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Título

original:
Introduction in Phenomenology © Robert Sokolowski 2000 Cambridge University Press, Cambridge ISBN 052166792-5
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)
Sokolowski, Robert
Introdução à fenomenologia / Robert Sokolowski; tradução Alfredo de Oliveira Moraes. -- 3. ed. — São Paulo : Edições Loyola,
2012.
Título original: Introduction in phenomenology Bibliografia.
ISBN: 978-85-15-02901-3 1. Fenomenologia. I. Título.
12-12892 CDD-142.7
índices para catálogo sistemático:
1. Fenomenologia : Filosofia 142.7
Preparação: Carlos Alberto Bárbaro
Capa: Foto Catedral de Rouen (1894), Claude Monet
Diagramação: Miriam de Melo Francisco
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escrita da Editora.
ISBN 978-85-15-02901-3 3a edição: outubro de 2012
conforme novo acordo ortográfico da Língua Portuguesa
© EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2004
AGRADECIMENTOS
Tenho uma dívida com o falecido GianCarlo Rota, por sugerir o tópico deste livro para mim, e por
seu incentivo e sua ajuda à medida que o trabalho avançava. Na introdução descrevo como o
conceito do livro surgiu de uma conversa entre nós. O fato de que eu não possa compartilhar o
trabalho completo com ele é só uma das muitas dores causadas por seu recente e súbito
falecimento.

Muitos amigos e colegas comentaram os esboços iniciais do manuscrito, e em diversos lugares eu


usei não apenas suas ideias, mas também suas formulações. Sou muito grato a John Brough, Richard
Cobb-Stevens, John Drummond, James Hart, Richard Hassing, Piet Hut, John Smolko,
Robert Tragesser e Kevin White. John McCarthy foi particularmente generoso em suas observações.
Usei uma versão preliminar deste trabalho como a base de um curso na The Catholic University of
America, e agradeço pelo retorno e pelas sugestões dos estudantes que dele participaram. Algumas
frases de Amy Singer foram especialmente úteis. Finalmente, meu muito obrigado a Francis Slade
por pensamentos e formulações que usei em todas as partes do livro, especialmente por suas ideias
sobre modernidade, das quais me vali para o material do capítulo final.

Este livro é dedicado ao irmão Owen J. Sadlier, O. S. F., cuja generosidade e cujo discernimento
filosófico têm sido tão significativos para aqueles que são afortunados por ser seus amigos.
INTRODUÇÃO
Origem e propósito do livro
O projeto de escrever este livro começou numa conversa que tive com Gian-Carlo Rota na primavera
de 1996. Na ocasião ele lecionava como professor visitante de Matemática e Filosofia na The
Catholic University of America.

Rota chamava frequentemente a atenção para a diferença entre matemáticos e filósofos.


Matemáticos, dizia ele, tendem a absorver os escritos de seus predecessores diretamente em seus
trabalhos. Eles não fazem comentários sobre os escritos de matemáticos anteriores, mesmo quando
niuito influenciados por eles. Simplesmente fazem uso do material que encontraram em autores que
leram. Quando avanços são feitos na matemática, pensadores posteriores condensam o que foi
encontrado e seguem adiante. Poucos matemáticos estudam trabalhos de séculos passados;
comparados com a matemática contemporânea, tais escritos antigos parecem a eles quase como que
trabalhos de crianças.

Em filosofia, por contraste, trabalhos clássicos frequentemente são mais valorizados como objetos
de exegese que como recursos a ser explorados. Filósofos, observava Rota, tendem a não perguntar:
“Para onde iremos daqui?”. Ao contrário, eles nos informam sobre as doutrinas dos maiores
pensadores. São mais propensos a comentar os trabalhos antigos do que a parafraseá-los. Rota
reconhecia o valor dos comentários, mas pensava que os filósofos poderiam fazer mais. Além de
oferecer exposição, eles deveriam abreviar escritos antigos e abordar os assuntos diretamente,
falando a partir de si mesmos e incorporando em seus próprios trabalhos o que seus predecessores
fizeram. Os filósofos deveriam extrair os conhecimentos tão bem quanto os anotam.

Foi contra esse pano de fundo que Rota me disse, após uma de nossas aulas, enquanto tomávamos
um café na cafeteria da Escola de Direito da Universidade de Columbus: “Você deveria escrever
uma introdução à feno-menologia. Apenas escreva-a. Não diga o que Husserl ou Heidegger
pensaram, apenas diga às pessoas o que é a fenomenologia. Sem título pomposo; chame-a de uma
introdução à fenomenologia”.

Isso me pareceu um conselho muito bom. Há muitos livros e artigos que comentam Husserl; por que
não tentar imitar alguma introdução que ele mesmo teria escrito? Pareceu a coisa certa a fazer,
porque a fenomenologia pode continuar a oferecer uma importante contribuição para a filosofia
atual. Seu capital intelectual está longe de ter sido esgotado, e sua energia filosófica permanece
largamente inexplorada.

A fenomenologia é o estudo da experiência humana e dos modos como as coisas se apresentam elas
mesmas para nós em e por meio dessa experiência. Tenta restabelecer o sentido da filosofia
encontrado em Platão. É, além disso, não só uma revivificação de antiquário, mas algo que confronta
as questões levantadas pelo pensamento moderno. Vai além dos antigos e modernos, e se esforça
por reativar a vida filosófica em nossas circunstâncias presentes. Este livro está escrito, sobretudo,
não apenas para informar aos leitores sobre um movimento filosófico específico, mas para oferecer a
possibilidade do pensamento filosófico em uma época em que tal pensar é seriamente contestado ou
largamente ignorado.

Por ser este livro uma introdução à fenomenologia, utilizou-se nele o vocabulário filosófico
desenvolvido por aquela tradição. Empregaram-se palavras como “intencionalidade”, “evidência”,
“constituição”, “intuição categorial”, o “mundo-da-vida” e “intuição eidética”. Contudo, não faço
comentários sobre esses termos como estranhos a nosso próprio pensamento. Apenas os utilizo.
Julgo que nomeiam fenômenos importantes e os quero tornar acessíveis aos leitores deste livro. Não
apresento, neste livro, o modo como esses e outros termos se originaram nos escritos de Husserl e
nos trabalhos de Heidegger, Merleau-Ponty e outros fenomenólogos; uso as palavras diretamente
porque elas ainda têm vida nelas. É legítimo, por exemplo, falar sobre evidência enquanto tal, e não
apenas sobre o que Husserl disse sobre evidência. Esses termos não necessitam ser explicados
somente pela demonstração de como outras pessoas deles se utilizaram. Nós não temos de pregá-los
na parede para poder tirar proveito deles.

Haverá uma cronologia da fenomenologia como apêndice deste livro^ No momentOjjecordemos


simplesmente que Edmund Husserl (1859-1938) foi o fundador da fenomenologia, e que seu
trabalho Investigações lógicas pode, com justiça, ser considerado o ponto inicial do movimento. O
livro apareceu em duas partes, em 1900 e 1901, assim a fenomenologia começou com o amanhecer
do novo século. Portanto, do agora em que nos encontramos temos mais de uma centena de anos da
história do movimento. Martin Heidegger (1889-1976), discípulo, colega e mais tarde rival de
Husserl, foi outra das grandes figuras na fenomenologia alemã. O movimento também floresceu na
França, onde foi representado por autores tais como Emmanuel Lévinas (1906-1995), Jean-Paul
Sartre (1905-1980), Maurice Merleau-Ponty (1907-1960) e Paul Ricoeur (1913-). Houve
significativos desenvolvimentos na Rüssia pré-revolucionária e na Bélgica, na Espanha, na Itália, na
Polônia, na Inglaterra e nos Estados Unidos. A fenomenologia influenciou muitos outros movimentos
filosóficos e culturais, tais como: hermenêutica, estru-turalismo, formalismo literário e
desconstrutivismo. Durante todo o século XX foi o maior componente daquilo que se denominou
“filosofia continental”, em oposição à tradição “analítica” que tipificou a filosofia na Inglaterra e nos
Estados Unidos.

A fenomenologia e a questão dos aparecimentos

A fenomenologia é um movimento filosófico significativo porque lida muito bem com o problema dos
aparecimentos. A questão dos aparecimentos tem sido parte dos problemas humanos desde a
origem da filosofia. Os sofistas manipularam os aparecimentos através da magia das palavras e
Platão respondeu ao que eles disseram. Desde então, os aparecimentos têm sido multiplicados e
aumentados enormemente. Nós os- geramos não só por palavras faladas ou escritas de uma pessoa
a outra, mas por microfones, telefones, filmes e televisão, bem como por computadores e pela
Internet, pela propaganda e pela publicidade. Os modos de apresentação e representação proliferam
e questões fascinantes afloram: Como diferenciar uma mensagem de e-mail, de uma chamada
telefônica e de uma carta? Quem se dirige a nós quando lemos uma página da web? De que modo
são modificados os falan tes, os ouvintes e a conversação pela maneira como nos comunicamos
agora?

Um dos perigos com o qual nos deparamos é que com a expansão tecnológica de imagens e palavras
tudo parece se reduzir a meras aparências.

Nós podemos formular esce problema em termos de três temas: de partes e todos, identidade em
multiplicidades e presença e ausência: parece que estamos agora inundados por fragmentos sem
quaisquer totalidades, por multiplicidades carentes de identidades, e por múltiplas ausências sem
nenhuma presença duradoura real. Nós temos bricolage e nada mais, e pensamos que podemos até
inventar a nós mesmos ao acaso juntando convenientes e agradáveis, mas passageiras, identidades a
partir dos bits e pedaços que encontramos ao nosso redor. Nós recolhemos fragmentos para nos
sustentar contra nossa ruína.

Em contraste com esta compreensão pós-moderna de aparência, a fe-nomenologia, em sua forma


clássica, insiste em que as partes são somente compreendidas contra o fundo dos todos apropriados,
que multiplicidades de aparências aportam identidades, e que ausências não fazem sentido exceto
como jogadas contra as presenças que podem ser alcançadas por meio delas. A fenomenologia
insiste que a identidade e a inteligibilidade estão disponíveis nas coisas, e que nós mesmos somos
definidos como aqueles para os quais, estas identidades e inteligibilidades são dadas. Nós podemos
tornar evidente o modo como as coisas são; quando fazemos assim descobrimos objetos, mas
também descobrimos a nós mesmos, precisamente como dativos de revelação, como aqueles para os
quais as coisas aparecem. Não somente podemos pensar as coisas dadas para nós na experiência,
mas podemos compreender também a nós mesmos enquanto as pensamos. A fenomenologia é
precisamente este tipo de compreensão: a fenomenologia é a au-todescoberta da razão na presença
de objetos inteligíveis. As análises neste livro são apresentadas para o leitor como uma clarificação
do que significa para nós deixar as coisas aparecerem e ser dativos para seu aparecimento. Muitos
filósofos reivindicaram que nós podemos aprender a viver sem “verdade” e “racionalidade”, mas
este livro tenta mostrar que podemos e devemos exercitar a responsabilidade e a veracidade se
almejamos ser humanos.

Esboço do livro

Este Introdução à fenomenologia geralmente usa a terminologia formulada por Husserl, que se
tornou padrão no movimento. O capítulo I discute a intencionalidade, o tema central na
fenomenologia, e explica por que é um importante tópico em nossa filosofia e em nossa situação
cultural atual. O capítulo D desenvolve um exemplo simples do tipo de análise que a fenome-

nologia proporciona, para dar ao leitor uma amostra de seu estilo de pensamento. O capítulo III
examina três principais temas da fenomenologia: partes e todos, identidade em multiplicidades e
presença e ausência. Estas três estruturas formais pervadem a fenomenologia, e se estamos
alertados de sua presença, o ponto de muitas questões pode ser mais facilmente captado.
Poderíamos também reivindicar que enquanto os temas de partes e todos e identidade em
multiplicidades (um em muitos) são encontrados em quase todas as escolas filosóficas, o estudo
explícito e sustentado de presença e ausência é original na fenomenologia.

Neste ponto do livro, após havermos apresentado um número de análises fenomenológicas, torna-se
possível voltar atrás e explicar o que é a fenomenologia como uma filosofia e mostrar como sua
forma de pensar difere da experiência pré-filosófica. Esta definição inicial de feríõmenologia é dada
no capítulo IV, no qual “a atitude fenomenológica” é distinguida da “atitude natural”.

Os próximos três capítulos desenvolvem investigações fenomenológicas concretas em diferentes


áreas da experiência humana. O capítulo V examina a percepção e suas duas variantes, memória e
imaginação. Examina o que chamaríamos de transformação “interna” de nossas percepções; além de
ver e ouvir coisas, nós também nos recordamos, antecipamos e fantasiamos, e assim fazendo
vivemos uma vida consciente particular, e até secreta. O capítulo VI passa a uma transformação
mais pública de nossas percepções para palavras, imagens e símbolos. Aqui estamos conscientes das
coisas exteirnas que não são meramente percebidas, mas interpretadas como imagens ou palavras
ou outros tipos de representações. Finalmente, o capítulo VII introduz o tema do pensamento
categorial, no qual não apenas percebemos coisas, mas as enunciamos, manifestando não apenas
objetos simples, mas arranjos e estados de coisas. No pensamento categorial nos movemos da
experiêricia de objetos simples para a apresentação de objetos inteligíveis. Este capítulo também
contém um tratamento importante de significados, sentidos e proposições. Esforça-se para
responder por “conceitos” e “pensamentos” como sendo mais públicos do que eles frequentemente
são tomados. Tenta mostrar que os sentidos e proposições não são entidades psicológicas, mentais
ou conceituais. Compreender proposições e sentidos no modo correto é de uma importância crucial
na discussão da natureza da verdade, especial m ente no clima filosófico gerado pela filosofia
moderna. Do capítulo V ao VII, então, oferecemos uma descrição fenomenológica de três domínios
da experiência: O campo “interno” da memória e imaginação, o campo “externo” de objetos
percebidos, palavras, imagens e símbolos, e_o campo “intelectual” de objetos -categoriais.

O capítulo VIII examina o si ou o ego como a identidade estabelecida dentro de todas as


intencionalidades previamente descritas. O si é descrito * como o agente responsável pela verdade.
Ele é identificado dentro das memórias e antecipações bem como na experiência intersubjetiva, e
executa os atos cognitivos pelos quais os objetos intelectuais mais elevados, tais como estados de
coisas e grupos, são apresentados. O si é quem toma a responsabilidade pelos reclamos que faz. A
questão do si direciona logicamente, no capítulo IX, ao tópico do tempo e ao tempo interno da
consciência, o qual subjaz à identidade do si. A temporalidade é a condição para percepções,
memórias, antecipações e para o si que viva nelas. Finalmente, o capítulo X examina o mundo
habitado pelo si, o “mundo-da-vida”, dentro do qual experienciamos imediatamence-as coisas à
nossa volta. Este mundo é a fundação sobre a qual estão baseadas as ciências naturais modernas. As
ciências não proveem uma alternativa para o mundo no qual vivemos, mas surgem e devem ser
integradas dentro dele. Este capítulo também discute, muito brevemente, o tema da
intersubjetividade.

O capítulo XI volta-se para aquilo que poderíamos chamar de fenome-nologia da razão. Examina não
só as várias intencionalidades que exercemos, mas especificamente aquela que se dirige para a
verdade das coisas, aquilo a que se poderia chamar “evidências”. E especialmente neste capítulo
que veremos como a fenomenologia considera a mente humana e a razão humana como constituídas
para a verdade. O capítulo XII discute a intuição eidética, o tipo de intencionalidade que descobre
características essenciais das coisas, características sem as quais as coisas não poderiam ser. A
evidência eidética alcança não apenas a verdade factual, mas a verdade essencial. Este capítulo é
um desenvolvimento adicional da fenomenologia da razão.

Os dois capítulos finais do livro retornam à questão do que é a fenomenologia. Inicialmente descrita
no capítulo IV, pode-se agora dar uma descrição mais completa dela. O capítulo XIII destaca a
natureza do pensamento filosófico pelo estabelecimento da distinção entre a reflexão fenome-
nológica e aquilo a que chamamos reflexão preposicional (um dos temas do capítulo VII). Aqui
demonstro que a filosofia ou a fenomenologia não é apenas um esclarecimento do sentido, mas algo
que vai mais fundo. As distinções estudadas neste capítulo destacam mais claramente ambos: que é
filosofia e que são conceitos, sentidos e proposições.

Finalmente, no capítulo XIV, tentamos descrever a fenomenologia por contraste com a modernidade
e a pós-modernidade, e acrescentamos uma breve nota sobre como pode ser distinta da filosofia
tomista. Definimos a fenomenologia localizando-a na nossa situação histórica presente. A filosofia
moderna tem dois elementos principais, filosofia política e epistemologia, e a fenomenologia está
explicitamente endereçada somente ao último. Contudo, porque concebe a razão humana como
orientada para a evidência e para a verdade, a fenomenologia pode também se reportar, de um
modo indireto, às questões modernas da teoria política. Se os seres humanos estão especificados
pela habilidade de poderem ser verdadeiros, então a política e a cidadania tomam um sentido
distinto.

Considerando a razão como teleologicamente orientada em direção à verdade, a fenomenologia se


assemelha à filosofia tomista, a qual representa a compreensão pré-moderna do ser e do espírito,
mas difere do tomismo por não abordar a filosofia a partir da revelação bíblica. Ambos, a
fenomenologia e o tomismo, são alternativas para o projeto moderno, mas em modos diferentes, e
contrastando uma com o outro adicionamos clareza à fenomenologia como uma forma de filosofia.

Este livro introduz o leitor à terminologia e às ideias de um dos principais desenvolvimentos em


filosofia no século XX. Este desenvolvimento, a fenomenologia, não pertence somente ao passado.
Ele pode ajudar-nos a lembrar a nós mesmos, no começo de um novo século e um novo milênio, de
coisas das quais nunca podemos nos esquecer inteiramente. Este livro começou a partir de uma
conversa entre a matemática e a filosofia — possa isto ajudar-nos a cultivar a vida da razão expressa
nessas duas aventuras humanas.
I. O QUE É INTENCIONALIDADE E POR QUE É IMPORTANTE?
O termo mais proximamente associado com fenomenologia é “intencionalidade”. A doutrina nuclear
em fenomenologia é o ensinamento de que cada ato de consciência que nós realizamos, cada
experiência que nós temos, é intencional: é essencialmente “consciência de” ou uma “experiência
de” algo ou de outrem. Toda nossa consciência está direcionada a objetos. Se nós vemos, vemos
algum objeto visual, tal como uma árvore ou um lago; se nós imaginamos, nossa imaginação
apresenta-nos um objeto imaginário, tal como um carro que visualizamos descendo a estrada; se nós
estamos envolvidos em uma recordação, recordamos um objeto passado; se nós tomamos parte num
julgamento, projetamos uma situação ou um fato. Cada ato de consciência, cada experiência é
correlata com um objeto. Cada intenção tem seu objeto intencionado.

Podemos notar que este sentido de “intencionar” ou “intenção” não pode ser confundido com
“intenção” como o propósito que temos em mente quando agimos (“ele comprou madeira com a
intenção de fazer um abrigo”; “Ela tinha a intenção de terminar a faculdade de direito um ano mais
tarde”). O conceito fenomenológico de intencionalidade aplica-se primariamente à teoria do
conhecimento, não à teoria da ação humana. O uso fenomenológico da palavra é um pouco
desajeitado porque vai contra o uso comum, o qual tende a usar “intenção” no sentido prático; o uso
fenomenológico quase sempre colocará em discussão o sentido da intenção prática como uma
implicação. Contudo, “intencionalidade” e seus cognatos se tornaram termos técnicos em
fenomenologia, e não há meio de evitá-los num debate dessa tradição filosófica. Nós temos que fazer
o ajuste e entender a palavra para significar principalmente intenções mentais ou cognitivas, e não
práticas. Na fenomenologia, “intenção” significa a relação de consciência que nós temos com um
objeto.

O predicamento egocêntrico
A doutrina da intencionalidade, então, estatui que cada ato de consciência está direcionado de
algum modo a um objeto de algum tipo. A consciência é essencialmente consciência “de” algo ou de
outrem. Agora, quando somos apresentados a esse ensinamento, e quando dizemos que essa
doutrina é o núcleo da fenomenologia, podemos bem reagir com um sentimento de desapontamento.
O que é tão importante nessa ideia? Por que a fenomenologia faria tal rebuliço com a
intencionalidade? Não é completamente óbvio a qualquer um que a consciência é consciência de
algo, que a experiência é experiência de um objeto de alguma classificação? Necessitam tais
trivialidades ser estabelecidas?

Elas precisam ser afirmadas, porque na filosofia das três ou quatro últimas centenas de anos
passados a consciência e a experiência humanas foram compreendidas de um modo muito diferente.
Nas tradições cartesiana, hobbesiana e lockiana, que dominaram nossa cultura, nos foi ensinado que
quando estamos conscientes estamos principalmente conscientes de nós próprios ou de nossas
próprias ideias. A consciência é tomada por ser como uma ilusão ou um gabinete fechado; a mente
vem em uma caixa. Impressões e conceitos ocorrem nesse espaço fechado, nesse círculo de ideias e
experiências, e nossa consciência é direcionada a eles, não direcionada diretamente às coisas
“fora”.,Nós tentamos alcançar o “fora” fazendo inferências: podemos raciocinar que nossas ideias
devem ter sido causadas por algo fora de nós, e podemos construir hipóteses ou modelos do que e
como as coisas devem ser, mas não temos nenhum contato direto com elas. Alcançamos as coisas
somente raciocinando a partir de nossas impressões mentais, não porque as temos presentes para
nós. Nossa consciência, primeiramente, e acima de tudo, não é “de” qualquer coisa mesmo. Ao
contrário, estamos tratando do que tem sido chamado um “predicamento egocêntrico”; tudo de que
podemos estar realmente certos de início é da existência de nossa própria consciência e dos estados
dessa consciência.

Essa compreensão da consciência humana é reforçada pelo que sabemos do cérebro e do sistema
nervoso. Parece inquestionável que tudo que é cognitivo deve acontecer “dentro da cabeça”, e que
tudo o que seria possível contatar diretamente são nossos próprios estados-cerebrais. Uma vez
ouvimos um famoso cientista especialista em cérebro dizer numa aula, quase em pranto, que após
tantos anos de estudo do cérebro ele ainda não poderia explicar como “aquele órgão abacate-
colorido dentro de nossos crânios” podia chegar além de si mesmo e alcançar o mundo. Poderíamos
nos aventurar a dizer que quase todos os que frequentaram o colégio e tiveram aulas de fisiologia,
neurologia ou psicologia teriam a mesma dificuldade.

Esses entendimentos filosófico e científico da consciência tornaram-se bastante difundidos em nossa


cultura, e o predicamento egocêntrico força-nos para dentro deles e causa-nos grande desconforto.
Sabemos instintivamente que não estamos presos em nossa própria subjetividade, estamos certos de
que vamoí além de nossos estados cerebrais e mentais internos, mas não sabemos como justificar
essa convicção. Não sabemos como mostrar que nosso contato com o “mundo real” não é uma
ilusão, não é uma mera projeção subjetiva. A maioria de nós não tem ideia de como conseguiffios
sair de nós mesmos, e provavelmente tratamos esse assunto simplesmente ignorando-o e esperando
que ninguém nos pergunte sobre ele. Quando tentamos pensar sobre a consciência humana,
começamos com a premissa de que estamos inteiramente “dentro”, e ficamos enormemente
surpresos de como podemos sempre alcançar o “fora”.

Se estamos privados da intencionalidade, se não temos um mundo em comum, então não entramos
na vida da razão, da evidência e da verdade. Cada um de nós volta-se para seu próprio mundo
privado, e na ordem prática fazemos nossas próprias coisas: a verdade não nos faz nenhuma
demanda. Novamente, sabemos que esse relativismo não pode ser a história final. Nós arguimos
com outrem sobre o que poderia ser feito e sobre o que são os fatos, mas filosófica e culturalmente
encontramos dificuldade para ratificar nossa aceitação ingênua de um mundo comum e de nossa
habilidade para descobrir e comunicar o que ele é. A negação da intencionalidade tem como sua
correlata a negação da orientação da mente para a verdade.

Uma expressão vívida do predicamento egocêntrico pode ser encontrada no romance Murpby, de
Samuel Beckett1. Passado um terço do livro, no capítulo 6, Beckett interrompe sua narrativa para
providenciar “uma justificação para a expressão: ‘a mente de Murphy”’. Ele diz que não tentará
descrever "esse aparato como ele realmente era”, mas só “o que sentia e imaginava ser em si
mesmo”. A imagem que ele apresenta é aquela que julgamos ser comum também a todos: “a mente
de Murphy é imaginada em si mesma como uma grande esfera oca, hermeticamente fechada ao
universo exterior”. Aqui a mente, com seu “mundo intramental”, lá o fora, o “mundo extramental”,
um isolado do outro. Entretanto, a mente não é empobrecida por ser tão confinada; mais
exatamente, tudo no universo exterior pode ser representado no interior, e as representações são,
de acordo com Beckett, cada uma “virtual, ou real, ou virtual nascendo do real, ou real caindo no
virtual”. Essas partes da mente são diferenciadas umas das outras: “a mente sente sua parte real
acima e brilhante, sua parte virtual abaixo e desvanecendo na escuridão”.

A. mente não está somente colocada acima de e contra o universo ou o mundo real; está também
colocada acima de e contra o corpo que é outra parte de Murphy: “Assim, Murphy percebe-se
dividido em dois, um corpo e uma mente”. De uma maneira ou de outra, o corpo e a mente
interagem: “eles têm intercurso, aparentemente, caso contrário ele não teria sabido que eles tinham
algo em comum. Mas ele sente sua mente ser uma substância-fechada e não compreende por meio
de que canal o intercurso era efetuado nem como as duas experiências vieram a se sobrepor”. O
isolamento da mente do corpo vincula um isolamento da mente do mundo: “Ele estava dividido, uma
parte dele nunca deixa essa câmera mental, que imagina a si própria como uma esfera cheia de luz
tendendo à escuridão, porque não há saída”. Como o corpo poderia influenciar a mente, ou a mente
o corpo, permanecia um mistério absoluto para Murphy: “O desenvolvimento do que viu como
conspiração entre esses estranhos absolutos permanecia para Murphy tão ininteligível como a
telecinese ou o Jarro de Leyden, e de pouco interesse”.

O predicamento cartesiano que Beckett descreve, com a mente tomada como essa grande esfera
oca, cheia-de-luz, mas matizando-se rumo à escuridão, fechada para ambos, o corpo e o mundo, é a
situação desafortunada na qual a filosofia encontra a si mesma em nosso tempo. E a situação
cultural, a autocompreensão humana, na qual a filosofia deve começar. Muitos de nós não sabemos
como evitar que a nossa própria compreensão da mente seja do modo como o Murphy de Beckett
compreende a dele. Esse dilema epistemológico é o alvo da doutrina da intencionalidade.

A publicidade da mente
Não é de todo ocioso, contudo, trazer a intencionalidade ao primeiro plano e fazer dela o centro da
reflexão filosófica. Não é trivial dizer que a consciência é "consciência de” objetos; ao contrário,
essa declaração vai contra muitas crenças comuns. Uma das grandes contribuições da fenome-
nologia foi ter rompido com o predicamento egocêntrico, ter dado um xeque-mate na doutrina
cartesiana. A fenomenologia mostra que a mente é uma coisa pública, que age e manifesta a si
mesma publicamente, não apenas dentro de seus próprios limites. Tudo é externo. As noções
mesmas de um “mundo intramental” e um “mundo extramental” são incoerentes; elas são exemplos
do que Ezra Pound chamou de “coágulos-de-ideia” (idea-clots). A mente e o mundo são correlatos
entre si. Coisas aparecem para nós, coisas verdadeiramente descobertas, e nós, de nossa parte,
revelamos, para nós mesmos e para os outros, o modo como as coisas são. Dada a configuração
cultural na qual a fenomenologia nasceu, e na qual continuamos a viver, um foco na intencionalidade
não é desprovido de grande valor filosófico. Discutindo a intencionalidade, a fenomenologia ajuda-
nos a reivindicar um sentido público do pensamento, do raciocínio e da percepção. Ajuda-nos a
reassumir nossa condição humana como agentes da verdade.

Além de chamar nossa atenção para a intencionalidade da consciência, a fenomenologia também


descobre e descreve várias estruturas diferentes na intencionalidade. Quando a mente é tomada no
modo cartesiano ou lockia-no, como uma esfera fechada com seu círculo de ideias, o termo
“consciência” é usualmente considerado ser simplesmente unívoco. Não há estruturas diferentes
dentro da consciência; há apenas consciência, pura e simples. Notamos quaisquer impressões
nascidas em nós, e então as arranjamos dentro de juízos ou proposições que tentam nomear o que
está “lá fora”. Mas para a fenomenologia a intencionalidade é altamente diferenciada. Há tipos
diferentes de intencionalidades, correlacionados com tipos diferentes de objetos. Por exemplo, nós
executamos intencionalidades perceptuais quando vemos um objeto material ordinário, mas
devemos intencionar pictorialmen-te quando vemos uma fotografia ou uma pintura. Devemos mudar
nossa intencionalidade; tomar algo como uma fotografia é diferente de tomar algo como um simples
objeto. Fotografias são correlatas com intencionalidade pictorial, objetos perceptuais são correlatos
com intencionalidade perceptual. Ainda outro tipo de intencionalidade está agindo quando tomamos
algo por ser uma palavra, outro quando recordamos algo, e outros novamente quando fazemos
juízos ou classificamos coisas em grupos. Esses e muitos outros tipos de intencionalidade
necessitam ser descritos e diferenciados uns dos outros. Além disso, as formas de intencionalidade
podem ser entrelaçadas: ver algo como uma fotografia envolve, como um fundamento, que também

a tenhamos como uma coisa percebida. A consciência pictorial está assentada sobre a perceptual,
como a fotografia que vemos assentada sobre um tecido ou um pedaço de papel, que poderia
também ser visto simplesmente como uma coisa colorida.

Outras intencionalidades ainda podem ser distinguidas, tais como os tipos que ocorrem quando
pensamos sobre o passado. Que classe de intencionalidade é exercida quando, digamos, arqueólogos
encontram potes, cinzas e trapos de roupas e começam a falar sobre pessoas que viveram num dado
lugar sete séculos atrás? Como esses objetos, esses potes e essas cinzas apresentam para nós os
seres humanos? Como devemos “tomá-los”, de forma que eles se enquadrarão naquele modo? Que
classes de intenções são correlatas com descobrir e interpretar algo como um fóssil? Que classes de
intenções operam quando falamos sobre prótons, nêutrons e quarks? Elas não são do tipo que
operam quando vemos retratos ou_bandeiras, nem do tipo de quando vemos algo como uma planta
ou um animal; alguns dos dilemas associados à física de partículas surgem porque nós assumimos
que inten-cionamos entidades subatômicas da mesma forma que intencionamos bolas de bilhar.
Separar e diferenciar todas essas intencionalidades, como também os tipos específicos de objetos
correlatos com elas, é o que é feito pelo que a filosofia chamou fenomenologia. Descrições como
estas ajudam-nos a entender o conhecimento humano em todas as suas formas, e também nos
ajudam a entender os muitos modos em que nós podemos estar relacionados ao mundo em que
vivemos.

O termo “fenomenologia” é uma combinação das palavras gregas phainomenon e logos. Significa a
atividade de dar conta, fornecendo um logos, de vários fenômenos, dos vários modos em que as
coisas podem aparecer. Por fenômenos (phenomena) nós queremos dizer, por exemplo, retratos em
vez de simples objetos, eventos lembrados em vez de antecipados, objetos imaginados em vez de
percebidos, objetos matemáticos-como triângulos e formas em vez de seres vivos, palavras em vez
de fósseis, outras pessoas em vez de animais não humanos, realidade política em vez da econômica.
Todos esses fenômenos podem ser explorados quando percebemos que aquela consciência é
consciência “de” algo, que não está bloqueada dentro de seu próprio gabinete. Em contraste com a
prisão espasmódica do car-tesianismo, do hobbesianismo e da filosofia do conhecimento lockiana, a
fenomenologia liberta. Ela nos leva para fora e restaura o mundo que estava perdido pelas filosofias
que nos aprisionavam dentro de nosso predicamento egocêntrico.

A fenomenologia reconhece a realidade e a verdade dos fenômenos, as coisas que aparecem. Não é
o caso, como a tradição cartesiana nos teria feito crer, que “ser um retrato” ou “ser um objeto
percebido” ou “ser um símbolo” está só na mente. Eles são modos nos quais as coisas podem ser. O
modo como as coisas aparecem é parte do ser das coisas; as coisas aparecem como elas são, e elas
são como elas aparecem. As coisas não apenas existem; elas também manifestam a si mesmas como
o que elas são. Os animais têm um modo de se manifestar diferente do das plantas, porque animais
são diferentes de plantas em seu ser. Os retratos têm um modo de se manifestar diferente do dos
objetos lembrados, porque seu modo de ser é diferente. Um retrato está lá fora na tela ou no painel
de madeira; um saudar está nos braços se agitando lá fora entre a pessoa que saúda e a pessoa
saudada. Um fato é onde os ingredientes do fato estão localizados: o fato de que a grama está
molhada existe na grama molhada, não em minha mente quando digo as palavras. Minha mente em
ação é o apresentar, para nós mesmos e para outros, da grama como estando molhada. Quando
fazemos juízos nós enunciamos a apresentação de partes do mundo; nós não organizamos
simplesmente ideias ou conceitos em nossas mentes.

Alguém poderia objetar: “O que dizer de alucinações e enganos? As vezes as coisas não são como
elas parecem. Podemos achar que vemos um homem, mas damos a volta e é só um arbusto; podemos
achar que vemos um punhal, mas nada está lá. Obviamente, o homem e o punhal estão apenas em
nossa mente; não é isto que mostra que tudo está na mente?” De mòdo algum; o ponto é
simplesmente que aquelas coisas podem parecer com outras coisas, e às vezes pode parecer que
estamos percebendo quando realmente não estamos. Uma noite, alguns anos atrás, no inverno, eu
dirigia em direção à minha garagem e vi uns poucos “pedaços de vidro” na calçada. Julguei que
alguém deveria ter quebrado uma garrafa lá. Estacionei meu carro perto na estrada, pretendendo
voltar na manhã seguinte para limpar a calçada. Quando retornei no dia seguinte, achei só algumas
poças da água e pedaços pequenos de gelo; o que eu havia visto como vidro era de fato só gelo.
Nessa experiência, minha visão inicial e minha correção posterior não foram elaboradas dentro do
gabinete de minha mente; não era o caso de que meramente embaralhei minhas impressões e
conceitos, ou que compus uma nova hipótese para explicar as ideias que tive. Ao contrário, eu me
relacionava ao mundo em modos diferentes, e essas relações eram baseadas no fato de que, sob
algumas circunstâncias, gelo pode parecer com vidro. Tudo, inclusive o “vidro” e o gelo, é público.
Os enganos são algo público, e assim também o são o encobrimento e a camuflagem; todos esses são
tipos de fenômenos nos quais uma coisa é tomada por outra. Enganos, encobrimento e camuflagem
são reais em seu próprio modo; eles são possibilidades do ser, e eles pedem sua própria análise. Até
alucinações têm um tanto de realidade nelas mesmas. O que ocorre quando acontecem é que nós
pensamos que estamos percebendo, quando realmente estamos imaginando, e essa desordem pode
tomar lugar apenas como parasita em percepções e imaginações reais. Para que possamos ser
capazes de alucinar, devemos ter entrado no jogo de intendo-nar ou mirar coisas. Nós não
poderíamos alucinar se não estivéssemos cientes da diferença entre percebermos e sonharmos.

O que a fenomenologia faz por meio de sua doutrina da intencionalidade da consciência é superar o
desvio cartesiano e lockiano contra a publicidade da mente, que também é um desvio contra a
realidade da manifestação das coisas. Para a fenomenologia, não existe nenhuma “mera” aparência,
e nada é “só” um aparecimento. Os aparecimentos são reais; eles pertencem ao ser. As coisas
aparecem. A fenomenologia nos permite reconhecer e restaurar o mundo que pareceu ter sido
perdido quando estávamos bloqueados em nosso próprio mundo interno por confusões filosóficas. As
coisas que tinham sido declaradas ser meramente psicológicas são agora declaradas ontológicas,
parte do ser das coisas. Retratos, palavras, símbolos, objetos vistos, estados de coisas, outras
mentes, leis e convenções sociais são todos reconhecidos como verdadeiramente aí, como
compartilhando em ser e como capazes de aparecer de acordo com seus próprios modos de ser.

Mas a fenomenologia faz mais do que restaurar o que estava perdido. Aquela parte de seu trabalho
é um pouco negativa e contenciosa, dependente de um erro para seu próprio valor. Em acréscimo a
esse trabalho de refutação, a fenomenologia oferece o prazer de filosofar para aqueles que o
desejam apreciar. Há muito a pensar sobre o modo como as coisas se manifestam a si mesmas, e em
nossa habilidade de sermos verdadeiros, nossa habilidade de deixar as coisas aparecerem. As
presentificações e ausências estão perfeitamente entrelaçadas, e a fenomenologia nos ajuda a
pensar sobre elas. Ela não apenas remove impedimentos céticos; também dispõe a possibilidade de
diferenças de compreensão, identidades e formas como os filósofos classicamente as entenderam.
Ela é contemplativa e teórica. Ela valida a vida filosófica como um acontecimento humano
culminante. A fenomenologia não só cura nossa angústia intelectual; também abre a porta para a
exploração filosófica àqueles que desejam praticá-la.

1 New York, Grove Weidenfeld, 1957. Reproduzido com permissão da editora.


II. PERCEPÇÃO DE UM CUBO COMO UM PARADIGMA DE UMA
EXPERIÊNCIA CONSCIENTE
Usaremos um exemplo simples para ilustrar o tipo de análise descritiva de consciência que a
fenomenologia nos oferece. Este exemplo nos dará uma' ideia do tipo de explanação filosófica que a
fenomenologia proporciona. Servirá como um modelo para análises mais complicadas que
empreenderemos mais tarde.

Lados, aspectos e perfis


Considere o modo pelo qual percebemos um objeto material, tal como um cubo. Vemos o cubo desde
um ângulo, desde uma perspectiva. Não podemos ver o cubo de todos os lados de uma vez. É
essencial para a experiência de um cubo que a percepção seja parcial, com apenas uma parte do
objeto sendo diretamente dada a cada momento. Contudo, não é o caso de que somente
experienciamos os lados que são visíveis desde nosso ponto de vista presente. Como vemos aqueles
lados, também intencionamos, cointencionamos, os lados que estão escondidos. Vemos mais do que
o olho alcança. Os lados presentemente visíveis estão envolvidos por um halo de lados
potencialmente visíveis, mas realmente ausentes. Estes outros lados são dados, mas dados
precisamente como ausentes. Eles também são parte do que experienciamos.

Vamos formular esta estrutura com respeito a suas dimensões objetiva e subjetiva. Objetivamente, o
que nos é dado quando vemos um cubo é uma mistura composta dos lados que estão presentes e dos
lados que estão ausentes, mas cointencionados. A coisa sendo vista envolve uma mistura do
presente e do ausente. Subjetivamente, nossa percepção, nossa visualização, é uma mistura
composta de intenções cheias e vazias. Nossa atividade de perceber, então, também é uma mistura;
partes intencionam o que está presente, e outras partes intencionam o que está ausente, os “outros
lados” do cubo.

Naturalmente, “todo mundo sabe” que a percepção envolve tais misturas, mas nem todo mundo está
a par de seu impacto ou de seu alcance filosófico. Toda experiência envolve uma mistura de
presença e ausência, e em alguns casos chamar nossa atenção para esta mistura pode ser
filosoficamente iluminador. Quando ouvimos uma sentença sendo enunciada por um falante, por
exemplo, nossa audição envolve a presença de uma parte da sentença, flanqueada pela ausência das
partes que já foram pronunciadas e aquelas que estão por vir. A sentença mesma, como um todo,
distingue-se em oposição ao silêncio, ao ruído e às outras sentenças que a precedem, a seguem ou a
acompanham. A mistura de presença e ausência em nossa experiência de uma sentença é diferente
daquela envolvida na percepção de um cubo, mas em ambos os casos há uma mistura de presença e
ausência, de intenções cheias e vazias. Outros tipos de objetos teriam ainda outros tipos de
misturas, mas todos seriam misturas de presença e ausência.

Vamos retornar à experiência do cubo. Num dado momento, apenas certos lados do cubo estão
presentes para nós e os outros estão ausentes. Mas sabemos que a qualquer momento podemos
caminhar ao redor do cubo ou virar o cubo e os lados ausentes entrarão no campo de visão,
enquanto os lados presentes sairão. Nossa percepção é dinâmica, não estática; até se só olharmos
um lado do cubo, o movimento rápido de nossos olhos introduz um tipo de mobilidade de busca da
qual não estamos conscientes. Quando viramos o cubo ou caminhamos em volta dele, a
potencialidade percebida torna-se realmente percebida, e o realmente percebido desliza para dentro
da ausência; torna-se aquilo que foi visto, aquilo que é novamente só potencialmente visto. No lado
subjetivo, as intenções vazias tornam-se cheias e as cheias tornam-se vazias.

Além disso, outras modalidades de percepção também entram em jogo. Podemos não só ver o cubo,
mas também tocá-lo, podemos bater nele para ver que tipo de ruído ele faz, podemos degustá-lo
(para as crianças, a boca é o órgão tátil primordial), e podemos até cheirá-lo para ver de que é feito.
Todas essas são presentações potenciais que podem ocorrer com qualquer presentação que
tenhamos do cubo, potenciais que podem ser ativadas e trazidas imediatamente à presença. Todas
elas envolvem o cubo até quajjdo ele é simplesmente dado a nossa visão. E interessante notar,
contudo, que só a visão e o tato presentam o objeto como um cubo; o ouvir, o degustar e o cheirar
presentam o material de que o cubo é feito, não seu caráter de ser formado como um cubo.

Vamos dizer um pouquinho mais precisamente da experiência visual do cubo. Distinguimos três
camadas em que ela é presentada para nós. (1) Primeiro, há os lados do cubo, seis deles. Cada lado
pode ser dado sob diferentes perspectivas. Se seguramos um lado diretamente diante de nós, ele é
presentado como um quadro, mas se inclinamos o cubo ligeiramente para longe de nós o lado vem a
ser dado como um ângulo que se assemelha mais a um trapézio. Os cantos mais distantes parecem
mais juntos um do outro do que os mais próximos. Se inclinamos ct cubo para um pouco mais longe,
o lado torna-se quase uma linha, e então, finalmente, se o inclinamos apenas um pouco mais, o lado
desaparece da visão. Em outras palavras, um lado pode ser dado de modos diferentes, assim como o
cubo pode ser dado de diferentes lados. (2) Vamos chamar cada um dos modos nos quais o lado é
dado de aspectos. Um lado tem o aspecto de um quadro quando o encaramos diretamente, mas tem
o aspecto de um trapézio quando o giramos em um ângulo para nós. Como um cubo aparece para
nós em muitos lados, assim cada lado pode aparecer para nós de muitos aspectos,, e esses aspectos,
transitivamente, são também aspectos do cubo. Porém, podemos dar um passo além. (3) Podemos
visualizar um aspecto particular num dado momento; podemos fechar nossos olhos por um minuto,
então abri-los novamente. Se não tivermos nos movido, teremos o mesmo aspecto dado para nós
novamente. O mesmo aspecto pode ser dado para nós como uma identidade por meio de uma
sucessão de aparecimentos temporariamente diferentes. Vamos chamar cada uma dessas visões
momentâneas de um perfil do aspecto. É, transitivamente, também um perfil do lado e um perfil do
cubo. Um perfil é uma presentação temporariamente individualizada de um objeto. A palavra inglesa
profile é a translação da alemã Abschattung, a qual pode significar profile (perfil) ou sketch
(esboço). Em última instância, então, o cubo é dado para nós em um dos muitos modos de perfis.

Vamos mudar nosso exemplo da percepção de um cubo para a percepção de um edifício. Olhamos
para o lado da frente do edifício. Olhamos para esse lado de um ponto de vista um pouco à esquerda
do centro: nesse momento, vemos um aspecto particular da frente do edifício. Suponhamos que se
diga a você: “esta vista do edifício é muito atrativa; venha e olhe daqui”. Quando quem lhe fez este
convite mudar de lugar e você se posicionar onde essa pessoa escava, você verá o mesmo aspecto
que ela viu, mas escará expe-rienciando perfis diferentes daqueles que ela experienciou, porque os
perfis são presentações momentâneas, não o olhar ou o visualizar ou o aspecto que pode ser visto
por muitos observadores. Um aspecto, um lado, e naturalmente o edifício mesmo são todos
intersubjetivos, mas um perfil é privado e subjetivo. O perfil pode até depender de nossa disposição
no tempo e da condição de nossos órgãos sensoriais; se estamos doentes ou atordoados, o perfil
pode ser vacilante ou cinzento em vez de ser fixo ou azul. O caráter relativo e subjetivo do perfil não
significa que os aspectos ou os lados ou as coisas dadas por meio dele são relativos e subjetivos no
mesmo modo.

Identidade do próprio objeto


A percepção, então, envolve camadas de sínteses, camadas de múltiplas presentações, que são de
dois tipos, atual e potencial. Agora, contudo, uma importante nova dimensão deve entrar no jogo.
Quando vemos os lados diferentes de um cubo, quando experienciamos vários aspectos de vários
ângulos e por meio de vários perfis, é essencial para nossa experiência que percebamos toda essa
multiplicidade como pertencendo a um e ao mesmo cubo. Os lados, aspectos e perfis são
presentados para nós, mas neles todos um e o mesmo cubo está sendo presentado. As diferentes
camadas que experienciamos são postas contra uma identidade que é dada continuamente em e por
meio delas.

Seria errado, contudo, dizermos que o cubo é apenas a soma de todos os seus perfis. A identidade
do cubo pertence a uma dimensão diferente daquela dos lados, aspectos e perfis. A identidade é
outra para a manifestação que se oferece. A identidade nunca se mostra como um lado, um aspecto
ou um perfil, mas é ainda presentada para nós precisamente como a identidade em todos eles.
Podemos intencionar o cubo em sua mesmidade, não apenas em seus lados, aspectos e perfis.
Quando nos movemos em volta do cubo ou o giramos em nossas mãos, o fluxo contínuo de perfis é
unificado por ser “de” um único cubo. Quando dizemos que “o cubo” é presentado para nós,
entendemos que sua identidade nos é dada.

Neste ponto, vemos uma dimensão mais profunda da intencionalidade da consciência do que aquela
que examinamos no capítulo I. A consciência é “de” algo no sentido que intenciona a identidade de
objetos, não apenas do fluxo de aparecimentos que são presentados para ela. A questão da
identidade do objeto se cornará importante quando examinarmos a transição da percepção para a
intelecção, quando um objeto percebido torna-se parte de um estado de coisas ou de um fato, mas é
importante até como um constituinte da percepção. Quando percebemos um objeto, não temos
apenas um fluxo de perfis, uma série de impressões; em e por meio deles todos temos um e o mesmo
objeto dado para nós, e a identidade do objeto é intencionada e é dada. Todos os perfis e todos os
aspectos, todos os aparecimentos, são apreciados como sendo de uma e da mesma coisa. A
identidade pertence ao que é dado na experiência e o reconhecimento da identidade pertence à
estrutura intencional da experiência. Vamos notar também de passagem que essa identidade mesma
pode ser intencionada na ausência tanto quanto na presença, e podemos estar enganados sobre ela.

Essa análise de lados, de aspectos e de perfis ajuda a confirmar o realismo da fenomenologia em


contraste com as filosofias do conhecimento de Descartes e de Locke. De acordo com elas, todos
estamos imediatamente conscientes de que são impressões que atingem nossa sensibilidade;
estamos enclausurados no círculo de nossas ideias. Mas, uma vez que admitamos que existem coisas
tais como perfis distintos de aspectos, e aspectos distintos de lados, percebemos que é inteiramente
impossível dar a razão de tais estruturas em termos de simples impressões e ideias dentro da mente.
Se tudo fosse simplesmente interno para nós, tudo que seria dado para nós seriam perfis: flashes de
cor e pedaços de som, fora dos quais os objetos teriam de ser construídos. Nunca poderíamos fazer
a distinção entre um perfil e um aspecto e um lado. Em contraste, as distinções entre lados,
aspectos e perfis tornam-se mais obviamente claras do que as aparências exteriores e os aspectos
das coisas que estão “lá fora” para percebermos; elas não são apenas fabricadas fora das
impressões que atingem nossa sensibilidade. O lado ou aspecto que pode ser visto como o mesmo
em diferentes ocasiões pela mesma pessoa, ou por várias pessoas diferentes, não pode ser
meramente uma impressão afetando privativamente cada subjetividade. Além do mais, “atrás” e
“dentro” dos lados, aspectos e perfis há também a unicidade do objeto mesmo, a identidade que é
dada para nós. A identidade é pública e disponível para todos; não é apenas algo que projetamos nos
aparecimentos.

Utilizamo-nos da percepção de um objeto material, um cubo, como um paradigma inicial para a


análise fenomenológica da intencionalidade. Outros tipos de objetos envolvem outras formas
complexas de presentação. Antes de partir para a análise de tais objetos e suas correspondentes
intencionalidades, vamos considerar uma estrutura formal que desempenha um papel importante na
fenomenologia.
III. AS TRÊS ESTRUTURAS FORMAIS NA FENOMENOLOGIA
Há três formas estruturais que aparecem constantemente nas análises feitas na fenomenologia. Se
estivermos conscientes dessas formas, será mais fácil entender o que ocorre numa passagem
particular ou no desenvolvimento de um tema particular. As três formas são (a) a estrutura de partes
e todos, (b) a estrutura de identidade numa multiplicidade, e (c) a estrutura de presença e ausência.
As três estão inter-relacionadas, mas não podem ser reduzidas uma à outra. As duas primeiras
dessas estruturas são temas que foram desenvolvidos por muitos filósofos antigos; Aristóteles tem
muito a dizer sobre partes e todos na Metafísica, por exemplo, e Platão e os pensadores neopla-
tônicos, bem como os escolásticos, exploraram a ideia da identidade dentro de diferenças, do uno
em muitos.

Porém, o tema da presença e ausência não foi descoberto, de um modo explícito e sistemático, pelos
filósofos antigos. Esse tema é original em Hus-serl e na fenomenologia. Presenças e ausências
podem ser misturadas de modos notáveis, e a exploração de tais misturas pode servir como um
valioso tema em filosofia. Acreditamos que a fenomenologia descobriu essa nova dimensão filosófica
precisamente porque estava tentando combater o problema epistemológico do pensamento
moderno, o predicamento egocêntrico iniciado por Descartes. A fenomenologia fez um avanço
positivo para responder a uma confusão filosófica, tanto quanto Platão descobriu sua compreensão
de unidade e forma em resposta ao desafio do ceticismo sofista.

Iremos considerar cada uma das três formas estruturais como elas são desenvolvidas na
fenomenologia.

Partes e todos
Totalidades podem ser analisadas em dois cipos diferentes de partes: pedaços e momentos. Pedaços
são partes que podem subsistir e ser presenta-das até separadas do todo; eles podem ser destacados
de seus todos. Pedaços também podem ser chamados partes independentes.

Exemplos de pedaços são folhas e bolotas, as quais podem ser separadas de sua árvore e ainda
presentar a si mesmas como entidades independentes. Até um ramo de uma árvore é uma parte
independente, porque ele pode ser separado da árvore; quando assim separado ele não funciona
mais como um ramo vivo e torna-se um pedaço de madeira, mas ainda pode existir e ser percebido
como uma coisa independente. Assim também as partes de uma máquina, um membro de uma
companhia de atores, um soldado em um pelotão são pedaços dentro de seus respectivos todos. Tais
coisas pertencem, de fato, cada uma ao seu todo maior (a máquina, a companhia, o pelotão), mas
elas também podem ser elas mesmas e presentar a si mesmas separadas daquele todo. Assim,
quando separados, os pedaços tornam-se todos em si mesmos e não são mais partes. Os pedaços,
então, são partes que podem vir a ser todos.

Momentos são partes que não podem subsistir ou ser presentados separados do todo ao qual
pertencem, eles não podem ser destacados. Os momentos são partes não independentes.

Exemplos de momentos são: a cor vermelha (ou qualquer outra cor), que não pode ocorrer separada
de alguma superfície ou expansão espacial; o tom musical, que não pode existir exceto quando
misturado com um som, e também a visão, que não pode ocorrer exceto como dependente do olho.
Tais partes são não independentes e não podem existir ou ser presentadas por si mesmas. Um ramo
pode ser cortado da árvore, mas o tom não pode ser isolado de um som e uma visão não pode
desprender-se do olho. Os momentos não podem ser, exceto quando misturados com outros
momentos. Os momentos são o tipo de parte que não pode tornar-se um todo.

Bons exemplos de momentos ou partes não independentes podem ser encontrados nas dimensões
que são distintas na física. Na mecânica, um corpo em movimento possui os momentos de massa,
velocidade, momentum e aceleração; massa e aceleração, por sua vez, estão associadas
essencialmente com força. Na teoria eletromagnética, uma corrente elétrica possui a dimensão de
carga por unidade de tempo, que é medida em ampere, e esta dimensão está associada por seu
turno com potência elétrica (volts), resistência (ohms) e força (watts). Todas essas dimensões são
interdependentes: não pode. haver momentum sem massa e velocidade, ou aceleração sem massa e
força, ou corrente sem voltagem.

Um item particular pode ser um pedaço em uma relação enquanto é um momento numa outra. Por
exemplo, uma bolota pode ser separada de sua árvore, mas como um objeto de percepção não pode
ser separada de um pano de fundo; para ser percebida, a bolota tem de ser vista contra um pano de
fundo de uma espécie ou outra.

Há certa necessidade no modo como os momentos são misturados juntos dentro de seus todos.
Alguns momentos são fundados a partir de outros, e uma distinção nasce entre as partes fundadas e
a fundação. O tom está fundado na cor, enquanto, reciprocamente, a cor funda ou é o substra-to do
tom. A visão está fundada no olho, e o olho funda ou sustenta a visão. Além do mais, pode haver
algumas camadas de fundamentos: a sombra está fundada no tom, que por sua vez está fundado na
cor. Nesse caso, a sombra é só mediatamente fundada na cor (via tom), enquanto o tom é
imediatamente fundado na cor. Tom musical e timbre, contudo, são ambos imediatamente fundados
no som.

Vamos acrescentar uma outra precisão terminológica: um todo pode ser chamado um concretum,
algo que pode existir, presentar a si mesmo e ser experienqado como um indivíduo concreto. Um
pedaço, uma parte independente, é uma parte que pode vir a ser um concretum. Momentos,
contudo, não podem vir a ser um concretum. Sempre que eles existem e são experien-ciados,
arrastam junto com eles seus outros momentos; eles existem somente misturados com suas partes
complementares.

Porém, é possível para nós pensar e falar de momentos por si mesmos: podemos falar de tons
musicais sem mencionar som; podemos nos referir a tom sem mencionar cor; podemos falar de visão
sem mencionar o olho. Quando consideramos momentos simplesmente por eles mesmos, eles são
abstracta, estão sendo pensados abstratamente. A possibilidade de falar de tais partes abstratas, a
possibilidade de falar abstratamente, surge porque podemos usar a linguagem; é a linguagem que
nos permite tratar com um momento separado de seu complemento necessário de outros momentos
e de seu todo. Contudo, um perigo surge com esta habilidade: porque podemos nos referir ao
momento por si mesmo, sem mencionar seus momentos associados, podemos começar a pensar que
esse momento pode existir por si mesmo, que ele pode vir a ser um concretum. Podemos começar a
pensar sobre a visão, por exemplo, como se ela pudesse ser, separada do olho.

A distinção entre pedaços e momentos é muito importante na análise filosófica. O que


frequentemente acontece em filosofia é que algo que é um momento seja tomado por ser um pedaço,
tomado por ser separável de seu todo mais amplo e de outras partes; então, um "problema”
filosófico artificial surge, a respeito de como o todo original pode ser reconstituído. A solução
verdadeira de tal problema não é adaptar algum novo modo de construir o todo falsamente
segmentado de tais partes, mas simplesmente mostrar que a parte em questão era um momento,
não um pedaço, e que nunca poderia ter sido separada do todo em primeiro lugar. Muitos
argumentos filosóficos são simplesmente complicadas tentativas de mostrar que algo é uma parte
dependente, não uma parte independente, um momento e não um pedaço.

Este tipo de problema artificial surge com respeito à mente e seus objetos, por exemplo. Como
vimos no capítulo I, as pessoas frequentemente tomam a mente por ser uma esfera fechada em si
mesma, isto é, um pedaço que pode ser separado do contexto mundano ao qual ela naturalmente e
essencialmente pertence. Assim, elas perguntam como a mente pode até sair de si mesma e
alcançar o que se passa no mundo. Mas a mente não pode ser separada do exterior desse modo; a
mente é um momento para o mundo e para as coisas nele; a mente é essencialmente correlata com
seus objetos. A mente é essencialmente intencional. Não há “problema de conhecimento” ou
“problema do mundo externo”, não há problema de como alcançar a realidade “extramental”,
porque a mente, de princípio, nunca poderia ser separada da realidade. A mente e o ser são
momentos um para o outro; não são pedaços que podem ser segmentados fora do todo ao qual
pertencem. Igualmente, a mente humana é frequentemente separada do cérebro e do corpo como se
fosse um pedaço e não um momento fundado neles; o problema “mente-cérebro” também pode ser
tratado como uma instância de confusão a respeito de partes e todos.

Um outro exemplo da lógica de partes e todos pode ser encontrado em nossa análise da percepção
de um cubo. Os perfis, os aspectos e os lados, bem como a identidade do cubo mesmo, são todos
momentos uns para os outros na apresentação do objeto. Não poderíamos ter a presentação dos
lados senão através dos aspectos, os quais por sua vez somente são presen-tados através dos perfis.
O cubo mesmo, como uma identidade, não pode ser presentado perceptivamente senão através da
multiplicidade de lados, aspectos e perfis. Seria um caso de extravio de concretude, de procurar
pelo pedaço no lugar do momento, querer ter o cubo apenas em si mesmo, não como fundado em
suas múltiplas presentações.

Há sempre o perigo de que separemos o inseparável, de que façamos do abstractum um concretum,


porque em nosso discurso podemos falar de um momento sem mencionar aquilo em que está
fundado. Podemos falar “do triângulo”, por exemplo, e depois de algum tempo começarmos a pensar
que existe um triângulo apartado dos triângulos encarnados. Quando permitimos que isto aconteça,
fazemos de um momento um pedaço, de um abstractum um concretum, e começamos a perguntar
como seria possível encontrarmos esse pedaço de fato, como poderia ele se presentar para nós.
Deixamos a abstra-tividade de nosso discurso nos enganar pensando que as coisas de que falamos
poderiam se presentar concretamente para nós. Introduzimos uma separação onde deveríamos
simplesmente fazer uma distinção.

O contraste entre pedaços e momentos é de grande ajuda em nossa introdução à fenomenologia.


Muitas questões que parecem muito complicadas tornam-se simples quando formuladas em termos
do tipo de partes que funcionam dentro delas. Uma análise filosófica usualmente consiste em
alcançar os vários momentos que vão formar um todo dado. A análise filosófica da visão, por
exemplo, mostrará como a visão está fundada no olho e também na mobilidade corporal (no
movimento rápido do olho, na habilidade da cabeça ser virada, na habilidade do corpo todo ir de um
lugar para outro, de um ponto de vista para outro), como tanto a visão quanto o que está sendo visto
são momentos dentro de um todo, e como a visão está condicionada por outras modalidades
sensoriais, tais como o tato, a audição e a sinestesia. Uma análise filosófica nos ajudará a evitar a
tentação de trocar momentos por pedaços, como podemos fazer, por exemplo, quando tentamos
separar a visão da mobilidade.

Até a questão da alma humana, ou da alma de qualquer coisa viva, pode ser clarificada apelando a
partes e todos. A alma é um momento; ela mantém uma relação essencial com o corpo e está
fundada no corpo que estimula e determina e no qual se expressa. Os seres humanos são corpos
animados, não espíritos materializados. Mas a alma é frequentemente caricaturada ao ser tornada
um pedaço dentro de uma força vital, ou uma coisa que poderia existir e ser presentada e entendida
separada de sua base orgânica, até como algo que pode preexistir a seu corpo. Naturalmerite, a
maneira na qual a alma é um momento do corpo vivo é diferente do modo como o tom é um
momento da cor, mas o primeiro passo para esclarecer a natureza da alma é mostrar que ela não é
uma coisa separável que pode ser compreendida separada de seu envolvimento com o corpo.

Há uma necessidade no modo como os momentos, partes não independentes, sãõ arranjados dentro
de um todo. Certos momentos servem de mediação para outros, os quais se juntam num todo só
através do precedente: na percepção do cubo, aspectos mediados entre perfis e lados,'e lados
mediados entre aspectos e o cubo mesmo (perfis não presentam o cubo mesmo, só seus aspectos e
lados e deste modo mediatamente o cubo). Mostrar tais arranjos de momentos proporciona uma
compreensão do todo em questão. O que frequentemente acontece, contudo, é que enunciamos
algumas das partes em um todo, mas negligenciamos outras; ou tentamos segmentar os momentos,
tomando como pedaços os momentos que temos destacado; ou tomamos um momento como sendo
equivalente a outro, isto é, falhamos em sustentar uma distinção. Podemos confundir o político com
o econômico, por exemplo, dentro do todo dos relacionamentos humanos, ou podemos pensar que o
econômico, que é realmente só um momento, é o todo. Marx, por exemplo, elevou o econômico ao
todo das relações sociais, e Hobbes elevou as relações contratuais, que são só uma parte do todo
social, à condição de todo. A descoberta de partes e todos é central para o entendimento humano e
filosófico.

Sempre que pensamos sobre algo, enunciamos partes e todos dentro dele. As partes e os todos
constituem o conteúdo do que pensamos quando vamos além da simples sensibilidade e da um
pouco muda percepção. O especificar das partes é a essência do pensamento, e é importante ver a
diferença entre pedaços e momentos quando tentamos, filosoficamente, entender o que é o
entendimento.

Identidade em multiplicidades
Já abordamos o tema da identidade em multiplicidades quando consideramos a percepção de um
cubo: o cubo como uma identidade mostrou ser distinto de seus lados, aspectos e perfis, e ainda era
presentado por meio deles todos. O que podemos fazer agora é mostrar quão extensiva é esta forma
de presentação e destacar algumas de suas implicações filosóficas. A estrutura opera na percepção
de todos os objetos materiais, como temos visto, mas também opera em qualquer tipo de coisa que
possa ser presenta-da para nós. Para começar, vamos examinar como funciona na presentação de
sentido por meio da linguagem.

Quando desejamos expressar algo, podemos sempre distinguir a expressão do que é expressado, o
experienciado. Se dizemos “a neve cobriu a rua”, “a rua está coberta de neve”, e “Die Strasse ist
verschneit”, nós proferimos três diferentes expressões, mas podemos considerar que todas as três
expressaram um e o mesmo sentido ou o experienciado, um e o mesmo fato ou um pouco de
informação. As três expressões são como três aspectos de um e do mesmo objeto, exceto que neste
caso o objeto é complicado e seu status de ser é diferente daquele do cubo. Poderíamos ainda
ampliar a multiplicidade adicionando a entonação da sentença em modos diferentes: gritando a
sentença uma vez, sussurrando-a em outra, dizendo-a em voz estridente e assim por diante. Todas
essas seriam maneiras de apresentação de uma e da mesma sentença, e ainda todas as expressões
vocais e todas as sentenças (bem como muitas outras possíveis) presentariam um e o mesmo
sentido, e um e o mesmo fato.
O ponto é que o fato idêntico pode ser expresso numa multiplicidade de modos e o fato é outro para
uma e todas as suas expressões. Assim como o cubo pertence a uma dimensão diferente daquela dos
lados, aspectos e perfis, também o sentido ou o fato pertence a uma dimensão diferente daquela do
sentido das expressões e elocuções através das quais é dado. Por esta razão, seria enganoso
procurar por um sentido ou um fato como algum tipo de sentença mental, um tipo de análogo
fantasmagórico das expressões que publicamente proferimos; fazer assim seria o erro comum
filosófico de extravio da concretude, de tomar um momento como um pedaço. O sentido é só a
identidade que está dentro e ainda por trás de todas as suas expressões. Poderíamos também notar
que o sentido idêntico é capaz de ser presentado por meio de muitas outras sentenças ou expressões
(em ainda outras línguas, em linguagem de sinais, por meio de gestos e outros símbolos) que não
foram e, na maior parte das vezes, não serão declaradas, da mesma maneira que o cubo é uma
identidade que seria percebida por meio de perfis que ainda não ativamos. O horizonte do potencial
e o do ausente cercam a real presença das coisas. A coisa sempre pode ser presentada em mais
modos do que os que já conhecemos: a coisa sempre guarda mais manifestações em reserva.

Como um outro exemplo de uma identidade numa multiplicidade, consideremos um evento histórico
importante, tal como a invasão da Normandia na Segunda Guerra Mundial. Esse evento foi
experienciado de um modo por aqueles que dele participaram, de outro modo por essas mesmas
pessoas quando o recordaram, de um outro modo por aqueles que leram sobre ele como relatado
nos jornais, de um outro modo por aqueles que escreveram e aqueles que leram livros sobre ele
mais tarde, de um outro modo por aqueles que se juntaram numa celebração comemorativa nas
praias~da Normandia, de um outro modo por aqueles que assistiram a documentários com imagens
reais sobre o evento, de outro modo ainda por aqueles que viram documentários e programas feitos
na televisão sobre o ocorrido. O mesmo evento foi também antecipado por aqueles que o
planejaram, e por aqueles que, do outro lado, planejaram resistir a ele. Há, indubitavelmente, ainda
outros modos nos quais um e o mesmo evento pode ser intencionado e feito presente, e a identidade
do evento é sustentada por meio de todos eles.

Vamos voltar para objetos estéticos. Um e o mesmo drama, digamos, A duquesa de Malfi, é
presentado em todos os palcos e em todas as leituras, com todas as suas várias interpretações, nas
quais a peça é dada e, também, foi presentada por John Webster quando ele'escreveu a peça. Uma e
a mesma sinfonia, tal como a Sinfonia Hafner de Mozart, é dada em todas as suas execuções. A
interpretação dada por Bruno Walter é diferente daquela dada por Klaus Tennstedt, e, na verdade, o
modo geral de interpretá-la no início do século XX era diferente daquele comum em fins do mesmo
período, mas todas as interpretações são de uma e da mesma sinfonia. É interessante notar que a
gravação de uma peça musical é diferente da performance ao vivo, porque a gravação captura
apenas uma das performances, enquanto cada performance ao vivo é diferente de todas as outras.
Se fôssemos ouvir duas vezes a mesma gravação, ouviríamos a mesma performance em ambas as
vezes, não apenas a mesma sinfonia, e ainda assim nossa audição dela seria diferente cada vez:
algumas dimensões e não outras viriam à tona, nosso humor poderia estar diferente, o dia mesmo
poderia estar mais brilhante ou sombrio. Quando uma gravação captura apenas uma performance, é
como se um filme capturasse só um aspecto de um cubo e só nos deixasse ver aquela manifestação
particular do cubo mesmo.

Se passarmos das artes que requerem performances para aquelas que não as requerem,
encontraremos totais diferenças na estrutura de identidade em multiplicidades. Uma pintura não é
executada por nada análogo a uma performance de orquestra; é presentada diretamente quando é
vista, não quando alguém a apresenta. Não deve haver artista entre os espectadores e a obra, como
os músicos devem vir entre os ouvintes e a obra. Contudo, uma e a mesma pintura pode ser vista
num momento e recordada em outro, análises escritas da pintura podem ser dadas, cópias dela
podem ser pintadas, e impressas, “reproduções” da pintura podem ser feitas. Há também uma
diferença entre como a pintura apareceu ao artista e como ela aparece ao público, bem como as
diferenças entre a visão de um espectador cultivado e a de um mero apreciador. A pintura espera
por seus espectadores a fim de ser completada como trabalho de arte, mas o faz de um modo
diferente de como uma sinfonia espera por suas performances a fim de existir como tal. A identidade
e a multiplicidade são diferentes em cada caso.

Passando para eventos religiosos como exemplos adicionais, o Êxodo foi presentado ao povo judeu
que o vivia então, mas o mesmo evento é pre-sentado àqueles que leram sobre ele nas Escrituras e
aqueles que celebram a Páscoa. Para os cristãos, o evento da morte e ressurreição de Cristo foi
expe-rienciado pelos discípulos e é mais ulteriormente presentado, de diferentes modos, pela leitura
das Escrituras, pelo testemunho dos mártires e fiéis, por intermédio dos sacramentos e
especialmente da eucaristia. Na realidade, para os cristãos a celebração da eucaristia não é só uma
presentação da morte e ressurreição de Cristo, mas também uma manifestação mediada da Páscoa e
do Êxodo. Assim, até o sagrado é uma identidade dentro de uma multipli-cidade-de manifestações.

A identidade que é dada por meio de suas múltiplas manifestações pertence a uma dimensão
diferente daquela da multiplicidade. A identidade não é um membro da multiplicidade: o cubo não é
um dos aspectos ou perfis, a proposição não é uma das sentenças articuladas, a peça não é
simplesmente uma de suas performances. A identidade transcende suas múltiplas manifestações, vai
além delas. A identidade não é meramente a multiplicidade de suas manifestações; vê-la só como
sua soma reduziria a um horizonte as duas dimensões que devem ser distinguidas aqui. Tornaria
tudo apenas uma série de manifestações, tudo em uma dimensão, em vez de reconhecer a
identidade como além da dimensão de manifestações, como algo presentado por meio de todas elas,
e também por meio de outras possíveis manifestações.

O ser desta identidade é bastante enganoso. Pensamos conhecer bastante, claramente o que é uma
manifestação — um aspecto que vemos, uma sentença que proferimos, uma performance que
ouvimos —, mas a identidade parece não ser algo que possamos pôr em nossas mãos ou pôr diante
de nossos olhos. Parece iludir nossa compreensão. E ainda sabemos que a identidade nunca, é
redutível a uma de suas manifestações; sabemos que a identidade deve ser distinguida disto e de
cada manifestação que dela apreciamos. A identidade presenta-se agora de um modo, também
guarda uma reserva de outros modos de ser dada e de reaparecer como a mesma coisa novamente,
para nós mesmos e para outros; em ambos ela sempre revela e esconde a si mesma. A coisa sempre
pode ser dada novamente, talvez de modo que nós mesmos não podemos antecipar. O que tentamos
fazer em nossa análise filosófica é assegurar a realidade de tais identidades, demonstrar o fato de
que elas são diferentes de suas múltiplas manifestações e mostrar que a despeito de seu
escorregadio status elas verdadeiramente são um componente do que nós experienciamos.

Finalmente, talvez a resposta mais fácil que alguém poderia dar à questão “O que é uma análise
fenomenológica?” fosse dizer que ela descreve a multiplicidade que é adequada para um dado
objeto. Uma fenomenologia do sentido diria a multiplicidade através da qual os sentidos são dados;
uma fenomenologia da arte descreveria as várias multiplicidades pelas quais os objetos de arte
manifestam a si mesmos e são identificados; uma fenomenologia da imaginação descreveria as
multiplicidades de manifestações através das quais os objetos imaginários são dados; uma
fenomenologia da religião discutiria as múltiplas manifestações adequadas às coisas religiosas.
Cada multiplicidade é diferente, cada uma é adequada à sua identidade, e as identidades são
diferentes em qualidade. “Multiplicidade de manifestação” e “identidade” são termos análogos; a
identidade de um objeto de arte é diferente da identidade de um evento político, e ainda ambos são
identidades e ambos têm seus adequados modos de ser dados. Por dizer cuidadosamente as diversas
multiplicidades e identidades, a fenomenologia ajuda-nos a preservar a realidade e distinção de
cada. Ajuda-nos a evitar o reducionis-mo por demonstrar o que é adequado a cada tipo de ser, não só
em sua existência independente, mas também em sua força de presentação. Uma ação moral, por
exemplo, será mais vividamente distinguida de uma conduta compulsiva se estivermos aptos a
formular a multiplicidade de manifestações adequada a cada uma.

A maioria dos exemplos de identidades em multiplicidades que consideramos foram relacionados a


um único observador ou um único conhecedor. Quando introduzimos a presença de outras pessoas,
quando incluímos a dimensão da intersubjetividade, uma muito mais rica estrutura de multiplicidade
entra em jogo. Por exemplo, a multiplicidade de lados, aspectos e perfis presentes em um objeto
corpóreo para nós, e a multiplicidade de mudanças em resposta aos nossos movimentos no espaço.
Porém, quando outros observadores são introduzidos num retrato, a mesma identidade toma uma
mais profunda objetividade, uma mais rica transcendência; vemos que não só a coisa seria vista
diferentemente se nos movêssemos desse ou daquele modo, mas também que exatamente a mesma
coisa está sendo vista, nesse instante, de uma outra perspectiva por outra pessoa. O objeto é dado
para outros observadores por meio de multiplicidades que são diferentes daquelas diante das quais
nos encontramos, e vemos o objeto precisamente como sendo visto por outros por meio de pontos de
vista que não compartilhamos. Percebemos que há facetas manifestas para outros que não estão
sendo manifestas para nós, e consequentemente essas outras facetas estão cointencionadas por nós,
precisamente não como as nossas mesmas. A identidade da coisa não existe só para nós, mas
também para os outros, e, portanto, ela é uma identidade mais profunda e mais rica para nós. Há
mais “aí” lá; o ser e a identidade da coisa estão exaltados pela introdução de perspectivas
intersubjetivas. As muitas dimensões do ser aí para os outros e para nós acrescenta-se ao ser e
identidade da coisa.

O mesmo incremento de riqueza ocorre com respeito a outras identidades, tais como as do sentido
de um texto, as de objetos artísticos e culturais, de eventos humanos, de situações morais e de
identidades religiosas. Uma das possibilidades que se abre, por exemplo, é a capacidade de
perceber que um objeto, digamos um texto, pode ser bem melhor compreendido por um outro do
que por nós. Podemos perceber que a identidade e a multiplicidade dadas para nós são muito
obscuras e confusas comparadas àquelas que são compreendidas por nosso colega, que extrai do
texto coisas que nós nunca seríamos capazes de descobrir por nós mesmos. Novamente, podemos
estar completamente confusos por uma particular troca humana, enquanto uma outra pessoa
imediatamente capta e expressa o que está acontecendo; como então percebemos esse evento, nós o
temos dado para nós como sendo melhor percebido e melhor compreendido por outrem do que por
nós, e mesmo assim compreendemos o evento. Em sua obscuridade, e precisamente como obscuro, o
evento é dado para nós.

Como um exemplo final da estrutura de identidade em multiplicidades, vamos mencionar as muitas


consciências que temos de nós mesmos. Nossa autoidentidade é algo que se presenta por meio de
um especial configurar de manifestações. Enquanto identificamos cubos, proposições, fatos,
sinfonias, pinturas, mudanças de valores morais e coisas religiosas, nós também, sempre, estamos
estabelecendo nossas próprias identidades como aqueles para os quais todas essas coisas são dadas.
Estabelecemos a nós mesmos como dativos de manifestação. Um importante constituinte de nossa
identidade pessoal está fundado nas interações de memórias, imaginações, percepções e no fluxo de
nossas consciências do tempo interior. Examinaremos essá estrutura em detalhe mais tarde. Nossa
própria identidade não é obviamente a mesma da de alguns dos objetos que nos são dados, mas é do
mesmo tipo da de outros si, da de outras pessoas. Contudo, até nesse contexto, até na experiência
intersubjetiva, permanecemos como o centro de nossa própria consciência. Até entre nossa própria
espécie temos uma preeminência especial inelutável; estamos no-nosso centro de um modo que não
podemos sequer escapar. Nós nunca nos tornamos um outro ou qualquer outra coisa; não podemos
deixar a nós mesmos para trás.

Teremos ocasião de aplicar a estrutura de identidade em multiplicidades quando examinarmos


outros temas na fenomenologia. Vamos, por enquanto, deixar esse tópico e mover-nos para a
terceira das estruturas que começamos a investigar, a de presença e ausência.

Presença e ausência e a identidade entre elas


Já observamos que o tema filosófico de presença e ausência, ou de intenções cheias e vazias, é
completamente original na fenomenologia. Por alguma razão, os filósofos clássicos não focalizaram
na distinção entre presença e ausência. Sugerimos que foi o recente ceticismo cartesiano sobre a
realidade do mundo o que provocou o exame desse tema na fenomenologia.

Presença e ausência são os correlatos objetivos para intenções cheias e vazias. Uma intenção vazia é
uma intenção que tem como alvo algo que não está aí, algo ausente, algo não presente para quem o
intenciona. Uma intenção cheia é a que tem como alvo algo que está aí, em sua presença física, ante
quem o intenciona. Vejamos alguns exemplos para demonstrar essas estruturas.

Suponhamos que desejamos ir a um jogo de basquete no Camden Yards em Baltimore. A ideia de ir


ao jogo nasceu de uma conversa com amigos. Decidimos que John compraria os ingressos. Ele o fez.
Falamos sobre o jogo e sobre quem poderia vencer. Dirigimo-nos até o jogo, ainda falando sobre ele.
Entramos no estádio. Até agora, o jogo esteve ausente para nós, e ainda o estamos intencionando,
mas só vagamente. Temos conversado sobre o jogo em sua ausência, imaginamos como será o jogo,
antecipamos o jogo enquanto caminhamos em direção aos nossos assentos. Tudo isso tem sido
intenções vazias. Agora, quando o jogo tem início e começamos a assisti-lo, exercitamos intenções
cheias; o jogo é gradualmente manifestado para nós. As intenções vazias, aquilo que dissemos e
imaginamos sobre o jogo, tornaram-se cheias peia presença real do jogo, a qual leva algum tempo
para se desdobrar. Nossa visão do jogo é nossa intuição do jogo. Isto é tudo o que a intuição é no
vocabulário fenomenológico. A intuição não é algo místico ou mágico;

é simplesmente ter uma coisa presente para nós em oposição ao tê-la intencionada em sua ausência.
Quando o evento acaba, saímos do estádio e conversamos e recordamos o jogo, uma vez mais por
meio de intenções vazias e na ausência do jogo, mas num tipo diferente de ausência, o tipo que é
presentado pela memória, não o tipo presentado por antecipação. São ausências diferentes. As
ausências que se dão para nós depois de uma presença são diferentes daquelas que se dão antes de
uma presença.

Como um outro exemplo, imagine que você vai visitar Washington, capital dos Estados Unidos, e
dizemos a você para ir ver a Ginevra de’ Benci de Leonardo da Vinci na National Galery of Art. No
caminho para a galeria falaremos a você sobre a pintura: tudo isto é feito em intenções vazias, ainda
que suas intenções vazias sejam diferentes das nossas. Você nunca viu a pintura, enquanto nós a
vimos, entretanto estamos todos na ausência daquilo sobre o que falamos. Então, caminhamos até a
pintura e continuamos debatendo sobre ela, com nossas intenções agora cheias. A pintura está
presente para nós; nós a intuímos. Ao deixarmos a pintura, ela estará ausente novamente e
estaremos de volta às intenções vazias.

Ainda outro exemplo é o seguinte: as “experiências internas” de uma outra pessoa são sempre
irredutivelmente ausentes para nós; não importa o quanto você possa conhecer o outro, seu fluxo de
sentimentos e experiências internas nunca poderá vir a ser verdadeiramente misturado com o dele
num modo que permitiria, por exemplo, que as memórias ou fantasias dele de repente começassem
a emergir dentro de sua consciência. Por outro lado, certo tipo de simpatia pode existir entre
pessoas que conhecem bem uma à outra, e há uma diferença, digamos, entre meramente falar sobre
a raiva de alguém a uma outra pessoa em sua ausência e observar diretamente a pessoa enfurecida.
Como outro exemplo, quando nos referimos às primeiras duas linhas ditas por Hippolyta em A
Midsummer Night’s Dream [Sonho de uma noite de verão], nos referimos a elas em sua ausência,
mas, quando recitamos o texto “Four days will quickly steep themselves in night; Four nights will
quickly dream away the time” [Quatro dias cederão depressa a outras tantas noites; quatro noites
verão voar o tempo como um sonho.], oferecemos as duas linhas em sua presença atual. Quando nos
referimos a certa prova de matemática pelo nome, nós a expressamos vagamente em sua ausência,
mas quando cuidadosamente efetuamos a prova, nós a tornamos presente. O jogo de presença e
ausência pode funcionar para diferentes tipos de coisas, e em cada caso os tipos de presenças e
ausências são específicos para a coisa em questão. Notamos antes que a análise filosófica ou
fenomenológica consiste em atingir a multiplicidade que é própria a um tipoqpar-ticular de objeto; é
também verdade que a fenomenologia tenta demonstrar a misturaüle presenças e ausências, de
intenções cheias e vazias, que pertencem ao objeto em questão.

O conceito de intuição é filosoficamente controverso; é geralmente tomado por ser algo privado,
algo inexplicável, algo quase irracional, um tipo de visão que anula argumentos e não pode ser
comunicada. Mas a intuição não precisa ser compreendida nesse modo misterioso. A fenomenologia
pode dar uma explanação bastante clara e persuasiva do conceito: a intuição é simplesmente ter o
objeto realmente presente para nós, em contraste com tê-lo intencionado em sua ausência. A
cuidadosa experiência de um jogo de baseball, a visão de um cubo real, encontrar os óculos que
procurávamos, são todas intuições, porque elas trazem uma coisa à presença. Tal manifestação é
praticadas contra as intenções vazias direcionadas às coisas em sua ausência. Paradoxalmente, é em
razão da fenomenologia tomar a ausência das coisas tão seriamente que ela pode esclarecer o
significado da intuição; a intuição, com a presença que adquire, é feita para ser muito mais
compreensível sendo contrastada com intenções vazias e suas ausências.

Há uma dimensão de presença e ausência, de intenções cheias e vazias, que ainda não examinamos.
E o fato de que ambas, intenções cheias e vazias, estão dirigidas para um e o mesmo objeto. Uma e
a mesma coisa está a um tempo ausente e em outro presente. Em outras palavras, há uma
identidade “atrás” e “na” presença e ausência. A presença e a ausência são “de” uma e da mesma
coisa. Quando antecipamos o jogo de baseball falando sobre ele, nós inten-cionamos de modo vazio o
mesmo jogo a que assistiremos. Não intenciona-mos uma imagem daquele jogo ou algum jogo
substituto que temos em foco agora antes de o jogo real mostrar-se. Intencionamos o jogo que não
está aí, que ainda não existe. Se falarmos sobre uma pintura de Leonardo da Vinci, teremos em
nossa intencionalidade urna e a mesma pintura, a mesma que veremos diretamente quando nos
dirigirmos para a sala onde a pintura está presente. A presença é a presença da pintura, a ausência
é a ausência da mesma pintura, e a pintura é uma e a mesma, na presença e na ausência. A pintura
é identificada nas duas. A pintura pertence a uma dimensão diferente da presença e da ausência,
mas não poderia ser exceto como capaz de presença e ausência de si mesma. A presença e a
ausência pertencem ao ser da coisa identificada nelas. As coisas são dadas numa mistura de
presenças e ausências, da mesma forma como são dadas numa multiplicidade de manifestações.
Também poderíamos notar que é a essa identidade, a essa não variação na presença e na ausência,
que nos referimos quando usamos palavras para nomear uma coisa.

Nessa interação de presença e ausência, atenção especial deve ser dada, filosoficamente, ao papel
da ausência, da intencionalidade vazia. A presença tem sido sempre um tema na filosofia, mas à
ausência não tem sido dada a atenção devida. De fato, a ausência é geralmente negligenciada e
evitada: tendemos a pensar que tudo aquilo de que temos consciência deve estar atualmente
presente para nós; parece que somos incapazes de pensar que podemos verdadeiramente
intencionar o que está ausente. Nós nos esquivamos da ausência até quando ela está toda em nossa
volta e nos preocupa todo o tempo. Assim, quando queremos explicar como podemos falar de objetos
que não estão presentes, preferimos dizer que estamos tratando com uma imagem ou um conceito
do objeto, o qual está presente, e por meio dessa imagem ou conceito alcançamos a coisa ausente.
Mas esta postulação de uma presença para substituir a ausência é altamente inadequada. Por uma
razão: como poderíamos sempre saber que o que é dado para nós é somente um conceito ou uma
imagem se não tivéssemos um sentido da ausência da coisa real, se já não tivéssemos intencionado a
coisa em sua ausência? Por alguma razão, os filósofos têm tendido a negligenciar o papel radical da
ausência na consciência humana, e têm tentado esconder esse papel apelando a formas sub-
reptícias de presença, pela inserção de estranhas presenças, tais como conceitos ou ideias, que
substituirão a ausência.

Porém, nós intencionamos a ausência, é fenomenologicamente falso negar isso. Podemos necessitar
do suporte das palavras ou das imagens mentais para nos ajudar a intencionar a ausência, mas
essas presenças não nos impedem de, verdadeiramente, intencionar o que não está aí diante de nós.
A ausência é dada para nós como ausência; a ausência é um fenômeno, e a ela deve ser dado o que
lhe é devido. De fato, há muitas disposições ou emoções humanas que não podem ser
compreendidas exceto como resposta a uma ausência dada. Esperança e desespero, por exemplo,
pressupõem que podemos intencionar algo bom que ainda não se obteve e se tem confiança ou
dúvidas em o conseguir. O arrependimento só faz sentido porque estamos conscientes do passado, e
como poderíamos compreender a saudade a não ser pelo reconhecimento da ausência? Quando
procuramos por alguma coisa e não a encontramos, a ausência da coisa está também toda presente
para nós. Vivemos constantemente no futuro e no passado, no distante e no transcendente, no
desconhecido e no imaginado; não vivemos apenas no mundo que nos circunda como nos é dado aos
cinco sentidos.

As ausências que circundam a condição humana são de diferentes tipos. Umas coisas são ausentes
porque são futuras, outras porque são contemporâneas, porém distantes, outras porque são
esquecidas, oucras porque são escondidas ou secretas, e ainda outras porque estão além de nossa
compreensão e ainda são dadas para nós enquanto tais: sabemos que isso é algo que não
compreendemos. As ausências chegam em muitas cores e sabores, e é uma grande tarefa filosófica
diferenciá-las e descrevê-las. Um dos insights mais originais de Husserl foi chamar nossa atenção
para as intenções vazias, nosso modo de intencionar a ausência, e destacar sua importância na
exploração filosófica do ser, da mente e da condição humana.

As presenças parecem ser mais familiares para nós; parece mais fácil para nós pensá-las. Pensamos
que elas são de longe menos problemáticas: pensamos saber o que significa para uma coisa ser dada
para nós na carne, por assim dizer. E ainda as presenças também tomam um sentido mais profundo
quando são vistas, filosoficamente, quando são feitas contra a ausência. Quando apreciamos a
presença de uma coisa, a apreciamos precisamente como não ausente: o horizonte de seu ser
possivelmente ausente deve estar aí se estamos conscientes da presença. A presença é dada como
cancelando uma ausência. As vezes o objeto presente é algo que procurávamos. Sua ausência era
vividamente dada para nós enquanto o buscávamos por meio de nossas intenções vazias (“Onde
estão os óculos? Onde os deixei?”). Então, quando encontramos o objeto, sua presença vem à luz
precisamente como amortecida por essa ausência ainda-reverberada. O objeto vem à luz
precisamente como aquilo que foi procurado. Em outros momentos o objeto pode não ter sido
encontrado ou aguardado, mas aparece subitamente sem expectativa; ele nos surpreende. Ainda
assim, ele aparece como cancelando uma ausência.

Em nenhum caso, contudo, devemos enfatizar que a identidade do objeto é dada só através da
diferença de presença e ausência. A identidade não é dada só na presença. Até quando o objeto está
ausente, nós intencio-namos o objeto mesmo, nós o intencionamos em sua identidade. Quando está
presente, nós intencionamos a identidade novamente, dessa vez em seu modo presente e
precisamente como não ausente.

Quando falamos filosoficamente da presença e ausência, focalizamos no lado objetivo da correlação


entre o sujeito consciente e o objeto. O objeto e sua identidade são dados através da presença e da
ausência. Se nos voltássemos para o lado subjetivo, diríamos que exercemos intenções vazias, que
intencionamos o objeto de modo vazio, e que essas intenções vazias podem ser preenchidas quando
conseguimos intencionar o objeto em sua presença reaT. As intenções vazias são correlatas com a
ausência do objeto, as intenções cheias são correlatas com sua presença. Contudo, em acréscimo às
intenções cheias e vazias, há também um ato de recognição, tim ato de identificação, que é correlato
com a identidade do objeto mesmo. Esse terceiro ato transcende as intenções cheias e vazias, assim
como a identidade do objeto transcende suas presenças e ausências.

Nós assinalamos o fato de que há muitos tipos diferentes de ausências. É também verdade que há
tipos diferentes de presenças e presentares, cada qual apropriada ao tipo de coisa em questão. O
futuro vem à presença deixando o tempo passar; algo distahCe é trazido à presença superando a
distância; o outro lado do cubo é feito presente girando o cubo; uma difícil prova matemática torna-
se presente pensando por meio de suas etapas; o sentido de um-texto estrangeiro é feito presente
providenciando uma tradução ou aprendendo a língua; um perigo pode ser encarado só por tomá-lo
como um risco. Em cada" caso, a coisa em questão prescreve a mistura de ausências e presenças
que lhe são próprias.

Algumas vezes não mudamos diretamente de uma intenção vazia para uma cheia; algumas vezes se
requer uma série de passos, ou ao menos se torna possível, para ir de uma cheia intermediária a
outra, até que por fim o objeto mesmo possa ser alcançado. Uma vez fui assistir a um torneio de
golfe e queria ver Jack Nicklaus jogar. Havia lido sobre ele nas páginas esportivas. Tinha visto sua
foto no jornal e uma entrevista com ele na televisão. Depois de ter ido ao torneio, caminhei pelo
campo de golfe tentando achar sua tríade. Finalmente, vi a placa de líder (a placa identificando os
jogadores e dando seus escores) com o nome dele; vendo o seu nome lá, mas ainda não o vendo, eu
o intencionava significativamente ou de maneira vazia, mas agora estava mais perto de uma
intenção cheia, porque não estava mais vendo seu nome apenas nos papéis õü nas revistas
esportivas, mas em sua placa, a qual era algo como um signo de indicação ou um sinal da presença
dele. Então, vi o rapaz que carregava seus tacos, a quem reconheci de outras fotos (e assim tinha
uma indicação adicional de sua presença). Finalmente, vi Jack Nicklaus em pessoa. Nesse ponto
entrei em percepção e deixei as intenções vazias, as intenções significativas, as intenções pictoriais,
a associação delas e de todos os outros tipos intermediários. Uma vez que entramos em percepção,
não mudamos para nenhum outro tipo de melhor intenção cheia, mas podemos continuar a ter mais
e mais percepções (e assim o fiz, seguindo Nicklaus, enquanto ele jogava os próximos vários
buracos). As percepções ulteriores foram, contudo, não ainda uma mudança dentro de um outro tipo
de intencionalidade, mas simplesmente mais da mesma. A cadeia de intenções cheias alcançou seu
apogeu.

Podemos distinguir, então, dois tipos de preenchimentos das intenções cheias. (1) um que segue por
meio de muitos intermediários, de tipos diferentes, e finalmente alcança a intuição. Podemos, por
exemplo, ir de um nome de alguma pessoa ao esboço de seu rosto, a um retrato de tamanho natural,
a uma estátua, a uma imagem televisada, à pessoa mesma. Cada um desses estágios é
qualitativamente diferente dos outros, e cada um preenche e completa o anterior, continua a
remeter ao próximo. O final, porém, a intuição, não remete a nada mais. É o terminus, a evidência
final. Vamos chamar a esse tipo de cadeia de enchimento gradual ou cumulativo. Novamente, o
preenchimento final, a intuição, nada tem de mágico ou de absoluto em si; simplesmente não aponta
para nenhum outro tipo de intenção. Nisso difere dos estágios intermediários, que apontam para
adiante. Poderíamos notar também que a intuição final do objeto coleta o sentido de todos os
estágios intermediários através dos quais foi antecipada: ela é, precisamente, não esses estágios —
mas a completude deles. Ver Nicklaus não é ver seu nome ou sua fotografia ou seu carregador, mas
é aquilo que todas essas coisas apontavam.

(2) O outro tipo de cadeia de preenchimento não leva a um clímax. É simplesmente aditiva,
fornecendo mais e mais perfis sobre a coisa em questão. A medida que continuamos a observar
Nicklaus jogar, vemos mais e mais de áua pessoa e de sua habilidade no golfe. À medida que a
percepção aumentava havia mais, mas era “mais” num modo diferente do aumento qualitativo na
proximidade alcançada num preenchimento gradual. Um outro exemplo de um preenchimento
meramente aditivo seria fornecer mais e mais definições do número 15: três vezes cinco, 16 menos
1, 12 mais 3, a raiz quadrada de 225 e tantas outras. Então, quando alcançamos uma intuição de
algum alvo particular, nossa indagação não está terminada. Podemos ter passado por muitas
manifestações intermediárias que nos guiaram até nossa intuição, mas o alvo, mesmo agora,
permanece por ser revelado. Podemos descobrir mais da coisa mesma, mas tal exploração não é um
outro novo estágio no preenchimento gradual. É um aprofundamento de nossa compreensão do que
trouxemos para a presença intuitiva.

Permitam-nos concluir esse tratamento de presença e ausência assinalando um ponto sobre a


terminologia. No começo deste livro falamos sobre a intencionalidade como o tema principal da
fenomenologia. Acabamos de explorar as diferenças entre intenções vazias e cheias. Podemos ficar
tentados a pensar que a intencionalidade é equivalente às intenções vazias, para nossa consciência
da ausência. Isto não seria correto; até quando uma coisa é dada para nós em sua presença, ainda a
intencionamos. A intencionalidade como um termo genérico cobre ambas, intenções vazias e cheias,
bem como os atos recognitivos que intencionam a identidade do objeto.

Poderíamos notar também que o conceito de intencionalidade foi gradualmente enriquecido pelos
temas desenvolvidos neste capítulo. A intencionalidade pareceu trivial e óbvia quando foi
introduzida no capítulo I, mas vemos agora que não só contraria o predicamento egocêntrico do
pensamento moderno, mas também responde por nossa habilidade para reconhecer identidades nas
multiplicidades da experiência, tratar com coisas que estão ausentes e registrar as identidades
dadas por meio de presença e ausência.

Agora completamos nosso exame inicial das três estruturas que estão" presentes na fenomenologia.
Sempre que desejarmos explorar um problema fenomenológico, deveremos perguntar o que são as
partes e os todos, as identidades nas multiplicidades e as misturas de ausências e presenças que
estão em funcionamento no assunto em questão. Objetos emocionais têm um padrão, objetos
estéticos outro, objetos matemáticos, objetos políticos, coisas econômicas, objetos materiais simples,
linguagem, memória e inter-subjetividade, cada um tem padrões que lhe são próprios. As três
estruturas virão à tona frequentemente conforme procedermos com nossas próprias análises no
resto deste livro.

A maioria, mas não a totalidade, de nossas notas foram até agora centradas mais propriamente
sobre formas simples de experiência, em coisas como a percepção de um objeto material, tal como
um cubo. Seria lógico mudar de tal percepção para formas mais complicadas de consciência, tais
como a memória e a imaginação, e para a intelecçãò, para o tipo de experiência que temos quando
entramos na linguagem e nas estruturas sintáticas, quando começamos a registrar fatos e
comunicar sentidos a outra pessoa. Contudo, antes de mudar para esses tópicos, vamos interromper
nosso progresso por um momento a fim de esclarecer, de uma maneira inicial, o que entendemos por
análise filosófica. Poderíamos considerar, ao menos em esboço (por agora), a natureza das análises
que temos levado a efeito e o ponto de vista do qual temos trabalhado. Agora temos amostras de
análise filosófica suficientes para nos permitir conduzir uma ideia inicial de como a filosofia, tal
como compreendida na fenomenologia, difere da experiência pré-filosófiça e da fala.
IV. UMA DECLARAÇÃO INICIAL DO QUE É A FENOMENOLOGIA
A fim de compreender o que é a fenomenologia, devemos fazer uma distinção entre duas atitudes ou
perspectivas que podemos adotar. Devemos distinguir a atitude natural da atitude fenomenológica.
A atitude natural é o foco que temos quando estamos imersos em nossa postura original, orientada
para o mundo, quando intencionamos coisas, situações, fatos e quaisquer outros tipos de objetos. A
atitude natural é, podemos dizer, a perspectiva padrão, aquela da qual partimos, aquela em que
estamos originalmente. Não viemos para ela de nenhuma coisa mais básica. A atitude
fenomenológica, por outro lado, é o foco que temos quando refletimos sobre a atitude natural e
todas as intencionalidades que ocorrem dentro dela. E dentro da atitude fenomenológica que
levamos a cabo as análises filosóficas. A atitude fenomenológica é também algumas vezes chamada
de atitude transcendental. Vamos examinar ambas as atitudes, ou focos, a natural e a
fenomenológica. Podemos compreender cada uma precisamente em seu contraste com a outra.

A atitude natural
Em nossa vida ordinária, somos diretamente alcançados por várias coisas no mundo. Enquanto
sentamos para conversar com outras pessoas à mesa de jantar, enquanto caminhamos para o
trabalho, ou enquanto preenchemos uma petição para um passaporte ou para uma carteira de
motorista, temos objetos materiais manifestos para nós, e os identificamos por inter-

médio dos lados, aspectos e perfis pelos quais eles são dados, falamos deles e os articulamos, temos
respostas emocionais para coisas que são atraentes ou repulsivas, achamos algumas coisas
prazerosas de olhar ou ouvir e outras desagradáveis e destrutivas, e assim por diante. Algumas
coisas estão presentes para nós e outras coisas estão ausentes, superamos algumas das ausências e
trazemos as coisas para a presença, mas também deixamos outras coisas mudarem de presenças
para ausências. Identificamos e reconhecemos uma coisa após outra: as cadeiras e pinturas em
nossa sala, os pássaros cantando lá fora, o carro descendo pela rua, o vento soprando por entre as
árvores. Além disso, em acréscimo a tais coisas substanciais, o mundo também contém entidades
matemáticas, tais como triângulos e quadrados, conjuntos fechados e abertos, números racionais e
irracionais. Tais coisas matemáticas requerem um tipo especial de intencionalidade, mas ainda
manifestam-se como aninhadas dentro do mundo, embora existam dejuma maneira diferente das
árvores e dos caminhões. Há também constituições políticas, leis, contratos, acordos internacionais,
eleições, atos de generosidade e coragem, bem como atos de ódio e covardia. Todas essas coisas
podem ser identificadas dentro do mundo no qual vivemos; todas essas coisas em suas identidades
são correlatas com nossas intencionalidades.

Além do mais, nosso mundo não contém somente as coisas que temos experienciado diretamente.
Também intencionamos, de modo vazio, muitas coisas que tomamos por reais embora nunca as
tenhamos experienciado. Podemos nunca ter ido à China, mas de vez em quando intencionamos a
China, suas montanhas e seus rios, sua política externa e doméstica, sua condição econômica. O
mesmo é verdade para a Antártida e a Groelândia. Se formos visitar a Antártida poderemos
preencher muitas de nossas intenções vazias, algumas surpreendentes e outras de maneiras
previsíveis. O mundo em que vivemos se expande para além de nossa experiência imediata e para
além de nossa experiência possível: também percebemos um domínio nos céus que nunca
alcançaremos fisicamente. Podemos chegar até a lua ou a alguns dos planetas, mas é impossível
para nós alcançarmos as partes mais longínquas do universo. Muito podemos aprender sobre esses
lugares, mas muito deles sempre permanecerá alvo de intenções vazias em lugar de intenções
cheias ou percepções.

Assim, há muitas coisas no mundo, todas dadas em diferentes maneiras de presentação. Há também
o próprio mundo, o qual é dado ainda de um modo diferente. O mundo não é uma grande “coisa”,
nem é a soma das coisas que foram ou podem ser experienciadas. O mundo não é como uma esfera
flutuando no espaço, nem é uma coleção de objetos moventes. O mundo é mais como um contexto,
uma configuração, um segundo plano, ou um horizonte para todas as coisas que existem, todas as
coisas que podem ser intencionadas e dadas para nós; o mundo não é uma outra coisa competindo
com aquelas. Ele é o todo para todas elas, não a soma delas todas, e é dado para nós como um tipo
especial de identidade. Nunca poderemos ter o mundo dado para nós como um item entre muitos,
nem mesmo como um item singular, ele é dado somente como abrangendo todos os itens. Contém
tudo, mas não como um recipiente global. O termo “mundo” é um singulare tantum; só poderia
haver um deles. Pode haver muitas galáxias, pode haver muitos planetas habitados por seres
conscientes (embora exista só um para nós), mas só há um mundo. “O mundo” não é um conceito
astronômico; é um conceito relacionado com nossa experiência imediata. O mundo é a configuração
última para nós mesmos e para todas as coisas que experien-ciamos. O mundo é o concreto e o todo
atual de nossa experiência.
Uma outra singularidade importante em nossa experiência espontânea é o si mesmo, o ego, o eu. Se
o mundo é o mais amplo todo e o contexto mais abrangente, o eu é o centro em volta do qual esse
todo mais amplo, com todas as coisas nele, é organizado. Paradoxalmente, o eu é uma coisa no
mundo, mas é uma coisa como nenhuma outra: é uma coisa no mundo que também cognitivamente
tem o mundo, a coisa para a qual o mundo como um todo, com todas as coisas nele, manifesta a si
mesmo. O eu é o dativo da manifestação. É a entidade para a qual o mundo e todas as coisas nèle
podem ser dados, aquele que recebe o mundo em conhecimento. Naturalmente, há muitos eus,
muitos egos, muitos si mesmos, mas até entre todos eles um permanece de fora como o centro
preeminente, nomeadamente eu (isto é, você, enquanto lê essas palavras e pensa nelas por si
mesmo). Esses fatos estranhos sobre o si mesmo ou o ego não são apenas truques de linguagem, não
são apenas peculiaridades da primeira e segunda pessoa do singular; eles pertencem ao tipo de ser
que é uma criatura racional, uma criatura que pode pensar, que pode dizer “eu”, e que pode ter o
mundo mesmo enquanto sendo uma parte do mundo. A alma racional, como disse Aristóteles, é de
alguma maneira todas as coisas. O mundo como um todo e o eu como o centro são as duas
singularidades entre as quais todas as outras coisas podem ser colocadas. O mundo e o eu são
correlatos um com o outro de um modo diferente daquele no qual uma intencionalidade particular é
correlata com as coisas que intenciona. O mundo e o ego proveem um duo fundamental, um
contexto elíptico para tudo.

Todos esses elementos estruturais pertencem à atitude natural na qual encontramos a nós mesmos
desde o início e sempre. Há ainda mais um item na atitude natural que devemos examinar antes de
passarmos ao debate da atitude fenomenológica. Devemos examinar o tipo de convicção que penetra
a atitude natural.

A maneira pela qual aceitamos as coisas no mundo e o mundo mesmo é um modo de crença. Quando
experienciamos outras pessoas, árvores, edifícios, gatos, pedras, o sol e as estrelas, nós as
experienciamos como sendo aí, como verdadeiros, como reais. O caráter básico, o modo padrão de
nossa aceitação do mundo e das coisas nele é de uma crença ou, para usar um termo grego, dóxa.
Nossa crença é correlata ao ser das coisas, o qual primeiro e antes de tudo é aceito enquanto tal.
Com o passar do tempo e à medida que nos tornamos mais velhos e mais inteligentes, introduzimos
modalidades dentro de nossa crença; depois de descobrir que fomos enganados em algumas
instâncias, gradualmente introduzimos as dimensões de ilusão, erro, decepção ou “mera” aparência.
Gradualmente descobrimos que as coisas não são sempre como elas parecem; uma distinção entre
ser e parecer entra em jogo, mas esta distinção é exercida só episodicamente, e exige grande
sofisticação produzi-la. Podemos achar que esse “gato” é só um brinquedo, ou que o discurso da
pessoa foi enganoso, ou que aquele “homem” era só uma sombra, ou que o “vidro” que
aparentemente vimos era realmente gelo; tais erros ocasionais, entretanto, não nos levam a
suspeitar de tudo o que experienciamos ou de tudo o que é dito. A condição padrão permanece a de
uma crença. Contudo, esta crença, como fundamental, é agora contrastada com um conjunto total
de alternativas possíveis: suspeição, dúvida, rejeição, probabilidade, possibilidade, negação,
refutação, todas as modalidades dóxicas possíveis que nossa intencionalidade pode assumir.

Proeminente entre todas as nossas crenças é a crença que temos no mundo como um todo. Esta
crença, a qual não poderíamos chamar de apenas uma dóxa, mas de uma ur-dóxa (se podemos
combinar um termo alemão com um termo grego), não é apenas uma crença, mas a crença básica, é
a base de todas as crenças específicas que temos. A crença no mundo não está sujeita a correção ou
refutação no modo como está alguma crença particular. Se estivermos vivos de fato, como seres
conscientes, a crença no mundo estará lá revestindo internamente qualquer convicção particular
que possamos exercer. Nunca aprendemos ou adquirimos nossa crença no mundo do jeito que
adquirimos nossa crença, por assim dizer, no edifício Empire State ou no rio San Juan em Utah.
Todas essas crenças particulares nascem concomitantemente ao experienciarmos ou ficarmos
sabendo da coisa-em questão, quando chegamos a “conhecer sua identidade na multiplicidade em
que é dada para nós, seja em presença ou em ausência. Porém, nunca aprendemos ou adquirimos
nossa crença no mundo. O que seria nosso estado antes de aprendê-la? Teríamos de ter estado num
solipsismo mudo e encapsulado, uma consciência absoluta que não era consciência de coisa alguma.
Tal estado é inconcebível; isso requereria que o ego pensasse a si mesmo como ambos — o centro
das coisas e a soma das coisas, um círculo sem um raio. E ainda que concedêssemos essa
possibilidade, o que na terra (ou mesmo fora da terra) poderia nos expelir para fora de um tal
estado? Como poderia a ideia mesma de algo “exterior” surgir se não estivéssemos lá desde o início?

Não podemos partir do predicamento egocêntrico; nossa crença no mundo está lá desde o começo,
até antes de nascermos, num passado remoto. Até nosso sentido mais rudimentar de si-mesmo não
poderia nascer exceto sobre a base da crença no mundo. Similarmente, ainda que descubramos que
fomos enganados sobre muitíssimas coisas, nossa crença no mundo permanece intocada e o mundo
ainda está lá, não importa de que maneira irregular e esfarrapada, a não ser se perdermos nosso
sentido do si-mesmo inteiramente e desabarmos num tipo de isolamento autista; mas até aí algum
sentido do que há certamente permaneceria, se existir consciência afinal. O sofrimento que deve
existir no autismo está lá precisamente porque a crença no mundo ainda está funcionando; se não
estivesse, não estaria consciente de tudo e não teria o sentido de si-mesmo.

Desde que vivemos na condição paradoxal de ter o mundo e ainda ser parte dele, sabemos que
quando falecermos o mundo ainda continuará, desde que somos apenas parte do mundo, mas em
outro sentido o mundo que é aí para nós, por todas as coisas que sabemos, se extinguirá quando não
fizermos mais parte dele. Tal extinção é parte da perda que sofremos quando falece um amigo
próximo; não é só que ele não está mais aí, mas o modo que o mundo era para ele também foi
perdido para nós. O mundo perdeu um modo de ser dado, um modo que foi construído ao longo de
toda uma vida.

Ambos, o mundo e o si-mesmo, invocam a ideia de um todo. O paradoxo da teoria dos conjuntos, o
problema de se o último conjunto inclui a si mesmo ou não, é menos difícil do que os problemas da
lógica do mundo e do si-mesmo: Como essas totalidades, o mundo e o si-mesmo, incluem ou excluem
um ao outro, e como estão relacionadas suas totalidades à soma das coisas que existem? Pode ser o
caso de que os paradoxos da teoria dos con-

juntos sejam apenas versões formalizadas dos problemas de como o mundo contém tudo, incluindo o
si-mesmo, e como o si-mesmo pode intencionar todas as coisas, incluindo o mundo e também a si
mesmo.

Em conclusão, então, nas atitudes espontânea e natural somos dirigidos para todos os tipos de
coisas, mas somos também dirigidos para o mundo como o horizonte ou contexto para todas as
coisas que podem ser dadas, e correlativo ao mundo está o si-mesmo ou ego, o agente da atitude
natural, aquele para quem o mundo e suas coisas são dadas, que, simultaneamente, é parte do
mundo e ainda está na posse intencional do mundo.

A atitude fenomenológica
O leitor deve ter notado que tudo o que foi dito aqui sobre a atitude natural não poderia ter sido
estabelecido a partir da atitude natural. Isto é, sem termos ressaltado isso, temos considerado todos
esses assuntos, o tempo todo, da perspectiva fenomenológica; vimos fazendo assim por várias
páginas passadas e, na verdade, praticamente ao longo deste livro inteiro, com exceção da
introdução, que foi escrita desde a perspectiva da atitude natural. Quando consideramos a
intencionalidade no capítulo I e a percepção de um cubo no capítulo II, consideramos esses assuntos
do ponto de vista fenomenológico.

Há muitos diferentes pontos de vista e atitudes mesmo a partir da perspectiva da atitude natural.
Há o ponto de vista da vida cotidiana, há o ponto de vista do matemático, do especialista em
medicina, do físico, do político e assim por diante, e há até vários tipos especiais de atitudes
reflexivas, como veremos em breve. Porém, a atitude fenomenológica não é como nenhuma dessas.
É mais radical e abrangente. Todas as outras mudanças de ponto de vista e foco permanecem
assentadas pela nossa subjacente crença no mundo, que sempre permanece em vigor, e todas as
mudanças definem a si mesmas como mudanças de um ponto de vista para outro, entre os muitos
que são abertos para nós. A mudança na atitude fenomenológica, contudo, é um movimento do tipo
"tudo ou nada” que se desprende completamente da atitude natural e se concentra, de um modo
reflexivo, em tudo da atitude natural, incluindo a subjacente crença no mundo. No tocante à atitude
fenomenológica conseguimos “alcançar o andar superior” de um modo que é único. Passar para a
atitude fenomenológica não é tornar-se um especialista em uma forma de conhecimento ou outro,
mas tomar-se um filósofo. Do ponto de vista fenomenológico, olhamos e descrevemos,
analiticamente, todas as intencionalidades particulares e seus correlatos, bem como a crença no
mundo, com o mundo como seu correlato.

Se vamos oferecer uma análise descritiva de qualquer uma e de todas as intencionalidades na


atitude natural, não podemos compartilhar qualquer uma delas. Devemos tomar distância, refletir
sobre, e tornar temática qualquer uma e todas elas. Isto significa que enquanto estamos na atitude
fenomenológica suspendemos todas as intencionalidades que estamos examinando. Nós as
neutralizamos. Esta mudança de foco mais enfática não significa, entretanto, que começamos a
duvidar dessas intencionalidades e dos objetos que elas têm; não os mudamos da, digamos,
asseveração dóxica para a dúvida. Não mudamos nossas intencionalidades, guardamo-las como elas
são, mas as contemplamos. Se as contemplamos, não as exercemos naquele momento. Contudo, não
estaríamos aptos a contemplá-las como elas são se fôssemos mudá-las de uma modalidade para
outra; se nossa mudança na reflexão filosófica significasse que mudamos, digamos, nossa convicção
em dúvida, ou nossa certeza emsuspeição, então não poderíamos contemplar a convicção ou a
certeza. Mudanças de uma modalidade para outra ocorrem na atitude natural. Elas têm de ser
motivadas. Temos de ter razões para mudar da convicção para a dúvida, da certeza para a
suspeição; sem tais razões, a mudança em nossa modalidade seria irracional e arbitrária.
Quando nos movemos na atitude fenomenológica, nos tornamos algo como observadores imparciais
da cena que passa ou como espectadores de um jogo. Nós nos tornamos espectadores.
Contemplamos os envolvimentos que temos com o mundo e com as coisas nele, e contemplamos o
mundo em seu envolvimento humano. Não somos mais simplesmente participantes no mundo;
contemplamos o que é ser um participante no mundo e nas manifestações. Mas as intencionalidades
que contemplamos — as convicções, dúvidas, suspeições, certezas e percepções que examinamos e
descrevemos — ainda são nossas intenções. Não as perdemos; somente as contemplamos. Elas
permanecem exatamente como eram, e seus objetos permanecem exatamente como estavam, com
as mesmas correlações entre intenções e objetos ainda em vigor. Num modo curioso, as mantemos
todas apenas como são, nós as “congelamos” no lugar. E aqueles de nós que também se tornaram
filosóficos são também os mesmos si-mesmos que exercem as intencionalidades naturais. Um tipo de
otimização do si-mesmo ocorre, no qual o mesmo si-mesmo que viveu na atitude natural começa a
viver explicitamente na atitude fenomenológica e começa a exercer a vida filosófica.

Todos os seres humanos, todos os sfimesmos, fazem esse tipo de análise filosófica reflexiva de vez
em quando, mas a maioria das pessoas, quando entra nesse tipo de vida, geralmente fica confusa
quanto ao que está fazendo. As pessoas pensam que estão tendo apenas vislumbres de algum tipo de
verdade universal, algum tipo de leis da natureza. Tendem a tomar o movimento na filosofia como
mais um ajustamento na atitude natural; não veem como isso é diferente. O ponto de nossa
discussão sobre a atitude fenome-nológica é ajudar-nos a fazer a mudança na filosofia explícita e
claramente, com uma apreciação mais completa da diferença entre a atitude natural e a filosófica.
Fazemos uma distinção definitiva ali onde a maioria das pessoas fica, como se diz, em cima do muro.

A volta à atitude fenomenológica é chamada redução fenomenológica, um termo que significa a


“retirada” dos alvos naturais de nosso interesse, “em direção” ao que parece ser mais um ponto de
vista restritivo, simplesmente um daqueles alvos das intencionalidades mesmas. Redução, com a
raiz latina re-ducere, é um conduzir de volta, uma retenção ou um retraimento. Quando entramos
nesse novo ponto de vista, suspendemos as intencionalidades que agora contemplamos. Esta
suspensão, esta neutralização de nossas modalidades dóxicas, é também chamada epoché, um termo
tomado do ceticismo grego, em que significa a retenção que o cético dizia que deveríamos ter com
respeito a nossos juízos sobre as coisas; eles diziam que deveríamos reter o juízo até que a evidência
fosse clara. Embora a fenomenologia tome esse termo do ceticismo grego, a implicação cética do
termo não é preservada. A epoché na fenomenologia é simplesmente a neutralização das intenções
naturais que deve ocorrer quando contemplamos essas intenções.

Finalmente, para completar esse breve tratamento de terminologia, vamos falar do termo pôr entre
colchetes. Quando entramos na atitude fenomenológica, suspendemos nossas crenças, e pomos
entre colchetes o mundo e todas as coisas no mundo. Pomos_p mundo e as coisas nele “entre
colchetes” ou “entre parênteses”. Assim, quando colocamos entre colchetes o mundo ou algum
objeto particular, não o votamos a mera aparência, uma ilusão, mera ideia ou qualquer outro tipo de
impressão meramente subjetiva. Mais propriamente, agora o consideramos precisamente como ele é
intencionado por uma intencionalidade na atitude natural. Nós o consideramos como correlato com
qualquer intencionalidade que o tem como alvo. Se ele é um objeto percebido, nós o examinamos
como percebido; se ele é um objeto recordado, agora nós o examinamos como recordado; se ele é
uma entidade matemática, nós o consideramos como correlato com uma intenção matemática; se ele
é um objeto meramente possível, ou um objeto verificado, nós o consideramos como o objeto de uma
intencionalidade que intenciona algo somente possível, ou uma intencionalidade que intenciona algo
verificado. Pôr em colchetes retém exatamente a modalidade e o modo de manifestação que o objeto
tem para o sujeito na atitude natural.

Assim, quando entramos na reflexão fenomenológica, não restringimos nosso foco apenas ao lado
subjetivo da consciência; não focalizamos somente nas intencionalidades. Também focalizamos nos
objetos que são dados para nós, mas os focalizamos como aparecem para nós em nossa atitude
natural. Na atitude natural nos dirigimos diretamente para o objeto; vamos direto para as
manifestações do objeto, para o objeto mesmo. Da instância filosoficamente reflexiva, nós criamos
temáticas manifestações. Nós olhamos para o que normalmente olhamos por intermédio.
Focalizamos, por exemplo, nos lados, aspectos e perfis pelos quais o cubo apresenta-se como uma
identidade. Focalizamos na multiplicidade de manifestações pelas quais o objeto é dado para nós.
Quando agimos assim, contudo, não tornamos a identidade do objeto em uma de suas “meras”
manifestações; muito pelo contrário, estamos mais bem habilitados a distinguir o objeto de suas
manifestações, estamos mais bem habilitados para preservar a realidade da coisa mesma. Estamos
também mais habilitados a prover uma descrição apropriada da natureza do “mundo”. Se fôssemos
tentar falar do mundo da perspectiva da atitude natural, tenderíamos a tomá-lo como uma grande
entidade ou como a soma de todas as entidades. Somente a partir da perspectiva fenomenológica
podemos obter a terminologia correta para falar do mundo como o contexto para a manifestação das
coisas.
Para usar uma metáfora espacial bruta, quando entramos na atitude fenomenológica, nós rastejamos
para fora da atitude natural, elevamo-nos sobre ela, nós a teorizamos, distinguimos e descrevemos a
ambos os correla-tos, subjetivos e objetivos, que a compõem. A partir de nosso poleiro filosófico,
descrevemos as várias intencionalidades e seus vários objetos, assim como o si-mesmo e o mundo.
Distinguimos uma coisa de suas manifestações, uma distinção que foi chamada por Heidegger a
“diferença ontológica”, a diferença entre uma coisa e a presentificação (ou ausentificação) da coisa.
Esta distinção pode ser propriamente feita somente da perspectiva fenomenológica. Se tentarmos
fazer a distinção entre a coisa e a manifestação da perspectiva do ponto de vista natural, qualquer
um tenderá a substancializar as manifestações, porque nesse ponto de vista tendemos a tomar tudo
o que focalizamos como uma coisa substancial, ou tendemos a reduzir a coisa apenas a suas
manifestações, a ser a soma de suas manifestações. Estaremos de um modo qualquer pressupondo
as manifestações como barreiras entre nós e as coisas, ou fazendo das coisas meras ideias. Não
atingiremos a atitude feno-menológica correta, e não compreenderemos adequadamente qualquer
atitude natural.

Há argumentos que podem guiar-nos na atitude fenomenológica?


Agora que temos um sentido da diferença entre as atitudes natural e fenomenológica podemos
suscitar a questão de se há algum modo de explicar e justificar, para outras pessoas, a mudança
entre a primeira e a segunda. Esta questão equivale a perguntar se há algum tipo de argumento que
possa persuadir alguém a vir a ser filosófico, ou provar para esse alguém que-ele poderia tornar-se
assim. A questão não é trivial; ela questiona se a filosofia pode introduzir a si mesma, explicar o que
é e legitimar-se ante aqueles que não são filósofos. Também questiona se a filosofia pode justificar-
se para si mesma, se pode esclarecer sua própria origem e assim tentar ser uma ciência sem
pressuposições.

O problema do começo da filosofia é suscitado na fenomenologia sob a rubrica dos vários modos de
redução. São dados vários “modos” ou argumentos para ajudar-nos a atingir a “redução”
fenomenológica. Como vimos, a redução fenomenológica é a mudança da atitude natural para a
fenomenológica; é a restrição de nossa intencionalidade de sua atitude natural expansiva, a qual
tem como alvo uma e todas as coisas no mundo, para a aparentemente mais confinada atitude
fenomenológica, a qual tem como alvo nossa própria vida intencional, com seu mundo e seus objetos
correlatos.

Devemos ser cuidadosos para não tornar nossa tarefa mais difícil do que ela precisa ser. Podemos
ser tentados a pensar que a atitude natural é puramente natural, puramente não filosófica, sem um
fragmento de filosofia nela, e que a volta para a fenomenologia é uma mudança em algo totalmente
inaudito no foco natural. Se fosse este o caso, pareceria quase impossível para nós comunicarmos
uma ideia do que é a filosofia para aqueles que ainda não entraram nela. Mas, de fato, há
antecipações da atitude filosófica na atitude natural. Existem pseudópodes em direção à filosofia na
atitude natural. Simplesmente, como seres racionais, já temos um sentido do todo, um sentido do si-
mesmo, um sentido de intencionalidade e manifestação. Contudo, a dificuldade é que tentamos
manusear todas essas coisas com categorias que pertencem à atitude natural. Nós mitologizamos,
psicologi-zamos, fenomenalizamos ou substancializamos todas elas; fazemos do mundo uma coisa, as
manifestações tornam-se barreiras, o si-mesmo é subs-tandalizado, as intenções são psicologizadas.
Não possuímos os termos e as distinções corretos. Os modos de redução não tentam abrir uma
dimensão absolutamente nova e não antecipada; mais propriamente, tentam clarificar uma distinção
que já possuímos, entre o natural e o filosófico, e tentam explicar a transição entre as duas atitudes.
Ajudam-nos a obter a instância filosófica correta demonstrando a mudança de perspectiva que
ocorre quando nos movemos na filosofia, e a mudança de direção nos significados -de nossos termos
que deve seguir-se. Consideremos dois modos de redução, o ontológico e o cartesiano. Essas são
duas abordagens que foram desenvolvidas por Husserl.

O modo ontológico de redução é o menos assustador dos dois. (O cartesiano parece nos mergulhar
no fenomenalismo e na dúvida mais radical).

“ O modo ontológico apela ao desejo humano para ser verdadeiro e plenamente científico. Indica
que quando exploramos cientificamente um domínio do ser adquirimos um tesouro de
conhecimento, um sistema de juízos sobre as coisas em questão. Digamos que alcançamos um
conhecimento bastante completo de um campo tal como a biologia molecular ou a física do estado
sólido. Não importa quão completo possa ser o nosso conhecimento das coisas em questão, ainda
não teremos explorado os correlatos subjetivos das verdades que foram alcançadas. O lado objetivo
pode ser total e completamente conhecido, mas as efetividades subjetivas que são correlatas com as
objetivas terão sido negligenciadas: os tipos de intenções que apresentam as coisas sendo
estudadas, a maneira de verificação adequada aos objetos, os métodos seguidos, as formas de
correção e confirmação intersubjetivas, e assim por diante.
Assim que uma ciência se torna meramente objetiva ela se perde na positividade. Temos a verdade
das coisas, mas não temos a verdade de nossa posse dessas coisas. Esquecemos de nós mesmos e
perdemos a nós mesmos até quando estamos fascinados pelas coisas que sabemos. As verdades
científicas são deixadas flutuando e despossuídas. Elas parecem não ser a verdade para ninguém.
Para completar a ciência, para ser totalmente científico, precisaríamos investigar as atividades
estruturais subjetivas que operam na ciência, e agir assim não é simplesmente continuar fazendo
biologia molecular ou física do estado sólido. É sair de tais ciências e entrar numa nova instância
reflexiva, a fenomenológica, a qual faz justiça às intencionalidades

que exercemos, mas não temacizamos, em nossos esforços científicos anteriores. Assim que
fizermos essa volta para a biologia molecular e a física do estado sólido, compreenderemos que não
podemos fazer fenomenologia apenas para essas duas disciplinas; temos de expandir nosso esforço
para cobrir a intencionalidade como tal e até o mundo como tal (como o correlato objetivo da
intencionalidade), porque as intencionalidades em qualquer ciência particular não podem ser
compreendidas exceto como complementadas por aspectos mais amplos de intencionalidade. Não
poderíamos falar de reconhecimento de identidades na biologia molecular sem falar de
reconhecimento de identidade como tal.

Por uma expansão gradual, entretanto, o modo ontológico de redução ajuda-nos a complementar as
ciências particulares. Nós nos movemos para um contexto mais e mais amplo, até chegar ao tipo de
contexto o mais amplo provido pela atitude fenomenológica. A motivação para nossa expansão é o
desejo de ser plenamente científicos, evitar o descarte de uma dimensão que é relevante à
inquirição em questão. Pode haver um tipo de completude parcial na ciência positiva, na biologia
molecular ou na física do estado sólido, mas qualquer ciência que quiser ser compreensiva terá, por
fim, de inquirir nas muitas realizações da ciência, nas intencionalidades que se estabeleceram.
Enquanto essas continuarem desconsideradas, a ciência é deixada oscilante e incompleta, carente
de seu contexto próprio. O modo ontológico de redução recorda-nos das notas de Aristóteles na
Metafísica IV, 1 sobre a necessidade de ir além das ciências parciais para a ciência do todo, a ciência
do ser como ser (e não o ser simplesmente como a matéria, ou como o quantificado, ou como o vivo,
ou como o econômico).

Deveria ficar claro a partir dessas notas sobre o modo ontológico de redução que a fenomenologia
como uma ciência, como um rigoroso e explícito empreendimento de autoconsciência, é de fato uma
ciência mais concreta do que qualquer das investigações parciais. Podemos pensar que a física ou a
biologia são as mais concretas de todas as ciências porque estudam diretamente as coisas materiais
que estão diante de nós, mas enquanto essas ciências não olharem para a atividade pela qual elas
são realizadas elas serão realmente abstratas. Elas deixam de fora uma parte essencial não somente
do mundo, mas de si mesmas. A ciência da fenomenologia complementa e completa essas ciências
particulares, enquanto retém a elas e à sua validade, de modo que, bastante paradoxalmente, a
fenomenologia é a mais concreta das ciências. Ela recupera o mais amplo todo, o maior contexto.
Ela supera o autoesquecimento das ciências particulares. Ela considera as dimensões abstratas das
outras ciências, as dimensões de intencionalidade e manifestação_ Ela mostra como a ciência
mesma é um tipo de manifestação, e consequentemente mostra a ingenuidade do objetivismo, a
crença de que o ser é indiferente à manifestação. A redução, entretanto, não é realmente um
confinamen-to, não é um “conduzir” desde nada. Ela preserva a atitude natural e tudo nela, até
quando nos distancia da atitude natural. Ela amplia e não priva.

Temos uma impressão diferente do modo de redução cartesiano. Esta abordagem da fenomenologia
é modelada na tentativa de Descartes de iniciar a filosofia tomando a decisão de “para toda a vida”
duvidar de todos os juízos que ele abraçou como verdadeiros. Descartes introduz essa dúvida
metódica, porque pensa que os juízos que absorveu de outros estão contaminados por preconceitos.
Após adotar essa dúvida universal, ele seguirá aceitando como verdadeiros somente os juízos que
ele mesmo pode justificar, conformes ao método que ele desenvolveu.

O problema com a tentativa de Descartes de começar a filosofia é que muda todas as nossas
modalidades dóxicas naturais em modalidades duvidosas. Ele muda de várias modalidades naturais
— certeza, suspeição, aceitação verificada, possibilidade, probabilidade — para outra modalidade
natural: a dúvida. Sua dúvida pode ser somente metódica, mas ainda é dúvida. Descartes tentou
alçar a si mesmo na filosofia, mas conseguiu somente passar para uma outra das atitudes naturais, e
uma que é radicalmente cética. Ele tentou colocar a filosofia no caminho de ser uma ciência
rigorosa, mas não deu certo. Ele deu uma guinada para o lado, com consequências desastrosas para
a filosofia e a ciência.

O modo de redução cartesiano na fenomenologia é uma tentativa de assumir o que Descartes estava
tentando realizar e fazê-lo adequadamente. Não propõe que iniciemos uma dúvida universal. Ao
contrário, sugere que adotemos a atitude de tentar duvidar de nossas várias intenções. Isto pode ser
visto como uma pequena diferença, mas é cruciaL Tentar duvidar é muito diferente de duvidar. O
que acontece quando tentamos duvidar de uma de nossas crenças é que adotamos uma instância
neutra em relação a essa convicção; ainda não duvidamos dela, apenas suspendemos nossa crença.
Paramos para ver se devemos duvidar. Esse tentar, esse parar, contudo, não é dúvida, mas é algo
como a neutralização que ganhamos quando entramos na filosofia. Esta instância neutra, então,
serve como um tipo de buraco de fechadura através do qual podemos alcançar um sentido do que é
a atitude fenomenológica, a atitude na qual neutralizamos e contemplamos todas as nossas
intencionalidades.

Outra característica importante da tentativa de duvidar é a seguinte. Não podemos verdadeiramente


duvidar de alguma coisa a menos que tenhamos razões para duvidar. Suponhamos que sabemos que
a porta para esta sala é branca, e suponhamos que vemos um gato caminhando para a sala. Não
podemos seguir dizendo que duvidamos que a porta é branca ou que o gato está caminhando pela
soleira da porta a menos que tenhamos razões para duvidar se essas coisas evidentes são
verdadeiras: podemos inesperadamente perceber que é a luz que faz a porta mais brilhante do que o
normal, e que pode ser uma sombra de cor cinza; podemos repentinamente perceber que há um
espelho próximo à porta, e que podemos realmente estar vendo somente um reflexo do gato
caminhando em outra sala. De modo que como uma das modalidades da atitude natural, a dúvida
precisa ser motivada por razões. Não podemos apenas dizer que duvidamos das coisas.

A tentativa de duvidar, contudo, está sujeita a nossa livre escolha. Podemos tentar duvidar de
alguma coisa, até do mais óbvio dos fatos diante de nós ou da opinião mais estabelecida. De um
modo similar, estamos livres para iniciar a neutralização que ocorre quando nos voltamos para a
perspectiva fenomenológica, a suspensão ou “o pôr fora de ação” de nossas intencionalidades, o pôr
entre colchetes as coisas e o mundo; essas coisas estão em nosso poder e sujeitas a nossa livre
escolha. Podemos decidir que queremos efetuar esse tipo de vida. Não precisamos ser forçados a
isso por razões como aquelas que nos forçam a duvidar ou suspeitar. Assim, embora a dúvida não
seja um bom modelo a usar para nos ajudar no giro fenome-nológico, a tentativa de duvidar o é. A
tentativa de duvidar nos dá um bom vislumbre do que é a neutralização fenomenológica e de como
são nossas intenções. Dessa maneira, o modo de redução cartesiano tenta nos “jogar” na atitude
filosófica.

Descartes introduziu um ceticismo radical na vida intelectual que continua a contaminar o


pensamento que ele inspira. Contudo, é útil adotar o tema cartesiano e modificá-lo a serviço da
fenomenologia, como temos feito, porque o giro da atitude natural para a atitude fenomenológica é
visto erroneamente por muitos como uma recaída no cartesianismo. Até mesmo alguns
proeminentes intérpretes da fenomenologia não compreendem bem isso. É importante para nós, por
conseguinte, fazer a distinção entre o que faz Descartes e o que a fenomenologia efetiva.

Um dos efeitos seriamente perniciosos do erro de Descartes é que ele desacredita as


intencionalidades da atitude natural. Ele enfraquece nossa natural e válida crença na realidade das
coisas que experienciamos, as identidades que reconhecemos. Ele introduz o hábito do ceticismo
que nos faz tender a não acreditar em nada até que seja provado para nós. Porém esse desejo por
uma prova para tudo é irracional. A prova só é possível sobre o fundamento de que algumas
verdades não são demonstráveis, verdades que têm sua evidência em si mesmas e não precisam de
provas. Não podemos provar tudo; conhecemos muitas coisas que não precisam ser provadas. A
fenomenologia restaura a validade das convicções que temos na atitude natural. Reconhece o que as
nossas intenções fazem, em seus vários modos, alcança as coisas nelas mesmas. Distingue e
descreve como as várias intenções são preenchidas e confirmadas. Também percebe que
frequentemente vamos além da evidência, que frequentemente somos vagos no que intencionamos,
e que erros são comuns; mas a presença do erro não desacredita tudo. Somente mostra que
devemos ser cuidadosos. Por esclarecer as váriãS intencionalidades e distingui-las umas das outras,
a fenomenologia ajuda-nos a ser cuidadosos.

Finalmente, devemos perceber a diferença entre os modos de redução ontológico e cartesiano. O


modo ontológico procede por incrementação. Começa com efetividades científicas e acrescenta as
dimensões a elas passo a passo, atingindo-nos a todos ao longo do caminho, até chegar na atitude
fenomenológica. O modo cartesiano tenta fazer tudo às pressas, em um passo. Suspende todas as
intencionalidades de uma só vez. Realça um pouco melhor do que o modo ontológico o novo tipo de
modalidade, a neutralização, que entra em jogo na filosofia, mas como qualquer coisa feita às
pressas ele pode nos enganar seriamente. Pode nos fazer pensar a fenomenologia como cética e
fenomenalista, e como nos despossuindo do mundo real e das coisas nele. Até parece guiar-nos ao
solipsismo. O modo ontológico é lento, mas seguro; o modo cartesiano é rápido, mas arriscado. A
melhor abordagem é usar a ambos, corrigindo a fraqueza de cada um pelo que o outro tem de
vigoroso. Em ambas as abordagens, contudo, a chave é ter sensibilidade para a diferença entre a
atitude natural e a fenomenológica, entre nossos envolvimentos naturais e o afastamento filosófico.
Alguns termos especiais relativos à atitude fenomenológica
Há vários outros assuntos que podem nos ajudar a definir mais precisamente a atitude
fenomenológica. O tratamento deles será essencialmentc uma explanação de vários termos do
vocabulário fenomenológico.

Nossa experiência e análise da perspectiva do ponto de_yista fenomeno-lógico produz asserções que
são, em princípio, apodícticas. Afirmações apodícticas expressam coisas que não poderiam ser de
outra maneira; elas expressam verdades necessárias. Além disso, delas se espera a expressão de
tais-verdades necessárias. Vemos que o que elas dizem não poderia ser de outra maneira. Há
necessidade filosófica nas evidências apresentadas à atitude fenomenológica. Consideremos, por
exemplo, a afirmação de que um material, um objeto espacial como um cubo, somente pode ser dado
numa multiplicidade de perfis, aspectos e lados, e que o cubo é a identidade dada em tais
manifestações. Consideremos também a afirmação de que uma identidade é dada para nós numa
mistura de presenças e ausências, ou a asserção de que só podemos ter um tempo presente posto
contra o pano de fundo de um passado ou de um futuro. Essas afirmações são apodícticas. Vemos
que um cubo não poderia ser dada de nenhum outro modo, e que o presente nunca é ilusório, mas
sempre envolve o passado e o futuro.

Alguém pode objetar que tais afirmações são apodícticas porque são muito óbvias, muito triviais,
quase muito gratuitas; mas esse é exatamente o ponto. As afirmações fenomenológicas, como em
geral as afirmações filosóficas, afirmam o óbvio e o necessário. Elas dizem-nos o que já sabemos.
Elas não são informações novas, mas mesmo se não nos dizem nada de novo elas ainda podem ser
importantes e iluminadoras, porque com frequência estamos confusos justamente sobre trivialidades
e necessidades. Quando pensamos sobre o que a maioria das pessoas entende por memória (que
seria uma visão de retratos internos), ou sobre quão pobremente muitos filósofos têm descrito a
percepção (como por exemplo, o influxo de impressões em algum tipo de tela interna no cérebro),
então a importância de exprimir o óbvio torna-se óbvia por si mesma. As asserções fenomenológicas
reivindicam ser apodícticas porque são muito básicas, muito inevitáveis, e muito inelutáveis. Sua
apodicticidade não-se origina do fato de que as pessoas que as atingem desfrutem de alguma
revelação especial de verdades exóticas de que outras pessoas nunca ouviram falar.

Além disso, o fato de que as afirmações e evidências fenomenológicas são apodícticas não significa
que nunca podemos melhorá-las ou aprofundar nossa compreensão delas. Uma afirmação filosófica
pode ser apodíctica e ainda ser insuficiente em adequação. Adequação significa que todas as
incertezas foram expurgadas da afirmação. Todas as dimensões da coisa foram postas em cena,
todas as implicações foram delineadas. Praticamente nada pode ser apresentado tão plenamente
para nós, mesmo na filosofia. O resultado é que as afirmações fenomenológicas podem ser
consideradas necessárias (podemos ver que elas não podem ser de outra maneira), mas elas
também podem requerer mais esclarecimentos. É perfeitamente possível saber, por exemplo, que o
presente necessariamente envolve o passado e o futuro, mas não ser tão claro o significado mesmo
do que sejam presente, passado e futuro. Podemos saber apodicticamente que um objeto é
identificado numa mistura de presença e ausência, mas ainda podemos ser vagos sobre a
significação plena do que é estar presente e do que é estar ausente.

A redução fenomenológica e a atitude fenomenológica são com frequência denominadas


transcendentais. Falamos da redução transcendental e da atitude transcendental. Podemos até
mesmo nos deparar com frases bastante desajeitadas: “a redução transcendental-fenomenológica” e
“o ponto de vista transcendental-fenomenológico”. O que significa o termo “transcendental”?

A palavra significa “ir além”, baseada na sua raiz latina, transcendere, elevar-se sobre ou ir além, de
trans e scando. A consciência, mesmo na atitude natural, é transcendental porque ela vai além de si
mesma, até as identidades e coisas que lhe são dadas. O ego pode ser chamado transcendental à
medida que é envolvido, em cognição, no alcance das coisas. O ego transcendental é o ego ou o si-
mesmo como o agente da verdade. A redução transcendental é o giro em direção ao ego como o
agente da verdade, e a atitude transcendental é a instância que assumimos quando exercemos esse
ego e suas intencionalidades temáticas.

Quando entramos na atitude fenomenológica ou transcendental temos de fazer modificações


apropriadas nas palavras que usamos. O novo contexto, uma vez que é tão único, requer
ajustamentos em nossa linguagem natural. Vamos chamar a nova linguagem que resulta dessas
mudanças de transcendentalês, e vamos chamar a linguagem que falamos na atitude natural 'de
mundanês. As duas atitudes são constituídas pelos tipos de intencionalidades adequadas a cada
uma, e as linguagens faladas em cada uma refletem as diferenças de perspectiva. O estudo das
interações entre as duas linguagens, transcendentalês e mundanês, é um bom modo de provocar as
diferenças entre a experiência natural e a filosófica.
Algumas das palavras em transcendentalês são sacadas do mundanês, palavras tais como
“identidade”, “manifestação”, “presença e ausência” e “ego”, mas precisamos lembrar que os
termos contraem uma sutil mudança no significado quando são absorvidos pela nova linguagem,
filosófica. A palavra “ciência”, por exemplo, adquire um sentido diferente daquele do da física e da
biologia quando é dito que a filosofia é uma ciência rigorosa. Um novo tipo de exatidão é
introduzido. A fenomenologia é, de certo modo, uma ciência diferente das ciências da atitude
natural, e todo argumento associado -com a redução transcendental é suposto que exista para nos
ajudar a ver o que é o novo sentido.

Há também algumas palavras que são cunhadas especialmente para o transcendentalês, palavras
que não têm base na atitude natural ou no mun-danês. Duas dessas são noema e seu correlato,
noesis. O termo “nocma” se refere aos correlatos objetivos das intencionalidades; refere-se a tudo o
que é intencionado pelas intenções de nossa atitude natural: um objeto material, um retrato, uma
palavra, uma entidade matemática, outra pessoa. Porém, mais especificamente, refere-se a tais
correlatos objetivos precisamente como sendo vistos desde a atitude transcendental. Refere-se a
eles como tendo sido postos entre colchetes pela redução transcendenEal-fenomenológica. Algumas
vezes o termo pode ser usado adjetivamente e adverbialmente: podemos dizê-los para prover uma
análise noemática, podemos estudar a estrutura noemática de alguma coisa, podemos considerar os
objetos noematicamen-te. Algumas frases nas quais são usadas essas palavras são proferidas em
transcendentalês. São frases filosóficas. Elas presumem que a neutralidade própria da filosofia
tenha sido introduzida. O uso do termo “noema” é sinal de que estamos na fenomenologia, no
discurso filosófico, e de que as coisas que estão sendo ditas estão sendo debatidas a partir de um
ponto de vista filosófico, não de um ponto de vista da atitude natural.

Esses pontos precisam ser enfatizados porque o noema pode facilmente ser mal compreendido. O
noema é frequentemente tomado por ser uma entidade de algum tipo, algo como um conceito ou um
distinto “sentido” dos objetos da consciência, algo que serve como o veículo pelo qual a consciência
vem a ser relacionada a uma coisa particular. O noema é concebido como • sendo aquilo através do
qual a intencionalidade é outorgada consciência, como se a consciência fosse autofechada se o
noema não fosse adicionado a ela. O noema é também concebido como sendo a entidade através da
qual a consciência tem como alvo este ou aquele objeto particular, aquilo pelo qual nossa
consciência é relacionada a algum item específico no mundo exterior: o noema é tomado como um
tipo de mira de bombardeio pela intencionalidade. Esta compreensão do noema como uma entidade
que faz a mediação é, segundo cremos, incorreta. Mais tarde, no capítulo XIII, veremos em maiores
detalhes por que isso é problemático e enganoso. Por hora, é suficiente introduzir o termo e dar uma
explanação inicial do que ele significa. O noema é um objeto de intencionalidade, um correlato
objetivo, mas considerado desde a atitude fenomenológica, considerado apenas como experienciado.
Não é uma cópia de um objeto, nem um substituto para um objeto, nem um sentido que nos
relaciona ao objeto; é o objeto mesmo, mas considerado desde o ponto de vista filosófico.

O termo “noesis” é menos enganoso, porém também assume que entramos na fenomenologia.
“Noesis” se relaciona aos atos intencionais por meio dos quais intencionamos as coisas: as
percepções, os atos significantes, as intenções vazias, as intenções cheias, os juízos, as recordações.
Mas se refere a eles precisamente como vistos do ponto de vista fenomenológico. Assume que
efetuamos a redução transcendental. Considera esses atos de consciência após terem sido
suspensos ou postos fora de ação pela epoché fenomenológica. A noésis é menos controversa do que
o noema porque não somos tentados pelo termo a pressupor a sombra de um outro ato paralelo a©-
ato original, como somos tentados pelo termo “noema” a pressupor uma sombra do “objeto” ou um
“sentido” paralelo ao objeto real. A razão por que somos menos tentados a pressupor “uma noésis”
entre nós próprios e nossos atos psicológicos é que, vivendo na tradição cartesiana, nos tornamos
habituados a aceitar nossas introspecções como realistas, como nos colocando em contato direto
com nossa própria vida mental. Essa mesma tradição nos torna inclinados a negar que temos uma
revelação direta das coisas no mundo; faz-nos uma demanda de um intermediário, de uma
representação (o “noema”), para conectar-nos às coisas exteriores.

Podemos também mencionar o fato de que “noesis” e “noema” foram ambos cunhados na
fenomenologia, e que têm a mesma raiz grega, o verbo noein, que significa “pensar”, “considerar”,
“perceber”. O termo grego noésis significa um ato de pensamento e o termo noema significa aquilo
que é pensado. Em grego o sufixo -ma acrescentado a um verbo significa reter o resultado ou o
efeito da ação expressa no verbo. Assim, fantasma significa o objeto -da fantasia, politeama significa
o efeito de politizar (a entidade política), rhéma significa o efeito de falar (a palavra), horama
compreende o objeto da visão (a vista, como um “panorama”), e migma compreende o efeito de
misturar (mistura). O termo noéma então compreende a coisa sendo pensada ou a coisa de que
estamos conscientes.

A adaptação do termo grego à fenomenologia é adequada. O noema é qualquer objeto do


pensamento, mas considerado precisamente como tal, como sendo pensado ou intencionado, como o
correlato de uma intencionalidade. O ponto de vista do qual o vemos nesse modo é a atitude
fenomenológica. A palavra “noema” é, por essa razão, proferida somente desde essa atitude. O que
acontece, infelizmente, é que as pessoas frequentemente tomam “noema” num sentido psicológico,
epistemológico ou semântico. Elas perdem de foco a diferença entre a atitude transcendental e a
natural, e tomam o noema naturalisticamente, epistemologicamente ou semanticamente. Elas
pressupõem o noema como um intermediário entre o si-mesmo e as coisas no mundo, quando
deveriam estar vendo como as coisas no mundo são vistas desde uma perspectiva fenomenológica.
Em vez de a verem como um "momento” (uma parte abstrata) na manifestação das coisas, elas a
materializam e fazem-na servir como um elo entre a mente e as coisas.

As observações nesta seção sobre vários termos relacionados à redução fenomenológica não são um
assunto de mera convenção verbal. Elas expõem aspectos importantes da nova atitude que define a
fenomenologia. Além disso, a definição dos termos tornará mais fácil expressar certas doutrinas da
fenomenologia. O domínio de um vocabulário apropriado não é um assunto incidental num domínio
do conhecimento; as coisas em questão não podem ser adequadamente trazidas à luz sem as
palavras que as nomeiam.

Por que a redução transcendental é importante?


À primeira vista, somos tentados a pensar que a fenomenologia é essencialmente um exercício de
teoria do conhecimento, um estudo de epistemologia, mas ela está muito distante disso. Não tenta
apenas lidar com “o problema do conhecimento”, com a tentativa de estabelecer se há ou não uma
verdade, e se podemos ou não alcançar “o mundo real” ou o mundo “extramental”. A fenomenologia
nasceu no período histórico durante o qual a epistemologia era a principal referência filosófica — e
alguns de seus argumentos e vocabulário soaram muito epistemológicos —, mas teve sucesso em
romper esse contexto restritivo. Ela superou suas origens. Aproxima-se dos termos da filosofia
moderna e aprende dela, mas também supera algumas das suas limitações e restabelece um elo com
o pensamento antigo. A maioria dos mal-entendidos da fenomenologia vem das interpretações que
ainda são muito criticadas nos problemas e posições do pensamento moderno, ainda muito presas à
tradição cartesiana e lockiana, que falham em alcançar o que é novo na fenomenologia. A
fenomenologia requer um maior ajustamento no entendimento do que é filosofia, e muitas pessoas
não podem realizar essa m udança porque não podem libertar a si mesmas de seu background e de
seu contexto cultural. A fenomenologia restaura a possibilidade da filosofia antiga, mesmo quando
considera novas dimensões cais como a presença da ciência moderna. A fenomenologia provê um
dos melhores exemplos de como uma tradição pode ser reapropriada e trazida de volta à vida num
novo contexto.

A doutrina da redução transcendental é especialmente importante porque dá uma nova definição de


como a filosofia pode estar relacionada à vida e à experiência pré-filosóficas. Um dos perigos para a
filosofia é que ela pode se pensar capaz de substituir a vida pré-filosófica. E verdade que a filosofia
alcança o ponto mais alto da razão. Ela engloba outros exercícios da razão, tais como aqueles
encontrados nas ciências particulares e na vida prática. Estuda como todos esses exercícios parciais
estão relacionados uns com os outros e como eles se amoldam num contexto final. Porque a filosofia
complementa a razão pré-filosófica, pode ser tentada a se pensar como um substituto para cais
exercícios de razão. Pode começar a pensar que pode fazer melhor do que os mais especializados
tipos de pensamentos efetivos. A filosofia pode começar a pensar que pode exercer a vida política
melhor do que os homens de estado, melhor do que aqueles que estão envolvidos no debate
perpétuo de como nossa vida em comunidade devia ser conduzida. Pode começar a pensar que pode
fazer um trabalho melhor do que as pessoas religiosas fazem explicando nos mínimos detalhes o que
são o sagrado e o supremo. Pode começar a pensar que pode substituir as ciências particulares
como a química ou a biologia ou a linguística porque nenhuma delas tem o sentido do todo. Se a
filosofia tenta substituir o pensamento pré-filosófico, o resultado é um racionalismo, o tipo de
racionalismo introduzido na filosofia moderna por Maquiavel com respeito à vida moral e política, e
por Descartes com respeito aos assuntos teóricos.

A mais importante contribuição que a fenomenologia fez para a cultura e para a vida intelectual foi
validar a verdade, a experiência, a vida e o pensamento pré-filosóficos. Ela insiste que os exercícios
da razão exercidos na atitude natural são válidos e verdadeiros. A verdade é efetivada-antes de a
filosofia chegar em cena. As intencionalidades naturais alcançam satisfação e evidência, e a filosofia
nunca pode substituí-las no que fazem. A fenomenologia é parasita da atitude natural e de todas as
efetividades dela. A fenomenologia não tem acesso às coisas e manifestações do mundo exceto
através da atitude natural e suas intencionalidades. A fenomenologia chega somente mais tarde.
Tem de ser modesta; ela deve reconhecer a verdade e validade das efetividades da atitude natural,
nos seus exercícios prático e teórico. Então, contempla essas efetividades e suas atividades
subjetivas correlatas, mas se as efetividades não estivessem lá não haveria nada para a filosofia
pensar. Deve haver opinião verdadeira, deve haver dóxa prévia, se há de ser filosofia. A
fenomenologia pode ajudar as intencionalidades naturais a esclarecer o que elas buscam, mas nunca
substituí-las.

Quando a fenomenologia “neutraliza” as intencionalidades que operam na atitude natural, não as


dilui, destrói, recalca ou ridiculariza. Ela meramente adota uma estância contemplativa em direção
a elas, uma instância da qual pode teorizá-las. A fenomenologia complementa a atitude natural; a
filosofia complementa a opinião verdadeira e a ciência. A fenomenologia pode também indicar as
limitações da verdade e das evidências efetivadas na atitude natural, mas as várias artes e ciências
já têm consciência do fato de que elas-são todas parciais e limitadas, embora não sejam hábeis para
formular suas limitações muito exatamente. E algumas vezes as artes e ciências particulares talvez
queiram se tornar imperialistas elas mesmas e dominar sobre todas as outras: físicos podem tentar
dizer que explicam o todo e tudo nele, ou linguistas podem tentar fazer o mesmo, ou a psicologia, ou
a história. Quando essas artes e ciências parciais tentam ser mestre do todo e das outras artes e
ciências, elas se tornam pseudofilosofias, mas a filosofia também pode falsear a si mesma quando
tenta ser o senhor sobre as formas pré-filosóficas de conhecimento, quando tenta substituí-las.

A fenomenologia provê uma maior restauração cultural por reconhecer a validade das artes e das
ciências na atitude natural, e também a validade do senso comum, da prudência na ordem prática.
Há uma tendência racionalis-ta no pensamento moderno que quer fazer da filosofia o substituto
perfeito para todas as formas pré-filosóficas da razão, e a fenomenologia contraria essa tendência. A
vertente racionalista moderna, em anos recentes, desaguou no pós-modernismo, o qual reverte ao
outro extremo e nega algum centro de razão sob qualquer condição. A fenomenologia evita esse
extremo negativo também, porque em primeiro lugar nunca adotou a posição racionalista.

O pensamento grego clássico e medieval compreendeu que a razão pré-filosófica chega à verdade e
à evidência, e que a reflexão filosófica chega posteriormente e não perturba o que veio antes.
Aristóteles não mexeu com a vida política ou com a matemática; ele só tentou compreender o que
eram e talvez esclarecê-las para elas mesmas. A fenomenologia se junta a essa compreensão
clássica, mas o que pode acrescentar é a discussão explícita da mudança de foco que é requerida
para entrar na vida filosófica. A doutrina da epoché, a distinção entre atitude natural e
fenomenológica, a ideia de neutralização das intenções da atitude natural, o papel do mundo e a
crença no mundo, todas são clarificações do que significa adotar o afastamento filosófico e entrar no
pensamento filosófico. Essas doutrinas associadas com a redução não são enigmas de desvio-mental
que tentam nos tornar obsessivamente introspectivos, ou quebra-cabeças sobre se podemos sair de
nós mesmos no mundo “extramental”; são esclarecimentos da natureza da filosofia. São úteis para
mostrar como o discurso filosófico, transcendentalês, difere do discurso da prática humana e das
artes e das ciências, mundanês, a linguagem da atitude natural. Quando adequadamente
compreendidos podem iluminar a ambas, a vida pré-filosófica e a vida filosófica.

Finalmente, a redução transcendental não deveria ser vista como uma fuga da questão do ser ou do
estudo do ser enquanto ser, antes o contrário. Quando mudamos da atitude natural para a
fenomenológica, suscitamos a questão do ser, porque começamos a olhar as coisas precisamente
como elas são dadas para nós, precisamente como elas são manifestas, precisamente como elas são
determinadas pela “forma”, que é o princípio de descobrimento das coisas. Começamos a olhar as
coisas em sua verdade e evidência. Isso é olhá-las em seu ser. Também começamos a olhar o si-
mesmo como o dativo do qual os seres são descobertos: olhamos para o si-mesmo como o dativo da
manifestação. Isso é olhá-lo em seu ser, porque o coração de seu ser é inquirir no ser das coisas.
“Ser” não é apenas “como-coisa”; o ser envolve manifestação ou verdade, e a fenomenologia olha
para o ser primariamente sob sua rubrica de ser verdadeiro. Olha para o ser “humano” como o lugar
em que a verdade ocorre. Terminadas todas as suas investigações-cartesianas anotadas sobre os
modos de redução, a fenomenologia está apta a recuperar a antiga questão do ser, que é sempre
nova.
V. PERCEPÇÃO, MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO
Agora já temos uma ideia do que é a análise fenomenológica e por que é filosófica. Também tivemos
um exemplo dessa análise em nosso exame da percepção de um cubo. Consideramos o papel
desempenhado na experiência humana pelas estruturas de partes e todos, identidade em
multiplicidades, presença e ausência. Podemos agora começar a ampliar todos esses temas
desenvolvendo ainda mais descrições fenomenológicas. O que fizemos até agora foram apenas
esboços preliminares. Agora voltaremos à percepção e ao exame em maior detalhe de como ela
presenta os objetos para nós, e de como ela se opõe a formas derivativas de intencionalidade tais
como recordação, imaginação e projeção no futuro.

Recordação
A percepção, presenta um objeto diretamente para nós, e esse objeto é sempre dado numa mistura
de presenças e ausências. Quando um lado está dado, outros estão ausentes. Algumas partes do
objeto ocultam outras partes: a da frente esconde a de trás, a superfície esconde o interior. Se o
objeto é algo que ouvimos, então ouvir em um lugar exclui aspectos do som que estariam disponíveis
em outro. Podemos superar essas ausências, mas só a custo de perder presenças que temos, que se
tomam ausentes. Por entre essa dinâmica mistura de presença e ausência, por entre essa
multiplicidade de manifestações, um e o mesmo objeto continua a manifestar a si mesmo para nós. A
identidade é dada numa dimensão diferente daquela dos lados, aspectos e perfis; a identidade nunca
se mostra como um dos lados, aspectos ou perfis.

Porém, a identidade também pode ser dada quando o objeto é recordado. A recordação provê um
outro lugar de manifestações, uma outra multiplicidade por intermédio da qual um e o mesmo objeto
é dado para nós. A memória envolve um tipo muito mais radical de ausência do que provê o
cointencionar de lados ausentes durante a percepção, mas ainda manifesta o mesmo objeto.
Manifesta o mesmo objeto, mas com uma nova camada noemática: como recordado, como passado.

Poderíamos ser tentados a pensar a memória do seguinte modo: quando recordamos algo,
invocamos uma imagem mental da coisa e reconhecemos esse retrato como manifestando a mesma
coisa que uma vez vimos. Nessa visão, a recordação não seria de todo muito diferente da que temos
quando olhamos para uma fotografia de alguém e reconhecemos quem é a pessoa e o cenário no
qual a fotografia foi tirada. A única diferença seria qtie a fotografia está no mundo “extramental”,
enquanto a imagem da memória está no mundo “intramental”.

Essa interpretação da recordação está muito equivocada. Confunde a recordação com um outro tipo
de intencionalidade, a de formar imagens. Não é surpresa que tendemos a confundir esses dois
tipos; parece que temos imagens interiores no olho mental, e uma vez que aprendemos sobre o
cérebro parece inevitável que postulemos algum tipo de projeção de algum tipo de imagem sobre
um tipo de tela cerebral. Mas a incoerência dessa interpretação torna-se óbvia quando
consideramos o tipo de identidade que ocorre na recordação.

Em formando imagens, olhamos para um objeto que outrem pintou. Olhamos para esse pedaço de
tela colorida ou para aquele pedaço de papel, e nele vemos algo mais: uma mulher, uma cena
rústica. Na recordação, não olhamos para um objeto que remete a outro. Simplesmente “vemos” ou
visualizamos o objeto diretamente. A recordação é mais como a percepção do que como formar a
imagem de algo. Na memória não vemos algo que se assemelha com algo que recordamos;
recordamos o objeto mesmo, como em um outro tempo. Se formos importunados por uma memória
que não nos deixa, não deveríamos, estritamente falando, dizer: “não consigo que essa imagem saia
de minha mente!”. Antes, deveríamos exclamar: “não posso parar de visualizar essa coisa!”

Suponhamos que estamos dispostos a dizer que não vemos quadros internos quando recordamos;
que outra coisa estamos supondo dizer? Como podemos expressar, desde o ponto de vista
transcendental, o que acontece na recordação? Se não vemos quadros internos, por que parece que
vemos, e como podemos considerar o que parece mostrar-se em nosso olho mental ou ouvido
mental? Nossa resposta a essas questões pode ser posta do seguinte modo: o que guardamos como
memórias não são imagens das coisas que uma vez percebemos. Mais propriamente, nós guardamos
as próprias percepções antigas. Então, quando recordamos de fato não evocamos imagens; antes,
evocamos aquelas percepções antigas. Quando essas percepções são evocadas e restabelecidas,
trazem com elas seus objetos, seus correlatos objetivos. O que acontece na recordação é que nós
revivemos percepções antigas, e recordamos os objetos como foram dados naquele tempo.
Capturamos a parte antiga de nossa vida intencional. Trazemo-la de volta à vida. É por isso que as
memórias podem ser tão nostálgicas. Elas não são apenas lembranças, são a atividade de reviver. -O
passado vem à vida novamente, junto com as coisas nele, mas vem à vida com um tipo especial de
ausência, uma que não podemos superar indo para nenhum lugar, como podemos superar as
ausências-dos outros lados da mesa movendo-nos para outra parte da sala e olhando desde lá.

Uma nova mistura de presenças e ausências nasce por intermédio da memória, uma nova
multiplicidade de manifestações por meio das quais um e o mesmo objeto pode ser dado em sua
identidade. Na memória não reativamos apenas um objeto, mas um objeto como se manifestando lá
e naquele tempo, e ainda manifestando-se novamente aqui e agora, mas somente como passado.
Essa é a forma noemática que os objetos recordados assumem, uma forma diferente daquela de
objetos percebidos, a qual é somente aqui e agora, não lá e naquele tempo. Poderíamos estabelecer
a diferença entre formar imagens e recordar do seguinte, embora bastante complicado, modo:
quando vemos um retrato, vemos algo que parece ser algo outro; mas na recordação parecemos
estar vendo algo outro. Essa formulação obscura capta a diferença entre as duas formas de
intencionalidade.

Alguém pode objetar: “Esse tipo de coisa é sem sentido. Como poderia reviver uma percepção
passada? Como poderia a mesmíssima coisa, lá e naquele tempo, ser dada para mim aqui e agora?
Isso é impossível; deve haver um retrato dela que eu vejo”. Porém, essa revivificação de uma
experiência é justamente o que é a recordação. E um tanto quanto maravilhoso, mas dessa forma é
que estamos ligados. Podemos reviver uma parte antiga de nossa vida consciente, podemos reativar
uma intencionalidade. Claramente, deve haver algum tipo de base neurológica para isso. A atividade
neural envolvida na percepção é de alguma maneira reativada, a percepção consciente é
restabelecida, e manifesta o mesmíssimo objeto que tinha em sua jurisdição original. Se formos ser
fiéis ao fenômeno, teremos de descrevê-lo como ele é e não projetar nossos desejos nele. Não
atingimos o passado por meio da memória; trazemos de volta um mundo expirado e uma situação
nele. Nós podemos viver no passado tanto como no presente. De fato, a menos que tenhamos um
sentido geral do passado que chega para nós pela memória, como poderíamos interpretar um
“quadro mental” como uma imagem de algo visto no passado? Como poderia o sentido de
preteridade nascer sempre para nós? As muitas dimensões ou horizontes do passado são dadas para
nós através da recordação, como a temos descrito fenomenologicamente.

Na memória, o objeto que uma vez foi percebido é dado como passado, como recordado. Além disso,
é dado como então foi percebido; se vimos um acidente automobilístico, nós o recordamos do
mesmo ângulo, com os mesmo lados, aspectos e perfis desde os quais o vimos. Um e o mesmo
acidente é dado para nós novamente, e se temos de testemunhar sobre o acidente podemos ter de
reprisar o evento algumas vezes para tentar trazer de volta os detalhes à mente. (“Tente recordar: o
pedestre atravessou a rua antes ou depois que o sinal de trânsito mudou?”). Quando fazemos a
reprise do evento, não inspecionamos um quadro interior; tentamos exercer novamente a percepção
que tivemos então, e trazer de volta a coisa que vimos, e agimos desse modo quando recordamos as
coisas. Naturalmente, os erros se insinuam; com frequência projetamos na recordação coisas que
queríamos ver ou coisas que pensamos que deveríamos ter visto. Oscilamos entre a memória e a
imaginação. As memórias são notoriamente elusivas; elas não manipulam provas, mas essas são as
limitações da memória. Por serem frequentemente enganosas não significa que as memórias não
existem, ou que são sempre enganosas. Somente porque existem é que as memórias podem ser
algumas vezes enganosas. Além disso, seu modo genuíno de ser e seu modo enganoso de ser são
diferentes dos modos genuínos e enganosos de ser da percepção. Uma nova multiplicidade e uma
nova possibilidade de identidade são introduzidas pela memória, e novas possibilidades de erros
nascem daí. É a tarefa da fenome-nologia pôr em cena as estruturas em questão e distingui-las
daquelas que operam na percepção e em outros tipos de intencionalidade.

Até agora, neste tratamento da recordação, nosso foco esteve dirigido ao lado noemático, ao objeto
recordado. Mencionamos o lado noético quando dissemos que a recordação não é a percepção de
uma imagem, mas um reviver de uma percepção. Porém, devemos caminhar um pouco mais na
subjetividade e falar sobre o si-mesmo que é o agente da recordação. Novas dimensões do objeto
nascem através da memória, mas novas dimensões do si-mesmo nascem também.

Quando recordo algo passado, também desloco a mim mesmo no passado. Uma distinção nasce
entre mim aqui e agora, sentado numa“cadeira numa sala e percebendo paredes, janelas e sons a
minha volta, e eu então, presenciando um acidente ocorrer na esquina da avenida Wisconsin com a
rua Macomb ontem, ou envolto em uma despedida dolorosa na semana passada. O recordar de
minhas percepções antigas envolve um reviver de mim mesmo como percebendo naquele tempo.
Assim como o objeto do passado é trazido à luz novamente, também meu si-mesmo do passado
enquanto agente daquela experiência é trazido à luz novamente. Através da memória uma distinção
é introduzida entre o si-mesmo recordando e o si-mesmo recordado.

Poderíamos ser tentados a dizer que nosso “si-mesmo real” é o do aqui e agora, o que está
recordando. O si-mesmo reativado é só uma imagem de algum tipo. Mas isso seria inexato. Séria
mais apropriado dizer que nosso si-mesmo é a identidade constituída entre o si-mesmo agora
recordando e o si-mesmo então recordado. Nosso si-mesmo, o si-mesmo, é estabelecido
precisamente na interação que ocorre entre percepção e memória. Esse deslocamento do si-mesmo
no passado introduz uma dimensão toda nova na nossa vida mental ou interior. Não estamos
confinados ao aqui e agora; não só podemos nos referir ao passado (e ao futuro, como podemos ver),
mas podemos também viver nele por meio da memória.

Algumas vezes essa vida no passado pode ser incômoda. Se civermos feito coisas das quais estamos
profundamente envergonhados, ou sido vítimas de acidentes traumáticos, poderemos ser incapazes
de nos libertar da experiência em questão. Elas ajudam a constituir nosso si-mesmo, e não podemos
nos separar delas; não importa o quão longe possamos andar, carregaremos elas conosco. Estamos
colados nelas. O alpinista Peter Hillary, falando das lutas com a morte que ele experienciou no
Himalaia, disse: “Sobreviver é às vezes o mais doloroso papel a representar nessa vida. Você...
reinterpreta em sua mente aquelas cenas finais novamente, de novo e de novo” (“Everest is mighty,
we are fragile” [O Everest é poderoso, nós somos frágeis], New York Times, 25 de maio de 1996, A-
19).Um homem envolvido no assassinato de prisioneiros disse: “Tenho passado minhas noites
dormindo nas praças de Buenos Aires com uma garrafa de vinho, tentando esquecer. Arruinei minha
vida. Tenho de ter o rádio ou a televisão ligados todo o tempo ou algo para me distrair. Às vezes
tenho medo de estar só com meus pensamentos” (“Argentine tells of dumping ‘dirty war’ captives”
[Argentina admite ter se livrado de prisioneiros da “guerra suja”], Ne» York Times, 13 de março de
1995, A-l). Um homem que teve um acidente de automóvel é citado dizendo: “Por meses, eu revivi a
colisão em câm_era lenta”. Nós somos algo como espectadores quando restabelecemos coisas na
memória, mas não somos apenas espectadores, e não somos como alguém que assiste a uma cena
separada. Estamos engajados no que então aconteceu. Somos os mesmos que estiveram envolvidos
na ação; a memória nos traz de volta como atuando e experien-ciando lá e naquele tempo. Sem a
memória e o deslocamento que ela traz não seríamos completamente atualizados como si-mesmos e
como seres humanos, para bem ou para mal. A síntese da identidade ocorre em ambos os lados da
memória — no noético e no noemático.

Imaginação e antecipação
A memória e a imaginação são estruturalmente muito similares, e uma facilmente se imiscui na
outra. O mesmo tipo de deslocamento do ego ou do si-mesmo que encontramos na memória também
ocorre na imaginação. Em ambas as formas de intencionalidade, nós aqui e agora podemos
mentalmente viver em outro tempo e lugar: na memória o lá e então é específico e passado, mas na
imaginação é um tipo de nenhum lugar e “nenhum quando”, mas até na imaginação é diferente do
aqui e agora em que realmente habitamos. Estamos deslocados num mundo imaginário, mesmo que
vivamos em um mundo real. Além do mais, um objeto na imaginação, um objeto imaginário, tanto
pode ser tomado da nossa percepção real como das nossas memórias, mas é agora projetado em
situações e transações que não ocorreram.

A principal diferença entre a memória e a imaginação repousa na modalidade dóxica própria a cada
uma. A memória opera com a crença. As memórias que evocamos, ou que se intrometem em nós, são
o que verdadeiramente aconteceu e o que experienciamos e fizemos. Não é o caso de que
primeiramente temos as memórias e então acrescentamos a elas a crença; antes, elas originalmente
chegam com a crença (de como era), assim como nossas percepções chegam com a crença (de como
é). Temos de fazer um esforço para apagar a crença na memória, ou para deslocá-la para outra
modalidade, tais como a dúvida ou a negação.

A imaginação, por outro lado, é penetrada por um tipo de suspensão da crença, um giro no modo de
“como se”. Essa mudança modal é um tipo de neutralização, mas diferente do tipo que entra em
jogo na redução transcendental. Na imaginação deslocamos o si-mesmo num mundo imaginário, mas
o mundo real a nossa volta permanece como o acreditado (aceito como certo e verdadeiro), o
contexto padrão dentro do qual imaginamos, do qual estamos deslocados. Todas as coisas que
imaginamos são penetradas por um sentido de irrealidade; eventos imaginados não nos prendem ao
verdadeiro pesar ou terror que eventos horríveis de nosso passado podem infligir-nos. Pode ser o
caso de que uma imaginação demasiadamente ativa possa distorcer nossas memórias e nos fazer
pensar que algumas coisas aconteceram sem que tenham acontecido, mas tal ruptura de limite
entre a memória e a imaginação é possível somente se a imaginação e a memória são realmente dois
tipos diferentes de intencionalidades.

Contudo, mesmo quando imaginamos, a síntese de identidade que é própria a toda intencionalidade
permanece em vigor. Um objeto imaginário permanece um e o mesmo por meio de muitas
imaginações dele. Há uma multiplicidade com uma identidade inalterável em sua essência, mesmo
na imaginação. Podemos tomar coisas que temos percebido de fato e inscrevê-las em cenários
imaginários, e as coisas permanecem as mesmas; ou podemos fabricar coisas puramente
imaginárias e pô-las numa rotina imaginária, e elas também permanecem as mesmas do começo ao
fim. Obviamente, objetos imaginários não possuem a densa solidez dos objetos percebidos, dado que
podemos fantasiá-los em todo tipo de situações improváveis, mas não somos totalmente livres
mesmo em nossas imaginações; as coisas que imaginamos põem algumas restrições sobre o que
podemos fantasiar sobre elas. Se a coisa deve permanecer ela mesma, certas coisas não podem ser
imaginadas sobre ela; se pudessem, a coisa se tornaria algo outro. Podemos imaginar um gato
voando no ar (embora não possamos lembrar de um gato fazendo isso), mas não podemos realmente
imaginar um gato sendo lido como um poema, ou um gato sorrindo e falando conosco. Um gato não
é o tipo de coisa que pode ser lida em voz alta, e um gato que sorrisse e falasse não seria mais
apenas um gato. Não faz sentido misturar as “ideias” ou mesmo as imagens desse modo.

A imaginação opera então numa modalidade dóxica diferente daquela da percepção e da memória;
ela é irreal, somente “como se”. Contudo, há uma forma de imaginação que tem de se tornar
realística, que tem de recuar para o modo da crença. É o tipo de imaginação em que nos engajamos
quando estamos planejando algo, quando imaginamos a nós mesmos em alguma condição futura que
provocamos pelas escolhas que fazemos. Essa é uma forma antecipada de imaginação e nos traz de
volta à terra, por assim dizer, dos voos da pura fantasia. Suponha que desejamos comprar uma casa.
Olhamos várias casas, restringimos as opções possíveis a duas ou três, e então deliberamos sobre
qual comprar. Parte de nossa deliberação envolve imaginarmos a nós mesmos vivendo em cada uma
das casas, usando as salas, caminhando do lado de fora, e assim por diante. Essas projeções voltam
a um modo dóxico análogo ao da memória; voltamos ao modo da crença, correlato com um sentido
de realidade no qual imaginamos. Se somos sinceros sobre comprar a casa, não nos imaginamos
flutuando sobre ela como um balão ou rastejando pelas paredes como um cupim. Esse tipo de
projeção imaginária é totalmente correto para sonhos e fantasias, mas não é útil quando se está
comprando uma casa. (É interessante notar como os comerciais de televisão tiram proveito da
diferença entre fantasia e projeções sérias. Elas apresentam toda sorte de situações atrativas, mas
totalmente irreais — um carro rodeade~de gente bonita, um caminhão voando sobre o Grand
Canyon, um encontro romântico facilitado por uma pasta de dente —, com a intenção de fisgar o
telespectador para imaginar realisticamente a si mesmo num futuro no qual ele compra o produto.)

A experiência antecipada de nós mesmos numa nova situação é um deslocamento do si-mesmo, mas
é o reverso da memória. Em vez de reviver uma experiência antiga, antecipamos uma futura. Uma
vez que o futuro ainda não foi determinado, podemos realisticamente antecipar a nós mesmos em
vários possíveis futuros e não só em um: imaginamos como teria sido se a escolha tivesse sido feita,
e podemos nesse ponto ainda imaginar a nós mesmos em várias circunstâncias diferentes.
Projetamos a nós mesmos no futuro perfeito em diferentes modos. No empreendimento de compra
de uma casa, projetamos a nós mesmos vivendo em três ou quatro casas diferentes; aferimos-lhes as
medidas. Podemos agir assim enquanto realmente visitamos as casas ou outras posteriormente,
quando sonhamos acordados sobre o que seria.

Podemos tomar tais projeções do si-mesmo por garantidas e assumir que qualquer pessoa pode
facilmente realizá-las, mas em algumas situações se exige considerável força do ego para se ser
capaz de executá-las efetivamente. Para algumas pessoas em algumas ocasiões o peso de imaginar a
si mesmas realisticamente em novas circunstâncias é grande demais; elas co-lapsam
emocionalmente e ficam confusas, e seus si-mesmos não têm mais flexibilidade na identidade para
projetar a si mesmas em circunstâncias que ainda não viveram. Elas podem entrar em pânico diante
do pensamento de mudar para um novo lugar ou mudar de trabalho ou deixar certa pessoa. Parte do
terror da morte repousa no fa to de que nossa imaginação entra em branco em face dela.

Alguém pode objetar que a deliberação de uma ação futura é mais intelectual do que isso. Quando
deliberamos, anotamos nossas metas, redigimos listas de vantagens e desvantagens, e figuramos os
meios pelos quais podemos alcançar o que queremos. Pesamos os prós e contras e tomamos nossa
decisão. Tal cálculo racional é certamente parte da deliberação, mas o sentido total do ser da
deliberação sobre o futuro é dado para nós antes de tudo por nossa projeção imaginativa. A lista de
prós e contras só se aplica se nos damos conta de que essa informação tem relações com o modo
que seremos no futuro, e é a nossa projeção imaginativa que abre essa dimensão para nós.
Ensaiamos por antecipação nosso próprio futuro. Imaginamos certas satisfações desejadas. Podemos
em alguns casos achar que nossa antecipação foi totalmente equivocada; algumas coisas podem não
decorrer como imaginamos que seriam; mas tais erros são possíveis, em primeiro lugar, somente
porque estamos lidando com o futuro. Essa nova dimensão, de um futuro que tem um conjunto de
possibilidades que podem ser determinadas na realidade pelas escolhas que fazemos, é aberta para
nós não por listas racionais, mas pelas projeções imaginativas. Só porque podemos imaginar
podemos viver no futuro. E as projeções imaginativas também entram nas motivações que nos
empurram nessa ou naquela escolha; sentimo-nos mais “confortáveis”, como se costuma dizer, com
um determinado futuro perfeito que com outros, e assim estamos inclinados a fazer as escolhas que
conduzem àquele. As listas intelectuais definem-se no confronto com a antecipação imaginativa.

Deslocamento do si-mesmo
A estrutura formal do deslocamento, no qual podemos aqui e agora imaginar a nós mesmos ou
recordar a nós mesmos ou antecipar a nós mesmos numa situação em qualquer outro lugar e em
algum outro tempo, nos permite assim viver no futuro e no passado, bem como na terra de ninguém
da livre imaginação. Essas formas deslocadas de consciência são derivadas da percepção, a qual
fornece a matéria-prima e o conteúdo delas. Não é o caso, além disso, de que vivemos, antes de
tudo, na percepção, então em alguns momentos decidimos irromper em deslocamentos; mais
precisamente, a percepção e o deslocamento mesmo são sempre feitos em contraste um com o
outro. Mesmo a percepção não pode ser o que é sem ser contrastada com a imaginação, a memória
e a antecipação. Todas essas formas se diferenciam de uma inicial condição indiferenciada de
consciência. Também requer alguma sofisticação introduzir as diferenças na modalidade dóxica
associada com cada forma. Saber que algumas experiências são verdadeiramente passado, saber
que algumas são apenas fantasia, não está ao alcance de todo mundo. Muitas pessoas pensam que
sonhos e quimeras são percepções verdadeiras de tipos incomuns de coisas.

Sempre que vivemos no tipo de deslocamento interior que acabamos de descrever, vivemos, por
assim dizer, em caminhos paralelos. Vivemos na ime-diatez de nosso mundo circundante, que é
perceptivelmente dado para nós, mas vivemos também no mundo do si-mesmo deslocado, o mundo
recordado ou imaginado ou antecipado. Às vezes podemos vaguear mais e mais em um ou noutro
deles: podemos estar tão absortos com o que está imediatamente a nossa volta que perdemos todo
distanciamento imaginativo dele, ou podemos vaguear mais e mais no devaneio e na quimera,
tornando-nos praticamente, mas nunca inteiramente, desconectados do mundo circundante. Além do
mais, as intenções imaginativas que acumulamos dentro de nós servem para se misturar com e
modificar as percepções que temos. Vemos faces de um certo modo, vemos edifícios e paisagens de
certo modo, porque o que vimos antes volta à vida quando vemos algo novo e colocamos um ponto
de vista sobre o que nos é dado. O deslocamento permite que isso aconteça.

Tanto o si-mesmo como o objeto, os polos subjetivo e objetivo da experiência, adquirem uma reserva
muito maior de multiplicidades de manifestação quando a memória, a imaginação e a antecipação
são diferenciadas da percepção. Todas essas estruturas e ampliações operam na atitude natural,
mas podem ser reconhecidas e descritas a partir da atitude transcendental, fenomenológica.

Pode ser útil, ao final deste capítulo, mostrar como as atitudes natural e fenomenológica, que foram
distinguidas no capítulo IV, abordam a memória cada uma de um modo diferente. Para a atitude
natural, o passado está morto e acabado; definitivamente não está lá e em outro tempo. A atitude
natural é absorvida pelo presente. Nessa atitude resistimos em atribuir alguma presença ao
passado, e além do mais quando tentamos explicar a memória somos inclinados a pressupor algo
(uma imagem, uma ideia da memória) como um substituto presente para o passado. Procuramos por
algo para substituir o evento que recordamos. Assim, tentar manusear o fenômeno da memória
desde a atitude natural nos leva a uma distorção filosófica de nossa experiência do passado. Desde a
perspectiva transcendental, contudo, com sua mais refinada e diferenciada compreensão de
presença e ausência, estamos aptos a reconhecer o tipo especial de presença que o passado ausente
tem para nós. Vemos que não há necessidade de pressupor um quadro como um tipo de substituto
para o objeto do passado, e que, de fato, é impossível agir assim. Essas imagens da memória, como
agora podemos ver, são incoerências.

Podemos observar também que a dimensão do passado na memória irradia luz sobre a experiência
do presente que temos na percepção. Porque somos conscientes de que as coisas podem estar no
passado, podemos chamar a atenção para sua presença quando são dadas para nós: elas agora são
dadas como ainda não tendo expirado na ausência temporal. Elas não só estão presentes para nós;
sua presença mesma vem a ser presente para nós. Nós nos tornamos aptos a distinguir uma coisa da
pres£nça de uma coisa. Uma vez mais, contudo, se tentarmos manusear essa presença a partir da
perspectiva da atitude natural, nós a transformaremos em outra coisa (um dado sensório, uma
imagem no cérebro), porque a atitude natural tende a substancializá-la se se ocupa dela. A presença
(assim como a ausência) das coisas é tão sutil e frágil, tão próxima ao nadar que só a atitude
fenomenológica, com o seu sentido da delicadeza da presenciação, pode encontrar o termo
adequado e a gramática para expressá-la. A atitude natural, normalmente desajeitada nesses
assuntos, sempre procura por uma coisa substicu-ta para mediar entre nós como dativos e as coisas
que estão presentes e ausentes para nós.
VI. PALAVRAS, RETRATOS E SÍMBOLOS
Temos considerado a percepção e suas variantes, mas todas as variantes que examinamos
pertencem à nossa vida “interna”: memória, imaginação e antecipação. Esse restabelecimento
interno de nossas experiências não é o único domínio no qual as mudanças de intencionalidade
ocorrem. A percepção coloca-nos em contato com as coisas no mundo, e as variações podem tomar
lugar em como interpretamos diretamente os objetos que o mundo nos oferece.

Às vezes apenas aceitamos o objeto que é dado para nós (uma árvore, um gato). Estamos assim
engajados numa percepção simples. Porém, às vezes modificamos o modo no qual captamos as
coisas que estão sendo pre-sentadas: temos alguns sons ou sinais dados para nós, mas os captamos
não apenas como sons ou sinais, mas como palavras; temos um painel de madeira que é dado para
nós, e o captamos como uma pintura; temos uma pilha pequena de pedras dadas para nós, e a
captamos como uma marca de trilha. Nesses casos acrescentamos e consequentemente modificamos
a percepção que permanece como a base para essas intencionalidades. Introduzimos novas
intencionalidades baseadas nas percepções. Continuamos a perceber as marcas, a madeira e as
pedras, mas além de somente percebê-las nós as intencionamos de um novo modo. Essas
intencionalidades mais elevadas, naturalmente, são bastante diferentes das que operam na
memória, na imaginação e na antecipação, as quais são restabelecimentos internos da percepção,
não intenções construídas sobre ela.

Os novos tipos de intencionalidade que serão estudados neste capítulo nos concederão ainda mais
multiplicidades por meio das quais podemos identificar os objetos que encontramos, e aindajmais
multiplicidades a partir ; das quais estabelecemos nossa própria identidade como pessoas humanas.

A presença das palavras


Suponha que estamos olhando uma folha de papel que tem decorações inscritas nela: rabiscos
entrelaçados cobrem sua superfície. Nós percebemos e admiramos o intricado e elegante das linhas.
Então, subitamente, algumas das linhas se configuram em palavras, “The Burritt Hotel”. As palavras
saltam para fora do motivo decorativo. Inspecionamos mais de perto e achamos uma sentença
completa oculta nas linhas decorativas: “O Burritt Hotel tem o melhor preço”. O papel ornamentado
é realmente uma propaganda escondida do hotel local.

O que nos interessa como filósofos não são os preços baixos do Burritt Hotel, mas a mudança de
intencionalidade que toma lugar quando as palavras subitamente se fazem notar. Antes da mudança,
simplesmente percebemos algo que estava lá diante de nós. A percepção foi um processo contínuo
que envolveu mudanças de foco e movimentos da atenção de uma parte a outra do papel. Mas,
quando as palavras distinguiram-se, nós não mais in-tendonamos apenas o que estava diante de nós.
Um novo tipo de intenção entrou em cena, um tipo que toma essas marcas percebidas em palavras e
ao mesmo tempo nos faz intencionar não apenas as marcas que estão presentes, mas o Burritt
Hotel, o qual está ausente. O novo tipo de intenção é chamado uma intenção significativa, porque dá
sentido às marcas. E obviamente uma intenção vazia. É uma intencionalidade encontrada, uma parte
não independente de um todo maior, porque repousa sobre a base perceptual que apresenta as
marcas que se tornaram palavras.

Essa intenção significativa é extremamente importante filosoficamente, devemos defini-la mais


exatamente fazendo algumas comparações.

A intenção significativa não é o mesmo que imaginação. Podemos ser tentados a dizer que quando as
palavras se distinguem para nós subitamente temos uma imagem visual do Burritt Hotel, e que essa
imagem é o que serve como o sentido das palavras. Essa explicação seria falsa, as imagens internas
não são o sentido das palavras. Podemos bem ter essa imagem visual, mas então novamente não
poderemos e não poderíamos ter o mesmo sentido. A imagem que vem à mente quando ouvimos
uma palavra pode estar somente acidentalmente relacionada com a palavra: o nome “Burritt Hotel”
pode evocar em nossa mente a imagem de John Smith, o proprietário do hotel. A “seta” da intenção
significativa vai direto através da palavra percebida para o Burritt Hotel real, não para uma
imagem. O Burritt Hotel poderia estar a cinco milhas de onde estamos; poderia até ter sido
demolido para dar lugar a uma autoestrada, e ainda o intencionamos através das palavras que
aparecem para nós. O Burritt Hotel pode estar ausente, mas ainda estamos direcionados para ele
através das palavras. Somos capazes dessas intenções vazias; somos formados desse modo, e essa
habilidade para intencionar o ausente é o elemento principal no estabelecimento da condição
humana.

Por alguma razão, parecemos resistir à ideia de que verdadeiramente intencionamos o ausente.
Queremos pressupor algo presente com o sentido das palavras: uma imagem, um conceito, uma
impressão do sentido, a palavra mesma. Enquanto tentarmos reduzir a intenção vazia à outra forma
de intencionalidade, enquanto negarmos que podemos intencionar o ausente, enquanto tentarmos
encontrar presenças substitutas para as ausências, estaremos bloqueados para uma compreensão
adequada do que somos e do que é a estrutura da consciência. Não podemos sequer compreender a
percepção a menos que saibamos o que é o seu contrário, a intenção significativa. Devemos obter
um sentido mais preciso da ausência e de seu papel na consciência humana.

Além do mais, a intenção significativa é também diferente do tipo de intenção vazia que acompanha
a percepção. Quando vemos a frente de um edifício, cointencionamos os lados ausentes, o de trás, o
interior, mas esse tipo de intenção vazia é diferente do tipo que opera no uso das palavras. As
intenções vazias que pervadem a percepção são contínuas e sempre mudam. Elas são como uma
almofada ou um halo que desliza ao redor se algo é dado centralmente. Elas cedem gradualmente à
presença. A intenção significativa verbal, de outro lado, é discreta e não contínua. Abarca seu alvo
todo e de uma vez e como um todo. Especifica seu alvo mais exatamente e mais explicitamente do
que fazem as intenções vazias na percepção. As intenções significativas não são regulares e
graduais, mas fazem movimentos rápidos, mais identificáveis como um todo: em virtude das
palavras “Burritt Hotel”, nós significamos apenas o Burritt Hotel por si mesmo, nada mais. As
intenções significativas, além disso, estabelecem sentidos discretos que podem ser localizados na
sintaxe e tornados em afirmações. As intenções significativas são a entrada na razão, enquanto as
intenções vazias que pervadem a percepção permanecem na sensibilidade. Uma vez que se
evidencia para nós que certos sons ou marcas são nomes, e uma vez que constatamos que todas as
coisas podem ser nomeadas, entramos num mundo diferente do da percepção animal, chamando, e
sinalizando; entramos no raciocínio linguístico.

Vamos voltar a pensar na mudança do perceber as marcas no papel para o intencionar o ausente
Burritt Hotel por intermédio das palavras que se distinguiram das linhas. Nós experienciamos essa
mudança, e a maioria de nós teve alguma experiência desse tipo uma vez ou outra; contudo, a
experiência que temos disso não é necessariamente emocional ou palpável. Nós não sentimos a
mudança em nosso tórax ou na boca do nosso estômago ou atrás de nossos olhos. A mudança é
simplesmente uma mudança de intencionalidade. E uma mudança puramente racional de um tipo de
intenção para outro. Como nos tornamos conscientes de tais intenções? Nós as "vemos” por
introspecção? São elas coisas mentais que de alguma maneira vemos ou sentimos? Não; e ainda
sabemos quando uma ou outra está operando dentro de nós, sabemos se estamos percebendo ou
significando. Sabemos a— diferença entre elas e as outras intencionalidades, tais como formar
imagens ou recordar. Não sentimos necessariamente nada quando subitamente tomamos uma
superfície como uma pintura, mas o novo modo de tomar a superfície é diferente do velho, no qual
simplesmente a percebemos.

Essas diferenças na intencionalidade tornam-se o foco de nossa atenção direta quando adotamos a
atitude transcendental. São diferenças que reconhecemos mesmo antes de entrar na filosofia; antes
de fazermos o giro transcendental já sabemos que enxergar um motivo decorativo não é o mesmo
que enxergar uma palavra, e sabemos que a visão de uma superfície é diferente da visão de uma
pintura. A filosofia toma essas diferenças como já dadas, e sistematicamente as investiga. Volta-se
explicitamente para elas.

Os críticos da fenomenologia frequentemente dizem que ela se assenta na introspecção e na


intuição das coisas subjetivas, das coisas mentais. Porém, as coisas que a fenomenologia investiga
são aquelas que já foram reconhecidas por alguém que pensa e fala, coisas como percepções,
intenções significativas e intenções pictoriais. A fenomenologia examina essas intenções, essas
atividades noéticas, e também examina seus correlatos objetivos, seus noemas, os tipos de objetos
que são estabelecidos ou almejados por elas: o objeto perceptual, a pintura, a palavra, o sentido
verbal, o referente verbal.

Temos usado como paradigma introdutório o exemplo do que acontece quando subitamente
descobrimos um nome dentro das linhas de um motivo decorativo. Esse tipo de descoberta, que
acontece conosco de tempos em tempos e que pode ser facilmente entendido, é útil como exemplo,
mas não é típico de como usamos as palavras. De fato, como seres humanos, vivemos sempre de
uma maneixa verbal; as palavras não são apenas eventos esporádicos ou ocasionais. Estamos
sempre já em um modo linguístico. Estamos sempre reconhecendo palavras em nossa volta no
tagarelar e no discursar de outros, em sinais (“Saída”, “Não entre'!), e em nossa vida imaginária
interna. As palavras sempre abundam, e as intenções significativas que as estabelecem como
palavras abundam também. Até nossas percepções são modificadas pelas palavras que são
chamadas à mente quando elas ocorrem; quando vemos, pela primeira vez, um lugar de que
ouvimos e lemos a respeito, tal como um campo de batalha ou a casa de uma pessoa famosa, todos
os tipos de nomes e asserções vagas surgem dentro de nós, como um rebanho de melros
subitamente-surgindo de uma árvore após um tiro ter sido disparado. A intuição perceptual se enche
de muitas intenções significativas vazias e estimula muitas mais.
A presença de intenções significativas torna possível para nós percebermos coisas de um modo
especificamente humano. A intenção significativa é comandada pelas coisas em sua ausência, mas
essa intenção pode também encontrar preenchimento numa percepção, numa intuição. Já
observamos a interação de intenções vazias e cheias, de ausência e presença, no estabelecimento da
racionalidade humana. Entre todos os tipos de intenções vazias e cheias, aquelas associadas com
atos significativos estão entre os mais propriamente humanos tipos de intencionalidade. Porque
podemos nomear e articular algo em sua ausência, podemos também ir à coisa mesma e ver se
podemos nomear e articular este algo em sua presença, em sua própria evidência, do mesmo modo
que ouvimos falar dela em sua ausência. Indagamos se as articulações significativas podem ser
transformadas em articulações perceptuais. Podemos receber mensagens de outros sobre como as
coisas são e então ir às coisas mesmas e comprovar por nós mesmos se elas são do modo que foi dito
serem. E especialmente na interação entre presença e ausência linguística que uma forma
salientada da identidade das coisas pode ser atingida. Podemos nomear e articular em palavras com
muito maior exatidão do que podemos meramente imaginar ou antecipar.

Há mais um ponto a ser considerado antes de encerramos este tratamento das intenções
significativas. Assinalamos que quando subitamente vemos as palavras “Burritt Hotel” no motivo
decorativo na página, intencionamos não mais somente o papel decorativo, mas o Burritt Hotel
mesmo, em sua ausência. A intenção significativa é direcionada para o hotel. Em segundo lugar, a
mesma intenção estabelece algumas das marcas como uma palavra. E, em terceiro lugar, a mesma
intenção estabelece um sentido como parte da palavra. A introdução da intenção significativa
apresenta assim três elementos: } uma referência, uma palavra e uma compreensão ou sentido. As
duas primei-ras, a referência e a palavra, parecem sem controvérsias, mas o que dizer da terceira?
Como o sentido se encaixa em tudo isso? O sentido não é apenas as marcas que se tornaram uma
palavra, nem é simplesmente o hotel. O sentido parece ser uma entidade intermediária estranha
entre a palavra e o objeto, uma entidade que parece formar-se de repente no ser em resposta ao ato
significativo. Parece ser algum tipo de um ser mental, uma “intenção”, como foi chamado. Em que
consiste a intenção, e que tipo de coisa é? Está na mente ou na palavra? Existe de qualquer modo? O
status do sentido verbal é uma perplexidade filosófica. Notamos esse problema agora, mas não o
exploraremos aqui; deixemo-lo para um tratamento mais extenso no capítulo VII.

Imagens
Se as palavras podem às vezes surpreender-nos e saltar fora de uma página, assim o podem as
imagens. Suponha que estamos olhando para a mesma folha de papel decorada de que falamos
anteriormente; subitamente, além das palavras “Burritt Hotel” a face de Harry Truman aparece na
rede das linhas. Talvez os proprietários do Burritt Hotel gostassem de sugerir que o presidente
Truman hospedou-se lá uma vez. Agora temos não apenas uma palavra, mas também uma imagem
afirmando-se diante de nós, e correspondentemente não entramos numa intenção significativa, mas
numa intencionalidade pictorial ou de visualização. A percepção permanece como uma base para
ambas as intencionalidades, mas as duas, a de significação e a de formação de imagens, são
diferentes uma da outra. Tomar algo como uma palavra é diferente de tomá-lo como uma imagem.
Uma vez mais, a intencionalidade pictorial não é rara ou surpreendente, mas muito comum em
nossa vida consciente; as imagens nos rodeiam. Vemos a fotografia aqui, a paisagem ali, o retrato de
Francis Bacon na parede acima de nossa estante de livros.

Há diferenças entre intenções significativas e pictoriais. Na significação a “seta” de


intencionalidade passa da palavra para um objeto ausente. Está rumo ao exterior. Parte de nós e de
nossa situação aqui para algo em qualquer outro lugar. Na formação de imagens, contudo, a direção
da seta é reversa. O objeto intencionado é trazido para nós, para nossa própria proximidade; a
presença do objeto é corporificada diante de nós no painel de madeira ou num pedaço de papel. As
intenções significativas apontam para a coisa, as intenções pictoriais puxam a coisa para perto. A
direção da intenção é diferente. Na imagem intencionamos Francis Bacon aqui e agora, não lá e
então. Francis Bacon como ele era lá e então torna-se presente aqui e agora.

Uma outra diferença entre a intenção significativa e a pictorial é que a significativa intenciona o
objeto de um lance, todo de uma vez, como um todo (significamos apenas o Burritt Hotel puro e
simples quando pronunciamos seu nome, não o significamos sob nenhum ângulo especial) enquanto
a pictorial apresenta o objeto sob certa perspectiva, em certa luz, com certa pose, em certo
momento, com certas feições realçadas. A pictorial é mais concreta, a significativa é mais abstrata.

Além do mais, a intenção pictorial é mais como uma percepção do que é a intenção significativa. A
intenção pictorial é muito mais como a visão ou a audição-da coisa: realmente não vemos ou
ouvimos a coisa, naturalmente, porque o que é dado é somente uma imagem e não a coisa mesma,
mas o modo no qual a pintura é dada tem analogia com o modo no qual a coisa mesma seria dada.
Como a percepção, a intenção pictorial é contínua, podemos focalizar em uma ou outra parte da
imagem, a imagem pode ser clara ou desvanecida, suas partes podem ser mais ou menos
vividamente articuladas. Existem diferenças, contudo, entre percepção ordinária e pictorial: não há,
por exemplo, “outro lado do cubo” para objetos que são representados; há somente o outro lado do
painel de madeira no qual a imagem existe. Os únicos lados, aspectos e perfis do objeto retratado
são aqueles que são representados.

Significação e formação de imagens são dois tipos de intencionalidades, mas podem interagir.
Podemos usar palavras para falar sobre uma imagem, e quando agimos assim podemos falar sobre
um ou outro, o material físico ou o conteúdo da imagem. A formação de imagens envolve a
percepção de um substrato ou um veículo (o painel de madeira, o papel colorido) e uma intenção do
objeto pintado (Francis Bacon, Wyvenhoe Park). Podemos dirigir nossa intenção verbal a um ou
outro, ao substrato ou ao tema: podemos descrever Bacon na imagem como modesto, como
desdenhoso, como mais envelhecido, e podemos descrever a casa no Wyvenhoe Park como oculta
pelas árvores, e o gado como pastando no prado. Porém, podemos também dizer que a pintura está
rachada, e que essas manchas azuis contrastam lindamente com essas brancas. Um dos prazeres de
olhar para uma pintura vem da mudança entre um foco no tema e um foco no substrato: podemos
caminhar para mais perto da pintura, ou podemos estreitar o alcance de nossa visão, com a
finalidade de concentrar no substrato material, apreciar as pinceladas e as cores nesses lugares
particulares; então voltamos para uma vista do todo mais amplo, retendo o todo enquanto nossa
posse recente da materialidade da~coisa. A interação entre o substrato e a forma realça a presença
da obra de arte, e tal interação é possível por causa das várias intenções significativas que criamos
sobre a coisa que estamos olhando.

A interação dãs intenções significativa e pictorial ocorre também quando identificamos sobre o que
é a imagem. Se segurarmos uma imagem da ponte do Brooklyn e indagarmos, “o que é isto?”, as
pessoas normalmente responderão, “a ponte do Brooklyn”, mas estritamente falando essa é apenas
uma das possíveis respostas. Alguém poderia apenas dizer também, “uma imagem” ou “um pedaço
de papel”. Alguém a identificaria geralmente como a ponte do Brooklyn, porque assume que deveria
entrar na intencionalidade pictorial que parece estar pressuposta pela questão. A engenhosa
ambiguidade da presença da imagem mostra-nos como muitas intencionalidades estão sempre
operando na nossa experiência ordinária.

Vamos observar, finalmente, que a formação de imagens está baseada em mais do que similaridade.
Uma imagem pode se assemelhar ao que ela representa, mas não é feita para ser uma imagem pela
virtude da semelhança; uma irmã gêmea assemelha-se a outra, mas ela não é uma imagem da outra.
Ser uma imagem não é apenas ser como algo outro, é ser a presentificação do que é pintado. Se
observamos uma imagem de Harry Truman, vemos Trumcin pintado, em sua individualidade; não
vemos apenas algo que se parece com ele.

Indicações, símbolos ou sinais


Se estivermos caminhando ao longo de uma trilha e enxergarmos uma pilha de pedras de
aproximadamente dezoito polegadas de altura, tomá-la-emos como um sinal de que ainda estamos
na trilha. Olharemos adiante e tentaremos ver uma outra pilha ou uma marca numa árvore, para
confirmar a continuação da trilha. A pilha de pedras não é uma palavra, nem é uma imagem; é um
outro tipo de sinal. Na fenomenologia, tais sinais têm sido chamados de indicações, mas também
poderíamos chamá-los símbolos ou sinais. Eles trazem à luz um outro tipo de intencionalidade, a
simbólica ou indicacional.

Sinais de indicação são como palavras, naquilo que as palavras têm de próprio no remeter-nos para
um objeto ausente (uma mecha de cabelo recorda-nos alguém, um emblema com quatro estrelas
representa um general de exército), mas eles são diferentes das palavras na medida em que não
especificam muito claramente como devemos intencionar o objeto. Eles somente chamam o objeto
indicado à mente. Em contraste, as palavras geralmente expressam o objeto para nós; elas nomeiam
o objeto e então dizem algo sobre iele. Quando nomeamos algo, usualmente o fazemos logo por
predicação, e •até uma simples palavra usualmente apresenta o objeto sob certo aspecto (as
^palavras “cão” e “vira-lata” designam ambas o mesmo animal, mas com um sentido diferente). Um
símbolo, contudo, apenas nos relaciona ao objeto e para aí. Apenas sinaliza o objeto e o traz à mente
sem qualificação. ié Uma diferença importante entre sinais de indicação e palavras é que os
primeiros não entram em sintaxe enquanto as últimas são essencialmente sintáticas. Símbolos não
entram na gramática. É verdade que uma indicação pode bem conduzir a uma outra (a pilha de
pedras faz-nos procurar o próximo marcador da trilha, o tiro de partida faz a chamada para a
bandeira que sinaliza o fim da corrida), mas isso é concatenação e não sintaxe. Não há diferentes
modos nos quais as séries de símbolos poderiam ser compostas; eles são colocados meramente em
sequência, como no início e no fim de uma corrida. A sintaxe, na linguagem, permite uma grande
flexibilidade; podemos intencionar uma coisa de muitos modos diferences porque podemos
expressá-la através da gramática de nossa linguagem, mas os símbolos não nos deixam livres para
configurar a presença das coisas desse modo. Eles meramente trazem a coisa à mente.
Enriquecimento de multiplicidades, otimização de identidade
No capítulo III consideramos as identidades que são dadas para nós nas multiplicidades de
manifestação. Um simples cubo é dado para nós por meio de um arranjo de lados, aspectos e perfis.
Agora que examinamos as modificações que a percepção pode assumir, vemos que as
multiplicidades de lados, aspectos e perfis são somente algumas das multiplicidades por meio das
quais as coisas são presentadas para nós. Todas as intencionalidades que consideramos neste
capítulo e no capítulo V expandem as multiplicidades de manifestações. Vamos sumarizar as formas
que examinamos. Em nossa vida interna, a experiência pode ser modificada nos seguintes modos:

1. Percepção

2. Recordação

3. Imaginação

4. Antecipação

Um e o mesmo cubo pode ser não somente percebido por meio de muitas perspectivas, mas também
imaginado, recordado e antecipado, e é urrf e o mesmo cubo em todas essas experiências.

Contudo, tais modificações “internas” de percepção pertencem mais propriamente ao nível da


sensibilidade. Tão importantes quanto são no estabelecimento da condição humana, também são
encontradas, em formas simples, em animais superiores: cães sonham e gatos veem algum sentido
em esperar a chegada de um rato. Os outros âmbitos de intencionalidades que estudamos neste
capítulo são construídos sobre a percepção e são mais propriamente intenções racionais e humanas:

1. Percepção

2. Significação

3. Formação de imagens

4. Indicação

Em cada grupo, todas as variantes são interdependentes. Não poderíamos ter memória sem
imaginação e antecipação; não poderíamos ter o poder para visualizar sem também ter o poder para
levar a cabo intenções significativas e o poder para estabelecer e reconhecer sinais de indicação.
Nosso intercurso perceptual com o mundo espalha-se em variações em nossa vida interna, nas quais
deslocamos nós mesmos em situações recordadas, imaginadas e antecipadas, e em variações em
nosso modo de apreender as coisas no mundo: significar coisas particulares e estados de coisas,
formar imagens de coisas que não estão presentes para nós, e simbolizar o que não pode ser pintado
ou posto em palavras.

Um e o mesmo objeto ou evento pode ser agora simbolizado, agora visualizado, agora intencionado
verbalmente e agora percebido; pode também ser imaginado, recordado e antecipado. Por meio de
todas essas permutações permanece a mesma coisa. Não vemos muitas manifestações diferentes
que apenas relacionamos a uma e à mesma coisa, mas mais propriamente uma e a mesma coisa é
ela mesma dada em novos e variados modos. Nesse fluxo de manifestações, a mesma coisa é
reconhecida inúmeras vezes. Sua própria identidade é incrementada e intensificada. Até poderíamos
dizer que seu ser é otimizado através do enriquecimento de suas multiplicidades de manifestação,
desde que o ser de uma coisa não é desconectado de sua verdade, e certamente a coisa desfruta
mais verdade à medida que suas manifestações são ampliadas. Há mais de Sonho de uma noite de
verão após centenas de interpretações e execuções do que havia antes. Há mais de um animal e de
um ser humano após terem manifestado a si mesmos por meio de acontecimentos da vida do que
havia antes. A atualidade envolvida na verdade não aperfeiçoa somente àquele que percebe, mas
também a entidade que é manifestada.

As várias intencionalidades que investigamos são efetivadas enquanto estamos na atitude natural.
Percebemos, imaginamos, recordamos e antecipamos, e também significamos, visualizamos e
simbolizamos, enquanto mantemos a crença no mundo e o foco mundo-dirigido que caracteriza a
atitude natural. Todas as identidades que consideramos aqui são dadas para nós enquanto
permanecemos na atitude natural: os marcadores de trilha, Francis Bacon e seu retrato, o parque
Wyvenhoe e a pintura que o retrata, o Burritt Hotel e seu nome são todos reconhecidos através das
camadas de manifestações que ocorrem para nós na atitude natural. Contudo, as descrições
reflexivas de todas essas atividades, multiplicidades e identidades são executadas nas atitudes
transcendental e filosófica. Nós, como filósofos, tomamos uma distância de todas essas
intencionalidades e de seus objetos; nós os contemplamos, os distinguimos e os descrevemos de um
ponto de vista diferente daquele no qual nós os efetivamos. Suspendemos nossas intencionalidades
naturais, colocamos entre parênteses as identidades correlatas com elas, e desvendamos as
complexidades que compõem nossa condição como seres humanos racionais que têm um mundo e
nele experienciam coisas. Provemos uma análise noética e uma análise noemática e assim lançamos
luz sobre o que é sermos no mundo como dativos de manifestação, e clarificamos o que é para os
seres ser e ser manifesto.
VII. INTENÇÕES E OBJETOS CATEGORIAIS
Os tipos de intencionalidades que exploramos nos capítulos V e VI eram bastante coloridos e
concretos. Examinamos a imaginação, a formação de imagens, a memória e outros elementos
familiares em nossa experiência. Neste capítulo passaremos a um tipo de intencionalidade mais
austera e mais puramente racional. Examinaremos o que a fenomenologia chama de
intencionalidade categorial. Este é o tipo de intenção que enuncia estados de coisas e proposições, o
tipo que funciona quando predicamos, relacionamos, coletamos e introduzimos operações lógicas
naquilo que experienciamos. Examinaremos a diferença, por exemplo, entre uma simples intenção
de um objeto e a elaboração de um juízo sobre esse objeto.

Relembramos que a palavra “categorial” está relacionada ao termo grego katégoreõ, o qual
originalmente significa o ato de denunciar ou acusar alguém, de publicamente declarar que alguma
característica pertence a ele, que ele é um assassino ou um ladrão. Na filosofia, o termo veio a
significar o ato de dizer algo sobre algo. O termo fenomenológico “categorial” aproxima-se dessa
etimologia. Refere-se ao tipo de intenção que enuncia um objeto, o tipo que introduz sintaxe no que
experienciamos. Uma casa é um objeto simples, mas o fato de que a casa é branca é um objeto
categorial. O significado do termo “Fido” ou “cão” é um significado simples, mas o sentido de “Fido
está faminto” ou “cães são domesticados” é categorial. Quando passamos ao domínio categorial,
passamos das simples intenções “unír-radiais” para as complexas intenções “multirradiais”. Como
passamos do simples para o categorial? Como infundimos as coisas que experienciamos na sintaxe?
Como mudamos da percepção para a intelecção?

O tema que iremos abordar é um desenvolvimento das intenções significativas introduzidas no


capítulo VI. As intenções significativas, aquelas associadas com as palavras, praticamente sempre
nos colocam na sintaxe e na forma categorial. Quase nunca dizemos apenas uma única palavra, e
quando o fazemos a palavra normalmente serve mais como uma exclamação ou ex-pletivo (“Harry!”,
“Encrenca!” “Rápido!”) do que como uma unidade linguística operativa completa. Exercemos nossa
humanidade mais completamente, agimos como animais racionais mais intensamente quando
usamos palavras, e nossa realização da verdade e do pensamento está implicada em nosso uso da
linguagem; a discussão sobre a intencionalidade categorial é, além disso, de grande importância na
fenomenologia, em nosso estudo do que é o ser humano e do que é ser um dativo de manifestação.
Além do mais, é especialmente no seu tratamento da intenção categorial que~a fenomenologia
provê recursos para escapar do predicamento egocêntrico da filosofia moderna. Algumas das mais
originais e valiosas contribuições da fenomenologia para a filosofia são encontradas na sua doutrina
sobre intenções categoriais.

A gênese dos juízos a partir da experiência

Antes de examinarmos a importância das intenções categoriais, vamos tentar obter uma ideia mais
completa do que elas são. Como as intenções categoriais nascem da experiência de objetos simples?
Para expor o processo, devemos distinguir três estágios.

Suponha que estamos percebendo um objeto: suponha que estamos olhando para um carro:

(1) Primeiramente, apenas olhamos de um modo bastante passivo. Nosso olhar se move de uma
parte a outra, examinamos a multiplicidade de lados, aspectos e perfis, examinamos a cor, a maciez,
o brilho da superfície, seu toque de dureza ou suavidade. Tudo isso é uma percepção contínua, tudo
se executa num único nível. Nenhum pensamento particular é engajado enquanto continuamos a
perceber. Além do mais, enquanto examinamos as várias multiplicidades de manifestação, um e o
mesmo carro é continuamente dado para nós como a identidade na multiplicidade.

(2) Agora, suponha que algumas abrasões na superfície do carro chamam nossa atenção. Nós
concentramos a atenção nelas. Destacamos essa parte do carro; não apenas essa parte espacial, mas
esse aspecto, essa abrasi-vidade, na parte espacial. Esse foco não é apenas mais da percepção
dispersa que a precedeu; esse destaque é qualitativamente diferente do que vinha sendo feito
continuamente antes. Contudo, não é ainda o estabelecimento de um objeto categorial. Até agora,
estamos num ponto intermediário: continuamos a experienciar as manifestações do carro, £
continuamos a reconhecer um e o mesmo carro em todas as manifestações, mas agora dirigimos
nossa atenção para uma das manifestações e a trouxemos para o centro do palco; ela distingue-se de
todo o resto. Uma parte vem em primeiro plano contra o segundo plano geral do todo.

(3) Mais um passo é necessário para estabelecer um objeto categorial. Interrompemos o fluxo
contínuo da percepção; voltamos para o todo (o carro), e agora o tomamos precisamente como
sendo o todo, e simultaneamente tomamos a parte que destacamos (a abrasão) como sendo uma
parte nesse todo. Agora registramos o todo como contendo a parte. Uma relação entre o rodo e a
parte é enunciada e registrada. Nesse ponto podemos declarar, “esse carro está avariado”. Este
acontecimento é uma intuição categorial, porque o objeto categorial, a coisa em sua enunciação,
torna-se realmente presente para nós. Não temos apenas o carro presente para nós; mais
precisamente, o ser do carro avariado é feito presente.

O que acontece nesse terceiro estágio é que o todo (o carro) é apresentado especificamente como o
todo, e a parte (a avaria) é apresentada especificamente como uma parte. O todo e sua parte são
explicitamente distinguidos. Uma relação entre eles é distintamente registrada. Uma articulação é
efetivada. Um estado de coisas se organiza. Movemo-nos da sensibilidade para a intelecção, da mera
experienciação para uma compreensão inicial. Movemo-nos da intencionalidade unirradial da
percepção para a intencionalidade multirradial do juízo. Entramos no pensamento categorial.

No primeiro e no segundo estágios, o todo e as partes foram experien-ciados ou vividos sem


interrupção, mas não foram tornados temáticos. Estritamente falando, não foram ainda enunciados.
Mesmo no segundo estágio, quando a parte foi trazida à frente, ela foi destacada, mas não foi ainda
reconhecida explicitamente como uma parte. A parte foi trazida à frente, mas seu ser uma parte não
foi trazido à frente. Nesse segundo estágio a parte está sendo predisposta, por assim dizer, para
tornar-se conhecida como um atributo, mas não foi ainda identificada como tal. No terceiro estágio o
todo e as partes são articulados de modo explícito.

Deveríamos notar, contudo, que o terceiro estágio não seria alcançado sem a preparação propiciada
no segundo, sem o primeiro relance da estrutura, a concentração sobre um aspecto, que vai além da
simples percepção contínua. O primeiro estágio náo é diferenciado o suficiente para conceder
diretamente uma estrutura categorial. O foco especial que ocorre no segundo estágio é necessário.
Temos de começar a experienciar uma parte dentro do todo (a abrasão) antes de podermos enunciá-
lo como tal (“o carro está avariado”).

Muito material filosófico está contido no que acabamos de descrever. Descrevemos uma mudança de
intencionalidade que ocorre quando vamos da percepção simples para a intenção categorial, para o
pensamento. A realização intencional que descrevemos é a base reflexiva para a linguagem e a fala
humana. A linguagem não flutua por si mesma no topo de nossa sensibilidade; a razão pela qual
podemos usar a linguagem é que somos capazes do tipo de intenção que constitui objetos
categoriais. A sintaxe que define a linguagem é fundada na enunciação de todos e partes que têm
lugar na intenção categorial. A sintaxe na linguagem expressa simplesmente as relações de parte e
todo que são postas em cena na consciência categorial. A razão pela qual podemos comunicar, a
razão pela qual podemos dizer a alguém: “aquele carro está avariado”, é porque temos o poder de ir
da percepção ao pensamento categorial. Não é o caso de que podemos pensar porque temos a
linguagem; ao contrário, temos a linguagem porque podemos pensar, porque temos a habilidade
para efetivar intenções categoriais. O poder de consciência racional subjaz à capacidade para a
linguagem. É verdade que a linguagem que herdamos pressiona nossas atividades categoriais nessa
ou naquela direção, nessas ou naquelas formas categoriais, mas a habilidade mesma da linguagem
está baseada nos tipos de intencionalidade que desfrutamos no domínio categorial.

Consumiremos algum tempo desembrulhando as implicações dessa transição da experiência ao


juízo. Antes de tudo, notemos que o movimento no domínio categorial é obviamente descontínuo à
experienciação que o precedeu. O deslocamento pelo categorial não é apenas de mais percepção;
não é apenas um adicional desenrolar-se das multiplicidades que são dadas na percepção. No
terceiro estágio observado anteriormente, quando voltamos para o todo e o registramos
precisamente como o todo contendo a parte em questão, interrompemos a continuidade da
percepção. Começamos de novo num novo nível; voltamos sobre o que tinha sido experienciado e
iniciamos um novo nível de identidade. Esse novo começo instala um novo tipo de consciência e um
novo tipo de objeto, o estado de coisas, como o correlato objetivo daquela consciência.

Segundo, o estado de coisas que é registrado, o ser do carro avariado, é uma “unidade”, uma
unicidade de modo que é diferente da identidade que foi dada na percepção. É uma unicidade
salientada. É mais discreta e identificável. A percepção contínua apenas avançava e mais e mais
perfis eram dados, num processo que teria continuado indefinidamente. Agora, contudo, temos um
único estado de coisas (“o carro está avariado”) que pode ser pego e carregado ao redor, por assim
dizer; pode ser destacado da imediatez da percepção e de nossa situação presente. Pode ser
transmitido por alguém numa comunicação. (Em contraste, não podemos realmente transferir nossa
percepção ou nossa memória para outrem.) Pode ser logicamente relacionado a outros estados de
coisas que registramos. O tema da identidade, que foi tão importante mesmo na percepção, na qual
uma identidade é dada através da multiplicidade, adquire um novo sentido e um novo nível de
intensidade. Agora temos identidade na consciência categorial, o tipo de identidade que é
apresentado, preservado e transportado através da fala.

Terceiro, a identidade do objeto categorial é manifesta toda de-uma vez. Na percepção temos um
processo no qual perfis seguem-se uns aos outros sequencialmente, mas no registro categorial o
todo e a parte são dados si— multaneamente. Não é o caso de que primeiro temos o todo por si
mesmo (“o carro”) e em seguida, como uma realização separada, a parte ou o predicado
(“avariado”), e então uma relação delineada entre os dois (“é”). Mais propriamente, mesmo
enquanto registramos o carro como o todo, devemos já ter a parte em mente. O todo-com-parte vem
em bloco, sincronicamente. Quando temos um todo enunciado dado para nós, não temos o todo
primeiro e em seguida a enunciação. O todo como tal é manifesto somente como enunciado. Essa
simultaneidade do objeto categorial é um aspecto adicional de sua discrição, o qual deve ser
contrastado com o caráter contínuo da experiência perceptual.

Na terminologia fenomenológica, o estabelecimento de objetos categoriais é chamado de sua


constituição. O termo “constituição” não deve ser tomado para significar algo como uma criação ou
uma imposição de formas subjetivas sobre a realidade. Na fenomenologia, “constituir” um objeto
categorial significa trazê-lo à luz, enunciá-lo, trazê-lo para o primeiro plano, realizar a sua verdade.
Não podemos manifestar uma coisa de algum modo que nos seja agradável; não podemos fazer um
objeto significar algo que desejamos. Podemos trazer uma coisa à luz somente se a coisa oferece a si
mesma em certa luz. A coisa tem de mostrar-se com certos aspectos que podemos destacar se
estamos aptos a declarar que ela tem certas características. Se não experien-ciarmos algo como as
abrasões no carro, não estaremos aptos a constituir o carro como avariado. Naturalmente, podemos
ser enganados por falsas

aparências, nas quais-o carro meramente parece estar quebrado, e podemos erroneamente declarar
que ele está avariado quando não está, mas então remediamos essa situação simplesmente por outra
e mais próxima experiência do carro, ou por ouvir o que outra pessoa tem a dizer sobre ele, ou
avaliando o que deve realmente ser o caso; então, chegaremos a ver que estávamos enganados.
Temos de nos submeter ao modo que as coisas manifestam a si mesmas. Submeter-nos desse modo
não é colocar limitações à nossa liberdade, mas levar a cabo a perfeição de nossa inteligência, a
qual está ajustada por sua natureza a abrir-se ao modo como as coisas são. Submeter-se desse modo
é ser levado ao triunfo da objetividade, que é o que nossas mentes estão predispostas a fazer.
“Constituir” um estado de coisas é exercer nossa compreensão e deixar uma coisa manifestar-se a si
mesma para nós.

Algumas notas adicionais sobre a terminologia: o desenvolvimento de objetos categoriais a partir da


experiência é chamado constituição genética, devido aos estágios por meio dos quais objetividades
mais elevadas chegam a ser desde as mais inferiores. Objetos e intenções categoriais são
obviamente fundados em objetos e intenções simples. São partes não independentes. A atividade
intelectual humana é baseada no sensível. Finalmente, a intencionalidade predicativa, na qual
predicamos uma característica de um objeto e declaramos que “S é p”, é a forma proeminente de
atividade categorial; o termo pré-predicativo, em contraste, é usado para designar o tipo de
experiência e intencionalidade que precede a categorial. Um dos principais tópicos na
fenomenologia é o da experiência pré-predicativa, o tipo de experienciação que precede mas
também conduz à realização categorial.

Novos níveis de identidade, novas multiplicidades


Temos permanecido com a predicação em nossa análise da intencionalidade categorial, mas há
muitos outros tipos de enunciação que podem acontecer à medida que nos movemos para o nível-
superior dessa forma de consciência. Além de dizer “o carro está avariado”, podemos enunciar
outras características internas do carro: “o carro é grande”, “é velho”, “é um Ford”. Podemos
enunciar suas relações externas: “está na área de estacionamento”, “está próximo ao Honda”, “é
menor do que meu caminhão”. Podemos incluí-lo numa coleção: “há cinco carros”, “três dos carros
parecem estar avariados”. Podemos introduzir orações independentes e subordinadas, conjunções,
preposições, pronomes relativos e orações relativas, advérbios, adjetivos e muitos outros aspectos
gramaticais, todos que expressam os vários modos que permitem a coisa ser enunciada. O âmbito do
categorial é muito amplo, tão extensivo quanto a gramática da linguagem humana.

Todo esse domínio da enunciação categorial, em todas as suas variedades e nuanças, baseia-se,
junto com a formação de imagens e simbolização, nas intencionalidades “mais baixas” da percepção,
da imaginação, da recordação e da antecipação. A intencionalidade linguística categorial humaniza
nossas percepção, imaginação, recordação e antecipação; ela as eleva a um nível mais racional do
que elas alcançam no reino animal. A incenção categorial introduz novas multiplicidades que
suplementam e penetram as multiplicidades encontradas na experiência pré-predicativa.

A intencionalidade categorial é ela mesma um novo tipo de identificação, um novo tipo de síntese de
identidade, que também suplementa e penetra aquelas alcançadas na experiência pré-predicativa.
Quando intencio-namos categorialmente o cubo, não temos apenas a identidade de um cubo que é
percebida por meio de uma multiplicidade de lados, aspectos e perfis, e através da multiplicidade de
memória, imaginação e antecipação; temos também a identidade alcançada através das declarações
que podemos fazer sobre ele, as declarações que podemos ouvir dos outros a respeito dele, feitas
desde seus pontos de vista, e os preenchimentos que podemos alcançar quando ouvimos o que os
outros dizem e então tentar confirmar suas opiniões indo e olhando e enunciando diretamente por
nós mesmos. Uma totalidade nova no âmbito da manifestação e da verdade é aberta no domínio
categorial. Mesmo nossas imaginações, memórias e antecipações assumem uma complexidade
categorial: podemos antecipar não só “água”, mas “a água fria da primavera na montanha”. Na
consciência humana, a percepção, a imaginação, a recordação e a antecipação, todas mostram o
efeito de ser determinadas para a sua conclusão no pensamento racional. O modo no qual
exercemos essas formas de intenção é formado por seu envolvimento na intencionalidade categorial.

O que acontece nas intenções categoriais é que as coisas que percebemos tornam-se elevadas no
espaço das razões, o domínio da lógica, do argumento e do pensamento racional. A experiência
categorial é o ponto de transição que leva da percepção à inteligência, em que a linguagem e a
sintaxe entram em cena. Por meio da enunciação categorial, as coisas que percebemos tornam-se
registradas e admitidas no campo do raciocínio e da conversação. A percepção simples é mais um
processo fisiológico e psicológico, enquanto o registro categorial é o primeiro movimento no lógico.

Quando falamos, no capítulo III, sobre o objeto como uma identidade em uma multiplicidade de
manifestação, insistimos que a identidade mesma nunca se mostra como um dos lados, aspectos e
perfis por meio dos quais ela é dada A identidade dele pertence a uma outra dimensão. E essa
identidade, contudo, à qual nos referimos quando nomeamos o objeto e o trazemos à enunciação
categorial. Portanto, o cubo que é perceptualmente dado em e por meio de uma multiplicidade de
lados, aspectos e perfis é a identidade a que nos referimos quando pronunciamos as palavras “o
cubo” e começamos a predicar características dele. A identidade do cubo é a ponte entre a
percepção e o pensamento.

Objetos categoriais
Por meio de nossas intenções categoriais, estabelecemos objetos categoriais. Constituímos estados
de coisas, tais como o fato de que o carro está avariado. Esses objetos categoriais são objetos de
fato; eles não são apenas arranjos de conceitos ou ideias. Eles não são objetos “intramentais”; eles
são cristalizações inteligidas que tomam lugar nas coisas que encontramos. Na atividade categorial
enunciamos o modo como as coisas são manifestadas para nós; expomos as relações que existem nas
coisas no mundo. Temos esse foco mundo-dirigido, quer intencionemos as coisas que estão
presentes para nós ou as coisas que estão ausentes. Devemos enfatizar o fato de que os objetos
categoriais são modos nos quais as coisas apresentam-se; eles não são “coisas na mente” subjetivas,
psicológicas.

Para apresentar a objetividade dos objetos categoriais, vamos examinar alguns outros exemplos. Já
falamos sobre o estado de coisas expresso pela afirmação “esse carro está avariado”. Como outro
exemplo, suponha que estamos envolvidos numa discussão com duas outras pessoas. A discussão
progride, mas então algo duvidoso começa a vir à tona; algo não cheira bem no que elas estão
dizendo e no modo como o estão dizendo. Esse estágio intermediário é como o estágio, em nosso
exemplo anterior, quando as abrasões no carro começaram a atrair nossa atenção. Então,
subitamente, registramos a situação: “elas estão querendo fazer a nossa cabeça!” O estado de coisas
ficou compreensível de repente na situação, uma intuição categorial é alcançada, os todos e as
partes são enunciados, a sintaxe é instalada no que experienciamos.

Novamente, suponha que estamos caminhando ao longo de uma trilha, olhando as pedras que se
estendem ao lado. Subitamente, percebemos que as coisas ali não são pedras, mas fósseis. O antes
passivo nível de percepção, a identificação contínua de um e o mesmo objeto por meio de muitos
perfis, dá lugar a um registro do estado de coisas: “Isso não é apenas uma pedra; é um fóssil no
chão!”

Os exemplos que examinamos — o carro avariado, o comportamento enganador, o fóssil e não a


pedra — são enunciações de coisas que estão diante de nós. Não são entidades mentais, não são
apenas significados na mente; são modificações no modo como as coisas estão sendo manifestadas
para nós. Essas modificações, essas mudanças no modo de presentificação, são “no mundo”, mas
obviamente não são no mundo no modo no qual uma árvore ou uma mesa é no mundo. Mais
precisamente, elas são objetos de nível-mais-elevado. São “lá fora” como modos mais complexos de
manifestação, modos mais intricados de ser manifestados. Os estados de coisas expressos pelas
palavras que usamos (“o carro está avariado”, “eles estão me enganando”) são verdadeiramente
partes do mundo. São como certos segmentos do mundo — esse carro, esse comportamento —
podem ser enunciados.

Os estados de coisas nesses exemplos estão aí diretamente diante de nós. Nós os intuímos. Na
maioria das vezes que falamos, contudo, os estados de coisas que expressamos estão ausentes de
nós. Falamos do que não está presente: o jogo de futebol de ontem, como nosso congressista está
votando, o que aconteceu na batalha de Sharpsburg. A posse humana da linguagem nos dá um
enorme alcance; podemos falar de coisas de há muito tempo e de muito longe, até de galáxias que
estão incrivelmente distantes de nós e de períodos de tempo de bilhões de anos atrás. A maioria de
nossas falas não alcança exatamente essa distância; a maioria delas é muito mais local (“o que ela
fez depois que você bateu à porta?” “O dentista era cuidadoso?”), mas ainda alcançam largamente o
que está ausente.

Um ponto extremamente importante é o fato de que quando falamos do ausente ainda estamos
enunciando uma parte do mundo. Não estamos aproveitando-nos de nossas ideias ou conceitos como
presenças substitutas para as coisas que estão ausentes. Estamos constituídos de tal modo que
podemos intencionar as coisas em suas ausências tão bem quanto em suas presenças. A
intèncionalidade da consciência é tal que alcança o mundo exterior todo o tempo, até quando tem
por alvo coisas que não estão diante dela. Se nós proferimos um discurso sobre a batalha de
Antietam, nós e nossa audiência intencionamos aquela batalha, ainda que ela tenha acontecido mais
de 130 anos atrás. Se nós aqui em Washington-DC falamos sobre o Empire State Building, é do
edifício que estamos falando, não de algum significado ou imagem que pode vir à mente durante
nossa conversa.

Nosso discurso sobre o ausente, contudo, é entremeado por episódios nos quais falamos sobre o que
está presente. As vezes podemos apenas ter algo a dizer sobre os objetos que estão à mão, objetos
que podemos perceber. Outras vezes, nossa fala sobre coisas ausentes pode exigir que tenhamos de
ir e constatar se o que dissemos é verdadeiro ou não. Podemos ser questionados sobre o que
dissemos, e por fim, em alguns casos, podemos resolver a questão indo ver qual é o caso, isto é, indo
a algum lugar e registrando categorialmen-te a situação em sua presença (“Viu só? Nós dissemos a
você que uma coruja está se aninhando nesse celeiro”). Quando não podemos fazer isso, podemos
recorrer ao testemunho de outros, por documentos, por relíquias e outras formas de confirmação
indiretas, mas muitas dessas voltam a ser baseadas em registros categoriais diretos que foram
executados por alguém.

Assim, embora a nossa fala seja na maioria das vezes dirigida-para as coisas que estão ausentes,
pode se voltar para as coisas que estão presentes para confirmar ou não o que dissemos sobre as
ausentes. Uma síntese de identidades toma lugar entre o estado de coisas que intencionamos em
sua ausência e o mesmo estado de coisas que agora intencionamos em sua presença confirmativa.
Identificamos a situação dada agora com aquela mesma que intencionamos quando apenas
falávamos sobre ela.

A eliminação dos significados como coisas mentais ou conceituais


Na discussão da transição das ações categoriais que se ocupam com o ausente para aquelas que se
ocupam com o presente, introduzimos a questão da verdade. Notamos que em nossa experiência
mundana tentamos ver se as afirmações feitas na ausência dos objetos são verdadeiras ou não. Mas
parece estar faltando algo em nossa análise até agora.

Onde existem “os significados” de nossas palavras? Onde estão os juízos que efetuamos?
Tradicionalmente, o significado de nossas palavras, os juízos ou as proposições que fazemos, as
ideias que possuímos, todos têm sido tomados como algum tipo de coisa mental ou conceituai, algo
mais próximo de nós, algum tipo de coisas que nunca estarão ausentes. Por que tais coisas sempre
foram pensadas como estando diretamente presentes para nossa mente, elas pareceram aptas a
servir como uma ponte entre nós e o que intencionamos, especialmente quando intencionamos algo
que estava ausente. Essas coisas explicariam como poderíamos estar direcionados para aquelas que
não estavam próximas de nós. Essa compreensão de significados e proposições pode ser encontrada
em alguns pensadores medievais, em Descartes, nos empiristas ingleses, em Kant, na ciência
cognitiva contemporânea e em muitos filósofos da linguagem.

Além do mais, a questão da verdade parece requerer algum tipo de significado ou conceito ou juízo
entre nós e a coisa: quando reivindicamos ter dito a verdade, nós inferimos — ou não? — que o que
dissemos, os significados que temos correspondem ao que está lá fora. Se não há significados ou
proposições separadas das coisas que conhecemos, como podemos dizer que nossos juízos são
conformes às coisas como eles são? O que há ali que poderia ser conforme aos fatos? Como
poderíamos explicar o que é a verdade se não pressupuséssemos significados e jtiízos como algum
tipo de coisas mentais? O senso comum parece demandar que pressuponhamos significados como
algum tipo de entidade na mente.

E ainda, embora-pareçamos forçados a pressupor significados e juízos como coisas mentais ou


conceituais, tais coisas tornam-se filosoficamente envolventes e desconcertantes. Nunca as
experienciamos diretamente. Elas são postuladas como algo sem o qual não podemos agir, mas
também que ninguém nunca viu. São constructos teóricos menos do que entidades familiares. São
postuladas, não dadas, e são postuladas porque pensamos que não podemos explicar o
conhecimento e a verdade sem elas. Como existem? Que tipos de entidades são? São na mente ou
em algum tipo de terceiro domínio entre a mente e o mundo? Como fazem seu trabalho de nos
reportar aos objetos? Quantas delas temos? Entram elas na existência real e então saem dela,
movendo-se do virtual ao atual e voltando ao virtual novamente, como as evocamos? Parecem ser
duplicatas das coisas e estados de coisas fora de nós; porque precisamos pressupô-las? Mas como
podemos evitar agir assim? Proposições e significados como entidades mentais ou representacio-
nais parecem ser au pis aller, um beco sem saída, uma aporia. Estamos encaixotados nelas pelas
confusões filosóficas.

Acreditamos que uma das mais sofisticadas e mais valiosas contribuições da fenomenologia para a
filosofia repousa em seu tratamento de juízos e significados. A fenomenologia está apta a mostrar
que não precisamos pressupor juízos e sentidos como entidades mentais ou como intermediários
entre a mente e as coisas. Não precisamos introduzi-los como filosoficamente desconcertantes,
seres estranhos que têm o poder mágico de relacionar nossa consciência ao mundo exterior. A
fenomenologia provê uma nova interpretação do status dos juízos, das proposições e dos conceitos,
interpretação simples, elegante e verdadeira para a vida. E faz isso do seguinte modo.

Suponhamos que alguém nos diga que os talheres que está nos mostrando são de prata de lei.
Primeiramente, simplesmente concordamos com o que a pessoa nos diz e os vemos como prata.
Seguindo sua orientação, registramos o estado de coisas, “esses talheres são de prata”. Então,
começamos a ter dúvidas. A coisa toda nada acrescenta; como poderia ter tantos utensílios de
prata? Além disso, não se aparenta ou se assemelha a prata; é brilhante demais, contém estanho
demais.

O que acontece nesse ponto é que mudamos nossa atitude em relação ao estado de coisas que
tínhamos constituído. Originalmente, intencionamos os talheres como sendo simplesmente de prata;
nós os intencionamos ingenuamente e sem rodeios. Agora, começamos a hesitar. Entramos em uma
nova atitude, reflexiva. Ainda intencionamos os talheres como de prata, mas agora acrescentamos o
qualificativo, “como proposto por esse alguém”. Já não mais simplesmente acreditamos;
suspendemos a crença, mas ainda intencionamos a mesma coisa-e-feição. Mudamos o estado de
coisas, “esses talheres são de prata”, no mero juízo ou significado, “esses talheres são de prata”.
Não é mais um simples estado de coisas para nós; é agora, para nós, um estado de coisas como
sendo manifestado por outrem; esse qualificativo sucede apenas no juízo desse alguém, não no fato
simples.

A mudança de ser um estado de coisas para ser um juízo ocorre em resposta a uma nova atitude que
adotamos. Vamos chamar nossa nova atitude de “atitude preposicional’, e chamar a reflexão que a
estabelece de “reflexão proposicional (ou judicamental)”. Também pode ser chamada de reflexão
apofântica, porque se estabelece e se volta para o juízo, o qual é chamado apophansis em grego. O
juízo, a proposição, o significado, o sentido nascem em resposta a essa nova atitude. O juízo, a
proposição ou o conceito não estão lá à frente do tempo como um tipo de entidade mediadora antes
daquilo sobre o qual se refletiu. Não estão lá de antemão fazendo seu trabalho epistemológico de
relacionar-nos ao mundo real. Não estão lá já, esperando por nós para voltar a eles ou para inferir
sua presença. Mais propriamente, são uma dimensão da manifestação, uma mudança no modo de
manifestação, que nasce quando entramos na atitude proposicional por meio de uma reflexão
proposicional. Nasce quando mudamos nosso foco. A proposição não é uma entidade subsistente; é
parte do mundo sendo enunciada, mas sendo tomada apenas como manifestação de outrem: nesse
caso, está sendo tomado como manifestação desse outrem. E o juízo de alguém.

O benefício dessa nova explicação de como proposições e significados vêm a ser é que evita a
necessidade de pressupor proposições e significados como misteriosas entidades mentais ou
conceituais. Preserva a diretivi-dade ao mundo de toda intencionalidade; mesmo quando nos
referimos a um juízo, estamos nos referindo ao mundo, mas áõ mundo precisamente como tendo
sido proposto por outrem.

Essa análise fenomenológica do juízo também nos permite esclarecer a verdade como teoria da
correspondência. Normalmente, o maior problema discutido na verdade na teoria da
correspondência é como explicar é a “adequação” entre a proposição e o estado de coisas. Porém,
de fato, um problema mais profundo é, em primeiro lugar, a questão do que são as proposições;
como elas vêm a ser? Qual o modo de existência delas? Antes de dizer como elas podem
corresponder às coisas, temos de dizer o que e como elas são.

Em vez de postular juízos, proposições e sentidos como entidades mediadoras, a fenomenologia os


vê como CQfrelatos de uma atitude proposicional e uma reflexão proposicional. Eles surgem em
resposta à nossa apreensão de um estado de coisas como sendo meramente proposto por alguém.
Nessa análise, não somente um estado de coisa é “no mundo”; mesmo uma proposição é “no
mundo”, mas no mundo somente como sendo projetada por alguém. E como o mundo sendo
projetado como sendo, por meio do que alguém está dizendo.

Alcançamos o seguinte ponto em nossa análise fenomenológica; movemo-nos da intenção ingênua de


um estado de coisas para tomar reflexivamente um estado de coisas “como estabelecido ou proposto
por outrem”. Os talheres “são” de prata, mas só como algo estabelecido ou apresentado por outrem;
nós não mais os intencionamos pura e simplesmente como tais. O que acontece em seguida? Neste
ponto temos um estado de coisas como intencionado por outrem. Não temos ainda a verdade da
questão resolvida.

O que acontece em seguida é que voltamos aos talheres e os inspecionamos mais de perto, olhamos
a sua nota de compra, procuramos por inscrições neles, talvez perguntemos a opinião de outras
pessoas e assim por diante. Então, após nossa própria e suficiente inspeção, podemos concluir, “sim,
afinal são de prata”. Se esse é o resultado de nossa pesquisa, então acharemos que o juízo do outro
corresponde ao modo como as coisas são. Nós já não tomamos o estado de coisas como apenas
sendo proposto por outrem. Voltamos a intenção diretamente para o “ser prata” dos talheres, mas
nosso retorno não é como a intenção ingênua original. Agora temos o estado de coisas como
confirmado, como passado pelo ácido teste da reflexão proposicional e confirmação. O estado de
coisas é o mesmíssimo que originalmente intencionamos, e o mesmo que tomamos como apenas
proposto por outrem; mas agora tomado como uma-nova camada de sentido, uma nova dimensão
noemática: agora é um fato confirmado e não apenas um estado de coisas ingenuamente
intencionado.

Essa explicação da correspondência entre o juízo e o fato pode ser chamada uma teoria “de-
citacional” da verdade, porque envolve o passo de primeiro meramente “citar” o estado de coisas
(durante a análise crítica, quando tomamos o estado de coisas como meramente proposto por
outrem) e então, removendo as aspas, anular a reflexão proposicional, deixando a atitude
proposicional e voltando à aceitação direta. Contudo, é uma teoria “de-citacional” que trata de algo
mais do que do mero fenômeno linguístico de introduzir e remover aspas; a teoria provê mais do que
uma explicação linguística, porque descreve as mudanças na intencionalidade que subjaz à citação e
à de-citação. Começamos com o estado coisas simplesmente, então nos movemos para o estado de
coisas como algo proposto, e em seguida mudamos para o estado de coisas como confirmado.

Naturalmerite, nossa investigação bem pode resultar na conclusão de que os talheres não são de
prata afinal; então, o "estado de coisas como algo proposto” continua permanentemente. Não de-
citamos, não anulamos a reflexão proposicional; os talheres nunca foram de prata, foram somente
propostos para nós como tais. Por conseguinte, esse particular “estado de coisas” era e é somente
uma proposição de outrem, somente um juízo de outrem, somente o significado de outrem, nunca o
modo como as coisas são. O estado de coisas veio a ser permanentemente desqualificado de ser
verdadeiramente o caso; permanecerá sempre a opinião de outrem, e uma opinião que é falsa. E
interessante notar, incidentalmente, que uma opinião ou um juízo é usualmente vinculado a alguém
de quem a proposição é, enquanto um fato não é a posse de ninguém em particular; está aí para
todos.

Essa fenomenológica teoria da verdade, em vez de se mover entre entidades mentais ou semânticas
e entidades reais, opera inteiramente no domínio da manifestação. Distingue as variedades nos tipos
de manifestação (a simples, a categorial, a proposicional, a confirmatória) e fala sobre as
identidades que são efetivadas dentro da nova multiplicidade que essas variedades introduzem. O
objeto perceptual, dado por meio de perfis, é agora mais identificado através da articulação
categorial e elevado ainda mais como um objeto dentro das mudanças da reflexão crítica e da
identificação confirmativa.

A dimensão da verificação categorial linguística também introduz grande riqueza e variedade.


Porque envolve uma dimensão intersubjetiva. Não temos somente o outro lado do cubo que alguém
pode ver enquanto vemos esse lado; também temos, digamos, as assertivas feitas por pessoas
séculos atrás, confirmadas ou não confirmadas pelas pessoas de agora, ou assertivas feitas por
pessoas muito diferentes de nós, vivendo em diferentes épocas e lugares, ainda compreendidas e,
em certo sentido, verificadas ou falsificadas por nossa própria experiência reflexiva. Também temos
as afirmações feitas por nós que serão confirmadas ou não confirmadas por outras pessoas em
outros lugares e épocas. A fala permite trocas intersubjetivas que se estendem mais amplamente do
que fazem as trocas baseadas nas percepções comuns simples.

Os passos na intencionalidade que temos considerado — da ingênua intenção categorial, da crítica


reflexão proposicional, e do retorno à confirmação ou não confirmação — são todos exercidos na
atitude natural. A teoria da verdade e do sentido fenomenológica analisa esses passos e seus
elementos da perspectiva privilegiada da atitude transcendental fenomenológica. Dessa posição
elevada, ela reflete sobre as intencionalidades verdadeiras e falsas que são exercidas em nosso
engajamento pré-filosófico e esclarece o que neles acontece.
Notas adicionais sobre atos e objetos categoriais
Obviamente, estamos mais ativos quando entramos nas intenções categoriais do que quando
simplesmente percebemos, imaginamos, recordamos e antecipamos coisas. Há algo como um novo
“produto” na intencionalidade categorial, o objeto categorial, seja esse objeto tomado como um
estado de coisas ou um juízo (o qual é um estado de coisas tomado como proposto). O novo produto,
o objeto categorial, pode ser destacado de seu contexto imediato e relacionado a algum outro pelo
uso da linguagem. Falando podemos “dar” a outrem o mesmo objeto categorial que vemos e
enunciamos agora. Essa outra pessoa pode enunciar esse objeto mesmo em sua ausência. Esse tipo
de distanciamento é muito mais radical do que o que ocorre nos deslocamentos da recordação ou da
imaginação, nos quais podemos presentificar coisas para nós mesmo na ausência delas. Recordar e
imaginar nos propicia um sentido original da ausência, mas não permite o tipo de comunicação da
ausência, e o tipo de controle que podemos ter sobre ela, que ocorre na fala.

A intencionalidade categorial eleva-nos a uma forma propriamente humana de verdade, a verdade


que envolve a fala e o raciocínio. Mas, se ela permite essa forma de verdade, também permite um
abuso da verdade propriamente humano; torna possível erros e falsidades numa escala que torna
pequenos os erros de percepção, as falhas de memória e os equívocos de imaginação das intenções
reduzidas. Se podemos “dar” ao outro um estado de coisas que ele não experienciou, podemos
também “dar” a ele uma versão falsa desse estado de coisas em nossa fala, ou podemos “dar” ao
outro um estado de coisas que afinal nunca aconteceu. Mais ainda, podemos até contradizer, isto é,
falar contra, nosso próprio si. Podemos ter uma convicção e então ter uma outra que anula a
primeira. Podemos defender como verdadeiro o estado de coisas de que essa pessoa é boa
companhia, e também defender como verdadeiro o estado de coisas de que essa pessoa é uma
companhia detestável. Podemos acreditar que “S é p” e também defender, em última instância, por
implicação, que “S não é p". Frequentemente, tais contradições são causadas por envolvimentos
emocionais, nos quais desejamos duas coisas que não podemos possuir juntas e não desejamos-
enfrentar o fato de que não podemos ter ambas; também podem ser causadas por confusão,
desatenção e inabilidade para controlar o material intelectual das ' coisas à mão. Examinaremos
essa origem intelectual da contradição quando chegarmos ao tópico da vaguidade.

Entrar no domínio categorial também permite a introdução da lógica. A lógica não pertence ao
reduzido nível da percepção e suas variantes, mas entra em cena no nível categorial. Uma vez tendo
constituído objetos cate-goriais, podemos formalizar esses objetos e prestar atenção à consistência
ou inconsistência das formas que disso resultam. Em vez de lidar com o objeto categorial, “o carro
está avariado”, podemos lidar com a forma pura, “S é p”, em que o conteúdo do objeto é
representado indiferente e a sintaxe é mantida no lugar. Em vez de lidar com “carro”, lidamos com
“todo e qualquer objeto” e, em vez de com “avariado”, lidamos com “todo e qualquer atributo”.
Então, podemos examinar as relações entre várias formas e ver, por exemplo, que a forma “S não é
p” não é consistente com a forma “Sp é q”. Se fôssemos afirmar a última e em seguida afirmar a
primeira (“essa casa vermelha é cara; essa casa não é vermelha”) estaríamos contradizendo a nós
mesmos. A consistência lógica é uma condição necessária para a verdade das afirmações; se as
afirmações se contradizem em virtude de sua forma lógica, então a priori elas não podem ser
verificadas pela nossa experiência das coisas mesmas.

Uma distinção é introduzida na fenomenologia entre dois tipos de sistemas formais, uns
pertencendo aos objetos e estados de coisas e ao lado “ontológico” das coisas, e outros pertencendo
aos juízos ou proposições e à região do sentido e do entendimento. A ciência das estruturas formais
de objetos e-estados de coisas é chamada de ontologia formal, enquanto a ciência das estruturas
formais dos significados e das proposições é chamada apofântica formal.

v Façamos mais um comentário sobre a doutrina que toma conceitos, juízos, significados ou sentidos
como entidades mentais ou conceituais, a doutrina que temos tentado refutar. Pensar que tais
entidades são necessárias para explicar o conhecimento denuncia uma falha para reconhecer a
intencionalidade da consciência. É tomar a consciência como simples, pura consciência, consciente
somente de si mesma, e assumir que a intencionalidade deve ser acrescida a ela pela inserção de
algum tipo de representação: üm conceito, uma palavra, uma proposição, uma imagem mental, um
símbolo, um sentido, ou um “noema”. Nessa visão não é a consciência que é essencialmente
intencional, mas a representação. É o inserir que faz a consciência intencional e especifica o que a
consciência intenciona e como ela o intenciona: o inserir estabelece uma intenção, uma referência e
um sentido. A representação nos relaciona aos objetos “exteriores” e lhes dá certo significado.
Porém, como poderia tal aditivo colocar intencionalidade na nossa consciência? Como poderíamos
saber que o que é dado para nós é uma palavra ou imagem ou um conceito, e que representa algo
“além” de si mesmo? Como poderiam as muitas dimensões de um “exterior” surgir para nós se não
estivessem aí desde o começo? Se a consciência não se pusesse em marcha sendo intencional, nunca
poderia figurar como ser assim.
O fenômeno da vaguidade (incerteza)
Vimos considerando as intenções categoriais e seus objetos correlatos, bem como a verdade, o
significado, os juízos, os estados de coisas, a verificação e a lógica. A fenomenologia também trata
de um outro tópico que joga um papel estratégico nessa rede de pbenomena, tópico que é só rara e
marginalmente tratado pela maioria dos filósofos. É o fenômeno da vaguidade. A vaguidade é
importante não só com respeito às questões mais científicas da lógica, do significado e da
verificação, mas também com respeito ao uso ordinário da linguagem e ao estabelecimento de um
falante responsável.

Quando dizemos ou lemos algo, é usualmente assumido que pensamos o que dizemos ou lemos.
Frequentemente esse não é o caso. As palavras são frequentemente usadas sem pensamento.
Podemos estar superficialmente lendo algo, ou podemos ouvir alguém falar, mas falhar em prestar
atenção ao que ele diz, podemos até dizer coisas a nós mesmos sem estar propriamente conscientes
do significado do que dizemos, ou podemos estar recitando algo mecanicamente. Às vezes a matéria
de que estamos falando está além de nós; realmente não compreendemos o que estamos dizendo.
Muito do que as pessoas dizem sobre política, por exemplo, se enquadra nisso. Muito do que dizem é
vago: os slogans são repetidos, as ideias favoritas são alardeadas, asserções feitas por outros são
mencionadas verbalmente, mas sem compreensão. A maioria das sondagens de opinião pública
mensura um pensamento vago. O poder humano da fala, o nobre poder que nos dá nossa dignidade
como seres humanos, também torna possível para nós parecer estar pensando quando realmente
não estamos. Isso é um modo especificamente humano de falhar em ser o que se poderia ser, e é
muito importante nas ocupações humanas.

O que ocorre na fala sem pensamento é que a atividade categorial que deveria acompanhar a fala
não é adequadamente exercida. Há uma atividade categorial, mas não à altura do ser do problema
discutido ou asseverado. Há uma sucessão de ideias, mas não um pensamento. Se falamos
vagamente, alguém que nos ouve e que é mais atento do que nós normalmente irá achar, enquanto o
tempo avança, que o que estamos dizendo não faz sentido. Está deturpado. Irá nos pedir para
esclarecer o que estamos querendo dizer, para dar sentido à confusão que estamos apresentando.
Se ele tentar argumentar conosco ficará continuamente frustrado; argumentar com alguém que fala
vagamente é como tentar usar granadas de mão para dispersar um nevoeiro. Um ouvinte que não
for mais atento do que nós, contudo, não perceberá que estamos falando vagamente. Em sua própria
vaguidade, ele sentirá, se gosta da posição que parecemos tomar, que estamos enunciando com
êxito uma crença comum: “un fou trouve toujours un plus fou qui 1’admire”. Se o ouvinte não
simpatiza com o que parecemos estar lhe dizendo, ele ficará frustrado conosco e expressará o que
parece ser um outro ponto de vista. Mas, em tudo isso, nem sua mente nem a nossa estão
verdadeiramente ativas; estamos expressando algo como atitudes emocionais melhor do que
opiniões distintas. Não há argumento real, somente uma colisão de pensamentos meio-formados.

A vaguidade seria distinta de duas outras falhas com respeito à verdade e aos objetos categoriais: a
ignorância e o erro. Na ignorância nós simplesmente não tentamos enunciar os objetos categoriais
em questão; apenas silenciamos sobre o problema. Não fingimos pensar sobre ele, e não parecemos
estar pensando. Quando incorremos em erro, formulamos uma opinião sobre algo, e assim fazemos
explicitamente, mas ela mostra ser incorreta.

Nossa opinião não poderia se manter se fôssemos às coisas sobre as_quais estamos_falando e
tentássemos prová-las e registrá-las tais como estabelecemos que seriam. Nossas proposições
seriam não confirmadas. Em tal erro nós realizamos um pensamento distinto, e enunciamos um
objeto categorial, mas o pensamento e o objeto são falsos. Devemos ter superado a vaguidade e
alcançado a distinção se estamos a ponto de incorrer em erro.

A vaguidade fica entre a ignorância e o erro. E pensamento incipiente. E uma tentativa de pensar
que não chega lá exatamente, mas usa as palavras que geralmente indicam pensamento, e por essa
razão dissimula, embora involuntariamente. As palavras são ostentadas e dão a impressão de
pensamento, mas há pensamento insuficiente por trás delas.

Em alguns casos, é possível para o orador que começa com vaguidade pensar por meio das coisas de
que ele está falando e enunciar os estados de coisas e juízos que ele deseja enunciar. Neste caso, o
orador mudou da vaguidade para a distinguibilida.de. Ele alcança com êxito os objetos categoriais
que estava esforçando-se por constituir. Ele agora pensa claramente. Ele agora manifesta o estado
de coisas ou o juízo que estava anteriormente tentando presentar.

Quando o orador vai da vaguidade para a distinguibilidade, pode achar que o juízo que finalmente
alcançou é finalmente o mesmo que ele tinha vagamente afirmado; o juízo é o mesmo nos dois
modos de manifestação, o vago e o preciso. Mas pode também achar que o juízo preciso não é o
mesmo que o vago; mais precisamente, ele pode achar que o juízo vago abrigava contradições
dentro de si mesmo, e agora que a distinguibilidade foi alcançada as contradições ficaram
conhecidas; elas tinham sido ocultas, precisa-mente por causa da vaguidade. Portanto, a
possibilidade de contradições lógicas ou consistência demanda que nós tenhamos trazido o juízo
para a distinguibilidade, que o tenhamos distintamente enunciado. Até que um juízo seja trazido à
distinguibilidade, não pudemos dizer realmente se ele é verdadeiro ou falso, ou mesmo se é
consistente ou inconsistente consigo mesmo ou com outros juízos, porque ainda não sabemos o que
realmente o juízo é. Ainda não existe como um significado distinto, significado que poderia ser
verdadeiro ou falso, consistente ou inconsistente. Temos de saber o que alguém está dizendo antes
de podermos determinar se o que ele diz é verdadeiro ou falso.

A vaguidade pode abrigar inconsistência, mas pode também abrigar incoerência. Inconsistência
significa que uma parte do que dizemos contradiz uma outra parte com respeito à estrutura lógica
formal: dizemos ambos, “S é p” e “S não é p”. Incoerência, de outra parte, significa que o conteúdo,
como í oposto à forma, de nossos juízos não está adequadamente reunido. Significa que estamos
usando palavras-conteúdo que não fazem sentido quando \ postas juntas: podemos, por exemplo,
dizer que, literalmente, a nação é uma \ grande família, ou que a constituição política assegura um
trabalho para ; cada um, ou que o cérebro conhece quem está entrando pela porta (é a pes- í soa
que conhece as coisas, não o cérebro). A contradição lida com a forma dos juízos, a incoerência lida
com seu conteúdo, e ambos podem ocorrer na névoa da vaguidade. As palavras significam coisas,
mas é possível pôr as palavras juntas de modo a que o todo não signifique coisa nenhuma. Algumas
partes do todo “falam contra” outras partes, ou algumas partes não são misturadas adequadamente
com outras partes (características que pertencem à família são misturadas com as da nação,
características do todo da pessoa são misturadas com as de uma parte orgânica da pessoa).

Alguém sempre é vago em alguma ocasião, e não há nada de lastimável nisso. Temos de começar
com a vaguidade quando entramos em um novo domínio do pensamento. As ideias que vêm à mente
são, de início, quase sempre vagas e necessitam ser trazidas à distinguibilidade, quando as
inconsistências e as incoerências na ideia serão removidas. O estudante iniciante em matemática é
normalmente completamente vago sobre os objetos categoriais que está enunciando. Se ele é um
bom estudante, muda para a distinguibilidade. Algumas pessoas podem alcançar a distinguibilidade
mais facilmente e mais rapidamente do que outras. Algumas pessoas podem nunca sair da
vaguidade em certos domínios. Enquanto outras dificilmente sairão da vaguidade em qualquer
domínio. Elas apenas não pensam claramente e distintamente, embora utilizem uma linguagem, o
que pode aparentar para os outros que estão pensando adequadamente. Um tagarela é um exemplo
vivo de vaguidade. A opinião pública está inundada de vaguidade, demanda coisas contraditórias
das figuras públicas. O que “eles” dizem, o que “a gente disse”, o que “o homem disse”, tudo isso é
notoriamente vago, mas é ainda o ponto de partida para um pensamento autêntico. Nossos
pensamentos, os objetos categoriais que constituímos, não chegam prontos e acabados desde o
início.

Concluindo, nosso tratamento da vaguidade lidou com seu aparecimento na fala e no pensamento,
mas a vaguidade também ocorre na ação. De alguém que cronicamente fala sem pensar é suposto
que aja do mesmo modo, saltando de um movimento incompleto para outro e fazendo uma enorme
confusão das coisas. Nesse caso, a deliberação e a escolha é que são penetradas pela inconsistência
e pela incoerência que a vaguidade traz. O espetáculo dessa conduta, seja em negócios pessoais,
institucionais ou políticos, provocará ou piedade ou pesar no observador, dependendo de como ele
será afetado pela ação em questão.

Objetos categoriais e inteligência humana

Em vez de fechar este capítulo com o tema da vaguidade, que é uma deficiência no pensamento
humano, vamos terminar numa nota mais positiva e considerar algumas das excelências do domínio
de objetos categoriais.

A linguagem humana difere dos sons animais porquê contém a sintaxe. A linguagem humana contém
som, mas seu som é estruturado por padrões fonêmicos e por partículas gramaticais, inflexões e
arranjosrE o ordenamento gramatical da linguagem que torna o sistema de sinal linguístico
acessível ao controle humano, que o torna um sistema de extraordinária complexidade e
refinamento, e que o deixa tornar-se o veículo do exercício da verdade. A sintaxe eleva sons animais
em discurso humano. Na fenomenologia, os elementos sintáticos da linguagem têm sido chamados
de partes sincategore-mdticas da linguagem, porque elas “vêm com” as expressões que meramente
nomeiam objetos e características, as partes categoremdticas da fala.

As partes sintáticas da linguagem obviamente servem para ligar as palavras. Elas são a gramática
de uma linguagem. Esse trabalho linguístico, contudo, não é tudo o que elas fazem. Elas também
funcionam na intencionalidade: a sintaxe da linguagem está relacionada ao modo como as coisas
podem manifestar a si mesmas para nós, o modo como podemos intencioná-las e enunciá-las. As
partes sintáticas da linguagem servem para expressar as combinatórias da manifestação, o modo
como as coisas podem ser manifestadas para nós em várias relações de parte-todo. A fenomenologia
não considera apenas o papel linguístico da gramática, como estrutura linguística; também
relaciona a sintaxe à atividade de ser verdadeiro, para evidenciar.

Os elementos não sintáticos da linguagem (termos como “árvore” e “verde”) simplesmente nomeiam
as coisas e características, mas os elementos sintáticos expressam o modo no qual as coisas e
características são mostradas. As partes sintáticas das expressões têm correlatos objetivos. Na
sentença, “a árvore é verde”, os termos “árvore” e “verde” obviamente nomeiam as coisas e
características que podem ser dadas para a percepção, mas a cópula “é” também tem referência
objetiva, porque a sentença não apenas apresenta a árvore e a cor verde: apresenta o ser verde da
árvore, ou o estado de coisas

de que a árvore é verde. O “ser característico” da árvorg corresponde à cópula “é”. A cópula “é” não
apenas liga as palavras “árvore” e “verde”, mas também permite que o ser verde da árvore seja
intencionado por nós, mesmo em sua ausência. Para tomar outro exemplo, se fôssemos unir dois
termos, tais como “pimenta e sal”, a partícula gramatical “e” poderia corresponder ao “ser juntos”
dos dois itens: os dois estão não apenas individualmente manifestados, mas manifestados como
sendo juntos, tomados como um.

Por conseguinte, o modo como as coisas podem ser enunciadas por nós, o modo como elas podem
ser intencionadas ou na presença ou na ausência, o modo como elas “aparecem em pedaços” ou
“aparecem nos todos” para nós, tornam-se possíveis através da sintaxe da linguagem, e o gênio
gramatical de cada linguagem provê um estilo de manifestação que é distintivo da cada linguagem.
A fenomenologia relaciona a sintaxe aos modos de manifestação.

Quando registramos um objeto categorial, nós movemos da continuidade da percepção para uma
mais abrupta presença descontínua de objetos intelectivos, com todos e partes sendo explicitamente
reconhecidos. Apresentamos o nível-elevado, objetos categoriais, e tais objetos vêm em pacotes
descontínuos. Há muitos deles, expressos nas muitas sentenças que fazemos, e são todos inter-
relacionados. Os objetos dados à intelecção formam uma rede. Documentamos cada objeto
categorial quando os expressamos; colocamos a nós mesmos na gravação, estabelecemos
precisamente isso ou aquilo. Dizemos uma coisa, então outra, então ainda outra, mas enquanto nos
movemos de uma sentença a outra fazemos a anterior permanecer em vigor, e o que dissemos
subsequentemente tem de ser consistente com o que dissemos antes. As conexões entre todos esses
objetos categoriais são lógicas e não apenas associativas. Podemos perguntar se esse objeto
categorial ou sentido é consistente com aquele; podemos instigar o falante a evitar a contradição
(isto é, evitar dizer algo “contra” o que disse antes). Podemos também instigar o falante a explicar o
que ele enunciou, a dar razões e esclarecimentos sobre o que disse. O domínio categorial é o espaço
das razões, e a fenomenologia explora as intencionalidades intricadas que o constituem.

Quando somos bem-sucedidos em alçar os objetos que experienciamos na precisão de objetos


categoriais, não os fragmentamos em pedaços desco-nectados uns dos outros. Mais precisamente,
tornamos disponível uma mais profunda continuidade entre as coisas. Em vez de um fluxo
perceptual são dados estados de coisas inter-relacionados e, atrás deles, o sentido de um mundo ou
de um cosmos. O domínio categorial traz um novo sentido enunciado do todo; não é o caso de que
somente o pré-categorial é holístico. A precisão e a distinguibilidade no pensamento não atomizam
as coisas, mas permitem uma mais profunda apreciação da descrição do todo, possibilitando-nos
apreender a floresta precisamente porque apreendemos as árvores.

As partes sintáticas da fala expressam formas categoriais, e assim fazendo ajudam-nos a expressar o
modo em que o mundo manifesta-se a si mesmo para nós, mas elas também servem para uma outra
função. Elas também servem para indicar ou sinalizar que o falante está exercendo os atos de
pensamento que constituem os objetos categoriais. Elas sinalizam que o falante está falando e
exprimindo uma opinião, e não apenas gemendo ou arrotando. Quando ouvimos alguém falar,
ouvimos mais que os sons; também ouvimos a ordenação gramatical dos sons. Em virtude dessa
codificação temos o mundo e as coisas nele expressas para nós, e também temos a presença dada,
para nós, de um falante que toma a responsabilidade pelo seu ser expresso nesse modo. A
linguagem e a sintaxe são usadas para revelar um mundo e as coisas nele, mas elas também, num
modo diferente, revelam o falante que está usando a linguagem e a sintaxe no momento. Elas
revelam um ego transcendental, um agente responsável pela intencionalidade e pela evidência.

Neste capítulo consideramos a intencionalidade categorial, a forma de intenção que sobrevém da


forma mais básica de percepção e suas variantes. A intenção categorial é o domínio da razão ou do
logos. Estabelece objetos categoriais, objetos que são penetrados pela sintaxe, com partes e todos
explicitamente registrados. Os objetos categoriais são encontrados no lado ontológico das coisas
(estados de coisas, coisas, atributos) e também no lado apofântico (juízos, proposições, sentidos,
sujeitos, predicados). A verificação move-se entre esses dois lados, entre o ontológico e o apofântico.
Os estados de coisas e os juízos têm de ser trazidos à distinguibilidade antes de poderem ser
confirmados ou não confirmados, e até antes de poderem ser compreendidos (na verdade, trazê-los
à distinguibilidade é precisamente compreendê-los). Eles são trazidos à distinguibilidade fora da
matriz de vaguidade, a qual é um tipo de alicerce e fonte de categorialidade.

Nossa atenção foi dirigida aos objetos categoriais, mas, como assinalamos, o domínio do categorial
também envolve a emergência de um falante responsável. Requer um si elevado além do si
constituído na percepção, na memória e na imaginação. Objetos categoriais envolvem atividade
categorial, a qual por sua vez requer um agente da verdade que a realiza. E para esse si, o ego
transcendental, que agora iremos nos voltar.
VIII. A FENOMENOLOGIA DO SI (SELF)
As coisas que experienciamos presentam a_si mesmas como identidades dentro da multiplicidade de
manifestações. Nosso próprio si, nosso “ego”, também estabelece e presenta a si mesmo para nós
como uma identidade numa multiplicidade de manifestações, mas a multiplicidade na qual nos
presentamos para nós mesmos é diferente daquela na qual as coisas são presentadas. Nunca nos
presentamos para nós mesmos no mundo como apenas uma coisa a mais; permanecemos, cada um
de nós, como centro, como os agentes de nossa vida intencional, como aqueles que têm o mundo e
as coisas neste dadas a eles. Nosso poder de manifestação, nosso ser dativo de manifestação para as
coisas que aparecem, introduz-nos na vida da razão e no modo humano de ser.

O ego empírico e o transcendental


Há uma admirável ambiguidade em relação ao ego: de um lado, ele é uma parte comum do mundo,
uma das muitas coisas que nele habitam. Ele ocupa espaço, dura através do tempo, tem
características físicas e psíquicas, interage casualmente com outras coisas no mundo: se ele cai, cai
como qualquer outro corpo; se é empurrado, tomba como qualquer outra coisa; se é tratado com
química, reage como qualquer organismo vivo; se raios de luz aquecem seus órgãos visuais, reage
eletronicamente, quimicamente e psicologicamente. O “eu” é uma coisa material, orgânica e
psicológica. Se fôssemos tomar o si simplesmente como uma das coisas no mundo, estaríamos
tratando-o como o que pode ser chamado de ego empírico.

De outro lado, esse mesmíssimo si pode também ser posto contra o mundo: ele é o centro de
manifestação para quem o mundo e tudo nele manifesta a si mesmo. É o agente da verdade, o único
responsável por juízos e verificações o “dono” perceptual e cognitivo do mundo. Quando
considerado dessa maneira, ele não é mais simplesmente uma parte do mundo; ele é o que é
chamado de ego transcendental.

Os egos empírico e transcendental não são duas entidades; eles são um e o mesmo ser, mas
considerado de dois modos. Além do mais, não é apenas nossa maneira de considerar o ego que
introduz a distinção entre o empírico e o transcendental; não é apenas nossa adoção de uma
instância empírica e uma transcendental que estabelece a dualidade no si. Mais propriamente, o ego
existe nesse duplo modo. Podemos considerá-lo nesse modo dual só porque ele possui o tipo de ser
que lhe permite ser assim considerado. Não poderíamos atribuir um ego transcendental a uma
árvore ou a um gato.

A ambiguidade do ego consiste no fato de que algo que é uma parte do mundo possa ficar contra o
mundo, e até “possuir” ou ser correlato com o mundo. O ego parece ser ambos, uma parte e também
uma não parte do mundo. Isso não quer dizer que o ego poderia ser destacado do mundo, que se
poderia descobri-lo ou mesmo imaginá-lo existindo sem um mundo. Mesmo como transcendental, o
caráter intencional do ego requer que ele tenha coisas e um mundo correlato consigo mesmo. O ego
e o mundo são momentos um para o outro. Contudo, quando o ego é considerado como tendo um
mundo, ele não é mais apenas uma parte dele. Ele é correlato com o mundo como o dativo para o
qual o mundo é “dado”.

Há uma forte tendência para reduzir o ego transcendental ao empírico. Quando lidamos com a
cognição humana, tendemos a querer tratá-la como meramente um item a mais nas trocas causais
que acontecem no mundo, a par com coisas simplesmente engajadas em causações mecânicas,
químicas e biológicas. Assim, a geração do conhecimento na mente é frequentemente tomada por
ser apenas como a geração de mudanças químicas no corpo. Pensamos que podemos dar uma
explicação suficiente do que é o conhecimento dando conta do que acontece, por assim dizer, no
cérebro e no sistema nervoso quando chegamos a conhecer as coisas. Muitos escritores do campo
da ciência cognitiva, por exemplo, tentam reduzir o conhecimento e outros acontecimentos racionais
meramente a estados físico-cerebrais. Tentar manusear o conhecimento desse modo poderia ser
chamado de biologismo ou reducionismo biológico.

Um outro tipo de reducionismo, um tipo mais sofisticado, é o psicológico; é chamado psicologismo.


Desde seus primórdios no começo do século XX, a fenomenologia atacou a interpretação psicologista
da verdade, da razão e do ego; o psicologismo foi a frustração contra a qual a fenomenologia
originalmente definiu a si mesma. Não obstante, muito paradoxalmente, muita gente erradamente
considera a fenomenologia mesma uma forma de psicologismo.

O que se entende por “psicologismo”? O psicologismo é a reivindicação de que coisas como lógica,
verdade, verificação, evidência e raciocínio são simplesmente atividades empíricas de nossa psique.
No psicologismo, a razão e a verdade são naturalizadas. As leis da verdade e da lógica são tomadas
por ser leis empíricas de alto nível, que descrevem como nossa mente funciona; elas não são vistas
como constituintes dos muitos significados da verdade e da razão. Por exemplo, no psicologismo, o
princípio de não contradição poderia ser tomado simplesmente como uma enunciação de como
nossa mente opera; ele estabeleceria como acontecem os arranjos de nossas ideias; ele não seria
visto como a diretiva de como as coisas têm de se revelar a si mesmas. Ele nos diria sobre os
hábitos, não importando se inatos ou adquiridos, de nossa mente, não sobre como as coisas têm de
ser e como têm de desvelar a si mesmas. Mais, o fato de que a linguagem humana requer a sintaxe
seria apresentado como simplesmente um fato histórico sobre os seres humanos e seu
desenvolvimento psicológico. O psicologismo, junto com o biologismo, trata o significado e a
verdade como um assunto de fato empírico, não como uma dimensão que subjaz e
consequentemente transcende o empírico, não como uma dimensão que pertence ao ser das coisas.

O psicologismo é a mais comum e a mais insidiosa forma de reducionismo. O biologismo o segue de


perco. Uma vez que reduzimos as leis do significado, da verdade e lógicas a leis psicológicas,
estaremos inclinados a reduzi-las num passo seguinte às estruturas biológicas que subjazem a nossa
psicologia. Assim, no biologismo, o fato de que a linguagem humana essencialmente envolve a
sintaxe seria tomado como causado simplesmente pelo modo pelo qual o cérebro é conectado e o
modo como ele tem evoluído. Não seria baseado no fato de que as coisas devem ser enunciadas
quando elas são descobertas. A explicação completa para a sintaxe seria baseada no cérebro, sem
atentar ao modo como as coisas existem e manifestam-se a si mesmas.

A abordagem fenomenológica, de outro lado, poderia obviamente consentir que a conexão do


cérebro é uma das causas da sintaxe na linguagem, bem como da percepção, das intenções
categoriais, e do conhecimento da ciência, mas poderia então reivindicar que alguém deve também
prover uma explicação de um outro tipo baseada nas coisas que aparecem. Além de olhar para a
conexão no cérebro, devemos também olhar para o fato de que as coisas podem ser distinguidas em
todos e partes, que elas podem ser percebidas e visualizadas, que essências e acidentes podem ser
distinguidos nelas quando elas manifestam a si mesmas para nós. Esse segundo tipo de explicação é
diference, obviamente, do tipo de explicação que estuda a conexão no cérebro e nossas disposições
psíquicas; pode ser difícil obter clareza sobre que tipo de explicação é esse segundo tipo, mas não se
pode descartá-la.

A fenomenologia tem travado uma luta heroica contra o psicologismo desde o início. Tenta mostrar
que a atividade de alcançar o significado, a verdade e o raciocínio lógico não é apenas uma
característica de nossa constituição psicológica ou biológica, mas que entra num novo domínio, um
domínio de racionalidade, um domínio que vai além do psicológico. Não é de fato fácil fazer essa
distinção. O ego é, de fato, ao mesmo tempo empírico e transcendental, e alguém pode limitar-se a
uma consideração do lado empírico das coisas. O significado e a verdade também têm suas
dimensões empíricas, mas são mais do que apenas coisas empíricas. Tratá-los como simplesmente
psicológicos é deixar de fora algo importante. Contudo, não é fácil mostrar o que é esse algo extra.

O que é o ego transcendental?

Precisamos agora considerar a natureza do domínio racional e como ele difere do biológico e do
psicológico, como o domínio transcendental difere do empírico. Podemos proceder assim
examinando o conhecimento humano e a virtude humana, que ocorrem ambos no domínio
transcendental. O ponto essencial a ser considerado é que quando exercemos nossa racionalidade,
quando atuamos como agentes da verdade e do significado, nos tornamos envolvidos em atividades
que não podem ser adequadamente tratadas de um ponto de vista meramente empírico.

Consideremos as ciências naturais. O psicologismo reivindicaria que o raciocínio, o argumento, o


conhecimento e a ciência são meramente uma questão de nossa configuração psicológica. As
ciências físicas, a biologia e as matemáticas, por exemplo, são ditas modos nos quais nosso
organismo se adapta ao seu meio ambiente; não são vistas como dizendo-nos a verdade sobre algo.
A ideia mesma de verdade torna-se problemática no psicologismo; os juízos ou as proposições que
fazemos se cornam no final das contas apenas respostas orgânicas ou psíquicas, tudo isso realmente
não diferindo da batida do coração, da digestão no estômago, ou de um estado de euforia ou
depressão. Conforme o psicologismo, mesmo nas ciências nós não descobrimos o que é; apenas
reagimos.

Em contraste, a fenomenologia insistiria que ainda que sejamos criaturas biológicas e psicológicas,
ainda que nossas percepções e juízos requeiram um cérebro e um sistema nervoso e reações
subjetivas, quando estamos nas atividades de julgar, verificar e raciocinar, formulamos significados
e realizamos presencações que podem ser distinguidas do nosso modo de ser biológico e psicológico.
Elas podem ser comunicadas aos outros, que podem ter sentimentos subjetivos que são muito
diferentes dos nossos; elas podem ser gravadas, ser usadas como premissas em argumentos, e ser
confirmadas ou não confirmadas. Elas possuem um tipo de subsistência. Elas podem ser apontadas
como verdadeiras ou falsas em si mesmas, completamente separadas de nossa subjetividade. São os
significados neles mesmos que são consistentes ou contraditórios; são os juízos neles mesmos que
são verdadeiros ou falsos. Os significados e os juízos pertencem ao que pode ser chamado o
“espaço” das razões, e entramos nesse espaço quando exercemos atividades categoriais. Assim,
além de sermos seres biológicos, psicológicos e subjetivos, também entramos como agentes no
espaço das razões, entramos no domínio do racional, e quando agimos assim “vamos além de”,
transcendemos nossa subjetividade, agimos como egos transcendentais.

Consideremos também a virtude da justiça. Quando uma criança de-senvolve-se numa pessoa
madura, torna-se um ser racional. Ela alcança um estágio no qual pode compreender um argumento
e agir de acordo com suas conclusões. Pode trabalhar com ideias e não apenas com inclinações e
sentimentos. Nos estágios iniciais da vida, a criança é basicamente um monte de tendências e
impulsos, com apenas uma racionalidade incipiente. Com o passar do tempo, a criança começa a
perceber que tem de ver a si mesma apenas como uma entre muitas, que não pode simplesmente
preferir suas próprias satisfações todo o tempo. Ela tem de ver que as outras estão aí, e que ela tem
de lhes dar o que lhes é de direito. Nesse modo, um sentido de justiça nasce na criança. Estágios
iniciais deste sentido estão presentes mesmo entre crianças pequenas, que rapidamente julgam que
essa ou aquela ação “não é justa”.

Duas coisas são necessárias para o desenvolvimento do sentido de justiça. A pessoa em questão
deve, por meio de atividade orientada e repetida, tornar-se moralmente virtuosa, mas em acréscimo,
e como uma condição de possibilidade mais profunda, a pessoa deve também ter se tornado um
agente racional. Ela deve ter entrado no espaço de razões e se tornado apta ao exercício de
atividades categoriais. A emergência de um sentido de justiça requer a presença da razão na pessoa
jovem. É através do poder da razão que podemos tomar uma visão objetiva de uma situação e julgar
o que é verdadeiramente devido a cada pessoa envolvida nela, incluindo a nós mesmos. A virtude da
justiça é o exercício da razão por excelência em assuntos práticos. Outras virtudes também
envolvem o desenvolvimento da razão, mas a justiça o exige num mais alto grau, porque requer a
habilidade para determinar equidades, dizer o que é adequadamente “o mesmo” para .nós e para os
outros.

Toda nossa vida moral e emocional como seres humanos torna-se possível pelo fato de que
exercemos a racionalidade. Uma pessoa madura é alguém que poder ouvir argumentos sobre coisas
práticas, avaliá-los e agir de acordo. Algumas pessoas não fazem isto. Elas se desmancham em
emoções ou impulsos; ninguém pode argumentar com elas. Quando isso ocorre, seja um estado
permanente ou intermitente, os egos transcendentais dessas pessoas estão diluídos pela vaguidade
(incerteza). O pensamento categoria! que deveria entrar em suas condutas não pode prevalecer.

Tanto em assuntos teóricos como práticos, contudo, nosso ego transcendental é essa parte de nós
que é o agente de razão e verdade. O ego transcendental é cada um de nós tomado como agente de
verdade, como alguém que pode responsavelmente declarar o que o caso é. Além de ser organismos
biológicos e psicológicos, somos seres racionais que pertencem ao que Kant chamou de “reino dos
fins”; quando reconhecemos a nós próprios como tais, tratamos a nós mesmos como egos
transcendentais. A fe-nomenologia esforça-se por descrever que formas estruturais participam no
ser de um ego transcendental. A fenomenologia é a exploração do ego transcendental em todas as
suas formas intencionais, junto com os correlatos noemáticos que são encontrados como os alvos
dessas intencionalidades. Uma vez que é a nossa racionalidade o que nos torna humanos, a
fenomenologia é a exploração de nós mesmos em nossa humanidade.

Os filósofos têm tido frequentemente uma compreensão demasiado limitada do que nos faz
racionais. Eles têm tomado nossa racionalidade como primariamente o poder de abstrair conceitos
universais de experiências particulares, o poder de executar um raciocínio silogístico, e o poder de
ter discernimento em verdades autoevidentes. Contudo, nossa racionalidade consiste em mais do
que essas habilidades; ela envolve também as intencionalidades pelas quais identificamos as coisas
tanto nas suas presenças como nas suas ausências, as intencionalidades pelas quais introduzimos a
sintaxe e as composições parte-todo por meio das quais experienciamos, os modos especificamente
humanos de recordar, imaginar e antecipar, e as formas de evidência e verificação que podemos
exercer. Também envolve as intencionalidades pelas quais nos estabelecemos como agentes de
responsabilidade moral. Todas essas e muitas outras formas de intencionalidade são tão essenciais
para nós como agentes racionais assim como são, igualmente, o poder de abstrair universais e o
poder de raciocinar silogisticamente. Todas as estruturas descritas neste livro são constituintes do
que se entende ser um ego transcendental, um agente responsável de verdade e verificação. A
fenomenologia provê uma descrição muito mais ampla do que somos como dativos de manifestação.

De fato, um dos constituintes da racionalidade é a habilidade para jiizer “eu”, o poder de usar certo
sinal designado numa linguagem particular para nos referirmos a nós próprios especificamente
como usando a linguagem e apelando-para a verdade no momento em que usamos a palavra. Se
dizemos algo como, “eu creio que a porta está aberta”, nosso uso do termo “eu” opera três coisas:
primeiro, ele simplesmente refere a mim, distingue-me como o ser que fala; segundo, ele
representa-me como o agente de verdade dessa sentença; mas, terceiro, representa-me como o
agente de verdade para a declaração particular que se segue. Com o termo eu, sinalizamos a nós
mesmos como responsáveis pela enunciação categorial, e pela verdade reclamada nela, expressa
pela sentença. Somente um ego transcendental pode dizer “eu” desse modo. Pode usar uma
linguagem para dizer que está asseverando algo nessa linguagem.

Para ajudar-nos a compreender a distinção encre o ego empírico e o ego transcendental, vamos
desenvolver uma analogia entre o ego e uma peça de xadrez. Vamos considerar uma peça de xadrez
tanto dentro como fora do jogouie xadrez. Num sentido, uma peça de xadrez é uma coisa meramente
empírica. Se fôssemos jogar uma torre sobre a mesa, estaríamos tratando-a como uma simples coisa
no mundo, uma “torre empírica”. Mesmo se fôssemos movê-la de um quadrado a outro do tabuleiro
de xadrez, poderíamos ainda estar tratando-a como um objeto ordinário: poderíamos estar tomando-
a apenas como uma peça colorida de madeira que está sendo movida dez polegadas para longe de
mim. Contudo, se fôssemos tomar a peça como envolvida no jogo de xadrez, como, por assim dizer,
pondo em xeque-mate, estaríamos tratando-a como uma “torre transcendental”, não meramente
como uma torre empírica. Estaríamos tratando-a, e ela estaria atuando, como um jogador no jogo de
xadrez. Analogamente, nosso organismo corporal está ativo como um ego transcendental quando
joga de acordo com as regras da razão e está engajado no jogo da verdade. A analogia seria mais
conveniente, naturalmente, se a torre de algum modo movesse a si mesma no jogo de xadrez (em
vez de ser movida por nós), e se ela pudesse declarar a si mesma como movente. O ego
transcendental pode fazer todas essas coisas: não só age por sua própria iniciativa no jogo da
verdade (que é o jogo da vida), mas também expressa a si mesmo como agindo assim.

Os animais têm consciência, mas não têm egos transcendentais. Eles podem se aproximar de algo
como linguagem e verdade, mas não entram completamente no espaço de razões. Se o cão faz algo
“errado” (ele morde alguém ou suja o carpete), podemos fazer algo a ele ali e então, mas não faria
sentido chegar a ele um mês depois e tentar nos referir a essa “ação” ou a uma “opinião” emitida
anteriormente por ele. Porém, faz sentido para nós lamentarmo-nos sobre algo que dissemos no ano
passado ou que fizemos no mês passado, porque falamos e agimos dentro do espaço de razões;
realizamos um movimento no jogo da verdade, e o que dissemos ou fizemos está documentado e
subsiste tal como um movimento mesmo além da situação na qual ocorreu. Podemos agir como um
ego transcendental, mas um animal não humano não pode.

Publicidade do ego transcendental


A vida da razão é uma coisa pública. Não está enclausurada na solidão ou privacidade de uma
“esfera da consciência”. Ela é expressa na conduta manifesta e nos acontecimentos, nos seres
humanos que estão passeando, conversando, examinando instrumentos científicos, focalizando um
raio de laser num alvo, cavando uma vala num sítio arqueológico, escrevendo uma carta a um
amigo, tentando persuadir alguém a votar em certa proposta. Está presente em palavras, pinturas e
bandeiras. A vida da razão é tão pública quanto um gol num jogo de futebol ou um nocaute técnico
numa luta de boxe. Uma escavação arqueológica ou um argumento político não podem ser
explicados sem envolver termos como “ferramentas”, “palavras”, “sentença”, “razões” e “verdade”,
e tais termos se referem a comportamento público e não a episódios privados internos. É o animal
racional, não a consciência solitária, não a extensa, oca esfera da consciência, que entra na vida
racional.

Íí, A vida pública da razão é vivida pelo ego transcendental, que é também uma entidade pública.
Quando falamos sobre o- ego transcendental, podemos ser tentados a imaginá-lo como um tipo de
coisa insignificante alojada dentro de nós, uma partícula localizada em algum lugar no meio de
nosso córtex, vivendo uma vida secreta. Essa interpretação seria incorreta, e para contestá-la
gostaríamos de prover um retrato mais concreto de que é o ego transcendental.

Enquanto essas páginas são escritas, estamos no mês de novembro, e as pessoas estão recordando o
armistício, o fim da Primeira Guerra Mundial, que ocorreu na 1 Ia hora do 11° dia do 11° mês do ano
de 1918. Histórias sobre a guerra estão sendo apresentadas na televisão. Em uma delas, foram
mostradas fotografias de três jovens britânicos que foram para a guerra e não retornaram.
Consideremos uma dessas fotos, uma imagem de um homem de 21 anos. Ele uma vez esteve vivo, foi
fotografado de uniforme, e foi assassinado na guerra. Um sentido de tristeza envolve a fotografia, do
tipo que projetamos sobre imagens daqueles que sabemos que morreram em combate, durante essa
guerra ou outras; os olhos na fotografia parecem prontos a ser fechados.

O que foi perdido quando aquele jovem morreu? Não apenas uma vida biológica, mas a vida da
razão que teria tomado lugar nele e no seu ambiente ele teria chegado aos setenta anos. Essa vida
da razão teria sido não só as expressões verdadeira e falsa que poderia ter realizado durante
aqueles anos, mas também as deliberações, as escolhas e as transferências humanas que ele poderia
ter exercido. O que ele poderia ter feito como um agente responsável de verdade desapareceu com a
extinção de sua vida orgânica. O modo como o mundo teria parecido àqueles olhos e ouvidos nunca
chegou a acontecer. Sua morte não foi apenas o rearranjo de elementos químicos, ou o término de
um organismo vivo, mas a conclusão de uma vida humana, uma vida na qual a razão ilumina as
coisas em volta e permite ujtervenções morais. O si que identificou a si mesmo atrás da face na
fotografia, o alguém que acumulou memórias e antecipações e experienciou a si mesmo nelas,
cessou de ser um dativo para o modo como as coisas aparecem no todo que chamamos o mundo. O
que foi amado por aqueles a quem amou não foi apenas um companheiro agradável, não apenas uma
versão complicada de um animal, mas alguém que poderia entrar num tipo de vida que um mero
animal jamais poderia: alguém responsável pela verdade do que dizia e fazia, alguém que poderia
amar em reciprocidade porque poderia apreciar outro como digno de ser amado.

O ego naquele jovem, seu ego transcendental, não foi uma entidade jjf distinta dele; era aquele
homem como um jogador no jogo da verdade, alguém que poderia reclamar e confirmar, citar e
inferir, enganar e revelar, deliberar e decidir. O ego não é uma coisa separada, mas o homem como
capaz de viver um tipo de vida racional. E a entidade que pode dizer “eu” e assumir a
responsabilidade pelo que é dito. Além do mais, o ego transcendental não é apenas o agente da
ciência; não é apenas “intelecto” fazen- i do inferência e construindo hipóteses; não é meramente
uma máquina calculadora. Além de ser o agente da ciência, o ego transcendental é também o agente
da verdade na conduta humana, em que as ações são livres e responsáveis porque são a
consequência de uma avaliação inteligente. O “eu” que pode dizer “Eu acho isso ou aquilo” é o
mesmo que pode dizer “Eu intenciono fazer isso ou aquilo” e o mesmo de quem os outros podem
pedir explicações pelo que "você” fez. A habilidade para dizer “eu” e para intervir no mundo por
meio de um ato responsável depende da vida orgânica que forma a base do pensamento, a vida
orgânica na qual a vida do pensamento está corporificada, mas não é apenas essa vida orgânica:
entra na esfera das razões e no reino dos fins.

E se a fotografia de alguém que morreu antes de seu tempo pode, pela total ausência de um futuro,
dar-nos uma impressão do que o ego responsável é, a fotografia de alguém ainda não nascido, de
alguém que é quase todo futuro, com até um nome ainda por receber, pode servir ao mesmo
propósito. Temos visto fotografias de estágios iniciais da vida, durante o desenvolvimento fetal,
quando os olhos assemelham-se a manchas e a boca é incapaz de falar e está imersa no fluido
amniótico. A boca que abre e fecha silenciosamente nesse tempo é a mesma que será usada mais
tarde para dizer “eu”, e o sentido do si que está sendo estabelecido na sinestesia do toque e da
audição e do movimento corporal é o mesmo que terá memórias e ações projetadas nos anos após o
nascimento do bebê. O ego transcendental, o dativo de manifestação, já está lá, estabelecendo a
base para sua futura atividade categorial e suas intervenções morais. O si anterior já é algo do
jogador no jogo da verdade.

Assim, tanto a mente como o ego transcendental são públicos, e a vida que eles vivem é pública. Um
ato do agente da verdade, tal como um juízo, é em princípio um ato público. Pode ser comparado a
uma saudação, que só pode ocorrer entre duas ou mais pessoas. Um juízo é um movimento no jogo
da verdade, e envolve, em princípio, um agente, receptores e espectadores. Não ocorre meramente
dentro de nós. Mesmo uma percepção é mais como uma saudação do que como uma dor de
estômago; também é um movimento inicial no jogo da verdade, dispondo-nos a fazer uma
reivindicação, a desacreditar do que alguém tenha dito, ou a tomar um outro passo na conversa
humana. Os atos do ego transcendental são tão públicos quanto o corpo que está envolvido em
realizá-los. São intervenções reais ou potenciais, não apenas pensamentos privados.

Trazer à luz a publicidade do ego transcendental é útil para recordar que há também um “tu
transcendental”. Isto é, o ego transcendental pode ser reconhecido não só por si mesmo, mas
também por outros, e quando ele é assim reconhecido é chamado um “tu”. Contudo, por alguma
razão, o termo latino tu, como uma contraparte para ego, não soa adequado aqui.

O ego na atitude fenomenológica


Assinalamos que todas as atividades do ego transcendental que vimos considerando são efetivadas
na atitude natural. São exercícios na efetividade da verdade, operações responsáveis da razão, ü ego
que é o agente de todas essas atividades é o ego que tem um mundo e continua a sustentar sua
subjacente crença no mundo. Quando entramos na atitude fenomenológica, desprendemo-nos da
atitude natural e contemplamos e descrevemos o ego transcendental e todas as suas realizações,
todas as suas intencionalidades, e também contemplamos as multiplicidades especiais pelas quais
ele é constituído como ego transcendental. Descrevemos como o ego estabelece e apresenta a si
mesmo, para si mesmo e para os outros, como um agente de manifestação.

Esse movimento para a reflexão fenomenológica “distende” o ego para mais longe do que suas
atividades na atitude natural. Quando entramos na reflexão fenomenológica, tornamo-nos agentes
da verdade em um novo modo filosófico. Fazemos afirmações verdadeiras a partir de uma nova
perspectiva, radicalmente diferente de todas as perspectivas que funcionam dentro da atitude
natural. Podemos dizer “eu” desde um novo ângulo, com um novo sentido. E ainda, o si filosófico que
examina o ego natural não é outra entidade, nem outrem; é o mesmo “eu”, mas agora distendido
numa nova forma de reflexão.

Não é o caso, além do mais, de que o ego transcendental entre no jogo somente dentro da atitude
fenomenológica. Não é o caso de que somente o ego filosoficamente reflexivo seja o ego
transcendental. O ego transcendental já é ativo na atitude natural. Cada conquista da verdade, cada
exercício de racionalidade é a operação dõ ego transcendental. Todas as intenções categoriais que
brotam da questão da verdade são a operação do ego transcendental. O ego transcendental realiza a
verdade na atitude natural, mas essa efetivação inocente da verdade clama por uma completude na
filosofia, que teoriza a verdade. A verdade efetivada na atitude natural é incompleta porque não
contempla a si mesma. A filosofia, exercida na atitude fenome-nológica, traz um novo nível às
manifestações efetivadas na vida pré-filosófica. Na atitude natural temos um mundo, exercemos a
racionalidade, identificamos por meio de presença e ausência, confirmamos ou desconfir-mamos, e
também mentimos, enganamos e cometemos erros; mãs na atitude fenomenológica clarificamos o
que é fazer todas essas coisas.

Seria útil delinear três estágios na identificação do ego.

(1) No primeiro estágio, uma identidadré efetivada pelo agente dos atos intencionais de percepção e
suas variantes: uma identidade do ego ocorre entre, digamos, o ego que vive numa situação aqui e
agora e o ego deslocado na recordação, na imaginação e na antecipação. Por exemplo, a recordação
e o ego recordado, como vimos no capítulo V, são um e o mesmo.

(2) No segundo estágio, uma identidade elevada é efetivada pelo agente da atividade categorial. A
pessoa que sintaticamente enuncia que percebe ou recorda faz mais do que apenas perceber ou
recordar; ela traz os objetos categoriais com todas as dimensões de responsabilidade e verificação
que eles implicam. O ego que atualiza a si mesmo neste estágio está apto a se referir a si mesmo
quando explicitamente toma uma posição sobre algum assunto da verdade ou manifestação e diz
coisas como, “eu sei que p” ou “eu suspeito que p”. O ego que emerge aqui é obviamente o mesmo
que emergiu na memória, na.imaginação e na antecipação, mas agora emerge com maior
responsabilidade e vigor epistêmico. Agora toma posições e tem opiniões pelas quais pode se
responsabilizar. Obviamente, não poderia ter chegado a ser um ego neste nível se não tivesse
primeiro consolidado sua identidade no primeiro nível, e rupturas psicológicas no nível mais baixo
podem impedir atividades no mais elevado. Distúrbios emocionais podem solapar o pensamento
racional.

(3) No terceiro estágio, uma identidade é frequentemente efetivada quando o ego não desenvolve
apenas mais e mais opiniões ou verdades científicas, mas reflete sobre o que é ter opiniões e
perseguir e verificar requisições científicas. Agora o ego “suspende” todas as intencionalidades do
primeiro e do segundo estágios e as analisa. Também toma posse de seu próprio si num novo modo;
adquire uma responsabilidade como um agente da verdade que é diferente das responsabilidades
que tinha no segundo estágio.

Examinaremos o caráter especial da verdade fenomenológica, e a responsabilidade associada a ela,


no capítulo XIII. No momento, é suficiente notar como o sentido do ego ou do si desenvolve-se
nesses vários estágios.

O ego e a corporalidade

Até mesmo como transcendental, como um agente da verdade, o ego existe corporalmente. O modo
como o ego experiencia seu próprio corpo é diferente do modo como experiencia as outras coisas no
mundo; ademais, o corpo é também uma coisa no mundo e é presentado como tal. Experien-ciamos
nossos próprios corpos tanto do interior como do exterior. Além do mais, possuímos o controle dos
nossos próprios corpos de uma maneira radicalmente diferente do controle que temos sobre as
outras coisas no mundo. Quais são algumas das características da corporalidade do ego?

As peculiaridades de como experienciamos nossos próprios corpos são mostradas especialmente no


sentido do tato. (1) Quando tocamos uma parte de nosso próprio corpo com uma outra (tocamos
nosso cotovelo esquerdo com a mão direita), a parte que está sendo tocada está sendo tratada como
qualquer objeto que posso tocar no mundo. A mão que toca é a parte em que nosso ego
transcendental, em sua percepção e enunciação categorial, está ativo no momento, e sua atenção é
dirigida para uma outra parte de nós mesmos, o cotovelo (“meu cotovelo parece estar inchado”). (2)
Mesmo nesse estágio, contudo, a parte tocada, o cotovelo, sente a pressão da mão, de modo que
estamos também percebendo, um pouco passivamente, também daquela direção, do mesmo modo
que percebemos como é sentir ter o cotovelo roçado. (3) Mas então a parte tocada pode tornar-se a
que toca ativamente: mesmo quando nossa mão toca o cotovelo, podemos “reverter a direção” e
começar a notar como a mão é sentida pelo cotovelo. Embora im-plausível, o cotovelo pode tornar-se
o órgão ativamente percipiente. Então, tocamos a mão por intermédio do cotovelo e começamos a
mover o cotovelo como a parte que toca. Assim, os papéis de tocada e tocante podem ser revertidos;
o ego transcendental pode operar em ambas as direções.

Somente em nosso próprio corpo, e somente em respeito ao sentido do tato, o qual é o mais básico
de todos os sentidos, essa reversão é possível. Um abraço de uma outra pessoa pode ser um análogo
disso, e pode também ser uma tentativa de aproximar a unidade que temos com nós próprios
(podemos dizer metaforicamente que nos tornamos um único corpo com aquele que abraçamos),
mas nunca poderia realmente ser o mesmo. Shakespeare recorda-nos essa ambiguidade do toque
quando, em Troilus and Cressida (IV-3) ele faz Cressida perguntar: “No beijo, você dá ou recebe?”.

A curiosa reversibilidade encontrada no sentido do tato mostra que mesmo como egos
transcendentais, mesmo como agentes da verdade, estamos particionados dentro de um corpo. Além
do mais, há outros modos de experienciar o corpo, todos relacionados ao sentido do tato, que
ajudam a estabelecer nossa corporalidade: o sentido que temos de nossa posição no espaço, a
experiência da disposição de nossos membros, nosso sentido de equilíbrio e a resistência que
sentimos à atração da gravidade, e a pressão que sentimos da cadeira ou do chão. Nosso sentido de
corporalidade institui um lugar dentro do qual o ego transcendental exerce todas as suas
intencionalidades, desde a percepção e suas variantes às enunciações categoriais e à reflexão
fenomenológica. Toda nossa visão, audição e paladar tomam lugar dentro do espaço do corpo, e
nossas memórias são armazenadas lá também. Todas as atividades intencionais, sejam perceptuais
ou categoriais, ocorrem dentro do espaço assinalado pelo topo da cabeça à sola dos pés, nossas
frente e costas, nossos lados direito e esquerdo e nossos braços.

A espacialidade do corpo não é só tátil, mas também móbil. Exercemos o controle sobre as partes do
nosso corpo e podemos movê-las diretamente; se desejarmos mover outras coisas, podemos fazer
somente se primeiro movermos partes do nosso corpo (levantamos algo somente se levantamos
nossas mãos e nossos braços, mas não temos de mover qualquer outra coisa a fim de erguer nossas
mãos e nossos braços). As partes do corpo movem-se umas em relação às outras, e o corpo mesmo
move-se através do espaço do mundo. Porém, não fazemos movimentos somente para introduzir
movimentos em outros objetos; mesmo nossas percepções e, consequentemente, nosso pensamento
envolvem movimentos de um tipo ou outro; mover-nos em volta para ver o outro lado do cubo, pegar
um lugar melhor para ouvir o violino, sentir melhor o aroma do que se está cozinhando; mover
nossos dedos sobre a lixa para ver qual é o seu grau, e passar a língua na comida para apreciar seu
gosto. Nossa visão requer movimento: mesmo um único olho pode ajustar seu foco para perto ou
longe; dois olhos juntos, com sua fraca convergência, podem dar perspectiva e visão estereoscópica;
a cabeça pode ser movida de lado a lado; e o movimento do corpo todo permite aos olhos variar
todos os lados do objeto que está sendo visto. De fato, pontos no espaço objetivo são estabelecidos
por nós somente quando somos aptos a nos mover no espaço; se fôssemos imóveis, poderíamos
visualmente experienciar algumas superfícies como obliterando outras, mas não poderíamos obter o
sentido de um ponto fixo em volta do qual as coisas podem xircular.

Assim, há muitas partes e todos, muitos momentos, na sensibilidade humana, e eles servem como
uma base à enunciação de partes e todos que ocorre na ação categorial. Os vários sentidos efetivam
identidades através da sinestesia, do reconhecimento de um único objeto dado pelos vários sentidos
distribuídos em toda parte de nosso próprio corpo. Essas variedades de partes sensíveis, noéticas e
noemáticas, servem como uma multiplicidade através da qual objetos vêm a ser identificados de
mais e mais perspectivas: a árvore é vista, ouvida (no vento), tocada, cheirada; caminhamos em
volta e subimos nela; podamos seus ramos e rompemos pedaços de casca morta; e em tudo isso uma
e a mesma árvore é registrada em sua identidade e suas muitas características.

Esse registro da árvore, entretanto, é realizado pelo ego transcendental que percebe e enuncia a
árvore, e enquanto identifica árvores e outras coisas no mundo, o ego, também continuamente,
identifica seu próprio corpo como o objeto privilegiado “no” qual ele vive sua vida, o objeto que
provê o inelutável “aqui” corporal que o ego nunca pode eludir. O modo como o corpo é “aqui” para
nós é diferente do modo como qualquer lugar mundanamente pode ser “aqui”, mesmo o mais
familiar e o mais amado de todos os domicílios. Além do mais, à medida que o ego identifica as
coisas no mundo e seu próprio corpo, também continuamente identifica a si mesmo. E o mesmo ego
que recorda a si mesmo subindo naquela árvore há 25 anos, que antecipa a visão da mesma árvore
sob neve no próximo inverno, e que imagina que aspecto a árvore teria se certas outras árvores
fossem plantadas próximas dela.

Uma das maia interessantes facetas de nossa corporalidade é o modo como nossas memórias são
armazenadas em nosso corpo. Nossa identidade, como um ego transcendental, é estabelecida pelos
deslocamentos e identificações feitas na recordação: somos aqui e agora os mesmos que recordamos
sendo lá e então na memória que vem à mente. Mas as partes recordadas de nossa vida não estão
sempre ativas; a maioria delas permanece latente e armazenada em nosso sistema neural, no corpo
que diferencia a si mesmo de seu entorno. Tudo que vivemos está de algum modo lá, e partes disso
vêm à luz agora e então. Enquanto permanece armazenado é puramente químico e orgânico, mas
quando é ativado vem a ser de novo parte de nossa vida transcendental. A ambiguidade entre o ego
transcendental e o ego empírico é particularmente proeminente com respeito à latência das
memórias.

Uma das tarefas da fenomenologia é mostrar em detalhe, desde a atitude transcendental, como
nossos vários sentidos e mobilidades operam para estabelecer nossa própria corporalidade. Temos
esboçado somente um pouco das descrições que poderiam ser feitas. Poderia ser mencionado que a
estrutura de manifestação que apresenta nossos corpos para nós mesmos são parte da mesma vida
cognitiva que alcança as coisas como pensamento categorial, ciência exata, lógica formal e
matemática. Aquele que é dativo de manifestação opera em todos esses níveis de intencionalidade.
O si não puntiforme
Uma das queixas concernentes à fenomenologia algumas vezes feitas é de que ela parece
substancializar o si, que faz do ego um tipo de ponto fixo que escapa de sua própria história, um
“ego polo” que é autocontido, sem ambiguidades e não afetado pelo que sofre e faz. O si, é dito, é
muito mais elusivo, flexível e engajado do que isso. Mas a fenomenologia não pontua-liza o si: ela
reconhece a identidade especial do si descrevendo as multiplicidades que são próprias a ele. O si
reconhecido na fenomenologia não é um ponto que fica atrás ou fora de suas percepções, memórias,
imaginações, escolhas e atos cognitivos; mais propriamente, ele é constituído como uma identidade
por meio de tais conquistas. É realizado por meio de demoras e diferenças. Ele é, por exemplo, um e
o mesmo como aquele que recorda e o que é recordado. Vem “entre” e não “atrás” de suas
percepções presentes e de seus deslocamentos. Mais, o si é disperso pelo corpo vivo e é ativo
em todas as suas partes, não estacionado atrás dele. É identificável em sua inconsciência e até em
sua vida corporal. O ego que envelhece identifica a si mesmo psíquica e corporalmente como o que
foi uma vez uma criança e uma vez um jovem (uma fotografia de alguém quando bebê tem
estranhamente algo dele). O si é constituído num modo distinto até quando vendo seu próprio
reflexo corporal no espelho, quando tem uma visão de si mesmo do modo como é visto por outros.

O mesmo si que percebe, imagina e recorda, e que está latente nas memórias armazenadas no seu
corpo, é também o que diz “eu” e executa ações categoriais. Esse si, esse ego, também enuncia
situações (por sua deliberação) e consequentemente dispõe da possibilidade de conduta moral e
prática. Imaginacivamente desloca a si mesmo num futuro perfeito, estimando como será se ele
realizar essa ou aquela ação. Em assuntos mais_teóricos, o si mantém opiniões sobre o modo como
as coisas são, e sustenta essas opiniões contra pontos de vista de outros sis que pensam de outra
maneira. Ouve argumentos e pode conceder que estava errado, e quando age assim diferencia a si
mesmo de como é agora e dele mesmo quando mantinha suas crenças anteriores.

Uma das mais impressivas multiplicidades pela qual o si é estabelecido se encontra no fenômeno da
citação, quando o ego usa sua própria voz para expressar a mente de outrem, para constituir objetos
categoriais não como seus próprios, mas como pertencendo a outrem: nós aqui e agora, com
o mundo presentando para nós mesmos do modo que faz, podemos manifestar por meio de nossas
próprias palavras uma parte do mundo como tendo presentado a si mesmo para outrem. Um tipo de
duplicação da mente ocorre, e junto com ela uma duplicação de alguém que diz “eu”. O si que vem
à luz em todas essas diferenças e atividades não é uma coisa puntiforme, não é sempre uma
identidade completa, mas uma identidade que é aí só dentro de uma rica multiplicidade de
presentações e condutas. Há uma identidade do si, mas é alcançada precisamente por meio da
descentralização.

Mais, o si se compreende puntiforme em certos momentos: se estamos no meio de um grupo de


pessoas que tomam posições fortemente diferentes das nossas, permanecemos como “os únicos”
que insistem que isso ou aquilo é certamente o caso. Necessitamos ter um ego muito forte para
afirmarmos com rapidez. Se uma situação séria apresenta-se a nossa volta, e torna-se evidente que
ninguém agirá se nós não o fizermos, então somos puntiformes pela demanda prática. Todas as
linhas convergem para nós, em nós e em nenhum outro. Somos enaltecidos deste modo
precisamente porque somos os proeminentes agentes da atividade categorial, os agentes da
evidência e os proprietários de uma reivindicação da verdade, seja na ordem prática ou teórica.
Somos tais agentes não porque somos uma entidade física ou psicológica, mas porque somos alguém
que pode dizer, individualmente, “eu”. Mesmo essas identificações fortes do si, contudo, não são
absolutas: mesmo enquanto nosso si está em destaque, ainda somos os mesmos que podem recordar
e antecipar outras situações, aqueles que exercem o controle dentro do corpo que é no momento o
centro das coisas, aqueles cujas emoções podem brotar e superar a decisão que estamos tentando
tomar.

As multiplicidades que são próprias do si não são realizadas nas pedras, nas árvores ou em animais
não humanos. Elas são específicas do dativo de manifestação, cujo si é ao mesmo tempo flexível e
ainda continuamente o mesmo por toda a sua vida consciente. A fenomenologia reconhece a
complexidade e o mistério do agente cuja voz não só fala sobre o modo como as coisas são, mas
registra a si mesmo, quando diz-“eu”, precisamente enquanto fala delas.
IX. TEMPORALIDADE
A fenomenologia desenvolveu uma altamente articulada teoria do tempo e da experiência temporal.
A temporalidade que ela descreve desempenha um importante papel no estabelecimento da
identidade pessoal. Além do mais, é no domínio da temporalidade que a fenomenologia aborda o que
seria chamado de primeiros princípios das coisas que ela examina. O tempo penetra todas as coisas,
tanto noemáticas como noéticas, que são debatidas na fenomenologia, e a descrição da “origem”
fenomenológica do tempo conquista uma espécie de centro filosófico.

Níveis de temporalidade
Três níveis de estrutura temporal podem ser distinguidos:

1. O primeiro é o tempo do mundo, o tempo dos relógios e dos calendários. Pode também ser
chamado de tempo transcendente ou objetivo. Esse é o tempo que pertence aos processos e eventos
mundanos. Quando dizemos que um jantar durou duas horas, ou que Mary retomou dois dias antes
de Dóris, ou que a abertura precedeu a ópera, ordenamos tais coisas e eventos no tempo do mundo.
Tal tempo pode ser comparado à espacialidade do mundo, à extensão geométrica que as coisas
possuem e às ligações locais que elas têm umas com as outras. Como tal lugar, o tempo objetivo é
público e verificável; podemos usar um relógio para medir exatamente quanto dura um processo, e
todos concordaremos com a medição. O tempo sendo medido é localizado no mundo, no espaço
comum em que nós habitamos.

2. O segundo nível é o tempo interno. Pode também ser chamado tempo imanente ou subjetivo. Esse
tipo de tempo pertence à duração e às sequências de atos ê experiências mentais, aos eventos da
vida da consciência. Atos e experiências intencionais seguem uns aos outros, e podemos também
chamar de volta certas experiências mais importantes através da memória. Se recordamos o jogo
que vimos a noite passada, agora restabelecemos a percepção que dele tivemos. O modo pelo qual
nossas intenções e sentimentos são ordenados, ambos em respeito um ao outro e em respeito a
nossa experiência presente, toma lugar no tempo interno. Tal temporalidade imanente pode ser
comparada à espacialidade corporal que experienciamos “de dentro”. Há sequências no tempo
interno, desde que uma atividade ou experiência pode_ser antes, depois ou concomitante com
outras, mas tais sequências e durações não são medidas pelo tempo do mundo, não mais do que as
“distâncias” sentidas internamente entre o cotovelo e o pulso, ou entre o peito e o estômago, podem
ser medidas por um padrão de medida. Nós experienciamos um evento de consciência como
seguindo ou precedendo a outro, mas não poderíamos “cronometrar” a sequência do mesmo modo
que cronometramos alguém correndo uma corrida. O tempo interno não é público, mas privado.

3. Alguém poderia pensar que os dois níveis do tempo que distinguimos poderiam exaurir as
possíveis formas do tempo. Alguém poderia pensar que é suficiente distinguir tempo objetivo de
tempo subjetivo. Contudo, um terceiro nível deve ser adicionado a esses dois, o da consciência do
tempo interno. Esse é um passo além do segundo nível. O segundo nível é a temporalidade interior,
mas esse terceiro nível é o estar consciente de ou a consciência de tal temporalidade interna. Em
outras palavras, o segundo nível sozinho não é suficiente para responder por sua própria
consciência-de-si; devemos introduzir um terceiro nível para responder pelo que nós experienciamos
no segundo. Esse terceiro nível desfruta de um tipo especial de “fluidez”, um tipo diferente daquele
do tempo transcendente e do tempo interno. Esse terceiro nível, contudo, não requer a introdução
de ainda um outro nível além de si mesmo.

O terceiro nível alcança assim um tipo de acabamento e completude. Não é preciso que outros níveis
necessitem ser pressupostos além dele. Na fenomenologia, esse terceiro nível, com a fluidez
especial que ocorre nele, é um absoluto. É o domínio no qual o primeiro começo das coisas, como
fenômenos, se realiza. Não aponta para nada mais básico para além de si mesmo. É o contexto
último, o horizonte final, a linha de fundo. Ele provê o cenário para todas as outras coisas mais
particulares e os eventos que são analisados na fenomenologia, -e não pressupõe, por sua vez, mais
nenhum último contexto. Ele funda todos os outros, mas não é fundado por nenhum. O domínio da
consciência do tempo interno é, na fenomenologia, a origem das distinções e identidades mais
profundas, aquelas que são pressupostas por todos os outros que ocorrem em nossa experiência. E
também, obviamente, um domínio sobre o qual é muito difícil falar, porque requer uma
transformação do vocabulário, que é voltado primeiramente para os objetos mundanos. Contudo, se
fizermos uso das formas de partes e todos, identidade e multiplicidade, e presença e ausência,
poderemos nos habilitar a expressar mais claramente as questões que nascem nesse domínio.

Antes de abordar as inquietantes questões da consciência do tempo interno, no entanto, permitam-


nos dizer uma palavra sobre a interação entre tempo transcendente e imanente, entre o primeiro e o
segundo níveis de temporalidade que distinguimos no começo desse capítulo. Podemos pensar que o
tempo objetivo é o mais básico, porque o mundo continua, mesmo que nós com nossa subjetividade,
cessemos de existir. Como um fenômeno, contudo, o tempo objetivo é dependente do tempo
imanente: o nível 1 é dependente do nível 2. As coisas do mundo podem ser medidas por relógios e
calendários, e podem ser experienciadas como duradouras, só porque experienciamos uma sucessão
de atividades mentais em nossa vida subjetiva. Se não antecipássemos e recordássemos não
poderíamos organizar o processo que ocorre no mundo dentro de padrões temporais. Quando
tentamos fornecer uma análise fenomenológica do tempo do mundo, devemos mencionar a estrutura
do tempo imanente como uma condição para tal tempo. A manifestação do tempo objetivo ocorre
para nós só porque possuímos os tempos subjetivo e imanente. A estrutura noemática do tempo do
mundo, desse modo, depende da estrutura noética do tempo interno. Ao avaliarmos a
intencionalidade a partir de nossa posição elevada na atitude fenomenológica, portanto, vemos o
tempo do mundo como correlato com o tempo interno. O tempo transcendente é fundado, como um
fenômeno, no tempo imanente.

Naturalmente, como organismos vivos, estamos presos no tempo objetivo. Você torna-se bronzeado
após permanecer três horas ao sol; não poderíamos pensar claramente após permanecer toda a
tarde numa sala abafada; ela está atrasada para um encontro. Como todos os objetos, estamos
sujeitos aos efeitos casuais que operam no mundo. Mas não somos apenas coisas no mundo; somos
também dativos de manifestação ou egos transcendentais, e como tais ficamos contra o mundo e o
temos apresentando-se para nós, e o fluxo temporal de nossas experiências conscientes é uma
condição para o aparecer do mundo e das coisas nele. A relação paradoxal do si como ambos, uma
parte do mundo e o alguém que tem um mundo, vem à tona novamente em respeito à
temporalidade: o fluxo interno de consciência está aninhado dentro do processo que continua no
mundo, mas também fica contra o mundo e provê a estrutura noética que permite ao mundo
aparecer. Encontramos a nós mesmos vivendo em ambos os tempos, o objetivo e o subjetivo. O
dativo de manifestação, o ego transcendental, não é um simples e estático ponto; ele envolve um
processo que continua no tempo, mas em sua própria temporalidade interna, não na temporalidade
objetiva do relógio e do calendário.

Agora, se o tempo interno é uma condição para o aparecimento do tempo objetivo, o terceiro nível
de temporalidade, a consciência do tempo interno, é por sua vez uma condição para o aparecimento
do tempo interno.

O problema da consciência do tempo interno


Vamos explorar a questão da consciência do tempo interno. A temporalidade interna que é posta em
cena contra o tempo do mundo é, como temos dito, não o tipo de tempo final; não é o contexto final.
Nós não fomos deixados com apenas o fluir objetivo do tempo e o fluir subjetivo correlato com ele.
Antes, o fluir do tempo imanente requer algo mais básico sobre o qual está fundado. Esse algo mais
básico é o domínio da consciência do tempo interno. Os três níveis podem ser esquematizados como
mostra a Figura 1.

A consciência do tempo interno é, por assim dizer, “mais imanente” do que o tempo imanente.
Constitui a temporalidade das atividades que ocorrem em nossa vida consciente, tal como as
percepções, as imaginações, as recordações e as experiências sensíveis que temos: ela permite
assim que objetos internos apareçam como estendidos temporalmente e ordenados. Contudo, essas
intenções em si mesmas são apenas a presentificação das coisas que elas miram: elas são as
percepções, imaginações e intenções cate-goriais dos objetos e processos no mundo.

TEMPO TEMPO

IMANENTE TRANSCENDENTE

CONSCIÊNCIA envolve percepções Envolve árvores,

DO TEMPO percebe experiências. casas, raças,

INTERNO recordações, jantares.

imaginações avalanches

etc. etc.

Figura 1

Consequentemente, o efeito da consciência do tempo interno se estende por tais objetos


transcendentais e para seu tempo transcendente também. A consciência do tempo interno constitui
não apenas a temporalidade interna de nossa vida consciente, mas a temporalidade objetiva dos
eventos mundanos. A consciência do tempo interno é o coração da temporalidade de todas as outras
formas de constituição intencional.

Todas essas reivindicações podem parecer um tanto bombásticas. Podem bem parecer algo
improvável e inventado. Parecem implicar que a consciência do tempo interno é como uma fonte
neoplatônica do ser da qual ambas, a experiência subjetiva e as coisas do mundo, emanam. A
consciência do tempo interno parece ser dado um tipo de prioridade metafísica sobre tudo o mais.
Não é talvez especulativo e extravagante dotá-la com tais poderes? Como pode essa seção oculta do
mundo, algo tão minúsculo e tão interno que é até mais imanente do que nossos atos intencionais,
ter tamanho poder sobre o ser das coisas? A fenomenologia parece sucumbir em construções
artificiais quando entra nesse domínio; não parece descrever fielmente o que aparece para nós.

A descrição fenomenológica da consciência interna do tempo é, na realidade, uma doutrina


incomum. Algo de sua terminologia parece ser excessivamente interno; parece dizer que no coração
de nosso ser estamos fechados num tipo de confinamento solitário que é até mais privado do que a
subjetividade alcançada por meio da redução transcendental. A retórica e o vocabulário dessa
questão da temporalidade parecem perturbadores inicialmente. Contudo, antes de rejeitar a
doutrina, deveríamos examinar o que ela tem a dizer sobre nossa experiência do tempo. Há mais
aqui do que vislumbramos num olhar de relance casual.

A estrutura do presente vivo


Quando tentamos explicar como experienciamos os objetos temporais, somos normalmente tentados
a dizer que temos uma série de “agoras”

presencados para nós, um após o outro. Tendemos a dizer que a experiência temporal é muito
semelhante a um filme sendo rodado, com uma exposição (uma presença) rapidamente seguida de
outra. Um estado do objeto nos impacta após o outro. Mas nossa experiência de duração temporal
não seria assim; se fosse, nunca alcançaríamos o sentido de uma duração, de um processo temporal
contínuo, porque tudo o que teríamos num dado momento seria o fotograma do filme que é dado
naquele momento. Além do mais, não só o filme sendo mostrado, mas nossa experiência da
sequência seria discreta e em notas separadas também; nós próprios estaríamos pulando de uma
experiência para a próxima, e nunca teríamos um sentido de que estamos vendo algo que vai além
do fotograma que está sendo dado no instante. Também não teríamos um sentido de nossa
experiência ou até mesmo de nós próprios como permanecendo ao longo do tempo. O sentido de um
fluxo contínuo nunca surgiria para nós. Assim, nem o objeto, nem nossa experiência e nem nós
próprios teríamos qualquer continuidade temporal. Nós e o que experienciamos seríamos nada mais
que flashes momentâneos, presenças momentâneas e imagens momentâneas.

Poderíamos tentar introduzir a continuidade e a sequência na nossa descrição de nossa experiência


dizendo o seguinte: é verdade que temos apenas um fotograma dado a cada momento, mas
enquanto temos esse dado recordamos alguns dos fotogramas que o precederam; nós os
relacionamos como fotogramas anteriores do que está sendo dado agora. Recordaríamos por fim os
poucos fotogramas que apenas precederam o presente. Réplicas de fotogramas anteriores surgiriam
para nós. Seria por meio de tal memória, a qual acompanha nossa percepção, que um sentido de
continuidade surgiria.

Essa explicação, contudo, não vai a fundo o bastante. Se dissermos que recordamos um fotograma
anterior, pressupomos o fato de que já temos um sentido do passado; mas como poderia um tal
sentido do passado ter começado a surgir para nós? Se temos apenas um fotograma, e então um
outro e mais outro, tudo o que teríamos experienciado seriam fotogramas presentes, e mesmo se
invocássemos um fotograma anterior seria dado para nós como ainda um outro fotograma presente.
Tudo o que teríamos seria a presença absoluta. Nenhum sentido de sucessão teria sido aberto para
nós, mesmo nas réplicas de fotogramas anteriores. A própria dimensão de ser passado nunca
poderia ter se diferenciado a si mesma do presente.

Poderíamos também acrescentar que, além de ter de pressupor recordações dos fotogramas
passados, teríamos também de pressupor antecipações dos fotogramas vindouros, porque nossa
experiência se estende no futuro bem como no passado. Nossa percepção teria de ser acompanhada
por atos de memória imediata e atos de antecipação imediata. Porém, uma vez mais, como
poderíamos ser sensíveis às antecipações como direcionando-nos para o futuro se o sentido do
futuro não tivesse sido dado desde o início? Como poderíamos saber se os fotogramas antecipados
são futuros e não apenas mais do presente? Nem o futuro nem o passado seriam diferentes do
presente.

É necessário, por conseguinte, dizer que em nossa experiência imediata não temos apenas
fotogramas da presença que nos é dada; exatamente em nossa mais elementar experiência, temos
um sentido de passado e futuro diretamente dado. Para usar a frase de William James, nossa
experiência do presente não é o fio de uma faca, mas um telhado de duas águas. Tudo o que é dado
para nós na percepção é dado como sumindo e também como chegando na presença. Se nossa
experiência do presente não fosse assim, nunca poderíamos adquirir um sentido do passado e do
futuro. Tentar inserir tais sentidos em nossa experiência “mais tarde”, após nossa experiência
inicial, seria tarde demais. Um sentido primário de passado e futuro tem de ser dado exatamente
desde o início.

Além do mais, pretender que temos tal sentido rudimentar de passado e futuro não é apenas uma
postulação a que somos induzidos por argumentos; não é uma hipótese ou uma inferência. Mais
precisamente, é apropriado ao modo como experienciamos as coisas: tudo o que experienciamos, se
coisas e processos no mundo ou atos subjetivos e sentimentos, nós experienciamos como
“atividades” tão efêmeras quanto existem. Só porque elas somem agora podemos recordá-las mais
tarde e reconhecê-las como passado, e só porque elas entram na visão agora podemos antecipá-las
com maior distância. Quando refletimos sobre nossa experiência, encontramo-la como uma imagem
no passado e no futuro imediatos. A ausência inicial de sucessão (pastness) e futuridade (futurity)
estão presentes em toda nossa experiência.

Há alguns termos técnicos que foram introduzidos na fenomenologia para nos ajudar a descrever a
experiência imediata do tempo. O termo o presente vivo significa a completa experiência imediata
de temporalidade que temos em algum instante. O presente vivo é o todo temporal em algum
instante. O presente vivo, como o todo, é composto de três momentos: impressão primordial,
retenção e protensão. Essas três partes abstratas, esses três momentos, são inseparáveis. Nunca
poderíamos ter uma retenção apenas por si mesma, nem poderíamos ter uma impressão primordial
ou uma protensão apenas por si mesma. O presente vivo é um todo constituído dessas três partes

como momentos. A estrutura do presente vivo pode ser diagramada como mostra a Figura 2.

A retenção, como a palavra sugere, aponta para o passado, “retém” algo. O que ela retém? Retém o
presente vivo que passou. Esse ponto é ao mesmo tempo sutil e importante. A retenção não retém
imediatamente uma fase anterior ou fotogramas do objeto temporal que está sendo experienciado,
como, por exemplo, a melodia ou o sentimento de angústia. Retém o presente vivo decorrido, a
experiência de temporalidade decorrida.

Agora, esse presente vivo decorrido era ele mesmo constituído de uma impressão primordial, uma
protensão e uma retenção. Assim, ao reter o presente vivo decorrido, tal presente também retém a
retenção que tinha decorrido dentro dele. Essa retenção por sua vez retém o presente vivo que a
precedeu, então temos uma série total de presentes vivos que são retidos através da mediação dos
presentes vivos antecedentes, por meio da mediação das retenções antecedentes. No presente vivo
temos uma retenção de retenções de retenções. Nunca temos um presente vivo atomizado, todo por
si mesmo; porque do momento retencional do presente vivo, o presente vivo sempre tem um rabo de
cometa de presentes vivos decorridos, com suas retenções, que o acompanham.

Poderíamos enfatizar o fato de que a retenção incluída no presente vivo não é um ato ordinário de
recordação; é muito mais elementar do que a memória. A retenção funciona dentro do
estabelecimento inicial da duração temporal. Ela precede a recordação. O que retém não caiu ainda
na ausência de esquecimento, e assim a memória no sentido familiar não pode ainda entrar em
cena. Outrossim, a protensão, a contraparte do futuro-dirigido da retenção, não é o mesmo que uma
escala-completa de antecipação ou projeção, na qual nos imaginemos numa nova situação. A
protensão é mais básica e mais imediata; ela nos dá o sentido primeiro e original de “algo
chegando” diretamente sobre o que temos agora. A protensão abre a exata dimensão do futuro e
assim torna totalmente pronta a possível antecipação.

A protensão e a retenção, junto com a impressão primordial, são a abertura original de nossa
experiência no futuro e no passado. O modo como irrompemos do presente imediato no futuro e no
passado foi chamado por Heidegger, um tanto dramaticamente, o caráter ex-estático de nossa
experiência, e as três formas de abertura chamadas de ex-estases do tempo. Os termos são sacados
da preposição grega ek, “fora” “exterior”, e do substantivo stasis, que vem do verbo histêmi,
“continuar” “permanecer”, implicando que em nossa mais básica experiência de temporalidade não
estamos fechados numa presença solitária, mas permanecemos no futuro e no passado.

Essa explicação da estrutura da experiência imediata do tempo, com seu apelo à impressão
primária, à retenção e à protensão, tem quase um gosto matemático. E algo como uma tentativa de
gerar uma linha contínua para descrever pontos de tal modo que qualquer ponto implica seus
pontos vizinhos imediatos (à direita e à esquerda), os quais por sua vez implicam seus próximos
vizinhos e assim por diante. Qualquer ponto estaria relacionado aos seus mais distantes vizinhos só
através da mediação de seus vizinhos mais próximos. Nessa compreensão, um ponto não seria uma
unidade discreta, mas seria ponto em, por assim dizer, para o ponto próximo, e por meio dele para
todos os outros pontos na linha. Levando a analogia um pouco mais longe, seria como se cada ponto
na linha pudesse ser um ponto, e pudesse ser exposto exteriormente “para o mundo” somente
enquanto também implicando seus vizinhos imediatos e, por meio deles, seus vizinhos mais
distantes.

Se os matemáticos poderiam querer redefinir um ponto dessa maneira não é decisão nossa, mas na
experiência que temos do tempo, a última das unidades, o presente vivo (o “ponto”), deve ser
descrita de tal modo a incluir, de algum modo, uma referência a e uma retenção do presente vivo
antecedente e sucessor. Se lidamos com o tempo, não podemos definir o ponto momentâneo como
simplesmente atômico, simplesmente presente sem qualquer envolvimento do tipo especial de
ausência que é o passado rudimentar e o futuro rudimentar.

Até aqui consideramos simplesmente a estrutura do presente vivo, a presença da temporalidade.


Esse presente vivo não apenas flutua livre; é intencional, e intenciona ou manifesta objetos
temporais, por exemplo, uma melodia ou um sentimento de dor. Em nossa análise fenomenológica,
devemos também descrever os aspectos temporais de tais objetos, os quais ficam diante do presente
vivo.

O aspecto do objeto correlato com um atual presente vivo é sua. fase agora. O aspecto do objeto
correlato com um decorrido mas retido pre-

sente vivo é uma anterior fase agora. Para colocar isso esquematicamente, cada presente vivo retido
tem uma fase agora do objeto correlato com ele:

Presente vivo 0 → Fase agora 0

Presente vivo-1 → Fase agora -1

Presente vivo -2 → Fase agora -2

Presente vivo -3 → Fase agora -3

Etc. Etc.

O presente vivo em vigor retém o decorrido, o qual por sua vez retém o antecedente, e assim por
diante, e no lado objetivo (o lado “noemático”) as fases temporais do objeto são mantidas no lugar e
na ordem em que se sucederam umas às outras. Assim, as fases de uma melodia (ou de um
sentimento) são temporalmente ordenadas tão logo originalmente registradas. São estampadas com
um lugar no tempo e internamente ordenadas em sua sucessão. Quando a melodia é recordada, a
mesma ordenação retorna, porque a memória reativa o fluxo temporal nos lados subjetivo e objetivo
simultaneamente.

O presente vivo, todo segmento da vida mais profunda da consciência, tem uma dupla
intencionalidade. De um lado, retém seus próprios presentes vivos precedentes e assim constrói um
tipo de incipiente identificação-de-si. De outro lado, por meio dessas mesmas retenções, constrói a
continuidade do objeto experienciado com o objeto desdobrado no tempo. A consciência do tempo
interno exerce assim o que poderíamos chamar de uma intencionalidade vertical, construindo sua
própria identidade contínua, e uma intencionalidade transversa, fazendo seus objetos se darem no
passar do tempo.

O alcance retencional de um presente vivo vai apenas até o anterior, não obstante; não se estende
ininterruptamente ao mais originário de nossa vida consciente. Em algum ponto as retenções se
desvanecem, e a correspondente fase agora cai no esquecimento. Essa é a obscuridade temporal
que envolve todos os nossos momentos de consciência. A luz da consciência volta umas poucas
fases, mas então o objeto e nossa experiência dele cessam de ser registrados. Entram numa
ausência mais definitiva Contudo, podemos recuperá-los pela memória, na qual revivemos os fluxos
temporais mais antigos, tanto imanentes como transcendentes, do modo como foram originalmente
preservados. Nós os trazemos de volta à vida, como representados. Não poderíamos recordar algo
que estivesse ainda no alcance retencional de um presente vivo; a experiência e seu objeto têm de
cair num estágio de esquecimento antes de poderem ser recordados. A recordação é assim um tipo
de novo começo discreto, voltando novamente a algo que escapou da consciência.

De fato, todos os deslocamentos de consciência que examinamos no capítulo V são um tipo de


interrupção do fluxo temporal presente da consciência e a introdução de um novo, segundo fluxo
dentro dele: o fluxo de nós mesmos como recordados, imaginados ou antecipados. O fluxo de nossa
experiência vigente pode ter um fluxo paralelo aninhado nele. O exercício deliberado de tais
deslocamentos é análogo à introdução da atividade categorial na percepção. Os deslocamentos na
memória, na imaginação e na projeção permitem um sentido mais elevado de identidade-de-si, bem
como um sentido mats elevado da identidade dos objetos, que vai além da mais primitiva porém
mais básica identidade que ocorre no nível do presente vivo.

Detalhes e perplexidades na consciência do tempo interno


O domínio da consciência do tempo interno é a base de ambos — do fluxo subjetivo do tempo interno
e do fluxo objetivo do tempo do mundo, o tempo transcendente. Permite que ambos os fluxos
manifestem a si mesmos, e é fenomenologicamente mais básico do que eles são. Contudo, esse
domínio não existiria por si mesmo. Todo o seu sentido é manifestar os objetos temporais nos dois
fluxos do tempo, o subjetivo e o objetivo. Não poderíamos isolar a consciência do tempo interno e
“tê-la” sozinha para si mesma. Tentar fazer assim seria o erro filosófico típico de tomar um momento
num pedaço, uma parte abstrata num todo. A consciência do tempo interno adere ao tempo interno
e seus objetos e, por meio deles, ao tempo mundano e seus objetos. Embora ela seja mais
fundamental do que eles são, é um momento para eles.

Além do mais, a análise da consciência do tempo somente proporciona as estruturas formais do


tempo. A regulação do tempo não é tudo; é só uma forma para o que é temporal. Para proporcionar
uma análise da “origem” do tempo, não explicamos a origem de árvores, gatos, burocracias,
bandeiras, melodias, sistemas solares, sentimentos de dor, percepções e atividades cate-goriais.
Proporcionamos apenas um esclarecimento dos níveis do tempo dentro dos quais as coisas existem e
manifestam a si mesmas. As estruturas formais do tempo precisam ser preenchidas com objetos e
atividades de vários tipos, os quais requerem seu próprio tipo específico de análise, uma vez que
todos eles têm formas de presentação distintas daqueles da temporalidade.

Contudo, porque o tempo é universal, as estruturas temporais aplicam-se a% todas as coisas, tanto
subjetivas como objetivas.

A consciência do tempo interno é paradoxal quando medida pelos padrões que aplicamos aos objetos
e processos ordinários. Como vimos na Figura 1, o domínio dessa consciência está além ou é mais
imanente do que mesmo os nossos processos temporais subjetivos; é mais profundo até do que o
fluxo de sentimentos e atos intencionais. Porque é tão profundo, cria um problema para o uso dos
termos “interno” ou “imanente” para descrevê-lo. Ele move-se além do interior e do exterior. Vamos
ver que não é realmente localizável no espaço. Ele se evade do espaço como também do tempo em
seus sentidos ordinários, até mais radicalmente do que faz nossa atividade intencional normal.

A consciência do tempo interno é feita do presente vivo enquanto este sucede a si mesmo. Essa
sucessão é um processo? Flui ao longo do caminho que os sentimentos e os atos intencionais
realizam? Não; seu modo de mudança tem de ser diferente daquele dos sentimentos e atos, das
melodias e do curso da vida. E ainda, a consciência do tempo interno tem de “mudar”; ele tem de ter
seu próprio tipo de fluxo. Cada presente vivo sucede a outro. Mais, o termo “sucessão” quando
usado aqui não pode significar o mesmo de quando é usado em respeito a uma melodia ou a um
sentimento que aumenta e diminui. Tudo o que podemos fazer é mostrar as peculiaridades de tal
sucessão, as quais são expressas pelo modo da função de retenção e protensão nele. O presente vivo
“precedeu” o presente vivo , e ambos estão retidos no presente vivoQ, o qual é o único que conta no
momento, porquanto é o único que é real.

A forma do presente vivo assim move-se ruidosa, automática e constantemente, nem mais rápida
nem mais lenta, sempre a par da realidade da experiência temporal. Ela é o pequeno motor no
coração da temporalidade. Porque é a origem do tempo, é de algum modo fora do tempo (como
também do espaço), e ainda experimenta diferenciação e sucessão, de um tipo próprio a si mesma. É
simultaneamente permanente e fluente, o stehendstròmende Gegenwart, como Husserl a denomina.
Ela alterna e ajunta, flui e prende, abre e fecha, como o fogo e a rosa que são um (T.S. Eliot, Little
Gidding, ad finem). Ela é o lugar das mais básicas partes e todos, presenças e ausências,
identidades em multiplicidades, aquelas que são pressupostas por todas as formas mais complexas
constituídas em nível mais elevado na experiência. Esse presente vivo está também na origem de
nossa própria identidade-de-si como agentes de consciência de verdade e ação, mas porque está na
nossa origem ela é pré-pessoal. Ela funciona anonimamente. Não poderíamos fazer nada para mudá-
la ou fazê-la mais lenta ou acelerada. Não está em nosso poder. Não controlamos nossas origens. Ela
apenas se mantém no alvoroço de seus próprios termos. E ainda somos identificáveis com ela; ela é
“nossa”, como nossa origem e base.

Vamos olhar por um momento para algumas das sínteses de identidade microscópica ou
“subatômica” que têm lugar dentro do presente vivo. Quando um presente vivo real expira e torna-
se retido como um presente vivo , ele ausenta-se a si mesmo, mas não cai no esquecimento; torna-se
presenta-do como tendo ido; sua ausência imediata é por essa razão dada para nós. Aqui temos algo
paradoxal, a dadidade de uma ausência, a presença original de um “passado”. A modificação do
presente vivo introduz uma ausência (em contraste com a atualidade desfrutada antes de ele
expirar), mas a ausência é presentada: o presente vivo t é dado como o mesmo que apenas expirou
da centralidade, e assim é identificável como tal, porém tal identificabilidade depende da inexorável
passagem para a ausência. Um afastamento original toma lugar dentro da retenção, mas esse
afastamento é dado ou presentado. Nessa simples transição de um presente vivo para um estado
retido, temos ausência complementando presença, temos partes vindo a ser dentro do todo do
presente vivo, temos uma multiplicidade sendo gerada como a cauda do cometa das retenções é
construída, e em todas essas coisas temos sínteses de identidades de presenças vivas bem como das
fases temporais de seus “objetos” intencionados (as fases do sentimento ou da melodia).

Temos nos concentrado no aspecto retencional da consciência do tempo interno, mas não
poderíamos negligenciar o lado protensional. A proten-são é a abertura para o que está vindo. E a
espera original de algo por chegar. E formal, espera somente “algo” sem nenhum conteúdo
específico, ainda que uma experiência particular sempre tenha um conteúdo de algum tipo e seja
por isto especificada (mais do sentimento de tristeza, algo do entorno do canto, mais salada, mais
conversa). Desse modo, quando uma fase de um processo registra a si mesma numa impressão
primária, já foi protensio-nalmente “antecipada”, ao menos com respeito a sua forma temporal, e
por isso é dada como tendo sido esperada. Uma síntese de identidade microscópica ou subatômica
ocorre não só em relação à retenção, mas também em relação à protensão.

As coisas que foram ditas sobre a consciência do tempo interno podem parecer excessivarnente
especulativas e quase fantásticas. Elas podem parecer ir além das descrições mais acessíveis que
oferecemos de outras formas de intencionalidade. Por exemplo, as análises que a fenomenologia
provê para a percepção e para a imaginação, ou para a atividade categorial e as imagens, parecem
mais realistas; parecem ter um pé firme naquilo que realmente experienciamos. Distinções tais
como aquelas entre memória e percepção parecem ser do tipo que o leitor pode checar da
veracidade ou da falseabili-dade pensando sobre sua vida consciente. Porém, as especulações sobre
a consciência do tempo interno parecem ser completamente estranhas à experiência ordinária.
Parecem flutuar no místico e no hermético. Ainda fazem parte da fenomenologia? São descrições ou
são construções artificiais?

Alguém pode formular essa objeção do seguinte modo: admitamos que a experiência temporal não é
atômica, não é o fio de uma faca, mas um telhado de duas águas; admitamos que há algo como
protensão e retenção junto com sua impressão imediata. A inclusão de um passado e de um futuro
imediatos no presente parece bastante razoável. Contudo, por que não localizar essa estrutura
diretamente dentro do fluxo de nossos sentimentos e atos intencionais, no segundo nível de
temporalidade? Por que não a deixar como algo psicológico? Por que a pressupor como algo mais
profundo e mais imanente do que o subjetivo fluxo da consciência? Por que a projetar no domínio do
presente vivo e seu curioso modo de expiração? Por que sumir na “preciosa” linguagem de alternar
e juntar como um evento primai? É a postulação do terceiro nível de temporalidade, um mais
profundo e “abaixo” do fluxo da experiência subjetiva, o que parece ser filosoficamente excessivo.

Em resposta a essa objeção, alguém pode dizer que a análise da intencionalidade e da presentação
não pode repousar apenas no domínio do tempo mundano e no domínio do tempo subjetivo. O
vaivém da presença e da ausência que ocorre nesses dois níveis tem de ser apoiado por um tipo de
abertura e justificação, uma fonte de distinção, que não é apenas um processo mundano ou um
evento psicológico. O fato de que as coisas e as experiências se desenrolam e persistem no tempo
não é apenas um fato mecânico, orgânico ou psicológico; Origina-se de um nível mais profundo. Esse
nível é o emergir para todas as estruturas formais, tais como as encontradas na lógica, na
matemática, na sintaxe e nos vários modos de presentação. Além do mais, quando identificamos e
conhecemos coisas mundanas, e quando experienciamos nossas próprias sensações, percepções,
memórias e atividades intelectuais, estamos sempre também irrefletidamente revelando a nós
mesmos como a fonte identificável e receptora de tais acontecimentos, sem haver nenhuma
necessidade de outro dativo que seja responsável por essa manifestação.

Husserl aborda essa fonte em sua doutrina sobre a consciência do tempo interno, enquanto
Heidegger a focaliza com suas obscuras notas sobre Lichtung e Ereignis, que se referem ao
“dizimar-se” de um espaço em que as coisas podem ser dadas e nós podemos vir a ser seus dativos.
A filosofia clássica toca nesses assuntos em suas notas sobre a emanação das diferenças do Uno
(Plotino), na interação do Uno e da díade Indeterminada (Platão), e talvez até no papel do Movente
Imóvel (Aristóteles). Se estamos discutindo a presen-tação e o desaparecimento das coisas, um tipo
de origem para esse empurrar e puxar de presença e ausência é requerido, e não pode ser um tipo
das coisas que se mostram no mundo ou em nosso fluxo de experiências subjetivas.

Uma pessoa que se sente mais confortável lidando com neurônios e processos computacionais pode
rejeitar tais afirmações com horror e repulsa. Pode dizer que se a fenomenologia leva para tal
mistificação não quer tomar parte nela. Em vez disso, explicará a consciência, o conhecimento e a
experiência do tempo por medição de atividade neuronal e localizando os pontos no córtex cerebral
onde as percepções, as memórias e outros eventos mentais ocorrem. Essas são coisas nas quais
podemos pôr as mãos, e tal trabalho científico, acredita, mostrará o que realmente são as atividades
de consciência. Mas o preço de tal cautela dessa pessoa será o fato de que ela nunca será apta a
considerar termos como “presentação”, “representação”, “recordação” e até “computação”, termos
que ela deve usar, mas não pode justificar. Será inapta a tratar do sentido de passado, futuridade e
identidade. Descreverá processos orgânicos e mecânicos, mas não será capaz de falar
legitimamente sobre a consciência em suas muitas formas e nunca alcançará a questão do que é o
tempo.

O vocabulário e a gramática usados na fala sobre a consciência do tempo interno têm sua própria
exatidão e seu próprio rigor. Devem usar metáforas e outros tropos, mas isso não é surpreendente,
uma vez que a linguagem não poderia ter, originalmente, se desenvolvido para falar desse domínio;
devemos ajustar os termos que são normalmente usados para nomear as coisas e os processos no
mundo. Os termos mundanos precisam ser modificados para atender ao que forma a base da
presentação das coisas e de suas muitas habilidades a ser nomeadas. “Ser agora” e “ser aqui” (ou
ali), ser um dativo de manifestação e uma justificação para as coisas que aparecem, -deve ser
diferenciado de fatos físicos e psicológicos sobre nós mesmos, da mesma forma como lógica e
evidência têm de ser diferenciados dos processos físicos e psicológicos. Os tópicos da consciência do
tempo interno são a base das questões da verdade e da manifestação, e estão relacionados ao
escudo clássico do ser enquanto ser, à inquirição de como as coisas manifestam a si mesmas.
X. O MUNDO-DA-VIDA E A INTERSUBJETIVIDADE
Após os temas extremamente formais discutidos no Capítulo IX, passaremos agora a tópicos mais
concretos. Nesse capítulo iremos considerar o Lebenswelt, o mundo-da-vida, o mundo no qual
vivemos, e iremos considerar também a intersubjetividade, o tipo de intencionalidade que age em
nossa experiência de outras pessoas. O caráter familiar do mundo vivido e o caráter público da
intersubjetividade irão trazer um bem-vindo descanso da análise austera do capítulo precedente.

O mundo-da-vida como um problema


O mundo-da-vida surge como uma questão filosófica em contraste com a ciência moderna. A forma
altamente matemática de ciência introduzida por Galileu, Descartes e Newton levou as pessoas a
pensar que o mundo no qual vivemos, o mundo de cores, sons, árvores, rios e pedras, o mundo do
que veio a ser chamado “qualidades secundárias”, não era o mundo real; em vez disso, o mundo
descrito pelas ciências exatas era dito ser o único verdadeiro, e era completamente diferente do
mundo que experienciamos diretamente: O que aparenta ser uma mesa é na verdade um
conglomerado de átomos, campos de força e espaços vazios. Átomos e moléculas, as forças, os
campos e as leis descritas pela ciência são considerados a verdadeira realidade das coisas. O mundo
em que vivemos e em que diretamente percebemos é só um constructo feito por nossas mentes
respondendo aos insumos de nossos sentidos, e os sentidos reagem biologicamente aos estímulos
físi-cos que são transmitidos dos objetos. O mundo em que vivemos é, finalmente, irreal como o
experienciamos, mas o mundo alcançado pela ciência matemática, o mundo que causa esse mundo
meramente aparente, é real.

A ciência tem grande autoridade em nossa cultura porque as pessoas pensam que ela nos diz a
verdade das coisas. Mesmo coisas humanas como consciência, linguagem e raciocínio serão, é o que
se diz, finalmente explicados em termos das ciências do cérebro, as quais por sua vez serão
reduzidas, em princípio se não de fato, às ciências físicas da física e da química. Temos dois mundos,
então, o mundo no qual vivemos e o mundo descrito nas ciências matemáticas, e é geralmente
pensado que o mundo-da-vida é um mero fenômeno, totalmente subjetivo, enquanto o mundo da
ciência matemática é o mundo verdadeiramente objetivo.

A questão do mundo-da-vida não surgiu antes do advento da ciência moderna; antes disso, as
pessoas simplesmente pensavam que o mundo em que vivemos era o único mundo que havia. A
ciência pré-moderna apenas enunciou nosso mundo familiar. Não teve a pretensão de encontrar um
substituto para ele. A ciência pré-moderna tentou simplesmente desenvolver termos exatos,
definições e descrições das coisas que encontramos diretamente, coisas como organismos vivos,
emoções, argumentos retóricos e sociedades políticas. O problema de como poderíamos interpretar
o mundo no qual vivemos — se poderíamos tomá-lo como válido e fidedigno, ou puramente subjetivo
e não científico — vem à tona em resposta à ciência moderna.

Como a fenomenologia lida com o problema da diferença entre o objetivo, o mundo científico, e o
subjetivo, o mundo vivido? Ela tenta mostrar que as ciências matemáticas, exatas têm suas origens
no mundo vivido. Elas são fundadas no mundo-da-vida. As ciências exatas são uma transformação da
experiência que temos diretamente das coisas no mundo; elas empurram essa experiência ao nível
mais alto de identificação, e correlativamente transformam os objetos que experienciamos em
idealizados, objetos matemáticos. Pode parecer que as ciências exatas estão descobrindo um novo e
diferente mundo, mas o que elas estão realmente fazendo, conforme a fenomenologia, é submeter o
mundo ordinário a um novo método. Por meio desse método, as ciências exatas meramente ampliam
o conhecimento que temos do mundo no qual vivemos; elas proveem uma maior precisão em nosso
trato com as coisas, mas nunca abandonam ou descartam o mundo que é sua base. Essas ciências
estão aninhadas no mundo-da-vida; elas não entram em competição com ele.

Além disso, a fenomenologia não apenas assevera que as ciências exaras são fundadas no mundo
vivido; elaTambém tenta descrever os tipos especiais de intencionalidades que constituem essas
ciências. Tenta mostrar precisamente como o mundo-da-vida é transformado no mundo da geometria
e das realidades atômicas. Assim, a fenomenologia reivindica que as ciências exatas devem tomar
seu lugar dentro do mundo-da-vida. Elas são uma das instituições estabelecidas neste mundo, mas
nunca substituem o mundo-da-vida por um outro. Não poderíamos viver no mundo projetado pela
ciência; somente podemos viver no mundo-da-vida, e esse mundo básico tem suas formas próprias
de verdade e verificação que não são deslocadas, mas apenas complementadas pela verdade e pela
verificação introduzidas pela ciência moderna.

A mudança feita pela fenomenologia, então, é mostrar que as ciências exatas são derivadas do
mundo vivido e das coisas nele. A fenomenologia reconhece o valor e a distinção da ciência
matemática moderna, mas não a supervaloriza; recorda-nos que tal ciência é construída sobre coisas
que são dadas para nós_no modo pré-científico, e também recorda-nos que até a ciência é
“pertencente” ou realizada por alguém. A ciência tem de ser asseverada por cientistas, por seres
humanos que exercem o tipo especial de pensamento e a adequada intenção para ele. A ciência
envolve vários tipos de intencionalidade, vários tipos de presença e ausência e síntese de
identidade. Pressupõe algumas formas de intencionalidade que tem em comum com outros empe-
nhos intelectuais, e também desenvolve algumas formas próprias, mas não flutua livre das pessoas,
dos egos transcendentais, que realizam a ciência.

Como as ciências matemáticas são constituídas


As ciências modernas lidam com coisas idealizadas: com superfícies sem atrito, rajps de luz, gases
ideais, fluídos incompressíveis, cordas perfeitamente flexíveis, máquinas idealmente eficientes,
fontes de voltagem ideais e teste de partículas que não têm nenhum efeito no campo no qual elas se
movem. Contudo, essas formas ideais não são fabricadas fora do ar rarefeito. IVlais propriamente,
elas são projeções que têm suas raízes nas coisas que experienciamos diretamente.

Por exemplo, consideremos como chegamos à ideia de uma superfície geométrica. Começamos com
uma superfície comum, tal como um tampo de mesa. Nós lixamos e polimos a superfície e a
tornamos mais e mais lisa. A certo ponto, contudo, podemos mudar do lixamento e do polimento
reais para uma projeção imaginativa. Nós nos imaginamos lixando e polindo a' superfície até que ela
não possa mais ser polida de nenhum modo; nós; a imaginamos como tendo alcançado o limite de
polimento. Na verdade, não podemos polir uma superfície a esse ponto, mas podemos “partir” dos
passos físicos de refiná-la e simplesmente imaginá-la alcançando esse limite? insuperável. Esse
limite é a superfície geométrica pura, e é alcançado de uma base na experiência atual. É uma
transformação da superfície que experien-ciamos de fato.

Um outro exemplo pode ser encontrado na ótica. Iniciamos com um feixe de luz vindo de um
holofote. Então cobrimos parte da fonte de luz e cortamos o feixe, por assim dizer, no meio. Então
cobrimos metade da parte restante. Fazemos isso algumas vezes, mas então mudamos os
mecanismos; mudamos realmente de bloquear de fato a luz para imaginar que a bloqueamos, e
continuamos, passando a imaginar que cortamos a luz até um feixe muito fino, tão fino que não
poderíamos interromper nenhuma parte dele sem extinguir o feixe inteiramente. Esse mais fino
feixe, esse feixe intacto ou atômico, vem a ser um “raio” de luz, como foi definido por Newton em
sua Qptics. Nunca poderíamos chegar, na realidade factual, a tal raio de luz, mas podemos imaginar
ou pensar sobre ele como um limite.

Tanto a superfície perfeitamente lisa como o raio de luz são objetos idealizados. Tais objetos jamais
seriam experienciados em nosso mundo-da-vida; nós os estabelecemos ou constituímos por um tipo
especial de intencionalidade, um tipo que mistura ambos — percepção e imaginação. Essa
intencionalidade começa com algo do mundo-da-vida, mas gera algo que não parece pertencer mais
a esse mundo. Uma vez que temos esses objetos idealizados, contudo, podemos começar a relacioná-
los aos objetos concretos que experienciamos. Os objetos idealizados tornam-se versões perfeitas do
que experienciamos; eles parecem ser “mais reais” do que as coisas que percebemos porque são
mais exatos. As coisas que percebemos parecem ser só cópias imprecisas do padrão perfeito.

Então, se convocamos muitos desses objetos, podemos pensar que descobrimos todo um mundo de
coisas que são de longe melhores e mais exatas do que o mundo de nossa percepção. Isso é o que
acontece quando o tipo de ciência introduzida por Galileu, Descartes e Newton torna-se dominante
em nossa cultura. As pessoas esquecem que as coisas ideais referidas na e pela ciência foram
trazidas por um modo de pensar; elas acreditam que essas coisas são mais reais do que aquelas que
diretamente experienciamos, e assim concedem às ciências que as conhecem uma grande
autoridade. Elas tomam o que é resultado de um método como sendo uma descoberta de um novo
tipo de realidade. Os cientistas especialistas, os mestres nesse novo domínio, são considerados
detentores de uma compreensão (posse) muito mais perfeita da natureza das coisas do que o resto
de nós, já que lidamos “meramente” com o mundo não científico, enquanto eles lidam com o mundo
como ele “verdadeiramente” é em sua perfeita exatidão. Essas idealizações, além do mais, foram
projetadas não somente na geometria e na física, mas também nas ciências sociais: ern economia,
política e psicologia. Modelos de teoria dos jogos, por exemplo, têm sido usados para calcular
estratégias em períodos de guerra e política externa.

Outros aspectos dos objetos científicos


Examinemos em maiores detalhes o procedimento pelo quabos objetos idealizados são alcançados.
No objeto com o qual começamos podemos identificar uma característica na qual flutuações são
possíveis, tais como ã lisura da superfície ou o tamanho do feixe de luz. Podem existir variações
nessas duas características: ambas podem ser realizadas em maior ou menor-grau, em mais ou
menos. As variações são então tornadas pequenas e menores, e a ideia surge de uma condição na
qual nenhuma outra variação é pensável: elas são reduzidas a zero. A superfície torna-se
perfeitamente sem relevo, o raio torna-se praticamente uma linha. Nós “geometrizamos” um objeto
que foi uma vez uma coisa percebida no mundo.

E importante notar que quando alcançamos essa condição ideal retemos algo do conteúdo ou da
qualidade da coisa com a qual começamos. Não transformamos tudo em matemática pura. A
superfície ideal é ainda uma coisa espacial e o raio é ainda um raio de luz. A superfície é diferente
do raio de luz, e ambos são diferentes, por assim dizer, da corda perfeitamente flexível ou da fonte
de voltagem ideal, as quais por sua vez são idealizações que partem de outros objetos mundanos.

É a identidade dolorosamente exata dos objetos idealizados que os torna tão satisfatórios
intelectualmente. Eles são perfeitos: são exatamente os mesmos onde quer que sejam encontrados,
em contraste com as superfícies variáveis e os feixes de luz que encontramos na realidade. Em
capítulos anteriores deste livro, consideramos o tema da identidade em outros contextos; uma coisa
percebida (o cubo) foi descrita como uma identidade em um fluxo de lados, aspectos e perfis; um ato
mental foi dito ser uma identidade dada nas várias recordações que temos dele; e até o si foi
apresentado como uma identidade por trás de nossas várias conquistas mentais. Contudo, todas
essas identidades encerram muitas variabilidades; elas são o que se pode chamar coisas
morfológicas ou essências. Em contraste, as coisas ideais que a ciência matemática alcança, as
essências exatas, não toleram nenhuma ambiguidade ou variação. Elas positivamente as excluem.

Nem todas as coisas podem ser projetadas para um limite e constituídas como essências exatas;
uma percepção ou uma memória, por exemplo, sempre retêm alguma vaguidade e variabilidade.
Não faria sentido tentar projetar coisas como essas para um limite ideal; elas permanecem
“morfológicas” e não tipos de coisas exatas. Consequentemente, tais coisas parecem, para alguma?
pessoas, ser vagas e subjetivas, e tentativas são feitas para introduzir uma ciência exata, um tipo de
psicologia matemática ou ciência cognitiva, que substituirá esses conceitos por outros mais exatos.
A tentativa de explicar a cognição humana como uma forma de computação neuronal é um exemplo.

A fenomenologia reivindica que as ciências matemática exatas da natureza não podem afirmar sua
própria existência. Elas não têm os termos e conceitos para manusear coisas como percepção,
recordação, a experiência de outras mentes, e outras que tais. A fenomenologia reivindica que pode
prover os conceitos e as análises que esclarecem como as ciências exatas mesmas surgem de
origens pré-científicas. A fenomenologia apresenta a si mesma como uma ciência por mérito
próprio; ela não se comporta como as ciências matemáticas da natureza, mas tem sua forma própria
de precisão, a qual é distinta da precisão matemática idealizada da ciência natural. E, entre outras
coisas, uma ciência sobre a própria ciência. Ela é também uma ciência do mundo-da-vida, e tenta
mostrar como o mundo-da-vida serve como um fundamento e um contexto para as ciências
matemáticas.

Desenvolvimentos na física e na matemática no século XX levantaram questões sobre a exatidão das


ciências naturais. Descobertas como a da indeterminação de medição e a relação do observador na
teoria quântica, da teoria da relatividade, do teorema da incompletude em matemática, dos sistemas
não lineares, da teoria do caos e da lógica difusa (fuzzy logic) têm lançado dúvidas sobre a
compreensão mais elevada do mundo que foi apresentada na física newtoniana, na ciência e na
matemática que prevaleceram durante os primeiros anos da fenomenologia. Contudo, esses
desenvolvimentos não afetam o problema do mundo-da-vida e da ciência. Todos esses
desenvolvimentos ocorreram dentro da visão científica do mundo, a qual, mesmo com eles, ainda
permanece em desacordo com o mundo de nossa experiência espontânea. As versões mais novas da
ciência podem tolerar imprecisão, mas o que elas descrevem é ainda diference do mundo no qual
vivemos, e o problema de integrá-las nesse mundo não foi desfeito. Uma importante contribuição
para sua resolução poderia encontrar-se na análise mais cuidadosa dos tipos de intencionalidades
que operam no estabelecimento do conhecimento científico.

Intersubjetividade: um mundo considerado em comum


Muito do vocabulário e do argumento da fenomenologia pode dar a impressão de que ela é uma
forma de filosofia que se volta para o solipsismo. Com sua fala sobre o ego transcendental, o fluxo
de consciência temporal e a redução, a fenomenologia pode parecer negligenciar a existência e a
presença de outras pessoas e comunidades. Alguns críticos da fenomenologia queixam-se de que ela
reduz outras pessoas a meros fenômenos e faz do ego solitário a única realidade. Tais acusações são
infundadas. A fenomenologia tem muito a dizer sobre a comunidade humana e prover uma descrição
extensiva de nossa experiência de outras mentes.

Há duas abordagens para a descrição de nossa experiência dos outros. Primeiro, podemos
simplesmente descrever como experienciamos diretamente outras pessoas, como reconhecemos
outros corpos como a corpprí-ficação de mentes e si mesmos como o nosso próprio. Segundo, nós
podemos tomar uma rota mais indireta e descrever como experienciamos o mundo e as coisas nele
como sendo também experienciadas por outras mentes e outros si mesmos. Nessa segunda
abordagem, não visamos à relação direta entre nós mesmos e os outros, mas à relação que ambos ou
todos temos para com o mundo e as coisas que possuímos em comum. Vamos começar com a
segunda abordagem.

Quando experienciamos um objeto corporal, tal como um cubo, nós o reconhecemos como uma
identidade numa multiplicidade de lados, aspectos e perfis. A multiplicidade é dinâmica; qualquer
que seja a perspectiva que tenhamos do cubo em algum momento, podemos mover a nós mesmos ou
ao cubo, e gerar um novo fluxo de lados, aspectos e perfis. O que era visto torna-se não visto, o que
era não visto torna-se visto, e o cubo permanece ele mesmo do começo ao fim. A qualquer momento
antecipamos e evocamos nossas visões futura e passada das coisas. Essas outras visões são
cunhadas enquanto desfrutamos da visão que é dada para nós agora. Nossa experiência é uma
mistura do real e do potencial: sempre que certos lados ou aspectos são dados, comtencionamos
aqueles que não são, mas que poderiam ser dados se mudássemos nossa posição, nossa perspectiva,
nossa habilidade para perceber e assemelhados.

A mistura de real e de potencial é elevada quando outros perceptores entram em cena. Se outros
estão presentes, então constatamos que quando vemos o objeto desse lado os outros atualmente
veem-no de algum outro ângulo, um ângulo que poderíamos possuir se nos movêssemos para onde
eles estão. O que é potencial para nós é real para eles. O objeto por essa razão assume uma maior
transcendência para nós: ele não é somente o que vemos e poderíamos ver, mas também o que eles
veem nesse momento. Além do mais, apreciamos o objeto tal como transcendendo nosso próprio
ponto de vista: vemo-lo precisamente como sendo visco por outros e não apenas por nós. Esse nível
de sua identidade é dado para nós. O objeto é ou pode ser dado intersubjetivamente, e é presentado
para nós como tal.

A habilidade do objeto de ser dado perceptualmence para muitos observadores, ouvintes,


provadores, degustadores e experimentadores toma lugar num nível sensório, mas o objeto pode
também ser categorialmente enunciado por muitas pessoas e não apenas por nós. Pode ser
compreendido e pensado sob muitos modos. Podemos conhecer o senhor Jones como o balconista da
agência postal, mas a senhora Jones o conhece como seu marido, e sabemos que o balconista da
agência postal é também conhecido por outras pessoas sob outras formas de descrição e
conhecimento. Não somos aptos a formular todos os modos pelos quais um objeto pode ser
conhecido: qualquer conhecimento que temos é determinado por ser limitado. Mais, conhecemos o
objeto como conhecível mesmo em formas que não podemos conhecer. Reconhecemos esse nível de
sua transcendência para nós, esse nível da ausência que tem para nós. Tanto ojiível perceptual e o
intelectual como o mundo e as coisas nele são dados para muitos si mesmos, muitos dativos de
manifestação, ainda que desejemos sempre nos apresentar a nós mesmos como o único
proeminente, o único ao centro e o único que é uma questão para nós num modo que nenhum outro
ou outros podem ser, por mais que eles possam ser queridos e próximos. Nossa proeminência para
nós mesmos é uma necessidade da lógica transcendental, não um assunto de moral autocentrada.
Algumas pessoas podem ser pessoalmente mais próximas a nós e outras mais distantes, mas as
muitas dimensões de proximidade não surgem pelo modo que somos dados a nós mesmos.

Intersubjetividade: conhecendo o outro


Até aqui, nossa discussão da intersubjetividade focalizou-se nos objetos que vemos como sendo
experienciados por outros tanto como por nós próprios. Vamos agora fazer alguns comentários sobre
nossa experiência direta de outros como outras mentes, outras corporificações da consciência. Não
só apreciamos o mundo como dado a outros; também podemos nos voltar para esses outros e
experienciá-Ios como nós próprios, como dativos de manifestação, que podem retribuir nosso
reconhecimento e nos ver como eles próprios.

A experiência de um outro si é baseada na experiência de um outro corpo com o nosso próprio. Não
conhecemos apenas a mente do outro; primeiro nós temos o corpo dado, mas o corpo é dado como
um lugar no qual a consciência do outro exerce poder. Assim como podemos mover e experienciar o
nosso próprio corpo, assim também o outro, a quem reconhecemos como sendo igual a nós, move e
experiencia o seu. Esse corpo, além do mais, não apenas provê um lugar para outra consciência e
uma situação para outro ponto de vista -— também expressa a mente de outro. A língua falada, os
gestos intencionais e a linguagem corporal imponderável são todos mais do que apenas movimentos
corporais; sinalizam atos intencionais, e também expressam um conteúdo de pensamento.
Expressam para nós como o mundo e as coisas nele parecem ser para alguém que está naquele
corpo. Se a outra pessoa emitir certos sons ou fizer certas caretas, podemos dizer que "lá vêm
problemas” ou "não nos abandone agora”.

Assim, certos corpos permanecem no mundo como expressivos de sentidos (um movimento de um
braço não é apenas um processo mecânico, mas uma saudação, um aceno da mão é uma despedida e
não apenas um movimento). Esses corpos são também capazes de nos transmitir como o mundo é:
proveem outros pontos de vista sobre o modo como as coisas são. Eles corporificam outros egos
transcendentais. Nós os percebemos como corpos de si-mesmos como nosso si-mesmo, mas agindo
assim nós os percebemos precisamente como encerrando e expressando uma vida consciente que
deseja permanecer sempre ausente para nós, um fluxo de consciência de temporalidade
irredutivelmente diferente da nossa própria. A ausência distintiva de outros si é presentada para
nós. É um tipo de ausência diferente das ausências dos outros lados do cubo ou do sentido de um
texto que ainda não podemos decifrar.

Um dos ensinamentos mais controversos na fenomenologia é o de que é possível para nós, em


princípio, “pensar além” da dimensão intersubjetiva e descer a um nível em nossa própria
experiência que precede ou forma a base da intersubjetividade. Esse é a assim chamada esfera da
si-mesmidade. A redução a essa esfera não é o mesmo que imaginar uma solidão factual; não é como
imaginar que estamos sós em qualquer lugar ou até que todos os outros seres humanos tenham
desaparecido da terra e nós fomos deixados sós. Tais cenários imaginários poderiam ainda reter a
dimensão de outras pessoas; poderiam apenas eliminar os outros, na verdade. A redução à esfera da
si-mesmidade tenta eliminar as muitas dimensões das outras pessoas. Ela tenta alcançar um nível de
experienciação no qual os muitos contrastes entre nós e os outros não afloram.

Os comentadores têm quase sempre criticado Husserl por introduzir o conceito da esfera da si-
mesmidade; eles sustentam que esse domínio é impensável, porque qualquer experiência que temos
deve, em princípio, ter uma publicidade rudimentar. Contudo, não deveríamos ser apressados
demais em rejeitar essa doutrina. Certamente, quase todas as nossas experiências envolvem uma
dimensão de outras mentes, um sentido que seria compartilhado com outros e que é definido por
estar em contraste com outros. Porém, não deveríamos excluir a noção de que algum aspecto de
nossa consciência tem um tipo de extrema privacidade no qual o sentido mesmo dos outros não
entra em cena. Pode haver um nível de experienciação que é, em princípio, incapaz de ser expresso
para ou compartilhado com os outros, um domínio no qual o sentido mesmo dos outros não se
introduz. Claramente, tal intensa privacidade não poderia ser o todo de nossa experiência, nem
poderia ser uma parte principal dela, mas poderia ser um leve toque de desprezo do segredo final da
nossa consciência. Por que deveria tal dimensão ser totalmente negada? E, se existir tal domínio, ele
deveria ser objeto de uma exploração para mostrar que tipo de identidades e diferenças, presenças
e ausências, e unidades em multiplicidade são possíveis nele.

Deveríamos enfatizar, contudo, que essa redução à esfera da si-mesmidade não é o mesmo que a
redução transcendental, o movimento da atitude natural para a reflexão fenomenológica. É um
movimento dentro da atitude filosófica, cobrindo vários níveis da experiência experimentada pelo
ego transcendental.
XI. RAZÃO, VERDADE E EVIDÊNCIA
O ego transcendental é o agente da verdade. Ele exerce essa atividade em muitos contextos: no
discurso, na formação de imagens, na reminiscência, na conduta prática, na retórica política, na
ilusão inteligente e na manobra estratégica. Um modo especial de exercer o poder de ser verdadeiro
ocorre na ciência, seja a ciência empírica ou teórica, e esteja focada numa região do ser ou em
outra. Na ciência, desejamos simplesmente encontrar a verdade das coisas; o empreendimento
científico é só uma tentativa de mostrar o modo como as coisas são, à parte de como elas podem ser
usadas ou de como podemos desejar que elas sejam. O sucesso na ciência não significa a vitória
sobre as outras pessoas ou a gratificação de nossos vários desejos; significa pura e simplesmente o
triunfo da objetividade, a descoberta de como as coisas são.

A filosofia é um esforço científico, mas é diferente da matemática e das ciências sociais e da


natureza; ela não é concernente a uma região particular do ser, mas à veracidade enquanto tal: às
relações humanas, à tentativa humana de descobrir o modo como as coisas são e à habilidade
humana de agir de acordo com a natureza das coisas; por fim, é concernente ao ser enquanto ele
manifesta a si mesmo para nós. Na ciência e na filosofia buscamos a verdade por si mesma,
independentemente de qualquer outro benefício que ela possa trazer. Em ambos empreendimentos
nós tentamos alcançar o grau mais elevado de exatidão apropriada ao assunto em pauta; não nos
satisfazemos em fazer apenas um trabalho particular bem feito.

Vimos examinando, neste livro, muitos ingredientes da veracidade. Temos examinado a identidade
em multiplicidade, a enunciação categorial e as diferenças entre coisas como percebidas e
recordadas. Temos explorado tanto a veracidade do ser como a veracidade do agente de descoberta
(junto com a possível falsidade e confusão que vem em sua sequência). No presente capítulo,
consolidaremos e completaremos essas explorações. Investigaremos a fenomenologia da razão, a
análise do pensamento racional.

A vida da razão e a identidade do significado


Quando passamos a raciocinar, elevamo-nos a nós mesmos além de nossa vida biológica e
psicológica. Vivemos a vida do pensamento. Isso significa que nós, esses seres particulares, esses
animais que somos, tornamo-nos aptos a fazer asserções sobre a verdade das coisas. Podemos
provar ou falsear tais asserções, podemos mudar significados e podemos glorificar ou condenar-nos
uns aos outros por termos sido melhores ou piores agentes da verdade. Quando falamos com alguém
e buscamos a vida racional, nos tornamos aptos a dominar a fundo ausências de muitos tipos e
enunciar presenças em modos extremamente complexos.

Um dos requisitos para esse tipo de vida é a identidade de um sentido que trocamos entre nós
mesmos e volta repetidamente em nossa própria vida mental. Uma simples proposição retorna como
identicamente a mesma repetidas vezes: nós a dizemos para outra pessoa, a citamos como tendo
sido mencionada por alguém, a usamos como uma premissa, a confirmamos ou negamos em nossa
experiência, a situamos dentro de uma exposição sistemática de um campo científico, ou a anotamos
para que ela possa ser lida mesmo quando não estejamos lá para dizê-la. A identidade de um
significado ocorre até através das diferentes interpretações que as pessoas possam dar ao
significado, e através das diferenças em incerteza e precisão que a proposição possa experienciar
em várias mentes. A menos que ela fosse uma e a mesma afirmação, não poderíamos ver essas
diferenças como sendo diferenças de fato; não poderíamos ter muitas interpretações se as
proposições fossem elas mesmas diferentes, e não poderíamos falar da posse vaga de um significado
a menos que um núcleo de sentido permanecesse o mesmo entre sua enunciação vaga e sua
enunciação precisa. As vezes, é verdade, um significado ou proposição pode fragmentar-se em dois
ou mais sentidos quando o pensamos mais cuidadosamente, ou pode desintegrar-se em
incoerências, em um nonsense em todo caso, mas essas desintegrações no domínio do significado
são possíveis somente em contraste com os significados que estão sustentados e conformados em
sua identidade.

Os significados são presentados especialmente em palavras. Por meio da linguagem torna-se


possível para nós expressar o modo como as coisas são e transmitir esse modo de presentação para
outra pessoa e para nós mesmos em outros lugares e outros tempos. Por meio das palavras
mudamos a apreensão do modo como as coisas aparecem para nós, e se somos competentes em
nossas descobertas elas apreendem o modo como as coisas são. Ao mesmo tempo, as palavras são
temperadas pelo modo com o qual temos descoberto as coisas em questão, assim elas indicam ao
leitor ou ao ouvinte algo sobre nós mesmos também.

Os físicos e os matemáticos não se preocupam com o fato de que a proposição pode retornar
repetidas vezes como identicamente a mesma, ainda que a física e a matemática não fossem
possíveis se essas recorrências não acontecessem. Os filósofos, coneüdo, não podem deixar essa
identificação ser jogada no passado deles; é o tipo de coisa sobre a qual eles pensam como um
ingrediente em nossa habilidade para viver a vida da razão.

Dois tipos de verdade


A identidade de significado torna a verdade possível. Há dois tipos de verdade que ocorrem em
nossa vida racional: a verdade da exatidão e a verdade da descoberta.

1. Na verdade da exatidão, começamos com uma enunciação sendo feita ou uma proposição sendo
considerada. Partimos então para a verificação de se a enunciação é verdadeira. Faremos qualquer
tipo de experimentação que seja necessária para a confirmação ou a negação da enunciação. Se
alguém diz que o telhado da varanda vaza quando chove, nós esperamos até que chova e então
vemos se o telhado vaza ou não. Se alguém faz uma proposta de procedimento com certa reação
química ou tratamento médico, defendemos experimentos apropriados para confirmar ou negar a
asserção. Se os resultados confirmam a asserção, podemos dizer que a afirmação é verdadeira
porque expressa o modo como as coisas são. E uma afirmação exata. O sentido de falsidade que é
correlato ao de verdade da exatidão é óbvio: é a falsidade de asserções que correm em sentido
oposto ao modo como as coisas são, asserções que opõem resistência à manifestação das coisas.

2. Há uma forma mais elementar de verdade que pode ocorrer até separada da confirmação de uma
asserção. Esse segundo sentido da verdade, a verdade da descoberta, é simplesmente a exposição
de um estado de coisas. E o simples presentar para nós de um objeto inteligível, a manifestação do
que é real ou verdadeiro. Tal presença poderia ocorrer imediatamente durante nossa experiência e
nossa percepção normais: caminhamos para o carro e somos surpreendidos ao ver que o pneu está
vazio. Não precisamos ter antecipado o pneu como vazio; nossa experiência dele como tal não é uma
tentativa para confirmar ou negar uma proposição que tivéssemos cogitado. Não estamos lidando
com a verdade de exatidão, mas com a verdade mais elementar da simples descoberta. Um objeto
inteligível, um estado de coisas, é presentado para nós, o objeto ou a situação simplesmente se
mostra. Estamos surpresos por uma nova relação matemática, percebemos de repente que John está
mentindo parajames, vemos porque Cézanne combinou as cores e linhas do modo que ele fez nessa
pintura em particular. Tais presentações não são confirmações, mas exposições diretas A falsidade
correlata com esse tipo de verdade é o tipo que ocorre quando as aparências enganam, quando as
coisas parecem ser algo que riãõ são: ouro de tolo, camuflagem, a simulação, a falsidade da inauten-
ticidade, a falha em ser genuíno como oposta à falha em dizer a verdade.

A verdade da exatidão depende da verdade da descoberta; a última pode servir como inteligibilidade
que confirma ou nega uma asserção. O que uma proposição verdadeira “une”, mistura com, ou é
medida por, não é uma entidade inerte, mas uma coisa sendo descoberta. A asserção propo-sicional
é de-citada em favor de uma mostra direta, a qual é reconhecida como sendo identificável com a
asserção cuja verdade estava sendo investigada. Como vimos no capítulo VII, nossa experiência
começa com a exposição direta de estados de coisas, do inteligível, de objetos categoriais. Essa
exposição envolve a verdade da descoberta. O domínio do proposicional entra em cena quando nos
tomamos sofisticados o bastante para tomar alguns estados de coisas como sendo meramente
propostos por alguém; eles se tornam “estados de coisas como propostos”, eles se tornam
proposições, asserções ou juízos, eles se tornam sentidos ou significados. São essas proposições,
esses estados de coisas como propostos, que se tornam candidatos para a verdade de exatidão, e
adquirem tal verdade quando são vistos misturados com o que é dado, mais uma vez, na verdade da
descoberta. A verdade da descoberta, portanto, flanqueia a verdade da exatidão. Vem antes e
depois.

Dois tipos de evidência


Nos dois tipos de verdade que distinguimos, o predicado “verdadeiro” aplica-se tanto a uma
proposição como a uma entidade ou estado de coisas exposto. Devemos introduzir outro termo, a
palavra evidência, para nomear as atividades subjetivas que realizam a verdade. A fenomenologia
usa o termo “evidência” para nomear a realização subjetiva, a posse subjetiva da verdade, se em
correspondência ou descoberta. A evidência como noésis é correlata da verdade como noema.

O uso da palavra “evidência” é incomum em inglês. (E menos estranho em alemão e francês.)


Normalmente, “evidência” em inglês não significa uma realização subjetiva; significa, mais
apropriadamente, um fato ou um dado que serve para provar um enunciado. A evidência pode ser
uma pegada, uma luva ensanguentada, um testemunho dado por uma testemunha ou um
documento, mas em cada caso é algo objetivo, uma coisa de algum tipo, que é usada para provar
algo outro. No uso normal em inglês, uma amostra de evidência é como uma premissa que
estabelece uma conclusão, não como uma intencionalidade que descobre um objeto. Quando o termo
é usado como um adjetivo, é quase sempre predicado do objeto que aparece, o qual então é dito
aparecer vividamente e claramente: uma vitória evidente, um esquema evidente, uma decepção
evidente.

Na fenomenologia, contudo, “evidência” toma o sentido da forma verbal, “evidenciar”. É a


realização da verdade, o produzir de uma presença. E uma performance e uma realização. A
evidência é a atividade de presentar uma identidade numa multiplicidade, a enunciação de um
estado de coisas, ou a verificação de uma proposição. E a efetividade da verdade.

Há alguns significados para “evidência” nos dicionários que chegam perto do significado que a
fenomenologia dá à palavra. O Oxford English Dictionary diz que “evidência” pode ser usada como
um substantivo com o sentido de uma “testemunha”: diversas pessoas poderiam ser ditas
“evidências” num caso, pessoas que podem esclarecer o que aconteceu. Podemos dizer que alguém
“tornou-se testemunha principal”, isto é, decidiu tornar-se testemunha de um evento. Há ainda um
substantivo inglês obsoleto, eviden- . cer o qual significa alguém que presta depoimento
testemunhal: “Uma testemunha oficial e legal”. Também, a palavra pode ser usada como um verbo
transitivo, e então significa “tornar algo evidente ou claro, mostrar claramente, manifestar algo”.
Assim, poderíamos dizer, “ele evidenciou a futilidade do plano”, ou “suas palavras evidenciaram a
situação em que eles estavam”. Esses significados, ainda que antigos e raros, estão um pouco mais
próximos do sentido de “evidência” na fenomenologia, mas ainda não nos dão um precedente óbvio
para o uso filosófico. Teremos de tornar o significado claro usando a palavra nos modos que
colocarão em cena o fenômeno que é suposto que nomeie.

A evidência é a presentação bem-sucedida de um objeto inteligível, a presentação bem-sucedida de


algo cuja verdade tornã-se manifesta ao evidenciar a si mesma. Tal presentação é um acontecimento
notável na vida da razão. É o momento no qual algo entra no espaço de razões, o mundo de
inteligibilidades. Tal evento não é apenas uma perfeição do sujeito que a realiza; não faz perfeita
somente a pessoa que entende ou enxerga o que está se passando. E também uma perfeição no
objeto; o objeto é manifestado e sabido, ele revela a si mesmo. Sua verdade é atualizada,
evidenciada. Quando Heidegger usa um tropo poético mais adequado e chama o homem, ou Da-sein,
o “pastor do ser”, ele entende que somos os únicos para os quais as coisas podem ser descobertas
em sua autenticidade, e que possuímos um lugar privilegiado no plano das coisas porque somos
dativos de manifestação. Nós evidenciamos as coisas. Nós as deixamos aparecer.

O poder que temos de fazer isso não é a realização de algurrrprlano que concebemos, ou o resultado
de um projeto de governo-consolidado, ou um talento que podemos tentar desenvolver; ele vem
daquilo que somos antes-mesmo de começarmos a fazer escolhas ou deliberar sobre o que
deveríamos fazer. Ele vem do nosso modo de ser. Ele permite-nos deliberar e escolher. Nossa tala
não é apenas um tagarelar entre nós mesmos; é também, se escapamos da névoa da vaguidade, a
revelação das coisas, que vêm à luz naquilo que dizemos. Nós provemos uma luz na qual as coisas
podem manifestar a si mesmas, uma clareira onde elas podem ser colhidas e recolhidas. Algo de
bom e importante acontece em nossa vida da razão, mesmo se ocuparmos só um pequeno espaço e
tempo no desenvolvimento das coisas, mesmo se o sol explodindo possa, algum dia no futuro
remoto, consumir todos os planetas incluindo o nosso próprio. Essa atividade é nossa realização
como egos transcendentais, não simplesmente nosso comportamento como animais ou nossa reação
como corpos incrustados numa rede de causas materiais. A luz da razão abre o espaço das razões, o
reino dos fmsTNós somos reais como dativos de manifestação, e o que fazemos corno tal é
evidenciar a verdade das coisas.

Por que deveríamos nos esforçar por adaptar o termo “evidência” para nomear essa realização
(efetividade)? Por que não usar alguma outra palavra? Uma razão é que o termo tem um sentido
técnico na fenomenologia, tanto em alemão como em francês, nos quais esse sentido é mais natural.
Além disso, a palavra faz a apreensão de um fenômeno: ela expressa o fato de que nós somos ativos
quando as coisas presentam a si mesmas. Nós fazemos algo quando objetos inteligíveis presentam a
si mesmos para nós; não somos meros recipientes. Não somos somente dativos, mas também
nominativos de revelação {ego, e não apenas mihi). Outras palavras como “intuir”, “perceber” ou
“registrar” parecem nos tornar passivos demais em aceitar o que aparece. “Evidenciar” torna mais
claro que devemos agir como egos transcendentais se as coisas nos são dadas. Essa ação é mais
óbvia no caso da atividade categorial, mas é necessária mesmo na percepção, com seu estágio
inicial de inteligibilidade, e é obviamente requerida na formação de imagens, na reminiscência e na
deliberação. O termo inglês insigbt é um bom equivalente, ainda que não possa ser usado como
verbo, mas parece limitado para presentação categorial; “evidenciar” parece cobrir um campo mais
vasto. Não ~ só conferencistas e cientistas, mas também pintores e dramaturgos e seus públicos
podem evidenciar o modo como as coisas são. Além do mais, insigbt conota uma ação que é
realizada de uma vez por todas, enquanto “evidenciar” tem o sentido de continuidade e consolidação
de si mesmo para além do momento inicial.

Evidenciamos, então, de dois modos: na verdade da exatidão e na verdade da descoberta.


Evidenciamos a exatidão de uma proposição pela observação de como as coisas são e pela separação
da asserção que delimitamos para verificar. Mais fundamental mente, contudo, evidenciamos um
objeto inteligível por enunciá-lo em sua presença direta, quando realizamos a verdade da
descoberta. Vemos que os quadrados de números pares são pares e que os dos ímpares são ímpares;
vemos que inveja não é o mesmo que ciúme; vemos que há somente cinco sólidos regulares no
espaço tridimensional. Todos esses são fatos, objetos inteligíveis, e nós os registramos como
verdadeiros: nós os expomos em sua inteligibilidade. Eles são compreendidos. Podemos querer
explicá-los mais e procurar as razões por que são verdadeiros, mas a busca por mais compreensão
não desqualifica a compreensão inicial que é dada na evidência original. A evidência inscreve as
coisas no espaço de razões.

Dois modos de tentar fugir da evidência

Há dois modos pelos quais podemos tentar, na filosofia e na mentalidade popular, negar a existência
da evidência como exposição direta das coisas. No primeiro, reduzimos a evidência a algo
meramente psicológico. No segundo, reivindicamos que nunca realmenfe temos evidência até
podermos provar o que sabemos derivando-o de premissas ou axiomas.

1. Porque o evidenciar cem de ser feito por nós, podemos facilmente passar a acreditar que é
“apenas” uma ocorrência subjetiva, como uma disposição de ânimo ou uma dor ou um sencimento
de convicção. A evidência pode ser tomada como um mero estado cognitivo, uma condição
temporária de nossa psique, a qual por sua vez pode ser reduzida a uma condição temporária do
cérebro e do sistema nervoso. Nessa visão, as coisas são o que são, elas são “lá fora”, e os estados
cognitivos, incluindo o evidenciar, são em nós, “aqui”. O estado cognitivo, digamos, de crença é uma
condição na qual estamos, condição em que poderíamos estar cônscios de nossa cons-ciência-de-si,
mas ele nos diz somente sobre nós mesmos, não sobre alguma coisa lá fora no mundo.

Em alemão, um dos significados filosóficos da palavra Evidenz é “consciência de estar convencido


de algo” (Überzeugungsbewusstsein). Esse sentido também pode facilmente ser psicologizado.
Podemos tomá-lo para significar que estamos conscientes de firmemente acreditar em algo, mas
então o algo de nossa consciência é apenas nosso estado subjetivo, o estado da firme convicção. E
como a “crença” que David Hume e John Stuart Mill tomam por ser o alvo de nossa percepção
interior.

Tal interpretação de evidência seria incorreta. Aquilo de que somos conscientes subjetivamente
quando estamos conscientes do evidenciar não é um estado mental ou psicológico, mas uma
exposição. Estamos conscientes de uma realização intelectual, um êxito em manifestação, não de um
dado interior. Se estamos conscientes de uma exposição, também estamos, essencialmente,
conscientes do que é exposto: a exposição não é uma coisa interior contra a coisa exposta. O êxito
na manifestação é alcançado em nossa vida intelectual, não em nossa vida meramente psicológica.
Pode haver aspectos psicológicos em nossa realização (efetividade) intelectual, mas esses aspectos
não são a substância da ação. O ato de evidência é um evento no espaço de razões, não um mero
episódio psicológico.

Um ato de evidência é mais como uma mudança na lógica do que como um sentimento ou uma dor.
Um ato de evidência é um movimento para dentro da lógica transcendental. Ele ajusta a rede de
nossas proposições e nossos significados. Pode ser um episódio, mas isso não o torna psicológico; é
um episódio de descoberta e verdade, um deslocar-se para a vida da razão, uma realização do ego
transcendental. De fato, é movimento original para a vida da razão. Ele nos inicia naquela vida: até
as coisas terem sido reveladas por evidência direta e até entrarmos na presença de objetos
inteligíveis, não tomamos ativamente uma posição no jogo da verdade. Até então, só estamos
ensaiando para uma conversa humana e ainda não nos tornamos jogadores habilitados nela.
Qualque-r ato de evidenciar, além do mais, pressupõe que o jogo completo da verdade, a conversa
humana, já está em andamento; tem de estar lá para entrarmos nele. Somos elevados a essa vida
não só pelo que somos, mas também pela tradição racional na qual somos treinados, ambos: a
tradição local na qual nascemos e a conversação humana como um todo. Essa conversa e a vida
intelectual podem ser “só” humanas, mas o ponto é que ser humano é ser engajado na verdade, ser
apto a descobrir o modo como as coisas são e deixar a objetividade triunfar em nós. Somos mais nós
mesmos como seres humanos quando somos apanhados nessa atividade.

2. O segundo modo de tentar se evadir da evidência é reivindicar que a presentação ela mesma não
é suficiente para estabelecer a verdade. Podemos pensar que uma presentação nos dá apenas uma
aparência ou uma opinião. Poderíamos, então, ter de sair em busca da verdade do que foi
presentado, e só o faríamos apresentando razões para tal. Temos de explicá-lo; isto é, temos de
derivá-lo de outro, de premissas maisTertas, até de axiomas, mostrar porque ele tem de ser do jeito
que é. Depois de tal prova, estaremos seguros do fenômeno. Nessa visão, não sabemos nada até
termos provado; demandamos uma prova para tudo. O evidenciar somente, portanto, não presenta a
verdade. Dito de outro modo, não há tal coisa como o evidenciar. A única fonte da verdade é a prova.

Essa objeção reflete a crença de que a verdade é alcançada por meio de procedimentos metódicos.
Nada é presentado diretamente para nós, mas nós podemos alcançar a verdade raciocinando por
meio de tais procedimentos. Descartes apelou para tal método no começo da modernidade, e pensou
que o método poderia substituir o discernimento (insight). Mesmo pessoas de moderada habilidade
intelectual, disse ele, poderiam seguir cada simples passo de uma prova e assim chegar a uma posse
segura da conclusão, com uma certeza tão grande quanto poderia ser alcançada pela pessoa mais
inteligente. Mesmo a percepção requer prova, pensou ele, porque envolve uma inferência das ideias
que temos para as causas putativas “exteriores” a nós que devem ter produzido essas ideias sobre.
Essa confiança no método é parte do racionalismo da modernidade. Ela repousa na confiança que
temos em larga escala nos projetos de pesquisa que prometem descobrir as verdades de que
precisamos para tornar a vida mais fácil e melhor. A autoridade do sábio ou da pessoa inteligente é
substituída pelo projeto de método-dirigido patrocinado pelo governo, pela indústria ou pela
academia.

Tal confiança no método e na prova é uma tentativa de assenhorear-se da verdade. É uma tentativa
de trazer a descoberta sob controle e sujeitá-la aos nossos desejos. Se conseguirmos o método
correto no lugar certo, e se nossos procedimentos metódicos puderem ser ajudados por
computadores, estaremos qualificados para resolver muitos problemas importantes. Ganharemos a
chave-de-braço sobre a verdade das coisas, a anuência de coagir a nós mesmos e aos outros. O
princípio filosófico por trás de nossa confiança no método é a ideia de que conhecemos as coisas
provando-as, não realizando a evidência Em contraste com o controle sobre a verdade que o método
parece nos dar, a evidência parece ser imprevisível e incontrolável. Parece depender demais da
gente que tem a habilidade para realizá-la. Parece depender de aparências, de como as coisas
acontecem se mostrar para nós. Confiar na evidência como oposta aos procedimentos metódicos
pode parecer passivo demais, não enérgico o bastante. O racionalista pode achar a contingência da
evidência inquietante e pode lastimar o fato de que não podemos controlar a verdade, mas esse é
certamente o caso. Temos de esperar pela pessoa certa e peio momento certo para a verdade
aparecer, e devemos depender da mente habituada mais do que do método. Nem todo mundo é igual
quando chega a evidência; devemos escar preparados para ela, e devemos ter a habilidade natural
bruta para realizá-la. Não somos iguais quando se trata de revelar a verdade das coisas.

Obscuridade e verdade
A evidência traz as coisas à luz, mas toda evidência emerge da ausência e da vaguidade (incerteza),
e o foco sobre um aspecto de um objeto geralmente significa que outros aspectos passam para a
obscuridade. A vida da razão não é um assunto de uma simples evidência, uma iluminação, seguindo
outra. Mais propriamente, a vida da razão é um empurra-e-puxa entre presença e ausência, e entre
claridade e obscuridade.

Geralmente, consideramos que o presentar é bom, mas disso não se segue que o ausentar e o
ocultar sejam maus. Pode ser necessário e bom que as coisas entrem num eclipse. A obscuridade
não é apenas perda; ela também pode ser preservação e proteção. As coisas precisam de seus
momentos certos para ser vistas. Os fatos de que a pintura de Giorgione The Tempest foi guardada
sem ser vista por muitas décadas, ou de que ainda não estamos seguros do que as figuras nela
significam, ou de que ninguém sabia muito sobre

Vivaldi por duas centenas de anos, ou de que não podemos realmente saber quem foi Shakespeare,
ou de que a escolástica sofreu uma superposição cartesiana nos séculos XVIII e XIX não são
necessariamente urrTa tragédia. Mesmo quando pensamos que sabemos muito sobre alguma coisa,
podemos estar perdendo algo central: uma abundância de dados históricos sobre uma pintura ou um
texto ou um acontecimento, uma massa de informação sobre uma doença ou um fenômeno celestial
não garantem que podemos desvelar a verdade das coisas em questão. As coisas podem estar
esperando pelo momento certo para ser compreendidas. Como a hermenêutica nos ensinou,
Verbergung é também Bergung, ocultamento é também preservação.

O ocultamento pode ocorrer de duas formas, como ausência ou como vaguidade, e é a última, a
vaguidade, a mais importante. A vaguidade ocorre primeiro como presença obscura de um objeto, a
matriz fora da qual o objeto pode distintamente vir à luz. Uma vez que um objeto tenha sido
evidenciado, contudo, é possível, e até inevitável, para ele mudar de volta para a vaguidade
novamente. Esse deslizamento ocorre porque temos de tomar a evidência adquirida por admitida
quando nos movemos para uma ulterior evidência que está baseada sobre ela. A evidência original
torna-se sedimentada, como diz a metáfora fenomenológica. Torna-se uma pressuposição oculta que
permite a algo mais elevado vir à luz, mas quando focamos na mais elevada, na evidência mais nova,
a mais baixa e mais original desaparece na obscuridade. Cessa de ser autenticamente enunciada.
Por exemplo, a transformação geométrica da natureza que tomou lugar com Galileu e Newton foi um
evidenciar; trouxe à baila certa estrutura categorial. Com o passar do tempo, os homens
simplesmente tomaram por admitido que o mundo era matemático na forma, e agora é necessário
um esforço para reativar ou reconstituir a evidência que está no centro da ciência moderna.

Todas as nossas instituições culturais são assim. O sentido do que é o teatro também caiu num
estado sedimentado; é dado por certo, mesmo que tenha sido originalmente gerado como um tipo
específico de descrição e enunciação categorial. O mesmo poderia ser dito da escrita ou mesmo da
linguagem humana, com sua estrutura sintática. A própria atividade de contar e os números que são
constituídos nessa atividade podem perder sua direção e seu sentido originais. Além do mais, esses
originais ocultos, essas formas categoriais e culturais sedimentadas, podem estar latentes ou
desprezadas, mas elas são efetivas, e geram um campo de força cultural. São como fortes magnetos
enterrados no chão. Elas determinam o escopo do que fazemos e servem como premissas
desconhecidas para muitas de nossas atividades humanas. Aqueles que confiam no método podem
desejar se iludir de .£ que a evidência verdadeira nunca cai na obscuridade, de que nada sai de foco
% quando algo novo entra em foco, porque os objetos estão sempre disponíveis para uma nova
aplicação do procedimento. Essa expectativa de mudança na presença, contudo, está condenada ao
fracasso. A obscuridade e a perda são f tão reais quando a clareza e a distinção.

A filosofia busca recuperar o sentido original das coisas por meio de um tipo de arqueologia, uma
forma de pensamento que aceita as coisas culturais e categoriais presentes em nosso mundo e tenta
abrir caminho aos estratos de sua sedimentação categorial. Tenta seguir o passado das evidências
que foram postas em camadas umas-sobre as outras na nossa história intelectual; tenta voltar ao
ponto quando as diferenciações primitivas tomaram lugar e estabeleceram o que agora nos é dado.
Empenha-se em mover-se para trás para as constituições genéticas responsáveis pelas formações
categoriais que herdamos. Compreender o essencial das coisas também significa compreender o
arcaico e o original.

Essa arqueologia filosófica, além disso, não é uma forma de história empírica, e não encontra suas
fontes primárias em textos antigos, mesmo quando tem de fazer uso da história e dos textos. Suas
fontes primárias são as coisas culturais e categoriais que diretamente encontramos, e o que tenta
fazer é trabalhar com afinco nelas enquanto estão diante de nós, desembalando-as à vista de suas
categorias elementares e até de suas antecipações pré-categoriais. Tenta “desconstruí-las”.
Tomamos a linguagem, por exemplo, e nos esforçamos em voltar às diferenciações para as quais a
linguagem emerge de outros tipos de sinais; tomamos a geometria e nos esforçamos por voltar aos
tipos de intencionalidades que estabelecem a geometria enquanto tal, como é diferenciada de outros
fenômenos espaciais. Textos mais antigos e formas primitivas são indispensáveis para compreender
esses começos, mas tais textos e fotmas não nos dão as explicações que procuramos em nossa
investigação das origens das coisas, as diferenciações primitivas que são mais um assunto de
compreensão filosófica do que de compreensão histórica ou empírica.

A filosofia depende, então, do fato de que alcancemos a verdade, mas não a verdade toda na atitude
natural. Não haveria filosofia se não alcançássemos a lguma verdade, afinal. Se não tivéssemos uma
opinião correta e ciência. A filosofia reflete sobre o que significa essa realização racional. Porém,
também não haveria filosofia, nem busca da sabedoria, se soubéssemos tudo, se não houvesse nem
obscuridade, nem vaguidade, nem erro e nem ignorância. O fenômeno da obscuridade é a condição
de possibilidade da luz e também a condição de possibilidade da filosofia, a qual reflete sobre o que
a luz e a obscuridade são. A obscuridade mesma vem à luz, tanto quanto pode, na filosofia, mas a
filosofia deve ter o bom-senso de deixar a obscuridade ser. Se fôssemos tentar eliminar a
obscuridade, ela se tornaria um racionalismo, e poderia ser uma tentativa de substituir a atitude
natural em vez de contemplá-la.

Três níveis de estrutura de significado


Vamos retornar à verdade da exatidão, o tipo que ocorre quando começamos com assertivas e
proposições e a tentativa de verificar se elas são verdadeiras ou falsas. De acordo com essa verdade,
é importante distinguir três níveis de estrutura que podem ser encontrados nas proposições. A
discussão desses três níveis nos conduzirá de volta aos temas que examinamos no capítulo VII, sob o
título de vaguidade.

Antes de desenvolver esses três níveis, contudo, devemos diferenciar entre a sintaxe e o conteúdo
de uma proposição. A sintaxe é a gramática lógica da proposição; é expressa em termos como “e”,
“mas”, “com” e “é”. A sintaxe é o tecido conectivo dos juízos. Ela serve para acrescentar conteúdo
aos termos das asserções e, como o “músculo” dos juízos, faz o trabalho pesado; ela empurra, puxa,
aumenta e diminui as palavras que usamos para nomear as coisas. As vezes a sintaxe é expressa em
termos específicos, tais como essas palavras que acabamos de mencionar, mas também pode ser
expressa por inflexões (tais como os vários casos de substantivos) e pela posição de palavras na
sentença: na sentença “John bateu o carro”, podemos dizer qual substantivo é o sujeito e qual é o
objeto pela posição que ocupam na sentença; “o carro acertou John” diz algo completamente
diferente. Os termos sintáticos são também chamados de partes sincategoremáticas dos juízos (a
fenomenolo-gia apropriou-se do termo tomando-o da lógica medieval). Essas partes são chamadas de
sincategoremáticas porque não aparecem por si mesmas como unidades de significado; elas devem
ser anexadas a outras palavras, as palavras que elas combinam; elas precisam ocorrer “com” outras
palavras.

O conteúdo de uma afirmação, por contraste, serve não para ligar outras palavras, mas para
expressar as coisas ou aspectos sobre os quais se está falando. Para alcançar a noção de conteúdo,
vamos imaginar a sentença “John acertou o cairo” como sendo drenada de toda estrutura sintática.
Se removêssemos toda a sintaxe, seríamos deixados com um resíduo de conteúdo puro: “bateu,
John, carro”. Teríamos de projetar isso para um extremo ideal e até imaginar que as palavras “John”
e “carro” não são mais substantivos e a palavra “bateu” não é mais um verbo. Também teríamos de
imaginar que a posição relativa das palavras não tem qualquer significação. Se pudéssemos
purificar a sentença desse modo, teríamos apenas os conteúdos sem qualquer estrutura. Teríamos
apenas termos categoremdticos puros, palavras que simplesmente nomeiam as coisas, mas sem
qualquer ordenamento ou enunciação. Teríamos semânticos puros sem nenhuma sintaxe.

Tal projeção na sintaxe pura e na semântica pura como separadas totalmente uma da outra é,
naturalmente, puramente imaginária. De fato, toda palavra que usamos tem uma sintaxe, e quase
todas as palavras têm uma semântica vinculada a ela; as duas características são momentos de uma
para a outra, não peças que podem ser separadas. Mais, é legítimo fazer a distinção entre a sintaxe
e o conteúdo como duas dimensões de proposições e palavras. A distinção, além do mais, é muito
útil em nossa fenomenologia da razão, e permite-nos analisar os três níveis de estrutura que
apresentamos para examinar no começo dessa seção.

1. O primeiro nível trata dos tipos de combinações sintáticas que permitem proposições
significativas. Se fôssemos combinar uma sequência de termos tais como “portanto, é, e, X (o nome
de algum objeto), com”, não teríamos um todo significativo. De outro lado, uma combinação como
“portanto, X veio com Y” é significativa e poderia ser usada numa situação apropriada. A primeira
sequência é uma miscelânea sem um sentido unitário, e a deficiência repousa na sintaxe da
sequência. Essa sequência de termos não seria apresentada como um todo de significado.
Obviamente, tal sequência não atingiria a verdade da exatidão, porque não é nem mesmo um
candidato a verdade ou a falsidade. É simplesmente sem sentido. Estritamente falando, nada está
sendo dito, mesmo se alguém está falando. Além do mais, tal miscelânea sintática não é um
constructo meramente filosófico; tal falsificação de sequência de palavras ocorre às vezes quando as
pessoas estão falando. Podem ocorrer quando os falantes estão sob tensão emocional, ou quando os
falantes ou escritores estão extremamente confusos sobre o que estão tentando discursar. As
pessoas incorrem em balbucios. Tais falantes não apresentam uma afirmação que seja uma
candidata à verdade, e a razão pela qual falham se encontra na inadequação sintática do que estão
dizendo, e não na falsidade de seu discurso. O que eles dizem não é sequer capaz de ser falso,
porque falha em satisfazer a pré-condição da verdade e da falsidade.

2. Uma vez tendo akançado sintaticamente as proposições significativas, contudo, um segundo nível
surge; aquele que está relacionado à consistência das proposições. Duas asserções podem ser
sintaticamente significativas e ainda contradizer uma à outra: “ele chegou em casa às cinco horas;
ele não estava em casa às cinco horas”. Até uma simples asserção, se é complexa o bastante, pode
ser contraditória em si mesma ou inconsistente: “ele entrou no edifício branco que estava marrom”.
Tais asserções são gramaticalmente aceitáveis, mas elas “falam contra”, elas contradizem a si
mesmas. Numa contradição asseveramos uma coisa e em seguida a “desasseveramos” ou afirmamos
sua negação. Nós temos de fato uma asserção significativa, aceitável sintaticamente, porque se não
fosse não poderíamos nem mesmo saber que uma contradição havia ocorrido; nossa fala satisfez o
critério concernente à sintaxe. Contudo, ainda não temos dito “uma coisa”: temos dito duas coisas
sob o modo de dizer uma e as duas são inconciliáveis. Não podemos asseverar a ambas. Estamos
dizendo algo, mas também o estamos desdizendo.-Há um significado, mas lampejos dele que se
acendem e se apagam; já na sintaxe falsificada não há significado de nenhum modo; lá o
“significado” desintegra-se. Uma afirmação inconsistente, ainda que significativa, não pode ser uma
candidata à verdade da exatidão. Sabemos a priori que não há questão difícil para a veracidade ou a
falsidade de uma inconsistência.

A inconsistência é uma falha diferente da falsidade sintática, mas ainda está relacionada mais à
sintaxe do que o conteúdo de nossas asserções; tem a ver com as combinatórias de proposições, com
o como elas são postas juntas. A sintaxe lida com o modo pelo qual os termos se juntam para formar
uma proposição, e a consistência trata da maneira pela qual as proposições podem ser compostas
em proposições complexas ou totalidades mais amplas.

3. O terceiro nível de estrutura, contudo, trata do conteúdo do que dizemos. Trata da coerência das
afirmações que fazemos. Podemos ter sucesso em fazer afirmações que sejam ao mesmo tempo
sintaticamente corretas e consistentes, mas falhar porque seus conteúdos não têm nada a ver um
com o outro. Por exemplo, uma afirmação como “meus tios são ilegíveis” é inaceitável, não por
causa da sintaxe ou da autocontradição, mas por causa da incoerência: os termos “tios” e “ilegíveis”
não se associam um com o outro. Eles pertencem a categorias diferentes ou jogos de linguagem
diferentes, regiões diferentes do discurso e do ser. A afirmação é “absurda”, mas absurda num modo
diferente das afirmações que são deficientes na sintaxe. Não há nada errado com a sintaxe dessa
proposição, mas seus conteúdos estão forçados juntos erradamente. Outros exemplos dessas
afirmações incoerentes % são: “esse livro é alto”; “meu gato é um pirata”; “aquela árvore é
monoglota” e “a décima emenda foi grelhada”.

A todas essas afirmações, incidentalmente, poderia ser dado um significado se elas fossem tomadas
metaforicamente, mas estamos presumindo que elas estão sendo estatuídas literalmente. Na
verdade, a natureza da metáfora é pôr juntos termos de diferentes regiões do discurso a fim de
enunciar novos aspectos nas coisas de que se fala. Uma metáfora ostenta sua incoerência a fim de
representar um ponto principal.

Alguém poderia objetar que ninguém cometeria erros estúpidos como esses; ninguém diria que seus
tios são ilegíveis ou que uma árvore é monoglota. É verdade que os exemplos dados foram
escolhidos por causa da simplicidade, são forçados, mas há muitas áreas na vida nas quais as
pessoas falam incoerentemente. A incoerência na fala não é um fenômeno raro. Muitas das
afirmações sobre assuntos políticos, por exemplo, falham nesse quesito, e igualmente muitas das
coisas ditas sobre religião, arte, educação, moralidade, emoções humanas e filosofia. Qualquer
professor que se graduou em teoria política ou filosofia saberá que a maior dificuldade com
composições fracas não é que as afirmações que se fazem nelas são falsas, mas que elas são
incoerentes: elas misturam palavras que não são apropriadas juntas.

É muito difícil comentar esses ensaios, porque não são proposições distintas que podem ser
aperfeiçoadas ou corrigidas. Nada específico pode ser dito em resposta. E mais geralmente, fora do
domínio dos exames acadêmicos, é muito difícil corrigir concepções errôneas que a pessoas têm a
respeito de arte, política ou religião, não porque o que as pessoas dizem seja simplesmente errôneo,
mas porque é incoerente.

Os três níveis de estrutura proposicional que distinguimos — a forma sintática, a consistência e a


coerência — ajudam-nos a atingir diversos pontos importantes a respeito do raciocínio humano. Com
essas distinções podemos, por exemplo, mostrar como a lógica formal opera na busca da verdade. A
lógica formal provê as regras para o segundo nível, o da consistência. Ela não nos assegura da
verdade das proposições, mas explica nos mínimos detalhes as condições para sua validade,
condições que as proposições devem preencher se são mesmo candidatas à verdade. A lógica formal
mostra como as proposições podem ser validamente combinadas em todos maiores, em argumentos,
sem colapsar em contradições. Se um conjunto de proposições é inconsistente, sabemos que não
poderíamos confirmá-las evidenciando as coisas que expressam; tal evidência é excluída a priori.

Detectar uma inconsistência é um modo de criticar um argumento, mas outro modo é detectar uma
falha sintática, falha que mostra em primeiro lugar que o falante falhou formalmente em agregar
uma proposição. Uma elocução com sintaxe falsificada nem mesmo se qualifica a ser testada pela
consistência. Porém, a incoerência também desqualifica uma afirmação de ser testada pela
consistência. Uma afirmação incoerente, tal como “meu gato é um pirata”, transcende a contradição
ou não contradição. Dizer do gato que é e não é um pirata não é dizer nada contraditório, porque
não há significado proposicional válido a ser contraditado. A incoerência do conteúdo, como a
confusão na sintaxe, viola as precondições para a consistência.

Essas três deficiências no pensamento — sintaxe falha, contradição e incoerência — podem


atualmente ocorrer quando nosso pensamento é penetrado pela vaguidade, e a vaguidade, como
vimos no capítulo VII, não é rara no discurso humano. É o que todos nós somos em algum momento
e alguns de nós na maior parte do tempo quando falamos. O pensamento indistinto, a confusão, é a
fonte para todas as três confusões, mas especialmente para a terceira, para a incoerência. É raro
que sejamos sintaticamente negligentes; se cairmos assim tão baixo estaremos balbuciando antes
que falando. Porém, a incoerência é muito comum, especialmente quando as pessoas começam a
falar sobre coisas que vão além dos simples e óbvios fatos e entram mais nas questões reflexivas.
A experiência dos indivíduos como a evidência básica
A coerência dos conteúdos das proposições, por conseguinte, é uma precondição para a consistência
e a verdade das proposições. De onde vem tal coerência? Como obter as regras que nos dizem que
conteúdos podem ser misturados com os outros?

Não é o caso de que nós simplesmente divisamos regras de relevância que nos dizem que o cermo
“tios” mistura-se com “masculino, alto ou baixo, barbudo ou não, generoso ou sovina” etc., e que o
termo não se mistura com “ilegível, astronômico, felino, molecular” etc. Não é o caso de que a
coerência venha só de regras linguísticas que governam nosso vocabulário. Antes, a coerência dos
conteúdos das proposições vem de nossa experiência dos objetos, e especificamente de nossa
experiência de objetos individuais. Vem do fato de que em nosso encontro com as coisas particulares
encontramos certos conteúdos ou categorias que pertencem em conjunto; enunciamos as coisas
como tendo cais características. As características emergem quando trazemos os objetos do
evidenciar pré-predicativo ao predicativo. Todas as proposições que formulamos derivam no final
das contas das nossas próprias experiências ou das que outras pessoas em nossa comunidade
linguística tiveram das coisas em questão. Para uma proposição como “meus tios são calvos” ser
verificável, a mistura de conteúdos “tios-calvos” deve ser possível, e sua possibilidade surge porque
essa mistura particular pode, em princípio, ser enunciada da experiência pré-predicativa. Podemos
encontrar esses dois conteúdos misturados juntos.

Na verdade da exatidão, partimos com a proposição e retornamos a ela para a evidência da


experiência pré-predicativa. A proposição originalmente surgiu do evidenciar pré-predicativo
individual, e agora retorna à mesma fonte e é fundida efetivamente no experienciar pré-predicativo
quando é confirmada. Se a proposição é falsificada, achamos que nosso evidenciar resiste à intenção
que tentamos preencher nela. Não encontramos a verdade das proposições apenas por examinar as
afirmações nelas mesmas; as afirmações são engrenadas teleologicamente para confirmação ou
desconfirma-ção pelas coisas mesmas, pelos objetos que encontramos em nossos vários modos de
percepção. Na hierarquia de evidências, aquelas que são intrinsecamente primeira e última são as
da experiência direta das coisas. Todos os nossos significados, com suas estruturas sintática e
semântica, nascem da experiência e são engrenados para a experiência e os seres descobertos nela.

O discurso humano, portanto, está direcionado para as coisas em sua inteligibilidade e a razão
humana está determinada para a verdade como seu fim e perfeição. As estruturas formais não são
fins em si mesmas, mas instrumentos na descoberta das coisas. As estruturas linguísticas podem
formar todos de complexidade extraordinária, e podemos, às vezes, estar tão encantados por elas
que pensamos que nada há senão o jogo de significativo e sintaxe, que elas são suficientes em si
mesmas. Tanto os estruturalistas como os desconstrucionistas acreditam nisso, pensando que não há
“centro” além do jogo de significações. Mas a fenomenologia vê os padrões formais da linguagem
como dotados de uma até maior dignidade e beleza; eles não apenas interagem um com o outro, mas
servem para descobrir o modo como as coisas são e o modo como as coisas podem ser. A mente que
constitui o significado e sua estrutura formal age assim, no final das contas, para evidenciar a
verdade das coisas.

As coisas que experienciamos, entretanto, não são apenas os objetos materiais percebidos por meio
de nossos cinco sentidos. É verdade que vemos que a maçã é vermelha e a casa é branca, mas
também vemos instâncias de decepção, generosidade, utensílios, esporte, e no enunciar essas
instâncias nós nos exercitamos fora das características que essas coisas têm. Não é verdade que os
únicos indivíduos que experienciamos são simplesmente coisas materiais como pedras e árvores.

Finalmente, a consistência e a coerência não são encontradas somente em assuntos teóricos. O


pensamento prático é também governado por elas. Podemos criticar um programa público ou um
projeto pessoal por ser inconsistente ou incoerente; seus significados podem contradizer um ao
outro ou os propósitos que eles pretendem servir; várias metas incompatíveis podem ser buscadas
ao mesmo tempo (estamos agindo em propósitos que não se entendem); muitos dos sentidos dos
significados e dos fins podem ser completamente falsificados em nosso planejamento. As vezes uma
inconsistência na ação pode surgir por causa das pressões inevitáveis postas no projeto; sabemos
que o programa tem problemas, mas algo tem de ser feito, isso é o melhor que podemos fazer e
tentamos alcançar o objetivo de qualquer jeito. Outras vezes, contudo, as inconsistências e
incoerências simplesmente revelam a incompetência do agente.

A evidência e a beleza

As coisas que evidenciamos não são apenas fontes de informação inútil. Nós não aprendemos apenas
os fatos de que a árvore é alta e o sol é brilhante. Antes, as coisas, além de ser verdadeiras, são
também boas e admiráveis. As coisas que conhecemos são preciosas. A razão por que continuamos
a perceber as coisas, a razão por que giramos o cubo para ver seus outros aspectos ou caminhamos
no edifício para ver partes que não podemos ver a partir do lado de fora é que há algo importante
para nós descobrirmos. As coisas solicitam nosso interesse e provocam nossa enunciação: elas
agem assim porque descobrir sobre elas satisfaz várias necessidades e diversos interesses que
temos (a maçã está madura o bastante para comermos, a árvore pode ser escalada), mas também
porque as coisas em si mesmas são belas e recompensam nossa curiosidade. As coisas que
conhecemos não são apenas um rol insípido de informação indiferente, mas fontes de manifestações
maravilhosas. Somos continuamente surpreendidos em ver o que uma coisa é e também o que outra
pode ser, o que “outros lados” podem nos oferecer. Não importa a quantos jogos de futebol um
torcedor assistiu, ele ainda está curioso

para ver como este será e que face o jogo apresentará desta vez. Não. importa quantas vezes
tenhamos euvido as Variações Goldberg, estamos ansiosos para ouvir esta interpretação e ver o que
ainda mais a peça pode ser. Não importa quanto tempo dois amigos gastaram juntos, eles sempre
procurarão um outro encontro para desfrutar as novas manifestações que virão à luz. Não
nos cansamos de ouvir sobre a ação humana (heroísmo ou covardia, generosidade ou avareza) em
sempre-novas situações. Tudo — um jardim ou uma árvore, uma peça de joalheria ou um passeio
favorito — tem seu kalon e é belo ou admirável desde sua feição própria.

Dizer que uma coisa é uma identidade em multiplicidade não é dizer que ela apenas produz mais e
mais dados, como muitas-cópias de um e do mesmo jornal. Mais apropriadamente, a coisa é como
uma fonte radioativa que se mantém emitindo diferentes tipos de energia, mesmo enquanto
permanecendo e sendo identificada como um e o mesmo objeto. A manifestação não nos dá apenas
fatos; revela a beleza peculiar da coisa em questão. E ainda que fôssemos rude e grosseiramente
utilitaristas e nos tornássemos cegos à elegância das coisas em si mesmas, se nosso interesse nas
coisas fosse motivado só pelo fato de que as coisas podem servir-nos de algum modo, mesmo assim,
em nosso pragmatismo filisteu, poderíamos ainda reconhecer um tipo de bem na coisa, um bem de
utilidade. Mesmo assim, a coisa não seria meramente uma fonte de informação.

Todos os elementos radioativos têm uma meia-vida; eles tornam-se exauridos com o passar do
tempo, mesmo quando ainda podem continuar emitindo energia por milhares de anos. Uma coisa
como uma fonte de manifestação, como uma identidade em multiplicidade, não tem uma meia-
vida. Ela gera novas manifestações, para um dativo que as apreciará, com maior e maior
intensidade, não com força decrescente. Ela é inexaurível, uma reserva sem fim de descobertas
surpreendentes. Nunca sabemos tudo o que pode sér dito sobre um objeto. A coisa como uma
identidade tem profundidade; por mais que as manifestações possam ser presentadas para nós, há
ainda outros seres guardados na reserva, e todos eles pertencem a uma e à mesma coisa como
parecerá o Empire State Building quando o virmos ao anoitecer da perspectiva do passeio nos altos
do Brooklyn? Como foi Eisenhower como presidente? Como será o Hamlet na interpretação de
Kenneth Branagh? Que realce dará o açafrão a esse prato? Algumas das manifestações que já
trouxemos à tona, além do mais, podem voltar à obscuridade e ser vistas novamente só num tempo
posterior e em outras perspectivas, por falantes de outras línguas, para uma comunidade que pode
recordar coisas que tivermos esquecido. Todas essas manifestações pertencem à mesma coisa em
questão. Qualquer verdade que se realiza está sempre circundada por ausência e obscuridade, por
mistério, desde que a coisa que conhecemos é sempre mais do que sabemos, a referência é sempre
mais do que o sentido.

A vida da razão caminha, assim, por meio de estruturas intricadas de lógica formal, de sintaxe
combinatória, da coesão dos conteúdos proposicio-nais, e da interação de presença, ausência e
vaguidade. Ela abriga a ambos, descoberta direta e exatidão. Move-se entre sedimentação e
revivificação. É uma vida guiada pelo ego transcendental e orientada para evidenciar o modo como
as coisas são.
XII. INTUIÇÃO ElDÉTICA
Em-nossa experiência, lidamos com mais do que indivíduos e grupos. Também intuímos a essência
das coisas. Por exemplo, podemos perceber não só que todos os seres humanos que encontramos
são capazes da fala, mas que a habilidade para usar a linguagem é necessária e universalmente uma
parte de se ser humano. E parte da essência do homem; não seríamos humanos sem ela. Podemos
ver não só que os objetos materiais interagem casualmente com seus entornos, mas que eles devem
se portar assim; sem a possibilidade de tal interação, um objeto material não seria o que é. Do
mesmo modo, um objeto percebido ser uma identidade numa multiplicidade de lados, aspectos e
perfis é universal e necessário, e podemos ver que é assim. As essências são evidenciadas para nós.

A intuição de uma essência é chamado de intuição eidética, porque é a posse de um eidos ou de uma
forma. Podemos intuir, ou tornar presente para nós mesmos, não só indivíduos com suas
características, mas também as essências que as coisas têm. A intuição eidética é um tipo especial
de intencionalidade com uma estrutura que lhe é própria. A fenomenologia oferece uma análise
dessa intencionalidade; ela descreve como podemos intuir uma essência.

Análise da intuição eidética


Como todas as intencionalidades, a intuição eidética é uma síntese de identidade. Por meio dela
reconhecemos uma identidade dentro da multiplicidade de manifestação, mas a identidade e a
multiplicidade são diferentes daquele tipo que ocorre quando intuímos as coisas individuais. Para
mostrar como a intuição eidética torna as essências presentes para nós, devemos traçar seu
percurso por três níveis de desenvolvimento intencional.

1. No primeiro nível, experienciamos um número de coisas e encontramos similaridades entre elas.


Podemos descobrir, por exemplo, que esse pedaço de madeira flutua, e que esse outro pedaço de
madeira flutua e que esse terceiro também. Nesse estágio descobrimos o tipo muito frágil de
identidade que é chamado tipicalidade. Esse nível poderia ser simbolizado pela seguinte série: A é
pv B é p2> C é py Os predicados nessa série não são, estritamente falando, o mesmo; eles são apenas
similares um ao outro. Alcançamos uma síntese de identidade baseada apenas na associação, como a
presença de uma característica faz-nos muito passivamente presumir outras características
associadas com ela para seguir em sua sequência. Flutuar tem sido, para nós, associado com
madeira, ou morder tem sido associado com cães, assim, presumimos que o próximo pedaço de
madeira flutuará ou que o próximo cão nos morderá, mas não temos feito um juízo explícito sobre
madeira flutuar ou cães morderem. Nossa experiência é estilizada ou tipificada, mas não foi elevada
ao pensamento distinto.

2. No segundo nível, chegamos a perceber que dos três pedaços individuais de madeira pode ser
dito terem não apenas predicados similares, mas o mesmíssimo predicado. Esse nível poderia ser
simbolizado pela seguinte série: A é p, B é p, C é p. Um tipo de síntese de identidade ocorre agora
no qual reconhecemos não apenas similares, mas o mesmíssimo, um “um em muitos”. Segue-se que
o mero uso da palavra para o predicado, tal como a palavra “flutua”, não logra por si mesmo indicar
se a palavra está sendo usada para nomear similares ou o mesmíssimo. O uso de uma palavra
mascara dois diferentes tipos de intencionalidades, duas diferentes identificações. Quando comamos
a palavra para significar a mesmíssima característica, alcançamos um universal empírico, porque
todas as instâncias nas quais temos encontrado o predicado são coisas que temos realmente
experienciado de fato. Até aqui, todos os casos de madeira que temos encontrado flutuam, e
expressamos empiricamente essa descoberta encontrando de uma maneira universal como “madeira
flutua”, mas nossa evidência só vai até onde nossa experiência foi. Nossa reivindicação é falsificável
por ulteriores experiências; é concebível que podemos encontrar pedaços de madeira que não
flutuem. A descoberta de cisnes negros foi capaz de falsear a reivindicação universal “todos os
cisnes são brancos”, porque a reivindicação estava baseada num universal empírico.

3. Em nosso terceiro e final estágio, nós nos empenhamos em alcançar uma característica que seria
inconcebível para a coisa ser sem ela. Tentamos nos mover para além do empírico, para universais
eidéticos, para necessidades e não apenas regularidades. A fim de agir assim, mudamos da
percepção para o reino da imaginação. Vamos da experiência real para a “filosofia de poltrona”. Se
formos bem-sucedidos, teremos realizado uma intuição eidética.

Procedemos do seguinte modo. Focalizamos num universal que tivermos alcançado. Pressupomos
uma instância do tipo universal. Então, tentamos imaginar mudanças no objeto, num processo
chamado variação imaginativa. Deixamos nossa imaginação correr livre, e vemos os elementos que
poderíamos remover da coisa antes de ela “estilhaçar-se” ou “destruir-se” como o tipo de coisa que
ela é. Tentamos dilatar as fronteiras, expandir o invólucro da coisa em questão. Se podemos
descartar algumas características e ainda preservar o objeto, sabemos que tais características não
pertencem ao eidos da coisa. Contudo, se encontramos características que não podemos remover
sem destruir a coisa, constatamos que essas características são eideticamente necessárias para ela.
Se, por exemplo, tentássemos imaginar um objeto percebido que não fica maior quando nós
chegamos mais perto e menor quando nos distanciamos dele, poderíamos dizer que não estamos
mais percebendo um objeto material espacial: expansão e contração espaciais como funções da
aproximação e do afastamento são características essenciais na percepção de coisas espaciais. Se
centássemos imaginar as experiências do outro brotando de nossas memórias, veríamos que uma tal
coisa não é possível: somente nossa própria experiência pode ser recordada por nós. Se tentássemos
imaginar o tempo sem sucessão, ou o discurso sem um aspecto retórico, veríamos que tais coisas
não poderiam ser. Quando nos encontramos ante tais impossibilidades, ocorreu de alcançarmos uma
intuição eidética. Evidenciamos uma essência. Realizamos uma identificação que é “mais
necessária” do que o tipo efetivado nos universais empíricos. Sabemos que-tais coisas “devem ser”
de um modo mais forte do que coisas como os fatos de que madeira flutua e cisnes são brancos.
Quando alcançamos uma intuição eidética, vemos que seria inconcebível para a coisa em questão
ser de outra maneira. O movimento para a imaginação nos dá uma intuição mais profunda do que a
indução empírica.

A intuição eidética não é fácil. Exige grande força de imaginação. Estar apto a tentar imaginar o
impossível, e ver que é impossível e que, além do mais, não pode ser pensado, demanda que sejamos
capazes de ir além das coisas a que estamos acostumados, das coisas que temos regularmente
experienciado. A maioria de nós vive em universais empíricos; tomamos como certo que as coisas
serão do modo que sempre as temos experienciado ser, mas não temos testado sua necessidade
tentando imaginar seu ser de outra maneira. Estar apto a desentocar o eidérico de dentro do
costumeiro e do empírico requer imaginação criativa. Por exemplo, a transformação do espaço e do
tempo que ocorreu quando Newton introduziu o espaço e o tempo absolutos como um tipo de
contêiner eterno do universo e a ulterior transformação do espaço e do tempo que ocorreu com a
teoria da relatividade foram tentativas de intuições eidéticas, baseadas nas variações imaginativas
que Newton e Einstein foram capazes de levar a cabo. Esses homens tiveram a imaginação de
projetar essa nova possibilidade. Eles estenderam o espaço e o tempo para além do costumeiro e do
reconhecido. Obviamente, nem todo mundo pode fazer esse tipo de coisa.

As variações imaginativas ocorrem na ficção, na qual são imaginadas as circunstâncias que se


afastam do ordinário, mas que servem para pôr em cena uma necessidade. Elas mostram como as
coisas têm de ser. Não é o caso de qúe alguém apenas imagine cenários bizarros. A projeção
puramente fantástica é fácil demais, mas o que deve acontecer se verdadeiramente existe intuição é
que, dentro das circunstâncias imaginativas, uma necessidade deverá ser trazida à luz. Para isso
ocorrer, a variação imaginativa tem de ser habilmente elaborada; devemos ter a capacidade de
saber o que a presentação imaginativa irá arrumar. A imaginação dá-nos um vislumbre da
necessidade. Essa intuição, que os gregos chamaram nous, é a recompensa que obtemos por nosso
esforço imaginativo.

Por conseguinte, duas coisas devem ser feitas: a projeção imaginativa além do que é possível, e a
intuição de que o que temos projetado não pode ser. Uma necessidade vem à luz na impossibilidade
do que tentamos imaginar. Essas exigências são encontradas mesmo na ficção científica. A maioria
das circunstâncias bizarras é imaginada, mas dentro delas todas as permutas iuimanas básicas
parecem ocorrer periodicamente: honestidade e fraude, prudência e tolice, coragem e covardia. Tais
ações parecem ser inevitáveis enquanto agentes racionais estão sendo representados, e suas
necessidades surgem quando se constata que persistem mesmo nos cenários exóticos do futuro
remoto ou do espaço cósmico. Podemos imaginar seres humanos vivendo numa nave espacial em vez
de na terra, mas não poderíamos imaginá-los sem a possibilidade de comunicação entre eles ou sem
a habilidade de ser corajosos, impulsivos ou covardes. O que é notável na ficção científica não é
como seus cenários e sua tecnologia são diferentes dos nossos, mas o quão iguais a nós são os seus
protagonistas.

A variação imaginativa e a intuição eidética são usadas em toda parte na filosofia. Porque envolvem
a fantasia, dão a impressão de que a filosofia lida com situações irreais. O ponto principal da
imaginação filosófica, contudo, não é inventar cenários fantásticos, mas usar essas projeções para
revelar a inexorável necessidade de certas coisas: para mostrar que, digamos, os seres humanos
encontram sua perfeição moral na vida cívica, ou que as coisas materiais envolvem redes de
causação, ou que espaço e tempo envolvem partes que são exteriores uma à outra, ou que há uma
diferença entre a ação humana e as qualidades essenciais humanas, entre práxis e poiésis. Essas
necessidades eidéticas são mais profundas e mais fortes do que as verdades empíricas. De fato, são
tão profundas e fortes que as pessoas geralmente tomam-nas por certas e não veem razão para
defendê-las. Quando tais verdades passam a ser formuladas pelos filósofos, elas podem provocar
uma outra acusação comum contra a filosofia, a de que ela lida com as trivialidades mais patentes.
Porque essas coisas óbvias precisam ser estatuídas? Quem na terra ainda poderia questioná-las?
Elas precisam ser estatuídas por duas razões. Primeiro, porque, a despeito de sua obviedade,
algumas pessoas as negam. Há pessoas que dizem, por exemplo, que a realização humana é mais
bem efetivada na vida econômica do que nas vidas moral e política, ou que não há percepções, ou
que o tempo é ilusório, ou que não há tais coisas como verdade e evidência. Os sofistas fizeram
algumas dessas reivindicações quando a filosofia estava apenas começando, e eles ou seus
equivalentes estão sempre presentes na vida humana. A filosofia sempre teve de evocar as coisas
que são óbvias porque as pessoas ou passam por cima delas ou as negam. A filosofia tem de
defender as opiniões verdadeiras da atitude natural.

Mas, além dessa tarefa protetora, a filosofia expõe suas “trivialidades” por uma segunda razão, mais
positiva. É humanamente gratificante tornar-se consciente de necessidades eidéticas. Dá-nos prazer
contemplá-las. São boas de conhecer. Se certos escritores podem usar suas imaginações para gerar
insight no que tem de ser, eles nos ajudam a ver as coisas eternas. Nem todo mundo quer ver essas
coisas, mas muitos de nós o desejamos e o insight nas necessidades eidéticas tem sua própria
justificativa para aqueles que estão aptos a desfrutá-lo.

A filosofia é falsamente acusada, então, de lidar ou com o fantástico ou com o trivial. Essas
reprovações são feitas porque a filosofia faz uso da intuição eidética, a qual emprega a imaginação
para trazer à luz o modo como as coisas devem ser.

Comentários adicionais sobre a intuição eidética


Essa discussão dêu uma ideia geral do que é a intuição eidética. Há muitos outros detalhes que
podem ser revelados concernentes a essa intuição e aos três estágios que a ela conduzem. Vamos
gastar alguns momentos para passar uma vista d'olhos nessa forma de intencionalidade.

Nós distinguimos um primeiro estágio, no qual experienciamos meramente coisas similares, e um


segundo, no qual experienciamos universais empíricos. Somente no segundo nível o sentido
completo de um indivíduo surge para nós. Somente quando alcançamos o sentido de um universal
verdadeiro tais como “vermelho” ou “flutua” ou “quadrado” como idênticas mente o mesmo em
muitas instâncias, somente então alcançamos o sentido de contrastejie um indivíduo ou um
particular sob esse universal. No primeiro nível experienciamos indivíduos, mas ainda não os vemos
como indivíduos. Seu sentido de ser indivíduo ainda não foi constituído para nós, porque precisamos
do contraste do universal para isso acontecer.

No primeiro nível, em que experienciamos só similares, podemos usar a mesma palavra para muitas
instâncias, mas a palavra está sendo usada analogamente. Uma criança pode chamar todos os
homens de “papai” ou “tio”, ou usar a palavra “vou” para toda sorte de situações, mas fazendo assim
ela não usa o termo para expressar nada unívoco ou específico. Nesse estágio, a mente está
inundada de singularidades, e a distinção entre universal e singular ainda não surgiu. Esse nível de
intencionalidade está submerso na associação e não alcança identificações exatas. O nível
associativo, além do mais, permanece conosco como um tipo de fundação para as nossas
intencionalidades mais elevadas. Até em nosso pensamento maduro, às vezes voltamos a cair nesses
estágios primitivos, quando decaímos na vaguidade ou quando procuramos por palavras certas ou
metáforas certas para uma nova situação. A intuição eidética nos leva ao domínio das formas
platônicas; ela nos conduz à seção mais elevada da Linha Dividida descrita no Livro V da República;
mas o nível associativo, o domínio de meras similaridades, coloca-nos na seção mais baixa dessa
linha, em que vivemos entre imagens não substanciais. Mas, não importa o quanto possamos
desfrutar a vida entre as formas, nunca abandonamos as manifestações nos níveis mais baixos, e só
por meio delas podemos chegar às inteligibilidades mais elevadas.

Nem sempre temos êxito em nossas intuições eidéticas. Podemos pensar que temos uma quando não
temos. Nossa tentativa pode não dar certo. Podemos passar do limite. Podemos imaginar algo novo e
pensar que temos

revelado algo necessário sobre a coisa em questão, mas podemos estar enganados: podemos ter
escorregado para a pura fantasia sem essências. Sócrates imagina uma cidade na qual mulheres,
crianças e propriedades sejam consideradas em comum. Ele pensa que descobriu uma verdade
sobre as famílias e posses humanas, mas Aristóteles o criticou por confundir pura fantasia com o
que seria real (Política 2.6). A postulação de Newton do tempo e espaço absolutos pode ser criticada
como um excesso, como um exagero do que poderia ser possível. Hobbes imagina o homem num
estado de pura natureza e então imagina um contrato que estabelece um soberano que governa
sujeitos perfeitamente iguais; ele pensa que descobriu a verdadeira natureza do homem e da
sociedade, mas ele bem pode ter vagueado numa fantasia sem intuição. A cidade de Sócrates, o
soberano de Hobbes, as utopias marxistas, a consciência cartesiana e a natureza matematicamente
ideal sofrem todos de um excesso de imaginação. São intuições extraviadas, projetos de fantasia e
não expressões do mundo no qual verdadeiramente vivemos.
Quando erramos com respeito à eidética, quando tomamos como necessariamente verdadeiro o que
é só uma projeção fantástica, cometemos um erro precisamente com respeito a uma necessidade
eidética. Não erramos com respeito aos simples fatos ou aos universais empíricos. Cometemos um
erro “filosófico”, não um erro no juízo factual, numa má percepção, ou numa falha de memória. Nem
todas as variações imaginativas são bem-sucedidas, e quando falham não se tornam um outro tipo
de intencionalidade. Elas permanecem uma tentativa de intuição eidética, mas tentativa que falhou.
Porque a intuição eidética opera com a imaginação, ela brinca com fogo: é fácil deixar nossa
imaginação escapar ao controle.

Como corrigimos erros na intuição eidética? Falando com outros sobre eles, imaginando
contraexemplos, e, mais do que tudo, vendo como nossas propostas eidéticas correspondem aos
universais empíricos que temos identificado antes de alcançar o eidético. Os universais empíricos
são constituídos no segundo dos três níveis que temos distinguido, e eles servem como uma
fundamentação para os universais eidéticos. Os universais eidéticos vão além do empírico, mas
repousam neles e não deveriam destruí-los. O que encontramos numa intuição eidética deveria
confirmar a verdade empírica e não subvertê-la. Os universais empíricos servem como um controle
em nossas imaginações. Quando dizemos que nossa filosofia deveria corresponder ao “senso
comum”, o que estamos invocando é que são os universais empíricos que são o fruto de nossa
experiência padrão. Os universais empíricos nos dão um ponto de apoio no mundo real, e nossos
universais eidéticos poderiam se despedaçar na irrealidade se os empíricos fossem descartados.

Um outro ponto a ser examinado concernente à intuição eidética diz respeito ao papel da
impossibilidade, da necessidade negativa. Não vemos positivamente a ligação necessária entre a
coisa e a característica que estamos analisando para ela. Em vez disso, vemos a necessidade de um
rechaço da intuição negativa: vemos a impossibilidade do ser da coisa sem a característica, assim
sabemos que a característica é essencial; não imaginamos a coisa sendo privada dela. A
impossibilidade negativa revela a necessidade eidética. O fato de que devemos fazer uma incursão
na impossibilidade é o que nos força a apelar à imaginação na intuição eidética; a imaginação
poderia tentar descrever o impossível e assim trazer à luz o necessário, mas como poderia a
percepção agir assim?

A variação imaginativa e a intuição eidética podem ser exercidas na atitude natural. Essa redução
eidética se concentra na forma essencial-das coisas. A redução eidética, contudo, é diferente da
transcendental, a qual nos move da atitude natural para a fenomenológica. A fenomenologia mesma
faz uso de ambas as reduções, a transcendental e a eidética. Em virtude da redução transcendental,
contempla a intencionalidade e seus correlatos objetivos, mas também revela as estruturas eidéticas
de tais noésis e noemas, e por essa razão requer a redução eidética. Ela não está preocupada com as
experiências e os objetos que por acaso temos, mas com as estruturas eide-ticamente necessárias
dessas experiências e desses objetos, como poderiam ser consideradas por uma consciência
qualquer. A fenomenologia visa descobrir como as coisas e a mente têm de ser para a descoberta
tomar lugar.
XIII.A FENOMENOLOGIA CIRCUNSCRITA
Nosso exame da evidência no capítulo XI interpretou a razão como sendo determinada para a
verdade das coisas. A razão é a descoberta e a confirmação do que as coisas são.-Até na atitude
natural, a mente encontra sua culminação na verdade. A fenomenologia opera a partir do ponto de
vista transcendental, é também um exercício da razão e compartilha a teleo-logia do pensamento.
Também está ordenada para a manifestação, mas num modo diferente dos da ciência e da
experiência que ocorrem na atitude natural. A linguagem que chamamos “mundanês” serve para
revelar a verdade; o “transcendentalês” também, mas de um modo diferente.

Em nossas realizações efetivas da evidência, em nossa experiência ordinária e na ciência, deixamos


as coisas aparecerem para nós mesmos e para a comunidade dentro da qual convivemos. Deixamos
as plantas e os animais, as estrelas e os átomos, os heróis e os vilões se manifestarem a si mesmos.
Na reflexão fenomenológica, contudo, mudamos o nosso foco para essas descobertas em si mesmas,
para as evidências que temos consumado, e pensamos sobre o que é ser dativos de manifestação e o
que é para os seres ser manifestos. A fenomenologia é a ciência que estuda a verdade. Ela se afasta
do nosso envolvimento racional com as coisas e se admira do fato de que há descoberta, de que as
coisas aparecem, de que o mundo possa ser compreendido, e de que nós, em nossa vida do
pensamento, servimos de dativos para a manifestação das coisas. A filosofia é a arte e a ciência de
evidenciar a evidência.

A fenomenologia também examina as limitações da verdade: o inesca-pável “outros lados” que


mantém as coisas distantes de ser totalmente descobertas, os erros e a vaguidade que acompanham
a evidência, e a sedimentação que corna necessário para nós recordarmos sempre de novo as coisas
que já sabemos. A fenomenologia reconhece esses distúrbios da verdade, mas não se deixa levar por
eles ao desespero. Ela os vè apenas como distúrbios e não como a substância de nosso ser. Ela
insiste que, juntamente com tais sombras, a verdade e a evidência são realizadas com êxito, e que a
razão encontra sua perfeição em deixar as coisas virem à luz. A razão não se aperfeiçoa a si mesma
no erro, na confusão e no esquecimento.

A filosofia começa quando assumimos uma nova instância dirigida a nossa atitude natural e a todos
os seus envolvimentos. Quando nos engajamos na filosofia, nos afastamos e contemplamos o que é
ser verdadeiro e alcançar a evidência. Nós contemplamos a atitude natural, e por isso assumimos
um ponto de vista exterior a ela. Essa mudança do afastamento é feita por meio da redução
transcendental. Em vez de estarmos simplesmente ocupados com os objetos e suas características,
pensamos sobre a correlação entre as coisas que estão sendo descobertas e o dativo para o qual elas
estão manifestas. Dentro da redução transcendental, também exercemos uma redução eidética e
expressamos as estruturas que não consideramos apenas para nós mesmos, mas para coda
subjetividade que está engajada no evidenciar e na verdade.

Examinamos o pensamento filosófico no capítulo IV, no qual exploramos a redução transcendental


minuciosamente. Podemos agora examinar a natureza da filosofia de um ângulo levemente
diferente: faremos uso de alguns pensamentos desenvolvidos no capítulo VII, no qual vimos que as
proposições e os conceitos não precisam ser pressupostos como coisas mentais ou entidades
conceituais mediadoras. Notamos naquele capítulo que uma proposição surge em resposta a um tipo
especial de reflexão, que chamamos de reflexão “proposicional” ou “apofântica”. Um estado de
coisas é transformado numa proposição ou num sentido quando tomamos esse estado de coisas
como sendo proposto por alguém. Nós mudamos seu status; não o tornamos apenas o modo como as
coisas são, mas o modo como alguém o enunciou e o presentou para nós. Tais proposições,
constituídas pela reflexão proposicional, tornam-se então candidatas à verdade da exatidão. Delas é
dito serem juízos verdadeiros quanto podem ser de-citadas e misturadas com a evidência direta das
coisas mesmas.

O que faremos no presente capítulo é descobrir mais precisamente o que a reflexão filosófica é
contrastando-a com a reflexão proposicional. As duas formas de reflexão, a proposicional e a
filosófica, são com frequência confundidas com uma outra. Por causa dessa confusão, o caráter
especial do pensamento filosófico é frequentemente mal compreendido. Esclareceremos as
diferenças entre as reflexões filosófica e proposicional, e essas distinções nos ajudarão a fixar mais
claramente a natureza da investigação fenomenológica.

Diferenças em alcance
Vivemos no mundo e enunciamos coisas, seja em contextos teóricos ou práticos. Suponha que
estamos conversando sobre uma casa. Entre muitas outras assertivas, você diz que a casa tem
cinquenta anos. Estamos ouvindo você e concordando irrefletidamente com tudo que você diz, mas
imediatamente essa asserção nos faz hesitar. Não parece completamente certa. Interrompemos
nossa aceitação ingênua de tudo o que você diz; mudamos para o modo proposicional: tomamos a
casa-como tendo cinquenta anos não simplesmente pelo modo como as coisas são, mas somente
enquanto você as está presentando para nós. Mudamos de modo; mudamos para uma reflexão
proposicional. Colocamos o ser da casa de cinquenta anos entre aspas. Tratamos este estado de
coisas não como sendo um fato evidente, mas como sua proposição, sua compreensão, o sentido de
suas palavras. Tratamos o estado de coisas como sendo meramente proposto, como sendo
presentado por você. O estado de coisas original tornou-se uma proposição.

Suponhamos que nossa experiência posterior nos leve a concordar que a casa tem cinquenta anos.
Então, de-citamos o que havíamos posto entre aspas. Abandonamos a reflexão proposicional.
Constatamos que a proposição está correta, que ela identifica-se com o que é o caso, com o que
pode ser dado diretamente na evidência. A proposição (o estado de coisas tomado como proposto)
mistura-se com o fato e é visto como verdadeiro. Por outro lado, suponhamos que nossas
experiências e investigações posteriores levem-nos a concluir que a casa não tem cinquenta anos,
mas vinte. Então poderíamos fixar o olhar nas aspas do ser da casa de cinquenta anos; veríamos que
a proposição, sua proposição, é falsa, que não pode ser de-citada e constituída em um simples fato
novamente, que ela não pode desfrutar da verdade de exatidão. Está descartada como um candidato
à verdade. É semente uma proposição, só um estado de coisas como proposto, só sua opinião, e não
poderia ser nada mais. Não podemos mais mitigar nossa reflexão proposicional nessa instância e
tomar o que você diz como simplesmente o modo como as coisas são.

Esse movimento para frente e para trás entre o estado de coisas e a proposição, entre o estado de
coisas como simplesmente tomado e tomado como meramente proposto, é uma realização hujmana
altamente sofisticada. É uma -parte essencial da razão humana. Não imaginaríamos um animal
racional que falhasse em ter esse poder; uma entidade privada dessa habilidade não poderia possuir
a razão. Animais não humanos não podem proposicionalizar tim estado de coisas exceto talvez no
modo mais rudimentar; eles não podem refletir proposicionalmente e ver uma situação como sendo
meramente pre-sentada por alguém ou como confirmando o que alguém disse. Esse movimento de
ziguezague entre o que é, o que parece, o que é dito, e o que confirma está inscrito na gramática da
linguagem humana, em frases tais como ““reivindico que p”, “você diz que q”, “o que você disse é
verdadeiro (ou falso)”, e em muitas outras dimensões da sintaxe.

Nossa habilidade de mudar para a reflexão proposicional permite-nos cornar uma distância em
relação a qualquer assunto em que estejamos envolvidos. Quando somos apanhados numa conversa
sobre algo, e até quando estamos pensando sobre uma questão por nós mesmos, podemos mudar
para o modo proposicionaUe tomar o que está sendo presentado como meramente presentado, como
apenas uma proposição ou um sentido e não como o modo como as coisas simplesmente são. A
habilidade de mudar para o modo proposicional, e então confirmar ou desconfirmar o que está
sendo dito, estatui-nos como falantes responsáveis que podem dizer “eu”, e identificar a nós mesmos
como agentes dessa ou daquela reivindicação de verdade.

Contudo, essa habilidade de mudar para a reflexão proposicional e exercer o tipo de verdade que ela
torna possível, gloriosa como pode ser como um emblema de nossa natureza racional, não é o
mesmo que a habilidade para mover-se na reflexão filosófica. Devemos distinguir a reflexão
proposicional da reflexão filosófica. Se conseguirmos agir assim, obteremos uma compreensão muito
melhor de ambos os domínios — o proposicional e o filosófico.

Quando nos engajamos numa reflexão proposicional, quando tomamos-" o ser da casa de cinquenta
anos como meramente sua proposição, refletimos somente sobre esse único estado de coisas: sobre
o ser da casa de cinquenta anos. Tudo o mais é deixado no lugar e não refletido: seu ser aí como
nosso interlocutor, nosso ser aqui como o seu, os sons que emitimos, as árvores, o gramado, o céu, o
tempo, a casa ela mesma como branca, de madeira e em estilo colonial. Também deixamos no lugar,
inalterada e sem reflexão, a crença no mundo em que repousam todas as nossas convicções mais
particulares. Quando proposicionalizamos, tomamos uma distância para salientar um particular
estado de coisas, ou até para um grupo deles, mas nossa crítica reflexiva deixa um arranjo ilimitado
de estados de coisas, de coisas e de contexto totalmente intocados. Sua qualidade dóxica fica
intacta. Eles todos permanecem no lugar como um tipo de chão sobre o qual encontramos o
alavancar de que precisamos para refletir sobre o simples estado de coisas que transformamos
numa proposição.

Por outro lado, quando nos engajamos na reflexão filosófica, quando exercemos a redução
fenomenológica, tomamos uma distância em direção a absolutamente tudo na atitude natural: não
apenas o ser da casa de cinquenta anos, mas a casa toda, as árvores, o gramado, você e nós como
interlocutores, o tempo, a terra, o céu, as estrelas, o sol e a lua, e até o mundo que subjaz a todas
essas coisas e a crença no mundo que é seu correlato. Essa é a reflexão radical; é a reflexão total.
Nada é deixado fora. Tomamos uma distância em direção a tudo, até do mundo como tal e de nós
mesmos como tendo um mundo. Não nos aferramos a crenças várias como um alicerce que nos
impulsione; não retemos um chão para ficar sobre ele. Não deixamos nenhuma das convicções
intocada. Todas, até a mais básica, são suspensas e refletidas. Essa toda-includente reflexão é
filosófica; a reflexão mais restrita é proposicional.

A diferença inicial entre a reflexão filosófica e a proposicional, então, é unicamente de alcance: a


reflexão filosófica é universal, a reflexão proposicional é limitada e se direciona para esse ou aquele
estado de coisas.

Diferenças em tipo

“Está bem, quer dizer que”, você pode perguntar, “a diferença entre a reflexão proposicional e a
filosófica é apenas o fato de que a primeira é limitada e a última é compreensiva? A reflexão
proposicional lida só com esse ou aquele estado de coisas, enquanto a reflexão filosófica lida com
absolutamente tudo? A filosofia é apenas a reflexão proposicional ampliada para abranger qualquer
uma e todas as convicções que remos? Ambas são o mesmo tipo de reflexão, e diferem somente em
seu alcance?”

A resposta a essa questão é negativa. A reflexão proposicional e a filosófica não diferem somente em
sua extensão. São diferentes tipos de reflexão e diferem do seguinte modo.

Uma reflexão proposicional é executada a fim de testar a verdade da proposição que emerge dela. É
executada assim que podemos verificar uma proposta que veio a ser questionável. Há algo
pragmático na reflexão proposicional. Nós a executamos a fim de identificar mais acuradamente
qual é o assunto.

Se descobrimos que a proposição é verdadeira, nós a aceitamos novamente, com a nova e mais forte
evidência que a confirmação traz, mas se descobrimos que ela é falsa, nós a rejeitamos. Torna-se um
juízo descartado, errôneo. A reflexão proposicional é exercida no interesse da verdade, no interesse
da verificação. Nosso interesse total nunca é neutralizado quando mudamos para o modo
proposicional.

A reflexão filosófica, por outro lado, não é executada por tais razões pragmáticas. Não é feita tendo
em vista a veracidade ou falsidade de uma enunciação. Ela é mais puramente contemplativa, mais
puramente desinteressada (não interesseira). Quando tomamos uma distância filosoficamente em
direção a todas as nossas convicções, incluindo nossa crença no mundo, e em direção a todas as
coisas dadas para nossa intencionalidade, incluindo o mundo, não estamos pondo todas essas
convicções e coisas entre aspas até podermos verificar se são ou não verdadeiras. Não estão sendo
suspensas do modo como suspendemos as proposições. Elas são neutralizadas, mas somente para
ser contempladas, não para ser verificadas.

Quando proposicionalizamos um estado de coisas, quando entramos na reflexão proposicional,


questionamos o estado de coisas. Não o asseveramos mais. Mudamos a sua modalidade: era uma
convicção, mas agora se constituiu em dúvida ou ao menos em algo questionável. Quando entramos
na reflexão filosófica, não mudamos a modalidade das convicções que temos na atitude natural.
Tomamos uma distância delas, e daí contemplamos e, no momento, não as partilhamos, mas sem que
as tornemos dúbias ou questionáveis. Não tentamos verificá-las ou falseá-las. Meramente pensamos
sobre elas e tentamos tornar pública sua estrutura intencional e sua teleo-logia. Deixamos todas as
coisas como estavam quando entramos na filosofia. Não tentamos transformar nossas opiniões pré-
filosóficas ou verificações ou evidências. Devemos deixar tudo como estava, caso contrário
mudaríamos a própria coisa que desejamos examinar.

De uma maneira que não deveria ser levada a mal, a filosofia é indiferente à verdade ou falsidade
encontrada na atitude natural. A filosofia contempla a verdade, mas também reconhece a falsidade,
a vaguidade, as intenções vazias e o erro que são partes da atitude natural, e não tenta apagar essas
sombras que acompanham a verdade. Admite essas inevitabilidades na busca da verdade. Não as
domina e nem tenta livrar-se delas. Não tenta substituir sua própria perspectiva, com seu calmo
afastamento e sua maior lucidez, pela perspectiva da atitude natural. Não se torna imperialista e
nem reivindica que seu modo de verdade é o único que há.

Se axeflexão filosófica fosse tomada por ser a mesma que a reflexão proposicional, então a filosofia
poderia de fato tornar-se imperialista. Poderia tentar se imiscuir em nossas ações e inquirições pré-
filosóficas. Poderia tentar dominar. Poderia tentar corrigir tudo. Poderia tentar pôr em ordem a
bagunça da atitude natural, com todas as perspectivas parciais, vaguidades e decepções, e poderia
tentar fazer-nos viver na pura luz. Poderia introduzir-se na conversação humana, e sua voz abafaria
o som de todas as outras vozes na condição humana. Se é para a filosofia ser fiel ao seu próprio
destino, tem de ser mais modesta do que isso. Ela é a coroa da racionalidade humana, mas tem de
restringir a si mesma ao seu próprio tipo de verdade, a sua própria teleologia puramente
contemplativa; deve abster-se de tentar ser uma opção para os talentos, recursos e habilidades da
atitude natural. O filósofo pareceria um tolo se tentasse substituir os políticos, advogados, cientistas
e artesãos. É também verdade, naturalmente, que os especialistas e os políticos, por sua vez,
pareceriam tolos se pensassem que o que eles fazem é o ápice da razão humana.

Até agora, vimos que a reflexão filosófica difere da reflexão proposicional de dois modos; em alcance
(a primeira é universal enquanto a última é limitada) e em tipo (a primeira é meramente
contemplativa e não uma tentativa de verificar; a última é ajustada para determinar a exatidão das
afirmações). Ainda permanecem duas diferenças adicionais que devem ser consideradas.

Diferenças entre noema e sentido, pôr entre parênteses e citar


Em ambos os tipos de reflexão, a filosófica e a proposicional, nós modificamos o modo em que os
correlatos objetivos são dados para nós.

Quando mudamos para a reflexão filosófica, quando executamos a redução transcendental, não nos
ocupamos somente com nossa intencionalidade; também consideramos os alvos dessa
intencionalidade, as coisas que são dadas aos nossos vários modos de intencionar (percepção,
memória, imaginação, antecipação, juízo e o resto). De nossa privilegiada perspectiva filosófica,
contudo, não nos concentramos direta e inocentemente nesses objetos; antes, nos concentramos
neles precisamente como sendo intencionados por, ou presentados para, nossas intencionalidades
na atitude natural. Nós os consideramos não simplesmente como coisas, mas como “coisas sendo
intencionadas”. Isto é, nós os consideramos como noemas. Nós os consideramos noematicamente.
Por exemplo, o objeto percebido olhado do ponto de vista filosófico e considerado precisamente
como percebido, como o correlato objetivo da percepção, é o noema da percepção. O estado de
coisas asseverado, olhado desde o ponto de vista filosófico e considerado precisamente como
asseverado, como o correlato objetivo da asserção, é o noema da asserção. A tarefa da
fenomenologia é explorar as correlações entre noemas e suas noésis correspondentes, as atividades
intencionais que constituem os noemas e permitem que as coisas descobertas sejam presentadas
para nós.

A redução fenomenológica transforma objetos em noemas. A reflexão proposicional, em contraste,


transforma objetos em sentidos. Quando começamos a questionar um estado de coisas e a tomá-lo
como sendo mera-mente proposto por outrem, transformamos o estado de coisas num sentido ou
numa proposição. Nós o vemos apenas como a compreensão de outrem. Podemos então testá-lo por
exatidão. Ser um sentido, contudo, não é o mesmo que ser um noema. Um sentido ou uma
proposição é um candidato à verificação, à verdade da exatidão, mas um noema é meramente o alvo
da análise filosófica. O mundo, junto com tudo que há nele, é transformado em noema quando
entramos na reflexão fenomenológica, mas seria impossível transformar o mundo e tudo nele num
sentido ou numa proposição, em algo que precisa ser verificado.

Como vimos no capítulo VII, quando executamos uma reflexão proposicional, pode ser dito que
colocamos aspas em volta do estado de coisas que estamos questionando. Alguém nos diz que a casa
tem cinquenta anos, e nós, em nossa hesitação em concordar, transformamos o ser da casa de
cinquenta anos na opinião de outrem, “a casa tem cinquenta anos”. Algo análogo a esse tipo de
citação também acontece na reflexão fenomenológica; há um tipo de citação na fenomenologia que
se assemelha às citações feitas na atitude natural, mas deve ser distinguida delas.

Na atitude fenomenológica, não focalizamos meramente nos objetos; focalizamos neles


precisamente como os alvos da atitude natural, precisamente como dados para nossas
intencionalidades na atitude natural. Por conseguinte, de certo modo nós “citamos” a atitude natural
quando falamos filosoficamente. Nós “citamos” a nós mesmos quando intencionamos as coisas na
atitude natural. Mas deixem-nos evitar a palavra “citação” aqui, para que não sejamos induzidos à
confusão. Deixem-nos seguir a terminologia fenomenológica aceita e dizer que nós pomos entre
parênteses o mundo e tudo nele quando executamos a reflexão filosófica. Pomos o mundo e tudo
nele entre colchetes ou entre parênteses. Colchetes são as aspas da filosofia. Expressam o tipo de
distância que tomamos das coisas quando estamos engajados na filosofia (nós as vemos como elas
são presentadas para as-evidências pré-filosóficas), assinfcomo as aspas expressam o tipo de
distância que tomamos de um estado de coisas quando estamos engajados na reflexão proposicional.
Colchetes significa que estamos tomando o que está posto entre colchetes como um noema,
enquanto aspas significa que estamos tomando o que está citado como um sentido.

Diferenças em perspectiva
Há mais uma diferença entre reflexão filosófica e proposicional que devemos examinar. Recordamos
que a reflexão proposicional é executada tia atitude natural. A reflexão proposicional suspende a
crença numa intencionalidade e seu objeto, mas não suspende nossa crença no mundo, como o faz a
reflexão fenomenológica. Se alguém nos diz que a casa tem cinquenta anos, e se exercemos uma
reflexão proposicional dirigida a esse estado de coisas, ainda permanecemos na atitude natural. O
estado de coisas (o ser da casa de cinquenta anos) foi transformado numa proposição ou num
sentido, mas como tal ele também ainda está encerrado no interior da atitude natural.

Um sentido ou uma proposição é em si mesmo, como tal, o correlato objetivo de um tipo especial de
intencionalidade. É o correlato de uma reflexão proposicional, assim como o objeto percebido é o
correlato de uma percepção e um objeto enunciado é o correlato de uma enunciação assertiva.

Agora, quando mudamos para a atitude fenomenológica, contemplamos a proposição ou o sentido


como correlato objetivo de uma reflexão proposicional. Focamos noematicamente sobre a
proposição ou sobre o sentido. A proposição ou o sentido é um noema, assim como qualquer outro
correlato objetivo de qualquer outra intencionalidade. De fato, a descrição completa que estivemos
desenvolvendo do estabelecimento do domínio proposicional, o domínio do sentido, foi feita do
interior da reflexão filosófica. Foi como fenomenólogos que indicamos que uma proposição ou um
sentido surgem em resposta a uma reflexão proposicional.

Assim, a reflexão fenomenológica não é apenas mais radical do que a proposicional, no sentido de
que derruba de todos os modos a crença no mundo; é também mais abrangente, no sentido especial
de que focaliza na reflexão proposicional e descreve o que a leva a cabo. A reflexão fenomenológica
chega ao topo da reflexão proposicional e explica o que a constitui: expli-

ca como a reflexão proposicional constitui proposições. A reflexão proposicio-nal, contudo, não


explica a transformação na fenomenologia A transformação na fenomenologia está fora da tela do
radar da reflexão proposicional.

Observamos no capítulo IV que o noema não deveria ser equivalente ao sentido. Agora podemos
dizer por que os dois não devem ser identificados. Equiparar o sentido e o noema seria equiparar a
reflexão proposicional e a fenomenológica. Seria tomar a filosofia simplesmente como a reflexão
crítica de nossos significados ou sentidos; equipararia a filosofia com a análise linguística. A
instância especial a partir da qual pensamos filosoficamente, a natureza distintiva da análise
filosófica, não poderia vir à luz. A filosofia seria assimilada a uma das atividades dentro da atitude
natural. O sentido ou o significado difere do noema porque a reflexão proposicional é diferente da
reflexão filosófica.

Uma ilustração gráfica das duas reflexões


Gostaríamos de tentar clarificar a interação entre a reflexão filosófica e a proposicional delineando
uma analogia. Usaremos uma história em quadrinhos para esclarecer a diferença entre a
perspectiva que assumimos quando estamos engajados na filosofia e a perspectiva que temos
quando simplesmente proposicionalizamos e testamos uma afirmação quanto à verdade da exatidão.

Suponhamos que temos uma história em quadrinhos na qual um interlocutor, Alfa, está conversando
com outro, Beta Alfa diz algo a Beta sobre árvores. O que Alfa diz é encerrado no balão que é usado
nas histórias em quadrinhos para designar a fala Suponhamos que o balão associado a Alfa contém
as palavras: “Essas árvores cairão na próxima vez em que houver um vento forte”. Beta, na história
em quadrinhos, normalmente tomaria as palavras de Alfa no valor nominal e pensaria nas árvores
segundo o que ouviu de Alfa. Mas suponhamos que Beta fica desconfiado. Ele se pergunta se Alfa
está certo. Ele proposicionaiiza o estado de coisas que Alfa enunciou. Quando Beta age assim, é
como se ele mudasse seu foco das árvores para o “conteúdo conceituai” do balão associado a Alfa, e
o “conteúdo conceituai” daquele balão é o ser das árvores pronto para tombar (tomado como
proposto).

Quando Beta executa esse artifício proposicional, contudo, ele permanece inteiramente dentro da
moldura da história em quadrinhos. Ele permanece dentro da atitude natural.

Como poderia a reflexão filosófica ser iluscrada nesse cenário? O filósofo não poderia ser
representado dentro da história em quadrinhos. O filósofo é algo como a pessoa que está lendo a
história em quadrinhos, não como uma das personagens dentro dela. Ele fica “fora” da moldura da
atitude natural, fora dos desenhos da história em quadrinhos. O filósofo (empoleirado ou suspenso
na atitude fenomenológica) contempla os acontecimentos na história em quadrinhos (as mudanças
na atitude natural). Os personagens da história em quadrinhos, Alfa e Beta, executam todo tipo de
atos intencionais (percepções, imaginações, recordações), eles constituem objecos categoriais, e
conversam entre eles. Também se engajam na reflexão proposicional, quando transformam um
estado de coisas numa proposição ou num sentido e testam-no para a verdade.

A única coisa que os personagens da história em quadrinhos não podem fazer é mover-se fora das
molduras do desenho e ler a história em quadrinhos. Essa performance é lógica e metafisicamence
impossível. Eles não podem escapar da seção de histórias em quadrinhos do jornal. Para ilustrar a
analogia, a única coisa que eles não podem fazer é assumir uma perspectiva fenomenológica. Do
mesmo modo, a única coisa que o leitor da história em quadrinhos não pode fazer é mover-se para
dentro da história em quadrinhos e substituir as intenções e evidências dos personagens naquele
lugar. O filósofo, para ilustrar a analogia, não pode intervir na atitude natural. Com efeito, contudo,
tal intervenção da filosofia na atitude natural é o que Descartes tenta fazer com respeito a nossa
experiência perceptual e o cjue Hobbes tenta fazer com respeito a nossa vida política. Eles tentam
usar a filosofia como um substitutivo para nossa vida natural. Mais do que salvar a vida humana,
contudo, o racionalismo que eles introduzem ameaça arruiná-la, como daqui a pouco veremos no
capítulo final.

Porém, antes de abandonar essa analogia com a história em quadrinhos, devemos qualificá-la e
torná-la mais complexa. Como todas as analogias, ela claudica um pouco. É verdade que o filósofo
não pode ser simplesmente representado dentro da história em quadrinhos, e que ele não pode
intervir na história da história em quadrinhos como um dos seus personagens normais. Contudo, é
também verdade que ele não está totalmente destacado dessa história e de seus personagens. Ele é
a mesma pessoa que também vive na atitude natural; quando ele entra na atitude fenomenológica
ele não sai do mundo, como a imagem do leitor da história em quadrinhos pode sugerir. Nesse
aspecto, a diferença espacial entre o leitor e o documento sendo lido pode nos conduzir a erro
quando é transposta para a relação entre o filósofo e a atitude natural. O filósofo como tal
transcende o mundo, mas ele age assim enquanto permanece uma parte dele. A fenomenologia nos
fornece uma via imanente para sermos transcendentes. A filosofia não se apresenta como uma das
“ocupações” padrão dentro do mundo natural; mas tem uma presença pública de algum tipo,
presença que quase sempre deixa perplexos aqueles que não são filosóficos.

A importância das duas reflexões


A distinção entre as reflexões fenomenelógica e proposicional, a qual temos explorado neste
capítulo, é particularmente importante para trazer à luz a natureza do pensamento filosófico. Se
tivéssemos omitido o tratamento dessa distinção, e tivéssemos falado somente do contraste entre as
atitudes natural e fenomenológica, nossa exploração não teria enfrentado corajosamente uma das
mais comuns confusões a respeito da natureza da fenomenologia. A filosofia, frequentemente, não é
compreendida de uma forma suficientemente radical; ela é tomada por ser uma mera reflexão sobre,
e uma clarificação do, significado; isto é, é tomada por ser o que é feito da perspectiva da reflexão
proposicional.

A filosofia somente pode surgir após a reflexão proposicional se ter instalado. É um passo racional
além dessa reflexão. Na atitude natural, passamos por três níveis no movimento em direção à
verdade: primeiro, simplesmente percebemos e intencionamos as coisas; segundo, enunciamos as
coisas categorialmente, introduzindo a sintaxe em nossa experiência; e terceiro, refletimos
proposicionalmente sobre as coisas que temos enunciado e assim assumimos uma atitude crítica em
relação a elas. Todos os três níveis pertencem à atitude natural. Somente após ter passado por esses
três estágios, e especificamente somente após ter realizado a reflexão proposicional, podemos
entrar no pensamento filosófico. O pensamento crítico envolvido na reflexão proposicional, o esforço
por determinar a exatidão das proposições, deve já ter ocorrido se estamos nos movendo no
pensamento mais destacado que chamamos de filosofia. O “eu” expresso na filosofia pressupõe o
"Eu” expresso em frases como “Eu penso que esse é o caso”, ou “Eu sei que isso é verdade”.

A reflexão filosófica é mais do que apenas reflexão sobre a reflexão proposicional — ela se estende
sobre todas as intencionalidades e seus correla-tos objetivos —, mas ela somente pode ser iniciada
depois que a reflexão proposicional, com o cipo de verdade que ela permite, tenha tomado lugar. O
raciocínio crítico e proposicional é uma condição de possibilidade para o raciocínio filosófico.

Porque a reflexão proposicional tem de preceder a fenomenológica, não é surpresa que encontremos
dificuldade para distinguir uma da outra. Achamos difícil avançar suficientemente na nova dimensão
que a filosofia traz. Tendemos a pensar que a reflexão sobre o significado é a forma mais elevada de
análise reflexiva. Por essa razão, é essencial para nós delinear explicitamente a distinção entre
reflexão proposicional e reflexão fenomenológica, e distinguir o sentido do noema, se quisermos
afiar nossa compreensão do que a filosofia, como a ciência da verdade, é.
XIV. A FENOMENOLOGIA NO CONTEXTO HISTÓRICO PRESENTE
Agora iremos chegar a uma perspectiva final da fenomenologia olhando como ela se encaixa na cena
filosófica do presente. Perto do fim do capítulo XIII, observamos que Descartes e Hobbes tentam
substituir a atitude natural pela filosófica. Eles pensam que a filosofia pode não só clarificar, mas
também substituir o conhecimento próprio ao pensamento pré-filosófico. Essa crença no poder da
razão filosófica, junto com essa suspeita sobre outras formas de experiência, é típica da
modernidade. A fenomenologia compreende a filosofia muito diferentemente. Ela acredita que a
inteligência pré-filosófica poderia ser deixada intacta, pois tem sua própria excelência e verdade, e
que a filosofia contempla o pré-filosófico sem substituí-lo. Assim, enquanto a fenomenologia origina-
se dentro da filosofia moderna, também toma uma distância dela. Para mostrar como faz isso, vamos
começar com uma interpretação da modernidade.

Modernidade e pós-modernidade
A filosofia moderna tem dois principais componentes: filosofia política e epistemologia. Em ambos
esses componentes, a filosofia moderna definiu a si mesma, em suas origens, como uma revolução
contra o pensamento antigo e medieval. Maquiavel, no começo do século XVI, orgulhava-se de haver
iniciado novos métodos e modos na vida política, e Francis Bacon e Descartes, nos começos do
século XVII, declararam que estavam introduzindo novos modos de pensar a natureza e a mente
humana, modos que requeriam que abandonássemos nossa herança e nossas convicções do senso
comum e assumíssemos um novo método de dirigir nossas mentes na busca do conhecimento.

A nova política iniciada por Maquiavel e sistematizada por Hobbes não foi apenas uma inovação
teórica. Teve uma consequência prática, o estabelecimento do Estado moderno. O Estado moderno é
diferente das formas prévias de regras políticas. Em todas as formas pré-modernas, uma parte da
sociedade — quer um homem, os pouco ricos, os muito pobres, o grupo médio, ou os mais cultivados
— governava sobre o todo. Os governantes podiam exercer seu poder para o bem comum ou para
seu próprio benefício, mas em qualquer caso a comunidade política envolvia alguns seres humanos
governando outros. Até numa república, na qual se diz que as leis governam, os homens ainda
constituem as autoridades estabelecidas, porque tem de haver um número suficiente de cidadãos
dotados com a virtude política e a inteligência para permitir que as leis governem.

O Estado moderno é muito diferente disso. No Estado moderno, uma nova entidade é criada, o
soberano. O soberano não é um grupo de pessoas no corpo político. O soberano é um constructo,
não um desenvolvimento humano espontâneo ou uma forma natural de associação humana. É uma
invenção dos filósofos. E proposto como uma solução permanente ao problema político humano. A
introdução do soberano é para pôr um fim à luta humana interminável exercida por indivíduos e por
grupos, para governar. O conceito de soberania pretende racionalizar a vida política humana. Ele in
troduz uma estrutura impessoal, em contraste com as formas personaliza das de governo
encontradas na cidade antiga e medieval. A introdução do soberano, é a promessa, trará a paz civil.
A única exigência que o soberano faz é que todos os sujeitos (pois agora são sujeitos e não cidadãos)
renunciem a qualquer reivindicação à ação e ao discurso público. Eles serão protegidos pelo
soberano da agressão dos outros e lhes será permitido possuir suas próprias preferências e
confortos privados, mas todas as decisões públicas e o discurso devem ser deixados somente ao
soberano.

O Estado moderno, modelado pela ideia de soberania, pôs em prática sen método através da história
política e intelectual das últimas cinco centenas de anos. Encarnou-se primeiro nos monarcas
absolutos dos séculos XVII e XVIII. Então descartou esses monarcas e mostrou sua face mais
claramente na Revolução Francesa. Após seu germinar na sequência de Revolução na França do
século XIX, na Alemanha na obra de Bismarck, e nos Estados Unidos na Guerra Civil e suas
consequências, o Estado moderno apareceu de novo vividamente na Revolução Russa e no Estado
Soviético que se seguiu. A ideia de soberania permanece em nossas sociedíides políticas
contemporâneas, nas tendências que ainda existem de centralizar toda autoridade numa única
impessoal fonte de poder, um governo todo-poderoso que dissolve todas as outras formas de
autoridade social.

Além de estar corporificado nesses diversos modos, o Estado moderno passou por refinamentos
teóricos após Maquiavel e Hobbes. Ele encontrou seu manifesto final em Hegel, cuja formulação foi
adaptada por Karl Marx. Desde Hegel, o que temos tido é um impasse intelectual entre proponentes
da soberania e do Estado moderno e pensadores políticos que recordam a alternativa à soberania, as
formas políticas descritas pela teoria antiga e medieval. Há escritores como Alexis de Tocqueville,
que nos recordam de formas políticas mais primitivas; Leo Strauss, que joga os antigos e os
modernos uns contra os outros; e Michael Oakeshott, que tenta operar ajustes entre os conceitos
políticos antigos e modernos, com o ganho de juntar as vantagens enquanto exclui as desvantagens
de cada um. Pode ser dito, contudo, que a filosofia, política moderna terminou sua obra. Alcançou
sua conclusão no conceito e no estabelecimento político do Estado moderno; o qual é agora,
geralmente, considerado ser a única forma legítima de governo: o Estado moderno não precisa ser
justificado, e todo mundo concorda que a forma de um Estado moderno poderia ser instalada em
qualquer parte.

A fenomenologia nada tem a dizer diretamente sobre a dimensão política da modernidade. Alguns
dos escritos de Sartre e Merleau-Ponty são relacionados à política, mas são pouco mais do que
contribuições modestas à teoria socialista. A obra de Alfred Schultz é mais concernente ao social do
que a filosofia política. E impressionante como a fenomenologia está completamente destituída de
qualquer coisa em filosofia política. A fenomenologia tem muito a dizer, contudo, sobre outros
componentes da modernidade; a epistemologia e os métodos.

A modernidade envolveu não apenas uma nova concepção de vida política, mas também uma nova
concepção da mente. Nos escritos clássicos da filosofia moderna, nos é dito que a razão humana
deve tomar posse de si mesma. A razão não pode aceitar o que herda do passado ou dos outros. As
opiniões que são dadas a ela por outros, e até as verdades aparentes que os sentidos apresentam
para ela, são descaminhos. A razão deve aprender a conduzir a si mesma de acordo com os novos
procedimentos, os novos métodos que garantirão certeza e verdade. Todas as ciências devem ser
reconstruídas a partir de novos e melhores fundamentos. A razão deve até desenvolver um métodfí.
que permitirá testar nossas percepções sensíveis e tornar possível para nós distinguir as impressões
verdadeiras das impressões falsas constituídas em nossa sensibilidade.

Como o político, o componente epistemológico da modernidade também tem sua história: moveu-se
por entre o racionalismo de Descartes, Spinoza e Leibniz, o empirismo de Locke, Berkeley e Hume,
a filosofia crítica de Kant e seus seguidores, o idealismo de Fichte, Schelling e Hegel, e o positivismo
e o pragmatismo do pensamento dos séculos XIX e XX. Há uma diferença, contudo, naquilo em que a
epistemologia não chegou a termo, como a filosofia política. A despeito dos grandes êxitos das
ciências modernas, e a despeito dos esforços estrénuos de movimentos como inteligência arcificial e
ciência cognitiva, não há equivalente epistemológico do Estado moderno na posse inconteste da
esfera de ação. Como uma teoria do conhecimento e método, a modernidade está ainda inacabada, e
é para essa área de conhecimento do pensamento moderno que a fenomenologia dispõe a sua
contribuição.

Antes de consideramos a fenomenologia, contudo, devemos examinar mais um ponto de ambos os


componentes da modernidade, o político e o epistemológico. O que é comum à política e à
epistemologia modernas é que ambas insistem em que a mente é para ser compreendia como o
poder para governar. Na filosofia política, a mente, em Maquiavel e Hobbes, gera uma nova
entidade, o Estado soberano, o qual não é apresentado entre as formas mais espontâneas de
associação humana que surgiram na história. Desde então, as incertezas e tensões da competição
humana para governar estão para ser substituídas por um constructo trazido pela intuição filosófica.
Algo novo, algo trans-humano, o Leviatã, substitui as velhas autoridades conflitantes, e essa coisa
nova é a razão expressando a si mesma como imperando sobre os homens.

Ainda mais, em respeito ao conhecimento humano, a razão toma posse de si mesma e rege sobre sua
própria experiência gerando métodos de investigação e executando uma crítica de seus próprios
poderes. A mente estabelece a si mesma como a razão. A mente governa a si mesma e a seu poder
para conhecer. A mente não é concebida como constituída para a verdade das coisas, mas como
governando suas próprias atividades e gerando a verdade por seus próprios esforços. A mente não é
receptiva, mas criativa. Ela não aceita a si mesma como teieolqgicamente orientada para a verdade,
mas inventa a si mesma e constrói suas verdades por meio de metodologias críticas. Em ambos os
casos, portanto, na política como na ciência, a razão ou a mente é compreendida como dominante e
como autônoma. Essa é a maior diferença entre a filosofia da modernidade e as filosofias antiga e
medieval, nas quais a razão é compreendida como encontrando sua perfeição na manifestação das
coisas, no triunfo da objetividade e na consecução da verdade. Na filosofia pré-moderna, até a
excelência política está subordinada à verdade do ser que é presentado à vida teórica. O governo
está subordinado à verdade.

Durante os primeiros séculos de sua influência, a modernidade expressou a si mesma como


racionalismo. O nome dado a esse período de sua história e a esse estilo de pensar foi Iluminismo. A
modernidade prometeu uma sociedade política puramente racional e um desenvolvimento científico
seguro do conhecimento humano. Porém, mais recentemente, após as proclamações iniciais feitas
por Nietzsche, tornou-se mais e mais claro que no coração do projeto moderno não está o exercício
da razão a serviço do conhecimento, mas o exercício de uma vontade, vontade de governar, vontade
de poder. A medida que essa intuição torna-se mais e mais evidente, a modernidade se desvanece e
a pós-modernidade toma posse. A pós-modernidade não é uma rejeição da modernidade, mas o
florescimento do impulso mais profundo nela. Nesse momento de nossa vida acadêmica e cultural,
as ciências naturais ainda estão servindo ao projeto da modernidade clássica, mas as humanidades
têm se rendido total e completamente à pós-modernidade.

A resposta da fenomenologia
Como a fenomenologia se encaixa nesse desenvolvimento da filosofia moderna? Ela é uma
continuação do esforço racionalista na modernidade? Alguns dos caminhos e argumentos
encontrados em Husserl pareceriam indicar isso. Ou ela é uma contribuição à pós-modemidade;
como algumas das passagens em Heidegger, e sobretudo em Derrida, pareceriam indicar?

Poderíamos reivindicar que a fenomenologia rompe com a modernidade e permite uma restauração
das convicções que animaram a filosofia antiga e medieval. Como filosofia pré-moderna, a
fenomenologia compreende a razão como constituída para a verdade. Vê a mente humana como
ajustada em direção à evidência, para manifestar o modo como as coisas são. Além do mais, ela
valida essa visão da razão e da mente ao descrever, em detalhes convincentes, as atividades pelas
quais a mente alcança a verdade, junto com as limitações e obscuridades que acompanham essa
realização. Por causa de sua compreensão da razão e da verdade, a fenomenologia permite-nos a rea
— propriação da filosofia da Antiguidade e da Idade Média.

Isto signrfica que a fenomenologia simplesmente restaura o conhecimento antigo da filosofia e


abandona o projeto moderno? Ou que ela meramente faz dos antigos e dos modernos as duas
alternativas básicas do pensamento? Não; é mais. Ela responde positivamente às questões que
surgiram na modernidade. Delineando a filosofia moderna e também restaurando o conhecimento
antigo da razão, a fenomenologia vai além dos antigos e dos modernos. Por exemplo, ela lida com o
problema epistemológico moderno e com o lugar da ciência matemática na vida humana. Ela mostra
como a percepção não deveria ser entendida como uma barreira entre nós próprios e as coisas, e
como as coisas podem ser dadas em várias perspectivas e.ainda assim manter sua identidade;
examina a interação entre presença e ausência em todas as nossas experiências: e elucida as
intencionalidades pelas quais as ciências são constituídas fora do mundo vivido.

Mas, enquanto se dedica às inquietações da modernidade, a fenomenologia também se aperfeiçoa


no conhecimento antigo da ciência. Ela introduz o papel do ego, mostrando que o conhecimento
humano não é o trabalho de um intelecto agente separado dos seres humanos, mas a realização e
posse de alguém que pode dizer “Eu” e que pode assumir responsabilidade pelo que diz. Porque
reconhece o ego transcendental como uma dimensão dos seres humanos, a fenomenologia está apta
a introduzir uma dimensão histórica e hermenêutica no conhecimento humano. Faz assim, contudo,
sem submergir a verdade na subjetividade e nas circunstâncias históricas. Tendo tido de tratar com
o ceticismo moderno, a fenomenologia fornece uma. análise mais radical da experiência e da
intencionalidade do que a filosofia antiga o fez, bem como um tratamento mais explícito da
diferença entre filosofia e o pré-filosófico. A fenomenologia não é nem uma rebelião contra a
Antiguidade e a Idade Média nem uma rejeição da modernidade, mas uma restauração da
verdadeira vida filosófica, de uma maneira apropriada à nossa situação filosófica.

A fenomenologia não desenvolveu uma filosofia política, mas, porque vê a razão humana como
constituída para a verdade, ela pode dar uma contribuição importante para a filosofia política. Se a
mente humana encontra seu fim na evidência das coisas, então o poder político não pode ser o mais
alto bem para o homem. A política tem de estar subordinada à verdade das coisas, isto é, o poder
político tem de ser exercido de acordo com a natureza humana. O poder absoluto não provê a
máxima satisfação. O poder deve ser exercido de acordo com a excelência humana, e cambem deve
reconhecer que há uma vida mais elevada do que a sua própria. Essas verdades foram perdidas de
vista no pensamento político inaugurado por Maquiavel.

Se os seres humanos são reconhecidos como agentes da verdade, sua associação política deve
refletir essa dimensão de seu ser. Um sistema impessoal de soberania não pode substituir os
governantes humanos responsáveis e os cidadãos. As virtudes cívica e intelectual daqueles que
tomam o ofício público não podem ser negligenciadas; governar não é simplesmente uma questão de
procedimentos automáticos e processos eleitorais. Os problemas urgentes da educação cívica, da
estabilidade da família e da ordem social que surgiram em anos recentes mostram que os
ensinamentos da filosofia política antiga não estão ultrapassados em nosso tempo. Uma melhor
compreensão da responsabilidade humana, baseada no entendimento da razão como constituída
para a verdade, é extremamente necessária na educação dos cidadãos e dos homens públicos, se os
homens não estiverem destinados a tornar-se escravos de um Estado despótico.

O Estado moderno não é o mesmo que uma república, a sociedade política na qual as leis governam.
O soberano é um constructo deliberada-mente fabricado pela razão, ao passo que as leis são os
costumes herdados de uma comunidade, alguns dos quais se tornaram codificados em estatutos
explícitos; eles são as leis comuns, o modo de vida das pessoas. Mais básica de que os estatutos,
naturalmente, é a constituição da sociedade política, a qual determina os ofícios e as pessoas que
serão eleitas para assumi-los; isto é, determina quais serão os cidadãos. A república compreende
que os homens nasceram e foram educados em sociedades pré-políticas, nas famílias e tribos, e que
eles têm associações (amizades) que são pré-políticas. A soberania é muito menos controlada. Ela
reivindica relegar ou pôr de lado todas as outras autoridades e associações, que ela governa. Ela
reivindica estar apta a fazer humanos os homens. Ela é essencialmente totalitária.

Uma outra diferença entre a república e a soberania é que a república se configura em elementos de
muitas outras formas de governo: ela é feita de componentes democráticos, oligárquicos,
aristocráticos e componentes da realeza, e essa variedade dá a ela grande resistência tênsil. A
soberania, em contraste, é unívoca. Há apenas o único poder de um ou de um grupo que diz
representar todos os sujeitos. Porque é unívoca, a soberania não é adaptável às circunstâncias. Ela é
o que tem sido chamado de Estado universal ou homogêneo, a única forma de governo que é
presumida ser encontrada em qualquer lugar. Ela é puramente “racional”, mas racional no sentido
que a modernidade dá ao termo: uma expressão de razão metódica e calculista, ruão a razão que
evidencia o modo como as coisas são. A ruína moral_e social deixada para trás pelo colapso do
Estado soviético mostra quão efetivamente a soberania pode destruir as autoridades sociais que
tentam rivalizar seu poder.

As melhores sociedades políticas no mundo moderno, tais como a formada pela Constituição
Americana original, foram repúblicas. Elas são um governo das leis e são compostas de elementos
de muitas formas diferentes de governo: democrático, oligárquico, aristocrático e da realeza. Elas
combatem a centralização de forças que também tem se desenvolvido no mundo moderno. Na
medida em que elas permanecem repúblicas, elas tratam sua gente como cidadãos, não como
sujeitos, e consideram essencial educar a sua gente como cidadãos, não como sujeitos. Ser educado
como um cidadão é ser capaz de entrar no diálogo humano como um agente responsável da verdade.
A fenomenologia pode fortalecer e restaurar esse autoco-nhecimento cívico; essa é a contribuição
que ela pode oferecer à filosofia e à prática política contemporâneas.

O estudo da consciência e do pensamento humanos tem um valor que ultrapassa o da epistemologia.


Quando descrevemos a razão humana filosoficamente, nós provemos um autoconhecimento humano,
e esse conhecimento não está desconectado da filosofia política. O quadro mais sistemático do
Estado soberano é dado por Thomas Hobbes no Leviatã, uma obra que começa com uma teoria
mecânica do conhecimento. A conjunção entre política e epistemologia não é acidental. Se os seres
humanos têm de ser feitos sujeitos abjetos de um soberano, eles têm de compreender a si mesmos
de certo modo. Uma vez que a eles não será permitido agir no domínio público (somente o soberano
pode executar ações públicas), eles não devem tomar a si mesmos nem eõmo agentes morais nem
como agentes da verdade. Eles têm de compreender seu intelecto como um processo mecânico,
impessoal, não como um poder de revelação. Eles não podem compreender a si mesmos como
dativos de manifestação. O estado soberano e o subjetivismo moderno andam de mãos dadas. O
“predicamento egocêntrico” e a redução da mente ao cérebro, a abolição da verdade pública em
favor do relativismo privado não são apenas teorias epistemológicas, mas também predisposições
políticas. Se nos tornássemos persuadidos de que não entramos no jogo da verdade, veríamos a nós
próprios como jogadores solitários que podem agir só dentro de nossa vida interna. Não há jogo
público, mas somente fantasia privada, nem futebol ou beisebol, mas somente um tique-taque-toque
mental. A compreensão da razão humana como encaixotada dentro do cérebro, a-eompreensão que
serve ao Estado soberano, está muito espalhada em nossa cultura, mas ainda não é universal. Ela
tem a fraqueza de ser contraintui-tiva e autossolvente, como o pós-modemismo tem mostrado. Em
termos platônicos, o que é necessário é um novo ‘‘tropo musical”, que nos torne mais claramente
conscientes do que somos, e o papel político da filosofia é ajudar a tornar essa música possível.

A fenomenologia e a filosofia tomista


Já que estamos tentando definir a fenomenologia mostrando como ela se encaixa na situação
filosófica moderna, seria útil compará-la com a filosofia escolástica, e mais especificamente com a
mais proeminente representação do escolasticismo, o tomismo. O tomismo, à semelhança da
fenomenologia, proporciona uma alternativa para a modernidade e a pós-moderni-dade, mas as duas
alternativas diferem. O tomismo é uma pré-moderna ou não moderna forma de pensar. Suas raízes
repousam na Antiguidade e na Idade Média. Historicamente, corre em paralelo aos primeiros
desenvolvimentos do pensamento moderno, quando foi representado por escritores dos séculos XVI
e XVII como Cajetano (1468-1534), Suárez (1548-1617) e João de Santo Tomás (1589-1644). O
tomismo desapareceu um pouco durante os dois séculos seguintes, mas após o renascimento
motivado pelo papa Leão XIII, com sua encíclica Aetemi Patris (1879), ele tornou-se presença
conspícua no pensamento dos séculos XIX e XX, primariamente, mas não exclusivamente nos
círculos intelectuais e na educação católica romana. Foi representado por muitos estudiosos e
comentadores, mas também por pensadores independentes como Jacques Maritain (1882-1973),
Etienne Gilson (1884-1978) e Yves-R. Simon (1903-1961). Sua presença foi muito diminuída em
consequência do Concílio Vaticano II. Além do mais, a filosofia neo-escolástica de Franz Brentano
exerceu uma influência significativa em Husserl, assim existiu alguma continuidade entre o
pensamento tomista e os primeiros estágios da fenomenologia.

O tomismo partilha com a fenomenologia a convicção de que a razão humana é constituída para a
verdade, mas há uma diferença importante entre as duas tradições. O tomismo desenvolveu sua
filosofia dentro do contexto da fé e da revelação cristãs. Ele opera dentro das dimensões intelectuais
abertas por Santo Anselmo, que provê um tipo de “dedução teológica” da possibilidade da filosofia,
análogo à “dedução transcendental” de Kant de nosso poder cognitivo. O primeiro passo que tinha
de ser dado na filosofia medieval era mostrar que a razão tinha seu próprio domínio, sua própria
esfera de operação e que não estava absorvida pela fé. Santo Anselmo e os escolásticos “arranjaram
um lugar” para a razão dentro da fé. Eles sabiam da filosofia porque a encontraram entre os antigos,
mas sua própria apropriação dela tinha começado dentro da revelação. Entre as grandes realizações
da escolástica estava a distinção entre fé e razão e entre graça e natureza. Os pensadores
medievais, e Santo Tomás de Aquino em particular, ensinaram que as evidências naturais têm sua
própria integridade, e que a razão pode alcançar a verdade por meio de seus próprios poderes. Esse
ensinamento, contudo, tinha de ser justificado de dentro da fé bíblica.

Na filosofia antiga, não era necessária essa justificação teológica, porque a filosofia não tinha
encontrado seu lugar dentro da revelação divina. Ela localizava a si mesma dentro das opiniões
herdadas das cidades gregas. Daí, a filosofia compreendia a si mesma como a culminação natural do
pensamento humano. Os homens tinham opiniões sobre o modo como as coisas são, eles eram aptos
a adquirir algum conhecimento científico, eles tinham pontos de vista sobre o que era certo e justo
fazer, eles fizeram asserções sobre os deuses; além desses exercícios da mente, eles começaram a
pensar sobre o todo e sobre eles mesmos como manifestando o todo e as partes nele. Quer no
estudo pré-socrático da natureza ou na investigação socrática do homem e da ordem política, eles
começaram a exercitar o pensamento filosófico.

A fenomenologia nos oferece esse tipo de compreensão da filosofia como uma realização humana
natural. A fenomenologia não tenta derivar a filosofia de dentro da fé religiosa. Antes, toma a
filosofia simplesmente como uma excelência humana natural, excelência que completa o exercício
pré-filosófico da razão. Desse modo, a fenomenologia inicia a filosofia de uma maneira diferente da
do tomismo, mas de um modo que complementa e não contradiz a abordagem tomista. O tomismo
oferece um modo legítimo de entrar na filosofia, mas não é o único modo. Tomando posse da
filosofia de dentro da fé, ele não deforma a filosofia, mas dá-lhe um olhar e uma percepção distintas,
uma distinta apresentação. Outra via para entrar na filosofia, o caminho mais antigo, é começar
dentro da atitude natural e distinguir dela a atitude filosófica. Certamente, tomar a rota oferecida
pela fenomenologia pode ser benéfico para o tomismo: torna possível mostrar como o contexto
assumido pelo tomismo é ele mesmo distinto do todo natural que chamamos o mundo. A
fenomenologia pode ajudar a filosofia tomista e a teologia a compreender suas próprias origens.

A fenomenologia e a experiência humana


A fenomenologia escapa do voluntarismo da pós-modernidade porque evita o racionalismo aparente
da modernidade. E mais moderada do que tal racionalismo. Reconhece a validade da experiência e
do pensamento pré-fi-losóficos e não tenta substituí-los. Mesmo assim, pode parecer excessivo dizer,
como temos declarado desde o início, que a fenomenologia é indiferente à verdade ou à falsidade
encontradas na atitude natural. A fenomenologia nada faz da experiência que vem antes dela?
Apenas ocupa-se do anterior e reflete para seu próprio benefício?

A fenomenologia pode esclarecer as intencionalidades que operam na atitude natural. Pode mostrar,
por exemplo, como a lógica difere da matemática, e como ambas diferem da ciência natural; ela
pode mostrar o que cada uma dessas formas de intencionalidade busca, que evidências visam. A
fenomenologia auxilia a experiência pré-filosófica no esclarecimento do que essa experiência revela
e como se encaixa com outras formas de evidência. Agindo assim, contudo, a fenomenologia ou a
filosofia não apresenta um novo método para o que já estava lá. Tudo que ela faz é distinguir mais
agudamente as intenções que já estabeleceram sua própria integridade. Ela remove as confusões
nessas intenções e resolve as ambiguidades na fala que as expressa.

A fenomenologia também ajuda o pensamento pré-filosófico porque esse pensamento


inevitavelmente vai além de si mesmo e tenta formular uma opinião sobre o todo. Toda ciência
particular, bem como o senso comum humano, expressa uma opinião sobre o todo. Formula essa
opinião, contudo, em termos de sua própria visão parcial. Os físicos pensam o todo como — um todo
físico, os políticos pensam nele como político, os psicólogos pensam nele como psicológico. Cada
visão parcial estende seu próprio pseudópode filosófico. Em contraste, a fenomenologia, como toda
verdadeira filosofia, vê as diferenças entre uma visão parcial do todo e uma visão que é apropriada
ao todo. Evita a positividade das ciências particulares. Em vez de se precipitar na frente às cegas,
sabe que o pensamento sobre o todo requer sutileza, reserva, nuance, analogia e metáfora. Faz
distinções mais básicas do que fazem as ciências particulares. É sensível às transformações da
linguagem que devem ocorrer quando falamos sobre o contexto mais amplo.

A fenomenologia assim ajuda as ciências particulares e a atitude natural por clarificar sua
parcialidade, por trazer à luz o que está ausente para elas, e por mostrar que o que elas identificam
pode ser visto desde perspectivas que elas não possuem. Não duvida ou rejeita,-mas esclarece e
restaura. Esclarecendo a parcialidade de outros modos de pensar, ela formula seu próprio sentido
do todo. Falando do todo ela também chama o si à mente, e, assim, opõe o autoesquecimento das
formas modernas da ciência e a au-tonegação da pós-modernidade. A fenomenologia ajuda-nos a
pensar sobre os primeiros e últimos fins e ajuda-nos a conhecer a nós mesmos.

APÊNDICE: A FENOMENOLOGIA NOS ÚLTIMOS CEM ANOS

O começo do movimento: Husserl


O movimento fenomenológico situa-se muito claramente, quase exatamente, no século XX. A obra
geralmente considerada o primeiro trabalho verdadeiramente fenomenológico, As investigações
lógicas de Edmund Husserl, apareceu em duas partes nos anos 1900 e 1901; assim, o novo
movimento começou precisamente com a aurora do século. Além disso, essa data foi literalmente um
novo começo, porque Husserl era um filósofo verdadeiramente original. Ele não pode ser
considerado o continuador de uma tradição que tomou forma antes dele; mesmo Martin Heidegger,
como competente filósofo que era, pode ser compreendido somente na tradição aberta por Husserl,
mas Husserl não teve qualquer predecessor para eclipsá-lo. Ele valeu-se da obra de Franz Brentano
e do psicólogo Cari Stumpf, mas excedeu grandemente a ambos. Sua teoria da intencionalidade, por
exemplo, é muito superior à de Brentano. A obra de Husserl escri ta antes de 1900 (sua Filosofia da
aritmética, que apareceu em 1891, e alguns ensaios que se seguiram ao livro), embora prenuncie
alguns de seus pensamentos posteriores, é justamente considerada pré-fenomenológica, do mesmo
modo que os escritos de Kant antes da Dissertação inaugural de 1770 são considerados pré-críticos.
Assim, situados que estamos mais de cem anos depois, já podemos recordar esse movimento
filosófico que começou no ano de 1900 e tentar examiná-lo.

Husserl foi Privatdozent na Universidade de Halle por quatorze anos quando, por causa do sucesso
das Investigações lógicas, foi convidado a tornar-se professor em Göttingen. Ele esteve em
Göttingen de 1901 a 1916, de onde se mudou para Friburgo, onde ensinou de 1916 até sua
aposentadoria em 1928. Ele permaneceu em Friburgo outros dez anos até a sua morte em 1938, aos
79 anos. Husserl publicou somente seis livros durante toda a sua vida: Filosofia da aritmética
(1891), Aí investigações lógicas (1900-1901), Ideias 1(1913), Lições de consciência do tempo interno
(1928), Lógica formal e transcendental (1929) e Meditações cartesianas (1931), a qual foi publicada
primeiro na França. Contudo, compôs milhares de páginas de manuscritos: lições de curso, esboços
e meditações filosóficas, comentários, rascunhos para possíveis publicações; ele filosofou por
escrito. Todos esses materiais foram coletados no Husserl Archives, e muitos volumes foram
publicados postumamente na série Hus-serliana, que conta já 29 títulos e ainda está sendo
publicada. Um total de aproximadamente quarenta volumes está planejado.

Elisabeth Ströker (em comunicação pessoal) observou-que Husserl sempre preservou algo de um
cientista natural mesmo quando se voltou para a filosofia; ele começou seus estudos e escreveu sua
tese de doutorado em matemática, e também estudou astronomia e psicologia antes de entrar para a
filosofia. Como cientista natural, diz Ströker, ele estava mais inclinado ao experimento do que à
monografia, e muitas de suas composições filosóficas foram mais uma espécie de estudos empíricos
ou experimentos. Até seus livros mais extensos se assemelhavam mais a coleções de pequenos
estudos e menos a composições arquitetonicamente estruturadas.

Por meio de seus ensinamentos e escritos, Husserl estimulou o crescimento de diversas áreas de
conhecimento da fenomenologia durante toda a sua vida. Um outro importante modo no qual ele
exerceu influência foi por meio de seu trabalho editorial no Jabrbuch fiür Pbilosopbie und
pbãnomeno-logsche Forschung, que ele fundou em 1913. Muitas monografias alemãs importantes
apareceram nesse anuário, incluindo Ser e tempo, de Heidegger, Ideias I e Lógica formal e
transcendental, do próprio Husserl, Formalismcma ética, de Max Scheler, e obras de Adolf Reinach,
Alexander Pfánder, Oskar Becker e Moritz Geiger. Um total de onze volumes, alguns dos quais
contendo mais do que uma obra, foram publicados nessa série entre 1913 e 1930. A última foi um
estudo de Eugen Fink sob o título Vergegenwàrtigung und Bild (Representação e imagem).

Dois grupos filosóficos foram influenciados por Husserl durante seu período de ensino, um em
Gõttingen e um em Munique. O de Munique surgiu espontaneamente através da leitura das
Investigações lógicas. Na Universidade de Munique, estudantes de Theodor Lipps organizaram um
grupo filosófico

■por volta da virada do século XIX; o grupo, incluindo figuras como Alexan-der Pfãnder e Johannes
Daubert no início, e mais tarde Adolf Reinach, The-odor Conrad, Hedwig Conrad-Martius, Moritz
Geiger, Dietrich Von Hilde-brand e Max Scheler, foi influenciado pelas obras escritas de Husserl e
gradualmente tornou-se um centro independente de fenomenologia. Membros encontravam-se
frequentemente com Husserl em Gõttingen, o convidaram para lecionar em Munique, e alguns se
transferiram para Gõttingen para estudar com ele. O que interessou os filósofos de Munique foi a
superação de Husserl do psicologismo e sua restauração do realismo na filosofia. Eles repudiaram
seu desenvolvimento posterior de uma filosofia transcendental, contudo, pensando ser uma recaída
no idealismo, e pensaram seus próprios trabalhos como uma fenomenologia sem a redução. Em
Gõttingen, subsequentemente, um outro grupo foi formado. Alguns de seus membros vieram de
Munique, tais como Reinach, Daubert, Conrad, Conrad-Martius e Von Hildebrand, e a eles se
juntaram figuras como Alexandre Koyré e Jean Héring. Roman Ingarden e Edith Stein se tornaram
membros desse grupo e mais tarde foram com Husserl para Friburgo.

Quando Husserl mudou para a Universidade de Friburgo em 1916, um círculo não formal de
fenomenologia foi estabelecido ali, mas muitas figuras proeminentes trabalharam com ele: Stein,
Ingarden, Fink, Ludwig Landgrebe e especialmente Martin Heidegger. Outros que foram
influenciados por ele enquanto estudaram em outra parte nos anos 1920 foram Jacob Klein e Hans-
Georg Gadamer, que estava em Marburgo e foi mais diretamente influenciado por Heidegger.

O segundo estágio: Husserl, Heidegger e Scheler

Durante os anos 1920 o movimento filosófico de Husserl, como um fenômeno cultural, foi de certa
forma tirado do caminho pelo aparecimento de Martin Heidegger na cena acadêmica e intelectual.
Heidegger causou uma tremenda impressão no mundo filosófico alemão e roubou o cetro de
Husserl. Husserl e Heidegger formam um dos grandes pares de pensadores na história da filosofia,
e para compreender seu relacionamento vamos voltar alguns anos atrás, até 1907, quando
Heidegger leu o livro de Brentano sobre os muitos sentidos do ser em Aristóteles. Dois anos mais
tarde, como estudante em Friburgo, ele leu o Investigações lógicas de Husserl. Completou sua
dissertação de doutorado sob a orientação do neokantiano Heinrich

Rickert em 1913, escreveu sua habilitação em 1915, e então começou a ensinar em Friburgo,
justamente quando Husserl também_chegava lá. Como -jovem professor, Heidegger lecionou
filósofos gregos e fenomenologia, e também filosofia da religião. Ele foi convidado a lecionar em
Marburgo e deixou Friburgo em 1923. No inverno de 1923-24 compôs o primeiro rascunho de Ser e
tempò, e começou a lecionar em Marburgo em 1924. Ser e tempo foi publicado em 1927. Heidegger
foi convidado a suceder Husserl em Friburgo na aposentadoria deste em 1928. Heidegger
permaneceu em Marburgo por quatro anos, de 1924 a 1928, mas suas lições, tanto lá quanto antes
em Friburgo, já o haviam tornado famoso e revelado sua própria posição filosófica independente.

Heidegger leu Aristóteles aos 17 anos, e leu o Investigações lógicas de Husserl aos 19 anos. Foi a
combinação dessas düas fontes que mais profundamente moldaram-no filosoficamente. Em Ser e
tempo (§ 7) ele declara que o método de sua análise será fenomenológico, e provê uma explanação
lúcida do que significa a fenomenologia, mas a despeito da influência que Husserl exerceu sobre ele
há um número de diferenças óbvias entre os dois filósofos.

Primeiro, Heidegger formula sua tarefa em termos clássicos e mostra um grande conhecimento da
história da filosofia. Husserl foi um matemático que veio para a filosofia, enquanto Heidegger foi
educado como filósofo desde o começo. Ser e tempo cita fontes como Aristóteles, Agostinho, Santo
Tomás, Suárez, Descartes, Kant e outros filósofos e teólogos, bem como o livro do Gênesis, Calvino,
Zuínglio e Esopo, e coloca como sua meta o rejuvenescimento da questão do ser. Heidegger estava
apto a fazer uso daquilo Husserl realizou por aplicá-lo às questões filosóficas mais clássicas. Ele era
mais apto de que Husserl ao uso do vocabulário filosófico clássico.

Segundo, Husserl é muito mais um racionalista no estilo e no conteúdo de sua obra, enquanto o
estilo e o conteúdo dos escritos e ensinamentos de Heidegger engajam o leitor e põem questões
existenciais para ele. Isso é bom e mau ao mesmo tempo. E bom naquilo que traz à luz
explicitamente o fato de que a filosofia não é meramente uma especulação indiferente e
despreocupada, mas um modo de vida e um grande benefício para aqueles que a praticam. Contudo,
é mau porque, perseguindo seu projeto filosófico, Heidegger não distingue adequadamente vida
teórica de vida prática, filosofia de prudência; também não distingue claramente vida teórica de
religião. Ele quis ser um profeta e líder moral tanto quanto um pensador, e a oscilação entre essas
formas de vida confundiu sua própria obra e afetou o pensamento daqueles que foram influenciados
por ele. O propósito principal da análise de Heidegger

do ser-para-a-morte, ouu da ansiedade, ou o da autenticidade, não é primariamente nos dar


fundamentos para a aflição ou nos fazer fervorosos da vida ou obter o nosso voto; mais
propriamente, ele está usando esses fenômenos como abordagens à questão do ser. Eles têm urna
função analítica, não exor-tativa. São para mostrar que a questão do ser é descoberta não só na
metafísica especulativa, mas em todas as variedades da existência humana. Contudo, mesmo nos
próprios escritos de Heidegger, o propósito analítico mistura-se com uma exortação religiosa e
moral. Há algo de profético neles. Alguém pode ser um profeta, esperando a nova vinda dos deuses,
e alguém pode ser um filósofo, mas é enganoso tentar ser ambos ao mesmo tempo.

Um outro-modo de expressar essa diferença entre Husserl e Heidegger é dizer que Husserl começou
com o impulso de um cientista e matemático e o transformou em filosofia, enquanto Heidegger
começou com o impulso religioso e o misturou num impulso filosófico. Husserl, o racionalista,
pensou a si mesmo como um cristão livre, não doutrinal e não dogmático, mas usou-as categorias
religiosas muito frugalmente em sua obra. Ele era aplicado na filosofia como uma ciência rigorosa.
Ele respeitava a religião, mas estava relativamente distanciado dela. Heidegger, em contraste,
pareceu apresentar sua filosofia como uma resolução dos problemas religiosos. Foi notado que
vários seguidores de Husserl converteram-se ao catolicismo ou ao protestantismo; isso ocorreu não
porque Husserl encorajou essa mudança (de fato, pareceu um tanto embaraçoso para ele), mas
porque sua obra restaura a respeitabilidade a vários domínios da experiência e assim permite às
pessoas cultivar seu próprio desenvolvimento religioso sem obstáculo. Essas conversões não foram
comuns entre os seguidores de Heidegger, contudo, e poderíamos sugerir que no contexto humano
que Heidegger formou, o antagônico de uma conversão seria mais plausível para tomar lugar. As
pessoas estariam inclinadas a dissuadir da fé religiosa pela filosofia como um modo -de lidar com o
impulso religioso. As questões de moralidade, autenticidade, determinação, hermenêutica da
existência humana, temporalidade e eternidade seriam tratadas pela análise e exortação filosófica
melhor do que pela dedicação religiosa em sua forma tradicional. A resposta filosófica seria até
tomada como a mais autêntica das duas. Ninguém tentou interpretar o Novo Testamento em
categorias husserlianas, mas Rudolf Bultmann tentou fazê-lo com categorias de Heidegger, e alguém
poderia sustentar que outros fizeram algo similar com respeito à crença católica.

O que foi em Husserl que mais influenciou Heidegger? Poderíamos sugerir que foi o fato de que em
Husserl o cartesianismo ou o problema epistemológico moderno foi dissolvido e superado. A ideia de
uma consciência-de-si solitária, enclausurada, consciência somente de si mesma e de suas sensações
e seus pensamentos, foi descartada pelo conceito de intencionalidade de Husserl. Na verdade, o
problema epistemológico é ridicularizado em Sere tempo (§ 13). Nós experienciamos e percebemos
as coisas, não apenas as manifestações ou impactos ou impressões que as coisas nos causam. As
coisas manifestam-se para nós por meio de uma multiplicidade de presentações. Husserl apresentou
esse realismo não só para indicar a autocontradição da posição cartesiana e lockiana, do modo das
ideias, mas também para operar a análise descritiva detalhada das várias formas de
intencionalidade, análise que provou a si mesma ern virtude de sua precisão e evidência. Não se
prova o realismo — como se poderia fazê-lo? — se o expõe.

Mais particularmente, essa ruptura na doutrina da intencionalidade expressou a si mesma em duas


doutrinas mais particulares de Husserl: primeiro, sua análise da enunciação categorial, e segundo
sua insistência de que nós verdadeiramente intencionamos as coisas em sua ausência. Ambos esses
ensinamentos estão vividamente presentes no primeiro Heidegger. Em sua doutrina da
categorialidade, Husserl mostra que quando enunciamos as coisas, quando julgamos ou
relacionamos ou compomos ou estruturamos as coisas, não fazemos meramente arranjos de nossos
conceitos internos ou ideias ou impressões; mais propriamente, enunciamos as coisas no mundo.
Revelamos partes dentro de todos. Nossos juízos, por exemplo, não são composições internas que
tentamos jogar contra algum tipo de mundo “externo”; eles são, em sua forma mais elementar, a
enunciação assertiva das coisas que experienciamos; nós enunciamos a presença das coisas, da
maneira na qual elas são dadas para nós. Assim, a doutrina da intencionalidade de Husserl deveria
ser tomada somente com respeito à percepção, na qual dizemos que as coisas que percebemos
fazem-se imediatamente presentes em si mesmas para nós. Deveria ser tomada especialmente em
conta, no que respeita à enunciação categorial, que ela é construída na percepção. A doutrina da
presentação categorial em Husserl, como dada no sexto capítulo de Investigações lógeas, foi crucial
para a formulação de Heidegger da questão do ser.

Mais ainda, por meio da doutrina da intencionalidade, Husserl está apto a dizer que nós atualmente
intencionamos as coisas que estão ausentes. Não é o caso de que sempre só lidamos com presenças
imediatas; não é o caso de que quando nos referimos a algo ausente estamos realmente falando
sobre uma imagem ou um conceito que temos da coisa. O pensamento humano é tal que transcende
o presente e intenciona o ausente; o ausente, o que não está aí, é dado para nós como tal. Há, além
do mais, diferentes tipos de ausência, correspondendo aos diferentes-tipos de intenções que nossas
intencionalidades podem assumir: a ausência do outro lado das coisas que percebemos, a ausência
das coisas intencionadas somente por meio das palavras, a ausência das coisas sendo recordadas, a
ausência das coisas somente vislumbradas, a ausência daqueles que estão distantes como opostas à
ausência daqueles que morreram, a ausência do passado e a do futuro, a ausência do divino. Um
outro importante tipo de ausência que Husserl descreveu é a da vaguidade, no qual as coisas são
dadas para nós, mas dadas somente indistintamente, com a necessidade de posterior enunciação e
posse. Esse tema da ausência foi, cremos, um estímulo à ideia de Heidegger .de desocultamento
como incluído na verdade.

Heidegger viu as possibilidades filosóficas da descoberta husserliana da intencionalidade e


explorou-a com acréscimos. Outros filósofos têm sido impressionados pelo que Husserl tornou
acessível. Os membros das escolas de Munique e Gõttingen, por exemplo, se regozijaram no
“realismo” que se tornou possível pelas descobertas de Husserl. Nenhum deles, contudo, teve a
profundidade, a originalidade e a energia filosófica de Heidegger, ou o charme sedutor de sua
tonalidade religiosa.

Gostaríamos de mencionar mais uma diferença entre Heidegger e Husserl. Husserl é muito restrito
em seu uso da história da filosofia. Ele provê visões ocasionais dessa história, e usa Descartes,
Galileu, Locke, Hume e Kant, mas o faz com um conhecimento obviamente limitado desses autores.
Ele faz alguns comentários incisivos sobre eles e normalmente alcança o coração das questões de
suas filosofias, mas tem um conhecimento muito simplificado, livresco, de suas obras. Por outro
lado, o conteúdo do que Husserl propôs para a análise filosófica é rico e diversificado. Ele torna
acessíveis questões de estrutura da linguagem, percepção, tempo em suas várias formas, memória,
antecipação, coisas vividas, matemática, números, causalidade e assim por diante. Ele propôs
muitas regiões do ser como objetos de análise. Husserl, então, é simplificado demais em seu
tratamento dos autores, mas rico em seu tratamento dos tópicos especulativos.

Heidegger é o oposto disso. Ele parece interessado em um único problema, a questão do ser e suas
implicações. E verdade que em Ser e tempo ele introduz certo número do que poderia ser tomado
como problemas “regionais”, tais como instrumentalidade e fala e morte, mas todos eles estão
subordinados à única questão do ser. Ele não se estende diante de nós em várias tarefas regionais,
vários domínios a ser analisados; ele é filosoficamente um monomaníaco sempre no caminho dos
primeiros princípios, enquanto Husserl move-se para os primeiros princípios e então gasta muito
tempo movendo-se deles e encarnando-os nas várias coisas que experienciamos. Com respeito ao
conteúdo, Husserl é-variegado enquanto Heidegger parece simplificado demais.

Com respeito aos autores, contudo, Heidegger é positivamente exuberante em sua variedade. Ele
debate em grande detalhe e interpretações sofisticadas os pré-socráticos, Platão, Aristóteles,
pensadores medievais, Leibniz, Kant, Hegel, Kierkegaard e Nietzsche, bem como poetas tais como
Hõlderlin e Rilke e escritores religiosos como Angelus Silesius e Lutero. Todos esses escritores,
contudo, são examinados com respeito a como a questão do ser é levantada neles. Gostaríamos
também de mencionar a importância de Heidegger para uma nova abordagem da filosofia grega,
para a interpretação dos pré-socráticos, de Platão e de Aristóteles, especialmente na Alemanha e na
França durante o rico período dos últimos cem anos.

Antes de encerrar este exame da fase alemã da fenomenologia, deveríamos dizer uma palavra sobre
Max Scheler. Scheler não pode ser colocado claramente dentro do movimento fenomenológico como
Husserl e Heidegger; ele foi um pensador independente que às vezes desenvolveu e comentou os
temas fenomenológicos, e em outras criticou e distanciou a si dessa forma de filosofia.. O que lhe faz
parecer ser um fenomenólogo é que ele dá atenção a problemas específicos concretos,
especialmente problemas humanos tais como religião, simpatia, amor, ódio, emoções e valores
morais, e analisa-os em detalhe. Sua afiliação marginal com a fenomenologia ajudou a popularizar o
movimento, mas ele também se moveu livremente fora dele. Após uma vida dramática e turbulenta,
Scheler morreu em 1928, aos 54 anos.

Seria uma exposição suavizada dizer que os acontecimentos políticos e históricos intrometeram-se
no movimento fenomenológico nos anos 1930. Com a ascensão ao poder dos nacional-socialistas,
Heidegger tornou-se envolvido com o partido e agiu e falou consequentemente como reitor da
Universidade de Friburgo em 1933. Husserl, em contraste, sofreu muitas indignidades e perigos
antes de sua morte em 1938. Os acontecimentos entre as nações europeias levaram a uma profunda
separação entre, de um lado, a filosofia alemã e continental e, do outro, o mundo britânico e
americano.

Justamente na deflagração da guerra, o franciscano Herinan Leo Van Breda, de Louvain, chegou a
Friburgo para estudar fenomenologia e, vendo a situação ali, agiu para salvar a biblioteca e os
materiais escritos por Husserl, remetendo-os para Louvain no outono de 1938, uns seis meses
depois da morte de Husserl. Ele também resgatou e protegeu a viúva de Husserl, Malvine, que foi
abrigada num convento em Louvain enquanto a guerra durou. A ação de Van Breda levou ao
estabelecimento dos Husserl Archives na Universidade de Louvain após a guerra. Os Archives se
tornaram um importante centro internacional de edição e publicação dos escritos de Husserl e para
a pesquisa de seu pensamento. Arquivos afiliados foram mais tarde estabelecidos em Cologne,
Friburgo, Paris e New York.

A fenomenologia na França
Depois da Alemanha, foi certamente o ramo francês o de maior relevância para o movimento
fenomenológico. Emmanuel Lévinas estudou.eom Husserl e Heidegger nos anos 1920, escreveu uma
tese sobre o conceito de intuição no pensamento de Husserl, publicada em 1930, e cotraduziu
Meditações cartesianas, que apareceu em 1931.

Jean-Paul Sartre (1905-1980) passou dois anos na Alemanha (1933-35), em Berlim e Friburgo. Seus
primeiros trabalhos mostram a forte influência de Husserl, mas transformada num humanismo
existencialista. De fato, muitos dos primeiros trabalhos de Sartre são excelentes análises fenome-
nológicas que desenvolveram temas importantes em Husserl. Dignos de menção são, especialmente,
A imaginação (1936), “A transcendência do ego” (1936), Esboço de uma teoria das emoções (1939),
O imaginário (1940) e O ser e o nada (1943). O que surpreende quem leia esses trabalhos é o quanto
Sartre compreendeu o conceito de intencionalidade e viu seu potencial filosófico, e como
efetivamente usou o elemento da ausência como um tema filosófico, tanto em suas descrições dos
vários tipos de experiência humana como em suas análises do ego. A deferência de Sartre por
Husserl certamente ajudou muitíssimo a tornar acessível e interessar a um público mais amplo após
a guerra o pensamento deste.

Em particular, Sartre tem descrições excelentes de como realmente percebemos ou experienciamos


o não ser, a ausência das coisas; a negação não é meramente uma característica de nossos juízos,
mas é dada na experiência intuitiva que precede o juízo. O poder de transformar das várias
emoções, bem como o movimento vigoroso e a projeção da imaginação, são descritos de um modo
que complementa as próprias descrições de Husserl. Sartre fala da imaginação, por exemplo, como
“percepção renascente” e descreve a consciência pré-reflexiva em grande detalhe. Ele também dá
ênfase ao ser agente (actirtgself), mostrando a distinção entre possibilidades abstratas e
possibilidades que estão aí para um agente como a sua própria, aquelas que não poderiam
acontecer sem sua própria presença na situação. Ele descreve a diferença entre facticidade e
transcendência e fornece uma análise notável do determinismo como uma forma de evitar as
ansiedades que a liberdade traz. Seu estilo é fluido e engajado.

Contudo, Sartre conscientemente incorporou temas fenomenológicos em seu próprio projeto


filosófico de humanismo existencial, o qual envolveu elementos de muitas outras fontes,
especialmente Descartes, Hegel e Marx. Ele até criticou Husserl, em O ser e o nada, por uma
espécie de timidez filosófica; ele disse que Husserl restringiu-se à análise neutra e evitou-o
cometimento ontológico e existencial (“ele permaneceu medrosamente [craintivement] no-nível da
descrição funcional”). Acreditamos, incidentalmente, que Sartre interpreta mal Husserl no conceito
de noema^da natureza da manifestação quando ele declara que o noema é o mesmo que o lekton
estoico e quando ele afirma que Husserl permaneceu um fenomenalista-mais do que um fe-
nomenólogo, sempre titubeando à beira do abismo do idealismo kantiano.

O contraste radical de Sartre entre o “em si” e o “para si” negligencia distinções intermediárias que
deveriam ser respeitadas, tais como aquelas que ocorrem na consciência animal. Em particular,
quando fala do fenômeno do nada, le néant, como sendo fundado na consciência humana, ele
enfatiza assim a diferença e a diversidade como para omitir elementos da identidade que sempre
vêm juntos com esses negativos. Sua descrição do le rien como permitindo ao ego tornar-se alienado
para si mesmo na consciência antecipa a introdução de Derrida da différance e “traços”, mas ambos
os pensadores franceses parecem negligenciar a correspondente similaridade e identidade que
Husserl reconheceria nesses fenômenos. Sartre fez uso da fenomenologia dentro de uma filosofia
que não era somente analítica, mas também exorta-tiva, um tipo de humanismo dramático, e nesses
-escritos retóricos alguém sempre enfatiza alguns aspectos das coisas para negligenciar outros.

O desenvolvimento de Maurice Merleau-Ponty (1908-1961) seguiu-se uns poucos anos depois do de


Sartre. Merleau-Ponty nunca estudou na Alemanha, mas entre outras influências em seus estudos
ele foi ajudado na sua compreensão da fenomenologia e da psicologia Gestalt nos primeiros anos da
década de 1930 por Aron Gurwitsch, que tinha escapado da Alemanha e ensinava em Paris antes de
ir para os Estados Unidos, onde veio a ser uma figura importante representando a fenomenologia na
New School for Social Research nos anos 1960 e 1970. Os primeiros e principais escritos de
Merleau-Ponty, e talvez os mais duradouros, foram A estrutura do comportamento (1942) e
Fenomenologia da percepção (1945). Ambos constituem críticas à psicologia positivista. Merleau-
Ponty salienta o pré-reflexivo, o pré-predi-cativo, o perceptual, o temporal, o corpo vivido e o mundo-
da-vida. A riqueza e a complexidade de suas descrições equiparam-se à qualidade dos trabalhos de
Sartre e permanecem como importantes realizações fenomenológicas. Merleau-Ponty interessou-se
principalmente pelos últimos trabalhos de Husserl e fez uso de materiais inéditos dos Husserl
Archives. Talvez pela sua crítica do positivismo, mas também pela excelência de sua obra, Merleau-
Ponty exerceu uma grande influência nos Estados Unidos durante os anos 1950 e 1960. Muitos
acharam sua obra mais acessível do que a rigorosa, quase matemática escrita do próprio Husserl.

Deveríamos mencionar também Paul Ricoeur (1913) como um membro da ala francesa do
movimento fenomenológico. Ele traduziu Ideias I de Husserl, e o comentou extensivamente, e
executou uma análise filosófica independente da liberdade humana, da religião, do simbolismo, do
mito e da psicanálise. E interessante que seu estudo sobre a liberdade humana, O voluntário e o
involuntário, foi muito mais influenciado por Alexander Pfánder, um dos fenomenólogos de Munique.

A fenomenologia em outros países


A raiz alemã e a ala francesa da fenomenologia foram certamente as partes principais desse
movimento, mas outras partes significativas surgiram em outros países. Nos Estados Unidos,
William Ernest Hocking estudou com Husserl por um semestre em 1902, e assim fez Dorion Cairns
nos fins dos anos 1920 e começos dos anos 1930. Cairns escreveu uma tese em Harvard sobre
Husserl em 1933 e se tornou um soberbo tradutor das obras de Husserl. Marvin Farber escreveu
uma dissertação sobre Husserl em Buffalo em 1928 e mais tarde escreveu sobre seu pensamento e
fundou a revista Philosophy and Phenomenological Research, mas permaneceu mais um filósofo
naturalista do que um fenomenólogo. O principal impacto da fenomenologia nos Estados Unidos
ocorreu nos anos 1950 e 1960, quando veio a ser estabelecida uma das mais importantes escolas de
filosofia nesse país, ainda que ofuscada por outras formas mais nativas e mais anglicanas. No mundo
filosófico norte-americano, a fenomenologia desfrutou uma durável mas relativamente pequena
presença, comparada com a da filosofia analítica em seus vários estilos. Significativos centros de
fenomenologia têm estado presentes em muitas universidades, e diversas associações e jornais
dedicados a ela foram estabelecidos. O mais antigo centro, datado dos anos 1950, está localizado na
Graduate Faculty of New School for Social Research, onde ensinaram Dorion Cairns, Aron
Gurwitsch e Alfred Schutz.

A fenomenologia nunca foi muito proeminente na Inglaterra, contudo, graças aos esforços de Wolfe
Mays em Manchester e seus estudantes Barry Smith, Kevin Mulligan e Peter Simons, um grupo
vigoroso de estudiosos foi fundado, há cerca de vinte anos, com a intenção de explorar o período
inicial da fenomenologia e mostrar sua relação com as origens da filosofia analítica em Gottlob
Frege e outros pensadores da Áustria na primeira metade do século passado.

Esse desenvolvimento na Inglaterra, incidentalmente, ceve uma con-traparte nos Estados Unidos,
uma interpretação de Husserl que é inspirada por Frege e a filosofia analítica. Está centrada na
Califórnia e representada por escritores como Dagfinn Follesdal, Hubert Dreyfus, Ronald Mclntyre e
Da-vid Woodruff Smith. Vale-se especialmente dos primeiros escritos de Husserl. Esses leitores de
Husserl da “Costa Oeste” têm como sua antítese uma interpretação da “Costa Leste”, situada
largamente no corredor Boston-Washington. que assume suas posições a partir dos trabalhos lógicos
e filosóficos tardios de Husserl e não usa Frege e a filosofia analítica como seu ponto de partida. Lê
Frege à luz de Husserl e não vice-versa. Está expresso nos escritos de John Brough, Richard Cobb-
Stevens, John Drummond, James Hart, Robert Sokolowski e outros. O presente livro está escrito no
seu espírito. As duas “escolas” diferem especialmente em sua compreensão do noema, do sentido e
da redução fenomenológica. A diferença teórica básica entre eles está em que o grupo da Costa
Oeste identifica o sentido e o noema e os pressupõe como mediadores entre a mente e o mundo,
enquanto o grupo da Costa Leste distingue o sentido e o noema como consequências de dois
diferentes tipos de reflexão sobre o objeto intencionado; não os pressupõe como mediando a relação
intencional da mente ao mundo. J. N. Mohanty desenvolveu uma interpretação independente de
ambos, Husserl e Frege, e também relacionou a fenomenologia à antiga filosofia indiana.

José Ortega y Gasset foi um filósofo independente que tanto representou quanto criticou Husserl e
Heidegger na Espanha. Xavier Zubiri poderia ser mencionado como envolvido com a fenomenologia.
Na Itália, a fenomenologia e o existencialismo foram desenvolvidos em Milão por Antonio Banfi no
período entre as duas guerras mundiais e por Enzo Paci após a Segunda

Guerra Mundial. Também Sofia Vanni Rovighi relacionou o pensamento de Husserl aos temas de
Aristóteles e Tomás de Aquino. O existencialismo de Nicola Abbagnano deveria também ser
mencionado. Na Polônia, Roman Ingarden, que estudou com Husserl em 1912-1918 e permaneceu
em contato próximo com ele posteriormente, iniciou um ramo do movimento feno-menológico e
escreveu diversos trabalhos fenomenológicos importantes sobre estética, ética e metafísica. Ele
ensinou em Lwów nos anos 1930 e em Cracóvia após a guerra. Essa tradição foi continuada
posteriormente como uma influência parcial na obra de Karol Wojtyla e na obra da escola de
tomismo de Lublin. Na Checoslováquia, Jan Patocka, estudante e amigo de Husserl, foi um forte
representante da fenomenologia em Praga e um corajoso defensor da liberdade civil. Ele morreu em
1977 após ter sido interrogado pela polícia. A fenomenologia foi influente na Rússia pré-
revolucionária. Investigações lógicas foi traduzido para o russo em 1909 e exerceu uma influência
indireta sobre o estruturalismo e o formalismo na teoria literária através da obra de Roman
Jakobson, que sempre se referiu à teoria das partes e todos de Husserl como uma doutrina filosófica
importante. Gustav Shpet é mencionado como um representante da fenomenologia na Rússia
naquele tempo, mas a Primeira Guerra Mundial e a Revolução Comunista frustraram qualquer
desenvolvimento desses começos. Atualmente estão sendo feitos esforços para traduzir Husserl para
o idioma russo.

Hermenêutica e desconstrução
Após essa visão geográfica do que veio após o período principal da fenomenologia, poderíamos
mencionar duas outras formas metamórficas que se seguiram e estão um pouco às margens da
fenomenologia — a hermenêutica e a desconstrução.

A hermenêutica começou como um movimento especificamente alemão, com Friedrich


Schleiermacher (1768-1834) e especialmente Willhelm Dilthey (1833-1911), que foi contemporâneo
de Husserl. A hermenêutica ressaltou originalmente as estruturas de ler e interpretar textos do
passado e apresentou seu trabalho como uma filosofia da interpretação bíblica e literária e de
pesquisa histórica. Heidegger expandiu a compreensão de hermenêutica do estudo de textos e
documentos para a autointerpretação da existência humana como tal. A pessoa primariamente
associada à hermenêutica é, naturalmente, Hans-Georg Gadamer, que não foi só um estudioso de
Heidegger,

mas também um douto intérprete de Platão, Aristóteles e textos poéticos. Ele também foi um
verdadeiro Boswell do movimento fenomenológico, apto a representá-lo para outros países e para as
gerações mais jovens; ele se tornou uma testemunha independente de suas figuras e acontecimentos
principais, e uma pessoa cuja congenialídade e exposição vivaz o ajudaram a estabelecer contatos
em todo o mundo. Gadamer foi influenciado por Heidegger, sob cuja orientação estudou em
Marburgo, mas menos influenciado por Husserl, com quem também estudou por um tempo em
Friburgo. Alguns conceitos de Husserl são úteis em hermenêutica — os conceitos de significados
ideais, de sedimentação e linguagem, por exemplo —, mas eles dese mpenham um papel
relativamente pequeno no pensamento de Gadamer. E lastimável que a hermenêutica seja com
frequência tomada como uma licença para o relativismo, um uso que Gadamer poderia certamente
contestar. O fato de que pode haver múltiplas interpretações de um texto não destrói a identidade
de um texto, nem exclui leituras totalmente inadequadas e errôneas, daquelas que destroem o texto.

A desconstrução deveria ser mencionada também numa visão gerai do movimento fenomenológico,
se bem que com algum embaraço, ao modo em que uma família pode ser forçada a falar de um tio
excêntrico cujas maneiras engraçadas e fora do comportamento comum são conhecidas de todos,
mas que a gente tenta evitar mencionar numa sociedade cultivada.. Os escritos iniciais de Jacques
Derrida foram traduções e interpretações (interpretações altamente questionáveis, decerto) de
trabalhos curtos de Husserl, mas logo ele abandonou Husserl e mudou-se para campos filosóficos
mais amplos. A desconstrução é mais fortemente influenciada por figuras como Hegel, Heidegger,
Sartre e Jacques Lacan, e num sentido mais profundo por Nietzsche e Freud. Poderíamos reivindicar
que Husserl tem um tratamento muito mais sutil de ausência e diferença do que Derrida credita a
ele, tratamento que reconhece esses fenômenos, mas não cai nos extremos da desconstrução. Um
dos comentários mais apropriados que ouvimos sobre a desconstrução foi feito numa conferência do
teórico da literatura escocesa Alastair Fowler; ele observou que â desconstrução em doses
moderadas provê uma correção bem-vinda à teoria literária tradicional, a qual pode ter se tornado
um pouco meticulosa e racionalista em demasia, mas que nos Estados Unidos veio a ser absorvida
numa ideologia política e por essa razão desenvolvida além de toda proporção.

Considerações finais
A fenomenologia ainda continua, de um modo relativamente menos espetacular, como uma das
tradições principais da filosofia. Seus trabalhos mais importantes continuarão sendo lidos como
clássicos, e o tempo dirá até quando eles resistirão. Os pensadores da primeira metade do século
passado certamente ficarão entre as figuras mais significativas da história do pensamento, e eles
irão inspirar o pensamento filosófico como os melhores escritos do passado têm feito. A força da
fenomenologia como um movimento se evidencia no fato de que ela apresenta-nos não apenas
grandes e óbvias figuras, mas também um círculo amplo de escritores menores, aqueles que
preenchem as possibilidades nos nichos e recantos do estilo fenomenológico de filosofar.

Além do mais, uma grande quantidade de trabalhos escolares continua a ser consumada nessa
tradição, tais como a edição de textos (em que Louvain e Cologne se destacam como centros
especialmente importantes), comentários sobre as principais obras e pensadores, e controvérsias
sobre o significado de vários termos e conceitos. Ainda que a edição da obra de Husserl esteja
chegando ao ponto em que alguém pode até dizer “basta”, alguns materiais importantes, tais como
seus últimos manuscritos sobre a consciência do tempo interno, ainda esperam publicação. A edição
das conferências de Heidegger irradiou muita luz sobre o desenvolvimento de seu pensamento e
proveu-nos com textos de grande valor filosófico.

Uma das grandes deficiências do movimento fenomenológico é sua total carência de qualquer
filosofia política. Essa é claramente uma área na qual um suplemento é necessário. Na verdade,
alguém pode dizer que a carência de discernimento político não foi somente uma catástrofe
especulativa, mas também uma catástrofe prática no caso de Heidegger. Alfred Schíitz (1899-1959),
que ensinou na New School e comentou em parte o pensamen-to de Husserl, foi mais influenciado
por Weber e Scheler e fez um trabalho importante em filosofia social e sociologia humana, mas
também não desenvolveu realmente uma filosofia política.
Poderíamos também dizer que a terminologia estabelecida é uma desvantagem para o movimento
fenomenológico. Palavras como “noesis” e “noema”, “redução”, “mundo-da-vida” e “ego
transcendental” tendem a se tornar fossilizadas e provocam problemas artificiais. Elas
substancializam o que deveria ser um aspecto do ser e da atividade da filosofia. A própria
denominação “fenomenologia” é enganosa e grosseira. A tradução da terminologia para a língua
inglesa é ruim, sea pomposa; os escritores ingleses da fenome-nologia deveriam aprender com
autores como John Findiay, Michael Oakeshott e Gilberc Ryle.

Há importantes recursos teóricos na fenomenologia que permanecem inexplorados, depósitos


minerais, por assim dizer, que esperam para ser escavados, Husserl operou uma ruptura decisiva no
pensamento moderno. Ele mostrou a possibilidade de evitar o cartesianismo, o conceito lockiano de
consciência como uma esfera fechada; ele restaurou a compreensão da mente como pública e como
presentada às coisas. Ele abriu o caminho para um realismo e uma ontologia filosófica que pode
substituir a primazia da epis-temologia. Muitas dessas possibilidades positivas do pensamento de
Husserl não foram apreciadas porque o poder cartesiano — “la main morte de Descartes” — é muito
forte sobre muitos filósofos e estudiosos. Com demasiada frequência, tudo em Husserl é
reinterpretado de acordo com as muitas posições que ele rejeitou. O modo das ideias, a ideia da
consciência isolada ainda mantêm muitos de nós cativos, e é muito difícil, se não impossível,
desalojar as pessoas desse modo de pensar, uma vez que ele tenha criado raiz, uma vez que tenha
vindo a ser usado para certo conjunto de problemas e certo modo de raciocinar. Porém, muito
permanece na fenomenologia para aqueles que o desejam. O movimento fenomenológico, com suas
origens em Husserl no começo do século passado e sua rica história nos últimos cem anos, fornece
muitos recursos para uma vida filosófica autêntica.
BIBLIOGRAFIA SELETA
BERNET, Rudolf; KERN, Iso; MARBACH, Eduard, An Introduction to Husserlian Pheno-
menology. Evanston, IL, Northwestern Unversity Press, 1993. Os autores são estudiosos suíços
proeminentes que estudaram na Universidade de Louvain durante os anos 1960. Todos eles têm
editado textos de Husserl e escreveram muitos trabalhos em fenomenologia. Rudolf Bernet é
atualmente Diretor do Husserl Archi-ves de Leuven.

BROUGH, John Barnett, “Translatofs introduction”, in Edmund HUSSERL, O» the Phe-


nomenology ofthe Consciousness of Internai Time (1893-1917), Dordrecht, Kluwer, 1991, xi-
lvii. Nessa sua introdução e em outros ensaios, Brough fornece o mais claro tratamento em língua
inglesa da doutrina fenomenológica da temporalidade.

COBB-STEVENS, Richard, Husserl and Analytic Philosophy, Dordrecht, Kluwer, 1984. Há uma
quantidade de livros, de vários autores, que comparam a fenomenologia e o pensamento analítico, e
esse é um dos mais bem sucedidos. Estuda primariamente as diferenças entre Husserl e Frege, mas
também mostra como Husserl resolve problemas que dominaram a filosofia desde Descartes. O
papel da intuição categoria! é enfatizado.

DILLON, Martin C, Merleau-Ponty’s Ontology, Bloomington, Indiana University Press, 1988.

DREYFUS, Hubert L. (ed.), Husserl, Intentionality, and Cognitive Science. Cambridge (MA),
MIT, 1982. Essa coleção contém alguns ensaios importantes de Dagfinn Follesdal bem como
trabalhos de autores como Dreyfus, J. N. Mohanty, John Searle e Da.vid Woodruff Smith, lidando com
intencionalidade e ciência cognitiva.

DRUMMOND, John J., Husserlian Intentionality and Non-foundational Realism: Noema and
Objcct. Dordrecht, Kluwer, 1990. Esse volume é uma completa e sistemática avaliação da
interpretação fregeana de Husserl. Apresenta a crítica da "Costa Leste” da forma de fenomenologia
da “Costa Oeste”, tratando especialmente com os temas do noema, sentido e redução.

ELVETON, R. O. (ed. e trad.), The Phenomenology of Husserl: Selected Criticai Readings.


Chicago, Quadrangle, 1970. Seis ensaios clássicos, escritos entre 1930 e 1962. De especial
importância são os ensaios de Eugen Fink, The phenomenological philosophy of

Edmund Husserl and contemporary cricicism, 73-147; e o de Walter Biemel, The decisive phases in
che development of Husserl’s philosophy”, 148-173.

EMBREE, Lester et al. (eds.), Encyclopedia of Phenomenology. Boston, Kluwer, 1997. Artigos
nessa enciclopédia tratam os conceitos principais da fenomenologia, desenvolvimentos em vários
países, principais autores e importantes novas áreas de controvérsia, tais como linguagem,
inteligência artificial, ciência cognitiva e ecologia. Está muito bem organizada e os artigos são
escritos por estudiosos reconhecidos. Essa obra, provavelmente, permanecerá por muitos anos como
a mais autorizada obra de referência sobre fenomenologia.

GADAMER, Hans-Georg, “The Phenomenological Movement”. Em sua Philosophical


Hermeneutics, Berkeley, University of Califórnia Press, 1976, 130-181. Uma revisão pessoal dos
temas essenciais na história da fenomenologia.

GUIGNON, Charles (ed.), The Cambridge Companion to Heidegger. Cambridge, Cambridge


University Press, 1993. Os livros da série “Cambridge Companion” são coleções
de aproximadamente dez ensaios escritos recentemente sobre um dado filósofo. Cada volume tem
um ensaio introdutório do editor que apresenta uma visão geral do pensamento do filósofo e fornece
uma extensiva bibliografia.

HAMMOND, Michael; HOWORTH, Jane; KEAT, Russel, Understanding Phenomenology. Oxford,


Blackwell Publisher, 1991.

HOWELLS, Christina (ed.), The Cambridge Companion to Sartre. Cambridge, Cambridge


University' Press, 1992.

KISIEL, Theodore, The Genesis of Heidegger’* “Beingand Time”, Berkeley, University of


Califórnia Press, 1993. Explica nos mínimos detalhes as circunstâncias históricas, interesses
pessoais e desenvolvimentos intelectuais que ajudaram a configurar a principal publicação de
Heidegger, bem como coda a sua filosofia.

KOCKELMANS, joseph J. Edmund HusserPs Phenomenology. West Lafayette (IN), Purdue


University Press, 1994.

LANGIULLI, Nino (ed.), European Existentialism, New Brunswick (NJ), Transaction, 1997. Essa é
a terceira edição de um livro que apareceu em 1971, sob o título The Exis-tentialistTradition.
Contém seleções de autores que vão desde Kierkegaard a Camus. Além dos principais autores nessa
tradição, o livro contém escritos de Ortega y Gasset, Abbagnano, Buber e Mareei. As seleções são
valiosas e incomuns, e as in-croduções, escritas por vários estudiosos, são muito úteis.

MacQUARRIE, John, Existentialism. Baltimore, Penguin, 1962.

MADISON; Gary Brent, The Phenomenology of Merleau-Ponty. Athens, Ohio University Press,
1973.

MANSER, Anthony. Sartre: A Philosophical Study. Oxford, Oxford University Press, 1966.

McINTYRE, Ronald; WOODRUFF-SMITH, David, Husserl and Intentionality: A Study of Mind,


Meaning and Language. Boston, Reidel, 1982. Esse é o mais abrangente estudo da filosofia de
Husserl desde o ponto de vista fregeano e analítico.

McKENNA, William R,; e EVANS, J. Claude (eds.), Derrida and Phenomenology. Dordrecht,
Kluwer, 1995. Uma revisão da relação entre fenomenologia e desconstrução.

MOHANTY, J. N., Transcendental Phenomenology: An Analytic Account. New York, Blackwell


Publisher, 1989. Mohancy é autor de muitos trabalhos em fenomenologia, filosofia

da linguagem e pensamento indiano. Esse livro descreve a natureza da fenomenologia


transcendental, usando categorias e temas familiares aos filósofos analíticos.

_; McKENNA, Richard (eds.), HusserTs Phenomenology: A Textbook. Lanham (MD),

University Press of America, 1989. Ensaios que introduzem vários aspectos do pensamento de
Husserl.

NATANSON, Maurice, Edmund Husserl: Philosopber of Infinite Tasks. Evanston (IL),


Northwestern University Press, 1974. Esse volume venceu um American Book Award em 1974. E
uma exposição clara e viva do pensamento de Husserl.

OTT, Hugo, Martin Heidegger: A Political Life, New York, Basic Books, 1993. O autor dessa
biografia é professor de história na Universidade de Friburgo. O livro é uma acurada e
desapaixonada biografia de Heidegger. Aborda as controvérsias políticas nas quais Heidegger
esteve envolvido.

PÕGGELER, Otto, Martin Heidegger’s Path ofThinking, Atlantic Highlands (NJ), Humani-ties,
1987. Uma introdução a Heidegger por um de seus intérpretes mais autorizados.

SEPP, Hans Reiner (ed.), Edmund Husserl und die phdnomenologishe Bewegung. Zeugnisse
in Textund Bild. Freiburg, Karl Alber, 1988. Essa obra foi elaborada como um catálogo para
acompanhar uma exibição que comemorou o quinquagésimo aniversário do Husserl Archives. O livro
contém muitas fotos de pessoas e lugares, bem como imagens de documentos relacionados não
somente a Husserl e sua vida, mas a outras pessoas e desenvolvimentos da fenomenologia. Inclui
reminiscências de Hans-Georg Gadamer, Emmanuel Lévinas, Herbert Spiegelberg e outros,
cinco ensaios sobre o movimento fenomenológico, esboços biográficos de quase noventa pessoas
associadas com o movimento, uma linha de tempo histórica do período de 1858-1928 (apresencando
eventos paralelos aos eventos da fenomenologia), bibliografias dos principais trabalhos da
fenomenologia e suas traduções, e uma bibliografia de fontes secundárias escolhidas.

SMITH, Barry; WOODRUFF-SMITH, David (eds.), The Cambridge Companion to Husserl.


Cambridge, Cambridge University Press, 1995. Esse volume do “Cambridge Companion” contém
ensaios de importantes comentadores britânicos e americanos de Husserl. A introdução examina a
filosofia de Husserl e esboça várias interpretações de seu pensamento. Os ensaios abrangem o
desenvolvimento da filosofia de Husserl, a perspectiva fenomenológica, linguagem, conhecimento,
percepção, idealismo, mente e corpo, senso comum, matemática e lógica da parte-todo.

SOKOLOWSKY, Robert, Husserlian Meditations: How Words Present Things. Evanston (IL),
Northwestern University Press, 1974. Um estudo dos principais conceitos do pen-samenco de
Husserl, com referências a autores como Strawson e Austin.

_, Pictures, Quotations, and Distinctions: Eourteen Essays in Phenomenology. Notre Dame


(IN), University of Notre Dame Press, 1992. Uma coleção de ensaios descrevendo fenômenos cais
como formação de imagens, citação, fazer distinções, medição, referência, temporalidade e ação
moral. Os ensaios tentam esclarecer filosoficamente coisas que são parte e parcela da condição
humana.

SPIEGELBERG, Herbert, The Phcnomenological Movement. Terceira edição, revisada e


ampliada, com Karl SCHUHMAN, The Hague, Nijhofif, 1982. Essa é a história clássica da
fenomenologia. As duas primeiras edições (que consistiam de dois volumes) fo-

ram escritas por Herbert Spiegelberg; a terceira edição (em volume único) foi escrita com a
colaboração de Karl Schuhman. O livro trata em grandes detalhes o desenvolvimento em vários
países, com ampla cobertura de todas as figuras menores.

STRÓKER, Elisabeth, HusserTs Transcendental Pbenomenology, Stanford, Stanford University


Press, 1993. A autora foi diretora do Husserl Archives de Colônia por muitos anos. Ela é especialista
não só em fenomenologia, mas também na filosofia da ciência.

WARNKE, Geórgia, Gadamer: Kermeneutics, Tradition, and Reason. Stanford, Stanford


University Press, 1987.

WIIXARD, Dallas, Logic and the Objectivity ofKnowledge. Athens, University of Ohio Press,
1984. Uma exposição clara e precisa da obra inicial de Husserl, com um estudo completo dos
principais temas de Investigações Lógicas.
Table of Contents
AGRADECIMENTOS
INTRODUÇÃO
Origem e propósito do livro
I. O QUE É INTENCIONALIDADE E POR QUE É IMPORTANTE?
O predicamento egocêntrico
A publicidade da mente
II. PERCEPÇÃO DE UM CUBO COMO UM PARADIGMA DE UMA EXPERIÊNCIA CONSCIENTE
Lados, aspectos e perfis
Identidade do próprio objeto
III. AS TRÊS ESTRUTURAS FORMAIS NA FENOMENOLOGIA
Partes e todos
Identidade em multiplicidades
Presença e ausência e a identidade entre elas
IV. UMA DECLARAÇÃO INICIAL DO QUE É A FENOMENOLOGIA
A atitude natural
A atitude fenomenológica
Há argumentos que podem guiar-nos na atitude fenomenológica?
Alguns termos especiais relativos à atitude fenomenológica
Por que a redução transcendental é importante?
V. PERCEPÇÃO, MEMÓRIA E IMAGINAÇÃO
Recordação
Imaginação e antecipação
Deslocamento do si-mesmo
VI. PALAVRAS, RETRATOS E SÍMBOLOS
A presença das palavras
Imagens
Indicações, símbolos ou sinais
Enriquecimento de multiplicidades, otimização de identidade
VII. INTENÇÕES E OBJETOS CATEGORIAIS
Novos níveis de identidade, novas multiplicidades
Objetos categoriais
A eliminação dos significados como coisas mentais ou conceituais
Notas adicionais sobre atos e objetos categoriais
O fenômeno da vaguidade (incerteza)
VIII. A FENOMENOLOGIA DO SI (SELF)
O ego empírico e o transcendental
Publicidade do ego transcendental
O ego na atitude fenomenológica
O si não puntiforme
IX. TEMPORALIDADE
Níveis de temporalidade
O problema da consciência do tempo interno
A estrutura do presente vivo
Detalhes e perplexidades na consciência do tempo interno
X. O MUNDO-DA-VIDA E A INTERSUBJETIVIDADE
O mundo-da-vida como um problema
Como as ciências matemáticas são constituídas
Outros aspectos dos objetos científicos
Intersubjetividade: um mundo considerado em comum
Intersubjetividade: conhecendo o outro
XI. RAZÃO, VERDADE E EVIDÊNCIA
A vida da razão e a identidade do significado
Dois tipos de verdade
Dois tipos de evidência
Obscuridade e verdade
Três níveis de estrutura de significado
A experiência dos indivíduos como a evidência básica
XII. INTUIÇÃO ElDÉTICA
Análise da intuição eidética
Comentários adicionais sobre a intuição eidética
XIII.A FENOMENOLOGIA CIRCUNSCRITA
Diferenças em alcance
Diferenças entre noema e sentido, pôr entre parênteses e citar
Diferenças em perspectiva
Uma ilustração gráfica das duas reflexões
A importância das duas reflexões
XIV. A FENOMENOLOGIA NO CONTEXTO HISTÓRICO PRESENTE
Modernidade e pós-modernidade
A resposta da fenomenologia
A fenomenologia e a filosofia tomista
A fenomenologia e a experiência humana
APÊNDICE: A FENOMENOLOGIA NOS ÚLTIMOS CEM ANOS
O começo do movimento: Husserl
A fenomenologia na França
A fenomenologia em outros países
Hermenêutica e desconstrução
Considerações finais
BIBLIOGRAFIA SELETA

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