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ÁGUIA

Órgão da Renascença Portuguesa


Vol. XI 2.a Série

(Janeiro a Junho de 1917)

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TIPOGRAFIA

DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»

PORTO—1917
O T TT A Revista mensal, órgão da «Renascença Portuguesa» — Director
artístico, Antônio Carneiro; gerente, Álvaro Pinto—Redacção,
Ai
administração e tipografia, Rua dos Mártires da Liberdade, 178.
Porto — Gravuras de Cristiano de Carvalho e Comércio do PÔrto o o XI volume —1917.

LITERATURA

FANNY OWEN E CAMILLO

«Tenho aqui as cartas de José Augusto. Atravez de tantas borrascas,


nem vaga nem refega de vento mas levou. Memórias preciosas da mi-
nha mocidade, cartas que me seriam estimulo hoje, a prantos consola-
dores, tudo rasguei, tudo deixei ir no caudal da torrente suja onde me
emmergi, tudo, menos as cartas do meu amigo, do mais infeliz homem

que ainda ólho para este papel amarellado, para estes


conheci. Agora,
caracteres para a orla da folha em que penso ver o signal
desmaiados,
dos dedos que a voltaram... Que tristezaI que pregão do outro mundo
me estremece e confrange!»

(De Camili.o Castello Branco.—No Bom Jesus do Monte).

RA da casa do Lodeiro, de Santa Cruz do Douro,

(Bayão)—José Augusto Pinto de Magalhães, uma

das mais figuras dos dramas de Camillo,


preciosas

o da sua de Funestos,
porventura primeiro galeria

ou tenha sido um dos melhor e mais dor emprestaram á


que

sua epocha, immolando-se-lhe absolutamente.

Quando, 1848, desceu ao Porto, a desbaratar moci-


por

dade, devia levar o coração cheio dos deste


preconceitos

difficil retalho de então o mais entranho de toda a


província,

ordem de convencionalismos.

Facilmente recebido nos melhores salões do tempo, foi

num delles conheceu a Familia Owen, dando de logo


que

distincção e encantos de Fanny e de sua irmã Maria, das


pela

immediatamente se fez vizinho indo habitar uma casa


quaes

da sua residencia em Villar do Paraizo, a kilome-


junto poucos

tros do Porto.

Entanto appareceu Camillo.

Foi ao tempo em José Augusto, fingindo


justamente que

attender a corte de Maria Owen, amava em silencio Fanny.

Resolveu-se o escriptor a seguir o exemplo do seu amigo,


6 A ÁGUIA

indo também viver Villar do Paraizo, onde immediata-


para

mente foi apresentado ás senhoras Owen. Ora a sua


pre-

sença em casa dellas levantou tão dolorosas suspeitas no

coração de José Augusto este, num momento de desespero,


que

disse-lhe um dia, desabridamente:

—Sabes se alguém amasse Fanny... matava-o!


que

E, entretanto, Fanny, não dava, ao tempo,


quasi pelas

intenções de nenhum delles...

Das suas memórias áquella data, mal sobresae, como uma

figurinha de Wateau, especie de mulher-flor, vagabundeando,

ao acaso, entre os taboleiros das suas rosas em Villar do


por

Paraizo, e, zelando, mero instincto de belleza,


porventura, por

o seu de resto alheia a tudo.


jardim;

Como fosse, tanto Camillo como José Augusto


quer que
a conheceram em 1849. Camillo reparou extranhamente nella.

E se não digo a amasse com o ardor no


que que, geral,
dava ás suas é ella ser uma figura
paixões que jámais podia

definitivamente escolhida seu temperamento, embora elle


pelo

no-la descreva, com invulgar enthusiasmo, ao colher, mais

tarde das reminiscencias desse tempo a lembrança das sua-

ves tardes a seu lado em Villar do Paraizo, e de


passadas

elle não só lhe offerecia versos, mas, mais ainda,


quando

sua causa, se afastara de José Augusto.


por

Este é depois convidado Coronel Owen, en-


pouco pelo

tão em Lisboa, a explicar a sua assiduidade em Villar.

É o momento decisivo.

Então, informa Camillo, José Augusto se


pela primeira

resolveu a escrever a Fanny.

Entendemos isto não é exacto. Segundo o romancista


que

teria sido antes da fuga, em 1852, os dois se decla-


pouco que

raram. Ora a carta, adiante transcripta de José Augusto a

Manoel Negrão, e bem certo a Fanny se refere,


que por
o contrario.
prova precisamente

Entretanto começa ali o drama.

Maria Owen tudo; sabe da de José


presente preferencia

Augusto irmã e contraría-o a todo o custo. Dahi os


pela pri-
meiros desgostos dos trez apaixonados; depois o irremedia-

vel:—a fuga de Fanny, José Augusto faz conduzir, ainda


que

com as maiores difficuldades, para Santa Cruz.

Fez o maior ruido a casual aventura. E, comtudo, o seu

successo não chegou os alviçareiros!


para
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Soube-se, acaso, um hespanhol cartas de


por que possuía
Fanny; Camillo vae e
procura-lo pede-lhas.

A seguir trespassa-as a Marcelino de Mattos, e este,


por
sua vez, remette-as a José Augusto!

Camillo contra o rumo Marcelino dado ás


protesta por

cartas, e aquelle obtivera, explica No Bom Jesus do


que

Monte, exactamente cancellar uma calumnia e instruir


para

o sobretudo, ellas exprimiam:—a innocencia da signataria!


que,

Entretanto José Augusto é ou esquece


que jámais perdoa

ella tivesse escripto a outro não fosse elle; demais


que que
numa das cartas Fanny ousara confidenciar ao hespa-
que

nhol «que não tinha encontrado ainda a compre-


pessoa que
hendesse!»

Eis o crime; Fanny!


pobre

Casaram os fugitivos depois romanticamente, os


que,
amigos de José Augusto reuniram num arrabalde do Porto, e

deliberaram em conselho de honra elles casar.


que podiam
Teve logar o casamento nem
por procuração, pois que

isso sahiram do Lodeiro!


para

A casa do Lodeiro, a meio da freguezia de Santa Cruz,

á matriz, é um edifício no relentado das


junto pequeno, geral
neblinas —
do Douro, sem uma casa com-
quasi physionomia

murn, de compartimentos estreitos, um balcão ao sul e a

capella a meio, rematando em outão o friso, mal tratado, da

sua cantaria.

A convivência dos noivos reduzia-se a a Raymundo


pouco:
Borges e á mulher. Raymundo Borges era um irmão de José

Augusto, o representante da casa e, como elle, um megalo-

mano, sympathico, a despeito de celebrão; instruído; e sendo,

alem de tudo, um tanto como da sua


preoccupado prosapia,

da sua lenda,—a lenda romantica era signal de distincção


que

das raças finas áquelle tempo, e elle cultivava, industriando o

creado no mais das suas ingênuas manias.

A mulher deste, D. Josepha Clementina Teixeira Pinto,

era creatura no de todas as senhoras


genero quasi província-

nas suas contemporâneas, uma «boa dona de casa», como

então se dizia, estimavel, de trato acanhado, e a alma


pessoa

simples e captivante.

Finalmente completavam o rol das visitas da Casa:—•

os de José Augusto de longe, uma ou outra


parentes que,
8 A ÁGUIA

vez, appareciam a cumprimentá-lo, mais dois ou trez


padres

vizinhos.

A freguezia de Santa Cruz, Eça de repintou


que Queiroz

das suas extravagantes tintas, offerece outros aspectos a


quem
ahi vive sempre, e sobretudo os devia ter Fanny e José
para

Augusto, dar «doçuras luminosas»


que jamais poderiam pelas

o romancista ali se deu a ver.


que

Effectivamente, de tristezas não encontraria em Santa


que

Cruz a Fanny?
pobre

Ella aos vinte e tres annos se encontrou fechada


que

naquelle escuro convento de serras, só, mais as saudades da

Ermida da beira-mar, —
sua tendo contra si tudo: o marido, o

silencio da familia devolvia as cartas ella lhe escre-


que que
via, fechadas; não só na cerração da sua magoa,
perdida
mas obrigada a descrer da sua como dos seus
própria pureza,
encantos, e sempre descondensando a alma em lagrimas silen-

ciosas, á conta do equivoco do seu delicto inattingivel, —


sem

uma alegria, uma esperança, um confidente sequer, e sentindo,

mais, o do fim!
para presagio

Eis a verdadeira situação da mulher de José Augusto, de

da sombra do marido, zelando-a; e, desgraça de am-


par por
bos, torturando-a, não, dos seus maus tra-
propriamente,
tos, a maltratara, mas da sua assistência fria, da
que jámais

sua vida de resentimento delia, e isto á conta dum ima-


junto
desfalque do seu coração
ginario (').

(') Com inteira verdade affirma Raul Brandão, ao tratar do Coronel Ovven, no
prefacio do « Cerco do Porto »:
«Por isso só inteiramente me convenci da sua desgraça quando liguei o seu
nome com o de Camillo e o de Fanny Owen.
Onde o grande escriptor põe a mão é tragédia certa.»
E mais, a proposito de Fanny:
«Estou a ve-la raptada José Augusto. Os ramos dos pinheiros tentam
por
dete-la, esfarrapam-lhe o vestido branco. As*pedras magoam-lhe os pés: chega des-
calça ao barco que a espera no rio. Noite. Cahe nas mãos da desgraça. . .
Mettem-se no buraco de granito negro do Lodeiro. Uma casinha tisnada, den-
tro um drama de Shakespeare.»
Devia ter sido de facto assim o rapto de Fanny. Ao menos Camillo assim no-lo
transmittiu, com pequenas variantes.
—«Quando transpozeram um corrego vizinho da casa, escreve o romancista,
o cavallo rebelião, assustado pelo frêmito dos vestidos de Fanny, arremessou-se em
trancos e gallões por um declive pedregoso e intransitável. O cavalleiro largou Fanny

para salva-la da maior queda e foi logo cuspido do sellim. O cavallo, refolgando bra-
veza, atirou-se ás cegas por entre os pinhaes:—seria desnecessário segui-lo. Neste
momento escondeu-se entre nuvens a lua, que havia nascido meia hora antes. José
Augusto orientou-se na direcção que devia seguir, com tamanho desacerto que, ás
quatro horas da manhã, ia caminhando para Ovar, direcção opposta. Guiado pelas
A ÁGUIA 9

Porque o drama de Fanny é sobretudo um drama de

silêncios. Tanto ella como José Augusto são os comparsas,

feridos de morte um de honra, e, no entre-


por preconceito
tanto, sempre duas victimas educadíssimas. Debaíde se
pro-
curará, no rasto dos meses da sua convencional união,
poucos

um momento de cólera, a menor explosão de raiva, ainda

contra o Destino fôra, de facto, lhe marcara os


que quem pa-

peis para da sua epocha elles urdissem a suave farça


que
dos seus equívocos.

A Fanny se defende, sua maior magoa, de


própria por
chorar ás claras. Vivem os dois no Lodeiro uma vida de som-

bras, Camillo nos relata atravez do testemunho dum


que

creado.

São horas tristes as suas, naquella casa também de si,


já,
triste, tumular, e onde, de facto, os dois mortos-vi-
parecem
vos, mutuando-se sem voz, almas inhumadas
palavras quasi
em estatuas, votando-se, em troca do seu resentimento, o
peior:

uma de coisas, e sempre representando o
presença para
seu orgulho!

Eu creio ninguém conheceu melhor até a


que que ponto
honra comportar a infamia com extranhos se deem
pode que
a enchê-la, do a Fanny.
que pobre

E, comtudo, José Augusto foi infame, como


jámais jamais
o fôra a de o seu drama se complicou.
geração que
Pelo contrario, o em todos havia era o duma
que pruido
meticulosa e convencional honestidade, fez dos amorosos
que
do tempo uma especie de cavalleiros negros do amor,
ge-
nero-Othello, entre lyricos e doidos, doentes imaginativos o

mais delles, buscando e colhendo, instinctivamente, a sensação

do mal, e sempre vivendo da aventura a sua mais des-


parte
e tetrica!
graçada

peixeiras que encontrou, retrocedeu, e achou-se ao apontar o sol no logar da Sueima,


no terreiro da
quinta de José Corrêa de Mello, nosso commum amigo.
Aldravou ao portão da quinta, e mandou pedir ao amigo
que lhe mandasse um
creado a ensinar-lhe o caminho de Oliveira. José Correia de Mello, adivinhando o
succcsso, a que não era de todo estranho, correu ao pateo, e encontrou José Augusto
a estorvar-lhe o passo, receando elle se dirigisse a cumprimentar Fanny,
que que o
esperava afastada. O meu amigo quiz evitar que a pobre menina fosse vista com os
vestidos espedaçados, e quasi descalça, das asperezas do trilho
por entre pinhaes.
Ainda assim José Correia pôde ve-la encostada ao peitoril de um tanque, fitos os
olhos na da agua, com uma carteira na mão: eram as cartas de José Augusto.»
queda
(No Bom Jesus do Monte).
Eis o rapto testemunhado por Camillo e daquelle testemunho reconstituído
pelo illustre prefaciador do «Cerco do Porto».
10 A ÁGUIA

José Augusto realizou, no uni dos mais curiosos


genero,
typos-de sensibilidade; e, no importa á delicadeza da sua
que

desafortunada comprehensão de vida, foi um delicado até á

loucura!

Ora é esta loucura nos interessa,


que principalmente pois
nella tregeita toda uma época de dolorosa ficção.
que

Quer dizer, no fundo foi elle um comediante sincero da sua

dor, embora esta tenha sido a dor do seu orgulho, complicada

do lodo e litteratura do tempo. Elle foi um litterato,


proprio
embora como tal inferior, de álbum, á maneira dos de-
poeta
mais românticos; fundamentalmente, um timido; um
janotas

hesitante, de alma repassada daquella indecisa dos


philosophia
fracos:—os não sabem mais do reflexamente,
que proceder que
e dos o momento moldou ao acaso um desgraçado, e
quaes

donde uma circumstancia anterior tanto ter


poderia plasmado
um santo como um criminoso.

Entretanto elle é bem a sua epocha, ainda na sua ficção

mais e dahi o valer, ainda como doido romântico,


pungente,

um typo acabado,
perfeito.

Mas não nos antecipemos á sua historia.


própria
Effectivamente ali mesmo, a dois do Lodeiro, ha-
passos
via elle encontrado um magnífico do seu futuro drama.
padrão
Fôra o caso de uma noite, horas altas, appareceram
que
na residencia do abbade de Santa Cruz dois desconhecidos,

para o sacerdote fosse ouvir de confissão uma


pedindo que

moribunda que se abrigara num ao tempo abando-


pardieiro,

nado, da Quinta de Tojeiro


(').
Levantou-se o abbade e foi soccorrê-la. Encontrou uma

mulher nova, de logo, se deu a confidenciar-lhe os seus


que,

peccados.

Durou tres de hora a confissão, segundo o teste-


quartos

munho do sacerdote, mais, sobre o caso,


que pouco poude

dizer, fechado no segredo do sacramento fôra


proprio que
— do os dois homens
ministrar; depois o haviam ro-
qual que

o convidaram a deixar-se amarrar, ali


gado para permanecer

até de manhã.

(') Era uma dependencia da Casa de Villa Nova que foi de Eça de Queiroz,
depois demolida para dar logar á actual estação de Arígos.
A ÁGUIA 11

Perto, noutra sala, mesuradamente um em-


passeava

buçado.

Seguro o abbade, todos retiraram, a mulher em lagrimas

e ao a sua derradeira absolvição!


pedindo prêso

Eis o caso, aliaz na apparencia simples, e de o


que

sem conhecer Shakespeare, logo compoz um Othello!


povo,

Senão vejamos a scena final do ultimo destes dois dra-

mas, melhor os identificar:


por

Othello

Resou esta noite Desdemona ?

Desdemona

Sim, meu senhor.

Othello

Se se recorda de alguma coasa até agora não perdoada pelo


ceo, implote já o seu
perdão.

Desdemona

Ah! meu senhor, dizer com isso?


que quer

Othelo

Vamos! fá-lo e sê breve; eu aqui: não ma-


passeio por quizera
tar-te o espirito em não! o ceo não o — Não
peccado; permitte. qui-
zera matar a tua alma (').

Ahi estão os dois dramas e, o é mais, nelles uma


que
só epocha, é de notar Shakespeare foi exhumado
porque que
do silencio de o rodearam as sombras da sua
que próprias
edade Romantismo!
pelo

Shakespeare no casarão escuro de Santa Cruz; um drama

seu authentico a dois do Lodeiro; a sua repercussão


passos
na alma de José Augusto, um delicado e um doido; de facto

um espirito forte só na sua fatalidade e e, sempre,


prejuízos,
deixando lavrar, ao acaso, no as raizes do seu zelo.
peito,
E Fanny? Pobre delia! A sua vida é mysteriosa tem-

pestade! E tempestade!—o vendaval surdo uma a


que que,
uma, lhe vae crestando as menores esperanças, até em nove
que
mezes, tanto durou o seu captiveiro, a de vez.
que prostrou

í1) Othello.
12 A ÁGUIA

Conta Manuel Negrão no Porto elle fora


que quando

visitar Fanny, ao Hotel Barthès, onde ella chegára em estado

desesperado,—já não era mais do um espectro—cuja


que

lhe deu logo, a sensação enjoativa dum cadaver!


proximidade,

E, entretanto, é então Camillo melhor se denuncia


que

nas reminiscencias do seu longínquo amor ella!


por
«Neste momento, diz elle, odiei José Augusto;
pa-
recia-me via nelle, ao lado da victima, um impossível
que

carrasco.»

E mais:

«Não tive mão de mim, e contas da formosura


pedi-lhe

dos vinte e tres annos, da vida radiosa de Fanny Owen »


(').
É também neste lance José Augusto
que pela primeira
vez informa o romancista de havia recebido o maço das
que
cartas de Fanny o hespanhol.
para

E, alludindo a estas:

«Mataram-na
a ella, e mataram-me a mim...»

Antes dissera-lhe, uma vez, na Foz:

«
Fanny é minha irmã.»

Entretanto, a todo transe, a cura da mulher,


projecta,

agora irremissivelmente
perdida.

Quer ir Villar do Paraizo, e depois em levá-la


para pensa
a Madeira.
para

Esta lucta é ainda, no momento, um aspecto macabro da

sua loucura! Viajar, seguir de da mulher cadaver


par quasi que
até ahi não soubera mais de zelar duma imaginaria falta!
que

Comtudo, ha no drama de Fanny um lance mal se


que
esboça no relato do escriptor e no entretanto, eu tenho
que,
um dos mais notáveis da sua funesta acção.
por

É o lance do seu apparecimento a Camillo, na saleta do



Hotel Barthès ella se apercebe do effeito doloroso
quando

da sua na alma do escriptor diante delia, « es-


presença que,

magava os olhos estancar as lagrimas lhe desborda-


para que

vam da enchente do coração...»

É a ultima hora de Fanny, ella lhe apparece na


quando

casa das visitas, leve, com rumores de folha secca, avançando

até elle no seu ar de boneca lugubre, da mascara o riso


prêso

frio da caveira, a falar-lhe:

(•) No Bom Jesus do Monte.


A ÁGUIA
13

—«
Cuidei me não conhecia, mas se ha de assim
que
chorar, melhor fôra me não conhecesse!...»
que
Perto, duas testemunhas, afinal dois comparsas do seu

extravagante melodrama:—Manuel Negrão e Camillo!

Ella esforçando-se, luctando seu derradeiro acto,


pelo
e falando-lhes, a elles, de facto seus cúmplices de sempre,

esforçadamente, como usa


penosamente, quem já palavras dou-

tro mundo, e, no entretanto, sorrindo ainda a Camillo,


por-
ventura a José Augusto...

Foi breve o acabamento de Fanny, em Villar do Paraizo,

a 3 de agosto de 1854.

Pobre Fanny! tão infeliz nem sequer tivera a conso-


que
lação ultima de Desdemona, da havia sido suave con-
qual
trafacção.

Ao menos esta a derradeira hora, lhe


pedira, para que
deitassem na cama os lençoes do seu noivado!

A desventurada Fanny nem isso Não tinha


podia pedir!
tido noivado...

Tudo á roda delia, uma se espraiou


pureza pureza que
de desgraça até final, e José Augusto zelou a de lhe
ponto
exhumar do o coração, como verificar os affectos
peito por
ali tivessem
que gelado!
De resto, uma variante requintada das do
grandes peças
tempo:—na mão em vez dum de osso, um sacco
pedaço
de sangue!

E elle, de olhos attentos nos modelos, e sempre


grandes
representando si —
para proprio: primeiramente, a transfigura-

ção do Othello, fim a do Hamlet!


por peoração
Entanto Fanny desce ao sellada em urna de crys-
jazigo,
tal, e a capricho envolta, se não na sua cama de noiva,
pois
a não tivera, nas alvissimas hollandas do seu leito de
que

virgem I

Foi a cova «pura, como se nunca tivesse sahido


para
do regaço de sua mãe » — contou a Camillo o medico a
que
embalsamou!

E José Augusto ?

«José Augusto, informa, documentadamente, o Sr. Al-

berto Pimentel, faleceu a 24 de setembro de 1854, em Lisboa,

na hospedaria da D. Luiza, na travessa de Estevam Ga-


14 A ÁGUIA

lhardo, onde, annos depois, se estabeleceu o Hotel Uni-

versai. Teve um fim trágico. Naquelle mesmo hotel estavam

hospedados Hugo Owen, irmão de Fanny Owen, hoje Ba-

rão de Pero Palha, meu amigo, e sua esposa.


particular

José Augusto, tinha chegado doente, no vapor Por-


que

to logo soube estava ali Hugo Owen, foi atacado


('), que que

de febre cerebral. Nas suas memórias inéditas, me con-


que
fiou, conta o Barão de Pero Palha as horas horríveis
qUe
ouvindo num aquelle
passara, gemer, quarto proximo, que
considerava o verdugo de sua irmã. Falecendo José Au-

no dia em se completava um mez


gusto, justamente que que
Fanny Owen falecera, a estalajadeira, D. Luiza, á es-
pediu

posa do Barão lhe emprestasse vinte libras occorrer


que para
ás despezas do funeral do hospede. A boa senhora, coração

angélico, intercedeu com o marido consentisse no


para que
emprestimo. O Barão, é um nobilissimo caracter, cedeu.
que
«Depois do enterro, diz o Barão nas suas «Memórias»,

abriu-se o bahu e D. Luiza veio entregar á


judicialmente,

Sylvia nome de sua esposa) o dinheiro ella lhe tinha


(o que
emprestado. Aqui está, como na realidade eu emprestei o

dinheiro ser sepultado o verdugo... de minha


para pobre
irmã Fanny Owen!»

Com esta transcripçâo se esclarece o destino final de José

Augusto, do mesmo cancellamos uma nota de


passo que

Camillo o Sr. Antonio Cabral no seu Perfil de Camillo,


que

transcreve da margem dum álbum a José Au-


que pertencera

gusto.
Dessa nota, inferir-se-ia o Barão de Pero Pa-
que

lha, da morte do infeliz marido de Fanny, se havia


quando

eximido a interferir no seu enterro; contrario,


quando, pelo
foi elle intermedio de sua esposa,
quem, por primeiramente
lhe saldou os funeraes.

Bem mais interessante e acaso mais sentida é uma outra

observação, ainda aquelle mesmo livro trasladada do


para

álbum do marido de Fanny.


precioso

É aquella em Camillo nos informa acerca de José


que

Augusto, amargos: —
em traços descendente de epilepticos e

(') Deve ser engano. Segundo um documento adiante impresso chamava-se


Cysne o barco em que do Porto seguiu para Lisboa.
A ÁGUIA 15

doudos, com um aspecto scismatico, byroniano, admirado

tolos.
pelos

E mais, noutro logar do mesmo álbum, referindo-se a

— «Veja-se livro
Fanny Owen e José Augusto: o no Bom

Jesus do Monte, onde o destes dois desgraçados


problema

recebeu uma luz


pequena (')».

Eis Camillo a escrever, com sinceridade, nas Paginas in

timas este o nome do manuscripto), com amor


(é porventura

ainda não de todo desbotado Fanny, o mais since-


por que

ramente de José Augusto.


pensava

Porque, ao seu drama, temos nós elle


quanto para que

escrevera o minimo do informar; e dahi também o


que podia

ter resultado de tudo o delle nos deixou muito


que pouco,
uma luz, como sinceramente, e ultimo, ali con-
pequena por

fessou.

E, comtudo, vê-se do caso elle tinha o segredo in-


que

teiro, a sua intima e verdadeira luz!

* *

Como fosse, e apezar de tudo, certo é


quer que que
ácerca de José Augusto escreveu o romancista,
porventura
numa hora de — «foi
rememoração: o homem mais
piedosa

infeliz ainda conheci; aquelle homem de estrella


que fu-
nesta e de tristeza cerrada, depois embalsamou
que que
a mulher e a ir depositar na egrejinha contígua ao
fez

velho solar dos Camellos, em Villar do Paraizo, se encerrou,

com um sacerdote,por espaço de oito dias»-, depois do


que
sahiu Lisboa, sobrevivendo um mês certo á morte da
para

mulher!
(!)

Naturalissimo tudo como clichê da epocha!

Finalmente, depois da morte de Fanny, a de José Au-

num contiguo ao do Barão de Pero Palha, num


gusto, quarto
hotel de acaso, em Lisboa, só, longe do dos
primeiro palco
seus amores, como das suas torturas, e isto, a curto,
praso
dias sobre a inhumação da mulher, o tempo
passados preciso

(') Perfil de Camillo, por A. Cabral, 1914.


16 A ÁGUIA

elle a alma a e desarrumar-se do


para preparar para partida,

mundo, onde agora lhe as saudades delia...


pesavam

De facto, melhor, ou mais verosimil historia, ainda


que

como obra de Arte, afinal ajustar-se duma tal epocha?


podia

E, também, outro dramaturgo não fosse Camillo


que que

extrahir duma tal epocha um melhor drama?


podia

É effectivamente, «por fatalidade da sua má estrella»


que,

elle não só interferiu no extranho caso, mas, mais ainda, como

sem se achou a tudo; como de tudo, foi uma


que querer, prêso

especie de extravagante contra-regra, desde a obtenção das car-

tas, até final, até á tocante scena da de Fanny no


presença

Hotel Barthès, no Porto, ainda de si tão empolgante a


que,

elle o fez chorar!


proprio,

Eis, em ultimo lance, a historia dum dos seus mais ver-

dadeiros dramas:—um motivo authentico da mais real e extre-

mada acção, e, também, um capitulo de litteratura


porventura,

viva como, entre nós, de maravilha seria encontrar outro!

É José Augusto, como Fanny, como o Ca-


que proprio

millo são, no caso, despida a sinistra solemnidade da sua for-

tarefa de comicos dos seus equívocos, os simples actores,


çada

mais do seu melodrama, da farça incomportavel do tempo,


que

ou tenha sido a mesma a cujo afinal, vergaram todos!


pêso,

DOCUMENTOS

Finalmente, que da correspondência de José Augusto de


pois
Magalhães com Manuel Negrão, e Raymundo Borges de Medeiros

para as presentes notas, da-la-emos, na em do-


partimos parte que
cumenta a grande paixão de José Augusto sua mulher e
por que,
sobretudo, é expressa das cartas dirigidas a seu irmão, primeiramente
aquella se encontrava doente em Villar do Paraizo, dando-
quando
lhe de a julgava irremissivelmente e, mais tarde,
parte que perdida;
a da sua retirada para Lisboa, depois que ella morreu, con-
proposito
fidenciando-lhe para Santa Cruz o seu doloroso estado de alma.

As cartas vamos publicar, alem da que é dirigida a Manuel


que
Negrão, fazem do archivo particular da casa da Capella,
parte que
foi de Raymundo Borges, e a um dossier
pertencem precioso que
obsequiosamente nos foi confiado pelo distincto medico e nosso

amigo Dr. Abel Brandão Leite Pereira Cardoso de Menezes,


querido
hoje senhor da Casa, como representante de sua tia D. Josepha Cie-

(i) Camillo, No Bom Jesus do Monte.


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RETRATO

De Antônio Carneiro.

A Águia—61, 62, 63 série).


(2.a
A ÁGUIA 17

mentina Teixeira Pinto, cunhada de José Augusto e inalteravel amiga


de Fanny.

Ha, de resto, no maço acabamos de fechar cartas da


que pro-
pria Fanny, de sua mãe D. Maria Rita da Rocha Owen, de José Cor-
reia de Mello da Silveira, intimo de José Augusto e, finalmente,
deste, para seu irmão, sua cunhada e todas ellas, no
quer quer para

geral, referentes ao ultimo acto da vida da infeliz Owen.


Entretanto cedo revelar das suas folhas o
pareceu-nos para
mais dos sentimentos dali se vêem ou adivinham e a des-
que que,
da superiorissima delicadeza os transfigura, nos serviram
peito que
a melhor comprehender a acção mal tentamos reconstituir, ou
que
seja todo um drama do mais magoante e exquisito interesse, adrede
tecido na imaginação de José Augusto seu doentio escrupulo.
por
Ora deste escrupulo a bem dizer, toda a sua desgraça,
partiu,
ou tenha sido a mesma dividiu com Fanny, foi, também,
que que
por certo, á memoração delia a dum caso,
que, proposito qualquer
escreveu a sua cunhada as seguintes e desesperançadas
quasi palavras:
«—Mas Deus sabe o e mais tarde elle dará a com•
que faz,

pensação desses imerecidos sofrimentos... »

Também a Raymundo Borges interrogava José Correia de Mello


da Silveira, numa carta, sobre a morte de José Augusto, da extrava-
forma seguinte:
gante
«—Seja-me licito se sabes com exactidão os
perguntar-te por-
menores de tal acontecimento: nunca me deliberarei a crer nelle
que
não houvesse alguma coisa de extraordinário-, dize-me o sou-
que
beres»
(').
Extranha pergunta a Raymundo Borges, de certo, não res-
que

pondeu, e á qual, antes não saberia responder.


que quizesse,
É que o caso de J. Augusto foi, como vimos, uma tragédia que
o tempo da sua anormal sensibilidade urdiu, sem elle
que proprio,
soubesse mais do referir seus fataes effeitos.
que
Ora isto mesmo as cartas a seguir
provam que publicamos,
todas ellas referentes á doença e morte de Fanny, a doutras
par que
temos de reserva, aliaz não menos interesse,
por que pelos justificados
melindres que de sua evidente intimidade resultam.

O que vae ler-se não é, um novo esclare-


pois, propriamente
cimento á vida de José Augusto: são as suas confidencias com a
mesma desgraça o empolgou; ou, melhor, é a sua dor mal
que
escripta, pois alguém logrou com exactidão, a
que jámais graphar,
tragédia viva dos seus desgostos, ainda ella expres-
quando possa
sar-se, como no caso das actuaes cartas, em verdadeiros
gritos.

(') Em 22 de Outubro de 1854.

2
18 A ÁGUIA

jr

CARTAS DE JOSÉ AUGUSTO DE MAGALHÃES

I.

A MANUEL NEGRÃO (')

Tua casa do Lodeiro,

2-4-51.

Meu bom am.°

Recebi a tua cartinha, muito e muito apreciei.


que

Talvez me no Porto. E assim o creio pela direcção


julgasses

deste á tua, mas olha, estou aqui ha dois dias. Vim fugido delia;
que

esquecido e vim esta aldeia abrigar-me das tempes-


julguei-me para

tades se me açoitavam a esta alma; vim e soffri muito!


que

Velho amigo e companheiro de Camillo a quem eile se refere, no livro—


(•)
Maria da Fonte, da maneira que segue:

«Filho do desembargador Pereira Negrão e neto do celebre e erudito chan-

celer-mór do reino, Manuel Nicolau Esteves Negrão, ex-fundador da Arcadia Ulissi-

retirou, ha vinte e cinco anos do Porto para a sua casa solar de Mosteiro,
ponense,
na margem direita do Douro. Entre os rapazes mais presados, mais cavalheirosa-

mente briosos em que o Porto primava nesse tempo, Manuel Negrão era modelo dos

mais selectos. Acercando-se de raros amigos, eu fui um dos mais honrados com a

sua estima e confiança desde 1847. Separados pela distancia das léguas e dos anos,

raramente nos encontramos, sentimos remoçarem-se por momentos aqueles


quando
dois rapazes, nada românticos, em pleno romantismo, que endureciam o corpo em

a cavalo de dezoito léguas, até Coimbra; e elle se lhe pruiam saudades,


passeios
mettia de esporas e ia ali abaixo até Lisboa, visitar sua avó, a sr.a viscondessa de

Magé, ou os seus os Teixeiras, da Pampulha. Eram assim os duros marialvas


primos,

antes do sybabaritismo da mala-posta c da estúpida celeridade da via ferrea. E nos

intervalos dessa restaurante, amollentavamos a alma, recitando, com


gymnastica
muita ternura, as lacrimaveis dos menestreis contemporâneos, quasi todos
poesias
da rua das Flores. Ás vezes apeavamos dos nossos fouveiros á porta das tabernas,

donde vaporavam chanfanas predilectas, e digeríamos com as estrophes da Lyra poe-


A ÁGUIA 19

A noite em que aqui cheguei cuidei morrer; me não


própria já

lembro de ter soffrido tanto!...

E hoje não tenho phrases com que te possa desenhar as tortu-

ras passou esta alma!


porque

Quando retirei do Porto escrevi-lhe e dizia-lhe: — «as scenas

reproduziram-se, e eu sou hoje o mesmo J. A. em 1851 era em


que

1849 Ainda me lembro o dia em que sahi desta cidade para não
(').

ver a tua imagem, me apparecia em toda a não como anjo


que parte,

salvador, mas sim.. . silencio!»

Escrevi e logo me a caminho; mas que temivel resolução!


puz

Eu não sabia sahia do e ia para o inferno. Passei


que purgatorio

aqui horas como mais horríveis as não passa o condemnado! Cui-

dei não só morrer moralmente, mas que este corpo em breve seria

cadaver. Eu não espero lenitivo, nem mesmo esperava refugio; queria

morrer ou viver para ella.

Fora esquecido, nada me restava do mundo; a religião suste-

ve-me o braço de suicifc, e eu mesmo esperava acabar em breve,

sem commetter um crime! (2)

tica as colladas rescendentes de colorau. Eu vim dabi, de colica em colica intesti-

nal, até esta mina que sou hoje. Manoel Negrão está forte, muito surdo
gastrica
como em rapaz, donoso cavalleiro como sempre, e sobretudo rejuvenescido pelas de-

licias de avô, as delicias da família que lhe foram toda a vida as supremas.»

Pouco mais há a accrescentar ácerca de Manoel Negrão, tal a justeza de Ca-

millo neste seu retrato.

De seu avô, Manoel Nicolau Esteves Negrão, desembargador-mór do Paço e

chanceller-mór do reino, do século XVIII, informaremos que elle morreu, de


poeta
bastante edade, em 1824, tendo sido, effectivamente, co-fundador da Arcadia e adop-

tando nella o nome de Almeno Sincero. Foram seus collaboradores nesta fundação

Theotonio Gomes de Carvalho e Antouio Diniz da Cruz e Silva. Com este compoz

Negrão uma Ecloga celebrar a festa do Natal, em versos hendecassylabos, que


para
se encontram insertos nas obras de Diniz, e que são também os únicos que de sua

autoria se encontram publicados.


Manuel Esteves Negrão morreu ha poucos anos.

Continua hoje o seu nome e casa, a poucos passos desta donde escrevemos, seu

neto, Luiz Marcos Leite Negrão, a cuja amabilidade devemos, com a copia da pri-
meira serie de documentos que abre um dos nossos últimos livros — (Camilo inédito

annotado) — a carta adiante publicada de José Augusto de Magalhães.

Data em J. A. e Fanny se conheceram. Quanto ás «scenas» a que elle


(') que
se refere, talvez ser episodios de Villar, entre elle e a irmã de Fanny, e de que
podem
elle se desculpava de quando a conhecera.
perante esta, affirmando-se o mesmo
Ahi está nesta simples todo o programma da sua tragédia a seguir.
(2) phrase
A idéa do suicídio não lhe cabia na alma; era contra os seus princípios. Quando não

encontrasse no coração as razões da sua vida, deixar-se-ia morrer...

Eis o que, effectivamente, succedeu.

*
20 A ÁGUIA

E agora estou melhor, muito melhor, e sabes tu porque?

Eu tinha deixado aquelle anjo, é a vida da minha vida.


que

Quando leu a carta de despedida ficou «meia morta; fugiu-me, diz ella,

todo o sangue das veias; não sei senti, mas ia morrer»


que pensei que

Acompanha-me o meu coração é limitado esta com-


que para

paixão pelo seu padecerl

Quando falarmos hei de contar-te toda esta historia! É sublime

de sentimento!

Ouve mais:

«Bem conheço apesar de estarmos estavamos longe,


que perto,

mas ao menos tinha a consolação de te ter na mesma cidade, agora!...

Deixaste-me, o que sei eu de ti? Nada... O te importas de


que

mim? Nada...»

Esta carta foi inspirada soffrimento e dor:—hoje dei-


pelo pela
xar de amar seria um crime, mas eu ainda não
que quizesse podia.
Tu mesmo me retiravas a tua amizade?
(')

Depois disto lê-se no fim da carta: — «vem, vem, de to


joelhos

Que farias tu?


peço»...

Eu preparar-me-ei, para o caminho do Porto; é o tenciono


que

fazer. Pois se eu sei a vou encontrar triste, como a carta


que que

ella me escreveu!

Lá espero noticias tuas. Dize-me vens, e esta


quando guarda
longa carta, é um santo de amigo e amizade te offerece.
que penhor

Guarda-a!

Peço os meus recados ao J. G. e tu dispõe do teu am.°

J. A.

II

A RAYMUNDO BORGES

Caro Raymundo:

Desejo chegasses bem e o mesmo apeteço a tua esposa.


que

Estou em Villar na mesma casa, onde estive ha dois annos!


(') Sempre as mesmas hesitações, ainda nos seus actos mais simples!
A ÁGUIA 21

Vínhamos ver se estes ares milagres, mas ainda não conheci


produziam

o tanto ambicionava ...


que

A Fanny não tem desejo de sahir daqui e neste caso não sei

o deva fazer.
que

Dize-me como vaes. Eu soffro muito.

Adeus. Teu irmão e am.°

José Augusto.
26 de Junho.

Meu caro Raymundo:

Recebi a tua carta muito apreciei. Continuo em Villar; por


que
emquanto as melhoras de Fanny são poucas.

Deus lhas dê para felicidade delia e minha.

Ella muito se recommenda e desculpa de não escre-


pede poder
ver á tua cara Esposa.

Eu estou vivendo mal com receios do fim de tudo isto!

Adeus, crê sempre no teu irmão

Muito am.° e obrig.do


Vilar, 8 de Julho.

José Augusto.

Meu caro Raymundo:

Recebi a tua carta deveras apreciei. Não te dou boas noti-


que
cias da minha Fanny; está muito mal. Hoje não tenho espe-
querida
ranças. Creio a sua não
existencia será larga!
que

Não sei como ficarei depois deste


golpe.

Adeus, não ser mais extenso.


posso

Teu irmão e amigo


Vilar, 2 de Agosto.

José Augusto.
22
A ÁGUIA

Meu caro Raimundo:

Confirmou-se a desgraça!...
grande

Estou o homem mais infeliz do mundo!

Não sei, mas creio nunca mais acharei felicidade na terra,


que

oxalá, ao menos, eu me resignar!


possa

Quando o Pereira voltar Lisboa; de lá veremos...


parto para

Adeus, dá recados a tua esposa e sê mais feliz do sou.


que

Teu irmão e am.°


Vilar, 6 de Agosto.

José Augusto.

Meu caro Raimundo :

Recebi a tua carta muito me Nesta nada


que penhorou. posição
ha minore o meu soffrimento!
que

Eu creio que esta ferida não cicatrizar.


poderá

Tenho vivido só! O reitor desta freguezia faz-me ás vezes com-

panhia, e eu vou tratando de illudir os meus soffrimentos, mas esta

illusão dura Emfim, mau foi isto se desse,


pouco! que porque
daqui em deante a vida ha de ser-me pesada!
Tenciono ir Lisboa terra mas antes dar-te-ei
para por parte.
Por todo este mez vou. vez não é tão a
(Já que pavorosa partida.)
Como viverei este anno, lembrando-me do anno
passado!
E como hei-de eu esquecer-me!

O mundo é isto; a vida comporta destas alternativas, mas eu

fui muito infeliz!...

Adeus, dá-me noticias tuas e agradece mim a tua esposa a


por

sua atenciosa carta, a desculpa de não responder a


que peço por que
do correio e o meu estado o não
pressa permittem.

Teu irmão e am.°


Vilar, 12-7-54.

J. Augusto.
A ÁGUIA
23

III

A D. JOSEPHA CLEMENTINA TEIXEIRA PINTO (')

Recebi a sua carta muito apreciei. Sou-lhe grato pelo seu


que

cuidado, e ao meu estado de saúde vae muito mal; mas os


quanto

soffrimentos moraes são maiores!

Tenho não esquecer-me, mas suavisar esta dor...


procurado,

Tudo inútil!

Logo vou Lisboa, e, depois, de lá escreverei.


que possa para

Os meus recados ao Raymundo. Muito desejo elle vá melhor.


que

Disponha do seu m.t0 am.°


grato

José Augüsto.

Villar 28.

Vou hoje Lisboa 110 Cysne. Sinto-me mal do corpo e alma.


para

Dê muitos recados ao Raymundo, e o espero em Lisboa.


que

Offereço-lhe o meu e o retrato de sua amiga.

Eu não ser amigo senão dos respeitam a memória


posso que

daquelle anjo.

Apenas chegar escrevo.

O outro retrato o colloque na sala de visitas onde


peço-lhe que

antigamente estava.

Seu m.t0 grato


Porto 9-9-54.
J. A.

(') Era, como noutro logar esclarecemos, a mulher de Raymundo Borges e

cunhada de José Augusto e como acima affirmamos uma santa senhora, companheira

e intima de Fanny, longas noites do Lodeiro, e á qual Camillo também allude


pelas
algures, com o melhor elogio, pois a tinha conhecido quando hospede de Raymundo

Borges, na Casa da Capella, em Santa Cruz, onde escreveu o conto: — O sobrinho

egresso e o tio bacharel.


CHANSONS ARABES

LE MENDIANT

ous les jours, à 1'heure tardive et solitaire ou la

colombe tournoyante s'endort dans le cyprès, elle revient

in
de la íontaine, lentement...

Comme un pauvre de Dieu, humble et silencieux,


je

vais m'asseoir sur le bord de la route oü elle


passe...

Tous les à 1'heure tardive et solitaire oú le míiezzin


jours,

chante sur la mosquée lointaine, elle de moi, mais


passe près

jamais sa petite tête appuyée contre 1'urne d'argile, ne

s'est retournée un instant du côté de ma tristesse...

Et lorsque la musique de son s'évanouit dans


pas

1'ombre, lente et grave, ferme les en tremblant...


je yeux

C'est cependant bien peu ce te demande, c'est


que je

cependant bien et le cacherais contre mon coeur,


peu, je

la mort, comme un trésor volé...


jusqu'à

o
AMOUR

Je suis le cerf altéré de la source de


près

tes lèvres...

Je suis 1'aveugle chante au bord


perdu qui

des abímes...

Je suis le mal sans remède, 1'humble destin

d'être une ombre, et la tristesse, et la fatigue.

Tu es la cime lointaine, le cios rempli


jardin

de roses, et 1'oasis et le mirage...

LE REGRET

— de la bien aimée lointaine, dorés et


Yeux

mélancoliques comme les sables du Désert


grand

au soleil de midi!...
26 A ÁGUIA

Yeux de la bien aimée beaux


perdue, yeux profonds

et mystérieux, ressemblez à la longue caravane


qui

qui passe en silence vers on ne sait mirage!...


quel

et sa voix, sa voix,
et source transparente

de 1'oasis, chanson du vent dans les palmiers!...

(mon coeur est dans ma comme une


poitrine

pierre trop lourde...)

iff/'
TENTATIVAS PEDAGÓGICAS

"ÉGLOGA
O SENTIDO DA CRISFAL"

em a arte a função social de aproximar o homem daquele

ideal de perfeição que o artista sentiu como realidade.

Poderá o ou o pintor não ter dado, intencional-


poeta
mente, à sua obra, um sentido moral, mas a
quem
estuda, e mormente o educador, deve sempre buscar nela, em ansioso

alvoroço, a realização dum sonho é vida real das almas


que que
sentiram, uma vez, a terra erguer-se e tocar o céu. A vida só é digna

de viver-se representa de anseio de e êste apenas


pelo que perfeição,
a arte o dar, só ela tem o de fazer amar a beleza
pôde porque poder (').
E, assim o entendemos, desejaríamos o ensino literário
porque que
nas escolas revestisse, o duplo aspecto moral e esté-
principalmente,
tico, criando em o recebe um sentimento de beleza
quem profundo

que, vida fóra, frutifique em desejo de


pela perfeição.
Dar ao homem a visão completa da vida real que o cerca e

todos os elementos nela triunfar, formando-lhe o carácter


para pelo
desenvolvimento das de iniciativa, espírito de solidarie-
qualidades
dade, vontade e dar-lhe, ao mesmo tempo, a ansie-
perseverança, (2),
dade de libertação do encontra de inferior em si e à sua volta,
que
é, em verdade, função do ensino isso mesmo, tem
primacial que, por
de ser essencialmente educativo.
-carácter
E, tendo de revestir ainda um de acentuada nacionali-

zação, compreende-se como a história e a literatura, até


pelo que
ambas encerram de arte é evocação da verdade distante), devam
(que
ocupar um lugar de num de educação.
grande preferência plano
Conclui-se do fica dito cuidado tem de haver na
que quanto
escolha das obras hão de constituir objecto de leitura nas escolas,
que
e deverão exigir-se no educador, não valerá
quantas qualidades que
apenas seu saber, mas amôr tiver à sua e
pelo pelo que profissão

pelo entusiasmo no seu exercício, comunicando-o aos


que puzer que

(') Consola-nos ter oportunidade de, desde já, nos referirmos à belíssima obra
de educação que Afonso Lopes Vieira realizou em Portugal com a sua Campanha Vi-
centina a no decorrer dêstes artigos, teremos, certamente, de fazer mais larga re-
que,
ferência, e pela qual o grande Poeta comunicou aos portugueses, que desejam amara
sua terra, não só o seu culto por Gil Vicente, como a sua fé no poder da Arte.

(2) Deve ser êste—.o de desenvolver certas qualidades do carácter (atenção,


iniciativa, vontade, etc.)—o fim da educação, segundo GustaveLe Bon. (Psychologie
de Véducation, Paris, 1912, 254).
pág.
28 A ÁGUIA

educa, e dando-lhes, em face da obra estuda, o sentimento do


que
ela revele de e de belo.
que grande
Ensinar a lêr é um dos mais delicados do en-
problemas
sino, para compreendeu a leitura de uma obra de arte
quem já que
deve ter fim a identificação da alma de lê com a do
por quem
artista.

Assim, o cante a dôr, como criadora de abnegação,


poeta que
de heroísmo, de alegria, há de ser lido numa disposição de alma

quási divina, a sua obra representa de intensamente hu-


pelo que
mano: e esta disposição de alma criá-la-há a obra,
própria quando
fôr bem lida.

Estas palavras dizemo-las a favor do ensino literário nas escolas


secundárias, a atribuímos uma alta função educativa,
que preten-
dendo seguir nele o método a Alfred Fouillée chama
que filosófico
e moral, em oposição ao método histórico e crítico, e leva a
que
na literatura «idéias universais, as
procurar gerais, paixões grandes
acções heróicas», em vez de «fazer topografia e literárias»,
geografia
classificando, rebuscando datas, fixando nomes, apontando factos
(').
A exemplificação, vamos tentar, foi-nos sugerida
que pelos
estudos que, últimamente, teem sido feitos sobre o Poeta das «Trovas

de Crisfal».

As edições das obras de Cristóvão Falcão, Teó-


publicadas por
filo Braga e Epifânio Dias, respectivamente em 1871 e 1893, mos-
tram, só por si, que o e delicadíssimo Poeta de
grande quinhentos
não fòra esquecido na segunda metade do século mas deve
passado,
confessar-se foi o senhor Delfim Guimarães êle des-
que quem por
pertou um mais largo interêsse, a sua identificação com
proclamando
o autor da « Menina e moça...»
(2).
Longe de nós debater tal assunto. Não interessa, de maior, ao
fim que nos propomos, e, demais, temo-lo como resolvido. Nenhum
dos argumentos do senhor Delfim Guimarães logrou criar em nós a
mais leve suspeita de Bernardim Ribeiro houvesse escrito a
que
«Egloga Crisfal», e, se tal suspeita de nós se apoderara, teria des-
aparecido diante da refutação lucidíssima de Raul Soares
(3).
Queixa-se o senhor Teófilo Braga de sôbre a obra do
que
ilustre escritor brasileiro se fez «um silêncio absoluto em Portugal».
Tal silêncio representa espírito apaixonado e uma injustiça,
grave
nós não cometemos, em 1913, discordando inteiramente
que pois, já
da identificação Delfim Guimarães, citávamos o tra-
proclamada por
balho de Raúl Soares (*)•
Mas, confirmada a existência dum com o nome
poeta português
de Cristóvão Falcão, e confirmada até improcedência dos argu-
pela
mentos de Delfim Guimarães, a de nada valeu o auxílio
quem que

(') La Réforme de Venseignement par la Paris, 1901, nas.


philosophie,
40 a 43.

(2) Bernardim Ribeiro, Lisboa, 1908.


(3) O poeta Crisfal, Campinas, 1S09.
(*) Elementos para o estudo da literatura nacional nos liceus, Pôrto, 1913,
pag. 35.
a Águia 29

lhe dar, em inferiores, Sílvio de Almeida ('), era neces-


quis páginas
sário tentar uma nova reconstrução da vida do Poeta.

Tentou-o Teófilo Braga emendando o havia escrito nos


(2), que
seus trabalhos anteriores Diz o ilustre Professor: «Atacámos êsse
(3).
histórico da biografia de C. Falcão), chegando pelo cri-
problema (o
tério literário a um de vista de conjunto, ficou definitivo;
ponto que
mas os factos ou de detalhe, dependiam de desço-
particulares que
bertas especiais, é foram levando aproximações sucessivas à
que por
formação de uma biografia clara e fundamentada» (4).
Estas fazer acreditar a alguém a recons-
palavras poderão que
trução biográfica de Cristóvão Falcão não oferece dúvidas nenhumas,

como se fora elaborada em face de documentos oficiais de incontes-

tável e incontestada autenticidade.

Todavia não acontece assim, o que não estranhará quem

conhecer a vastíssima obra de Teófilo Braga, cujas qualidades e

defeitos a eminente Professora, senhora D. Carolina Michaélis de

Vasconcelos, apontou numa admirável espírito de nobre


página pelo
e desassombrada que revela (s).
justiça
Parte o senhor Teófilo Braga do (que, aliás, supomos
princípio
verdadeiro) de o «ligou todas as emoções sofridas à obra
que poeta
idealizou e, considerando a « Egloga Crisfal» como docu-
que (6)»,
mento auto-biográfico, ajustar os seus a situações reais
procura passos
da vida do e a circunstâncias e acontecimentos da época e tira
poeta
ilações sôbre datas e factos com exagerada facilidade.

Tal mereceu duros reparos ao senhor Anselmo Braan-


processo
camp Freire estudando a vida do feitor de Flandres, João Bran-
que,
dão, e de sua filha Maria Brandoa, conclui que esta não pode
considerar-se como a heroína da «Egloga Crisfal», «sendo-lhe
pe-
noso concorrer a destruição de uma lenda já enraizada pela
para
tradição» (7).
Muito longe de nós está a idéia de analizar ou sequer sumariar

os trabalhos de Braga e Braancamp. Seria, no entanto, interessante

inventariar as incoerências e contradições abundantemente,


que,
ocorrem nos últimos estudos do ilustre historiador da literatura por-
tuguesa sôbre Cristóvão Falcão, e ao contrário do que êle
que,
supõe, não representam uma solução definitiva do mas
problema,

(') A máscara de um poeta (Bernardim Ribeiro), Lisboa, 1913.

(2) Recapitulação da história da literatura portuguesa II—Renascença,


Pôrto, 1914.
Ribeiro e os bucolistas, 1872; Bernardim Ribeiro e o buco-
(3) Bernardim
lismo, 1897.

(*) Recapitulação da hist. da lit. port. II—Renascença, pag. 212-213.


da Ajuda critica e comentada), Halle, 1904, tomo 2.°,
(5) Cancioneiro (ed.
pag. 30.
de Cristóvão Falcão da Biblioteca Lusitana), ed. da Renas-
(6) Obras (vol.
cença Portuguesa, Porto, 1915, pag. 11.
«Atlântida», ano I,
O Maria Brandoa, Crisfal, artigo publicado na a do
Braga com um outro
n.° pag. 618 e segs. A êste artigo respondeu o senhor Teófilo
6,
"
Intitulado Maria Brandôa, a do Crisfal „, não foi apeada, publicado na mesma
Revista, n.° 9, pág. 809 e segs.
30 A ÁGUIA

mais uma hipótese no dizer de Renan, sábio Professor


que, pelo
citado, «é indispensável em história concreta ».

A título de curiosidade, e, de certo modo, o


para justificar pro-
cesso de leitura desejaríamos ver adoptado nas escolas, respiga-
que
remos duas das anunciadas contradições.

Para Teófilo Braga a de Cristóvão Falcão, durante cinco


prisão
anos, a
que êle alude, não só na «Carta» — Os contam os dias,
presos
— como na «Egloga», mas nesta mais veladamente, não é imagem
literária, mas um facto real, explicado denúncia do seu casa-
pela
mento a furto e violento do
pelo gênio pai.
D. João 3.°, carinhosamente, interveio a favor do filho de João
Brandão e conseguiu êste lhe desse a liberdade, mandando-o o
que
rei a Roma, no desempenho duma missão diplomática foi «o mero
que
pretexto para o libertar da crueza do e afastá-lo de Lisboa
pai para
evitar agravos».

Antes de seguir Itália, esteve o Poeta em Portalegre,


para
«aonde tinha a sua e onde foi relegado dureza
parentela para pela
do da Renascença Portuguesa, 25). Parece a sua
pai» (Ed. pag. que
ida Portalegre representa ainda um castigo obstante a in-
para (não
tervenção carinhosa do Rei Piedoso), mas no livro, a Renascença,
de 1914, o mesmo facto fora exposto doutro modo: «O
poeta,
indo refazer-se da opressão em vivera, foi casa de seu avô
que para
em Portalegre», o dá a entender êle aí foi, esponta-
que que' para
neamente.

<;E teria o Poeta visitado Maria Brandoa no convento? Ora diz

que sim, ora diz não.


que
«Também de Portalegre era fácil iludir a autoridade
paterna
e ir em uma escapada a Lorvão. 252). «Cristóvão
{Renascença, pag.
Falcão, sob a dependência da autoridade não
pesada paterna podia
ir a Lorvão» da Renascença Portuguesa, 28).
(Ed. pag.
Em face destas e tantas outras contradições e, principalmente,
aceitando-se como bem fundada a conclusão de Anselmo Braancamp
Freire de Maria Brandoa nunca esteve no Convento de Lorvão,
que
é lícito afirmar todas as tentativas de Teófilo Braga recons-
que para
truir a vida de Cristóvão Falcão falharam, sendo indispensável
que
recomece o seu trabalho.

Convimos em muitas vezes, a vida do autor, estudada mesmo


que,
em todos os seus detalhes, é de capital importância a interpre-
para
tação da sua obra. Mas relativamente à «Egloga Crisfal»,
quere-nos
parecer que quanto do seu autor se tem escrito, longe de auxiliar
na compreensão do seu sentido e no sentir da sua beleza, desorienta
e perturba e priva o espírito de lê do encanto da belíssima
quem

poesia lusitana, porventura a nossa mais bela amorosa.


poesia
Dentro do ensino secundário, menos, não é o da
pelo problema
identificação dos dois líricos do século XVI interessa; não
grandes que
deve mesmo a explicação dos diversos anagramas
preocupar que
ocorrem na sua obra, ao fim de muitos esforços e de mui-
para que,
tas tentativas, não se tenha de concluir, como fez o senhor Teófilo
Braga relativamente à «Joana» da «Egloga Crisfal», são «esté-
que
A ÁGUIA
31

reis as investigações de tais minúcias» Não


('). é sequer indispensá-
vel mesmo dizer necessária) a interpretação
(e podemos histórica da
«Maria», a heroína da «Egloga»,
para a compreensão do seu alto
sentido e encher a alma da sua inconfundível
para beleza. Acompa-
nhar a leitura das *.Trovas de Crisfal» dos comentários com as
que
vão maltratando os erúditos seria absolutamente,
prejudicá-la não
colhendo dela senão uma impressão de enfado—quando dela tem de
resultar, sendo bem feita, uma magnífica lição,
pelo encanto da lin-

guagem suavíssima até os trocadilhos, Andrade Ferreira


(em que que
achou de mau teem tam estranho e tam exquisito
gôsto ('), sabor),

pela profundidade do pensamento encerram, seu de


que pelo poder
divindade eleva tam alto o espírito êle chega
que que a tocar o Céu
de fica saudoso sempre, sendo, desde êsse momento,
que para a sua
maior força a dôr lhe causa o sentir-se cair a terra...
que para
Lendo a «Egloga Crisfal», cujo fundo se agita
(em a realidade
da do Poeta), sente-se vibra nela a alma
paixão que portuguesa no
seu desejo de eternizar o amor—e êsse desejo viveu-o Cristóvão
Falcão, num momento supremo lhe deu, saudade,
que pela a visão
do amôr e a alegria do sacrifício.
perfeito
O pastor Crisfal e a pastora Maria

não se ver tanto sentião,

que o dia, que não se vião,


se via na saudade
O que ambos se querião,
%

e aprouve à ventura ou à desaventura seu mal ou


que, para para seu
bem, a maldade dos homens de todo os separasse,
pelo preconceito
de

Cuidar que merecimento

,, Está só em ter riqueza

Crisfal não era então


dos bêes do mundo abastado.

Passou Crisfal a viver da sua dôr, buscando o mal seu


para
bem, na ansiedade do sacrifício e da Morte como libertação,
própria
e para esta contínua ascenção moral dava-lhe força a saúdade —
estado de alma lhe criara a sonhada ou entrevista num
que perfeição
momento divino a só o amor conduz:
que

Lagrimas manso e manso

prosigam em seu officio;


que não fação beneficio,
nào servindo de descanso
servirão de sacreficio.

(') Renascença, clt., pag. 223.

(2j Curso de literatura portuguesa, Lisboa, 1875, vol. 1, pag. 330.


32
A ÁGUIA

Correi de toda vontade,

que esta vos não faltará;


mas isto como será?

pedi-la-ei á saudade,
a saudade m'a dará.

Necessário he que vamos


algum remedio buscar

pera se a vida acabar.

E quanto mais cresce n.o Poeta o desejo da Morte, mais êle


sobe em e, bem de alto, vê e condena toda a
pensamento, baixeza
e miséria da

.... vida que em vida


bem vista, tanto aborrece.

Crisfal sentia-se viver uma nova vida era ilusão e sonho


já que
—a abrirem-lhe a alma a realidade distante e e,
para perfeita, quando
baixou os olhos à terra, tudo lhe igual, uniforme e nivelado
pareceu
pela maldade:

Vendo-me em lugar tal,


baixei os olhos á terra,
onde estava o meu mal,
e os vales e a serra
tudo julguei por igual.

Ao tocar o céu

(Vi-me levado da terra


Contra as nuvens alçado)

encontrou.Maria, a o interêsse, os e o desamor


quem preconceitos
dos haviam a alma, se debatia e torturava
parentes prendido que no
conflito do amor com a obediência.

É este o mais belo da «Égloga», o só si,


passo qual, por seria
suficiente para individualizar Cristóvão Falcão, e, longe de o identi-
ficar com Bernardim, dar-lhe superioridade sobre êle.
Pela sua leitura, vive-se, intensamente, a fusão de duas almas

que, separadas pela ruindade dos homens, ou Morte,


pela própria
hão-de viver eternamente Amor.
juntas pelo
Maria queixa-se, amarguradamente, atribui toda a sua desgraça
a Crisfal, e fere-o no êle sente em si de mais e mais
que puro no-
bre—a sinceridade.

Não é a alma de Maria fala: é o espírito malévolo,


quem total-
mente dominado pelo vil interesse, dos
parentes:

E, Crisfal, he-me forçado


fazer a vontade sua,

porque lh'o tenho jurado


e também
porque da tua
o certo me tem mostrado;
A ÁGUIA
33

que me dão certa certeza


porque fazem conhecer-me,
o que eu ei por grão crueza,
o amor que mostras ter-me
ser só por minha riqueza.

Crisfal responde com tal de verdade as suas


poder que pa-
lavras ditas na de Deus:
parecem presença

Quem poderá sospeitar


que no amor e na fé
me avieis de faltar!

sempre será meu amor


como a sombra, emquanto eu for:
quanto vai sendo mais tarde,
tanto vai sendo maior.

Não sei em que se encerra


ser esquecida e estranha
esta verdade tamanha,
cá fica o aver na terra
o amor a alma acompanha.

Maria sente a alma confranger-se-lhe de arrependimento, e,


triunfando da submissão em estivera e de todos
que os preconceitos,
vê não há mais do
que poder que possa que o poder do amor:

Eu sei bem
que não me mentes,
—que o
mentir he diferente;
não fala d'alma quem mente; —
Crisfal, não te descontentes,
se me queres ver contente.

Por me ver livre de dor


deixara eu de tequerer,
se o poderá fazer;
mas poder e mais amor
não podem estar num poder.

A história do amor de Crisfal — a revelação da altura a


que
subiu o seu desejo—escreveu-a uma ninfa num álamo «ainda
que
então crecia»:

Dizem que foi seu intento


de escrevê-lo em tal lugar

pera por tempo se alçar


onde baixo pensamento
lhe não podesse chegar.

Atingir a altura a subiu o Poeta é banhar a alma de luz


que
divina e ter a compreensão, arte, de
pela quanto vale o grande poder
de amar da alma lusitana.
34 A ÁGUIA

O nosso espírito, ao visionar Crisfal e Maria, vivendo apenas

daquele amor todos lhe contrariaram, e vivendo dêle, ainda


que para
além da Morte, aproxima dessa situação esfoutra que a história

regista: D. Álvaro Vaz de Almada, vivendo do desejo de eternizar

o seu sentimento de lialdade com o nobilíssimo Infante, a


para
depois da morte, desejava servir (').
quem,rainda
É também êste desejo de D. Álvaro Vaz de Almada uma reve-

lação do de amar da alma lusitana de que o Povo tem


grande poder
a intuição e tam maravilhosamente canta:

Hei-de amar-te até á morte,


Até depois de morrer,
Até lá, na outra vida,
Te hei de amar, podendo ser.

Eu não amo como os mais,

Que eu no amar sou diferente;


Todos amam por emquanto,
Eu amo eternamente (2).

Aproveitar êsse e cultivá-lo, dando-lhe um alto sentido


poder,
— é educar, e cremos bem a leitura
e tornando-o criador que da

«Egloga Crisfal», como de todo o lirismo lusitano, constituí, feita com

tal intuito, um admirável elemento de educação (3).

Porto, 11 de Janeiro de 1917.

É de justiça lembrar o estudo de Jaime Cortesão — Idealização legen-


(!)
dária no publicado na « Águia », n.°s 28 e 29, onde as
povo português, palavras,
que o cronista Ruy de Pina atribui ao Conde de Avranches, são admiravelmente in-

terpretadas.
vol. da Biblioteca Lusitana), belíssimo
(2) Vidè Cancioneiro popular, (l.o
trabalho de Jaime Cortesão.
registar aqui que conservámos em nosso poder e lemos,
(3) É-nos gratíssimo
de vezem quando, com comovida admiração, um trabalho escolar sôbre a «Egloga
Crisfal» do antigo aluno do Liceu «Rodrigues de Freitas», senhor Alexandre Augusto
Ferreira do Amaral, hoje, freqüenta a Faculdade de Letras de Coimbra. Eum
que,
admirável ensaio que, certamente, ainda terá redacção definitiva e a publicidade que
a falta de uma Revista, colaborada por professores e alunos, não me permitiu dar-lhe.
ENCANTO

tarde, quando os ceus

18 Parecem crepitar,

E as lagrimas de Deus

Rólam do meu olhar;

Vens para mim,—caminhas,


"*Sombra
de ethereos véus,

Por entre as andorinhas

E a melodia do Ar!

Fitas em mim, tremente,

Os olhos de esplendor;

Na do poente
graça

Desmaia de alma a côr...

Doce, tua alma incensa

Sonhos de ílôr ausente;

Uma saudade immensa

Embala a minha dôr!

A tarde morre. Eu sonho...

Desfólha-se um
jasmim:

Da sua luz componho

Preces de amor sem fim...

Em luz, melancholia,

Declinas como um sonho!

A noite principia,..

Quem velará por mim?


PROVINCIANISMOS

USADOS EM MONÇÃO

(MATERIAIS PARA O LÉXICO PORTUGUÊS)

TERCEIRA SÉRIE

armada, —
operação agrária consiste em substi-
/. que
tuír as madeiras velhas das latas, erguer as videiras, e distri-

buír e amarrar os braços destas à armação daquelas.

Corresponde, mais ou menos, ao vocábulo da linguagem cor-


rentia empa.

Lata = vem nos dicionários.


parreira

t. —
armar, v. realizar a armada esta
(Vid. palavra).

Abonações:

«Férias pagas aos jomaleiros andaram em Sende desde 12 de Setembro


que
de 1865 até 4 de Agosto de 1866: ] Aos ditos [jomaleiros] de podar, esfoiar
pinheiros e armar ] Aos ditos por armar as latas> (Fls. 244 do inventá-
rio que se seguiu à interdição de Manuel da Cunha Sotomaior, sob o n.° 30 do maço
da freguesia aa Vila, no cartório do primeiro oficio da comarca de Monção).

t. —
arrebolar, v. arremessar.

Fora assinalado no vocabulário organizado Gon-


provincial por

çalves Viana sobre os falares de Rio-Frio e Moimenta


(Trás-os-Mon-
tes), na Revista Lusitana, I, 204, sem embargo do escapou aos
que
dicionaristas. Mais recentemente, incluíu-o M. Boaventura no seu

Vocabulário Minhoto, s. v.


atotadela, amolgadura.
/.
1
Vej. atotar.


atotão, m. a compressão se sofre nos
que grandes

ajuntamentos.

2
Vej. atotar.

1 —
atotar, v. t. amolgar.

Cândido de Figueiredo inscreveu o vocábulo com êste signi-

ficado e como minhoto; mas erradamente


provincialismo grafou-o
— atutar, o daria eu atuto, tu atutas, é eu tu
que quando atoto,

atotas, e, erradamente, também, o capitulou de verbo intransitivo.


A ÁGUIA 37

Ainda como provincianismo minhoto, vem também no Novo

Dicionárioh com igual significado, amolatar, desconhecido em Monção.

2
atotar, v. t.—comprimir, nos ajuntamentos,
grandes

bacia-de-água-às-mãos—bacia de lavatório.

Comp. toalka-de-água-às-mãos e vej. s. v. fonte abonação

documentária.

— feito com
boche, m. espécie de farinha do trigo
pão

produzido e moído na região.

Usa-se mais freqüentemente na forma deminutiva, bòchinho,

talvez causa das exíguas dimensões dêste relativamente ao


por pão
tipo comum de de trigo.
pão

— boche.
bòchinho, m. Vid.


carreteira, adj. diz-se da vasilha adaptável ao carro-

-de-bois
transporte de uvas ou de vinho.
para

Textos abonatórios:

«N.° 6. Uma tinalha de pau castanho, carreteira» (Fls. 16 v. do inven-


tário de Maria Rosa Rodríguez, arquivado no cartório do primeiro ofício da comarca
de Monção, n.° 24 do maço da freguesia da Vila).

«Mais uma pipa carreteira» (Fls. 16 v. do inventário entre maiores da


herança de Francisco Cardoso Guimarães, na mesma comarca, oficio e maço, sob n.° 5).

«N.° 6. Uma tinalha carreteira usada N.° 7 Uma tinalha carreteira


]
velha e muito arruinada» (Inventário por morte de Francisco Martins Mô,—dita
comarca, cartório e maço, sob n.° 16, a fls. 22 v.)

«Uma tinalha carreteira, de madeira de castanho, arcada de ferro, no valor


de dois escudos e cincoenta centavos Uma tinalha carreteira, de madeira de
]
castanho, arcada de ferro, no valor de três escudos e cincoenta centavos.» (De um
anúncio judicial nO Povo de Monção, III ano, n.° 128, de 7 de Agosto de 1915,
p. 3, c. 3).

— um monstro fantástico
coca, imagem escultural de
/.

se exibe no dia da festividade de Corpus-Christi em


que

Monção.

Na Enciclopédia Portuguesa Ilustrada ocorre coca com as signi-

ficações: da capa ou manto cobre a cabeça e se conchega


parte que
ao rosto; bioco; capuz; espantalho. A seguir, com a cota
papão,
Enciclopédia, lê-se o seguinte:

«Com o nome de Santa Coca, figura na procissão de Corpus Christi em Mon-

çâo um monstro feito de lona, de 5 metros de comprimento por 2 de altura, que depois
luta com S. Jorge, costado do dragão
que a final trespassa o

Muito exacta a lição da Enciclopédia Portuguesa: 1)


pouco
ao nome do monstro, é simplesmente coca e não santa•
quanto que
•coca,
a não ser no ditado gracioso

Por causa da santa-coca


Perdi o demo da missa,
38 A ÁGUIA

ditado em santa aparece, manifestamente, contrapor à ape-


que para

lidação de demo no ditado se dá à missa, obtendo-se assim um


que
efeito de contraste emprego de opostas; 2) à
pelo palavras quanto
a citada Enciclopédia dá a coca = bioco,
indiferente ortografia que
deve côca, e a coca = dragão, que
deve
papão, que pronunciar-se
dizer-se coca; 3) ao monstro figurar na no dia de
quanto procissão:

Corpus, a coca exibe-se arruando-se vila e, à tarde, depois de


pela
recolher a apresenta-se no Terreiro, a da
procissão, praça principal
—onde S. Jorge S. Jorge
vila—oficialmente, Praça de Deu-la-Deu, (um

de carne e osso, entende-se) lhe dá combate; mas nem a coca nem

o S. Jorge fazem do figurado da 4) a lona, pintada


parte procissão;

às escamas sobre fundo verde, constitue apenas a epiderme do mons-

tro; a carcassa é de ripas, e no respectivo vasio se instalam os pro-


do dragão.
pulsores

A em frente de 48 reproduz um instantâneo fotográ-


gravura p.
fico colheu o supremo momento do combate entre S. Jorge e
que
a coca,—a ocasião em o Santo introduz a sua lança boca
que pela
do dragão. A outra cópia da ilustração de um bilhete-postal
gravura,
monçanense, destina-se a fornecer mais miúdos do orga-
pormenores
nismo do monstro.

A coca, de antiqüíssima tradição monçanense, tem correspon-

dentes no e no estrangeiro, como são:. a serpe em Penafiel,


país
a serpiente em Redondela a tarasque de Tarascon, a
(Galiza),
de Poitiers, etc.
grand'goule

— espécie de de trigo.
cornucho, m. pão

— diz-se do carro-de-lavoura a
derradeiro, adj. quando

sua carga, mal distribuída, de mais sôbre a


pesa parte pos-

terior do veículo.

Antônimo: dianteiro (Vid.).

Exemplo:
'stá
— Olha derradeiro, rapaz; e ante'lo leves dianteiro,
qu'esse carro porque

pYonde vais sobe-se sempre.

dianteiro, adj.— diz-se do carro-de-lavoura a


quando

sua carga, mal distribuída, de mais sôbre a anterior


pesa parte

do veículo.

Antônimo: derradeiro (Vej. esta palavra).


direito, adj. aquele ao empunhar um instrumento
que

reclame a intervenção de ambas as mãos—enxada, ma-


que
— a direita à frente da esquerda.
lho, etc. coloca

Antônimo: esquerdo.

Em Espozende, diz-se direito e esquerdo em igual sentido, se-

testemunha o referido Boaventura, s. v. anha, e é


gundo provável
muito mais seja o uso de tão naturais vocábulos.
que geral
A ÁGUIA 39

esbicar, v. t.—recortar aos bicos.

Fiança:

« N.° 94.
Uma travesseirinha de linho, com folhos de paninho, esbicados»
(Fls. 38 processo de inventário de
do maiores havido por óbito de D. Margarida
Josefa Botelho, no cartório do primeiro ofício da comarca de Monção — n.° 33 do
maço da Vila).

Esbicar usa-se também em Viana, conforme depõe Cláudio

Basto, na Revista Luzitana, XIII, 82 texto e nota 3, abonando-se


p.
com um excerpto de vianense.
periódico

esmonar, v. t.—fazer falhas nas bordas de loiça, mó-

veis, etc.

O Novo Dicionário apresenta esmoucar como provincianismo


minhoto de igual significação.

Esbeiçar e esboicelar são termos correntes correspondem a


que
esmonar.

Documento:

«N.° 8. Um outro pote de ferro, com a boca es mona da, muito velho»
(Fls. 29 v. do inventário arquivado sob n.° 33 do maço Vila no cartório do primeiro
ofício da comarca de Monção — processado por falecimento de D. Margarida Josefa
Botelho).

Como de uso no Minho, fôra o vocábulo incluído 110 catálogo

organizado Óscar de Pratt de termos escapados à colheita rea-


por
lizada a segunda edição do Novo Dicionário, com um signifi-
para
cado bastante mais largo :

«esmonar, fazer depressões, ou estaladuras em qualquer coisa; no


mossas,
Minho. *Esmonou a «Uma terrina esmonada».»
parede com o bico do sapato.»
(Notas à Margem, II, s. v. esmonar, na Revista Lusitana, XVIII, 109).

Ein Monção, esmoucar diz-se de objectos uma pe-


grosseiros,
dra, exemplo; esmonar de coisas mais frágeis, loiças, móveis, etc.
por
De um objecto com mossas ou depressões não se diz está esmo-
que
').
nado mas sim atotado — amolgado atotar Esmonado é, em
(Vej.
Monção, coisa que tem falha.

espremedalho, m.—o vinho se solta do bagaço de


que
uvas êle é espremido.
quando

adj. — um instru-
esquerdo, aquele ao empunhar
que
mento reclame a intervenção de ambas as mãos—enxada,
que
malho, — esquerda frente
etc. coloca a à da direita.

Antônimo: direito (Vid.).

— mercado lugar
feira-do-mel, o tem no
quinzenal que
dia 20 mercados ou feiras, realizam-se em Mon-
(os quinzenais,

ção a 7 e 20 de cada mês) de Dezembro de cada ano.

Extracto do livro de Eduardo Sequeira, As Abelhas, 199:


p.
40 A ÁGUIA

«Em Monção há anualmente, no mês de dezembro, uma importante feira,


conhecida por a feira do mel, onde aparece à venda enorme de mel,
quantidade
realizando-se valiosas transacções na especialidade.»

A importância da feira, a de mel a ela açode,


quantidade que
e a valia das transacções feitas sôbre tal mercadoria ficam muitíssimo

àquêm do fantasiou Eduardo Sequeira.


que

Informa-nos o Sr. Manuel José Lopes Pereira de na Vila-


que
-da-Feira
também se chama a um dos mercados men-
feira-do-mel
sais dali, — o tem de
que lugar em 20 Dezembro de cada ano.

fonte,/. —
redondo,
prato grande.

Abonações:

«N.° 127. uma bacia de água às mãos,


] ] uma fonte de barro
branco» (Fls. 30 v. do inventário arquivado, sob o n.° 14 do maço Vila, no car-
tório do primeiro ofício da comarca de Monção, e processado por óbito de Umbolina
Rosa Alves).

«Mais uma fonte de barro, vidrada» (Inventário, entre maiores, da he-


rança de Francisco Cardoso Guimarães, no cartório do primeiro ofício da comarca de
Monção,—maço da Vila, n.° 5, fls. 14 v.).


Em espanhol há fuente prato grande Dicioná-
(Campano,
rio, s. v.).


m. nome se distingue um dos bois
galhardo, por que

da o apelidar incitá-lo.
junta, quer para quer para

Ao outro boi da chama-se em Monção


junta pisco (Vej.).

Exemplos:

— lá diante, pisquinho! fora, galhardo, sai fora! iMete ò


jBota par' jSai
rêgo, pisco! Lavra sempre, galhardinho! (Vozes de incitamento, em lavradas).
—Trata de ensogar o
pisco, que, depois, o galhardo vem-t'à mão.

Em Lanhelas, concelho de Caminha, os dois animais da


junta
distinguem-se e são incitados nomes de amarelo e vermelho
pelos

(Informe do Sr. Avelino dos Anjos Cruz). Em Espozende, um dos

bois é chamado ou e o outro cabano ou mareio


galante pisco [ama-
relo] (M. Boaventura).

loc.—diz-se dos animais são objecto do


ganho (a), que

contracto de
parçaria pecuária.

Abonatório:

«N.° 6. Duas sextas partes do dinheiro de uma junta de bois a ganho»


(Fls. 20 v. do inventário da herança de D. Felicidade de Amorim Azevedo, no car-

tório do ofício da comarca de Monção, n.° 32 do maço da Vila).


primeiro

Nestoutro extracto de inventário (o processado por óbito de

mencionados — n.°
Paulo José Gonçálvez pelo cartório e comarca

136 do maço Merufe, fls. 59) lê-se a locução aqui registada condi-

mentada com uma série de disparates absolutamente notável:

«N.° 11. Metade duma vaca também castanha clara (por nascer em poder das
filhas do primeiro matrimônio e filha duma vaca a ganho» {sic)
A ÁGUIA 41


multidão sentido depreciativo).
gavilha, /. (em

Diz, pouco mais ou menos, o mesmo os vocábulos vulga-


que
res cambada, corja, súcia, caterva, récua, canalha, etc.
jolda,

Abonações:

«De resto, o democratismo generoso ainda não intimou certa gavilha a pro-
var-lhe as continuas infâmias »
que ela vomita contra a Rèpública. (O Regional, XV
ano, n.° 666, de 2 de Outubro de 1915, p. 2, c. 2).

...«a gavilha continua a querer saber foi a boa-imprensa


qual que esteve
em Caldelas.» (P. 2, c. 4 do n.° 667 do mesmo correspondente a 13 de
periódico,
Outubro de 1915).

Ainda no mesmo semanário ano, n.° 684, de 16 de Abril


(XVI
de 1916, 1, c. 4):
p.

«Aquela
gavilha tonsurada da rua de Salvaterra está [a] arranjar passaporte
para as profundas do Inferno

«A gavilha, que até então se alapardara nas tocas»

Sempre no mesmo ano, n.° 704, de 12 de Ja-


periódico (XVI
neiro de 1917, 1, c. 4):
p.

«Às autoridades competentes cumpre fazer reprimir os abusos apontados.


Assim o esperamos para seu prestígio e sossêgo do concelho que a gavilha pre-
tende agitar.»


lagarêta, a antiga de vara e fuso e compe-
/. prensa
tente tina com seus orifícios ou rasgaduras, espremer o
para
bagaço de uvas.

O vocábulo já fôra dicionarizado Cândido de Figueiredo,


por
como minhoto e sinônimo de lagarlça, a o mesmo
provincianismo que
dicionarista atribue os significados de lagar e lagar.
pequeno
Mas, em Monção pelo menos, o vocábulo lagarêta tem a signi-
ficação especial acima registamos, e não a de lagar nem a de
que
pequeno lagar.

Uma e outra coisa comprovam as seguintes documentações,

nas duas últimas das sinal, nenhuma dúvida


quais, por para que
reste, ocorre lagar a lagarêta, e em sentidos diversos:
junto

<N.° 32. Uma lagarêta de espremer vinho[s/c], com todos os seus aparelhos
e utensílios, avaliado tudo em seis mil reis.» (Inventário precessado por óbito de José
Antônio Barbosa de Brito, arquivado no cartório do primeiro ofício da comarca de
Monção, fls. 45).

«N.° 40. lagarêta aparelhada, de espremer o bagaço»


Uma (Inventário
arquivado no mesmo cartório — n.° 13 do maço da Vila — processado por falecimento
de Pedro José Calvinho, fls. 36).

9.«N.° e mais outra casa térrea que serve de adega, telhada, com seu
]
lagar de e lagarêta aparelhada»
pedra (Fls. 21 do processo de inventário
arquivado no referido cartório — n.° 32 do maço Vila — e
que teve lugar ao faleci-
mento de Felicidade de Amorim Azevedo). v

«Mais uma tinalha de pôr na biqueira do lagar ] Mais uma lagarêta


de imprensa
[s/c] aparelhada, muito inferior» (Inventário por óbito de Francisco
Cardoso Guimarães, n.° 5 do maço Vila, no cartório do primeiro ofício da comarca
de Monção, fls. 17).
42 A ÁGUIA

Em Melgaço, como em Monção, lagarêta usa-se com o signifi-

cado deixamos arquivado, como demonstra êste texto em é


que que

descrito um, ou melhor soltas de um dêsses aparelhos.


peças

de pinho e um
«N.° 18. Uma pedra para lagareta com armação e barrica
fuso de freixo avaliada [s/c] em três escudos.» (Inventário processado por óbito de
Manuel Rodrigtiez, da vila de Melgaço, cartório do segundo ofício dessa comarca,
ano de 1916.)»

Também em Espozende é igual a significação do vocábulo, ao

se lê sob o termo cincho no cit. Vocabulário de Boaventura.


que

licença ou com sua), loc.—locução usada


(com pelo

se serve de mal soante ou se refere a


povo quando palavra

coisa reputa menos limpa.


que

Exemplos:

Mandou-o, com licença, à...


Vou tirar o estrume, com sua licença.
Morreu-me, com licença, o
porco.

morto loc.—repartir todos os bens em vida,


(fazer-se),

doando-os aos herdeiros.

Exemplo:

A viúva do Pires fez-se morta onte'.

— mesmo o vulgar alcunha.


nomeada,/. o
que

Alguns dos registados nêste trabalho são outras


provincialismos
tantas nomeadas de indivíduos do concelho de Monção: o Aganão,

em Troviscoso, o Tola, em Pias, o Trabulo, em Monção etc.


(Vila),

Exemplo:

iÊle, 0 senhor é mesmo doutor, ou foi nomeada le


que puzeram?

— decorativo em tecelagem.
olhinho, m. motivo

Comprovação documental:

«N.° 7. Duas toalhas de estopa em bom uso, uma com olhinhos e outra
— comarca de Mon-
lisa» (Inventario havido por morte de Francisca de Morais
cartório do primeiro ofício, n.° 26 do maço da freguezia de Mazedo, fls. 20 v.).
ção,


ôlho-mole, m. o Pagellus Controdontus.
peixe

ao
vulgar goraz.

— Vej.
m. galhardo.
pisco,

m.—peça de metal com se fixam os


ponto, que pedaços

de objectos de louça rachados ou


quebrados.

= ao vulgar gato.

Documentação:

«N.° 36. Uma outra travessa de pó de pedra, usada, com alguns pontos,
avaliada pelos mesmos louvados em cem reis.» (Fls. 32 do processo de inventário
43
A ÁGUIA

Margarida Josefa Botelho pelo cartório do primeiro


de maiores corrido por óbito de D.
do maço da Vila).
ofício da comarca de Monção, e no mesmo arquivado sob n.° 33

«N.° 22. Uma caneca fina concertada com três pontos (Inventário pro-
cessado óbito de Francisco Martins Mô, comarca, cartório e maço referidos, n.° 16,
por
fls. 23 v.).

— cilindro de madeira tirar o cogulo às


rapão, m. para

medidas-de-secos.

= vocábulo corrente; rasão, minhoto,


rasoira, provincialismo
de Figueiredo rasoeira, rasoila, rasoilo, rasoiro,
segundo Cândido ;

rasolho, registados, sem indicação de proveniência,


provincianismos
no Novo Dicionário.

Vej. acharar neste vocabulário.

também se usa em Coura com igual significado, segundo


Rapão
de da Cunha 318, s. v.).
o depoimento Alves (Paredes-de-Coura, p.

— o cogulo às medidas de secos com


rapar, v. t. tirar

o rapão.

Vej. rapão e acharar.

= arrasoirar, rasoirar.

ou ripadouro, m.—instrumento com se


ripadoiro, que

separa das hastes do linho as cápsulas contenedoras das res-

sementes.
pectivas

= ao vulgar ripanço e a derripe, em Espozende (Boaventura).

«Numero 19. Um ripadoiro usado, avaliado em setecentos reis» (Inventa-


rio da herança de Francisco Rodríguez Eiras, n.° 25 do maço de Mazedo no cartório

do ofício da comarca de Monção, fls. 00).


primeiro

Coligidos & definidos,


anotados & documentados

por
SONETOS BUCOLICOS

HIPfALA

u chamo-me Acervai, de
pastor gado.
No monte, ao sol, eu guardo o meu rebanho;

mas logo que anoitece desço, e venho

com meu rebanho o meu cerrado.


para

Não pesa sobre mim nenhum cuidado.

Junto na minha arca o mel e o anho;

dar um dia tudo tenho


pra quanto
àquela que me quiz por namorado.

Chama-se Hippala; e nunca o sol de Deus

alumiou beleza como aquela,

nem uns olhos mais pretos do que os seus.

Soubesse eu escrever... pra lhe escrever


—falas lindas eu digo longe dela,
que
mas que ao pé dela não lhe sei dizer!...

II

RENUNCIA

fosse com ovelhas e bezerros

a desquitasse a desventura,
que gente
eu tinha, Daliana, bem segura

a remissão dobrada dos meus erros.

Tudo se avista destes serros,


quanto
e o se avista de maior altura,
que
importa seja meu, se a sorte dura
que
me traz o coração metido em ferros!
F

A ÁGUIA 45

Eu dava as minhas terras e o meu gado


O a não tem não arreceia;
que gente
e o trabalho avigora um corpo moço.

Tudo eu desprezara de bom grado,


amanhar contigo a terra alheia,
para
e não fosse o nosso.
guardar gado que

III

A FIDALGUINHA

A fidalguinha nunca sobe á serra.

aqui vem não da floresta.


Quando passa
Ela foge do sol a nós nos cresta,
que
e teme a chuva fecunda a terra.
que

Vaidades e ambições o mundo encerra


que
foram vergando a fidalguinha honesta;

e o nosso coração é sempre em festa,

das cidades o mal não lhe faz guerra.

E eu ouvi dizer á fidalguinha



amava o campo. Mas não sabe amá-lo
que
não vive esta vida ingênua e rude;
quem

não charrua a terra ou a vinha;


quem póda
nem tem um braço amigo a acompanhá-lo

neste trabalho nos dá saúde.


que

//
•-

IDILIO

A Leonardo Coimbra

unto a um silvestre,
pinhal
mesmo á beira de uma estrada,
¦
vive uma flor ignorada:
tanta ali
gente que passa,
a ninguém ela diz nada;
á campestre,
plantasinha

quem vai encontrar-lhe


graça?
Vem um coração
pobre

perdido na vida;
própria
esquecido na beleza

do ar e da natureza,

todo entregue á ilusão,

só procura a singeleza,

só nela encontra
guarida...
Vê ele a flor, ela vê-o,

pára ele, ela sorri...

Que linda Nunca vi


flor!
manto mais belo o seu !
que
Ninguém a tinha notado,

também a ninguém sorria ...


Mas o pobre abandonado,

por sua simplicidade,

encontrou naquele dia

uma florsinha ha-de


que
— a sua florsinha
querida!—

perfumar-lhe toda a vida,


e até a morte, também ...
mas não o diz a ninguém!

E ela então, a florir,

lá vive á beira da estrada,

lá continua ignorada

mas feliz, só de compor

sorrisos sorrir
para

quando vem o seu amor!

¦A
ARTE

MÚSICOS PORTUGUEZES

i ertencem ao distincto escriptor D. Miguel Carlos Sotto


Mayor e Azeredo as notas sob aquelle titulo, vamos dar,
que,
extractando-as dum seu diccionario inédito.

Trata-se duma obra singularmente interessante,


que pena
foi o auctor nos deixasse incompleta, mas ainda tal
que que
como a deixou, todas as razões merece ser como
por publicada,
um dos estudos de melhor intelligencia e subsidio no obscuro
capitulo da historia da nossa Musica.

Demais, alem do valem como noticia, as


que presentes
biographias realizam, vezes, magníficas litterarias,
por paginas
mau grado tratar-se dum diccionario, onde o auctor, sacrificando
a sua maneira de escrever, aliaz sempre tão correntia e ele-
quasi
impeccavelmente classica, teve, a miúdo, con-
gante, quão que
trariar-se ou resuinir-se.

Finalmente, pois que não cabe nos limites duma simples

nota de apresentação a biographia completa do distincto e eru-

ditissimo escriptor, limitar-nos-emos a enunciar o da sua


que
vida litteraria mais importa, ainda como esclarecimento da sua

actual e obra.
paciente
D. Miguel Sotto Mayor nasceu na freguezia de Ancêde,

deste concelho a 16 de setembro de 1828, e era filho


(Bayão),
de D. Carlos Manuel de Macedo Sotto Mayor e Castro, des-

embargador da Casa da Supplicação e de D. Anna Ludovina de

Azeredo Pinto e Mello.

Menos exactamente affirma o «Diccionario Universal»,

publicado sob a direcção de Maximiano de Lemos, com o titulo

de «Encyclopedia Portugueza»—que o illustre escriptor se ma-

triculou na Universidade de Coimbra depois de completar o


respectivo curso de preparatórios.
Nada disso succedeu: D. Miguel Sotto Mayor nem se ma-

triculou em Coimbra, nem fez exame algum.

Ainda, por um extranho escrupulo, seus thios, a cargo dos

quaes estava a sua educação, pois que seu pae tinha morrido

quando elle era ainda creança—evitaram seguisse as escolas


que
do Porto e Coimbra «pela razão de temerem a sua
para pouca
e inexperiente edade, as ideas liberaes então, mais do
que que
noutra aquellas cidades andavam fortemente
qualquer parte, por
ateadas».

Quantas vezes me falou elle destas razões de seus thios


contra as escolas liberaes, de doutras reminiscencias dos
par
seus estudos!
primeiros
48
A ÁGUIA

E dahi também o poder eu informar os seus trabalhos


que
escolares foram inicialmente dirigidos Henrique
pelo professor
Alves de Queiroz, expressamente, tal fim, mandado chamar
para
do «Collegio irlandez» de Lisboa, sendo seus companheiros de
aula, alem de Manuel Negrão,—meu avô materno, também o
único dos tres que depois seguiu e concluiu o curso na Universi-
dade de Coimbra.

D. Miguel Sotto Mayor completou a sua educação com


seu thio Frei João de Azeredo, mestre de S. Bernardo e
padre
um dos mais conceituados humanistas na sua Ordem. Dahi tam-
bem a illustraçâo classica em logo de foi orientado
que principio
nos seus estudos, e que depois foi apurando da mesma razão do
seu talento, e segundo o nos meios eruditos do tempo.
gosto
Era um violoncellista distincto.

E, porventura, desta sua Arte,—a e


paixão, quasi piedoso
apego historia da musica, de as noticias são
pela que presentes
um magnífico e pacientíssimo documento.

Collaborou em quasi todas as revistas do tempo:—Archivo


Pittoresco, Fè, Pirata, Aurora, Civilizador, etc.

Finalmente, deixou, entre outras, as obras seguintes:


—A de D. Miguel; A Egreja
Realeza Catholica e os seus
A divindade de Jesus; A religião ensinada aos
perseguidores;
meninos por Mr. Segur; As victorias dos em
portuguezes favor
da sua independencia; Extincção das Ordens religiosas em Por¦
tugal; Estudos sobre a língua
portugueza; e ultimamente, —O

marquez de Pombal, exame e historia critica da sua adminis•


tração.

Faleceu, na sua Casa de Esmoriz, com 83 annos, a 26 de


dezembro de 1911.

INTRODUCÇÃO

ÃO é nosso intento escrever aqui uma desenvolvida

historia da Musica em Portugal. Seria assumpto

superior aos nossos apoucados recursos, álem de

caber mal em uma simples introducçâo, de-


pois
mandaria um livro especialmente escripto o versar con-
para

dignamente. Daremos apenas um esboço d'essa historia,


pois

ainda está escrever, e cujos elementos deverão custar,


que por

haver de reunil-os, um improbo trabalho; sendo mui-


para que
tos d'elles nem o obtel-os é estão
já possível, porque perdidos

para sempre.
A Coca (MonfiSo)

Combate entre S. Jorge e a Coca (Monção)


A ÁGUIA 49

É certo Portugal, como ha annos se escreveu


que por
occasião da exposição musical de Milão, tem uma tradição

artística, com brilhantes, com enthusiasticos cultores


phases

da Musica; teve engenhos se immortalisaram seu


que pelo
talento, e adquirindo o titulo de benemeritos, deixaram
que,
imperecedouros os seus nomes na biographia artistica europêa,

que os consagrou á
posteridade.

Commemorar esses nomes alguns dos a


gloriosos, quaes

patria tem deixado no olvido, é simplesmente o scopo


quasi
d'este nosso livro. Convinha seguir a nossa tradição
porém
musical até aos da monarchia e lançar
primordios portugueza,
uma vista d'olhos sobre a maneira aqui se foram acom-
porque

panhando os lá fóra ia fazendo a arte. É isto


progressos, que
o unicamente vamos tentar na Introducção, com
que presente
a brevidade, e com a firme confiança na indulgência
possível

do leitor.

Todos sabem Portugal começou a figurar como nação


que
independente na metade do século XII. Ao século
primeira
anterior é commumente referida a invenção, ou menos a
pelo
fixação do rhytmo musical moderno. Em 1066 Franco de

Colonia escrevia a sua Ars cantas mesurabilis, e ahi definia

o contraponto: «Muitas melodias concordantes entre si». E,

ou lhe a da invenção, ou apenas o mérito de


pertença gloria
ter aperfeiçoado as descobertas dos seus é
predecessores,
certo reduzindo-as a um corpo de doutrina, foi elle ver-
que,
dadeiramente o creador d'este ramo importantíssimo da Musica

moderna.

Desde o XI até ao XIV século avançou a Musica


pouco
álem do em Franco a havia deixado. N'esta ultima
ponto, que
epocha as divisões do tempo musical, introduzidas
porém por
elle, começaram a ser abandonadas, substituindo-se-lhes ou-

tras, tiveram de ser representadas novas figuras.


que por Quem

foi o auctor d'estas innovações? Não se sabe ao certo,


principal
sendo attribuidas, a Prodoscimo de Padua, a João Tinctor,
já já

mestre da Capella do rei de Nápoles, a Franchino Gafforio



de Milão. Effectivamente este ultimo fixou definitivamente o

valor das figuras e das lhes correspondem, divi-


pausas, que
dindo-as em maximas, longas, breves, semi-breves e mini-

mas. Esta divisão até ao século XVI, em


permaneceu que
começou a usar-se a nova nomenclatura de seminimas, col-

chêas, semi-colchêas, e semi-fusas.


fusas
50 A ÁGUIA

Todos estes tiveram de ou-


progressos por ponto partida

tra invenção muito importante—a da escalla musical moderna.

Attribue-se esta a Guy de Arezzo, monge benedi-


geralmente

ctino, nascido nos fins do X século. Elle teria tirado as sylla-

bas, se designam os sons ou vozes, de se


pelas quaes que

compõe a escalla, de um hymno a S. João, cujas eram:


palavras

Ut queant laxis

/fesonare fibris,

Mi ra
gestorum
Fa muli tuorum,

Sol ve polluti
/.flbii reatum,

Sancte Joannes.

Observa, Fétis de uma epístola do


porem, (') que proprio

Guy se vê elle apenas aconselhava a um seu confrade


que que

se lembrasse do antigo canto d'este hymno, se levantava


que

uma nota sobre cada syllaba ut, re, mi, etc. Do mesmo
fa,

modo também infundada a opinião, attribue a Guy


parece que

de Arezzo o uso e o nome da derivado da


gamma (escala),

lettra 3.a do alphabeto se representava a nota


grego, pela qual

mais da escala dos sons. O mesmo Guy de Arezzo falia


grave
d'estas cousas como conhecidas antes d'elle. Entretanto

fóra de duvida elle fez a escala natural mo-


parece que partir

derna do ut ou dó; e dizem também estendera a 22 graus


que

o diagramma tinha só 18, e o dividira em


grego, que que

hexacordes, ou em trez das somente 6 notas


gammas, quaes

eram articuladas
(2).

César Cantu também escreve acerca de Guy de Arezzo:

«Attribue-se-lhe a invenção das notas musicaes, e todavia as

linhas e os eram conhecidos antes d'elle; não introduzio


pontos

a ou a escala chromatica, e também não a ampliou


gamma,
cinco cordas ás dos antigos. A tradição
juntando-lhe quinze

diz apenas inventou as notas, com a ajuda das se


que quaes

aprendia a Musica em tempo, o antes d'elle exigia


pouco que

muitos annos; e Benedicto VIII, chamando-o a Roma


que para

(') La Musique mise à la portée de tout le monde, pag. 22 (3.a ediç.).


(2) Richer diz ter visto na bibliotheca dos Jesuítas, em Messina, um antigo
vários hymnos notados segundo o methodo, cuja inven-
manuscripto grego contendo
ç3o se quiz attribuir a Guy de Arezzo. A corda grave, que elle juntou, era indicada

por um gamma; d'aqui o nome de gamma dado á escala, a cuja frente está aquella
letra.
A ÁGUIA 51

conhecer o seu methodo, ficara muito satisfeito. A sua escala

é a mesma a dos apenas um mais extensa


que gregos, pouco
addição de um tetracorde no tom agudo, e de uma corda
pela

no tom
grave».
Finalmente, na opinião de o mais certo é Are-
Çap, que
tino, a fim de tornar mais fácil de encontrar a intoação, esco-

lheu uma melodia conhecida—o hymno de S. João—cujas

notas devêram servir de typo a todas as outras. N'isto, como

se vê, vai de acordo com o diz Fótis


que (').
Do meio de todas as incertezas resalta comtudo um facto

incontestável e importante, é o resurgimento da arte mu-


qual
sical sob a sua forma moderna. Por mais se dispute sobre
que
as origens e sobre os inventores dos capitaes, é fora
pontos
de duvida o nosso systema musical recebeu um forte im-
que

pulso durante o século XI: devemos a essa epocha a creação

das a notação, a fixação do rhytmo e dos valores, e


gammas,
até a invenção do contraponto. Por muito tempo se limitou a

harmonia ao diatonico e ao emprego das consonâncias.


genero
Predominava a musica de egreja—o cantochão—e como este

procede apenas notas de igual o estudo da arte


por prolação,
era o estudo do solfejo simplesmente. Mas ao lado
quasi que

da musica d'egreja havia também os cantos e estes


populares,
eram rythmados, fazendo assim um contraste com a monotonia

do cantochão, menos agradavel ao ouvido do Foi então


povo.

que surgio o abuso de se entoarem dentro dos templos melo-

dias misturadas ás notas severas do canto ecclesias-


profanas
tico; todavia, mais indecente e até sacrilega imagine-
por que
mos esta extravagancia, é certo d'ella nasceu a melodia
que
moderna.

Antes de adiante, cumpre deixar dicto a


passarmos que
escala Aretina ia só de ut ou dó a lá, e só cinco séculos
que
mais tarde foi um musico flamengo ajuntou a nota si,
que
completando assim a série das sete vozes, constituem a
que
escala actual.

De todo esse movimento artístico, havemos rapida-


que
mente historiado, chegaria também alguma cousa ao nosso

Portugal, durante aquelle estabelecia e consolidava


que período
a sua independencia? c de crer sim, visto as suas
que que

(') Cap, Histoire de la Musique, na Encyclop. des connaissances utiles,


tom. u.
52 A ÁGUIA

relações com outros da Europa estão assás demons-


paizes

tradas historia. Que o canto ecclesiastico estava em uso


pela

nas nossas egrejas nos tempos da monarchia, é facto


primeiros

não admitte duvida. Já anteriormente a 1050 o concilio


que

de Coyança determinara Archidiaconi tales clericos cons-


que:

titutis temporibus ad Ordines ducant,


quatuor qui perfecte

totum Psalterium, Hymnos et cantica, Epístolas, Orationes

et Evangelia sciant. Uma antiga chronica falia-nos de um

Te Deum e Ladainha cantados na egreja de Santa Cruz de

Coimbra, no reinado de Sancho I. E de um mestre cantor da

cathedral do Porto faz menção um documento do século XIII,

citado no Elucidado de Viterbo.

O canto ou mosorabico fazia alguma differença


gothico

do canto É este ultimo


gregoriano. provável porém que preva-

lecesse nas egrejas de Portugal, não só attendendo aos exfor-

empregados Papas Alexandre II e S. Gregorio VII


ços pelos

a abolição da lithurgia mosarabica na Península, mas


para

também logo nos reinados houve em Portu-


porque primeiros

vários Bispos estrangeiros, especialmente franceses, os


gal
deviam certamente forcejar introduzir nas suas dio-
quaes por

ceses a musica ecclesiastica usada nos seus respectivos


paizes.

Por este modo é de suppor também chegassem á nossa


que

terra as innovações feitas na arte musical, a acima nos


que já

referimos, concorrendo ainda isso os muitos mancebos


para

aquelles tempos fôram lá fóra estudar as scien-


que por

cias
(').

Sabe-se desde o século IX até ao XIV foi a


que grande

epocha dos trovadores, os levavam uma vida errante,


quaes

ora seguindo os exercitos á campanha colaborarem os


para

feitos d'armas dos ora os solares e


guerreiros, percorrendo

castellos, cantando de amor ás damas, e abrilhantando com os

seus improvisos e canções os festins e os saráus de


príncipes

e senhores. O trovador era sempre acompanhado


quasi pelo

menestrel, executava a harmônica do concerto na


que parte

harpa, no bandolim, na theorba, ou em outro instru-


qualquer

mento idêntico, emquanto o trovador desempenhava can-


que

tando a melódica, elle mesmo inventada, improvisada,


parte por

oü escolhida d'entre as sabidas. Por vezes o trovador era


(') Vid. a Hist. dos Estabelecimentos scient. por Silvestre Ribeiro, tom. I,

pag. 11.
A ÁGUIA
53

ao mesmo tempo menestrel,


quer dizer e musico simul-
poeta
taneamente. O aprendia repetia
povo e essas trovas e cantares,
e as compunha também
quiçá propriamente suas.

D'este modo a musica afastava-se da monotonia


profana
e severidade da musica d'egreja, e criava o rythmo, cuja varie-
dade avaliar variedade
podemos pela de metros empregados
nas antigas trovas.

A França e a Hespanha, e conseguinte


por Portugal,
foram os onde mais
paizes floresceram os trovadores. Aqui,
no nosso não foram
paiz, poucos os cultivaram a
que poesia
provençal, a ajuizarmos ainda hoje resta d'essa antiga
pelo que
litteratura nos nossos cancioneiros e na tradição Ora
popular.
esses trovadores deviam
portuguezes cultivar conjunctamente

a musica, formava, como dito fica, uma


que parte integrante
da Consta
guia-sciencia ('). os trovadores introduziram
que
nas suas melodias as e de notas, caracte-
fiuriture grupos que
risavam o canto dos orientaes; e se vê n'isto deviam
já que
distinguir-se mais os hespanhoes, viviam lado a lado com
que
os arabes, e d'estes receberam vários instrumentos como o
arrabil, a etc.
guitarra,
Em apoio do vimos dizendo lembraremos
que o
que
dizem as nossas chronicas com referencia ao infante D. Pedro,
filho de el-rei D. Diniz—que compunha elle mesmo a musica

para as suas tróvas. Se o rei D. Diniz ignorava


proprio a mu-
sica, o não
que é de suppor attenta a esmerada educação,
que
recebeu,
menos era apaixonado arte, como o
pelo pela prova
a creaçâo de uma cadeira de Musica na universidade, fun-
que
dou
primeiramente em Lisboa, e transferiu Coimbra
que para
em 1306
(2).
Por aquelle tempo fazia a arte musical
progressos, a
que
Portugal
não devia de ficar estranho. Começava a empregar-se
artisticamente
o contraponto; Guilherme de Machault, musico
da corte de Filippe o Bello, aproveitava habilmente as disso-
nancias
em differentes composições, especialmente em uma
famosa
Missa a 4 e João de Muris, doutor da Surbona,
partes;
escrevia
vários tratados de Musica, em dava importantes
que
regras
para o canto mesurado, de alguns, sem
que posto que
fundamento,
o consideraram inventor. Marchetto de Padua

C) Schlegel, Hist. da Lit. antiga e moderna, tora. I, cap.


£red. VII.
(*) Silvestre Ribeiro, oper. cit. tom. I,
pag. 434.
54 A ÁGUIA

empregava também vez a diesis cuja


pela primeira (sustenido),
importancia é sobejamente conhecida.

Não devemos em silencio a circumstancia de haver


passar

ainda el-rei D. Diniz instituído, em 1299, a Capella real den-

tro dos seus de Lisboa «E d'este tempo Jorge


paços ('). (diz
Cardoso) teve cantarem-se horas canonicas)
parece principio (as
na Capella do Paço, menos nas vesperas solemnes»
pelo (2).
O canto fazia as delicias de D. Pedro I; o
popular qual
também trovava e cantava despindo a sua habitual
quando,

severidade, folgava nas festas dos seus reaes, ou se in-


paços
tromettia nas danças e trebelhos dos seus subditos
plebeus,
como conta o chronista Fernão Lopes. É notar todavia a
para
aversão, dizem mostrava—e se traduziu até em uma
que que
lei sua—por todo de instrumentos músicos não
genero que
fossem as trombetas marciaes!

O canto era, como acima se disse, uma repe-


popular já
tição ou imitação das melodias inventadas trovadores.
pelos
D'outro lado estava a melopêa antiga, adoptada e reformada

até certo Egreja, magestosa e solemne, mas


ponto pela pouco
agradavel ao ouvido do Foi isto o deu occasião á
povo. que
invasão da musica nos templos; abuso tomando
profana que,
as de sacrilégio, as rigorosas
proporções provocou providen-
cias do Papa João XXII sem todavia este
(1310-1334), que
lograsse alcançar completamente o seu louvável e mui
justifi-
cado intento. E comquanto, mor das vezes, a lettra
pela parte
d'esses cantares fosse ainda mais do a
profanos profana que
musica, não deixava também o de inventar seus cânticos
povo

ao divino, tendo esta origem o Vilhan-


provavelmente popular
cico, foi uma das fôrmas da musica religiosa na Península,
que

analoga ao Madrigal, muito usado em França


(3).
No século XV os da Musica não foram muitos.
progressos

No nosso avaliar mesmo a sua decadencia se


paiz podemos
nos lembrarmos do triste estado em el-rei D. Duarte en-
que
controu a Capella real, onde—diz um escriptor nosso—já se

(') Brandão, Monarchia Lusit. Livro XVII, cap. XVIII.

(5) Agiol. Lusit. Tom. I, pag. 400.


(3) «O Madrigal foia principio ura hymno á Virgem, que se cantava a muitas
vozes, e em contraponto, freqüentemente acompanhado a orgâo. Mais tarde tocava-se
no orgão e n'outros instrumentos uns trechos sem palavras, no estylo madrigalesco.
Aqui está evidentemente uma das origens da musica instrumental moderna». Cap.
oper. cit.
A ÁGUIA 55

não cantava como devia ser E comtudo D. João I


('). parece que

não fôra totalmente desconhecedor da arte musical, havendo

até dissesse ter este rei escripto a solfa alguns


quem para

Salmos. Se isto é exacto, não o é menos seu filho D. Duarte


que

teve de reformar, levantando-a do abatimento em havia


que

cahido, a Capella real, dando-lhe estatutos se de-


pelos quaes

viam regular os cantores d'ella. O numero d'estes foi augmen-

tado D. Affonso V, consta ter aprendido musica com


por que

Tristão da Silva, um dos mais antigos compositores portiague-

zes de ha noticia. Foi também seu contemporâneo outro


que
musico chamado Álvaro, compôs um officio a cantochão
que

se cantar em acçâo de conquista de Arzilla,


para graças pela

em 1472.

Garcia de Rezende diz-nos haver sido D. João II singu-

larmente affeiçoado á Musica. Eis as do chronista e


palavras

amigo do rei: «E eu começava de tanger bem me man-


porque
dava ensinar, e me ouvia muitas vezes na sésta, e de
(el-rei)
noite e me tanto e tantas vezes, eu não
na cama, gabava que

cuidava em outra cousa senão em servir e aprender». São bem

conhecidos os versos do mesmo Rezende:

Musica vimos chegar

a mais alta etc.


perfeição,

Entretanto somos tentados a crêr ha ahi o seu tanto


que

de exaggero, se considerarmos bem em algumas circumstan-

cias, n'aquella epocha concorriam no se


que para que publico

esfriasse muito o Musica, e esta, sendo menos


gosto pela pro-

veitosamente ensinada e estudada, não attingir o


podesse grau

de Rezende inculcar-nos.
perfeição, que quiz

Em no século XV, os da arte musical


geral, progressos
foram muito A epocha dos trovadores era e
poucos. passada;

o viver social do ia soffrer uma notável transformação,


povo

das suas antigas liberdades com a con-


perdendo grande parte
solidação das monarchias absolutas. Por outro lado a arte

também o seu caracter de espontaneidade, ou melhor,


perdia

tornando-se mais scientifica, e me-


tde popularidade, portanto

nos vulgar. «Procurava-se sobretudo um escriptor) nas


(diz

(') Baptista de Castro, Mappa de Portug. tom. III, pag. 165.


56 A ÁGUIA

composições a sciencia e o mérito das difficuldades vencidas.

Foi a epocha da escolastica musical».


propriamente

Com referencia ao nosso o abandono, em aqui


paiz, que

se achava a Musica, entre outros, o seguinte facto:


prova-o,

A cadeira de Musica, criada el-rei D. Diniz na universi-


por

dade, subsistia ainda em 1431, o infante D. Henrique


quando

tomou a seu cargo e desenvolver esse estabelecimento


proteger

scientifico, então existente em Lisboa O esclarecido infante


(').

conservou aquella cadeira; mas nos reinados de D. Affonso V

e de seu filho D. João 11 1495) ella foi


(1438-1481) (1481,

certamente abandonada, ou mesmo supprimida; nos


porque

Estatutos dados á universidade el-rei D. Manuel,


por pelos

annos de 1496, nem a mais leve menção se faz de tal cadeira


(2).

Este facto se nos affigura assás significativo.

O abuso da mistura da Musica sacra com a tinha


profana

aquelles tempos ascendido ás de um verda-


por já proporções

deiro escandalo, obrigando a Egreja a lançar sobre ella a mais

severa reprovação. E a indignação não incidia somente


geral

sobre o abuso, mas chegava também a ferir a arte,


própria

desacreditando-a, e condemnando-a mesmo. Foram estas as

idéias, embora até certo injustas, vieram a conden-


ponto que

sar-se na celebre carta de Cyrillo Francisco, Bispo de Loreto

de fevereiro de 1549), a o nosso D. João IV oppôs


(16 que

uma refutação tardia—cem annos depois—e as argui-


quando

de Cyrillo não tinham razão de ser.


ções já

O Bispo de Loreto da impropriedade da mu-


queixava-se

sica do seu tempo, e do escandalo, commummente se


que

estava dando, de se cantarem os Kyries, o Agnus Dei e os

outros hymnos lithurgicos do mesmo modo, e com a mesma

intonação das trovas como o Hercules Dux Ferra-


populares,
riae, etc. Cifrando-se o estylo, tanto sacro como em
profano,

e fugas exclusivamente. Se notarmos ainda


gritos quasi que

aquelles tempos, era a musica sacra tinha toda a


que, por que

reprovada esta, e dando-se toda a


preponderância, preferencia

Cyrillo) á musica antiga sobre a moderna, a arte


(como queria

estava mortalmente ferida, entregue ao desprezo e a


prestes

cahir na mais completa ruina.

Valeu a esta derrocada o immortal de Palestrina.


gesto

(') Silvestre Ribeiro, Hist. dos Establ. scient., tom. I, 444.


pag.
O Oper. cit. tomo I, pag. 447.
A ÁGUIA 57

Uma Missa sua apresentada ao Papa Marcello II


(1555), quando
este estava disposto a banir a musica do serviço religioso,
quasi
convenceu-o de a arte, tratada um espirito
que quando por

elevado e reflectido, não merecia o castigo, ia inflingir-


que
se-lhe, e só devia recahir sobre as obras dos compositores
que
ignorantes ou mal orientados. Palestrina foi nomeado Mestre

da Capella de Santa Maria Maior, e mais tarde da de S. Pedro

de Roma, no desempenho de cujo cargo fez, com novas e

admiraveis comque as opiniões de Cyrillo de Lo-


producções,
reto fossem totalmente de
postas parte.

O leitor, nos tiver acompanhado n'estas reflexões,


que

poderá fazer uma idéia do estado, em se achava a Musica


que
entre nós o ingênuo Garcia de Rezende escrevia aquel-
quando
les versos, a acima alludimos. Todavia el-rei D. Manuel
que

prezava-a muito, e dava-lhe um lugar conspicuo entre os


passa-
tempos da sua côrte. Elle mandou vir dos estrangeiros
paizes
cantores e instrumentistas, muito se comprazia de ouvir,
que
não só nos seus esplendidos saráus, mas também ás horas da

comida, durante a sésta e antes de se recolher á cama. A sua

Capella uma orchestra, ser a melhor


possuia que passou por
do seu tempo, e não lhe faltava também uma—musica da real

camara—como se disse. Garcia de Rezende


posteriormente
dá-nos os nomes dos instrumentos, de essas orchestras se
que
compunham: eram charamellas, violas d'arco, citras, trom-

betas e atambores. Alem d'isso D. Manuel tinha diversos

músicos arabes, cantavam acompanhando-se com o ala-


que
hude, tamborillo charamella, harpa, rebecas e
(pandeiro),
timbales.

O leitor terá de certo notado a differença, existe en-


que
tre D. João II e o seu immediato successor, com relação ao

ponto de estamos tratando. Emquanto aquelle se conten-


que
tava com ouvir, durante as horas da sésta, ou ao recolher ao

leito, algumas executadas no alahude ou no arrabil


peças pelo
seu secretario de D. Manuel trazia artistas do
Garcia Rezende,
estrangeiro orchestras recreação sua e da sua
e organisava para
côrte. Este do monarcha venturoso devia neces-
procedimento
sariamente ao renascimento do arte mu-
dar lugar gosto pela
sical, entre nós durante a ultima metade do
quasi apagado

século XV; e effectivamente, ao no século XVI se


passo que
abria o áureo da nossa litteratura, a Musica florecia
período
também a e lettras; sendo ainda
das sciencias das
par para
58 A ÁGUIA

notar muitos dos nossos mais afamados escriptores


que

d'aquelle illustrado século foram também músicos, como Da-

mião de Goes, Sá de Miranda, João de Barros, e ainda outros.

A historia da arte regista muitos e importantes pro-


geral

feitos durante aquelle mesmo século XVI, aos


gressos quaes

Portugal não ficar estranho. Inventou-se o traço vertical,


podia

ou barra, a divisão dos compassos, collocando-se primei-


para

ramente de 8 em 8 compassos, depois de 4 em 4 facilitar


para

o calculo do contraponto. Porém só no século seguinte foi


que

se adoptou a divisão de cada compasso sobre si, acabando-se

então com o uso das figuras maxima, longa, etc., e conser-

vando-se apenas as respectivas Também durante o


pausas.

XVI século se deu ás notas de musica, anteriormente eram


que

ou em losango, a forma oval ou redonda, ainda


quadradas, que

hoje conservam. Á mesma epocha, e a Erycius Pontinus attri-

buem alguns auctores a addicçâo do si á escalla chamada are-

tina. Mas a este respeito diz-nos Cap: «Pôde notar-se na


que

dq Guy de Arezzo o si não figurava nominativamente.


gamma

Elle existia todavia na dos começava


gamma gregos, que por

la, onde trazia a lettra B; mas esta nota não tinha


parece que

entoação bem determinada. Quando apenas estava separada

do la um semi-tono chamavam-lhe B-mol, e representa-


por

vam-na assim—V—; e estava separada um tom intei-


quando

ro, tomava então o nome de B-duro, ou B-quadro, cuja figura


era esta— .A de la ut tinha lugar as
\ passagem para (dó)

mais das vezes sem a articulação dos dous sis, e meio de


por

especie de da voz, a se chamava mutança,


portamento que

termo se applicava igualmente ás diversas entôações de


que

uma mesma nota assim alterada. Depois notou-se cada


que

intervallo diatonico se dividir em dous semi-tonos apre-


podia

ciaveis ao ouvido, e os bmoes, bem como os bquadros, foram-se

applicando a cada nota da escalla. Como seja, o si


quer que

não tomou lugar na escalla moderna senão no tempo de João

de Muris século). Poder-se-ia crêr foi excluído


(XIV que pelos
harmonistas não ter natural».
primeiros por quinta justa

Porém o mais importante fez a Musica


progresso, que

ainda durante o século XVI, foi a fixação definitiva da tonali-

dade moderna. Até aos fins do século anterior os cantos vul-

entravam nos modos ecclesiasticos, eram derivados


gares que

dos modos Agora foram esses, substituídos


gregos. porém,

dous únicos do nosso systema maior e menor—sys-
pelos
A ÁGUIA 59

tema influio consideravelmente sobre o ulterior


que progresso

da arte, e se tornou a base de todas as modificações,


que por

essa tem desde aquella epocha até aos nossos


que passado
dias.

Á vista do impulso dado D. Manuel ao


poderoso por

Musica no nosso os seus deviam


gosto pela paiz, progressos

ser, e foram realmente notáveis durante o reinado de D. João

III Este cuja memória tem sido tão mal-


(1521-1557). príncipe,
tratada escriptores de uma certa escola, se apraz em o
por que

considerar apenas como um fanatico e um ignorante, foi toda-

via, de entre os nossos reis, um dos maiores das


protectores

lettras e das artes... « É sabido ha


geralmente (escrevia pouco

« Sousa Viterbo) a corte de D. Manuel caprichava na


que ga-

«lanteria e fineza do tracto, e bastava a atmosfera n'ella


que

«se respirava dar um verniz de educação Os


para principesca.

«filhos do monarcha foram todos muito instruídos, e se nem

«todos egualaram o infante D. Luiz, não é de crêr


que

« D. João III fosse a única aberração fatal»


(')

(Continua).

<-(&¦/

(') Artes e Artistas em Portugal—pag. 177.


¦

óp

Fig. 1 Motivos ornamentaes de um capitei m demo dos Jeronimos (Belem)

Etnografia Artística

A ROSETA SEXIFOLIA E O SUÁSTICA

roseta de seis folhas e a roda de raios curvos, hoje vul-

designada swastica, donde suástica, apa-


garmente por
recem-nos, desde tempos remotíssimos, como motivos

decorativos de importancia.
primacial
Dá-se com estes dois sinaes, cujas origens se acobertam em

sombras de mistério, um movimento curioso, iniciado em tempos

ante-históricos e continuado ainda em nossos dias. Tendo começado

a sua longa divagação mundo, como emblemas ou símbolos


já pelo
dessa categoria — ainda na antigüidade —, a ele-
sagrados, passados
mentos de decoração corrente, e empregados para ornamentar os

mais nobres monumentos ou as mais ricas alfaias de uso ou de culto,

acabaram serem relegados para o âmbito etnográfico da arte


por po-
vivendo agora desafogadamente e com honra, entre as mais
pular,
rudes camadas das sociedades europeias.

Poucos outros emblemas terão, como estes dois, a sua carreira

e as fases da sua vida e evolução milenarias, tão bem documenta-

das. Sucede, porem, com eles, o acontece com os rios de maior


que
curso: as origens, distancia a se encon-
permanecem-lhe, pela que
tram de nós, insondavelmente obscuras. De com o sino sai-
parceria
— outro simbolo de remota origem e larga carreira, masque
mão

a sua significação de religiosidade —, a roseta


não perdeu ainda e o

suástica atravessam as idades, em toda a especie de obras


gravados
de ouro, de bronze, de ou de madeira. Competindo com a
pedra
cruz, que os cristãos como motivo ornamental sobre
prodigalisáram
uma infinidade de trabalhos, desde o mais humilde e berrante mo-

saico bisantino, à mais rica custodia do renascimento, esta trindade

de símbolos, infiltrando-se mansamente atravez da barreira com que


a nova crença os pretendeu deter, conservou-se até nossos dias bem

viva, somente, a aureola religiosa os sagrava. E é este


perdida, que
um dos mais interessantes casos de longevidade conhecidos, neste

estudo de sobrevivencias e prolongamentos de vida antiga, é,


que
afinal, a Etnografia.

Não é agora ocasião asada se fazer o estudo monogra-


para
fico da roseta de seis folhas ou do suástica, sobre os aliás
('), quaes,

(') Já em 1912 (A Egreja de Lourosa da Serra da Estrela — pag. 21) anun-


ciei uui trabalho, ainda inacabado, sobre A roseta sexifolia como motivo orna-
mental popular.
A ÁGUIA 61

ha no estrangeiro, uma vasta bibliografia. Tem, sempre


já, porem,
uin certo interesse o arquivar documentos das fases
portuguesas, por

que, sucessivamente, foram os dois misteriosos signos,


passando que,
segundo opiniões recentes, muito bem representar os vesti-
podem

gios de um culto solar disseminado Celtas atravez da Europa


pelos
(Déchelette).

Roseta e suástica encontram-se ainda hoje gravados sobre edi-


ficios e utensílios de toda a Europa. A area de dispersão
populares
que lhes atribuía Danilowicz, onde se compreendiam a Rússia, os

Balkans, a Áustria, o norte de África e a França, /imos nós ajun-


(')
tarem-se, a Italia, a Suissa, a Suécia, a Noruega, a Islandia, Portu-

gal. Gentes de todas as raças, eslavos, magiares, latinos,


germânicos,
incluíram—sabe-se lá bem com entusiasmo, nas suas
quando...—,
artes rústicas, esses sinaes tão simples de traçar e tão decorativos.

Por toda a branca do velho mundo, rosetas e ródas fio-


parte
riram, nas cidades e nos campos, alindando o mobiliário, o trem

caseiro ou a habitação modesta. E, de insígnias sagradas de cultos

extintos ou de divindades esquecidas, umas e outras tornaram-se em


amoraveis, enfeites, com se satisfaz o rude instinto
pequeninos, que
estético do aldeão, ou com o rústico Adonis seduz o olhar da
que

que ha-de ser a sua companheira de labor e de familia...

Em época da antigüidade aparecem, vez, em


que pela primeira
Portugal, a roseta e o suástica?

Por mais tenha percorrido com os olhos os exemplares de


que
ceramica neolitica, eometalica e da idade do bronze, os
que possuem
nossos museus, não me foi encontrar vestígios dos dois mo-
possivel
livos ornamentaes, nas suas decorações. O nelas é o
que predomina
gosto geometrico, nas linhas ou nos pontos.
Chega, a idade do ferro, e estabelece-se o nosso
porem, pri-
meiro contacto com os sinaes, ora fascinam nos refêgos dos
que
braceletes da Arnozella, ora se estadeiam em lajes de
pre-romanos
granito nas cioidades e castros do Minho. Na Citania, em Sabroso,
em Monte nos castros de Vilar e S. Miguel-o-
Redondo, (Aboim)
Anjo, etc., aparecem exemplares típicos, definidos, dos dois ornatos.

Sobre o suástica escreveu Martins Sarmento, esse extraordina-


rio espirito descobertas tão lamentavel-
de poeta-arqueologo, cujas
mente ficaram sem continuadores (2):
«Na Citania e em Sabroso, o swastica, salva a excepção que
togo notaremos, apparece em e fóra do seu lugar
pequenas pedras
primitivo, sendo isso impossível determinar o sitio
por precisamente
que elle occnpou na construcção desmoronada de faz parte. Ha
que

(') V. Correia. Arte popular portuguesa — Suas relações com a arte popu-
lar de toda a Europa, na Terra Portuguesa, vol. I, pag. 81-87.
(2) Arte mycenica no noroeste de Hespanha, na Portugalia, vol. I, pag. 2.
62 A ÁGUIA

boas razões acreditar que todo o luxo architectonico das


porem para
nossas estações se concentrava na frontaria das casas, ou melhor,

das suas sendo isso muito provável que as pequenas


portadas, por
com swastica estivessem embutidas logo acima da
pedras padieira,
a era lisa, é o caso mais vulgar».
quando padieira que
Como se vê, o suástica colocava-se nas frontarias das casas

os moradores, tal como hoje ainda sucede, em-


para proteger qual
bora sem sentido religioso, nas habitações do concelho de Coim-

bra, ornadas de esgrafitos populares.
Mas não era só o suástica que se mostrava: a roseta representa-

va-se, também, ao lado dele. Numa oblonga da Citania, o tris-


pedra
ceio radiada de tres braços) surge-nos acolitado de duas rose-
(roda
tas sexifolias. Sarmento refere-se-lhes nestes termos I vol.,
(Portugalia,

v/

I ! A I

>k >k
«

Fig. 2 Rosetas sexifolias gravadas num cruzeiro de Almalaguei (Coimbra)

3). «O Triscelo aparece aqui entre duas figuras muito rudimenta-


pag.
res, que decerto representar dous florões. Tão rudimentares
queriam
são ellas se não a comparação».
que prestam qualquer
Não é tanto assim: distinguem-se nitidamente na as duas
pedra
rosetas.

Deixados os castros, caímos imediatamente em civiliza-


plena
ção romana, e as rosetas e os suásticas, trisceles, tetrasceles, flame-
salpicam os mosaicos, esculpem-se nos e nas
jantes, pavimentos pe-
dras decorativas, encabeçam as esteias sepulcraes ou as aras voti-
vas. Uma região, em especial, dá si só um contingente enorme
por
a colecção especial das lapides ornadas com os dois sinaes.
para
É a Terra de Miranda, irmã, em tudo, das terras de Leão, alem do
Douro, onde os dois emblemas aparecem também la-
profusamente
vrados em lapides funerarias. Ainda hoje, cami-
quem passa pelos
nhos velhos, afastados da civilização e dos arqueologos, as encon-
tra, enegrecidas dos musgos ou deterioradas dos maus tratos, á beira
dos caminhos ou encravadas nas construções modernas.

Nesses tempos, se ainda o seu significado religioso


portanto,

perdurava nas esteias e nas aras, havia desaparecido nos mosai-



cos, cuja construção se subordinava a tipos enviados de Italia.
A ÁGUIA 63

Sobreveem os barbaros, as invasões, as algáras dos mouros.

Na visigotica capelinha de Balsemão, os dois emblemas embelezam

as impostas e os frisos caiados as continuam. O mesmo sucede


que
na asturiana S. Cristina de Lena, em Santa Maria de Naranco

(Oviedo), em S. Pedro da Nave onde suásticas e rosetas


(Zamora),
alternam, numa linha de desenhos cravados a meia altura das
pa-
redes.

Ainda em Espanha, vamos encontra-los, logo a seguir, no


canecillo mosarabe de San Miguel de la Cogolla de Suso (Logrôno),
e, mais tarde, nos arcos romanicos do de S. Pedro de Galli-
portal

ganes, em Gerona, e nos abacos de San Pablo dei Campo, de Bar-

celona.

Na igreja de Santo André, em Mafra, onde um estilo de tran-


sição do romanico o se nos em meio das rui-
para gotico patenteia
nas acumuladas, encontramos, nos artezões da capela-mór, pregos
com a cabeça talhada em forma de suástica.

Em Oliveira do Hospital, no retábulo da celebre Capela dos


Ferreiros, dentro da igreja matriz, existe uma figuração do sol e da
lua. O sol é um suástica flamejante.

Como a arquitectura e a escultura, e, cousa


passou para para
curiosa, volvido, talvez, á sua significação, o misterioso
primitiva
emblema?

Sabe-se lá bem! O canteiro, é, regra um homem sim-


geral,
pies, tão sujeito a influencias da arte como outro
popular, qualquer
mesteiral. Num capitei dos Jeronimos, feito de novo ha uns 30 anos

para substituir um outro, carcomido do tempo e dos maus tratos dos


frades, encontrei a serie de desenhos com encabeço
gravada que
este artigo, no meio dos aparecem o triscelo, o tetrascelo e o
quaes
suástica flamejante. E não foi algum etnografo
pensem que que quiz
perpetuar os sinaes. A idéia do trabalho pertenceu ao mestre dos
canteiros ou ao canteiro, se limitaram a aproveitar ele-
proprio que
mentos tradicionaes.

Do renascimento cá, como as substancias onde foram


para gra-
vados ou os dois ornatos se conserváram com mais facili-
pintados
dade até nossos dias, a abnndancia de documentação é maior.

Rosetas e suásticas reproduzem-se, multiplicam-se assom-


proliferam,
brosamente, na decoração civil e religiosa de caracter Por
popular.
todo Portugal, na construção e seus acessorios, no mobiliário da
habitação e dos santuarios, nos utensílios caseiros, nas alfaias agri-
colas, misturados com outros motivos decorativos, ou isolados, umas
€ outros dominam.

O desenho da figura 2, representa duas rosetas ladeiam


que
um ornato de folhas, e se acham sobre um cruzeiro seis-
gravadas
centista de Almalaguez, a celebrada terra das tecedeiras, de
perto
Coimbra. O da figura 3 foi copiado de um esgrafito ornava uma
que
velha casa meio arruinada de Lagares também de
(Brasfemes), perto
Coimbra.

Se quizesse ajuntar maior documentação a estas notas, não


necessitaria mais do reproduzir alguns dos desenhos acom-
que que
64 A ÁGUIA

panham os trabalhos tenho publicado sobre a arte popular


que por-
tuguesa.

É na arte que hoje se manifesta mais claramente a


popular
sobrevivência dos dois motivos ornamentaes. Um dos tres estilos em

que dividir a nossa arte rústica é, caracteri-


podemos precisamente,
zado emprego usual da roseta e do suástica. E esse estilo é o
pelo
mais elevado de todos. Felizmente o etnografo, infelizmente
para

para o filantropo ou o pedagogo, ha gente tão rude na terrra


para
em vivemos, e se mantém num atrazo tão extraordinário,
que que
manifestado na arte e na vida quotidiana, as devidas
que, guardadas
distancias de côr e de tempo, equiparar o seu viver ao de
podemos
muitas tribus africanas.

Nessas atrazadas, os símbolos de me ocupo, não


gentes que
são conhecidos. O mesmo sucede na África, onde só uma ou outra

tribu excepcionalmente civilizada, emprega a roseta sexifolia.

Desta sucinta enumeração de documentos, desprende-se, sem

custo, uma idéia do caminho e da expansão alcan-


geral percorrido

çada pelos dois velhos símbolos, tornados vulgares elementos deco-

rativos. E isso nos basta, agora.


por

Fig. 3. De um esgrafito de Lagares (Brasfemes-Coimbra)


DEPOIS DO SONHO

De Virgílio Maurício.

A Águia—61, 62, 63 (2.° série).


SCIÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

O Instituto Superior Técnico e o desenvol-

vimento da indústria nacional

guerra actual veiu evidenciar os perigos a que estão su-

os descuram o aproveitamento das


jeitos paises que
suas riquezas e as faculdades de trabalho dos seus fi-

lhos, conformando-se com a modesta situação de con-


sumidores dos da indústria alheia. Exaurem-se economica-
produtos
mente em favor das nações os alimentam, transformando-se
que
pouco a em colectividades cuja vida econômica é
pouco parisitárias
feita de expedientes mais e mais as depauperam e degradam ma-
que
terial e moralmente.

O reconhecimento desses tem levado as nações mais


perigos
previdentes a desenvolver o aproveitamento dos seus recur-
procurar
sos de modo a terem a sua vida autônoma tanto quanto possível ga-
rantida.

Se industriais como a Inglaterra e a França se preocupam


países
com afan da maior expansão a dar ás suas indústrias terminada
que
seja a não será descabido discutir os meios a empregar
guerra, para

que a nossa diminuta actividade industrial se desenvolva. É evidente

que o realizar se torna necessária a colaboração de dois factores


para
indispensáveis:

Uma econômica o desenvolvimento e a


política que permita
introdução nosso e uma bôa organiza-
de indústrias viáveis no país,
Ção das escolas especiais os técnicos que à sombra
para produzirem
duma sábia impulsionar o desenvolvimento indus-
legislação possam
trial.

Cada um dêstes factores ou nada vale só si. Supo-


pouco por
nhâmos, era excelente a nossa econômica,
com efeito, que política
mas as não forneciam técnicos suficientemente habilitados.
que escolas
E evidente creadas bôa legislação seriam apro-
as condições pela
que
veitadas a
estrangeiros competentes que Portu-
principalmente pelos
gal viessem um como os
procurar fortuna, explorando o país pouco
europeus
exploram Marrocos.

*
O ilustre scientista e director do Instituto Superior Técnico dr. Alfredo
tiensaúde batalha, através as dificuldades do nosso meio, por tornar aquele Instituto
um verdadeiro
orgão da vida, o mais possivel apropriado à função que deve exercer na
sociedade
portuguesa. Entendendo que compete ao público conhecer e apoiar empreen-
dimentos dessa
ordem, uma publicação que eu projectava,
pedi ao meu amigo, para
um artigo
sobre os seus Instituto; mas não podendo sair por em-
planos quanto ao
quanto tal
publicação, cedo o artigo à Águia, certo de que ele será lido com muito
aPreço
pelos leitores da nossa revista. —Antônio Sérgio.
66 A ÁGUIA

Admitamos a nossa legislação econômica continuava sendo


que
favoravel ao desenvolvimento industrial, mas as nossas es-
pouco que

colas excelentes técnicos; nêsse caso conseguiríamos,


produziam
muito, com a chusma de emigrantes analfa-
quando que juntamente
betos, fossem também algumas dúzias de bons engenheiros, contra-

mestres e operários colaborar no enriquecimento dos novos


países

onde se dirige a nossa emigração. Os menos enérgicos conti-


para
nuariam no entanto na mãe viverem, em ao menos,
pátria para parte

do Orçamento do Estado como empregados públicos, recurso supre-

mo de muitos indivíduos incompetência ou falta de me-


que, por por
lhor emprego, anualmente dele se servem.

Nem num nem noutro caso o tirava a vantagem resul-


país que
taria da íntima colaboração duma economia nacional bem orientada

com um bem orientado ensino técnico.

A conveniente legislação econômica é evidentemente assunto

complexo deve ser estudado economistas interessados em


que pelos
o traduzido em leis, pelos políticos patriotas, que
que país progrida,
deveriam ser em execução sem os mil bizantinismos habituais
postas
da nossa burocracia.

Os a deve obedecer a organização do nosso en-


princípios que
sino são intuitivos e banais embora nem sempre observados entre

nós; nem todos são bastante patriotas para compreender, por exem-

a escola deve existir bem do e não ser a instrução


pio, que para país
albergar afilhados (').
pretexto para
Na formação do engenheiro entram dois elementos distintos:

A instrução scientífica e a educação técnica.

O elemento é constituido múltiplas noções scien-


primeiro pelas
tíficas servem de base à técnica e cujo conhecimento é indispen-
que
savel a resolução dos problemas profissionais (2).
para

(') Há muito quem pense ser deficiente a retribuição dos professores, o que é
certo; mas é verdade também que, dados os nossos costumes políticos, a instrução

pública nacional estaria ainda mais atrazada se os professores fossem melhor pagos.
Haveria mais procura para êsses lugares por parte de certos políticos e dos seus pro-
tegidos. A autonomia das escolas é a sua defesa contra a ingerencia das influencias
nem sempre eficaz se o candidato
políticas na nomeação do seu pessoal, mas defesa
a qualquer cargo é bem apadrinhado e tem força bastante para obter que o Parlamen-
to, ludibriado, suspenda em seu proveito a autonomia escolar.
Desgraçadamente o caso não é inédito e quando algum ingênuo reclama con-
"
tra tais misérias responde-se-lhe, são incidentes que só surpreendem os que não co-

nhecem as necessidades da política „ ; emquanto houver dessa política que tem por
norma colocar o interesse dos amigos acima do bem geral do paiz serão mais ou me-
nos inúteis os esforços dos sebastianistas que procuram melhorar a instrução
pública
e preparar um futuro ao povo português. A ingerencia de certos políticos na distri-

buição de empregos é a maior dificuldade que se opõe entre nós á bôa organização
do ensino; a outra, logo a seguir, é a resistencia da nossa ronceira burocracia a toda

a iniciativa util.
A República tem decretado bôas medidas a favor da instrução, neutializadas
causas.
em parte por estas e outras
(z) Como nas nossas escolas se tem estudado mais para fazer exame do que

para aprender, (porque a carta de curso tem muitas vezes o valor de uma senha

permanente de jantar à mesa do orçamento) é ao primeiro elemento que se tem

prestadomais atenção, descurando-se o resto.


A ÁGUIA 67

O ensino deve ser acompanhado de exercícios dos métodos pe-


los se atingiu o conhecimento das verdades fundamentais da
quais
sciência e se descobrem diáriamente novas verdades. São esses mé-
todos a sua mais importante, ao as teorias,
parte passo que que per-
mitem coordenar os factos scientíficos, se renovam com
geralmente
cada
geração.
O ensino racional das sciências matemáticas e físicas e dos seus
métodos, vale não só si, mas desenvolvimento dá às fa-
por pelo que
culdades e à disciplina mental do aluno.

É muito essencial entre nós a maior atenção ao ensino


prestar
do desenho, elemento educativo de importância, mas tão de-
primeira
ploravelmente descurado nos da instrução e se-
programas primária
cundária; o engenheiro é êsse o único modo de desenvolver o
para
hábito de ler e interpretar rápida e correntemente uma representa-

ção gráfica de interesse técnico.

A composição dos cursos e o seu desenvolvimento só no cor-


rer da vida se afinar convenientemente, dependem das
escolar podem
necessidades especiais do da dos alunos e das com-
país, preparação
petencias de a escola dispõe, etc. Um rígido das cadei-
que programa
ras e das matérias nelas decretado autoridade cen-
professadas, pela
trai, é mais ou mais tarde um impedimento ao desenvol-
cedo grave
vimento da escola. A experiência de um ano lectivo deve servir para
corrigir no ano seguinte as deficiências existentes a escola
porque
deve ser um organismo em evolução; daí a necessidade da autono-
mia e administrativa, indispensável ela se vá
pedagógica para que
adaptando modificações sucessivas às condições do
por pequenas
meio. É uma ilusão pensar que reformas sucessivas estudadas sôbre
0
papel nas secretarias do Estado possam conduzir ao mesmo fim.

A diária às vezes em contacto com indivíduos


prática põe-nos
Que podem conhecer muito da sciência do engenheiro, mas que
pouco ou nada valem como técnicos arruinariam as empresas
porque
que lhes fossem confiadas; não basta, com efeito, ter compreendido
verdades des-
scientíficas delas tirar A aceitação mental
para proveito.
sas verdades mas
deve naturalmente a sua assimilação, esta
preceder
não é determi-
completa emquanto elas não entram como elementos
nantes
das acções de as assimilou.
quem
O engenheiro não consegue vencer na luta vida,
que pela
Pode sabe tanto como o o
parecer que que prospera; geralmente
Primeiro apenas um arremedo de sciência técnica feito única-
possue
mente do esforço da inteligência e da memória, faltando-lhe o senti-
mento
das cousas não se adquire na conferência
profissionais que
magistral
nem no livro; falta-lhe o habito de aplicar com critério o

Que aprendeu nas aulas, falta-lhe a educação técnica.

O saber tirar o maior dos conhecimentos adquiridos é,


partido
em todas as condição essencial de sucesso na vida; porisso
profissões,
a educação
aquisição de hábitos salutares deveria preocu-
pela
Par o corpo docente as escolas em se ensina seja o
de todas que que
for. Mais vale saber aproveitar o se sabe, por pouco que
pouco que
se tenha aprendido, do ter a memória cheia de cousas de
que que
68 A ÁGUIA

se não consegue tirar vantagens. A selecção escolar deve fazer-se

também a favor dos alunos que tenham mais desenvolvida essa apti-

dão alguns há não conseguem adquiri-la.


porque que
A faculdade de bem aproveitar o que se aprendeu desenvolve-se

exercício conduz à aquisição de hábitos profissionais.


pelo que
«O hábito definir-se como disposição do corpo ou do es-
pode
ou dos dois conjunctamente, adquirida pela repetição dum
pirito, gesto,
duma operação mental ou de ambos» (').
O hábito ser fortificado ou entravado acção da von-
pôde pela
tade, mas a sua intensidade depende sobretudo do número de repe-

tições a a sua aquisição foi devida. É o habito dá a


que que perí-
cia e a certeza na de um trabalho de espírito ou simples-
produção
mente manual.

Compreende-se todo o valor deve atribuir-se ao de-


pois que
senvolvimento dos hábitos profissionais numa escola técnica, desde o

dia de frequencia do aluno. Por êle se adquire a faculdade


primeiro
de um esforço contínuo, cuja falta explica a inutilidade de tanta gente
a costumamos atribuir generosamente muito talento, apenas
quem
não são desprovidos de compreensão que só si de
porque por pouco
vale.

A educação de laboratórios e oficinas na escola técnica


prática
tem um duplo fim, levar o aluno à toucher du doigt os fenômenos

scientíficos em se baseia a sua profissão, desenvolver as fa-


que para

culdades de observação, a autonomia mental e o interesse sciên-


pela
cia não dão o ensino verbalista e adquirir hábitos reagindo
que que
sobre o seu sêr o eduquem, isto é, o modifiquem no sentido
que
mais convém ao exercício da sua profissão.
A escola técnica deve preparar o aluno de tal modo que ao aban-

doná-la entrar na vida prática, êste se não sinta um momento


para
sequer deslocado; vai continuar na oficina ou no escritorio técnico o

mesmo de trabalhos a que se habituou quando ainda estu-


gênero
— muda de casa mas não muda de meio nem de modo de vi-
dante,

da—para conseguir tanto a realização dêste


quanto possível programa
é manifestamente necessário os laboratórios e principalmente as
que
oficinas escolares sejam em tudo estabelecimentos técnicos ou fabris

em miniatura, onde se observem até os princípios da sua racional

exploração econômica.

Os das cadeiras de aplicação devem ser,


professores quanto pos-
sível, homens vivam ou viveram da indústria e te-
que particular que
nham tanto as que se pretende desenvolver nos alu-
por qualidades
nos, dificilmente se adquirem nas repartições do
qualidades que

Estado onde várias ordens de circunstâncias impedem o enge-


que
nheiro trabalhe bem, sob o de vista econômico, menos.
ponto pelo
Os que ao mesmo tempo exercem na indústria
professores par-
ticular a ensinam, são os melhor encami-
profissão que que podem
nhar os seus alunos as carreiras em que terão maiores
para probabi-

(') James Hartness — « Le facteur humain dans 1'organisation du travail» —

Paris 1916 — pág. 1 — 39.


A ÁGUIA 69

lidades de êxito. A escola assim organizada é naturalmente o bureau


de dos engenheiros mais competentes vai
placement jovens que pro-
duzindo.

Os alunos copiam inconscientemente tudo o que por ventura


admirem no Se êste fôr um simples expositor fluente e
professor.
brilhante, mas não tiver as necessárias, na
qualidades paia prosperar
vida como engenheiro, o discípulo mais o admire, será, na me-
que
lhor das hipóteses, um eloqüente sobre assuntos de engenha-
palrador
ria.

Entre nós sofrem as escolas de inúmeros inconvenientes resul-


tantes da exagerada admiração temos flores de retórica,
que pelas
resto de influências arcaicas desapareceram nos
persistente que já
países adiantados, mas nós conservamos religiosamente; dá-se
que
aos faladores a sobre outros muito bem
preferência que podem pos-
suir as essenciais do se não avaliam
qualidades professor que por
discursos. Assim se explica, em havendo há tantos anos
parte, que
diversas catedras de e física no Portugal importe físicos
química país,
e
químicos.

* *

A instrução e a educação técnicas, segundo a orientação rápi-


damente esboçada, constituem o do Instituto Superior Té-
programa
cnico, à dedicação dos meus ilustres cole-
que graças principalmente
gas e não obstante existir apenas há seis anos, tem dado resultados
comparaveis com os das bôas escolas estrangeiras os nossos
porque
alunos não são do dos restantes
peores que os países cultos da Eu-

fopa ('), sendo apenas a sua


preparação ao entrarem na escola muito
inferior —
ouviram falar de tudo mas se lhes ensinou a fundo.
pouco
E o resultado fatal da enormidade dos do ensino se-
programas
cundário
minuciosíssimos em muitas matérias dispensáveis e omissos
em algumas essenciais.

Os alunos melhor costumam vir-nos do liceu Pedro


preparados
Nunes a
e melhores seriam ainda, dada competência e a bôa vonta-
de dos
professores daquela escola, se os fossem o de-
programas que
viam sêr.

Ao modificá-los os simplificar e melhorar deveriam sêr


para
ouvidos
os conselhos das escolas superiores se fez na Suissa,
(como
Por exemplo) só êstes com rigor o mínimo
porque podem precisar
dos conhecimentos seguros necessários aos alunos para que depois
possam tirar todo o das escolas superiores.
partido
Deve acrescentar-se ainda no Instituto vigora o regimen de
que
freqüência voluntária às aulas teóricas, erradamente designado entre

(') Certos
pedagôgos explicam os fracos resultados de algumas das nossas es-
oias como conseqúencia
da má qualidade dos alunos. A inversa é que é verdadeira,
om bons
professores consegue-se entre nós tudo o que é razoavel exigir de bons
70 A ÁGUIA

nós cursos livres. Dêle resulta uma selecção a favor dos alunos de
por
maior energia, requisito essencial o homem de acção deve ser
para que

o engenheiro; selecção salubérrima num de indolentes falta


pais por

de educação da vontade. Esse regimen é o melhor se conforma


que

com a máxima: de rapazes homens é necessário tratá-los


para fazer
como homens.

No entanto vários declaram-se contrários à liberda-


professores
de da frequencia segundo conduziu noutros estabeleci-
que, parece,
mentos de ensino superior a uma diminuta aplicação dos alunos.

Antes de condená-la em absoluto deveriam os ilustres


porém
colegas assim se informar-se da maneira como ela
que pronunciam
vigora na nossa escola onde os alunos trabalham mais do que no

antigo Instituto, transformado agora no Instituto Superior Técnico,

e onde era tradicional o regimen de frequencia obrigatória.

É natural aplicada do mesmo modo em outras escolas de


que,
igual categoria, a frequencia livre désse também resultados favoraveis

e as más conseqúencias ter advindo da frequencia


que que possam
livre resultem da sua defeituosa regulamentação e não do sistema

em si.

Nos dois anos mas sobretudo no


primeiros (curso geral), pri-

meiro, dá-se no Instituto uma larga eliminação de alunos de vontade

frouxa, mal ou faltos de aptidões, não conseguem


preparados que

acompanhar o ensino. A maioria dêsses incapazes debanda e vai


ge-
ralmente outras escolas; os restantes tentam vencer as dificul-
para
dades, repetindo o ano e desses ainda alguns desistem.
primeiro
Mas a de eliminados, comquanto bastante alta se
percentagem
a compararmos à de outros estabelecimentos nacionais, não excede a

das escolas congeneres francesas ou alemãs.

Para o terceiro ano (1.° das especialidades) transitam quasi só-

mente os se habituaram a o dia inteiro vezes de blu-


que passar (ás
sa de operário) trabalhando nas aulas, nas salas de desenho, nos la-

boratórios e nas oficinas. Esses, longe de fugirem ao trabalho, recla-

mam com toda a razão, o ensino seja o mais completo


para que
Estudam saber e não somente exame, não se
possível. para para pou-
a esforços desde estejam convencidos da sua utilidade
pando que
as suas futuras carreiras. São os alunos do 3.°, 4.° e 5.° anos
para
chamam às vezes a atenção dos mestres para um ou outro ser-
que
viço reputam deficiente, e, em geral, as suas reclamações são
que

justificadas.
Procura-se e vai-se conseguindo estabelecer no Instituto a coo-

de mestres e alunos no espírito das Modem Schools ou Éco-


peração
les nouvelles de Inglaterra e França, etc., interessando-se os ex-alu-

nos escola mesmo depois de entrarem na vida Estes


pela prática.
últimos organisaram a Associação dos Engenheiros Instituto
já pelo
Superior Técnico sendo um dos seus objectivos o velarem
pela pros-
do estabelecimento de são filhos.
peridade que
O regimen tradicional em que o maior estímulo
português,
o trabalho é o medo da falta marcada pelo contínuo
para (estimulo
semelhante ao do aguilhão do burriqueiro fazer andar o burro)
para
71
A ÁGUIA

é manifestamente desmoralizador o caracter do aluno, que já


para
não ao o da liberdade de freqüência lhe de-
é uma criança passo que
da responsabilidade, a energia e aspiração de
senvolve o sentimento

independência esforço, transformando os rapazes em ho-


pelo próprio
sabem o e o que desejam.
mens dignos, que que querem querem
actua também favoravelmente sobre os próprios
O processo
impedindo se fossilizem; se a do ensino
professores, que qualidade

baixa, logo a freqüência às aulas, como indício da insufi-


diminue

ciência dêsse ensino.

livre torna a missão do muito mais traba-


O regimen professor

lhosa absorvente, ao no de freqüência obrigatória,


e mais passo que
tem uma função mais o mestre des-
em o aluno passiva, pôde
que
sem a sua situação na escola. Os alunos sa-
curar o ensino perigar
bem o essencial é não ter e isso assistem às aulas
que faltas por

mesmo com a consciência nítida lá vão perder o seu precioso


que
tempo.

A liberdade de freqüência tem sido um dos melhores elemen-

tos educativos do Instituto Superior Técnico, a sua supressão arruina-

ria a escola; é isto o a experiência de quasi 6 anos, ex-


que prova
deveria ser aproveitada pelas demais escolas do país.
periência que
Ê condição essencial os alunos tirem provei-
portanto para que
to do Instituto o virem armados da vontade firme de trabalhar do

ao último dia dos seus cursos. Rapazes buscam apenas


primeiro que
obter com o menor esforço um diploma sirva de
possível que passa-
porte para as secretarias da administração melhor andariam
pública,
tentando alcançar esse objectivo outro caminho mais suave e me-
por
nos incerto.

Muito há a fazer ainda a escola tenha atingido a


para que per-
feição compatível com as nossas circunstâncias; no entanto os alunos

que concluíram os seus cursos, teem encontrado fácil colocação na


indústria não dá empregos de
particular, que favor a ninguém. No último
concurso engenheiros do de obras do Ministé-
para quadro públicas
rio do Fomento os candidatos melhor classificados eram diplomados

pelo Instituto Superior Técnico; na Escola de Guerra, onde ex-alu-


nos de várias escolas freqüentam os cursos extraordinários das armas
scientíficas do Exército, são ainda os melhor classificados,
provenien-
tes do Instituto. Como oficiais milicianos são também os ex-altinos do
Instituto os têm dado as melhores de competencia scientí-
que provas
fica segundo informação do Sr. Ministro da Guerra. São estas as pro-
vas da utilidade da escolar se ministra no Instituto e
preparação que
que irá melhorando com cada ano decorrido se os homens a quem
estão entregues os destinos do o não embaraçarem no seu
país pro-
gresso.
*

4:

A colaboração do Instituto Superior Técnico no desenvolvi-


mento da nossa indústria, muito bem ir além da missão de for-
pôde
necer-lhe alunos com uma escolar cuidada. Devia com.
preparação
72 A ÁGUIA

a de estudar em casos especiais os de natureza


preender problemas
scientííica a o labor corrente dos estabelecimentos industriais não
que
toda a atenção.
permite geralmente prestar
Para entender-se o modas que temos em
que possa faciendi
mente, basta citar dois exemplos:

A indústria da fabricação do vidro vegeta entre nós, não obs-

tanie a importando-se a matéria as me-


protecção pautai, prima para
lhores fabricadas no país; no entanto é mais que prova-
qualidades
vel encontrar-se no nosso território matéria prima tão bôa como

aquela se recebe do estrangeiro e as condições actuais da


que que
Europa tornam impossível importar. Para reconhecer os seus
quasi
é manifestamente necessário alguém os procure e os es-
jazigos que
tude.

Outro exemplo: A nossa indústria da fabricação de cimento es-

tá desenvolvida; no entanto no losango ceno-mesozoico que


pouco
se estende ao longo da nossa costa entre Aveiro e o cabo de Sines

encontram-se calcareos argilosos variadíssimos, mas que nunca foram

estudados sistematicamente sob o de vista da sua utilisação


ponto
cimento, milagre seria entre êles se não encontrassem al-
para que
susceptíveis de fornecer cimentos tão bons como os que o país
guns
importa em larga escala.

Como estes poderiam citar-se muitas dúzias de outros proble-


mas, serem resolvidos, necessitam apenas de alguém com
que, para
a devida competência sem as do
que, preocupações pão quotidiano,
os estudar. Problemas cujas resoluções divulgadas em peque-
queira
nas viriam orientar os capitalistas e contribuir o
publicações para
aproveitamento das nossas riquezas naturais.

Bastaria as receitas do Instituto fossem um aumen-


que pouco
tadas para que se dispozesse duma verba destinada ao desenvolvi-

mento dos seus laboratórios, de modo a executar-se


gradual poderem
nêles ensaios industriais destinados à resolução de tais problemas.
Para determinar os assuntos a investigar a escola de
pôr-se-ia
acordo com as associações industriais do país e com os próprios in-

dustriais, instituiria bolsas os alunos mais distinctos que quizes-


para
sem estudá-los e os os resolvessem sa-
prêmios pecuniários para que
tisfatoriamente.

Assim o Instituto colaboraria, na medida das suas forças, no le-

vantamento da indústria nacional, não só fornecendo-lhe técnicos

com uma cuidada, mas também resolvendo-lhe


preparação problemas
de depende o seu desenvolvimento indicados pela própria in-
que
dustria, creando ao mesmo tempo engenheiros especialisados os
para
diversos ramos da actividade nos faltam
profissional que quasi por
completo.

Para realizar esta última do do Instituto


poder parte programa
o Conselho desta Escola ao Sr. Ministro de Instrução Pú-
já pediu
blica apresentar ao Parlamento um projecto, cuja conversão em
para
lei, o tornaria exeqüível.

Consiste a do Instituto em equiparar as suas


proposta propinas
de matrícula, são muito baratas, às da Faculdade Técnica do
que
Águia 73

Porto, conservando a matrícula os alunos


porém gratuita para po-
bres.

Poderá alunos apenas saídos da escola não esta-


pensar-se que
rão à altura de resolver da natureza dos citados.
problemas
Não é isso que a experiência prova; uma bôa parte das invés-
tigações serviram de base à industria alemã, o elemento tal-
que que
vez mais tem contribuído retardar a vitória dos aliados, saíram
para
das escolas e foram executados indivíduos em condições identi-
por
cas às dos bons alunos do Instituto.

Esses rapazes entrando na vida profissional pela execução de


trabalhos técnicos e scientificos sob as vistas e com o conselho de

mestres competentes, estão nas melhores condições


possiveis para
produzir obra de utilidade para o país.

Eis em como o Instituto Superior Técnico


poucas palavras pro-
cura contribuir o desenvolvimento da riqueza pública.
para

Lisboa, 25 de Dezembro de 1916.


A EDUCAÇÃO RELIGIOSA

INTRODUÇÃO

ntendemos por experiencia a interrogação feita pelo ho-

mem ao mundo que o cerca. Quere dizer que o homem

não se deve limitar a escutar o o exterior diz, antes


que
é êle que procura obrigar o Universo a responder ás

suas curiosidades, isto é, aos modos do seu desejo de saber. Há,

em nós, certas formas de saber que sempre moldam a interro-


pois,
Essas formas de saber resultaram, como o demonstram os
gação.
nossos livros, da interacção entre uma inicial actividade psicologica e

as resistências estranhas; são, aquela atitude fundamental a


portanto,

que a realidade obriga.

De forma que ir a subordinar os fenomenos á causalidade, á

finalidade, etc., não é obra dum antropomorfismo sem alcance, mas

apenas uma natural antecipação que o Sêr quasi garante, pois que,
se não o é, tende Universo. Só a nova experiencia limi-
para pode
tar o dominio essas formas tenham no novo fenomeno, ou an-
que
tes, até onde vai no novo fenomeno a anologia que tal ati-
justifica
tude; só a experiencia ir modificando e enriquecendo as formas
pode
do saber, pela combinação ou modificação das anteriores pela neces-

sidade de nova e original aplicação.

E assim aparecem atitudes novas, experiencias de saber, va-

riando desde a vaga analogia dum universal e imediato


psiquismo,
até á assimilação scientifica actual.
profunda
A Experiencia é, nós, uma cooperação do homem
pois, para
com o lhe é, menos antes do conhecimento, bem exterior.
que pelo
Cooperação em o homem é activo, e que, sendo uma assimilação,
que
requere modelo de semelhança. Esse modelo varia desde a afectivi-

dade olfactiva dum cão até á unificação do mundo numa alta


grande
consciência filosofica ou religiosa. Mas o modelo é variavel,
proprio
nele, vão deixando as experiencias os sulcos do trabalho
porque,
assimiladôr: o exterior resiste e o molde adapta-se.

Dum lado um mundo, vagamente conhecemos os sen-


que por
tidos; do outro lado uma actividade de compreensão nos
proprios
sentidos implícita. Acção reciproca em se fulcra todo o dinamismo
que
do conhecimento, ou crescimento da Experiencia.

Deste modo se compreende a Experiência seja diferente


que
todos os homens e um ignorante nada lhe
para que perceba quando
digo vou determinar o valor de pelas oscilações dum
que g pêndulo.
Deve acontecer o mesmo os ignorantes falar,
para que queiram
em nome da experiencia, em asuntos filosoficos a não saibam
que
A ÁGUIA 75

fazer corresponder a necessaria experiencia. Era bom exigir aos que


falam em nome da sciencia, a sciencia a que se referem, e, com
qual
experiencia o fazem, aos da experiencia se
que que justificam.

DEUS

o significado e riqueza deste conceito? Resulta de juizos


Qual
de existencia ou de de valôr?
juizos
É claro o conceito de Deus contem apenas o valor da ex-
que
o criou. É assim muitos ignorantes se dizem ateus
periencia que que
só um dado Deus contradiz a sua experiencia e ainda não
porque
elaboraram conscientemente a experiencia de um novo Deus.

É o caso de absoluto da honra combate o deus


quem pelo
duma dada religião; se a honra tem valor absoluto, bom é o
pois,
caminho de novo encontrar Deus.
para
Outro dia, um antigo seminarista afirmava não deseja,
que
sequer, haja Deus.
que
A afirmação é feita deante do molde catolico tomado como

absoluto, sendo o ex-seminarista uma honesta, não lhe


pois, pessoa
deixar de sêr um Deus, a sciencia,
pode querido que, justificando
fosse a segura do maior valor e da permanencia da honra.
garantia
Nega Deus, integral ignorancia das sciencias no seu
porque, por
intimo, supõe sempre Deus incompatível com elas.

Por não saber, não atingiu a experiencia em que as


global
sciencias e a moral fundem a sua aparente indiferença numa uni-

dade superior.

E assim reaparece a segunda com esta nova forma:


pregunta
sendo a sciencia e a moral disciplinas estranhas, é Deus um conceito

scientifico ou um conceito moral?

Ainda aqui variam as respostas conforme o valor de cada expe-

riencia. Para os homens e afectivos é essencialmente o con-


práticos
ceito de Deus o resultado da sua experiencia moral.

Para os filosofos dizer, para os filosofam


primitivos, quere que
com os conceitos elementares do seu saber, é Deus um arquitecto,

uma hipostase da causalidade, até do espaço, por vezes.

No limite, é Deus, o santo, a vontade amorosa o anima


para que
e em cujo amor abrazar-se; é Deus, o sábio, a plenitude,
quere para
ou integral memória das relações e harmonias cósmicas.

Não será arranjar a ligue este de


possivel ponte que principio
idealidade cósmica com aquela vontade de cosmico e universal amôr?

dizer: não será unir os de existencia, que


Quere possivel juizos
são os juizos da sciencia, com os de valor são os da moral?
juizos que
O maravilhoso de H. Poincaré diz de duas premissas
gênio que
no indicativo não sair uma conclusão imperativa.
poderá
Ora a sciencia afirma e a moral ordena, logo a moral que
ordena não sair da sciencia—o de passagem, não quere
pode que,
dizer uma dada moral não sofrer uma analise scientifica.
que possa
76 A ÁGUIA

A moral não sair da sciencia. Mas não haverá uma rea-


pode, pois,
lidade ao mesmo tempo scientifica e moral? Há; é o homem.

Nele se une o dever da moral com o sêr da sciencia. Explicar

este sêr e aquele dever foi o esforço de Kant com as duas criticas

da razão, a teórica e a pratica.


O conceito de Deus é, variavel com a experiencia fi-
portanto,
losofica com a experiencia moral e com a experiencia de correia-
('),

ção das duas primeiras.


É ássim da experiencia ética se conclue absoluta-
que, quando
mente o mal e da experiencia filosofica se conclue a idealidade do

Mundo, se tem de admitir um Deus impotente com Mill ou deminuido

com Sampaio Bruno, ou explicar aquela idealidade como um ilu-

sorio duma essencial Unidade, com Schopenhauer. Ve-


pluralismo
conceito de Deus atingir com a mais
jamos, pois, que poderemos
ampla experiencia. Comecemos experiencia filosofica que te-
pela
remos de unir com a experiencia moral, sob pena de concluirmos

um mero Deus arquitecto, ou, criador, uma simples Força


quando
amoral. Dos velhos argumentos da existencia de Deus, tomêmos o

da causalidade e o da finalidade. O argumento da causalidade diz-

nos as series causais se aniquilariam se uma primeira e substan-


que
ciai causa nos não desse a da sua solida existencia. A res-
garantia
depois de Kant, é da serie efeito-causa F, E,
posta peremptória, que
D, se concluir a existencia duma serie D, E, B, A..., onde
pode
nos dois sentidos figurem letras dum alfabeto sem fim; mas que não

é licito um absoluto A no inicio do alfabeto. Também só Kant


pôr
tinha a idolatria da causalidade. A sciencia não conhece causas (a
não sêr um neo-escolasticismo á Wundt), mas relações funcio-
para
nais ou leis. E então o argumento modifica-se e é este: não será

de um Universo (até a palavra o diz) que


penetrado pensamento
entra na arquitectura matematica dum Newton, Laplace ou Maxwell?

Macroscomo real repetindo o microscomo ideal? Não no


parece que,

Universo desabrocha o em astros e harmo-


pontiluzente, platonismo
nias? á causalidade nós só a conhecemos no de
Quanto quantum (J)

indeterminismo a acção, a nossa escolha exgote e na vaga


que, para
espontaneidade, analogia, suposermos na vida.
que, por
Sob este de vista toma o argumento da causalidade uma
ponto
nova e bem interessante forma: se temos liberdade, não perpassa,

no Universo e nossa via, uma capacidade de direcção? Este argu-


por
mento de liberdade, isto é, do indeterminismo no meio de leis, não

exige uma ordenação superior salve a harmonia?


que
Ora todos argumentos contra essa liberdade, que defini, são

apenas tirados da idolatria da causalidade e dos determinismos scien-

tificos arbitrariamente reduzidos a um só determinismo originário, que

unindo todas as ligações, seja a Fatalidade.


própria

dizer: a Experiencia da correlação e síntese das varias experiencias


(') Quere
scientificas.
(s) De qualidade.
A ÁGUIA 77

Basta lembrar os trabalhos de H. Poincaré se vêr como


para
todos esses determinismos são criações daquela liberdade.

De resto é até fácil mostrar como o determinismo da fisica e a

eterna existencia do Universo sem direcção inteligente são conjunta-

mente impossíveis.

Sabe-se um neoatomismo é hoje a doutrina mais da


que geral
fisica. O mundo fisico é formado de electronios; a Electro-magnetica

abraça todos os capítulos da fisica e uma nova mecanica, abran-

gendo e alargando a antiga.

Ora é fácil de vêr um sistema material atomico tende


que para
um certo estado de equilíbrio, atingido o seria o eterno nada.
qual
Só uma direcção inteligente fazer a selecção dos elemen-
poderia
tos e suas tal estado não seja atingido. A forma
posições para que
energetica desta doutrina constitue o celebre do acréscimo
principio
constante da entropia na vida dum sistema material isolado.

Esta doutrina a necessidade de criações sucessivas,


prova, pois,
ou duma inteligência ordenadôra. É claro este Deus, sendo
que
apenas uma inteligência ainda não tratarmos da experiencia
(por
moral), encontrar substituto num diabo, amoral e inteligen-
pode
te. Foi mesmo a este respeito apareceram os celebres demonios
que
de Maxwell.

Se atendermos ao modo como a vida luta contra a entropia

e como sabe adaptar-se, teremos de novo, e dous caminhos inde-


por

pendentes, achado a de dous direccionismos, é interes-


presença que
sante aproximar: a adaptibilidade dos seres vivos e a acção vitali-

zadôra do conjunto fisico.

(Continua)
SCIENCIA E EDUCAÇÃO

A inteligência entregue a si mesma,


tomando-se como fim de si mesma e n3o
como meio para os fins superiores da vida
humana, por potente seja,
que perverte-se
e esteriliza-se.

Antero de Quental, O talento e a vontade.

On ne montre pas sa grandeur pour


être à une extrémité, mas bien en tou-
chant les deux à la fois, et remplissant
tout l'entre-deux.
Pascal, Pensées.

Os avanços da tecnologia tornam cada


vez mais necessária a cultivaçao das for-
ças morais.

O Autor, no Prefácio de O Método


Montessori, p. 13.

pesar dos seus erros, absurdos, contradições e


paradoxos,
a obra de Rousseau actual sob todos os
permanece
seus aspectos. E se começarmos considerar o
por pri-
meiro trabalho e de um dia o outro
que publicou, para
o tornou célebre, o Discurso sobre as sciencias e as artes, veremos

que a grande guerra veio entre os


popularizar, primeiros problemas
do nosso tempo, um daqueles com João Jacques começou a
que
revolver as consciências do seu: o do valor educativo da sciencia. No

meio dessas maravilhas de técnica scientifica que são o bombardea-

mento aereo, os asfixiantes, os obuses monstros, os submari-


gases
nos, viu-se os progressos da sciencia não são da
que progressos
razão, e os métodos mais scientificos não são isso os mais
que por
humanos. Ferrero, no seu livro sobre A Guerra Européia vê na
luta da quantidade e da a essencia da civilização
qualidade própria
moderna; ora o progresso na obtêm-se sciencia,
quantidade pela
aliada assim ao mau elemento dêsse dualismo característico. A idea é

certamente unilateral, e mostra tanto esquecimento dos males antigos

como abstracção dos bens modernos; mas no simplismo ela


proprio
revela especie de crise a trouxe ás consciências do nosso
que guerra
tempo, crise anotada naquela obra estes característicos:
por períodos
«mesmo a sciencia e a sabedoria estão sujeitas a todas as
perversões
e corrupções de que a natureza humana é susceptível: também elas
se enganam e desencaminham, sobretudo se ultrapassar
pretendem
no conhecimento certa medida não é traçada scien-
que pela própria

1 Paris, Payot 1916.


et C.ie,
A ÁGUIA 79

cia, mas modéstia, bom siso, e se chamar


pela pelo pelo que poderia
um certo senso humano, o sábio deve ter, tanto de si mesmo
que
como das coisas'.»

A como disse, limitou-se a este


guerra, porém, popularizar pro-
blema, o movimento a ele se começou antes da
porque que prende
guerra; assim, exemplo, a atitude inesperada da alma francesa
por
durante ela não foi uma causa, mas uma consequencia do «novo es-

pirito». «espirito novo» era esse? E velho espirito substi-


iQue que
tuiu ele?

Tal como, na metade do século XVIII, a dos


primeira geração
«filosofos» e da Aufklãrung tudo esperara da difusão das «luzes », a
da metade do século XIX Renan traçou o evangelho
primeira (de que
no Avenir de la Science) viu no aperfeiçoamento e difusão da scien-
cia a
panacea para todos os males — fisicos e morais — da sofredora
humanidade. Bastaria investigar muitos fenomenos, descobrir leis, e
regar com conhecimentos as almas brutas, o Bem vicejasse
para que
nas mais sáfaras. «Pensou-se no começo do século XIX» —
palavras
são do snr. Adolfo Coelho—«que todos os males sociais teriam desa-

parecido quando todos os membros da sociedade humana soubessem


lêr. A escola elementar, era então apenas ou mais a
que pouco que
escola de lêr, escrever e contar, afigurou-se o de mo-
grande produtor
ralidade, a a sabedoria. Veio um e anunciou
grande porta para poeta
ao inundo abre uma escola fecha uma Cone-
que quem prisão2.»
xionam-se estas convicções com a anagogia dessa época sciencia,
pela
e com a idea então de uma «moral scientifica». Segundo
proclamada
Hãckel e engenhoso, mas não menos fantasioso e temerário»,
(«sábio
diz Antero) a sciencia dever-se-ia constituir em filosofia, e substituir a
religião: o homem, reduzido ás operações lógicas a sciencia
que
exige, á experiencia e á inferencia, dignificaria a reorganiza-
pessoa,
ria as sociedades, realizaria a fraternidade e a igualdade. «A adora-

da sciencia serviu de religião burguesia» — escreveu


Ção á Carlos
Bonnier — «e viu-se o liberal, transformado
partido em
partido repu-
blicano, 3», —
proclamar a devoção do conhecimento scientifico novo
feitiço, novo mito. Sob esta fôrma, mais todas as religiões, abu-
que
sou a da credulidade das massas; e com razão Ante-
pseudo-sciencia
ro, na célebre carta a Bulhão Pato, vituperou os «apostolos»
(«char-
latães uns, e outros fanaticos de cerebro estreito e coração encorreado»)

que «campam de filosofos aprenderam a recitar meia dúzia


porque
de frases cuja idea nunca entenderão, e cuidam o sentimento vivo
que
das coisas ser substituído uma fraseologia morta e sem
pode por
alma.» Davam-se esses fanaticos como discípulos de Augusto Comte,
mas faziam-no abusivamente; com efeito, não se pode chamar a este
ultimo um da sciencia — bem ao contrario — apesar
adorador de ter

pretendido fôsse a moral uma simples aplicação da biologia e da


que
sociologia: o saber era ele um simples instrumento de fins
para

Ibici.,
p. 99.
Estudos sobre a educação
popular, preâmbulo. O poeta foi Victor Hugo.
Citado
por Fierens Gevaert em La Tristesse Contemporaine, p. 76.
80 A ÁGUIA

humanos, e a famosa «síntese subjectiva» outra coisa não signific

senão a mobilização das sciencias o serviço social, a organização


para
vista do bem da comunidade — e essa
dos conhecimentos em \

organização obtinha-a ele sacrificando a sciencia, e introduzindo ter-

mos não-scientificos; não foi sob essa forma se


porém que populari-
zou a sua doutrina, mas pela cadavérica interpretação que lhe deu
2
Littré; o Positivismo amputado que se espalhou por sábios e curió-

sos é aquele Antero lucidamente criticou, chamando á filosofia


que
uma «quimera». Para o comum dêsses scientistas a sciencia
positiva
era um fim, uma santa, uma Divindade omnipotente, e supôs-se que
dela se deduziam, como varinha magica, as ideas morais da hu-
por
manidade: «o mal,» disse Richet, «é a dôr dos outros; eis o nos
que
ensinaram a fisica e a zoologia, a e a astronomia, a botanica
quimica
e a fisiologia, a e a filologia, a antropologia e as materna-
geografia
ticas3.» Mesmo a astronomia, nrèsmo as matematicas nos ensina-

riam o é o mal! Desta forma, todos os problemas humanos se


que
*,
deslindavam biologia e mesmo pela zoologia, ou pela classi-
pela
ficação zoologica; Morselli, á «quem somos?» respondeu
pregunta
sem hesitar: «somos vertebrados, mamíferos, de uma ordem
primatas,
diversa daquela dos quadrumanos.» Estava tudo resolvido;
pouco
Monsieur Homais triunfava; e até um homem como Renan chegou

a afirmar «nous aimons l'humanité la


que parce qu'elle produit
science; nous tenons à la moralité parce que les races honnêtes
peu-
vent seules être scientifiques5.» Por tudo isto se infiltrava a tenden-

cia a considerar o mal e o bem como caracteres sem importancia, e

mesmo a pelas depravações interessantes. De Taine, for-


predilecção
mosissimo e espirito, só se fixavam em umas frases
profundo geral
separadas, as quadravam com as tendencias gerais, e essas mes-
que
mas mal compreendidas ou deturpadas, como a de «o homem
que
faz a sua obra como a abelha o seu mel», «a obra de arte é um
pro-
duto da raça, do ambiente e do momento», «o vicio e a virtude são

como o vitriolo e o açúcar». O e os


produtos publico pseudo-sabios
interpretavam essas frases segundo a moda, e de nada servia o
que

Por haver dado á sciencia papel um tanto (mas sem os exage-


semelhante
ros de Augusto Comte) no meu folheto Educação geral e actividade particular.
causei espanto a certas pessoas que se julgam discípulos do filosofo.
O leitor
pode ver um exemplo português dessa amputação de um pensa-
mento essencialissimo da doutrina de Comte no positivista Ramalho Ortigão, Farpas,
vol. VIII, ed. de 1889, p. 128: «Em todo o trabalho imenso de codificação e metodi-
zação das sciencias que fôrma a obra colossal de A. Comte, um dos maiores monu-
mentos do espirito humano, tudo é sabido, tudo é velho» (Ramalho defende o para-
doxo de que não pode haver idéas novas e sãs) * com excepção de uma única parte
—a fenomeno scientifico, é um sin-
política positiva— mas esta parte nova não é um
toma patologico.»
s Citado por Fouillée em Le Mouvement Positiviste, introduction, XXXIV.
Sobre a mania de «aplicar a analogia da natureza cósmica á sociedade e á
moral» v. protesto de Huxley, Evolution and Ethics, Macmilan,
o interessantíssimo
1893. «The practice of that which is ethically best... involves a course of conduct
which, in ali respects, is opposed to that which leads to success in the cosmic strug-

gle of existence.»
Feuilles dètachées, 436.
p.
A ÁGUIA
81

escritor viesse explicar, exemplo, o vicio e a virtude


por que eram, no
seu morais e não fisicos, como
pensamento, produtos o açúcar. áPois
Littré, critico e adversado das doutrinas de Darwin, não era citado
freqüentemente como defensor, e autor talvez, da tese das origens
simiescas? Passando cérebros de entulho, com
por jactancias de filo-
sofar «scientificamente», estas correntes burundangas
produziam char-
latanescas como as Herculano de «gongorismo
que qualificou scienti-
fico», e supostos Camilo) «macaqueiam
positivistas que (dizia Comte
e Spencer como uma foca remedar um acrobata arabe»,—espe-
pode
cie de cavalaria da sciencia encontrou o seu Cervantes em Gus-
que
tavo Flaubert, o autor do Bouvard e Pécachet.

Em literatura, o mesmo espirito dava o romance realista com

presunções a scientifico, a «experimental», «explicava as


que pessoas
pelas coisas», conforme Camilo o definiu Zola, supersticioso,
genu-
flectia a sciencia reduzir a arte) e deslindava
perante (á qual pretendia
todos os nós com as suas teses doutorais, se chamavam l'Asso-
que
moir ou Nana. «É a investigação scientifica», — declarava— «é o
raciocínio experimental combate uma a uma as hipóteses
que idea-
listas, e substitue os romances de imaginação de observação
pelos e
experimentação... É só uma de no mesmo trajecto, da
questão grau
quimica á fisiologia, da fisiologia á antropologia e á sociologia; no
extremo dêste caminho está o romance experimental... Nós conti-
nuainos, repito-o, a tarefa do medico e do fisiologista, continua-
que
ram a do Dês lors nous entrons dans la science.»
quimico... Na
enormidade da sua ignorancia, ei-lo lê coisa sobre os
que qualquer
factos da hereditariedade, e logo nos demonstra em novelas
(como
explica no da Fortuna dos Rougons) «a lenta sucessão dos
prefacio
acidentes nervosos e sangüíneos se declaram numa raça, em
que
seguimento de uma lesão organica, e determinam,
primeira que
segundo os ambientes, em cada um dos indivíduos dessa raça, os
sentimentos, os desejos, as todas as manifestações humanas,
paixões,
naturais e instintivas, cujos recebem os nomes convencio-
produtos
nais de virtudes e de vícios.» Nada mais claro, mais simples, mais
«scientifico»! As conseqüências são [fáceis de prever: porque, se as
novelas 2,
não são sciencia e não demonstram coisa nenhuma são lite-
ratura interessante e radicaram nos espíritos a convicção de os
que
«acidentes sangüíneos» tudo, e de
governam que ha mister rejeitar
como a eficacia das ideas, a responsabilidade, o ideal huma-
quimeras
no. Chamava a isto Zola substituir o «homem metafísico» «ho-
pelo
mem fisiologico», ou fazer «un art moderne tout expérimental et tout
matérialiste». Ao mesmo tempo, enquanto a literatura se vangloriava
assim de materialista, mais descritora dos costumes dos maus cos-
(e
tumes) dos sentimentos, e mais curiosa do mundo exterior
que que
do interior, dos factos observáveis do seu sentido, a de
que pintura

Serões de S. Miguel de 111, 47.


Seide,
Como é sabido, o mais importante argumento contra o fatalismo da heredi-
tariedade veio da fisiologia conceito de sugestão. V. Guyau, Education
própria pelo
et hérédité.

6
82 A ÁGUIA

Manet e de Courbet também se vestia da libré do tempo, estatelava

em tela os aspectos mais mesquinhos, e representar Deus,


proibia por
exemplo, ou os anjos, simples razão de ninguém os vira.
pela que
Não eram um facto scientificamente observado, medido, classificado:

não tinham direito a figurar na arte, reduzida a de fotografia.


placa
Vêr e apalpar eram o único critério: de aí a negação dogmatica de

toda realidade se não visse, e a de ter resolvido todos


que pretenção
os problemas quando diante deles se fechassem os olhos, a
pontos
de Berthelot atirar ás com esta frase monumental: «le monde
gentes
est aujourd'hui sans mystères...» Estavam dissipadas todas as esfin-

os enigmas do universo, die Weltrãtsel!


ges,—
Esta miopia «scientifica » não deixar de manifestar-se nos
podia
de instrução. Da falta de uma concepção moral resultava
programas
a falta correspondente de um critério educativo não fosse o der-
que
ramamento das sciencias, e pouco a foi-se carregando o
pouco pro-
de factos scientificos, e reduzindo a educação á armazenagem
grama
de conhecimentos. «Conhecer e não tornou-se devisa muito
julgar»
comum, como se o saber fosse possível sem sem hipótese,
juízos,
sem iniciativa do pensamento. Supunha esta maneira de proceder
duas dogmaticas afirmações, pois o problema do valor educativo da

sciencia comporta, evidentemente, uma questão de direito e uma de


facto, uma teórica e uma ié formular uma moral
prática: posssivel
— a derramamento
scientifica? eis primeira; <;o das sciencias educa
—eis a segunda. Julgava-se sim;
os homens? que mas á segunda

responderam, negativamente, os factos; á iria responder,


primeira
negativamente também, o desenvolvimento filosofico.

Não faltavam, com efeito, faúlhas de rescaldo, espíritos iniciadores

que, quando ventos favoraveis se levantassem, aurorariam a reac-


a se chamou o «espirito novo», o «movimento idea-
ção,—isso que
lista». Vacherot, Paulo Janet, Júlio Simon, Rémusat, Franck, Bouil-

lier, Caro, Nourrisson, não haviam deixado de defender em França o

idealismo e o espiritualismo; Renouvier nos seus Ensaios, mais tarde

na Critica filosofica, combatia o evolucionismo e o com


positivismo
vigor infatigavel, com profundidade, com
persistência, procurando
uma síntese do homem e do mundo em o cou-
que primeiro papel
besse ao homem, e destruindo o culto supersticioso da sciencia mal

compreendida; o relatorio de Ravaisson sobre a Filosofia em França

no século XIX impulsionava as especulações filosoficas e metafísicas;

Lachelier com o seu ensino na Escola Normal entusiasmava a


juven-
tude idealista, resultando dentro em os
pelo pensamento que pouco
de filosofia começavam a ensinar a independencia da
professores
moral em relação ás sciencias, os limites e a relatividade destas ulti-

mas, o abstracto e simbolico de todo mecanicismo, a realidade supe-

rior da liberdade moral; Fouillée mostrava a eficacia das ideas, esta-

belecia os direitos do ideal, e entrevia na sociologia as leis radicais

da cosmologia; Boutroux os ferros da necessidade mecânica


quebrava
na «contingência das leis da natureza», enquanto Guyau, filosofo-
-poeta, insinuava a moralidade no proprio âmago da vida, na defini-

ção da sua essencia. Nas nossas letras, Antero é o desta


precursor
A ÁGUIA 83

corrente espiritual; mas o seu ficou infelizmente soterrado, até


pensar
á aparição, em 1908, das minhas Noias sobre os «Sonetos» e as

«Tendencias da Em 1886 escrevia ele, combatendo


gerais filosofia-».
o evolucionismo: «A filosofia é, de sua natureza, especulativa, e a

sciencia não ser ela mais do uma matéria


pode para que prima...
Se o conjunto das sciencias não como todos os verdadeiros
pode,
reconhecem, suprir a filosofia ou substituir-se a ela, é
pensadores
o conjunto das ideas gerais das sciencias não in-
justamente porque
clue em si a totalidade dos elementos racionais da compreensão do

universo, mas apenas o conjunto desses elementos no ponto de vista

da fenomenalidade. Ora o monismo, atribuindo ao ponto de vista das

sciencias íisicas um caracter absoluto, arvorando as ideas gerais de

um de sciencias em ideas ultimas e irreductiveis, exorbitou da


grupo
sciencia sem ao mesmo tempo fazer acto de filosofia... O erro comum

em laboram os das diferentes comunhões varias,


que positivistas (são
e todas é este: o conhecimento scientifico é o tipo do
positivas) que
conhecimento, o conhecimento ultimo e e que, por conse-
perfeito;
esgotado o de vista scientifico, a compreensão da rea-
guinte, ponto
lidade, basta reunir em quadro as conclusões de todas as sciencias,

ou as ideas fundamentais comuns a todas elas, se


generalizar para
obter a mais alta compreensão das coisas a nos é dado aspirar.
que
Não seria se com efeito o conhecimento scientifico represen-
quimera
tasse o conhecimento supremo e definitivo, e não apenas uma deter-

minada esfera de conhecimento... É a razão que tem, em ultima

instancia, de se sobre o valor e o logar na compreensão


pronunciar
total do universo, dos dados do senso comum, quer da scien-
quer
cia... Por uma singular aberração, são os que mais falam
justamente
de e de factos os que parecem esquecer ou
positivismo positivos
ignorar a consciência humana é um facto, a sua actividade,
que que
expressa e objectivada em milhares de manifestações, desde os codi-

até á e através de milhares de anos, constitue uma ordem


gos poesia,
de factos tão e tão irrecusáveis como os da fisica ou da
positivos
astronomia... Os factos da consciência humana são não só factos

mas os factos culminantes... A consciência hu-


positivos, positivos
mana é verdadeiramente um critério filosofico neste sentido
pois que
uma filosofia incapaz de explicar satisfatoriamente os fenornenos de

consciência, ou em contradição com eles, é uma filosofia incompleta,

ou errada, deixar de fóra, ou contradizer, uma parte, e justamente


por
a mais importante, da realidade1.»
parte
Aqui exprimia Antero uma tendencia só mais tarde domi-
que
nou em França, após a campanha dos filosofos, Brunetière
quando,
venceu na literatura a sua batalha ao naturalismo2, e Vogüé; por
artigos na Revista dos dois mundos, entronizou na admiração do

o romance russo, o de Tolstoi e Dostoievski, onde os leito-


público
res francêses encontraram, de com a a analise psicolo-
par precisão,

A da natureza dos naturalistas,


filosofia passira.
Os artigos de Brunetière contra o naturalismo são de 1875,
primeiros
salvo erro.
A ÁGUIA
84

realismo, haustos novos de tinham ânsia e eram a


e o que que
gica
filosofica, o misticismo, esse «leite da ternura
inspiração e
geral
de falara Shakespeare e lhes aparecia nas letras
humana» que que
«religião do sofrimento». Paulo Bourget e depois
russas como

insuflam no romance morais e religio-


Eduardo Rod preocupações
nas Ideas morais do tempo trata de definir
sas. Este ultimo, presente,
«o antagonismo dos negativos e dos dos que
a situação, positivos,

e dos tendem a reconstruir.» O livro era dedi-


tendem a destruir que
Desjardins, fundador da «União a acção moral»
cado a Paulo para
Tomar
e autor do Devet (1892).
presente Qual era esse dever? par-
— respondia Desjardins; afirmar um ideal
tido num combate,
grande
todos, «trepando numa floresta escarpada e
em que participem
o em se adivinha uma luz, não pode
obscura, para ponto que que

mas me ocultam os ramos importunos de uma vida


enganar-me, que
aparente. O me aproxima dela não é o raciocínio
complicada e que
dessa luz: é o caminhar para ela, quero
sobre a natureza provável
e em mim, a vontade de bem fazer... La
dizer fortificar, em todos

de spéculer sur l'univers, mais de se con-


affaire n'est pas
principale
l'apelle Dieu ou autrement) est
duire... L'Idéal de 1'humanité (qu'on
de désir et de volonté, avant d'être objet de connais-
nous objet
pour
tempo se renovava a filosofia, a literatura e
sance1.» Ao mesmo que
arte, em antítese das ideas de Courbet, dava o Bosque
a acção,—a
e as Beatitudes de César Franck. Não se
Sagrado de Chavannes

o novo idealismo vinha descurioso da sciencia,


suponha porém que
realidade. Não: a sciencia era estimada, mas na
ou atento á
pouco
advertida, mas no seu todo, de o ideal
sua esfera; a realidade que

e com razão nota Paulhan este sintético espirito


também partilha;
resultados empregando os meios mais minu-
«que grandes
procura
de realismo e de idealismo sem limites, de
ciosos, mistura prático

sciencia e de emoção2.»
Antero de Quental, cujo se
No nosso (exceptuando gemo
país
das modas literarias, e nas altas regiões do
manteve sempre acima
este refluxo maneira fraca, su-
idealismo) as letras reproduziram (de
respeita á idea, mas com belezas de
e imprecisa pelo que
perficial
na ultima fase de Eça de Queiroz e nos Simples
fôrma prestigiosas)
— não de uma débil, amplificação
de Junqueiro, que passam prolixa

admiravel) de alguns dos sonetos menos originais de


versificação
(com
etc. Apresentam hoje Oliveira
Antero, como Comunhão, Na mão de Deus,

de Guerra Junqueiro, Teofilo Braga, Ramalho


Martins, Eça Queiroz,
«demolidores do liberalismo»; se «liberalismo» signi-
Orticão', como
doutrina, deveremos fazer notar que eles não poderiam
fica aqui uma

o caracteriza essa falange é a incapacidade


demoli-la, porque que
falta de e de logico: o que
especulativa, a profundidade pensamento

a desorientação de uma sociedade, deixando-nos


fizeram foi rematar

de hoje, uma árdua campanha a combater. Ficou-


a nós, aos homens
-nos a arte surpreendente de alguns deles; ficaram-nos,
dessa geração

5.
Le Devoir présent. Paris, Cotin et C.ie, p-
Le 144-5.
nouveau mysticisme, Alcan, 1891, p.
A ÁGUIA

honesta, os trabalhos historicos e filologicos de Dona


pela sciencia

Gama Barros, Adolfo Coelho, Leite de Vasconce-


Carolina Michaêlis,

mais; Antero sobrepuja os companheiros dis-


los e alguns pelo que

espirito, levado seu de a


sente do seu pelo gênio poeta prelucidações

e sua de caracter ao real senso constru-


de pensador, pela grandeza
ele, só em Fialho se vê um independente,
tivo. Afora gritar protesto

não subordinado a manejos e não man-


vibrante, sincero, políticos

chado de charlatanismo, a que faltava, porém, qualquer


protesto
de e a necessária moral. No que
substrutura pensamento grandeza

tem de ainda hoje vê o a suprema sabe-


essa pior publico
geração
razão fazia dizer a Camilo havia de en-
doria, talvez pela que que

de rètórica e de almôndegas, não lhe reconhe-


cher o seu país por

esmoer outra fazenda1. O ataque ao liberalismo


cer bojo idoneo para
o ha de ultra-fraco e de mais nulo no Por-
é, precisamente, que
Oliveira Martins chega a atribuir ao indivi-
tugal Contemporâneo:

vicios o sabe e, noutros sítios, o


dualismo os que promanam (ele
estrutura comunista da sociedade e foi
diz) da própria portuguesa;

absoluta da filosofia do individualismo o


a sua incompreensão que

soar a hora da construção, as cavernas no falso porto


fez ir, ao partir
bismarckiano. o «novo espirito» dominou
do autoritarismo Quando

viu-se no e ne-
os ares, Junqueiro preso proprio passado palavroso

sua falta de ideas, de arcaboiço espiritual, de de


na plenitude
gativo,
incapaz de tirar um miolo forte da inconsistente do
convicção, polpa

e Eça, sempre de superfície no sob as gemas


rètórico; pensamento
da sua arte, deu-nos uma reacção que, como a acção,
maravilhosas
exterior, inhabil a até ao cerne de
foi vaga, formalistica, penetrar

tema de moral. Assim como no Primo Bazilio abordara,


qualquer
do adultério, como Flaubert na Bovary, mas sim
não o problema
caso fortuito de criada de servir,—inculca no Ramires como
um

o erro da nação, atirando o herói para a costa


salvamento proprio
se lhe abriam cá horizontes novos, e cá
de África quando quando

depois, na Cidade e as Serras ressus-


era mais preciso, para (onde

rousseauismo) não enrostar os males da sociedade


cita o grandes
mas fazer a sátira inofensiva do parisianismo, do
contemporânea,

mundanismo, do snobismo, rematando numa cheia de en-


pregação

canto mas literaria, sem o forte nervo de uma concepção


puramente
de humanidade, ou de concretas e importantes necessidades
profunda
Houve literatura, não houve alma, nem aquele vivo senti-
sociais.

Antero opunha ás frases ôcasJ; ofereceram um ramo á


mento que
nova colocando-o nas mãos da divindade antiga, sem se
divindade

inflamarem de coração nas labaredas do novo espirito. Um vago an-

seio de afirmação, no entanto, foi invadindo todos os cerebros, mas

a criação fá-los vestir o obsoleto: de um lado o


a incapacidade para
barrete esburacado de um rançosissimo, do outro o tri-
jacobinismo

' Ecos p. 6.
humorísticos,
2 certo anti-lntelectuallsmo está em moda, con-
Não vamosporém, com que
fundir esse sentimento das coisas com o conhecimento delas, coisa diferente que
nos merece seu lado a mais cuidadosa dedicação, e que nada pode substituir.
por
86 A ÁGUIA

—e ás vezes os
cornio do tradicionalismo, apodrecido e bolorento,

dois ao mesmo tempo, num arlequinismo incompreensível.

Lá íóra, o movimento idealista repercutiu-se na Em


pedagogia.
1891 Fouillée o seu Enseignement au point de vue national
publicava
medíocre, aliás) onde o valor educativo da sciencia é franca-
(livro
mente atacado. «Se um Descartes refizesse hoje o Discours de la

méthode», diz ele, «como demonstraria a inutilidade da mór parte

dos estudos se dizem scientiíicos!» Volveu-se a sciencia em ou-


que
tra deusa, toma os sábios como e não deixa de ter into-
que profetas

lerantes; ora, sem cultura literaria e filosofica «vous ne ferez jamais,

avec toutes vos sciences, des betes utiles», opinião de Saint-Marc


que
Girardin Fouillée completa desta fôrma: «heureux si on n'ar-
que
rive à faire des bêtes nuisibles1!» Com efeito, se as sciencias nos
pas
fornecem métodos, nos dão modelos do é a verdade, nos habi-
que
tuam a discernir as evidencias, teem ao mesmo tempo, redu-
quando

zidas a elas muito inconvenientes. tQue é a sciencia


próprias, graves
separada da moralidade senão uma forma superior da força,
positiva
e mais a fôrça bruta, mais do que
perigosa que porque poderosa
ela é? Dubois-Reymond, Fouillée cita, acoimava as sciencias,
que
separadas do espirito filosofico, de um estrei-
quando produzirem
tamento do intelecto e destruírem o senso do ideal. No ensino pri-

mario a instrução scientifica não elevou o nivel da mo-


generalizada
ralidade, contrario baixou. Não irrogando ás sciencias este
que pelo
resultado, o filosofo tem certo o seu estudo, quando sepa-
por que

rado da educação moral, desenvolve nos a que


jovens presunção

tende a fazê-los «déclassés». Proporciona, além disso, uma arma de

dois igualmente o bem e o mal: a esta-


gumes, prestavel para para
tistica verificava, no do século XIX, 61 ignorantes
judiciaria principio
contra 39 instruídos, cada 100 acusadas; diante deste
por pessoas
facto, arguiu-se a ignorancia como causa principal da criminalidade,

e tratou-se de fomentar a escolaridade ; o resultado foi a


primaria que

se inverteu: cada 100 acusados, apareceram 70 com


proporção por
instrução e 30 sem ela. Fouillée concluía descortinar a causa no
por
facto de os conhecimentos escolares não tinham o correctivo de
que
uma educação moral, e uma verdadeira desmoralização
por prever
no caso de as siencias virem um dia a absorver tudo, no ensino se-

cundário, á custa das letras e da filosofia. O estudo das sciencias

habitua á observação dos objectos, levando a só acreditar no que se

verifica olhos; e se este desenvolvimento do espirito positivo


pelos
é util no dominio das sciencias fisicas, não deixa de ser verdadeiro

em outras esferas espirituais: acostuma-se a criança a exigir


perigo
cada uma representação e, em ultima analise,
para palavra precisa

sensível; ora a material não dá ao mesmo tempo intuição


precisão
moral; «quando lhe falardes de dever, ou de honra, ou de que
patria,
objecto material imaginará? Por detrás dessas palavras sublimes que
— de ordem moral, reali-
coisas observáveis poderá pôr? Realidades

Ob. cit., p. 332.


A ÁGUIA 87

dades, ensino scientifico ignoradas.» Por outro lado, a


portanto, pelo
sciencia não se aprende, e a atitude exclusivamente scientifica
faz-se,
leva a excluir da sciencia a face humana ela contêm:
própria que
«em vez de nos contarem os de e de inteligen-
prodígios paciência
cia levaram a descobrir a circulação do sangue, limitam-se a
que
dizer-nos: «é evidente o sangue deve circular e, com efeito, cir-
que
cuia,» como se a verdade se não devesse do ao á
(mais que gênio)
paciência, ao amor, á dedicação dos a descobrem1.» mais
que ^De
disso, as vantagens da sciencia minuciosa na educação da
quais geral
mocidade? Os conhecimentos especiais adquirem-se naturalmente

pela preparação imediata dada e sobretudo


para profissão, pela prá-
tica dela; aos saiba-se o estrictamente necessário, mas
quanto gerais,
bem, enquadrando as sciencias numa concepção filosofica. «En un
mot, nous avons déjà dit et ne saurions trop redire à la science, telle

qu'on l'enseigne dans nos collèges : Humanise-toi.»

Conhecem a lenda do relogio de Estrasburgo. O conselho,


temendo o construtor fizesse outro, mais estupendo ainda,
que para
qualquer outra cidade, resolveu-se a arrancar-lhe os olhos; en-
pediu
tão o relojoeiro lhe deixassem ao menos tocar na obra,
que pela
ultima vez; e chegando-se a ela, tirou ao mecanismo uma virola. Ce-

garam-no depois; mas o relogio não andava: todas as rodas


já gira-
vam bem, mas não engrenavam umas nas outras. Consoante a opi-

nião de Fouillée, o estudo das sciencias sem a filosofia o


produz
mesmo efeito sobre o cerebro: as rodas cerebrais mas inde-
giram,
pendentes; não engrenam; e o resultado é as agulhas não
que podem
marcar a hora Desaparecida a unidade, a máquina tanto mais
justa.
facilmente se desarranja mais complexidade lhe introduziram.
quanto
Falta a virolazinha, coordenadora dos movimentos: constituem-na,

para o autor, os estudos literários e filosoficos.

As criticas de Fouillée ao ensino das sciencias são perfeitamente


características do «espirito novo»; e se é certo ferem
que justo, já
nos não é dizer o mesmo da construtiva do seu livro.
possível parte
Tem em minha opinião esta ultima dois defeitos capitais: o primeiro
é o não uma solução nova, deduzida das
preconizar para problema,
condições da actualidade, das necessidades concretas da sociedade
de hoje, mas o simples regresso á educação classica; o segundo é

julgar que o estudo da moral e da filosofia é suficiente a edu-


para
cação e necessidades do nosso tempo. A dissertação moral não basta,
é necessaria a acção moral; estudar moral e filosofia não é tornar-se

melhor homem ou mais util cidadão, e o banalissimo exemplo da


Medeia de Ovidio, via o melhor e o aprovava mas seguia o
que pior,
está-nos eternamente a contra a ilusão da eficácia do conhe-
premunir
cimento do Bem; dá-se com a arte de viver o da arte da
que guerra
diz Camões:

1 Cfr. Antero de Quental: <o


gênio é a paciência, a vontade constante, a
constante atenção; por outras palavras, o gênio é o amor, porque o amor é tudo isso,
ou implica tudo isso.» (O talento Ca vontade).
88
A ÁGUIA

A disciplina militar prestante


Não se aprende, senhor, na fantasia.
Sonhando, imaginando, ou estudando,
Senão vendo, tratando,
pelejando.

Não nego com isto a eficacia das ideas; mas como as


paixões
e ideas moralmente más teem também a sua eficácia, é preciso pela
acção radicar as bôas, elas vençam no
para que combate. E depois,
a educação classica foi instituída a época dos humanistas,
para que
'.
não é a nossa

Introduzir na escola a acção social concretas


(as preocupações
dos nossos dias) tal deve ser, segundo o eminente
julgo, objecto dos
reformadores. É o tenho desde ha
que preconizado alguns anos,
opondo á educação mera sciencia uma
pela pedagogia incompreendida
de acção e social2. Nesse campo de acção
profissional social encontram-
-se a sciencia e a filosofia, a literatura e a economia,—tocando assim
os pontos extremos, e enchendo o intervalo se lhes interpõe.
que É
essa nos a conclusão nos cumpre tirar
(tal parece) que das criticas
á cultura do nosso tempo, criticas — como vamos ver — não muito
diferentes das fez Rousseau á cultura, ao espirito,
que aos ideais do
século XVIII.

Derramemos as luzes, e tudo irá bem! Pensou-se isto na pri-


meira metade do século XVIII, como na do
primeira XIX. Foi o ver-
dadeiro de esplendor do racionalismo; a
periodo ambição suprema
era a emancipação da inteligência, e tudo na vida
que psíquica não
aparecia como imediatamente evidente foi concebido como um caos
de ideas obscuras,— farrapagem de vivêra
que um tôrvo,
passado
cujas formas de actividade eram trevas destinadas a desaparecer.
O mesmo afirmou o no correspondente
positivismo, periodo do se-
culo XIX, dos «estados teologico e metafísico».

Assim como a revolução francesa é um episodio de uma Revo-


lução mais larga, cuja séde impulsora foi a Inglaterra, assim este
país
dominou no século XVIII o movimento das ideas na França e na
Alemanha. Na Alemanha, sob o influxo da filosofia inglesa, a psico-
logia fundada na experiencia substituiu a metafísica especulativa como
doutrina fundamental, e a ética alemã da Aufklãrung baseou-se nas
ideas de Locke, e nas dos teologos seus sucessores. Cristiano Toma-
sio revela na sua filosofia do direito, o impulso dominador
já, de
Locke, e a Locke foram buscar os discípulos de Wolff uma
parte con-
siderabilissima das suas concepções. Na França, o ponto de
partida
de todo o movimento filosofico no século XVIII foram as Lettres sur

'
V. o meu artigo Espectros no n.° 11 da Atlantida.
1 A
persistência de um mal-entendido obriga-me a lembrar mais uma vez
que
chamo educação «profissional» a um
processo de educação geral,—coisa diversa, c
muito diversa, daquilo a
que chamo instrução técnica. V. Educação Civica.p. 11-12;
Cartas sobre a educação
profissional, p. 21; Educação geral e actividade parti-
cular, passim.
A ÁGUIA 89

les Anglais, de Voltaire onde este revelava aos seus con-


(1732-34),
terraneos a riquíssima floração especulativa surgira em Inglaterra,
que
mostrando-lhes uma nova sciencia da natureza, uma nova filosofia,
uma nova organização da sociedade. A Descartes opunha Locke e
Newton; aos catões, as seitas místicas dissidentes; ao absolutismo
continental o de Alêm-Mancha. Montesquieu atra-
parlamentarismo
vessava também o estreito, difundir no continente o saber das
para
coisas, inglesas, e assim despertar, aguilhoar e converter as conscien-
cias. A volta, trazia britanizadas as suas ideas de e transfigu-
política,
rava o seu em inglês. Notemos assim como
jardim parque porém que,
Voltaire assimilava os resultados de Locke e Newton sem haver atin-

gido o espirito, a força impulsiva, a tendencia investigadora donde


eles saíram, assim Montesquieu descreve a constituição da Inglaterra

por aquilo aprendera no livro de Locke sobre o Governo Civil,


que
sem ter visto a sua causa, a verdadeira realidade, o nó da a
questão:
administração independente das circunscrições, o
pequenas governo
local, a descentralização, em suma. Eis o erro inicial donde provêm
o absurdo em a França se debate ha mais de um século, e com
que
a França Portugal, a vítima excelencia do morbo o
por gaulês: que-
rer realizar o circulo dizer, o centra-
quadrado, quer parlamentarismo
lista, ou a centralização monstro de contradi-
parlamentarista,—esse
Ções que o jacobinismo deu ao mundo.

Foi também em Inglaterra —com a filosofia da natureza


que e
a
política, a especulação filosofica e as sciencias, — o problema moral
se renovou, aparecimento da tendencia empírica. Como em tudo
pelo
',
mais, Bacon na ética fechou a Idade Media separando a moral
não só da religião mas também da metafísica, e fazendo consistir o
seu objecto na utilidade: seguiu-o nestas tendencias Tomás
pública
Hobbes. Não são esses caracteres os interessam ao nosso
porém que
tema, mas sim, em Bacon, o,colocar na «luz natural» a origem da
moralidade, e ter imaginado a seu modo uma «moral scientifica»,
alicerçada na analise dos factos de consciência2. Veio Hobbes, e falou
como se não existisse o sentimento: tudo se limitaria a raciocínios
de fôrma matematica, sendo a moralidade equivalente á correcção
lógica das acções. Mas mais característico ainda do espirito da época
é os teologos combateram Hobbes o fizeram também sobre
que que
a sua base intelectualista, deduzindo a moral da recta ratio. Este me-
todo domina completamente nos teologos de Cambridge, a começar
em Cudworth, fundador da escola, autor do Verdadeiro sistema inte-
lectual do universo Cudworth, como Hobbes, vê no homem
(1678)3.
um sêr racional: o sentimento, na sua teoria, não existe;
puramente

e se é certo Cumberland dá logar á emoção o
que já (mantendo

Sobre com a modernos,


as relações de Bacon Idade Media e os tempos
V. Erdmann, Grundriss der Geschichte der Philosophie, 1, 2.* parte, § 250.
V. Essays, especialmente 16-17, 56-59. A edição de Reynolds tem a orto-
grafia modernizada, o que é de comodidade para o estrangeiro.
The true intellectual
system of the universe, especialmente Book I, Chap.
'v, n,° 8-14; 3 vols. na edição Harrison, 1845.
90 A ÁGUIA

intelecto contudo a importancia decisiva na escolha dos meios da

acção moral) logo vemos a filosofia regressar com Locke a um mais

intelectualismo. Como Hobbes, este considera o amôr de si


puro
como o motivo ultimo das acções morais, a benevo-
parecendo-lhe
lencia explicável nossa sensibilidade á dôr e ao
perfeitamente pela
e de reflexão com ela relacionado. O conhecimento,
prazer pelo poder
empiricamente adquirido, do nos é benefico ou nocivo consti-
que
tue Locke a «luz natural» Bacon e Hobbes haviam consi-
para que
derado como universal das acções morais. Locke, porém, nem
guia
separa, como Bacon, a lei natural da religiosa, nem, como Hobbes, as

coordena: o seu é antes o de assim como conhece-


pensamento que,
mos Deus suas obras, assim também experiencia moral
pelas pela
tomamos consciência dos seus mandamentos. Desta maneira aceita a

idea, intelectualistas de Cambridge sustentada, de «luz


pelos que pela
natural» atingimos nós a lei divina, mais directamente e com
que
mais certeza recebemos também revelação. Esta, por conseguinte,
pela
não difere seu conteúdo da lei natural a experiencia dá,
pelo que
aos homens2, — idea se
mas só na maneira como se comunica que
tornou fundamental a teologia da Aufklãrung. Como o prazer e
para
a dôr são na ética de Locke as molas reais das nossas acções, o as-

pecto emocional é neste sistema mais importante nos anteriores:


que
o intelecto, no entanto, tem ainda a preponderância; o prazer e a dôr

não são aqui, como nos antigos hedonistas, os motivos da acção hu-

mana, mas as suas condições: decide é a reflexão. O intelec-


quem
tualismo moral continuou-se com Wollaston e com Clarke, tomando

feição objectiva: assemelha o o mal moral ao erro intelec-


primeiro
tual, e o segundo, adepto da filosofia natural de Newton, vê-o á luz

de uma violação das leis da natureza.

Toda essa longa corrente intelectualista havia de encontrar

finalmente uma reacção, como o intelectualismo do século XIX a en-

controu nos nossos dias. Iniciou-a Shaftesbury, que foi, neste campo,

o de João Jacques, sustentando o caracter


primeiro precursor prima-
rio do sentimento moral, a impossibilidade de o derivar da reflexão

sobre as conseqüências úteis ou nocivas de acto, e a origem


qualquer
da moralidade em emoções e tendencias baseadas na organiza-
que,

ção natural do homem, só secundariamente se devolvem em objecto

de deliberação. A natureza do Bem seria idêntica á do Belo. Não é

só o facto de colocar o centro de da vida moral no senti-


gravidade
mento, liga Rousseau a Shaftesbury: mas ainda, entre outros, o
que
de ter sustentado contra Hobbes uma concepção optimista da natu-

reza humana3. O homem não é originariamente, como


pretendia
Hobbes, um lobo o homem, mas pacifico e benevolo, se bem
para
esta bondade fundamental não seja imediatamente manifesta, e
que

' Essay concerning human understanding, Book I, Chap. III.


Essay concerning human understanding, Book IV, Chaps. X, XVIII e XIX.
Cfr. de
a Profession foi du vicaire savoyard, no Émile, pg. 40-41 no 2.°
volume da colecção Flammarion. Para a doutrina de Shaftesbury, v. Fowler, Shaftes-
bury and Hutcheson. English Philosophers, Low, passim.
A ÁGUIA 91

careça de aperfeiçoamento; outro lado, a lei moral não deve


por jus-
tificar-se
pela sua origem religiosa, mas é o conteúdo da religião que
se
justifica moral. Unindo a consciência moral á emoção da be-
pela
teza, e fazendo a moralidade numa conveniente
consistir relação dos
sentimentos
egoístas e altruístas, marca este sistema, sem dúvida algu-
"ia, um avanço capital sobre os seus mas tem o con-
predecessores;
tfa de não explicar o sentimento da obrigação. A moral do sen-
timento
anterior a Rousseau culmina com Hutcheson corrigindo
que,
Shaftesbury,
não coloca no mesmo o egoísmo e o altruísmo,
plano
mas concede ins-
a este ultimo a preeminencia, explicando-o por um
tinto
especifico e uma emoção o «sentimento de aprova-
peculiar:
ção».

A moral francesa do tempo está em relação íntima com a


inglesa.
O seu representante do lado das «luzes» é Helve-
principal
cjo: e se as suas doutrinas são uma repetição das de Locke e utilita-
rios,
Rousseau reproduz contra os Enciclopedistas a atitude de Hut-
cheson
e Shaftesbury contra os intelectualistas do seu Enquanto
país.
Helvécio a do moral
e seus amigos, crendo que justeza juizo provi-
nha do conhecimento dos reais interesses, esperavam do derrama-
mento das «luzes» do humano,
celebradas a felicidade genero Rous-
seau estoira um belo dia, num Discurso sobre as sciencias e as
artes, retórico «derrama-
e apaixonado, contra as maravilhas do
mento».
Começava, para o espirito europeu, uma nova época.

É costume dizer-se o Discurso é um ataque á a


que propr
sciencia;
ora, se desembaraçarmos essa obra de Rousseau dos exageros
a as tortuosidades
que o arrastaram a sua apaixonada sensibilidade,
do seu de insociavel, os homens
espirito, os seus despeitos e a cultura
do seu tempo, nesta tese: a
resumi-la sciencia não tem va-
poderemos
moral. Mais tarde escreveu Kant: «Sou um investigador.
Jor por gosto
Sinto a sêde inteira de conhecer, o desejo inquieto de alargar os
conhecimentos,
e ainda a satisfação de todo o progresso realizado.
Tempo
houve em constituir tudo isso a
que pensava que poderia
honra
da humanidade, e desprezava o povo, que tudo isso ignora.
Foi
Rousseau me desvendou os olhos. Essa ilusória superioridade
que
desvaneceu-se: a honrar homens1.»
aprendo agora os Este passo
caracteriza se
a revolução operara, e que era a derrocada
grande que
da idea mestra da época das Luzes. Não reside na sciencia o valor
humano;
não vir da sua difusão o aperfeiçoamento das cons-
pode
ciências:
ela tende, contrario, a perverter as almas do comum,
pelo
0nde «Para
não reina soberanamente o instinto da moralidade. bem
usar da «é
sciencia,» diz Rousseau, preciso reunir talentos e
grandes
grandes virtudes; ora, é o se apenas contar vêr em algu-
que pode
í^as almas privilegiadas, mas o que se não
pode esperar de um povo
inteiroJ.»
ele de os seus adversarios não notaram esta
Queixa-se que
distinção,
e se refere no Discurso aos efeitos da sciencia sobre
que

1 Werke, ed. Hartenstein de 1867-68, tomo VIII, p. 624.


2 complètes de J. J. Hachette,
,. Réponse au roi de Pologne, (Euvres Rousseau,
913, tomo I,
p. 33
92 A ÁGUIA

os povos, e mesmo sobre a maioria da culta, mas não sobre as


gente
almas excepcionais. «Que a cultura das sciencias corrompe os costu-

mes de uma nação, o


eis que me atrevi a sustentar, o que ouso jul-

deixei —
gar que provado; ^mas como poderia ter dito que em cada

homem a sciencia e a virtude são incompatíveis, eu


particular que
exortei os príncipes a chamar ás côrtes os sábios verdadeiros, a dar-
-lhes a sua afim
confiança, de que possamos ver um dia o que podem
a sciencia e a virtude, a felicidade do
quando juntas, para genero
'?»
humano A mesma distinção entre as grandes almas e o vulgo,

pelo que toca aos efeitos das sciencias, se repete varias vezes, tanto

na Resposta ao rei da Polonia como na Ultima resposta, a Monsieur

Bordes. «Se as inteligências celestes cultivassem as sciencias» (refle-


xiona Rousseau nesta ultima) «de aí não resultaria senão bem: o

mesmo direi dos homens, os são feitos os


grandes quais para guiar
outros. Sócrates sábio e virtuoso foi a honra da humanidade: mas os

vicios dos homens vulgares empeçonham os conhecimentos mais

sublimes e volvem-nos ás nações; os maus tiram dêles


perniciosos
muito dano; os bons vantagem tiram dêles2.» A sciencia é
pouca
muito bôa em si; mas apesar disso, apesar da sua fonte tão e
pura
do seu fim tão louvável, dela males Porquê?
proveem gravissimos.
Porque a sciencia, por bela, sublime seja, não é feita o
por que para
homem, escravo de demasiadas não fazer dela um uso
paixões para
3.»
mau

É certo Rousseau no Discurso, denunciando os efeitos das


que
sciencias, se refere aos «povos», ás «nações»; é certo faz um
que
elogio admirativo dos «preceptores do humano», os Bacons,
genero
os Descartes, os Newtons; é certo ainda aconselha os
que principes
a chamar a si os sábios, se veja o a virtude, a
grandes para que que
sciencia e a autoridade, unidas conseguir felicidade do
podem para

genero humano; mas não é menos certo estas distinções não


que
teem a necessaria nitidez, e raro acompanham, como deviam, as car-

gas tumultuosas da sua eloquencia. Como mais de uma vez lhe suce-

deu, foi depois, diante das objecções, ele delimitou com suficiente
que
clareza as intuições confusas de que partira.
E essas intuições são se olharmos ás realidades em
justíssimas,

que se debatia, semelhantes àquelas em nos debatemos. É pensar na


que
cultura da sua época, rancida: no materialismo e dogma-
já pesadão
tico dos Holbachs, e na sarcastica estreiteza dêsses homens,
que
haviam substituído «esprit» as mais fecundas e inspiradoras
pçío
seivas, as mais vivas e humanas faces da humana consciência; é pen-
sar nos dos nossos dias, nos Bouvards e Pécuchets aí
petimetres que
encéfalos engordados com bolota fácil, miolo de Büchner,
pululam,
casquinhas de Hãckel, em livrecos simplorios de vulgarização barata;

é nos grão-mestres da sarabanda, sacerdotes do Poder Espiri-


pensar
tual nas suas Academias todos os cerebros,—com crachás e
para

Vol. cit-, mesma pag.


Vol. cit., 48.
p.
Vol. cit., 31.
p.
A ÁGUIA
93

farda como outrora os duques, tropa de e música como outrora


gala
os idolos. entram, —
Os grão-lamas procissionalmente, e lá dentro,
ebrios do das e das madamas,
incenso gloriolas dos perfumes cia-
mam a Sciencia é uma Deusa, e a sua um Dogma,
que sua palavra
e a sua Tertúlia templo... E as musicas as
um tocam, espadas tinem,
as carecas voluptuosamente... «Ó furor distinguir,
brilham, de se o

Que tu exclama Rousseau de além do tumulo: «se o


podes!» pro-
gresso das sciencias e das artes corrompe os costumes, e se a cor-
rupção
dos costumes despurifica o gosto,— ique pensar da multidão
dos autores elementares eram afastados do templo das musas
que
Pelas dificuldades que o defendiam, das forças dos
para prova que
tentavam saber? desses compiladores a
iQue pensar que quebraram
Porta das sciencias, e introduziram no santuário um indigno,
populacho
quando seria desejar que os incapazes de ir longe na carrreira
para
do saber se sentissem desanimados logo á entrada, e se fossem dedi-
car ás artes úteis? Há tal ha-de ser toda a vida um medíocre ver-
que
sificador, subalterno, e viria a ser um dia, talvez, um
um geometra
grande fabricante de tecidos1.»

Eis aí, sem dúvida nenhuma, um ponto grave; e percebe-se


porque um filosofo contemporâneo disse que Rousseau prestou o
maior serviço uma medida distinguir a
proporcionando-nos pela qual
cultura falsa da verdadeira2. Aquelas mesmo, colo-
palavras, porisso
catn um de muita importancia o dos nossos
problema para pedagogo
dias, e de especial nas nações de bacharelismo.
gravidade Rousseau
aliás refere-se a este aspecto da sua tese, e diz das escolas no mesmo
Discurso: «É desde os anos uma educação insensata
primeiros que
nos ornamenta o espirito e corrompe o Vejo toda
juizo. por parte
enormes estabelecimentos onde com despesa se instruem os
grande
jovens, lhes ensinar todas as coisas com excepção dos seus de-
para
veres... necessário eles aprendam? O lhes releva
Que é que que
fazer homens, não o devem —
quando forem e que esquecer',» criti-
ficas estas concordam, no essencial, com as vimos fazer no
que que
nosso tempo ao ensino das sciencias.

Segundo João Jacques, portanto, a sciencia só por si, e aplicada


ao comum da humanidade, não só não é educativa, senão franca-
mente corruptora, e, esta solução do
perante problema prático, pre-
vê-se sobre o teorico: não crê a
a sua opinião Rousseau que scien-
cia —ou do saber scientifico,— fundar uma
a inteligência possa
moral.

Em logar, como Augusto Comte, não admite a sciencia


primeiro
como fim fins humanos: «deixar
em si, senão exclusivamente para
fodos na sem rejeitar nem
os outros incerteza, os
(conhecimentos)
admitir, a esclarecê-los não
e sem me atormentar quando possam
conduzir de util a Em segundo logar,
a nada para prática.» Rous-

Discoars sur les sciences et les arts, vol. cit., 19.


p,
Hõffding, et sa trad. de Jacques
Jean Jacques Rousseau philosophie,
t-oussange,
Alcan, p. 123.
Vol. 15.
cit., p.
94 A ÁGUIA

seau não aceita a competencia do intelecto no da


puro problema
moral. Há alguma coisa de mais intimo e seguro do a inteligen-
que
cia propriamente dita, a que se exerce na sciencia: é a consciência,

a razão, o «guia interior». Ha um sentimento inato nos leva a


que
amar o bem, ao a reflexão não chega aqui a verdades eviden-
passo que
tes, ou demonstraveis e incontestáveis; o crente e o moralista
porisso
não podem bater nêsse campo as objecções dos adversados; somente,
«outras objecções não menos fortes no sistema oposto» fazem a essas
equilíbrio e as anulam. «Quanto a mim, confesso ingenuamente
que
nem o nem o contra me aqui demonstrados úni-
pró parecem pelas
cas luzes da razão, e que, se o teista só funda a sua opinião em pro-
habilidades, o ateu, menos ainda, só me fundar a sua
preciso parece
em probabilidades contrarias1.» Desta reciproca anulação de razões
deveria proceder, intelectualmente, a dúvida; mas a incerteza, segundo

Rousseau, não é neste caso sustentável; a dúvida sobre as coisas


que
mais lhe importa conhecer é um estado violento de mais o es-
para
pirito humano; ele não lhe resiste muito tempo, decide-se apesar de
tudo de maneira, e enganar-se a nada crêr2. «En-
qualquer prefere
tão, fazendo repassar no meu espirito as opiniões revesadamente
que
desde o nascimento me arrastaram, vi se bem nenhuma
que, que
fôsse tão evidente que levasse imediatamente á convicção, tinham no
entanto diversos de verosimilhança, e o assentimento inte-
graus que
rior as aprovava, ou repelia, em diferentes Não é
proporções3.» pois
a inteligência scientifica leva ás convicções religiosas, mas uma
que
faculdade de apreciar verosimilhanças; ora, sua vez, são as con-
por
vicções religiosas «dão uma base á virtude4.»
que
Pelo que acabamos de dizer, é sustentar de Rousseau
justo que
com ele se começa a reconhecer claramente, sem as abando-
porisso
nar, que as regras da moral e as noções as sancionam se não
que

podem apoiar em demonstrações ditas, racionais e apo-


propriamente
diticas, mas em crenças e verosimilhanças de natureza
particular:
nêsse sentido, mas sò nêsse, pertence ele á linhagem dos filosofos
do moralismo, da decisão voluntaria, da certeza moral, vai de
que
Pascal a Revouvier, a William James, ao de hoje; mas
pragmatismo
não podemos aceitar se diga, como se fez algures, nele a
que que
afirmação religiosa está francamente suspensa á afirmação moral. Na
Profissão de fé do vigário saboiano, Deus existe, em logar,
primeiro
não como conceito moral, mas como causa dos movimentos
primeira
do universo: «o mundo não é um animal se mova
pois grande que
si mesmo; ha para os seus movimentos causa
por portanto qualquer
extranha a ele, a eu não vejo; mas a interior torna-me
qual persuasão
essa causa de tal maneira sensível, não ver andar o sol
que posso
sem imaginar uma força a impelle, ou se a terra creio
que que, gira,
sentir uma mão que a faz È sempre ascender a alguma
girar... preciso

Carta a Voltaire sobre de Lisbôa.


o desastre
Prof. de fé do vig. Flammarion,
saboyano, Emilio. 2." vol., p. 10.
Ibid.,
p. 13.
Ibid.,
p. 12.
A ÁGUIA 95

vontade causa... Creio uma vontade move o


para primeira pois que
universo e anima a natureza. Eis o meu dogma, ou o meu
primeiro

primeiro artigo de fé1.» Seguindo o de Rousseau veria-


pensamento
mos logo após, Deus existe como razão ordenadora do Cosmos:
que,
«se a matéria em movimento me mostra uma vontade, a matéria

movida segundo leis revela-me uma inteligência: eis o meu segundo

artigo de fé2.» A terceira inferencia é relativa á alma, mas ainda aqui

não são motivos morais determinam, explicitamente, as doutrinas


que
de Rousseau: «meditando sobre a natureza do homem, des-
julguei
cobrir nele dois distintos, dos um o elevava ao estudo
princípios quais
das verdades eternas, ao amor da e da beleza moral, ás regiões
justiça
do mundo espiritual cuja contemplação delicia o sábio, enquanto o

outro o reconduzia baixamente a si mesmo, o escravizava ao império

dos sentidos, ás são seus ministros, e elas contrariava


paixões que por
tudo lhe inspirava de nobre e de o sentimento do
que grande pri-
meiro3.» concluía de ai o activo do homem
Rousseau que principio
é a alma; a nega é surdo ao «sentimento imediato», á
que quem
«voz interior»; «on a beau me disputer cela, le sens, et ce senti-
je
ment me est fort la raison le combat4.»
qui parle plus que qui
Até aqui, é a verosimilhança, sentida consciência
portanto, pela
intima, teoriza: mas não é ainda a exigencia moral. Esta ultima
que
constitue assim dizer uma contra-prova, uma confirmação das
por
verdades inferidas de outros dados. Deus existe: sente-se no universo;

a alma existe: sente-se no homem. Mas o sentimento moral, inter-

vindo agora, diz-nos a alma é livre, condição do mérito; que é


que
imortal, condição da e Deus é necessário, como
justiça; que juiz
dela. A Providencia fez o homem livre ele agisse, não o
para que
mal, mas o bem escolha: é a velha idea de Santo Agostinho e
por
São Bernardo5. «O supremo é o contentamento de si: e é
goso para
merecer e obter esse contentamento fomos colocados na terra e
que
dotados de
liberdade, somos tentados e retidos
que pelas paixões
6.»
pela consciência Mas diz-nos também a voz interior que se bem

usarmos dessa liberdade, seremos felizes; ora não é isso o vemos


que
neste mundo, e só a idea da imortalidade nos dissipar o absurdo.
pode
Não há, contra a imortalidade, nenhuma razão decisiva; «se a alma

é imaterial, sobreviver ao corpo; e se lhe sobrevive, está


pode justifi-
cada a Providencia; ainda não tivesse da imaterialidade da alma
que
outra senão a vitoria do mau e a opressão do neste
prova justo
7.»
mundo, isso me impediria de em dúvida Esta ultima idea
pô-la
poderia levar-nos, se desenvolvida, a uma concepção religiosa deri-

vada das necessidades éticas, mas depois lê-se o seguinte:


pouco
«este sentimento os serão felizes depois da morte) é
(de que justos

Vol. cit„ 18-19.


p.
Vol. cit., 21.
p.
Vol. cit., 27.
p.
Vol. cit.,p. 29.
V. as minhas Notas sobre... Antero de 104.
Quental, p.
Vol. cit., 31.
p.
Vol. cit., 33.
p.
96 A ÁGUIA

menos fundado sobre o mérito do homem sobre a noção de bon-


que
dade que me inseparavel da essencia divina. Limito-me a su-
parece
as leis da ordem observadas, e Deus constante a si mesmo1.» A
por
idea religiosa é na doutrina de Rousseau a e não
portanto primária,
está suspensa á afirmação moral, visto a noção de Deus foi infe-
que
rida, do movimento e ordem do universo
primeiramente, (inferencia
que corresponde, mas sem o caracter de apoditica, á prova físico-
¦teologica na classificação de Kant) e não de considerações de natu-
reza ética: do Deus do «senso intimo» é se á moralidade.
que passa
Em resumo, pois, não se fundam os da moral na
princípios
inteligência dita, nem mesmo na razão, mas em convic-
propriamente
religiosas dadas «persuasão interior». Tendo rejeitado o
ções pela
racionalismo, a sua doutrina não é ainda, em nosso entender, um
«moralismo», e nada teem de original as suas conclusões religiosas,

pouco diferentes das de um Voltaire: um Cristianismo dessorado,


falho das energias da imaginação mística, da da
poesia, profundidade
psicologica de alguns dogmas; mas difere das de um Voltaire essen-
cialmente o sentimento com se afirmam, a atitude de espirito em
que
relação á vida, as origens recônditas da actividade, as ideas acesso-
sorias de que se acompanham. Voltaire compendiou a sua época, e
o seu émulo foi origem de uma nova filosofia e de um novo espírito.
Num tempo tão estreitamente supersticioso das «luzes» como foi su-

persticiosa da sciencia a imprecisa em nascemos; num


quadra que
século de ironia, de estreita critica, de negativismo,— ele o
grava pro-
testo de uma alma funda sente o sagrado dos máxi-
que problemas
mos, e faz a crítica da crítica, armado do fecundo sentimento da cria-
dora vida espiritual. De aí a actualidade do seu exemplo também
(e
a sua vantagem) desde lhe evitemos o defeito o tende
que para qual
precisamente o temperamento em infantil no seu
português, geral
simplismo: quero dizer a apologia do sentimento cego, o im-
puro (o
em vez da verdadeira espontaneidade da razão viva e cria-
pulsivo)
dora. Afez-nos o Terceiro Romantismo a uma mentalidade de ampola
de Crookes (um vácuo autentico mas iluminado cores
pelas prestigio-
sas da pura arte) atirando-nos o ideal de Fradique Mendes, balofa
substancia do seu riso, da sua ironia e do seu monóculo:
porisso
mesmo não vinga hoje, no universal desnorteio de uma hora lúgu-
bre, o traço de fogo de um vivo; vemos na literatura
protesto porisso
um tecido de compromissos, e as almas ermas de um férvido de
jorro
razão viva as alevante,—dessa razão cujos são ajmsig-
que princípios
nia do educador, a ogiva das aspirações humanas, e não
própria que,
sendo a inteligência do saber scientifico, não está em contra-
porém
dição com ela.

1 Vol. cit., p. 35.


RITOS, COSTUMES E TRADIÇÕES

O MISTÉRIO DO TOTEM

se tem abusado da mentalidade do selvagem. Atri-


f^loi^uiTO
buem-se-lhe as concepções mais inverosimeis e mais

distantes da realidade, subtis raciocínios dum Spinosa

ou dum Hegel, se explicar como os seus costumes,


para
os seus mitos e os seus ritos ter nascido!
poderiam

Que as suas crenças e sejam extravagantes, ninguém


praticas
o contesta. assim fossem na sua origem, é o é muito duvi-
Que que
doso e até, diremos, nada provável.
É claro que o selvagem, em presença de costumes e crenças

cujo sentido se como nós — inter-


perdeu, procedeu procederíamos
pretou, Nem mais nem menos como nós, em face do desconhecido.

Os dados eram de conciliação dificil, a explicação era necessa-

ria a tranquilização das consciências; nada admira, a


para pois, que
interpretação forçada não fosse um modelo de clareza e lógica. A

diferença, neste caso, entre as nossas hipóteses e as do selvagem, é

que nós tomamos as nossas hipóteses como raciocínios provisorios,


ao o selvagem as toma como realidades infalíveis. Mas
passo que
de a explicação dum facto seja e ilógica, não se segue
que grosseira

que esse facto seja, na sua absurdo.


gênese,
Tudo isto vem a da noção de totemismo. Cremos
proposito

que a sua origem intervieram idéias claras, e a obscuridade


para que
veio depois, a tradição, ao verídica, se foi necessa-
quando principio
riamente desfigurando. Por incompreendida, essa tradição foi sofrendo

interpretações, e é bom recordar as explicações actuaes dos sei-


que
vagens e mitos) não são de mera fantasia, mas
(lendas produtos
variações sobre um tema dado tradição mais ou menos irreco-
(a
nhecivel).

Não fazer a historia do totemismo. O leitor


pretendemos
curioso encontra-la há em excelentes livros. O é
(') que queremos

Frazer «Totemism and Exogamy», 4 vol. London, Macmillan, 1910-1911-


(>)
Loisy—«Le Totemisme et 1'exagamie»; «Revue d'Histoire et de Litterature
Religieuses», ano de 1911 eseg.
Van Gennep—«Religions, Mceurs et Legendes»,serie l.a,pag. 50; 2.a, pag. 22;
4.» 5.<> pag. 44.
82;
pag.
Durkheim — «Les Formes Elémentaires de la Vie Religieuse», Alcan. 1912.
98 A ÁGUIA

estabelecer uma nova interpretação dos fenômenos totemicos, que,


como se verá, logicamente deriva dos estabelecemos na
princípios que
nossa «Nova teoria do sacrifício» em «A Águia». Supore-
publicada
mos, no segue, o conhecimento desses artigos.
que

* *

Eis como um dos mais ilustres sábios que se tem ocupado do

Totemismo o define: «O assunto é vasto e sujeito ainda a discussão.

Para o nosso não é necessário entre em


propósito que pormenores.
Assim, direi somente que um totem é uma especie de
geralmente
objectos naturaes, usualmente uma especie animal ou vegetal, com a

o selvagem se identifica um modo curioso, imaginando-se


qual por
ele e os seus Kanguru, etc., conforme a classe
proprio parentes,
de objectos naturaes que crê ser o seu totem (')».
particular
Embora muito discutido e de certo modo atrasado hoje, é

interessante transcrevermos o celebre codigo do totemismo, de Saio-

mão Reinach. O insigne autor do «Orpheu» resumia assim o tote-

mismo em 1900: 1.° Ha alguns animaes não são mortos nem


que
comidos; os homens criam certos exemplares e cuidam deles. 2.°

Quando algum animal morre acidentalmente, põem luto, e enterram-

no com as mesmas honras que os membros do clan. 3.° Algumas

vezes a interdição alimentar incide somente sobre uma do


parte
corpo do animal. 4.° Quando, uma necessidade urgente, é morto
por
um animal de que ordinariamente se absteem, dirigem-lhe desculpas

ou tratam, por vários artifícios, de atenuar a violação do tabu, isto é,

do assassinato. 5.° Choram o animal depois de o sacrificarem ritual-

mente. 6.° Os homens vestem-se com a de certos animaes,


pele par-
ticularmente nas cerimonias religiosas; onde o totemismo existe,

estes animaes são totems. 7.° As classes e os indivíduos tomam

nomes de animaes; onde o totemismo existe, estes animaes são

totems. 8.° Certos clans usam imagens de animaes nas insígnias e

nas armas; muitos homens no corpo ou imprimem-n'os


pintam-n'os

pelos processos da tatuagem. 9.° Os animaes totems, quando perigo-


sos, passam por poupar os membros do clan totemico, mas somente

os a este clan nascimento. 10.° Os animaes tote-


que pertencem por
micos socorrem e protegem os membros do clan totemico. 11.° Os
animaes totems anunciam o futuro aos seus fieis e servem-lhes de

12.° Os membros do clan totemico creem-se freqüentemente


guias.
aparentados por o laço duma descendencia comum
(2)».
O eminente etnografo Van Gennep, criticando o codigo de

Reinach, sua vez um novo codigo com estes artigos:


propõe por
«1.° O totemismo é caracterisado crença num laço de
pela paren-
tesco entre um grupo humano uma parte, e, outra, uma
por por

(') Frazer—«The Belief in Immortality», Macmillan, 1913, vol. l.° 95.


"l pag.
Salomon Reinach —«Cultes, Mythes e Religions», tom. l.° 1908, pag. 17
A ÁGUIA 99

especie animal ou vegetal, ou uma classe de objectos, ou uma cate-

goria de seres humanos. 2.° Esta crença exprime-se meio de


por
ritos de iniciação) e uma regulamentação
positivos (cerimonias por
matrimonial maior das vezes, exogamia). 3.° O hu-
(a parte grupo
mano usa o nome do seu totem (').
Hoje, em face dum melhor conhecimento das selva-
populações

gens, ha a tendencia separar a exogamia do totemismo Mas


para (2).
a dificuldade duma definição de totemismo subsiste «mesmo depois

do livro de M. Frazer (3)».

* *

Não teem faltado hipóteses para explicar tão singulares costu-

mes e crenças, vigentes em regiões diversissimas, excluindo possibili-


dades de comunicação.

Herbert Spencer supunha o totemismo tivesse como ori-


que

gem uma confusão causada alcunhas que usassem os selvagens.


pelas
Como eram incapazes de fazer a distinção entre o nome e a
pessoa,
prestavam aos animaes, etc., o culto que prestavam aos seus antepas-

sados, tinham os nomes desses animaes.


que
Tylor baseia a totemismo na crença da transmigração das

almas O totem seria o animal onde tivesse ido habitar a


(4). para
alma do antepassado. É também a hipótese de Wilken (5).
Jevons filia o totemismo no culto da natureza. O homem,

perante as irregularidades dos fenomenos naturaes, imaginou seres


sobrenaturaes, e sentiu a necessidade de esses seres. A
propiciar
melhor forma seria a aliança, e a melhor aliança, o Ado-
parentesco.
ptou os seres sobrenaturaes como parentes, pelo usual do
processo
blood-covenant troca do sangue é freqüentemente entre
(a praticada
os negros da África, como um signal de aliança e amizade). Mas,
como não distinguisse a sua como se visse uma
personalidade, parte
do a contraiu colectivamente este e
grupo que pertencia, parentesco,
não com um objecto mas com o natural de
particular, grupo que
este objecto fazia A objecção de Durkheim a esta hipótese,
parte (s).
é fulminante. Se o homem assegurar-se o concurso dos
quizesse
seres sobrenaturaes de dependem as coisas, dirigir-se-hia de
quem
preferencia aos mais àqueles cuja protecção ser
poderosos, pudesse
mais eficaz. De resto, o Jevons o reconhece
proprio (')».
Outra hipótese, de Haddon, explicar o totemismo da
procura
seguinte forma:

(') Van Gennep — «Religions, Mceurs et Légendes», l.a serie, 1908, pag. 55.
(2) Loisy—«Le Totemisrae et 1'Exogamie» in Revue d'Histoire et de Lit.é
Religieuses, II.
pag. 404 do tom.
(3) Van Gennep. L., 4.» serie, pag. 91.
R. M.
(4) Tylor—«La Civilisation Primitive», vol. II, pag. 8 e seg.
(5) Durkheim — «Les Formes Élémentaires», etc., pag. 240.
(6) Frank Byron Jevons—«An Introduction to the History of Religion, Me-
thuen», 96 e seg.
pag.
(7) Durkheim—«Les Formes Élémentaires», etc., pag. 245.

*
100 A ÁGUIA

Cada alimentar-se hia exclusivamente duma só especie


grupo
vegetal ou animal. Quando havia sobras, repartia essa especie comes-

tivel outros que ficariam conhecendo o


por grupos, primeiro pelo
nome da sua especie alimentar. Além disso, a larga familiaridade

com essa especie, fá-lo hia supor uma certa afinidade entre a especie

e eles proprios (').


Frazer apresentou sucessivamente tres hipóteses, considerando as

duas como insuficientes. Na primeira supusera o tote-


primeiras que
mismo se baseava na crença da alma exterior. Existem em muitas

vestígios da crença num desdobramento pelo os vivos


partes qual
a alma em logar mais seguro do que o corpo.
possam pôr proprio
Admitindo que o homem se acostumasse a a alma no corpo
guardar
dum animal ou numa explicar-se hia assim o totem, seria
planta, que
o animal ou a onde estivesse a alma
planta guardada (2).
A segunda hipótese de Frazer é que o totemismo poderia ser

uma especie de magia cooperativa: «Não tinha cada clan a sua espe-

cialidade, ele explorada no interesse comum da tribu? Ter-se hia


por
acudido á necessidade de todos a divisão do trabalho. Idéa exce-
por
lente, mas aplicada tolamente os meios da magia. A ilusão teria
por
sido durável, porque a natureza não deixava de o dela
produzir que
se esperava (3)».
A terceira hipótese do insigne sábio funda-se no modo como

os Arunta encaram o fenomeno da concepção, e no de


postulado
o totemismo dos Arunta seja o mais primitivo se conhece.
que que
Os totems nos Aruntas, não estão em relação com indivíduos

ou mas com as localidades. Cada totem tem um logar defi-


grupos,
nido. Nesse logar é se supõe residirem as almas dos
que primeiros
antepassados, que, na origem dos tempos, constituíram o tote-
grupo
mico. É lá que se celebra o culto. Uma creança tem como totem o

do logar onde a mãe julgou sentir os primeiros sintomas da mater-

nidade segundo se diz, o Arunta ignora a relação


próxima, porque,
liga o facto da ao acto sexual. Supõe a con-
precisa que geração que
cepção é devida a uma especie de fecundação mistica. Crê a
que
alma dum antepassado no corpo da mulher e se tornou o
penetrou

principio duma vida nova. No momento, em a mulher


pois, que
sente os primeiros movimentos da creança, uma das almas
julga que
se encontravam no sitio onde está, nela. E a
que penetrou
creança nasce tem por totem o desse antepassado, e o seu clan
que
é determinado local onde passa por ter sido concebida mistica-
pelo
mente. Deste totemismo local derivaria todo o totemismo. E Frazer

explica assim a sua


gênese:
No momento em a mulher se sente gravida, deve
que pensar
o espirito que a penetrou veio dos objectos que a rodeiam, mor-
que
mente dos nesse instante, chamaram a sua atenção. Se estivesse
que,
ocupada a colher uma planta, ou se olhasse para um animal,
pensaria

(') Frazer— «Totemism and Exogamy», IV, 50.

(2) Frazer—«The Golden Bough», II. V Loisy, «Totemism», etc. 199.


pag.
(8) Loisy—«Le Totémism», etc. pag. 200.
Águia 101

que a alma deste animal ou desta ela. Entre as


planta passou para
coisas a atribuirá a sua será em
que principalmente gravidez, pri-
meiro logar, aos alimentos acaba de comer, etc. Esse animal ou
que
planta será o totem. Desde então o totemismo existe nos seus traços
essenciais; é a noção o indígena forma da lhe teria
que geração que
dado origem, e é isso Frazer chama concepcionalista a esse
por que
totemismo «Que muitas mulheres, umas após outras, notem
primitivo.
os signaes num mesmo logar e nas mesmas circuns-
premonitorios
tancias, este sitio será tido como freqüentado espíritos duma
por
especie e assim, com o tempo, a região será dotada de
particular;
centros totemicos e será distribuída em distritos totemicos Frazer
(')».
não encontra no totemismo as caracteriscas duma religião; consi-
dera-o um simples conjunto de magicas.
praticas
As informações recentes de Strelow e Schulze estão longe de
confirmar o totemismo dos Arunta seja
que primitivo.
Mencionemos, ultimo, a hipótese de Andrew Lang. O tote-
por
mismo nasce do facto do totem ser um nome. «Desde houve
que
grupos humanos constituídos, cada um deles sentiria a necessidade
de distinguir um dos outros os vizinhos com estava em
grupos que
relação, e, este fim, ter-lhes hia dado nomes diferentes.
para
Estes nomes foram tirados de á fauna e á flora
preferencia
ambientes, os animaes e facilmente ser
porque plantas podem
designados ou representados desenhos. As seme-
por gestos por
lhanças mais ou menos os homens ter com
precisas que pudessem
tal ou taes objectos determinaram o modo como estas colectividades
foram distribuídas entre os Como é um facto conhecido
grupos (J)».

que ha entre os nomes e as coisas uma relação mística e transcen-

dental, daí a origem do totemismo. Quando o tinha o nome


grupo
dum animal, um indivíduo desse tinha os mais
grupo julgaria que
característicos atributos desse animal (3).
Não discutimos estas diferentes hipóteses. O nosso intuito foi

somente orientar o leitor, habilitando-o a compará-las com a nossa

hipótese, apresentaremos no seguinte numero de «A Águia».


que

Matozinhos, 7-2-917.

(') Seguiu-se muito de perto o resumo de Durkheim in «Les Formes Élé-


mentaires», etc., pag. 275 e seg.

(J) Segundo Durkheim, ob. cit. pag. 263.

(3) Durkheim, ob. cit. pag. 264.


COLONISAÇÃO, CLIMAS E LÍNGUAS

(EXCERPTOS DE UM LIVRO EM PREPARAÇÃO)

cabo de um confronto demorado, em busca de identi-


jo
dades entre os dois rios, termina-se sempre encon-
por
trar os contrastes mais frisantes. Um é a antítese ex-

pressa do outro.

O Nilo harmonisa as suas acções construtivas com as destruti-

vas; quebram-se-lhe os Ímpetos em terra, e entra mar amor-


pelo já
tecido. O contrario no Amazonas: O navegante, lhe demanda
que
as entradas magestosas, sente-o muito longe e vê-o mar
passar pelo
fora, muito antes de avistar a terra donde êle foge. Inegavelmente,

se a África se manteve tanto tempo estranha á influencia dos povos,


muito cêdo a atingiram pelos seus desmedidos litorais, e com
que
insistência incessante pelos do norte, foi menos sua contextura
pela
impenetrável e pela sua insalubridade deprimente, do fra-
que pela
e raridade dos seus cursos de água, impraticáveis e hostis á
queza
navegação interior. Só a falta destas estradas, «que marcham», lhe

retardou a conquista, se esboça. E a cubiça, no se


que que presente
acende e cresce, mais se deve á descoberta da viação trilhos, do
por

que á revelação de tesouros, os nossos infatigaveis ha


que pioneiros
muito tempo haviam já denunciado.

Desde a época das descobertas, afora dos litorais opulentos e

dos vales ferteis, dominados rios navegaveis, a civilisação sem-


pelos
se expandiu muito ronceiramente, antes dos caminhos de ferro
pre
começarem a exercer a sua função unificadora de encurtar as gran-
des extensões. Assim se mantiveram largo tempo despresadas terras

sua natureza sedutoras e de reconhecida benignidade a vida


por para
das raças Na America, tam tarde descoberta e onde
progressivas.
logo as migrações européas se adensaram, ainda agora, todos os
dias, as grandes vias ferreas transmudam em campos de culturas

sertões eternamente amaninhados. A vida moderna criou necessida-

des, os antigos desconheceram, e só se mantém troca das


que pela
riquezas mutuadas reciprocamente entre os com do
povos, proveito
trabalho de cada um.

A África, sem embargo de ser, Egipto, o berço da


pelo pri-
meira civilisação, mal começa agora a abrir o seu largo e opulento

interior á actividade da aristocracia dos modernos e, contudo,


povos
a Natureza traçou logo nas idades do mundo a estrada
primeiras
mais curta lá chegar. Mas á do traçado contrapoz-se
para perfeição
o esboço da execução. O não vingou,
plano perfeitíssimo porque
a fatalidade imanente, a das extremas cabeceiras, negou a
juzante
todo o longo vale do Nilo o único atributo falta toda éla ser
que para
A ÁGUIA 103

fecunda e atraente: nem o explendor do sol, nem a energia do solo,

nem a variedade dos climas, diferentes em tam largas latitudes. Bas-

tava só a abundancia de chuvas, dão ao Amazonas de-


grande que
zenas de tributários caudalosos e á navegação interior da America

do Sul, leitos e suas anastomoses em igarapés e


pelos furos, para-
nás, mais de 50.000 abertos e desimpedidos para a passa-
quilometros,

gem de barcos a vapor, e de a hipótese indicada se conver-


pronto
tia em realidade a singela moldura aperta a
positiva. Quebrada que
estirada corrente, aquele assombro de águas em revolta seria capaz de

transformar todos os desertos envolventes no maior celeiro da Terra

e servi-lo com o mais e economico dos sistemas de comuni-


pratico
cação interior. As vias fluviais, desatadas desde as doçuras do Medi-

terraneo até muito largamente as ardencias do Equador,


penetrar
seriam avenidas seguras a desafiar o mais largo dominio. No mesmo

rumo dos barcos subiam expandia-se livremente a civilisação,


que
sem os embaraços mal tém permitido ás imigrações históricas
que
atingir — a menos os seus caractéres não tenham
os litorais, que
sido de todo absorvidos aborigines, como sempre tem suce-
pelos
dido no Egipto—-. Por aquela imensidade de terras, eternamente tor-

turadas flagelo da seca, e onde toda vida é penosissima, decidua


pelo
e inferior, cabia de sobra tão desconformidade de águas. Com
grande
este único agente físico,* escasseia, ali a Natureza assumiria a
que por
magnificência mais expletidente e variada, em harmonia com a suces-

são de climas, corrigidos da inclemencia dos ares e melhor regulados

dentro da multiplicidade dos Só a interferencia deste factor al-


paralelos.
terava a fisionomia da terra africana ao norte da Equi-
profundamente
nocial, libertando-a da secura a esterilisa. Não era apenas melho-
que
rada a meteorologia local. Repuxado para o Sul o centro propulsor
dos alizios ali se tam e fóra dos limites as-
que geram, perturbados
tronomicos e naturais, o regimen anemologico assim nor-
geográficos
malisado refletia os seus efeitos beneficos não só nos dois hemisfe-

rios do continente, mas na Europa e em da Asia, onde


grosso parte
a fornalha ardentíssima dos desertos do Sahara e convisinhos exerce

a sua influencia brutal. O Equador térmico, varando


perniciosamente
a África centro ideal do fixava os climas na sua base
pelo globo,
legitima, apenas com as variantes advindas da altitude, exposição e

revestimento do relevo continental. Todas estas circunstancias eram

vantagens em favor do Nilo, tam caudaloso como é o Amazonas.

Nascendo nas alturas, onde os climas são mais salubres e os


quentes
ares tropicaes menos ardentes, descia dos lagos navegavel
grandes já
e, ao avançava o Norte, redobrava de magestade e
passo que para
de energias novas, ao longo de regiões fartamente irrigadas e cada

vez mais frescas, em latitudes sucessivamente mais altas. Porque á

opulencia dos afluentes correspondia em largura e o


profundidade,
sulco todas as forças de erosão ao surgir lento da influen-
principal;
cia tectonica ativa, reavivadas velocidade das aguas, podiam até
pela
sobrepujar as durezas dos e manter em equilíbrio as corren-
granitos
tes no thalweg de Uadi-Galgabba.

Mas, tocada a terra de tamanha de chuvas, o incidente


profusão
104
A ÁGUIA

perturbador era de somenos importancia; o Nilo, seguindo no seu


curso através das montanhas soerguidas, directamente ou pela curva
de oeste, cêdo assegurava ao espesso massiço a via
grande de
pene-
tração fraqueza das suas aguas, tornar
que, pela jamais pôde prati-
cavei e expedita. As volumosas ondas líquidas, despenhavam das

primeiras barreiras interpostas, novos elementos de destruição das


seguintes, lançando nos turbilhões das correntes os fragmentos das
rochas derruidas, até as forças em conflito se amortecerem no
perfil
de equilíbrio o converge todo o labor dos
para qual cursos de agua,
nas varias e sucessivas fases da sua evolução vital. Logicamente e
dentro dos triunfalmente expostos
princípios gerais, por Morris Davis
e unanimemente aceites todos os sábios, a conclusão
por é infrangivel
e dispensa mais largos desenvolvimentos, seriam
que impertinentes.
A África inabordavel e hostil ás
permaneceu civilisações, a
que
cercaram desde todos os tempos, o regimen meteorologico
porque a

privou das bênçãos das chuvas, moderadoras dos ardores do sol e


fecundadoras dos elementos do solo. Onde a agua aflora e conserva
no chão a humidade suficiente equilibrar com fartura
para a evapo-
ração folhas e a absorção raizes, a flora
pelas pelas dos desertos
reveste os aspectos e exuberantes, no brilho
graciosos e variedade
das flores e no sabor e abundancia dos frutos. Mais do que em outras

partes do globo, naquelas vastas solidões ermas,


parece que a Natu-
reza se compraz no de antíteses: Aos dias ardentíssimos
jogar suce-
dem-se de um salto as noutes congelantes; o calor
poprio do sol,
num reverbero ofuscante, scintila nas lascas da silica estalada,
pondo
efervescencias nos ares em contacto com o chão esbrazeado. E exgota-
se de súbito na irradiação nocturna, até o frio conseqüente originar
egual fenômeno, em antagonismo bem
paradoxal explicável. No de-
curso de 24 horas, oscilam os extremos termometricos com desvios
superiores a 80 as lufadas fulgurantes de fornalha
gráos: e os ventos
ríspidos da num de estio e implacavel!
geleira país permanente
Os ventos ali muito revoltos. Depois de calmarias
geram-se por

pesadas, sob a luminosa dum céu imóvel, levantam-se tem-


placidez

pestades temíveis de areias, em rebojos amplos, sufocam e não


que
raro subvertem as caravanas, se aventuram á travessia daquelas
que
paragens desoladoras, degredadas erosões éolias e meteoricas,
pelas
monotonas e de aspectos formidáveis. Naquele oceano agua,
sem e
cujas ondas são de areias movediças, registam-se também naufragios
e desastres, confrangem e desorientam os exploradores mais au-
que
dazes e experientes. Como no mar largo, sem bússola e sem
práticos,
perdido o rumo nem sempre é fácil descobrir a vereda
prefixado, que
convém, para atingir a meta desejada, ao abrigo de
perigos desas-
trosos. Ha solidões malsinadas, é
justamente que preciso evitar, e já
felizes são os viajantes, se alcançam libertar-se das febres cerebrais e
dos delírios das miragens enganosas. Vai-se com Humboldt, KarI
Ritter, Duveyrier ou Reclus e deparam-se sempre os mesmos scena-
rios infernais, nem sequer imaginados nos ciclos de Dante. Desde o
Atlântico ao Nilo e daqui, Síria, ao plateau arabico
pela ardentíssimo
do Nedjed e ás areias dos bejabans, na Pérsia, até ao Cobi da Mon-
A ÁGUIA 105

golia chinêsa, um cataclismo assolador. Milhões


parece que passou
de de superfícies, onde caberiam os maiores impérios do
quilometros

globo, eternamente condenados á esterilidade absoluta!

Esta vasta faxa terrestre, tanto restringe o espaço util


que
do se não fosse intermeada, com relativa regularidade, de
globo,
ilhas de verdura e de beleza incomparaveis, assemelhadas ás man-

chas na da no dizer expressivo e de Stra-


pele pantéra, pitoresco
bão, seria em muitos largos trechos ainda talvez menos acessível
ás investigações humanas, do as solidões Tudo é
que polares.
ilógico e nestas regiões. Violam-se as leis mais elemen-
paradoxal
tares dos climas. Segue-se um mesmo areai nivelado
paralelo, pelo
ou de leves ondulações, através do chão fendido soalheiras
pelas
esbraseantes, sem lobrigar vestígios de ser vivo, mesmo extinto, a

denunciar uma mais benigna, Ás vezes depa-


quadra que passasse.
ram-se no Sahara largas áreas, onde não%crescem sequer cardos, arte-

misias ou mimosas humildes e espinhosas ou especies vegetais, que


com humidade se contentam; e donde fogem os escorpiões,
pouca
os lagartos, as víboras e as formigas. As moscas, seguem
próprias que
com tanta as caravanas, estacam, ao atingir estas zonas
persistência
calcinadas. Nem as dos dromedários resistem aos ares afo-
pulgas
gueados. Mas, mesmo nos descampados mais lugubres, o Árabe ou o

Tuareg, resignado, tenaz e vivo, não se submete á fatalidade incoercivel

que o assedia. Reage, pondo em acção todos os recursos disponíveis,

para fugir depressa do brazeiro, o ou do tufão de areias


que queima;
finas, o cegam ou lhe furam como agulhas a tostada
que pele pelos
sóis, o deslumbram; ou dos frios nocturnos, o De-
que que gelam.
fende-se de todas as hostilidades o deserto lhe opõe. Feliz, se
que
não se exgota a de agua e, ao sumir-se a luz do sol, a vista
provisão
não se apaga nas trevas densas da hemerolopia, sempre alcança
quasi
levar a caravana ao oásis salvador.

A agua suprime o deserto. Onde brota a fonte surge a


perene,
vida com a se harmonisa com a abundancia da agua
pujança, qual
bemdita. Mananciaes ou torrentes, derivando de massiço
qualquer
de montanhas, onde as chuvas se condensem, transmudam a esterili-

dade do ermo na exuberancia do vergel, tam fresco e produtivo, que


só a oásis lhe traduz os carinhos a vida. Distribuídos
palavra para
com certa ordem, em longas series, na solidão imensa, os oásis são

o refugio seguro das caravanas exaustas. Ha-os e


grandes pequenos.
E. Reclus calcula reunidas as áreas em conjunto, os do Sahara
que,
podiam somar a terça da sua superfície total. Alguns contam
parte
centenas de milhares de de todas as variedades. Aquelas
palmeiras,
florestas sem sombra, são a riqueza da tribu, abrigam sob os
que
leques das suas se balouçam no ar afogueado das altu-
palmas, que
ras, as essencias vegetais mais estimadas dos nossos e as
pomares
searas das mais frumentarias das nossas campi-
preciosas gramineas
nas. As arvores frutíferas e as hervas úteis dos climas temperados

associam-se, crescem e frutificam admiravelmente ao lado de especies

muito exquisitas dos climas do Equador. Adaptam-se todas e reves-


tem formas novas naquela ambiencia especialissima, onde interfe-
106 A ÁGUIA

rem as ardencias excessivas dos dias e os orvalhos das


gelados
noites.

Ora, estas áreas reunidas, somam uma vasta superfície


que já
de solo cultivavel, estão muito longe de representar a do de-
parte
serto suscectivel de ser fertilisada. As aguas ocultas, se
que perdem
infrutíferas no sub solo, assim como as aguas de raras mas
pluviais
violentas tempestades que, depois de degradarem a terra nos mo-

mentos da logo se evaporam sem a menor utilidade, hão de


queda,
um dia ser captadas com intencional inteligência, para dar maior

extensão ás culturas nos oásis.

Os trabalhos dos Francêses nas ourélas dos sertões confi-


que
nam com a Argélia e a Tunísia, bem como os dos Inglêses em todo

o vale do Nilo, são a firme de melhoramentos futu-


garantia grandes
ros. Farão recuar o deserto intervenção sagaz da sciencia hidrau-
pela
lica moderna, inspirada nas obras já milenarias dos Romanos e nas

dos Egípcios, tam antigas, até fabulosas. Nem sequer


que parecem
falta a nenhum desses scientificos, que são diversos e bem
processos-
adaptados ás circunstancias, a sancção da experiencia: factíveis e de

eficacia segura. Dois povos modernos levantam um


grandes grande
monumento a duas grandes civilisações extintas, imitando-lhes me-

lhorados os meios de vivificar a terra, libertada da esterilidade pelo


melhor aproveitamento de forças inutilmente dissipadas. E não miram

só á dilatação das áreas de cultura pela rega; corrigem os vicios ima-

nentes do solo e do ar drenagem metódica e arborisação


pela pela
mais adequada ás condições variaveis em cada local.

Profissionais consumados, aliando aos conhecimentos técnicos

das suas especialidades as noções das sciencias mais abstratas;


gerais
agronomos, engenheiros e médicos, simultaneamente naturalistas e

sábios, investem com a empreza complexa e difícil de desbravar a

terra e afeiçoa-la a um viver mais intenso e alto. Se as energias na-

turais não se apresentam incoercivamente hostis, — e este caso é o

menos freqüente,—ao cabo de um tempo e de um traba-


prefixado
lho obscuro e sem ruído, desfecham geralmente com a solução satis-

fatoria do «Chegam, como bem disse o ilustre e


problema proposto.
chorado Euclydes da Cunha, tratando de similar brazileira,
questão
armados de inofensivos aparelhos, dos observam, e experimen-
que
tam, e comparam, e induzem; e operários, estudando as
profissionais
modalidades climaticas, ou corrigindo-as; lucidamente teoricos e mas-

siçamente passando da analise dos estratos do solo á dina-


práticos,
mica das correntes atmosféricas, aqui redimindo drenagem uma
pela
superfície condenada, mais longe fazendo resurgir, transfigurado
pela
irrigação, um trato morto de deserto, —e por toda a
parte polindo
ou afeiçoando o chão inaninho, ou os ares perniciosos, ás novas

vidas os Em regra, vencida a maior dificuldade,


que procura». que
consiste na investigação rigorosa das causas efectivas dos males, os

remedios impõem-se claros e largamente compensadores dos dispen-

dios, exigem: na economia de vidas e na mais abun-


que produção
dante de subsistencias, conforme se cura de fertilisar o país este-

ril ou sanear a cidade mortífera. Estes é são os verdadeiros


que
a Águia 107

bemfeitores da Humanidade. Alteram leis na aparência invioláveis.


Alargam o comum, sem invadir o dominio estranho.
patrimonio
Asseguram a vitória na E, sobretudo, dão a lição
paz. que ensina e
o exemplo ediíica.
que
Nestas campanhas pacificas é que se vencem as bata-
grandes
lhas da civilisação dos nossos dias. Tanto elas enobrecem os povos
fortes e até os em bom Direito, das
progressivos, que justificam,
invasões violentas dos territorios em abandono, quando os seus pos-
suidores naturais, como crianças e incapazes, se revelam
prodigos,
sem competencia valorisa-los, se os não degradam brutalmente,
para
apressando-lhes a decadencia lamentavel. O espetáculo maravilhoso
daquelas transformações a olhos vistos está impressionando os mais
indiferentes e maus dias estão reservados ás nacionalidades deslei-
xadas, se a tempo e desveladamente não atentam no ha
progresso, que
de terminar suprimi-las, mais nobre seja o seu
por por que passado
historico. Vive-se num dilêma claríssimo: ou ou desaparecer.
progredir
Nenhuma duvida, onde reçuma a agua em
pois: permanencia,
expontanea ou mantida esforço e engenho dos homens,
pelo pelo
no meio do sertão mais adusto e esteril, abrolha sem transições a
vida, em se retrata a fertilidade da terra. A ferocidade do clima
que
ardente suavisa-se de súbito ao contacto da humidade surge.
que
Junto do isolado viça a elegante e fina, com as raizes
poço palmeira
alastradas no lenteiro e a copa mergulhada no ceu em fogo. E,

quando a agua corre nas camadas do sub solo, bastam


profundas
algumas de sonda converter a face terrível da soli-
perfurações para
dão na magnificência do mais florido vergel. Só na bacia fechada do
Hodna e no Sahará da de Constantina, os Francêses trans-
província
formaram em 8 anos aquelas regiões sem em
prestimo palmares
imensos. Alguns artesianos abertos a operaram a
poços proposito
maravilha.

Ninguém nem melhor, do os velhos Egípcios,


primeiro que
adivinhou os tesouros uberrimos, escondidos na esterelidade das
areias mirradas e movediças dos desertos, e a sua industria deixou á

posteridade as lições mais eloqüentes de hidraulica agrícola. Largos


séculos mais tarde, os não viram com menos lucidez, nas
Romanos
terras semi-aridas da Tunísia, o da valorisação do solo e
problema
do adoçamento do clima largo e rega.
pelo plantio pela Refrearam
suavemente as torrentes desordenadas, subitaneas e nefastas dos
ueds, até converterem as encostas escalvadas e imprestáveis no mais
abundante celeiro dos trigos, abasteceram em largos tempos de
que
dominio, os mercados da Italia, mormente, as desvairadas
populações
da agitada capital do mundo romano. A herança opulenta dos anti-

gos, resgatada modernos, resurge mais bela ainda, aos


pelos graças
conhecimentos dos scientistas dos nossos dias. Os exemplos
positivos
multiplicam-se toda a numa execução admiravel, adaptada
por parte
rigorosamente de cada territorio e das culturas
ás modalidades que
nele se actividade utilissima, aumenta
pretendem ensaiar. Esta que
cada vez mais em as nações vivazes e desenvol-
todas previdentes,
ve-se em esforços coordenados regar as terras secas, enxugar
para
108 A ÁGUIA

as humidas, altear as rebaltadas, fixar as moveis, e leva logicamente

ao aperfeiçoamento da economia da vida: com a produção


geral
acrescida, o clima suavisado e a salubridade melhorada, nos campos

e nas cidades. Não se trata de doutrinas fantasistas de teoricos de

são realisações se vêem nos seus efeitos maravilhosos:


gabinete; que
cidades saluberrimas libertadas da sua mortalidade apavorante, como

o Rio de Janeiro; descampados de centenas de conver-


quilômetros
tidos em verdejantes e fertilissimas, como o Colorado.
prados granjas
Ás obras modernas falta de certo a colossal e a solidez
grandeza
eterna das antigas; miram antes satisfazer necessidades e a
porque
dispensar benefícios, do a servir vaidades e perpetuar a memória
que
de tiranos. Deixa-se a historia das descrições dos monumentos vetus-

tos do Egipto, da Assiria ou de Roma, com o espirito estupefacto e

um tanto a descrer da verdade afirmada, ainda nos por-


propenso
menores mais verosimeis. Chega-se a duvidar dos Hérodotos, dos

Diodoros da Sicilia, dos Strabões ou dos Plinios. Mas visitam-se

essas ruinarias estupendas ou deletrêam-se os trabalhos pa-


grandes
cientissimos dos eruditos investigadores modernos, nobremente obsti-

nados no de reconstituir o melhor esclarecer


proposito passado para
o e termina-se sempre reconhecimento da vera-
presente, quasi pelo
cidade daqueles venerandos informadores. Não é só nas faustuosas

Pirâmides dos Faraós ou nos circos descomunais dos Cesares, se


que
ostenta a magnificência orgulhosa; é nas obras da mais reconhecida

utilidade. Observam-se os restos dos esgotos da velha Roma; evo-

cam-se as reminiscencias das e oito estradas se desen-


quarenta que
rolavam da coluna magestosa, o milliaram aureum, no meio do Fo-

rum, o centro do Mundo Romano, até aos confins das mais remotas

lê-se a <Memoria sobre o lago Mceris> de Linant de Bel-


províncias;
lefonds, que parece haver descoberto o reservatório, des-
gigantesco
tinado a as cheias do Nilo, para a rega do Baixo-Egito...
guardar
e ninguém, em nenhuma destas emprêsas que não envergonhariam,

em ousadia de e, em solidez de execução, a


plano principalmente,
engenharia moderna, de recursos e conhecimentos muito mais segu-

ros, deixará de maravilhar-se daquelas construções ciclopicas, levadas

ao termo com esforços deficeis de serem imaginados a tantos milha-

res de anos do invento das maquinas, agora suprem a força


que
humana! Tudo isto existe ainda em vestígios mais ou menos visíveis,

admirar e para aprender. Não é oportuno filosofar sobre as


para
dores e tiranias ali se sofreram: «O sorri ao
que por gigantesco
orgulho e isto ocupa o como o faz sabiamente observar Dio-
povo,
nizio de Halicarnasso, segundo Aristóteles. Emquanto êle está cur-

vado sob o do calhau, não em levantar a cabeça »


peso pensa (Am-
Hist. Rom). A antigüidade será sempre a nossa melhor mestra;
pêre,
as nossas liberdades nasceram de todas aquelas opressões.

Matosinhos, Janeiro—1917.

(Continua)
LETTRES son 1'action
POR TUGA1SES propre suicide, et autorisée
de M. João Chagas vint redresser coura-
José de Macedo: O Confito Interna- geusement les erreurs d'une malsaine
cional, sob o
ponto de vista português; propagande. C'est ce que mettent en évi-
Renascença Portuguesa, Porto.—Leo- dence les conclusions du livre admirable-
nardo Coimbra: A Alegria, a Dôr e a ment charpenté de M. José de Macedo:
Graça; Renascença Portuguesa, Porto. — LE CONFLIT INTERNATIONAL, AU
Antonio Arroyo: A viagem de Antero de POINT DE VUE PORTUGAIS, étude po-
Quental à America do Norte: Renas- litique et économique. M. José de Ma-
cença Portuguesa, Porto. cedo voit Iarge, et ne se dissimule point
qu'il s'agit de constituer le monde entier
S'il s'agissait d'éclaircir à fond les rai- sur des bases nouvelles.
sons de 1'intervention du Portugal dans la Après avoir étudié le jeu des alliances
guerre européenne, on se trouverait pro- plus ou moins hétérogènes et envisagé
bablement en face d'un fort 1'aspect du monde à la veille du cataclys-
probléme
cornplexe, et ceux voudraient faire me, au regard de la question d'Orient, il
qui
découler cette intervention d'un pur cal- s'efforce de déterminer la véritable situa-
cul d'intérêts tion économique et politique du Portugal.
n'auraient pas moins tort
Que les partisans d'une explication sen- C'est avec un soin minutieux qu'il passe
timentale. en revue la des échanges du
question
Ayante Portugal avec 1'Allemagne, avec l'Espa-
ouvert, lapremière, les vastes
horizons
de la terre et inauguré le grand gne, avec 1'Angleterre alliée, avec le Bré-
mouvement d'expausion coloniale mo- sil. En même temps, il s'attache à mon-
derne, la trer 1'influence d'une ma-
patrie de Camoens, qui garde un prépondérante
immense empire africain, ne rine marchande; fond le
pouvait res- puis, traitant à
ter en dehors du conflit
qui va régler les probléme vital de 1'émigration, il réfute
destins du monde. II énergie la chimère dangereuse de
y va de sa vie aussi avec
bien
que de son honneur; car le Portugal ceux qui voudraient détourner du Brésil
ne saurait etre séparé de ses colonies, et le courant colonisateur lusitanien. Pour
la lui, 1'émigration est la meilleure des in-
question du partage des colonies por-
tugaises a êté
posé par 1'Allemagne. Privé dustries portugaises, et le Brésil la plus
de son domaine colonial, le Portugal re- des colonies du Portugal. Ma-
prospere
devient une lheureusement les gouvernements portu-
simple province ibérique.
Au rest, hérítier direct de la noble tra- ont jusqu'ici manqué de plan.
gais
dition chevaleresque et façonné la Les théories de M. José de Macedo
par
culture latine, le Portugal devait se ran- se rencontrent ici d'accord avec l'action
g£r parmi les défenseurs du Droit et de de certaines d'entre les
plus éminentes
la Liberté des aux côtés de la lusitaniennes de 1'heure
peuples, personnalités
France et de 1'Angleterre. actuelle, parmi lesquelles il faut compter
II y a aussi le séculaire traité d'alliance les initiatcurs de la revue Atlantida, des-
avec la Grande-Bretagne, — et ce traité tinée à élucider les moyens de réaliser
eut à certaines époques d'assez fâcheuses une véritable coopération luso-brésilienne,
répercussions économiques en Portugal;— tant du côté intellectuel et moral, que
wais il dans 1'ordre économique et
ne semble pas que, dans le cas purement
présent, aucune durant
des deux parties, politique.
la Passant ensuite à 1'examen du
première phase du cataclysme, ait dé- pro-
siré le faire blème colonial, M. José de Macedo dé-
jouer, encore que chacune y
«tt disposée en tout nonce les de Timpérialisme et
de part et d'autre périls
'oyauté. constate la République n'a pas en-
que
Au vrai, le souci de la dignité natio- core été proclamée dans les colonies. Par
nale vint donner une forme active aux voie de conséquence, il étudie le problè-
rcvendications d'ordre économique. Le me controversé de 1'autonomie financière
Portugal crible d'une
pouvait etre neutre; toute-
ne et coloniale, passe au
et ana-
fois les arguments des lyse minutieuse 1'idée de Fédération
germanophiles ne
manquaient atlantique. Mais ce lui paraít devoir
pas de poids, á preuve le li- qui
Vre révélateur de M. Pimenta de Castro; susciter les difficultés pour
plus graves
mais la République ne pouvait accepter 1'aVenír, c'est la question' dès vofes de
110 A ÁGUIA

communication. Et n'est-ce pas, dans l'en- La bergsonisme universaliste de M.


semble, l'une des causes directes de Ia Leonardo Coimbra
précise la nature de ce
guerre actuelle? príncipe immatériel, qui participe à l'es-
Pour M. José de Macedo, l'un des ré- sence de 1'infini et
qu'il définit comme
sultats les plus immédiats de l'immense irrationnel, parce qu'aucune quantité ne
conflit, c'est la destruction des richesses. le peut mesurer, aucune qualité ne le
De fait, la arraée entraínait déjà,
paix peut épuiser. Ce príncipe tend à s'évader
pour la plupart des états européens, des continuellement du
point et de 1'instant;
charges enormes. De ces depenses mili- il est activitéEt le philosophe
pure. pro-
taires colossales les nations démocratiques clame que la première, 1'ultime, la cons-
étaient victimes; mais l'histoirese dérou- tante réalité, c'est l'action.
le implacablement et,
parmi les petits peu- Or, 1'univers est une société, c'est-à-
pies, la Suisse est le seul qui se solt doté dire un système d'activités efíicaces, et la
d'une organisation militaire modèle. source de toute activité est dans 1'esprit
C'est là une
Ieçon pour le Portugal, créateur.
qui, tant au point de vue maritime qu'au Ainsi, le matérialisme des ceuvres
point de vue terrien, avait négligé de d'une civilisation,
pesant sur sont esprit
pourvoir aux nécessités de sa défense créateur, la condamne dans ses fins, et
nationale. c'est le cas de la Prusse. Au-dessus de Ia
Or, ces nécessités intéressent au conception industrialiste
pre- pure planeront
mier chef Ia capacité financière des États. toujours les Don Quichotte, dont s'inspire
De là 1'urgence de méthodes 1'hérolsme belge.
précises.
Après avoir ainsi mis au point la ques- Mais serait ce
peut-être diminuer
tion de préparation militaire, en fonction l'immense de
portée 1'ceuvre intitulée
de la résistance financière du Portugal, LA JOIE, LA DOULEUR ET LA GRÂCE
M. José de Macedo envisage la
position que d'en limiter le sens à 1'interprétation
occupée par son pays au regard des rela- du conflit actuel. Conçu à la façon
d'un
tions internationales et, rendant homma- triptyque, oü s'élucident successivement,
ge à la loyauté britannique, il tient à la magie d'un
par nourri d'ima- discours
montrer que le Portugal, contrairement à
ges et fortement charpenté, le problème
1'injurieuse assertion n'est de la Vie, le
germanique, problème de l'Ame, le pro-
nullement en état de vasselage. De mê- blème de Dieu, ce livre
permet que l'on
me, il affirme
que la conquête du Portu- ose à son sujet le mot de chef-d'oeuvre.
gal ne saurait convenir à 1'Espagne. Sa beauté profonde et son enseignement
L'Alliance ibérique, au contraire, aurait ne se peuvent comparer qu'à La Sagesse
une énorme répercussion en Amérique, et la
Destinée d'un Maeterlinck ou aux
et la Latinité y trouverait son exaltation. Essais des Transcendantalistes américains
Insistant, par ailleurs, sur les consé- de 1'école de Concord. Phénomène entre
quences du triomphe aliemand à 1'égard tous digne de remarque:
pour la primiere
du Portugal, de Macedo termine fois le Portugal a trouvé son
par philosophe;
l'historique de 1'intervention, et il n'est car Ia pensée de M. Leonardo Coimbra
pas douteux que ce beau travail ne soit est tout imprégnée de mysticité lusita-
consulté avec
grand profit, non seulement nienne. De là telles définitions d'un
par les compatriotes de 1'auteur, mais christianisme particulier, platonicien par-
aussi par les étrangers et spécialement fois:
par les Français, ayant charge de débattre « L'art éternlse 1'instant. Sous le flux
les intérêts de 1'Entente. des phénomènes il cherche 1'idée d'être,
Ainsi, le Portugal, dont les grandes qu'ils traduisent. La poésie est 1'expres-
Découvertes ont fourni 1'assiette oú de- sion de l'univers
par la parole. La
parole
vait s'appuyer 1'organisation du régime humaine est la plus grande merveille des
capitaliste, le Portugal,
qui ruina Venise mondes. La création est un acte de Ia
en la dépossédant de ses communications Les
parole. peuples forts et victorieux
avec 1'Orient, ne peut se désintéresser de sont ceux qui ont trouvé les paroles
la politique mondiale. Lointaine, cepen- vraies».
dant, est 1'époque oú Lisbonne était le Et encore:
premier entrepôt commercial du monde, «La Douleur est le chemin de la Ré-
oú les agents des Flandres demption. La
portugais Grâce est la sensation de
rayonnaient d'Anvers sur toute 1'Europe la liberté; elle apparaít
partout oú une
centrale, oú les banquiers d'Augsbourg f°rce se libère et
peut reposer sur la tran-
commanditaient les flottes lusitaniennes.
quillité de la forme le sourire de son
excès. Le travail est une conséquence de
A ÁGUIA 111

Ia it is to be hoped that will edit the


grâce divine; il est l'immédiate révé- he
lation de notre liberté, la création Apologos Dialogaes in the same series.
par
d'un monde à signification morale». Its editors are to be congratulated on this
Or,
le sentiment moral a des racines addition to the Biblioteca Lusitana,
roétaphysiques et 1'homme est un animal which promises to render fruitful service
social, to Portuguese literature. This is the 17 th
parce qu'il est un être métaphysi-
•lue, de telle 1'idée de Dieu edition of the charming treatise written
sorte que
serait elle-même une création de la so- by Mello during two months of the win-
ciété, ter of 1650 a
quelque chose comme 1'hypostase as prisoner in the Torre
de la conscience sociale. De là, Dieu Velha on the left bank of the Tagus, and
tend sans cesse à être la conscience uni- translated into English by John Stephens
verselle, la suprême Unité cosmique. under the title of The Government of a
II se Wife There are other works in
peut ainsi qu'une société prenne (1697).
Pour Dieu une forme inférieure de la Spanish and Portuguese on the same
force, une ceuvre de son acti- subject; but the two best, Luis de Leon's
exclusive
v|té. Telle 1'Allemagne. Alors la La Perfecta Casada and the Carta de
grâce
disparaít. L'action doit être le Guia de Casados, were written by men
prolonge-
nient de 1'idée, le travail une ceuvre who were unmarried. As Mello says here,
d'amour, de liberté, the spectator sees of the game. This
de joie. Nul besoin, most
Par conséquent, pour le Portugal d'aller was his first work to be written in Portu-
copier les méthodes
germaniques d'édu- guese. Its style is simple and direct and
cation. it not infrequently recalls the precise sen-
L'enseignement se dégage des tences, wise brevity and golden good
qui
Pages savoureuses consacrées por M. sense of Bacon's essays. Mr Prestage, in
Antonio Arroyo au VOYAGE D'ANTHE- adopting the text of the first and best
RO DE
QUENTAL EN AMÉRIQUE DU edition (1651), has made a stand against
NORD est parfaitement analogue. On the practice of radically modernizing the
sait drame convulsif se joua dans spelling: in some cases past authors would
quel
l'âme du scarcely recognize their offspring. It is
poète entre la Raison et la Foi.
Ce drame devait avoir le suicide pour however a question whether, when the
dénoúment. Hypnotisé les victoires author does not know his own mind, his
par
prussiennes de 1870, Anthero s'écriait: editor should not come to his assistance.
«Quelle Thus we have here boca and bocca, me-
race! L'avenir est au germanis-
me. Ami, il faut savoir Tallemand!» ter and metter, defeito and de/feito,
Mais aceitar and acceitar, nacer and nascer,
quand il se trouva isolé au mi-
Heu de la civilisation strictement utilitaire cheo and cheio, oficio and officio, alheo,
des Yankees, alhêo and alheio,
plus libérale pourtant que peior, peor and pior,
celle de 1'Allemagne, il étouffa littérale- sofrer, soffrer, sofrível, insufrivel. In a
roent et ne rêva de regagner le language with a slight tendency to slug-
plus que
Portugal. not in Mello) the brie-
gishness (though
Instinctivement les Portugais, dans la fer forms are no doubt to be preferred.
lutte actuelle,
ne pouvaient être qu'avec From actual misprints the book is singu-
la France, de larly free. We may note sangusinho for
qui est la mère spirituelle
leur civilisation et a favorisé 1'éclo- sanguinho 77), 1529 for 1527 187),
qui (p. (p.
sion for
de l'un de leurs plus purs génies Rosetti Rossetti (p. 209). In his inte-
littéraires: Eça de resting Mr Prestage emphasizes
Queiroz. preface
the excellence of Portuguese prose-wri-
ters, among whom Mello occupies so
(Do Mercure de France).
distinguished a place, and in a note he
Philéas Lebesgue. compares this treatise with that of Luis
de León. Mello's work is more practical,
O but his standpoint is as high, his taste as
severe, his manner more courtly and
Carta de Guia de Casados. Por D. Fran- entertaining. He agrees with the Spanish
cisco Manuel de Mello. Com um es- monk in condemning women who pain-
tudo critico, notas e por ted their faces, and he has little
good to
glossário
Edgar Prestage. Lusita- say of pet dogs and pet nightingales or
(Biblioteca
na.) Porto, 1916. 225. of the Iadies who are always reading
pp.
comedies or novéis or romances of chi-
Mr Edgar Prestage has an unrivalled valry, or who enter a church as if they
knowledge of Mello's life and works, and were to battle, hustling and upset-
going
112 A ÁGUIA

ting people. But he is less caustic in his sale de los limites de la política nacional
condemnation, nor does he allow his wit viene a ser una pintura
portuguesa, y
to get the better of his heart. In writing
previa de Ias causas que engendraron el
largely from his own experience of life
gran conflicto de este siglo. El senor Ma-
and literature he many cedo no solamente hace
gives glimpses gala en ella de
into the manners of the day; he descri- su amplia cultura, sino
que, abordando
bes the motley crowd wont to hang about un en que Portugal es parte liti-
pleito
a great house in Lisbon, hucksters, pe-
gante, actúa de juez con la suficiente se-
dlars, negrões, gypsies and a hundred renidad. Los más atraen su
puntos que
more, and his experience et a Spanish atención dentro de este tema, son Ias
inn (p. 107) is worthy of Don Quixote. rivalidades étnicas ha despertado en
que
His task was to describe the right rela- Europa el resurgir dei nacionalismo, Ias
tions between husband and wife, and it alianzas heterogêneas que debieron con-
must be remembered that the small de- centrar Ias potências para dominar o de-
gree of liberty of woraen in Portugal had fenderse la aparición dei nuevo impe-
y
already attracted attention in Europe. He rialismo con que Inglaterra, Alemania y
does succeed in some measure in sho- Rusia, dentro de Europa, suefían con ava-
wing how women might combine these sallar el mundo. Detallada esta lucha for-
restrictions with the of ali their midable con
practice que bregaban Ias cancillerías
natural grifts and graces. And if his anec- en los anos que precedieron a la guerra,
dotes and examples are of his own time aborda el senor Macedo otra causa
que
and country his kindly wisdom and keen debía llevar al estallido: la prepotencia
comments are for ali time. In this attrac- econômica de Alemania. El crecimiento
tive edition they are likely to entertain de Ias energias de este pueblo ahogaba
and instruct a very large number of realmente de dia en dia a sus rivales: su
readers. marina se multiplicaba prodigiosamente,
su industria llegó a tales limites que hoy
S. João do Estoril.
mismo los Estados enemigos de ella no
ven médio de substituiria con la suya
Aubrey F. G. Bell.
cuando la paz sea un hecho, y su espíritu

(De The Modern Langriage Review). mercantil consiguió aposentarse triunfa-


dor, no sólo en la metrópoli sino en Ias
colonias de Francia y de Inglaterra. Otro
O estudia, con cierta novedad, es
punto que
el de Ias relaciones
entre Alemania y
José de Macedo: O Conflicto Interna- Norte América
y la intervención de esta
cional sob o ponto de vista porta- en Ias cuestiones europeas que conceptúa
— Un volumen de 444
gués. páginas, desagradable para hoy y peligrosa para
de 24 x 15 centímetros — Oporto, manana, cuando aquella República afirme
«Renascença Portuguesa», 1916. todavia más su hegemonia política, eco-
nómica y financiera. Por último, comple-
Bajo el epígrafe que antecede se reu- tando la investigación de Ias causas dei
nen cinco estúdios, sérios y meditados, conflicto, fíjase en Ias guerras balcânicas
sobre el actual Ias cuestiones de Oriente,
conflicto de Ias naciones, que reavivaron
la política econômica de Portugal y su de un interés común para todos los pue-
orientación, el problema colonial Ias blos civilizados. De todo ello, viene a
y
influencias internacionales, los gastos mi- deducir que los hechos determinantes de
litares en la paz y en la guerra com rela- la guerra y la guerra misma afectan a
ción a la Haciendaportuguesa, y Ias re- todas Ias agrupaciones europeas
y que
laciones internacionales de Portugal. Su hasta Ias que defienden su neutralidad,
conjunto llega a constituir un completo ven su porvenir entre los azares de Ia
análisis de la vida política y econômica lucha. Por este motivo afirma el senor Ma-
de aquella nación en la hora
presente, cedo que Portugal que, con su coloniza-
practicado con una observación tan fina ción y sus descubrimientos, tanto hizo

y minuciosa que acreditarían a quien lo por la civilización de Occidente, cumplió


firma, sino tuviera ya anteriormente una su deber ofreciendo su espada a sus alia-
reputación entre los escritores de cosas dos de siempre.

públicas, en especial por lo que respecta Investigando la política econômica de


a temas coloniales. Portugal, sus palabras no pueden ofrecer
Como se desprende de la enumera- una visión totalmente despejada para lo
ción hecha, el primero de estos estúdios futuro. A pesar de ser un dice, con
país,
¦ --"v tu
w

A ÁGUIA 113

un suelo
fecundo, recursos esplêndidos y presupuesto de Guerra consiberable du-
una inmejorable, ha rante la Monarquia y al desaparecer ésta
posición geográfica
vivido un tanto desorganizado, despro- se encontro falta de recursos, el puerto
visto de dirección en el gobierno y sin de Lisboa sin Ias defensas suficientes, y
orientación econômica en el un ejército según frase de Baracho,
pueblo. Esta que,
incapacidad de hecho se traduce en su había llegado a un estado de relajación
comercio indisciplina
y en Ia cmigración, que
exterior y de deique no se veia me-
son buenas balanzas para medir el des- jora. En sentir de Macedo la situación ha
barajuste de su vida econômica. Para cambiado bastante. Hoy soporta Portugal
remediado con la
requiérese inucha tenacidad, guerra un gasto con 150,000 contos
cordura de reis, pesadísima carga que este autor
y gran sinceridad de proce-
una
dimientos a los elementos sólo considera aceptable
que permita pensando que
dentro Ia nación la indepcndencia nacional. Así
que pnrecen más incom- garantiza
patibles se homogenicen, llevados de exclama: «No debemos esquivar tales sa-
y
una buena administración aporten a Ia crificios cuando de semejante ideal se
pátria portuguesa un manana glorioso. trata; bien deben comprenderlo los mi-
* La aiíade, lo encontro todo nistros de la República cuando negocian
Republica,
por hncer, todo arruinado y viviendo ar- en Londres una operación de crédito que
tificialmente. Tenemos extensas tierras asciende a 25.000,000 de libras. Los gas-
sin tos de
árboies; campos sin coinunicación guerra hasta hoy abonados suben
con la cabeza de los distritos; corrientes a 75.000,000 de contos y se está bastante
dc agua lejos dei final.»
perdidas ; riquezas despreciadas:
industrias Una de Ias más complejas cuestiones
que no aprovechamos y pudie-
s«r fuente de internacionales que trata igualmente, es
prosperidad para el país.
Todo abandonado, sin dar al trabajo ex- la de Ias alianzas. La opinión sobre este
Pansión ni fomento; punto no es unânime en Portugal. Optan
y una población ham-
orienta, la inglesa,
que no halla nadie que se pre- muchos por que es la tradicio-
°cupe de sus problemas sociales y de su nal. Pero observa también el sefíor Ma-
vida.» cedo: «Es cierto que, algunas veces, nos
Tocante al colonial, han venido de Inglaterra, faltas de consi-
problema punto
de especial deración El célebre tratado de
dei
competencia senor Ma- y estima.
cedo, empieza frases de Methwen no es una prueba de desinterés.
por recordar Ias
I-etourneau, Y cuando nuestros soldados ayudaron a
cuando auguraba que la fie-
bre colonial, al enemigo de Inglaterra, con-
convertida en delirio, arras- quebrantar
traria a los tribuyendo a Ia derrota napoleónica, so-
pueblos a una gran lucha, en
•a el de Beresford
que para defender el engrandecimiento portamos predomínio y
de territorios lejanos se desangrarían Ias el innoble martírio de Freire de Andrade
metrópolis. vein-
La criticaque hace este es- y sus compafieros. Posteriormente,
critor dei tiséis anos atrás, nuestra aliada nos
actual sistema colonizador por- pagó
es muy documentada y profunda. los servicios con un ultimátum humillante,
Jegues
Gran frente tuvimos
parte de sus vicios arrancan de la al cual que capitular tris-
fijilitarización En la temente, firmar ei tratado de 1891, que
de Ias colonias. pro- y
P>a administración central la mayor parte nos privó" de parte dei vasto interior de
de los funcionários superiores son mili- Mozambique. En realidad, en aquella
tares, época, Inglaterra
y en miembros dei ejército están ya tenia combinado con
vinculados, también, Ia casi totalidad de Francia e Alemania el reparto de África,
empleos civiles de Ias colonias. Excep- y si hoy sigue una política diferente no
tuando Ia está de hemos de dejar de reconocer en
magistratura, todo sus que
Manos. Así dice, la ocupa- aquel momento se nos sacrifi-
resulta, que primer
c'ón de caba». Esto no obstante, sigue opinando
Ias colonias portuguesas queda
verdaderamente es el ár-
por hacer, y con respecto
el sefíor Macedo, que Inglaterra
a Angola es una aspiración irrealizable, boi a cuya sombra ha de crecer Portugal.
si no se Desde el tiempo de don Juan I, en
sigue la táctica de Alemania que que
de sus colonias no con sus Inglaterra, a ella se acogió
poco podia
joma posición
tropas sino el espanol que le
con sus ferrocarriies. para garantir peligro
El
problema dei coste de la guerra es amenazaba. Y después de Filipe III, entra
objeto de un Portugal a negociar tratados con ella:
atinado trabajo que informa
suficientemente son éstos, seis; tres en el siglo XVII
al lector. Lo que mayor y
interés despierta, tres en el XIX, sin contar el de Methwen
naturalmente, es lo que
se refiere a los
gastos especiales de Por-
en 1703. Por los tres primeros, dice Oli-
tugal. Esta nación un veira Martins, el Oriente. Con
había soportado perdimos

8
114 A ÁGUIA

el de 1810 preparamos la separación dei seu espírito cultissimo e da sua paixão


Brasil. Por el de 1881 alienamos Goa. Y pelo ensino, convencido, como está cer-

por el de 1890 mutilamos Mozambique y tamente, de que dêste depende, sendo


dimos elprimer paso para sacrificar, ma- bem orientado, a solução de muitos, se
nana, Angola.» não de todos os nossos problemas nacio-
Sin negar el que tengan estos
valor nais. E, assim, foi com extranheza que
hechos, nuestro afirma que él está
autor não vimos no Resumo da história da li-

por Ia alianza inglesa por varias razones teratura um capítulo sôbre a literatura
de orden histórico, econômico e interna- portuguesa, não nos contentando a razão
cional, pero que esta alianza no la halla- com que se quere justificar essa falta.
ria indispensable si fuese posible una Bastariam as palavras com que o ilus-
alianza con Espana. A propósito es-
este tre professor mostra a relação que existe
tudia Ias relaciones hispanolusitanas, com- entre a história geral e a história literária
batiendo el prejuicio que los espano-
de para convencer que o seu trabalho é
les aspiren a dominar a Portugal y acaba orientado de harmonia com o espirito dos

por decir que el acuerdo entre Espana y programas do ensino literário nos liceus.
Portugal debiera ser el inicio de una gran Nêste sentido, no entanto, pode o Resu-
alianza latina, obra de paz, basada en la mo da história da literatura ser muito
expansión de una cultura que tiene en aperfeiçoado e, com certeza,
o será, quan-
Francia e Italia sus más gloriosos intér- do o seu autor deixar a
preocupação de
«£Este fecundo espíritu de soli- fazer um resumo, e, aproveitando a sua
pretes.
daridad histórica, termina diciendo, no larguissima erudição, o seu belo critério
podría tomar aún una forma más amplia, e as suas admiráveis qualidades de escri-
creando una Liga hispanoamericana entre lor, quizer dar ao seu trabalho o intuito
todos los elementos de un mismo ori- de revelar, dentro da literatura de cada
»
gen? povo, as figuras representativas, destacan-
La última conclusión de este libro, lo do da sua vida o
que tiver valor, sob o
centra aún con mayor firmeza a la rea- ponto de vista moral e literário, e estu-
lidad de la hora presente. Escuchémosle: dando das suas obras o que nelas houver
«No nos hagamos ilusiones, dice: de
No grande, sob o ponto de vista nacional
creamos que todo dependerá de nuestra e humano.
voluntad en la lucha que va a promo-
verse cuando termine la guerra. Portugal «ATLANTIDA» —Lisboa. N.os 15 e
en el mundo nuevo que se está elabo- 16, de janeiro e fevereiro de 1917.—Den-
rando tiene que chocar con dificultades tre a variada e interessante colaboração
numerosas, y éstas conviene estudiarlas devemos destacar a de José Caldas, Tei-
para que sorpresas no Ias
perjudiquen xeira de
Queiroz, Ofélia Correia da Cos-
nuestro avance hacia una nueva y gran- ta, Humberto de Avelar, Lúcio dosSan-
diosa civilización».— F. de A. R. tos, Antonio Sérgio e Avelino de Almeida.
Explendidas reproduções de Teixeira Lo-
«RESUMO DA HISTÓRIA DA LITE- pes e desenhos de Raul Lino, Cristiano,
RATURA ANTIGA, MEDIEVAL E MO- Manuel Gustavo e Santos Silva.
DERNA»—pelo General J. Corrêa dos
Santos—Pôrto, Biblioteca portuguesa- « REVISTA DO BRASIL » — S. Paulo.
editora, 1917. Destina-se êste livro aos N.os 12 e 13, de dezembro de 1916 e ja-
alunos da 6.® e 7.a classes das disciplinas neiro de 1917. — Cada fasciculo é uma
de português e latim, e quere-nos parecer nova revelação do no Brasil se
quanto
que prestará ao ensino esplêndidos servi- está estudando e escrevendo bem o por-
ços. São tam raros os livros de rial valor tuguês. Estudos literários, scientificos,
didáctico no nosso país que o trabalho do economicos, todos nos mostram espíritos
ilustre professor, sr. General Corrêa dos cultos e anciosos. Olavo Bilac, Alberto
Santos, vem preencher uma lacuna, e de Oliveira, Domicio da Gama, Medeiros
mereceria uma larga apreciação, feita com e Albuquerque, Mario de Alencar, Sam-
aquela honestidade que obriga a criticar paio Doria, Alberto Seabra, Mario Pinto
e não apenas a dizer palavras fáceis de Serve, Godofredo Rangel, subscrevem be-
elogio, embora justo. Tal apreciação não Ias paginas. A resenha do mês é completa
cabe, no entanto, na simples noticia bi- e brilhante.
bliográfica que, por agora, nos propuze-
mos dar. «REVISTA DE FILOLOGIA ESPA-
O novo trabalho do sr. General Cor- NOLA»—Madrid. Tomo III, Outubro-
rêa dos Santos é mais uma afirmação do Dezembro 1916. Publica artigos de Fe-
A ÁGUIA 115

derico Haussen, Américo Castro e T. importantes notas sobre bolsas, merca-


Navarro Tomás respectivamente sobre: dos, etc.
La elision en el «Libro
y la sinalefa "BOLETIM
OFICIAL DO MINISTE-
de ALejand.ro>, Algunas Observaciones
acerca RIO DE INSTRUÇÃO,, — Recebemos os
dei concepto dei honor en los
n.os 4 e 5 deste Boletim, referentes a Ju-
siglos XVI
y XVII (conclusion) e Canti- de 1916, e publicando am-
dad de Ias vocales acentuadas, alem de nho e Julho

Miscelanea, bibliográficas e biblio-


bos, além duma secção pedagógica cola-
Notas
borada por Aurélio da Costa Teixeira,
grafia.
Reinaldo dos Santos, Ernesto Korrodi,
« CUBA CONTEMPORÂNEA» —Ha- Luís Cardim, Costa Sacadura, etc., uma
bana. N.0s de dezembro de 1916, larga secção oficial.
janeiro
e fevereiro de 1917. — Cumpre mencio- "AGROS,, —N.°
1. Janeiro de 1917.
nar os seguintes artigos: Necessidad de
A Associação dos Estudantes de Agrono-
propaganda cívica cubana, de José Sixto
mia resolveu lançar um periodico de pro-
de Sola, Autocracia y Democracia, de
paganda agrícola, que pode constituir um
Augustin Hamon, De la Europa francesa
verdadeiro movimento nacional. A revista
a la Europa alemana, de L. Dumont
é dirigida por Artur Castilho, um inteli-
Wüden, El Sábio Rey Salomon, de Fran-
gente moço cheio de qualidades, e apresen-
cisco Diaz Silveira, etc.
ta-se com proficiência e elevação. Aguar-
"O demos que cumpra nobremente a sagrada
x
MARCONIGRAMA „— Londres.
missão que se impôz.
N-os 4, 5 e 6, Janeiro a Março de 1917.
Com "FIALHO
a maxima regularidade e distinção D'ALMEIDA-1N MEMO-
continua sendo distribuído este magazine á venda este volume
RIAM,,—Está já
impresso e cheio de niti- Barradas e Al-
em português organizado por Antonio
das
gravuras. Aproveitando todos os en- berto Saavedra. É um grosso tomo de
s,ei°s
para fazer a propaganda da telegra- 300 paginas, com explendida colaboração
'ia sem
fios, insere também artigos de literaria e artística. Voltaremos a esta
critica
geral, contos, novelas, poesia, etc. obra.
Nos n.os dc Fevereiro e Março publica
"
Uma da História Portuguesa» OUTRAS PUBLICAÇÕES
pagina
referida
aos últimos tempos, com grande
copia de informações e fotografias. Além de numerosos livros, a que no

próximo n.° de abril faremos referência,


"TERRA
_ PORTUGUESA. —Lisboa. recebemos:
N.°s 10, 11 e 12. Novembro e Dezembro A Tutoria — Lisboa—N.° 3, Setem-
de 1916, 1917. Os dois
e Janeiro de pri- bro 1916.
meiros n.0s constituíram um só da
precioso Boletim Universidade Livre de
volume
dedicado ao Natal, primorosa- Lisboa —N.os 33 a 36—1916.
ttente disposto e com boa colaboração. A Esperança — Viseu —Revista aca-
No n.° 12, entre outros, sobresaem os N.° 1, Janeiro 1917.
demica.
de D. Sebastião Pessanha, Virgi- Heliopolis — Recife—N.° 28 —Ja-
^Jtigos
»io Correia
e Severo Portela. neiro 1917.

"ESTVDIO,, Pelos Animais — Relatorio da Direc-


— Barcelona. N.°s 48, 49
e ção da Sociedade Protectora dos animais,
50. Dezembro de 1916, Janeiro e Fe-
referido a 1916.
vereiro
de 1917. Continua sendo esta uma Prospecto da Casa-Escola Portuguesa
das melhores revistasque em Espanha — Porto.
se
publicam, estampando valiosissimos
estudos,
como Locke, de S. Alexander, ULTIMAS EDIÇÕES
e Como "RENASCENÇA
afronta Inglaterra la lucha PORTUGUESA,,
DA
actual,
de Cubillo, belas poesias de Ma-
ragall,
H. Ibsen e R. Browning, e exten- Etnografia Artística, com numerosas
sas secções de En torno a la guerra, ilustrações — por Virgílio Correia.
"evista
de Revistas e Bibliografia. Fialho dAlmeida, com um desenho
de Antonio Carneiro e tres fotografias —
"LA
ACTUAL1DAD FINANCIERA„ pelo Visconde de Vila-Moura.
~~-Madrid.
N.0s 741 a 750. Em cada n.° 1817 —A de
Conspiração Gomes
de 16
paginas grandes, esta valiosa re- Freire — Com 12 gravuras
— 3.° volume
v'sta de informação dá um balanço sema- da Biblioteca Histórica — de Raul Bran-
nal das finanças internacionais e
publica dão.
"ÁGUIA,,
A DIRECÇÃO DA

Amarante, 5 de Janeiro, 917.

Ao Ilustre Presidente da Comissão Exe-

cutiva ou á pessoa que mais idônea fôr:

Venho declarar a V. deixo, a d'esta data, de


que partir

ser o director literário da Águia, orgão da Renascença Porta-

não todavia, da honra de continuar a ser


guésa, prescindindo,

socio da referida sociedade.

De V., com a maior consideração, confrade muito agra-

decido

Teixeira de Pascoaes

A Águia agradece ao ilustre Poeta a honra

de ter sido o seu director, dando-lhe desde o

inicio o prestigio do seu nome e o


glorioso

amor do seu lúcido entusiasmo.

O n.° 64 sai em Abril

A Águia, 61, 62, 63 (Janeiro, Fevereiro e Março, 1917).


literatura

OS NOVOS TEMPOS E A SUA

LITERATURA

TABU A dos valores sociais que até agora se regiam


por
as nações mais avançadas vai certamente sofrer pro-
fundas alterações sob a influencia da actual,
guerra
os alemães desencadearanj sobre o mundo
que para
o dominar. Todos mais ou menos sentiam ha anos aproximar-se o

grande e também mais ou menos ele era ine-


perigo, pensaram que
vitavel. Era de tempo. Parece a Inglaterra, e só
questão porém que
ela, divergiu desse modo de vêr a enormidade da violência
perante
que o facto representa. Os inglezes, tanto não acreditavam na possi-
bilidade de a Alemanha se lançar numa semelhante aventura, que
se não haviam, forma alguma, ela. Assegurado
por preparado para
o dominio dos mares sua marinha de não supozeram
pela guerra,
necessário assegurar também a defesa duma invasão terra,
por quer
do seu dos aliados; e foram até tardios e lentos nas deci-
paiz, quer
sões a tomar realizar essa defesa. se decidiram
para Quando porém
a realizá-la, esse esforço foi tão como fôra a violen-
grande grande
cia o
que provocou.
Esse mesmo esforço veio entretanto demonstrar-lhe, que o seu
modo de ser social — bom até agora, sobretudo tempos de
para paz
— carece aqui em
de ser alterado em vista das condições que de
diante regularão a vida das nações. Elas teem de se organizar duma
forma diversa da seguida até ao E tudo leva a crêr o
presente. que
novo modelo a seguir nessa organização ha de assentar fundamen-

talmente nas formas a a Alemanha chegou, traduzirem, me-


que por
lhor do outras, o espirito consciente de ordem, ligações
que quaisquer
civicas, unidade nacional e aproveitamento scientifico dos recursos
de um dispõe. Esses recursos teem de ser arrumados di-
que paiz
versamente de como até aqui se encontravam; e toda a dispersão
ou inconsciencia converte-se num verdadeiro crime de Estado.

A França começou a despertar um ano antes da Data


guerra.
efectivamente dessa época o longo estudo um escritor inglez,
que
M. Georges Chatterton-Hill, sob o sugestivo titulo de O acordar da

França, na Nineteenth Century, e no descrevia a serie


publicou qual
de sintomas ele observados naquele Afirma
por paiz ('). porém que
a sagacidade de alguns ter surpreendido um
poderia porventura já

(') Encontra-se uma extensa analise desse estudo na Revue Hebdomadaire,


n-°s 35, 36 e 38 de 1913. É esta conheço as idéias do escritor inglez.
por que
118 A ÁGUIA

outro desses sintomas depois do ano de 1905, isto é logo


que pouco
após a afronta inflingida por Guilherme II á política externa do mi-

nisterio de Combes. Sucedia-lhe mais tarde o teatral de Aga-


golpe
dir a os francezes respondiam forma que surpreen-
('), que por
deu, não só a eles mesmos, como até aos alemães, pois que
proprios
os levava a reconhecer a França havia deixado de ter medo dê-
que
les. Já não era um dogma corrente no mundo inteiro o da irre-
pois
mediavel decadencia das nações latinas e, em especial, da França;

e o inglez explica essa como que renascença pelo advento


publicista
duma nova de francezes, pela mocidade saida das suas uni-
geração
versidades e escolas, dessa elite é a verdadeira repre-
grandes que
sentante das tendencias ideologicas da nação inteira, das suas espe-

ranças, aspirações e maneira de elite se converteu no


pensar; que
Cadinho onde inegavelmente operam as forças invisiveis dentro
que,
duns cincoenfanos, hã-o-de o futuro modo de ser mental desse
gerar

povo (sic).
Para fazer compreender o novo espirito da franceza,
juventude
em revista as varias fases da sua educação: o romantismo
passa
todos os vicios e degenerescencias, e cujo mestre su-
que glorificava
foi Victor Hugo; a corrente e scientifica formulada
premo positiva
Comte, Taine, Renan e Berthelot, se condensa no intele-
por que
dualismo triunfante sobre a acção ele desprezada; e finalmente
por
o falso misticismo de Melchior de Vogüé, Rod e Desjardins, forte-

mente influenciado literaturas da Noruega e da Rússia,


pelas que
degenerava no anarquismo de muitos. Na Sorbonne e na Ecole Nor-

male chegava a afirmar-se que quem recordasse á França o seu pas-


sado militar cometeria um verdadeiro crime: «um homem, de
que
facto o seja, dizia-se ali, não deve recusar-se a admitir como possi-
vel a ruina da sua patria».
Os francezes novos aparecem-nos, animados dum espi-
porém,
rito diametralmente oposto ao das duas formas de civilisação
prece-
dentes: um lado a do e intelectualismo, outro a
por positivismo por
do pessimismo, scepticismo e diletantismo. A moderna é
geração
francamente optimista; repele todos esses estádios anteriores, reco-

nhece a necessidade da ordem, da disciplina e da acção preponde-


rante, e combate a anarquia sob todos os seus.aspectos, morais, po-
liticos, intelectuais ou economicos. Revela-se, isso mesmo, muito
por
acessível ás crenças religiosas, e de facto é religiosa e patriótica;
inspiram-na as obras filosoficas e literarias de Ribot,
principalmente
Bergson, Bourget, Barrés, Henry Bordeaux e Romain Rolland, a dos

irmãos Marguerittes, de P. Claudel, Ch. Péguy e Francis James.

Com este movimento coincide um regresso aos clássicos, aos

francezes do Renascimento, e sobretudo aos literatos e


pensadores
filosofos do grande século francez excelencia, o século, de
por
Luiz xiv, movimento sua vez, se conjuga com o despertar
que, por

(•) para notar que nenhuma referencia se faz aí aos armazéns francezes de
É
Alexandria bombardeados pelos inglezes, nem tão pouco á saida de Fachoda
por es-
tes mesmos imposta ao hoje general Marchand. Eu
pelo menos não a vi.
A ÁGUIA 119

duma consciência e duma forma de orgulho nacional durante muito


tempo desaparecidos do solo da França. E Mr. Chatterton-Hill con-
clue afirmando ha dez anos, apenas se contavam ca-
que, quatro
tolicos entre os alunos da Ecole normale supéríeure, ao
praticantes
passo hoje vamos ali encontrar mais de quarenta; que esta re-
que
nascença católica não é menos intensa nos liceus de Paris;
grandes
e além disso, muitos rapazes não são crentes repudiam o
que, que
anticlericalismo das os respeitam a Egreja
gerações que precederam,
e declaram-se a defendê-la. Porque reconhecem os imensos
prontos
serviços a Egrêja católica á sua e ainda hoje
que prestou patria, pode

prestar á expansão franceza, principalmente em todos os campos


onde ela em tempos se havia afirmado largamente.
passados

As afirmações do inglez tomam, no actual momento,


publicista
o caracter duma inteiramente se realisou. Com efeito, o
profecia que
exercito francez, saira robustecido da luta motivada
que parlamentar

pelo Serviço de tres anos, detinha victoriosamente o embate da in-

vasão fazia-a retrogradar muito longe da capital


germanica, para
ameaçada, e impunha-se forma mereceu os elogios e o res-
por que
peito dos seus inimigos hereditários. Todos os dias se sur-
proprios
preendiam, em toda a extensão do territorio da França, sintomas

duma revivescencia inegável, dum como regresso ás antigas vir-


que
tudes locais. A alma da surgia animada dum espirito em
patria que
ela aos
própria não acreditara e, primeiros momentos de terror,
que
sobretudo abrangeu as classes abastadas, sucedia uma absoluta con-
fiança na victoria.

Entretanto, á maneira as operações em campanha se iam


que
prolongando, mezes, essa intensa manifestação dum novo
passados
e superior estado dos espíritos ia alterações em-
passando por que
panavam o brilho e dos primeiros tempos. E assim é que um
pureza
oficial do exercito francez, em Abril de 1916, nos vinha falar
proprio
das Ilusões a levar uma confiança cega na
perigosas que poderia
crença dum tam' e luminoso estado das almas, menos,
perfeito pelo
dos soldados francezes. O capitão G. B., num artigo de La Revue ('),
refere-se cruamente ás falsidades acumuladas, certa literatura, em
por
redor da Lenda do Poilu, o tipo do soldado francez da actual
guerra
que veio substituir õ das anteriores e a Lenda do Boche, ou
guerras,
seja o soldado alemão, fantasiado e deturpado nos seus modos de ser.

No soldado francez reconhece francamente um nu-


grande
niero de morais sobremaneira o enobrecem e
qualidades que que
geram a esperança dum futuro melhor: o espirito de iniciativa, a se-
renidade a o habito das de
diante do perigo, paciência, privações
toda a em compensação, a também
natureza. Mas afirma que, guerra
fez nascer de defeitos; e cita, entre outros,
nêle um certo numero
urn inegável recrudescimento de egoismo e de indiferença, o desapa-
recer inales alheios, uma depressão sen-
gradual da compaixão pelos
tirnental costumes, factos o levam a
revelada na licença dos que

(') Illusions dangereuses, na Revue de 1 —15 de Abril de 1916, n.°* 7—8,


120 A ÁGUIA

afirmar que A é uma má escola de moral e ela tornou


guerra que
fatalistas todos os soldados.

Do soldado alemão diz-nos ele é muitas vezes valoroso, e


que

que reúne o espirito da decisão e da coragem ao bom senso e, por


vezes, á A virulenta e desregrada dos
generosidade. germanofobia

jornais e outras publicações francezas enche-o, outro lado, da


por
mais vibrante indignação. Censura os só admitem a musica de
que
Beethoven por este ser descendente de flamengos, os apenas to-
que
leram Bach e acham antipatriotico ouvir as Sonatas de Schumann e
as melodias de Schubert; os hoje não reconhecem o menor
que já
talento em Wagner, e os artistas francezes o banir dos
que querem
seus espectaculos; os que agora odeiam os filosofos alemães e, a
seu respeito, lançam toda a casta de insanias aos ventos da
quatro
publicidade. E nota os seus compatriotas desconhecem ainda
que
hoje a Alemanha; só a apreciam seu modo de
que pelo proceder
desde Agosto de 1914.

O nobre oficial conclue o seu artigo, ele considera como


que
constituindo um acto de fé, dizer o futuro da França será,
por que
em grande parte, o que os francezes seja; eles de-
quizerem que que
vem afastar das suas leituras , uma enorme de
quantidade publica-
ções lamentavelmente doentias, empregam teatrais
que processos
melhor se insinuarem nos espíritos, os só conseguem
para quais per-
turbar-lhes a clara visão dos factos e a do seu destino;
proprio e que
urge deixar de sempre blasonar das suas altas tam-
qualidades para
bem reconhecerem as dos inimigos da França.

No entanto, esse belo é victima duma outra exploração,


paiz
talvez mais grave o seu futuro, o futuro da sua
para para população,
e para a justa apreciação dos seus homens de valor: a do mais uti-
litarista dos parlamentos, o ha anos os construtores na-
que protegia
vais para que, graças a um verdadeiro monopolio, se enriquecessem
á custa do tesouro nacional, e hoje agüenta os distiladores de
que
álcool, tornando impossível o desaparecimento, ou até a diminuição,
duma doença se na raça e uma formidanda
que perpetua gera per-
centagem de criminosos e de degenerados de todas as especies; o
mesmo que, impondo-se numero e tendo o horror das respon-
pelo
sabilidades, pratica ao mesmo tempo o culto da incompetência. Es-
tas formulas de Faguet explicam bem a existencia dos parlementeux,
dos da os vivem a nas aguas
profissionais política, quais pescar turvas

que essa triste literatura, acima referida, de continuo agita com fra-
ses ôcas, teatrais e aparentemente inspiradas em ambições
genero-
sas, superiores e inacessíveis ás seduções dos inimigos da França.
Temos ainda de reflectir num sintoma de caracter
pessimista
que, ha poucos mezes, se tem novamente revelado na literatura, no
Conto, e nos faz descrer dessa regeneração das almas,
profunda tam
apregoada e elogiada. O tema do adultério era o favorito
prato do

publico francez; e os diários, não todos, é forçoso afirmá-lo,


jornais
serviam-lh'o copiosa e freqüentemente, como uma necessidade so-
ciai, como tema forçado, e tão forçado nessa forma literaria como
no livro e no teatro. Ora, durante dois anos, desaparecera das colu-
A ÁGUIA 121

nas o manjar ignóbil reaparecer ha tres ou


jornalísticas para quatro
mezes. ás impurezas dos últimos anos, ou ás
Regressar-se-ia pois
virtudes
primitivas...?
O futuro o dirá.

A Inglaterra também seriamente com uns


preocupa-se quan-
tos e a dá logar a Nesta
problemas questões que presente guerra.
exposição ao correr da sem de esgotar o assunto
pena, preocupações
expondo-o na sua forma analítica e critica, eu não viso a fazer obra

de erudição; tanto mais a literatura, na França, Ingla-


quanto que
terra e Alemanha trata destes assuntos, é hoje muito vasta e va-

liosa. Devo acentuar dous muito bem frisou ha dias
porem pontos que
o snr. Dr. Silva Teles, do corpo docente universitário de Lisboa, na

bela conferencia inaugural duma serie realisar a nossa mo-


que pretende
cidade acadêmica: a remodelação das sociedades apresenta-se a to-

dos com o caracter iniludivel duma operação necessariamente


que
se vai realisar num futuro e desde é fora de duvida que
proximo; já
a mulher — depois de substituir o homem numa infinidade de mes-
— numa
teres a imprópria—, e o operário que,
para que julgavam
onde a técnica é o e mais seguro factor de êxito
guerra principal
final, tem sabido cumprir integralmente os mais devêres
pesados pro-
fissionais e civicos—, é inegável, digo, uma e outro gosarão nas
que
futuras sociedades de situações e direitos até agora lhes não fo-
que
ram reconhecidos.

Hoje, até o ilustre acrescentar que estas suas


já professor podia
referidas a factos em Inglaterra, se
palavras, principalmente passados
achavam em confirmadas na visto como a mulher in-
parte pratica,

gleza acaba de alcançar o direito ao voto.

A estes casos haverá ainda acrescentar o que procede da


que
actual formação do exercito britânico, oposta em absoluto á das epo-

cas O clássico voluntariado desaparecerá desse exercito


passadas.
lhe suceder o serviço obrigatorio; as de oficial não se-
para patentes
rão mais compradas como antigamente eram, mas sim adquiridas

meio de estudos técnicos; as varias classes sociais mis-


por pesados
turar-se-hão nos regimentos; e, como imediata consequencia social,

o desaparecerá da vida civil ingleza, alte-


gentleman profundamente
rada nas suas bases organicas. Ora é incontestável a Ingla-
que
terra, bem como o Estados Unidos, não continuar a viver
poderá
sem exercito de terra; o a nossa aliada agora corre, e de
perigo que
a salvaram a nobreza dos belgas e a valentia inteligente dos
que
francezes, esse aumentará no futuro, se ela não tro-
perigo preparar

na metropole, e também nas suas colonias, se opor a


pas quiçá para
uma invasão teutonica muito mais formidanda e violenta do que a

de hoje ter sido. Não é sem fundamento muitos


poderia pois que
inglezes receiam as conseqüências sociais do novo aspecto da guerra
dos e a ele trará aos seus hábitos seculares.
povos, perturbação que
As varias classes em se acha dividida a sociedade britanica, se
que
duma igualdade de direitos e duma liberdade não atingidas
gosam

outras nações, é certo também forma alguma se mis-


pelas que por
122 A ÁGUIA

turam nas suas relações sociais, vivendo cada no seu meio


qual pro-
e, assim dizer, fechado ás outras. Todo o inglez vive sobre
prio por
si, na sua casa, como muito bem e e também nenhum é
quer pensa,
obrigado a sofrer imposições de hábitos e costumes que pertençam
a uma classe diferente da sua!

E nunca tanto reconheci a veracidade desta afirmação como,


ha quasi trinfanos, numa viagem de estudo em serviço do Es-
que,
tado, tive de fazer ao norte de Inglaterra. Estava numa dos
povoação
arredores de Newcastle-on-Tyne, onde se construía uma maquina
que
nos era destinada e eu devia receber. Ás horas do almoço, como
que
fosse ainda desconhecido do da fabrica, tive de exercer os
pessoal
meus direitos de absoluta independencia indo almoçar a uma taber-
noria das na encontrei a loja de entrada cheia
proximidades, qual
de operários. Nenhum atentou em mim. Mas, eu me aproxi-
quando
mei do balcão de comer e de beber, á semelhança do
para pedir que
sucede nos bars elegantes, veio a dona da casa com muita de-
que,
licadeza e voz sumida, me indicou um outro compartimento conti-

guo á loja, mas dele separado uma vidrada,


por porta guamecidã
interiormente duma cortina de cassa branca. Entrei e encontrei-me
numa sala costumes britânicos, muito natural e
pequena que, pelos
logicamente, era destinada aos Alcatifa no chão, canapé
gentlemen.
e cadeiras de mogno com assentos de meza coberta dum
palhinha,
tapete, panos brancos arrendados sobre todos os moveis. E, confor-
tavelmente sentado, comer—em cima duma toalha de linlio
pude
adamascado - um
excelente carneiro com batatas, naquela
prato que
terra não é consagrado ás lutas eleitorais, e beber uma deliciosa cer-
veja loura, fraquissima e levemente amarga, une bière,
petite em co-

pos lisos e esguios de fino cristal. Tudo servido com as melhores


maneiras e atenções delicadas.

Achei bem. Mas melhor, se é me sucedeu ao


possível, cair da
tarde, recolhia á cidade e ia tomar um trem
quando para que en-
trava na ás horas da tabela, facto vulgar em Inglaterra.
gare pouco
Porque se aproximou de mim um empregado muito
que, correcta-
mente, me disse não ser mim aquele comboio. Efectivamente,
para
quando se abriram as das carruagens, carruagens de 3.a
portas classe,
bem entendido, aquelas em viajam todos os inglezes,
que e que eu
olhei lá para dentro, só vi operários sujos, sentados em bancadas
de nuvens de fumo se erguiam dos seus cachimbos
pau, que e os
envolviam completamente, e o chão de madeira tapetado de escar-
ros, lama, cinza de tabaco e terra das oficinas. Entraram mais obrei-
ros, fecharam-se as e o trem abalou. Passados
portinholas minutos,
chegava outro trem os Os trabalhadores
para gentlemen. tiveram dê

partir primeiro, porque certamente eles the time is monney


para
muito mais do as abastadas. Mas
que para gentes agora, no novo
comboio, as mesmas carruagens de 3.a classe eram alcatifadas nos
assentos e encostos, e tinham tapete no chão. Suam cuiqae, ou seja
— á vontade do freguez.

Fiquei desde então convencido o inglez


que não admite a

promiscuidade das classes. Lembro-me até os seus descendentes


que
A ÁGUIA 123

americanos, nos caminhos de ferro dos Estados


grandes Unidos, teem
carruagens de todas as classes carruagens
para brancos, e de todas
as classes Conta-me duma
para pretos. um amigo que, vez, num
trem tomara em Filadélfia, carruagem
que entrou para uma onde
encontrou alguns facto o não impressionou a ele
pretos, que que
era Veio um empregado
portuguez. porém e fê-lo passar para uma
outra carruagem da mesma classe
que era destinada a passageiros
sem côr. O americano explica duma maneira interessante as
que
duas raças se não cruzam evitar-sé a do mulato,
para producção por
ser muito atravessado e incomodo. Ele não tolera a menor promis-
cuidade de raças; e a sua explicação até
parece poder aplicar-se ao
cruzamento das classes, não raro
porque se encontra o bastardo em

que os temperamentos dos não conseguiram fundir-se


progenitores
bem, e conserva os caracteres fisicos e
que patentes morais duma
inegável duplicidade de origem. Os inglezes devem
pois preocupar-se
a valer com os resultados da cohabitação e contacto das diferentes
classes da sua sociedade, corno trazer comsigo o desapgre-
podendo
cimento daqueles hábitos superiores, de característica elegancia, que
os distingue dos outros habitantes do globo.

A Alemanha uma educação sistematica e intensiva,


que, por
pretendeu realisar o seu sonho de dominante, vai
pangermanismo
já hoje atravessando um incipiente de luta mental intestina
período
que sobremaneira lhe aquela unidade de
prejudicará pensamento
expressa 93 intelectuais das suas
pelos universidades. Já ha quem lá
condene o ideal e conquistador construído
publicamente guerreiro
em anos dos mais e variados a
quarenta profundos estudos, sua for-
midavel sciencia da Guerra, e a elevada ás alturas
perfídia de nobre
virtude nacional.

Num artigo datado de Genebra, a 22 de Abril de 1916, e publi-


cado sob o titulo de Espectros, na Atlantida, n.° 11, Ano I, Antonio
Sérgio mostrou com documentos indiscutíveis que uma nova gera-
Ção de intelectuais alemães, ao fascinada dos
principio pela grandeza
planos de conquista e uma lenta, aliás muito hábil-
por propaganda
mente organisada, está hoje reconhecendo nitidamente a falsidade
desses ideais, o de criminoso ha em tudo &Sê
quanto isso. E diz:
bom, sê bom, a ternura é sabedoria, a doçura é razão». Um poeta
Que se alistara «A Paris, a Paris», um ano escre-
gritando: passado
via uma intitulada «Cordeiro
poesia o Cordeiro: de Deus, vi o teu
olhar dolorido... Traze-nos a paz e o repouso, depressa
guia-nos
ao céu do amor!» ao
Outro, que principio cantara também a guerra,
e também era combatente, nota pouco depois no manuscrito dos seus
versos bélicos: «Escrito na embriaguez das semanas. A
primeiras
embriaguez
passou, ficou a fôrça; retomaremos a de nós mes-
posse
n'os e amar-nos-hemos». distinto uma
O escritor traduz ainda serie
de cartas de oficiais alemães, forte
todos caracterisados uma cul-
por
tura mental, e que, dos avançados, condenam a
postos pavorosa
guerra e as suas conseqúencias, ambicionando com fervor o advento
duma era de sentimentos verdadeiramente humanos e doces.
124 A ÁGUIA

O Journal de Genève com frequencia artigos reve-


publica que
Iam flagrantemente a transformação vão as gentes-
por que passando
do tremendo império. A 28 de Setembro de 1916, num desses arti-

intitulado M. F. W. Fõrster e a Joven Alemanha, aparece ex-


gos
a idea de ali, como em alguma, se fazem
pressa que parte precisos
os homens, as morais vivem si mesmo e re-
personalidades que por
sistem ao meio envolvente com o fim de o que julgam
proclamar
ser a Verdade. M. Fõrster é um conhecido professor das universida-

des de influencia entre a mocidade aca-


germanicas que gosa grande
demica dos impérios centrais e desde 1913, sem esperar pelas
que,
lições da lutava com todo o seu contra o
guerra, poder positivismo
brutal da nova Alemanha e contra o cujos
pangermanismo, perigos
Em Março desse ano de 1913, ao despedir-se dos seus
presentira.
alunos de Viena, aconselhava-os a não fomentarem odios de raças,

a trabalharem pela conciliação dos elementos e slavos...


germânicos
E isto então levantou violentos na imprensa naciona-
já protestos
lista alemã. Após o começo da M. Fõrster na sua
guerra, proseguiu
campanha com uma coragem, uma tenacidade e indepen-
pacifista
dencia de espirito a ninguém deixar de home-
que pode prestar
nagem.

Este professor afirma que já antes da existia uma pro-


guerra
funda separação entre a nova aleman e os homens de mais
geração
de trinfanos; a mocidade intelectual se orientava num sentido
que
de reacção contra a bismarckiana e contra as ideas da escola
política
histórica de Treischke e esta deixara de exercer sobre essa
('), que
mocidade a menor influencia. E dir-se-ha a longe de in-
que guerra,
terromper uma tal corrente, a tem avigorado.

É para notar á oposição e ameaças esta


que, que propaganda
tem provocado entre os colegas de M. Fõrster, correspondem, da parte
de numero de estudantes, as manifestações da mais dedicada
grande
simpatia (2).

Sugestivo entre todos é um outro artigo, veio nesse


porém que
a 31 de outubro, também do ano relativo á mudança
jornal passado,
de opinião do espalhafatoso e Maximiliano
publicista panfletario
Harden, que tam notável se tornára seu exaltado amor á poli-
pelo

(') Encontra-se uma exposição e analise destas ideas na carta que M. Emile
Boutroux dirigiu ao director da Revue des deux Mondes, nos fins de 1914, publi-
cada primeiramente nessa revista, e tempos depois no n.° 27 das Pages d'Histoire,
1914-1915, edição da Librairie militaire Berger-Levrault, Paris e Nancy. O seu custo,
nesta ultima edição, é de 40 centimos.
Tendo freqüentado as universidades alemães pouco tempo antes da guerra de
70, o ilustre filosofo teve ocasião de conhecer as duas principais correntes de pen-
samento que então ali se ensinavam: a de Bluntschli
político que pretendia chegar
á unidade pela liberdade, e a imperialista e conquistadora, de Treischke, que procla-
mava a liberdade pela unidade. E viu que era esta ultima a que mais simpatias gran-

geava.
(2) O Século de 30 de Janeiro do corrente ano publica uma longa e inte-
ressante correspondência de Roma, qual se expõe as
na teorias de M. Fõrster, em
oposição á política militarista e absorvente dos alemães.
A ÁGUIA 125

tica de Guilherme II. Parece se está tornando antimilitarista, ou


que
pelo menos adversado do militarismo á Ha pouco escre-
prussiana.
vêra ele: «A Inglaterra, a França e a Rússia estão unidas nas suas

tendências democráticas, na sua vontade de diminuir os armamentos,

de crear uma legislação internacional baseada no direito da moral e

até na aos mais fracos.


protecção
«Alemães, continuava Harden, não os acuseis desde de hipo-

critas e de loucos. Fazei um esforço, um momento ao menos,
por

para vêrdes nessas tendencias uma confissão absolutamente sincera,

os sintomas duma nova aurora...


primeiros
«Principio das nacionalidades, democracia, soberania, garantia

para todos os ainda os mais da diminuição dos ar-


povos, pequenos,
mamentos, reino do direito em logar do reino da força, do direito

que ha de afastar sempre a fúria da guerra...» Tais são as con-


para
clusões a chega.
que
Na segunda desse artigo, o publicista alemão pede que
parte
a direcção militar da Alemanha tique subordinada á direcção poli-
tica; ele os inimigos do seu ter razão o
para paiz parecem quando

julgam tiranisado militarismo. Os feitos heroicos e as virtudes


pelo
guerreiras a seu ver, existir sem militarismo; mas o milita-
podem,
rismo é a toda e nação entrar em no
que permite qualquer guerra

primeiro momento. Ele favorece a e deve ser banido


portanto guerra
para sempre.

E o artigo do suisso fecha seguintes interessantes


jornal pelas
palavras: «Antes da Harden era um dos publicistas alemães
guerra
que mais combatiam imperialismo, chegando a declarar
pelo que
uma nação, desde cinco milhões de bons soldados, não
que possue
necessita de ter consideração seja fôr. No começo da tor-
por quem
menta foi ainda ele sonhou as maiores extravagancias acêrca da
que
futura da Alemanha, sonhos hoje desfeitos sempre.
grandeza para
Agora, Harden converte-se ao apostolado da democracia, dos trata-

dos internacionais, do desarmamento, sintoma dos tempos vão


que
correndo, e não dos menos significativos.»

Ao mesmo tempo, estes estudos críticos e analiti-


porém, que
cos vão aparecendo nos grandes paizes envolvidos pela tremenda
luta, -méramente
outras expressões de caracter artístico conseguem

Pôr em destaque os vários aspectos da transformação men-


parciais
tal Conto e da Carta, como
que se vai realisando, já na forma do já
vimos na Tais constituem isso mesmo
forma poética. paginas por
uma serie de valiosos documentos no futuro, serão vantajosa-
que,
niente aproveitados se definirem os estados de alma sucessivos
para
das directamente entraram na luta. Fazer dêles um
populações que
agrupamento constituirá a mim,
judiciosamente joeirado pois, quanto
obra meritoria e devéras sugestiva se deverá a esta revista. Mas
que
a sua realisação não pode de maneira alguma ser levada a cabo
por
um só; reclama a colaboração de muitos e, porisso, A Águia apela

para todos os seus colaboradores, lhe mandem tra-


pedindo-lhes que
duções dos documentos desta natureza eles seleccionar
que possam
126 A AGUIA

nas suas leituras diarias. Publicando-as á medida lhe forem


que
sendo enviadas, A Águia terá, ao cabo de alguns mezes, reunido um

conjunto de trabalhos cujo alto valor é inegável.


psicologico
Tudo leva a crêr que a arte num longo em
gerada periodo,

que as almas por estados de singular e vibrante acuidade,


passam
apresentará caracteres diferenciais muito acentuados com relação

á que procede dos tempos de A excepcional tensão dos espiri-


paz.
tos, nestes dolorosos momentos em sempre urge decidir e actuar,
que
deve imprimir-lhe um cunho que a tornará inconfundível. Tratan-

do-se porém duma que definirá estados evolutivos do


publicação
espirito humano, e sendo sobremaneira variadas as étapes eles
que
vão percorrendo no tempo e no espaço, cada uma dessas paginas
literarias deverá sempre trazer consigo a data e o local em apa-
que
receu. Só assim definir-se, duma forma viva e fecunda, o
poderá
modo de sentir e de de milhões de seres atravessam os
pensar que
horrores contemporâneos como que sob o dum an-
pêso pesadelo
torturante. E, iniciar a serie, nenhuma outra dessas
gustioso, para
me mais de feição do certo conto em o
paginas pareceu que que
Cadinho do artigo de Mr. Chatterton-Hill começa a exercer sua
|a
acção redentora, a refundir as almas.

Lisboa, Fevereiro de 1917.

—O «
I CADINHO

CARTAS DE OUTR'ORA

MADAME JEANNINE D'ESBARE AO DOUTOR MÉRIVAL

-les-Bains, 16 de Julho de 1914.

Meu caro doutor:

I alvez devesse dizer: meu caro confessor, o doutor co-


porisso que
nhece bem a minha vida; sabe dela menos tudo uma
pelo quanto
mulher razoavelmente contar ao mais bondoso dos confiden-
pode
tes, quer acerca do seu modo de ser fisico, o doutor tantas vezes
(que
observou como que surpreender o mistério da doença), rela-
para quer
tivamente á minha vida sentimental psiguica. Psíquica, digo

(') Le Creuset, de Michel Provins, em Le Journal de 25-10-1914.


A ÁGUIA 127

bem? Não é esse o termo o doutor emprega, com um


que leve e in-
dulgente desdem, sempre fala das nossas alambicadas neurastenias?
que
Parece-me estar a ouvi-lo apreciar a minha, na ultima conversa

que tivemos, dias antes de eu aqui. nem isso


partir para Que por
foi muito lisongeira a apreciação. «Minha senhora,
querida dizia-me
o doutor, com o ar apenas mal humorado do tirano todos
que de
continuo maçam cousa mais insignificante e acaba
pela que por nos
mandar para as aguas, a senhora tem uma doença se
que me
afigura incurável: a neurastenia da felicidade. Naturalmente estas

palavras surpreendem-na se a mais infeliz das mulheres


porque julga
e se diz cançada de viver, apesar de muito bem tratar da sua saúde.
Todos os dias me consulta a esse respeito. Não ha duvida, é a ver-
dadeira neurastenia da tem de tudo mais do
gente que que precisa,
e sem o menor esforço, satisfazer todos os desejos
pode, e caprichos.
Riquíssima, formosa, moça ainda, tendo um marido excelente
que,
quer a senhora creia não, vale mais do ele aparenta na sua
quer que
ociosidade, além disso um amante com elevada
possuindo cotação
na roda e do qual gosta a valer; tendo organisado
grande conforta-
velmente as suas virtudes—porque é de boa raça e de facto as tem

e os seus vicios, apesar da indulgência da
palavra grosseira que,
nossa civilisação, forçoso é aplicá-la á realidade;
gosando finalmente
dessa excelente saúde a sua obstinada imaginação
que teima em
desacreditar, de se Vá, vá refazer-se
que queixa? das fadigas do
luxo, calmar esses nervos exaltados, convencer-se de que está estra-
gada pela boa sorte e se por acaso, uma desgraça, das reais!...
que,
Mas não falemos disso ela ouvir-nos. E afinal a
que pode senhora
ri-se, não acredita no lhe digo! Lá no seu intimo
que está pensando
que com muito dinheiro se conjuram todos os não é assim?
perigos,
Pois seja como e boa viagem e
quizer de em
quando quando
envie-me os seus estados de alma!»

Foi enorme o abalo nesse dia me causaram as suas


que pala-
vras, caro amigo, o á estafa da viagem,
que, junto me fez chegar
aqui abatida. Ah! comboio!
profundamente que Oito horas de wagon-
salão! Embora viessemos em reservado, parecia que nunca acabava-
mos de chegar!... E cima de tudo isto uma hora
por de automovel.
A nossa limosina estava na estação á espera; mas, no fim de contas e
apesar dos excelentes tem,
pneumaticos que não é ainda a
perfeição.
Sempre aos solavancos. Levei oito dias a restabelecer-me. Hoje vou
melhor; as minhas virtudes e os meus vicios, como diz o meu terri-
vel amigo, começam a organisar-se. O conde de Nestor chegou dois
dias depois de nós, a um
graças pretexto que passou completamente
despercebido. O Jorge, decididamente, nunca suspeitará de nada; e
contudo ele inteligente!
é Singular ventura dos maridos! Também,
em troca, está insuportável, ainda muito mais do em
pessimista que
Paris;-resmunga
por tudo, pensa os negocios estão mal
que parados,
Que a finança se não mexe e o mundo inteiro atravessa uma
que
crise cuja saida muito
pode bem ser a O nós rimos!
guerra! que
A Ha tempo se fala
guerra! quanto dela! Como se chegados
ao nosso de civilisação e com uma sensibilidade tão afinada,
grau
128 A ÁGUIA

tão nervosa, tão humana como temos, isso fosse possível! Mas o

Jorge delicia-se evocando o tremendo fantasma, e é um nunca acabar

de disputas com o conde que lhe não toma a serio, nem os som-

brios nem a tal crise! Acha nunca as coisas estive-


prognosticos, que
ram tam bem! Em suma, diz ele, ha abundancia de dinheiro, todos

se divertem, e os povos pensam mais em se abraçar do em se


que
demolir uns aos outros. E tem razão em ser o optimista e
jovial
finorio é. Imagine que colocou toda a sua fortuna em valores
que
industriais alemães e cuida desta maneira estar ao abrigo do fisco

francez. Acredita também mais cedo ou mais tarde, se ha-de


que,
fazer uma aliança com os nossos vizinhos. Ora é a este
justamente
respeito que ele, por forma alguma, se intende com o meu ma-

rido!... Tornam-se ambos insuportáveis e mais vale eu lhe


que
mande noticias da nossa pequenina colonia; sempre são duma

maior e mais ale'gre actualidade. Mas agora noto teria muito


que
contar e me sinto cançada de escrever. Na próxima carta lhe
para já
direi tudo. Por hoje saberá somente que já cá estão os Montmeillans

com o seu —o côr de rosa! — Naturalmente recomeça-


grupo grupo
mos a deitar-nos depois das duas da madrugada. Os Giverdets tam-

bem chegaram com o competente acompanhamento: a dos


pequena
Fossettes e o seu querido Max. M.mo de Cêpes trouxe o seu profes-
sor de tango, e andamos a aprender com ele a dança do «Kangurú»,

ultima novidade australiana, ao que parece. É estúpido, mas


que
alguma coisa se ha-de fazer. Vai causar furor, o inverno,
quer? para
verá E dizendo-lhe a elegante M.me Cary
que produz sensação
com o seu famoso colar de pérolas de duzentos contos, — presente

do marido a reconquista do paraizo conjugai, o que ela não


para...
de contar a toda a — e M.me Develyne
se cança gente que anda

meia doida com a pontinha de íebre que a sua cadela sempre tem ao

cair da tarde, fica o meu amigo ao corrente das cousas mais impor-

tantes da nossa colonia.

Quanto a regime, é evidente não sigo o me aconse-


que que
lhou; mas também a menor infracção custa-me cara! Já não espero

voltar a ter saúde... E, apesar do que me recomendou, todos os dias

registo o que sinto.

Para isto como para o resto, meu caro confessor, não me ne-

a sua absolvição.
gue
Jeannine d'Esbare.

CARTAS DE AGORA

MADAME DE ESBARE AO DOUTOR MÉRIVAL

Outubro de 1914.

Meu caro doutor e amigo:

Ihscrevo-lhe intermedio de M. de Goverdet neste momento


por que
é o chauffeur e encarregado das provisões da nossa ambu-

lancia. Mande-lhe na carruagem tudo quanto nos dar:


pôr possa
*~^Sr **

^1 ^Hn

H
K ll
!|i : ?¦ ,| ][i
|^
A ÁGUIA 129

pensos, medicamentos, roupas; aqui ha feridos, doentes, desgraça-


dos! Tão longe de Paris e tão das avançadas, as cousas mais
perto
insignificantes têm nós muito valor! E ha tanto sofrimento
para e
tanta miséria a socorrer! Nesta infeliz vila de V... inteira-
quási
mente destruída alemães, nenhuma de nós, nenhum de nós
pelos
sabe lado se voltar, de tantas são as victimas! E com-
para que que
tudo, se o doutor visse a simplicidade de alma com trabalha-
que
mos! O maire — excelente socialista —e
o prior tomaram á sua conta
a direcção da ambulancia; e fazem milagres, de comum acordo,

pode crêr! Mas faltam-nos infermeiras! Poderia o meu amigo en-


viar-nos algumas? Somos apenas cinco; e, apesar de dormirmos o me-
nos e de darmos a cada doente minutos de atenção
possível poucos
quando de muitos, não chegamos todos. E deses-
precisariam para
peramo-nos; a cada momento entram criaturas herói-
porque pobres
cas e doridas silenciosamente volvem nós olhos enormes
que para
que dizem imenso! Mas não ousam cousa alguma;
pedir julgam-se
talvez indiscretos serem de mais. Olham-nos então apenas
por para
as mãos, as suaves mãos femininas vão as feri-
para que pensar-lhes
das, curar-lh'as um como se acariciassem.
pouco,
Escrevo-lhe á pressa, alta noite e na beira duma meza. Não lhe
tendo dado noticias minhas depois daquela estúpida carta de Julho
ultimo—como esse mez fica tanto trás e como envelheceu! —
já para
O doutor não compreenderá estou aqui, nem me fiz
porque porque
enfermeira. Vou dizer-lh'o em não ha tempo
poucas palavras, que
para mais.

Meu marido, que era antigo oficial de cavalaria, conseguiu


desde os dias da mobilisação retomar o seu Ferido
primeiros posto.
muito na Alsacia, á frente do esquadrão comandava,
gravemente que
foi transportado nos fins de Agosto esta vila, onde ainda esta-
para
remos muito tempo, ele e eu. Chegára-me a noticia
por por tele-

grama: Jorge, meu marido, ferido, moribundo! Ah! meu amigo,


como tudo o mais deixou então de existir mim. Foi como se
para
um furacão só me deixasse de liberto e o meu ver-
pé, purificado,
dadeiro sentir! Em minutos faço um —nada
poucos pacote de malas,

que de bem pouco se precisa—tomo o trem, um comboio


primeiro
militar vinte e seis horas até aqui. Não se dormir,
que gastou podia
nem comer, nem sequer sentar-se a éramos vinte, trinta
gente; por
compartimento, mas isso importava? São excelentes esses
que gran-
des rapazes, esses soldados tão cheios de coragem
que partem e
voltam tão cheios de fé, voltam!
quando
Perguntar-me-ha como cheguei; eu sei lá dizer-lh'o! Nem pen-
sei nisso... A fadiga, deixara-a nos wagons-salões nos trens de
e
luxo. Nesse tempo viajavamos sem destino, sem interesse!... Mas
agora, tinha-os violentos, irresistíveis: chegar até á creatura vi-
que
ctoriosamente me havia retomado a vida, o único amado
ser que
quem sabe se estaria a morrer! Morrer? não!... eu ia salvá-lo...
que
De carecia ele? De dinheiro? não, nestes casos o dinheiro
que já
não faz milagres... E te-lo-iamos nós ainda? até
Talvez estivessemos

pobres; porque fabrica e minas nada disso existe


que possuíamos,
130 A ÁGUIA

hoje. Pobres! muito embora. Maior é a dedicação não ha


quando
nada a e só temos carinhos para salvar o único bem
perder pre-
cioso nos resta: a vida dos sêres queridos. Sim, essa vida!
que que
supô-la a esvair-se no proprio instante em nos abeiramos
pavor que
do leito e só a por um respirar tenuissimo! Que eterni-
presentimos
dade eu yivi nesse instante! E quando Jorge, abrindo lentamente os

olhos vinham de tam longe, m'os no rosto e con-


que já pousou
seguiu vêr-me a final, não pode imaginar que luz os iluminou e

como esse único olhar, sem mais contacto, nos estreitou profunda-
mente a ambos! Que indizivel comoção ao reconhecermo-nos, ao

sentirmo-nos possuídos para sempre um outro! Porque ele sem-


pelo
me amou, já dantes me queria a um eu nunca
pre ponto que pude
suspeitar!

Uma noite dera-nos o medico a certeza de ele estava es-


que
capo e, tendo-me sentada ao da cama, Jorge, se sentia feliz
pé que
se sabia salvo, toma as minhas mãos entre as suas e diz-me
porque
docemente: «Tu mesma vês eu valho mais... do o outro!»
que que
Valer mais do que o outro? Quem, ele, com o seu grande caracter,

tam bom, tam simples e corajoso? Ele —


que, tendo sabido sempre

o passado
desvenda-se-me agora, — nada quiz dizer
porque porque
me amava, porque pressentia que um prodígio misterioso havia mais

tarde de me restituir a ele inteira mas, meu Deus, mais inteira do

nunca. Que triste e extranho remorso mim!... Ele é


que para que
não mais ouvir falar em tal; o esposo subira muito acima do
quiz já

perdão e arrastára-me consigo a tal altura que a minha falta varre-

ra-se-me dos olhos.

Ah! como eu o tratei, noites a velá-lo? Mas hei de o


quantas
salvar! E assim aprendo nele a tratar e a cuidar dos outros. Essa

será a única maneira de me redimir e de o recompensar, não acha ?

Lá diante, se Deus nos deixar refazer a nossa vida, trabalha-


para
remos, ajudar-nos-hemos mutuamente; e ajudaremos os outros! Por-

eu surpreendi o sentido da vida no amor! Amor! Como era fu-


que
til, como era nulo. o assim chamavamos, o nós vestíamos de
que que
nomes apaixonados! A verdade do coração ignorado noutras
paira
regiões muito mais elevadas!... Quanto aos heróis de romance...

Já lhe disse que o conde, ocultando o seu vigor fisico não sei sob

que expediente de reforma, se tinha escapulido os Pireneus e de


para
lá mais longe, e cada vez mais, até Espanha, onde certo ten-
para por
tará negociar os seus famosos titulos teutões, sem contudo o conse-

Como está longe essa miséria, como tudo isso se sumiu!...


guir?...
e da mesma maneira os mil nadas da nossa existencia de outrora!

Ontem queríamos tudo sem ter o menor desejo, e só sabíamos


gosar
arrepanhar; hoje começamos a saber dar, mas dando-nos a nós mes-

mos! Dar-se! Que esplendor e sinceridade nesta Neuraste-


palavra!
nia da felicidade, dizia então o doutor, referindo-se a nós, os abasta-

dos. Não! o dito não é exacto: a felicidade não si, dá!


guarda para
Pois não é assim? Estou certa esta é também a sua opinião e
que
agora é eu o compreendo, meu amigo!
que grande
E de saúde?,., me E isso vem a ser bem fei-
perguntará. que
A ÁGUIA
131

tas as contas? Parece-me ter um corpo á força de não sen-


que, quasi
ur necessidades, a sua
perdeu existencia real, mantendo-se de sem

se saber como: de facto só se vive e sofre corpo dos outros!...
pelo
E depois, saúde, A morte
para quê? envolve-nos todos os lados,
por
a todos os instantes e por tal forma nos habituamos a ela;
que já
ialamos-lhe, acalentamo-la!... Deixou de ser a visitante negra
que
aterra; hoje ela conduz á gloria e á luz; sabe-se o ha o
que para
lado de além!

Como vivemos agora, meu caro doutor, dos regimes,


privados
dos antigos e infantis tormentos e das nossas ridículas misérias!
Tudo isso foi de uma vez
para mim e todos os... do côr
para grupo
de rosa! Montmeillan morreu no Marne; Max está nas linhas avan-
çadas; M.me Cary vendeu na America o famoso colar
para sustentar
algumas casas de maternidade: urge velar mamans de ama-
pelas
nha!... M.me Dévelyné consagra-se ás creanças de hoje, hospitali-
sando um cento delas no seu solar do Anjou.
E todos!_ e todas! sem veleidades de heroísmo! Tinham isso
lá dentro de si, muito escondido, escondido até de mais, nas mole-
cuias da raça!... o grande incêndio inflamou tudo! Ainda se lembra,
doutor, duma frase sua sobre as virtudes ignoravamos?... E da-
que
quela outra uma vez me disse me
que porque queixava de mim, do
meu marido e não sei do «Haveria
que mais? das almas
que pegar
eguais á sua, lançá-las num cadinho e refundi-las!...»
Assim se fez!

E a França está saindo do cadinho.


própria

Sua irman

Jeannine d'Esbare.

(Tradução de A. Arroyo).
EXTASE

ÃO de criança afaga,
que

Curva de estréia tomba,


que

o teu olhar divaga,


Quando

Lembra o vôo duma


pomba.

Pomba, voando,
que geme

Onda desfeita alaga,


que

Rasto de estréia tombando,

Brilha depois se apaga...


que

Minh'alma, à luz desse olhar,

Cai em extase, flutua,

Segue-lhe as curvas no ar

E vai no rasto da tua.

Essa voz... Para compô-la

Falta-me a nota
precisa;

Nem mesmo a da rôla


queixa

Já a tarde agonisa.
quando

Talvez a doçura
juntando

Da voz da fonte em desmaio

Á da rôla na espessura,

Á tarde, no mês de Maio.


A ÁGUIA 133

Fôste criada nos montes?

Eram os teus
pastores pais?

Falas: e correm as fontes,

Geme a rôla dos


pinhais.

Raio de luz o Luar


que

Filtrou entre o arvoredo,


por

Teu corpo frágil a andar

Não vai em segredo.


poisa,

Vão ar os teus
pelo passos.

Será o teu corpo aéreo?

Alguém te leva nos braços ?

Ergue-te o vento ? Mistério!

Onde nasce a Aurora


passas

Debaixo dos suaves;


pés

O chão mais ermo se inflora,

Rompe a luz, cantam as aves.

Como é vais? te leva?!


que Quem

Pára. Não vás. Santo Deus!

Os meus na treva,
pés poisam

A luz acompanha os teus!


L'ESPOIR

orrent dans les bois


qui grondes
Á travers la sauge et l'yeuse

Pourquoi ce soir d'avril ta voix

Se fait berceuse?»

«Reflets de lune, ombre des ifs,

Que dites-vous à la colline?

C'est 1'aventure aux furtifs


pieds

Qui s'achemine?>

«Vent maraudeur, vent maraudeur,

Qui berces 1'arbre et la montagne,

Est-ce la peine ou le bonheur

Qui faccompagne?»

«Jet des fontaines d'alentour

Qui fais chanter la voix des contes,

Quel est ce rêve ou ce retour

Que tu racontes?»

«Pourquoi viens-tu dans ma maison

Jeunesse en robe d'étrangère?»

Mon coeur s'est ému sans raison

Comme naguère...

Mon coeur frémit d'un long regret...


«Petite barque à la derive

Qui vas-tu chercher en secret

Sur 1'autre rive?»

«Quel bien m'annoncez-vous tout bas


Humbles chemins, éternelle?
plaine
Est-ce le pas, est-ce le pas
De 1'infidèle?»

S
/!£'/£As
fa"- dt-

(Vicoratesse de Rougé)
FLORES ANTIGAS

IMITAÇÃO DE DIVERSOS

De Fray Luís de Liqn.

ossa cruel frialdade

e esse lindo colo erguido

estou eu certo que Cupido

sujeitará sem piedade.

Vivei esquiva, e sem querer;

a meu ver
que

servireis enfim o amor

da vossa dor
quando já

ninguém mais saber.


queira

a aurea trança, logo,


Quando

fôr de neve esparzida


e as duas luzes da vida

recolherem seu fogo;


a ruga desairosa
quando

na formosa

fronte, e rosto, se mostrar

e o tempo fugaz murchar

essa fresca e linda rosa:

vos virdes perdida


Quando

heis de perder-vos por querer,

sentireis que é padecer

o bem e não ser querida.


querer

Com magua direis, Senhora,

cada hora:

me désse, ó desventura,
jquem

ou agora a formosura

ou antes o amor de agora!

A mil almas agravadas

com vossa louca porfia

deixareis naquele dia


136 A ÁGUIA

alegres e bem vingadas.

E, por mil voando,


partes

publicando

vai o amor vosso tormento,

para aviso e escarmento

de foge do seu bando.


quem

Ai, Deus, Senhora bela,


por

vêde nem sempre dura


que

essa flor e
graciosa pura,

que não é
goza-la perde-la;

e pois não menos


prudente

e sapiente

sois que bela e desdenhosa,

olhai nenhuma cousa


que

foge a amor impunemente.

Se o amor os céus impele

com suave e eterna lei,

sereis vós íorte, dizei,

cá na terra contra ele?

Dá movimento e viveza

á beleza

o amor, e é doce vida;

e a sina mais subida

sem ele é triste pobreza.

iQue vale uma taça de ouro,

vestir de seda e brocado,

um teto rico e lavrado

ou os montões de um tesouro?

<iE o que vale se em seu peito


vos dá preito

o mundo todo, e adora,

se afinal dormis, Senhora,

em um só e frio leito?

O
A CASSANDRA

De Ronsard.

A/Ieu bem, vamos ver se a rosa

que esta manhã, tão formosa,

a sua veste mimosa

ao sol abriu,
purpurina

não já seu encanto,


perdeu

nem a do seu manto,


graça

nem a côr tão bela, quanto

a em teu rosto floriu.


que

Ai, vês tu como a coitada,

por terra jaz desfolhada,

em horas fanada
poucas

sua altiva formosura?

Como és cruel, natureza,

quem não será tua


prêsa,

se uma flor de tal beleza

um momento apenas dura!

Por isso escuta-me, querida:

emquanto na tua vida

vai perpassando, florida,

a foge,
primavera que

colhe, colhe a mocidade!

Como a esta flor, a idade

fenecerá sem
piedade

os encantos tens hoje.


que

TRADUÇÕES DE

^ L'
ARTE

Vfolt friUmlX
"" V^* ^?Q
|g£
~j OCSSC«l*S%iaS22JC^tfQOOC>C^
^

Fig. 1 — Datas em bGjos de talhas

AS TALHAS DE BORBA

ma das mais típicas e mais cheia de carater


povoações de
todo o Alentejo Central é, decerto, Borba, a das lindas
chaminés e dos mármores, a dos ferros traba-
preciosos
lhados com delicadeza e a do vinho saboroso e quente,
de afamada devoção em terras transtaganas.

Correr as suas ruas de vila antiga, desafogadamente adorme-


cida em inclinado, sem custodia ou dominação
plano pouco de cas-
telo roqueiro, é folhear deliciado um in-folio regional,
grosso onde
toda a vida local, limitada e se ergue e
pitoresca, palpita cheia de
força, de tranqüilidade e misteriosa. Cae-se dentro
graça dela em

pleno ambiente de etnografia e arte de outros tempos. Evoca-se


sem querer.

Quanto de mais e delicado se em chaminés,


gracioso produziu
por todo o Alentejo, está ali representado. Ao lado de Estremoz e de
Évora, Borba mantém bem alto a tradição artística de as saber erguer
como como açotças fechadas, como mirantes
pombaes, ou como
minaretes degenerados e miniaturaes.

Nas varandas, as de ferro e os acogulham


pinhas peitoris, se
recortam-se, arqueiarn-se segundo as regras de um
genero de traba-
lho se encontra disseminado entre Tejo e Odiaria,
que desde Elvas a
Portaiegre e de Aviz até Évora e Monte-mór. Trabalho do século
XVIII, cheio de leveza e de recortes, de delicadeza e de volutas,
muito diverso da sóbria firmeza de ferraria do século XVII.
Os mármores, mais ainda do em Estremoz, agüentam
que os
linteis lavrados, revestem os interiores, adornam os alisares, forram
e embelezam as capelas e os altares dos santuarios da vila. Ha nos
arredores uma variedade azul, cheia de veios,
que, profusamente com-
binada com o mármore alvissimo e vulgar, lavores de
produz subido
efeito scenografico. Andam na tradição os nomes dos canteiros
que
fizeram tal e tal retábulos, o chafariz da vila, a escadaria da Camara.
São nomes de famílias de marmoristas de ha séculos estabelecidas
na região. São os Velez Picão, com trabalhos na matriz e em Elvas,
A ÁGUIA 139

os Painhos, tantos outros de menor nomeada. Ainda hoje, a cada

passo, se nos deparam oficinas, talhadeiras cantando, lascas granu-


losas como assucar, esparrinhando dos blocos.

A cada também, envoltas na fresca das arca-


passo, penumbra
rias de tijolo, atravez as escancaradas, ferem-nos a retina os
portas
altos, bojudos, corpos das talhas onde o vinho da região repousa.

Que scena conheça o negro e atravancado


pitoresca para quem
armazém do norte, e caia de repente nestas adegas cheias de bona-

cheironas talhas de barro, tão facilmente adaptaveis á do


guarda
vinho, como do trigo ou do azeite!

Em regiões onde o castanho e o carvalho, matéria de


prima

e toneis, não abundam, o indígena substituiu desde ha séculos,


pipas
desde sempre, talvez, o seu emprego dos recipientes
pelo grandes
de barro, frescos e dispendiosos.
pouco

de 177S

Fig. 2—Assinatura de Manuel Morato, ascendente dos Moratos

que ainda hoje fabricam talhas em Campo Maior

Ao contrario, do seria de esperar, nem os oleiros


porém, que
de Estremoz, nem os da Borba no século XV a S.a do
própria (já
Soveral apareceu á filha de um oleiro da vila), se ocuparam em fa-

bricar estes recipientes enormes, os maiores se empregam em


que
toda a bacia mediterranica. Foi de longe, de Campo Maior, na
gente
fronteira, se dedicou a esse mister. Beja, Vidigueira e Serpa,
que
onde a. mesmo de olaria se ficam demasiado longe.
genero produz,
Correndo, tateando os bôjos, decifrando as inscrições,
grossos
ia surgindo, vista toda uma escola de oleiros.
formava-se á minha
Aqui, ali, as talhas apareciam assinadas com os nomes dos fabrican-
tes, com as A mais velha remontava a 1701.
datas da construção.
Mas dezenas de outras datas mais antigas não se encontra-
quantas
rão sob mazelas do barro
as de com que se tapam as
jorras pês
com uso secular?

Entre os nomes de fabricantes apareciam, repetidamente, tres

apelidos: Centeno Pereira. È um


Mourato ou Morato, e primeiro
Manoel Morato, acompanhado da data 1775. Depois aparecem um
Francisco filhos e netos
Morato e um João Morato, provavelmente
do Manuel, visto das assinaturas denuncia o século
que a letra já
140 A ÁGUIA

XIX. Uma das inscrições esclarece mesmo: João Morato, de Canpo

mor. Os Moratos trabalham ainda em Campo Maior.

O João Centeno é também do século XIX. O Pereira mais



antigo assina sempre em abreviatura—Pra, e mostra-se acompanhado

de duas datas, 1801 e 1821. Sobre o tarde, surge, assinando ex-


por
tenso, um João Pereira.

Correndo as adegas da região e as de Elvas, Vila Viçosa e Es-

tremoz, será fácil coordenar muito mais nomes e datas.

Dada a pobresa de informações escritas acerca das nossas ola-

rias ter-se-ha de recorrer exclusivamente á tradição


provinciaes, quasi
oral e a estes documentos inscritos no barro. Assim os oleiros
proprio
fabricantes de vasilhame miúdo de todo o Portugal se lembrassem de

assinar ou datar, de quando em as suas obras!


quando,

Ora se vê, nesta linda terra de Borba as talhas


portanto, que
não são, afinal, as cousas menos interessantes de examinar, se-
quer

jam as que chegam a ter dois metros e mais de altura, as


quer que
se denominam pela sua elegancia, as abebras, ainda os chama-
quer
dos embudes, recipientes esguios, com um metro e mais de alto, e

0,60 a 0,70 de largo, se assemelham estranhamente a anforas


que
romanas sem gargalo e sem azas.

E a arte, rústica arte decorativa acompanha as assinaturas


que
dos autores, não deixa também de interessar, apezar da sua sim-

plicidade.
Reduz-se a pouco, afinal. O sino-saimão, simples ou duplo,

ramos de flores e folhagem, estilisados ou com caracter naturalistico

acentuado, linhas ondeadas, aqui e ali uma cruz, cravada parece que
á e eis tudo. Os mesmos motivos, no fundo, decoram
goivada, que
o vasilhame miúdo das nossas olarias ruraes...

Mo-Utto

/TKOY'
ci nAo j
L

# B &
§ i j

% %
^ f f I
ÍNTRODUCÇÃO

li

nos cumpre intentar aqui a apologia das


fg^ÃO quali-

dades intellectuaes do tão mal apreciado filho e

successor de D. Manuel. Limitando-nos apenas

L=Ü2^ ao tem relação com o nosso assumpto, dire-


que
mos elle efficazmente o impulso dado seu
que proseguiu por

aos estudos musicaes; e confirmar o nosso asserto


pae para
bastaria lembrar a restauração da cadeira de Musica da univer-

sidade, esta foi reformada e transferida Coimbra


quando para
ein 1537. D. João III não deixava de ser mui inclinado
Que
ás artes, mostra-o o auctor do livro acima citado com o testi-

munho de Francisco de Monçon, no Primero libro de la ense-

nança de un após cujas transcreve,


príncipe, palavras, que
accrescenta o nosso apreciavel escriptor o seguinte: «A Musica,

tão familiar nos costumes da corte, não ser-lhe estra-


poderia
nha. Se não era um executante, era, menos, um dilettante.
pelo
Se a não havia de recrear-se com ella».
professava,
E o se não negar é durante o reinado
que pôde que
d'este monarcha se formaram em Portugal excellentes músicos,

admirados não só dentro do mas fóra d'elle, como foram


paiz,
João auctor de um Passionario da
Fernandes Formoso,

Semana —
Santa, impresso .em Lisboa no anno de 1543

D. Heliodoro Paiva, hábil contrapontista e organiste insi-


de

gne—Pedro do Porto, excellente cantor e alem de ou-


que,
trás motete Clamabat autem Jesus,
producções, deixou o

Que João de Barros, apreciador competente, classificou como

0 o P.e Manuel Cardoso, capellão


príncipe dos motetes—e

de D. Passionarium Capellcz
João III, e auctor do jaxta
Regice Lusitanice consuetudinem. A estes nomes devemos

ainda notáveis n'aquelle


os de dous virtuosi muito
juntar
tempo, «o famoso e
foram Peixoto da Pena mais perito
quaes
instrumentista
se conheceu no seu século» no dizer de
que
142 A ÁGUIA

Antonio de Sousa de Macedo, e André de Escobar, habilissi-

mo tocador de charamellinha ou oboé, no tocava com


qual

energia a composição mais difficil, segundo diz outro


graciosa

escriptor nosso
(').

A segunda metade do XVI século foi a Musica um


para

brilhante. Já nos referimos n'outro lugar á importante


periodo

reforma feita Palestrina na musica d'egreja. Ao lado d'esta


por
— musica dramatica,—cujo
surgio um novo a germen
genero

se encontra na cantata, n'este século muito aperfeiçoada, e


no oratorio, introdusido, dizem S. Filippe Nery, e


que, por

consistindo ao em umas Laudes cantadas na egreja


principio

com musica de João Animuccia, Mestre da Capella de S. Pe-

dro de Roma, vindo depois a converter-se n'uma representação

de factos moraes, ou da Historia Sagrada. Ao mesmo tempo

os instrumentos aperfeiçoavam-se, e as orchestras começavam

a ter uma verdadeira importancia. Viadana de Lodi inventava

o basso continuo; vulgarisava-se o uso das dissonâncias,


que

havia sido ensaiado Guilherme de Machault, no XIV


já por

século, e é o mais exprimir certas


que proprio para paixões.

Emfim até a musica iinitativa foi tentada com successo; Cie-

mente Joannequim compunha a Derrota dos Suissos em Ma-

rignam, em alem de empregar os termos militares da


que,

epocha, imitava o estrondo dos canhões, o toque das trombe-

tas e tambores, e o choque das armas.

A escola italiana tinha tomado desde então decididamente

a Entretanto os compositores hespanhoes e


primazia. portu-

não desconheciam os bons modelos da escola franceza,


guezes

e imitavam uma e outra escola, não ás cegas, mas


procurando

dar ás suas obras uma certa originalidade «haurindo, como

abelhas da harmonia, o n'essas escolas encontravam de


que

melhor, e formando um todo, era mais saudoso, mais


que

apropriado ao nosso caracter sentimental». É esta a interpre-

tação, mui dá Sousa Viterbo á seguinte


que judiciosamente

da Ropica Pnefma de João de Barros: «Em a theo-


passagem

ria da Musica, trata de numero comparado, tres


que passey

consonâncias simples: Diapassam, entra em


que proporçam

dupla: Diapente em sesquialtera: Diatessaram em sesquitercia

com todalas suas vozes e intervallos, tons e semitons, mayores

e menores, com faço obras e composturas mais excellentes


que

(') Vejam-se todos estes nomes adiante, no Diccionario.


A ÁGUIA 143

as de Reguem e Josquim: elles compoem somente


que por que
ao modo francez, e eu Francez, Italiano e Espanhol, he
que
mais saudoso»
(').

Com effeito foi aquelle sem duvida o brilhante


periodo
da Musica entre nós, não lançar-se-nos á conta de
podendo
vaidade nacional a affirmativa de levavamos vantagem aos
que
nossos visinhos hespanhoes. Este nosso asserto até
prova-se
com o numero de músicos chamados a
grande portuguezes
reger as Capellas das mais celebres cathedraes de Hespanha,

e até a Capella real de Madrid. O leitor, compulsar os


que
artigos do Diccionario, não deixará de notar com
presente
orgulho a crescida lista de e compositores,
grandes professores

tivemos nos fins do século XVI e todo o XVII.


que por quasi
João Soares Rebello, João Alvares Frovo, Antonio Marques

Lábio, Duarte Lobo, Manuel Rebello, etc. são outros tantos

astros de no firmamento da nossa arte, e


primeira grandeza

mostram nada têrmos invejar n'aquelles tempos aos


que que

paizes onde mais distinctamente se cultivava a sciencia da

harmonia.

Este brilhante estado foi sem duvida devido aos muitos

e bem dirigidos estabelecimentos de ensino musical, havia


que
no nosso A aula de Musica da universidade, restaurada,
paiz.
como dissemos, D. João III, teve seu re-
já por por primeiro

gente Matteus de Arando, mui considerado ao


professor, qual
se seguiram outros não menos hábeis. Nas cathedraes havia

escolas da mesma arte, e até em algumas egrejas matrizes. A

cathedral de Évora chegou a ter ao mesmo tempo dous Mes-

tres de Capella, um reger o côro, outro ensinar Mu-


para para
sica. Nos conventos cultivava-se e a Musica,
professava-se
sendo alguns d'elles como os de Thomar e de Santa Cruz de

Coimbra, uns uberrimos alfôbres de excellentes artistas. Até

nos mosteiros de freiras era a Musica ensinada, não só ás

religiosas, mas a muitíssimas seculares, especialmente de fami-

lias nobres, alli iam receber a sua educação.


que

cJ$
(Continua).

(') Artes e Artistas em Portugal, pag. 209-210.


SCIÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

O astrolábio náutico dos


portugueses

astrolábio náutico, usado marinheiros


pelos portugueses
na época dos descobrimentos, compunha-se de duas

a roda e a medeclina, segundo a nomenclatura


partes:
usada D. João de Castro no Roteiro de Lisboa a
por
'.
Goa A roda era um circulo, com desde 0 a
quadrantes graduados
90 munido de um anel suspensão do instrumento. A me-
graus, para
declina era uma alidade, movei em torno do centro do circulo, tendo

dos extremos duas furadas; as afiadas da me-


junto pínulas pontas
declina deslisavam sobre

o limbo graduado para


marcar a altura do sol ou

a sua distancia zenital,

segundo o zero da gra-


duação estava sobre o

diâmetro horizontal ou

sobre o diâmetro vertical

do astrolábio suspenso.

Os astrolábios de

latão de pequenas dimen-

sões suspendiam-se da

mão meio de uma


por
laçada, feita com cordão

enfiado no anel fixo na

superior do limbo.
parte
Se o instrumento era de

dimensões, como
grandes
o astrolábio de pau, de

tres palmos de diâmetro,

Vasco da Gama le-


que
vava comsigo, segundo

narra João de Barros, ou

como o de latão que Astrolábio náutico de latão existente no Observatório


astronômico da Universidade de Coimbra
existe no Observatório

da Universi- Diâmetro: 0m,5


astronômico

dade de Coimbra, com

meio metro de diâmetro, então suspendiam-no de tres armados


paus
á maneira de cábrea. O observador, com o astrolábio suspenso diante

de si, orientava o limbo da roda no vertical do sol e movia a


plano
medeclina em torno do centro até a sombra da superior
que pínula

1 Roteiro de Lisboa a Goa D. João de Castro, anotado João de An-


por por
drade Corvo, Lisboa, 1882, pag. 365.
A ÁGUIA 145

viesse cahir sobre a baixa, de modo um raio de luz solar se


pínula que
enfiasse orifícios das duas Então a medeclina estava na
pelos pínulas.
direcção do sol e a leitura do limbo dava a sua altura sobre o hori-
zonte nesse instante, se o zero da estava no extremo do
graduação
diâmetro horizontal. Nos astrolábios acabou colo-
portugueses por
car-se o zero no extremo do diâmetro vertical, e a leitura do instru-

mento dava imediatamente a distância zenital do sol, sem ser neces-


sario tomar o complemento da altura 90
para graus.
Mas o que se necessitava era a distancia zenital do sol ao meio

dia verdadeiro, e isso obtem-se muito simplesmente com o astrolá-

bio, sem necessidade de relojio. O observador, tendo o instrumento


suspenso diante de si um antes da do sol me-
pouco passagem pelo
ridiano, e conservando sempre um raio de luz solar enfiado pelos
buracos das vai vendo a extremidade superior da medeclina
pínulas,
subir constantemente até se conserva estacionaria, baixar
que para
em seguida o sol desce do outro lado do meridiano. A
quando já
maior altura do sol, ou a menor distancia zenital, assim lida no

limbo, corresponde á meridiano. Ê a esta operação


passagem pelo

que os nossos marinheiros chamavam pesar o sol. Assim o astrolábio

dá a distancia zenital do sol ao meio dia verdadeiro sem necessidade

de relojio, o os marinheiros teimavam em não comprehender,


que
como resulta da curiosa scena narrada D. João de Castro no
por
Roteiro de Lisboa a Goa, 181 a 184, cujo comentador, Andrade
pags.
Corvo, ainda como êles, fala na dificuldade de deter-
pensava pois
minar a máxima altura do sol, dificuldade de ter a hora ver-
pela
1
da de ira!

Tendo-se a distância do sol ao zenite de um logar no momento

da culminação no meridiano e sabendo-se, uma tabella de decli-


por
nações, a distância do sol ao equador nesse momento, é claro que,
combinando soma ou diferença esses dois ângulos, se obterá a
por
distância do zenite ao equador e a latitude do
portanto geográfica
logar. O sol estar ao norte ou ao sul do equador; a declinação
pode
é boreal desde o equinocio da até ao do outono, e austral
primavera
no resto do ano. O sol estar ao norte ou ao sul do zenite do
pode
logar, o se reconhecerá observação das sombras ao meio
que pela
dia, segundo correrem ao sul ou ao norte. O conjuncto de regras

aplicáveis nos diferentes casos constituía o Regimento da altura do

polo; como se sabe a altura do é egual á latitude do logar. O


polo
Regimento resumir-se em duas regras. Se sol e sombras estão
pode
a um mesmo lado ou sul), a latitude é a soma dos dois ân-
(norte
gulos. Se sol e sombras estão lados diferentes, obtem-se a lati-
para
tude diferença entre a distância zenital e a declinação solar,
pela
subtraindo o menor ângulo do maior: se maior é o ângulo da

declinação, a latitude terá o mesmo sentido, boreal ou austral, da

declinação; se a distância zenital é o maior ângulo, a latitude terá o

mesmo sentido onde correm as sombras.


para

1 Veja-se o nosso estudo Astronomia dos Lusíadas, Coimbra, 1915, pag. 129,
em cujo capitulo VIII nos ocupamos do astrolábio.

10
146 A ÁGUIA

As duas fotogravuras mostram um modelo do astrolábio


juntas
náutico de madeira executado nas oficinas do Instituto Superior Té-

cnico de Lisboa iniciativa, altamente louvável, do ilustre Dire-


por
ctor deste estabelecimento, o Sr. Dr. Alfredo Bensaude. O astrolábio

foi construído mestre Francisco Barbudo, chefe da Oficina de


pelo
Carpintaria, sendo a do limbo feita Encarregado da
graduação pelo

Oficina dos Instrumentos de Snr. Filipe J. M. Gonçalves.


precisão,
Como o instrumento, suas dimensões, não é dos se sus-
pelas que

da mão observar, acompanha-o uma cabrilha d'onde


pendem para
se as observações.
pendura para
O diâmetro, a do se contam as distâncias zenitais,
partir qual
deve ficar vertical no instrumento suspenso. Por isso na construção

se afinou o astrolábio com um fio do desbastando-o de um


prumo,

ou outro lado até se conseguir a exacta verticalidade daquele diâmetro.

A segunda das fotogravuras mostra o Snr. Dr. Alfredo Ben-

saúde surprehendido máquina fotográfica a tomar a altura do


pela
sol no astrolábio, construido no seu Instituto, se vê diante dele
que

suspenso da cabrilha. A fotografia ilustra muito bem a da


passagem

Asia de João de Barros I, Liv. IV, Cap. II) em se des-


(Década que

creve a chegada á Angra de Santa Helena e a observação do sol

fizeram determinar a latitude daquele logar:


que para geográfica
«E a terra tomou ante de chegar ao Cabo de
primeira que
boa Esperança, foy a baya a ora chamam de Sancta Helena,
que

avendo cinquo meses era de Lixboa: onde sayo em


que partido

terra fazer aguada e assi tomar a altura do sol. Porque como


por
do uso do astrolabio aquelle mister da navegaçam, avia poco
pera
tempo os mareantes deste reytio se aproveitavam, e os navios
que
eram nam confiavam muyto de a tomar dentro nelles por
pequenos:
causa do seu arfar. Principalmente com hum astrolábio de de tres
páo
de diâmetro, o armavam em tres a maneira de
palmos qual páos
cábrea melhor segurar a linha solar, e mais verificada e distincta-
por
mente saber a verdadeira altura daquelle lugar: posto que
poderem
levassem outros de latam mais tão rusticamente começou
pequenos,
esta arte tanto fructo tem dado ao navegar».
que
Alem do modelo de madeira, também no Instituto se
grande
vae construir o modelo de latão, a João de Barros se
pequeno que
refere, o dispensa a cabrilha, se suspende de uma das mãos
qual pois
emquanto com a outra se dirige a medeclina de modo a pínula
que

alta cubra com a sua sombra a baixa, se faz a pesa-


pínula quando
do sol.
gem
O livro mais antigo se conhece com a explicação das regras
que
o cálculo da latitude altura meridiana do sol, devidas á
para pela
Junta dos Matemáticos de D. João II, é um incunábulo existente na

Biblioteca de Munich, exemplar único, hoje reproduzido em edi-



Consta do Regimento do estrolabio e do quadrante
ção fac-símile.
saber ha declinaçam e ho logar do soll em cada huüm dia, se-
para
do Tractado da Spera do mando tyrada de latim em linguoa-
guido
é a tradução conhecida da Sphera de
gem, que primeira portuguesa
Sacrobosco. Este livro é objecto do notável trabalho do Snr. Joa-
A ÁGUIA 147

quim Bensaúde L'as trono mie nautique aa Portugal á 1'époque des

grandes découvertes, Berne, 1912, ultimamente laureado Acade-


pela
mia das Sciencias de Paris com um Binoux.
prêmio
As regras do Regimento de Munich são ainda expressas de um

modo complicado; elas supõem o zero está no diâmetro hori-


que
zontal, dando a leitura do instrumento a altura do sol. Nos astro-

lábios mudou-se depois o zero o diâmetro vertical;


portugueses para
a leitura do instrumento dá logo a distância zenital e as regras po-
dem formular-se com mais simplicidade. É assim no Compêndio
que
dei arte de navegar de Rodrigo Sevilha, 1591, ha um ca-
Çamorano,
pítulo, o cap. 8, com o titulo: Otro manera de hazer la cuenta al

sol, como la uzan en Portugal. A maneira de fazer a conta ao sol é

assim formulada Pedro Nunes no seu Tratado em defensam da


por
carta de marear acompanha o Tratado da sphera, em
que publicado
1537:

REGIMENTO DA ALTURA DO POLO AO MEO DIA

«Se o sol tem declinação o norte e as sombras vão


pera pera
o norte: saberemos estrelabio ao meo dia he na mayor
pello que
1:
altura: ha de nós ao sol e acrecentaremos a de-
quantos grãos
clinação daquelie dia: e o somar será o estamos apartados
que que
da linha equinocial o norte.
pera
Mas se ho sol tem declinação pera o norte e as sombras vão

pera o sul: saberemos estrelabio ha de nós ao sol: e


pello quanto

pello regimento a declinação: e se forem iguaes estaremos na equi-

nocial. È se forem desiguaes: tiraremos o menor numero do mayor

porque o ficar isso estaremos apartados da equinocial: e será


que

pera o norte se a declinação era mayor: e será o sul se a de-


pera
clinação era menor.

A mesma regra nos serve tendo ho sol declinação pera o sul

porque se as sombras vão o sul ajuntaremos o ha de nós


pera que
ao sol com a declinação: e o somar isso estaremos apartados
que
da equinocial o sul.
pera
Mas se o sol tem declinação o sul e as sombras vão ao
pera
norte: se o ha de nós ao sol for' igual á declinação estaremos
que
na equinocial. E se forem desiguaes tiraremos o menor numero do

mayor: e o ficar será o ao tal tempo estaremos apartados


que que
da equinocial: e será o sul se a declinação for mayor: e será
pera

pera o norte se a declinação for menor.

E não ouver declinação2: ho ouver de nós ao sol


quando que
isso estaremos apartados da equinocial: e será onde forem as
pera
sombras.

E em todo o tempo o sol estrelabio estever em no-


que pelo
venta o elle tiver de declinação: isso mesmo estaremos
grãos: que
apartados da equinocial e a mesma
pera parte».

Isto é, do nosso zenite ao sol.


Isto é, quando o sol estiver no equador c portanto no tempo de qualquer dos
equinócios.
148 A ÁGUIA

Na regra das ultimas tres linhas supõe-se o astrolábio tem


que
o zero no diâmetro horizontal, se trata do caso em a dis-
pois que
tância zenital do sol é nula, o só dar-se logares situa-
que pode para
dos entre os trópicos.

Qual é a origem do nosso astrolábio náutico? Está bem es-



clarecido que êle proveio da simplificação de um instrumento muito

antigo chamado astrolábio ou os árabes trou-


plano, planisférico, que
xerain para a Europa, tendo-o recebido dos Este instrumento,
gregos.
se supunha a Ptolomeu II d. de C.), foi inven-
que posterior (século
tado por Eudóxio de Cnido (409-356 a. de C.) ou Apolónio de
por
Perga (séculos Ill-II a. de C.)'. Os árabes foram apenas os transmis-

sores do astrolábio, seu instrumento êles aperfeiçoa-


predilecto, que
ram sem o modificarem essencialmente. Os construíram
portugueses
o astrolábio náutico, aproveitando do astrolábio apenas
planisférico
as destinadas á medida da altura dos astros, e de
peças pondo parte
todas as outras complicadas com se resolviam tantos ou-
peças que
tros problemas astronômicos.

Afirmou-se durante muito tempo que o astrolábio tinha sido

trazido Portugal, de Nuremberg, Martim Behaiin. Tal afir-


para por
mação está completamente desfeita depois da publicação da obra de

Ravenstein, Martin Behaim, Mis life and his London, 1908, e


globe,
do livro do snr. Joaquim Bensaúde, a nos referimos Mas basta
que já.
abrir o Tomo II dos Libros dei saber de astronomia dei rey D. Al-

X de Castilla, onde se encontram os Libros dei astrolabio


fonso
llano, para nos convencermos de não havia necessidade de ser im-
que

portado da Allemanha, no século XV, um instrumento na Pe-


que já
nínsula se construía com tanta perfeição no século XIII. O nosso

astrolábio é de origem e não allemã.


peninsular,
A construção de inodêlos do astrolábio náutico não tem ape-

nas valor histórico, antes é de grande valor actual. Hoje


pedagógico
o ensino elementar da astronomia tem de fazer-se método cha-
pelo
mado de laboratório os alunos colhem em mão,
pelo qual primeira

por observação directa dos fenômenos celestes, os factos capitais

astronômicos, único meio de lhes comunicar verdadeiro interesse, e

até entusiasmo, este estudo. Neste de redescoberta


por processo
começa-se por observações á vista desarmada, feitas com instrumen-

tos elementares, construídos na localidade ou nas oficinas do estabe-

leciniento de ensino, se as ha. O astrolábio deve ser, no nosso paiz,


um destes instrumentos, todos os motivos e até
por por patriotismo.
Assim o Sr. Dr. Alfredo Bensaúde está prestando um ser-
grande
viço á causa da instrução contribuindo com os modêlos feitos nas ofi-

cinas do Instituto, tão superiormente dirige, para a introdução do


que
método de laboratório no estudo das sciencias matemáticas dos nossos

liceus.

Não podemos terminar esta nota sem a transcrição das estân-

cias dos Lusíadas que se referem ao instrumento de estamos


que

F. Le traité
Nau, sur l'astrolabe plan de Sévère Saboki, Paris, 1899.
Veja-se Mary Byrd, A laboratory manual in asttonomy. Boston, 1899.
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O ASTROLÁBIO NÁUTICO DE MADEIRA

Construído 110 Instituto

Superior Técnico

A Águia—64 série)
(2.a
A ÁGUIA 149

tratando. Inspirado evidentemente na narrativa, João de Barros


que
faz, da chegada à Angra de S.ta Helena e das observações astronómi-

cas aí feitas a determinação da latitude o


para geográfica, poeta,
depois de nos mostrar as tripulações das naus, alvoroçadas
pelo
brado — terra, terra!—, saltando bordo os olhos no hori-
no com
zonte do oriente, continúa:

A maneira de nuvens se começam


A descubrir os montes que enxergamos,
As ancoras pesadas se adereçam
As velas, já chegados, amainamos:
E para que mais certas se conheçam
As partes tüo remotas onde estamos,
Pelo novo instrumento do Astrolabio
Invenção de sutil juizo e sábio.

Desembarcamos logo na espaçosa


Parte, por onde a gente se espalhou,
De ver cousas estranhas desejosa
Da que outro povo não pisou:
terra
Porem eu cos pilotos na arenosa
Praia, por vermos em que parte estou,
Me detenho, em tomar dc sol a altura
E compassar a universal pintura.

(Canto V, 25 e 2(5).

Este desembarque deve ter sido na 9 de novem-


quinta-feira,
bro de 1497. Levaram terra o astrolábio de pau e ou-
para grande
tros mais de latão. A observação do meio dia deve ter
pequenos
'.
dado, altura máxima do sol, 76 graus e um terço Tomando
para
a diferença noventa, obtiveram uma distância zenital de 13
para
e dois terços. As sombras corriam ao sul. A tábua do Regi-
graus
mento dava êsse dia uma declinação austral de 19 graus e um
para
terço. Como o sol estava ao sul do equador, no signo de Scórpio,

e o sentido das sombras era também o sul, somaram os dois


para

números, 131- com 19 achando assim que estavam a 33 de


y, graus

latitude austral. Marcaram então a do lugar na


geográfica posição
«universal isto é, no mapa-mundi. No Regimento da Biblio-
pintura»,
teca de Évora encontra-se com efeito a Angra de sancta na
yllena
lista das Alturas do sul com uma latitude de 33 graus. Estavam pois
entre o trópico de Capricórnio, situado, segundo o Regimento, a 23

e 33 minutos ao sul do equador, e o círculo antártico:


graus glacial

Achamos ter de
todo ja passado
Do Semicapro peixe a grande meta,
Estando entre elle e o circulo gelado
Austral, parte do mundo mais secreta.

1 Veja-se a nossa Astronomia dos Lusíadas, 135.


pag.
150 A ÁGUIA

Um recente comentador dos Lusíadas, o Snr. Francisco Len-

castre, dá esta informação sobre o astrolábio:

«O astrolábio matemático e astronômico] com-


[instrumento
de um círculo e uma alidade de assentava
punha-se graduado pínulas;
sôbre um tripé, no por causa do balanço, eram as observações
qual,
mais difíceis e menos seguras a bordo do em terra »
que
Ora o astrolábio não assentava sôbre um tripé; era suspenso de

uma cabrilha, se era de grandes dimensões, ou da mão, se era pe-


como dissemos. A respeito da historia do instrumento emite
queno,
o Snr. Dr. Mendes dos Remedios a seguinte opinião:

«O astrolábio, instrumento serve medir a altura dos


que para
astros, foi inventado no reinado de D. João II, em 1480, ale-
pelo
mão Marfim Behaím, ou Martim de Bohémia, cosmógrafo ao ser-

viço de Portugal, e dois mestre Rodrigo e


pelos judeus portugueses
mestre José, ambos médicos monarca do e como Behaím,
português
2.
membros da junta de matemáticas»

Dá-se aqui uma importância primacial ao alemão Martim Behaim,

cuja sciência cosmográfica ficou completamente desacreditada de-

dos trabalhos de Ravenstein e dos do Sr. Joaquim Bensaude.


pois
O nosso astrolábio náutico não foi uma inven-
propriamente
êle estava incluído no astrolábio instrumento muito
ção; planisférico,
engenhoso e complicado faz honra à sciência dos antigos
que gre-
Os portugueses tomando dêle apenas as necessárias
gos. peças para
a medida da altura dos astros, ficarain com o instrumento reduzido

a uma simplicidade primitiva. Com tal simplificação tiveram a vanta-

gem de o poderem construir de maiores dimensões, aumentando o

número de divisões do limbo, o leituras mais


que permitiu precisas.
Para uso do instrumento no mister da navegação teve a Junta das

Matemáticas de formular regras determinação da altura do


para polo
em qualquer logar do globo terrestre, as constituíram o cha-
quais
mado «-Regimento da altura do ao meio dia».
polo
Camões empregando a designação—novo instrumento do as-

trolábio — está de acordo com João de Barros no trecho atrás


que,
transcrito, diz havia tempo os «mareantes dêste
que pouco que
reino» se aproveitavam do uso do astrolábio no mister da navega-

ção e, em continuação do mesmo trecho, acrescenta «em êste


que
reino de Portugal se achou o uso delle em a navegação».
primeiro
Nas suas longas viagens mar, até ao extremo Oriente, teve
por
o poeta ocasião de vêr muitas vezes o sol no astrolábio, cujo
pesar
uso não era novidade 110 seu tempo, e muitas vezes viu também

«compassar a universal
pintura».

Coimbra, março de 1917. 5^' V

Francisco de Sales Lencastre, Os Lusíadas, vol. I, Lisboa, 1915, pag. 523.


Lusíadas, edição anotada por Mendes dos Remédios, Coimbra, 1913, pag. 167.
A Infinidade dos Mundos

e o Eterno Retorno em Demócrito

Dum livro em preparação, 0 Eterno Retôrno. índice dos


capítulos: I. O Eterno Retôrno em Nietzsche. II.—As Formas
Frustes do Retôrno. III.— O Eterno Retôrno na antigüidade e na
idade média. IV.— O Eterno Retôrno nos tempos modernos.
V. —Retôrno de identidade específica e retôrno de identidade
numérica. VI.—A Originalidade de Nietzsche. VII. — Os Fun-
damentos, VIII. — Crítica das objecções. IX.—As Verdadeiras
objecções. X.—As Contradições. XI.—As Conseqüências prag-
máticas.

epois dos foi o eterno retôrno formulado


pythagóricos pela
escola atomista de Abdera, e vemo-lo vez
pela primeira
complicado com a idéia da repetição de mundos idên-

ticos no espaço, como uma espécie de eterno retôrno na

coexistência. A associação destas duas idéias não é um caso isolado

na história da filosofia: encontrá-las-hemos novamente reunidas em

Epicuro, e, muito mais tarde, em alguns modernos.


pensadores
Sobre Leucippo, o fundador da escola, são na verdade bem es-

cassos os elementos de informação apenas sabemos,


que possuímos;
sôbre a nos ocupa, êle admitia uma infinidade de
questão que que
mundos, uns após outros nascem e morrem Demócrito, porém,
que
o seu discípulo, êsse homem cujo toda a anti-
grande perante gênio
2
inclinar-se e a cuja largueza de horizonte intele-
guidade pareceu
ctual um crítico tão sóbrio de elogios corno o Estagirita a mais
presta
3, do seu mestre ás
decidida homenagem levou a concepção atomista

suas mais extremas conseqüências. O aos críticos e historiadores


que
modernos se afigurar como o fruto longínquo duma antiga con-
pôde
cepção do mundo foi uma conseqüência imediatamente tirada dessa

concepção um dos a ela tinham ade-


por primeiros pensadores que
rido. Espírito lógico e não se detendo nas análises super-
profundo,
ficiais, não recuando mesmo ante aquelas deduções mais estra-
que
nhas ao senso comum, Demócrito abraçou logo com
podiam parecer
as idéias essenciais do seu mestre as suas conseqüências mais lon-

gínquas.

Diog.Laerc., IX, 6.
Laudatum a mihicum
ceteris (Cie., De Fin., I, 6). Qui (os outros filósofos)
illo collati classis videntur, (id., Acad., I, 23). Democritus, subtilissimus
quintae
antiquorum omnium (Sén., Quest. Nat., VII, 3).
Demócrito, diz Aristóteles, «parece ter reflectido sôbre todas as coisas » {De
Gen. et Corrupt., I, 2, 3). Nas nossas citações de Aristóteles reportamo-nos sempre á

ed. Didot.
152 A ÁGUIA

Epicuro, sustenta Cícero, deve a Demócrito a maior parte das

suas idéias fundamentais. Foi com essa abundante fonte êle regou
que
os seus «Os átomos, o vácuo, as imagens..., a
jardins própria
infinidade, tudo tirou dêle, assim como êsses infinitos mundos
que
2.
nascem e morrem todos os dias» No que nos ocupa
ponto
Cícero não exagerava. Diógenes Laércio, o Pseudo-Plutarcho, Hip-

Eliano, confirmam as suas palavras. É fóra de toda a dú-


pólito,
vida Demócrito admitia uma infinidade de mundos num es-
que

paço infinito, mundos que estavam sujeitos ao nascimento e á


3
morte. Sôbre essas idéias é Hippólito quem nos fornece mais

amplos e curiosos desenvolvimentos. Segundo Demócrito, diz-nos

êle, os mundos eram infinitos e de diversas. Uns eram


grandezas
destituídos de sol, outros de lua; noutros ambos êsses astros eram

maiores do que os nossos; finalmente havia mundos com vários sois

e várias luas. Enquanto êstes estavam no seu de desenvolvi-


período
mento, aquêles tinham atingido o seu máximo vigor e aquêles outros

declinavam já para a destruição. Nasciam uns c nêsse mesmo mo-

mento morriam outros. Havia alguns entre êles careciam de ani-


que
4.
mais e de plantas e de toda a espécie de líquidos Parece-nos estar

ouvindo, não as opiniões dum pensador de há mais de vinte séculos,

mas de um astrônomo moderno, armado dos mais meios


poderosos
de observação. A simples noção do infinito actual, deve a
que permitir
realização de todos os e, é forçoso confessar, uma confusão
possíveis,
da possibilidade lógica com a possibilidade física, dos
possíveis para
o nosso espírito e dos possíveis a natureza, como se o universo
para
se não devesse fundar sôbre leis, mas sôbre um simples de com-
jôgo
binações matemáticas, devia levar um eminente, na infância
pensador
da sciência da natureza, por um lógico e aprió-
processo puramente
rico, a formular hipóteses que só muitos séculos depois deviam ser
confirmadas pelos inventores do telescópio e da análise espectral.
Como tantas vezes sucede na história da sciência, uma opinião pre-
concebida, uma confiança exagerada nos decretos do espírito devia
conduzir a fecundas hipóteses. Porque ela vinha combater a tendên-
cia contrária, mais afastada da realidade das coisas, a fazer do am-
biente que nos cerca a medida de todos os E todavia, não
possíveis.
devemos exagerar; como teremos ocasião de ver, essa antecipação
de doutrinas futuras não é tão completa uma interpretação
quanto
puramente literal daquela nos fazer supôr. Demó-
passagem poderia
crito não estabelecia a sua hipótese a nossa lua, o nosso
para para
sol, os mundos do nosso firmamento; os mundos êle ima-
para que
ginava supunha-os além da circumferência extrema do céu,
para para

Democritus, vir magnus in primis, cujus fontibus Epicurus hortulos suos


irrigavit (Cie., De Nat. Deor., I, 43). A escola de Epicuro era denominada a escola
do Jardim.
Innumerabiles mundi, qui et oriantur, et intereant quotidie (Cie.. De
Fin., 1, 6). Cf. De Nat. Deor., 1, 26.
Diog. Laerc., IX,
7, 44; Pseudo-Plut., De Placit., II, 1; Hippol., Refut. omn.
haeres., I, 13; Eliano, Var. hist., IV, 29.
Hippol.,
Refut. omn. haeres., I, 13.
A ÁGUIA 153

além dos limites, não só de toda a observação actual, mas de toda a

observação
possível.
Há, a escola de Abdera, uma infinidade de sois, de
pois, para
luas, de terras e de mundos. Mas a simples idéia da pluralidade dos

mundos mesmo a da sua infinidade) era muito anterior aos abde-


(e
ritas Não foi nisso consistiu a sua originalidade; nesse ponto
que
êles não fizeram mais desenvolver, com mais ou menos felici-
que
dade, uma muito antiga tradição filosófica. Não é de todo inútil

recordá-la aqui.
2
Theodoreto e João Stobeu inserem duas listas derivadas de

Aécio, e indirectamente, de Theophrasto: uma compreende


porventura,
os filósofos concebiam a existência de um único mundo; a outra
que
abrange os da Estes são, segundo os dois
partidários, pluralidade.
doxógrafos, além dos atomistas e de Epicuro, Anaximandro, Anaxi-

menes, Archelau, Xenophanes e Diógenes3. Não se tratar duma


pôde
sucessiva de mundos, não só Heraclito eEmpe-
pluralidade pois que
4,
docles são mencionados entre os de um único mundo
partidários
como também Stobeu conclue a sua enumeração seguinte escla-
pelo
recimento: «A distância entre os diversos mundos é igual para Ana-

ximandro, Muitos outros testemunhos corro-


desigual para Epicuro».
5. haver contradição
boram êstes Apenas sobre Xenophanes parece
nos nossos textos. Porque, um lado, êle de um
por parece partidário
universo infinito, mas não de um universo formado uma infini-
por
dade de mundos. lhe atribuem a doutrina de que a profun-
Quando
6,
didade da terra e do eter é infinita devemos naturalmente
pensar

êle baixo dos nossos se estendia infinita-


que julgara que por pés
mente a terra, cima das nossas cabeças se alargava infinita-
que por

Ao contrário do que se poderia depreender duma afirmação de Qiussani


«il concetto democrites
(Studi Lucreziani, 1896, Introd., p. XLII1.) Segundo Giussani,
— in opposizione alie anteriori cosmogonie —d'un universo infinito, è sorto dal!'aver

data un'esistenza al vuoto». Esta afirmação é duplamente errônea. Se há alguma


relação entre a existência infinito é uma relação precisamente con-
do vazio e a do
do vácuo que deu origem
trária. Aristóteles que foi a negação
diz-nos efectivamente
"Porque
na filosofia eleata á admissão do infinito actual. doutra forma —dizia-se,
— o limite não
empregando um argumento, que mais tarde será reeditado por Kant
vazio não existe; logo o universo não é
podia deixar de confinar no vazio,,. Ora o
finito (Arist., De Gen. et Corrupt., I, 8, 3). A frase de A. refere-se decerto a Melisso

(anterior a Demócrito; aeme de 444-441).


Theodor., De Graec. affect. curat., IV, Op. omn., ed. 1772, t. IV, p. 796;

Stob., Eclog. I, 25.


Dêstes sãoum pouco posteriores a Leucippo Archelau e Diógenes deApol-
lonia (êste é contemporâneo de Demócrito).
Heraclito em ambas as listas, Empedocles apenas na de Stobeu.
Para Anaximandro, Simpl., Phys., Diog. Laerc.,
p. 1121, 5; para Xenophanes,
IX, 2, 19, e Hippol., Refut., I, 14; para Diógenes de Apollonia, Plut., Strom., XII,
ed. Didot., p. 17 (apud Euseb., Prep. Evang., I, 8), e Diog. Laerc., IX, 9, 157. A pas-
sagem de Laércio sôbre Diógenes de Apollónia não é equívoca, como se tem preten-
vazio é também infinito,,)
dido. O contexto da frase ("os mundos são infinitos e o
exige necessariamente a interpretação de mundos simultânios.
s Arist., De Ccelo, II, 13, 7; De Mel., Xenoph. et Gorg., II. Há mesmo um
fragmento do Xenophanes 28 Diels) nos afirma a infinita profundi-
próprio (frag. que
dade da terra.
154 A ÁGUIA

mente o céu. Mas outro lado, Diógenes diz-nos os mundos


por que
são segundo êle infinitos e Hippólito vai até ao ponto de precisar
havia êle muitos sois e muitas luas Seria então de todo
que para
o essa censura de
Aristóteles, que sôbre coisa alguma
ponto justificada
2?
Xenophanes se explicara com clareza

Aos nomes mencionados pela doxografia aeciana há que acres-

centar outros ainda. Um deles é Anaxágoras, que essa doxografia

inclue na lista dos inonocosmistas, mas de quem nos resta um frag-

mento invalida êsse testemunho; segundo êsse fragmento, outros


que
homens vivem em outras terras, iluminados por uma outra lua, aque-

cidos um outro sol3. Mas antes de Anaxágoras, no tempo


por próprio
de Anaximandro e Anaximenes, um outro filósofo formulou a tese

de mundos coexistentes: reierimo-nos a Petron de Himera, admi-


que
4,
tia a existência, não de uma infinidade, mas de 183 mundos dis-

nos lados e nos vértices de um triângulo equilátero. A nossa


postos
5.
autoridade é desta vêz constituída Plutarcho
por
Poderíamos ser tentados a mencionar ainda os pythagóricos em

Segundo o Pseudo-Plutarcho, os pythagóricos pensariam que


geral.
cada um dos astros era um mundo, continha no eter infinito uma
que
terra, um ar e ui» eter6; a lua seria outra terra, e supunham-na tam-
7.
bêm habitada É todavia que as opiniões pythagóricas ex-
possível
fontes aecianas se refiram apenas a filósofos da escola
pressas pelas
ulteriores a Leucippo. Pythágoras, pelo menos, é incluído entre os

de um único mundo na lista de Theodoreto e de Stobeu;


partidários
sabemos também os do tempo de Philolau conce-
que pythagóricos
biam o mundo como rodeado de um vazio infinito. Demais, essas

opiniões constituir um desenvolvimento ulterior da doutrina.


parecem
Seja-nos dizer, antes de na bôca
permitido proseguirmos, que
dos antigos não se deve entender a «há muitos mundos»
proposição
com um sentido análogo àquele hoje damos a essa afirmação. A
que
analogia dos termos não deve fazer esquecer a diferença das
profunda
idéias. A verdade é o da dos mundos se
que problema pluralidade
na antigüidade sob uma fôrma completamente diversa daquela
punha

' como fôr, o que parece insustentável é a hipótese de Rivaud (Le Pro-
Seja
blème du Devenir et la Notion de la Matière dans la phil. grecque, 1906, p. 106),

que identifica o
deus de Xenophanes com a abóbada do céu. «Sans doute, X. pensait
à la voúte du ciei, à la sphère immobile qui la limite, et à laquelle les astres sont
attachés». Porque, por um lado, essa esfera não é imóvel para os Gregos. Por outro
lado, ou há uma infinidade de céus para X., e haveria então, pela mesma razão, uma
infinidade de deuses; ou o universo é infinito, sein haver uma infinidade de mundos,
desaparece como
e nêsse caso é própria abóbada celeste que
a limitação do cosmos.
Arist., Metaphys., I, 5, 10.
Artaxag., fr. 4 Diels. Anaxágoras c contemporâneo de Leucippo.
E
não 180, como diz Rivaud, op. cit., p. 100.
Não Petron; ignora mesmo se ela ainda exis-
que êle tivesse lido a obra de
tia ao seu tempo; mas reporta-se a Phanias de Ereso, que, por sua vez cita Hippys de
Rhegio (De Defectu oracul., XXII, 41 e segg.; XXIII, 16 e segg.).
Pseudo-Plut., De Placit., II, 13, 8. O mesmo texto em Stobeu (Eclog., I,

24), com a eliminação do eter na composição de cada mundo.


Pseudo-Plut., II, 30, 1. Mesma indicação em Stobeu 26), com menção
(I,
expressa do nome de Philolau.
A ÁGUIA 155

sôb a o hoje em dia. Eles estavam longe de pensar cada


qual pomos que
estréia era um centro num mundo semelhante àquêle de
planetário,
que fazemos sôb a hegemonia do sol. Tal noção só podia con-
parte
ceber-se como um e uma extensão da astronomia heliocên-
progresso
trica, e essa astronomia, não só virá muito mais tarde, como, quando
tiver de vir, morrerá á nascença. O seu era
pensamento que, para
além do nosso céu, havia outros céus, com outras terras e outros

astros, com outros sois, outras luas, outros habitantes. Nenhum dos

astros vemos no nosso firmamento fazia dum mundo dife-


que parte
rente do nosso. Só conhecer o nosso cosmos; eterna-
poderíamos
mente ignorados nos ficavam todos os outros, a esfera nos
pois que que
limita o mundo nos limitava também o conhecimento. Para além, era

o domínio das conjecturas e das construções racionais. di-


Quando
zem, há mais de um mundo, com isso significar
pois, que querem
que há mais de uma abóbada celeste, outros cosmos limitados por
outras esferas estreladas

Para os cita o Pseudo-Plutarcho a


pythagóricos que já palavra
«mundo» não é empregada com a significação lhe aca-
precisa que
bauios de notar, e todavia ela não tem ainda o sentido estrito se
que
lhe dá na astronomia moderna. Supôs-se os
que, quando pythagóri-
cos diziam cada um dos astros era um mundo, continha,
que que
no eter infinito, uma terra, um ar e um eter, êles defendiam precisa-
mente o moderno sistema do mundo. A citação também feita por
Stobeu e autor do De Placitis do nome de Heraclides, a
pelo quem
desde Schiaparelli é de uso considerar como o verdadeiro criador do

heliocentrismo na astronomia era de molde a aumentar a


grega, piau-
sibilidade da ilusão. E todavia só a muito bôa vontade de encontrar

entre os antigos autênticos da astronomia do Renasci-


precursores
mento, mesmo na sua fôrma definitiva, explicar semelhante ilu-
pôde
são. Porque é evidente se não trata no mencionado texto de
que
astros são centro do movimento de outros astros, de estréias
que que

! A esfera estrelada era a ultima esfera do céu, a esfera das fixas. Esta inter-
pretação torna-se evidente da discussão de Aristóteles no De Caelo (1,8 e 9). «Ainda
num terceiro sentido chamamos céu o corpo ex-
que é limitado pela circumferência
trema; efectivamente, é costume chamar céu á totalidade e á universalidade das coi-
sas... Não há senão êste único céu» no
(ibid., I, 9, 6 e 8). «Todas as coisas estão
céu, «O uni-
porque o céu é o universo, ao que se pôde julgar» (PhysIV, 5, 3).
verso, no Timeu.
que nós chamamos céu ou mundo», escreve por seu lado Platão
(Para Pl. e A. há equivalência entre universo dum lado e céu e mundo do outro, por-
que admitiam um único mundo). Para Epicuro «o mundo é o conjunto das coisas
abrangidas objectos visíveis. Póde-se
pelo céu, contendo os astros, a terra e todos os
facilmente conceber há uma infinidade de mundos dêste gênero» (carta a Py-
que
thokles, á terra que
Diog. 88 e 89). Epicuro assimila tão
Laerc., X, pouco os astros
chega ser» (id.; cf.
pensar que «a grandeza do sol e dos outros astros é a que parece
a
Cie. De Fin., I, 6). Para á terra, era pre-
procurar, pois, um corpo que se assemelhasse
ciso sair Xenophanes, em
para fóra do limite do céu. (Cf. as opiniões de Anaxágoras e
Pseudo-Plut., II, 13; Plut., Vita Lysandri, X, 11). Para Anaximenes o universo é infinito,
e todavia o nosso mundo é limitado: a última circumferência do céu é duma substân-
cia terrestre (Pseudo-Plut., II, 11) Os mundos de Petron também são, evidentemente,
considerados no mesmo
ponto de vista. Trata-se aí de mundos construídos pela ima-
ginação, para além do mundo rialmente dado nos sentidos.
156 A ÁGUIA

arrastam após si um cortejo maior ou menor de Cada um


planetas.
dos astros é um mundo, não haja uma terra fóra dêle e que
porque
em torno dêle mas êle é uma terra, rodeada
gravite, porque próprio
de ar, rodeada ainda de eter, e tudo isso no seio do eter infinito.

Tratava-se duma assimilação de todos os astros á terra, como forma-

dos mesmas constitutivas, não duma assimilação das es-


pelas partes
trêlas ao sol como centros de sistemas A astronomia de
planetários.
Heraclides e de Aristarcho de Samos foi heliocêntrica, mas não foi

astrocêntrica. O Sol ocupava no seu sistema uma situação singular,

sem analogia com outro corpo do céu. Essa doutrina dos


qualquer
não era mais a extensão a todos os astros de
pythagóricos pois que
analogias se tinham estabelecido entre alguns deles e a terra
que já
Talvez fôsse mesmo mais alguma coisa, mas não o que se pretendeu;
talvez os homens do tempo de Heraclides tenham de ser considera-

dos, em mais dum sentido, como os da astronomia da


precursores

Renascença. Talvez êles tivessem, como Galileu, rasgado o céu. Tal-

vez êles tivessem destruído o muro os antigos como


que punham
2.
limite do mundo Cada um dos astros está no eter infinito: isto

talvez dizer a abóbada de cristal se em e


quere que partira pedaços,
onde a vista se alargasse ela não encontrava
que para quere que
senão os limites lhe eram impostos sua imperfeição.
que pela própria
Seja como fôr, estas idéias representam naturalmente uma fase

ulterior da doutrina. Com elas desaparece, pela menos, a sinonimia

entre o mundo e o éspaço limitado última esfera celeste: cada


pela
mundo é formado um astro com o seu eter e a sua atmosfera.
por
Para os irmãos da nossa terra não será desven-
procurar já preciso
dar os arcanos de além-céu, basta fixar os olhos na abóbada estre-

lada. Terra e corpos celestes estão de ora avante nutn pé de quasi


absoluta igualdade. A eclosão destas idéias no espírito humano deve,

colocar-se, segundo toda a numa época posterior


pois, probabilidade,
aos atomistas.

Vemos, não obstante estas reservas, a idéia da plu-


porém, que
ralidade dos mundos tinha raizes muito antigas na filosofia grega.
Mas, segundo a escola de Abdera, de Demócrito, menos, have-
pelo
ria uma infinidade de mundos não só semelhantes, mas absoluta-

mente idênticos. A sua concepção está a simples idéia da plu-


para
ralidade cósmica na mesma relação em o eterno retorno está
que
as doutrinas cíclicas. É essa a sua originalidade. Parece impôs-
para
sivel contestá-la, porque essa teoria só podia nascer depois do nasci-
3.
mento do atomismo

A uma
lua é terra (Heraclito); uma terra rodeada de nuvens (Heraclides e
Ocello); coberta de planícies, de vales, de montanhas (Anaxágoras, Demócrito). [Pseu-
do-Plut., 11, 25; Stobeu, Eclog., I, 26]. O sol é muito maior que o Peloponeso (Ana-
xágoras); iguala a própria terra pelo tamanho (Anaximandro); é duma grandeza
enorme (Demócrito). [Pseudo-Plut., II, 21; Cie., De Fin., I, 6],
Nêste
ponto talvez tivessem tido como precursores a Xenophanes e Melisso.
A eterna repetição no tempo é independente do atomismo, como mostrare-

mos; mas a eterna repetição no espaço só pelo.atomismo se pôde rigorosamente jus-


tificar. Não falo no atomismo ideal, independente das suas realizações históricas, e
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1 -
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O Sr. Dr. Alfredo Bensaude,

Director do Instituto Superior Técnico,

observando com o Astrolábio.

A Águia — 64 (2.a série)


A ÁGUIA 157

É numa passagem das Acadêmicas, cuja importância tem esca-

pado, segundo aos comentadores, encontramos a expressão


parece, que
rigorosa dessa teoria tão interessante. Cícero transporta-nos á costa
da Campânia, á casa de campo de Hortênsio, em Bauli, depois
que
será de Nero. Num dá o mar reunem-se ali
pórtico que para quatro
dos mais ilustres homens de Roma: o Cícero, Catulo, Hor-
próprio
tênsio e Luculo. Ali até o vento venha inflar as vélas
palestram que
das barcas estão lá baixo, á espera de Luculo e de Cícero, e êles
que
possam transportar-se por mar, um ás suas terras de Nápoles, o outro
á sua casa de Pompeia. É Luculo fala, dirigindo-se a Cícero :
quem
«Demócrito afirma, segundo dizes, há uma infinidade de mun-
que
dos, alguns dos são não só semelhantes, mas em todos os seus
quais
pontos tão perfeitamente e tão absolutamente iguais, não há en-
que
tre êles a mais diferença. Esses mesmos mundos são numa
pequena
infinidade, e o mesmo se dá com os homens» E interpretando o pen-
samento do abderita: « Dêsses átomos segundo Demócrito, dão
que,
origem a tudo, não só se como se real-
pódem produzir, produzem
mente, nos outros mundos, cuja multidão é infinita, uma multidão
infinita '».
de Lutácios Catulos

Esta idéia exerce sôbre Cícero uma sugestão enorme. Quando


tem de retorquir a Luculo, êle desenvolve, com certo agrado, o seu
argumento. É Cícero fala agora, no lugar do seu
quem pondo-se
antagonista: « um único mundo te oferece um espectáculo
Quando
tão adiniravel, houvesse ainda uma infinidade de mun-
quererias que
dos, uns cima, outros baixo, uns á direita, outros á esquerda,
por por
uns adiante, outros atrás, uns diferentes, outros idênticos ao nosso

(alios dissimiles, alios ejusdemmodi)? E como agora estamos em Bauli


e estamos vendo Pozzuoli, assim haverá em outros logares, iguais a
êste, uma infinidade de homens terão exactamente os mesmos
que
nomes, as mesmas dignidades, a mesma história, o mesmo espírito,
a mesma figura, a mesma idade, e discutirão sôbre êste mesmo
que
assunto 2?»

E Cícero, dizendo estas palavras, decerto deixou vaguear o olhar

pelo scenário de mágica diante dos seus olhos se desenrolava,


que
praeclarum não pôde deixar de exclamar, tocado
prospectum, pelo
assombro, o orador. E fantaseou decerto outras ilhas de Ne-
grande
ses, outras colinas de Posilippo, outros Vesuvios, outros promontó-
rios Misenos, outros de Puteoli, outras Bajas ostentando as
golfos
niesmas ricas vilas dentre os densos arvoredos, outras Cumas com
outras casas de Catulo, outras Pozzuoli, erguendo ao mesmo céu
alciónico as colunas brancas dos seus templos — o de Neptuno, por

que não obriga necessariamente a essa conseqüência. Falo no atomismo histórico,


naquele
que realmente veiu à existencia, esse atomismo finitista (nas espécies de ele-
mentos) a infinita repetição no
que seria inconseqúencia admitir sem admitir também
espaço eno tempo.
Cícero, Acad,
I, liv. II, XVII, ed. Klotz., part. IV, vol. I, pp. 40-41.
Cícero, Acad. I, liv. II, 40. Na ed. Nisard, p. 475, faltam as duas palavras
alios dissimiles, que se encontram na ed. Cramer e Philibert, 1743, t. II, p. 68; na
ed. Panckoucke, 222; na ed. crítica de 67, etc.
p. Klotz, p.
158 A ÁGUIA

exemplo, sôb cujo talvez esteja a esta hora, em


pórtico passeando
milhares de mundos, o nosso amigo Aviano. lhe diria a êle
Quem
dois mil anos depois haviam de vir dois homens, um tendo como
que
único horizonte as paredes dum calabouço, o outro caminhando
quatro
errante através os silenciosos pinheirais de Engadina, que deviam su-

ter descoberto aquelas velhas idéias, ditas desfastio, ali,


pôr quasi por
em casa de Hortênsio, em Bauli, na Campânia, só o favónio
porque
ainda não veiu crispar a face do e as nossas barcas, com esta
golfo,
calma, não fazer-se ao largo...
pódem

Cícero apenas se refere nas Acadêmicas á repetição de coisas

idênticas no espaço; mas Dernócrito não podia deixar de admitir tam-

bêin a eterna repetição no tempo. Mesmo que nada no-lo garantisse

poderíamos afirmá-lo a como possuindo o mais


positivamente, priori,
elevado de interna. Porque o que exige
gráu probabilidade principio
a conseqüência tornava também necessária a segunda. Mas
primeira
se houver um texto sobre que possamos fundamentar directamente

a nossa asserção, êle fará com que todas as dúvidas desapareçam

sôbre a de Cícero e ambos êsses textos se confirmarão um


passagem
'.
outro Ora êsse texto existe, e desta vez é Plínio no-lo
pelo quem
«O mesmo são ilusões e visões
proporciona: (que pueris quiméricas)
se deve dizer da conservação dos corpos dos homens, e da promessa
de revivermos que nos foi dada por Dernócrito, todavia nunca
que
mais voltou á vida. Mas não é isto uma loucura, e uma má loucura,

recomeçar a vida depois da morte*?» O testemunho de Plínio


querer
seria completamente incompreensível se não devessemos considerar

o filósofo de Abdera como um partidário do eterno retorno. Como

efectivamente admitir outro modo a ressurreição um filó-


podia por
«átomos 3,
sofo quem tudo-era e vazio» e o não havia
para para qual
uma alma independente da matéria — um filósofo a
que pensava que
alma como conjunto de átomos) «é corrutivel e morre
(considerada
com o corpo»?4 Um filósofo assim não admitir o
que pensa pôde
regresso á vida por qualquer processo análogo á metempsicose. Ha-

veria nisso não sómente aquela contradição íntima há entre


já que
um princípio e as suas pretendidas conseqüências, ou entre um prin-
cípio e outro princípio não formalmente contraditórios, ainda que
contraditórias na natureza das coisas, mas além disso uma contradição

explícita, formal com declarações expressas e categóricas de Demo-

As conseqüências desta dupla confirmação são


para a própria importantes
história da teoria atômica. por É
todos os universalmente
intérpretes, admitido

graças a afirmações perentórias de Aristóteles e de Theophrasto, que Dernócrito admi-


tira uma infinidade de fôrmas atômicas. Essas afirmações não parecem poder manter-se
ante o conhecimento das teorias retornistas de Dcmócrito, como mostraremos num
dos capítulos seguintes. O argumento fundamental é este: a repetição dos possíveis
só será necessária se admitirmos ao tempo a limitação
mesmo dos possíveis. Não
nos reduziremos, porém, a esse simples argumento.
Plinio, ed. Didot,
Natur. Hist., Vil, 56, 2 e 3, I, 1856, pp. 310-311 ; ed.
Detlefsen, II. 1867, p. 42.
Sext Emp., Adv. Math., VII; Diog. Laerc., IX.
Pseudo-Plut., De Placit., IV, 7.
A ÁGUIA 159

crito. Se a mesma torna á vida, é simples razão de


pessoa pela que
se repete integralmente o mesmo conjunto de átomos. Não há outra

explicação e ela é suficiente, e ela está em perfeito acordo


possivel,
com o sabemos de Cícero. É evidente por êsse processo
que que
também não haverá, rigorosamente, uma ressurreição; mas com-

a ilusão de Demócrito, vemos um filósofo mo-


preende-se quando
demo, Nietzsche, defender a sua Wiederkunft como uma doutrina da

ressurreição Não deixa também de ser significativo o facto de Plí-

nio fazer essa referência ás opiniões do abderita no mesmo momento

em nos fala na conservação dos corpos dos homens asser-


que (de
vandis corporibus hominum). Há aqui, segundo mais do que
parece,
uma simples casualidade, uma legítima associação de idéias. Isso só

nos levaria a inferir a ressurreição advogava Demócrito não


que que
era, empregarmos a terminologia da Igreja, urna simples resur-
para
rectio animae; era também, era uma resnrrectio car-
principalmente,
nis. Não resta, dúvida alguma—e mais adiante, ao tratarmos
pois,
dos fundamentos das doutrinas, o leitor compreenderá inteiramente a

força das nossas razões—que a escola de Abdera, ou, menos,


pelo
Demócrito, defendeu a eterna repetição no espaço e no tempo, o

denominar, comodidade, não com inteira pro-


que podemos por que
2.
priedade, o retornismo radical

O a Demo-
termo ressurreição (revivescendis) podia mesmo não pertencer
crito, interpretação de Plínio. E ainda quando tivesse sido
e não passar duma simples
eu
empregado sido apenas como uma simples maneira de dizer:
por D., podia te-lo
voltarei á vida = virá um outro será o mesmo que eu.
que
O íacto de Cícero se não referir ao retornismo temporal de Democrito ex-

Plica-se pelas seguintes considerações: 1.° porque não era êsse aspecto da teoria que
idênticas no
Unha relação com o debate, visto se tratar nêle apenas de duas coisas
espaço; 2.° êsse aspecto não era desconhecido de Cicero, e não podia atri-
porque
bui-lo só a Demócrito, visto conhecia dos estoicos. Essa parte da doutrina
que bem o
dernocrítea era a idéia da repetição espacial é que devia pa-
já banal na antigüidade;
recer a tarde a Fouillée,
Cicero, como a dum francês do século XIX parecerá mais
absolutamente original.
RITOS, COSTUMES E TRADIÇÕES

ii

TOTEMISMO E SACRIFÍCIO

íueremos nêste artigo dar as linhas duma hipótese


grandes
nossa àcêrca da origem e significação do totemismo,

consoante no número de «A
prometêramos passado
Águia».

Êste estudo, convenientemente retocado e documentado, fará

dum volume sôbre de ordem religiosa, sairá a lume


parte questões que
após a da «Nova Teoria do Sacrifício». Trata-se agora
publicação
apenas dum esboço ligeiro e rápido, únicamente com o fim de mar-

car a nossa no largo debate do Totemismo.


posição

Para nós o Totemismo não é um facto contráriamente


primitivo,
às vistas de Smith. Supômo-lo derivado de elementos, mais ou menos

alterados, das tradições e ritos do sacrifício, segundo a nossa


que,
teoria, é a representação da queda do homem, do original.
pecado
Esta afirmação leva-nos a retomar as crenças e do sa-
práticas
crifício, afim de verificarmos se se harmonisam com as crenças e

práticas Totémicas.

Ora, pelo que temos exposto, nesta mesma revista, poderemos


assim resumir as capitais scenas do grande drama das origens hu-

manas: Em primeiro lugar, tratemos dos figurantes, são:


que

1.° O protagonista, que representa o o antigo,


primeiro pai,
o velho, se supõe ter introduzido o uso de se comer carne.
que
2.° A da Vida, figuração dos frutos de anterior-
planta que
mente ao uso da carne, se alimentavam os Essa
prehumanos. planta
varia no sacrifício, por motivos exposemos e encontramos lá
que já,
trigo, bolos, etc.
pão,
3.° O animal, o alimento proibido, representando a primeira
vítima do fins alimentares, igualmente variável, ate-
prehumano para
nuando-se às vezes em objectos com a forma de determinados ani-

mais, ou em sangue, ou em vinho (por analogia da sua côr com o

sangue), etc.
A ÁGUIA 161

A acção do drama era a tradição da mudança de regímen, da

queda. Havia alusão à pureza primitiva abstinências, purificações


(as
e abluções, vestes brancas do etc. A scena em
padre, passava-se
local sagrado floresta, depois o templo, imagens do local
(a pri-
mitivo, onde a vida do homem decorria inocente e Não fal-
pura) (]).
tava a da da vida, a alimentação, um
presença planta primitiva
animal, era sacrificado, capital acção recordava a morte da
que que
primeira vítima; a fuga do sacrificador scena da expulsão do pa-
(a
raiso) é muitas vezes uma ia até à morte do antigo,
perseguição que
do sacrificador. Como morte da vítima tinham surgido
pela primeira
as maiores desgraças, aplacar o seu representante,
procurava-se
imolado no sacrifício, divinizando-o, tentando-se a sua ressurreição,
como, ex., na Dipólia ou reservando uma do cadaver
p. (2), parte
onde se supunha residir o da vida. Esta a nós a
princípio quanto
°ngem dos deuses vítimas, imolados homens, e ressusci-
pelos que
tam. Dissemos a tradição aludia à do dos
já que queda pêlo pri-
mitivos, aparecendo-nos em vários mitos aos do Gênesis.
paralelos
É de crêr também êsse figurasse no sacrifício. Vamos
que pormenor
encontrá-lo estudando o Totemismo. É de supôr a representação
que
dêsse fosse difícil, e se recorresse a meios engenhosos
passo que para
o simular. Veremos com efeito, assim sucede.
que,

* *

Supomos a mais antiga das tradições e o mais antigo dos


que
ritos, é o original e o sacrifício. Se admitirmos antes da
pecado que
dispersão dos a tradição da era representada,
povos já queda pode-
remos toda a terra vestígios mais ou menos remotos
procurar por
dêsse drama fundamental. O caracter sobrenatural tomou, asse-
que
gurou-lhe uma vitalidade indefinida. Essa tradição foi a primeira sciên-

cia, a origem de todas as especulações filosóficas, como se no


provará
decorrer dêstes estudos. E sendo assim, assumindo tal importância

esses ritos e mitos, não é de estranhar os selvagens da


que pobres
Oceania, América e África ainda conservem, inevitávelmente defor-

Wadíssimos, restos de tais crenças e Se nos civilizados, a


práticas.
tradição, e volvendo, deu a filosofia e a religião, nos não civilizados,
estacionando, foi-se sucessivamente adulterando, sempre à volta dos

dados fundamentais, é claro, mas, talvez êsse mesmo facto con-


por
servasse uma simplicidade vantajosa o investigador. Através das
para
descrições tão variadas de Spencer e Gillen, de Strehlow, de Howitt,

etc., apesar de todas as incongruências e contradições, reconhece-se

uma unidade, uma identidade são um excelente fio conductor.


que

O derramamento de sangue, fora do sacrifício, tirava o caracter sagrado ao


(')
local. Cf. com o que se dá nos templos cristãos.
Já tratamos de todos êstes factos em «A Águia» V. «Nova Teoria do
(2)
Sacrifício».

u
162 A ÁGUIA

Passemos uma sumária revista aos figurantes e acção das pra-


ticas totemicas, buscando analogias com o sacrificio.

O Antigo. Sabemos em regra o sacrificador era o rei,


que
e facto da de era alvo, após a morte da
que, pelo perseguição que
victima, como na Boufonia, ex., se improvisaram substitutos. Já
p.
disso tratamos largamente. Aos factos demos em apoio do rei
que
ser o sacerdote, acrescentar o facto de, na Assiria, o rei
podemos
ser o «...o rei era, na realidade, o sacerdote do deus
padre, grande
nacional. O real era ao mesmo tempo civil e religioso: o rei
poder
era verdadeiramente o intermediário entre os homens e os deuses.

Nisto, a teologia assirio-babilonica concordava com a dos egípcios

fazia do Faraó o sacerdote do Pois também en-


que grande paiz» (').
tre os selvagens os chefes do clan dirigem a cerimônia. Há, por
exemplo, o rito citado Loisy: «A direcção da cerimonia
por pertence
aos chefes do clan; são eles devem do kangurú
que primeiro provar
morto, de modo os seus companheiros por uma
purificar qualquer
unção de gordura» (2).
Outras vezes é um velho dirige as operações: «O velho
que
dirige a execução do rito...» (3).
que
A da vida e a vitima. Os totems são, em regra, dos
planta
reinos vegetal ou animal. Ha clans os dos dois reinos.
que possuem
Ex.: «Entre os Mawatas, ao sul da Nova Guiné, o totem do clan é

hereditário em linha Ordinariamente o clan tem vários to-


paterna.
tems, um totem animal, não é morto nem comido, e um ou dois
que
totems vegetaes, na maior das vezes, não são sugeitos a
que, parte
interdição» Em muitos clans, um dos totems foi
(4). parece que
absorvido outro, ficando apenas um. O totem animal, na nossa
pelo
hipótese, representaria a vitima sabemos ele era sacrificado
(já que
ritualmente), e o totem vegetal a da vida.
planta
O totem é considerado sagrado. Consome-se moderadamente

nas .solenidades religiosas. «O alimento se come nestas refei-


que
místicas, é essencialmente sagrado, e consequencia inter-
ções por
dito aos Como a vitima da tradição e a da vida
profanos» (5). planta

se diferenciaram, os animaes e serviam no sacrificio de-


plantas que
ram caracter ás tribus os usavam. E sendo os ritos religiosos as
que
dominantes dos não civilisados, as diferentes tribus
preocupações
seriam designadas especies vegetaes ou animaes que lhes ser-
pelas
viam nas solenidades sagradas, o levaria ainda os membros dos
que
vários clans a adoptarem o nome do animal ou da planta totem.

Esta nós a origem desta capital feição do totemismo—a adop-


para

ção do nome do totem.


na haviam totems —
A nossa afirmação de origem, dois
que,
um vegetal e outro animal, correspondentes á vitima e á da
planta
vida, segundo a nossa hipótese, comprovar-se hia com numerosos

— «La Religion Assyro-Babilonienne, 1910,


(') Dhorme pag. 282.
3.° pag. 403.
(2) Loisy.—«Revue d'Histoirc et de Littérature Religieuses», tomo
de La Vie Religieuse», 1912, p. 471.
(3) Durkheim—«Les Formes élémentaires
II.
(4) Loisy—Ob. cit., pag. 23 do tomo
(5) Durkheim—«Les Formes Elementaires», etc., pag. 481.
A ÁGUIA 163

exemplos. Já dissemos o facto de clans terem apenas um totem


que
representa uma fusão dos dois totems, semelhantemente ao se
que
deu na Biblia e no Avesta, em a Arvore da-Vida e Arvore da
que
Sciencia, na e Haoma e Arvore de toda a semente, no se-
primeira,

gundo, quási se confundem, a de Littré e outros suporem que


ponto
a Arvore da Vida é um duplo da Arvore da Sciencia e o Haoma du-

pio da Arvore de toda a Semente.

Haverá sacrifício dito nas totemicas?


propriamente praticas
E fora de duvida. Numa hipótese brilhante e célebre, R. Smith su-

poz que houvesse sacrifício no totemismo do deriva-


primitivo, qual
ria a noção de sacrifício. Factos confirmaram a hipótese
posteriores
do arrojado sábio, cuja teoria é um dos mais consideráveis avanços da
historia das religiões. Vários casos se conhecem de animaes sacrifi-
cados e de atenuações de sacrifício, no totemismo. «Mas hoje é
per-
mitido dizer-se num menos, a demonstração está
que, ponto pelo
feita: acabamos de ver, com efeito num numero importante de
que,
sociedades, o sacrificio totemico, tal como o concebia Smith, é ou foi

praticado. Sem duvida não temos a prova que esta pratica seja
que
inerente ao totemismo, nem seja o donde saíram todos os
que germen
outros tipos do sacrificio Mas se a universalidade do rito é hipo-
(').
tetica, a sua existencia não é contestável» (2).
O totem é morto e comido exactamente como a vitima do sa-
crificio. Acrescentemos o intichiuma e outras cerimonias totemi-
que
cas se realisam em local sagrado, identicamente ao sacrificio. Por
exemplo: «no Intichiuma da flor Hakea, entre os Arunta, a cerimo-
nia realisa-se num sitio sagrado, etc., etc.»(8). Contrariamente á opinião
de Hubert e Mauss, não deixar de reconhecer um sacrificio
podemos
atenuado na apresentação do animal morto, da etc.
gordura, (4).
Os actores do drama totémico eram objecto de numerosas e
minuciosas como os do sacrificio. As iniciações, sobre-
purificações,
tudo, ás sociedades secretas curioso—a iniciação a canibal)
(exemplo
estão cheias de factos dessa ordem.

Há, segundo a representação dum interessante porme-


parece,
nor da tradição da no culto totemico. Referimo-nos ao da
queda
queda do dificil de representar homens. Um expediente
pêlo, por
seria cortar os cabelos ou revestir-se o figurante com uma de
pele
animal e tirá-la depois, representando o desaparecimento do ou
pêlo,
ainda colar á substancias caindo, dessem a ilusão dessa
pele que,
queda. «Os actores têem a coberta com uma em
pele penugem que,
consequencia destas sacudidelas, se destaca e vôa»
(5).
Dizer-se se trata de espalhar místicos,
que germens parece-
nos verosimil.
pouco

(') Recordemos que, para nós, o totemismo deriva do sacrificio e não o sa-
crificio do totemismo.

í2) Durkheim—«Les Formes Elementaires», etc., pag. 485.

(3) Durkheim, id.


— «Mélanges Préface,
(4) Hubert et Mauss d'Histoire des Religions», pag. V.
(5) Durkheim, ob. cit. pag. 478.
164
A ÁGUIA

Notaremos ainda da mesma forma se tenta a ressur-


que, que
reição da vitima no sacrifício Mistérios Egípcios
(Boufonia, ('), etc.)
também nas totemicas se tenta a reprodução forma
praticas (grosseira
da ressurreição) do totem, curiosos o leitor
por processos que pode
ver nas obras temos citado, o até deu lugar a supor-se
que que que
o intichiuma tivesse fim único a reprodução do totem.
por
Por que motivo supõe o selvagem descende do seu totem,
que
que este é seu antepassado? Como a tradição original insistia em
que
o animal morto deu origem ao homem é, foi o uso do
(islo que por
regimen carneo, o antropoide se elevou a homem) os
que primitivos
suposeram um laço de entre eles e essa victima
parentesco primeira
que operou o milagre.

Leça, 3 de Abril de 1917. £


L-

A Águia, 64 (2.* série) — Abril de 1917.

(') V. Águia, «Nova Teoria do Sacrifício».


LITERATURA

OS NOVOS TEMPOS E A SUA

LITERATURA

II. PARECIA OUTRO"!1)

ugusto, segundo o seu costume, ficara na casa de jantar,


depois da merenda, fazer os temas do dia se-
para
e estava a/terminá-los de repente, a
guinte; quando,
mãe, M.me Lallier, entra sala dentro com uma
pela
carta na mão,
gritando:
—Augusto, teu uns dias de licença e chega cá depois
pai teve
de amanhã.

O rapaz deixa cair a caneta e deita um borrão no papel. Em

seguida, erguendo a cabeça e olhando assarapantado a mãe,


para
abre a bôca mas não diz nada.

M.me Lallier encolhe os ombros e acrescenta:


—Já mesmo.
estava a vêr não falavas. És sempre o Que
que
desgraça, a final tu não tens coração.
pequeno,
E vai-se embora, batendo com a Augusto fica só, enterra
porta.
na os dedos sujos de tinta e a cogitar sobre se teria
gaforina põe-se
ou não teria coração, monologando em voz baixa:
—Meu vem vou tornar a vêr
pai aí, meu vem aí,... lá
pai
meu
pai.
E tinha suas dúvidas sobre o caso do coração.^Parecia-lhe que
talvez devesse estar muito contente, como um condíscipulo seu do li-

ceu Didier, doido de alegria chegára a


que parecia quando^'o pai
casa na semana anterior; mas, ao mesmo tempo, sentia-se dominado

pelo mêdo. Havendo completado onze anos e evocando as suas re-


cordações mais antigas, via sempre o senhor seu a
pai^sob própria
imagem da severidade nunca M. Lallier
calculada e fria, que perdoa.
tinha despotismo inclinação satisfazer livre-
pelo uma que só podia
mente sobre o filho. Submetia-o a uma disciplina de ferro, obede-
cendo mulher
a um método educativo
que, em parte, fizera aceitar à
—culpada — e segundo
todavia de veleidades de indulgência o qual
a menor fraqueza, se convertia
principalmente para com o pequeno,
em êrro
gravíssimo, capaz de lhe tolher o futuro.

A vida de Augusto era desde manhã até à ftoite


pautada pela
c?m tam de recreio
minuciosa até os momentos pare-
precisão que
ciam de com rigor
castigo. A mais falta era sempre punida
pequena
e não havia as câricias,
rogos lhe valessem. M. Lallier proibia
que

(') UN AUTRE, conto de Frédéric Boutet, em Le journal de 14-8-1915.


166 A ÁGUIA

incompatíveis com a autoridade bem entendida e não


por julgá-las
tinha compaixão a mais leve culpa; de maneira que Augusto,
para
comprimido um terror o via a
por permanente, quando punha-se
tremer, ficava idiota e mentia, o c^ue lhe não estava nada no carácter,

e irritava ferozmente o desejava ter no filho. Êste,


pai, que gosto
sua vez, ser como os outros seus conhecidos,
por quereria pequenos
cujos os amimavam, pelo menos de quando em quando.
pais

M. Lallier nos dias da como oficial da


partira primeiros guerra,
reserva. Augusto achava-se então no campo, em casa da avó, onde

um mês ano, e não se despedira do nem o vira


passava por pai,
nessa ocasião. Escrevia-lhe porém, com regularidade e sob a vigilância

da mãe, cartas muito respeitosas e bem feitas, que êle considerava

como outros tantos têmas-escolares e o compensavam amplamente

da falta de da maior liberdade de que gosava e da supres-


punições,
são do habitual. Lá de si consigo achava que nunca vivera tam
pavor
tranqüilo e ousava até abandonar-se com delicia a uma tal ou qual
a mãe, acostumada a confiar êsse cuidado ao marido,
preguiça que
não sabia impedir bastante.
—Eu não tenho coração... não tenho coração, cantarolava

Augusto baixinho na sala de com vontade de chorar e termi-


jantar,
nando à o trabalho, a creada cómeçára a a
pressa porque já pôr
mesa.

M.me Lallier, naquela noite e no dia seguinte, encheu o po-


bre rapaz de recomendações.
E sobretudo bem teu vier. Fala com
porta-te quando pai
tino. Há tempos que me parece ouvir-te esquisitas... E não
palavras
te assustes... Nem faças asneiras... Vê se arranjas bôas notas nês-

tes dias... E depois não me tenhas essa cara de tristeza. Mostra-te

alegre à chegada de teu pai... Não, não te rias. Lem-


quero que
bra-te que é para teu bem to digo, e êle não te
que que passa por
nada. Não sei, mas as notas dos últimos meses
quer-me parecer que
não lhe hão-de agradar muito...

Augusto arripiou-se todo e, no dia seguinte, voltou do


quando
liceu, vinha com calefrios. A mãe não se deixar de o mandar
permitira
àraula, não ir de encontro aos E foi só ao
para princípios paternais.
Augusto se achou na do o tendo chegado
jantar,«que presença pai, qual,
às duas horas, logo saíra com a mulher e passára toda a tarde fóra

de casa. Augusto dirigiu-se para êle a tremer um e de olhos


pouco
baixos. O receio de dar mal as lições varrera-lhe da memória tudo

estudara e as notas eram Viu de repente o


quanto péssimas. pai
com o seu uniforme militar e foi êle sem ter a coragem de lhe
para
olhar para a cara.
—Bons dias, meu rapaz, diz-lhe M. Lallier, ao
beijando-o mesmo

tempo. Êle cresceu, acrescentou voltando-se para a mulher.

Augusto pasmava, parecia-lhe outra a voz


paterna.
Bons dias, coméçou êle com esforço;
pai, tenho o prazer
A ÁGUIA 167

Mas M. Lallier interrompeu-o e fez-lhe festas nas faces.


—Não me dirijas cumprimentos, rapaz, deixa-te disso, não
vale a
pena.
Augusto ficou atonito deante do ar à vontade do mas a
pai,
lembrança das más notas do liceu e o receio das suas conseqüências
dominavam nêle toda e impressão. Sentaram-se á mesa.
qualquer
M.me Lallier dirigia ao marido e dava-lhe novidades. Au-
preguntas
gusto aguardava com terror o momento em se ocupariam dêle,
que
quando de repente o pai volta-se o seu lado e
para pregunta-lhe:
E os teus estudos, Augusto, como vai isso?

O pequeno empalidecera e não respondia. A mãe interveio en-


tão desviar a tormenta.
para
Que tinha tido muito
propósito sem excesso, se vê....

Mas o trabalho — há tempos estou certa contudo de
já que
êle tem boas notas hoje. Não é verdade, Augusto

Êste continuava a não abrir bico.


Então como é isso, são más? repisa ela. Dá-me cá a cader-
neta. ,,

Augusto fez menção de se levantar, mas nêsse momento o

pai estendia a mão para êle, a fim de o reter. E o rapaz, receando


a antiga bofetada regulamentar, ergue logo o cotovelo com um

gesto institivo defender a cara.


para
Produz-se silêncio. M. Lallier estremecera todo e, olhando
para
a creança, apoiou-lhe brandamente a mão no abaixou-lhe
pulso, o
braço e disse-lhe com a maior simplicidade:
—Eu estendi a mão para evitar te levantasses da mesa. Se
que
tiveste más notas e não déste bem o teu recado nêstes últimos me-
ses—, deixa lá, o ano farás melhor. E não falemos mais nisso.
para
M.me Lallier olhava espantada o marido.
para
—Então
que queres tu? diz-lhe êste a rir, não cuidas certo
por
que eu estou aqui de novo ralhar? E olha até me
para que parece
poder contar com êle para o futuro

E, como o rapaz fosse sacudido nesse momento uma tre-


por
mura violenta, o inclinou-se êle e falou-lhe com ternura:
pai para
Que
tens, meto-te mêdo? ou é me não reconhe-
porque já
ces, um ano ?
passado
Augusto não respondeu. Se dissesse a verdade, confessar-lhe-ia
com efeito não o reconhecia. Não teve
que porém coragem para tanto;
levantou apenas os fixando-os
olhos, no dirigindo-se à mu-
pai que,
lher, continuava:
—Com a vida
que levamos em campanha, vês tu, a gente
muda bastante. Umas tantas cousas pequeninas de outros tempos, as

Pequenas vaidades, o mau os autoritarismos e maldades


gênio,
tudo acabou, compreendes? Não há tempo tais mesquinha-
para
rias perderam
o pouco valor que tinham e rimo-nos delas
Porque —
só uma cousa vale: a certeza de os nossos, os
que que
deixamos
atrás de nós, aqueles por nos arriscamos.... a cer-
quem
teza de
que êsses pensam em nós bem, compreendes? nos
para que
estimam,
que teem saudades de nós sem restricção
168 A ÁGUIA

Ficou calado uns instantes e, voltando-se o filho,


para pre-

guntou:
— E tu, Augusto, também compreendes?

Pousára a mão na cabeça da creança segurando nela, a eri-


que
costou à cara e, naquele momento, deixou de invejar os outros.

III. UM PREFEITO DE COLÉGIO


(')

Os anos, os desgostos e a miséria não tinham conseguido em-

botar no snr. Celestino Paponel o que êle com leve ironia e


próprio,
desdem, chamava a sua sensibilidade doentia. Aos cincoenta e cinco

anos de edade, e apesar duma longa e dolorosa experiência, conser-


vava ainda a mesma viveza de impressões de trazido um
quando, por
sonho de desembarcara em Paris, trinfanos atrás. Nada
glória, po-
rêm lhe restava das ilusões desse tempo a não ser, aliás duma forma
aguda, a capacidade de sofrer. Sofria de ter estragado a vida por pre-
-guiça, fraqueza e intemperança, e de ser um boêmio incorrígivel;
por
sofria de nem um só momento o deixarem em os seus crédores
paz
de outros tempos, aos com mêdo de escandalo, entregava
quais quási
todos os seus magros vencimentos; sofria de se vêr só no mundo e
de não ter, nem saber inspirar afeição a ninguém; sofria sobretudo,

quotidiana e cruamente, da maneira como o tratavam no colégio

Bance.

Êste colégio dirigido imponente snr. Nestor Bance, era


pelo
êle mesmo denominado—casa de educação de or-
por primeiríssima
dem, e correspondia de facto a esta classificação, causa da ele-
já por
vada mensalidade que os alunos, êstes, sendo fi-
pagavam já porque
lhos de famílias abastadas e destinando-se ao bacharelato, segundo

rezava o prospecto, eram admiravelmente tratados e duma


gozavam
independência. De entre êles, os trabalhar
grande que queriam po-
diam fazê-lo, porque o director, homem de consciência a seu modo,

lhes dava bons professores; mas também os cábulas mandriavam à


vontade. O snr. Bance, ^elozissimo dos interesses compra-
próprios,
zia-se em considerar os seus alunos como relações da melhor socie-
dade; seria pois indesculpável inconveniência contrariá-los na menor

cousa. Sentindo porém uma violenta e constante necessidade de dar


largas ao seu carácter despótico, descarregava em Paponel.

Êste, antes de entrar no colégio, conhecêra a mais negra indi-


e agora aterrava-o a idéia de o logar. Bance sabia-o e
gencia, perder
abusava. Então, desde o começo da como diminuíssem os lu-
guerra,
cros do estabelecimento, reduzira-se o e a sua retribuição;
pessoal
de forma que o pobre com menor ordenado e mais serviço
prefeito,
a seu cargo, vivia a vida mais aflictiva imaginar-se. O di-
què pode

(') MONSIEUR PAPONEL, conto de Frédéric Boutet, em Le journat de


4—12—1915.
A ÁGUIA 169

rector tratava-o como um mendigo, os não o conheciam,


professores
os creajdos desprezavam-no; de contínuo lho mas
provavam, eram os
alunos lhe faziam os bocados.
que passar peores

Naquela manhã Paponel ao estudo da última classe. Os


presidia
alunos estavam tam bem instalados na vasta e confortável sala como
se se achassem num botequim: uns liam e discutiam os últi-
jornais
mos telegramas da outros dormitavam nas bancadas do fundo,
guerra,
e algun^ escreviam cartas; a um canto, dêles
poucos, quatro joga-
vam o bridge; encolhidos, ao duma boca de calôr, dois creoulos

fumavam cigarros olhavam apavorados a chuva cortada de
,e para
neve batia nas vidraças; e uns ouviam o seu condisci-
que quantos
pulo Roberto Erlange lêr-lhes várias passagens duma carta rece-
que
bera há E nènhum dêles sentia necessidade de se incomodar
pouco.
fôsse fôsse. O era como se não existisse. O seu
pelo que prefeito
corpo descarnado, vestido de no fio, o chapéu alto esver-
preto já
deado, um nariz enorme na cara macilenta, a barba raía, a fronte es-
calvada, tudo issd fazia dêle um complemento sem valor do
junto
mobiliário escolar. Tanto valia êle lá estivesse como não. Era
que
costume tradicional não dar êle.
por
Sentado à banca com a cabeça entre as mãos, o homem
pobre
finge lê, faz não vêr nem ouvir os alunos, dar-se
que por pretendendo
assim um ar de compostura. Lembra-se então de todos os momentos
dolorosos suportados durante anos, ali, naquele mesmo logar. Lem-
bra-se das raras vezes em inutilmente tentara impor um vislumbre
que
de autoridade, do inferno assim havia e do snr.
que provocado
Bance o despedir. Lembra-se de todos os mancebos
querer que
por ali tinham e diante dos se sentira desarmado, in-
passado quais
ferior e humilhado.... sem ter coragem romper com
jámais para
tudo e com todos.

Mas, menos se ouve um dos rapazes, Ro-


quando percatava,
berto Erlange, dirigir-se em voz alta, dum extremo da sala, a certo
eondiscipulo estava no lado oposto. Não fingir não
que podia que
ouvira e, batendo com a regra na mesa,
precipitadamente, grita-lhe
agastado:

— Sr. Erlange, cale-se!

Foi um assombro em toda a sala. E todavia Erlange nem vol-


tou a cabeça.
—Não é nada, exclama Patapon.,
com todo o descaramento. É

E repete a fizera anteriormente.


pregunta que
Paponél fez-se de mil cores, ainda esboçou um movimento para
se levantar; mas viu-se no olho da rua, sem E, vencido, meteu
pão.
de novo a cabeça mãos.
entre as

Á força de aturar rapazes, até creanças apesar dos ares


quási
Que se davam, tornára-se a e infantil como êles, e o
pouco pouco
"orne
de Patapon soava-lhe como a suprema injuria. Fora Eduardo
Erlange, irmão infligira havia
mais velho do Roberto, que lha três
anos.
Eduardo freqüentava nêsse tempo o colégio Bance e Paponel
"
^

170 A ÁGUIA

não podia pensar a sangue frio nos constantes tormentos lhe fi-
que
zera sofrer aquele moço desdenhoso, elegante, trocista e indolente,
•que
o irmão agora imitar sem todavia lhe chegar aos calca-
procura
nhares. Um dia conseguira ele descobrir o- mais molestava o
que que

pobre prefeito, acima até dos chinfrins e das contendas, era a inso-

lência muda ei persistente; foi êle aparentou ignorar a


que primeiro
existência de Paponel e definitivamente o desconceituou
que perante
o colégio inteiro; e, cúmulo, inventou também essji alcunha,
para
êsse derivado pejorativo, êsse Patapon infame havia causado
que ge-
ral entusiasmo e, durante semanas, ecoara de sala em sala, chegando

a fazer sorrir o e magestoso snr. Bance.


próprio
Paponel sofrerá atrozmente e ainda hoje sofria recordando-se

dêsses pequenos nadas a não era superior e lhe


que que pareciam
cousas enormes. Mas pouco a serenou e as horas do estudo
pouco

passaram sem mais nada de maior.

Depois de almoço foi tomar conta do recreio, outra ilusão. Os


rapazes lá estavam reunidos num compacto, em meio do
já grupo

qual se via um uniforme militar. Paponel deu alguns nessa di-


passos
recção, mas estremeceu ao reconhecer Eduardo Erlange. A seu lado

Roberto, muito corado e doido de alegria, fazia os maiores esforços

para conter as lágrimas, e o sr. Bance falava e com


paternalmente
visivel satisfação. Ainda lhe chegaram aos ouvidos algumas
palavras
destacadas: «Ferido— convalescente Tu és oficial conta

lá.... »

Não avançou mais. Continuou a observá-lqs e sentia


porém
uma impressão estranha. Todos ali estavam di-
quantos pareciam-lhe
ferentes do haviam sido; não só Eduardo Erlange com o seu
que
uniforme cossado e em que nada encontrava do adolescente afec-

tado e descuidoso de outros tempos, mas todos eles, seu irmão Ro-
berto, os companheiros e ate o director cuja comoção sin-
próprio
cera se lhe refleclia na face larga. Nêsse instante Paponel sentiu-se

mais só e desgraçado do nunca; e o seu coração en-


que pobre
cheu-se duma amargura infinita. Quizera aproximar-se também, mas

receava dos irmãos lhe dirigisse uma insolência,


que qualquer
naquela hora mais do nenhuma"outra êle. E conti-
grave que para
nuou a automáticamente ao longo da do ou-
passear parede pateo,
vindo apenas bater as abas da sua velha sobrecasaca lhes
quando
dava o vento.

Por acaso, ao voltar-se, abriu-se o dar ao


grupo para passagem
director se retirava; Eduardo Erlange viu o e os seus
que prefeito
olhares cruzaram-se. O mancebo, fazendo então um leve movimento,

dirigiu-se para êle. Coxeava um e o notára-o.


pouco prefeito
—Como está, sr. Paponel?
preguntou. E estendeu-lhe a mão.

O diabo estremeceu, fez uma careta e, engrolando as


pobre pa-
lavras, apertou-lhe a mão.

Erlange fitou-o calado durante algum tempo. Era a


porventura

primeira vez compreendia a sua miséria, a sua fraqueza, todo


que

i
A ÁGUIA
171

aquele aspecto velho e resignado. Talvez até sentisse um remorso


confuso, ou houvesse aprendido a não fazer sofrer os nunca cau-
que
saram mal, êle mesmo
porque sofresse; a não ser vendo-se
que,
moço, valente e curado dos seus ferimentos, mostrar-se ama-
quizesse
vel
para com todos.
—EAtão
ainda cá está? fim. Tenho
preguntou-lhe por prazer
em o vêr, sr. Paponel — Estimo-o muito. sorriu-se um
(Aqui pouco
contrafeito). Atormentam-no, bem sei; mas não deve fazer caso de
isso. Creia os seus discípulos
que são todos seus amigos, embora o
não — Em campanha
pareçam lembrei-me muitas vezes de si.
E mais não disse. Qs rapazes escutavam atentos; Eduardo po-
rêm afastou-se seguido
por todos êles e foi-se embora.
pouco-depois
Tocára a sineta.

Paponel, de volta à sua cadeira, abria um livro e,~com a cabeça


entre as mãos, dispunha-se a suportar mais uma ve£ o martírio habi-
tua}. Mas, lá consigo, repetia: «Os seus díscipulos são todos seus
amigos, ainda o não — em campanha
que pareçam lembrei-me de
si....»

Nisto, Roberto, chegára açodado causa da despedida


que por
do irmão, levanta-se e, no silêncio da sala, delicadamente:
pregunta
—Dá-me
licença, sr. Paponel, de ir ao meu buscar um
quarto
livro lá deixei ?
que
Paponel disse sim. E menos a
que pareceu-lhe pesada sua
cruz.
%

(Trad. de A. àrroyo).

f
EM FRENTE Á MORTE

LVA. Primeira linha—A cotovia

Passa no céu macio e sobe e canta.

illfl
É um novo dia igual se levanta
que

Entre a Vida e a Morte, um novo dia...

Eis o silencio agora enerva e espanta!...


que

Mas o Sol vem. É a doirada orgia

Do Sol sobre a de agonia


paisagem

Que a em vão e encanta!.


primavera perturba

Olho a linha inimiga. Tenho o


peito

Á altura da Morte... Um camarada

Inglês avança e diz, risonho e forte:


Anch'io sono ao
poeta!—E parapeito

Sobe e, na luz febril da madrugada,

Fica de desafiando a Morte!


pé,

França. Maio—1917
A VOZ DO AMOR

ingar-se ! Ha-de vingar-se !

E riu, num riso nervoso de triunfo, num riso ti-

lintante de cristal, ao voltar á sala depois de lhe

haver fechado a sobre as costas.


porta
Saíra furioso. O macho, o dominador, o déspota, vendo-se
desobedecido, tirar vingança — dura vingança!
jurára E que mêdo,
senhor Jesus! mêdo tão da sua cólera e da sua ameaça!
Que grande
E agora, deante do espelho do alto tremo, no abraço da moldura
flexuosa onde se espreguiçavam de rosas doiradas, Marga-
grinaldas
rida admirou o atagueado do seu rosto. A face, congestionada, seme-
lhava •
um ferro ao rubro. Os lábios, sangrando, eram rebordos de
ferida a ressumar. Os olhos, febris, luziam como brasas a arder. E todo
o seu aspecto — desde o cabelo revolto e a expressão inquieta, ao
sorriáo crispado — denunciava
a agitação surda, o rescaldo da
quente
batalha sustentara, e em vencera, entrincheirando-se
que que numa
formal recusa.
— Não,
não, não !

E não. Podia estar certo disso — tão


certo como dizê-lo.

Passou face a mão tremula, num afago Amaciou


pela iigeiro.
o cabêlo. Compoz sobre o esboço do decote o tomara
que ele
por
tácita — a rosa
promessa chá que se balouçavá na curva de anfora
do seu seio. E como sentisse, mais viva, a necessidade de arejar, de
se distrair, de se mexer, — resolveu descer até á Baixa.

Quanto à vingança... seria melhor nem em tal. A vin-


pensar
gança! Suplicára Ah, o senhor Pedro! Nada conseguira su-
primeiro.
PÜcando. Recorrera ao suborno. Oferecera-lhe carruagem, e di-
jóias,
nheiro nunca vira no tempo em viviam — supunha
que que juntos
ela, ingênua! mais do duas raizes
que juntos que do mesmo tronco,

perpetuamente destinadas á mesma seiva. A sua alma, não se


que
vendia — se lhe —>¦ repudiara
que déra a numa indignação
proposta,
fremente.
E fôra então, desatendido ao suplicar, humilhado ao ofe-
recer,
que lançara mão do supremo argumento. Fôra £ntão a
que
ameaçara,
numa voz convulsa de desespêro.

O si, não estava nas ameaças. As ameaças,


perigo, para pelo
contrario,
ampararam-na, impediram-na de cair segunda vez. As suas
súplicas,
a certa altura, por a não levaram á
pouco queda, quasi
desejada.
Tivera nas fontes o latejar da vertigem. Ainda momenta-
neamente
se desiquilibrara. Entreabrira os braços á cruz que a atraia

que seria, não o duvidava, uma cruz de njartirio. Mas Pedro não
3 compreendera, Pedro não notara o seu movimento de fraqueza,
faltara
logo o suborno.
para
174 A ÁGUIA

Daí a nada entrava na- ameaça.

E assim a refizera, temperando-a, tornando-a capaz do heroísmo

dessa resistencia firme, dessa força inquebrantavel.

Era só aborrecer-se, deixa-la outra e voltar lhe


por quando
aprouvessef... Era só feril-a no seu amôr, 110 seu coração, na sua

alma..,, e ao aceno, entregar-se de novo,


primeiro pronto! perdoar,
como escrava ao seu senhor!... Pois enganara-se. Não, nunca mais

sentira nos braços a onda voluptuosa do seu, corpo. Nunca mais sor-
veria, num beijo, o mel ardente da sua bôca.
Filha...

Minha mãe... — e respondendo, e despertando, viu a mãe

a sey lado, vestida de negro como sempre, mas, contra o costume,

com um vinco apreensivo na fronte, entre as sobrancelhas.


Tenho
estado a scismar nas ultimas palavras do Pedro. Ou-

vi-as, sem querer. Falou, tão alto! voz! Fez-rne im-


gritou Que

pressão...
Mamã, mamã!
-Era o o Ernesto, de
pequerrucho, filho Margarida, o melhor

capitulo do seu romance de trez anos na companhia do marido. Tinha

dote anos e meio — e uma cabeça de anjo de Murillõ, fluctuando

numa nuvem de oiro, e um riso de e uns olhos como estrelas,


gorgeio,
e uma alvura lembrava o luar.
que
Meu filho! — Abraçou-o, apertando-o a si, beijou-o com

muito ardor, pedindo á mãe que não se preocupasse, não ligasse


que
importancia a essá voz trovejante de Ferrabraz.

Pedro, cavaqueava com um amigo, o João, á do


qu,e porta
Suisso, viu Margarida num electrico. Estranhou-lhe o ar despreocu-

pado a seguir á scena recente. Irritou-o a sua tranqüilidade solene


— e aquele chapéu de pluma cinzenta, parecia acenar, se
que que
lhe afigurou uma provocação.
Olhou o amigo, fito. Propôz, incisivo:
Ouve lá... ir comigo, de automovel?
queres
Aonde?

Digo-to /
pelo caminho ...
Vamos...

Chamou um automovel. Deu-lhe a rua, rua das Picôas, e o

numero da E Avenida fóra, aos bordos dentro do carro, sob a


porta.
luz scintilante do sol de maio e o hálito acariciador das olaias, já
que
haviam vesijdo as suas túnicas de renda lilaz, foi-o ilucidando.
Tu vaes fazer de alfaiate...
Alfaiate? Ó homem, não sei cortar escala! E o metro, e
por
a tesoura?

Pediu-lhe o escutasse. Tratava-se de assunto serio, era


que
necessário resolvê-lo com seriedade. A Margarida não estava em casa.

Vira-a momentos antes, num electrico, em direcção ao Rocio. Para o

Rocio, han? E xom aquela pluma no chapéu, uma pluma, atrevida,


desonesta, aliciadora! E aqueles modos de só pelo olhar,
quem,
desafia ao amòr!...
A ÁGUIA
175

Era capaz de ir encontrar-se com dos


qualquer muitos admira-
dores a solicitavam.
que Ora, impedir a sua
precisava queda, custasse
o custasse. Não
que por ela. Por seu filho, em se reflectiria,
quem
no futuro, a situação e a vergonha da mãe. Estava disposto,
porisso'
a recorrer à violência, se tanto lhe exigissem, na ansia de evitar um
desvario á mãe do seu Ernesto ...
E
que tem com todo esse drama a fita métrica do alfaiate?
Silencio. Não havia tempo a Para impedir
perder. a desgraça
de Margarida devia tirar-lhe
primeiro o filho ...
Tirar-lhe
o filho?!

Sim, o filho. E então, se vê-lo, impor-lhe-hia


quizesse uma vida
honesta, uma vida E
pura. se se exaltasse, se tentasse o escandalo
ou a leva-lo-hia comsigo
justiça, para o estrangeiro.
Precisava raptar o não era assim
pequeno, ?
Muito bem. E havia de executar o rapto,
quem havia de ser
ele, João, o seu melhor amigo...
Eu ?! Nunca !

Pediu-lhe outra vez se calasse. Nada de exageros.


que Demais,
não um acto criminoso. Dava a
praticava sua colaboração, con-
pelo
trario, ao salvamento duma creatura —
humana salvando duas al-
mas num só esforço.

Apresentava-o á avó do seu filho como alfaiate. Na vespera


prometera levar-lhe um fato—ia tirar as medidas desse fato. E apro-
veitando o ensejo,
primeiro desceria com o
pequeno, que o conhecia,
mete-lo-hia no automóvel, seguiria com ele ...
para
Para
onde?

Para casa da tua tia, em Algés, exemplo


por ... Simplesmente,
exijo-te o maior dos segrêdos...

João avultou o da dos


perigo policia, jornaes, dos juizes. Se
a interviesse?...
policia
Deixa
lá... Isso é comigo. Saberei
preveni-la de ao
que,
menor movimento de
protesto, o desaparecerá, desaparece-
pequeno
remos no mistério dum distante.
paiz
E aqui? —inquiriu
o chauffeut, o carro, inclinan-
parando
do-se traz.
para
Desceram. Em cima, no segundo
patamar, Pedro tocou a cam-
painha. Perguntou á creada senhora.
pela
Não
está.-
E a —E
mãe? antes dela responder:— Ah, olhe... Vá bus-
car o menino. Este senhor vem tirar-lhe a —In-
medida dum fato.
'cou a sala — Entre...
de visitas: o pequeno não demora.
A creada foi cumprir as suas ordens—e
ele, sereno, risonho,
avançou
para a sala de beijou os dêdos da mãe de Mar-
jantar,
garida.

Daí a instantes ouvia arfar, buzinar automóvel


o que se afas-
Tava.
Respirou fundo.
Trocou meia dúzia de discrectas. Despediu-se.
palavras E ao
pôr
Pe na rua, a avó, em cima bradava, angustiada:
Ernesto!
Ernesto!
176 A ÁGUIA

Tinham duas horas sobre o rapto de Ernesto. Um


passado
automóvel estacou em frente da sua casa apalaçada. Um crèado en-
tregou-lhe o cartão de Margarida.
P'ra
o escritorio...

Entraram ao mesmo tempo — ele numa


placidez sorridente,
cofiando o bigode; ela num andar constrangido, os olhos vermêlhos,
a face arrepanhada.
O meu filho?
Não sei...
Não sabe! Que vingança, senhor Pedro de Amaral! Não
sabe?! Pois bem. Vou daqui á A se encarregará de o
policia. policia "aprumou-se,
— Mudou de voz,
procurar... mudou de atitude, num
impeto de cólera, num silvo estrangulado:—Odeio-o! Se
gritou, queria
fazer-se odiar, odeio-o como nunca!

Mas caiu logo, numa a soluçar — o cotovelo fir-


poltrona,
mado na tremente, o na dos dêdos crispados, os
perna queixo garra
olhos fitos na lanugem sangüínea do tapête.

Pedro, no melhor dos seus sorrisos, no tom mais veludôso da


sua voz, falou-lhe de manso, sentou-se noutra a seu lado.
poltrona,
Odiava-o, não era verdade? E se ela o amava como sempre?
porque,
Odiava-o muito, sem remissão. Pois bem — ele, se
que sabia odiado,

resolvera isolar o filho, o seu filho, da influencia de esse odio dissol-


vente. Fôra ele o raptára ...
quem
Margarida de agitada, num repassado
pôz-se pé, gritando, grito
de maternidade:
Ernesto! — e fez menção de correr o interior daquela
para
casa outr'ora familiar, onde os seus dias de noivado.
gosara primeiros
Prendeu-a por um pulso, disse-lhe era escusado não
que gritar, que
seria ouvida. O pequeno estava longe. E se recorresse
porventura
ao escandalo, se recorresse á violência na intensão de o rehaver,

nunca mais o veria —


porque o levaria paia mais longe, o
porque
levaria para o estrangeiro...

Oh, que crueldade, Nosso Senhor! Como lhe no


pesava peito,
e a amarfanhava, a vingança brutal—aquele sonho, aquela realidade,

aquela alucinação! Dobrou-se, de Quasi ergueu as mãos. E


joelhos.
a soluçar, e a balbuciar, suplicou o não afastasse do seu
que paiz.
Ela não iria á Jurava não ia á Só
policia... que policia. pedia que
lho deixasse vêr, lho deixasse beijar...
que
E
fazes o quê...?
Sim, o o senhor
que quizer...
O senhor! — As
palpebras semi-descidas, as mãos tacteantes,

segurou-a pelas espaduas, tacteou-lhe as espaduas, murmurando,

cerrando os dentes: — Não digas senhor... Tu, não é verdade?

Dize... fazes o te ?
que pedi
Sim, o
que quizeres... Mas, onde está?
—Juras?

Juro.

Jura...

Por
tudo... P'la minha felicidade...
A ÁGUIA 177

Está em Algés, em casa da tia do João, do João Menezes,

sabes ? E agora...

Margarida tornou a erguer-se, inteiriça, forte, resoluta, inabala-

vel. Desprendeu-se dele, num repelão, caminhou a porta da


para
escada, num de rainha.
pisar
Pedro riu. E dum a fechou-a á chave,
pulo, ganhando porta,
meteu a chave ao bolso. Depois, ligeiramente escreveu
perturbado,
duas linhas rapidas numa folha de papel.
E ela, ainda inteiriça, ainda soberana:
Para é esse
que papel?
Sem responder, friamente, sobrescritou-o.

E tocando a campainha, chamando o creado:


—Vou manda-lo ao João. São instruções secretas. Daqui a uma

hora auctoriso-a a ir a Algés o seu filho ...


procurar
O creado, de fora, preguntou:
Posso entrar?

Foi ela respondeu, estorcegada, humilhada, cingindo Pe-


que
dro, arrancando-lhe a carta.
Não, não é nada !

E caiu-lhe nos braços, e escorregou-lhe dos braços, pesada,


inerte, os olhos vidrados como num espasmo, a cabeça pendida
como na Amparou-a. Beijou-lhe a bôca — estava frja. Beijou-
morte.
-lhe —
a testa estava gelada.
Margarida! — clamou, cheio de terror.

Tinha desmaiado — despertar daí a beijando-o,


para pouco,
rindo, chorando, na aurora dum novo dia de sol, consolada comsigo

mesma não cedera, porque fôra forçada a ceder...


porque

Lisboa, jan. 1916.

CrJiC.

^<4Lm

12
LE NÔMADE

(CHANSON ARABE)

UTREFOIS, avant ta venue, à travers les abimes


je galopais

depuis 1'aurore soir!


jusqu'au

Autrefois, avant ta venue, n'avais ni sol ni demeure,


je

ma était le monde et ma tente, ailleurs chaque nuit


patrie

frissonnait sous 1'étendart des étoiles!

Mais tu es arrivée et tes bras autour de mon cou

sont un collier d'albâtre tiède oü m'enserre immobile . ..


je

Cependant, lorsque le vol des hironcjelles


quelquefois,

monte haut vers 1'Occident, songe à ma vie


plus je passée...

Bonheur! Bonheur! Pourquoi mas tu choisi?

Le simoun est libre la brise


plus que

et le désert 1'oasis...
plus grand que

(Vicomtesse de Rouge).
<
INTERPRETAÇÃO

DO SEBASTIANISMO

'

. •'
/ .
da Evolução do Sebastianismo do snr. J. Lúcio de Azevedo).
(A propósito

snr. Lúcio de Azevedo, além do consciencioso dos pro-

cessos e do senso das realidades tanto realçam os


que
«particular-
seus estudos, extrema-se ainda mérito,
pelo
mente interessante, de escolher assuntos de visceral im-

na evolução social do nosso como o as suas


portância país, provam
obras sobre Pombal e sobre os Judeus A êsses traba-
portugueses.
lhos e decerto aquela
(ignorados pelo público pelos jornalistas, por
razão fazia dizer a D. Francisco Manoel «o mundo é uma
que que
feira dilatada, onde só vendem suas mercancias os chatins e charla-

tães, a e vizagensa inculcam») veio agora juntar-se


que gritos, geitos
a Evolução do Sebastianismo. .

O Sebastianismo! nubívaga retórica não tem éle inspi-


Quanta
rado à literatice dos nossos dias! Mas deixemos em a literatice,
paz
e não tentemos, também, discutir de erudição histórica,
questões
senão a do livro do snr. Azevedo e fundados nêle,
que, propósito
as infereticias de carácter filosóíico-social a que,
procuremos quais
licitamente, os factos estudados Sua Ex.a abrir margem,
por poderão
reunindo elementos com esclarecer o nosso espírito colectivo, já
que
no no Num historiador ser daninho êste
passado, já presente. poderia
intuito de sistemática; mais: maior fôF o seu desvio de pre-
quanto
ocupações desta espécie, com maior segurança se estribarão nele o

sociólogo ou o o ou o Porém a. nós,


político, psicólogo publicista.
não vamos agora investigar factos, ninguém nos levar a mal
que pode

teorizemos um e visto temos factos bem averigua-


que pouco; que
dos, não nos façamos escrúpulo de divagar sôbre êles.

É sabido Oliveira Martins esteve o mais longe é possível


que que
daquele ideal de objectividade, e, organicista místico, desenhador ca-

formosíssimos imitador de Michelet, de Quinet e


prichoso de painéis,
de «uma manifestação do natu-
Renan, viu no sebastianismo gênio
ral «sentimento inconsciente», um «pensa-
íntimo da raça», um

samento a «o elemento primitiva-


natural orgânico», provar que
mente é, em Portugal, o celta». Em
dominante nas populações
resumo, fantasia do romântico e frágil historiador deu isto: a na-
a

Ção é, fazei conta, uma triga, levada pela juxtaposi-


portuguesa
inatural três elementos rácicos diversos: ao meio o Lusitano,
Ção de
ou Celta; ao norte o Galego, impando de sángue suevo; e ao sul os
180 A ÁGUIA.

Turdetanos, com o sangue adubado berberes. Do caso


por globulos
de a haverem com o Galego e o Turdetano ao mesmo carro
jungido
resultou a raça celtica não construir na Lusitânia
político que pôde
uma história, instituições e religião do seu como na
próprias gênio,
Irlanda, na Escócia ou na Bretanha. Mas criar o sebastianismo,
pôde
característico do dito e a alma colectiva, «por um
produto gênio;
mistério vedado à razão», encarnou, como não deixar de ser,
podia
em dois Lusitanos, um de Penamaçôr, o outro da Ericeira.
puros
« Quando a alma nacional rebentava num soluço íntimo, o grito não po-
dia vir nem do norte nem do sul turdetano». Não more
galego, podia;
se deduz não é verdade que houve o pasteleiro
geometrico que podia;
no Madrigal e o Marco Tullio em Veneza; mas isso são imposturas,

«curiosidades», «meras curiosidades da história», «curiosidades sem

alcance». «A raça é uma vertigem», dissé Friedrich Müller; e Niet-

zsche: «quanta hipocrisia e amor da trampolina não são necessários

levantar a das raças no embroglio da Europa moderna


para questão
sobretudo se não é originário de Hornéu ou de
(supondo-se que
Bornéu)! Máxima; evitar todo trato com criaturas se tenham
que
metido no vjcioso negócio das raças». Parelham frisantemente o mis-

ticismo da raça e o recurso àquele «mistério vedado à razão» com

Oliveira Martins nos vai brindando. Não menos misterioso é o


que
critério se decide o povo da Ericeira não é impostor,
pelo qual que
mas o é D. João de Castro, o neto do vice-rei, faccionário de Marco

Tullio seria êle da Lusitânia?) bem como o reagente que delata,


(não
na histórica, os fados são «curiosidades», destraman-
química que
do-os dos o não são.
que
Á falta de conhecer tal reagente, os factos expôs-
presumo que
tos no livro do snr. Azevedo à espécie das «meras
jião pertencem
curiosidades», sendo assim contar com êles infirmar
permissivel para
ou reforçar a de uma doutrina. Nêste presuposto, con-
plausibilidade
clúo êles embargam a teoria racial, tão cara a Oliveira Martins e
que
aos modernos devaneadores, conclamando o messianismo ban-
que
darrista, longe de ser o de um espírito rácico foi
produto português,
um dos componentes ou factores da imaginação da deca-
portuguesa
dência, ao encontro de ideas alheias com factos históricos su-
graças
As dessas ideas alheias são as do mes-
pervenientes. principais puro
sianismo hebraico, expresso em trovas do Bandarra inspiradas pela
Biblia,—sendo de notar se interessa essas trovas, as
que quem por
copia e as divulga são Hebreus cristãos-novos, aferrados no íntimo, à

religião da sua estirpe. A existência do cristão-novo, comprimido, ân-

sioso de redenção, é a causa do desenvolvimento do mes-


primeira
sianismo em Portugal: o ou não
pôvo propriamente português (celta
celta, mas emfim, não-judeu) extranho a êsse fenômeno, até
parece
ao momento em desgraças estupendas, o da da in-
que perigo perda
dependência, o desaparecimento de um monarca, vêem dar relevo

especial aos versos do sapateiro.

O Bandarra lêra a Biblia assiduamente, durante oito ou'nove

anos, «e ter memória», conforme declarou no Santo Ofí-


por grande
cio, «asy lhe ficou as na cabeça». E de tal maneira
principais partes
A ÁGUIA 181

a sabia maravilhava os seus ouvintes, os já o figuravam


que quais
«um teólogo», tendo-o os Judeus encobertos, em cuja
grandíssimo
sociedade vivia, uma espécie de rabi. Vinham consultá-lo à loja
por
sôbre a interpretação dos textos e a realização esperavam das
que,
velhas Os vaticínios saiam do Antigo Testamento, como êle
profecias.
próprio nos afirma:

Muitos podem responder


E dizer:
Com que prova o çapateiro
Fazer isto verdadeiro
Oii como isto pode ser ?
Logo quero responder
Sem me deter:
Se lêrdes as profecias •
De Daniel e Isaias
Por Esdras o podeis ver.

Isaias, um rei virá há-de assegurar


Copiando profetiza que que
—o Messias os es-
definitivamente o direito e a justiça: que judeus

o e último império anunciado Daniel. Então,


peravam, e quinto por

como todos os serão convertidos à fé do verdadeiro


na Biblia, povos
Deus; reaparecem as tribus de Israel e, àcêrca do manan-
perdidas;
ciai dos seus ditos, o oráculo confirma: >

Tudo quanto aqui se diz


Olhem bem as profecias
De Daniel e Jeremias,
Ponderem-nas de raiz.

bíblicas agrega-se logo de começo a idea do


Às puras profecias
Encoberto, não também esta do mas impor-
oriunda povo português,
tada de Cerca de 1520 começaram a divulgar-se na Espanha
Castela.
textos uns exumados de escritos atribuídos a Santo Isido-
proféticos,
ro, outros de Merliin andariam tradicionais, outros porventura
que
inventados A incarnou em 1532 num Judeu
na ocasião. personagem
os sublevados de Valencia. «Los
que capitaneou durante dois anos

de como a su llamandole el Encubierto,


Xativa le seguian Redentor,

remediar los Em 1597 escrevia


y que Dios lo enbiava para pueblos».
D. «Correm em Portugal e em Castela umas profe-
João de-Castro:
cias de Santo Isidoro prometem todas um grande príncipe
quasi
esenhor, senão Encoberto». O caudilho de
ao não nomeiam pelo
qual
Valencia mas teve sucessores, cada um dos quais
morreu no patíbulo,
se redivivo. não é então, e em
dizia o Encoberto <jPois já
próprio
Espanha, e da Ericeira? o «celticismo» lusitano
o caso de Penamacôr
em Valencia, com a vantagem da prioridade?
a frei João de Rocacelsa, o ara-
As copias espanholas atribuídas

gonês, falam também no Encoberto:

mar airado
Sube por el
Un crusado prisionero
Encubierto aventurero,
Llegara de dia al prado j
Aun que amafiessa primero.

\
182 A ÁGUIA

Andavam então os Judeus muitos amartelados pela sua espe-

rança secular no Messias. O israelita português Isaac Abrabanel au-

1503 a chegada do Prometido; para cumprir o prognós-


gurara para
tico apareceu em 1502 em'Istria um aventureiro a dar-se Messias,
pelo
e a notícia logo se divulgou por toda a Itália, com grande alvoroço

da judaica. Muitos cristãos-novos tomaram como Messias


população
o cristão-novo Luís Dias, alfaiate em Setúbal; cêrca de 1526 chegara

ao nosso país um Judeu, David Rubeni, também passara


que pelo
Redentor. Como era natural, estas ideas iam-se transmitindo também

aos cristãos-velhos, e a achou-se instruída a nação no


pouco pouco
messianismo judaico.
Acentuemos êste íacto de uma transmissão de ideas, de uma

influência intelectual, social, das aspirações do Judeu sô-


psicológica,
bre a alma acentuemos logo depois nem de enco-
portuguesa; que
menda se realizar melhor caso para a aplicação de tais ideas
poderia
do o desastre de Alcacer-Kibir e o desaparecimento do
que grande
rei cujo destino se ignorava. Existia? Voltaria? Porque não? Vemos

aqui um exemplo de pura receptividade pensamentos


pois para
alheios, a um dado acontecimento vem dar o máximo reforço. A
que
doutrina estava constituída pelos Judeus no meio do pôvo português,
num instante se tornava para ela o melhor ambiente de absor-
que
O trono sem sucessor, o Castelhano à porta: a situação social
ção.
do Português devêm idêntica à do Judeu, e dessa semelhança de si-

tuação sái a reprodução entre nós do israelita. O rei de-


pensamento
saparecido foi a matéria que encheu a fôrma do Encoberto anterior-

mente O messianismo bíblico-bandarrista tornou-se então


preparada.
sebastianismo ; mas enquanto as esperanças messianistas teem um
por
elemento de não são simples busaranhos, por não ser
plausibilidade,
um impossível a existência do monarca.

Depois, o bandarrismo não sebastianista) è


(já propositalmente
cultivado e reforçado intuitos de Foi o que fizeram os
por política.
religiosos na sua campanha de oposição aos reis de Castela. Os je-
suitas fomentaram intensamente a crença messiânica, fizeram-se ino-

culadores activíssimos de bandarrismo, mostrando a revolução predita


em vaticínios, e sinais a anunciar a redenção próxima.
prodigiosos'
Em 1625 saiu a Vida de Simão Gomes, do Manoel da Veiga,
padre
reconhecido adversário de Castela, consagrando os vaticínios do «sa-

santo »; vários eram apresentados como favo-


pateiro padres jesuítas
recidos com visões E como era passar aos actos e
proféticas. preciso
achar um rei para o levante, o Bragança substituiu D. Sebastião na

fôrma do Encoberto. Graças à acção dos factos históricos e às neces-

sidades da veio a dar nisso a idea trasladada da Bi-


política, judaica
blia pelo Bandarra, — e no dia da aclamação de D. João IV a ima-

do sapateiro lá estava, um santo, num altar da sé i Desde


gem pomo
o da nação, a consagrara, a não havia
que jesuíta, pedagogo porque
de aceitar o escol intelectual dos Portugueses, necessitados de se de-

fender com todas as armas aproveitáveis, de Marte ou de Peitho, da

ou da ? Assim o fizeram Antônio de Sousa Macedo,


guerra persuasão
o doutor Nicolau Monteiro, Pantaleão Rodrigues Pacheco e outros,
A ÁGUIA 183

que invocaram as fundamentar a legitimidade da nova


profecias para
monarquia. Sabe-se como o Vieira fez o comentário, interpre-
grande
tação e apologia do Bandarra: à aclamação de D. João IV seguir-se-

ia a conquista de Jerusalém, o desbarato dos turcos, a redução à fé


de Cristo das tribus de Israel, a conversão a sujeição
perdidas geral,
de todos os ao Sumo Pontífice, a no universo.
povos paz perpétua
Cremos se não deve deixar de fazer aqui uma distinção
porém que
necessária, distinguir uma deruma rotunda o
para quimera patetice:
bandarrisino de 1640 não é sebastianismo no sentido estrito da pa-
lavra; não se espera D. Sebastião nem nenhuma
por por persona-

gem milagrosa, mas uma solução das que não é


procura-se profecias
a sebastianista, e em se realizou na .restaurarão de Portu-
que parte

gal.
Uma vez espalhada a doutrina, havia de suceder-lhe o que su-

cede sempre: o não ser ninguém senhor dela, e desenvolver-se aqui

e acolá, de maneiras imprevistas, conforme os espíritos e as ocasiões.

D. João IV não realizara os sonhos megalomânicos, D. Afonso VI

também não; e durante a crise da deposição dêste último, a espe-

rança no salvador afervorou-se outra vez, reforçada


prometido pela
dos Judeus: a cabala 1666 o Messias, e como tal se
prometera para
apresentava em Smirna Sabatai Cevi, seguido multidões de Is-
por
raelitas. Aliás as cabglistas não alvoraçavam somente os
predições
Judeus, mas toda a Europa se esperavam «grandes mudanças no
por
mundo» 1666.
para
De aí em diante o messianismo baixa ou desce segundo os aci-

dentes da vida nacional, incluindo uma falange retintamente


pateta
de sebastianistas ditos. Reanimou-o a catástrofe
propriamente grande
das invasões francêsas. A vinda de Napoleão anunciada
pretendia-se

pelo Bandarra,'nas quadras que se diziam encontradas em 1729:

Põe um A pernas acima,


Tira-lhe a risca do meio
E por detrás lha arrima,
Saberás quem te nomeio.

Esta manobra daria a letra N (no século XVII déra o IV de


D. João IV) o N manifesta, não haja dúvida, Napoleão. O sebas-
qual
tianismo dito refrondesceu então com viço, tes-
propriamente grande
temunhado arrocho com que o esmocou José Agos-
pelo panfletário
tinho. D. Sebastião havia de desembarcar em Lisboa com um exér-
cito temerando, varrer os Franceses, destroçar Bonaparte a
junto
Évora, e alcandorar-se aí arriba até ao império universal. Nessa
por
idiotia dispararam alguns séculos de vadiagem.

Em resumo, a interpretação vos é a seguinte: o


que proponho
messianismo o sebastianismo, a de 1640, é a
português (de que partir
fôrma condições sociais semelhantes às dos Ju-
pateta) originou-se de
deus, e impregnadas messianistas dos Judeus: essas condições
das ideas
sociais uma consciência de «queda» falar
poderão designar-se por (para
coino os acompanhada da da falta de verdadeira indepeti-
teólogos)
dência; sociais corresponde a
à persistência dessas condições persis-
184 A ÁGUIA

tência da tradição bandarrista. Vejo-lhe causas históricas e so-


pois
ciais, em contrário das teorias de racial, universalmente
psicologia
adoptadas desde Oliveira Martins as enunciou. Em primeiro lo-
que
a acção espiritual educativa, no sentido largo da do
gar, (ou palavra)

Cristão-novo e da Biblia, se a idea do Encoberto prove-


(a que junta
niente de Castela) divulga no o messianista, sendo
país pensamento-
de notar a situação do Judeu na nossa terra reforçava natural-
que
mente a aspiração a um Messias. A catástrofe de Alcacer-Kibir e o

desaparecimento do rei; depois, a dos e a apologia


pregação jesuítas
de D. João IV; e com isto, até hoje, o facto de a situação do país

não satisfazer as aspirações de verdadeira independência, explicam a

do,sonho messiânico num deshabituado da inicia-


perduração pôvo
— uma vez se constituiu, intensificou e
tiva e do self-government, que
a doutrina, causas especiais deixámos apontadas.
generalizou por que

Uma doutrina messiânica transmitida tradição, e circunstâncias


por
favoraveis ao messianismo: éque mais é preciso'para
persistentes
êste dure, seja entre celtas, chineses ou australianos?
que gôdos,
Também os Alemães medievais, a idênticas condições, tive-
graças
ram o seu sebastianismo, com idênticas doutrinas, idênticas esperan-

e mártires idênticos, nas lendas messianistas sobre o imperador


ças
'.
Frederico II Em Portugal, a seiva do messianismo existirá enquanto

êste tiver, comparar e contrapor à sua efêmera


povo para grandeza,
o espectáculo da sua decadencia.
persistente
o snr. Lúcio de Azevedo esta interpretação dos fa-
i Aprovaria
ctos tão seguramente investigou? A avaliar algumas das suas
que por

frases, dir-se-ia não2; mas a escrupulosa objectividade do seu


que
trabalho não nos responjder a esta com segurança;
permite pregunta
sabemos nos cumpre agradecer-lhe a bem firmada instruèão
que que
nos dá êste novo livro, e os sólidos elementos que nos fornece
para
ajuizar de casos da nossa história tão importantes e interessantes,

como são interessantes e importantes os tratou


que proficientemente
nos seus artigos sobre os Judeus, e criteriosamente estudou no seu

trabalho sobre Pombal.

Mesmo entre os seus contemporâneos, muitos não acreditaram na morte do


imperador predições de Joaquim de Flora correspondem neste caso às do Ban-
As
darra; os dominicanos aos jesuítas; os falsos D.'Sebastião de Penamacôr, Ericeira,
etc., tiveram os seus correspondentes nos falsos Frederico II que foram o eremita
italiano,"Tile Kolup ou»Dietrich Holtzschuh, de Colônia, e o impostor de Liibeck.

Esperava-se do redivivo Frederico II que restabelecesse a paz, libertasse a Alemanha


Perto de três séculos após a sua morte
do jugo eclesiástico, conquistasse Jerusalem.
apareceu ainda um poema a anunciar o seu regresso. A semelhança com o sebastia-
nismo é perfeita. C. Bayet, na Historia geral de Lavisse e Rambaud, vol. II, p. 232,
dá a bibliografia do assunto.
Exemplo: «ele (o sebastianismo) é na historia o que na poesia a saudade,
uma feição inseparavel da alma portuguesa.» (A Evolução do Sebastianismo,
p. 5; o ijalico é meu).
/

AO PORTO
(')

H Porto, cidade eterna,

« A mui nobre e mui leal»

E entre as mais a
principal,

Pois foste a Origem Materna

Déste vida a Portugal,

Hoje regressa ao teu lar

O Infante abriu o olhar


que

Sôbre o teu seio fecundo,

nos levou o. Mar


Que para

E fez descobrir o Mundo.

II

E hoje, como dantes


já que

No tempo dos Navegantes,

Os heróis da tua terra

Vão ás distantes
paragens

Ganhar a honra na
guerra,

Aqui vós todos, senhores,

Haveis de vêr vezes


quantas

Sofreram nossos Maiores

Cativeiros, lutas, dôres

Para sermos Portugueses.

dito 1.® vez no Porto em 17-V-17.


Prologo do Infante de Sagres, pela
(')
III

E vós, senhoras formosas,

Que tanto vos magoais

Por amantes e estremosas,

Sofrei um momento os ais,

Secai as faces mimosas,

E tu, choras Mãe,


que por

Ou tu Esposo caro,
pelo

Mães e Esposas, vede bem

Que outras o amparo,


perderam

Outras também.
penaram

IV

Abri alas: a Nação

Da Aventura, eil-a
que passa!

Eis brilha num clarão


que

A velha espada da Raça

De novo na sua mão.

Soai alto, charamelas!

Clarins, tocai ao assalto!

Aventura, larga as velas

Num desafio ás
procelas!

Corações, ao alto! ao alto!

E se o mundo da Beleza

E do Amor é vir,
para

Donas, senhores, certeza


por

Não há
gente portuguesa

Que o recuse descobrir;

E antes, no dia final,

Em surja das neblinas,


que

Sobre essa terra imortal,

Seja a bandeira das


quinas,

O de Portugal.
guião
O LIBERTÁRIO

A Filinto de Almeida

?ob a sua máscara vincada de degenerescência, ensombrada

e doentia, como as máscaras do macabro Redon, e sob os

seus dous côvados e meio de alto a escorrerem uns

ossos ressaltantes dentro de uma côr de malaio,


por pele
Manuel Coutinho era, sem dúvida, o maior dos deserdados. O físico

era a desgraça se via e os teres, os seus depenados pais


que quando
baixaram à vala comum, com meses um do outro, eram de
poucos
uma entristecedora. Não tinha uma blusa sem uma revoada
penúria
de remendos, umas botas sem cambas e sem buracos.

Ainda assim; era de louvar o seu fado. Pois, como êle conside-

rava, além do curso dos liceus, não ficava com o lugar de moço de

máquina do Correio do Povo, dizer —a coberto de rastejar


queria
migalha? Oh! Como lhe doeria se, fôsse isto ou para aquilo,
pela para
tivesse de pedir!
Entretanto, mais tarde, êsse trabalho e a furna em o exte-
que
riorizava iam-no cuspindo à invalidez, à neurastenia.

Um trabalho, aquele, o argamassava em herói e torturado.


que
Só aquilo de conduzir as fôrmas derreantes a máquina!...
para
Fazia-o às costas, em vertigem, do terceiro andar da composição

a loja térrea lá abaixo, naquela ruela desce aos coleios, com


para que
a sua esteira de cascalho esquinado e cacos cortantes.

Uma furna, aquela, flagrantemente sórdida, com as paredes

arabescadas de e o chão encrostado de imundície. Mas, nela,


graxa
havia o barulho desatado da Marinoni, fazia emoucar logo
pior: que
à entrada; o cheiro das tintas, de fazer anojar o mais afeito aos
gordo
mares; as altas rimas de virgem se levantavam de todos os
papel que
lados, hirtas e amedrontadoras como colossos de e dispostas de
granito,
modo a tombarem de uma hora a outra e a reduzi-lo a massa.
para
Contudo nada disso lhe valera uma hesitação, à idéia de que

desse esbagoaria a sua independência. E tudo vencendo, tor-


pragal
nou-se ao cabo um excelente tipógrafo.

Continuou lá mesmo, Correio. Aquilo rendia.


por pelo pouco

Estava certo era explorado, todavia, desejava ser agradecido à


que
casa o amparára êle ficou só atirado ao mundo.
que quando
Aldemenos estava a desfrutar uma bela, confortadora mudança

no trabalho. Ufa! Agora, com o sol entrava a pela sala da


que jorros
composição, lambendo os corpos dos míseros compositores e incen-

diando-lhes os cérebros de sonhos rápidos, respirar e


já podia pensar.
188 A ÁGUIA

E esfumaçando filosofias, tentando burilar ideas do


pensando,
seu Organon, viu depois esta sua nova vida era talvez mais ani-
que
a antiga. Porque aquela aniquilava o corpo, mas esta,
qüiladora que
o caracter.

Não estavam todos ali, horas e horas, chumbados ao caixotim

a catar o exíguo tipo que no dia seguinte reflectirá a liberalidade do

rei, na verdade, é czaresco, a inteireza do ministro, que nunca


que,
deixou de ser falcatrueiro, a bondade do patrão, que não de
passa
um carrasco o operário, a filantropia do burguês, que só
para passou
a ser caridoso depois que lhe pregaram a venera ao peito?!
E de súbito, é um inimigo desesperado da rotina e das conven-

dos homens. Ah! os homens... Como na sua maioria eram


ções
amorais. Uns mentiam vilmente para trapaçar ou agradar à sociedade;

outros possuíam tudò e preferiam destruir uma vida que sustentasse

muitas vidas a cederem uma bucha a mais do trato forçado ao ope-

rário faminto, ao burro de carga que os locupletou de ouro até às

fauces. Outros ainda, rebotalho da humanidade, rastejavam como

crocodilos, ageitavam o dorso para lhes enterrarem o acicate à von-

tade. . . Não havia outro curso a dar às coisas: eram-precisas refor-

mas sociais verdadeiramente titânicas, e homens as defendessem


que
com um radicalismo de loucura!

Vale-lhe, daí em diante, não ir enfiar-se de roldão


porém, para
em obsessões por lhe faltar ainda uma cultura séria, o
perigoças,
aferrar-se ao estudo, à leitúra. Tinha tempo. E vintém forrasse
que
tirava-o êle à boca a posse do volume.
para
Portanto, toca a lêr, a lêr muito. Lêr no seu cômodo, mal se

ergue; na oficina, chega a trégua da revisão e enquanto os


quando
uns subjugados do vício, vão atirar às faiás e
parceiros, graçolas
as tripas com a rija.
queimar
E, numa de iniciado, lê clássicos e enciclopedistas,
precipitação
românticos e filósofos, decadentes e realistas. Lê depoi^, numa ascen-

dência chamejante, todos os das novas ideas. Nada lhe


pelejadores
escapa. Dêste modo, no seu cérebro abrem-se outras clareiras, na sua

alma florescem outras emoções.

Ah! Mas como o faziam vibrar os Hertzen e os Reclus. Como

esses da fraternidade universal lhe insuflavam a revolta


pregadores
contra a autoridade e os seus tiranos, contra os detentores e explora-

dores das massas Eram só êles, sentia-o bem, dos


que produziam!
lia, lhe levavam ao coração o sangue vivo da Liberdade e
que que
lhe aljofravam a fé com a certeza de olhar um dia todos os
poder
comungarem na Igualdade.
povos
Entretanto, era dar começo a uma acção aproveitável à
preciso
causa magnífica. Precisava ajudar a combater para ser desjungida,

triunfalmente, a canga humilhante o burguês barrigudo impunha


que
ao operário sêco; ajudar os seus irmãos de ideal e êle
para que
colhessem depressa as do trigo Fontana e Antero, os
primícias que
lançaram à terra ltfsa.
precursores,
E logo, feito Tchaícowsky, reúne na sua mansarda os amigos e

camaradas lhe são mais caros à alma.


que
HIERONIMUS

Cartaz de Carlos de Sousa.

^guia—65,
66 (2.a série).
'
A ÁGUIA 189

Até que forma lá, em tempo, sinceros e abne-


pouco prosélitos

gados. Consegue-o com a sua sem vermelhidão e chan, mas


palavra
bem reflectida, e com a difusão dos doutrinários
quente preceitos
dêsses formidáveis Kropotkine e Bakounine, vidas heróicas de um
caudal de audácias, de altruísmos e sacrifícios.

Mas, por esta altura, Manuel Coutinho tem o seu romance.

É uma fraqüeza, uma sobreexcitação dos sentidos... Todos teern disso!

E abre-se, assim, um hiato na sua melhor hora de propagador.


Álvaro Paredes, atraído rebôo das novas idéias sem, aliás,
pelo
têr delas a menor noção, deseja ouvir Manuel Coutinho, o seu grande
propagandista. Fala a uns conhecidos e consegue ir com eles ouvi-lo.

Entrementes, convém que os senhores conheçam êste Álvaro


Paredes. É uma doçura de efebo, bochechas de uma fresquidão de
vidonho, sempre muito requintado no trajo, muito nobre nas manei-
ras de acatar, de ferir. O seu — aquela
pai, bisarma que vai lá a

estoirar de untos e sangue, vêem? — morre, rapaz


por éle. O é a sua
esperança!... «Ai, filho, tu és a minha rica e única esperança! Sem
ti, havia de sêr do futuro da nossa casa?»
que
Diz isto a toda a hora, com toda a sua alma interessada de
ex-fazendista, do Rio de Janeiro,_ e de arredado mercador
por grosso,
de escravos da Costa da Mina. É natural. Ele conta acabada a
que,*
instrução secundária, o menino lhe vá vigiar da fortuna — a
parte
mais forte — tem enterrada,
parte que em prédios e terrenos, na lon-

gínqua Sebastianopolis.

Mas voltemos à subida do menino à mansarda do Manuel. Êste


recebe-o delicadeza, ou talvez mais ir sempre acompanhado
por por
de camaradas. Porque, francamente, acha-o mimoso em demasia para

poder entrar uma faúltia das suas doutrinas na sua alindada cabeça

de falripas d£ oiro. Depois, sabia, tratava-se do filho de uin bur-


guès visceralmente reaccionário.

Senão quando, éle o surpreende com o convite de ir ao pala-


cete dos na Estefânia. regeitá-lo. disparate!
papás, Quere Que Que
relações havia entre ambos um tal convite?
para
E depois, que séca! Ter de entrar, todo cerimonioso, o tôrso

arquiado, os membros como manietados, num ambiente flexuosa-

mente efeminado... sacrifício éle, não suportava


Que para que peias,
hipocrisias,- e se alcandorava numa lucarna de andar,
que quarto
rendada de teias de aranha, o tecto fistulado, o assoalho carcomido

e gemente!
Entretanto', o serafim insiste, dias e dias, e diz-lhe ao cabo
que
deseja o encarreire, lá no seu de estudo, em certas lições.
que ?alão
Era abuso ter êste desejo? e se lembrasse de
Que perdoasse que
sacrifício era o como indispensável ao
que proclamavam, predicado
correligionário, os máximos propagandistas...
190 A ÁGUIA

negaça irresistível:
E,por fim, como
— Meu não sei se sabe, tem uma biblioteca. Admi-
pai, grande
ra-se? Pois não tem de Herdou-a de um tio maçon, muito amigo
quê.
dos operários, e morreu em França de um ferimento recebido ao
que
combater Comuna.
pela
«Um que se batera pela Comuna. . . — diz Manuel
português
consigo.—Bravo! Admirável!»

E foi logo ao outro dia. Sempre queria vêr a livraria que pos-
suíra êsse heroico, legendário luso se arremetera, ao lado de
que
Malon, contra o trôço sanguinário de Gallifet.

A falar a verdade, êle fôra antes fazer alguma coisa


porém, para N
de útil. E não em boa consciência, de êsse burguesito
precisára, que
lhe viesse ali com sinuosidades veludosas e com
pretencioso para
lembranças de estáva ensinar o ao vigário. Desde
quem padre-nosso
seguia as idéias, não sentia uma infinita doçura, o bem
quç grandes
dizer de toda a sua alma, ao serviços à humanidade? E então
prestar
isto, de ensinar, como o consolava!

Aqui, aparece-lhe a filha do sr. Visconde, antes, o seu


porém,
romance...

Quem resistir à Laura Paredes, a essa que partia todas as


podia
vontades, trespassava magias em todos os corações? O seu tipo

bizarro, com brasas nas órbitas e sangue de umbelas de redodendros

nos lábios, não era o estonteamento de todos os da burguesia,


jovens
aquela carne a desabrochar, como a chamou um da Salomé
poeta,
de Rassenfosse? Logo, não era de admirar também o fosse de
que
Manuel, feito de fraquezas como aqueles e que ela o arreba-
jovens,
tasse no mesmo instante em que lhe fôra apresentado.

Entretanto, Manuel era o se via e Laura era a emol-


pobre que
durada de uma fortuna embasbacadora. De sorte que êle nada pode-
ria esperar dali e, felizmente, assim o alcançou logo. Mesmo porque,
sendo ela um rebento da burguesia, havia de querer casar. E isto

nunca seria Repudiára sempre a .organização do casamento,


possível!
no aliás, não fazia mais do seguir os mestres. De resto,
que, que
entre ambos seria a atracção efervescente da necessidade
possível
Não. Porque ela era aquela apoteose da e êle o
genesíaca? perfeição
do atrofiado do tipógrafo belga.
produto
Assim, depois de a vêr uma vez, não quis tornar a vê-la; quis
apagá-la à força do esquecê-la de um fazer de
pensamento, golpe,
conta a sua figura apenas lhe olhos como um
que passára pelos
traço de faísca.

O irmão, se desejasse continuar com as suas lições,


portanto,
o Ora, nem tanto serviço havia de têr o fidalgote
que procurasse.
o não fazer!
que pudesse
Êste então passou a procurá-lo.
O sr. Conselheiro, não Não gostava da cama-
porém, gostou...
radagem do seu filho com «aquêle reles tipógrafo, com aquela espé-

cie de cheio de farroncas de sete sciências, — um patife que


jacobino
devia estar na África, a carregar nalguma prisão!»
pedra
E observa ao seu menino, com carranca e importância:
A ÁGUIA 191

Olha, Álvaro, essa tua amizade com o tal Manuel Coutinho

cento. Êsse senhor — ouves,


não te serve, rebaixa-te cincoenta por
ingênuo? — é um farroupilha, sem nome a zelar nem a defi-
posição
nir. Ao tu uma fortuna sã, és herdeiro de lídimos
passo que possuis
brasões, tens a olhar de futuro visconde de Paredes. Ao demais,
pelo
êsse tresloucado e mísero dá-te volta ao miôlo, à sua imagem.
pce-te
Oh! idéias, desrespeito tudo é constituído, sagrado!...
que que por que
Não se pode ouvir.

Contudo, o herdeiro do sensato sr. Visconde, iluminado por

uma filosofia todavia assás mostra a conve-


precoce, prometedora,
niência de ter essa amizade:
Ora, Então o não vê êle, sêr mais velho
papá! papá que por

e têr o curso dos liceus. . . só isto! sabe mais do eu?


por por que
Assim, auxilia-me, em certos estudos. E êle é o tôlo que
guia-me que
o sabe, não cobra nada. Há melhor? Depois, nunca o acompa-
papá
nho rua; limito-me a ser seu camarada... no dêle.
pela quarto

E às suas arengas sobre coisas estranhas ao^meu curso...


quanto
Viva, as vá a outra freguesia!
que prègar
Nisto, chegam os exames. O menino, tem de fazer os seus,
que
vê-se em apuros. Mas o não tivesse receio; êle havia de se sair
papá
às mil maravilhas. Tinha certeza? Para era o tipógrafo?
que
Decerto. Porque Manuel, em compita com a sua vontade de

fazer bem, vencer a obtusidade e malandrinice do fidalgote,


queria
êle se sair razoavelmente e tirar bom E vá de lhe meter,
para ponto.
então, como a martelo, as lições na cabeça de testa curta; de o esti-

mular ironicamente, com vindouras. A sua sabedoria de


gloriolas
— atravessar as fronteiras e colher,
Salomão moderno—dizia-lhe podia
milhões do louros nos mais perfulgentes
guiado pelos pai, perpétuos
centros intelectuais.

E segue-se, dêste modo, êle tirou, a rir, uma distinção.


que,
Como ficou então como se de orgulho o sr. vis-
jubiloso, precipitou
conde. Era bem um talento, um o herdeiro do seu
quási prodígio,
nome. E, custava a crêr, chegára a duvidar disso!

acontecimento merecia o seu festejo; e logo daí


Entretanto, o

a dias ofereceu um rico argolão, embutido de diamantinos puros,

«ao inteligente Álvaro», como dizia o bilhete ia


seu querido e que

estupefaciente à sociedade e aos amigos dele.


e um banquete
junto,
êstes, estava Manuel Coutinho, a-pesar do seu jacobi-
Entre

a sua condição sêr a de um mísero indigente,


nismo sêr-arreliante,

Paredes'. Mas o sr. Paredes, afinal, ser


como o via o sr. quisera

nesse dia de alegria, e mandára convi-


magnânimo, toldar rancores

aquele vociferador, como todos


dá-lo filho. Que convidasse que,
pelo
os da sua malta, se vociferava era lazeira.
por
aceitar o convite. Que diabo,
Manuel não ao princípio,
quisera
àquela casa! Onde estava o seu princípio
havia decidido não voltar

não se abriam roteiros. De resto, aquela


de firmeza? Sem firmeza

e não a acompanhar e festejar.


gente era êle a combater para
para
de ouvir, à devoração de fradescos e
E ainda cima teria pratos
por
ao e mais líquidos, sandices de fazerem oiriçar os
escoar de líquidos
192 A ÁGUIA

cabelos e discurseiras capazes de entupirem minotauros. Oh! Que


>
meio, que meio aquele!

Mas de súbito acendera-se-lhe na alma a visão sedutora de

Laurâ e tivera de ir. Não pudera apagá-la, ela condensára-se


porque
logo em nebulosa de amor e no resto do dia irrompera dessa nebu-

losa, voraz, como uma chama, a sua paixão.


Entretanto, não foi só/a beleza daquela mulher encantadora

ao dobrar daquelas horas fugidias, lha fez irromper. Foram


que,
também os seus modos desentonados e simples; a sua
parecendo
conversação vasàda em espiritualismo e acerto, e de todo desnudada

de futilezas e coscuvilhices mundanas. Foi mais a generosidade que


mostrara pelos trabalhavam e raro saíam da fome ou,
que quando
muito, do canto de borôa. Foi também o seu entusiasmo caricioso

pelos motivos do campo, quer ao deificar os campónios sua luta


pela
titânica, quer ao falar das tintas, com suavidades crepusculares de

Milet, que a cada passo se esbatiam planuras, outeiros.


pelas pelos
Por último, terminada a festa, Laura, estendendo-lhe a sua mão

de naiade, preguntou-lhe, como para acabar de o seduzir:


Quere ir comnosco, um destes dias. até nossa
à quinta? Cos-

tumamos ir lá sempre neste mês. E é a melhor época, não acha? Vá,

que nos dará muito prazer.


Que honra, minha senhora! Mas terá a dupla de
gentileza
me que só amanhã lhe dig^ se sim ou não aceito. Bem
permitir
sabe, a minha sujeição, o meu emprego. ..

Êle, contudo, enganava-se. Laura, acolhendo-o daquela forma,

mostrava uma faceta das suas excentricidades — a dè comediante

hábil, depois com a sua «Que delícia —


para gosar perversidade.
dizia consigo — mofar um carapau, um
com pobretão dêstes! Belol

Hei de divertir-me bem».

Era a resultante de quem vagira sobre fôfados, medrára ao

afago de rendas; de vira arredondar-se-lhe o colo e sinuarem-


quem
-se-lhe as formas sob o sirandar dos de e ricos;
galanteios janotas de

quem vivia ainda só os seus monhos e dava a valia de seixo à


para

pobre e feia.
gente
Ao outro dia apressára-se a mandar preguntar a Manuel se

havia resolvido acompanhá-los e êle respondera afirmativamente.

Durante a viagem ela foi sempre ao seu lado. Quis corroê-lo

logo de começo, aplaudindo-o em tudo êle dizia, e conseguiu-o.


que
Depois, com uma suavidade de mão amorosa., instigou-o a enfurecer

o carregando fortçmente sobre os jesuítas, os do dinheiro e os reis.


pai,
Valera, entretanto, não haver a desarmonia ela dese-
para que
simplesmente por diversão, o caso do pai caminhar distante
jára
deles e de, assim, só uma ou outra de Manufel lhe entrar nos
palavra
ouvidos. A única coisa em reparára o sr. Visconde foi naquela
que
mania da filha ir quási sempre a conversar e a casquinhar
grande
com o convidado.
Será — dissera depois
já o amor?... Qual! confiante.—

A Laura não semelhante caricatura!


pode querer
E, a rematar com lorpice:
A ÁGUIA 193

— Ora a do diabrete!. . . Sim, senhor. Nunca cuidei


graça que
ela tanto de mangar.
gostasse
De repente, aquela caricatura interessa êsse diabrete.
porém,
Sabe falar. Aborda todos os assuntos com brilho e amplidão e sabe

vêr e sentir. Agora, exemplo, está a vêr a paisagem. Olha umas


por
lombas, lá do regato, e diz estão arroteadas de nardos com
para que
entremeios amarelados de rainúnculos. Mostra, ao lado, em descida

bem aplainada sobre uma várzea, um recortado e negro e


pinheiral
acha-o com os de Meunier. Vê, n'uma clareira
parecido pinhêdos que

se esgarça até ao horizonte, um moinho bucólico, a manada de gado


nédio a em volta e a beber na ribeira, e diz isto é um
pascer que
fundido na harmonia luminosa de Cotman.
pedaço
E, desta arte, Laura Paredes a ouvir com ânsia e febre de
passa
inveja a do tipógrafo. Já lhe deseja a cultura com aquela
palavra
raivazinha de notava, a barrar a sua trajectória de linda estrela,
quanto
uma rapariga de linha mais recortada e vaporosa e de espírito mais

scintilante e contundente.

Daí o lembrar-se de com ele atrelado, fazer uma


que, poderia
resplendente figura. Seria certa. Principalmente se o bem
guarnecesse
de bons fatos e lhe fizesse vibrar no corpo a linha e a ductilidade

são nos salões... Aquilo lá em casa era tudo tão obtuso!


que precisas
Não havia uma soubesse encadear duas de luzi-
pessoa que palavras
mento.

De sorte na ocasião, apetecia-lhe imenso vêr-se casada


que,
com êle.

Mas Manuel, se viu de volta à sua água-furtada, tinha


quando
a consciência a recriminá-lo. Porque voltára êle ao do Vis-
palacete
conde e, maximé, fizera aquele Havia razão de êle ter dado
passeio?
vida àquele amor? Amor uma fidalgota com uma fortuna
por pseudo
brotada da venda de escravos... Amor não fosse prelibado, como
que
a sua doutrina, com todos os amargores da vida... Podia
preceituava
lá ser, lá existir?! Como estava a trair-se ao modo de qual-
podia
burguês venal e brônco!
quer

Álvaro, no outro dia, notou-lhe um rêtraímento bem pronun-


ciado. Imaginem nem se lhe referiu ao da véspera! Então,
que passeio
sem preâmbulos: ,
Ofendeu-te alguém lá da nossa casa, Manuel? Vejo-te com

uma cara... Dize-me com franqueza*, meu disse-te acaso alguma


pai
coisa desagradável durante o de ontem?
passeio
Não. me disse coisas agradáveis, ou nada
Teu pai só pouco

me falou. Naturalmente foi à minha vista, levou quási sem-


porque,
a rir. A rir um riso franco, lavado, muito bem deveria fazer
pre que
à sua alma sempre agastada.

Álvaro não insistiu. Deu a sua lição, debaixo do olhar sempre

13
194 A ÁGUIA

de Manuel, e voltou ao seu com a idéia de vêr


carregado palacete
se a irmã sabia de alguma coisa. E então, ao vê-la:

Ai, Laura, cara o Manuel me fez agora! Não sabes por-


que
Aquilo com certeza foi o lhe disse ontem alguma
quê? porque pai

das suas. Ou sabe se foi causa daquelas suas risadas que


quem por
soltava sempre vos via a ambos ao um do outro?...
que pé
Não sei, Álvaro. O sei é hei de fazer com se
que que que

lhe desfaça a má vontade ventura tenha contra nós e com


que por
horas! — clamou ela com ener-
êle venha aqui dentro de
que poucas
mais dé um homem de acção, do de uma virgem com
gia própria que

a tibieza inerente ao sexo.— Mas, isso, Álvaro, de um


para preciso

favor teu: me acompanhes a casa dele. Poderei mere-


grande que
das suas
cer-to? E, neste caso, vou já
dizer ao pai que... por causa

risadas
— é melhor dizer foi isto — fêz zangar aquele exce-
que por
lente rapaz, e o achar digno da nossa estima e amizade, o
que, por
vou contigo, o fazer voltar a nossa casa sem o mais
procurar para
leve ressaibo.
Que Laura ?! — estrondeja o varado de assom-
dizes tu, pai,
bro, ela, após estar com o irmão, lhe revela esse intento.
quando
—Con-
Mas, logo, a desmanchar-se com uma tirada de bom humor:

tinuas de chuchadeira com o ó rapariga? Anda lá, sê-me


jacobino,
mais Deves saber é escarnicar com os pobres
generosa. que pecado
de Cristo... Ao demais, não vês é uma falta de isto de
que juizo

uma rapariga solteira ir a casa de um rapaz, muito embora ela vá

com um irmão? Anda lá, tem-me mais tento nessa cabecinha.

E de continuo o sr. Visconde, em curvaturas arrotava


grotescas,

as suas de rebôo descosido, não acreditava na dedicação


gargalhadas
da filha. não era ela tivesse aquele destempero de
Qual, possível que
ir num bairro degradante e numa alfurja o mise-
procurar, pestilenta,

rável, o, patife do tipógrafo!

Entrementes, ela batia nervosamente com as suas botas de poli-

mento no assoalho brunido e intimava o a deixá-la ir, porque êle,


pai
com as suas risadas, fôra o único causador do aborrecimento do

rapaz. *

E vai o sr. Paredes, acovardado, curva-se ao da sua


querer

Laura, deixa-a ter mais aquela leviandade. De resto, no meio de tan-

ias, não seria aquela a


que perderia...
xManuel, ao vê-la entrar com o irmão no seu aposento,
pobre
ficou aturdido, a de chegar a oferecer cadeiras, êle não
ponto quando
as tinha. Aquilo irreal, uma fantasia de cérebro mórbido...
pareceu-lhe
Oh! nunca a filha de um semi-analfabeto nego-
pensou que
ciante, tauxiada num círculo de obsoletos e de subjuga-
preconceitos
tirânicas, fosse tam arrojada, tam independente. De ora avante,
ções
neste caso, como devia Como uma dessas raparigas da evo-
julgá-la?
de — essas vitoriosas dos abusões do lar e
lução russa Alexandre II,

do arcaico da tradição ? Entretanto, significaria


jugo preguntava, que

verdadeiramente àquela Amor? A-pesar do se dava,


procura? que

continuava a não crêr no amor dela.

Contudo, ouvi-la-ia.
A ÁGUIA 195

Ela, ao entrar, viu logo bastou o arr.ojo da sua presença


que
desfazer a zanga êle tinha.
para que julgava que
naquele sítio miserável, disse-lhe, depois de lhe
E então, pre-

havia apreciado o à que o procurava sò-


se passeio quinta,
guntar
o convidar a ir visitá-los sempre, e não, como acontecia
mente para
o Álvaro ia como arrancá-lo ao seu quarto...
agora, apenas quando que
não? Bem mandar fazer-lho irmão; não
Convite ingênuo, poderia pelo
— modéstia à
Mas ir, êle daquele modo
era assim? preferira para que
recusar... Entretanto, reconhecia era uma
pudesse que
parte—não
subir até ali. Mais isso: uma tremenda in-
ousadia o ela que
grande
Mas Era esse o seu feitio, não ouvir pre-
conveniência. que queria?
'conceitos!...
"o
dêsse modo verdadeiro motivo a levou
Laura escondeu que

no ela dissera não fremira a ver-


lá, e Manuel percebeu que que

dade... .
rapariga era denodada! E nestas condiçães, voltaria
Contudo, a

a chegar-se ao íôgo...

ao dia, lhe estendeu a sua


O sr. Visconde, quando, primeiro

mãozorra, só soube refestelar-se de grosserias:


Olé, sr. Coutinho! Viva! Então, estava agoniado connosco?

males dão bem. O senhor teve


Não aparecia... Há, porém, que para
lá no seu telheiro a minha filha. Alta coisa, an?
a honra de receber

Ande lá, não se seu maganão!


gabe,
Manuel esfrangalhar tudo aquilo, responder com sarcasmo
quis
mesma causticidade; mas conteve-se, ao lhe dardejarem, suplican-
da

de Laura. E lógo, esta se virou com séca para


tes, os olhos quando

o pai:
« ! Isso lá teve importância!...», disse, despren-
Ora, papá
didamente: ...
O Paredes tem toda a razão; eu não merecia tamanha
sr.

honra. .
desde a ida da filha à casa do
Enquanto isso, o sr. Visconde,

uma derrota acabrunha-


tipógrafo, ficava aterrado, por perspectivar

dora. E di-lo a correr à Viscondessa.

vivia as coisas terrenas, e pas-


Esta, entanto, como pouco para
na casa do Senhor, respondeu-lhe êle, a
sava as mais das horas que

lá ser a estivesse embeiçada pelo


assim, (podia que pequena
pensar
mas era a merecer Rilhafoles! Credo!
maçon aleijado!...), estava

com a sua atenção, era um devota-


Aquilo de ela bafejar o perdido
da sua larga, iluminada alma
mento sagrado, um sinal
percebia?
cristã, da sua obra benfazeja e impoluta.
"aterrado;
e dias adiante ele ou-
Contudo o marido continuava

trocados entre Laura e Manuel.


via, distintamente, de amor
protestos
êle, titular ilustre, senhor de
Um estampido. Então
grande
lá a sua linda filha
riqueza, tulha de bom senso, podia querer
grande
Depois, os senhores dissessem,
casada com um bisbórria daqueles?!

doentio? Francamente, o mundo, agora,


tipo de físico mais
queriam
estava Mas Laura não
com esta fusão louca de castas, perdido! que

de dar-lhe!... Com tão bons casamentos,


teimasse... Para havia
que
196 A ÁGUIA

e querer aquele escanzêlo! Fossem lá entender as mulheres. A ton-


tinha melhor do o Teodoro Fontes? esbel-
queria partido que Que
teza de figura, educação, honradez e descendência nobre!
que que
E logo exaltou à filha, a essa filha desassisada, êsses
que pôde,
dons sublimados do completo Teodord.

Mas ela não os vê, irredutível nessa cegueira.


quere permanecer
Entretanto, num. arrebatamento lhe incendiava as faces com
que

grandes rosas e as órbitas com um olhar de falcão, dizia ao pai:


Em é
que que êsse nobre é superior ao tipógrafo? Não tem
nem a inteligência nem a instrução deste. É tão como êste:
pobre
sim, o papá sabe, a casa dos nobilíssimos Fontes está arrestada desde

as searas aos chavascais, do casarão à curralada. Logo, a sua supe-

rioridade é só na — mais aprumada, mais nédia e roliça. E


^estampa,
desde é só nisto, como o mas não aprecio
que penso, papá perdoará,
tal predicado. Aprecio apenas, como amazona me de ser,
que prezo
nediez e aprumo em cavalos de alto custo.

O papá tolerou o ousío; ela, conhecendo-o bem, ficou


porém,
certa de que êle, com isso e com a de deu mostras ao
placidez que
ouvi-la até ao fim, estava firmemente resolvido a não lhe o
permitir
casamento com Manuel. Podia, considerar-se vencida.
portanto,
Mas não! — diz consigo, uma tarde côr de e violeta,
jalde
ao a trescalar embriagadoramente. — Ainda não
passiar pelo jardim
estou derrotada de todo. Tenho uma idéia... Idéia de doida, não?

Talvez. E importa?...
que
E ardendo nela até ao outro dia, nessa idéia faíscou de um
que
dos seus transportes bizarros e doentios, a Manuel, logo
propôs que
êle entrou dar lição ao Álvaro, a raptasse. Contudo—no-
para que
tasse bem, —
sabia êla^a razão porque lhe fazia aquela desa-
proposta
tinada, repulsiva? Era ela levar a sua àvante, e,
porque queria por
êsse modo, o vêr-se-ia como'que obrigado a consentir no casa-
papá
mento... Simples... eficaz, não era verdade?

Tocado de austeridade e rijeza como um santo frade, Manuel

repeliu o convite e sofreu o revez de uma desilusão. Lá se desfolhava

para sempre, com uma rajada forte, a flor azul se lhe estilizara
que
no espírito num repente louco. Lá se iam aquela e aquele
pureza
carácter que lhe momentos, haverem cristalizado ern
parecera por
Laura e dado uma Perovskaia lusa. (

Laura compreendeu nunca conseguiria dele uma acção in-


que
digna e, com a fogacidade de o havia apetecido marido,
quando para
o aborrece, o abandona.
Que — diz
poltrão e tolo! consigo, acto contínuo ao
quási
repúdio dele.—E não era eií o marido?! Estava bem
que queria para
arranjada com um maricas dêsses. Ainda bem tudo na
que gorou
hora precisa! i

Eis o sr. Visconde a notar, de um dia para o outro, um grande

desinterêsse libertário. dizer — uma nova alegria a correr,


pelo Quer

'')
A ÁGUIA 197

então, a iluminar-lhe a vida. Estava emfim vencedor. Oh! Mas não.

ser menos. A sua Laura havia de, por força, lobrigar o


podia por
sorvedouro. Ou, modéstia à não descendesse ela daquele seu
parte,
criado!

Neste caso, aproveitar a vasa, vá de fazer convites a ou-


para
tros. Jantares, bailes, teatros, à de toda a
passeios quinta, passeios
casta improvisar sempre. E os nesses passeios,
podiam-se pombos,
anular-se nos recantos arrulharem à vontade? Pois era
queriam para
deixá-los, deixá-los a carne a estuar-lhes, as bocas a diluí-
jungidos,
rem-lhes beijos. Eles não se perderiam...
Entretanto, uma manhã o não vê, até às dez horas, a filha
papá

querida.
A Laura ainda se não levantou, ó Álvaro? E de admirar. Ela,

agora na levanta-se sempre tão .cedo... Não teria ido,


primavera,
sabes, à igreja com a tua mãe?
Não lho dizer, Esta manhã não notei a saída
posso papá.
da mamã...
Então, chama as criadas e Não, não! Antes
pregunta-lhes!
disso, é melhor batermos à porta.
Batem, chamam com vigor, e nada de haver resposta.
Arrombemos — troveja fim o sr. Visconde. O
a porta! por
sr. Visconde tinha muita fôrça: criára-a no tempo em que ba-
pobre
tera fardos, como marçano, na casa de fazendas do Rio de Janeiro.

De modo a um leve encontrão seu, a foi dentro com es-


que, porta
trondo de —êle, o filho e os criados, acu-
e uma onda pessoas que
diram ao ouvirem barulho—golfou sobre o aposento ebúrneo da

lirial Laura Paredes.


—Mas a minha filha?! — êle aqui,
onde está grita que'tem
não a vêr. — Onde está Laura, ó Álvaro? Onde está a
demônio por
menina, ó servos, ó não reparais em nada!...
grandes patifes, que
E, aparvalhados, terrificados ao flamejar da interrogação ira-

cunda do amo, êstes, o menino Álvaro à frente, encolhiam os hom-

bros, tartamudeavam, uns atacados de gota.


pareciam
Eritrementes, depois de insultar infernalmente a criadagem, de

se certificar de a filha não havia ido à missa com a mãe, de se


que
desesperar dolorosamente, de se atulhar o seu de preciosas
palacete
amizades, de correrem argutamente as diligências o sr. Vis-
policiais:
conde soube a sua filha fôra vista muito cêdo, num caminho
que
além de Loures. Assim lhe veio dizer um alquilador, conhecido
para
seu desde lhe mercára um cavalo .para a Laura. ,
quando
O alquilador arrumára os seus negócios lá no Campo
primeiro
Pequeno e depois vir antes, mas não viera saber se
(quis quis, pôde)
haveria alguma coisa... alguma novidade com a menina... Mas por-

o senhor fidalgo. Porque, àquela hora, lhe pareceu


que?! preguntaria
aquilo natural,—com de sua senhoria, a modos de
pouco perdão
de de como dizia—abalada de
passeiata gente pouco juizinho, quem

pombinhos...
Não sabia se se fazia Então, e tinha êle com isso?!
perceber... que
198 A ÁGUIA

preguntaria outra vez o senhor fidalgo. Nada, claro. Só ter


queria
ocasião de algum servicinho a sua senhoria...
prestar
—Mas, ó homem, você viu a valer a minha
se era filha?

Claro vi! É verdade ela bem se escondeu e bem ta-


que que

pou a cara com o véu trazia erguido antes de me avistar. Isso,


que

porém, não lhe valeu de nada. Porque de repente veio o vento, ela

atarantou-se, o véu fugiu-lhe trás, a voar, e vai eu, então, vi-a


para

perfeitamente, vi-lhe o rosto todo, com êstes a terra há-de


que
comer...
— E era cavaleiro, maldito?
quem o
—Ai, não se agaste, senhor fidalgo! cavaleiro
O era o trintanário

do senhor fidalgo Fontes, eu vi também muito bem. Que beleza


que
de par. Desculpe-me mais esta, senhor fidalgo, mas o amor sempre

tem caprichos!... Veja como o velhaco sabe as coisas lindas!


juntar

livro «O Enforcado»).
(Do

^7

J
• • •
/.- •

/' V- r •'
'i ' '
, ''

i" As Treze Cantigas

DO AMÔR E DA GUERRA

igo adeus, vou a


partir!
—Não cabe dentro do dia

Toda a tristeza do mundo.

Transmudada em alegria.

Digo adeus e beijo a Terra!

E a beijar,
para poder

Na face, longe da minha,

Eu tenho de ajoelhar.

Beijo d'alto o meu Amôr,

— Olha a isto encerra —


graça que

Beijo-o d'alto ... e ajoelho

A beijar, na face, a Terra,

Portugal é pequenino.

Mais ou menos, pelo geito,

É do tamanho da alma

Que cabe dentro do peito.

É do tamanho da alma!

É a.alma sente ..
grande que
— Sentir é trazer a vida,

De todos, dentro da gente.

E eu sinto o meu Amôr

Adentro d'alma! De modo

se cabe o meu Amôr,


Que

Cabe n'ela o mundo todo.


m

200 A ÁGUIA

Minha Terra adoeceu.

Chama todos, a ver


por

Quem lhe fala, como quem

Sente mgdo de morrer.

E na —
sorrio partida

Foi a mim coube a sorte


que

De sentir chamar quem morre

E valer-lhe á morte.
poder

Presinto a força de Deus!

E morro na despedida ...

Quanto mais morro mais sinto

A dobrar-se a minha vida.

E volvendo a vida em flôr,

Das minhas lagrimas fiz

Agua corrente vae


que

Alimentar-lhe a raiz.

Digo adeus, vou a partir!

Ergue-se a luz derredôr,

Na hora da despedida ...

-Diz-me adeus o meu AmÔr.

Se eu não houver de volver,

Digo adeus e vou-me embora —

Meu Amôr a tua


que graça

Se apague na mesma hora.

E findará muito bem,

D'esta> maneira, o meu mal .. .

Digo adeus! —Cerrou-me a boca

A palavra Portugal.
ARTE

JOÃO DA SILVA

E OS SEUS ÚLTIMOS TRABALHOS

presentando hoje vez aos nossos leitores as


pela primeira
obras do ilustre de medalhas e escultor sr. João
gravador
da Silva, A Águia deve essa apresentação
precèder
dumas notas biográficas esclareçam o va-
quantas que
lor dessas obras.

João da Silva saiu das nossas escolas industriais. Achando-se

porém em Paris no ano de 1901, trabalhando numa das ouri-


grandes
vesarias daquela capital, era nosso subvencionado
pelo govêrno para
ir fazer o curso de Cinzeladura na Êcole des arls décoratifs de Ge-
nebra. Levou apenas dois anos a tirar esse curso, obtendo as mais
altas classificações; e em 1903 conseguia a sua lhe
que pensão fosse
mantida seguir em Paris, na Êcoles des beaux Arts, o curso
para da
Gravura de medalhas com o mestre Chaplain. Em três
grande anos
completava os respectivos estudos, alcançando nos dois últimos os

primeiros prêmios ali concedidos, e foi o aluno do maio-


preferido
grado e notável francês. Tal êxito explica-se naturalmente
gravador
por uma reunião de faculdades conseguem ao
que poucos possuir:
talento artístico, João da Silva alia uma cultura
grande especial, e
uma nobre e inquebrantável vontade; é uma vontade. E isso
por
vêmo-lo, no decorrer de anos, evolucionar desde
poucos a cinzela-
dura e de medalhas até à escultura; e isáo
gravura grande por tam-
bém é sob este duplo aspecto hoje nos ocupamos da
que sua perso-
nalidade artística. '

No em bronze — O triunfo da Diplomacia —o


grande grupo
nosso artista realiza duma forma absolutamente notável os complexos
desejos duma Comissão lisbonense, constituída
grande pela Colônia
brasileira e Amigos do Brasil,
por com o fim de prestar homenagem
à memória do Barão do Branco. fói
Rio O grupo construído sobre o
seguinte
programa:
«A figura representativa da Diplomacia deve ser um símbolo
de virtudes fortes, de afirmações direitos ini-
de grandes esforços, de
ludíveis, de sentimentos de elevada deve dar a impressão de
justiça;
um soberano do-
poder que se insinua, calmo mas irredutívelmente
minador, e enobrecer. Eis hieráticamente
para pacificar porque, poti-
sada no imperturbá-
seu carro apoteótico, a vemos avançar serena e
vel,
guiada Paz, e seguida de um cortejo em se destacam
pela que
0 Trabalho a Mocidade; a
e e a seu lado, se ergue bandeira
porque,
nacional
por êste homem legada às novas Terras que soube conquis-
tar,
elevada Graça fortemente a estreita ao
porém pela que peito.
\ A ÁGUIA
202

«A alucinada atmosfera triunfal e sonora a


quadriga, pela que
envolve, arrebata o carro sobre e flores. Doma-a, com
por palmas "a
soberbo vigor, um de semblante inspirado, mantém na,
gênio que
senda da Glória.

«No ar vôa a figura alada da Fama, anunciando pelo clangor

rutilante da sua tuba, a vitória do cidadão. Passado


pacífica grande
o cortejo, a Historia sentada, atenta e envolta em roupagens de lon-

nos seus fastos a mão registára os feitos me-


gas pregas, pousa que
morandos.»

Exposto últimamente, no certamen Anual das Belas Artes de

Lisboa', todos reconheceram nesse além do seu grande valor


grupo,
expressivo, inequívocas de e vigorosa escultura.
qualidades grande
Os votos da Comissão foram superior e largamente interpretados, não

há duvida.

Mas há anos, em 1914, o nosso artista apresentava-se como

candidato ao cohcurso aberto Estado para a cunhagem dd peça


pelo
de oiro de 5 escudos, e obtinha a classificação. Êsse con-
primeira
curso era livre, com imposição apenas do escudo nacional e de duas

legendas. Desta forma João da Silva formular, numa completa


pôde
independência, o da sua obra.
plano
Pondo de muito intencionalmente o têma, tantas vezes
parte já
tratado cá e lá fóra, da figura da República, tomou como símbolo

estético o anverso a Fortuna emanando do trabalho; e no


para
reverso, inspirando-se em tradições decorativas nacionais se obser-
que
vam em muitas das nossas moedas, assentou o escudo das quinas
sobre o armilar.
globo
Estudando a nova moeda, não sabemos o mais nela se
que
deve elogiar, se a sua beleza se a simplicidade e extrema
peregrina,
solidez da composição; comparando-a depois com as mais célebres e
— como sejam, exemplo, a de 20 francos
recentes moedas, por peça

com o de Chaplain, e os dois marcos de do bicentenário


galo prata
de reis da Prússia — não
dos Hohenzolerns com as duas cabeças

deixar de reconhecer nos 5 escudos uma incon-


podemos portugueses
testável superioridade de ordem estética, aliada a uma técnica que

tem as maiores superioridades dessas outras duas O corpo da


peças.
mulher é duma beleza máxima, e todos os simbólicos
pormenores
tomam valores duma requintada. Essa peça é uma
proporcionalidade
verdadeira de Arte além do subido nos
joia grande que, prazer que
dá, nos leva ainda a é o ilustre não
preguntar porque que gravador
se acha colocado à frente dos serviços artísticos da Casa da Moeda,

e é o Estado lhe subvencionou os estudos em


porque que português
Paris, se mais tarde não em lhe utilizar devidamente o seu
pensava
valor profissional.
grande
MÚSICOS PORTUGUESES

(INTRODUCÇÃO)

III

uma de Diogo Mendes de Vasconcellos,


passagem

referente ao mosteiro de Odivellas, não resis-


que

timos ao desejo de transcrever aqui: «A excellen-

cia da sua musica não deixar de se celebrar


pôde

em todo tempo e occasião; em bondade de vozes, e


porque

multidão de musicas, em destreza da arte, e em suavidade de

instrumentos, não creio se lhe iguale nenhuma Capella de


que

nenhum Príncipe; tem setenta mulheres,


grande porque que

cantam mui destramente, e as mais tem bellissimas vozes,

tangeth na estante tres baixões, tocam muitas d'ellas tecla,

arpa, viola de arco, e a violinha e assim


particularmente; quem

ver hum retrato da e recrear-se com de-


quizer gloria, queira

leite desta contemplação, indo hum dia de fésta a Odivellas,

na musica do seu côro tem a maior commodidade isso,


para

ha em nenhuma outra do Mundo»


que parte (').

O tronco da dynastia de Bragança, D. João IV, sendo um

musico muito talentoso e instruído, foi ao mesmo tempo um

decidido dos bons engenhos musicaes. N'elle se ve-


protector
rificaram as elegantes de Castilho: «Graça do céu
palavras

os engenhos, de os desenvolve como o


géra graça príncipe

sol, e os faz dar fructos si e a terra». E a


para para-toda pede

verdade se diga se os seus successores não


que, possuíram,,

como elle, o talento e os conhecimentos da arte,


profundos

mostraram-se todavia sempre apaixonados da Musica, empre-

alguns d'elles os meios de a fazer no


gando prosperar paiz,

cujos destinos foram chamados a reger.

Desde os fins do século XVII a Musica nota-


progredio

velmente. Carissime, Mestre da Capella Pontifícia, inventava o

recitatjvo, Scarlatti, seu discípulo, aperfeiçoou, ao mesmo


que

Zarlino indicava o contraponto duplo, de os


passo que que

Citado no livro de Sousa Viterbo, a pag. 190.


O
204 A ÁGUIA

allemães souberam depois tão habilmente approveitar-se, e

Mazocchi empregava o semi-tono enharmonico e os signaes

de expressão, e Durante fixava definitivamente a tonalidade

moderna e os modos, ainda hoje estão em uso.


que

Os músicos d'esse de alguns dos


portuguezes período,

sabemos estiveram estudando em Italia, não foram


quaes que

de certo estranhos a este movimento artístico.


progressivo

Todavia elles cultivaram de o sacro, como


preferencia genero

o leitor verá, depois, dos catalogos das suas obras, Missas,

Hymnos, Salmos, Motetes, Vilhancicos ao divino, eis o


que

ahi' exclusivamente se nos depara. E, comtudo, certo


quasi

a musica não foi totalmente de e


que profana posta parte, que

alguns compositores n'ella exerceram também o seu talento,

especialmente escrevendo a solfa os Tonos, composições


para

idênticas aos Madrigali italianos, a e mais vozes, ordi-


quatro

nariamente sem acompanhamento, e estiveram muito em


que

moda nos reinados de D. Affonso VI e de D. Pedro II.

Seria aqui occasião de fallarmos das tentativas


primeiras

a introducção do dramatico em o nosso


para genero paiz.

Como este assumpto exige mais algum desenvolvi-


porém

mento, tratal-o em artigo especial do


preferimos presente

Diccionario, inscreveremos—Opera em Portugal.


que (a)

A Capella real, havia subido a esplendor no


que grande

reinado de D. João IV, experimentou alguma decadencia du-

rante os subsequentes de D. Affonso VI e de seu


governos

irmão D. Pedro II; não faltasse a estes a


porque príncipes

inclinação Musica, era hereditaria na casa de Brd-


pela que

mas as dissenções e intrigas interiores e a


gança, porque guerra

estrangeira, affligiram o durante todo aquelle


que paiz quasi

mal consentir seriamente se nas


período, podiam que pensasse

da •
artes
paz.

Veio D. João V e com esse espirito


porém (1707-1750),

de magnificência, o caracterisava, levar também a sua


que quiz

real Capella a um estado, competir e sobrepujar


que podesse

mesmo o de . qualquer outra das mais afamadas na Europa.

Logo nos annos do seu augmentou


primeiros governo,(1709)

as rendas da mesma Capella em mais 1.600:000 reis annuaes,

tirados do rendimento da alfandega de Lisboa; e ao mesmo

tempo obteve do Papa Clemente XI um breve ampliando a

dignidade, e regalias do Capellão-mór. O


jurisdicção pessoal

musico da Capella real compunha-se, em 1710, de um Mestre


"#

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O TRIUNFO DA DIPLOMACIA

De João da Silva.

^Suia —
65, 66 (2.a série).
A ÁGUIA 205

de Capella, com o ordenado de 300:000 reis, e mais vinte

músicos, cada um dos annualmente 80:000


quaes percebia
reis, alem dos accrescentamentos
(').
Passado tempo, isto é, em 1716, outra bulla do
pouco
mesmo Clemente XI elevava a collégiade e Capella real a Ca-

thedral metropolitana e sob a invocação de Nossa


patriarchal,
Senhora da Assumpção, ficando o Arcebispado de Lisboa divi-

dido em dous—oriental e occidental—e estabelecido n'este

ultimo um Patriarcha, a cuja dignidade se unio a de Capellão-

mór Esta divisão, subsistio só até 1740, anno em


(2). porém,

uma constituição do Papa Benedicto XIV, se extin-


que, por

a Sé de Lisboa oriental, encorporando-se na Patriarchal,


guio

ficou sendo a única egreja metropolitica de Lisboa. E


que para
as suas dignidades se distinguissem, creou-se um collegio
que

de 24 Principaes, com habito cardinalicio, e 72 Prelados ou

Ministros de hábitos divididos em varias


prelaticios, gerar-
chias—presbyteros, subdiaconos e acolytos.
protonotarios,

Todas estas faustuosas e dispendiosas criações da regia

vaidade, sob outros de vista ser com razão


que pontos podem
censuradas, tiveram todavia inquestionável importancia o
para
progresso da arte musical no nosso «Para não só as
paiz. que
obras Baptista de Castro), mas as vozes chegassem ao
(diz

ceu com e suave harmonia, sem mistura de sinfonias


pura

mandou vir de varias de Italia os


profanas, (el-rei) províncias
melhores músicos com estipendios, de formou um
grossos que
côro especial e dos mais selectos cantores». De um
grave
mappa, nos dá o mesmo .Baptista de Castro, vê-se
que que
havia na Patriarchal 71 cantores e italianos
portuguezes (alem
de 54 capellães-cantores), 4 organistas, um compositor de

solfa e um afinador de orgãos. Não consta houvesse na


que
Capella outra instrumental, alem dos orgãos; o acompa-
parte

nhamento do canto era feito apenas n'estes instrumentos,


pois
como se usava n'aquelle tempo, em as orches-
geralmente que
tras se achavam ainda mui desenvolvidas.
pouco
Este contacto dos nossos artistas com outros escolhidos

de entre melhores estrangeiros, as de abalisados com-


ps peças

positores italianos, D. João V de certo mandaria vir


que para
o archivo da sua real Capella, e estudadas nossos
que, pelos

(') Carvalho, Corographia Port. tomo III, pag. 662.


(2) Castro, Mappa de Portug. tomo III, pag. 183.
206 A ÁGUIA

compositores, lhes revelavam todos os e apertei-


progressos

çoamentos da Musica, estabelecendo-se assim entre uns e ou-

tros uma emulação, nas artes sempre magníficos


que produz
rèsultados; tudo isto concorreu certamente o brilhante
para
estado da Musica em Portugal, a do reinado do monar-
partir
cha, a historia designa epitheto de magnanimo.
que pelo
Mas D. João V foi ainda o creador de um estabeleci-

mento, mui notável sé tornou importantíssimos ser-


que pelos
viços elle á instrucção musical entre nós.
prestados por Quere-
mos fallar do Seminário erecto bulla de
patriarchal, pela
Benedicto XIV, de 21 de de 1741, o ensino dos
junho para
se destinavam ao serviço da egreja metropolita de Lisboa,
que
incluindo-se a Musica no numero das cadeiras alli estabeleci-

das. Nas seguintes verá o leitor as differentes


paginas phases
este utilissimo estabelecimento até á sua extinc-
por que passou

ção mania reformadora de 1834.


pela

D. José I, filho e successor, de D. João V, teve em alto

a Musica, não sendo mesmo absolutamente


grau paixão pela
estranho aos ensinamentos d'esta arte. Durante o seu reinado

a opera representava-se em Lisboa, nos


(1750-1777) paços
reaês, com inaudita magnificência, e fazia as delicias do rei, da

sua família e da corte. D. José mandou, a expensas suas, á

Italia vários indivíduos completarem allí, naquelle


para paiz
das artes, a sua educação musical, e nós tivemos então excel-

lentes compositores, tanto no sacro como no


genero profano,
deram honra ao nosso A Capella real ostentou-se
que paiz..
sempre com brilhantismo, especialmente regida
grande quando
celebre David Peres, musico napolitano, de origem hes-
pelo

panhola, contractado D. José I em 1752, e recebia de


por que
ordenado, como Mestre da Capella real, 5:000 francos annuaes.
SCIÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

O Eterno Retorno nos antigos

e nos modernos

(De O Eterno Retorno, livro em preparação, de que já


publicámos um excerpto no n.° 64 desta revista).

s diversas teorias do Retorno acabamos de em


que passar
revista não são igualmente Elas não
primitivas. possuem
também nem o mesmo valor histórico nem o mesmo

valor Umas aparecem como conseqüências


psicológico.
necessárias de determinadas concepções filosóficas, como frutos natu-
rais do seu desenvolvimento interno. Outras, contrário, fôram
pelo
elaboradas après ou, á luz de tal ou tal sistema, uma
para justificar,
doutrina tradicional a êsse reunia a de satis-
que prestígio qualidade
fazer a certas exigências da humana representação. Numas fôram as
considerações teóricas antecederam e impuseram a conclusão;
que
noutras foi a conclusão antecedeu e impôs as considerações,
que que
fôram formuladas a Nas o eterno retorno é
para justificar. primeiras
a conseqüência rigorosa de se apresentam anterior-
premissas que
mente ao espírito; nas segundas êle é dado realmente antes das pre-
missas, aceite como verdadeiro antes dos raciocínios o fundam,
que
e, se apesar disso, se é tudo tem a sua
pretende justificá-lo, porque
razão de ser e compete á inteligência humana o encontrá-la. Os sis-
temas da categoria são sistemas dedutivos; os da segunda
primeira
são sistemas explicativos.

Ha realmente aqui três coisas a distinguir. É a conce-


primeiro

pção do universo de saiu, como a sai do embrião,


que planta pelo
desenvolvimento natural de a idéia do re-
princípios prestabelecidos,
tôrno eterno. Temos de atender em seguida ás condições nessa
que
idéia se realizavam e a sua de maneira
que garantiapi perpetuidade,
a sobreviver ás concepções especiais lhe tinham constituído o
que

germen. Como a existência dum sêr vivo não está, que seja
passado
o fetal, necessariamente ligada á existência do seu
período progeni-
tor, assim uma idéia sobreviver á ideia-mãi lhe deu origem,
pôde que
desde nela se realizem condições de adaptação ao ambiente inte-
que
lectual em se Finalmente há considerar as
que produziu. que quais
explicações as diferentes escolas formularam essa
que para justificar
doutrina, assim lhes era imposta, não relações ela apre-
que pelas que
sentava com os seus directores, mas uma tradição com
princípios por
raizes muitas vêzes seculares e satisfação ela vinha dar a
pela que
certas necessidades do Proseguindo o mesmo simile bio-
pensamento.
lógiGo, direi a concepção resiste como a visto o meio
que planta, que
lhe não é desfavorável; mas existir de incorporar os ali-
para precisa
1

TH

208 A ÁGUIA

mentos de as idéias se nutrem, de se apropriar de razões


que que
a interpretem e a demonstrem.

Segundo nós foi sustentado com certa energia, o eterno re-


por
torno não teve a sua origem histórica em mitos tradicionais dum

conteúdo idêntico e os filósofos apenas tivessem interpretado


que
racionalmente. Tal afirmação de Rivaud carece absolutamente de fun-

damento. Ele saiu, uma evolução lógica e natural, de determina-


por
das concepções do universo. Ele foi imposto, antes de ser querido.
. Refiro-me àquelas concepções seria inconsequência admitir sem
que
admitir ao mesmo tempo a repetição das coisas. Refiro-me áquêles

princípios que deram ao homem, espontaneamente, a concepção do

retorno, lhe impuseram forçosamente essa visão do mundo. Está


que

« nestes casos a doutrina da limitação dos impôs o fini-


possíveis, que
tismo atomista mais do este impôs aquela limitação. As coisas
que
apresentam diferenças numerosíssimas, e só com uma inconcebível

quantidade de fôrmas atômicas as explicar; mas a essa


poderemos
variação ha um limite, a experiência nos diz a diversi-
porque que
dade dos elementos da realidade apenas oscilar dentro de um
pôde

período determinado. Assim não há temperaturas cores


quaisquer,

quaisquer, sons de toda a altura e intensidade. Acontece com êsses

fenômenos o se no domínio, na aparência inexgotavel, da


que passa
expressão. Com as vinte e tantas letras do alfabeto impossível é es-

crever mais do que um número finito de obras, mais apare-


por que

çam novos e com os cinco tons e os dois semi-tons da oitava


gênios;
não se tirarmos abismos da música uma multidão ilimitada
pódem
de sinfonias. O oceano da criação é vastíssimo, mas êle ha de chegar

a exaurir-se e a secar. O próprio que ter o apanágio da


gênio, parece
criação, é condenado a repetir-se. Um outro escreverá a Metafísica

de Aristóteles sem ter plagiado Aristóteles; um outro fará as odes de

Anacreonte, o Banquete de Platão, os hinos de Orfeu, os mármores

de Praxiteles. E assim é tudo, a natureza, como diz Epicuro, a


porque
todas as coisás limita no mal e no bem. Se acharmos, o menor
pois,
múltiplo comum de todas as variações de todos os elemen-
possíveis
tos da realidade chegaremos assim a calcular o número de combina-

ções que forçosamente a hão de esgotar. Atingido que seja êsse mo-

mento, o universo não fará mais repetir, na orquestra dos seus


que
mundos, a sua eterna melodia.

Mas fóra mesmo destas considerações que pareciam fundar-se

na experiência, o finitismo atomista impunha-se ao espírito grego,


desejoso de explicar a complexíssima realidade com uma
pequena
de elementos fundamentais. Foi sempre uma tendência inata
provisão
. na inteligência humana reduzir os princípios á sua expressão mais

simples, fazer sair do cabe numa mão fechada todo o universo


que
com toda a sua incómensuravel O atomismo infinitista seria
grandeza.
uma aberração para a inteligência helénica, que via no finito a pró-
l. real
condição da intelegibilidade É preciso que o se molde sô-
pria

1 É esta uma das razões por que combatemos a atribuição a Demócrito da


doutrina de que as formas atômicas são em quantidade ilimitada (v. o nosso primeiro
artigo, p. 158, not. 1).
?
A ÁGUIA 209

bre formas simples, é êle se interpretar meio


preciso que possa por
de um número de a condição do
pequeno princípios, porque primeira
real, o é ser intelegivel. Ora do finitismo atomista sái
para grego, o
conceito do eterno retorno como conseqüência imediata e absoluta-
mente lógica.

Ele sái também da astrologia dos e dos estoicos. Se


pitagóricos
os astros voltam a repetir as mesmas combinações e o mundo sub-
lunar é inteiramente dirigido mundo dos astros, á reprodução
pelo
da mesma configuração asjral deve corresponder a repetição dos mes-
mos acontecimentos terrestres.

Tais concepções exigiam o eterno retorno. Exigiam-no todas


aquelas a limitação do universo ou a limitação dos
que pressupunham
seus elementos e a constância e da matéria.
qualitativa quantitativa
Mas atomismo e a física estoica, se conquistam alguns, não
%o
logram adquirir a adesão dos outros. Essa doutrina estaria, infa-
pois,
livelmente condenada a não sobreviver ás suas ideias-mãis se ela não

possuísse condições internas assegurassem a sua


que perpetuidade.
Ora essas condições existiam, elas eram múltiplas. O eterno retorno
não representava um mito lendário, mas a interpretação filo-
permitia
sófica dum mito dessa natureza. Ele vinha trazer a maior precisão
scientífica, o mais eminente de a mais
grau plausibilidade, perfeita
consistência interna á velha idéia dos nascimentos e das mor-
popular
tes sucessivas do cosmos, fôrma o fundo comum de todas as cos-
que
mogonias indo-europeias, '.
a persa e a exceptuadas Esse
judaica
antigo mito era êle satisfatoriamente nêle chegava á
por justificado,
sua fase scientífica. Este facto não é indiferente a
plenamente para
Grécia; o mito exerceu influência sôbre os maiores filósofos
porque
helenos; o Aristóteles e o divino Platão se não furtaram a
próprio
2.
ela Eis o motivo a concepção retornista tinha
primeiro por que
seguras condições de perpetuidade.
Há mais, Não foi também com energia
porém. pouca que pro-
testámos contra a afirmação, vários autores feita, de a ori-
por que
gem psicológica do eterno retorno se deve nas necessidades
procurar
religiosas ou sentimentais da alma humana. o retorno, ouvi-
Quere-se
mos sustentar Ranzoli e alguns outros, se a
porque quere prolongar
nossa vida na eternidade, furtar ao definitivo da morte não só a nossa

própria existência mas os nossos momentos mais felizes. No fundo

As cosmogonias persa e judaica também admitem uma palingenésia cós-


mica, mas essa palingenésia é única. A morte do primeiro universo será uma morte
a ela seguir-se-há a criação dum cosmos imperecivel, caracterizado
purificadora; pela
justiça e pela felicidade definitivas. Será o dies ceternus de Santo Agostinho. «Ecce
quod erit in fine sine fine. Nam quis alius noster est finis, nisi parvenire ad regnum
cujus nullus est finis ? >
(De Civ. Dei, XXII, 30).
«O amigo
da sciência é-o de certa maneira dos mitos», (Arist., Metaph., Didot,
I, 2, 8). « O
que não deixa de ser verosimil é que as artes e a filosofia foram muitas
vezes descobertas e muitas vezes
perdidas, e que essas opiniões (mitológicas) são por
assim dizer despojos
que nos foram conservados [da sciência ântiga]. Até êste ponto
aceitamos as opiniões de nossos
pais e a tradição das primeiras idades» (id., XI, 9,
13). Sabe-se
que muitos, se não todos, os mitos platônicos são interpretações e con-
certenações racionais de velhas lendas
(mitos de Er, do Político, do Timeu, etc.).

14
210 A ÁGUIA

de todas essas teorias de tão aparato racional não estaria


grande
mais o indominavel desejo de fazer bater ad infinitum na mesma
que
intensidade de sentir a mesma da nossa alma, fazer soar
palpitação
eternamente no universo as nossas horas mais soberbas, fundir em

estátuas impereciveis a nossa atitude e o nosso de um mo-


gesto
mento, dando-lhes, assim dizer, a eternidade do bronze. O eterno
por
retorno não seria uma doutrina da razão desinteressada, mas a mais

insistente e afirmação de nós mesmos. Contra esta pre-


pleonástica
tensão clama toda a história da teoria. Nos modernos, se exceptuar-

mos Nietzsche, e será ainda não atenção á sua


preciso prestarmos
tragédia inicial retorno a Nietzsche verdadeira-
(o pareceu primeiro
mente insuportável e em todas as suas afirmações opti-
pôr perigo
mistas), ela não satisfaz, revolta a consciência religiosa dos seus

defensores. Eles advogam-na lhes a verdade, mas


porque parece
apressam-se a confessar é uma verdade triste. As do
que palpitações
seu sentir não batem em unísono com as exigências da sua razão.
'. —
Procuram a verdade, e choram a acham Nos antigos, se
porque
não se observa esta angústia, não há também nêles qualquer entu-

siasmo. As morais não os aqui. Se notamos


preocupações guiaram
nos estoicos o esforço de conciliar tais idejas com a sua doutrina

teológica, reconhecemos ao mesmo tempo a origem dessas idéias


que
não é, mesmo nêles, religiosa. Como não teem as idéias e os senti-

mentos dos modernos, não se lamentam impossibilidade do pro-


pela
ninguerâ os ouve cantar ditirambos achado da dou-
gresso,,mas pelo
trina. É com calma a defendem.—Além disso alguns
perfeita que
antigos como alguns modernos teem a conciência de defendendo a
que,
sua repetição, não defendem a sua causa: êles bem
precisamente
sentem o eterno retorno de si os não interessa pessoal-
que próprios
mente. — Mas se a doutrina do retorno não vinha satisfazer necessi-

dades de ordem afectiva, ela vinha dar cabal satisfação a necessidades

não menos fundamentais do espírito humano, necessidades puramente


racionais e lógicas— necessidades de explicação, de simplificação, de

ordem, de unidade, de ritmo. Represando a evolução entre o começo

e o fim dum mesmo eterno, ela ao pensamento


processas permitia
fazer o ciclo das coisas, introduzir a realidade numa fórmula, reduzir

o universo á mais cristalina intelegibilidade. Ela tornava o pensa-


mento inteiramente adequado á existência, ela vinha proclamar o

império absoluto da Razão. A torna-se toda a


previsão possível para
duração da existência; nada se subtrai ao círculo da inteligência

humana. Desde êsse momento o homem olha o universo sub specie*

ceternitatis.

Este caracter da doutrina do retorno chegou mesmo em alguns

filósofos á consciência. É o acontece com uma das teses


plena que
nós estudada, aquela a se refere Santo Agostinho no De
por que
Civitate Dei. O eterno retorno é necessário, sustenta essa tese, por-
nenhuma inteligência compreender o infinito. É certo que
que pôde

1 la vérité c'est la trouve


Ce qiíil y a de terrible quand on cherche quon
—Remy de Gourmont.
A ÁGUIA 211

nos não diz essa conclusão é necessária a realidade se


que porque
tenha de submeter á inteligência humana. Mas afirma ela tem de
que
ser tal Deus a possa conhecer totalmente, visto a omni-
que que
sciència é um atributo divino. infinita nulla scientia com-
JVulIa posse
está aqui todo o espírito helénico, ávido de medida, dese-
prehendi:
de fazer entrar toda a realidade entre limites lhe
joso precisos que
dêem fôrma e a elevem á compreensão.

Mas essa doutrina vinha ainda satisfazer imperiosas necessida-

des dialécticas. É preciso não esquecer a influência capital a


que
escola de Eleia, pretendendo impôr, assim dizer, ao universo as
por
regras da exerceu sobre todo o helénico. De
gramática, pensamento
ora avante não será já possivel filosofar sem ter em consideração a

tese de Parménides, sem fazer também da filosofia, incluindo a pró-


físiça, uma lógica universal. Para vir no do filo-
pria quem progresso
sofar antigo as cristas e cumiadas do uma tarefa
grandes pensamento,
se lhe representa como essencial em todos os pensadores gregos pos-
teriores á escola eleática: conciliar o devenir nos é dado na rea-
que
lidade com o ser nos é imposto análise das fór-
que pela gramatical
mas da linguagem. Sob a realidade devêm há a realidade é
que que
— dizem-nos Anaxágoras, Empedocles, os atomistas. Acima da reali-

dade se faz há a realidade do existe eternamente — tal a


que que é

idéia de Platão. O mundo sensível não é afinal senão aparência, senão

fenômeno subjectivo, sôb o ou acima do existe e domina


qual qual
o verdadeiro mundo real, o mundo-substratum, o mundo-para-
,
digma, o mundo dos Átomos ou das Idéias. Tudo é opinião, escreve

Demócrito, isto é, tudo é fenômeno subjectivo, na realidade átomos

e vazio imutáveis. Nascer e morrer—ilusões do humano,


pensamento
dizem-nos Anaxágoras e Empedocles, no mundo nada nasce
porque
e nada morre; na realidade—reuniões e separações de elementos imo-

dificaveis. «Desasisados os o não era antes


que pensam que que
vir a ser, ou que a mais pequena coisa no mundo morrer
pôde pôde
e ser destruída. Porque é incompreensível coisa
que qualquer possa
vir do não é, e que o que é possa deixar de ser; sempre
que porque
será, seja onde fôr». Para Platão o mundo intelegivel é uma fantas-

magoria, um desfilar de vagas sombras; na realidade—as Fôrmas, as

Razões eternas Os Átomos e as Fôrmas, como reais, isto é,


pois,
o imutável como existindo verdadeiramente. Mas com o imutável con-

cede-se também realidade ao movimento; eis as doutrinas


porque
atomistas e longe de serem uma simples extensão do ele-
platônicas,
atismo, representam um terreno de conciliação entre o ser e o devenir.

eterno retorno vinha também fazer alguma coisa nêsse sen-

tido. No debate suscitado entre a filosofia do ser e a filosofia do

devenir êle vinha tornar um compromisso. Èle con-


possivel permitia
ceber o único ser não é negado na experiência, ao mesmo tempo
que

Demócr., Frag. Phys. Mullacli, 1 (Sext. Emp., Adv. Math., VII); Anaxag.,
Frag., Diels, e Mulach 17; Erapedocl., Diels, 8, 9, 11, 12 (os frag. cit. no texto são
os 11-12, e que corresponde, nos Emp. Carm. de Mullach, aos vv. 48-104). Para Pia-
tão v. especialmente a alegoria da caverna, no livro VII da República.
212 A ÁGUIA

que o único devenir não escapa, sua novidade adinfinitum,


que pela
ás determinações e ás limitações da razão. O mundo é, mas é no
tempo; evolui, mas evoluindo apresenta sempre o mesmo espectá-
culo. O círculo das coisas aos Gregos a imagem
perpétuo parecia
movei da eternidade. Numa mudança sempre mesmas
que passa pelas
fases êle realizar a imutabilidade cósmica. Essa doutrina
parecia per-
mitia-lhes fazer da Natureza uma só Jano de duas faces, na
juntar
mesma fórmula Parménides e Heraclito: tudo muda, menos a lei se-

gundo a qual as coisas mudam. «Nenhum dos dois uno e o múl-


(o
tiplo) possui a imóvel eternidade; mas como nunca deixam de se
alternar continuamente, assim manteem sempre a imobilidade do que
'».
é periódico Haverá mais tarde veja no Retorno êsse mesmo
quem

princípio de reconciliação entre os da eterna imobilidade


partidários
e os partidários da mudança eterna. São de Nietzsche estas palavras:
«Que tudo volte sem cessar é a mais extrema aproximação dum
mundo do devenir com o mundo do ser: cimo da meditação». Mas
êste cimo, como tantos outros, não fôra Nietzsche o escalára
quem
pela primeira vez.

O êxito, a longa vida desta doutrina devem explicar-se em

grande parte por estas considerações, isto sem falar nas idéias que
impunham aos antigos a teoria da cósmica, teoria a
periodicidade

que a doutrina do retorno estava historicamente ligada e consti-


que
tuia o seu desenvolvimento supremo. O antigo, dissemos
pensamento
num dos capítulos anteriores, não conceber um começo abso-
podia
luto e um fim absoluto de existência, e do devenir, como não podia
deixar de conceber um começo e um fim do evolutivo. Êle
processus
não compreender a criação e a destruição da matéria, e do movi-
podia
mento como não imaginar uma cadeia sem começo e sem fim.
podia
Essa cadeia desenrola-se eternamente, mas há nela um e um
primeiro
último anel. Ora o único movimento conciliava a eternidade da
que
existência com um começo e um fim do evolutivo era o mo-
processus
vimento Eis a razão todos os filósofos da antigui-
periódico. por que
dade eram unânimes em fazer da evolução um conjunto de ciclos

perpétuos \

Mas se a teoria do retorno apresentava inequívocas condições


de perpetuidade todo o as concepções
para pensamento grego, que
a tinham feito nascer não as apresentavam no mesmo O re-
grau.
torno satisfaz o espírito helénico, ávido de perfeição de medida.
plástica,
A ausência de progresso não o choca ; debalde se entre os
procurarão

gregos essas aspirações modernas de ascensão indefinida, essa idéia da

evolução dos entes em curvas se não fecham. Apenas o choca o


que
não é intelegivel, o se furta, ausência de limites
que que pela preci-
sos, a toda a determinação e a toda a medida, o, que não obedece á

Empedocl., freg. 17 e 26 Diels; Empedocl. Carm., 70-74, ia Mullach, Frag-


Phil. Greec., I, 18S3, p. 3; Arist., Phys., VII, 1, 2.
Cf. Arist., De Geri. et Corru.pt., II, 11,6: «É necessário que a geração te-
nha um começo, sem seja limitada, e deve ser eterna. É pois necessário que ela
que
seja cíclica».
A ÁGUIA 213

lei eterna do ritmo. Mas o atomismo, o finitismo, o estoicismo não

puderam conquistar todos os espíritos. Era preciso, pois, receber


para
essa doutrina nos diversos sistemas, meio de
justificá-la por princí-

pios que dêles fizessem ou outros que com êles não esti-
parte por
vessem em flagrante contradição. A Teoria das Idéias se vah
própria
acomodar á doutrina do retorno. Se Platão crê há uma fôrma,
que
uma idéia, um tipo cada espécie, engana-se; Plotino sabe
para que
há uma idéia, um exemplar, um modelo cada indivíduo. Se os
para
indivíduos se repetem é êles são cópia de tais
porque paradigmas
transcendentes, e êsses são necessariamente em número
paradigmas
limitado.

Nos tempos modernos, a doutrina resurge motivos análo-


por

gos àquêles por que surgira entre os Gregos, mas completamente di-

versos dos ali a tinham feito Essa ressurreição não se


que perdurar.
deve, em logar, a uma influência directa do retornismo helé-
primeiro
nico. Não houve acção alguma do eterno retorno dos antigos sobre

o eterno retorno dos modernos. Também se não deve ás condições

especulativas que nessa doutrina se realizavam. É ela estava


porque
implícita em certas concepções do universo, e essas concepções tinham

voltado. Voltára o atorftismo, voltára a teoria fazia do universo


que
um todo limitado, formado uma matéria imutável, determinante
por
real de- todos os fenômenos. Houve apenas acção do atomismo
pois
e finitismo materialista dos antigos sobre o atomismo e o finitismo

materialista dos modernos. Mas como os voltavam, os frutos


germens
deviam também fazer a sua volta uma .conseqüência necessária.
por
E observa-se agora o contrário do se tinha entre os Gre-
que passado

gos. Porque o espírito moderno, acima da intelegibilidade, as


põe
aspirações da alma, os desejos do novo e do melhor, o largo mundo

da moralidade e do sentimento. Os interêsses da sobrelevam


prática

para èle aos interêsses arquitectónicos da Razão. Ou, por


puramente
outra, também êle exige a intelegibilidade; mas o acima de tudo
que
é o universo seja moralmente intelegivel. Precisa de
pretende que
crêr num sentido da vida, de abrir, diante de si, perspectivas
precisa
longínquas, de em alguma a dum ideal.
precisa pôr, parte, garantia
A idéia do retorno asfixia-o, tortura-o, embota-lhe a vontade. Dimi-

nui êle o da vida e a significação e religiosa de


para preço profunda
todo o esforço. A repetição eterna das mesmas coisas aparece-lhe ni-

tidamente como fazendo no universo o vazio moral. Não suporta que


esteja no a lei suprema do ser. Segundo um filósofo ame-
psitacismo
ricano, nêsse exprimia crenças constituem o
que ponto que patrimó-
nio comum de toda a filosofia moderna, o homem tem o direito de

esperar « nos seus elementos mais como nos fenóme-


que, profundos,
nos se á sua superfície, o futuro não repetirá identi-
que produzem
'».
camente, não fará apenas imitar o passado Os retornistas moder-

1 William James, Le Pragmatisme, trad. fr., 1911, p. 118.


214 A ÁGUIA

nos não crêem esse direito lhes esteja e todavia


que garantido;
sentem também êle lhes seria necessário fazer sobre a terra
que para
uma vida verdadeiramente humana. *

A teoria não tem, em si, condições de entre


pois, perpetuidade
os modernos, e, çe a vemos nascer, não é entre sorrisos de alegria.
E a dôr a recebe nos braços. Ela é uma doutrina
^ que pessimista,
contraditória com todas as aspirações modernas, imposta lógica,
pela
renegada correcção. A sua depende da
pela perpetuidade portanto
exacta medida em o atomismo e o finitismo materialista
que poderão
lográ-la. A sua sorte está intimamente ligada á dessas , duas teorias.
Ao contrário do aconteceu entre os Gregos, ela não lhes sobre-
que
viverá.
#

COLONiSAÇÃO, CLIMAS E LÍNGUAS

(EXCERPTOS DE UM LIVRO EM PREPARAÇÃO)

XI

stes problêtnas de higiene e desenvolvimento economico

encaram-se hoje de um modo mais sem o luxo


pratico,
ostentôso dos tempos e harmonisando os dis-
passados
consumidos com os benefícios alcançados, num
pendios
balanço tam rigoroso, resulte um saldo de vidas salvas ou
que positivo
de comodidades conquistadas. Dentro deste utilitário e hu-
programa
mano efetuam-se os mais arrojados dos nossos dias
projetos que,
se não egualam as maravilhas dos antigos em vãs ostentações da

prepotencia, que traduzem, excedem-nas muito na mais larga expan-

são de conforto e bem estar, fomentam. Áparte a feição mera-


que
mente espetaculosa, as empresas modernas teem alcance mais decisivo

e realisam o seu com soma de resultados muito mais avan-


proposito
tajada, numa estrutura mais frágil e menos duradoura, sem duvida,
mas não de menor eficacia, a higiene, comercio, industria ou agri-
para
cultura. Diante dos esgotos das nossas capitais desmerecem-se
grandes
os da velha Roma, os daquelas não removem só as aguas
porque
impuras; á vista as depuram da sua nocividade e as transfor-
quási
mam em novos elementos da vida urbana, donde derivam. Sempre

que as condições topográficas o como em Paris, os


permitem, gran-
des aglomerados citadinos, assemelhados E. Reclusa a «seres
por pro-
digiosos, absorvem incessantemente agua seus aquedutos,
pura pelos
e vitualhas vias terrestres e marítimas; esgotos regeitain
pelas pelos
detritos, servem reconstituir a nutrição necessaria ao seu
que para
enorme apetite». As tam famosas vias romanas, de ha
justamente
cerca de dois mil anos, seriam agora um fraco recurso ás exigen-

cias dos transportes usuais; com a expansão incompara-


porque
vel dos modernos caminhos de ferro nem sequer suportar o
podem
mais singelo confronto. Os dizeres dos antigos sobre o Moeris do

Faraó Amenemha III, confirmados engenheiro Linant,


pelo provocam
a mais ligitima admiração, mormente lembrando-se segundo a
que,
cronologia de Brugsch, existia ha mil e anos
já quatro quinhentos
o Fayum, essa autentica maravilha, donde derivava a agua irrigante

mais de 180.000 hectares da terra egípcia e o excedente ainda


para
atingia da Syrte da Libya, conforme o testemunho de Hérodoto.
parte
Sem sair do Egipto, onde nasceu a arte de irrigar, o grandioso açude

de Assuan enche de o iminente engenheiro Willcoks, e de agua


gloria
e de fartura o longo vale do Nilo hoje, não encerra a melhor es-
que, já
216 A ÁGUIA

cola, onde se aprendem os processos mais variados e mais de


perfeitos
regar as terras aridas ou de enxugar as alagadas. Muito fya a vêr

e estudar na índia, na China ou na Australia. E, levados a cabo os

dos Norte Americanos no Far West, a grande Republica


projetos
terá abertos vastos territorios á sua imigração incessante, alargando-se

dentro das próprias fronteiras, como se efectuasse a conquista de na-

cionalidades muito e nos climas mais ás raças


populosas propícios
superiores.

H. Wilson (Irrigation Engineering—1910), citado Sr. Eze-


pelo
de Campos (Conservação da Riqueza Nacional—1913) apre-
quiel
senta a índia com 16.200.000 hectares de área irrigada, pelos quais
suplanta largamente todos os' outros do mqndo e não será
países
talvez venha a ser excedida, atentas as condições de
provável que
densidade de e de abundancia de chuvas e de rios, a
população que
favorecem e noutras regiões aridas escassêam. Comtudo, o esforço

tenaz, desenvolvido pelos Yankees nos últimos tempos, com aquele

bom senso que os caracterisa, embora êles não cheguem a


pratico
realisar o largo concebido de redimir a cultura intensiva
projeto para
os 18 milhões de hectares do West esteril, só pela executada,
parte
é um testemunho exuberante da mais vigorosa capacidade civilisa-

dora. Este bracejar expansionista, a nós, velhos descubridores de

se nos faz —tidos como


mundos, e—quando justiça colonisadores

excelentes, deslumbra-nos, e em vez de imitar esse moço dei-


povo
xamos morrer de sêde a nossa terra, na metropole e nas ilhas, e,

com a agua das ribeiras que se some no mar, foge-nos bem á gan-
daia a faminta, para ir aumentar a riquêsa imensa que êle
gente
anda criando, deixando-nos a nós cada vez mais pobres. Esquecidos

acaso das nossas tradições nobilissimas que, por ora, ainda mantemos

com brilho incontestável em muito vastas possessões, desvanecemo-nos

com os suqessos da nossa colonia do Norte America. Com-


populosa
tudo, será lembrar essa laboriosa e viva, além
justo que gente que
mar honra e enobrece o nome da Mãe Patria, se lá estabelece o seu

home, volvida a insensivelinente se americanisa e,


primeira geração,
a lingua dilúe-se completo na massa
perdida portuguesa, por geral
da da Republica. ^Repatriam-se os emigrantes,
população grande
depois de amealhada a soma apetecida? Este é ventura o lado
por
mais feliz, ou antes, o menos desastroso para a terra natal só tem-

abandonada, e ainda assim lucrativo para o país da


porariamente
residencia transitória; o trabalho, êles, criou
porque produtivo para
riquezas, que lá ficam.

Oh! sem duvida, os Estados Unidos são o país melhor apare-

relhado arrumar os recem-chegados, mormente, se a assistência


para
carinhosa da colonia, dos parentes ou dos conterrâneos lhes
propor-
ciona trabalho e os ampara nos desalentos nos tempos,
que, primeiros
mesmo nas circunstancias da ambiencia mais favoravel, tanto se

engravecem com a nostalgia e com as dificuldades de entender a

lingua dominante, e de modificar velhos habito^ incompatíveis com o

novo meio social, tão os lutadores darem a da.


proprio para prova
robustez do corpo e da fortalêsa da alma. Embora o acolhimento da
A ÁGUIA 217

chegada e os aspétos da natureza e da civilisação atenuem as amar-

guras da saudade do modesto lar abandonado, o mais singelo


quadro
de emigração resume sempre um drama intimo, muito doloroso
para
confranger as almas mais corajosas ou menos atreitas ás invasões de
desanimos. Cerquem esse das mais fagueiras esperanças, e ainda
quadro
é um arriscado lance de aventuras. Pela benegnidade dos climas e pelo
alto de maravilhoso da Nação, aquelas
gráo progresso grande para-

gens são de certo as mais favoraveis estimular as nossas tradi-


para
cionais qualidades tam adormecidas. Deixa-se a terra da Patria e

segue-se sempre nas mesmas latitudes, sem temer os duma


perigos
aclimação No termo da curta viagem maritima, desembarca-se
penosa.
no cais do excelentemente aparelhado, transbordante de agi-
porto,
tação e de ruido, e aparece de súbito a arena vastíssima, onde se

podem exercitar as mais vigorosas energias da vontade mais enso-

gregada de nobres ambições de triunfo, mais exalta os méritos


que
dos lidadores; sendo a luta aspera, a vitória só bafêja os
poisque,
mais audazes e os melhor apercebidos de tenacidade e de viveza.

Assim os nossos emigrantes entrassem amestrados tentar a


já para
lide com dextreza; ao contrario do sucede de ficarem nos misté-
que
res mais humildes, muito fatigantes e lucrativos. Ás emprezas
pouco
maiores só ascendem aqueles, cujas capacidades imanentes suprem

as deficiências duma educação a terra nativa nem


perparatoria, que
sequer lhes oferecer, desfalecimento, impele a
pode pelo proprio que

gente a emigrar. j

Com efeito, os motivos determinantes das emigrações, — que

muitos homens, tidos sisudos e de autoridade e de res-


por graves,

ponsabilidade, como orientadores da opinião, erroneamente atribuem

a mero espirito de aventura,— derivam de leis conhecidas, explicadas

e comentadas largamente mais ilustres demografistas, com a


pelos
eloquencia dos números e a clarêsa dos diagramas. Quando o desa-

fogo da existencia desce abaixo do minimo tolerável, se não ocorre

outro auxilio salvador, a vida em ou a liberdade


para garantir perigo
ameaçada, á desprotegida resta ainda o recurso, nem sem-
população

pre fácil e seguro, de fugir. Vista nos seus aspétos e variados, a


gerais
emigração revela inalteravelmente um sofrimento, até mesmo quando
dimana do acréscimo das forças demogenicas, remata sem reme-
que
dio no êxodo. Logo á mesa do da vida não se abre lugar
que festim
bastante, mais se constrinja a multidão ou se refrêem os
por que
apetites, impõem-se de necessidade medidas acertadas a tempo, que
libertem da se esboça, o excesso dos convivas. O fenó-
penúria, que
meno reveste ás vezes as feições mais variadas e muito fóra da fa-

mosa lei economica de Malthus; a demasia de ou a


porque gente,
escassez de não é a sua causa única. Freqüentemente, nem
provisões,
se nota a falta de subsistencias e muitas classes são constrangidas a

emigrar apenas deficiencia de trabalho ou de capacidade para


por
ocuparem á mesa do banquete os logares devolutos: donde resulta,

na aparência ou momentos,'a anomalia de abundarem as vitua-


por
lhas e escassearem os convivas. Para as crises ri^uito ruido-
grandes
sas, assumem o caracter de calamidades coletivas, como para
que
¦218
A ÁGUIA

as pequenas, no silencio, nas a atenção


passadas quais geral, por
alheada, nem sequer repara, embora estas não traduzam transes me-

nos aflitivos, os remedios são os mesmos. Mas, se as estancias foram

de antemão e com acerto escolhidas e previdentemente preparadas,


os emigrantes do segundo caso ainda exigem assistência mais assi-

dua; porque as do primeiro levam com o numero um amparo, e um

estimulo que alenta nos desanimos os mais fracos e os menos cora-

josos. Geralmente são estas levas de desventuradas,


grandes gentes

que rematam nos êxitos mais brilhantes. Parece tiram dos


que pro-

prios infortúnios todas as energias atavicas da deixam,


patria, que

para a dilatar pelos territorios novos, surgem identificados no


que
mesmo destino. Para não falar agora de tantas nações antigas e mo-

dernas, assim nasceram os Estados Unidos.

Quem podia futurar que com os peregrinos desembar-


puritanos,
cados no cabo Cod em 11 de dezembro de 1620, iam os das
germens

prosperidades da Inglaterra na America do Norte? Tinha-se frustado a

tentativa de colonisação, feita na Virgínia em 1-585 Walter Raleigh;


por
e havia mais dum século a França começara as descoberta
já que

pelo interior, desde a foz do S. Lourenço á do Mississipi. Devia então

considerar-se definitivamente fundado o dominio colonial francês na

parte mais vasta e mais bela do novo mundo, onde tam depressa
por
se expandiu a civilisação européa, que mantém um caracter acentua-

damente anglo-saxonio, antes pela fraca tendencia dos Franceses a

emigrar, do que por érros da política colonial.

Que os houve e por uma cegueira então bem mal ex-


grandes, já

plicavel, e entre êles avulta o da recusa aos hugonotes de irem ali esta-

belecer-se «para servir a Deus em liberdade» como lá faziam ospurita-

nos ingleses. A odienta intolerância religiosa, que repelia da


patria o escol
da sociedade francesa daquele tempo, foi iníqua, desumana e impoli-

tica. Os 500.000 reformados, cruelmente banidos com a revogação do

Edito de Narites, e imprimiram tanto brilho ás sciencias, artes e ás


que
industrias dos visinhos, e tanta importancia á nascente cidade
países
de Berlim, espalharam toda a Europa, em da França,
por pura perda
o alto valor da sua cultura e do seu caracter. Nesse instante, sabia-

mente dirigidos em reforço aos numerosos núcleos de colonisação

francesa, esparsos no Canadá e na Luisiana, tam mal povoados,


chegavam a tempo de sobrepujar o dominio nascente dos Ingleses;

ou, menos, repremi-lo dentro das vertentes marítimas dos mon-


pelo
tes Alleghanys, e sem a menor possibilidade de se alargar além do

lago Champlain e da ribeira Kennebec ao norte, e da Florida ao sul,

onde os Franceses e os Espanhóis se mantinham com firmeza, desde

largos anos. A francesa andava muito entretida com argucias


política
eclesiásticas e intrigas de damas se ocupar destas
galantes, para
cousas mínimas. Desatendia-se o de concessões da Acadia
pedido
ao ativo Poutrincourt para a dar a um jesuita, mau os
grado judi-
ciosos avisos de Corbat, em 1610. Quando o governo de Québec

pedia colonos, de família, o egoísta e scetico Luiz XIV,


pais para

povoar um continente, enviou-lhe 200 soldados e alguns frades e no

mesmo tempo saíram da França os da reação triunfante,


perseguidos
A AGUIA' 219

os quais o desavisado monarca nem sequer considerava dignos de

desbravar Peles Vermelhas. E com aquela leva sem par, numero


pelo
e excecionais, sobreestava-se a todos os desastres
pelas qualidades
sequentes da sorte das armas e das negociações diplomáticas. Se-

gundo Jouault, as colonias dos ingleses, ao assinar-se o tratado de

Utrecht, mal contavam 262:000 habitantes, depois das vantagens



obtidas de Ryswick e das sucessivas ondas de puritanos que as
pelo

guerras, religiosas da Inglaterra ali tinham arremessado, e os


para
hugonotes, em liberdade de crenças e de ação, não seriam
plena
menos do os seus irmãos Franco-Canadianos, centu-
prolíficos, que

plicados no decurso do século, se seguiu á eliminação


primeiro que
definitiva da Nova França dos mapas americanos. Na conjuntura

aflitiva dos massacres e das abominaveis, o desterro


perseguições
concedido era ainda considerado mercê da clemencia que, pelas
emergencias enevitaveis, seria capaz de transformar, o juízo
perante
austero da Historia, a revogação do edito de Henrique IV,
pacificador
em rasgo ousado de estadista de gênio, opondo ás tendencias ex-

pansionistas da raça inglesa, ria America, uma barreira infrangivel.

Os hereticos, degradados e desprotegidos, sós e unicamente sob o

estimulo das suas almas fortes, libertas da mais cruel e da mais hipo-

crita ferocidade, difusão de todos os fulgores da sua alta civiliza-


pela

ção, servida sua lingua cultissima, criariam uma nova á


pela patria,
imagem da deixavam; mas de certo mais livre, mais ampla e
que
mais opulenta. Por mais frouxa e menos desvelada fosse a inter-
que
ferencia da França nos negocios internos da nova colonia, rebuste-

rida por elementos de tanto realce, os únicos eácassearam nos


que
vários transes atravessados até ser absorvida, o triunfo final ficaria

assim assegurado força numérica e moral dos colonos


pela proprios
expatriados.

Matosinhos, Junho— 1917.

(Continua)
NOTAS E COMENTÁRIOS

BOCAGE

Em Março passado, realizou no Teatro Municipal de S. Paulo e


insigne escritor brasileiro, sr. Olavo Bilac, uma admiravel conferên-
cia sôbre o nosso Bocage, que é, além dum primor de observação
e crítica, um enternecido brado de simpatia e admiração por «um
dos mais belos e correctos cultores da nossA língua», por aquele
«que depois Camões, o único
é, de poeta de quem o povo português
verdadeiramente se lembra». Dessa piedosíssima conferência, que

generosa mão teve a peregrina amabilidade de nos dirigir,


anônima

pedimos vénia para reproduzir a última parte, já que de toda não


podemos enfeixar melhores páginas a esta revista.

0RT0 Bocage, a triste e perigosa vulgarisação, que se chama

a P°Pular'dade, deveria, para o seu nome e para a sua

immensa e radiante obra lyrica, transformar-se em pura


Mas a lhe está sendo dada, está ma-
gloria. gloria que
culada. Um século de vergonha pesa sobre a alma de Elmano. O que
aconteceu á sua memória é doloroso e revoltante. Em torno do seu

nome, chegou a formar-se uma atmosphera de depravação e de es-

candalo. «Versos bocageanos», na bocca do dizer:,


povo, querem
versos se não dizer, literatura de sal grosso e bafio nau-
que podem
seante, florilegio de lama. Como se não bastasse, diffamar a
para
memória do poeta, as rimas de erotismo baixo, que elle infelizmente

deixou, suas, bem suas, authenticadas cunho inconfundível do


pelo
seu estylo e da sua incomparavel technica,— ainda todas as
gerações,
se seguiram á sua, têm inventado sujas trovas, tolas quadrinhas,
que
innominaveis sonetos, a ignorancia alvar e sacrilega do popula-
que
cho vae attribuindo á autoria do mais limpo versificador, que jamais

praticou a nossa lingua.

Duas injurias: a aggravação dos verdadeiros peccados do ho-

mem, e a falsa imputação, aleive infamante ao credito do artista.

Sobre a injuria, passar sem reparo demorado.


primeira podemos
Para honrar a memória de Bocage, e rehabilital-o, dando ao poeta o

logar lhe compete, não é necessário negar os vicios do homem,


que
transformando-o num anjo. Carlyle escreveu que os grandes homens

não nem devem ser pelos seus defeitos, senão


podem, julgados pelas
suas E Manuel Maria não foi melhor nem do que
qualidades... peor
os homens do seu meio e da sua época. Naquelle tempo, e naquella

Lisboa de Dona Maria Primeira, não havia anjos. Bocage foi real-

mente um vaidoso, um bohemio, um desordenado, um brigão, um

homem de alma fraca e de linguagem desenvolta. Mas eram os


que
seus contemporâneos? Elle foi bem um filho da sua época. A cidade

e o reino enchiam-se de libertinos e desboccados. Salões e conven-

tos, e ruas tinham a mesma sem moral. Os costumes


palacios gente
Si*

O TRIUNFO DA DIPLOMACIA

De João da Silva.

^ Águia
— 65,
66 (2.a série).
A ÁGUIA 221

eram soltos, e o falar desbragado. Foi então começou a florescer


que
o medonho calão, ainda hoje deshonra o idioma a
que portuguez,

giria abjecta suja a imprensa de Portugal e do Brasil, essa hor-


que
renda de Eça de estereotypou o modelo
geringonça, que Queiroz
n'Os Maias, no artigo asqueroso de Palma Cavallão, na Cometa do

Diabo. Todos os do tempo de Bocage rimavam coisas fesce-


poetas
ninas e satiras atrozes, e assim se sujeitavam á moda, lisongeando o

gosto da que os rodeava...


gente
Mas a segunda injuria, — e, mais do injuria, calumnia,—
que
essa é deve ser dolorosa nós; essa é deve ser comba-
que para que
tida todos os e todos os homens de cultura intelle-
por poetas, por
(ítual e moral. Bocage, autor de versos tolos e errados! Pobre poeta...
Os recitadores das salas — gente damninha ! — e os rapsodistas das

ruas — raça abjecta! — torturam, desarticulam, destrancam, escorcham,

escarnificam, aspam, desossam, mutilam, desgraçam a metrificação de

Elmano. Até o seu mais erudito biographo, o' sr. Theophilo Braga,

devia ter a obrigação de saber o é um verso bom e um


que que
verso mau, é cúmplice no crime. Este critico, nas do seu
paginas
alentado volume de biographia e analyse literaria, tranquillamente

acceita a authenticidade desta quadrinha enfesada, molle e torta, com

no dizer das chronicas, Bocage respondeu ás dos


que, perguntas
nocturnos da real da o á sahida
guarda policia, quando prenderam
do botequim do Nicola:

Eu sou Bocage,

Venho do Nicola;

Vou p'r'ó outro mundo

Se dispara a pistola

Como se esta imbecilidade pudesse sahir


porventura prodigiosa
da intelligencia e da bocca de Elmano, mais que lhe tivessem
por
embrulhado as idéas e a lingua os carrascões da tasca!

Urge rehabilitar o formoso lyrico, compoz tantos sonetos


que
de ardente amor e triste e tantos idyllios, e tantas ele-
philosophia,
e tantas canções, honraram a nossa raça. E urge, sobretudo,
gias, que
rehabilitar o architecto da expressão verbal, o admiravel ar-
grande
tista da o inexcedivel metrificador, foi o desventurado
palavra, que
Manuel Maria.

Não consintamos vilipendiada a reputação do lyrico,


permaneça

que escreveu estes versos:


quatorze

« Se é doce no recente, amenq estio

Ver toucar-se a manhan de cthereas flores,

E, lambendo as areias c os verdores;

Molle c deslisar-se o rio;


queixoso

Sc é doce no innocentc desafio

Ouvirem-se os voláteis amadores

Seus versos modulando e seus ardores,

De entre os aromas do pomar sombrio;


222 A ÁGUIA

Se é doce mares, céus ver anilados

Pela quadra gentil, de Amor querida,

Que esperta os corações, floreia os prados;

Mais doce é ver-te, de meus ais vencida,

Dar-me em teus brandos olhos desmaiados

Morte, morte de amor, melhor que a vida...»

Em Portugal, a arte de fazer versos chegou ao apogeu com Bo-

cage, e depois delle decahiu. Da sua e das a precede-


geração, que
ram, foi elle o máximo cinzelador da métrica. A da lingua e
plastica
do metro; a no ensamblar das orações e no escandir dos ver-
pericia
sos; a riqueza e do vocabulario; o sábio e ás vezes ines-
graça jogo
das vogaes e das consoantes dentro da harmonia da phrase;
perado
a variação maravilhosa da cadência; a sobriedade das figuras; a pre-
cisão e o colorido dos epithetos; todos estes difficeis e complicados

segredos da arte cuja belleza e raridade ás vezes escapam


poética,
até aos mais cultos amadores da e aos mais argutos críticos
poesia
literários, e somente os iniciados ver, comprehender e
que podem
avaliar; esta consciência, este esta medida, este dom de adi-
gosto,
vinhação e de tacto, de os artistas natos têm o privilegio,—tudo
que
isto coube a Elmano, tudo isto se entreteceu no seu talento. Depois

delle, Portugal teve talvez mais fortes, de surto mais alto, de


poetas
mais fecunda imaginação. Mas nenhum o excedeu, nem o igualou no

brilho da expressão. O romantismo veiu renovar a poesia portugueza,


deu frescura e brilho á idealisação dos assumptos, deu força e graça
ao — e benefica foi aquella rebeldia contra
movimento da expressão,

a seccura e dureza dos moldes clássicos. Mas, depois -de Garrett e

Castilho, os últimos renovadores exaggerarain e deturparam a escola

saneadora. Implantou-se tios arraiaes da Poesia o desleixo, a correc-

da linguagem foi desprezada, e a métrica arrastou-se longos


ção por
annos, enferma, aleijada misera, em vão supplicando cuidados
pobre
de desvelado orthopedista... Houve, depois, felizmente, reacção; mas

esta reacção não se manifestou em Portugal, senão aqui, no Brasil,

com a dos chamados parnasianos, erradamente parna-


geração poetas
sianos, como tão bellamente escreveu o meu mestre
porque, querido
Alberto de Oliveira, «entre nós nunca houve houve,
parnasianismo;
sim, influxo deste, um desvio da corrente engros-
por poética, que,
sada a dos melhores cabedaes românticos, rolava ultima-
principio
mente rasa e desfallecida; houve substituição e melhoria de alguns

ideaes, a dos elementos de elocução, linguagem, e tudo o mais to-

cante ao meneio do verso; tomou-se então mais a sério o officio de

lidar com a o não foi senão repôr em seu logar este


palavra, que
officio ou arte, sempre reverenciada dos bons espíritos; e não direi o

culto da mas o empenho de bem escrever, aprimorando esta


forma,
ou expurgando-a de vicios a desfeiain, tornou-se mira principal
que
"então.
dos poetas de »

Pois bem, devem os nossos modernos ter Bocage como


poetas
orago e mentor. Devem amal-o e estudal-o, sem o imitar, não
porque
A ÁGUIA 223

podemos pensar e escrever exactamente hoje como se e es-


pensava
crevia em 1800, mas aprendendo com elle o respeito do idioma e da
versificação.

E congreguem-se todos os bons amigos da Poesia no


piedoso
trabalho da rehabilitação de tão alto cantor e adoravel artista! Não

fiquem sobre o seu nome tantas crustas de lodo! Esqueçam-se as


tristes de ajnargo rancor e feia licenciosidade, o descon-
paginas que
tentamento, a má educação do tempo, a miséria, o desamparo moral

inspiraram a Elmano; rasguein-se, com asco e horror,


queimem-se,
todas essas invenções impressas, com descarados escrevinhadores
que

procuram, sob a capa da fama do explorar a algibeira


grande poeta,
e depravar o gosto do povo; leiam-se e releiam-se os versos
perfeitos
em elle cantou os seus amores e as suas desgraças; e alvoreça
que

para elle a verdadeira e definitiva


gloria.
E possa elle, libertado do desdouro tanto tempo lhe infa-
que
mou a memória, repetir:

«Eia! Os odios cevae, cevae a infamia,

Fúrias, que evaporaes tartareas sombras

Contra o olympio fulgor, que envolve o gênio!

Entre essa escuridão, reluz meu nome.

Versos balbuciei com a voz da infancia ;


Vate nasci, fui vate, inda na quadra
Em que o rosto viril macio e tenro

Semelha o mimo de virginea face...

Se ás Musas não pertenço, eu, que a Virtude,

Philosophia, Amor cultivo, adoro;

Eu, que cem vezes, concebendo o Olympo,

Absorto com Platão num mundo estranho,

Ou de olhos divinaes divinisado,

Sinto no coração, na voz, na mente

Tropel de affectos, borbotões de idéas,

E: «Eis o Deus! eis o Deus!» exclamo, e vôo

De repente onde mil nem vão de espaço;

Pertencereis ás Musas, vós, sem fama,

Sein alma, sem ternura? Ah! longe, longe

De meus cândidos sons, se enxovalham,


que
Peçonhentos dragões, na peste vossa!

Graças, ó Phebo! ó nume! ó Lysia! ó Patria!

Vossos dons, vosso applauso alteiam, firmam

Sobre a cerviz da inveja o meu triumpho!»


Os cartazes da Junta Patriótica

m abril último, estiveram expostos no da Misericór-


pátio
dio, desta cidade, os cartazes apresentados ao concurso,

aberto Junta Patriótica do Norte e destinados a


pela
anunciar um certamen de Arte Raras
grande para junho.
vezes terá havido concurso tão impusesse uma anu-
que justamente
lação imediata, tal a flagrante mediocridade do conjunto. Nem pelo
desenho sóbrio e gracioso, ou violento e impressivo; nem côr
pela
cheia de suavidade ou contrastes; nem forma de ideação ou
pela
execução — o aspecto tem onde se a atenção
geral por possa justificar
dum juri de artistas.

Passando então a analizar um um, mais ressalta ainda a in-


por
felicidade do concurso, não nos ficando um só trabalho bom e apenas

podendo aceitar-se como sofrível o projecto de Carlos de Sousa. Os


outros não estão fora de toda a suspeita favorável ou des-
premiados
favorável. muito nos termos de incluir nesta reprovação um
(E pesa
trabalho do snr. Joaquim Salgado, apreciável outra
para qualquer
coisa diferente desta).

Os dois simplesmente desastra-


premiados julgamo-los provas
das. O do snr. Antônio Soares, carinhosa concepção, ori-
pela pela

ginalidade do esboço, talvez chegasse a ser bom, se o autor o com-

pletasse. É possível sua maneira de Arte lhe não exija mais


que"a

precisão e mais desenho. É natural os seus olhos vejam


que para
além do que desenha. Nós é só vemos o lá está, e o
que que que
lá está bastante deficiente.
parece-nos
O do snr. Antônio Lima, e se ostenta infelizmente
qíie já por
essas paredes do Porto, é, sem dúvida, uma das más coisas o
que
seu autor tem feito O snr. Antônio Lima desenha, em
para público.
regra, bem e com Tem as suas desigualdades, repete-se
proporção.
muito, falha a miúdo em originalidade, mas tanto ern ex-librís como

em capas tem exemplares de certo modo O cartaz é


primorosos. que
não é o seu gênero. Falta-lhe o sentimento da decoração, o
grande
rápido e envolvente do assunto. Esta «Filigrana» em se
golpe que
nos afigura certa disparidade tíntre o cadeado e as dos cantos
peças
e centro, sêr motivo uma vinheta, concedamos mesmo
podia para

para portada dum catálogo de ourivesaria, mas nunca cartaz
para
dum certâmen de Arte. Vejam os nossos leitores essas
grande pare-
des em êle se exibe. Defrontem .corajosamente com aquela
que pasta
azul e resolvam em última instância. Se acharem bem,
perdoem-nos
a ousadia.

E agora nos lembra: mas não eram artistas, só artistas os mem-


A ÁGUIA
225

bros do
júri, que mimosearam a Junta Patriótica —bem digna de
melhor sorte—com estes
primores?— Dizem-nos que não e que até

quem influiu na sábia resolução foi o Crítico oficial destas


paragens,
o enciclopédico dirige a opinião marca
prodígio que portuense, as
cotações intelectuais do faz maus versos e decide concursos.
país,
Nesse caso, está bem. A resolução não ser outra.
podia
E, para fechar, tenham V. Ex.as o de saborear a bri-
prazer
lhantíssima carta segue, assinada um dos Artistas
que por que, em
Portugal, mais nobilitam a sua Arte, o Professorado e a Crítica ver-
dadeira:

Porto, 14 de Maio de 1917.

Meu amigo
presadíssitno

Tive há dias a honra da sua carta á vou condignamente


qual
responder:

A minha especialissima situação inhibe-me, como o meu amigo

facilmente deprehende, de comentários acerca do resultado


quaisquer
do concurso de cartazes, ultimamente levado a efeito.
Houve, como é noto tio, as duas ordens de cartazes, dois
para
júris, que funcionando simultaneamente, assumiram em separado as
respectivas responsabilidades. Parle dum desses ignorando
fiz júris,
porém., em absoluto, o os colegas do outro deliberavam. Trans-
que

parece, em taes circunstâncias, o motivo não entro em apre-


por que
ciaçôes só afectariam dever es' moraes como os no
que que presente
momento me assistem... Isto não obsta, contudo, a eu franca-
que
mente declare, sem a minima intenção de melindres se
pessoais, que,
porventura permitido me fora resolver em última instância o assunto
em optaria trabalho do concorrente Carlos de Souza,
questão, pelo
aduzindo as competentes razões Não tenho a menot
justificativas.
dúvida em tornar este meu voto.
público

Queira dispor sempre do

Amigo constante e admirador,

JOÃO AUGUSTO RIBEIRO.

15
"Renascença,,
Uma entrevista sôbre a

m abril último, o A Manhã, de Lisboa, mandou ao


jornal
Porto um seu redactor, aqui esteve apenas três dias,
que
conforme êle repetidas vezes esclareceu, e que, prodi-

giosamente, fixou num instante toda a vida comercial,


industrial e intelectual desta cidade. Por mais nos interessar esta última,
a ela nos referiremos em especial, tanto mais à nossa volta foi
que
dado o combate.

O jornalista começoij anunciar, a certa altura das suas en-


por
trevistas, o seguinte aperitivo: = —Faliu «Renas-
Gerações literarias a

cença» do Porto? = Evidenciava-se desde logo a segurança


pouca
sôbre o assunto, não se olhava a uma tal assim
pois que pregunta
exposta era de certa o crédito duma sociedade lite-
gravidade para
rária tem as suas bases comerciais e é mais
que já que, portanto,
sensível à palavra do o supôs. E, vem a
falia que jornalista porque
óptimo propósito e serve igualmente a explicar o antes se diz,
que
indispensável é frisar bem a «Renascença Portuguesa» não é
que
só um grupo literário —para uns de republicanos, outros de mo-
para
nárquicos, conforme convém a nos vê mal—que faz os seus
quem
livros, publica a sua revista, e estabelece uma corrente lite-
que que
rária. Isso já seria muito, como trabalho do espírito, mas teria o con-
dão de aquela tão conhecida efemeridade de todas as belas
gosar
idênticas iniciativas, nascem dum clarão de sonho, vivem de ilu-
que
sões e desfazem-se como fumo.

A «Renascença Portuguesa» entendeu não devia abalan-


que
çar-se a um de cultura sem uma base sólida, lhe
programa geral que

garantisse os embates de toda a natureza, e foi criou as


porisso que
suas oficinas se lançou ela a editar todas as
graficas, que própria
suas obras, que organizou comercialmente a expansão dos seus li-
vros. É isto mercadejar? É isto um balcão?—Só o
pode preguntar
na melhor bôa fé dêste mundo, se desinteressa de saber...
quem,
Se assim não fosse, a «Renascença» teria tido a sorte de todas as

sociedades literárias até hoje se fundaram em Portugal, e não
que
consolidaria cada vez mais os seus meios de acção e de extensão,
levando a toda a os seus livros, dia a dia, um
parte procurando por
trabalho sem tréguas, alcançar a realização duma sede onde
própria,
se instale a Universidade Popular completa da Península e
primeira
donde depois, com laboratórios completos e oficinas adequadas,
possa
sair, para bem do um ensino melhor complete a
país, prático que
acção educadora das nossas bibliotecas. À custa dos autores e do es-
forço de cá de dentro, apenas enriquecerão a literatura e
portuguesa
A ÁGUIA 227

a educação nacional. O desiquilibrio


geral provocado pela guerra
tem-nos forçado a restringir ao mínimo a execução de diferentes

pontos do nosso Ainda assim, não era caso


programa. para pregun-
tar se a «Renascença» faliu!...

Mas vamos à entrevista, em cujo subtítulo foi substituída aquela


estoutra: = Falhou o saudosismo da «Renascença»
pregunta por do
Porto? = A falta de segurança revelada no anúncio da mos-
palestra
tra-se nela a toda a luz, aqui e alem o
percebendo-se que jornalista
pretende ser agradavel à «Renascença», mas, desvirtuando-lhe,
por
completo, a sua essência íntima.

Começa dizer: x
por

«Nos
poucos momentos de descanso demo-nos a reler as ultimas obras publi-
cadas «Renascença»,
pela grupo que se nos afigurou sempre representar uma nova
tendencia literaria, quasi ou mesmo uma escola, que abriu esperahcas e converteu
inclinações. Com o sr. Teixeira de Pascoais á frente, seguido de
perto por Mario Bei-
rào, Augusto Casimiro, Jaime Cortesão e outros —
poetas novos e escritores firmes
entre os quais o sr. Júlio Brandão—a «Renascença» tem editado excelentes livros,
muitos de notável merecimento e erudição, e outros caracterizados essencialmente

pelo novo aspecto literário, que tem sido cognominado de saudosismo e que traduz
de facto uma tendencia espiritual, a que se submeteram varias a «Renas-
penas. Que
cença», só por esta escolastica, reunindo adeptos,
pretensão provocou também um
certo espectativa—que já se desfez —e refloriu duvidas
movimento de
justificadas
quanto ao purismo e a oportunidade do movimento, é facto incontroverso, a que não
desejamos dar extensiva critica ou apreciação, que estaria fora do nosso
plano, se
não estivesse já antes fora dos nossos hábitos!»
, *

Ora, nem é verdade o sr. Júlio Brandão esteja no


que grupo,
nem o sr. Teixeira de Pascoais é seguido de Mario Bei-
perto por
rão, Augusto Casimiro e Jaime Cortesão, nem ao Saudosismo se
submeteram várias O equivocou-se, única e sim-
penas. jornalista

plesmente por não ter acompanhado a acção da «Renascença» desde


o seu início. O sr. Júlio Brandão, sua atitude de hostilidade ao
pela
Saudosismo, até um incidente desagradabilíssimo. Mário
provocou
Beirão, Augusto Casimiro e Jaime Cortesão teem as suas obras bem
nítidas, bem seguindo-se a si e tendo hoje a in-
pessoais, próprios
dependência tinham antes de Teixeira de Pascoais lançar bri-
que
lhantemente o seu Saudosismo. E a submissão de várias
penas é
também uma fantasia Houve crítica à volta da conferên-
jornalística.
1
cia e artigos de Teixeira de Pascoais. Mas, foi mesmo na Águia
'que,
a par da defesa de Fernando Pessoa, mais se combateram as
ideas do ilustre Poeta, como é fácil de vêr lendo a com
polemica
Antônio Sérgio.

Era tão interessante se fizesse estudando os


qué jornalismo
assuntos!

Depois vem o se atribui ao sr. João Grave. Fala-se das


que
escolas romântica e realista. Notam-se as tendências espiritualistas da
moderna literária e diz-se:
geração

«—Sim, é isso. A «Renascença» estabelecer—não digo impôr— o


pretendia
saudosismo, maneira tem o seu maior cultor em Tei-
principalmente poética que

i «O Espírito Lusitano ou o Saudosismo». Porto. 1913.


228 A ÁGUIA

xeira de Pascoais, poeta dos maiores, em Augusto Casimiro, Beirão e em outros


mais. A roda desta maneira nova reuniram-se alguns dos homens do letras da mo-
derna geração. O saudosismo, comtudo, não ter além das obras dos
parece passado
proprios espíritos que o defendem e iniciaram.
— Diz-se
que a « Renascença > falhou nesse intuito, inicial razão da sua exis-
téncia.A sua opinião?
—Assim o creio também. A fôrma literária que se pretendeu estabelecer,
muito bem tratada pelos poetas a que me referi, poetas que são dos maiores desta
época, não vence. A «Renascença» hoje limita-se a
publicar livros, excelentes livros,
de uma selecçâo que honra o grupo, livros de critica^ de arte, de formosa erudição.
Mas, mais nada ».

Há aqui um exacto e concordante com o dizemos


ponto que
antes sobre o Saudosismo. É êle só ficou nas obras do alto es-
que

pírito que o iniciou, ou antes o apresentou. Mas, nem mesmo


que
essa expressão' filosófica Continua a viver como sempre na obra
faliu.
do seu Autor. Sobre a acção da «Renascença», é volta a exibir-se
que
uma sensível falta de conhecimento. A «Renascença» não se limita
a livros. A «Renascença» continua a cumprir o seu
publicar pro-
discretamente, sem o alarde da imprensa, só nos
grama, que quási
auxiliou enquanto andámos na rama das tentativas, mas com vontade

firme, destino certo e vitória segura. E senão veja-se o se esta-


que
beleceu no nosso Estatuto, como fim da nossa sociedade:

«Art. 3.° O objecto da Associação é, além do estreitamento das relações dos


,
seus associados, o desenvolvimento educativo de todos os cidadãos portugueses, por
meio da lição, da conferência, do manifesto, da revista, do livro, da biblioteca, da
escola, da Universidade Popular, da excursão, da exposição, do concerto, etc., etc.»

Na sede da «Renascença» funcionam várias aulas, duma Uni-


versidade Popular, em se ensina o é ensinar com as
que que possível
actuais instalações. Conferências, tem-as feito a «Renascença» e muitas.
Ora isoladas, sobre assuntos de ocasião; ora seguidas, com programa
impresso. Fizeram-se duas excursões, deram-se três concertos,.pro-

moveu-se uma exposição, alguns manifestos, A Águia
publicaram-se
tem 66 números, estão editados mais de 100 volumes, aumentando-se
sucessivamente as bibliotecas Lusitana, Histórica e de Educação, e
melhor se fará à medida melhor atmosfera vá havendo. É
que geral
pouco, ou não sabia o disto tudo ? Pois tinha-lhe sido fa-
jornalista
cílimo sabê-lo. Bastava dirigir-se à sede da «Renascença» e estudá-la

por dentro. Cá veria o ela representa de esforço ininterrupto


que já
e de magníficas reservas o cumprimento do é indispensável
para que
cumprir. Cá lhe seriam fornecidas as de tudo aí fica
provas quanto
dito. Em frente dos factos, se lhe mostraria a «Renascença» é
que
mais alguma coisa o Saudosismo e não se limita a
que que publicar
livros. ,

Seria tão bom fazer conhecendo as coisas de se


jornalismo que
fala!

NOTA-— Há-de parecer que isentamos o snr. João Grave da responsabili-


dade das incxactidões que lhe são na ,bóca. Assim é, na verdade, em face da
postas
seguinte carta do ilustre escritor:
'%!.
Is
^ i- /^v /^

'. '

\\' //'

'I

'"'

J™^,/

A NOVA PEÇA DE OIRO

DE 5 ESCUDOS

De João da Silva.

"\v
'
-V *j\ / t.
/e? ->.
: jS t , V gp / I 1 ,'V . i
1 is £« I 'P'&fl
S ^ vT
V.-B
f V^.-v f

A PE£A EM TAMANHO NATURAL (22nml)

65, 66 (2.a seric).


^—
A ÁGÜIA 229

Em resposta d carta de V., cumpre-me declarar, lialdade,


por
que a minha curta com o ilustre snr. Norberto de
palestra jornalista,
Araújo, não reproduzida, no de Lisboa, A Manhã, com
foi jornal
absoluta sendo-me atribuídas, de certo equívoco ou
justeza, por por
falta de clareza na minha exposição, expressões não
que proferi.
O snr. Norberto de Araújo, é um culto espirito, não tomou,
que
de resto, notas da nossa rápida conversa só mais tarde recons-
que
tituiu. Nestas condições, lapso é dcsculpavel.
qualquer
A conversação a alude versou exclusivamente sobre
que quês-
tões literárias. Recordo-me, de a certa altura o snr. Nor-
porém, que
berto de Araújo me de relance, na Renascença,
falou, perguntando^me
a minha opinião sobre a influência ela exercida nas letras na-
por
cionaes, e afirmando-lhe eu considerava útil a obra dêsse
que grupo
de escritores e de poetas.
«Mas
o saúdosismo virá a fazer Escola?—inquiriu.
«As Escolas,. no dizer de Guerra Junqueiro, nada mais são
do a retórica dos homens de — respondi.
que gênio»
Trocamos ainda mais algumas sobre realismo, roman-
palavras
tismo e espiritualismo, e dcspedimo-nos. Eis tudo se
quanto passouf

JOÃO GRAVE.
O

AUGUSTO CASIMIRO

Por amôr da Pátria, amôr da Humanidade e da sua divina


por
Arte, está em França, batendo-se ao lado da civilizada o Poeta
gente
Augusto Casimiro. A sua sêde de aventura, o atavismo heroico da
sua raça levou-o há tempos África, à conquista de novos hori-
para
zontes, de saudades mais dolorosas e mais violentas. Foi, e
provas
breve voltou, sempre mais abrasado seu amôr de Poeta, de Fi-
pelo
lho, Esposo e Pai. Ei-lo, desde o da nossa comparticipação
princípio
na Guerra Grande, em terras francesas, ainda mesma febre de
pela
ideal e De lá tem escrito os seus entusiasmos em cartas cheias
glória.
de fé. De lá nos enviou o soneto noutro lugar e
que publicamos que
é a magestosa da absoluta serenidade diante do cachar impe-
posse
tuoso da morte. Um abraço ao Poeta e ao Soldado.
grande

«O INFANTE DJE SAGRES»

Teve três representações no Porto, com admirável êxito o belo


Poema épico de Jaime Cortesão—«O Infante de Sagres». A não
peça
foi apresentada com o mesmo rigor e luxo de Lisboa. Ainda assim,
conseguiu mostrar à aos do Infante, como
gente portuense, patrícios
o Autor soube respeitar honestamente a história e em scena o
pôr
iniciador das nossas com toda a verdade das, crônicas e com
glórias
o máximo respeito suas creifças e vontades. É certo em
pelas que
Lisboa houve chamasse à e a folha repu-
quem peça jacobina, que
blicana desta cidade lhe chamou «enfadonhamente religiosa e requin-
tadamente fanática ». não há livre a critica,
Mas porque de ser quando
0 é tanta coisa mais neste santo em só é
país, que quási proibido
têr-se independência e carácter?
BIBLIOGRAFIA

LETTRES PORTUGAISES versaire de la mort du Poète-educateur,

pour fêter officiellement Touverture du


Adolfo Coelho: Cultura e analfabe- quatrième, édifié à Lisbonne prés du Jar-
tismo: Renascença Portuguesa, Porto.— din da Estrella.
Vicomte de Vila-Moura et Antonio Car- Simple de lignes, spacieux, baigné de
nciro: Grandes de Portugal; Renascença lumière, orne de fresques artistiques,
Portuguesa. Porto. —Simões de Castro: 1'immeuble scolaire fut dessiné par 1'archi-
Bemaventurados os que choram; Renas- tccte Raul Lino, qui s'inspir3 de la tradi-
cença Portuguesa, Porto. — Carlos Par- tion portugaise et qui fit également les
reira: A Esmeralda de Nero; Renascença plans du Musée João de'Deus, inaugure
Portuguesa, Porto. le mcme jour. Ce Musée, merveille de

goüt et de piété commémorative, sert


d'annexe ao Jardin-Ecole, et l'on y a reuni
Nous confondions ainsi deux choses tous les qui rappellent à la fois
souvenirs
fort différentes: éducation et instruction, les travaux littéraires du poete et sa voca-
ct c'estce que vient nous démontrer dans tion éducatrice. Ainsi s'efforce-t-on, là-bas,
une ingénieuse et brillant ctude le savant de greffer un avenir de prospérité sur le

profesíi,eur Adolfo Coelho. culte des morts illustres; mais 1'adaptation"


L'Allemagne actuelle sert d'argument aux conditions du présent est hérissée de
capital à 1'auteur de Culture et Illet- difficultés, et la question religieuse n'est
tréisme pour prouver que 1'avancement pas la moindre en bien des cas. En ce
moral et intellectuel d'un peuple est loin qui concerne 1'école, M. João de Deus
d'être solidaire de 1'obligation géncrale Ramos pense qu'une atmosphère de reli-
La • entretenue
de savoir lire, écrire et compter. pre- giosité par la musique ct le
mière partie de 1'ouvrage esquisse
rapi- chant chorai doit suffire; mais M. Guerra
dement 1'histoire de la Culture à travers Junqueira proclame la néccssité de Dicu.
les siècles et met en evidence
parfaite la Au fait, si l'on voulait interpréter con-
compatibilité d'une civilisation supérieure venablement les leçons de la guerre, on
avec la non vulgarisation de 1" ecriture. reconnaítrait que les dieux nationaux
-seuls, ou non, ont retenu
La seconde partie analyse les conditions avoués par
morales ct socialcs de rAllcmagne im- devers eux la majorité des fidèlcs. L'uni-

périale, ou l'absence à peu prcs totale versalisme chrétien ou simpiement huma-


d'illettrés n'empêche pas Ia criminalité nitaire s'est trouvé relégue au second
de se maintenir à un inquiétant niveau. plan et, de mêmc qu'il fut impuissant à
empêcher le déchainemcnt du cataclysme,
Au Portugal, c'est tout le contraire il s'avcre aujourd'hui incapable de res-

qui arrive, ce qui ne saurait dispenser taurer la paix. Ce n'est, du reste, pas une
pourtant les pouvoirs publics d'organiser raison pour désespérer de son avenir, en
sur des bases modernes 1'instruction des vertu des réactions de sensibilité auxquel-
masses. Une ébauche admirable d'organi- les 1'homme est à son propre eton-
sujet,
sation a cté fournie par 1'initiative privée nement. Ainsi guerre a mis en relief
la
avec iAssociation des Ecoles mobiles, les virtualités insoupçonnces, incluses au
ct chacun sait que l'un des plus grands príncipe des nationalités et, par là même,
lyriques du Portugal, João de Deus, l'au- la force de résistance des petites nations,
teur du Campo de flores, fut le crcatcur dont l'effort des Alliés prétend sauvegar-
de la methode la plus rationnelle de lec- der 1'existencc.
ture qui soit au monde, la Cartilha Ma- Le culte de Camoens fut naguère le
ternal. A ce titre, il doit prendre place à picdestal de l'idée républicaine en Portu-
cote des Frcebel et des Pestalozzi. Conti- gal; sur le culte de João de Deus s'établit
nuateur passionné de son ceuvre, le Dr. lc perfectionncment des masses par l'ins-
João de Deus Ramos, fils poete, s'est
du truetion, et l'on doit regarder comme abso-
voué à la construetion de Jardirts-Ecoles, lument légitimes les efforts d'un peuple
pédagogiquement exemplaires et d'un cn vue de vivre de sa vie
propre.
Le cn
caractère essentiellement portugais. Le xixe siècle portugais fut riche
preinier fut inaugure à Coímbre, il y a gloires jationales, dans lordre littéraire
tout au moins, à
quelques années, et l'on a choisi la date et il a paru opportun
du 11 janvier dernier, vingtunième anni- MM. de Vila-Moura et Antonio Carneiro

Y
A ÁGUIA 231

de mettre sous nos yeux une galerié con- lecteurs la tendance de ceux qui se déro-

temporaine des Grands de Portugal, bent à 1'action. Les pages qu'il consacre
Casti- à M. de Vila-Moura et qui dénoncent lá
parmi lesquels Garrett, Herculano,
Uio, Catnillo Castello Branco, Anthero de parenté de ce haut esprit avec Huysmans,
Quental, João de Deus, Eça de Queiroz, les Goncourt et d'Annunzio, donnent le
Soares dos Reis, Oliveira Martins, Rafael niveau de sa compréhension artistique et

Bordalo Pinheiro, Fialho d'Almeida, An- de son dédain des faciles succès.
tonio Nobre, tous morts déjà, s evertuèrent
en effct à rendre à leur patrie uu rang Les nouveaux qui religieuse-
poètcs
et sur la
supérieur dans lettres et dans l'art. Dans ment penchent sur la terre
se
les aèdes
la même yoie de résurrection nationale vie portugaises, comme firent
contimient de s'eíforcer le maítre roman- antiques, habiles à surprendre Ia naissance
cier Teixeira de Queiroz et Guerra Jun- des dieux, ne nous contrediront pas; j'ai

queiro, prince du Parnasse lusitanien, nommé Pascoaes, le visionaire de Sempre


ayant à ses cotes Gomes Leal et Eugênio et Mario Beirão, qu'un critique a pu ap-
le la modeme poésie
de Castro, sans oublier grand peintte peler, les Rembrandt de
Raul Brandão. 1'ardent poete
Columbano, et rhjstprien portugaise, Jayme Cortesão,
de
Ces captivantes íigures nous sont présen- d'Humble gloire dramaturgt applaudi
tées à la fois par lè crayon et par la plume, L'lnfant de Sagres, aux vers ourdis de

et le talent du dessinateur égale celui du rayons d'aurore, Afonso Duarte, Augusto


critique, qui est de premiei ordre. Casimiro.groupe novateur, qui. ne cesse
M. de Vila-Moura, qui sous le rapport de produire et d'agir et dont nous aurons
du style pourrait être comparé à Valle- bientôt à détailler 1'oeuvre, au regard d'au-
-Inclan s'enorgueillir d'etre Si le Portugal
et qui peut trêsproductions similaires.
des plus purs héritiers de Camillo, cultive, malgré le
l'un a pu rester un peuple
cxcelle en 1'analyse des états de sensibi- nombre considérable de ses illettrés, il le
lité exaspérée. A travers les gestes, il doit à son admirable folk-lore lyrique, sur
cherche à voir l'âme, et Bohêmes a donné lequel précisément les
nouveaux poetes,
la mesure de ses moyens comme roman- sont en meme temps des éducateurs,
qui
cier évocateur de types d'exception. Cer- ont voulu leur inspiration.
greffer
tains replis étranges du tempérament por-
(Do Mercure de France)
tugais ont été fouiilés par lui, pour la pre-
miere fois, dirait-on, et nul n'était mieux PlilI.ÉAS LEBESOUE.
nous restituer, dans tout
qualifié pour
leur caractere, les figures de son
grandes
O *
pays.

"FIALHO
M. Simões de Castro affectionne la D'ALMEIDA,
—pelo Visconde de Vila-
des crises sentimentales, qui
peinture
fiévreusement Moura— Edição da Renas-
portent les ames à goüter
le secret douloureux de la vie. C'est un cença Portuguesa. 1917.

élégiaque et un voluptueux, qui excelle


à dessincr des visages baignés de lamer- O ilustre que tão belas obras
escritor,

set comme en récit, tem dadoliteratura á quis


qui sait orcliestrer un portuguesa,
témoignent La Passion de Mademoiselle (também prestar a homenagem do seu

Dorothée, La Dot, La'tragédie de Itiom- elogio ao grande morto do À Esquina e


L'hom- deu-nos então um volume precioso, em
me qui plus de maison,
navait
carinho-
me avait peur du temps, par lesquels
qui que a obra de Fialho é estudada
se Bienheureux saliente por outro estilista dos mais bri-
justifie le titre du recueil
ceux Le style est sans lhantes do seu tempo.
qui pleurent.
appret, O livro é dividido em 4 capítulos:
parfois mièírre.
Cuba e Vila de Frades, A indole de Fia-
Au contraire, c'est le culte presque
lho, O Panfletário e o Artista, e em to-
exclusif de la forme et de la beauté qui
requiert Parreira, dos eles o Visconde de Vila Moura nos
les efforts de M. Carlos
auteur de L'Emeraude de Néron. En ces mostra as figuras de Fialhcf, o meio que o
ideação, com
proses de fantaisie et de sarcasme, l'écri- influiu, os seus processos de
vain s'affirme à la fois disciple d'Oscar um elevado critério e rara independencia.
cri- Opiniões sobre esta ou aquela
Wilde et Eça de Queiroz; son sens pessoais
absolutamente
tique est des plus aigus, son humour ini- orientação política, estão
dentro da livre critica, como quaisquer
mitable; mais je crains fort que son goüt
du ne vienne favoriser chez ses outras.
paradoxe
232 A ÁGUIA

"ETNOGRAFIA
ARTIS- dá a estudar com amor tudo o que se
TICA,, — por Virgílio Cor- prenda com Terras de Portugal.
reia. Edição da Renascença Aproveitando o ensejo do primeiro
Portuguesa. 1916. congresso regional português, organizado
para bem do Algarve, o sr. Adelino Men-
É bem consolador notar como os estudos des acompanha de perto os trabalhos e
etnográficos começam a despertar a aten- vai-nos dizendo, numa linguagem colo-
da gente moça. Ainda não há muito, rida e eloqüente, o que é a bela província
ção
quasi só os sábios cheios de pó e vistas
e que é necessário fazer para das suas
o
muito especiais é que se enfronhavam em condições naturais tirar o que melhor

tais assuntos. Virgílio Correia, com a sua possa converte-la em terra civilizada.
talentosa mocidade e com o seu estilo gra- Sobre Setúbal, a mesma tristeza de

cioso e colorido, veiu dar um novo aspecto abandono, o mesmo desleixo' do homem
á etnografia artística, convidando-nos a em desaprõveitar e até estragar o que é
ler e meditar aquilo que nos tinham tor- belo e grande.
nado árido e restrito a poucos. Terão eco estes generosos brades do
A Etnografia Artística contém interes- distinto jornalista? A actual maneira de
santíssimos estudos de etnografia portu- ser portuguesa ainda será sensível a estas
e italiana e é ilustrado com 106 coisas ?
guesa
desenhos e fotografias.
"IN
MEMORIAM — FIA-

"OS LHO DE ALMEIDA,, —or-


QUE TRIUNFAM,,
ganizado por Alberto Saa-
Novela por Sousa Costa.
vedra e Antonio Barradas
2.a edição. 1916. — Porto. 1917.

A interessante novela com que Sousa Sagrada homenagem é esta, em que o


Costa fez a sua auspiciosa estreia nas le-
insigne autor dos Ceifeiros e da Madona
tras, aparece agora em 2.a edição, com
do Campo Santo é mostrado mais ou
uma abertura do Autor, explicativa do
menos profundamente nas múltiplas fa-
ambiente e época em que foi escrita.
cetas do seu extraordinário talento. O
É um caso de amor com as duas cam-
volume não ficou completo nem perfeito,
binntes da pureza e exaltamento que leva
como os seus organizadores dizem no
á e á morte e da futilidade le-
partida Há mesmo no notável volume
prefácio.
viana faz e desfaz paixões com a
que alguns artigos que são pouco próprios do
mesma com que se muda de
presteza lugar em se encontram. Bastavam,
que
chapéu—e que Sousa Costa adornou duma
porém, os estudos de Antonio Arroyo,
descrição e dum dialogo já reveladores Cláudio Basto, Luiz de Magalhães, Manuel
das belas qualidades que haviam de fio-
da Silva Gaio, Mendes dos Remédios e
rir mais tarde nos seus livros seguintes.
Silva páginas brilhantes de mui-
Teles, as
Com justiça anotava o ilustre escritor,
tos outros, esplendidas notas e a grande
sr. Abel no prefácio da l.a edi-
Botelho,
documentação fotográfica e artística, para
viria a enriquecer a
ção, que Sousa Costa este In Memoriam ficar como obra digna
literatura nacional com páginas de valor.
de respeito e admiração.
Numa 2." edição, decerto Alberto Saa-
"O
ALGARVE E SETU- vedra e Antonio que com tão
Barradas,
BAL„ — por Adelino Men- dedicado enternecimcnto, organizaram a

des. Lisboa. 1916. l.a, emendarão certos erros e encherão cer-


tas faltas.

Raramente o jornalista português sai


"O
da vala comum do anonimato da gazeta PRESEPIO„ — por
alguma Severo Portela. — Lisboa,
para erigir obra que fique e tenha
coisa a sustentá-la, mercê, principalmente 1917.

do vergonhoso estado de defecção a que


a nossa imprensa. Sem O distinto escritor, sr. Severo Portela,
chegou quási toda
idéias, sem plano na vida, sem respeito é um estilista cheio de delicadeza e côr,

trabalho, o nosso na sua mostrando em todas as suas páginas um


pelo jornalista,
maioria, só sabe chicanar e,,infa- requintado sentimento de arte. O encan-
grande
mar. E é vemos com verda- tador volume de contos, O Presepio, todo
porisso que
natureza em sobre a cristianissima festa do natal é
deiro prazer as obras desta
uma criatura inteligente e culta se uma sucessão de quadros simples c humil-
que
A ÁGUIA 233

des dando em cadapequena história, em outro temperamento estarão errados. E


cada anecdota romantisada, um aspecto quais são os que estão bem ? Que soma
novo de graça mistica e arroubamento de circunstancias influiu no Autor para os
divino. Para crianças, a quem se destina, descrever desta ou daquela maneira?- É
cremos bem que ficou admiravelmente. natural que se investigue sôbre os pro-
cessos do autor, para lhes aquilatar da
"FANNY seriedade; depois disso, pouco mais nos
OWENE CAMILLO pelo
Edição da cumpre que verificar o maior ou menor
Visconde de Vila-Moura. Re-
nascença Portuguesa. 1917. Em luxuosa êxito da obra. Claro que há roupagens,
foi separado Águia o artigo porrnenores, acessorios de íacto, que ne-
plaquette da
com este titulo, e acrescentado com os cessitam de crítica. Sair daí para o foro
e a intimo da ideação do Autor, é que nos
retratos de Camilo e Manuel Negrão
admi- parece querer ir muito longe e sujeitar-
fotografia da Casa do Lodeiro. As
nos a freqüentes quedas. O preserve vo-
raveis paginas de Vila-Moura sobre o es-
lume é uma esplendida prova de estudo,
tranho drama ficam assim mais estrema-
dentro dum rico escrinio. mas deixe-nos o sr. Costa Cabral discor-
das e como que
foi muito limitada. dar do seu processo de análise. Nem pode
A edição
haver moldes para caracteres. Hoje, prin-
"A cipalmente, que tão em
difícil se torna
FUNÇÃO SOCIAL DOS ESTU-
haver modelos por onde se possam dese-
DANTES,,—por Antônio Sérgio. Edição
nhar. Na crítica da imprensa é que essas
da Renascença Portuguesa. 1917. Publi-
coisas se dizem-e comentam, porque o
cando a sua conferencia, há tempos rea-
jornalista tem desdizer alguma coisa. Em
iizada em quis o ilustre sociólogo
Lisboa,
livro, não.
que ela fosse lida e estudada por quem
não poude ouvi-la e principalmente pelos
"A
estudantes, que bem precisam de orien- HORA DE NUN'ÁLVARES„—Ver-
tação. sos de Augusto Casimira. Lisboa. 1917.
O Poeta-Soldado canta nestes seus versos
"INDUSTRIA ardentes a sua Pátria e o momento mais
E SCIENCIA,, — de Le
Edição da Portu- alto da Historia. O soneto com que abre
Chatelier. Renascença
a plaquette é dòs mais belos que o Autor
gtiesa. 1917. E outro volume pertencente
á Biblioteca de Educação dirigida por An- tem escrito. As outras poesias, já conhe-
donde se conclui cidas da Águia, ardem no mesmo sagrado
tónio Sérgio e que a
devem fogo de vida gloriosa e imortal.
Educação e a Economia tratar-se
conjuntamente.
"CAMILO
CASTELO BRANCO NA
"O "POEMA CADEIA DA RELAÇÃO DO PORTO,,—
DE AMOR,, PERANTE
A ARTE,,—por /. E. S. da Costa Cabial. por Alberto, Teles. Lisboa. Livraria Fer-
Coimbra. 1916. É uma analise psicologica reira. 1917. É mais um bom volume sobre
o grande Camilo formado de curiosas re-
da peça de Schwalbach, com pontos de
vista um tanto diferentes dos do Autor velações colhidas por fora dos seus livros,
do Poema e não definindo bem se a obra cartas do Romancista e de Antero e um

é boa ou má. Em nosso entende*, não é interessante capitulo sobre «Pombal e os

com exemplos eruditos, citações, Jesuitas» referido á obra de Camilo —


passa-
Perfil do Marquês de Pombal.
gens de grandes autores que se critica
teatro. Dois dramaturgos de igual talento
"AS
podem fazer obras completamente dife- INCERTEZAS DA MEDICINA
rentes. E obras de igual talento podem por Carlos Praça—Porto. 1916. Chama
agradar de maneira bem diversa ao mes- o autor a esta dissertação um trabalho de
mo publico ou ao mesmo crítico. O tea- filosofia médica, e assim temos de o con-
tro, visto ser, ou dever ser uma selecção siderar, pelo que'constantemente recorre
dramatisada de scenas da vida, é uma ás doutrinas dos filósofos. A tese do sr.
constante contradição, com todas as pai- Carlos Praça faz-se acompanhar muito de
xões do meio, com todos os erros dos perto pelo Criacionismo, de Leonardo
caracteres, e todas as diferentes suscepti- Coimbra, embora a disparidade de conhe-
bilidades de compreensão. Porisso que cimentos seja evidente. Queremos crer,
não há verdades absolutas, não há tam- no entanto, que o assunto já é bastante
bem teatro absoluto. Para o temperamento familiar ao novo médico e que, porisso,
dum crítico, os caracteres duma qualquer o continuará tratando com resultados cada
obra de teatro estar exactos; para vez mais brilhantes.
podem
234 A ÁGUIA

"HORAS a vida. Os seus estudos,


MORTAS,,—Versos de Luiz condicional sobre
Pinho. Figueira da Foz, 1917. O autor as suas observações, os seus trabalhos
J.
canta a Noite, a Dor, a Tristeza. E' uma escolares ou de natureza filosofica cria-

poesia doente a sua. Há, no entanto, em vam-lhe uma vida que ele tinha infinito
toda ela assomos de pura emoção, prazer em viver, dentro duma vontade
quasi
recta e dum caracter integro. Porisso
que bem nos podiam dar versos de Espe-
rança e Exaltação vitoriosa. mesmo, talvez, que tão pouco tempo
é

poude gosar essa vida que ele tanto


"AS amava. A homenagem da União Cristã é
HUMANIDADES DISTANTES,,
— a melhor que poderia prestar-se á sua me-
por J. Reis Varela. Lisboa. 1917. Pela
contemplação rigorosa e atenta do firma- mória, pois é a divulgação dos traços
mento e á vista de factos irrecusáveis, o mais brilhantes do seu espirito.
sr. Reis Varela adquiriu a convicção abso-,
"NOITES
luta da doutras humanidades DE NARCISO,,—Versos de
existência
Antônio Ferreira Monteiro. Pôrto. 1917.
no nosso sistema solar pretende de-
e
monstrar-no.s, pelo menos, a realidade das Dentre os moços poetas da geração que
de Urano, Saturno e Mercúrio. Acredita- ora entra nas letras, destaca o autor deste
mos piamente, e que devem ser muito livro pela natural emoção da sua poesia,
bem sentida e bem descrita, e sem as
melhores que a nossa. Do que o sr. Va-
rela nos não convence é de que possa- estravagancias das ultra-novissimas pseu-
mos um dia ir a Urano ou a Saturno, do-escolas. Citemos, ao acaso, o lindo
com a mesma facilidade com que se vai louvor da Paisagem em que se lêem estas
a Pekim ou á... Lua. quadras

"NOITE Paisagem natal: memória!


SAGRADA,, —por Alberto
Terrinha que Deus defenda!
Leitão. Pôrto. 1917. É um conto do Na- Scenario da minha historia
tal com uma formosa scena de caridade a Quando era ainda lenda ...

comemorar e evocar o nascimento de Paisagens por onde vim


Paisagens imaginadas!
Jesus.
-Vejo-as todas em mim
Com as palpebras cerradas.
"AS
SCIENCIAS MALDITAS,, —por
Antunes. Lisboa. 1914. Pertence «EN LAS LINEAS DE FUEGO»—por
João
este volume a uma colecção de Psicolo- Gaziel. Barcelona. 1917. Edição do Estv-
Clássica Edi- clio. É o 3." volume de Gaziel sobre a
gia experimental da livraria
tora e sendo um esboço de filosofia her- guerra, todos eles vibrando entusiástica-
mética, trata do Transcendentalismo atra- mente pela causa nobilissima da França.
vés da Historia, da induçãp electro-mag- Há dois anos que por todo o mundo se
netica dos astros, das scienrias divinatórias escreve apenas sobre a guerra, da guerra

perante a critica positiva
c da Renascença se vive e na guerra se morre. Pois
esoterica de 1886, concluindo pela asse- sempre coisas novas, barbaridades inédi-
veração de ser absolutamente necessário tas, episódios arripiantes, tragédias for-
«reduzir a criteriologia clássica a integrar midaveis num simples recanto de aldeia
no quadro das suas análises concretas a destruída, sublimes heroicidades nos anó-
anormalidade dos fenomenos supranor- nimos de todas as horas. Gaziel escreve
mais constatando a sua objectividade ou com sobriedade e inexcedivel clareza. As
declarando a sua impossibilidade fisica.» suas maiores páginas são aquelas em
que
deixa transparecer a sua alma iluminada
"DO
AMÔR E DA MORTE,, —por de sonho.
Rily Gomes. Coimbra. 1917. São inge-
"ANUARIO
nuos contos, bafejados duma certa volup- DA CASA PIA DE LIS-
tuosidade, em que brilham já certas boas BOA,,—Lisboa. 1916. Começa o grosso
condições de efabulação. volume por um artigo de Palyart Ferreira
sobre a Casa Pia e Jerónimos", primeira-
"IN
MEMORIAM—Luís Botelho,,— mente publicado na Águia, noticia depois
Pôrto. 1917. É uma saudosa homenagem a visita1 do sr. presidente da Republica e
da União Cristã Central da Mocidade por- insere numerosos documentos e mapas
tuguesa ao desventuradò moço que aos sobre o movimento da benemerita insti-
20 anos a morte arrebatou dentre os vi- tuiçâo no ano economico de 1915-16,
vos. Luis Botelho, duma sensibilidade tudo revelando a cadapasso a superior
cheia de curiosas interrogações, era um direcção do ilustre homem de sciencia,
espirito lucidièsimo e dum optimismo in- dr. Aurélio da Costa Ferreira.
*

A ÁGUIA 235

"EMQUANTO
A VIDA PASSA,,— tigos espalhados
por jornais c revistas.
Versos de Joaquim Costa. Porto. 1917. Entre outros artigos, vem neste 3.° vo-
—-Dá-nos este livro o aspecto dum varie- "A
lume, theorie exacte e Notation fi-

gado manto de farrapos, fabricado com nale de la Musique de Bruno,,, publi-


"Camões
pedaças de tudo quanto há. Leiam alguns cado na Águia (n.° 48), e a Na-
"A
versos do famoso crítico, puras amostras tureza,, e Guerra e a Música „.
de principiante:
"CANTIGAS,,—por
Bramão de Âl-
Nem soletrar pudeste «'agonia
meida. Lisboa. 1917. Quis o a::tor destas
Toda a amargura d'essa alma em cliamma,
Quando, a chorar, perdida, te dizia quadras imitar o gôsto popular e despre-
O muito que se sofre quando se ama! tenciosamente o fez, cantando com sim-

pleza os ditames do seu coração.

Pobres de nós se a Dor não renascesse


Nas almas tristes, num luar de prece, "ALÉM-MAR,,—Versos
Tornando o homem cada vez melhor! por João, Ca-
bral do Nascimento. Lisboa. 1917. É um
Eu quero que, na hora derradeira,
poemeto épico, tendo por assunto a che-
Quando da vida para sempre eu fôr,
Tu vás sentar-te á minha cabeceira, gada de Zarco á Madeira, e contendo ver-
sos um pouco melhores do
Dizer-me adeus, á hora do sol-pôr. que os dos an-
teriores poemas do Autor.

Ora, quem faz disto, e o livro na parte "AOS


LATINOS-A PORTUGAL. Á
que não vem em branco é assim todo,
FRANÇA,,—por Mecenas Rocha. Pará.
ou deixa de criticar aqueles que lhe estão 1916 — A volta dos hinos nacionais,
mil vezes superiores, ou mete a lira na por-
tuguês e francês, o autor evoca as nossas
gaveta, e deixa-a lá estar em socego.
No próximo glorias e as glórias da França para, num
número, falaremos mais
entusiástico hino á heroicidade, chamar
de espaço.
novamente Portugal aos seus tempos de

grandeza e cantar a vitória da Justiça.


"VOCABULARIO
MINHOTO,, —por
Al. Boavcntura—Espoáende. 1916. É uma "A
ESTROFE LÍRICA,,—por José Si-
valiosa e
paciente colecção de vocábulos mões Neves. Coimbra. 1916. Compreen-
populares do Minho, compreendendo as de três capítulos, tratando da rítmica an-
letras A—E e dando-nos a par de cada tiga, da estrofe grega e da estrofe
lírica
vocábulo o seu significado e freqüente- lirica latina. O assunto é tratado com cui-
mente notas explicativas. Excelente seria dadosa minúcia e obedecendo ao são
quo- esta espécie de trabalhos despertasse critério de que no estudo histórico da mé-
mais atenções por esse país fora,
que mais trica portuguesa, sua evolução e origens
fácil se tornaria o estudo da língua. remotas, é absolutamente indispensável
tomar por bússula o conhecimento racio-
"ODE nal da métrica clássica.
Á PRIMAVERA,,—por Correia
da Costa. Coimbra. 1917. O Autor anun-
"NAVEGAÇÃO
cia uma obra extensa e variada. Espere- PORTUGUESA,, por
inos por para ela, melhor podermos dizer Carlos de Passos. Coimbra. Neste opus-
alguma coisa. culo, que é uma separata de O Instituto,
o autor dá-nos novos subsídios para a
"A história trágico-maritima de Portugal, ex-
SENHORA DO SOCORRO,,—ver-
traídos de vários manuscritos da Biblio-
sos de Antonio Fernandes Coelho—Porto
teca Municipal do Pôrto.
—1917. Pouco a
pouco, quási parecendo
tôr medo de si
próprio, o snr. Fernandes "VITRAL
Coelho vai DA MINHA DÔR,-Versos
publicando lindos primores
líricos, de Américo Durão. Lisboa. O presente\
repassados duma santa ingenui-
dade, livro significa uma evidente evolução do
como estas belas dedi-
quintilhas
das Autor, que nas Penumbras se nos mos-
á Virgem de S. Felix da Marinha.
trára já um distinto cultor do verso. A
forma agora é mais precisa e o soneto
"PALESTRAS
MUSICAES E PEDA- sai-lhe espontânea naturalidade e
já çom
GOGICAS,,—por B. V. Moreira de Sá— simples emoção. Deixe certos exotismos
Pôrto. 1917. Mais um volume organizou de pensamento, certos enublamentos e
o distintíssimo coni os seus ar- dar-nos há livros
professor melhores.
236 A ÁGUIA

REVISTAS do espirito acadêmico, nada nos consta

que haja hoje. A mocidade actual que


"A
ATLANTIDA,, — Lisboa. N.°s 17, 18 por lá vive é superior a isto tudo .
c 19. Março a Maio de 1917. Devemos
"SPHINX,,—Lisboa.
mencionar a brilhante colaboração de N.° 2. Março de
Afonso Lopes Vieira, Henrique Lopes de 1917. Apresenta-se com distinta mocidade
Mendonça, Manuel Monteiro, Antônio esta revista de novos, em quem palpita
Sérgio, Teixeira de Carvalho, Abel Bo- triunfalmente o viçoso entusiasmo dos 20
telho, Leonardo Coimbra, Augusto Casi- anos. Oxalá não desanimem os simpáticos
miro, Teixeira de Pascoaes, Sousa Costa, rapazes.
Guerra Junqueiro, João Grave, Virgílio
"BOLETIM
Correia, Augusto Gil, Humberto de Ave- OFICIAL DO MINISTÉ-
lar e Avelino de Almeida; e desenhos de RIO DE INSTRUÇÃO PÚBLICA,,. Lisboa.

Raúl Lino, Alberto de^ Sousa, Cristiano N.os 6 a 12, 1916. Na secção pedagógica,
de Carvalho, Santos Silva, etc. entre outros, veem os seguintes artigos:
"Ensino "A
Há também umas despropositadas por- Técnico,, —Bento Carqueja;
nografias do sr. Dantas... Mas é melhor visão das cores,,—Aurélio da Costa Fer-

nem falar nisso. reira. A secção oficial é bastante desen-


volvida.
"TERRA
PORTUGUESA,, —Lisboa.
"
N.oá 13-14. Fevereiro a Março de 1917. O MARCONIGRAMA „ — L o n d r e s
A revista ilustrada de arqueo- N.os 7-9. Abril a Junho de 1917. Mais
primorosa
logia aftistica e etnografia continua sendo três números estão publicados deste es-
uai documento vivo do quanto pode, em plendido mensário escrito em português
obras de honesta arte, o esforço inteli- e tratando o melhor possível dos mais
de dois moços de impressivos factos da nossa vida colec-
gente e perseverante
talento, os excelentes camaradas Virgílio tiva. O n.° 9 reproduz parte do que se
Correia e Alberto Sousa. Que o novo ano tem escrito, em entrevistas, sobre o já

mais ainda seja, é o que do agora tão famigerado e descutido acordo


prospero
coração lhe desejamos. Neste 1.° tomo do ibérico.
2.° volume; inicia o sr. José Queirós uma
"REVISTA
interessante série de artigos—Casas de DO BRASIL,,-S. Paulo.
Portugal — e, alem doutros, publica Virgi- N.0s 14-16. Fevereiro a Abril de 1917.
lio Correia notas. Dos três últimos fasciculos, sempre nota-
preciosas
veis, especialisar os artigos de
queremos
"AGROS,, —Lisboa.
N.os 2-4. Março e Oliveira Lima e Alberto de Oliveira,
Abril de 1917. O tomo de março dedicado sobre «A Revolução pernambucana de
exclusivamente ao Algarve estuda a curió- 1817» e «Galatea» de José de Alencar —
sa província sob todos os seus aspectos de «A neta d'Anhanguere», de Olavo Bilac
cultura agrícola, anotando factos e tirando «Lendas Brasileiras», «Livros» de Me-

conclusões, e aponta toda a conhecida bi- deiros e Albuquerque, « Cartas inéditas »


biiografia agrícola algarvia. O n.° de abril, de Machado de Assis, etc.
entre valiosos artigos assinados por Vis-
"REVISTA
conde de Vila Maior, Artur Castilho, Men- AMERICANA,, —Rio de Ja-
dcs d'Almeida, Antônio Sérgio, etc., inau- neiro. N.° 6. Março de 1817. Dirigem á
bela revista Araújo Jorge e Silvio Ro-
gura uma secção de Consultas e respostas
de imediata utilidade pratica. mero, filho. Neste número, cheio de in-
teresse, vemos, entre outra colaboração:
"TÉCNICA '«Biografia
INDUSTRIAL,, —Lisboa. do Visconde do Rio Branco»
N.° 7. Abril de 1917. E uma revista dos pelo barão do Rio Branco; «A civili-

estudantes do Instituto Superior Técnico, zação do Brasil nos fins do século XIX»
denunciadora da optima orientação Rocha Pombo; J. C. Gomes Ribeiro —
que
nesse estabelecimento de ensino influi «As fronteiras do Brasil».

professores e alunos. Como seria interes-


"LA
sante que por todas as escolas do país se ACTUALIDAD FINANCIERA„
fizessem estas tentativas duma cultura —Madrid. N.os 751 a 763. Com toda. a
mais vasta e mais aberta. Em Lisboa, há competencia e possível amplidão, senia-
o Agros; no Pôrto—a Revista dos Es- nalmente nos dá esta revista as mais*
tudantes da Universidade. Em Coim- interessantes informações financeiras de
as
bra, donde em outros tempos sairam aí- Espanha e outros países. Muito úteis
gumas das niais notáveis manifestações revistas de bolsas, e balanços de bancos.
A 237
ÁGUIA

"CUBA
CONTEMPORÂNEA,,
—Ha- Liga Nacional de Instrução —Lisboa.

Março a Maio de 1917. A Serie II. N.os 1 e 2. Janeiro a Junho de


bana. N.os de
brilhante revista cubana em todos 1916. Arquivo de trabalhos, com um bri-
publica
os seus números valiosos estudos firma- lhante artigo de Luís Cardim sòbre Anto-

dos escritores.
distintos Salientare- nio Feliciano de Castilho.
por
" llustrée—Londres—Feve-
mos últimos fascículos
dos Los Pronun- La Guerre
"La 1917.—E um belo álbum
ciamientos Militares,, e América In- reiro a Abril de
"El representando aspectos
defensa,, de Júlio Villoldo; derecho de fotogravuras

de la revolucion cubana,,, de Domingos da Guerra Grande.


"Nuestra Boletim da Camara Portuguesa dc
Capote; Primera Escuela Nue-
" industria e arte de S. Paulo—
va„, de Enrique Gay Calbó; La entrada Comercio,

de Cuba en la Guerra Universal,,, de José N.° 14—Fevereiro de 1917.

A. Martinez; etc.. A Esperança—Vizeu —Revista acade-

mica. N.os 2 a 6. Fevereiro a Abril de


"ESTVDIO,,—Barcelona. N.os 51 e 1917.
e Abril de 1917. Além destes La réponse du gouvernement belge au
52. Março
livre allemand de 10/ V/15. t
dois tomos, publicou-se também um vo- blanc
Catálogo de Moreira da Costa. Porto.
lume exclusivamente destinado a biblio-
de todas as literaturas, Abril dc 1917.
grafia, com obras
versando principalmente assuntos sociais O Rouxinol de Traz-os-Montes — por

e econômicos. Nos números do mês há a Manuel J. Pires, Pôrto. 1917.


"Los Anuario do Liceu Central de Pedro
citar: fenicios explotadores da Ibe-
"Institu- volume referente
ria,, —S. Gossé y F. Manrique; Nunes—Recebemos o
Social,,— E.- Massaguer; ao ano escolar da 1914/15. É chefa dc in-
ciones de cultura
"Pedagogia Li- teresse a secção de discursos e relatorios.
ibérica,,—Pablo Rivas;
—versos de Verhaeren; Lirica Uma taça monumental camoncana—
rica belga

portuguesa—Sonetos de Antero do Quen- Já aqui nos referimos, com palavras do


maipr elogio, á obra do eximio artista
tal; desenvolvidas notas sobre a guerra,
bibliografia, boletins cinzelador Antônio Maria Ribeiro, O fo-
revista de revistas,
etc. lheto temos presente reproduz dois
financeiros, que
aspectos da preciosa taça, que é um ex-
"REVISTA documento da cinzelagem na-
DE FILOLOGIA ESPA- plendido
NOLA,,—Madrid. Tomo IV—caderno 1.°, cional.

Janeiro a Março de 1917. Cada caderno

trimestral insere estudos de bibliografia,


historia da civilização, lingua, literatura e LIVROS
folclore. O presente caderno publica, <ilám
de Miscelanea, notas bibliográficas e No- que serão mencionados
"Un no número:
ticias, os seguintes artigos: tema dc próximo
"El
la Vida cs'sueno„—Alfonso Reys; e
boque de Biherna en los Fueros catalanes Nociones de Literatura General—Ale-
Ecuador.
dei Valle dc Aneu,,—J. Saroíhandy. jandro Andrade Coelho—Quito.
Mirando a Portugal, Felix dc Llanos
— Madrid.
OUTRAS PUBLICAÇÕES y Torriglia
Ensaios de Historia e Critica—A: G.
A Tutoria—Lisboa —Revista mensal de Araújo Jorge. Rio de Janeiro, 1916.

da Infancia. N.os 4 e 5 de Outubro e No- A Pecadora — Sousa Costa. Lisboa.

vembro de 1916. 1917.

ULTIMAS EDIÇÕES DA «RENASCENÇA PORTUGUESA»

1817. A Conspiração dc Gomes Freire (2.a edição) —Raul Brandão.

Pensamentos, Palavras e Obras—Severo Portela.

O Methodo Montessori (2.a edição) — Luisa Sérgio.

de Alciati explicados em Leite de Vasconcelos. \


Emblemas português—J.
Singularidades da Minha Terra—Antônio Arroio.

O Aproveitamento das Águas—José Ferreira da Silva.


238 A ÁGUIA

Teatro— D. Jdlia Lopes de Almeida.


O Inverno—César Porto.
Cartas da Guerra—Adelino Mendes.
A Rosa de Papel—Augusto Santa Rita.
O Enforcado, com desenhos de JuliSo Machado—Costa Macedo.
Os Amores de Camões—Teófilo Braga. (No prelo).
D. Pedro—Coelho de Carvalho. (No
prelo).
Elementos de Máquinas—Eugênio Estanislau de Barros. (No prelo).
Anotações ao Ccdigo Civil—Jorge Utra Machado. (No prelo).
Lusitania—Mário Beirão. (No prelo).

J *
>.' v

FIM DO VOL. XI.

A Águia, 65 c 66 (Maio e Junho, 1917).


índice da colaboração

LITERATURA

Fanny Owen e Camilo . . . . 5 Imitação de diversos 135


Cbansons Árabes 24 Parecia Outro 165
Tentativas Pedagógicas . . . 27 Um Prefeito de Colégio. . . 168
Provincianismos usados em Mon Em frente à Morte 172

ção 36 A voz do Amor 173


Sonetos bucólicos 44 íjLe Nômade . 178
Idilio 46 Interpretação do Sebastianismo 179
Os Nossos Tempos e a sua litera Ao Porto 185
tura, 117 165 O Libertário 187
O Cadinho .1 126 As treze cantigas do Amor e da
Êxtase 132 Guerra 199
L'Espoir 134

ARTE

(ARTIGOS)

Músicos Portugueses, 47, 141 e 203 As de Borba (com 3 ilus-


Talhas
Etnografia artística — A roseta trações) 138
sexifoüa (com e o suástica João da Silva e os seus últimos
ilustrações) 60 trabalhos 201

(ILUSTRAÇÕES)

Retrato 16-A O dr. Alfredo Bensaude obser-


A Coca. Combate entre S, Jorge vando com o Astrolábio . . 156-A
e a Coca (Monção). . 48-A Hieronimus 1§8-A
Depois do Sonho . . . 64-A O Triunfo da Diplomacia (2 aspec-
Estudo 128-A tos) 204-A e ....... 220-A
O Astrolábio náutico <Je madei A nova de oiro de 5 escu-
peça
ra 148-A dos 228-A

SCIÊNCIA, FILOSOFIA E CRÍTICA SOCIAL

O Instituto Superior Técnico c o Colonisação, climas e línguas,


desenvolvimento da indústria 102 215
nacional 65 O Astrolábio náutico dos
portu-
A educação religiosa 74 gueses (com 1 ilustração) . . 144
Sciència e Educação 78 A Infinidade dos Mundos e o
Ritos, costumes e tradições — Eterno Retorno em'Demócrito. 151
I—O Mistério do Totem . . 97 O eterno Retorno nos antigos-e
II—Totemismo e Sacrifício. . 160 nos modernos 207
240

NOTAS E COMENTÁRIOS

Bocage 220

Os cartazes da Junta Patriótica . 224 Augusto Casimiro. .

Urna entrevista sôbre a «Renas- «Ó Infante de Sagres»

cença» 226

— 109 e 230
BIBLIOGRAFIA

I
ÍNDICE DOS AUTORES

Afonso Cordeiro, 102 e . . . 215 José Malhoa 128-A

Alfredo Bensaúde 65 José Teixeira Rego, 97 e . . 160

Alfredo Coelho de Magalhães. 27 Leonardo Coimbra 74

Antonio Arroio 117 Luciano Pereira da Silva . . 144

Antonio Carneiro 16-A Luís Cardim, 46 135

Antonio de Pinho 36 Luís Coelho 139

Antonio Sérgio, 78 179 Ofélia Correia da Costa (Vicom-


Aubrey Bell 111 tesse de Rougé), 24, 134 e 178

Augusto Casimiro 172 Philéas Lebesgue, 109 e . . 230

Carlos de Sousa 188-A Raul Proença, 151 207

Correia Dias — Capa. Santiago Presado 44

Costa Macedo 187 Sousa CoSta 173

D. Miguel Soto-Maior, 48 141 e 203 Teixeira de Pascoaes. . . 116


|.
F. de A. 112 Virgílio Correia, 60 c . . . 138

Jaime Cortesão, 132 e . . . >. 185 Virgílio Maurício 64-A


'
João da Silva, 204-A, 220-A e . 228-A Visconde de Vila-Moura, 5 e . 47

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T.

BIBLIOTECA

DA

RENASCENÇA PORTUGUESA

( vols. I a VIII, br. $60, ene $80 O Gênio Peninsular—Ribera y Rovira .


A Águia 1
IX a Al,
VUia. 1/v
' ' \ \ vols. ui. <i)I\J,
XI, br. $70; tm ene. 1$00 Ankises —Carlos Maúl
/rt a
(2.- serie) Povo
^ voj ^0 ^etn publicação). Cantigas do para as Escolas—Se-
A Vida Portuguesa—Boletim—Publicados lecçâo e prefácio de Jaime Cortesão .
os n.os 1 a 39. Contos de M.me dAulnoy — tradução
Regresso ao Paraiso—T. de Pascoaes . $50 e prefácio de José Teixeira Rego . . $20
A Evocação da Vida—Augusto Casimiro $40 Contos de Shakespeare—tradução de Ja-
Esta Historia é os Anjos—Jaime nuário Leite, 2 volumes $80
para
Cortesão $10 Crônica de D. Duaite, de Rui Pina —
de
O Espírito Lusitano—T. de Pascoaes $10 2.° vol. da Biblioteca Lusitana — Al-
A Sinfonia da Tarde—Jaime Cortesão $10 fredo Coelho de Magalhães .... $40
O Criacionismo—Leonardo Coimbra. $80 Bohemios—Vila-Moura $50
Romarias—A. Correia de Oliveira. . $10 Trigonometria plana — Augusto Martins . 1$00
A Educação dos povos A Grei—Ezequiel de Campos .... $80
peninsulares—Ri
beray Rovira $10 O Navio dos Brinquedos—Antônio Sérgio. $20
A Primeira Nau—Augusto Casimiro. $10 Educação Cívica—Antônio Sérgio. . . $40
Cintra—Mário Beirão . . .J . . . $10 As Aventuras de Telémaco, 1.° vol. . . $40
O Doido e a Morte—Teixeira de Pascoaes $20 Sempre (3.a edição) —T. de Pascoaes . $50
... Daquem e dalem Morte—(Contos com Ausente—Mário Beirão $50
ilustrações de Cervantes de Haro e Tristão o Enamorado—Coordenação e
¦$60
de Carvalho)—J. Cortesão prefácio de Teófilo Braga — 3.° vol.
Çristiano
O Último Lusíada—Mário Beirão . . . $50 da Biblioteca Lusitana $40
'
O Gênio português na sua expressão poé- Considerações Historico - Pedagógicas —
tica, filosófica e religiosa—Teixeira de Antônio Sérgio $20
Pascoaes $20 Primavera Deus — Augusto Casimiro.
de 150
Elegias—Teixeira de Pascoaes. . . . $30 A Morte da Emoção — Carlos Maul . . $50
Camilo Inédito—Prefácio e notações de Camadas ínfimas (com ilustrações de San-
' de Castro)—Oldemiro César .
Vila-Moura (l.a edição, esgotada) ches . $50
Só—Antônio Nobre (3.a edição, esgotada) A Esmeralda de Nero—Carlos Parreira . $60
A Morte — Leonardo Coimbra . . . . $40 Bemaventurados que os choram.. . — Si-
A Teoria da Mutação —A. Cortesão . $70 mões de Castro $50
Doentes da Beleza —Vila-Moura . . . $50 O Pensamento Criacionista — L. Coimbra- $60
Glória Humilde—Jaime Cortesão . . . $50 Arte de ser português — T. de Pascoaes . $40
Escuro — Teixeira de Pascoaes . $50 Fumo—Rodrigo Solano $60
yerbo
A Catalunha — Augusto Casimiro . . . 820 Antônio Nobre—Visconde de Vila-Moura $70
Problema da Cultura — Antônio Sérgio — Luísa Sérgio
$20 O Método Montessori (2.a
P
Miss Doly—Costa Macedo $10 edição $50
Cancioneiro Popular— 1.° volume da Bi- O Cerco do Porto, pelo coronel Owen—
bliotecaLusitana — Jaime Cortesão . $40 Prefácio e Notas de Raul Brandão. $80
A Era Lusíada — Teixeira de Pascoaes Crisfal—Prefácio e coordenação de Teó-
. $20
A Saudade Portuguesa — Carolina Mi- filo Braga $40
. .chaêlis de Vasconcelos $50 Mina de Barnhelm—tradução e prefácio
L»teratura
Nacional — Programa do curso de Joaquim Aroso $40
complementar dos liceusorganisado A Zagala—Costa Macedo, com ilustra-
por
Alfredo Coelho de Magalhães . . . $20 de Correia Dias . .' . . / . $20
ções

: í íüu.
244 A ÁGUIA

—Prcfa- Pela Espanha—Ezequiel de Campos. . 1300


Anfitrião ou Júpiter e Alcmena
cio e notas de F. Torrinha .... $40 Sol (2.a edição)'—Bernardo Ma-
d'Aquino

Grandes de Portugal—Visconde de Vila dureira $50


—Jaime
Moura e Antonio Carneiro .... 1$00 O Infante de Sagres (2.a edição)

Autos de Gil Vicente — Coordenação e Cortesão S70


Prefacio de Afonso Lopes Vieira . . $60 Etnografia artística—Virgílio Correia. . $80

Manual de Instrução Agrícola para a 1817 —Gomes Freire—Raul Brandão . . $80

escola — Compilação e ada- Fialho d'Almeida—Visconde de Vila-


primaria
de Artur Castilho, cart. . . . $60 Moura $70
ptação
Pequena Antologia Classica (de Homero Industria e Sciencia, de Le Châtelier —

a Tolstoi) — Compilação de José Tei- Tradução de Antônio Sérgio .... $20

xeira Rego $50 A Função Social dos Estudantes—Antó-

Líricas e Sátiras — João Saraiva. . . . $60 nio Sérgio $20


Owen — Visconde de
Rapsódia Sol-Nado, seguida do Ritual
do Fanny e Camilo

de Amor —Afonso Duarte $40 Vila-Moura $40


— Severo
W. Shakespeare—Júlio César—Tradução Palavras e Obras
Pensamentos,

de J. Anselmo $40 Portela $50


Singularidades da Minha Terra—Antonio
Higiene e pelo Dr. Good—Tradu-
Moral,
Arroyo 1$00
ção de J. Aroso 840
A Beira num relampago—T. de Pascoaes $50 Emblemas de Alciati—Leite de Vascon-

A Alegria, a Dor e a Graça —Leonardo celos $40

Coimbra $70 Teatro — Julia Lopes de Almeida . . . $60

O Conflito Internacional sob o ponto de O Inverno —César Porto 1$00

Macedo . . 1820 O Aproveitamento das Águas—José Fer-


português— José de
vista
Sonetos — Cândido Guerreiro .... $50 reira da Silva $50
Cartas da Guerra—Adelino Mendes . . $80
A Viagem de Quental á Ame-
Antero de
. A Rosa de
Papel Augusto Santa Rita . $40
rica do Norte—Antonio Arroyo . . $30
Educação Profissional na Casa das Crian- O Enforcado —Ccista Macedo $50

Primária—Ant. Sérgio $20 Os Amores de Campes —Teófilo Braga.


ças e na Escola
Carta de Guia de Casados—Estudo Critico (No
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Elementos de Máquinas—Eugênio Esta-
e Notas de Edgar Prestage $50
Elogios—João Luso $60 nislau de Barros. (No prelo).
Cultura e Analfabetismo — Adolfo Coe- Annotações ao Codigó Civil— Jorge Utra

lho $30 Machado. (No prelo).


Praça Nova—Alberto Pimentel $80 Lusitania—Maria Beirão. (No prelo).

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