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RICARDO PONTES NUNES

ENTRE FADOS E TUMBAS


E OUTROS RELATOS MUNDANOS
Título Original
Entre Fados e Tumbas – e outros relatos mundanos

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) de acordo com ISDB

N972e
Nunes, Ricardo Pontes
Entre Fados e Tumbas - e outros relatos mundanos
Ricardo Pontes Nunes – São Paulo: Giostri, 2021
150 p. : il.: 16 cm x 23 cm. ISBN: 978-65-5927-139-9
1. Literatura brasileira. 2. Contos. 3. Narrativas curtas. I. Título.

2021 – 2860 CDD 869.8992


CDU 821.134.3 (81)

Elaborado por Odílio Hilário Moreira Júnior – CRB – 8/9949

Índice para catálogo sistemático:


1. Literatura brasileira 869.8992
2. Literatura brasileira 821.134.3 (81)

Editor Responsável Alex Giostri


Coordenadora Editorial Isabela Delambert
Arte de capa e diagramação André Ximene
Revisão final de texto Giostri Editora Ltda.

Ricardo Pontes Nunes

Entre Fados e Tumbas


E outros relatos mundanos

1ª Ed. São Paulo: GIOSTRI, Agosto de 2021

1 – Literatura brasileira

1ª Edição
Giostri Editora LTDA

GIOSTRI Editora
Rua Rui Barbosa, 201
Bela Vista – SP / CEP: 01326-010
Tel: (11) 2309 4102 / 2729 0201
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A meus irmãos e irmãs, de sangue e afins
“Muitas almas juntas não se salvam, meu filho”
(Dona Theresinha de Jesus)
A INTRUSA - 05

O ÚLTIMO NAVIO FANTASMA - 19

ENTRE FADOS E TUMBAS - 29

O JAGUAR - 45

A FERROVIA - 56

UM URÓBORO - 69

VIAGEM - 77

A SEITA DE IRINEU LOPES - 87

OS DEUSES FACÍNORAS - 100

CONSTANÇA AGUIAR - 110

AOS DEUSES MANES - 119

O SONHO DE VIRIATO - 123

BICHOS - 129

O COGNOSCÍVEL PARADEIRO DE FAWCETT - 133

GENÉSIA - 148
A Intrusa

Eu fui ao casamento do meu tio Oswaldo; tio Vadinho, como o chamávamos.


Minha avó Eleonora quem me levou. Dizendo assim, parece simplório, mas é como
se eu estivesse dando um testemunho para mim mesma. Não propriamente do
casamento em si, mas daquele evento como marco longínquo do que viria depois.
Mas daquele dia mesmo também me recordo de forma bastante nítida. Lembro até
que, um pouco antes, uma senhorinha chamada Lourdes, de quem se acreditava
ler o futuro na borra do café ou nas cartas do baralho, segredou-me que era verdade
que ela podia ver o destino, mas apenas como uma espécie de arranjo que se ia
articulando entre pessoas e coisas, como uma energia, “como camadas de nuvens
se juntando meio a esmo”, me disse, mas que a gente podia, mesmo sem saber,
contribuir para que as nuvens do mau acaso se dispersassem. Assim, acho que
posso dizer que desde a cerimônia de casamento de meu tio Vadinho me incluo na
nuvem indistinta de circunstâncias e personagens, vítimas ativas ou agentes
omissos, que agora reúno para reconstituir os fatos, e percebo que a história de
nossas vidas talvez não seja outra coisa senão o elenco infindável de pequenas
tramas cruzadas e despercebidas que perfazem um novelo muito maior e
curiosamente homogêneo.
Faz bem uns trinta anos isso, a cerimônia de casamento de tio Vadinho com
aquela mulher. Eram vésperas de carnaval, num ardente domingo de fevereiro.
Lembro que havia um retrato alegre desse dia emoldurado sobre o aparador de
jacarandá que minha avó Eleonora conservou por muitos anos. Refiro-me ao
aparador, que ela herdara do espólio de minha bisavó ¾ e, mais tarde, do dela
próprio, como se verá ¾, porque a fotografia com o punhado de gente por trás dos

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recém-casados, extraviou-se não muito tempo depois, ou minha avó socou-a entre
as brasas do fogareiro do alpendre da cozinha com moldura e tudo, que era o
modo do rito com que ela tentava expurgar do mundo o que queria esquecer
infinitamente. Naquele dia, o do casamento, fazia ano e meio desde que meu pai
dera baixa do serviço militar temporário, e, até que ele arranjasse outro emprego,
estávamos morando numa edícula de quatro cômodos pequenos erguida com a
ajuda dos seus dois filhos (meu pai e tio Vadinho) e de seu Juarez, pelo meu avô
no quintal da casa dele. Deduzo que por essa época devia fazer pelo menos uns
dez anos que a tinham construído ou ampliado, quando meu pai e meu tio ainda
eram rapazotes, porque quando passei a tomar conhecimento dessas coisas, seu
Juarez já estava meio idoso. Lembro-me muito remotamente quando eles
novamente se solidarizaram no esforço descomunal de perfurar um poço no solo
pedregoso dos fundos daquele mesmo terreno. Seu Juarez então apenas
auxiliava os trabalhos porque já não lhe convinha mais o esforço de remover a terra
acumulada nas bordas ou manejar as ferramentas mais brutas. Lembro dele
esfarelando as pedras de enxofre para jogar na água assim que ela minasse o
suficiente para que se recolhesse um balde cheio do fundo do buraco. Também
não sei se foi minha avó Eleonora quem plantou no quintal da frente da casa
principal, a que ela morava com meu avô, uma figueira enorme onde uma espécie
pequena de vespa negra estabeleceu uma colmeia na copa. Talvez essa árvore
imensa já estivesse lá quando eles adquiriram a propriedade para construir a casa,
porque parecia muito antiga, com o ameaçador influxo barroco de suas
monstruosas raízes aéreas e seus cipós derramando-se até o chão, semelhantes
à uma intricada rede de tentáculos preênseis e estranguladores apenas
adormecidos, o que me causava uma estranha sensação de repulsa e asfixia.
Moramos ali, na casinha dos fundos, por um tempo, cerca de dois anos, creio, até
a chegada da intrusa.
Além dessa edícula em que vivíamos eu, meus pais e meus dois irmãos
menores, havia também um compartimento superior na casa principal com uma
entrada independente por um portãozinho de madeira caiada que dava acesso
aos degraus da escada sem corrimão. Nessa espécie de sótão é que fazia uns
vinte anos que vivia seu Juarez. Fora inquilino de meus avós durante tanto tempo

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que havia muito não lhe cobravam mais o aluguel. Embora empobrecido,
carregava ainda o resíduo de dignidade que o fazia andar sempre com passo e
gestos tardos. Asseado. Colecionava palavras difíceis que usava fora de contexto.
Trazia um pente pequeno e um maço de cigarros ordinários, dos quais minha avó
detestava o cheiro, avolumando o bolso da camisa de mangas longas de abotoar
que ele mantinha mesmo nos dias mais tórridos, deixando ver sob o punho direito
da manga os ponteiros do relógio de pulso prateado parados no tempo. Era como
se seu Juarez se apoiasse na decadência senil da íntima soledade que o
domesticara desde a mocidade como um antídoto contra os purgatórios da solidão
abrupta que no fundo tanto quisera ter experimentado. Parece que tinha uma filha,
para quem escrevia e reescrevia cartas intermináveis que nunca enviou ou nunca
obteve resposta. Trazia sempre o mesmo par de sapatos de couro já
encarquilhado, mas lustrosos, os que ouvíamos às vezes se arrastarem baixinho
no teto da casa principal acompanhando sozinho alguma valsa de Vicente
Celestino que ouvíamos tocando longínqua no seu gramofone. Apesar daquela
proximidade conosco, nunca, jamais, o vimos descalço ou de sandálias de dedo,
o que, sendo eu e meus irmãos ainda crianças, fizera com que nos divertíssemos
com tentar desvendar o mistério por trás do seu incorruptível costume de andar o
tempo todo com o mesmo calçado fechado até nas ocasiões mais triviais. Sempre
trazia pães quentes quando aparecia para o café de fim de tarde depois que
voltava de suas andanças pelo Centro ou pelo bairro de Codajáz-Mirim. Dava-nos
balas de hortelã, paçocas de amendoim e doces de abóbora em formato de
coração que recebíamos mesmo saciados para fazer a pirraça de devolvê-los
intactos pondo-os de volta às escondidas dentro de suas sacolas. E dias depois,
para nosso sínico deleite, ele tornava a distribui-los entre nós, satisfeito, sem
perceber nossa vontade mal contida de gargalhar por ele não ter se dado conta
de que eram os mesmos doces da semana passada.
Esse tal café de fim de tarde a que me referi era um evento como outro
qualquer, talvez não só na casa de meus avós como em qualquer lugar naquela
época, pelo menos ali naquelas cercanias, porque não havia muita cerimônia em
uma pessoa chegar sem ser anunciada ou convidada. Iam umas às casas das
outras a qualquer hora, mais ou menos rotineiramente. O estranho era quando

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alguém não se socializava na rua, recolhia-se por certo tempo ou sumia. Porque
aí sim devia haver algo estranho, e uma maledicente curiosidade buscava farejar
uma possível enfermidade ou um problema pessoal mais grave a que atribuir
aquela ausência. Seu Juarez costumava frequentar a casa de meus avós,
casualmente, no mais das vezes no cair da tarde, como disse, mas desde que
pudesse trazer os pães quentes de sempre ou os doces de vez em quando, por
cordial liberalidade, mas também como uma espécie de salvo conduto. E embora
soubéssemos que seu relógio de pulso não funcionava, pontualmente ouvíamos
o rangido das dobradiças enferrujadas do portãozinho de madeira caiada quando
ele entrava ou saía. Salvo quando minha avó Eleonora estivesse recebendo
alguma visita, ou, como gesto de respeito nas raras vezes em que meu avô se
atrasava, e ele ficava aguardando. Uma das poucas exceções, que eu saiba, em
que ele apareceu sem nada nas mãos e sem que meu avô estivesse em casa, foi
no dia em que minha avó interceptou as cartas com libertinosas declarações de
amor que uma suposta pretendente enviara ao seu marido e ela arrojou-se
enfurecida contra a louça que decorava o aparador de jacarandá. Quando havia
uma visita inopinada, seu Juarez se retraía, fingia-se de rogado e não aparecia na
hora rotineira com seus pães quentes. Em algumas dessas ocasiões, minha avó
Eleonora pedia para que nós crianças o fôssemos chamar. Eu me adiantava aos
meus ruidosos irmãos menores, abria o portãozinho caiado lentamente e já do
meio da escada dava para ouvir as operetas de Vicente Celestino tocando no
gramofone em meio ao chiado do disco de setenta e oito rotações; eu então olhava
por baixo da fresta inferior da porta para ver se conseguia elucidar o enigma dos
seus pés. Sem se aproximar, ele respondia que já estava descendo, e eu me
conformava ao entender que ele nunca abriria assim de rompante para quem quer
que fosse para não desvelar o incógnito abismo do seu mistério.

Foi assim, com mais frequência, de eu precisar ir chamar seu Juarez, na


época em que dona Lourdes, pelo menos no começo, começou a frequentar-nos
também ao entardecer. Era uma amiga antiga de minha avó Eleonora, mas que só
recentemente se haviam passado a frequentar. Depois de perambular em fainas
suarentas pelo bairro, dona Lourdes passava ao cair do dia para vê-la e retomar
o fôlego. Recolhia num balde a lavagem que juntávamos para ela levar para os

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seus porcos e sempre ficava um pouco mais para tomar um café em sua caneca
sem alça apoiada sobre o seu xale enxadrezado para não se queimar: “dando um
tempo até o sol baixar mais”. Quando já era praticamente de casa, e seu Juarez
até se lhe antecipava, sempre que havia oportunidade dona Lourdes me
aterrorizava com seus conselhos e dizia que eu precisava me precaver porque o
mundo estava infestado de molestadores de crianças, e sempre rezava no fim o
seu “meu Pai Eterno que me perdoe!”. Outras vezes, quando ficávamos a sós,
mesmo sem eu demonstrar interesse, ela me falava sobre o significado dos
símbolos arquetípicos e tentava me explicar o sentido dos desenhos gravados
num velho baralho cigano que carregava consigo. Lembro dela me dizendo certa
vez, quando eu quis saber, que na verdade as cartas eram só um meio: “você
pode olhar assim pra pessoa, meio de viés, sem pensar; ergue um pouco a nuca;
não procure um ponto fixo, porque é como uma dimensão que se abre, uma
vertigem; e você olha por ali; olha, consegue olhar; e aí, menina, você vê”.
Anos depois, quando vi dona Lourdes, querida, com sua xícara de café
fumacenta sobre seu velho xale dobrado sobre o colo na cozinha da casa que
meus pais moravam desde que precisamos sair da edícula do quintal da casa de
meu avô, ela já um pouco encanecida após uma década de afastamento tornando
a visitar minha avó assim que soube que ela e meu avô estavam morando com
agente porque haviam perdido a casa e tudo o mais devido a uma hipotecagem
criminosa, tive a imediata embora desmaiada sensação de que seu Juarez
também estava presente com seus sapatos gastos sob a camada de graxa
lustrosa e sua sacola de supermercado pendurada no respaldo da cadeira de
palhinha. Quando a imagem vertiginosa daquele quadro de minha memória se
dissipou, pensei em tentar fazê-la relembrar, caso houvesse ocasião, do dia em
que me explicou que nossos destinos eram como nuvens que vão se concentrando
à revelia; e pensei também em eu lhe dizer então, numa retardatária réplica, de
que depois de tantas errâncias e desaventos corridos demais para que eu mesma
me desse conta daquilo, que sim, que podia ser, sim, mas que no fundo reside nas
pessoas uma vontade intrínseca, remota e soberana, ainda que inconsciente, que
dita nossas ações as mais aparentemente insignificantes, e que é aí, nessas
insuspeitas profundezas, que mora a nossa chance de enxergar os maus fados

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que se nos vão encaminhando. A lacrimosa festividade com que ela me recebeu
quando entrei na sala, porém, acabou sendo uma oportunidade passageira para
que se rompesse a atmosfera de solidão opaca das más lembranças que se
incrustava naquele âmbito, porque pouco antes de entrar eu a tinha ouvido alegar
que “não, Eleonora, eu não fui, jamais iria no casamento do Vadinho com aquela
mulher, Zuleica Tumayo, você deve tá se confundindo”, e minha avó teimou em
procurar a foto da saída da igreja na qual, segundo ela, dona Lourdes aparecia
com um chapéu enfitado de organdi azul pintado com o arquétipo da felicidade de
uma flor de lotos sobre a aba da frente arriada por causa do desespero do sol de
fevereiro. Dona Lourdes ainda concluiu, circunspecta, que “pra falar a verdade,
Eleonora, desde que eu soube com quem ele tinha ficado noivo, evitei ao máximo
mirar a cara lambida daquela invasora”. E eu soube que dona Lourdes se conteve
para não cometer a indelicadeza de dizer a minha avó, como diria a mim depois,
que inclusive deixou de visitá-la assim que Zuleica Tumayo ocupou a edícula:
“porque ela me hostilizava, em silêncio, o tempo inteiro, aquela mulher tramava
alguma coisa contra mim”. Em direção ao portão, enquanto eu mesma ainda me
lembrava de sempre ter suspeitado que minha avó mesma ateara aquela fotografia
no fogareiro, dona Lourdes, toda comovida, parou repousando a mão em meu
rosto pedindo para eu “cuidar bem de Eleonora, naquele momento tão difícil, em
que perdera a casa e tudo o mais! Ô, meu Pai Eterno que me perdoe!” e também
porque, de fato, ela tinha usado sim um chapéu azul, bordado com flores de lotos,
mas muitos anos antes, ainda no casamento dela, Eleonora, com meu avô. Eu quis
saber, de um modo dissimulado, se ela ainda lia o futuro nas cartas. Fez um gesto
de que sim, resvalando na bolsa suspensa na cintura, dando a entender que
estavam ali e que poderia “jogá-las” para mim se eu concordasse. Pressionei
levemente seu braço contra a bolsa mudando de assunto e terminamos de nos
despedir, talvez porque eu já estava desencantada o bastante para alimentar
novas esperanças, mas sobretudo porque dona Lourdes era generosa demais
comigo para não me poupar da nuvem escura da má notícia que eu já pressentia
se condensar nos descoloridos arquétipos do seu baralho.

No mesmo fogareiro da cozinha em que arderia aquela tal fotografia foi que,
um pouco antes do casamento de tio Vadinho, arderam os supostos bilhetes

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indecoros que por acidente minha avó Eleonora interceptara de uma presumida
amante do meu avô. Anos mais tarde, quando foi obrigada a ir morar na casa de
meus pais quando ela e meu avô perderam a casa deles, nessa mesma época em
que dona Lourdes a visitou depois de tanto tempo e me pediu para que eu cuidasse
dela, minha avó me contaria rindo meio vexada, que sua ira naquele dia em que
encontrou os supostos bilhetes para o seu marido tinha também a ver com o fato
de, nas vésperas, ela ter encontrado por acaso, escondida sob os entulhos de
marceneiro de meu avô, uma panela-de-pressão, então uma dadivosa novidade
para qualquer dona de casa, e ela tinha imaginado que seria uma surpresa que ele
estava lhe preparando provavelmente para seu aniversário ou bodas de casamento
que se aproximavam, mas que as datas chegaram de mãos abanando, e ela
constatou que o embrulho com a panela havia sumido do esconderijo, e que devia,
portanto, ter sido presente para a mulher emissária dos tais bilhetes. Como eu não
sabia desse antecedente, assim como até hoje não ficou claro para mim como os
tais bilhetes vexaminosos foram parar em suas mãos, que mesmo enrugadas agora
eram idênticas às de meu pai, desde o formato das unhas, suspeitei que talvez ela
estivesse embaralhando as datas, o que então já era algo mais ou menos
recorrente. Lembro de ela amassando os devassos bilhetes enquanto rezava uma
inaudível cantilena cigana que dona Lourdes lhe havia transmitido e em seguida
atiçando com eles as brasas do fogareiro em que ela preparava o café da tarde
esperando os convivas de sempre, o velho Juarez e a mesma dona Lourdes. Nesse
bendito dia, porém, antes de a água do café ferver, um súbito impulso a fez olhar o
fundo da vasilha ao lado, e aterrorizou-a o mal presságio de ver a brancura do leite
fresco ali ganhar um contorno esverdeado e azedar instantaneamente. Teve um
leve estremecimento, e a partir daí tornou-se irreconhecível. Foi nessa ocasião que ela
arremessou contra o piso os pratos e xícaras arrumados sobre o aparador de
jacarandá. Cuspiu e amarrou as saias entre as pernas na altura dos joelhos,
agressiva, como se estivesse se preparando para uma briga feroz, fumando
transmutada em outra pessoa os cigarros de seu Juarez, que acabara de entrar
aturdido pela mixórdia e brutalmente envelhecido pela pressa que o fez prescindir
da dentadura de gengivas rosadas mas impecavelmente montado sobre os saltos
dos sapatos envernizados. Mas esse evento ficaria ainda mais marcado porque foi

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nesse mesmo dia, cerca de uma hora depois daquele surto, creio, que vi tio Vadinho
chegar meio que se esgueirando por trás das raízes imensas da figueira da frente,
antes de entrar constrangido, ligeiro, provavelmente porque imaginava que aquela
agitação toda tinha a ver com ele, e afinal tinha mesmo, embora não nos termos
que ele supunha. Quando finalmente soube do que se tratava, vacilou, até encher-
se da coragem que lhe insuflava sua paixão e ir ter com minha avó. Já tinha adiado
aquela confissão até ameaçarem-no a própria precipitação dos fatos. Ao ouvir o que
ele tinha para lhe dizer, minha avó sucumbiu numa ressaca imediata ao entender
que era para o filho Oswaldo que estavam endereçadas as descaradas lascívias
das cartas de amor que havia incendiado, assim como que a tal panela-de-pressão
tinham a ver com aquela notícia ingrata. Desistiu de esperar meu avô voltar,
benzeu-se e trancou-se no quarto do oratório chorando prostrada pelo cansaço do
ódio traiçoeiro, deixando ouvir os urros do vômito pelo estômago embrulhado após
os seguidos cigarros brutos que afoita tomara acesos das mãos de seu Juarez para
fumar quase que os mastigando, ou então pela excreção da bílis negra que,
segundo ela mesma costumava dizer, acometia “o fígado das pessoas de
personalidade rancorosa ou furibunda”, assim como sempre repetira que as
doenças crônicas pulmonares eram causadas pela “tristeza e pela melancolia
permanentes”, ou que “como é no pâncreas que está o centro da coragem, evitaria
as cólicas devastadoras da sua vesícula empedrada com uma suficiente dieta de
laticínios, porque extirpá-la numa cirurgia a tornaria uma mulher fraca e indecisa”.
Mas a presunçosa disposição para o destemor do seu coração era agora apenas
um gênero a mais de sentimento em meio à náusea e à tristeza excretadas pelos
outros órgãos, misturado com o descalabro e o desaire destilados pela vida, todos
tão físicos e palpáveis quanto a intolerável descarga de dor que sentiu em seu
flanco quando refugiou-se envergonhada no oratório alegando um enjoo provocado
pelo iogurte meio passado. Lembro de ela ficar refletindo uns segundos, perplexa
e ultrajada, quem sabe arrependida de ter acabado de maldizer não apenas o dela,
mas todos os matrimônios, porque o que tio Vadinho tinha acabado de lhe anunciar
era que ia fazer um mês que tinha ficado noivo de Zuleica Tumayo. E antes que
desse tempo de minha avó emitir seu consabido parecer contrário àquele propósito,
ele lhe adiantou que não podia mais voltar atrás porque, além de tudo, Zuleica

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Tumayo estava esperando um filho dele.

Quando dona Lourdes soube com quem meu tio ia se casar, adivinhou de
imediato qual devia ser o prognóstico das cartas do seu tarô. Recordo-a no lusco
fusco do alpendre da cozinha, a xícara fumegante de sempre sobre o xale,
arrematando a conversa num lamento sem meias palavras: “puxa vida, Eleonora!
Vadinho demorou tanto a casar. E com tanta mulher no mundo, foi escolher justo a
filha daquela criatura! Ô, meu Pai Eterno que me perdoe!” Eu, que era muito
apegada a meu tio, fiquei tristemente surpresa com aquela declaração de dona
Lourdes, justo ela que acreditava que se podia evitar o bafejo da ruína. Seu Juarez
percebeu meu esforço em tentar compreender por que dona Lourdes detestava
daquela mulher. Enfiou a mão no fundo da indefectível sacola procurando as
paçocas repetidas de sempre, mas eu estava tão farta de tudo naquele momento
confuso que quase lhe revelei o destino que dávamos à egoísta gratuidade de suas
ofertas de doces. Retesou-se como se tivesse entendido afinal que a partir dali
devia me levar a sério. Chamou-me num canto e foi-se agachando com as mãos
nos joelhos, olhando para os lados, até ficar da mesma altura que eu. Pensei que
ele iria finalmente revelar o segredo dos seus pés disformes, mas o que ele me
sussurrou abrindo mão do seu vocabulário canhestro, e que não me deixou menos
intrigada, foi que dona Lourdes tinha razão, porque todo mundo na rua sabia que a
mãe de Zuleica Tumayo enviuvara três vezes, e em todos os casos o finado marido
morrera em circunstâncias violentas jamais esclarecidas. Por aqueles dias, umas
das sentenças preferidas de minha avó era “quem puxa aos seus, não degenera”.
Vivia repetindo-a em meio a sua catilinária de ditos espirituosos, mas acho que
desde aquela hora jamais voltaria a citá-la, mesmo depois de sentir-se aliviada
contra tal profecia quando viu que o menino azulado que Zuleica Tumayo
conceberia cinco meses depois era o próprio tio Vadinho em miniatura.

Salvo dona Lourdes e seu Juarez, todos tivemos de ignorar aquele


precedente sinistro na família Tumayo em consideração aos enlevos amorosos do
meu tio. Mas poucas semanas depois, quando ninguém mais tinha esperança em
conseguir se conciliar com o gênio frívolo e invasivo daquela mulher desde que
os recém casados passaram a ocupar um quarto na casa do meu avô até
decidirem onde iriam se instalar de vez, o próprio seu Juarez, num raro acesso de

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malícia, contou a anedota um tanto de mal gosto dada a familiaridade da
personagem, a qual eu e meus irmãos nos precavíamos de que meu tio nem a
mulher estivessem por perto antes de repeti-la para as outras crianças que de
vez em quando vinham brincar conosco no quintal quando Zuleica Tumayo não
as enxotava desbaratando nossa diversão, que os dois primeiros padrastos dela
haviam falecido após comer uma sopa, porém o terceiro morrera a pauladas;
“pauladas?!” perguntava o interlocutor assustado, e aí respondíamos: “sim,
porque não quis tomar a sopa”. Aí, uma vez, meu irmão caçula contou-a, não
lembro exatamente se foi essa mesma ou foi outra anedota do vasto repertório
com que nos vingávamos de Zuleica, distraído da presença dela encoberta pelo
lençol que ela estendia a poucos metros no varal preso a um dos galhos da
figueira que se expandia até o meio do corredor lateral. Ela não ouviu muito bem,
mas ao se aproximar meu irmão calou-se comprimindo os lábios. Zuleica cravou
as unhas cumpridas no pescoço frágil de meu irmão de oito anos vomitando
palavrões indescritíveis enquanto o arrastava até à borda do poço, e só não o
arremessou buraco abaixo porque tio Vadinho intercedeu ao ouvir meus gritos de
desespero. Minha avó Eleonora ficou semanas sem trocar uma palavra com ela,
mas desde então nos proibiu de voltarmos a fazer aquele tipo de troça. Acho que
esse evento foi decisivo para que o temperamento de Zuleica Tumayo tomasse de
vez as rédeas da rotina familiar. Embora fosse relapsa e volúvel, começou a ditar
o que comermos nas refeições e o tempero mais propício, mudou a disposição
da mobília e das plantas e passou a regular os horários da casa. Ofendia-se ao
ser contrariada, como quando minha avó impediu que ela se desfizesse do seu
aparador de jacarandá, quando então passara a trabalhar como uma abelha
minuciosa na sabotagem da ordeira complacência com que a sogra tentava
manter a casa em seus trilhos, omitindo recados, mudando os frascos de
mantimento de lugar, deturpando os comentários mais singelos. A pretexto de
evitar furtos, certa vez trocou a fechadura da frente sem nos avisar, e passou dias
e dias arranjando contratempos incontornáveis para não nos fornecer uma cópia
das chaves.
Fazia pouco menos de dois anos desde que tínhamos ido morar no quintal
de meus avós. Estava combinado que seria só por um breve intervalo, mas mesmo

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assim minha mãe odiava aquela situação, sobretudo quando suspeitou que meu
pai se havia acomodado e talvez ficássemos ali até não poder mais. Só bem mais
adiante é que eu soube que o limite desse “até não poder mais” tivera a ver com
o tal casamento de tio Vadinho. Porque Zuleica deu início a uma torpe e sorrateira
campanha de insinuações provocativas e indiretas chantagens emocionais para
pressioná-lo a requerer de meu avô a casa em que “morávamos de favor”, até
que meu pai reconheceu, judicioso, que já tinha ficado o suficiente e que era a vez
do irmão ocupar a edícula. Soube disso só muito depois, através de minha mãe,
quando nos contou que os acintosos constrangimentos instilados na sombra pela
cunhada foram o gatilho que precisava para assumir sua devida gratidão aos seus
benditos sogros, mas também para revestir-se do orgulho com que jurou nunca ter
quisto nada daquela casa, e nem mais um triz da merda da vida pequena de dona
de casa de subúrbio e ir dar a cara a tapas no emprego da fábrica de biscoitos
onde ascendeu como um meteoro na carreira de representante comercial que
dentro de uma ano lhe permitiu adquirir a casa própria para a qual nos mudamos
em seguida, “graças aos dotes parasitários de Zuleica Tumayo”, como dizia minha
mãe. Jamais imaginaríamos, no entanto, que seria nessa nova casa, seis anos e
meio adiante, que haveríamos de acolher meus avós quando fossem despejados
depois que um esquema de estelionato suspeito de ter sido tramado por Zuleica
Tumayo hipotecasse a casa deles para revenderem-na em seguida, assim como
jamais imaginaríamos que ela seria capaz de tal proeza ignominiosa. Soube que
umas semanas antes ela tinha levado a termo, depois de um ano de
inquebrantável e sedutora insistência, seu intento de hospedar meus avós a
contragosto na casa que ela fizera meu tio Vadinho alugar na deserta Rua dos
Franceses a pretexto de uma troca do piso da casa que ela mesma é quem iria
custear, como presente pelas bodas de quarenta anos de casados que eles tinham
completado, com uma herança que ela havia afinal tinha recebido de um dos ex-
maridos falecidos da mãe. Bem antes disso, tentara por todos os meios práticos e
argumentativos convencê-los a internar seu Juarez no albergue para idosos de
Codajáz-Mirim, alegando sobretudo sua cada vez mais arriscada debilidade em
escalar a escada sem corrimão, o que finalmente conseguiu depois que ele
rebentou a bacia e o maxilar ao escorregar em um dos batentes ensaboados, justo

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no dia em que ela mesma se prontificara a lavar os degraus. Foi depois disso que
ela conseguiu que meus avós desocupassem a casa e fossem morar com ela e
meu tio até a reforma ficar pronta. Quando meu avô se deu conta da armadilha, já
era tarde demais. Eu estava junto no carro quando meus pais foram procurar meus
avós ao saberem que os haviam ameaçado de morte no dia em que meu avô reuniu
todas as forças de sua velha dignidade, pôs a nota de mil cruzeiros que ele sempre
carregava no bolso da camisa quadriculada para sua eterna “precisão de sabe-se
lá de qualquer dia ter de pegar um táxi numa urgência” e ir bater lá para reclamar
sua propriedade. Por pouco não passaram despercebidos quando os encontramos
num relance de partir o coração, de mãos dadas no escuro debaixo da figueira
centenária do quintal da frente, mal abrigados contra a tristeza e a tempestade sob
um guarda-chuva esquálido na calçada inundada pela torrente de água suja e
desamparo que estava prestes a arrastá-los.

No meio da tarde do dia seguinte em que levamos meus avós para nossa
casa, foi que apareceu, depois de tanto tempo, dona Lourdes. E mal nos
despedimos na ocasião em que ainda se dispôs a ler nosso destino nas cartas,
meu pai entrou esbaforido dizendo que não havia nada, nem ninguém, nem rasto
algum do irmão nem de Zuleica no endereço da tal casa alugada na Rua dos
Franceses. A noite toda em claro praguejaram contra tio Vadinho, cujo
desaparecimento provava que era cúmplice da trama da esposa. Mas na manhã do
segundo dia sem notícia dos dois nem do que fazer para reaver a propriedade, bem
cedo, coincidiu de na hora em que meu avô ainda atordoado sintonizava o rádio
para ouvir seu rotineiro noticiário, bater em casa um senhorzinho já bastante
decrépito, apoiado na bengala que o socorria contra as insídias do lodo e dos
desníveis do piso. Por incrível que parecesse, era seu Juarez, com os mesmos
sapatos agora empoeirados, e já incapaz de manter sua nobre postura devido às
sequelas da queda terrível e à curvatura da idade que a paralisia do seu relógio
prateado não pudera deter. Arfante, não abriu o velho sorriso rosado de sua
dentadura, nem fez questão de contar coisa alguma sobre como tinha se evadido
do asilo de Codajáz-Mirim e tampouco de revelar como ficou sabendo daquele
endereço e do que tinha acontecido na véspera. Embora inquieto, recusando-se a
quebrar seu jejum, manteve calada sua aflição ouvindo o lamento de meu avô pela

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casa perdida que a eles dois mesmos tanto lhes tinham custado o suor e o sangue
erguer, manter e ampliar. Embora decidido, seu titubeante e único propósito era
encontrar um meio de denunciar Zuleica Tumayo por um meio convincente e digno
o bastante para não parecer uma reles fofoca ou um mero revide de seus
ressentimentos. Estava prestes a lhe contar que dois dias antes, enquanto
perambulava a esmo pensando em apelar para a caridade alheia numa esquina
qualquer, viu Zuleica Tumayo saindo de um motel com um desconhecido; mas
nesse justo momento, meu avô se agachou para aumentar o volume do rádio, e
ouviu, trêmulo, o nome completo de tio Vadinho. Segundo o narrador, ele havia sido
vítima de latrocínio. Meu avô ergueu-se em lento silêncio, pensativo. Chamou meu
pai, pôs a nota de mil cruzeiros no bolso da camisa estampada e foi reconhecer o
corpo do filho, sem dizer nada à esposa Eleonora sobre o que estavam indo fazer.
Enquanto duravam os trâmites no Instituto Médico, os únicos parentes ou
afins que não compareceram foram Zuleica e o filho que estava desparecido com
ela, o garoto que era a cara do meu tio e que ia fazer sete anos. Não apareceram
nesse dia, nem nunca mais. Os últimos rastos dela foram uma procuração de tio
Vadinho em seu nome, a assinatura da concordata da hipoteca da casa, o saque
de um seguro de vida, o frete de um caminhão baú que ninguém jamais soube a
procedência e nem o destino. A partir daí, Zuleica Tumayo como que evaporou. Não
enumerarei as inúteis diligências, os detalhes sobre o esclarecimento do suposto
latrocínio cometido pelo mesmo homem a quem seu Juarez vira ao lado de Zuleica
saindo de um motel, as desditosas viagens de meu pai e meus irmãos, as notícias
e pistas falsas, os telefonemas por engano que durante muito tempo alvoroçaram a
casa a qualquer hora do dia ou da noite. E um belo dia, quando aquilo já parecia
uma tragédia distante, minha avó foi atender uma chamada enquanto cozinhava e
foi aí que ouviu a única palavra que a voz de um rapaz proferiu do outro lado da
linha antes de desligar. “Vó...?!”, disse com ternura a voz, apenas. E para se
recompor do baque, ela teve de se escorar no velho aparador de jacarandá, que
tinha sido o único objeto que havia conseguido recuperar do espólio de sua última
ruína. Isso a atormentou dias a fio, até que a convencêssemos que podia ter sido
um mero engano, já que nunca mais voltou a ligar, ou que podia ser uma boa notícia
porque ela mesma nos tinha dito que era um tom de voz espontâneo e não como o

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de quem pede socorro; ou que, pelo menos, havia a hipótese de que meu primo
tinha sobrevivido.
Com os anos, constatei que minha avó tinha razão em todos os diagnósticos
psicossomáticos que ela tinha o vezo de prescrever aos quatro ventos em seus
ditos espirituosos pelo meio da antiga casa. Apenas pouco tempo duraria meu avô,
levado, segundo a vi murmurar, “pela tristeza irredutível que lhe acometeu os
pulmões desde aquela tragédia”. A progressiva perda de memória talvez tenha sido
uma cura lenta, ou uma fuga, para ela mesma, Eleonora, contra o peso intolerável
das más recordações. Passou a trocar nossos nomes e a confundir a casa onde
morávamos com a antiga casa do poço, do sótão, da edícula e da figueira. Em seus
breves instantes de lucidez, perguntava-me repetidas vezes, humilhada pela
amnésia: “menina, como era mesmo o nome do pano que eu te contei que a
Lourdes costurou os lençóis do meu enxoval de casamento?” e eu respondia
consolando-a, “era de cretone, vó”. “Ah, sim, cretone, é isso! obrigado minha filha.”
Uma noite despertou-me o soluço do seu pranto. Ao me ver entrar em seu quartinho
apagado, disse-me: “não é nada não, minha filha, é que não consigo lembrar o nome
do pano de que foi feito nosso enxoval quando me casei com seu avô”. Numa
manhã me fez rir quando a despertei com um ruído involuntário; vi-a abrir os olhos,
perscrutar o teto e as paredes antes de suspirar indignada por ainda estar viva: “ai,
meu Deus, não acredito que eu acordei!”

Pouco depois que ela se foi, passei em frente àquela antiga casa que meu
avô havia construído havia tantos anos. Um muro enorme tapava a faixada agora.
Tudo muito diferente, e era bem menor do que a casa que eu me recordava. Mas a
velha figueira continuava lá, e, quem sabe, também o poço nos fundos. Demorei-
me uns segundos lembrando a infância. Foi aí que vi uma das vespas negras
miúdas que habitavam a copa da figueira voando alto, se afastando. Talvez
estivesse indo depositar seu pólen no cume de outra árvore, para que daí uma nova
figueira também pudesse repetir seu ciclo intromissor de crescimento parasitário,
descer aos poucos suas raízes tentaculosas sobre sua hospedeira até o chão,
crescer e fincar-se, estrangulando-a lentamente com seus cipós, até assumir-lhe o
lugar.

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O Último Navio Fantasma

Os homens não entesouram tempo por nada. No princípio contamos,


enumeramos o tempo porque estivemos sempre confiantes de que algo vá
acontecer. Se mudam os dias e com eles as coisas, há de ser porque rumam para
algum lugar. Assim, quando a lua nova anunciou no Oriente o ano do galo de 4667
no calendário chinês, descrentes de tantos séculos de esperas sem redenção, os
homens embarcados no vapor Sin Hai II, que desancorava de um porto da então
esfomeada e pestilenta Taiwan para sua primeira viagem por águas internacionais,
não fazia mais sentido tempo ou espaço algum senão os que cabem ao indivíduo.
O Mar da China, os estreitos do Oceano Índico e, depois das áfricas, as imensidões
do Atlântico perfariam seu pretensioso itinerário. Só lhes importava agora o
presente, esse tempo de certezas, onde sua corajosa perícia de navegantes
inveterados e os porões repletos do pescado que haveriam de fisgar consagrariam
sua fama e fortuna.
Tanto quanto o mar, por si mesmos os navios costumam tornar-se também
coadjuvantes das aventuras de distâncias e desafios que encerram suas histórias.
Mas o fato de ter sobrevivido a seus tripulantes para viver ainda uma espécie de
epílogo, fez com que o Sin Hai II se tornasse para mim o centro deste relato. Seus
personagens, homens de carne e osso, e sentimentos, parecem ter apenas
orbitado seu centro. Muitos significados podem se insinuar sobre um conjunto
qualquer de atos conclusos, já que com o tempo, causas e efeitos confundem-se,
e quem os pratica torna-se, em perspectiva, uma espécie de instrumento do

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destino. Ademais, nossa imaginação é por natureza especulativa e, talvez por isso,
tendenciosa. Assim, o fato de eu acentuar as influências abstratas, subjetivas,
naquilo tudo que se passou, pode configurar apenas um viés parcial desta história.
Pode ser. Mas creio que uma versão que superestime o mero acaso sem se arriscar
a ir além dos fatos seja mais medíocre que a minha. Narro o que experimentei. O
que não deixou de ser também um fato. A realidade exige um rigor técnico e apenas
sugere abstrações, mas talvez por isso mesmo, desse contraste, é que pode se
tornar mais intrigante que a ficção. Devo dizer também que prólogo e epílogo
originalmente coincidiam nesta história, uma vez que a recapitulação dos fatos
precedentes coube a seu último personagem, o solitário pescador que deu com a
embarcação afantasmada numa praia deserta da Ilha de Marajó, naquela hora
aziaga do seu dia, em que começou a roê-lo uma intensa obsessão.
Às vezes bastam os fatos, mas aqui os casos precedentes, os recapitulados
pelo pescador solitário, tiveram de bastar, porque suas circunstâncias jamais foram
esclarecidas. Resta-nos tentar imaginar uma sequência coerente ou ao menos
verossímil, não para tentar entender os fatos, mas para encadeá-los, o que não é
de todo imprescindível, se dermos crédito aos antigos teósofos que postularam que
no fundo todo acontecimento já tem por si mesmo um motivo subjacente a nossos
atos, um significado secreto. O autor, o protagonista desses fatos pregressos, foi
aquele que até determinado momento havia sido o mais discreto dos seus homens
de bordo; ou melhor, a infâmia que ali cometeu, já que, além de ignorarmos as
circunstâncias anteriores, tampouco se revelou algo sobre sua índole, nem antes
do dia tenebroso nem depois.
Nunca se saberá que testemunho daria o inextrincável mandarim dos
sacrificados ou dos seus três sobreviventes sobre o que foi para eles o Sin Hai II
em sua derradeira singradura. De certo que houve tormentas, e que além das
vicissitudes naturais, houve também intriga e desavenças. “No mar alto, onde não
existem ateus, o destino de um é o de todos”. A vívida experiência de antigos
argonautas forjara esse adágio. Os do Sin Hai II suspeitaram de uma sina ao se
recordarem dessa sentença, porque daí inferiram que se estavam agora unidos no
destino como cúmplices seria tão somente por estarem trancafiados no mesmo
sítio. Também porque, se agora pensavam assim, é que já estavam então

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profundamente entregues ao temor das potestades. No diário de bordo, ásperos
ideogramas registraram a âncora perdida, a casa de máquinas enguiçada, uma
caldeira apagada e o reparo da rachadura no cavername por onde em certa altura
da viagem os inundou a água salgada. Podia ser a pena de um pessimista, mas
num tom formal e sem adjetivos lamentava também um escaler sem regresso, um
leme a desemperrar e os porões vazios do peixe que insistia em despistá-los. Foi
nesse ponto da rota que se lembraram do velho provérbio grego, e ao suporem que
o Sin Hai II fora bafejado pela desdita desde a partida, ocasião em que cometeram
o sacrilégio de negligenciar as cerimônias votivas devidas às implacáveis
divindades marinhas, compreenderam que a ingratidão é o pecado cardial entre os
que foram dados aos homens cometer.
Só aquele único tripulante não compartilhava essa fé de todos. Se não
compartia da fé comum, é provável que em meio a tanta gente nunca se sentira
acompanhado por ninguém. E o longo claustro de bordo provavelmente agravou-
se numa profunda solidão. Ou então, o que é pior, o fez devotar-se à crença de que
o inferno são os outros de modo tão arrebatador, a ponto de se arvorar o dever de
encarnar a justiça divina, o que não tornaria menos lastimosa sua solidão depois.
De qualquer modo, as desgraças eram para ele todas pessoais. Íntimas lhes eram
quaisquer feridas ou calamidades. Ser um homem foi sua culpa, seu anátema. Num
determinado momento ― esse ponto do tempo que pode ser tão só a consumação
de uma vida inteira e até de séculos de ínfimos acontecimentos convergentes ―,
ficou-lhe evidente que a felicidade era uma mentira soez. A humanidade foi o alvo
onde sua revolta pendurou todas as suas misérias.
Nada disso sequer sonhava suspeitar o sujeito estatelado em sua velha
bicicleta diante dos cento e vinte pés de extensão do navio atolado na areia no meio
do nada. Eram seis da manhã de um dia qualquer de setembro. Santiago Nazário,
um homem de cinquenta anos, vivia das rendas de uma pequena cooperativa de
pescadores e ainda não se lhe esmorecera a devoção no futuro, a que todos os
homens somos acometidos em algum ponto da vida. Sonhava que os dias e as
coisas corriam para que estivesse próximo o tempo em que se depararia com a
glória prometida: possuir um barco grande o suficiente para concorrer no transporte
da produção de borracha que era escoada até aquele estuário através de balsas

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pelos rios que desaguavam naquela embocadura ou por meio dos trens da Rede
Ferroviária Regional, para dali irem abastecer a indústria de além mar. Naquele dia,
por incrível que parecesse, esse tempo podia ter chegado, mas traria junto o
infortúnio do deletério influxo obsessivo que a miragem da imensa nave
abandonada passou a lhe infundir.
Por um momento ficou suspenso numa espécie de agnosia. Podia ver o Sin
Hai II ali plantado à sua frente, mas como se não houvesse um propósito, algo
deslocado, contradizendo o próprio cenário, ao mesmo tempo fascinante e
assustador. Custou-lhe compreender, a relacionar aquela aparição com as coisas
ao redor, com a atmosfera indecifrável, com a hora do dia e com o silêncio tenso
que o navio exalava. Quis afastar-se. Mas aí um frêmito gelou seu ventre: pensou
vaidoso que o destino, não o acaso, lhe tinha posto diante daquele momento
epifânico. Vagueou em torno sentindo uma pontada da sua gastrite. Aproximou-se
até ficar totalmente abrigado à sombra que o casco da embarcação projetava sobre
a areia. Farejou algo de trágico. Eram contraditórios o silêncio e a imobilidade
naquele navio imenso. Sua mudez e seu estatismo eram como se lhe quisessem
dizer algo. Gritou umas boas vindas. Chamou. Bradou. Olhou para trás, voltou a
chamar. Foi deitando a bicicleta na areia. A dúvida e a curiosidade o ajudaram a
vencer os degraus da escada do quebra-peito.
No convés confirmou sua certeza de que estava diante do momento mais
insólito de sua vida. Os olhos de dois moribundos amordaçados junto ao timão
iluminaram-se quando o viram. Livres, mal tinham força para indicar que procurasse
nos recessos da embarcação o seu algoz. Remediados numa aldeia próxima,
esforçaram-se para se fazer entender no limitado dialeto portuário do comércio
itinerante do atum. Pouco antes das oito, com uma lanterna e outros moradores do
povoado onde deixara os sobreviventes, Santiago Nazário iluminou no fundo de um
dos corredores centrais da embarcação a silhueta escura e quase pastosa de um
sujeito inerme recostado numa cantoneira. Sob seu flanco direito, uma velha pistola
da época da primeira guerra civil chinesa.
Os dois sobreviventes resgatados eram o comandante e o maquinista do Sin
Hai II; o inerme, o cozinheiro de bordo. Acareados, os olhos dos dois primeiros
fulminavam o último com um ódio tão virulento que denunciavam uma pendência

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que só poderia ser resolvida em termos kármicos. Depois de idas e vindas, subidas
e descidas entre o porão e o convés, de gestos e reconstituições, os sobreviventes
conseguiram descrever enfim o terrível episódio. O inerme havia assassinado
cruelmente vinte e dois tripulantes do Sin Hai II por asfixia depois de trancar por
fora as escotilhas dos alojamentos onde dormiam e acoplar na tubulação que
levava oxigênio até eles a mangueira de gás de amônia usado para congelar os
peixes. O inerte assentia em seu imóvel silêncio. Alegaram indignados que aquela
muda prostração era prova da frieza com que praticou sua diabólica infâmia.
Além dos dois homens que escaparam ao envenenamento amarrados ao
timão, ficou demonstrado que havia poupado ainda um terceiro. Contra este,
engatilhara a arma e o fizera servir de coveiro dos vinte e dois cadáveres que foi
obrigado a lançar ao mar. Mas para este, pior que a morte foram as suas
premências. Ao cogitar que a premeditação e não a sorte ou o arrependimento o
haviam poupado, viu que era só uma questão de oportunidade para que fosse
também liquidado. Entendeu que na breve vida que lhe restava tinha ainda de
suportar o aviltante remorso de ter se acovardado diante da mesma morte que
levara os outros. A reles mira de um revólver o havia incumbido de uma tarefa atroz,
o que ainda favoreceria o inerme sepultando as provas materiais dos seus crimes.
Carcomido por essa inquietação, acelerou seu fim cometendo suicídio ao se jogar
no mar bravio de uma noite escura e tempestuosa.
Esses fatos todos foram detalhadamente apurados no inquérito cuja
conclusão pediu a extradição do acusado de volta a Taiwan, onde consta que o
inerme foi sumariamente executado. Por esses dias, porém, Santiago Nazário já
estava tomado pela obsessão que roubava o sossego do seu sono desde o
encontro fatídico com o navio fantasma. O que nos faz chegar ao ponto deste relato
que seria o seu epílogo se talvez seus desdobramentos não carregassem ainda
outros dramas. O que passo a contar agora pode ser considerado outra história; a
primeira parte, a do inerme, talvez tenha servido para lhe agregar algo de aziago,
e, portanto, pode bem ser aceita como uma espécie de prólogo.
A obsessão de Santiago Nazário tirou-lhe a paz do sono e a parcimônia da
casa. Embora o fim da guerra no pacífico tivesse liberado a produção de borracha
nas Filipinas, o que prejudicava gravemente a produção e a exportação nacionais,

23
desassossegou-o o fato de que depois de tudo o que acontecera a bordo, os porões
estivessem repletos de valiosas toneladas de atum fresco. De bom grado adiou
seus próprios compromissos com a cooperativa de pescadores para auxiliar a
empresa encarregada de avaliar o inventário do navio. Esvaziá-lo para aliviar o
peso era justamente a primeira tarefa de que se havia encarregado desde que em
segredo atribuiu a si próprio a predestinada tarefa de devolver o Sin Hai II à
navegação. Aquilo propiciava seu intento. Fatigara a mente pensando na
burocracia de contratos e nos homens de gravata, mais habilitados, que viriam. Mas
essa primeira facilidade obsediou-o até o delírio em seu propósito. Desveladas
madrugadas ele passou lendo e relendo contratos de seguradoras de companhias
marítimas detido nas cláusulas de excepcionalidade. Numa tarde pesada de
inverno veio uma comissão de engenheiros com suas valises de mão, e uma
semana depois se foram prenunciando a primavera em que Santiago Nazário sentiu
que sua felicidade estava selada. Acendeu uma enorme fogueira na praia, deixou
a apreensiva mulher em casa e chamou os amigos para beber, dançar e cantar
cantigas de beira mar até o amanhecer quando soube que os homens de colarinho
tinham ido embora depois de consignarem o parecer de que o Sin Hai II só servia
agora como suprimento para ferro velho. Talvez para seu azar, sua sorte estava
lançada.
Mas desde o dia seguinte sua febre recrudesceu num estado sonambúlico
que parecia nunca mais o abandonar. Minaram seus recursos e seu tino os
princípios do dínamo e da inércia, as leis da física, os fenômenos eletrolíticos da
corrupção do metal, os fluxos hidráulicos, o ponto de fulgor, a octanagem dos
combustíveis e os intrincados ideogramas chineses do diário de bordo do Sin Hai
II. Mas ao final compreendeu, num surto de clarividência, que lhe bastava um
reboque e um simples, embora oneroso, sistema de alavancas e calços para
desencravar o navio do fundo dos baixios da praia. Mas ao explicar seu projeto de
resgate, os equipamentos que dispunha e a contabilidade da sua cooperativa a
uma companhia seguradora, entenderam que consistia numa manobra tão difícil e
arriscada quanto improvável que obtivesse sucesso, e só se comprometeram a
pagar o valor do seguro da operação com a condição de que o navio fosse salvo

24
por completo. Santiago Nazário aceitou, comovido. E aceitaria qualquer proposta,
por mais abusiva que fosse, porque já não podia mais viver sem esse desafio.
Sob os últimos ventos gelados do mês da friagem, fez os últimos arranjos do
seu planejamento. Olhando a espuma das ondas, lembrou que só faltava uma coisa
para começar a pôr seus planos em prática: uma âncora grande o suficiente para
reter o navio assim que flutuasse quando a maré alta chegasse. Para isso partiu
para a capital sob os protestos indignados da mulher contra o desperdício dos
últimos vinténs que dispunham para viver a velhice já próxima sem os apuros das
necessidades mais extremas. Mas em sua condição de sonhador ele estava tão
alheio a qualquer sacrifício que aceitou contente esse risco e mais os incontáveis
trabalhos e infortúnios que antecederam o dia glorioso em que afinal conseguiram
acoplar a gigantesca âncora que trouxera ao último elo de uma robusta corrente de
ferro enrolada no carretel da proa. Nesse dia, Santiago Nazário já estava tão
convencido do pouco que faltava para a sua travessia, que contratou dois vigilantes
que se revezavam para passar a noite na embarcação tomando conta dos
suprimentos, ferramentas e equipamentos necessários para o esperado dia da
remoção e da viagem até o porto onde o entregariam para de lá voltar a navegar
pelos sete mares. Mas foi aí que, no segundo dia de espera pela preamar, num
entardecer, um desses vigias chegou pouco antes do seu turno trazendo uma
galinha debaixo do braço alegando precisar de companhia no convés. Em casa, a
mulher de Santiago Nazário manteve um resignado silêncio quando, já quase
adormecido, o marido lhe confessou que tivera um mau presságio ao lembrar que,
embora a viagem fosse realmente um pouco longa, o fato de um dos homens ter
levado para o convés um animal de criação não tinha nada a ver com precauções
contra a solidão, mas com o mau sinal de que antevisse a obscura demora por que
iriam passar até a chagada da maré cheia.
De fato, após tantos incidentes, erros e acertos, trabalhos e retrabalhos, o que
dependia só da força, da vontade e do capital dos homens estava concluído, e se
puseram então a esperar a maré. Esperaram-na. E Santiago Nazário continuava a
esperá-la na ânsia que tornava sua gastrite cada dia mais dolorosa. Mas aí ela
resolveu não vir. Nem no terceiro dia, nem na terceira semana, nem no terceiro
mês. Esse adiamento imprevisto consumia suas vísceras e sua gastrite converteu-

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se em úlcera. A miséria e o desespero ameaçavam-no, assim como alguns dos
seus financiadores. Mas o navio continuava encalhado contra todos os
prognósticos da esperança, da meteorologia e da estatística. E só quando a
compulsão de aguardar que a maré cheia regressasse outra vez convertera-o num
alienado crônico e seus transtornos do sono reduziram-se ao profundo suspiro
noturno que fazia a mulher despertar impotente por não encontrar uma maneira de
ampará-lo dentro dos pesadelos, foi que a tal preamar chegou. Era a madrugada
do dia vinte e sete de março, um ano e seis meses depois do começo de sua febre
permanente. Ao ouvir quando bateram e contaram gritando essa novidade à porta
de sua casa, a esposa pensou que, afinal, de tanto Santiago Nazário ter repetido
esse episódio imaginário, ela estava sonhando os sonhos do marido, embora no
pesadelo dela quem estava preso na areia que a água subindo tornava movediça
era o próprio marido, gemendo no coma de sua obsessão. Mas as batidas
continuaram insistindo e ela acordou bendizendo os influxos das marés e
desejando, pela primeira vez de forma mais intensa que o próprio marido, que ele
conseguisse o que queria, porque descobriu que por nenhum outro meio poderia
recuperar de volta o seu pobre homem extraviado nos labirintos da obsessão.
Santiago Nazário lembrou a seus camaradas de empreitada o velho ditado de
que a oportunidade é como uma égua veloz e sem calda para se poder agarrar.
Apressaram-se. Mas quando a água já cobria a quilha a ponto de ter que se usar
uma canoa para chegar até o navio, houve um mau vaticínio. Os trabalhos tinham
avançado até bem depois do meio dia quando alguém se voluntariou para preparar
uma refeição. Santiago Nazário recebeu seu prato, agachou-se para comer quando
um dos que se haviam adiantado elogiou o tempero do preparo. Um outro comentou
com o vigilante que estava prestes a se servir que estava surpreso de que não
fosse peixe o cardápio e que nunca tinha degustado um frango assim tão saboroso.
Santiago notou que, ao ouvir isso, o vigilante empalideceu. Parou de se servir e
quis saber que galinha era aquela. Explicaram rindo que era a mesma que vivia
cacarejando no convés. Desolado, o vigilante envergou o corpo pálido antes de
devolver a comida à panela. Praguejando contra todos, contou que o navio nunca
mais sairia dali, e se viesse a sair logo retornaria para ficar enrascado no mesmo
lugar, porque aquela bendita galinha ele a tinha reservado para o sacrifício da

26
promessa de que a preamar chegasse a uma entidade espiritual poderosa e
vingativa. Mas acontece que ninguém haveria de dar crédito a uma maldição que
prescindia do sangue sem tinta de uma galinha pedrês, muito menos diante da
magnitude do destino do Sin Hai II. De fato, tudo continuou bem. A maré continuou
subindo, e com ela o navio e a euforia. Distante já da margem foi preciso ancorá-lo
para preparar o engate do reboque que o arrastaria até o distante porto onde ficava
a sede da seguradora que lhe daria um destino final. Mas no segundo dia, uma
manobra equivocada deu um tranco na casa de máquinas e a âncora se
desprendeu da corrente para nunca mais ser encontrada. O Sin Hai II adernou para
a esquerda, fez uma curva em formato de gota e veio de lado em direção à praia
impulsionado pelas vagas da arrebentação. Minutos depois se chocou
violentamente contra um banco de areia a cem metros de onde esteve encalhado
anteriormente por dezoito meses. Antes de voltar para casa, Santiago percorreu
perdido a praia já escura soluçando de tristeza e decepção por aquela esquina
nefanda de sua vida em que encontrou o navio assombrado.
No desconsolado quarto daquela noite, do seu desconsolado canto, Santiago
Nazário relutava de vergonha e humilhação em soltar diante da esposa os
desabafos do fracasso que culminara em fazê-lo chegar a acreditar nos maus
augúrios do vigilante. Ela então o desafogou com a mão sobre o seu peito na meia
luz, falando devagar com uma súbita voz de visionária. E ele entendeu que, como
acontece a tudo no mundo, ninguém não é vítima senão das próprias penas que se
nos infligimos sem saber. Que se houvesse de fato alguma maldição, era em seu
coração primeiro que ela deveria ser quebrada. Pensou em quantos outros
presságios, promessas e perjúrios podiam também ter marcado a história daquele
navio sem que ninguém jamais os viesse a saber, além dos acasos e coincidências.
E já que as coisas do mundo todo estão de alguma maneira entrelaçadas, imaginou
quantas outras histórias não teriam decorrido em outros lugares da terra derivadas
daquela viagem, sobretudo na China ou em Taiwan, aonde em vão esperaram os
vinte e poucos marinheiros mortos que não voltariam jamais. Assim como quantas
outras histórias já não teriam se desenrolado sem que os que as estavam vivendo
soubessem das que as precederam. Que o inerme também já estava morto. E que
todas as culpas e remorsos precisavam ficar para trás, diluídas e reconciliadas

27
numa espécie de consciência do mundo para que cessassem seus efeitos mesmo
entre aqueles que já se foram, para que o mundo pudesse reencontrar o rumo da
ordenação cósmica.
Na manhã seguinte reconheceu que era fundamental admitir o que adivinhara
a mulher. Foi só aí que sua gastrite começou a se apaziguar, e na recuperada
placidez do seu sono compreendeu que o sofrimento por que tantos ali já haviam
passado era bastante antídoto para quebrar qualquer encanto que houvesse. Sem
ânsias dessa vez, para que não se lhe rebentassem as entranhas, esperou
despreocupado outra maré alta, fez moderados e sossegados arranjos, investigou
calmo os movimentos da lua, e a tarefa de escavar a areia sob o casco para
encaixar os calços foi cumprida de forma tão espontânea e coordenada que lhe
pareceu muito menos cansativa e demorada mesmo quando teve de cavar com as
unhas no dia em que o maquinário engasgou com os pedaços de cascalho que se
prenderam na fita de içamento. Deixou novamente a esposa, tranquila agora quanto
ao que teriam com o que viver uma velhice pacata mas sem apertos, para viajar
outra vez atrás de conseguir uma âncora grande e pesada o suficiente, cônscio de
que o quê ou quem procuramos em algum lugar nos esperam.
De fato, quando menos se esperava, o augusto dia chegou, e com ele de novo
a preamar. Uma semana depois, Santiago Nazário partiu no Sin Hai II, não mais
com apenas a fé na bússola e no cronômetro. Vinte dias depois voltou com prata
suficiente para passar a velhice já próxima junto à mulher sem os apuros de
necessidades mais extremas. Guardou como uma relíquia o diário de bordo, onde
foi decifrando aos poucos os borrados ideogramas com um velho dicionário de
mandarim que adquiriu com um oriental dono de uma pastelaria na capital da última
vez que ali esteve à procura de uma âncora com a certeza de que a encontraria. O
Sin Hai II dividiu sua vida, e com os anos seus rescaldos foram-se apascentando.
Condescendeu com o inerme ao declarar uma vez que o caso do cozinheiro se
tratava de uma aguda depressão. Mas agora o encanto estava rompido e seus
destemidos marinheiros podiam descansar em paz para que outros pudessem
prosseguir vivendo. Porque, segundo consta, o Sin Hai II ainda navega na calmaria
da cabotagem da Costa Oeste do Atlântico Norte, à cata de encher seus porões de
peixe fresco.

28
Entre Fados e Tumbas

Como um voto de clemência das divindades meteorológicas, o calor que


fizera com que aquele dia parecesse interminável converteu-se na piedosa aragem
que se precipitaria na chuva cândida que afagou a noite desde a entrada da
madrugada. Idalina encasulou-se na rede assim que o cheiro de poeira molhada
desceu no quarto. Talvez não só o Céu, mas o mundo também possa ser bom,
pensou. É como se o mundo todo também estivesse dormindo, longe, apagado, e
apenas ela estivesse desperta, entorpecida, e livre das consciências que tumultuam
a vida lá fora. O marido Antônio e o filho pequeno estão numa esteira embaixo da
rede. As necessidades todas em repouso, adormecidas, adiadas. Salvo o frio. Se a
temperatura caísse mais um pouco, teria de levantar-se para cobri-los com um
lençol. Mas têm as inquietações da memória, tantas; embora os fatos pretéritos de
nada lhe servem por enquanto, como quer que os tenha vivido ou percebido, o que
são coisas distintas, naquele instante ela haveria de estar tal como agora, ouvindo
e sentindo o cheiro e o rumor da chuva nesse imenso escuro, como se não
houvesse amanhãs. Mas há de haver, assim que essa chuva passar com a noite.
E desejou não apenas poder pressentir ou adivinhar o futuro, mas como traçar a
rota certa até lá. Antever o futuro não seria senão enxergar uma realidade tal qual
aparece em sonhos, em fatos avulsos, consumados, não em seu encadeamento
para que seja possível evitá-los.
Nada acontece abruptamente, assim do nada, e sua premonição pode não
passar de uma precipitada ou insuspeita dedução, embora não tenha havido até
agora nenhum sinal que prenuncie os fatos vindouros. Nenhum eclipse ou cometa
virá prenunciar o que talvez todo mundo já esteja sentindo estar próximo de
acontecer. Nem o ganido do cachorro louco no meio da noite, nem o desassossego
dos bichos no chiqueiro, nem um espelho partido no crepúsculo das seis da tarde.
De incomum mesmo, naquele dia, e na caudalosa noite daquele dia, apenas a

29
bonança dessa chuva inesperada para a época do ano. Ademais, tudo pode dar
em nada, e mesmo que o nada em que Idalina está mergulhada naquele momento
venha a dar em tudo, não há mais o que fazer. A única coisa certa são as ditadas
pelas necessidades do corpo. Precisa dormir. Ainda uma vez pensou no homem e
no menino espremidos na esteira sob sua rede, e adormeceu compadecida deles,
ali, com suas almas vagando por outras vidas de sonho, à mercê das coisas todas
que sucedem nos eternos ciclos deste e de outros mundos.
No ponto mais profundo da noite, lembrou-se de que deveria ir arranjar um
lençol para protegê-los do frio. O silêncio fê-la lembrar que já não chovia, que era
então aquela hora em que até os cavalos dormem a sono solto e já não tarda a
amanhecer. Foi aí que a alarmou as passadas e o resfolegar da carreira esbaforida
de alguém percorrendo numa hora daquelas a estrada em frente à casa de ponta a
ponta até calar-se, como se estivesse em uma fuga ou em uma perseguição de
vida ou morte. Chegou a pensar se talvez não fosse aquele o presságio que esteve
esperando, mas logo entenderia que não, que pelo adiantado do ano aquilo já não
seria senão a primeira nota dos fatos que nenhum sinal viera anunciar, porque,
deitada de volta na rede, os olhos acesos na escuridão esperando, começou a ouvir
longínquo uma espécie de chapinhar nas poças d’água que enlameavam a estrada
de terra vindo desde onde, de dia, ainda não se pode ver quem vem lá, escondido
por trás da curvatura da distância. Aguçou os ouvidos para distinguir o crescendo
do burburinho modulando-se numa cadência de chouto de cavalo que a escuridão
transportava para dentro da casa apagada. Ouviu vozes de comando, tilintar de
metais, relinchos, passos firmes no chão alagado. Idalina não quis pensar que já
sabia o que era, e caminhou em direção à fenda da janela sem tentar mitigar o ruído
dos seus passos nem as palpitações do seu peito, porque compreendeu uma vez
mais que apenas estava indo constatar que os fatos se sucediam à revelia de sua
vontade ou premonição. Distinguiu pela fresta a silhueta do umbuzeiro plantado no
terreiro contra o céu que começava a avermelhar-se atrás. Quase amanhecia. E foi
quando então viu as sombras em movimento. Definindo-se e adensando.
Eram dezenas de homens em suas cavalgaduras, que sob a luz alaranjada
do crepúsculo descreviam o perfil de centauros que não eram deste mundo. Idalina
não pode conter um soluço de espanto quando uma das silhuetas parecia agora

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mirar em sua direção como se a delatasse a indiscrição de bisbilhotar. Ao recuar
assustada, chocou-se com o jirau dos potes d’água. Ouviu a voz ainda rouca do
marido deitado na esteira atrás de si querendo saber o que se passava. Idalina
respondeu, sem dizer palavra, com o mau presságio que iluminou de terror seus
olhos na penumbra. Antônio não esperou para ir em direção ao alarido e inclinou-
se diante da janela para olhar. Era o que todo mundo já tinha ouvido falar, mas
ninguém tinha ousado crer. As tropas comandadas pelo famigerado sargento-mor
vindo dalém mar para debelar o movimento republicano dos libertários que se
haviam apoderado da província tinham chegado com suas bocas de fogo e seus
mortíferos cães de guerra.
A casa ficava à beira do caminho de quem vai ou de quem vem, seja na paz,
seja para a guerra. Assim, portanto, para Antônio, menos que para Idalina, que
tentara em vão advertir o marido sobre o nexo entre a ocasião e o ladrão, nada têm
a ver os caminhos com os propósitos de quem os percorre, tampouco uma casa à
sua beira. Nesse caminho até a cidade, sua era a única casa que restou digna do
nome, porque outras mais algumas, na verdade muito poucas, quedaram-se
desabitadas ao amanhecer porque ninguém quis ficar para se certificar em que
ponto dessa estrada dar-se-ia a primeira batalha, ou onde seria o vestíbulo do seu
teatro, muito menos quais seriam os coadjuvantes. E, como se está cansado de
saber naquelas paragens, e fácil de se deduzir em qualquer lugar, os recursos não
são tão abundantes em ermos assim, e que o povo que o habita muito crédulo
deverá de ser, que é melhor que dizer amedrontado, pois lá isso não deve ser quem
vive de fé nessas beiras de estradas. Há sinais de que se pode crer, como na
módica fortuna de ervas e plantas que crescem sozinhas no mato, como ali mesmo
no terreiro o frondoso umbuzeiro que ninguém sabe mais quem plantou, fincado ali
desde que o mundo é mundo, talvez antes mesmo da mãe de Antônio nascer, a
que agora descansa sob a lápide que o filho lhe improvisou com um bloco de lajedo
ali mesmo nos arredores como ela lhe havia encomendado dizendo que para
aquele fim, sobretudo para o seu próprio fim, seria muito mais condizente a
perenidade da pedra que a frágil beleza de um jardim para quem já se terá ido. E
no mundo que ela deixou, como ela mesma pregava, há também boas galinhas
poedeiras que “Deus dá”; um que outro cabrito para se botar chocalhos; um regato

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por perto para a sorte de se poder pescar umas piabas; um bom manejo do curtume
e da carnaubeira, que também há os dons que inspiram homens e mulheres a terem
algo de belo e útil a que produzirem na vida; e em todos os tempos e lugares, ainda
que comedidos como ali, haverá sempre meios de fortuna para que os mal
agradecidos não venham a repetir, como repetirão mesmo assim, com irônica
ingratidão, que são meios de pobreza de filhos sem pai deixados no mundo sem
eira nem beira. Uma vaca de úbere leiteiro, um cavalo raçudo, uma vinha, já isso
nem tanto, porque seriam luxos demasiados, e canseiras também, porque ali é
lugar pequeno, onde das manhãs até às tardes fustiga bastante o sol, e só um
pouquinho já é suficiente num lugarejo assim, onde as felicidades não são lá grande
coisa, mas as tristezas também não. Porém, nessas mesmas soledades de bordas
de estrada sabe-se também que uma tropa como a que está passando ali, de certo
que estacionará por lá. Vinda de tão longe guerrear, deve ter muita necessidade de
provisões. Devem querer economizar as reses que conduzem consigo, o fumo que
hão de pitar, carecer de sombra para aliviarem os chapéus, os capacetes e as
bandanas, refazer os curativos de assaduras e calos, uns bons e amargos tragos
de aguardente com que desopilar o fígado, e o que mais trazem em seus farnéis
ou deparam-se no caminho que se lhes parecer salutar para o ânimo combatente.
Nada, ou muito pouco disso há ali. Vãs coronhadas em duas ou três portas abaixo
e a primeira claridade do dia mostrando apenas o ainda quente rasto do abandono.
Salvo na de Idalina, diante da qual não foi preciso esmurrar nem gritar ameaças. O
marido já se adiantou a receber os beligerantes forasteiros no terreiro, onde se
descobriu do chapéu em humilde homenagem e singelo respeito. De cima do
cavalo um sujeito o examina, dá uma volta em seu entorno, responde-lhe com
sotaque o cumprimento dos bons dias, e lhe requisita as galinhas e os cabritos que
por ali ciscam, a serem restituídos em breve quando da vitória da campanha.
Segundo Antônio, podem levar o que precisam, mas que deixem ao menos um par
de cada para procriação, que senão em breve lhe faltará o sustento. Quiseram
saber o que significava a cruz sobre a pedra do quintal, e ele explicou que era o
túmulo da mãe. Onde ficava o poço, ou a cacimba, ou o riacho onde se
abastecerem de água; qual era o seu nome; que sim, Antônio, e Antônio de quê; a
idade sua, e dos demais que viviam ali, a idade e o sexo; quantas léguas até o

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município dominado pelos nativos republicanos; se conhecia algum atalho até lá;
se era favorável à tal súcia de rebeldes. A essa última questão, Antônio vacilou
sobre se também deveria ser honesto, se não iria ofender seu inquisidor dizer, com
a alegoria que ele fosse capaz de cunhar, que libertários e conservadores não eram
senão dois lados da mesma moeda deitada sob a sombra do poder, e ousou então
responder que não era um desocupado e que, portanto, não costumava tomar
partido nessas questões complicadas de guerras e políticas, pois a única coisa que
sabia mesmo assim de verdade sabida era de tocar o bom e feliz ordenamento de
sua família e de sua propriedade. Seus interlocutores, porém, mal conseguiram
entender o que ele acabara de dizer em seu engrolado sotaque sertanejo senão o
tom de uma desafiadora e insolente hostilidade.
De fato, estava tudo em ordem na casa quando a vasculharam, a mesma
ordem que havia encontrado meses antes o piquete armado dos rebeldes
republicanos logo que lograram escorraçar as milícias a serviço dos reinóis
mandatários da região. Habituados às armas de fogo, porém, os militares do
sargento-mor coligiram os indícios de uma mão de pilão com vestígios de carvão
moído e uma cumbuca contendo farelo de salitre à uma balancinha de boticário que
encontraram oculta sob o cadafalso de um baú. Esses elementos fizeram levantar
contra Antônio as severas suspeitas de que aquilo não servia para outro fim senão
o de fabricar a pólvora caseira com que supostamente ajudara a abastecer os
rebeldes durante a revolução. Diante daquelas evidências, Antônio não teve outra
alternativa a não ser lançar mão da mesma, falsa e até ingênua confissão que havia
preparado para dissuadir as milícias republicanas meses antes quando também
haviam batido em sua porta. Perante o assombro de Idalina, que se soubesse que
ele iria arranjar aquela justificativa o teria interrompido alegando o óbvio estado de
demência do marido, Antônio tentou explicar, bem devagar para que o
entendessem, que aqueles produtos faziam parte das fórmulas empregadas por ele
em seu secreto laboratório de alquimia, o qual ele mantinha em sigilo porque
sempre fizera questão de deixar essa prática longe dos olhos inquisidores da
esposa puritana. Antônio mal teve tempo de se sentir ridículo ao lembrar que aquela
desculpa, não teria servido nem mesmo para os libertários republicanos que eram
mais tolerantes em matéria de práticas científicas ou místico-religiosas. Vendo-se

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sem mais recursos quando puseram as pesadas mãos em Antônio, Idalina grudou-
se com as unhas no vão da porta de saída em fúria de insultos e maldições, e até
a cusparadas contra os assustados sujeitos que muito tiveram de forcejar para
tirarem-na do caminho. De imediato conduziram Antônio à presença do sargento-
mor junto com os resquícios materiais do seu crime de lesa-majestade. Julgado
sumariamente como sendo no mínimo um fornecedor de ocasião para o movimento
revolucionário republicano, teve anunciada sua pena capital. Para que não
esperneasse, amarraram-no com mãos e pés atados uns nos outros para trás no
tronco do umbuzeiro, enquanto ele pensava que a vida inteira tinha imaginado que
um evento nobre marcaria seu fim, uma morte gloriosa, não aquela, que mesmo
sendo uma culpa que erroneamente lhe imputavam, aos olhos das testemunhas
não passava de um pobre revolucionário fracassado, aos pés daquele mesmo
umbuzeiro do qual nunca saíra de perto desde que nascera, e que agora seria seu
patíbulo.
Ao aproximar-se para cumprir a sentença, o carrasco perguntou-lhe se tinha
preferência por morrer de tiro ou facada. Respondeu que de tiro, como teriam
respondido todos quantos soubessem ou adivinhassem ser muito mais malévola a
frieza de uma lâmina, inclusive o próprio verdugo, que pelo riso deixou claro que
aquela última generosidade com o condenado não passava de uma cruel zombaria.
Estavam em campanha de guerra, desculpou-se para Antônio, sem tentar esconder
seu sarcasmo, precisavam ser parcimoniosos com a munição, o que só lhe deixava
a segunda opção, o afiado cutelo. Um sujeito desembainhou de seu cinturão uma
longa e pontiaguda lâmina escura, passou a língua pelo gume e segurou Antônio
com força pelo colarinho. Um silêncio enorme de expectativa inundou a cena, e por
isso tanto mais alto e súbito pareceu o grito que se ouviu naquele instante. Era o
sargento-mor pedindo para suspenderem a execução. A seu lado Idalina com o
filho no colo, o pranto de desespero convertido em júbilo de alegria por ter
finalmente convencido o comandante da tropa de que muito mais préstimo à sua
estratégia de campanha lhe teria o marido vivo do que morto, perito que era Antônio
em conhecer aqueles caminhos, seus atalhos, bifurcações e entroncamentos, os
trechos propícios a emboscadas e como e por onde melhor desbordá-los, os frutos
de beira de estrada que se podem e os que não se podem comer, o lugar exato

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onde dava vau à jusante do rio que terão de cruzar até o destino, além de saber
quem era quem entre os sediciosos que lá, vencida a guerra e depostas as armas,
hão de querer se confundir com os cândidos e pacíficos inocentes. Antônio, sem
poder se virar para a direção de onde partira a ordem, não soube a que se devia
aquela súbita clemência. Com a mesma adaga com que o golpeariam partiram com
desprezo as peias que o prendiam ao umbuzeiro. Deitado de bruços na poeira viu,
pelas pálpebras inflamadas pelos tabefes que levara, o ambiente retomar a
normalidade de sua azáfama. A tropa aliviando seus apetrechos de campanha,
conduzindo os animais para o córrego que ele lhes havia indicado a direção,
recompletarem a forragem no mato que ladeava a estrada e imediatamente
começarem a se aprontar para retomar a marcha. Um conhecido par de alpercatas
femininas encobriu as tumultuadas imagens. Idalina ajudou-o a se erguer ralhando
contra suas imprecações de que teria sido melhor ter morrido do que ter agora de
suportar uma humilhação daquelas. Foi aí que ela lhe contou que ele deveria
acompanhar a expedição, que muito tinha ele ainda para viver antes de voltar inteiro
e redimido. Antônio ficou sem entender, ainda se recuperando do baque de ter visto
de perto a expressão repleta de desdém que viu na fisionomia da morte, quando
um militar que se aproximara lhe ordenou que arrumasse uma trouxa pequena com
o essencial para levar, porque ele serviria como guia para a tropa dali em diante.
Pensou que por um erro de pontaria a clarividência que tanto se atribui aos
moribundos fora despejada sobre Idalina, mas que, a propósito, ele sempre
soubera que em alguma medida todas as mulheres possuem esse dom, e que era
abusar da sua sorte tentar apelar contra a determinação de acompanhar a tropa
quem acabara de ter poupada a vida. Antônio então contentou-se em segredar à
mulher que ele parecia ter saído do fogo para cair na frigideira, e que logo os
forasteiros voltariam atrás na comutação da sua pena quando descobrissem que
nenhuma serventia lhes podia oferecer um traste velho como ele em reconhecer
caminhos batidos que todo mundo sabia onde vão dar.
Idalina teria se condoído até às lágrimas diante da imagem de Antônio
cruzando a soleira de casa com sua rede e sua muda de roupas numa rota sacola
de pano estampado, se aquilo não representasse a única alternativa de tê-lo
mantido vivo. Assim como ele mesmo pensava, naquele momento em que saía de

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casa, no perjúrio que era ter de se juntar na conta dos inimigos dos seus
compatriotas. Não por sua própria conta, que Deus estava vendo, nem que ele
fosse lá muito afim com a causa dos libertários, isso Deus também sabia, mas ir à
testa de uma tropa estrangeira contra eles lhe feria os inatos melindres patrióticos
que ainda carregava ocultos no coração. E serviu-lhe de consolo lembrar as
palavras de alento que Idalina lhe dissera enquanto ele se lamuriava arrumando
sua trouxa. Porque ela o havia admoesto que não importavam mais quais fossem
os votos de honra que ele havia assumido naquela bendita guerra, porque o
primeiro compromisso que um homem tinha de honrar era o que jurara diante do
Pai Eterno para com sua casa e sua família. E que a luta dele talvez não fosse outra
senão consigo mesmo, e que se tivesse alguém de morrer pela merda desse
negócio de pátria, que fossem então os seus inimigos que morressem pela pátria
deles, e repetiu que ele cuidasse, portanto, de ir de bom grado e lutar para
sobreviver e voltar inteiro e redimido. Que desse um jeito de escrever uma carta,
se pudesse, ou mandasse um mensageiro com um sinal de vida. E Antônio repisava
tudo o que ela lhe havia dito tentando em vão encontrar na realidade o mesmo
apoio que tinha encontrado no eco de suas palavras quando a ouviu lhe perguntar
se não levaria sua arma. Ele estacou um segundo diante do alpendre já sem tempo
de tentar entender como é que ela sabia; mas disse apenas que não, que não a
levaria, que ficasse lá onde ela sabia então que estava, junto ao polvarinho, para
que ela mesma a utilizar na proteção da casa. E foi-se Antônio, sem se despedir
para também não ter que chorar por fora o que transbordava por dentro, calculando
que dali até a cidade que irão sitiar levam uns três dias de viagem, o mesmo tanto
de volta, mais o quanto irá durar a guerra perfaziam o total de tempo em que estará
ausente. É pouco, ou pelo menos não é muito. Já lhe passou a idade plena da
virilidade, mas dá para aguentar. Talvez mais breve ainda seja seu afastamento de
casa, porque a essa altura os seus oponentes já tenham notícia da marcha em sua
direção, e para não ficarem esperando é que já venham vindo lhes emboscar a
meio do caminho. E isso também fez chorar de dó Idalina depois que seu homem
partiu, de dó de imaginar o pobre marido desarmado sem saber para que lado correr
quando acontecer a sangrenta refrega.

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Na condição de guia, Antônio é um dos que vão à frente. Talvez o estejam
empregando também como escudo humano, porquanto não sabem que mais
provável é que os libertários republicanos o enxerguem como atrativo alvo para
uma mira indignada pela perfídia que ele pratica como guia de forasteiros. Um tácito
tiro mira sua nuca caso corra, queira dar uma de louco, caso os descaminhe ou
jogue-se de cima de um barranco qualquer. Por sua vez, os compatriotas que ele
odeia quando o virem à frente do exército adversário a conduzi-lo, mais dilatado
desejo terão em lhe dar a merecida e cruel morte que será apenas um prenúncio
do recinto de fogo que deve haver no Inferno reservado aos que atraiçoam. Talvez
haja alguma maneira de deixar-se mostrar como refém tal qual é de fato. Pender a
cabeça para a frente, por as mãos para trás como se estivessem atadas, ter chance
de dizer que lhe ameaçaram a mulher e o filho. Mas há muitos ruídos na mata seca
das margens dessa estrada. Na certa os que vem na frente espionar a tropa já o
viram em sua má conduta sem adivinharem nada sobre o que carrega por dentro
no martírio do seu dilema. Ao longo daquele dia imenso já vai se familiarizando com
algumas usanças bélicas, pormenores, terminologias, o significado dos toques de
corneta. Vendo o movimento de armas olha para a ferramenta de sapa que lhe
deram para carregar em bandoleira. Será sua companheira inseparável desde que
entendeu sua utilidade. Com ela deverá cavar um buraco onde se proteger dos
disparos caso precise, caso dê tempo, caso o chão não seja tão pedregoso como
este em que vê o fantasma da sua sombra o acompanhando, o que o faz pensar
também no caso de que não venha a ser essa cova que cavará como trincheira a
cova da sua sepultura mesma. Antes fosse um daqueles guerreiros que ali vão
ladeando-o garbosos, êmulos devotos de São Thiago ou de Marte, com sua
indumentária e apetrechos beligerantes. Outros nem tanto, desmotivados talvez
porque no fundo saibam que a causa dos libertários tem lá suas razões de ser, de
terem de ir combater em terra estranha e distante, e porque a chuva da noite
passada foi só um alento que apenas lhes fizera brevemente esquecer o quanto
esse sol louco daqui castiga.
Sem outro jeito, a Antônio ficou reservado desempenhar esse seu ingrato
papel na guerra, nessa eterna trama do traidor e do herói, com sua gasta pá de
coveiro pesando a tira colo, e lhe ocorreu tentar descobrir em que lugar estamos

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no ciclo cuja ciência do ponto onde este se teria iniciado nos permitiria saber se a
um destino se carrega para se fazer merecer coisa melhor além ou se se merece
conforme se carregou os destinos pretéritos que se houve por merecidos. Quantas
vidas, ou quem sabe quantas mortes, passaremos assim para chegar a
compreender. Isso é o que talvez Idalina já saiba, secretamente, ou apenas sente,
que é como saber desde que não lhe perguntem, que na verdade uma única vida
basta para se vir a saber, porque tudo que acontece em qualquer tempo e lugar,
guardadas as devidas proporções, acontece dentro do prazo de nascimento e
morte de todos os indivíduos. Mas sobre essas coisas talvez seja melhor apenas
antever, apenas especular, porque quanto a isso nem os sentimentos do marido
nem da esposa são coisas em que deva cismar muito um cristão, a que melhor se
coaduna à doutrina saber e assumir resignados que não se sabe, estar-se
conformado em que não se pode saber, ou porque não importa, ou tanto faça, ou
não valha a pena. E deixando de lado essas divagações, Idalina se contorce na
rede. Levanta-se para ir cobrir o filho agora solitário na esteira que parece ter
aumentado de tamanho sem o marido. Vai ver que aquilo também se devesse à
teimosia dele em permanecer ali à mercê daquela gente, quando toda a vizinhança
lhe aconselhara ir embora com eles, e Antônio relutou dizendo que não podia deixar
para trás o lugar onde estava sepultada a mãe sob a pedra do lajedo. Porque ela
mesma tinha vindo de muito longe através de tantas dores que deixou para trás
para tomar posse da terra que lhe cabia, e nela parir, morrer e ser enterrada, como
passar o bastão que ele recebeu como um legado sagrado para que sua
descendência jamais arredasse pé do seu pedaço de chão. Os antigos vizinhos
apelaram a Antônio lhe garantindo que ele podia voltar quando a guerra terminasse,
e foi quando ele argumentou que nunca simpatizara com os libertários republicanos
como eles e que, portanto, não tinha culpa no cartório nenhuma para sair por aí
feito nômade ou foragido. Mas Idalina refletiu que não eram só as veleidades de
Antônio, também havia o tudo o mais, e maldisse o dia em que a bendita mula do
correio estropiou-se para atravessar os labirintos insidiosos da mata dos coqueirais
para trazer até àqueles rincões, entre os papeis dissolvidos pela intempérie dentro
das cangalhas de vime, o retardatário alvará timbrado pelo brasão de armas
improvisado expedido por uma junta militar provisória que decretava abolida a

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autoridade do antigo reinado imperial sobre o território das províncias, as quais
constituíam agora um Estado Nacional Federado a ser regido pela Constituição que
dentro em breve se haveria de promulgar.
As autoridades locais não reconheceriam a legalidade daquela declaração,
e a única justificativa ponderada que deram para isso foi uma circular lida em voz
alta nas praças dos distritos mais populosos da região desqualificando a revolução
republicana como uma quartelada que logo receberia o tratamento devido através
da corte ultramarina, e que, quanto àquela província, sustentava que nada tinha a
ver com o assunto, uma vez que aquela freguesia na verdade estava inscrita numa
localidade pertencente ao território do Grão-Pará, o qual, felizmente, segundo o
despacho, mantinha um regimento próprio e que nunca fizera parte direta ou
indireta dos delineamentos político-geográficos da colônia, nem do reinado, desde
o tempo das capitanias, e nem depois, na administração do Governo Geral. E que,
portanto, aquela província toda, com suas freguesias e paróquias, estava tão só e
exclusivamente subordinada às determinações do Conselho Ultramarino, o que a
mantinha livre “das intrigas de bastidor de oportunistas de ocasião, das
instabilidades políticas e das cobiçosas desavenças partidárias”. A data inscrita no
alvará republicano trazido pela mula do correio era de três meses atrás, o que podia
dar a entender que era algo consolidado e que assim que soubessem na capital
que haviam antigos mandatários reinóis refratários às determinações legais
expedidas pelo novo governo, este trataria de enviar seus delegados escoltados
por milicos para intimá-los a cumpri-las. Como não havia terminado ali a era da
inocência, porém, e ninguém naquela freguesia então fosse capaz de atestar, de
ciência certa, se a região em questão fazia ou não parte, senão de direito, ao menos
de fato, do tal território contemplado no referido alvará encaminhado pelo noviço
governo republicano, tampouco Idalina e Antônio, nem ninguém de sua deserta
vizinhança de beira de estrada, pôde conceber quais seriam dali em diante as
implicações práticas que afinal de contas aquela disputada novidade traria para o
cotidiano de suas vidas. Os dias, portanto, continuaram se passando sem outras
notícias, sem manifestação alguma do tal governo central que dizia ter implantado
uma coisa curiosa, ainda que meramente novidadeira, chamada república. Mas o
primeiro alarme que soou foi-lhes dado pelos próprios mandatários locais quando

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de última hora justificaram o anúncio de uma majoração de tributos alegando a
necessidade de armar e equipar uma força militar contra uma possível investida de
guerrilhas republicanas. Havia algo de tenso em sua voz. Se os mandatários
estavam se precavendo devia ser contra algo não apenas possível, mas muito
provável, e esse boato foi fermentando na mente de muitos moradores as intrigas
da revolta. Da omissão passaram à desobediência civil, à sabotagem e em seguida
às escaramuças sangrentas desde a fatídica manhã em que um incidente deu
morte a um coletor de impostos. Desde então o vento passou a soprar empesteado
da violência praticada por ambos os lados até a casa de Antônio, que jurou para a
esposa aflita jamais se envolver com qualquer dos lados daquele pandemônio.
O pior já havia passado e os revolucionários já tinham tomado a direção dos
distritos da região e proscrito pela forca ou pelo degredo os antigos mandatários
reinóis e seus congêneres, quando Antônio considerou que estava entre gregos e
troianos, e que breve um expansivo sentimento de vingança poria sua renitente
isenção debaixo de suspeitas ou que a qualquer momento poderia ser alvo de um
delinquente qualquer sob os influxos da desordem reinante. Desenterrou sem a
esposa saber sua velha garrucha da época das guerras napoleônicas, lixou com
areia fina a alma do cano, desempenou a vareta de alimentação, regulou a alça de
mira, lubrificou o ferrolho com duas gotas de azeite de cozinha e a escondeu sob o
pedaço de lajedo que servia de túmulo para a mãe. De fato, quando, poucas
semanas depois, milicianos libertários adentrassem sua casa triunfantes, nada
encontrariam com que pudessem expiar seus fervorosos desejos de desforra. Mas
a sossegada sensação de que era improvável ser alvo do rancor de ambos os lados
daquela disputa dissipar-se-ia dali a seis meses de falsos alardes adiante, quando
os revistadores da tropa que viria com o intuito de debelar a gloriosa insurreição
republicana, dessem como suficientes para incriminá-lo os vestígios de fabricação
de pólvora caseira, sem sequer terem de precisar pensar que ele fosse capaz de
profanar a sepultura da mãe, cuja preservação ele mesmo havia dito ter sido um
dos principais motivos de não ter se escapulido de casa tal como seus vizinhos. E
lá ficara, sob o lajedo do túmulo mesmo, a garrucha guardada enquanto Antônio
reunia os malfadados elementos para a produção de pólvora até se dar conta de
quase tê-la esquecido por completo quando Idalina lhe perguntasse, visionária, a

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ele espantado diante do alpendre sem ter tempo de tentar adivinhar nem lhe
perguntar como foi que ela soube, se ele não levaria a arma consigo. E não seria
nessa mesma ocasião, nem em nenhuma outra, com a trouxa de retirante e a pá
de coveiro com que ele seguiu com a tropa, que lhe ocorreria pensar que o
conhecimento da mulher dessas coisas não se tratava de um sexto sentido, mas
senão do holístico e metódico instinto com que as mulheres coordenam as
atividades da casa e de seus moradores, mas sobretudo assessoradas pela
maneira mal disfarçada com que os homens tentam dissimular delas seus mistérios
e que quanto mais furtivos se tornam nessa tarefa mais escancaram para a
compenetrada atenção das mulheres aquilo o que eles julgam estar conseguindo
lhes ocultar. Mas suspeitar desse dom, ou da falta de jeito dos homens, em nada
lhe provocou algum menoscabo, antes lhe fez saber satisfeito de que as tantas
lacunas nas palavras e gestos com que tantas vezes tentara demonstrar seus
sentimentos haviam sido devidamente preenchidas e até adocicadas pela
clarividência da esposa.
Enquanto Idalina recapitulava os acontecimentos desde a chegada da mula
do carteiro com o alvará republicano, a forçosa viagem de Antônio tinha seguido
sem maiores dramas aquele primeiro dia, salvo pela desmotivação que tornava
aquela marcha muito mais comprida e seus pés desacostumados muito mais
maltratados. Um desassossego crescente invadiu o segundo dia, trazendo aquela
ânsia comum que acomete os homens quando veem se aproximar a batalha. E ele
pensava que tudo em sua vida não fora senão um percurso em direção àquela trilha
rumo à morte que ele vai abrindo agora à testa da vanguarda do pelotão de
precursores. Porque foi obrigado conforme a comutação de uma pena que ele não
merecia, e, depois, pela oportunidade de redenção que devia à esposa. E recordou-
se do filho e da imagem da mãe enterrada no quintal sob o bloco de lajedo só com
uma cruz descarnada sem flores, e que se eles o vissem assim como está agora,
homem amadurecido e de coragem, que nunca é tarde, feito soldado indo para a
guerra, ainda que sem divisas nem coturno, nem outra arma que uma módica pá
de coveiro, talvez se orgulhassem dele se não soubessem de sua condição, nem
do que no fundo sente por dentro. Dos voos repentinos de pássaros assustados e
dos estalidos de galho quebrando que se ouve aqui e acolá em meio à mata seca

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que acompanha a estrada ele sabe que não são indícios apenas de lagartos e
pebas, mas também dos espias que chegam até ali para averiguar qual a
disposição e o efetivo da tropa, que armas portam, quais meios logísticos trazem.
Provavelmente sua cabeça já estará a prêmio na freguesia porquanto muitos lá o
conhecem, e, mesmo que não o reconhecessem, mesmo de longe é notório que
ele não faz parte da tropa senão como delator, cagueta, coiteiro, à paisana como
vai, bastardo, sem aquele tom de pele, de cabelos e de barbas que têm os
carcamanos que ele conduz com seu andar cansado de sertanejo nitidamente
destacado no meio da fileira de forasteiros fardados. Logo adiante daquelas
ladeiras estará o rio a transpor. Se a essa altura já sabem que ele vai junto guiando
a tropa, na certa os esperam do outro lado justo no ponto onde existe um vau, onde
com certeza será o local de passagem que no fiel cumprimento de seu dever
funcional Antônio haverá de recomendar ao sargento-mor.
O que estará fazendo Idalina, além de rezar pela promessa que fez contanto
que ele cumprisse a sua parte que é a de voltar vivo e inteiro? Vivo, inteiro e
redimido. Sugere então que esqueçam o vau. Se os aguarda uma enrascada, não
haverá outra posição melhor para perpetrá-la que do outro lado do vau, de onde
terão de sair um por um em fileira simples como patinhos na lagoa. Que tratem,
pois, de providenciar uma balsa, pirogas, que se arrisquem pelo vau, que se
avenham a nado, pouco lhe importa que se danem. Tudo é um sem sentido só, um
limbo onde todos o odeiam, como a um espúrio, a um desterrado. Os de cá entre
os quais vai junto o tolerarão só enquanto lhes durar sua serventia, que logo cairá
em desgraça entre eles. Ou será escarmento nas mãos dos que estão lá do outro
lado da margem. Sua pá só representa agora a sugestão da sua tumba, se bem
que o mais provável é que atire seu cadáver no rio qualquer dos lados a que couber
se livrar dos seus despojos, já que, então e por óbvio, ele mesmo não estará vivo
para cavar a cova ancha em que teria quisto descansar de suas aflições e
tormentos.
Depois do rio a marcha tornou-se lenta, arrastada, quase imóvel devido às
ciladas armadas pelos defensores libertários. Uma semana depois de tomarem
Antônio por guia, travou-se um primeiro e virulento combate. Ninguém soube afinal
que lado levou a pior em meio à legião de homens disformes e mal armados

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lançando-se suicidas sob os gritos dos estertores da morte na chacina clamando
por Deus em bestialidades, a água de um pequeno regato convertida em sangue e
tripas dos libertários tombados boiando na superfície e a barbárie da loucura que
deixou o horror e a confusão reverberando na mente abalada da tropa forasteira.
Foi aí que outra vez Idalina despertou de madrugada ao ouvir as passadas e o
resfolegar de alguém percorrendo a estrada em frente. Esperou agora contendo a
alegria esfuziante de que que esse alguém se detivesse em frente à porta de sua
casa e que dissesse ser o mensageiro que viera trazer a notícia de que o marido
estava vivo. Olhou pela greta da janela. Viu apenas um cortejo de mortos-vivos que
não soube se eram fantasmas ou se ainda eram gente que voltava da guerra. E
não esperou que suas pegadas sumissem no silêncio para decidir ir atrás de
Antônio consolando-se de que numa hora daquelas soe de se adiantarem apenas
para trazerem notícias ruins. Dias a fio procurou por ele entre os cadáveres, depois
entre os enlouquecidos, no pecúlio dos desertores, e afinal deu com ele imundo
deitado no chão de uma das barracas da encarniçada enfermaria armada no meio
da praça do centro do distrito, inconsciente e sem o movimento de um dos braços.
Agora visto como o filho da puta de um reacionário derrotado, era vigiado por uma
sentinela com ordem dos libertários para conduzi-lo à degola em hasta pública pelo
crime de alta traição e lesa-pátria tão logo desse sinal de vida. Outra vez o esperava
o pelourinho, e, de dentro dos pesadelos inconscientes do seu coma, Antônio
sonhava que deveria pedir para morrer a facadas e não mais de tiros caso lhe
perguntasse isto o seu verdugo libertário. As coisas repetiam-se, pensou Idalina,
com pequenas oscilações ou mesmo em avessas e sarcásticas ironias. Mas foi no
instinto do surto bravio de fêmea feroz para proteger a cria diante do mais terrível
dos seus predadores que ela se muniu da coragem premonitória que lhe deu
certeza de que não havia chegado sua hora de morrer. Sob a luminosidade já
desmaiada de uma lua cheia que já havia percorrido quase todo o seu percurso no
céu daquela noite, ela entrou com um fogo vermelho vivo nos olhos feito um
espectro mal-assombrado na tenda onde Antônio agonizava ensopado no foço dos
seus lamentos oníricos de moribundo. Trazia em riste e com o dedo tremendo de
ódio sobre o gatilho a velha garrucha que ele lhe havia deixado sob a lápide do
lajedo. E tão bem suprida da vontade de extermínio com seu cenho transtornado

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numa determinação e numa fúria loucas após vir à tona do abismo de sua dor, que
o guarda surpreendido lhe entregou atônito sua arma sem ousar arriscar-se a
descumprir um único detalhe de suas ordens e exigências. Mandou-o arrastar com
cautela o marido sobre a manta ensanguentada e depositá-lo na carroça que os
esperava do lado de fora com o filho dentro, assumir as rédeas do burro e conduzi-
los até fora dos limites da freguesia, onde seria liberado com vida caso se portasse
bem. Assim foi feito, e Idalina cumpriu sua palavra. Estavam a salvos pelo meio da
manhã, quando Antônio finalmente teve força suficiente para despertar e sustentar
o olhar apesar da claridade. Demorou a crer que já não mais era um hóspede do
inferno, embora por algum tempo permanecesse ainda refém do sentimento de que
qualquer esperança lhe houvesse sido amputada. Idalina necessitou reprimir
caudalosas lágrimas para terminar de lhe resumir como tinham ido parar naquela
carroça em que fugiam agora. Antônio conseguiu aos poucos erguer a cabeça e se
manteve por algum tempo ouvindo enquanto olhava o chão vendo a estrada passar.
Pensou em adivinhar para onde estavam indo, mas discerniu que o que mais
importava agora era ir de qualquer jeito, ainda que sem se saber exatamente para
onde, desde que não fosse para o passado. Reuniu energias para lhe perguntar
onde havia conseguido pólvora. Idalina disse que a garrucha não estava carregada,
que havia blefado, mas com tanta convicção que se tivesse falhado a fulminação
do seu olhar teria partido a cabeça com o cano da arma ou com mordidas de quem
quer que fosse capaz de ousar descumprir o que ela determinasse que fizesse
naquele transe; e que, como o próprio miliciano estivera guiando a carroça, não os
detiveram em nenhuma das barricadas. Antônio olhou para o menino adormecido
a seu lado, coberto com o mesmo lençol e sobre a mesma esteira de sempre,
admirado de que ele estivesse em sono profundo apesar dos solavancos no piso
da carroça que Idalina tocava em frente. Foi aí que ele se deteve curioso no
estrépito seco de uma enorme sacola de pano presa por dentro da grade lateral.
Idalina soltou um suspiro, guardou silêncio uns segundos, e lhe respondeu que
agora eles podiam ficar em paz, fossem para onde fossem, porque a mãe dele
estava junto, que aquilo estalando dentro da sacola eram os ossos dela que Idalina
mesma havia desenterrado de debaixo do lajedo.

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O Jaguar

Quando o avô de meu pai rumou pra cá, isto aqui devia de ser uma soledade
danada, dessas sem termo. Acho que nem índio nunca tinha aparecido aqui, desde
o tempo de Dom Cabral. Jamais tinha vindo alguém pra cá; pelo menos nunca tinha
vindo ninguém que tivesse resolvido ficar, é o que digo. Mas, sei lá, vai ver que foi
por isso mesmo que ele veio, esse meu bisavô. Justo porque não tinha mais
ninguém. Ou algo, alguma mágoa, foi o que fez ele sair de lá, sem se importar onde
é que iria dar. Parece que tinha um ressentimento contra o pai dele; por causa de
não lhe ter dado nada, ou quase nada, por ocasião de uma herança. Isso nunca
pude averiguar. Mas, em todo caso, vindo pra cá foi sua chance de fundar seu
lugar, o mundo do seu modo. E assim mesmo. Sem nada. Só com o que ainda não
tinha desapredindo a fazer, como me disseram depois que ele costumava dizer.
Era uma família grande já a dele, ruidosa. Muitos filhos, entre os que vieram
já grandes e os que foram nascendo aqui. Naquele tempo, o senhor sabe, era uma
mortandade danada de criança assim por criar, e se precisava de gente capaz de
ajudar no sustento. Se bem que tinha o caso de parentela de afins, genro, de nora,
de agregado, e de falsos parentes que vieram também depois, que sempre vêm
quando o negócio parece que vai prosperar, o senhor sabe como é. As meninas
tinham que casar logo mesmo, cedo ainda. Era o costume. Acho que porque senão
corriam o risco grande de chegar em certa idade, se é que o senhor me entende, e
gerarem filho sem marido, de ficar mal afamada. Mas como tava dizendo pro
senhor, era uma família assim, numerosa. Até os bichos do mato eles foram
espantando, porque se tinha de ficar dias para achar caça mais volumosa, e
demorou foi tempo até darem com as primeiras pegadas de fera afundadas no
barro, assim como de se topar com o esterco delas achado ainda quente nas

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picadas das trilhas que davam para o rio, ainda mais que têm o hábito de enterrar
com as unhas. Digo assim, desses bichos que se ouve o rugido medonho de longe.
O senhor já ouviu de perto o esturro de um jaguar?! Pois não queira nunca, não.
Uma dessas feras é que deu origem à tragédia que eu tô dando esses arrodeios
todos pra lhe contar como foi. Ou então foi esse meu bisavô, sei lá, coisa de destino,
sabe?, com aquele negócio de vir pra cá. Pro meio do nada, feito doido. Imagina
como era isso aqui naquele tempo. Mas por isso é que achei que devia contar a
história desde o começo.
Eram outros tempos, como se diz. E pra ficar por estas bandas selvagens
sem ter de viver como bicho, como índio bravo, só mesmo por um motivo que desse
muito rendimento, ouro ou pedraria, madeira de lei. Mas o que sei é que na época
desse meu bisavô já tinham desistido de procurar mina por aqui. A sanha se
sossegou com uns negócios que demandavam borracha. Era um troço novo, e foi
quando muita gente se desembestou pra mata dos confins, de onde a seringueira
era natural. Aqui dava bem menos, demorava achar o tal desse pé crescido, que
não dá assim um do lado do outro. Teve até o caso de um estrangeiro que quis
fazer agricultura. Investiu muito, mas não vingou, dava uma praga danada. Só
restou a cidade fantasma abandonada no meio da selva. Mas meu bisavô resolveu
ficar por aqui assim mesmo, longe de tumulto; e porque não queria “se submeter
mais a patrão nenhum que ficasse mandando e desmandando nele”, como eu ouvi
ele dizer uma vez. Não acho que ele era dessa gente que foge do progresso, sabe?
Que parece que quando ele vai chegando, o progresso, vai se enfurnando mais
ainda pra outras bandas desertas de gente. Porque sei que ele tinha deixado sua
jura de vaqueiro em fazenda de gado no Piauí pra vir pra cá, em sonho de viver
melhor. Deixou a prática daquele ofício, é o que digo. A fé, nem tanto assim, porque
era como um troço sagrado, ou porque sempre especulou de qualquer dia, quem
sabe, querer ou precisar voltar. E a vida inteira que restou ainda rendeu cerimônia
a seus arreios, seu chapéu adornado, seu gibão e suas perneiras de couro,
pendurados num canto da casa. Era como um cavaleiro daqueles antigos, que a
gente ouve falar nas histórias de cavalhadas, inconformado de ter necessitado
renegar seus juramentos. Mas aí foi ficando por aqui, se acostumando, até seus
cabelos esbranquiçarem, enevoando e confundindo as lembranças dele. A bisavó

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teria gostado de voltar junto, de sua parte porque tinha seu quinhão de saudade
também. E tinha de ensinar aqueles filhos todos a se aquietarem de nostalgias,
fincar raiz. Ademais porque ela sofria como ninguém de medo durante o terror das
tempestades daqui, que eram tremendas, e, além de tudo, tinha para si que era um
mau presságio o pesadelo permanente que ela tinha, de que tigres ferozes
entravam à noite pela porta da cozinha que alguém tinha se esquecido de trancar
por dentro. Passava a noite rondando com seu terço em madrugadas chuvosas,
tremendo sob os clarões dos relâmpagos, cobrindo a filharada com lençol nas
épocas de friagem. Certa vez eu mesmo vi ela, já bem recurvada pela idade,
percorrendo a casa com uma lamparina tateando pra conferir as fechaduras, as
tramelas de madeira, os caibros que usavam para travar as aberturas da casa.
A terra aqui sempre foi úmida, mas barrenta e ruim pra semente ou muda
que não seja da região, a não ser mandioca. O jeito então nos começos foi esse
avô de meu pai botar a filharada toda no manejo da seringueira e trocar a produção
por outros gêneros no meio do rio, interceptando as barcaças que passavam
levando mercadorias pras terras dos confins. Sangravam ele por umas míseras
galinhas, uns dedos de querosene, punhados de açúcar, tiras de tecido de fazenda
ou ferramentas. Era, e se quiséssemos, o preço de não se ter barganha no mundo.
Em menino, ouvi que meu bisavô era um homem gregário. Guardei essa palavra
sem entender, e só fui saber o significado muito adiante, quando um primo do meu
pai negou isso quando alguém repetiu aquela opinião. Porque, segundo ele, meu
bisavô só tinha feito amizade com os comandantes das barcaças depois que soube
que trocavam mercadorias com a gente apesar de um decreto que proibia eles de
comercializar com produtores independentes. Mas, voltando ao assunto, perdoe
essa falação toda, meu patrão, o que digo é que foi esse meu bisavô aí que primeiro
trouxe as histórias de suçuaranas medonhas, devoradoras de homens e cavalos.
Minha avó, mãe do meu pai, embora não tivesse herdado nem os pesadelos nem
o pavor de trovoadas da mãe dela, cresceu ouvindo essas histórias dele, que lhe
causavam mais terror que os causos de lobisomens e assombração, pensando
aflita nos filhos caminhando desamparados no meio do mato atrás do que nem a
roça nem o comércio com as barcas chegavam para suprir.

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Não sei muito bem como foi não, assim na origem, no pormenor. Mas me
interessei muito cedo pelo fato de vivermos num ermo danado desses, e queria
entender. O senhor já deve de tá avexado, eu imagino. Muito do que digo é de
segunda mão, de ter ouvido falar, mas fui acareando e comprovando depois com
outros casos; e algumas coisas eu imagino, pelo óbvio. Perdoe se estou fugindo do
assunto que o senhor quis saber. Não queria abusar, não. Mas é como se a gente
fosse entrando num túnel do tempo, viu? Vai lembrando de coisa que já tinha se
esquecido, e a prosa acaba tomando outro rumo. Fui juntando pedaços de histórias
que ouvia em casa, de pedaços de histórias e de imagens que tenho. É muita coisa,
o senhor pode ver essas minhas rugas. Já devo estar um caco velho, eu sei, mas
ainda aguento muita privação e trabalho. Naquele tempo de eu moleque, isso aqui
já era quase uma vila, mas coisa pequena, entende? com um monte de palhoças
espalhadas por essas beiras, mas afastadas umas das outras. Minha mãe era filha
de uma dessas famílias que vieram depois. E tenho pra mim que com o tempo as
coisas foram degenerando também. Quando minha mãe estava grávida do quarto
dos sete filhos que teve, nós morávamos numa dessas palhoças na beira do rio.
Teve muitos filhos, como minha bisavó, mas mesmo assim ela iria reclamar mais
tarde, como vi minha bisavó reclamar também, igualzinho, de que tinha criado os
filhos para o mundo porque eles cresciam e iam-se embora. Mas acho que a ruína
do negócio da borracha que então sustentava as barcaças que passavam por ali
constantemente trazendo novidades também forçou esses filhos desnaturados a
saírem por esse mundo que Deus deu. Meu pai foi dos poucos que restou. Aí um
dia ocorreu uma enchente calamitosa, o que obrigou a gente a voltar pra casa de
meu avô, a mesma que tinha sido do pai dele, meu bisavô, já então falecido, o que
fundou isso aqui, como contei pro senhor, ainda com aquelas roupas de vaqueiro
penduradas, porque minha bisavó tinha feito questão de deixar lá de lembrança
depois que ele se foi; e quando assumiu a casa, minha avó respeitou a vontade
dela, que já estava bem avançada na idade. Foi nessa época que um irmão mais
novo do meu pai também veio morar nessa casa do meu avô junto com a gente,
alegando os mesmos prejuízos da enchente, mas que na verdade todo mundo
sabia que era só um pretexto porque não se tinha notícia dele fazia tempos desde
que tinha ido embora não se sabe pra onde e voltado só agora. O que se contava

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era que meu avô tinha meio que deserdado ele, acho que por um motivo que depois
vou contar. Mas aí, quando a cheia nos expulsou, eles tiveram de se reconciliar, e
meu avô aceitou que ele viesse com a gente ficar lá. Mas afinal todo mundo se
alegrou porque a casa andara meio deserta, e apesar do luto que minha bisavó
ainda vestia, aquela meninada toda meio que rejuvenescia os mais velhos; e foi um
tempo de otimismo porque todo mundo se aferrou à esperança de que as barcaças
que percorriam o rio com suas paradas para nos oferecer as novidades que levava
e trazia dos aviamentos que carregava para as terras dos confins logo voltariam a
trafegar por o rio já dava sinal de que começava a baixar. E, não sei se por uma
questão de respeito pelos avós, ou porque minha mãe estava já com uma gravidez
avançada do oitavo filho, quase não houve briga entre meu pai e minha mãe nesse
meio tempo; digo quase, porque houve sim uma vez que os dois discutiram, como
era comum acontecer quando morávamos na beira do rio antes da enchente, onde
tínhamos presenciado brigas violentas. Mas fazia tempo que isso não sucedia, e o
motivo da discussão ensejaria a saída do meu tio daquela casa poucos dias depois.
É que quando morávamos a sós na beirada do rio, a gente ficava sabendo
de coisas e palavras de ofensa que eu nunca tinha tido ciência antes. Ficava
escondido, envergonhado, com medo quando meu pai entrava em casa bebido.
Num desses entreveros foi que eu soube que o sogro dele, o pai de minha mãe,
tinha-se mudado pra cá porque era um fugitivo, depois que se envolveu com
contrabando de ouro. Parece que houve uma revolta e deram morte a um sujeito
numa disputa por garimpos, algo assim, numa emboscada. Eu sabia dessa história
desde menino, mas sem muitos detalhes, e quando íamos visitar esse meu avô por
parte de mãe, viagem de dias e dias de barco depois que ele se mudou de lá, eu
ficava intrigado pensando se ele era capaz mesmo de ter feito aquilo, mas já estava
tão idoso e livre de culpa nessa época, que eram como histórias que se conta de
ter visto em livro. Mas eu ficava olhando ele, intrigado, com seu olhar espantado
fixado num ponto do chão. Acho que foi para revidar a alguma insinuação do meu
pai em relação a isso, que minha mãe um dia, naquela briga na casa de meu avô
durante a espera de que o rio voltasse a seu leito, revelou aos berros o caso
daquele nosso tio que foi morar com a gente na casa de meu avô nessa época,
aquele irmão do meu pai. Ele não tava em casa nessa ocasião, mas parece que

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soube o que tinham dito sobre ele, porque sentiu que todo mundo estava meio
arredio com ele quando voltou e entendeu que havia tido uma discussão. De fato,
minha mãe tinha dito que na verdade ele era acusado de ser ladrão de cavalos, e
gritou que devia ser sim, porque ela mesma havia ouvido meu avô bradar pouco
antes de nos mudarmos pra lá que não queria ver ele diante de si nem pintado de
ouro, e ela contou ainda que esse meu tio, na falta dos cavalos, vinha roubando as
galinhas e outros objetos de menor valor, como era o costume dele desde que tinha
vindo se juntar a nós.
Mas é justo desse tio aí que eu queria falar agora, perdoe eu ter me alongado
tanto em pormenores. Porque foi ele quem tinha trazido os cães de orelhas
compridas quando a gente tava morando com meu avô, e que, segundo ele,
serviam para afugentar as onças. Nos contou que as onças eram muito mais
potentes e ferozes, mas tinha uma coisa no latido dos cães dele quando se
juntavam, esses que eu disse, da orelha comprida, uma estridência, não sei, que
atordoava as onças. E foi ele também que explicou o que só nós crianças tínhamos
entendido, que a enchente era só uma forma de o rio exigir o que era dele.
Somando tudo, ele morou com a gente acho que uns seis meses. Era um sujeito
ainda jovem, mas já com aquela sua cigania de ficar andando sem parar em lugar
nenhum por muito tempo. Ficava dias inteiros socado no mato, mas não gostava
de trabalhar como os outros poucos irmãos e parentes que ainda teimavam na lide
de achar seringueira, e preferia contribuir com um que outro bicho que conseguia
caçar ou pescar, os mesmos a que minha mãe passara a desconfiar serem
roubados. Tinha fascínio pelo jaguar, que era como ele apelidava as onças, e nas
andanças dele pelo meio do mato com outros moradores da região foi que ouviu
muitas das histórias com que depois vinha nos impressionar. Uma delas contava
que existiam espíritos danados correndo perdidos na noite escura da mata
espessa, e que esses demônios encarnavam no jaguar, quando esse bicho então
deixava de ter medo do fogo e passava a querer devorar seres humanos. Mas que
acontecia também de primeiro ir comendo os cães, depois os gatos da casa, um
por um. Quando você percebesse que não havia mais nenhum desses bichos
domésticos em volta do terreiro da casa, na certa o jaguar já devia de tá na sua
espreita, te olhando entre as folhas no meio do mato toda vez que você saia.

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A gente, menino, sentiu muita falta desse nosso tio quando meu pai botou
ele pra fora de casa, e ele deve de ter se envergonhado muito de a gente ter visto
aquela cena. Talvez por ser muito jovem, de barba ainda rala, adorava fazer
brincadeiras com a gente, a maioria delas meio grosseiras, é verdade, mas era
animado. Sabia armar arapucas e mundéis, e uma vez chegou a construir com
troncos uma jaula enorme e robusta com um cadafalso e uma isca de fígado de
cabra para tentar provar pra nós todos que o pavoroso jaguar que dizia andar
rondando o vilarejo existia. Mas como não conseguiu capturar nada em sua
armadilha, alegou que aquilo não era prova de que o jaguar não estivesse por perto,
mas sim do quanto o bicho era astuto e arisco. Lembro do dia em que ele chegou
trazendo seus vira-latas, que depois foram dando cria até se tornarem uma matilha.
Mas aí, um belo dia, uns três cães desses atacaram minha irmã mais velha,
morderam feio ela. Teve uma discussão violenta entre meus pais, a primeira, eu
acho, desde que a gente tinha ido morar na casa dos meus avós por causa da
enchente, como eu disse; e no meio dessa briga em que minha mãe acusou o
cunhado de ser ladrão, ela disse também que era um absurdo que além de tudo
ele ainda estivesse infestando a casa de cachorros loucos, pulgas e calazar. Acho
que meu pai ainda tentou defender o irmão, e deve ter-se dado por satisfeito, mas
mal os ânimos tinham se acalmado alguém começou a chamar lá de fora do portão
de treliça. Eram uns vizinhos distantes. Tinham vindo tomar satisfação contra esse
meu tio. Nunca soube o que ele fez de errado, se de fato o acusavam de ter roubado
alguma coisa, mas meu avô ficou muito irritado e embaraçado, passou mal, e
lembro até hoje dos olhos e da voz severa do meu pai esbravejando entredentes
quando chamou meu tio no corredor e eu fiquei ouvindo pela janela ele dizendo que
não queria mais ele naquela casa, que se fosse embora imediatamente. Meu tio
baixou os olhos sem questionar. Meu pai deu um tempo para ele arrumar suas
coisas, que eram praticamente uma rede velha e um par de sandálias, até a
primeira balsa ou canoa que passasse descendo ou subindo o rio apesar da
enchente. Não sei se por protesto pela sua inocência ou porque quis acreditar que
aquela desavença era no fundo uma ingratidão por causa dos seus cachorros, esse
meu tio sequer esperou por qualquer barco e logo após receber a confirmação de
que meu avô estava irredutível diante de seu pedido de perdão e que concordava

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com meu pai, saiu prendendo um a um pelo pescoço os animais dele numa embira
enorme e conduziu eles todos, até os filhotes, para o meio do mato. Sei que nunca
mais se avistou nem se teve notícia dele nem da cachorrada que ele saiu
arrastando. Parecia um doido tangendo e gritando a matilha com um cajado
pesado. Aí demorou umas semanas, sabe? Até que um daqueles vizinhos de longe
reapareceu no terreiro de novo batendo palmas atrás da treliça de fora, com os
outros olhando de longe, meio constrangidos. Tinham vindo retirar a queixa, acho
que porque tinham encontrado o que pensavam ter sido furtado, ou porque
acharam outro culpado. Num lembro direito, não. Mas sei que era pra retirar a
queixa, e queriam falar com o tio que já tinha partido com seus cães. Meu pai ficou
ouvindo, depois disse que tava tudo bem, que iria resolver, mas não vi mais ele
nesse dia. Saiu pra ficar isolado e não voltou até a hora de dormir. Mas acho que a
dor maior mesmo foi a de minha mãe, porque o resguardo todo daquele seu
enésimo filho, sabe? que, aliás, era uma menina, o resguardo todo dela, minha mãe
tinha esconjurado o barulho enlouquecedor da cachorrada latindo noite adentro.
Mas aí, meu senhor, assim que os cães se foram, e vai ver que era por isso que
tinha uns que esganiçavam o latido como se tivesse morrendo, uma onça pavorosa
veio e entrou bem dentro mesmo na varanda da casa. Tava para escurecer. A casa
tava cheia de gente, mas ninguém viu ela se aproximar, ninguém viu nada, ninguém
suspeitou de nada, meu Deus do céu, nem vulto, nem nada, e talvez por isso foi
tão grande o espanto e a dor. Nem as galinhas deram sinal. Já devia estar nos
rondando fazia tempo, como vinha dizendo meu tio. O pior é que, além de não
termos cabras nem porcos para atrair a fome da bicha, não tínhamos mais o auxílio
barulhento e farejador dos cães. Depois de saltar por cima da cerquinha baixa de
treliça, foi direto, sorrateira, pro lado da casa onde tinha um alpendre. O senhor
pode estar sem entender, mas agora eu vou lhe contar o pior. Faz uns quarenta
anos isto, mas ainda é duro demais contar aquele desespero. Deus me livre. Foi
coisa do maligno mesmo. A gente sofria de deitar no chão de uma dor
convulsionada. Não sei que Deus é esse que permite uma atrocidade daquelas. E
o senhor vai entender o ódio do meu avô e do meu pai, e porque minha mãe nunca
perdoou a vingança omissa do meu tio. A natureza é boa e bonita nos quadros de
paisagem na parede dessa gente aí de cidade que nunca morou por aqui para ver

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a dificuldade que é. O tempo todo é enchente, é seca, é bicho, é mato, é praga, é
cigano. Mas o que aconteceu foi isso, doutor: o jaguar pulou o alpendre e entrou
no corredor de fora da varanda. Era minha avó que tava cuidando da minha irmã,
que acho que tinha menos de um mês de nascida, porque parece que minha mãe
ainda tava se recuperando da gravidez complicada que teve, não sei. Mas aí minha
avó deixou minha irmã deitada dormindo dentro de um balaio enquanto retirava
umas peças de roupas do varal que o sol já tava baixando. Deve ter ouvido um
resfolegar, um choramingo, ou visto um movimento atrás de si quando olhou de
lado para o resto da roupa que ainda estava estendida. Acabou de se virar para
olhar, e aí teve a visão aterradora do jaguar carregando a criança pendurada na
boca. O balaio ainda balançava. O senhor imagine o desespero danado que num
foi aquilo, vixe maria!
Meu pai, meus outros tios e meus irmãos mais velhos seguiram os rastos
correndo feito doidos varridos no meio do mato. Passaram a noite no mato
despedaçando tudo com seus terçados. Demoraram dias para se reunir de novo.
Meu avô então elaborou friamente a sua vingança. Esperou a primeira barcaça
voltar para encomendar o que precisava. Instruiu os filhos, contratou mateiros e
adquiriu uns cães com as orelhas compridas e latido aturdido iguais aos que aquele
meu tio tinha trazido e levado consigo. Talvez, quem sabe, pensou em mandar
alguém atrás de meu tio, pedir pra ele voltar. Fizeram muitas caçadas desde ali.
Buscou em vão um método de atrair o jaguar, com rosneiras de tuba, mutãs e até
com uma fêmea que eles capturaram viva e ele deixou presa pensando em esperar
ela entrar no cio para carregar a jaula para o meio do mato. Mas não funcionou
muito bem, acho que porque tinha algo de maldade de como ele pretendia se vingar
caso conseguisse capturar mais desse bicho. Contavam as histórias dessas
caçadas, diziam ter matado vários, mas me parece que não foram tantos assim.
Conseguir pegar um bicho desses naquela época era uma façanha danada, a
comunidade toda vinha reverenciar agradecida e aliviada. Mas sempre contavam
também, meio contrariados, não sei se com ironia, que nunca puderam saber se
afinal abateram o que tinha carregado minha irmã. Lhe conto isso, pro senhor, que
entende. Acho que foi uma forma de desenlouquecer que eles passaram a se
devotar àquele ofício de canseiras. Devia ter ficado um mal-estar eterno na casa

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desde o dia traumático, eu penso. Não é que eu queria me meter a falar de coisas
de espiritualidade, reencarnação, essas coisas. Dizer palavras difíceis. Mas
alguém, não sei mais quem foi, que uma vez comentou que os repetidos pesadelos
de minha bisavó de que tigres entravam em sua casa em noites de chuvarada
podiam ser uma memória que ela tinha, de algo que já devia ter mesmo de
acontecido antes com uma ancestral sua, esquecida. De modos que nos revolteios
de tempo que o mundo dá, essa mesma ancestral era de novo minha mãe, ou pelo
menos os sentimentos, carregados com o peso daquela tragédia como que
renovada, até ser esquecida novamente, e ficar sendo relembrada apenas nas
sensações, que se manifestariam nas suas manias, fobias e pesadelos. Sei que
minha mãe jamais teria aceitado aquilo como uma prefiguração do que ela tinha
passado. E porque tinha um rancor dela também com minha avó, porque no fundo
acho que nunca perdoou ela, de ter-se descuidado com a neta bebê. Além da
mágoa que ela teve do cunhado, pela forma enviesada, sem precisar agir, com que
teve a vingança dele, entende? Mas pode ser também que ela nunca conseguiu
perdoar nem ela mesma, desde a ocasião dos vizinhos vindo bater em casa para
se desculparem da acusação infundada. Vai ver que esse negócio de rancor e
mágoa, e tudo o mais, é como algo maligno que encarna na pessoa, tipo um bicho
mesmo. Aliás, eu nunca pensei em quem na verdade foi mais cruel nessa história
toda. Porque parece que teve os que agiram por se arvorarem donos de si e do
mais, outros por destino, e outros por puro instinto. Talvez eu já esteja mudando
muito o rumo da prosa. Perdoe, mas acho que na cidade as pessoas não vão
entender o que estou dizendo, das razões que motivavam aquela gente. Como eu
disse, eram outros tempos, outro lugar. O senhor é de lá, da cidade grande, eu sei.
Se ficar por aqui algum tempo, talvez compreenda, quem sabe? Se for dormir aqui
esta noite não se amole não, tem um monte de cachorro alerta no terreiro. Eu que
crio em homenagem a meu tio que nunca voltou, e quem sabe nunca nem teve
notícia alguma do que sucedeu depois que foi embora. Mas quando o senhor for
viajar de volta amanhã por essas trilhas no meio do nada até o rio, tome muito
cuidado o senhor. Não ande sozinho por aí, não, nessas brenhas, nem nunca dê
as costas pro rumo de onde ouvir ou sentir alguma coisa. É que nem nessa vida
aqui, onde é perigoso se descuidar dos botes de coisas ruins, que no fundo é a

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gente que acaba atraindo mesmo. Porque o diabo anda solto por aí e é traiçoeiro.
Não queira saber na carne como é, tal como a gente aqui sabe até hoje na dor que
fica remoendo num latejo dentro da alma da gente. E se tiver mágoa de rancor
guardada aí é que chama mesmo; mais pior ainda é ter de matar ou morrer com
ele, é o que eu quis dizer pro senhor.

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A Ferrovia

Já visitara muitas vezes a casa daquela senhora antes, de quem nunca tinha
entendido muito bem qual era a verdadeira relação de parentesco consigo, talvez
uma espécie de tia-avó sua. Nesse dia, porém, surpreendeu-se de que só agora,
quando viu a porta do quarto dos fundos entreaberta, é que se havia dado conta de
que ela sempre estivera cerrada antes. Como se houvesse estado até então
lacrada, proibida. Agora, curiosamente, ela deixava uma fresta. Jamais poderia
adivinhar então que por detrás da gravidade daquela passagem havia todo um
passado querendo escapar pelo vão para se imiscuir na realidade do presente.
Sentiu uma atração confusa mas irresistível, como exercem sobre as pessoas os
pontos de luz na escuridão, o chamado das coisas desconhecidas. Era como se a
porta estivesse prestes a revelar um meio, um plano escondido por trás de seu
símbolo de vedação e sombras contra o qual Deus nos dera olhos e luzes para
querermos olhar, e perscrutar. De fato, cruzar aquela soleira haveria de ser como
atravessar o umbral para um ambiente de coisas que se espraiariam para o resto
de sua vida inteira.
Por acaso, talvez por distração, ou quem sabe até mesmo, como muitos
anos mais tarde chegou a suspeitar, por um consentimento tácito dos poucos
ocupantes da casa deserta, reverberava na penumbra do corredor a amarelada
claridade que escorria pela fresta da porta daquele cômodo. Ao aproximar-se do
vão iluminado por uma claraboia, viu seu habitante. Um estranho afantasmado
fumando absorto sentado na cama no fundo do recinto mágico. As peças da

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mobília, os gestos constritos, a barba e o cabelo crescidos sem corte, a má
disposição dos objetos a seu redor, tudo indicava que ele era uma espécie de
morador, mas com uma condição, uma natureza de refugiado, de prisioneiro. Podia
ser que tivessem limpado e arrumado o quarto nas vésperas, mas seu aspecto de
poço, de calabouço, estava gravado na atmosfera que o preenchia. Antes que
pudesse se virar para fugir da imagem confusa do estranho desconhecido, ouviu a
voz maternal da mulher atrás de si. A senhora conduziu seus passos embaraçados
para dentro do recinto, e ela deve ter-se curvado porque pôde sentir o calor do seu
hálito bem rente à sua nuca quando sussurrou com sua voz rouca de anciã quem
era ele:
─ Esse homem aí, criança, é seu avô.
Ouviu o homem articular uma pergunta, ouviu o nome de sua mãe, e a
mulher atrás de si afirmando:
─ Pois então. Essa criança é filha da Valentina, que é a mais velha dos filhos
que você teve com Tiana Nasser.
A voz da mulher trazia menos um acento de desforra que de comiseração.
Talvez os anos tivessem feito caducar qualquer pretensão de vindita. E o próprio
sujeito sentiu-se bafejado pelo ar de reconciliação que o fez ousar amparar-se no
fio de dignidade de realmente querer saber, ainda que isso pudesse parecer um
abuso da condição de inimputável que os tantos anos de ostracismo e
envelhecimento lhe haviam conferido.
¾ E os outros dois que também tive com ela? Também me deram netos?
A mulher retaliou de pronto:
¾ Te deram? Tudo o que a vida te deu, você perdeu miseravelmente,
criatura. Até a própria vida. E os mortos e esquecidos nada têm de seu.
Embaraçado, o sujeito desviou-se simulando tentar acender um toco de
cigarro que o vento entrando pela porta do quarto aberta dificultava. Ela não quis
tripudiar, mas nunca perdia a chance de repetir um velho acinte:
¾ Nenhum deles sequer carrega o estigma do teu sobrenome, Domingues
Moriz. E tampouco os teus próprios filhos o carregariam, se eu tivesse sabido a
tempo que teu pai abandou aquela sua tia para morrer daquele jeito, e ainda fez a
coitada da sua mãe claudicar a vida inteira.

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Tinha se escapulido sem ouvir o final da conversa entre a mulher e o suposto
avô desconhecido. Um turbilhão de sentimentos rolou sobre sua cabeça.
Permanecera apenas alguns instantes naquele quarto opresso, que muitos anos
mais tarde viria que se tratava de uma alcova minúscula, mas que ainda preservava
uma atmosfera de crime e masmorra. Mas aqueles poucos segundos, inertes,
foram o suficiente para perceber que o tempo se dilatara diante do sujeito que ela
achara que estava morto e enterrado em sete palmos de terra e muitos outros de
esquecimento, porque desde sempre ninguém falava dele na família, como que
para evitar perturbar o descanso dos mortos, mas que na verdade se tratava de
não perturbar o sossego dos vivos. De fato, ali iniciou-se o seu desassossego.
Tinha visto suas unhas escuras e compridas como asas de barata, suas mãos e
dedos finos segurando o cigarro idênticos às de sua mãe Valentina. Aquela porta
constrita, que uma réstia de luz denunciara haver sido apenas entreencostada, foi
assim a beira de um atávico precipício, uma fissura mal rejuntada no tempo.
“Sebastiana Nasser”, a senhora tinha dito. Sim, era esse o nome da avó, a quem
com ternura chamavam de Tiana.
Ela mesma, Tiana, a quem tanto tempo antes o sujeito generoso que a criara
até aos seis anos de idade viera de longe para largá-la na porta da casa onde
cresceu, que era ainda apenas uma meia água sem calçada e com uma única
janela lateral. Foi assim que Tiana chegou, na tarde do dia qualquer em que a
deixaram no povoado que então passava pelo surto de crescimento provocado por
uma onda migratória desde que anunciaram que a estrada de ferro que desbordaria
o curso acidentado do rio para melhor escoar a produção de látex passaria por ali.
De fato, de uma das balsas fretadas para trazer às centenas os operários que iriam
ser empregados na construção da ferrovia é que Tiana haveria de desembarcar
arrastada pela mão convulsa do homem surdo ao rumor dos viajantes suarentos,
ao vozerio dos pregoeiros, à catilinária dos ambulantes, ao crepitar das brasas da
fuliginosa culinária a céu aberto e dos pássaros à venda com os bicos sangrando
dentro dos viveiros do infestado porto fluvial. Essa imagem cristalizar-se-ia na
memória de Tiana como o burburinho uníssono de seres agônicos surgidos de
repente no mundo sem saber para quê exatamente, assim como para ela mesma
como o quadro vivo da primeira imagem que viu quando se deu conta de que estava

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no mundo. Nessa cidadela em que Tiana foi deixada, que haveria de fixar no cinza
das suas recordações a atmosfera que mal invadida pela luz da memória dava a
impressão de estar sempre nublado apesar do calor, na casa dessa cidade em que
Tiana foi deixada, vivia a mulher para quem os acasos das afinidades não eram
menos surpreendente que os do sangue. E que a acolheria sem dramas, lúcida
como quem acaba de acordar, sem contrapartidas, instintiva e resignada diante dos
espantos do mundo, como se lhe tivesse recém dado à luz num parto espontâneo,
sem recados premonitórios, mas também sem dores nem cólicas, e Tiana quase
pôde ouvir de sua boca que, se Deus nos havia legado as mães, fossem naturais
ou adotivas, não seria senão para tentar reparar de alguma maneira o abandono
que é virmos ao mundo.
O homem que trouxera Tiana tinha pressa. Sequer quebrou o jejum ou
esperou que voltasse um dos cabriolés que haviam saído para fazer corrida. Em
meio à fornalha dos dias de julho, deixou sem olhar para trás o porto onde a barca
em que viajara atormentado pelo perigo das corredeiras tinha ancorado e subiu a
ladeira íngreme com a mala de papelão numa das mãos enquanto puxava Tiana
com a outra até alcançar a rua de piçarra que dava na praça onde se deparou com
uma das charretes que voltava, a que o guiou até seu implacável destino. Já devia
ter todo aquele itinerário planejado desde que teve de internar de vez num
manicômio a esposa, mãe de Tiana. Talvez até um pouco antes disso já perfizera
mentalmente cada trecho daquela travessia, que seria o arremate de toda uma
série de pistas e deduções cruzadas que ele fora lentamente acumulando e
destecendo até se consumarem na hora aturdida que o despertou a evidência de
que se haviam definido os traços de Tiana, que desde a tez, das feições e até dos
trejeitos mais banais daquela criatura, pela qual talvez por conta disso seu orgulho
jamais tinha conseguido entabular ternura alguma, denunciavam a paternidade de
um outro homem o qual ele já sabia muito bem quem era; e de quem se dispusera
a encontrar o paradeiro desde que, sem comiseração, mas também sem remorsos,
admitira que de alguma maneira os crescentes surtos de demência da mulher infiel
podiam ser também o aceno de liberdade que rogara a Deus contra o vexame que
o acossava.

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Não tinha dado ainda duas da tarde quando se ouviu na rua que nunca
ninguém passava, muito menos numa hora escaldante daquelas, as patas da mula
derrapando no cascalho. Depois de um silêncio, o chamando indulgente, as palmas
impacientes. Diante da mulher que o atendeu e que de algum modo já previra a
sucessão dos atos de forma quase simultânea aos próprios acontecimentos,
perguntou se era verdade que ali morava fulano de tal. Tão logo respondeu que
sim, mas que ele estava viajando, ela anteviu-o arremessando a mala de papelão
sobre o limiar da porta exatamente como o fez. E adivinhou, não em
prestidigitações do temor, mas na placidez de quem sempre o houvesse sabido,
que ele diria, sôfrego, o que disse:
— Toma. Entrega pro caralho do teu marido! ─ berrou ao empurrar Tiana em
direção à porta. ─ Todo mundo sabe que essa criatura aí é filha dele!

Aquele mesmo salitre, cujos estalos do atrito com as patas da mula no torpor
das duas da tarde soariam por muitos anos no atavismo da memória como o
primeiro sinal da inglória chegada de Tiana, aqueles pedriscos de cascalho, talvez
ainda fossem os mesmos que cerca de quase três décadas mais tarde seriam
varridos nos lingotes do trilho do trem avermelhado que num cândido amanhecer
traria para o povoado, que já era uma cidade com ares efervescentes, para passar
a princípio sucessivas temporadas como funcionário da RFRSA, a Rede Ferroviária
Regional Sociedade Anônima, o sujeito magro de gestos amaneirados e sotaque
de fora. O queixo escanhoado num tempo em que todos cultivavam seus
cavanhaques, o charme com que manejava suas piteiras de cigarros e suas
cantadas baratas pareceram a Tiana o chiste irresistível de uma elegância exótica
desde a primeira e malfadada vez que ela o viu vestido de linho tremulando e o
topete esvoaçante sob o súbito pé de vento na estação que varreu seu chapéu para
longe. Domingues Moriz, de seu nome, tornar-se-ia a encarnação visceral dos
deleites e tormentos que abalariam o já então desencantado coração de
Sebastiana Nasser.
Era filho de um dos primeiros imigrantes que chegaram ao povoado, pouco
antes das barcaças que trouxeram as primeiras levas de operários da ferrovia,
montado num cavalo ruano trazendo a esposa chorosa que pela idade mais parecia

60
sua filha, e que se estabeleceria no distante núcleo habitacional criado ao longo da
picada por onde se estenderia a via férrea, e onde se empregou como vigilante nas
incipientes instalações avançadas da RFRSA. Seu futuro filho, Domingues, era
cinco anos mais jovem que Tiana, e talvez esse fato, e o de ela já ter um filho de
um primeiro relacionamento malogrado, contribuíssem para que ela tolerasse as
inconstâncias viajandeiras daquele novo homem em sua vida. Entre os vaivéns que
ele atribuía ao serviço na ferrovia, Tiana deu à luz três filhos de pai ausente, as
duas meninas e o menino que cresceram esperando em vão com os olhos ansiosos
para a porta da rua solitária ele cumprir a promessa de aparecer nos dias dos seus
santos. A mais velha dessas crianças foi a que batizaram de Valentina Nasser
Moriz.
Uma década do amor intermitente e descompromissado daquele sujeito,
porém, foi mais que o bastante para que Tiana não tivesse mais sombra de dúvida
de que às mulheres é que foi legado sempre o encargo de manter o mundo em sua
órbita, não apenas pelo fardo uterino de terem de parir e carregar os filhos ingratos,
mas por não terem tido muita escolha no dia ancestral em que sua dignidade lhes
fez impor o tácito pacto de que a prole fosse de um único homem desde que ele
ficasse junto para auxiliar na criação e lhes legar o exemplo e um nome.
Concentrava-se em manter a casa de pé contra as tenazes investidas da miséria e
do cansaço cultivando sua horta de manjericão e aipim, utilizando seus dotes de
alfaiate ocasionalmente e desde o entardecer dirigia-se à firma terceirizada onde
preparava refeições para os funcionários do turno da noite da RFRSA. Por essa
época, Domingues passou a aparecer mais vezes em casa e até ficava vez ou outra
para passar a noite. Numa ocasião teve de permanecer semanas a fio por não ter
de viajar enquanto convalescia de uma malária. Foi quando Tiana sentiu-se menos
preocupada em ter de deixar os filhos pequenos em casa. Mas foi durante essas
ausências noturnas da mãe que se consolidaram de vez o terror e a amargura de
Valentina diante das incestuosas sevícias de Domingues. Cerca de dois
longuíssimos anos perdurou aquela tenebrosa situação, até que Domingues soube
da menarca de Tiana, quando então teve de reprimir a animalesca sanha de sua
demoníaca aberração.

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Por muitos anos Valentina reprimiria a angústia dessa violação bestial sem
jamais achar coragem de contar a alguém o seu drama, muito menos para a mãe,
porque um confuso sentimento de culpa atormentava-a com a certeza de que aquilo
minaria de vez os últimos recursos da sensatez com que Tiana procurava manter
seu mundo em equilíbrio contra os achaques da pobreza, da loucura e da
indignação. Dois anos mais tarde desde que deixara de sofrer os suplícios que o
réprobo lhe infligia na ausência da mãe, Valentina aferrou-se à ilusão de esquecer
aquele passado hediondo quando tomou consciência que de um jeito ou de outro
precisava apagar aquela mácula para poder ter a chance de ser feliz na vida. E não
foi só para manter as aparências, mas pelo ardente e inconsciente desejo de ser
uma pessoa normal que num domingo, quando as visitas do pai ignóbil, fazia
tempo, tinham tornado a ficar esparsas, seguiu-o até a um bairro afastado onde o
viu entrar numa casa com uns tinhorões na frente. Na segunda-feira, sem saber
que Valentina farejava seus passos, ele apareceu em casa de Tiana pelo meio da
tarde alegando os contratempos e pretextos do seu ofício. Ao partir no trem da
manhã seguinte, Valentina tomou coragem de ir bater na casa em que o vira entrar
dois dias antes.
À senhora que a atendeu, Valentina perguntou com o coração nas mãos e
sem nenhum sinal de mágoa, se conhecia seu pai, um sujeito assim assado,
chamado Domingues. A mulher respondeu assustada que sim, que era seu filho e
quis saber aflita se tinha acontecido alguma coisa de ruim. Valentina sentiu o peito
palpitar com o acaso feliz de ter encontrado seus avós, mais alguém da família que
podia ser numerosa, e até porque assim como não herdara o caráter do pai, vai ver
que ele também não o tinha herdado dos pais dele. E voltou para casa saltitante
mesmo com a sensação de que era uma clandestina pela frieza e o embaraço da
senhora que a atendera quando se desculpara por estar muito ocupada e não poder
deixá-la entrar, mas para que ela aparecesse depois, que veria um dia qualquer
para que Valentina a pudesse visitar. O que Valentina não sabia é que de pronto
aquela senhora, não só já tinha entendido, como há muito já suspeitava de tudo,
embora nunca tivesse coragem de contar a alguém suas suspeitas, muito menos
ao marido, que enquanto a menina esteve no portão perguntara lá de dentro quem
era, e a mulher respondeu que tinha sido engano. Mas assim que despachou

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Valentina, ela trancou-se na alcova para soluçar de comoção pelos seus segredos
desde a imagem daquela menina descalça mal entrada na adolescência
perguntando com a alma por um fio se lhe conheciam o pai. Porque esse bendito
sujeito por quem aquela menina perguntava, era seu filho, malgrado seu, de quem
ela confirmava agora ter ele herdado as vilanias do pai, pois sempre trouxera na
memória o dia, que vinha agora de chofre com toda a sua sensação de
revivescência, em que devia ter a mesma idade que Valentina agora, quando o
marido a raptou sendo noivo da irmã mais velha dela, a quem deixou esperando no
altar para sempre. E nenhuma das tantas agressões com que ele a violentou ao
longo dos anos do seu casamento com ele, pôde ser mais dolorida que a
permanente privação de qualquer notícia dessa sua irmã, ou de qualquer laço que
ainda pudesse manter com seu passado. Mas o que ela jamais pôde imaginar é
que fora poupada de uma dor ainda maior, porque nunca chegou a saber o que só
muitos anos depois se veio a descobrir por meio de um neto seu que já crescido
andou pelo interior investigando sua ascendência genealógica e trouxe à tona o
destino trágico que a noiva rejeitada perpetrara contra si. Quando soube do motivo
por que o noivo não apareceu, a irmã trancou-se no banheiro naquela noite terrível
assim que voltou da igreja, ensopou o traje de casamento com o querosene que
abastecia as lamparinas da casa e ateou fogo em si mesma. A notícia sobre o
suicídio atroz percorreu os distritos mais distantes da província, mas jamais
chegaria à alcova de prisioneira em que a raptada passara a viver desde que
chegara àquele lugar onde tudo ainda era apenas um projeto de município para
ocupar um casebre isolado nas margens da ferrovia.
Pensando naquele seu filho ingrato, pai daquela sua neta bastarda, já que
ele era casado e possuía quatro outros filhos com a esposa dita legítima num
município afastado cerca de duzentos quilômetros de trem, a mulher lembrou que
ele tinha as mãos delgadas como as do pai, e na certa até as linhas do destino que
lhes entrecruzavam a palma das mãos revelassem a mesma sordidez incestuosa
do seu temperamento brutal. Ao voltar a recordar-se da imagem de Valentina, viu-
se roída por um remorso ultrajante por seu próprio destino, que quem sabe não
fosse menos clandestino que o daquela garotinha aflita, e contra o qual o único
paliativo que sortiu algum alívio foi jurar que dali em diante daria um jeito de ajudar

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os netos desconhecidos e que para melhor poder desempenhar essa tarefa era
necessário revelar tudo isso ao vilão do seu marido, e escancarar tudo, como se
aquilo fosse também uma grata chance que o acaso lhe oferecia de tentar
interromper o ciclo daquela maldita sina fundada por ele. Com efeito, a idade senil
do marido não pode opor qualquer resistência contra a violência sem papas na
língua com que ela rompeu no meio do terraço dos fundos e despejou de uma vez
todo o seu ranço adiado e quase o atingiu na fronte com um candelabro que
despedaçou contra o muro. Exibiu a perna com que claudicava desde à fratura mal
curada provocada pelas agressões dele que na ocasião, muitos anos antes,
negara-se a levá-la ao posto de saúde da RFRSA, e era como a marca que ela
ostentava do carma que carregava no claustro em que ele a manteve desde que a
trouxera arrastada fazia quatro décadas quando veio morar naquela região feito um
foragido e teve a sorte de terem-no aceitado como vigilante na empresa ferroviária.
Uma semana adiante, apesar da decrepitude, o velho fingiu precisar sair para
resolver alguma coisa para não ter de se deparar com Valentina e seus dois irmãos
na tarde apreensiva mas luminosa em que pela primeira vez eles foram visitar essa
avó. Apreensiva, porque nem Tiana tinha podido assimilar que não se tratava de
um engano a descoberta de Valentina, nem a avó sabia como iria fazer para impedir
que Tiana viesse também acompanhada dos filhos, pelo menos enquanto
Domingues não voltasse de sua última viagem para por seus malignos embustes
às claras.
Um incidente aterrador, porém, precipitou essa revelação quando, três dias
depois, pouco antes de Domingues retornar, Valentina correu até a casa dessa avó
para pedir socorro porque a irmã mais nova estava passando muito mal. Ao chegar
em frente à casa, Valentina viu um rapaz regando os tinhorões da entrada. De
cabelo e barba raspados, tinha vindo visitar a avó durante a primeira folga que lhe
havia concedido a prestação do serviço militar inicial obrigatório. Seus olhos
grandes cintilaram de espanto com a semelhança que notou entre Valentina e a
irmã dele, de provavelmente mesma idade, que morava com ele e a família na
cidade vizinha de onde tinha vindo. A avó não pôde deslocar-se devido a sua perna
prejudicada mas pediu que o neto acompanhasse Valentina até onde morava
Tiana, em cujo caminho ele entendeu o que também ele já há muito suspeitava,

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embora essa suspeita não lhe atenuasse o estupor do que ouvia nem da
constatação de que até as mãos e o formato das unhas da garota aflita eram
idênticos às do pai dele, Domingues.
Ele estava prestes a lhe revelar que era seu irmão, quando Valentina
apressou ainda mais o passo para entrar em casa quando se ouviu de longe um
lamúrio choroso. Dentro da casa, tudo era desolação. Tiana devastada e um
menino de dez anos gemiam um pranto inconsolável. No quarto, a irmã mais nova
de Valentina não sobrevivera ao intenso fluxo vermelho escuro que vinte e quatro
agonizantes horas de unguentos paliativos, eflúvios fitoterápicos e uma fervorosa
ladainha de rezadeiras não puderam estancar, desde que Tiana lançara mão de
uma antiga receita de curetagem cigana que aprendera com a mãe ainda antes que
a internassem num manicômio, e que várias vezes já recorrera antes contra o
desespero de outras gestações indesejáveis, e encaixara nas entranhas da filha de
treze anos um chumaço de ervas xamânicas defumadas assim que ela lhe revelara
o escândalo terrível de quem era o pai daquela gravidez precoce. Quando Valentina
soube do que se tratava o mau-passamento da irmã, quase que de imediato soube
de quem era, sem precisar que a mãe lhe dissesse o que tinha sabido aterrada da
boca da filha, e por muitos anos corroeu-a a terrível consternação de não ter podido
protegê-la do opróbrio que ela mesma já havia sofrido e podia ter angariado meios
para evitar que se repetisse. E só aí é que compreendeu o que a tinha livrado das
sevícias monstruosas de Domingues assim que ela entrara na puberdade. E
convenceu-se de que, na verdade, tais suplícios nunca haviam cessado, mas
apenas mudado de vítima, e nesta última prolongou-se para além da puberdade
que ela tinha atingido em segredo pelo seu recato, o que, porém, não atenuava em
nada a ignominiosa culpa dele, que jamais refrearia seu ímpeto monstruoso
enquanto tivesse podido ocultar seus assédios diabólicos.
Por algum meio Domingues soube o que o aguardava, porque não apareceu
no trem na manhã em que o esperavam, nem no da noite nem no dia seguinte. No
quinto dia, o rapaz embarcou no mesmo trem e para o mesmo destino que o pai
foragido tomara da última vez. Dentro de uma semana regressou trazendo a mãe
para conhecer a outra família que seu pai mantivera em sigilo e negligência por
todos aqueles anos. Quando a mulher se deparou com Tiana ainda se recuperando

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do luto, suja de terra colhendo aipim num canteiro improvisado ao lado da meia-
água sem cercas, desarmou-se da última flecha de ciúme que ainda pudesse ter
retesada e foi em direção a ela com as lágrimas rompendo num desconsolado
clamor de lástima e cumplicidade para com sua solidão:
─ Mulher de Deus, ─ disse num abraço constrito ─ imagine o que você não
deve ter passado com essas crianças!
A avó mudou-se para ir viver na casa da nora dita legítima para não ficar
sozinha no meio dos fantasmas que assolavam a casa dos seus martírios, onde
agora o velho purgava seu ermo sem redenção. O desaparecimento de Domingues
confirmou a perpetração de sua barbárie. Uma noite ela confundiria os tempos e
suspirou aliviada que “ainda bem que ele não levou com ele nenhuma dessas
pobres inocentes filhas da Tiana, como fez o pai dele comigo mesma e minha irmã”.
Mas talvez o mundo se tornara pequeno demais para um errante perseguido pelo
remorso atroz. Talvez encorajado por ter de algum modo sabido que a mãe morava
agora junto da ex primeira mulher, pouco antes de completar três anos do seu
sumiço, apresentou-se ali no meio da noite varrido pela intempérie e nunca mais
tornou a pegar o trem para ir até onde Tiana ousar implorar perdão porque soube
que ela seria capaz de cumprir sua promessa de esquartejá-lo assim que o
encontrasse. Parecia um espantalho empoeirado pelo ócio, e talvez só o deixaram
ficar porque, mais que a repugnância que causava, todo o tempo desde ali era
pouco para dissipar o que tanto tinham guardado para lhe cuspir na cara. Colheu
em silêncio todas as ofensas e maldições que merecia e chegou a agradecer o
repúdio dos filhos que afinal lhe concederam o cárcere privado no quarto dos
fundos como uma espécie de depósito onde continuar despejando seus
ressentimentos. Mantido ali como uma espécie de presa, precaviam-se de porem
todos a salvo das torpezas que a vida inteira ele passara dando mostras de que
era de fato capaz de cometer. E como ninguém mais agora tinha nada que ver com
as infâmias que só a ele competia prestar contas, a mulher tornou-se amiga de
Tiana e, por uma questão de sangue, somou Valentina e seu irmão menor à prole
de quatro filhos que ela havia tido com o enclausurado. E quando os netos de Tiana
começaram a chegar, já aquele tanto tempo transcorrido tinha depositado as
camadas do pó que obnubilavam o passado; e ela lhes franqueava a casa após

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confinar o sujeito no quarto do corredor no claustro a que o próprio Domingues já
se havia conformado quando os remordimentos da culpa começaram a cobrar sua
impunidade na indigência de uma velhice prematura.

A visão tormentosa do sujeito desconhecido pela fresta do quarto, depois ter


sido apresentado a ele, que talvez por uma demonstração de derradeira
complacência a senhora cedera à tentação de revelar que ainda estava vivo, ainda
que se parecesse um fantasma sob a luz difusa da claraboia do quarto, enunciava
de algum modo sua própria e desumana trajetória. No fim da tarde estava de volta
à casa da sua mãe Valentina, que costurava à máquina e inquietou-se com sua
atitude esperando uma pausa no trabalho para poder lhe perguntar algo. Disse
então quem tinha visto na casa daquela mulher, por quem tinha tanto carinho, mas
que na verdade nunca fora sua tia-avó. Valentina então se deteve um pouco
alarmada por aquele semblante perscrutador. Ficou olhando de lado,
desconcertada, imóvel, a tesoura aberta na pinça da mão. E só aos poucos ela foi
juntando partes, episódios e impressões que talvez nem ela mesma tinha tido antes
em relação a toda aquela história, porque era algo que precisava ser contado ao
longo da vida inteira desde ali. Um dia caiu em prantos, quando sentiu doer de novo
o pus das feridas que julgava já haverem secado, e sentiu de chofre despencar-lhe
o peso revisitado desse passado todo, com sua presença quase física das
recordações reclamando o presente, e o logro e a náusea da ilusão de ter tentado
acreditar que a memória dos ontens e dos adeuses do mundo não passassem de
uma crença incutida pelos mais velhos, como um sonho ou um pesadelo
compartilhado. E soltou tudo o que ainda a angustiava. E viu o cortejo de várias
gerações de mulheres da família, todas muito parecidas, mesmo de épocas
remotas e que ela jamais ouvira falar quem haviam sido, nem seus nomes, nem
onde viveram, mas que todas pareciam ter seus semblantes apascentados pela
certeza de que o destino que cada uma delas levaram tinha concorrido para a
consumação da alegria de viver que encontraria enfim aquela criança diante de si
interrogando sobre seu passado. Aí Valentina parou de falar. Enxugou o rosto. E
de súbito seus lábios pararam de tremer quando inspirou fundo e se sentiu a última
daquele séquito de mulheres desafortunadas que a haviam antecedido na família:

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¾ O pai que eu escolhi para vocês também é um homem ausente, eu sei ¾
disse com a voz declinando para concluir ¾, mas atendi de bom grado o pedido de
sua vó Tiana antes de morrer, pra que eu não desse a nenhum de vocês o carma
de carregar o sobrenome de Moriz que eu ainda trago comigo.

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Um Uróboro

O primeiro contato de Heitor Aigba com a noção de um tempo não linear não
foi com a que em fins do século XIX Friedrich Nietzsche divulgara em uma
simplificada versão do que chamou de “o eterno retorno”. Quando soube que havia
essa variante, Heitor leu que o polemista alemão despertara para essa doutrina ao
contemplar uns rochedos enquanto percorria a esmo uma trilha deserta. Menos
cósmico o seu esquema, a Heitor Aigba fora reservada a rua populosa e o amor
cotidiano para que o terminasse de formular. Pode-se dizer, não sem certa
indulgência, que outra peculiaridade sua foi que postulou o tempo circular na
mesma medida em que o foi vivendo. Assim, sua primeira percepção nesse sentido
esteve entre aquelas experiências desconcertantes, e muitas vezes dolorosas, que
costumam marcar a preparação para o início da vida adulta. Um amigo afastava-
se após terem-se despedido na rua quando Heitor foi tomado pela vertigem de já
ter vivido aquela cena, naquele mesmo lugar e minuto, em idênticas circunstâncias.
Um instante fugaz, mas o bastante para que ele antecipasse o momento seguinte
no qual o amigo virou-se, já do outro lado da rua, para gritar as palavras de adeus
que Heitor já adivinhara. Um déjà vu que perduraria e se multiplicaria desde ali.
Talvez a única diferença entre a primeira e a segunda vez em que viveu aquilo,
chegou a refletir, é que na anterior não havia o embaraçoso espanto de recordá-la.
Como sustentam os detratores da Cabala, basta passarmos a ter interesse
em determinada coisa ou assunto para que, mesmo que inconscientemente,
passemos a procurá-la e a enxergar referências e implicações daquilo de forma
muito mais frequente a partir de então. Em casos mais agudos, como para mentes
paranoicas, isso poderia fazer supor que essa tal coisa começara a persegui-la, e,
mesmo para uma mente sã, resulta na falsa impressão de que por trás do que
podemos ver existiria um universo cifrado. Seria exagero classificar as

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especulações de Aigba como paranoicas ou obsessivas, mas, à sua revelia,
dificilmente prescindiriam de elementos que classificaríamos dentro de um domínio
místico. Sem o apoio desse misterioso reino, não poderia dar mais nenhum passo
na sua crença, reduzida a uma espécie de sedativo, um consolo niilista. Seus
fundamentos ancoravam-se menos em uma gnosiologia ou em uma epistemologia
que no acumulado reforço de suas sucessivas e variadas versões.
Muitos elementos foram consolidando no pensamento de Aigba a doutrina
de uma história humana e do mundo circular, como a equação cosmológica de
Henri Poincaré e o argumento lógico segundo o qual num dado espaço finito
constituído por um número limitado de átomos, suas combinações moleculares
tenderão a repetir, mesmo após um número imensurável de configurações, os
mesmos arranjos que novamente reproduzirão desde eventos macro-históricos até
as circunstâncias mais triviais dos acontecimentos da vida de cada indivíduo.
Embora soubesse ou suspeitasse de que as representações matemáticas não
necessariamente se aderem ao plano onde realmente sucedem as coisas, a essas
equações veio somar-se uma certa aflição onírica. Ao acordar uma madrugada,
perturbou-o a hipótese de que as dimensões espaço-temporais onde se davam os
sonhos podiam constituir universos paralelos. Por instantes, sempre que acordava,
passou a perturbá-lo a possibilidade de estar morto e enterrado em outras esferas,
ou que alter-egos seus permanecessem transitando por outros mundos, cujos
trechos se lhe afiguravam nos sonhos. Já que tudo era real dentro do mundo dos
sonhos enquanto se sonha, podia muito bem ser que continuasse vivo lá,
independente de sua vontade ou consciência disso. Até mesmo quando, nesse
intrigante momento da vigília em que agora ele pensava essas coisas, ele estivesse
morto. Para Heitor Aigba, como para Zoroastro, se assim fosse, o antes e o depois
não estariam arranjados numa sucessão crônica contínua, e que, logo, Troia,
Deucalião ou Hesíodo, podiam estar aquém ou adiante de nosso atual presente
conforme a posição que se esteja a observar o esférico ou espiralado circuito do
tempo. Para muitos, como Nietzsche e Zoroastro, essa percepção podia não passar
de uma despretensiosa sondagem, um inútil epifenômeno; para Heitor Aigba,
porém, teria de ser uma redenção de sua ameaça sobre a razão no mundo.

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Aos poucos, a maturidade arrefeceu-lhe o delírio, e o recíproco e ardente
amor de segundas núpcias que nutria por Pauline Palácios afastaram-no desse
credo. Todo determinismo tornara-se insustentável agora, quando o mundo lhe
pareceu ter sentido como uma construção ainda em processo no qual podia
encontrar um lugar para bem viver. Dissuadido por um argumento tão claro e
apodítico quanto o amor, abraçou a segunda lei da termodinâmica, como a um lema
também para a vida social, uma vez que estava certa ao estabelecer que ao se
dissipar, a luz jamais poderia voltar a ser energia. Uma antiga edição do De Libero
Arbitrio, de Santo Agostinho, repousava cativo sobre seu criado mudo, sobre o
braço do sofá, dentro da mochila a espera de horas ociosas entre o trabalho e as
demandas do tempo que devotava a Pauline Palácios. Nunca havia crido na
psicologia, segundo ele uma falsa internalização dos desdobramentos das
interações humanas reais, e por essa época avaliou suas antigas impressões sobre
o tempo cíclico como sintomas de fadiga mental, ou que sua percepção, como a
cor dos olhos ou uma predisposição patológica qualquer, não passar de uma
herança cromossômica memorial que dentro em breve a genética encarregar-se-ia
de postular. Diante dessas evidências e contraprovas, uma recaída podia ser
definitiva. E, de fato, isso cumpriu-se pouco depois.
O tempo estruturado numa órbita periódica reciclável insinuou-se na
dedicatória que Pauline Palácios lhe fez na folha de rosto da edição portuguesa do
Crátilo de Platão com que o presenteou no jantar do primeiro dia dos namorados
juntos: “que na próxima vida não demoremos tanto a nos encontrar”. Como numa
expressão mito-poética, naquelas palavras de carinho Heitor Aigba deduziu que a
paixão, assim como a fé, postulava que em essência o mundo obedecia a ciclos
periódicos recorrentes. Um sentido não metafísico para o princípio do eterno
retorno passou a dominar o tema das longas, intermináveis, conversas noite
adentro nos intervalos do desejo entre Pauline e Heitor. Apresentava-se, imiscuía-
se nos assuntos, como um princípio, como quando comentaram sobre as técnicas
arquitetônicas perdidas que haviam sido usadas na construção das catedrais
góticas. Porque concluíram que, como a alavanca, o moinho e o arado, o estilo
gótico era resultado de um estágio natural e necessário na evolução da técnica e
da arte, e que caso voltassem à estaca zero, novamente se chegaria àquele

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conhecimento, não apenas neste, mas em quaisquer mundos possíveis. Mas
gradualmente uma atmosfera de desencanto foi suplantando aquele enlevo
intelectual que envolvia tudo o que não dissesse respeito à intimidade do amor
entre os dois. Já não precisavam de vastas amplitudes de tempo para constatarem
a devastação dos seus efeitos porque na própria trilha sonora que embalara até ali
sua paixão, era notória a aceleração do processo de obsolescência dos veículos
eletrônicos que a reproduziam. Seus discos de vinil haviam resistido à deterioração
do tempo muito mais que os cds, e mais reduzida ainda se mostrava a sobrevida
dos seus dvds e pendrivers. Assim como os modernos arquivos eletrônicos de
imagens guardados na memória virtual de seus laptops e smartphones
corrompiam-se dentro de uma infinitésima parte do período de tempo que
perduravam os quadros renascentistas iluminados a séculos pelo esmaecido, mas
duradouro, lume dos lampiões a pavio. Se um colapso definitivo na rede elétrica
ameaçava a todos nós, o eterno retorno não era uma questão meramente
escatológica. A antiquíssima profecia de que o mundo se destruía e tornava a se
reedificar a cada ciclo de doze mil anos, tal como a doutrina caldeia do Grande Ano
que Berossus lecionou em Éfeso para Heráclito e para os primeiros estoicos da
Babilônia, baseava-se no próprio processo de colapso a que se encaminha a
humanidade à medida que se aproxima da modernidade. Do mesmo modo, a antiga
teoria de que o movimento de precessão da terra encerra e reinaugura as mesmas
eras na ordem das constelações zodiacais. O que estava prefigurado no término
dos calendários das mais díspares civilizações não seria senão uma representação
mítica da própria circularidade das condições de progresso da vida humana desde
a última glaciação.
Por esses dias caiu-lhes nas mãos a tese sobre as peripécias do tempo
escrita pelo filósofo árabe medieval Ibne Caldune, que não fazia senão reiterar o
que já sabiam: que os avanços escalares da tecnologia contemporânea, por sua
fragilidade e dependência de fontes de energia escassas, eram o passo decisivo
rumo ao debacle que nos lançaria a todos de volta à pré-história. Os poucos e
dispersos sobreviventes teriam de reinventar a roda e o fogo; renomear as coisas
todas e convencioná-las em letras até que se voltasse a poder escrever à mão as
palavras “eu te amo” na areia; porque por um longo período a escrita iria atrofiar

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até ser esquecida, mas sobretudo porque por um longo período ninguém mais
disporia de tempo, disposição ou necessidade de expressar as angústias do amor
diante da urgência que voltaria a tornar a necessidade de mitigar a dor e o
desconforto ou ter de salvar a própria pele da peste e da fome a meta central da
ação e do pensamento humanos. Foi por essa época também que Pauline e Heitor
relegaram a aventuras juvenis sua antiga militância política, e logo entenderam que
o livreto sobre a propriedade escrito por Engels era uma fraude intelectual
perpetrada pelas cegas paixões da ideologia, não só pelo mau uso que fez dos
empréstimos tomados de Henri Morgan para tentar descrever a evolução da
família, mas sobretudo por tentar fazer crer numa espécie de sofisticado estágio de
barbárie. Do mesmo modo desdenharam a tese de que no começo da nossa
história a única coisa verdadeira e constante era a guerra de todos contra todos;
que éramos como lobos andando em círculos canibais dentro de uma existência
solitária, brutal e curta. Porque, segundo Heitor Aigba, as circunstâncias históricas
haviam impedido Thomas Hobbes de compreender que no princípio não poderia
haver outra coisa senão aquela primeira centelha do motor civilizatório do mundo:
o amor. Ao que Pauline completou: “cuja mais evidente demonstração está numa
atitude tão elementar como a do aleitamento materno”.
Como quem passa a convalescer dos sintomas de uma enfermidade logo
que recebe seu diagnóstico, Pauline e Heitor, imunizados pelo amor, compartiam
aquele mistério como se compartilhassem o contraveneno que os faria perpassar
incólumes toda a infinita cadeia de acontecimentos em que outra vez se
configurariam os primeiros clãs, repetir-se-ia a Idade de Ouro descrita por Sêneca
na anamnese de suas cartas a Lucíolo, a revolução agrícola, os impérios da Pérsia
e as cidades-estados gregas. Uma noite, Heitor Aigba deu a sua amada um cordão
cujo pingente de cristal em forma de disco trazia em alto relevo a figura de um
uróboro, a serpente híbrida de dragão disposta em círculo tragando a própria
cauda. A salvos que estavam de precisarem entender todo o longo processo,
sentiam de início o benfazejo influxo daquele arquétipo, já que sabiam
desassombrados que, após o fim de tudo, uma vez mais o rei David recitaria seus
salmos e Sócrates tomaria novamente o veneno; que Júlio César assolaria a
república; ainda a crucificação do Cristo; a diáspora; os visigodos sitiando Roma; a

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Hégira que levaria os devotos berberes do Profeta a cruzar as Colunas de Hércules
com suas cimitarras de dois gumes; a secularização da religiosidade norocidental;
e que em seguida recomeçaria o processo de racionalização; a prensa móvel de
Gutenberg; as naus lusitanas flutuando sobre as borrascas do mar; Dante e
Shakespeare e Goethe; e Spinoza, e Napoleão, e a história fantasmagórica de
Hegel; o ethos científico; a viagem do Beagle onde, sob a tênue luz de uma
camarinha Darwin leria maravilhado o livro de Charles Lyell; e, de novo, a ascensão
do indivíduo; o Gulag e o Holocausto, Pearl Harbor e Hiroshima; a progressão
geométrica da comunicação de massas; o automóvel e a internet; e, afinal, eles
mesmos, Heitor Aigba e Pauline Palácios, no princípio, carentes um do outro ainda
na iminência de unirem suas almas na alma do mundo antes deste tempo feliz de
poderem estar agora unidos de corpo, mente e espírito na madrugada insone em
que pensavam essas coisas enquanto o relógio estancava num instante de
eternidade em que o dia os vinha espantar com a constatação de que as horas se
haviam passado como se fossem minutos e lembrá-los de estarem mergulhados
no implacável mecanismos dos compromissos mundanos evoluindo rumo ao seu
próprio declínio, até que a boca alcançasse a cauda, como representado na efígie
que Pauline carregava no peito. Nos altos e cândidos cumes daquele amor,
portanto, o que o uróboro lhes significava não era senão sua suposta capacidade
de transcender o tempo.
Uma tarde, Heitor deixou mensagem no celular de Pauline explicando que a
Cidade de Deus, de Agostinho de Hipona, era na verdade uma fábula para exprimir
a superação do tempo que ele, o santo e filósofo, havia logrado alcançar. Ela
respondeu dizendo já sem entusiasmo que também eles dois o haviam logrado:
“quando estamos juntos, meu querido”. Demasiado fieis àquela crença, ambos
descuidaram de que também constituíam o mesmo todo cujo auge é também o
último e decisivo prenúncio da sua queda, e que, portanto, nem eles mesmos
estariam a salvos, e, em última instância, nem a própria doutrina. No amor, aquele
ápice costuma coincidir com uma dormência que começa a passar deixando uma
espécie de saciedade, depois, de fastio. Já ia um pouco adiantada sua dissolução
quando compreenderam que, como nos adeuses, o único paliativo contra a
iniludível fatalidade era fingir desacreditá-la para não antecipar o silêncio que se

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sucede à despedida final. De fato, as antigas noites juntos em que o tempo
transcorria como um relâmpago foram-se degradando em morosas e entediantes
tardes às quais Pauline buscava em vão preencher recuperando os cds com a trilha
sonora que já não os encantava como antes, e o que diziam as melodias já não
tinha o mesmo ou nenhum sentido. Outros lampejos mentais acudiram para
oferecer-lhes um resgate ou uma sobrevida, mas estavam também contaminados
pela mesma e agora cansativa estrutura dos argumentos de antanho, todos
engolfados pela atmosfera vazia do universo que eles próprios é que haviam criado
na tentativa frustrada de manterem-se alheios à realidade, onde tudo já não era
outra coisa que uma tentativa desesperada de resistir às incertezas da inevitável
separação que já sentiam próxima. Refratários que haviam sido a qualquer ilusão
de modernidade, Heitor e Pauline tentavam então, cada um a seu modo, escapar
de uma espécie de Estoicismo a que sua forma de união os tinha convertido sem
que se houvessem dado conta. Talvez nada mais entreviam na doutrina do eterno
retorno, embora sem confessar, do que niilismo, do que uma forma de negação de
tudo. Nietzsche havia morrido louco, e talvez sempre houvera sido. E agora eram
eles que precisavam se libertar para não serem também arrastados para as
armadilhas da insanidade.
Uma tarde, já quase no fim, ambos tomaram conhecimento quase
simultâneo da Conjectura de Breit, que havia oitenta anos propusera a factível
possibilidade de que a luz podia, sim, converter-se de volta em matéria energética,
mas sequer comunicaram um ao outro esse achado. O último ciclo com que ainda
tiveram algum ânimo de brincar um com o outro, a maneira de consolo, foi quando
ele fez recordar a Pauline o dia em que ela lhe contara que Monsieur de Montaigne
certa vez tinha dito que filosofar é aprender a morrer, ao que naquela ocasião ela
acrescentou que, ademais, “aprendendo a morrer é que se aprende a viver”, e
Heitor concluía que isso equivalia a estar-se quites com a vida, e que, portanto, o
que precisavam demonstrar a si mesmos é que tinham aprendido a se portar diante
da vida e da morte, porque precisavam seguir vivendo, ou seguir morrendo, o que
dava no mesmo para quem realmente houvesse apreendido o significado daquele
ciclo. Aqueles últimos acontecimentos incutiram-lhes a ideia de que podia ser que
o tempo não fosse realmente linear, mas tampouco circular, talvez espiralado,

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dependendo do ponto em que se está a olhar, se de dentro, de fora, de cima, ou
debaixo, se no instante imediato ou sob a perspectiva da eternidade. Embora não
parecesse à primeira vista, pretender que o mundo era fruto do acaso, e que ele e
ela, e o tempo que viveram juntos eram aleatórios produtos do caos, era muito mais
absurdo do que postular um universo ordenado e teleológico. Só em um universo
regido por um deus louco, o que já seria contraditório, com infinitas e supérfluas
repetições que jamais se encaminhariam a um propósito, é que haveria a
possibilidade de o fim daquele amor ser justamente o momento em que estivessem
mais próximos de um caduco recomeço. Na derradeira ocasião em que estiveram
juntos, Heitor Aigba já sucumbira à imposição das incontornáveis fatalidades do
seu cosmo. Indiferente ao inelutável abandono que o destino ciclicamente lhe
prescrevia, nem a enciumada curiosidade foi o bastante para lhe perguntar se havia
outro homem na vida dela, assim como Pauline jamais lhe perguntaria algo
parecido. Pouco depois de despedirem-se em definitivo, ela arremessou seu
uróboro contra o muro de uma das ruas adjacentes ao caminho do aeroporto. E
incomodou-a constatar que precisou fazer certo esforço para não olhar para trás. À
noite sonhou que a medalha com a imagem do dragão engolindo a própria cauda
refazia-se após ela a ter espatifado contra o muro, e acordou com a sensação de
já haver sonhado aquele sonho muitas vezes.

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Viagem

Ali, as chuvas duravam quase meio ano. Período em que a umidade se


tornava tão invasiva que ao calçar os mocassins de couro cru via-se que tinham
assumido um tom esverdeado devido ao fungo que os encobria; um plâncton vivo
feito raízes de samambaia espalhava suas minúsculas filigranas pelo adobe das
paredes e até as sementes ressequidas dos rosários e das contas dos colares
rompiam o verniz com a ponta dos brotos tentando aflorar. Era a época em que o
rio extrapolava as margens para serpentear pela planície com o chafurdo de sua
lama. Mas aí vinha em seguida a outra metade do ano trazendo a secura e o calor
absurdo do estio, quando então o barro endurecia até virar pedra e o vento quente
das tardes soprar uma poeira luminosa como vidro moído. Durante o curto período
entre esses extremos de seca e dilúvio, havia os dias de dezembro, que se iam
tornando amenos assim que os primeiros relâmpagos clareavam com seus
estrondos o fundo das tardes marcando o final da vazante; o leito do rio começava
a esconder suas costelas esquálidas, quando então suas bordas íngremes e
escorregadias tornavam-se traiçoeiras. Foi nesses dias de intervalo que chegaram
para ali viver seus primeiros moradores. Tinham vindo ao acaso das gerações,
tangendo o gado magro pelo sertão adentro e ao fundo, depois de meses de
sedentas lonjuras, fundar uma feitoria para além dos limites da Fronteira Oeste,
empreendimento que o governo da colônia em vão tencionara cumprir legando
capitanias a donatários que nunca lhes haviam posto os pés, e mais tarde
incentivando com promessas não cumpridas os intimoratos particulares que se
dispusessem a ocupar seu quinhão de terra naqueles confins.
Pedro Damiano foi um de seus prestimosos guias. Para isso, esquadrinhava
as latitudes geográficas com seu velho sextante ibérico graduado em algarismos
romanos e captava a pulsação da terra com uma rosa dos ventos desbotada sob a
agulha de marear gasta de tanto esfregar no brim das calças para imantá-la sempre
que precisava indicar a direção a seguir. Quando a marcha atingiu a fronteira além

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da qual se sabia que ainda existiria mundo apenas por especulação geométrica ou
por sugestão imaginativa, Damiano convenceu-se de que o antigo errare humanum
est referia-se não ao atributo de sermos falíveis, mas à condição natural do homem
de errante peregrino. Ao depararem-se por acaso com o rio, quarenta dias depois
de uma marcha insone rumo ao poente desde a linha demarcatória do Tratado das
Duas Coroas, Pedro Damiano entusiasmou-se a ponto de atribuir aquele achado
menos à matemática dos seus instrumentos de navegação do que à atração
gravitacional que desde eras muito recuadas no tempo os cursos d’água exercem
sobre os paradeiros da humanidade. Marcou-se o dia no calendário: tinha
principiado dezembro. O rio suportara o verão sem secar completamente, mas no
fim da tarde trovejou. Ao ver cair a noite com a constelação de touro ainda alta no
horizonte, Damiano consultou seus mapas, perscrutou o céu com seu astrolábio,
remediu. Estavam longe do mar, e isso muito convinha ao lugar da feitoria, a salvo
que estariam dos assaltos dos piratas francos e castelhanos.
Vasculhando seu baú de cosmógrafo, Pedro Damiano constatou que o traço
sinuoso daquele rio não aparecia em nenhum dos seus papiros cartográficos e que
jamais os registros de viagem de velhos exploradores haviam dado conta de sua
existência. Só algum tempo depois é que ele haveria de ouvir, a princípio com
descrente sarcasmo e, tempos mais tarde, com exacerbado fascínio, uma lenda
nativa narrar que aquele caudaloso curso d’água já havia sido singrado cerca de
vinte e tantos séculos atrás por um afortunado rei bíblico, cujas naus atravessavam
secretas rotas oceânicas para irem ali percorrê-lo desde o seu estuário até as suas
nascentes mais ignotas à cata de especiarias. E uma noite Pedro Damiano sonhou
com o futuro inconcebível em que aquilo voltaria a acontecer, quando monstruosos
mecanismos de ferro movidos a vapor desbordariam os trechos acidentados dos
seus afluentes sobre trilhos de metal para despejar a seiva de plantas
manufaturadas dentro das barcaças que a transportaria até sua desembocadura no
mar oceano. Foi sob tais auspícios que ali então resolveram desfazer em definitivo
suas bagagens, quando já se haviam tornado cúmplices nas esperanças e
sofrimentos compartilhados da longa travessia em que as circunstâncias foram
apurando a índole geral em um tipo intermediário entre os que fogem do destino
sem saber que mais depressa vão a seu encontro e aqueles para quem tanto faz ir

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ou se deixar ficar, convencidos de que onde quer que estejam estará sua sina.
Escolheram ficar ali também porque ninguém queria pagar para ver se era ou não
infundado o temor de que na margem de lá do rio, onde o mato emaranhava-se
cada vez mais, habitavam antropófagos da época da pedra lascada.
As primeiras fontes daquele receio haviam surgido meses atrás, quando
alguém disse ter avistado uns pontos de luz moventes na escuridão. Mas podiam
ser apenas vaga-lumes, o que alimentou a expectativa de estarem deixando a
região flagelada do semiárido, já que ninguém ignorava que a presença desses
bichos indicava a proximidade de áreas alagadiças, ou que finalmente estavam
muito perto de voltarem a ver cair a chuva. Começaram a suspeitar de sabotagem,
porém, quando perceberam que os animais peados ao entardecer para não se
perderem à noite, amanheciam soltos; e poucos dias depois, ninguém mais
duvidava da iminência de um ataque quando os cães que acompanhavam a marcha
amanheceram duros em torno do acampamento vertendo uma baba escura pelos
focinhos. As noites seguintes passaram na tensa prontidão em que ninguém pôde
dormir sossegado, e ao cabo de uma semana aquilo já se havia convertido no tédio
insuportável do posto de sentinela noturno sem cochilar tiritando de frio sob a noite
gelada do páramo deserto escorados nas coronhas calejantes do bacamarte.
Quando enfim deixaram o polígono das secas marchando sempre em direção à
região que apresentava os primeiros vestígios de vegetação, não demoraria para
que se deparassem em meio a uma trilha estreita cercada pela fumaça densa de
galhos e folhas verdes incendiados. E já estavam sem saber a poucos dias do rio
na tarde em que se detiveram numa clareira natural onde faziam os preparativos
para o pernoite quando os surpreendeu uma chuva de pedregulhos. Pedro
Damiano, cuja testa não escaparia ilesa às pedradas, havia explicado pouco antes
enquanto conversavam para distrair a caminhada, que nos rituais canibalescos de
que tinha ouvido falar na Costa Leste, comiam com metódico apetite a vítima para
se adquirir suas virtudes, principalmente a coragem. Assim, quando as pedras
começaram a vir de todos os lados na clareira, um dos paladinos do grupo,
Alcibíades Souza, proclamou a plenos pulmões o brado com que tentou dissuadir
os que pensavam em desertar, e que ficaria gravado na memória de todos como
um gracejo desesperado:

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― Se vamos ser devorados vivos, então é melhor morrer logo, caralho! a
não ser que tenham se borrado, pois aí os trogloditas não vão querer se contaminar
com um covarde fedendo a merda!
Quando enfim a marcha deixou de progredir e eles fixaram-se na margem
leste do rio, cessaram as misteriosas hostilidades. Salvo um que outro susto, uma
que outra escaramuça menos grave, aos poucos se percebeu as vantajosas
benesses da pacificidade dos povos. Após os primeiros contatos mais amistosos,
Pedro Damiano passou a ser o precursor na política da boa vizinhança e na
gesticulação mímica com que se principiou a conversação com o povo a quem, por
indicação deles mesmos, deram o nome de Emury. Dedicou-se a essa relação com
arrebatado empenho, mas não lhe tardou o tédio ao constatar que o diálogo estava
limitado pela tendência dos nativos a sempre procurarem transigir, embora
soubesse que, de fato, concordar fosse a maneira mais fácil de se iniciar o
entendimento com quem fala estranho idioma. Quando a comunicação já havia
avançado a ponto de a mímica ter-se tornado insuficiente, Pedro Damiano sentiu-
se meio ridículo em seus meneios cênicos e observou que esses recursos tendiam
a tornar-se um substituto até expressivo e talvez menos suscetível à falsidade, mas
muito menos loquaz que as possibilidades de precisão e abstração dos artifícios da
linguagem verbal. Tentou substituir os esgares e as onomatopeias por uma
canhestra codificação ideográfica para traduzir a fala de seus interlocutores.
Aprendeu que na língua nativa a palavra morte tinha a mesma origem da palavra
passagem; e, uma noite, após assimilar a palavra estrela e entender que na língua
Emury era uma estranha corruptela da palavra olho, acordou com a sensação
monstruosa de que a noite estrelada o espreitava. Chegou a catalogar vocábulos
num glossário e a rascunhar uma gramática, mas ficou decepcionado assim que
notou que o desafio maior não eram as letras, mas os sons, os fonemas.
Abandonou de vez essa tarefa ao se convencer de que o problema da linguagem
não era meramente uma questão de compartilhar palavras ou signos, mas os
sentimentos derivados das experiências da vida em comum.
Na intimidade que aos poucos foi travando com aquela gente, uma vez Pedro
Damiano esculpiu-lhes um gavião num monólito com o formão de carpinteiro que
se tornara ocioso desde que o dispensaram dos serviços mais penosos. Mas teve

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de fazer um esforço enorme para entender que o que mais os surpreendera
naquela obra foi como ele pôde saber que as formas do pássaro estavam dentro
daquela pedra. A partir desse episódio, em sua proximidade de intérprete e
intermediador, Pedro Damiano não resistiu à tentação de intrigá-los com seus
talentos de diletante nas suas artes beletristas e astrológicas. Concebeu o primeiro
truque por acaso, quando procurava um modo decisivo de demonstrar a seus
visitantes a importância da escrita. Solicitou a um deles que pronunciasse uma
palavra qualquer ao pé do ouvido de Alcibíades Souza, que estava plantado do
outro lado da pequena planície. Alcibíades anotou o que ouviu no pedaço de
madeira que o nativo lhe entregou e pediu que o levasse a Pedro Damiano, que o
estava esperando a seiscentos côvados de distância e silêncio. Pedro Damiano
tomou a tabuinha nas mãos, leu a inscrição, inspirou fundo e proclamou a palavra
em bem alto e bom som para que repercutisse até aos barrancos lodosos das
beiras do rio. A perplexidade dos Emury, no entanto, demonstrou que não viram
naquele truque um exemplo lógico da utilidade de uma convenção de símbolos
alfabéticos, mas o espantoso sortilégio de que a voz pudesse ser retida e
transportada em meia dúzia de garatujas feitas à mão. Em outra ocasião, Pedro
Damiano reuniu um grupo dos Emury em torno de uma árvore cortada na base do
tronco por um raio durante um temporal. Na água acumulada pela chuva dentro do
recipiente natural, repousou uma enorme folha seca de antúrio com uma minúscula
limalha de ferro oculta espetada no dorso. Aproximou a mão espalmada a uma
distância suficiente para que o ímã que trazia escondido entre os dedos atraísse a
limalha. Girando a mão em várias direções, fez com que a folha boiando dentro da
poça d’água se movesse para todos os lados como se estivesse viva por meio da
força da atração magnética, ou, segundo o testemunho estupefato dos Emury, pelo
domínio das virtudes do feiticeiro sobre os elementos da natureza.
Quando tinha tempo para divertir e impressionar com seus ardis os nativos,
que nessa época já vinham regularmente até a entrada do galpão mais próximo do
rio para trocar flautas de bambu, fécula de mandioca, espigas de milho e carne de
perdizes por anzóis, punções, parafusos, leite e mantas de charque, Pedro
Damiano convertia-se numa espantosa atração de circo miraculoso fazendo
adormecidos falarem como se fossem sonâmbulos, ovos de galinha saltarem de

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dentro da vasilha estreita em que estavam encaixados usando apenas o sopro dos
seus pulmões, ou entortando ferramentas de sapa usando a força da mente. Seus
números de hipnose e telepatia despertaram tanto fascínio e curiosidade que até o
já idoso líder Emury, com o pretexto de que precisava trocar cabaças de mel
silvestre por queijo qualho, percorreu com penúria o pedregoso vale de mata
fechada que desembocava numa canoa para atravessar o rio e ver com seus
próprios olhos incréus do que era capaz o condão de tal homem. E nesse astroso
dia viu o que seus penetrantes olhos esbugalhados não puderam escrutar: em
plena luz do sol a pino, o mago dos feitiços benfazejos, Pedro Damiano, atear fogo
na mais pura e translúcida água de se beber. Na verdade, tratava-se de aguardente
concentrada de cana-de-açúcar dentro de uma imensa tigela feita de casca de
coité. Diante do estrondo repentino causado pela ignição do álcool, os
desprecavidos espectadores atropelaram-se para fugir. Nesse momento não faltou
aquele desinfeliz personagem a quem sempre lhe falham os cambaios ou é
pisoteado na hora da correria do cada um por si Deus por todos. Mas o rosto caído
que se virou para olhar para trás cortou de súbito a banguela gargalhada de Pedro
Damiano. Era um menino Emury, cujas lágrimas lhe borravam no rosto a poeira
que aos poucos baixava para deixar ver sua expressão de mais lídimo terror ao
pedir entre soluços para que nunca lançasse sobre seu povo os malefícios de sua
ciência terrível. Cortou-lhe o riso e o coração. Pedro Damiano, enternecido,
lembrou-se de olhos marejados de quantas infâmias haviam sido perpetradas na
exploração da cegueira dos crédulos e na chantagem dos tímidos desde que
corsários estrangeiros de posse de efemérides astronômicas que previam um
eclipse submeteram os habitantes da pequena ilha de Hispaniola com a prova de
que podiam apagar o sol; desde que o soberano de Tenochtitlán interpretou um
pesadelo premonitório como o anúncio de que montados em veados anômalos
seus deuses voltariam de barba ruiva atravessando o mar em naves flutuantes para
punir-lhes os lapsos de devoção e a inobservância das imolações sagradas.
Foi por esses dias que seu amigo Alcibíades Souza o procurou aflito
querendo saber se em suas artes mágicas não havia a alquimia que salvasse um
burrico seu que se acidentara ao escorregar nas trilhas enlameadas da beira do rio.
Ao que Pedro Damiano respondeu taciturno que aquilo tudo fora só uma brincadeira

82
que acabou triste; e que, quanto ao burro, já tinha sido um milagre não ter sido
necessário sacrificá-lo. Quando Alcibíades Souza mencionou insistir, aborreceu-se:
― Deixem dessa história! É por isso que dizem por aí que da ignorância de
vocês é que vive a fama do diabo!
Quando veio a primeira estação seca desde que haviam se estabelecido, a
distração que fora a surpreendente descoberta dos Emury já se havia tornado um
fato corriqueiro. Aproveitaram os dias sem o transtorno do aguaceiro perene para
trasladar as cabanas de troncos para um ponto mais elevado da planície. Damiano
pouco auxiliaria nessa tarefa, embora ninguém reclamasse porque desde sua
aproximação com os nativos que ele se havia tornado o alvo das lisonjas dos
abstinentes homens da expedição. Mas quando sentiu que essa predileção se
exacerbou, suspeitou do decoro daquelas cordialidades. Mesmo os mais recatados
adornavam seus sonhos de luxúria com a figura das silhuetas proeminentes das
mulheres nativas, e embora ele jamais houvesse de usar sua influência para
favorecer alguém com um acesso mais íntimo às fêmeas da tribo, essa esperança
o beneficiou quando a sensibilidade de suas mãos aos calos bastou para que o
dispensassem dos trabalhos mais rústicos. Essa questão moral e fisiológica
começou a se arrefecer quando começaram a surgir boatos de que a até ali
negligente boa vontade do governo-geral estava prestes a remeter o suporte
prometido para a consolidação do empreendimento, o que lhes permitiria mandar
buscar as mulheres e os filhos deixados alhures. E todo mundo andava agora às
voltas com a urgência desses preparativos, exceto Pedro Damiano, que
aproveitava que o rio tinha baixado já o bastante para passar os dias requeimando-
se no sol peneirando areia branca nas margens em busca da matéria-prima para
seu projeto de construir uma fornalha para a fabricação do vidro, e não tardaria a
começar a viver enfurnado com os nativos em suas tendas de taboca nos
emaranhados da margem oeste do rio.
Com o trabalho cada vez menos exaustivo da feitoria desde que aquela
possível troca de favores havia condescendido com seus ócios livrescos e suas
ocupações cosmográficas, Pedro Damiano dedicou-se a uma reflexão minuciosa
dos seus próprios conceitos sociológicos. À noite, enquanto polia as pacientes
lentes que pensava utilizar no seu projeto de telescópio, elaborou uma

83
interpretação muito peculiar sobre os Emury, segundo a qual só seria possível
penetrar nos emaranhados de seus costumes e crenças se pudesse estabelecer
qual seria o atributo central da entidade místico-religiosa sobre a qual estava
fundada sua cosmologia. Internado nos baixios do rio durante a vazante tentando
observar aquele povo, foi convidado por eles a ir até a aldeia. Pedro Damiano
convenceu-se de que estava muito perto de alcançar seus propósitos
antropológicos quando finalmente a sanguínea diplomacia dos Emury
proporcionou-lhe a oportunidade que esperava. Com o honesto desejo de
conquistarem dali em diante uma aliança duradoura, ofereceriam a Pedro Damiano
uma das filhas donzelas Emury em matrimônio. Foi por essa época que haviam
chegado os rumores de que o governo-geral cumpriria sua parte no acordo sobre
a feitoria, e que, ao virem novamente no mês de dezembro as primeiras
tempestades, ninguém pôde contar com o ausente Pedro Damiano durante a
mudança do projeto da feitoria para um lugar mais afastado das bordas
transbordantes do rio. Além de ter deixado por completo o trabalho na feitoria, ele
passava o dia com os Emury estudando sua organização social, a terminologia de
parentesco, sua matrilinearidade, cumprindo os ritos, observando os tabus,
inteirando-se de sua cosmogonia, examinando seus totens e a genealogia milenar
que recitavam, e provando o efeito endovisionário do chá de cipós macerados
fervido e refervido durante três dias em caldeirões de argila, cuja receita os mitos
Emury atribuíam aos dotes de um dos antigos navegadores salomônicos que há
milhares de anos tinham vindo singrar o rio à cata de especiarias. Uma vez chegou
a viajar um dia inteiro perdido na selva sem ver o sol até os subterrâneos de uma
gruta encantada com espessas placas de um cristal azulado incrustadas nas
rochas, onde vislumbrou inscrições ancestrais e sopesou intrigado o fóssil de uma
estrela do mar. Esteva tão absorvido em suas descobertas que deixou de lado os
papiros onde registrava suas considerações através do método cartesiano e da
recém-descoberta física newtoniana, porque sentiu como nunca a pressão do
incomunicável. Concluiu que tinha ido na prática muito além do que lhe poderia dar
o estudo meramente sistemático daquela gente, porque agora era capaz de sentir
como eles, e que era impossível transmitir ao mundo civilizado por meio de uma
linguagem convencional o que só a vivência era capaz de traduzir. Constatou que

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a explicação para isso era o fenômeno de que a razão vivesse meramente no
universal, no regular, no gênero, enquanto que a realidade se desdobrava no
particular, mutável, contingente e contraditório; e que, portanto, todo silogismo
perde força e realidade quando se aproxima do particular. Admitiu afinal que os
Emury não eram membros de uma sociedade em estado primitivo dentro de uma
escala de tempo em que ele também se encontrava, mas tampouco a raça de um
povo que havia degenerado, mas uma gente que por sua própria natureza e da
forma com a qual enxergavam o mundo, viviam da única forma que lhes era dado
viver. Foi quando esqueceu por completo seu esquema nomotético de estabelecer
uma raiz principal, uma variável independente, que explicasse as excentricidades
dos Emury.
Quando ninguém mais esperava que de fato algum dia aquilo fosse suceder,
finalmente começaram a chegar as primeiras carroças trazendo o restante das
famílias e as prometidas maquinarias enviadas pelo governo-geral. Em seguida
começaram a aportar as primeiras embarcações de cabotagem trazendo tabeliães,
sacerdotes e aventureiros de ocasião. Um incipiente sistema de postas foi
inaugurado e um tablado suspenso num tripoide foi fincado no centro da povoação
para afixarem-se decretos e alvarás. Por essa época, a já sistemática dispersão de
Pedro Damiano se havia convertido em demência e vadiagem aos olhos dos seus
antigos colegas de expedição. A última conversa que seu velho amigo Alcibíades
Souza lembrava-se de ter tido com Pedro Damiano, foi na ocasião em que este lhe
prognosticou que não demoraria a chegarem ali também o prostíbulo, a jogatina, o
presídio e o manicômio. Quase não o reconheceu. E Alcibíades Souza ficou
procurando recordar-se da imagem perdida de Pedro Damiano no tempo em que
ele ainda tanto se comprazia em determinar a melhor semana do mês para o plantio
observando a evolução da linha de sombra num gnômon solar; em elaborar uma
fórmula aritmética simples para se chegar aos azimutes que indicassem a direção
do acampamento usando uma agulha de marear de qualquer lugar onde pudessem
se achar perdidos no meio da mata em redor; em fixar os ângulos para a disposição
dos caibros para melhor eficácia e economicidade na sustentação dos telhados; ou
em examinar com uma lentícula convexa e um filete de óleo reagente a composição
mineral dos sedimentos extraídos da aluvião do rio.

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Ao ir visitar por cinco dias seguidos sem sucesso a antiga cabana de tabocas
do amigo, uma das poucas que ainda não se havia mudado em casa de adobe e
taquara, Alcibíades Souza soou o alarme. Provavelmente Pedro Damiano estaria
enfurnado nas brenhas do outro lado do rio, como já fizera antes, já que não havia
levado um único objeto de estudo seu consigo. Mas justo esse fato, o de não ter
levado nada, foi o que mais intrigou Alcibíades. Com ternura recolheu os
instrumentos e compêndios de cosmógrafo amador de Pedro Damiano inutilizados
pelo bolor acumulado da umidade. Como sua ausência já se prolongara muito além
de todas as outras anteriores, conseguiu enfim convencer alguns homens a
vasculharam a floresta na outra margem. Deram apenas com seus vestígios. O seu
par de mocassins, o roto blusão de notívago e as velhas calças puídas pelo seu
costume de esfregar a agulha da bússola jogados próximos a uma grande fogueira
apagada há algumas semanas. Além desse resto de galhos carbonizados e da
clareira que já diminuía com o avanço da mata, não havia ali um único sinal sequer
de que aquele lugar fora um dia o centro da comunidade dos Emury, nem se soube
ali, nem nunca mais, de qualquer indício de qual teria sido o rumo, muito menos o
paradeiro, que tomara com eles Pedro Damiano.

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A Seita de Irineu Lopes

Naquele dia, pouco antes do sino da paróquia de São Domingues anunciar


a hora das vésperas, seu decano pretendente a presbítero, Irineu Lopes Calixto,
apenas tolerado na sua ordem monástica desde o processo que o absolvera da
acusação de indisciplina, intrigou-se com a tênue claridade vinda do fundo de uma
das estudiosas galerias espremidas entre as estantes repletas de livros no piso
superior da biblioteca eclesiástica. Ao subir os degraus para aproximar-se, viu que
pelo vitral de um basculante oculto, uma réstia de sol do entardecer infiltrava-se por
entre as espessas lombadas dos alfarrábios mal perfilados. Ao tentar bloquear esse
vão com um volume que a displicência de outros leitores empilhara sobre os
demais, notou nele um mínimo e oblíquo furo que o trespassava desde a
contracapa. Era um exemplar da primeira edição do esquecido A short account of
the history of mathematics, de W. W. Rouse Ball, publicado na América do Norte
pela Wentworth Press de Berkeley cerca de vinte anos antes, no “ano da glória do
senhor de 1888”. Folheou-o para examinar o meticuloso trabalho da traça, ou das
gerações de traças que haviam feito aquele diligente estrago, quando uma
declaração em francês entre aspas o conteve numa de suas amareladas páginas.
Descrevia o desfecho de um evento passado em princípios daquele século, no qual
constava que o matemático francês Pierre-Simon, vulgo Marquês de Laplace, ao
dirigir-se a Napoleão Bonaparte para pedir-lhe aprovação à sua obra de astronomia
Méchanique Céleste, teria sido interpelado pelo capcioso imperador sobre o fato de

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que nos cinco volumes do seu trabalho sequer houvesse menção ao nome de
Deus. A réplica de Laplace, categórica, ficou reverberando na mente de Irineu:
“Je n'avais pas besoin de cette hypothèse-là!”*
Tratava-se de um episódio conhecido, mas como algo apócrifo e sem o
significado profundo e hostil que se lhe afigurava agora. Essa pontada de
desconforto, porém, foi suplantada logo em seguida pelo alívio de uma íntima e
quase sádica satisfação. Para ele, que não cria em acasos, um raio de sol e o
apetite das traças haviam confluído para que ele se deparasse com a sentença que
lhe despertou afinal a revelação que vinha pressentindo, a chave de acesso, o
marco que lhe permitiria entender e sistematizar toda a série de antecedentes
avulsos e desordenados da história do espírito humano desde seu divórcio com a
verdade sagrada. Compreendeu que a atitude de Laplace nada mais era que um
emblema geral da consumação do pecado original perpetrado pelos homens todos,
ou, o que seria pior, o paradigma do último passo dado rumo a uma segunda
danação, a qual se iniciara na Baixa Idade Média com Duns Scot, Ockham e Mestre
Eckhart, entre outros, e que culminara em Descartes e Mersenne no processo de
bifurcação que teria cindido nosso espírito para sempre ao opor o ego humano
meramente racional ao resto do mundo natural. Pensou em como há tanto estivera
em busca daquele curioso desfecho para suas reflexões. “De modo contínuo o
Criador opera seus milagres através do profano, do mundano, como entre os
caminhos da luz e dos insetos apontando para mim a chave”, concluiu consigo
mesmo Irineu Lopes, daí que os milagres do cristianismo primitivo precisaram
escandalizar os incrédulos porque há muito estes haviam descurado da
autoevidência do divino no século do mundo. No arrebatado entendimento de Irineu
Lopes no crepúsculo que já tomava o recinto da biblioteca, mesmo o sulco urdido
pelas traças num dos calhamaços da livraria monástica não era apenas um
incidente trivial ou contingente, mas uma manifestação epifânica e preconcebida
dentro da estrutura do universo, e a mensagem que recebia, portanto, era a de que
o homem continuava reincidindo em sua degenerescência. Uma única solução
poderia ser tentada para atingir sua redenção, a revolução mundana do espírito

* Cf: Rouse Ball, W. W. A Short Account of the History of Mathematics. Berkeley: University of California,
Wentworth Press, 1888. Pág. 343. [Em tradução livre: essa hipótese foi-me desnecessária]

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baseada na tese do monge medieval Joaquim de Fiore, segundo a qual a história
do desenvolvimento do mundo estaria dividida em três idades: a do Pai, que
correspondia ao antigo tempo de Jeová e os hebreus do velho testamento; a do
Filho, relativa à era cristã, à Igreja e aos evangelhos; e a do Espírito Santo, o tempo
da felicidade na terra que estava prestes a começar. A pressuposição de uma
“revolução espiritual” que seria desencadeada pelos próprios homens neste mundo
a partir do esquema da união hipostática da Santíssima Trindade era o elemento
histórico final de sua tese. Seis meses de desassombradas cavilações levou
redigindo o conteúdo que lhe servia como precedente e fundamento. Esmiuçou
extensos tratados de gnosiologia que cotejava com seu trabalho para depurá-lo de
qualquer caráter herético. Mas ao esquadrinhar até ao insondável suas próprias
reflexões epistemológicas, soube que os pressupostos de sua profecia não podiam
ser encontrados na razão como em Santo Agostinho ou Tomaz de Aquino, mas que
derivava de uma inspiração divina ininteligível. Por fim, assolado pelo prolongado
transe e convencido pela máxima de que um autor nunca dá por conclusa uma obra
enquanto não a publica, ateou fogo nos últimos excertos, redigiu impaciente a
epígrafe e elaborou com náuseas a lisonja da dedicatória a uma lista de autoridades
nobiliárquicas de quem precisava do beneplácito. Clareava o dia quando limou já
sem preciosismos o frontispício em que subscreveu em cursivo latim um subtítulo
explicativo: a reabilitação do homem através da revolução do espírito.
Por essa época, as vicissitudes de uma prolongada estiagem e de epidemia
de peste espalhava sua ruína pelo campo e pelos subúrbios mais obscuros da
cidade. Em meio a essa combinação de caos foi que um grupo de agitadores
erguido em armas havia declarado que a região de planície demarcada pela seca
bacia fluvial que abrangia o outro lado da fronteira, embora pudesse não pertencer
aos munícipes de São Domingues de fato, lhes pertencia de direito pelo princípio
universal de usucapião pela ocupação pacífica daquelas terras desde que muitas
famílias haviam migrado para lá em busca de extrativismo. Após violentas
escaramuças locais na região sisfronteiriça, tinham proclamado a região como uma
república independente. Mas o movimento foi violentamente rechaçado pelas
forças nacionais enviadas pelo governo central para fazer cumprir os tratados de
fronteira de que era signatário, o que fez com que os rebeldes se dispersassem

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pelo interior e buscassem se reunir admitindo sob a mesma bandeira a partir de
então uma série de outras reivindicações políticas latentes ainda que com
princípios ideológicos nitidamente contrários. Esses conflitos e dissidências não
eram para Irineu Lopes senão um sinal dos tempos, uma projeção em escala
regional da desordem global por que o mundo atravessava e, portanto, um claro
indício de que o cataclismo que anunciaria a Idade do Espírito, a que ele também
denominou de Era do Evangelho Eterno, estava próximo. Algo, entretanto,
secretamente o perturbava. Pressentia a heterodoxia de seu sistema doutrinal.
Talvez o público a que deveria se dirigir e o mais disposto a ouvi-lo fosse o laico,
os provincianos renegados. Suspeitava de que ambas as forças políticas que
estavam em disputa podiam adotar a seu modo sua doutrina para enfrentarem-se
uma a outra. Quem sabe ele fosse uma terceira via. Lembrou-se do conselho de
disciplina monástica a que já se submetera uma vez e da antipatia que nutriam pela
sua figura os líderes de sua ordem. Por um motivo ou por outro, Irineu Lopes soube
que tinha não apenas de se apressar, mas também de arrebatar-se à pregação de
sua fé.
Por passar despercebido ou por uma ética de compensação pelas seguidas
preterições que sofria em suas pretensões ao posto de presbítero, mas sobretudo
com a ajuda de um colaborador infiltrado na oficina de impressão, um resumo in-
quarto de seu trabalho veio à estampa na tipografia da paróquia de São Domingues,
onde de início seus distraídos censores não atinaram que não se tratava de uma
apologia de um mero estudante ortodoxo de teologia, tampouco enxergaram as
armadilhas que mais tarde alegariam ser possível identificar em suas entrelinhas.
Esse extrato de sua arrevesada catequese foi distribuído em sigilo pelas famélicas
povoações da planície, e, ainda que jamais houvesse sido o seu propósito, inflamou
o dizimado movimento revolucionário do interior com um novo fôlego de esperança
religiosa para a sua causa. Na introdução, onde Irineu Lopes reunira o status
quaestionis à exposição do seu método e de sua terminologia, tratava de fazer
antes de tudo uma breve exegese da queda do homem consagrada nas escrituras.
Contudo, sua interpretação do mito do paraíso perdido divergia do cânone ao
postular que o sagrado, vedado ao homem comum ancestral e representado pela
alegoria da árvore do bem e do mal, objeto material do delito de Adão, que por

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extensão arrebatara toda a espécie humana, não se resumia, segundo ele, à
desobediência em si, ao sacrilégio de violar uma interdição, mas à causa eficiente
dessa violação, mais precisamente ao atributo da natureza do homem que o
impulsionara a transgredir: a inata filáucia da índole humana. Ponderou que isso
era corroborado justamente pelo fato de que a pena para tal atentado foi vivermos
desde então confinados no mundo profano, nas comezinhas vicissitudes da
matéria, e do tempo e do espaço, com uma vaga anamnese do passado angélico
de uma alma encarcerada num corpo animal. Numa passagem do desenvolvimento
de sua tese, Irineu Lopes retomava esse aspecto de sua doutrina ao aventar que
por estarmos de forma permanente e incontornável enclausurados no mundo físico
do profano é que o messias enviado para redimir-nos não foi o todo-poderoso anjo
guerreiro de gládio em punho à frente de exércitos de luz que os hebreus
esperavam, senão um plebeu desarmado, nascido em dores de parto do ventre
feminino, sujeito às agonias da fome, da sede e da indignação, aquele que se
haveria de deslumbrar com o céu estrelado numa noite solitária da Galileia, tentado
e traído, o que escarnecido verteria lágrimas de sangue. No epílogo, Lopes
arriscara-se um pouco mais longe. Após concluir que, assim, a famosa resposta de
Laplace, em síntese de todo o humanismo, não era senão uma reincidência, uma
persistência no erro capital que ensejaria a segunda perdição que estendia nossa
desvalida permanência neste baixo mundo, Irineu Lopes escreveu que, ainda que
de forma despercebida, todos os mitologemas recriavam o cenário da encarnação
do homem como seu próprio abismo, e que a verdadeira escatologia não estaria
no apocalipse, mas na gênese do homem enquanto condenado a ente
irremediavelmente mundano. Na última página, arrematava: “Deus só se comunica
com a raça condenada através do profano, porque é este âmbito que nos coube
por merecido castigo, já que até a própria vida, o milagre mais evidente que se
pode averiguar, não deixa de ser fruto da torpe conjunção carnal, da cópula entre
empedernidos seres viventes acossados pelos instintos”.
Seu manual tratava exclusivamente de assuntos teológicos, mas a
interpretação que os chefes rebeldes e muitos dos seus aliados líderes
camponeses deram a suas premissas traçava um paralelo com a condição de
almas viventes desvalidas. Embora no fundo ninguém houvesse entendido

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claramente seus conceitos elementares e ainda que alguns poucos céticos já
começassem a desvelar a natureza e o alcance dos seus possíveis e perniciosos
desdobramentos, munido da autoridade que lhe conferia o prestígio de haverem
divulgado suas ideias, Irineu Lopes lograva dirimir com uma retórica tautológica
mas incisiva os pontos mais imprecisos e controversos dos seus princípios, assim
como distender seus julgamentos a outros campos do estado atual das coisas por
detrás do exaltado púlpito diante do qual se espremiam pequenas multidões nos
povoados vizinhos. Durante um ano, incessante, cresceu sua fama. Já era quase
uma unanimidade entre seus pares provincianos na ocasião em que enfrentou as
famigeradas corredeiras do rio em sua viajem mais longa e ousada para apresentar
suas assertivas teóricas numa cátedra de filosofia da capital. De volta, encorajado
pelo rumo dos acontecimentos, redigiu uma requisição solicitando permissão a
seus superiores para remeter seu trabalho para apreciação do conselho editorial
da cúria romana. A esse pedido anexou os extensos originais em vernáculo de sua
monografia completa, acrescidos de uma versão resumida em latim e de dezessete
páginas de adendos, referências bibliográficas e notas elucidativas. E assim
aguardou com efusivo otimismo o endosso para que remetessem seu trabalho às
altas instâncias eclesiásticas. Enquanto isso, tratou de angariar os prosélitos que
aos poucos se aglutinavam no entorno da paróquia de São Domingues. Entre eles,
um grupo de leigos que alimentava uma pragmática versão laica de suas teorias.
Por esses dias, populares o saudaram com entusiasmo numa viela dos arrabaldes,
ocasião em que o ofuscou a presunção de que um líder podia prescindir menos da
conduta que das bases teóricas que a determinavam. E continuou sem diagnosticar
os evidentes sintomas de suas veleidades ao ser tomado pela angústia que pôs no
centro de suas orações a dádiva pretendida de que por um acaso da fortuna
adiantassem o trâmite processual que deferisse seu pedido para antes do dia
aprazado. Mas sucedeu justo o contrário. O bendito prazo venceu, e com ele as
semanas e os meses seguintes sem resposta. As únicas notícias que chegavam
eram as que vinham de boca em boca sobre o temerário movimento rebelde no
interior, dando conta de que tinham conquistado apoio geral da população que vivia
nos campos da região e que agora ameaçava sacudir toda a União. Para dissipar
seu horror, Lopes chegou a brincar dizendo que “como na França, no fundo a única

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discussão que restará vai ser adivinhar para que lado rolarão nossas cabeças
decapitadas”. Sentindo que seu pescoço em alguma medida já estava na mira de
algum carrasco, simpatizou com a causa dos conjurados, e ao receber notícia de
que estes o saudavam como profeta da boa nova de que a luta revolucionária era
válida porque redimia o homem de seu pecado original ao reestabelecer a justiça
natural, insuflou-se ao entender que a procrastinação a que o haviam submetido os
clérigos de São Domingues não se tratava apenas de uma questão de ciúmes
hierárquicos, tão endêmica em lugarejos remotos e atrasados como aquele, mas
sobretudo a fatores de ordem política. O comunicado que enfim chegou a suas
mãos acerca de suas pretensões de autor da Igreja, de fato, sequer simulava um
argumento que deixasse entrever outro viés mais criterioso que não o mais
rudimentar que Irineu Lopes podia esperar. Desqualificava sua tese como
meramente milenarista e tão desprovida de elementos dignos do parecer de
sumidades sacerdotais superiores, que sequer mencionava a questão de seu
envio. Leu o último trecho quase humilhado. Orientava-o como a um noviço a não
se descuidar dos dias reservados ao jejum, a reprimir a vaidade e a redobrar as
orações para fortalecer o espírito contra a tentação de enredar-se em querelas
filosóficas tacanhas e de proposições que sempre tendiam a flertar com o
gnosticismo. Como conselho contra futuras recaídas, uma nota de pé de página
indiretamente o advertia de que “as heresias mais nefandas são justamente
aquelas que podem se confundir com a ortodoxia”.
A princípio, Lopes conformou-se ao que já imaginara. Mas a partir dali sua
participação na ordem monástica tornou-se insustentável. Entre perjurar ou renegar
seus votos da Igreja, o chão parecia afundar sob seus pés. Entre fé e razão
enxergou o dilema da loucura. Considerou fazer voto de silêncio e mortificou-se
febril dias inteiros a fio até que seus admiradores mais inflamados quase tiveram
de pôr abaixo as portas de sua cela para tentar resgatá-lo da prolongada inanição.
Num arroubo de franqueza, instigaram-no a deixar o hábito clerical e o animaram a
sair do claustro com favoráveis embora desencontradas notícias que anunciavam
a premente eclosão da reforma liberal assim que as tropas revolucionárias
reorganizadas chegassem a São Domingues. Em sua prostração, Irineu Lopes
suspeitara que as pretensões políticas dos revoltosos nada tinham que ver, ou

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fossem até contrárias às premissas fundamentais do seu pensamento, mas quando
se confirmou ali a veracidade dos sucessos das esfarrapadas tropas conjuradas na
Batalha do Charco, demoveram-se-lhe os últimos escrúpulos de coerência a
certeza de que por enquanto a única coisa que realmente importava era unir forças
físicas contra o regime atual, depois arrumar-se-iam as questões administrativas e
religiosas que sustentariam a sociedade humana na Era do Evangelho Eterno.
Rendeu-se afinal às exigentes lisonjas de um bilhete que circulou de mão em mão
até chegar a sua vigiada alcova com um ultimato para que assumisse ali a liderança
espiritual da revolução que se aproximava. Encorajado pelos fatos literalmente
batendo à sua porta e, quem sabe, pela evidência de que hão de ser mui amigos
aqueles que têm inimigos em comum, despiu o luto e abandonou certos
pressupostos de sua doutrina para pregar a portas fechadas em reuniões secretas
em torno de São Domingues fervorosas homilias onde o livre-arbítrio era o legado
de Deus aos homens para que pudéssemos fazer jus ao mérito de obrarmos nossa
própria história, a única redenção possível contra a condenação ancestral. Mas
como numa aldeota irrisória como a de São Domingues segredo é algo que todos
contam a todos pedindo sigilo, breve um sumário processo do tribunal da cúria local
prolatou a acusação de blasfemo contra Irineu Lopes, e expediu um despacho
intimando-o a uma penitência severa e à retratação pública ante as ameaças de
cassação de suas ordens monásticas, ao degredo e à excomunhão. Os mesmos
autos e testemunhos foram remetidos ao rector civil da sede da comarca, cujo
inquérito ofereceu a denúncia penal de conluio e sedição.
A esse inesperado contratempo, os asseclas de Irineu Lopes opuseram os
acalentados informes de que a praça de São Domingues não só constava no mapa
do itinerário das forças dissidentes como afirmavam que já estavam em seu
encalço, acampadas a menos de quinze dias dali em cadência ordinária, ou à
metade disso se o clamor da urgência as fizesse acelerar o passo e marchar noites
e matagais adentro se fosse preciso. Irineu Lopes, por mais que relutasse, não
podia deixar de notar a discrepância das informações nem o nível de disparate a
que tinham chegado as especulações. Sentindo nos circundantes a tensão que lhe
reclamava uma atitude impetuosa, limpou a garganta, benzeu-se e balbuciou quase

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sem erguer os olhos do chão a frase banal e quase inaudível ao círculo mais
reservado dos seus íntimos inconfidentes:
─ Vamos aguardar o que nos prepara a Divina Providência.
A não poucos dos seus sequazes aquele gesto lhes pareceu uma mostra
de hesitação, senão de debilidade. No manifesto que dois dias depois remeteu ao
priorado do monastério, com uma cópia para ser apregoada nas veladas
assembleias dos cismáticos, Irineu Lopes restringiu-se a aspectos teológicos ao
compor uma carta circular onde declarava abertamente sua inextrincável profecia
acerca das três idades do desenvolvimento do mundo rumo à redenção do homem
aqui na Terra. Incitava seus desafetos a abandonarem em definitivo o mundo
profano a que estavam condenados, ao orbe meramente fenomênico no qual
provariam merecer a inapelável pena a que estavam submetidos porque o dogma
da salvação não se referia senão à salvação neste mundo com o iminente advento
da Era do Espírito Santo. Diante da decepção de que não havia no manifesto
nenhuma linha sobre questões mais urgentes que dissessem respeito à tensa
conjuntura política, como questões diplomáticas de armistício ou condições de
anistia, seus adeptos entraram em discórdia. Quando, em suas conjecturas, eles
mesmos passaram a antecipar a iminência dos primeiros disparos retumbando
contra as barricadas de São Domingues, não tardou para que a maioria mais
politizada e pragmática do séquito se afastasse resoluta da influência de Lopes. A
liderança militar do grupo assumiu as ações desde ali. A minoria, contudo,
intransigente mas de viés estritamente teológico, não viu nesse cisma senão uma
oportunidade de purificação, e na ventura daquele transe fortaleceram sua
fidelidade aos preceitos dogmáticos precípuos do movimento; primeiro, com o
argumento de que aquela nova e inspirada atitude no campo religioso e da moral
representava uma arma irresistível contra os carcomidos muros reacionários;
depois, com a espectral e obscura profecia de que o espírito do mundo era
imanente e que a realidade, portanto, era um dos atributos da verdade, logo a
harmonia haveria de imperar pelo dom do progresso natural da história, onde Irineu
Lopes seria aclamado pela voz uníssona da comunidade como seu novo arauto.
Esse lado da cisão, tornando-se a versão patente e como que autorizada do
movimento, impulsionou o núcleo militar a deixar de vez de se submeter a Irineu e

95
a articular a deflagração armada do movimento em São Domingues. Assim, como
não podiam confiar que uma fantasmagoria idealista é que haveria de consumar a
justiça do cosmos e a entrada na nova era, como enxergavam agora haver sido o
movimento até ali sob a liderança espiritual de Irineu Lopes, para não se
confundirem com os apologetas daquela fantasia ou talvez por pura precipitação
em tentar adiantarem-se como os verdadeiros heróis da revolução, os dissidentes
pragmáticos decidiram não atender o pedido estratégico dos conjurados de fora
para aguardarem o momento oportuno de um fato específico capaz de
desencadear uma mobilização maciça antes de se arriscarem a dar o bote que
iniciaria a revolta. Esse desacato, porém, rendeu-lhes um percalço imponderável.
Como um mal auspício, na madrugada da terça-feira seguinte, noite de Natal, à
hora marcada para deflagrarem a tomada da guarnição militar de São Domingues,
uma tempestade tropical desabou sobre o distrito. Seja porque aquela fatalidade
retraiu o ânimo dos jovens conspiradores, seja porque um erro crasso ou uma
coincidência brutal confundiu as senhas combinadas na véspera e um deixou para
o outro o que devia fazer, o que ocasionou a inutilização completa do mirrado
suprimento de pólvora pela chuva torrencial, o resultado foi o malogro completo e
de forma irremediável dos secretos e ousados planos da rebelião.
No entanto, mal as primeiras diligências de repressão buscavam ainda os
supostos autores intelectuais do fracassado atentado, a sentença de excomunhão
de Irineu Lopes foi lavrada e exposta no centro de São Domingues junto ao edital
criminal que o decretava líder de uma seita gnóstica e um perigoso foragido da
justiça no mural de papelão suspenso por duas forquilhas que os rescaldos do
temporal, agora uma garoinha persistente, ameaçavam dissolver. A Irineu Lopes
só restava apostar em que a coluna dos conjurados do interior chegasse ao
povoado. Se o matariam no futuro, era uma hipótese que precisava descartar, de
inimigos bastava a certeza dos que tinha em São Domingues. Num último ato de
desespero, para convencer os de fora ou para persuadir os antigos aliados que
ainda estavam livres a unirem-se novamente sob sua inspiração, dos subterrâneos
dos seus esconderijos Irineu Lopes conseguiu fazer circular um manifesto em que,
sem as antigas cerimônias filosóficas, mas repleto de vitupérios, desferia um
ataque frontal à paróquia. Nele atribuía à própria Igreja a origem do descompasso

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entre a alma e o mundo; asseverou que durante o processo a que ela se sujeitou
na sôfrega adoção do catolicismo pelo Império Romano, entre bajulações e
simonias, desde o início os seus bispos aduladores trataram de agarrar seu quinhão
traindo o cristianismo ao legarem somente aos césares o usufruto da vida neste
mundo; que Santo Agostinho passara a vida a se contradizer, como na passagem
do De Civitate Dei em que confessou seu entusiasmo ao ver Ambrósio numa capela
de Roma ou de Milão pregando o velho testamento como simples metáforas e
alegorias, o que era a prova cabal de sua fraude; que Tomaz de Aquino é que foi o
anticristo, ao reconhecer as ideias de um pagão como Aristóteles como fonte
legítima para a compreensão das escrituras, um prato cheio para a justificação que
os ímpios procuravam; e, afinal, que os jesuítas que compunham a ordem
monástica jesuíta a que dedicara seus melhores anos de devoto inocente eram
acólitos de Ignácio Loyola, o qual teria crucificado o Cristo uma segunda vez se os
ensinamentos do ressuscitado ameaçassem desvelar os crimes cometidos em
nome da Igreja.
A exausta tropa dos milicianos que esperavam retomar São Domingues
julgou imprescindível para o sucesso do momento em que fosse investir contra
aquele distrito, além do apoio irrestrito do populacho inconformado, o sólido apoio
de fogo de retaguarda que os desbaratados insurgentes de São Domingues não
podiam mais oferecer. Consternados com a desastrada e indisciplinada
precipitação dos acontecimentos em São Domingues, a coluna de forasteiros
abandonou os planos, desviou-se e seguiu lenta rumo ao sul dando prioridade
agora aos povoados que lutavam contra as forças inimigas do país vizinho do outro
lado da fronteira. E o contraditório manifesto de Irineu Lopes não só caiu no vazio
como foi o fio da meada que seus desafetos, através de espancamentos e delações
voluntárias, encontraram para reconstituir a pista inversa dos panfletos até
chegarem a seu refúgio. Acuado, tentou desferir, tal Robespierre, contra o queixo
emaranhado pela barba cumprida de profeta que deixara crescer desde que
abandonara sua ordem, um tiro com a garrucha que trazia engatilhada sob a rota
túnica de eremita, mas nunca se soube se o disparo falhou ou se o coice da coronha
fê-lo errar o alvo, ou se, como disseram seus verdugos, “aquilo não passou de mais
uma simulação, atitude muito própria aos falsos profetas”. Menos de dois anos se

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haviam passado do dia em que publicou seu primeiro manifesto ao momento de
sua prisão.
Como Anísio Boécio, como Giordano Bruno, dez anos esperou Irineu Lopes
a execução de sua sentença vagando solitário pelos escaninhos de pensativos
calabouços. Em desconsolados submundos compartilhou seu delírio com mártires
e hereges reais e imaginários, e uma noite de febre despertou-o assustado as
blasfêmias que gritou o apócrifo heresiarca Euforbo quando as chamas lhe
atingiram o corpo. Tentando afugentar a loucura no prolongado cárcere, procurou
reformular os princípios de sua doutrina. Chegou a cogitar se a justificativa para
Laplace não haver citado Deus em seus tratados de astronomia não era justamente
o fato de Deus já estar notoriamente subentendido. Acossado pelo medo do Inferno,
lidou noites imensas com a questão da teodiceia sem achar uma saída para o
problema do mal no mundo. Repudiou a hermética e a possibilidade de múltiplos
mundos que não seriam senão vãos pressupostos de supérfluos deuses e infinitos
egos sobrepostos e chegou a conceber a questão do livre-arbítrio e do destino
como meros flatus vocis, entendendo ambos como falácias urdidas pela ociosidade
de espíritos intocados pela luz da graça divina.
Uma tarde, por incrível que lhe parecesse, chamaram-no para dizer-lhe que
no dia seguinte compareceria perante os juízes eclesiásticos para que desse
testemunho de sua sanidade espiritual. De manhã, bem cedo, fez sua assepsia.
Esfregou os cabelos, raspou a barba, desjejuou sem pensar mais nos bichos que
infectavam sua sela. Entrou no recinto e tão logo acabaram de ler sua extensa
acusação, pediu venha para pronunciar-se. Puxou de uma pequena Bíblia e leu em
voz alta diante do colegiado o versículo dez do capítulo vinte e dois do evangelho
de São Lucas, e explicou-lhes que o homem anônimo carregando um cântaro de
água ao entrar numa casa descrito naquela passagem significava o advento de
uma nova Era, a de Aquarius, a que sucederia a era atual, a de Peixes, que, logo,
o que ele tinha pregado não estava em nenhum outro lugar senão nas sagradas
escrituras. Continuou falando, intrépido, até que o interromperam para pedir-lhe
que explicasse a doutrina do que chamaram de seita milenarista. Irineu Lopes
hesitou na dúvida de se entendia aquilo como uma preciosa chance de redenção
ou como uma capciosa armadilha. Adivinhou sua desgraça no semblante severo

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da plateia. Foi aí que a Bíblia lhe escapou das mãos acidentalmente e sentiu-se
ridículo ao tropeçar no momento em que foi se agachar para apanhá-la. Pensou,
patético, em declarar que talvez se houvesse enganado quanto à cronologia exata
em que se daria a transição entre as eras do mundo que pregara. Mas sua vaidade
insuflou-lhe uma pretensiosa coragem, e arriscou-se a dizer então:
─ É que vocês não entenderam a vera doutrina que me foi revelada ad
majorem Dei gloriam.
Os membros do júri lamentaram em silêncio, e em seu veredicto
proscrevam-no do mundo.

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Os Deuses Facínoras

Talvez não seja exagerado dizer que com a aniquilação ou ao anátema a


que ficou reduzido o Maniqueísmo, na cosmogonia ocidental, pelo menos desde
Plotino, a história teológica do Mal não deixa de ser uma oportuna coadjuvante na
história do Bem, uma espécie de contraponto. Ou seja, sob uma perspectiva
metafísica, poder-se-ia prognosticar que o mal seria o anverso dimensional do bem,
i.e, ambos nada seriam em si senão a ausência ou o distanciamento um do outro.
E, pensando bem, mesmo na mitologia greco-romana ou nas cosmologias
ameríndias, o Mal, embora possa ter sido concebido como entidade em si mesma,
é também atributo de deidades antropomórficas essencialmente benevolentes e
piedosas, porque suscetíveis a paixões como a ira, a inveja ou a vingança. Enfim,
em nenhuma dessas culturas jamais o Bem reinou absoluto, salvo no fim
escatológico ou em sua dimensão extracósmica.
Não pretendo aqui, porém, traçar um vão arrazoado sobre essa dicotomia,
sobre seu equilíbrio. Tenho para mim que o mundo está muito mais pleno de coisas
grandiosas e salutares que de perversidade. A lugar algum podem chegar
controvérsias sobre a presença do Mal num mundo que não o compreende, que é
autocriado ou que se crê gerado por uma bondade infinita, como na teodiceia de
Gottfried Leibniz e na angústia do vazio em Blaise Pascal. É que o ponto onde
quero chegar, o caso que quero compartilhar, demonstra que, no mundo da
experiência, dos fenômenos, o Mal é um fato e sua questão enquanto problema
moral ou filosófico é fútil ou secundária. Podemos averiguar isso no dia-a-dia mais

100
corriqueiro, mas mencionarei duas citações ilustres. Ao cabo das milhares de
páginas que no séc. XVIII dedicou à história do Império Romano, Edward Gibbon
anotou com desalentado suspiro que a história era “pouco mais do que o registro
dos crimes, loucuras e desventuras da humanidade”. Já um estarrecido Joseph
Conrad foi quem pôs na boca do sujeito que no fim do Dezenove vivia no coração
das trevas, as vazantes do Rio Congo durante a sangrenta exploração do marfim,
o estupor com que resumiu a sua vivência: “O horror, o horror!”.
Um vil cortejo de infâmias, opróbrios e perfídias pululam nessa atuação do
Mal ao longo do tempo, e mesmo na história pessoal de muitos dos seus indivíduos.
Vale dizer, quando uma ignomínia, uma hecatombe, parece extrapolar as próprias
capacidades humanas de engendrá-la, atribuímo-la a cegos e inescrutáveis
mecanismos históricos, à burocracia impessoal de um Estado político insano, ou,
mais comumente, às misteriosas forças do Mal. Por outro lado, tantos casos, como
o daquele famoso chefe de bandoleiros descrito por Jacob Burckhardt em sua
história da renascença, que ostentava em seu corselete a inscrição “inimigo de
Deus, da compaixão e da misericórdia”, talvez faça a balança da maldade pender
para o lado do indivíduo. Mas, enfim, vamos ao ponto a que me propus chegar: ao
fato de que, em toda essa macabra epopeia, a morte, o extermínio, foi sempre,
como não poderia ser diferente, sua maior cominação, seu redundante fim, seu
limite. Não na história da morte e vida de Felix Narciso Bastides.
As clássicas discussões acerca dos corpos insepultos de Heitor de Ílion e do
irmão de Antígona parecem resumir-se a questões de direito ou à memória
parental. Em torno do seu centro gira uma controvérsia moral. No caso de Felix
Bastides, sua morte, seu assassinato, foi apenas um meio, um capítulo menos atroz
que os subsequentes. Ali, o terror da aniquilação não foi senão uma espécie de
introdução. O inspirado imaginário da literatura, da dramaturgia e do cinema
ocuparam-se do terror, das fantasmagorias, das criações teratológicas, de uma
crônica universal da infâmia. Incluso nesses gêneros, o caso de Bastides destoaria
dos fictícios por sua terrível realidade; dos mais verossímeis ou biográficos, pelo
absurdo.
Creio não haver inconveniência, neste caso, em supor detalhes que não
pude coletar, já que certas obviedades servem como evidências, e o núcleo é o que

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importará aqui. Além da essência de uma vida, o pano de fundo circunstancial não
deixa de perfazer apenas um molde, um veículo. Também porque essa história,
como se verá, não carece de hipérboles, e que a poucos casos assenta tão bem
aquela sentença de Marguerite Yourcenar, segundo a qual poderíamos prescindir
da ficção, uma vez que a realidade está demasiado prenhe de coisas assombrosas
e enigmáticas. Assim, qualquer intromissão neste relato não lograria senão tentar
deixá-lo mais crível, palatável, coisa de que a realidade não carece. Ademais, quem
o viveu, viveu-o através de acontecimentos e de suas emoções. Tantas décadas
passadas, as palavras com que procurarei reconstituir o caso devem fidedignidade
muito mais à perspectiva emocional que a uma reconstituição cujos fatos já não
representam mais aquilo o que foram então. Por ser um tanto póstumo, narrarei de
trás para adiante o sinistro caso de Felix Narciso Bastides.
Numa clara manhã de julho, Angeline percorria a feira de sua aldeia, um dos
povoados próximos à comunidade de Leiogã, à procura de uns legumes para a
sopa que serviria no almoço. Teve de baixar os olhos das gôndolas para pegar um
atalho entre as tendas. Foi aí que um grito de agudo pavor ecoou no lugarejo. As
pessoas que acudiram em polvorosa deram com Angeline escorada sobre os
monturos de cascalho e bagaço de cana que a ampararam na vertigem do seu
pânico. Diante dela, imóvel e silencioso, um homem negro tentando ensaiar um
sorriso desconcertado por trás das lágrimas que começavam a derramar seus olhos
endurecidos. Para Angeline, aquela era uma cena impossível. Uma íntima palavra
acalmou-a. O espectro chamou-a por um velho e esquecido apelido de infância. A
voz rouca quase já não se articulava. Tinha que ser ele, sim, valha-me Deus. Talvez
estivesse ficando louca. Mas era ele. Aquele homem era seu irmão Felix Bastides.
Encanecido. Vilipendiado. Contudo, era ele, sim. Contudo, ela mesma havia
chorado em seu velório e amargado seu sepultamento vinte anos antes, na tarde
soturna de 12 de maio de 1962.
Certa página de um apócrifo e sacrílego evangelho insinuou que as
testemunhas da ressurreição de Lázaro não se haviam apiedado, antes teriam se
enchido de pavor. Nos antigos costumes fúnebres dos vilarejos de Leyogã, ainda
que de forma tácita, cumpria-se o rito do velório menos por uma questão de prazo
de certificação do falecimento que para proteger o corpo sem vida contras a

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possessão de espíritos malignos. E na memória dos anciões da região constava
que houvera uma época em que, como recurso extremo contra o pavor de serem
confundidos com um endemoninhado ou de despertarem de um coma cataléptico
dentro de um esquife soterrado, uma geração inteira de pares de homens
saudáveis jurou o mútuo pacto de que quem sobrevivesse ao outro deceparia a
cabeça do morto antes do enterro. Um errante e cético missionário que esteve na
região na década de 1930 sugeriu outra versão para o pavoroso receio que os tais
pactos quiseram atenuar. Ao suspeitar, porém, de que o relato do que soube era
mais tenebroso e inaudito que a primitiva crença em entidades possessoras, o frade
ítalo-espanhol Guilhermo B. Marbrollo, ao publicar suas resenhas sobre aquela
viagem num semanário de Valladolid, deixou escapar apenas a inconclusa
indicação de que nas insalubres comunidades caribenhas dos distritos e
localidades de Lachapelle, onde se situava Leyogã, era hábito corrente enterrarem-
se os entes queridos sob socados solos pedregosos difíceis de se exumar, sob
lajes, ou nos próprios terreiros e jardins das propriedades, a fim de manterem as
catacumbas a salvo de facinorosos violadores.
Na infausta noite em que levaram o corpo de Bastides para casa depois que
o legista atestou a falência dos seus sinais vitais, um sujeito com gestos e
indumentária de feiticeiro penetrou na casa pesarosa. Esgueirou-se entre o luto e
entrevistou-se com a aturdida mãe do velado. No centro da sala, discretamente
sacou um longo e fosco prego do escapulário que trazia preso à cintura. Gemeu
circunspecto uma inaudível prédica na língua Kimbundu e cravou fundo o metal na
planta do calcanhar esquerdo do cadáver. Esperou uns segundos. Aí lastimou-se
fazendo um gesto negativo com a cabeça, dando a entender que aquele último rito
testificava contra o que ninguém mais tinha alguma esperança.
Bastides fora um jovem como os demais da comunidade. Como todos eles,
carregava o antigo micróbio de saudade perdida que ainda lhes fazia palpitar o
peito ao olharem o mar do Caribe ao entardecer. Pobre entre pobres, suas ânsias
comediam-se menos a posses que a experiências aventurosas na vida. A um que
outro heroísmo, cada dia mais reservados para o outro mundo. Que soubesse, não
possuía inimigos pessoais. Seus potenciais desafetos eram do tipo dos que lhe
lançaram maldições certa vez, por questões de terra, na ocasião em que o governo

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interveio durante um plano de reforma agrária malsucedido no departamento
estadual de Lachapelle, mas nunca soube que algum deles carregou sentimentos
de vingança que lhes pudessem fazer cumprir suas antigas ameaças. Contava
vinte e seis anos da força de sua idade naquele fatídico mês de maio quando o
acometeu a longa e súbita agonia do enxame de mosquitos invisíveis que lhe
tripudiavam por debaixo da pele. Depois, a febre, a falta de ar, a internação, a
paralisia e o óbito, e sem que nenhum dos dois médicos que o atenderam tivessem
noção de um diagnóstico plausível. Feito o apelo aos pajés das cercanias,
tampouco estes puderam indicar infusões ou esconjuros que anulassem possíveis
quebrantos de magia. Como convinha às práticas fúnebres da aldeia, enterraram-
no antes das cinco da tarde do dia seguinte num desmantelado cemitério de covas
esboroadas. Para a família, as histórias de violadores de túmulo eram parte de um
passado macabro ou da lenda, e os espantalhos vestidos de vermelho pendurados
na fachada das casas de Leyogã não eram mais que uma distração contra o tédio.
Angeline depositou flores brancas de limoeiro em sua sepultura e despediu-se
arrastando mais um luto.
Mal caiu a tarde, porém, um surdo estrépito podia ser ouvido no fundo breu
do cemitério. Uma apressada picareta começava a revolver o barro ainda mal
sedimentado do seu sepulcro. Sob a luz avermelhada de uma trêmula tocha de
piche, podia-se ver os vultos de dois homens içarem o ataúde de madeira crua mal
apregoada. Retiraram o corpo, depositaram o caixão vazio na cova e
recompuseram o túmulo com a cruz invertida e a murcha guirlanda fúnebre que
Angeline tecera naquela manhã em memória do irmão.
Poucas invenções, melhor seria dizer descobertas, são fruto de verdadeiro
gênio humano, menos ainda da especulação inventiva de um único indivíduo. Em
sua esmagadora maioria, são resultado de experiências e aperfeiçoamentos
acumulados e difundidos. Para maior decepção dos apologetas da ciência humana,
essas experiências, por sua vez, são majoritariamente fruto de acasos acidentais.
Algumas gnosiologias místicas vão além desse menoscabo ao empirismo clássico.
A ínfima estatura de nossa condição não permitiria que fôssemos criaturas dotadas
de ciência alguma. A tabula rasa do parco conhecimento humano seria na verdade
impregnada pelas sugestões de entidades espirituais sussurradas ao ouvido dos

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homens inconscientes dessa voz. Certa etnia indígena das planícies pantanosas
do Javari, consideram que a própria silhueta das ervas, cujas folhas arremedam o
formato dos órgãos do nosso corpo, contêm a pista de para que servem o antídoto
de seus unguentos e beberagens. Para elencar também um antifilosófico
argumento filosófico, Henri Bergson postulara que o curso de nossas ações no
mundo é ordenado muito mais por intuições e instintos que por um racionalismo
categórico. A eficácia de um elixir alquímico ou de um medicamento balsâmico
talvez requeiram menos um propósito deliberado ou gerações de cobaias do que
um longo laboratório de acasos, ociosidades, clarividências ou predestinações.
Assim é que sem a confissão de alguns feiticeiros bokôrs de Leyogã, jamais se
revelaria o que sucedera a Bastides.
A própria descrição dos eventos, sua sucessão, a metódica dosagem de
tempo e medidas necessária para cumprir-se o hediondo caso eram tanto mais
ignóbeis tanto mais mostrava-se meticuloso seu processo diante da desmedida
crueldade da meta. Após cuspir ao chão um pedaço de pena ensanguentado pelo
sangue da própria língua remordida secretamente para simular a extração do mal
que contaminava uma menina enferma que os pais haviam levado para um ritual
de cura, um nigromante bokôr confessou o que sabia. Bastides havia sido
contaminado por uma substância capaz de provocar paralisia e baixar o nível dos
sinais vitais a ponto de o intoxicado ser dado como morto por um período de até
vinte e quatro horas. Que a receita dessas substâncias havia vindo com seus tetra-
avós da África, onde eles haviam recolhido esse ensinamento do comércio mágico
que travavam com os espíritos diabólicos que habitavam as frestas cavernosas
abertas no chão das savanas, os mesmos que também lhes transmitiram a maligna
arte vodu. Os ingredientes que citou pareciam todos votados a estarem associados
à repulsa. Além da prestidigitação xamânica requerida, apenas dois deles
distinguiam-se das proverbiais fórmulas fervidas nos caldeirões das bruxas das
fábulas medievais. A secreção de um dado cipó e a peçonha extraída de um peixe
ou sapo raros. Injetado na corrente sanguínea, induzia a vítima a entrar em estado
letárgico profundo. Resignada a chorosa família após o funeral, era ministrado
então o contraveneno. O sacrificado despertava ainda sonambúlico, mas antes de
se recuperar era instado a ingerir uma poção feita a partir das raízes de uma planta

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conhecida por figueira-do-diabo, o que o transformava numa espécie crônica de
morto-vivo, ou vivo-morto. Daí, conduziam-no a um cativeiro. Esse bizarro
procedimento era aplicado geralmente em casos de vingança às vítimas do sexo
masculino, os quais eram levados a trabalhar no penoso manejo dos canaviais; às
mulheres, lhes era reservada uma sorte ainda mais monstruosamente sórdida, a
violação e a escravidão sexual permanentes. Às vezes os terríveis bruxos
precisavam de um mero serviçal para o venderem a seiscentas milhas dali, na
Costa Atlântica. Um malparido de quem o mundo sequer daria falta. Escolhiam uma
presa aleatória ou desprevenida, como o desditoso Bastides. Seguiam-na pelas
ruas movimentadas. Espionavam sua rotina. No momento propício, acercavam-se
sorrateiros ou desinteressados. Aí a borrifada da infusão maléfica na descuidada
tigela de sopa, numa ferida aberta afugentando as moscas ou dentro da cumbuca
de sangue com leite quente servida na feira a vinte e cinco centavos. Assim como
numa picada fatal durante a encenação de um esbarro casual no meio do povo
aglomerado em torno das rinhas, distraindo a ligeira laceração do espinho funesto.
Nos ensolarados sopés da Serra Arahuaca, uma dezena de anos sombrios
Felix Bastides levou como subserviente zumbi entre os enfermiços canaviais e
usinas da Costa Norte. Sem memória, sem alma, sem sensações que não as
cutâneas. Uma carcaça antropomorfa restrita às funções cinéticas do organismo.
Sem atinar que seus patrões eram os parasitas que o reduziam a uma condição
inferior à de um animal invertebrado. Até que um dia, talvez porque naturalmente
não haveria de prosperar por muitos anos uma empresa que se utilizava de um
regime de trabalho satânico, talvez pelo tempo a que já se haviam acostumado à
inofensiva e servil sujeição de Bastides, passaram a negligenciar a vigilância sobre
seu estado mental. Pode ser ainda que a receita se perdera com os anos, ou quem
sabe também que seus malefícios já não surtiam os esperados efeitos catatônicos.
Foi aí que seus sonhos noturnos foram tomando contornos mais nítidos e seus tons
acinzentados foram ganhando nuances azuladas, embora tudo se combinasse em
imagens simbólicas ainda disformes cuja única sensação que suscitavam era a de
uma angústia pastosa. Inúteis e lacrimosos esforços obsidiaram suas noites
tentando encontrar a ponta de um fio qualquer que o fizesse lembrar como ou
quando fora parar ali. Embora tenha desistido também de tentar adivinhar o que o

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obrigava a permanecer, aos poucos Bastides foi entendendo o papel de sutis
carcereiros das pessoas que o circundavam. Suspeitou que sua recuperação tinha
relação com o sumiço do sujeito que provavelmente o visitara semanalmente
durante anos, porque da última vez que o viu ele o tratara com estranha e íntima
afabilidade. Era um homem com trejeitos de sacerdote com seus balangandãs e
colares de concha e ossos de corvo. Examinava-o, trazia-lhe uma marmita quente,
rumorejava em idioma Kimbundu tratativas com o régulo da propriedade e partia.
Essas visitas semanais, ou mensais, haviam cessado, mas Bastides nunca
identificou quem exatamente era seu algoz, e a humanidade inteira parecia
espreitá-lo. Por esses dias, as desfocadas imagens dos seus sonhos principiaram
a delinear rostos de pessoas que não sabia quem eram. No canavial recordou
soluços de mulher aflita, rinhas de galo, sorrisos afetuosos, casas com espantalhos
em farrapos vermelhos no telhado e o recorrente lençol branco com que alguém
cobria seu rosto. Numa das pausas da lavoura teve certeza de que em algum lugar
o esperavam. Para que seu crescente estado de lucidez não o delatasse, procurou
manter as mesmas atitudes, o silêncio e os gestos morosos. Para não despertar a
fúria do relho dos capatazes, seguiu cumprindo submisso a faina maquinal, embora
percebesse-a cada dia mais intolerável.
Uma noite enluarada pouco depois da meia noite, o desfalque de algumas
moedas, um pé-de-cabra oculto sob a capa de brim e a muda de roupa num odre
atado às costas por uma tipoia eram toda a logística necessária para o venturoso
futuro que Bastides concebeu para si. O sucesso da execução careceu de um
pouco mais de desembaraço, e talvez de sorte: no claro-escuro daquela
madrugada, ter de partir com um único golpe certeiro o crânio de um adormecido
porteiro noturno, já que tentar saltar as cercas do outro lado fatalmente chamaria a
atenção dos cães, foi o primeiro e mais difícil passo. Depois, perseverar para não
sucumbir ao desespero labiríntico do pântano rastejando entre fogos-fátuos ou com
anêmonas enroscadas no pescoço para evitar a óbvia estrada de terra. Enfim,
desbordar as encostas lamacentas à jusante do rio para alcançar antes da aurora
o depauperado batelão de carga que transportava a produção da usina e viajar
clandestino metido entre os lotes de cascas de cana-de-açúcar enfeixadas atrás do
convés.

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Ainda receoso de que o perseguiam, imensos e indigentes anos mais Felix
Bastides levou recompondo seu discernimento percorrendo estâncias, vilarejos e
cidadelas como andarilho. Numa noite fria viu no jornal com que tentava se cobrir
o desenho de um mapa com as divisões administrativas eleitorais do território do
país. Sob a luz de uma fogueira recortou-o e passou a soletrar, espantado com o
som de sua própria voz, os nomes de distritos e departamentos inscritos no papel.
A pronúncia de um deles causou-lhe um gelo no estômago. “Lachapelle”. Era
demasiado familiar. Precisava agora saber onde estava. Escarnecedores
transeuntes responderam às gargalhadas que ele estava “bem no olho do cu do
mundo, miserável!” Esperou o dia clarear para poder se avizinhar das pessoas
sem despertar susto ou desprezo. Fizeram-lhe então com um graveto um furo no
mapa para marcar sua posição, e Bastides teve de desdobrar o papel para traçar
uma linha dali até o ponto do mapa onde seus pressentimentos lhe indicavam ser
seu destino. Ficava num ponto antípoda, mas só precisava agora encontrar uma
rota. Sem outros meios, teria de atravessar o país inteiro a pé. Ao encetar a
caminhada decidido, foi que Bastides ensaiou seu primeiro sorriso de alívio e
esperança depois dos quase dezoito anos em que esteve mergulhado no macabro
exílio de sua própria alma.
Para Bastides, estar vivo e reencontrar a família era uma dádiva imerecida,
e jamais expressou sua revolta. Qualquer tentativa de denúncia contra os facínoras
foi sequer esboçada. A história do ressurrecto Bastides correu o país. Muitos
homens indolentes, meros trânsfugas fracassados, que haviam abandonado a
família aproveitaram a ocasião para retornar a suas casas narrando falsas variantes
pessoais da história de Bastides. Certamente que se devem menos a Bastides que
aos investigadores posteriores da história os elementos mais detalhados que a
constituem. Além da fuga, pouca coisa, cenas dispersas, vultos, é o que Bastides
podia associar à atrocidade que imputavam aos perpetradores do seu mal. Mas
nem por isso podia deixar de encher-se de autocomiseração pelo sequestro do
tempo da sua vida. Um dia o levaram para conhecer o lugar que havia sido seu
túmulo. Ainda estava inscrito seu nome na pedra. O pobre Bastides chorou de
amargura, porque compreendeu que o que haviam feito de si foi-lhe assassinar um
largo tempo de sua vida.

108
De fato, poucos anos depois, o parlamento nacional revogaria o artigo 133
do seu Código Penal, talvez não por reconhecê-lo obsoleto, mas pelo entendimento
de que aquela era uma admissão formal da existência de uma aberração comum e
corrente no país, e que estampar seu conteúdo no ordenamento jurídico em alguma
medida infamava a reputação da República. Lia-se no caput desse artigo,
textualmente, a tipificação jurídica da macabra feitiçaria ao prescrever que seria

“qualificado como envenenamento todo atentado à vida de uma


pessoa por efeito de substâncias que possam levar à morte mais
cedo ou mais tarde [...]” [ou que possam] “sem levar à morte,
produzir um estado letárgico mais ou menos prolongado [...]”, [e se]
“por causa dessa letargia, a pessoa foi sepultada, o atentado vai
qualificar-se como assassinato”.

109
Constança Aguiar

Devia ser um dia santo, alguma data comemorativa, porque desde cedo
naquela manhã a cozinha estava cheia de mulheres da vizinhança atarefadas no
preparo de pratos de comida, costurando adereços de miçanga para vestidos e
tiaras ou recortando bandeirolas de papel colorido. Constança Aguiar falava alto
para poder ser ouvida em meio ao rumor do vozerio, do crepitar do fogo e do tilintar
de panelas e utensílios enquanto remexia uma caçarola grande onde cozia batatas-
doces. E permaneceu coordenando os afazeres, contando casos curiosos, dando
receitas de ervas boticárias e dicas de culinária fingindo não ter dado a mínima para
o fato de seu filho mais velho, Jaime, ter acabado de entrar pela porta do quintal
sem cercas. Continuou falando sem se perturbar, como que para dissimular o
constrangimento das outras mulheres que tinham se calado e para deixar claro que
não quebraria sua promessa de que nada turvaria seu dia e que “não cederia mais
às ameaças daquele desnaturado e não daria mais um puto do seu dinheiro ralado
para que o raio daquele filho de uma cadela fosse desbaratar com cachaça e rinhas
de galo”. No clima tenso, Jaime percorreu o recinto tentando sondar se com a
mudança de humor devido à casa cheia daquele dia festivo, a mãe poderia quem
sabe emprestar-lhe algum dinheiro, nem que fosse só para se ver livre de sua
presença detestável. Mas o que ficou nítido é que Constança ia assumindo um ar
grave, circunspecto, à medida que ele se aproximava com seu andado esquivo,
pegajoso, como se ela houvesse estabelecido uma linha demarcatória cuja violação
fosse o sinal para que ela o enxotasse como a um cão sem dono a bordoadas e

110
impropérios. Alguém percebeu essa iminência e tentou se antecipar procurando
despachá-lo com um prato de comida improvisado. Jaime entendeu que todas elas
ali concorriam para que a mãe sustentasse a resolução do que já lhes devia ter
contado, e aproveitou a evidência de ter se dirigido ao centro da cozinha onde lhe
estendiam a tigela de sopa para extrapolar seu desespero de viciado. Pegou a
deixa da conversa interrompida e disse, em tom de galhofa, olhando direto no rosto
moreno de Constança Aguiar antes que ela o pudesse evitar:
─ Você sempre cagou pra mim porque eu, sendo filho de um preto que eu
nunca soube quem foi, não saí branquinho que nem aqueles convencidos dos seus
outros filhos!
Constança, tentando suportar o vexame, pensando no que dizer, virou-se
embaraçada para olhar a panela. Jaime viu naquilo uma espécie de fuga, de
fraqueza, e aproveitou para terminar de descarregar seu desaforo. Como já ia
mesmo se retirar, poderia jogar em sua cara mais uma amostra do seu vasto e
impune repertório de injúrias:
─ Se bem que ¾ acrescentou como um desafio ¾, não deve ser só eu que
não sei quem é o pai. Quem emprenhou de vários casos, não deve nem saber
quem é filho de quem.
O semblante de Constança confrangeu-se numa careta de indignação no
mesmo instante em que dessa vez reagiu àquela ofensa de modo tão mecânico e
brutal que a Jaime não restou outra atitude senão o gesto de vítima atônita
mostrando o sangue escuro que começava a escorrer-lhe do ombro esquerdo onde
Constança cravara firme o garfo pontiagudo com que acabara de provar o ponto de
cozimento das batatas. E a sopa foi-se derramando da cumbuca fumegante sem
que ele emitisse um único gemido, nem qualquer gesto de contorção física, salvo
os lábios que começaram a tremer até romperem-se no pungente uivo de dor e
cólera que ele regurgitou pela vizinhança escandalizada. Um ímpeto bestial
arremessou-o contra Constança que não precisou esquivar-se porque, como se
tivesse um domínio predeterminado, a mão empapada de um sangue pastoso
desviou-se dela e mergulhou com o punho cerrado com toda a força de sua revolta
até à altura do cotovelo no fundo da caçarola de óleo fervente.

111
Constança reconheceria sem remorsos as cicatrizes dessa queimadura
catorze anos depois, no dia em que a chamaram a um necrotério para reconhecer
o corpo de Jaime, ocasião em que pensou ser necessário levar testemunhas para
provar que não tinha nada que ver com a índole e tampouco com as patranhas do
defunto, envolvido que estivera em um caso de estelionato de prostitutas que
provavelmente dera causa a seu assassinato, e que não o via desde aquela
desadorada manhã de ação de graças em que para sempre o tinha expulso de casa
aos vinte e dois anos de idade à base de cutiladas de utensílios domésticos. Mas
ao ficar sozinha em casa depois daquele lúgubre episódio no necrotério,
assaltaram-na os açoites de um remorso avaro, não pelo arrependimento do que
já não podia mais remediar, mas por entender que aquilo era só mais uma derrota
pessoal que acumulava numa espécie de jogo de cartas marcadas que nunca quis
participar, mas que continuou jogando pelo simples orgulho de já o haver iniciado.
Na desordem do seu mundo interior, Jaime era filho da desídia de um pai
desaparecido, e notou que nunca como agora tinha se dado conta que o destino
dele estivera tão entrelaçado ao do irmão caçula dela, Leotério Aguiar, também
filho de um pai viciado e ausente e uma mãe esclerosada, a ponto de Constança
confundir os dois na vertigem de imagens e sentimentos em que o irmão e o filho
se revezavam e ela não sabia distinguir quem era quem na simetria das sensações
que nutriu por ambos. E ela embaralhou os personagens mesmo diante da
sensação de indiferença com que agora precisava se proteger contra os achaques
do arrependimento. Fez um esforço para entender que se tratava de Leotério Aguiar
o dia recente em que soubera da sua morte; que era ao irmão que estava associada
certa culpa por ele jamais, mesmo durante seus últimos estertores de moribundo,
a ter perdoado por o haver traído na ocasião, tantos anos antes, em que ele fugira
do presídio. Constança chegou a acreditar que ele tinha vindo aceitar seu perdão
e não que o socorressem quando saltou sobre o canteiro lateral fugindo da
perseguição policial. E essa mesma imagem de Leotério Aguiar entrando na
cozinha esbaforido confundia-se com a impossível imagem do filho Jaime
buscando acolhida para escapar das garras de uma morte brutal. Mas não.
Precisava separar os tempos, distinguir os sentimentos. Jaime não teve essa
chance, quem pulou de fato foi Leotério. Era seu irmão caçula, na verdade seu meio

112
irmão, mas Constança entregara-o para a polícia assim mesmo. Ou melhor,
devolvera-o, porque ele era um foragido. Estavam na cola dele quando apareceu
no meio da casa, ofegante, feito um louco, chorando, pedindo para que ela o
escondesse. Sempre desconfiara de que ele não tinha o juízo perfeito, e que
precisava de cuidados, mas fazia tempo que não o queria novamente em casa
dando mal exemplo a seus filhos que já estavam meio crescidos, e até gostavam
dele, e passaram a vida contando as divertidas brincadeiras que ele armava em
seus momentos de quietude. Na época em que Leotério morou com Constança
ajudava-a na faxina, nos leva-e-traz da vida, levava as crianças para a escola,
regava sua plantação de batata-doce e, sendo rapagão já com a barba meio rala
cobrindo o queixo, talvez oferecesse alguma proteção à casa sem muros e sem
marido. Mas acabou mesmo foi trazendo problemas para o decoro da família.
Embora tenha se envolvido com muita coisa ruim, nunca havia sido um sujeito
violento, e os anos que amargou na cadeia talvez lhe tenham impingido aquele ar
apascentado de louco manso. Constança nunca quis crer que Leotério fora capaz
de cometer os crimes pelos quais o condenaram, mas cumpriu a promessa feita a
si mesma de que “jamais visitaria parente algum seu em porta de cadeia”, e
entregou-o no dia em que ele fugiu também porque, além de um sentimento de
cumprimento do dever agravado pela responsabilidade que julgava ter sobre a
conduta dele, sempre soubera que, solto no mundo, esse seu irmão não duraria
muito tempo antes de encontrar uma morte terrível.
Constança recordou-se que estivera tão triste mas tão lúcida como agora
diante da cena tragicômica daquela tarde em que o devolveu à polícia. Lúcida e
indiferente sob a película clara de uma razão que mesmo naquele instante de susto
a fazia enxergar o mundo como o simples e resignado arremedo de uma
orquestração muito maior e inapelável. Talvez porque já tinha decidido que o que
ele ia fazer da vida dele não lhe importava mais. Que se danasse. E sequer mudou
a respiração quando pelas grades da janela o viu saltar sobre a sebe do canteiro
de batatas-doces para dentro do quintal. Aproximou-se para tentar reconhecer
naquele fiapo de homem, trôpego e envelhecido a figura do irmão. Simulou atender
às suas súplicas conduzindo-o pela mão de volta ao quintal sem pronunciar uma
única palavra, como se já o estivesse esperando, e enfiou-o no meio da roupa que

113
estava de molho no tanque só com o nariz de fora para que ele pudesse respirar.
Pensava no quanto tinha sido ridículo aquilo. Duas gerações rir-se-iam às
gargalhadas quando lhe pediam para contar a cena de quando entraram uns
sujeitos de colete e armas na mão, e ela fez um gesto apontando com o lábio inferior
para o tanque de roupas onde havia metido Leotério. Certo escrúpulo a incomodaria
tempos depois, quando Leotério Aguiar, já cumprida boa parte da pena, tinha meio
que se regenerado e aprendido o ofício de alfaiate e sido o detento exemplar num
programa de reabilitação. Constança tivera de pedir licença à sua jura de jamais
visitar um ambiente tão carregado como aquele, porque concluiu que era uma
ocasião especial e que ir vê-lo seria contribuir para a recuperação do irmão. Mas
Leotério nem ali, nem nunca mais, olharia no rosto dela por trás de sua expressão
de louco varrido acalmado pelo ricto de mágoa pela perfídia cometida por
Constança.
Na madrugada do dia em que voltou do cemitério em que enterraram Jaime
numa cova rasa, balançando-se na rede para afugentar o calor, foi como se uma
espécie de hormônio a tivesse invadido para assombrá-la no mundo com o
fantasma atroz pelos entes que por lei natural deveriam ter morrido depois dela.
Chegou a se convencer de que se espremesse bem os olhos no escuro poderia
enxergar o corpo inerme do defunto dele estatelado no chão debaixo de sua rede
encharcada de suor e lágrima. Imaginava que se nada mais daquilo cabia volta,
nem contorno, nem reparo, e que tudo estava disposto desde seus próprios e mais
ínfimos pressupostos, nada havia a fazer senão lamentar a porcaria do destino. E
que podia ser que aquele dia fosse enfim o desfecho retardatário do dia remoto em
que dera a mão a um menino de seis anos e que era a cópia descrita do pai
execrável, para atravessar a rua e dali até o poente para embarcarem num trem.
Por vários anos tinha imaginado que aquela viagem para o interior da província,
onde ela haveria de deixar Jaime na casa dos avós, era sem volta. Dez anos
depois, porém, ele retornaria no desamparo de ter de morar novamente com a mãe,
e ela no desamparo de reconhecer nele crescido ainda mais nítidos os traços, as
maneiras e até o timbre da voz do pai execrável e de ter de acolhê-lo então
enquanto tentava manter de pé o que restara de seu terceiro casamento com um
renque de filhos menores pendurados nas barras de suas saias e todos os

114
sacrifícios que o mundo podia cobrar da mulher austera e resoluta que, para não
ser esmagada, vinha lutando para ser quem tanto desejara ter sido. O choro
convulsivo foi-se apaziguando com o avançado da noite e o vento foi dissipando o
calor e com ele o cortejo dos seus mortos. Pelos contornos que começavam a se
distinguir no breu do quarto apagado, estava para clarear o dia que novamente viria
reivindicar a certeza para Constança de que no mundo real talvez não nos seja
dada outra virtude mais inconteste do que a coragem. Em que pesassem outras
escolhas que poderia ter feito na vida, na verdade toda a sequência estaria já
definida desde a primeira delas, a qual, mesmo que nunca ninguém fosse capaz
de associar, teria sido reiterada naquele dia fatal em que decidiu arcar com as
consequências do destino que julgava ter escolhido. E reviveu o evento de sua vida
que nunca tinha confessado a ninguém, não para proteger a si mesma, mas aos
filhos. E tinha sido uma madrugada exatamente como essa de agora, passada em
claro esperando o dia amanhecer. E, nessa espera, o execrável madrugado
voltando da rua alcoolizado, o ruído metálico do ferrolho, o escarro, a refeição
noturna e o opróbrio.
Dois dias antes da longa noite insone que agora ela revivia, Constança
decidira resolver de uma vez por todas sua vida ou sua morte. Ser condenada,
detestada, queimada viva, nada poderia ser pior do que continuar levando aquela
vida ominosa. Era um domingo de Pentecostes. Nas vésperas, suspeitara que o
inferno talvez não fosse outra coisa senão uma representação das próprias
danações terrenas, o que lhe conferia seu status de pena máxima não seria outra
coisa no fundo que a desesperança. Ademais, pensou, rezam por aí que o fogo
purifica. Havia então decidido pôr em marcha o pérfido plano a que o círculo infernal
do cotidiano em que já vivia condenada era uma inútil cominação. Talvez a rebeldia
de sua vontade houvesse agora deslocado seus sentimentos de culpa e de
piedade, e em dado momento chegou a suspirar aliviada com o pressentimento de
que já se tornara outra pessoa. Para que o advento de nenhum acaso ou
pensamento novos a dissuadisse ou estorvasse, desde o sábado ela
perversamente reproduzia com metódica e paciente resignação os hábitos de sua
rotina. No dia aprazado não havia mais nada que fazer senão esperar. Constança
cerziu, voltou a pé com o pequeno Jaime da missa dominical, cumprimentou e

115
deteve-se com conhecidos na rua, preparou as refeições, recolheu as folhas secas
caídas em redor da casa, regou e podou os ramos de batata-doce, alimentou com
sobras de comida as galinhas e os patos que criava soltos no quintal, ouviu novela
no radinho de pilha. Suspensa no tempo entendeu, absorta, como que se
encadeavam os atos e as atitudes mais pretensamente conscientes no distraído
arranjo das horas, mas soube que essa ingrata surpresa lhe poderia ser útil contra
a ânsia de ter de esperar cumprir-se o cego e involuntário curso dos fatos até a
intervenção do seu minuto fatal. Antes do cair da tarde deixou o filho na casa de
uns conhecidos. Na volta tomou um lento banho de ervas e antes de deitar-se
lembrou de deixar a luminária de fora acesa. Na prece daquela noite acrescentou
depois do amém: “... falta pouco, meu Deus!”. Apenas o sono não cumpriu o
combinado. Mas sem nada mais refletir, Constança repelia tudo o que teimasse
fixar-se em sua memória. Tratava de refazer na lembrança, como um lento rastilho
de pólvora, apenas o itinerário de onde tinha posto as chaves e o dinheiro, a pasta
dos documentos, o endereço onde moravam alguns nomes de pessoas, o bairro da
cidade do interior onde o execrável lhe dissera que moravam os pais dele. O
percurso até a rodoviária e os horários e destinos dos ônibus e do trem
interestadual da Rede Ferroviária Regional S/A. Um único detalhe não dependia de
si mesma, era que o execrável estava fora de casa desde a sexta-feira; podia ser
que não voltasse na madrugada de segunda como ela previra, mas o ciclo do
universo haveria de conspirar para o encaixe dessa última peça. E assim esteve
Constança, inerte em seu íntimo conciliábulo, vivendo numa espécie de nova era
ainda que em seu prelúdio, escutando até noite já bem avançada o crepitar das
mariposas despedaçando-se no chão ao se chocarem contra a parede que a
esmaecida lâmpada iluminava do lado de fora. Constança adormecia afundando
nos emaranhados do sonho repetido em que fugia por uma região chuvosa e
deparava-se com uma porta movente cujo trinco fugidio ela nunca conseguia girar
porque não tinha domínio sobre o universo físico, quando afinal sobressaltou-a o
rangido do ferrolho do portão. Já desperta, ainda teve de aguardar alguns segundos
para certificar-se se aquilo não fora apenas um onírico ruído que repercutira na
vigília. Seu raciocínio de que estava totalmente escuro porque a lamparina havia-
se apagado trouxe-lhe de volta à realidade, mas ao ouvir já bem próximos o tilintar

116
das chaves e o arrastar dos passos trôpegos do execrável, temeu ter acordado num
mundo que não aquele pleno da corajosa liberdade em que tinha vivido desde a
manhã do dia anterior. Ouviu-o escarrar. Notou com náusea o cheiro repisado do
perfume barato, da aguardente e do tabaco curtido. Com seus olhos acostumados
à escuridão, viu sua silhueta resfolegando no breu vindo em sua direção até tocar-
lhe as pernas num esbarro. O execrável perguntou pelo menino. Constança
respondeu que o tinha deixado ir passar o Pentecostes na casa de uns colegas no
fim da rua. Ele despiu-se e puxou-a bruscamente pelo pulso. Cumprir esse
derradeiro ato foi mais atroz do que ela imaginara ser capaz de suportar o
estoicismo do seu rancor prestes a dissipar-se. Mas convenceu-se de que o
estrupício daquele corpo amorfo chafurdando na escuridão tinha o tombo do
moribundo que breve já não poderia violentá-la ou agredi-la ou sequer viver sem
que ela o consentisse, porque aquele derradeiro ultraje lhe legava uma justificativa
contra a culpa da premeditação, a confirmação do último impulso que sua insídia
precisava para não voltar atrás. Saciado, o execrável dirigiu-se ao chuveiro
enquanto Constança foi à cozinha preparar-lhe a indefectível refeição noturna
perguntando a si mesma se o desfecho fatal poderia bem não ser uma vindita, mas
um sutil ato de misericórdia. Mas o fato é que ela não considerara que ele farejaria
a estranheza daquela atmosfera, e interpretaria como audaciosa ironia a boa
vontade da mulher, uma espécie de escárnio. Suas imprecações não encontraram
eco e ao entrar na cozinha vociferando ele encontrou apenas o prato de comida
coalhando sobre o fogão. De repente rompeu-se toda a cadeia de eventos que tão
laboriosamente Constança havia prefigurado quando algum anjo caído soprou no
ouvido daquele homem mancomunado. Aos murros ele abriu a portinhola do quintal
e atirou para fora o prato de comida enquanto Constança escapulia-se para a rua
deserta temendo ele ter adivinhado tudo. Pouco antes do amanhecer, o execrável
adormeceu, desistindo de esperá-la voltar. Por volta do meio-dia acordou na casa
vazia aturdido na ressaca do seu sono bárbaro e se dirigiu ao quintal para urinar.
Foi aí que ele estacou no pórtico dos fundos com um calafrio que lhe percorreu o
baixo-ventre. Na mortiça luz meridiana que inundava aquele começo de tarde
quase até ofuscá-lo, viu os bichos todos de sua criação estatelados no chão, a terra
revolvida pelas unhas agônicas e os pescoços retorcidos. Os bicos espumando em

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torno do prato de comida vazio que sua ira arremessara de madrugada. Então ele
compreendeu, aterrorizado. Ao cair da tarde, Constança regressou a casa trazendo
Jaime consigo, sabendo que agora sua sina estava consumada. Porém, uma
penumbra nebulosa inundava os recintos silenciosos, e percebeu que no
desmantelo dos cômodos revirados, uma atmosfera de abandono sepulcral pairava
na solidão quase palpável da casa vazia. Preparou algo que comerem e desabou
no quarto vencida pelo cansaço e pelo desconsolo. De manhã bem cedo, sentindo
o corpo moído como se tivesse novamente sido vítima das brutalidades do
execrável, lembrou-se de que tinha que regar a horta de batatas doce e dar comida
aos bichos. Mas ao abrir a porta dos fundos viu que não era mais preciso se
preocupar com a fauna doméstica, e compreendeu que o pavor da iminência da
morte fora suficiente para desterrar aquele homem para sempre de sua vida.
Recolheu o prato onde servira o arroz preparado na água em que cozera um bom
chumaço de urtigas bravas, enterrou os bichos numa vala comum, esvaziou seus
esconderijos no adobe das paredes, cortou os cabelos na altura da nuca, pôs a
casa à venda, fez uma fogueira com tudo o que havia de imprestável e fez os
últimos preparativos para a viagem de trem. Eram as primeiras horas do dia de uma
quinta-feira quando atravessou a rua vestida de azul levando Jaime pela mão
enquanto lhe explicava que o deixaria na casa dos seus avós, que se comportasse
até que as coisas se endireitassem e ela pudesse voltar para buscá-lo. Começou a
trovejar quando se ouviu da estação o apito do trem. O vagão da RFRSA que parou
diante dela tinha uma porta lateral idêntica à que aparecia nos seus sonhos
persecutórios, e reconheceu com assombro a maçaneta em forma de arco. Mas
Constança não tinha mais tempo para parábolas. Pôs a mala no chão e girou o
trinco. Um tripulante a auxiliou com uma escadinha de madeira. Ela embarcou
resolvida, puxando o filho pelo braço franzino. Aquele mesmo braço de Jaime,
pensava agora no breu do quarto tanto tempo depois, no qual haveria de
reconhecer, três décadas adiante, a cicatriz de sua queimadura no dia em que
soube do sem fim com que o tempo leva e traz as circunstâncias em que se
embaralham os sentimentos da vida. Pouco depois despertou surpresa de que já
estivesse clareado, e que todas aquelas lembranças se haviam dissipado, como
que derretidas pelo calor do sol que começava a arder-lhe no rosto.

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“Aos Deuses Manes”

Já não vale a pena tentar me soltar do que me prende a este fundo. Além
disso, me distraem as centenas de imagens superpostas que posso contemplar
agora daqui. Apesar de estar tudo turvo na água, posso vê-las e senti-las, mágicas,
sincrônicas, como se estivessem acontecendo novamente agora. Segundo dos
muitos filhos que minha mãe pôs neste vário mundo, nasci sob o signo da deusa
Dite numa aldeia anônima da Caledônia, no ano seiscentos e setenta e três da
fundação da sede do império. Quatro anos mais tarde, a insegurança e os projetos
de futuro fizeram meus pais abandonarem a pacífica mas instável cultura da terra
e o ofício de pescadores para migrarem para a península, onde procuraram exercer
o artesanato e a dignidade. Aí foi que me adotaram o nome latino de Valério Tauro,
talvez para fingir que pertencíamos a alguma família patrícia. No afã de tornarmo-
nos cidadãos, de tentar esquecer o passado bárbaro sem conseguir, adotamos a
língua culta do Lácio; mas em casa, em torno do velado fogo doméstico, tratávamos
de preservar o velho dialeto céltico, o idioma da memória que meus pais
carregavam para contar suas histórias e seus mitos. Herdei muitos das suas lendas,
costumes e princípios, menos a saudade que os martirizou, porque, essa, como um
sacrifício só deles, meus pais não cuidaram de me legar. Para seu júbilo, fui o
primeiro de minha estirpe a tornar-se cidadão romano, quando me incorporei às
fileiras de uma das legiões da corte Notúmbria que então se mobilizava para ir lutar
nas margens setentrionais do Danúbio no primeiro ano do reinado triúnviro. No dia
em que recebi o título de minha cidadania, contudo, não me deixei esquecer minha
natividade, e perseverei em continuar honrando sua tradição. Para não sofrer além
do necessário, nas ocasiões momentosas de minha vida assumi que era antes de
tudo um soldado, que jamais abandonaria meu estandarte, e as cicatrizes que trago

119
no peito e na nuca foram valorosas insígnias. Mais que qualquer formal
condecoração, isso conferiu veracidade e assombro aos relatos que eu contaria
depois a quem se interessasse; por óbvio, exceto a este, que eu resumo agora e
que será o último. Posso dizer que conheci o medo e o destemor, também a
amargura, o tédio, o desencanto, o desespero e o lento aprendizado que me fez
crer que existe o milagre. Fui intimorato mesmo quando pensei, do cume de uma
colina, que dez mil homens se haviam reunido para me matar. Vi o miasma que
emanava de uma miríade de cadáveres insepultos. Como uma antessala do
inferno, aterrorizou-me em demasia a estultícia da semana infinita que passei
perdido na Floresta Negra quando fui perseguir desertores com a ordem de
executá-los. Verti sangue, pus, lágrimas e sêmen desde as planuras inóspitas da
Mauritânia até os desertos da Cirenaica. Gemi até a aurora de dor pelas pústulas
da peste que cobriu meu corpo inteiro quando entramos descalços nos pântanos
da Ilíria, como gemi meses depois de desejo febril por uma mulher andaluza, que
ainda não tinha recebido esse nome, a quem vi e falei uma única vez na margem
oriental do Guadalquivir na época da campanha contra o déspota traidor da pátria
Júlio César. Para derrotar a vilania desse tirano é que guiei vários homens a
pequenas e inauditas vitórias em batalhas ignotas, mas também tive de conduzir
muitos a um fim inglório porque tínhamos jurado lutar até a morte na segunda
guerra civil, ao cabo da qual o nosso grande Catão se matou logo que soube de
nossa fragorosa derrota em Tapso. Tentei compreender, vociferei contra aquele
gesto que quase nos levou a todos para o abismo, mas seu suicídio naquela
ocasião desolou-me até o choro e a pusilanimidade. Por esses dias, após tal
atribulação, os sobreviventes iniciamos um motim quando nos obrigaram a
abandonar à própria sorte os reféns nas mãos do inimigo com a justificativa
dissimulada de que os planos principais da guerra eram maiores que a vida de
alguns prisioneiros, de que eram despojos da batalha. Encarcerado na volta desse
desterro, que tanto sofrimento nos custara, a todos nós que restamos daquele
exército falido, favoreceu-me a anistia que me reintegrou à posse de minhas divisas
como veterano adjunto de uma pretória, onde cumpri e dei ordens que eu
desacreditava apenas para dar exemplo de disciplina aos mais jovens. Na
verdadeira e crua política, a dos bastidores, a da fraude e do suborno, repeti

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princípios que no fundo eu mesmo sabia falsos, porque o que importava eram os
objetivos, nunca a base moral desses princípios. Por isso, mesmo que eu ainda o
odiasse, não aprovei que apunhalassem César, menos por piedade que por saber
que seu assassinato selaria nas mãos dos seus prosélitos o poder que ele tanto
ambicionava. Sei que trago uma nódoa em meu caráter, que o arrependimento não
irá apagar de dentro de mim, por eu ter fraquejado em meus princípios ao me tornar
mercenário por seis meses de minha vergonha, porque eu precisava salvar da ruína
uma quinta de oliveiras improdutivas em Mântua. Tarde demais percebi o embuste
que era lutar fora da pátria, em lugares e datas ignorados, e que os que se haviam
sacrificado fora do país foram vítimas de uma doutrina maligna. Aos poucos,
consolou-me da saudade hereditária da república a branda monarquia de Otaviano,
de quem fui assalariado na pretória, embora jamais fizesse eu coro no brado em
que o aclamavam como o “augusto”. Cumpri meus votos perante os deuses da
cidade, assisti aos áugures remexerem as vísceras dos bichos mortos ávidos por
profecias, mas confesso que estive mais perto das respostas que o espírito busca
no panteão de outros mistérios. Os deuses canônicos, agora não tenho melindre
em assegurar, não eram senão deuses do escárnio. Em alguma de suas páginas,
Tito Lívio escreveu que Roma havia tido de conquistar o mundo para se proteger,
e quando eu soube disso me incomodou a suspeita de que a tragédia final do
Império, apesar de suas dimensões e poder, implicava em que todos sabemos
secretamente a verdade estampada naquele antigo ditado segundo o qual todas as
coisas trazem em si o germe de sua própria dissolução.
Apreciei o dedicado amor dos cães, a beleza e a intuição das mulheres, a luz
das estrelas baixas no horizonte, os sons da música, o gosto acre do vinho, a
dádiva que são os cavalos, a têmpera dos metais, a reverberação do fogo e da
amizade, a coragem. Eu, que tantas coisas tinha ainda para olhar, e que também
enfrentei quantas misérias e tantos botes falhos da morte, não escapei à fatalidade
de afogar-me no rio Tibre, perto de casa, quando a biga em que eu escoltava um
carregamento de cedro veio a pique com o rompimento de um dos famosos sete
arcos que sustentavam a ponte. Preso aqui no fundo, em um átimo passa
simultâneo por dentro de minhas retinas turvadas pela lama tudo o que narro agora,

121
e, talvez eu já esteja do outro lado da vida, porque já posso ver daqui uma primeira
imagem do porvir. Minha esposa pedindo que me façam com candura este epitáfio:
“Aos deuses manes. Valério Tauro, soldado da sétima corte pretoriana,
elevado a centurião, que viveu quarenta e sete anos e deixou dois filhos gêmeos,
crianças de um ano e oito meses. Viveu bem com a sua última companheira. Era
natural da Caledônia. A esposa fez-lhe, merecidamente, este epitáfio” *.

* (Inscrição tumular encontrada em escavações arqueológicas e compilada pelo filólogo alemão Ersnt Diehl em
seu Vulgärlateinische Inschriften, p. 96, editado na cidade de Bonn em princípios do século passado. No
original, em Latim vulgar: “D. M. Valerius Taurus miles cortis VII pretorie, centurio evocatus, qui visit annis
XXXXVII. Remisit filios duos gemnos pisinus anucus et mesero VIII. Conpare sua vist bene. Nationatu
Panonius. Uxsor fecit bene merent”).

122
O Sonho de Viriato
Para Flávio Roberto Nunes

Viriato, que sempre vivera afastado das praias e promontórios do mar, deu
um dia de suspeitar já o haver atravessado. Mas sequer havia molhado nele os
seus pés algum dia. Fotos e filmes não davam a mínima dimensão real de sua
monstruosa imensidão, como na vez que o avistara de longe, assombroso, tocando
o céu num horizonte tão absurdo de alto e próximo que se lhe pareceu uma muralha
verde-escura, prestes a despencar e inundar tudo. Mas uma memória confusa, em
fiapos, lhe insistia já o ter cruzado, desde o Leste até ali. Mas nunca, não. Jamais.
Pelo menos não nesta vida. Podia ser uma falsa memória. Uma lembrança
congênita. Podia estar confundindo um açude ou um grande lago, que aos olhos e
impressões da tenra infância podem parecer desmedidos como o mar. Mas aqui
não há senão um rio intermitente, com o barro do seu leito coroando a maior parte
do ano. Todavia, de memórias que não lembramos às claras é que sabem os
homens não sermos a causa de nós mesmos. Nessa hipótese, a de não haver sido
um evento que ele mesmo viveu, era pelo que deixava lembrar o que o tornava
memorável para Viriato.
Como na funda trilha das recordações aos poucos sempre vão se iluminando
outras mais antigas, como na que Viriato percorre e vai puxando umas pelas outras,
salvo a de ter voltado outras vezes a flutuar sobre a água salgada do mar, essa
viagem migratória num passado perdido houvera sido uma só, um desfecho. De
qual enredo de vida essa remota travessia foi o desenlace, Viriato soube que
precisaria mais que de um arbitrário e memorioso instinto para vir a saber. E
acontece que tampouco sabia ele quem por acaso haviam sido esses seus
antepassados, nem mesmo os mais recentes, quais deles e quando, não sem
sacrifícios provavelmente, vieram dar aqui para não voltar, os que vieram para cá
e aqui ficaram até morrer depois de cruzarem o mar. Pela lógica natural das

123
gerações, se lhes haviam deixado essa memória no sangue, naturalmente haviam
de ter-lhe legado também os traços do rosto, a cor da tez, a testa calva, a
compleição física, talvez até a maneira de andar, assim como muito dos atributos
ditos psicológicos de sua persona. Era, logo, o que eles foram então. As
circunstâncias é que seriam diversas, pois a quem se arriscara a migrar assim pelo
mar, em tempos difíceis como deve ter sido o passado, na certa a vida lhes dera
ocasião de conhecerem-se muito mais do que de si mesmo jamais chegaria a saber
Viriato. Talvez por isso mesmo é que esteja atrás de recuperar essas atávicas
reminiscências, para poder entender melhor quem era e qual seria o seu lugar no
mundo. Recordações de vidas alheias, mas um pouco suas também, já que volta e
meia vêm do nada bater à sua porta para não se fazerem esquecidas. Quem sabe
algum nó restou a desatar na história daquela sua gente passada, um mal-
entendido a reparar, uma peça fora de lugar do jogo que se precisa entender para
rearranjar, esquecer de vez ou perdoar. Gente que é certo que também tivera
lembranças suas a recapitular, a remoer, a deixar para trás premidas pelas
urgências que, quem sabe, não se lhes dera oportunidade ou interesse em
rememorar.
Do possível ao provável, para Viriato era o quase certo, que pelos pés duros
que herdara, pelo ser ele demais pesado na água, aquela gente teria vivido longe
do mar, cuja imagem prefigurara sempre a mesma ameaça profunda de agora, a
de uma vastidão onde tudo se apequena e que insinua a iminência de despedidas,
com suas lonjuras desmesuradas instando os desassossegos do humano coração.
Mas justo esse tempestuoso mar de Viriato, cuja maresia sentia capaz de cortar o
céu da sua boca, havia sido a via clandestina por onde aquela gente antiga veio
para o mundo de cá, e tornado a ficar longe de suas bordas, onde muitos anos
depois ele tentaria refazer o percurso, ao menos em sonho ou em memória. Seu
nome era Viriato Tarsiano dos Reis. Vivia com esposa e filho desde que há muito
deixara a casa dos pais, que Deus os tenha, e que sequer suspeitaram da trajetória
que ali os plantara, ou pelo menos nunca lhe contaram nada. Nas tendenciosas
coincidências genealógicas, concebeu que ao menos lhe deram uma pista, ainda
que fosse por acaso que deram de lhe atribuir esse nome de Tarsiano que carrega,
um insuspeito topônimo, sussurrando até que um dia desse com a pista, real ou

124
imaginária, de que era da região de Tarso, como o apóstolo. Numa rara ocasião,
ainda na infância, vira a avó paterna. E desde aquele momento ficou estampada
em suas retinas a imagem silenciosa do rosto obeso, moreno, o olhar sagaz
dizendo “sei o que você está tentando adivinhar”, ou, como a clássica esfinge,
“decifra-me se for capaz”, e aquela mensagem velada deixando-se transluzir no
cenho enigmático que, como nos usos das mulheres turcas e afins, reclamava a
ausência de uma ametista suspensa entre as sobrancelhas negras e tão espessas
que pareciam crispadas. Tantos anos adiante, numa das diáfanas evocações dessa
insistente imagem, é que constataria que talvez sua estirpe fosse oriunda não
propriamente de Tarso, mas de um pouco mais além na península da Anatólia, com
os sobrenomes armênios ou sírios misturados, confundidos ou substituídos para
sempre.
Foi então que a possibilidade de não ter uma ascendência cristã o
estremeceu. No antiquário de um antigo libanês, leu numa das suras do Alcorão
que tratava sobre os infiéis a passagem que aconselhava a “matar os idólatras,
onde quer que os achei; capturai-os, acossai-os e espreitai-os”. Mas foi onde
também folheou a Torá atrás do trecho do Deuteronômio em que estava prescrito
contra os não hebreus: “Não estabelecerás com eles qualquer tipo de aliança, nem
os tratarás com piedade; não contrairás com essa gente matrimônios; não darás
tuas filhas a seus filhos, e não tomarás suas filhas para teus filhos”. Tempos depois,
quando o primeiro míssil explodiu no Iraque, Viriato prosternou-se para pedir
clemência, e numa noite insone assaltou-o o devaneio de se o seu dever de homem
honrado não era deixar mulher e filho e embarcar às pressas rumo ao Oriente
Médio para alistar-se nas tropas que resistiam à tomada de Bagdá. O idioma e a
distância eram obstáculos mais atrozes que ter coragem. E, além de tudo, havia o
mar. Não, não seria um discípulo da precipitação de Rafael Asséns, que ao
descobrir o cognome da sua família entre os arquivos da Inquisição Espanhola
circuncidou-se e foi dedicar-se ao estudo do hebraico. Pela época em que a vitória
da coalizão militar já era um fato consumado, Viriato concluiu que embora aquela
pudesse ser uma questão de justiça e não de confissão religiosa, seus ancestrais
haviam abjurado o Islã quando migraram para cá, ou então, o que era mais
verossímil agora, e essa hipótese logo se converteria em certeza após a incansável

125
pesquisa bibliográfica que empreendeu em crônicas e documentos esquecidos
sobre a imigrações sírio-libanesas: seus ancestrais pertenciam a uma das
antiquíssimas comunidades convertidas ao cristianismo durante as andanças de
São Paulo ao Oriente Próximo ou eram oriundos dos feudos cristãos fundados por
levas de peregrinos por ocasião da Segunda Cruzada. Sim, era isso. Esse
vislumbre aos poucos o compeliu a outros mais minuciosos, intrigantes e
persuasivos sobre sua ancestralidade.
Para Viriato Reis, sempre os sonhos não foram senão projeções de medos
e esperanças ecoados no mundo adormecido. O fundo submerso no inconsciente
podia revelar impressões, noções, porém desde que se as tenha vivido ou
preconcebido na realidade. Mas numa contraditória noite, sonhou com o que era
impossível que soubesse, ou mesmo que suspeitasse que soubesse. Ao fim de
áridas e intermináveis léguas, ele alcançava esfarrapado e tímido as franjas do mar,
onde jamais pensara chegar. Via a imensidão líquida e vertiginosa pela primeira
vez. A hedionda massa verde-escura plasmada num horizonte artificial, espantosa,
triscando as nuvens, e tão absurdo de alto e perto o mar, que se lhe pareceu uma
muralha prestes a tombar e alagar o mundo. No sonho, Viriato sabia que tutelava
algumas pessoas que o acompanhavam, e que elas o aguardavam numa espécie
de esconderijo enquanto ele vagava solitário e perdido por uma tumultuada e
desconhecida zona portuária. Mas nada o perturbava mais agora que a fatal sorte
destinada a um desertor como ele, exceto a tenaz pulsação das horas. Alguém o
puxou pela túnica para dentro de um beco. Agarrada a seu braço uma cigana com
um olho de vidro buscava a palma de suas mãos para enunciar-lhe o destino. Viriato
repeliu-a horrorizado. E, antes de que o sonho se dissipasse na madrugada
chuvosa, um sujeito o abordou. Falou-lhe de lado, sem olhá-lo, o que tornava seu
dialeto ainda mais intrincado. Entendeu que o estranho queria saber se tinha
dinheiro o bastante, de onde era, por que motivo e para onde pretendia fugir e
quantos outros de sua estirpe andavam com ele. Podia ser apenas um ladrão, um
estelionatário, mas também um anjo na figura de patife. Um receio maior, porém, o
alertava de que não possuía mais tempo para não continuar se arriscando.
Respondeu que sim, que tinha o suficiente e em libras, que para isso havia vendido
até o seu burro, e que era da província de Khabab, ou de Maalula, que fugia das

126
perseguições e massacres aos que se recusavam a alistar-se no exército otomano
durante a Guerra dos Balcãs, e que eram cerca de uma dúzia de gente refugiada
os que precisavam embarcar junto consigo.
¾ Embarcar para onde diabos, rapaz?
¾ Pra cidade chamada América, meu senhor! ¾ implorou Viriato,
entregando seu destino nas mãos do sujeito.
¾ Do que vocês viviam, além das palavras do Profeta?
¾ Do comércio de panos de ceda e linho, senhor, mas confessamos a fé
cristã maronita.
O estranho conduziu-o por coaclas de palafitas, vielas e barrancos até uma
mansarda afastada cuja luminosidade era remediada pela brasa avermelhada dos
charutos dos seus sórdidos anfitriões nos intervalos casuais de espaçados
relâmpagos. As gargalhadas e pilhérias que fizeram sobre seu sotaque aramaico e
seus receios enquanto negociavam os detalhes do seu embarque clandestino
feriram sua dignidade, mas deixaram-no mais seguro quanto à honestidade deles,
já que polidez e benevolência naquelas circunstâncias mais teriam acentuado suas
suspeitas de que estariam fingindo. Deveras, menos de uma semana depois,
Viriato Reis estava recurvado com outros doze indivíduos no esperançoso e exíguo
porão onde sentia, entre os calafrios de uma maleita de última hora, o embalo
pendular do casco do navio sobre as pavorosas águas salgadas sem beira,
zarpando para o outro lado da Terra, de onde Viriato logo prometeu voltar qualquer
dia, assim que a vida se ajeitasse, para buscar seu grande amor, uma mulher
longilínea com uma pinta no queixo chamada Samira.
Fora da matéria não existirá tempo ou espaço, a memória e o sonho talvez
deem uma noção do que seja esse âmbito, porque toda a quantidade de dias que
durou o translado, com todas as suas delongas e nuances, coube em um único
instante, comprimido sem nada faltar no diminuto período de tempo em que
perdurou o sonho de Viriato. Dois meses distraídos ou agravados por preces,
borrascas, cumplicidades, náuseas, paisagens, moléstias, cantorias e lamentos.
Mais facilmente caberia no sonho seu último ato, porque menos de um dia levou
para saber do logro de não terem desembarcado na América do Norte, mas em
seus tórridos trópicos meridionais. O restante do sonho não precisou ser sonhado

127
em palavras e imagens, porque era como um feixe de sensações espraiadas pelos
sentimentos de uma geração de pessoas, mas cingidas para que coubessem no
minuto do seu sonho. Como aliás todo o resto, na verdade, havia sido, já que fora
da matéria tampouco existirá espaço onde se propagar nossa humana linguagem,
nem dimensões onde conterem-se corpos e formas. A contrariedade de haver sido
enganado, a gratidão ao mar, precisar seguir continente adentro, onde seu destino
o esperava, a notar que era como um regresso, tudo isso constituía agora uma
única impressão final, como se estivesse perante uma única coisa, desmedida, mas
indivisível, irredutível, como se o universo inteiro, com cada minudência de
partículas e fatos que o compõem fosse uma plenitude única, clara, autoevidente.
E Viriato já podia constatar, sem ver, que o sol e o chão eram idênticos aos gretados
sopés da já saudosa Maalula, onde em pequeno ele tinha aprendido, talvez para
não sofrer em demasia, que a primeira virtude na vida é a resignação.
Na vigília, lembrou apenas que havia sonhado um sonho imenso. Com os
dias é que o foi recuperando gradualmente, jamais as figuras ou palavras que se
articularam dentro dele. Porque, soube afinal, o mundo visível não era senão uma
mera superfície da verdadeira essência que guardam as coisas. Quinze dias
depois, voltou a conversar com uma tia-avó com quem há cerca de ano e meio
vinha se comunicando desde que a encontrou através de outros parentes no sítio
eletrônico de uma rede-social. Aquela talvez constituísse sua única fonte, a última
memória real ainda sobrevivente. Nesse dia revelou-lhe seu interesse em tentar
montar sua árvore genealógica. Fingindo um ar desinteressado para não a
admoestar, perguntou se sabia o nome de solteira da avó dela. Samira, respondeu,
acrescentando pensativa que sim, que era Samira, mas que o nome completo ela
não sabia, ou não se recordava. Com um leve frêmito, Viriato pensou, sem saber
onde, ter ouvido aquele nome recentemente. Quis saber então se ela sabia em que
trabalhavam aqueles seus avós. Ao que ela digitou, muito devagar que parecia
haverem sido mascates, ou coisa assim, comerciantes itinerantes, até juntarem
dinheiro suficiente para montar uma loja de tecidos de cambraia, linho, ceda. Após
umas reticências, anotou concluindo: “... essas coisas, Viriato. É tudo que sei, filho.
A gente vai chegando numa idade em que começamos a não saber mais o que foi
verdade e o que foi só sonho”.

128
Bichos

Não sei até onde foi bom termos deixado de ser bicho para virarmos gente.
Aqui onde estou, em meu estado atual, era melhor ter continuado sendo bicho
mesmo. Não sei se eles têm alma, até onde pensam os bichos; sei agora que os
instintos lhes bastam muito mais. Os que aqui convivem comigo, sendo eu ainda
gente, seguem unicamente o intuito de predar-me. De nada me valem os dentes,
as unhas, o olfato. Melhor serventia teriam o faro, as garras e as presas. Além
disso, são terríveis o frio e o calor. A imundície que aprendi a repudiar. E a miséria,
o remorso, e a culpa. Devo ter sido feliz enquanto cri na razão e no arbítrio, agora
creio somente em destino. Sem isso não poderia ter aceitado minha sentença.
Porém, como se isso não bastasse, me atormentam dia e noite os bichos.
Não reprovarei os que disserem que minha condição de condenado viciou
o que digo, afinal sou um derrotado. Julgarão que meus sucessivos fracassos
transformaram Deus, a Natureza e a Roda da Fortuna em coisas hostis para mim.
Mas dentro da caverna obscura foi que pude ficar a sós com essas coisas. Acurei
meus pensamentos e o alcance dos meus sentidos no escuro, e me desvencilhei
das distrações, engodos e adulações da vida. Ficamos eu e os bichos. Estes seres
que na calada tramam a derrocada do mundo.
Antes eram quase imperceptíveis, mas agora fazem um rumor surdo, como
um eco voraz e incessante. Vão comendo pelas beiradas, fermentando, roendo,
carcomendo, infectando tudo. Este livro que trago nas mãos, e que foi o começo
disso tudo, tem um furo oblíquo que o trespassa de fora a fora, obra de gerações
de traças invisíveis. Passo horas espanando as teias de aranha, mas elas se
reconstituem da noite para o dia, denunciando minha inépcia. Os grãos de areia

129
que as formigas vão depositando num canto da cela comporão um dia uma enorme
duna, que com outras comporão um deserto. Dá para sentir batendo com os nós
dos dedos que as paredes e o teto estão ficando ocos pela ação dos cupins, mais
dia menos dia vão desmoronar, há um rumorejar eterno. O fedor das fezes das
baratas e dos fungos me inspira com horror sua patogênese. Sinto indignado e
impotente as picadas dos mosquitos carniceiros, roubando, saqueando meu
sangue. Outro dia rasparam meu quengo alegando que só assim podiam acabar
com meus piolhos.
Durante o banho de sol, percebi que a amendoeira do pátio onde pousam
os bandos de urubus já não fazia sobra, as lagartas comeram o que restava das
folhas que refrescavam a grade alta do duto de ar que areja minha recâmara. Não
sei como alguns desses bichos se infiltraram aqui e morderam meu colchão e meu
travesseiro, vi que foram as lagartas por causa do rasto pegajoso e fumegante que
deixaram. Tive de dormir no chão naquela noite. Tive muita dificuldade em dormir
devido ao piso duro e gelado, mas permaneci quieto e de bruços quando os ladrões
de outra cela entraram para pilhar as sacolas de biscoitos e cigarros que uns
parentes me haviam trazido durante a visita do último domingo. Sei quem foram, e
na certa me matariam, esses bichos demoníacos sempre estão dispostos a isso,
se descobrissem que eu fosse capaz de reconhecê-los e denunciá-los.
Sob um amontoado de cacos de telhas num canto da cadeia perto do
refeitório, descobri que cresce uma planta viscosa, entre seus ramos há um ninho
de escorpiões. E têm os beirais das janelas além das barras das grades de ferro,
infectados pelas fezes dos pombos. Ouço os ratos cruzarem o assoalho à noite
toda, pra lá e pra cá. São meus parasitas. Mas quando acabarem as sobras que
deixo pelo chão, não tenho a menor dúvida de que serão capazes de tentar me
devorar enquanto durmo. Várias noites acordei combalido e não consegui mais
dormir com a impressão de que na escuridão centenas deles me espionavam. Há
as moscas varejeiras, procurando feridas por onde infiltrarem seus vermes em
minha pele. E os bichos multiplicam-se. Vigiam o desmazelo dos homens. São os
agentes físicos da degenerescência da matéria.
Às vezes procuro esquecer minha repulsa, pensar que a higiene e a
assepsia são apenas vaidosos caprichos mundanos, não passam de filhas

130
bastardas de séculos de podridão. Entendi que a moda e a estética corromperam
o necessário asseio em extravagâncias e futilidades. E quando sua ameaça ainda
era uma falácia ou uma novidade, cheguei a estimar os bichos como companheiros
no bom humor que ainda me restava. O humor foi durante anos o melhor amigo de
minha sobrevivência aqui. Mas a realidade mostrou-me que aos poucos eles vão
me atraiçoando. Foi quando lembrei que os hipócritas vivem apregoando que os
animais são todos filhos de Deus, mas se contradizem ao deixarem de contar no
número dessa fauna estes micróbios transmissores da peste.
Agora mesmo sinto o avanço meticuloso e perverso dessas pragas. Os
bichos travam uma batalha silenciosa contra nossa decência. Aqui, neste ambiente
sórdido, está claro que eles estão vencendo, invadindo, tomando de conta,
apoderando-se de tudo; e em qualquer lugar em que os vençamos nessa luta pela
dignidade, sempre restará um germe a esperar outra oportunidade. Descreio que
um dia seremos capazes de bani-los. Os homens que se cuidem. Os aliados dos
bichos são essa poeira eterna, e a preguiça, a umidade, a depressão, os fantasmas,
as sombras e a solidão.
Há meses que prometeram dedetizar minha cela. Até agora não vieram.
Conformei-me. Primeiro, porque não fazia sentido prolongarem a vida de quem
querem matar; depois, porque me convenci que qualquer medida profilática é
apenas o recomeço de um novo ciclo. Estes bichos estarão em toda parte,
incipientes e vorazes a ameaçar nosso gênero.
Ao cair da tarde de hoje, descobri uma porção de larvas debaixo do meu
estrado. Vasculhei detalhadamente todos os recantos da cela e não pude descobrir
de onde vinham. Não havia resto de comida, nada. Cheguei a me atemorizar com
isso. Um carcereiro disse-me que na certa eram larvas de cupim. Mas não tinha
como serem de cupim. Depois de muito limpar e as larvas tornarem a aparecer,
estremeci com a possibilidade de aquilo ser um mau agouro. Mas como sou um
condenado à morte, envergonhei-me com a possibilidade de esse sentimento não
ser senão a prova de que eu, ainda que sem saber, tenho alguma esperança de
livrar-me da execução.
Em todo o caso, devo estar perto de me libertar ou de esquecer esses
bichos. Dormirei tranquilo esta noite, não mais me intimidarão. Afeito que estou com

131
sua presença, o tempo que falta é curto para que alcancem seu propósito de me
destruírem com suas torturas e ameaças. Amanhã de manhã bem cedo, tomarei
banho, lavarei o cabelo, farei a barba, comerei o desjejum. Talvez me perfume.
Talvez faça alguma prece antes de virem me buscar os carrascos.
Quando não sobrar mais nada de mim, os vermes enfim deixarão meus
ossos em paz na cova, onde se extinguirá também esse meu derradeiro juízo: o de
que só se exterminarão os bichos quando se exterminarem nós todos, os homens.

132
O Cognoscível Paradeiro de Fawcett
Aos Irmãos Villas-Bôas e a Antonio Callado devo este relato

o sumiço
Da cidade de Cáceres ou de Cuiabá, em fins de abril de mil novecentos e
vinte e cinco, o britânico Percy Harrison Fawcett expediu um derradeiro comunicado
a seus correspondentes da Royal Geographical Society do outro lado do Atlântico.
Sucinto, como convinha às mensagens telegráficas, tanto quanto a si mesmo
naquela ocasião, teria dito apenas:
“Se eu não voltar, não enviem expedições de busca”.
Do alto dos seus cinquenta e oito anos, o coronel Fawcett, entre outros
tantos conhecimentos orográficos e climatéricos, sabia que, ali, o mês de maio
prenunciava o fim da inviável lamaceira da estação chuvosa. Assim, mal se perdia
a estrela d’alva na claridade da manhã do dia seguinte, pôs-se a cumprir seus
íntimos ritos de viagem. Abasteceu-se na água fresca do córrego, fez a barba que
começava a lhe eriçar o pescoço, pôs fumo no fornilho do cachimbo, orientou seu
rústico mapa e nele traçou com os olhos compenetrados a primeira parte da sua
rota. Então conjurou seu talismã1 e tomou, enfim, num decidido transe, o rumo
desmesurado do selvagem norte mato-grossense.
Três letárgicos anos cumpriram as instruções daquele seu último telegrama.
Certa reverência ou um conveniente esquecimento contiveram ou acumularam os
ímpetos da curiosidade e da diligência dos seus correspondentes. Decorrido o
tempo, esse inveterado iconoclasta, a lacônica premonição de sua mensagem ter-
se-ia degenerado em mera presunção, em abuso de confiança, em despedida
suicida, em atestado de insanidade ou, o que seria pior, em ingratidão. Aí soou o

1Uma estranha estatueta de basalto negro com propriedades magnéticas que lhe fora dada por Sir H. Rider Haggard, e
que ele especulava que lhe indicaria o rumo do que procurava.

133
alarme de que seu incógnito destino lindava com o corriqueiro ou com a fatalidade,
mas também com o insólito. Para desbaratar o turbilhão de hipóteses, sobretudo
as mais fantasiosas, uma aparatosa campanha estrangeira com comboios de
mulas, entrepostos e barcaças fluviais bateu seu itinerário perdido até os lodosos
pântanos onde se afantasmaram os resquícios dos seus últimos rastros.
Mais que sua propaganda, o fracasso dessa industriosa expedição fez
repercutir o caso, assim como a insinuarem-se as suposições divinatórias.
Acudiram jornalistas, desocupados, autoridades, etnógrafos, hidroaviões e
necromantes. Perturbados por inumeráveis investigadores, duas gerações de
índios Nafukuá, Kalapalo e kuicúru altercariam suspeitas entre si, até cristalizar-se
a tediosa versão tantas vezes contada e recontada na pantomima que remediava
a variação entre seus diferentes dialetos: a de que um dia haviam visto, sim, passar
pelas brenhas de suas aldeias um senhor de cabelos ruivos, o cenho austero, com
premência de tudo, com essa estatura e esse sotaque, com tais pertences e esse
mesmo chapéu descritos; assim como também carregava esses mesmíssimos
apetrechos de metal que lhes mostraram como modelo, e com os quais ele ali
recompensara obséquios; mas que assim como viera se havia ido, sem dizer para
onde nem em busca do quê, em direção ao nascente; que pelo fogo que ateou no
fim do malfadado entardecer em que se fora, pernoitou muito próximo, como
disseram em sua língua: “ao alcance de um grito!”. No vento e nas sombras dos
dias seguintes continuaram chegando o cheiro e o lume de suas fogueiras
afastando-se e diluindo-se até a uma distância presumida de cinco dias de
espinhosa caminhada. A partir desse dia desde que se fora dali, cessaram para
sempre. Porque mesmo da copa das árvores mais altas não se lhes viu mais o
clarão no meio da noite nem nunca mais chegou o odor requeimado dos seus
distraídos sinais de fumaça.
lenda
Durante anos, muito pouco ou nada se saberia de Fawcett, do homem de
carne e osso, pelo menos. Nas inumeráveis buscas que se seguiriam, a única coisa
em comum com que se depararam os ávidos investigadores foi a unânime suspeita
de que ele próprio teria embaralhado suas pistas. Imprecisa, evasiva ou
contraditória teria sido sua atitude desde as notas mais elementares registradas

134
nas páginas de sua correspondência e no diário de viagem repleto que, talvez
propositadamente, deixou para os que viessem trás. Segundo os que se
desencontraram em seu encalço, Fawcett metodicamente subscrevera datas
anacrônicas, arrolara falsos testemunhos, criara topônimos arbitrários, locupletara
a deficiência dos mapas com acidentes naturais fictícios e dissimulara a posição
real dos seus acampamentos com defasadas coordenadas geográficas2. O que
para alguns foi motivo para desistir da busca, perceber-se atrás de uma jornada
que não passava da desventurosa rota de um peregrino louco ou perdido, foi para
muitos mais o estímulo do desafio de tentar desvendar uma criptográfica rede de
atalhos, indícios e augúrios. Para todos, porém, seriam um permanente dilema as
falsas pegadas que naturalmente deixara impressas alguém capaz de elaborar e
dispersar sua própria efígie.
Gottlieb Fichte, há duzentos anos, entendera que nossa estrutura mental não
comporta a transição dos momentos, do devenir, essa mágica interdimensão do
tempo que engloba as outras, meras convenções da nossa lógica temporal.
Conjugamos o antes e o depois de um fato, como o daquele já remoto entardecer
na floresta em que Fawcett desapareceu num dia de maio de 1925, talvez
unicamente para a acomodação de um sentido. O que busco aqui, obviamente, não
prescinde desse artifício lógico, nem haverá de ser minha sua última versão.
Referir-me-ei, portanto, menos à simples conclusão dedutiva que ao encadeamento
de fatos pretéritos até então insuspeitos. O sumiço de Percy Harrison Fawcett
naturalmente inspiraria numerosas especulações. Acometido pelos fatais
estertores da febre palustre; servido de repasto ao apetite das feras ou de rituais
antropofágicos; vivido desde então totalmente integrado a uma recôndita aldeia
indígena como no lendário caso do primeiro cosmógrafo de feitoria que se tornara
gentílico; vítima de um desses raros casos de amnésia de identidade; encontrado
o seu eldorado e lá vivido até os noventa e cinco anos em segredo; solapado pela
vergonha insuportável de ter de voltar curvado sob o vexatório peso da empresa

2Numa das últimas correspondências que deixou aos cuidados dos guias que retornaram, havia uma carta à esposa onde
anotou que estava a 11⁰43`S; enquanto na mensagem enviada a um jornal dez dias antes, situara-se a 13⁰S. Para cobrir
essa diferença, equivalente a trezentos km ao norte, entre as águas do Xingu e Teles Pires, Fawcett teria de ter percorrido
cerca de trinta e dois km por dia. Velocidade considerada impossível até hoje naquela região sem estradas.

135
fracassada. E em fins de 1938, uma médium constrangeu a avidez por notícias
fabulosas do editor do jornal que a contratara para uma reportagem sobre o caso,
ao resumir, peremptória e sossegada, a certeza de sua clarividência:
— O corpo desse pobre homem, senhor, repousa inerte à beira de uma lagoa
pantanosa.
A nota cômica desse caso veio com a curiosa notícia de um jovem índio
“branco” encontrado por uma missionária americana que percorria o norte do Mato
Grosso em fins da década de 1930. Esse evento reacendeu as suspeitas quanto à
sobrevivência de Fawcett, até que uma ampla reportagem enviada do Rio de
Janeiro ao que então chamavam de Brasil Central, patrocinada pelos Diários
Associados, de Assis Chateaubriand, revelou que na verdade se tratava de um
caso raro de albinismo indígena. E cerca de uma década adiante, um séquito da
expedição Roncador-Xingu asseverou tê-lo reconhecido na figura fantasmagórica
de um ancião que por um momento viram bordejar um trecho de mata fechada entre
os estados de Minas Gerais e Goiás, ainda portando o velho cachimbo e sua touca
de pele de quatipuru desbotada pela intempérie.
Pode ser que haja de fato um fim, mas a noção de morte como algo definitivo
em alguma medida aniquila os mitos, os quais em certa medida servem para
conferir sentido à vida. Como na teoria da mito-práxis de Marshall Sahlins, quem
sabe porque insurge os homens contra a fatalidade a que estamos fadados, o mito
venha nos socorrer do incompreensível em que estamos mergulhados. Assim é
que nenhuma das versões sobre o destino de Fawcett seria mais difundida e
estimulante que a que lhe atribuiu a façanha de ter encontrado uma passagem
secreta para uma lendária cidade perdida; que sua demora indicava não se tratar
de vestígios arqueológicos, mas de uma eubiótica e pulsante sociedade; glória em
vida tão deslumbrante que ele não quis ou, por alguma outra razão, não pôde voltar
para revelar aos profanos deste nosso baixo mundo. Isso corrobora minha
descrença de que o gênio do herói, do artista, do santo ou do filósofo sejam
anteriores às premências espirituais da época em que esses homens floresceram.
Esse apelo à versão mítica ou mística do destino de Fawcett, sua versão mais
celebrada, talvez diga algo sobre as ânsias prioritárias do nosso tempo. Assim, um
redivivo gênero literário preencheu páginas e páginas de livros, artigos de jornal e

136
crédulos documentários, e em seguida sua categoria mais trivial: as películas
mercadológicas de seriados e filmes de ação, onde o talhe de Fawcett reaparece
transfigurado no consaguíneo arqueólogo que rola roto e suado sobre capciosas
armadilhas de tumbas encantadas, lança mão de conhecimentos histórico-
científicos para desbaratar esfinges, destrinchar superstições escatológicas,
quebrar feitiços e resgatar relíquias soterradas na selva amazônica, no Ártico, no
centro de pirâmides cobertas pelos cipoais das hileias indianas ou pelas dunas
escaldantes dos mortíferos desertos do Cairo.

a cidade perdida
De certo que, em sua juventude, a Fawcett deslumbraram as venturosas
peripécias argumentadas por Karl Mauch nos percalços do seu herói em busca do
que acreditava ser as famigeradas minas do Rei Salomão. A maturidade oferecer-
lhe-ia páginas menos frenéticas e episódicas, mas não menos lendárias que as do
Timeu, onde Platão põe na boca de antigos sábios egípcios a descrição da fabulosa
civilização Atlântida e seu incógnito e abrupto colapso. Assim como a Utopia, a
sátira política urdida por Thomas More, ou A Cidade do Sol imaginada por
Campanella. E ninguém saberá dizer até que ponto prevaleceu em seu espírito o
inveterado ethos pragmatista inglês que o teria lançado a campo, com seu
empirismo tão destacado de sua antítese no idealismo continental.
De pessoas e coisas perdidas ou desaparecidas sobram casos e descasos.
Ao de Fawcett, porém, duas circunstâncias encareceram o mistério: o fato de que
ele fosse um inveterado explorador britânico já quase sexagenário, com toda a
tradição, todo o fausto e toda a experiência científica que lhe conferiam esses
atributos. A outra circunstância, embora receba aqui essa singela designação, é a
que já se adiantou ao leitor e que obviamente constitui, senão o cerne deste relato,
pelo menos seu interesse até aqui: a obsessão tantas vezes e abertamente
declarada por ele mesmo ao objeto de sua busca, ou, antes, a natureza desse
objeto. Enfim, o fato de Fawcett haver proclamado aos quatro ventos estar atrás de
uma estranha Cidade Perdida. As circunstâncias históricas contribuíram para
atenuar o espanto sobre tal empresa, já que em princípios daquele século, quando
Fawcett assumiu de vez seu ofício de “arqueólogo”, havia poucos decênios desde

137
que a ambiciosa fortuna de Heinrich Schliemann encontrara, e escavacara até a
inutilização, o sítio homérico de Troia3. Em 1911, nas próximas colinas andinas,
revelar-se-iam o museu a céu aberto sobre as pirâmides incas e as ruínas de
Machu Picchu que tanto espicaçaram o espírito de Fawcett. Mas esse fascínio já
vinha de longe.
Sem a menor cerimônia, ele apregoava procurar uma espécie de civilização
desconhecida, da qual tinha tanta certeza que existia de fato que o angustiava a
prolongada iminência de encontrá-la. Laboriosas pesquisas e viagens,
coincidências milagrosas e seu tino, meditações e o sentimento de predestinação
haviam-lhe outorgado esse salvo-conduto. Coligira indícios, sinais inequívocos e
verossimilhanças. A que idade ou a que império pertenceria esse sítio; que
sabedoria, tesouros ou arcanos esse lugar guardava, ele não soube ou não pôde
então, nem nunca, revelar. Ostentando a boa saúde de sua disposição física apesar
da idade, seus argumentos científicos e seu experimentado domínio sobre a vasta
região de selva onde residiria essa cidade Z, essa sua Xangrilá, esse seu Jardim
do Eden, Fawcett admitia seu intrigante desígnio num fleumático sotaque inglês
enquanto acariciava as pontas do ruivo bigode viking que dava um sobre tom à cor
avermelhada do chapéu com calda de quati australiano que conduziu naquela sua
última viagem. Expusera seu intento assombroso pelas plagas mais ignotas que
percorrera, em monofônicas transmissões de rádio, em letras de revistas e jornais
mundanos, assim como em ofícios formais que dirigira a autoridades ou em busca
de patrocinadores.

o ídolo e o êmulo
Os biógrafos deram conta de que o pendor exploratório de Fawcett teve seu
primeiro despertar no dia de sua mocidade em que se viu rodeado por uma
suntuosa baixela de prata4 após o chão arenoso de uma gruta perto da casa dos
pais desmoronar sob seus pés enquanto brincava. Consta também que Fawcett foi
oficial da real artilharia britânica, onde lhe foi propício o acaso de ser destacado

3 Schliemann chegou a exibir a própria esposa adornada com as presumidas joias de Helena de Esparta.
4 Antônio Callado atribuiu essa prata a proprietários de terra que teriam fugido da guerra civil nos tempos de Cromwell,
in: Esqueleto na Lagoa Verde: ensaio sobre a vida e o sumiço do coronel Fawcett. Rio de Janeiro: Imprensa Nacional,
1953.

138
para servir no Ceilão nos primeiros anos da carreira militar. Em lugarejos da Ásia
teria tido experiências inusitadas, como o encontro com um vidente budista que lhe
previu uma descendência dinástica a partir de uma nativa de um lugar distante e
ainda incerto que lhe conceberia um filho miscigenado. No Ceilão, com o auxílio de
um mapa apócrifo, o futuro coronel Fawcett empreenderia vãs e exaustivas buscas
ao tesouro dos místicos reis candianos, do qual se dizia ter sido enterrado na época
em que as ávidas caravelas portuguesas aportaram ali com o agourento vermelho
de suas cruzes de malta. E seria nas cercanias de Tricomali que Fawcett toparia
com as estranhas inscrições incrustadas nas rochas de um quebra-mar. Transcritas
e levadas a um velho sacerdote cingalês, este lhe asseverou ser de fato o único
intérprete capaz de decifrá-las, mas desde que lidas no lugar em que haviam sido
encontradas e na mesma hora do dia em que haviam sido esculpidas, porque na
sombra projetada pela luz do sol no baixo relevo é que se podia ler seu verdadeiro
significado.
Pouco depois de retornar ao mundo desencantado que Londres se tornara
então para ele, reencontraria sua inspiração ao dar com o ponto de inflexão que
como a nenhum outro, a nenhum de nós, foi capaz de marcar de forma tão visceral:
o contato com a biobibliografia de Sir Richard Francis Burton, que já era uma figura
decadente depois da consagração da fama no dia em que Fawcett constatou com
vaidoso ufanismo que começara a seguir seus passos desde os vaivens da carreira
militar no oriente ao pretendido cume de se tornar também um agente nos
desbravadores empreendimentos científicos da Royal Geographical Society. E
exultou não ser um favor do acaso descobrir numa resenha de pé de página que
Burton era um ilustre conterrâneo seu do condado de Torquay, distrito de Devon,
onde ambos haviam nascido.
Em sua tez amorenada pelos anos sob o impiedoso sol dos trópicos, o
capitão Burton trazia uma cicatriz africana do dia em que uma lança etíope lhe
trespassara as mandíbulas. Era então o único ocidental a voltar vivo após profanar
a cidade sagrada de Harah e a ter tido a ousadia de peregrinar à Meca entre
muçulmanos disfarçado de filho de afegãos nascidos na Índia. Para Fawcett, seu
herói já estava além dos ingratos revisionismos que apontavam para o declínio de
Burton desde que as escrupulosas mudanças na política colonial vitoriana lhe

139
vinham embotando com a má fama da velha pirataria britânica. E Fawcett já estava
envolvido demais e atarefado demais para poder lamentar a injustiça de tentarem
reabilitar Burton no Exército, na diplomacia e na então incipiente Royal
Geographical Society apenas por sua curiosa coleção de artefatos primitivos ou por
sua obra literária como cronista de viagens exóticas e tradutor das Mil e Uma
Noites, do Cama Sutra, de Os Lusíadas e do Alcorão. Fawcett era um jovem de
vinte e poucos anos quando Burton faleceu, anônimo, em Trieste, confins da Itália,
em 1890. Chegou a prognosticar que a embaixada final de quatro anos no Brasil
para a qual nomearam Burton fora uma espécie retardatária e inútil de reparação,
salvo pelo fato de ter ainda rendido a Burton substância suficiente para uma de
suas derradeiras publicações, Viagem aos Planaltos do Brasil (Explorations on
Highlands of Brazil, Londres, 1868).
O que Fawcett não imaginava é que esse volume consolidaria sua impressão
de que não se tratava mais de uma questão de sinais, mas de uma mensagem
clara e direta o que seu acaso estava empenhado em decodificar. Ao cair em suas
mãos, Viagem aos Planaltos do Brasil despertou-lhe de imediato o interesse pelo
Brasil como uma premência inadiável. Burton narrara o resultado de suas
pesquisas e suas incursões pelo interior da América do Sul. Como prova
documental, a edição trazia um apêndice com um relato atribuído a bandeirantes
paulistas de meados do século XVIII, cujo teor, após anos relegado ao olvido ou ao
segredo entre as estantes empoeiradas do arquivo imperial, havia sido publicado
pela primeira vez numa esquecida coletânea do Instituto Histórico Geográfico
Brasileiro (Tomo I, 1839). Nele, os exploradores descrevem cheios de simbolismos
as ruínas de uma espécie de acrópole místico-arqueológica de largas ruas de
macadame descoberta no interior dos sertões da Bahia, e no qual trataram de
registrar uma cópia fiel dos caracteres que encontraram inscritos nas paredes e
muros da misteriosa cidade perdida, mas de cuja localização exata eles mesmos
jamais chegaram a dar alguma pista, e em cuja busca tantos mais tarde se haviam
extraviado nos desenredos da morte ou da desilusão.
Esse legado tornou-se quase messiânico para Fawcett quando, em
princípios do novo século, foi designado para compor uma comissão cartográfica
que viajaria até a floresta amazônica para arbitrar um iminente conflito armado entre

140
Brasil e Bolívia devido a uma disputa por limites de fronteira. Entendendo que seu
destino não só já estava traçado mas inclusive com os próprios meios de cumpri-
lo, atendeu a essa solicitação como a um chamado da divina providência. Seguiria
uma vez mais os passos de Burton, agora, na travessia do Atlântico. Mas já então
como uma espécie de êmulo: a crescente perspectiva de encontrar a cidade
perdida diminuía a imensa sombra de Burton, que dali em diante Fawcett trataria
de dispersar desde que passou a conceber que os primeiros dígitos da senha do
seu oráculo estariam no fato iniludível de que os caracteres incrustados nas
paredes e muros da cidade perdida dos bandeirantes haveriam de coincidir com os
signos guardados por ele há tantos anos desde que os vira talhados nos rochedos
de Tricomali, os quais o xamã cingalês jamais poderia decifrar pelo simples motivo
de que só a ele mesmo, a Fawcett, estava dado o enigma que só podia ser
destrinchado através do próprio curso de uma vida consagrada a tal tarefa.
Desde então, entre idas e vindas, nosso explorador conheceu como poucos
os inóspitos recessos da região amazônica. Internado na floresta em seu obsedado
flagelo, conheceria ritos macabros, a humilhante angústia de se ver perdido num
desmesurado labirinto verde, o calor de fornalha que lhe derretia as têmporas, a
umidade implacável que fazia brotar as ressequidas contas de semente de tucumã
dos improvisados rosários de oração de missionários insanos, o delírio atroz das
febres malsãs. Lendas e histórias inenarráveis na civilização de onde vinha, o efeito
letal da peçonha dos répteis multicor e seus antídotos, assim como a transcendente
narcose na beberagem de rituais votivos. E onde haveriam de confluir o serpentear
dos rios e igarapés, e clareiras naturais, e viendas, e descaminhos. E foi de Fawcett
o último daguerreótipo de Plácido de Castro antes da emboscada que o matou após
sua vitoriosa Batalha do Charco ao lado dos conjurados que haviam sacudido
aquelas fronteiras. Chamado à pátria durante a Primeira Guerra, voltaria à floresta
tropical com a mesma determinação com que se arrojou em todas as cinco
expedições que empreendeu em sua busca desatinada. E mais do que em todas,
na derradeira. Daí em diante o que se soube está resumido até aqui neste relato.

a última versão
A última versão, excêntrica ou antitética, deduziu-a, talvez sem querer, e
sem alarde, um homem simples, avesso aos holofotes da publicidade. Orlando, de

141
seu nome. Se muitos não enxergam nessa sua versão uma espécie de “teoria da
conspiração”, é provável que porque não se saberia qual das conspirações seria a
maior. Ainda que oriunda do seu desencanto, como muitos dos seus detratores a
desqualificaram, foi a única em que concorreram provas documentais,
experimentais e materiais. Acalentou a tese de que, antes de tudo, Fawcett, mesmo
que em menor grau, de maneira informal ou como mera pretensão bajuladora, não
passava de um agente de espionagem do imperialismo colonial europeu. Tal
atividade, até começos do século XX, estava ainda por receber toda a conotação
de sua carga pejorativa, porquanto a lógica da nova “ética” na ciência política e na
guerra não a haviam então impugnado, a despeito de agora se resumir a uma
sombra apagada dos notáveis serviços que outrora a espionagem e a pirataria
prestaram à coroa inglesa desde o período das grandes navegações. Em tempos
de fronteiras beligerantes como aqueles, seria quase natural que um cidadão, um
patriota e, sobretudo, um militar, em terras estrangeiras, lançasse um olhar
descritivo ou delator em tudo o que pudesse contribuir para a política econômica e
sociocultural de nua nação. De fato, figuras famosas e viajadas como Johnatam
Swift, Defoe e o próprio capitão Richard Burton, revelaram-se membros desse
discreto e desadorado clube.
Orlando averiguou sem grande esforço que em suas tantas vindas ao Brasil,
antes de se embrenhar na mata, Fawcett vasculhara as estantes e arquivos
particulares de ex-funcionários e embaixadores britânicos no Brasil e de sedes de
órgãos como a Biblioteca Nacional e o Instituto Histórico Geográfico Brasileiro à
cata não só do famoso “Documento 512”, como ficou conhecido o relato
setecentista dos tais bandeirantes, mas de qualquer pista que o conduzisse ao sítio
que seus autores proclamavam existir, assim como de qualquer achado casual
relacionado ao assunto. Neste ponto impreciso é que se teria dado um novo ponto
de inflexão no destino de Fawcett. Em suas pesquisas bibliográficas, ele teria dado
com as díspares mas persistentes referências a umas tais Minas dos Martírios.
Entres essas referências, Fawcett fatalmente ter-se-ia deparado com os
minuciosos relatos de Couto de Magalhães (1863) e Manoel de Siqueira (1886)5,

5Cf. Descoberta das Minas dos Martírios por Bartholomeu Bueno da Silva (MAGALHÃES, Gen Couto de) e Memória a
Respeito do Descobrimento dos Martírios (SIQUEIRA, Padre José Manoel de) ambos digitalizados no site da Biblioteca
Brasilianas.

142
onde ambos chegam a descrever detalhes topográficos e fluviais com que, ao longo
do tempo, diversos sertanistas depararam-se na viagem em busca de encontrar as
famigeradas minas de ouro da Serra dos Martírios que tanto noticiavam recorrentes
boatos, lendas e testemunhos dos índios Bororo estarem situadas ao norte da
então província de Goiás, seguindo o curso do noviço Rio Araguaia.
Do sentido que deu Orlando ao que pôde apurar, não seria incoerente
acrescentar circunstâncias históricas ou psicológicas notórias que reclamam o
caso. Fawcett, então, já era um veterano positivista relutando de forma inconsciente
contra as desilusões que flutuavam nos rescaldos da Primeira Grande Guerra. O
grande Schliemann era visto agora por todos os lados como um egoísta e um
megalômano; e ele mesmo teria passado a ver em Burton, seu herói de juventude,
uma espécie de ídolo anacrônico que arrematara o romantismo engajado da idade
da alma que ainda o prendia ao século passado. Dada sua própria percepção do
viável, do factível, Fawcett, na plena consolidação desse intermezzo histórico, não
teria tido escrúpulo ou dificuldade objetiva alguma em migrar para um plano mais
lúcido e mais proveitoso para o minuto dos seus empreendimentos expedicionários,
e que, enfim, justificasse sua própria vida nos anos que ainda lhe restavam. Afinal,
encontrar uma secreta serra cravada de ouro pelo cruzamento de enigmas
históricos, acasos auspiciosos e rudimentares dados geográficos com o auxílio da
interpretação de símbolos ancestrais e de seu instinto de predestinado, seria uma
façanha tão grandiosa quanto de acordo com as aspirações do espírito do novo
século, ou seja, uma empresa científica. Mas de uma coisa, porém, certo
anacronismo ocasional ainda lhe serviria: poder simular ainda viver tateando em
meio às névoas de suas utopias. Supondo-se um homem que se pretendia à frente
do seu tempo, entendeu desde logo que, salvo na letra dos seus entusiastas, uma
nova era sempre demora a consolidar-se, sobretudo nestas remotas plagas latino-
americanas. Para despistar possíveis concorrentes ou para não compartilhar seu
segredo com prováveis oportunistas, Fawcett apelou para o fato de que nada
serviria de palco mais propício para o estupor do desconhecido ou do milagre do
que as virgens selvas amazônicas. Assim, não teria sido outro senão este o motivo
de ter alardeado um rumo ignoto e um motivo mitológico para sua viagem.

143
Sobrepondo mapas tracejados, datas, bússolas e os antigos relatos de
viagens que supunha terem sido estudados por Fawcett, Orlando, nosso discreto
perscrutador, chegou a seu termo sobre o último e apressado itinerário do
desaparecido. A Fazenda Laranjal, o Campo do Cavalo Morto, a aldeia dos Bacairy
e, enfim, o Rio Kuluene. A linha pontilhada que ligava esses pontos descrevia um
arco de parábola para o leste, e daí seguia apontando para os sopés da Serra do
Sincorá, nas proximidades de onde vai desaguar o Rio Araguaia. Ou seja, o sítio
onde tudo indicava a Fawcett estarem situadas as místicas Minas de Ouro dos
Martírios; no que seria até contraproducente supor que Fawcett se dirigia aos
opostos chapadões da Bahia descritos no relato dos bandeirantes como sendo a
região onde estaria localizada a tal cidade encoberta, a uma distância
intransponível ainda hoje senão com recursos aeronáuticos, imagine-se para um
sujeito que a partir das margens do Kuluene sacrificou sua leal montaria; que se
aliviou de tudo o que dali em diante não fosse estritamente essencial e enterrou na
mesma vala que serviu de túmulo a sua mula; que se viu obrigado a surrupiar uma
canoa indígena esquecida nas margens, e que dispensou o guia nativo que o
conduzira até ali de volta a Cuiabá portando uma carta para a esposa num envelope
timbrado com o sinete do seu anel, a qual levaria seis meses para chegar ao
endereço de destino do outro lado do oceano.
O tempo, ou a fortuna, operou seu desfecho. Em meados de mil novecentos
e cinquenta e dois, Orlando, já com os últimos vestígios de sua pele citrina gretada
pelo insalubre sol dos trópicos sob a tinta do urucum e do jenipapo, vivia de corpo
e alma nus, tingido de grafismos tribais em espirais e diagramas aleatórios segundo
os usos rituais das tribos altoxinguanas. Reverenciava seus deuses irmanados,
dormia nas malocas, comia do mesmo pão e falava-lhes na mesma língua. Um dia,
na aurora, recordou o malfadado e já esquecido caso Fawcett, desaparecido,
segundo constava, justo naquelas silvestres cercanias. À noite, como acontece
com as dores, o frio e os sussurros, crescia a desassossegada dúvida de se deveria
ou não remexer o assunto, de se aquilo ainda faria algum sentido, assim como a
angustiosa certeza de que ainda estava sujeito às pressões culturais de sua
civilização indo-europeia.

144
O cacique e os próceres da comunidade estranharam as maneiras do seu
silêncio. Até que Orlando resolveu perguntar, antes que se lhe perguntassem. Era
por volta das nove da manhã nessa ocasião. Estavam sentados em círculo,
reunidos num canto da aldeia. Orlando dedilhava uma ansiosa cabaça enquanto se
decidia. Começou a falar aos poucos. Elogiou a rica tradição oral que eles tinham
de traçar a extensa árvore genealógica dos seus antepassados e narrar
acontecimentos sucedidos há muitíssimas gerações. Fez uma pausa para
rearranjar suas ideias. Não cometeria um abuso de confiança. Pensou no tom de
desafio de memória que tanto lhes aprazia. Encontrou a entonação ideal e fez,
afinal, na língua deles, a pergunta sobre o paradeiro do coronel Fawcett. Quebrou
a mudez com que os índios se entreolhavam, acrescentando:
– Prometo um cocar de penas de arara-vermelha a quem souber contar o
que aconteceu com o tal inglês – “inguerese”, na língua nativa –, o que andou por
aqui há três centenas de luas cheias.
Parece que demoraram a se mover. Até que um dos decanos ergueu-se,
assentindo com um sorriso entre cordial e temerário. Mas logo tomaram remos
curtos, farnéis, peconhas de vime entrelaçado, dardos com pontas de madeira
queimada e punções de ferro fundido. Após lograrem atravessar varjões, espinhos
e voçorocas, passava do meio dia quando afinal acercaram-se de um pequeno
cume ilhado pelos braços de uma lagoa de aluvião fluvial tão infestada de
embaúbas que mal se via de cima do barranco a água esverdeada pelo musgo.
Bateram a vegetação e varreram os garranchos no entorno com galhos maiores
desfolhados até abrirem uma pequena clareira na qual se dispuseram outra vez em
círculo. Aí o cacique deu um passo à frente e passou a narrar com minudências
como o “inguerese” havia chegado; como os havia ofendido ao se recusar a dormir
numa das tabas que lhes haviam oferecido bradando que eram imundas; o quanto
os desmereceu tê-los chamado de vadios e ladrões quando um deles recolheu um
marreco que ele havia abatido com um tiro de sua espingarda supondo que o
estavam roubando; como despertou o rancor e o ciúme de todos ao estapear um
curumim que bisbilhotava sua carga carregada dos presentes que lhes havia
negado e com os quais pretendia seduzir as tribos inimigas que acaso encontrasse
pelo caminho errante que tratou de tomar no dia seguinte. O cacique falou durante

145
longo tempo, até que seus gestos foram morrendo e parou de falar, os olhos no
horizonte, como se amealhasse as recordações. A seguir prosseguiu num outro
tom, sem mais gesticular, como que para concluir.
Devia ser duas da tarde quando acabou de descrever o momento e o modo
com que o então jovem índio Alouíque Calapalo chegou até ele para lhe pedir
permissão para matar o “intruso inguerese”. Foi então que os nativos ali reunidos,
a despeito de desconhecerem o teatro como entretenimento catártico, encenaram
o último ato da tragédia. Um deles, escamoteando uma borduna, simulou
surpreender outro que se apoiava numa embaúba maior fingindo recuperar-se da
travessia daquele braço de rio. Ao sentir o tacape tocar sua nuca, gritou deitando-
se entre os garranchos como se tivesse sido atingido pelo primeiro de uma série
de golpes, enquanto os circundantes agitavam-se e gritavam dissonantes alaridos
de guerra batendo-se nos braços e no peito com a palma das mãos. De modo
contínuo, ajoelharam-se e curvaram-se para cavar o chão no centro do círculo com
as punções e tocos de madeira, depois, quando a terra no interior da vala foi ficando
mais úmida, cavaram com mãos. E Orlando viu, deslumbrado, o momento em que
o primeiro brilho do sol iníquo daquela hora da tarde luziu na opaca superfície
branca de um fêmur humano revolvido na areia negra de sua sepultura.

epílogo
O tipo encefálico era ariano, de aproximadamente sessenta anos, idade
aferida pelo exame clínico sobre as ligaduras ósseas cranianas. Esse foi o veredito
dos laudos laboratoriais a que foi submetida a ossada completa exumada nos
confins das terras brasilis em começos da década de 1950. Trasladado o esqueleto
para Londres, onde foi novamente periciado, constatou-se, porém, por ocasião de
uma projeção de estatura, que, em vida, o dono daquela carcaça media
significativas oito polegadas a menos que o altivo Fawcett. Era o que faltava para
a família, que ainda tinha esperanças em sua sobrevivência e abominava a barbárie
do lugar onde seu heroico patriarca havia ido se meter, obstinar-se a repugnar
aqueles “infamantes despojos”. A fajuta caveira que lhes apresentaram para render
cerimônias fúnebres era a própria contraprova de uma fraude muito maior.
Endossaria mais ainda esse protesto o fato de que, dias depois, ao avaliar sua
suposta arcada dentária, o protético pessoal de Fawcett, não a reconhecer

146
alegando que nem a dentadura sobressalente que Fawcett deixara em casa
encaixava-se perfeitamente na descarnada mandíbula depositada num necrotério
londrino cercado de curiosos e repórteres sensacionalistas. A esposa tentaria
apelar para cortes internacionais alegando que, mesmo que Fawcett de fato não
estivesse mais neste mundo, as obscuras circunstâncias de sua morte
evidenciavam haver sido perpetrada por alguma pérfida trama ligada a escusos
interesses econômicos ou políticos cuja premeditação teria tratado inclusive da
questão jurídica ao forjar um assassinato imponderável em mãos de réus
inimputáveis como os indígenas para dissuadir o desencadear de uma investigação
mais profunda e imparcial. Por múltiplos empecilhos e contratempos, a causa
jamais foi adiante. Em memória do avô, e ao desamparo da viúva, diante do que
clamaram como vergonhosa e típica impunidade, e para refutarem a credibilidade
de tais tipos de prova e não deixar nada que pudesse ser adulterado por mãos
fraudulentas capazes até de forjar uma ossada, os descendentes de Fawcett
firmaram o pacto de nunca, jamais, em tempo algum, fornecer material genético
para quaisquer exames médicos, fossem pelos métodos que já existiam fossem
pelos que ainda iriam ser desenvolvidos no futuro.
Para Orlando, aquele achado foi apenas a consumação material do que há
muito ele já sabia. E mais, foi um desenlace irônico e comezinho, o previsível e fatal
desfecho que solapou os irrefreáveis e dissimulados interesses mundanos de um
sujeito cuja psicopatia tornara frio e pretensioso. Restava, contudo, o legado a
outros cuja curiosidade disponha-se a investigar quem foi, de quem era então, Deus
do céu!, a bendita ossada desenterrada nesta história. Mas, enfim, cumpre registrar
que, de uma forma ou de outra, nosso Fawcett, tão dado a enigmas, logrou afinal,
ainda que nas meras ficções da literatura e do cinema, ou ao menos na imaginação
dos crédulos, alçar seu mistério à estatura de sua pretendida fama.

147
Genésia

Genésia foi sua parteira, na agonia de luzes e náuseas em que veio ao


mundo. Foi também quem depois o conduziu aos primeiros passos pela vida. Sua
mãe mesma, coitada, ali ficou naquele dia, pálida, azulada, estatelada no rés da
tábua, com a veia do pescoço entumecida pela força que fizera de o parir. Mas,
apesar da dor que sofreu, soube que ela se resignou, impotente, porque ouviu,
ou sentiu, desde dentro do ventre dela, que sua mãe punha a mão no fogo por
Genésia. Vasculharam-no, picaram-no, socorreram-no. Lembra-se que ainda
lembrava. Porque assim que aprendeu a dizer as coisas, contou à Genésia, a ela,
esbugalhada de ele lembrar de ter visto a tripa do umbigo sangrento em torno
dele, ele morrendo mal tinha nascido, vítima da primeira implicação das coisas de
um mundo que vinha de fora, da náusea do cheiro do algodão embebido, do lume
ardente das velas no escuro, das notas tristes do choro e da oração. Ela mesma
é que voltaria a lhe descrever essa recordação, porque ele já se tinha esquecido
do primeiro cheiro do sangue e do álcool, do minuto entre dor e alívio, dos
primeiros uivos e lamúrias, e do brilho ofuscante e milagroso dessa luz que nos
alumia.
Amamentou-se nos seios de Genésia, até ela lhe mandar para a finada
puta que o pariu quando ele lhe fincou sem querer os seus primeiros dentes
crescidos. Ele não sabia, mas Genésia já era o mundo. Sua dependência dela,
ele criatura, merecedor de suas pancadas e imprecações, os tropeços e
descaminhos de si, tudo já o prefigurava. Genésia, que o carregou para baixo e
para cima, enquanto ele sentia o gostinho da felicidade de se achar ancho em seu
chão regaço. Mas aí foi que veio um dia, um tempo frio, em que compreendeu
que ela não mais cederia às suas chantagens de menino vadio, e que havia

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outras carências da sua vida que não eram mais da conta dela. Pouco depois lhe
perguntou sobre o Céu e o Inferno, ou seja, sobre o destino. Genésia arregalou
de novo os olhos perplexos, desconcertada. É que ele devia estar atordoado pela
febre, sem saber mais de que lado estava a verdadeira realidade, porque ele
estava no estado de começar a deixar Genésia. Pois assim foi que ele foi vindo,
tal como tinha sucedido antes de tudo, em que esse tudo fora Genésia. Assim
ele a foi deixando, sem saber agora o que ele soubera então, desde que se
perguntou, porque perguntar foi ter esquecido, foi ter-se corrompido. Enquanto
esteve com ela, tudo fazia sentido, desde o como e o quando. Genésia, de quem
foi se afastando dos enlevos para experimentar agruras. Breve teria ele de
mergulhar na renhida solidão do amor. Eros, não mais ágape. Sem remédio e
sem Genésia, que na lembrança o olhava de braços cruzados, enigmática e
alheia. Ele mesmo, dentro do barco solto em que compreendeu que Genésia era
o mundo, que também era Deus. Não o de Spinoza ou o dos magos Yepawsã.
Que as latitudes podiam não ser senão distâncias. E o tempo, uma colcha de
iminências, de ânsias, de adiamentos e de demoras. Mas do outro lado do seu
quebra-mar, entendeu que dentro daquela dimensão o que estava no infinito era
tão só a mesma mancha borrada daquilo que estava também indistinto pela
demasiada e aflita proximidade dos seus olhos, tal como a órbita completa do
Cosmos não era senão uma projeção das mesmíssimas e infinitesimais órbitas
que circunvolunteavam ao redor dos mínimos átomos que constituíam o barco à
deriva em ele estava. Nessa ocasião, quase no fim, talvez ele já estivesse
voltando para o âmago de Genésia, embora não houvesse sido de suas
entranhas que brotara sua carne, como à Terra a que todos havemos de
regressar para o útero, de volta para dentro da consciência de Deus, onde ela
lhe aponta uma direção com o braço estendido mal a divisou na distância
bruxuleante, e ali, como antes, ela sabia de tudo.

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