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1.

Acídia: características
Na oraçã o que foi feita em preparaçã o para este retiro recebemos algumas revelaçõ es
que nos falam sobre uma situaçã o de desâ nimo, de desencorajamento, de falta de vigor
espiritual que foi experimentada por muitos cristã os ao longo dos séculos. Trata-se de uma
doença espiritual, que será tratada ao longo de todo este retiro, na descriçã o de suas
características, nas suas causas e consequências, e na terapia que lhe deve ser aplicada. De
início, apresentamos algumas das palavras que nos foram dadas:
“Deus me dava a visualização de uma roseira com rosas vermelhas, grandes, bonitas. E
que alguém olhava para esta roseira e tinha vontade de tirar uma rosa, mas ela não pegava por
conta dos espinhos porque tinha medo de se ferir. Queria a rosa, mas tinha medo e evitava essa
flor com medo do que poderia acontecer com ela diante destes espinhos.” AVERSÃ O AOS
SACRIFÍCIOS E À S TRIBULAÇÕ ES (Esta é, contudo, nossa morada eterna? Por que somos
chamados Igreja militante? Nã o estamos, por acaso, em combate contra o demô nio, o mundo e
a carne?)
“O Senhor me falava e mostrava a vida dos nossos baluartes e como eles não tiveram medo
de ouvir a Vontade de Deus, das dores. Mostrava como acolheram as dores e as dificuldades, mas
queriam estar com Deus e na Vontade de Deus, e viviam com muita alegria. E dizia que havia em
nosso meio um medo muito grande de ouvir o que Ele diz com medo de se comprometer, impondo
limites na oferta de vida a Deus. Não quer ouvir para não se comprometer a dar mais, para se dar
por inteiro.” MESQUINHEZ, FASTIO AOS ESFORÇOS
“O Senhor me dava a visualização de um copo cheio de água que transbordava, a ponto de
que o Senhor desejava vir e colocar uma água nova, uma água viva, mas não conseguia nesse
copo porque estava cheio. E o Senhor nos dava o discernimento de que esta água que estava no
copo representava a nós cheios de nós mesmos e transbordávamos a nós mesmos, a ponto do
Senhor não conseguir colocar esta água viva para que nós bebêssemos e para nós darmos para as
outras pessoas. Deus nos pedia que derramássemos esta água para que Ele pudesse colocar a sua
água viva.” RESISTÊ NCIA À S INSPIRAÇÕ ES DO ESPÍRITO SANTO
“O Senhor me fez ver uma grande chuva. Mas muitos não se deixavam molhar, se
protegiam, até com as mãos na cabeça. E o sentimento que o Senhor me dava era que esta chuva
era a graça do Coração Dele, e que muitos não estavam acolhendo esta graça.” ABUSO DAS
GRAÇAS DE DEUS

A doença espiritual que apresenta todas estas características se chama acídia.


Ela é um tipo de tristeza muito especial, visto que é uma tristeza espiritual. E o que é a
tristeza? É a reaçã o que o homem tem diante do mal. Aqui na acídia experimenta-se uma má
tristeza, pois o que a desperta é a percepçã o equivocada do bem que Deus nos quer fazer como
sendo um mal por conta das exigências pró prias do amor.
Ao vermos a vida dos santos nó s ficamos admirados pela perfeiçã o da caridade que
atingiram, mas ao aplicarmos isto na nossa pró pria vida sentimos abatimento interior,
entristecemo-nos ao considerar o projeto de santidade que Deus tem para nó s e das exigências
que este supõ e.
Deus quer nos transformar, quer nos mudar de seres egoístas para pessoas capazes de
amar. Mas como isto é possível a pessoas marcadas pelo pecado original como nó s? Através da
açã o da graça de Deus, que, vejamos bem, quer nos conduzir de uma vida de pecado, de
tristeza, de miséria, de vícios, para uma vida de amor sobrenatural a Deus e aos irmã os, tudo
sob a açã o da graça do Santo Espírito. Isto é o á pice da nossa realizaçã o e aqui mora a nossa
felicidade, visto que fomos pensados por Deus para servi-Lo e ama-Lo. O que é a beatitude, a
bem-aventurança, a felicidade senã o a perfeita comunhã o com Deus? Tudo isso é bom, é muito
bom.
Deus é puro amor, e para nos unirmos a Ele precisamos vencer o egoísmo. Precisamos
passar por uma pá scoa, passar por uma cruz que nos conduzirá a uma ressurreiçã o. Mas quem
é atacado pela acídia nã o vê além da cruz e da morte. Interpreta esta transformaçã o espiritual,
este bem que Deus está fazendo, como uma desgraça que o enche de tristeza.
É a tristeza do homem diante da sua vocaçã o, a tristeza por ser santo. A pró pria palavra
acídia pode ser traduzida assim: falta de cuidado, falta de zelo pela salvaçã o da pró pria alma. A
santidade até aparece bela, as virtudes na vida dos santos até se apresentam empolgantes, mas
nã o quer pagar na pró pria vida o preço do amor. É a tristeza diante do bem espiritual.
Para ganharmos um pouco mais de clareza nesta definiçã o inicial vamos recorrer a uma
passagem bíblica: Nm 13, 1-2.21-23.25-33; 14, 1-11. 22-25.
Depois de serem libertos da escravidã o do Egito, os israelitas chegaram bem depressa à s
portas da Terra Prometida (cerca de dois anos). Observaram o cumprimento da promessa:
terra fértil e boa onde corre leite e mel, e cujos frutos sã o abundantes. Mas o povo teve medo e
se acovardou, nã o querendo atravessar e conquistar a terra que Deus havia preparado: "O povo
que vive nessa terra é muito forte – diziam eles –, as cidades são fortificadas e enormes. (...) Não
podemos enfrentar esse povo, porque é mais forte do que nós" ( Nm 13, 28.31). Planeja, entã o,
uma volta para o Egito: "Por que nos leva o Senhor para esta terra? A fim de cairmos ao fio da
espada, e para que nossas mulheres e nossos filhos sejam reduzidos ao cativeiro? (...) Vamos
escolher um chefe e voltar para o Egito" (Nm 14, 3-4). Como castigo por sua infidelidade, o
Senhor entregou-os à s suas vontades e deixou que vagassem quarenta anos no deserto: "Não
entrarão no meu repouso prometido" (Sl 94, 11; cf. Nm 14, 20-38). O acidioso, como o povo de
Israel, tem a Terra Prometida diante de si, mas nã o quer entrar. Ele vê o grande projeto para o
qual é chamado – a santidade –, mas resiste em dar o passo do amor.
(Quem de nó s acredita que o Rosá rio é arma poderosa, capaz de parar guerras e deter
inimigos espirituais? Mas quantos o rezamos? Quantos acreditam que na adoraçã o recebemos
graças especiais? Mas quantos adoram diariamente? Quantos cremos na força da Eucaristia?
Mas quantos estã o pagando o preço para a missa diá ria?)
Esta realidade de tristeza diante do bem divino vai tornando a pessoa inerte, paralisada.
Em outras palavras, uma alma indolente, sem energia moral nem para buscar a santidade e
nem para tomar o lado da maldade. Nã o se toma o partido de Sataná s, mas também nã o se quer
lutar por Deus, colocando sua salvaçã o numa postura de falsa prudência de ficar em “cima do
muro”. E isto por uma falsa concepçã o do amor. Este enfraquecimento das forças da alma é
mais perigoso do que um pecado mortal isolado, pois o pecado mortal, uma vez tendo sido
confessado e reparado, é redimido sem deixar rastros; mas este estado de torpor é como uma
doença crô nica, que enfraquece lentamente o corpo e deixa-o por longo tempo debilitado.
O amor tem algo de guerreiro. Amar nã o é estar indiferente, numa passividade que é na
verdade falta de força interior e de interesse, má vontade. O amor, para ser verdadeiro amor,
precisa odiar o mal, reagir a ele com violência. Olhemos para a forma como Deus reage ao
pecado e a possibilidade de que nó s nunca nos unamos a Ele: através do derramamento de seu
sangue na cruz.
Indolente é aquele que nã o luta pelo bem, nã o luta por amor a Deus, nã o quer pagar o
preço do amor. Que foge de toda a radicalidade, porque é “prudente” é nã o quer cometer
“exageros”, porque “nã o se precisa de tanto”, e que busca a todo custo tentando “pegar leve”
(querendo ser humanos acabamos por nos tornar mundanos).
Por isso a acídia é também chamada de preguiça espiritual, porque emerge a alma em
um torpor do espírito na hora de agir.

Tudo o que fazemos, nó s o fazemos por amor. Seja por um amor perverso ou por um
amor virtuoso, a energia interior é movida pelo amor.
O amor obedece, por assim dizer, a um ciclo: primeiro o amor começa no afeto, a pessoa
amada está dentro do nosso coraçã o; nó s passamos a desejar a uniã o com ela; e entã o, este
amor afetivo tende para a uniã o efetiva, gerando uma açã o. “Deus é amor em ato” (Sã o Tomá s
de Aquino). O amor de Deus por nó s culminou na Encarnaçã o, que é uma profunda e
indissociá vel uniã o do homem e Deus. “Tanto Deus amou o mundo que deu o Seu Filho único...”
(Jo 3,16).
Mas, se nã o amamos, o que fazemos? Nada. Ficamos inativos, inoperantes. Se nã o existe
amor, nó s nã o saímos da cama pela manhã .
A acídia é um pecado contra a caridade. Ela atenta contra o ú nico bem absoluto e
verdadeiro das nossas vidas, que é a uniã o com Deus. A mais perfeita alegria do homem
repousa nesta intimidade com Deus; e a esta felicidade, a esta beatitude, somente chegamos
através das nossas açõ es, que sã o como os passos que nos conduzem para Deus. Embora a
nossa vocaçã o à santidade nos exceda muito, seja uma realidade sobrenatural, somos
chamados a cooperar com a graça divina, colocando toda a nossa vitalidade a serviço de sua
açã o livre e inteligente. Quando chegamos a isto, chegamos à alegria, pois o amor consumado
tem como fruto a alegria.
A acídia é grande empecilho à caridade porque é aversã o à açã o; mas nã o qualquer açã o
senã o aquela que nasce da caridade e que, portanto, é participaçã o do Espírito Santo, é boa
obra que é realizada por atraçã o deste Espírito e mediante obediência a Ele. É retraimento em
si mesmo. A açã o nã o é mais percebida como dom de si mesmo, como resposta a um amor
recebido anteriormente, que nos chama e possibilita a existência da nossa açã o. O agir do
acidioso é uma busca de satisfaçã o pessoal, mesmo quando parece agir em favor dos outros, em
nome da “caridade”; é o desejo de liberdade a qualquer preço. Nã o há mais espaço do
abandono de si a um outro, para a alegria do dom. O que resta é a tristeza e a amargura, que
distancia do outros e de Deus.

Por esta explicaçã o entendemos que estar acidioso nã o significa necessariamente nã o


fazer nada, pois se pode ser preguiçoso também estando hiperativo. A preguiça está
justamente em nã o fazer aquilo que se deve fazer, aquilo que o amor me manda fazer e onde
reside a excelência do agir. Está em procrastinar o bem que cabe a cada um realizar porque se
tem ele por difícil. A tentaçã o é fazer qualquer coisa, menos o que é necessá rio de fazer agora.
Estamos tã o ativos, fazendo tudo isso, rezando tantas devoçõ es, mas talvez nã o nos tenhamos
perguntado: “o que eu devo fazer?” Será que estamos fazendo todas estas atividades extras ao
invés de fazer a ú nica coisa que devemos fazer?
Pensemos em uma das nossas noites normais de segunda-feira. Temos, sem muitas
modificaçõ es, uma reuniã o comunitá ria que se inicia à s 19 horas e termina à s 21:30 horas. Na
grande maioria das vezes obedecendo um mesmo formato. O que esta açã o repetida inú meras
vezes ao longo de muitos anos pode nos gerar? Pode ser que um dia nos visite o tédio, a falta de
â nimo. Pode ser que nos sugira a nossa carne ou o pró prio demô nio: por que não ir fazer uma
visita hoje? A caridade é maior que a lei. Mas qual é o verdadeiro ato de amor a Deus naquele
momento? Onde Deus nos espera? O que Ele nos pediu para fazer? Estar na reuniã o.
Permanecer. O que a acídia mais deseja matar em nó s é a perseverança, é este esperar em
Deus, guardando o posto que Ele nos confiou, fazendo o serviço contratado pelo Divino Patrã o
da forma que por Ele foi indicado e enquanto Ele parece demorar em seu retorno (cf. Lc 12, 35-
40.43-46).
O acidioso é, sobretudo, um preguiçoso na oraçã o, nã o pronunciando bem as palavras,
fazendo-a de qualquer jeito. Assim como um doente nã o pode carregar um fardo pesado, assim
o acidioso nã o cumpre com solicitude a obra de Deus. O corpo lhe pesa e ele afunda no sono. No
cotidiano surge a indiferença, o tédio, o desgosto por tudo o que se faz, incluindo o esforço
espiritual, porque a vida de oraçã o lhe parece estéril. Quando está em oraçã o, faz vir a mente
qualquer dever urgente que põ e em movimento qualquer expediente para lhe tirar da oraçã o,
como um bom cabresto que lhe puxa para nã o permanecer, nã o fazer bem, para fugir. Sente
calafrios, dores de cabeça, febre.
Um dos sintomas mais evidentes da acídia é justamente este: a aversã o pelo que se tem
e o desejo pelo que nã o se possui. A soluçã o para os problemas de toda a vida parece ser
abandonar tudo e buscar algo melhor: melhor emprego, melhor atividade, melhores
companhias que ofereçam mais estima, uma melhor vida do que a que se tem agora, uma
situaçã o que nã o lhe exija tantos cansaços e renú ncias como as que fez até agora (e que
parecem inú teis). Mas isto é uma ilusã o dos demô nios, que ainda acrescentam argumentos
como “não é preciso estar aqui para servir a Deus, Ele pode ser adorado em qualquer lugar”.
Assim, a pessoa acidiosa torna-se incapaz de viver em plenitude o tempo presente, abortando
um projeto apó s o outro e nã o podendo colher os frutos da perseverança.

A acídia como doença espiritual vai nos fazendo escorregar lentamente para
afundarmos em muitos outros vícios e pecados: inicia-se pela procrastinaçã o, deixando para
fazer amanhã o que se precisa fazer agora. A esta, associam-se logo a imprudência e a injustiça.
Como se experimenta cada vez mais o vazio interior pela rejeiçã o ao bem supremo, que é Deus,
para fazer a pró pria vontade, a busca pelo prazer se torna o paliativo: horas no celular,
excessos no comer e beber, jogos e televisã o, até os prazeres da carne mais graves. O serviço a
Deus é trocado pelo ativismo. Tornamo-nos pessoas agitadas, impacientes (tudo, agora e
sempre mais rá pido, como os adolescentes fazem), com um gosto exagerado pelo repouso (e
incapazes de sacrifícios), em busca sempre de novidades, inconstantes, sem firmeza nas
resoluçõ es, até chegarmos à indiferença a fé e a falta de piedade.
O primeiro e decisivo passo para se combater este mal, do qual todos somos vítimas, é
reconhecer em que medida estamos acidiosos. Isto nos permitirá nã o desertar na luta.

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