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Orpheu ‘XXI

Volume 1- Nº2 – 2022

PORTUGrAL
CONDIÇÕES

Convidamos todos os aqueles cuja simpatia esteja com a índole


desta revista a enviarem-nos colaboração nos vários géneros e
tipologias de texto. No caso de não ser incluída na nossa publicação
devolveremos os originais.
Toda a correspondência deve ser dirigida aos directores (ou
diretores), através do email: revistaorpheuxxi@gmail.com

ORPHEU’XXI publicará um número incerto de páginas online.


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ORPHEU’XXI
Revista Lusófona de Vanguarda

Ano 1 – 2022 n.º 2 Abr/Mai/Jun

VOLUME 1

SUMÁRIO
introdução
julieta dos espíritos fazer sentido (com os cinco
sentidos)
a guerra que não sei
deixem-me estar
nuno m. de pé outra vez
és livre para tudo
palavra Humanidade
oh mãe babilónia
pedro mello margens (o renascimento para a
morte, octopus existencialis e
reflexos da identidade mútua)
sangue trigo
berth patrício cartuxa alentejana

capa desenhada por julieta teixeira


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Introdução

No número 2 da ORPHEU’XXI fotografamos o Mundo atual


com as lentes das palavras.
Vivemos momentos desafiantes, com uma alvazelha da
pandemia, coberta por nuvens negras de guerra.
É neste cenário, que procuramos a acutilante fonte de
esperança pelo paradoxo das palavras que corroem as emoções,
mas as alimentam de sentido de futuro, num presente em que é
preciso reencontrar o contorno de um desenho de humanitude
que está esbatido pelos dedos dos próprios Seres Humanos.
Vamos, pois, viajar neste número pelas palavras moldadas
em prosas e poesias, num caminho desenformado que permite,
contudo, formar, na Liberdade, que no mês em que se inicia este
número tem significado e significância nos ventos de opinião que
se movimentam na História e nas estórias que partilhamos em
gritos ou em silêncio.
Ser livre e estar livre são condições cujo verbo que lhe
antecede se conjugam com significados diferentes. Como
estamos e como somos e como estaremos e como queremos
ser? Perguntas retóricas numa retórica a quatro vozes que talvez
encontrem resposta ou talvez se percam nas respostas dos olhos
de cada leitor(a).
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❖ FAZER SENTIDO (com os cinco sentidos)
❖ A guerra que não sei
❖ Deixem-me estar

Textos de
JULIETA DOS ESPÍRITOS

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FAZER SENTIDO (com os cinco sentidos)

Visão
"Vê com olhos de ver" dizia-me muitas vezes a minha velhotita. Nem
sempre o fiz, nem sempre o faço.
Ver com olhos de ver é como saber ouvir. Duas coisas difíceis, que têm
de ser feitas com consciência, têm de ser autênticas, senão não serão
verdadeiras.
Ver e ouvir, no meu entender, os dois sentidos que mais trabalho dão
ao nosso intelecto.
Ao fechar os olhos, a escuridão pode levar-me a ver tudo e nada ou só
o que me proponho ver. Posso inventar um cenário e entrar em palco,
posso ver sítios, coisas, pessoas que de olhos abertos nunca vi. Posso ver
o amor, a guerra.
Por outro lado, com os olhos abertos posso ver o que não quero ou não
gosto, mas também posso separar o bom do menos bom, o belo do menos
belo, posso ver o amor e a guerra de outra forma.
Audição
Se tapar os ouvidos, posso ouvir tudo e nada, posso ouvir a minha
música preferida, posso cantar sem ser audível. Ouvir aquela palavra
que há muito tempo esqueci, posso ouvir-me a mim. Posso ouvir uma
flor a crescer e ouvir Deus.
Se destapar os ouvidos, posso ouvir-te a dizeres-me coisas bonitas ou
não (posso sempre tapá-los... ou não, ah ah ah). Posso ouvir o vento,
posso ouvir os meus passos na terra, ouvir as estrelas, posso ouvir o
amor, pois quem ama ouve.
Estou a fazer sentido?
Olfato
A estes dois sentidos podemos juntar o olfato, pois com ele podemos
ver, ainda que não à nossa frente, uma pessoa ou uma flor. Podemos
"ouvir" o que disse determinada pessoa devido a um determinado
perfume que inalamos ou que simplesmente o vento nos trouxe.
O olfato pode transportar-nos no tempo sem sairmos do lugar. Por
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exemplo, quando vou afiar um lápis, o aroma que se solta leva-me ao


tempo da escola primária. O cheiro do sabão Clarim, que ainda hoje uso,
lembra-me o tempo de lavar roupa à mão ou então ao momento de tomar
banho numa bacia. O aroma de Lavanda leva-me à roupa acabada de
sair do gavetão. O cheirinho do creme Nívea leva-me à praia. Ou então
é um perfume tão... ou o tal perfume que nos faz "caminhar" até à sua
origem.
Paladar
É, o paladar pode levar-nos novamente aos sítios onde já degustaste
os melhores e os piores manjares, põe-nos à volta da mesa em reunião
com amigos ou família onde normalmente damos as nossas melhores
gargalhadas. Pode lembrar-te um pedido de namoro ou até de
casamento, ou uma despedida. Um leite creme, por exemplo e estou na
minha infância. Pode-nos fazer sentir um sabor sem termos nada na
boca e mesmo assim salivamos.
Continuo a fazer sentido?
Tato
E temos o tato, que pessoalmente acho fantástico e não menos
importante que os outros (senão até o mais importante), onde se pode
sentir, tocando (sim, porque também se pode sentir sem tocar), a
presença do outro. E aqui entra o abraço, que adoro e que poucos ainda
o dão de corpo e alma.
Não, não venham com a treta que este sentido agora (com a pandemia)
se perdeu. Não. Já eram poucos, como atrás mencionado, os que se
davam por forma a fazer sentir "peito e pélvis" (como eu costumo dizer
em tom de brincadeira, pois se não fôr assim, não tem graça) e nem todos
o conseguem dar de forma a fazer revigorar a alma, de forma a fazer
brotar as lágrimas.
O abraço é o maior e mais completo dos sentidos, a meu ver claro,
porque o tato pode fazer-se sentir em todas as partes do corpo e a pele, o
nosso maior órgão, é o seu condutor.
O tato, às vezes só com o toque duma mão, pede perdão, agradece, ama
brincar e ama sedutoramente e deita por terra, no bom sentido, quem
não conta com ele. Arrepia-nos, faz-nos lembrar quem nos tocou.
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Alimenta-nos, perfuma-nos, transforma-nos. O tato ajuda a


"massajar" o nosso Timo, órgão linfático (do grego, Thymos, que
significa energia vital), precisamos de o manter ativo, por isso...
Deixo-vos, por agora, a pesquisar o que é o Timo, pois está na altura
de o conhecerem.
Fiz sentido?
Na atualidade mundial que estamos a atravessar, tudo faz sentido
(com os cinco sentidos), não acham?

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A guerra que não sei
A certeza incerta.
O deixar e querer levar tudo.
As trouxas cheias de nada
e de uma vida. Crianças que não percebem
O silêncio que fica porque o peluche ficou para
ruidosamente para trás. trás.
As prioridades que se tornam Armas desconhecidas
um luxo. em mãos demasiado pequenas.
O porquê do quê. Homens que veem
O quando e o quem. as suas mulheres partir
O onde do agora com os filhos que os querem de
e o agora mesmo à frente dos volta.
olhos. Mulheres que ficam
Olhos que se querem para os curar.
conhecidos, O cão que não se abandona
mas dão as mãos aos e o cão que procura o que é seu.
desconhecidos. O gato que se mete na mochila.
Olhos que procuram Deus. As paredes que caem.
Olhos que dizem: "vou ali, mas Pés feridos, corajosos,
já volto". que calcam as pedras do
Novas casas que se abraçam caminho
debaixo da terra. e... que vontade de pegar nelas.
Um sol que brilha, mas que não Uma pedra na mão
se vê. e uma grande vontade de
Sirenes que acordam o sono mudar o mundo.
dormente. Um gesto apenas simbólico,
engolido
por tão grandes egos.
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Deixem-me estar,
(estou cansado)
deixem-me decidir
(quero brincar)
Quero voar
(gostam das minhas asas?)
Dêem-me liberdade para ir
(conheço o caminho)
Não quero matar
(a arma é tão pesada)
e não quero morrer
(-Jesus, onde estás?)
Deixem-me falar,
(também sei)
deixem-me ser
(cresci)
Quero pensar
(que a guerra acabou)
Chamem por mim
(sou o Lucas)
Deixem a minha mãe ficar
(a minha rainha)
A minha irmã cheira a alecrim
(apanhar flores com ela é...) Cena do filme Johnny Mad Dog (2008).
Quero o meu pai Fonte: Printerest
(não morras)
-Pai, tens pão?
(tenho fome)
Em vez de guerra, ceifai!!
(ou... dançai)
-Pai, dá-me a mão.
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14
❖ de pé outra vez
❖ és livre para tudo
❖ Palavra Humanidade
❖ oh mãe babilónia
Textos de
NUNO M.
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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de pé outra vez

basta
se há quem te empurre
para trás
corre para a frente

eu acredito em ti
é só uma questão de tempo
para estarmos
de pé outra vez

nuno m.
na Páscoa de 2022

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és livre para tudo

já não tens muito tempo ele dissipa-se


já não há retorno é seguir não olhes para trás
porque a vida empurra-te como um ruido
interminável e ensurdecedor
talvez te sintas encurralado perdido ou só
e desejes profundamente não ter nascido
talvez te digam que não serves para nada
que a vida não tem propósito
que tudo é um ocaso infeliz
que um homem é apenas um homem solitário
e uma mulher apenas dor e solidão
que homem e mulher não são nada
como pedra como pó não são nada
mas eu digo-te que não que não que não
três vezes não
a vida é bela e verás que
apesar dos pesares e arrependimentos
terás amigos terás amor
que o teu destino está dentro de ti
que o teu futuro é a tua própria vida
que a tua dignidade é a tua história boa e má é tua
muitos esperam que tu desistas
outros que resistas
que a tua alegria os ajude a libertarem-se
a reerguerem-se
que a tua voz seja eco do seu lamento
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e ressoe o mundo
então nunca desistas
nunca te afastes de ti nem do teu caminho
e se não serves para anda
és livre para tudo

nuno m.
05.IV.2022

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PALAVRA HUMANIDADE

quero voltar ao ponto de partida


quando não havia firmamento nem terra
alturas profundezas ou nomes
quando slovo a palavra apenas existia
antes de rod de cabeça de prata e barba de ouro
muito antes dos irmãos lech czech rus se perderem na
caçada
muito antes de chtchek khoriv e lybid fundarem a
cidade
que homenageia o irmão mais velho kyi
o primeiro de todos o iniciador da criação o útero do
universo

quero voltar ao ponto de partida


ao princípio quando não existiam os deuses
e eslavo não era slaviane somente slovo
e as águas doces e as salgadas estavam misturadas
as varas não eram estes entrançados que golpeia as carnes
os deuses não tinham nome génese ou porvir
o sol e a lua não se haviam separado nem as águas se
precipitado para a terra
onde as linhas se dilatam para onde os horizontes se encontram
separando o que era do que foi e do que havia sido

quero voltar ao ponto de partida


quando os dias não eram dias porque o tempo não era tempo
nem o caos era caos mas apenas slovo
a palavra-vazio a palavra-imensidão do espaço
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firmamento herdeiro e conquistador


primogénito de si mesmo
feito à imagem da sua própria natureza
sopro de si próprio slovo slovo
e não destruição cinza pó e nada

quero voltar ao ponto de partida


quando não se havia encontram o intelecto e a sabedoria
maiores do que o horizonte dos céus
mais fortes de entre os seus pares
e ainda antes da discórdia romper entre os deuses-homens
apesar de serem irmãos
fazendo o céu e a terra tremerem numa dança frenética e
rangerem
sem cessar tal comportamento altaneiro e orgulhoso
sem que ninguém pudesse silenciar os clamores dos jovens

quero apenas gritar slovo e slava ukrayíni


SLAVA LYUDSTVU

nuno m.
13.V.2022

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~
oh mãe babilónia

que se reergam os muros de babilónia


que por seu ouro e prata
sejamos glorificados e iluminados
nesta nossa hora que se adianta
a meia-noite

sejamos eternos como o universo


e incontáveis como as estrelas
que o brilho infinito do luar
nos carregue de esperança e de paixão
oh babilónia

terra decaída pelos demónios


que novamente se levanta
fénix renascida
nós te saudamos pois o novo tempo
começa agora

seremos vistos como outrora éramos


recuperaremos a tua grandeza
e a nossa vida será
como uma fornalha ardente
oh cidade luminosa

que nos ofuscas os olhos


reconhece-nos como teus filhos
que se levantam mais uma vez
exalta-nos na noite que se aproxima,
exalta-nos oh mãe somos seres divinos
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nuno m. (05.V.2022)
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❖ Margens (continuação)
(O renascimento para a morte, Octopus Existencialis e
Reflexos da identidade mútua)

❖ Sangue trigo
Textos de
PEDRO MELLO
O autor escreve de acordo com a antiga ortografia

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O renascimento para a morte
Senti no momento em que me senti a pensar que te sentia que era
eu, porque a ponte é levadiça por isso mesmo, para poder deixar
de nos ligar, mas marcando o caminho na invisível linha do que
já foi...

Quando encontramos uma Margem que irradia Luz, julgamo-la com a


pretensa pertença da Paixão. Uma Margem Apaixonada torna-se cega.
Na verdade, é a Paixão que é invisual, na sua Construção de outra
Margem, baseada no Visível.
A Água da Verdade, mantém o contacto com as Margens Cegas, mas o
Sentido da Visão não lhes permite transpor para Si o real Sentido na
profundidade que as une.

O Desejo, primeiro Elo de ligação entre as Margens Apaixonadas,


inflama a Água da Verdade. O Desejo é como um tornado que agita a
Água da Verdade entre as Margens... é magnética e imparável a líbica
agitação das águas. É na consternação e no centro do tornado que reside
o Amor, o restante é agitação que desagrega a areia das Margens, mas
que termina na certeza de um incerto incontrolável!
Nesse momento, o Desejo alia-se à Sedução. A Libertinagem da Água
da Verdade assume a forma de transpiração evaporada, quando brota a
sedução por entre a fecunda terra das Margens. A Sedução cresce em
direcção a um firmamento de cores boreais, através da fotossíntese,
alimentada pelo vapor libertino. Deixa a seiva deslizar de volta à Água
da Verdade! Seiva e Sedução, permitem manter fecunda a união entre
as Margens. A Seiva, na Existência Mútua é Água, que na Verdade se
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confunde com Sangue.


O Sangue que une as Margens é o mesmo que em azul, se converte em
água... oscila nos percursos entre o vermelho carnal do Desejo, com o
azul espiritual da Identidade... Assim, misturados, Desejo e
Espiritualidade, materializam e volatilizam a Existência Mútua em
contínua (des) materialização. Essa é a razão que mantém as Margens
na constante procura do Real Sentido, o Sentido que permite ver com
todos os Sentidos.
Vivemos porque o Sentimos... corremos pela Saudade que dele temos...
Corre-nos nas Veias e não é na verdade Sangue, mas tinta permanente
que nos permite escrever a História que nos faz ter sentido uns com os
outros... Sentir Falta do Amor é estar Vivo e significa que ele Vive em
nós e connosco. O Amor é Sinónimo de si Mesmo, tal como Nós somos
Sinónimos uns dos Outros... Mesmo no antagonismo dos caminhos,
caminhamos para o Sinónimo de Amar.
Torna-se assim a Paixão uma Ponte para o Amor entre as Margens.
Uma ponte levadiça que a qualquer momento pode desunir as Margens
outrora ligadas pelo equilíbrio do Desejo e do Espírito, mas desunidas
por um dos Elos que deixa de se significar.
A Desunião de Margens desapaixonadas confunde então o ciclo
circadiano das Margens. Desunião e Solidão fundem-se na Neblina
escura da desilusão. Quando a obscura noite invade as Margens no
Inverno de Solidão, a Lua da pertença deixa cair sobre a gelada água da
verdade, um calor sublimante... Nesse momento percebe-se a relação do
Amor com a Morte. O Amor promove a sublimação da água da verdade,
no encontro da solidão com a Vida. Morte e Vida tornam-se assim
Amantes, na sublimação do Gelo entre as Margens!
A Água da Verdade gela e sublima, para proteger o caminho das
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Margens para o Amor. O Gelo mantém viva a Espiritualidade, a


Identidade das Margens, permitindo-lhes continuar o Caminho para o
Sentido dos Sentidos – um Sentido entre a Morte e a Vida.
A Morte e a Vida são um Casal! O entardecer a aliança... Uma Lição a
reter na existência mútua! A morte é Yin, a Vida é Yang...
complementam-se e dão a cada uma identidade.
O Suicídio da Alma é equilibrar o Yang da Paixão no Yin do Amor. O
suicídio é decidido e por isso é Amor. O mesmo Amor que nos faz viver
dá consentimento à Morte... Yin e Yang são um único Sentido... Em
direcção ao Verbo... Porque o início é o Verbo... sim, aprendemos na
mútua existência que é o Verbo Amar!
É no equilíbrio da Vida com a Morte que se gera a Pertença. A Pertença
transmite-nos a segurança do Abrigo na outra Margem, mas a Pertença
é um veneno... Pertença é estar perto em Si e de Si... é Estar e não Ser.
Para a pertença ser, tem de se morrer envenenado. A toxicidade da
Pertença é o antídoto da solidão. Para Ser em Pertença, uma Margem
tem de conjugar o Verbo Amar no Condicional de uma Liberdade em
Perpétua Fusão.
A Margens que não se pertencem não morrem para a Eternidade, nem
Vivem para a Mortalidade. Poderão manter os laços invisíveis do
Perdão, se a Paixão apagada se converter em Aprendizagem, mas não se
pertencem e por tal não se reencontram, não se Amam com o baptismo
da Água da Verdade.
Uma Margem apaixonada não pode por isso prometer-se, não pode por
isso assumir-se numa pertença não encontrada. Só uma Margem
envenenada pela pertença permite uma promessa sincera, através da
Morte imaculada da Fusão.
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Dolorosas são as confusões entre a Ponte que é a Paixão com a Meta que
é o Amor. O Amor é Meta, mas não um fim em si Mesmo. Afirmar que
se Ama enquanto se caminha na Ponte da Paixão é na verdade usar a
Afirmação como um punhal cortante, que corrompe o caminho, que
corta as cordas da Ponte. A construção ilusória da Meta, a meio do
caminho, é orientar ambas as Margens para punhais de Dor, que se
converterão em Algodão na Água da Verdade.
O Destino de Margens apaixonadas, que não se pertencem, conduz à
incontrolável (des) união destas, num Limbo entre a Vida e a Morte.
Um Limbo de Aprendizagem, um Limbo de Perdão, ou um Limbo de
Vazio preenchido por um Passado sem Futuro.

Entenda o seu Desejo como um compromisso com uma Emoção,


que lhe permite correr, procurar o Sentimento supremo. Seduza e
deixe seduzir-se, contudo com a certeza de poder ser um caminho
para o Limbo, que fará de Si uma Margem mais completa.

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Octopus Existencialis

Senti no momento em que te sinto na Eternidade que era Eu, no


momento em que olhei e a minha margem era uma ilha, com
tantas pontes quantos os Eus em Uno...

Entre as Margens do que Somos em Uno faz-se um Jogo, lançando entre


as Margens uma Pena, soprada com o ar de um Pulmão que cada um
partilha num único Tórax... O Tórax que é Ponte, suspensa por esta
Pena que lançamos, entre uma Margem e a outra... E é a mesma pena
que as afasta em cada sopro, que as volta a unir nas linhas invisíveis do
percurso de um a outro lado! Somos assim identidades numa única
Margem, partilhada em Várias, num Jogo de Viver partilhado em
Sopros!
A verdadeira essência da Eternidade de uma Margem, surge no
momento em que esta se reproduz. Um filho é uma península que
emerge de duas Margens... É um prolongamento de cada Margem, num
pedaço de areia em crescimento sobre a Água da Verdade... As areias
desta península são as únicas não movediças na Existência... Concepção
e Verdade conjugam-se num Verbo escrito desde o pretérito mais que
perfeito ao Futuro sublime do Nós... No Gerúndio do Amor
incondicional.
Moldar uma Margem é ser dotado do Milagre da Parentalidade. À
medida que a Água da Verdade transforma em Barro de Vida os grãos
de areia partilhados pelas Margens de Concepção, a Luz do Sentido de
Existirmos vai-se tornando mais intensa. Educar é Cuidar a
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Sobrevivência das Margens com o Milagroso Dom da Partilha na


Confiança no Amor Incondicional! Permite-se assim a criação da
Existência.
A Existência das Margens tem assim um ciclo de duração. A Existência
dura um ano em quatro estações. Quando nas Margens caem as folhas
sobre as águas do rio que as une, espalham-se na mútua existência
pedaços de Renascimento... O Renascimento de cada Margem, que
percorre no rio a representação do Existir.
Quando a água do rio aparenta inércia no congelar da fase fria, na
verdade por baixo dos cristais, continua a correr o existir (mos). É no
florescer da renovação partilhada que começa o calor da descristalização.
Chama-se a isso diálogo... O diálogo entre as Margens.
Um filho permite dar Voz ao Diálogo entre as Margens. Quando uma
Margem doa alguns dos seus grãos de areia a esta península, está na
Verdade a fazer ecoar a sua perpétua existência através de uma nova
Margem. Uma Margem que se procura construir num Amor
encontrado, sem o esforço da procura, sem o caminho conduzido pela
Cegueira da Paixão. O Amor entre as Margens e a sua Península de
Procriação nasce em Si mesmo, jamais se dissolvendo, pois sem este
Amor, desintegrar-se-iam os grãos doados pelas Margens de Concepção.
Conceber é então uma forma inata de Partilha. Nas Mãos que servem
de Espelho da Alma, os grãos de areia apenas respiram Vida quando
estas estão Abertas ao Mundo, disponíveis para ser banhadas pela Água
da Verdade.
Nas mãos abertas, toda a areia é movediça... Afunda-se na incerteza
para o vazio, mesmo quando tentamos cerrar os dedos. Só o Sonho torna
argilosas as areias das Margens. Na forma onírica, o Vazio torna-se o
Todo para onde escoa a Vontade... Sonho e Vontade moldam a areia das
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margens em Esculturas de Ideal!


Um filho permite-se a Si mesmo, com o Sonho e a Vontade Partilhada
das Margens de Concepção e os grãos que vai juntando a Si mesmo de
outras Margens, tornar-se também ele uma Margem, uma Escultura de
Ideal, banhada pela Água da Verdade.

Quando duas Margens procriam uma nova Margem, permitem-se e


disponibilizam-se para a Imortalidade.
As Margens que não concebem, permitem-se à imortalidade pela Arte,
pela Criação não materializada de outra Margem, mas que igualmente
as perpetua. Jamais conhecerão porém, o Amor criado em si mesmo pela
Concepção, mas alimentar-se-ão pelas diversas forma de caminhar para
o Amor, nas manifestações permitidas pela sua Existência.
Conceber é um estado, uma condição, uma razão para Viver o Amor na
sua inata forma de criação. Conceber á assumir o compromisso da
Imortalidade pelo Cuidar permanente de uma Margem, com a convicção
da Libertadora educação de quem Ama.
Na concepção de uma península que aspira a Margem, pedaços das
Margens de paternalismo são rebatidos pela água e, na profundidade,
agregam na Margem concebida os grãos do id que a orientarão. E no
vapor da Água da Verdade, alimenta-se o Alter-ego da futura Margem,
com o equilíbrio do bem e do mal liberto pela educação de Amor.
A identidade de uma Margem concebida é assim a manifestação
fenotípica dos grãos de areia das progenitoras, que desde a profundidade
à superfície se fundem com outros grãos de areia, de outras Margens,
de outros ideais, de outros Valores. Uma Margem é assim um Octopus
Existencialis, com tantos tentáculos quantas Margens se possibilitarem
tocar em (des) União partilhada.
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Quer seja uma Margem de Concepção de uma Península, quer
seja uma Margem de Concepção de Obras sem pulmões, perceba
o Enorme contributo que enquanto Margem dá ao Mundo da
Existência e entenda a responsabilidade que assume perante Si
mesmo.

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Reflexos da Identidade Mútua

Senti no momento em que me sinto fora e dentro, do que não sou


e me ajuda (s) a Ser, que sou Eu... Sou Eu porque sou, porque te
faço ser o que tu és em mim...

Ao longo do percurso da Água da Verdade, vão-se encontrando as


Missões das Margens... Ventos trespassam os troncos da identidade,
sussurram em cada Margem o Sentido de Missão da sua Existência...
exorciza-se assim o (s) passado (s), num Presente Mútuo e na dádiva de
projectar no Infinito o Amor entre as Margens.
Quando uma Margem se permite à Fusão do Amor incondicional,
entende a grande Missão… A conquista da pertença torna-se na Morte,
a perpetuação de si enquanto Margem imortal, nos grãos que partilha
com as outras Margens.
Pode uma Margem perceber o Amor da sua Vida permitindo fundir-se,
deixando de ser uma Margem partilhada em duas, mesmo quando a
Água da Verdade insiste em que as profundezas que as unem numa só,
se mantenham ocultas, em duas aparentes identidades que uma só se
tornam.
Margens Gémeas, são Margens cujos grãos de pertença mútua se
encontram submergidos na Água da Verdade, podendo não ser
compreendidas como Margens que se Unem na Morte, na toxicidade da
pertença. São Margens que o Sabem, que o São, mas que poderão não
Estar.
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Torna-se clara a dependência de uma Margem, quando as placas
tectónicas da (in) decisão as levam a perceber o Final que é prefácio da
Eternidade... A turbulência da indecisão, aproxima na verdade as
Margens, pela certeza de que Dependem umas das outras para
sobreviver... E do confronto tectónico emerge a elevação do Amor que
separa e une as margens na Eternidade.
Quando a Existência permite às Margens Gémeas, revelar-se numa Só,
a dádiva da Morte converte-se em Luz plena. A Claridade do Sol invade
as árvores das Margens e a fusão permite aos grãos submersos na Água
da Verdade emergir em forma de desfiladeiros, que se vão moldando e
desintegrando com a força da Verdade da Água.
Nesse momento, o Verão invade a Existência... Elevam-se os Celsius
com uma rapidez de intensa fervura... A água da Verdade entra em
movimento! Não se reconhece matéria inerte e agitam-se as margens
com a turbulência da Fervura... A Fervura em Turbulência força o
mergulho das Margens na Água da Verdade!
Nas Margens fundidas pela turbulência, reveladas ao Mundo como
uma Só, a Água da Verdade acaricia-as sob a forma de lagos, com águas
aparentemente inertes, mas que se vão alimentando do Vapor da
Confiança, vapor que converge da Água da Verdade que as une às
restantes Margens, ao restante Mundo.
Nas profundezas de Margens Gémeas que São e Estão, a Água da
Verdade também se manifesta, perfurando mesmo os grãos moldados em
formas mais firmes. Sob as profundezas que percorrem as Margens, está
a ligação fatal do Amor... O Amor materializa-se em túneis que se
preenchem com a Água da Verdade no recalcamento do que
mutuamente Somos... Para encontrar a essência do Amor, precisamos
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suster o ar da Realidade e mergulhar no Alter-ego para além de Nós.


O Diálogo entre as Margens Gémeas que se revelam e as Margens
Gémeas que São, não Estando, é alimentando em plenitude pelo
Silêncio. A neblina que acaricia as águas do rio une as Margens na
separação evaporada, através da oxigenação do Silêncio... O Silêncio
nutre as margens... Escutar o Silêncio é ver para além da neblina... E
na Separação Unida do Silêncio, converge a Verdadeira Liberdade.
Ao mergulhar na névoa do silêncio, somos engolidos pela ruidosa
dúvida da pertença. Entrar na Água da Verdade, depois de passar pela
névoa do silêncio ensurdece-nos na confusão do confronto entre as
Margens... O silêncio da intolerância é na verdade o ensurdecedor ruído
do mergulho na procura da Verdade! A verdade que (des)une as
Margens.
Nas Margens Gémeas a Verdade Une na Eternidade a Identidade
mútua, o real Sentido de Serem. Nas Margens que não o São, a Verdade
permite a desunião, permite continuarem a Ser com a sua verdadeira
Margem de Fusão, guiadas pela Água da Verdade para a possibilidade
de Estar.
A névoa do Silêncio permite assim a despedida e o reencontro das
Margens. A despedida é na verdade a primeira vez que as Margens se
encontram... É na despedida que a Saudade invade as Margens da plena
consciência da pertença... Despedida e Saudade são ondas que acariciam
as Margens com a Água da Verdade... A Carícia que Consciencializa
para Amar.
A Despedida é uma ponte silenciosa entre as Margens... Sobre esta
ponte de cordas frágeis, passam de mãos dadas o Amor e a Saudade,
andando alternadamente entre uma Margem e a outra... Amor e
Saudade aliam-se no caminho frágil da despedida entre as Margens.
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O Mundo das Margens torna-se assim uma Tela Branca. O Amar é
assim um verbo que na verdade é tinta que corre nas veias... As veias
que são rios que pintam as Margens da cor da entrega.
Por vezes esborratam manchas imperceptíveis, desenhadas com pincéis
de Paixão, outras deixam na cor a qualidade da tinta... Paixão e Amor
são assim indissociáveis para pintar a Arte de Existir, esborratando o
verbo Amar, da forma que as mãos dos pintores assim o queiram.
A tinta que corre nas Veias da Existência, este Sangue que é Água da
Verdade, não é um Sangue Carnal. O desengano de quem julga que é
no toque carnal que o Amor se materializa, desconstrói-se no momento
em que se percebe que é na Alma que o verdadeiro Orgasmo de Viver
em Amor se Manifesta... São os ventos que percorrem as Margens, que
as tocam e permitem manter-se tocadas, mesmo que distantes, os
verdadeiros laços erógenos da Existência.
A coloração da água que corre entre as Margens, tatua a Existência
num compromisso desenhado com tinta permanente. A promessa de não
amar é a supra mentira da Existência... A Pele torna-se una, a partir do
momento em que é tatuada de Amor e não há nada a fazer...a não ser
afundar-se na suprema Morte de amar toda a Vida.
Amar é tatuar em areia argilosa a Verdade sobre outra Margem. Senti-
lo é percorrer a tinta da Vida pelos espaços entre os grãos de areia,
desenhando em permanência a Verdade, jamais apagada pelas Águas,
jamais destrutível pelos Ventos. O Amor torna Permanente a
Eternidade entre as Margens!
Uma Margem que não procura o Amor, desnutre a sua vegetação. Uma
Margem desamada é uma Margem impossibilitada da Eternidade. É
desintegrante a existência de uma Margem que não Ama, é destruidora
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a sua Existência e promove o Espraio dos seus Grãos de Areia noutras


Margens, nas Margens que Amam e a dissociam de Si mesma no Amor
por elas sentido.
Não nos permitirmos ao Amor é expormos a nossa condição
desagregante. É deixar no reflexo de Nós na Água da Verdade a
identidade absorvente das outras Margens. O Reflexo do Amor na Água
da Verdade é a grande prova de Vida entre as Margens.

Consciencialize-se da inevitabilidade do Amor na sua


Existência, mesmo que seja uma Margem desamada, entenda que
não é irreversível. Deste modo, quer decida ou não envolver-se
de Amor, ele conduzirá o seu destino, ou na submersão ou na
aprendizagem com os que decidem submergir.

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Sangue trigo

Grita, neblina amarela

rasgando o azul profundo


no joio que o trigo encela
pinta de sangue a tela
no cavalete do mundo.
Sangrento nevoeiro,
que em hemorragia cega,
esvai o Amor verdadeiro,
num direto cruel, derradeiro
que em direto em muitos se nega.
Negue-se, pois, que arde trigo.
Em chamas de indiferença,
que rosam o vermelho do perigo.
Cada um de si mesmo inimigo,
Pois negar é suicídio em sentença.
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38
❖ Cartuxa Alentejana
❖ Deseja-as

Textos de
Berth Patrício

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Cartuxa Alentejana

Por Berth Patrício

Na vastidão extramuros em planície mediterrânica


Cobre a cabeça com o seu cuculo de oliveiras férteis.
Adentra-se cruzando as mangas. Na tentação,
Estende-se num pronúncio de sede, Deseja-as
E regurgita-se pela filigrana das pupilas varejadas e
frágeis, e ainda assim, insinuantemente despojadas.
Restolho do campo. Solo que dói de falta
Da lona da pele suave que sempre desnuda
Apensa ao hábito, os forcados e as sibilas
A saliência oportuna, e do acre sabor perfumado
Recompõe o olho no que dentro se fecunda
Vinagre em Azeite.

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