Você está na página 1de 13

QUANDO EU MORRER, VOU CONTAR TUDO A DEUS

de Maria Shu

“Os baobás, antes de crescerem, são pequenos”- Antoine de Saint-Exupéry

De dentro de uma mala tipo trolley, uma criança de seis anos sai.

ABOU: Je m'appelle Abou.

Escuridão.

***

Abou, uma mala e um rádio pequeno.

ABOU: Eu queria um cachorro.

Desde o começo, eu queria um cachorro. Um cachorro qualquer, de rua, para eu ensinar


a ele uns truques bobos de pegar graveto, dar a pata, um cachorro para ser meu melhor
amigo. Mas bàbá disse que não tínhamos comida para dar a um cachorro.

Então, eu ganhei uma mala.

Uma mala velha não é exatamente o presente que um moleque de seis anos espera
ganhar. Uma mala não dá a patinha, uma mala não cava buracos, uma mala não faz
nada, então você tem que inventar mil maneiras de brincar com ela.

Sim, brincar com uma mala. Ela se chama Ilê.

Se tem uma coisa que sei fazer bem é perseguir imaginações. Foi com minha iyá que
aprendi. Eu pedi a ela um bambolê, mas não tínhamos dinheiro para comprar um
bambolê. Fase um do jogo de imaginar: “Olha, Abou! Aquela ali não se parece com um
atabaque? Uma mãe de turbante carregando o filhinho nas costas, um ovo de avestruz
quebrado...”

Para mim, a nuvens mais legais se parecem com cachorros.

Na comida, também posso ver uma savana inteira: a fuça de uma gazela num inhame, o
chifre de um rinoceronte no dente de alho, a tromba do elefante escondida num quiabo
fresco. É bom quando tem comida para brincar. (Pausa) Quando você domina o
imaginar, você pode ser livre, você acalma o seu coração. O tempo corre tranquilo e
você respira sem se apavorar.

Quando eu ganhei a Ilê, para começo de conversa, eu fiquei bem borocoxô. Tive que me
acostumar com suas patas de plástico, com seu pelo de lona, com sua barriga abre-
fecha, com seu rabinho cotoco. Então, eu fechei os olhos e imaginei a cachorra mais
incrível do mundo e a Ilê se transformou na cachorra mais incrível do mundo! Ensinei a

1
ela todos os truques que eu pretendia ensinar a um cachorro de verdade. Mas ela é de
verdade, sim. É uma cadela grande e esperta. Ela é o meu xodó.

Eu acho que nunca ninguém viu um moleque com uma mala de estimação. Sou inédito,
inédito, inédito! Nem todo mundo tem um amigo e um garoto que tem uma mala como
melhor amigo, mexe com a cabeça das pessoas grandes. Eles sentem pena, raiva, nojo
de mim. As pessoas grandes não compreendem nada sozinhas e é cansativo para mim
estar toda hora explicando.

Abou puxa a mala pela corrente, como ela se fosse uma cadela.

Eu levo você para brincar na porta de casa. O dia está bonito e tem umas nuvens gordas
no céu. No final da rua, mais um grupo de viajantes passa com trouxas de roupa na
cabeça em direção ao centro. Você late para a ave que acabou de pousar e os meninos
riem, porque eu tenho umas falas doces para você. Não se incomode com os bobalhões.
Eles não sabem o quanto a gente se diverte espantando a nuvem de pios dando rasante a
procura de alimentos. Eu mando “em duas patas”, você fica. Eu digo “rola”, você rebola
na terra batida. Eu grito “atriz”, você se finge de morta. Garota grande e esperta!

Abou acaricia a barriga da “cadela”.

As crianças não têm brinquedos. As crianças não têm comida. As crianças não podem
ter cachorros. Mas eu tenho uma mala de estimação. Quer entrar, Ilê? Eu também estou
com sede.

O rádio ameaça falar. Abou fica constrangido, cala-o.

Fica quieto! (Pausa) Desculpe não ter falado do rádio ainda. Um dia... como foi?
Brincando na rua, nuvens cor de chumbo, bolsos cheios de gomos de tangerina. As
pessoas vendem coisas, trocam coisas, abandonam o que não presta. Chutei terra, chutei
caroços, chutei o rádio. Quebrado, sem pilhas, uma tarde, ele falou. Depois, cantou. O
rádio é uma ave com asas de mola.

RÁDIO: Uma nova vaga de imigrantes subsaarianos tentou cruzar a barreira que separa
os enclaves. Cerca de 200 pessoas em busca de uma vida na Europa conseguiram pular
o alambrado de seis metros e foram para o centro de acolhimento onde estão já 1800
pessoas para apenas 480 lugares.

ABOU: Por semanas, Ilê e eu fomos nuvem e céu, até que bàbá me falou da fase dois
do jogo de imaginar. Fase dois? - perguntei. A fase dois envolve mãe e filhote, um jogo
de esconder, ele disse. E como é que se joga? A Ilê é a iyá e você, o filhote. Mas não um
filhote qualquer que está por aí mamando e correndo pela savana. Você é um filhote que
ainda não nasceu. Uma sementinha de cachorro, entende? Bàbá falou que uma semente
não sai da terra antes de estar pronta. Então, eu não poderia sair de dentro da cachorra,
enquanto eu não fosse um baobá. Como a raiz sabe quando deve subir à luz, bàbá? Eu
aviso quando vir o caule grosso. A regra é ficar encolhido, igual um nenê na barriga da
mãe, mas antes de topar a brincadeira, eu quis saber, sem lero-lero de cegonha ou

2
abóbora: como é que os cachorrinhos entram na barriga das cadelas? Dessa vez, foi
minha iyá quem me explicou com sua voz de pássaro: as sementinhas de cachorro
entram pela boca da cadela quando ela bebe da mesma água que um cachorro acabou de
beber.

Mamãe Oxum, eu prometo que nunca, nunca, nunca vou beber da água da tigela de um
cachorro, nem se eu tiver morrendo, sequinho de sede!

Sabia que já existiu um menino grávido? Foi lá nos cafundós das terras do povo xhosa.
O moleque foi, debaixo de um céu laranja, a uma aldeia buscar raízes de plantas
sagradas com o velho e sábio Sangoma, pois sua iyá queria ter outro filho e não
conseguia engravidar. Acontece que o menino, ao invés de levar as raízes suculentas
inteiras para a sua iyá, comeu uns pedações e não contou para ninguém. Meses depois,
a barriga dele começou a inchar, inchar e a iyá, nada de ficar pançuda! Um dia, o
menino ajudava o seu pai a cuidar do gado, quando sentiu uma dor muito insuportável.
Correu para o meio do mato, cavou um buraco, encheu ele de folhas e se deitou. Logo, a
floresta ouviu o choro novo do nenê, que fez os pássaros baterem as asas numa agitação
forte. Ele se arrependeu de ter comido as raízes e contou a verdade para o bàbá e a iyá
dele. Eu não sei se o bàbá dele deu uns cascudos ou não, mas a iyá ficou contente e
cuidou do nenê como se tivesse saído da barriga dela.

Esta história é sagrada, como todas as histórias da África são.

Mas por que eu falei disso mesmo? Ah, sim! Eu vou brincar de ser o filhote na barriga
da Ilê. (Pausa) Ilê abre a sua barrigona e eu entro. Iyá coloca umas mantas dentro para
imitar as tripas, o coração, porque cachorro não é só osso por dentro, não! Cachorro tem
umas partes bem macias, que servem pra gente recostar a cabeça, quando se está
cansado. Meu coração fica menor quando o zíper fecha e o rosto de bàbá e iyá some: um
silêncio negro, sem o zunido dos marimbondos, sem a brisa quente. Esperneio
apavorado e saio. Iyá me abraça chorando e me pede perdão, mas, iyá, tranquila! Sou eu
que ainda não aprendi a ser semente! Se eu ficar bastante tempo no útero da Ilê, iyá
disse que vou ganhar uma fatia de pudim malva como recompensa, que nem fazem
quando ensinam truques aos cachorros de verdade, mas eu não dei nenhum biscoito
canino pra Ilê, porque não temos nem resto de comida para dar a um cachorro.

Então, eu já estou tão, mas tão acostumado a ser filhote-semente, que uma tarde, aquela
falta do que fazer, aquelas carnes de pano, aquela quentura boa... Durmo gostoso, como
um nenê no cesto. É um momento muito calmo na minha vida. Acho que nunca tive um
momento tão calmo. E tem o gostoso o barulho da chuva, um cafuné de pano...

ABOU? ABOU? ABOU?

Bàbá e iyá se afligem com meu sumiço. Eles me procuram na bagunça da casa, eles me
procuram nos ocos das árvores, eles me procuram nas vendinhas, eles me procuram nas
ruas enlameadas. Abou sumiu! Abou fugiu! Abou foi envenenado com raiz venenosa!
Pobre, Abou! Nosso querido filhotinho, descanse em paz nos braços da Mama África!

3
Meu bàbá, a casa, as flores do baobá, o barro consola minha iyá. De repente, no meio do
luto, iyá tem a ideia de me procurar dentro da mala. Acordo com suas vestes molhadas
de chuva. Toda saída é uma cilada. SARAVÁ, todos gritam! Oh, Abou, menino Abou,
nós te amamos! Eles ficam aliviados, riem, se abraçam, dançam aos deuses. (Pausa)
Não estava brincando com nossa cara, Abou, estava? (Pausa longa) Por que fez isso
com a gente, seu moleque levado?! Talvez não tenha sido de propósito, ou quem sabe.
Se esta criança fosse minha, eu. Debaixo desta chuva, nós procurando e ele o tempo
todo. (Pausa)Daí, bàbá me atira um cocorote ao crânio para eu nunca mais sumir de
novo.

RÁDIO: Com o reforço da segurança nas fronteiras, imigrantes ilegais são cada vez
mais obrigados a optar por rotas perigosas para chegar aos seus destinos, aumentando o
número de vítimas fatais nessas jornadas.

ABOU: De tanto ouvir o rádio falar, bàbá e iyá ficam enfeitiçados. (Pausa) Começam a
discutir. Alto, cada vez mais alto. Brigas de luas, que enchem durações! Acho que iyá
não quer fazer o que bàbá quer, então ele grita É A NOSSA ÚNICA SOLUÇÃO! As
telhas balançam. Ela manda falar baixo. Eles vão brigando, brigando, dentro dos dias e
das noites e eu desejando secretamente que eles calem a boca. (Pausa). Quando dois
elefantes brigam, quem sai perdendo é a grama. Eu sou a grama pisoteada. Me escondo
nas carnes da cachorra pra me isolar do barulho, para Ilê esfregar seu corpo na relva de
mim. Homens maus não deixam as pessoas passarem.

Tempo.

Há dias iyá não está mais em casa. Uma manhã, eu acordei e ela... Na noite anterior, ela
se sentou à beira da minha cama, alisou a minha testa, minhocou seus dedos no meu
cabelo, sua voz de água apagou minha agitação acesa. Cantou entre o voo e o orvalho
até a doce sonolência me invadir. Agora, iyá não está mais em casa, mas iyá tem raízes
e quem tem raízes não se esquece da terra.

RÁDIO: Operários consertam o alambrado da fronteira, que feriram as pernas de


Cesária, uma imigrante africana, que conseguiu pular na madrugada.

Abou tem interesse na notícia.

ABOU: Fala mais!

RÁDIO: “É impossível viver no meu país. Só tem fronteira para os negros. Os negros
não são cidadãos normais? É impossível sair às ruas. Se a polícia te encontrar, ela te
prende”, diz Cesária.

Abou abraça o rádio. Ele toca “Senegal Fast Food”, de Amadou et Mariam.

ABOU: O dia passa e tem um nó dentro dele. Ilê lambe minha cara. Ilê faz graça de
barriga para cima. A Ilê abana seu rabo curto. O rádio toca uma música boa para dançar.
Mas eu não dou uma risada. Eu fico deitado no chão observando o cortejo de formigas

4
na parede de tábua, pensando se as formigas também estão deixando a África. Quem
botou arame pra ferir as pernas da minha iyá? Tem coisas que eu não sei. Por que tem
pouca comida? Por que a África está na pindaíba? Por que eu não posso ter um cachorro
de verdade? Será que a ìyá não tem saudade? (Pausa)

Bàbá chega e ele parece um pouco aliviado, ele vendeu o resto de nossas coisas. Mas eu
sinto um amargo no meu peito, uma raiva suarenta, uma vontade de acabar com ele.
Então eu bato, bato, bato, bato nele. As lágrimas vão caindo com os socos, mas bàbá
não faz nada. Ele não me segura. Ele não me dá um tapa na cara. Eu odeio você! Eu
quero a minha iyá, eu quero um cachorro, eu quero uma fatia bem grande de pudim
malva, e eu quero agora!

Ele espera até eu estar bem cansado. Espera até a última gota de fúria secar. Só então
bàbá me pergunta, determinado: Você quer ver a sua iyá? Minha voz está sumida. Mas
ele continua: então, você vai ver sua iyá!

***
ABOU: O sol parece a gema de um enorme ovo frito. Estamos viajando há muitos dias.
A viagem é muito dura para mim e para a fila de africanos a nossa frente, igual àquelas
formigas lá de casa. A parte mais difícil da viagem é dormir nas pedras, mas eu tenho a
Ilê, lembra? Ela tem umas carnes macias, onde eu recosto a cabeça, enquanto bàbá me
conta a lenda de Ananse. Antigamente, não havia histórias e viver na Terra era muito
triste. Todas as histórias do mundo pertenciam a Nyame, o Deus do Céu. Ananse, o
Homem Aranha, queria comprar as histórias de Nyame para contar ao povo de sua
aldeia, então, ele teceu uma imensa teia de prata que ia do céu até o chão e por ela
subiu. Quando Nyame ouviu Ananse dizer que queria comprar as suas histórias, ele riu
muito, porque Ananse era um homem fraquinho e velho, mas falou que daria as
histórias a Ananse se ele lhe trouxesse três coisas: Osebo, o leopardo de dentes terríveis;
Mmboro, o marimbondo que pica como fogo e Moatia, a fada que nenhum homem viu.
Ananse concordou e desceu por sua teia de prata que ia do céu até o chão para pegar as
coisas que Deus exigia. Ele correu por toda a selva até encontrar Osebo, o leopardo de
dentes terríveis e foi logo dizendo: Vamos brincar do jogo de amarrar? Com cipós, eu
amarro você pela pata, depois desamarro, aí, é a sua vez de me amarrar. Ganha quem
amarrar e desamarrar mais depressa, topa? O leopardo aceitou, porque pensava em
devorar Ananse assim que o amarrasse. Ananse prendeu Osebo e quando ele estava bem
preso, pendurou ele amarrado a uma árvore dizendo: Agora Osebo, você está pronto
para encontrar Nyame, o Deus do Céu. Aí, Ananse cortou uma folha de bananeira,
encheu uma cabaça com água e atravessou o mato alto até a casa de Mmboro. Chegando
lá, colocou a folha de bananeira sobre sua cabeça, derramou um pouco de água sobre si,
e o resto sobre a casa de Mmboro dizendo: está chovendo, você não gostaria de entrar
na minha cabaça pra chuva não estragar suas lindas asas? Muito obrigado, zumbiu o
marimbondo, entrando na cabaça, que Ananse tampou rapidamente. Ananse, o Homem
Aranha, então pendurou a cabaça na árvore junto a Osebo dizendo: agora Mmboro, você
está pronto para encontrar Nyame, o Deus do Céu. Depois, ele esculpiu uma boneca de
madeira, cobriu-a de cola da cabeça aos pés, e a colocou perto de um flamboyant.

5
Moatia, a fada que nenhum homem viu, chegou dançando, como só as fadas africanas
sabem dançar e saudou a boneca, mas a boneca nada respondeu. A fada ficou irritada e
deu-lhe um tapa ficando com sua mão presa na bochecha cheia de cola e depois outro
tapa e logo as duas mãos de Moatia ficaram presas. A fada tentou livrar-se com os pés,
mas eles também colaram-se na boneca. Ananse então saiu de trás do arbusto, carregou
a fada até a árvore onde já estavam Osebo e Mmboro dizendo: Agora, Moatia, você está
pronta para encontrar Nyame, o Deus do Céu. Depois, ele teceu uma imensa teia de
prata em volta do leopardo, do marimbondo e da fada e uma outra que ia do chão até o
Céu e por ela subiu carregando seus tesouros até os pés do trono de Nyame. O Deus do
Céu ficou maravilhado e entregou a Ananse seu precioso baú das histórias. As histórias
se espalharam pelos quatro cantos do mundo vindo chegar até aqui. Na aldeia, o
contador de histórias chama-se griot. A Ilê sempre dorme com as lendas que bàbá conta.
Ela passa o dia correndo em roda, tentando morder o próprio rabo e fica cansada. Nas
estradas, tem cachorro preto, cachorro azul, cor-de-rosa, rasgado, sujo, de raças
diferentes, todos filhos das estradas, todos fiéis aos seus donos. A parte mais agradável
da viagem são os cachorros, cachorro é bicho que amansa o coração, cachorro é amigo,
mas tudo o que eu quero mesmo é o colo da minha ìyá e um bom pedaço de pudim
malva.

Tempo

No final da viagem, a mulher. A mulher é muito nova. Eu acho que a mulher saiu da
barriga da ìyá dela há pouco tempo. Bàbá está ansioso. Ele olha para a mulher como se
a mulher escondesse um oásis no Saara. Primeiro, ele passa a Ilê para a ela. A Ilê solta
um grito fino de quem é picado por uma aranha e depois se cala. Meu coração fica em
fatias. O que está acontecendo? Bàbá pede que a mulher tenha cuidado, muito cuidado,
todo o cuidado e todo amor do mundo. Em seguida, entrega a ela o dinheiro. Ela conta
as notas, parece satisfeita e guarda o pagamento dentro da blusa. Bàbá se agacha, olha
no fundo dos meus olhos molhados, segura meus ombros, e diz que, logo, logo
estaremos todos juntos numa nova vida. Aonde você vai?, pergunto. Confia em mim?
Bàbá diz que as coisas vão mudar, que talvez eu possa ter um cachorro de verdade, eu
digo que já tenho a cachorra mais incrível do mundo. Ele me abraça, a lágrima
tremendo, o beiço sem cor. Bàbá me diz para eu ser um bom menino, que o jogo de
esconde-filhote vai começar pra valer. Seja forte, Abou. E só saia quando você for um
baobá de caule grosso. Bàbá se levanta e leva uma mão fechada ao peito, me encarando,
como se dissesse que eu estaria junto dele. Depois desaparece no meio das pessoas
brancas e estranhas. Minha garganta queima. “Seja forte, Abou”.

***
Flutuam no céu as manchas pretas de quatro urubus. Sigo a mulher para um canto mais
calmo. Faz muito calor. É quase meio dia. Ela joga a Ilê no chão. Abre sua barriga fofa,
cheia de molambos e diz: “Entra”. Eu obedeço. Sou um filhotinho adestrado. “De
maneira nenhuma você deve sair desta mala. Se alguém te descobrir, Abou, você estará
perdido e poderá dar adeus ao reencontro com seus pais!”.

6
Era uma vez um garoto de pernas e braços feitos de galhos finos, que alguém entalhou,
mas não imaginou que ele ficaria com fome. Era uma vez um garoto chamado Tumbu,
que ficou dias dentro de um navio fedorento para ser escravizado em outro país. Era
uma vez eu, Abou, um garoto refugiado a um passo de uma nova vida. Histórias são
sempre sagradas e a parte mais emocionante da minha história está para acontecer a
qualquer momento.

A mala é fechada. Escuridão.

***

A flor do baobá tem um cheiro bom de almíscar, mas carnes da Ilê fedem como uma
zebra morta. Você não tem culpa do futum, a longa viagem deixou as roupas fedidas. Eu
também preciso de um banho quente. Mas eu sou bom em imaginar a espuma do
sabonete abraçando a minha pele de ébano. Quando você domina o imaginar, você pode
ser livre, você acalma o seu coração. O tempo passa tranquilo e você respira sem se
apavorar. (Pausa. Música) Minha casa Ilê. Me escondi num buraco vago no tronco da
cachorra. Há muitas mensagens esculpidas nas suas cascas rugosas: dedicatórias
amorosas, nomes e datas de quem foi seu dono antes de mim. Rabisco ABOU à unha.
Está escuro. Só a imaginação tem o poder de me proteger da escuridão de céu azul-
marinho ponteado de miçangas. Uma nuvem fininha, que nem um algodão esgarçado
vagueia. A lua é um cachorro branco iluminado pelo sol. Mamo nas tetas da via láctea,
antes de começar a contar os carneirinhos de poeira que saltam diante dos meus olhos.
(espirra) Não tenha medo deles, Ilê. Carneiros são como cães bem peludos. Un, deux,
trios, six, neuf, dix, cinquante-sept, un million, quatrocentos bilhões de estrelas piscam
na sua pele empoeirada de sono profundo e todas riem docemente para mim. Girando no
espaço, a cadela Laika, cheia de fios, late para nós.

***

A mulher para na entrada do controle da fronteira. Os urubus sumiram do céu. Ela olha
à direita, depois à esquerda, indecisa na terra de ninguém. Respiro fundo. O cheiro ruim
sobe. A gente não vê quando o fedor acaba. A mulher volta a puxar a mala; as patas da
Ilê deixam um rastro de barro seco no asfalto.Estamos indo para a passagem da
fronteira. É um momento mais tenso da minha vida. Acho que nunca tive um momento
tão tenso como esse. Encosto meu ouvido nas paredes da cachorra e escuto o medonho
o barulho dos carros, as armas engatilhando. O guarda civil se aproxima. A mulher
parece uma girafa com torcicolo. “Documentos! O que carrega nesta mala? Para onde
está indo?”. “Para casa da minha patroa”. O guarda mau se acha o bambambã. Ele está
envolvido de poder. Manda a mulher por a mala numa máquina de ver por dentro, que ele
chama de scanner. Mas ela não quer. Ilê treme. Coragem nunca foi o forte dela.
Sussurro baixinho: respira, garota! Somos um só pulmão. O scanner é uma máquina que
tira foto, mas ninguém quer foto nenhuma, gambé! A gente só quer passar, ter uma vida
nova, comer pudim malva até doer o dente. Nos deixe em paz! Sem foto, não passa a
fronteira, ele ameaça. O guarda pega a Ilê no colo, ela se finge de morta, dura, dura, e
num instante, estamos na esteira para ele fazer o retrato de dentro. A geringonça solta uns
7
ruídos e o meu coração salta como o de uma caça acuada. Daí o guarda chama outro
guarda, que chama outro guarda, e vem outro guarda e os quatro guardas ficam parados
diante da minha fotografia com cara de bobos. Será que a foto não ficou boa? Precisam
de outra imagem minha? Não sou fotogênico? Para os policiais, há um menino de seis
anos dentro da mala. Mas eles estão errados. O que existe dentro da mala não é uma
criança. Quem habita a cachorra é o medo. E uma mala só carrega o que ela precisa. Um
deles abre a barriga do Ilê. Não sei se sou um baobá ou não, mas bàbá não está aqui para
me avisar sobre o caule grosso. Tateio as paredes das pirâmides de Quéops, mil
corredores. Não quero morrer perdido neste labirinto. Ponho a cabeça para fora da
manta. Toda saída é uma cilada. Me apresento aos gambés, na minha língua: “je
m'appelle Abou”.

***

Vozes, flashes e clarões vêm de toda a parte. Tocam em mim, como se afagassem o
lombo de um cachorro manso. Fotos com câmeras e celulares. Quatro homens ao meu
redor como urubus no firmamento. Espero que eles fiquem satisfeitos com todos esses
retratos; estou exausto. Mas logo a Cruz Vermelha chega e me afoga numa chuva de
perguntas: “Você está bem? Você conhece a mulher? De onde você vem, garoto? Onde
estão seus pais?” Enfiam palitos de picolé - sem picolé - na minha garganta, olham
meus dentes, arregalam meus olhos, apalpam minha barriga, vasculham meu cabelo.
Meu coração sacode dentro do ouvido do enfermeiro que me vira em todas as posições
e, por fim, ganho um caldo quente, como os adestradores de animais que dão comida
quando o bicho acerta um movimento. Fizeram muitas perguntas, mas sequer ouviram a
minha: quedê meu pudim malva?

***

RÁDIO: Um menino de seis anos de idade foi encontrado escondido dentro de uma
mala de viagem por funcionários da fronteira. Os oficiais encontraram o menino depois
que passaram a mala pelo equipamento de raio-x e viram a criança enrolada entre as
roupas. Agora, ele está sob custódia da Promotoria de Menores e seu destino ainda é
incerto. Um Guarda Civil fotografou Abou e as imagens ganharam o mundo causando
surpresa e indignação.

ABOU: Como é grande, infinitamente, o mundo! Mas me trancaram num pedaço dele,
pintado de branco e azul chamado “abrigo”. Há uma árvore no pátio: galhos finos,
folhas secas, raízes sufocadas no chão de cimento. A diretora diz “Bem-vindo, menino
Abou, bem-vindo. Você passou por tanta coisa que. Mas vai ficar tudo bem. Aqui tem
criança, cama, comida...”.Uma porção de meninos brancos me olha, eu colo o queixo no
peito, a Ilê de rabinho baixo, o rádio fora de sintonia. Naquela noite, eu fico choroso,
mas a imaginação é muito útil quando se está perdido. Penso no pudim malva
molhadinho na minha boca: é uma coisa que vale a pena pensar. Quem sabe, ele venha
com uma porção de geleia de damasco ou uma bola generosa de sorvete de creme.
Momentos felizes ao lado de bàbá, iyá e Ilê estão por vir. Um quintal cheio de
passarinhos coloridos voando, nuvens douradas dançando no horizonte, o rádio tocando
8
canção de festa, mas isso tudo desaparece, assim que um menino grandão me empurra
da cama pela manhã e grita bem alto: MACACO! Caio de joelhos e todos gargalham.
Gritaram-me MACACO.

Falo para a diretora que os garotos não gostam de mim, que eu não compreendo muita
coisa das esquisitices que eles gritam, daí ela fala: “Não cace confusão e aprenda a...
ligue para a fornecedor agora mesmo”. Ela sai andando com seu sapato tec tec tec tec,
falando ao celular e me deixando sozinho no pátio, na terra tão sem céu que até para
olhar as nuvens é preciso fechar os olhos:“*De que vale ter voz se só quando não falo é
que me entendem? De que vale acordar se o que vivo é menos do que o que sonhei?”

Mais tarde, o mesmo grandão para na porta do quarto e não me deixa entrar. Homens
maus não deixam as pessoas passarem. Empurrão, café da manhã. Pontapés, aula de
artesanato. Rasteira, almoço. Xingamento, jantar, chamboco, chamboco... O corpo em
fogo das pancadas recebidas. Quando eu morrer, vou contar tudo a Deus.

RÁDIO: A UNICEF cria centros de abrigo para crianças refugiadas. O objetivo é apoiar
famílias em condições vulneráveis que estão em movimento tentando chegar à Europa.
Darão atenção particular às crianças que estão desacompanhadas ou que foram
separadas de suas famílias durante a viagem.

ABOU: Será que você não sabe falar de outra coisa? Droga de rádio velho, toque uma
canção alegre!

A psicóloga pergunta “como estamos hoje, Abou?” Sala de aula. Uma bola de papel na
minha cabeça. Um pedaço de giz. Régua, apontador, lápis. Medo, vontade de fugir, um
desejo de vingança crescendo. É assim que estou, respondo à psicóloga, servindo de
brinquedo e de montaria para os outros moleques. Acho que muitos gostariam que eu
tivesse sido encontrado morto dentro da Ilê, porque assim o dono da fronteira teria um
problema a menos. Será que a vida triste de Abou, sem bàbá, nem iyá, sem pudim
malva não é terrível o bastante? Homens maus mandaram a Laika para o espaço. É
terrível mandar um cão para um abrigo sem pudim malva suficiente. Dizem que bàbá é
traficante de crianças, ìyá é mulher da vida, que eu sou uma mercadoria de venda,
histórias malucas que os jornalistas imaginam, não olhando para um céu ou para uma
marula verde, mas por maldade. Eu também gosto de imaginar, mas eu não machuco
ninguém com a minha imaginação, só os meninos me machucam como aquele dia que o
grandão pegou meu rosto e esfregou com força no lombo da Ilê: “não está vendo que
isto é a porcaria de uma mala velha, seu preto maluco? Seus pais deviam ter te largado
no meio da floresta para que você fosse devorado por um crocodilo faminto!” (Pausa)
Desde que estive na fronteira, os fotógrafos só fazem subir em árvores para retratar o
pior de mim, estou sozinho neste planeta Europa e bàbá está de castigo na cadeia,
porque ele quis passar na fronteira sem autorização. Eu penso que a cadeia é um abrigo
para gente grande com homens maus chamando bàbá de traficante e nomes feios o
tempo todo. (Pausa) Eu sou um bom menino. Sempre procurei ajudar bàbá nos
escambos, iyá a descascar legumes e teve o poço de água que construímos para matar
nossa sede e a sede dos vizinhos. Não sou nenhum feiticeiro que faz rádio quebrado
9
falar. Por que me prendem? Eu não fiz nada de errado. Minha imaginação pula os muros
deste abrigo, atravessa a fronteira e me estende as mãos para ir com ela, mas alguém me
arrasta para a realidade e tenho as pernas feridas no alambrado igual a minha iyá. A
única coisa boa aqui é comida de manhã e à noite, mas nada de pudim malva, eles riem
de mim por eu querer um doce. Eu podia dizer que as pessoas riem muito e isso seria
positivo, mas a piada sou eu e eu não acho graça nenhuma; por que minha iyá não
ensinou às mulheres daqui a cozinhar? Ainda bem que tenho música da minha África e
a Ilê, a cachorra mais incrível do mundo, ela rosna pros valentões. Se a Ilê fosse uma
cachorra de verdade, eles não deixariam ela morar aqui. Não ganhei o bambolê, mas
ganhei uma imaginação forte, se os músculos não fossem fracos, eu cuspia na cara do
grandão, um soco bem no meio daquela cara branca azeda dele, daí me lembro que
quando eu bati no meu bàbá ele nem chorou e fico sem saber o que fazer, por que a Ilê
não tem uns dentes afiados para cravar em traseiros?

Tec tec tec tec. A chata da psicóloga me ouviu demais por hoje e vai embora. Sapato
barulhento igual ao da diretora. Compraram na mesma porcaria de loja.

***

É hora do almoço e eu estou sentado. A comida é estranha, mas eu estou com tanta
fome, que eu poderia comer um leopardo. O refeitório tem cheiro de ovo velho cozido.
A colher de plástico engordurada ao alcance das minhas mãos e eu estou prestes a
mergulhá-la na gosma de legumes, quando o grandão de sempre dá um peteleco no meu
prato e a sopa vira na mesa. As crianças sobem nas mesas e começam a berrar uns sons
de gorila, como se dissessem: brigaaaaaaaaaaa!

O rádio toca uma música.

Então, de repente, o diabo desenterra o baobá: enfia os ramos na terra e deixa as raízes
para o ar. A raiva sempre me vira de cabeça para baixo. Avanço no moleque com socos,
salivas e vinganças e a Ilê agarra o calcanhar e afunda os dentes. O tempo esquentou um
pouco. O garoto não consegue reagir. Não é mais um “grandão”; é uma bolota de
mukua disforme que eu vou amassando, amassando até desprender suco. Estou de volta
à cozinha da minha iyá, rindo, o sumo da fruta escorrendo pelo meu braço, manchando
minha roupa. Tudo é tão agradável: o cheiro de casa, o cheiro de ácido da fruta, o cheiro
da minha iyá, bàbá transformando a cozinha numa pista de dança. Nós, contentes da
vida. Que mais podíamos desejar? Meu mundo há alguns meses atrás. O moleque não é
mais um fruto do baobá; é um morango mofado e molenga. Ele está chorando, há
profundos rasgões em sua cara. Encaro os outros: “Sou uma árvore sagrada! Quem faz
mal a um baobá é perseguido pelo resto da vida, ouviram?”. Eles se afastam de medo e
afundam suas caras brancas azedas nos seus pratinhos de gosma de legumes, porque
nenhum deles quer virar morango. (Pausa). ABOU, ABOU, ABOU! Grito meu nome
alto, várias e várias vezes para não me esquecer de quem eu sou. ABOU, ABOU, Abou,
na minha sala, agora, diz a diretora atrás de mim. Eu vou. Sou um filhotinho espertinho
e adestrado.

10
****

ABOU: Uma flor venceu o cimento e desabrochou na árvore do pátio. A natureza é uma
força poderosa, você não acha? A diretora diz: eu sei que foi aquele garoto quem
derrubou sua sopa na mesa. Ele é um menino muito horrível, dominado por maus
espíritos, mas já tomei as devidas providências. O grandão será transferido para outra
unidade e não importunará mais nenhuma criança deste abrigo e, como pedido de
desculpas, mandei a cozinheira preparar um belo jantar e pudim malva de sobremesa só
para você. Não, não precisa agradecer. Coma quantas fatias você quiser, até doer seu
dente.

Isto que você está ouvindo é a sua imaginação, Abou. Essa sua imaginação te pregando
uma peça, essa sua imaginação otimista. A diretora não falou nada disso; diretoras
arreganham autoridade: Abou seja assim, seja padrão, fale pouco, respeito é bom,
quantas crianças gostariam de comida, não à África selvagem...

RÁDIO: O pai do garoto da mala foi liberado mediante o pagamento de fiança no valor
de seis mil euros. O dinheiro veio de doações feitas por estrangeiros que se penalizaram
da situação da família. O menino vai ser entregue à mãe. A jovem que o transportou
continua presa.

ABOU: A diretora se assusta com o rádio. Gente grande não tem imaginação? Mesmo
vivendo grandes aventuras ou habitando planetas inesquecíveis, nada lhes fica. Quando
eu penso que vou ouvir uma notícia, eu ouço uma notícia. É assim que funciona. A
única realidade é a da imaginação. Alô? Sim, ela mesma. Sim. Quando? Entendo. Sim.
Obrigada. A diretora desliga o telefone.

Sua mãe vem lhe buscar e seu pai está livre, ela diz.

Então, eu quero saber como bàbá conseguiu dinheiro para sair do abrigo de adultos, se o
dono da Europa vai deixar a gente atravessar a fronteira, que horas iyá vem? Você gosta
de pudim malva? Mas gente grande não gosta de muitas perguntas.

Adeus, planeta lágrima.

***

ABOU: Olha, iyá! As nuvens se encaixam direitinho! É um quebra-cabeça dos deuses.


O rádio toca uma canção agradável. Ilê corre em todas as direções, como se caçasse a
risada de uma hiena escandalosa. Eu acho que ela estuda ser leão. Respiramos fundo.

Ando de mãos dadas com Iyá; ela diz que cresci, que estou mais forte.

Conto a ela dos meninos maus. Um bando de elefantes não dá conta de um baobá, iyá
fala com sua brandura materna.

11
Olhar o abrigo pelo lado de fora é muito bom. É um momento de muito alívio na minha
vida. Acho que nunca tive um momento tão especial como esse. E tem minha iyá,o
encontro com bàbá, a melodia do rádio, o vento, o latido da cachorra...

***

E agora, meses se passaram.

Nuvens escuras foram para longe. Frequento a escola e também jogo futebol, meu ídolo
é o jogador Messi. Não sei se Messi gosta de ser famoso. Eu odeio. No supermercado,
na rua, na escola, as pessoas apontam o dedo pra mim: “Olha o menino da mala!”
Perguntam da Ilê, querem tirar foto ao meu lado. Isto é uma grande chatice. Íyá disse
que daqui a pouco eles esquecem. Eu imagino o dia de paz.

Estou aprendendo a língua da Europa, já fiz alguns amigos, mas bàbá ainda busca
trabalho. Ele não é um traficante; tentou duas vezes me levar para a Europa, mas o dono
da Europa nunca deixou a gente entrar. Disse que bàbá não tinha dinheiro suficiente
para manter toda a família. As pessoas grandes se apegam demais aos números:
quantos anos você tem? Quanto ganha seu bàbá? Qual sua altura? Qual o tamanho da
sua casa?

(Pausa)

Às vezes, fazemos coisas que não queremos fazer. Às vezes, não ganhamos o que
queremos ganhar. A vida nem sempre é como a gente quer; a vida é como ela se
apresenta. Eu gosto de pensar que na minha próxima festa servirão tortilhas. Fase três
do jogo de imaginar.

Aja dorme dentro da Ilê. Aja é um filhote de cão pastor. E eu vou ensinar todos os
truques que ensinei à Ilê.

Senta! (mão aberta sobre a cabeça do animal)

Fica! (mão aberta na frente do animal, sem tocá-lo)

Deita! (mão esquerda sobre a cabeça do animal, com a palma virada para baixo)

Ganhei um visto de um ano para habitar o planeta Europa e um cachorro de carne e


osso. Os cães sempre andam atrás um dos outros, cheirando suas caudas. É uma lenda
muito antiga. Quando os cães governavam a si mesmos, haviam dois reinos chefiados
por poderosos cães. Eram rivais, mas viviam em paz, até que um dia um deles se
apaixonou pela irmã do outro chefe. Perdido de amores, ele foi até os domínios do rival
e pediu a mão da cachorra em casamento, mas o outro cão gritou que não queria que ele
se casasse de jeito nenhum com a irmã dele. Humilhado, o cão apaixonado voltou
furioso para a sua corte. Assim que chegou, reuniu o conselho de Guerra e mandou seu
fiel servidor avisar seu inimigo que iria marchar com seu exército e destruí-lo. Antes de
partir, o fiel servidor, que estava com a cara e a cauda imundas, tomou um longo banho
e perfumou sua cauda com o melhor perfume do reino. No caminho, o servidor achou-se

12
tão cheiroso e tão galante, que ao invés de enviar a mensagem para o inimigo foi
procurar esposas para ele mesmo com sua cauda cheirosa. É por isso que até hoje os
cachorros cheiram as caudas um dos outros: para encontrar o servidor perdido.

O rádio toca “Fête au village”, de Amadou et Mariam

É meu aniversário e tem uma vela com o número sete em cima do pudim malva. O rádio
canta uma doce música de festa e todos nós dançamos como nuvens no livres no céu.
Sigo de raízes para o ar; um baobá não esconde o esplendor de suas raízes.

Assopra, Abou! Faça um pedido.

Eu não conhecia o outro lado do mundo e meu bàbá me levou para que eu descobrisse o
lado de lá. Viajamos dias. Ele, o outro pedaço de mundo, me esperava ansioso.
Alcançamos a fronteira, eu, dentro de uma cachorra-mala de estimação. Homens maus
não nos deixaram passar. Nos trancaram em abrigos, mas um dia, enfim, um dia, o
mundo sem muros ou alambrados estava diante dos meus olhos. Foi tanta imensidão de
mundo, que eu fiquei mudo de beleza. E quando finalmente consegui falar, tremendo,
gaguejando, pedi a meu bàbá: “me ajuda a olhar?”.

Abou assopra a vela fincada no pudim malva. Escuridão.

FIM
*versos do escritor e biólogo moçambicano Mia Couto

13

Você também pode gostar