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anais do crime
A GUERRA DO PCC
Facção se internacionaliza com tráfico de cocaína, e pela primeira vez Marcola vê seu poder
ameaçado
ALLAN DE ABREU
Atualizado: 5 dias atrás
“Toda organização criminosa do mundo passa por reciclagem em sua liderança. Chegou a hora do Primeiro Comando da
Capital”, diz o promotor Lincoln Gakiya. O assassinato em fevereiro de Gegê do Mangue, número dois do PCC, desencadeou uma
crise sem precedentes na cúpula da facção
O
carro parou no acostamento da rodovia entre Guarujá e Cubatão, na
Baixada Santista, no local previamente combinado, bem ao lado da
ponte sobre o rio Diana, que nasce na Serra do Mar e deságua no canal
do porto de Santos. Eram três e vinte da madrugada de 18 de agosto de 2017,
uma sexta-feira. Logo o motorista viu quatro vultos se aproximarem na
escuridão. Ele desceu do carro, abriu o porta-malas e começou a retirar as
bolsas de viagem. Dezesseis no total. Cada uma armazenava vários tabletes
prensados, do tamanho de um tijolo, contendo cocaína. Somavam 273 quilos.
O grau de pureza da droga era elevadíssimo – 97%. Os cinco pegaram as
malas e rumaram a passos ligeiros para o mangue que margeia o rio. Com o
auxílio de faroletes, chegaram a uma voadeira à beira d’água. Era um barco
pequeno, com casco de alumínio, ágil e veloz, ideal para aquela missão. O
jovem motorista voltou para o carro, enquanto os outros quatro entravam na
embarcação. O céu limpo e a ausência de ventos fortes prenunciavam o
sucesso da empreitada. Em poucos minutos a voadeira alcançava o canal do
porto de Santos.
A
ação na madrugada de 18 de agosto de 2017 era parte de uma grande
investigação da Polícia Federal a respeito dos esquemas utilizados pelo
Primeiro Comando da Capital para exportar cocaína pelo porto de
Santos. A Operação Brabo, como foi chamada, havia começado um ano
antes, em agosto de 2016, e foi concluída em 4 de setembro de 2017, duas
semanas após o tiroteio no canal do porto. Três anos antes, a PF já havia
deparado com as primeiras incursões do PCC no tráfico internacional via
Santos, quando flagrou remessas da droga para a Europa e para o México.
Mas nada se comparava ao que a Brabo descobriu. O PCC havia adquirido
toneladas de cocaína na Colômbia e na Bolívia, que foram exportadas pelos
portos de Santos, Rio de Janeiro e Itajaí, em Santa Catarina, para Espanha,
Itália, Inglaterra, Bélgica e Alemanha.
Nos portos europeus, a droga costumava ser resgatada pela máfia sérvia,
mais especificamente pelo clã Šarić, fundado e liderado por Darko Šarić,
condenado por tráfico de drogas e lavagem de dinheiro em sua terra natal.
Dois integrantes do clã se mudaram para Santos a fim de cuidar de perto da
sociedade com o PCC: Bozidar Kapetanovic, que no Brasil ganhou o apelido
de Judô, e Miroslav Jevtic, o Felipe.
L
incoln Gakiya já era promotor de Justiça havia dois anos quando o PCC
foi criado, em 31 de agosto de 1993, uma terça-feira, depois de uma
rebelião na Casa de Custódia de Taubaté. No início, o movimento
funcionou como uma espécie de sindicato informal dos detentos,
defendendo-os contra o que chamam de “sistema” – polícia, direção de
presídios, Ministério Público, Justiça. O contexto favorecia esses argumentos,
ou “ideologia”, no vocabulário da facção. Desde aquela época os presídios
brasileiros, incluindo os paulistas, conviviam com superlotação constante e
péssimas condições estruturais. Um ano antes, em outubro de 1992, ocorrera
o massacre do Carandiru, quando 111 presos foram mortos pela polícia.
“Nós do Comando vamos sacudir o sistema e fazer essas autoridades mudar
a prática carcerária desumana, cheia de injustiça, opressão, tortura e
massacres nas prisões”, afirmava o 13º artigo do estatuto de fundação do
grupo.
No fim dos anos 90, senhor do sistema carcerário paulista, o PCC, apelidado
de “família”, tratou de estabelecer regras que estabilizassem o convívio
social nos presídios e gerassem simpatia entre os detentos. A facção proibiu
o consumo de crack nos presídios, e passou a auxiliar os detentos
“batizados”, chamados de “irmãos”, com advogados e cestas básicas para os
familiares. A renda vinha do crime: o controle da compra e venda de drogas
dentro dos presídios e o patrocínio de assaltos e sequestros fora deles, sem
contar rifas e uma taxa mensal, que atualmente é de 950 reais, apelidada de
“cebola”, que todos os filiados são obrigados a pagar.
O
PCC tornava-se uma força criminosa incontrolável. Sobretudo a partir
de novembro de 2002, quando ocorreu a última troca de comando na
facção. Naquele mês, Marcos Willians Herbas Camacho, o Marcola,
assumiu o posto de número um do PCC, depois de uma disputa ferrenha
que resultou no isolamento de Geleião e no assassinato de Cesinha, amigo
de infância de Marcola.
O traficante era citado nos grampos da polícia como FM. “Ele é filho do
home”, escreveu certa vez um integrante do PCC via aplicativo de celular
em conversa captada pela PF. “Ele poe os cara da final [comando da facção]
pa ir em cima d nois” / “Se ele pedi algo pa você q você nao conseguir fazer
jaaaja vo-cê arruma pa kbca.”
É fato que Fuminho não costuma perdoar traições. Ao saber que um dos
seus funcionários em São Paulo, Eduardo Ferreira da Silva, o Borel, era
informante da polícia, ordenou sua morte. Na noite de 10 de fevereiro deste
ano, Borel foi executado com 26 tiros dentro de um Mercedes Benz, no
Tatuapé, Zona Leste da capital.
A
parceria de Marcola e Fuminho foi a engrenagem vital para a mudança
de perfil do PCC. De um sindicato informal do cárcere, a facção em
pouco tempo se tornou uma indústria poderosa, permanente fonte de
lucros. Arroubos típicos de gangues deram lugar a uma mentalidade
empresarial, com o emprego de técnicas de contabilidade e rígida divisão de
tarefas. Marcola e seus aliados perceberam que seria melhor estabelecer uma
espécie de “guerra fria” com o estado, em vez de provocar situações de
confronto aberto. O mais traumático deles ocorreu em maio de 2006. Na
ocasião, o governo paulista decidiu submeter a cúpula da facção ao RDD (o
Regime Disciplinar Diferenciado, mais rígido), o que desencadeou uma série
de ataques orquestrados e disseminou o pânico na população. Dezenas de
presídios entraram em rebelião, ônibus foram queimados nas ruas de São
Paulo, delegacias e postos da Polícia Militar alvejados, 59 policiais
assassinados em poucos dias. A reação da polícia e de grupos paramilitares
foi bárbara. Em dez dias, 505 civis foram executados em retaliação.
N
as imagens produzidas para o banco de dados da polícia, Rogério
Jeremias de Simone, o Gegê do Mangue, aparece com os lábios
retesados, arqueados para baixo, a postura do queixo levemente
inclinada para cima, os olhos grandes, as sobrancelhas grossas, o cabelo já
escasso acima da testa, cortado à escovinha – tudo converge para um
semblante de poucos amigos.
Gegê deixou a cadeia em 1998, mas voltou dois anos mais tarde, acusado de
cometer um homicídio. Ascendeu no “partido” quando o amigo Marcola
chegou ao poder, em 2002. No ano seguinte, teria o nome e o apelido
estampados nos jornais, acusado de ser um dos mandantes do assassinato
do juiz Machado Dias, em Presidente Prudente. Para a Justiça, apesar de
estar preso, fora ele o autor de um bilhete manuscrito que chegou a Marcola,
comunicando o êxito do crime: “A operação que faltava foi marcada e o
paciente operado (risos).”
Depois de quase duas décadas atrás das grades e um périplo por catorze
penitenciárias diferentes, Gegê saiu pela porta da frente da P2 de Presidente
Venceslau na manhã do dia 1º de fevereiro de 2017. Entrou no carro do seu
advogado e rumou para São Paulo. Na época, Gegê era réu em outra ação
penal, acusado de ordenar a morte de dois rapazes na Zona Oeste de São
Paulo, em 2004. Mas, graças a um habeas corpus de 2014 proferido pelo
ministro Marco Aurélio Mello, do Supremo Tribunal Federal, pôde aguardar
o julgamento em liberdade. Havia audiência nesse processo no dia 20 de
fevereiro, apenas vinte dias após sua soltura, mas os oficiais de Justiça não
conseguiram encontrá-lo no endereço que ele informou ao deixar a P2 de
Venceslau. A Justiça decretou novamente sua prisão preventiva – tarde
demais. Passadas algumas semanas, Gegê seria condenado à revelia a 47
anos de detenção. Não estava mais no Brasil para cumprir a pena. Fugira
para o Paraguai e em seguida para a Bolívia, onde se encontrou com
Fuminho.
Gegê, considerado àquela altura o número dois no PCC, levava uma ordem
do chefe Marcola: impulsionar ainda mais os carregamentos de cocaína do
país vizinho até o porto de Santos e de lá para o continente europeu. Era ele
a pessoa mais capacitada a executar aquele “salve” por ser, de longe, o que
mais entendia dos meandros do narcotráfico na “sintonia final geral”,
formada essencialmente por assaltantes.
N
a tarde de 13 de fevereiro deste ano, terça-feira de Carnaval, um
helicóptero pousou em Eusébio, região metropolitana de Fortaleza.
Era uma das três aeronaves de Cabelo Duro, pilotada por seu
funcionário Felipe Ramos Morais, rapaz de rosto redondo e bochechas
salientes. Sujeito abusado, já fora detido quatro vezes por pilotar
helicópteros em situação irregular e uma quinta por fazer voos rasantes na
cidadezinha de Pompéu, interior de Minas Gerais. Também já havia sido
preso por tráfico de drogas, no próprio Ceará. A missão de que fora
encarregado envolvia a adrenalina que ele tanto apreciava. Dias antes,
Cabelo Duro o incumbira de levar Gegê e Paca de volta à Bolívia. Para dar
suporte ao piloto, o chefe e mais quatro integrantes do PCC de Santos
viajaram de São Paulo no dia seguinte, em voo comercial.
Ao chegar à recepção do hotel onde se hospedaria com seus parceiros, na
noite do dia 14, Quarta-Feira de Cinzas, Cabelo Duro parecia feliz – até
arriscou alguns passos de samba no hall e caiu na risada, conforme imagens
locais registradas. Pagou a hospedagem em dinheiro vivo e tirou da mochila
um mapa, que abriu sobre o balcão. Para a polícia cearense, eram os detalhes
da emboscada que estava por vir. Às nove da manhã, o grupo rumou de táxi
até o hangar onde estava o helicóptero, em Eusébio. Morais os aguardava.
Às 10h14 o helicóptero decolou com Morais e Cabelo Duro. Em local ainda
desconhecido, apanharam Gegê e Paca. Minutos antes, o dois haviam
deixado as mulheres, os filhos e os demais parentes em um ônibus fretado
que seguiria para a região Sudeste. Era o fim das férias de dois meses no
litoral cearense.
A foto que Gegê enviou à mulher fora tomada do alto da reserva indígena
de Aquiraz, uma área de floresta com 1,7 mil hectares. Ao avistar uma
clareira, Morais comunicou que pousaria para abastecer o helicóptero. Os
passageiros aquiesceram. Assim que abriram a porta da aeronave, surgiram
da mata quatro homens, cada um com uma pistola calibre 9 milímetros –
uma delas seria apreendida pela polícia. Desarmados, Gegê e Paca eram
presas fáceis. Foram assassinados com vários tiros. Os corpos foram
arrastados para a mata, onde o grupo ainda tentou queimá-los, sem sucesso,
antes de fugir no helicóptero. Fariam nova parada em outra mata, no Rio
Grande do Norte, onde queimaram parcialmente, às pressas, documentos,
celulares e a bagagem das vítimas.
O
s corpos foram encontrados no dia seguinte, na tarde de sexta-feira,
por um índio da reserva que apanhava pequenos frutos comestíveis na
mata. Em poucas horas a notícia se espalhou pelas celas da P2 de
Presidente Venceslau. Quem teria sido corajoso o bastante para matar o
número dois do PCC e seu braço direito? As pistas chegavam à polícia e ao
Ministério Público por meio dos “salves”, mensagens escritas em papéis ou
aplicativos de celular, utilizadas para a comunicação da facção. O primeiro
deles, apreendido na P2 no dia 21 de fevereiro, dava a suposta versão de
Cabelo Duro, informando que a ordem para os assassinatos partira de
Fuminho, ao descobrir que a dupla estaria desviando dinheiro da facção.
“Ontem, fomos chamados em umas ideias, aonde nosso irmão Cabelo Duro
deixou ‘nois’ ciente que o Fuminho mandou matar o GG e o Paka. Inclusive,
o irmão Cabelo Duro e mais alguns irmãos são prova que os irmãos estavam
roubando.”
Cabelo Duro não teve muito tempo para sustentar essa versão. No início da
última semana de fevereiro, a facção capturou dois aliados dele em São
Paulo e os levou ao “tribunal do crime”. A estratégia, muito utilizada pelo
PCC na resolução de seus conflitos, consiste em conduzir o réu (definido por
eles) até um local isolado e submetê-lo ao julgamento dos líderes, quase
sempre presos, em teleconferência por celular. A Polícia Civil diz ter certeza
de que um deles, José Adnaldo Moura, o Nado, foi assassinado, enquanto o
segundo, Cláudio Roberto Ferreira, o Galo Cego, só saiu com vida do local
sob a condição de atrair Cabelo Duro para o “tribunal”.
F
uminho e o grupo de Cabelo Duro estão em apuros no PCC, mas não
são os únicos. A situação de Marcola se complicou dramaticamente.
Um “salve” interceptado pelo Gaeco indicava que ele e os demais
integrantes da “sintonia final geral” desaprovavam as mortes de Gegê e
Paca. “Mataram nossos irmãos sem o conhecimento da sintonia final
passando por cima por toda nossa disciplina e hierarquia do comando,
fazendo calúnias absurdas para encobrir esse ato covarde.”
O assassinato de Cabelo Duro e o cerco aos demais seriam, nessa linha, uma
medida da cúpula para sustentar que Marcola não tinha conhecimento
prévio da emboscada a Gegê e Paca, que teria sido traído. Acuado, Fuminho
reagiu. No início de abril, o Gaeco de Mato Grosso do Sul interceptou um
“salve” atribuído a ele:
“Irmãos, fui decretado pelo comando sem nem ser ouvido. Sô injustissado
porque não posso ser cobrado pelas mortes do GG e do PAKA mediante que
eu apenas cumpri ordens da Sintonia Final. […] A lei do comando vale
p[ara] todos, independentemente se é grande ou pequeno, se praticou ato
desviante, se foi provado mão na cumbuca, nada mais normal que eles
serem decretados até mesmo como exemplo. […] Eu tenho provas que recebi
as ordens escrita e confirmada para fazer a situação do GG e do PAKA.
Tenho os bilhetes que o próprio pessoal do BOY [Marcola] passou pro meu
pessoal. […] E é fácil saber que o único que poderia juntar os GG e o PAKA
numa mesma situação não era eu, nem o cabelo duro, nem o maguila, nem
ninguém, só o BOY mesmo. […] Meu decreto [de morte] tem que ser
anulado, e se a ordem do GG e do PAKA era errada ou falsa, o decreto tem
que ser em cima de quem passou a ordem irmão. É esse o papo.
Giba/fuminho.”
E
ssa não é a primeira crise na cúpula do PCC. Em 2010, Marcos Paulo
Nunes da Silva, o Vietnã, integrante da “sintonia final geral”, foi
expulso da facção depois de ter ordenado a execução de um “irmão”
para tomar os pontos de venda de drogas dele em São Paulo. Mas há crises e
crises. Agora, pela primeira vez, a liderança de Marcola está em xeque. O
conflito começou no segundo semestre de 2017, quando o líder do PCC
estava isolado na Penitenciária de Presidente Bernardes. Edilson Borges
Nogueira, o Biroska, um traficante de Diadema, na Grande São Paulo, preso
havia doze anos, passou a criticar Marcola abertamente na P2 de Presidente
Venceslau, acusando-o de ter atuado como informante da polícia. Na manhã
do dia 5 de dezembro, uma terça-feira, Biroska foi assassinado a facadas por
dois detentos durante o banho de sol.
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