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O PROBLEMA DA INCONSTÂNCIA

Na ú ltima formaçã o humana que recebemos conversamos um pouco sobre a fidelidade e


como a preguiça e a falta de ordem podem estar nos prejudicando no nosso desejo de termos
uma vida realizada, vivida em plenitude. Vimos que a preguiça nã o é um inocente desejo por
descanso (pois descansar nã o é um desejo mal, antes é um direito daquele que está cansado),
mas na verdade uma aversã o, um ó dio pelo verdadeiro bem que deve ser realizado. Na nossa
vida prá tica já devemos ter percebido que a grande maioria das coisas (se nã o todas) que
valem a pena exigem esforços e sacrifícios, e a preguiça destró i justamente esta possibilidade
de sacrifício pelo bem superior. Nada de bom, absolutamente nada, nos vem da preguiça.
Outro grande obstá culo a nossa fidelidade, do qual vamos falar hoje, é o nosso problema
de inconstâ ncia. Que o digam as nossas promessas de ano novo, ou as nossas promessas (nunca
cumpridas) de segunda-feira: “segunda-feira eu começo a dieta”.
“Aquele que perseverar até o fim será salvo” (Mt 24,13). Esta é uma das grandes má ximas
do Evangelho, verdade que está como que está profundamente ligada ao coraçã o da vida cristã .
Um dos primeiros obstá culos que enfrentamos para viver a constâ ncia é a falsa
mentalidade de que talento é superior à s capacidades de esforço, empenho e trabalho. Isto é
um grande equívoco. Na verdade, o talento sem estar apoiado sobre um esforço constante que
o canalize e aprimore é completamente inú til.
Os talentos inatos sã o potenciais do ser, forças brutas. Numa comparaçã o poderemos
entender melhor este conceito: a diferença entre um canal de irrigaçã o que traz vida para uma
plantaçã o e um estouro de uma barragem que acaba com a plantaçã o inteira e é capaz de fazer
a desgraça de uma populaçã o está apenas na contençã o das forças da á gua. Se possuímos o
potencial, mas nã o somos capazes de canaliza-lo, administra-lo, contingencia-lo para se tornar
uma força ú til, todo o talento será estéril, nã o significará nada. A vida nos mostra isso através
de muitas pessoas que sã o multi-talentosas, mas também sã o perdidas, sem propó sito na
existência. O talento precisa ser lapidado, e quem o lapida é o esforço constante.
Outro fator que devemos considerar é que constâ ncia e imaturidade sã o incompatíveis
entre si. A pessoa imatura é alguém autorreferente. Isto anula completamente a sua capacidade
de perseverar, pois quando a perseverança lhe pedir algo que for contrá rio aos seus gostos e
prazeres, ela a abandonará para escolher a si pró pria. O imaturo possui um amor doentio de si
mesmo, um apego patoló gico, que o levará a sua pró pria destruiçã o e à destruiçã o de todos
aqueles que se submetem a ele em algum nível.
A constâ ncia é esta capacidade de perseverar até o fim. E onde aprendemos a ser
constantes? A “oficina” da constâ ncia sã o as pequenas atividades do dia a dia feitas com zelo e
sentido de excelência. É fazer o pequeno serviço da melhor forma possível: varrer a casa sem se
descuidar da poeira que se apega no canto da parede; lavar a louça com cuidado e enxugar
todas as coisas da forma correta; cumprir os horá rios e agendas; prestar verdadeira atençã o no
que alguém nos diz, mesmo que isto seja enfadonho. Dar o melhor.
Viver a constâ ncia nos conduz ao nível de excelência que somos chamados. Como assim?
Todos temos defeitos, e reconhecemos isto. Sabemos que entre a forma como estamos e o que
devemos ser, o nosso “eu” ideal, existe uma distâ ncia. Mas esta distâ ncia nã o será superada de
uma vez, e sim pouco a pouco, por fases e etapas, por um progresso que pode ser lento, mas
constante. Se nã o temos a constâ ncia, nã o temos como atravessar este caminho que leva à
superaçã o da lacuna que percebemos em nó s. O trâ nsito entre o como estamos e o como
desejamos ser só será superado pela constâ ncia.
Todos devemos conhecer e admirar pessoas cuja personalidade é forte, que nã o se
deixam ofender por qualquer coisa, que possuem um certo grau de inteligência, de virtude. Isto
nos anima, nos insufla, nos faz admirar aquela pessoa por sua personalidade, por assim dizer,
“monolítica”, como se ela fosse uma rocha, talhada de um bloco só , sem colas e remendos. E isto
essa pessoa madura que tanto nos causa admiraçã o chegou pela constâ ncia.
Todos nó s trazemos em nó s este potencial para sermos estas pessoas firmes, como que
feitas de rocha, fortes em sua personalidade. Mas, no nosso presente, somos pessoas
“arenosas”, instá veis, inconstantes. A constâ ncia é entã o esta “pressã o” que é feita sobre nossa
personalidade que a vai solidificando, vai compactando esta “areia” para que se forme um
bloco só lido onde a nossa personalidade real possa ser talhada. Sem isto, por mais espirituais
que tentemos ser, nã o será possível sermos santos, pois antes de ser santo é preciso ser
homem. Precisamos começar por este degrau para entã o poder acessar pontos mais elevados.
Nã o é preciso ser um grande heró i libertador do povo oprimido. O que é necessá rio é
olhar para as pequenas atividades e dispor-se a leva-las até o fim. O “Tudo está consumado”
nã o precisa ser apenas o da cruz de Cristo, mas pode ser o das pequenas cruzes nossas do dia a
dia.

Quais os obstáculos à constância?

A ideia de que a rotina é algo ruim


Como vimos na formaçã o passada, a rotina é um elemento de maturidade da pessoa
humana. Alguém que nã o consegue suportar a rotina nunca chegará à excelência na sua vida.
Como alguém pode chegar a ser um bom marido, por exemplo, sem enfrentar a rotina de fazer
sempre aquelas mesmas coisas, sempre oferecer aquele mesmo sustento? Como se pode chegar
a ser um bom consagrado sem corresponder, dia apó s dia, uma série de exercícios espirituais
que nã o mudam? Na verdade, apenas as crianças e as pessoas frívolas têm uma necessidade de
novidades a cada momento. A pessoa madura é confiá vel, é previsível no sentido de ser fiel à s
obrigaçõ es com as quais se comprometeu (as pessoas sabem que podem contar com a resposta
fiel daquela pessoa à s suas obrigaçõ es). A confiabilidade é alcançada pela constâ ncia rotineira
nas atividades, sempre e sempre fazer aquilo daquela maneira. A rotina nos torna fiéis e
confiá veis. E vejamos bem: nó s nã o somos o que dizemos ou aquilo que pensamos ser, mas nó s
somos aquilo que fazemos com constâ ncia.

A falta de domínio sobre o próprio temperamento


O temperamento sanguíneo, por suas pró prias características, possui uma tendência
maior à inconstâ ncia. A pessoa que o possui apresenta dificuldades em fixar-se em algo. Mas
isto nã o quer dizer que a pessoa está fadada a esta fraqueza de cará ter.
O temperamento nada mais é que o humilde conhecimento de si mesmo. Na escala das
potências do ser humano ele é uma parte importante, mas ainda assim pequena, pois ainda
temos a vontade, a liberdade, a inteligência, o amor aplicado nas nossas açõ es e, sobretudo, a
açã o da graça de Deus. Temperamento pode e deve ser modificado com o auxílio do Espírito
Santo, e jamais deve ser utilizado como um meio de autojustificaçã o da pró pria falta de cará ter.
Se por temperamento se é inconstante, é preciso ter uma vigilâ ncia maior.
Os rompantes de coragem
A pessoa inconstante apresenta muitas vezes um comportamento de sucessivos
rompantes de entusiasmo, ao que chamamos de “fogo de palha”. Uma hora quer mudar o
mundo e se enche de propó sitos, mas na outra nã o consegue sequer levantar da cama na hora
certa. Vemos aí que neste contexto a vida nã o frutifica.
Nã o se faz germinar uma rosa com a luz dos relâ mpagos, ainda que sejam em si mesmos
um belíssimo espetá culo. O que faz a vida da planta crescer e se desenvolver é a luz cá lida do
sol todas as manhã s. Nã o se pode viver sob a luz das grandes emoçõ es, das grandes coisas. Esta
luz de relâ mpagos é inevitavelmente estéril.
Estes rompantes de energia sã o, na verdade, mecanismos para esconder certa covardia
existencial, porque incapaz da coragem do contínuo, a pessoa disfarça a pró pria covardia na
pequena coragem dos grandes estrondos, como para se oferecer um alívio psicoló gico. A
constâ ncia é pró pria dos corajosos, mas os rompantes de entusiasmo sã o pró prios dos frouxos.

Os maus hábitos
Para amar verdadeiramente um bem é necessá rio ter ó dio pelo mal, opor-se
violentamente ao estado que se opõ e a bondade. E nã o falamos do ó dio das baixas paixõ es, mas
do ó dio como o afastamento necessá rio para se encontrar a verdadeira perfeiçã o. Se nã o se
passa a detestar os vícios que sã o contrá rios a constâ ncia, pelo menos intelectualmente (pode-
se até sentir o prazer, mas entender que é mal e evita-lo a qualquer custo), nã o há como vence-
los e abraçar verdadeiramente esta virtude. É preciso elimina-los, pois nã o se pode ser
presunçoso ao ponto de achar que nã o se está sujeito à s quedas mantendo-os por perto.

A vaidade
Vaidade é uma gló ria vazia, busca insensata de alguém por receber aplausos, atençõ es e
merecimentos. E se opõ e à constâ ncia porque comumente o mais importante é realizado no
escondimento, sem espectadores e fã s. O que solidifica a nossa personalidade é feito,
geralmente, no silêncio, sem gló ria externa e aplausos. Se a motivaçã o bá sica é a vaidade, a
constâ ncia nã o subsistirá .

O orgulho
O orgulho nã o é apenas a necessidade de receber a gló ria, mas o desejo de recebê-la por
já se achar grande. Orgulhoso é aquele que se considera maior do que realmente é.
O problema disso está em este gigantismo é uma ilusã o, mas nó s acreditamos nele e
queremos nos colocar dentro desta fantasia, desta sensaçã o de que podemos mais, somos os
mais inteligentes, os mais sá bios, os mais ponderados, os mais bonitos. Mas como ninguém
consegue viver para sempre dentro de uma mentira, esta ilusã o de desfaz gerando frustraçã o,
abandono e tédio.
O orgulho gera também impaciência, pois sendo tã o superiores nã o suportaremos as
dificuldades e as lentidõ es das situaçõ es e pessoas que consideramos inferiores.
Gera também a presunçã o, acreditando que aquelas palavras, aqueles conselhos, avisos
e alertas podem até ser ú teis para a grande maioria das pessoas, mas nã o para nó s e para
aqueles que, à nossa semelhança, possuem uma capacidade superior.
Hoje se oferecem muitas técnicas e métodos de aumentar a eficá cia e a produtividade.
Desenvolver uma rotina pró pria, por exemplo, já é uma destas técnicas. E muitas vezes
falhamos e pensamos que o problema está na técnica. Infelizmente o problema nã o é o método:
o problema é o espírito, ferido pelo orgulho.

O apego à sensibilidade
Nã o há como ser constante se permanecemos no mundo das sensaçõ es. Chegará um
momento em que a constâ ncia nos pedirá o esquecimento de nó s mesmos e do gosto ou
desgosto, das sensaçõ es que tal gesto causa em nó s, e isto em nome de um ideal de excelência
(ir rezar com gosto, sem gosto e até com desgosto, por exemplo).

A constâ ncia é uma grande marca na vida daqueles que realizaram grandes obras.
Pensemos nos santos, como perseveraram até o fim nos trabalhos que lhes foram confiados por
Deus. Basta-nos o exemplo de Santa Clara de Assis, que soube viver mais de quarenta anos em
fidelidade absoluta ao ideal confiado por Deus. Ela alcançou o má ximo do que poderia ser.
Pensemos no Cristo e nos seus 30 anos de vida escondida, vivendo em plenitude cada momento
e colocando o má ximo de amor em atitudes repetidas tantas vezes, tã o comuns e rotineiras.
E nó s, queremos também atingir a excelência nas nossas vidas, sermos os melhores
consagrados que podemos ser dentro dos nossos deveres de estado?

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