e me levou a Boston em
pequena, e agora que ela morreu fiquei inteiramente sozinha no mundo e voltei
para o bosque, e estou procurando uma casa de uma mulher sozinha, me
disseram que precisa de empregada. Ranger de uma porta nas dobradiças,
depois a voz amarga da solteirona, “O que é que Os senhores desejam?”, dá a
impressão que foi incomodada. Despedida do cego, entrada da jovem feia na
casinha. Carta de recomendação para a solteirona, trato para ficar lá como
empregada, explicação da solteirona, aviso da chegada iminente dos inquilinos,
“parece mentira mas no mundo existem pessoas felizes embora custe acreditar,
você vai ver quando chegarem que belo casal de noivos. Para que é que eu
quero esta casa tão grande? Me conformo com um lindo quartinho no andar de
baixo, e você no fundo no quarto da criada”. Bela sala de estar estilo rústico,
madeira envernizada e pedra, lenha crepitante na lareira, janela invadida pelas
heras. Vidros grandes não, painéis pequenos formando um quadriculado, tudo
um pouco desajeitado, rústico, e a escada de madeira escura e encerada em
direção ao quarto do casal, e o estúdio para o rapaz, arquiteto? Quanto corre-
corre para deixar tudo arrumado aquela tarde, supervisão da faxina, a cargo da
solteirona, jeito de mulher muito má, o arrependimento após cada pito devido à
técnica imperfeita da limpeza da empregadinha, “desculpe, sou muito nervosa e
não me controlo”. Mas com uma voz de má e melhor seria que não lhe tivesse
pedido desculpas. Só me falta lavar este vaso da solteirona e colocar as flores,
um carro se aproxima! O casal que desce do carro, uma moça loira divinamente
vestida, casaco de pele, visom? empregada olhando da janela, o rapaz de costas
fechando o carro, a pressa da empregadinha para arrumar as flores, a sujeira
no chão da água do vaso ao cair mas dei uma segurada com minhas mãos
toscas e evitei que se quebrasse, a curiosidade de ver os noivos entrarem, a
empregada abaixada enxugando o chão, as palavras da solteirona mostrando a
casa, a voz do rapaz de uma alegria que não se contém, a voz da noiva não
muito feliz com a casa ou melhor com o isolamento da zona de bosques, tenho
coragem de levantar a cabeça e olhá-los? cabe a uma empregada cumprimentar
ou não? A voz da noiva bastante antipática, exigente, olhar rápido da
empregada para onde está o rapaz, mais bonito que podia ser, e ele que nem a
cumprimenta.
Muitas queixas da noiva por causa da solidão de uma casa no bosque e da
tristeza, que a invadiria ao cair da noite. Impossibilidade de desiludi-lo, acordo
final para alugar a casa, palavra empenhada, promessa de escrever e mandar
contrato por carta, com cheque, chegada mais ou menos marcada para poucos
dias após o casamento. Ordem do rapaz à empregada para ela sair de lá
daquela sala, a empregada começando a colocar as flores no vaso, vontade do
rapaz de ficar a sós com a noiva. “Espere só um minuto que acabo de arrumar
as flores”, “já está bem assim, vá embora, estou lhe dizendo”. Vontade de sentar
com a noiva junto da janela e olhar para o bosque segurando-lhe aquelas mãos
suaves, de unhas compridas pintadas, mãos de mulher não afeita a trabalhos
domésticos. Antiga inscrição num dos vidros grossos biselados da janelinha,
toscamente lavrada: o nome de um casal e embaixo uma data, 1914. Pedido do
rapaz para ela tirar o anel de noivado e entregar a ele, uma pedra grossa
cortada em losango, vontade também de esculpir com o anel os nomes de ambos
num vidro daqueles. Mas a pedra cai ao começar a escrever o nome da noiva, de
seu engaste a pedra caiu no chão. Silêncio de ambos, temor inconfessado de um
mau pressentimento, música de agouro, sombra da solteirona que se profeta no
jardim sem folhas. Partida de ambos pouco depois, despedida até muito breve,
medo crescente de maus presságios, difíceis de esquecer. Como é triste às vezes
o outono! tardes ensolaradas mas curtas, longos crepúsculos, relato da
solteirona à empregadinha, “eu também certa vez estive a ponto de casar”.
Início da guerra em 1914, morte do noivo no front, tudo preparado: a casinha
de pedra no bosque, um belo enxoval, toalhas de mesa e lençóis e cortinas
bordados por ela, “cada ponto que eu dera naquelas fazendas tão finas era
como que uma declaração de amor”. Quase trinta anos atrás, um amor intato, a
inscrição dos nomes na janela no dia da despedida. “E continuo amando-o
como naquele tempo e, pior ainda, continuo sentindo falta dele como naquela
tarde em que foi embora e fiquei aqui sozinha.” E que triste, mais que nunca é
triste esta tarde de outono, a terrível notícia pelo rádio, a entrada do país em
outra guerra, a segunda e inútil guerra mundial. Ontem é hoje, choro
desconsolado da solteirona no quarto, a empregadinha treme de frio, poucas
brasas apagadas na lareira, não vale a pena pôr lenha a arder só para ela ali
abandonada do mundo naquela sala de estar, com uma pá ela tira cuidadosa as
cinzas do último fogo. Poucos dias depois a chegada de uma carta, do rapaz
anteriormente interessado na casa, ou melhor, já praticamente inquilino, aviso
de seu alistamento na força aérea e portanto casamento adiado, desculpas por
ter que romper o contrato, a história se repete? Desnecessário presença de
empregada agora na casa, falta do que fazer dos inquilinos, o dia todo na janela
olhando para a chuva, sem nada que fazer, fala sozinha...

— Não fica cansado de ler?


— Não. Como se sente?
— Estou começando a entrar na maior depressão.
— Vamos, vamos, não seja frouxo, companheiro.
— Não se cansa de ler com essa luz tão ruim?
— Não, já estou habituado. Mas da barriga, como se sente?
— Um pouco melhor. Conta o que você está lendo.
— Como posso contar? é filosofia, um livro sobre o poder político.
— Mas alguma coisa há de dizer, não?
— Diz que o homem honesto não pode abordar o poder político, porque seu
conceito de responsabilidade o impede.
— E tem razão, porque todos os políticos são uns ladrões.
— Para mim é ao contrário, quem não age politicamente é porque tem um
conceito falso de responsabilidade. Antes de mais nada minha responsabilidade é
que não continue morrendo gente de fome, e vou lutar por isso.
— Carne de canhão. Isso que você é.
— Se você não entende nada cala a boca.
— Não gosta de ouvir a verdade...
— Que ignorante! Se não entende não fala.
— Por qualquer coisa você fica com tanta raiva...
— Chega! Me deixa ler.
— Está bem. Algum dia que você se sentir mal vou fazer a mesma coisa.
— Molina, cala a boca de uma vez!
— Está bem, em outro momento vou te dizer algumas verdades.
— De acordo. Até logo.
— Até logo.

— explicação da solteirona, autorização para a empregada ficar na casa se


não tiver aonde ir, a tristeza da solteirona e a tristeza, da empregadinha, soma
de duas tristezas, melhor sozinhas que refletidas uma na outra, embora outras
vezes melhor juntas para compartilhar uma lata de sopa que traz duas porções.
Inverno rigorosíssimo, neve por toda parte, silêncio profundo que a neve traz,
amortecido pelo manto branco o ruído de um motor que para lá na frente da
casa, as janelas embaçadas por dentro e semicobertas de neve por fora, o punho
da empregada esfrega uma rodela de vidro, o rapaz de costas fechando o carro,
alegria da empregada, por quê?, passos rápidos até a porta, vou voando abrir a
porta para este rapaz tão alegre e alinhado e que venha para aqui com a noiva
má!... “aaah!!!, desculpe!”, vergonha da empregada porque não pôde conter um
gesto de nojo, olhar turvo do pobre rapaz, seu rosto de aviador sem medo
atravessado agora por uma terrível cicatriz. A conversa do rapaz com a
solteirona, o relato do acidente e de seu atual colapso nervoso, a
impossibilidade de voltar ao front, a proposta de alugar a casa ele sozinho, a
pena da solteirona ao vê-lo, a amargura do rapaz, as palavras secas da
empregadinha, as ordens secas “traga-me o que peço e deixe-me sozinho, não
faça barulho que estou muito nervoso”, o rosto lindo e alegre do rapaz na
lembrança da empregadinha e me pergunto: o que é que torna um rosto bonito?
por que sinto tanta vontade de acariciar um rosto bonito? por que sinto vontade
de ter sempre perto de mim um rosto bonito, de acariciá-lo e beijá-lo? um rosto
bonito tem que ter um nariz pequeno, mas às vezes os narizes grandes também
têm graça, e os olhos grandes, ou que sejam olhos pequenos mas que sorriam,
olhinhos de bom... Uma cicatriz da ponta da testa que corta uma sobrancelha,
corta a pálpebra, retalha o nariz e se afunda na face do lado contrário, uma
risca em cima de um rosto, um olhar em turvo, olhar de mau, estava lendo um
livro de filosofia e por que fiz uma pergunta me lançou um olhar turvo, como é
ruim que alguém lance um olhar turvo, o que é pior, um olhar turvo, ou que não
te olhem nunca? mamãe nunca me lançou um olhar turvo, condenaram-me a
oito anos por me meter com um menor mas mamãe não me olhou turvo, mas
mamãe pode morrer -por minha causa, o coração cansado de uma mulher que
sofreu muito, um coração cansado — de tanto perdoar? — tantos desgostos a
vida toda ao lado de um marido que não a compreendeu nunca, e depois o
desgosto de um filho afundado no vício, e o juiz não me perdoou nem um dia, e
disse na frente dela que eu era o fim, o pior, uma bicha asquerosa, para que
nenhum menino se aproximasse de mim por causa disso ele me condenava a nem
um dia menos do que a lei manda, e, depois que falou isso tudo, mamãe tinha os
olhos fixados no juiz, cheios de lágrimas como se alguém tivesse morrido, mas
quando se virou e olhou para mim fez um sorriso, “os anos passam depressa e
se Deus me ajudar estarei viva”, e tudo vai ser como se nada tivesse acontecido,
e, a cada minuto que passa, o coração bate, cada vez mais fraco? que medo que
o coração dela se canse e que já não possa mais bater, mas eu não falei nem
uma -palavra com este filho da puta, jamais contei uma palavra sobre minha
mamãe, porque se tiver coragem de falar besteiras eu mato este filho da puta, o
que é que ele sabe de sentimentos? o que é que sabe de morrer de sofrimento? o
que é que ele sabe de carregar a culpa de que minha mãe doente fique cada vez
mais grave? minha mãe está grave? minha mãe está morrendo? não vai esperar
por mim sete anos até eu sair? o diretor da penitenciária cumpre a promessa?
será verdade o que me promete? indulto? redução da pena? um dia a visita dos
pais do aviador ferido, o aviador fechado no quarto do andar de cima, “diga a
meus pais que não quero vê-los”, a insistência dos pais, um casal de grã-finos
ricos e frios como gelo, a retirada dos pais, a chegada da noiva, “diga a minha
noiva que não quero vê-la”, a noiva implorando na escada, “deixa eu ver você,
querido, porque juro que não me importa nada teu acidente”, a voz hipócrita da
noiva, a falsidade de tudo o que fala, a retirada repentina da noiva, o passar dos
dias, os desenhos que o rapaz faz trancado no estúdio, a visão do bosque
gelado, pela janela, os primeiros sinais da primavera, os brotos muito tenros e
verdes, alguns desenhos de árvores e nuvens feitos ao ar livre, a chegada da
empregada ao bosque com café quente e algumas rosquinhas, um palpite da
empregada sobre o desenho colocado na prancheta, a surpresa do rapaz ferido,
o que é que a garota dizia sobre aquele desenho? por que é que o rapaz percebe
naquele momento que a empregadinha tem uma alma fina? por que às vezes
alguém diz alguma coisa e conquista outra pessoa? o que foi que a
empregadinha disse sobre aquele desenho? como conseguiu que ele percebesse
que ela era alguma coisa mais que uma empregadinha feia? Como gostaria de
lembrar aquelas palavras, o que foi que ela disse? não me lembro nada daquela
cena, e depois outra cena importante, o encontro dele com o cego, a narrativa
do cego sobre como pouco a pouco foi se conformando de ter perdido a visão, e
uma noite a proposta do rapaz à moça, “nós dois estamos sozinhos e não
esperamos mais nada da vida, nem amor, nem alegria, por isso é possível que
possamos nos ajudar um ao outro, eu tenho um pouco de dinheiro que pode ser
uma segurança para você, e você pode tomar conta de mim um pouco, minha
saúde está cada vez pior, e não quero por perto ninguém que tenha pena de mim,
e você não pode ter pena de mim porque está tão só e triste quanto eu, e então
podemos juntar-nos mas sem que isso signifique nada além de um contrato, um
acordo, nada mais que entre amigos. Terá sido o cego quem deu a ideia? que foi
que disse que eu não lembro? às vezes uma palavra pode fazer milagres. A
igreja de madeira, o cego e a solteirona servem de testemunhas, algumas velas
acesas no altar sem flores, os bancos vazios, os rostos graves, vazios o lugar do
organista e a plataforma do coro, as palavras do padre, a bênção, o ressoar dos
passos na nave vazia à saída dos noivos, a tarde que cai, a volta para casa em
silêncio, as janelas abertas para deixar entrar o ar morno do verão, a cama dele
mudada para o estúdio, o quarto da empregada mudado para o quarto dele,
para o ex-quarto dele, a ceia do casamento já preparada pela solteirona, a mesa
com dois talheres na sala de estar junto da janela grande, o castiçal entre ambos
os pratos, o boa-noite da solteirona, seu ceticismo diante de um simulacro de
amor, o ricto amargo de sua boca, o casal em silêncio total, a garrafa de vinho
antigo, o brinde sem palavras, a impossibilidade de olhar-se nos olhos, o cricri
dos grilos lá no jardim, o leve rumor — nunca ouvido até então — das copas do
bosque que a brisa balança, o resplendor estranho nunca visto até então — dos
castiçais, o resplendor cada vez mais estranho, o contorno esfumado de todas as
coisas, o rosto dela tão feio, o rosto dele desfigurado, a música quase
imperceptível e muito doce que não se sabe de onde vem, a cara dela e toda a
sua silhueta envolvida em bruma e luz branca, só é perceptível o brilho dos
olhos, a bruma que vai se esfumando pouco a pouco, uma agradável cara de
mulher, a mesma cara de empregadinha mas embelezada, suas toscas
sobrancelhas transformadas em linhas de lápis, seus olhos iluminados por
dentro, suas pestanas alongadas em arco, sua pele de porcelana, sua boca
entreaberta num sorriso de dentes perfeitos, seu cabelo ondulado em cachos
sedosos, e o vestido simples de percal? um elegante soirée de renda, e ele?
impossível perceber seus traços, a visão distorcida pelos reflexos dos castiçais
ou também como através de olhos cheios de lágrimas, a cara dele vista por
olhos cheios de lágrimas, as lágrimas secam, a cara dele vista com toda a
clareza, uma cara de rapaz alegre e bonito a não mais poder, mas com as mãos
tremendo, não, ela com as mãos tremendo, a aproximação da mão dele à mão
dela, zumbidos de vento nas copas das árvores ou violinos e harpas? o olhar nos
olhos um ao outro, a certeza de que ambos ouvem violinos e harpas que a brisa
perfumada traz das araucárias, a união das mãos, lábios que se aproximam, o
primeiro e úmido beijo, a batida dos corações... em uníssono, a noite coalhada
de estrelas, já estão na mesa... as mesas vazias no restaurante, os garçons
sentados esperando os fregueses, as horas lentas e calmas da madrugada, o
cigarro apenas aceso a um lado da boca, a comissura esquerda ou direita de
seus lábios, sua saliva com gosto de fumo, de fumo forte, o olhar triste perdido
na distância, pela janela a passagem de automóveis molhados pela chuva, um
carro atrás do outro, lembra de mim? por que nunca veio me ver? não podia um
dia trocar de plantão com seu companheiro? terá ido ao médico por causa da
dor de ouvido? ia deixando de um dia para outro, de noite às vezes dores
terríveis, segundo ele jurava então que no dia seguinte ia se consultar, no dia
seguinte a dor passava e se esquecia de ir ao médico, e de noite com certeza que
na hora de esperar os fregueses da madrugada no restaurante ele se lembra e
pensa e diz que amanhã vem me ver, e olha pelo vidro e os automóveis passam, e
a coisa mais triste é se no restaurante os vidros da frente ficaram molhados por
causa da chuva, como se o restaurante tivesse começado a chorar, porque ele
nunca afrouxa, aguenta porque é homem e não solta as lágrimas, e quando
penso muito intensamente em alguém vejo na lembrança a cara refletida, sobre
um vidro transparente e molhado pela chuva, a cara esfumada que vejo em
minha lembrança, a cara de mamãe e a cara dele, ele lembra na certa, e tomara
que viesse, tomara que viesse, primeiro um domingo, e depois tudo na vida é
questão de hábito, vem outro dia, e outro, e quando vier o indulto ele me espera
na esquina da penitenciária, tomamos um táxi, a união das mãos, o primeiro
beijo é tímido e seco, os lábios fechados são secos, os lábios já entreabertos são
um pouco mais úmidos, a saliva com gosto de fumo? e se eu morrer antes de sair
desta prisão não vou saber que gosto tem a saliva dele, que foi que aconteceu
aquela noite? ao acordar o medo de que tudo fosse um sonho, um medo infinito
e um olhar de um para outro na luz do dia., naquela casa moram uma jovem
linda e um rapaz bonito a mais não poder. E se escondem da solteirona, que não
os veja nunca, têm medo que ela diga alguma coisa e ponha tudo a perder, e
saem para o bosque de madrugada, quando não tem ninguém, para ver o nascer
do sol que ilumina suas caras tão bonitas e sempre tão próximas uma da outra,
ao alcance de se beijar como quiserem, mas que ninguém os veja, porque podem
acontecer coisas estranhas, passos no bosque aquela madrugada! impossível
esconder-se dado que os troncos não são tão enormes, passos lentos de um
homem que vai calcando o rocio da grama, e atrás um cachorro... é somente o
cego! que alívio, porque não os enxerga, mas cumprimenta porque ouviu suas
respirações, o cumprimento cordial e sincero, a intuição do cego de que alguma
coisa mudou, os três de volta à casa do encantamento, o apetite da manhãzinha,
o desjejum à americana, a moça encarregada de preparar tudo, ficam um
momento sozinhos o cego e o rapaz, o cego pergunta o que foi que aconteceu, o
relato, alegria do cego, de repente um negro relâmpago de medo na retirada
branca ao cego ao ouvir esta simples frase: “Sabe de uma coisa? vou chamar
meus pais para que venham nos ver a mim e à minha amada esposa”, o esforço
do cego para disfarçar seus grandes temores, o anúncio da chegada dos pais
dele que aceitaram o convite, o rapaz e a moça esperando os pais sem terem
coragem de descer do quarto, a solteirona esperando embaixo, o automóvel que
chega, a conversa dos pais com a solteirona, a felicidade dos pais porque ele
escreveu dizendo que ficou bom, o aparecimento do rapaz e da moça no alto da
escada, a amarga decepção dos pais, uma bruta cicatriz atravessa a cara do
rapaz, sua noiva é uma pobre empregada de rosto muito feio e maneiras
desajeitadas, a impossibilidade de fingir agrado, após breves momentos o rapaz
desconfia, será que tudo foi um engano? será que nós não mudamos? o olhar
para a solteirona na esperança que ela o ache bonito como antigamente, o ricto
amargo na boca da solteirona, a carreira da moça até o espelho, a realidade
cruel, o rapaz ao lado dela lá no espelho, a infame cicatriz, o refúgio da
escuridão, o terror de olhar um para o outro, o ruído do motor do automóvel
dos pais, o ruído do motor já longe rumo à cidade, a moça refugiada em seu
antigo quarto de empregada, o desespero dele, a destruição do autorretrato dele
abraçado à moça, golpes alucinados até reduzir o retrato a pedaços, solteirona
que chama o cego, a visita do cego num entardecer de outono, a conversa com o
rapaz enfermo e a moça feia, as luzes apagadas para evitar que se vejam, três
cegos reunidos na hora mais triste do dia, a solteirona escutando atrás da porta,
“não percebem o que está acontecendo? por favor, depois de eu falar, tornem a
se olhar na cara como antigamente, sei que não o fizeram estes dias todos, que
se esconderam um ao outro, e é tão simples explicar o encantamento deste belo
verão que acabam de passar felizes, simplesmente... vocês são belos um para o
outro, porque se amam e não veem o rosto, só a alma, por acaso é tão difícil de
compreender? eu não peço para se olharem já, mas quando eu for embora...
sim, sem o menor medo, porque o amor que palpita nas velhas pedras desta casa
fez mais um milagre: o de permitir que, como se fossem cegos, não se vissem o
corpo mas só a alma”. A partida do cego com os últimos reflexos avermelhados
do entardecer, a subida do rapaz para preparar-se para o jantar, a mesa posta
pela moça, o medo da moça de enfrentar o espelho para arrumar-se e se
pentear, os passos seguros da solteirona entrando no quarto da empregadinha,
os olhos da solteirona perdidos na distância, suas palavras de ânimo, a
impossibilidade da moça se pentear devido ao tremor das mãos, as palavras da
solteirona que começa a penteá-la, “eu ouvi o que o cego disse e dou toda a
razão a ele, esta casa esperava hospedar dois seres amantes desde que meu
noivo não-pôde voltar das cruéis trincheiras da frança, e vocês são os eleitos: e
o amor é assim, embeleza quem consegue amar sem nada esperar em
compensação. E tenho certeza de que se meu noivo voltasse hoje do além me
encontraria bonita e jovem como eu era antigamente, sim, tenho certeza, porque
morreu me amando”, a mesa posta junto da janela, a moça de pé olhando
através dos vidros o bosque sumido na escuridão, os passos dele, o temor de se
virar e olhá-lo, a mão dele que a segura pela mão, tira-lhe o anel e escreve no
vidro seus nomes, a carícia dele no cabelo sedoso dela, a carícia dele na pele
que é de porcelana, o sorriso dele bonito a não mais poder, o sorriso dele de
dentes perfeitos, o beijo tímido da felicidade, o fim da história contada pelo
cego, os primeiros acordes do doce concerto, a chegada na ponta ao pé de
outros convidados, que são o rapaz e a moça, veem-se de costas, estão
elegantes, mas de costas não dá para saber se as caras são bonitas ou feias, e
ninguém percebe que são os protagonistas da história que acabam de ouvir, e
mamãe gostou muito, e eu também, por sorte eu não contei para este filho da
puta, não vou contar nem mais uma palavra de coisas que eu gosto, deixa ele rir
dizendo que sou frouxo, vamos ver se ele não afrouxa, não vou contar nunca
mais um filme dos que eu gosto mais, esses são para mim sozinho, em minha
lembrança, que não os toquem com palavras sujas, esse filho da puta e sua puta
de merda de revolução.

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— A comida está para chegar, Molina.


— Ah, você tinha língua.
— Sim, tenho língua.
— Pensei que os ratos tinham comido.
— Não comeram não.
— Então por que você não se agacha e enfia no rabo?
— Desculpa, mas não gosto da confiança que você está tomando.
— Perfeito, não falemos nem mais uma palavra, entende? nem uma só.
— Não, obrigado.
— Pega o prato maior.
— Não, pega você.
— Obrigado.
— De nada.

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1 Depois de ter classificado em três grupos as teorias sobre a origem física do

homossexualismo, e de tê-las refutado uma a uma, o já citado pesquisador inglês


D. J. West, em sua obra Psicologia e psicanálise da homossexualidade, também
considera que são três as interpretações não-científicas vulgarmente mais
generalizadas sobre as causas do homossexualismo. West faz um preâmbulo
assinalando como carentes de perspectiva os teóricos que tacharam de
antinaturais as tendências homossexuais, às quais atribuíram, sem conseguir
demonstrá-lo, causas glandulares ou hereditárias. Estranhamente, West
contrapõe aos citados teóricos, como algo mais avançada, a visão que a Igreja
tem do problema. A Igreja classificou o impulso homossexual simplesmente
como um dos vários impulsos “malignos”, mas de índole natural, que tomam
conta das pessoas.
A psiquiatria moderna, em compensação, concorda em reduzir ao campo
psicológico as causas do homossexualismo. Apesar disso subsistem, como
assinala West, teorias difundidas entre o povo, carentes de qualquer base
científica. A primeira entre as três seria a teoria da perversão, segundo a qual o
indivíduo adotaria o homossexualismo como um vício qualquer. Mas o erro
fundamental radica em que o viciado escolhe deliberadamente o desvio que mais
lhe apetece, enquanto o homossexual não pode desenvolver um comportamento
sexual normal embora se proponha isso, porquanto mesmo conseguindo realizar
atos heterossexuais dificilmente poderá eliminar seus mais profundos desejos
homossexuais.
A segunda teoria conhecida entre o povo é a da sedução. Em seu trabalho
Comportamento sexual de jovens criminosos, T. Gibbons indaga a respeito e
concorda com West e outros pesquisadores em que mesmo que um indivíduo
tenha sentido desejos homoeróticos — conscientes pela primeira vez —
estimulado por uma pessoa do seu mesmo sexo que se propôs seduzi-lo, esta
sedução — que ocorre quase sempre na juventude — somente pode explicar que
ele se inicie em práticas homossexuais; não pode, entretanto, justificar que se
detenha o fluxo de seus desejos heterossexuais. Um incidente isolado dessa
natureza não pode explicar o homossexualismo permanente, que na maioria dos
casos também é exclusivo, isto é, incompatível com atividades heterossexuais.
A terceira teoria aludida é a da segregação, segundo a qual aqueles jovens
criados somente entre rapazes, sem contato com mulheres, ou vice-versa,
mulheres criadas sem contato com rapazes, iniciariam práticas sexuais entre si
que os marcariam para sempre. S. Lewis, em sua obra Surpreendido pela alegria,
esclarece que, por exemplo, os alunos internos terão provavelmente suas
primeiras experiências sexuais com outros rapazes, mas a frequência das práticas
homossexuais nos internatos é mais vinculada à imperiosa necessidade de uma
descarga sexual que à livre escolha do objeto amoroso. West acrescenta que só
da falta de contato psicológico com o sexo feminino, ocasionado pela segregação
total que comporta um internato, ou pela segregação simplesmente espiritual de
certos lares, pode resultar uma determinante de homossexualismo mais
importante que a realização de jogos sexuais nos colégios de alunos internos.
A psicanálise, cuja característica principal é a sondagem da memória para
despertar recordações infantis, sustenta, precisamente, que as peculiaridades
sexuais têm origem na infância. Na Interpretação dos sonhos, Freud afirma que
os conflitos sexuais e amorosos estão na base de quase todas as neuroses
pessoais: solucionados os problemas da alimentação e da proteção contra a
intempérie — teto e roupas —, surge para o homem a emergência de sua
satisfação sexual e afetiva. A essa apetência combinada se denomina "libido", e
ela se faria sentir desde a infância. Freud e seus seguidores sustentam que as
manifestações da libido são muito variadas, mas que as regras da sociedade
obrigam a vigiá-las constantemente, sobretudo para preservar a célula base do
conglomerado social: a família. As duas manifestações mais inconvenientes da
libido resultariam portanto nos desejos incestuosos e homossexuais.
6
— Tinha jurado que não ia te contar outro filme. Agora vou para o inferno
por não cumprir a palavra.
— Você não imagina como dói. As pontadas são brutais.
— Eu senti a mesma coisa ontem.
— Parece que dá cada vez mais forte, Molina.
— Mas, então, você devia ir para a enfermaria.
— Não seja teimoso. Já disse que não quero ir.
— Se te derem um pouco de seconal, mal não faz.
— Faz sim, a gente se habitua. Você fala porque não sabe.
— Bem, te conto o filme... Mas como é a história do seconal que eu não sei?
— Nada...
— Vamos, fala, deixa de bobagem. Aliás, eu não posso contar para ninguém.
— São coisas de que não posso falar porque nós do movimento temos um
compromisso.
— Mas conta só a história do seconal, assim eu também não deixo que me
tapeiem com isso, Valentín.
— Promete que não conta para ninguém.
— Prometo.
— Aconteceu com um companheiro, criaram o hábito nele, e o amoleceram,
tiraram-lhe a vontade. Um preso político nunca deve ir para a enfermaria, ouviu,
nunca. Eles não podem te fazer nada por causa disso. Mas a nós sim, depois nos
interrogam e aí já não temos resistência, nos fazem soltar o que quiserem... Ai,
ahm... olha, são umas pontadas tão fortes... como se me abrissem um buraco...
Parece que estão me enfiando um punhal na barriga.
— Bem, vou contar, assim você se distrai um pouco e não pensa na dor.
— O que é que você vai me contar?
— Um filme e tenho certeza que vai gostar.
— Ai... É foda!...
— ...
— Conta, não tem importância que eu me queixe, pode continuar.
— Bem, começa... onde foi que acontecia? Porque acontece em muitos
lugares... Mas antes de mais nada quero esclarecer uma coisa: não é um filme
que eu goste.
— E então?
— É desses filmes que agradam aos homens, por isso vou te contar, você está
doente.
— Obrigado.
— Como é que começava?... Espera, sim, naquele circuito de corridas de
automóveis, não me lembro do nome, no sul da França.
— Le Mans.
— Por que será que os homens sempre sabem tudo a respeito de corridas de
automóveis? Bem, lá corre um rapaz sul-americano, muito rico, um playboy,
desses filhos de fazendeiros que têm plantações de banana, e estão nas provas, e
ele explica para um outro que não corre para nenhuma marca de automóvel
porque todos os fabricantes são uns exploradores do povo. Corre com um carro
que ele mesmo fabricou, porque é um cara assim, com um espírito muito
independente. E estão nas provas e vão beber um refresco enquanto não chega a
vez, e está contentíssimo porque segundo todos os cálculos ele vai se classificar
fantasticamente bem na prova, segundo todos os prognósticos dos que viram
como corria a máquina dele naquela pista e, claro, vai ser um golpe terrível para
as grandes marcas de automóveis se esse cara ganhar, assim desse jeito. Bem,
enquanto estão bebendo o refresco se vê alguém chegar junto do carro dele, um
dos zeladores do estande percebe mas se faz de bobo porque já estão
combinados. Aquele que se aproximou, com uma cara de filho da mãe que vou
te contar, dá um toque no motor, desparafusa alguma coisa e vai embora. O rapaz
volta e põe o capacete para arrancar já para a prova. E larga fantástico, mas na
terceira volta o motor pega fogo e ele mal consegue se salvar. Escapa são e
salvo, mas...
— Ai... que os pariu... que dor.
— ...mas o carro fica destruído. Junta-se ao seu grupo e diz que está tudo
acabado, que não há mais dinheiro para fabricar outro carro, e vai para Monte
Carlo, perto dali, onde está o pai, num iate com uma guria mais moça, de parar o
trânsito. Ou melhor, o pai recebe o telefonema do filho no iate, e marcam
encontro no terraço da suíte do velho no hotel onde está hospedado. E a guria
não vai porque o velho tem escrúpulos com o filho, percebe-se que gosta muito
dele porque fica contente quando recebe o telefonema. O que o filho pensa é lhe
pedir mais dinheiro, mas falta coragem, sente vergonha por ser um vagabundo
que não faz nada, mas quando se encontra com o pai, o velho o abraça com tanto
carinho e diz para ele não se preocupar por causa da destruição do carro, que já
pensara o que fazer para que o filho fabrique outro carro, embora tenha medo de
vê-lo arriscando a vida nas corridas. Então o filho diz que já trataram desse
assunto, é claro, porque o pai o empurrou para que ele entrasse para esse negócio
de corridas, sabendo que era a grande paixão do rapaz, assim se afastava dos
centros políticos de estudantes de esquerda, porque o rapaz estudava em Paris,
filosofias da política.
— Ciências políticas.
— É isso. E então o pai lhe pergunta por que ele não corre para uma marca
de automóveis conhecida, tentando mais uma vez encaminhar o filho para uma
coisa segura. Então o filho se aborrece, diz ao pai que já conseguiu bastante ao
tirá-lo do ambiente de Paris, e que enquanto estava absorvido com a construção
do carro tinha esquecido de tudo, mas isso de se colocar a serviço daqueles
polvos internacionais da indústria, essa não! então o pai fala o que nunca devia
ter falado, é que quando o ouve falar assim enfurecido se lembra de sua ex-
mulher, mãe do rapaz, tão passional, tão idealista, tudo aquilo para quê... para
acabar como acabou. Então o rapaz faz meia volta para ir embora, e o pai
arrependido diz para ele ficar, que vai lhe dar todo o dinheiro necessário para
fabricar um carro novo, e sei lá, mas o filho, nota-se que tem um fraco especial
pela mãe, sai batendo a porta. O pai fica pensativo, realmente muito preocupado,
olhando pela janela o cais lindo de Monte Carlo com todos os iates iluminados,
todos cercados por lampadazinhas nos mastros e nas velas, um sonho, e nisso
toca o telefone e é aquela guria moça, e o velho pede desculpas e diz que não vai
ao cassino aquela noite, que está com um problema grave e tratando de resolvê-
lo. Bem, e o rapaz ao sair do hotel se encontra com um grupo de amigos que o
pegam e o levam para uma festa. E o rapaz está tão deprimido que o que ele faz
na festa é levar uma garrafa de conhaque para um quarto, bem, não te disse que a
cena se passa numa vila de sonho, nos arredores de Monte Carlo, daquelas casas
da Riviera que são de um luxo inacreditável, com escadarias nos jardins, e
sempre com adornos nas balaustradas e naquelas escadarias que te contei umas
taças grandes de pedra, como vasos de plantas, umas taçonas, com belas plantas
que crescem por dentro, e quase sempre cactos gigantescos, você conhece a
planta da pita?
— Conheço.
— Bem, dessas. E o rapaz se instalou num quarto longe da festa, a biblioteca,
e fica lá se embebedando sozinho. Quando vê alguém chegar, uma mulher já um
pouco madura, mas muito elegante e de muita classe, também com uma garrafa
na mão. Como ele está no escuro, apenas com a luz de uma janela aberta, ela não
o vê e também senta e enche um copo, e de repente estouram fogos de artifício
na baía de Monte Carlo, porque é alguma data nacional, e ele aproveita e diz
para ela tchin-tchin. Ela se surpreende, mas quando lhe mostra com um gesto
que os dois fizeram a mesma coisa, carregar uma garrafa de Napoléon para se
esquecerem do mundo, ela não tem outro jeito senão rir. Ele pergunta o que é
que ela queria esquecer, e ela responde que se ele falar primeiro ela vai falar
depois.
— Vontade de ir ao banheiro de novo.
— Chamo para abrirem a porta?
— Não, vou aguentar...
— Isso é pior.
— Vão perceber que não estou bem.
— Não, eles não vão te enfiar na enfermaria por causa de uma diarreia...
— Não, já é a quarta vez que a gente pede hoje, espera um pouco que vou
ver se aguento...
— Você está branco, isso é mais que uma diarreia, se eu fosse você ia para a
enfermaria...
— Cala a boca, por favor.
— Continuo com o filme, mas escuta... uma coisa assim do estômago não
pode ser contagiosa, não? porque é como meu desarranjo, igualzinho... Não vai
me botar a culpa por ter pegado a doença em você, não?
— Deve ser qualquer coisa da comida, que nos caiu mal... Você também
ficou branco assim. Mas passa logo, continua contando...
— Quanto tempo durou?... mais ou menos dois dias.
— Não, uma noite, e no dia seguinte você já estava bem.
— Então chama o guarda, porque uma noite só não tem importância.
— Continua contando.
— Bem. Aí ele se encontra com aquela mulher elegantérrima. Te direi que
ela é bastante madura, uma mulher muito vivida.
— Conta como é que ela é fisicamente.
— Não é muito alta, uma atriz francesa, mas peituda, mas magra ao mesmo
tempo, de cintura fina, um vestido de noite bem cintado, e decote baixo, sem
alças, daqueles decotes armados, lembra?
— Não.
— Sim, rapaz, daqueles que parecia que os peitos estavam numa bandeja.
— Não me faz rir, por favor.
— Eram uns decotes duros, armados com arame por dentro do pano. E elas
muito tranquilas: sirva-se de uma teta, meu caro senhor.
— Te peço, não me faz rir.
— Mas assim você esquece a dor, bobo.
— Estou com medo de me borrar todo.
— Não, por favor. A gente morre na cela. Continuo; bem, acontece que cabe
a ele dizer primeiro por que está bebendo para esquecer. E ele fica muito sério e
diz que bebe para esquecer tudo, absolutamente tudo. Ela lhe pergunta se não
existe nada que quisesse recordar, e ele diz que gostaria que sua vida começasse
naquele momento, a partir da entrada dela naquele quarto, a biblioteca. Então é a
vez dela, e eu imaginava que ela também ia dizer a mesma coisa, que queria
esquecer tudo, mas não, ela diz que tem muita coisa na vida, e que se sente
muito gratificada porque é diretora de uma revista de modas de grande sucesso,
adora o trabalho, e tem filhos adoráveis, e a herança da família, porque acontece
que é dona daquela vila belíssima, que é um palácio, mas, é claro, tem uma coisa
a esquecer: a pouca sorte que teve com os homens. O rapaz diz que sente inveja
por tudo o que ela tem, ele em compensação está a zero. Claro, o sujeito não
quer falar do problema com a mãe, porque ele está com a obsessão do divórcio
dos pais, e se sente culpado por ter abandonado a mãe, que, embora muito rica e
morando numa fazenda linda cheia de cafezais, quando o pai a abandonou casou
com outro homem, ou vai casar, e o rapaz acha que é só para não ficar sozinha.
Ah, sim, já lembro, a mãe escreve dizendo sempre isso, que vai se casar com
outro homem, sem amá-lo, tudo por medo da solidão. E o rapaz se sente muito
mal por ter abandonado seu país, onde os trabalhadores são tão maltratados, e ele
tem ideias revolucionárias mas é filho de multimilionários e ninguém gosta dele,
as pessoas do povo. E também se sente mal por ter abandonado a mãe. E ele
conta tudo isso para aquela dama. Sabe de uma coisa... você nunca falou em sua
mãe.
— Falei sim.
— Por Deus, te juro, nunca nunca.
— É que não tenho nada que contar.
— Obrigado. Te agradeço a intimidade.
— Por que esse tom?
— Nada, quando você ficar bom a gente fala.
— Ai... ai... desculpa... ai... que foi que eu — Não, não limpa com o lençol,
espera...
— Não, deixa, tua camisa não...
— Sim, pega, limpa, você vai precisar do lençol para não se resfriar.
— Mas é tua muda, você fica sem camisa para trocar...
— Anda, espera, levanta, assim não passa, assim, com cuidado, espero que
não passe para o lençol.
— Não passou para o lençol?
— Não, ficou na cueca. Anda, vamos, tira.
— Que vergonha me dá...
— Isso mesmo, devagarzinho, com cuidado... perfeito. Agora a parte mais
grossa, limpa com a camisa.
— Que vergonha...
— Você não dizia que é preciso ser homem... que história é essa de sentir
vergonha?
— Embrulha direito... a cueca, para não soltar cheiro.
— Não se preocupe, eu sei fazer as coisas. Está vendo, assim, tudo bem
embrulhado na camisa, é mais fácil para lavar que o lençol. Pega mais papel.
— Não, do teu não, não vai ficar para você.
— O teu acabou, anda, não enche...
— Obrigado...
— Nada de obrigado, anda, acaba de te limpar e relaxa um pouco, que você
está tremendo.
— É a raiva, uma raiva que me dá vontade de chorar, raiva de mim mesmo.
— Vamos, sossega, não vai se virar contra você mesmo, está louco...
— Sim, tenho raiva de ter me deixado pegar.
— Relaxa, faz um esforço...
— Ah... assim com o jornal embrulhando a camisa o cheiro não vai passar.
— Boa ideia, não é?
— É.
— Trata de relaxar e se cobre bem.
— Sim, conta mais um pouco. Do filme.
— Nem lembro onde estava.
— Você perguntou por minha mãe.
— Sim, mas não me lembro em que parte do filme estávamos.
— Não sei por que não falei nunca em minha mãe. Não sei muito da tua, mas
alguma coisa imagino.
— Eu não imagino nada sobre tua mãe.
— Minha mãe é uma mulher muito... difícil, por isso não falo nela. Nunca
topou as minhas ideias, ela acha que tudo o que tem lhe é devido, a família tem
dinheiro, e certa posição social, entende?
— Sobrenome.
— Sim, sobrenome de segunda categoria, mas sobrenome. Estava separada
de meu pai, que morreu há dois anos.
— Um pouco do filme que eu estava contando.
— Não... está louco.
— Bem, mais ou menos.
— Não. Ai... como isso dói...
— Gosta do filme?
— Estou meio distraído. Mas anda, acaba depressa.
— Então você não gosta.
— Como continua? Diz em poucas palavras como acaba.
— Bem, o rapaz começa um caso com aquela mulher, um pouco mais velha,
e ela pensa que ele a ama por causa do dinheiro, para fabricar um carro de
corrida novo, e de repente ele tem de voltar para seu país, porque o pai, que
enquanto isso tinha voltado, foi sequestrado por uns guerrilheiros. E o rapaz
entra em contato com eles, e os convence de que está do lado deles, e quando
aquela mulher, a europeia, percebe que ele corre perigo volta para procurá-lo, e
salvam o pai à custa de muito dinheiro, mas quando chega o momento em que o
pai já está livre, e o rapaz também, porque ele tinha ficado em lugar do pai sem
os guerrilheiros perceberem, bem, há uma confusão e vão matar o rapaz porque
descobrem a tramoia, mas o pai se interpõe e o matam. Então o rapaz prefere
ficar lá com eles, e a mulher volta sozinha para seu trabalho em Paris, e a
separação é muito triste, porque os dois se amam de verdade, mas cada um
pertence a um mundo diferente, e tchau, fim.
— Qual é a semelhança?
— Com quê?
— Com meu caso. O que você falou de minha mãe.
— Bem, nada, que a mãe sai muito bem vestida, quando o rapaz volta a seu
país dos cafezais, e pede ao rapaz que volte para a Europa, ah, esqueci de dizer
que quando no fim soltam o pai há um tiroteio com a polícia, e ferem de morte o
pai, e a mãe reaparece, e ficam juntos, o filho e a mãe quero dizer, porque a outra
mulher não, a que gosta dele volta para Paris.
— Sabe de uma coisa, estou ficando com sono.
— Então aproveita e dorme.
— Sim, vou ver se pego no sono.
— Se você passar mal, seja a hora que for, me acorda.
— Obrigado, você tem muita paciência.
— De nada, dorme. E não pensa besteira.

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— A noite toda tive pesadelos.


— Com que você sonhou?
— Não lembro de nada. Acho que estou intoxicado, mas passa logo.
— Rapaz, como você come depressa! E ainda não está bem.
— Fiquei com uma fome terrível, e também são os nervos.
— Na verdade, Valentín, você não devia comer. Precisava fazer uma dieta
hoje.
— Mas sinto um vazio brutal no estômago.
— Pelo menos agora, depois de comer esta porcaria de polenta ao grude,
deita um pouco, não começa logo a estudar.
— Mas já perdi a manhã toda dormindo.
— Como quiser, falo para teu bem... Se você quiser conto alguma coisa para
te distrair.
— Não, obrigado, vou ver se consigo ler.
— Sabe de uma coisa, se você não falou com sua mãe que pode trazer
comida para a semana toda... fez muito mal.
— Não quero obrigá-la, estou aqui porque entrei na dança, e ela não tem
nada a ver.
— Mamãe não vem porque anda mal, sabe?
— Não, você não me disse nada.
— Está proibida de sair da cama por algum tempo, por causa do coração.
— Ah, não sabia, sinto muito.
— Por isso estou quase sem mantimentos, além do mais ela não deixa
ninguém vir para me trazer as coisas, acha que o médico vai lhe dar alta a
qualquer momento. Mas enquanto isso eu me fodo, porque não deixa ninguém
que não seja ela me trazer comida.
— E acha que ela não vai ficar boa?
— Sim, não perco as esperanças, mas vai durar uns meses.
— Se você pudesse sair daqui, ela ficava boa, não?
— Você adivinha meu pensamento, Valentín.
— É lógico, só isso.
— Como você acabou o prato depressa, devorou, você está louco.
— Tinha razão, agora sinto que vou estourar.
— Deita um pouco.
— Não quero dormir, tive pesadelos ontem à noite e hoje de manhã, o tempo
todo.
— Já que contei o final do filme, não tem graça que eu continue contando.
— A dor está voltando, que besteira...
— Onde dói?
— Na boca do estômago, e embaixo nos intestinos também... uf... que coisa
horrível.
— Relaxa, me ouve, que talvez tudo seja nervoso.
— Ah, meu velho, parece que estão me furando as tripas.
— Peço para ir ao banheiro?
— Não, é mais em cima, parece que queima, alguma coisa no estômago.
— Por que não procura vomitar?
— Não, se eu pedir para ir ao banheiro, vão começar a me encher com a
enfermaria.
— Vomita no meu lençol, espera, vou dobrar, e você vomita dentro e depois
embrulhamos bem e não vai ficar cheiro.
— Obrigado.
— Obrigado o que, vamos, enfia os dedos na garganta.
— Mas depois você vai sentir frio, sem o lençol.
— Não, o cobertor me agasalha bem. Vamos, vomita.
— Não, espera, já está passando, vou relaxar bem... como você diz, para ver
se passa.

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— uma mulher europeia, uma mulher inteligente, uma mulher bela, uma
mulher educada, uma mulher com conhecimentos sobre política internacional,
uma mulher com conhecimentos de marxismo, uma mulher a quem não é preciso
explicar tudo desde o á-bê-cê, uma mulher que estimula o pensamento do
homem com perguntas inteligentes, uma mulher de moral insubornável, uma
mulher de gosto impecável, uma mulher que se veste com discrição e elegância,
uma mulher jovem e madura ao mesmo tempo, uma mulher com conhecimento
de bebidas, uma mulher que sabe escolher o menu adequado, uma mulher que
sabe pedir o vinho adequado, uma mulher que sabe receber, uma mulher que
sabe dar ordens ao pessoal de serviço, uma mulher que sabe organizar uma
recepção para cem pessoas, uma mulher de classe e simpatia, uma mulher
desejável, uma mulher europeia que compreende os problemas de um latino-
americano, uma mulher europeia que admira um revolucionário latino-
americano, uma mulher mais preocupada, não obstante, com o tráfico urbano
de Paris que com os problemas de um país latino-americano colonizado, uma
mulher atraente, uma mulher que não se comove diante da notícia de uma
morte, uma mulher que esconde durante algumas horas o telegrama com a
notícia da morte do pai do seu amante, uma mulher que se recusa a deixar o
trabalho em Paris, uma mulher que se recusa a acompanhar seu jovem amante
na viagem de volta à selva dos cafezais, uma mulher que retoma sua vida
rotineira de executiva parisiense, uma mulher com dificuldade para esquecer um
grande amor, uma mulher que sabe o que quer, uma mulher que não se
arrepende da decisão, uma mulher perigosa, uma mulher que pode esquecer
rapidamente, uma mulher com recursos próprios para esquecer o que lá será
somente um lastro, uma mulher que até podia esquecer a morte do rapaz que
voltou à sua pátria, um rapaz que voa de volta à pátria, um rapaz que observa
do alto as montanhas azuladas da pátria, um rapaz emocionado até as lágrimas,
um rapaz que sabe o que quer, um rapaz que odeia os colonialistas de seu país,
um rapaz disposto a dar a vida para defender seus princípios, um rapaz que não
concebe a exploração dos trabalhadores, um rapaz que viu peões velhos serem
postos na rua por serem imprestáveis, um rapaz que se lembra de peões
encarcerados por terem roubado o pão que não podiam comprar e que se
lembra de peões alcoolizados para esquecerem depois a humilhação, um rapaz
que acredita sem vacilar na doutrina marxista, um rapaz com o firme propósito
de entrar em contato com as organizações guerrilheiras, um rapaz que observa
do ar as montanhas pensando que em breve se reunirá ali com os libertadores de
seu país, um rapaz que teme ser considerado um oligarca a mais, um rapaz que
por amarga ironia podia ser sequestrado por guerrilheiros para exigirem um
resgate, um rapaz que desce do avião e abraça a mãe viúva vestida de cores
berrantes, uma mãe sem lágrimas nos olhos, uma mãe respeitada por todo um
país, uma mãe de gosto impecável, uma mãe que se veste com discrição e
elegância, já que nos trópicos as cores berrantes não destoam, uma mãe que
sabe dar ordens a seus serviçais, uma mãe com dificuldade em olhar o filho de
frente, uma mãe com um conflito que a aflige, uma mãe que caminha com a
cabeça erguida, uma mãe cujas costas retas nunca tocam o encosto da cadeira,
uma mãe que a partir do divórcio mora na cidade, uma mãe que a pedido do
filho o acompanha até a fazenda de café, uma mãe que lembra ao filho casos da
infância, uma mãe que consegue sorrir novamente, uma mãe cujas mãos
crispadas conseguem distender-se para acariciar a cabeça do filho, uma mãe
que consegue reviver anos melhores, uma mãe que pede ao filho para
acompanhá-la num passeio pelo velho parque tropical projetado por ela
própria, uma mãe de gosto refinado, uma mãe que narra debaixo do palmeiral
como seu marido foi abatido pelos guerrilheiros, uma mãe que, junto das matas
floridas de antúrios conta como seu ex-marido matou com um balaço um
empregado insolente e assim provocou a vingança dos guerrilheiros, uma mãe
cuja fina silhueta se recorta contra uma colina distante e azulada além do
cafezal, uma mãe que pede ao filho para não vingar a morte do pai, uma mãe
que pede ao filho para voltar à Europa embora se afaste dela, uma mãe que
teme pela vida do filho, uma mãe que parte intempestivamente de volta à capital
para comparecer a uma festa de caridade, uma mãe que refestelada em seu
Rolls torna a suplicar ao filho que abandone o país, uma mãe que não consegue
esconder sua tensão nervosa, uma mãe sem motivos aparentes para estar tensa,
uma mãe que oculta alguma coisa ao filho, um pai que sempre foi bom para os
empregados, um pai que tentara melhorar a condição de seus empregados
fazendo caridade, um pai que fundara um hospital de campanha para os
trabalhadores da zona, um pai que construíra moradias para eles, um pai que
discutia amargamente com a mulher, um pai que falava pouco com o filho, um
pai que não descia para comer com a família, um pai que nunca perdoou as
greves de seus empregados, um pai que nunca perdoou o incêndio do hospital e
das moradias causado por um grupo de trabalhadores dissidentes, um pai que
concedeu o divórcio à mulher sob a condição de que partisse para a cidade, um
pai que recusou comunicar-se com os guerrilheiros por não lhes perdoar o
incêndio, um pai que arrendou suas terras a companhias estrangeiras e se
refugiou na Riviera, um pai que voltou a suas possessões por motivos ignorados,
um pai que encerrou a vida sob o signo da vergonha, um pai que foi justiçado
como um criminoso, um pai que talvez tenha sido um criminoso, um pai que
quase certamente foi um criminoso, um pai que cobre seu filho de ignomínia, um
pai cujo sangue criminoso corre pelas veias do filho, uma jovem camponesa,
uma jovem mestiça de índio com branco, uma jovem com a frescura da
juventude, uma jovem de dentes atingidos pela desnutrição, uma jovem de
maneiras tímidas, uma jovem que olha extasiada para o protagonista, uma
jovem que lhe entrega uma mensagem secreta, uma jovem que vê com profundo
alívio a reação favorável dele, uma jovem que o conduz aquela mesma noite ao
reencontro de um velho amigo, uma jovem que monta admiravelmente a cavalo,
uma jovem que conhece os caminhos da montanha como a palma da mão, uma
jovem que quase não fala, uma jovem à qual ele não sabe em que termos se
dirigir, uma jovem que em pouco menos de duas horas o conduz ao campo
guerrilheiro, uma jovem que chama o chefe guerrilheiro com um assobio, um
companheiro da Sorbonne, um companheiro de militância política estudantil, um
companheiro a quem não via desde aquela época, um companheiro convencido
da honestidade do protagonista, um companheiro que voltou à pátria para
organizar a rebelião camponesa, um companheiro que em poucos anos
conseguiu organizar uma frente guerrilheira, um companheiro que acredita na
honestidade do protagonista, um companheiro disposto a fazer-lhe uma
revelação incrível, um companheiro que intui uma intriga governamental por
trás do episódio obscuro que provocou a morte do pai e ao capataz, um
companheiro que lhe pede para voltar à fazenda e desmascarar o culpado, um
companheiro que talvez esteja enganado, um companheiro que talvez prepare
uma emboscada, um companheiro que talvez tenha sacrificado um amigo para
continuar sua luta de libertação, uma jovem que o conduz de volta à mansão,
uma jovem que não fala, uma jovem taciturna, uma jovem talvez simplesmente
cansada após uma jornada de trabalho e uma longa cavalgada noturna, uma
jovem que de vez em quando se volta e o observa com desconfiança, uma jovem
que possivelmente o odeia, uma jovem que o manda parar, uma jovem que lhe
pede silêncio, uma jovem que escuta ao longe rumores de uma possível patrulha
de reconhecimento, uma jovem que lhe pede para descer do cavalo e esperar
uns minutos escondido atrás de uma moita, uma jovem que lhe pede para
esperá-la em silêncio, segurando ambos os cavalos pelas rédeas enquanto sobe
a um penhasco e inspeciona, uma jovem que volta e o manda recuar até chegar
a uma curva na montanha, uma jovem que pouco depois lhe indica uma gruta
natural onde passar a noite posto que os soldados não levantarão acampamento
até o amanhecer, uma jovem que treme de frio na gruta úmida, uma jovem de
intenções indecifráveis, uma jovem que pode apunhalá-lo durante o sono, uma
jovem que sem fitá-lo nos olhos lhe pede com voz sufocada para deitar a seu
lado para aquecê-la, uma jovem que nem fala nem o olha de frente, uma jovem
intimidada ou sagaz, uma jovem de carnes frescas, uma jovem que está deitada
a seu lado, uma jovem que respira agitadamente, uma jovem que se deixa
possuir em silêncio, uma jovem tratada como uma coisa, uma jovem a quem não
se diz uma palavra amável, uma jovem com um gosto ácido na boca, uma jovem
com um cheiro de suor forte, uma jovem a quem se usa e depois se deixa de
lado, uma jovem na qual se descarrega sêmen, uma jovem que não ouviu falar
de anticoncepcionais, uma jovem explorada pelo patrão, uma jovem que não
pode fazê-lo esquecer de uma parisiense sofisticada, uma jovem a quem não se
tem vontade de acariciar após o orgasmo, uma jovem que narra uma história
infame, uma jovem que narra como o ex-administrador da fazenda a violou
apenas adolescente, uma jovem que narra como o ex-administrador da fazenda
agora está encarapitado no governo, uma jovem que garante que aquele homem
tem alguma coisa a ver com a morte do pai do rapaz, uma jovem que se atreve a
dizer que talvez a mãe do rapaz saiba tudo, uma jovem que revela a verdade
mais cruel, uma jovem que viu a mãe do rapaz nos braços do ex-administrador,
uma jovem a quem não se tem vontade de acariciar após o orgasmo, uma jovem
em quem se dá uma bofetada e se insulta por dizer coisas horríveis, uma jovem a
quem se usa e depois se deixa de lado, uma jovem explorada por um patrão
cruel em cujas veias corre sangue de assassino

— Você gritava sonhando.


— É?...
— Sim, me acordou.
— Desculpa.
— Como se sente?
— Estou todo suado. Quer me dar a toalha? sem acender a vela.
— Espera que vou tentar...
— Não lembro onde a deixei... Se não acha não tem importância, Molina.
— Cala a boca, já a encontrei, acha que eu sou tão tola?1
— Estou gelado.
— Vou fazer logo um chá, é a única coisa que nos resta.
— Não, que é teu, deixa, já vai passar.
— Você está louco.
— Mas tuas provisões estão acabando, você é que é louco.
— Não, já vão trazer outras.
— Lembra que tua mãe está doente e não pode vir.
— Lembro sim, mas não tem importância.
— Obrigado.
— Por favor.
— Sim, você não sabe quanto te agradeço. E te peço perdão porque às vezes
sou muito brusco... e magoo as pessoas sem razão alguma.
— Para com isso.
— Como quando você estava desarranjado. E não te cuidei nada.
— Cala a boca.
— Sério, e não é só com você, magoei muitas outras pessoas. Não te contei,
mas em vez de contar um filme vou te contar uma coisa real. Te tapeei com a
história de minha companheira. Foi de outra que eu falei, que amei muito, não
falei a verdade sobre minha companheira, e você ia gostar dela porque é uma
moça muito simples e muito boa e muito corajosa.
— Não, olha. Não me conta, por favor. Esses assuntos são chatos, e não
quero saber nada de tuas histórias políticas, secretas e sei lá. Por favor.
— Não seja bobo, quem é que vai te perguntar alguma coisa sobre minhas
histórias?
— Nunca se sabe, podem me interrogar.
— Eu confio em você. Você confia em mim, não é?
— Sim...
— Então aqui tudo tem que ser de igual, não fica intimidado...
— Não é isso...
— Às vezes há necessidade de desabafar, porque me sinto fodido, de
verdade. Não há coisa pior que se arrepender de ter feito mal a alguém. E eu
sacaneei essa garota.
— Mas agora não, me conta em outro momento. Vai te fazer mal ficar
remoendo coisas tão íntimas. É melhor você tomar o chá que vou preparar, vai te
fazer bem. Vai por mim.
________________
1 Os seguidores de Freud interessaram-se vivamente pelas atribulações que o
indivíduo teve de sofrer ao longo da história para aprender a reprimir-se e desta
forma adequar-se às exigências sociais de cada época, pois seria impossível
acatar as normas sociais sem reprimir muitos dos próprios impulsos instintivos.
O casal matrimonial legítimo, como ideal proposto para a sociedade, não seria
necessariamente o ideal de todos, e os excluídos não encontrariam outra saída
senão reprimir ou ocultar suas tendências socialmente indesejáveis.
Anna Freud, em Psicanálise da criança, assinala como forma neurótica mais
generalizada a do indivíduo que, ao tratar de controlar completamente todos os
seus desejos sexuais proibidos, e inclusive eliminá-los — em vez de catalogá-los
conto inconvenientes socialmente, mas naturais —, reprime demais e se torna
incapaz de desfrutar em quaisquer circunstâncias de relações desinibidas com
outra pessoa. Assim, um indivíduo pode perder o controle de suas faculdades
autorrepressoras e chegar a extremos como a impotência, a frigidez e os
sentimentos de culpa obsessivos. A psicanálise assinala também o seguinte
paradoxo: é geralmente o desenvolvimento precoce da inteligência e da
sensibilidade nas crianças que pode induzi-las a uma atividade repressiva forte
demais. Comprovou-se que a criança possui libido desde que tem vida e, claro
está, manifesta-se sem a discriminação adulta. Afeiçoa-se a toda pessoa que
cuida dela e desfruta nos brinquedos de seu próprio corpo e do de outras pessoas.
Mas em nossa cultura acrescenta Anna Freud — castigam-se logo essas
manifestações e a criança adquire o sentimento de vergonha. Desde os primeiros
atos conscientes até a puberdade, passa pelo período de latência.
Os freudianos ortodoxos, assim como os dissidentes, sustentam que as
primeiras manifestações da libido infantil são de caráter bissexual. Mas a partir
dos cinco anos já se observam as diferenças sexuais, o menino percebe a
diferença do corpo de sua mãe. Além do mais, começa-se a lhe dizer que quando
crescer será como o pai, mas que naquele momento não deve aspirar a ser o
primeiro no afeto da mãe; é seu pai quem ocupa o lugar privilegiado. O
problema de como sufocar o ciúme que o pai suscita fica em geral totalmente
entregue à habilidade da criança, que terá sua tentativa tolhida, mais uma vez, se
sua sensibilidade muito desenvolvida lhe requer proteção e carinho, e
especialmente se sua inteligência lhe permite captar o triângulo amoroso em que
se encontra fechado: conscientizar a situação duplicará as dificuldades. O
conflito se resolve durante a adolescência, quando a adolescente ou o
adolescente consegue transferir suas cargas afetivas do progenitor ou da
progenitora para um rapaz ou uma moça de sua idade, respectivamente. Mas os
que desenvolveram uma relação muito estreita com o progenitor do sexo oposto,
e seu respectivo sentimento de culpa, ver-se-ão em perigo de prosseguir toda a
sua existência com uma sensação de desconforto diante de qualquer experiência
sexual, dado que inconscientemente a associarão com seus culposos desejos de
incesto, na infância. O desenlace, quando a neurose se afirma, nem sempre é o
mesmo. Para o homem abre-se a possibilidade da impotência, o tratamento
exclusivo com prostitutas — mulheres que de alguma maneira não se parecem
com sua mãe — ou, ainda mais, a possibilidade de responder sexualmente só a
outros homens. Para as mulheres, conflito não resolvido resulta principalmente
em frigidez e em lesbianismo.
7
— “Querido, vuelvo otra vez a conversar contigo... La noche, trae un
silencio que me invita a hablarte... Y pienso, si tu también estarás recordando,
carino... los sueños tristes de este amor extraño...”
— Que é isso, Molina?
— Um bolero, Mi carta.
— Só da tua cabeça.
— Por quê? que é que tem?
— É romantismo ababacado, você está louco.
— Gosto de boleros, e este é lindo. Desculpa se fui inoportuno.
— Por quê?
— Porque você recebeu essa carta e ficou tão deprimido.
— Que é que isso tem a ver?
— E eu começo a cantarolar sobre cartas tristes. Mas você não se ofendeu...
não é?
— Não.
— Que é que você tem?
— Eram más notícias. Você percebeu?
— Sei lá... Sim, você ficou sério.
— Eram realmente notícias más. Se quiser pode ler a carta.
— Não, é melhor não...
— Não começa com a mesma história de ontem à noite, que é que você tem
a ver com minhas coisas, não vão te perguntar nada. Além disso eles já a abriram
e leram antes de mim, como você é trouxa.
— Claro, é isso mesmo.
— Se quiser pode ler, está aí.
— A letra são uns garranchos, lê para mim.
— É uma garota que não teve muita instrução.
— Está vendo como sou boba, não tinha me ocorrido que aqui eles abrem as
cartas se quiserem. Assim está certo, não me importo que você a leia.
— “Meu querido: Há muito tempo que não escrevia porque não tinha
coragem de te contar tudo isto que aconteceu e você certamente compreenderá
porque é mais inteligente que eu, isso é certo. Também não escrevi antes para
dar a notícia do coitado do tio Pedro porque a mulher dele me disse que tinha te
escrito. Sei que você não quer que se fale dessas coisas porque a vida continua e
é necessário ter muita coragem para continuar na luta pela vida, mas foi o que
mais me chateou desde que sou velha.” Tudo isto é código, percebeu, não?
— Bem, está muito complicado, isso eu percebi.
— Quando diz “desde que sou velha”, quer dizer desde que entrei no
movimento. E quando diz “a luta pela vida” é a luta pela causa. E tio Pedro,
infelizmente, é um rapaz de vinte e cinco anos, companheiro nosso do
movimento. E eu não sabia que tinha morrido, não me entregaram nunca a outra
carta, devem ter rasgado quando abriram.
— Ah...
— Foi por isso que esta carta me chateou tanto, não sabia de nada.
— Sinto muito.
— Que se há de fazer.
— ...
— ...
— Continua com a carta.
— Então... “desde que sou velha. Bem, você que é mais forte, como eu
queria ser, já estará resignado. Eu sobretudo sinto muita falta do tio Pedro
porque a família ficou um pouco por minha conta, e é muita responsabilidade.
Olha, carequinha, me disseram que te pelaram bem, e que pena que eu não posso
me esbaldar te vendo, você que tinha aquele cabelinho dourado, lembro-me
sempre de tudo quanto falávamos, principalmente de não nos deixar abater por
coisas pessoais e seguindo teu conselho tratei de me ajeitar como pude”. Quando
diz que a família ficou por conta dela quer dizer que ela agora está à frente de
nosso grupo.
— Ah...
— Continuo. “Eu sentia cada vez mais tua falta e por causa disso, sobretudo
depois da morte de tio Pedro, dei licença à minha sobrinha Mari para ter relações
com um rapaz que você não conheceu e que vem cá em casa e é bom para
sustentar a casa. Mas eu falei com minha sobrinha que faça isso sem dar
importância, porque é fatal, e só a camaradagem necessária para que ela tenha
força para lutar pela vida.” A sobrinha Mari é ela mesma, e se o rapaz é bom
para sustentar a casa, quer dizer que é bom como elemento de luta. Entende? de
briga.
— Sim, mas não entendo a história das relações.
— Quer dizer que estava sentindo muito minha falta, e nós fizemos um pacto
de não tomar carinho por ninguém, porque isso depois te paralisa quando você
deve agir.
— Agir de que forma?
— Agir. Arriscar a vida.
— Ah...
— Não podemos ficar pensando em que alguém gosta da gente, porque nos
quer vivo, e então isso dá medo da morte, bem, não é medo, mas te dá pena que
alguém sofra por causa de tua morte. E então ela começou a ter relações cem
outro companheiro... Continuo. “Fiquei pensando muito se devia te falar ou não,
mas como te conheço sei que você preferirá que eu mesma conte. Por sorte os
negócios vão indo bem, e temos fé em que nossa casa entre num caminho
próspero de uma vez por todas. É noite, e penso que talvez você também esteja
pensando em mim. Te abraço com muita força, Inês.” Quando diz casa quer
dizer país.
— Ontem à noite não entendi direito, você falou que sua companheira não
era como você disse.
— Que merda, só de ler a carta já fiquei tonto...
— Deve estar muito fraco...
— Sinto um pouco de náuseas.
— Deita e fecha os olhos.
— Que droga, juro que já me sentia bem.
— Fica quietinho, foi de fixar os olhos. Fecha bem os olhos.
— Parece que está passando...
— Não devia ter comido, Valentín. Te falei para não comer.
— É que estava com muita fome.
— Ontem você estava bem, comeu e se fodeu, e agora de novo já engoliu o
prato inteiro. Promete que amanhã não vai nem beliscar.
— Não fala em comida que me dá repugnância.
— Desculpa.
— Sabe de uma coisa... eu ria do teu bolero, e a carta que recebi diz a mesma
coisa que o bolero.
— Acha?
— Sim, acho que não tenho direito a rir do bolero.
— Talvez você tenha rido porque te tocava bem de perto, e você ria... para
não chorar. Como diz outro bolero, ou é um tango.
— Como era teu bolero?
— Que pedaço?
— Diz inteiro.
— “Querido, vuelvo otra vez a conversar contigo... La noche, trae un
silencio que me invita a hablarte... Y pienso, si tu también estarás recordando,
cariño... los sueños tristes de este amor extraño... Tesoro, aunque la vida no nos
una nunca, y esternos — porque es preciso — siempre separados... te juro, que
el alma mia será toda tuya, mis pensamientos y mi vida tuyos, como es tan
tuyo... este dolor...” ou “este penar”. O final não me lembro, creio que é assim.
— Nada mal mesmo.
— É lindo.1
— Como se chama?
— Mi carta, e é de um argentino, Mario Clavel.
— Pensei que fosse de um mexicano, ou cubano.
— Conheço todos os de Agustín Lara, ou quase todos.
— Passou um pouco a tonteira, mas começam as pontadas embaixo... parece.
— Relaxa bem.
— A culpa é minha, por ter comido.
— Não pensa na dor nem fica nervoso. Porque tudo é sistema nervoso,
conversa sobre qualquer coisa.
— Como te disse, aquela garota de quem te falei, de família burguesa, e de
hábitos muito liberais, não é minha companheira, a que me escreveu.
— E quem é esta?
— Aquela de quem te falei entrou comigo para o movimento, mas chegou
uma hora em que ela caiu fora, e fez tudo para que eu também caísse fora.
— Por quê?
— Ela era muito apegada à vida, era feliz comigo, e a nossa relação lhe
bastava. E aí começamos a ir mal, porque ela sofria quando eu desaparecia por
alguns dias, e cada vez que eu voltava chorava e isso era o de menos, começou a
esconder telefonemas de meus companheiros, e chegou até a interceptar cartas,
bem, aí acabou.
— Você não a vê há muito tempo?
— Quase dois anos. Mas sempre me lembro dela. Se não tivesse ficado
assim... uma mãe castradora... Bem, não sei, nosso destino era a separação.
— Porque se amavam demais?
— Isso também soa a bolero, Molina.
— Mas, seu bobo, os boleros dizem verdades aos montes, é por isso que
gosto tanto deles.
— O positivo era que ela me enfrentava, tínhamos uma relação verdadeira,
ela nunca se submeteu, como hei de dizer? nunca se deixou manobrar, como uma
fêmea qualquer.
— Que é que você quer dizer?
— Ai, velho... acho que vou me sentir mal de novo.
— Onde é que dói?
— Embaixo, nos intestinos...
— Não fica nervoso, Valentín, é pior. Fica tranquilo.
— Sim.
— Encosta direito.
— Você não sabe como estou triste...
— O que é?
— Pobre menino, se você o tivesse conhecido... Não sabe como ele era bom
menino, coitadinho.
— Qual?
— Esse menino que morreu.
— Ganhou o céu, estou certo disso.
— Tomara que fosse assim, há vezes que a gente desejava acreditar que as
pessoas boas têm uma recompensa, mas eu não posso acreditar em nada. Ui...
Molina, temos repeteco... rápido, chama para abrirem a porta.
— Aguenta um minutinho... que já...
— Ai... Ai... não, não chama...
— Não fica aflito, vou dar um negócio para você se limpar.
— Ai... ai... não sabe como é forte, uma dor como se me espetassem um
arame nos intestinos...
— Relaxa bem, solta tudo que depois eu lavo o lençol.
— Por favor, faz um bolo com o lençol porque estou soltando tudo líquido.
— Sim... assim, isso mesmo, fica tranquilinho... solta tudo, depois eu levo o
lençol até o chuveiro, que é terça-feira.
— Mas esse era o teu lençol...
— Não tem importância, lavo o teu também, por sorte ainda tenho sabão.
— Obrigado... Sabe, já estou mais aliviado...
— Fica tranquilo e se acha que já soltou tudo, seu cagão, fala que eu te
limpo.
—...
—...
— Já passou?
— Parece que sim, mas estou com muito frio.
— Te dou meu cobertor como reforço.
— Obrigado.
— Mas vira primeiro que eu te limpo, se é que você já acabou.
— Espera um pouquinho. Desculpa por ter rido hoje do que você dizia, de
teu bolero.
— Que hora para falar em boleros.
— Escuta, acho que já passou, deixa que eu me limpo sozinho... Se não ficar
tonto ao levantar a cabeça.
— Experimenta devagar.
— Não, ainda estou tonto, não dá...
— Bem, eu te limpo, não fica aflito. Sossega.
— Obrigado...
— Bem... assim, e um pouco por aqui... Vira devagar, assim. E não passou
para o colchão, ainda bem. E por sorte temos bastante água, vou molhar esta
ponta limpa do lençol e te limpo bem.
— Não sei como te agradecer.
— Não seja bobo. Anda... levanta um pouco para lá. Assim... muito bem.
— Realmente, estou tão agradecido, porque não vou ter força para ir ao
chuveiro.
— Não, e a água gelada seria péssimo.
— Ui, como esta água também está fria.
— Abre um pouco mais as pernas... Assim.
— Não tem nojo?
— Cala a boca. Outra ponta molhada do lençol... assim...
—...
— Já está ficando bem limpinho... E agora com uma ponta seca... Pena que
já não tenho mais talco.
— Não tem importância. Basta ficar seco.
— É, tenho mais um pedaço de lençol, para te enxugar. Assim... já está bem
sequinho.
— Ai, como me sinto melhor... Obrigado, meu velho.
— Espera, agora... espera... que te embrulho no cobertor como bife rolê.
Espera... levanta desse lado.
— Assim?
— Sim... Espera... e agora deste lado, assim não fica com frio. Você está
confortável assim?
— Sim, muito bem... Obrigado.
— E agora não se mexa de maneira nenhuma até a tonteira passar.
— Sim, já vai passar depressa.
— O que você quiser eu te dou, não se mexa.
— E prometo não rir mais de teus boleros. Essa letra que você falou... não é
ruim.
— Eu gosto quando diz: “... Y pienso, si tu también estarás recordando,
carino... los sueños tristes de este amor extraño...”
— Sabe uma coisa?... Eu uma vez limpei o filhinho daquele rapaz, o
coitadinho que mataram. Moramos um tempo escondidos no mesmo
apartamento, com a mulher dele e o garotinho... Quem sabe o que vai acontecer
com ele, não deve ter nem três anos, lindo o garotinho... E você não sabe do pior,
é que não posso escrever para nenhum deles, porque qualquer coisa seria
comprometê-los, ou o que é... pior ainda, entregá-los.
— A tua companheira também não?
— Menos ainda, ela está à frente do grupo. Não posso me comunicar nem
com ela nem com ninguém. E como teu bolero, “porque a vida não nos unirá
nunca”, jamais vou poder escrever uma carta ao pobre rapaz, nem falar uma
palavra com ele.
— É “... aunque la vida no nos una nunca...”
— Nunca. Que palavra tão terrível, não tinha percebido até agora... como é
terrível... essa... pá... palavra... Desculpa.
— Não, desabafa, desabafa tudo o que puderes, chora à vontade, Valentín.
— É que fico com tanta pena... E não poder fazer nada, aqui, trancado, e não
poder me ocupar da mu... lher, do filhi... filhinho... Ah, meu velho, como é...
triste...
— Que se há de fazer...
— Me... ajuda a tirar o braço do... do... cobertor ...
— Para quê?
— Me... dá a mão, Molina, forte...
— Tá. Aperta bem.
— Não quero continuar me sacudindo assim...
— Não tem importância que você se sacuda, assim fica aliviado.
— Tem uma coisa que me chateia muito. É uma coisa muito chata, muito
baixa...
— Conta, desabafa.
— É que de quem que... queria receber ca... carta, neste momento, quem
queria que estivesse bem perto, e abraçá-la... não é minha... companheira, mas a
outra... de quem te falei.
— Se é isso o que você sente...
— Sim, porque eu a... falo muito mas... mas no fundo do que eu... eu...
continuo gostando é... de outro tipo de mulher, dentro de mim sou como todos os
reacionários filhos da puta que mataram meu companheiro... Sou como eles,
igualzinho.
— Não é verdade.
— Sim, não nos iludamos.
— Se você fosse como eles não estaria aqui.
— “... los sueños tristes de este amor extraño...” ...Sabe por que foi que eu
fiquei chateado quando você começou com o bolero? Porque me faz lembrar
Marta, e não minha companheira. Foi por isso. E acho até que gosto de Marta,
não pelo que ela é, mas porque tem... classe, como dizem os cachorros classistas
filhos da puta... deste mundo.
— Não fica te torturando... Fecha os olhos e trata de descansar.
— Ainda sinto um pouco de tonteira.
— Vou esquentar água para um chá de camomila, ainda nos resta porque
esquecemos que estava...
— Não acredito...
— Juro, estava atrás de minhas revistas, por isso é que escapou.
— Mas é teu, e você gosta.
— Mas vai te fazer bem, fica um pouco calado, vai ver como te ajuda a
descansar durante um bom tempo...

....................................................

— um rapaz que trama um plano, um rapaz que aceita o convite da mãe


para um encontro na cidade, um rapaz que mente à sua mãe assegurando-lhe
sua oposição à guerrilha, um rapaz que promete à mãe voltar para Paris, um
rapaz que janta a sós com a mãe à luz de castiçais, um rapaz que promete à mãe
acompanhá-la numa viagem pelos centros mundanos europeus de esportes de
inverno como quando era criança, mal terminando a guerra, uma mãe que fala
sobre as belas moças casadouras da aristocracia europeia, uma mãe que fala do
quanto ele vai herdar, uma mãe que propõe colocar já em nome do filho
numerosas riquezas, uma mãe que oculta as razões pelas quais não pode
acompanhá-lo já à Europa, um rapaz que procura o paradeiro do ex-
administrador, um rapaz que toma conhecimento de que ele é o cérebro do
ministério da segurança, um rapaz que toma conhecimento de que o ex-
administrador é chefe do serviço secreto de ação contrarrevolucionária, um
rapaz que quer convencer a mãe de viajar com ele para a Europa logo, um
rapaz que quer usufruir dos bens e repetir a viagem de crianças para esquiar
junto com sua bela mãe, um rapaz que resolve deixar tudo e fugir com a mãe,
um rapaz que propõe a viagem à mãe, um rapaz cujo projeto é rejeitado pela
mãe, uma mãe que confessa ter outro plano, uma mãe que quer refazer sua vida
sentimental, uma mãe que vai levá-lo ao aeroporto e lhe confessa ali seu
próximo casamento com o ex-administrador, um rapaz que finge entusiasmo com
o projeto, um rapaz que desce na primeira escala e toma outro avião de volta,
um rapaz que se junta aos guerrilheiros da montanha, um rapaz resolvido a
limpar o nome do pai, um rapaz que reencontra a camponesa que o havia
conduzido à montanha pela primeira vez, um rapaz que percebe que ela está
grávida, um rapaz que não deseja um filho índio, um rapaz que não deseja
misturar seu sangue com o sangue da índia, um rapaz que se envergonha de
seus sentimentos, um rapaz que não pode acariciar a futura mãe de seu filho, um
rapaz que não sabe como limpar a culpa, um rapaz que comanda o ataque
guerrilheiro à fazenda onde estão sua mãe e o ex-administrador, um rapaz que
contorna a fazenda, um rapaz que abre fogo contra sua própria casa, um rapaz
que abre fogo contra seu próprio sangue, um rapaz que exige a rendição dos
ocupantes, um rapaz que vê sair o ex-administrador escudando-se covardemente
em sua mãe como refém, um rapaz que ordena abrir fogo, um rapaz que escuta o
grito desesperado da mãe pedindo clemência, um rapaz que faz parar a
execução, um rapaz que exige a confissão sobre a verdadeira morte do pai, uma
mãe que escapa dos braços que a aprisionam e confessa toda a verdade, uma
mãe que conta como o amante tramou uma armadilha para que o pai aparecesse
como assassino do fiel capataz, uma mãe que confessa a inocência do marido,
um rapaz que ordena a execução da mãe após ordenar a execução do ex-
administrador, um rapaz que perde a razão e ao ver a mãe agonizando empunha
a metralhadora para executar os soldados que acabam de crivá-la de balas, um
rapaz que é imediatamente executado, um rapaz que sente arder no ventre as
balas guerrilheiras, um rapaz que consegue ver em meio ao pelotão de
fuzilamento os olhos acusadores da camponesa, um rapaz que quer pedir perdão
antes de morrer e não pode emitir a voz, um rapaz que vê nos olhos da
camponesa uma eterna condenação.

________________
1 Em sua Teoria psicanalítica da neurose, O. Fenichel afirma que a
probabilidade de orientação homossexual é tanto maior quanto mais um menino
se identificar com a mãe. Esta situação se produz principalmente quando a
imagem materna é mais brilhante que a do pai, ou quando o pai está totalmente
ausente do quadro familiar, como nos casos de morte ou divórcio, ou quando a
figura do pai, embora presente, se torna repulsiva por algum motivo grave, como
o alcoolismo, a severidade excessiva ou a extrema violência de temperamento. A
criança precisa de um herói adulto que lhe sirva como modelo de
comportamento; através da identificação, a criança irá absorvendo as
características de comportamento dos pais, e embora de certa forma se rebele
contra a obediência às ordens deles, incorporará inconscientemente hábitos e
também manias de seus progenitores, perpetuando as características culturais da
sociedade em que vive. Uma vez identificado com o pai, continua Fenichel, o
menino adota a visão masculina ao mundo, e, em nossa sociedade, a ocidental,
essa visão tem um componente de agressividade — um rastro de sua condição de
amo, antes indiscutida — que ajuda o menino a impor sua nova presença. Ao
contrário, o menino que está adotando como modelo a imagem materna e não
encontra a tempo uma imagem masculina para contrabalançar a fascinação
materna, será socialmente menosprezado por seus traços efeminados, já que não
ostenta a rudeza própria de um rapazinho normal.
Freud comenta a respeito, na obra Da transformação dos instintos, que no
rapaz homossexual pode combinar-se às vezes a mais completa masculinidade
mental com a total inversão sexual, entendendo-se por masculinidade mental
traços como a coragem, o espírito de aventura e experimentação, e a dignidade.
Mas em sua obra posterior, Introdução ao narcisismo, elabora uma teoria
segundo a qual o homem homossexual começaria por fixação materna, efêmera,
para finalmente identificar-se ele próprio como mulher. Se o objeto de seus
desejos passa a ser um jovem, é porque sua mãe o amou, a ele que era um jovem.
Ou porque ele desejaria que sua mãe o tivesse amado assim. No fim de contas o
objeto de seu desejo sexual é sua própria imagem. Para Freud, então, tanto o
mito de Édipo como o de Narciso são componentes do conflito original que dá
origem ao homossexualismo. Mas de todas as observações de Freud sobre
homossexualidade foi esta a mais atacada, objetando-se, principalmente, que os
homossexuais cuja identificação é altamente feminina sentem como objeto de
desejo sexual tipos muito masculinos, ou pronunciadamente mais velhos.
Por outro lado, Freud, na obra citada em primeiro lugar, fala, do
desenvolvimento da sensibilidade erótica e dá outras pistas sobre a gênese do
homossexualismo. Afirma que o começo da libido nos bebés é de caráter
predominantemente difuso, e que daí até conseguir a educação de seu desejo e
fazer com que este recaia numa pessoa do sexo oposto, com quem o prazer será
obtido através da união genital, deverá passar por outras etapas. A primeira é a
oral, em que o prazer só deriva dos cantatas bucais, tais como a sucção. Depois
vem a etapa anal, em que a criança deriva sua satisfação dos movimentos do
intestino. A última e definitiva é a fase genital. Freud a considera a única forma
madura de sexualidade, afirmação que seria, anos depois, contestada por
Marcuse.
O próprio Freud ampliou esses comentários em Caráter e erotismo anal, onde
elabora a seguinte teoria: certos tipos de personalidade anormal, cujos traços
predominantes são a avareza e a obsessão pela ordem, podem sofrer a influência
de desejos anais reprimidos. O prazer que obtêm com a acumulação de bens
pode provir da nostalgia inconsciente pelo prazer que sentiram na infância ao
reter — fato muito frequente nas crianças — as fezes. Por outro lado, a obsessão
pela ordem e a limpeza seria a contrapartida da culpa que sentiram em
decorrência do impulso de brincar com fezes. Quanto ao papel que possa
desempenhar a fixação anal no desenvolvimento do homossexualismo, Freud
afirma que além dos influxos já enumerados — Édipo, Narciso — é preciso
levar em conta que todos estes empecilhos determinam uma interrupção do
desenvolvimento da criança, uma inibição afetiva que acarreta a fixação na fase
anal, sem possibilidade de chegar à fase final, ou seja, a genital.
West contesta essa afirmação dizendo que os homossexuais, ao sentirem
proibido o caminho que conduz às relações genitais normais, são obrigados a
experimentar zonas eróticas extragenitais, e encontram na sodomia — após uma
adequação progressiva — um tipo de gratificação mecânica direta, mas não
exclusiva. West acrescenta que o homem que pratica a sodomia não está
necessariamente fixado na fase anal, assim como o heterossexual que beija uma
amiga não está necessariamente fixado na fase oral. Finalmente, assinala que a
sodomia não é um fenômeno exclusivamente homossexual, já que os casais
heterossexuais também a praticam, enquanto que indivíduos de "caráter anal"
(ou seja, avaros, obsessivos de limpeza e ordem, etc.) não sentem
necessariamente inclinações pelo homossexualismo.
8
MINISTÉRIO DO INTERIOR DA REPÚBLICA ARGENTINA

Penitenciária da Cidade de Buenos Aires

Relatório para o Diretor do Setor III, preparado pela Secretaria Privada

Sentenciado 3018, Luis Alberto Molina

Sentença do Juiz Criminal Dr. Justo José Dalpierre, expedida a 20 de julho


de 1974, no Tribunal da Cidade de Buenos Aires. Pena de oito anos de reclusão
por delito de corrupção de menores. Recolhido ao Pavilhão B, cela 34, no dia 28
de julho de 1974, com os processados amorais Benito Jaramillo, Mário Carlos
Bianchi e David Margulies. Transferido a 4 de abril de 1975 para o Pavilhão D,
cela 7, com o preso político Valentín Arregui Paz. Boa conduta. bom
comportamento.

Preso 16 115, Valentín Arregui Paz

Prisão efetuada a 16 de outubro de 1972 na Estrada 5, na altura de Barrancas,


pouco depois da Polícia Federal ter surpreendido um grupo de ativistas que
promovia distúrbios nas duas fábricas da indústria automobilística, onde os
operários se encontravam em greve e situadas na beira daquela estrada. Posto à
disposição do Poder Executivo da Nação e à espera de julgamento. Recolhido ao
Pavilhão A, cela 10, com o preso político Bernardo Giacinti no dia 4 de
novembro de 1974. Participou da greve de fome em protesto pela morte do preso
político Juan Vicente Aparicio durante interrogatórios policiais. Castigado com
solitária dez dias a partir de 25 de março de 1975. Transferido a 4 de abril de
1975 para o Pavilhão D, cela 7, com o processado por corrupção de menores
Luís Alberto Molina. Comportamento reprovável por rebeldia, considerado o
cabeça da citada greve de fome e outros movimentos de protesto por suposta
falta de higiene no Pavilhão e violação de correspondência pessoal.

SUBOFICIAL: Descubra-se diante do Diretor.


SENTENCIADO: Está bem.
DIRETOR: Não precisa tremer assim, homem, não vai lhe acontecer nada.
SUBOFICIAL: O detento foi revistado e não carrega consigo nada com que
possa atacar o Diretor.
DIRETOR: Obrigado, Suboficial, queira me deixar a sós com o sentenciado.
SUBOFICIAL: Fico de guarda no corredor, senhor. Com licença, senhor.
DIRETOR: Está bem, Suboficial, saia por favor... Está magro, Molina, o que
foi isso?
SENTENCIADO: Nada, senhor. Andei ruim dos intestinos, mas já estou
bem.
DIRETOR: Não precisa tremer assim... Não há nada a recear, fingimos
constar que você tinha visita hoje. Arregui não poderá desconfiar de nada.
SENTENCIADO: Não, ele não desconfia de nada.
DIRETOR: Ontem seu protetor jantou na minha casa e tem boas notícias, por
isso quis que viesse a meu gabinete hoje, embora ainda seja cedo demais, Ou já
sabe alguma coisa?
SENTENCIADO: Não, senhor, ainda não sei de nada. É preciso ter muito
cuidado numa coisa dessas... Que foi que o Sr. Parisi falou?
DIRETOR: Muito boas notícias, Molina, Sua mãe está bem melhor, desde
que se falou de uma possibilidade de indulto... parece outra pessoa.
SENTENCIADO. É mesmo?...
DIRETOR: Claro, homem, era de se esperar, não é?... Mas não chore, vamos,
o que é isso? Você devia ficar contente, homem...
SENTENCIADO: É de alegria, senhor...
DIRETOR: Vamos, vamos... Não tem um lenço?
SENTENCIADO: Não, senhor, enxugo com a manga, não é preciso.
DIRETOR: Pegue o meu...
SENTENCIADO: Não, pode deixar, está bem, desculpe.
DIRETOR: Sabe que eu e Parisi somos como irmãos, e desde que ele me
pediu por você, se procurou dar um jeito na história, mas, Molina... esperamos
que saiba fazer as coisas. Deu para começar a perceber, ou não?
SENTENCIADO: Acho que sim...
DIRETOR: O enfraquecimento físico ajudou um pouco?
SENTENCIADO: Fui obrigado a comer o primeiro prato que veio
preparado.
DIRETOR: Por quê? Fez muito mal...
SENTENCIADO: Não, porque ele não gosta de polenta, e como trouxeram
um prato mais cheio que outro... ele insistiu para eu comer o maior, e teria sido
suspeito que eu recusasse. O senhor disse que o preparado vinha no prato de
latão mais novo, mas se enganaram e encheram demais. E fui eu quem comeu.
DIRETOR: Ah, muito bem, Molina. Meus parabéns. Desculpe o erro.
SENTENCIADO: Deve ser por isso que me achou mais magro, passei dois
dias desarranjado.
DIRETOR: Como que vai o moral do Arregui? conseguimos amolecê-lo um
pouco? qual é sua opinião?
SENTENCIADO: É, mas acho que conviria deixá-lo melhorar.
DIRETOR: Bem, não chego a tanto. Molina, deixe isso por nossa conta,
temos aqui os peritos necessários.
SENTENCIADO: Mas se o estado se agravar não haverá maneira de mantê-
lo na cela, e eu não posso fazer nada na enfermaria.
DIRETOR: Você está subestimando a capacidade de nossos peritos. Eles
saberão o momento de parar ou de prosseguir. Meça suas palavras,
companheiro1.
SENTENCIADO: Desculpe, a única coisa que eu quero é cooperar, mais
nada.
DIRETOR: Está bem. Agora um detalhe, não lhe dê a mais ligeira ideia de
seu indulto, e ao voltar para a cela oculte qualquer euforia. Que vai dizer da
visita que recebeu?
SENTENCIADO: Não sei. Sugira o senhor, por favor.
DIRETOR: Diga-lhe que foi sua mãe que veio, que tal?
SENTENCIADO: Não, impossível, isso não.
DIRETOR: E por que não?
SENTENCIADO: Porque minha mãe vem sempre com um embrulho de
comida.
DIRETOR: É preciso inventar alguma coisa para justificar sua euforia,
homem. É fundamental. Já sei, mandaremos buscar comestíveis, e os
embrulhamos, que acha da ideia?
SENTENCIADO: Boa, senhor.
DIRETOR: Assim reparamos um pouco seu sacrifício do prato de polenta.
Pobre Molina!
SENTENCIADO: Minha mãe compra tudo no supermercado que fica a
poucos quarteirões do presídio para não vir carregada no ônibus.
DIRETOR: Mas é mais fácil para nós comprar tudo aqui no almoxarifado.
Faremos o embrulho aqui.
SENTENCIADO: Não, seria suspeito. Não, por favor, é melhor irem ao
supermercado dali, da avenida.
DIRETOR: Um momento... Alô, alô... Gutiérrez, venha um momento, por
favor... aqui a meu gabinete.
SENTENCIADO: Minha mãe traz sempre a encomenda embrulhada em
papel pardo, com cartão por dentro. Que preparam no supermercado para ela
trazer.
DIRETOR: De acordo... Sim, pode entrar. Olhe, Gutiérrez, é preciso arranjar
uma lista de comestíveis que vou lhe dar e embrulhá-los de uma certa maneira.
O processado vai lhe dar a lista, e tudo tem que estar pronto em... vamos dizer,
meia hora, peça um vale e mande um suboficial comprar a lista que o detento vai
lhe dar. Molina, pode ditar o que acha que sua mãe podia trazer.
SENTENCIADO: Ao senhor?
DIRETOR: Sim, a mim! E rápido que tenho o que fazer.
SENTENCIADO: ...Doce de leite, em vidro grande... É melhor dois vidros.
Pêssegos ao natural, dois frangos assados, que não estejam frios, é claro. Um
pacote grande de açúcar. Dois pacotes de chá, um de chá preto e outro de
camomila. Leite em pó, leite condensado, sabão de lavar roupa, meia barra, não,
uma barra inteira de sabão Radical e quatro sabonetes Palmolive... e que mais?...
sim, um vidro grande de peixe em escabeche e deixe-me pensar um pouco,
porque estou sentindo uma espécie de vazio na cabeça...

________________
1 Em Três ensaios sobre a teoria da sexualidade, Freud assinala que a
repressão, em termos gerais, provém da imposição do domínio de um indivíduo
sobre outros, sendo esse primeiro indivíduo não outro que o pai. A partir de tal
domínio é que se estabelece a forma patriarcal da sociedade, baseada na
inferioridade da mulher e na forte repressão da sexualidade. Ademais, Freud
associa sua tese da autoridade patriarcal com o auge da religião, e
particularmente com a ascensão do monoteísmo no Ocidente. Por outra parte,
Freud se preocupa especialmente com a repressão sexual, pois considera os
impulsos naturais do ser humano muito mais complexos do que a sociedade
patriarcal admite: dada a capacidade indiferenciada dos bebês para obterem
prazer sexual de todas as partes de seu corpo, Freud os qualifica como
“perversos polimorfos”. Como parte deste conceito, Freud acredita também na
natureza essencialmente bissexual do nosso impulso sexual original... Na mesma
linha de pensamento, e no que diz respeito à repressão primeira, Otto Rank
considera o desenvolvimento que se processa na dominação paterna, até chegar-
se a um poderoso sistema estatal administrado pelo homem, como um
prolongamento da repressão primeira antes citada, cujo objetivo é a exclusão
cada vez maior da mulher. Por seu turno, Dennis Altman, em Homossexual,
opressão e libertação, falando especificamente da repressão sexual, relaciona-a
com a necessidade, no começo da humanidade, de produzir uma grande
quantidade de filhos para fins econômicos e de defesa.
A propósito do mesmo assunto, em O sexo na história, o antropólogo
britânico Rattray Taylor assinala que a partir do século IV a.C. verifica-se no
mundo clássico uma crescente repressão da sexualidade e um desenvolvimento
do sentimento de culpa, fatores que facilitaram a vitória do conceito hebreu,
mais repressivo do sexo, sobre o conceito grego. Segundo os gregos, a natureza
sexual de todo ser humano continha tanto elementos homossexuais como
heterossexuais.
Voltando a Altman, este, em sua obra já citada, sustenta que as sociedades
ocidentais se especializam na repressão da sexualidade, repressão legitimada
pela tradição religiosa judaico-cristã. Essa repressão se exprime de três maneiras
inter-relacionadas: associando sexo com 1) pecado e seu consequente sentimento
de culpa; 2) a instituição familiar e a procriação de filhos, como única
justificativa; 3) rejeição de tudo o que não for sexualidade genital e
heterossexual. Mais adiante acrescenta que os “libertários” tradicionais da
repressão sexual lutam por mudar os dois primeiros pontos, mas esquecem o
terceiro. Um exemplo seria Wilhelm Reich, com o livro A função do orgasmo,
quando afirma que a libertação sexual está radicada no orgasmo perfeito, o qual
só se poderia obter através do acoplamento genital heterossexual de indivíduos
pertencentes à mesma geração. E é sob a influência de Reich que outros
pesquisadores teriam desenvolvido sua hostilidade ao homossexualismo e aos
anticoncepcionais, já que dificultariam a conquista do orgasmo perfeito e,
portanto, seriam contrários à total “liberdade” sexual.
Sobre a libertação sexual, Herbert Marcuse, em Eros e civilização, esclarece
que ela implica mais que a simples ausência de opressão; a libertação requer
uma nova moralidade e uma revisão da noção de “natureza humana”. E
acrescenta que toda teoria real de libertação sexual deveria levar em conta as
necessidades essencialmente polimorfas do ser humano. Segundo Marcuse, em
desafio a uma sociedade que emprega a sexualidade como um meio para um fim
útil, as perversões sustentam a sexualidade como um fim em si mesmo; portanto,
colocam-se fora da órbita do férreo princípio de “performance” — termo técnico
talvez traduzível como “rendimento” —, ou seja, um dos princípios repressores
básicos para a organização do capitalismo, e assim questionam sem querer os
próprios fundamentos deste último.
Comentando esse ponto do raciocínio marcusiano, Altman acrescenta que
quando o homossexualismo se torna exclusivo e estabelece suas próprias normas
econômicas, deixando de assinalar criticamente as formas convencionais dos
heterossexuais para, em compensação, tentar uma cópia deles, torna-se uma
forma de repressão tão grande como o heterossexualismo exclusivo. E mais
adiante, comentando outro freudiano radical como Marcuse, Norman O. Brown,
e o próprio Marcuse, Altman deduz que em última instância aquilo que
concebemos como “natureza humana” é tão-somente o que dela resultou depois
de séculos de repressão, raciocínio que implica — e nisso Marcuse e Brown
concordam — a mutabilidade essencial da natureza humana.
Segunda Parte
9
— Olha o que estou trazendo!!!
— Não!... Tua mãe veio...
— Veio!!!
— Mas que bom... Então está boa.
— Sim, um pouco melhor... E olha o que me trouxe. Desculpa, nos trouxe.
— Obrigado, mas é para você, não chateia, rapaz.
— Cala a boca, peste. Hoje começa aqui uma nova vida, com os lençóis
quase secos, vê só... E tudo isto para comer. Olha dois frangos grelhados, dois,
que é que acha? E os frangos são para você, isso não pode te fazer mal, vai ver
que você fica logo bom.
— Nunca permitirei.
— Faz isso por mim, prefiro não comer frango mas salvar-me de teus cheiros
todo borrado... Não, estou falando sério, você tem que deixar de comer a porra
da comida daqui e vai ver como fica logo bom. Experimenta ao menos dois dias.
— Você acha?
— Claro, homem. E quando já estiver bom... fecha os olhos. Valentín, vê se
adivinha. Fala.
— Sei lá... não sei...
— Não abre os olhos. Espera que vou dar para você tocar e ver se adivinha.
Anda... toca.
— Dois potes... E pesadinhos. Desisto.
— Abre os olhos.
— Doce de leite!
— Mas para isso é melhor esperar, uma vez que te sintas bem, e isso sim
vamos comer nós dois. Olha só, corri o risco deixando os lençóis sozinhos,
enxugando, e não os roubaram. O que é que você acha? e já estão quase secos,
hoje à noite dormimos os dois com lençol.
— Genial.
— Bem, espera um pouquinho que vou ajeitar isto... faço um chá de
camomila que estou muito nervoso, e você come uma perninha de frango, ou
não, são só cinco horas... É melhor um chá comigo e umas bolachas que tenho
aqui, são as mais digestivas, as Express, me davam quando eu adoecia em
criança. Quando não existiam as Criollitas.
— Por favor, me dá uma já?
— Bem, uma e com doce e tudo, mas de laranja! Por sorte me trouxeram
tudo mais fácil de digerir, assim você pode atacar, menos no doce de leite, por
enquanto. E acendo o fogareiro já e vamos chupar os dedos.
— E a perna de frango, você não me daria, já?
— Não, cuidado, um pouco de medida, não é? Melhor deixar para mais
tarde, assim quando trouxerem o jantar você não fica tentado, porque mesmo que
seja nojento você comeu todos estes dias.
— É que você não sabe, depois das dores sinto um vazio no estômago e
morro de fome.
— Escuta, vamos ver se nos entendemos. Eu quero que você coma o frango,
não, os frangos, os dois, com a condição de não provar a comida do presídio, que
é a que te faz mal, de acordo?
— De acordo. Mas e você, fica com água na boca?
— Não, a comida fria não me tenta. No duro.

....................................................
....................................................

— Sim, caiu bem. E foi boa ideia a camomila antes.


— Acalmou teus nervos, não é? A mim também.
— E o frango foi genial, Molina. Pensar que temos para mais dois dias.
— Bem, dorme agora, assim completa a cura.
— Não estou com sono. Dorme você, não se preocupe.
— Não começa a pensar em besteira que a comida te faz mal.
— Está com sono?
— Mais ou menos.
— Porque para que o programa fosse completo faltaria alguma coisa.
— Ei, supõe-se que aqui o degenerado sou eu, não você.
— Não enche o saco. Faltaria um filme, isso é o que faltaria...
— Ah...
— Não se lembra de nenhum do gênero do da mulher-pantera? Esse foi o
que eu mais gostei.
— Bem, assim fantástico tem muitos.
— Qual é, diz, qual?
— E bem... Drácula, o homem lobo...
— Que outros?
— A volta da mulher-zumbi...
— Esse! Esse nunca vi.
— Ai... como começava?...
— É americano?
— Sim. Mas vi há mil anos.
— Então anda.
— Deixa eu me concentrar um momento.
— E quando é que vou poder provar o doce de leite?
— Pelo menos amanhã, antes não.
— E agora, uma colherzinha?
— — Não. E é melhor eu te contar o filme... Como era?... Ah, sim. Já me
lembro. Começa com uma moça de Nova York que toma o navio para uma ilha
do Caribe onde o noivo a espera para casar. Parece ser uma boa moça, e cheia de
ilusões, e conta tudo para o capitão do navio, que é alinhadíssimo, e ele olha para
a água negra do mar, porque é de noite, e depois olha para ela como que dizendo
“esta não sabe o que a espera”, mas não lhe diz nada, até que estão para atracar
na ilha, e se ouvem os tambores dos nativos, e ela está como que enlevada, e o
capitão lhe diz então para não se deixar enganar por aqueles tambores, que às
vezes o que eles transmitem são sentenças de morte, parada cardíaca, uma
anciã doente, um coração se enche de água preta do mar e se afoga — patrulha
policial, esconderijo, gases lacrimogêneos, a porta se abre, pontas de
metralhadoras, sangue negro de asfixia sobe às bocas. Continua, por que parou?
— Bem, a moça se encontra com o marido, com quem se casou por
procuração, e tomamos conhecimento de que se conheceram em Nova York
apenas durante alguns dias. Ele é viúvo e americano também. bom, a chegada à
ilha, quando o navio atraca, é linda, porque o noivo a espera com toda a comitiva
de carruagens enfeitadas com flores, e puxadas por burrinhos, e em algumas
carruagens vão os músicos, que tocam umas melodias suaves com aqueles
instrumentos que são como umas mesas feitas de tabuinhas onde vão batendo
com pauzinhos, ai, não sei, mas é uma música que me mexe com o coração,
porque aquelas notas soam tão bonito, como bolinhas de sabão que vão
estourando uma após a outra. E por sorte não se ouvem mais os tambores, que
eram bastante agourentos. E chegam à casa, que é afastada do povoado, fica no
campo, entre as palmeiras, e é uma ilha lindíssima com morrinhos baixos, e lá
estão os bananais. E o rapaz é muito agradável, mas nota-se que tem como que
um drama por dentro, sorri um pouco demais, como uma pessoa de
temperamento fraco. E surge aí um detalhe que te dá a pista de que algo
acontece, porque a primeira coisa que ele faz é apresentar a moça ao mordomo,
que é um quinquagenário, mas francês, e o mordomo pede para o rapaz assinar já
naquele momento uns papéis, do embarque de bananas naquele mesmo navio
que trouxe a moça, e o rapaz fala que mais tarde, mas o mordomo insiste e o
rapaz o olha com ódio e quando vai assinar os papéis nota-se que quase não tem
firmeza para escrever, a mão treme. E ainda é dia, e toda a comitiva que chegou
nas carruagens com flores está no jardim esperando o casal para brindar, e todos
trazem sucos de frutas, e aí aparecem uns delegados dos peões negros dos
canaviais que trazem um barrilzinho de rum de presente para o patrão, mas o
mordomo os vê e fica furioso, e com um machado que tem ali por perto ele dá
umas machadadas no barril e o rum todo se espalha no chão.
— Por favor, não me fala de comida nem de bebida.
— E você não seja tão impressionável, seu molenga. Bem, então a moça olha
para o rapaz como que perguntando por aquela histeria do mordomo tão
antipático, mas nisso o rapaz faz sinais ao mordomo de que ele agiu bem, e sem
perder mais tempo levanta o copo de suco de frutas e brinda por todos os
habitantes da ilha presentes, na manhã seguinte afinal já estarão casados porque
vão assinar uns papéis no registro civil da ilha. Mas a moça tem que passar
aquela noite sozinha na casa, porque o rapaz vai para longe, para os bananais
mais afastados, uma plantação muito, muito longe, para cumprimentar os peões
de passagem, e evitar as fofocas. Aquela noite há uma lua maravilhosa, o jardim
da casa, que é belíssimo, com essas plantas tropicais tão fabulosas, está mais
fantástico que nunca, e a moça veste uma camisola branca de cetim e por cima
um négligé também branco mas transparente, e está a fim de dar uma volta pela
casa, e vê a sala grande, e depois a sala de jantar, e por duas vezes vê porta-
retratos com a foto do rapaz de um lado e do outro nada, porque tiraram a foto,
que era certamente da primeira mulher, da morta. Então continua percorrendo a
casa e entra num quarto que se nota que era de uma mulher, porque tem em cima
da mesa de cabeceira e da cômoda uns paninhos de rendas, mas a moça revista
as gavetas para ver se tem alguma fotografia e não encontra nada, mas toda a
roupa da primeira mulher está pendurada no armário, todas coisas finíssimas e
importadas. E de repente a moça percebe que algo está se mexendo, vê uma
sombra passar pela janela. Fica assustadíssima e sai para o jardim, que está
muito iluminado pela lua, e vê que de um tanque pula uma rãzinha, e pensa que
era aquele o barulho que ouvira, e que a sombra era das palmeiras que se mexem
com a brisa. E penetra mais no jardim, porque sente calor dentro de casa, e nisso
torna a ouvir um barulho, mas como que de passos, e volta-se para olhar, mas
naquele momento umas nuvens cobrem a lua, e o jardim escurece. E ao mesmo
tempo muito, muito longe... os tambores. E se ouve também, agora sim bem
claro, que se aproximam uns passos, mas muito, muito lentos. A moça treme de
medo, e percebe que uma sombra entra na casa, pela porta que ela própria deixou
aberta. Então a coitada não sabe de que tem mais medo, se de ficar lá fora no
jardim escuríssimo, ou de entrar em casa. Então resolve se aproximar da casa, e
espiar por alguma janela, para ver quem entrou, e espia por uma janela e não
enxerga nada, e corre até outra, que é justamente a do quarto da mulher morta. E
como está muito escuro não chega a perceber nada mais que uma sombra que
escorrega pelo quarto, uma silhueta alta, que avança com uma mão esticada, e
acaricia algumas coisas que ali estão, e bem perto da janela encontra-se a
cômoda com as rendas e lá em cima uma escova muito bonita com o cabo de
prata trabalhado, e um espelho com o cabo igual, e como está muito perto da
janela a moça percebe que é uma mão muito fina e pálida de morta que acaricia
aquelas coisas, e a moça fica como que petrificada de medo, não tem coragem de
se mexer, a morta que caminha, a sonâmbula, fala dormindo e conta tudo, ouve
o doente contagioso, não o toca por nojo, é branca sua carne de morta, mas vê
que a sombra sai do quarto em direção a quem sabe lá que outra parte da casa,
quando pouco depois ouve passos naquele pátio outra vez, e a moça se encolhe
toda tratando de se esconder entre as trepadeiras que sobem por aquelas paredes,
quando a nuvem se afasta e deixa a descoberto a lua e o pátio se ilumina e ali
diante da moça está uma figura muito alta que quase a mata de terror, uma cara
pálida de morta, com o cabelo louro desgrenhado e comprido até a cintura,
embrulhada num roupão preto. A moça quer gritar por socorro mas a voz não sai,
e vai recuando devagarzinho, porque as pernas não aguentam, fraquejam. A
mulher que está diante dela a olha fixo, e ao mesmo tempo é como se não a
enxergasse, tem um olhar perdido, como que de louca, mas estica os braços para
tocar a moça, e avança muito devagar, como se estivesse muito fraca, e a moça
vai recuando, e sem perceber que atrás há uma fileira de árvores muito cerradas,
ela se vê sem saída, e quando se volta e percebe que está encurralada solta um
grito altíssimo, mas a outra continua avançando devagarzinho, com os braços
esticados. A moça cai desmaiada por causa do pavor. Nesse momento alguém faz
parar aquela mulher tão estranha. É que chegou aquela preta tão simpática, ou
me esqueci de te contar? uma enfermeira preta, velha, boa, enfermeira de dia, de
noite ela deixa sozinha com o doente grave uma enfermeira branca, nova, a
expõe ao contágio...
— Não, você não falou nela.
— Bem, aquela preta é como se fosse uma governanta, mas muito boa. Uma
gordona, com o cabelo já todo grisalho, e olha para a moça com boa cara desde
que chegou. E quando a moça acorda do desmaio a preta já a levou para a cama,
e a faz acreditar que o que ela teve foi um pesadelo. E a moça não sabe direito se
acredita ou não, mas como acha a preta tão boa se tranquiliza, e a preta traz um
chá para ela dormir, de camomila, alguma coisa, não me lembro. No dia seguinte
é o casamento, bem, têm que ir ao prefeito cumprimentá-lo e assinar uns papéis,
e para isso a moça está se vestindo, um vestido de duas peças muito simples,
mas com um penteado muito bonito que a preta está fazendo, uma espécie de
trança em cima, como poderia explicar, bem, naquela época se usava o penteado
para cima em certas ocasiões, ficava muito chique.
— Não me sinto bem... outra vez a tonteira.
— Tem certeza?
— Sim, uma ameaça, mas a mesma coisa de sempre.
— Mas essa comida não pode ter feito mal.
— Está louco, como vou botar a culpa na tua comida?
— Como você está nervoso...
— Mas não é tua comida, é o meu organismo, está acontecendo alguma
coisa.
— Não pensa, que piora as coisas1.
— Já não podia prestar atenção ao que você contava.
— Olha, por favor, pensa em outra coisa, porque a comida era de muito boa
qualidade. Você deve ter ficado um pouco sugestionado.
— Por favor, conta mais um pouco para ver se passa. É que também estou
muito enfraquecido, fiquei cheio de repente, realmente não sei o que é...
— É isso, está muito enfraquecido, eu vi que você comeu, de gulodice,
depressa demais, quase sem mastigar.
— Desde que acordei estou pensando na mesma coisa, isso deve ter me feito
mal, quando posso estudar não me acontece isso. Não posso tirar isso da cabeça.
— O quê?
— Que não posso responder à minha companheira ... e à Marta sim. Talvez
me faria bem escrever a ela, mas não sei o que dizer. Porque é errado eu
escrever, para quê?
— Continuo contando?
— Sim, por favor.
— Bem, onde ficamos?
— Estavam vestindo a moça.
— Ah, sim, e fazendo um penteado nela...
— Para cima, já sei, e eu com isso? não quero detalhes de coisas que
realmente não têm importância, carranca pintada demais, um soco duro, a
carranca é de vidro, esfacela-se, o punho não se machuca, o punho é de homem
— a sonâmbula traidora e a enfermeira branca, na escuridão, olham fixo
para o doente contagioso. Como não! Cala a boca e deixa comigo que sei o que
estou dizendo. Começando porque o penteado para cima, que — escuta bem —
tem sua importância, porque as mulheres só usam, ou usavam, naquela época,
quando queriam dar realmente a impressão de que aquele era o momento
importante para elas, um encontro importante, porque o penteado para cima, que
deixava a nuca a descoberto e punha todo o cabelo para o alto dava uma nobreza
ao rosto da mulher. E com toda aquela mata de cabelo para cima a negra faz uma
trança, e põe um enfeite de flores do lugar, e quando ela sai na carruagem,
embora se passe em tempos modernos, vão naquele carrinho lindíssimo puxado
por dois burrinhos, e todo o povo sorri, e ela se vê como que a caminho da
felicidade... Está passando?
— Acho que sim. Continua, por favor.
— Vão ela e a preta, e na porta daquela espécie de prefeitura, estilo colonial,
o noivo está esperando. E já depois se vê que estão de noite na escuridão, ela
encostada numa rede, vê-se um primeiro plano muito bonito das duas cabeças
porque ele se abaixa para beijá-la, iluminados pela lua cheia que vai se filtrando
aos poucos por entre as palmeiras. Ah, mas me esquecia de algo importante.
Bem, a expressão dos dois é de apaixonados, e. de profunda felicidade. Mas o
que me esqueci de dizer é que, enquanto a preta a penteia, a moça...
— Outra vez o penteado para cima?
— Como você está nervoso! Se não fizer um esforço não vai sossegar...
— Desculpa, continua.
— Bem, a moça faz perguntas à preta. Como, por exemplo, onde é que ele
foi passar a noite. A preta trata de disfarçar sua inquietação e lhe diz que foi
cumprimentar o pessoal dos bananais, na plantação que fica mais longe de todas,
e onde a maioria dos peões acreditam... no vodu. A moça sabe que é uma
religião de pretos e diz que gostaria muito de ver alguma coisa, alguma
cerimônia, porque devem ser muito bonitas, com muito colorido e música, mas a
preta faz um gesto de susto e lhe diz que não, que deve se manter afastada de
tudo aquilo, porque é uma religião muito sanguinária às vezes, e que não se
aproxime de lá de maneira alguma. Porque... E aí a preta fica calada. E a outra
pergunta o que foi, e a preta diz que existe uma lenda, que não deve ser
verdadeira mas que ela tem medo do mesmo jeito, e é a dos zumbis. Zumbi? que
é isso? pergunta a moça, e a preta lhe faz sinais para ela não dizer aquela palavra
em voz alta, só em voz muito baixa. E explica que são os mortos que os
feiticeiros fazem reviver antes do cadáver esfriar, porque eles próprios os
mataram, com um veneno que preparam, e o morto-vivo já não tem vontade
própria, e obedece a todas as ordens que lhe dão, e os feiticeiros os usam para
que façam o que lhes der na telha, e os fazem trabalhar, e os pobres mortos-
vivos, que são os zumbis, não têm outra vontade senão a do feiticeiro. E diz a
preta que lá nas plantações há muitos anos uns pobres peões se rebelaram contra
os donos porque lhes pagavam pouco, e os donos fizeram um acordo com o
feiticeiro principal da ilha para que os matasse e os transformasse em zumbis, e
foi assim que depois de mortos os fizeram trabalhar nas colheitas de bananas,
mas de noite, para que os outros não percebessem, e os zumbis trabalham e
trabalham, sem falar, porque os zumbis não falam, não pensam, embora sofram,
porque no meio do trabalho, quando o luar os ilumina, veem-se rolar as lágrimas,
mas não se queixam, porque os zumbis não falam, já não têm vontade própria e a
única coisa que podem fazer é obedecer e sofrer. Então de repente a moça
pergunta, lembrando do sonho que ela acredita ter tido na noite anterior, se
existem mulheres zumbis. Então a negra escapa pela tangente e diz que não,
porque as mulheres não têm força para os trabalhos mais rudes do campo e por
isso ela acredita que não existem mulheres zumbis. E a moça pergunta se o rapaz
não tem medo dessas coisas, e a negra diz que não, mas que convém do mesmo
jeito, para ficar bem com os peões, que ele tenha ido pedir a bênção aos próprios
feiticeiros. E a conversa acaba aí, e, como ia dizendo, depois vê-se que eles estão
juntos na noite de núpcias, e muito felizes, pela primeira vez se percebe que o
rapaz tem uma sensação de paz no olhar, e só se ouvem os cricris dos bichinhos
dos jardins e da água das fontes. E depois se vê que já estão dormindo na cama,
mas são acordados por alguma coisa e chegam a perceber, cada vez mais forte, o
tam-tam que vem de longe. Ela treme, um calafrio percorre-lhe o corpo. Se sente
melhor? ronda noturna de enfermeiras, temperatura e pulso normal, gorro
branco, meias brancas, boa-noite ao paciente
— Um pouco... mas mal consigo acompanhar a história, a longa noite, a
noite fria, pensamentos longos, pensamentos frios, vidros pontudos quebrados
— Então não conto mais. a enfermeira precisa, o gorro bem alto e
engomado, o sorriso leve e não isento de malícia
— Não, anda, se você me distrair eu melhoro, continua por favor, a noite
longa, a noite gelada, as paredes verdes de umidade, as paredes atacadas de
gangrena, o punho ferido
— Bem, então... onde estava? ouvem-se os tambores muito longe, e o rapaz
também muda de expressão, e já não tem paz, não pode dormir e levanta. A
moça não diz nada, para aparentar discrição nem se mexe, finge que está
dormindo, mas fica bem de orelha em pé e ouve um barulho de uma portinha do
guarda-louça que se abre e o rangido, e depois mais nada. Ela não tem coragem
de levantar e olhar, mas ele demora e demora a voltar. Então ela levanta e o
encontra estirado num sofá, totalmente bêbado. E olha para os móveis e vê que
há uma gavetinha aberta, onde mal cabe uma única garrafa, uma garrafa de
conhaque vazia, e o rapaz tem a seu lado outra garrafa, pela metade. Então a
moça pensa de onde foi que ele a tirou, porque não há bebidas na casa, e percebe
que debaixo da garrafa há coisas guardadas, naquela gaveta, e são cartas e fotos.
E com a maior dificuldade carrega o rapaz até o quarto, e deita ao lado dele, para
reanimá-lo, que ela o ama e ele já não está sozinho, e ele lhe lança um olhar de
gratidão, e dorme. Então ela também trata de dormir, mas já não consegue, tão
contente que estava antes, mas ao vê-lo tão embriagado ficou preocupada. E
percebe que o mordomo estava com a razão quando quebrou o barril de rum.
Veste o roupão e vai até a gavetinha para revistar as fotos, porque o que a deixa
intrigadíssima é ver uma foto da primeira mulher dele. Mas ao chegar encontra a
gaveta fechada, e à chave. Quem pode tê-la fechado? Olha em redor e tudo está
afundado na maior escuridão e no maior silêncio, com exceção dos tambores,
que ainda se ouvem. Então ela vai fechar as janelas para não ouvir mais, e justo
naquele momento param de batucar, como se a tivessem avistado desde
quilômetros e quilômetros. Bem, na manhã seguinte é como se ele não lembrasse
de nada, e a acorda com o café da manhã, muito sorridente, e diz que vai levá-la
a percorrer a ilha. Ela sente-se contagiada pela felicidade dele, e vão pelo
trópico, num belo carro sem capota, soa uma música de fundo alegre, de calipso,
e vão percorrendo umas praias lindas, e aí aparece uma cena muito sexy porque
ela tem vontade de tomar banho, porque já passaram por um palmeiral
lindíssimo, e umas pedras que dão para o mar, e uns jardins naturais de flores
gigantescas, e o sol queima mas ela não lembrou de trazer o maiô, e ele diz para
ela tomar banho sem nada, e param, e a moça se despe atrás de umas pedras e a
veem de longe correr nua em direção ao mar. E já depois vemos os dois deitados
na praia, debaixo das palmeiras, ela com uma espécie de sarongue feito com a
camisa dele, e ele de calças, mais nada, e descalço, e não se sabe de onde vem,
sabe, como no cinema, mas chegam as palavras da canção, que diz que é preciso
ganhar o amor, e que atrás de um caminho escuro, cheio de ameaças, o amor
espera aqueles que lutam até o fim para consegui-lo. E nota-se que a moça e o
rapaz estão de novo encantados, e esqueceram tudo. E já voltam ao entardecer, e
quando sobem uma lombada do caminho, vê-se ao fundo, não muito longe dali,
uma casa colonial muito antiga, iluminada pelo sol vermelho cor de fogo, mas
muito bonita e com muito mistério, porque está como que invadida pelas plantas,
que quase a cobrem. E a moça diz que outro dia quer ir até aquela casa, e
pergunta por que parece abandonada. E o rapaz fica muito nervoso e fala com
maus modos que nunca, nunca se aproxime daquela casa, e não dá mais
explicações, e outro dia lhe dirá o motivo, a enfermeira da noite não tem
experiência, a enfermeira da noite é sonâmbula, está dormindo ou acordada? o
plantão da noite é longo, está sozinha e não sabe a quem pedir ajuda. Como
você está calado, não faz comentários...
— É que ando ruim, continua, me faz bem pensar em outra coisa.
— Espera que perdi o fio.
— Não sei como é que você pode guardar na cabeça todos esses detalhes o
cérebro oco, o crânio de vidro, cheios de gravuras de santos e de putas, alguém
joga o pobre cérebro de vidro contra a parede imunda, o cérebro de vidro
quebra, todas as gravuras caem no chão
— Apesar do passeio tão bonito, a moça está outra vez preocupada, porque o
viu de novo nervoso, por causa daquela casa, que tem aspecto de abandonada. E
quando chegam à mansão, o rapaz toma uma chuveirada, e enquanto isso ela cai
na tentação de procurar na roupa as chaves e revistar aquela gaveta da noite
anterior. E vai e revista as calças, e encontra o chaveiro, e corre até a gaveta: há
no chaveiro uma única chave pequena, experimenta-a e é essa. Abre. Tem uma
garrafa de conhaque cheia, quem a pôs lá? porque na noite anterior ela não se
afastou um minuto do marido, e não foi ele quem botou a garrafa, ela teria visto.
E debaixo da garrafa há cartas, são cartas de amor, assinadas por ele e outras
assinadas pela primeira mulher, e mais embaixo há fotos, fotos dele e outra
mulher, seria a primeira esposa? à moça parece reconhecê-la, parece tê-la visto
antes, realmente tem certeza de ter visto antes aquele rosto, em algum lugar, mas
onde? Pela foto parece muito interessante, uma mulher muito, muito alta, de
cabelo louro comprido. A moça continua olhando as fotos, e aí acha uma que é
um retrato, só a cara, bem grande, os olhos bem claros, um olhar um pouco
perdido... e a moça então se lembra! é a mulher que a perseguia no pesadelo, a
mulher com cara de louca, vestida de preto até os pés... E a moça percebe de
repente que já não se ouve mais a água do chuveiro caindo, e o marido pode
apanhá-la remexendo as coisas! Então rapidíssimo trata de ajeitar tudo, põe a
garrafa em cima das cartas e fotos, fecha e vai para o quarto, e percebe que ele
está lá, embrulhado numa toalha de banho imensa, muito sorridente! Ela não
sabe o que fazer, e se oferece para enxugar-lhe as costas, não sabe como chamar
sua atenção, distraí-lo, a pobre enfermeira, não tem sorte, lhe dão o doente mais
grave e não sabe o que fazer para que ele não morra ou a mate naquela noite,
mais forte que nunca o perigo do contágio porque ele já vai começar a se vestir,
mas o pavor é que ela está com o chaveiro na mão, e ele vai perceber. E ela lhe
enxuga as costas com a mão e olha para as calças dele, que estão jogadas numa
cadeira, e não sabe como fazer para enfiar as chaves no bolso. Então lhe ocorre
uma ideia, e diz que gostaria de penteá-lo. E ele diz que sim, e que o pente ficou
no banheiro, que vá buscá-lo, e ela diz que não é de cavalheiro pedir isso a ela, e
então ele vai buscá-lo e enquanto isso ela aproveita para enfiar as chaves no
bolso, justo na horinha, e quando ele chega, o penteia e lhe acaricia o dorso nu. E
só aí a coitada respira aliviada. E passam-se uns dias, e a moça percebe que o
rapaz se levanta à meia-noite porque não consegue dormir, e ela finge que está
dormindo, porque tem medo de tocar no assunto com ele, e levanta de
madrugada para trazê-lo para a cama, porque acaba sempre inteiramente bêbado
atirado no sofá. E ela olha para a garrafa, e é sempre diferente, cheia, e quem é
que a põe ali na gaveta? A moça não se atreve a perguntar nada, porque quando
ele volta toda tarde das plantações está muito contente por encontrá-la à espera
dele, fazendo algum bordado, mas à meia-noite torna-se a ouvir sempre os
tambores, e aí é quando ele parece obcecado com alguma coisa, e já não
consegue pegar no sono, se não for se embriagando. Então, é claro, a moça vai
ficando cada vez mais intranquila, e numa hora em que o rapaz está ausente, ela
trata de falar alguma coisa com o mordomo, e tirar-lhe algum segredo, saber por
que o marido fica tão nervoso às vezes, mas o mordomo diz com um suspiro de
resignação que há muitos problemas com os peões, etc., etc., e no fim de contas
não diz nada. Bem, o negócio é que a moça, certa vez que o rapaz lhe diz que vai
passar o dia todo com o mordomo na plantação que é a mais distante de todas e
que só volta no dia seguinte, ela resolve ir sozinha caminhando até aquela casa
abandonada, porque tem certeza de que lá vai saber alguma coisa. E depois do
chá, por volta das cinco horas, quando o sol já não é tão forte, o rapaz e o
mordomo saem de viagem, e a moça sai também pouco depois. E vai procurando
o caminho da casa abandonada, e se perde, e vai ficando tarde, já é quase noite
quando consegue chegar àquela lombada de onde se avistava a tal casa, aquela, e
não sabe se volta ou não, mas a curiosidade é mais forte, e continua até a casa. E
vê que lá dentro se acende uma luz, e aquilo a deixa mais animada. Mas ao
chegar à casa, que está realmente meio coberta pelas plantas selvagens, não ouve
nada, vê-se pelas janelas uma vela em cima de uma mesa, e a moça toma
coragem e abre a porta e olha para dentro, e avista num canto um altar de vodu,
com mais velas acesas, e entra mais para espiar o que há no altar, e se aproxima,
e vê no altar uma boneca de cabelo preto com um alfinete espetado no meio do
peito, e a boneca está vestida com um pano que lhe forma um vestido igual ao
que ela usava no dia do casamento! E aí quase que ela desmaia de susto e volta-
se para fugir pela mesma porta por onde entrou... e o que é que ela vê na porta?...
um preto altíssimo, com os olhos fora das órbitas, vestindo somente uma calça
toda puída, e com o olhar totalmente de louco, que a olha e lhe impede a saída.
Aí a única coisa que a pobre moça pode fazer é soltar um grito de pavor, mas o
preto, que é o que lá chamam de zumbi, um morto-vivo, vai-se aproximando
dela, com os braços esticados, tal qual a mulher daquela noite no jardim. E a
moça torna a soltar outro grito, e corre para outro quarto e fecha a porta à chave
atrás dela, um quarto quase às escuras, com uma janela quase coberta de mato
por onde apenas entra um pouquinho de luz do crepúsculo, e o quarto tem uma
cama, que a moça começa a avistar aos poucos, quando se habitua à escuridão. E
se sacode toda, quase sufocada pelo choro e pelo medo, quando percebe que na
cama... algo está se mexendo... e é... aquela mulher, pálida, desgrenhada, com o
cabelo até a cintura, e com o mesmo pano preto que a envolve, que se levanta e a
olha, e se aproxima! no quarto sem saída, trancada... A moça está prestes a
morrer de medo, e já nem consegue gritar, quando se ouve da janela uma voz
que dá uma ordem à mulher zumbi para voltar atrás e tornar a deitar... é a preta
boa. E diz à moça para não se assustar, e que ela vai entrar e vai protegê-la, A
moça abre a porta, a preta a abraça e a tranquiliza; atrás, no vão da porta de
saída, está o preto gigante, mas obedece a tudo o que a preta velha fala, e ela lhe
diz que deve tomar conta da moça e não atacá-la. O preto zumbi obedece, a outra
zumbi também, a mulher toda desgrenhada, porque a preta lhe ordena que torne
a deitar, e a mulher deita. Então a preta segura com carinho a moça pelos ombros
e diz que vai acompanhá-la de volta a casa, numa carrocinha puxada a burros, e
no caminho conta a história toda, porque a moça já percebeu que a morta-viva de
cabelo louro até a cintura... é a primeira mulher do marido. E a preta começa o
relato. a enfermeira treme, o doente a olha, pede morfina? pede carícias? ou
quer que o contágio seja fulminante e mortal?
— o crânio de vidro, também o corpo todo de vidro, fácil de quebrar um
boneco de vidro, pedaços de vidro afiados e frios na noite fria, a noite úmida,
gangrena nas mãos cortadas por causa do soco Você me perdoa se eu disser
uma coisa?
— o paciente levanta e caminha de noite descalço, se resfria, piora O que é?
Fala.
— o crânio de vidro cheio de gravuras de santos e putas, gravuras velhas e
amareladas, caras mortas desenhadas em gravuras de papel amassado, dentro
em meu peito as gravuras mortas, gravuras de vidro, afiadas, cortam, empestam
de gangrena o peito, pulmões, coração Estou muito deprimido, quase não
consigo acompanhar o que você conta. Acho melhor continuarmos amanhã, não
é? E assim falamos de outras coisas.
— Ótimo, quer falar sobre quê?
— Estou tão fodido... você não pode imaginar. E tão confuso... bem, estava...
agora estou vendo com mais clareza, e aquilo que te falei de minha companheira,
temo muito por ela, porque está em perigo... mas de quem quero notícias, a
quem tenho vontade de ver, não é a ela. E vontade de tocá-la, não é a ela que
tenho vontade, e de abraçá-la, porque me dói, até me dói o corpo de vontade... de
senti-la perto, porque acho que só Marta podia me reviver, porque me sinto
morto, te juro. Tenho a impressão que só ela podia me reviver.
— Fala, estou escutando.
— Você vai rir do que vou te pedir.
— Não, por quê?
— Se não te incomoda, acende a vela... Gostaria de ditar uma carta para ela,
bem, você já sabe por quê. Fico tonto se fixo o olhar.
— Mas, o que é que você tem? não será algo mais? que o desarranjo, quero
dizer.
— Não, é de fraqueza, e quero me aliviar de alguma maneira, meu velho,
porque não aguento mais. Tratei de escrever de tarde, mas as letras dançavam.
— Claro, espera eu achar os fósforos.
— Você é muito bom comigo.
— Pronto. Fazemos o rascunho em qualquer papel, o que acha?
— Sim, em rascunho, porque não sei direito o que vou dizer. Pega minha
caneta.
— Espera que vou fazer a ponta no lápis.
— Não, pega minha caneta, estou dizendo.
— Bem, te acalma.
— Desculpa, vejo tudo preto.
— Bom, dita.
— Querida... Marta: você estranhará... receber esta carta. Sinto-me...
sozinho, preciso de você, quero falar com você, quero... estar perto de ti, quero...
que você me diga... uma palavra de ânimo. Estou em minha cela, quem sabe
onde andará você a esta hora... e como estará, e em que pensará, e que
necessidade terá... Mas vou escrever esta carta, mesmo que não a mande, quem
sabe o que acontecerá... mas deixa eu te falar... porque tenho medo... que estoure
logo dentro de mim... se não desabafar um pouco. Se pudéssemos falar você me
entenderia...
— “...você me entenderia...”
— Desculpa, Molina, como foi que eu disse que não vou mandar a carta? Lê,
por favor.
— “Mas vou escrever esta carta, mesmo que não a mande.”
— Acrescenta por favor: “...Mas vou mandar, sim”. “Se pudéssemos falar
você me entenderia.”
— “Mas vou mandar, sim.” Continua. Estávamos em “Se pudéssemos falar
você me entenderia”.
— ...porque neste momento não poderia me apresentar diante de meus
companheiros e falar-lhes, ficaria com vergonha de ser tão fraco... Marta, sinto
que tenho direito a viver mais um pouco, e de que alguém me ponha um pouco
de... mel... nas feridas...
— Tá... continua.
— ...estou cheio de chagas por dentro, e só você vai me compreender...
porque você também foi criada em casa limpa e confortável para gozar a vida, e
eu como você não me conformo com ser um mártir, Marta, tenho raiva de ser
mártir, não sou um bom mártir, e penso neste momento se não me enganei em
tudo... Torturaram-me, e não confessei nada... claro que eu era ajudado pelo fato
de não ter sabido nunca os verdadeiros nomes de meus companheiros, e lhes
disse os nomes de guerra, porque com aquilo não podiam avançar nada, mas
tenho dentro de mim um outro torturador... e não me dá trégua há dias... É que
estou pedindo justiça, olha que absurdo o que vou te dizer, estou pedindo que
exista uma justiça, que a providência intervenha... porque não mereço apodrecer
para sempre nesta cela, ou, já sei, agora vejo mais claro, Marta... tenho medo
porque estou doente... e tenho medo... um medo terrível de morrer... e que tudo
fique aí, que minha vida seja reduzida a este pouquinho, porque acho que não
mereço, que sempre agi com generosidade, que nunca explorei ninguém... e que
lutei, desde que tive um pouco de discernimento... contra a exploração de meus
semelhantes... E eu, que sempre xinguei as religiões, porque confundem as
pessoas e não as deixam lutar pela igualdade... estou ansioso para que exista uma
justiça... divina. Estou pedindo que haja um Deus... escreve com maiúscula,
Molina, por favor...
— Sim, continua.
— Onde ficamos?
— “Estou pedindo que haja um Deus.”
— ...um Deus que me veja e me ajude, porque quero sair algum dia à rua, e
que seja breve, e não morrer. E às vezes passa pela minha cabeça que nunca,
nunca mais vou tocar numa mulher, e não posso me conformar... e quando penso
nas mulheres... não vejo na imaginação mais do que você, e seria quase um
alívio acreditar que neste momento, daqui até eu acabar esta carta, você vai
pensar em mim... e vai passar a mão por esse corpo que recordo tão bem...
— Espera, não vai tão depressa.
— ...por esse corpo que recordo tão bem, e vai pensar que é minha mão... e
que grande consolo seria... meu amor, que isso pudesse ocorrer... porque seria
como se eu mesmo te tocasse, porque ficou algo meu dentro de você, não é?
como ficou também dentro de meu nariz teu perfumezinho... e debaixo da ponta
dos dedos também tenho a sensação de tua pele... como que memorizada,
entende? Embora não se trate de entender... trata-se de acreditar, e às vezes estou
convencido de que carreguei algo teu... e que não o perdi, e às vezes não, sinto
que não estou nesta cela mais que eu sozinho...
— Sim... “que eu sozinho...”, continua.
— ... e que nada deixa marcas, e que a sorte de ter sido feliz junto de você,
de ter passado aquelas noites, e tardes, e manhãs de puro prazer, agora não
adianta nada, ao contrário, tudo isso se volta contra mim... porque sinto sua falta
como um louco, e a única coisa que sinto é a tortura de minha solidão, e só tenho
no nariz o cheiro asqueroso desta cela, e de mim mesmo... e não posso tomar
banho porque estou doente, fraquíssimo, e a água fria pode me provocar uma
pneumonia, e debaixo da ponta dos dedos sinto o frio do medo da morte, já sinto
esse frio nos ossos... Como é terrível perder a esperança, e foi isso o que me
aconteceu... o torturador que está dentro de mim diz que tudo já acabou, que esta
agonia é minha última experiência na terra... e falo como um cristão, como se
depois viesse outra vida, que não existe, não é? ...
— Perdoa que te interrompa...
— O que é?
— Quando acabar de ditar lembra que quero te dizer uma coisa.
— Que coisa?
— Bem, que se podia fazer uma coisa...
— Que é? Fala.
— Porque se tomar banho no chuveiro gelado você morre, por causa da
fraqueza.
— Mas o que se há de fazer? fala de uma vez, porra!
— Que eu podia te ajudar a limpar. Olha, esquentamos água na panela, e tem
duas toalhas, ensaboamos uma e você passa pela frente e eu passo por trás, e
com a outra toalha úmida você tira o sabão.
— E assim não sentiria mais coceira no corpo?
— Claro, vamos aos pouquinhos, assim não se resfria, primeiro o pescoço e
as orelhas, depois embaixo dos braços, o peito, depois as costas, e tudo assim.
— Você me ajuda mesmo?
— Mas é claro, rapaz.
— E quando?
— Agora mesmo, ponho a água para esquentar se você quiser.
— E depois eu posso dormir sossegado, sem coceira?
— Sossegado, e sem coceira. A água esquenta em pouco tempo.
— Mas o querosene é teu, e gasta.
— Não tem importância, enquanto isso acabamos a carta.
— Me dá.
— Para quê?
— Me dá, Molina, estou te dizendo.
— Toma...
— O que é que você está fazendo?
— Isto.
— Rasgando, por quê?
— Não se fala mais no assunto.
— Como queira.
— É errado se deixar levar pelo desespero...
— Mas é certo desabafar. Você me dizia isso.
— Mas me faz mal. Eu tenho que aguentar...
— Escuta, você é muito bom comigo, sério mesmo, te agradeço de todo o
coração. Se algum dia puder te demonstrarei minha gratidão, te garanto... Vai
gastar tanta água?
— Sim, é preciso... não seja tolo, não há nada a agradecer. ; — Quanta água.
— Molina...
— Hein?
— Olha as sombras que o fogareiro projeta. .
— Eu olho sempre, você não olha nunca?
— Não, não tinha percebido.
— É, sempre me distraio muito olhando para as sombras, quando o fogareiro
está aceso.

________________
1 Como variante do conceito de repressão, Freud introduziu o termo
“sublimação”, entendendo por isso a operação mental através da qual se
canalizam os impulsos libidinosos inconvenientes. Os canais da sublimação
seriam qualquer atividade — artística, esportiva, profissional — que permitisse o
emprego dessa energia sexual, excessiva segundo os cânones de nossa
sociedade. Freud estabelece uma diferença fundamental entre repressão e
sublimação ao considerar que esta última pode ser saudável, já que resulta
indispensável para a manutenção de uma comunidade civilizada.
Essa posição foi atacada por Norman O. Brown, autor de Vida contra morte,
o qual propicia um retorno àquela “perversão polimorfa” dos bebês descoberta
por Freud, o que implica uma total eliminação da repressão. Uma das razões que
Freud aduzia em sua defesa de uma repressão parcial foi a necessidade de
submeter os impulsos destrutivos do homem, mas tanto Brown como Marcuse
rejeitam esse argumento ao sustentar que os impulsos agressivos não existem
como tal se os impulsos da libido — preexistentes — encontram sua maneira de
realização, isto é, sua satisfação.
Por sua vez, a crítica que Brown recebeu parte da suposição de que uma
humanidade sem diques de contenção, isto é, de repressão, não poderia organizar
nenhuma forma de atividade permanente. Foi então que Marcuse interveio com
seu conceito de surplus repression, termos que designam aquela parte da
repressão sexual criada para manter o poderio da classe dominante, apesar de
não ser imprescindível para manter uma sociedade organizada que atenda às
necessidades humanas de todos os seus componentes.
Portanto, o avanço principal que suporíamos em Marcuse com respeito a
Freud consistiria em que este último tolerava certo tipo de repressão pelo fato de
preservar a sociedade contemporânea, enquanto Marcuse considera fundamental
a mudança da sociedade, na base de uma evolução que leve em conta os
impulsos sexuais originais.
Seria esta a base da acusação que os representantes das novas tendências
psiquiátricas formulam contra os psicanalistas ortodoxos freudianos, acusação
segundo a qual estes últimos teriam procurado com uma impunidade que se
esfacelou notavelmente em fins da década de 60 — que seus pacientes
assumissem qualquer conflito pessoal para facilitar a adaptação à sociedade
repressiva em que viviam, e não para perceber a necessidade de mudarem essa
sociedade.
Em O homem unidimensional, Marcuse afirma que originariamente o instinto
sexual não tinha limitações temporárias e espaciais de sujeito e objeto, dado que
a sexualidade é por natureza “perversão polimorfa”. Indo mais longe ainda,
Marcuse dá como exemplo de surplus repression não somente nossa
concentração total na cópula genital, mas também fenômenos como a repressão
do olfato e do sabor na vida sexual.
Por sua parte, Dennis Altman, comentando favoravelmente em seu livro já
citado essas afirmações de Marcuse, acrescenta que a libertação não somente
deveria eliminar a contenção sexual, como proporcionar a possibilidade prática
de realizar aqueles desejos. Ademais, sustenta que só recentemente advertimos
que a maior parte daquilo que se considerava normal e instintivo, principalmente
na estruturação familiar e nas relações sexuais, é, de fato, aprendido, razão pela
qual seria preciso desaprender muito daquilo que até agora foi considerado
natural, inclusive atitudes competitivas e agressivas fora do campo da
sexualidade. E dentro da mesma linha, a teórica da libertação feminina Kate
Mittet diz, em seu livro Política sexual, que o propósito da revolução sexual
deveria ser uma liberdade sem hipocrisias, não corrompida pelas bases
econômicas exploradoras das alianças sexuais tradicionais, ou seja, o casamento.
Ademais, Marcuse sustenta não apenas um livre fluir da libido, mas também
a transformação desta: ou seja, a passagem de uma sexualidade circunscrita à
supremacia genital a uma total erotização da personalidade. Refere-se, então, a
uma expansão mais do que a uma explosão da libido, uma expansão que chegue
a cobrir outras áreas das atividades humanas, privadas e sociais, por exemplo, as
trabalhistas. Acrescenta que a força total da moralidade civil se mobilizou contra
a utilização do corpo como simples objeto, meio e instrumento de prazer, já que
essa coisificação foi considerada tabu e relegada a desprezível privilégio de
prostitutas, degenerados e pervertidos.
À margem dessa posição, J. C. Unwin, autor de Sexo e cultura, após estudar
as regulações maritais de oitenta sociedades não-civilizadas, parece sustentar a
suposição muito generalizada de que a liberdade sexual conduz à decadência
social, já que, de acordo com a psicanálise ortodoxa, se o indivíduo não
sucumbir à neurose, a continência sexual imposta pode ajudar a canalizar as
energias por vias socialmente úteis, Unwin concluiu em seu exaustivo estudo
que o estabelecimento das primeiras bases de uma sociedade organizada, seu
desenvolvimento ulterior e sua apropriação de terrenos vizinhos, ou seja, as
características históricas de toda sociedade pujante, se dão somente a partir do
momento em que se implanta a repressão sexual. Ao passo que as sociedades
onde se permitem relações sexuais livres — pré-nupciais, extraconjugais e
homossexuais — permanecem num subdesenvolvimento quase animal. Mas ao
mesmo tempo Unwin sustenta que as sociedades estritamente monogâmicas e
altamente repressivas não conseguem sobreviver muito tempo, e, se
conseguirem, em parte, é através da submissão moral e material da mulher.
Portanto, Unwin afirma que entre a angústia suicida que provoca o minimizar
das necessidades sexuais e o extremo oposto, da desordem social por
incontinência sexual, deveria ser achado um caminho razoável que constituísse a
solução do grave problema. Ou seja, a eliminação da surplus repression de que
fala Marcuse.
10
— Bom dia...
— Bom dia!
— Que horas são?
— Dez e dez. Sabe, às vezes eu chamo minha mãe, coitada, de dez e dez,
porque ela anda com os pés para fora.
— Não posso acreditar que já seja tão tarde.
— Sim, Valentín, quando abriram para trazer o mate você se virou na cama e
continuou dormindo.
— Que foi que você disse de sua velha?
— Você ainda está dormindo. Nada, então dormiu bem?
— Sim, me sinto bem melhor.
— Não está tonto?
— Não... E dormi como um justo. Assim sentado na cama juro que não sinto
nada, nada de tonteira.
— Genial... Por que não experimenta andar, para ver o que acontece?
— Não, porque você vai rir.
— De quê?
— Está acontecendo uma coisa.
— O quê?
— Algo que acontece a um homem são, mais nada. Quando acorda de manhã
e tem excesso de energia.
— Está duro? que genial...
— Olha para o outro lado, fico sem jeito...
— Está bem, fecho os olhos.
— Foi graças a tua comida, senão nunca teria me restabelecido.
— Está tonto?
— Não... nada, estou de perna bamba, mas nada de tonteira.
— Que genial...
— Já pode olhar. Fico um pouco mais deitado.
— Esquento água para um chá.
— Não, esquenta o mate e pronto.
— Está louco, joguei fora quando fui ao banheiro, se você quiser sarar tem
que tomar coisas boas.
— Não, olha, fico com vergonha de gastar teu chá, e o resto todo. Isso não
pode continuar assim, agora já estou bem.
— Cala essa boca.
— Não, realmente...
— Realmente nada, agora minha mãe começa a trazer coisas de novo, de
modo que não há problema.
— Mas fico sem jeito.
— Também é preciso saber receber, não é? Também não se deve fazer tanta
cerimônia.
— Bem, obrigado.
— Se quiser aproveita para ir ao banheiro enquanto eu faço o chá. Mas fica
na cama, que eu peço para abrirem. Assim não se resfria.
— Obrigado.
— E quando você voltar, se quiser, continuo com os zumbis, não tem
vontade de saber como é que continua?
— Sim, mas é melhor tratar de estudar um pouco, quero ver se consigo
recomeçar a leitura, já que estou bem.
— Acha? não será muito esforço?
— Vamos ver.
— Como você é fanático.

....................................................

— Por que está resmungando?


— Não tem jeito, as letras dançam, Molina.
— Eu te disse.
— Bem, tentar não custa nada.
— Está tonto?
— Não, só para ler, não posso fixar os olhos.
— Sabe o que é? Um pouco de fraqueza pela manhã, por só tomar esse chá, a
culpa é sua por não querer comer o presunto e o pão que temos.
— Acha?
— Com certeza, vai ver como depois do almoço você dorme uma sestinha e
consegue estudar depois.
— Estou com uma preguiça, nem imagina. Tenho vontade de deitar de novo.
— Não, dizem que é preciso tratar de se fortalecer de pé ou pelo menos
sentado, porque cama enfraquece.
— Continua o filme, anda.
— Sabe o quê?... estou pondo as batatas para cozinhar, demoram um tempão.
— O que é que você vai fazer?
— Temos presunto, e abro a latinha de azeite e comemos batata cozida, com
um pouquinho de azeite e sal, e o presunto: mais sadio é impossível.
— O filme estava em que a preta ia contar à moça toda a história da zumbi,
da morta-viva.
— Não é verdade que você gosta? confessa.
— Sim, é divertido.
— Ui, que sujeito, é mais que divertido, é bárbaro... Fala a verdade.
— Anda, conta.
— Bem, espera que isto não quer acender, pronto... Bem, tá. Como era? Sim,
a preta leva a moça de volta para casa e vai contando a história toda. Acontece
que o rapaz era bastante feliz com a primeira mulher, mas estava sempre
atormentado porque tinha um segredo inconfessável, é que quando criança fora
testemunha de um crime horrível. Acontece que o pai era um homem sem
escrúpulos, ruim como quê, chegara àquela ilha para enriquecer e tratava muito
mal os peões das plantações. E os peões estavam planejando uma rebelião, e o
pai fez um acordo com o feiticeiro do lugar, que tinha seus altares e suas coisas
na plantação mais distante de todas, e uma noite o feiticeiro chamou todos os
cabeças dos peões rebeldes para, segundo ele, dar-lhes a bênção. Mas era uma
emboscada, aí os massacraram, as flechas estavam com as pontas embebidas
num veneno preparado pelo feiticeiro. E daí os levaram para escondê-los na
floresta, porque algumas horas depois aqueles mortos abriam os olhos, eram
mortos-vivos. E o feiticeiro os mandou ficar de pé, e os mortos foram levantando
pouco a pouco, todos com os olhos bem abertos, e você viu como são os olhos
dos pretos, bem grandes como ovos estrelados, mas aqueles tinham o olhar como
que perdido, os olhos quase sem pupila, tudo quase branco, e o feiticeiro os
mandou pegar nos facões e ficar em fila e caminhar até o bananal, e quando
chegaram lá deu a ordem para que trabalhassem, cortassem cachos de banana a
noite toda, e os pobres mortos-vivos obedeceram e cortaram a noite toda, e o pai
do rapaz estava satisfeitíssimo e fizeram uns ranchinhos para eles, como umas
cabanas com pedaços de bambu seco, para que durante o dia pudessem esconder
os mortos-vivos, lá todos jogados no chão como um monte de lixo, e cada noite
lhes davam ordem para sair a trabalhar, cortar cachos, e assim o pai do rapaz foi
acumulando sua fortuna. E o rapaz presenciara tudo aquilo mas era ainda muito
pequeno. Até que cresceu e casou com uma moça loura e alta, que tinha
conhecido na universidade, nos Estados Unidos, e a trouxe à ilha, tal como iria
fazer com a moça anos depois, a outra com quem ele casou, a morena, a moça.
Bem, mas no começo ele é feliz com a primeira mulher, e quando o velho morre
o rapaz sente que tem que acabar com o feiticeiro, e o chama até a casa-grande,
mas enquanto isso ele vai para lá até as plantações distantes, onde estão os
zumbis, e na ausência do feiticeiro, e ajudado pela gente que lhe é fiel, pega e
cerca as choupanas dos zumbis, e crava estacas nas portas, joga gasolina e toca
fogo com todos os zumbis dentro, reduz todos eles a cinzas e desse modo põe
fim ao tormento daqueles pobres pretos mortos-vivos. Mas aí o feiticeiro, que
está na casa-grande à espera dele, com a primeira mulher do rapaz, recebe a
informação do que está acontecendo, os tantas da floresta lhe comunicam, que é
como um sistema de telégrafo, então o feiticeiro diz à mulher que vai esperar o
rapaz no caminho e matá-lo, então a pobre loura alta fica desesperada, promete
qualquer coisa, dinheiro, joias, contanto que ele vá embora e deixe o rapaz em
paz. Então o feiticeiro diz que existe algo em troca do quê ele perdoaria a vida
do rapaz, e a olha de cima a baixo, como que despindo-a. E mostra um punhal
envenenado, e o põe em cima da mesa, e diz que, se ela o denunciar, ele mata o
rapaz com aquele punhal. O rapaz chega de repente e da janela os vê juntos e ela
já meio despida, e a primeira mulher diz então ao rapaz que o abandona e vai
embora com o feiticeiro, e o rapaz fica cego de fúria, avista o punhal e o crava
na mulher, num acesso de loucura. Então o feiticeiro lhe diz que ninguém o viu,
que só ele é testemunha, e que se prometer deixá-lo continuar com seus ritos e
suas bruxarias mentirá à polícia e dirá que os dois viram alguém matando a
mulher, um energúmeno qualquer da floresta, qualquer um, que quis entrar para
roubar. Bem, esta é a história que a preta boa conta à mocinha, que fica
totalmente aterrorizada, mas, é claro, pelo menos escapou de ser morta lá na casa
abandonada entre os dois zumbis, o preto gigante e a loura desgrenhada, quero
dizer, as enfermeiras de plantão de dia, brincadeiras e sorrisos com pacientes
bons que obedecem a tudo e comem e dormem mas se ficam bons partem para
sempre
— córtex cerebral de cachorro, burro, cavalo, de macaco, de homem
primitivo, de garota de bairro que entra no cinema para não ir à igreja E foi
assim que a primeira mulher se tornou zumbi.
— Sim. E agora vem o momento que mais me impressionou, porque a moça
e a preta boa voltam para a casa, a salvo no momento, mas...
— Qual é a pinta do feiticeiro? você não contou.
— Ah, é que não lembrei de te contar que ele nunca aparece, porque quando
a preta boa conta a história à mocinha, vê-se numa espécie de espiral de fumaça
que significa o tempo recuando e vê-se tudo aquilo que vai contando, mas com a
voz de fundo da preta, uma voz grossa mas muito doce, e tremendo.
— E como é que a preta sabe tudo aquilo?
— — Bem, a moça faz a mesma pergunta que você, como é que a senhora
sabe tanto? E a negra, de cabeça baixa, lhe diz que o feiticeiro era o marido dela.
Mas no meio de tudo isso nunca aparece a cara do feiticeiro.
— córtex cerebral de verdugo culto, rodam as cabeças de operários, de
zumbis, o olhar frio do verdugo culto sobre um pobre córtex inocente de garota
de bairro, de bicha de bairro E que foi que você falou que mais te
impressionou?
— Sim, quando a mocinha e a preta velha chegam à casa-grande, torna-se a
avistar a outra casa, a tal abandonada, e o preto zumbi de sentinela à porta, e
uma sombra que avança pelo mato, que se aproxima do preto zumbi, da porta. E
o preto zumbi se afasta e deixa a sombra passar. E a sombra daquele que entra na
casa continua até o quarto onde está deitada a pobre loura. E a coitada está
imóvel, deitada, com os olhos desmedidamente abertos, sem olhar para ninguém,
e uma mão branca, que não é a do rapaz porque não treme, começa a despi-la. E
a pobre mulher lá está sem nenhuma possibilidade de se defender nem de fazer
nada. a enfermeira mais jovem e mais bonita, sozinha num pavilhão grande com
o doente jovem, se ele se atira em cima dela a pobre noviça não pode escapar
— Continua, pobre cabeça que roda da bicha de bairro, já não há outro
remédio, já não se pode grudar no corpo, quando já está morta é preciso fechar
os olhos abertos dessa cabeça, e acariciar-lhe a testa estreita, beijar-lhe a testa?
a testa estreita que cobre os miolos de garota de bairro, quem deu ordem de
guilhotiná-la? o verdugo culto obedece a uma ordem que não sabe de onde vem
— E quando a moça volta à casa-grande o rapaz está de volta e
preocupadíssimo. Quando a vê abraça-a, aliviado, mas depois fica com raiva e a
proíbe de sair sem licença. E sentam para jantar. É evidente que não há álcool na
mesa, nem uma só gota de vinho. E percebe-se que o rapaz está nervosíssimo, e
procura disfarçar, e ela lhe pergunta pelas colheitas, e ele responde que vão bem,
mas de repente tem um troço, atira o guardanapo e levanta da mesa e vai para o
escritório, onde está a gaveta, e se tranca a chave, começa a beber como um
desesperado. Ela o chama antes de deitar, porque avista luz debaixo da porta,
mas ele fala, com voz de quem está podre de bêbado, para ela ir embora. A moça
vai para seu quarto e muda de roupa, veste a camisola, não, veste uma saída de
banho para entrar no chuveiro, porque o calor é insuportável, e entra no
chuveiro, e sem perceber deixou as portas abertas, e de repente ouve no salão
passos firmes de homem. Corre molhada para a porta de seu quarto para se
trancar. Fica colada à porta e ouve alguém abrir com uma chave a porta do
escritório e entrar onde está o marido. Ela fecha bem a tranca do quarto, fecha
bem as janelas. Bem, afinal dorme, mas na manhã seguinte, ao acordar, ele já
não está em parte alguma. Ela veste o roupão como uma louca e pergunta a um
empregado onde está o marido, e ele responde que saiu sem dizer aonde, mas
que seguiu no rumo da plantação mais distante. A moça se lembra de que ali fica
a choça do feiticeiro. Chama o mordomo e lhe pede ajuda, é a única pessoa em
quem confia. O mordomo diz que sua esperança era a chegada dela, da moça,
assim o rapaz ficaria contente, mas agora está vendo que nem sequer isso
adiantou. Então a moça pergunta se nenhum médico da ilha examinou o rapaz, e
o mordomo diz que sim, mas que o rapaz não segue as prescrições. E que só
restaria algo a tentar, e fita a moça nos olhos. A moça percebe logo que o
mordomo está sugerindo para irem ver o feiticeiro da ilha, e responde que nunca.
Mas o mordomo explica que o que é preciso num caso assim é que alguém
sugestione o rapaz e lhe fortaleça a vontade, mais nada, que ele sugere isso como
uma medida extrema, e que a decisão depende dela. Diz também que o rapaz
saiu de manhã insultando-o, e que não tolerará mais a situação, que o rapaz é na
realidade um monstro, que a primeira mulher morreu de tanto sofrer por causa
dele, e que ela deve abandoná-lo e procurar um homem bom que a mereça, e a
moça acha muito esquisito o olhar do mordomo, que crava os olhos nos olhos
dela. E o sujeito continua dizendo que uma bela mulher como ela não merece
aquele tratamento. A moça, toda confusa, vai à procura do rapaz, porque teme
que na realidade possa ter acontecido alguma coisa e ele necessite dela. Mas a
preta se nega absolutamente a acompanhá-la, diz que o perigo é muito grande,
sobretudo para a moça, que é branca. Bem, a moça então não tem outro remédio
senão pedir ao mordomo, apesar da conversa ter-lhe parecido estranha, que a
acompanhe. O mordomo concorda, prepara o carro de cavalos mais ligeiros,
carrega uma espingarda e arrancam. A preta boa, que está no jardim cortando as
flores frescas da manhã, vê eles irem embora, estremece dos pés à cabeça, e
grita, como uma louca, para a moça ouvir, que não vá, mas a moça já não ouve
porque o quebrar das ondas do mar é como trovões ensurdecedores. A mocinha
lhe pede que não corra tanto, os cavalos parecem ter disparado, mas o mordomo
não faz caso. A única coisa que o mordomo diz é que dali a pouco ela vai
descobrir como o marido é miserável. Continuam a viagem em silêncio, a moça
morta de medo a cada volta do caminho, porque o carro às vezes fica em cima de
uma roda só, e os cavalos obedecem ao mordomo de uma maneira estranhíssima.
Chegam a um lugar onde a floresta é mais espessa, e o mordomo diz que ele
precisa perguntar algo a alguém lá numa choupana, e desce. E passa-se certo
tempo, e ele não volta, e não volta. E a moça começa a se assustar de ficar
sozinha, e a coisa piora quando começam a soar os tambores, se ouvem muito
perto. A moça desce do carro e se dirige à choupana, tem medo que o mordomo
tenha sido atacado. E o chama, mas ninguém responde. Chega à choupana e está
deserta, é um lugar onde não houve ninguém durante anos, porque o mato o
invadiu totalmente. A moça ouve então umas cantigas de feitiçaria, e, como
sente mais medo ainda de estar lá sozinha, vai para o lugar de onde vêm as
vozes. E continuo em outra hora.
— Você é um cachorro.
— Qual cachorro, estou com fome e é preciso preparar alguma coisa para o
almoço, se você não quiser ter um novo envenenamento com a comida que nos
dão. As batatas estão quase prontas.
— Se não falta muito para o fim acaba agora.
— Não, ainda falta muito.

....................................................
....................................................

— Bom dia...
— Que tal? dormiu bem?
— Sim, ótimo.
— Embora você tenha lido demais. Como a vela é minha, da próxima vez
apago.
— Parece mentira eu ter podido ler de novo.
— Sim, é bom ler à tarde, você podia ler como grande comemoração, mas de
tarde. Mas depois que apagaram a luz você exagerou e continuou lendo umas
duas horas mais com a velinha.
— Bem, já sou crescidinho, não é? deixa eu administrar minha vida como
entender.
— Não podíamos ter continuado de noite com os zumbis? bem que você
gostava, não diga que não.
— Que horas são?
— Oito e quinze.
— E por que foi que o guarda não veio?
— Veio e você não acordou, dorme como um justo.
— Que incrível... que maneira de dormir... Mas onde estão as jarras? Você
está enchendo o saco, estão lá onde ficaram ontem à noite...
— Claro que estou enchendo teu saco, disse para o guarda não trazer mais
mate de manhã.
— Olha, resolva o que quiser pra você, mas eu quero que me tragam o mate,
mesmo que seja mijo.
— Você não sabe de nada. Se tomar as coisas daqui vai ficar doente, então
não se preocupe, enquanto eu tiver comida também há para você. E hoje tenho
visita do advogado, e na certa que mamãe vem com ele e um outro embrulhão.
— Realmente, velho, não gosto que mandem na minha vida.
— Hoje é importante o que o advogado disser. Não acredito, e estou falando
sério, nas apelações e essas coisas, mas se houver um bom pistolão, como me
prometeram, então sim, tenho esperanças.
— Tomara.
— Olha, se eu sair... Quem sabe a quem porão de companheiro.
— Já tomou o desjejum, Molina?
— Não, porque não queria fazer barulho, para que você dormisse.
— Então ponho água para os dois.
— Não! Você fica na cama que está convalescendo. Eu preparo. E a água já
está para ferver.
— É o último dia que permito isso.
— Conta o que foi que você leu ontem à noite.
— Que está preparando?
— Surpresa. Conta o que você leu ontem de noite.
— Nada. Coisas de política.
— Puxa, como você está pouco comunicativo...
— A que horas vem teu advogado?
— Falou que às onze... E agora... abrimos o embrulhinho secreto... que
estava escondido... com uma coisa muito gostosa... para acompanhar o chá...
bolo inglês!
— Não, obrigado, não quero.
— Como é que não vai querer... A água já está fervendo. Pede para ir ao
banheiro e volta depressa, que a água está pronta.
— Não me diga o que tenho que fazer, por favor...
— Mas rapaz, deixa eu te mimar um pouco...
— Basta!... porra!!!
— Está louco... qual é?
— Cala a boca!!!
— O bolo...
—...
— Olha o que você fez...
—...
— Se ficarmos sem fogareiro estamos liquidados. E o pratinho...
— E o chá...
— Desculpa.
—...
— Perdi o controle. Sério, te peço perdão.
—...
— O fogareiro não quebrou. Mas derramou todo o querosene.
—...
— O principal é que o depósito de querosene não quebrou.
— Molina, desculpa o estouro.
— Posso pôr querosene da tua garrafa?
— Pode...
— E desculpa, te peço de verdade.
— Não há nada a desculpar.
— Sim, enquanto eu estava doente se não fosse você quem sabe aonde teria
ido parar.
— Não há nada a agradecer.
— Sim, tenho que agradecer. E muito.
— Esquece. Não houve nada.
— Sim, claro, houve alguma coisa, e estou morrendo de vergonha.
—...
— Sou uma besta.
—...
— Olha, Molina, agora chamo o guarda e aproveito para encher o garrafão
porque estamos ficando sem água. E olha para mim, por favor, levanta a cabeça.
— Vou trazer água. Diz que me perdoa...
—...
— Perdoa, Molina.
—...1

________________
1 Numa pesquisa citada pelo sociólogo J. L. Simmons no livro Desvios,

estabelece-se que os homossexuais são objeto de uma rejeição, por parte das
pessoas, consideravelmente maior que os alcoólatras, jogadores compulsivos,
ex-presidiários e ex-doentes mentais.
Em Homem, moral e sociedade, J. C. Flugel diz a propósito que todos os que
durante a infância se identificaram a fundo com imagens paternas ou maternas
de comportamento muito severo abraçarão ao crescer causas conservadoras e
serão fascinados pelo regime autoritário. Quanto mais autoritário o líder mais
confiança lhes despertará; sentir-se-ão patriotas e muito leais ao lutar pela
manutenção das tradições e das diferenças de classe, assim como dos sistemas
educacionais de rígida disciplina e das instituições religiosas, enquanto
condenarão sem piedade os anormais sexuais. Em compensação, aqueles que
rejeitaram, na infância, de alguma maneira — em nível inconsciente, emotivo ou
racional — aquelas regras de comportamento dos pais, apoiarão as causas
radicais, repudiarão as diferenças de classe e compreenderão aqueles que têm
inclinações pouco convencionais, por exemplo, os homossexuais.
Por sua parte, Freud, em “Carta a uma mãe americana”, diz que a
homossexualidade, embora seja uma vantagem, também não deve considerar-se
motivo de vergonha, já que não é um vício nem uma degradação, nem sequer
uma doença; é apenas uma variante das junções sexuais produzida por uma
determinada contenção do desenvolvimento sexual. com efeito, Freud opina que
a superação da etapa de “perversão polimorfa” da criança — na qual estão
incluídos impulsos bissexuais —, devido a pressões socioculturais, é um sinal de
maturidade.
Discordam disso algumas escolas atuais da psicanálise, as quais vislumbram
na repressão da “perversão polimorfa” uma das razões principais de deformação
do caráter, sobretudo a hipertrofia da agressividade. Quanto à homossexualidade
mesma, Marcuse assinala que a função social do homossexual é análoga à do
filósofo crítico, já que só sua presença representa um indicador constante da
parte reprimida da sociedade.
A respeito da repressão da perversão polimorfa no Ocidente, Dennis Altman,
em seu livro acima citado, diz que os dois principais componentes da repressão
são, por um lado, a eliminação do erótico de todas as atividades humanas que
não forem definidamente sexuais, e, por outro, a negação da bissexualidade
inerente ao ser humano: a sociedade assume, sem se deter na menor reflexão,
que a heterossexualidade é a sexualidade normal. Altman observa que a
repressão da bissexualidade se realiza através da implantação forçada de
conceitos histórico-culturais prestigiosos de “masculinidade” e “feminilidade”
que conseguem sufocar os impulsos de nosso inconsciente e aparecer na
consciência como única forma de comportamento, ao mesmo tempo que
conseguem manter ao longo dos séculos a supremacia masculina. Em outras
palavras, papéis sexuais claramente delineados, que se vão aprendendo desde a
infância. Além do mais, continua Altman, ser macho, ou fêmea fica estabelecido,
antes de mais nada, através do outro: o homem sente que sua masculinidade
depende de sua capacidade de conquistar mulheres, e a mulher sente que sua
realização só pode ser alcançada ligando-se a um homem. Por outra parte,
Altman e a escola marcusiana condenam o estereótipo do homem forte que se
apresenta ao sexo masculino como modelo de emulação mais desejável, já que o
citado estereótipo sugere tacitamente a afirmação da masculinidade através da
violência, o que explica a vigência constante da síndrome agressiva no mundo.
Por último, Altman assinala a falta de qualquer forma de identidade para o
bissexual na sociedade atual, e as pressões que sofre de ambos os lados, dado
que a bissexualidade ameaça tanto as formas aburguesadas de vida homossexual
exclusiva como os heterossexuais, e essa característica explicaria o motivo pelo
qual a bissexualidade assumida é tão pouco comum. E quanto ao conveniente,
mas só ideal — até poucos anos atrás — paralelismo entre as lutas de libertação
de classes e as de libertação sexual, Altman lembra que apesar dos desvelos de
Lênin em favor da liberdade sexual na URSS — por exemplo, a rejeição da
legislação anti-homossexual —, essas leis foram reintroduzidas em 1934 por
Stálin, e o preconceito contra o homossexualismo como uma “degenerescência
burguesa” se firmou em quase todos os partidos comunistas do mundo.
Theodore Roszak, em sua obra O nascimento de uma contracultura, comenta
em outros termos o movimento de libertação sexual. Afirma que a mulher mais
necessitada, e desesperadamente, de libertação é a mulher que todo homem traz
trancada no calabouço de sua própria psique. Roszak assinala que seria essa e
não outra a forma seguinte de repressão que é preciso eliminar, e dá-se o mesmo
fenômeno com respeito ao homem manietado que existe dentro de toda mulher.
E Roszak não duvida de que tudo isso significaria a mais cataclísmica
reinterpretação da vida sexual na história da humanidade, já que poria em
questão tudo o que diz respeito aos papéis homossexuais e ao conceito de
normalidade sexual vigente na atualidade.
11
DIRETOR: Está bem, Suboficial, deixe-nos a sós.
SUBOFICIAL: Às ordens, senhor.
DIRETOR: Que tal, Molina? Como está?
SENTENCIADO: Bem, obrigado...
DIRETOR: Quais são as novidades?
SENTENCIADO: Não muitas, acho.
DIRETOR: Ahã...
SENTENCIADO: Mas noto que cada vez vou criando mais intimidade...
DIRETOR: Ahã...
SENTENCIADO: Sim, disso tenho certeza...
DIRETOR: O pior, Molina, é que estão me pressionando muito. E vou lhe
dizer mais, Molina, para que se coloque no meu lugar. De onde me pressionam é
da presidência. Querem ter notícias rapidamente. E me pressionam no sentido de
que é necessário tornar a interrogar Arregui, e duro. Você me entende.
SENTENCIADO: Sim, senhor... Espere mais uns dias, não o interrogue,
diga-lhes que está muito fraco, o que é verdade. Porque será pior se ele ficar no
interrogatório, diga-lhes isso.
DIRETOR: Sim, eu digo, mas isso não os convence.
SENTENCIADO: Dê-me mais uma semana, e com certeza terei algum dado.
DIRETOR: Todos os dados, Molina, todos os dados possíveis.
SENTENCIADO: Ocorreu-me uma ideia.
DIRETOR: Qual?
SENTENCIADO: Não sei se lhe parecerá...
DIRETOR: Fale...
SENTENCIADO: Arregui é muito duro, mas também tem seu lado
sentimental.
DIRETOR: Sim.
SENTENCIADO: Então... por exemplo, se ele tomar conhecimento, por
exemplo, chega um guarda e diz que daqui a uma semana vão me transferir de
cela, porque já entrei na categoria especial, pela história do indulto, ou mais
devagar ainda, pela questão de que meu advogado já apresentou a apelação,
então se ele acreditar que vão me transferir de cela vai amolecer mais. Porque
acho que está bastante afeiçoado a mim, e aí vai resolver e falar mais...
DIRETOR: Você acha?
SENTENCIADO: Acho que vale a pena experimentar.
DIRETOR: O que eu sempre achei um erro foi que você falasse sobre a
possibilidade do indulto. Isso talvez o tenha feito ligar as coisas.
SENTENCIADO: Não, não acredito.
DIRETOR: Por quê?
SENTENCIADO: Bem, achei...
DIRETOR: Não, fale por quê. Deve ter suas razões...
SENTENCIADO: Bem... assim eu também me cobri um pouco.
DIRETOR: Em que sentido?
SENTENCIADO: No sentido de que quando eu fosse embora ele não
desconfiasse, e depois me soltasse em cima os companheiros, que tomassem
represálias.
DIRETOR: Você bem sabe que ele não tem contato com os companheiros.
SENTENCIADO: Isso é o que nós acreditamos.
DIRETOR: Não pode escrever a ninguém sem que nós vejamos a carta, por
que tem medo então, Molina? Você está agindo fora da combinação.
SENTENCIADO: Lhe asseguro que é melhor ele pensar que vou ser solto...
Porque...
DIRETOR: Porque o quê?
SENTENCIADO: Nada...
DIRETOR: Vamos, Molina. Fale.
SENTENCIADO: Sei lá...
DIRETOR: Fale, Molina, fale claro. Se não falar claro não vamos nos
entender.
SENTENCIADO: Bem, nada, juro. É um palpite, se ele pensar que vou
embora vai ter mais necessidade de desabafar comigo. Os presos são assim,
senhor. Quando um companheiro vai embora... sentem-se mais desamparados
que nunca.
DIRETOR: Está bem, Molina, nos vemos daqui a uma semana.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor.
DIRETOR: Mas então falaremos em outros termos, desconfio.
SENTENCIADO: Sim, é claro.
DIRETOR: Muito bem, Molina...
SENTENCIADO: Senhor, vou abusar de novo... de sua paciência.
DIRETOR: O que foi?
SENTENCIADO: Conviria que eu voltasse à cela com um embrulho, e já fiz
a lista, se o senhor estiver de acordo. Preparei-a enquanto esperávamos lá fora,
desculpe a letra.
DIRETOR: Acha que isso possa ajudar?
SENTENCIADO: Tenho certeza que nada ajudaria mais, tenho certeza, de
verdade mesmo.
DIRETOR: Deixe-me ver.

Lista de coisas para embrulho de Molina, por favor tudo num embrulho,
como minha mãe traz:

Dois frangos grelhados


Quatro maçãs assadas
Um copo de salada russa
300 gramas de presunto cru
300 gramas de presunto cozido
Quatro pães franceses
Um pacote de chá e uma lata de café solúvel
Um pacote de pão em fatias, de centeio
Duas latas de doce de leite grandes
Um vidro de doce de laranja
Um litro de leite e um queijinho holandês
Um pacotinho pequeno de sal
Quatro pedaços grandes, diferentes, de fruta cristalizada
Dois bolos ingleses
Um pacote de manteiga
Um vidro de maionese e
Guardanapinhos de papel

....................................................
....................................................

— Este é o pacote de presunto cru, e este o cozido. vou fazer um sanduíche


para aproveitar o pão fresco. Você faz o que quiser.
— Obrigado.
— Só vou fazer para mim este pãozinho partido no meio, com um pouquinho
de manteiga, e presunto cozido entro. E um pouco de salada russa. E depois a
maçã assada. E chá.
— Que bom.
— Se você quiser cortar um dos frangos e aproveitar enquanto está
quentinho, pode pegar. com toda a liberdade.
— Obrigado, Molina.
— É melhor assim, não é? Cada qual prepara o que quiser, assim eu não te
encho o saco.
— Como você preferir.
— Botei mais água no fogo, caso você queira alguma coisa. Faz o que quiser,
chá ou café.
— Obrigado.
—...
— Que coisas gostosas, Molina.
— E também tem fruta cristalizada. Só te peço para deixar o pedaço de
abóbora que é o que eu mais gosto. Tem um pedacinho de abacaxi cristalizado, e
um figo grandão, e o que é isso vermelho?
— Deve ser melancia, ou não, quem sabe, não sei.
— Vamos ver pelo gosto.
— Molina, ainda sinto vergonha...
— Vergonha de quê?
— De hoje de manhã, do acesso que tive.
— Tolo...
— Quem não sabe receber... é um mesquinho. É porque também não gosta
de dar nada.
— Você acha?
— Sim, estive pensando, e é isso. Se eu ficava nervoso por você ser...
generoso comigo... é porque não queria me ver obrigado a ser igual com você.
— Você acha?
— É isso mesmo.
— Bem, olha... fiquei pensando e lembrei das coisas que você disse,
Valentín, e compreendi perfeitamente... por que foi que você ficou assim.
— Que foi que eu disse?
— Que vocês, quando estão numa luta como essa, não acham conveniente...
bom, afeiçoar-se, a ninguém. Bem, afeiçoar-se é muito forte, quero dizer
afeiçoar-se como amigo.
— Essa é uma interpretação muito generosa de tua parte.
— Viu como às vezes entendo o que você fala...
— Sim, mas neste caso, estamos nós dois aqui trancados, e não existe
nenhuma luta, nenhuma batalha a ser ganha de ninguém, está acompanhando o
meu raciocínio?
— Sim, anda.
— E somos tão pressionados... pelo mundo de fora que não podemos agir de
maneira civilizada? é possível que o inimigo que está lá fora... seja tão
poderoso?
— Agora sim, não entendo direito...
— Sim, que tudo o que há de errado no mundo, e que eu quero mudar, será
possível que não me deixem agir... humanamente, nem um só minuto?
— O que é que você quer? porque a água está fervendo .
— Faz chá para nós dois, por favor.
— Tá.
— Não sei se me entende... mas estamos aqui nós dois sozinhos, e nossa
relação, como podia dizer? podemos moldá-la como quisermos, nossa relação
não é pressionada por ninguém.
— Sim, estou ouvindo.
— De certa maneira somos perfeitamente livres para agir como quisermos
um em relação ao outro, me explico? É como se estivéssemos numa ilha deserta.
Uma ilha na qual podemos passar, talvez, anos sozinhos. Porque fora da cela
estão nossos opressores, mas dentro não. Aqui ninguém oprime ninguém. A
única coisa que existe de perturbador, para minha mente... cansada, ou
condicionada, ou deformada... é que alguém quer me tratar bem, sem pedir nada
em troca.
— Bem... não sei...
— Como é que você não sabe?
— Não sei explicar.
— Vamos, Molina, essa não. Concentre-se, e tuas ideias vão se esclarecer.
— Bem, não pense em nada estranho, mas, se eu te tratar bem, é porque
quero ganhar tua amizade, e por que não dizer... teu carinho. Da mesma maneira
que trato minha mãe bem porque é uma pessoa boa que nunca fez mal a
ninguém, porque gosto dela, porque ela é boa e quero que ela goste de mim... E
você também é uma pessoa muito boa, muito desinteressada, que arriscou a vida
por um ideal muito nobre... E para de olhar para outro lado, te dá vergonha?
— Sim, um pouco... Mas te olho de frente, viu?
— E por isso... te respeito, e tenho afeto, e quero que você também me tenha
afeto... Porque, olha, o carinho de minha mãe é a única coisa boa que tive na
vida, porque ela me aceita como sou, gosta de mim assim mesmo, como sou. E
isso é um presente do céu, é a única coisa que me ajuda a viver, a única coisa.
— Posso te cortar um pão?
— Pode...
— Mas você... não teve bons amigos, que também foram importantes?
— Sim, mas olha, meus amigos foram sempre... bichíssimas, como eu, e
entre nós, como dizer? não confiamos muito em nós, porque sabemos que somos
muito... medrosos, frouxos. E o que estamos esperando sempre é... a amizade, ou
o que for, de alguém mais sério, de um homem, claro. E isso nunca acontece,
porque um homem... o que quer é uma mulher.
— E todos os homossexuais são assim?
— Não, há alguns que se apaixonam entre eles. Eu e minhas amigas somos
mulher. Não gostamos dessas brincadeirinhas, são coisas de homossexuais. Nós
somos mulheres normais que vamos para a cama com homens.
— Toma açúcar?
— Sim, obrigado.
— Como é bom o pão fresco, é uma das coisas melhores que há.
— Realmente, como é bom... Preciso te contar uma coisa.
— Claro, como não, o final dos zumbis.
— Sim, isso também. Mas tem outra coisa...
— O que foi?
— O advogado falou que as coisas vão indo bem.
— Sou uma besta, devia ter perguntado. Que mais que ele disse?
— Que parece que tudo vai bem, e quando uma apelação é levada em conta,
isto é, quando entra em consideração, não quando é aceita, bem, o sentenciado
passa a outro lugar do presídio. E que daqui a uma semana me tiram desta cela.
— Verdade? ...
— Sim, parece que sim.
— Como é que ele sabe?
— Falaram com ele no gabinete do Diretor, onde ele apresenta os papéis para
os trâmites legais.
— Que bom... Você deve estar contente...
— Não quero pensar muito nisso. Não quero criar ilusões... Coma um pouco
de salada russa.
— Você acha?
— Sim, está boa.
— Não sei, meu estômago se fechou com a notícia.
— Olha, faz de conta que não falei nada, porque não é nada certo. vou fazer
de conta que não me disseram nada.
— Não, a coisa vai bem, temos de nos alegrar.
— É melhor não...
— Eu me alegro por sua causa, embora você saia e... bem, o que se há de
fazer...
— Come uma maçã assada, que é muito sadio.
— Não, é melhor deixarmos para mais tarde, ou eu a deixo. Come você, se
tiver vontade.
— Não, também não estou com muita fome, sabe uma coisa? ... talvez se eu
acabar os zumbis a gente fica com mais fome e deixamos a comida para um
pouco mais tarde.
— Tá.
— O filme é divertido, não é?
— Sim, distrai muito.
— No começo não me lembrava direito, mas agora está voltando.
— Sim... mas espera um pouco. Realmente... não sei o que está acontecendo,
Molina, de repente... tenho uma confusão na cabeça.
— Por quê? te dói alguma coisa? a barriga?
— Não, a confusão é na cabeça.
— Confusão por quê?
— Não sei, deve ser porque você é capaz de ir embora, não sei bem.
— Ah...
— Deixa eu descansar um pouco.
— Está bem.
— Até logo.
— Até logo1.

....................................................
....................................................

— Molina... que horas são?


— Passa das sete. Já ouvi que andam aí com o jantar.
— Não posso fazer nada... Teria que aproveitar até apagarem, com uma hora
de luz.
— Mas não estou com a cabeça no lugar.
— Então descansa.
— Ainda não acabou o filme.
— Você não quis.
— Me dá pena desperdiçar, se não posso saboreá-lo.
— Nem quis conversa.
— Se não sei o que estou dizendo, não gosto de falar. Não quero dizer
qualquer besteira, sabe...
— Então descansa.
— E se você terminar o filme?
— Agora?
— Sim.
— Como quiser.
— Estudei um pouco e nem sei o que estudei.
— Já nem sei em que ponto estávamos. Onde era mesmo?
— Do quê, Molina?
— Do filme.
— A moça está sozinha na floresta, e ouve os tambores.
— Ah, sim... A floresta está em pleno sol do meio-dia, a moça resolve se
aproximar do lugar onde estão aqueles tambores tão tétricos. E vai avançando, e
perde um sapato, e depois cai e rasga a blusa, e suja a cara, e passa por uns
arbustos com espinhos e a saia fica em farrapos. E aproximando-se de onde estão
aqueles macumbeiros vai ficando mais e mais escuro, apesar de ser meio-dia, e a
única luz vem das velas que estão acesas. E tem um altar cheio de velas, só de
velas, e um boneco de pano ao pé do altar, com uma agulha espetada no coração.
O boneco é igual ao rapaz. E todos os pretos e pretas ajoelhados, rezando, e de
vez em quando soltam um grito muito, muito prolongado, é o sofrimento que
cada um deles tem dentro de si. Mas a moça olha e procura o feiticeiro, está com
um medo terrível de vê-lo, mas ao mesmo tempo morre de curiosidade de saber
como ele é. E os tambores vão batendo cada vez com mais fúria, e os pretos
soltam cada vez mais berros, e a mocinha toda imunda e despenteada, a roupa
nem se fala, continua lá na beira do círculo formado por todos os que rezam. De
repente os tambores param de bater, as pessoas não mais se queixam, sopra um
vento gelado na floresta tropical e aparece o feiticeiro, com uma espécie de
túnica branca até os pés, mas aberta no peito, um peito jovem coberto de cabelo
crespo, mas com cara de homem velho... o mordomo. Com uma expressão de
malvado, falso, abençoa todos os pretos, e faz sinal com a mão para os dos
tambores. E começa outro ritmo, francamente diabólico, e olha a moça com um
desejo que já não disfarça, e faz com a mão uns passes de mágica, e a olha fixo
para hipnotizá-la. A moça olha para outro lado para não cair sob o poder dele,
mas não resiste à atração e pouco a pouco vai virando a cabeça até ficar frente a
frente olhando para o feiticeiro. E cai hipnotizada, e enquanto os tambores batem
num ritmo mais sexual que outra coisa, ela começa a dar passos até onde está o
feiticeiro, e os pretos vão caindo todos em transe, estão ajoelhados e vão jogando
a cabeça para trás, até quase bater no chão. E quando a moça já está ao alcance
da mão do feiticeiro, levanta-se um furacão e se apagam todas as velas, e faz-se
uma escuridão completa, ao meio-dia. O feiticeiro segura a moça pela cintura e
depois vai subindo as mãos até o peito, e depois lhe acaricia a face, e a leva pelo
braço para dentro de sua choupana. E aí... como era mesmo? aí, desculpa, mas
não me lembro direito como era a história. Ah, sim, a preta boa, que viu a moça
passar no carro, procura o rapaz e lhe diz que o feiticeiro o está chamando.
Porque acontece que ela, a preta, tinha sido mulher do feiticeiro, isto é, do
mordomo. E quando a mocinha vê o rapaz chegar, quebra-se o feitiço, porque a
preta lança uns gritos. E a moça já estava para entrar na cabana.
— Continua, o pobre dá esmola ao rico, o rico pede esmola ao pobre e ri,
zomba e insulta o pobre porque só tem para lhe dar uma moeda falsa
— A moça e o rapaz retornam para a casa-grande de jipe. Nenhum dos dois
fala nada. Claro, o rapaz já percebeu que a moça tomou conhecimento de tudo. E
chegam a casa. A moça, para demonstrar que quer ajeitar as coisas, vai mandar
preparar algo para comer, como se nada tivesse havido, e enquanto vai e vem
encontra o rapaz outra vez agarrado à garrafa. Então ela lhe implora que não seja
fraco, que não a abandone sozinha na luta para salvar o casamento, que os dois
se amam e enfrentarão juntos todos os obstáculos. Mas ele lhe dá um tremendo
empurrão e a atira no chão. Enquanto isso o feiticeiro chega à casa abandonada,
onde está a zumbi, e a encontra com a negra boa, que está tomando conta dela,
aquela que era mulher dele, agora já é velha, e por causa disso a despreza. E o
feiticeiro a manda sair de lá, mas a preta lhe diz que não vai permitir que ele use
a zumbi para fazer mais maldades. E puxa um punhal para espetar no feiticeiro.
Mas ele consegue pegá-la pela mão que segura o punhal e o toma, e mata-a,
espetando o punhal no coração dela. A zumbi não se move, mas vê-se em seus
olhos uma dor muito grande, embora não tenha vontade para agir por conta
própria. O feiticeiro ordena que ela o siga e vai dizendo as mentiras mais
terríveis, que o marido é um malvado e foi quem mandou que a tornassem zumbi
e que agora está querendo repetir a mesma coisa com a segunda mulher, a está
maltratando, e que por causa disso, ela, a zumbi, deve pegar a mesma faca e
matar o rapaz, para acabar com todas as suas maldades. E se percebe nos olhos
da zumbi que ela não acredita no que o feiticeiro está falando, mas ela não pode
fazer nada, porque não tem domínio sobre si mesma, e não pode fazer outra
coisa senão obedecer às ordens do feiticeiro. E quando chegam à casa-grande
entram muito devagarzinho pelo jardim, que já está meio escuro ao entardecer. E
a zumbi vê pelo janelão que o rapaz está bêbado e grita as maiores barbaridades
para a moça, segura-a pelos ombros e a sacode e a joga para um lado. O
feiticeiro lhe põe o punhal na mão. O rapaz procura mais álcool, a garrafa está
vazia, sacode-a tratando de extrair a última gota. A zumbi só pode obedecer. O
mordomo diz para ela entrar e matar o rapaz. A zumbi avança. Percebe-se no
fundo de seus olhos que ela ainda ama o rapaz, que não quer matá-lo, mas a
ordem é implacável. O rapaz não a vê. O mordomo chama a mocinha, lhe diz,
senhora, muito respeitoso. A moça se tranca a chave no quarto, até que escuta o
lamento de agonia do marido, que foi apunhalado pela zumbi. Então a moça sai
correndo e o encontra moribundo, atirado ali no sofá onde estava dormindo meio
bêbado, com o olhar mais trágico que se possa imaginar. E em seguida entra o
mordomo, e chama os empregados, para que sejam testemunhas do crime e ele
poder lavar as mãos. Mas o rapaz na agonia diz à zumbi que ele a amou muito e
que tudo foi uma maldade do feiticeiro, que sempre quis apossar-se da ilha, de
todos os seus domínios, e diz à zumbi para voltar à sua choupana e se trancar e
tocar fogo na casa, assim não mais será um instrumento da perversidade de
ninguém, e o céu já está escuro mas tudo se ilumina de vez em quando por causa
da tempestade que se aproxima, e o rapaz quase já sem forças conta aos
empregados, que nisso já entraram, que os pais de vários deles foram
sacrificados pelo feiticeiro infame, que os transformou em zumbis. Então todos
olham para o feiticeiro com ódio, e o feiticeiro vai recuando e sai para o jardim,
e tenta fugir, naquela noite de uma terrível tempestade, com um furacão que
sopra, e relâmpagos que de repente iluminam tudo como se fosse dia, e o
feiticeiro puxa um revólver para defender-se, e então os empregados param, mas
lá no jardim, quando o feiticeiro pensa que já está a salvo e vai fugir, cai um raio
ensurdecedor e o fulmina. Pouco depois a chuva abranda. Ninguém viu que a
zumbi pegou o caminho da velha casa. Ouve-se o apito de um navio que parte, e
a moça enfia suas coisas na mala e vai para o navio, deixa tudo aos empregados,
só quer esquecer. Chega ao navio justo na hora que estão tirando a escada. O
capitão a avista da ponte; por sorte, é o mesmo capitão alinhadíssimo que
apareceu no começo. O navio solta as amarras, vão-se afastando as luzes da
costa. A moça está em sua cabine, batem na porta. Abre e é o capitão, que lhe
pergunta se foi feliz na ilha. Ela lhe diz que não, e então ele lhe recorda que
aqueles tambores que se ouviam no dia da chegada sempre anunciavam
sofrimentos, e também a morte. Ela diz que é possível que nunca mais se tornem
a ouvir aqueles tambores. Então o capitão lhe pede silêncio, porque lhe parece
ouvir algo estranho. Os dois saem ao convés e escutam uma cantiga belíssima, e
veem centenas de nativos que chegaram ao cais para cantar para a moça,
despedindo-se com uma canção de carinho e gratidão. A moça treme de emoção.
O capitão passa-lhe o braço pelas costas para agasalhá-la. E se avista muito
longe na ilha, longe da cidade, lá pelo campo, uma imensa fogueira. A moça
abraça-se ao capitão para aplacar o tremor e os calafrios que lhe percorrem o
corpo, porque sabe que lá dentro daquele fogo está ardendo a pobre zumbi. O
capitão diz que ela não tenha medo, que aquilo tudo ficou para trás, e que a
música do amor de todo aquele povo está sendo como uma despedida para
sempre, e lhe deseja um futuro cheio de felicidade. E acabou-se o que era doce,
quem comeu arregalou-se. Gostou? o paciente mais grave do pavilhão já está
fora de perigo, a enfermeira velará a noite toda seu sono tranquilo.
— Sim, muito, o rico dorme tranquilo se der seu ouro ao pobre...
— Ahhh...
— Que suspiro!
— Que vida esta mais difícil...
— O que foi, Molinita?
— Não sei, tenho medo de tudo, tenho medo de criar ilusões que vão me
soltar, tenho medo que não me soltem... E o que mais temo é que nos separem e
me ponham em outra cela e eu fique lá para sempre, quem sabe com que
vagabundo...
— É melhor não pensar em nada pois nada depende de nós.
— Está vendo, com isso não estou de acordo, acho que talvez pensando nos
ocorra alguma saída, Valentín.
— Que saída?
— Pelo menos... que não nos separem.
— Olha... para você não se martirizar, pensa numa coisa: que tudo o que
você deseja é sair para tomar conta de sua mãe. E mais nada. Não pensa em mais
nada. Porque a saúde dela é a coisa mais importante para você, não é?
— Sim...
— Se concentra nisso, já...
— Não, não quero me concentrar nisso... não!
— Hein... o que foi?
— Nada...
— Anda, não fica assim... levanta a cara desse travesseiro ...
— Não... me deixa...
— Mas o que foi? Você está me escondendo alguma coisa?
— Não, escondendo não... Mas é que...
— Mas é que o quê? Saindo daqui você fica livre, vai conhecer gente, se
quiser pode entrar para algum grupo político.
— Está louco, não vão confiar em mim porque sou bicha.
— Posso te dizer quem contactar...
— Não, por tudo o que você quiser, nunca, mas nunca, entende? não me fale
nada de seus companheiros.
— Por quê? quem pode imaginar que você vai vê-los?
— Não, podem me interrogar, o que for, e se não sei nada não posso dizer
nada.
— Mas de qualquer maneira, tem muitos grupos de ação política. E se você
gostar de algum pode entrar, mesmo que sejam grupos que não façam mais que
falar.
— Não entendo nada disso...
— Você tem amigos de verdade, bons amigos?
— Sim, tenho amigas bichas como eu, para passar o tempo, para a gente rir
um pouco. Mas quando ficamos dramáticas... fugimos uma da outra. Porque já te
contei como é, uma se vê refletida na outra e sai apavorada. Nos deprimimos
horrivelmente, nem imagina. As coisas podem mudar ao sair. Não vão mudar...
— Anda, não chora... não fica assim....Quantas vezes já te vi chorar?... Bem,
eu também abri a torneira uma vez. Mas basta, rapaz... Fico... nervoso de ver
você chorar.
— É que não aguento mais... Tenho tanto... azar...
— Já apagam a luz?
— Sim, que é que você pensa? já são oito e meia. Melhor, assim não vê a
minha cara.
— O tempo passou depressa com o filme, Molina.
— Esta noite não vou poder dormir.
— Escuta o que vou dizer, que posso te ajudar em alguma coisa. Trata de te
convencer. Em primeiro lugar você tem que pensar em se agrupar, em não ficar
sozinho, isso vai te ajudar na certa.
— Me agrupar com quem? Não entendo nada dessas coisas, e também não
acredito muito.
— Então aguenta a mão.
— Não falemos... mais...
— Anda... não fica assim... Molinita.
— Não... te peço, não toca em mim...
— Teu amigo não pode passar a mão em você?
— É pior...
— Por quê?... anda, fala, já está na hora da gente confiar um no outro.
Realmente, quero te ajudar, Molinita, diga o que você tem.
— A única coisa que peço é para morrer. É a única coisa que peço.
— Não fala assim. Pensa na tristeza de tua mãe... e teus amigos, e eu.
— Você não dá a menor importância...
— Como não? Puxa, que sujeito...
— Estou muito cansado, Valentín. Estou cansado de sofrer. Você não sabe,
me dói tudo por dentro.
— Onde te dói?
— Dentro do peito, e na garganta... Por que será que a tristeza se sente
sempre aí?
— É verdade.
— E agora você... me cortou a vontade de chorar. Não posso continuar
chorando. E é pior, o nó na garganta, esta me apertando, é algo horrível.
—...
—...
— É verdade, Molina, aí é onde se sente mais a tristeza.
—...
—...
— Você sente muito forte... te aperta com muita força, esse nó?
— É.
—...
—...
— É aqui que dói?
— É...
— Posso te acariciar?
— Pode...
— Aqui?
— Te faz bem?
— Sim... me faz bem.
— A mim também me faz bem.
— É mesmo?
— Faz... que descanso...
— Por que descanso, Valentín?
— Porque... não sei...
— Por quê?
— Deve ser porque não penso em mim...
— Você me faz muito bem...
— Deve ser porque penso que você precisa de mim, e posso fazer alguma
coisa por você...
— Valentín... você procura uma explicação para tudo... que loucura...
— Será porque não gosto que as coisas me atropelem? ... quero saber por que
acontecem as coisas.
— Valentín... posso te tocar?
— Pode...
— Quero tocar... esse sinal... meio cheiinho que você tem em cima dessa
sobrancelha.
—...
— E posso te tocar assim?
—...
— E assim?
—...
— Não te dá nojo que eu te acaricie?
— Não...
— Você é muito bom...
—...
— É mesmo, é muito bom para mim...
— Não, você é que é bom.
— Valentín... se quiser, pode me fazer o que quiser... que eu por mim quero.
— Se não te dou nojo.
— Não fala assim. Calado é melhor.
— Chega um pouco para a parede.
—...
— Não se enxerga nada... nesta escuridão.
—...
— Devagar...
—...
— Não, assim dói muito. Espera, não, assim é melhor, deixa eu levantar as
pernas.
—...
— Devagarzinho, por favor, Valentín.
—...
— Assim...
—...
— Obrigado... obrigado...
— Obrigado a você também...
— A você... E assim te tenho de frente, embora não possa te enxergar, nesta
escuridão. Ai... ainda dói...
—...
— Agora sim, já estou começando a gostar, Valentín... já não dói.
— Você está se sentindo melhor?
— Sim...
—...
— E você? Valentín, fala...
— Não sei... não pergunta... porque não sei nada.
— Ai, que bom...
— Não fala... por algum tempo, Molinita.
— É que sinto... umas coisas tão esquisitas...
—...
— Agora sem querer botei a mão na minha sobrancelha à procura do sinal.
— Qual sinal?... Eu tenho um sinal, você não.
— Sim, já sei, mas botei a mão na minha sobrancelha para tocar o sinal... que
não tenho.
—...
— Fica tão bonito em você, pena que eu não possa ver...
— Está gostando, Valentín?
— Calado... fica um pouquinho calado.
—...
—...
— E sabe que outra coisa senti, Valentín? mas só durante um minuto.
— O quê? Fala, mas fica assim, quietinho...
— Só durante um minuto, me pareceu que não estava aqui... nem aqui, nem
fora...
—...
— Me pareceu que eu não estava... que estava você sozinho.
—...
— Ou que eu não era eu. Que agora eu... era você.

________________
1 A qualificação de perversão polimorfa que Freud dá à libido infantil —
referindo-se à indiscriminação do bebê para gozar de seu corpo e do corpo dos
outros — é também aceita por estudiosos de projeção mais recente, como
Norman O. Brown e Herbert Marcuse. A diferença entre eles e Freud, já
apontada, consiste em que Freud considera positivo que a libido se sublime em
parte e seja canalizada por vias exclusivamente heterossexuais, e definidamente
genitais, ao passo que os pensadores mais recentes consideram e até propiciam
um retorno à perversão polimorfa e à erotização além da sexualidade
simplesmente genital.
De qualquer maneira, a civilização ocidental, afirma Fenichel, impõe à
menina ou ao menino os modelos de sua mãe ou seu pai, respectivamente, como
únicas identidades sexuais possíveis. A probabilidade de orientação
homossexual, segundo Fenichel, é tanto maior quanto maior for a identificação
da criança com o progenitor de sexo oposto, em vez de acontecer o comum. A
menina que não acha satisfatório o modelo sugerido pela mãe e o menino que
não acha satisfatório o modelo proposto pelo pai estariam, então, expostos ao
homossexualismo.
Aqui é conveniente assinalar os recentes trabalhos da doutora dinamarquesa
Anneli Taube, como Sexualidade e revolução, onde expressa que a rejeição que
um menino muito sensível pode experimentar com relação a um pai opressor —
símbolo da atitude masculina autoritária e violenta — é de natureza consciente.
O menino, no momento em que decide não aderir ao mundo que esse pai lhe
propõe — o lidar com armas, os esportes violentamente competitivos, o
desprezo pela sensibilidade como atributo feminino, etc. —, está tomando uma
determinação livre, e mais ainda, revolucionária, porquanto receita o papel do
mais forte, do explorador. Pois bem, esse menino não poderá vislumbrar, em
compensação, que a civilização ocidental, além do mundo do pai, não lhe
proporcionará outro modelo de comportamento nesses primeiros anos
perigosamente decisivos — dos três aos cinco anos, sobretudo — a não ser o da
mãe. O mundo da mãe — a ternura, a tolerância, as artes — resultará muito mais
atraente, sobretudo pela ausência de agressividade; mas o mundo da mãe, e é
aqui onde a intuição do menino falharia, é também o da submissão, dado que ela
forma um casal com um homem autoritário, que só admite a união conjugal
como subordinação da mulher ao homem. No caso da menina que decide não
aderir ao mundo da mãe, a atitude se deve a ela rejeitar o papel da submissão,
porque intui que é humilhante e antinatural, sem imaginar que, excluindo esse
papel, a civilização ocidental não lhe oferecerá outro senão o do opressor. Mas o
ato de rebeldia dessa menina ou desse menino representaria um indiscutível sinal
de valentia e de dignidade.
A Dra. Taube indaga, por outro lado, por que esse desfecho não é ainda mais
frequente, sendo o casal ocidental, em geral, um expoente da exploração.
Introduz aqui dois elementos que atuam como amortecedores: o primeiro se
apresentaria quando num lar a esposa é — por falta de educação, de inteligência,
etc. — realmente inferior ao marido, o que tornaria mais justificada a autoridade
inconteste daquele; o segundo elemento é constituído pelo desenvolvimento
tardio da inteligência e sensibilidade do menino ou menina, o que não lhe
permitiria captar a situação. Nessa observação está implícito que se, ao contrário,
num lar o pai é muito primitivo e a mãe muito refinada, mas submissa, o menino
muito sensível e precocemente inteligente escolherá forçosamente o modelo
materno. E respectivamente, a menina o rejeitará, por arbitrário.
Quanto à questão de por que num mesmo lar existem filhos homossexuais e
heterossexuais, a Dra. Taube afirma que em toda célula social se tende à
distribuição de papéis, e assim resultaria que um dos filhos assumiria o conflito
dos pais e deixaria os irmãos dentro de um quadro já um pouco neutralizado.
Pois bem, a Dra. Taube, após valorizar o motor primeiro da
homossexualidade e assinalar sua característica de inconformismo
revolucionário, observa que a ausência de outros modelos de comportamento —
e nesse ponto coincide com Altman e sua tese sobre o pouco comum da prática
bissexual por falta de modelos de comportamento bissexual à vista — faz com
que o futuro homossexual masculino, depois de rejeitar os defeitos do pai
repressor, se sinta angustiado pela necessidade de identificação com alguma
forma de comportamento e “aprenda” a ser submisso como a mãe. O processo
para a menina seria o mesmo: rejeita a exploração e por isso odeia ser submissa
como a mãe, mas as pressões sociais a levam pouco a pouco a “aprender” outro
papel, o do pai repressor.
Desde os cinco anos até a adolescência se produz nesses meninos e meninas
“aderentes” uma oscilação de sua bissexualidade original. Mas, por exemplo, a
menina “masculinizada” por sua identificação com o pai, embora se sinta
sexualmente atraída por um rapaz, não aceitará o papel de boneca passiva que
lhe imporá um homem convencional; sentir-se-á contrafeita e cultivará como
única forma de superar sua angústia um papel diferente, que só admitirá
brincadeiras com mulheres; quanto ao menino “feminilizado” por identificação
com a mãe, embora se sinta sexualmente atraído por uma menina, não aceitará o
papel de assaltante intrépido que lhe imporá uma fêmea convencional, sentir-se-á
contrafeito e cultivará um papel diferente, que só admitirá brinquedos com
homens.
Anneli Taube interpreta assim a atitude imitativa, praticada até pouco tempo
atrás pelos homossexuais em alta percentagem, principalmente como atitude
imitativa dos defeitos do heterossexualismo. Era característico dos homossexuais
masculinos o espírito submisso, conservador, amante da paz a qualquer preço,
sobretudo ao preço da perpetuação de sua própria marginalização ao passo que
era característico das mulheres homossexuais o espírito anárquico,
violentamente desconforme, embora basicamente desorganizado. Entretanto,
ambas as atitudes eram não deliberadas mas compulsivas, impostas por uma
lenta lavagem cerebral em que intervinham os modelos de comportamento
heterossexual burgueses, durante a infância e a adolescência, e, posteriormente,
ao assumir a homossexualidade, os modelos “burgueses” de homossexualidade.
Esse preconceito ou observação justa sobre os homossexuais conduziu a que
fossem marginalizados em movimentos de libertação de classes e, de um modo
geral, em toda ação política. É notória a desconfiança nos países socialistas em
relação aos homossexuais. A maior parte dessas situações — acrescenta a Dra.
Taube — começou a mudar na década de sessenta, com a irrupção do
movimento de libertação feminina, já que o consequente questionamento dos
papéis “homem forte” e “mulher fraca” desprestigiou aos olhos dos
marginalizados sexuais esses modelos tão inatingíveis quão tenazmente
imitados.
A posterior formação de frentes de libertação homossexual seria prova disso.
12
— Bom dia...
— Bom dia... Valentín.
— Dormiu bem?
— Dormi...
—...
— E você, Valentín?
— O quê?
— Se dormiu bem...
— Sim, obrigado...
— Já ouvi passar há pouco o mate, você não quer, não é?
— Não... não me inspira confiança.
—...
— Que é que você quer tomar? chá ou café?
— Que é que você vai tomar, Molinita?
— Chá. Mas se você quiser café é o mesmo trabalho. Ou antes, não dá
nenhum trabalho. O que você quiser.
— Muito obrigado. Me faz café, por favor.
— Quer ir ao banheiro antes, Valentín?
— Sim, por favor. Pede para abrirem a porta agora.
— Tá...
— Sabe por que é que eu quero café, Molinita?
— Não...
— Para ficar bem aceso e estudar. Não muito, umas duas horas, ou mais um
pouco, mas bem aproveitadas. Até retomar o ritmo de antes.
— Muito bem.
— ...E depois um descanso antes do almoço.
— Molina... como amanheceu?
— Bem...
— O mau humor passou?...
— Sim, mas estou meio abobalhado... Não penso, não posso pensar em nada.
— Isso é bom... de vez em quando.
— Mas estou bem... estou contente.
—...
— ... Tenho até medo de falar, Valentín.
— Não fala... nem pensa.
—...
— Se você se sente bem, não pense em nada, Molina. Qualquer coisa que
pense vai estragar a festa.
— E você?
— Eu também não quero pensar em nada, e vou estudar. com isso me salvo.
— Salvo de quê?... de se arrepender do que aconteceu?
— Não, não me arrependo de nada. Estou cada vez mais convencido que o
sexo é a própria inocência.
— Posso te pedir uma coisa... muito séria?
—...
— Para a gente não falar... de nada, não discutir nada, hoje. Só te peço isso
por hoje.
— Como quiser.
— Não pergunta por quê?
— Por quê?
— Porque acho... que estou... bem, estou... muito... bem, e não quero que
nada me tire essa sensação.
— Como quiser.
— Valentín... acho que desde pequeno não me sinto tão contente. Desde que
minha mãe me comprava algum brinquedo, ou algo assim.
— Sabe de uma coisa? Pensa em algum filme bom... e começa a contar
quando eu acabar de estudar, enquanto a comida fica pronta.
— Bom...
—...
— E que filme você quer que eu conte?
— Um que você goste muito, não pensa para mim.
— E se você não gostar?
— Não, se você gosta, Molina, eu vou gostar, mesmo que não goste.
—...
— Não fica tão calado. Quero dizer que se você gostar de alguma coisa, fico
contente, porque me sinto em dívida com você, não, que é que estou dizendo,
porque você foi bom comigo, e estou agradecido. E saber que alguma coisa pode
te deixar contente... já me alivia.
— É mesmo?
— É, Molina. E sabe o que é que eu gostaria de saber? É uma bobagem...
— Fala...
— Diga se você se lembra de algum brinquedo que você tenha gostado
muito, do que mais gostou... daqueles que tua mãe comprou.
— Uma boneca...
— Ui...
— Por que está rindo tanto?
— Ai, se não abrirem a porta depressa faço nas calças...
— Mas por que esse riso todo?
— Porque... ai, estou morrendo... ai, como sou bom psicólogo...
— Que foi?
— Nada... queria ver se existia alguma relação entre esse brinquedo... e mim.
— A culpa é tua...
— E tem certeza que não era um boneco?
— Não, uma boneca bem loura, de tranças, e que abria e fechava os olhos,
vestida de tirolesa.
— Ai, tomara que abram a porta, porque não aguento mais, ui...
— Acho que é a primeira vez que você ri desde que tive o azar de vir para a
tua cela.
— Não é verdade.
— Juro, nunca tinha te visto rir, nunca.
— Mas se ri tantas vezes... e de você.
— Sim, mas foi sempre com a luz apagada. Juro, nunca tinha te visto rir.

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....................................................

— É no México, num porto, muito tropical. Aquela madrugada os


pescadores estão saindo em seus barcos, falta pouco para raiar o dia. Chega uma
música distante. A única coisa que veem do mar é uma casa magnífica, toda
iluminada, com umas grandes escadas que dão para um belo jardim, só de
jasmineiros, depois vem um renque de palmeiras, e depois a praia. Restam
poucos convidados naquele baile a fantasia. A orquestra toca um ritmo com
muita cadência, com maracas e bongôs, mas lento, uma espécie de habanera. Há
poucos casais dançando, e um só ainda com as máscaras. Já está acabando o
famoso carnaval de Veracruz, e infelizmente o sol que começa a sair naquele
momento anuncia a quarta-feira de cinzas. O casal das máscaras é perfeito, ela
fantasiada de cigana, muito alta, com uma cinturinha de vespa, morena, com o
cabelo repartido no meio e solto comprido até a cintura, e ele muito forte,
também moreno, com umas costeletas e o penteado de lado com um pouquinho
de topete, e um bigodão. Ela tem um narizinho muito pequeno, reto, um perfil
delicado mas que ao mesmo tempo revela caráter. Tem umas moedas de ouro em
cima da testa, uma blusa larga dessas de decote com elástico, que se pode
abaixar do ombro, ou dos dois ombros, dessas blusas ciganas, entende?
— Mais ou menos, não tem importância, continua.
— E depois a cintura bem justa. E a saia...
— Descreve o decote. Não pule isso.
— Bem, é daquela época tão linda em que se usava o decote bem baixo, e
dava para ver o começo dos seios, mas que não estavam levantados pelo sutiã
como duas boias. Não, via-se pouco mais que alguma coisa, havia, notava-se da
mesma maneira, ou antes, era de se imaginar.
— Mas neste caso o que há? muito ou pouco?
— Muito, e a saia é enorme, feita de lenços, montes de lenços amarrados na
cintura, de todas as cores, de gaze, e ao dançar entreviam-se as pernas, mas
muito pouco. E ele fantasiado de dominó, isto é, com uma capa preta e mais
nada, de terno e gravata por baixo. Ele diz que aquela é a última música que a
orquestra vai tocar, que está na hora de tirar a máscara. Ela diz que não, a noite
deve acabar sem que ele saiba quem é ela, e sem que ela saiba quem é ele.
Porque nunca mais se tornarão a ver, aquele foi o encontro perfeito de um baile
de carnaval e mais nada. Ele insiste e tira a máscara, o cara é lindo, e repete que
passou a vida toda esperando por ela e que agora não vai deixá-la fugir. E olha
um anel solitário fabuloso que ela tem, e pergunta se aquilo significa alguma
coisa, um compromisso sentimental. Ela responde que sim, e pede para esperá-la
lá fora no carro dele, enquanto vai ao toalete retocar a maquiagem. É o minuto
fatal, porque ele sai e espera, e espera e ela nunca mais aparece. Bem, a ação
passa à capital do México, e percebe-se que o rapaz trabalha como repórter de
um grande jornal da tarde. Ah! porque esqueci de contar que enquanto dançam
ela diz que aquela música é linda, e que pena que não tenha letra, e aí ele fala
que é meio poeta. E então uma tarde ele está lá na redação do jornal, que é uma
confusão bárbara de pessoas que entram e saem, quando percebe que estão
preparando um artigo bastante escandaloso, com muitas fotos, sobre uma atriz e
cantora que se retirou há algum tempo, e que vive protegida por um
poderosíssimo homem de negócios, um magnata temidíssimo, meio mafioso,
mas de quem não dão o nome. E ao ver as fotos o rapaz fica pensando, aquela
mulher belíssima, que começou a carreira em teatros de revista e depois se
tornou uma estrela dramática de grande sucesso, mas por muito pouco tempo,
porque se retirou, bem, aquela mulher lhe parece conhecidíssima, e quando a vê
numa foto bebendo champanha, na mão um solitário raríssimo, já não lhe resta
dúvida de quem seja. Fazendo-se de tolo ele descobre o que há por trás daquilo,
e lhe dizem que vai ser uma matéria muito sensacionalista, e que só faltam
algumas fotos de quando ela se despia em cena, que logo vão arranjar. Têm o
endereço dela, porque andaram espionando, então ele aproveita e se apresenta
em casa dela. Ele a olha deslumbrado, ela veste um penhoar de tule preto. É um
apartamento supermoderno, com lâmpadas fixas que dão uma luz difusa mas que
não se sabe de onde vem, e tudo é de cetim clarinho, as cortinas são de cetim, os
sofás são de cetim, e as poltronas também, sem pés, redondas. Ela deita no divã
para ouvi-lo. Ele conta o que está acontecendo e lhe promete esconder todas as
fotos e o que escreveram, assim não podem publicar o artigo. Ela lhe agradece
profundamente. Ele pergunta se é feliz naquela gaiola de ouro. Ela não gosta que
ele fale isso. E conta a verdade, que, esgotada pela luta do teatro, onde chegara
ao máximo do sucesso, deixou-se convencer pela proposta de um homem a
quem achava bom. Aquele homem, riquíssimo, levou-a para fazer uma viagem,
para ver o mundo, mas de volta ao país tornou-se cada vez mais ciumento, até
reduzi-la quase que a uma prisioneira. Ela logo se cansou de não fazer nada e lhe
pediu que a deixasse tornar a trabalhar, mas ele recusou. O rapaz lhe diz que
toparia qualquer coisa por causa dela, e não teria medo do outro, ela o olha
fixamente, do sofá, e puxa um cigarro. Ele se aproxima para acendê-lo, e aí a
beija. Ela o abraça, por um momento se deixa levar por um impulso, e lhe diz
que precisa dele... mas então ele lhe propõe irem embora juntos, que deixe tudo,
joias, peles, vestidos, magnata, e o acompanhe. Mas ela fica com medo. O rapaz
lhe diz que não seja covarde, que podem ir longe juntos. Ela lhe pede uns dias
para pensar. Ele insiste que agora ou nunca. Ela o manda embora. Ele diz que
não, que não sairá de lá sem ela, e a segura pelos braços, e a sacode para que
perca o medo. Então ela reage mas contra ele, diz que todos os homens são
iguais, que ela não é uma coisa, algo que se manipula como eles querem, por
capricho, e que devem deixá-la tomar sua própria decisão. Ele então diz que
nunca mais quer tornar a vê-la e se dirige para a porta. Ela, despeitada, manda
esperar um momento, e vai até o quarto e volta com um monte de notas, e diz
que são o pagamento pelo favor que ele lhe fez, de destruir aquele artigo. Ele
atira o dinheiro aos pés dela, e sai. Mas já na rua se arrepende de ter sido tão
impetuoso. Não sabe o que fazer, e vai beber num bar, onde entre a fumaça mal
se enxerga um pianista cego, que toca aquela mesma música tropical bem lenta,
bem triste, que ele dançou com ela no carnaval. O rapaz bebe, e bebe, e vai
compondo versos para aquela música, pensando nela, e canta, porque é um galã-
cantor: “Aunque vivas... prisionera, en tu soledad... tu alma me dirá... te quiero”.
Como é que continua? bem, continua mais um pouquinho e depois diz: “Me
hacen dano tus ajos, me hacen dano tus manos, me hacen dano tus lábios... que
sabem mentir... y a mi sombra pregunto, si esos lábios que adoro, en un beso
sagrado”, e mais o quê? algo como “volverán a mentir”. E depois continua,
“Flores negras... del destino, nos apartan sin piedad, pero el dia vendrá en que
seas... para mi no más, no más...” Você se lembra desse bolero?
— Acho que não. Não sei... Continua.
— No dia seguinte, no jornal, o rapaz percebe que todo mundo procura o
artigo sobre ela, e não o encontram. Claro, ele guardou tudo na sua mesa debaixo
de chave. E como não conseguem encontrar nada, o chefe da reportagem resolve
que esqueçam o assunto, porque será impossível juntar todo aquele material de
novo. O rapaz respira aliviado, e depois de hesitar um pouco... disca o número
dela. E diz que pode ficar tranquila, pois não publicarão mais o artigo. Ela
agradece, ele pede perdão por tudo o que disse em casa dela, e pede para vê-la,
marca um encontro. Ela concorda. Ele pede licença para sair do jornal, o chefe
dá, diz que o acha com má cara, há alguns dias. Enquanto isso ela está se
preparando para sair, com um vestido preto de duas peças, de veludo, desses da
época, tão bonitos, bem cintados, e sem blusa por baixo, e um broche de
brilhantes na lapela, e um chapéu branco de tule, que é como uma nuvem branca
atrás da cabeça. E o cabelo preso num coque. E já está calçando as luvas,
brancas, combinando com o chapéu, quando pensa no perigo que representa
aquele encontro, porque o magnata entra logo naquele momento, quando ela está
indecisa entre ir ou não ir. E o magnata, que é um homem maduro, grisalho, de
uns cinquenta e tantos anos, um pouco gordo, mas como homem muito
apresentável, pergunta aonde ela vai. Ela diz que fazer compras, ele se oferece
para acompanhá-la, ela diz que ele vai se chatear muito, porque tem de escolher
fazendas. O magnata faz cara de estar percebendo alguma coisa, mas não lhe
cobra nada. Ela aproveita, então, para dizer-lhe que ele não tem o direito de fazer
cara feia, que ela consente em tudo o que ele quer, que renunciou a voltar ao
teatro, a cantar no rádio, mas já é o cúmulo que ele ache ruim que ela saia para
fazer compras. Então o magnata diz que vai embora, e que ela pode sair para as
compras à vontade, mas se ele chegar a tomar conhecimento de que ela o
engana... não se vingará dela, porque bem sabe que não pode viver sem ela, mas
se vingará do homem que se atreveu a aproximar-se dela. O magnata sai, ela sai
um momento depois, não sabe o que falar com o motorista, porque ainda soam
em seus ouvidos as palavras do magnata: “me vingarei do homem que se atreva
a se aproximar de você”. Enquanto isso o rapaz está à espera dela num bar
luxuoso, e olha a hora, e já começa a perceber que ela não vai vir. Pede outro
uísque, duplo. Passa uma hora, passam duas horas, e ele já está totalmente
bêbado, mas disfarça, levanta e caminha em linha reta. Vai à redação do jornal,
senta em sua escrivaninha e pede ao contínuo um café duplo. E trabalha,
tratando de esquecer de tudo. No dia seguinte chega mais cedo que de costume, e
o chefe se surpreende, felicita-o por ter vindo ajudar, porque o dia está muito
difícil. Ele se concentra no trabalho e acaba tudo também muito cedo, e vai e
entrega a matéria ao chefe, que o felicita porque gosta do que ele escreveu, e diz
que ele já pode ir embora. O rapaz então sai, e vai beber com um companheiro
que o convida, ele no começo recusa, mas o outro pede que o acompanhe, mas
não, espera, é o próprio chefe que o convida para beber lá no seu gabinete
porque o rapaz resolveu naquele dia todo o problema dele, que era um artigo
sobre um desfalque muito grande no governo, e quer comemorar a coisa. Então,
depois de beber, o rapaz já sai ruim para a rua, a bebida caiu mal, e quando
menos pensa se vê defronte da casa dela. Não resiste e entra, toca a campainha
do apartamento. A empregada lhe pergunta o que quer. Ele pede para falar com a
dona da casa, e justamente são cinco da tarde e ela está tomando chá com o
magnata, que acaba de lhe trazer uma joia maravilhosa, um colar de esmeraldas,
para que lhe perdoe a cena do dia anterior. Ela manda a empregada dizer que não
está, mas ele já entrou. Então ela trata de ajeitar a coisa e diz ao magnata o que
foi que aconteceu com o artigo, e agradece ao rapaz, e conta para o magnata que
ele não quis dinheiro, ela não sabe realmente o que fazer para ajeitar o assunto,
mas o rapaz, furioso ao ver que ela segura o magnata pelo braço, diz que sente
nojo de tudo, e que o único agradecimento que pede é que o esqueçam para
sempre. Tanto ela como o magnata não pronunciam uma só palavra, o rapaz vai
embora, mas deixa um papel em cima da mesa, com a letra da canção que
escreveu. O magnata olha para a moça, ela tem os olhos cheios de água, porque
está apaixonada pelo rapaz, e já não pode negá-lo, não pode negar a si própria, o
que é pior. O magnata a mira bem fixo nos olhos e lhe pergunta o que é que ela
sente por esse pobre-diabo de jornalista. Ela não consegue responder, tem um nó
na garganta, mas quando percebe que o cara está ficando furioso, bem, engole
em seco e diz que aquele pobre-diabo de jornalista não é nada para ela, mas que
esteve envolvida com ele por causa da confusão no jornal. E então o magnata
pergunta que jornal é, e ao saber que se trata do jornal que está às voltas com
uma investigação por causa das confusões da máfia, pede-lhe que dê o nome do
rapaz para suborná-lo de alguma maneira. Mas a moça, aterrorizada à ideia de
que o magnata queira realmente se vingar dele... se recusa a dar o nome. O
magnata então a esbofeteia, a joga no chão. Vai embora. Ela fica jogada em cima
de um tapete que parece de arminho, o cabelo preto em cima do arminho branco,
e as lágrimas que faíscam parecem estrelas... E levanta o olhar... e avista em
cima de um dos sofás de cetim... um papel. Levanta e pega, lê: “...Aunque vivas
prisionera, en tu soledad tu alma me dirá... te quiero. Flores negras del destino...
nos apartan sin piedad, pero el dia vendrá en que seas... para mi no más, no
más...”, e coloca aquele papel todo amassado no coração, que talvez esteja tão
amassado quanto aquele papel, tão... ou mais.
— Continua.
— O rapaz, por sua vez, está desesperado, não volta ao trabalho, e anda de
bar em bar. Procuram-no do jornal mas não o encontram, telefonam e ele atende,
mas ao ouvir a voz do chefe desliga o telefone. Passam-se os dias, até que ele vê
num jornal na rua, o mesmo em que ele trabalha, que se anuncia para o dia
seguinte uma sensacional reportagem sobre a intimidade de uma grande estrela
afastada do meio artístico. Treme de raiva. Vai até o jornal, está tudo fechado
porque já é tarde da noite, o porteiro de plantão o deixa entrar sem desconfiar de
nada, ele vai até a sua mesa e percebe que arrombaram as gavetas para entregar a
outro repórter a mesa que ele abandonou, e encontraram lá, evidentemente, todo
o material. Então vai à oficina, que é longe dali, e quando chega já é de manhã e
percebe que o número daquela tarde já está na rotativa. Desesperado, para as
máquinas a marteladas, e toda a tiragem daquele número do jornal fica
prejudicada, porque as tintas entornam e estragam tudo. Um prejuízo de milhares
e milhares de pesos, um ato de sabotagem. Ele desaparece da cidade mas o
expulsam do sindicato e nunca mais na vida poderá trabalhar como jornalista. De
bebedeira em bebedeira, chega a uma praia, à procura de suas recordações:
Veracruz. Num botequim vagabundo, em frente ao mar, bem na beira da praia,
uma orquestra típica do lugar, com aquele instrumento que é uma mesa de
tabuinhas...
— Xilofone.
— Você sabe de tudo, Valentín, por quê?
— Anda, continua, que estou interessado.
— Bem, com aquele instrumento tocam uma melodia muito triste. Ele, com
um canivete, escreve em cima de uma mesa, que está cheia de inscrições de
corações, nomes e também palavrões, aí ele escreve a letra para aquela canção e
a canta. Diz assim: “...cuando te hablen de amor, y de ilusiones... y te ofrezcan
un sol y un cielo entero, si te acuerdas de mi... ; no me menciones! porque vás a
sentir... amor del bueno... Y si quieren saber de tu pasado, es preciso decir una
mentira, di que vienes de alla, de un mundo raro...”, e a imagina, antes, a vê no
fundo daquele copo de aguardente, e ela vai se agigantando, até ficar de tamanho
natural, e passeia por aquele botequim miserável, e olhando para ele canta
completamente o verso: “...que no sé quê es penar, que no entiendo de amor, y
que nunca he llorado...”, e então ele canta olhando para ela, entre todos aqueles
bêbados que nem sequer o ouvem ou o veem: “...porque yo, donde voy, hablaré
de tu amor, como un sueño dorado...”, e ela continua: “...y olvidando el rencor,
no dirás que mi adias te volvia desgraciado...”, ele então acaricia a recordação
transparente dela, sentada ali ao lado dele na mesa, e continua cantando: “...y si
quieren saber de mi pasado, es preciso decir otra mentira, les diré que llegué de
un mundo raro...”, e, se olhando os dois com lágrimas nos olhos, continuam em
dueto em voz bem baixa, que é apenas como um murmúrio: “...que no sé del
dolor, que triunfe en el amor, y que nunca he llorado...”, ele, ao enxugar as
lágrimas, porque tem vergonha de ser homem e de estar chorando, vê com mais
nitidez e ela não está ao seu lado. E, desesperado, pega no copo para beber até o
fim, e não vê refletido no fundo do copo mais que ele próprio todo descabelado,
e então atira com toda a força o copo contra a parede e o copo se espatifa.
— Por que você se cala?
—...
— Não fica assim...
—...
— Porra! já disse que hoje não entra a tristeza aqui, e não vai entrar!
— Não me sacode assim...
— É que hoje vamos ganhar dos que estão do lado de fora.
— Me assustou.
— Não fique triste, nem se assuste... a única coisa que quero é cumprir a
promessa. E fazer você esquecer qualquer coisa ruim. Eu, hoje de manhã, dei
minha palavra que hoje você não vai pensar em nada triste. E vou cumprir,
porque não me custa nada. É tão fácil fazer você esquecer as coisas tristes... e
enquanto estiver a meu alcance, pelo menos neste dia... não vou te deixar pensar
em coisas tristes.
13
— Como estará a noite lá fora?
— Quem sabe, Molina. Não faz frio, e a umidade é muita. Então deve estar
nublado, talvez com nuvens muito baixas, daquelas que refletem a luz da
iluminação das ruas.
— Sim, deve estar uma noite assim.
— E as ruas devem estar molhadas, sobretudo as de paralelepípedos, sem
que tenha chovido, e ao fundo um pouco de neblina.
— Valentín... fico nervoso com a umidade, porque sinto coceira no corpo
todo, mas hoje não.
— Eu também me sinto bem.
— A comida caiu bem?
— Sim, a comida...
— Ficou só um restinho.
— Culpa minha, Molina.
— Comemos mais que de costume.
— Quanto tempo faz que trouxeram o embrulho?
— Quatro dias. E para amanhã sobra um pouco de queijo, um pouco de pão,
maionese...
— E tem doce de laranja. E meio pudim inglês. E doce de leite.
— E mais nada, Valentín.
— Não, um pedaço de fruta cristalizada. De abóbora, que você se reservou.
— Me dá pena comer, fico guardando e nunca que chega o momento. Mas
amanhã dividimos em dois.
— Não, esse é teu.
— Não, amanhã vamos ter que comer a comida do presídio, e de sobremesa
comemos a abóbora cristalizada.
— Amanhã a gente discute.
— É, não quero pensar em nada agora, Valentín. Deixe-me ficar fora da
realidade.
— Está com sono?
— Não, mas estou bem, estou tranquilo... Não, estou mais que tranquilo...
Mas não fica zangado se eu falar alguma besteira. Estou feliz.
— Assim é que é bom.
— E o bom de quando a gente se sente feliz, sabe, Valentín... é que parece
ser para sempre, que a gente nunca mais vai se sentir mal.
— Eu também me sinto bem, esta porcaria de cama está quentinha e acho
que vou dormir direito.
— Eu sinto um calorzinho no peito, Valentín, isso é bom. E as ideias
desembaraçadas, não, bobagem, a cabeça como que cheia de um vaporzinho
morno. Estou todo cheio disso. Não sei, talvez é que ainda... te sinto... como que
você está me tocando.
—...
— Te incomoda que fale dessas coisas?
— Não.
— É que quando você está aqui, já te disse, já não sou eu, e isso é um alívio.
E depois, até eu dormir, e embora você esteja em sua caminha, também não sou
eu. É uma coisa esquisita... como posso explicar?
— Fala, vai.
— Não me apressa, deixa eu me concentrar... E é quê quando fico sozinho na
cama também já não sou você, sou outra pessoa, que não é homem nem mulher,
mas que se sente...
— ...fora de perigo.
— É isso mesmo, como é que você sabe?
— Porque é a mesma coisa que eu sinto.
— Porque será que se sente isso?
— Não sei.
— Valentín...
— Que foi?
— Quero te dizer uma coisa... mas não ri.
— Fala.
— Quando você veio na minha cama... depois... eu queria não acordar mais
depois de dormir. Claro que me dá pena por causa de mamãe, que ficaria
sozinha... mas se fosse por mim, não queria acordar nunca mais. Mas é só uma
coisa que me passa pela cabeça, sério, a única coisa que peço é para morrer.
— Antes tem que acabar o filme.
— Ufa, falta muito, hoje à noite não acabo.
— Se você tivesse contado outro bocado nestes dias, acabaríamos hoje à
noite. Por quê não quis contar mais?
— Não sei.
— Você acha que pode ser o último filme que me conta.
— Deve ser isso, sei lá.
— Conta um pouco antes de dormir.
— Mas até o fim não, falta muito.
— Até você cansar.
— Bem. Onde estávamos?
— Ele canta no botequim, para ela, que aparece no fundo do copo de
aguardente.
— Sim, e eles cantam em dueto. Enquanto isso, ela... abandonou o magnata,
ficou envergonhada de continuar levando aquela vida, e resolve voltar ao
trabalho. Vai se apresentar num clube noturno como cantora, e já é o dia da
estreia, ela está muito nervosa, de noite vai tornar a entrar em contato com o
público, e naquela tarde tem ensaio geral. Apresenta-se com um vestido
comprido, como todos os dela, sem alças, o busto muito justo, a cintura de vespa
e depois a saia bem ampla, tudo de lantejoulas pretas. Mas o brilho das
lantejoulas é apenas como um resplendor. O cabelo muito simples, repartido no
meio e comprido até os ombros. Um pianista a acompanha, o cenário é só um
cortinado de cetim branco recolhido por um laço igual, porque aonde ela vai
gosta de sentir o contato do cetim, e ao lado uma coluna grega simulando
mármore branco, o piano também branco, de cauda, o pianista de smoking preto.
Lá na boate todo mundo está feito louco arrumando as mesas, encerando o
assoalho, pregando os pregos, mas quando ela aparece soam as primeiras notas
do piano, bem, aí todo mundo fica mudo. E ela canta, ou não, ainda não
começam as notas do piano, e lá longe uma cadência de maracas quase
imperceptível, e vê-se que ela está com as mãos tremendo, seus olhos se enchem
de ternura, passa o cigarro para um ponto que está entre os bastidores, toma
posição ao lado da coluna grega, e começa com uma voz grave e melodiosa a
dizer a introdução, quase falada, pensando no rapaz: “Todos dicen que la
ausência es causa de olvido... y yo te aseguro que no es la verdad... desde aquel
último instante que pasé contigo, mi vida parece... llena de crueldad”, e aí a
orquestra invisível começa a pleno volume e ela solta toda a sua voz: “... tu te
llevaste en tus lábios, aquel beso sagrado... que yo había guardado para ti? si,
para ti... Tu, te llevaste en tus ojos, todo el mundo de antojos, que bailaste en los
mios, para ti...”, e aí vem um interlúdio da orquestra, e ela dá uma pequena volta
na pista e torna a atacar, com toda a voz: “... Como pudiste dejarme,
queriéndonos tanto?... cuando habías encontrado en mi fecho guardado tanto...
tanto frenesi... Tu, aunque esternos muy lejos, llorarás como um nino, buscando
un carino como el que te di...”
— Estou escutando, anda.
— E ao acabar de cantar ela está totalmente absorta, e todos os trabalhadores
que estão preparando a sala para aquela noite irrompem em aplausos. E ela sai
contente para o camarim porque imagina que ele vai tomar conhecimento de que
ela está trabalhando de novo, e portanto que não está mais com o magnata. Mas
uma terrível surpresa a aguarda. O magnata comprou aquele clube noturno, e o
mandou fechar, mesmo antes da estreia. E há uma ordem de apreensão das joias
dela, porque o magnata combinou com o joalheiro para fingir que não foram
pagas, e tudo isso. Ela percebe logo que o magnata decidiu impedi-la de
trabalhar e tornar-lhe a vida impossível, claro, para que volte para ele. Mas não
se deixa vencer e resolve, com o agente, continuar tentando como quer que seja,
até arranjar um bom contrato. O rapaz, por seu lado, em Veracruz, percebe que
suas economias estão acabando e precisa procurar trabalho. Já não pode ser
jornalista porque o colocaram na lista negra do sindicato, e outros trabalhos, sem
referências, e com a cara péssima de tantos porres e o aspecto descuidado,
tampouco o empregam em outros lugares. Afinal consegue serviço como
operário numa serraria, e trabalha lá uns dias, mas suas forças vão-se esgotando,
seu organismo está minado pelo álcool, nunca tem apetite, a comida não entra.
Na hora do descanso para o almoço, um dia, um companheiro insiste para ele
comer alguma coisa, e ele prova uma colherada. Mas não entra, a única coisa
que tem é sede, sede. E naquela mesma tarde cai desmaiado. E precisa ser
internado num hospital. Ele a chama no delírio da febre, e então o companheiro
examina os papéis dele, procurando o endereço dela, e telefona para o México, e
claro, ela já não está naquele apartamento luxuoso, mas a governanta, que era
uma boa mulher, passa o recado à moça, que agora está morando numa pensão
muito barata. Ela sai logo para Veracruz, mas aqui aparece a cena mais terrível, e
é que não tem dinheiro para a passagem, e o dono da pensão é um velho gordo,
repulsivo, ela lhe pede dinheiro emprestado, ele diz que não. Então ela se
insinua, e o gordo imundo diz logo que sim, que empresta o dinheiro, mas em
troca de... reticências. E se vê que ele entra no quarto dela, coisa que ela jamais
permitira àquele imundo. E o rapaz está no hospital, e entra o médico com uma
freira, e dá uma olhada naquele relatório onde anotam como vai o doente, e toma
o pulso, e espia o branco do olho, e lhe diz que já começou a reagir bastante
bem, mas que precisa se cuidar muito, nunca mais tomar álcool, comer muito
bem, e descansar. E ele pensa como... se está na miséria, quando avista uma
figura incrível no vão da porta, distante, na outra ponta do pavilhão. Ela vai
avançando, olhando para cada doente para ver se encontra o rapaz, vai
avançando devagarzinho, e todos os internos a olham como se fosse uma
aparição. Ela está muito simples, mas linda toda de branco, um vestido muito
simples mas vaporoso, com o cabelo preso, e nem uma joia. Claro, porque já não
tem, mas aquilo tem uma significação especial para o rapaz, que ela rompeu com
a vida de luxo que o magnata lhe dava. Quando ela o vê, não pode acreditar,
porque ele está tão abatido, e fica com os olhos cheios d'água, e lá está
justamente o médico dizendo que já está de alta, e ele diz que não tem para onde
ir, mas ela diz que sim, que tem uma casa com jardim, muito pequenina, muito
modesta, mas sombreada pelas palmeiras e acariciada pelo ar salgado do mar. E
saem juntos, ela alugou aquela casinha, quase no campo, onde acabam os
subúrbios de Veracruz. Ele está um pouco tonto por causa da fraqueza, ela
prepara a cama e ele lhe pede que ponha uma rede no jardim, amarrada em duas
palmeiras que cercam a casinha. E deita lá, e se seguram pelas mãos, não podem
desviar os olhos dos olhos, ele diz que em breve estará melhor, graças à alegria
de tê-la ali, e que arranjará um bom trabalho e não será uma carga para ela, que
responde para ele não se afligir por causa disso, que ela tem um dinheiro
economizado, e que só permitirá que ele saia para trabalhar quando estiver
totalmente bom, e se olham em silêncio adorando-se e chegam ecos distantes de
canções de pescadores, uma música de cordas, muito delicada, não se sabe se de
violões, ou de harpas. E ele, como que num murmúrio, vai pondo letra naquela
melodia, quase fala mais do que canta, e com um compasso muito lento, como o
que vão marcando aqueles instrumentos que soam lá longe: “...estás en mi...
estoy en ti... por quê llorar... por quê sufrir... Callar mi dicha quisiera... que el
mundo no Io supiera... mas grita dentro de mi... esta ansiedad de vivir... fará
querer... Estoy feliz... también Io estás... me quieres tu... te quiero más... Estoy
tan enamorado, que ya olvide Io pasado... y hoy me siento feliz. . porque te he
visto... llorar por mi...”
— Não para.
— Passam-se os dias, e ele se sente muito melhor, mas fica preocupado
porque ela não o deixa ir, nem sequer acompanhá-la, até o hotel de luxo onde
canta toda noite.
Pouco a pouco os ciúmes começam a corroê-lo. Ele perguntou por que não
saem no jornal anúncios de suas apresentações, e ela diz que é para não dar a
pista ao magnata, e que o magnata pode mandar matá-lo se o encontrar no hotel,
e o rapaz começa então a pensar que ela se encontra com o magnata. E um belo
dia vai até aquele hotel de superluxo com uma boate dentro, com atrações
internacionais. E ela não está anunciada em lugar nenhum, e ninguém a conhece
nem nunca a viu, lembram dela sim, como uma estrela de anos atrás. Então ele,
desesperado, vai circular pelos bairros do porto, onde estão as tabernas. E não
pode acreditar no que vê: numa esquina, debaixo de um lampião, está ela
fazendo trottoir, era assim que ganhava dinheiro para sustentá-lo! Então ele se
esconde para que ela não o veja, e volta para casa arrasado. Quando ela aparece
de madrugada, ele, coisa que nunca fez, finge que está dormindo. No dia
seguinte acorda cedo para procurar trabalho, e dá um pretexto qualquer a ela. E
volta ao anoitecer sem ter arranjado nada, ela já estava preocupada. Ele finge
que tudo está bem, e quando chega a hora de ir para a rua, segundo ela para ir
cantar, ele lhe pede para que não saia, que a noite é cheia de perigos, que por
favor fique com ele, que está com medo de não tornar a vê-la. Ela lhe pede que
se tranquilize, que é absolutamente necessária sua saída, porque é preciso pagar
o aluguel. E o médico, sem que ele saiba, sugeriu um novo tratamento muito
caro, e amanhã mesmo eles têm que ir ao médico, os dois juntos. E vai embora...
Ele percebe então a carga que representa para ela, como tem que se humilhar
para salvá-lo. O rapaz avista as barcas dos pescadores que voltam ao porto de
noite, caminha até a beira do mar, faz um luar lindo, a lua se quebra em
pedacinhos ao refletir-se na maré mansa da noitinha tropical. Não há vento, tudo
é quietude, menos no coração do rapaz. Os pescadores fazem um coro com a
boca fechada, entoam uma melodia muito triste, o rapaz canta, vai ditando às
palavras seu próprio desespero: “...luna que te quiebras... sobre Ias tinieblas... de
mi soledad... adónde? adónde vás?... dime si esta noche tu te vás de ronda...
como ella se fué... con quién? Con quién? con quién está? Dile que la quiero,
dile que me muero... de tanto esperar... que vuelva, que vuelva ya... que las
rondas... no son buenas, que hacen dano... que dan penas... y se acaba por
llorar...” E de madrugada quando ela volta ele já não está, deixou um bilhetinho
dizendo que a ama com loucura, mas que não pode ser uma carga para ela, que
não o procure, porque se Deus quiser reuni-los novamente... se encontrarão
mesmo que não se procurem... E ela avista lá perto muitas pontas de cigarros, e
uma caixinha de fósforo esquecida, uma caixinha daquelas que oferecem nas
tabernas do porto, e aí percebe que ele a viu...
— E acaba aí?
— Não, continua ainda, mas vamos deixar o fim para outro dia.
— Está com sono.
— Não.
— E então?
— Este filme me deprime, não sei por que comecei a contar.
— Valentín, tenho um mau pressentimento.
— Qual é?
— Que vão me mudar de cela, e mais nada, que não vão me soltar, e não vou
te ver mais.
—...
— Estava tão contente... e ao contar este filme fiquei outra vez fodido
mesmo.
— Você faz mal em se adiantar aos acontecimentos, sabe lá o que pode
acontecer...
— Tenho medo que aconteça uma coisa ruim.
— Como o quê?
— Olha, só me interessa sair por causa da saúde de minha mãe. Mas fico
com a preocupação de que ninguém vai... tomar conta de você.
— E não pensa em você?
— Não.
—...
—...
— Molina, gostaria de te fazer uma pergunta.
— O que é?
— É complicada. Bem... é isso: você, fisicamente, é tão homem quanto eu...
— Hum...
— Sim, não tem nenhuma espécie de inferioridade. Por que não te ocorre
ser... agir como homem? Não falo com mulheres, se não te atraem. Mas com
outro homem.
— Não, não dá...
— Por quê?
— Porque não.
— É isso o que eu não entendo direito... Nem todos os homossexuais são
assim.
— Sim, tem de tudo. Mas eu não, eu... só gozo assim.
— Olha, não entendo nada disso, mas quero te explicar uma coisa, embora
seja aos tropeções, não sei...
— Estou escutando.
— Quero dizer que se você gosta de ser mulher... não deve se sentir
diminuído por causa disso.
—...
— Não sei se me entende, o que é que você acha?
—...
— Quero dizer que você não tem que pagar com alguma coisa, com favores,
pedir perdão pelo fato de gostar disso. Não tem que se... submeter.
— Mas se um homem... é meu marido, ele tem que mandar, para se sentir
bem. Isso é natural, porque então ele... é o homem da casa.
— Não, o homem da casa e a mulher da casa devem estar no mesmo nível.
Caso contrário, é uma exploração.
— Então não tem graça.
— O quê?
— Bem, isso é muito íntimo, mas já que quer saber... a graça consiste em que
quando um homem te abraça... você sinta um pouco de medo.
— Não, isso é errado. Quem foi que te botou essa ideia na cabeça, isso é
muito errado.
— Mas eu sinto assim.
— Você não sente assim. Quem foi que te encheu a cabeça com essas
bobagens? Para ser mulher não é necessário ser... sei lá... mártir. Olha, se não
fosse porque deve doer muito eu pediria para você fazer isso em mim, para
demonstrar que isso de ser macho não dá direito a nada.
— Não vamos falar mais nisso, porque é uma conversa que não conduz a
nada.
— Pelo contrário, quero discutir.
— Mas eu não.
— Por que não?
— Porque não, e chega. Te peço por favor.
14
DIRETOR: Sim, senhorita, quero falar com seu chefe, por favor. Obrigado.
Tudo bem? Que há de novo por aí? Por aqui nada de novo. Sim, liguei por isso
mesmo. Daqui a uns minutos vou tornar a vê-lo. Não sei se o senhor lembra que
dei a Molina mais uma semana de prazo. Inclusive fizemos Arregui pensar que
vamos mudar Molina de cela de um dia para o outro, por ser candidato à
liberdade condicional. Exato, foi ideia do próprio Molina, sim. Puxa vida... Sim,
o tempo urge. Claro, se quiserem esse dado antes de lançar a contraofensiva,
compreendo, claro. Sim, estou com o senhor daqui a poucos minutos, foi por
isso que telefonei antes. Digamos, caso ele não saiba ainda nada... absolutamente
nada a declarar, caso não haja o menor progresso, o que fazer com Molina? O
senhor acha... Daqui a quantos dias? Amanhã mesmo? Por que amanhã? Sim,
claro, não há tempo a perder. Compreendo, hoje não, assim Arregui tem tempo
de planejar alguma coisa. Perfeito, se mandar um recado, o próprio Molina nos
levará à célula. A dificuldade está nele não perceber a vigilância. Mas olhe... há
alguma coisa de estranho em Molina, alguma coisa me diz que, não sei como
explicar, alguma coisa me diz que Molina não está fazendo jogo limpo comigo...
que me esconde não sei o quê. Acha que Molina passou para o lado deles? Sim,
de medo às represálias do pessoal de Arregui, também pode ser. Sim, também é
possível que Arregui o tenha doutrinado, sei lá com que métodos. E também
pode ser por isso. É difícil prever as reações de um sujeito como Molina, no fim
de contas um amoral. Também existe outra possibilidade: que Molina tente sair
sem se comprometer com ninguém, nem conosco nem com Arregui. Que Molina
esteja do lado de Molina e mais nada. Sim, vale a pena experimentar. E ainda há
outra possibilidade. Sim, desculpe interromper. É a seguinte: caso Molina não
leve a nada... isto é, se não nos conseguir nenhum dado hoje, nem amanhã antes
de sair à rua... e também não nos leve a ninguém do pessoal de Arregui, uma vez
na rua... bem, aí ainda nos resta outra jogada. E é esta: pode-se publicar no
jornal, ou fazer saber, seja lá como for, que Molina, ou antes, que um agente xis,
forneceu à polícia dados sobre a célula que Arregui integra, e que esse agente, o
agente xis, agiu sub-repticiamente como sentenciado, neste presídio. O pessoal
de Arregui ao tomar conhecimento vai procurá-lo para um ajuste de contas, e aí
podemos surpreendê-los. Enfim, abrem-se muitas possibilidades assim que
Molina estiver na rua. Ah, fico contente. Obrigado, obrigado. Sim, telefono logo
que Molina sair do gabinete. Perfeito, está combinado. De acordo... Telefono
logo... Muito prazer. Até logo.
DIRETOR: Pode entrar, Molina.
SENTENCIADO: Bom dia, senhor.
DIRETOR: Está bem, Suboficial, pode deixar-nos a sós.
SUBOFICIAL: Às suas ordens, senhor.
DIRETOR: Como está, Molina?
SENTENCIADO: Bem, obrigado.
DIRETOR: Quais são as novidades?
SENTENCIADO: Vamos indo...
DIRETOR: Fez algum progresso?
SENTENCIADO: Acho que nada... Imagine, era o que eu mais queria...
DIRETOR: Nada de nada...
SENTENCIADO: Nada.
DIRETOR: Olhe, Molina, estava tudo arrumado para pô-lo em liberdade, se
você nos trouxesse algum dado. E, mais, os papéis de sua liberdade condicional
já estão prontos. Não falta mais que minha assinatura.
SENTENCIADO: Diretor...
DIRETOR: É uma pena.
SENTENCIADO: Fiz o possível.
DIRETOR: Mas não houve a menor insinuação de nada? a menor pista?
Porque bastaria algum elemento... para que nós pudéssemos agir. E esse pequeno
elemento já justificaria que eu assinasse seus papéis.
SENTENCIADO: Imagine, senhor, o que eu mais quero é sair daqui... Mas
seria pior se eu inventasse alguma coisa. Na verdade, Arregui é como um
túmulo. É um sujeito fechado, e com uma desconfiança total, sei lá, é
impossível, é... não é humano.
DIRETOR: Olhe para mim de frente, Molina, vamos falar humanamente, já
que você e eu somos seres humanos... Pense em sua mãe, na alegria que lhe
daria. E pense em que nós o protegeremos, em que nada vai lhe acontecer uma
vez que esteja na rua.
SENTENCIADO: Estando eu na rua, nada mais tem importância.
DIRETOR: Realmente, Molina, não deve temer as represálias de nenhuma
espécie. Nós o vigiaremos continuamente, você vai ficar perfeitamente
protegido.
SENTENCIADO: Diretor, eu sei disso. E muito lhe agradeço que pense
nisso, de eu precisar de proteção... Mas que posso fazer? seria pior se eu
inventasse uma coisa que não é verdade.
DIRETOR: Bem... sinto muito, Molina... Nessas condições não posso fazer
nada por você.
SENTENCIADO: Então voltamos à estaca zero?... Sobre minha liberdade
condicional, quero dizer. Não resta a esperança de nada?
DIRETOR: Não, Molina. Se não nos fornecer nenhum dado, estou
impossibilitado de ajudá-lo.
SENTENCIADO: Nenhuma recomendação por bom comportamento? Nada?
DIRETOR: Nada, Molina.
SENTENCIADO: E a cela? vão me deixar na mesma cela, ao menos?
DIRETOR: Por quê? não prefere ficar com pessoas... mais comunicativas
que Arregui? Deve ser bem triste a companhia de alguém que não fala.
SENTENCIADO: É que... não perco a esperança que ele um dia me conte
alguma coisa.
DIRETOR: Não, acho que já fez bastante para ajudar, Molina. Vamos mudá-
lo para outra cela.
SENTENCIADO: Por favor, senhor, por aquilo que mais quiser...
DIRETOR: Mas o que foi... tomou afeição por Arregui?
SENTENCIADO: Senhor... enquanto ficar com ele, terei esperança de que
conte alguma coisa... e se contar alguma coisa há esperança de que me soltem...
DIRETOR: Não sei, Molina, vou pensar. Mas acho que não será conveniente.
SENTENCIADO: Diretor, realmente, por aquilo que mais quer...
DIRETOR: Controle-se, Molina. E já não há mais nada a falar, pode ir.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor. Por aquilo que possa fazer por mim,
desde já, obrigado.
DIRETOR: Pode ir embora.
SENTENCIADO: Obrigado...
DIRETOR: Até breve, Molina.

SUBOFICIAL: Chamou, senhor?


DIRETOR: Sim, pode acompanhar o sentenciado.
SUBOFICIAL: Muito bem, senhor.
DIRETOR: Embora queira antes dizer uma coisa ao preso. Molina... prepare
suas coisas amanhã para deixar a cela.
SENTENCIADO: Eu lhe imploro... Não me tire a única possi...
DIRETOR: Um momentinho, que não acabei de falar; prepare tudo amanhã
porque vai sair em liberdade condicional.
SENTENCIADO: Senhor...
DIRETOR: Sim, amanhã, à primeira hora da manhã.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor...
DIRETOR: E boa sorte, Molina.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor. Obrigado...
DIRETOR: De nada, que tenha sorte...
SENTENCIADO: Mas é sério?
DIRETOR: Claro que é sério.
SENTENCIADO: Não posso acreditar...
DIRETOR: Acredite... e se comporte direito na rua. Não vá fazer besteiras
com garotos, Molina.
SENTENCIADO: Já amanhã?
DIRETOR: Sim, amanhã na primeira hora.
SENTENCIADO: Obrigado.
DIRETOR: Bem, pode ir que eu tenho o que fazer.
SENTENCIADO: Obrigado, senhor.
DIRETOR: De nada.
SENTENCIADO: Ah!... uma coisa...
DIRETOR: O que foi?
SENTENCIADO: Embora saia amanhã... se vieram me visitar, da minha
casa, ou o advogado...
DIRETOR: Fale... ou prefere que o suboficial saia?
SENTENCIADO: Não, isto é... se vieram me visitar, eles não podiam ter
certeza que eu sairia amanhã...
DIRETOR: O que quer dizer?... não entendo. Explique, tenho muito que
fazer.
SENTENCIADO: Sim, se vieram terão trazido um embrulho ... É para
disfarçar com Arregui...
DIRETOR: Não, já não tem importância. Fale que não trouxeram nada
porque o advogado sabia que ia ser posto em liberdade. Amanhã já comerá em
casa, Molina.
SENTENCIADO: Não era por minha causa, senhor. Era por causa de
Arregui... para disfarçar.
DIRETOR: Não devemos exagerar, Molina. Está bem assim.
SENTENCIADO: Desculpe, senhor.
DIRETOR: Que tenha boa sorte.
SENTENCIADO: Muito obrigado. Por tudo...

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....................................................
— Pobre Valentín, olha para minhas mãos.
— Não percebi. Foi sem querer.
— Você não pôde evitar, meu coitadinho.
— Que linguajar... E que tal? Conta alguma coisa, rápido!
— Não trouxeram embrulho. Você vai ter que me desculpar.
— A culpa não é tua...
— Ai, Valentín...
— O que foi?
— Ai, você não sabe...
— Anda, para que esse mistério todo?
— Não sabe...
— Anda... o que foi? Fala!
— Vou-me embora amanhã.
— Da cela?... que azar.
— Não, me deixaram sair, em liberdade.
— Não...
— Sim, me deram liberdade provisória.
— Mas é uma maravilha...
— Não sei...
— Mas não é possível... é a coisa mais genial que podia acontecer!
— Mas e você?... Vai ficar sozinho.
— Não, não é possível, que golpe de sorte, Molinita! é genial, genial... Fala
que é verdade, ou você está caçoando de mim?
— Não, é verdade.
— É genial.
— Você é muito bom de ficar tão contente por minha causa.
— Sim, fico satisfeito por sua causa, mas também por outra coisa... isso é
fabuloso!
— Por quê? o que é que tem de tão fabuloso...
— Molina, você vai me servir para uma coisa fabulosa, e te asseguro que não
vai correr risco nenhum.
— O que é?
— Olha... nesses últimos dias me ocorreu um plano de ação extraordinário, e
morri de raiva pensando que não podia transmitir a meu pessoal. Quebrava a
cabeça procurando uma solução... e você a traz na bandeja.
— Não, Valentín. Não sirvo para isso, você está louco. ?- Escuta um
momentinho. Vai ser fácil. Você decora tudo e pronto. Só isso já serve.
— Não, está louco. Podem me seguir, qualquer coisa, para ver se não estou
combinado com você.
— Dá-se um jeito. Pode deixar passar uns dias, duas semanas. E te ensino
como fazer para ver se estão te seguindo ou não.
— Não, Valentín, eu saio em liberdade condicional, qualquer coisa me
pegam de novo.
— Te asseguro que não haverá o menor risco.
— Valentín, te suplico. Não quero saber uma palavra de nada. Nem onde
estão, nem quais são, nada.
— Não gostaria que eu pudesse também sair um dia?
— Daqui?
— Sim, livre.
— Como é que eu não vou gostar...
— Então tem que me ajudar.
— Era a coisa que eu mais queria no mundo. Mas escuta, falo por teu bem...
não me dá nenhum dado, não me conta nada de teus companheiros. Porque eu
não tenho jeito para essas coisas, e se me pegarem solto tudo.
— Sou eu e não você o responsável por meus companheiros. Se te peço uma
coisa é porque sei que não há risco. Tudo o que você tem a fazer é deixar passar
uns dias, e dar um telefonema de um telefone público, não da tua casa. E marcar
um encontro com alguém num lugar falso.
— Como num lugar falso?
— Sim, caso a linha telefônica de meus companheiros estiver censurada. Por
isso você tem que dar um lugar em código, por exemplo fala na Confeitaria Rio
de Ouro e eles sabem que é outro lugar, porque a gente faz tudo assim por
telefone, entende? Se falamos de um lugar é que nos referimos de fato a outro.
Por exemplo o cinema Monumental é a casa de um de nós, e o Hotel Plaa é uma
esquina no bairro de Boedo.
— Tenho medo, Valentín.
— Quando eu te explicar tudo você vai ficar sem medo. Vai ver como é fácil
passar uma mensagem.
— Mas se o telefone estiver censurado eu me comprometo, ou não?
— Falando de um telefone público, não, e mudando a voz, que é a coisa mais
fácil do mundo, eu te ensino. Tem mil maneiras, com uma bala na boca, com um
palito debaixo da língua... Olha, isso não é nada.
— Não, Valentín...
— Falaremos mais tarde.
— Não!
— Como quiser...
—...
— O que foi?
—...
— Não deita desse jeito... Olha para mim, por favor.
— Não esconde a cara no travesseiro, te peço por favor.
—...
— Valentín....
— O que foi?
— Tenho pena de te deixar sozinho.
— Nada de pena. Fica contente que você vai ver sua mãe, e vai poder tomar
conta dela. Era isso o que queria, não é?
— Anda, olha para mim.
—...
— Não me toca.
— Bom, está bem, Molinita.
— ...Não vai sentir falta de mim?
— Claro que vou.
— Valentín, fiz uma promessa, não sei a quem, a Deus, embora não acredite
muito.
— Sim...
— E é que a coisa que eu mais queria na vida era poder sair para tomar conta
de minha mãe. E que sacrificava qualquer coisa por causa disso, eu ficava em
segundo plano, antes de nada pedi para poder tomar conta de minha mãe. E meu
desejo foi cumprido.
— Então deve ficar contente. Você é muito generoso de pensar primeiro em
outra pessoa, e não em você. Tem que estar orgulhoso de ser assim.
— Mas isso é justo, Valentín?
— O quê?
— Que eu fique sempre sem nada... Que não tenha nada na vida realmente
meu.
— Bem, você tem sua mãe, essa é uma responsabilidade, e tem de assumi-la.
— Sim, é verdade.
— Então?
— Escuta. Minha mãe já teve sua vida, já viveu, já teve marido, seu filho...
Já é velha, sua vida está quase encerrada...
— Sim, mas ainda é viva.
— Sim, e eu também sou vivo... Mas quando começa minha vida? quando
vai me caber alguma coisa, ter alguma coisa?
— Molinita, é preciso se conformar. Você tirou a sorte grande, te deixam ir
embora. Fica contente com isso. Lá fora vai poder começar de novo.
— Quero ficar com você. Agora, a única coisa que eu quero é ficar com
você.
— Você fica encabulado de eu falar assim?
— Não... bom, sim.
— Sim o quê?
— Isso, fico um pouco encabulado.
— Valentín, se eu passar a mensagem você acha que vai sair mais depressa?
— Bom, é uma maneira de ajudar nossa causa.
— Mas não significa que vão te deixar sair logo. Você acha que assim vão
fazer a revolução mais depressa.
— Sim, Molinita.
— Não quer dizer que vão te deixar sair por outro motivo.
— Não, Molina.
— Não quebra a cabeça, não pensa nisso. Mais tarde discutimos.
— Já não nos resta muito tempo para discutir.
— Temos a noite toda.
—...
— E você tem que acabar o filme, não esquece. Há dias que não quer me
contar nada.
— É que esse filme me deixa muito triste.
— Tudo te deixa triste.
— Tem razão... Tudo menos uma coisa, — Não fala besteira.
— Sim, uma desgraça, mas é assim. Tudo me deixa triste, que me troquem
de cela me deixa triste, que me deixem sair me deixa triste. Tudo menos uma
coisa.
— Agora você vai passar bem, vai esquecer tudo o que você sofreu no
presídio, vai ver só.
— É que não quero esquecer.
— Bem... chega de besteira! não enche mais o saco, por favor!!!
— Desculpe.
—...
— Por favor, Valentín, diz que me desculpa.
—...
— Te conto o filme, acabo, se você quiser. E prometo que depois não encho
mais com minhas coisas.
— Valentín...
— O que é?
— Não vou passar a mensagem.
— Está bem.
— Tenho medo que antes de sair me interroguem sobre você.
— Como quiser.
— Valentín...
—...
O que é?
— Está zangado comigo?
— Não.
— Quer que acabe o filme?
— Não, porque você está sem vontade.
— Sim, se quiser eu acabo.
— Não vale a pena, já imagino como é que acaba. .
— Acaba bem, não é?
— Não sei, Molina.
— Viu como não sabe? vou acabar.
— Como quiser.
— Em que parte estávamos?
— Não me lembro.
— Bem... Acho que quando ele vê que ela se tornou prostituta para lhe dar
de comer, e que ela percebe. E quando ela volta para casa de madrugada já não o
encontra.
— Sim, isso mesmo.
— Bem. Enquanto isso o magnata andou à procura dela, porque soube que
está na pior lona e o sujeito está arrependido do que fez. E aquela manhã chega
um carro luxuoso à casinha em frente ao mar. E é o motorista do magnata, que a
manda buscar. Ela se recusa, e pouco depois chega o próprio magnata. Pede
perdão, diz que fez tudo por amor, pelo desespero de perdê-la. Ela conta o que
aconteceu, chora amargamente. Então o magnata se sente arrependidíssimo, e diz
que se ela foi capaz de tais sacrifícios é porque ama aquele homem e o amará
para sempre. E lhe diz: “isto é teu”, e lhe entrega um cofre, com todas as joias,
dá-lhe um beijo na testa e vai embora. Ela, então, começa a procurar o rapaz por
toda parte que nem louca, porque com a venda das joias tem dinheiro de sobra
para ele fazer um tratamento com os melhores médicos e nas melhores casas de
saúde. Mas não o encontra em lugar nenhum, até que começa a percorrer as
prisões, e os hospitais. E o encontra finalmente numa sala de doentes graves. O
organismo dele está arruinado, em primeiro lugar pelo álcool, e depois pela fome
e pelo frio. O frio das noites dormindo à beira-mar, sem ter para onde ir. Quando
ele a vê, sorri e pede que se aproxime para abraçá-la. Ela ajoelha ao pé da cama e
se abraçam. Ele diz que na noite anterior teve medo de morrer, porque a doença
se agravou muito, mas de manhã, ao se sentir fora de perigo, pensou que logo
que melhorasse sairia à procura dela, porque tudo aquilo que os separou não
tinha importância, e que de alguma maneira iam começar juntos de novo. Então
a moça olha para a irmã enfermeira que está ao pé da cama, como que
procurando uma confirmação daquilo que ele diz, que vai ficar bom. Mas a freira
faz um sinal negativo com a cabeça, quase imperceptível. E ele continua falando,
começa a dizer que lhe ofereceram novos trabalhos, em jornais importantes, e
que também lhe propuseram mandá-lo como correspondente no exterior, que vão
partir juntos para longe de tudo, e vão esquecer os sofrimentos. Só então a moça
percebe que ele está delirando de febre, e gravíssimo. Ele diz que compôs outra
letra, mas ela tem que cantarolar, como canção, e ele sussurra as palavras aos
poucos e ela repete, e soa um fundo musical, que vem como que do mar, porque,
em seu delírio, imagina que está com ela num barraco de pescadores à luz
dourada do entardecer. E ele diz, e ela repete: “...Si tengo tristeza... me acuerdo
de ti... Si tengo alegria, me acuerdo de ti. Si miro otros ojos, si beso otra boca, si
aspiro un perfume ... me acuerdo de ti...”, e olham do barraco para o horizonte
porque um veleiro se aproxima... “...Te llevo muy dentro, muy dentro de mi... Te
llevo en el alma, me acuerdo de ti...”, e o veleiro atraca lá no pequeno cais dos
pescadores, e o capitão lhes faz sinais para subirem já porque partem logo,
aproveitando o vento favorável, que os levará para bem longe, num mar sereno,
e as palavras continuam: “... nunca pense... que me crearas... tanta, tanta
obsesión... nunca creí, que me robaras el corazón... Por eso mi vida... me
acuerdo de... de cerca y de lejos, me acuerdo de ti... De noche y de dia, como
melodia, te llevo en el alma... me acuerdo de ti...”, e ele imagina que juntos já no
veleiro olham abraçados para o infinito, não há mais que mar e céu, porque o sol
já se pôs atrás do horizonte. E a moça diz que a canção é belíssima, mas ele não
responde nada, está com os olhos abertos, talvez a última coisa que viu na vida
tenha sido os dois na borda do veleiro, abraçados para sempre, e rumo à
felicidade.
— Que triste...
— Mas ainda não acabou. Ela então o abraça, e chora desesperada. E deixa
todo o dinheiro das joias lá com as freiras do hospital, para os pobres, e caminha
e caminha, como uma sonâmbula, e chega até a casinha onde viveram os poucos
dias de felicidade, e começa a andar pela beira do mar, e já é o entardecer, e se
ouvem os pescadores que cantam as canções dele, porque ouviram e
aprenderam, e tem casais de jovens olhando para o cair da tarde e se ouvem
aquelas palavras que ele cantou no momento feliz do reencontro, que os
pescadores cantam agora e os casais apaixonados escutam: “...estás en mi...
estoy en ti... por que llorar... por que sufrir... Callar mi dicba quisiera, que el
mundo no Io supiera... mas grita dentro de mi, esta ansiedad de vivir...”, e um
velho pescador pergunta por ele, e ela diz que foi embora, mas que não tem
importância, porque sempre vai estar com eles, ainda que seja apenas na
lembrança de uma canção, e ela continua caminhando sozinha, com o olhar no
sol que já está se ocultando, e se ouve: “...estoy feliz, también lo estás... me
quieres tu... te quiero más... Estoy tan enamorada, que ya olvide Io pasado... y
hoy me siento feliz... porque te he visto... llorar... por mi...” E como já é quase
noite, mal se enxerga a silhueta dela, à distância, que continua andando sem
rumo, como uma alma penada. E de repente aparece grande em primeiro plano o
rosto dela, com os olhos cheios de lágrimas, mas com um sorriso nos lábios... E
acabou-se... a história.
— É.
— Que final mais enigmático, não é?
— Não, está bem, é a melhor coisa do filme.
— E por quê?
— Quer dizer que embora ela tenha ficado sem nada, está contente de ter
tido ao menos uma relação verdadeira na vida, mesmo que tenha acabado.
— Mas não se sofre mais, depois de ter sido feliz e ficar sem nada?
— Molina, há uma coisa que temos que levar em conta. Na vida do homem,
que pode ser curta e pode ser longa, tudo é provisório. Nada é para sempre.
— Sim, mas que dure um pouquinho, pelo menos.
— É preciso aceitar as coisas como elas são, e apreciar o bom que possa te
acontecer, embora não dure. Porque nada é para sempre.
— Sim, isso é fácil. Mas sentir é outra coisa.
— Mas você tem que raciocinar, e convencer-se.
— Sim, mas há razões do coração que a própria razão desconhece. Foi um
dos melhores filósofos franceses que falou isso. Sacou? E acho que até me
lembro do nome: Pascal. Por essa você não esperava!
— Vou sentir tua falta, Molinita...
— Mesmo que seja dos filmes.
— Mesmo que seja dos filmes...
—...
— Sempre que eu vir fruta cristalizada vou me lembrar de você.
—...
— E cada vez que eu vir um frango no espeto, numa vitrine.
—...
— Porque a minha vez também chegará, um dia me tiram daqui.
— Vou te dar meu endereço.
— Está bem.
— Valentín... se alguma vez aconteceu alguma coisa, eu procurei não
começar, porque não quis te pedir nada, se não partisse de você mesmo.
Espontaneamente, quero dizer.
— É.
— Bem, mas queria te pedir uma coisa de despedida...
— O quê?
— Uma coisa que você nunca fez, embora tenhamos feito coisas muito
piores.
— O quê? — Um beijo.
— É verdade.
— Mas amanhã, antes de ir embora. Não fica assustado, não estou pedindo
agora.
— Está bem.
— Tenho uma curiosidade... você sente muita repulsa em me dar um beijo?
— Hummm... Deve ser medo que você se transforme em pantera, como
aquela mulher do primeiro filme que você contou.
— Não sou a mulher-pantera.
— É verdade, você não é a mulher-pantera.
— É muito triste ser mulher-pantera, ninguém pode beijá-la. Nem nada.
— Você é a mulher-aranha, que agarra os homens em sua teia.
— Que lindo! Disso eu gosto.
—...
— Valentín, você e minha mãe são as duas pessoas de quem mais gostei no
mundo.
—...
— Você vai se lembrar de mim?
— Aprendi muito com você, Molinita...
— Está louco, se eu sou um burro...
— E quero que vá embora contente, e guarde uma boa recordação de mim,
como eu tenho de você.
— E o que foi que você aprendeu comigo?
— É muito difícil de explicar. Mas você me fez pensar muito, tenha certeza
disso...
— Está sempre com as mãos quentes, Valentín.
— E você sempre frias.
— Prometo uma coisa, Valentín... que sempre que eu me lembrar de você
será com alegria, como você me ensinou.
— E me promete uma coisa... que você vai se fazer respeitar, que não vai
permitir que ninguém te trate mal, nem te explore. Porque ninguém tem o direito
de explorar ninguém. Perdoa que eu repita, porque eu já falei uma vez e você
não gostou.
—...
— Molina, promete que não vai se deixar humilhar por ninguém.
— Prometo.
— Já está guardando os livros, tão cedo?
—...
— Não espera que apaguem a luz?
—...
— Não sente frio de tirar a roupa?
—...
— Como você é bonito...
—...
— Ah...
— Molinita...
— O quê?
— Nada... não te machuco?
— Não... Aí, sim, assim sim.
— Dói?
— É melhor como da vez passada, deixa eu levantar as pernas. Assim, em
cima dos ombros.
—...
— Assim...
— Calado... calado um pouquinho.
— Sim...
—...
—...
— Valentín...
— O quê?
— Nada... nada...
—...
—...
— Valentín...
—...
— Valentín...
— O que é?
— Não, nada, uma besteira que queria te dizer.
— O quê?
— Não, é melhor não.
— Molina, o que é? queria pedir o que você me pediu hoje?
— O quê?
— O beijo.
— Não, era outra coisa.
— Você não quer que te beije agora?
— Sim, se você não tiver nojo.
— Não diga bobagem. Assim eu me aborreço.
—...
—...
— Obrigado.
— Obrigado a você.

....................................................
....................................................

— Valentín...
—...
— Valentín, já está dormindo?
— O quê?
— Valentín.
— Fala.
— Tem que me dar todos os dados... para seus companheiros.
— Como quiser.
— Tem que me dizer tudo o que tenho que fazer.
— Está bem.
— Até que eu aprenda tudo bem de cor...
— Está bem... Era isso o que você queria me dizer há pouco?
— Era...
— Mas uma coisa, e isto é muito, mas muito sério... Valentín, tem certeza de
que não serei interrogado ao sair?
— Tenho certeza.
— Então vou fazer tudo o que você disser.
— Você não sabe a alegria que me dá.
15
Relatório sobre Luis Alberto Molina, sentenciado 3018, posto em liberdade
condicional a 9 do corrente mês, a cargo do serviço de vigilância CISL, em
colaboração com o serviço de vigilância telefônica TISL.

Dia 9. Quarta-feira. O sentenciado foi posto em liberdade condicional às


8h30 e chegou a casa às 9h05 da manhã, de táxi, sozinho. Não saiu o dia todo de
sua residência, Rua Juramento, 5020, assomou à janela várias vezes, olhando em
várias direções, mas ficando vários minutos olhando fixo para a direção
noroeste. O apartamento está localizado num terceiro andar e não tem casas altas
em frente.
Telefonou às 10h16, perguntou por Lalo, e quando ele atendeu falaram
durante vários minutos, no feminino, chamando-se por vários nomes diferentes
que se intercambiavam ao longo da conversa, por exemplo Teresa, Ni, China,
Perla, Caracola, Pepita, Carla e Tina. O citado Lalo insistiu em primeiro lugar
para que o sentenciado contasse suas “conquistas” no presídio. O sentenciado
respondeu que era tudo mentira o que se contava sobre as relações sexuais nos
presídios e que não tivera nenhuma “diversão”.
Combinaram de se encontrar no fim de semana para ir ao cinema. Cada vez
que se chamavam por um nome novo, eles riam. Às 18h22 o sentenciado
telefonou para uma senhora a quem chamou de tia Lola. Falou muito tempo com
ela, evidentemente uma irmã da mãe, falaram principalmente da saúde da mãe
do sentenciado, e da impossibilidade de aquela senhora tomar conta dela, porque
ela própria também estava doente.

Dia 10. Quinta-feira. O sentenciado saiu à rua às 9h35 da manhã, dirigiu-se a


uma tinturaria localizada na esquina da Pampa com a Triunvirato, isto é, a dois
quarteirões de sua casa. Depositou uma trouxa grande de roupa. Depois foi ao
armazém a meio quarteirão dali, tomando pela Gamarra. De volta para casa
parou num quiosque para comprar cigarros, aquele que está localizado na Calle
Ávalos, quase chegando à Pampa. De lá voltou para casa.
Às 11h04 recebeu um telefonema de parentes aos quais chamou de tio Arturo
e de tia Maria Ester, e que lhe desejaram boa sorte. Em seguida ligou uma pessoa
de voz jovem, chamada Estela, supostamente prima, porque passou o fone à
mãe, a quem o sentenciado chamou às vezes de Chicha e outras vezes de tia
Chicha. Felicitaram-no por ter saído antes de cumprir a pena, devido ao bom
comportamento. Convidaram-no para almoçar no domingo seguinte, houve
estranhas trocas de frases, mas podem atribuir-se a que repetiam coisas que o
sentenciado falava quando era criança para pedir mais comida. O sentenciado,
diante do oferecimento não muito claro daquilo que queria comer, respondeu
“carne de leões”. Tudo parece ser um simples linguajar infantil, mas
recomendamos atenção. Às 17, apesar do frio, o sentenciado abriu a janela, e lá
permaneceu muito tempo observando — como no dia de ontem — em direção
ao noroeste. Às 18h46 telefonou o mesmo Lalo do dia anterior, convidou-o para
dar uma volta no carro de uma amiga, o sentenciado aceitou com a condição de
estar de volta a casa às 21 para jantar em companhia da mãe e de uma tia. Esta,
chamada Cuca, mora no apartamento e sai para compras de manhã na padaria e
na leiteria, e às vezes de tarde também, no supermercado localizado a seis
quarteirões dali na esquina da Avenida Triunvirato com a Roosevelt. Minutos
depois o sentenciado desceu, esperou na porta e chegaram num Fiat dois
elementos, não um homem e uma mulher como tinham anunciado. Um deles, de
uns quarenta anos, abraçou o processado assim que desceu do carro, beijou-o em
ambas as faces com visível emoção, ao passo que o outro não desceu,
permanecendo no volante, e deu a impressão de que não conhecia o sentenciado,
pela maneira como se cumprimentaram. Elemento de uns cinquenta anos. O
trajeto do carro foi direto à Avenida Cabildo, pela Pampa, tornaram a subir a
Cabildo até a Pacífico e continuaram pela Santa Fé, depois a Retiro, a Leandro
Alem, a Plaza de Mayo, a Avenida de Mayo, a Congreso, a Callao, a Corrientes,
a Reconquista, e várias ruas do bairro de San Telmo, parando o carro durante
alguns momentos diante de novos locais de café-concerto que estão proliferando
na zona nos últimos anos. Também diante de antiquários. O sentenciado voltou-
se em várias ocasiões, em atitude desconfiada, evidentemente percebendo que o
seguiam. O carro continuou sem parar, do bairro de San Telmo até o domicílio
do sentenciado.
Com referência à observação feita ontem por membros da TISL sobre a
necessidade de estudar atentamente o possível código escondido nos nomes
femininos usados pelo sentenciado com o mencionado Lalo, assinale-se que o
tom das conversas é de brincadeira e extremamente desordenado. De qualquer
maneira, prestar-se-á a devida atenção.

Dia 11. Sexta-feira. Às 11h45, chamada de elemento de voz apagada, o


sentenciado chamou-o de “padrinho”, pela tensão do tom pôde parecer em dado
momento chamado suspeito, a voz parecia disfarçada, mas o assunto foi o
comportamento futuro do sentenciado. O “padrinho”, que pareceu realmente sê-
lo, recomendou bom comportamento na rua e sobretudo no trabalho, lembrou ao
sentenciado que sua detenção se deveu a relações com um menor na loja onde
trabalhava como vitrinista. A conversa acabou muito friamente, quase que ambas
as partes saíram ofendidas. Poucos minutos depois chamou o mencionado Lalo,
como de costume chamaram-se por vários nomes femininos diferentes, desta vez
de atrizes, supõe-se, porque se apelidavam de Greta, Marlene, Marilyn, Merle,
Gina, Edi (?). Não dava a impressão de tratar-se de um código, mas brincadeira
corrente entre eles, repita-se. O tom foi animado, o amigo comunicou ao
sentenciado que uns conhecidos estavam para abrir uma butique com várias
vitrines e não chegaram a um acordo de dinheiro com outro vitrinista por
dificuldades no orçamento. Deu o telefone e endereço ao sentenciado para ligar
segunda-feira próxima, 42-5874 e Berutti, 1805, respectivamente. Às 15 o
processado saiu e caminhou até a Cabildo, mais de vinte quarteirões, e entrou no
cinema Belgrano, tinha muito pouca gente na sala, sentou sozinho, não falou
com ninguém, antes de sair foi urinar no banheiro, onde não foi seguido para
evitar suspeitas, dado o recinto pequeno, e saiu rapidamente. Voltou para casa
andando, por outra rua paralela e parando em várias esquinas, olhando com
atenção para as casas e lojas. Entrou em casa poucos minutos antes das 19.
Pouco depois telefonou para um lugar de onde responderam dizendo
“restaurante” e depois de um nome que foi impossível perceber por causa do
fundo de vozes e barulho de um balcão de bar ou restaurante. O sentenciado
pediu para falar com Gabriel. Em seguida ele veio ao aparelho, demonstrou
grande assombro e surpresa, mas a seguir foi muito afetuoso. Sua voz era viril e
possivelmente de bairro baixo da capital. Ficaram de comunicar-se à mesma
hora, caso o sentenciado não pudesse ir ao restaurante na hora de entrada do
chamado Gabriel, que supomos ser garçom do estabelecimento.
Anotamos ambiguidades em certas passagens da conversa, definitivamente
será fundamental estabelecer a identidade de Gabriel. Logo depois o sentenciado
apareceu à janela sem abri-la, devido ao frio, certamente, mas afastou a cortina, e
permaneceu vários minutos olhando fixo mas como de costume não para a rua e
sim mais para cima. Como das vezes anteriores, naquele dia também olhou para
o noroeste, isto é, em direção à confluência das ruas Juramento e Bauness, ou
seja — para dar orientação mais precisa —, em direção ao bairro de Villa
Devoto, onde está situado o presídio.

Dia 12. Sábado. Saiu com a mãe e a tia, tomaram um táxi, chegaram ao
cinema Gran Savoy da Avenida Cabildo às 15.25. Ficaram sentados e não
falaram com ninguém. Saíram às 17.40 e desta vez tomaram um lotação na
esquina da Monroe com a Cabildo. Desceram a um quarteirão de casa,
caminharam rindo. Pararam numa padaria e compraram doces. Às 19 o
processado telefonou para o restaurante, desta vez foi possível ouvir claramente
Restaurante Mallorquín, o suposto Gabriel veio ao telefone e o processado disse
não poder ir vê-lo porque tinha que fazer companhia à mãe. Gabriel disse que
segunda-feira estaria de plantão de dia, mas que amanhã, domingo, o restaurante
estaria fechado, como de costume. Pareceu um pouco desgostoso com o
adiamento. Como já consta em outro relatório, procedeu-se, através do serviço
CISL daquela zona, à averiguação da identidade de Gabriel. Amanhã chegará a
informação a esta repartição, segundo disposto.

Dia 13. Domingo. Já de posse do relatório. O gerente do Mallorquín,


restaurante espanhol funcionando há quase cinquenta anos, localizado na Calle
Salta, 56, afirmou que de fato Gabriel Armando Sole trabalha lá há cinco anos
como garçom e eles não têm a menor dúvida quanto à sua honestidade. Não se
lhe conhecem ideias políticas extremistas e não assiste às reuniões do sindicato
nem se sabe que seja amigo de atividades políticas. Uma só ligação em casa do
sentenciado, às 10.43. A mesma pessoa que ligou dias atrás, tia Chicha, insistiu
com suas palavras em meia língua, mas desta vez ficou estabelecido que o
esperavam às 13 em sua casa e que não chegasse tarde porque cozinhara uma
coisa à qual se referiu com um nome confuso, mas que depois ficou claro que era
canelloni. Às 12h30 saíram o sentenciado, mãe e tia, tomaram um táxi na
esquina das avenidas Triunvirato e Pampa. Desceram no número 1998 da Calle
Dean Funes, uma casa de um andar só, no bairro de Patrícios. Recebeu-os uma
senhora gorda, grisalha, com demonstrações de grande carinho ali mesmo no
vestíbulo. Saíram às 18h55, uma moça de idade indefinida os conduziu em seu
Fiat de volta a casa. É preciso anotar que o motorista do táxi olhou várias vezes
para trás durante o longo percurso, percebendo que estava sendo seguido, e
também o sentenciado voltou-se várias vezes, mas não assim as duas senhoras.
No caminho de volta a motorista do Fiat não se apercebeu de nada, ao que
parece.

Dia 14. Segunda-feira. Às 10h05 o sentenciado telefonou para o número já


assinalado da butique, devidamente censurado desde sexta-feira, 11, e
correspondente à loja da Calle Berutti, que não fora revistada, à espera de
acontecimentos. Quem atendeu ao telefone disse que de fato precisavam de seus
serviços e pediu-lhe para passar lá na próxima segunda-feira, 21, para combinar
salário, queixou-se que o mestre de obras se excedera no orçamento das
remodelações que acabariam dali a uma semana e portanto não podia pagar o
vitrinista como correspondia. A seguir, o sentenciado telefonou para o garçom
Sole, do restaurante. Disse-lhe que não podia ir até o centro pois tinha de ficar
com a mãe. Sole mostrou-se displicente, não marcaram novo encontro, o
sentenciado prometeu telefonar no meio da semana. Sole já está quase
descartado como contato mas recomendamos continuar censurando o telefone do
Mallorquín. Às 15 o sentenciado assomou à janela e permaneceu certo tempo
com o olhar fixo no noroeste como de costume. Às 16h18 saiu e foi até o
quiosque, comprou duas revistas, por causa das letras grandes pudemos enxergar
que uma delas era a revista de modas Claudia. Nesse quiosque, aliás, não se
vendem revistas políticas.

Dia 20. Domingo. Telefonema de Lalo às 11h48, propôs sair de carro com
Mecha Ortiz como no domingo anterior. Supõe-se que é o apelido de quem
dirigia o Fiat no passeio anterior. Chamaram-se por nomes diferentes, mas não
acreditamos que constituam qualquer tipo de código. Esses nomes foram Delia,
Mirta, Silvia, Nini, Líber, Paulina, etc., referentes quase com certeza a atrizes do
cinema argentino de anos atrás, assim como a mencionada Mecha Ortiz. O
sentenciado recusou o convite por ter compromisso com a mãe. Às 15h15
assomou à janela, aberta desta vez, supomos porque havia sol e quase não fazia
frio, e ficou um longo tempo olhando na direção de costume. Às 17h04 saiu com
a mãe, tomaram um lotação na esquina da Pampa com a Avenida Triunvirato,
desceram na Avenida de Mayo com a Lima, caminharam dois quarteirões até o
Teatro Avenida, compraram entradas para o espetáculo de zarzuela, atravessaram
para olhar vitrines enquanto chegava a hora do espetáculo, 18h15. No intervalo,
o sentenciado foi ao banheiro mas não falou com ninguém. Depois de ficar na
plateia sem falar com ninguém, saíram às 20h40. Na confeitaria da Avenida de
Mayo esquina com a Santiago del Etero tomaram chocolate com churros, não
falaram com ninguém. Tomaram o mesmo lotação de volta, na esquina da
Avenida de Mayo com a Bernardo Irigoyen.

Dia 21. Segunda-feira. O sentenciado saiu às 8h37, tomou um lotação até a


Avenida Cabildo, dali um outro até Santa Fé e Callao, dali caminhou os cinco
quarteirões até a loja da Calle Berutti, 1805. Conversou com dois senhores,
olharam os espaços destinados a vitrines, serviram-lhe café. Saiu e repetiu a
mesma viagem em dois lotações até sua casa. Às 11h30 telefonou para seu
amigo Lalo, no Banco da Galiza, onde este trabalha, falaram com seriedade, com
certeza, porque o indivíduo estava no trabalho. O sentenciado comunicou
somente que combinara começar a trabalhar no dia seguinte, apesar de não terem
resolvido o salário. A outra chamada do dia foi da tia Lola, falou com a mãe do
sentenciado, ficaram contentes com a notícia do emprego.
Dia 22. Terça-feira. O sentenciado saiu de casa às 8h05 e chegou à butique
quase às 9, correndo nos dois últimos quarteirões. Às 12h30 saiu para almoçar,
numa leiteria da Juncai entre a Ayacucho e a Rio Bamba. Lá tem um telefone
público, dali deu um telefonema. É preciso assinalar que discou para o número
três vezes e desligava imediatamente, depois falou durante uns três minutos. Isso
parece estranho, considerando que há telefone na loja onde o sentenciado
trabalha, e lá na leiteria teve que fazer fila para conseguir um telefone livre.
Controlaram-se imediatamente os telefones da casa do sentenciado, do
Restaurante Mallorquín e do banco onde trabalha seu amigo, e apurou-se que
não falava com nenhum deles. O sentenciado saiu do emprego às 19 e chegou a
casa minutos depois das 20.

Dia 23. Quarta-feira. O sentenciado saiu de casa às 7h45 e chegou ao


emprego às 8h51. Telefonou de lá ao amigo Lalo, para a casa dele, às 10,
agradeceu-lhe a recomendação e depois passou o fone a um dos donos, que falou
com Lalo, a quem chamou sempre de Soraya, e em dado momento da conversa
pôde-se saber o motivo do apelido, já que o indivíduo lhe disse “te chamas assim
para sempre, porque és uma mulher que não pode ter filhos”, palavras textuais.
O outro, Lalo, por sua vez, chamou-o de Rainha Fabíola, pela mesma razão.
Cabe assinalar que a maneira como constantemente mudam os nomes faz pensar
que tudo não é premeditado, mas uma brincadeira que não oculta código. Às
12h30 o sentenciado saiu, tomou um táxi e chegou à casa matriz do Banco
Mercantil, dirigiu-se ao guichê de poupanças, retirou uma quantia e de lá tomou
um táxi para a Calle Suipacha e entrou num cartório, onde foi impossível segui-
lo por motivos óbvios. Saiu 18 minutos depois e tomou um táxi até a loja da
Calle Berutti. Lá desembrulhou um sanduíche que trouxera de casa de manhã, e
comeu em pé enquanto tomava medidas de fazendas com um dos dois donos.
Saiu às 19h20 e chegou a casa através dos meios de transporte habituais às
20h15. Às 21h04 tornou a sair, tomou um lotação até a esquina da Federico
Lacroze com a Alvarez Thomas, lá pegou outro até a Avenida Córdoba com a
Medrano. Dali andou até a Soler com a Medrano. Parou perto da esquina, na
Medrano, lá esperou cerca de uma hora. Cabe assinalar que aquela esquina,
sendo confluência poucos metros depois de outra rua, a Costa Rica, permite uma
vigilância total de quem comparece a um encontro, de quatro ângulos diferentes,
e por conseguinte se deduz que foi escolhida por algum perito em driblar a
vigilância policial.
O sentenciado esperou sem falar com ninguém, passaram vários carros mas
nenhum deles parou. O sentenciado voltou para casa, segundo parece sem se
aperceber da vigilância.
A suposição do Conselho foi que marcou encontro com alguém que percebeu
a vigilância.

Dia 24. Quinta-feira. Segundo relatório à parte, o sentenciado retirou todas


as economias do banco, deixando a quantia mínima exigida para não fechar a
conta. Possuía aquele dinheiro antes de ser preso. No cartório José Luís Neri
Castro deixou um envelope lacrado em nome da mãe, com o dinheiro retirado,
segundo declaração do titular do cartório mencionado. As atividades do
processado foram mínimas. Saiu de manhã para o emprego, comeu lá mesmo um
sanduíche com café, que bebem várias vezes por dia feito lá mesmo na loja.
Voltou diretamente para casa, às 20h10. Anotamos também, segundo ordem
superior, que se resolveu não fazer divulgar através da imprensa a confissão
imaginária de Arregui ao sentenciado Molina e a intervenção deste como agente
de inteligência. A resolução foi tomada porque se considera possível e inclusive
iminente o contato do sentenciado com os companheiros de Arregui.
Dia 25. Sexta-feira. O sentenciado chegou ao emprego de manhã cedo, saiu
às 12h30 e foi almoçar sozinho a poucos quarteirões de lá, na pizzaria de Las
Heras, 2476. Antes falou no telefone público repetindo as três chamadas e
desligando, como da vez anterior. Falou poucos minutos. Comeu sozinho, ou,
antes, mal provou a comida, que deixou quase totalmente no prato. Voltou para o
trabalho. Saiu às 18h40, tomou um ônibus na Callao até a Congreso, onde tomou
o metrô até a estação José Maria Moreno. Caminhou até a Riglos com a
Formosa. Lá esperou trinta minutos, o espaço de tempo determinado pela
Direção para detê-lo caso não viesse antes ninguém a seu encontro, e passar a
interrogá-lo. Os dois agentes da CISL, já em contato com a patrulha, procederam
à detenção. O sentenciado exigiu que se identificassem.
Naquele momento atiraram de um carro em movimento, caindo feridos o
agente Joaquín Perrone, do CISL, e o sentenciado. A chegada da patrulha,
poucos minutos depois, não conseguiu alcançar o veículo dos extremistas. Dos
dois feridos, Molina expirou antes que a patrulha pudesse aplicar-lhe os
primeiros socorros. O agente Perrone foi ferido em uma coxa e teve séria
contusão devido à queda. A impressão de Vásquez e dos integrantes da patrulha,
sobre o modo como se desenrolaram os acontecimentos, foi que os extremistas
preferiram eliminar Molina para que não pudesse confessar. Além do mais, a
atividade anterior do sentenciado referente à sua conta bancária indica que ele
próprio temia que alguma coisa pudesse acontecer. Ainda mais, tinha
conhecimento de que o estavam vigiando. Seu plano, caso fosse surpreendido
numa atitude comprometedora pelas forças do CISL, pode ter sido um dos dois
seguintes: ou pensava fugir com os extremistas, ou estava disposto a que eles o
eliminassem.

O presente relatório foi redigido em original e três cópias, para serem


distribuídas às repartições competentes.
16
— Qual é o ferimento que dói mais?
— Ah... ah... ah...
— Não fale, Arregui... se dói tanto.
— Po... por a... aqui.
— Está com queimaduras de terceiro grau, que animais. .
— Ah... ai, não... por favor...
— E quantos dias deixaram você sem comer?
— T... tr... três...
— Que monstros...
— Ouça... não vá falar nada, me prometa.
—...
— Mexa a cabeça para indicar se aceita ou não. Porque o que fizeram com
você é uma brutalidade, e vai sofrer muito durante alguns dias... Escute, vou
aproveitar que não tem ninguém no pronto-socorro e lhe dou morfina, assim
você descansa. Se estiver de acordo mexa a cabeça. Mas nunca pode contar a
ninguém, porque me botam na rua.
—...
— ...Bem, num minuto vai passar.
—...
— Assim, uma picada de nada, e vai ser um alívio.
—...
— Conte até quarenta.
— um, dois, três, quatro, cinco, seis, sete, oito, nove, dez, onze, doze, treze,
quatorze, quinze
— As pancadas que lhe deram são inacreditáveis. E a queimadura na
virilha... Vai demorar semanas para cicatrizar. Mas não conte nada senão estou
liquidado. Amanhã já vai doer menos.

— ...vinte e nove, trinta, trinta e um, trinta e dois, trinta e... três, trinta e...
qual é o número que se segue? já não se ouve nenhum passo, será possível que
não estejam mais me seguindo? está tão escuro que se não fosse o senhor que
conhece o caminho e vai na frente, eu não avançaria, por medo de cair em
algum buraco, e como é possível que eu tenha percorrido todo este trecho se
estou esgotado, sem comer? e se adormeço de vez em quando, como é possível
eu andar e não cair? “não tenha medo, Valentín, o enfermeiro é boa pessoa e
vai tomar conta de você”, Marta... onde você está? quando chegou? não posso
abrir os olhos porque estou dormindo, mas por favor se aproxime de mim,
Marta... Não para de falar comigo, não pode me tocar? “não tenha medo, estou
te ouvindo, mas tudo com uma condição, Valentín”, qual? “que você não me
esconda nada do que pensa, porque neste momento, embora queira escutar, já
não vou poder”, ninguém está nos ouvindo? “ninguém”, Marta, passei muito
mal... “quero saber como é que você está agora”, e não haverá alguém
escutando, alguém esperando que eu delate meus companheiros? “não”, Marta
querida, te ouço falar dentro de mim, “porque estou dentro de ti”, não é
verdade?, e vai ser sempre assim? “não, isso acontecerá enquanto eu não tenha
segredos para você, como você não vai ter para mim”, então te conto tudo,
porque esse enfermeiro tão bom está me levando por um túnel longuíssimo até
uma saída, “está muito escuro?”, sim, ele disse que no final se vê uma luz, muito
distante, mas não sei se é verdade porque estou dormindo e por mais que faça
força não posso abrir os olhos, “em que é que você pensa neste momento?”,
estou com as pálpebras tão pesadas que é impossível abri-las, estou com tanto
sono, “ouço água correndo, e você?”, a água que corre entre pedras é sempre
limpa e se pudesse chegar com a mão até onde corre a água, molharia a ponta
dos dedos e depois as pestanas para desgrudá-las, mas tenho medo, Marta,
“você tem medo de acordar e estar na cela”, então não é verdade que alguém
vai me ajudar a fugir? não me lembro, mas este calorzinho que estou
começando a sentir nas mãos e no rosto é como aquele que o sol dá, “é possível
que o dia esteja chegando”, não sei se a água está limpa, tenho coragem de
beber um gole? “seguindo a direção da água certamente se poderá chegar até
onde desemboca”, é verdade, mas acho que estou vendo um deserto, não há
árvores, nem casas, só dunas que continuam e continuam até onde o olhar
alcança, “em vez de deserto, não será mar?”, sim, é mar, e há um trecho de
praia muito quente, tenho de correr para não queimar a sola dos pés, “que mais
você está vendo?”, nem de um lado da costa nem do outro se enxerga o veleiro
pintado de cartão, “e o que é que se ouve?”, nada, não se ouvem maracas, o
barulho das ondas e mais nada, às vezes são ondas maiores que quebram com
força e chegam até perto de onde começam as palmeiras, Marta... acho que caiu
uma flor na areia, “uma orquídea selvagem?”, se as ondas chegarem vão
carregá-la mar adentro, e como é possível que o vento a carregue logo no
momento em que eu ia pegá-la? e a carrega mar adentro, e não tem importância
que desapareça debaixo da água porque sei mergulhar e mergulho, mas no
mesmo lugar onde eu tenho certeza que a flor caiu... o que se avista agora é
uma mulher, uma nativa, poderia alcançá-la, se ela não escapasse nadando tão
depressa, não a alcanço, Marta, e é impossível gritar debaixo d'água e dizer-lhe
que não tenha medo, “debaixo d'água ouve-se aquilo que se pensa”, ela olha
pra mim sem medo, amarrou no peito uma camisa de homem, mas já estou tão
cansado, não tenho mais oxigênio nos pulmões depois de nadar debaixo d'água,
mas, Marta, a nativa me segura pela mão e me leva até a superfície, põe um
dedo nos lábios como sinal para eu não falar, os nós molhados amarrados com
tanta força que não pode desmanchá-los se não for com minha ajuda e enquanto
desamarro os nós ela olha para outro lado... eu não lembrava que estava nu e
estou encostando nela, a nativa rubra de vergonha se abraça a mim, minha mão
está quente e a toca e a enxuga, toco-lhe o rosto, o cabelo comprido até a
cintura, as nádegas, o umbigo, os seios, os ombros, as costas, o ventre, as
pernas, os pés, outra vez o ventre, “posso pedir para você pensar que ela sou
eu?”, sim, “mas não fala nada com ela, não lhe faça a menor censura, deixa ela
acreditar que sou eu, embora ela falhe em alguma coisa”, com um dedo nos
lábios a nativa me faz sinal para eu não falar nada, mas a você, Marta, eu conto
tudo, que sinto a mesma coisa que sentia com você, porque está comigo, e que
logo já me sai um jato branco e quente de dentro, vou inundá-la, ai, Marta, que
felicidade, te conto tudo assim você não vai embora, para que estejas comigo a
todo momento, sobretudo agora, neste instante, que não te ocorra ir embora
neste instante preciso! o mais belo de todos, já sim, não mexa, calada é melhor,
já, já, e depois, pouco depois, te conto também que a nativa fecha os olhos
porque está com sono, quer descansar, e se eu fechar os olhos quem sabe
quando os tornarei a abrir, as pálpebras me pesam tanto, se vier a noite não vou
perceber porque estou com os olhos fechados, “e não está com frio? é noite e
você está dormindo descoberto, o ar do mar está mais fresco, não sentiu frio a
noite toda? tem que contar para mim”, não, não senti frio, minhas costas tocam
este lençol tão liso e morno em cima do qual dormi todas as noites desde que
cheguei à ilha, e não sei como explicar, meu amor, mas acho o lençol... que é na
realidade uma pele muito suave e morna, de mulher, e não se enxerga mais nada
neste lugar que essa pele que chega até onde meu olhar alcança, não se enxerga
mais que a pele da mulher deitada, sou como um grãozinho de milho na palma
de sua mão, ela está deitada no mar e levanta a mão e daqui de cima posso ver
que esta ilha é uma mulher, “a nativa”, não consigo enxergar o rosto, está lá
longe, “e o mar?”, como sempre, vou nadando debaixo d'água e não se enxerga
o fundo de tão profundo que é mas debaixo d'água minha mãe ouve tudo o que
penso e estamos falando, quer que te conte o que ela me pergunta?, “sim”,
bem... pergunta se é verdade tudo aquilo que os jornais publicaram, que morreu
meu companheiro de cela, num tiroteio, e se foi culpa minha, e se não me dá
vergonha ter-lhe trazido tanto azar, “o que foi que você respondeu?”, que foi
culpa minha, e que estou muito triste, mas que não é preciso ficar triste porque
só quem sabe é ele, se estava triste ou contente de morrer assim, sacrificando-se
por uma causa justa, só ele terá sabido isso, e tomara, Marta, realmente desejo
com toda minha força, tomara que tenha morrido contente, “por uma causa
justa? hum... acho que se deixou matar porque assim morria como a heroína de
um filme, e nada disso de causa justa”, só ele saberá, e até é possível que nem
ele mesmo saiba, mas eu não consigo dormir na cela porque ele me habituou a
contar filmes toda noite, como para me ninar, e se algum dia eu for solto não
vou poder telefonar-lhe e convidá-lo para um jantar, ele me convidou tantas
vezes, “e neste momento, o que é que você gostaria mais de comer?”, vou
nadando com a cabeça fora d'água, assim não perco de vista a costa da ilha, e
ao chegar à areia estou muito cansado, não queima mais porque o sol já não
está tão forte e antes da noite chegar tenho que procurar alguma fruta na
floresta, não sabe como é bonita esta mistura de palmeiras, de cipós, de noite
fica tudo prateado, porque o filme é em preto e branco, “e a música de fundo?”,
maracas muito suaves, e tambores, “não será um sinal de perigo?”, não, é
música que anuncia, ao iluminar-se um foco muito forte, o aparecimento de uma
mulher muito estranha, de vestido longo brilhante, “de lamé prateado, justo na
cintura como uma luva?”, sim, “e o rosto?”, tem uma máscara, também ?
prateada mas... coitadinha... não pode se mexer, lá na floresta mais densa ela
está presa numa teia de aranha, ou não, a teia de aranha cresce do seu próprio
corpo, os fios saem da cintura e das cadeiras, é parte do corpo dela, uns fios
cabeludos como cordas que me dão muito nojo, embora talvez acariciando-os
sejam suaves como quem sabe o quê, mas me impressiona tocá-los, “não fala?”,
não, está chorando, ou não, está sorrindo mas uma lágrima resvala pela
máscara, “uma lágrima que brilha como um diamante?”, sim, e eu lhe pergunto
por que está chorando e num primeiro plano que ocupa a tela toda no final do
filme ela responde que é isso o que não se sabe, porque é um final enigmático, e
eu respondo que assim está bem, que é a melhor parte do filme porque significa
que... e aí não me deixou continuar, disse que eu queria achar uma explicação
para tudo, e que na realidade eu falava de fome, embora não tivesse coragem de
admitir, e me olhava, mas cada vez mais triste, e caíam mais lágrimas, “mais
diamantes”, e eu não sabia o que fazer para tirar-lhe a tristeza, “eu sei o que
você fez e não tenho ciúme, porque nunca mais na vida você vai vê-la”, é que
ela estava muito triste, não percebe? “mas você gostou e isso eu não devia
perdoar”, mas nunca mais na vida vou vê-la, “e é verdade que está com muita
fome?”, sim, é verdade, e a mulher-aranha me indicou com o dedo um caminho
na floresta, e agora não sei por onde começar a comer tantas coisas que
encontrei, “são muito saborosas?”, sim, uma perna de frango assado, bolachas
com pedaços grandes de queijo fresco e rodelas enroladas de presunto cozido, e
um pedaço tão bom de fruta cristalizada, de abóbora, e com uma colher
finalmente como todo o doce de leite que quiser, sem medo que acabe porque
tem muito, e estou ficando com tanto sono, Marta, não pode imaginar como
tenho vontade de dormir depois de comer tudo o que encontrei graças à mulher-
aranha, e depois de comer mais uma colherada de doce de leite e depois de
dormir... “já quer acordar?”, não, bem bem mais tarde, porque de tanto comer
estas coisas boas fiquei com um sono muito pesado, e vou continuar falando
com você no sonho, será possível? “sim, este é um sonho e estamos falando,
então depois também, não tenha medo, acho que já ninguém nos poderá separar,
porque já percebemos a coisa mais difícil”, o que é a coisa mais difícil de
perceber? “que moro dentro de teu pensamento e assim vou te fazer companhia
sempre, nunca vai ficar sozinho”, claro que sim, isso é o que eu não devo
esquecer nunca, se nós dois pensamos do mesmo modo vamos ficar juntos,
embora não te possa ver, “isso mesmo”, então quando eu acordar na ilha você
vai comigo, “não quer ficar para sempre num lugar tão lindo?”, não, assim esta
bem, chega de descanso, uma vez que eu coma tudo e depois de dormir vou ficar
forte de novo, que meus companheiros estão me esperando para começar a luta
de sempre, “isso é a única coisa que eu não quero saber, o nome de teus
companheiros”, Marta, ai, como eu gosto de você! isso era a única coisa que eu
não te podia dizer, tinha medo que me perguntasse e dessa maneira, sim, ia te
perder para sempre, “não, meu Valentín querido, isso não acontecerá, porque
este sonho é curto mas é feliz”
O autor e sua obra
No primeiro livro, onde as personagens buscavam no cinema as fantasiosas
soluções para a vida provinciana que levavam numa pequena cidade de interior,
o título era bastante sintomático: “A traição de Rita Hayworth”. Vieram depois
“Boquinhas pintadas” e “The Buenos Aires Affair”, autênticos roteiros
romanceados, repletos de flash-backs e imagens vivas, que juntamente com “O
beijo da mulher-aranha” deixam transparecer a realidade da obra do argentino
Juan Manuel Puig: a obsessão pelo cinema refletida na forma de sua linguagem.
Garoto ainda, Puig descobriu, maravilhado, o mundo do cinema. Sua
minúscula cidade natal, General Villegas, um povoado escondido nos pampas
argentinos, nada mais tinha do que vento e terra. Restavam os filmes, a que
assistia diariamente, levado pela mãe. Desenhava-os depois de vê-los, estudava-
os plano por plano, e a paixão era tamanha que, aos nove anos, começou a
aprender inglês, a língua das telas.
Aos treze anos, mudou-se para a capital. Queria estudar cinema, ser um
grande diretor, mas Buenos Aires nada tinha de Hollywood ou das suntuosas
produções da Metro da década de 30, e a solução foi atender aos pais,
matriculando-se na faculdade de filosofia. Dez anos depois, largou tudo e, com
uma bolsa do Centro Sperimentale de Cinema, foi para Roma, onde conheceu
Vittorio De Sica, com quem trabalhou tempos depois. Rodou por Paris, Londres,
foi assistente-estagiário de René Clement e Stanley Donen, escreveu alguns
roteiros, lavou pratos em Estocolmo e voltou à Argentina, para decepcionar-se
definitivamente com o cinema, depois de ter participado de três filmes como
assistente de direção.
Beirava os trinta anos de idade. A ilusão com o cinema, construída na
infância, tinha desabado. Não pensava em literatura, sequer lia com regularidade,
quando foi para Nova York, para escapar às dúvidas e crises, mas com um
emprego estável, e começou a escrever “A traição de Rita Hayworth”, quase uma
autobiografia, história passada na pequena e fictícia cidade de Coronel Vallejos.
Essa obra foi publicada na Argentina em 1967. Dois anos depois, surgiu
“Boquinhas pintadas”, uma crítica contundente à classe média argentina, tendo
como centro o drama de um jovem tuberculoso e suas relações com a sociedade
que o via morrer. Milhares de exemplares vendidos e inúmeras traduções em
diversos idiomas confirmaram o sucesso.
Acabaram-se as dúvidas. Morria o cineasta e nascia o escritor, ainda
apaixonado pelo cinema, mas escudado na inventividade e força de sua
narrativa, o que foi comprovado em seu terceiro livro proibido na própria
Argentina, “The Buenos Aires Affair” (já publicado pelo Círculo), em “Púbis
angelical” (premiado como o livro do ano pelo Instituto Ítalo-Latino-Americano
de Cultura) e no recente “Maldição eterna para quem ler estas páginas”.
“O beijo da mulher-aranha”, pungente e sensível mergulho no
relacionamento de um preso político com seu companheiro de cela homossexual,
é a quarta publicação de Manuel Puig e também seu momento de completa
maturidade literária.
No Brasil, além de ter entrado em voga, Manuel Puig acha que encontrou
respeito. A adaptação teatral de “O beijo da mulher-aranha”, em agosto de 1981,
chegou ao palco do Teatro Ipanema, no Rio (com Rubens Corrêa e José de
Abreu, direção de Ivan Albuquerque) no momento em que o livro, em oitava
edição, completava quase cinquenta semanas na lista dos mais vendidos no país.
Talvez por isso, Puig tenha resolvido fixar-se no Brasil. Aos quarenta e oito
anos, morador do Leblon, Rio, conclui o sétimo livro, sobre o pedreiro que
reformou seu apartamento. E não se cansa de repetir, em seu aparelho de
videocassete, relíquias cinematográficas como “King Kong”, “Belinda” e os
filmes estrelados por Hedy Lamarr. O cinema moderno não tem vez nas
preferências de Manuel Puig. “Os filmes novos — diz o escritor — são
intelectuais demais.”

Digitalização: Dores Cunha.
Correção: Edith Suli.
31/8/2012

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