Você está na página 1de 71

Autores

Carla Antolyna Valles


Mariana de Althaus
Rogelio Orizondo

Traduções
Andre Benatti
Carin Louro
Claudia Sampaio

1ª edição

Sesc | Serviço Social do Comércio


Escola Sesc de Ensino Médio

Rio de Janeiro, junho de 2017


Sumário
11 Então, Alice caiu
(Mariana de Althaus)

Tradução de Andre Rezende Benatti


e Carin Louro

81 Say no more
(Carla Antolyna Valles)

Tradução de Claudia Dias Sampaio

115 Vacas
(Rogelio Orizondo)

Tradução de Andre Rezende Benatti


e Carin Louro

147 Entonces, Alicia cayó


Mariana de Althaus

213 Say no more


Carla Antolyna Valles

251 Vacas
Rogelio Orizondo
81

Say no more
Carla Antolyna Valles

Tradução de Claudia Dias Sampaio

A rotina atrofiada de um casal e seu gato de estimação é posta à prova


com um acontecimento: o cantor Charly García se joga pela varanda de
um nono andar e sobrevive. Com tom surrealista e pontuada por vídeos
musicais deste cantor argentino, a obra apresenta ações que se repetem
exaustivamente no cenário de um pequeno apartamento. Traz à tona a
melancolia da rotina de duas pessoas em seus processos de anulação de
sonhos e desejos, até que uma notícia pode mudar tudo.
“E talvez você tenha batido com o carro numa dessas manhãs e começou
a sentir saudades do seu pequeno cachorro no dia do aniversário dele.
– Eu tenho um gato.”
“Alguém no mundo pensa em mim.” Say no more / Charly García.
82 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

A autora
Carla nasceu em 1982, na cidade de Santiago do Chile. Dramaturga,
atriz, gestora cultural formada na Universidad Desarrollo, no Chile.
Uma das fundadoras da companhia “La Fulana Teatro”, com a qual
realizou trabalhos artísticos durante dez anos, impulsionando
movimentos culturais como o Festival Santiago OFF. Como
dramaturga, trabalhou no resgate e na pesquisa do patrimônio
imaterial e da tradição oral de seu país, plasmando-os em textos
como El séptimo urbano e Sazonar la última es-cena. Recebeu bolsas
como escritora na Argentina, no México e no Uruguai.

A tradutora
Claudia Dias Sampaio é pesquisadora e professora de literatura.
Doutora em Teoria Literária pela Universidade Federal do Rio
de Janeiro (UFRJ), atualmente, se dedica ao estudo da poesia
contemporânea e à tradução de autores hispano-americanos.
83

Tempo e espaço
É a noite de hoje, são várias noites de um hoje, um hoje parecido com
hoje repetido mil vezes; é o centro da cidade, um centro da cidade
parecido com os centros de todas as cidades que conheço, apertado,
claustrofóbico, sublimemente caótico, com um encanto sinfônico e
ensurdecedor. A ação acontece em um pequeno apartamento, rodeado
de pequenos apartamentos, em um nono andar, cuja vista se choca com
outros pequenos apartamentos de outros nonos andares do centro de
uma cidade. É inverno, às vezes chove, às vezes não, parecia que isso
não importava, mas nunca é o que parece. Sempre faz frio, não há
aquecimento, o único jeito é fechar as janelas da varanda para evitá-lo.
Um sofá. Uma televisão.

Personagens

Ele
Ela
O gato
84 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas
Say no more - Carla Antolyna Valles 85

Introdução
“Asesíname”

Escuro, a televisão é ligada e se vê esta versão da canção “Asesíname”, de Charly


García - <https://www.youtube.com/watch?v=2TJ1ISraN2M>. Uma bagunça, O
gato está sozinho no sofá, cercado por garrafas de leite vazias, bebe outra garrafa e
outra e outra mais... Se ilumina a figura de Ele na varanda. Chove.

ELE: Foi a notícia do salto,


simplesmente a enlouqueceu.

Entra Ela, a luz se acende, tudo parece estar em seu lugar, o som da chuva se
transforma no som do trânsito.

ELA: Ouviu o que aconteceu?


ELE: Sim, ele me surpreendeu.
ELA: Para mim, é um santo.
ELE: Se jogou da janela,
não é uma pessoa sã!
ELA: Se jogou da varanda.
ELE: É bem diferente, desculpa.
ELA: Dá pra ver que você não entende nada,
o cara fez algo importante.
ELE: O que o cara fez foi ilegal.
ELA: Mas ele se transformou em imortal,
o cara é tão corajoso
que não duvidou nem por um instante
que ganhava da morte.
Não foi só boa sorte,
tem algo mais nesse enredo:
ele perdeu o medo do medo!
Ganhou a lei do mais forte!
86 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Silêncio. Passa uma noite, duas, três, cumprimenta, fecha a porta, cuidar do gato,
comer, computador, televisão, celular, quatro, cinco, seis, cumprimenta, fecha a porta,
comer, computador, televisão, celular, chove.

ELE: Era uma loucura,


dia e noite falava dele,
deu mais voltas que um carrossel
contando a aventura,
foi perdendo a sensatez
pensando no relato.
Nem o gato a aguentava!
Ela se dedicava a falar,
eu me dedicava a fumar
para poder passar o tempo.
ELA: E o gato? você o viu, meu amor?
Está acontecendo algo com esse animal,
há dias eu o vejo mal,
você não acha?
ELE: Deve ser o calor.
ELA: Estamos no inverno, meu amor.
ELE: Bem, então é o frio.
ELA: Não está.
ELE: Pulou no vazio!
Se jogou por essa varanda,
queria te dar uma emoção.
Sem medo, cruzar o rio.

Silêncio... Sete, oito, nove, cumprimenta, fecha a porta, cuidar do gato...

ELA: Vou cozinhar lentilhas.


ELE: Adoro! E o gato também.
Silêncio.
Say no more - Carla Antolyna Valles 87

Desde então, ficou zen,


silenciosa como uma cadeira,
obediente como uma ovelha.
Um dia, se esqueceu do “não”,
apagou do vocabulário,
dizia “sim” a tudo,
dizer “não”, era minha tarefa.

Dez, cumprimenta, fecha a porta...

ELA: Meu amor, o gato vomitou!


ELE: Devem ser bolas de pelos,
é normal para sua idade.
ELA: E se ele ficou doente mesmo?
ELE: Andaria pelo chão. Limpa ele com um pano e pronto.

... Cuidar do gato, comer...

ELA: Você gosta do gato?


ELE: Preferia um pato.
Eu o amo como a minha sombra!
Te ajudo a limpar o carpete?
ELA: Não. Vou à varanda um pouco.

...Televisão, computador, celular, onze, doze, treze, cumprimenta, fecha a porta, cuida
do gato, comer, varanda.

ELE: Tinha de usar a afirmação:


os “não” eram o lógico,
isso não é um zoológico,
é uma civilização.
Me coube por obrigação,
mas seus “sim” os anulavam,
88 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

via como se secavam lentamente,


até desaparecer...
ELA: Acho que hoje vai chover.
ELE: É inverno, se esperava.
ELA: O gato gosta da chuva.
ELE: Sério?
ELA: Sim, e você, gosta?
ELE: Não sei.

...Televisão, computador, celular...

ELA: Os trovões me assustam.


Vai chover. Eu vou dormir.
ELE: E eu não soube o que dizer.
O silêncio se fez imenso,
o ar ficou denso,
cada dia menos ruído,
só o gato e seus miados
nos rompiam o suspense.

... quatorze, quinze, dezesseis, entra, cuida do gato, vai à varanda.

Vamos ligar a TV?

ELA: Sim! Você gosta desse canal?


ELE: Não!
ELA: Então, ponho em qual?
ELE: Notícias, informação,
não gosto de ficção.
ELA: Adoro as notícias!
Say no more - Carla Antolyna Valles 89

ELE: Só contam injustiças,


muda!
ELA: Olha! Um documentário.
ELE: Fome.
ELA: Mudo de canal!
ELE: E, de repente, um carinho...
e um se transformou em milhares,
e, depois, milhares em milhões,
depois, em universos,
dimensões,
infinitos...
Deixa aí! Uma reportagem!
E os olhos dele brilharam:
vestido com um terno vermelho,
ele estava numa viagem.
Que personagem tremendo!

Ela mudou imediatamente, era só o que faltava.

ELA: Não era necessário.


ELE: ... Disse decidida
antes de fechar a porta.
Espera!
O que fazemos com o gato?
Você leva ele?
ELA: Não.

Enquanto Ele e O gato a veem ir embora, se escuta na televisão: — Charly, como você
sabia que sobreviveria à queda de um nono andar? — Primeiro, joguei um gatinho de
madeira que estava no quarto e, quando ele caiu na piscina, entendi que eu também
poderia fazer.
90 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Track 1
“Soy un vicio mas”

Toca “Tu vicio”, de Charly García. Como se fosse um videoclipe, vemos Ele e O gato
em uma sequência de ações. Dois dias depois que Ela se foi.

Ele sai. O gato vai até a porta. Ele entra. O gato se esconde. Ele se senta, toma uma
cerveja. O gato vai à porta. Ele sai. O gato se esconde. Ele entra, dá voltas. O gato vai
à porta. Ele vai à varanda, fuma. O gato arranha a porta. Ele sai. O gato se esconde.
Ele entra, pega o celular. O gato vai até a porta. Ele dá voltas com o celular. O gato
chora na porta. Ele joga o celular no gato. O gato se esconde. Ele liga a TV.

Duas semanas depois que Ela se foi.

Ele entra. O gato corre para se esconder. Ele tropeça na comida do gato, a derrama.
O gato aparece. Ele vai recolher a comida e derrama a água. O gato vai à porta. Ele
procura algo para limpar, só encontra Confort.1 O gato arranha a porta, Ele joga o
Confort no gato. O gato se esconde. Ele procura comida, encontra uma lata de atum,
O gato aparece, Ele senta no sofá com a lata e uma cerveja, O gato se aproxima, Ele
lhe joga um pedaço de atum, O gato chega, cheira o atum, vai à porta, chora. Ele lhe
joga uma garrafa de cerveja. O gato se esconde, Ele liga a TV.

Dois pares de semanas depois que Ela se foi.

O gato está sozinho entre garrafas de cervejas e latas de atum, a televisão está ligada. Ele
entra bêbado beijando uma mulher bêbada, O gato se esconde. Ele e a mulher se beijam
no sofá. O gato chora ao lado de uma lata vazia de atum. Ele joga qualquer coisa no gato.
O gato continua chorando, Ele procura uma lata nova de atum. O gato o segue. A
mulher bêbada dorme no sofá. Ele tenta acordar a mulher. O gato come seu atum, ao
lado deles, a mulher ronca. Ele vai à porta. Chora. O gato o segue.

Dois meses depois que Ela se foi.

1- Confort: Amaciante de roupas.


Say no more - Carla Antolyna Valles 91

Ele e O gato estão sentados no sofá, cada um com uma lata de atum vendo a TV. Se
escuta: “Quanto mede a piscina?”, gritou Charly García ao jovem banhista do terraço
do hotel Aconcágua. “Três metros de profundidade...”, respondeu Lucas Rodríguez,
sete andares mais abaixo. E García se jogou sem escutar o final da frase do banhista:
“... mas ainda estão começando a enchê-la...”.

ELE: Acordado, café, torradas.


O gato me olha, eu não;
o gato nunca gostou de mim.
Café, silêncio, o nada.
O gato e seu olhar
me seguem, mia, me vê.

Faz dois meses que Ela se foi.

Eu o espanto, grito... choro.


Silêncio... vodka, um baseado,
a TV, cigarro, café...

Dois meses, nenhuma visita,


nenhuma explicação, nada.
Vodka, insônia, madrugada,
uma eternidade maldita,
eteeeeeeeeeerna, infinita.
Um inferno parecido
ao mesmo dia repetido:
silêncio, cigarro, café,
a TV, silêncio outra vez...
dois meses, nenhum sentido.
Ele a espera na porta, procura na cozinha, sente seu cheiro, imagina...

Chega, gato, está morta!

Mas ele insiste em dar voltas


à sombra das lembranças.
92 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Por sua culpa, não estou lúcido,


gato obsessivo, viado,
você não tem nenhuma pena,
é um animal doente!

Os gatos são independentes,


sabem cruzar o labirinto,
sobrevivem com seu instinto!
Os gatos são inteligentes!
Você não, você é um gato idiota,
um viciado na sua presença,
delirium tremens de sua ausência,
viciado em sua companhia,
devoto da agonia
que te causa sua carência.

Eu não escolhi ficar contigo,


não escolhi nada nesta história.
Tira ela da cabeça,
Ela é nossa inimiga!
Nos deixou, você é testemunha,
vamos seguir com nossas vidas
e curemos esta ferida...

Mas o gato traidor


não me ouve, vai à varanda
esperar por sua chegada.
Insônia, televisão,
silêncio, cigarro, café.
O gato me olha, eu também.

Penélope na estação,
isso que você parece, gato inútil!

O gato não ri, eu sim,


ele a procura.
Say no more - Carla Antolyna Valles 93

Não está aqui,


te disse três mil vezes!

Nem uma palavra em dois meses.

O que você quer de mim?

Dois meses, duas semanas, desde que Ela se foi.


Ele e O gato estão deitados juntos no sofá. O gato come atum, Ele toma cerveja.

ELE: Só a tua morte vai fazer Ela voltar,


a culpa insuportável de ter sido irresponsável
por ir atrás de sua própria sorte.
Vai chorar teu corpo inerte
desejando meus abraços,
mas vai ter vencido o prazo
para receber meu consolo.
Quero vê-la no chão
quando sentir meu desprezo!
E quero que se arrependa,
não uma, se não mil vezes.
Que doam esses dois meses
até que complete os noventa!
E quero que uma tempestade
nuble todos os seus dias,
que seja sempre agonia
nossos nomes em sua memória,
e para sempre em sua história
ser sua única alegria.
É que fomos sua alegria,
não fomos?
É uma masoquista,
é covarde, uma escapista,
se jogou, o Charly García,
e lhe baixou a anarquia!
Acha que sou um idiota?
94 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Eu acho que sou corno.


Apareceu outro em seu caminho.
Vadia, filha da puta!
Por isso, nenhum adeus.

Duas horas depois.


O gato no sofá vê TV. Ele cozinha algo com atum.

ELE: Já decidi:
vou matar o gato,
será este meu contrato
para me vingar do abandono.

Café, cigarro aceso.


Mais de dois meses, nenhuma ligação.

Odeio ele, odeio esse olhar,


odeio que mie, que grite,
odeio que a necessite,
que ainda espere que ela volte.
Odeio o gato e ela.
O gato chora de fome,
não vou dar nem um pedacinho,
quero que sofra, que morra.
Odeio o gato e ela.
Ela o amava, eu não.
Quero dizer a ela que ele morreu,
quero vê-la na miséria,
que ela se sinta culpada
por saber que o abandonou.
Odeio o lado da cama
que sobra quando durmo,
odeio que seja sempre inverno,
odeio todas as manhãs
e odeio todas as semanas
desses últimos dois meses,
odeio odiar, me enfurece,
Say no more - Carla Antolyna Valles 95

sinto o sangue amargo,


sinto a vida longa.
Odeio todas as suas estupidezes.
Odeio seu esperar sereno,
odeio que você tenha esperanças,
porque eu necessito de vingança
para adoçar este veneno.
Eu sou um bom homem,
mas estou perdendo o foco,
estou ficando louco!
Nos partiu o coração
sem nenhuma explicação!
Por acaso isso parece pouco?
A fúria chegou imediatamente,
“se me fodem, te fodo!”.
Acabei quebrando tudo:
espelhos, janelas e pratos.
Senti vergonha diante do gato,
ele quieto como um retrato,
me olhava com paciência.
“Gato, me dói a existência”,
lhe disse como um menino.
Ele me olhava, com carinho,
com inocência animal.

Dois meses, duas semanas e dois dias desde que Ela se foi.

Ele e O gato estão encostados na porta. Chove.

ELE: O gato parece entender,


já não comia há dois dias.
Eu vigio sua agonia
como Penélope na estação
esperando por um amém.
Gato, não sei seu nome,
ela te deu um nome,
mas já esqueci.
96 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Olha, você tem saudade, eu também.


Você é um animal dependente!
Eu te abraço, você me abraça, não sei.
Silêncio, café, choramos:
sim, os dois, o gato e eu...
— Oi, sou eu,
o gato está mal,
precisa de você... Pode vir?

Track 2
“Pasajera en trance”

A TV está ligada mostrando a introdução de “Pasajera en trance”, no Café Berlim


de Madri, em 1999, Charly briga com o público: — Chata é a tua avó, vou te matar,
entende... Eu sou Deus! Cala a boca! Elimina para mim um par de seres que estão por
aí, que me incomodam...

Aeroporto.

ELA: Vivi em doze casas


nos últimos seis anos.
Não comemoro aniversário,
quase sempre me escapa;
prefiro a sopa na louça,
o mate como aguardente,
tomar vinho bem quente
com laranjas e canela.
Nunca gostei da escola,
sempre gostei de gente.
Me deprimo com o frio
e fujo do inverno
Say no more - Carla Antolyna Valles 97

colecionando lembranças
que me aqueçam o vazio.
Sempre acho que confio
demais na minha boa sorte.
Sempre imagino minha morte
cheia de sangue e violência,
na rua e sem consciência,
esfaqueada, frágil, inerte.
Me assusta ser vulnerável
e me assusta a escuridão,
caminhar sozinha na cidade
é insuportável.
Por isso, foi inevitável
sentir amor quando o vi
sozinho, confuso, ali
num lugar tão bizarro,
molhado, cheio de lama,
tão triste, tão igual a mim.
Um gato no aeroporto.
Perdido ou abandonado?
Me olhou desesperado
com solidão desértica.
Aí vêm os guardas! Aviso.
Já pra minha loja, pra dentro!
Fica quieto, por favor!
E entre discos de Violeta,
souvenirs e maletas,
começamos nosso amor.

Da TV, se escuta: “A sensação?... O vazio, depois a água molhada. Medo? Sim, um


pouquinho, senão, não teria graça.”
98 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Track 3
“Demoliendo hoteles”

Na TV, se projeta a gravação do Estúdio Piano Bar, de 1984, de “Demoliendo hoteles”.


<https://www.youtube.com/watch?v=zE_AikzYw00>

Dois meses, duas semanas, dois dias e duas horas antes que Charly pulasse da varanda.

Ela e O gato estão molhados na beira da porta. Ele vê televisão, Ela espirra, O gato
também. Ele aumenta o volume da TV. Ela lhe joga a carteira. Ele se esquiva. Ela
desliga a TV. Ele lhe joga uma almofada, Ela se esquiva. Ele tenta ligar a TV. Ela não
deixa. O gato entra e urina no sofá.

Dois meses, duas semanas e dois dias antes que Charly pulasse da varanda.

Ela chora no sofá enquanto seca o cabelo. Ele tenta limpar o sofá. O gato chora
trancado na varanda.

ELA: (grita) Materialista!


ELE: (grita) Sou pobre! Não tenho dinheiro pra comprar outro sofá!

Chove. O gato grita na varanda. Ela corre para abrir e deixá-lo entrar. Ele a impede.
Ela chora no sofá. Ele pega o secador e seca o sofá.

ELA: (grita) Materialista!

Dois meses e duas semanas antes que Charly pulasse da varanda.

O gato está preso na varanda, agora tem um prato de comida, água e uma caixa. Ela
espera impaciente. Ele aparece com uma jaqueta. Ela faz uma cara feia. Ele aparece
com outra jaqueta. Ela fica com a cara mais feia. Ele aparece com outra jaqueta.
Say no more - Carla Antolyna Valles 99

Ela tira dele e desaparece com a jaqueta. Ele vai verificar a janela da varanda. Ela
aparece com uma jaqueta na mão. Ele faz cara feia. Ela coloca a jaqueta nele, o
abraça, o beija. Ele faz cara de contente. Saem. Ele para, se olha no reflexo da janela.
Saem. Ela volta, abre a porta da varanda. Sai. O gato entra, urina no sofá.

Dois meses antes que Charly pulasse da varanda.

Ela e O gato veem TV no sofá. Ele fuma na varanda. Ela acaricia o gato. O gato
ronrona. Ele fecha a janela da varanda.

Duas semanas antes que Charly pulasse da varanda.

Ele vê TV no sofá. Ela fuma na varanda. O gato passeia entre as pernas dela. Ele ri do
que está vendo. Ela acaricia o gato. Ele ri mais alto. Ela acaricia o gato. Ele ri muito
mais alto. Ela fecha a janela da varanda.

Dois dias antes que Charly pulasse da varanda.

Ele come vendo TV no sofá. Ela está recostada ao lado dele. O gato come na varanda.
Ela esfrega a cabeça no corpo dele. Ele tenta comer. Ela se aproxima mais. Ele tenta
comer. Ela lhe dá um beijo. A comida dele cai no sofá. Ela ri. Ele fica furioso. Ela tenta
fazê-lo rir.

ELE: (grita) O sofá! (Sai)

Ela chora. O gato se aproxima dela.

ELA: (Com tristeza) Materialista!

O gato ronrona no colo dela enquanto tenta alcançar a comida derramada no sofá.

Aeroporto.
100 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

ELA: Olá.
Sim, sei que é você.
O que aconteceu?
Vou pra lá.

Da TV, se escuta: “A confusão que provocou seu temível mergulho – de perigo


incontestável –, transmitido várias vezes pela TV nas primeiras horas da tarde, fez
muitos jornalistas se juntarem no aeroporto à espera de sua chegada. Lá, García se
negou a fazer declarações e pegou um táxi, que foi novamente rodeado pelas câmeras.
Ao chegar ao seu apartamento, mais câmeras esperavam por ele. Um jornalista o
interceptou, e García lhe deu um soco. Depois, entrou no edifício e começou a jogar
coisas pela varanda...”

Track 4
“Influencia”

A TV está ligada com o vídeo de “Influencia” - <https://www.youtube.com/


watch?v=JfMhHi8Jf0A.>.

Dois meses, duas semanas e dois dias desde que Ela se foi.

Ele dorme no chão, apoiado na porta. O gato tenta acordá-lo. Ele dorme no chão,
apoiado na porta, O gato arranha a porta. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O
gato vai pra varanda, a janela está fechada. Ele dorme no chão, apoiado na porta,
O gato arranha a janela da varanda. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato
mia. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato grita. Ele dorme no chão, apoiado
na porta, O gato o arranha. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato ronrona.
Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato se joga contra a janela da varanda.
Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato se joga novamente contra a janela
da varanda. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato se joga contra a porta.
Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato se joga novamente contra a porta.
Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato cai. Ele dorme no chão, apoiado na
Say no more - Carla Antolyna Valles 101

porta, O gato sangra. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato grita. Ele dorme
no chão, apoiado na porta, O gato se joga contra as paredes. Ele dorme no chão,
apoiado na porta, O gato se joga em cima dele. Ele dorme no chão, apoiado na porta,
O gato chora. Ele dorme no chão, apoiado na porta, O gato cai. Ela abre a porta. Ele
dorme no chão, apoiado na porta, Ela abre a porta com mais força. Ele leva uma
porrada da porta, Ela consegue abrir a porta. Ele sangra, Ela corre pra ver O gato.

ELA: Que merda você fez com o gato?


ELE: Sente a sua falta, não aguenta,
eu sei que você não se importa.
Colocá-lo como um sapato velho,
sem pensar nem por um segundo
que você era a responsável por ele.
Não era seu fiel escudeiro?
Então, leva ele daqui!
ELA: É que não posso!
Estou sem casa de novo,
dormindo no aeroporto.
ELE: Quê? Não acredito.
Você quer me comover.
A loja não te dá dinheiro para alugar um lugar?
ELA: É que eu não queria gastar.
ELE: Quem te entende?
Você soltou bem as rédeas!
ELA: Economizei
e comprei uma passagem.
ELE: Agora você vai viajar?
Precisa de umas férias?!
ELA: Necessito de emoções,
não sei, outra paisagem...
ELE: Emoções?
ELA: Sim, minha vida...
ELE: Nossa vida!
102 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Eu e O gato somos parte do contrato!


ELA: Desculpa, estou decidida.
ELE: Vamos ver se você entende, querida,
eu não escolhi esse animal,
eu o aceitei porque, afinal,
era importante pra você.
E, agora que, ele está agonizando,
o problema é meu?
O gato sente sua falta,
então, melhor que você fique por aqui
para que ele melhore dessa doença.
Eu e O gato merecemos!
Não somos seres estranhos,
somos sua família,
assim, melhor você tirar isso da cabeça,
de que “meu capricho é lei”.
O rei não pode ir dormir
quando o povo está em vigília!
ELA: Só tenho doze horas
antes que decole meu avião.

Silêncio

ELE: Odeio você.


ELA: Também te odeio... viadinho.
ELE: Puta.
ELA: Fraco.
ELE: Desertora.
ELA: Egoísta.
ELE: Traidora.
ELA: Manipulador.
ELE: Covarde... Não me interessa seu grande escândalo de mulher decidida.
Say no more - Carla Antolyna Valles 103

Covarde! Viciada em fuga!

Silêncio.

Vai logo, já e tarde!

Ela oferece a mão para ele ficar em pé. Ele fica em pé sozinho.

ELA: Tenho doze horas.

Da TV, se escuta: “...Desde menino sempre quis voar, mas a lei da gravidade me
impediu. Mas pratiquei muito em um sítio onde havia muitos pinheiros. Comecei a
praticar ali. Tive de ir construindo trampolins cada vez mais altos...”

Track 5
Seminare Quilmes Rock

Duas horas depois.


Ele fuma na varanda, Ela está recostada na porta ao lado do gato. O gato respira
com dificuldade.

ELA: Passaremos a noite em claro vendo nosso gato morrer.


ELE: Você acha que eu o maltrato?
ELA: Não.
ELE: Responda, seja sincera.

Silêncio.

ELA: Você acha que agora ele sente dor?


104 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

ELE: Sim.
ELA: Onde? Que parte dói?
ELE: Tudo.

Silêncio.

ELA: Você acha que havia outro modo?


ELE: Não sei.

Silêncio.

ELA: É uma despedida?


ELE: O gato vai morrer, querida.
ELA: Você não sabe nem seu apelido.

Chove. Na TV se vê a atuação de Charly em Quilmes Rock 2004 cantando Seminare -


<https://www.youtube.com/watch?v=IKG9eiG-qMU>.

Ela tenta pegar O gato do chão. Ele a olha. Ela não consegue. Ele a olha. Ela não
consegue. Ele a olha. Ela não consegue. Ele a olha. Ela não consegue. Ele a olha. Ela
não consegue. Ela o olha. Ele oferece sua mão para colocá-la de pé. Ela fica em pé
sozinha. Ele a olha. Ela vai pra varanda. Ele pega O gato e o coloca no sofá. Ela o olha.
Ele traz água e limpa as feridas do gato. Ela o olha.

ELA: Você nunca gostou dele...


ELE: Aprendi...
ELA: Aprender? Isso se sente, não é questão da mente.
ELE: Bem, comigo aconteceu assim.
ELA: Agora você gosta do gato?
ELE: Sim.
Say no more - Carla Antolyna Valles 105

Silêncio.

ELA: Quer saber pra onde eu vou?


ELE: Não.

Silêncio.

ELA: Vou estudar.


ELE: Que bom.

Silêncio.

ELA: Você me odeia mesmo?


ELE: Com todo o coração.
ELA: Sério?

Silêncio.

ELE: O que você queria estudar?

A água derrama da mão dele no sofá. Ela corre pra limpar.

ELE: Materialista!

Ela chora.
Ele ri. Ela ri. Ele a abraça. Ela limpa as feridas dele. Ele chora como um menino.
Ela o olha.
106 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Track 6
“Me tire por vos”

Duas horas depois...

Se escuta na TV: “Houve nesse pulo uma expressão de liberdade”... Eu tinha


passado toda a manhã, injustamente, de delegacia em delegacia, ouvindo o que os
uniformizados me diziam: ‘Todos somos iguais diante da lei.’ Diziam isso para me
humilhar. Então, pensei: “Iguais, é o cacete. Olha isso.”

Ela dá água ao gato com uma colher. Ele cozinha algo com atum.

ELA: Coitado, foi criado preso.


ELE: Foi feliz, teve uma casa.
ELA: Mas nunca foi à praça,
não subiu em nenhum telhado,
sempre esteve aqui, isolado...
ELE: Foi feliz assim.
ELA: E se não?
ELE: Bom, não sei, já não foi.
E você se esquece de um detalhe.
Você que o tirou da rua!
ELA: Estava só, como é que eu poderia saber...
ELE: Bem, e teve companhia.
ELA: Mas isso é suficiente?
ELE: Não sei... é “algo” afinal,
o “todo” é uma utopia.
ELA: E “algo” é uma alegria?
ELE: Sim... não sei... mas eu gostaria
Say no more - Carla Antolyna Valles 107

de morrer da mesma maneira,


em minha casa, com minha gente,
acho que seria suficiente
para me alegrar o caminho.

Silêncio.
O gato vomita no sofá. Ele vai com um pano.
Ela pega O gato. O gato continua vomitando.

ELE: Quando você estiver longe te odiarei.


ELA: Eu lembrarei de você com amor.
ELE: Eu não, guardarei rancor
a cada noite que você não estiver
e desejarei uma e outra vez
que você diga: foi uma péssima decisão
ter subido nesse puto avião!
ELA: Eu te desejarei o melhor,
assim entendo o amor.
ELE: Não é entender, é intuição.

Silêncio.

Não me importa um caralho tua humildade


e teu lindo entendimento,
eu morro por dentro
se minha outra metade vai embora.
Não há teoria da liberdade
que me faça deixar de sentir sua falta,
tanto desejo sereno
me dá vontade de vomitar.
Grita! Me odeia! Chora!
Toma um gole desse veneno.
ELA: E, se não sofro, não vale?
Se não é um tormento,
108 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

o amor não é de verdade...


ELE: Vem, me dá um beijo...
ELA: Não, sai.
ELE: São sentimentos normais!
ELA: A solidão te assusta.
ELE: Não sei, talvez sim, é verdade,
mas quero estar contigo.
Eu não sou o inimigo!
ELA: Chega, não dificulta, pelo amor de Deus.

Ela fica em pé, sai, bate a porta. Ele liga a TV. Se vê Charly em sua atuação cantando
“Me tiré por vos” - https://www.youtube.com/watch?v=PUeZBVsquS4>.
Ela entra novamente. Ele a olha. Ela sai de novo. Ele vai pra varanda. Ela entra
de novo, tenta tirar o gato do sofá. Ele a impede. O gato reclama. Ela sacode O
gato. Ele sacode o gato. O gato reclama com mais força. Ela sacode mais forte O
gato. Ele o joga com mais força em cima dela. O gato a arranha. Ela solta O gato.
Ele a ajuda com o arranhão. O gato foge e se esconde. Ela o beija. Ele acaricia
seu arranhão. Ela o beija novamente. Ele a beija. Começam a sentir um cheiro de
queimado. Eles caem no sofá.

Track 7
“I’m not in love” / Acústico

Duas horas depois...


Se escuta na TV: “E deu certo. Não tive medo, não foi por raiva. Me vi forte, senti meu
passado, minha infância, meu pai, minha casa da infância estilo Mirtha Legrand, e
me disse: ‘Vou fuder com eles’”.
Eles estão abraçados com roupas íntimas. Eles comem atum grudado numa frigideira.
Say no more - Carla Antolyna Valles 109

ELE: Você quer estudar música!


Música! O nome do gato!
Você colocou nome de mulher,
para mim era injusto
e imediatamente me esqueci...
Coitado! Melhor chamá-lo de O gato,
pensei naquele momento,
depois me esqueci da história.
ELA: Você não me disse nada.
ELE: Iria mudar alguma coisa?
Te importaria?
ELA: Você devia ter tentado.
ELE: Eu devia ter me “jogado na piscina”...
Nunca entendi porque você se foi,
o amor? você? eu? a rotina?
ELA: Me dei conta quando você me disse.
ELE: Do salto? Era uma brincadeira.
ELA: Que tremendo personagem!
ELE: O que tem de mal a mensagem?
ELA: Você não gosta? Foi para agradar...
ELE: Bem, queria deixar de brigar...
é só um louco... uma reportagem...
ELA: Eu o admiro, admiro o que fez.

Silêncio. Ela fica em pé, começa a procurar sua roupa, se dá conta de que falta algo.

ELA: E o gato?

<Começa a tocar “I’m not in love”, versão acústica - <https://www.youtube.com/


watch?v=ex5LEZRz2jA>.
Ele se ergue rápido. Ela procura O gato. Ele procura O gato. Ela procura O gato.
110 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Ele procura O gato. Ela procura O gato. Ele procura O gato. Ela procura O gato.
Ele procura O gato. Ela procura O gato. Ele procura O gato. Ela procura O gato. Ele
procura O gato. Ela procura O gato. Ele procura O gato…

Pause II

Silêncio
Duas horas depois…
Ele esperando no sofá. Ela esperando na varanda. O gato não está. Começa a amanhecer.

ELE: Deixa ele morrer na sua lei.

Ela chora como uma menina. Ele se aproxima dela.

ELE: Dará seu último suspiro lembrando da gente.


ELA: Vai nos deixar infinitamente.
ELE: Olha pra mim.
ELA: Eu te olho.
ELE: Você não me ama.

Silêncio.

ELA: Não te admiro.

Silêncio.
Say no more - Carla Antolyna Valles 111

ELA: (grita pela varanda) Boa viagem, companheiro!


ELE: Não te admiro, e sim te amo.
ELA: Isso é uma despedida?
ELE: Perdemos o gato, querida.

Eles riem.

ELA: Me dá um abraço forte?

Silêncio.
Ele sai. Ela pega suas coisas. Ele aparece com um guarda-chuva na mão.

ELE: Te desejo muita sorte!

Silêncio.
Ela ri. Ele a olha. Ela vai à porta. Ele vai pra varanda.

ELA: Você vai me esquecer?


ELE: Claro.
ELA: Acho que eu também.
ELE: Aposto.
ELA: Você ainda acha que eu estou fugindo?
ELE: Sim.
ELA: Você continua me amando?
ELE: Sim, mas vou aprender...
ELA: Tudo bem.

Ela sai. Silêncio. Ele está na varanda.


112 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

A TV é ligada, se escuta: “ Charly, como você sabia que iria sobreviver da queda de
um nono andar? – Primeiro, joguei um gatinho de madeira que havia no meu quarto
e, quando caiu na piscina, entendi que eu também poderia fazê-lo.
Chove.
Escuro.

Bônus track
“Alguien en el mundo piensa en mí”

Duas horas depois...


O espaço está vazio. É de dia e já não chove. O gato aparece de um lugar insólito. Se
espreguiça, boceja, se sacode, vai à geladeira, pega uma garrafa de leite, a bebe inteira,
pega outra, a bebe inteira, pega outra, a bebe inteira, pega outra, a bebe inteira, pega
outra, a bebe inteira.

O GATO: “ ...A coisa era assim: achei que tinha uns 70 por cento de possibilidades de
cair na piscina e uns 30 de me matar. A verdade é que não sei qual foi o detonador...”

Ri, liga a TV, aparece Charly cantando “Alguien en el mundo piensa en mi”, en Luna
Park: <https://www.youtube.com/watch?v=Wivu4bBkJjw>. O gato pega impulso
para pular da varanda, para, sobe no sofá, urina. Corre até a varanda. Desaparece.
Sobe a música. A luz se vai.

Stop
213

Say no more

Carla Antolyna Valles

Personajes

El
Ella
El gato
214 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Tiempo y espacio
Es la noche de hoy, es varias noches de un hoy, un hoy parecido a hoy repetido
igual mil veces; es en el centro de la ciudad, un centro de la ciudad parecido
a los centros de todas las ciudades que conozco, apretado, claustrofóbico,
sublimemente caótico, con un encanto sinfónico y ensordecedor.

La acción transcurre en un pequeño departamento, rodeado de pequeños


departamentos, en un noveno piso, cuya vista sólo choca con las vistas de otros
pequeños departamentos de los otros novenos pisos del centro de una ciudad.

Es invierno, a veces llueve, a veces no, pareciera ser que no importa, pero nunca
es lo que parece.

Siempre hace frío, no hay estufa, sólo queda cerrar las ventanas del balcón
para evitarlo.

Un sillón. Una televisión.


Say no more - Carla Antolyna Valles 215

Intro
“Asesíname”

Oscuro, se enciende la televisión y se ve esta versión de la canción “Asesíname”


de Charly García: <https://www.youtube.com/watch?v=2TJ1ISraN2M>.
Desorden, en el sillón el gato está solo rodeado de botellas de leche vacías, bebe
otra botella y otra y otra más…

Se alumbra la figura de ÉL en el balcón. Llueve.

Él: Fue la noticia del salto,


simplemente la enloqueció.

Entra ELLA, se enciende la luz, todo parece en su lugar, el sonido de la lluvia


se convierte en el sonido del tráfico.

ELLA: ¿Escuchaste lo que pasó?


ÉL: Sí, yo lo encuentro un espanto.
ELLA: A mí me parece un santo.
ÉL: ¡Se tiró por la ventana,
no es una persona sana!
ELLA: ¡Se tiró por un balcón!
ÉL: Muy diferente, perdón.
ELLA: Se ve que no entiendes nada,
el tipo hizo algo importante.
ÉL: Lo que hizo el tipo fue ilegal.
ELLA: Pero se convirtió en inmortal,
el tipo es tan arrogante
que no dudó ni un instante
poder ganarle a la muerte.
No fue sólo buena suerte,
hay algo más en ese enredo:
216 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

¡Le perdió el miedo al miedo!


¡Ganó la ley del más fuerte!

Silencio. Pasa una noche, dos, tres, saluda, cierra la puerta, atender al gato,
comer, computador, televisión, celular, cuatro, cinco, seis, saluda, cierra la
puerta, comer, computador, televisión, celular, llueve.

ÉL: Era todo una locura,


día y noche hablaba de ÉL
dio más vueltas que un carrusel
comentando la aventura,
fue perdiendo la cordura
pensando en el relato.
¡No la aguantaba ni el gato!
Ella se dedicaba a hablar,
yo me dedicaba a fumar
pa`poder pasar el rato.
ELLA: ¿Y el gato? ¿lo has visto mi amor?
Algo le pasa a ese animal
hace días que lo veo mal,
¿te parece?
ÉL: Será el calor.
ELLA: Estamos en invierno mi amor.
ÉL: Bueno entonces el frío.
ELLA: No está.
ÉL: ¡Saltó al vacío!
se tiró por ese balcón,
quería darte una emoción
¡Sin miedo cruzar el río!

Silencio.
…Siete, ocho, nueve, saluda, cierra la puerta, atender al gato…

ELLA: Voy a cocinar lentejas.


ÉL: ¡Me encantan! y al gato también.
Say no more - Carla Antolyna Valles 217

Silencio.
Desde entonces se puso zen,
silenciosa como almeja,
obediente como oveja.
Un día se olvidó del “no”,
del vocabulario lo borró,
a todo decía que “sí;
decir que “no” me tocó a mí.

…Diez, saluda, cierra la puerta…

ELLA: ¡Mi amor el gato vomitó!


ÉL: Deben ser bolas de pelos,
es normal para su edad.
ELLA: ¿Y si se enfermó de verdad?
ÉL: Andaría por el suelo.
Límpialo con un pañuelo
y listo .

..Atender al gato, comer…

ELLA: ¿Quieres al gato?

ÉL: Preferiría un pato.


¡Lo quiero como a mi sombra!
¿Te ayudo a limpiar la alfombra?
ELLA: No. voy al balcón un rato.

…Televisión, computador, celular, once, doce, trece, saluda, cierra la puerta,


atender al gato, comer, balcón.

ÉL: Había que usar la afirmación:


los “no”, era lo lógico,
esto no es un zoológico
es una civilización.
Me tocó por obligación,
218 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

pero sus “sí” los anulaban,


veía como se secaban
lento, hasta desaparecer…

ELLA: Yo creo que hoy va a llover.


ÉL: Es invierno, se esperaba.
ELLA: Al gato le gusta la lluvia.
ÉL: ¿Enserio?
ELLA: Sí, y a ti ¿te gusta?
ÉL: No sé

…Televisión, computador, celular…

ELLA: Los truenos me asustan.


Va a llover. Yo voy a dormir.
ÉL: Y yo no supe que decir.

El silencio se hizo inmenso,


el aire se puso denso,
cada día menos ruido,
solo el gato y sus maullidos
nos rompían el suspenso.

…Catorce, quince, dieciséis, entra, atiende al gato, va al balcón.

¿Prendemos la televisión?

ELLA: ¡Sí! ¿Te gusta este canal?


ÉL: ¡No
ELLA: ¿Entonces dejo cuál?
ÉL: Noticiero, información,
no me gusta la ficción.
Say no more - Carla Antolyna Valles 219

ELLA: ¡A mí me encantan las noticias!


ÉL: Solo cuentan injusticias,
¡cambia!
ELLA: ¡Mira! un documental.
ÉL: Fome.
ELLA: ¡Cambio al otro canal…!
ÉL: Y de pronto una caricia
y una se convirtió en miles
y miles luego en millones,
luego en universos,
dimensiones,
infinitos…

¡Para ahí! ¡Un reportaje!

Y le brillaron los ojos:


vestido de traje rojo
estaba ÉL en un viaje:

¡Qué tremendo personaje!

Ella cambio de inmediato,


fue la miga que colmó el plato.

ELLA: “No era necesario”.

ÉL: …dijo resuelta


antes de cerrar la puerta.
¡Espera!
¿Qué hacemos con el gato?
¿lo llevas?

ELLA: No.

Mientras EL y EL GATO la ven irse se escucha en la televisión:


-Charly, ¿cómo sabías que ibas a sobrevivir a la caída de un noveno piso?
220 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

-Primero tiré un gatito de madera que había en la habitación y cuando cayó


en la piscina entendí que yo también podía hacerlo.

TRACK 1
“Soy un vicio mas”

Suena “Tu Vicio” de Charly García.


Como si fuera un video clip vemos a EL y el GATO en una secuencia de
acciones:

Dos días desde que ELLA se fue.

EL sale
EL GATO va a la puerta
EL entra
EL GATO se esconde
EL se sienta, toma una cerveza
EL GATO va a la puerta
EL sale
EL GATO se esconde
EL entra, da vueltas
EL GATO va a la puerta
EL va al balcón, fuma
EL GATO rasguña la puerta
EL sale
EL GATO se esconde
Say no more - Carla Antolyna Valles 221

EL entra, toma el celular


EL GATO va a la puerta
EL da vueltas con el celular
EL GATO llora en la puerta
EL le tira el celular al gato.
EL GATO se esconde
EL prende la tv.

Dos semanas desde que ELLA se fue.

EL entra
EL GATO corre a esconderse
EL tropieza con la comida del gato, la derrama.
EL GATO se asoma
EL trata de recoger la comida, derrama el agua.
EL GATO va a la puerta.
EL busca algo para limpiar, solo encuentra confort.
EL GATO rasguña la puerta
EL le lanza el confort al gato
EL GATO se esconde
EL busca comida, encuentra una lata de atún
EL GATO se asoma
EL se sienta en el sillón con la lata y una cerveza
EL GATO se acerca
EL le lanza un trozo de atún
EL GATO se acerca, lo huele, va a la puerta, llora
EL le lanza la botella de cerveza.
EL GATO se esconde.
EL prende la tv.
222 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Dos pares de semanas desde que ELLA se fue.

EL GATO esta solo entre botellas de cerveza y latas de atún, la televisión está
prendida.
EL entra borracho besándose con una mujer borracha
EL GATO se esconde
EL y la mujer se besan en el sillón
EL GATO llora al lado de una lata vacía de atún
EL le lanza cualquier cosa al gato
EL GATO sigue llorando
EL busca una lata nueva de atún
EL GATO lo sigue
La mujer borracha se duerme en el sillón
EL intenta despertar a la mujer
EL GATO come su atún al lado de ellos
La mujer ronca
EL va a la puerta. Llora.
EL GATO lo sigue.

Dos meses desde que ELLA se fue.


EL y EL GATO están sentados en el sillón, cada uno con una lata de atún
viendo TV. Se escucha:

¿Cuánto tiene la pileta?”


gritó Charly García al joven bañero desde la terraza del hotel Aconcagua.
“Tres metros de hondo...”
contestó Lucas Rodríguez, siete pisos más abajo.
Y García se tiró sin escuchar el final de la frase del bañero:
“...pero recién la están llenando...”.

EL: Despierto, café, tostadas.


Say no more - Carla Antolyna Valles 223

El gato me mira, yo no;


el gato nunca me gustó.
Café, silencio, la nada.
El gato y su mirada
me sigue, maúlla, me ve.

Hace dos meses que se fue


Lo espanto, le grito… lloro,
Silencio…vodka, un porro,
la tele, cigarro, café…

Dos meses, ninguna visita,


ninguna explicación ,nada.
Vodka, insomnio, madrugada,
una eternidad maldita,
eteeeeeeeerna, infinita.
Un infierno parecido
al mismo día repetido:
Silencio, cigarro, café,
la tele, silencio otra vez…
dos meses, ningún sentido.
Él la espera en la puerta,
la busca por la cocina,
la huele, la imagina…

¡Basta gato, está muerta!


Pero él insiste en darle vueltas
a la sombra del recuerdo.

¡Por tu culpa no estoy cuerdo


gato obsesivo, maricón,
no tienes ningún perdón,
eres un animal enfermo!

¡Los gatos son independientes,


saben cruzar el laberinto,
sobreviven con su instinto!
¡Los gatos son inteligentes!
224 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Tú no, tú eres un gato demente,


un adicto a su presencia,
delirium tremens de su ausencia,
vicioso de su compañía,
devoto de la agonía
que te causa su carencia.

Yo no elegí quedarme contigo,


no elegí nada en esta historia,
¡Sácala de tu memoria,
ella es nuestro enemigo!
nos dejó, fuiste testigo,
sigamos con nuestra vida
y curemos esta herida…

Pero el gato traidor


no me escucha, va al balcón
a esperar por su venida.

Insomnio, televisión,
silencio, cigarro, café.
El gato me mira, yo también

¡Penélope en la estación,
eso parecis, gato hueón!

El gato no se ríe, yo sí.


la busca,

¡No está aquí,


te lo he dicho tres mil veces!

Ni una palabra en dos meses

¿Qué es lo que quieres de mí?

Dos meses, dos semanas desde que ella se fue


Say no more - Carla Antolyna Valles 225

EL y EL GATO están acostados juntos en el sillón.


EL GATO come atún
EL toma cerveza.

A ella la traerá sólo tu muerte,


la culpa insoportable
de haber sido irresponsable
por buscar su propia suerte.
Llorará tu cuerpo inerte
deseando mis abrazos,
pero habrá vencido el plazo
pa`recibir mi consuelo.
¡Quiero verla por el suelo
cuando sienta mi rechazo!

Y quiero que se arrepienta,


No una, sino mil veces
¡que le duelan estos dos meses
hasta que cumpla los noventa!
Y quiero que una tormenta
le nuble todos los días,
que siempre sea agonía
nuestro nombre en su memoria,
y para siempre en su historia
ser su única alegría.
Y es que fuimos su alegría
¿Verdad?
Es una masoquista
es cobarde, una escapista
¡saltó el Charly García
y le bajo la anarquía!
¡¿Creerá que soy pelotudo?!
Yo creo que soy cornudo
Apareció otro en su ruta
¡Maraca, hija de puta!
Por eso ningún saludo.
226 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Dos horas después.

EL GATO en el sillón ve TV.


EL cocina algo con atún.

Ya lo tengo decidido:
Voy a matar al gato
será este mi contrato
pa`vengarme del olvido.
Café, cigarro encendido.
(más de dos meses, ni una llamada)
Lo odio, odio esa mirada,
odio que maúlle, que grite,
odio que la necesite,
que aún espere su llegada.

Lo odio, al gato, a ella.


El gato llora de hambre,
no voy a darle ni`un fiambre,
quiero que sufra, que muera.
Lo odio, al gato, a ella.
Ella lo quería, yo no.
Quiero decirle que murió,
quiero verla miserable,
que ella se sienta culpable
por saber que lo abandonó

Odio el lado de la cama


que me sobra cuando duermo,
odio que sea siempre invierno,
odio todas las mañanas
y odio todas las semanas
de estos últimos dos meses,
odio odiar, me enfurece,
me siento la sangre amarga,
me siento la vida larga
Odio todas tus estupideces.
Say no more - Carla Antolyna Valles 227

Odio tu esperar sereno,


odio que tengas esperanzas,
porque yo necesito venganza
pa` endulzarme este veneno.
Yo soy un hombre bueno,
pero estoy perdiendo el foco,
me estoy volviendo loco!

¡Nos rompió el corazón


sin ni una sola explicación!
¿Acaso te parece poco?

La furia llegó inmediato,

¡Y si me joden, te jodo!

Terminé rompiendo todo,


espejos, ventanas y platos.
Sentí vergüenza frente al gato,
él, quieto como un retrato,
me miraba con paciencia

Gato, me duele la existencia


le dije como un niño,
él me miraba, con cariño,
con animal inocencia.

Dos meses, dos semanas y dos días desde que ella se fue.

EL y EL GATO están recostados en la puerta.


Llueve.

El gato pareció entender,


ya no come hace dos días,
yo vigilo su agonía
como Penélope en el andén
esperando pal` amén.
228 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Gato, tu nombre no me lo sé,


ella te dio uno, yo lo olvidé.

Me mira, la extraña, yo igual

¡Eres dependiente animal!

Lo abrazó, me abraza, no sé.

Silencio, café, lloramos;


sí, los dos, el gato y yo…

-Hola, soy yo,


el gato está mal,
te necesita…¿ puedes venir-?

TRACK 2
“Pasajera en trance”

Se enciende la TV mostrando la introducción de Pasajera en Trance en el café


Berlín de Madrid en 1999, Charly increpa al público diciéndoles:

-Aburrida tu abuela, te voy a matar entiendes… ¡Yo soy Dios!.... ¡Sharap!...


Elimináme un par de seres que hay por ahí, que me molestan….

Aeropuerto.

ELLA: He vivido en doce casas


en los últimos seis años.
No celebro el cumpleaños
casi siempre se me pasa;
Say no more - Carla Antolyna Valles 229

prefiero la sopa en taza,


el mate con aguardiente,
tomar vino bien caliente
con naranjas y canela.
Nunca me gustó la escuela,
siempre me gustó la gente.

Me deprimo con el frío


y me escapo del invierno
coleccionando recuerdos
que me entibien el vacío.
Siempre creo que confío
demás en mi buena suerte.
Siempre imagino mi muerte
llena de sangre y violencia,
en la calle y sin conciencia
acuchillada, frágil, inerte.

Me asusta ser vulnerable


y me asusta la oscuridad,
caminar sola en la ciudad
se me hace insoportable.
Por eso fue inevitable
sentir amor cuando lo ví
solo, confundido, ahí
en un lugar tan bizarro,
mojado, lleno de barro,
tan triste, tan igual a mí.

Un gato en el aeropuerto
¿Perdido o abandonado?
me miró desesperado
con soledad de desierto.
¡vienen los guardias! Advierto.
¡a mi tienda! ¡al interior!
¡tate callao` porfavor!
Y entre discos de violeta,
souvenires y maletas
comenzamos nuestro amor.
230 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

Se escucha desde la TV:


¿La sensación?... El vacío, y después el agua mojada. ¿Miedo? Sí, un poquito,
pero si no no tiene gracia”

TRACK 3
“Demoliendo hoteles”

En la Tv se proyecta la grabación del Estudio Piano Bar de 1984 de “Demolindo


hoteles” - <https://www.youtube.com/watch?v=zE_AikzYw00>.
Dos meses, dos semanas, dos días y dos horas antes que Charly saltara por el
balcón.

ELLA y EL GATO están mojados en el umbral de la puerta


EL ve televisión
ELLA estornuda
EL GATO también
EL le sube el volumen a la TV
ELLA le lanza la cartera
EL la esquiva
ELLA apaga la tv
EL le lanza un cojín
ELLA lo esquiva
EL intenta prender la tv
ELLA lo impide
EL GATO entra y se orina en el sillón.
Say no more - Carla Antolyna Valles 231

Dos meses, dos semanas y dos días antes que Charly saltara por el balcón.

ELLA llora en el sillón secándose el pelo


EL intenta limpiar el sillón
EL GATO llora encerrado en el balcón.
ELLA: (le grita) ¡Materialista!
EL: (le grita) ¡Soy pobre! ¡No tengo plata para otro sillón!

Llueve
EL GATO grita en el balcón
ELLA corre a abrirle al gato
EL se lo impide
ELLA llora en el sillón
EL toma el secador y seca el sillón
ELLA: (le grita) ¡Materialista!

Dos meses y dos semanas que Charly saltara por el balcón.

EL GATO está encerrado en el balcón, ahora tiene un plato de comida, agua


y una caja.
ELLA espera impaciente
EL aparece con una chaqueta
ELLA pone mala cara
EL aparece con otra chaqueta
ELLA pone peor cara
EL aparece con otra chaqueta
ELLA se la saca y desaparece con la chaqueta
EL va a asegurar la ventana del balcón
ELLA aparece con una chaqueta en la mano
EL pone mala cara
232 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

ELLA le pone la chaqueta, lo abraza, lo besa


El pone buena cara

Salen

El se detiene, se mira en el reflejo de la ventana

Salen

ELLA vuelve, abre la puerta del balcón

Sale

EL GATO entra, orina en el sillón.

Dos meses antes que Charly saltara por el balcón.

ELLA y EL GATO ven tv en el sillón


EL fuma en el balcón
ELLA acaricia al gato
EL GATO ronronea
EL cierra la ventana del balcón.

Dos semanas antes que Charly saltara por el balcón

EL ve tv en el sillón
ELLA fuma en el balcón
EL GATO se pasea entre las piernas de ELLA
EL se ríe de lo que está viendo
ELLA acaricia al gato
EL se ríe más fuerte
ELLA acaricia al gato
EL se ríe mucho más fuerte
ELLA cierra la ventana del balcón

Dos días antes que Charly saltara por el balcón.


EL come viendo tv en el sillón

ELLA está recostada al lado del EL


Say no more - Carla Antolyna Valles 233

EL GATO come en el balcón


ELLA refriega su cabeza en el cuerpo de EL
EL intenta comer
ELLA se acerca más
EL intenta comer
ELLA se acerca más
EL intenta comer
ELLA le da un beso
A EL se le derrama la comida sobre el sillón
ELLA se ríe
EL se enfurece
ELLA trata de hacerlo reír.

EL: (le grita) ¡El sillón! (Y se va)

ELLA llora
EL GATO se acerca a ELLA

ELLA: (dice con tristeza) ¡Materialista!

EL GATO ronronea en su regazo mientras trata de alcanzar la comida


derramada en el sillón.

Aeropuerto.

ELLA: -Hola,
Si sé que eres tú
¿Qué paso?
Voy para allá.

Se escucha desde la Tv:

El revuelo que armó su temeraria zambullida -de indudable peligrosidad-


transmitida por TV una y otra vez en las primeras horas de la tarde, hizo que
muchos periodistas se congregasen en el Aeropuerto a la espera de su llegada.
Allí García se negó a hacer declaraciones y subió a un taxi, que fue nuevamente
rodeado por las cámaras.
Al llegar a su departamento lo esperaban más cámaras. Un periodista lo
interceptó y García le dio un puñetazo.
Después entró al edificio y comenzó a arrojar cosas por su balcón…
234 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

TRACK 4
“Influencia”

Se enciende la TV con el video de Influencia: <https://www.youtube.com/


watch?v=JfMhHi8Jf0A>.

Dos meses, dos semanas y dos días desde que ella se fue.

EL duerme en el suelo apoyado en la puerta


EL GATO trata de despertarlo
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO rasguña la puerta
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO va al balcón, la ventana está cerrada
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO rasguña la ventana del balcón
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO maúlla
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO grita
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO lo rasguña
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO ronronea
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se lanza contra la ventana del balcón
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se vuelve a lanzar contra la ventana del balcón
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se lanza contra la puerta
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se lanza otra vez contra la puerta
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO cae
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO sangra.
Say no more - Carla Antolyna Valles 235

EL duerme en el suelo apoyado en la puerta


EL GATO grita
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se lanza contra las paredes
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se lanza contra el
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO se vuelve a lanzar contra el
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO llora
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
EL GATO cae
ELLA abre la puerta
EL duerme en el suelo apoyado en la puerta
ELLA abre la puerta más fuerte
EL se golpea con la puerta
ELLA logra abrir la puerta
EL sangra
ELLA corre a ver al gato.

ELLA: ¿Qué mierda le hiciste al gato?


EL: Te extraña, no lo soporta,
yo sé que a ti no importa.
¡Botarlo como zapato
viejo, sin pensar ni ‘ un rato
que eras responsable d` él!
¿no era tu compañero fiel?
¡¡llévalo!!
ELLA: ¡es que no puedo!
Estoy sin casa denuevo,
durmiendo en el aeropuerto.
EL: ¡¿qué?! No te creo, no es cierto.
¿quieres ver si me conmuevo?
¿no te da plata la tienda
para arrendarte un lugar?
ELLA: Es que no quería gastar.
236 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

EL: ¡ A ti no hay quien te entienda ,


se te soltó bien la rienda!
ELLA: Ahorré y me compré un pasaje.
EL: ¡¿Ahora te vas a ir de viaje?!
¡¿necesitas vacaciones?!...
ELLA: Necesito emociones,
que se yo, otro paisaje…
EL: ¡¿Emociones?!...
ELLA: Sí, mi vida…
EL: ¡Nuestra vida! ¡ yo y el gato
somos parte del contrato!
ELLA: Lo siento, estoy decidida.
EL: A ver si entiendes querida,
yo no elegí a este animal,
yo lo acepté porque al final
para ti era importante
¡¿y ahora que`sta agonizante
es mi problema personal?!
El gato te hecha de menos
así que te quedas acá
pa´que pase la enfermedá.
¡Yo y el gato lo merecemos!
No somos seres ajenos
más bien somos tu familia
así que mejor exilia
eso de “mi capricho es ley”,
¡No puede ir a dormir el rey
cuando el pueblo está en vigilia!
ELLA: Solo tengo doce horas
antes que despegue mi avión.

(Silencio)

EL: Te odio
ELLA: Y yo a ti… maricón.
Say no more - Carla Antolyna Valles 237

EL: Puta.
ELLA: Débil.
EL: Desertora.
ELLA: Egoísta.
EL: Traidora.
ELLA: Manipulador.
EL: Cobarde…
No me interesa tu alarde
de gran mujer decidida,
¡Cobarde! ¡Adicta a la huída!

(Silencio)

¡Ándate, se te hace tarde!

ELLA le ofrece la mano para ponerlo de pie.


EL se para solo.

ELLA: Tengo doce horas.

Se escucha desde la tv:

“…Desde chico siempre quise volar, pero me lo impidió la ley de gravedad. Pero
practiqué mucho, en una quinta había muchos pinos y empecé a practicar ahí.
Tuve que construirme trampolines cada vez más altos…”.
238 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

TRACK 5
“Seminare” Quilmes Rock

Dos horas despúes…

EL fuma en el balcón
ELLA esta recostada en la puerta junto al gato
EL GATO respira con dificultad.

ELLA: Pasaremos la noche en vela


viendo morir nuestro gato.
EL: ¿Tú crees que lo maltrato?
ELLA: No.
EL: Responde, se sincera…

Silencio.

ELLA: ¿Crees que ahora le duela?


EL: Sí.
ELLA: ¿Dónde? ¿Qué parte?
EL: Todo

Silencio.

ELLA: ¿Crees que había otro modo?


EL: No sé.

Silencio.

ELLA: ¿Es una despedida?


EL: Se muere el gato querida.
ELLA: Tú no sabes ni su apodo.
Say no more - Carla Antolyna Valles 239

Llueve.

En la TV se ve la actuación de Charly en Quilmes Rock 2004, cantando


“Seminare” - <https://www.youtube.com/watch?v=IKG9eiG-qMU>.

ELLA intenta recoger al gato del suelo


EL la mira
ELLA no lo logra
EL la mira
ELLA no lo logra
EL la mira
ELLA no lo logra
EL la mira
ELLA no lo logra
EL la mira
ELLA lo mira
EL le ofrece la mano para ponerse de pie
ELLA se para sola
EL la mira
ELLA sale al balcón
EL toma al gato y lo pone en sillón
ELLA lo mira
El trae agua y limpia las heridas del gato
ELLA lo mira.

ELLA: Nunca lo quisiste…


EL: Aprendí…
ELLA: ¿Aprender? eso se siente,
no es cuestión de la mente.
EL: Bueno, así me paso a mí.
ELLA: ¿Ahora quieres al gato?
EL: Sí.

Silencio.
240 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

ELLA: ¿Te cuento donde voy a viajar?


EL: No.

Silencio.

ELLA: Me voy a ir a estudiar.


EL: Que bien.

Silencio.

ELLA: ¿Me odias en realidad?


EL: Con todo el corazón.

ELLA: ¿Verdad?

Silencio.

EL: ¿Qué es lo que querías estudiar?...

A EL se le derrama el agua en el sillón


ELLA corre limpiarlo
EL le dice: ¡Materialista!
ELLA llora
EL ríe
ELLA ríe
EL la abraza
ELLA le limpia las heridas a el
EL llora como un niño.
ELLA lo mira.
Say no more - Carla Antolyna Valles 241

TRACK 6
“Me tiré por vos”
Dos horas despues…

Se escucha en la tv:

“Hubo en ese salto una expresión de libertad… me había pasado toda la


mañana, injustamente, de comisaría en comisaría escuchando que los
uniformados me dijeran: “Todos somos iguales ante la ley”. Lo decían para
humillarme. Entonces pensé: “Iguales, tu madre. Mirá, hacé esto”…

ELLA: le da agua al gato con una cuchara


EL: cocina algo con atún
ELLA: Pobre, se crió encerrado.
EL: Fue feliz, tuvo una casa.
ELLA: Pero nunca fue a la plaza,
no subió ningún tejado
siempre estuvo aquí, aislado…
EL: Fue feliz así…
ELLA: ¿Y si no?
EL: Bueno no sé, ya no pasó.
Y se te olvida un detalle:
¡Tú lo sacaste e`la calle!
ELLA: Estaba solo, que se yo…
EL: Bueno y tuvo compañía.
ELLA: ¿Pero es eso suficiente?
EL: no sé… es “algo” finalmente,
el “todo” es una utopía.
ELLA: ¿Y el “algo” es una alegría?
EL: Sí… no sé… pero yo quisiera
morir de la misma manera
en mi casa, con mi gente
creo que sería suficiente
242 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

pa`alegrarme la carrera.

Silencio.

El GATO vomita en el sillón.


EL va con un paño
ELLA sujeta al gato
EL GATO sigue vomitando.

EL: Cuando estés lejos te odiaré.


ELLA: Yo te recordaré con amor.
EL: Yo no, te guardaré rencor
por cada noche en que no estés
y deseare una y otra vez
que digas: ¡fue mala decisión
haberme subido a ese puto avión!
ELLA: Yo te desearé lo mejor
así entiendo yo el amor.
EL: no es entender, es intuición.

Silencio

Me importa un carajo tu humildad


y tu lindo entendimiento ,
yo me muero por dentro
si se va mi otra mitad.
No hay teoría de la libertad
que no me haga echarte de menos,
tanto deseo sereno
me dan ganas de vomitar
¡Grítame, ódiame, ponte a llorar!
Tómate un trago de este veneno

ELLA: ¿Y si no sufro no vale?


si no se vuelve tormentoso
no es cierto lo amoroso…
Say no more - Carla Antolyna Valles 243

EL: Ven dame un beso…


ELLA: No, sale.
EL: ¡Son sentimientos normales!
ELLA: A ti te asusta la soledad.
EL: No sé, tal vez sí, es verdad,
pero quiero estar contigo.
¡Yo no soy el enemigo!
ELLA: Basta, hazlo fácil, ¡por piedad!

ELLA se para, sale, golpea la puerta


EL prende la tv , se ve Charly en su actuación en CM cantando “Me tiré por
vos” <https://www.youtube.com/watch?v=PUeZBVsquS4>.
ELLA vuelve a entrar
El la mira
ELLA vuelve a salir
El va al balcón
ELLA vuelve a entrar, trata de llevarse al gato del sillón
EL se lo impide
EL GATO se queja
ELLA tironea al gato
EL tironea al gato
EL GATO se queja más fuerte
ELLA tironea más fuerte al gato
EL la sujeta más fuerte a ella
EL GATO la rasguña a ella
ELLA suelta al gato
EL la ayuda con el rasguño
El GATO huye y se esconde
ELLA lo besa
EL le acaricia el rasguño
ELLA lo vuelve a besar
EL la besa.

Comienza a sentirse olor a quemado.

ELLOS caen al sillón.


244 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

TRACK 7
“I’m not in love” / Acustico

Dos horas despúes…

Se escucha en la tv:

“…Y salió bien. No tuve miedo, no fue de rabia. Me vi fuerte, sentí mi pasado,
mi niñez, mi padre, mi casa de la infancia estilo Mirtha Legrand, y me dije:
”Los voy a joder”.
ELLOS están abrazados en ropa interior.
ELLOS comen atún pegado en un sartén.

EL: ¡Quieres estudiar música!


¡Música! ¡El nombre del gato!
Le pusiste nombre de mujer,
era injusto a mi parecer
y lo olvidé de inmediato…
¡pobre! ¡mejor le digo gato!
pensé yo en ese momento,
después me olvidé del cuento.

ELLA: A mí no me dijiste nada.


EL: ¿Cambiaría? ¿importaba?
ELLA: Hubieras hecho el intento.
EL: Me hubiera “lanzado a la piscina”…
Nunca entendí por qué te fuiste
¿el amor? ¿tu? ¿yo? ¿la rutina?
ELLA: Me di cuenta cuando lo dijiste.
EL: ¿Lo del salto? ¿Es un chiste?
ELLA: “¡Que tremendo personaje!”
EL: ¿Qué tiene de malo el mensaje?
ELLA: No te gusta, fue para agradar…
EL: Bueno, quería dejar de pelear…
Say no more - Carla Antolyna Valles 245

es sólo un loco… un reportaje…


ELLA: Yo lo admiro, admiro lo que hizo.

Silencio.

EL: Yo no.

Silencio.

ELLA se para, comienza a buscar su ropa, se da cuenta que falta algo.

ELLA: ¿Y el gato?

Comienza sonar “I’m not in love” version acustica -


<https://www.youtube.com/watch?v=ex5LEZRz2jA>.

EL se para rápido
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato
ELLA busca al gato
EL busca al gato…
246 P.E.R.I.F.É.R.I.C.O - dramaturgias latino-americanas

PAUSE II
Silencio

Dos horas después…

EL esperando en el sillón
ELLA esperando en el balcón
EL GATO no está.

Comienza a amanecer.

EL: Déjalo morir en su ley.


ELLA: llora como una niña.
EL: Va buscarla
EL: Dará su último respiro
recordándonos fijamente.
ELLA: Se nos irá infinitamente.
EL: Tú me miras.
ELLA: Yo te miro.
EL: No me quieres.

Silencio.

ELLA: No te admiro.

Silencio.

ELLA: grita por el balcón: ¡Buen viaje compañero!

EL: No te admiro, sí te quiero.


ELLA: ¿Esto es una despedida?
EL: Se nos perdió el gato querida.
Say no more - Carla Antolyna Valles 247

ELLOS ríen.

ELLA: ¿Me das un abrazo fuerte?

Silencio.

EL: sale.
ELLA: recoge sus cosas.
EL: aparece con un paraguas en la mano.
EL: ¡Te deseo mucha suerte!.

Silencio.

ELLA se ríe
EL la mira
ELLA va a la puerta
EL va al balcón

ELLA: ¿Me olvidaras?


EL: Por supuesto.
ELLA: Creo que yo también.
EL: Lo apuesto.
ELLA: ¿Aún crees que estoy huyendo?
EL: Sí.
ELLA: ¿Aún me sigues queriendo?
EL: Sí… pero aprenderé.
ELLA: Es cierto.

ELLA sale
Silencio
EL está en el balcón.

Você também pode gostar