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LIVRO

DAS MIL E UMA NOITES


LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
volume 1 – ramo sírio
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche

3ª edição, 5ª reimpressão
Copyright da tradução
© 2005 by Editora Globo s.a.
Copyright da introdução, notas e apêndices
© 2005 by Mamede Mustafa Jarouche
Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta edição pode ser utilizada ou reproduzida
– em qualquer meio ou forma, seja mecânico
ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em sistema de bancos
de dados, sem a expressa autorização da editora.
título original
Kitāb alf layla wa layla
revisão
Beatriz de Freitas Moreira
Eugênio Vinci de Moraes
capa e projeto gráfico
Raul Loureiro
Claudia Warrak
Produção para ebook
S2 Books
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [cip]
Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil

Livro das mil e uma noites, volume i: ramo sírio /


Anônimo; [introdução, notas, apêndice e tradução do árabe: Mamede Mustafa Jarouche.] – 3 ed. São Paulo: Globo, 2006
952 kb; ePUB

isbn 978-85-250-5246-9 O livro das mil e uma noites - volume 1 (epub)


1. Contos árabes 2. Fábulas orientais 3. Fábulas orientais –
História e crítica i. Jarouche, Mamede Mustafa

05-1419 cdd-892.73008

Índice para catálogo sistemático:


1. Fábulas: Literatura oriental: Coletâneas 892.73008

Direitos de edição em língua portuguesa


adquiridos por Editora Globo s.a.
Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 – São Paulo – sp
www.globolivros.com.br
agradecimentos a

Ali Mohamad El Jarouche, Mahmud Ali Makki, El Sayed Bahrawy, Federico


Corriente Córdoba, Roshdi Rashed, Gamal El Ghitani, Talaat El Shayeb,
Mamduh Ali Ahmad, Abdurrahman El Sharqawy, Afaf El Sayed, Muhammad El
Arabi El Dawudi, Riyad Abou Awad, Yusuf Abu Raya, Magdi Youssef,
Biblioteca Nacional do Egito, Biblioteca da Liga dos Estados Árabes;
fapesp, Adma Fadul Muhana, Alberto Sismondini, Andreas Hofbauer, Fernanda
Vanzolini Razuk, Francis H. Aubert, Joaci Pereira Furtado, João Adolfo Hansen,
Júlia Maria de Paiva, Juliana de Matos Donzelli, Leon Kossovitch, Michel
Sleiman, Miguel Attie Filho, Renato Marques Gadioli, Richard Max de Araújo,
Safa Alferd Abou-Chahla Jubran, Serviço de Aquisição da Biblioteca da fflch-
usp.
livro das mil e uma noites

Capa
Folha de rosto
Créditos
Agradecimentos a
Nota editorial
Uma poética em ruínas
Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador em quem está a
minha fé
O gênio e a jovem sequestrada
O burro, o boi, o mercador e sua esposa
O mercador e o gênio
O primeiro xeique
O segundo xeique
O pescador e o gênio
O rei Yūnān e o médico Dūbān
O mercador e o papagaio
O filho do rei e a ogra
O rei das ilhas negras e sua esposa
O carregador e as três jovens de Bagdá
O carregador
O primeiro dervixe
O segundo dervixe
O invejoso e o invejado
O terceiro dervixe
Jaᶜfar, o vizir
A primeira jovem, a dona da casa
A segunda jovem, a chicoteada
As três maçãs
Os vizires Nūruddīn ᶜAlī, do Cairo, e seu filho Badruddīn Ḥasan, de Basra
O corcunda do rei da China
O jovem mercador e sua amada
O jovem de Bagdá e a criada de madame Zubayda
O jovem de Mossul e sua namorada ciumenta
O jovem Manco e o barbeiro de Bagdá
O barbeiro de Bagdá e seus irmãos
O primeiro irmão do barbeiro
O segundo irmão do barbeiro
O terceiro irmão do barbeiro
O quarto irmão do barbeiro
O quinto irmão do barbeiro
O sexto irmão do barbeiro
Anexos
Anexo 1
Anexo 2
Anexo 3
Anexo 4
Anexo 5
Anexo 6
Anexo 7
Anexo 8
Anexo 9
Anexo 10
nota editorial
“Eu penso em As mil e uma noites: falava-se, narrava-se até o amanhecer para afastar a morte, para
adiar o prazo deste desenlace que deveria fechar a boca do narrador.”
Michel Foucault

Um rei chamado Šāhriyār (pronuncia-se Xahriár, aspirando o “h”), membro de


poderosa dinastia, descobre certo dia que a mulher o trai com um escravo. Em
crise, esse rei sai pelo mundo, iniciando uma busca que é também de fundo
espiritual: ele quer saber se existe neste mundo alguém mais infeliz do que ele. A
resposta é positiva, com um agravante: ninguém pode conter as mulheres – é o
que lhe garante uma bela jovem que trai o marido. Então ele retorna para o seu
reino decidido a tomar uma medida drástica e violenta: casar-se a cada noite com
uma mulher diferente, mandando matá-la na manhã seguinte.
Depois de muitas mortes e pânico entre as famílias, dá-se a intervenção da
heroína: ela é filha do vizir mais importante do reino, possui grande cultura e
inteligência, chama-se Šahrāzād (pronuncia-se Xahrazád ) e elaborou uma
estratégia infalível por meio de histórias que vai sucessivamente, noite após
noite, desfiando diante de um rei a princípio assustado, mas depois cada vez
mais seduzido e encantado.
São fábulas de terror e de piedade, de amor e de ódio, de medos e de paixões
desenfreadas, de atitudes generosas e de comportamentos cruéis, de delicadeza e
de brutalidade. Um repertório fantástico que até hoje nenhuma outra obra
humana igualou, e que, desde o início do século xviii, vem sendo traduzido para
os mais diversos idiomas do mundo, a tal ponto que, para Jorge Luis Borges,
passou a ser “parte prévia da nossa memória”.
Esta é a primeira tradução direta do árabe para o português. O trabalho foi
buscar, nos originais do livro, o ritmo, o sabor e o poder da palavra de Šahrāzād,
inumerável como a prosa do mundo e fonte de inspiração para escritores tão
diversos quanto Marcel Proust, Machado de Assis, Voltaire, Edgar Allan Poe,
Jean Potocki e Borges. Sua narrativa, como bem disse o filósofo francês Michel
Foucault, “é o avesso encarniçado do assassínio, é o esforço de noite após noite
para conseguir manter a morte fora do ciclo da existência”.
uma poética em ruínas

No mundo árabe, circulou pelo menos desde o século iii H./ix d.C.[1] uma obra
com título e características semelhantes ao Livro das mil e uma noites.[2]
Contudo, foi somente entre a segunda metade do século vii H./xiii d.C. e a
primeira do século viii H./xiv d.C. que ela passou a ter, de maneira indubitável,
as características pelas quais é hoje conhecida e o título que Jorge Luis Borges
considerava o mais belo de toda a literatura. Sua história pode ser feita com base
em fragmentos remotos e formulações digressivas, em manuscritos
aparentemente incompletos conservados pelo acaso e compilações tardias cuja
completude fez correr demasiada tinta, bem como em silêncios e registros
lacônicos e lacunares que não raro estimulam fantasias e desejos da crítica. Tal é
o caso de uma obstinada crença de diversos críticos de literatura: a de que o
Livro das mil e uma noites seria um conjunto pouco mais ou menos fabuloso de
fábulas fabulosamente arranjadas. Isto é, um livro elaborado por centenas de
mãos, em dezenas de idiomas, em muitíssimos tempos e lugares, que pode ser
produção de todos e por isso mesmo de ninguém, projetado no limbo da
indeterminação absoluta que permite dizer qualquer coisa sobre ele e pensado
como um processo de constituição que de tão inesgotável se tornou uma espécie
de função, tudo isso entremeado por uma “oralidade” meio analfabeta mas (ou
por isso mesmo) muito sábia que excita e deslumbra.
Ainda que vez por outra divertidas, essas críticas, continuamente repostas na
esfera do que se pensa como puro exercício literário, subtraem ao livro a sua
materialidade e desconsideram o conjunto de práticas letradas em idioma árabe
que de fato o constituíram enquanto tal. Como qualquer outra obra, o Livro das
mil e uma noites tem uma história, embora controversa pela exiguidade dos
dados que nos chegaram até hoje, e é fruto dos decoros das épocas em que foi
elaborado ou reelaborado. Convencionalmente supõe-se, de acordo com
documentos que serão discutidos, que o livro deriva de uma matriz iraquiana,
algo como o primeiro estágio, pode-se dizer assim, da redação independente em
árabe de uma obra de remota origem persa sobre a qual também se falará
adiante. A reelaboração que chegou completa aos dias de hoje remonta, como já
se disse, ao período entre a segunda metade do século vii H./xiii d.C. e a
primeira do século viii H./xiv d.C., quando o Estado mameluco abrangia as
terras da Síria e do Egito. Fundamentada na análise dos manuscritos, parte da
crítica[3] desenvolveu a hipótese da existência de dois ramos dessa reelaboração,
o sírio e o egípcio, este último por sua vez subdividido em antigo e tardio. São
somente os manuscritos da fase dita tardia que contêm, de fato, mil e uma noites,
conforme se explicará adiante.
Da matriz iraquiana há um único e escasso resquício documental: a mais
antiga evidência material de um livro cujo título fala em “mil noites” consiste
em dois fragmentos de folhas datadas de 266 H./879 d.C., em Antioquia, na
Síria, contendo precárias vinte linhas não muito esclarecedoras. A pesquisadora
iraquiano-americana Nabia Abbott (Nabīha ᶜAbbūd), que as localizou em meio a
uma resma de papiros árabes adquiridos pela Universidade de Chicago durante a
Segunda Guerra Mundial, transcreveu-as e escreveu um longo artigo a respeito.
[4] A tradução dessas vinte linhas é a seguinte (tudo o que se encontra entre
colchetes é inferência de Nabia Abbott, a partir de trechos ilegíveis no
manuscrito):
Primeira página:
“Livro
que contém história(s) [ou: a história]
das mil noites [ou: histórias pertencentes às mil noites]. Não há poderio
ou força senão em Deus
altíssimo e poderoso.”
Segunda página:
“Em nome de Deus, Misericordioso, Misericordiador
noite
E quando foi a noite seguinte
disse Dīnāzād: ó minha delícia, se não
estiver dormindo, conte-me a história
que você me prometeu ou um paradigma sobre
a virtude e a falta, o poderio e a ignorância,
a prodigalidade e a avareza, a valentia e a covardia,
que sejam no homem inatas ou adquiridas
[ou] que sejam característica distintiva ou decoro sírio
[ou be]duíno
[e então Šīrāzād contou-lhe uma his]tória que continha graça e beleza
[sobre fulano, o..., e sua m]emória
[... e] se torna mais merecedor quem não
[...] a não ser mais astucioso do que eles.”[5]
Vê-se bem como a crítica das traças e do tempo foi caprichosa com a dita matriz
iraquiana das Mil [e uma] noites: a única informação concreta que essas linhas
fornecem é a da existência de uma coletânea com esse nome, o que chega a ser
irônico com um livro sobre o qual foram lançadas tantas hipóteses, algumas
absurdas, outras inverossímeis. Além do fato de que a obra já existia no século
iii H./ix d.C., as linhas e o material permitem poucas inferências. Nabia Abbott
ensaia algumas, das quais duas parecem pertinentes: a primeira, além de não
terem sido escritas no Egito – a datação, como se viu, é de Antioquia –, as folhas
não haviam sido produzidas ali, pois naquele período a província fabricava
exclusivamente papiro; e, segunda, a formulação inicial, “livro que contém
histórias pertencentes às mil noites” [kitāb fīhi ḥadīṯ alf layla], indica que se
tratava de um extrato ou resumo de suas histórias, e não do livro todo.
A datação em Antioquia pode não significar muita coisa, sobretudo quando se
pensa na grande mobilidade territorial da população muçulmana, atestada por
abundante literatura da época. Nabia Abbott, porém, lança a hipótese de que a
cópia resumida teria sido realizada por encomenda de algum sírio, com base no
texto originariamente produzido em Bagdá, sob a recomendação expressa de que
o escriba copiasse coisas concernentes à sua região – daí a enfática menção ao
“decoro [adab] sírio”. Depois, azares e peripécias diversas teriam tangido o
material e seu dono ao Egito, durante o governo de Aḥmad Bin Ṭūlūn (868-884
d.C.).
O mais importante, porém, é que tais linhas não permitem, apesar de todos os
esforços especulativos de Nabia Abbott, dizer uma única palavra categórica
sobre quais seriam as histórias e paradigmas que uma personagem chamada
Dīnāzād (ou, possibilidade mais remota, Dunyāzād) pede, durante a noite, que
lhe sejam contadas por outra personagem feminina, a quem chama de “minha
delícia” [yā malaḏḏatī], tratamento esse que não ocorre no Livro das mil e uma
noites tal como é hoje conhecido. Já o conteúdo de tais histórias e paradigmas é
dedutível a partir da terminologia empregada, que aponta para alguma
proximidade com a linha didático-moralizante verificável em obras como Kalīla
e Dimna e O sábio Sindabād.[6]
No século iv H./x d.C., duas menções a esse livro, localizadas em obras de
renome, lançam algumas luzes, ainda que esbatidas, sobre a obscuridade de sua
constituição. A primeira, aparentemente incidental, é do historiador Abū Alḥasan
ᶜAlī Bin Alḥusayn Bin ᶜAlī Almasᶜūdī (morto em 346 H./956 d.C.) no livro
Murūj Aḏḏahab wa Maᶜādin Aljawhar [Pradarias de ouro e minas de pedras
preciosas]. No texto, Almasᶜūdī associa a obra a um relato que ele afirma
pertencer ao domínio da fábula, e não da história. Breve e digressiva, a menção é
difícil de compreender isoladamente, motivo pelo qual se traduziu um trecho
mais longo:
“[Entre os templos exaltados pelos gregos e outros povos] está um enorme
templo na cidade de Damasco, conhecido como Jayrūn, do qual já falamos antes
neste livro. Tal templo foi construído por Jayrūn Bin Saᶜd Alᶜādī, que para ali
transportou as colunas de mármore; esse templo é a cidade de Iram flāt Alᶜimād,
mencionada no Alcorão. O único a contraditar isso foi Kaᶜb Alaḥbār, quando foi
ter com o califa Muᶜāwiya Bin Abū Sufyān,[7] que o indagou a respeito de tal
cidade. Kaᶜb então lhe falou sobre sua espantosa estrutura de ouro, prata,
almíscar e açafrão, e também que ela fora adentrada por um beduíno cujos
camelos haviam se extraviado; ele saiu à procura dos animais e acabou topando
com a cidade – e mencionou o ardil[8] utilizado pelo homem. E, voltando-se
para a assembleia de Muᶜāwiya, disse: ‘Eis aqui o homem’ – aquele beduíno que
entrara na cidade à procura de seus camelos extraviados. Então Muᶜāwiya deu
um prêmio a Kaᶜb, e se demonstrou a veracidade de sua fala e a clareza de sua
prova. Se essa notícia transmitida a partir de Kaᶜb for verdadeira, ótimo. Mas
trata-se de uma notícia na qual entrou a corrupção em vários aspectos, devido à
transmissão e a outras coisas; é uma fabricação de contadores de história. As
pessoas polemizam a respeito dessa cidade e de sua localização. Entre os
narradores de tradições históricas [iḫbāriyyūn] que iam em delegações até o
califa Muᶜāwiya, e que conheciam bem as crônicas dos antigos e as biografias
pretéritas dos árabes e de outros povos antigos, somente se confirmou a notícia
dada por ᶜUbayd Bin Šarya, que deu notícias sobre tempos passados e sobre os
seres, fatos e ramificações de descendências que neles haviam existido. O livro
de ᶜUbayd Bin Šarya circula entre as pessoas e é bem conhecido. Muitos
conhecedores das notícias constantes desse livro afirmam que elas são
elaboradas[9] a partir de fábulas[10] forjadas [ḫurāfāt maṣnūᶜa], arranjadas por
quem pretendia aproximar-se dos reis narrando-as para eles. Essas notícias se
impuseram aos contemporâneos por meio da memorização e da citação
constante. O caminho [sabīl] percorrido por elas é o mesmo de livros
transmitidos até nós e traduzidos para o nosso idioma a partir do persa, do
sânscrito e do grego, e a maneira pela qual foram compostos esses livros que
mencionamos é semelhante à do livro Hazār Afsāna, cuja tradução do persa é
mil fábulas, pois fábula em persa se diz afsāna. As pessoas chamam esse livro de
as mil e uma noites, e ele dá a notícia do rei, do vizir, de sua filha e de sua serva,
que são Šīrazād e Dīnāzād. É também semelhante à maneira do livro de Farzah e
Sīmās [ou Šīmās] e o que ele contém de notícias sobre os reis da Índia e os
vizires, e também ao Sindabād e de outros livros no mesmo sentido.”[11]
A segunda menção é de um livreiro de Bagdá, Abū Alfaraj Muḥammad Bin
Abū Yaᶜqūb Isḥāq, ou mais simplesmente Annadīm Alwarrāq, morto em 390
H./990 d.C., e se encontra no Alfihrist [“Catálogo”], obra na qual, com muito
zelo, pretendeu compendiar todos os livros até então escritos em árabe. Consta
da oitava parte, oitavo artigo, cuja “primeira arte” [alfann alawwal] dá “notícias
dos musāmirūn [‘pessoas dadas a tertúlias noturnas’] e dos muḫarrifūn [nesse
caso, ‘pessoas que contam fábulas’], bem como dos livros compostos sobre
asmār [‘histórias que se contam à noite’] e ḫurāfāt [‘fábulas’]”:
“Quem primeiro produziu fábulas, e as pôs em livros, e guardou [tais livros]
em bibliotecas, e compôs uma parte disso na linguagem de animais, foram os
persas; a seguir, aprofundaram-se nisso os reis ašġānidas, terceira geração dos
reis persas. Depois, semelhantes fábulas se difundiram e ampliaram na época dos
reis sassânidas, e então os árabes as passaram para o seu idioma, e os eloquentes
e disertos poliram-nas e ornamentaram-nas, elaborando, no mesmo sentido,
fábulas equivalentes. O primeiro livro feito nesse sentido foi Hazār Afsān, que
significa mil fábulas. O motivo disso foi que um de seus reis [dos persas],
quando se casava com uma mulher e passava com ela uma noite, matava-a no
dia seguinte; então, casou-se com uma jovem [jārya] filha de rei, chamada
Šahrāzād, que tinha inteligência e discernimento; logo que ficou com ele, ela
começou a tuḫarrifuhu [‘entretê-lo contando fábulas’]: quando a noite findava,
ela interrompia a história, fato que levava o rei a preservá-la e a indagá-la na
noite seguinte sobre a continuação da história, até que se completaram mil
noites, e ele, nesse período, dormiu com a jovem, que então teve um filho dele,
mostrou-lhe a criança e o inteirou de sua artimanha; assim, o rei passou a
considerá-la inteligente, tomou-se de simpatia por ela [māla ilayhā] e lhe
preservou a vida. O rei tinha uma aia [qahramāna] chamada Dīnārzād, que a
apoiava em sua artimanha [ḥīla]. Diz-se que esse livro foi elaborado para
Ḥumāna, filha de Bahman, e também há notícias diferentes. E o correto, se Deus
quiser, é que o primeiro a passar a noite entretido em colóquios [asmār] foi
Alexandre [da Macedônia]: ele tinha um grupo que o divertia e o entretinha
contando histórias, com as quais ele buscava não o prazer, mas sim a proteção e
a vigília. Depois dele, os reis utilizaram com essa finalidade o livro Hazār Afsān,
composto de mil noites e menos de duzentas histórias, porque uma única história
às vezes era narrada em várias noites. Em diversas oportunidades vi esse livro
completo, e ele, na verdade, é um livro ruim, de narrativa frívola. Abū ᶜAbdillāh
Muḥammad Bin ᶜAbdūs Aljahšiyārī, autor do Livro dos vizires e dos escribas,
começou a escrever um livro para o qual escolhera mil dentre os asmār dos
árabes, dos persas, dos gregos e de outros; cada parte [desse livro] seria
independente, sem ligação uma com a outra. Ele reuniu os contadores de
histórias noturnas [musāmirūn] e deles recolheu o que de melhor e mais belo
conheciam; e escolheu, nos livros já elaborados, os asmār e as ḫurāfāt que lhe
agradaram. Era um homem de mérito, e reuniu quatrocentas e oitenta noites,
cada noite composta de uma história completa, [num livro] constituído de pouco
mais ou menos cinquenta folhas. A morte, porém, colheu-o antes que realizasse
o que seu espírito almejava, que era completar as mil noites. Isso eu vi em várias
partes, com a letra de Abū Aṭṭayyib, irmão de Aššāfiᶜī. Antes disso, quem
compunha asmār e ḫurāfāt na linguagem de seres humanos, aves e quadrúpedes
era um grupo de pessoas entre as quais se contavam ᶜAbdullāh Ibn Almuqaffaᶜ,
Sahl Bin Hārūn Bin Rāhyūn e ᶜAlī Bin Dawūd, escriba de Zubayda,[12] e outros
cujas notícias e obras já demos no local apropriado deste livro. Existem
divergências quanto ao livro Kalīla e Dimna; diz-se que foi feito pelos indianos,
e a informação relativa a isso está no próprio livro; diz-se que foi feito pelos reis
ašġānidas e copiado pelos indianos; e diz-se que foi feito pelos persas e copiado
pelos indianos. E um grupo disse que quem o fez foi o sábio Buzurjumihr [vizir
do rei sassânida Kosroes], em várias partes, mas Deus sabe mais. Quanto ao
livro O sábio Sindabād, do qual há uma cópia longa e outra curta, também
ocorrem divergências iguais às do livro Kalīla e Dimna. Mas o mais provável e
próximo da verdade é que os indianos o tenham feito.”[13]
Ambos os textos, de Almasᶜūdī e de Annadīm, reportam um quadro geral que
não corresponde exatamente ao que se conhece hoje do Livro das mil e uma
noites. Em Almasᶜūdī, a menção é rarefeita, limitando-se a informar que tal livro
“dá a notícia do rei, do vizir, de sua filha e de sua serva, cujos nomes são Šīrazād
e Dīnāzād”, sem delinear como se davam as relações entre esses personagens.
[14] Introduzindo o Livro das mil e uma noites no conjunto das obras que
contêm ḫurāfāt, fábulas, Almasᶜūdī o mobiliza contra o que se pode chamar de
elaboração ficcional, ou, para ser mais preciso, contra os homens que a
utilizavam para se aproximar do poder, ou ainda, indo mais longe, contra o
próprio poder que legitima tais elaborações pelo simples fato de aceitá-las sem
maior discernimento e “aproximar” os responsáveis por elas. Como cronista e
historiador, isto é, letrado que organiza narrativas a respeito de eventos
pretéritos, Almasᶜūdī sabia muito bem – e aproveitava esse princípio em suas
obras, imitando outros historiadores por ele admirados, como Aṭṭabarī (morto em
310 H./923 d.C.) – que os relatos históricos são comumente constituídos de
versões, muitas vezes discrepantes entre si, transmitidas ao historiador por quem
participou do evento ou o presenciou, ou ainda ouviu sobre ele relatos de
terceiros. Um dos recursos dessa prática, fundamental na recolha dos relatos dos
ḥadīṯes do profeta Maomé, era o isnād, que consistia no encadeamento de
testemunhos que efetuam uma regressão temporal linear – “ouvi de fulano, que
ouviu de beltrano, que ouviu de sicrano, que ouviu de alano etc.”.
Eventualmente, os historiadores muçulmanos utilizam, além do princípio de
regressão temporal, o da dispersão geográfica, obedecendo a estrutura de
formulação semelhante: “ouvi de fulano, que esteve em tal lugar etc.”. Ao lado
disso, outro recurso, mais comum nas obras de adab [decoro], é a citação de
fonte escrita precedida da fórmula “li [ou fulano disse ter lido] em certo livro da
Pérsia [ou da Índia, ou da Grécia] etc.”. Esses procedimentos pressupõem
variedade e contradição, pois fazem conviver numa mesma obra, em geral
sucedendo-os da fórmula Allāhu aᶜlam [“Deus sabe mais”], diferentes relatos
sobre um único evento histórico. Assim, o decoro de gênero desse historiador
está menos na matéria narrada constante dos vários relatos a respeito de
determinado evento e mais em sua própria consistência e encadeamento,
conforme se comprova na introdução de sua obra: “O que me levou a elaborar
este meu livro, a respeito da história e das notícias do mundo, do que se passou
sob o abrigo [aknāf ] do tempo, das notícias e conduta de profetas e reis e das
nações e suas moradas, foi o desejo de imitar o proceder almejado pelos sábios e
perseguido pelos doutos, a fim de que [este livro] permaneça como uma
memória louvável no mundo, e um saber bem composto e arrumado”.[15] De
maneira diversa, as fábulas [ḫurāfāt] pertenciam a outro gênero, estando, por
conseguinte, submetidas a outro decoro, tal como se dá com “o livro de Farzah e
Sīmās e [...] o livro de Sindabād”.
A título de comparação, pense-se na história da construção de Alexandria no
texto de Almasᶜūdī: segundo ele, monstros marinhos destruíam à noite o que os
trabalhadores construíam durante o dia, o que obrigou Alexandre a descer ao
mar numa espécie de caixão com tampa de vidro, acompanhado de dois de seus
homens; foi então que ele constatou que se tratava de demônios com corpo
humano e cabeça de feras, munidos de machados, serrotes e bastões, “imitando
os artífices e trabalhadores” que construíam a cidade. Alexandre e seus
auxiliares fizeram desenhos dos tais demônios, retornaram à superfície e
mandaram construir estátuas semelhantes àqueles animais, colocando-as na
praia. Quando anoiteceu, os demônios vieram destruir as fundações da cidade,
mas toparam com as estátuas, assustaram-se e nunca mais voltaram. E
Alexandria pôde afinal ser construída.[16] Almasᶜūdī incorpora à sua obra essa
narrativa sobre a história de Alexandria sem lhe fazer restrição alguma, pois a
grandiosidade do feito narrado a introduz previamente no gênero histórico, ao
contrário das ḫurāfāt, fábulas, como o relato sobre a cidade de Iram flāt Alᶜimād
ou o livro O sábio Sindabād. Diferença de gênero que também,
hierarquicamente, é de estatuto: a história é superior à fábula.
Bem mais pormenorizado do que o de Almasᶜūdī, o resumo que Annadīm
oferece do “prólogo-moldura” do livro permite afirmar desde logo que, apesar
das analogias, o Hazār Afsān aludido pelo “Catálogo” tem pouco que ver com
o(s) livro(s) hoje conhecido(s) como Mil e uma noites. Podem-se fazer reparos,
entre outros, aos seguintes dados do enredo: ali, o rei não tem nome; Šahrāzād é
jārya de reis, e não filha de um vizir; Dīnārzād é aia do rei, e não irmã de
Šahrāzād; não se declina o motivo pelo qual o rei matava mulheres; não se faz
alusão ao irmão do rei nem ao nome deste último; não se cita em que
circunstâncias se deu o casamento entre o rei e a jovem. O mais importante,
entretanto, é que não se menciona nenhuma das histórias com as quais Šahrāzād
entretém o rei. E, do ponto de vista estritamente gramatical, a afirmação de que
os “eloquentes e disertos poliram tais histórias” não está de acordo com o que se
conhece do ramo sírio do livro, cuja redação transgride as regras do árabe
clássico e lança mão do dialetal, assunto sobre o qual se discorrerá adiante com
mais pormenores. Situando o Livro das mil e uma noites num capítulo dedicado
a contadores noturnos de histórias, o “Catálogo” acaba por esboçar, antes de
tudo, algumas características de um gênero disseminado na cultura da época e
tipificado por meio de categorias narrativas chamadas de ḫurāfāt, “fábulas”,
asmār, “narrativas noturnas”, e aḫbār, “crônicas”, “notícias” ou, conforme
propõe Nabia Abbott, “relatos quase históricos”. De maneira bem decorosa, Ibn
Annadīm vai defendendo os diferentes gêneros que aborda; para os asmār e as
ḫurāfāt, nada mais nobilitante que o apreço de Alexandre Magno.
O mesmo Annadīm refere uma proliferação de textos dessa natureza: “As
histórias noturnas e fábulas eram muito apreciadas e consideradas suculentas na
época dos califas abássidas, em especial na época de Almuqtadir [295 H./908
d.C. – 320 H./932 d.C]. Então os livreiros passaram a fazer obras e a mentir.
Entre os que praticavam tais artifícios estava um homem conhecido como Bin
Dallān e chamado Aḥmad Bin Muḥammad Bin Dallān, e um outro conhecido
como Ibn Alᶜaṭṭār, e um grupo”.[17] Entretanto, malgrado essa irrecorrível
disseminação, sucedia por vezes que algum letrado reproduzisse juízos
desdenhosos sobre esse gênero de narrativa, como no seguinte passo em que o
historiador Abū Bakr Muḥammad Bin Yaḥyā Aṣṣūlī, morto em 335 H./946 d.C.,
explica o rancor que o califa Arrāḍī (297 H./910 d.C.–329 H./940 d.C.) nutria
pela avó:
“Lembro-me de que certo dia, quando ainda era governador, ele [Arrāḍī]
recitava para mim um trecho de poesia de Baššār [Ibn Burd, poeta do século ii
H./viii d.C.], tendo diante de si livros de gramática e de crônicas, quando
chegaram alguns funcionários da senhora sua avó e levaram todos os livros que
se encontravam diante dele, colocando-os numa trouxa que traziam consigo; não
nos dirigiram palavra alguma e saíram. Notando que ele ficara soturno e irritado
com aquilo, deixei-o em paz e lhe disse: ‘O príncipe não os deve condenar, pois
alguém lhes disse que o príncipe lê livros que não devem ser lidos, e eles
resolveram então examiná-los. Isso me deixou feliz, pois eles verão somente
coisas belas e agradáveis’. Passaram-se algumas horas e eles devolveram todos
os livros. Arrāḍī disse então aos funcionários: ‘Digam a quem lhes deu tal ordem
que vocês já examinaram os livros, e que eles são de ḥadīṯ [nesse caso, ‘diálogos
do Profeta’], fiqh [jurisprudência], poesia, gramática e história; são livros de
sábios, pessoas a quem Deus concedeu a perfeição e o benefício por terem lido
livros semelhantes; não se trata da mesma categoria de livros [em cuja leitura]
vocês abundam, como é o caso do [livro das] maravilhas do mar, [do livro da]
história de Šandiyār[18] e [do livro do] gato e do rato’.”[19]
Note-se que a passagem pressupõe a superioridade de diversos gêneros sobre
a ḫurāfa, imprópria para quem pretenda estar habilitado ao exercício do poder.
Tal pressuposto, porém, é fruto da própria hierarquização, que a coloca num
nível inferior, não consistindo em uma negação pura e simples. O exercício do
poder afirmava o uso do intelecto – que para tanto deve ser exercitado por meio
de obras adequadas, tais como as de ḥadīṯ profético, jurisprudência, poesia,
gramática e história – e advogava, conforme os tratados da época sobre o decoro
dos reis, não o desprezo dos sentidos, mas seu controle, que o contínuo
comprazimento em fábulas poderia afetar.
O traço distintivo da primeira elaboração das Mil [e uma] noites estaria, de um
lado, na predominância de uma narradora feminina por todo o livro, e, de outro,
na encenação do ato narrativo no período noturno, em uma espécie de emulação
das próprias categorias narrativas que a constituíam, os asmār, que são, como se
viu, histórias para se contar à noite.[20] Isso se aliava à ironia de serem contadas
a um rei, o qual, segundo formulações como a de Aṣṣūlī, não deveria, a priori,
dedicar-se a elas enquanto detentor do poder, a menos, caso se lembre a vigília
de Alexandre, que a audição não se constituísse em uma finalidade sem
utilidade, vertigem secreta do gozo.
No mais, essa primeira elaboração devia apresentar semelhanças acentuadas
com outras narrativas classificadas no mesmo gênero: um quadro inicial, ou
prólogo-moldura, em que se conta a “história das histórias”, ou seja, os motivos
por que as conversações nele contidas foram entabuladas ou compostas, como é
notório no livro O sábio Sindabād, cujo prólogo-moldura relata os motivos em
virtude dos quais sete vizires se revezam para contar histórias a um rei, a fim de
dissuadi-lo de matar injustamente seu filho único, entremeadas pelas histórias da
mulher do rei, que pretende, ao contrário, induzi-lo a matar o filho, e mesmo no
livro Kalīla e Dimna, cujas sucessivas redações em árabe foram, de modo
aparentemente paulatino, introduzindo explicações sobre as origens do livro, até
que enfim se produziu um tardio prólogo-moldura no qual se historiam os
motivos que levaram o personagem-narrador, “o filósofo Baydabā”, à elaboração
do livro. Esses personagens, propostos quer como autores, quer como
narradores, são sempre, por sua vez, objeto da narração de uma voz impessoal
que os instaura enquanto tais, não apenas no prólogo-moldura, mas também
imediatamente antes de suas próprias narrativas: é a voz que lhes dá voz dizendo
“disse o primeiro (ou o segundo, ou o terceiro etc.) vizir”, em Sindabād, “disse o
filósofo Baydabā”, em Kalīla e Dimna, “disse Šahrāzād”, no Livro das mil e uma
noites.
Tanto O sábio Sindabād como Kalīla e Dimna decerto também tinham em
comum com essa primeira elaboração das Mil [e uma] noites o uso do que em
árabe se chama maṯal, vocábulo traduzível como “paradigma” ou, ainda,
“história-exemplar”. A trajetória do vocábulo maṯal na cultura árabe é complexa:
primeiramente, equivalia a “provérbio”, em geral uma sentença curta e incisiva.
Já no livro Kalīla e Dimna verifica-se uma duplicidade de uso: a palavra serve
seja para designar as sentenças curtas, que funcionam simultaneamente como
argumento, seja para as narrativas ou fábulas propriamente ditas, que expandem
o argumento e o ilustram, conforme observa Bin Wahb Alkātib, autor do século
v H./xi d.C.: “Quanto aos paradigmas [amṯāl, plural de maṯal ] e às histórias
[qiṣaṣ], os eruditos, os sábios e os letrados continuam a aplicá-los e a demonstrar
para as pessoas a reviravolta das condições [inqilāb alaḥwāl] por meio de
comparações [naẓā’ir], similitudes [ašbāh] e imagens [aškāl], pois consideram
que essa modalidade de discurso [qawl] proporciona mais sucesso na busca do
objetivo e é um método mais fácil [...]. Os sábios assim procederam porque a
notícia [ou ‘crônica’, ḫabar], por si só, mesmo que seja possível, necessita de
algo que indique a sua correção; o paradigma acompanha o [ou ‘está associado
ao’] argumento [almaṯal maqrūn bilḥijja], e é por isso que os antigos registraram
a maior parte de seus decoros e escreveram seus saberes em paradigmas e
histórias sobre as diversas nações, e colocaram uma parte disso na linguagem de
aves e feras”.[21] Nessa perspectiva, os amṯāl funcionam como alegoria que
aloja o saber, depositando-o na linguagem de animais e oferecendo-o à
interpretação dos doutos e ao deleite dos néscios. No entanto, conforme observa
a crítica egípcia Olfat al-Rouby, seu sentido se expandiu, passando a abranger a
narrativa moralizante, a história e a fábula [ḫurāfa] com objetivo didático.[22] A
história exemplar utiliza comumente o maṯal em todas essas acepções, embora
com ele não se confunda, devendo antes ser considerada uma das funções que
lhe foram atribuídas.
Podem ser consideradas “histórias exemplares” as que, baseando-se num
sistema de metáforas e analogias que mantêm uma relação de espelho com seu
contexto de enunciação, têm a função de mover alguém a praticar determinada
ação ou então demovê-lo de praticá-la. As histórias exemplares são um discurso
de autoridade e pretendem provar que a inobservância de suas proposições
resulta em prejuízo: “se você agir assim, ou se você não agir assim, irá suceder-
lhe o mesmo que sucedeu a x”. Eram largamente aplicadas (iḍrib lī maṯalan,
“aplique-me um paradigma”, é uma das tópicas que as introduz) não somente na
cultura árabe-muçulmana, mas em toda a cultura antiga e medieval, conforme o
atesta a difusão universal de Kalīla e Dimna e Sindabād. A existência e a
valorização da história exemplar pressupõe, como parece óbvio, um mundo em
que a experiência é pensada como algo que se comunica e cuja possibilidade de
transmissão é dada pela repetição: são estruturas semelhantes que se reproduzem
incessantemente, sem que no entanto possam ser reduzidas, em seu
funcionamento no interior de determinado quadro narrativo mais amplo, a um
processo previsível e automático, visto que a própria dinâmica interna da
narrativa determina o resultado das sucessivas histórias exemplares que se vão
sucedendo. Assim, por exemplo, no livro O sábio Sindabād as histórias
exemplares dos vizires sempre atingem a sua meta, ao passo que as da mulher do
rei sempre fracassam, pois a finalidade precípua das primeiras, ao contrário das
segundas, é salvar a vida do personagem que justifica a sua existência; já em
Kalīla e Dimna, de modo diverso, as histórias exemplares podem ou não atingir
a sua meta sem que exista uma predeterminação formal, embora, quando não a
atingem, sempre provoquem réplicas e contestações, que afinal consistem num
claro índice de valorização.
As ḫurāfāt, fábulas, e asmār, histórias para se contar à noite – que circularam
entre árabes e muçulmanos, e entre as quais se incluíam as constantes do Hazār
Afsān persa e mais tarde da primitiva elaboração do Livro das mil [e uma] noites
–, certamente obedecem a uma dupla função, que as fez oscilar na avaliação dos
letrados: de um lado, são “fábulas” que entretêm, sobretudo com sentido
ornamental; de outro, podem também ser histórias exemplares e paradigmas que
transmitem experiência acumulada e, consequentemente, saber, o que as subtrai
ao desprezo. Isso fica visível na obra Alimtāᶜ wa Almu’ānasa [Deleitamento e
afabilidade], escrita em 374 H./984 d.C. pelo letrado bagdali Abū Ḥayyān
Attawḥīdī, cujo critério de apropriação mobiliza a terminologia filosófica para
conceituar tais narrativas:
“Quando lhe perguntaram: ‘Você se aborrece com histórias?’, Ḫālid Bin
Ṣafwān respondeu: ‘O que aborrece são as velharias,[23] pois as histórias são
amadas pelos sentidos com o auxílio do intelecto, e é por isso que os meninos e
as mulheres as apreciam’. Perguntou-se: ‘E qual auxílio esses [os meninos e as
mulheres] podem receber do intelecto, se são dele desprovidos?’. Respondeu:
‘Existe um intelecto em potência e um intelecto em ato; eles possuem um deles,
que é o intelecto em potência; existe ainda, já pronto [muzmiᶜ], um intelecto
intermediário entre a potência e o ato, o qual, quando se manifesta, passa a ser
em ato; caso esse intelecto permaneça, alcançará os horizontes. Por causa da
imensa necessidade que se tem de tais histórias, nelas foram postas coisas falsas,
misturadas a absurdos e relacionadas ao que agrada e causa o riso, mas não
provoca questionamentos nem investigações, a exemplo do livro Hazār Afsāna e
todas as espécies de ḫurāfāt [fábulas] que entraram em livros dessa espécie; os
sentidos, imediatos, são sedentos de incidentes [ḥādiṯ], novidades [muḥdaṯ] e
histórias [ḥadīṯ], e buscam o que é curioso”.[24]
Assim, em linha aristotélica,[25] a passagem tem como implícito que tais
histórias, feitas para deleitar os sentidos em especial, podem igualmente
beneficiar o intelecto. É possível arriscar a hipótese de que essa concepção toma
as ocorrências relatadas nas fábulas como particularidade ligada aos sentidos,
enquanto as sentenças ali contidas, essas sim universais, são ligadas ao intelecto,
donde a eventual utilidade da mistura, já que é impossível subtrair-se às
injunções e exigências dos sentidos, dada a “imensa necessidade que se tem de
tais histórias”. É sem dúvida dessa inevitabilidade que derivam os contínuos
esforços dos letrados para produzir obras que agrupem histórias e sejam
proveitosas. Esse fenômeno, bastante disseminado no período, acabou
conduzindo a outros modos de apropriação, tal como o verificado na supracitada
obra de Abū Ḥayān Attawḥīdī, que retoma o gênero exemplificado por Hazār
Afsān tal como o descrevem Almasᶜūdī e Annadīm. O livro Alimtāᶜ wa
Almu’ānasa [Deleitamento e afabilidade] está dividido em noites e possui uma
introdução (prólogo-moldura) curiosa, na qual o autor relata que, tendo sido
apresentado por um amigo a um vizir, frequentou as assembleias noturnas deste
último por quarenta noites, findas as quais, a instâncias desse mesmo amigo,
Abū Ḥayān Attawḥīdī teria então redigido a obra; assim, após a introdução,
segue-se o “registro” das palestras travadas durante aquele período entre ele,
outros convivas letrados e o vizir, que chegou a lhe propor um emprego melhor.
Essas quarenta noites, aliás, servem como princípio de divisão formal do texto,
tal como ocorre no Livro das mil e uma noites.
A elaboração do Livro das mil e uma noites na época do Estado mameluco,
forma mais antiga que chegou inteira aos dias de hoje, é também resultado de
um processo de fusão de gêneros. Além das ḫurāfāt e dos asmār propriamente
ditos, motivados na estrutura peculiar antes descrita, que encena o ato narrativo
de histórias noturnas no período noturno mesmo, o texto adapta narrativas do
gênero histórico, como é o caso da história do barbeiro, e de outro gênero, o
faraj baᶜda aššidda, “libertação depois da dificuldade”, cujas características são
resumidas pelo nome. Pertenciam a ele histórias como as dos irmãos do barbeiro
ou do jovem de Bagdá e a criada da senhora Zubayda. Composto entre a segunda
metade do século viii H./xiii d.C. e a primeira do século viii H./xiv d.C., o Livro
das mil e uma noites é contemporâneo de acontecimentos que os historiadores
julgam devastadores para o mundo árabe e islâmico, autênticas “lições para
quem reflete”, conforme uma tópica célebre em narrativas moralizantes da
época: as invasões mongólicas, que culminaram, em 656 H./1258 d.C., na
destruição de Bagdá e na extinção do califado abássida.[26] A estrita
contemporaneidade de ambos os eventos, irrupção dos mongóis e elaboração do
Livro das mil e uma noites, é realçada pela tópica da destruição por invasão:
“Por Deus que sairei sem rumo pelo mundo, nem que eu vá parar em Bagdá”,
diz um personagem na septuagésima segunda noite, e então recebe o seguinte
conselho: “Não faça isso, meu filho. O país está em ruínas, e eu temo por sua
vida”. Não se trata aqui, como é óbvio, de “realismo” ou algo que o valha, mas
tão somente de uma tópica, cujo laconismo programático tem grande eloquência,
pois permite datar com segurança o texto como posterior a 655 H./1258 d.C.
Como o manuscrito mais antigo do ramo sírio, mais bem preservado do que o
egípcio, é do século viii H./xiv d.C., é fácil constatar que a obra é
contemporânea dos primórdios da invasão mongol, cujo efeito imediato, além da
destruição, foi o desmonte das estruturas do Estado abássida.
As narrativas da elaboração mameluca do Livro das mil e uma noites
pertencem ao gênero da ḫurāfa, fábula, mas operam uma modificação em seu
funcionamento tradicional. Encenam a circunstância de sua produção e
enunciação na periferia de um império poderoso, cujo iminente colapso é
alegorizado pelo adultério das rainhas e o subsequente extermínio das mulheres
do reino por ordem do rei ensandecido.[27] Introduzem uma narradora feminina
caracterizada por seus atributos espirituais, e não físicos. Šahrāzād é descrita
apenas pelo intelecto: “[...] tinha lido livros de compilações, de sabedoria e de
medicina; decorara poesias e consultara as crônicas históricas; conhecia tanto os
dizeres de toda gente como as palavras dos sábios e dos reis; conhecedora das
coisas, inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e entendido”. É tal personagem
que irá se encarregar de devolver o rei à sensatez e boa senda. Súmula de
saberes, suas leituras abarcam vários gêneros, menos aquele do qual lançará
mão, o da ḫurāfa, fábula, ao qual Šahrāzād adapta os outros. Adaptando-os,
opera como que uma inversão hierárquica, ou ao menos deslocamento, à
proporção que subordina os demais gêneros à fábula.[28] Obedecendo a um
plano preestabelecido que também opera deslocamentos na escala hierárquica do
funcionamento da fábula, o Livro das mil e uma noites prioriza a narrativa
aparentemente despojada de valor didático-moralizante e evidencia, por meio de
Šahrāzād e de sua fala, um menosprezo também aparente pela história exemplar
e pelo paradigma. Quando seu pai, o vizir, lhe conta duas histórias exemplares,
uma atrás da outra, a fim de demovê-la de seu projeto de casar-se com o rei,
Šahrāzād lhe responde, primeiro com indiferença: “É absolutamente imperioso
que eu vá até esse sultão e que você me dê em casamento a ele”; e depois
ameaçadora: “Por Deus que não voltarei atrás. Essas histórias que você contou
não me farão hesitar quanto à minha intenção. E, se eu quisesse, poderia contar
muitas histórias semelhantes a essas. Mas, em resumo, tenho a dizer o seguinte:
se você não me conduzir ao rei Šāhriyār de livre e espontânea vontade, eu
entrarei no palácio escondida das suas vistas e direi ao rei que você não permitiu
que alguém como eu se casasse com ele, mostrando-se avaro com seu mestre”.
Šahrāzād não apresenta réplica alguma às histórias do pai, num procedimento
suspensivo ou deceptivo que será reproduzido por seus personagens,[29] com
exceção da “história do rei Yūnān e do médico Dūbān”, na qual a história
exemplar contada pelo vizir invejoso funciona. Contudo, a circunstância em que
isso ocorre é irônica, tanto pela história exemplar ali contada como pelo fato de
que ela provoca a morte de um inocente, conforme nota Muhsin Mahdi.
Nas fábulas que conta ao rei sassânida, Šahrāzād lança mão do suspense,
funde tempos distantes, transgredindo a mais elementar verossimilhança
histórica, faz mulheres ciumentas enfeitiçarem homens desprevenidos, enfileira
gênios malignos e ingênuos que refratam o destino implacável, produz rainhas-
bruxas e reis metamorfoseados fora do espaço temporal da civilização
muçulmana, para depois constituir uma Bagdá com a qual Šāhriyār jamais
poderia ter sonhado, fundada pelos adeptos de uma fé que foi o pesadelo e o fim
de sua dinastia. Mas em tudo quanto ela diz, em suma, já não se trata de mover
ou demover dizendo “faça (ou não faça) isso que lhe acontecerá x”, mas sim de
mover ou demover dizendo ou deixando subentendido: “faça (ou não faça) isso
se você gostar do que lhe direi”. Em ambos os casos há troca, mas no primeiro a
narrativa se propõe como algo a mais do que é, ao passo que no segundo ela se
propõe como narrativa pura e simples que se oferece a juízos arbitrários e
caprichos de opinião. Para usar uma comparação comercial, pertinente em um
texto repleto de mercadores, compra-se o tecido porque é belo, e não porque seja
bom material para fazer roupas. Trata-se, aliás, de procedimento que imita e
amplia o caso longínquo do personagem Ḫurāfa, reproduzido pelo próprio
Profeta.[30] Rechaçando a tópica da comunicação da experiência, o Livro das
mil e uma noites parece estar propondo uma outra tópica, derivada de uma
concepção diversa da história exemplar e das relações que esta pressupõe:
engenho que apodrece a constituição da experiência alheia como instrumento de
aprendizado. Uma de suas encenações mais recorrentes é salvar vidas, e para
tanto se narram fábulas recheadas de traição, perfídia, ciúme, crimes diversos,
injustiça etc., cujos personagens estão sempre com a vida por um fio, em geral
numa Bagdá figurada como antro de crueldade, de esperanças frustradas e
concupiscência, alegorias da ruína de um devir que ontem mesmo foi frustrado.
Centro importador e exportador de seres, mercadorias e narrativas, suas
mulheres já não praticam a feitiçaria, que se dá em tempos e espaços exteriores a
ele, mas traem, provocam desejo, matam, exploram, são retalhadas em postas
que o rio Tigre recebe, sangram até a morte em relações de ciúme doentio, se
oferecem cheirosas e ofegantes em encontros furtivos e se prostituem como isca
ativa em arapucas do crime, enquanto seus homens desejam, cobiçam e se
deixam mutilar, incessantes como o movimento de seus mercados: mercadorias
se compram, se vendem e se roubam na medida em que homens e mulheres
explodem na impaciência do gozo iminente: “Rápido, um beijo, minha
senhora!”; “Você já vai alcançar seu intento”; “Que tal possuir uma mulher de
face formosa?”. Elogio da fábula, agenciamento de prazeres e desditas,
proliferação de narradores (“Šahrāzād disse que y disse que z disse que x
disse...”), o texto mileumanoitesco geme mais e melhor do que quaisquer
amantes ou moribundos jamais o fariam.
O que deve ficar claro, desde já, é que o Livro das mil e uma noites não é
literatura “oral”, ao menos não na medida em que oralidade é vulgarmente
pensada como atributo de espontaneidade ou alegre caos impensado, mas em
todo caso profundo porque proveniente de uma seiva popular etc. etc.[31] Trata-
se de um trabalho letrado cujo percurso foi da elaboração escrita à apropriação
pela esfera da oralidade, e não o contrário. Ou seja: não são lendas ou fábulas
orais que alguém um dia resolveu compilar, mas sim histórias elaboradas por
alguém, por escrito, a partir de fontes diversas (das quais algumas por acaso
poderiam ser orais, embora não exista nenhuma evidência disso) que foram
sofrendo, de maneira crescente, a apropriação dos narradores de rua, os quais
encontraram nelas um excelente material de trabalho.[32] A performance dos
narradores de histórias decerto não se limitava à narração mecânica: eles
cantavam os versos, afinavam a voz quando reproduziam a fala de personagens
femininas, imitavam dialetos e encenavam; pode-se mesmo imaginá-los
atirando-se ao chão e revirando-se, por exemplo, quando descreviam cenas
sexuais ou lutas.
Conforme se afirmou acima, essa reelaboração mameluca do Livro das mil e
uma noites é dividida em dois ramos, o sírio e o egípcio antigo. Por algum
motivo do qual os registros históricos não guardaram memória, o ramo sírio
preserva melhor as características do que Muhsin Mahdi chama de arquétipo
[dustūr] do livro. Desse ramo existem quatro manuscritos, dos quais o melhor e
mais antigo, remontando ao século viii H./xiv d.C., é o “Arabe 3609-3611”, em
três volumes, da Biblioteca Nacional de Paris. Pertenceu a Jean-Antoine
Galland, primeiro tradutor – e na opinião de alguns o pior – do Livro das mil e
uma noites. Os outros três manuscritos são o “Arabo 872”, da Biblioteca
Apostólica Vaticana (século ix H./xv d.C.), o “Arabic 647”, da John Rylands
Library, em Manchester (século xviii d.C.), e o “Arabic 6299”, do India Office
Library (século xix d.C.), em Londres. Com exceção do último, que foi
transcrito do anterior, os outros três não guardam nenhuma relação genealógica
entre si. Todos contêm duzentas e oitenta e duas noites e se encerram
abruptamente no mesmo ponto, passadas onze noites da “História do rei
Qamaruzzamān e seus filhos Amjad e Asᶜad”. Como não se trata de coincidência
fortuita, é possível falar de uma interrupção da elaboração por motivos
ignorados. Os manuscritos do ramo egípcio antigo não ajudam a esclarecer a
questão, pois suas cópias são tardias (a mais antiga é do século xvii) e
visivelmente remanejaram o texto primitivo. Sem contar o prólogo-moldura em
que se apresentam Šāhriyār, Šāhzamān, Šahrāzād e Dīnārzād, o ramo sírio
contém dez histórias principais: “O mercador e o gênio”, “O pescador e o
gênio”, “O carregador e as três moças de Bagdá”, “As três maçãs”, “Os vizires
Nūruddīn ᶜAlī, do Cairo, e Badruddīn Ḥasan, de Barsa”, “O corcunda do rei da
China”, “Nūruddīn Bin Bakkār e a serva Šamsunnahār”, “A serva Anīsuljalīs e
Nūruddīn Bin Ḫāqān”, “Jullanār, a marítima, e seu filho, o rei Badr”, e “O rei
Qamaruzzamān e seus filhos Amjad e Asᶜad”, sendo que esta última, como já foi
dito, se encontra interrompida logo em seu início. A linguagem em que o
manuscrito está redigido, sem ser estritamente dialetal, está repleta de
dialetalismos. Para Muhsin Mahdi, trata-se de uma fusão entre o clássico e o
dialeto urbano da Síria, e seria um correlato de subgêneros poéticos como o
zajal, no qual, conforme seus proponentes, o acerto (gramatical) é erro, e o erro,
acerto.[33]
Foi somente no que se chama de ramo egípcio tardio, elaborado na segunda
metade do século xii H./xviii d.C., que o título do Livro das mil e uma noites
passou a equivaler, de fato, ao número de noites que continha. Nesse período,
não só as histórias introduzidas para completar o livro muitas vezes
apresentavam características distintas de seu núcleo original, como mesmo este
último teve suas características formais e de conteúdo modificadas: as histórias
mais antigas foram resumidas e agrupadas em um número bem menor de noites.
O corpus do ramo egípcio tardio seria, de acordo com avaliação de especialistas,
fruto da iniciativa isolada de um copista do Cairo, que teria reunido materiais
dispersos conforme critérios próprios e dado à obra o seu conhecido remate.
Estes são assuntos que serão tratados a seu tempo.
São cinco as principais edições árabes do Livro das mil e uma noites:
a) Primeira edição de Calcutá:
Dada à estampa em dois volumes, publicados, respectivamente, em 1814 e 1818;
baseia-se no já citado manuscrito Arabic 6299, do India Office Library, em
Londres. Trata-se de uma edição de escasso valor crítico-filológico, uma vez que
o manuscrito no qual se baseou – e o qual, durante o processo de impressão,
adulterou – ainda pode ser consultado. Foi objeto de curiosas apropriações,
nitidamente associadas ao imperialismo britânico; na introdução, escrita em
persa, o editor Aḥmad Bin Maḥmūd Širwānī Alyamānī, professor de árabe na
Faculdade de Fort William, recomendava o livro a quem quisesse aprender a
falar como os árabes:
“Não é segredo que o autor das Mil e uma noites é um indivíduo de língua
árabe da Síria. Seu objetivo, com a elaboração deste livro, foi que o lesse quem
pretenda conversar em árabe: com tal leitura, ele ganhará grande fluência ao
conversar nesse idioma. Por isso, foi escrito com vocabulário simples, que é
como os árabes conversam, utilizando-se ainda, em alguns pontos, expressões
incorretas, conforme a fala árabe coloquial. Assim, aquele que o folhear, e
encontrar expressões incorretas, não deve imaginar que isso se deva à desatenção
do responsável; tais incorreções foram ali registradas de propósito, pois foi isso
mesmo que o autor pretendeu.”[34]
Raríssima, essa edição somente pode ser consultada em (poucas) bibliotecas.
Seu mérito, único, é o da primazia.
b) Edição de Breslau:
Publicada nessa cidade alemã entre 1825 e 1843, em doze volumes, os oito
primeiros por Maximilian Habicht e os quatro últimos por Heinrich Fleischer, a
edição de Breslau apresenta a peculiaridade de ser a primeira “completa”, isto é,
composta de mil e uma noites. Originariamente foi uma fraude, pois seu
primeiro e principal responsável, Maximilian Habicht, alegou estar reproduzindo
um “manuscrito tunisiano”, que na realidade jamais existiu. Por outro lado,
apresenta variantes que, conquanto não tenham maior valor filológico, são de
grande interesse para a determinação dos acréscimos e das modificações
realizadas por Jean-Antoine Galland em sua tradução do início do século xviii.
Outro ponto de interesse, negligenciado pelos orientalistas, é sua contribuição
para a publicação de muitos contos árabes que, do contrário, estariam até hoje
confinados em manuscrito. E, enfim, nunca é demais observar que ela
incorporou parte do corpus de manuscritos “falsificados” do Livro das mil e uma
noites, como é o caso, por exemplo, do chamado “manuscrito de Bagdá”, forjado
em finais do século xviii ou no início do século xix. Foi republicada em fac-
símile no Cairo em 1998.
c) Edição de Būlāq:
Trata-se da primeira edição baseada em um único manuscrito do ramo egípcio
tardio – ainda que falho. Foi publicada em 1835, no Cairo, em dois volumes,
pela gráfica instalada por Muḥammad ᶜAlī no bairro de Būlāq. Embora seja uma
edição muito importante, deve-se levar em conta dois fatos: o manuscrito no
qual se baseou, hoje perdido, apresentava numerosos defeitos, e, não bastasse
isso, a edição em si mesma é defeituosa, por falhas do revisor, que não atentou
para a supressão de diversas páginas durante o processo de impressão. Por isso, é
sempre conveniente lê-la com apoio em algum manuscrito desse ramo: é a única
maneira de saber o que é falha de edição e o que é problema nos originais
utilizados. Por exemplo: o final da história do médico Dūbān, nessa edição,
apresenta problemas de concatenação lógica que não constam nem do ramo sírio
nem do ramo egípcio antigo. Pareceria, à primeira vista, uma falha de revisão,
mas a consulta aos manuscritos evidencia que tal defeito remonta aos próprios
originais, e que, portanto, na raiz desse ramo está um único autor ou compilador,
ou, no limite, um único manuscrito compilado. Foi republicada em fac-símile em
Beirute em 1997. Apesar de todos esses senões, é importantíssima para o estudo
das transformações operadas pelo ramo egípcio tardio no Livro das mil e uma
noites.
d) Segunda edição de Calcutá:
Frise-se que esta edição nada tem que ver com a primeira, excetuando-se a
coincidência quanto à cidade em que foi impressa. Composta de quatro volumes
publicados entre 1839 e 1842 por William Ḥ. Macnaghten, foi muito utilizada
por críticos e tradutores do livro. Trata-se de uma edição curiosa, de pouco valor
filológico, que procurou incorporar ao livro tudo quanto caía diante dos olhos
dos responsáveis – um administrador inglês e sua equipe de indianos
muçulmanos. Sua base, como a da edição de Būlāq, é um manuscrito do ramo
egípcio tardio. Está corrigida em vários pontos e chegou a ser utilizada para
cotejo na segunda edição de Būlāq, publicada em 1872. Foi republicada em fac-
símile no Cairo entre 1996 e 1997, em oito volumes. Na presente tradução, toda
remissão à “edição de Calcutá” refere-se a essa segunda edição, salvo indicação
expressa em contrário.
e) Edição de Leiden:
Publicada em 1984, em dois volumes (o primeiro com o corpus e o segundo com
o aparato crítico), é, na verdade, uma edição crítica do ramo sírio. O responsável
por essa edição, o crítico e filólogo Muhsin Mahdi, solucionou diversos
problemas textuais intrincados; pelo rigor, sua edição é de referência obrigatória
para qualquer estudioso do assunto. Mahdi utilizou como base o manuscrito mais
antigo dessa obra, que pertenceu a Galland, e se serviu, para cotejo, dos
supracitados manuscritos do ramo sírio e dos infracitados do ramo egípcio
antigo, bem como da edição de Būlāq. A edição de Mahdi evidencia, por
exemplo, a importância dos níveis de linguagem para a verossimilhança da
narrativa, como a imitação, por exemplo, da fala de personagens baixas.
Fontes para a presente tradução
Fundamentalmente, esta tradução foi realizada a partir do conjunto de três
volumes do manuscrito “Arabe 3609-3611” da Biblioteca Nacional de Paris. Na
avaliação de Muhsin Mahdi, ele foi copiado no mínimo um século antes da mais
antiga datação nele constante, que é de 859 H./1455 d.C. Como sua leitura é
bastante dificultosa em vários trechos, devido a dialetalismos hoje obscuros,
lacunas, erros de cópia e deterioração, o tradutor consultou as edições de
Breslau, Leiden, Būlāq e a segunda de Calcutá, além de duas edições recentes de
Beirute (1981, 4 vol.; e 1999, 2 vol.). Registre-se que, nas notas, a menção
genérica a “edições impressas” não inclui a primeira de Calcutá nem a de
Breslau, a não ser que haja referência expressa em contrário. Para suprimir
lacunas do original e apontar variantes de interesse para a história das
modificações operadas no livro, utilizaram-se os seguintes manuscritos do ramo
egípcio antigo: 1) “Arabe 3615”, da Biblioteca Nacional de Paris, de finais do
século xvii ou inícios do xviii; 2) “Gayangos 49”, da Real Academia de la
Historia, em Madri, do final do xviii ou início do xix; 3) “Bodl. Or. 550”, da
Bodleian Library, de Oxford, datado de 1177 H./1764 d.C.; 4) “Arabe 3612”, da
Biblioteca Nacional de Paris, do século xvii, que pertenceu a Benoît de Maillet
(1636-1738), cônsul-geral da França no Egito entre 1692 e 1702. Todas as
intervenções de relevo operadas sobre o texto do manuscrito principal foram
apontadas nas notas, que também serviram para expor ao leitor o quão
problemática, neste caso, é a ideia de texto pronto e acabado. As notas explicam
ainda aspectos linguísticos e históricos de cuja leitura ficam dispensados os
leitores que não se interessam por tais assuntos. Houve-se por bem manter o
único dispositivo do texto para sua divisão formal e “arejamento”, que é a
própria sucessão das noites. Entretanto, como não se trata de uma “tradução fac-
similar”, considerou-se pertinente, tal como fizeram alguns proprietários de
manuscritos do Livro das mil e uma noites, apontar os locais em que se inicia
cada história ou sub-história.
Bosque de inquietantes sombras, a tradução da poesia merece ao menos uma
observação – banal porém curta: ela dificilmente conseguiu estar à altura do
original, não só pelas dificuldades inerentes à tarefa como também pelos
problemas específicos até hoje não resolvidos de legibilidade colocados por
muitas das poesias nas Mil e uma noites. Falando concisamente, a poesia árabe
antiga, com poucas exceções, possui métrica rigorosa (ainda que, muita vez por
adotar algum gênero “popular” ou então por problemas de cópia, tal métrica não
se verifique em diversas poesias), é monorrima e em geral apresenta versos de
dois hemistíquios grafados na mesma linha com um espaço entre ambos. Para
resumir: esta tradução, além de abrir mão da métrica, sempre, e da rima na
maioria das ocasiões, optou por trazer os hemistíquios separados por linha.
A presente tradução do Livro das mil e uma noites, a primeira em português
feita diretamente sobre os originais árabes, está projetada em cinco volumes: os
dois primeiros conterão o ramo sírio, o restante da “História do rei
Qamaruzzamān e seus filhos Amjad e Asᶜad” e anexos com a tradução de
algumas fontes e histórias que parecem ter constado do ramo egípcio antigo. Já
os três últimos conterão as histórias que fazem parte apenas do ramo egípcio
tardio.
Foi inestimável o auxílio prestado por diversos calepinos, sem os quais o
trabalho, obviamente, nem sequer poderia ser feito. Destarte, citem-se os
seguintes: Lisān alᶜarab, de Ibn Manẓūr (Qum, 1984, reimpressão de Beirute,
1955); Muḥīṭ almuḥīṭ , de Buṭrus Albustānī (Beirute, 1985); Supplément aux
dictionnaires arabes, de R. Dozy (Beirute, 1991, reimpressão de Leiden, 1881);
Diccionario árabe-español, de F. Corriente (Madri, 1977); e Almunjid, de L.
Maᶜlūf (Beirute, 1982). Em português, o socorro veio, entre outros, do
Dicionário Houaiss da língua portuguesa, de A. Houaiss (Rio de Janeiro, 2002),
do Dicionário da língua portuguesa, de A. de Morais Silva (Lisboa, 6a. ed.,
1858) e do Dicionário analógico da língua portuguesa, de F. dos Santos
Azevedo (Brasília, 1983), além dos dicionários de regência verbal e nominal de
F. Fernandes e C. P. Luft.
A transliteração do árabe
Durante o processo de produção do livro, tradutor e editora se viram diante de
um pequeno dilema: como transcrever os nomes árabes? Simplificar a
transcrição facilitaria as coisas para o leitor ou seria um desrespeito a ele? Sabe-
se que o idioma árabe possui sons que não existem em português nem em
qualquer outro idioma indo-europeu, como a faríngea sonora ᶜayn, som
tipicamente semita. Se não existem, de que adianta utilizar um símbolo para
grafá-los? Faz diferença, para o leitor não especialista, ler ᶜAlī em vez de Ali? E
há o problema das demais convenções, como o som do ch em português; em
inglês, usa-se o sh. Já as vogais longas, embora inexistentes em português,
podem ser consideradas semelhantes às tônicas. O nome da narradora, como
grafá-lo? Chahrazad, Xahrazad, Shahrazad ou a forma correta, que é Šahrāzād?
Depois de alguma hesitação, estabeleceu-se que seria melhor evitar soluções
precárias e adotar a convenção internacional, que, além de evitar os dígrafos, é
bastante útil e operacional. Abaixo, as descrições:
As vogais longas
se transcreveram ā, ū, ī. Podem ser pronunciadas
1 como se fossem vogais tônicas;
A gutural laríngea (hamza) se transcreveu com um apóstrofo fechado (’).
2 Não foi marcada quando em início de palavra;
A “a breve” final (alif maqṣūra), se transcreveu à;
3
Os chamados “sons enfáticos” do árabe, , se transcreveram ṣ,
4
ḍ, ṭ, ẓ. Sua pronúncia é semelhante a s, d, t, z, porém com maior ênfase;
A faríngea aspirada se transcreveu ḥ. Não há equivalente para esse som
5 em português;

6 A velar surda se transcreveu ḫ. Seu som é semelhante ao do j espanhol ou
do ch alemão;

7 A velar sonora se transcreveu ġ. Seu som é semelhante ao do r parisiense
em “Paris”;
A interdental surda se transcreveu ṯ. Seu som é semelhante ao do th na
8 pronúncia inglesa em think;
A interdental sonora se transcreveu ḏ. Seu som é semelhante ao do th na
9 pronúncia inglesa em the;
A faríngea sonora se transcreveu ᶜ. Não tem som semelhante em nenhuma
10 língua ocidental;
A laríngea surda se transcreveu h, e se pronuncia sempre como o h do
11 inglês home;
A uvular surda se transcreveu q. Seu som é equivalente ao do k, porém
12 com maior explosão;
A palatal surda se transcreveu š. Seu som é equivalente ao do x ou ch do
13 português, como nas palavras xarope e chapéu;
A palatal sonora se transcreveu j, e seu som é semelhante ao do
14 português;
O s se pronuncia sempre como em sapo e massa, independentemente de sua
15 posição na palavra;
O artigo definido invariável do árabe, al, foi grafado junto à palavra que
16 determina, sem separação por hífen; e, quando a palavra determinada pelo
artigo começa com um fonema que assimila o l, optou-se por sua supressão,
como em assayf (em lugar de alsayf);
Para os nomes de cidades, utilizou-se a forma convencional em português
17 quando esta existe, como é o caso de Bagdá (em lugar de Baġdād), Basra
(em lugar de Albaṣra), Mossul (em lugar de Almawṣil), Damasco (em lugar
de Dimašq) etc. Caso contrário, adotou-se a transcrição fonética;
Desde que não contivessem Abū, “pai de”, ou Bin, “filho de”, os nomes
18 próprios que formam sintagma de regência mediado por artigo se
transcreveram aglutinados. Assim, grafou-se Šamsuddīn, “sol da fé”, em
lugar de Šams Addīn; Nūruddīn, “luz da fé”, em lugar de Nūr Addīn;
ᶜAbdullāh, “servo de Deus”, em lugar de ᶜAbd Allāh; Qamaruzzamān, “lua
do tempo”, em lugar de Qamar Azzamān etc.

Finalmente, um detalhe que faz jus a esta derradeira observação: os personagens


do livro, quase que invariavelmente, “dizem”; eles não “perguntam”, não
“respondem”, não “afirmam”, não “exclamam”; apenas “dizem”. Já houve quem
observasse que variar os verbos dicendi é um recurso vulgar, mas no presente
caso tal variação se fez necessária, uma vez que os personagens são autênticas
máquinas de “dizer” e a repetição ficaria demasiado monótona.
Mamede Mustafa Jarouche
São Paulo, 12 de setembro de 2004

Em nome de Deus, o Misericordioso, o Misericordiador
em quem está a minha fé

Louvores a Deus, soberano generoso, criador dos homens e da vida,[35] e que


elevou os céus sem pilares, e estendeu as terras e os vales, e das montanhas fez
colunas; que de secos rochedos fez a água jorrar; e que aniquilou os povos de
fiamūd e ᶜād, e também os poderosos faraós.[36] Reverencio o altíssimo pela
orientação com que nos agraciou, e louvo-lhe os méritos incomensuráveis.
E, agora, avisamos aos homens generosos e aos senhores gentis e honoráveis
que a elaboração deste agradável e saboroso livro tem por meta o benefício de
quem o lê: suas histórias são plenas de decoro, com significados agudos para os
homens distintos; por meio delas, aprende-se a arte de bem falar e o que sucedeu
aos reis desde o início dos tempos. Denominei-o de livro das mil e uma noites,
que contém, igualmente, histórias excelentes, mediante as quais os ouvintes
aprenderão a fisiognomonia:[37] não os enredará, pois, ardil algum. Este livro,
enfim, também os levará ao deleite e à felicidade nos momentos de amargura
provocados pelas vicissitudes da fortuna, encobertas de sedutora perversidade. E
é Deus altíssimo quem conduz ao acerto.
Disse o autor :[38] conta-se – mas Deus conhece mais o que já é ausência, e é
mais sábio quanto ao que, nas crônicas dos povos, passou, se distanciou e
desapareceu – que havia em tempos remotos, no reino sassânida,[39] nas
penínsulas da Índia e da Indochina,[40] dois reis irmãos, o maior chamado
Šāhriyār e o menor, Šāhzamān.[41] O mais velho, Šāhriyār, era um cavaleiro
poderoso, um bravo campeão que não deixava apagar-se o fogo de sua vingança,
a qual jamais tardava. Do país, dominou as regiões mais recônditas, e, dos
súditos, os mais renitentes. E, depois de assenhorear-se do país e dos súditos,
entronizou como sultão, no governo da terra de Samarcanda, seu irmão
Šāhzamān, que por lá se estabeleceu, ao passo que ele próprio se estabelecia na
Índia e na Indochina.
Tal situação se prolongou por dez anos, ao cabo dos quais Šāhriyār, saudoso
do irmão, mandou atrás dele seu vizir[42] – o qual tinha duas filhas, uma
chamada Šahrāzād, e a outra, Dīnārzād.[43] O rei determinou a esse vizir que
fosse até Šāhzamān e se apresentasse a ele. Assim, o vizir muniu-se dos
apetrechos necessários e viajou durante dias e noites até chegar a Samarcanda.
Šāhzamān saiu para recebê-lo acompanhado de membros da corte, descavalgou,
abraçou-o e pediu-lhe notícias acerca do irmão mais velho, Šāhriyār. O vizir
informou-o de que seu irmão estava bem e que o enviara até ali a fim de
conduzi-lo à sua presença. Šāhzamān, dispondo-se a atender o pedido do irmão,
instalou o vizir nas cercanias da cidade, abasteceu-o das provisões e do feno de
que necessitava, sacrificou algumas reses em sua homenagem e presenteou-o
com joias e dinheiro, corcéis e camelos, cumprindo assim com suas obrigações
de anfitrião. Durante dez dias, preparou-se para a viagem, e, deixando em seu
lugar um oficial, arrumou as coisas e foi passar a noite com o vizir, junto ao qual
permaneceu até bem tarde, quando então retornou à cidade, subindo ao palácio a
fim de se despedir da esposa; ao entrar, porém, encontrou-a dormindo ao lado de
um sujeito, um dos rapazes da cozinha: estavam abraçados.[44] Ao vê-los
naquele estado, o mundo se escureceu todo em seus olhos e, balançando a
cabeça por alguns instantes, pensou: “Isso e eu nem sequer viajei; estou ainda
nos arredores da cidade. Como será então quando eu de fato tiver viajado até
meu irmão lá na Índia? O que ocorrerá então depois disso? Pois é, não é mesmo
possível confiar nas mulheres!”. Depois, possuído por uma insuperável cólera,
disse: “Deus do céu! Mesmo eu sendo rei, o governante da terra de Samarcanda,
me acontece isso? Minha mulher me trai! É isso que se abateu sobre mim!”. E
como a cólera crescesse ainda mais, desembainhou a espada, golpeou os dois – o
cozinheiro e a mulher – e, arrastando ambos pelas pernas, atirou-os do alto do
palácio ao fundo da vala que o cercava. Em seguida, voltou até onde estava o
vizir e determinou que a viagem fosse iniciada naquele momento.
Tocaram-se os tambores e começou-se a viagem. No coração do rei
Šāhzamān, contudo, ardia uma chama inapagável e uma labareda inextinguível
por causa do que lhe fizera a esposa: como pudera traí-lo, trocando-o por um
cozinheiro, aliás simples ajudante na cozinha? Mas a viagem prosseguia célere:
atravessando desertos e terras inóspitas por dias e noites, chegaram afinal à terra
do rei Šāhriyār, que saiu para recebê-los. Logo que os viu, abraçou o irmão,
aproximou-o, dignificou-o e hospedou-o num palácio ao lado do seu: com efeito,
o rei Šāhriyār possuía um amplo jardim no qual construíra dois imponentes,
formosos e elegantes palácios, reservando um deles para a hospedagem oficial e
destinando o outro para sua própria moradia e também para o harém. Hospedou,
portanto, o irmão Šāhzamān no palácio dos hóspedes, e isso depois que os
camareiros já o haviam lavado, limpado e mobiliado, abrindo-lhe as janelas que
davam para o jardim.
Šāhzamān permanecia o dia inteiro com o irmão e em seguida subia ao
referido palácio para dormir; mal raiava a manhã, dirigia-se de novo para junto
do irmão. Mas, mal se via a sós consigo mesmo, punha-se a remoer os
sofrimentos que o afligiam por causa da esposa, suspirava fundo, resignava-se
melancolicamente e dizia: “Mesmo eu sendo quem sou, aconteceu-me tamanha
catástrofe”. Começava então a mortificar-se, amargurado, dizendo: “O que me
ocorreu não ocorreu a mais ninguém”, e sua mente era invadida por obsessões.
Diminuiu a alimentação, a palidez se acentuou e as preocupações lhe
transtornaram o aspecto. Todo seu ser começou a dar para trás: o corpo
definhava e a cor se alterava.
Disse o autor : notando que seu irmão, dia a dia, se debilitava a olhos vistos,
definhando e consumindo-se, cor pálida e fisionomia esquálida, o rei Šāhriyār
supôs que isso se deveria ao fato de estar ele apartado de seu reino e de sua
gente, dos quais se encontrava como que exilado; pensou pois: “Esta terra não
está agradando a meu irmão; por isso, vou preparar um bom presente para ele e
enviá-lo de volta ao seu país”, e, pelo período de um mês, dedicou-se a lhe
providenciar os presentes; depois, mandou chamá-lo e disse: “Saiba, meu irmão,
que eu pretendo correr com as gazelas: vou sair para caçar por dez dias e, ao
retornar, farei os arranjos para a sua viagem de volta. Que tal ir caçar comigo?”.
Respondeu-lhe: “Irmão, opresso trago o peito, e turvo o pensamento. Deixe-me e
viaje você, com a bênção e a ajuda de Deus”. Ao ouvir tais palavras, Šāhriyār
acreditou que, de fato, o irmão tinha o peito opresso por estar afastado de seu
reino, e não quis forçá-lo a nada; por conseguinte, deixou-o e viajou com
membros da corte e os soldados; penetraram numa região selvagem, onde
demarcaram e cercaram o espaço para caçar e montar armadilhas.
Disse o autor : quanto a Šāhzamān, depois que o irmão saiu para a caçada, ele
ficou no palácio: olhando pela janela para a direção do jardim, observava
pássaros e árvores e pensava na esposa e no que ela fizera contra ele; suspirou
profundamente, o semblante dominado pela tristeza.
Disse o narrador : enquanto ele, assim absorto em seus pensamentos e
aflições, ora contemplava o céu, ora percorria o jardim com o olhar merencório,
eis que a porta secreta do palácio de seu irmão se abriu, dela saindo sua cunhada:
entre vinte criadas, dez brancas e dez negras, ela se requebrava[45] como uma
gazela de olhos vivos. Šāhzamān os via sem ser visto. Continuaram caminhando
até chegar ao sopé do palácio onde estava Šāhzamān, a quem não viram: todos
imaginavam que viajara na expedição de caça junto com o irmão. Assentaram-se
sob o palácio, arrancaram as roupas e eis que se transformaram em dez escravos
negros e dez criadas, embora todos vestissem roupas femininas: os dez
agarraram as dez, enquanto a cunhada gritava: “Masᶜūd! ó Masᶜūd!”; então um
escravo negro pulou de cima de uma árvore ao chão e imediatamente achegou-se
a ela; abriu-lhe as pernas, penetrou entre suas coxas e caiu por cima dela. Assim
ficaram até o meio do dia: os dez sobre as dez e Masᶜūd montado na senhora.
Quando se satisfizeram e terminaram o serviço, foram todos se lavar; os dez
escravos negros vestiram trajes femininos e misturaram-se às dez moças,
tornando-se, aos olhos de quem os visse, um grupo de vinte criadas. Quanto a
Masᶜūd, ele pulou o muro do jardim e arrepiou caminho. As vinte escravas, com
a senhora no meio delas, caminharam até chegar à porta secreta do palácio, pela
qual entraram, trancando-a por dentro e indo cada qual cuidar de sua vida.
Disse o copista: tudo o que ocorreu foi presenciado pelo rei Šāhzamān.
Disse o autor : ao ver o procedimento da esposa de seu irmão mais velho, e
discernir sobre o que havia sido feito – isto é, tendo observado essa atroz
calamidade, essa desgraça que ocorria ao irmão dentro de seu próprio palácio:
dez escravos em trajes femininos copulando, ali, com suas concubinas e criadas,
além da cena da cunhada com o escravo Masᶜūd –, enfim, ao ver tudo isso, o
coração de Šāhzamān se libertou de aflições e transtornos, e ele pensou: “Eis a
nossa condição! Meu irmão é o maior rei da terra, governante de vastas
extensões, e isso despenca sobre ele em seu próprio reino, sobre sua esposa e
concubinas: a desgraça está dentro de sua própria casa! Comparado a isso, o que
me ocorreu diminui de importância, justo eu que imaginava ser a única vítima
dessa catástrofe; estou vendo, porém, que qualquer um pode ser atingido! Por
Deus, a minha desgraça é mais leve que a do meu irmão!”. Depois, perplexo,
pôs-se a censurar a fortuna, de cujas adversidades ninguém está a salvo. Estava
assim esquecido de suas angústias e entretido com sua desgraça quando lhe
trouxeram o jantar, que ele devorou com apetite e gosto; também lhe trouxeram
bebida, que ele bebeu com igual vontade. Dissiparam-se as mágoas que trazia no
pensamento, e ele, tendo comido, bebido e se alegrado, disse: “Depois de ter
padecido sozinho em razão dessa desgraça, agora me sinto bem”. E durante dez
dias comeu e bebeu.
Ao retornar da caça, o irmão mais velho foi recebido por um Šāhzamān
alegre, que se dispôs a servi-lo com um sorriso no rosto. Estranhando aquilo, o
rei Šāhriyār disse: “Por Deus, meu irmão, que senti saudades de você durante a
viagem! Eu queria mesmo é que você estivesse comigo”.
Disse o copista: Šāhzamān agradeceu ao irmão e ficou conversando com ele
até o crepúsculo, quando então lhes foi servido o jantar. Ambos comeram e
beberam. Šāhzamān bebeu com sofreguidão.
Disse o autor : e Šāhzamān continuou pelos dias seguintes bebendo e
comendo. Suas preocupações e obsessões se dissiparam, seu rosto ficou rosado,
seu ânimo se fortaleceu: ele recobrou as cores e engordou, retomando e até
mesmo melhorando sua condição inicial. Embora percebesse as mudanças que se
operavam no irmão, o rei Šāhriyār guardou aquilo no coração. Mas um dia,
estando a sós com ele, disse: “Meu irmão Šāhzamān, eu quero que você me
esclareça algo que trago cá na mente, e me liberte do peso que carrego no
coração. Vou lhe fazer uma pergunta sobre um assunto e você deve responder a
verdade”. Perguntou Šāhzamān: “E qual é a dúvida, meu irmão?”. Respondeu
Šāhriyār: “Logo que chegou aqui e se hospedou comigo, notei que você dia a dia
definhava a olhos vistos, até que seu rosto se alterou, sua cor se transformou e
seu ânimo se debilitou. Como essa situação se prolongasse, julguei que
semelhante acometimento se devia ao fato de você estar afastado dos seus
parentes e do seu reino. Por isso, evitei indagar a respeito e passei a esconder as
minhas preocupações de você, muito embora o visse definhar e se alterar mais e
mais. Porém, depois que eu viajei para a caça e regressei, vi que a sua situação
se consertou e sua cor se recobrou. Agora, eu gostaria muito que você me
informasse sobre isso e me dissesse qual foi o motivo das alterações que o
atingiram aqui no início e qual o motivo da recuperação de seu viço. E não
esconda nada de mim”.
Disse o copista: ao ouvir as palavras do rei Šāhriyār, Šāhzamān manteve-se
por alguns instantes cabisbaixo e depois disse: “Ó rei, quanto ao motivo que
consertou o meu estado, eu não posso informar-lhe a respeito, e gostaria que
você me poupasse de mencioná-lo”. Muitíssimo intrigado com as palavras do
irmão, que lhe atiçaram chamas no coração, o rei Šāhriyār disse: “É
absolutamente imperioso que você me informe sobre isso. Agora, no entanto,
fale-me sobre o primeiro motivo”.
Disse o autor : então Šāhzamān contou em pormenores o que lhe sucedera por
parte da esposa na noite da viagem. Disse: “Enquanto eu estava aqui, ó rei dos
tempos, nos constantes momentos em que pensava na calamidade que minha
esposa fizera abater-se sobre mim, era atingido por aflições, obsessões e
preocupações. Meu estado então se alterou, e esse foi o motivo”. E se calou. Ao
ouvir a história, o rei Šāhriyār balançou a cabeça, tomado de grande assombro
por causa das perfídias femininas e, depois de ter rogado auxílio divino contra
sua perversidade, disse: “Por Deus, meu irmão, que você agiu da melhor maneira
matando sua mulher e o tal homem. Está justificado o motivo pelo qual você foi
atingido por preocupações e obsessões, e por que seu estado se alterou. Não
presumo que isso que lhe sucedeu tenha sucedido a qualquer outro. Juro por
Deus que, se fosse eu, não me bastaria matar menos de cem mulheres ou mil
mulheres; não, eu ficaria louco e sairia por aí alucinado. Porém agora, graças a
Deus, como as suas preocupações e tristezas se dissiparam, deixe-me a par do
motivo que desvaneceu as suas preocupações e o fez recobrar a cor”. Respondeu
Šāhzamān: “Ó rei, eu gostaria que, por Deus, você me poupasse disso”. Disse
Šāhriyār: “Mas é absolutamente imperioso”. Disse Šāhzamān: “Eu temo que
você seja atingido por preocupações e obsessões bem mais graves do que as
minhas”. Disse Šāhriyār: “E como pode ser isso, meu irmão? Não, já não existe
possibilidade de retorno: faço questão de ouvir a história”.
Disse o autor : então o irmão menor lhe relatou o que vira através da janela do
palácio, e a desgraça que ocorria em seu palácio – que dez escravos em trajes
femininos dormiam entre suas concubinas e mulheres durante a noite e o dia etc.
etc., pois repetir agora toda a história seria perda de tempo – “e ao ver a desgraça
que se abateu sobre você, as preocupações por causa da minha própria desgraça
se dissiparam, e eu disse de mim para mim: ‘mesmo sendo meu irmão o maior
rei da terra, sucedeu-lhe tamanha desgraça dentro de sua casa’. Foi assim que me
libertei das preocupações e desapareceu aquilo que no peito eu carregava;
reconfortei-me, comi e bebi. Eis o motivo de minha alegria e da recuperação de
minha cor”.
Disse o autor : ao ouvir as palavras do irmão sobre o que estava ocorrendo em
seu palácio, o rei Šāhriyār ficou terrivelmente encolerizado, a tal ponto que
quase começou a pingar sangue. Depois disse: “Meu irmão, só acreditarei no que
você disse se eu vir com meus próprios olhos”. E sua cólera aumentou. Então
Šāhzamān lhe disse: “Se você precisa mesmo ver sua desgraça com seus
próprios olhos para acreditar em mim, então arme uma nova expedição de caça;
sairemos eu e você com os soldados, e quando estivermos acampados fora da
cidade deixaremos nossos pavilhões, tendas e soldados como estiverem e
retornaremos, eu e você, secretamente à cidade. Você subirá comigo até o
palácio e poderá então ver tudo com seus próprios olhos”.
Disse o autor : o rei reconheceu que a proposta de seu irmão era correta.
Ordenou aos soldados que se preparassem para viajar e permaneceu com o irmão
naquela noite. Quando Deus fez amanhecer o dia, os dois montaram em seus
cavalos, os soldados também montaram e saíram todos da cidade. Foram
precedidos pelos camareiros, que carregaram as tendas até as encostas da cidade
e ali montaram o pavilhão real e seu vestíbulo. E o sultão e seus soldados se
instalaram. Ao anoitecer, o rei enviou uma mensagem ao seu secretário-mor
ordenando-lhe que ocupasse seu lugar e que não deixasse nenhum dos soldados
entrar na cidade durante três dias, bem como outras instruções relativas aos
soldados.
Ele e o irmão se disfarçaram e entraram na cidade durante a noite, subindo ao
palácio no qual Šāhzamān estava hospedado. Ali dormiram até a alvorada,
quando então se postaram na janela do palácio e ficaram observando o jardim.
Conversaram até que a luz do dia se irradiou e o sol raiou. Olharam para a porta
secreta, que fora aberta e da qual saiu a esposa do rei Šāhriyār, conforme o
hábito, entre vinte jovens; caminharam sob as árvores até chegar ao sopé do
palácio em que ambos estavam, tiraram as roupas femininas, e eis que eram dez
escravos que se lançaram sobre as dez jovens e as possuíram. Quanto à senhora,
ela gritou: “ó Masᶜūd! ó Masᶜūd!”, e eis que um escravo negro pulou ligeiro de
cima de uma árvore ao chão; encaminhou-se até ela e disse: “O que você tem,
sua arrombada?[46] Eu sou Saᶜduddīn Masᶜūd!”.[47] Então a mulher riu e se
deitou de costas, e o escravo se lançou sobre ela e nela se satisfez, bem como os
outros escravos nas escravas. Em seguida, os escravos levantaram-se, lavaram-
se, vestiram os trajes femininos que estavam usando e se misturaram às moças,
entrando todos no palácio e fechando a porta. Quanto a Masᶜūd, ele pulou o
muro, caiu na estrada e tomou seu rumo.
Disse o autor : em seguida, ambos desceram do palácio. Ao ver o que sua
esposa e criadas lhe faziam, o sultão Šāhriyār ficou transtornado e disse:
“Ninguém está a salvo neste mundo. Isso ocorre dentro de meu palácio, dentro
de meu reino. Maldito mundo, maldita fortuna. Essa é uma terrível catástrofe”.
E, voltando-se para o irmão, disse: “Você me acompanha no que eu vou fazer
agora?”. O irmão respondeu: “Sim”. Šāhriyār disse: “Vamos abandonar nosso
reino e perambular em amor a Deus altíssimo. Vamos desaparecer daqui. Se por
acaso encontrarmos alguém cuja desgraça seja pior do que a nossa, voltaremos;
caso contrário, continuaremos vagando pelo mundo, sem necessidade alguma de
poder”. Disse Šāhzamān: “Esse é um excelente parecer. Eu vou acompanhar
você”.
O GÊNIO E A JOVEM SEQUESTRADA
Disse o copista: ato contínuo, ambos desceram pela porta secreta do palácio e,
saindo por outro caminho, puseram-se em viagem. E viajando continuaram até o
anoitecer, quando então dormiram abraçados a suas aflições e dores. Mal
amanheceu, retomaram a caminhada, logo chegando a um prado repleto de
plantas e árvores na orla do mar salgado. Ali começaram a discutir sobre suas
respectivas desditas e o que lhes sucedera. Enquanto estavam nisso, eis que um
grito, um brado violentíssimo, saiu do meio do mar. Tremendo de medo, eles
supuseram que os céus se fechavam sobre a terra. Então o mar se fendeu, dele
saindo uma coluna negra que não parava de crescer até que alcançou o topo do
céu. Tamanho foi o medo dos dois irmãos que eles fugiram e subiram numa
árvore gigante na qual se instalaram, ocultando-se entre as suas folhagens. Dali,
espicharam o olhar para a coluna negra que, flanando pela água, fazia o mar
fender-se e avançava em direção àquele prado verdejante. Assim que botou os
pés na terra, ambos puderam vê-lo bem: tratava-se de um ifrit[48] preto, que
carregava à cabeça um grande baú de vidro com quatro cadeados de aço. Ao sair
do mar, o ifrit caminhou pelo prado e foi instalar-se justamente debaixo da
árvore em que os dois reis estavam escondidos. Depois de se sentar debaixo da
árvore, ele depositou o baú no solo, sacou quatro chaves com as quais abriu os
cadeados e dali retirou uma mulher de compleição perfeita, bela jovem de
membros gentis, um doce sorriso no rosto de lua cheia. Retirou-a do baú,
colocou-a debaixo da árvore, contemplou-a e disse: “Ó senhora de todas as
mulheres livres,[49] a quem sequestrei na noite de seu casamento, eu gostaria
agora de dormir um pouco”. Ato contínuo, o ifrit depositou a cabeça no colo da
jovem e estendeu as pernas, que chegaram até o mar. E, mergulhando no sono,
pôs-se a roncar. A jovem ergueu a cabeça para a árvore e, voltando casualmente
o olhar, avistou os reis Šāhriyār e Šāhzamān. Então ergueu a cabeça do ifrit de
seu colo, depositou-a no chão, levantou-se, foi até debaixo da árvore e sinalizou-
lhes com as mãos: “Desçam devagarzinho até mim”. Percebendo que haviam
sido vistos, eles ficaram temerosos e suplicaram, humildes, em nome daquele
que erguera os céus, que ela os poupasse de descer. A jovem disse: “É
absolutamente imperioso que vocês desçam até aqui”. Eles lhe disseram por
meio de sinais: “Mas isso aí que está deitado é inimigo do gênero humano. Por
Deus, deixe-nos em paz”. Ela disse: “É absolutamente imperioso que vocês
desçam. Se acaso não o fizerem, eu acordarei o ifrit e lhe pedirei que os mate”, e
continuou fazendo-lhes sinais e insistindo até que eles desceram lentamente da
árvore, colocando-se afinal diante dela, que se deitou de costas, ergueu as pernas
e disse: “Vamos, comecem a copular e me satisfaçam, senão eu vou acordar o
ifrit para que ele mate vocês”. Eles disseram: “Pelo amor de Deus, minha
senhora, não faça assim. Nós agora estamos com muito medo desse ifrit, estamos
apavorados. Poupe-nos disso”. A jovem respondeu: “É absolutamente
imperioso”, e insistiu e jurou: “Por Deus que ergueu os céus, se vocês não
fizerem o que estou mandando, eu acordarei meu marido ifrit e mandarei que
mate vocês e os afunde nesse mar”.[50] E tanto insistiu que eles não tiveram
como divergir: ambos copularam com ela, primeiro o mais velho, e em seguida o
mais jovem. Quando terminaram e saíram de cima dela, a jovem disse: “Deem-
me seus anéis”, e puxou, do meio de suas roupas, um pequeno saco. Abrindo-o,
sacudiu seu conteúdo no chão, e dele saíram noventa e oito anéis de diferentes
cores e modelos. Ela perguntou: “Por acaso vocês sabem o que são estes anéis?”.
Responderam: “Não”. Ela disse: “Todos os donos desses anéis me possuíram, e
de cada um eu tomei o anel. E como vocês também me possuíram, deem-me
seus anéis para que eu os junte a estes outros e complete cem anéis; assim, cem
homens terão me descoberto bem no meio dos cornos desse ifrit nojento e
chifrudo, que me prendeu nesse baú, me trancou com quatro cadeados e me fez
morar no meio desse mar agitado e de ondas revoltas, pretendendo que eu fosse,
ao mesmo tempo, uma mulher liberta e vigiada. Mas ele não sabe que o destino
não pode ser evitado nem nada pode impedi-lo, nem que, quando a mulher
deseja alguma coisa, ninguém pode impedi-la”. Ao ouvir as palavras da jovem,
os reis Šāhriyār e Šāhzamān ficaram sumamente assombrados e, curvados de
espanto, disseram: “Deus, ó Deus, não existe poderio nem força senão em Deus
altíssimo e grandioso! ‘De fato, vossas artimanhas são terríveis’”.[51] Retiraram
os anéis e os entregaram à jovem, que os recolheu e guardou no saco, indo em
seguida sentar-se junto ao ifrit, cuja cabeça ergueu e recolocou no colo,
conforme estava antes. Depois, fez-lhes sinais: “Tomem seu caminho senão eu
acordo o ifrit”.
Disse o autor : então eles fizeram meia-volta e se puseram em marcha.
Voltando-se para o irmão, Šāhriyār disse: “Ó meu irmão Šāhzamān, veja só essa
desgraça: por Deus, é muito pior do que a nossa. Esse aí é um gênio que
sequestrou a jovem na noite de seu noivado, e a trancafiou num baú de vidro
com quatro cadeados, e a fez morar no meio do mar alegando que assim a
preservaria do juízo e decreto divinos. Mas você viu que ela já tinha sido
possuída por noventa e oito homens, e que eu e você completamos os cem.
Vamos retornar, mano, para nossos reinos e cidades. Não voltaremos a tomar em
casamento mulher alguma. Aliás, de minha parte, eu vou lhe mostrar o que
farei”.
Disse o autor : então eles apressaram o passo no caminho. E não deixaram de
marchar mesmo durante a noite, chegando, na manhã do terceiro dia, até onde
estavam acampadas as tropas. Adentraram o pavilhão e se sentaram no trono.
Secretários, delegados, nobres e vizires foram ter com o rei Šāhriyār, que
estabeleceu proibições, distribuiu ordens, fez concessões, deu presentes e
dádivas. Depois, determinou que se entrasse na cidade, e todos entraram. Ele
subiu ao palácio e deu a seu vizir-mor – pai das já mencionadas jovens Dīnārzād
e Šahrāzād – a seguinte ordem: “Pegue a minha mulher e mate-a”, e, entrando no
aposento dela, amarrou-a e entregou ao vizir, que saiu levando-a consigo e a
matou. Depois, o rei Šāhriyār desembainhou a espada e, entrando nos aposentos
de seu palácio, matou todas as criadas, trocando-as por outras. E tomou a
resolução de não se manter casado senão uma única noite: ao amanhecer, mataria
a mulher a fim de manter-se a salvo de sua perversidade e perfídia; disse: “Não
existe sobre a face da Terra uma única mulher liberta”. E, equipando o irmão
Šāhzamān, enviou-o de volta para sua terra carregando presentes, joias, dinheiro
e outras coisas. Šāhzamān despediu-se e tomou o rumo de seu país.
Disse o autor : o rei Šāhriyār instalou-se no trono e ordenou a seu vizir – o pai
das duas jovens – que lhe providenciasse casamento com alguma filha de nobres,
e o vizir assim o fez. Šāhriyār possuiu-a e nela satisfez seu apetite. Quando raiou
a manhã, ordenou ao vizir que a matasse. Depois, naquela própria noite, casou-se
com outra moça, filha de um de seus chefes militares. Possuiu-a e, ao
amanhecer, ordenou ao vizir que a matasse, e este, não podendo desobedecer,
matou-a. Depois, na terceira noite, casou-se com a filha de um dos mercadores
da cidade. Dormiu com ela até o amanhecer e depois ordenou ao vizir que a
matasse, e ele a matou.
Disse o narrador : e o rei Šāhriyār continuou a se casar a cada noite com uma
jovem filha de mercadores ou de gente do vulgo – com ela ficando uma só noite
e em seguida mandando matá-la ao amanhecer – até que as jovens escassearam,
as mães choraram, as mulheres se irritaram e os pais e as mães começaram a
rogar pragas contra o rei, queixando-se ao criador dos céus e implorando ajuda
àquele que ouve as vozes e atende às preces.[52]
Disse o copista: o vizir encarregado de matar as moças tinha uma filha
chamada Šahrāzād, mais velha, e outra chamada Dīnārzād, mais nova. Šahrāzād,
a mais velha, tinha lido livros de compilações, de sabedoria e de medicina;
decorara poesias e consultara as crônicas históricas; conhecia tanto os dizeres de
toda gente como as palavras dos sábios e dos reis. Conhecedora das coisas,
inteligente, sábia e cultivada, tinha lido e entendido.
Disse o autor : certo dia, Šahrāzād disse ao pai: “Eu vou lhe revelar, papai, o
que me anda oculto pela mente”. Ele perguntou: “E o que é?”. Ela respondeu:
“Eu gostaria que você me casasse com o rei Šāhriyār. Ou me converto em um
motivo para a salvação das pessoas ou morro e me acabo, tornando-me igual a
quem morreu e acabou”. Ao ouvir as palavras da filha, o vizir se encolerizou e
disse: “Sua desajuizada! Será que você não sabe que o rei Šāhriyār jurou que não
passaria com nenhuma moça senão uma só noite, matando-a ao amanhecer? Se
eu consentir nisso, ele vai passar apenas uma noite com você, e logo que
amanhecer ele vai me ordenar que a mate, e eu terei de matá-la, pois não posso
discordar dele”. Ela disse: “É absolutamente imperioso, papai, que você me dê
em casamento a ele; deixe que ele me mate”. Disse o vizir: “E o que está
levando você a colocar sua vida assim em risco?”. Ela disse: “É absolutamente
imperioso, papai, que você me dê a ele em casamento: uma só palavra e uma
ação resoluta”. Então o vizir se encolerizou e disse: “Filhinha, ‘Quem não sabe
lidar com as coisas incide no que é vedado’, ‘Quem não mede as consequências
não tem o destino como amigo’. E, como se diz num provérbio corrente, ‘Eu
estava tranquilo e sossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado’.[53]
Eu temo que lhe suceda o mesmo que sucedeu ao burro e ao boi da parte do
lavrador”. Ela perguntou: “E o que sucedeu, papai, ao burro e ao boi da parte do
lavrador?”. Ele disse:
O BURRO, O BOI, O MERCADOR E SUA ESPOSA
Saiba que certo mercador próspero tinha muito dinheiro, homens, animais de
carga, e camelos; também tinha esposa e filhos pequenos e crescidos. Vivia no
interior, inteiramente dedicado à lavoura, e conhecia a linguagem dos
quadrúpedes e demais animais; no entanto, se ele revelasse tal segredo a alguém,
morreria. Ele sabia, portanto, a linguagem de todas as espécies de animais, mas
não dizia nada a ninguém por medo de morrer. Em sua fazenda viviam um boi e
um burro, e ambos ficavam próximos um do outro, amarrados ao pesebre. Certo
dia, o mercador sentou-se, com a esposa ao lado e os filhos pequenos brincando
diante de si, e olhou para o boi e o burro. Ouviu o boi dizendo ao burro: “Muitas
congratulações para você, mano esperto, pelo conforto e pelos serviços de
escovação e limpeza que recebe. Você tem quem cuide de si; só o alimentam
com cevada escolhida e água fresca e limpa. Quanto a mim, pegam-me no meio
da noite para lavrar e colocam no meu cangote uns utensílios chamados canga e
arado; trabalho o dia inteiro, escavando a terra e sendo obrigado a tarefas
insuportáveis; sofro com as surras do lavrador e com o relho; meus flancos se
lanham e meu cangote se esfola; fazem-me trabalhar de noite a noite, e depois
me levam ao paiol, onde me dão fava suja de barro e palha com talo; durmo no
meio da merda e do mijo a noite inteira. Agora, você não, você está sempre
sendo escovado, lavado e limpado; seu pesebre é limpo e cheio de boa palha;
está sempre descansado, e só raramente, quando ocorre ao nosso dono, o
mercador, alguma necessidade, ele monta em você, mas retorna rapidamente.
Você está descansado, e eu, cansado; você está dormindo, e eu, acordado”.
Quando o boi encerrou o discurso, o burro voltou-se para ele e disse: “Seu
simplório, não mente quem te trata como bobo, pois você, bobalhão, não tem
nem artimanha nem esperteza nem maldade. Fica aí exibindo a sua gordura, se
esforçando e se matando pelo conforto dos outros? Você por acaso não ouviu o
provérbio que diz ‘quem perde o sucesso, seu caminho entra em recesso’?[54]
Você sai logo de manhãzinha para o campo, o maior sofrimento, lavrando e
apanhando, e depois o lavrador traz você e amarra no pesebre, enquanto você
fica aí se batendo, dando chifrada, dando coice, dando mugido, mal aguentando
esperar até que joguem as favas na sua frente para você comer? Não, nada disso,
você tem mais é que fazer o seguinte: quando lhe trouxerem a fava, não coma
nada; dê só uma cheiradinha nela, se afaste e nem prove; limite-se a comer palha
e feno. Se agir assim, isso será melhor e mais adequado para você, e aí então vai
ver o conforto que desfrutará”.
Disse o autor : ao ouvir as palavras do burro, o boi percebeu que este lhe dava
excelentes conselhos; agradeceu-lhe em sua língua, fez-lhe os melhores votos,
desejou-lhe as melhores recompensas, certificou-se de que seus conselhos eram
bons e lhe disse: “Que você fique a salvo de todo dano, mano esperto!”.
[Prosseguiu o vizir :] Isso tudo ocorreu, minha filha, diante dos olhos do
mercador, que sabia o que eles estavam dizendo. Quando foi no dia seguinte, o
lavrador foi até a casa do mercador, recolheu o boi, colocou-lhe o arado e o pôs
para trabalhar. O boi, contudo, realizou mal seu trabalho de aragem; o lavrador
espancou-o e o boi, fingindo – pois ele aceitara as recomendações do burro –,
atirou-se ao chão; o lavrador tornou a bater-lhe, mas o boi pôs-se a levantar e
cair seguidamente até que anoiteceu. Então o lavrador conduziu-o até o paiol,
amarrando-o ao pesebre. O boi não mugiu nem deu coices, e se afastou do
pesebre. Intrigado com aquela história, o lavrador trouxe-lhe favas e forragem,
mas o boi, após cheirá-las, deu uns passos para trás e foi deitar-se longe dali,
pondo-se a mordiscar um pouquinho de palha e feno espalhados ali pelo chão até
que amanheceu, quando então o lavrador voltou e verificou que o pesebre
continuava cheio de feno e palha, cujas quantias não haviam diminuído nem se
modificado, e que o boi estava deitado, a barriga estufada, a respiração presa e as
pernas erguidas; ficou triste por ele e pensou: “Por Deus que ele estava
enfraquecido, e é por isso que não conseguia trabalhar”. Em seguida, dirigiu-se
ao mercador e disse: “Chefe, esta noite o boi não comeu a ração, nem sequer
provou nada”. Sabedor do caso, o mercador disse ao lavrador: “Vá até aquele
burro malandro e bote-lhe o arado ao pescoço; faça-o trabalhar bastante a fim de
que ele compense a ausência do boi”. Então o lavrador foi até o burro, pendurou-
lhe o arado ao pescoço, foi até o campo e chicoteou e forçou o burro a fim de
que ele cumprisse as tarefas do boi. Tantas foram as chicotadas que seus flancos
se dilaceraram e seu pescoço se esfolou. Ao anoitecer, conduziu-o ao paiol. De
orelhas murchas, o burro estava que mal conseguia arrastar as patas. Quanto ao
boi, naquele dia sua história fora outra: passara o tempo todo dormindo,
sossegado e ruminando; comera toda a sua ração, matara a sede, esperara,
descansara e durante o dia inteiro rogara pelo burro e lhe louvara o bom parecer.
Quando anoiteceu e o burro chegou, o boi foi recepcioná-lo pressuroso dizendo:
“Que você tenha uma excelente noite, mano esperto! Por Deus que você me fez
um favor que, de tão grande, não tenho como descrever. Que você continue
correto e cortês, e que Deus o recompense por mim, mano esperto!”. O burro
estava tão irritado com o boi que não lhe deu resposta, e pensou: “Isso tudo me
aconteceu por causa dos meus péssimos cálculos. ‘Eu estava tranquilo e
sossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado’. Agora, se eu não
arranjar algum estratagema para fazer o boi retornar ao que fazia antes, estarei
destruído”. E dirigiu-se ao seu pesebre, enquanto o boi ruminava e lhe fazia bons
votos.[55]
[Prosseguiu o vizir :] “Também você, minha filha, poderá ser destruída em
virtude dos seus péssimos cálculos; por isso, acalme-se, fique quieta e não
exponha sua vida à destruição. Estou sendo seu bom conselheiro, e ajo movido
por meu afeto por você”. Ela disse: “Papai, é absolutamente imperioso que eu vá
até esse sultão e que você me dê em casamento a ele”. Disse o vizir: “Não faça
isso”. Ela respondeu: “É absolutamente imperioso fazê-lo”. O vizir disse: “Caso
não se aquiete, vou fazer com você o mesmo que o mercador proprietário da
fazenda fez com a esposa”. Ela perguntou: “E o que ele fez com a esposa,
papai?”. O vizir respondeu:
Saiba que, após aquelas ocorrências entre o boi e o burro, o mercador saiu
com a esposa numa noite enluarada e foram até o paiol, onde ele ouviu o burro
dizendo ao boi em sua língua: “E aí, meu boi, o que você vai fazer amanhã de
manhã? Ouça o que estou dizendo: quando o lavrador lhe trouxer a ração, aja
conforme eu disser”. O boi perguntou: “Ué, e não devo fazer o mesmo que você
me sugeriu ontem? Nunca mais vou deixar de fazer isso: quando ele trouxer a
ração, vou começar a fingir, a me fingir de doente, vou deitar e estufar a
barriga”. Mas o burro balançou a cabeça e disse: “Não faça isso. Sabe o que eu
ouvi o nosso dono mercador dizendo ao lavrador?”. O boi perguntou: “O quê?”.
O burro respondeu: “Ele disse: ‘Se o boi não comer a ração nem se levantar,
chame o açougueiro para sacrificá-lo e distribuir-lhe a carne como esmola; esfole
a sua pele e transforme-a em esteira’. Eu estou temeroso por você, e o bom
aconselhamento faz parte da fé; assim, logo que vier a ração, coma e se ponha de
pé, pois, do contrário, eles vão sacrificá-lo e arrancar a sua pele”. Então o boi se
pôs a peidar e berrar. E o mercador se pôs imediatamente de pé e riu bem alto
das ocorrências entre o burro e o boi. A esposa perguntou: “Do que está rindo?
Você está é me ridicularizando”. Ele disse: “Não”. Ela disse: “Então me diga o
motivo do seu riso”. Ele respondeu: “Não posso dizer. É um segredo terrificante,
pois não posso revelar o que os animais dizem em suas línguas”.[56] Ela
perguntou: “E o que o impede de me dizer?”. Ele respondeu: “O que me impede
é que eu morrerei se o fizer”. A mulher disse: “Por Deus que você está mentindo.
Isso não passa de desculpa. Juro por Deus, pelo senhor dos céus, que não viverei
mais com você se não me contar e explicar o motivo da sua risada. É
absolutamente imperioso que você me conte”, e, entrando em casa, chorou sem
interrupção até o amanhecer. O mercador disse: “Ai de ti! Só me diga o motivo
de tanto choro! Rogue a Deus e se acalme! Largue essas perguntas e deixe-nos
em paz”. Ela disse: “É absolutamente imperioso. Não serei demovida de jeito
nenhum!”. Cansado, ele perguntou: “Isso é mesmo necessário? Se acaso eu lhe
disser o que ouvi do burro e do boi, e o que me fez rir, morrerei”. Ela disse: “É
absolutamente imperioso. E não me importa que você morra”. Ele disse: “Chame
a sua família”, e ela chamou os dois filhos,[57] os familiares, a mãe, o pai;
também vieram alguns vizinhos. O mercador lhes informou que a hora de sua
morte estava chegando. Todos choraram: grandes e pequenos, seus filhos, os
agricultores e os criados; instalou-se o luto. O mercador mandou chamar
testemunhas idôneas e elas compareceram. Em seguida, pagou o dote de sua
esposa, registrou tudo por escrito, fez recomendações aos filhos, libertou suas
criadas e despediu-se de seus familiares. Todos choraram, inclusive as
testemunhas. Os pais da esposa foram até ela e lhe disseram: “Volte atrás nessa
questão, pois se o seu marido não estivesse plenamente convicto de que a
revelação do segredo o levará à morte, ele não faria isso”. Ela respondeu: “Nada
me demoverá de minha exigência”. Então todos choraram e se prepararam para o
luto.
[Prosseguiu o vizir :] Minha filha Šahrāzād, eles tinham no quintal cinquenta
galinhas e um só galo. O mercador, triste por ter de abandonar este mundo, seus
familiares e filhos, foi sentar-se no quintal. Enquanto ele refletia e se
predispunha a revelar o segredo e contar tudo, ouviu um cachorro que ele tinha
no quintal falando, em sua língua, com o galo, o qual, batendo e agitando as
asas, subira em uma galinha e a possuíra, descera dela e subira em cima de outra.
O mercador começou a prestar atenção às palavras do cachorro e ouviu o que,
em sua língua, ele dizia ao galo: “Ei, galo, como você é desavergonhado!
Frustrado está quem criou você esperando algum reconhecimento. Não tem
vergonha de fazer coisas como as que estava fazendo num dia como este?”.
Perguntou o galo: “E o que tem este dia?”. O cachorro respondeu: “Você por
acaso não está sabendo que o nosso amo e senhor está hoje de luto, pois a esposa
está exigindo que ele lhe revele seu segredo; porém, assim que o revelar, ele
morrerá. Ambos agora estão nessa pendenga: como o patrão está propenso a,
mesmo assim, revelar-lhe o segredo sobre a compreensão da língua dos animais,
todos estamos tristes por ele. Mas você fica aí batendo as asas e subindo em
cima dessa, descendo de cima daquela, sem a menor vergonha”. Então o
mercador ouviu o galo respondendo o seguinte: “Seu maluco, seu bufão! Que
tenho eu com o fato de nosso patrão ser desajuizado, apesar de suas alegações
em contrário? Ele tem uma só esposa e não consegue cuidar dela”. Perguntou o
cachorro: “E o que ele deveria fazer com ela?”. Respondeu o galo: “Ele deveria
pegar uma boa vara de carvalho, entrar com ela no depósito, fechar a porta e dar-
lhe uma sova, espancá-la para valer, com a vara, a tal ponto que as mãos e os pés
dela se quebrem e ela grite: ‘Não quero mais revelação nenhuma nem
explicação’; tal surra deverá valer para o resto da vida, a fim de que ela nunca
mais o contradiga em nada. Se ele agir assim com ela, viverá sossegado e se
acabará o luto; no entanto, ele não sabe cuidar direito das coisas”.
[Prosseguiu o vizir :] Então, minha filha Šahrāzād, quando o mercador ouviu a
conversa entre o cachorro e o galo, levantou-se rapidamente, tomou uma vara de
carvalho, fez a mulher entrar no depósito, entrou atrás, trancou-se com ela e
passou a espancá-la nas costelas e nos ombros, não parando nem mesmo quando
ela se pôs a gritar “Não! Não! Eu nunca mais vou perguntar nada! Me deixe! Me
deixe! Eu nunca mais vou perguntar nada!”. Só interrompeu a surra quando se
cansou, e então abriu a porta e a mulher saiu rendida e convencida graças ao que
lhe sucedera. E todos ficaram felizes, o luto virou alegria e o mercador aprendeu
como proceder corretamente.
[Prosseguiu o vizir :] “Também você, minha filha, por que não volta atrás em
sua decisão? Do contrário, farei com você o mesmo que o mercador fez com a
esposa”. Ela respondeu: “Por Deus que não voltarei atrás. Essas histórias que
você contou não me farão hesitar quanto à minha intenção. E, se eu quisesse,
poderia contar muitas histórias semelhantes a essa. Mas, em resumo, tenho a
dizer o seguinte: se você não me conduzir ao rei Šāhriyār de livre e espontânea
vontade, eu entrarei no palácio escondida das suas vistas e direi ao rei que você
não permitiu que alguém como eu se casasse com ele, mostrando-se avaro com
seu mestre”. O vizir perguntou enfim: “Então isso é absolutamente imperioso?”.
Ela respondeu: “Sim”.
Disse o autor : ao se ver derrotado, já cansado de insistir, o vizir subiu até o
palácio do sultão Šāhriyār e, entrando na sala real, beijou o chão diante dele e
informou-o de que iria dar-lhe a mão da filha naquela noite. O rei ficou intrigado
e disse: “E como você permitirá, ó vizir, que a sua filha se case comigo, sendo
que eu – juro por Deus, por quem ergueu os céus – ordenarei que a mate mal
amanheça o dia, e se você não me obedecer eu o matarei?”. O vizir respondeu:
“Meu amo e sultão, foi isso mesmo que eu informei e expliquei à minha filha,
mas ela não aceitou e quis estar com o senhor nesta mesma noite”. O rei ficou
contente e disse: “Desça, arrume-a e traga-a no início da noite”. Então o vizir
desceu, repetiu a mensagem para a filha e concluiu: “Que Deus não me faça
sentir a sua falta”. Então Šahrāzād, muitíssimo contente, arrumou-se e ajeitou as
coisas de que precisaria. Foi até a irmã mais nova, Dīnārzād, e lhe disse: “Minha
irmãzinha, preste bem atenção no que vou lhe recomendar: assim que eu subir
até o rei, vou mandar chamá-la. Você subirá e, quando vir que o rei já se satisfez
em mim, diga-me: ‘Ó irmãzinha, se você não estiver dormindo, conte-me uma
historinha’. Então eu contarei a vocês histórias que serão o motivo da minha
salvação e da liberdade de toda esta nação, pois farão o rei abandonar o costume
de matar suas mulheres”. A irmã respondeu: “Sim”. Depois, quando a noite
chegou, o vizir tomou Šahrāzād pelas mãos e subiu com ela até o rei mais velho
Šāhriyār, que levou-a para a cama e iniciou o seu jogo de carícias, mas Šahrāzād
começou a chorar. Ele perguntou: “E por que esse choro?”. Ela respondeu:
“Tenho uma irmã e gostaria que pudéssemos nos despedir nesta noite, antes do
amanhecer”. O rei mandou então chamar Dīnārzād, que se apresentou e dormiu
sob a cama. Quando a noite se fez mais espessa, Dīnārzād ficou atenta e esperou
até que o rei se satisfizesse na irmã e todos ficassem bem acordados. Assim, no
momento oportuno, Dīnārzād pigarreou e disse: “Minha irmãzinha, se você não
estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas com as quais
costumávamos atravessar nossos serões, para que eu possa despedir-me de você
antes do amanhecer, pois não sei o que vai lhe acontecer amanhã”. Šahrāzād
disse ao rei Šāhriyār: “Com a sua permissão eu contarei”. Ele respondeu:
“Permissão concedida”. Šahrāzād ficou contente e disse: “Ouça”.[58]


noite das espantosas
histórias das
mil e uma noites
O MERCADOR E O GÊNIO
Disse Šahrāzād: conta-se, ó rei venturoso, de parecer bem orientado, que certo
mercador vivia em próspera condição, com abundantes cabedais, dadivoso,
proprietário de escravos e servos, de várias mulheres e filhos; em muitas terras
ele investira, concedendo empréstimos ou contraindo dívidas. Em dada manhã,
ele viajou para um desses países: montou um de seus animais, no qual pendurara
um alforje com bolinhos e tâmaras que lhe serviriam como farnel, e partiu em
viagem por dias e noites, e Deus já escrevera que ele chegaria bem e incólume à
terra para onde rumava; resolveu ali seus negócios, ó rei venturoso, e retomou o
caminho de volta para sua terra e seus parentes. Viajou por três dias; no quarto,
como fizesse muito calor e aquele caminho inóspito e desértico[59] fervesse, e
tendo avistado um oásis adiante, correu até lá a fim de se refrescar em suas
sombras. Dirigiu-se para o pé de uma nogueira a cujo lado havia uma fonte de
água corrente e ali se sentou, antes amarrando a montaria e pegando o alforje, do
qual retirou o farnel: bolinhos e um pouco de tâmaras. Pôs-se a comer as
tâmaras, jogando os caroços à direita e à esquerda, até que se saciou. Em seguida
levantou-se, fez abluções e rezou.[60] Quando terminou os últimos gestos da
prece, antes que ele se desse conta, aproximara-se um velho gênio cujos pés
estavam na terra e cuja cabeça tocava as nuvens, empunhando uma espada
desembainhada. O gênio se achegou, parou diante dele e disse: “Levante-se para
que eu o mate com esta espada, do mesmo modo que você matou meu filho!”, e
deu uns gritos com ele. Ao ver o gênio e ouvir-lhe as palavras, o mercador ficou
atemorizado e, invadido pelo pânico, disse: “E por qual crime vai me matar, meu
senhor?”. O gênio respondeu: “Pelo crime de ter matado o meu filho”. O
mercador perguntou: “E quem matou o seu filho?”. Respondeu o gênio: “Você
matou o meu filho”. Perguntou o mercador: “Por Deus que eu não matei o seu
filho! Quando e como isso se deu?”. O gênio respondeu: “Não foi você que
estava aqui sentado, e que tirou tâmaras da mochila, pondo-se a comê-las e a
jogar os caroços à direita e à esquerda?”. O mercador respondeu: “Sim, eu fiz
isso”. O gênio disse: “Foi assim que você matou o meu filho, pois, quando
começou a jogar os caroços à direita e à esquerda, meu filho começara logo
antes a caminhar por aqui,[61] e então um caroço o atingiu e matou. Agora, me é
absolutamente imperioso matar você”. O mercador disse: “Não faça isso, meu
senhor!”. Respondeu o gênio: “É imperioso que eu o mate, assim como você
matou o meu filho. A morte se paga com a morte”. O mercador disse: “A Deus
pertencemos e a ele retornaremos; não há poderio nem força senão em Deus
altíssimo e poderoso. Se eu de fato o matei, não foi senão por equívoco de minha
parte. Eu lhe peço que me perdoe”. O gênio respondeu: “Por Deus que é
absolutamente imperioso matá-lo, do mesmo modo que você matou meu filho”,
e, puxando-o, atirou-o ao chão e ergueu a espada para golpeá-lo. O mercador
chorou, lamentou-se por seus familiares, esposa[62] e filhos. Enquanto a espada
estava erguida, o mercador chorou até molhar as roupas e disse: “Não há poderio
nem força senão em Deus altíssimo e poderoso”, e recitou os seguintes versos:
“O tempo é composto de dois dias, um seguro, outro
[ameaçador,
e a vida é composta de duas partes, uma pura, outra turva.
Pergunte a quem urdiu as idas e vindas do tempo:
será que o tempo só maltrata a quem tem importância?
Acaso não se vê que a ventania, ao formar as tempestades,
não atinge senão as árvores de altas copas?
De tantas plantas verdes e secas existentes sobre a terra,
somente se apedrejam aquelas que têm frutas;
nos céus existem incontáveis estrelas,
mas em eclipse só entram o sol e a lua.
Pois é, você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e não teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que sucede a torpeza”.
Quando o mercador encerrou o choro e os versos, o gênio disse: “Por Deus que é
imperioso matá-lo, mesmo que chore sangue, assim como você matou meu
filho”. O mercador perguntou: “É absolutamente imperioso para você?”.
Respondeu o gênio: “Para mim é imperioso”. E tornou a erguer a espada para
golpeá-lo.
Então a aurora alcançou Šahrāzād e ela parou de falar. A mente do rei Šāhriyār
ficou ocupada com o restante da história e, nessa primeira manhã, Dīnārzād disse
à irmã: “Como são belas e espantosas as suas histórias!”. Respondeu Šahrāzād:
“Isso não é nada perto do que vou contar na próxima noite, caso eu viva e caso
este rei me poupe. A continuação da história é melhor e mais espantosa do que o
relato de hoje”. E o rei pensou: “Por Deus que eu não a matarei até escutar o
restante da história. Mas na próxima noite eu a matarei”. Depois, quando bem
amanheceu, o dia clareando e o sol raiando, o rei se levantou e foi cuidar de seu
reino e de suas deliberações. O vizir, pai de Šahrāzād, ficou admirado e contente
com aquilo. E o rei Šāhriyār ficou distribuindo ordens e julgando os casos
apresentados até o cair da noite, quando entrou em casa e se dirigiu para a cama
acompanhado por Šahrāzād. Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se
acaso você não estiver dormindo, conte-me uma de suas belas historinhas para
que possamos atravessar acordados esta noite”. E o rei disse: “Que seja a
conclusão da história do gênio e do mercador, pois meu coração está ocupado
com ela”. Ela disse: “Com muito gosto, honra e orgulho, ó rei venturoso”.


noite das espantosas
histórias das mil
e uma noites

Disse Šahrāzād:
Conta-se, ó rei venturoso e de correto parecer, que, quando o gênio ergueu a
mão com a espada, o mercador lhe disse: “Ó criatura sobre-humana, é mesmo
imperioso me matar?”. Respondeu: “Sim”. Disse o mercador: “E por que você
não me concede um prazo para que eu possa despedir-me de minha família, de
meus filhos e de minha esposa, dividir minha herança entre eles e fazer as
disposições finais? Em seguida, retornarei para que você me mate”. Disse o ifrit:
“Temo que, caso eu o solte e lhe conceda um prazo, você vá fazer o que precisa e
não regresse mais”. O mercador disse: “Eu lhe juro por minha honra; eu prometo
e convoco o testemunho do Deus dos céus e da terra que eu voltarei para você”.
O gênio perguntou: “E de quanto é o prazo?”. Respondeu o mercador: “Um ano,
para que eu me sacie de ver meus filhos, possa despedir-me de minha mulher e
resgatar alguns títulos; retornarei no início do ano”. O gênio disse: “Deus é
testemunha do que você está jurando: se eu soltá-lo, voltará no início do ano”. O
mercador respondeu: “Invoco a Deus por testemunha do que estou jurando”. E
quando ele jurou, o gênio soltou-o. Triste, o mercador subiu na montaria e tomou
o caminho de casa. Avançou até chegar à sua cidade; entrou em casa,
encontrando os filhos e a esposa. Ao vê-los, foi tomado pelo choro com lágrimas
abundantes, demonstrando aflição e tristeza. Todos estranharam aquele seu
estado, e sua esposa lhe perguntou: “O que você tem, homem? Que choro é esse?
Nós hoje estamos felizes, num dia de júbilo por sua volta. Que luto é esse?”. Ele
respondeu: “E como não estar de luto se só me resta um ano de vida?”, e a
colocou a par do que se passara entre ele e o gênio durante a viagem, informando
a todos que ele jurara ao gênio que regressaria no início do ano para que este o
matasse.
Disse o autor : ao lhe ouvirem as palavras, todos choraram. A esposa começou
a bater no próprio rosto e a arrancar os cabelos; as meninas, a gritar; e os
pequenos, a chorar. O luto se instalou, e durante o dia inteiro as crianças
choraram em redor do pai, que passou a dar e a receber adeus. No dia seguinte,
ele iniciou a partilha da herança e se pôs a ditar recomendações, a quitar seus
compromissos com os outros, e a fazer concessões, doações e distribuição de
esmolas. Convocou recitadores para que recitassem versículos religiosos pelo
seu passamento, chamou testemunhas idôneas, libertou servas e escravos, pagou
os direitos dos seus filhos mais velhos, fez recomendações quanto aos seus filhos
mais novos e quitou os direitos de sua esposa. E permaneceu junto aos seus até
que não faltassem para o ano-novo senão os dias do caminho a ser percorrido,
quando então se levantou, fez abluções, rezou, recolheu sua mortalha e despediu-
se da família; os filhos se penduraram em seu pescoço, as meninas choraram ao
seu redor e sua esposa gritou. O choro deles fez-lhe o coração fraquejar, e seus
olhos verteram lágrimas copiosas. Pôs-se a beijar freneticamente os filhos, a
abraçá-los e a despedir-se deles; disse: “Meus filhos, esta é a decisão de Deus;
tais são seus desígnios e decretos. E o homem, afinal, não foi criado senão para a
morte”. E, dando um último adeus, deixou-os, subiu em sua montaria e avançou
por dias e noites seguidos até chegar ao oásis em que encontrara o gênio,
exatamente no dia de ano-novo. Sentou-se no mesmo lugar onde comera as
tâmaras e começou a esperar pelo gênio, com os olhos marejados e o coração
triste. Em meio a essa espera, eis que passou por ele um velho xeique que
puxava uma gazela pela corrente. Aproximou-se e saudou o mercador, que lhe
retribuiu a saudação. O xeique perguntou: “Por que motivo você está aqui, meu
irmão, neste lugar que é moradia de gênios rebeldes e de filhos de demônios?
Eles tanto assombram este lugar[63] que quem aqui adentra nunca prospera”.
Então o mercador contou tudo o que lhe sucedera com o gênio, do início ao fim,
e o velho xeique, espantado com a fidelidade do mercador aos seus
compromissos, disse: “Você de fato leva muito a sério e cumpre as suas juras”.
E, sentando-se ao seu lado, ajuntou: “Por Deus que não me moverei daqui até
ver o que lhe ocorrerá com o gênio”. Assim sentado a seu lado, pôs-se a
conversar com ele. Enquanto ambos estavam nessa conversa, eis que...
Então a aurora alcançou Šahrāzād e ela parou de falar. E, como bem
amanhecesse e o dia clareasse,[64] sua irmã Dīnārzād disse: “Como é admirável
e espantosa a sua história!”. Ela respondeu: “Na próxima noite eu irei contar-lhes
algo mais espantoso e admirável do que isso”.


noite das espantosas
histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã Šahrāzād quando esta foi para a cama
com o rei Šāhriyār: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo, conte-
nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão desta noite”. O
rei disse: “Que seja o restante da história do mercador”. Ela disse: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o mercador estava sentado
conversando com o velho da gazela quando surgiu um segundo velho xeique,
conduzindo dois cachorros de caça pretos. Foi avançando e, ao se aproximar
deles, saudou-os e eles retribuíram a saudação. Então ele os inquiriu sobre sua
situação, e o xeique da gazela lhe contou a história das ocorrências entre o
mercador e o gênio: “Este mercador prometeu ao gênio que regressaria no ano-
novo para que o matasse, e ele agora, de fato, espera-o para que o mate. Eu me
encontrei aqui com ele, ouvi sua história e jurei que não me moveria deste lugar
até ver o que sucederá entre ele e o gênio”.
Disse o autor : quando o xeique dos dois cachorros ouviu aquilo, ficou
assombrado e jurou que tampouco ele se moveria dali: “Quero ver o que se
sucederá entre eles”. E pediu ao mercador que ele próprio contasse sua história,
e este lhe contou o que lhe acontecera com o gênio. Enquanto estavam nessa
conversa, eis que surgiu um terceiro velho xeique, que os saudou e a cuja
saudação eles responderam. E ele perguntou: “Por que motivo os vejo, ó xeiques,
aqui sentados, e por que vejo este mercador sentado entre vocês dois, triste,
amargurado e carregando vestígios de humilhação?”. Então os dois xeiques lhe
contaram a história do mercador, e acrescentaram que ambos estavam ali
sentados a fim de ver “o que sucederá a este jovem”. Ao ouvir o relato, o terceiro
xeique sentou-se entre eles e disse: “Por Deus que eu tampouco me moverei
daqui até ver o que sucederá entre ele e o gênio; eu lhes farei companhia”. E
começaram a conversar, mas não se passou muito tempo e eis que uma poeira se
levantou no coração do deserto, e quando ela se dispersou o gênio surgiu
carregando na mão uma espada de aço desembainhada. Dirigiu-se até eles e não
saudou a ninguém. Assim que chegou perto, o gênio puxou o mercador com a
mão esquerda, colocando-o rapidamente diante de si, e disse: “Venha para que eu
o mate”. O mercador chorou, e choraram os três xeiques, um choro desesperado
que logo se transformou em gritos de lamento.
Irrompendo, a aurora alcançou Šahrāzād, que se calou e interrompeu a
história. Disse-lhe sua irmã Dīnārzād: “Como é bela a sua história, maninha”.
Ela respondeu: “Isso não é nada perto da história que vou lhes contar na noite
seguinte, e que é mais bela, mais espantosa, mais agradável, mais emocionante,
mais saborosa e mais atraente do que a de hoje – isso se o rei me preservar e não
me matar”. Com a mente ansiosa por ouvir a continuação da história, o rei
pensou: “Por Deus que não irei matá-la até ouvir o restante da história e o que
ocorreu ao mercador com o gênio; depois de saber isso, irei matá-la na noite
seguinte, conforme já fiz com as outras”. E logo saiu para cuidar de seu reino e
tomar suas decisões; voltando-se para o pai de Šahrāzād, aproximou-o e ficou a
seu lado. O vizir ficou intrigado. E o rei ficou nisso até que anoiteceu, quando
então ele adentrou seus aposentos e se dirigiu para a cama junto com Šahrāzād.
Disse Dīnārzād: “Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas
belas histórias para que atravessemos o serão desta noite”. Respondeu Šahrāzād:
“Com muito gosto e honra”.


noite da narrativa das
mil e uma noites

Disse Šahrāzād:
Conta-se, ó rei venturoso, que quando o gênio agarrou o mercador, o primeiro
xeique, o da gazela, avançou até ele, beijou-lhe as mãos e os pés e disse: “Ó
demônio, ó coroa do rei dos gênios, se eu lhe contar minha história e lhe relatar o
que me sucedeu com esta gazela, e se acaso você considerar tais sucessos
admiráveis e espantosos, mais admiráveis do que a sua história com este
mercador, você me concederá um terço do crime por ele cometido e da culpa em
que incorreu?”. O gênio respondeu: “Sim”. Então o xeique da gazela disse:
O PRIMEIRO XEIQUE
Saiba, ó gênio, que esta gazela é minha prima, carne de minha carne e sangue do
meu sangue; e também minha esposa desde a nossa primeira juventude: ela tinha
doze anos, e não cresceu senão em minha casa. Vivi com ela trinta anos, mas,
como não fui agraciado com um único descendente, nem macho, nem fêmea –
embora ela nunca ao menos engravidasse, eu sempre a tratei muito bem, ao
longo desses trinta anos, servindo-a e dignificando-a –, arranjei uma segunda
esposa que logo me premiou com um menino macho que parecia uma fatia
brilhante da lua. Minha prima foi tomada por ciúmes da segunda esposa e do
filho que me dera – o qual cresceu e atingiu a idade de dez anos. Foi então que
me vi obrigado a sair em viagem, e por isso recomendei a segunda esposa e o
menino a esta minha prima; só parti depois de reforçar as recomendações.
Ausentei-me por um ano inteiro, período durante o qual minha prima se
aproveitou para aprender adivinhação e feitiçaria. Depois de ter aprendido, ela
pegou meu filho e o enfeitiçou, transformando-o num bezerro; em seguida,
mandou chamar o pastor que trabalhava para mim e lhe entregou o bezerro
dizendo: “Ponha-o para pastar junto com o rebanho bovino”. O pastor recebeu-o
e ficou com ele por algum tempo. Depois, ela enfeitiçou a mãe do menino,
transformando-a em vaca, e também entregando-a ao pastor. Após esses eventos,
eu enfim retornei e, quando indaguei a respeito da segunda esposa e do filho,
minha prima respondeu: “Sua segunda esposa morreu e seu filho fugiu há dois
meses. Não tive mais notícias dele”. Ao ouvir tais palavras, meu coração
começou a pegar fogo por causa do menino, e me entristeci por minha segunda
esposa. Chorei o desaparecimento do menino durante cerca de um ano. Logo
chegou a época da Grande Festividade de Deus.[65] Mandei chamar o pastor e
lhe determinei que me trouxessem uma vaca nédia para que eu a imolasse, e ele
trouxe a que era minha segunda esposa enfeitiçada. Logo que a amarrei e me
debrucei sobre ela a fim de degolá-la, a vaca chorou e gritou “Filhu, filhu”, e
lágrimas lhe escorreram pelas faces. Atônito e tomado de piedade pela vaca,
larguei-a e disse ao pastor: “Traga-me outra”, mas minha prima berrou: “Degole-
a, pois ele não dispõe de nenhuma vaca melhor nem mais gorda. Deixe-nos
comer de sua carne neste feriado”. Tornei a aproximar-me para degolá-la, e de
novo ela gritou “Filhu, filhu”. Afastei-me dela e disse ao pastor: “Degole-a por
mim”, e ele a degolou e cortou, mas ela não continha carne nem gordura,
somente pele e ossos. Arrependi-me de tê-la degolado e disse ao pastor: “Leve-a
todinha e dê como esmola a quem você achar melhor, e procure para mim entre
as vacas um bezerro gordo”. E o pastor recolheu-a e saiu; não sei o que fez com
os restos. E logo me trouxe meu filho, sangue do meu fígado, metamorfoseado
em gordo bezerro. Ao me ver, meu filho rompeu as amarras do pescoço, correu
até mim, jogou-se aos meus pés e esfregou o rosto em mim. Espantado, fui
acometido pela piedade, misericórdia e afeto paterno: por algum secreto desígnio
divino, meu sangue se compadeceu do dele, que também era meu; minhas
entranhas entraram em convulsão quando vi as lágrimas de meu filho bezerro
escorrendo-lhe sobre as faces, enquanto ele arranhava o chão com as patas
dianteiras. Deixei-o, pois, e disse ao pastor: “Ponha este bezerro entre o gado e
trate-o bem; estou poupando-o; traga-me outro”. Mas minha prima, esta gazela,
berrou: “E por que não sacrificamos este bezerro?”. Irritado, respondi: “Eu lhe
obedeci na questão da vaca e a sacrifiquei, mas não obtivemos nenhum
benefício. Agora, não vou lhe obedecer sacrificando este bezerro. Eu o poupei
do sacrifício”. Mas ela insistiu dizendo: “É absolutamente imperioso sacrificar
este bezerro”. Então eu tomei da faca e amarrei o bezerro.
E a manhã irrompeu e alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A mente do rei
ficou ocupada com o restante da história. E a irmã Dīnārzād disse: “Como é
agradável a sua história, maninha”. Ela respondeu: “Na próxima noite eu lhes
contarei uma história mais agradável do que essa, e também mais admirável e
espantosa, isso se eu viver e se o rei me preservar e não me matar”.


noite da narrativa das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād pediu à sua irmã Šahrāzād: “Por Deus, maninha, se
você não estiver dormindo, conte-nos uma de suas historinhas”. Ela respondeu:
“Com muito gosto e honra”.
Eu fui informada, ó rei estimado, que o primeiro xeique, o da gazela, disse ao
gênio e ao grupo todo:
Então eu tomei da faca tencionando matar meu filho, mas ele gritou, chorou,
esfregou-se em meus pés e pôs a língua para fora, apontando-a para mim. Fiquei
chocado[66] com aquilo; meu coração estremeceu e se encheu de ternura por ele;
soltei-o e disse à minha mulher: “Cuide dele, pois eu agora o deixo livre”. Em
seguida, pus-me a consolar minha esposa, esta gazela, e tantos agrados lhe fiz
que ela concordou em sacrificar outro animal, sob a promessa de sacrificar o
menino no feriado seguinte. E dormimos naquela noite. Quando Deus fez
amanhecer a manhã, o pastor veio até mim, às escondidas de minha esposa, e
disse: “Patrão, eu lhe darei uma boa notícia mas quero o crédito para mim”. Eu
respondi: “Dê a notícia e terá o crédito”. Ele disse: “Meu senhor, eu tenho uma
filha muito ligada às atividades de adivinhação, magia, feitiços e esconjuros.
Ontem à noite, quando entrei em casa com o bezerro que o senhor resolveu
poupar a fim de reuni-lo pela manhã ao restante do rebanho, minha filha olhou
para ele, sorriu e chorou. Eu lhe perguntei então: ‘Quais os motivos do riso e do
choro?’. Ela respondeu: ‘O motivo do riso é que este bezerro é filho do nosso
mestre, o proprietário dos animais. Ele foi enfeitiçado pela esposa do pai; eis por
que ri. Agora, quanto ao motivo do choro, ele se deve à mãe dele, que foi
sacrificada pelo próprio pai’. Assim, mal pude esperar até que a alvorada
irrompesse para vir dar-lhe esta alvissareira notícia sobre o seu filho”. Ao ouvir
tais palavras, ó gênio, gritei e desmaiei, mas logo acordei e caminhei com o
pastor até chegar à sua casa; ao me ver diante do meu filho, atirei-me sobre ele
beijando-o e chorando. Ele me encarou, as lágrimas a escorrer-lhe abundantes
pelas faces, e me mostrou a língua sinalizando “veja o meu estado”. Voltei-me
para a filha do pastor e perguntei: “Você conseguiria livrá-lo disso? Eu lhe darei
todo o dinheiro e todos os animais que possuo”. Ela sorriu e disse: “Meu amo,
não desejo seu dinheiro, nem suas dádivas, nem seu rebanho. Porém, não o
livrarei disso senão com duas condições: a primeira é que o senhor me case com
ele, e a segunda é que eu possa enfeitiçar a pessoa que o enfeitiçou e prendê-la a
fim de me assegurar contra os malefícios dela”. Respondi: “Você terá tudo isso e
mais ainda. O dinheiro é seu e de meu filho. Quanto à minha prima, que fez
essas coisas com meu filho e ordenou que eu sacrificasse a mãe dele, minha
segunda esposa, o sangue dela lhe é lícito”. A moça respondeu: “Não, só quero
fazê-la provar o que ela fez aos outros”. Em seguida, a filha do pastor encheu
uma taça de água, fez nela esconjuros e preces e disse ao meu filho: “Ó bezerro,
se esta for a forma que lhe deu o Poderoso Vitorioso, não mude; porém, se
estiver enfeitiçado e atraiçoado, então deixe essa forma e retome a sua forma
humana, com a permissão do Criador de todas as criaturas”, e imediatamente
lançou sobre o bezerro a água da taça, e eis que ele se sacudiu todo e virou um
ser humano tal e qual era, e isso depois de ter sido um bezerro. Não pude conter-
me e me atirei sobre ele desmaiado. Quando acordamos, ele me relatou o que
minha prima, esta gazela aqui, fizera com ele e com sua mãe. Eu disse: “Meu
filho, Deus colocou em nosso destino alguém que vai trazer justiça para você,
para sua mãe e para mim”. E então eu o casei, ó gênio, com a filha do pastor, a
qual ficou matutando até que enfim enfeitiçou minha prima, transformando-a
nesta gazela. E me disse: “Essa é uma bela forma, e ela poderá continuar
fazendo-nos companhia e nos divertindo, pois é melhor que seja bela, a fim de
que não a consideremos agourenta nem nos aborreçamos de vê-la”. E a filha do
pastor permaneceu conosco por muitos dias, meses e anos, mas depois morreu, e
então o meu filho viajou para a terra deste rapaz com quem você teve o
entrevero. Eu saí para achar alguma notícia do meu filho e trouxe comigo minha
prima, que é esta gazela, e acabei chegando até aqui. Eis aí a minha história: não
é admirável e insólita? O gênio respondeu: “Eu lhe concedo um terço da vida do
mercador”.
Nesse momento, ó rei Šāhriyār, avançou até o gênio o segundo xeique, o dos
dois cachorros pretos, e disse: “Eu também lhe contarei o que sucedeu a estes
dois cachorros. Você vai ver que minha história é mais admirável do que a desse
aí, e também mais insólita. Se eu lhe contar você me concederá um terço da vida
do mercador?”. O gênio respondeu: “Sim”. Então o segundo xeique avançou
mais e, começando sua fala, disse...
Então a aurora irrompeu e alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã
disse: “Essa história é admirável”. Respondeu Šahrāzād: “Isso não é nada perto
do que lhes contarei na noite seguinte, se eu viver e o rei me preservar”. O rei
pensou: “Por Deus que não a matarei até ouvir o que ocorreu ao xeique dos dois
cachorros pretos, mas depois disso eu a matarei, não a deixarei viver, se Deus
altíssimo quiser”.


noite das insólitas
narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād foi com o rei Šāhriyār para a cama. Sua irmã
Dīnārzād disse: “Maninha, se você não estiver dormindo, conte-nos uma
historinha, conclua aquela história de ontem”. Ela respondeu: “Com muito gosto
e honra”.
Eu fui informada, ó rei venturoso, que o segundo xeique, o dos dois cachorros
pretos, disse:
O SEGUNDO XEIQUE
Ó gênio, eis o que vou contar, eis a minha história detalhada: estes dois
cachorros são meus irmãos. Éramos três irmãos homens cujo pai morreu e nos
deixou três mil dinares.[67] Eu abri uma loja na qual vendia e comprava, e
também meus irmãos cada qual abriu uma loja. Mas isso não durou muito
tempo, e logo o meu irmão mais velho, que é um destes cachorros, vendeu sua
loja com todos os bens por mil dinares, comprou mercadorias, arranjou uma
caravana e se aprontou para viajar, ausentando-se de nossas vistas por um ano
inteiro. Findo esse ano, estava eu certo dia diante de minha loja quando parou
diante de mim um mendigo, ao qual eu disse: “Que Deus ajude”. Ele me
perguntou chorando: “Você já não me reconhece?”. Então eu reparei com
atenção e eis que era o meu irmão! Levantei-me, abracei-o e, entrando com ele
na loja, indaguei-o sobre o lamentável estado em que se encontrava. Ele
respondeu: “Nem me pergunte: o dinheiro acabou e a situação desandou”.[68]
Levei-o ao banho, dei-lhe uma de minhas roupas e trouxe-o para casa. Fiz
minhas contas e as da loja, constatando que eu tivera um ganho de mil dinares:
meu capital se tornara dois mil dinares. Dividi-os entre mim e meu irmão e lhe
disse: “Considere que você nunca viajou nem se ausentou”. E ele, muito
contente, pegou os mil dinares e abriu para si uma loja. E assim ficamos por dias
e noites, até que meu segundo irmão, que é este outro cachorro aqui, vendeu
tudo o que possuía, reuniu o dinheiro e planejou viajar. Tentamos impedi-lo mas
ele não nos obedeceu: negociou, comprou muitas mercadorias e viajou com
outros mercadores, ausentando-se de nossas vistas por um ano inteiro. Depois
ele regressou no mesmo estado do irmão mais velho. Eu lhe perguntei: “Meu
irmão, eu não lhe sugerira que não viajasse?”. Ele chorou e respondeu: “Meu
irmão, é assim que as coisas estavam predestinadas a ser. Eis-me aqui pobre, sem
um único centavo, nu, sem sequer uma camisa”. Peguei-o, ó gênio, levei-o ao
banho, dei-lhe um de meus trajes, novo, completo, para vestir, trouxe-o para
minha loja, fizemos uma refeição juntos e então eu lhe disse: “Meu irmão,
anualmente eu efetuo as contas da loja e do meu capital. Quanto ao capital, eu de
qualquer modo irei resguardá-lo, mas o lucro, qualquer que tenha sido, irei
reparti-lo entre mim e você”. Em seguida, fiz as contas da loja e calculei meus
ganhos, verificando que eram de dois mil dinares. Agradeci a Deus altíssimo e,
exultante de felicidade, dividi esse dinheiro entre mim e meu irmão, dando-lhe
mil dinares e reservando para mim os outros mil. Com esse valor, ele abriu uma
loja e assim ficamos todos nós durante vários dias. Depois, contudo, meus
irmãos passaram a me assediar para que eu viajasse com eles, mas não o fiz e
questionei-os: “E o que você ganharam com suas viagens para que eu queira
ganhá-lo também?”. E não lhes dei ouvidos. Mantivemo-nos em nossas lojas
vendendo e comprando, embora eles, todo ano, voltassem a falar em viagem,
sem que eu aceitasse. Até que se passaram seis anos, quando então concedi
quanto à viagem com eles. Disse: “Meus irmãos, nós enfim viajaremos juntos.
De quanto dinheiro vocês dispõem?”. Constatei que eles tinham dilapidado tudo
quanto possuíam em comida, bebida e outras coisas. Não lhes disse palavra a
respeito nem os censurei. Fiz as contas do meu dinheiro, ajuntei e vendi tudo o
que possuía na loja, auferindo seis mil dinares. Fiquei contente e dividi o
dinheiro em duas partes iguais. Disse: “Estes três mil dinares serão nossos, e
com eles iremos negociar e viajar; e estes outros três mil, iremos enterrá-los sob
a terra, para a eventualidade de que me ocorra o mesmo que lhes ocorreu; nesse
caso, sempre poderemos retornar e, com estes três mil dinares, reabrir cada um a
sua loja”. Eles disseram: “Esse é o melhor parecer”. E assim dividi o meu
dinheiro, ó gênio: recolhi e enterrei três mil dinares, e dos outros três mil dei a
cada um de meus irmãos mil dinares e fiquei com mil dinares. Fechei a loja e
compramos mercadorias e produtos, alugando a seguir um grande navio e
transportando nossas coisas para o mar; munimo-nos de provisões e viajamos
por dias e noites, durante cerca de um mês.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela a sua história, maninha”. Ela respondeu: “Na próxima noite,
caso eu fique viva, irei contar-lhes algo mais belo, extraordinário e maravilhoso,
se Deus altíssimo quiser”.


noite das narrativas
e maravilhas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à sua irmã Šahrāzād: “Por Deus, maninha, se
você não estiver dormindo, conte-nos uma historinha”. O rei disse: “Que seja o
restante da história do mercador e do gênio”. Ela disse: “Com muito gosto, honra
e orgulho”.
Fui informada, ó rei venturoso, que o segundo xeique disse ao gênio:
Então viajamos eu e estes dois cachorros que são meus irmãos durante cerca
de um mês pelo mar salgado, chegando a uma cidade na qual adentramos e
vendemos nossas mercadorias; obtivemos um lucro de dez dinares para cada
dinar aplicado. Compramos outras mercadorias. Quando me dispunha a seguir
viagem, encontrei na praia uma jovem vestida em andrajos que me beijou as
mãos e disse: “Meu senhor, aceite praticar uma graça e mercê, e acredite que eu
o recompensarei por elas”. Respondi: “Aceito fazer a mercê e você não precisa
me recompensar por nada”. Ela disse: “Case-se comigo, vista-me e leve-me
consigo para a sua terra nesse navio. Serei sua esposa. Estou me doando a você,
e assim me fará graça e mercê pelas quais eu o recompensarei se Deus altíssimo
quiser. Não se iluda com esta minha situação nem com a minha miséria”. Ao
ouvir as suas palavras, meu coração se enterneceu, e isso graças ao que Deus
altíssimo desejava para mim. Eu disse a ela: “Sim”, e, recolhendo-a, dei-lhe uma
luxuosa vestimenta, casei-me oficialmente com ela e embarcamos juntos no
navio, onde eu lhe preparei um aposento e a recebi. Viajamos por dias e noites e
meu coração se afeiçoou pela jovem, junto à qual comecei a passar minhas
noites e meus dias, afastando-me de meus irmãos. Quanto aos meus irmãos, que
são estes dois cachorros, ficaram enciumados de mim e, como já estivessem
invejosos do meu dinheiro e da grande quantidade de mercadorias que eu
possuía, cresceram os olhos para cima de todos os meus cabedais. Começaram a
planejar minha morte, cuja efetivação o demônio adornou aos seus olhos.
Traiçoeiramente, certa noite esperaram até que eu adormecesse ao lado de minha
esposa e nos carregaram a ambos, lançando-nos ao mar. Acordamos e minha
esposa transformou-se numa ifrita gênia; carregou-me e subiu aos ares comigo,
levando-me até uma ilha. Quando amanheceu ela me disse: “Eis aí, homem, a
recompensa que lhe dei salvando-o do afogamento. Saiba que faço parte
daqueles que dizem ‘em nome de Deus’ e que, quando o vi na praia, meu
coração se afeiçoou a você. Procurei-o vestindo aquelas roupas e lhe mostrei
meu amor, que você aceitou. Agora, é absolutamente imperioso que eu mate os
seus irmãos”. Ao ouvir-lhe o discurso, fiquei assombrado pelo modo como a
relação se estabelecera entre nós, agradeci-lhe pelo que fizera e disse: “Quanto à
morte dos meus irmãos, não, não quero ser como eles”, e contei-lhe o que
sucedera entre nós do início ao fim. Quando soube de minha história com meus
irmãos, a gênia ficou mais irritada ainda com eles e disse: “Agorinha mesmo vou
voar até eles e afundar-lhes o navio, matando os dois sem dó”. Eu lhe disse: “Por
Deus, não faça isso. O provérbio diz: ‘Faça o bem a quem errou’, e, de qualquer
modo, eles são meus irmãos”. Com essa intervenção, consegui aplacar a sua
cólera. E ela me carregou e voou tão alto comigo que desapareceu das vistas, e
depois me depositou no telhado de minha casa. Desci, abri as portas, escavei e
retirei o ouro que enterrara, saí e abri minha loja depois de ter saudado a todos
no mercado. Quando voltei à noite para casa, encontrei estes dois cachorros
amarrados no quintal. Assim que me viram vieram até mim, choraram e se
enroscaram em meus pés. Atônito, mal me dei conta quando minha mulher disse:
“Meu amo, estes são os seus irmãos”. Perguntei: “E quem fez isso com eles?”.
Ela respondeu: “Enviei uma mensagem à minha irmã, que foi quem lhes fez isso.
Eles não poderão livrar-se do feitiço senão depois de dez anos”. Em seguida ela
me deixou, não sem antes me indicar onde morava. E agora, como já se
passaram os dez anos, ia eu levando-os até ela para livrá-los do feitiço, quando
encontrei este jovem e este xeique com a gazela. Perguntei-lhe como estava e ele
me informou o que sucedera entre vocês. Não quis mexer-me daqui até saber o
que se daria entre ele e você. Essa é minha narrativa. Que tal? Não é espantosa?
O gênio respondeu: “Por Deus que é espantosa e insólita. Eu lhe concedo um
terço do crime do mercador”. Então o terceiro xeique disse: “Ó gênio, não me
deixe magoado: se eu lhe contar uma história insólita e espantosa, mais insólita e
mais espantosa do que as duas precedentes, você me concederá um terço do
crime do mercador?”. O gênio respondeu: “Sim”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã disse: “Que
espantosa é a sua história!”. Ela disse: “E o que falta é ainda mais espantoso”. O
rei pensou: “Por Deus que não a matarei até ouvir o que sucedeu ao xeique e ao
gênio, e depois a matarei, conforme fiz com as outras”.


noite das insólitas
narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à sua irmã Šahrāzād: “Por Deus, maninha, se
você não estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas para que
possamos atravessar o serão desta noite”. Respondeu: “Com muito gosto, honra
e orgulho”.
Conta-se, ó rei venturoso, que o terceiro xeique contou ao gênio uma história
mais espantosa e mais insólita do que as histórias precedentes.[69] O gênio ficou
extremamente assombrado, estremeceu de emoção[70] e disse: “Eu lhe concedo
um terço do crime do mercador”, e, entregando-o aos três xeiques, deixou-os e
foi embora. O mercador, voltando-se para os xeiques, agradeceu-lhes muito, e
eles o felicitaram por estar bem. Depois despediram-se dele e se dispersaram,
cada qual retomando seu caminho. O mercador voltou para seu país e foi ter com
seus familiares, sua esposa e seus filhos, e viveu com eles até a morte.
[Prosseguiu Šahrāzād:] “Mas isto não é mais admirável nem mais espantoso
do que a história do pescador”. Disse Dīnārzād: “Por Deus, maninha, e qual é
essa história?”. Šahrāzād disse:
O PESCADOR E O GÊNIO
Fui informada que certo pescador, já velho, entrado em anos, com uma esposa e
três filhos,[71] era tão pobre que não conseguia prover seu sustento diário. Uma
das práticas que ele seguia era lançar sua rede quatro vezes ao mar – era assim e
somente assim que ele agia. De uma feita, ele saiu com a rede durante as
chamadas para a prece da alvorada, a lua ainda visível, caminhou até os limites
da cidade e chegou à praia, depôs sua cesta ao solo, arregaçou a túnica e avançou
até o meio do mar, quando então lançou a rede, esperou que ela assentasse e
começou a puxá-la, reunindo aos poucos os seus fios. Notando que ela estava
pesada, puxou-a com força mas, como aquilo superasse suas forças, voltou à
praia, fincou uma estaca na terra, nela amarrando a ponta da corda, retirou as
roupas, ficando nu em pelo, e mergulhou na água, nadando em direção à rede. E
tanto pelejou e remexeu a rede que conseguiu puxá-la para a praia, o que o
deixou exultante de alegria. Quando a rede já estava em terra firme, ele vestiu as
roupas, foi até ela e abriu-a, nela encontrando um burro morto cujo peso
danificara a rede. Ao ver aquilo, triste e amargurado, ele disse: “Não há poderio
nem força senão em Deus altíssimo e poderoso”. E continuou: “É espantoso que
a minha parte na fortuna seja essa”. E enfim recitou:
“Ó tu que enfrentas o escuro da noite e a morte,
refreia teu ímpeto, pois a fortuna não depende da ação.
Acaso não vês o mar e o pescador sempre em pé,
à procura de fortuna, as estrelas da noite em sua órbita,
e ele no meio do mar, golpeado pelas ondas,
o olhar vidrado no centro da rede?
Então às vezes ele pode ficar feliz uma noite
por ter seu anzol perfurado a boca de um peixe
que ele venderá para quem passou a noite
a salvo do frio, em grande conforto.
Exalçado seja o meu Deus, que a uns dá e a outros priva;
uns pescam e outros comem o peixe”.
Disse o autor : e a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã
Dīnārzād lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar, eu vou lhes contar a continuação,
que é mais admirável e espantosa”.


noite das narrativas,
maravilhas e prodígios
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Maninha, se você não estiver


dormindo, conclua para nós a história do pescador”. Šahrāzād respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
Eu fui informada, ó rei venturoso, de que o pescador, quando terminou de
recitar a poesia, jogou o burro da rede e se sentou no chão para costurá-la. Ao
terminar, espremeu-a, esticou-a e voltou a entrar no mar, lançando-a à água
depois de invocar o nome de Deus altíssimo. Esperou que a rede assentasse e
puxou-lhe, devagarinho, os fios, até que ela apresentou resistência maior do que
da primeira vez. Presumindo que se tratasse de um peixe, ficou muitíssimo feliz;
tirou as roupas e mergulhou no mar, pondo-se a retirar a rede, e tanto sacudiu e
pelejou que a trouxe à terra, mas só encontrou nela um jarro cheio de areia e
lodo. Ao ver aquilo, o pescador chorou, lamentou-se e disse: “Este é de fato um
dia espantoso”, e prosseguiu: “Pertencemos a Deus e a ele retornaremos”, e
recitou a seguinte poesia:
“Ó tormento do destino, já tive minha parte,
mas, se ainda não tiver tido, então perdoa;
saí em busca do meu sustento,
mas me disseram: ‘já morreu’.
Minha sorte nada me traz,
e tampouco o meu trabalho.
Quantos ignaros não se alçam às Plêiades,
e quantos sábios vivem às escondidas”.
E jogando fora o jarro, lavou a rede, espremeu-a, estendeu-a, pediu perdão a
Deus altíssimo e retornou ao mar, atirando a rede uma terceira vez e esperando
até que ela se assentasse. Depois puxou-a até si para então encontrar cacos,
pedras, coisas quebradas, ossos, imundícies diversas etc. Então o pescador
chorou por sua grande infelicidade e pouca sorte, pondo-se a recitar a seguinte
poesia:
“Eis a fortuna: nada a impele ou prende às tuas mãos;
nem a educação te trará sustento, nem a escrita,
nem a sorte: as fortunas são imponderáveis,
e por isso aceita-as, férteis ou estéreis.
Os caprichos do destino rebaixam o homem educado
e elevam o canalha que só merece rebaixamento.
Faze tua visita, ó morte, pois a vida é degradante.
Se os falcões descem e os patos se elevam,
isso não é tão espantoso, pois vemos homens superiores
empobrecidos, enquanto os inferiores se pavoneiam.
Nossas fortunas já foram divididas, e nossos fados
são como aves que buscam comida por toda parte:
algumas correm mundo de Oriente a Ocidente,
e outras ganham benesses sem dar um só passo”.
Em seguida, o pescador ergueu o rosto para os céus, onde a manhã já bruxuleava
e o dia se anunciava. Disse: “Meu Deus, o senhor sabe que eu não lanço minha
rede senão quatro vezes; já a lancei três, e só me resta uma única vez; meu Deus,
faça o mar me servir assim como você o fez servir a Moisés”. E, ajeitando a
rede, lançou-a ao mar e esperou que se assentasse; quando pesou, ele tentou
puxá-la mas não teve forças; chacoalhou-a e eis que ela se enroscara no fundo do
mar. Disse: “Não há poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso”, e,
despindo-se das roupas, mergulhou atrás da rede, conseguindo, à custa de
ingentes esforços, soltá-la; trouxe-a para a terra firme e verificou que ela
continha algo pesado. Depois de pelejar bastante com a rede, conseguiu
desenroscá-la, nela deparando com um vaso de cobre amarelo; estava cheio, sua
boca se encontrava lacrada com chumbo, e sobre o chumbo se viam marcas do
desenho de um selo. Vendo o vaso, o pescador ficou contente e disse: “Poderei
vendê-lo para algum negociante de cobre; forçosamente, seu valor equivalerá ao
de duas medidas de trigo”.[72] E, pondo-se a mexer nele, notou que estava de
fato bem cheio e que não saía do lugar. Como a boca do vaso estivesse lacrada
com chumbo, o pescador pensou: “Vou abri-lo a fim de esvaziá-lo, e assim
poderei levá-lo rolando até o mercado de cobre. Logo tirou da cintura uma faca,
com ela cutucando o lacre de chumbo e pelejando até conseguir retirá-lo. Pegou
o lacre, colocou-o na boca e inclinou o vaso de lado, para o chão, balançando-o
para lançar-lhe fora o conteúdo. Como nada saísse dali de dentro, o pescador
ficou bastante intrigado. Mas depois de algum tempo começou a emanar do vaso
uma enorme fumaceira, que se ergueu e espalhou sobre a face da Terra,
avolumando-se até cobrir o mar e elevando-se até os cumes do céu, impedindo a
vista de ver a luz. Passados mais alguns momentos, a fumaceira ficou
inteiramente fora do vaso; reuniu-se, integrou-se, sacudiu-se e virou um ifrit
cujos pés estavam na terra e a cabeça nas nuvens; sua cabeça se assemelhava a
um poço, seus caninos, a ganchos, sua boca, a uma caverna, seus dentes, a
pedras, suas narinas, a cornetas, suas orelhas, a escudos, seu pescoço, a um beco,
seus olhos, a faróis – para resumir, o bicho era feio de doer, medonho a não mais
poder, e chega de conversa. Ao vê-lo, os membros do pescador se enregelaram,
seus dentes bateram e sua saliva secou. O ifrit disse: “Ó Salomão, ó profeta de
Deus, perdão, perdão! Nunca mais divergirei das palavras do senhor, e nem lhe
desobedecerei as ordens!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A irmã lhe disse: “Como sua
história é maravilhosa, maninha, e espantosa”, e ela respondeu: “Na próxima
noite eu lhes contarei algo mais maravilhoso e espantoso do que isso, se eu viver
e for preservada”.

10ª
das maravilhosas e
prodigiosas narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, quando Šahrāzād foi com o rei Šāhriyār para a cama, sua irmã
Dīnārzād lhe disse: “Por Deus, maninha, conclua para nós a história do
pescador”. E ela disse: “Com muito gosto e honra”.
Eu fui informada, ó rei venturoso, que quando o ifrit pronunciou aquelas
palavras, o pescador lhe disse: “Ó criatura sobre-humana, hoje faz mil oitocentos
e poucos anos que morreu Salomão, o profeta de Deus. Estamos no fim dos
tempos. Mas qual é a sua história? Por qual motivo você entrou nesse vaso?”. Ao
ouvir as palavras do pescador, o ifrit lhe disse: “Receba a boa nova”. O pescador
disse: “Ó dia de felicidade!”. O ifrit prosseguiu: “Receba a boa nova de sua
rápida morte”. O pescador disse: “Com essa boa nova, você bem merece é que
nunca mais lhe prestem ajuda nenhuma. Por que você vai me matar? Não fui eu
que o salvei e resgatei do fundo do mar, trazendo-o para a terra?”. O ifrit
respondeu: “Faça um pedido”.
Disse o autor : muito contente, o pescador perguntou: “E o que eu deveria
pedir-lhe?”. Respondeu o ifrit: “Você pode escolher como morrer, de que
maneira eu deverei matá-lo”. O pescador perguntou: “E qual o meu delito? É
essa a recompensa que você me dá, a recompensa por tê-lo salvado?”. O ifrit
disse: “Ouça a minha história, pescador”. O pescador disse: “Conte mas seja
breve, pois minha alma já chegou a Jerusalém”. O ifrit começou a contar:
Saiba que eu pertenço à raça dos gênios renegados e revoltosos. Eu e o
gigante Ṣaḫr nos rebelamos contra o profeta de Deus, Salomão, filho de Davi,
que enviou contra mim āṣif Bin Barḫiyya, o qual, por sua vez, me capturou à
força e me conduziu, humilhado e contra minha vontade, até o profeta de Deus
Salomão. Quando me viu, ele se benzeu de mim e de minha figura e me ofereceu
prestar-lhe obediência, mas eu me recusei. Então, ele mandou trazer este vaso de
cobre e me prendeu dentro dele, lacrando-o com chumbo e selando-o com o mais
poderoso nome de Deus; depois ordenou que alguns gênios me carregassem e
me lançassem no meio do mar. Ali permaneci duzentos anos, durante os quais
pensei: “Quem quer que me resgate durante estes duzentos anos, eu o deixarei
rico”, mas ninguém me resgatou. Então se passaram mais duzentos anos, durante
os quais eu pensei: “Quem quer que me resgate, eu lhe abrirei as portas de todos
os tesouros do mundo”. Mas passaram-se quatrocentos anos e ninguém me
resgatou. Iniciou-se novo período de cem anos, durante os quais eu pensei:
“Quem quer que me resgate nestes cem anos, eu o farei sultão e me tornarei seu
servo, satisfazendo-lhe três desejos por dia”. No entanto, estes cem anos também
se passaram, e já eram muitos anos sem que ninguém me resgatasse. Encolerizei-
me então, e vociferei, ronquei, bufei e pensei: “De agora em diante, quem quer
que me resgate, irei matá-lo da maneira mais atroz ou irei deixá-lo escolher a
maneira pela qual morrerá”. Assim, não se passou muito tempo e você veio hoje
e me resgatou. Por isso, pode escolher a maneira pela qual morrerá.
Quando ouviu as palavras do ifrit, o pescador disse: “A Deus pertencemos e a
ele retornaremos. Não fui achar de resgatar você senão agora? Mas é assim
mesmo, minha maldita sorte está muito aquém disso. Eu lhe peço, porém, que
me poupe, e assim Deus o poupará; não me mate, pois então Deus lhe enviará
alguém que o mate”. O gênio respondeu: “É absolutamente imperioso que eu o
mate; pode escolher a maneira”. Certo de que iria morrer, o pescador ficou muito
triste, chorou e disse: “Que Deus não me prive de vocês, minhas filhas”. Depois,
suplicando ao ifrit, disse: “Pelo amor de Deus, liberte-me em consideração ao
fato de que eu o resgatei e libertei desse vaso”. O gênio respondeu: “Mas a sua
morte não é senão a recompensa por você ter me resgatado e salvado”. O
pescador disse: “Eu lhe fiz um bem e você me paga com o mal. Pois é, não
mente o provérbio contido nestes versos:
“Fizemos o bem e nos pagaram com seu contrário,
e esta, por vida minha, é a ação dos iníquos;
quem faz favores a quem não os merece,
recebe o mesmo que recebeu quem socorreu a hiena”.[73]
O gênio disse: “Não prolongue as coisas. Conforme eu já disse, é absolutamente
imperioso matar você”. O pescador então pensou: “Esse aí é um gênio e eu sou
um ser humano. Deus me deu inteligência e me preferiu a ele. Com a minha
inteligência, eu planejarei algo contra ele, do mesmo modo que ele planejou
contra mim com sua demonice”. E então ele perguntou ao gênio: “Então é
mesmo imperioso matar-me?”. O ifrit respondeu: “Sim”. O pescador disse:
“Então, pelas prerrogativas do maior nome de Deus, que estava inscrito no anel
de Salomão, filho de Davi, se eu lhe perguntar algo você me contará a
verdade?”. Tremendo e confuso, o ifrit disse: “Pergunte e seja breve”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela sua história, maninha, e espantosa”. Ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que vou lhes contar na próxima noite, que é mais espantoso,
e isso se eu viver e o rei me preservar”.

11ª
noite da maravilha e do
prodígio das narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à sua irmã Šahrāzād: “Maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do pescador e do gênio”. Ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o pescador perguntou: “Pelas prerrogativas do
nome maior de Deus: você de fato estava neste vaso?”. O ifrit respondeu: “Pelas
prerrogativas do nome maior, sim, eu estava aprisionado neste vaso”. O pescador
lhe disse: “Você está mentindo, pois este vaso não cabe sequer as suas mãos ou
seus pés; como poderia caber você inteiro?”. O ifrit replicou: “Juro que eu estava
lá dentro. Por acaso você não acredita nisso?”. O pescador respondeu: “Não”.
Ato contínuo, o gênio se sacudiu, virou fumaça, subiu, estendeu-se sobre o mar,
despencou na terra, ajuntou-se e entrou aos poucos no vaso, até que a fumaça
toda ficou lá dentro. O ifrit então gritou: “Eis-me aqui dentro do vaso, pescador.
Acredite em mim”. Mas o pescador rapidamente recolheu o lacre de chumbo
com o selo, e com ele tapou a boca do vaso, gritando a seguir: “Ó ifrit, pode me
pedir agora a maneira pela qual você deseja morrer; vou jogá-lo nesse mar e aqui
construir uma casa; qualquer pescador que vier pescar, eu vou impedir e alertar
dizendo: ‘Aqui vive um ifrit que vai matar qualquer um que o resgatar, dando-
lhe apenas o direito de escolher a maneira pela qual vai morrer’”. Ao ouvir as
palavras do pescador e ver-se novamente aprisionado, o ifrit quis sair mas não
conseguiu, pois o selo do anel de Salomão, filho de Davi, o impediu.
Compreendendo que o pescador o enganara, ele disse: “Não faça isso, pescador.
Eu estava era brincando com você”. O pescador respondeu: “Você está
mentindo, ó mais nojento e desprezível dos ifrites”, e pôs-se a rolar o vaso em
direção ao mar. O ifrit gritou: “Não, não!”, e o pescador respondeu: “Sim, sim!”.
Então o ifrit se fez humilde e submisso em suas palavras, e disse: “O que você
pretende fazer, pescador?”. Respondeu: “Lançá-lo ao mar. Se você já tinha
ficado mil oitocentos e poucos anos,[74] vou agora deixá-lo ficar até a hora do
Juízo Final. Eu não lhe pedira ‘preserve-me que Deus o preservará; não me mate
que Deus o matará’? Mas você se recusou: queria mesmo era me atraiçoar e
matar; então, eu também atraiçoei você”. O ifrit pediu: “Abra a tampa, pescador,
que eu o tratarei bem e enriquecerei”. O pescador replicou: “Você está mentindo!
Está mentindo! O nosso paradigma é o mesmo do rei Yūnān e do sábio Dūbān”.
[75] O ifrit perguntou: “E qual é o paradigma deles?”. O pescador respondeu:
O REI YūNāN E O MÉDICO DūBāN
Saiba, ó ifrit, que havia numa cidade da Pérsia, numa província chamada Zūmān,
[76] um rei que a governava e cujo nome era Yūnān.[77] Esse rei sofria de lepra
por todo o corpo; não tendo conseguido curá-lo, os médicos e os sábios tinham
se desenganado em relação ao seu caso. Já havia ingerido muitos remédios e
recebido muita pomada no corpo, mas nada disso resultara em benefício algum.
Fora visitar a cidade do rei Yūnān um sábio chamado Dūbān, que lera os livros
gregos, persas, turcos, árabes, bizantinos, siríacos e hebraicos e dominara os
saberes neles contidos, qual era o fundamento da sabedoria neles contida, as
bases em que radicavam suas questões e os benefícios que deles advinham; tinha
conhecimento de todas as plantas e ervas, nocivas e benéficas; detinha o
conhecimento dos filósofos, e passara por todos os ramos do saber. Logo no
início de sua estada na cidade do rei Yūnān, passados poucos dias, ouviu notícias
a respeito do rei e da lepra que lavrava em seu corpo, e que médicos e sábios
haviam sido incapazes de medicá-lo. Na noite em que soube da notícia ele
dormiu, e logo que Deus fez amanhecer e seu astro iluminou e brilhou, o sábio
Dūbān vestiu sua melhor roupa e foi até o rei Yūnān a fim de conhecê-lo
pessoalmente. Então disse: “Ó rei, eu recebi a notícia do que lhe atingiu o corpo,
e que foi tratado por muitos médicos, mas eles não atinaram com uma artimanha
que fizesse a doença desaparecer. Eu vou medicar o rei, mas não o farei ingerir
remédio algum, nem o untarei com pomada nenhuma”. Ao ouvir aquilo, o rei lhe
disse: “Se você de fato fizer isso, vou enriquecê-lo até a sua segunda geração,
dar-lhe muitos presentes e torná-lo meu comensal e hóspede”. E lhe deu um
presente, tratou-o com generosidade e perguntou: “Você irá curar-me sem nada,
nenhum remédio para beber?”. Respondeu: “Sim, irei curá-lo por fora”. O rei
ficou intrigado e o sábio ganhou em seu coração um grande afeto e uma
excelente posição. Depois, o rei disse: “Vamos então, ó sábio, ao que você
referiu”. O médico respondeu: “Ouço e obedeço. Isso se dará amanhã pela
manhã, se Deus altíssimo quiser”. Em seguida, o sábio Dūbān levantou-se e
desceu até a cidade, onde alugou uma casa, e ali começou a trabalhar nos
remédios e drogas dos quais extraía outros remédios. Fez um bastão oco,
colocando-lhe um cabo também oco, que ele encheu das pomadas e drogas que
conhecia. Com sua grande sabedoria, deu muita qualidade e excelente
acabamento ao bastão; e com essa mesma sabedoria, fez uma bola. Quando
terminou, deixando tudo bem caprichado, subiu no segundo dia até o sultão, o rei
Yūnān, e beijou o chão diante dele.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela a sua história”, e ela respondeu: “Você ainda não viu nada
da minha história. Na próxima noite eu lhes contarei algo mais admirável e
espantoso, se eu viver e o rei me preservar”.

12ª
noite dos espantos
e prodígios das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do ifrit e do pescador”. Šahrāzād
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o pescador disse ao ifrit:
Quando foi ter com o rei Yūnān, o sábio Dūbān lhe determinou que
cavalgasse até a arena de jogos, a fim de que o rei jogasse com bastão e bola. O
sultão cavalgou até a praça de jogos, tendo junto de si secretários, nobres,
vizires, os principais de seu Estado e os maiorais de seu reino, todos a seu
serviço. Quando o rei já estava bem instalado, o sábio foi até ele e, estendendo-
lhe o bastão que confeccionara, disse-lhe: “Ó rei venturoso, segure este bastão
pelo cabo, cavalgue pela arena, aperte com firmeza, comprimindo na palma da
mão o cabo do bastão, e bata na bola; cavalgue até suar, de modo que a palma de
sua mão sue no cabo do bastão e o remédio se infiltre a partir de sua mão para o
seu antebraço, donde se espalhará por todo o corpo. Quando suar e o remédio se
introduzir em seu corpo, volte para o palácio, a casa de seu reinado, entre no
banho, lave-se, durma, e então estará curado – e é só”. O rei Yūnān segurou o
bastão conforme lhe dissera o sábio Dūbān e montou no cavalo; jogaram-lhe a
bola, atrás da qual ele se pôs a correr até se acercar dela e atingi-la com uma
bastonada, comprimindo na palma da mão o cabo do bastão. E assim
permaneceu batendo na bola e correndo atrás dela até que a palma de sua mão
suou, e também o seu corpo; o remédio se infiltrou nele a partir do cabo e se
espalhou por todo o seu corpo. O sábio Dūbān, percebendo que o remédio já se
infiltrara e começara a agir no corpo do rei, determinou-lhe que retornasse ao
palácio e dali se dirigisse imediatamente ao banho; o rei obedeceu e tomou um
bom banho; ali dentro mesmo vestiu suas roupas, saiu e regressou ao palácio. Já
o sábio Dūbān ficou em sua casa até o amanhecer; acordou cedo e subiu ao
palácio, onde pediu permissão para se encontrar com o rei; ordenaram-lhe então
que entrasse, e ele entrou, beijou o chão, e, apontando para o rei, recitou os
seguintes versos:
“As virtudes se elevam: agora dizem que és seu pai;
mas quando elas tiveram outro pai que não tu?
Ó dono do rosto cujas luzes
apagam a treva das situações mais terríveis;
tua face é sempre bela e resplandecente,
mesmo quando a face do tempo está fechada;
concedeste-nos, com teu mérito, desejos que
sobre nós agiram como nuvens de chuva em áridas colinas;
colocas em grande risco a tua riqueza
só para alçar-te aos cumes da grandeza”.
Quando o sábio Dūbān concluiu a recitação dos versos, o rei levantou-se,
abraçou-o, fê-lo sentar-se a seu lado e, virando-se para ele, começou a conversar
e a sorrir na sua cara; deu-lhe galardões, presentes, dinheiro e lhe concedeu
pedidos. O fato é que, ao despertar, na manhã seguinte ao banho, o rei examinara
o corpo e não encontrara nenhum vestígio da lepra: parecia prata pura; tomado
de extrema felicidade, seu peito se expandiu e tranquilizou. Assim que
amanheceu, ele se dirigiu à sala de audiências do palácio e se instalou no trono.
Os servos e secretários começaram seus serviços, os vizires e maiorais do Estado
se instalaram em seus lugares; foi nesse momento, conforme já mencionamos,
que o sábio Dūbān apareceu e o rei se pôs de pé, abraçou-o e fê-lo sentar-se a
seu lado, virando-se para ele, tratando-o muito bem e comendo junto com ele.
Então a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e Šahrāzād respondeu: “O restante
da história é mais admirável e espantoso, e, se acaso eu viver, na noite seguinte
lhes contarei uma história mais bela ainda, se o rei me preservar”.

13ª
noite das prodigiosas
e maravilhosas narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão
desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, cujos desígnios tomara que Deus torne dignos
de louvor, [de que o pescador continuou contando ao gênio:][78]
Então o rei Yūnān aproximou o sábio, ofereceu-lhe prêmios e satisfez-lhe os
desejos. E, quando anoiteceu, deu-lhe mil dinares e ele voltou para casa. Com
efeito, o rei Yūnān estava tão maravilhado com a perícia do sábio Dūbān que
disse: “Ele medicou-me pela parte externa de meu corpo; não me deu nenhuma
beberagem nem me passou pomadas. Isso não é senão uma estupenda sabedoria,
que o torna merecedor de honrarias e dignificações, e também que eu o tome por
hóspede, comensal e companheiro”, e foi dormir feliz com a cura da doença e
com o bem-estar e a saúde de que seu corpo gozava. Quando amanheceu e o sol
iluminou e brilhou, o rei se dirigiu para a sala de audiências do palácio,
instalando-se no trono de seu reino; os chefes dos funcionários vieram colocar-se
à sua disposição, e os nobres, vizires e maiorais do Estado vieram assentar-se à
sua direita e à sua esquerda. Nesse momento, o rei mandou chamar o sábio, que
entrou e beijou o solo diante dele. O rei se pôs em pé e fê-lo sentar-se ao seu
lado; comeu com ele, aproximou-o bastante, protegeu-o, presenteou-o e lhe fez
concessões, ficando a conversar com ele até o anoitecer, quando então lhe
entregou mil dinares. O sábio retornou para casa, indo dormir com a esposa, feliz
da vida e agradecido ao rei dadivoso. Quando amanheceu, o rei se dirigiu para a
sala de audiências de seu palácio e sede de seu reino; compareceram os nobres e
vizires para servi-lo. O rei Yūnān tinha um influente vizir, agourento, avarento,
invejoso e dissimulado, o qual, ao notar a aproximação do sábio ao rei, e a
quantidade de dinheiro e de presentes que este lhe dera, temeu que o rei o
demitisse e nomeasse o sábio em seu lugar. Por isso, passou a ter-lhe inveja e a
desejar-lhe o mal – e “nenhum corpo vivo está imune à inveja”.[79] Assim, o
vizir invejoso dirigiu-se ao rei, beijou o chão diante dele e disse: “Ó rei excelso,
meritório senhor, eu me criei em meio a suas dádivas e generosidade; por isso,
tenho um importantíssimo conselho, tão importante que se eu omiti-lo terei sido
um bastardo. Se o magnífico rei e generoso senhor me ordenar, eu proferirei esse
conselho”. O rei, incomodado com aquelas palavras, respondeu: “Ai de você!
Qual é o conselho?”. O vizir disse: “Ó rei, ‘quem não mede as consequências
não tem o destino como bom companheiro’.[80] Eu tenho visto o rei laborar em
erro, tratando bem a seu inimigo, a quem veio para cá com o intuito de lhe
destruir o reino e subtrair tudo o que tem de bom; o senhor tratou-o bem e o
aproximou bastante, e agora eu temo pelo reino”. O rei perguntou: “E sobre
quem você está insinuando? De quem está falando? A quem está se referindo?”.
O vizir respondeu: “Se o senhor estiver dormindo, acorde. Estou me referindo ao
sábio Dūbān, que veio da terra dos bizantinos”. O rei disse: “Ai de você! E esse
é meu inimigo? Ele é o mais veraz dos homens, e o mais estimado e afortunado
para mim, pois esse sábio me medicou com algo que peguei com a mão e me
curou de uma doença que os médicos haviam sido incapazes de curar e que
deixara os sábios desenganados. Não existe ninguém igual a ele neste tempo,
nem a oriente, nem a ocidente, nem distante, nem próximo, e você está a dizer
tais coisas a seu respeito? De hoje em diante vou pagar a ele mil dinares por
mês, e lhe darei outros pagamentos e recompensas. E se porventura eu dividisse
com ele todas as minhas posses e meu reino, ainda assim seria pouco em vista do
que ele merece. Suponho que você está fazendo isso por inveja, tal como disse o
vizir do rei Sindabād quando este quis matar o próprio filho”.
Então a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela respondeu: “E a que ponto
vocês vão chegar então depois do que lhes contarei na próxima noite, e que é
mais admirável e espantoso?”.

14ª
das prodigiosas e
maravilhosas narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, tendo o rei ido para a cama dormir com Šahrāzād, sua irmã
Dīnārzād disse: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo, conte-nos
uma de suas belas historinhas a fim de que atravessemos o serão desta noite”, e
ela respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, [de que o pescador disse:]
Então o vizir do rei Yūnān perguntou: “Perdão, ó rei do tempo, mas o que foi
que disse o vizir do rei Sindabād quando este quis matar o próprio filho?”. O rei
disse ao vizir:
Saiba que, quando o rei Sindabād quis matar o próprio filho por causa da
inveja de um invejoso, seu vizir lhe disse:
O MERCADOR E O PAPAGAIO
Não tome nenhuma atitude que mais tarde vá provocar-lhe arrependimento. Eu
tive notícias a respeito de um homem muito ciumento de sua esposa – bela,
formosa, esplêndida e perfeita –, a tal ponto que o ciúme o impedia de viajar.
Tendo-lhe sucedido, porém, uma premente necessidade de viagem, ele se dirigiu
ao mercado de aves, comprou um papagaio e instalou-o em sua casa a fim de que
fosse seu vigia e lhe informasse as ocorrências durante sua ausência. Esse
papagaio era inteligente, vivo, esperto e de boa memória. Assim, depois de ter
viajado, resolvido suas pendências e retornado, o homem pegou o papagaio e
pediu-lhe as notícias da esposa durante sua ausência, e o papagaio informou-o do
que ela fizera com o amante dia por dia. Ouvindo aquilo, o homem foi até a
esposa e espancou-a até dizer chega, e depois ainda ficou sumamente revoltado.
A esposa julgou então que fora uma das empregadas que delatara suas ações
junto com o amante durante a ausência do marido. Pôs-se assim a interrogá-las
uma a uma, e todas lhe juraram que haviam ouvido o papagaio dar as
informações. A mulher, ouvindo ter sido o papagaio o delator, ordenou que uma
das empregadas tomasse um moinho manual e moesse sob a gaiola, que outra
borrifasse água por sobre a gaiola e que uma terceira rodasse por toda a noite, da
esquerda para a direita, com um espelho de aço. Naquela noite, o marido havia
dormido fora. Quando amanheceu, foi para casa, pôs o papagaio diante de si,
conversou com ele e perguntou-lhe sobre o que ocorrera à noite, durante sua
ausência. Respondeu o papagaio: “Perdoe-me, meu senhor, mas ontem eu nada
pude ouvir ou ver por causa da forte escuridão, da chuva, dos trovões e dos
relâmpagos durante toda a noite até o amanhecer” – aquela, porém, era a estação
do verão, em pleno mês de julho. Disse-lhe o homem: “Ai de você! Agora não é
estação de chuva!”. Respondeu-lhe o papagaio: “Sim senhor, juro por Deus que
durante toda a noite sucedeu o que relatei!”. O homem considerou então que o
papagaio mentira nas acusações que fizera sobre sua esposa, e, indignado,
estendeu as mãos até ele, retirou-o da gaiola e atirou-o ao chão, matando-o. No
entanto, ele soube depois, por meio dos vizinhos, da verdade das palavras sobre
sua esposa, e se arrependeu de ter matado o papagaio em razão das artimanhas
que a mulher preparara.
[Prosseguiu o rei Yūnān:] Também eu, ó vizir...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é bela e espantosa a sua história”. Šahrāzād respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e se
o rei me deixar contar-lhes; é mais espantoso ainda”. O rei pensou: “Por Deus
que, de fato, essa é uma história espantosa”.
Na noite seguinte, Dīnārzād disse à sua irmã Šahrāzād: “Por Deus, maninha,
se você não estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas. Sua
história é um deleite para todo ser humano, afastando as preocupações e fazendo
desaparecer as tristezas”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Disse o rei Šāhriyār: “Que seja o restante da história do rei Yūnān, do vizir, do
sábio Dūbān, do vaso, do ifrit e do pescador”. E Šahrāzād repetiu: “Com muito
gosto e honra”.

15ª
noite do prodígio e da
maravilha das narrativas
das mil e uma noites

Eu tive notícia, ó rei venturoso, [de que o pescador disse:]


Então o rei Yūnān disse ao seu vizir invejoso: “Assim, após ter matado o
papagaio, o homem se arrependeu, pois ouviu dos vizinhos a confirmação do que
lhe dissera a ave. Também você, ó vizir, foi invadido pela inveja a este sábio, e
quer que eu o mate, arrependendo-me depois tal como o dono do papagaio se
arrependeu por tê-lo matado”.[81] Ao ouvir as palavras do rei Yūnān, o vizir
respondeu: “Ó rei de portentosos desígnios, e o que teria feito contra mim o
sábio Dūbān para que eu lhe deseje mal? O homem nunca me provocou dano
algum. Faço o que faço em razão de meus zelosos cuidados para com o senhor, e
de meu temor de que lhe suceda algo. Se o senhor não obtiver a confirmação
disso, pode me matar tal como foi morto o vizir que armou um estratagema
contra o filho de certo rei”. O rei Yūnān perguntou ao vizir: “E como foi isso?”.
O vizir respondeu:
O FILHO DO REI E A OGRA
Conta-se, ó rei venturoso, que certo rei tinha um filho que era grande amante de
caçadas. Esse filho tinha constantemente junto de si um dos vizires de seu pai, o
qual lhe determinara acompanhar todos os passos do rapaz. Certo dia, saíram
ambos e cavalgaram até o deserto. O jovem descortinou uma presa, e o vizir lhe
disse: “Pegue-a; corra atrás dessa caça”. O jovem foi atrás do animal, mas
perdeu-lhe os rastros e se extraviou naquele deserto, sem saber para que lado ir
nem que rumo tomar. Então, eis que viu uma jovem chorando no caminho.
Perguntou-lhe: “De onde você é?”. Ela respondeu: “Sou filha de um dos reis da
Índia. Estava neste deserto, cavalgando minha montaria, quando fui dominada
pelo sono e, distraída, caí do animal. Agora estou longe de todos e assustada”.
Ouvindo as palavras da moça, o filho do rei lamentou-lhe a situação e colocou-a
na garupa de seu cavalo, avançando até topar com umas ruínas. A moça então
lhe disse: “Meu senhor, eu preciso satisfazer uma necessidade logo ali”, e o
rapaz a ajudou a descavalgar. Ela entrou nas ruínas, e o filho do rei foi atrás, sem
saber o que ela era. Observando-a, porém, descobriu tratar-se de uma ogra[82]
que fora dizer aos seus filhotes: “Eu lhes trouxe um jovem bonito e gordinho”.
Os filhotes disseram: “Traga-o logo, mamãezinha, para que pastemos em seu
ventre”.
Disse o vizir : ao ouvir o diálogo deles, o rapaz ficou apavorado, seus
membros se contraíram e, temendo por sua vida, ele retornou.
Disse o vizir : a ogra saiu atrás dele e lhe perguntou: “O que você tem? Por
que está com medo?”. Então ele se queixou da situação que estava enfrentando e
concluiu: “Irei sofrer uma injustiça”. Ela lhe disse: “Se está para sofrer uma
injustiça, então peça ajuda a Deus altíssimo, e ele o livrará do mal que você
teme”.
Disse o vizir : o jovem ergueu as mãos para o céu.
Então a aurora alcançou Šahrāzād, e ela parou de falar. Sua irmã Dīnārzād
disse: “Como é bela e espantosa a sua história”. Šahrāzād respondeu: “Isso não é
nada perto do que vou lhes contar na próxima noite, e que será mais espantoso e
admirável”.

17ª
noite do prodígio e da
maravilha das narrativas
das mil e uma noites
Na noite seguinte, Dīnārzād pediu: “Por Deus, maninha, se você não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas”. Šahrāzād respondeu: “Sim,
com prazer”.
Eu tive notícia, ó rei, [de que o pescador disse:]
Então o vizir disse ao rei Yūnān:
Quando o filho do rei disse à ogra: “Irei sofrer uma injustiça”, e ela
respondeu: “Peça ajuda a Deus e ele o livrará do mal que você teme”, o jovem
ergueu as mãos para o céu e disse: “Ó Deus, faça-me triunfar contra o meu
inimigo, ‘pois vós de tudo sois capaz’”.[83]
Disse o vizir : quando a ogra ouviu a súplica, deixou-o em paz. O jovem
chegou são e salvo até o pai e lhe contou a história do vizir, isto é, que fora ele
que lhe ordenara correr atrás da caça, sucedendo-lhe então tudo aquilo com a
ogra. O rei mandou convocar o vizir e executou-o.
[Prosseguiu o vizir do rei Yūnān:] “Também o senhor, ó rei, a partir do
momento que deu confiança e bom tratamento a esse sábio, e o aproximou de si,
ele passou a tramar seu aniquilamento e morte. Saiba, ó rei, que eu já me
certifiquei de que ele é um agente que para cá veio sob ordens de outro país a
fim de matar o senhor. Acaso não se lembra de que ele o curou pelo exterior de
seu corpo, mediante algo que o senhor tocou?”. O rei Yūnān então respondeu,
furioso: “De fato, você fala a verdade, vizir; talvez, como está dizendo, ele tenha
vindo para matar-me. Quem me curou com algo qualquer que me fez tocar pode
matar-me fazendo-me sentir um odor qualquer”. E continuou: “Ó vizir, ó bom
conselheiro, o que fazer com o sábio?”. O vizir respondeu: “Mande chamá-lo
agora mesmo, ó rei, e ordene que ele venha à sua presença; quando ele
comparecer, corte-lhe o pescoço e assim o senhor terá alcançado seu intento e
triunfado, fazendo o que deve ser feito”. O rei disse: “Eis aí um parecer correto e
um proceder irreprochável”, e mandou chamar o sábio Dūbān, que compareceu
imediatamente, feliz pelas dádivas, cabedais e premiações dadas pelo rei. Tendo
comparecido diante do rei, fez um sinal para ele e recitou os seguintes versos:
“Se acaso parece que eu não vos louvo devidamente,
perguntai então para quem eu fiz minha prosa ou poesia.
Fostes dadivoso comigo antes que eu vos pedisse,
tudo concedendo sem delongas nem escusas.
O que tenho eu, então, que não vos dou os gabos que mereceis,
e que tampouco gabo a vossa magnanimidade, sigilosa ou
[pública?
Eu vos agradeço por todos os bens com que me presenteastes, e que, aliviando-
me o peso à cabeça, me sobrecarregaram
[as costas”.
O rei perguntou: “Ó sábio, acaso você sabe por que mandei chamá-lo?”. O sábio
respondeu: “Não, ó rei”. O rei disse: “Mandei chamar você para matá-lo, tirar-
lhe vida”. Espantado, Dūbān perguntou: “E por que vai me matar, ó rei? Que
crime eu cometi?”. O rei respondeu: “Foi-me dito que você é um espião que aqui
veio para matar-me; então, eis-me aqui, hoje, matando-o antes que você me
mate. ‘Vou almoçá-lo antes que você me jante’”,[84] e gritou chamando o
carrasco, a quem disse: “Corte o pescoço deste sábio e nos livre de seus maus
desígnios; vamos, corte”.
Disse o pescador : ao ouvir as palavras do rei, o sábio percebeu que fora
vítima de algum invejoso devido à proximidade que se estabelecera entre ele e o
rei; haviam agido contra ele, caluniando-o diante do rei para que este o matasse e
pudessem livrar-se dele; também percebeu que tinha parco saber, débil parecer e
não sabia cuidar de seus próprios interesses; arrependeu-se, mas já então de nada
adiantava o arrependimento, e pensou: “Não há poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso. Eu pratiquei o bem e me pagaram com o mal”. Nisso,
o rei já chamara o carrasco aos berros e lhe ordenara: “Corte o pescoço do
sábio”. Dūbān lhe disse: “Ó rei, conserve minha vida e Deus conservará a sua;
mas mate-me e Deus o matará”.
Após repetir essa súplica, o pescador disse ao ifrit preso no vaso: “Do mesmo
modo que eu lhe suplicava, ó ifrit, mas você só queria mesmo me matar”. [E
prosseguiu:]
O rei Yūnān respondeu às súplicas de Dūbān: “É absolutamente imperioso
matá-lo, ó sábio, porque, tendo me curado com algo que toquei, não estou seguro
de que você não me mate com um ardil semelhante”. O sábio disse: “Ó rei, é esta
a recompensa que recebo? O senhor vai de fato pagar uma bela ação com uma
ação tão horrível?”. O rei respondeu: “Não prolongue o assunto; é absolutamente
imperioso matá-lo agora, sem maiores delongas”. Quando teve certeza de que ia
morrer, o sábio Dūbān se agitou, chorou, lamentou-se, entristeceu-se,
recriminou-se por ter feito o bem a quem não o merecia, enfiando-se em tal
pântano, e recitou:
“Maymūna é desprovida de razão,
mas seu pai de razão está nutrido;
acaso não vês que todos tropeçam?
É só caminhar e lá vem o tropeção”.
Quando o carrasco se aproximou, vendando-lhe os olhos, amarrando-lhe as mãos
às costas e exibindo a espada, o sábio se pôs a chorar, a gemer e a implorar: “Por
Deus, ó rei, preserve a minha vida que Deus preservará a sua, mas mate-me e
Deus o matará”. E, chorando, recitou:
“Aconselhei mas não triunfei, e eles traíram e triunfaram;
meus bons conselhos me conduziram à ignomínia;
se eu viver, nunca mais aconselharei, e se eu morrer, amaldiçoem
em todas as línguas os que, depois de mim, ainda aconselharem”.
E prosseguiu: “É essa a recompensa que me dá, ó rei? O senhor me dá a
recompensa do crocodilo?”. O rei perguntou: “E qual é a história do crocodilo?”.
O sábio respondeu: “Não posso transmiti-la agora, nestas condições.[85] Por
Deus, preserve-me a vida e Deus preservará a sua, mas mate-me e Deus também
o matará”, e chorou amargamente.
Disse o pescador : então alguns conselheiros do rei intervieram dizendo: “Ó
rei, conceda-nos o delito dele, ainda que não o tenhamos visto fazer nada que
mereça isso”. O rei respondeu: “Vocês não sabem o motivo pelo qual pretendo
matá-lo. Pois eu lhes digo que, se porventura eu lhe mantiver a vida, estarei
inescapavelmente aniquilado. Se ele me curou da doença que eu tinha – o que os
sábios da Grécia tinham se mostrado incapazes de fazer – por meio de um toque
exterior, não estou seguro de que ele não possa também matar-me com algo que
eu toque pelo exterior. É-me absolutamente imperioso matá-lo, para manter
minha vida a salvo”. O sábio Dūbān repetiu: “Por Deus, ó rei, preserve a minha
vida e Deus preservará a sua, mas mate-me e Deus também o matará”. O rei
respondeu: “É absolutamente imperioso matar você”.
Disse o pescador : quando ficou convicto de que iria morrer, ó ifrit, o sábio
disse: “Adie minha execução, ó rei, para que eu desça até minha casa,
recomende meu enterro, resolva minhas pendências, distribua esmolas e doe
meus livros de ciência e medicina a quem os merece.[86] Também tenho o livro
‘segredo dos segredos’,[87] que gostaria de doar ao senhor, a fim de que seja
depositado em sua biblioteca”. O rei perguntou: “E qual é o segredo desse
livro?”. Respondeu o sábio: “Ele contém coisas inumeráveis, mas o seu segredo
primordial, ó rei, consiste no seguinte: quando o senhor mandar me decapitar e
abrir a sexta folha dele, lendo as três primeiras linhas da página à sua esquerda, e
depois dirigindo a palavra a mim, minha cabeça lhe falará e responderá às
perguntas que fizer”.
Disse o pescador : sumamente assombrado, o rei perguntou: “Quando eu
mandar decapitá-lo e abrir o livro conforme você disse, primeiro lendo as três
primeiras linhas e depois dirigindo-lhe a palavra, sua cabeça me responderá?
Mas isto é o prodígio dos prodígios”. E, em seguida, liberou-o, acompanhado
por uma escolta, e o sábio tomou as providências que desejava tomar. No dia
seguinte, subiu até o palácio, e também subiram os nobres, os vizires, os
secretários, os maiorais do Estado, os líderes militares, os criados do rei, sua
corte e as gentes de maior qualidade de seu reino. Foi então que entrou o sábio,
empunhando um livro muito antigo e um jarro com substâncias em pó. Instalou-
se e disse: “Tragam-me uma bacia”, e nela espargiu e espalhou o pó. Depois
disse: ‘Ó rei, tome este livro mas não o abra até que eu seja decapitado; quando
isso ocorrer, que a minha cabeça seja depositada na bacia; ordene que ela seja
esfregada no pó. Quando vocês tiverem feito isso, o sangue da cabeça cessará de
escorrer. Depois, abra o livro e faça perguntas à minha cabeça, que ela lhe
responderá. Não há poderio ou força senão em Deus altíssimo e poderoso. Por
Deus, preserve a minha vida e Deus preservará a sua, mas mate-me e Deus
também o matará”. O rei respondeu: “Sua morte é absolutamente imperiosa,
sobretudo agora, pois quero ver como a sua cabeça me dirigirá a palavra”. Ato
contínuo, o rei tomou o livro e ordenou que seu pescoço fosse cortado. O
carrasco aproximou-se, desembainhou a espada e aplicou no sábio um único
golpe que lhe cortou a cabeça, lançando-a no meio da bacia; esfregou-a no pó e o
sangue parou de escorrer. O sábio Dūbān abriu os olhos e disse: “Ó rei, abra o
livro”. O rei obedeceu, mas, verificando que as folhas estavam grudadas, levou o
dedo à boca, umedeceu-o com saliva e abriu a primeira folha, e continuou
folheando, embora a custo, pois as folhas não se abriam. Folheou sete páginas,
mas, vendo que não continham escrita alguma, disse: “Ó sábio, não estou vendo
nada escrito neste livro”. O sábio respondeu: “Folheie mais”, e ele folheou mais,
mas tampouco encontrou algo. Mal havia terminado de fazer isso, a droga se
espalhou por seu organismo – pois o livro estava envenenado –, e então ele
titubeou, cambaleou e se curvou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável e espantosa a sua história, maninha”. Šahrāzād
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite,
se eu viver e se for mantida – se o rei me preservar”.

17ª
noite das maravilhosas e
prodigiosas narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas para que
atravessemos o serão desta noite”. O rei disse: “Que seja a continuação da
história do sábio, do rei, do pescador e do ifrit”. Šahrāzād disse: “Sim, com
muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, [de que o pescador disse:]
Quando viu que o rei titubeou, cambaleou e se curvou, e que o veneno já se
espalhara por seu organismo, o sábio Dūbān pôs-se a recitar:
“Exerceram a opressão, e nisso exageraram;
por muito pouco, poderia ter sido outra a decisão;
fossem justos, justiça receberiam, mas iníquos foram
[e iniquidade sofreram;
o destino os cobre de calamidades e desgraças;
receberam, e a situação em que estão fala mais alto,
isto por aquilo, e não há censurar o destino”.
Disse o autor : quando a cabeça do sábio terminou de falar, o rei tombou morto,
e também a cabeça perdeu a vida. Fique sabendo, ó ifrit...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver”.

18ª
noite das prodigiosas e
maravilhosas narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas para que
atravessemos o serão desta noite”. O rei disse: “Que seja a continuação da
história do ifrit e do pescador”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o pescador disse ao ifrit: “Caso o rei tivesse
mantido a vida do sábio, Deus também teria mantido a sua vida. No entanto, ele
rechaçou outra atitude que não fosse matá-lo, e então Deus altíssimo o matou.
Também você, ó ifrit, se no início tivesse aceitado manter a minha vida, eu
igualmente manteria a sua. Entretanto, você rechaçou outra atitude que não fosse
matar-me, de modo que eu o matarei mantendo-o preso nesse vaso e atirando-o
no fundo do mar”.
Disse o autor : o ifrit começou a berrar e disse: “Não, ó pescador, não faça
isso. Mantenha-me a vida, salve-me e não leve em consideração a minha atitude
nem o mal que lhe causei. Se eu tiver praticado o mal, seja você correto e
generoso. O provérbio diz: ‘Faça o bem a quem fez o mal’; não faça como
Imāma fez com ᶜātika”. O pescador perguntou: “E o que Imāma fez com ᶜātika?”.
O ifrit respondeu: “Agora não é o momento de contar histórias, pois estou nesta
prisão estreita; só quando você me libertar”. O pescador disse: “É absolutamente
imperioso lançá-lo ao mar; não existe motivo para tirá-lo ou libertá-lo, pois eu
me humilhei diante de você, e implorei por Deus, mas você se recusou a me
ouvir, e só queria me matar sem que para isso eu tivesse cometido delito algum
que merecesse tal punição, nem feito nenhum mal além de tê-lo retirado da
prisão em que se encontrava. Ao vê-lo fazendo semelhantes ameaças, percebi
que você, na origem, não passa de um ser repulsivo, de natureza vil, que paga
uma bela ação com outra horrível. Depois que eu atirá-lo ao mar, vou construir
aqui um quiosque para mim e ficar nele por sua causa: desse modo, caso alguém
retire você do mar, eu o colocarei a par do que ocorreu entre nós e o advertirei
para que o deixe de lado. Então você ficará aí aprisionado até o final dos tempos,
até morrer, seu ifrit nojento”. O ifrit implorou: “Solte-me, que desta vez eu
prometo que não lhe farei mal nem lhe criarei problemas; pelo contrário, irei
beneficiá-lo com algo que o tornará rico”.
Disse o autor : e foi assim que, após forçar o ifrit a dar sua palavra de honra, e
de obrigá-lo a jurar pelo nome maior, o pescador destampou o vaso; a fumaça se
elevou até que o vaso ficou vazio e logo se juntou, transformando-se no ifrit por
inteiro, que deu um pontapé no vaso, fazendo-o voar para o meio das águas. Ao
ver-lhe tal atitude, o pescador teve certeza de que algo muito ruim lhe ocorreria,
e se mijou todinho pensando: “Esse não é um bom sinal” – e da morte ficou
certo. Mas, reanimando o coração, perguntou: “Ó ifrit, você se comprometeu
comigo e jurou; não seja traiçoeiro; se você voltar atrás, Deus altíssimo vai pegá-
lo pela traição. Eu agora lhe digo, ó ifrit, o mesmo que o sábio Dūbān disse ao
rei Yūnān, mantenha minha vida e Deus manterá a sua, mas mate-me e Deus o
matará”. Então o ifrit riu de suas palavras. O pescador continuou: “Ó ifrit,
mantenha a minha vida”. Então o ifrit disse: “Siga-me, pescador”, e o pescador
começou a andar atrás dele, mal acreditando que se safara, até chegarem às
cercanias da cidade; subiram e desceram uma montanha, saindo num amplo
espaço desértico em cujo centro havia quatro pequenas montanhas, e, no meio
dessas montanhas, um lago diante do qual o ifrit estacou, ordenando ao pescador
que ali lançasse a rede e pescasse. O pescador olhou bem para o lago e notou,
espantado, que ele continha peixes coloridos: brancos, vermelhos, azuis e
amarelos. Então lançou a rede e a puxou de volta, nela recolhendo quatro peixes,
um vermelho, outro branco, outro azul e outro amarelo. Vendo-os, o pescador
ficou admirado e contente. O ifrit lhe disse: “Leve-os até o sultão aqui da sua
cidade e deixe-o vê-los; ele lhe pagará uma quantia que o deixará rico. Que se
aceitem minhas desculpas, pois esta é a única saída que encontrei.[88] Não
pesque mais de uma vez por dia.[89] Vou sentir saudades”, e bateu com o pé no
chão, que se fendeu e o engoliu. E o pescador, ó rei, tomou o rumo da cidade,
espantado com o que se passara entre ele e o ifrit, e também com os peixes
coloridos. Entrou no palácio do rei e mostrou-os a ele, que os observou...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Disse Dīnārzād: “Como são
agradáveis e espantosas as suas histórias, maninha”. Ela respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
mantida”.

19ª
noite da maravilha e
do prodígio das narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, termine para nós a história e o caso do pescador”. Šahrāzād respondeu:
“Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que, quando o pescador lhe exibiu os peixes, o sultão
olhou detidamente para eles e notou que eram coloridos. Então pegou um deles
nas mãos e, muitíssimo admirado, disse ao vizir: “Entregue-os para a cozinheira
que nos foi enviada de presente pelo rei de Bizâncio”. O vizir recolheu-os e
levou-os para a criada, a quem disse: “Ó criada, já dizia o provérbio: ‘Eu só te
escondi, minha lágrima, porque sou forte’. Trouxeram estes quatro peixes ao
sultão e agora ele ordena que você os frite bem fritinhos”. E, retornando,
informou ao sultão de que já cumprira sua ordem. O sultão disse: “Pague ao
pescador quatro mil dirhams”, e o vizir assim fez. O pescador colocou aquele
dinheiro no colo e começou a correr e tropicar, cair e levantar, pensando que
estava num sonho. Em seguida, comprou para a família tudo aquilo de que
necessitavam. Isso quanto ao pescador. Agora, quanto à cozinheira, ela pegou os
peixes, cortou-os, limpou-os, não sem antes lhes tirar a pele, colocou a frigideira
no fogo, nela derramando azeite de sésamo, e esperou que fervesse, quando
então colocou os peixes para fritar. No entanto, mal ela os depositara na
frigideira e os virara do outro lado, a parede da cozinha se fendeu, e através da
rachadura apareceu uma jovem de porte gracioso e faces brilhosas, de qualidades
perfeitas, os olhos pintados com kuḥl;[90] vestia uma túnica muito limpa e sem
mangas, coberta por um tecido com atavios de ouro; nas orelhas, trazia brincos
com pingentes; nos pulsos, pulseiras; nas mãos, uma vara de bambu que ela
enfiou dentro da frigideira, dizendo em linguagem erudita: “Ó peixes, ó peixes,
porventura permaneceis fiéis ao pacto?”.
Disse o narrador : ao presenciar aquilo, a cozinheira desmaiou. A jovem
repetiu pela segunda vez as suas palavras, e então os peixes esticaram a cabeça
para fora da frigideira e disseram em linguagem erudita: “Sim, sim, se voltardes,
voltaremos; se cumprirdes vossa palavra, cumpriremos a nossa; e se nos
abandonardes, ainda assim nos consideraremos recompensados”. Nesse instante,
a jovem virou a frigideira e saiu dali pelo mesmo lugar por onde entrara, e a
parede da cozinha se soldou. A cozinheira despertou, viu os quatro peixes
esturricados como carvão preto e, assustada, ficou com medo do rei e disse: “Já
ao primeiro golpe se quebrou a lança”.[91] Enquanto ela se recriminava, já o
vizir se achegava e dizia: “Traga os peixes, pois já montamos a mesa diante do
sultão, e ele agora os espera”. A cozinheira então chorou e deixou o vizir a par
do que sucedera com os peixes e do que ela vira com seus próprios olhos.
Assombrado, o vizir disse: “Eis aí um desígnio espantoso”. Em seguida, enviou
atrás do pescador um guarda, que após pouco tempo regressou em sua
companhia. O vizir gritou com ele e disse ameaçadoramente: “Ó pescador, você
gostaria de nos trazer agora quatro peixes iguais aos que você trouxe antes? Pois
nós os estragamos!”. O pescador retirou-se, foi para casa, recolheu seus
equipamentos de pesca e saiu da cidade; subiu a montanha, desceu até o deserto
e dirigiu-se até o lago, onde lançou a rede; puxou-a e eis que ela continha quatro
peixes, tal e qual a primeira vez. Levou-os até o vizir, que os entregou à
cozinheira e disse: “Vá e frite-os na minha frente para que eu veja essa coisa
toda”. A cozinheira levantou-se imediatamente, arrumou os peixes, levou a
frigideira ao fogo e colocou-os dentro dela. Quando estavam ficando prontos, a
parede se fendeu e a jovem apareceu com as mesmas roupas, formosa, com
adornos, jóias, colares etc. Na mão, trazia a vara de bambu, que ela enfiou na
frigideira e disse em linguagem erudita: “Ó peixes, porventura permaneceis fiéis
ao pacto?”. Os peixes ergueram a cabeça da frigideira e responderam: “Sim, sim,
se voltardes, voltaremos; se cumprirdes vossa palavra, cumpriremos a nossa; e se
nos abandonardes, ainda assim nos consideraremos recompensados”.
E então a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse:
“Como é agradável essa história”. Šahrāzād respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que vou lhes contar na noite seguinte, se eu ficar viva e se assim
Deus altíssimo o quiser”.
20ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Maninha, se você não estiver


dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas para que possamos atravessar
o serão desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após os peixes terem falado, a jovem
virou a frigideira com a vara de bambu e entrou no lugar de onde havia surgido;
a parede da cozinha se soldou como estava antes. O vizir então disse: “Não é
possível ocultar estes fatos ao sultão” e, dirigindo-se a ele, relatou-lhe o que
acontecera na sua frente com os peixes.
Disse o autor : o rei ficou estupefato e disse: “Quero ver isso com meus
próprios olhos”, ordenando que se fosse atrás do pescador, o qual logo
compareceu. O sultão lhe disse: “Eu quero que você me traga agora quatro
peixes iguais aos que você trouxe antes; seja rápido”, e designou três homens
para ajudá-lo. O pescador saiu na companhia daquela escolta e, após breve
ausência, retornou trazendo os quatro peixes, vermelho, branco, azul e amarelo.
O rei disse: “Paguem-lhe quatrocentos dirhams”, e o pescador, carregando as
moedas ao colo, foi-se embora. O rei disse ao vizir: “Comece a fritar você
mesmo, aqui na minha presença”; o vizir respondeu: “Ouço e obedeço”, e
mandou providenciar frigideira e fogão. Em seguida, limpou os peixes,
derramou óleo de sésamo na frigideira, acendeu o fogão e depositou os peixes na
frigideira. Quando já estavam quase fritos, de repente a parede do palácio se
fendeu; o sultão e o vizir estremeceram e olharam, e eis que era um escravo
negro que parecia uma elevada colina ou algum descendente da raça de ᶜād, de
torre a altura, de banco a largura, na mão carregando uma verde vara de
palmeira; disse em linguagem erudita, mas num tom irritante: “Ó peixes, ó
peixes, porventura permaneceis fiéis ao pacto?”, ao que os peixes, erguendo a
cabeça da frigideira, responderam: “Sim, sim; se voltardes, voltaremos; se
cumprirdes vossa palavra, cumpriremos a nossa; e se nos abandonardes, ainda
assim nos consideraremos recompensados”. Nesse instante, o escravo virou a
frigideira no meio do palácio e eis que os peixes se tornaram negro carvão; o
escravo desapareceu tal como havia aparecido e a parede se soldou, ficando
como estava antes. Quando o escravo se foi, o rei disse: “Eis aí uma questão
relativamente à qual não posso mais ficar sossegado. Não resta dúvida de que
esses peixes têm alguma história, alguma notícia”, e mandou chamar o pescador,
que compareceu. O sultão lhe perguntou: “Ai de você! Onde pesca estes
peixes?”. O pescador respondeu: “Meu senhor, em um lago que fica entre quatro
montes, logo atrás daquela montanha”. O rei voltou-se para o vizir e perguntou:
“Você conhece esse lago?”. O vizir respondeu: “Por Deus que não conheço, ó
rei. Faz sessenta anos que eu viajo, cavalgo e caço por aquelas bandas, às vezes
por um dia ou dois, outras vezes por um mês ou dois, e jamais vi o tal lago, nem
nunca soube que atrás daquela montanha existia um lago”.
Disse o autor : o sultão voltou-se para o pescador e perguntou: “E qual é a
distância para esse lago?”. O pescador respondeu: “Ó rei do tempo, pouco mais
ou menos uma hora”. Intrigado, o sultão determinou que seus soldados se
colocassem a postos; montou e eles montaram imediatamente; o sultão saiu, e o
pescador se pôs a marchar na frente de todos, amaldiçoando o gênio. Avançaram
até as cercanias da cidade, subiram a montanha, desceram pelo outro lado e
desembocaram naquele espaço desértico, que eles nunca tinham visto durante
toda a sua vida. Contemplaram o lago, que ficava de fato entre quatro montes;
sua água era tão límpida que se podiam ver os peixes de quatro cores, vermelho,
branco, azul e amarelo.
Disse o autor : intrigado, o sultão voltou-se para o vizir, os comandantes,
secretários e delegados e indagou: “Existe entre vocês alguém que já tenha visto
este lago na vida?”. Responderam: “Não”. O sultão tornou a perguntar: “E
nenhum de vocês conhecia o caminho até aqui?”.
Disse o autor : então todos beijaram o chão e disseram: “Ó rei, por Deus que
durante toda a nossa vida jamais tínhamos visto este lago antes deste momento;
situa-se nos arrabaldes de nossa cidade, mas nunca o vimos nem sabíamos nada
a seu respeito”. O rei disse: “Nisso haverá alguma nova; por Deus que não
retornarei mais à cidade até descobrir qual é a notícia sobre este lago e estes
peixes de quatro cores”. E ordenou que todos se apeassem, e que se montassem
pavilhões e tendas; ficou acomodado até que anoiteceu, quando então convocou
seu vizir – que tinha muita experiência das coisas e conhecia as reviravoltas do
destino –, o qual se apresentou às escondidas dos soldados. O rei lhe disse: “Eu
quero fazer uma coisa da qual gostaria de deixá-lo a par; é o seguinte: estou com
vontade de ficar sozinho para começar a investigar imediatamente o caso destes
peixes e deste lago. Amanhã pela manhã, instale-se diante da entrada do meu
pavilhão e diga aos comandantes: ‘O rei está incomodado e me ordenou que não
desse autorização para ninguém entrar’; não fale de minha ausência nem de
minha partida para ninguém. Espere-me por três dias”. Sem poder discordar, o
vizir acatou as ordens dizendo: “Ouço e obedeço”. Ato contínuo, o rei cingiu o
cinturão, ajeitou seus apetrechos, pôs a espada real e tomou o caminho de um
dos montes do lago; logo estava sobre ele, e caminhou pelo restante da noite até
o alvorecer. Quando o dia raiou, e sua luz iluminou, brilhou, elevou-se e
estendeu-se sobre o alto do monte, o sultão olhou bem e descortinou, ao longe,
um ponto negro.
Disse o autor : ao ver o ponto negro, o rei ficou contente e seguiu em sua
direção pensando: “Talvez seja alguém que possa prestar-me informações”. E
continuou avançando para lá, verificando então que se tratava de um palácio
construído de pedra negra, coberto por lâminas de ferro e erigido numa
disposição astral que trazia boa sorte.[92] O seu portão estava metade aberto e
metade fechado. Muito contente, o rei parou diante do portão e bateu levemente,
calando-se depois por alguns instantes, mas não ouviu resposta. Bateu de novo,
desta vez mais forte, e se calou, mas não ouviu resposta nem viu ninguém.
Pensou: “Não há dúvida de que agora não há ninguém ou então está
abandonado”. Logo se encheu de coragem e entrou pelo portão, dali chegando ao
vestíbulo de entrada, de onde gritou: “Ó moradores do palácio, eis aqui um
estrangeiro, um viajante esfomeado. Será que vocês não teriam algum alimento
para lhe dar, ganhando com isso o prêmio e a recompensa do Senhor da
Criação?”. Repetiu tais palavras uma segunda vez, uma terceira, mas não ouviu
resposta. Fortaleceu o coração, encheu-se de determinação, e marchou do
vestíbulo até o centro do palácio; pôs-se a olhar à direita e à esquerda, mas não
viu ninguém.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e prodigiosa a sua história, maninha”. Ela respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite, se eu viver e se Deus
altíssimo quiser”.

21ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas histórias para que atravessemos o
serão desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que, vendo-se no centro do palácio, o sultão olhou
para todos os lados e não viu ninguém; notou que tinha tapetes de seda, esteiras
de couro estiradas, cortinas soltas, sofás, assentos e almofadões; em seu centro,
um saguão espaçoso com quatro aposentos contíguos em forma de abóbada, um
em face do outro; banco, armário, piscina e fonte; sobre esta última havia quatro
leões de ouro vermelho, de cujas bocas fluía água, bem como pérolas e gemas;
na parte interior do palácio, pássaros canoros voavam, e redes os impediam de
sair. Ao ver todas aquelas coisas, mas não um ser humano, o rei se lamentou e
ficou espantado de não encontrar ninguém para indagar. Em seguida, sentou-se
ao lado de um dos aposentos para refletir a respeito e ouviu gemidos
provenientes de um fígado entristecido, choro, lamentos e a seguinte poesia:
“Ó destino, não te apiedas de mim?
Eis a minha vida, entre a labuta e o risco.
Apiedai-vos de um homem outrora poderoso a quem
a paixão humilhou, e outrora rico, que empobreceu.
Eu era cioso até mesmo da brisa que aspiráveis,
mas o inevitável, quando ocorre, cega todas as vistas.
Que pode fazer um arqueiro quando, diante do inimigo,
quer disparar sua flecha mas o arco se quebra?
Quando as ofensivas são muitas contra um jovem,
para onde fugir do destino, para onde?”.
Disse o autor : ao ouvir tal poesia e tal choro, o rei se levantou e seguiu na
direção da voz, até encontrar uma cortina baixada sobre a porta de um aposento;
retirou-a e olhou lá dentro, e eis que no meio do aposento havia um jovem
sentado numa cadeira mais alta do que o solo cerca de uma braça; era um jovem
de formas gentis, boa estatura e linguagem erudita; sua fronte era como a flor, e
seu rosto, como a lua; sua barba, esverdeada; suas bochechas, vermelhas; e o
brilho da lua em seu rosto se assemelhava a uma pedra de âmbar, tal como disse
o poeta a respeito:
“É tão esbelto, com esse cabelo e essa beleza,
que ofusca os demais seres num claro-escuro;
não estranhem a marca que traz na bochecha:
em cada lado um negro ponto”.
Disse o autor : muito contente por tê-lo encontrado, o sultão cumprimentou-o. O
jovem estava sentado, coberto por um manto de seda com bordados de ouro
egípcio; sobre a sua cabeça, havia um barrete cônico egípcio; não obstante,
apresentava indícios de tristeza e depressão. Quando o sultão o cumprimentou, o
jovem respondeu com as melhores saudações e disse: “O senhor merece bem
mais do que eu me levantar para cumprimentá-lo, mas tenho uma desculpa para
não tê-lo feito”. O sultão respondeu: “Ó jovem, você já está desculpado; eu sou
seu hóspede, e vim aqui atrás de uma necessidade premente: quero que você me
informe a respeito do lago e dos peixes coloridos; quanto a esse palácio, por que
está assim isolado? Não há ninguém que lhe faça companhia? E qual o motivo
do seu choro?”. Ao ouvir as perguntas do rei, as lágrimas do jovem começaram a
escorrer-lhe pelas faces até empapar o peito, e ele recitou os seguintes versos de
mawālyā:[93]
“Perguntem àquele contra quem os dias lançaram suas setas:
quanto tempo as calamidades estancaram, quanto agiram?
Se você estiver dormindo, saiba que o olho de Deus não dorme!
Para quem os tempos são bons, e a quem o mundo pertence?”
Em seguida, verteu um choro copioso. Espantado com tal atitude, o rei
perguntou-lhe: “Por que esse choro, meu jovem?”. O jovem respondeu: “Como
não chorar, meu senhor, estando em tal situação?”, e, estendendo a mão para o
manto que o cobria, retirou-o. O rei olhou e eis que metade do jovem, do umbigo
aos pés, era de pedra negra, a outra metade, do umbigo à cabeça, era humana.
E então a aurora alcançou Šahrāzād, e ela parou de falar. O rei Šāhriyār
pensou: “Essa é uma história verdadeiramente assombrosa; e, com efeito, irei
adiar a morte dessa moça por cerca de um mês, mas em seguida a matarei” – foi
isso o que ele disse de si para si. Quanto a Dīnārzād, ela disse à irmã: “Como é
agradável a sua história, maninha”. Šahrāzād respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite, se eu viver e se assim
quiser Deus altíssimo”.

22ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó majestade, de que o rei, vendo o jovem naquela situação,
ficou bastante entristecido e aflito. Lamentando-se, perguntou: “Meu jovem,
você só fez aumentar as minhas preocupações. Eu estava atrás da salvação dos
peixes e de notícias a respeito deles, mas agora estou interessado também nas
notícias a seu respeito. Não há poderio ou força senão em Deus altíssimo e
poderoso! Seja rápido, meu jovem, e transmita-me a história”. O jovem pediu:
“Eu gostaria que você se entregasse a isso com a audição, a visão e a
inteligência”. O rei respondeu: “Eis aqui presentes minha audição, minha visão e
minha inteligência”. Então o jovem disse:
O REI DAS ILHAS NEGRAS E SUA ESPOSA
Estes peixes e eu temos uma história espantosa e prodigiosa, a tal ponto que, se
fosse gravada com agulha no interior das retinas, constituiria lição permanente
para quem reflete. Saiba, meu senhor, que meu pai era o rei desta cidade, e se
chamava o rei Maḥmūd, o rei das Ilhas Negras – aqueles quatro montes que o
senhor viu eram as ilhas. Ele reinou por setenta anos e depois morreu, sendo eu
então entronizado em seu lugar. Casei-me com minha prima, que tinha por mim
um grande amor, tão grande que se eu me ausentasse um dia inteiro que fosse,
ela não comia nem bebia até me ver de novo ao seu lado. Estávamos casados
havia cinco anos quando, certo dia, tendo ela ido ao banho, eu ordenei ao
cozinheiro que lhe preparasse um assado e um lauto jantar. Em seguida, entrei
neste palácio e me deitei para dormir nesse local onde o senhor agora está
sentado. Ordenei a duas servas que me abanassem,[94] uma à minha cabeça,
outra a meus pés. Logo comecei a me sentir incomodado, sem conseguir
conciliar o sono, muito embora meus olhos estivessem fechados e minha alma
começasse a flutuar; foi então que ouvi a serva que estava à minha cabeça dizer
à que estava a meus pés: “Ai, Masᶜūda, tadinho do nosso senhor! Tadinha da sua
juventude! Que esperdício de juventude com essa nossa patroa, a maldita!”. A
outra respondeu: “Ih, fica quieta! Que Deus amaldiçoe as traidoras, as
vagabundas! Ai ai, um homão que nem nosso senhor! Tão mocinho! Casado
com aquela safada que toda noite dorme fora!”. Masᶜūda disse: “E esse nosso
senhor é besta? Por que ele não acorda de noite? Se acordar, vai ver que ela não
está na cama!”. A outra respondeu: “Ai ai, que Deus acabe com essa nossa
patroa, a puta! E ela por acaso deixa o coitado fazer alguma coisa? Ela coloca
um calmante na taça de bebida que ele toma antes de dormir; ela dá pro coitado
beber e ele fica que nem morto; aí ela sai e some até de manhãzinha. E quando
volta ela aplica uns cheiros no nariz do coitado e aí ele acorda. Quanto
esperdício, quanta perca!”.[95]
Prosseguiu o jovem: Quando ouvi as palavras delas, meu senhor, fui tomado
por uma violenta e irrefreável cólera. Mal pude esperar que a noite chegasse,
quando então minha prima retornou do banho. Estendemos a toalha, comemos
um pouco e fomos para a cama na qual eu dormia. Fingi que bebia a taça, mas
derramei-a e deitei-me. Mal eu havia esticado meus membros na cama e eis que
ela dizia: “Durma! Quem dera que você nunca mais acordasse! Por Deus que eu
já não suporto a sua figura, e me causa tédio a sua companhia”. Em seguida ela
se levantou, vestiu as roupas, perfumou-se, pegou minha espada, cingiu-a à
cintura, abriu as portas e saiu. Então eu me levantei, meu senhor...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Disse-lhe Dīnārzād: “Como
é agradável e prodigiosa a sua história, minha senhora”. Šahrāzād respondeu: “E
como vocês ficarão com o que eu irei contar-lhes na próxima noite?”.

23ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas histórias”. Šahrāzād respondeu:
“Com muito gosto e honra”.
Contam, ó majestade, que o jovem enfeitiçado disse ao rei:
Então eu me pus a segui-la desde sua saída do palácio: ela atravessou a cidade
até chegar aos seus portões; ali, pronunciou algumas palavras que não
compreendi e logo os cadeados se soltaram e os portões se abriram sozinhos. Ela
saiu e eu a segui até que penetrou no meio de uma região cheia de lixo e detritos,
logo chegando a um cercadinho com choupana de barro, onde entrou. Rastejei
pela cobertura da choupana, comecei a espiar e eis o que vi: minha mulher[96]
em pé na frente de um negro escravo bexiguento[97] sentado nuns restos de
palha de bambu e coberto por uma velha manta e trapos. Ela beijou o chão diante
dele, que ergueu a cabeça em sua direção e disse: “Safada! Por que demorou
tanto? Agora mesmo os meus primos, a negrada, estavam aqui com a gente;
tomaram cerveja e jogaram bola e bastão, todos em grande alegria, cada qual
com a namorada. Só eu não quis beber por causa da sua ausência”. Minha
mulher disse: “Meu senhor, amado de meu coração, acaso você não sabe que sou
casada com meu primo e que por causa dele, por ter de ver a cara dele, passei a
detestar todas as criaturas; por causa da companhia dele, passei a odiar os seres
humanos. Se eu não tivesse medo de deixar você zangado, antes mesmo que o
sol raiasse eu transformava a cidade dele em ruínas sobre as quais corujas e
corvos iam crocitar, e raposas e lobos iriam se refugiar. E também mandaria as
pedras da cidade para lá das montanhas do fim do mundo”.[98] O negro disse:
“Está mentindo, maldita! Juro e prometo, pela virilidade dos negros, que a partir
desta noite, se você se atrasar de novo para as festas com meus primos, não serei
mais seu namorado. Não deitaremos com você, nem deixaremos nosso corpo
encostar no seu. Sua maldita! Está brincando de jogar pedrinhas[99] com a
gente? E por acaso a gente está por conta do seu tesão, sua maldita fedorenta?”.
Quando ouvi o que estava ocorrendo entre eles, meu senhor, o mundo sumiu e
escureceu diante de meus olhos; perdi até mesmo a noção de onde estava.
Enquanto isso, minha mulher começara a chorar e a implorar: “Ó amado de meu
coração, ó fruto de minha vida, se você ficar bravo comigo, quem mais me
restará? Se você me expulsar, quem me dará abrigo? Meu sinhozinho, meu
amado, luz dos meus olhos!”. E tanto chorou e se humilhou que ele afinal lhe
concedeu o perdão. Muito contente, minha mulher tirou o xale, ficou bem à
vontade com roupas leves e perguntou: “Porventura você não tem, meu senhor,
alguma coisa para esta sua escravinha comer?”. O escravo respondeu: “Olhe na
bacia”, e ela tirou a tampa, viu uns restos de ossos de rato frito e os comeu. Ele
disse: “Vá até aquele jarro, que tem um restinho de cerveja, e beba”, e ela se
levantou, bebeu, lavou as mãos e, retornando, deitou-se com o escravo sobre a
palha, ficou nua e entrou com ele debaixo daquela manta e daqueles trapos.
Então eu desci do telhado, entrei pela porta, peguei a espada que minha mulher
trouxera consigo, desembainhei-a e, dispondo-me a matar ambos, golpeei
primeiramente o escravo no pescoço, e julguei que o havia liquidado.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Na próxima noite irei
contar-lhes algo melhor, se eu viver”.

24ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas”. Šahrāzād
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó majestade, de que o jovem enfeitiçado disse ao rei:
Quando acertei o golpe no escravo, meu senhor, não lhe rompi a jugular, mas
atingi o gasganete, cortando pele e carne, e julguei que o matara. Ele soltou
roncos elevados e minha mulher saiu de perto dele; dei um passo atrás, devolvi a
espada ao local onde estava e regressei à cidade; entrei, acorri ao palácio e me
deitei na cama até o amanhecer. Vi quando minha mulher chegou: cortara os
cabelos, trajava luto e me disse: “Ó meu marido! Não se oponha ao que estou
fazendo, pois eu recebi a notícia de que minha mãe morreu, que meu pai foi
morto durante os esforços de guerra e, quanto aos meus irmãos, um morreu de
uma picada e o outro numa queda. Por isso, tenho o direito de chorar e de me
entristecer”. Ao ouvir-lhe as palavras, deixei-a em paz dizendo: “Faça o que
melhor lhe aprouver: não me oporei a nada”. E ela permaneceu em choros,
tristezas e lamúrias durante um ano inteiro, doze meses. Findo esse ano, ela
disse: “Gostaria que você construísse no palácio uma tumba em forma de casa
para que eu possa consagrá-la ao luto e dar-lhe o nome de ‘casa das tristezas’”.
Respondi: “Faça o que melhor lhe aprouver”. Então ela ordenou que se
construísse para si uma casa de tristezas, no centro da qual erigiu um pavilhão
com uma tumba ao modo de mausoléu. Em seguida, meu senhor, ela transferiu o
escravo ferido para o tal pavilhão, depositando-o no mausoléu. Agora, ele já não
lhe produzia benefício algum – e desde que eu o ferira ele nunca mais havia
falado –, mas ainda sorvia líquidos, pois sua hora ainda não soara. Ela ia visitá-
lo diariamente, de manhã e à tarde; ficava ao seu lado no pavilhão, chorando,
enumerando-lhe as qualidades e ministrando-lhe bebidas e caldos. E ficou nessa
atitude até que se completou mais um ano, enquanto eu me armava de paciência
e não lhe dizia palavra. Até que, certo dia, fui visitá-la inadvertidamente e a vi
chorando, enumerando-lhe qualidades e dizendo:
“Quando vejo a tua desgraça
fico mal conforme estás vendo;
quando somes de minhas vistas,
me acontece o que estás vendo!
Minha vida, fala comigo!
Meu senhorzinho, conversa comigo!”.
A seguir, recitou o seguinte:
“O dia do triunfo será quando a mim vos achegardes,
e o da morte, quando de mim vos afastardes.
Posso até dormir com sustos e ameaças de morrer,
mas estar convosco é para mim melhor do que viver”.
E depois ela disse a seguinte poesia:
“Mesmo se eu acordasse com todas as riquezas,
e possuísse o mundo e o reino dos persas,
tudo isso para mim não valerá uma asa de inseto
se meus olhos não contemplarem a tua figura”.
Disse o narrador : quando ela parou de chorar, eu lhe disse: “Minha prima,
chega de luto e tristeza. O que o pranto vai lhe trazer? Já não resolve nada!”. Ela
respondeu: “Não se oponha ao que estou fazendo, meu primo, pois caso
contrário irei me suicidar”. Calei-me então e deixei-a em paz. E ela continuou
em choros, tristezas e elogios fúnebres por mais um ano. Após o terceiro ano,
certo dia entrei encolerizado na casa, devido a algo que me sucedera, e também
considerando excessivamente longo todo aquele sofrimento, e encontrei-a dentro
do pavilhão, ao lado do mausoléu, dizendo: “Meu senhorzinho, não lhe ouço
nenhuma palavra! Meu senhor, já faz três anos que não me responde!”. E recitou
o seguinte:
“Ó túmulo, ó túmulo! Terão seus méritos se extinguido,
ou porventura se extinguiu essa figura resplandecente?
Ó túmulo, se não és jardim e muito menos astro,
como podem em ti reunir-se o sol e a lua?”.
Quando lhe ouvi as palavras e a poesia, fiquei ainda mais encolerizado e disse:
“Ai! Até quando isso vai durar?”, e recitei o seguinte:
“Ó túmulo, ó túmulo! Terão seus deméritos se extinguido,
ou porventura se extinguiu essa figura asquerosa?
Ó túmulo, se não és latrina e muito menos lixeira,
como podem em ti reunir-se o carvão e a sujeira?”.
Quando ouviu minhas palavras, ela se ergueu em posição de ataque e disse: “Ai
de ti, cachorro! Então foi você que fez isso comigo? Feriu o adorado de meu
coração e me fez perder a juventude dele? Faz três anos que ele não está nem
morto nem vivo!”. Respondi: “Ai, mais nojenta das rameiras, mais imunda das
putas amantes de escravos negros, a quem corrompem com dinheiro! Sim, fui
eu! Fui eu que fiz isso!”, e, pegando da espada, desembainhei-a na palma da mão
e apontei-a em direção a ela para matá-la. Ao ouvir minhas palavras e constatar
minha disposição em matá-la, ela riu e disse: “Fracasse que nem um cachorro!
Quem dera, quem dera pudesse o tempo voltar e quem morreu ressuscitar.
Agora, contudo, Deus colocou à minha mercê a pessoa que fez isso comigo,
contra a qual ardia em meu coração um fogo que não se apagava e uma labareda
que não se escondia!”. E, pondo-se de pé, pronunciou palavras que eu não
compreendi e disse: “Com minha magia e ardil eu o transformo em metade pedra
e metade homem”, e, após me retorcer todo, transformei-me nisto que você está
vendo, meu senhor: angustiado, triste, sem poder levantar-me, nem me sentar,
nem dormir. Nem estou morto com os mortos, nem vivo com os vivos.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar e de contar a história.
Dīnārzād disse: “Como é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Na próxima noite eu irei contar-lhes algo melhor, se eu viver e o rei
me preservar”.

25ª
noite das narrativas das
mil e uma noites
Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas a fim de que atravessemos o
serão desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Contam, ó rei, que o jovem enfeitiçado disse ao rei:
Depois que me transformei nisso, ela também enfeitiçou a cidade e todos os
seus jardins, vales e mercados, que agora constituem o local onde estão os seus
pavilhões e soldados. O povo de minha cidade era composto de quatro
comunidades, muçulmanos, zoroástricos, cristãos e judeus, e a todos ela
enfeitiçou transformando-os em peixes: os brancos são os muçulmanos; os
vermelhos, os zoroástricos; os azuis, os cristãos; e os amarelos, os judeus. As
quatro ilhas ela transformou nas montanhas que circundam a lagoa. Em seguida,
como se tudo isso e ainda a situação em que fiquei não lhe bastassem, ela
diariamente me despe e me aplica cem chibatadas, até que meu sangue escorra e
meus ombros se lacerem, e em seguida põe em minha metade superior um tecido
de pelo que parece conter cilício, colocando por cima de tudo roupas opulentas.
Em seguida o jovem chorou e recitou a seguinte poesia:
“Paciência com a tua decisão e decreto, meu Deus;
eu esperarei se nisso estiver a tua satisfação;
atacaram-nos, agrediram-nos e nos injustiçaram;
quiçá em algum paraíso sejamos recompensados.
Que jamais esqueças, meu senhor, injustiçado algum;
o que te peço, apenas, é que me retires deste inferno”.
O rei disse ao jovem: “Você me aumentou as preocupações após ter dirimido
minha dúvida obsessiva”, e prosseguiu: “Onde ela está, meu jovem, e onde é o
mausoléu do escravo ferido?”. O jovem respondeu: “Ó rei, o escravo está
instalado no pavilhão; é ali seu mausoléu, e fica no aposento contíguo à porta.
Minha mulher vem diariamente a ele uma vez, ao nascer do sol. Quando chega,
me despe e aplica cem chibatadas; eu choro e grito, mas não posso fazer nenhum
movimento para avançar contra ela, nem tenho forças para me defender em
razão de estar transformado em metade pedra, metade carne e sangue. Depois de
me punir, ela vai até o escravo carregando bebida e caldo para ministrar-lhe. Na
manhã seguinte ela volta: é assim que tem sido”. O rei disse: “Por Deus, meu
jovem, tomarei em seu benefício uma atitude mediante a qual serei lembrado e
que no futuro entrará nos registros dos historiadores”. E pôs-se a conversar com
o jovem até que anoiteceu e ambos dormiram. Por volta da manhãzinha, o rei
levantou-se, despiu-se, desembainhou a espada e dirigiu-se ao aposento onde
estava o pavilhão e o mausoléu. Viu velas, lampiões, incensos, perfumes, açafrão
e unguentos. Foi até o escravo, matou-o, colocou-o às costas, saiu e jogou-o num
poço que havia no palácio. Depois retornou, vestiu as roupas do escravo,
enrolou-se todo e se deitou, enfiando-se bem no fundo do mausoléu, com a
espada desembainhada encostada bem ao longo do corpo, entre as roupas. Após
alguns instantes, a maldita feiticeira chegou e entrou. A primeira coisa que fez
foi despir o marido, recolher um chicote e caprichar no açoite. O rapaz gritava:
“Ai ai ai, prima! Tenha piedade, prima! Me dê descanso, já basta o que estou
sofrendo, já basta o que se decidiu contra mim! Tenha pena!”. Ela respondeu:
“Antes você tivesse pena de mim e preservasse o meu amado!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
bela e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver”. O rei Šāhriyār,
assombrado e comovido pelo enfeitiçado, espantado e com o coração condoído
por ele, pensou: “Por Deus que irei adiar sua morte por esta noite e por tantas
noites quantas forem necessárias, mesmo que se passem dois meses, para ouvir o
restante dessa narrativa e o que sucedeu ao jovem enfeitiçado. Depois então eu a
matarei, conforme o hábito com as outras”. Tais eram as cogitações do rei.

26ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Disse o autor : na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não
estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas histórias a fim de
passarmos o serão desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que a feiticeira, após surrar o marido, punindo-o com
a chibata até ficar satisfeita e escorrer sangue dos flancos e dos ombros do rapaz,
vestiu-o com o manto de pelo com cilício, colocando por cima as roupas
opulentas. Ato contínuo, foi até o escravo carregando uma taça de bebida e um
caldo, conforme o hábito. Entrou no aposento, caminhou até o pavilhão, chorou,
gritou e passou a enumerar-lhe as qualidades dizendo: “Não é comum que nos
impeçam de nos achegar a vocês, nossos amados! Não sejam avaros, pois os
inimigos estão muito satisfeitos com a sua ausência. Visitem-nos, pois minha
vida depende de sua visita. Mantenham uma bela relação, pois o abandono não é
seu costume. Meu senhor, fale comigo, meu senhor, diga-me algo!”. E logo
recitou a seguinte poesia:[100]
“Até quando tanta resistência e secura?
Será que as lágrimas que verti já não bastam?
Meu amor, fale comigo!
Meu amor, me diga algo!
Meu amor, me responda!”.
Então o rei, com voz baixa e engrolando a língua à maneira dos negros, disse:
“Ih ih ih!, não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso!”.
Ao ouvir suas palavras, a feiticeira gritou de alegria e desmaiou. Em seguida,
acordou e disse: “Meu senhor, é mesmo verdade que você falou comigo?”. O rei
respondeu: “Ó maldita, e você por acaso merece que alguém lhe fale ou
responda?”. Ela perguntou: “E qual é o motivo disso?”. O rei respondeu: “Você
passa o dia inteiro surrando o seu marido, e ele pede tanto socorro que me
impede de dormir! Desde o anoitecer até o amanhecer ele chora, suplica e roga
contra você e contra nós. Ele me causa insônia e irritação. Não fosse isso, eu
teria melhorado há muito tempo. Foi isso que me impediu de lhe responder ou
lhe dirigir a palavra”. Ela disse: “Meu senhor, com a sua permissão eu o livrarei
do feitiço”. Ele disse: “Livre-o e poupe-nos da voz dele”. Então a mulher saiu do
pavilhão, tomou uma taça cheia de água e pronunciou algumas palavras: a água
ferveu e borbulhou tal como se estivesse num caldeirão ao fogo. Em seguida,
espargiu-o com a água e disse: “Em nome daquilo que eu recitei e pronunciei, se
o criador tiver criado você nesta forma ou amaldiçoado, não mude de forma;
porém, se acaso você tiver ficado assim em virtude de meu feitiço e ardil, saia
dessa forma e retome a forma com a qual foi criado, com permissão do criador
do mundo”. E o rapaz se chacoalhou e se levantou reto, ficando muito feliz com
o alívio que recebera e com sua salvação. Disse: “Graças a Deus”, e a feiticeira
ordenou: “Desapareça das minhas vistas e nunca mais volte aqui. Se eu voltar a
ver você, irei matá-lo”, e gritou com ele, que sumiu de suas vistas. Então a
jovem regressou ao pavilhão, aproximou-se do mausoléu e disse: “Saia agora,
meu senhorzinho, para que eu contemple a sua bela figura”. O rei respondeu
com palavras murmuradas: “Você me deu descanso do motivo secundário, mas
não do principal”. Ela perguntou: “E qual é o principal, meu senhorzinho?”. Ele
respondeu: “Ai de ti, maldita! É o povo desta cidade e das quatro ilhas! Toda
noite, bem no meio da noite, os peixes tiram a cabeça para fora da lagoa pedindo
socorro e rogando pragas contra mim. É esse o motivo que me impede de
recobrar a saúde! Vá depressa livrá-los disso e depois venha pegar-me pela mão
para me levantar daqui, pois estarei caminhando para a cura”. Ouvindo tais
palavras, a feiticeira, muito feliz e cheia de esperanças, disse: “Sim, meu senhor.
Claro, com o auxílio de Deus,[101] meu coração”. E, levantando-se, foi até a
lagoa, recolheu um pouco de sua água...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável e assombrosa a sua história”. Ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

27ª
noite das espantosas e
assombrosas histórias
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo, conte-
nos uma de suas belas historinhas a fim de que atravessemos o serão desta
noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Contam, ó rei, que a jovem pronunciou umas palavras na lagoa e os peixes
começaram a pular e chacoalhar-se. A seguir, ela desfez o feitiço que lançara
sobre eles e de pronto o povo da cidade já estava em suas atividades de venda e
compra e no leva-leva. Então ela ingressou no palácio, atravessou o pavilhão e
disse: “Meu senhor, estenda-me sua mão gentil e levante-se”. O rei respondeu
com palavras murmuradas: “Aproxime-se de mim”, e ela se inclinou. Ele
continuou: “Aproxime-se mais”, e ela se aproximou até se encostar a ele: foi
quando o rei se ergueu célere, achegando-se ao seu peito, e lhe desferiu com a
espada um golpe que a cortou em duas, atirando-a ao chão assim cortada. Saiu e
encontrou o jovem que estivera enfeitiçado parado a esperá-lo. O jovem saudou-
o por estar bem e beijou a mão do rei, agradecendo-lhe e rogando por ele, que
lhe perguntou: “Você prefere ficar em sua cidade ou vir comigo para a minha?”.
O jovem disse: “Ó rei do tempo, soberano dos períodos e das eras, o senhor
porventura sabe a que distância está de sua cidade?”. O rei respondeu: “Meio
dia”. O jovem disse: “Ó rei, acorde. Entre a sua cidade e a minha a viagem é de
um ano inteiro. Quando o senhor chegou até nós em meio dia, a cidade estava
enfeitiçada”. O rei perguntou: “Então, você vai permanecer em sua cidade ou vir
comigo?”. O jovem respondeu: “Ó rei, eu nunca mais irei abandoná-lo por um só
momento”. O rei ficou feliz com tais palavras e disse: “Louvores a Deus, que
atendeu aos meus pedidos por seu intermédio. Você vai ser meu filho, pois
durante toda a minha vida não fui agraciado com nenhum rebento”. E se
abraçaram fortemente,[102] muito felizes. Depois caminharam juntos até o
palácio, e o jovem rei distribuiu ordens aos principais do Estado e aos notáveis
do reino, disse que estava de viagem e ordenou que se reunissem as coisas de
que precisaria; os líderes e os mercadores da cidade trouxeram-lhe tudo e ele se
preparou durante dez dias, ao cabo dos quais iniciou a viagem com o rei mais
velho, o coração opresso por causa de sua cidade: como poderia ausentar-se dali
durante um ano inteiro? Junto consigo viajavam cinquenta serviçais carregando
cem sacos com presentes, joias, dinheiro e tesouros que ele possuía. Também pôs
às suas ordens quantos criados e guias considerou necessários. E viajaram por
dias e noites, tardes e manhãs durante um ano completo. Deus havia escrito que
eles chegariam bem à cidade do rei velho; enviaram antes um emissário para
informar o vizir da chegada do rei e de que ele estava bem. O vizir saiu então
com todos os soldados e a maioria dos moradores da cidade para recebê-lo. Todo
mundo ficou extremamente feliz depois de terem se perdido as esperanças de
revê-lo. A cidade foi adornada e seu solo foi forrado com seda. O rei velho se
reuniu com o vizir – depois que este e todos os soldados se apearam e beijaram o
solo diante dele, saudaram-no por estar bem, rogaram por ele, entraram na
cidade e o rei velho se instalou no trono – e o informou de tudo quanto sucedera
com o jovem, deixando-o também a par do que fizera com sua esposa, e que
aquele fora o motivo da salvação da cidade e do jovem, e igualmente o motivo
de sua ausência por um ano. O vizir voltou-se para o jovem e felicitou-o por
estar bem. Os comandantes, vizires, secretários e representantes instalaram-se
cada qual em seu assento; o sultão distribuiu prêmios, fez concessões e foi
generoso. Enviou um emissário atrás do pescador, que fora o motivo da salvação
do rapaz e da população de sua cidade. O pescador veio e se colocou diante do
rei, que lhe deu presentes e perguntou: “Porventura você tem filhos?”. O
pescador informou-o de que tinha um filho e duas filhas.[103] O rei mandou
convocá-los todos e se casou com uma das filhas, casando a outra com o jovem.
Contratou o filho do pescador como responsável por seu guarda-roupa. Em
seguida, nomeou o vizir sultão da cidade das Ilhas Negras, enviando-o para lá,
após o juramento, junto com os cinquenta serviçais que haviam vindo com eles.
Enviou mais muita gente com o vizir e distribuiu vários presentes e joias para
todos os comandantes e mestres de ofício. O vizir despediu-se beijando-lhe a
mão e partiu em viagem. O sultão e o jovem ficaram juntos, e o pescador se
tornou um dos homens mais ricos de seu tempo, com as filhas casadas com reis.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável e admirável esta sua história, maninha”. Ela respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que vou contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.[104]

28ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas”. Šahrāzād respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
O CARREGADOR E AS TRÊS JOVENS DE BAGDÁ
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que um morador da cidade de Bagdá era
solteiro e exercia a profissão de carregador. Certo dia, estando parado no
mercado, encostado ao seu cesto de carga, passou por ele uma mulher enrolada
num manto de musselina com forro de seda, usando um lenço bordado a ouro;
[105] calçava botinas douradas[106] presas com cordão esvoaçante e polainas de
laços também esvoaçantes. Ela parou diante dele, puxou o véu, debaixo do qual
apareceram olhos negros, franjas e pálpebras longas com cílios cuidadosamente
alongados;[107] suas partes eram delicadas e perfeitas suas características,
conforme disse a seu respeito um dos que a descreveram:
“Sua cintura carregava um traseiro censurável,
que tanto a mim como a ela oprimia:
eu, quando nele pensava, morria,
e ela, pelo peso, para levantar-se sofria”.[108]
A jovem disse, com palavras suaves e tom sedutor: “Pegue o seu cesto e me siga,
carregador”. Ao ouvir tais palavras, ele mal pôde se conter e, tomando o baú,
acorreu e disse: “Que dia de felicidade! Que dia de ventura!”, e seguiu atrás dela,
que caminhou à sua frente até se deter diante de uma casa em cuja porta bateu.
Apresentou-se então um velho cristão a quem ela deu um dinar, dele recebendo
um jarro verde-oliva de vinho,[109] que ela depositou no cesto e disse: “Pegue o
cesto, carregador, e me siga”. O carregador disse: “Muito bem. Que dia de
felicidade! Que manhã de realização! Que manhã de alegria!”, e, carregando o
cesto, foi atrás dela, que parou na loja de um verdureiro, do qual comprou maçã
verde, marmelo turco, pêssego de Hebron, maçã moscatel, jasmim alepino,
nenúfar damasceno, pepino pequeno e fino, limão de viagem, laranja real, mirta,
manjericão, alfena, camomila, goivo, açucena, lírio, papoula, crisântemo,
matricária, narciso e flor de romãzeira. Colocou tudo na cesta do carregador, que
continuou a segui-la. A jovem se deteve no açougueiro e lhe disse: “Corte para
mim dez arráteis de boa carne de carneiro”, e lhe pagou o valor. O homem
cortou conforme ela pedira, enrolou tudo e entregou a carne a eles, que a
colocaram no cesto junto com um pouco de carvão. Ela disse: “Carregador,
pegue o seu cesto e venha atrás de mim”. Admirado, o carregador pôs-se a
transportar o cesto sobre a cabeça. Ela o conduziu a um quitandeiro de quem
comprou um conjunto completo de condimentos que continha ainda aperitivos
defumados, azeitona curtida, azeitona descaroçada, estragão, coalhada seca,
queijo sírio e picles adocicado e não adocicado.[110] Colocou tudo na cesta do
carregador e lhe disse: “Erga o seu cesto e me siga, carregador!”, e ele assim fez.
Saindo do quitandeiro, a jovem foi até o vendedor de frutas secas e comprou
pistache descascado para usar como aperitivo, passas alepinas, amêndoas
descascadas, cana-de-açúcar iraquiana, figos prensados de Baalbeck, avelãs
descascadas e grão-de-bico assado. Também comprou todos os gêneros de
petiscos e porções de que necessitava, depositando-os na cesta do carregador,
para quem se voltou dizendo: “Pegue a sua cesta e me siga”, e ele levantou a
cesta e caminhou atrás da jovem, até que ela se deteve diante do doceiro, de
quem comprou uma bandeja cheia com tudo o que ele tinha: doces e pães ao
modo armênio e cairota, pastéis almiscarados com recheio doce, bolos e
confeitos como mãe-de-ṣāliḥ amolecida, doce turco, bocados-para-roer, geleia de
sésamo, bolos-de-Alma’mūn, pentes-de-âmbar, dedos-de-alfenim, pão-das-
viúvas, bolinhos de chuva, bocaditos-do-juiz, coma-e-agradeça, tubinhos-dos-
elegantes e quiosquezinhos-da-paixão. Ajeitou todas essas espécies de guloseima
na bandeja e colocou-a no cesto. O carregador lhe disse: “Ai, minha senhora, se
você tivesse me avisado eu traria comigo um pangaré ou camelo para carregar
comigo toda essa compra”, e ela sorriu. Avançando um pouco mais, deteve-se
diante do droguista e comprou dez frascos de essência de açafrão, igual
quantidade de essência de nenúfar e duas medidas de açúcar;[111] também
pegou extrato de água de rosa perfumada, almíscar, noz-moscada, incenso,
pedras de âmbar, castiçais para vela e outro tanto de archotes; enfiou tudo no
cesto, virou-se para o rapaz e disse: “Erga o cesto e me siga, carregador”, e ele
ergueu. A moça caminhou à sua frente até chegar a uma casa elegante dotada de
um vestíbulo espaçoso, construção elevada, alicerces firmes, porta composta de
duas lâminas de marfim cravejado de ouro cintilante. A moça se deteve diante da
porta e bateu com delicadeza.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Disse-lhe Dīnārzād: “Como
é agradável e bonita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na noite seguinte, se eu viver e o rei mantiver
a minha vida, que Deus prolongue a dele”.

29ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas historinhas a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Šahrāzād respondeu: “Ouço e obedeço”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso e de correto parecer, de que, enquanto a jovem
se detinha defronte da porta, o carregador, atrás dela com o cesto, ficou pensando
em sua beleza e formosura, e na elegância, boa linguagem e bons modos que
para ele tinham sido uma dádiva. Eis então que a porta se abriu e se descerraram
as duas lâminas. O carregador olhou para quem abrira a porta e eis que era uma
jovem de boa estatura, seios empinados, de formosura, beleza, elegância,
perfeição e esbelteza; sua fronte parecia ter o brilho da lua cheia; seus olhos
imitavam os das vacas selvagens e das gazelas; as sobrancelhas eram como a lua
cheia do mês de šaᶜbān;[112] as faces pareciam papoulas; a boca, o sinete de
Salomão; seus labiozinhos vermelhos eram como ouro puro; os dentinhos, como
pérolas engastadas em coral; o dorso, como uma torta oferecida ao sultão; o
peito, como uma fonte com jatos d’água; os seios, como duas enormes romãs; a
barriga tinha um umbigo que cabia meia medida de unguento de benjoim; e uma
vagina que parecia cabeça de coelho com orelhas arrancadas, tal como dela
dissera o poeta linguarudo:
“Olha para o sol e o plenilúnio dos palácios,
e para sua alfazema e o esplendor de sua flor;
teus olhos não verão, preto no branco,
tanta beleza reunida como em seu rosto e cabelo;
de melenas avermelhadas, sua beleza lhe anuncia
o nome, se acaso dela não tiveres mais notícia;
quando ela se curvou, eu ri do seu traseiro,
assombrado, mas depois chorei por sua cintura”.
Quando o carregador bem a observou, ela lhe roubou os miolos e a razão e,
quase deixando cair o cesto de sobre a cabeça, ele disse: “Jamais em toda a
minha vida vi um dia tão afortunado quanto esse”. Então a jovem porteira disse à
jovem compradeira:[113] “O que vocês estão esperando, minha irmã? Entrem
logo por essa porta e dê alívio a esse coitado”. Então a compradeira entrou. Em
seguida, a jovem porteira trancou a porta e foi atrás deles. Avançaram todos até
chegar a um salão espaçoso, simétrico e elegante, dotado de colunas, arcadas,
madeira entalhada, bandeiras, balcão, banquetas, armários e bufês cobertos com
cortinas. No meio do salão havia uma grande piscina cheia de água em cujo
centro estava uma barquinha; numa das pontas do salão havia uma cama de
âmbar com quatro pés de zimbro cravejado de pérolas e gemas, e sobre a qual se
estendia um mosquiteiro de cetim vermelho com botões de pérolas do tamanho
de avelãs; como estivesse desabotoada, podia-se vislumbrar sobre a cama uma
jovem de luminosa figura, agradável semblante, caráter filosófico numa
aparência como a da lua, olhos babilônicos, sobrancelhas em forma de arco,
silhueta na forma da letra alif,[114] hálito de âmbar, labiozinhos açucarados e
cintura soberba. Ela fazia o sol iluminado se envergonhar, e parecia uma estrela
brilhando no alto, ou um pavilhão de ouro, ou uma noiva desvelada, ou um peixe
egípcio na fonte, ou um rabo de carneiro numa tigela de sopa de leite, tal como a
seu respeito disse o poeta:
“É como se o sorriso fosse de pérolas
engastadas, ou granito, ou cravo,
cintura solta como a noite
e esplendor que faz corar a luz da alvorada”.
A terceira jovem levantou-se, desceu da cama e, avançando aos poucos, chegou
ao centro do salão, junto às suas duas irmãs, e lhes disse: “Por que estão aí
paradas? Deem algum alívio a esse coitado, façam-no descer esse cesto”. Então a
porteira parou diante dele e a compradeira parou atrás; a terceira jovem ajudou-
as e elas fizeram o cesto descer de sobre a cabeça do carregador e o esvaziaram;
amontoaram as frutas e os alimentos condimentados de um lado e as substâncias
aromáticas de outro, ajeitaram tudo, deram um dinar ao carregador e disseram...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e assombrosa essa sua história”, e ela respondeu: “Se eu
viver até a próxima noite, irei contar-lhes algo mais admirável e assombroso”.

30ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Maninha, continue para nós a história
das três moças”, e Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o carregador, depois de ver as três moças e a
beleza e graça com que o brindaram, e, constatando que elas não tinham um
homem por detrás daquela grande estocagem de vinho, carne, aperitivos, frutas,
doces, perfumes e velas, além dos demais apetrechos para bebida, ficou
muitíssimo intrigado e não fez nenhuma menção de se retirar. Uma das jovens
lhe disse: “O que você tem que não vai embora? Já não recebeu sua paga?”, e,
voltando-se para uma das irmãs, disse: “Dê-lhe mais um dinar”. Mas o
carregador disse: “Por Deus que não, minha senhora! Não vou recebê-lo de jeito
nenhum, pois minha paga não chegaria nem a dois dirhams. Sucede, porém, que
a situação de vocês mexeu com a minha curiosidade: como é que estão sozinhas,
sem nenhum outro ser humano com quem se entreterem, e sabendo, como vocês
já sabem, que os banquetes não se fazem senão com quatro? Porém, não existe
uma quarta pessoa morando com vocês. Ademais, a reunião que aos homens
apraz não é senão com as mulheres, e às mulheres, não é senão com os homens.
O poeta disse:
‘Acaso não vês quatro reunidos para o deleite?
Harpa, alaúde, cítara e flauta,
aos quais correspondem quatro perfumes,
o de rosa, de mirta, de anêmona e de goivo,
que não se reúnem senão com outros quatro:
vinho, juventude, amante e dinheiro’.
E vocês, que são três, estão necessitadas de uma quarta pessoa, e que seja
homem”. As jovens ouviram-lhe as palavras, apreciaram-nas, riram e disseram:
“E quem poderia nos acudir quanto a isso? Somos moças e a ninguém queremos
revelar nossos segredos. Tememos entregar nossos segredos a quem não os
preserve, pois já lemos em certas crônicas o que disse Ibn Attammām,[115] e foi
o seguinte:
‘Preserva sempre o segredo: a ninguém o confies,
pois quem confia o segredo já o perdeu.
Se em teu peito não cabe o teu segredo,
como poderia ele caber no peito de um outro?’”.
Ao ouvir tais palavras, o carregador disse: “Pela vida de vocês que eu sou um
homem inteligente, ajuizado e decoroso. Li os saberes e alcancei as
compreensões; li e entendi; encadeio os relatos históricos e somente depois os
narro.[116] Refiro o que é bom e guardo o que é ruim; de mim não se transmite
senão o bem; sou como disse alguém:
‘Não guarda segredos senão quem é de confiança;
e o segredo, entre os homens de bem, já está guardado;
o segredo está comigo numa casa com trancas,
cuja chave se perdeu e os cadeados estão selados’”.
Ao ouvirem suas palavras, as moças lhe disseram: “Você sabe que este banquete
teve um custo elevado, pois gastamos uma grande quantia para comprar tudo
isso. Você tem algo com que nos compensar? Nós não o deixaremos ficar
conosco senão depois de avaliar a compensação que vai oferecer. Só então você
poderá se tornar nosso hóspede e beber às nossas expensas, de graça. As pessoas
de mérito já diziam: ‘enamorado que não tem nada não vale níquel’”. A porteira
perguntou-lhe: “Você possui alguma coisa, meu querido? Se você é alguma coisa
que não possui coisa alguma, então vá embora sem nada”. A compradeira disse:
“Ai, maninhas, deixem-no em paz! Por Deus que hoje ele não falhou durante as
compras. Se fosse um outro, não teria tido tanta paciência comigo. O que ele
tiver de dar como compensação, eu dou por ele”. Muito contente, o carregador
beijou o chão diante dela, agradeceu e disse: “Por Deus que hoje meu dia não
começou senão por seu intermédio. Tenho aqui comigo o dinar de vocês; tomem-
no de volta e não me considerem hóspede, mas sim servidor”. Elas lhe disseram:
“Sente-se, pois agora fazemos muito gosto nisso”.[117] Em seguida, a jovem
compradeira reuniu ânimo e começou a arranjar o banquete: encheu os
recipientes longos e os curtos, limpou as garrafas, coou o vinho, enfileirou as
taças, copos, canecas, garrafas, recipientes de prata e ouro, louças e garfos.
Colocou tudo ao lado da piscina, e preparou as coisas que eles comeriam e
beberiam. Em seguida, ofereceu-lhes o vinho e pôs-se a servi-los; suas irmãs se
sentaram, bem como o carregador – este imaginando estar num sonho. A própria
jovem bebeu a primeira taça enchida; em seguida, encheu uma segunda e deu de
beber a uma de suas irmãs, que entornou tudo; logo, encheu nova taça e deu de
beber à terceira, e encheu e deu de beber ao carregador, que tomou o jarro em
suas mãos e começou a servir, beber e agradecer. Recitou a seguinte poesia:
“Não bebas senão com um irmão de fé,
de pura origem, linhagem dos pios ancestrais,
pois o copo é como o vento: se passa por perfume,
agradável fica, mas, se passa por carniça, fede”.
E entornou o copo. A porteira foi servi-lo e recitou a seguinte poesia:
“Bebe feliz e gozando de plena saúde:
esta bebida escorre pura pelo corpo”.
Ele agradeceu e beijou-lhe a mão. E elas beberam, e ele também bebeu,
voltando-se em seguida para a compradeira, a quem disse: “Minha senhora, seu
escravo está ao seu dispor”, e recitou:
“Está parado à porta um dos teus escravos,
que de tua generosidade já tem notícia”.
E ela disse: “Por Deus que eu vou beijar você: beba com felicidade, saúde e
bem-estar. A bebida corta o que é nocivo e atua como remédio, fluindo e
produzindo boa saúde”. O carregador sorveu todo o conteúdo de sua taça até
fazer barulho; encheu de novo e serviu-a depois de beijar-lhe a mão. E começou
a recitar a seguinte poesia:
“Estendi-lhe algo, semelhante à sua face, envelhecido
e puro, cujo brilho era a luz do meu fogo.
Beijei-a então, e ela me disse rindo:
‘como podes dar a face de alguém a outro alguém?’
Respondi: ‘bebe, pois são minhas lágrimas, e o vermelho
é meu sangue, tingido, na taça, por meu ardor’.
Ela disse: ‘se foi por mim que choraste sangue,
então dá-me de beber, e eu o farei com todo o prazer’”.
Disse o autor : e a jovem, empunhando a taça, sorveu-a e foi acomodar-se junto
à irmã. E eles permaneceram nisso: recebiam taças cheias e devolviam-nas
vazias. No meio delas, o carregador, começando a ficar saidinho e a sentir-se à
vontade, dançou, exibiu-se, cantou baladas e trovas e nelas pôs-se a aplicar
beijinhos, beliscões, mordidelas, a bolinar, apalpar, tocar e acariciar; uma lhe
dava comida na boca, outra o socava, outra lhe servia substâncias aromáticas, e
outra, algum docinho – e ele gozava da vida mais prazerosa. Assim
permaneceram até que se embriagaram e o vinho começou a influir em seu juízo.
Quando a bebida os dominou inteiramente, a porteira levantou-se, foi até a beira
da piscina, tirou toda a roupa, ficando nua, soltou o cabelo, que passou a cobri-la
e, dizendo “lá vou eu”,[118] entrou na piscina e mergulhou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “E o que é
isso comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite?”.

31ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Se você não estiver dormindo, maninha,
conte-nos uma de suas belas historinhas a fim de que atravessemos o serão desta
noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia de que a jovem porteira mergulhou na água, boiou, banhou-se,
brincou, bateu os pés como pato, pôs água na boca e a espirrou nos outros, lavou
sob os seios, lavou a entreperna, bem como o interior do umbigo, e saiu
rapidamente da piscina, naquele estado, sentando-se então no colo do carregador,
a quem perguntou: “Meu senhor, meu querido, o que é isso?” – enquanto
colocava a mão na vagina – “o que é isso?”. O carregador respondeu: “Seu
útero”. Ela disse: “Nossa! Não tem vergonha?”, e lhe deu pancadas no cangote.
Ele disse: “Sua greta”, e então foi a outra que gritou, beliscou-o e disse “Ih, que
coisa feia!”. Ele disse: “Sua boceta”, e aí foi a terceira que lhe esmurrou o peito,
derrubando-o, e disse: “Xi, tenha vergonha!”. Ele disse: “Seu clitóris”, e a que
estava nua aplicou-lhe uns tapas e disse: “Não!”. Ele disse: “Sua vagina, sua
chavasca, sua xereca”,[119] enquanto ela dizia: “Não, não”. E, assim, toda vez
que ele sugeria algum nome, uma das garotas o esmurrava e dizia: “Qual é o
nome disto?”. Uma esmurrava, outra estapeava e a terceira o beliscava, até que
enfim ele disse: “Tá legal, camarada, qual é o nome?”. Ela disse: “O nome é
manjericão das pontes”, e o carregador repetiu: “Manjericão das pontes, por que
não disseram logo? Ai, ai!”. E por mais algum tempo as taças fizeram nova
rodada; em seguida, a compradeira levantou-se, despiu-se de todas as roupas tal
como fizera sua irmã e disse: “E lá vou eu!”, mergulhando na piscina, batendo os
pés como pato, lavando a barriga, o entorno dos seios e também a entreperna;
saiu então rapidamente, lançou-se no colo do carregador e perguntou:
“Senhorzinho do meu coração, o que é isto aqui?”. Ele respondeu: “Sua greta”, e
a garota, dando-lhe uma pancada tão forte que seu estrondo repercutiu por todo o
salão, gritou: “Nossa, tenha vergonha!”. Ele disse: “Seu útero”, e a irmã o
golpeou e disse: “Puxa, que horrível!”. Ele disse: “Seu clitóris”, e a outra irmã
esmurrou-o e disse: “Caramba, você não tem vergonha?”. Assim, ora uma o
esmurrava, ora outra o estapeava, ora outra o golpeava, ora outra o beliscava
enquanto ele dizia “útero, boceta, chavasca” e elas respondiam “não, não”. Então
ele disse “manjericão das pontes”, e as três riram até virar do avesso, e
começaram juntas a bater-lhe no cangote dizendo “Não, esse não é o nome”.
Enfim ele perguntou: “Tá legal, camarada, qual é o nome?”, e a compradeira
respondeu: “Você deveria ter dito sésamo descascado”. Ele disse: “Graças a
Deus que tudo acabou bem, sésamo descascado”. Em seguida, a garota vestiu as
roupas e sentaram-se todos a fim de conversar e se divertir, enquanto o
carregador gemia por causa das dores no cangote e nos ombros. E logo as taças
deram mais uma rodada, e depois disso a maior, que era a mais formosa,
levantou-se e tirou as roupas. Passando as mãos pelo pescoço, o carregador disse
“Pelo amor de Deus, meu pescoço, meus ombros!”. E a jovem, nua, lançou-se à
piscina e submergiu. O carregador olhou para ela, que assim nua parecia uma
fatia da lua, com um rosto que se assemelhava ao plenilúnio em seus inícios e a
aurora quando surge; olhou ainda para sua estatura e para seus seios, e para
aquela bunda pesada que se chacoalhava toda enquanto ela estava assim nua tal
como a criara seu Deus, e disse: “Ah, ah!”, e recitou a seguinte poesia dirigida a
ela:
“Se acaso medires o teu talhe com ramo úmido,
sobrecarregarás meu coração com inúteis pesos,
pois o ramo é melhor que o encontremos coberto,
enquanto tu, é melhor que te encontremos desnuda”.
Ao ouvir-lhe as poesias, a jovem subiu rapidamente, sentou-se em seu colo e,
apontando para a própria vagina, perguntou-lhe: “Meus olhinhos, meu
figadozinho, qual é o nome disto?”. O rapaz respondeu: “Manjericão das
pontes”, e ela disse: “Pfuuu!”. Ele disse: “Sésamo descascado”, e ela disse:
“Xiiii”. Ele disse: “Seu útero”, e ela disse: “Hmmmm, tenha vergonha!”, e o
golpeou no cangote. Para não ser prolixa com o rei, direi somente que o
carregador ficou dizendo a ela: “O nome é isso, ou aquilo”, e ela respondendo:
“Não, não, não, não!”. Foi só depois de ter tomado bofetões, beliscões e
mordidas até o seu cangote ficar inchado que ele, entre sufocado e irritado,
perguntou afinal: “Tá legal, camarada, qual é o nome?”, e ela lhe respondeu:
“Por que você não disse pensão de Abū Masrūr?”. O carregador disse: “Ahn,
ahn, pensão de Abū Masrūr...”. E a jovem levantou-se e foi vestir as roupas, e
logo todos retomaram o que estavam fazendo antes, e a taça fez uma nova
rodada entre eles. Então foi o carregador que se levantou, tirou as roupas,
surgindo algo que ficou dependurado entre suas pernas, e ele pulou, atirando-se
no meio da piscina.
E a aurora alcançou Šahrāzād, e ela parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e formosa esta sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada comparado ao que irei narrar-lhes na próxima noite, se eu viver e o
rei me preservar”. E o rei pensou: “Por Deus que não a matarei até ouvir o fim
de sua história, após o que farei com ela o mesmo que fiz com as outras de sua
igualha”.

32ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas”. Šahrāzād respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que, ao entrar na piscina, o carregador lavou-se e
banhou-se, esfregando debaixo da barba e as axilas, e em seguida saiu célere,
deitando-se no colo da mais bela e jogando os braços no colo da porteira e as
pernas e coxas no colo da compradeira. Perguntou: “E então, dona, o que é
isto?”, e apontou para o seu pênis. As três riram, apreciando aquela atitude, pois
ele entrara no jogo e seu procedimento tornara-se adequado ao delas. A primeira
respondeu: “Seu pau”, e ele disse: “Não vão criar vergonha? Que coisa feia!”.
Outra respondeu: “Seu pênis”, e ele disse “Tenham vergonha! Que Deus as
abomine!”. A terceira respondeu: “Seu cacete”, e ele disse: “Não”. Disseram:
“Sua teta”, e ele respondeu: “Não”; disseram: “Sua coisa, seu saco, sua
gadanha”,[120] e ele respondeu: “Não, não, não”, até que enfim perguntaram: “E
qual é o nome disso?” – nesse ínterim, ele lhes dera beijos, trombadas, beliscões,
mordidas e abraços, tomando assim sua desforra. Elas perguntaram: “E qual é o
nome, camaradinha?”. O carregador disse: “Vocês não sabem o nome? Este é o
burro destruidor”. Elas perguntaram: “Burro destruidor? E qual é o sentido desse
nome?”. Respondeu: “Ele pasta o manjericão das pontes, devora o sésamo
descascado e entra e sai da pensão de Abū Masrūr”, e elas tanto riram que se
reviraram pelo avesso e perderam os sentidos, logo retomando a tertúlia e a
bebida, e assim permaneceram até o anoitecer, quando então disseram ao
carregador: “Por Deus, meu senhor, faça a gentileza de levantar-se, calçar suas
sandálias e deixar-nos vê-lo ir embora daqui”. O carregador disse: “E, saindo
daqui, para onde eu irei? Por Deus que para mim é mais fácil minha alma sair de
meu corpo do que eu sair daqui. Deixem-nos ligar a noite com o dia, e amanhã
de manhã cada qual vá cuidar de sua vida”. Disse a compradeira: “Por Deus,
manas, que ele está sendo sincero. Por Deus, pelo valor que minha vida tem para
vocês, deixem-no esta noite para rirmos dele e nos divertirmos à sua custa.
Talvez nunca mais na vida a gente consiga se reunir com alguém como ele, que é
esperto, maganão e simpático”. Disseram-lhe então: “Você não passará a noite
conosco senão sob a condição de se submeter ao nosso juízo e bel-prazer, não
devendo perguntar o motivo do que quer que nos veja fazendo ou sendo feito
conosco. ‘Não perguntes sobre o que não te diz respeito ou então ouvirás o que
te deixará contrafeito’:[121] eis a condição que lhe estabelecemos. Não dê rédea
solta à curiosidade caso nos veja fazendo algo”. Ele disse: “Sim, sim, sim. Não
tenho língua nem olhos”. Disseram-lhe: “Levante-se e vá ler o que está escrito
na porta e no vestíbulo”. Ele se levantou e se dirigiu até a porta, lendo então o
que ali se escrevera com tinta de ouro dissolvido: ‘Quem fala sobre o que não
lhe diz respeito ouve o que o deixará contrafeito’. Então o carregador disse às
moças: “Eu as faço testemunhas de que não falarei sobre o que não me
concerne”, e elas reafirmaram tal condição. A compradeira foi preparar algo para
comerem, e então eles comeram algo e jantaram. Em seguida, acenderam velas e
lampiões, colocando incenso e âmbar nas velas; assim, a cada vez que acendiam
uma vela, o incenso e o âmbar se queimavam, sua fumaça se erguia e a
fragrância se espalhava pelo lugar. Puseram-se a beber e a conversar sobre as
pessoas dotadas de tirocínio; logo um banquete se substituiu ao outro, e eles
repartiram frutas macias e também a bebida. Por um bom tempo deixaram-se
estar assim comendo, bebendo, conversando, fofocando, rindo e brincando.
Então, eis que ouviram o som de uma batida à porta, mas não interromperam o
que faziam; uma delas, contudo, levantou-se, sumiu por alguns instantes e logo
retornou dizendo: “Manas, se acaso vocês me ouvirem, terão uma noite muito
agradável, singular pelo resto da vida”. Perguntaram: “E quem irá nos
proporcionar tal coisa?”. Ela respondeu: “Agora estão à porta três homens, três
carendéis,[122] todos caolhos, todos de cabeça, barba e sobrancelhas raspadas, e
todos com o olho direito arrancado: eis aí a mais espantosa das coincidências.
Acabaram de chegar de viagem – cujos vestígios ainda são visíveis neles –,
acabaram de chegar a Bagdá, e é a primeira vez que entram em nossa terra.
Bateram à nossa porta porque, não tendo encontrado um lugar onde passar a
noite, disseram: ‘Quem sabe o dono desta casa não nos empresta a chave do
estábulo ou da despensa’ – a fim de ali dormir nesta noite, pois a escuridão já os
alcançava –, ‘pois nós somos estrangeiros e não conhecemos ninguém que possa
dar-nos abrigo’. Pois bem, minhas irmãs, cada um deles tem um jeito e uma
figura que fariam rir até a quem tenha perdido os filhos. O que acham de deixá-
los entrar, comer e beber junto com eles nesta noite, neste momento singular?
Amanhã de manhã nos separamos”. E tanto insistiu, com todo o jeito, junto às
irmãs, até que elas enfim lhe disseram: “Deixe-os entrar, mas imponha-lhes a
condição de que nenhum deles fale do que não lhe disser respeito, pois caso
contrário ouvirá algo que o deixará contrafeito”. Muito contente, ela desapareceu
por alguns instantes e logo entrou, trazendo atrás de si três dervixes caolhos que
fizeram uma saudação, inclinaram-se e tornaram a dar um passo atrás. Mas as
três moças foram até eles, deram-lhes boas-vindas, regozijaram-se por sua
chegada e felicitaram-nos por terem chegado bem de viagem. Eles agradeceram,
fizeram uma reverência e, observando o recinto, viram que era agradável, tinha
mesa posta e estava bem servido: velas acesas, incensos, aperitivos, vinho e três
moças que haviam posto todo o recato de lado. Os três disseram: “Por Deus,
muito bom!”, e voltaram-se para observar o carregador, que estava ali bêbado,
amofinado e cansado de tanta surra e tanto beliscão, totalmente alheio a este
mundo. Disseram: “Ele é tontinho, nosso irmãozinho, ele arabão, são tarantão”.
[123] Então o carregador acordou, arregalou os olhos e lhes disse: “Fiquem, mas
não sejam intrometidos. Por acaso não leram o que está na porta? Quem fala
sobre o que não lhe diz respeito ouve o que o deixará contrafeito. Está muito
claro.[124] Mas vocês mal chegaram e já estão pondo as línguas para funcionar
contra nós”. Eles disseram: “Tudo o que dizemos agora é perdão a Deus, ó
pobrete! Nossas cabeças estão em tuas mãos”. As moças riram e firmaram a paz
entre os dervixes e o carregador. Sentaram-se para beber após terem oferecido
algum alimento aos dervixes, que comeram tudo. Puseram-se a prosear e a
porteira começou a servir vinho; a taça circulou entre eles. O carregador
perguntou-lhes: “E então, camaradas, vocês não têm alguma serventia para nos
mostrar?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e bela a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver”.

33ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas a fim de que atravessemos o
serão desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que, quando a embriaguez os dominou, os dervixes
pediram instrumentos para música e diversão, e a porteira lhes trouxe adufe,
flauta e harpa persa. Os três se puseram em pé, um com o adufe, o segundo com
a flauta e o terceiro com a harpa; cada qual ajustou o instrumento e começaram a
tocar e cantar, e as jovens a cantar com estridência, a tal ponto que a algazarra
por eles promovida se tornou muito alta. Estavam nesse estado quando ouviram
batidas à porta. A porteira levantou-se para ver o que ocorria.
[Prosseguiu Šahrāzād:] E eis por que se batia à porta, ó rei: sucedeu que o
califa Hārūn Arrašīd[125] e seu vizir Jaᶜfar, o barmécida, resolveram descer à
cidade, conforme estavam habituados a fazer de pouco em pouco. Naquela noite,
enquanto atravessavam a cidade, passaram diante da casa das moças e ouviram
som de flauta, harpa, batidas, a cantoria estridente das jovens, conversas e risos.
O califa disse: “Eu gostaria, Jaᶜfar, de entrar nessa casa e me reunir aos que nela
estão”. Respondeu Jaᶜfar: “As pessoas que aí se encontram, comandante dos
crentes, já estão possuídas pela embriaguez. Como não nos conhecem, podemos
temer que nos maltratem e cometam algum abuso contra nós”. Disse o califa:
“Deixe de conversa mole. Não posso abrir mão disto: eu quero que você elabore
já algum ardil que nos permita entrar e ficar com eles”. Jaᶜfar respondeu: “Ouço
e obedeço”. E foi então que eles bateram à porta e a jovem porteira surgiu e
abriu. Adiantando-se um passo, Jaᶜfar beijou o solo e disse: “Ó minha cara
senhora, nós somos mercadores de Mossul. Estamos nesta cidade há dez dias.
Todas as nossas mercadorias se encontram no albergue onde nos hospedamos.
Durante o dia, um mercador aqui da sua cidade nos convidou para uma festa:
ofereceu-nos comida e a seguir vinho, que bebemos; logo ficamos alegres e
mandamos chamar um conjunto de música com cantoras, e também o restante de
nossos companheiros mercadores. Compareceram todos e ficamos muito
satisfeitos e folgados; as moças cantaram com estridência, tocaram adufes e
sopraram flautas. Estávamos assim desfrutando a vida mais deliciosa quando
repentinamente o chefe de polícia deu início a uma batida; resolvemos escapulir
pulando os muros, mas alguns de nós se contundiram e foram presos, enquanto
outros escaparam sãos e salvos. Agora, nós viemos buscar refúgio em sua casa.
Somos estrangeiros e tememos, no caso de continuar vagando pelas ruas de sua
cidade, ser pegos pelo chefe de polícia, ao qual não passará despercebida a nossa
condição, pois estamos embriagados; e, caso voltemos para o albergue onde nos
hospedamos, iremos encontrá-lo trancado, e os donos não abrirão para nós senão
depois do amanhecer, pois esse é o costume deles. Mas, passando aqui por sua
casa, notamos que vocês têm instrumentos musicais e uma boa reunião. Se vocês
nos fizerem a grande caridade de nos deixar entrar, quaisquer custos que
possamos causar serão muito bem pagos; e nossa felicidade irá se completar
junto a vocês. Porém, se nossa profissão causa-lhes algum constrangimento,
deixem-nos ao menos dormir, até o amanhecer, no vestíbulo de sua casa, pelo
que contarão com uma boa ação perante Deus. Vocês são inteiramente
responsáveis pela decisão; o caso pertence a vocês; façam o que melhor lhes
aprouver, pois nós não sairemos mais daqui de sua porta”. Ao ouvir as palavras
de Jaᶜfar, a porteira olhou para as roupas que eles usavam, notando sua evidente
respeitabilidade; retornou então até as irmãs e informou-as do que Jaᶜfar dissera
e descrevera, e elas, condoídas, disseram: “Deixemos que eles entrem”, e a
porteira deu-lhes autorização. Quando o califa, Jaᶜfar e Masrūr entraram e se
viram no interior da casa, o grupo, constituído pelas três jovens, pelos três
dervixes e pelo carregador, ficou em pé para recepcioná-los, e em seguida todos
se sentaram.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e bela a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado
ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

34ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, se você não estiver
dormindo, continue a contar para nós a história das três moças”. Šahrāzād
respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei, que quando o califa, Jaᶜfar e Masrūr entraram e ficaram bem
acomodados, as moças se voltaram para eles e lhes disseram: “Muito bem-
vindos, que o espaço lhes seja confortável e largo.[126] Entretanto, caros
hóspedes, temos uma condição para lhes impor”. Perguntaram: “E qual é a
condição?”. Responderam: “Que vocês sejam olhos sem língua. O que quer que
vejam, não questionem; que nenhum de vocês fale sobre o que não lhe diz
respeito, pois caso contrário ouvirá o que o deixará contrafeito”. Eles
responderam: “Sim, aceitamos essa condição. Para nós, esse tipo de curiosidade
não tem serventia”. Então as jovens ficaram muito contentes com eles e se
puseram a conversar, agradar e beber. O califa olhou e, vendo três dervixes
caolhos do olho direito, ficou espantado; depois, viu as moças e a formosura,
graça, boa linguagem e generosidade de que eram dotadas; olhou para a beleza e
boa organização do lugar, no qual os dervixes eram uma banda musical, os três
caolhos. Ficou mesmo espantado, mas não pôde perguntar nada naquele
momento. Continuou a reunião e a conversa, e os dervixes levantaram-se,
inclinaram-se em reverência e tocaram uma canção emocionante, sentando-se a
seguir. A taça de vinho fez uma nova rodada, e quando o efeito da bebida
começou se a manifestar,[127] a dona da casa levantou-se, inclinou-se, pegou a
compradeira pela mão e disse: “Vamos, maninha, resgatar a nossa dívida”. As
duas irmãs responderam “sim”, e prontamente a porteira se levantou e limpou o
lugar onde estavam todos acomodados: jogou fora as cascas de fruta, trocou o
incenso e esvaziou o centro do salão, colocando os dervixes em fileira num dos
lados, e fazendo o califa, Jaᶜfar e Masrūr sentarem-se em fileira do outro lado, de
frente para eles. Depois, gritou com o carregador dizendo: “Levante e venha
ajudar no que estamos fazendo, seu preguiçoso, você é de casa”. O carregador
levantou-se, aprumou-se e perguntou: “Vou fazer o quê?”. Ela disse: “Fique em
seu lugar”. A compradeira colocou uma cadeira no centro do salão, abriu a
despensa e disse ao carregador: “Venha ajudar-me”, e ele foi recolher as duas
cadelas pretas com corrente ao pescoço que estavam lá dentro, conduzindo-as até
o centro do salão. Nesse momento, a jovem dona da casa disse: “Chegou a hora
de resgatar a nossa dívida” e, arregaçando as mangas, tomou um chicote
trançado e disse ao carregador: “Traga uma das cadelas até aqui”; o carregador
pegou na corrente e arrastou uma delas – que começou a chorar balançando a
cabeça em direção à jovem –, segurando-a com firmeza diante da dona da casa,
que se pôs a chicotear com muito capricho os flancos da cadela, enquanto esta
gania alto e chorava e o carregador se mantinha segurando-a pela corrente. A
jovem chicoteou até o seu braço cansar-se, quando então parou, largou o chicote
e, tomando a corrente das mãos do carregador, estreitou a cadela num forte
abraço junto ao peito e chorou; a cadela também chorou e ambas ficaram nisso
por um bom tempo. Em seguida, a jovem limpou as lágrimas da cadela com um
lenço, beijou-lhe a cabeça e disse ao carregador: “Leve-a, coloque no lugar em
que estava e traga a outra. E lá se foi o carregador: levou a primeira cadela para a
despensa e trouxe a segunda para a jovem, que fez com ela o mesmo que fizera
com a primeira, surrando-a até perder os sentidos, depois abraçando-a e
chorando junto com ela, e finalmente beijando-a na cabeça e ordenando ao
carregador que a colocasse junto à outra cadela sua irmã, o que ele fez. Vendo
tais atitudes, os presentes ficaram muitíssimo assombrados: por que motivo
aquela jovem chicoteava a cadela até que esta perdesse os sentidos e depois
chorava junto com ela e lhe beijava a cabeça? Logo começaram a cochichar.
Quanto ao califa, seu peito ficou ansioso, sua paciência se esgotou e sua
curiosidade se ocupou em saber qual seria a notícia daquelas duas cadelas:
piscou então para Jaᶜfar, que disfarçou e lhe disse por sinais: “Esta não é hora de
curiosidade”.
[Continuou Šahrāzād:] Quando a jovem dona da casa terminou de punir as
duas cadelas, ó rei venturoso, a porteira lhe disse: “Por que, minha senhora, você
não volta agora para o seu lugar e deixa que eu, por meu turno, satisfaça o meu
desejo?”, e a dona da casa respondeu “sim”. A porteira instalou-se então numa
das extremidades do salão, tendo o califa, Jaᶜfar e Masrūr enfileirados à sua
direita e os três dervixes mais o carregador enfileirados à sua esquerda. As velas
e candeeiros encontravam-se acesos e a fragrância do incenso se propagara, mas
o desgosto e a consternação tinham contaminado a vida de cada um dos
presentes. Então a jovem porteira sentou-se na cadeira.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada comparado ao que irei contar-lhes amanhã, se acaso eu viver”.

35ª
noite das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão
desta noite”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem porteira sentou-se na cadeira e
disse à sua irmã compradeira: “Vá e pague a minha dívida”. Então a compradeira
entrou no quarto, ali desaparecendo por alguns momentos, e retornou
empunhando um bornal de cetim amarelo com duas fitas de seda verde, duas
esferazinhas de ouro vermelho e duas contas de âmbar puro; caminhou até diante
da porteira, sentou-se, retirou da sacola um alaúde, instalou-o no meio do colo,
apoiando a parte inferior do instrumento sobre a coxa, dedilhou-lhe as cordas
com as pontas dos dedos para afinar o alaúde, e enfim plangeu uma canção de
kān wa kān: [128]
“Vocês são o meu distante objetivo,
e estar-lhes próxima, meus amores,
seria o meu prazer constante,
pois é fogo estar de vocês distante”.
“É por vocês minha loucura, é com vocês
o meu tormento por toda a vez,
mas não tenho, em nenhum momento
vergonha se por vocês eu me atormento”.
“Da languidez tentei pôr a vestimenta,
e o que surgiu foi minha pureza isenta;
é por isso que em minha paixão
fica indeciso por vocês meu coração”.
“Escorreram-me as lágrimas pela face,
divulgando e revelando meu segredo:
são segredos denunciados
por lágrimas traiçoeiras”.
“Tratem minha terrível doença:
vocês são o mal e a cura;
quem depender de vocês
não terá remédio que a vença”.
“A luz de suas pálpebras me maltrata,
as rosas de sua face me matam,
a noite de seus cabelos me aprisiona
e revela os meus segredos”.
“A prova do meu sofrimento
é ser morta pelo gládio da paixão.
E quanto, pela espada do amado,
já não morreram os generosos”.
“Não abandono o amor meu
nem me desvio de meu anelo:
o amor é a cura e a lei que eu
por dentro e por fora desvelo”.
“Fortuna de meus olhos, que se embriagaram
com vocês, triunfando enfim e vendo-os;
sim, e por vocês eu me tornei
atormentado e perplexo”.
Disse o autor : quando terminou a recitação da compradeira, a jovem porteira
soltou um berro estrondoso e gemeu dizendo “ai ai ai”. Depois, colocou a mão
na gola e rasgou as roupas até embaixo, deixando todo o corpo à mostra, e virou-
se desfalecida. Olhando para ela, o califa notou que ela fora surrada com
vergasta da cabeça aos pés, a tal ponto que seu corpo estava azulado e
enegrecido. Quando todo o grupo viu aquilo, seus pensamentos se encheram de
desgosto, sem que ninguém soubesse da história nem dos motivos daquilo. Foi
nesse momento que o califa disse a Jaᶜfar: “Minha paciência não vai durar nem
mais um minuto se porventura eu não for informado da história inteira e indagar
a respeito do que ocorreu: qual o motivo de esta jovem ter sido surrada com
vergasta e da surra nas duas cadelas negras seguida de choro e beijos”. Jaᶜfar
respondeu: “Agora não é momento de fazer indagações, meu amo. Elas
estabeleceram a condição de que não fizéssemos perguntas a respeito do que não
nos concernisse – e ‘quem fala sobre o que não lhe diz respeito ouve algo que o
deixará contrafeito’”. Enquanto isso, a compradeira se levantara, entrara no
aposento e de lá trouxera uma nova vestimenta fina e a colocara na porteira em
substituição à vestimenta que esta rasgara. Em seguida sentou-se, e sua jovem
irmã lhe disse: “Por Deus, dê-me mais bebida”, e a compradeira tomou uma taça,
encheu-a e entregou-a à irmã. Depois ajeitou o alaúde no colo e, tocando nele
vários metros improvisados, recitou o seguinte:
“Se nos queixarmos da distância, o que dirão?
Ou se formos atingidos por desejo, o que fazer?
E se enviarmos um mensageiro que fale por nós?
Mensageiros, porém, não reproduzem queixa de amantes.
E se esperarmos? Mas quase não tenho paciência:
sobrou um resto, depois de perder tantos amados.
Não restam senão lamentos e saudades,
e lágrimas escorrendo pelas duas faces.
Ó quem de minhas vistas se ausentou,
embora em meu coração esteja fixado:
ensinaram-me, não o veem?, que meu compromisso
por todos os tempos não passará”.
Disse o narrador : quando a jovem encerrou os versos e completou a poesia e a
prosa, sua irmã gritou “ai ai ai”; sua excitação se tornou mais intensa e ela enfiou
a mão no colarinho, rasgando as roupas até embaixo e caindo desfalecida. A
compradeira entrou novamente no aposento, do qual lhe trouxe uma vestimenta
melhor que a primeira, e borrifou água de rosas em seu rosto até que acordasse,
quando então lhe colocou a vestimenta. Ao despertar, a porteira disse: “Por
Deus, minha irmã, cumpra o seu dever comigo, pois agora só falta mais uma
canção. A compradeira disse: “Com muito gosto e honra”, e pegando do alaúde,
dedilhou-lhe as cordas e pôs-se a recitar:
“Até quando essa resistência e secura?
Será que não bastam as lágrimas que já verti?
Você prolonga meu abandono de propósito.
Se foi um invejoso que afastou você de mim, já se satisfez.
Vele por mim, pois sua secura já me faz mal.
Ó meu dono, já não é hora de ter pena?
Ó senhores, vinguem-se por um cativo de amor
que se habituou à insônia e cuja paciência se esgotou.
Conforme a lei do amor, é lícito que eu
fique sozinho e outro se farte com o gozo do amor?
Quanto ao meu amo, deixa que me injustice e agrida.
Ai, por quanto passei e quanto ainda irei passar?”.
E quando a compradeira encerrou sua recitação...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Na próxima
noite irei contar-lhes algo melhor, mais espantoso e insólito, se eu viver e o rei
me preservar”.

36ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Continue para nós, maninha, a


história das três jovens”. E Šahrāzād disse:
Contam, ó rei, que, ao ouvir a terceira recitação, a jovem porteira berrou, disse
“Por Deus, é muito bom”, enfiou a mão nas roupas, rasgou-as e tombou
desfalecida, aparecendo-lhe por debaixo das roupas o peito como que açoitado
por vergasta. Os dervixes disseram: “Quem dera que, em vez de entrar aqui,
tivéssemos ido dormir em algum monturo de lixo. Nossa estada aqui se
transtornou por causa dessas cenas de arrebentar o fígado”. O califa se voltou
para eles e, dirigindo-lhes a palavra, indagou: “E por que isso?”. Eles
responderam: “Ó honorável senhor, é porque essa questão está se agitando em
nosso íntimo”. O califa perguntou: “Bem, como vocês são da casa, talvez
pudessem contar-me a história das duas cadelas pretas e a desta jovem”.
Responderam: “Por Deus que não conhecemos a história de ninguém nem nunca
havíamos visto este local antes deste momento”. Intrigado, o califa disse: “Quiçá
o homem que está ao lado de vocês saiba alguma coisa”, e então eles piscaram
para o carregador e o questionaram a respeito do caso, mas ele respondeu: “Por
Deus poderoso que ‘estamos todos iguais ao relento’.[129] Embora eu seja de
Bagdá, nunca havia entrado nesta casa antes deste momento e deste dia. Minha
estada aqui com elas foi espantosa, e desde então fiquei pensando por que essas
mulheres estão sem homens”. Disseram todos: “Por Deus que achávamos que
você era da casa ou pertencia a elas, mas eis que está na mesma situação que
nós”. O califa, Jaᶜfar e Masrūr disseram: “Como nós somos sete homens e elas,
três jovens apenas, sem mais, perguntemos o que lhes sucedeu. Se não
responderem por bem, responderão na marra”. Embora todos concordassem com
aqueles termos, Jaᶜfar ponderou: “Não é este o meu parecer; deixem-nas, pois
nós somos hóspedes e elas estabeleceram as condições, conforme vocês sabiam
previamente. É melhor deixarmos essas questões de lado: falta pouco para
terminar a noite e logo nos separaremos, cada qual tomando o seu caminho”. Em
seguida, piscou para o califa e cochichou: “O senhor não pode, comandante dos
crentes, esperar mais um pouquinho? Quando amanhecer, eu próprio virei para
cá e as levarei até a sua presença. Então a história delas será esclarecida”. O
califa irritou-se com ele e disse: “Ai de ti! Já não tenho mais paciência e preciso
desvendar a história dessas jovens. Deixe os dervixes perguntarem”. Jaᶜfar
observou: “Não é um bom parecer”. Puseram-se a discutir entre si e, depois de
muito diz que diz entre eles sobre quem tomaria a iniciativa de perguntar,
concordaram enfim que seria o carregador e continuaram mergulhados na
conversa. A jovem dona da casa perguntou: “Ei, pessoal, qual é a história? O que
vocês têm?”. O carregador então deu um passo adiante e disse: “Ó minha
senhora, este grupo manifestou a seguinte intenção: eles gostariam que você lhes
contasse a história daquelas duas cadelas pretas e o motivo pelo qual você as
surrava e depois chorava por elas, e também a história da sua irmã, qual o
motivo de ter sido vergastada como se fora um homem. É esta, sem tirar nem
pôr, a pretensão deles”. A jovem perguntou, voltando-se para eles: “É verdade o
que ele diz sobre vocês?”. Todos responderam “sim”, com exceção de Jaᶜfar, que
não pronunciou palavra. Ao ouvir a resposta, ela disse: “Vocês estão nos fazendo
muito mal, ó hóspedes. Porventura eu não os havia informado sobre nossa
condição prévia, de que quem fala sobre o que não lhe diz respeito ouve o que o
deixará contrafeito? Nós lhes demos guarida em nossa casa, alimentando-os de
nossa própria comida, e agora vocês vêm nos insultar e prejudicar? Mas a culpa
não é de vocês, e sim de quem os fez chegar até nós e os introduziu aqui”. Em
seguida, arregaçando as mangas, ela deu três pancadas no solo e gritou
“depressa!”; ato contínuo, a porta da despensa se abriu, dela saindo sete escravos
negros com espadas desembainhadas à mão. Cada um dos negros deu um
empurrão num dos membros do grupo, derrubando-o de rosto e amarrando-lhe as
mãos às costas; num instante, os sete haviam amarrado os sete hóspedes;
prenderam-nos uns aos outros, dispuseram-nos numa só fileira e carregaram-nos,
depositando-os no centro do salão. Depois, cada negro se postou ao lado de um
deles e, com as espadas desembainhadas, disseram: “Ó mantilha excelsa, ó véu
inexpugnável, determine que lhes cortemos o pescoço”. Ela disse: “Devagar,
esperem até que eu pergunte a cada um deles sobre sua condição antes de lhes
cortar o pescoço”. O carregador suplicou: “Que Deus nos proteja, minha
senhora, não me mate por causa de alheios delitos. Todos erraram e caíram em
delito, menos eu. Por Deus que passamos um dia agradável, mas não pudemos
escapar a salvo destes dervixes, os quais, ao entrarem em qualquer cidade com
esses olhos arrancados, vão deixá-la arruinada, em guerras e sedições”. Depois
chorou e recitou os seguintes versos:
“Como é bom o perdão de quem o pode conceder,
em especial para aqueles que não têm protetor.
Em respeito ao afeto que entre nós existe,
não matem o primeiro por causa dos últimos”.
Disse o autor : então a jovem, em meio à cólera, riu, e, voltando-se para os
presentes, disse-lhes: “Esclareçam-me quem são vocês, pois de suas vidas não
restam senão alguns momentos. Se vocês tivessem amor-próprio, ou fossem
gente poderosa entre seu povo, ou governantes que dão ordens e estabelecem
proibições, não nos teriam ofendido”. O califa disse a Jaᶜfar: “Maldição! Revele
a ela quem somos, caso contrário seremos mortos por equívoco!”, e ele
respondeu: “É pouco perto do que merecemos”. Irritado, o califa lhe disse: “E
esta é hora de brincadeira?”. Enquanto isso, a jovem, voltando-se para os
dervixes, perguntou-lhes: “Vocês são irmãos?”. Responderam: “Não, por Deus,
senhora, e tampouco somos mendigos”. A jovem perguntou a um deles: “Você
nasceu caolho?”. Ele respondeu: “Não, por Deus, minha senhora. Tenho uma
história espantosa e passei por coisas assombrosas – que se fossem gravadas com
agulha no interior das retinas constituiriam uma lição para quem reflete –, até
que meu olho foi arrancado e me tornei caolho, e minha barba raspada, e me
tornei dervixe carendel”. A jovem repetiu a pergunta ao segundo dervixe, que
deu a mesma resposta, e também ao terceiro, que agiu de igual modo. Disseram
os três: “Por Deus, senhora, cada um de nós provém de uma cidade diferente,
filho de reis que governavam países e súditos”. A jovem voltou-se para os
escravos e lhes disse: “A cada um deles que nos contar sua história, o que lhe
sucedeu e qual o motivo de sua vinda até aqui, deixem-no apalpar a cabeça[130]
e sair para cuidar de sua vida; quem se recusar deve ter o pescoço cortado”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

37ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão
desta noite”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que quando a jovem disse aquelas palavras aos
presentes, o primeiro a dar um passo adiante foi o carregador, que lhe disse:
O CARREGADOR
A cara madame tem conhecimento prévio de que o motivo de minha vinda para
este lugar foi que exerço a profissão de carregador, e fui para cá conduzido por
esta moça compradeira após ter rodado do vendedor de vinho ao açougueiro, e
deste ao quitandeiro, e deste ao fruteiro, e deste ao verdureiro, e daí ao doceiro e
ao perfumista; depois, vim para esta casa. Eis aí a minha história.
A jovem lhe disse: “Passe a mão na cabeça e vá embora”, mas ele respondeu:
“Por Deus que não me vou até ouvir a história dos outros”. Então o primeiro
dervixe deu um passo adiante e disse:
O PRIMEIRO DERVIXE
Eu lhe informarei, cara madame, o motivo de meu olho ter sido arrancado e
minha barba, raspada. Dá-se que meu pai era rei e tinha um irmão que também
era rei e fora agraciado com um filho e uma filha. Passaram-se os anos e
crescemos todos. Eu visitava meu tio com regularidade, hospedando-me com ele
por um ou dois meses e em seguida retornando a meu pai. Entre mim e meu
primo havia incontestável camaradagem e imenso afeto. Certo dia, por ocasião
de uma das minhas visitas, meu primo me fez grandes honrarias, sacrificou
ovelhas e preparou vinho puro, e depois nos acomodamos para beber. Quando os
efeitos da bebida nos dominaram, ele me disse: “Já terminei uma coisa, primo,
na qual estou trabalhando há um ano inteiro. Eu gostaria muito de mostrá-la a
você, desde que não tente impedir meus atos”. Respondi: “Com muito gosto e
honra”. Após me fazer jurar, ele imediatamente se levantou, ausentou-se por
alguns momentos e retornou com uma mulher envolta em capa, lenço, touca e
fragrâncias aromáticas que aumentaram nossa embriaguez. Ele disse: “Leve esta
mulher, primo, e vá na minha frente até o cemitério, no túmulo tal e tal” – e
descreveu os sinais que o túmulo possuía de modo que eu o distinguisse. E
continuou: “Conduza-a até esse túmulo e me espere”. Não podendo discordar
dele nem questioná-lo em razão da promessa que eu lhe fizera, peguei a mulher e
me pus em marcha até que entramos ambos no cemitério e fomos até o túmulo
por ele descrito. Mal nos acomodamos e já o meu primo chegava empunhando
um recipiente com água, um saco com pó de cimento[131] e uma espátula de
ferro. Tomando da espátula, meu primo se dirigiu ao túmulo e começou a lhe
arrancar as pedras e atirá-las para o lado. Depois, pôs-se a raspar a terra da cova
com a espátula, até que surgiu uma placa de ferro, do tamanho de uma pequena
porta, cobrindo toda a superfície da cova; ergueu a placa, debaixo da qual surgiu
uma escada em espiral. Ele se voltou para a mulher e disse por meio de sinais:
“Faça a sua escolha”. Então a mulher desceu as escadas e desapareceu de nossas
vistas. Em seguida, ele se voltou para mim e disse: “Ainda falta, primo, o favor
mais importante”, e eu perguntei: “E qual é?”. Ele respondeu: “Assim que eu
descer neste lugar, reponha a terra sobre a placa e recoloque as pedras no lugar”.
[132]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A irmã lhe disse: “Como é
agradável a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei lhes
contar na próxima noite”.

38ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas”. E o rei Šāhriyār disse:
“Continue a história do filho do rei”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o primeiro dervixe disse à jovem:
Depois de ter feito tudo o que fiz sob o torpor da embriaguez, cara madame,
regressei e dormi[133] na casa para mim reservada por meu tio, que se
encontrava numa expedição de caça. Pela manhã acordei e, pondo-me a refletir
sobre o que ocorrera à noite, pareceu-me que fora tudo um sonho, mas logo fui
assaltado pelas dúvidas e indaguei sobre o meu primo, do qual ninguém soube
dar notícias. Fui até o cemitério e os túmulos, e comecei a procurar a cova, mas
não consegui localizá-la nem reconhecê-la. Fiquei procurando de cova em cova e
de túmulo em túmulo até o anoitecer, sem comida nem bebida; toda a minha
mente estava ocupada com meu primo, pois eu não sabia onde ia dar a escada em
caracol; comecei a relembrar aos poucos o que sucedera, como se estivesse
assistindo a um sonho. Retornei para a casa em que estava hospedado, comi
alguma coisa e adormeci um sono sobressaltado até o amanhecer, quando então,
já lembrado de tudo quanto eu e ele fizéramos, retornei ao cemitério, onde
revirei e procurei até o anoitecer, mas não encontrei o túmulo nem um caminho
qualquer que conduzisse até ele. Retornei ao cemitério pelo terceiro dia, e depois
pelo quarto, sempre a procurar mal raiava o dia até o anoitecer, mas não
consegui localizar o túmulo; nesse ínterim, as preocupações e o sentimento de
frustração se avolumavam em mim, a tal ponto que quase enlouqueci; não
encontrei alívio senão em viajar, e foi por isso que tomei o rumo da cidade de
meu pai. Mal adentrei os portões da cidade, porém, fui atacado e amarrado.
Perguntei: “Qual o motivo disto?”, e me responderam: “O vizir deu um golpe de
Estado contra o seu pai e o traiu, cooptando todo o exército, matando o seu pai,
entronizando-se no lugar dele e ordenando que permanecêssemos à sua
espreita”. Em seguida, levaram-me desfalecido. Quando fui colocado diante do
vizir – e entre nós, cara e distinta madame, existia forte inimizade pelo fato de eu
ter arrancado o seu olho, e foi assim: eu gostava de atirar com bodoque, e certo
dia, encontrando-me no telhado de meu palácio, subitamente um pássaro pousou
no palácio do vizir, que por coincidência estava no telhado do seu palácio; atirei,
mas o disparo errou o pássaro, acertando em cheio e perfurando profundamente
o globo ocular do vizir; tal era o motivo de sua inimizade –, bem, quando fui
colocado diante do vizir, ele enfiou o dedo em meu olho, dilacerou-o e arrancou-
o, deixando-me caolho e fazendo-o escorrer pelas minhas faces. Em seguida,
amarrou-me, colocou-me numa caixa e, entregando-me ao verdugo que servia a
meu pai, ordenou-lhe: “Monte em seu cavalo, desembainhe a espada, leve esse aí
com você até o meio do deserto, mate-o e deixe as aves e feras comerem sua
carne”. Em obediência à ordem do vizir, o verdugo avançou comigo até o meio
do deserto, quando então desceu, retirou-me da caixa, olhou para mim e fez
tenção de matar-me. Chorei tão amargamente pelo que me sucedera que ele
também chorou. Olhei para ele e comecei a declamar:
“Dei-vos inexpugnável fortaleza para que barrásseis
as setas do inimigo; fostes, contudo, a ponta de lança.
Eu esperava vossa defesa contra toda adversidade,
tal como amigos leais salvam seus amigos;
procedei agora como quem lava as mãos,
e deixai que os inimigos me atirem seus dardos.
Se não quereis preservar minha estima,
antiga, permanecei ao menos indiferentes”.
Ao ouvir minha poesia, meus versos, o verdugo ficou compadecido; poupou-me,
libertou-me e disse: “Salve a sua vida e não retorne a esta terra, pois você será
morto e também eu; o poeta diz:
‘Atingido por infortúnio, salva a vida,
e deixa a casa chorar por quem a construiu,
pois poderás trocar uma terra por outra,
mas com tua vida o mesmo não poderás fazer;
tampouco envies teu mensageiro em missão importante,
pois para a vida o melhor conselheiro é o seu dono:
as cervizes dos leões só engrossaram tanto
porque eles próprios cuidam de seus interesses’”.
Beijei-lhe então as mãos, mal acreditando que me safara, e a perda do meu olho
tornou-se mais suportável por eu ter me salvado da ordem de execução. Fui
caminhando de pouco em pouco até chegar à cidade de meu tio, com o qual fui
ter, relatando-lhe a morte de meu pai e a perda de meu olho. Ele respondeu: “Eu
também estou com preocupações de sobra: meu filho desapareceu, e não consigo
saber o que lhe sucedeu nem seu paradeiro”, e chorou amargamente, fazendo-me
recordar aquela outra tristeza mais distante. Penalizado, não consegui manter
silêncio e informei-o sobre o filho e sobre o que lhe sucedera. Muito contente,
meu tio disse: “Venha me mostrar o túmulo”; respondi: “Tio, por Deus que eu
me confundi e já não posso reconhecer o lugar”, e ele retrucou: “Vamos nós
dois”. Saímos ambos, temerosos de que alguém percebesse, e chegamos ao
cemitério, no qual, depois de perambular por algum tempo, localizei e reconheci
o túmulo. Isso também me deixou muito contente, pois eu ficaria conhecendo a
história e o que havia abaixo das escadas. Avançamos, eu e meu tio, desfizemos
o túmulo, retiramos a terra e encontramos a placa de ferro. Meu tio desceu a
escada e eu fui atrás; eram cerca de cinquenta degraus, ao término dos quais nos
vimos em meio a uma densa fumaceira que nos deixou sem visibilidade. Meu tio
disse: “Não há poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso!”. O fim
da escada dava para um compartimento pelo qual caminhamos um pouco e cujo
final desembocava numa espécie de saguão sobre pilares e com claraboias que
pareciam dar em alguma colina; caminhando por esse saguão, encontramos
vasos e, no centro, uma cisterna; sacos de trigo, sementes e outras coisas; no fim
do saguão, uma cama coberta por um dossel estendido. Subindo na cama, meu
tio puxou um dos lados do dossel e encontrou seu filho e a mulher que descera
com ele: ambos tinham se tornado negro carvão, e estavam abraçados como se
tivessem sido lançados ao fogo e esse fogo tivesse se intensificado, queimando-
os por completo e tornando-os carvão. Ao ver aquilo, meu tio ficou contente,
cuspiu no rosto do filho e disse: “Esse foi o sofrimento deste mundo; agora, resta
o do outro”, e, tirando a sandália do pé, começou a desferir violentos golpes no
rosto do filho.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

39ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
irmãzinha, conte-nos uma de suas belas historinhas a fim de passarmos o serão
desta noite”. O rei disse: “Que seja a continuação da história do primeiro
dervixe”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o primeiro dervixe disse à jovem:
Quando meu tio golpeou com a sandália o rosto de seu filho, cara madame,
estando ele e a mulher completamente queimados, eu supliquei: “Por Deus, tio,
dissipe de minha alma esta angústia: todo meu íntimo está preocupado e eu estou
aflito com o que sucedeu ao seu filho. Já não basta o que aconteceu a ele e o
senhor ainda lhe golpeia o rosto com a sandália?”. Meu tio disse:
“Eu o informo, sobrinho, que desde pequeno o meu filho foi tomado de
amores pela irmã. Eu lhe proibia aquilo e pensava: ‘Ainda são pequenos’.
Quando cresceram, porém, ocorreu entre eles a abominação; ouvi a respeito mas,
não acreditando, peguei o rapaz, repreendi-o acerbamente e disse-lhe: ‘Muito,
muito cuidado para que isso não lhe ocorra e você se torne, entre os reis, o
desgraçado e o depravado até o fim dos tempos, e que notícias ao nosso respeito
cheguem aos viajantes das regiões mais afastadas e dos países mais remotos.
Cuidado, muito cuidado, pois esta é sua irmã, e Deus a fez proibida para você’.
Em seguida, sobrinho, tratei de deixá-la isolada dele. Contudo, a maldita
também o amava; o demônio a dominou e adornou aquela ação aos seus olhos.
Vendo que eu os isolara um do outro, ele construiu e arrumou este local
subterrâneo conforme você está vendo, dotando-o de tudo de que necessitasse,
como alimento e outras coisas. Cavou este buraco e esperou uma distração
minha, que se deu quando saí para caçar; então levou a irmã, após ter sucedido
entre você e ele aquilo tudo. Meu filho acreditou que poderia desfrutar a irmã
por um longo tempo, e que Deus altíssimo se esqueceria deles.”[134]
Encerrada a narrativa, meu tio chorou, e eu chorei com ele. Olhando para
mim, disse: “Você o substituirá”. Em seguida, recordando o que sucedera aos
seus filhos, a morte de seu irmão e a perda de meu olho, chorou durante um bom
tempo as desditas do mundo e do tempo, as desditas da sorte, e eu o acompanhei
nesse choro. Subimos as escadas do túmulo, recoloquei a placa no lugar e
voltamos para casa de modo que ninguém percebesse. Mal tínhamos nos
acomodado em casa quando ouvimos som de tambores e bumbos rufando,
cornetas tocando, homens gritando, cavalos relinchando, rédeas se retesando e
fileiras se aprumando para o combate; o mundo se encheu de poeira espessa,
cascos de cavalo e corrida de homens. Perplexos e estupefatos, indagamos sobre
o que ocorria, e nos foi respondido que o vizir que se entronizara no reino de
meu pai preparara soldados, reunira exércitos, empregara carroças e nos atacara;
seus soldados eram tantos quanto os grãos da areia: incontáveis, ninguém
poderia enfrentá-los. Haviam atacado a cidade aproveitando-se de um momento
de distração dos moradores, os quais, incapazes de resistir, lhes entregaram o
local. Meu tio foi morto e eu fugi pelos arredores da cidade, pensando: “Quando
o vizir puser as mãos em mim, irá matar-me e também a Sāyir,[135] o verdugo
que servia a meu pai”. Minhas aflições se renovaram, meus pesares aumentaram,
e me recordei o que ocorrera a meu tio, a meu pai e a meus primos, além da
perda de meu olho, e então chorei amargamente. Depois pensei: “O que fazer?
Caso eu apareça, serei reconhecido pelos moradores da cidade; os soldados do
meu pai, que me conhecem tal como conhecem o sol, quererão matar-me para
aproximar-se do vizir”. Não encontrei nada que me garantisse a vida e salvasse
senão raspar a barba e as sobrancelhas. Modifiquei minhas roupas, passando a
usar a vestimenta dos mendigos e seguindo a ordem dos dervixes carendéis. Saí
da cidade sem que ninguém me reconhecesse. Busquei esta terra e segui este
caminho com a intenção de chegar a esta cidade de Bagdá, onde, quem sabe,
talvez minha sorte me ajude a encontrar alguém que me conduza ao comandante
dos crentes e califa do Deus dos Mundos, Hārūn Arrašīd, para contar-lhe minha
história e o que se abateu sobre minha cabeça. Cheguei aos portões de Bagdá
nesta noite e estaquei indeciso, sem saber qual rumo tomar; foi então que este
dervixe que está ao meu lado chegou, ainda carregando vestígios de viagem;
cumprimentou-me e eu lhe perguntei: “Estrangeiro?”, e ele respondeu “Sim”;
emendei: “Eu também”. Estávamos nesse diálogo quando este que está aqui ao
nosso lado, e que também é dervixe, se achegou a nós diante dos portões,
cumprimentou-nos e disse: “Estrangeiro”; respondemos: “Nós também”.
Começamos a caminhar juntos, pois a noite já se abatera sobre nós, pobres
estrangeiros que não sabiam qual rumo tomar. Foi o destino que nos conduziu à
sua casa, e vocês fizeram a caridade de nos deixar entrar e nos trataram com
tamanha gentileza que eu me esqueci da perda de meu olho e da raspagem de
minha barba.
A jovem lhe disse: “Apalpe a cabeça e vá embora”, mas ele respondeu: “Por
Deus que não sairei daqui até ouvir o que ocorreu aos outros”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado com o
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”. O
rei pensou: “Por Deus que adiarei sua morte até ouvir a notícia das jovens com
os dervixes, e só então a matarei, como fiz com as outras”.

40ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas”, e Šahrāzād respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
Conta-se, ó rei venturoso, que todos os presentes ficaram assombrados com as
palavras do primeiro dervixe. O califa disse a Jaᶜfar: “Esta é a coisa mais
assombrosa que ouvi em toda a minha vida”. Em seguida, o segundo dervixe deu
um passo à frente e disse:
O SEGUNDO DERVIXE
Por Deus, minha senhora, fique sabendo que não nasci caolho; eu lhe informo
que, ao contrário do que possa parecer, eu era filho de rei. Meu pai me ensinou
caligrafia e o Alcorão sagrado, do qual aprendi as sete formas de recitação,
assimiladas a partir da obra de Aššāṭibī;[136] li um livro sobre jurisprudência
islâmica e o expus diante de um grupo de homens doutos. Depois me ocupei de
gramática e do idioma árabe; em seguida, tornei-me perito na arte da escrita,
chegando ao ponto de superar todos os meus contemporâneos, escritores desta
época e deste momento. Ampliei meus conhecimentos de eloquência e retórica, e
a minha história se propagou por tudo quanto é região e país; as notícias sobre
mim e sobre minha escrita chegaram a todos os reis deste tempo. O rei da Índia
escreveu pedindo a meu pai que me enviasse a ele, e lhe remeteu presentes e
joias adequadas aos reis; então, meu pai me forneceu um aparato de seis corcéis
do correio com seguranças.[137] Despedi-me e saí com aqueles seis corcéis; já
estava viajando por um mês inteiro quando percebemos forte levantar de poeira
que, após alguns instantes, foi dissipada pelo vento, subindo em círculo pelos
ares; por debaixo da poeira apareceram cinquenta cavaleiros, leões irados e de
ferro agasalhados.
Disse o autor : e a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A irmã lhe
disse: “Como é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite,
se eu viver e for preservada”.

41ª
noite dos assombros e
espantos das narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Se você não estiver dormindo, maninha,
conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão desta
noite”. Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Eu fui informada, ó rei venturoso, de que o segundo dervixe, jovem filho de
rei, disse à jovem:
Vimos, portanto, o grupo de cavaleiros, e eis que se tratava de salteadores de
estrada. Ao nos verem – éramos poucos – e notarem que levávamos dez sacos
cheios de presentes, acreditaram que fosse dinheiro, desembainharam as espadas
e apontaram-nas contra nós, que lhes fizemos sinais dizendo: “Somos enviados
ao maior de todos os reis, o rei da Índia, e vocês não têm nada a ver conosco”.
Responderam: “Embora estejamos na terra dele, não lhe prestamos nenhuma
obediência”. Em seguida, mataram todos os que estavam comigo, e eu, ferido,
consegui fugir enquanto eles se ocupavam dos presentes que trazíamos. Avancei
sem saber que direção tomar, nem onde buscar abrigo; de poderoso que antes
era, eu me tornara humilhado; de rico, pobre.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã lhe disse: “Como é
agradável e maravilhosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

42ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem segundo dervixe disse para a
moça:
Depois de ter sofrido aquele assalto, pus-me a caminhar às cegas até o
anoitecer. Subi numa montanha e me abriguei até o amanhecer numa caverna
que ali havia; tornei a caminhar até o anoitecer, alimentando-me de plantas
rasteiras e frutos de árvores, e dormi até o amanhecer. Permaneci nessa prática
por cerca de um mês, durante o qual as caminhadas acabaram por me conduzir a
uma cidade agradável, segura e bastante próspera, tão abundante de moradores
que seu solo se agitava; a estação de inverno, plena de frio, já partira, e já
chegara a estação da primavera, plena de rosas. Suas flores desabrochavam, seus
rios estavam cheios e seus pássaros gorjeavam, conforme disse a respeito um dos
que a descreveram com as seguintes palavras:
“Eis uma cidade a cujos habitantes
nada aterroriza, e cujo dono é a segurança,
como se fosse um paraíso decorado
para os moradores, repleto de maravilhas”.
[Prosseguiu o dervixe:] Fiquei feliz e triste. Feliz por ter chegado à cidade, e
triste por ter nela adentrado em semelhante miséria, extenuado de tanto andar,
com o rosto, as mãos e os pés sujos, coberto de preocupações e agruras, com a
condição e a feição alteradas. Entrei sem saber para que lado me dirigir. Passei
por uma loja na qual havia um alfaiate, a quem cumprimentei. Ele me deu boas-
vindas e, notando em mim vestígios de uma existência abastada, acomodou-me
junto a si e começou a conversar comigo com satisfação. Depois me perguntou
sobre minha situação e eu o informei do que me sucedera. Entristecido, ele me
disse: “Não revele a ninguém, meu rapaz, o que lhe ocorreu, pois o rei desta
cidade é um dos maiores inimigos do seu pai, de quem ele quer se vingar; oculte,
portanto, a sua condição”. E logo me trouxe alimento, e fizemos a refeição
juntos, e juntos ficamos até o anoitecer, quando então ele me arranjou um
cômodo ao lado do seu e me trouxe coberta e outras coisas de que eu precisava.
Mantive-me às suas expensas por três dias, findos os quais ele me perguntou:
“Você conhece alguma atividade para exercer e se sustentar?”. Respondi: “Sou
jurisconsulto, sábio, letrado, poeta, gramático e calígrafo”. Ele disse: “Essas
atividades não têm nenhuma serventia em nosso país”. Eu disse: “Por Deus que
não conheço nenhuma atividade além das que mencionei”. Ele disse: “Faça um
esforço; pegue um machado e cordas e vá até os ermos da cidade; ali, corte a
lenha necessária para ganhar seu sustento. Não deixe que ninguém saiba quem
você é, caso contrário será morto; esconda sua identidade até que Deus lhe
proporcione alguma solução”. E comprou para mim um machado e cordas,
deixando-me na companhia de alguns lenhadores, com os quais saí para os
ermos da cidade. Cortei lenha o dia inteiro, carreguei tudo sobre a cabeça e vendi
por meio dinar, que entreguei ao alfaiate. Fiz isso durante um ano inteiro, após o
qual, havendo eu certo dia penetrado fundo num dos ermos da cidade, encontrei
um bosque de árvores e uma campina com regatos e água corrente. Entrei no
bosque e topei com um toco de árvore em torno do qual comecei a escavar com
o machado; retirei a terra e encontrei uma argola presa a um tampão de madeira;
abri-o e verifiquei que por debaixo do tampão havia uma escada; desci e cheguei
a um palácio subterrâneo de tal maneira construído e de tão sólidos alicerces que
nunca vi mais formoso; caminhei por ele e eis que encontrei uma jovem
graciosa, magnífica como pérola reluzente ou sol brilhante, e cujas palavras
curavam a angústia e arrebatavam o homem ajuizado e inteligente; cinco pés de
altura,[138] seios firmes, rosto suave, cor esplendorosa, constituição graciosa,
cuja face resplandecia em meio à noite formada por suas tranças, e cujos dentes
brilhavam entre os lábios, conforme se disse sobre ela:
“São quatro as coisas que, ao se reunirem,
contra minha vida e meu sangue atentam:
luz da fronte, marido que se foi,[139]
rosado da face e um belo sorriso”.
Disse o autor : e a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu
viver e o rei me preservar”.

43ª
noite das narrativas das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas a fim de atravessarmos o serão
desta noite”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem segundo dervixe disse à moça:
Assim que olhou para mim, aquela jovem perguntou: “O que você é? Humano
ou gênio?”. Respondi: “Humano, é claro”. Ela perguntou: “Então qual é o
motivo de você ter vindo até aqui? Estou neste lugar faz vinte e cinco anos e
durante esse período nunca vi um ser humano”. Tendo percebido em suas
palavras sentidos e seduções que se apossaram inteiramente do meu coração,
respondi: “Cara senhora, vim para cá conduzido pela minha boa sorte para
dissipar as minhas aflições, e por sua boa sorte para dissipar as suas aflições”, e
lhe relatei o que me acontecera. Condoída, ela disse: “Agora eu vou lhe contar
minha história: sou filha de um rei chamado Avtīmārūs, senhor da Ilha de Ébano.
Ele me casara com um de meus primos, e na minha noite de núpcias fui
sequestrada por um ifrit que, após voar comigo por algum tempo, instalou-me
neste lugar, dotando-o de tudo quanto eu necessitasse: comida, bebida, doces etc.
Ele vem somente uma vez a cada dez dias e passa a noite comigo, pois ele me
tomou às escondidas de seus parentes; caso me aconteça algo ou tenha alguma
precisão dele, seja dia ou noite, basta que eu encoste a mão nestas duas linhas
desenhadas na soleira; nem bem a retiro e já o vejo a meu lado. Ele está ausente
há quatro dias, faltando pois seis dias para que volte para cá. O que você acha de
ficar comigo durante cinco dias e se retirar um dia antes do retorno do ifrit?”.
Respondi: “Sim, ‘que bom que os sonhos virem realidade’!”.[140]
[Prosseguiu o dervixe:] Muito contente, ela ficou de pé, pegou minha mão e
me fez entrar por uma porta em arco que nos levou até uma sala de banhos; ali,
ela me fez arrancar a minha roupa, arrancou a sua roupa e entramos no banho,
onde ela me lavou e banhou; saímos e ela me fez vestir uma roupa nova; depois,
fez-me sentar num colchão e me serviu uma grande taça de bebida, sentando-se
então e pondo-se a conversar comigo durante algum tempo; ofereceu-me um
pouco de alimento, do qual comi o suficiente. Depois, estendeu-me um
travesseiro e disse: “Durma, descanse, pois você está cansado”. Dormi, já
esquecido de todas as preocupações que se tinham abatido sobre mim, acordando
depois de algumas horas com ela me massageando. Levantei-me, agradeci-lhe e
roguei a Deus por ela. Eu estava mais ativo, e ela perguntou: “Você quer bebida,
meu jovem?”. Respondi: “Traga”, e ela se dirigiu à despensa, da qual retirou
bebida envelhecida e selada e, montando uma opulenta mesa, pôs-se a recitar:
“Se soubéssemos de vossa vinda, vos estenderíamos
a essência da alma ou o negrume dos olhos,
e espalharíamos rostos sobre a terra, a fim
de que vossa caminhada fosse sobre pálpebras”.
[Prosseguiu o dervixe:] Eu lhe agradeci, e o amor por ela tomou conta de todos
os meus membros. Minha tristeza se dissipou; acomodamo-nos e ficamos nos
servindo de bebida até o anoitecer. Passei com ela uma agradabilíssima noite,
como nunca na vida eu houvera passado. Quando amanheceu, ligamos a
felicidade com a felicidade até o meio-dia. Embriaguei-me de tal modo que o
torpor me fazia balançar à esquerda e à direita e eu disse a ela: “Vamos subir
para a superfície, formosura? Vou libertar você desta prisão!”. Ela riu e disse:
“Sente-se e fique quieto, meu senhor; contente-se em me possuir durante nove
dias; e um dia é do ifrit!”. Respondi-lhe, totalmente dominado pela embriaguez:
“Agora mesmo eu vou quebrar a soleira que tem aquelas coisas gravadas; deixe
que o ifrit venha para eu matá-lo! Estou acostumado a matar essa espécie de dez
em dez!”. Ao ouvir minhas palavras, ela ficou amarela e disse: “Pelo amor de
Deus, não faça isso!”, e declamou:
“Ó tu que procuras separar-te, calma,
pois os corcéis da separação são velozes,
calma, pois a índole dos tempos é traiçoeira,
e o destino de toda companhia é separar-se”.
[Prosseguiu o dervixe:] Mas a embriaguez me dominou e eu chutei a soleira.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Disse Dīnārzād: “Como é
agradável e assombrosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto
do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

44ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para atravessarmos o serão
desta noite”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei venturoso, que o segundo dervixe disse à jovem:
Assim que dei o chute na soleira, mal nos apercebemos e já escurecia por todo
lado, trovejava e relampejava; o mundo se fechou e a bebedeira voou para fora
da minha cabeça; perguntei-lhe: “O que está acontecendo?”, e ela respondeu: “O
ifrit já chegou; salve a sua alma saindo pelo tampão, meu senhor”. Mas o meu
medo era tamanho que esqueci as sandálias e o machado de ferro quando subi as
escadas. Mal eu terminara de subir e já o palácio se fendia, e da fenda o ifrit
surgia dizendo: “Que aporrinhação é essa com que você está me incomodando?
Qual é o seu problema?”. A mulher respondeu: “Meu senhor, hoje senti o peito
opresso e quis beber alguma coisa para espairecer, o que fiz com moderação, e
logo me levantei a fim de resolver um assunto qualquer, mas minha cabeça
pesou e caí sobre a soleira”. O ifrit disse: “Você está mentindo, sua puta!”, e pôs-
se a examinar tudo, encontrando minhas sandálias e meu machado; perguntou:
“Que coisas são estas?”; ela respondeu: “Só estou vendo isso agora; parece que
vieram presos ao seu corpo”; ele disse: “Você por acaso está pensando em usar
astúcia para me enganar, sua iníqua?”, e, puxando-a, arrancou-lhe as roupas e
amarrou os membros em quatro estacas, passando então a torturá-la para obter a
confissão. Não suportando ouvir-lhe o choro, cara ama e senhora, subi as escadas
devagarinho, tremendo de medo, e cheguei à saída; recoloquei o tampão no lugar
e cobri-o de terra, conforme estava antes. Lembrei-me da jovem, de sua beleza,
de sua gentileza e atenções para comigo, e de como, embora ela tivesse passado
vinte e cinco anos sem que nada lhe ocorresse, bastara que eu dormisse com ela
uma única noite para lhe causar tudo aquilo; minha tristeza cresceu e minhas
preocupações se ampliaram. Lembrei-me de meu pai e de meu reino, e de como
o tempo fora traiçoeiro comigo, tornando-me um lenhador; e depois que o tempo
fora um pouquinho agradável comigo, voltara a tornar minha vida um desgosto.
Chorei então copiosamente, recriminei-me e declamei:
“Minha sorte me maltrata como se eu fora seu inimigo,
causando-me desgostos sempre que topa comigo,
e mesmo que ela seja gentil por um instante qualquer,
logo em seguida me faz vislumbrar novos desgostos”.
[Prosseguiu o dervixe:] Caminhei, pois, até chegar ao meu amigo alfaiate, a
quem encontrei fervendo de preocupação por mim. Ao me ver, demonstrou
grande contentamento e perguntou: “Onde dormiu ontem à noite, meu irmão?
Não parei um instante de pensar em você; graças a Deus regressou em
segurança”. Agradeci-lhe a carinhosa solicitude, entrei em meu cômodo e me
sentei para refletir sobre o que me acontecera. Recriminei minha impertinência
exagerada, pois, se eu não chutasse a soleira, nada teria acontecido. Estava eu
nesses cálculos quando meu amigo alfaiate entrou e perguntou: “Lá fora, meu
rapaz, há um velho persa com o seu machado de ferro e as suas sandálias; ele
exibiu esses objetos aos lenhadores e disse: ‘Eu fui fazer minhas preces matinais
logo depois do chamado do muezim e então tropecei neste machado e nestas
sandálias; vejam e me apontem a quem pertencem’. E os lenhadores apontaram
você, pois reconheceram o seu machado e disseram: ‘Este é o machado do jovem
estrangeiro que está hospedado com o alfaiate’. Ele está agora na loja; vá até lá e
pegue o seu machado de volta”. Quando ouvi a história, fiquei amarelo e
transtornado, e, enquanto conversava com o alfaiate, eis que o chão do cômodo
se fendeu e dele saiu o velho persa: na verdade, era o ifrit. Após torturar a jovem
até quase matá-la, sem que ela, contudo, confessasse, ele recolhera o machado e
as sandálias e dissera: “Se eu sou mesmo o ifrit, sobrinho do demônio, irei
trazer-lhe até aqui o dono deste machado”, e em seguida vestiu uma roupa de
persa e agiu conforme já se descreveu. Quando o chão se fendeu e ele saiu...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

45ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo, conte-
nos uma de suas historinhas”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei, que o segundo dervixe disse à jovem:
O ifrit começou o seu voo e, sem me dar o menor tempo, agarrou-me e saiu
voando comigo do cômodo; alçou-se aos céus por alguns momentos, logo
pousando no solo e batendo o pé; o solo se fendeu e ele submergiu comigo por
alguns momentos, sem que eu conseguisse discernir nada. Em seguida, ele saiu
comigo bem no centro do palácio no qual eu havia passado a noite. Olhei para a
jovem, que estava nua, amarrada e com sangue escorrendo pelos flancos. Meus
olhos ficaram marejados. O ifrit soltou-a, cobriu-a com um manto e lhe disse:
“Não é este o seu amante, sua iníqua? Sim ou não?”. Ela olhou para mim e disse:
“Absolutamente não conheço esse homem, nunca o vi, exceto neste momento”.
O ifrit lhe disse: “Ai de você! Depois de toda essa surra ainda se recusa a
confessar?”. Ela respondeu: “Não conheço esse homem; não posso mentir, pois
você o mataria”. O ifrit disse: “Se você de fato não o conhece, pegue esta espada
e corte-lhe o pescoço”. A jovem pegou a espada, caminhou em minha direção e
parou diante de mim. Com a pálpebra eu lhe fiz um sinal que ela compreendeu, e
por sua vez me piscou o olho, como a dizer: “Não foi você que provocou isto?”;
fiz-lhe um sinal com o olho querendo dizer: “Esta é hora de perdoar”. Foi então
que a sua expressão muda lhe escreveu nas páginas do rosto:
“Meu olhar traduz minha língua para que saibas,
e a paixão que eu escondia transparece em mim;
quando nos encontramos, as lágrimas secretas
emudeceram, e meu olhar falou por elas;
fazes sinais, e eu compreendo o que dizes com o olhar,
e então fecho os meus olhos para que saibas;
as sobrancelhas satisfazem nossa necessidade mútua,
pois calados ficamos, e que fale a paixão”.
[Prosseguiu o dervixe:] Então, largando a espada, a jovem disse: “Como eu
poderia golpear quem não conheço e depois ser responsabilizada por sua
morte?”, e deu um passo para trás. O ifrit lhe disse: “Você não conseguiria matá-
lo porque ele dormiu ao seu lado; é por isso que suportou toda aquela surra e não
confessou. Ademais, a mesma espécie se solidariza entre si”. Em seguida, ele se
voltou para mim e perguntou: “E você, humano, não conhece essa aí?”.
Respondi: “E quem é essa aí? Eu nunca a vi antes; é a primeira vez”. Ele disse:
“Pegue esta espada e corte-lhe o pescoço que eu o libertarei e terei certeza de
que você não a conhece”. Respondi: “Sim”, e, tomando da espada, aproximei-me
dela, tenso.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado
ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

46ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Continue a história para nós”, e Šahrāzād


respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o segundo dervixe disse à jovem:
Quando peguei a espada e me aproximei, a jovem me fez com as pálpebras
sinais que queriam dizer “Eu agi corretamente e é assim que você me retribui?”,
e movimentou as sobrancelhas. Compreendi o que ela dizia e lhe fiz sinais com
os olhos: “Vou salvá-la com a minha própria vida”; trocamos sinais com os olhos
por alguns instantes e nossa expressão muda escreveu o seguinte:
“Quantos amantes com as pálpebras falaram
aos seus amados do que no peito ocultavam!
Secretamente lhe transmite com meneio d’olhos:
‘já compreendi tudo quanto ocorreu’.
Como é belo esse meneio em seu rosto,
e quão ligeiros são os olhos quando se exprimem;
um amante com as pálpebras escreve,
e o outro amante com as pupilas já leu”.
[Prosseguiu o dervixe:] Larguei a espada e disse: “Ó severo ifrit, se até esta
mulher, nascida de uma costela torta, mesmo tendo o juízo avariado e a língua
presa, não aceitou cortar o pescoço de um desconhecido, por que eu, sendo
homem, iria cortar o pescoço de quem não conheço? Isso é algo que não pode
acontecer de jeito nenhum, mesmo que me façam beber da taça da apostasia”. O
ifrit disse: “Vocês estão mancomunados contra mim. Eu vou lhes mostrar qual é
a punição pelo que fizeram”. E, pegando da espada, golpeou a mulher, fazendo
sua mão sair voando do braço; depois, golpeou e fez voar a outra mão, e ela,
debatendo-se nos estertores da morte, fez-me ainda um sinal com os olhos como
que se despedindo;[141] foi então, minha senhora, que quase perdi os sentidos e
desejei a morte. O ifrit disse: “Este é o castigo de quem trai”, e, voltando-se para
mim, continuou: “Conforme a nossa lei, ó humano, quando a esposa trai, ela
deixa de ser lícita para nós, e a matamos sem hesitar. Eu havia raptado essa
jovem na noite de seu casamento, quando ela tinha doze anos de idade. Não
conheceu ninguém além de mim, que vinha dormir com ela caracterizado como
persa, uma vez a cada dez noites. Quando me assegurei de que ela me traiu,
matei-a, pois ela deixou de ser lícita para mim. Por outro lado, não tenho certeza
de que foi você quem praticou a traição com ela. Mas não irei deixá-lo impune;
pode escolher a forma na qual irei enfeitiçá-lo: cachorro, asno ou leão? Besta ou
ave?”. Pretendendo conseguir o seu perdão, eu disse: “Ó ifrit, perdoar-me seria
mais condizente para você. Perdoe-me tal como o invejado perdoou o invejoso”.
O ifrit perguntou: “E como foi isso?”. Respondi:
O INVEJOSO E O INVEJADO
Conta-se, ó ifrit, que em certa cidade viviam dois homens que moravam em
casas geminadas. Um deles tinha inveja do outro, lançava-lhe mau-olhado e se
excedia em tudo quanto pudesse prejudicá-lo; essa inveja constante e diuturna ao
vizinho aumentou a tal ponto que o invejoso reduziu sua alimentação e o prazer
do sono, ao passo que o invejado não fazia senão melhorar de vida: tudo em que
punha as mãos crescia e se desenvolvia. Informado, porém, da inveja e do rancor
do vizinho, o invejado mudou-se de sua vizinhança e se distanciou daquela terra
dizendo: “Por Deus que eu sairia do mundo para ficar longe dele”, e foi morar
em outra cidade, na qual comprou um terreno onde existia um velho poço para
irrigação. Nesse terreno ele construiu uma espécie de monastério, no qual
estendeu esteiras e instalou outras coisas de que necessitava, e ali se pôs a adorar
a Deus altíssimo em sincera devoção. Os pobres acorreram a ele de todos os
lados, pois as notícias a seu respeito rapidamente se espalharam pela cidade. Em
seguida, as notícias acabaram chegando ao seu antigo vizinho, que o invejava
devido aos benefícios com que era ungido: agora, eram os dignitários da cidade
que haviam passado a procurar o invejado. O invejoso então viajou para a cidade
em que o invejado vivia e entrou em seu monastério, sendo por ele recebido com
boas-vindas, alegria e grandes honrarias. O invejoso lhe disse: “Tenho algumas
coisas para lhe dizer, e são elas o motivo de minha viagem até aqui. Eu gostaria
de comunicá-las a você; venha e caminhe comigo pelo monastério”. O invejado
se levantou e o invejoso o pegou pela mão; caminharam até o final do
monastério. O invejoso disse: “Diga aos seus pobres, meu irmão, que eles
entrem em seus cômodos, pois eu quero contar-lhe um segredo e gostaria que
ninguém nos ouvisse”. O invejado disse aos pobres: “Entrem em seus cômodos”,
e eles obedeceram. O invejoso disse: “Agora, como eu lhe havia dito, a minha
história...”, e caminhou com ele, evitando dar a entender as suas intenções, até se
aproximarem do velho poço, quando então o empurrou para dentro do poço sem
que ninguém soubesse e foi-se embora; tomou seu caminho achando que matara
o invejado.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto
do que lhes contarei na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

47ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos o que ocorreu ao invejoso quando jogou o invejado no
poço”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei, que o segundo dervixe disse à jovem:
Então eu disse:
Eu tive notícia, ó ifrit, de que, quando o invejoso atirou o invejado naquele
poço antiquíssimo, os gênios que ali moravam amorteceram-lhe cuidadosamente
a queda e o depuseram sobre uma rocha. Perguntaram-se uns aos outros: “Vocês
sabem quem é?”, e todos responderam: “Não”. Um deles disse: “Este é o homem
invejado que fugiu daquele que o invejava, vindo morar em nossa cidade, aqui
construiu este monastério e nos tem entretido com suas litanias e recitações. Mas
o invejoso viajou até aqui, acercou-se dele e elaborou um estratagema contra o
homem, atirando-o dentro deste poço. As notícias a respeito da devoção do
invejado, contudo, chegaram nesta noite ao sultão da cidade, que planeja visitá-
lo amanhã pela manhã por causa da filha”. Um dos gênios perguntou: “E o que
tem a filha do sultão?”. Respondeu: “Encontra-se possuída pelo gênio Maymūn
Bin Damdam, que se apaixonou por ela. Se o invejado conhecesse o remédio, ele
a curaria. E o remédio é o mais simples possível”. Perguntou-se: “E qual é o
remédio?”. Respondeu: “Está no gato preto que ele tem no monastério. No final
da cauda desse gato preto existe um círculo do tamanho de uma moeda de um
dirham; basta que ele tome seis fios desse círculo branco e a incense com eles: o
gênio sairá de sua cabeça e nunca mais retornará, e ela ficará imediatamente
curada”. Isso tudo que ocorria, ó ifrit, foi ouvido pelo invejado. Quando
alvoreceu e o dia ficou claro, os pobres acorreram para encontrar seu mestre, o
invejado; vê-lo sair do poço fez a sua importância crescer imensamente aos seus
olhos. Mas a única preocupação do invejado era o gato preto: arrancou sete fios
do círculo branco que este tinha no rabo e os guardou consigo. Logo que o sol
raiou, o rei chegou com seus soldados; apeou-se, junto com os maiorais de seu
governo, ordenou aos soldados que estacassem e entrou para visitar o invejado,
que lhe deu boas-vindas, aproximou-o e lhe disse: “Vou revelar-lhe o motivo que
o trouxe aqui”. O sultão respondeu: “Faça-o”. O invejado disse: “Você veio
visitar-me com o objetivo de consultar-me a respeito de sua filha”. O rei
respondeu: “Está certo, meu virtuoso senhor”. Disse o invejado: “Mande alguém
trazê-la aqui. Espero em Deus altíssimo que ela fique imediatamente curada”.
Muito contente, o rei mandou buscar a filha, que foi trazida amarrada e
agrilhoada. O invejado a fez sentar-se, estendeu um véu sobre ela, pegou os fios
e incensou-a com eles. O ser que ocupava a cabeça da jovem soltou um grito e
saiu dali; a moça recuperou o juízo, cobriu o rosto e indagou: “O que está
acontecendo? Quem me trouxe a este lugar?”. O sultão sentiu uma insuperável
alegria e beijou-a nos olhos. Em seguida, beijou a mão do mestre invejado e,
voltando-se para os notáveis de seu Estado, perguntou: “O que me dizem? O que
merece quem curou minha filha?”. Responderam: “Merece que o senhor lhe dê a
mão dela em casamento”. Ele disse: “É verdade”, e o casou com ela; assim, o
invejado se tornou genro do rei. Pouco tempo depois, como seu vizir morresse, o
rei perguntou: “A quem faremos vizir?”. Responderam-lhe: “Seu genro”, e
fizeram-no vizir. Pouco tempo depois o rei morreu, e perguntaram: “A quem
faremos sultão?”. Respondeu-se: “O vizir”, e transformaram o invejado em
sultão; foi assim que ele se tornou o rei, o governante. Certo dia, enquanto ele
galopava junto com seu séquito...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto
do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

48ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Se você não estiver dormindo, maninha,
conte-nos o que aconteceu ao invejoso e ao invejado”, e Šahrāzād respondeu:
“Sim”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o segundo dervixe disse para a jovem:
[Eu disse:] Deu-se então que, certo dia, o invejoso estava a percorrer seu
caminho quando o invejado, acompanhado de seu séquito, entre comandantes,
vizires e notáveis de seu Estado, viu-o de relance e, voltando-se para um de seus
vizires, disse-lhe: “Traga-me aquele homem, sem ameaçá-lo nem amedrontá-lo”.
O vizir saiu e retornou trazendo seu ex-vizinho, o invejoso. O invejado disse:
“Deem-lhe mil pesos de ouro dos meus depósitos, encham-lhe vinte fardos de
mercadorias com as quais ele trabalha, e enviem-no de volta a seu país
acompanhado de seguranças”. Em seguida despediu-se do invejoso, e se retirou
sem recriminá-lo pelo que fizera.[142]
[Prosseguiu o dervixe:] “Veja, ó ifrit, o perdão que o invejado concedeu ao
invejoso, que desde início o havia invejado e prejudicado, e depois foi atrás dele,
chegando a atirá-lo ao poço no intuito de matá-lo; não obstante, ele não lhe
retribuiu esses malefícios, mas sim relevou tudo e o perdoou”. Em seguida
chorei amarga e copiosamente diante dele, caríssima senhora, e declamei o
seguinte:
“Perdoe o delito, pois é comum que
os juízes absolvam os culpados;
Incidi em toda espécie de crime;
incida você em alguma espécie de perdão;
quem pretende o perdão dos mais fortes
que perdoe aqueles que são mais fracos”.
[Prosseguiu o dervixe:] O ifrit disse: “Não, não irei matá-lo, mas tampouco o
perdoarei a ponto de deixar você escapar incólume das minhas mãos; nem
adianta tentar. Eu o absolvo da morte, mas irei metamorfoseá-lo”. E,
arrebatando-me, voou comigo tão alto que pude ver que o mundo parece uma
nuvem branca. Em seguida, pousou-me numa montanha e tomou um pouco de
terra sobre a qual murmurou invocações e fez esconjuros, atirando-a então em
mim e dizendo: “Abandone essa forma e assuma a forma de macaco”, e de
imediato me transformei em macaco. O ifrit deixou-me então, e foi-se embora.
Assim que me vi transformado, chorei de autocomiseração e recriminei o tempo,
que não é justo com ninguém. Desci da montanha, encontrando à minha frente
um vasto deserto no interior do qual me entranhei durante um mês; minha
caminhada me conduziu a uma praia onde, logo que me pus a olhar, avistei,
cortando as ondas, um navio do qual se espalhava agradável aroma. Peguei o
galho de uma árvore, quebrei-o e com ele comecei a fazer sinais para o navio,
pois minha língua não funcionava e eu estava muito abatido. Então o navio se
desviou em direção à terra e eu consegui alcançá-lo; tratava-se de uma grande
embarcação cheia de mercadores e carregada de temperos e outras mercadorias.
Ao me verem, os mercadores disseram ao capitão: “Você arriscou nossas vidas e
cabedais por causa de um macaco, o qual, onde quer que esteja, faz com que a
bênção divina seja retirada?”. Um dos mercadores disse: “Eu irei matá-lo”; outro
disse: “Eu o alvejarei com flechas”; outro disse: “Nada disso, vamos afogá-lo”.
Ouvindo-lhes tais palavras, dei um salto e fiquei ao lado do capitão, em cujas
roupas eu me agarrei como quem implora ajuda; chorei e as lágrimas me
escorreram pelo rosto. O capitão e os demais ficaram intrigados com a minha
atitude, e alguns se apiedaram de mim. O capitão disse: “Este macaco,
mercadores, buscou minha proteção e eu a concedi a ele; portanto, ele está sob
minha responsabilidade; que nenhum de vocês o machuque de qualquer maneira;
quem o fizer, ganhará a minha inimizade”. E foi assim que o capitão começou a
me tratar bem; tudo o que ele dizia eu compreendia e fazia, muito embora minha
língua não me obedecesse nem desse resposta às suas palavras. Prosseguimos a
viagem e o barco avançou, beneficiado por bons ventos, durante cinquenta dias,
ao cabo dos quais chegamos a uma vastíssima cidade que sobejava de gente e
tinha uma quantidade incalculável de moradores. Seu porto se tornou
inteiramente visível[143] e o navio penetrou no ancoradouro, sendo então
abordado por mensageiros do rei, que ali nos aguardavam. Eles disseram:
“Nosso sultão os felicita, ó mercadores, por terem chegado bem, e lhes pede que
cada um de vocês pegue este rolo de papel e nele escreva uma só linha. O rei
tinha um vizir calígrafo e sábio que morreu. Então, ele fez imensas juras de que
não nomearia vizir senão quem tivesse uma caligrafia como a dele”. E
entregaram aos mercadores um rolo de papel com dez côvados de comprimento
por um côvado de largura.[144] Todo aquele que sabia escrever escreveu. Então
eu peguei o rolo das mãos de quem estava escrevendo e eles ralharam e gritaram
comigo, achando que eu o rasgaria ou atiraria ao mar, mas eu lhes sinalizei: “Irei
escrever aqui e deixá-los sumamente assombrados”; eles disseram: “Nunca
vimos um macaco que soubesse escrever”. O capitão lhes disse: “Deixem-no
escrever o que bem quiser; se ele fizer borrões, eu o enxotarei e surrarei, mas se
ele tiver boa letra, eu o adotarei como filho, pois nunca vi ninguém mais
inteligente e decoroso; quem dera meu filho tivesse tanta inteligência e decoro”.
Em seguida, molhei a pena no tinteiro e escrevi estes versos com caligrafia
ruqāᶜ, própria para pequenos espaços:[145]
“Se o destino registrasse a virtude dos generosos,
a tua virtude apagaria tudo quanto foi escrito;
que Deus não prive de ti a humanidade,
pois és mãe e pai da generosidade”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, escrevi sob esses versos os seguintes, em
caligrafia muḥaqqaq, difícil e seca:
“Seu cálamo encheu todo lugar de benefícios,
e ninguém tirou proveito em detrimento do alheio.
Quando transborda, o Nilo do Egito não produz tanto dano
quanto aquele que destrói os países com seus cinco dedos”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, escrevi sob esses versos os seguintes, em
caligrafia rīḥānī, entrelaçada como os ramos do manjericão:
“Fiz meu escriba jurar,
pelo Deus único e singular,
que em momento nenhum
subtraia a fortuna de alguém”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, escrevi sob esses versos os seguintes, em
caligrafia nasḫī, corânica por excelência:
“Todos os escribas irão morrer, mas
o tempo conservará o que suas mãos traçaram;
não escrevas com tua letra, portanto, nada
que no Juízo Final não te traga alegrias”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, escrevi sob esses versos os seguintes, em
caligrafia ṯuluṯ, a mais elaborada e florida:
“Quando flagelados pela separação e forçados
a tanto pelos acidentes dos dias,
volvemos às bocas dos tinteiros lastimando
a dor da separação com a língua dos cálamos”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, escrevi sob esses versos os seguintes, em
caligrafia ṭūmār, mais simplificada e menos arredondada:
“Se abrires o tinteiro da fama e do conforto,
seja tua tinta de nobreza e generosidade,
e escreve o bem se para tanto tiveres poder:
será prova da tua bondade o fio da espada e do cálamo”.
[Prosseguiu o dervixe:] Em seguida, entreguei-lhes o rolo de papel.
Assombrados com o que eu fizera, eles o pegaram...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

49ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Continue a história para nós, maninha”, e


Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei venturoso, que o segundo dervixe disse para a jovem:
Os enviados do rei recolheram o rolo de papel e o levaram a ele. Ao ver a
minha caligrafia, o rei admirou-a e lhes disse: “Levem esta mula e esta
vestimenta para o dono destas sete formas de caligrafia”. Como os enviados
sorrissem, o rei se encolerizou. Eles lhe disseram: “Ó rei dos tempos, o mais
poderoso deste tempo e de todos os momentos, quem escreveu estas linhas foi
um macaco”. Ele perguntou: “É verdade o que vocês estão dizendo?”.
Responderam: “Sim, por sua generosidade! Quem escreveu foi um macaco”.
Tomado do maior assombro, o rei disse: “Quero ver esse macaco”, e enviou os
mensageiros com a mula e a vestimenta, recomendando-lhes: “Só me tragam o
macaco depois de vesti-lo com este traje e fazê-lo montar na mula; tragam-me
também o seu dono”. Estávamos no navio e, quando nos demos conta, lá
estavam os enviados do rei; pegaram o capitão do navio, vestiram-me o traje
determinado pelo rei, depositaram-me sobre a mula e começaram a conduzi-la
pela cidade, que entrou em grande alvoroço por minha causa: todos saíram para
assistir à minha passagem, e as pessoas se acotovelaram pelas ruas, pois não
ficou ninguém na cidade sem assistir. Assim, somente cheguei ao rei depois de a
cidade ter sido virada pelo avesso; passou-se a dizer que o rei nomeara como
vizir um macaco. Logo que fui colocado na presença do rei, prosternei-me,
depois me inclinei três vezes em reverência, beijei o chão diante dos chefes de
serviço e dos secretários e finalmente me ajoelhei. Todos os presentes ficaram
assombrados com meu decoro, sendo o mais assombrado o rei, que disse: “Este é
o verdadeiro assombro!”, e autorizou os comandantes a se retirarem, o que todos
fizeram, ficando apenas o rei, um de seus serviçais, um pequeno escravo e eu. O
rei ordenou que fosse servida uma refeição e me fez sinais para comer com ele.
Levantei-me, beijei o chão, lavei as mãos sete vezes, retornei e, apoiando-me nos
joelhos, comi um pouquinho com decoro e, tomando da pena e do tinteiro,
escrevi na madeira o seguinte:
“Trinche as aves em travessa com ovelha ao vinagrete
e lamente o sumiço da carne com cebola em omelete;
lastime, como eu lastimo, a perdiz e seus filhotinhos
junto com os frangos fritos e os galetinhos;
ai, meu coração anseia por esses pratos de peixe
em pães chatos e compridos postos em feixe,
enquanto os olhos d’ovo se fritam de melancolia
na frigideira, soltando uns gritinhos de agonia;
como é estupendo este assado, e como é bela
a salada em molho mergulhada na gamela.
Sempre que, noturna, a fome me acossa, transido,
à luz do bracelete, devoro carne picada com trigo cozido.
Paciência, minh’alma, pois o destino é caprichoso,
e se num dia o oprime, no outro o faz ditoso”.
[Prosseguiu o dervixe:] Ao ler este escrito, o rei mergulhou em reflexões. Em
seguida, os alimentos foram retirados da nossa frente, sendo-nos servido vinho
especial em jarro de cristal próprio para bebida; o rei tomou um trago e me
estendeu o jarro; beijei o chão diante dele, bebi e escrevi o seguinte no jarro:
“Queimaram-me enquanto me interrogavam,
e viram que ao infortúnio sou resistente;
foi por isso que me carregaram com as mãos
e das beldades beijei até os dentes”.
[Prosseguiu o dervixe:] O rei leu a poesia, ficou perplexo e disse: “Se ele tivesse
tal decoro e a forma humana, seria superior a todos os seus contemporâneos”, e,
trazendo um tabuleiro de xadrez, perguntou-me por sinais: “Quer jogar?”. Beijei
o chão diante dele e sinalizei “sim” com a cabeça. Arrumamos ambos as peças
no tabuleiro e jogamos a primeira partida, que terminou empatada; jogamos a
segunda, e eu o derrotei; meu jogo ficou mais despachado e derrotei-o na terceira
partida. Ele ficou sem saber o que pensar. Peguei o tinteiro, o cálamo, e escrevi
no tabuleiro:
“Dois exércitos se combatem o dia inteiro,
mas sua luta, em qualquer hora, é descabida,
pois quando a noite se abate sobre eles,
dormem ambos juntos no mesmo leito”.
Lendo esses versos, o rei, admirado e emocionado a ponto de atingir o
deslumbramento, ordenou ao serviçal: “Vá até sua senhora Sittulḥusni, Muqbil,
[146] e diga-lhe ‘Venha falar com seu pai, o rei’; deixe-a vir e assistir a este
prodígio, esta coisa assombrosa”. O serviçal, que era eunuco, ausentou-se por
alguns instantes e retornou trazendo consigo a filha do rei. Quando entrou e
olhou para mim, a jovem cobriu o rosto e disse: “O senhor perdeu a tal ponto o
zelo por mim, papai? Exibir-me diante de homens?”. Atônito com tal
comportamento, o rei disse: “Menina, aqui só estamos este moleque escravo, o
eunuco que a criou e eu, seu pai. De quem você está escondendo o rosto?”. Ela
respondeu: “Deste jovem, filho do rei Aymār, senhor das mais afastadas Ilhas de
Ébano.[147] Ele foi enfeitiçado pelo ifrit que é filho da filha de Satanás. Esse
ifrit o transformou em macaco após ter matado a própria esposa, uma filha de
rei. Este que o senhor vê como macaco é um homem sábio, letrado, inteligente e
virtuoso”. Admirado, o rei olhou para mim e perguntou: “É verdade o que disse
minha filha?”, e eu respondi afirmativamente com a cabeça. O rei se voltou para
a filha e perguntou: “Por Deus, minha filha, como você soube que ele está
metamorfoseado?”. Ela respondeu: “Quando eu era pequena, papai, vivia
comigo uma velha astuciosa, traiçoeira e feiticeira que me ensinou a magia e
como praticá-la; eu transcrevi e decorei tudo, incluindo setenta capítulos de
magia dos quais o mais fraco me possibilita, neste exato momento, transferir até
mesmo as pedras da sua cidade para lá das montanhas do fim do mundo e do
oceano que o cerca”. Surpreendido com tudo aquilo, o rei pediu: “Benza-a Deus,
minha filha! Você detém todas essas habilidades que eu desconhecia? Então, por
vida minha, livre-o do feitiço para que eu o nomeie vizir e o case com você”. Ela
respondeu: “Ouço e obedeço”, e pegou uma faca de ferro.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

50ª
noite das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas”, e Šahrāzād respondeu:
“Sim”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o segundo dervixe disse para a jovem:
Então a jovem filha do rei pegou uma faca de ferro com um nome gravado em
hebraico, traçou um círculo perfeito no centro do palácio, escrevendo no interior
desse círculo um nome em caligrafia kūfī e outras palavras talismânicas;[148]
em seguida, fez invocações e esconjuros. Logo vimos o mundo ser coberto de
sombras e a atmosfera tingir-se de negro, e isso diante dos nossos olhos, com tal
intensidade que chegamos a cogitar que o mundo se fecharia sobre nós.
Estávamos nessa situação quando vislumbramos o ifrit, já pousado no solo em
forma de leão, tão grande quanto um boi, e nos enchemos de medo. A jovem lhe
disse: “Fora daqui, seu cachorro!”. O gênio respondeu: “Você atraiçoou a mim e
ao juramento! Não tínhamos combinado que um nunca desafiaria o outro, sua
traidora?”. Ela lhe disse: “E por acaso eu juraria alguma coisa para você, seu
maldito?”. O ifrit respondeu: “Então tome o que eu lhe trouxe!”, e, arreganhando
as mandíbulas, correu em direção à jovem, mas ela rapidamente arrancou um fio
de cabelo, balançou-o na mão, balbuciou algo entredentes, e o fio se transformou
numa espada afiada com a qual ela golpeou o leão, cortando-o em duas partes.
As duas partes saíram voando, mas restou a cabeça, que se transformou em
escorpião. A jovem por sua vez adotou a forma de uma enorme serpente, e por
algum tempo travou violenta luta com o escorpião, mas logo o escorpião se
transformou em abutre e voou para fora do palácio; então a serpente virou águia
e voou no encalço do abutre, desaparecendo por algum tempo. Mas logo o chão
se fendeu, dele saindo um gato malhado que gritou, roncou e rosnou; atrás do
gato saiu um lobo preto; lutaram no palácio por algum tempo, e então o lobo
derrotou o gato; este gritou e se transformou numa larva, que rastejou e entrou
numa romã jogada ao lado da fonte; a romã inchou até ficar do tamanho de uma
melancia listrada, ao passo que o lobo se transformava num galo branco como a
neve. A romã saiu voando e caiu no mármore da parte mais elevada do saguão,
espatifou-se e seus grãos se espalharam todos; o galo avançou sobre eles e
começou a comer os grãos, até que não restou senão um único grão escondido ao
lado da fonte; o galo se pôs a cacarejar, gritar e bater as asas, fazendo-nos sinais
com o bico que queriam dizer “ainda resta algum grão?”, e, como não
entendêssemos o que dizia, ele deu um berro tão estrondoso que imaginamos que
o palácio desabaria sobre nós. De repente o galo deu uma olhada e, vendo o grão
ao lado da fonte, correu para ele a fim de engoli-lo.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

51ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos o restante da sua história”, e Šahrāzād respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o segundo dervixe disse para a jovem:
Então, cara madame, o galo ficou muito contente e fez menção de engolir o
último grão de romã, mas eis que o grão deslizou na fonte e se transformou num
peixe, que mergulhou na água; o galo se transformou numa baleia, e mergulhou
atrás do peixe; ambos submergiram e perfuraram o solo, sumindo de nossas
vistas por umas duas horas; depois ouvimos gritos, clamores, berros, e então
estremecemos; passados mais alguns momentos, o ifrit voltou à tona na forma de
labareda, bem como a jovem, que também se transformara em labareda; o ifrit
assoprou um fogo cheio de raios pela boca, e também pelos olhos, narinas e
demais orifícios; pelejaram por algum tempo até que os fogos por eles expelidos
se entrelaçaram e a fumaça ficou presa no palácio; escapamos por pouco de
morrer sufocados, tivemos certeza de que o mal venceria, tememos por nossas
vidas e achamos que seríamos aniquilados; os fogos se intensificaram, sua
combustão aumentou e nós dissemos: “Não existe poderio nem força senão em
Deus altíssimo e grandioso!”. Depois de algum tempo, antes que nos
apercebêssemos, o ifrit desvencilhou-se daquele círculo de fogo e, na forma de
labareda, num átimo já estava junto a nós no saguão e assoprou em nossos
rostos. A jovem o alcançou e gritou com ele, mas já o ifrit assoprara em nossos
rostos e os raios de fogo nos alcançaram; um caiu no meu olho direito e o cegou;
isso se deu quando eu estava na forma de macaco; outro raio atingiu o rei e lhe
queimou metade do rosto e a barba, incluindo o queixo, além de uma fileira de
dentes, que caiu; um terceiro raio atingiu o peito do eunuco, que se queimou e
morreu no mesmo instante. Cientes de que nos tornáramos defeituosos e
completamente desanimados da vida, ouvimos alguém dizer: “Deus é o maior,
Deus é o maior, Deus abriu o caminho, concedeu a vitória e humilhou os
blasfemadores” –, e eis que era a filha do rei, que derrotara o ifrit: quando
olhamos para aquela direção, vimos que ele se transformara num montinho de
cinzas. A jovem acorreu em nossa direção e pediu: “Tragam-me uma taça de
água”, e assim se fez. Ela disse então: “Fique livre, pelos direitos do nome de
Deus altíssimo e de seus pactos”, e borrifou a água sobre mim, que me
chacoalhei e virei de novo um ser humano normal como era antes. Em seguida a
jovem gritou: “O fogo, o fogo! Sentirei falta do senhor, meu pai; eu já não
viverei, pois fui atingida por uma seta cortante. Não estava acostumada a lutar
contra os gênios. Acabei demorando muito por causa da falha cometida no
momento em que a romã se despedaçou: transformei-me em galo e comecei a
catar todos os grãos, mas não vi o grão em que estava o sopro vital do ifrit; se
acaso tivesse catado aquele grão, eu o teria exterminado bem antes, mas não o
vi; assim, tive de travar com ele uma batalha debaixo do solo e outra entre os
céus e os ventos; nessas batalhas, toda vez que ele fazia um feitiço, eu fazia
outro que o inutilizava e era mais forte, até que fiz o feitiço do fogo. Poucos que
praticam esse feitiço sobrevivem a ele, mas eu era mais hábil do que o ifrit e o
liquidei, sendo para tanto auxiliada pela vontade divina. Agora, Deus os
protegerá por mim”, e gritou pedindo socorro: “O fogo, o fogo!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

52ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas historinhas”, e Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o segundo dervixe disse para a jovem:
Quando a filha do rei pediu socorro gritando “o fogo, o fogo”, seu pai disse:
“O espantoso, filhinha, é que eu tenha escapado vivo; eis aí o seu tutor, que foi
imediatamente morto, e este rapaz, que perdeu o olho”. Em seguida, ele chorou,
e seu choro também me fez chorar. Passados poucos instantes, a jovem soltou
um grito, repetindo “o fogo, o fogo”, e subitamente uma labareda começou a
queimar-lhe os pés, lavrando até subir para as coxas, enquanto ela gritava “o
fogo, o fogo!”, depois lhe subiu ao peito, e ela ainda gritava desesperada “o
fogo, o fogo”, até que se queimou inteira, transformando-se num monte de
cinzas. Por Deus, cara ama e madame, que minha tristeza por ela foi enorme;
teria preferido ser um cão ou macaco ou então morrer a ver aquela jovem em
semelhante estado, sofrendo tanto para no fim se transformar em cinzas. Ao vê-
la morta, o pai se estapeou no rosto e eu lhe imitei o gesto; em seguida gritei e
acorreram os criados e responsáveis pelos serviços do palácio, os quais, vendo o
rei reduzido àquela morbidez e os dois montinhos de cinzas, ficaram
embasbacados, mas logo trataram do rei até que ele recuperou o ânimo e lhes
relatou o sucedido com sua filha. Tamanha desgraça foi considerada enorme e
excessiva, e eles entraram em luto durante sete dias. O rei construiu um pavilhão
no local onde estavam as cinzas da filha; quanto às cinzas do ifrit, ele as lançou
ao vento. Em seguida, caiu enfermo pelo período de um mês, mas logo retomou
a saúde, sua barba voltou a crescer e Deus enfim o inscreveu entre os sadios. Ele
então mandou convocar-me e disse: “Escute, jovem, o que vou lhe dizer, e não
desobedeça; caso contrário, será morto”. Respondi: “Diga, meu amo e mestre,
pois eu não lhe desobedecerei ordem alguma”. Ele continuou: “Passávamos
nossos dias na melhor vida, sempre a salvo de todas as calamidades engendradas
pelo tempo, até sermos visitados por sua negra face; sofremos então a catástrofe:
perdi minha filha devido à sua pessoa e morreu meu serviçal; apenas eu me
salvei da aniquilação. Você foi a causa disso tudo; desde que botamos os olhos
em você, o bem se afastou de nós. Quem dera nunca o tivéssemos visto! Eu
gostaria que você abandonasse o nosso país e fosse embora em paz, pois sua
salvação não se deu senão graças à nossa destruição! Se eu voltar a vê-lo depois
de agora, irei matá-lo”, e gritou comigo. Saí de sua presença cego, já caolho,
sem ver nem enxergar. Abandonei a cidade aos prantos, perplexo, sem saber qual
rumo seguir. Meditei sobre tudo quanto me ocorrera, minha entrada naquela
cidade e posterior saída em semelhantes condições, e minhas preocupações se
intensificaram. Antes de me retirar, entrei num dos banhos públicos da cidade,
raspei a barba e as sobrancelhas e saí vestido com a roupa negra dos dervixes. E
me deixei estar vagando pelo mundo! Todo dia, cara senhora, recordo-me dessas
desgraças: a morte das duas jovens e a perda do meu olho. Então choro
amargamente e recito:
“Estou perplexo, por Deus! Ninguém duvida:
por todo lado, desgraças me abalam a vida.
Serei paciente até que a paciência se canse da minha paciência;
serei paciente até que Deus decida o meu caso em sua
[clemência;
serei paciente até que Deus saiba que eu
fui paciente com coisas mais amargas do que a paciência que
[me deu;
todas as paciências não foram pacientes com a minha
[paciência, embora
eu tenha sido paciente com todas as paciências desde que
[a minha foi traidora;
tampouco os decretos todos se ocuparam de meu destino,
[mas eu
recebi ordens de todos os decretos desde que o destino me
[envileceu;
quem pensar que a vida é feita de doçura e benevolência
deveria viver um dia mais amargo do que a paciência”.
[Prosseguiu o dervixe:] E foi assim que eu me pus a viajar por todos os países e
a vagar por todas as cidadelas, e depois decidi vir para Bagdá, onde quiçá eu
conheça alguém que me faça chegar à presença do comandante dos crentes, para
que eu o deixe ciente de minha história e do que se abateu sobre mim. Cheguei
esta noite e deparei com este meu correligionário parado diante dos portões da
cidade; cumprimentei-o e perguntei: “Estrangeiro?”, e ele respondeu:
“Estrangeiro”. Não demorou muito tempo até que chegou este outro
correligionário, que nos cumprimentou e afirmou: “Sou estrangeiro”, ao que
respondemos: “Somos estrangeiros como você”. Caminhamos juntos, a noite já
avançada, e a vontade divina nos conduziu a vocês, fazendo-nos entrar aqui.
Como quer que seja, eis aí o motivo de eu ter perdido meu olho e raspado a
barba.
A jovem disse: “Apalpe a cabeça e vá embora”, mas o segundo dervixe
respondeu: “Por Deus que não sairei daqui até ouvir o que sucedeu aos outros”.
Ele foi então desamarrado, indo postar-se ao lado do primeiro dervixe.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A irmã lhe disse: “Como é
agradável e prodigiosa esta sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto
do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.
Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Por Deus, maninha, se você não estiver
dormindo, conte-nos algo com que atravessemos o serão desta noite”. E o rei
completou: “Que seja a continuação da história dos dervixes”. Šahrāzād
respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei, que o terceiro dervixe disse:

53ª
noite das histórias das
mil e uma noites
O TERCEIRO DERVIXE
Cara e distinta senhora, minha história não é como a deles; ela é mais insólita e
mais assombrosa, e envolve igualmente os motivos de meu olho ter sido
arrancado e minha barba, raspada. O fato é que meus dois companheiros foram
subitamente colhidos pela vontade e decisão divinas, ao passo que, no meu caso,
fui eu quem provocou tal decisão com as próprias mãos e acarretou o desgosto à
própria vida. O fato é que meu pai era um rei de imensa importância e poder.
Quando ele morreu, fui entronizado em seu lugar. Minha cidade ficava no litoral,
e o vasto mar que a banhava era pontilhado de ilhas em seu interior. Meu título
é: rei ᶜAjīb Ibn Ḫaṣīb.[149] Eu tinha na costa cinquenta navios para o comércio,
mais cinquenta pequenos navios para passeio, além de outros cento e cinquenta
equipados para a guerra e a defesa da fé.[150] Certo dia, pretendendo realizar
um passeio pelas ilhas, reuni provisões para um mês e viajei; passeei e voltei
para minha terra. Depois, viajei uma segunda vez, levando provisões para dois
meses. Eu sentia ímpetos de me aprofundar cada vez mais no mar, e por isso
preparei dez navios para ir comigo. Naveguei por cerca de quarenta dias. Na
quadragésima primeira noite, fomos atingidos por ventanias de várias
procedências; o mar ficou violentamente encapelado, as ondas se entrechocaram
e perdemos a esperança de permanecer vivos; uma sombra muito intensa se
projetou sobre nós e eu pensei: “Nunca devemos louvar o inadvertido, ainda que
escapemos”.[151] Invocamos a Deus altíssimo, rogamos e suplicamos por sua
ajuda, mas os ventos continuaram a vir de todas as direções e as ondas a se
entrechocar. Assim foi até o irromper da aurora, quando então os ventos
amainaram, o mar se aquietou e tranqüilizou e as ondas cessaram; mais alguns
instantes e o sol se pôs a brilhar sobre nós, o mar à nossa frente parecendo uma
lâmina. Logo fomos conduzidos a uma ilha. Erguemo-nos todos, saímos dos
navios, cozinhamos, comemos um pouco, e ali permanecemos por dois dias, ao
cabo dos quais nos lançamos ao mar novamente por dez dias. A cada dia que
passava o mar ia se tornando mais vasto, e a terra, mais distante. Então o capitão,
estranhando uma terra que divisou à nossa frente, ordenou ao esculca: “Suba no
mastro e observe”. Ele subiu, ficou alguns momentos observando, desceu e
disse: “Olhei à direita, capitão, e só vi céu sobre água; olhei à esquerda e vi à
frente uma coisa preta bem destacada; eis aí o que pude ver”. Ao ouvir as
palavras do esculca, o capitão atirou o turbante ao chão, pondo-se a arrancar a
barba e a estapear o rosto; disse-me: “Ó rei, dou-lhe a nova da morte de todos
aqui! Não há poderio nem força senão em Deus altíssimo e grandioso!”, e
começou a chorar um choro que nos fez a todos chorar junto com ele. Depois lhe
pedimos: “Explique-nos direito essa história, ó capitão”, e ele respondeu: “Nós
nos perdemos no mar, meu senhor, desde o dia em que os ventos nos atingiram.
Agora já não podemos retroceder. Amanhã, ao meio-dia, chegaremos a uma
montanha preta, constituída por um metal chamado pedra magnética; as
correntes nos empurrarão à força para o sopé dessa montanha e os barcos se
desfarão: cada um dos pregos voará em direção à montanha e nela se grudarão, e
isso porque Deus altíssimo depositou na pedra magnética um segredo que
consiste em ser ela amada pelo ferro. A montanha tem muito ferro, a tal ponto
que foi coberta por ele há muitos anos, tantos são os navios que passam por lá.
No pico dessa montanha, na parte voltada para o mar, existe um pavilhão de
cobre amarelo da Andaluzia, montado sobre dez pilastras também de cobre; em
cima do pavilhão há um cavaleiro montado sobre uma égua de cobre,[152] e no
peito do cavaleiro uma placa de chumbo na qual estão gravadas algumas
invocações. Ó rei! As pessoas não são afogadas senão por esse cavaleiro
montado sobre a égua; se acaso ele for derrubado, todos estarão livres disso”.
Em seguida, minha senhora, o capitão chorou amargamente, e todos nós, certos
da morte, choramos de autocomiseração e nos despedimos uns dos outros, cada
qual fazendo recomendações ao companheiro para o caso de que este se
salvasse. Não pregamos o olho naquela noite. Quando amanheceu, já estávamos
próximos da montanha magnética; ao meio-dia estávamos em seu sopé,
empurrados à força pelas correntes; nesse momento, os barcos começaram a se
desfazer, os pregos e todo ferro neles existente voando em direção à montanha, à
qual se colaram. Entre nós houve quem se afogou e quem se salvou; no entanto,
quem conseguia salvar-se ficava sem notícias do paradeiro dos outros. Minha
senhora, Deus me salvou por pretender submeter-me a outras agruras e
sofrimentos. Subi numa das pranchas do navio, que foi imediatamente
empurrada pelos ventos e se colou à montanha. Ali topei com uma trilha que
levava até o cume da montanha, aparentando ser uma escadaria cujos degraus
haviam sido talhados na rocha.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

54ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte, Dīnārzād disse à irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do terceiro dervixe”, e Šahrāzād
respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, meu senhor, de que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Quando vi a trilha para a montanha, invoquei o nome de Deus altíssimo,
comecei a escalar a montanha, pela qual fui subindo devagarinho. Foi Deus
altíssimo que autorizou o vento a amainar, e também Deus altíssimo que me
ajudou a subir. Cheguei ileso ao cume da montanha, e ali o meu único objetivo
passou a ser o pavilhão. Muito contente por ter escapado incólume, entrei no
pavilhão, fiz minhas abluções e rezei, prosternando-me duas vezes em
agradecimento a Deus altíssimo. Em seguida, dormi sob o pavilhão que dava
para o mar, e vi em sonho alguém dizendo: “Quando você despertar, ᶜAjīb,
escave sob os seus pés e encontrará um arco de cobre com três flechas de
chumbo, nas quais estão gravadas palavras mágicas; pegue o arco e as flechas, e
com eles derrube o cavaleiro de cima da égua; livre as pessoas desta terrível
calamidade. Quando tiver derrubado o cavaleiro, ele cairá no mar, enquanto a
égua cairá ao seu lado. Pegue-a e enterre-a no lugar onde estava o arco. Quando
você fizer isso, o mar vai subir e se erguer até chegar ao nível do pavilhão;
quando isso ocorrer, quando as águas estiverem no mesmo nível do pavilhão e da
montanha, chegará até você uma canoa com um indivíduo de cobre, não o
mesmo que você derrubou ao mar, com as mãos nos remos; embarque com ele
mas não invoque o nome de Deus. Ele ficará remando durante dez dias, ao cabo
dos quais o terá conduzido ao Mar da Segurança; ali, você encontrará quem o
leve ao seu país. É isso que lhe ocorrerá se você não invocar o nome de Deus”.
Então acordei, levantei-me bastante animado e fiz o que a voz me dissera no
sonho: flechei o cavaleiro derrubando-o de cima da égua; o cavaleiro caiu no
mar e a égua, ao meu lado; peguei-a e enterrei-a no lugar em que estava
enterrado o arco; o mar se agitou e começou a subir, até chegar ao meu nível. Em
poucos instantes vi uma canoa singrando o mar em minha direção, e agradeci e
louvei a Deus altíssimo. Continuou avançando até ficar do meu lado. Encontrei o
homem de cobre, em cujo peito havia uma placa de chumbo no qual estavam
gravados um nome e algumas palavras mágicas. Embarquei na canoa calado,
sem proferir palavra, e o indivíduo remou pelo primeiro dia, pelo segundo...
enfim, até o sétimo dia, quando fiquei contente por avistar montanhas, ilhas e
outros sinais de que estava em segurança. Tão grande foi minha alegria que
louvei a Deus altíssimo e fiz as declarações rituais de que ele é único e o maior.
Mal terminei de fazer isso, e antes mesmo que eu pudesse me dar conta, fui
atirado no meio do mar, para fora da canoa, que virou e afundou. Assim lançado
ao mar, comecei a nadar por todo aquele dia até o anoitecer; meus braços então
falharam e meus ombros se extenuaram; a noite me colheu em cheio e fiquei sem
saber me localizar. Resignei-me com o afogamento. Ventos fortíssimos
começaram a bater, o mar se encapelou e uma onda tão enorme quanto uma
montanha me atingiu, carregando-me e empurrando-me até que cheguei a terra
firme, e isso porque Deus pretendia poupar-me. Saí do mar, espremi minhas
roupas e as estendi no chão. Foi uma longa noite. Quando amanheceu, vesti as
roupas e fui tentar descobrir onde estava. Vislumbrei um bosque de árvores e me
dirigi até lá; caminhei ao seu redor com passos largos. Verifiquei então que o
lugar onde eu estava era uma pequena ilha no meio do mar. Disse: “Não há
poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso”. E enquanto eu pensava
na vida e desejava a morte, divisei ao longe uma embarcação com seres humanos
de verdade vindo em direção à ilha na qual eu estava. Subi ao alto de uma árvore
e me escondi entre sua folhagem. Logo que a embarcação tocou a terra, dela
saíram dez escravos carregando pás e cestas; caminharam até o centro da ilha e
começaram a escavar; retiraram terra por algum tempo até descobrirem um túnel
escavado. Em seguida retornaram à embarcação e retiraram pão em fardos,
farinha em sacos, vasilhas de banha e mel, carne de carneiro em conserva,
utensílios domésticos, tapetes, esteiras, colchões, artigos de moradia e tudo o
mais de que necessitasse o morador de uma casa. Os escravos subiam e desciam
da embarcação transportando aquelas coisas todas para a escavação, até que
enfim retiraram tudo o que havia na embarcação. Em seguida os escravos se
puseram a caminhar e no meio deles estava um ancião arruinado a quem o
destino parecia ter atropelado, semelhando um osso atirado dentro de um trapo
azulado que pelos ventos leste e oeste era chacoalhado, tal como disse a respeito
o poeta:
“O destino me deixou maltratado,
destino que é tão poderoso e violento:
antes eu caminhava sem me cansar,
mas agora me canso sem caminhar”.
O ancião conduzia pelas mãos um garoto tão gracioso que parecia ter sido
retirado de um molde de beleza, esplendor e perfeição. Era como uma vara de
bambu ou filhote de gazela; a todos os corações enfeitiçava com sua formosura,
a todas as mentes sequestrava com sua perfeição, que estava em todo o seu talhe
e fisionomia, e a todos os homens superava em imagem e constituição, tal como
disse a respeito o poeta:
“Foi até a beleza para ser avaliado,
e ela abaixou a cabeça, envergonhada;
perguntaram: ‘já viste algo assim, beleza?’
e ela respondeu: ‘desse jeito, não’”.
Então, minha senhora, todos continuaram caminhando e desceram no buraco, ali
sumindo por umas boas duas horas ou mais, depois saíram o ancião e os
escravos, mas não o jovem. Em seguida, repuseram a terra no lugar, entraram na
embarcação e fizeram-se ao mar, distanciando-se e desaparecendo de minhas
vistas. Desci da árvore, caminhei até o buraco, pondo-me a escavar a terra com
grande paciência até que retirei tudo, topando com algo semelhante a uma pedra
de moinho; retirei-a, e por baixo dela apareceu uma escadaria de pedra em
espiral. Intrigado, desci os degraus até o fim e encontrei uma casa limpa, pintada
de branco, mobiliada com várias espécies de tapetes, roupas de cama e materiais
de seda. Vi o garoto acomodado num colchão alto, recostado numa almofada,
com um leque na mão e alimentos, essências, frutas e murta diante de si. Ele
estava sozinho na casa. Ao me ver, ficou amarelo e alterado. Cumprimentei-o e
disse: “Contenha seu pânico, meu senhor, pois não existe perigo algum, meu
querido. Sou um ser humano como você e filho de rei como você. Foram os
caprichos da sorte que me conduziram até você, para que eu seja seu
companheiro nesta solidão. Qual é a história que o obrigou a morar aqui neste
subterrâneo?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
bela e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

55ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do filho do rei e do rapaz que
estava no subterrâneo”. Šahrāzād respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Quando questionei o garoto, cara senhora, a respeito de sua história, e ele teve
certeza de que eu era de sua espécie, ficou muito contente, recuperou as cores,
aproximou-me de si e disse:
Minha história, meu irmão, é espantosa, e assombroso o relato a seu respeito.
O fato é que meu pai é mercador de pedras preciosas, possuidor de vastos
cabedais, e tem escravos e serviçais, bem como mercadores que trabalham para
ele viajando em navios. Meu pai fazia negócios com reis mas, apesar de ter tanto
dinheiro, não fora nunca agraciado com um filho. Certa noite, ele viu em sonho
que seria agraciado com um filho cuja vida, porém, seria curta, o que o fez
acordar muito triste. Naquela mesma noite minha mãe ficou grávida de mim; a
data do início da gravidez foi registrada e, passados tantos dias e meses, ela me
deu à luz. Meu pai ficou muitíssimo contente comigo; os astrólogos e eruditos
fizeram cálculos em torno da data de meu nascimento e disseram ao meu pai:
“Seu filho viverá quinze anos, completados os quais ele sofrerá grande perigo;
caso escape desse perigo, sua vida estará garantida. Um dos sinais relacionados a
isso é o seguinte: existe no mar salgado uma montanha chamada montanha
magnética, sobre a qual há um cavaleiro montado numa égua, ambos de cobre;
no pescoço do cavaleiro está pendurada uma placa de chumbo. Quando este
cavaleiro cair de cima da égua, seu filho morrerá após cinquenta dias. O
assassino do seu filho será o mesmo homem que derrubará o cavaleiro; seu nome
é ᶜAjīb, filho do rei Ḫaṣīb”. Meu pai ficou deveras preocupado. Criou-me da
melhor maneira; os anos se passaram e atingi a idade de quinze anos. Há dez
dias, chegou ao meu pai a notícia de que o cavaleiro de cobre fora derrubado ao
mar, e que isso foi feito por um homem chamado ᶜAjīb, um rei, filho do rei
Ḫaṣīb. Ao tomar conhecimento disso, meu pai chorou amargamente a iminência
de minha perda e ficou como louco. Tomou aquela embarcação, veio a esta ilha e
construiu para mim esta casa subterrânea, provendo-a de todo o necessário para
um período de cinquenta dias, dos quais já se passaram dez; ainda restam,
portanto, quarenta dias, findos os quais a conjunção astral desfavorável se
dissipará e meu pai virá me buscar. Tudo isso se deve ao temor de que ᶜAjīb,
filho do rei Ḫaṣīb, mate-me. Esta é a história da minha solidão e isolamento.
[Prosseguiu o dervixe:] Quando ouvi a sua história, cara senhora, e seu
espantoso relato, pensei: “Fui eu que derrubei o cavaleiro de cobre; sou eu ᶜAjīb,
filho do rei Ḫaṣīb, e por Deus que jamais o mataria”. E lhe disse: “Meu amo,
você está a salvo da morte e protegido de qualquer agressão; não existe, com a
permissão de Deus, nenhum temor ou perigo que possa atingi-lo. Eu ficarei com
você, servindo-o e divertindo-o durante todos esses quarenta dias. Vou servi-lo e
depois acompanhá-lo ao seu país, de onde você me levará ao meu país e será por
mim recompensado”. Minhas palavras deixaram-no feliz e me acomodei ao seu
lado para conversar com ele e diverti-lo. Durante a noite levantei-me, acendi
uma vela e lhe preparei três candeeiros sob cuja luz nos acomodamos. Servi-lhe
depois uma caixa de doces da qual comemos. Sentei-me e continuei conversando
com ele até que a maior parte da noite se passou e o garoto dormiu. Cobri-o e
logo fui também me deitar, e dormi. Quando acordamos, levantei-me, esquentei-
lhe um pouco de água, acordei-o com todo o cuidado; ele despertou e lhe ofereci
a água quente. Ele lavou o rosto e agradeceu dizendo: “Que seja boa sua
recompensa, meu jovem. Por Deus que, quando eu estiver a salvo desse homem
chamado ᶜAjīb, filho de Ḫaṣīb, quando Deus me tiver livrado dele, com certeza
farei o meu pai recompensá-lo regiamente”. Respondi: “Que nunca ocorra o dia
em que você será atingido por algum mal; que Deus me faça morrer antes de
você”. Ofereci-lhe algo para comer e fizemos a refeição juntos. Em seguida,
talhei peças redondas, ajeitei um tabuleiro e jogamos[153] algumas partidas.
Divertimo-nos e espairecemos por um bom tempo. Continuamos comendo e
bebendo até o anoitecer, quando então acendi os candeeiros e lhe ofereci um
pouco de doce; comemos e ficamos conversando até que enfim dormimos.
Permanecemos nesse ritmo, minha senhora, por dias e noites. Acostumei-me a
ele e me esqueci das agruras passadas. Meu coração foi tomado de um grande
afeto pelo garoto. Pensei: “Os astrólogos mentiram quando disseram ao pai dele
‘seu filho será morto por alguém chamado ᶜAjīb Ibn Ḫaṣīb’, que, por Deus, sou
eu, e não há como matá-lo!”. Continuei servindo-o, passando as noites com ele,
distraindo-o e deleitando-o durante trinta e nove dias. No quadragésimo dia,
muito contente por estar em segurança, o garoto disse: “Eis-me aqui, meu irmão!
Já se completaram quarenta dias. Graças a Deus, que me salvou da morte, e isso
por mercê do seu aparecimento aqui. Por Deus que farei o meu pai tratá-lo da
melhor maneira e enviá-lo ao seu país. Agora, meu irmão, eu gostaria que você
me fizesse a gentileza de esquentar água para que eu me banhe e troque as
roupas”. Eu lhe disse: “Com muito gosto e honra”, e fui esquentar a água.
Depois levei o garoto até a despensa e lhe dei um banho reparador, troquei-lhe a
roupa, troquei-lhe os lençóis e as fronhas, deixando bem elevado o colchão em
cima do qual estendi um tapete. O garoto veio, deitou-se no colchão e dormiu
sob o efeito do banho, dizendo: “Por favor, meu irmão, corte uma melancia para
mim e dissolva em seu suco bastante açúcar vegetal”. Levantei-me então,
arrumei uma melancia fina, coloquei-a na bacia e perguntei: “Você sabe onde
está a faca, meu senhor?”. Ele respondeu: “Ei-la aqui na prateleira acima de
minha cabeça”. Fui com agilidade e pressa, passei por cima dele, peguei a faca
de onde estava, e me voltei para trás; por decreto e vontade de Deus, meu pé
escorregou no tapete e eu caí estirado sobre o garoto; a faca, que estava na minha
mão, se introduziu em seu coração, matando-o imediatamente. Quando a morte
se consumou, e percebi que fora eu o assassino, soltei um terrível grito, estapeei
o rosto e rasguei as roupas: “Gente, ó criaturas de Deus, para se completarem os
quarenta dias restava-lhe um único dia, e sua morte se deu pelas minhas mãos!
Perdão, ó Deus! Quem dera eu tivesse morrido antes disso! São as desgraças que
tenho que provar em doses sucessivas! ‘Deus só faz realizar algo que já estava
predeterminado’”.[154]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

56ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, continue para nós a história do terceiro dervixe”, e Šahrāzād
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o terceiro dervixe disse:
Quando tive certeza de que o havia matado, cara madame, e que isso se dera
por disposição dos céus, retirei-me, subi as escadas, recoloquei a tampa no lugar
e cobri-a de terra. Esticando os olhos para os lados do mar, vislumbrei a
embarcação que trouxera o rapaz voltando para recolhê-lo e cortando o mar em
direção à ilha. Pensei: “Agora eles vão chegar e verificar que o garoto foi
assassinado; se me encontrarem, saberão que fui eu o assassino e me matarão,
inexoravelmente”. Então me dirigi até uma das árvores que havia por ali, subi e
me ocultei entre sua folhagem. Mal me acomodara ali em cima e já a
embarcação arribava à terra e os escravos saíam com o ancião, pai do garoto que
eu matara, em meio a eles. Dirigiram-se à entrada do subterrâneo, começaram a
escavar a terra e, notando que estava macia, ficaram intrigados e desceram, logo
encontrando o garoto deitado, o rosto ainda irradiando os vestígios do banho,
vestido de roupas limpas e com uma faca enfiada no coração. Examinaram as
coisas e, constatando que ele estava efetivamente morto, puseram-se a berrar, a
estapear o rosto, a chorar e a gemer, prorrompendo em lamentos e clamores de
comiseração. O pai do garoto ficou desfalecido por um longo tempo, a ponto de
os escravos cogitarem de que ele morrera. Mas ele despertou e saiu dali junto
com os escravos, que haviam enrolado o rapaz em suas próprias roupas. Subiram
à superfície e puseram-se a retirar tudo quanto fora depositado na casa
subterrânea e a colocar na embarcação. O ancião subiu, olhou para o filho
estendido no chão e jogou terra sobre a cabeça. Subiu então um escravo
carregando um assento de seda, no qual estenderam o ancião, acomodando-se ao
seu redor – tudo isso ocorria com eles debaixo da árvore na qual eu trepara e de
onde observava o que eles faziam e ouvia o que diziam, com o coração
encanecido antes mesmo dos cabelos, em razão de tantas preocupações, aflições,
desgraças e desditas. Minha senhora, o ancião permaneceu desfalecido até quase
o entardecer, quando então acordou, olhou para o filho e para o que lhe sucedera:
seus temores haviam se concretizado, e ele chorou, estapeou-se e recitou a
seguinte poesia:
“Acelera, por vida tua, pois todos se foram
enquanto as lágrimas me escorrem das órbitas;
a casa já está bem distante deles, malgrado meu!
Como arranjar-me sem eles? que fazer? que dizer?
Quem dera eu jamais os houvesse visto!
Como arranjar-me, senhores? Já não tenho ardis!
Como obter um consolo qualquer, se lavra
o fogo da angústia num coração já de si incendiado?
Ó sorte, se passares por seu bairro, mesmo apressada,
grita-lhes, ó sorte, que as lágrimas estão escorrendo!
A morte desabou sobre eles, meu coração se queima
e o fogo no interior do meu peito se inflama.
Quem dera que a morte os poupasse!
Entre mim e eles nunca nada se desfaria.
Por Deus, ó tu que rogas, sê cauteloso,
e me reúna a eles enquanto é tempo.
Como éramos venturosos quando vivíamos numa só casa,
gozando de felicidade, a vida contínua,
até que fomos atingidos pelas setas da separação e afastados:
e quem pode suportar as setas da separação?
Sofremos a perda do mais poderoso dentre nós,
o singular de seu tempo, no qual a beleza se pinta.
Eu lhe disse, e antes disso minhas faces falavam:
‘quem dera não tivesse soado a tua hora!’
Por ti daria não um parente ou outro filho, mas minha vida.
Olhos invejosos nunca se apartaram de nós.
Como poderei encontrar-te em curto prazo?
Eu daria minha vida por ti, meu filho, se acaso aceitassem.
Afamado plenilúnio, desprendido e generoso,
eis o que sobre ti se propaga desde sempre.
Se dissesses ‘sol’, o sol se punha,
e se dissesses ‘lua’, a lua sumia.
Ó tu cujos méritos falam por ti!
Ó tu cujas virtudes contêm a virtude!
Eu te chorarei por todos os tempos.
Não tens equivalente; quem poderia substituir-te?
Teu pai agora anseia por ti, e, desde que
a morte te atingiu, ele não mais sabe o que fazer.
Olhos invejosos correram por todo o teu ser;
não os posso vedar, mas quem dera cegassem”.
[Prosseguiu o dervixe:] E o ancião soltou um forte gemido e o sopro vital
abandonou seu corpo. Os escravos gritaram, jogaram terra sobre a cabeça e o
rosto, excedendo-se em choros e lástimas. Entraram na embarcação e colocaram
o ancião deitado ao lado do filho. Em seguida, a embarcação se fez ao mar e
desapareceu de minhas vistas. Desci da árvore, dirigi-me ao buraco, entrei,
pensei no garoto e, vendo alguns de seus objetos, recitei a seguinte poesia:
“Vejo seus vestígios e me derreto de saudades,
vertendo copiosas lágrimas onde eles ficavam.
Peço a quem sofreu com a sua perda
que me conceda a graça de os devolver”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. A irmã lhe disse: “Como é
agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

57ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, continue para nós a história do dervixe”. Šahrāzād disse:
Eu tive notícia, ó rei, de que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Durante o dia, caríssima senhora, eu permanecia na superfície da ilha e à noite
me recolhia à casa subterrânea. Permaneci nesse mister durante cerca de um
mês, enquanto observava que, com a passagem dos dias, o lado ocidental da ilha
ficava cada vez com menos água e correntes mais fracas. Antes que se
completasse um mês, as terras do lado oriental secaram. Fiquei muito contente e
certo de que escaparia dali. Atravessei a água que ainda restava e penetrei na
porção de terra que fazia parte do continente, chegando a um ponto com areia a
perder de vista. Enchi-me de forças, atravessei a areia e avistei um fogo
brilhando e crepitando ao longe. Era uma enorme fogueira que lavrava com
intensidade. Enquanto rumava em sua direção, eu pensava: “Este fogo tem
necessariamente alguém que o ateou; quem sabe ali não encontro minha
salvação”. E pus-me a recitar o seguinte:
“Quem sabe o destino afrouxe as rédeas
e, apesar de ingrato, traga enfim algo bom
que me renove as esperanças e me satisfaça.
Deixe que, depois disso, outras coisas ocorram”.
E fui em direção à fogueira. Quando me aproximei, topei com um palácio
revestido de cobre vermelho e que, batido pelos raios do sol, refulgia, parecendo,
a quem o visse de longe, uma fogueira. Contente com aquela visão, sentei-me
diante dele. Mal o fizera, apareceram dez jovens, todos de roupas muito limpas,
ao lado de um ancião. Os jovens, contudo, eram todos caolhos: cada um deles
tivera o olho direito arrancado. Fiquei intrigado e curioso por conhecer a sua
história e aquela coincidência na perda do olho direito. Quando me viram,
mostraram-se contentes com a minha presença e me indagaram quanto à minha
história; narrei-lhes então as desgraças que me haviam colhido, o que os deixou
assombrados. Introduziram-me no palácio, e ali verifiquei que havia dez camas
dispostas em círculo, e em cada cama um colchão e uma coberta, ambos azuis.
No centro do círculo havia uma pequena cama semelhante às outras, com tudo
azul. Assim que entramos, cada jovem subiu em sua cama e o ancião subiu na
cama do centro, que era menor do que as outras. Disseram-me: “Acomode-se,
rapaz, no chão do palácio, e não pergunte sobre nossa condição nem sobre a falta
de nosso olho”. O ancião ergueu-se e entregou o alimento de cada um,
separadamente, fazendo o mesmo comigo. Comemos todos, e em seguida ele
ofereceu bebida em copos separados para cada um. Depois de terem terminado,
sentaram-se para conversar e começaram a me indagar sobre a minha situação e
sobre os prodígios e assombros que me ocorreram. Conversei com eles e lhes
respondi o que desejavam. Quando a maior parte da noite já se findara, os jovens
disseram: “Ó xeique, já não é hora de trazer a nossa paga? Está na hora de
dormir”. O ancião levantou-se, entrou num aposento e voltou carregando na
cabeça dez travessas cobertas com pano azul. Entregou a cada jovem uma
travessa e acendeu dez velas, espetando uma vela em cada travessa e retirando as
cobertas azuis, sob as quais apareceram, em todas as travessas, cinzas, pó de
carvão e ferrugem de panela. Eles arregaçaram as mangas e besuntaram os rostos
com as cinzas e o negrume que estavam nas travessas, e depois disso esfregaram
também na roupa, lastimaram-se, estapearam-se no rosto, choraram e bateram no
peito, pondo-se então a repetir: “Estávamos sossegados, mas nossa curiosidade
nos deixou ferrados”, assim permanecendo até que se aproximou o amanhecer,
quando então o xeique se levantou, esquentou-lhes água e eles foram banhar-se e
trocar de roupa. Quando vi o procedimento dos jovens, cara senhora, besuntando
de tal maneira o rosto, minha razão ficou estupefata e minha mente, ocupada;
esqueci o que me ocorrera e não consegui manter-me calado, questionando-os:
“E o que os obrigou a isso? Nós não estávamos satisfeitos e nos divertindo?
Graças a Deus vocês gozam de juízo perfeito, e estas ações são características
dos ensandecidos! Eu lhes pergunto, pelo que é mais caro para vocês, por que
não me contam sua história? Qual o motivo de seu olho direito ter sido
arrancado? Qual o motivo de terem besuntado o rosto com cinzas e negrume?”.
Eles se voltaram para mim e responderam: “Não se iluda, rapaz, com nossa
juventude nem com nossas atitudes. É do seu interesse calar qualquer pergunta”.
E, levantando-se, estenderam algo para comer, e comemos todos. Em meu
coração havia um fogo que não se apagava e uma labareda que não se ocultava
de tanto que minha mente estava ocupada com a atitude que haviam tomado
depois da refeição. Sentamos e conversamos até o fim da tarde. O xeique nos
trouxe bebida, e bebemos até a noite chegar e avançar. Os jovens disseram: “Ó
xeique, traga-nos a nossa paga, pois se aproxima a hora de dormir”, e ele se
levantou, sumiu por alguns momentos e retornou trazendo as travessas habituais.
Eles fizeram o mesmo que haviam feito na noite anterior. Para não encompridar
a conversa, minha senhora, devo dizer que morei com eles por um mês; toda
noite eles repetiam esses mesmos gestos – banhando-se depois pela manhã –, e
toda noite se repetia o meu assombro com tal atitude. Minha exasperação
aumentou e minha paciência se exauriu a tal ponto que parei de comer e beber.
Disse-lhes: “Ó jovens, por favor, eliminem esta minha preocupação e me contem
qual é o motivo de vocês besuntarem o rosto e dizerem: ‘Estávamos sossegados,
mas a curiosidade nos deixou ferrados’. Se não contarem, por favor me deixem
ir embora daqui e retornar para minha família, dispensando minhas vistas de
presenciar esta situação, pois o provérbio diz: ‘Ficar distante de vocês é mais
belo e adequado para mim: o que os olhos não veem, o coração não sente’”.[155]
Ao ouvirem minhas palavras, eles se acercaram de mim e disseram: “Só lhe
ocultamos isso, jovem, graças à nossa compaixão por você; tememos que fique
como nós e sofra o mesmo que sofremos”. Respondi: “É absolutamente
imperioso que me falem”. Disseram: “Já o aconselhamos, jovem; conforme-se e
não questione a nosso respeito, senão ficará caolho como nós”. Insisti: “É
absolutamente imperioso que me falem”. Responderam: “Quando essas coisas se
consumarem em você, não mais tornaremos a lhe dar abrigo nem poderá ficar
entre nós”. Dito isso, saíram, foram até um carneiro, imolaram-no, despelaram-
no, fizeram um odre com a pele e me disseram: “Pegue esta faca e entre neste
odre; iremos costurá-lo com você dentro e abandoná-lo aqui fora. Virá então um
pássaro chamado roque,[156] que o carregará com suas garras e voará com você
pelos céus. Depois de algum tempo, você perceberá que ele o depositou numa
montanha e o deixou de lado. Quando sentir que já está na montanha, corte a
pele com esta faca e saia dali de dentro. A ave olhará para você e sairá voando.
Levante-se imediatamente e caminhe pelo período de meio dia, quando então
você encontrará diante de si um palácio elevado nos céus, revestido de ouro
vermelho e cravejado de várias espécies de pedras preciosas, tais como
esmeraldas e outras; as madeiras com as quais o palácio foi construído são o
sândalo e aloés. Entre no palácio e obterá o que deseja, pois a entrada no palácio
é que motivou a besuntadela de nosso rosto e a perda de nosso olho. Agora, se
fôssemos contar o que nos sucedeu, a explicação seria muito longa, pois cada um
de nós tem uma história sobre o motivo de ter perdido o olho direito”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.

58
noite das noites das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do terceiro dervixe”. Šahrāzād
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Conta-se, ó rei, que o terceiro dervixe, que na verdade era o rei ᶜAjīb, disse à
jovem:[157]
Os jovens me introduziram dentro da pele do cordeiro, costuraram-na e
retornaram ao seu palácio. Antes mesmo que eu sentisse o tempo passar, veio
uma ave branca e me sequestrou com as garras, carregou-me pelos ares durante
um bom período, e depois me depositou na montanha de que falaram os jovens
caolhos. Rasguei a pele e saí. Quando a ave me viu, alçou voo. Eu, por minha
vez, levantei-me de imediato e caminhei até chegar ao palácio, verificando que
era como me haviam descrito: a porta estava aberta e entrei, constatando então
que se tratava de um elegante palácio do tamanho de uma grande praça, e em
cujo interior circular havia cem aposentos cujas portas de sândalo e aloés tinham
lâminas de ouro vermelho e maçanetas de prata. Avistei no final do corredor
quarenta moças que se assemelhavam a luas e de cuja visão nenhum ser humano
se fartaria. Usavam as mais opulentas roupas, adornos e joias. Quando me viram,
disseram em uníssono: “Muitas, muitíssimas saudações, ó nosso senhor! Seja
bem-vindo, amo! Já faz um mês que estamos esperando alguém como o senhor.
Louvado seja Deus, que nos concedeu alguém que nos merece e a quem também
merecemos!”. E, acorrendo até mim, instalaram-me numa elevada poltrona e
disseram: “Você hoje é nosso mestre; é quem nos dará ordens. Somos suas
escravas e lhe devemos obediência. Ordene, transmita-nos suas determinações”.
Aquela situação me deixou espantado. Ato contínuo, algumas me ofereceram
algo para comer, outras esquentaram água e me lavaram as mãos e os pés e me
trocaram a roupa, outras coaram bebida e me serviram, todas muito felizes e
cheias de regozijo com a minha chegada. Sentaram-se e começaram a conversar
comigo, indagando-me sobre a minha situação. Isso durou até o anoitecer.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”. Ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

59ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, continue a história para nós”. Šahrāzād respondeu: “Sim”.
Conta-se, ó rei, que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Quando anoiteceu, cara senhora, as moças se reuniram ao meu redor, e cinco
delas foram ajeitar o banquete, enfeitando a mesa com grande quantidade de
petiscos, essências aromáticas e frutas; também trouxeram taças de vinho.
Acomodamo-nos para beber, e elas se sentaram ao meu redor, algumas cantando,
outras tocando flauta, outras dedilhando alaúde, cítara e demais instrumentos
musicais. Os copos e as taças circulavam entre nós, e fui tomado por uma alegria
tal que me esqueci de todas as preocupações do mundo. Disse: “Isso é que é
vida; pena que seja efêmera”, e deixei-me ficar com as moças naquelas
condições, até que a maior parte da noite se findou e ficamos todos embriagados.
Elas disseram: “Escolha dentre nós, senhor, aquela que desejar para passar a
noite com você. Ela só voltará a dormir com o senhor daqui a quarenta dias”.
Escolhi então uma de rosto gracioso, olhos pintados de negro, cabelos negros e
dentes branquíssimos. Exímia em todas as artes, de sobrancelhas unidas, parecia
ramo de salgueiro ou haste de murta, deixando estupefato quem a visse, e
perplexa a mente, tal como disse a seu respeito o poeta:
“Ela se dobra como haste de salgueiro maduro
e se agita: que linda! que deliciosa! que doce!
Seus dentes incisivos aparecem quando sorri,
e cremos que relampejam e conversam com uma estrela;
quando dos negros cabelos ela solta as tranças,
a alvorada se torna parte da noite espessa;
mas quando seu rosto aparece em tal escuridão,
nos ilumina os universos a oriente e a ocidente;
é por ignorância que a comparam à mansa gazela,
mas muito longe de assim ser comparada está ela,
pois não tem seu talhe e garbo a mansa gazela,
nem seu bebedouro fica com o gosto do mel;
seus grandes olhos matam de paixão,
deixam morto o torturado apaixonado.
Senti por ela uma atração ensandecida e ímpia,
e não admira que o efusivo enfermo se apaixone”.
Então dormi com ela, passando uma noite como nunca tinha passado melhor.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã lhe disse: “Como é
agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for preservada”.

60ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse para a irmã: “Por Deus, maninha, se você não
estiver dormindo, continue para nós a história do terceiro dervixe”. Ela
respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei, de que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Quando acordei pela manhã, as moças me conduziram a um dos locais para
banho no interior do palácio; lavaram-me, puseram-me uma rica vestimenta,
trouxeram comida e todos nos alimentamos. Depois trouxeram bebida, e
bebemos; as taças circularam entre nós até o anoitecer, quando então elas
disseram: “Escolha dentre nós aquela com quem você deseja dormir; somos suas
servas e estamos aqui ao seu dispor”. Escolhi dentre elas uma de feições
graciosas e talhe delicado, conforme disse a seu respeito o poeta:
“Vi em seu peito dois potes selados
com sinetes que impediam o toque dos enamorados;
eram vigiados pelas setas de seu olhar:
quem ultrapassar será alvejado”.
Dormi com ela e passei uma formosa noite. Quando amanheceu, fui ao banho e
vesti roupas novas. Para encurtar conversa, minha senhora, desfrutei com elas a
vida mais deliciosa: a cada noite, eu escolhia uma das quarenta para passar a
noite comigo; comi, bebi e me diverti por um ano inteiro. Quando foi o ano-
novo, elas começaram a chorar, a gritar e a se despedir de mim chorosas,
agarrando-se ao meu pescoço. Fiquei espantado com aquela atitude e perguntei:
“O que acontece? Vocês estão despedaçando o meu coração”. Elas responderam:
“Quem dera não o tivéssemos conhecido. Já convivemos com muitos, mas nunca
vimos alguém tão gentil como você. A ninguém Deus permita a perda de uma
pessoa como você!”, e choraram. Perguntei: “E o que as obriga a tamanha
choradeira? Minhas entranhas estão dilaceradas por causa de vocês!”. Disseram
em uníssono: “Ó fulano, o único motivo de nossa separação será você; será você
a origem da nossa separação. Caso nos obedeça, não nos separaremos jamais,
mas, caso desobedeça, nós nos separaremos em definitivo de você e você de nós.
Nosso coração está nos dizendo que você não nos ouvirá, e que por isso nos
separaremos. Eis aí o motivo do nosso choro”. Eu pedi: “Informem-me dessa
história”, e elas responderam: “Saiba, amo e senhor, que nós somos filhas de
reis. Nós nos reunimos neste lugar há anos. Anualmente, ausentamo-nos por
quarenta dias. Durante um ano ficamos aqui comendo, bebendo, nos deleitando e
cantando; depois, durante quarenta dias, nos ausentamos daqui. É esse o nosso
mister. O motivo de sua desobediência será o seguinte: nós nos ausentaremos e
ficaremos longe de você por quarenta dias. Iremos entregar-lhe todas as chaves
deste palácio, que tem cem aposentos. Abra, espaireça, coma e beba. Cada porta
que você abrir lhe proporcionará entretenimento por um dia inteiro. Existe
apenas um dos cômodos que você não deverá abrir e do qual nem sequer deverá
se aproximar. Se acaso você o abrir, aí estará o motivo da sua definitiva
separação de nós, e de nossa definitiva separação de você: nisso consistirá a sua
desobediência. Você tem à disposição noventa e nove aposentos para fazer neles
o que bem entender: abra-os e divirta-se com eles. A única exceção é esse
aposento cuja porta é de ouro vermelho: quando você a abrir, nisso estará o
motivo da definitiva separação entre nós”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

61ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o terceiro dervixe disse para a jovem:
Depois, minha senhora, as quarenta moças me disseram: “Por Deus, amo, e
por vida nossa, em suas mãos estará o motivo da separação definitiva entre nós.
Tenha paciência, espere-nos esses quarenta dias e então retornaremos para você.
Eis aí cem aposentos; você poderá entrar e se deleitar em noventa e nove deles.
A centésima porta, porém, se você a abrir, nisso estará o motivo de nossa
separação”. Em seguida, uma das jovens deu um passo à frente, abraçou-me,
chorou e recitou esta poesia:
“E quando chegou a hora do adeus, seu coração
se aproximou de dois aliados, a paixão e o sentimento;
chorou úmidas pérolas, minhas lágrimas transbordaram
em ágatas, e tudo em seu pescoço formou um colar”.
Disse o narrador : despedi-me dela e das outras[158] e disse: “Por Deus que não
abrirei jamais aquele aposento”. Elas foram embora fazendo-me sinais com os
dedos e recomendações. Depois de sua saída, quedei-me só no palácio e disse
com meus botões: “Por Deus que não abrirei aquela porta, nem darei ensejo à
separação entre mim e elas”. Então me dirigi ao primeiro aposento, abri, entrei, e
nele encontrei um bosque semelhante ao paraíso, com todas as espécies de
frutas, árvores carregadas com frutos maduros, galhos entrelaçados, pássaros
canoros e água abundante. Eram tantas as árvores e os rios que minha mente ali
se tranquilizou. Embrenhei-me pelo arvoredo, aspirei a fragrância das flores e
ouvi o canto dos pássaros agradecendo ao Deus único, ao Todo-Poderoso. E vi
maçãs tais como disse o poeta a respeito:
“Maçã de duas cores, cores que imaginei serem
as faces coladas de dois amantes agarrados,
a mesma almofada, e depois algum susto:
um vermelho de calor, outro amarelo de temor”.
Depois observei as peras, cujo sabor era superior ao da água de rosas e o açúcar,
e cujo aroma era superior ao do almíscar e do âmbar. E vi marmelos tais e quais
os descreveu o poeta:
“Logrou o marmelo todas as delícias e se tornou,
dentre as frutas, a mais bem conhecida:
sabor de vinho, aroma fragrante de almíscar,
cor de ouro e formato de lua arredondada”.
Depois olhei para os pêssegos, cuja beleza saltava aos olhos e brilhava como um
rubi trabalhado. Saí então do jardim e fechei a porta. No dia seguinte abri outra
porta e entrei, encontrando-me em meio a uma ampla campina com muitas
palmeiras, circundada por um rio corrente em cujas margens se haviam plantado
rosas, jasmins, henas, rosas brancas almiscaradas, narcisos, violetas, pimenteiras,
camomilas, girassóis e açucenas. A brisa agitava essas plantas aromáticas,
espalhando sua fragrância por toda a campina. Deleitei-me naquele lugar e
minhas preocupações se desvaneceram um pouco. Então me retirei dali e fechei
a porta, abrindo uma terceira e topando com um grande pátio revestido de várias
espécies de mármore colorido, pedras preciosas e joias opulentas. Havia ali
gaiolas feitas de sândalo e aloés com pássaros canoros como rouxinóis, pombas-
de-colar, pombas-silvestres, melros, rolas, torcazes, pombas núbias e todas as
demais variedades de aves canoras. Espaireci, meu coração se pacificou e
minhas preocupações se dissiparam. Fui dormir e, ao acordar, abri a quarta porta,
ali encontrando uma grande mansão em cujo entorno havia quarenta aposentos
com as portas abertas; entrei em todos eles, topando em todos com pérolas,
esmeraldas, gemas, rubis, corais, prata, ouro e outros metais preciosos. Meu
juízo ficou estupefato com os gêneros de felicidade que eu contemplava, e disse
de mim para mim: “Esses bens não pertencem senão a grandes reis. Ninguém
poderia competir com tamanhas riquezas, nem mesmo se todos os reis da terra se
unissem”. Minha mente se alegrou, minhas preocupações desapareceram e eu
disse: “Sou o rei deste tempo, e posso dispor destas cores, destes bens e daquelas
jovens, que não têm ninguém além de mim”. E assim permaneci, minha senhora,
em semelhante estado de deleite por dias e noites, até que se passaram trinta e
nove dias. Quando restava um dia e uma noite, eu já abrira as portas e entrara
nos noventa e nove aposentos; faltava apenas a centésima porta, a qual me
haviam recomendado não abrir.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é espantosa sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.
62ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o dervixe disse:
Não restava senão o centésimo aposento. Minha mente ficou com ele ocupada,
meu íntimo se obcecou e, devido à minha má sorte, o demônio me dominou. Não
consegui ter paciência com aquilo, muito embora restasse do prazo não mais que
uma única noite; quando amanhecesse, as jovens ficariam comigo por um ano.
Mas o demônio me venceu, e abri a porta revestida de ouro. Mal entrei e senti
um odor tão forte que desabei no chão por alguns momentos. Reuni então
minhas forças, fortaleci meu coração e entrei no aposento, verificando que seu
piso estava forrado de açafrão; velas perfumadas, lampiões de ouro e prata
acesos com caras essências e velas espetadas em aloés e âmbar; vi dois grandes
turíbulos, cada qual do tamanho de uma tigela, cheios de carvão em brasa,
âmbar, almíscar e incenso, cuja fragrância, bem como a das velas, perfumes e
açafrão, se espalhava pelo lugar. Eu vi, cara senhora, um corcel negro como a
noite escura, diante do qual havia duas manjedouras de cristal branco, uma
contendo sésamo descascado e a outra, água de rosas almiscarada. O corcel
estava amarrado e ajaezado com uma sela de ouro vermelho. Ao vê-lo, fiquei
sumamente espantado e pensei: “Alguma coisa de enorme importância sucede a
este cavalo”. O demônio me dominou e eu retirei o cavalo daquele local,
conduzindo-o para fora do palácio. Montei-o, e ele não saiu do lugar; bati-lhe
com os pés, e ele não se moveu; irritado, peguei o chicote e o golpeei. Ao sentir
o golpe, ele imediatamente relinchou como se fosse um trovão violento, abriu
suas asas e voou comigo do palácio, subindo tanto no espaço celeste que
desapareceu por algum tempo do campo de visão. Depois, pousou comigo no
telhado de outro palácio, jogando-me fora da sela e atirando-me no telhado.
Depois, acertou-me com o rabo um doloroso golpe no rosto, que me arrancou o
olho, fazendo-o escorrer por minha face. Tornei-me caolho e disse: “Não existe
poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso. De tanto pensar
naqueles jovens caolhos, acabei ficando caolho como eles”. Em seguida,
olhando de cima do palácio para o solo, divisei as dez camas com colchão e
cobertas azuis. Descobri que estava no palácio dos dez jovens caolhos que me
aconselharam, e cujos conselhos não acatei. Desci do alto do palácio e me
acomodei no meio das camas; mal eu me sentara, vi os jovens, com o mestre no
meio deles. Ao me verem, disseram: “Não damos as boas-vindas nem saudamos
quem chegou. Por Deus que não tornaremos a dar-lhe abrigo; que você não
esteja bem!”. Eu disse: “Não ficarei quieto até perguntar sobre o motivo de
vocês besuntarem o rosto com azul e preto”. Eles responderam: “A cada um de
nós sucedeu o mesmo que a você: cada um estava na melhor vida, gozando dos
mais deliciosos prazeres, mas não pôde esperar quarenta dias para desfrutar de
um ano de comida, bebida e cuidados; comer galinha, escorropichar garrafas,
dormir em brocado; beber vinho e dormir junto ao seio de mulheres graciosas.
Mas nossa curiosidade não deixou, e nosso olho foi arrancado. Eis-nos agora,
conforme você vê, a chorar o que passou”. Eu lhes pedi: “Não se zanguem
comigo pelo que fiz. Eis-me aqui agora, tornado igual a vocês. Gostaria que me
dessem dez pratos de negrume para eu besuntar meu rosto”, e chorei
amargamente. Eles responderam: “Por Deus, por Deus que não lhe daremos
abrigo, nem você ficará conosco. Ao contrário: saia daqui agora e dirija-se para
Bagdá, onde você vai encontrar ajuda para o que lhe sucedeu”. Vendo-me em tal
aperto, e tão destratado, meditei sobre os terrores que despencaram sobre a
minha cabeça, como o assassinato do jovem. Meditei sobre o ‘Eu estava
tranquilo e sossegado mas a minha curiosidade me deixou ferrado’, e tudo me
pareceu pior ainda. Então raspei a barba e as sobrancelhas, renunciei às coisas
mundanas e saí perambulando; tornei-me um dervixe carendel caolho. Deus
escreveu que eu viajaria em segurança e cheguei a Bagdá no início desta noite.
Encontrei estes dois dervixes parados e perplexos; cumprimentei-os e disse:
“Sou estrangeiro”. Eles responderam: “Estrangeiro, nós também somos
estrangeiros”. E a coincidência foi que nós três somos dervixes caolhos do olho
direito, o que nos tornou um prodígio. É esta, minha senhora, a causa de o meu
olho ter sido arrancado e minha barba, raspada.
[Prosseguiu Šahrāzād:][159] Contam, ó rei venturoso, que, depois de ouvir as
histórias dos três dervixes, a jovem lhes disse: “Passem a mão na cabeça e vão
embora, sigam o seu caminho”. Mas eles responderam: “Por Deus que não nos
moveremos daqui até ouvir a história destes nossos companheiros”. Então a
jovem se voltou para o califa, Jaᶜfar e Masrūr, e disse: “Agora, contem-nos vocês
a sua história”. Jaᶜfar deu um passo à frente e disse:
JAᶜFAR, O VIZIR
Somos, minha senhora, naturais de Mossul, e viemos à sua cidade para fazer
comércio. Quando chegamos aqui, hospedamo-nos numa pensão de mercadores.
Vendemos nossas mercadorias e fizemos trocas. Nesta noite, um dos mercadores
daqui de Bagdá deu uma festa e convidou nosso grupo e todos os mercadores
hospedados na pensão. Fomos até a casa dele. Passamos momentos deliciosos,
com bebida coada, sarau agradável e cantorias. No entanto, acabaram ocorrendo
discussões e gritarias entre os convidados. O chefe de polícia efetuou uma batida
no lugar, capturando alguns de nós, embora alguns outros conseguissem fugir.
Nós estávamos entre os que escaparam, mas fomos colhidos pela noite e
encontramos trancada a pensão, que só volta a abrir pela manhã. Surpresos e
atarantados, sem saber que rumo seguir, temerosos de que o chefe de polícia nos
visse, prendesse e desmoralizasse, fomos conduzidos pelos caprichos da sorte
para este local e, ouvindo canções agradáveis e tertúlias, percebemos que aqui se
realizava uma festa e havia gente reunida. Pensamos em nos colocar à sua
disposição, encerrar nossa noite ao seu lado, renovar o sarau e completar com
alegria esta noite. E vocês fizeram a caridade e a gentileza de nos deixar entrar,
trataram-nos bem e nos dignificaram. Foi assim que se deu nossa chegada até
aqui.
Então os dervixes disseram: “Ó ama e senhora, rogaríamos à sua bondade que
nos concedesse a vida desses três para que, desse modo, possamos ir embora
após ter feito uma boa ação”. Nesse instante, a jovem, dirigindo-se a todos,
disse: “Eu lhes concedo as vidas uns dos outros”. Saíram todos da casa e o califa
disse aos dervixes: “Aonde vocês vão, pessoal? A manhã ainda nem raiou”.
Responderam: “Não sabemos para onde ir, senhor”. Ele disse: “Vão dormir em
nossa casa”, e, voltando-se para Jaᶜfar, disse-lhe: “Leve esses três para dormir
em sua casa e pela manhã conduza-os até mim, a fim de que registremos por
escrito o que aconteceu a cada um e o que deles ouvimos nesta noite”. Jaᶜfar
obedeceu às ordens do califa, e este se retirou para seu palácio, mas não
conseguiu conciliar o sono, preocupado e meditando sobre o que sucedera aos
dervixes, os quais, sendo não obstante filhos de reis, tinham chegado àquela
condição. Seu íntimo também ficou ocupado com a história da jovem com as
duas cadelas negras e da outra surrada com chicote. Sem conseguir conciliar o
sono, mal pôde esperar que a manhã chegasse, quando então se instalou em seu
trono. O vizir Jaᶜfar entrou, beijou o chão e o califa lhe disse: “Esta não é hora de
moleza. Desça e traga as duas jovens para que eu ouça a história das cadelas.
Traga também os dervixes. Rápido!”, e ralhou com ele. Jaᶜfar se retirou, e não
era passada nem uma hora e já ele retornava trazendo as três jovens e os três
dervixes. O vizir fez os três dervixes se postarem diante do califa, escondeu as
três moças atrás de uma cortina e disse: “Ó mulheres, nós já as perdoamos
graças ao bom tratamento e à generosidade que vocês nos dispensaram. Agora,
se acaso ainda não sabem quem está diante de vocês, eu as farei saber: estão
diante do sétimo da dinastia abássida, Arrašīd, filho de Almahdī, filho de Alhādī,
irmão de Assaffāḥ, filho de Almanṣūr.[160] Que sua língua seja eloquente, e
forte o seu coração: não profira senão a verdade, não se pronuncie senão com
sinceridade, e evite a mentira. ‘Deves ser veraz ainda que com isso te arrisques a
ir ao fogo.’[161] Conte ao califa por que você surra as duas cadelas pretas e em
seguida chora abraçada a elas”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é espantosa e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

63ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ouvir Jaᶜfar lhe dirigir a palavra na
qualidade de porta-voz do comandante dos crentes, a jovem dona da casa disse:
A PRIMEIRA JOVEM, A DONA DA CASA
Sucedeu-me uma história espantosa e insólita, que, se fosse escrita com agulhas
no interior das retinas, constituiria uma lição para quem reflete. O fato é que as
duas cadelas pretas são minhas irmãs: somos três irmãs de pai e mãe – essas
duas jovens, a que traz no corpo marcas de chicotada, e a outra, a compradeira,
são filhas de outra mãe. Bem, nosso pai morreu e, depois da repartição da
herança, ficamos as três morando com nossa mãe, enquanto essas duas, por sua
vez, ficavam em outro lugar morando com a mãe delas. O tempo passou e nossa
mãe morreu, deixando três mil dinares, que dividimos entre nós, cabendo a cada
uma mil dinares. Eu era a mais nova. As duas mais velhas se ajeitaram e
casaram. O marido da mais velha pegou o dinheiro de ambos, montou uma
expedição comercial e saíram os dois em viagem, ausentando-se por cinco anos.
O marido acabou dilapidando todo o dinheiro e os proventos de minha irmã. Não
cuidou dela, abandonando-a ao deus-dará em terra estrangeira, e obrigando-a a
se virar e tentar sozinha encontrar o caminho de volta. Foi assim que,
repentinamente, após cinco anos, eu a vi chegar até mim em roupas de mendiga,
andrajosa, com um manto sujo e velho – enfim, ela estava no mais deplorável
estado. Ao vê-la, fiquei abalada e perguntei: “Por que você está nessa situação?”.
Ela respondeu: “As palavras já não resolvem nada: ‘O cálamo executou o que já
fora decretado’”.[162] Recolhi-a, ó comandante dos crentes, e imediatamente a
levei a um banho; depois, tirei-a dali, coloquei-lhe roupas novas, preparei-lhe um
caldo de carne, dei-lhe bebida e tratei dela por um mês. Disse-lhe: “Irmã, você é
a mais velha e ocupa o lugar de nossa mãe. Meu dinheiro foi abençoado por
Deus: eu produzo e fio seda. Meu capital cresceu e se multiplicou, e será
dividido igualmente entre mim e você”. Tratei-a com extrema generosidade, e
ela morou comigo por um ano inteiro. Ficamos ambas preocupadas com nossa
outra irmã, [cujo marido também pegara o seu dinheiro, comprara mercadorias e
saíra com ela em viagem; havíamos perdido totalmente o contato com ela],[163]
mas não demorou muito e essa outra irmã voltou em situação ainda mais
miserável do que a nossa irmã mais velha; fiz por ela o mesmo que fizera pela
outra, tratando-a e dando-lhe de vestir. Então elas me disseram: “Irmã,
gostaríamos de nos casar, pois não suportamos ficar solteiras”. Eu lhes respondi:
“Irmãs, o casamento já não produz nenhum benefício. São poucos os homens de
qualidade. Deixem disso e fiquemos juntas. Vocês já experimentaram o
casamento e não receberam nada”. Mas elas não deram importância às minhas
palavras, ó comandante dos crentes, e casaram-se sem a minha autorização. Vi-
me obrigada pela segunda vez a prepará-las com meu dinheiro. Não se passou
muito tempo e seus maridos conseguiram convencê-las, tomaram-lhes os bens e
viajaram com elas, abandonando-as em terra estrangeira. Elas regressaram até
mim, desculparam-se e disseram: “Irmã, você tem menos idade mas mais juízo
do que nós. Esta foi a primeira e a última: nunca mais tornaremos a falar de
casamento. Tome-nos como suas servas em troca de uns bocados de comida”.
Respondi: “Irmãs, nada me é mais caro do que vocês”, e, acudindo-as, tratei-as
melhor ainda. Ficamos juntas e nessa condição permanecemos por um terceiro
ano. Tudo o que eu possuía se multiplicava, meu dinheiro aumentava e minha
situação melhorava. Desejei, ó comandante dos crentes, partir em expedição
comercial para a cidade de Basra,[164] e para tanto providenciei uma grande
embarcação, enchendo-a de mercadorias e artigos, além de tudo quanto me fosse
necessário durante a viagem. Zarpamos com bons ventos e navegamos por dias,
quando subitamente nos vimos perdidos em alto-mar, assim permanecendo
durante vinte dias, ao cabo dos quais o gajeiro subiu ao mastro para observar e
exclamou: “Alvíssaras!”. Desceu cheio de regozijo e disse: “Vi o que me pareceu
ser uma cidade semelhante a uma pomba suavemente branca”, e todos ficamos
muito satisfeitos. Passaram-se poucas horas e já a embarcação atracava naquela
cidade; desembarquei a fim de observá-la. Quando cheguei diante de seus
portões, vi pessoas em cujas mãos havia bastões; aproximei-me e constatei que
eram pessoas amaldiçoadas, que se tinham tornado pedra. Atravessei os portões,
adentrei a cidade e vi que as pessoas nas lojas do mercado tinham sido todas
transformadas em pedra dura e que a cidade não tinha nas casas quem assoprasse
as brasas.[165] Então, perambulando pelo lugar, constatei que toda a sua
população fora transformada em pedra dura. Cheguei ao limite extremo da
cidade e ali notei uma porta revestida de ouro vermelho, com uma cortina de
seda e um lampião dependurado. Pensei: “Por Deus, que coisa esquisita! Não
haverá gente por aqui?”. Entrei por uma das portas e topei com um aposento;
entrei nesse aposento e topei com outro aposento; assim, pus-me a entrar de
aposento em aposento, sozinha, mas não encontrei ninguém, o que me deixou
bastante apreensiva. Passei a entrar nos aposentos habitados pelas mulheres,
topando então com um apartamento encimado por uma insígnia real e cujas
paredes eram cobertas com cortinas tecidas a ouro. Encontrei a rainha – a própria
esposa do rei! – vestida com uma roupa de pérolas, cada qual do tamanho de
uma amêndoa; em sua cabeça havia uma coroa cravejada de pedras preciosas.
[166]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.
64ª
noite das histórias
espantosas e insólitas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que a jovem dona da casa, contando sua história ao
califa, disse:
Ó príncipe dos crentes, na cabeça da rainha havia uma coroa cravejada de
pedras preciosas de muitas variedades. No palácio se estendiam tapetes de seda
salpicada de ouro. Notei no centro do apartamento uma cama de marfim
revestida de ouro cintilante, com duas romãs de esmeralda verde. Sobre a cama
havia um baldaquino composto de pérolas. Notei uma luz, um raio brilhante
saindo através da rede do baldaquino. Subi na cama, coloquei a cabeça no
baldaquino e vi, ó comandante dos crentes, uma pedra preciosa do tamanho de
um ovo de avestruz. Estava sobre uma pequena cadeira e tinha um brilho
incandescente, uma luz tão brilhante que ofuscava a vista. Não havia ninguém na
cama, revestida de lençóis e cobertas de seda; ao lado da almofada, duas velas
acesas. Quando vi aquela pedra preciosa e as duas velas acesas, tomei-me de
assombro e pensei: “Essas velas não foram acendidas senão por um ser
humano”. Aquele lugar me deixou efetivamente espantada. Retirei-me dali, e eis
que me encontrei na cozinha, com sua adega e as despensas do rei. Continuei
perambulando de apartamento em apartamento, e de lugar em lugar, até que me
esqueci, de tão assombrada que estava, dos eventos que teriam sucedido aos
habitantes da cidade; e a tal ponto me distraí que negligenciei a mim mesma e
fui colhida pela noite. Procurei então a porta da torre pela qual entrara, e não
consegui reconhecê-la. Perdi-me. Com a noite tendo entrado, deambulei por
algum tempo no escuro sem encontrar nenhum local que me servisse de abrigo,
com exceção daquela cama com baldaquino e velas. Deitei-me no colchão,
cobri-me e tentei dormir, mas não consegui pregar o olho. No meio da noite,
ouvi uma voz de timbre suave salmodiando o Alcorão. Levantei-me contente e
caminhei na direção da voz, até que fui conduzida a um aposento cuja porta
estava encostada; espiei pela fresta e vi algo como um santuário para recitação,
algo como um nicho para preces, e algo como lampiões dependurados e acesos,
velas e um tapete estendido, sobre o qual estava sentado um rapaz gracioso
recitando de modo escorreito um exemplar do Alcorão que havia diante de si.
Fiquei intrigada com aquilo: como todos os habitantes da cidade tinham sido
amaldiçoados enquanto esse rapaz se encontrava íntegro? Isso teria alguma
causa prodigiosa. Em seguida abri a porta, entrei no santuário e cumprimentei o
rapaz dizendo: “Louvores a Deus, que atendeu aos meus rogos por seu
intermédio. Isso será o motivo da nossa salvação, da salvação de nosso navio e
de nosso regresso para a nossa gente. Ó santo homem, em nome daquilo que
você recitava, responda-me uma pergunta”. O rapaz olhou para mim, sorriu e
disse: “Ó serva de Deus, conte-me primeiro como você chegou até aqui, e então
eu lhe contarei a minha história, o que sucedeu a mim e aos habitantes de minha
cidade, o motivo de sua transformação e de minha salvação”. Contei-lhe pois a
minha história, e como a minha embarcação singrara perdida por vinte dias. Em
seguida indaguei-o sobre a cidade e seus habitantes, e o rapaz respondeu:
“Devagar, minha irmã, e eu lhe contarei”, e, fechando o Alcorão, tirou-o dali e
me acomodou, ó comandante dos crentes.
Então a aurora alcançou Šahrāzād, e ela parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me
preservar”.

65ª
noite das assombrosas
histórias das mil
e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que a jovem dona da casa disse para o califa:
Então, ó príncipe dos crentes, o jovem tirou o exemplar do Alcorão de sua
frente, depositando-o no nicho que indicava a direção da Caaba,[167] e me
acomodou ao seu lado. Contemplei-lhe o rosto, e eis que era como o plenilúnio
quando surge, e gracioso de formas, tal como disse a respeito o poeta:
“Certa noite, a um astrônomo pareceu ver
gracioso talhe sobre o plenilúnio a brilhar,
cuja luz ofuscante desafiava a do sol
ainda escondido, deixando a lua perplexa”.
Deus altíssimo tinha-o vestido com as roupas da formosura, adornando-lhe as
faces com o esplendor e a perfeição, tal como disse a respeito o poeta:
“Juro pela sedução de suas pálpebras e por sua cintura;
juro pelas flechas que seu encanto dispara;
juro pela suavidade de seus membros e por seu olhar agudo;
juro pela brancura de seus dentes e negrura de seu cabelo;
juro por seus cílios que me impedem o sono
e que me dominam, proibindo e ordenando;
juro pelos escorpiões que sua fronte arremessa,
e que matam os amantes que abandona;
juro pelo rosado de suas faces bemfeitas;
juro pelo cristal vermelho de sua boca e pérola dos dentes;
juro por seu agradável hálito e pela água doce
que escorre de sua boca com o mel de sua saliva de vinho;
juro por seu colo e estatura em forma de ramo,
sentado, seu peito contém uma romã;
juro por suas ancas que se agitam, agitado esteja
ou parado; juro pela esbelteza de sua cintura;
juro pelo seu toque sedoso e leveza de espírito;
juro por toda a beleza que ele contém;
juro por sua afabilidade e veracidade;
juro por sua boa origem e sublime capacidade:
é por ele que o conhecedor define o almíscar,
e a brisa que espalha sua fragrância é a dele;
também abaixo dele está o sol brilhante,
e nem a lua crescente vale sua unha cortada”.[168]
Olhei para o jovem, ó comandante dos crentes, e esse olhar foi seguido por
grande aflição: meu coração foi arrebatado de amores por ele, a quem eu disse:
“Meu amo, amado de meu coração, conte-me a história da sua cidade”. E ele
disse:
“Saiba, ó serva de Deus, que esta é a cidade do meu pai – e ele é aquela pedra
negra que você talvez tenha visto no interior do palácio amaldiçoado –, e a
rainha naquele aposento é a minha mãe. Meu pai foi rei desta cidade, cujos
habitantes eram todos magos,[169] que adoravam o fogo acima de Deus, o rei
todo-poderoso; prosternavam-se diante do fogo e juravam em seu nome. Nasci já
durante a velhice de meu pai, e fui criado em meio a grande prosperidade; assim
cresci e me desenvolvi. Tínhamos conosco uma velha entrada em anos que me
ensinava a leitura do Alcorão e me dizia: ‘Não se deve adorar senão a Deus
altíssimo’. Foi por seu intermédio que aprendi o Alcorão, fato que passei a
ocultar de meu pai e de meus familiares. Certo dia, ouvimos subitamente uma
voz descomunal dizer: ‘Ó povo desta cidade, abandone a adoração do fogo e
adore a Deus, o misericordioso’, mas ninguém abandonou a adoração do fogo. A
voz voltou a alertá-los nesses mesmos termos três vezes no decorrer de três anos.
Após o terceiro alerta, no terceiro ano, subitamente a cidade amanheceu com
todos os moradores na situação em que você os viu; fui o único a escapar.[170]
Agora, eis-me aqui, conforme você está vendo, entregue à adoração de Deus
altíssimo. Já me desesperava com a solidão, sem ter com quem conversar.”
[Prosseguiu a jovem:] Ele já sequestrara minha mente e me subtraíra o
autocontrole e a alma. Eu lhe disse: “Venha comigo para a cidade de Bagdá. Esta
escrava que está diante de você é a senhora de seu povo e manda em homens e
escravos; tenho capitais e comércio. Uma parte de meus bens se encontra no
navio atracado fora da cidade. A embarcação se perdeu e navegou ao léu até que
Deus nos lançou aqui e me fez conhecer a sua juventude”. E tanto insisti, ó
comandante dos crentes, que ele disse “sim”. Passei aquela noite quase sem
acreditar no que ocorrera, e dormi aos seus pés. Quando amanheceu, levantamo-
nos, carregamos dos depósitos reais o que tivesse peso baixo e valor alto e
descemos ambos da torre até a cidade, onde encontrei minhas irmãs, o capitão do
navio e meus empregados procurando por mim. Ao me verem ficaram muito
contentes, e lhes relatei a história do jovem e da cidade. Ficaram estupefatos.
Quanto às minhas duas irmãs, que são estas duas cadelas, ó comandante dos
crentes, ao verem o rapaz foram tomadas de inveja e passaram, em seu íntimo, a
planejar o mal contra mim. Embarcamos todos muito contentes com os lucros.
Mas mais feliz do que todos estava eu, por causa do jovem. Pusemo-nos a
esperar bons ventos para seguir viagem.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me poupar”.

66ª
noite das histórias
espantosas insólitas
das mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que a jovem dona da casa disse ao califa:
Então, ó comandante dos crentes, vieram bons ventos e a viagem começou.
Acomodamo-nos para conversar e minhas irmãs perguntaram: “O que você fará
com este rapaz?”. Respondi: “Vou tomá-lo como marido”, e, voltando-me para
ele, disse-lhe: “Eu gostaria, meu senhor, que você não discordasse de mim
quanto ao que vou expor: assim que chegarmos à nossa cidade de Bagdá, eu me
oferecerei a você em casamento, como sua serva; serei sua esposa e você, meu
marido”. O rapaz respondeu: “Sim. Você é que é a minha ama e senhora, e de
suas atitudes, quaisquer que sejam, eu jamais discordarei”. Depois, voltei-me
para minhas irmãs e lhes disse: “Esse é o meu ganho. Quanto a vocês, tudo o que
trouxeram será o seu ganho. A mim me basta este jovem; ele é meu”. Mas em
seu íntimo elas passaram a planejar o mal contra mim; a feição de ambas se
alterou de inveja. Prosseguimos viagem com bons ventos até que chegamos ao
Mar da Segurança, no qual navegamos um pouco e nos aproximamos do porto
de Basra. Era noite e fomos dormir. Minhas irmãs esperaram que eu
adormecesse e ressonasse, e me carregaram no colchão, atirando-me ao mar;
fizeram o mesmo com o rapaz, que se afogou; quanto a mim, quem dera eu
tivesse me afogado junto com ele! Contudo, eu me salvei: bati a cabeça nos
rochedos de uma península elevada e acordei; ao me ver no meio da água,
percebi que minhas irmãs haviam me atraiçoado, e agradeci a Deus por me
encontrar em segurança. O navio continuou avançando como relâmpago, e eu
fiquei agarrada aos rochedos a noite inteira, até que a alvorada despontou e
avistei uma faixa de terra seca que conduzia ao alto da península; caminhei por
essa faixa durante algum tempo e cheguei àquele local,[171] quando então
espremi minhas roupas e as deixei estendidas ao sol para secar. Comi dos frutos
da ilha e bebi de sua água. Depois caminhei um pouco e me sentei para
descansar – eu estava a somente duas horas da cidade. Repentinamente, vi uma
cobra comprida, da grossura de uma palmeira, rastejando rapidamente em minha
direção; notei que se deslocava para a direita e para a esquerda, até que se
aproximou de mim revolvendo a terra com seu tamanho e com um palmo de
língua já se arrastando ao solo; em seu encalço havia uma serpente comprida
como duas lanças e grossa como uma lança; a serpente já estava para agarrar
pela cauda a cobra em fuga, que se agitava para a direita e para a esquerda com
as lágrimas escorrendo. Então, ó comandante dos crentes, tomada de piedade
pela cobra, peguei uma grande pedra, levantei-a e, rogando ajuda a Deus, golpeei
a serpente, que morreu bem mortinha. Nesse momento, a cobra abriu duas asas e
saiu voando, até desaparecer de minhas vistas. Sentei-me para descansar e acabei
sendo colhida pelo sono. Quando acordei, vi uma escrava negra que me
massageava os pés, tendo ao lado duas cadelas negras. Despertei de imediato,
sentei-me e perguntei: “Quem é você, minha irmã?”. Ela respondeu: “Quão
rapidamente me esqueceu! Eu sou aquela a quem você fez um favor e em quem
plantou a semente da gratidão. Eu sou a cobra que estava neste lugar quando
você fez o favor de matar o meu inimigo, com a ajuda de Deus altíssimo. Eu não
podia deixar de recompensá-la e, assim sendo, segui a embarcação, ordenei a
alguns de meus ajudantes que afundassem o navio, não sem antes terem retirado
tudo quanto ele continha e transportado para a sua casa. Só agi assim em razão
das coisas que, conforme eu soube, suas irmãs lhe fizeram, apesar da
generosidade com que você as tratou durante toda a vida. Elas lhe tomaram
inveja por causa do jovem e atiraram ambos no mar, afogando o rapaz. Ei-las
agora transformadas nestas duas cadelas pretas. Agora eu juro por quem ergueu
os céus que, se você desobedecer às minhas determinações, eu irei raptá-la e
aprisioná-la no subsolo”. Em seguida a jovem se chacoalhou, tornando-se algo
semelhante a uma ave, e saiu voando comigo e com minhas duas irmãs, e logo
me depôs em casa. Olhei ao meu redor e eis que todos os bens que estavam no
navio haviam sido transportados para a minha casa. Ela me disse: “Juro por
‘quem deu livre curso aos dois mares’[172] – e esta é a minha segunda jura –
que, caso você me desobedeça, vou efetivamente transformá-la, como elas, em
cadela. Você deverá toda noite aplicar trezentas vergastadas em cada uma delas,
a título de punição pelo que fizeram”. Respondi “sim”. Então ela se foi e me
deixou. E aqui estou eu, desde o momento em que ela me fez jurar, punindo-as
toda noite até que sangue se lhes escorra. Meu íntimo está condoído por elas,
mas não tenho escolha. Esse é o motivo de surrá-las e chorar abraçada a elas.
Ambas sabem que nisso não tenho culpa e aceitam tal justificativa. Eis aí a
minha história, é tudo quanto tenho para contar.
Disse o narrador : ao ouvir as palavras finais da jovem, o califa ficou muito
assombrado. Em seguida, o comandante dos crentes mandou Jaᶜfar dizer à
segunda jovem que contasse o motivo das marcas de chicote que havia em seu
peito e flancos, e ela disse:
Quando meu pai morreu, ó comandante dos crentes...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã lhe disse: “Como é
agradável a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me poupar”.

67ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte Šahrāzād disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem chicoteada disse ao
comandante dos crentes:
A SEGUNDA JOVEM, A CHICOTEADA
Ao morrer, meu pai me deixou muitos bens e me casei com o homem mais
próspero de Bagdá, junto ao qual permaneci durante um ano, levando a vida
mais feliz. Mas ele morreu e a parte legal que me coube de sua herança
remontava a noventa mil dinares. Gozei de uma vida próspera, exercendo o
comércio de roupas e joias; acumulei tanto ouro que minha reputação começou a
se espalhar; mandei fazer para mim dez conjuntos de roupa no valor de mil
dinares cada um. Até que, certo dia, estando eu recolhida em minha casa, eis que
ali me entra uma velha, e que velha! Olhei para ela e lhe vi a fisionomia
desgrenhada, as sobrancelhas amarfanhadas, os olhos petrificados, os dentes
quebrados, o rosto enrugado, a pele sardenta, a cabeça engessada, o cabelo
pálido, o corpo sarnento, toda arqueada, desbotada e ranhosa, tal como a seu
respeito disse o poeta:
“Sete defeitos no pleno da face ela tem,
um dos quais é abominação do destino;
rosto que os esgares tornam escuro,
boca cheia de pedras e cabelo que não cresce”.
Ela me cumprimentou, beijou o chão diante de mim e disse: “Saiba, minha
senhora, que eu tenho uma filha órfã de pai. Esta noite será seu casamento e
desvelamento. Somos forasteiros nesta cidade e não conhecemos ninguém daqui.
Nossos corações estão alquebrados. Eu lhe dirijo uma súplica: que a senhora
compareça à nossa casa a fim de que as damas da cidade ouçam a respeito e
também compareçam. Assim, a senhora reanimará o coração derrotado de minha
filha e nos sentiremos muito honradas com a sua presença”. Em seguida, a velha
recitou a seguinte poesia:
“Vossa presença para nós é honraria:
é isso o que nós confessamos;
se vos ausentardes não nos será
possível substituir tamanha graça”.
E em seguida chorou e implorou. Meu coração ficou compadecido e resolvi
atender-lhe o pedido. Disse-lhe: “Sim, pela graça de Deus altíssimo eu farei por
sua filha o seguinte: ela não será desvelada senão com minhas joias, atavios e
ornamentos”. A velha ficou muito feliz e, abaixando-se, começou a beijar os
meus pés e a dizer: “Que Deus a recompense por nós e agrade o seu coração da
mesma forma que a senhora está agradando o meu. Entretanto, minha senhora,
embora eu não pretenda lhe dar trabalho desde já, peço-lhe que vá se preparando
até o início da noite, quando então virei buscá-la”, e se retirou. Eu me pus a
ajeitar as pérolas, a arrumar os atavios e a montar os colares e as joias, sem saber
o que o destino preparava para mim. Assim que a noite caiu, a velha apareceu
toda alegre e sorridente. Beijou minhas mãos e disse: “Ó cara madame, já está
reunida em nossa casa a maioria das damas de boa família desta cidade. Estão
todas esperando você, ansiosas por sua chegada”. Ergui-me, vesti o traje superior
e me enrolei no meu manto. A velha se pôs a caminhar na minha frente, e atrás
de mim estavam minhas criadas. Caminhamos até chegar a uma casa elegante,
varrida e lavada, com uma cortina preta estendida à porta, na qual estava
pendurado um lampião cujo cabeçote tinha filigranas de ouro. Na porta estavam
inscritos a ouro os seguintes versos:
“Sou a casa da alegria –
sempre.
Que tens com minha satisfação?
Em meu centro há uma fonte
cuja água a tristeza faz secar.
Há também, para cheirar –
quatro:
murta, margarida, rosa e cravo”.[173]
A velha bateu à porta, que se abriu. Entramos na casa e vimos velas acesas e um
tapete de seda estendido e enfeitado. As velas estavam acesas e espetadas em
duas fileiras, que iam do começo ao fim da casa. Havia também uma cama de
zimbro cravejada de pedras preciosas, encimada por um baldaquino de brocado,
abotoado com moedas de ouro. Subitamente, uma jovem surgiu de sob o
baldaquino. Olhei para ela, ó comandante dos crentes, e eis que parecia a lua
cheia ou a alvorada, tal como disse o poeta:
“Ela foi até os pequenos reis cesáreos
como presente dos diminutos reis persas;
os sinais de sua face aparecem bem rosados;
oh, que agradáveis faces vermelhas,
esbelta, olhares lânguidos e transitórios,
da beleza alcançou a parte melhor:
é como se a cabeleira sobre seu rosto
fosse noite de preocupação sobre manhã de alegria”.
E, saindo do baldaquino, a jovem disse: “Muito bem-vinda, cara e ilustre irmã. A
casa é sua”, e recitou a seguinte poesia:
“Se a casa soubesse quem ora a visita,
daria alvíssaras e lhe beijaria os pés,
dizendo em muda recitação:
bem-vindos, ó bondosos, ó generosos”.
E, voltando-se para mim, ó comandante dos crentes, ela disse: “Minha senhora,
tenho um irmão mais belo do que eu. Ele a viu por ocasião de alguma festa de
casamento, e pôde notar que você detém a mais perfeita parte da beleza e da
formosura; também ouviu que você é a senhora entre os seus; de igual modo, ele
é senhor entre os dele. Por isso, pretendeu que ambos se unissem: seja você a sua
esposa, e ele, seu marido”. Eu lhe respondi: “Sim, ouço e obedeço”. Assim que
respondi afirmativamente, ó príncipe dos crentes, ela bateu palmas e um
aposento se abriu, dele surgindo um jovem, o mais gracioso dentre os rapazes, de
roupas absolutamente limpas, boa altura e constituição, dono de beleza,
formosura, esplendor e perfeição; mimoso, suas sobrancelhas pareciam um arco
retesado com flecha, e seus olhos sequestravam os corações com um feitiço
lícito, tal como disse o poeta:
“Seu rosto parece a face da lua nova,
e os sinais da felicidade são como pérolas”.
Quando olhei para ele, meu coração o amou. O jovem sentou-se ao meu lado e
conversamos por algum tempo. Em seguida, a jovem bateu palmas novamente, e
eis que outro aposento se abriu, dele saindo um juiz e quatro testemunhas.
Sentaram-se e redigiram nosso contrato de casamento. O jovem estabeleceu a
condição de que eu não olhasse para nenhum outro homem, e só se convenceu
depois de me obrigar a fazer juras imensas. Fiquei muito feliz, e mal pude
acreditar quando a noite escureceu: fiquei a sós com ele e passamos juntos uma
noite como eu jamais vira melhor. Ao amanhecer, ele sacrificou reses, fez-me
honrarias e nos amamos. Permanecemos em tal situação por um mês completo.
Eu não tinha preocupação nenhuma. Certo dia, tencionando comprar alguns
tecidos especiais, pedi-lhe autorização para ir ao mercado acompanhada de uma
velha e de duas criadas minhas, e ele aquiesceu. Quando entrei na parte do
mercado em que se vendia seda, a velha me disse: “Cara senhora, existe aqui um
mercador, rapazinho muito jovem, que possui uma grande loja onde se encontra
de tudo. No mercado, ninguém possui tecidos melhores que os dele. Vamos até
lá e a senhora comprará o que desejar”. Fomos então até a loja, e eis que o jovem
rapazinho era gracioso e esbelto conforme disse o poeta:
“Seu cabelo ondula ao vento com sua beleza,
deixando os homens entre a sombra e a clareza;
não lhe censurem a marca que traz no rosto,
mero pingo negro em linda papoula”.
Ordenei à velha: “Peça-lhe que nos mostre bons tecidos”, e ela respondeu: “Peça
você”. Respondi: “Por acaso você não sabe que eu jurei não dirigir a palavra a
homens?”. Então a velha lhe disse: “Mostre-nos seus tecidos”, e ele assim fez.
Alguns tecidos me agradaram e eu disse à velha: “Pergunte-lhe qual o preço”, e
ela perguntou. Ele respondeu: “Não venderei estes tecidos nem por prata nem
por ouro, somente por um beijo no meio de seu rosto”. Eu disse: “Deus me livre
disso!”. A velha observou: “Cara madame, nem você dirigirá a palavra a ele,
nem ele a você. Basta curvar um pouquinho o rosto; ele vai beijar, e é só”. Assim
encorajada, estendi-lhe a face e ele me mordeu o rosto e arrancou um pedaço de
pele. Desfaleci por alguns instantes e, ao acordar, vi que o rapaz tinha fechado a
loja e se retirado. Enquanto isso, o sangue me escorria do rosto e a velha,
mortificada, demonstrava tristeza.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar.

68ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem chicoteada disse ao
comandante dos crentes:
Mortificada, demonstrando grande tristeza, a velha se lamentou dizendo:
“Minha senhora, aquilo que Deus impediu teria sido bem mais grave. Levante-
se, reanime-se e não faça escândalo. Quando entrarmos em casa, finja-se de
fraca e doente e se cubra, que eu lhe providenciarei polvilhos e emplastro, com o
que sua face estará curada em três dias”. Então retornamos para casa em passo
lento. Assim que cheguei, as dores aumentaram e caí no chão. Entrei debaixo da
coberta e tomei uma beberagem. À noite meu marido chegou e perguntou: “O
que você tem, querida?”. Respondi: “Dor de cabeça”. Ele acendeu uma vela,
aproximou-se de mim, olhou para o meu rosto e, vendo o ferimento, perguntou:
“Como foi que isso aconteceu?”. Respondi: “Hoje, quando fui ao mercado
comprar uns tecidos, fiquei espremida por um carregamento de madeira
transportado por um cameleiro; o mercado é estreito e uma lasca de madeira
rasgou o meu véu e perfurou-me o rosto, conforme você está vendo”. Meu
jovem marido replicou: “Pela manhã vou fazer o administrador[174] da cidade
enforcar todos os cameleiros daqui”. Respondi: “Meu senhor, este não é o caso
de enforcar ninguém! Por que carregar a culpa por sua morte e ser responsável
por tal pecado?”. Ele perguntou: “Então quem foi o causador desse ferimento?”.
Respondi: “Montei o asno de um burriqueiro, que me conduziu ao mercado com
velocidade excessiva; então o asno tropeçou, e eu caí de rosto; por casualidade,
havia no chão um caco de vidro, sobre o qual meu rosto caiu, machucando-se”.
Ele disse: “Por Deus que, mal o sol raiar, farei com que Jaᶜfar, o barmécida,
enforque todos os burriqueiros desta cidade, e também os faxineiros”. Eu disse:
“Por Deus, meu senhor, que isso não ocorra; não enforque ninguém por minha
causa”. Ele perguntou: “E como foi que o seu rosto se feriu?”. Respondi: “Em
razão de um desígnio e decreto de Deus, no qual eu caí”, e comecei a engrolar a
língua. Ele passou a berrar comigo, e eu me irritei e lhe dirigi palavras
grosseiras. Nesse momento, ó comandante dos crentes, ele deu um grito, e eis
que um aposento se abriu, dele saindo três escravos negros. Seguindo suas
ordens, eles me retiraram da cama, atiraram-me no meio da casa e me puseram
deitada de costas. De novo seguindo suas ordens, um dos escravos se sentou à
minha cabeça, o segundo em meus joelhos, e o terceiro desembainhou uma
espada. Meu marido lhe disse: “Dê-lhe uma espadeirada, Saᶜd, que a divida em
dois pedaços. Que cada um de vocês carregue um pedaço e atire-o no rio Tigre,
para que os peixes o devorem.
É este o castigo de quem trai o juramento dado”. Sua cólera aumentou, e ele se
pôs a declamar a seguinte poesia:
“Se o meu amado me arranja algum comborço,
minh’alma se fecha ao amor, inda que eu morra;
eu lhe digo: ‘ó alma, morra com dignidade
pois não há bem nenhum no amor que tem rival’”.
E tornou a ordenar ao escravo que me golpeasse com a espada. Ouvindo a
confirmação da ordem, o escravo se voltou para mim e perguntou: “Qual é o seu
desejo antes da morte, minha senhora? São os seus últimos instantes neste
mundo”. Respondi: “Saiam de cima de mim para que eu lhe conte uma história”,
e, erguendo a cabeça, olhei para a minha situação, para o ponto ao qual eu
chegara, tanta humilhação após força, e tal morte após tão boa vida. O pranto me
sufocou e chorei amargamente. Ele me olhou encolerizado e declamou a
seguinte poesia:
“Diga a quem de mim se aborrece e me maltrata,
e para amar se agradou de outro parceiro:
‘eu a dispenso antes que você nos dispense;
o que já ocorreu entre nós é o bastante’”.
Ao ouvi-lo, ó comandante dos crentes, chorei, olhei para ele e declamei a
seguinte poesia:
“De amor vocês me puseram em pé e se sentaram,
desprezaram minhas pálpebras ulceradas e dormiram;
ajeitei vocês entre minha insônia e meu pensamento:
o coração não os esquece nem a lágrima se esconde.
Vocês me garantiram ser da maior honestidade,
mas, assim que conquistaram o meu coração, traíram.
Apaixonei-me criança, ignorando o que fosse a paixão;
não me matem, pois ainda estou aprendendo”.
Ao ouvir a recitação dessa poesia, ó comandante dos crentes, ele ficou mais
encolerizado ainda, olhou para mim com ódio e declamou os seguintes versos:
“Abandonei o amado do meu coração não por tédio,
mas por algo que impõe distância e abandono:
ele pretendeu pôr um sócio no amor entre nós,
mas a fé do meu coração me alertou contra isso”.
Olhei para ele, chorei, supliquei e declamei a seguinte poesia:
“Você me fez suportar o peso da paixão, mas eu
sou fraca, incapaz de carregar uma camisa;
não me espanto da destruição de minha alma, mas
me espanto de meu corpo: como reconhecê-lo sem você?”.
Ao ouvir tais palavras, ele me insultou, ralhou comigo, olhou para mim e
declamou:
“Vocês nos trocaram pela companhia de outro
e mostraram desdém; assim não agiríamos:
iremos embora se nossa companhia os repugna,
e os olvidaremos, tal qual nos olvidaram;
tomaremos outro amado que os substitua
e diremos que o rompimento partiu de vocês, e não de nós”.
E em seguida gritou com o escravo e disse: “Vamos, corte-a ao meio e livre-nos
dela, pois a sua vida já não tem serventia”. Enquanto debatíamos por meio de
poesias, ó comandante dos crentes, e eu estava certa de que iria morrer e me
desalentava da vida, eis que a velha apareceu e, jogando-se aos seus pés, chorou
e disse: “Em nome da criação que lhe dei, meu rapaz, e em nome dos seios que
descobri para lhe dar de mamar e dos serviços que lhe prestei, eu peço que você
conceda a mim o pecado desta jovem. Você é jovem e estará praticando um
crime. Já se dizia: ‘Todo aquele que mata será morto’.[175] O que essa nojenta
vale neste mundo? Jogue-a de lado, tire-a do seu coração!”, e não parou de
chorar até que ele concordou e disse: “É imprescindível, porém, imprimir-lhe
marcas que nunca saiam”. Seguindo suas ordens, os escravos me estenderam no
chão, depois de terem me despido; dois deles sentaram sobre mim, e o terceiro,
um rapazote, pegou uma vara de marmelo e se pôs a golpear os meus flancos, até
que desfaleci e perdi as esperanças de ficar viva. Depois, ordenou aos escravos
que, ao anoitecer, me carregassem para minha casa, levando junto a velha como
guia. Em obediência às suas ordens, eles me carregaram até minha casa e lá me
deixaram estirada, abandonando-me e indo embora, enquanto eu continuava
desmaiada. Pela manhã, passei pomadas e unguentos no corpo, e verifiquei que
ele ficara cheio de protuberâncias decorrentes das pancadas, como se tivesse sido
chicoteado. Permaneci nesse estado de debilidade durante quatro meses. Quando
enfim retomei a consciência e melhorei, dirigi-me ao lugar onde eu havia
morado com meu segundo marido, mas só encontrei ruínas: do início ao fim, a
casa fora totalmente destruída, transformando-se num monturo de lixo; não sei o
que lhe sucedeu. Fui então até esta minha irmã por parte de pai, e vi que ela
tinha essas duas cadelas pretas. Saudei-a e lhe contei as notícias a meu respeito,
toda a minha história. Ela disse: “Ai, maninha, e quem é que escapa das
vicissitudes do mundo e do destino?”, e declamou esta poesia:
“O destino é assim mesmo; conforma-te:
perdem-se bens e pessoas amadas”.
Ato contínuo, ó comandante dos crentes, ela me contou sua própria história com
as duas irmãs, o que ambas lhe haviam feito, e o que delas havia sido feito.
Resolvemos nunca mais fazer qualquer menção aos homens. Juntou-se a nós
essa nossa outra irmã, a jovem compradeira, que diariamente vai ao mercado
comprar as coisas de que necessitamos para o dia e para a noite. Mantivemo-nos
em tal situação durante um bom tempo, até que ontem ao cair da tarde nossa
irmã foi, como de hábito, fazer compras, e voltou com o carregador, a fim de que
nos divertíssemos às suas custas durante a noite. Não havia passado nem um
quarto da noite quando se juntaram a nós estes três dervixes carendéis e
começamos a conversar. Não havia passado nem um terço da noite quando se
juntaram a nós três recatados mercadores de Mossul, que nos contaram sua
história, e com quem nos pusemos também a conversar. Havíamos estabelecido
uma condição para a entrada de todos, mas eles a desrespeitaram, e lhes
aplicamos o castigo por tal desrespeito. Assim, interrogamos a cada um sobre o
que lhe sucedera, e todos contaram suas histórias. Nós os perdoamos e eles
foram embora. E hoje nos vimos subitamente em sua presença. Tais são nossas
histórias e as notícias a nosso respeito.
Chegadas as coisas a esse ponto, ó rei venturoso, o califa ficou assombrado
com suas histórias e as coisas que lhes haviam sucedido.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável, espantosa e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada comparado ao que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o
rei me poupar”.

69ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Conta-se, ó rei excelso, que o califa, assombrado com tudo quanto ouvira,
voltou-se para a primeira jovem e lhe disse: “Fale mais a respeito da cobra-gênio
que enfeitiçou suas irmãs e as transformou em cadelas. Você sabe onde ela
mora? Para que lado? Não teria ela fixado um prazo para vir ter com você?”. Ela
respondeu: “Ó comandante dos crentes, ela me deu um maço de cabelos e disse:
‘Quando você quiser me chamar, queime dois fios e rapidamente eu me
apresentarei diante de você, ainda que eu esteja além das montanhas do fim do
mundo’”. O califa perguntou: “Onde estão esses cabelos?”, e a jovem os
mostrou. Ele pegou o maço todo e o queimou. Imediatamente o palácio
balançou, e a cobra surgiu dizendo: “Que a paz esteja convosco, ó comandante
dos crentes! Saiba que esta mulher me prestou um grande favor que eu não posso
compensar: ela me salvou da morte e matou meu inimigo. Como eu já vira o que
as irmãs lhe haviam feito, a única recompensa que eu poderia dar-lhe seria
vingar-me delas; transformei as duas em cadelas. Cogitei matá-las de uma só
vez, mas temi que isso não a agradasse. Agora, ó comandante dos crentes, se o
senhor quiser, poderei libertá-las. Com muito gosto e honra eu ouço e obedeço, ó
comandante dos crentes!”. Ele respondeu: “Ó espírito, liberte essas duas jovens e
encerremos assim a sua angústia. Depois que você tiver feito isso, restará ainda
essa jovem golpeada. Quiçá Deus altíssimo facilite as coisas e ajude a descobrir
quem a injustiçou e usurpou os seus direitos, pois para mim é evidente que ela
falou a verdade”. A cobra-gênio disse: “Ó comandante dos crentes, agora mesmo
eu as libertarei e lhe indicarei quem surrou e fez tais coisas com essa jovem; é
uma das pessoas mais próximas do senhor”. Em seguida a cobra-gênio pegou
uma taça de água, ó rei, e fez alguns esconjuros, pronunciando palavras
desconhecidas; aspergiu as duas irmãs com a água e elas se livraram do feitiço,
retomando a forma que possuíam. Depois ela disse: “Ó comandante dos crentes,
quem surrou essa jovem foi o seu filho Alamīn, irmão de Alma’mūn.[176]
Tendo ouvido a respeito de sua graça e beleza, armou um estratagema para casar-
se com ela legitimamente. Assim, ele não tem culpa pelo açoite, que resultou de
uma condição preestabelecida: ela pronunciara grandes juras de que não faria
aquelas coisas, e traiu as juras. Ele pretendia matá-la, mas lembrou do crime
terrível que é o assassinato, e teve medo de Deus altíssimo. Ordenou então que
ela fosse açoitada daquela maneira e devolveu-a ao seu lugar. Tal é a história da
segunda jovem, e Deus sabe mais”. Ao ouvir as palavras da cobra-gênio, e sendo
já conhecedor dos açoites que a jovem sofrera, o califa ficou estupefato e disse:
“Louvado seja Deus supremo, que me atendeu os desejos: primeiro, libertando
aquelas duas do feitiço e do sofrimento, e, segundo, trazendo ao meu
conhecimento a história desta jovem. Por Deus que tomarei providências tais que
se perpetuarão após minha morte”. Ato contínuo, ó rei, o califa mandou chamar
seu filho Alamīn, e o interrogou sobre a veracidade do assunto. Isso feito,
convocou juiz e testemunhas, os três dervixes, a primeira jovem, as duas moças
que estavam enfeitiçadas, a jovem açoitada e a compradeira. Assim, com todas
essas pessoas em sua presença, casou as duas jovens que estavam enfeitiçadas e
a primeira jovem, irmã delas, com os três dervixes filhos de reis, nomeando-os
seus secretários e dando-lhes camelos, cavalos e tudo quanto necessitassem;
instalou-os num palácio em Bagdá e eles se tornaram membros de seu círculo
íntimo; casou a jovem açoitada com o seu filho Alamīn, renovando o contrato
nupcial que ambos haviam celebrado, concedendo à jovem muito dinheiro e
ordenando que a casa fosse reconstruída de modo melhor que o anterior; e tomou
a terceira jovem, a compradeira, como esposa para si mesmo. Todos ficaram
maravilhados com a generosidade do califa, com suas deliberações e tolerância;
compreenderam o aspecto oculto dos casos em que estiveram envolvidos,[177] e
registraram suas histórias por escrito.
AS TRÊS MAÇÃS
Depois de algumas noites, o califa disse a Jaᶜfar: “Quero descer à cidade para
ouvir as novidades. Perguntaremos ao povo sobre as ações dos responsáveis pelo
governo. Demitiremos aqueles contra os quais houver reclamações e
promoveremos aqueles que forem louvados”. Jaᶜfar respondeu “sim”. Quando
anoiteceu, Jaᶜfar, o criado Masrūr e o califa puseram-se a caminhar pelas ruas e
mercados; passaram por uma ruela em cuja extremidade havia um velho entrado
em anos carregando uma bengala, e na cabeça uma rede e um cesto.[178] O
califa disse a Jaᶜfar: “Eis um pobre homem necessitado”, e perguntou ao velho:
“De que você vive, ó ancião?”. Respondeu o velho: “Sou pescador e tenho
família, meu senhor. Hoje, saí de casa por volta do meio-dia, mas até o momento
não fui aquinhoado com nenhum peixe nem tenho o suficiente para o jantar dos
meus familiares. Estou desanimado, desejando a morte e detestando a vida”. O
califa lhe perguntou: “O que você acha, pescador, de retornar conosco ao rio
Tigre, parar na sua margem e lançar sua rede com minha garantia? Eu comprarei
por cem dinares qualquer coisa que a rede pegar”. Muito contente, o ancião
respondeu: “Sim, meu amo”, e se dirigiram todos para o rio Tigre. O pescador
lançou a rede, juntou os fios, puxou-a, e ela trouxe um baú pesado e trancado. O
pescador recebeu os cem dinares e Masrūr carregou o baú para o palácio, onde
eles o abriram, encontrando em seu interior um cesto de palma costurado com
fios de lã vermelha; abriram o cesto e encontraram em seu interior um pedaço de
tapete enrolado; desenrolaram o tapete e nele encontraram um manto feminino
dobrado em quatro; desdobraram o manto e nele encontraram uma jovem na flor
da idade, que parecia lâmina de prata, assassinada e com o corpo retalhado.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for poupada”.

70ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ver e se certificar de que a jovem
fora retalhada em dezenove pedaços, o califa se lamentou, ficou triste e suas
lágrimas rolaram. Então, furioso, encarou Jaᶜfar e disse: “Seu vizir cachorro!
Quer dizer então que em minha cidade as pessoas são assassinadas e atiradas ao
rio, para depois constarem do meu débito no Dia do Juízo Final? Juro por Deus
que tomarei a vingança desta jovem contra seu assassino, e o matarei do modo
mais cruel. Mas se você não investigar e encontrar o assassino, eu irei enforcá-lo
e enforcar mais quarenta homens de sua família”. E, violentamente encolerizado,
o califa deu berros assustadores contra Jaᶜfar, que se retirou de sua presença
dizendo: “Dê-me um prazo de três dias, ó comandante dos crentes”. O califa
respondeu: “Concedido”, e Jaᶜfar desceu à cidade, triste e irritado, sem saber o
que fazer e pensando: “Como é que eu vou descobrir o assassino daquela jovem
para entregá-lo? Se eu forçar algum preso a confessar, tal pessoa constará do
meu débito no Dia do Juízo Final. Agora fiquei desanimado! Não há poderio
nem força senão em Deus supremo e poderoso”. Ele deixou-se ficar em casa no
primeiro, no segundo e também no terceiro dia, quando, à tarde, um emissário do
califa veio chamá-lo. Jaᶜfar então foi até o califa, que lhe perguntou: “Onde está
o assassino da jovem?”. Jaᶜfar respondeu: “E por acaso, ó comandante dos
crentes, eu sou algum perito em assassinatos?”. O califa, encolerizado, gritou
com ele, e ordenou que fosse enforcado diante do palácio, e também que um
arauto divulgasse por todos os cantos de Bagdá: “Quem quiser assistir ao
enforcamento do vizir Jaᶜfar, e de mais quarenta barmécidas de sua família, basta
que se dirija para diante do palácio, de onde poderá assistir a tudo”. O
administrador-geral[179] e alguns secretários chegaram trazendo Jaᶜfar e os
demais barmécidas; fizeram-nos parar diante do cadafalso e esperaram que o
lenço fosse estendido da janela do palácio – pois era este o sinal que autorizava o
enforcamento –, enquanto todos choravam por eles. A situação estava nesse pé
quando, súbito, um rapaz – de roupas limpas, rosto resplandecente como a lua,
olhos negros, testa florescente, faces avermelhadas, barba escura, no rosto uma
pinta que parecia esfera de âmbar – veio irrompendo em meio à multidão até se
postar na frente de Jaᶜfar, cuja mão beijou, e disse: “Que os bons serviços que o
senhor presta não sejam castigados com esse horrível crime. Venha, ó senhor dos
vizires, abrigo dos necessitados e maioral dos comandantes, e me enforque pelo
assassinato daquela mulher; sofra eu a vingança, pois sou o assassino!”. Ao
ouvir as palavras e o discurso pronunciado pelo jovem, Jaᶜfar ficou contente por
se ver livre, e triste pelo moço. Ainda conversava com ele quando, súbito, um
velho bem entrado em anos veio irrompendo em meio à multidão até se postar
diante de Jaᶜfar e dizer: “Ó vizir, ó grave senhor, não acredite no que diz o
jovem, pois a jovem não foi assassinada senão por mim! Castigue-me pelo
crime, caso contrário eu exigirei que você preste contas diante de Deus
supremo!”. O rapaz disse: “Ó vizir, quem a matou fui eu”, e o velho replicou:
“Meu filho, eu já envelheci e estou farto do mundo; você é ainda muito jovem, e
quero salvar sua vida sacrificando a minha: o assassino da moça não é outro
senão eu próprio! Enforque-me logo, pois não devo viver depois disso”. Ao ver
essa discussão, Jaᶜfar ficou espantado e conduziu o velho e o rapaz até o califa.
Depois de beijar o solo sete vezes, o vizir disse: “Ó comandante dos crentes,
encontramos quem matou a jovem: este jovem e este velho, cada qual alegando
ser o assassino. Eis aqui os dois diante do senhor”.
Disse o narrador : o califa encarou os dois e perguntou: “Qual de vocês matou
a jovem e a atirou ao rio?”. O jovem respondeu: “Fui eu que a matei”, e o velho
replicou: “O assassino não é outro senão eu próprio”; o jovem insistiu: “Fui eu, e
ninguém mais, quem a matou”. O califa ordenou a Jaᶜfar: “Desça e enforque os
dois”. Jaᶜfar observou: “Mas comandante dos crentes, se somente um foi o
assassino, o enforcamento do outro consistirá numa injustiça!”. O rapaz disse:
“Juro, por aquele que ergueu os céus, que eu a matei, coloquei-a num cesto de
palma, cobri-a com um manto feminino, enrolei-a num pedaço de tapete,
costurei o cesto com fios de lã vermelha e atirei-a ao rio há quatro dias. Pelo
amor de Deus, pelo Dia do Juízo Final, não me deixe viver depois disso;
castigue-me por sua morte”. Assombrado com aquela história, o califa perguntou
ao rapaz: “Qual foi seu motivo para assassiná-la injustamente? E qual o motivo
de você ter vindo entregar-se espontaneamente?”. O rapaz respondeu: “Ó
comandante dos crentes, eu e ela temos uma história que, se for gravada no
interior da retina, constituirá uma lição para quem reflete”. O califa ordenou:
“Conte-nos os eventos de sua história com ela”, e o rapaz disse: “Ouço e
obedeço a Deus e ao comandante dos crentes”. E então o rapaz...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar.

71ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem disse:
Saiba, ó comandante dos crentes, que essa jovem assassinada era minha
esposa, mãe de meus filhos e minha prima paterna. Este velho é o pai dela, meu
tio paterno, que a casou virgem comigo. Vivi com ela durante onze anos. Era
uma esposa abençoada, que me deu três filhos varões. Seu procedimento comigo
era excelente: servia-me da melhor maneira. Por meu turno, eu lhe tinha um
grande amor. Até que, num dia destes,[180] ela ficou muito debilitada, e sua
enfermidade progrediu rapidamente. Eu cuidei dela com desvelo, e, ao final de
um mês completo, ela começou a dar sinais de estar recuperando a saúde. Um
dia antes de ir ao banho público, ela me disse: “Eu gostaria que você me
satisfizesse um desejo, primo”. Respondi: “Ouço e obedeço, nem que sejam mil
desejos!”. Ela disse: “Quero uma maçã para cheirar e dar uma mordida.
Satisfeito esse desejo, eu nem me importaria de morrer depois”. Eu disse: “Que
você esteja sempre bem!”, e fui procurar por esta sua cidade, mas não encontrei
maçãs; se tivesse encontrado alguma, eu pagaria por ela uma moeda de ouro.
Isso me deixou aborrecido. Sem haver conseguido o que ela desejava, entrei em
casa e lhe disse: “Ai, prima, juro por Deus que não achei maçã nenhuma”.
Desapontada, sua debilidade piorou muito naquela noite. Pela manhã, andei
pelos pomares, chácara por chácara, mas não achei nada, até que enfim um velho
horticultor me fez a seguinte sugestão: “Meu filho, não se encontrarão maçãs
senão no pomar que o comandante dos crentes possui na cidade de Basra. Elas
são guardadas por seu capataz”. Fui então para casa e, levado por meu amor e
solicitude, preparei-me para a viagem. Viajei, comandante dos crentes, por meio
mês, zelosamente, noite e dia, ida e volta, e trouxe três maçãs que comprei do
capataz por três dinares de ouro. Trouxe-as e entreguei-as a ela, que não lhes deu
atenção e as jogou num canto. Sua debilidade se intensificou, o que me deixou
bastante angustiado: essa crise de fraqueza se abateu sobre ela por mais dez dias.
E, certa manhã, estando eu em minha loja a comerciar tecidos, eis que me surge
um escravo de figura repulsiva, comprido como um caniço de bambu e largo
como uma bancada; entrou no mercado carregando uma das maçãs pelas quais
eu viajara durante quinze dias. Chamei-o e perguntei: “Meu bom escravo, quem
lhe deu essa maçã?”. Ele respondeu: “Foi a minha namorada. Fui visitá-la hoje e
a encontrei doente e com três maçãs. Ela me contou que o corno do marido dela
viajou meio mês para comprá-las. Comemos, bebemos, peguei uma das maçãs
para mim e agora eis-me aqui”. Quando ouvi essas palavras, ó comandante dos
crentes, o mundo se escureceu diante dos meus olhos. Tranquei a loja, corri para
casa, subi as escadas – meu juízo me abandonara em decorrência do
ressentimento e da fúria –, entrei em casa e olhei para as maçãs, constatando que
havia apenas duas. Perguntei à minha esposa: “Onde está a terceira maçã,
prima?”. Ela ergueu a cabeça e respondeu: “Por Deus que eu não sei, primo”.
Convencido de que as palavras do escravo eram verdade, apanhei uma faca
afiada, fui por trás de minha mulher e, sem lhe dirigir a palavra, montei-lhe por
cima, debrucei-me sobre ela com a faca e a degolei, arrancando-lhe a cabeça.
Rapidamente enfiei-a no cesto, cobri-a com o manto, enrolei-a num pedaço de
tapete, costurei o cesto e, depois de ter colocado tudo num baú, carreguei-o na
cabeça e lancei-o no rio Tigre. Portanto, ó príncipe dos crentes, pelo amor de
Deus, castigue-me por esse crime: enforque-me o mais rápido possível, caso
contrário eu o responsabilizarei diante de Deus supremo. Depois de a ter jogado
no Tigre, retornei para casa e encontrei meu filho mais velho se lamuriando.
Perguntei: “O que foi?”. Ele respondeu: “Papai, hoje cedo eu roubei uma das três
maçãs que o senhor trouxe para a mamãe. Eu peguei a maçã e desci ao mercado.
Estava com meus irmãos quando um escravo negro e alto a tomou de mim. Corri
atrás dele dizendo: ‘Por Deus, meu bom escravo, meu pai realizou uma viagem
de meio mês para Basra para obter essa maçã. Ele trouxe três maçãs para minha
mãe, que está debilitada. Não deixe que ela descubra o que eu fiz’. Como ele não
me deu atenção, repeti essas palavras duas e três vezes, mas ele me bateu e foi
embora. Com medo, eu e meus irmãos nos escondemos nos arredores da cidade.
Anoiteceu e eu continuava com medo da mamãe. Por Deus, papai, não lhe conte
nada, senão ela vai ficar mais fraca ainda”. Ao ouvir as palavras do meu filho, ó
comandante dos crentes, seus temores e seu choro, descobri que matara a jovem
injustamente. Ela morrera injustamente. O malsinado escravo havia mentido e
caluniado: ele ouvira de meu filho a história das maçãs. Ao escutar tudo aquilo,
chorei junto com meus filhos até quase perder a respiração. Este ancião, meu tio
paterno e pai dela, chegou e eu lhe disse: “Ocorreu isso e aquilo”. Ele entrou,
chorou, e choramos juntos até a meia-noite. Ficamos de luto por três dias, em
tristeza por sua morte injusta, tudo isso por causa do tal escravo. Essa é minha
história com a mulher assassinada. Por seu pai e seus avós, comandante dos
crentes, mate-me, pois já não tenho vida depois dela. Castigue-me pela agressão
que perpetrei contra a minha esposa.
Ao ouvir aquilo, o califa...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar.

72ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ouvir o relato do rapaz, o califa
ficou extremamente espantado e disse: “Por Deus que não enforcarei senão
aquele malsinado escravo; tenho de tomar providências que satisfaçam minha
sede de justiça e estejam à altura de um governante excelso”, e, voltando-se para
Jaᶜfar, prosseguiu: “Saia e encontre esse escravo, caso contrário cortarei o seu
pescoço”. Jaᶜfar retirou-se chorando e dizendo: “Chegou a hora da minha morte,
pois ‘não é sempre, com certeza, que a jarra escapa ilesa’:[181] agora não existe
artimanha possível. Mas o Criador, onipotente, derrotador, que me salvou da
primeira vez, irá me salvar também desta feita. Por Deus que não sairei de casa
durante três dias, e que ‘Deus dê livre curso ao que já estava decretado’”.[182]
Assim, ele ficou em casa no primeiro e no segundo dia. Na metade do terceiro, já
desesperançado de manter a vida, mandou convocar testemunhas e juízes,
escreveu suas últimas disposições, chamou as filhas e começou, chorando, a se
despedir delas, quando então chegou um emissário do califa e lhe disse: “O
califa está terrivelmente encolerizado e jurou que antes de acabar este dia você
deverá ser crucificado”. Jaᶜfar chorou, e com ele seus escravos e todos quantos
estavam em sua casa. Quando acabou de se despedir de suas filhas e demais
parentes, a filha menor, cuja fisionomia era esplendorosa e a quem ele amava
mais do que às outras, deu um passo adiante; ele a estreitou ao peito, beijou-a e
chorou a separação de seus parentes e filhos. Ao estreitá-la ao peito, era tanto o
desespero da filha, e tão intenso o amor do pai, que o abraço foi muito forte e ele
sentiu no bolso da menina algo arredondado. Perguntou então: “Ah, minha
garota, o que é isso em seu bolso, minha garota?”, e a pequena respondeu: “Uma
maçã na qual está escrito o nome de nosso amo, o califa. Foi trazida por nosso
escravo Rayḥān. Ele só me deu a maçã depois que eu lhe entreguei dois dinares
de ouro”. Ao ouvir a menção à maçã e ao escravo, Jaᶜfar soltou um grito,
colocou a mão no bolso da filha, retirou a fruta e, reconhecendo-a como
pertencente ao pomar do califa, exclamou: “Oh, a libertação está próxima!”,
ordenou que o escravo fosse conduzido à sua presença e lhe disse: “Ai de você,
Rayḥān! Onde você conseguiu esta maçã?”. O escravo respondeu: “Por Deus,
meu senhor, ‘se a mentira salva, a veracidade salva melhor ainda’.[183] Eu não
roubei esta maçã do seu palácio, nem do palácio ou dos pomares do comandante
dos crentes. O fato é que, há quatro dias, eu estava caminhando por uma das
ruelas da cidade, quando vi alguns meninos brincando, e das mãos de um deles
caiu esta maçã. Dei-lhe um tapa e roubei a maçã, e o menino chorou e disse:
‘Esta maçã é da minha mãe, rapaz! Ela está doente e pediu as maçãs ao meu pai,
que viajou por quinze dias para conseguir três maçãs. Agora me devolva a que
você roubou’. Mas eu me recusei a devolver a maçã; trouxe-a para cá e a vendi
para a minha pequena patroa por dois dinares. Esta é a história da maçã”. Ao
ouvir essa exposição, Jaᶜfar, assombrado com o fato de o motivo da discórdia
estar entre seus escravos, ficou muito contente e, pegando o escravo pela mão,
conduziu-o até o comandante dos crentes, a quem expôs a questão do princípio
ao fim. Também muito assombrado, o califa gargalhou até virar do avesso e
disse: “Reconheça então que o motivo da discórdia é o seu escravo”. O vizir
respondeu: “Reconheço, ó comandante dos crentes”. O califa estava de tal modo
impressionado com essas coincidências que Jaᶜfar lhe disse: “Não fique tão
espantado com essa história, que é menos espantosa do que a dos dois vizires
Nūruddīn ᶜAlī, do Egito, e Badruddīn Ḥasan, de Basra”. O califa perguntou: “Ó
vizir, quer dizer então que a história desses dois vizires é mais admirável do que
esta?”. O vizir respondeu: “Mais admirável e também mais espantosa.
Entretanto, não a contarei ao senhor senão mediante uma condição”. Com o
coração cheio de vontade de ouvir a narrativa, o califa disse: “Vamos, conte-me,
ó vizir. Já sei, se ela for efetivamente mais espantosa do que essas coincidências
que ora nos sucederam, eu concederei anistia ao seu escravo. Mas, se ela não for
mais espantosa, eu matarei o escravo. Vamos, conte o que você sabe e aquilo a
que chegou o seu entendimento”.[184] Jaᶜfar então disse:
OS VIZIRES NūRUDDīN ᶜALī, DO CAIRO, E SEU FILHO BADRUDDīN
ḤASAN, DE BASRA[185]
Eu tive notícia, ó príncipe dos crentes, de que houve em tempos antigos, no
distrito do Egito, um sultão justo, honesto, generoso e benfeitor, que gostava dos
pobres e recebia os sábios, corajoso e acatado. Ele tinha um vizir inteligente e
hábil, dotado de saber, influência, cautela e diligência. Era um velho entrado em
anos e tinha dois filhos que pareciam duas luas, ou duas graciosas gazelas,
perfeitos em beleza, formosura, esplendor, tamanho e proporção. O mais velho
se chamava Šamsuddīn Muḥammad, e o mais novo, Nūruddīn ᶜAlī,[186] que era
mais belo do que o irmão mais velho: aliás, Deus não criara em seu tempo
ninguém mais belo que ele. Sucedeu então que, por vontade divina, o pai deles, o
vizir, morreu. O sultão ficou triste e, voltando-se para os dois filhos do falecido,
aproximou-os de si, deu-lhes trajes honoríficos e disse: “Vocês agora devem
ocupar o posto de seu pai: ambos dividirão o vizirato do Egito”. Eles beijaram o
chão diante do sultão e, retirando-se, realizaram o funeral do pai e guardaram
luto por um mês, assumindo a seguir o vizirato; alternavam-se semanalmente no
exercício do cargo e também se revezavam no acompanhamento do sultão em
suas viagens. Os dois irmãos viviam numa única moradia, e tinham uma única
palavra para tudo. Sucedeu-lhes certa noite – quando o mais velho esperava o
amanhecer para acompanhar o sultão numa de suas viagens – sentar para
conversar. O mais velho disse: “Meu irmão, quero que nos casemos, eu e você,
com duas irmãs, que escrevamos nosso contrato de casamento no mesmo dia e
adentremos nossas casas na mesma noite”. Nūruddīn ᶜAlī, o mais novo,
respondeu: “Faça como quiser, meu irmão. Seus pareceres são todos venturosos.
Vamos esperar até que você regresse da viagem, quando então ficaremos noivos
de duas moças e Deus nos carreará o bem”. O mais velho indagou Nūruddīn: “O
que me diz, mano, se você e eu escrevermos nossos contratos de casamento no
mesmo dia e possuirmos nossas mulheres no mesmo dia? Elas engravidarão, a
minha mulher e a sua, na mesma noite em que nós as houvermos possuído; tendo
engravidado na mesma noite, após os meses e as noites de praxe, elas darão à luz
no mesmo dia.
O que você me diz então, mano, se a sua mulher der à luz um menino, e a minha,
uma menina – você não casaria o seu filho com a minha filha?”. Nūruddīn
respondeu: “Claro, mano Šamsuddīn”, e prosseguiu: “Quanto você pediria como
dote ao meu filho por sua filha?”. O mais velho respondeu: “No mínimo, eu
pediria que seu filho desse por minha filha um dote de três mil dinares, três
pomares e três vilas, isso sem contar o dote previsto no contrato de casamento”.
Nūruddīn ᶜAlī replicou: “Ai, mano Šamsuddīn, quanto exagero no dote! Isso é
muito! Porventura não somos irmãos e vizires? Acaso cada um de nós não
conhece suas próprias obrigações? Você deveria, isso sim, oferecer a sua filha ao
meu filho sem exigir nenhum dote, pois o macho é superior à fêmea. Entretanto,
você está agindo comigo tal como certo homem a quem um necessitado pediu
socorro; ele lhe disse: ‘Sim, com o auxílio de Deus, satisfaremos a sua
necessidade, porém amanhã’, e então o necessitado declamou a seguinte poesia:
‘Quando se adia a satisfação de necessidades para amanhã,
isso é na verdade uma expulsão para quem sabe ver’”.
Šamsuddīn disse: “Chega de tagarelice. Ai de você! Então o seu filho é superior
à minha filha? E ele por acaso se compara a ela? Por Deus que você não passa de
um desajuizado sem capacidade; pensa que nós dividimos o vizirato, mas eu só o
coloquei comigo para que você me ajudasse e não se sentisse diminuído. Agora,
juro por Deus que não darei minha filha em casamento ao seu filho, nem que
você dê a ela o seu peso em ouro. Por acaso eu aceitaria o seu filho como genro?
Não, juro por Deus que eu não a casarei com ele de jeito nenhum, nem que eu
fosse obrigado a beber na taça da apostasia”. Ao ouvir as palavras do irmão,
Nūruddīn ficou muito encolerizado e perguntou: “Então você não casará a sua
filha com o meu filho, irmão?”. Šamsuddīn respondeu: “Não, não aceitaria isso,
nem sequer permitiria que ele aparasse as unhas da minha filha. Se não estivesse
prestes a viajar, eu lhe aplicaria uma lição agora mesmo. No entanto, assim que
voltar de viagem, vou mostrar-lhe do que o meu brio é capaz”. A cólera e a
irritação de Nūruddīn aumentaram tanto que ele parou de prestar atenção no que
ocorria ao seu redor, mas manteve tais sentimentos em segredo. Seu irmão se
calou e cada um foi para um lado, o mais velho cheio de ódio contra o mais
novo, e este encolerizado contra aquele. Ao amanhecer, o sultão foi para as
pirâmides levando em sua companhia o vizir Šamsuddīn, pois essa era a sua vez.
Logo que este saiu em viagem, Nūruddīn levantou-se, ainda cheio de rancor,
abriu seu aposento, pegou um pequeno alforje e o encheu com ouro e mais nada.
Recordando a maneira como seu irmão o destratara e ridicularizara, recitou a
seguinte poesia:
“Viaja, e encontrarás substitutos para quem abandonas,
e trabalha, pois nisso está a delícia da vida;
não vejo honra na permanência, e tampouco infortúnio
no exílio; deixa, pois, a terra natal e emigra.
Já percebi que, parada, a água se estagna:
só quando corre é boa, e não o contrário;
e o sol, se ficasse no mesmo lugar entre os astros,
todos dele se aborreceriam, estrangeiros e árabes;
a lua cheia, se não mudasse, não olhariam
para ela a todo instante olhos perquiridores;
e o leão, não saísse da floresta, não caçaria;
e a flecha, não saísse do arco, nada atingiria;
e o ouro, largado pelas minas, parece terra;
e o aloés, em sua terra, é madeira como outra;
mas, quando extraído, o ouro se valoriza,
e quando exportado, o aloés se compra com ouro”.
Terminando a poesia, ele determinou a um de seus criados que lhe aparelhasse
uma mula árabe com sela luxuosa e xairel – tratava-se de uma de suas montarias
particulares, mula salpicada de cinza, com orelhas que pareciam lápis apontados
e patas que pareciam colunas erguidas. Bem, ele determinou ao criado que
ajaezasse o animal bem ajaezado e colocasse sobre ele um tapete de seda,
montando um assento confortável, e que amarrasse o alforje sobre seu dorso,
debaixo do assento. Depois disse aos escravos e criados: “Estou indo espairecer
fora da cidade; tomarei o rumo de Qalyūbiyya[187] e de outras cidades. Ficarei
fora uma ou duas noites, pois estou terrivelmente cheio de preocupações. Que
nenhum de vocês me siga”. Montou a mula e, levando consigo umas poucas
provisões, saiu do Cairo e se entranhou pelo deserto. Ainda não era passada nem
metade do dia e já ele entrava em uma cidade chamada Bilbīs, onde
descavalgou, descansou, comeu alguma coisa e comprou mantimentos para si e
para a mula. Saindo de Bilbīs, tornou a entranhar-se pelo deserto, fazendo a mula
avançar. Ainda não anoitecera e já ele chegava a uma localidade denominada
Aṣṣaᶜīdiyya. Foi dormir no local onde ficava o posto do correio, não sem antes
ter feito a mula andar sete ou oito voltas e lhe dar ração. Comeu um pouco,
colocou o alforje debaixo da cabeça e estendeu o tapete e o assento debaixo de
si. Dominado ainda pelo rancor, disse de si para si: “Por Deus que sairei sem
rumo pelo mundo, nem que eu vá parar em Bagdá”, e dormiu. Ao acordar, pôs-se
em marcha. Sucedeu-lhe então, ó comandante dos crentes, de ter entabulado
amizade com um funcionário do correio, ao qual ele acompanhou; hospedavam-
se e viajavam juntos; Nūruddīn cavalgava sua mula lado a lado com ele, e assim
Deus escreveu que ele se aproximasse em segurança dos portões de Basra, em
cujas cercanias, por coincidência, encontrava-se naquele momento o vizir local.
Cruzando com aquele rapaz a caminho da cidade, notou-lhe a elegância do porte
e os bons modos; aproximou-se dele, cumprimentou e indagou-o sobre sua
condição. O rapaz lhe disse a respeito de si o seguinte: “Briguei com os meus
familiares. Jurei não retornar e visitar todos os países, mesmo que eu morra por
aí e fique somente ao alcance das aves, sem ter atingido objetivo nenhum”. Ao
ouvir essas palavras, o vizir de Basra disse-lhe: “Não faça isso, meu filho. O país
está em ruínas,[188] e eu temo por sua vida”. Em seguida, levou Nūruddīn ᶜAlī
para sua casa, onde o dignificou e tratou muito bem. Seu apreço pelo rapaz era
tão grande que lhe disse: “Saiba, meu filho, que já estou bem velho e não fui
abençoado com um filho varão. Tenho somente uma filha, que equivale a você
em beleza. Já rejeitei muitos pretendentes, gente rica e importante. Agora, como
o afeto por você se apoderou do meu coração, o que acha de aceitar minha filha
como esposa? Ela será sua mulher, e você, seu marido. Se você aceitar, irei até o
sultão e lhe direi que você é como meu filho. Farei todas as intermediações para
torná-lo vizir em meu lugar, a fim de que eu possa ficar mais em minha casa,
pois, por Deus, meu filho, já estou farto, cansado e muito velho, e também
porque adotei você como filho. Meu dinheiro e meu vizirato ficarão à sua
disposição neste distrito de Basra”. Ao ouvir as palavras do vizir, Nūruddīn
abaixou a cabeça por alguns instantes e respondeu afirmativamente, audição
plena e obediência. O vizir ficou muito contente e ordenou que os criados
preparassem refeição e sobremesa, e que enfeitassem o salão-mor, que era
destinado a festas de casamento. Eles imediatamente foram cumprir suas ordens.
O vizir reuniu seus amigos e mandou chamar os maiorais da corte e os notáveis
de Basra, e todos compareceram. Ele anunciou: “Saibam que eu tenho um irmão
que é vizir no Egito; ele foi agraciado com um filho e eu, como já é de seu
conhecimento, fui agraciado com uma filha. Tendo nossos filhos chegado
simultaneamente à idade de casar, meu irmão enviou o seu filho para mim; ei-lo
aqui. Agora eu pretendo escrever o contrato matrimonial entre os dois, e que a
união se consume aqui em minha casa. Depois eu o proverei do necessário e o
porei em viagem junto com a esposa”. Disseram: “É o melhor parecer. Seus
pareceres são venturosos, e suas ordens, louváveis. Que Deus faça o sucesso
acompanhar sempre a sua ventura, e torne o seu caminho o mais imaculado”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar.

73ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, que Jaᶜfar disse ao califa:
“O mais imaculado caminho”, disseram os notáveis de Basra. Após alguns
momentos, compareceram as testemunhas, e os criados estenderam as mesas e
serviram o banquete. Todo mundo comeu até se fartar, e a seguir se ofereceu a
sobremesa, da qual todos se serviram o quanto quiseram. Então as mesas foram
recolhidas. As testemunhas deram um passo adiante e firmaram o contrato de
casamento. Acendeu-se incenso e todos se retiraram para suas casas. O vizir
ordenou que seus criados conduzissem Nūruddīn ᶜAlī ao banho; enviou-lhe um
traje completo que serviria para os reis, bem como toalhas, incenso e tudo o mais
quanto fosse necessário. Após uma hora Nūruddīn retornou do banho, e surgiu
como se fosse o plenilúnio quando aparece, ou a alvorada quando nasce, tal
como disse o poeta:
“A fragrância é almíscar; as faces, rosa,
os dentes, pérola; a saliva, vinho;
a esbelteza, ramo; os quadris, duna;
os cabelos, noite; o rosto, lua cheia”.
Ele se aproximou do sogro e lhe beijou a mão. O sogro se pôs de pé e o tratou
com grande deferência, acomodando-o ao seu lado e dizendo-lhe: “Meu filho, eu
quero que você me conte o motivo de ter abandonado seus familiares, e como
eles lhe permitiram que fosse embora. Nada esconda de mim; trilhe o caminho
da veracidade, pois já se dizia:
‘Observa a veracidade, ainda que
ela te queime num fogo de ameaças;
e satisfaz ao Senhor, pois o pior dos homens
é quem encoleriza o Senhor e agrada seus servos’.
Eu quero apresentá-lo ao sultão e nomear você para o meu cargo”. Ao ouvir as
palavras do sogro, Nūruddīn respondeu: “Saiba, ó grande vizir, ó grave senhor,
que eu não pertenço ao vulgo nem abandonei minha casa com a concordância de
meus familiares. Quero agora lhe contar e dar ciência de que meu pai era vizir” –
e contou sobre a morte do pai, bem como a discussão ocorrida entre ele e seu
irmão, e repetir tudo agora seria inútil –, “e então o senhor me tratou com
generosidade e fez a mercê de me casar com sua filha. Essa é a minha história”.
Admirado com a história de Nūruddīn, o vizir riu e disse: “Meu filho, vocês
discutiram e nem sequer haviam ainda casado ou tido filhos. Mas, meu filho, vá
consumar o casamento com a sua mulher e amanhã eu o levarei até o sultão, a
quem explicarei o seu caso. Espero que Deus supremo nos traga tudo de bom”.
Então Nūruddīn foi e consumou o casamento. E, por decreto e vontade divina,
por uma predestinação, seu irmão Šamsuddīn Muḥammad consumou, no Egito,
o casamento com uma jovem. Isso aconteceu na mesma noite em que Nūruddīn
consumou seu casamento em Basra. Como foi que isso sucedeu?
Conta-se que Jaᶜfar disse ao califa:
Eu tive notícia de que, enquanto Nūruddīn viajava do Egito e lhe aconteciam
todas aquelas coisas, seu irmão mais velho Šamsuddīn viajou com o sultão do
Egito e se ausentou pelo período de um mês, regressando, então, ele para casa e
o sultão para o governo. O vizir procurou o irmão mas não o encontrou.
Perguntou a respeito e seus serviçais lhe disseram: “Ó jurisconsulto, na
madrugada do dia em que o senhor foi viajar, antes mesmo que o sol nascesse,
ele já estava em terras distantes. Informou que dormiria fora uma ou duas noites,
mas até agora não tivemos notícias dele”. Ouvindo aquelas palavras, Šamsuddīn
ficou muito triste pela perda do irmão e disse de si para si: “Ele decerto saiu por
aí perambulando ao léu. Impõe-se que eu vá atrás dele, nem que seja nos limites
extremos do país. Enviou funcionários do correio – isso no mesmo mês em que
Nūruddīn chegava a Basra –, que chegaram até Alepo, na Síria, mas, sem ter
ouvido notícia alguma sobre ele, regressaram frustrados. Šamsuddīn perdeu as
esperanças de localizar o irmão e disse: “Não há poderio nem força senão em
Deus supremo e poderoso. Fui injusto com meu irmão durante a conversa sobre
o casamento dos nossos filhos”. Depois de alguns dias, Deus supremo quis que
ele pedisse em casamento a filha de um egípcio proeminente; escreveu seu
contrato matrimonial na mesma noite em que o irmão escrevia seu contrato
matrimonial em Basra, e consumou o casamento na mesma noite em que o irmão
consumava o seu casamento com a filha do vizir em Basra. A fim de concretizar
as deliberações que tomava sobre suas criaturas, Deus supremo e altíssimo
permitiu que estes dois irmãos escrevessem seus contratos de casamento num
mesmo dia e possuíssem suas mulheres numa mesma noite, um estando no Egito
e outro, em Basra. Isso se devia a algum desígnio de Deus, ó comandante dos
crentes. A esposa de Šamsuddīn Muḥammad, vizir do Egito, deu à luz uma
menina, ao passo que a esposa de Nūruddīn ᶜAlī, vizir de Basra, deu à luz um
menino. O filho de Nūruddīn provocava inveja no sol e na lua: fronte radiante,
faces coradas, pescoço branco qual mármore; em sua face direita havia um sinal
que parecia uma esfera de âmbar, tal como dizem os versos feitos sobre ele por
um dos poetas que o descreveram:
“Sua ondulação de cabelo e beleza
deixam os outros num claro-escuro;
não lhe estranhem a marca no rosto:
toda anêmona tem seu ponto preto”.
O pequeno havia sido vestido por Deus com os trajes da beleza, graça, esplendor
e perfeição de talhe e proporções; esbelto como uma vara de bambu, enfeitiçava
a todos os corações com sua formosura e sequestrava todas as mentes com sua
forma e compleição perfeitas; as gazelas desejariam ter seu olhar e pescoço;
enfim, ele reunira todas as partes da graça, sem tirar nem pôr, tal como disse, na
poesia, um dos poetas que o descreveram:
“Foi até a beleza para ser avaliado,
e ela abaixou a cabeça, envergonhada;
perguntaram: ‘já viste algo assim, beleza?’
e ela respondeu: ‘desse jeito, não’”.[189]
Nūruddīn ᶜAlī lhe deu o nome de Badruddīn Ḥasan.[190] Seu avô, o vizir de
Basra, entrou em regozijo com a criança, realizando banquetes e distribuindo
oferendas de qualidade tal que eram dignas de reis. Depois, pegou algumas delas
e, acompanhado de seu genro, o vizir egípcio Nūruddīn ᶜAlī, apresentou-se
diante do sultão e beijaram o solo diante dele. Acompanhado de Nūruddīn, o
vizir, que era um homem educado, generoso, inteligente e cultivado, recitou os
seguintes versos para o sultão:
“Sejam sempre teus o poder e a permanência
enquanto se sucederem a manhã e a tarde;
que vivas enquanto existirem noites
de bem-estar que não se finda”.
Disse o narrador : o sultão agradeceu as palavras do vizir[191] e lhe perguntou:
“Quem é este rapaz que o acompanha?”. O vizir lhe repetiu a história do começo
ao fim e disse: “Ó rei, que este meu senhor Nūruddīn ᶜAlī me substitua nas
funções do vizirato, pois sua língua é eloquente, e este seu servo já é um velho
entrado em anos; minha capacidade diminuiu e meu discernimento se embotou.
Eu gostaria que a caridade do sultão colocasse o jovem no meu lugar e lhe
entregasse o vizirato, pois para tanto ele é plenamente capacitado; isso eu juro
em nome dos serviços que já lhe prestei”, e beijou o solo. O sultão olhou para
Nūruddīn, vizir do Egito, e o analisou; agradou-se dele, sentiu-lhe estima e disse:
“Sim”. Em seguida, ordenou que se trouxesse o traje honorífico completo que
cabia aos vizires, fazendo com que Nūruddīn o vestisse, e uma mula tirada das
montarias particulares do sultão; e mandou creditar-lhe os estipêndios e salários
relativos ao cargo. Depois disso, o velho e seu genro retornaram alegres para
casa. Disseram: “Eis um indício da boa fortuna do recém-nascido”. No dia
seguinte Nūruddīn foi até o palácio do sultão, instalando-se no assento do
vizirato. Assinou papéis, deu instruções, distribuiu concessões e tomou decisões,
dando cabo das tarefas, conforme é hábito dos vizires,[192] sem cometer
nenhuma mesquinharia, tanto que o sultão o aproximou de si. Nūruddīn ᶜAlī
voltou para casa satisfeito e alegre com o bom tratamento que o sultão lhe
concedera, bem como pelo fato de estar se firmando no vizirato. Também se
alegrou por ver seu filho Badruddīn Ḥasan. Começou a cuidar da educação do
menino, e assim caminharam as coisas por noites e dias: Badruddīn Ḥasan
crescia, desenvolvia-se e se tornava cada vez mais belo e gracioso, até que
atingiu a idade de quatro anos. Nessa época adoeceu seu avô, o velho vizir, pai
de sua mãe, que no testamento deixou tudo para o neto, morrendo em seguida.
Fez-se o funeral e, durante um mês inteiro, guardou-se luto e se realizaram
banquetes em sua memória. Nūruddīn ᶜAlī continuou no vizirato de Basra, e seu
filho Badruddīn Ḥasan cresceu e se desenvolveu. Quando atingiu a idade de sete
anos, levou-o para a escola, recomendando-o ao alfaqui com os seguintes
dizeres: “Cuide deste menino, adestre-o e ministre-lhe educação e decoro da
melhor qualidade”. O menino era sagaz, inteligente, ajuizado, de boas maneiras
e articulado. Ficaram extremamente contentes com ele, que passava os dias na
escola. O alfaqui não cessou de ensiná-lo até que, decorrido o período de dois
anos, ele já lia e compreendia.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar.

74ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Assim, com a idade de doze anos, Badruddīn já aprendera caligrafia,
jurisprudência, idioma árabe, cálculo e escrita. Ademais, Deus o vestira com os
trajes da beleza, da graça, do esplendor e da perfeição no tamanho e nas
proporções, conforme disse a seu respeito o poeta tagarela:
“Lua que se completa em extrema beleza;
o ramo de bambu fala de sua esbelteza;
o plenilúnio nasce da beleza de sua fronte,
e o sol se põe no rosado de suas faces;
ele domina toda a beleza, como se
toda a beleza da criação lhe pertencesse”.
Disse o narrador : como nunca mais fora à cidade desde que crescera, seu pai
Nūruddīn ᶜAlī, depois de fazê-lo vestir um traje completo, colocou-o numa mula
e foi com ele para a cidade; atravessou-a e se dirigiu em sua companhia até o
sultão. Quando as pessoas o viram e lhe contemplaram a compleição, invocaram
a Deus pela beleza de sua figura. Ouviu-se um burburinho de rogos por ele e por
seu pai, e as pessoas se acotovelaram para vê-lo, para contemplar-lhe a beleza, a
graça, o esplendor e a perfeição. Ele passou a cavalgar diariamente junto com o
pai, e todos quantos o viam se maravilhavam com a beleza de sua figura, pois ele
era como se descreveu na seguinte poesia:
“Ele surgiu e disseram: ‘benza-o Deus:
excelso seja quem o esculpiu e desenhou’.
Eis o absoluto reizinho da beleza,
de quem todos se tornaram súditos.
Em sua saliva há néctar inebriante,
e pérolas se formaram em seus lábios.
Ele se apoderou de toda a beleza sozinho,
deixando estupefatos todos os homens.
Em suas bochechas a formosura escreveu:
‘declaro que não há formoso senão ele’”.[193]
Disse o narrador : ele era o encanto dos amantes e o bosque dos apaixonados;
palavras suaves e sorriso formoso que envergonhava o plenilúnio; curvava-se de
faceirice como um ramo de salgueiro, e suas faces se assemelhavam a rosas e
anêmonas. Quando ele ultrapassou os vinte anos, seu pai – o egípcio Nūruddīn
ᶜAlī – adoeceu, mandou chamá-lo e disse: “Saiba, meu filho, que o mundo é
residência transitória, e que a outra vida é residência permanente. Eu lhe
recomendarei algumas coisas às quais chegou o meu entendimento e que meu
saber alcançou. Vou lhe fazer cinco recomendações”. Em seguida, lembrou-se de
seu país, de sua terra natal, pensou em seu irmão Šamsuddīn e as lágrimas lhe
escorreram pela sua separação dos entes amados e pela distância da terra natal.
Suas saudades aumentaram e, suspirando profundamente, ele declamou os
seguintes versos:
“Eu vos censuro e ensino com minha emoção;
meu coração está convosco, e comigo meu corpo;
não era meu objetivo abandonar-vos, mas
a decisão de Deus vence a todos os seus servos”.
Quando terminou a declamação e o choro, voltou-se para o filho e disse: “Antes
que eu lhe faça as minhas recomendações, meu filho, saiba que você tem um tio
paterno que é vizir no Egito e de quem eu me separei, malgrado meu, por
decisão de Deus” – e, pegando um bloco de papel, nele escreveu o que ocorrera
entre ele e seu irmão antes de abandonar o Egito; depois, escreveu o que se
passou com ele em Basra, como ascendera ao vizirato, a data de seu matrimônio
no dia tal e tal, a consumação do casamento na noite tal e tal, notando ainda que
tinha menos de quarenta anos de idade quando ocorrera a briga – “eis aqui uma
carta para ele, e Deus cuidará do resto, depois de minha morte”. Em seguida
dobrou-a, selou-a e disse: “Badruddīn Ḥasan,[194] meu filho, guarde estes
papéis e nunca se separe deles”. Então Badruddīn Ḥasan pegou-os e costurou-os,
num invólucro em forma de amuleto, na parte interna da touca do seu turbante.
Seus olhos estavam marejados de lágrimas pela iminente separação de seu pai,
que por alguns instantes se debateu nos estertores da morte; despertou então e
disse: “Badruddīn Ḥasan, meu filho, a primeira recomendação é: não tenha
intimidade com ninguém e assim escapará de acidentes; a segurança está na
solidão; não se misture nem se associe a ninguém, pois eu ouvi um poeta
dizendo:
‘Ninguém há neste tempo cujo afeto se deseje,
nem amigo que nas vicissitudes seja fiel;
vive sozinho e não confies em ninguém:
é o conselho que te dou, e basta’.
A segunda, meu filho, é: não oprima ninguém, caso contrário o destino oprimirá
você. O destino num dia está a seu favor e noutro está contra, e o que o mundo
lhe dá amanhã terá de ser pago. Eu já ouvi o poeta dizer:
‘Reflete e não te apresses no que almejas;
sê clemente e como tal serás reconhecido;
não existe mão sobre a qual não esteja a de Deus,
nem opressor que não será oprimido por outro’.
A terceira recomendação: observe o silêncio, desvie os olhos dos defeitos alheios
e contenha a sua língua, pois já se dizia: ‘Quem observa o silêncio se salva’.
[195] Também ouvi o poeta dizer:
‘Mudez é adorno e silêncio é segurança;
se acaso falares, não sejas linguarudo, pois,
ainda que alguma vez te arrependas de tua mudez,
de teres falado sempre te arrependerás’.
A quarta, meu filho: eu o previno contra o consumo de vinho, pois ele é o motivo
de toda discórdia; o vinho faz perder o juízo. Cuidado, muito cuidado para não
tomar vinho, pois eu ouvi o poeta dizer:
‘Larguei o vinho, parei de bebê-lo
e de seus censores amigo virei:
é bebida que afasta do bom caminho,
e do mal escancara os portões’.
E a quinta, meu filho: preserve o seu dinheiro e ele o preservará; guarde o seu
dinheiro e ele o guardará; não abuse de seu dinheiro, pois caso contrário você
precisará de gente inferior; conserve as moedas, que são unguento, pois eu ouvi
alguém dizer:
‘Se o meu dinheiro escasseia, ninguém me acompanha,
mas quando ele aumenta, companhia todos se tornam;
quanto amigo para torrar dinheiro me acompanhou,
e quanto amigo, esgotado o meu dinheiro, me abandonou!’
Aceite, pois, minhas recomendações”. E não cessou de repetir as recomendações
até que seu sopro vital se esvaiu, e ele foi então carregado e enterrado.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na noite seguinte, se eu viver e for poupada”.

75ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Dīnārzād disse: “Conte-nos a história, maninha”, e Šahrāzād


respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse para o califa:
Quando o vizir Nūruddīn ᶜAlī morreu, seu filho Badruddīn Ḥasan de Basra,
muito triste com a perda, permaneceu de luto durante dois meses inteiros,
durante os quais não cavalgou nem foi servir ao sultão. Este, encolerizado com
ele, nomeou vizir um de seus secretários e lhe ordenou que, junto com outros
secretários e mensageiros, embargassem os bens do falecido vizir Nūruddīn ᶜAlī,
confiscassem todo o seu dinheiro e selassem todos os seus pomares, casas e
demais imóveis; que não deixassem um único dirham. Então o novo vizir se fez
acompanhar de secretários, meirinhos e enviados, oficiais e escribas, e todos
tomaram o rumo da casa do vizir Nūruddīn ᶜAlī do Egito. Entre as pessoas que
ali presenciaram a emissão da ordem estava um servo do vizir Nūruddīn ᶜAlī, o
qual, ao ouvir do que se tratava, montou seu cavalo e se dirigiu rapidamente para
onde estava Badruddīn Ḥasan, a quem encontrou sentado na porta de sua casa,
cabeça baixa, triste e desolado. O serviçal descavalgou, beijou-lhe a mão e disse:
“Meu senhor, filho do meu senhor! Depressa, depressa, antes que seja tarde!”.
Badruddīn Ḥasan estremeceu e perguntou: “O que está acontecendo?”. O
serviçal respondeu: “O sultão ficou encolerizado com o senhor e determinou que
sua casa fosse desapropriada. A desgraça se encaminha para cá, bem atrás de
mim! Fuja para salvar a vida! Não permita que eles acabem com o senhor!”.
Com o coração em chamas, o vermelho do rosto tornado amarelo, Badruddīn
Ḥasan perguntou: “E não terei tempo nem de entrar em casa, meu irmão?”.
Respondeu: “Não, meu senhor. Levante agora e esqueça a sua casa”. Badruddīn
levantou-se, recitando a seguinte poesia:
“Atingido por infortúnio, salva a vida,
e deixa a casa chorar por quem a construiu,
pois poderás trocar uma terra por outra,
mas com tua vida o mesmo não poderás fazer;
tampouco envies teu mensageiro em missão importante,
pois para a vida o melhor conselheiro é o seu dono:
as cervizes dos leões só engrossaram tanto
porque eles próprios cuidam de seus interesses”.[196]
Disse o narrador : aparvalhado, o jovem calçou as sandálias, levantou-se
cambaleante e cobriu a cabeça com o capuz da túnica. Temeroso e apavorado,
ignorava se deveria ir ou voltar, e qual direção tomar. Acabou seguindo o rumo
da sepultura paterna; enquanto passava pelas sepulturas, deixou cair o capuz, que
era adornado com fitas de brocado de tafetá tecidas com fios de ouro, e no qual
se liam os seguintes versos:
“Ó quem tem o rosto radiante,
que imita estrelas e orvalho:
para sempre continue pujante,
e se alce às alturas a sua glória”.
Enquanto caminhava, topou com um judeu que estava chegando à cidade. Era
um cambista que nas mãos carregava um cesto. Ao vê-lo, o judeu o
cumprimentou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei se acaso eu ficar viva”.

76ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, a irmã lhe disse: “Conte a história para nós”, e ela respondeu:
Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Ao ver Badruddīn, o judeu beijou-lhe a mão e perguntou: “Para onde o meu
senhor está indo a esta hora, já próximo do fim do dia, vestindo roupas leves e
com a fisionomia transtornada?”. Badruddīn Ḥasan respondeu: “Há pouco
adormeci e vi meu pai em sonho. Acordei e então vim visitá-lo antes que o dia se
finde”. O judeu disse: “Antes de morrer, o seu pai, que era nosso amo e senhor,
possuía um empreendimento comercial marítimo. Seus navios cheios de
mercadorias estão agora no caminho de volta para cá. Eu gostaria que o senhor
fizesse a caridade de não vender o carregamento desses navios senão para mim”.
Badruddīn Ḥasan respondeu: “Sim”. O judeu disse: “Então, meu senhor, venda-
me agora, por mil dinares, o carregamento do primeiro navio que aportar”, e,
retirando do cesto um saco lacrado, abriu-o, montou uma balança e pesou duas
vezes até que se completassem mil medidas de ouro. Badruddīn Ḥasan afirmou:
“Vendido!”. O judeu retrucou: “Registre então, meu senhor, com sua própria
letra, a venda para mim, aqui neste papel”. Badruddīn pegou o papel e escreveu:
“Eis o que Badruddīn Ḥasan de Basra vendeu para Isḥāq, o judeu: o
carregamento do primeiro navio que aportar, por mil dinares, quantia esta que ele
já recebeu”. O judeu pediu: “Deixe o papel dentro do saco, meu senhor”. Ele
depositou o papel no saco, amarrou, lacrou, pendurou na cintura e se separou do
judeu.[197] Foi passando pelas sepulturas até chegar à de seu pai; sentou-se ali,
chorou por alguns momentos e declamou a seguinte poesia:
“Desde que vocês partiram,
senhores, a casa já não é casa,
não; tampouco o vizinho, desde que
partiram, continua vizinho.
Nem o companheiro com quem já me habituara
não é mais companheiro, nem as luzes são luzes,
tampouco os sóis que sobre ela tanto brilhavam
são sóis, tampouco as luas continuam sendo luas.
Vocês sumiram, e sua ausência desolou o mundo,
no escuro mergulhando todo campo e toda terra.
Quem dera o corvo que pressagiou nossa separação
depenado ficasse, e sem nenhum abrigo onde viver.
Sem vocês, minha paciência minguou e meu corpo se debilitou.
Quanta desonra ainda vão causar os dias malsinados?
Acaso você acha que as noites que passamos voltarão,
tal como eram, e nos reuniremos numa só casa?”.
Em seguida, Badruddīn chorou junto ao túmulo do pai por cerca de uma hora.
Recordando-se da situação em que se encontrava, ficou em dúvida sobre o que
fazer, ignorando se ia ou voltava. Chorou uma vez mais, apoiou a cabeça no
túmulo do pai por mais algum tempo, e então adormeceu – louvado seja aquele
que nunca dorme. Continuou dormindo até o anoitecer, quando sua cabeça
escorregou de sobre o túmulo e ele caiu de costas; esticou as mãos e os pés e
permaneceu deitado sobre o túmulo do pai. Havia naquele cemitério um ifrit
gênio que ali se abrigava durante o dia, e que durante a noite voava e percorria
outros cemitérios. Quando anoiteceu, o gênio saiu do cemitério, fazendo tenção
de iniciar seu voo, quando viu um ser humano deitado de costas e vestido.
Aproximou-se dele, contemplou-lhe a fisionomia e ficou maravilhado e
assombrado com sua beleza.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

77ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse:
Quando o gênio olhou para Badruddīn Ḥasan de Basra deitado de costas, ficou
admirado com sua beleza e pensou: “Este rapaz não pertence senão aos jovens
do paraíso, criados por Deus para seduzir a humanidade”. Depois de contemplá-
lo durante algum tempo, voou pelo espaço e se alçou às alturas, chegando a meio
caminho entre o céu e a terra, quando foi então atropelado pelas asas de uma
outra ifrita gênia. Perguntou: “Quem é?”, e ela respondeu: “Uma gênia”. Ele a
cumprimentou e perguntou: “Você gostaria de vir comigo, ó gênia, até o meu
cemitério, a fim de ver que belo ser humano Deus criou?”. Ela respondeu “sim”,
e desceram ambos até o cemitério. Ao pousarem, o gênio perguntou: “Por acaso
você já viu, em toda a sua vida, alguém mais belo do que este rapaz?”. Depois de
bem olhar para o jovem e contemplar-lhe a fisionomia, ela disse: “Louvado seja
aquele que não possui semelhante! Por Deus, meu irmão, se você permitir, vou
contar-lhe algo espantoso que vi nesta mesma noite na província do Egito”. O
gênio disse: “Conte”, e ela contou:
Saiba, ó gênio, que existe na cidade do Cairo[198] um rei que tem um vizir
chamado Šamsuddīn Muḥammad, cuja filha conta aproximadamente vinte anos,
e é uma das pessoas mais parecidas com este jovem; ela possui beleza, graça,
formosura, perfeição, altura e porte. Quando ela passou a idade de vinte anos, o
sultão do Egito ouviu falar a seu respeito e convocou o pai dela, o vizir, e lhe
disse: “Saiba, ó vizir, que eu tive notícia de que você tem uma filha. Quero pedi-
la em casamento a você”. O vizir lhe respondeu: “Ó rei, aceite minhas escusas e
não censure as minhas ações. Sua generosidade saberá perdoar minha recusa.
Estou ciente, ó rei, de que o senhor sabe que eu tenho um irmão chamado
Nūruddīn ᶜAlī, com quem eu dividia o vizirato a serviço do senhor. Certo dia,
sucedeu que sentamos ambos, eu e ele, e acabamos por travar uma discussão
sobre casamento e filhos. Quando amanheceu, ele partiu em viagem e nunca
mais ouvi nenhuma notícia a seu respeito, já faz vinte anos. Contudo, há pouco
ouvi dizer que ele faleceu em Basra, onde era vizir, e ali deixou um filho, ó rei
do tempo. Registrei por escrito o dia em que redigi meu contrato de casamento, a
noite em que se consumaram minhas núpcias, e a noite em que minha mulher
deu à luz. Está tudo registrado até a presente data. Minha filha está guardada,
prometida para o primo. Nosso amo o sultão tem à sua disposição muitas
mulheres e moças”. O sultão se encolerizou com as palavras do vizir.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for poupada”.

78ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Então a gênia disse ao gênio:
O sultão se encolerizou com as palavras de seu vizir Šamsuddīn e lhe disse:
“Como se atreve? Alguém do meu nível pede a mão da filha de alguém do seu
nível e recebe uma escusa frívola dessas?”. E o sultão jurou que não casaria a
jovem senão com o mais vil de seus criados. Pensou bem e se lembrou de um
almocreve que conduzia as cavalgaduras dos meninos do palácio. Era um
corcunda com duas cacundas, uma na frente e outra atrás. O sultão mandou
chamar o corcunda e testemunhas, e manteve o vizir sob vigilância até que
escrevesse o contrato de casamento do corcunda com a sua filha naquele mesmo
dia. O sultão jurou que o corcunda deveria consumar o casamento com a jovem
naquela mesma noite, na qual se faria a procissão nupcial.
[Prosseguiu a gênia:] “Foi nesse momento que eu os deixei, com todos os
escravos dos príncipes carregando círios, todos à porta da casa de banho
esperando a saída do corcunda, a fim de caminharem à sua frente com os círios.
Quanto à filha do vizir, ela estava com as camareiras, que a penteavam, e já
pusera suas roupas e adereços, enquanto seu pai, o vizir, se mantinha guardado
pela escolta do rei, esperando o corcunda vir consumar o casamento com a sua
filha. Olhei bem para a jovem, ó gênio: meus olhos jamais haviam vislumbrado
criatura mais bela nem mais maravilhosa”. O gênio disse: “Você está mentindo,
ele é mais belo do que ela”. A gênia respondeu: “Pelo Deus do trono, a
juventude dela não é adequada senão para a juventude dele! Que desperdício
com aquele corcunda!”. O gênio disse: “Que tal nos enfiarmos por debaixo desse
rapaz adormecido, carregando-o e fazendo-o chegar até ela? Assim poderemos
reunir lado a lado ambas as juventudes”. Ela respondeu “sim”; ele disse: “Eu o
carrego na ida e você o carrega na volta”, e ela respondeu “sim”. Então o gênio
entrou por debaixo de Badruddīn Ḥasan de Basra, carregou-o, alçou-se com ele
aos ares e se elevou, sempre com a gênia voando a seu lado. Começou a descer
para enfim pousar diante dos portões da cidade do Cairo, onde ele o reclinou
num poial e o acordou. Tendo despertado do sono e vendo-se numa cidade que
não conhecia, o rapaz já fazia tenção de indagar a respeito, mas o gênio lhe
aplicou uma pancada, estendeu-lhe um círio e lhe disse: “Caminhe até aquela
casa de banho, misture-se entre os passantes e os escravos, avance sempre no
meio deles até chegar ao pátio de noivado; tome então a dianteira, sem deixar de
carregar o círio, e poste-se à direita do noivo corcunda. Toda vez que as
camareiras, cantoras ou a própria noiva vierem para o seu lado, retire punhados
de moeda dos bolsos e jogue para elas, sem nenhuma hesitação; não retire a mão
do bolso senão cheia de moedas de ouro; retire as moedas e atire-as como regalo
para todos que se aproximarem de você. Não fique espantado, pois este assunto
não está sob seu controle ou poder, mas sim sob controle, poder e vontade de
Deus, a fim de que ele realize as sapientes decisões que toma quanto ao destino
de suas criaturas”. E Badruddīn Ḥasan levantou-se, pegou o círio, acendeu-o e
caminhou até chegar à casa de banho, onde encontrou o noivo corcunda, que mal
acabara de montar uma égua. Badruddīn Ḥasan de Basra introduziu-se no meio
da multidão, adotando aquele procedimento, e, conforme aquele desígnio que
descrevemos, levando à cabeça o seu já citado turbante de duas faces.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

79ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan de Basra continuou caminhando no meio da procissão.
Sempre que as cantoras passavam cantando, e os participantes começavam a
distribuir regalos, ele enfiava a mão no bolso, retirava um monte de moedas de
ouro e introduzia punhados delas nos pandeiros das cantoras; os instrumentos
ficavam tão cheios de dinares que as cantoras e os demais participantes
enlouqueciam, todos igualmente muito assombrados com sua graça, formosura e
generosidade. Continuou fazendo isso até que chegaram à casa do vizir – que era
seu tio paterno –, quando então os secretários detiveram os participantes da
procissão, impedindo-os de entrar. Mas as cantoras disseram: “Por Deus que só
entraremos se entrar conosco este jovem estrangeiro. Em toda a nossa vida,
nunca vimos alguém tão belo ou generoso. Não recepcionaremos a noiva com as
nossas cantigas senão com a presença deste que nos ofertou tanto ouro que
encheria um armário”. E com ele entraram no local do casamento, acomodando-
o na bancada, à direita do corcunda. As mulheres dos príncipes, dos vizires, dos
secretários e dos deputados posicionaram-se em suas respectivas fileiras, ao
passo que as demais mulheres presentes formaram duas fileiras no pátio. Cada
mulher, velada até os olhos, carregava um grande círio aceso; formavam duas
fileiras, uma à esquerda e outra à direita, que iam do estrado até o pavilhão, e
dali até o aposento de onde sairia a noiva. Quando as mulheres viram Badruddīn
Ḥasan de Basra, sua graça e formosura, seu rosto que brilhava como o crescente,
que se assemelhava ao plenilúnio, cheio de charme e simpatia, esbelto como um
ramo de salgueiro, a estima por ele, já grande por causa do dinheiro com que as
presenteara, aumentou mais ainda. As mulheres se reuniram ao seu redor
carregando os círios, maravilhadas com sua fisionomia e invejosas de sua
elegância. Começaram a flertar com o jovem e a cobiçá-lo, cada qual desejando
dormir em seus braços. E todas elas, sem exceção, disseram: “Este jovem não é
adequado senão para a nossa noiva de hoje! Que desperdício dessa noiva com
este corcunda disforme! Que a maldição recaia sobre o responsável por esse
casamento” – e rogaram pragas contra o sultão. O corcunda vestia uma túnica
brocada de honra; na cabeça, trazia um turbante de duas faces; seu pescoço
estava afundado entre os ombros; sentado, todo encaramujado, tanto parecia um
ser humano como um boneco, tal como disse a seu respeito alguém que o
descreveu em versos:
“Que gracinha o corcunda que apareceu;
eu o comparo à menina dos olhos[199]
ou a um apodrecido galho de rícino
no qual se pendurou uma enorme laranja”.
Em seguida, as mulheres puseram-se a lançar impropérios e zombarias contra o
corcunda, fazendo também rogos a favor de Badruddīn Ḥasan de Basra e se
aproximando dele. Após alguns momentos, as cantoras começaram a bater nos
adufes e a assoprar as flautas: surgiram as camareiras, tendo ao meio a jovem
noiva.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e assombrosa a sua história, maninha”, e ela respondeu:
“Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o
rei me preservar”.

80ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Quando Badruddīn Ḥasan de Basra, filho de Nūruddīn ᶜAlī do Egito, tomou
seu assento na bancada ao lado do corcunda, as camareiras chegaram trazendo
sua prima, a quem haviam perfumado e adornado, recheando-lhe a cabeleira com
sachês de almíscar e incensando-a com aloés, cardamomo e âmbar. A noiva se
requebrava e as camareiras a conduziam após lhe terem penteado os cabelos,
trançado as melenas e vestido roupas e ornamentos dignos dos reis da Pérsia –
entre as coisas que ela usava estava uma veste com gravuras a ouro, tais como
aves e quadrúpedes, além de muitas outras imagens plenas de brilho, com olhos
e bicos traçados com pedras preciosas, pés desenhados com rubis vermelhos e
esmeraldas verdes. Também lhe haviam colocado um valioso colar de joias
como nunca alguém antes possuíra, com grandes gemas arredondadas que
atordoavam o olhar e aturdiam a mente que pretendesse descrevê-lo. A noiva
estava mais opulenta do que o plenilúnio quando surge na décima quarta noite do
mês.[200] Na sua frente, as camareiras haviam acendido círios com cânfora que
lhe alumiaram o rosto e realçaram o seu brilho; ela surgiu com olhos mais
penetrantes do que espada desembainhada, cílios que enfeitiçavam os corações,
faces rosadas, cercada por flancos e cinturas que para o seu lado pendiam,
monopolizando todos os olhares e tornando as imaginações incapazes de
descrever a dimensão de sua beleza. As cantoras recepcionaram-na com várias
espécies e tipos de instrumentos musicais e adufes. Enquanto isso, Badruddīn
Ḥasan de Basra já estava acomodado, atraindo os insistentes olhares das
mulheres, se assemelhando à lua entre as estrelas, com uma fronte radiante, faces
coradas, pescoço marmóreo, rosto de lua, trazendo na bochecha uma pinta que
parecia um círculo de âmbar. Requebrando ela surgiu, destacou-se e se
aproximou. O corcunda se levantou e foi dar-lhe um beijo, mas ela desviou o
rosto, livrou-se dele e parou diante de seu primo Badruddīn Ḥasan. Os presentes
se agitaram e as cantoras gritaram. Badruddīn Ḥasan de Basra enfiou a mão no
bolso e, constatando que ainda estava cheio de moedas de ouro, tomou um
punhado e lançou nos tamborins das cantoras, pondo-se a repetir o gesto. Elas
começaram a rogar por ele e lhe fizeram sinais com os dedos dizendo:
“Gostaríamos que esta noiva fosse sua”. Ele sorriu, e todas as mulheres presentes
ao casamento cravaram os olhos nele. O corcunda ficou isolado como se fosse
um macaco, ao passo que Badruddīn Ḥasan de Basra dominava galhardamente
toda a cena, cercado por criados e criadas que carregavam na cabeça grandes
travessas cheias de ouro e dinares para dar de presente e distribuir. Quando a
noiva escapuliu e parou diante dele, Badruddīn lançou-lhe um longo olhar e
contemplou a beleza com que Deus a distinguira acima do restante da
humanidade. Enquanto a criadagem lançava moedas sobre a cabeça de pequenos
e grandes, Badruddīn entrava em felicidade e regozijo com o que via.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

81ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Vendo sua prima, Badruddīn Ḥasan de Basra entrou em felicidade e regozijo.
Ele contemplou o rosto da jovem, que resplandecia, cheio de luz, radioso,
sobretudo com aquela vestimenta de cetim vermelho, a primeira da noite, com a
qual as camareiras a faziam desfilar; Badruddīn Ḥasan pôde deleitar-se com tal
visão. Ela derramava e espalhava seu charme, atordoando a mente de mulheres e
homens, tal como disse a seu respeito um poeta superior:
“Sol brilhando sobre galho nas dunas,
ela surge numa túnica da cor da flor da romã;
deu-me de beber o vinho de sua saliva e
de suas bochechas, apagando meu fogo”.
Disse o narrador : trocaram-lhe então aquela roupa, vestindo-a com um traje
azul, e ela surgiu como se fora o plenilúnio quando resplandece, com cabelos
negros como carvão, faces suaves, dentes sorridentes, seios empinados e
membros e pulsos firmes. Foi essa a segunda vez em que a exibiam,[201] e ela
estava tal como na poesia que os homens ocupados com os mais altos desígnios
disseram a seu respeito:
“Ela surgiu numa túnica azul,
lazurita tal e qual a cor do céu,
e o que eu vi em sua túnica foi
lua de verão em noite de inverno”.
Disse o narrador : trocaram-lhe então aquela roupa por outra, usaram seus
longos cabelos para cobrir-lhe o rosto e lhe soltaram as compridas tranças
negras, cuja extensão e negrura se assemelhavam a noite nublada. Ela atingiu os
corações com setas agudas e perfurantes: foi seu terceiro desfile, tal como
alguém disse a respeito na seguinte poesia:
“Seus cabelos se enrolam sobre as faces,
e produzem discórdia que comparo ao calafrio;
eu disse: a manhã foi coberta pela noite; responderam:
‘não, o plenilúnio é que foi coberto pelas sombras’”.
Fizeram-na então desfilar pela quarta vez, e ela surgiu como se fora o sol
nascente, derramando charme, lançando olhares tal como os lançam as gazelas e
disparando de suas pálpebras dardos nos corações, tal como a descreveram na
seguinte poesia:
“O formoso e esperado sol para todos aparece
brilhando com beleza e charme adornados pela timidez.
Desde que, com seu pudor e sorriso, ela olhou para
o sol da manhã, este se escondeu entre nuvens”.
Disse o narrador : então pela quinta vez ela desfilou, como uma senhorita de
bom caráter. Parecia um ramo de salgueiro ou gazela sedenta; suas setas
despontavam e suas maravilhas apareciam; balançou a cintura e mostrou o colo,
tal como alguém que a descreveu disse na seguinte poesia:
“Ela surgiu como o plenilúnio em noite bela,
membros delicados, esbelta cintura
e olhos cuja beleza aprisionava os homens.
O vermelho de suas faces imita os rubis,
o negrume de seus cabelos lhe cobre os quadris.
Muito cuidado com as serpentes de seus cachos,
mesmo que seus flancos e coração pareçam dóceis;
são, contudo, mais duros do que pedra bruta!
Por sobre seus cílios partem as setas do olhar,
e sempre acertam: mesmo de longe não erram.
Quando nos abraçamos e tento pela cintura
empolgá-la, sou disso impedido por seus seios.
Ó beleza que deixou para trás toda beleza!
Ó esbelteza que humilha os mais delicados ramos!”.
Disse o narrador : pela sexta vez fizeram-na desfilar com um traje verde. Seu
porte era mais ereto do que o de uma lança escura; sua beleza suplantava a de
todas as beldades que se encontravam ao alcance da vista; a luminosidade de seu
rosto superava o plenilúnio brilhante; sua delicadeza e elasticidade humilhavam
os ramos de árvore; e a formosura de seu ser corroía os fígados, tal como disse
em poesia um dos que a descreveu:[202]
“Eis a jovem a quem a astúcia adestrou:
vês o sol saindo emprestado de suas faces.
Chegou vestindo uma túnica esverdeada,
tal como as folhas cobrem a flor de romã.
Perguntamos a ela: ‘qual o nome desse traje?’,
e ela respondeu com discurso de doces palavras:
‘com ele despedaçamos a vesícula de muitos;
portanto lhe chamamos destruidor de vesículas’”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é
espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto que
irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

82ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Assim, toda vez que faziam a noiva desfilar e ficar diante do corcunda, ela
evitava olhar em sua direção e se desviava, postando-se diante de Badruddīn
Ḥasan de Basra, que retirava um punhado de moedas do bolso e as distribuía
entre as cantoras. Procedeu desse modo até que fizeram a noiva desfilar sete
vezes, e as mulheres foram autorizadas a se retirar. Todos quantos estavam na
festa foram embora, não restando senão Badruddīn e o corcunda. Os moradores
da casa adentraram com a noiva, a fim de retirar-lhe as joias e deixá-la sozinha.
O corcunda disse a Badruddīn Ḥasan: “Você já nos honrou e embelezou nossa
festa. Agora, por que não levanta e vai embora?”. Badruddīn disse: “Claro, com
o auxílio de Deus!”, e, pondo-se de pé, saiu pela porta até o corredor, onde foi
encontrado pelo gênio e pela gênia, que lhe perguntaram: “Aonde você vai?
Fique parado aqui. Assim que o corcunda for ao banheiro aliviar as
necessidades, entre na casa, vá até o quarto de núpcias, onde há uma cama com
véu. Quando a noiva interrogá-lo, diga-lhe: ‘Seu marido não é outro que não eu.
O rei só fez aquela armação para divertir-se às custas do corcunda. Agora, já lhe
pagamos as dez moedinhas e a marmita com que o contratamos, e ele foi cuidar
da sua vida’. Fique com ela, consume o casamento e extirpe-lhe a virgindade.
Nós estamos furiosos com essa história toda, pois aquela jovem não serve senão
para você”. Enquanto conversavam, o corcunda saiu pela porta e entrou no
banheiro, onde tanta merda lhe escorreu do rabo que ele se sujou até a barba. Na
forma de um gato preto, o gênio subiu na bacia de água e começou a berrar
“miau, miau!”. O corcunda disse: “Passa, desgraçado!”. Mas o gato cresceu e
inchou até ficar grande como um burrico, e começou a zurrar com força “inhó,
inhó!”. O corcunda ficou a princípio assustado, e depois tão amedrontado que a
merda começou a lhe escorrer pelas pernas. Gritou: “Socorro, minha gente!”. E o
gato cresceu mais ainda, até ficar do tamanho de um búfalo adulto; pôs-se a falar
com palavras que eram as dos seres humanos e disse: “Ai de ti, corcunda!”. O
corcunda estremeceu, e tanto era o seu medo que ele caiu sentado na latrina com
roupas e tudo; respondeu: “Pois não, ó rei dos búfalos!”. O gênio lhe disse: “Ai
de ti, escória dos corcundas! Por acaso o mundo é tão pequeno que você não
acertou senão de se casar com a minha amada?”. O corcunda respondeu: “Mas
meu senhor, que fiz eu? E qual a minha culpa? Fui obrigado! Tampouco eu sabia
que ela tinha um amante entre os búfalos! O que o senhor deseja que eu faça?”.
O gênio respondeu: “Eu lhe juro que, se você sair daqui antes do nascer do sol,
ou abrir a boca, irei torcer o seu pescoço. E, logo que o sol raiar, saia daqui e vá
cuidar da sua vida. Nunca mais entre nesta casa, ou então ninguém nunca mais
terá notícias a seu respeito”. E agarrando o corcunda, o gênio ergueu-o de cabeça
para baixo, deixando-o com a cabeça enterrada na latrina e os pés para cima, e
lhe disse: “Agora vou ficar aqui vigiando; se você sair antes do nascer do sol, eu
o pegarei pelas pernas e baterei contra a parede. Trate de preservar a vida!”. Isso
foi o que sucedeu com o corcunda. Quanto ao que sucedeu com Badruddīn
Ḥasan de Basra, foi o seguinte: mal o corcunda entrou no banheiro, rapidamente
Badruddīn entrou no quarto nupcial e ali se acomodou por alguns momentos, até
que a noiva surgiu com uma velha, a qual se postou na porta do quarto, dizendo:
“Ó pai da rapidez, recolha o depósito que Deus lhe confiou, ó filho da feiura”, e
foi-se embora. Então a jovem, que se chamava Sittulḥusni,[203] entrou e, vendo
Badruddīn Ḥasan, disse-lhe: “Você ficou por aqui até esta hora, meu querido?
Por Deus que eu gostaria muito que você fosse sócio do corcunda”. Ao ouvir tais
palavras, Badruddīn Ḥasan de Basra respondeu: “E como aquele corcunda
nojento chegaria a ser meu sócio, Sittulḥusni?”. Ela indagou: “E por que não?
Porventura ele não é meu marido?”. Badruddīn Ḥasan respondeu: “Deus me
livre, senhorita! O que nós fizemos foi uma grande palhaçada. Você porventura
não percebeu como as camareiras, cantoras e os seus familiares faziam você
desfilar diante de mim e ficavam se rindo dele? Nem o seu pai sabe que nós
contratamos o corcunda por dez moedas e uma marmita; já lhe pagamos e ele foi
embora”. Ao ouvir aquilo, Sittulḥusni riu e disse: “Por Deus que você me
alegrou e apagou o fogo que me consumia, meu senhorzinho. Tome-me em seus
braços e me estreite em seu regaço”. Como ela já estava sem os calções,
Badruddīn Ḥasan, por seu turno, tirou os seus, desamarrou do cinturão a bolsa
com mil dinares que recebera do judeu, enrolou-a junto com os calções e
colocou tudo debaixo do colchão; retirou o turbante e depositou-o na cadeira,
sobre uma trouxa de roupas, ficando somente de túnica e barrete; como ele se
mostrasse hesitante, a jovem Sittulḥusni tomou a iniciativa, atraindo-o para si e
dizendo: “Meu querido, você está demorando! Socorra-me com o seu toque!
Delicie-me com a sua formosura!”, e declamou a seguinte poesia:
“Por Deus, põe os pés entre minhas coxas,
pois da vida é com isso que me contento,
e conta de novo tua história, pois meus ouvidos
amam tanto a tua conversa quanto te amam!
De tudo o que há na terra, não te empolgue
senão a minha mão direita e a tua roupa!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Maninha,
como é agradável e espantosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

83ª
noite das histórias
e assombros das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse para o califa:
Então Badruddīn Ḥasan e Sittulḥusni se abraçaram, e ele a possuiu e
desvirginou. Depois, ela enfiou uma de suas mãos debaixo do pescoço dele, a
outra debaixo de suas axilas, e dormiram ambos com o rosto e o pescoço colados
um ao outro. A situação em que estavam[204] registrou a seguinte poesia:
“Fica com quem amas e deixa que fale,
o invejoso, que à paixão nunca fez bem.
Deus misericordioso não criou nada mais belo
do que dois amantes deitados num só colchão,
nele abraçados, sobre eles as joias da bênção,
nele abraçados, pulsos e braços entrelaçados!
Quando os corações se habituam à paixão,
as pessoas deixam as conversas banais.
Se a tua sorte te fizer desejar alguém,
vai atrás dele e procura-o onde estiver!
Ó tu, que censuras a paixão dos apaixonados,
acaso poderias consertar corações dilacerados?”.
Em seguida dormiram por algum tempo. O gênio disse para a gênia: “Vamos,
entre debaixo dele e erga-o. Transportemos o rapaz de volta para o lugar onde
ele estava dormindo antes que amanheça”. Então a gênia se introduziu por baixo
dele e o carregou pelos ares, com o rapaz naquele estado, trajando somente o
barrete listrado e a túnica de linho fino com adereços de ouro marroquino, sem
os calções. A gênia permaneceu carregando o jovem pelos ares, com o gênio ao
lado, até que Deus louvado e altíssimo autorizou que a alvorada irrompesse e
que os almuadens subissem aos minaretes das mesquitas para proclamar a
unidade do Deus único, do Deus que a tudo derrota; foi nesse momento que os
anjos celestes passaram a atirar bólidos de chamas contra os gênios; a gênia
conseguiu pousar carregando o rapaz, sendo salva por Deus altíssimo, ao passo
que o gênio foi queimado. Quis o acaso que ela chegasse com ele até a cidade de
Damasco, e foi ali, diante de um de seus portões, que ela o abandonou, voando
em seguida para cuidar de sua vida. O dia se iluminou, a alvorada irrompeu, e os
portões de Damasco foram abertos. As pessoas saíram e viram Badruddīn Ḥasan,
jovem gracioso, com roupas mínimas: barrete descoberto e túnica, sem os
calções. Exausto devido à noite em claro, à procissão com os círios e ao peso
que carregara, o jovem dormia estirado e roncava. Ao verem aquilo, as pessoas o
cercaram dizendo: “Muito bom! Sorte de quem estava dormindo com ele! Mas
não podia ter esperado até que vestisse a roupa?”. Disse um outro: “Coitados dos
filhos do povo! Vejam o que aconteceu a esse rapaz! Estava bebendo, talvez, e
quis parar e ir cuidar da vida, mas a embriaguez foi mais forte e ele dormiu
assim, pelado. Ou, quem sabe, talvez tenha confundido a porta de sua casa com o
portão da cidade e, encontrando-o trancado, dormiu aqui mesmo”. E assim
continuaram, cada qual falando uma coisa diferente. Uma ventania bateu em
Badruddīn Ḥasan de Basra, erguendo-lhe a túnica, deixando à mostra a barriga e
o umbigo bem desenhados, pernas e coxas que pareciam cristal e mais suaves do
que manteiga. As pessoas disseram: “Muito bom! Muito bom!”, e gritaram.
Badruddīn Ḥasan acordou e, vendo-se diante dos portões de uma cidade, cercado
por homens de toda espécie, ficou atarantado e perguntou: “Onde estou, minha
gente? O que têm vocês?”. Responderam: “Nós encontramos você aqui deitado
na hora da chamada para a oração da alvorada. É só o que sabemos a seu
respeito. Onde você dormiu esta noite?”. Ele respondeu: “Por Deus, minha
gente, que esta noite eu estava dormindo no Cairo”. Alguém disse: “Ouçam só!”.
[205] Outro disse: “Deem-lhe um tapa, com força!”. E todos lhe disseram: “Meu
filho, você está doido! Dormir no Cairo e acordar em Damasco?”. Ele disse:
“Por Deus, minha gente, que nesta noite eu dormi lá para os lados do Egito, após
ter passado o dia na cidade de Basra. E eis que agora amanheço em Damasco!”.
Alguém disse: “Por Deus, essa é boa! Por Deus, essa é boa!”. Outro disse:
“Muito bom!”. Outro disse: “Ele está louco!”, e todos gritaram “louco!”, e à
força resolveram que ele enlouquecera. Passaram a discutir entre si e disseram:
“Que desperdício de juventude!”. E ainda disseram: “Não há contestação quanto
à sua loucura”. Disseram-lhe: “Meu filho, reponha o juízo na cabeça: existe
alguém neste mundo que pode estar em Basra durante o dia, à noite no Cairo, e
pela manhã em Damasco?”. Badruddīn Ḥasan de Basra respondeu: “Sim! Ontem
eu era noivo na cidade do Cairo”. Perguntaram-lhe: “Será que você não sonhou?
Não teria visto isso durante o sono?”. Duvidando de si mesmo, Badruddīn disse:
“Se eu dormi e sonhei que fui ao Cairo, e que fizeram a noiva desfilar na minha
frente e na frente do corcunda? Por Deus, meu irmão, que não foi sonho! Onde
está a bolsa cheia de ouro? Onde minhas roupas? Onde meu turbante, meu manto
e minha espada?”. O jovem se encontrava inteiramente confuso.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e espantosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.
84ª
noite das histórias
e estranhezas das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
A multidão começou a gritar “louco, louco!” para Badruddīn Ḥasan de Basra,
que se levantou e desatou a correr em meio à gritaria. Entrou na cidade e passou
pelas lojas e mercados enquanto cada vez mais gente ia se apinhando nas ruas
para vê-lo; Badruddīn enfim adentrou o estabelecimento de um cozinheiro, o
qual havia sido no passado um ladrão muito esperto, reconhecido entre seus
pares, mas que se arrependera dos crimes e abrira aquela casa de pasto. Como
toda a população de Damasco tinha temor a ele e à sua perversidade, quando
viram que Badruddīn ali se refugiara, deixaram-no de lado, dispersaram-se e
foram cuidar da vida. O cozinheiro olhou para Badruddīn e perguntou: “De onde
você é, meu jovem?”. O rapaz lhe relatou sua história do começo ao fim – e
agora a repetição não trará nenhum benefício. O cozinheiro disse: “Sua história é
assombrosa, mas oculte-a consigo até que Deus melhore a sua situação. Fique
aqui comigo nesta loja. Como não tenho filhos, adotarei você”, e Badruddīn
respondeu: “Sim, senhor”. O cozinheiro saiu, comprou-lhe roupas e o fez vesti-
las. Depois, foi com ele até algumas testemunhas, diante das quais declarou que
o rapaz era seu filho. Badruddīn tornou-se conhecido na cidade como filho do
cozinheiro, junto ao qual se instalou trabalhando na balança, condição essa que
lhe proporcionou estabilidade. Isso foi o que sucedeu a Badruddīn Ḥasan.
Quanto à sua prima Sittulḥusni, o fato é que, quando amanheceu, ela acordou e,
não encontrando Badruddīn, acreditou que ele fora ao banheiro. Esperou alguns
momentos, e eis que o seu pai, o vizir egípcio Šamsuddīn Muḥammad, irmão de
Nūruddīn ᶜAlī, pai de Badruddīn Ḥasan, estava de saída, pesaroso e entristecido
com o que o sultão lhe fizera, obrigando-o a casar a filha com o mais vil de seus
lacaios, um corcunda sem serventia. Caminhou pela casa até chegar à entrada do
quarto de núpcias, diante de cuja porta parou e chamou: “Ó Sittulḥusni!”. Ela
respondeu: “Já vou, já vou!”, e saiu ao seu encontro, beijando-lhe a mão, com o
rosto mais iluminado e belo por ter ficado abraçado com aquela gazela. O pai lhe
perguntou: “Ó maldita! Você está tão feliz assim com esse corcunda maldito?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

85ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Quando ouviu seu pai lhe perguntar: “E você está tão feliz assim com esse
corcunda maldito?”, a jovem Sittulḥusni sorriu e disse: “Dê-me uma trégua,
papai! Já não basta o que me ocorreu ontem durante o dia, e que deixou todas as
mulheres em grande pesar por minha causa? E o senhor ainda continua
zombando de mim com a escória dos corcundas, que não serve nem para
conduzir a mula ou as chinelas do meu marido? Por Deus, perca eu o pescoço se
acaso a noite de ontem não foi a melhor de toda a minha vida! Chega de zombar
de mim e de mencionar o tal corcunda que vocês contrataram para afastar os
maus-olhados da juventude do meu marido”. Ao ouvir essas palavras, seu pai
ficou furioso, arregalou os olhos e perguntou: “Ai de você! Que palavras são
essas? Que está dizendo? O corcunda não dormiu aqui?”. A moça respondeu:
“Chega de falar do corcunda! Amaldiçoe Deus o corcunda! O que é esse tal
corcunda? Chega de me irritar com o corcunda! Eu não dormi senão no regaço
de meu marido verdadeiro, o dono dos olhos negros e das arqueadas
sobrancelhas negras!”. O pai disse aos gritos: “Ai de você! Está ficando louca,
sua iníqua?”. Ela respondeu: “Ai, meu pai! O senhor está dilacerando o meu
fígado! Chega de me espezinhar! Juro por Deus que o rapaz gracioso é o meu
marido: ele me desvirginou e engravidou. Agora, ele está no banheiro”. O pai
então entrou no banheiro, e encontrou o corcunda com a cabeça enfiada na
latrina e os pés para cima. Surpreso, exclamou: “Ei, corcunda!”, e o corcunda
respondeu: “Prontinho, prontinho!”. O vizir perguntou: “O que está
acontecendo? Quem fez isso com você?”. O corcunda respondeu: “E vocês não
acharam senão de me casar com a namorada dos búfalos e amante dos gênios?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

86ª
noite das histórias
espantosas e narrativas
insólitas das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
O corcunda perguntou ao pai da noiva: “E vocês não acharam senão de me
casar com a namorada dos búfalos e amante dos gênios? Amaldiçoe Deus o
diabo, e também a minha hora!”. O vizir Šamsuddīn lhe disse: “Levante-se e vá
embora”, mas ele respondeu: “E eu sou doido? O sol ainda não nasceu. Só vou
me mexer deste lugar quando o sol nascer, pois ontem, quando eu vim para cá
me aliviar, mal me dei conta e subitamente um gato preto entrou aqui, pondo-se
a gritar comigo e a crescer até ficar do tamanho de um búfalo; ele me disse
palavras que me entraram direitinho pelos ouvidos. Assim, deixe-me e vá cuidar
da sua vida, pois a recompensa quem dá é Deus altíssimo! Amaldiçoe Deus a
noiva!”. O vizir foi até ele e o retirou da latrina. O corcunda abalou para fora da
casa e foi diretamente até o sultão, a quem relatou o que lhe sucedera com o ifrit.
Quanto ao pai da noiva, ele entrou em casa atarantado, o juízo abalado, perplexo
com o que ocorrera à sua filha. Foi até ela e ordenou: “Ai de você! Conte-me
agora o que lhe aconteceu!”. Ela respondeu: “Ai, meu pai, não há história
nenhuma! Quem dormiu comigo foi aquele homem diante do qual eu desfilei
ontem. Ele me desvirginou e eu, por Deus, estou grávida dele. Eis ali o seu
turbante em cima da cadeira, sua espada e seu manto; eis aqui suas roupas
debaixo do colchão, estão até com algo enrolado, não sei o que seja”. O vizir
recolheu o turbante de Badruddīn Ḥasan, filho de seu irmão, e, examinando-o e
revirando-o, disse: “Por Deus que este é um turbante de vizir, mas está enrolado
à maneira de Mossul.[206] Em seguida, ele viu um invólucro com folhinhas
costurado no forro do turbante; recolheu-o e examinou-o, e também aos calções,
nos quais encontrou a bolsa com os mil dinares e, junto com eles, um papel que
ele desdobrou e leu: “Eis o que Badruddīn Ḥasan de Basra vendeu para Isḥāq, o
judeu: o carregamento do primeiro navio que aportar, por mil dinares, quantia
essa que ele já recebeu”. Ao terminar a leitura daquele papel, o vizir soltou um
grito e caiu desfalecido.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me poupar”.

87ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse para o califa:
Quando o vizir Šamsuddīn acordou do desmaio, ó comandante dos crentes, e
assimilou o conteúdo da história, ficou assombrado, abriu o invólucro com
folhinhas que estava costurado no forro do turbante e o leu: eis que estava escrito
com a letra de seu irmão Nūruddīn! Ainda mais assombrado, ele disse: “Você
porventura sabe quem a desvirginou, minha filha? Por Deus que foi o seu primo,
filho do seu tio paterno. Estes mil dinares são o seu dote. Louvado seja Deus,
que tudo pode! Eis aí o motivo do desentendimento que tive com meu irmão
Nūruddīn tornado realidade por Deus! Quem dera eu pudesse compreender como
é que essas coincidências ocorreram”. E relendo as folhinhas que estavam no
invólucro, nelas encontrou registros de data escritos com a letra de seu irmão
Nūruddīn ᶜAlī, o pai de Badruddīn Ḥasan de Basra. Vendo a letra do irmão,
Šamsuddīn pôs-se a beijar repetidamente aquelas folhinhas. Chorou, lamentou-se
e recordou o irmão. Observou sua letra e declamou:
“Vejo seus vestígios e me derreto de saudades,
vertendo copiosas lágrimas onde eles ficavam
e pedindo a quem, afastando-os, me desgraçou
que me conceda a graça de fazê-los retornar”.
Desdobrando as folhinhas, ele se pôs a lê-las e viu nelas os registros desde
quando Nūruddīn chegou a Basra, a data do matrimônio, da redação do contrato
de casamento, da consumação do casamento, a data em que sua esposa, mãe de
Badruddīn Ḥasan, deu à luz o menino, o registro de sua idade, e tudo o mais até
o ano de sua morte. Quando compreendeu tudo, foi dominado pelo espanto e se
balançou de emoção, pois, comparando o que sucedera ao irmão ao que sucedera
consigo próprio, constatou que tudo se correspondia: a data de casamento do
irmão em Basra, da consumação do casamento e do nascimento de seu filho
eram idênticas à data de seu casamento no Cairo, e tudo o mais, conforme a
providência divina, o que o fez refletir como, em seguida, seu sobrinho viera e
lhe desvirginara a filha. Tendo atinado com essas coisas, recolheu as folhinhas
que estavam no invólucro e o papel do recibo que estava na bolsa e foi informar
o caso ao sultão, que ficou sumamente assombrado e determinou que fosse
registrado por escrito e datado. Naquele dia, o vizir retornou para casa a fim de
aguardar o sobrinho, que não regressou. O vizir esperou o segundo dia, o
terceiro, e assim até o sétimo, mas não teve notícia do rapaz, nem dele
vislumbrou vestígio algum. Disse então: “Por Deus que farei algo nunca antes
feito por ninguém”, e, pegando tinteiro e papel, registrou por escrito uma
completa descrição do quarto de núpcias[207] tal como estava disposto e
também de tudo quanto ali havia, ordenando que se recolhessem e guardassem
os objetos do sobrinho: o turbante, os calções e a bolsa que continha os mil
dinares.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que eu lhes contarei na próxima noite, se eu viver e for poupada”.

88ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
A filha do vizir do Egito completou os dias e as noites de gestação, dando à
luz um menino varão cujo rosto era redondo como a lua e que parecia o
plenilúnio quando surge ou a alvorada quando irrompe, com uma fronte radiante
e faces rosadas; cortaram-lhe o cordão umbilical e passaram-lhe pó negro nos
olhos. Em seguida entregaram-no às aias, às camareiras e aos serviçais. Seu avô
lhe deu o nome de ᶜAjīb. E ᶜAjīb cresceu até atingir a idade de sete anos, quando
então o avô o enviou à escola, recomendando ao mestre alfaqui que o instruísse e
lhe desse boa educação. O menino ficou na escola por três, quatro anos. Nessa
época, começou a incomodar e aborrecer os pequenos colegas na escola com
agressões e insultos. As crianças se juntaram e foram prestar queixa daquela
situação ao inspetor da escola, que lhes disse: “Eu lhes ensinarei uma coisa que o
impedirá de continuar incomodando vocês e os deixará livres dele para sempre.
Amanhã, quando ele vier para a escola, sentem-se ao redor dele e joguem o
seguinte jogo: digam um ao outro ‘Só vai brincar conosco quem disser o nome
da mãe e o nome do pai. Quem não souber o nome da mãe ou do pai, será um
bastardo e não brincará conosco’”. As crianças ficaram contentes com aquilo.
No dia seguinte, pela manhã, todos foram para a escola, inclusive ᶜAjīb, filho de
Badruddīn Ḥasan de Basra, que se acomodou na sala de aula por algum tempo.
Entretanto, logo os pequenos cercaram-no e disseram: “Queremos jogar um
jogo, mas só vai entrar quem disser o nome de sua mãe e de seu pai”. Todos
disseram: “Muito bem!”. Um dos meninos começou: “Meu nome é Mājid, o de
minha mãe é Suttayta, e o do meu pai, ᶜIzzuddīn”.[208] Outro menino também
deu suas informações. Quando chegou a vez de ᶜAjīb, ele disse: “Meu nome é
ᶜAjīb, o nome de minha mãe é Sittulḥusni, e o do meu pai é Šamsuddīn, o vizir”.
Disseram-lhe: “Para cima de quem? Não, por Deus, ele não é seu pai”. O menino
disse: “Ai de vocês! O vizir Šamsuddīn não é meu pai?”. As crianças
gargalharam, bateram palmas e disseram: “Que Deus o proteja! Não se sabe
quem seja o seu pai! Por Deus que você não brincará conosco, nem se sentará ao
nosso lado!”, e se afastaram rindo dele, que, sufocado pelas lágrimas, começou a
chorar. O inspetor lhe disse: “Porventura você não sabe, ᶜAjīb, que Šamsuddīn é
seu avô, pai de sua mãe Sittulḥusni? Quanto ao seu pai, nem nós nem você
sabemos quem seja, porque sua mãe tinha sido casada pelo sultão com um
corcunda, mas vieram os gênios e dormiram com ela. Você não tem um pai
conhecido, e por esse motivo não poderá mais encarar as crianças desta escola;
do contrário, você não passará de um bastardo no meio deles. Não está vendo
que até os filhos do vendedor ou do verdureiro sabem os nomes do pai e da mãe,
ao passo que você, neto do vizir do Egito, não sabe o nome de seu pai? Ora,
ᶜAjīb, isso é de fato espantoso”.[209]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu sobreviver”.

89ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte, Šahrāzād disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Ao ouvir as palavras e o escárnio das demais crianças, ᶜAjīb saiu e foi para
casa, onde entrou chorando, falar com sua mãe, Sittulḥusni. Com o coração
inflamado de tristeza pelo choro do menino, a mãe lhe perguntou: “O que o faz
chorar, meu filho? Que Deus jamais faça nenhum dos seus olhos chorar”. Sem
parar de chorar, ᶜAjīb contou o que lhe havia sucedido e perguntou: “Quem é o
meu pai?”. Ela respondeu: “O vizir do Egito”. O menino replicou: “Mentira! O
vizir do Egito é meu avô. Ele é seu pai, não meu. E eu sou filho de quem?”.[210]
A simples menção ao seu marido, primo e pai de seu filho, fez Sittulḥusni
começar a chorar amargamente. Recordando a noite que passara com Badruddīn
Ḥasan, ela recitou a seguinte poesia:
“Introduziram o afeto em meu coração e partiram;
meu lar ficou deveras esvaziado, pois quem amo
está demasiado longe desta casa e de seus moradores,
e distante está o local de visita: logo, não há visita.
Toda a minha firmeza se foi desde que eles se foram,
e fui abandonada por toda resignação e paciência;
também minha alegria se evadiu de mim e partiu;
e minha coragem desapareceu para não mais voltar;
na separação, o sangue escorreu por minhas pálpebras:
lágrimas copiosas pela separação para jamais;
se um dia eu sofrer pelo anelo de os ver,
e a carinhosa espera se mostrar muito longa,
sua figura se desenhará no meio de meu coração:
será paixão, será lembrança, será reflexão.
Ó donos da memória que me aniquila,
e pelos quais meu amor já virou emblema!
Acaso o prisioneiro de seu amor não tem resgate?
Acaso quem seu amor alquebrou não se recomporá?
Acaso o enfermo por desejar seu contato terá remédio?
Acaso o morto por seu abandono não vencerá?
Amados, até quando vai durar essa indiferença?
E até quando esse afastamento, essa esquiva?”.
Disse o narrador : em seguida, ela chorou junto com o filho. Estavam ambos
nessa situação quando o vizir Šamsuddīn entrou em casa e lhes perguntou: “O
que os faz chorar?”. A filha o informou do que acontecera com o menino, e o
vizir, levado pelo choro deles, também começou a chorar, lembrando do irmão,
do sobrinho e do que sucedera à filha, sem conseguir atinar com o sentido oculto
dessa história. Então, de chofre, ele saiu e foi até o sultão, rei do Egito, e lhe
relatou toda a história; beijou o chão diante dele e solicitou uma licença para
viajar até os países do Oriente e passar pela cidade de Basra, a fim de indagar
sobre o seu sobrinho; pediu ainda que o sultão mandasse escrever cartas oficiais
de alta dignidade para todas as províncias e regiões determinando que, onde quer
que o encontrassem, o seu sobrinho fosse detido. E, como ele chorasse, o sultão
se compadeceu dele e mandou escrever cartas e ordens oficiais para todas as
províncias e regiões. Muito contente, o vizir agradeceu ao sultão, rogou por ele e
imediatamente retornou para casa, onde ultimou os preparativos para a viagem.
Levando consigo a filha[211] e o neto ᶜAjīb, ele deu início à viagem.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e espantosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu sobreviver e for
poupada”.

90ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte, Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Então o vizir egípcio, tio paterno de Badruddīn Ḥasan de Basra, viajou com a
filha e o neto pelo período de vinte dias, até que chegou a Damasco, onde
encontrou rios e aves conforme a poesia que a respeito fizera o poeta:
“Passei em Damasco um dia inteiro e uma noite;
o tempo prometeu estada sem igual, e não mentiu.
Dormimos nas asas da noite que também dormia;
veio então a manhã sorridente, salpicada de luzes;
a orvalhada nos galhos das árvores se assemelha a
pérolas que, acariciadas pela brisa, despencam ao chão;
suas aves recitam, no lago plácido qual lâmina,
o que os ventos escrevem e as nuvens pontuam”.
Disse o narrador : o vizir se dirigiu ao Campo dos Seixos, onde montou tenda e
determinou aos seus acompanhantes: “Fiquemos aqui dois ou três dias para
descansar”. Os criados e serviçais do vizir entraram na cidade, a fim de
satisfazer suas premências: um foi comprar, outro vender, outro à casa de
banhos. Acompanhado do criado eunuco que o servia, ᶜAjīb entrou em Damasco
para admirar a cidade. O eunuco, sempre atrás de ᶜAjīb, carregava uma vara de
amendoeira, vermelha e cheia de nós, com a qual “se um camelo fosse surrado,
daria um pulo e iria parar no Iêmen”.[212] Quando a população de Damasco viu
ᶜAjīb, notou-lhe a graça e formosura apesar da pouca idade, bem como sua boa
constituição e perfeição de formas, tal como se disse a seu respeito na poesia:
“A fragrância é almíscar; as faces, rosa,
os dentes, pérola; a saliva, vinho;
a esbelteza, ramo; os quadris, duna;
os cabelos, noite; o rosto, lua cheia”.[213]
Disse o narrador : uma multidão passou a segui-lo; pessoas corriam à sua frente
e se sentavam no caminho para observá-lo com mais vagar quando ele passasse.
Até que, topando enfim com o que estava predestinado, quis o juízo e decreto
divino que o eunuco parasse diante do estabelecimento de Badruddīn Ḥasan de
Basra, pai do garoto. Badruddīn havia deixado a barba crescer e ganhara juízo
em Damasco, onde já vivia havia doze anos. O cozinheiro e ex-ladrão esperto
que o adotara havia morrido, e Badruddīn se apossara do estabelecimento e de
todo o seu dinheiro, uma vez que o cozinheiro o reconhecera como filho.
Quando seu filho ᶜAjīb e o eunuco pararam diante do estabelecimento...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. O rei disse: “Por Deus que
não a matarei até ouvir os sucessos entre o vizir Badruddīn Ḥasan, seu filho, seu
tio paterno e sua prima; depois, irei matá-la tal como as outras”.

91ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Quando ᶜAjīb e o eunuco pararam diante do estabelecimento de Badruddīn
Ḥasan de Basra, este os viu e olhou para o menino; ao distinguir nele graça e
beleza prodigiosas, seu coração bateu forte e ele foi tomado de simpatia
instintiva por aquele que era de seu próprio sangue; suas entranhas se reviraram
e seu coração sentiu grande ternura e confiança nele. Tamanha simpatia
instintiva foi provocada pelos divinos desígnios – glorificado seja, portanto,
aquele que tudo pode. Contudo, o seu filho ᶜAjīb estava com roupas tão
maravilhosas, cuja significação era insólita. Como naquele dia tivesse cozinhado
doce de romã, Badruddīn olhou para o menino e disse: “E então, meu mestre,
que se apossou de minha alma e coração, e por quem meu fígado clama, que
acha de entrar aqui e alegrar o meu coração comendo de minha comida?”, e seus
olhos começaram a verter lágrimas. Refletindo sobre a situação em que se
encontrava, depois de haver sido vizir e tido poder, ele recitou a seguinte poesia:
“Ai, meus amados, lágrimas me escorrem
e eu me questiono sobre o estado a que cheguei;
vejo vocês mas os evito, embora minhas
saudades sejam tantas que até uma fração delas mata.
Não tenho ódio e tampouco me consolo:
sou apenas um apaixonado de juízo”.
Disse o narrador : ᶜAjīb também sentiu simpatia instintiva por Badruddīn, e seu
coração palpitou forte por ele. Disse ao eunuco: “Amigo, meu coração se
enterneceu e eu sinto piedade por este cozinheiro. Até parece que ele perdeu um
filho ou irmão. Vamos entrar na cantina e alegrar-lhe o coração. Comamos como
seus convidados, e quem sabe essa nossa atitude não leve Deus a me reunir com
meu pai”. Ao ouvir essas palavras, o criado se irritou e disse: “Por Deus, essa é
boa! Filhos de vizires comendo em estabelecimentos de cozinheiros? E eu aqui
afastando as pessoas de você com esta vara, impedindo que o olhem! Não é
seguro deixá-lo entrar nesses estabelecimentos”. Ao ouvir as palavras do criado
eunuco, Badruddīn Ḥasan voltou-se para o filho e declamou a seguinte poesia:
“O que me espanta é que te isolem usando um criado,
sem saber que os criados de tua beleza são muitos;
manjericão é o teu bigodinho, âmbar a tua pinta,
rubis as tuas faces e pedras preciosas os teus dentes”.
Disse o narrador : Badruddīn Ḥasan se voltou para o eunuco e disse: “Ei, chefe,
por que você não dá uma satisfação ao meu coração e entra aqui? Você, que
parece uma castanha preta de cerne branco. Já houve quem o descrevesse em
versos”. O eunuco riu e perguntou: “E o que disse sobre mim quem me
descreveu em versos?”. Então Badruddīn recitou para o eunuco a seguinte
poesia:
“Não fossem seus bons modos e fidelidade,
não estaria na morada dos reis, controlando,
nem no harém. Oh, que excelente criado:
tem tantas virtudes que o servem os anjos celestes!
Seu negrume é o da melhor espécie, pois
seus brancos atos provocam largos sorrisos”.
Disse o narrador : o eunuco ficou admirado, sorriu e, conduzindo ᶜAjīb, entrou
no estabelecimento do cozinheiro Badruddīn Ḥasan de Basra, que lhes ofereceu
uma tigela de doce de romã, recheado com amêndoas e açúcar e muito bem
temperado; era um prato extremamente saboroso e de excelente aspecto.
Colocou-o diante deles e ambos comeram. ᶜAjīb disse ao pai: “Sente e coma
conosco. Quem sabe assim Deus não me reúne a quem procuro”. Badruddīn
Ḥasan perguntou: “E você, ainda tão pequeno, meu filho, também já sofreu a
desdita de ser separado de um ente querido?”. ᶜAjīb respondeu: “Sim, amigo. A
perda de entes amados me dilacerou o coração. Eu e meu avô estamos juntos em
viagem pelo mundo procurando nossos entes amados. Oh, ai de mim, quem dera
eu me reunisse a ele”, e começou a chorar. As lágrimas de seu filho levaram
Badruddīn Ḥasan a também chorar, recordando-lhe as separações que sofrera, a
distância a que se encontrava de sua mãe e de sua terra natal, e o exílio em que
vivia. Declamou então a seguinte poesia:
“Se acaso um encontro nos unisse após tanta distância,
tanto nós como vocês teríamos muito para nos queixar!
Por Deus, meras cartas já não satisfazem o coração,
nem das queixas do enamorado podem falar mensageiros!
Há censores que consideram excessivas minhas lágrimas,
mas mesmo esse tanto que eles condenam ainda é pouco!
Quando é que Deus vai proporcionar contato e encontro,
expulsando e fazendo desaparecer o que tanto aflige?
Quando nos encontrarmos, reclamarei de sua distância,
e para tal queixume não servirá língua de mensageiro”.
Disse o narrador : e o eunuco igualmente chorou por ele. Após terem se
alimentado, o menino e o criado foram embora. Quando eles se retiraram da
cantina, pareceu a Badruddīn Ḥasan que seu sopro vital iria embora junto com
eles. Assim, não podendo permanecer sem eles um instante sequer, saiu do
estabelecimento e o fechou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu ficar viva”.

92ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan fechou o estabelecimento e saiu atrás de seu filho – sem
saber que era seu filho –, avançando e alcançando-os antes que eles saíssem pelo
portão de Damasco. Começou a caminhar atrás deles. O eunuco se voltou e, ao
vê-lo, perguntou: “Ai de você! O que deseja?”. Ele respondeu: “Chefe, depois
que vocês partiram, senti que minha vida partiu junto com vocês. Eu tenho um
assunto a tratar no Portão da Vitória; vou resolvê-lo e voltar”. O eunuco se
irritou e disse a ᶜAjīb: “Olhe só o que você me aprontou! Eu estava justamente
com medo de que isso acontecesse. A cegueira cegou a gente[214] e entramos na
cantina desse aí; comemos ali uma porcaria de bocadinho e agora ele acha que
estamos lhe devendo algum favor. Está se esgueirando atrás da gente de um
lugar a outro”. ᶜAjīb se virou e topou com o cozinheiro caminhando atrás de si.
Com as faces enrubescidas de irritação, ele disse ao eunuco: “Deixe-o fazer o
seu caminho; afinal, a rua pertence a todos os muçulmanos. Assim que sairmos
pelo portão da cidade, vamos para as nossas tendas; se ele for também, teremos
certeza de que está nos seguindo”, e, abaixando a cabeça, apertou o passo, com o
eunuco atrás. Badruddīn Ḥasan seguiu-os até o Campo dos Seixos. Quando se
aproximavam das tendas, ᶜAjīb se voltou bruscamente e viu o cozinheiro.
Enrubesceu, amarelou e receou que seu avó soubesse que ele andara entrando
num estabelecimento de cozinheiro e acabara sendo seguido por ele. Irritou-se.
Seu olhar se fixou no de Badruddīn Ḥasan, que agora parecia um corpo sem
vida. Parecendo-lhe que tais olhares fossem de algum golpista ou depravado, o
menino ficou ainda mais irritado; abaixou-se ao solo, de onde recolheu uma
grande pedra, de mais de duzentos gramas, esticou a mão e apedrejou o pai,
acertando-o na testa, que se rasgou de um supercílio a outro. Badruddīn Ḥasan
de Basra caiu desmaiado, com o sangue a lhe escorrer pelo rosto, enquanto ᶜAjīb
e o eunuco entravam nas tendas. Badruddīn Ḥasan despertou depois de alguns
momentos, limpou o sangue, tirou o turbante, fez uma bandagem sobre o
ferimento e se recriminou dizendo: “Fui injusto com esse menino. Fechei minha
cantina e o segui, fazendo-o achar que eu era um golpista ou depravado
qualquer”. E retornou à cantina, onde de pouco em pouco se desfazia de
saudades por sua mãe e pela cidade de Basra. Chorou e declamou a seguinte
poesia:
“Não peça justiça ao destino, pois isso é injusto;
tampouco o censure: ele não foi feito para ser justo.
Limite-se ao que alegra e deixe a tristeza de lado,
pois nele é imperioso que se dê o puro e o impuro”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é
belo e insólito o seu discurso”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que
irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu sobreviver e for poupada”.

93ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan retornou à sua cantina e retomou sua atividade de vendedor
de comida. Quanto ao seu tio, o vizir, ele ficou em Damasco por três dias e saiu
em viagem para Homs; ali entrou, procurou pelo sobrinho e seguiu viagem;
entrou em Hama e ali pernoitou; no dia seguinte, procurou pelo sobrinho e
seguiu viagem, avançando em marcha contínua até chegar a Alepo, onde ficou
dois dias e depois viajou; entrou em Mardin, Mossul, na cidadela de Sinjar e
atravessou Diyar Bakir.[215] Continuou viajando até chegar à cidade de Basra,
onde entrou e foi recebido pelo sultão, que o dignificou, acomodou num lugar
elevado e indagou sobre o motivo da visita. Šamsuddīn lhe relatou sua história e
que era irmão do vizir Nūruddīn ᶜAlī do Egito. O sultão ficou compadecido e lhe
disse: “Ó, companheiro, faz uns quinze[216] anos que ele faleceu, deixando um
filho que, após sua morte, não ficou por aqui senão um mês. Mandamos procurá-
lo, mas dele não nos chegou nenhuma notícia ou vestígio. Sua mãe, porém, vive
conosco. Ela é filha do meu falecido vizir-mor”. Šamsuddīn Muḥammad pediu
então para se encontrar com a mulher, e recebeu a devida autorização. Dirigiu-se
até a casa de seu irmão Nūruddīn ᶜAlī, percorreu-a com o olhar, beijou a soleira
da porta e, pensando em como seu irmão morrera no exílio, discursou recitando
a seguinte poesia:
“Passo pelas casas que foram de Layla:
beijo-lhes esta parede e mais aquela;
não é de amor pelas casas que me arde o coração,
mas sim de amor por quem nelas morou”.
Disse o narrador : ele entrou pelo portão maior, e dali foi dar num pátio
espaçoso com uma porta de granito branco e preto, em forma de arco,
guarnecida por diversas variedades de mármore brilhante e de todas as cores.
Examinou todos os cantos da casa, observou bem, percorreu o olhar por ali e
acabou encontrando o nome de seu irmão Nūruddīn gravado com tinta dourada e
lazurita iraquiana; caminhou na direção do nome, beijou-o, lembrou do irmão e
da separação ocorrida entre ambos. Chorou e pôs-se a declamar a seguinte
poesia:
“Pergunto ao sol sobre vocês sempre que nasce,
indago o relâmpago sobre vocês sempre que brilha,
durmo, embora a saudade me esmague e corroa
com suas mós; mas a ela não me queixo de dores.
Amores meus, se este tempo tão longo for prorrogado,
depois de nossa separação estarei mais dilacerado;
se acaso concedessem a meus olhos que os vissem,
isto seria o suficiente para nos manter unidos.
Não pensem que estou ocupado com outros,
pois em meu coração não cabem alheios amores.
Piedade por um amante ardente de paixão doentia,
cujas entranhas, sem vocês, estão despedaçadas.
Se o destino me concedesse ao menos revê-los,
eu lhe agradeceria muito por tamanha mercê.
Não proteja Deus o delator que nos quis separar!
Pequeno seja o solo para quem lutou por nos separar!”.
Em seguida, dirigiu-se até a porta do pátio. A esposa de seu irmão, mãe de
Badruddīn Ḥasan de Basra, mantivera-se, durante todo o período de sua
ausência, em choros e lamentações diuturnas. Depois, como a ausência se
prolongasse demasiado, fez um túmulo para o filho no centro do pátio e pusera-
se a chorar sobre ele, diuturnamente. Ao chegar, seu cunhado parou atrás da
porta do pátio e encontrou-a com os cabelos estirados sobre o túmulo,
recordando seu filho Badruddīn Ḥasan, chorando e declamando os seguintes
versos:
“Ó túmulo, ó túmulo! Terão seus méritos se extinguido,
ou porventura se extinguiu essa figura resplandecente?
Ó túmulo, se não és jardim e muito menos astro,
como podem em ti reunir-se o sol e a lua?”.[217]
Šamsuddīn se dirigiu a ela, cumprimentou-a, informou que era seu cunhado e
relatou-lhe a história.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

94ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte Šahrāzād disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Šamsuddīn deixou a mulher a par de toda a história: de que Badruddīn Ḥasan
passara uma noite em sua casa, havia doze[218] anos, desaparecendo pela
manhã; de que consumara o casamento com a sua filha e a desvirginara naquela
noite; de que ela engravidara e, completado o ciclo normal, dera à luz um
menino varão – “que veio comigo; é o filho do seu filho”. Ao ouvir notícias a
respeito do filho, e saber que ele estava vivo e bem, e ao ver o cunhado, a mãe
de Badruddīn Ḥasan de Basra levantou-se e se jogou aos seus pés, chorando
amargamente e declamando os seguintes versos:
“Como é bom quem me dá a boa-nova de sua vinda,
e que trouxe aos meus ouvidos tanta coisa agradável.
Se de mim aceitasse algum trapo, eu lhe concederia
um coração que se dilacerou no momento do adeus”.
Em seguida ela abraçou ᶜAjīb, estreitou-o ao peito, beijou-o e chorou por um
bom tempo. O vizir lhe disse: “Esta não é hora de pranto. Arrume suas coisas e
venha comigo para a terra do Egito. Quem sabe ainda não nos reunamos com o
filho de meu irmão, que é também seu filho. Eis aí uma história que merece ser
registrada por escrito”. Imediatamente ela se levantou e arrumou suas coisas. O
vizir foi até o sultão e se despediu. O sultão mandou equipá-lo para a viagem,
despediu-se e enviou presentes para o rei do Egito. E Šamsuddīn tomou o
caminho de volta a Basra. Viajou até chegar a Alepo, onde acampou durante três
dias. Dali retomou viagem até chegar a Damasco, e montou tenda em um lugar
chamado Qābūn. Disse aos seus acompanhantes: “Ficaremos por aqui dois ou
três dias, a fim de comprar presentes e tecidos para o rei do Egito”, e foi resolver
o que tinha de ser resolvido. ᶜAjīb saiu e disse ao eunuco: “Ei, amigo, por que
não vamos até Damasco ver e investigar o que aconteceu com aquele cozinheiro
em cuja cantina comemos e cuja cabeça estouramos? Ele nos tratou bem e nós o
tratamos mal!”. O eunuco lhe disse: “Claro, com o auxílio de Deus!”, e saíram
ambos da tenda. Era o parentesco consanguíneo que impelia ᶜAjīb a encontrar-se
com o pai. Caminharam até o centro de Damasco, entrando pelo Portal do
Paraíso. Perambularam pela cidade e pelo grande mercado, depois de terem
ficado a contemplar a mesquita omíada[219] até o entardecer. Passaram pela
cantina de Badruddīn Ḥasan e o encontraram lá dentro. Ele havia cozinhado um
delicioso doce de romã recheado com julepo, coberto com água de rosas e
cardamomo. A comida estava pronta para ser servida. ᶜAjīb olhou para ele, sentiu
simpatia e observou que em seu rosto ainda restava uma grande marca negra que
ia de um supercílio a outro, em razão da pedrada que lhe desferira. Seu coração
sentiu simpatia e carinho, e foi invadido pela piedade por aquele homem. Disse
enfim a seu pai: “A paz esteja contigo! Estou preocupado com você”. Ao olhar
para ele, as entranhas de Badruddīn se reviraram e seu coração disparou. As
consanguinidades recíprocas se enterneciam entre si. Abaixou a cabeça e,
embora pretendendo movimentar a língua e responder, não conseguiu.
Atordoado, ergueu a cabeça para o filho, submisso e humilhado, e passou a
recitar a seguinte poesia:
“Desejei quem eu amo, e quando o encontrei
calei-me: perdi o domínio da língua e dos olhos,
cabisbaixo, em deferência e respeito a ele.
Tentei esconder o que sentia, não consegui:
havia em meu coração desgostos demais,
e ao nos encontrarmos não proferi palavra”.
Em seguida lhe disse: “Meu senhor, quem sabe você não conserta aquilo que
quebrou em meu coração? Basta entrar aqui, você com seu tutor, e comer de
minha comida. Por Deus, mal eu o vejo e meu coração entra em disparada;
quando o segui, havia perdido o juízo”. Então ᶜAjīb respondeu...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e prodigiosa sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

95ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jaᶜfar disse ao califa:
Então Badruddīn Ḥasan de Basra disse ao filho: “Só segui você por estar com
o juízo fora do lugar”. ᶜAjīb respondeu: “Acho que você gosta de mim mais que
o necessário. Só porque comemos uns bocadinhos na sua cantina, você resolveu
grudar na gente e tentou nos desonrar. Agora, não comeremos nada aqui, a não
ser com a condição de que você jure que não vai mais ficar nos seguindo nem
vigiando, e que tampouco vai ficar fazendo alegações de que lhe devemos algo.
Do contrário, não voltaremos aqui nunca mais. Ficaremos acampados nesta
cidade por alguns dias, o tempo suficiente para o meu avô poder comprar
presentes para o rei do Egito”. Badruddīn Ḥasan disse: “Claro, com o auxílio de
Deus! Acordo fechado!”. ᶜAjīb e o eunuco entraram na cantina e ele encheu uma
tigela, pegando o doce da parte de cima do tacho, e a colocou na frente deles.
ᶜAjīb lhe disse: “Sente e coma conosco”. Muito contente, Badruddīn Ḥasan
sentou-se para comer junto com o filho, mas permaneceu aparvalhado à sua
frente, com todos os membros de seu corpo enternecidos pelo menino, que lhe
disse: “Olha só! Eu não lhe disse que o seu afeto é uma chatice? Chega de ficar
me encarando!”. Badruddīn Ḥasan soltou um gemido e declamou o seguinte:
“Provocas nos corações pensamentos secretos
e intenções recônditas que não se publicam.
Ó tu, que humilhas a lua radiante com tua beleza,
e cujos encantos imitam os da manhã nascente!
A luz de teu rosto produz anseios que não cessam,
mas sempre maltratam, aumentam e crescem!
Derreto em meu próprio fogo, teu rosto, meu paraíso,
e morro de sede por tua saliva paradisíaca”.
E então comeram todos. Badruddīn ora dava um bocado a ᶜAjīb, ora ao eunuco.
Comeram até se satisfazer e se levantaram. Badruddīn também se levantou e lhes
derramou água nas mãos. A seguir, desamarrou uma toalha de sua cintura para
que se enxugassem e aspergiu água de rosas de um vidro sobre eles. Depois, saiu
correndo da cantina e logo retornou com um jarro de cerâmica contendo
suco[220] de água de rosas com gelo e açúcar. Colocou o jarro diante deles e
lhes disse: “Completem a mercê que me concederam”. ᶜAjīb pegou o jarro,
bebeu e passou-o ao eunuco, que também bebeu. Satisfeitos, de barriga bem
estufada, saciados de um modo ao qual não estavam habituados, despediram-se,
agradeceram e, apertando o passo, atravessaram o Portão Oriental da cidade,
indo diretamente até suas tendas. ᶜAjīb foi ter com a avó, a mãe de Badruddīn
Ḥasan de Basra, que o beijou, recordando-se do filho e dos dias nos quais ele
estava junto com ela. Suspirou profundamente e chorou tanto que molhou os
véus e declamou a seguinte poesia:
“Não fosse a esperança de que nos encontraremos,
minha vida sem vocês já não teria nenhum objetivo.
Jurei que em meu coração só restaria o seu amor.
E Deus, meu senhor, conhece todos os segredos”.
A seguir ela perguntou: “Onde você estava, meu filho?”, e lhe ofereceu uma
tigela de comida. Quis o acaso que também eles tivessem cozinhado doce de
romã, ao qual, contudo, faltava açúcar. Enfim, ela lhe ofereceu uma tigela cheia
e pão, e disse ao eunuco que o acompanhava: “Coma com ele”. O eunuco
pensou: “Por Deus que não aguentaremos nem sequer sentir cheiro de pão”, e se
sentou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

96ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
O eunuco se sentou, mas já estava farto de comida e bebida. ᶜAjīb mergulhou
o pão no doce de romã e comeu um bocado, que lhe pareceu ter pouco açúcar.
Como ele estivesse igualmente saciado, disse: “Nossa! Que comida ruim”.
Admirada, a avó lhe perguntou: “Você está botando defeito na minha comida,
meu filho? Fui eu que a cozinhei com minhas próprias mãos, e ninguém sabe
fazer esse doce melhor do que eu, com exceção do meu filho Badruddīn Ḥasan”.
ᶜAjīb replicou: “Você não cozinhou direito, vovó! Agora mesmo nós vimos na
cidade um cozinheiro que fez um doce de romã com aroma tão delicioso que
abria o coração, e cujo sabor abria o apetite. Comparada a ela, essa sua comida
não vale nada”. Ao ouvir tais palavras, a avó se irritou e, lançando um olhar para
o eunuco, perguntou: “Maldito, está corrompendo o meu neto? Levou-o para
comer em cantinas de cozinheiros na cidade?”. Ouvindo a pergunta, o eunuco
ficou receoso e respondeu: “Não, senhora, por Deus que não comemos coisa
nenhuma, apenas passamos rapidamente diante de uma cantina”. ᶜAjīb, porém,
disse: “Não, por Deus, vovó, nós entramos na cantina de um cozinheiro e ali
comemos, não só desta vez como da outra. Era um doce de romã melhor do que
o seu!”. Encolerizada, a avó se levantou e foi informar o sucedido ao cunhado, e
fez carga contra o eunuco. Šamsuddīn Muḥammad gritou com ele e disse: “Seu
maldito! Onde levou meu neto? O que fez com ele?”. O eunuco, com medo de
apanhar, negou tudo, mas ᶜAjīb denunciou-o dizendo: “Sim, vovô, por Deus que
comemos até nos saciar, até a comida sair pelo nariz! E o cozinheiro ainda nos
deu de beber suco doce gelado”. O vizir ficou furioso e disse: “Quer dizer então,
escravo malsinado, que você faz o meu neto frequentar cantinas de
cozinheiros?”. Como o eunuco negasse, o vizir continuou: “Mas o menino está
aqui afirmando que vocês comeram até se fartar. Se você estiver dizendo a
verdade, coma essa tigela de doce de romã aí na sua frente”. O eunuco
respondeu “sim”, e estendeu a mão para a tigela; comeu o primeiro bocado, mas
não conseguiu engolir o segundo, que jogou de lado; afastou a comida dizendo:
“Por Deus, meu senhor, estou saciado desde ontem!”. O vizir percebeu o que de
fato ocorrera; mandou que estirassem o eunuco ao solo e lhe aplicou uma sova;
ele começou a gritar por socorro e, pelando-se de dor, disse: “Meu senhor,
entramos na cantina de um cozinheiro e comemos. O doce de romã dele era mais
gostoso do que este”. Furiosa, a mãe de Badruddīn Ḥasan de Basra disse ao
eunuco: “Por Deus, rapaz, pelo Deus que ainda irá me reunir ao meu filho, é
indispensável que você vá buscar para mim uma tigela do doce de romã desse
cozinheiro, e deixe que o seu senhor o examine, a fim de nos certificarmos qual
acepipe é melhor e mais saboroso”. O escravo respondeu: “Sim, sim”, e ela lhe
deu uma tigela e meio dinar. O eunuco foi correndo até o cozinheiro, a quem
pediu: “Ó, maioral dos cozinheiros, fizemos uma aposta sobre a sua comida na
casa do patrão. Dê-me meio dinar de doce de romã, e preste muita atenção; já
apanhamos por ter entrado aqui; não vá agora nos fazer apanhar de novo por
causa da sua comida”. Badruddīn Ḥasan de Basra riu e disse: “Por Deus, chefe,
ninguém sabe fazer essa comida direito senão minha mãe e eu, mas ela hoje se
encontra numa terra distante”. Em seguida, mergulhou a concha no tacho,
encheu a tigela, espalhou a cobertura sobre o doce e fechou-a; o eunuco
recolheu-a e saiu correndo até chegar aos seus amos. A mãe de Badruddīn Ḥasan
tomou a tigela, provou o doce e, sentindo a perícia com que fora feito, descobriu
quem era o cozinheiro; soltou um grito e desmaiou. O vizir, aturdido com aquilo,
borrifou-a com água e ela despertou dizendo: “Se o meu filho ainda estiver entre
os vivos neste mundo, esta comida não foi feita senão por ele, Badruddīn Ḥasan
de Basra!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

97ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Quando a mãe de Badruddīn disse: “Esta comida não foi feita senão por meu
filho Badruddīn Ḥasan de Basra! Ninguém mais sabe cozinhar assim!”, o vizir
ficou feliz, deu alvíssaras e disse: “Ai, ai, sobrinho! Será que Deus irá nos reunir
a você?”. Imediatamente mandou chamar os escravos, camareiros e almocreves
que o acompanhavam – eram cerca de cinquenta homens –, e lhes disse: “Vão
até a cantina desse cozinheiro carregando varas, bastões e coisas desse tipo, e
quebrem tudo quanto houver dentro dela, inclusive potes e pratos. Destruam a
cantina, amarrem o cozinheiro com seu próprio turbante e digam-lhe: ‘Você
cozinhou mal esse doce de romã’. Arrastem-no até aqui. Enquanto isso, eu irei
até o palácio do governo, mas logo retornarei. Que nenhum de vocês o espanque
ou agrida; limitem-se a amarrá-lo e trazê-lo para cá à força”. Eles responderam
“sim”. O vizir cavalgou até o palácio do governo, onde se entrevistou com o
administrador-geral de Damasco,[221] a quem mostrou e entregou as cartas
oficiais do rei do Egito. O administrador-geral beijou-as, leu-as e disse: “Onde
está o seu adversário?”. Respondeu: “É um cozinheiro”. O administrador-geral
então ordenou a um secretário que fosse até a cantina do tal cozinheiro. O
secretário foi, com quatro capitães, quatro guardas palacianos e seis soldados
que caminhavam à sua frente. Ao chegarem à cantina, encontraram-na demolida,
arruinada, e destruído tudo quanto ela continha. Ocorre que, enquanto o vizir
Šamsuddīn ia para o palácio de governo, seus criados, armados de bastões, paus
de montar tenda, porretes e espadas, foram todos, em grande confusão e pressa,
até a cantina. Não lhe dirigiram palavra: lançaram-se sobre seus potes, pratos e
utensílios, quebrando tudo, destruindo-lhe as tigelas, prateleiras e bandejas, e
arrebentando seus fogões. Badruddīn Ḥasan perguntou: “Mas o que está
acontecendo, gente?”. Disseram-lhe: “Foi você quem cozinhou o doce de romã
comprado pelo eunuco?”. Respondeu: “Sim, fui eu, e ninguém sabe fazer
melhor”. Então os homens gritaram com ele, insultaram-no e começaram a
destruir a cantina. Uma multidão começou a se ajuntar no local, e o que se via
era um grupo de cinquenta ou sessenta indivíduos destruindo o estabelecimento.
Indagaram: “Mas que enormidade está acontecendo?”, e Badruddīn Ḥasan disse
aos gritos: “Ó muçulmanos, que mal eu fiz com essa comida para vocês estarem
fazendo isso comigo? Quebraram meus utensílios e destruíram a minha
cantina!”, mas todos eles gritaram, ralharam e insultaram-no. Cercaram-no por
todos os lados, arrancaram-lhe o turbante, amarram-no com ele e retiraram-no da
cantina, começando a arrastá-lo à força, enquanto ele gritava por socorro e
chorava.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

98ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan se pôs a gritar por socorro, chorar e perguntar: “E o que
vocês acharam no doce de romã?”. Disseram: “Não foi você quem cozinhou o
doce de romã?”. Ele respondeu: “Sim, sim, muçulmanos! E qual é o problema?
O que provocou isso tudo?”.
Disse o narrador : enquanto eles se aproximavam do acampamento do vizir
Šamsuddīn, foram alcançados pelo secretário enviado com os capitães e demais
soldados. Os homens do vizir mostraram-lhe o prisioneiro. O secretário olhou
para Badruddīn, aplicou-lhe no ombro um golpe de bastão e disse: “Miserável,
foi você quem cozinhou o doce de romã?”. Chorando devido à dor da pancada,
ele respondeu: “Sim, meu senhor. Pelo amor de Deus, eu lhe peço que me diga
quais os alegados defeitos da minha comida!”. O secretário ralhou com ele,
insultou-o e disse aos circunstantes: “Arrastem este cachorro que cozinhou o
doce de romã”. Badruddīn chorou desesperado e pensou: “Pobre de mim! O que
será que eles encontraram no doce de romã para me submeterem a tamanha
tortura?”. Maltratado, ele nem ao menos sabia qual era o seu crime. Continuaram
arrastando-o e chegaram ao acampamento, onde esperaram por alguns momentos
até que o vizir, que já se despedira do administrador-geral da Síria e recebera
autorização para partir, regressasse do palácio do governo. Assim que chegou, o
vizir perguntou: “Onde está o cozinheiro?”, e colocaram-no diante dele. Ao olhar
para o seu tio, o vizir Šamsuddīn, Badruddīn Ḥasan chorou e implorou: “Meu
senhor, qual o crime que cometi contra vocês?”. Ele perguntou: “Desventurado!
Por acaso não foi você quem cozinhou o doce de romã?”. Dando um grito que
lhe pareceu sairia junto com a sua própria vida, Badruddīn respondeu: “Sim,
meu senhor, fui eu! Que desgraça eu cometi com o doce de romã? Será que terei
de ser decapitado?”. O vizir respondeu: “Pior. Essa será a sua punição mais
branda”. Disse Badruddīn: “Meu senhor, e por que não me diz logo qual o meu
crime, e qual o defeito do doce de romã?”. Respondeu o vizir: “Sim,
imediatamente”, e, chamando os criados, gritou com eles e disse: “Desmontem e
comecem a viagem!”, e eles imediatamente desmontaram as tendas e puseram os
camelos e dromedários de joelhos para carregar. Colocaram Badruddīn numa
caixa, que foi trancada e depositada sobre um camelo. Saíram de Damasco e
prosseguiram a viagem. Quando anoiteceu, fizeram alto e se alimentaram.
Retiraram Badruddīn da caixa, alimentaram-no, amarraram-no e o recolocaram
na caixa. E continuaram viajando no mesmo ritmo até que chegaram ao Egito,
onde acamparam nas cercanias do Cairo. O vizir ordenou que Badruddīn Ḥasan
fosse retirado da caixa, e assim se fez; puseram-no diante dele. Mandou chamar
um carpinteiro e trazer madeira. Ordenou ao carpinteiro: “Construa um
pelourinho de madeira”. Badruddīn Ḥasan perguntou: “Meu senhor, e o que vai
fazer com o pelourinho de madeira?”. Respondeu: “Vou crucificá-lo, depois
pregá-lo com pregos no pelourinho, e exibi-lo por toda a cidade, e isso por causa
do seu doce de romã feito com tanto mau agouro. Como você pôde cozinhá-lo
sem pimenta?”. Badruddīn Ḥasan disse: “Chega, chega! Tudo isso porque o doce
de romã estava sem pimenta?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

99ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan disse: “Então só porque o doce de romã estava sem pimenta
vocês me espancaram, destruíram minha cantina e quebraram meus utensílios?
Só porque o doce de romã estava sem pimenta? Ó muçulmanos! E, como se não
bastasse, ainda me amarraram e prenderam nesta caixa por dias e noites, com
uma refeição só, e todo tipo de tortura e sofrimento! E isso só porque o doce de
romã estava sem pimenta? Ó muçulmanos! E essas correntes nas minhas pernas?
E, como se não lhes bastasse, vocês ainda constroem um pelourinho de madeira
para me crucificar nele! E isso só porque o doce de romã estava sem pimenta?”.
Dominado pelo estupor, Badruddīn Ḥasan de Basra continuou: “Ai, ai, meu
Deus, faltava pimenta na minha comida! E qual a punição?”. Ele mesmo
respondeu: “A crucificação!”. E continuou: “Aaai! Então vocês vão me
crucificar porque o doce de romã estava sem pimenta?”, e começou a gritar, a
chorar e a dizer: “Ninguém nunca passou isso que eu estou passando, nem sofreu
o que estou sofrendo! Torturado, espancado, a cantina destruída e depenada, e
agora crucificado porque cozinhei doce de romã sem pimenta? Deus amaldiçoe o
doce de romã, e também a hora em que foi feito! ‘Quem dera eu morresse antes
disso’”.[222] E chorou. Quando viu os pregos chegando para a sua crucificação,
chorou até soluçar e se desesperou. As sombras desciam sobre o lugar e a noite
ia se precipitando. O vizir jogou Badruddīn Ḥasan dentro da arca, trancou-a e
disse: “Espere até amanhã, pois esta noite não teremos tempo de crucificá-lo”.
Atirado dentro da arca, chorando, Badruddīn Ḥasan dizia: “Não há poderio nem
força senão em Deus altíssimo e poderoso! Então irei morrer crucificado?
Como? O que eu fiz? Não matei nem cometi crime nenhum! Não xinguei nem
blasfemei! Mas ele falou que eu cozinhei o doce de romã sem pimenta!”. Era
isso o que estava ocorrendo. Quanto ao vizir, ele mandou que a arca fosse
colocada sobre um camelo, e entrou na cidade do Cairo depois que os mercados
tinham fechado. Foi para casa, e logo mais à noite chegou o grupo que o
acompanhara; deixaram ali ajoelhados os camelos e descarregaram os objetos e
bagagens. Embora estivesse muito atarefado, o vizir disse para a filha
Sittulḥusni: “Graças a Deus, minha filha, que reuniu você a seu primo e esposo.
Agora vá com os criados e arrumem a casa, e disponham tudo conforme estava
naquela noite do casamento, há doze anos”. Responderam todos: “Sim”. Em
seguida, o vizir ordenou que velas e lampiões fossem acesos. Trouxeram-lhe o
papel no qual ele registrara exatamente como a casa estava arrumada naquele
dia. Leu o papel em voz alta e eles arrumaram a casa conforme estava na noite
do casamento, colocando casa coisa em seu lugar; o turbante foi depositado na
cadeira do mesmo modo que Badruddīn Ḥasan o deixara naquela noite; também
as velas foram acesas e dispostas do mesmo modo que estavam. Os calções e a
bolsa com os mil dinares foram depositados sob o colchão, conforme Badruddīn
Ḥasan fizera naquela noite. O vizir foi até o pátio e disse para a filha: “Entre e
fique somente de roupas leves, conforme você estava na noite em que ele
consumou o casamento, e lhe diga: ‘Você se demorou muito nessa estada no
banheiro, meu senhor’. Deixe-o deitar ao seu lado e converse com ele até
amanhã, quando então lhe revelaremos estes eventos espantosos”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que eu lhes contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

100ª
noite das espantosas e
insólitas histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Eu tive notícia, ó comandante dos crentes, de que o vizir se dirigiu até onde
estava Badruddīn Ḥasan de Basra [e, enquanto este dormia, retirou-o do baú],
soltou as correntes que o prendiam e lhe arrancou as roupas, deixando-o somente
de túnica. [Ao acordar,][223] Badruddīn caminhou devagarinho até chegar
diante do aposento em que estava a noiva, cuja virgindade ele tirara e com quem
dormira. Olhando para o lugar, reconheceu-o: a mesma cama, o mesmo véu e a
mesma cadeira. Aturdido, espantado, deixou uma perna dentro do aposento e
outra fora. Observou toda a casa, duvidou de seu próprio juízo e disse: “Louvado
seja Deus poderoso! Estarei eu acordado ou sonhando?”, e começou a esfregar
os olhos. Então Sittulḥusni puxou um canto do véu que cobria a cama e disse:
“Ei, meu senhor, por que não entra logo? Você já se demorou muito no banheiro!
Volte para a sua cama!”. Ao ouvir-lhe as palavras e ver-lhe o rosto, Badruddīn
Ḥasan riu, assombrado, e disse: “Por Deus que essa é boa! Demorei no
banheiro?”. E entrou no aposento, recordando-se do que lhe acontecera há doze
anos. Ele olhava para o aposento, tornava a pensar, e mais se assombrava.
Perplexo, confuso, viu a cadeira sobre a qual estava o seu turbante, seu manto e
sua espada. Foi até o colchão, remexeu, e encontrou ali debaixo suas roupas e a
bolsa com o dinheiro. Disse, rindo: “Por Deus que essa é boa! Por Deus que essa
é boa!”. Sittulḥusni lhe disse: “E então, meu senhor, por que está rindo sem
motivo? Por que está tão espantado e assombrado com a casa?”. Ouvindo tais
palavras, ele riu e perguntou: “Quanto tempo faz que eu estou longe de você?”.
Ela respondeu: “Xiiii! ‘Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador’, que
ele o proteja! Ué, você não tinha saído por uns instantes para se aliviar e logo
retornaria? Você está com algum problema na cabeça?”. Ele riu e disse: “Por
Deus que você fala a verdade, mulher! Mas parece que eu saí do seu lado e
esqueci de mim mesmo no banheiro, e tive sono lá. Parece que eu sonhei ter
estado em Damasco trabalhando como cozinheiro durante doze anos. Então, fui
visitado por um menino com um criado”. Em seguida, passando a mão na testa,
encontrou o ponto em que levara a pedrada e disse: “Não, por Deus! Isso
aconteceu de fato! É como se ele tivesse me dado uma pedrada que me rachou a
testa! Por Deus, camarada, é como se isso tivesse ocorrido durante a vigília!”.
Em seguida voltou atrás: “Não, mulher, por Deus que é como se eu, desde a
horinha em que nos abraçamos e dormimos, é como se eu tivesse sonhado que
fui a Damasco, sem calções e de barrete, e é como se eu tivesse trabalhado como
cozinheiro”. E, voltando atrás, disse: “Sim, mulher, por Deus que é como se eu
tivesse sonhado que cozinhei doce de romã com pouca pimenta! Sim, minha
senhora, por Deus que eu dormi no banheiro e sonhei todas essas coisas!
Contudo, minha senhora, foi um longo sonho!”. Ela lhe perguntou: “E o que
mais você sonhou, meu senhor? Conte-me!”. Badruddīn Ḥasan de Basra disse:
“Se eu não tivesse acordado, minha senhora, eles teriam me crucificado!”. Ela
perguntou: “E por quê?”. Ele respondeu: “Porque eu cozinhei doce de romã sem
pimenta. É como se eles tivessem destruído minha cantina, quebrado meus
utensílios, me amarrado, acorrentado, colocado numa arca e, por fim, trazido um
carpinteiro a fim de construir um pelourinho de madeira para me crucificarem.
Tudo isso por causa do doce de romã sem pimenta! Graças a Deus que tudo isso
aconteceu em sonho, e não em vigília!”. Sittulḥusni riu, e ambos se estreitaram
no peito um do outro. Refletindo mais sobre o assunto, ele disse: “Minha
senhora, o que me aconteceu não foi senão durante a vigília! Não há poderio
nem força senão em Deus altíssimo e poderoso! Por Deus, como essa história é
insólita!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que se calou e parou de falar. Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu:
“Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver
e o rei me poupar”.

101ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que Jaᶜfar disse ao califa:
Badruddīn Ḥasan de Basra passou aquela noite com a mente em grande
confusão. Ora ele dizia “sonhei”, ora ele dizia “parece-me que eu estava
desperto”, ora olhava para a arrumação do aposento e para a noiva e dizia,
assombrado: “Por Deus, meu irmão, até agora não passei nem sequer uma noite
inteira ao seu lado”, e tornava a dizer “parece-me que eu estava desperto”. E
nesse estado ficou até o alvorecer, quando então seu tio entrou e o saudou.
Badruddīn Ḥasan olhou para ele e, reconhecendo-o, ficou meio transtornado e
perguntou: “Opa, opa! Não foi você que ordenou que eu fosse surrado,
amarrado, acorrentado e pregado no pelourinho por causa do doce de romã sem
pimenta?”. O vizir respondeu: “Meu filho, a verdade surgiu, e manifestou-se o
que estava oculto: você é, em verdade, o filho de meu irmão. Só fiz o que fiz
para me certificar de que foi de fato você que possuiu minha filha naquela noite.
Você conhece seu turbante e suas demais roupas, o recibo das moedas de ouro e
as folhinhas que meu irmão escreveu, e que você colocou num invólucro de pano
costurado no forro de seu turbante. Assim, se este que nós trouxemos não for
quem pensamos, que o negue”, e recitou a seguinte poesia:
“O destino não é de constantes certezas:
são necessárias ora alegrias, ora tristezas”.
E em seguida mandou chamar a mãe dele. Ao vê-lo, a mulher se lançou sobre ele
e chorou copiosamente, declamando a seguinte poesia:
“Quando nos encontrarmos nos queixaremos
das coisas terríveis que nos aconteceram,
pois não é bonito que se transmitam queixumes
por meio da palavra dos mensageiros;
a carpideira, que se paga, não é como
quem chora com a tristeza do coração;
mensageiros tampouco saberiam
falar com mesma a dor que eu falo”.
Em seguida, a mãe lhe relatou tudo quanto sofrera desde que ele partira,
enquanto ele, por sua vez, também lhe relatava tudo quanto sofrera, e ambos
agradeceram a Deus por deixá-los novamente juntos. No dia seguinte, o vizir foi
informar o caso ao sultão, que ficou muito impressionado e ordenou que aquilo
se registrasse por escrito. E então o vizir, seu sobrinho e sua filha passaram a
desfrutar da vida mais deliciosa, da melhor situação e de grande calma,
comendo, bebendo e se divertindo até o fim de seus dias.[224]
[Prosseguiu Jaᶜfar :] “Foi isso o que sucedeu ao vizir de Basra e ao vizir do
Egito, ó comandante dos crentes”. O califa disse: “Por Deus, Jaᶜfar, que essa
história é o prodígio dos prodígios!”. Em seguida, ordenou que ela fosse
registrada por escrito, libertou o escravo, presenteou o rapaz[225] com uma de
suas próprias concubinas, ordenou que lhe fosse dado o suficiente para viver e
tornou-o um de seus comensais, até que foram todos alcançados e separados pela
morte.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como sua história é agradável e insólita, maninha”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
poupada”.
Na noite seguinte, Šahrāzād disse:

102ª
noite das histórias
e prodígios das
mil e uma noites
O CORCUNDA DO REI DA CHINA
Conta-se, ó rei, que vivia na China, na cidade de Kashgar,[226] um alfaiate que
tinha uma bela mulher,[227] [compatível com a sua condição e que lhe satisfazia
todas as prerrogativas. Sucedeu que ambos saíram certa feita a fim de passear e
espairecer num parque, e ali passaram o dia inteiro brincando e folgando. No
final da tarde, no caminho de volta para casa, toparam com um corcunda meio
maluco e divertido, vestido com uma túnica de mangas duplas e colete de
bordados coloridos, à moda egípcia, usando um lenço florido enrolado no
pescoço, gibão colorido e trazendo na cabeça um chapéu recheado de âmbar,
com fitas verdes e sedas amarelas entrelaçadas. Era um corcunda baixote, tal
como disse a respeito o poeta ᶜAntar[228] na seguinte poesia:
“Que bonitinho este corcunda que surgiu,
tão parecido com a menina dos olhos,
ou com um galho podre de rícino
no qual se pendurou uma enorme laranja”.[229]
Com um pandeiro nas mãos, o corcunda tocava e cantava, improvisando canções
alegres com desenvoltura e espontaneidade. Ao verem-no, aproximaram-se e
constataram que ele estava embriagado, completamente embriagado. Enfiou o
pandeiro debaixo do braço e começou a bater palmas para marcar o ritmo,
enquanto declamava a seguinte poesia:[230]
“Vá até a moça da vasilha, de manhãzinha:
ela será minha.
Que venha vestida de cantora e coisa e tal,
com som musical.
Traga pra mim essa noiva, meu coleguinha,
com a cornetinha.
Minhas bochechas olham tudo que se passa
cheias de manguaça.
Se você, meu amigo, sofre de verdade
pelas beldades,
escorropicha essa taça, sem hesitar,
não vá falhar!
Não vê este jardim com tanta flor,
meu tapeador?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
poupada pelo rei”.
103ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que quando o alfaiate e sua mulher viram o corcunda naquele
estado, completamente embriagado, ora cantando, ora batendo palmas,
agradaram-se dele e convidaram-no a ir para sua casa jantar e passar aquela noite
divertindo-os. O corcunda respondeu afirmativamente, ouvindo e obedecendo, e
caminhou com os dois até a casa. O alfaiate foi até o mercado – já estava
escurecendo – e comprou peixe frito, pão, rabanete, limão, uma travessa de mel
de abelha e velas para se divertirem sob sua luz. Retornou para casa e colocou o
peixe e o pão na frente do corcunda. A mulher apareceu e eles comeram.
Contente com a presença do corcunda, o casal pensava: “Vamos atravessar a
noite em diversões, risos e conversas com este corcunda”. Começaram a comer,
só parando quando estavam saciados. O alfaiate pegou um pedaço de peixe e
enfiou na boca do corcunda, tapando-a com manga, rindo e dizendo: “Você deve
comer este pedaço de um só bocado”. Como o homem estivesse cortando a sua
respiração, o corcunda se viu obrigado a comer o peixe, mas não teve tempo de
mastigá-lo e o engoliu. O peixe tinha uma grande espinha que ficou entalada
entre a sua garganta e o esôfago; o corcunda engasgou e estrebuchou. Quando o
alfaiate percebeu que seus olhos estavam se revirando, fechou o punho e lhe deu
uma pancada no peito, mas então o sopro vital do corcunda se esvaiu e ele
tombou morto. Atônitos, o alfaiate e a esposa começaram a tremer e disseram:
“Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso! Pobre
coitado, como se finou rápido! E sua morte não se deu senão por nossas mãos!”.
A mulher disse ao marido alfaiate: “Por que você está aí sentado? Que demora é
essa? Porventura você não ouviu a poesia de alguém:
‘Como sentar em fogo que não se apagou?
Sentar sobre fogo é com certeza derrota’”.
O alfaiate perguntou: “E o que eu posso fazer?”. Ela respondeu: “Carregue-o nos
braços junto ao peito, cubra-o com um manto iemenita de seda, e venha atrás de
mim. A quem quer que nos veja no meio desta noite, diremos: ‘É o nosso filho,
está fraquinho, pois há alguns dias ele contraiu uma doença. Agora nós o
estamos levando para ser examinado pelo médico, que não pôde nos fazer uma
visita’. Se agirmos assim...”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e saborosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

104ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que o alfaiate carregou o corcunda nos braços e o cobriu com
o manto iemenita. A mulher saiu caminhando à sua frente e se lamuriando aos
berros: “Que você fique a salvo, meu filho, de tudo que lhe possa fazer mal.
Onde é que essa varíola estava escondida?”. Assim, todos aqueles que os viam
pensavam: “Esses dois estão com uma criança contaminada pela varíola”, e lhes
indicavam a casa de um médico judeu. A mulher bateu na porta e a criada que
veio abrir viu um homem carregando uma criança enferma. A mulher pagou-lhe
um quarto de dinar e disse: “Minha senhora, entregue isto ao seu patrão e peça-
lhe para descer e examinar meu irmão, que foi atingido por alguma grave
doença”. Enquanto a criada subia a escadaria, a mulher entrou e disse ao marido:
“Deixe esse corcunda aqui e vamos salvar nossa vida”. O alfaiate largou o
corcunda encostado no alto da escadaria do médico judeu e saiu com a mulher.
Quanto à criada, ela foi ter com o judeu e lhe disse:] “Meu senhor, lá embaixo há
um enfermo que veio carregado. Mandaram entregar-lhe este quarto de dinar
para que o senhor desça, examine-o e prepare a receita adequada”. Ao receber
um quarto de dinar só para descer a escadaria, o judeu ficou tão contente que se
levantou ligeiro no escuro, disse à criada “acenda uma luz para mim”, e desceu
assim mesmo no escuro, apressado. Logo nos primeiros degraus ele tropeçou no
corcunda, rolando a escadaria de cima a baixo. Assustado, gritou pela criada
“traga depressa a luz”, e ela veio com a luz. O judeu foi examinar o corcunda e,
verificando que estava morto, gritou: “Ai, Esdras! Ai, Moisés! Ai, Aarão! Ai,
Josué filho de Nūn! Parece que eu tropecei nesse doente e ele rolou de cima a
baixo e morreu! Como poderei sair de minha casa com um cadáver? Ai, cascos
do asno de Esdras!”. E, carregando o corcunda, subiu com ele até o andar
superior e o mostrou à esposa, que lhe disse: “E que torpor é esse? O dia já está
raiando e ele continua aqui! Vamos perder nossas vidas! Você é um bobalhão que
não sabe como agir!”. E recitou a seguinte poesia:
“Você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e não teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que sucede a torpeza”.[231]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é
agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

105ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que a mulher disse ao judeu: “Por que está aí
sentado? Levante-se agora! Vamos carregar o corcunda até o terraço e dali atirá-
lo à casa daquele nosso vizinho muçulmano solteiro”. Esse vizinho do judeu era
um despenseiro, responsável pela cozinha do sultão. Costumava levar para casa
grandes quantidades de banha, prontamente devorada pelos gatos e pelos ratos,
animais que lhe causavam constantes prejuízos, avançando em tudo quanto ele
trouxesse para casa. O judeu e a esposa subiram carregando o corcunda e, com
muito cuidado, passaram-no para a casa do despenseiro pelo vão destinado à
ventilação: fizeram-no deslizar segurando pelos pés e pelas mãos até que ele
chegou ao solo, quando então o encostaram à parede e se retiraram. Mal tinham
terminado, e já o despenseiro chegava de uma sessão de recitação do Alcorão em
que estivera com alguns amigos. Já era alta noite, e ele carregava uma vela
acesa. Abriu o portão, entrou em casa, e encontrou aquele ser humano encostado
num canto, bem no ângulo da parede, ali no vão para ventilação. O despenseiro
disse: “Por Deus que essa é boa! Ora, constatamos então que o gatuno que leva
minhas coisas não é senão um ser humano! Se fosse carne, você a roubaria, se
fosse banha, você a roeria, se fossem nacos de carneiro, você também os
roubaria. E eu antes achava que isso era feito pelos gatos, pelos ratos e pelos
cachorros, e por isso matei muitos gatos e cachorros, fazendo com que meus
pecados se sobrecarregassem, mas eis que é você, pois, que me desce pelo
telhado, pelo vão de ventilação, a fim de roubar meus pertences! Por Deus que
não cobrarei meus direitos de você senão com as minhas próprias mãos!”. E,
empunhando um grosso bordão, de um só salto foi parar junto do corcunda e lhe
aplicou um golpe raivoso que pegou em sua caixa torácica, fazendo-o desabar no
chão, onde lhe aplicou mais uma pancada nas costas. Depois abriu-lhe o olho e,
verificando que estava morto, começou a gritar: “Oh, matei-o! Não existe
poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso!”. Amarelo e apavorado,
temendo pela própria vida, disse: “Que Deus amaldiçoe a banha e a carne de
carneiro! A Deus pertencemos e a ele retornaremos!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

106ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o despenseiro, havendo examinado o corpo e
visto que se tratava de um corcunda, pôs-se a dizer: “Ó corcunda! Ó maldito!
Não lhe bastava ser um ilustre corcunda? Ainda por cima tinha de ser ladrão? O
que fazer? Ó Deus protetor, proteja-me!”. E saiu da casa com o corcunda aos
ombros. Era já fim de noite, e o homem caminhou até a entrada do mercado,
onde o encostou num poste ao lado de uma loja, num beco escuro, e foi-se
embora. Não demorou muito e eis que um cristão proeminente, corretor do
sultão e proprietário de uma oficina, chegou bêbado. Acabara de sair de casa,
inteiramente ébrio, à procura de uma casa de banho. Sua embriaguez lhe dissera
que a hora da prece estava próxima. Avançou cambaleando até se aproximar do
corcunda, pondo-se então a urinar diante dele. Quando terminou, olhou para o
lado e notou alguém de pé. Vendo o corcunda em pé, e como já lhe houvessem
furtado o turbante no início daquela noite, o cristão acreditou que ele pretendia
furtar-lhe o turbante. Fechou então o punho e deu um murro no pescoço do
corcunda, que caiu no chão. Gritou pelo vigia e, em sua embriaguez, lançou-se
sobre o corcunda, a quem ficou esmurrando e estrangulando. O vigia chegou
perto do poste e encontrou o cristão derreado sobre um muçulmano e cobrindo-o
de pancadas; perguntou: “O que é isto?”. O cristão respondeu: “Esse aí queria
roubar o meu turbante”. O vigia ordenou: “Saia de cima dele”, e o cristão assim
fez. O vigia aproximou-se do corcunda e, constatando que estava morto, disse:
“Essa é muito boa! Um cristão matando um muçulmano!”. Agarrou o corretor
cristão, amarrou-o e encaminhou-o até a casa do administrador-geral, àquela
hora da noite. O cristão, pasmado consigo mesmo, refletia: “Como é que matara
aquela pessoa? Como pudera aquela pessoa morrer por causa de seus murros? ‘A
embriaguez passou e a lucidez chegou’”.[232] O corretor cristão e o corcunda
permaneceram na casa do administrador-geral até o amanhecer, quando então
este saiu e informou ao sultão da China que o seu corretor cristão matara um
muçulmano. O sultão ordenou que ele fosse enforcado. O administrador-geral
saiu dali e ordenou ao carrasco que proclamasse a sentença e montasse um
pelourinho de madeira para o cristão. Providenciadas essas coisas, ele foi
conduzido para baixo do pelourinho, e o carrasco colocou a corda em seu
pescoço, com a intenção de enforcá-lo. Foi então que o despenseiro irrompeu em
meio à multidão e disse ao carrasco: “Não faça isso! Não foi ele que matou o
corcunda, mas sim eu!”. O administrador-geral perguntou: “O que você disse?”,
e ele repetiu: “Fui eu que o matei”, e contou a história de como o agredira com o
bordão, e como depois o carregara e deixara no mercado: “Não me bastasse ter
matado um muçulmano, ainda por cima carregarei na minha consciência também
a culpa pela morte de um cristão? Não enforque outro que não a mim, e isso com
a minha própria confissão”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

107ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o administrador-geral, ao ouvir as
palavras do despenseiro, disse ao carrasco: “Liberte o cristão e enforque esse que
acabou de confessar”. Então, depois de ter libertado o corretor cristão, o carrasco
agarrou o despenseiro, colocou-o debaixo do pelourinho, pegou a corda, pôs em
seu pescoço e fez tenção de enforcá-lo. Foi então que o médico judeu veio
irrompendo em meio à multidão e gritando para o carrasco: “Não faça isso! Não
foi ele o assassino; quem o matou não foi outro senão eu mesmo! Durante a
noite passada, depois que os mercados foram fechados, eu estava tranquilo em
casa quando um homem e uma mulher bateram à porta. Minha criada desceu
para atendê-los e lhes abriu a porta: traziam esse morto, que estava enfermo, e
pagaram à criada um quarto de dinar. Ela levou o dinheiro para mim e me
informou do que estava ocorrendo. Enquanto a criada subia para me falar, o
casal, sem poder esperar, abandonou o enfermo no alto da escadaria. Comecei a
descer, tropecei nele e rolamos os dois escadaria abaixo. O enfermo morreu
imediatamente, e o motivo de sua morte não foi senão eu. Então carreguei-o
junto com minha mulher até o terraço. Como a casa desse despenseiro é ao lado
da minha, jogamos o corcunda pelo vão de ventilação da casa do despenseiro;
apesar de morto, parou em pé, encostado na parede. Quando chegou e encontrou
uma pessoa parada dentro de sua casa, o despenseiro julgou tratar-se de um
ladrão, golpeou-o com o bordão e ele caiu de cara; aí então ele julgou tê-lo
matado. No entanto, quem o matou não foi outro senão eu. Como se não me
bastasse ter matado um muçulmano sem meu saber e conhecimento, ainda por
cima terei de carregar na consciência a culpa pela morte de outro muçulmano, a
responsabilidade por seu sangue! Não o mate, pois fui eu quem matou o
corcunda”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

108ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o administrador-geral, ao ouvir as
palavras do judeu, disse ao carrasco: “Liberte este despenseiro e enforque o
judeu”. E o carrasco agarrou-o e lhe pôs a corda no pescoço. Foi então que o
alfaiate veio irrompendo em meio à multidão e disse ao carrasco: “Não faça isso!
Não foi ele o assassino; quem o matou não foi outro senão eu mesmo”. E,
voltando-se para o administrador-geral, o alfaiate disse:
Meu senhor, o assassino deste corcunda não foi outro senão eu! O fato é que
ontem passei o dia passeando e retornei para o jantar. No caminho encontrei este
corcunda, que estava bêbado, com um pandeiro nas mãos e cantando ao seu som.
Resolvi convidá-lo para visitar-me e levei-o comigo para casa. Saí, comprei
peixe frito e o levei para ele. Sentamos para comer, e eu peguei um pedaço de
peixe e enfiei goela abaixo do corcunda, que se engasgou com uma espinha e
morreu na hora. Fiquei com medo e me dirigi, com minha mulher, para a casa do
médico judeu. Bati na porta e uma criada veio nos atender; abriu a porta e eu lhe
disse: “Suba e diga ao seu patrão: ‘Estão à porta um homem e uma mulher
carregando um enfermo para o senhor examinar’”, e lhe entreguei um quarto de
dinar para que ela pagasse ao patrão. Assim que a criada subiu, levei este
corcunda até o alto da escadaria, deixei-o encostado, desci e nos retiramos,
minha esposa e eu. Ao descer, o judeu tropeçou nele e imaginou tê-lo matado.
E o alfaiate perguntou ao judeu: “Não está correto o que digo?”. O judeu
respondeu: “Sim, está correto”. Então, voltando-se para o administrador-geral, o
alfaiate disse: “Liberte este judeu e enforque a mim, já que fui eu o assassino”.
Ao ouvir as palavras do alfaiate, o administrador-geral ficou assombrado com o
caso daquele corcunda e disse: “Essas coisas possuem alguma motivação
assombrosa e devem ser registradas por escrito nos livros, até mesmo com tinta
dourada”. E disse ao carrasco: “Liberte este judeu e enforque este alfaiate, que
confessou o crime”. O carrasco deu um passo à frente, soltou o judeu, puxou o
alfaiate para baixo do pelourinho de madeira e disse: “Já estamos cansados de
pendurar um e soltar outro. Isso já está demorando demais”. E pôs a corda em
torno do pescoço do alfaiate, amarrando a outra ponta na estaca do pelourinho.
Dava-se que o corcunda era comensal e bufão do rei da China, o qual não
suportava ficar longe dele nem sequer por um piscar de olhos. Quando, naquela
noite, o corcunda se embriagara e desaparecera...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

109ª
noite das assombrosas
histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando o corcunda se embriagou e
ficou desaparecido naquela noite, e também pela manhã, o rei o aguardou até
aproximadamente o meio-dia. Como ele não voltasse, o rei indagou a respeito
um homem que estava no palácio, e ele respondeu: “Ó rei, o administrador-geral
encontrou um corcunda morto e também o assassino, que ele pretendia enforcar,
mas então apareceu um segundo assassino, e um terceiro, cada um deles
afirmando ‘sou eu quem o matou’. Neste momento, cada um deles está relatando
ao administrador-geral o motivo da morte do corcunda”. Ao ouvir aquilo, o rei
gritou por um de seus secretários e lhe ordenou: “Vá até o administrador-geral e
traga-o junto com o assassinado e os assassinos. Quero-os todos aqui”. O
secretário saiu apressado e conseguiu alcançar o carrasco, já pondo a corda no
pescoço do alfaiate, pronto para levar a cabo a execução. Gritou para ele: “Não
faça isso!”, e, dirigindo-se ao administrador-geral, transmitiu-lhe a determinação
do rei. Levando o corcunda carregado, bem como o alfaiate, o judeu, o
despenseiro e o cristão, o administrador-geral foi com todos eles ao rei, diante do
qual beijou o solo e mandou que formassem uma fileira lado a lado. Repetiu a
história de cada um para o rei, deixando-o a par do que ocorrera com o corcunda
do início ao fim. Ao ouvir aquilo, o rei da China ficou extremamente
assombrado. Tomado pela emoção, ordenou que aquilo fosse registrado por
escrito e perguntou aos circunstantes: “Porventura vocês já ouviram algo mais
assombroso do que o caso sucedido com este corcunda?”. O cristão deu um
passo à frente, beijou o solo e disse: “Ó rei do tempo, se o senhor me permitir, eu
lhe contarei uma ocorrência que faria chorar as pedras, e que é mais assombrosa
do que a história deste corcunda”. O rei da China disse: “Conte-nos a sua
história”. Então o cristão disse:
O JOVEM MERCADOR E SUA AMADA
Fique sabendo, ó rei, que eu não sou natural desta terra[233] – forasteiro, vim
para este país exercer o comércio. Foi como mercador que aqui arribei, e o
destino me fixou entre vocês durante estes últimos anos. Sou um copta[234]
egípcio. Meu pai, proeminente corretor, faleceu e eu o sucedi no trabalho como
corretor, atividade à qual me dediquei por anos. A coisa mais assombrosa que me
sucedeu foi que, estando eu certo dia no ponto onde se situavam os
estabelecimentos que vendiam ração para gado no Cairo, subitamente surgiu um
rapaz, de bela juventude, vestido de trajes opulentos e montado num asno de boa
altura. Ele me saudou e eu me pus de pé. O rapaz exibiu um saquinho que
continha sésamo e me perguntou: “Por quanto estão comprando a medida[235]
de sésamo?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
poupar”.

110ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Respondi a ele, ó rei do tempo: “A medida de sésamo está valendo cem
dirhams”. Ele disse: “Pegue um medidor de grãos e alguns ajudantes e vá até o
Portão da Vitória, no Caravançará de Aljāwlī.[236] Ali você me encontrará”, e,
deixando-me, partiu. Chamei então um olheiro e fui negociar com mercadores de
ração, com estabelecimentos de confeiteiros e com atacadistas de sésamo. O
olheiro conseguiu o preço de cento e dez dirhams por medida. Arranjei então
quatro grupos de ajudantes e fui com eles até o Caravançará de Aljāwlī, onde
encontrei o jovem me aguardando. Quando me viu, levantou-se, entrou à minha
frente no depósito onde a mercadoria estava armazenada e disse: “Deixe entrar
quem vai fazer a pesagem, e mande os ajudantes irem botando os fardos sobre os
burros”. Enquanto um grupo ia, outro voltava, e logo o depósito se esvaziou.
Foram cinquenta medidas, totalizando cinco mil dirhams. O rapaz me disse: “A
comissão por seu trabalho será de dez dirhams por medida. Dessa quantia, deixe
com você quatro mil e quinhentos até que eu venda o restante de meus bens, e
depois virei resgatar o meu dinheiro”, e eu respondi “sim”, beijei-lhe a mão e me
retirei, assombrado com a sua generosidade. Fiquei esperando-o e ele reapareceu
após um mês de ausência, perguntando: “Onde estão meus dirhams?”. Dei-lhe
efusivas boas-vindas e convidei-o a entrar em minha casa e comer alguma coisa,
mas ele se recusou e disse: “Vá e resgate os dirhams. Estou indo agora, mas os
levarei assim que regressar”, e saiu galopando seu asno. De minha parte, resgatei
os dirhams e me pus a esperá-lo, mas ele desapareceu por mais um mês e eu
pensei: “Eis aí um rapaz generoso; deixou comigo quatro mil e quinhentos
dirhams e não veio resgatá-los; logo se completarão três meses que o dinheiro
está comigo”. Depois desse período ele chegou montado em seu asno e trajando
ricas vestimentas, como se tivesse acabado de sair da casa de banho.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

111ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Parecia que o jovem tinha acabado de sair de uma casa de banho. Quando o
avistei, saí da loja para recebê-lo e lhe perguntei: “Meu senhor, quando vai
resgatar os seus dirhams?”. Ele respondeu: “Para que a pressa? Vou terminar de
vender o restante de minha produção, e só levarei os dirhams até o final da
semana que vem”, e se retirou. Pensei: “Da próxima vez que ele vier, vou
convidá-lo para fazer uma refeição”. Mas como o rapaz sumiu pelo resto do ano,
fiquei livre para utilizar seus dirhams: apliquei-os e obtive grandes lucros. No
fim do ano, de repente, ele me reaparece vestido com um traje opulento. Ao
avistá-lo, saí para recebê-lo e jurei pelo Evangelho[237] que ele iria fazer uma
refeição como meu convidado. Ele respondeu: “Com a condição de que os seus
gastos sejam do meu dinheiro”. Respondi “sim”, entrei, arrumei o lugar e o
acomodei. Em seguida, fui ao mercado e providenciei o necessário: bebidas,
galinhas recheadas e doces. Retornei, coloquei tudo na sua frente, e disse: “Faça
o favor, em nome de Deus!”. Ele foi para a mesa, estendeu a mão esquerda[238]
e fez a refeição junto comigo. Fiquei intrigado com aquilo e pensei: “A perfeição
pertence somente a Deus! Este jovem é gentil e gracioso, mas convencido. Tão
convencido que não tira a mão direita para me acompanhar na refeição”. E
juntos fizemos a refeição.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

112ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Quando terminamos a refeição, joguei água em sua mão e lhe entreguei um
pano para enxugá-la. Sentamos para conversar depois de lhe ter servido um
pouco de doce. Perguntei: “Meu senhor, livre-me de uma questão incômoda: por
que tomou a refeição comigo usando a mão esquerda? Porventura está com
alguma dor na mão direita?”. Ao ouvir minhas palavras, o jovem chorou e
recitou a seguinte poesia:
“Não foi minha escolha que Salma substituísse
Layla,[239] mas a necessidade faz suas imposições”.
E, retirando a mão direita da manga, mostrou-a para mim: estava decepada; era
um pulso sem punho. Como eu demonstrasse meu assombro com aquilo, ele me
disse: “Não fique espantado nem considere em seu íntimo que eu sou arrogante,
ou que a arrogância me levou a fazer a refeição com a mão esquerda. No
entanto, o fato é que o decepamento foi provocado pela arrogância”. Perguntei:
“E qual foi esse motivo?”. Ele suspirou profundamente, chorou e disse:
Fique sabendo que eu sou nativo de Bagdá, cidade onde meu pai era um dos
mais notáveis. Quando atingi a idade adulta, ouvi muita gente e muitos viajantes
conversando sobre as terras egípcias, e aquilo penetrou no meu íntimo. Quando
meu pai morreu, recebi a herança e montei uma caravana comercial com tecidos
de Bagdá e Mossul. Carregando mil mantos de seda e todo gênero de tecidos,
viajei de Bagdá até o Cairo. Quando entrei na cidade, hospedei-me no
Caravançará de Masrūr, onde também armazenei minhas mercadorias: sentei-me,
desamarrei os fardos, levei-os ao depósito, entreguei ao meu criado alguns
dirhams e lhe determinei que fosse preparar algo para comermos. Enquanto eu
descansava, meus criados se alimentavam. Depois saí, passeei pela rua Bayna
Alqaṣrayn,[240] voltei e dormi, mas logo levantei, abri alguns fardos de tecido e
pensei: “Vou a algumas boas lojas investigar os preços”. Mandei que um de
meus criados carregasse alguns tecidos, vesti minhas melhores roupas e
caminhei até chegar ao centro comercial Jarkis.[241] Assim que entrei, fui
recepcionado por vários corretores que tinham conhecimento prévio de minha
chegada, e pegaram os meus melhores tecidos, passando a apregoá-los. Os
preços que conseguiram, porém, não cobriam o capital investido. Irritei-me com
aquilo e disse: “Isso não cobre o meu capital”. Os pregoeiros responderam:
“Meu senhor, sabemos de algo que lhe trará lucro, e não prejuízo”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

113ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Então os pregoeiros me disseram: “Conhecemos um modo de beneficiá-lo e
livrá-lo do prejuízo, e que consiste em agir como os mercadores: venda suas
mercadorias a crédito durante um período predeterminado, mediante contrato
celebrado por um escrivão, na presença de testemunhas, e com os serviços de um
cambista. Receba semanalmente, às segundas e quintas. Como ganho adicional,
você poderá passear pelo Cairo, com seu rio Nilo e demais atrativos”. Eu disse:
“Eis aí um bom parecer”, e, após contratar alguns pregoeiros e carregadores, fui
até o caravançará. Os carregadores retiraram os tecidos do armazém e os
transportaram até o centro comercial, onde os vendi a prazo. Mandei redigir os
contratos de venda com testemunhas, entreguei os papéis ao cambista, saí do
mercado, regressei ao caravançará e ali fiquei por alguns dias, durante os quais
quebrei o jejum matinal com um copo de vinho, carne de carneiro, pombo e
doces. Isso durou um mês. Entrou o mês seguinte, no qual começou o
pagamento. Todas as quintas e segundas eu entrava no centro comercial e me
acomodava na loja de um mercador, enquanto o cambista e o escrivão ficavam
até o entardecer recolhendo o meu pagamento dos mercadores. Eu recebia,
conferia, selava, guardava e me retirava para o caravançará. Por seis vezes agi
dessa maneira no mercado. Até que certo dia – uma segunda-feira – entrei pela
manhã na casa de banho, saí, vesti roupas bonitas, fui ao caravançará, entrei no
meu quarto, quebrei o jejum com vinho e dormi. Acordei, comi galinha cozida,
perfumei-me e arrumei-me, passeei pelo centro comercial e entrei na loja de um
mercador a quem chamavam Badruddīn Albustānī. Conversamos por algum
tempo, e súbito nos vimos diante de uma mulher que entrara na loja trajando
mantilha e magnífico turbante, e exalando as mais diversas fragrâncias. Sua
beleza sequestrou o meu coração. Ela retirou o véu e então contemplei uns
enormes olhos negros. Cumprimentou Badruddīn, que lhe deu boas-vindas e se
pôs a conversar com ela. Quando ouvi suas palavras, o amor por ela conquistou-
me o coração e fiquei obcecado por aquela mulher, que perguntava a Badruddīn:
“Você tem peças de seda estampada com cenas de caça?”, e ele lhe mostrou uma
de minhas peças, que a mulher comprou por mil e duzentos dirhams; ela disse:
“Com sua permissão, vou levar esta peça e ir embora; na próxima compra lhe
enviarei o seu valor”. Badruddīn respondeu: “Tudo bem, mas eu estou
precisando do dinheiro hoje”. Ela jogou a peça no meio da loja e, encolerizada,
disse: “Que Deus humilhe a sua comunidade! Vocês, mercadores, não dão valor
a ninguém!”. E se retirou apressada do lugar.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

114ª
noite das insólitas
histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Então o jovem me disse:
Quando a mulher jogou a peça no meio da loja e se retirou, senti que o meu
sopro vital sairia atrás dela através do meu coração; então lhe disse: “Por Deus,
minha senhora, faça a caridade de vir até mim!”. Ela retornou, sorriu e disse:
“Por sua causa, voltei”, e se acomodou diante de mim na loja. Perguntei a
Badruddīn: “Meu senhor, por quanto comprou essa peça de mim?”. Ele
respondeu: “Mil e duzentos dirhams”. Eu disse: “E por ela você também terá
cem dirhams de lucro. Traga um papel e eu lhe escreverei, de próprio punho,
quanto fiquei lhe devendo”. Escrevi-lhe com minha letra, peguei a peça,
entreguei à mulher, e disse: “Pegue, madame. Se quiser trazer o dinheiro na
próxima compra, muito que bem; caso contrário, é um presente que lhe faço”.
Ela disse: “Que Deus o recompense, que lhe conceda o meu dinheiro e o faça
viver mais do que eu!”. As portas dos céus sobre o Cairo estavam abertas e
receberam aqueles bons augúrios. Eu disse: “Minha senhora, considere sua essa
peça e, se Deus altíssimo quiser, você ganhará mais uma igual, mas deixe-me ver
o seu rosto”. Ela voltou o rosto e subiu o véu. Dei uma olhada, que foi logo
sucedida por grande suspiro; mal consegui manter minha razão. Então ela soltou
o véu, pegou a peça, e disse: “Com a sua permissão, meu senhor! Sentirei
saudades!”, e saiu apressadamente. Deixei-me ficar no mercado até depois do
entardecer, em outro mundo. Indaguei o mercador sobre a jovem, e ele
respondeu: “É bem rica, filha de um figurão que lhe deixou muito dinheiro”.
Despedi-me e saí. Quando cheguei ao caravançará, trouxeram-me a janta, mas
me lembrei da mulher e não comi nada. Fui deitar, mas não consegui dormir,
ficando acordado até o amanhecer, quando então me levantei, troquei de roupa,
quebrei o jejum matinal com algo qualquer e me dirigi à loja de Badruddīn.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

115ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Então o jovem me disse:
Eu não ficara nem bem uma hora na loja de Badruddīn, e já a moça chegava
trajando vestimentas mais magníficas do que as do dia anterior e trazendo
consigo uma criada. Veio até mim e me cumprimentou, sem dirigir a palavra a
Badruddīn. Disse: “Meu senhor, mande alguém receber o seu dinheiro”.
Perguntei: “E por que a pressa em pagar?”. Ela respondeu: “Que nós nunca nos
privemos de você, meu querido”, e me estendeu o dinheiro. Puxei então
conversa com ela, e fiz algumas insinuações que a levaram a entender que eu
desejava um relacionamento amoroso;[242] levantou-se então com pressa e se
retirou. Mas meu coração já fora capturado por ela. Depois de algum tempo, saí
da loja para o mercado e, de repente, uma criada negra me disse: “Converse com
minha patroa, senhor”. Surpreso, respondi: “Mas ninguém me conhece!”. Ela
insistiu: “Quão rapidamente o senhor a esqueceu! É a minha patroa, que esteve
hoje com o senhor na loja de Badruddīn”. Caminhei então com ela até o ponto
onde se concentravam os cambistas. Assim que me avistou, a jovem me puxou
de lado e disse: “Meu querido, você ocupou um lugar no meu coração; desde o
dia em que o vi não consigo comer nem beber”. Respondi: “Eu tampouco. O
estado em que me encontro fala por si só”. Ela perguntou: “Querido, na minha
ou na sua casa?”. Respondi: “Sou aqui forasteiro e não tenho casa, somente o
caravançará em que me hospedo”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

116ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o cristão disse ao rei da China:
O jovem mercador me disse:
Então eu disse a ela: “Não tenho outro local para ficar senão o caravançará. Se
quiser fazer essa caridade, terá de ser na sua casa”. Ela respondeu: “Sim, meu
senhor. Nesta noite de quinta para sexta[243] não terei nenhum compromisso.
Amanhã, portanto, após realizar a prece matinal, cavalgue e pergunte como ir até
o bairro de Ḥabbāniyya; lá, indague sobre a casa do fiscal Barkūt, conhecido
como Abū Šāma. Não demore, pois estarei esperando”. Respondi: “Claro, com o
auxílio de Deus”, e nos separamos. Mal pude esperar o amanhecer; levantei-me,
vesti minhas roupas, passei perfumes e essências, enrolei cinquenta dinares num
lenço e caminhei do Caravançará de Masrūr até o Portal de Zuwayla,[244] onde
montei um asno e disse ao almocreve: “Quero ir até Ḥabbāniyya”. Ele me
conduziu até lá a toda a velocidade e parou diante de um lugar chamado Darb
Attaqwà.[245] Eu disse ao almocreve: “Entre na travessa e pergunte sobre a casa
do fiscal Barkūt, conhecido como Abū Šāma”. Ele sumiu por alguns momentos e
regressou dizendo: “Em nome de Deus, encontrei o lugar”. Desapeei-me do asno
e lhe ordenei: “Vá na minha frente até a casa e retorne amanhã para me levar de
volta ao caravançará”. O almocreve me conduziu até a casa, paguei-lhe um
quarto de dinar, ele recebeu, e foi-se embora. Bati à porta e fui recebido por duas
pequenas meninas brancas, que me disseram: “Em nome de Deus, entre, pois
nossa patroa não dormiu esta noite, tal a alegria por sua vinda”. Adentrei o pátio
e me vi diante de uma casa à qual se acessava subindo sete degraus, e que tinha
por toda a sua circunferência janelas dando para um jardim com todos os
gêneros de frutas e aves, com córregos abundantes que eram uma diversão para
os olhos; no centro, havia uma fonte, e em cada um de seus quatro ângulos uma
cobra de ouro vermelho trançado; da boca das quatro cobras fluía uma água que
parecia ser pérola e gema.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

117ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Entrei na casa, acomodei-me, e logo a jovem surgiu com finas roupas e
ornamentos formando um diadema. Estava pintada e maquiada. Ao me ver,
sorriu em minha face, estreitou-me ao peito, minha boca em sua boca, e
começamos a sugar a língua um do outro. Ela perguntou: “Será mesmo verdade,
meu senhorzinho, que você está aqui?”. Respondi: “Sou seu escravo e estou
aqui”. Ela disse: “Por Deus que, desde que o vi, perdi o prazer de comer e
dormir”, e eu disse: “Eu também”. Sentamos para conversar, eu de cabeça baixa,
voltada para o solo. Não demorou muito e ela me serviu os mais esplêndidos
pratos de cozidos de carne e peixe, aperitivos fritos mergulhados em mel de
abelha e galinha recheada com açúcar e pistache; comemos até nos fartar, e ela
mandou retirar a mesa. Lavamos as mãos e fomos borrifados com água de rosas
almiscarada. Sentei-me e ela se sentou ao meu lado, com intimidade. O amor por
aquela jovem tomou conta de mim. Considerei razoável que todo o meu dinheiro
ficasse com ela. Brincamos até a noite, quando nos foi servido um banquete
completo com vinho. Bebemos até o meio da noite. Dormi com ela até o
amanhecer. Nunca tive noite melhor do que aquela. Quando acordamos,
levantei-me, joguei debaixo da cama o lenço em que enrolara os cinquenta
dinares, despedi-me e saí. Ela chorou e perguntou: “Meu senhor, quando tornarei
a vê-lo?”. Respondi: “No jantar estarei aqui”. Ela me acompanhou até a porta e
disse: “Meu senhor, traga o jantar quando vier”. Ao sair, encontrei à minha
espera o almocreve, cujo asno eu usara no dia anterior. Montei, e ele foi
conduzindo o animal até chegarmos ao caravançará. Desapeei-me e, sem dar
nada ao almocreve, disse-lhe: “Venha à tardezinha”, e ele respondeu “sim”,
retirando-se a seguir. Quebrei o jejum com uma comida leve e saí para cobrar o
dinheiro dos meus tecidos. Para a jovem, mandei preparar um carneiro assado
com uma travessa de arroz e doces, enviando-lhe tudo no cesto de um carregador
a quem indiquei o local. Cuidei dos meus afazeres até a tardezinha, e então o
almocreve veio me buscar. Peguei outros cinquenta dinares, enrolei-os num
lenço, levei uma moeda que equivalia a meio dinar, montei o asno, esporeei e
cheguei rapidamente à casa. Desci, paguei meio dinar ao almocreve e entrei,
percebendo que haviam arrumado a casa de um modo melhor do que o anterior.
Ao me ver, a jovem beijou-me e disse: “Hoje você me deixou com saudades!”. A
mesa foi servida, e comemos até nos fartar. Trouxeram a bebida, e ficamos
bebendo até o meio da noite, quando então fomos para o aposento de dormir e
dormimos. Quando amanheceu, levantei-me, entreguei as cinquenta moedas de
ouro enroladas no lenço à jovem, e saí. Encontrei o almocreve, montei seu asno
e fui até o caravançará, onde dormi um pouco. Levantei-me, comprei de um
cozinheiro dois gansos caipiras preparados sobre duas bandejas de arroz
apimentado. Comprei também inhame frito mergulhado em mel de abelhas,
velas, frutas, aperitivos, essências aromáticas, ajuntei tudo e enviei para a casa
da jovem. Esperei o anoitecer, enrolei cinquenta dinares num lenço, saí, montei o
asno do almocreve até a casa, entrei, acomodei-me, comemos e dormimos até o
amanhecer, quando então eu lhe atirei o lenço e saí, montei o asno do almocreve,
e avancei até chegar ao Caravançará de Masrūr.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

118ª
noite das estranhezas
e histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Então o jovem disse:
E continuei fazendo isso, dando cinquenta dinares por noite, mais bebida e
comida, até que, um dia, me vi sem um único dirham. Saí do caravançará sem
saber onde conseguir dinheiro, e pensei: “Não há poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso! Isso tudo foi obra de Satanás!”. Saí, pois, do
caravançará, e caminhei pela rua Bayna Alqaṣrayn, chegando até o Portal de
Zuwayla, onde me vi no meio de uma enorme aglomeração, com o lugar
entupido de gente. Quis o destino que eu encostasse num soldado e minha mão
resvalasse pela bolsa de couro que ele carregava na cintura; senti que a bolsa
continha um volume; voltei os olhos na direção da bolsa e vi um fio de seda
verde saindo dela, e logo percebi que estava amarrado ao volume dentro da
bolsa. Dei uma olhada para a frente e vi que a multidão havia crescido e era
maior a aglomeração; também notei que, do outro lado do soldado, passava um
carregamento de madeira que quase o imprensou. Temendo que sua roupa se
rasgasse com aquilo, o soldado se virou na direção do carregamento para afastá-
lo de si. Nesse momento, Satanás sussurrou em meu peito e puxei o fio de seda,
fazendo o volume sair da bolsa: era um gracioso embrulho de seda azul, cujo
conteúdo tilintava. Quando o embrulho já estava em minhas mãos, o soldado se
voltou, levou a mão à bolsa e não encontrou nada dentro dela. Olhou para mim,
levantou a mão com o cassetete e me deu uma pancada na cabeça. Caí e fui
cercado pela multidão, que agarrou o soldado pela parte de trás da túnica.
Disseram-lhe: “Você aproveitou a aglomeração para agredir o rapaz desta
maneira?”. O soldado gritou com eles, insultou-os e disse: “É um ladrão!”.
Nesse momento me recuperei e fiquei de pé. Olharam para mim, e alguns
disseram: “Por Deus que se trata de um jovem gracioso. Ele não roubaria coisa
nenhuma!”. E sucedeu que uma parte dos circunstantes acreditava no que o
soldado dissera, enquanto outra parte duvidava. Aumentou o diz que diz que, e
pediram para que eu fosse deixado longe dele. Enquanto estávamos nessa
algazarra, eis que o administrador-geral, o capitão da guarda e os guardas
entraram no Portal. Encontrando aquele monte de gente agrupada em torno de
mim e do soldado, o administrador-geral perguntou: “O que está acontecendo?”,
e os fatos lhe foram relatados. Então ele perguntou ao soldado: “Havia alguém
com esse rapaz?”, e o soldado respondeu: “Não”. O administrador-geral gritou
com o capitão, e este me prendeu. O administrador-geral ordenou: “Tirem-lhe as
roupas”, e minhas roupas foram retiradas e o embrulho encontrado no meio
delas. Desmaiei. Quando o administrador-geral viu o embrulho...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

119ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Quando o administrador-geral viu o embrulho, tirou as moedas de ouro de
dentro dele e contou-as, constatando que eram vinte dinares. Irritou-se e gritou
com os guardas, que me colocaram diante dele. Então o administrador-geral me
perguntou: “Garoto, eu não quero forçá-lo a nada. Conte-me a verdade: você
roubou este embrulho?”. Nesse momento, abaixei a cabeça e pensei: “Negar não
adianta, pois ele já encontrou o embrulho no meio das minhas roupas; por outro
lado, se eu confessar, sofrerei as consequências”. Ergui enfim a cabeça, e disse:
“Sim, eu roubei”. O administrador-geral me ouviu, solicitou a presença de
testemunhas, que certificaram as palavras por mim pronunciadas. Tudo isso
ocorria no Portal de Zuwayla. O homem chamou o carrasco, que decepou minha
mão direita. As pessoas disseram: “Pobre rapaz!”. O coração do soldado se
apiedou de mim. O administrador-geral pretendia também mandar cortar minha
perna. Roguei a intervenção do soldado, que intercedeu por mim, e então o
administrador-geral me deixou e foi embora. As pessoas continuaram ao meu
redor, e deram-me de beber um copo de vinho. Quanto ao soldado, ele me deu o
embrulho e disse: “Você é um rapaz gracioso. Não deveria ser ladrão”, e,
voltando-me as costas, retirou-se. Enrolei a mão num pedaço de pano, coloquei-a
dentro da manga, e caminhei até chegar à casa da jovem, onde me joguei na
cama. Notando que minha cor estava alterada – e isso devido à perda de sangue
–, ela perguntou: “O que está doendo, meu querido?”. Respondi: “Minha
cabeça”. Ela ficou incomodada com o meu estado e disse: “Sente-se e me conte
o que lhe aconteceu hoje. Sua cara é de quem tem coisas para falar”. Chorei. Ela
disse: “Parece que você está enjoado de mim! Por Deus, conte o que você tem!”.
Calei-me. Ela continuou a falar comigo, mas eu não respondia, até que anoiteceu
e ela me serviu o jantar. Temendo que ela me visse comendo com a mão
esquerda, recusei, dizendo: “Não estou com vontade de comer nada”. Ela pediu:
“Conte-me o que lhe aconteceu hoje. Por que está tão preocupado?”. Perguntei:
“Você faz mesmo questão de conversar?”. Então ela me trouxe vinho e disse:
“Beba, que suas preocupações se dissiparão e você me contará o que lhe
aconteceu”. Eu disse: “Se você faz questão, então me dê vinho”. Bebi um pouco
de suas mãos. Depois ela me estendeu o copo, e eu o peguei com a mão
esquerda.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes amanhã, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

120ª
noite das histórias
e estranhezas das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
Então o jovem me disse:
Quando ela me estendeu o copo, eu o peguei com a mão esquerda e chorei.
Ela gritou: “Meu senhor, qual é o motivo desse choro? O que tem, por que pegou
o copo com a mão esquerda?”. Respondi-lhe: “Estou com um furúnculo na mão
direita”. Ela disse: “Estenda para mim que eu supuro o furúnculo”. Respondi:
“Agora não é hora disso”. Então bebi mais, malgrado meu; a embriaguez me
venceu, e dormi. Ela examinou meu braço, e viu um pulso sem mão. Revistou-
me, encontrou o embrulho e minha mão enrolada num pano. Ficou muito triste
por mim, e assim permaneceu até o amanhecer. Ao despertar, vi que ela tinha me
preparado um caldo com cinco frangos. Também me deu vinho, e eu bebi.
Coloquei o embrulho com os dinares sobre a cama e fiz menção de ir embora,
mas ela perguntou: “Para onde? Sente-se!”, e continuou: “Seu amor por mim
chegou a ponto de fazê-lo gastar comigo tudo o que possuía. No final das contas,
você perdeu a mão. Agora eu o faço testemunha de que não morrerei senão a
seus pés. Você verá a verdade do que digo”. Em seguida, mandou chamar
testemunhas e escrever nosso contrato de casamento, determinando: “Escrevam
que tudo quanto eu possuo pertence a ele”. Pagou às testemunhas, conduziu-me
pela mão até diante de um baú e me disse: “Olhe para os lenços que estão dentro
dele. É o dinheiro que você trazia para mim. Leve tudo. Você é muito querido,
muito caro para mim, e já não posso compensá-lo como devia”, e repetiu:
“Pegue o seu dinheiro”. Fechei o baú contendo o meu dinheiro e, muito contente,
dissolveram-me minhas preocupações e agradeci a ela, que me disse: “Por Deus
que se eu lhe desse minha vida, ainda assim seria pouco”. Fiquei com ela por
cerca de um mês, durante o qual ela não cessou de enfraquecer; a debilidade se
intensificava, junto com a preocupação por mim. Não eram passados nem
cinquenta dias quando ela morreu. Depois de enterrá-la, descobri que ela tinha
muitas, incontáveis posses; entre o que encontrei estava a colheita de sésamo que
você, cristão, vendeu para mim, bem como aquele armazém.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

121ª
noite das histórias
e estranhezas das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o cristão disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Portanto, eu fiquei ocupado com o resto da herança e não tive tempo de vir
receber os dirhams de você. Agora, eis-me aqui, pois já terminei de vender tudo
quanto ela deixou para mim. Por Deus, cristão, de agora em diante não questione
o que quer que eu faça, pois entrei em sua casa e comi de sua comida. Eu estou
lhe dando como presente todo o valor do sésamo, que já está com você. Essa é
uma parte das dádivas com que Deus me agraciou. E esse é o motivo de eu
comer com a mão esquerda.
E prosseguiu: “Você gostaria, cristão, de viajar comigo pelo mundo? Montei
uma caravana comercial”. Respondi: “Sim”, e me comprometi a viajar com ele
no início do mês. Em seguida também comprei mercadorias para comerciar, e
viajei com ele até esta sua terra, ó rei. Ele comprou mais mercadorias e regressou
ao Egito. A mim coube a sorte de me estabelecer neste país. Foi isso que me
sucedeu; foram essas as estranhas coincidências que aconteceram comigo. Não é
isso, ó rei, mais assombroso do que a história do corcunda?
O rei da China respondeu: “Não, isso não é mais assombroso do que a história
do corcunda! É absolutamente imperioso enforcar vocês quatro devido à morte
do corcunda!”. Então o despenseiro deu um passo adiante e disse para o rei da
China: “Ó rei venturoso, e se eu lhe contar uma história que me sucedeu na noite
de ontem, antes de encontrar esse corcunda em minha casa? Se ela for mais
assombrosa do que a história do corcunda, você nos concederá nossas vidas e
nos libertará?”. O rei da China respondeu: “Sim, se eu a considerar mais
assombrosa do que a história do corcunda, irei conceder a vida de vocês quatro”.
Então o despenseiro disse:[246]
O JOVEM DE BAGDÁ E A CRIADA DE MADAME ZUBAYDA
Na noite passada, ó rei do tempo, eu estava na casa de pessoas que promoviam
uma sessão de recitação do Alcorão. Haviam reunido doutores da lei religiosa e
muitos moradores desta sua cidade. Depois que os recitadores terminaram seu
trabalho, a mesa foi servida. Entre os pratos oferecidos estava a zīrbāja.[247]
Um dos presentes olhou para o prato, afastou-se e não quis comer. Imploramos
que comesse, mas ele jurou que não o faria. Como nós insistíssemos, ele pediu:
“Não me forcem. Basta-me o que já sofri por haver comido zīrbāja”, e recitou a
seguinte poesia:
“Carrega o teu tambor aos ombros e viaja;
e se te agradar este kuḥl,[248] pinta os olhos”.
Então todos nós lhe pedimos: “Conte-nos o motivo de não comer zīrbāja”. O
anfitrião insistiu: “Para mim, trata-se de um compromisso de honra. É
absolutamente imperioso que você coma desta zīrbāja”. O jovem disse: “Não há
poderio nem força senão em Deus! Se for mesmo imperioso, terei de lavar as
mãos quarenta vezes com potassa, outras quarenta com raiz aromática,[249] e
mais quarenta com sabão, totalizando cento e vinte vezes”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

122ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o despenseiro disse ao rei da China:
O anfitrião ordenou aos criados que lhe trouxessem as coisas que mencionara
para lavar as mãos; assim foi feito e ele se lavou. Depois, juntou-se a nós,
contrafeito, sentou-se e esticou a mão, ainda ressabiado; mergulhou o pão na
zīrbāja e começou a comer. Continuou fazendo a refeição, irritado, enquanto nós
ficávamos intrigados com aquilo: ele tremia, sua mão tremia, e então notamos
que seu polegar fora decepado. Ele se alimentava usando os outros quatro dedos,
de um modo repulsivo, com a comida lhe escorrendo pelas mãos, por entre os
dedos. Curiosos, perguntamos: “O que aconteceu com o seu polegar? Deus o
criou assim ou lhe aconteceu alguma coisa?”. Ele respondeu: “Por Deus que não
me falta apenas esse polegar. Também não tenho o da outra mão, nem os dos
pés. Mas vejam vocês mesmos”, e descobriu a sua mão esquerda, que, como a
direita, tampouco tinha polegar, e os pés, também sem os polegares. Quando
vimos aquilo, ficamos ainda mais intrigados, e lhe dissemos: “Agora estamos
impacientes por saber sua história e o motivo de seus polegares terem sido
decepados, e de você lavar as mãos cento e vinte vezes”. Então ele disse:
Saibam que o meu pai era um dos grandes mercadores de Bagdá na época do
califa Hārūn Arrašīd. Mas ele, que consumia vinho e ouvia música de alaúde,
morreu e não me deixou nada. Trajei luto, mandei realizar sessões de leitura do
Alcorão e fiquei triste por ele durante vários dias. Depois disso, abri a sua loja e
constatei que ele me deixara um pouquinho de dinheiro, e também dívidas. Pedi
paciência aos credores enquanto me punha a vender e a comprar de sexta a sexta,
a fim de lhes pagar. Permaneci em tal situação durante algum tempo, mas
finalmente consegui liquidar as dívidas e comecei a ampliar meu capital. Até
que, certo dia, estando eu instalado em minha loja pela manhãzinha, eis que me
chegou uma jovem graciosa, como eu nunca tinha visto antes, vestindo belos
trajes e usando ornamentos, montada numa mula, tendo um escravo diante de si
e outro atrás. Apeou-se, fez a mula deter-se diante da alcaceria e entrou. Mal
havia feito isso e já um criado eunuco muito respeitoso entrava atrás dela e lhe
dizia: “Patroa, a senhora saiu sem avisar ninguém, assim descoberta, em plena
luz do dia? Desse jeito ficaremos em apuros”,[250] e lhe colocou o véu. Ela
olhou para as lojas e viu que ninguém tinha ainda aberto senão eu. Caminhou até
a minha loja, com o eunuco atrás de si, cumprimentou-me e se acomodou.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

123ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o despenseiro disse ao rei da China:
Então o jovem mercador nos disse:
Ela se sentou em minha loja e descobriu o rosto. Lancei-lhe um olhar ao qual
se seguiu grande suspiro. Ela me perguntou: “Você tem peças de tecido?”.
Respondi: “Madame, este seu escravo é pobre, mas tenha paciência até que os
outros mercadores abram. Então eu lhe trarei tudo o que desejar”. E pusemo-nos
a conversar por algum tempo, comigo já submerso de amores por ela, até que os
mercadores abriram. Levantei-me e lhe trouxe tudo quanto pedira – algo
equivalente a cinco mil dirhams –, e entreguei ao eunuco. Eles foram até os dois
escravos, que puseram a mula na frente da jovem. Ela montou e se foi, sem nem
dizer de onde era. Diante de tanta beleza, fiquei envergonhado de fazer-lhe
qualquer observação. Paguei o valor aos mercadores e me conformei em assumir
a dívida de cinco mil dirhams. Voltei para casa embriagado de amores por ela, a
tal ponto que não consegui comer nem beber, nem conciliar o sono, pelo período
de uma semana.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

124ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que o despenseiro disse ao rei da China:
O jovem mercador nos disse:
Passada uma semana, os mercadores cobraram a dívida e eu lhes pedi
paciência. Passada mais uma semana, ela chegou repentinamente montada na
mula, e acompanhada pelo criado eunuco e pelos dois escravos de hábito, que
corriam atrás dela. Cumprimentou-me, acomodou-se na loja e me disse: “Nós
atrasamos o pagamento dos tecidos. Traga um cambista e receba o valor”. Logo
eu trouxe o cambista, a quem o eunuco entregou os dirhams. Pus-me a conversar
com ela até que o mercado se abriu, quando então paguei a cada um o seu
dinheiro. Ela me disse: “Meu senhor, traga-me isso e aquilo”, e eu peguei dos
demais mercadores tudo quanto fora pedido. A mulher saiu levando as coisas
mas não perguntou o valor, e me arrependi de ter feito aquilo. As mercadorias
que ela pedira e eu lhe entregara custavam mil dinares. Pensei: “Que desgraça é
essa? Ela me pagou cinco mil dirhams e levou mil dinares![251] Mas os
mercadores não conhecem senão a mim! Não há poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso! Parece que essa mulher não passa de uma trapaceira
que me enganou tão bem que eu nem sequer perguntei o seu endereço!”. A
mulher desapareceu por mais de um mês. Os mercadores me cobraram o
dinheiro e eu, desesperançado de tornar a vê-la, coloquei meus imóveis à venda.
Estava assim desesperançado e perplexo quando ela chegou, entrou em minha
loja e me disse: “Traga a balança e receba o seu pagamento”, e me entregou o
dinheiro. Conversamos por algum tempo e ela se mostrou muito satisfeita, o que
quase me fez voar de felicidade. Então ela perguntou: “Você tem esposa?”.
Respondi: “De modo algum, ainda não me casei”, e comecei a chorar. Ela
perguntou: “E por que esse choro?”. Respondi: “Tudo bem” e, recolhendo os
dinares, levantei-me e entreguei-os ao criado eunuco, pedindo-lhe que servisse
de intermediário entre mim e ela. Ele riu e disse: “Por Deus que ela está
apaixonada por você mais do que você está apaixonado por ela. Ela não tem a
menor necessidade dos tecidos que comprou, e só fez isso devido ao amor por
você. Diga-lhe o que pretende”. A jovem me viu entregando os dinares ao
eunuco. Então eu lhe disse: “Faça a caridade de deixar este seu escravo lhe falar
a respeito do que lhe vai pelo íntimo”, e contei o que me ia pelo íntimo. Ela
respondeu positivamente e disse ao eunuco: “Você será meu mensageiro”; depois
me disse: “Faça tudo quanto ele lhe disser”, e se retirou. Paguei o dinheiro aos
mercadores e não dormi durante a noite inteira. Alguns dias depois, o eunuco
veio visitar-me.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu:
“Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver
e o rei me preservar”.

125ª
noite das histórias
e insólitas narrativas
das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que o despenseiro disse ao rei da China:
Como eu dizia, o eunuco foi até o jovem mercador, que continuou nos
contando:
Dignifiquei o eunuco e o indaguei sobre a jovem; ele respondeu: “Está doente
de amor por você”. Perguntei: “Quem é ela?”. Ele respondeu: “Esta jovem foi
criada por madame Zubayda,[252] esposa do califa Hārūn Arrašīd. É uma de
suas servidoras particulares; é ela a responsável pela compra das coisas das quais
madame Zubayda necessita. Por Deus que ela falou para madame Zubayda a seu
respeito, e lhe pediu para casar-se com você. Madame Zubayda disse: ‘Somente
depois que eu o vir. Se ele for bonito e apropriado a você, permitirei o
casamento’. Agora, nós vamos tentar introduzi-lo secretamente no interior do
palácio. Se entrar, conseguirá casar-se, mas se for descoberto, seu pescoço será
cortado. O que me diz?”. Respondi: “Irei mesmo nessas condições”. O eunuco
disse: “Vá esta noite à mesquita que madame Zubayda mandou construir às
margens do rio Tigre”. Respondi: “Sim”. E, à noite, encaminhei-me até a
mesquita, fiz a oração noturna e dormi lá. Quando alvorecia, eis que chegaram
criados numa canoa, carregando caixas vazias, as quais colocaram dentro da
mesquita e se retiraram. Um deles se deixou ficar; olhei bem para ele e vi que se
tratava do eunuco. Em seguida, chegou ali a minha jovem apaixonada. Assim
que entrou, fui até ela e nos sentamos para conversar. A jovem chorou, depois
me introduziu numa das caixas e fechou-a. Depois disso os criados retornaram
carregando muitas coisas, que passaram a ser distribuídas pelas caixas restantes,
até que todas se encheram, foram fechadas e logo colocadas na canoa, que se
deslocou, conosco a bordo, rumo ao palácio de madame Zubayda. Arrependido,
pensei: “Por Deus que estou aniquilado”. Pus-me a chorar, a suplicar a Deus e a
rogar pela salvação enquanto eles continuavam avançando; passaram com as
caixas pela porta do palácio do califa, de onde carregaram a minha e as outras
caixas; passaram pelos eunucos encarregados do harém do califa, topando enfim
com um encarregado que parecia ser o maioral de todos, e que acabara de
acordar.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Sua irmã Dīnārzād lhe
disse: “Como é agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

126ª
noite das histórias
e insólitas narrativas
das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o despenseiro disse ao rei da China:
O jovem mercador nos disse:
O encarregado eunuco acordou e gritou com a jovem: “Sem muita conversa! É
absolutamente imperioso abrir essas caixas”, e a primeira com a qual ele
começou foi justamente a caixa onde eu estava, que foi rapidamente carregada
até ele. Nesse momento minha razão se transtornou, e me mijei todo de medo;
minha urina escorreu e vazou pela caixa. A jovem disse: “Capitão, você vai
provocar a minha aniquilação e a dos mercadores que venderam para mim, pois
fez com que as mercadorias compradas para madame Zubayda se estragassem.
Nessa caixa há roupas tingidas e um jarro com água de Zamzam.[253] Agora o
jarro deve ter se entornado e derramado nas roupas que estão na caixa,
desbotando-lhes as cores!”. O funcionário disse: “Leve-a e vá embora”. Então
carregaram-me rapidamente. Fui alcançado pelas demais caixas. De repente
chegaram-me aos ouvidos as palavras “Ai de nós! Ai de nós! O califa! O
califa!”. Ao ouvir aquilo, morri dentro de minha pele. Ouvi o califa dizendo: “Ai
de você! O que há dentro das caixas?”. A jovem respondeu: “Roupas para
madame Zubayda”. Ele disse: “Abra para que eu veja”. Ao ouvir aquilo, morri
completamente. Em seguida, ouvi a jovem dizendo: “Ó comandante dos crentes,
essas caixas contêm roupas e outros artigos para madame Zubayda, e ela não
quer que ninguém veja as suas coisas”. O califa disse: “É absolutamente
imperioso que essas caixas sejam abertas para que eu veja o que contêm!
Tragam-nas aqui!”. Quando ouvi o califa dizendo “tragam-nas aqui”, fiquei certo
de que estava aniquilado. E logo começaram a colocar na frente do califa uma
caixa atrás da outra, e ele examinava as roupas e demais artigos. E assim
começaram a abrir uma caixa depois da outra diante dele, que lhes observava o
conteúdo, até que não restou senão a minha caixa. Carregaram-me até o califa e
me depositaram diante dele. Despedi-me da vida e tive certeza de que iria morrer
com o pescoço cortado. O califa ordenou: “Abram-na para que eu veja o seu
conteúdo”, e os eunucos acorreram para a caixa em que eu estava.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

127ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o despenseiro disse ao rei da China:
O jovem mercador nos disse:
O califa disse aos eunucos: “Abram esta caixa para eu ver o que há dentro”,
mas a jovem lhe disse: “Seria melhor que lhe visse o conteúdo, meu senhor,
diante de madame Zubayda, pois é principalmente nesta caixa que estão suas
coisas mais secretas e particulares”. Ao ouvir essas palavras, o califa ordenou
que as caixas fossem levadas para dentro; os eunucos vieram e carregaram a
caixa na qual eu estava, incrédulo de ter me salvado. Quando a caixa já estava
dentro dos aposentos da minha jovem amiga, ela rapidamente entrou, abriu-a e
disse: “Saia depressa e suba essas escadas”, e então eu saí e subi as escadas. Mal
minhas pernas acabavam de cumprir a tarefa e a jovem fechava a caixa onde eu
fora transportado, eis que os eunucos, carregando todas as demais caixas,
entraram seguidos pelo califa, que se sentou sobre a caixa que me transportara.
Todas as caixas foram abertas, e então ele saiu e foi ter com as mulheres do
harém. Quanto a mim, fiquei seco de medo, mas logo a jovem subiu até onde eu
estava e disse: “Já não há nenhum perigo, meu amo. Acalme-se e acomode-se
até que Zubayda saia e o examine. Quem sabe você não terá sorte conosco?”.
Desci e me acomodei num pequeno compartimento. Logo, dez criadas
semelhantes à lua surgiram e fizeram fileira; vinte outras criadas apareceram,
virgens de seios empinados; no meio delas vinha madame Zubayda, que mal
podia caminhar, tantos eram os trajes e as joias que carregava. Quando ela
entrou, as criadas se dispersaram e lhe trouxeram uma cadeira, na qual ela se
sentou e gritou pelas criadas, que por sua vez gritaram por nós. Fui então até
madame Zubayda, beijei o chão diante dela, que me fez sinal para sentar, e me
sentei à sua frente. Começou a conversar comigo e a me questionar sobre o que
eu fazia. Respondi a todas as suas perguntas, e ela, muito contente comigo, disse:
“Por Deus, não foi em vão que criamos essa jovem, que para nós é como se fosse
filha. Agora, ela passa a ser o depósito de Deus em suas mãos”. Ato contínuo,
ela determinou que eu dormisse no palácio por dez dias.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

128ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia de que o despenseiro disse ao rei da China:
O jovem mercador nos disse:
Permaneci entre elas por dez dias e noites, mas sem ver a jovem. Passado esse
tempo, Zubayda consultou o califa sobre o casamento de sua jovem servidora. O
califa o autorizou e determinou que se dessem dez mil dirhams para a ocasião.
Madame Zubayda mandou convocar juiz e testemunhas idôneas, que redigiram
meu contrato de casamento com ela. Fizeram a festa de núpcias e as demais
coisas necessárias, montaram banquetes com comida suntuosa e doces, numa
celebração que durou outros dez dias. Passados esses vinte dias, a jovem foi para
a casa de banho, enquanto eu ficava por ali. Quando anoiteceu, serviram-me uma
travessa com o jantar. Entre outros pratos, havia um recipiente contendo zīrbāja
cozinhada com pistache descascado e coberta com grão-de-bico e açúcar
refinado.[254] Por Deus que me lancei sobre ela sem hesitar, comendo até a
saciedade. Em seguida limpei as mãos, mas Deus altíssimo me fez esquecer de
lavá-las. Continuei ali sentado até que escureceu e as velas foram acesas. As
cantoras do palácio chegaram portando todo gênero de tamborins, todas tocando
pandeiro e cantando alto os vários ritmos musicais num coro de vozes. E
puseram-se a exibir a jovem pelo palácio, atirando-lhe ouro e peças de seda, até
que ela desfilou por todo o palácio, aparecendo enfim no lugar onde eu estava.
Diminuíram a quantidade de vestes que usava e deixaram-na a sós comigo. Logo
que nos deitamos no colchão e eu a abracei, sem conseguir acreditar que a
possuiria, ela sentiu o cheiro de zīrbāja em minha mão e deu um berro tamanho
que as criadas acudiram por todo lado e a cercaram. Tremi de medo e terror, sem
saber o motivo de seu grito. As criadas lhe perguntaram: “O que você tem,
irmã?”. Ela respondeu: “Tirem este louco de perto de mim”. Levantei-me
aterrorizado, sem saber o que estava acontecendo, e perguntei: “Minha senhora,
qual loucura viu em mim?”. Ela respondeu: “Seu louco! Você comeu zīrbāja e
não lavou as mãos, não é mesmo? Por Deus que receberá o que merece por causa
dessa atitude! Quer dormir com alguém da minha classe[255] e sua mão está
fedendo a zīrbāja?”. E, gritando com as criadas, disse-lhes: “Joguem-no ao
chão!”, e elas assim procederam. Ela pegou um chicote trançado e começou a
me golpear nas costas e nas nádegas. Quando seus braços cansaram, ela disse às
criadas: “Levantem-no e o levem até o administrador-geral da cidade, para que
lhe corte a mão que usou para comer zīrbāja e não lavou, quem sabe assim fico
livre dessa fedentina!”. Ao ouvir essas palavras, e depois de ter sofrido aquela
surra, pensei: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso! Que grande, que enorme desgraça! Levar uma surra dolorosa e ter a
mão cortada só porque comi zīrbāja e me esqueci de lavar a mão! Amaldiçoe
Deus a zīrbāja e a hora em que a comi!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

129ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se que o despenseiro disse ao rei da China:
O jovem mercador nos disse:
Então as demais criadas intervieram dizendo: “Madame, esse aí ignora o seu
valor. Perdoe-o, por nós!”. Ela disse: “Ele é um louco. É imprescindível que eu o
torture em algum de seus membros, para que ele nunca mais volte a comer
zīrbāja e deixe de lavar as mãos”. As criadas tornaram a intervir, beijaram-lhe a
mão, e disseram: “Madame, não se zangue tanto por causa desse esquecimento”.
Então a jovem ralhou comigo, ofendeu-me, e saiu,[256] com as criadas em seu
encalço. Ela sumiu de minhas vistas por dez dias, durante os quais, diariamente,
uma camareira vinha me trazer comida e bebida, e me informar de que a jovem
estava adoentada pelo fato de eu não ter lavado as mãos depois de comer zīrbāja.
Fiquei muitíssimo assombrado e pensei: “Que caráter maldito é esse?”.
Vomitando bílis de tanta raiva, eu disse: “Não existe poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso!”. Passados os dez dias, a camareira entrou trazendo
minha comida, informou-me de que a jovem iria à casa de banho, e disse:
“Amanhã sua mulher estará com você. Faça o seu coração ter paciência com a
irritação dela”. No dia seguinte ela entrou, olhou em minha direção e disse: “Que
Deus obscureça o seu rosto! Você não perde por esperar![257] É que as coisas
com você só vão se consertar quando eu castigá-lo por não haver lavado a mão
depois de comer zīrbāja”, e gritou pelas criadas, que me cercaram e amarraram.
Ela puxou uma navalha afiada, aproximou-se, e amputou os meus polegares,
conforme vocês estão vendo, minha gente. Desmaiei. Em seguida, para estancar
o sangue, ela aplicou pós e outras drogas medicamentosas sobre as feridas. E o
sangue estancou e secou. As criadas fizeram curativos e me deram vinho para
beber. Abri os olhos e disse: “Eu a faço testemunha de que nunca mais comerei
zīrbāja sem lavar as mãos cento e vinte vezes”; a jovem respondeu: “É a melhor
atitude”, e me fez jurar e assumir compromisso a respeito. Assim, quando vocês
me serviram a refeição e vi que continha zīrbāja, minha cor se alterou e pensei:
“Foi este o motivo da perda dos meus polegares”. E quando me forçaram a
comer, cumpri o meu juramento.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

130ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se que o despenseiro disse para o rei da China que o grupo perguntou
ao jovem mercador: “E o que lhe aconteceu depois disso?”. Ele respondeu:
Quando me restabeleci e os ferimentos cicatrizaram, ela enfim me acolheu.
Dormi com ela e moramos juntos no palácio pelo resto do mês, mas comecei a
me sentir incomodado com a vida ali. Ela me disse: “Ouça, o palácio do califa
não é um bom lugar para viver. Madame Zubayda me deu cinquenta mil dinares.
Tome-os e compre uma boa casa para nós”, e me entregou dez mil dinares, que
eu peguei. Saí com o dinheiro e comprei uma casa muito bem construída. Minha
mulher veio morar comigo, e levei ao seu lado, por anos, uma vida de califa, até
que ela morreu. Enfim, é este o motivo de eu haver lavado as mãos daquele
modo e de não ter os polegares.
[Prosseguiu o despenseiro:] “Então terminamos a refeição e nos retiramos
todos. Depois disso, ocorreram-me aquelas coisas com o corcunda. Esta é a
minha história, é o que presenciei ontem”. O rei da China disse: “Por Deus que
isso não é mais insólito do que a história do corcunda bufão!”.
Então o médico judeu deu um passo à frente, beijou o chão e disse: “Meu
senhor, eu tenho para contar uma história mais espantosa do que essa”. O rei
disse: “Conte”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como sua história é agradável e insólita”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

131ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que o judeu disse:
O JOVEM DE MOSSUL E SUA NAMORADA CIUMENTA
Ó rei do tempo, a coisa mais insólita que me sucedeu foi quando eu morava em
Damasco, onde estudei medicina. Certo dia mandaram me chamar à residência
do administrador-geral da cidade, por intermédio de um escravo. Fui com ele,
entrei na residência e vi no final do saguão uma cama sobre a qual estava deitado
um rapaz, cuja juventude, embora enfermo, eu jamais vira igual. Sentei-me à sua
cabeceira e roguei por seu restabelecimento. Ele me fez um sinal com o olho.
Disse-lhe: “Meu senhor, dê-me a sua mão, por sua pronta recuperação”, e ele me
estendeu a mão esquerda. Fiquei intrigado e pensei: “Por Deus, que espantoso!
Trata-se de um belo jovem, morador desta residência tão importante, mas lhe
falta educação! Isso é que é espantoso”. Medi-lhe o pulso e lhe prescrevi
receitas. Fui visitá-lo durante dez dias, até que ele se recuperou. Levei-o então à
casa de banho. Quando retornamos, o governador e vizir da cidade me concedeu
um traje honorífico e me nomeou superintendente do hospital da cidade.
Mas o fato é que, assim que entrei na casa de banho com o rapaz, esta foi
totalmente isolada. Os porteiros e demais funcionários conduziram o rapaz e lhe
tiraram as roupas lá dentro. Quando ficou nu, verifiquei que a sua mão direita
fora recentemente decepada: era este o motivo de sua enfermidade. Ao ver
aquilo, fiquei assombrado com o que o destino me reservara; fiquei triste por sua
juventude e meu íntimo se angustiou. Olhei bem para o seu corpo e notei
vestígios de chicotadas sobre as quais se aplicaram pomadas, emplastros e outras
drogas; contudo, os vestígios continuavam ali, indeléveis, em seus flancos.
Fiquei mais angustiado ainda, e isso transpareceu em meu rosto. O jovem olhou
para mim e, compreendendo o que sucedia, disse: “Ó médico, não fique tão
espantado comigo. No momento apropriado eu lhe contarei uma história
assombrosa”. Então nos banhamos e voltamos para a casa, onde comemos
alguns cozidos e descansamos. O rapaz me perguntou: “Você gostaria de passear
pelo vale de Damasco?”. Respondi afirmativamente e ele ordenou aos escravos
que carregassem as coisas das quais precisaríamos, um carneiro assado e frutas.
Fomos ao vale, espairecemos por algum tempo, sentamos e fizemos a refeição.
Quando terminamos, foi servido um pouco de doce, que comemos. Quando eu
pretendia tocar no assunto, ele se antecipou e disse:
Saiba, ó médico, que eu sou de Mossul. Meu avô morreu e deixou dez filhos,
entre os quais meu pai, que era o mais velho. Os dez filhos cresceram e se
casaram, inclusive meu pai, a quem Deus agraciou com o meu nascimento. Seus
nove irmãos, no entanto, não foram agraciados com filho nenhum. Assim, cresci
no meio de meus tios paternos.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

132ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o médico judeu disse para o rei da China:
O jovem me disse:
Quando cresci e atingi a idade adulta, fui numa sexta-feira à mesquita de
Mossul na companhia de meu pai e de meus tios. Fizemos a prece coletiva da
sexta-feira e a multidão saiu da mesquita. Meu pai, meus tios e outras pessoas
sentaram-se em círculo para conversar sobre as coisas maravilhosas e peregrinas
que existiam em outras regiões e cidades. Foram falando de vários lugares até
que chegaram ao Cairo e seu rio Nilo. Meus tios disseram: “Os viajantes contam
que não existe na face da Terra nenhuma província melhor do que o Cairo”.
Passei, intimamente, a acalentar o desejo de ver o Cairo. Meus tios disseram:
“Bagdá é a morada da paz, a mãe do mundo”.[258] Meu pai, que era o mais
velho, disse: “Quem não viu o Cairo não conhece o mundo. Suas terras são ouro,
suas mulheres, bonecas, seu rio Nilo, maravilha, suas águas, leves e potáveis, seu
barro, suave e úmido, tal como disse alguém numa poesia:
‘Parabéns, hoje, pela festa da cheia do Nilo:
sozinho, é ele que lhes traz felicidade.
O que é o Nilo? Minhas lágrimas sem vocês,
que gozam desse benefício, e eu aqui sozinho’.
Se porventura os seus olhos contemplassem o verdor daquela terra, enfeitada por
flores e adornada com várias espécies de plantas; e se vocês pousassem os olhos
sobre a ilha do Nilo e suas inúmeras paisagens adoráveis; e se corressem os
olhos pelo lago etíope, suas vistas voltariam saturadas de tanta maravilha. Vocês
não viram aquela linda paisagem, cujo verdor foi cercado pelas águas do Nilo,
como se fossem topázios incrustados numa lâmina de prata? Por Deus que é
excelente quem disse a respeito os seguintes versos poéticos:
‘Por Deus, que dia passei no lago etíope!
Ali ficamos entre luzes e sombras.
A água brilhava no meio das plantas
como lâmina nos olhos de um apavorado
Estávamos num jardim elevado,
cujas margens eram ornadas de luzes,
e bordados pelas mãos das nuvens:
é o tapete sobre o qual nós estamos.
Aqui ofertamos vinho aos caminhantes,
que passam preocupados, desconfortáveis.
Dê-me de beber em grandes taças cheias,
pois elas matam melhor a sede intensa’”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é
agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

133ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse:
E foi assim que o meu pai começou a descrever o Cairo. Quando terminou de
descrever o rio Nilo e o lago etíope, ele disse: “Mas o que é essa descrição
comparada com a observação ao vivo de tamanha formosura? Ao chegar lá,
qualquer observador atento diria: ‘Este lugar se singulariza por maravilhas de
vário gênero’. E se porventura você mencionar a festa da noite de cheia do Nilo,
devolva o arco a quem o deu e faça a água seguir o seu curso.[259] E se você por
acaso contemplar os seus jardins sombreados quando a tarde cai, verá maravilhas
e se inclinará de emoção. E se você estiver às margens do Nilo durante o pôr do
sol, quando as águas vestem cota de malha e escudo, será refrescado por sua leve
brisa e amplas sombras generosas”.[260] Ao ouvir essa descrição do Cairo, fui
tomado de obsessão por conhecer essa cidade, a tal ponto que não dormi naquela
noite. Certo dia, como meus tios estivessem organizando uma caravana
comercial para a província do Cairo, fui ao meu pai e tanto chorei que ele me
arranjou mercadorias e me deixou viajar na companhia dos meus tios, aos quais
recomendou: “Não o deixem ir ao Cairo. Vendam as mercadorias em Damasco”.
Então, arrumadas as coisas, saímos de Mossul e demos início à viagem, que não
foi interrompida até que chegamos à cidade de Alepo, onde nos instalamos por
alguns dias, logo tomando o rumo de Damasco. Constatei que se trata de uma
agradável cidade, segura e repleta de riquezas, com rios, árvores e aves,
parecendo um dos jardins do paraíso ou um dos bosques de Raḍwān, onde “de
cada fruta havia um par”.[261] Hospedamo-nos num caravançará. Meus tios
venderam minhas mercadorias com um lucro de cinco dinares por um, o que me
deixou muito contente. Depois eles me deixaram ali e seguiram para o Cairo.
Fiquei sozinho. Logo que eles seguiram viagem, fui hospedar-me numa grande
casa revestida em mármore, com andar superior, depósito e uma fonte cuja água
corria noite e dia. Era conhecida como mansão de Sūdūn ᶜAbdurraḥmān, e seu
aluguel mensal era de dois dinares.[262] Ali estabelecido, pus-me a comer, a
beber e a me divertir. Meti a mão no dinheiro e dissipei quase tudo. Certo dia,
estando eu sentado à porta da casa, eis que uma jovem com um traje gracioso
como meus olhos jamais tinham visto igual veio em minha direção. Convidei-a,
e mal pude acreditar quando ela aceitou e entrou na casa.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

134ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Ela aceitou a minha oferta[263] e entrou; entrei atrás dela e fechei a porta.
Sentou-se, retirou o véu do rosto e arrancou o lenço que lhe cobria os cabelos.
Constatei que tinha formas magníficas, parecendo o plenilúnio pintado, e o amor
por ela tomou conta de mim. Levantei-me, saí, comprei de um cozinheiro uma
travessa cheia de petiscos delicados;[264] mandei também providenciar bebida,
comida, frutas e tudo quanto fosse necessário. Comemos. Ao anoitecer,
acendemos as velas, ajeitamos as taças e bebemos várias rodadas, até nos
embriagar. Dormi com ela, passando uma noite das mais deliciosas. Quando
amanheceu, eu lhe ofereci dez dinares, mas ela fez cara feia e disse: “Como são
desagradáveis vocês de Mossul! E eu por acaso estou aqui por causa de ouro ou
dinheiro?”. E, por sua vez, me ofereceu dez dinares seus, e jurou que, se eu não
os aceitasse, não voltaria a me ver. Disse: “Meu querido, espere-me, daqui a três
dias, entre o final da tarde e o início da noite. Tome mais estes dez dinares e
monte para nós um banquete igual ao de ontem”, e, despedindo-se, foi embora e
desapareceu, levando consigo o meu coração. Mal pude esperar que se
passassem os três dias, ao cabo dos quais, no final da tarde, a jovem apareceu de
echarpe, tamancos e capa, exalando agradáveis aromas. Então, como eu já havia
preparado o banquete da maneira que bem escolhera e me aprouvera, comemos,
bebemos, brincamos e rimos. À noite acendemos velas, bebemos até nos
embriagar e fui dormir com ela. De manhã a jovem se levantou, mostrou dez
dinares e disse: “Façamos sempre a mesma coisa”, e se ausentou por outros três
dias. Preparei-lhe o banquete e ela chegou, conforme o hábito. Entramos,
sentamos, comemos, brincamos e conversamos até o anoitecer, quando então nos
acomodamos para beber. Bebemos. Ela perguntou: “Meu senhor, por Deus, eu
sou ou não sou bonita?”. Respondi: “Sim, por Deus!”. Ela perguntou: “O que
você acha de eu trazer comigo uma garota mais bonita e mais jovem do que eu?
Ela poderá brincar, rir e se alegrar, pois faz tempo que está reclusa e me pediu
para sair comigo e passar a noite no mesmo lugar que eu”. Respondi: “Sim, por
Deus!”. Pela manhã, ela me entregou quinze dinares e disse: “Aumente o
banquete, pois receberemos uma nova hóspede. O prazo para o encontro é o de
sempre”, e se retirou. Passados os três dias, providenciei o banquete.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

135ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Assim que o sol se pôs, ela apareceu na companhia de outra jovem, tal como
havia sido combinado. Entrei, acendi as velas e as recebi com felicidade e
alegria. A jovem descobriu o rosto e “glória a Deus, o melhor dos criadores”.
[265] Sentamos para fazer a refeição e comecei a dar bocados de comida para a
moça mais nova, enquanto ela olhava para mim e ria. Quando acabou a comida,
servimos bebida, frutas e petiscos. Fiquei bebendo ao lado da nova visitante, que
sorria e piscava para mim, enquanto eu me consumia de amor por ela. A primeira
jovem, percebendo que a nova visitante estava de olho em mim, e eu de olho
nela, brincou, riu e perguntou: “Essa jovem que eu trouxe não é melhor e mais
formosa do que eu, meu querido?”. Respondi: “Sim, por Deus!”. Ela disse:
“Então durma com ela”; respondi: “Sim, por Deus!”. Ela continuou: “Faço muito
gosto. Nesta noite, ela é nossa visitante, ao passo que eu já sou da casa”. Em
seguida levantou-se, reuniu ânimo e arrumou a cama. A visitante e eu nos
levantamos, nos abraçamos e fomos dormir juntos. Naquela noite, a primeira
jovem subiu e estendeu a cama no andar de cima, onde foi dormir sozinha,
enquanto eu dormia com a visitante. Pela manhã, ao me mexer, achei-me no
meio de grande umidade. Supondo que fosse suor, fui acordar a jovem visitante;
balancei-a pelos ombros e sua cabeça rolou. Enlouquecido, gritei dizendo: “Ó
Deus, generoso protetor!”. Ela fora assassinada. Levantei-me imediatamente, o
mundo escurecera diante de meus olhos, e procurei pela primeira jovem, mas
não a encontrei. Compreendi então que, por ciúme, ela assassinara a jovem
visitante. Pensei: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso! O que fazer?”. Refleti por alguns momentos e arranquei as roupas
dela e as minhas. Pensei: “Não estou seguro de que aquela jovem não irá
denunciar-me aos familiares desta assassinada. Nunca se está a salvo das
artimanhas femininas”. Cavei um buraco no centro da casa e ali enterrei a jovem
e todas as suas joias; joguei terra por cima e recoloquei o mármore e o concreto
no lugar. Vesti roupas limpas, coloquei o resto do meu dinheiro numa caixinha, e
saí da casa. Armado de coragem, tranquei a casa, selei-a e fui até o proprietário,
a quem paguei o aluguel de um ano e disse: “Estou viajando ao Cairo para ver os
meus tios”. Comprei passagem numa caravana do sultão e viajei.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

136ª
noite das assombrosas
histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei do tempo, de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse, ó rei venturoso:
Viajei e Deus escreveu que eu chegaria bem. Entrei no Cairo e logo localizei
os meus tios, constatando que eles haviam vendido as suas mercadorias a
crédito. Ao me encontrarem, ficaram muito contentes e surpresos com a minha
vinda. Eu lhes disse: “Fiquei com saudades. Ademais, vocês não mandavam
notícias”, mas não lhes informei que o meu dinheiro estava comigo. Permaneci
junto com eles, passeando pelo Cairo e espairecendo. Meti a mão no resto do
meu dinheiro e comecei a esbanjá-lo em comida e bebida. Quando se aproximou
a hora de meus tios fazerem a viagem de volta, escondi-me; desapareci. Eles me
procuraram, mas, como não me localizassem, disseram: “Talvez ele tenha
regressado a Damasco”, e viajaram. Morei no Cairo por três anos, ao cabo dos
quais não me restou nada: dilapidei tudo quanto eu possuía; além do mais, todo
ano eu enviava o aluguel ao proprietário da casa onde morara em Damasco.
Enfim, depois de três anos, com as posses bastante minguadas, não dispondo
senão do dinheiro da passagem, viajei. Deus escreveu que eu chegaria bem.
Entrei em Damasco e fui para a casa, cujo proprietário, que comerciava joias,
muito se alegrou com meu retorno e abriu a casa. Rompi o selo, entrei, varri,
limpei e encontrei, debaixo das coisas sobre as quais dormi com a jovem
assassinada, um colar de ouro com um conjunto de dez pérolas. Era de
transtornar a razão. Assim que o vi, reconheci o que era. Recolhi-o, examinei e
chorei por algum tempo. Em seguida, terminei de limpar a casa; arrumei-a e
deixei do jeito que estava antes. Passados dois ou três dias dirigi-me a uma casa
de banho, onde me recompus e troquei de roupa. Já não me restava nenhum
dinheiro para gastar. Fui um dia ao mercado e, seduzido por Satanás, conforme
desígnio e decreto divinos, levei comigo o colar de joias enrolado num lenço.
Ofereci o colar a um leiloeiro, o qual, ao vê-lo, beijou minha mão e disse:
“Muito bom, por Deus! É uma agradável, abençoada maneira de começar o dia!
Ó manhã boa!”. Conduziu-me à loja do proprietário de minha casa, que me fez
sentar ao seu lado. Aguardamos até que o mercado se abrisse, e então o leiloeiro
pegou o colar e começou a anunciá-lo às escondidas, em segredo, sem que eu
soubesse o que estava sendo feito. Valiosíssimo, o colar alcançou o preço de dois
mil dinares. O leiloeiro achegou-se a mim, consultou-me sobre uma oferta de
cinquenta dinares, ou mil dirhams, e disse: “Acreditávamos, meu senhor, que se
tratava de ouro, mas é falsificado. Por favor, aceite esse preço”. Respondi: “Pode
receber esse valor, pois eu já sabia que era um colar de cobre”. Ao ouvir minhas
palavras, o leiloeiro percebeu que por trás do colar existia alguma história
complicada. Levou-o e tramou uma negociata contra mim com um dos maiorais
do mercado, o qual foi até o administrador-geral e denunciou que o colar fora
roubado de sua propriedade, mas que ele descobrira o ladrão, que estava usando
roupa de mercador. Assim, antes mesmo que eu pudesse reagir, vi-me cercado
pela desgraça: guardas me agarraram e me encaminharam ao administrador-
geral, que me interrogou sobre o colar. Dei-lhe a mesma resposta que dera ao
leiloeiro, mas ele riu e percebeu que eu o roubara. Antes que eu me desse conta,
já estava sendo despido e vergastado. A surra me triturou e, mentindo, confessei
que eu o roubara. Redigiram o relatório contendo minha confissão, cortaram
minha mão e cauterizaram o ferimento com óleo. Permaneci desmaiado por meio
dia. Depois, deram-me vinho. O proprietário da casa carregou-me e disse: “Meu
filho, você é um jovem distinto. Por que praticar esse roubo? Você tem dinheiro,
tem seu comércio. Depois que se rouba o dinheiro alheio, ninguém mais tem
piedade! Meu filho, devolva minha casa e veja outro local para morar, pois agora
você é suspeito. Vá em paz”. Derrotado e humilhado, eu pedi: “Meu senhor, será
que podia me dar um prazo de três dias para eu procurar outro local?”. Ele
respondeu: “Sim”, e se retirou. Fiquei refletindo, triste e preocupado. Se eu
viajasse para a minha terra, como retornar aos meus pais assim com a mão
decepada, sem poder provar-lhes minha inocência? Então chorei amargamente,
um choro como nunca houve mais intenso.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

137ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse:
Permaneci num estado de torpor durante dois dias, e no terceiro,
repentinamente, chegaram o dono da casa e alguns guardas, mais o mercador que
comprara o colar de mim e inventara que eu o roubara dele. O mercador estava
sob vigilância, cercado por cinco guardas. Todos ficaram parados diante da porta
de minha casa. Perguntei: “O que está acontecendo?”. Mas eles não me deram
tempo: amarraram-me, puseram em meu pescoço uma coleira presa a correntes e
disseram: “O colar que estava com você pertence ao governador e vizir de
Damasco. Ele afirmou que esse colar desaparecera de sua casa há três anos,
junto com sua filha”. Meu coração desabou quando ouvi essas palavras. Fui com
eles naquele estado, de mão decepada. Cobri o rosto e disse com meus botões:
“Vou, de fato, contar a verdadeira história ao governador. E ele que faça o que
bem entender: perdoe-me ou mate-me”. Quando chegamos à sua residência, fui
colocado diante do governador, que olhou para mim e disse aos mercadores que
haviam sido conduzidos para ali pela polícia: “Estão soltos. Não foi ele que
vendeu meu colar no mercado?”. Responderam: “Sim”. Ele continuou: “Não foi
ele que o roubou. Por que cometeram a injustiça de cortar-lhe a mão? Pobre
coitado!”. Meu coração então ganhou forças e eu disse: “Sim, por Deus, meu
senhor, não o roubei. Foi uma intriga que armaram contra mim. Esse mercador
inventou que o colar pertencia e ele e que eu o roubei. Denunciou-me ao chefe
de polícia, que me surrou com a vergasta. Foi uma surra tão violenta que menti
contra mim mesmo”. Ele disse: “Já não existe perigo”, e sentenciou o mercador
que me acusara de roubo: “Indenize-o pela perda da mão; caso contrário, irei
esfolar você com a vergasta”, e gritou com os guardas, que o agarraram e saíram.
Ficamos o governador e eu, que me pediu: “Meu filho, diga a verdade. Conte-me
a história desse colar e de como foi parar nas suas mãos. Não minta. Diga-me a
verdade, e a verdade irá salvá-lo”. Respondi: “Por Deus que era essa a minha
intenção”, e lhe relatei o que me sucedera com a primeira jovem, e como ela me
trouxera a dona do colar, e como fora atingida por ciúme e a matara durante a
noite, fugindo em seguida, sem que eu soubesse de onde ela era. Enfim, contei-
lhe a história com toda a fidelidade. Depois de ouvir minhas palavras, ele
balançou a cabeça e as lágrimas começaram a escorrer de seus olhos. Bateu uma
mão na outra e disse: “Pertencemos a Deus e a ele retornaremos”. E, voltando-se
para mim, disse: “Meu filho, irei revelar-lhe tudo o que aconteceu: saiba que a
questão...”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.
138ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o médico judeu disse ao rei da China:
O jovem me disse:
O governador me disse:
Saiba que a jovem que primeiro esteve com você é minha filha mais velha. Eu
sempre a mantive muito presa, isolada. Ela acabou se casando no Cairo com um
primo. Ele morreu, e então minha filha voltou a morar comigo. Mas ela já
aprendera a safadeza no Cairo; por isso, foi visitar você aquelas três ou quatro
vezes, e por fim acabou levando junto a irmã, que era minha filha do meio. Essas
duas eram irmãs de pai e mãe, e se queriam muito uma à outra, a tal ponto que
não suportavam ficar separadas por uma hora sequer. Quando ocorreram aquelas
coisas entre você e a mais velha, ela contou o segredo para a irmã, que passou a
desejar ir junto. Então ela pediu permissão a você e a levou. Mas depois ela
ficou com ciúme, matou-a e voltou para cá. Eu não tinha conhecimento de nada:
naquele dia, à hora da refeição, senti falta de minha filha, que não estava
presente. Pus-me a indagar a seu respeito, e afinal encontrei-a chorando e se
dilacerando por falta da irmã. Ela me disse: “Papai, antes que eu me desse conta,
durante o chamado para a prece, ela vestiu o véu, pôs as joias, o colar e todas as
demais roupas e saiu”. Por medo de problemas e escândalos, esperei por dias e
noites, sem nada comunicar a ninguém. E a irmã, que a assassinara, não cessou
de verter lágrimas desde aquele dia. Parou de comer e beber, deixando-nos
preocupados e tornando nossa vida um desgosto. Dizia: “Por Deus que não
cessarei de chorar por ela até beber da taça da morte”. Mas como mesmo aquele
prazo lhe parecesse excessivamente longo, ela acabou se matando. E eu fui
ficando cada vez mais triste por causa dela. Foi isso o que aconteceu.
[Prosseguiu o governador :] “Veja bem o que ocorre com pessoas como nós e
com pessoas como vocês. Notei que ‘Este mundo é ilusão, e o homem é imagem
transitória: mal chega e já se foi’.[266] Agora, meu filho, eu gostaria que você
não discordasse de mim: neste momento, você é uma vítima daquilo que está
predeterminado e sua mão foi injustamente decepada. Eu gostaria que você
aceitasse minha proposta: case-se com minha filha caçula. Ela não é irmã das
duas por parte de mãe. Eu lhe darei dinheiro, dote, vestimentas e estabelecerei
pensões para vocês. Você será tratado como meu filho. O que me diz?”.
Respondi: “Meu senhor, e quem sou eu para recusar essa oferta? Claro que
aceito”.
[Prosseguiu o jovem:] Imediatamente ele me conduziu para o interior da casa,
mandou chamar testemunhas e redigiu meu contrato de matrimônio com a sua
filha caçula. Consumei o casamento, e o mercador me pagou a indenização pela
perda de minha mão; era uma quantia tal que, no palácio, assumi uma posição
das melhores. No início deste ano, recebi a notícia de que meu pai falecera.
Informei ao governador, que escreveu ao Cairo solicitando cartas do sultão.
Depois, enviou-as com um emissário dos correios até Mossul, e o dinheiro de
meu pai chegou todinho para mim. E hoje levo a melhor vida. É esse o motivo
pelo qual eu ocultava meu braço direito. E você está desculpado, ó médico.
[Prosseguiu o médico:] Fiquei assombrado com essa narrativa. Continuei
hospedado junto ao jovem durante mais alguns dias, até que ele retornou pela
segunda vez à casa de banho e depois voltou para sua jovem esposa. Pagou-me
com uma considerável quantia em dinheiro, arranjou-me provisões para viagem,
e se despediu. Parti e viajei dali para terras mais a oriente. Entrei em Bagdá,
atravessei a porção oriental do Iraque, e arribei a esta sua terra, onde passei a
morar por considerá-la agradável. E, nesta noite, sucedeu aquilo tudo entre mim
e o corcunda bufão. Não é isto mais assombroso do que a história do corcunda?
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

139ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia de que, após ouvir a história daquele médico judeu, o rei da
China balançou a cabeça e disse: “Pois sim! Por Deus que essa história não é
mais assombrosa nem mais insólita do que a história do corcunda bufão. É
imprescindível que eu mate vocês quatro, que se mancomunaram para matar o
corcunda bufão, e que apresentaram narrativas que não são mais assombrosas do
que a história dele. Não resta senão você, alfaiate, que é o pivô dessa desgraça
toda. Vamos, conte-me uma história insólita e espantosa, que seja de fato mais
assombrosa, mais insólita, mais saborosa e mais emocionante. Caso contrário,
irei executá-los todos”. O alfaiate respondeu: “Sim”, e começou a contar:
O JOVEM MANCO E O BARBEIRO DE BAGDÁ
O evento mais espantoso que sucedeu a mim, ó rei do tempo, deu-se ontem.
Antes de topar com esse corcunda bufão, estava eu, durante o dia, numa festa à
qual compareceram muitos amigos meus. Entramos e fomos juntos fazer a
refeição. Quando já estávamos acomodados – éramos cerca de vinte indivíduos
–, eis que chegou o anfitrião acompanhado de um jovem forasteiro, distinto, de
perfeita beleza e formosura – porém manco. Entraram ambos, e, numa
deferência ao proprietário da casa, todos nos pusemos de pé para o jovem, que
veio sentar-se. No entanto, vendo entre nós certo homem que de ofício praticava
a barbearia, recusou-se a sentar e fez menção de ir embora. O anfitrião segurou-
o, jurou que não o deixaria partir e perguntou: “Como então você vem comigo,
entra na minha casa, e agora quer retirar-se? Qual o motivo?”. O rapaz
respondeu: “Por Deus, meu amo, não me impeça. O motivo é aquele malsinado
senhor, de faces trevosas, de atitudes horrendas, de movimentos desgraçados e
desprovido de bênção”. Quando se ouviram tais qualificativos, tanto o dono da
casa como nós ficamos repugnados de estar na companhia do barbeiro. Olhamos
para ele...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

140ª
noite das histórias
e estranhezas das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
Quando ouvimos aqueles qualificativos dirigidos ao barbeiro, dissemos:
“Agora nenhum de nós conseguirá comer ou ficar em paz se o jovem não nos
contar por que esse barbeiro possui tais características”. Então o jovem disse:
“Bem, minha gente, os eventos entre mim e esse barbeiro tiveram lugar em
Bagdá, minha terra. Ele é o responsável por eu ter quebrado a perna e me
tornado manco. Por isso, jurei que nunca mais me sentaria com ele em lugar
algum, nem sequer moraria na mesma cidade que ele. Mudei-me de Bagdá por
sua causa e fugi para esta cidade também por sua causa. Contudo,
inopinadamente o encontro na companhia de vocês! Não passarei esta noite
senão em viagem para outro lugar!”. Interviemos então, e lhe rogamos que se
sentasse e nos contasse o que ocorrera entre ele e o barbeiro em Bagdá.
Enquanto isso, a face do barbeiro se amarelava, e ele permanecia de cabeça
baixa. E o jovem contou o seguinte:
Saiba, minha gente, que o meu pai era um dos homens mais prósperos de
Bagdá, e Deus não o abençoou com outro filho que não eu. Quando cresci e
ganhei juízo, a morte transferiu o meu pai para a misericórdia de Deus altíssimo,
e ele me deixou uma quantia extraordinária de dinheiro. Comecei a trajar as
vestimentas mais elegantes. Gozava da melhor vida, mas Deus inoculara em
mim o ódio contra as mulheres. Até que, certo dia, caminhando pelas ruas de
Bagdá, súbito eu me vi diante de um grupo de mulheres que iriam cruzar o meu
caminho. Objetivando fugir delas, enfiei-me por uma ruela sem saída. Fiquei por
ali durante alguns momentos, e logo se abriu uma portinhola por trás da qual
surgiu uma jovem que parecia o sol resplandecente. Meus olhos jamais haviam
visto alguém tão belo. Ao me ver, abriu um sorriso. Havia algumas flores na
portinhola. O fogo começou a lavrar em meu coração: o ódio contra as mulheres
se transformou em amor. Fiquei sentado por ali até que o entardecer se
avizinhou. Encontrava-me eu totalmente alienado de tudo quando, de repente,
passou o juiz da cidade montado numa mula. Desapeou-se, firmou os pés no
chão e entrou na casa em que estava a jovem. Adivinhei que se tratava de seu
pai. Regressei para minha casa angustiado e me joguei na cama, debilitado e
febril. Meus familiares vieram me ver, mas não conseguiam saber o que eu tinha,
nem eu lhes respondia. Fiquei durante dias nesse estado. Meus familiares já
estavam chorando por mim quando uma velha foi me ver. Observou-me e logo
adivinhou a que se devia meu estado. Sentou-se à minha cabeceira e começou a
me dirigir palavras gentis. Disse-me: “Fique tranquilo, meu filho. Conte-me o
seu caso e eu conseguirei satisfazer o seu desejo”. Suas palavras penetraram em
meu coração. Sentei-me e comecei a conversar com ela.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

141ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
E, fixando o olhar em mim, a velha começou a declamar a seguinte poesia:
“Não, pela fronte radiante
e pelo rosado do seu rosto!
Quando se preparou para ir,
nenhum olhar dele se desviou!
Pus-me a caminhar atrás dele,
tropeçando, sem enxergar,
trôpego, arrastando-me,
tropeçando nos seus rastros.
Pois era um animal acostumado
a correrias, que não tropeçava,
e cujo coração era bem duro:
tinha a dureza da pedra.
Deixou-me as entranhas em fogo
e incendiada a minha alma;
virei um homem solitário, isolado,
que evitava a minha gente.
Encosto na poeira o meu rosto,
e minha lágrima é tempestade:
lamento pelos dias passados,
minha juventude agora é velhice.
Pobre de mim, perplexo que estou:
trará o sofrimento algum benefício?
Morto me tornei desde que ele se foi,
mas um morto ainda insepulto!
Dissolva-se de angústia, fígado meu!
Parta-se em duas, minha alma!
Enquanto vida ainda eu tiver,
jamais abandonarei sua lembrança.
Tenho o coração em corpo de prata
cujos membros parecem mármore.
Não, por aquele de rosto zangado,
que não se alegra nem com cânticos.[267]
Sou aquele que morreu de amor,
mas agora minha paciência acabou.
Meus rivais sofreram a mesma paixão
mas tampouco tiveram paciência.
Será que o passado vai regressar?
A vida era tão fértil, tão radiante!
Não sou daqueles que acusam
os rivais de não terem castidade.
Mas como distrair minha alma,
e como reunir tanta paciência?
Não lhe esqueço a esbelteza
naquela imagem tão formosa.
Tem uma beleza maravilhosa
que prisioneira deixa a razão.
Quando o abracei, seu rosto
parecia manhã que irrompe.
A luz foi se afastando de nós,
e saborosa a noitada ficou!
Estávamos os dois num jardim
semelhante a um manto verde,
em torno de um rosto suave,
opulento, bem desenhado.[268]
Agarrei então as suas faces
tal como se agarra tecido em loja,
tal como se fosse moeda de ouro
na mão de um avarento mesquinho.
Imaginei, tanta era sua doçura, que
ele fosse seda recheada com flores,
recheio da melhor qualidade, que
em lugar nenhum se vende a prazo:
se quem nos vigia se aproximar,
estarei redimido pelo resto da vida.
Nunca abandonei meu amor por ele;
Deus me livre desta mudança!
Não tenho nada que ver com os rudes,
nem me caracterizo pelos ciúmes.
Meu afeto por ele permanecerá,
sempre, pelas noites de vigília.
Mantive a promessa que fiz:
minha consciência não o desdenha.
Jurei que mesmo se eu morrer de angústia,
não haverá desculpa para esquecê-lo.
Pois não sou mero apaixonado
que se lamenta, humilhado.
Entre os que se apaixonaram,
quem esqueceu não sofreu.
Meu caso, na paixão, não é o
daqueles que deixam de lado.
Quanto bem-estar gozamos juntos,
tanto que não dá para calcular;
e tantas uniões das quais pensei,
tão perfeitas, que não se desfariam.
E tão boas companhias eu tinha
que supus nunca se extinguiriam.
Mas tudo virou secura e estranheza,
lugar em que não há notícia alguma.
Que saudades do tempo passado
ao lado de belíssimas gazelas!
Se depois disso eu retomar contato
e voltar a satisfazer meus anseios,
guardarei um jejum contínuo
pelo que restar de minha vida.
Se depois disso você me vir,
vai dizer: ‘esse aí é um bárbaro,
e essa doença de paixão, mesmo
que viva mil anos, não vai sarar’”.[269]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como é
agradável a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

142ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
A velha me disse: “Deixe-me a par da sua história, meu filho”, e então eu lhe
contei tudo. Ela disse: “Essa jovem é filha do juiz de Bagdá, meu rapaz. Vive em
rigorosa reclusão. O lugar onde você a viu é o piso particular dela; seu pai e sua
mãe vivem na casa principal, situada debaixo desse piso, no qual ela reside
sozinha. Eu sempre converso com ela. É isso: eu vou me encarregar desse
assunto, pois você não conseguirá ter contato com ela senão por meu intermédio.
Tenha ânimo!”. Senti-me revigorado ao ouvir esse discurso; voltei a comer e a
beber, deixando contentes os meus familiares. A velha se retirou e, no dia
seguinte, retornou com a face alterada e disse: “Nem me pergunte, meu filho, o
que a jovem me aprontou quando mencionei o seu nome; a última coisa que dela
ouvi ao seu respeito foi: ‘Se acaso não calar a boca e parar com essa conversa,
sua velha malsinada, eu com certeza farei contra você todas as perversidades que
merece. Se mencionar de novo o nome dele, vou contar tudo para o meu pai’.
Contudo, meu filho, por Deus que será necessário insistir mais uma vez, mesmo
que com isso eu seja acometida pelas coisas mais execráveis”. Quando ouvi
aquilo, minha enfermidade se agravou e comecei a gritar: “Ai! ai!, como é
impiedosa a paixão!”. A velha passou a me visitar diariamente. Como a
enfermidade se prolongasse demasiado, todos os meus familiares já haviam
perdido as esperanças, bem como os médicos e outros conhecedores da matéria.
Certo dia, a velha chegou subitamente para fazer a sua visita diária, sentou-se à
minha cabeceira, pôs o rosto diante do meu e me disse às escondidas de minha
família: “Quero que você me conceda minha alvíssara”.[270] Ouvindo aquilo,
sentei-me e disse: “Sua alvíssara será por minha conta”. Ela então disse:
“Ontem, meu amo, fui até a jovem, que me recebeu com boa cara. Vendo-me de
coração alquebrado e com os olhos chorosos, ela perguntou: ‘Como vai, minha
tia? O que você tem, e por que traz o peito assim opresso?’. Respondi, chorando:
‘Minha senhora, acabo de chegar de uma visita a certo jovem enfermo, de cuja
cura seus familiares já perderam a esperança: ora desfalece, ora desperta, mas ele
sem dúvida irá morrer por sua causa’. Ela perguntou, já com o coração
enternecido: ‘E qual é a sua relação com ele?’. Respondi: ‘É meu filho. Desde o
dia em que a avistou através da janela, enquanto você regava as plantas, desde
que lhe contemplou as faces e os pulsos, o coração dele se tornou cativo,
loucamente apaixonado por você. Foi ele que disse os seguintes versos:
‘Pelo rosto com que você foi agraciada,
não mate de abandono quem a deseja,
cujo corpo foi consumido pela doença,
cujo coração se embriagou na taça da paixão.
Pelo seu porte suave, equilibrado, flexível!
Pelo ciúme que as pérolas de sua boca provocam!
De sua cruel sobrancelha você disparou uma seta
que atingiu em cheio o meu coração. Por quê?
Sua delgada e fina cintura parece imitar uma doença,
mas quem imitaria um apaixonado doente e triste?
Pela magia que dá sono nos locais com âmbar,[271]
mostre a face e tenha piedade de suas vítimas!
Pelo escorpião de suas têmporas, tenha dó e piedade!
Pela gentileza que aparece nos faróis de seus olhos,
pelo vinho, pelo mel saboroso e pelas pérolas
no fio de coral onde estão os seus lábios!
Meu ventre já dobrei, dobra em pedaços
que me despedaçam o coração. Como você é atroz!
As pernas conduzem a morte e o sofrimento.
Que Deus lhe dê bom luto por quem a ama’.
Ademais, minha senhora, ele já havia me mandado falar da outra vez, mas então
você fez aquilo’”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”. O rei pensou: “Por Deus que não a matarei até ouvir a história do
corcunda”.

143ª
noite das histórias
espantosas e insólitas
das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
A velha me disse: “Então eu disse à jovem: ‘Portanto, minha senhora, depois
que você fez aquilo comigo, fui até o rapaz e o informei a respeito, já totalmente
desesperançada. A notícia o deixou doente, com tamanha gravidade que ele não
deixou mais a cama; logo estará inevitavelmente morto’. Ela perguntou, já
amarela: ‘E tudo isso por minha causa?’. Eu disse: ‘Sim, por Deus, minha
senhora! Quais são agora suas instruções a respeito desse caso?’. Ela respondeu:
‘Na sexta-feira, antes da prece, que ele venha até minha casa. Quando chegar,
descerei, abrirei a porta e o conduzirei pelas escadas até este andar. Ele se
acomodará aqui e poderemos, ele e eu, passar alguns momentos juntos. Mas ele
terá de sair antes que o meu pai retorne’”. Quando ouvi as palavras da velha,
minha gente, as dores que me afligiam desapareceram. Ela se sentou à minha
cabeceira e disse: “Esteja bem preparado e arrumado para a sexta-feira, se Deus
quiser”. Então entreguei-lhe todas as roupas que eu estava usando, e ela se
retirou. Não restou nenhuma dor em mim, e meus familiares ficaram muito
felizes com a boa-nova do meu restabelecimento. Fiquei aguardando a chegada
do dia; na sexta-feira a velha apareceu, entrou e me indagou sobre o meu estado.
Informei-a de que eu estava bem e com saúde. Levantei-me, vesti minhas roupas
e passei incenso e perfume. A velha perguntou: “Por que você não vai a uma
casa de banho para eliminar os vestígios da doença?”. Respondi: “Não estou
com vontade de ir à casa de banho, pois já me lavei com água.[272] O que eu
quero é um barbeiro para me aparar o cabelo”. E, virando-me para um criado,
disse-lhe: “Traga até aqui um barbeiro que seja ajuizado e discreto, pois não
quero ter dores de cabeça com nenhum tagarela”. O criado saiu e voltou com
este barbeiro, este péssimo senhor. Quando ele entrou, cumprimentou-me e eu
lhe respondi o cumprimento. Então ele disse: “Vejo que seu corpo está magro,
meu senhor”. Respondi: “É que eu estava doente”. Ele disse: “Que Deus expulse
o seu sofrimento! Que Deus seja benevolente com você!”. Respondi: “Que Deus
aceite os seus rogos”. Ele disse: “Regozijo, meu senhor! A boa saúde já
chegou!”, e perguntou: “Quer cortar o cabelo ou sofrer uma sangria, meu
senhor?”.[273] Respondi: “Venha logo cortar o meu cabelo e deixe de conversa
fiada. Eu ainda estou com fraqueza por causa da doença”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”. Ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

144ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
Eu disse ao barbeiro: “Ainda estou fraco por causa da doença”, e então ele
enfiou a mão em seu alforje de couro, no qual havia um astrolábio de sete
lâminas cravejado de prata; retirou-o, dirigiu-se até o meio da casa, ergueu a
cabeça para a luz do sol e contemplou o astrolábio longamente. Em seguida
disse: “Fique sabendo, meu senhor, que oito graus e seis minutos já
transcorreram deste nosso dia, que é uma sexta-feira – dezoito do mês de ṣafar
do ano de seiscentos e cinquenta e três da Hégira,[274] sete mil trezentos e vinte
da era de Alexandre, e o ascendente neste dia, conforme os cálculos, encontra-se
agora em conjunção com Marte. O principal ascendente é Mercúrio, de acordo
com a terceira lâmina do astrolábio, e Marte está junto com ele na posição de
ascendente; ambos vão entrar conjuntamente numa relação sêxtupla. Tal
conjuntura indica que cortar o cabelo é propício, e também que você pretende
estabelecer contato com alguém, mas para isso o momento não é propício nem
recomendado”. Eu disse: “Fulano, por Deus que eu só o chamei para cortar o
meu cabelo e mais nada. Execute agora a função para a qual foi chamado, ou
então retire-se daqui e permita-me chamar outro barbeiro para cortar o meu
cabelo”. Ele disse: “Por Deus, meu amo! ‘Mesmo cozida em leite, não teria
saído melhor’.[275] Você pediu um barbeiro e eis que Deus lhe envia um
barbeiro, astrólogo, médico conhecedor das práticas alquímicas, dos astros, da
gramática, do idioma, da lógica, da teologia, da retórica e da eloqüência, da
álgebra, do cálculo, bem como dos fatos mais importantes de história e dos
compêndios de ḥadīṯ de Muslim e Albuḫārī.[276] Li e estudei livros,
experimentei e conheci muita coisa, decorei e aprimorei os saberes, aprendi e
dominei atividades, e preparei e esquadrinhei todos os assuntos. Você deveria
louvar a Deus altíssimo pelo que lhe proporcionou e agradecer a ele pelo que lhe
deu. Agora, eu lhe recomendo que aja, neste dia, do modo que eu lhe determinar,
conforme o cálculo da conjunção astral. Vou lhe ministrar as instruções, mas não
pedirei nenhuma paga, pois se eu cobrasse estaria desconsiderando a posição que
você detém ante a minha pessoa e o lugar que ocupa em meu coração. Seu pai
me apreciava graças à minha discrição e, por isso, agora minha obrigação é
servir você”. Ao ouvir aquilo eu lhe disse: “Você hoje vai me matar,
inevitavelmente”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”. Ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.
145ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse para o rei da China:
O jovem disse ao grupo:
O barbeiro me disse: “Meu senhor, e porventura eu não sou aquele a quem
deram o apelido de silencioso, porque eu falo pouco, sendo o mais calado de sete
irmãos? Sim, pois meu irmão mais velho se chama Albaqbūq; o segundo,
Alhaddār; o terceiro, Buqaybiq; o quarto, Alkūz Alaṣwānī; o quinto, Annaššār; e
o sexto, Šaqāyq; e eu, o sétimo, por ser taciturno, deram-me o apelido de
Aṣṣāmit”.[277] Quando ele ultrapassou os limites e me exasperou, minha gente,
senti que minhas entranhas e meu coração iam se romper. Ordenei ao criado:
“Pague-lhe quatro dinares e faça com que ele suma da minha frente, pelo amor
de Deus altíssimo. Não quero cortar o cabelo hoje”. Mas o barbeiro disse ao
criado, ao ouvir minhas palavras: “Que conversa é essa, meu amo? A fé
muçulmana me impõe não receber nenhum pagamento até que tenha lhe
prestado o serviço. É imperioso que eu o sirva; é minha obrigação satisfazer à
sua necessidade e atender aos seus desígnios, sem me importar se irei receber ou
não. Aliás, meu amo, embora você não reconheça o meu valor, eu reconheço o
seu e também as suas prerrogativas graças à alta consideração que devo ao seu
pai”. E declamou o seguinte:
“Vim ao senhor deste lugar para fazer-lhe uma sangria,
mas aquele instante não era propício à saúde.
Sentei-me e lhe relatei diversos prodígios,
diante dele aspergindo saber e entendimento.
Maravilhado de ouvir-me, ele disse afinal:
‘superaste o limite do entendimento, ó mina de saber’.
Respondi: ‘não fosses tu, ó senhor dos humanos,
dando-me tua graça, meu entendimento não adiantaria,
pois tu és o senhor da graça, generosidade e dádiva,
e tesouro dos homens em saber, entendimento e
[inteligência’”.[278]
[Continuou o barbeiro:] “Então o seu pai ficou muito emocionado e gritou com
um criado: ‘Pague-lhe cento e três dinares e dê-lhe uma vestimenta honorífica’, e
aí ele me deu tudo aquilo. Examinei o ascendente e descobri que estava propício;
realizei portanto a sangria, mas não pude silenciar ante aquela generosidade, e
perguntei enfim: “Por Deus, meu amo, o que o fez dizer ao criado: ‘Dê-lhe cento
e três dinares’? Seu pai respondeu: ‘Um dinar pela astrologia, um dinar como
paga pela conversa agradável, e um dinar como paga pela sangria; os cem
dinares e a vestimenta como paga pela sua poesia panegírica’”. E o barbeiro
continuou a falar cada vez mais. A irritação que eu sentia era tão grande que eu
lhe disse: “Deus não tinha misericórdia por meu pai, pois ele conheceu gente
como você”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

146ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
Eu disse ao barbeiro: “Por Deus do céu, deixe de tagarelice. Já estou
atrasado!”.
Disse o narrador : o barbeiro riu das minhas palavras e disse: “Não há
divindade senão Deus, meu amo! Louvado seja Deus, que nunca muda! Não
acredito senão que a enfermidade tenha alterado o seu feitio tal e qual eu o
conheci, pois estou notando que o seu juízo diminuiu, embora as pessoas, quanto
mais o tempo passa, mais ajuizadas fiquem. Ouvi um poeta dizendo a seguinte
poesia:
‘Favorece o pobre com teus bens, se poder tiveres
sobre o tempo, e assim acumula recompensas;
a pobreza é problemática e não tem remédio,
e o dinheiro embeleza até os piores aspectos;
roga a paz quando passas por seus camaradas
e não te esqueças de reverenciar os teus pais:
não sabes quantas noites eles não pregaram os olhos,
temendo por ti, mas os olhos de Deus nunca dormem!’.
Mas, de qualquer modo, eu o desculpo, pois estou apreensivo com o que irá lhe
suceder. Você acaso sabia que seu pai e seu avô nada faziam antes de me
consultar? O fato é que ‘Quem consulta não se decepciona’, e se diz em certo
provérbio que ‘Quem não tem um maioral não é ele próprio grande’,[279] e o
poeta já disse:
‘Quando estiveres disposto a fazer algo
consulta um entendido, e não o encolerizes!’.
E você não irá encontrar ninguém mais experimentado do que eu. Não obstante,
estou aqui diante de você, parado sobre os meus dois pés e nem sequer me irritei,
tendo sido você, ao contrário, que se irritou comigo”. Eu lhe disse: “Por Deus,
fulano, seu discurso já está muito longo. Eu gostaria que você fosse sucinto”. Ele
disse: “Já percebi que este nosso amo foi tomado pela irritação. Mas não o
levarei a mal”. Eu disse: “Fulano, já se aproxima o momento que eu estou
aguardando. Faça o serviço para o qual o chamei, e suma-se da minha frente,
pelo amor de Deus altíssimo!”, e comecei a rasgar a minha roupa. Quando me
viu fazendo aquilo, o barbeiro pegou a navalha, afiou-a, veio até a minha cabeça
e raspou uns fiozinhos. Depois ergueu a mão e disse: “Meu amo, ‘A pressa
provém do demônio’. Já se disse:
‘Sê lento e não te apresses para o que desejas;
sê piedoso com os outros e serão contigo piedosos;
não existe mão sobre a qual não esteja a mão de Deus,
nem opressor que não sofrerá nas mãos de outro opressor’.
E não presumo que o meu amo conheça o meu lugar, pois o fato é que você me
desdenha, bem como desdenha o meu conhecimento e saber, e a minha elevada
posição”. Eu lhe disse: “Largue o que não é da sua conta. Meu peito está opresso
por sua causa”. Ele disse: “Presumo que você está com pressa”. Respondi: “Sim,
sim, sim!”. Ele disse: “Devagar, pois a pressa provém do demônio e acaba
levando ao arrependimento. Por Deus que eu estou apreensivo com você, e por
isso gostaria que me deixasse a par do que pretende fazer, pois eu temo que lhe
seja algo nocivo; ainda faltam três horas para a prece”. E continuou: “Não quero
que reste uma única dúvida a respeito; pelo contrário, quero conhecer de maneira
precisa e detalhada o momento, pois as palavras, se forem atiradas ao léu,
acabam saindo defeituosas, especialmente se o forem por alguém como eu, cujo
mérito já se evidenciou e propagou entre as pessoas; não devo, por conseguinte,
pronunciar-me com base em conjecturas, tal como procede a maioria dos
astrólogos”. Em seguida, largou a navalha e pegou...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

147ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
Então o barbeiro largou a navalha, pegou o astrolábio, tornou a fazer cálculos
com as mãos e disse: “Faltam exatamente três horas para a prece, sem tirar nem
pôr, estabelecidas e contadas conforme mencionaram os sábios e falaram a
respeito os sapientes no ramo da astrologia e do cálculo zodiacal”. Eu lhe disse:
“Pelo amor de Deus, fulano, deixe-me em paz! Juro por Deus que você está
dilacerando o meu fígado!”. Então este maldito barbeiro deu um passo adiante,
pegou a navalha, raspou mais alguns fios da minha cabeça e disse: “Por Deus
que eu estou preocupado com a sua pressa, cujo motivo ignoro. Se me deixasse a
par de tudo, nisso estaria o seu bem, pois o seu pai e o seu avô, que Deus tenha
piedade da alma de ambos, nada faziam sem antes me consultar”.
Disse o narrador : quando percebi que não conseguiria livrar-me dele, pensei:
“Já está chegando a hora da prece do meio-dia. Pretendo partir antes que as
pessoas comecem a retornar da prece. Se eu me atrasar mais uma hora, não
encontrarei maneira nenhuma de entrar na casa da jovem”, e então lhe disse:
“Seja breve e deixe de palavrório, pois fui convidado a visitar um amigo”.
Quando ouviu a menção ao convite, o barbeiro disse: “Este seu dia é abençoado
para mim. Você me fez lembrar que ontem fiz um grupo de amigos meus jurar
que me fariam hoje uma visita, mas esqueci de providenciar algo para comerem;
só agora me lembrei deles. Oh, que vergonha!”. Eu lhe disse: “Não se preocupe
com isso; você já está ciente de que eu hoje estou convidado para sair; assim,
tudo quanto em minha casa houver de comida e bebida lhe pertence, desde que
você aja conforme eu pedi, arrumando e cortando os meus cabelos”. Ele disse:
“Que Deus lhe dê a melhor recompensa. Informe-me e descreva-me agora tudo o
que você está fazendo o favor de me dar, a fim de que eu saiba o que é e
distribua aos meus convidados”. Eu lhe disse: “Tenho cinco variedades de
comida, dez galinhas fritas e um carneiro assado”. Ele disse: “Traga-os aqui para
que eu os veja”, e então ordenei que um criado comprasse e trouxesse toda
aquela comida depressa, e ele assim fez. Depois de examinar tudo, o barbeiro
disse: “Meu amo, já se trouxe a comida, agora falta a bebida”, e eu lhe disse:
“Tenho dois garrafões de vinho”; ele disse: “Traga-os”, e eu ordenei ao criado
que assim fizesse. Quando enfim foram trazidos, o barbeiro disse: “Você é uma
excelente pessoa! Como é generosa a sua alma, e louvável a sua origem! Já se
trouxe bebida e comida, faltam agora os incensos e os perfumes”,[280] e então
ordenei que lhe fosse trazida uma caixa contendo aloés, âmbar e almíscar, no
valor de cinco dinares. Como eu já estava bem atrasado, disse-lhe: “Leve tudo
mas faça o serviço, pelo amor de Deus”. Ele disse: “Por Deus que não levarei
nada até examinar o conteúdo, peça por peça”. Ordenei ao criado que abrisse a
caixa. O barbeiro deixou o astrolábio cair das mãos – a maior parte dos meus
cabelos ainda não fora aparada –, sentou-se e começou a revirar os perfumes e os
incensos. Só os aceitou e levou depois de ter acabado com a minha paciência e
me exasperado a ponto de me provocar dificuldades de respiração. Pegou a
navalha, aproximou-se, cortou alguns poucos fios de cabelo e declamou:
“As crianças se criam tal como se criaram seus pais,
pois é a partir das raízes que crescem as árvores”.
E continuou dizendo: “Por Deus, meu amo, já não sei se agradeço a você ou ao
seu pai, pois a recepção aos meus amigos só será possível graças à sua
generosidade! Que a memória de seu pai perdure por intermédio de sua longa
vida! Por Deus que em minha casa não haverá ninguém que seja merecedor
disso! Só terei comigo senhores respeitáveis como Zantūt, criador de pombos;
[281] Ṣalīᶜ, mascate de alho e cebola, Sallūt, mascate de fava, ᶜIkriša, verdureiro,
Saᶜīd, cameleiro, Suwayd, carregador, Ḥamīd, lixeiro, Abū Makāriš, lavador de
casa de banho, Qasīm, vigia, e Karīm, almocreve. Entre esses todos não existe
um único aborrecido, arruaceiro, indiscreto ou desagradável; cada um deles tem
uma dança específica e versos que declama. Mas o melhor de tudo é que eles são
como este seu criado, este seu escravo: não conhecem a tagarelice nem a
indiscrição. O criador de pombos canta, acompanhado de um tambor, coisas que
encantam, e também dança ‘mama eu tô indo encher a jarra’. Já o mascate de
alho e cebola...”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

148ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
O barbeiro disse: “O mascate de alho e cebola canta, a granel,[282] melhor do
que um rouxinol, e dança ‘ó minha chorosa dama, você não errou’; quando o faz,
não deixa nenhum coração sem gargalhar às suas custas. Já o lixeiro, quando
canta acompanhado de pandeiro, paralisa os pássaros, e dança ‘as novas do meu
pequeno vizinho já estão numa caixa de bom tamanho’; ele é esperto, meigo,
animado, agudo, derrubado, descarado; a respeito de suas virtudes eu digo:
‘Seja minha vida o resgate de um lixeiro por quem anseio,
cujas belas características imitam um galho oscilante;
generoso, certa noite o destino o trouxe, e eu lhe disse:
‘quanto mais o anelo aumenta, mais eu diminuo!
Lavraste teu fogo em meu coração’, e ele respondeu:
não espanta que o lixeiro vire então acendedor!’.
Cada um deles aperfeiçoou diversões e pilhérias que distraem a inteligência.
Assim, se o meu amo quiser que eles hoje venham para cá, e ele deixe de ir até
os amigos com os quais se comprometeu... O fato é que você ainda apresenta
resquícios da doença, e é possível que as pessoas que vai visitar sejam muito
tagarelas e fiquem falando daquilo que não é da sua conta, ou talvez exista entre
tais pessoas algum indiscreto que lhe provoque dor de cabeça. E você, por causa
da doença, está sem paciência”. Então eu lhe disse: “Antes aconselhar do que
faltar”, e, rindo em meio àquela raiva, disse-lhe: “Quem sabe não realizamos
essa reunião num outro dia, se Deus altíssimo quiser. Conclua o serviço que lhe
pedi e retire-se na segurança de Deus altíssimo, que ele lhe torne agradável a
companhia dos seus amigos e camaradas. Eles, aliás, estão esperando por você!”.
Ele disse: “Meu amo, eu não procuro senão trazê-los para a sua companhia, este
grupo esperto no qual não existe um só indiscreto ou tagarela. Desde a juventude
que eu não consigo permanecer de jeito nenhum na companhia de quem fica
indagando a respeito do que não lhe concerne; não consigo conviver senão com
quem é igual a mim, taciturno. Se você desfrutar da companhia deles, uma única
vez que seja, com certeza abandonará todos os seus outros amigos”. Respondi:
“Que Deus torne completa a sua felicidade na companhia deles. É imperioso
que, um dia desses, eu compareça com eles na sua casa; irei me divertir com
essas pessoas”. Ele disse: “Mas eu gostaria que você se divertisse conosco hoje
mesmo. Se você já se convenceu a ir comigo até os meus amigos, deixe-me levar
as coisas com as quais você os agraciou. Porém, se lhe for imperioso ir ter hoje
com os seus amigos, vou levar estas coisas aos meus amigos e deixá-los
comendo e bebendo sem me esperar, e retornarei em seguida para ir com você
até os seus camaradas, pois não existe entre mim e meus amigos nenhuma
espécie de constrangimento que me impeça de largá-los sozinhos e retornar até
você”. Eu disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso! Vá você ficar com os seus amigos, tenha um encontro agradável com
eles, e me deixe ir aos meus amigos passar o dia de hoje com eles, que estão me
esperando”. O barbeiro disse: “Deus me livre, meu amo, de abandoná-lo e deixá-
lo ir sozinho!”. Respondi: “Fulano, no lugar para onde estou indo existem
constrangimentos. Por qual motivo você entraria ali?”. Ele disse: “Meu amo,
julgo que hoje o senhor tem um encontro com alguma mulher. Do contrário, se
fosse convite de algum amigo, você me levaria junto, pois alguém como eu
ornamenta reuniões, locais de passeio, casamento e alegria. Mas se você estiver
atrás de alguém com quem pretende ficar a sós, então seria mais justo que eu...”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes, se eu viver e for preservada”.

149ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
O barbeiro me disse: “É mais justo que eu o ajude e esteja ao seu lado como
apoiador, a fim de que certas pessoas não o vejam entrando no lugar e você passe
a correr riscos, pois nesta cidade ninguém pode fazer nada, especialmente num
dia como o de hoje: eis aí o chefe de polícia de Bagdá, homem cruel, de índole
rigorosa e enorme arbitrariedade”. Então eu lhe disse: “Ai de você, pérfido
senhor! Não tem vergonha de me dirigir semelhantes palavras?”. Respondeu:
“Você me pergunta se eu não tenho vergonha mas esconde coisas de mim, seu
frívolo? Eu tomei ciência disso, me certifiquei de tudo, e só o que fiz foi vir
ajudá-lo, em pessoa!”.
Disse o narrador : temeroso de que os meus parentes e vizinhos ouvissem as
palavras do barbeiro e me pusessem em situação vexatória, calei-me. Chegou o
meio-dia, e com ele o horário da prece. Fez-se a primeira convocação, a
segunda, e ele já terminara de aparar o meu cabelo. Eu lhe disse: “Saia agora
com essa comida e bebida; vá para casa encontrar os seus amigos. Eu ficarei
aqui esperando seu regresso, a fim de que vá comigo” – e assim me pus a adular
este maldito, a enganá-lo, pois quiçá assim me visse livre de sua intrujice. Mas
ele disse: “Parece que eu o estou vendo agora me enganando, partindo sozinho, e
desse modo se lançando numa desgraça sem possibilidade de salvação. Por
Deus, por Deus, não se mexa até que eu regresse e vá com você, a fim de que eu
esteja a par do que lhe vai suceder e nenhum estratagema possa atingi-lo”.
Respondi: “Sim, não demore”. Ele recolheu toda a comida, a bebida, os assados,
os perfumes etc. que eu lhe dera, e saiu de minha casa. O maldito, porém, enviou
tudo para sua casa por meio de um carregador e se escondeu numa ruela.
Levantei-me logo depois que ele saiu, quando os almuadens já haviam
salmodiado as saudações aos anjos.[283] Vesti minhas roupas e saí apressado;
avancei até chegar à rua onde morava a jovem, e me postei diante da casa onde a
vira. O maldito barbeiro me seguia sem que eu percebesse. Deparei com a porta
aberta; entrei e encontrei a velha parada, me esperando. Subi ao piso em que a
jovem residia; mal entrei, porém, o dono da casa retornou da prece, entrou na
casa e fechou a porta. Olhei pela janela e vi este barbeiro, que Deus o amaldiçoe,
parado diante da porta. Pensei: “Como é que esse demônio soube?”. Naquele
instante, porque Deus desejava minha desonra, coincidiu que o dono da casa
batesse numa serva que cometera um erro. Ela gritou e um escravo veio salvá-la;
o homem também bateu nele, e o escravo, por sua vez, gritou. Este barbeiro
maldito, julgando que fora eu o agredido, gritou, rasgou as roupas e se pôs a
jogar areia na cabeça; não parou de gritar e pedir socorro às pessoas atrás dele e
ao seu redor, dizendo: “Meu senhor foi assassinado na casa do juiz”. Em
seguida, foi para a minha casa gritando, enquanto as pessoas seguiam atrás dele;
contou tudo para meus familiares e criados; assim, antes que eu me desse conta,
apareceram todos rasgando as roupas, os cabelos desfeitos, gritando “coitado do
nosso senhor”, tendo o barbeiro à sua frente, a fisionomia mais horrorosa, as
roupas rasgadas, gritando junto com eles.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes, se eu viver e o rei me preservar”.
150ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o alfaiate disse ao rei da China:
O jovem disse ao grupo:
Meus familiares continuaram gritando; as pessoas se aglomeraram atraídas
por seus gritos de “oh, pobre assassinado! Oh, pobre assassinado!”. Ouvindo a
confusão e a algazarra à sua porta, o dono da casa disse a um de seus criados:
“Vá ver o que está acontecendo”. O criado saiu e retornou dizendo ao seu amo:
“Meu senhor, estão à porta mais de dez mil almas, entre homens e mulheres,
todos gritando ‘oh, pobre assassinado!’ e apontando para a nossa casa”. Como
aquilo lhe parecesse algo drasticamente grave, o juiz saiu, abriu a porta, viu
aquela aglomeração, ficou atônito e disse: “Qual é a questão, minha gente?”.
Disseram-lhe: “Ó maldito, ó porco, você matou o nosso senhor!”. O juiz
perguntou: “Mas minha gente, e o que o seu senhor me fez para que eu o tenha
matado? Eis aqui minha casa à sua disposição”. O barbeiro disse: “Você acabou
de surrá-lo com a vergasta. Eu ouvi o choro dele vindo da sua casa”. O juiz
perguntou: “E o que o amigo de vocês teria feito para que eu o surrasse? O que
ele estaria fazendo em minha casa?”. O barbeiro disse: “Não seja pérfido e
canalha! Eu estou a par de tudo! Sua filha está apaixonada por ele e ele por ela.
Quando você ficou sabendo disso, ordenou que seus criados o surrassem. Por
Deus que ninguém menos que o califa irá julgar este caso, a não ser que você o
traga agora para os familiares dele, antes que eu entre e o retire daí, fazendo
você passar vergonha”. O juiz – quase sem conseguir falar, humilhado de
vergonha perante a multidão – autorizou: “Se você estiver dizendo a verdade,
entre agora e retire-o”. Todo serelepe, o barbeiro entrou na casa. Quando o vi
entrando, procurei uma rota de fuga qualquer, ou algum lugar onde me escafeder
ou me refugiar, mas não encontrei senão um grande cesto depositado naquele
andar; entrei no cesto, coloquei a tampa sobre mim, e fiz o maior silêncio. O
barbeiro entrou no saguão e olhou para o local onde eu estava; virou-se à direita
e à esquerda, e não viu nenhum esconderijo possível além do cesto no qual eu
estava; carregou-o então na cabeça, enquanto eu perdia o senso e o juízo, e saiu
rapidamente. Quando percebi afinal que ele não me deixaria, resignei-me, abri o
cesto e me atirei no chão, quebrando a perna. A porta se abriu e vi muita gente
aglomerada. Havia em minhas mangas muito ouro que eu reservara para uma
ocasião dessas; saí e comecei a atirar as moedas para a multidão, deixando-a
ocupada em colher ouro e prata. Pus-me a correr à direita e à esquerda pelas
ruelas de Bagdá, enquanto o maldito barbeiro me perseguia, de um ponto a
outro, sem que nada o detivesse.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e foi
preservada”.

151ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China que o
jovem continuou correndo, enquanto o barbeiro corria atrás dele, gritando:
“Quiseram privar-me do meu senhor e matar aquele cuja generosidade me
agracia a mim e aos meus filhos e amigos. Louvado seja Deus que me concedeu
a vitória sobre eles, fazendo-me salvar meu senhor de suas mãos!”. Depois disse:
“Para onde pretende ir agora, meu senhor? Se acaso Deus não tivesse atendido às
suas súplicas por meu intermédio, você não teria escapado e eles o arrojariam
numa desgraça tremenda, da qual ninguém mais poderia salvá-lo! Como eu
gostaria de viver para servi-lo! Por Deus que você está me liquidando com este
seu mau proceder! Como, então, gostaria de ter ido sozinho? Mas eu não o
levarei a mal pela sua ignorância, pois você tem pouco juízo e é trôpego e
afobado”.
[Prosseguiu o jovem:] Como se não me bastasse o que ele já me fizera, ainda
por cima queria me vigiar pelos mercados de Bagdá e gritar comigo! Meu
espírito estava a ponto de sair de mim! De tanto ódio e raiva que eu sentia, entrei
numa hospedaria no centro do mercado e implorei ajuda ao proprietário, que o
afastou de mim. Acomodei-me num quarto e pensei: “Se eu retornar para minha
casa, nunca mais conseguirei separar-me daquele maldito; ele vai querer ficar
comigo noite e dia. Mas eu já não suporto nem sequer olhar para a cara dele”.
Então, imediatamente mandei chamar testemunhas, redigi as recomendações
para minha família, distribuí a maior parte dos meus bens, para cuja gestão
nomeei um tutor, a quem ordenei que vendesse a casa e as terras, e recomendei
os grandes e os pequenos. Peguei um pouco de dinheiro para mim e viajei
naquele mesmo dia, partindo da hospedaria e chegando até esta terra, só para me
ver livre deste cafetão. Já faz algum tempo que estou morando em seu país.
Assim, quando vocês me convidaram para a festa, aceitei e vim, mas encontrei
aqui, ocupando um lugar de honra, este barbeiro maldito! Como eu suportaria
permanecer ao seu lado depois do que ele me fez? Quebrei a perna, exilei-me de
minha terra, afastei-me de meus familiares e de meu lar, perdi-me pelo mundo! E
agora eis que ele está aqui junto a vocês!
E, assim dizendo, o jovem recusou-se a tomar assento entre nós.
O BARBEIRO DE BAGDÁ E SEUS IRMÃOS
Quando ouvimos a história das ocorrências entre o jovem e o barbeiro, ficamos
muitíssimo espantados e tocados pela emoção. Perguntamos ao barbeiro: “É
verdade o que disse este jovem a seu respeito? Por que você fez aquilo?”. O
barbeiro ergueu a cabeça e disse: “Minha gente, tudo o que fiz foi com meu
inteiro conhecimento, juízo e brios. Não fosse eu, ele teria morrido; fui o motivo
de sua salvação. É melhor contundir-se na perna do que perder a vida. Pus a
minha vida em risco para plantar a semente do favor desinteressado, mas fiz isso
por quem não merecia. Por Deus que não fui indiscreto nem tagarela. Entre os
meus seis irmãos, dos quais sou o sétimo, não existe nenhum menos falador do
que eu, nem mais ajuizado ou discreto. E agora vou lhes relatar uma história que
sucedeu comigo, a fim de que vocês acreditem que eu falo pouco e sou o mais
discreto dos meus irmãos”.
[Prosseguiu o barbeiro:[284]] O fato é que eu vivia em Bagdá na época do
então califa Almustanṣir Billāh, filho de Almustaḍī’ Billāh.[285] Esse califa
amava os pobres e os despossuídos, e convivia com os sábios e os virtuosos.
Sucedeu que ele se encolerizou com dez indivíduos e ordenou que o encarregado
de polícia da cidade os levasse até ele num feriado.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é espantosa e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me poupar”.

152ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
O califa Almustanṣir ordenou ao encarregado de polícia de Bagdá que lhe
levasse aqueles dez homens, em certo dia de feriado. Eram todos salteadores que
tornavam as estradas perigosas. O encarregado de polícia saiu-lhes no encalço,
capturou-os e colocou-os num barco para conduzi-los ao califa. Quando os vi,
pensei: “Por Deus que essas pessoas não se reuniram senão para realizar uma
festa ou por causa de algum convite para participar de uma. Creio que eles
passarão o dia nesse barco comendo e bebendo. E não terão outro comensal que
não eu”. Levantei-me, portanto, minha gente, com todo o meu bom juízo e brio,
e me enfiei entre eles no barco. Eles foram transportados até a margem do rio em
Bagdá. Assim que chegaram à margem, mais do que rapidamente veio um grupo
de policiais e ajudantes carregando correntes; prenderam-nas em seus pescoços,
e também meu pescoço foi acorrentado de roldão. Isso tudo, minha gente, em
virtude de meu brio e circunspeção, pois eu me calei e não fiz nenhuma tenção
de falar. Conduziram-nos acorrentados e nos colocaram diante do comandante
dos crentes, o qual determinou a decapitação dos dez. O carrasco aproximou-se
depois de nos fazer sentar diante de si, na esteira sobre a qual se executava a
decapitação, desembainhou a espada e foi cortando a cabeça de um por um, até
que enfim se completaram dez. Restei eu. O califa olhou e lhe disse: “Ai de
você! Até agora só cortou o pescoço de nove!”. O carrasco respondeu: “Deus me
livre, ó comandante dos crentes, de receber do senhor ordens para cortar dez
cabeças e cortar nove!”. O califa disse: “Esse aí diante de você é o décimo”. O
carrasco respondeu: “Oh, Deus, oh, Deus, meu amo! Juro pela sua generosidade
que matei dez”. Então eles contaram as cabeças e constataram que se tratava de
dez. O califa olhou para mim e disse: “Ai de você! Por que permaneceu calado
num momento como este? Como veio parar no meio desses criminosos
sanguinários? Qual o motivo disso? Apesar de velho, você possui pouco juízo!”.
Ao ouvir as palavras do comandante dos crentes, pus-me de pé com todo o vigor
e disse: “Saiba, comandante dos crentes, que eu sou o silencioso, homem dotado
de mérito, sabedoria, ciência e filosofia; minhas palestras são saborosas e dou
respostas que ninguém mais dá. Quanto ao meu bom juízo, minha taciturnidade,
meu agudo entendimento, minhas poesias, meu grande brio e solicitude, trata-se
de coisas cujo limite não se alcança e cujo fim não se conhece. No dia de ontem,
encontrei aqueles dez se dirigindo ao barco e julguei que estavam convidados
para alguma festa; misturei-me no meio deles e embarquei. Mal atravessaram o
rio e vieram à margem, ocorreu-lhes aquilo tudo. Mas por toda a minha vida foi
assim: faço favores às pessoas e elas me retribuem da pior maneira”. Quando
ouviu minhas palavras, o califa riu até cair sobre seu traseiro. Ciente de que eu
tenho muito brio e sou taciturno e discreto – ao contrário do que alega a meu
respeito esse jovem a quem eu salvei de coisas terríveis e que me retribui com
semelhantes atitudes –, o califa me disse: “Ó silencioso, seus seis irmãos são
assim como você?”.[286] Respondi: “Que eles morram e deixem de existir se
forem ou agirem como eu, ou ainda se tiverem a minha aparência. Meus irmãos,
ó comandante dos crentes, são seis, cada qual com seu defeito: um é caolho; e os
outros são, respectivamente, paraplégico, corcunda, cego, de orelhas cortadas e
de lábios cortados. Não presuma que eu sou tagarela; apenas gosto de deixar
bem claro que tenho mais brios do que eles, e falo menos. A cada um dos meus
irmãos sucedeu uma história, que foi a causa do seu defeito físico. O mais velho
era alfaiate...”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

153ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O PRIMEIRO IRMÃO DO BARBEIRO
Meu irmão mais velho era alfaiate em Bagdá, estabelecido numa loja que
alugara; defronte dele morava um homem muito rico, numa casa em cujo andar
térreo havia uma moenda. Certo dia, enquanto costurava na loja, meu irmão
corcunda ergueu de súbito a cabeça e viu pela claraboia da casa em frente uma
mulher que parecia o plenilúnio em ascensão; ela estava espreitando as pessoas.
Ao vê-la, o fogo se acendeu em seu coração, e ele permaneceu o dia inteiro com
a cabeça erguida para aquele ponto. Quando a noite caiu, já sem esperanças de
ter alguma coisa com ela, foi embora entristecido. Pela manhã, regressou à loja e
tomou seu assento, continuando a olhar para o lugar onde vira a mulher. Depois
de algum tempo, conforme o hábito, ela veio espreitar; ao botar os olhos nela,
meu irmão caiu desmaiado. Em seguida despertou e se retirou para casa no mais
deplorável estado. No terceiro dia ele tomou seu assento e a mulher, percebendo
que ele não desviava os olhos dela, sorriu para ele, e ele para ela. A mulher
sumiu dali e lhe enviou uma criada com um embrulho de pano, no qual estava
enrolado um tecido de linho fino. A criada disse: “Minha patroa lhe envia
saudações e pede, pelo valor que a vida dela tem para você, que desse tecido lhe
tire a medida de um vestido e o costure”. Meu irmão respondeu: “Ouço e
obedeço”, e então cortou a peça em forma de vestido e o costurou no mesmo dia.
No dia seguinte, a criada veio vê-lo pela manhãzinha e disse: “Minha patroa lhe
envia saudações e pergunta como passou a noite, pois ela não conseguiu dormir
de tanto que o seu coração está ocupado com você. E também lhe pede que tire a
medida de algumas calças e as costure, a fim de que ela possa usá-las com o
vestido”. Ele respondeu: “Ouço e obedeço”, e então começou: tirou a medida,
cortou e se esmerou na costura. Depois de algum tempo, a mulher se pôs a
observá-lo pela claraboia, cumprimentou-o e não o deixou interromper o
trabalho até que ele terminasse a costura das calças e as enviasse a ela. Meu
irmão retornou para casa perplexo, sem dispor nem sequer do que comer. Tomou
empréstimo com um vizinho e gastou esse dinheiro com comida. Quando
amanheceu, foi para a loja, e, antes que se desse conta, lá estava a criada lhe
dizendo: “Meu patrão está chamando você”. Ao ouvir a referência ao patrão, ele
ficou terrivelmente atemorizado e disse: “Talvez já esteja sabendo de tudo”. A
criada respondeu: “Não tenha medo, pois não se deu senão o bem; minha patroa
apenas quer fazê-los conhecer um ao outro”. Meu irmão levantou-se feliz, entrou
na casa e saudou o homem, que respondeu à saudação e, em seguida, estendendo
um monte de peças de linho de Dubayq,[287] disse-lhe: “Faça para mim
algumas túnicas com esse tecido”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Como é
agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

154ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O homem disse ao meu irmão: “Faça-me algumas túnicas com esse tecido”.
[Conforme as palavras do meu próprio irmão,[288]] “Então, comecei a trabalhar
sem interrupção, até tirar a medida e fazer o corte de vinte túnicas e do mesmo
tanto de calças; trabalhei até o fim da tarde”. Durante esse período, meu irmão
não provou nenhum alimento. Em seguida, o homem lhe perguntou: “Quanto
você vai cobrar por isto?”, e ele respondeu: “O equivalente a vinte dirhams”. O
homem gritou pela criada e disse: “Traga a balança”. Foi então que,
repentinamente, a sua jovem mulher surgiu, demonstrando estar encolerizada
pelo fato de ele ter cobrado aqueles dirhams. Percebendo aquilo, meu irmão
pensou: “Por Deus que não vou cobrar coisa nenhuma!”, e, recolhendo o
trabalho, saiu da casa, embora estivesse muito necessitado, nem que fosse de um
mísero centavo. Em três dias, comeu apenas dois pães e quase morreu de fome.
A criada foi até ele e lhe perguntou: “Em que pé está o trabalho?”. Ele
respondeu: “Já terminei”, e, carregando tudo, acompanhou a criada e com ela se
dirigiu até o marido da jovem; como este fizesse menção de lhe pagar o trabalho,
meu irmão disse, por temor à jovem: “Não cobrarei nada”, e foi-se embora para
a sua casa. Naquela noite, não dormiu de tanta fome. Quando amanheceu, foi até
a loja, e logo chegou a criada dizendo: “Vá conversar com o meu patrão”, e meu
irmão foi até ele. O homem lhe disse: “Quero que você tire para mim a medida
de algumas túnicas”, e meu irmão lhe tirou a medida e fez o corte de cinco
túnicas. Depois saiu num estado pior do que entrara, mais esfomeado e
endividado. Costurou aquelas túnicas e foi até o homem, que apreciou a sua
costura e mandou que se trouxesse um saco de dirhams, no qual chegou a enfiar
a mão, mas a mulher fez um sinal para o meu irmão, pelas costas do marido,
dizendo “não receba nada!”, e então ele disse: “Não se apresse em pagar, meu
senhor, pois há tempo de sobra”, e saiu dali desesperado por um único centavo
que fosse, e também pela jovem. Desse modo, cinco coisas haviam se juntado
contra ele: paixão, bancarrota, fome, nudez e trabalho penoso; apesar de tudo,
ele iria continuar agindo daquela maneira. Mas o fato é que a mulher, sem que
meu irmão desconfiasse, havia deixado o marido a par da situação e da paixão
dele por ela; assim, haviam combinado explorar de graça o trabalho de alfaiate
do meu irmão. Quando ele terminou de lhes fazer todo o serviço, a mulher se pôs
a vigiá-lo e, caso visse qualquer freguês pesando moedas para lhe pagar, ela lhe
lançava olhares que o impediam de receber. Depois disso, aquele casal elaborou
um ardil e casou o meu irmão com a criada. Na noite em que deveriam consumar
o casamento, o casal lhe disse: “Durma esta noite na moenda e amanhã será o
casamento”. Assim, enquanto meu irmão dormia sozinho na moenda, o marido
da jovem foi fazer contra ele uma armação mancomunado com o responsável
pela moenda. No meio da noite o moendeiro entrou na moenda e começou a
dizer: “Qual é o problema deste maldito jumento? Já parou? Não estou ouvindo
rodar a moenda, e nós estamos com excesso de trigo”. Foi até a mó, encheu um
balde de trigo, foi até o meu irmão empunhando um chicote e lhe pendurou o
balde no pescoço.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me preservar”.

155ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O moendeiro prendeu o meu irmão pelo pescoço e se pôs a chicoteá-lo nas
pernas enquanto ele corria e os grãos de trigo eram moídos; o homem agia como
se não percebesse que se tratava de meu irmão, chicoteando-o toda vez que ele
fazia menção de parar para descansar e dizendo-lhe: “Seu jumento maldito,
parece que comeu demais”. Quando surgiu a alvorada, o moendeiro voltou para
sua casa e deixou meu irmão estirado como se estivesse morto. Pela manhã, a
criada veio ter com ele e lhe disse: “Estou muito condoída por você. Eu e minha
patroa não dormimos nesta noite, tal era nossa preocupação com você”. Mas
meu irmão já nem tinha língua com que responder, de tanto que tinha apanhado e
se exaurido. Ele retornou para sua casa e, de repente, chegou o mestre que
redigira o contrato de casamento.[289] Cumprimentou-o dizendo: “Que Deus lhe
conserve a vida! Eis aí em sua face os sinais do bem-estar, dos beijos e da
bolinagem”. Ele respondeu: “Meu irmão, que Deus não preserve quem mente,
seu cafetão de mil cornos! Por Deus que minha noite não consistiu senão em
moer trigo como se fosse um jumento”, e lhe relatou toda a história e o que lhe
sucedera. O homem lhe disse: “Seu astro não estava em harmonia com o dela”.
Em seguida meu irmão foi para a loja, na esperança de que alguém lhe levasse
algo para costurar e lhe pagasse, para poder comprar alguma coisa. A criada
então apareceu e disse: “Converse com minha patroa”. Ele respondeu: “Não
quero mais negócio com vocês”. A criada saiu e avisou à patroa. Logo meu
irmão a viu através da claraboia; ela chorava e lhe dizia:[290] “Ai, amigo de
minha alma, como está?”, mas ele não respondeu; ela então começou a jurar que
era inocente de tudo aquilo. Ao olhar para a sua graça e beleza, toda a zanga do
meu irmão se dissipou; ele aceitou as suas desculpas e ficou feliz por contemplá-
la. Após alguns dias a criada veio até ele e lhe disse: “Minha patroa o
cumprimenta e lhe diz que o marido irá dormir na casa de um amigo. Quando ele
sair, você virá até nós e passará a noite com a minha patroa”. Mas o que ocorreu
foi que o marido dissera à mulher: “Parece que o alfaiate desistiu de você!”, e ela
respondera: “Deixe-me preparar contra ele outra artimanha que irá torná-lo
infame na cidade inteira”. Meu irmão não tinha conhecimento do que se urdia
contra ele. No início da noite, a criada o pegou e introduziu na casa. Ao vê-lo, a
jovem deu-lhe boas-vindas e disse: “Meu senhor, só Deus sabe como estou
ansiosa por você”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

156ª
noite das histórias das
mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Meu irmão disse: “Minha senhora, dê-me um beijo, rápido!”. Mal terminou as
palavras e o marido saiu de um dos aposentos da casa e lhe disse: “Venha cá! Por
Deus que não o deixarei até chegarmos ao chefe de polícia!”. Meu irmão ficou
implorando e se humilhando, mas o homem não contemporizou e o conduziu até
o chefe de polícia, que lhe aplicou cem chicotadas, colocou-o sobre um camelo e
desfilou com ele pela cidade, enquanto os arautos gritavam: “Essa é a punição
mais leve para quem avança contra a mulher dos outros”. Meu irmão foi expulso
da cidade e saiu sem saber para onde se dirigir, mas eu fui atrás dele e o socorri.
[291]
O califa riu das minhas palavras e disse: “Ó silencioso! Ó taciturno! Você
desempenhou bem, não deixando nada a desejar”, e ordenou que me dessem um
prêmio e que eu me retirasse. Mas eu lhe disse: “Não, por Deus, ó comandante
dos crentes! Não aceitarei nada menos do que lhe contar o que sucedeu ao
restante dos meus irmãos”.
O SEGUNDO IRMÃO DO BARBEIRO
[Continuei contando ao califa:] Meu segundo irmão, que se chamava Baqbāqa,
ficou paraplégico. Sucedeu-lhe certa feita, enquanto ele caminhava pela rua a
fim de resolver um assunto seu, que uma velha parou diante dele e lhe disse:
“Detenha-se um pouco, ó homem, até que eu lhe faça uma oferta; se lhe agradar,
considere que foi um bem proveniente de Deus altíssimo”. Meu irmão se deteve
e ela continuou: “Eu lhe direi algo e o conduzirei a um lugar agradável, mas não
seja tagarela”. E disse mais: “O que acha de uma bela casa com jardim, água
corrente, frutas já maduras, vinho já coado e um rosto formoso, semelhante ao
plenilúnio, para você abraçar?”. Tendo ouvido aquelas palavras, meu irmão
perguntou: “E isso tudo aqui neste mundo?”. Ela respondeu: “Sim, e será seu
desde que você seja ajuizado, e desde que não fale demasiado nem cometa
indiscrições, mas se mantenha silencioso”.[292] Ele respondeu: “Sim”. A velha
se pôs a caminho e ele a seguiu, ansioso pelo que ela lhe prometera. A velha
disse: “Essa jovem, para cujo encontro você vai, gosta de ser obedecida e detesta
desobediência; se você obedecer, ela se tornará sua”. Meu irmão disse: “Não
discordarei dela em nada”, e lá foi ele atrás da velha, que afinal o introduziu
numa casa grandiosa, cheia de criados. Quando o viram, perguntaram: “O que
você está fazendo aqui?”. A velha lhes respondeu: “Deixem-no em paz. É um
artífice do qual estamos precisando”. Meu irmão entrou num imenso pátio, em
cujo centro havia um jardim como nenhum olho jamais havia visto melhor, onde
a velha o acomodou numa bela poltrona. Não se passou muito tempo e ele ouviu
um grande alarido, e de repente apareceram algumas jovens, no meio das quais
estava uma garota que parecia o plenilúnio na noite em que sua forma se
completa. Quando ela apareceu e meu irmão a viu, pôs-se de pé num átimo e lhe
prestou reverência. Ela lhe deu boas-vindas e ordenou que se sentasse, e meu
irmão assim fez. Encarando-o de frente, a garota lhe perguntou: “Você pode
fazer algum bem, que Deus lhe queira bem?”. Ele respondeu: “Minha senhora,
todo o bem está em mim!”. Ela ordenou que se trouxesse comida, e esta foi
trazida, de excelente qualidade. Comeram, mas a garota, não obstante, não
conseguia conter o riso; quando o meu irmão olhava para ela, a garota desviava
o rosto para as criadas, como se estivesse rindo delas; fingia-lhe afeto e fazia-lhe
gracejos. Vencido pela paixão, ele não duvidava de que a garota também estava
apaixonada, nem de que lhe concederia o que ele desejava. Quando terminaram
de comer, trouxeram vinho. Em seguida, surgiram dez criadas que pareciam
plenilúnios, trazendo nas mãos alaúdes. Começaram a cantar toda sorte de
canções plangentes, e isso deixou meu irmão emocionado. A garota bebeu de
uma taça e meu irmão se pôs de pé.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

157ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:[293]


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
A jovem ofereceu uma taça de vinho ao meu irmão, que a bebeu em pé.
Depois disso, ela começou a estapeá-lo na nuca.[294] Vendo-se assim tratado
pela garota, meu irmão ficou aborrecido e fez menção de se retirar, mas, como a
velha lhe lançasse piscadelas, ele se deteve, e a jovem lhe ordenou que se
sentasse. Em seguida, tornou a estapeá-lo na nuca e, como se isso não bastasse,
ordenou ainda às criadas que também o estapeassem, enquanto ela dizia à velha:
“Nunca vi nada melhor do que isso”, e a velha respondia: “Sim, por Deus, minha
ama”. Depois, ordenou a todas as criadas que lançassem incenso sobre o meu
irmão e o aspergissem com água de rosas. Disse-lhe então: “Que Deus lhe queira
bem! Você entrou em minha casa e se resignou às minhas condições, não é
mesmo? Sim, pois eu expulso a quem me desobedece, mas quem se resigna
atinge seu objetivo”. Meu irmão disse: “Minha senhora, sou seu escravo”. Ela
ordenou da primeira à última criada que cantassem em voz alta, e elas assim
agiram. Depois gritou com uma delas, dizendo: “Leve o amigo de minha alma,
guarde-o bem guardado, faça o que precisa ser feito e traga-o imediatamente de
volta”. Meu irmão saiu com a criada sem saber o que se pretendia dele. A velha
estava se levantando e ele lhe perguntou: “Deixe-me a par do que ela pretende
fazer. Quem é essa criada?”. A velha respondeu: “Não vai ocorrer senão o bem;
irá pintar-lhe as sobrancelhas e arrancar-lhe os bigodes”. Meu irmão disse:
“Pintar as sobrancelhas, vá lá, pois é possível lavar. Mas arrancar o bigode? Dói
muito!”. A velha disse: “Muito cuidado para não discordar da garota, pois o
coração dela já pertence a você”. Assim, meu irmão se submeteu à pintura das
sobrancelhas e extração dos bigodes. Terminado o trabalho, a criada foi até sua
patroa, que lhe disse: “Falta ainda um último serviço: raspe-lhe a barba e deixe-o
lampinho”. Então a criada voltou até ele e lhe raspou a barba. A velha lhe disse:
“Alvíssaras! Ela não fez isso senão porque seu coração foi tomado de grande
amor por você. Paciência, pois seu objetivo já foi alcançado”. Armando-se de
paciência, meu irmão se submeteu à criada, que lhe raspou a barba e o colocou
diante da patroa, a qual ficou muito contente, riu até cair sentada e disse: “Meu
senhor, com esse bom caráter, você já conquistou o meu coração!”. Em seguida,
fazendo-o jurar em nome do apreço pela vida dela, pediu-lhe que se levantasse e
fosse dançar, e então ele se levantou e dançou. Ela e as criadas não deixaram
nada na casa que não atirassem nele. Meu irmão caiu desmaiado de tantas
pancadas e tapas. Quando recobrou os sentidos, a velha lhe disse: “Agora você
conseguiu o seu objetivo”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

158ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Quando meu irmão acordou do desmaio provocado pela surra, a velha lhe
disse: “Agora você conseguiu o seu objetivo; saiba que só lhe resta fazer uma
única coisa, não mais. É o seguinte: quando se embriaga, ela tem por hábito só se
entregar a alguém depois de fazê-lo tirar as roupas e as calças, ficando pelado.
Depois ela corre na sua frente, como quem está fugindo, e ele deve segui-la de
um lugar a outro até que seu pau se erga e fique bem duro; nesse momento, ela
para de correr e se entrega”. E continuou: “Vamos logo, tire a roupa!”. Meu
irmão arrancou toda a roupa e ficou nu, pelado. A garota lhe disse: “Venha
correr!”. Arrancou também as roupas, mantendo-se de calções, e lhe disse: “Se
você quiser me possuir, corra atrás de mim até me alcançar”, e pôs-se a entrar
num compartimento e sair por outro, enquanto ele corria atrás dela. O desejo
dominara meu irmão, e seu pau ficou erguido como um louco. Correndo à sua
frente, a garota entrou num local escuro; ele entrou atrás dela e pisou num ponto
mais fino do assoalho, que se fendeu sob os seus pés; quando deu por si, havia
caído bem no centro do mercado dos coureiros, que apregoavam sua mercadoria,
comprando e vendendo. Quando o viram naquele estado, nu, de barbas raspadas
e sobrancelhas pintadas de vermelho, gritaram com ele, bateram palmas e
puseram-se a surrá-lo com couro, nu como estava, até que desmaiou.
Carregaram-no então num asno até os portões da cidade. O chefe de polícia
chegou e perguntou: “O que é isso?”. Responderam-lhe: “Amo, esse homem
despencou da casa do vizir nesse estado”. O chefe de polícia aplicou cem
chicotadas em meu irmão e o expulsou de Bagdá. Então, comandante dos
crentes, saí atrás dele, e secretamente o reintroduzi na cidade, arranjando-lhe
condições de subsistência. Não fossem meus brios, eu teria feito isso?”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

159ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O TERCEIRO IRMÃO DO BARBEIRO
Já o meu terceiro irmão, ó comandante dos crentes, era cego e foi conduzido
pelo destino a uma grande casa, em cuja porta ele bateu ambicionando ser
atendido pelo dono, para pedir-lhe alguma coisa. O dono da casa perguntou:
“Quem está à porta?”. Meu irmão não lhe respondeu, e tornou a bater. O dono
perguntou: “Quem é?”. Meu irmão não lhe respondeu, e ouviu o homem
perguntar em voz alta: “Quem é?”. Não abriu a boca e ouviu-lhe os passos
chegando à porta, e enfim abrindo-a; perguntou: “O que você quer?”. Meu irmão
respondeu: “Qualquer coisa, pelo amor de Deus altíssimo”. O homem disse:
“Um cego!”. Meu irmão respondeu: “Sim”. O homem disse-lhe: “Estenda a sua
mão”, e meu irmão assim fez, acreditando que lhe daria alguma coisa. Mas o
homem tomou-o pela mão e o fez entrar na casa. Começou a subir a escadaria
com meu irmão, degrau por degrau, até que o conduziu ao alto do telhado.
Enquanto isso, meu irmão pensava com seus botões que ele lhe daria algo para
comer. Quando afinal chegou e se acomodou, perguntou ao meu irmão: “O que
você quer, cego?”. Respondeu: “Qualquer coisa, pelo amor de Deus altíssimo”.
O homem respondeu: “Só Deus é que pode ajudá-lo”.[295] Meu irmão
perguntou: “Fulano, por que você não me disse isso lá embaixo?”. Respondeu:
“Ó mais baixo dos homens, e por que você não me disse desde o início?”. Meu
irmão perguntou: “E agora, o que pretende fazer comigo?”. O homem
respondeu: “Não tenho nada para lhe dar”. Meu irmão pediu: “Ajude-me a
descer essa escadaria”. O homem respondeu: “O caminho está à sua frente”.
Meu irmão então se levantou e começou a descer, até que restaram entre ele e a
porta cerca de vinte degraus; porém seu pé escorregou, ele caiu rolando até
embaixo e rachou a cabeça; saiu sem saber onde se encontrava, e foi encontrado
por um de seus confrades, que lhe perguntou: “O que você conseguiu hoje?”.
Respondeu: “Deixe-me em paz”, e, depois de lhe relatar o que sucedera, disse:
“Meu irmão, eu gostaria de pegar os dirhams que dividimos entre nós para
comprar minha comida”. O dono da casa, que o seguira, ouviu as palavras de
meu irmão sem que este percebesse. Meu irmão foi para casa, entrou – o homem
entrou atrás dele –, e ficou esperando seus confrades sem perceber a presença do
homem. Quando os dois confrades chegaram, ele lhes disse: “Fechem a casa e
investiguem todos os cantos, para nos certificarmos de que não há nenhum
estranho entre nós. Ao ouvir as palavras de meu irmão, o homem se levantou,
sem que ninguém percebesse, e se pendurou numa corda amarrada no teto. Um
dos confrades do meu irmão se levantou e vasculhou a casa, sem encontrar
ninguém. Ambos então foram até o meu irmão e o interrogaram sobre o seu
estado; ele lhes informou que estava necessitado de uma parte do dinheiro que
haviam ajuntado. Cada um deles pegou um pouco do que possuía, depositando-o
diante dele; pesaram tudo aquilo, que chegou à quantia de dez mil dirhams, e
deixaram-na num canto da casa. Meu irmão recolheu o tanto de que necessitava
para si e enterraram o resto. Em seguida, serviram-se de algo para comer. Meu
irmão ouviu, a seu lado, uma mastigação estranha, e disse aos seus dois
companheiros: “Por Deus que existe um intruso conosco”, e estendeu a mão, que
se enroscou na mão do homem; trocaram pancadas e murros durante algum
tempo, com meu irmão agarrado a ele. Quando julgaram que aquilo se
prolongara demasiado, gritaram: “Ó muçulmanos, um ladrão invadiu nossa casa
querendo nos enganar e roubar nosso dinheiro!”. Aglomerou-se muita gente em
frente à casa. O homem se enfiou no meio dos cegos e alegou contra eles o
mesmo que eles alegavam contra si: fechou os olhos, fez-se de cego como eles,
tão bem que ninguém teve dúvidas, e gritou: “Ó muçulmanos! Apelo para que
Deus e o sultão julguem este caso!”. Antes que se dessem conta, os policiais
entraram no meio deles e os conduziram todos, meu irmão inclusive, ao chefe de
polícia, que os colocou diante de si e perguntou: “O que aconteceu?”. O homem
que se fazia de cego disse: “Que Deus queira bem ao sultão! Você enxerga, mas
não irá descobrir nada se não aplicar punições. Deve punir-me primeiramente, e
depois a este aqui, meu guia” – e apontou para o meu irmão. Então, ó
comandante dos crentes, estiraram ao solo o homem que fingia ser cego, e lhe
aplicaram quatrocentas bastonadas. Quando a dor se tornou insuportável...
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha, e espantosa”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se
acaso eu viver e o rei me preservar”. O rei Šāhriyār pensou: “Por Deus que não a
matarei até ouvir o que vai suceder entre o rei da China, o alfaiate, o médico
judeu, o corretor cristão e o intendente, e também o restante da história do
barbeiro intrujão e seus irmãos. Só então a matarei, tal como fiz com as outras”.

160ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Quando o chefe de polícia aplicou as quatrocentas bastonadas na bunda do
homem que fingia ser cego, a dor o fez abrir um dos olhos; quando ele bateu
mais, o homem abriu o outro olho. O chefe de polícia perguntou: “O que é isto,
seu maldito?”. Ele respondeu: “Dê-me o seu anel como sinal de garantia de vida
e eu o ensinarei o que fazer”. O chefe lhe deu o anel como sinal de garantia de
vida, e o homem então disse: “Meu amo, nós somos quatro pessoas que
enxergam, mas nos fingimos de cegos e assim entramos nas casas das pessoas;
espreitamos suas mulheres e as corrompemos. Ajuntamos um lucro de dez mil
dirhams. Pedi aos meus camaradas: ‘Deem-me a minha parte, dois mil e
quinhentos dirhams’, mas eles me espancaram, renegaram e se apossaram do
meu dinheiro. Agora eu peço socorro a você e a Deus. Você tem mais direito à
minha parte, e, caso deseje conhecer a verdade de minhas palavras, surre cada
um deles o dobro de vezes que me surrou, e eles abrirão os olhos”. Nesse
momento, o chefe de polícia ordenou que eles fossem castigados, começando
com meu irmão, que foi estendido numa escada. O chefe de polícia lhes disse:
“Então, seus depravados, vocês renegam os dons naturais que Deus lhes
concedeu e se fingem de cegos?”. Meu irmão disse: “Ó Deus! Ó Deus! Ó sultão!
Não há entre nós ninguém que enxergue”. Foi surrado até desmaiar. O homem
que se fizera de cego disse ao chefe de polícia: “Esperem até acordar e surrem-
no mais uma vez, pois ele é mais resistente às surras do que nós”. Ordenou-se
que os outros dois cegos fossem surrados, e cada um recebeu mais de trezentas
bastonadas, enquanto o homem lhes dizia: “Abram os olhos, senão vão tomar
uma nova surra!”. Em seguida, disse ao chefe de polícia: “Comandante, envie
comigo alguém para trazer o dinheiro, pois esses aí não abrirão os olhos por
temor ao vexame”. O chefe de polícia ordenou que o dinheiro fosse trazido da
casa. Dos dez mil dirhams, entregou ao homem os dois mil e quinhentos que,
conforme ele alegara, constituíam sua parte, ficou com o resto e expulsou os três
cegos da cidade. Então, comandante dos crentes, saí atrás do meu irmão,
encontrei-o, interroguei-o sobre seu estado, e ele me contou isso que contei a
você. Na surdina, eu o trouxe de volta à cidade e arranjei-lhe, às escondidas, o
que comer e beber.
O califa riu de minhas narrativas e disse: “Deem-lhe um prêmio e deixem-no
retirar-se”. Mas eu lhe disse: “Por Deus, comandante dos crentes, eu sou de
poucas palavras e muito brio. É imperioso que eu relate, aqui na sua frente, as
histórias dos meus outros irmãos, para que você saiba que eu falo pouco”.
O QUARTO IRMÃO DO BARBEIRO
[Continuei contando ao califa:] Já o meu quarto irmão ficou caolho. Ele
trabalhava como açougueiro em Bagdá, vendendo carne e criando carneiros. Era
procurado pelos notáveis da cidade e pelos ricos, que faziam suas compras de
carne com ele; foi assim que meu irmão amealhou imensas quantias de dinheiro
e adquiriu casas e terrenos, permanecendo em tal condição por longo tempo.
Certo dia, estando ele em seu açougue, surgiu um ancião de vastíssimas barbas,
que lhe entregou alguns dirhams e disse: “Dê-me isso de carne”. Meu irmão lhe
cortou o peso justo e o velho se retirou. Examinando aquelas moedas de prata,
meu irmão notou-lhes uma brancura reluzente e as guardou em separado.
Durante cinco meses, o velho comprou carne do meu irmão, que guardava numa
caixa em separado as moedas de prata com as quais ele pagava; então, querendo
reunir aquele dinheiro a fim de comprar ovelhas, meu irmão abriu a caixa e
verificou que tudo quanto ela continha era papel prateado redondo; começou a
estapear o rosto e a gritar; as pessoas se reuniram ao seu redor, e ele lhes contou
o que sucedera. Depois, retomou seu ganha-pão: sacrificou um carneiro,
pendurou-o no interior do açougue e pôs-se a cortar sua carne em postas, que
pendurou do lado de fora, enquanto rogava: “Ó meu Deus, faça com que aquele
maldito ancião apareça”. Com efeito, não era passada nem uma hora quando o
ancião apareceu, carregando as moedas de prata. Imediatamente meu irmão se
engalfinhou com ele gritando: “Ó muçulmanos, venham até aqui e ouçam a
minha história com este iníquo!”. Ao ouvir aquelas palavras, o ancião lhe
perguntou: “O que você prefere, deixar-me em paz ou ser infamado perante todo
mundo?”. Meu irmão retrucou: “Como você vai me infamar?”. O ancião
respondeu: “Com o fato de que você vende carne de gente como se fosse de
carneiro”. Meu irmão disse: “Você está mentindo, seu maldito!”. O ancião
mentiroso disse: “Dentro do açougue dele há um homem dependurado!”. Meu
irmão retrucou: “Se o que você fala for verdade, que se faça meu sangue correr e
que meus bens sejam expropriados!”. O ancião disse às pessoas aglomeradas:
“Caso queiram se certificar da veracidade das minhas palavras, entrem lá no
açougue dele!”. Então as pessoas acorreram até o açougue e encontraram,
dependurado, o carneiro que meu irmão sacrificara transformado num ser
humano. Ao verem aquilo, atracaram-se com meu irmão e gritaram com ele:
“Seu ímpio! Seu iníquo!”. A maioria das pessoas começou a agredi-lo, dizendo:
“Então você me fazia comer carne humana?”. O ancião lhe arrancou o olho com
um golpe. As pessoas carregaram o homem sacrificado até o chefe de polícia, a
quem o ancião disse: “Comandante, este homem sacrifica seres humanos e lhes
vende a carne, alegando ser carneiro. Nós o trouxemos a fim de que lhe aplique a
pena determinada por Deus altíssimo”. Meu irmão ainda tentou contar o que
sucedera entre ambos, e revelar que o ancião lhe pagara com moedas de prata
que, no final das contas, se revelaram pedaços de papel, mas ninguém deu
ouvidos às suas palavras, e ordenaram que sofresse uma surra bem dolorosa,
mais de quinhentas bastonadas. Depois, expropriaram-lhe todo o dinheiro e
demais bens, gado e açougue, e o expulsaram da cidade; não fosse o seu
dinheiro, teriam-no matado, pois ele teve de pagar propinas para escapar vivo,
sem mais nada, e isso depois que o exibiram pela cidade durante três dias. Solto,
meu irmão fugiu até chegar a uma grande cidade.[296] Como conhecia o ofício
de sapateiro, abriu uma loja e começou a trabalhar, a fim de obter alimento.
Certo dia, ele saiu para fazer algo qualquer e ouviu atrás de si barulho de cascos
e relinchar de cavalos; indagou a respeito e lhe informaram que o rei estava
passando em seu caminho para a caça. Meu irmão se pôs a contemplar os seus
belos trajes. O olhar do rei cruzou com o de meu irmão. Após manter-se
cabisbaixo alguns instantes, o rei disse: “Eu me refugio em Deus contra o mau
augúrio deste dia”, e, puxando as rédeas de sua montaria, fez meia-volta, e
também a soldadesca toda fez meia-volta. Ordenou então aos criados que fossem
até meu irmão e lhe aplicassem uma violenta sova, a tal ponto que ele quase
morreu sem saber o motivo. Voltou para casa cambaleante, num estado
lastimável, e foi falar com um membro da corte, o qual, vendo-o naquela
situação, perguntou: “O que lhe aconteceu?”. Meu irmão contou o ocorrido e o
homem, rindo até cair sentado, disse: “Saiba, meu irmão, que o rei não suporta
olhar para nenhum caolho, especialmente se for caolho do olho direito. Não o
deixa em paz até matá-lo”. Ao ouvir aquilo, meu irmão resolveu fugir.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

161ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Decidido a fugir daquela cidade, meu irmão pensou: “O melhor alvitre é eu
me mudar para outro local, onde ninguém me conheça”. E foi o que fez; durante
algum tempo, conseguiu levar a vida numa situação melhor. Mas em seguida,
refletindo, voltou a entrar em grande inquietação quanto ao rumo de sua
existência. Certo dia, saiu para espairecer e ouviu atrás de si relinchos de cavalo;
pensou: “Chegou a hora decretada por Deus”, e procurou um lugar onde se
esconder; deparando com uma porta fechada, empurrou-a, ela caiu, e meu irmão
viu-se diante de um longo compartimento no qual entrou. Entretanto, antes que
ele pudesse reagir, dois homens se atracaram com ele e disseram: “Graças a
Deus que nos possibilitou capturá-lo, ó inimigo de Deus! Já é a terceira noite que
você não nos deixa dormir nem ficar sossegados; você está nos fazendo provar a
amargura da morte”. Meu irmão perguntou: “Qual é o problema, amigos?”.
Responderam: “Você está aprontando com a gente! Está fazendo alguma
armação para matar o dono da casa! Já não basta que você e os seus amigos o
tenham reduzido à pobreza? Agora mostre a faca que você usa para nos ameaçar
toda noite”, e, revistando meu irmão, encontraram uma faca em sua cintura.[297]
Ele disse: “Pelo amor de Deus, pessoal! Saibam que a minha história é
espantosa” – e pensou: “Vou contar-lhes minha história”, pois quem sabe assim o
deixariam em paz. Mas eles não deram ouvidos às suas palavras nem lhe
prestaram atenção; pelo contrário: espancaram-no e lhe rasgaram as roupas,
verificando em seu corpo vestígios de vergastadas anteriores; disseram: “Isto,
seu maldito, são sinais de açoitamento!”. Colocaram-no então diante do chefe de
polícia. Meu irmão pensou: “Estou aniquilado por causa dos meus pecados; só
Deus pode me salvar!”. O chefe de polícia lhe perguntou: “O que o levou, seu
iníquo, a invadir a casa deles e ameaçá-los de morte?”. Meu irmão replicou: “Eu
lhe imploro por Deus altíssimo que o senhor ouça o que tenho a dizer. Não se
precipite e ouça a minha história”. Disseram-lhe: “Ouvir a história de um ladrão
que reduziu tanta gente à pobreza e que apresenta vestígios de açoite nas
costas?”. Quando o chefe de polícia viu as marcas de açoite em seu corpo, disse-
lhe: “Não fizeram isso com você senão devido a algum crime terrível”, e
ordenou que meu irmão levasse cem chibatadas. Em seguida, exibiram-no sobre
um camelo e gritaram: “Essa é a punição de quem invade a casa alheia!”.
Depois, ordenou-se que ele fosse expulso da cidade, e ele saiu sem rumo. Mas eu
ouvi falar do assunto, e fui resgatá-lo. Ele então me contou sua história e o que
lhe sucedera. Às escondidas, eu o trouxe de volta para a cidade e lhe arranjei
sustento.
[Continuei contando ao califa:] “E é graças ao meu brio inteiriço que eu faço
tudo isso por meus irmãos”. O califa riu até cair sentado, e ordenou que me
dessem um prêmio. Eu disse: “Eu, patrão, eu não sou tagarela. Deixe-me que lhe
conte as histórias dos meus outros irmãos, a fim de que este nosso amo, o califa,
fique a par das histórias de todos eles; se caírem em seu agrado, que mande
registrá-las por escrito em sua biblioteca, e tome ciência de que eu não sou
tagarela, ó califa, nosso amo!”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
poupada”.

162ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O QUINTO IRMÃO DO BARBEIRO
Quanto ao meu quinto irmão, o de orelhas cortadas, era ele um pobretão que à
noite esmolava para ter o que comer durante o dia. Então, tendo chegado à mais
extrema velhice, nosso pai ficou doente e morreu, deixando-nos como herança
setecentos dirhams, que dividimos entre nós, cem dirhams para cada um. Esse
meu quinto irmão pegou sua parte, mas, atarantado com tal quantia e ignorando
o que fazer com ela, pôs-se a refletir sobre aquele dinheiro, e, em meio a isso,
ocorreu-lhe comprar garrafas de vidro de toda espécie para vendê-las e
beneficiar-se com o lucro obtido. Comprou então as garrafas e as colocou numa
grande caixa, instalando-se para vendê-las num local ao lado de um alfaiate, cujo
estabelecimento era isolado por um biombo. Meu irmão se encostou ao biombo
da alfaiataria e começou a pensar, dizendo de si para si: “Saiba, minha alma, que
o meu capital é constituído por essas garrafas, cujo valor é de cem dirhams. Eu
as venderei por duzentos dirhams, e com esse valor comprarei garrafas que
venderei por quatrocentos dirhams. Em seguida, não irei parar de comprar e
vender até reunir a quantia de quatro mil dirhams. Então trabalharei até comprar
uma grande carga que conduzirei ao lugar tal e tal, onde a venderei por oito mil
dirhams. E continuarei trabalhando até que se tornem dez mil dirhams, com os
quais comprarei todas as espécies de joias e perfumes, obtendo imensos lucros.
Aí então vou adquirir uma bela casa e comprar escravos, servos e cavalos;
comerei, beberei e darei festas; não deixarei cantor ou cantora da cidade que não
traga para minha casa. E, se Deus altíssimo quiser, farei meu capital se tornar
cem mil dirhams”. Tudo isso ele ia elucubrando, tendo à sua frente a caixa com
os cem dirhams de garrafas.[298] Avançando mais nas elucubrações, pensou:
“Quando meu dinheiro estiver na casa dos cem mil dirhams, nesse exato
momento eu enviarei aquelas mulheres arranjadoras de casamento para
descendentes de reis e vizires; eu as enviarei para pedirem em casamento a filha
do vizir, pois fui informado de que ela é perfeita, de esplendorosa beleza e
formas graciosas. Irei oferecer-lhe um dote de mil dinares; se aceitarem, ótimo;
caso contrário, eu a levarei à força, contra a vontade de seu pai. Quando ela se
encontrar em minha casa, vou comprar dez pequenos servos e depois um traje de
reis; mandarei confeccionar uma sela de ouro cravejada de pedras preciosas, e
sairei cavalgando, com escravos na minha dianteira e atrás de mim. Circularei
pela cidade e as pessoas me cumprimentarão e rogarão por mim. Quando eu for
ter com o vizir, ladeado à direita e à esquerda por meus escravos, ele
imediatamente se colocará em pé, me instalará em seu lugar e se acomodará num
local mais baixo, pois sou seu genro. Farei dois de meus criados carregarem dois
sacos contendo dois mil dinares que eu terei separado para o dote – mil dinares a
mais para que eles conheçam minha altivez e magnanimidade, bem como meu
desdém pelo mundo material. Em seguida retornarei para minha casa. A cada
pessoa da parte de minha noiva que chegar para a cerimônia eu darei dinheiro e
um traje honorífico; mas se vier com algum presente, irei rejeitar e devolver; não
admitirei ficar senão na minha posição. Depois, lhes determinarei que preparem
as coisas do modo que eu desejar. Assim que eles o tiverem feito, ordenarei que
tragam a noiva para as bodas. Terei deixado a casa muito bem preparada para a
ocasião. Quando chegar o momento de receber a minha mulher, vestirei a minha
roupa mais luxuosa e me acomodarei num assento de brocado, reclinado numa
almofada, sem olhar à direita nem à esquerda, em virtude da minha retidão,
juízo, circunspeção e taciturnidade. Minha mulher estará em pé, parecendo o
plenilúnio com suas vestes e joias, mas eu não olharei para ela nem admirado,
nem pasmado, nem jactancioso, a tal ponto que todos os presentes me
perguntarão: ‘Ó nosso amo e senhor, volte-se para sua mulher e criada, pois ela
está diante de você! Tenha a bondade de dirigir-lhe o olhar, pois ficar tanto
tempo em pé já está lhe fazendo mal’. Quando aquela posição em pé estiver
fazendo-lhe mal e os presentes beijarem repetidamente o chão diante de mim, só
então erguerei a cabeça e lhe lançarei um único olhar; em seguida, tornarei a
abaixar a cabeça e eles a levarão. Eu me levantarei e trocarei de roupa, vestindo
outra mais bonita ainda. Quando a trouxerem pela segunda vez com o segundo
traje, tornarei a não olhar para ela até que parem na minha frente e me peçam
diversas vezes; só então olharei para ela de esguelha e tornarei a abaixar a
cabeça. E assim permanecerei até que termine a sua exibição”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

163ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse “sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Meu irmão calculava tudo isso mentalmente. E continuou: “Não deixarei de
me fazer de rogado[299] com a noiva até que termine sua cerimônia de exibição.
Depois, darei ordens para que um criado traga um saco contendo quinhentos
dinares; entregarei o saco para as aias, determinando que tragam a noiva para o
aposento e nos deixem a sós; assim que a trouxerem, olharei para ela e deitarei a
seu lado sem lhe dirigir palavra, menosprezando-a até que comecem a falar que
sou arrogante e sua mãe venha beijar-me as mãos, dizendo: ‘Meu senhor, dê
atenção à sua serva, pois ela deseja a sua aproximação; faça-lhe algum agrado!’.
Mas eu não lhe darei resposta; quando ela vir essa minha atitude, irá então
beijar-me os pés repetidas vezes, dizendo: ‘Meu senhor, minha filha é uma
jovem que nunca viu homem algum; com essa indiferença, o coração dela está se
partindo. Achegue-se a ela, fale com ela, faça-lhe algum agrado!’. Em seguida, a
mãe lhe dará uma taça de bebida e dirá: ‘Jure amor pelo seu senhor e dê-lhe de
beber!’. Quando ela se aproximar, irei deixá-la parada diante de mim, reclinado
num almofadão bordado de ouro e prata, sem olhar para ela, tamanho o meu
orgulho, até que ela pense que eu sou arrogante e que minha alma é arrogante. E
a deixarei estar em pé, até que ela se sinta bem humilhada e saiba que eu sou um
sultão; dirá: ‘Meu senhor, pelo amor de Deus, não recuse a taça que lhe ofereço,
pois sou sua serva’. Como não lhe dirigirei palavra, ela insistirá, dizendo: ‘É
imperioso que beba’, e a aproximará de minha boca; então irei balançar as mãos
na sua cara e chutá-la fazendo assim”, e deu um pontapé que atingiu em cheio a
caixa de garrafas, que estava sobre um ponto mais alto do lugar; a caixa caiu no
chão e todo o seu conteúdo se quebrou. Então o alfaiate da loja ao lado gritou:
“Tudo isso por causa da sua arrogância, ó mais sujo dos putanheiros. Por Deus
que, se me fosse dado julgar o seu caso, eu mandaria aplicar-lhe cem chibatadas
e o exibiria pela cidade”. Nesse momento, comandante dos crentes, meu irmão
começou a estapear o rosto e a rasgar a roupa. Prosseguiu estapeando-se e
chorando enquanto as pessoas, que passavam para ir à prece da sexta-feira,
observavam; alguns se apiedaram dele e outros não lhe deram atenção. Naquele
estado, perdidos os ganhos e o capital, meu irmão chorou por algum tempo até
que, de repente, passou uma bela mulher com vários criados, montada numa
mula com arreio de ouro; ela ia deixando, à sua passagem, uma fragrância de
almíscar. Quando olhou para o meu irmão e viu o seu estado e o seu choro, a
piedade se introduziu em seu coração e ela perguntou quem era. Disseram-lhe:
“Ele tinha uma caixa cheia de garrafas; vivia desse comércio, mas as garrafas se
quebraram e ele ficou na situação que você está vendo”. A mulher então chamou
um de seus criados e disse: “Dê-lhe tudo o que você tiver”, e o criado entregou a
meu irmão um embrulho com quinhentos dinares. Quando o embrulho lhe caiu
nas mãos, quase morto de alegria, meu irmão se pôs a rogar por ela e retornou
para casa enriquecido. Começou a pensar, e eis que bateram à porta. Ele
perguntou: “Quem é?”. Uma mulher respondeu: “Só uma palavrinha, meu
irmão!”. Meu irmão foi abrir a porta e se viu diante de uma velha que ele não
conhecia. Ela disse: “Saiba, meu filho, que a hora da prece está chegando e eu
preciso fazer minhas abluções. Para tanto, gostaria que você me deixasse entrar
na sua casa”. Meu irmão respondeu: “Ouço e obedeço!”. Meu irmão entrou e,
ordenando que a velha também entrasse, deu-lhe um vasilhame para que ela o
usasse nas abluções, e depois foi se acomodar; com o coração voando de alegria
por causa dos dinares, ele os guardou numa bolsa junto à cintura. Quando ele
terminou de fazer isso, a velha, que também terminara de rezar, foi para o lugar
em que meu irmão estava sentado e rezou mais duas genuflexões;[300] em
seguida, rogou pelo meu irmão.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for poupada”.

164ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse para o rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Depois de terminar a reza, a velha fez muitos rogos pelo meu irmão, que lhe
agradeceu, e, enfiando a mão no meio das moedas de ouro, deu-lhe duas,
pensando: “Esta será a minha caridade”. Ao ver aquilo, a velha disse: “Louvado
seja Deus! O que você pensa que eu sou? Por acaso eu tenho cara de mendiga?
Guarde o seu dinheiro, pois dele não tenho precisão; enfie no seu coração, pois
eu já tenho aqui nesta cidade uma amiga dotada de dinheiro, graça e formosura”.
Meu irmão perguntou: “E como eu poderia conhecer essa sua amiga?”. Ela
respondeu: “Pegue todo o seu dinheiro e me siga. Quando você estiver com ela,
não deixe de usar nenhuma forma de agrado e belas palavras, pois somente
assim você conseguirá desfrutar-lhe a beleza, o dinheiro e tudo o mais que
desejar”. Meu irmão recolheu todo o seu ouro, e, sem se conter de tanta alegria,
saiu atrás da velha; caminhou atrás dela até que chegaram a um grande portão;
ela bateu e uma jovem bizantina saiu e veio abrir. A velha entrou e ordenou que
meu irmão entrasse; ele entrou numa casa imensa, com uma grande sala
atapetada e cortinada. Ele se sentou e depositou suas moedas diante de si; retirou
o turbante e o colocou no joelho. Antes que desse por si, surgiu uma jovem cuja
beleza nenhum olho havia antes visto igual, e cujas roupas nenhum olho havia
visto antes mais luxuosas. Ele se levantou e a jovem, ao vê-lo, sorriu e
demonstrou felicidade. Em seguida, ela ordenou que se fechasse a porta, o que
foi feito, e, indo até ele, tomou-o pela mão. Caminharam ambos até um aposento
isolado. Meu irmão se sentou e a garota se sentou ao seu lado, brincando com ele
por alguns momentos. Depois, encarando-o, levantou-se e disse: “Não saia daqui
até eu voltar!”, e desapareceu de suas vistas. Enquanto ele estava ali sentado,
entrou um enorme escravo negro com uma espada e lhe disse: “Ai de você! O
que está fazendo aqui?”. Ao vê-lo, a língua de meu irmão se travou e ele não
conseguiu responder. O escravo pegou-o pela mão, despiu-o, e lhe aplicou com a
espada um golpe que o deixou meio paralítico. E continuou surrando-o até que
meu irmão caiu desmaiado, tal a violência das pancadas. Nesse momento, aquele
escravo desgraçado julgou que ele havia morrido. Mas meu irmão ainda o ouviu
dizendo: “Onde está a responsável pelo sal?”, e então surgiu uma garota trazendo
nas mãos um grande pote cheio de sal. E o escravo se pôs a lhe esfregar as
feridas com sal, até que ele desmaiou. Meu irmão não se mexia, temeroso de que
o escravo percebesse que estava vivo e, aí sim, desse cabo de sua vida.
Disse o narrador : então a garota foi-se embora, e logo o negro gritou: “Onde
está a responsável pelo porão?”. A velha foi até o meu irmão e o arrastou pela
perna; abriu um alçapão e o atirou lá dentro, junto com os cadáveres de outros
homens assassinados. Ele ficou ali por dois dias, desfalecido, sem se mexer.
Deus poderoso e excelso fez daquele sal o motivo de sua salvação, pois lhe
estancou o sangue. Assim que se viu capaz de obedecer aos seus comandos de
movimento, meu irmão se levantou e, amedrontado, caminhou um pouco pelo
porão. Saiu dali, esgueirou-se pelas sombras e se escondeu num compartimento
até o amanhecer. Pela manhã, bem cedo, a velha maldita saiu à procura de uma
nova caça igual a ele. Meu irmão saiu em seu encalço sem que ela percebesse, e
foi para casa. Tratou-se durante um mês, até que se recuperou. Nesse meio-
tempo, ele espreitou a velha e lhe acompanhou os passos o tempo todo, enquanto
ela enganava seguidamente vários homens e os mandava para aquela casa. A
tudo meu irmão acompanhou em silêncio. Quando seu alento e vigor retornaram,
ele pegou um pedaço de pano, com o qual fez uma trouxa, e a encheu de
garrafas.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar”.

165ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Após ter enfiado as garrafas na trouxa, meu irmão amarrou-a na cintura,
disfarçou-se, a fim de não ser reconhecido, vestindo roupa de persas, e pegou
uma espada, escondendo-a sob a roupa. Assim que viu a velha, disse a ela em
sotaque persa: “Sou estrangeiro, minha velha; será que você não teria uma
balança para quinhentos dinares? Se me arranjasse uma balança, eu lhe daria um
pouco desse dinheiro”. A velha respondeu: “Ó persa, tenho um filho que é
cambista e possui todo tipo de balança; venha comigo para que ele pese o seu
ouro antes de fechar a loja”. Meu irmão disse: “Siga na minha frente”. A velha
se pôs a caminho, com meu irmão atrás, e chegou enfim ao portão, no qual
bateu; a mesma jovem saiu e abriu a porta; a velha riu para ela e disse: “Hoje eu
lhe trouxe carne gorda!”. A jovem pegou meu irmão pela mão, introduziu-o no
mesmo aposento em que entrara da outra vez, e se sentou com ele por algum
tempo; em seguida, levantou-se e lhe disse: “Não saia daí até que eu volte”, e foi
embora. “Quando me dei conta, o maldito escravo já entrara empunhando uma
espada desembainhada”, relatou o meu irmão, a quem o escravo disse: “Levante-
se, maldito!”. Meu irmão se levantou, olhou bem para ele, estendeu a mão para a
espada que trazia sob as vestes e aplicou no escravo um golpe que lhe separou a
cabeça do corpo; puxou-o pelas pernas até o porão e gritou: “Onde está a
responsável pelo sal?”. A garota veio com o pote de sal, mas quando viu meu
irmão de espada em punho, saiu correndo; ele foi atrás e fez sua cabeça voar
longe do corpo. Em seguida, gritou: “Onde está a responsável pelo porão?”. A
velha veio e meu irmão lhe perguntou: “Não está me reconhecendo, velha
perversa?”. Ela respondeu: “Não, meu amo!”. Ele disse: “Sou o dono da casa em
que você rezou e depois me fez cair aqui!”. Ela disse: “Pense bem no que vai
fazer comigo”, mas ele não lhe deu atenção e a cortou em quatro partes. Em
seguida, saiu no encalço da jovem. Ao vê-lo, ela entrou em desespero e lhe pediu
imunidade de vida para falar; ele concedeu e perguntou: “Como você veio parar
aqui com aquele preto?”. Ela respondeu: “Eu era criada de um mercador e aquela
velha ia me visitar até que ficamos íntimas; um dia ela me disse: ‘Teremos hoje
uma festa de casamento como ninguém nunca viu igual; eu gostaria que você a
assistisse’; respondi: ‘Ouço e obedeço’, e fui vestir minhas roupas e joias; peguei
um embrulho com cem dinares e saí com ela, que caminhava na minha frente;
chegamos enfim até esta casa, e ela disse: ‘Entre!’. Entrei com ela e, antes que
eu me desse conta, aquele negro me agarrou. Faz três anos que estou nesta
situação, graças à artimanha da velha, que Deus a amaldiçoe”. Meu irmão disse à
jovem: “Existe neste lugar dinheiro ou alguma outra coisa de valor?”. Ela
respondeu: “Sim, muitas coisas; se você conseguir carregá-las, considere isso
uma dádiva de Deus”. Meu irmão caminhou atrás dela, que foi abrindo caixas
com muitos sacos cheios de dinheiro; meu irmão ficou perplexo e a jovem lhe
disse: “Deixe-me aqui e vá agora trazer pessoas que possam ajudar a carregar
esse dinheiro”. Meu irmão saiu imediatamente e alugou dez homens. Ele me
contou: “Fui então bater no portão e verifiquei que estava aberto”. Meu irmão
entrou na casa e não encontrou a jovem nem os sacos de dinheiro. Estarrecido
com aquilo, ele notou que só haviam sobrado algumas poucas coisas do que
existia na casa, descobrindo, pois, que a jovem o ludibriara. Sem outro remédio,
ele recolheu o que restara e, abrindo os aposentos, carregou todos os tecidos, dos
quais não deixou nada. E dormiu feliz naquela noite.[301] Quando amanheceu,
ele viu no portão da casa vinte policiais que o agarraram e lhe disseram: “O
chefe de polícia está à sua procura!”. Pegaram-no e se puseram a caminho. Ele
lhes implorou para que o deixassem entrar na casa, mas eles não aceitaram. Sem
poder lhes dar nada ali naquele instante, prometeu-lhes dinheiro caso o
deixassem entrar, mas não lhe prestaram atenção; ficou exausto de tanto implorar
e se jogar ao chão e aos pés deles, sem que lhe dessem ouvidos. Amarraram-no
bem forte, prenderam-lhe as mãos, seguraram-no e começaram a andar. No meio
do caminho toparam com um velho amigo de meu irmão, que lhe implorou com
insistência para que ficasse do seu lado e o ajudasse a se safar dos policiais e
oficiais. Com muita dignidade, ele intercedeu e os indagou sobre o que sucedera
com meu irmão. Eles responderam: “O chefe de polícia determinou que
conduzíssemos este homem até ele; então fomos até sua casa e o prendemos;
agora o estamos conduzindo até nosso mestre, o chefe de polícia, em
conformidade com as suas determinações”. O amigo de meu irmão lhes disse:
“Gente boa, nós pagaremos o que vocês merecem, seja qual for o preço; basta
que vocês soltem o meu amigo e digam ao seu mestre: ‘Não o encontramos’”.
Mas eles não aceitaram e continuaram arrastando-o diretamente até o chefe de
polícia.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
poupada”.

166ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Quando viu meu irmão diante de si, o chefe de polícia lhe disse: “Sabemos
que você conseguiu ajuntar muita coisa. Como foi isso?”.[302] Meu irmão
respondeu: “Meu amo, peço imunidade de vida”, e o chefe de polícia disse:
“Imunidade concedida”. Então meu irmão lhe contou tudo quanto lhe sucedera
com a velha, desde o começo até o fim, bem como a fuga da jovem. E concluiu
dizendo ao chefe de polícia: “Meu senhor, todas as coisas que peguei estavam lá;
leve o que quiser, mas deixe um pouco para eu viver”. O chefe de polícia
mandou seus auxiliares e oficiais com meu irmão, e eles recolheram todo o
tecido e o dinheiro. Em seguida, o chefe de polícia ficou com medo de que a
notícia chegasse ao sultão; mandou convocar o meu irmão e lhe disse: “Eu quero
que você saia desta cidade; caso contrário, irei liquidá-lo”. Meu irmão
respondeu: “Ouço e obedeço”, e fugiu para outro país; no caminho, ladrões
cruzaram com ele, deixando-o nu e lhe cortando as orelhas;[303] ouvi falar a
respeito e fui procurá-lo com uma roupa, que ele vestiu. Eu o trouxe
secretamente para a cidade e o pus para morar junto com os seus irmãos.
O SEXTO IRMÃO DO BARBEIRO
[Continuei contando ao califa:] Já o meu sexto irmão, o de lábios cortados,
empobrecera após ter sido rico. Certo dia, saiu à procura de algo com que matar
a fome. Durante essa procura, estando ele numa estrada qualquer, avistou de
repente uma bela casa com largo pátio e elevado portão, diante do qual havia
servidores e criados, e ordens e proibições. Indagou sobre o dono da casa a
alguém ali em frente, que lhe respondeu: “A casa pertence a um membro do clã
barmécida”.[304] Meu irmão avançou até os porteiros e lhes pediu uma esmola;
disseram-lhe: “Entre por esta porta, pois lá dentro você receberá do dono da casa
algo que irá apreciar”. Meu irmão entrou no pátio e caminhou por algum tempo,
até chegar a uma construção graciosa em cujo centro havia um jardim que ele
nunca vira igual. O piso da casa era acarpetado e suas cortinas estavam soltas.
Perplexo, sem saber para que lado ir, ele caminhou rumo à porta do salão; entrou
e viu no ponto elevado do aposento um homem de formosas faces e barbas;
caminhou em sua direção e o homem, ao vê-lo, deu-lhe boas-vindas e lhe
perguntou sobre o seu estado; meu irmão lhe informou ser um necessitado que
vivia do que os outros pudessem dar-lhe. Ouvindo tais palavras, o homem afetou
grande pesar e, pondo as mãos em suas próprias roupas, rasgou-as e disse: “Quer
dizer então que neste país em que eu vivo você passa fome? Não, não posso
suportar isso!”. E se comprometeu a fazer tudo de bom pelo meu irmão. Depois
disse: “É imperioso que você seja o meu comensal”. Meu irmão respondeu:
“Meu senhor, já não suporto mais! Estou completamente faminto!”. O homem
gritou: “Criado, traga o vaso e a bacia para lavarmos as mãos!”. Meu irmão não
viu bacia nem nada. O homem disse: “Vamos, meu irmão, venha lavar as mãos”,
e começou a gesticular como se estivesse lavando as mãos. Depois gritou:
“Sirvam a mesa!”, e fez uma gesticulação; “Mas eu não via nada ser trazido”,
conforme relatou o meu irmão. O homem disse ao hóspede: “Por vida minha,
coma e não se acanhe!”, e fez gestos como se estivesse comendo, pondo-se a
dizer ao meu irmão: “Por vida minha, não seja parcimonioso com a comida, pois
faço ideia da fome que você está sentindo neste momento!”. Meu irmão
começou a gesticular como se estivesse comendo algo, e o homem pôs-se a
dizer-lhe: “Coma agora, por vida minha. Repare só na beleza e alvura deste
pão”, mas, sem ver nada, meu irmão pensou: “Este homem gosta de brincar e
divertir-se às custas dos outros”, e disse: “Meu senhor, nunca em minha vida vi
alvura mais formosa, nem pão mais gostoso de mastigar”. O homem respondeu:
“Foi feito por uma de minhas servas, que me custou quinhentos dinares”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse: “Maninha,
como é agradável e saborosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

167ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
O homem gritou: “Criado, sirva o cozido de trigo e carne moída[305] como
primeiro prato, e ponha-lhe bastante gordura”. Depois disse ao meu irmão: “Por
Deus, caro hóspede, você já viu cozido mais suculento do que este? Por vida
minha, coma e não se acanhe”, e gritou: “Criado, sirva o pato gordo em molho
de vinagrete!”.[306] Continuou dizendo ao meu irmão: “Coma, pois eu sei que
você está faminto e necessitado”, e meu irmão se pôs a mexer os maxilares,
fingindo mastigar. O homem foi mandando servir um prato atrás do outro, sem
que nada fosse trazido, e ordenava a meu irmão que comesse. Depois gritou:
“Criado, sirva os galetos gordos cozidos na coalhada”, e disse ao meu irmão:
“Por sua vida, meu hóspede, esses galetos foram engordados com pistache.
Coma disso que você jamais provou antes”. Meu irmão respondeu: “Meu senhor,
isso é mesmo muito gostoso”. O homem se pôs a levar a mão à boca de meu
irmão, como se estivesse dando-lhe de comer. Enquanto ele descrevia todas
aquelas variedades de alimento, meu faminto irmão faria muito gosto de poder
dar uma mordida num pão de cevada. Depois o homem disse: “Sirvam as carnes
fritas”, e perguntou: “Você já viu condimentos mais saborosos do que os desta
comida? Coma bem e não se acanhe”. Meu irmão disse: “Já estou satisfeito, meu
senhor!”. O homem gritou: “Retirem isso tudo e sirvam a sobremesa”, e disse ao
meu irmão: “Coma deste doce de amêndoas, que está muitíssimo benfeito, e
destes pasteizinhos de nozes. Por vida minha que a calda deste pastelzinho na
minha mão está escorrendo!”. Meu irmão disse: “Que eu não me veja privado do
senhor”, e o interrogou sobre a grande quantidade de almíscar que havia nos
pastéis; o homem respondeu, enquanto meu irmão movimentava a boca e as
mandíbulas: “É o meu costume fazer assim com os pastéis”. O homem enfim
disse: “Chega disso; agora, comamos geleia de amêndoas”, e continuou: “Coma
e não se acanhe!”. Meu irmão disse: “Já estou satisfeito, meu senhor! Não
consigo comer mais nada”. O homem perguntou: “Então, meu hóspede, gostaria
de beber e se descontrair? Espero que não esteja ainda com fome”. Meu irmão
pensou: “Mas que tormento!”, e continuou pensando: “Vou fazer com ele uma
coisa que o fará arrepender-se de semelhantes atitudes”. O homem gritou:
“Sirvam bebida”, e passou uma taça ao meu irmão dizendo: “Dê um trago nessa
taça; se gostar, avise”, e meu irmão respondeu: “O aroma é bom, mas eu estou
habituado a outro tipo de bebida”. O homem gritou: “Tragam-lhe uma bebida
alcoólica diferente”, e brindou: “Felicidades e saúde!”. Meu irmão gesticulou
como quem está bebendo, afetou embriaguez e disse: “Meu senhor, eu não
deveria ter bebido”. E, mostrando-se inconveniente, fingindo-se de bêbado, meu
irmão pegou o homem de surpresa: ergueu o braço até que aparecesse o branco
da axila, e lhe aplicou na nuca uma tapona tão violenta que ecoou por todo o
aposento, fazendo-a seguir-se de outra tapona. O homem perguntou: “Mas o que
é isso, seu canalha?”. Meu irmão respondeu: “Este seu escravo que o senhor
introduziu em sua casa, e a quem deu comida e bebida, embriagou-se e está
farreando. Antes de qualquer outro, é você que tem a obrigação de aguentar-lhe a
ignorância e perdoar-lhe o delito”. Meu irmão me contou: “Ao ouvir minhas
palavras, o homem deu uma sonora gargalhada e disse: ‘Faz muito tempo,
fulano, que eu me divirto assim às custas das pessoas, mas nunca vi ninguém que
tivesse inteligência e jogasse o jogo comigo senão você. Por isso, está agora
perdoado’”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

168ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o alfaiate disse ao rei da China:
O barbeiro disse ao grupo:
Eu disse ao califa:
Então o homem disse ao meu irmão: “Eu perdoo você. Seja o meu comensal
de verdade e não se separe mais de mim”, e determinou que se apresentassem
vários criados, aos quais ordenou que servissem a mesa de verdade, com todas as
variedades de alimento antes mencionadas. Meu irmão e o homem comeram até
se fartar; depois, acomodaram-se no aposento destinado à bebida, no qual havia
escravas que pareciam luas e que cantaram em todos os ritmos e gêneros; ambos
beberam até se embriagar. O homem apreciou muito a companhia de meu irmão,
a quem passou a tratar como se fosse seu irmão; tomou-se de grande afeição por
ele e lhe deu um traje de honra. Pela manhã, retomaram a comida e a bebida.
Ficaram nessa situação dez dias. Depois, o homem outorgou seus negócios ao
meu irmão, que passou a cuidar de todos os seus bens, e isso durante vinte anos,
findos os quais o homem morreu – louvado seja Deus, o vivente que nunca
morre – e o sultão lhe expropriou todos os bens, todo o dinheiro do qual meu
irmão cuidava; enfim, tudo foi confiscado pelo sultão, a tal ponto que o meu
irmão, vendo-se pobre e inteiramente reduzido à impotência, saiu vagando a
esmo pelo mundo. No meio do caminho, foi atacado por beduínos que o
capturaram e o levaram para seu acampamento. O homem que aprisionara meu
irmão pôs-se a espancá-lo, dizendo: “Resgate a sua vida com dinheiro!”.
Chorando, meu irmão lhe dizia: “Meu senhor, eu não possuo um único dirham,
um único dinar! Sou seu prisioneiro, faça o que quiser”. O beduíno puxou então
uma adaga e, cortando os lábios de meu irmão, renovou violentamente a
exigência. Esse beduíno tinha uma esposa de rosto formoso que, quando o
marido saía, ia se oferecer e seduzir meu irmão, que a rechaçava. Certo dia,
porém, ela conseguiu seduzi-lo; meu irmão foi até ela e começou a acariciá-la;
ela estava nesse estado quando o marido entrou e, olhando para o meu irmão,
disse: “Desgraçado, quer corromper a minha família!”; puxou uma adaga,
cortou-lhe o pênis, carregou-o no camelo e o atirou ao pé de um monte. Alguns
viajantes passaram por ali, reconheceram meu irmão, deram-lhe comida e bebida
e me avisaram do que lhe ocorrera; fui até ele, carreguei-o, entrei com ele na
cidade e lhe providenciei sustento.[307]
[Continuei contando ao califa:] E agora eis-me aqui diante de você,
comandante dos crentes. Eu ia perder a vida por engano, e tenho seis irmãos para
sustentar!
[Prosseguiu o barbeiro:] Ao ouvir toda a minha história e as notícias que lhe
dei sobre os meus irmãos, o califa riu bastante e disse: “Você fala a verdade, ó
silencioso! Você é taciturno e não intrometido. Porém, saia agora deste país; vá
morar em outro”. E me expulsou sob escolta. Circulei por todas as regiões até
que ouvi falar de sua morte e do início do califado de outro; retornei a Bagdá e
constatei que os meus irmãos haviam falecido. Travei conhecimento com este
rapaz, e fiz por ele as melhores ações, mas recebi as piores retribuições. Não
fosse eu, ele estaria muito bem morto. Depois, ele viajou para fugir de mim.
Tornei a circular pelo mundo e acabei topando com ele aqui. Acusou-me de algo
que não fiz, e inventou que eu sou tagarela.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me preservar”.

169ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte Dīnārzād disse a Šahrāzād: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos esta
noite”. O rei disse: “Que seja o restante da história do corcunda bufão”.
Šahrāzād disse: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei do tempo, de que o alfaiate disse ao rei da China:
Depois de ouvir a história do barbeiro e sua tagarelice, ó rei, e saber que o
jovem fora prejudicado por ele, nós o agarramos, amarramos e levamos para a
cadeia. Em seguida nos acomodamos, comemos e continuamos a festa até o
entardecer, quando então saí e fui para casa. Minha mulher estava zangada e
disse: “Você metido em farras e bebedeiras e eu aqui enfiada dentro de casa. Se
não me levar para passear pelo resto do dia, esse será um motivo para me separar
de você”. Então saí com ela e ficamos passeando até o anoitecer; no caminho de
volta, encontramos com esse corcunda bufão completamente bêbado. Eu o
convidei a vir conosco, comprei peixe e sentamos todos para comer. Trinchei um
pedaço de peixe, que por acaso continha espinha, enfiei na boca do corcunda e
tapei-a; sua respiração se cortou, seus olhos se arregalaram, e ele engasgou. Dei-
lhe um soco nas costas, entre os ombros, mas o bocado se entalou solidamente
em sua garganta; ele se asfixiou e morreu. Carreguei-o e elaborei uma artimanha
para jogá-lo na casa deste médico judeu, e ele por sua vez elaborou uma
artimanha e o atirou na casa do despenseiro, e ele por sua vez elaborou uma
artimanha e o atirou diante deste corretor cristão. Esta é a história do que me tem
ocorrido desde ontem; não é mais espantosa e insólita do que a história do
corcunda bufão?
Disse o narrador : depois de ouvir a história do alfaiate, o rei da China
balançou a cabeça de emoção, mostrou assombro e disse: “A história das
peripécias entre este jovem e o barbeiro intrometido é mais emocionante e
melhor do que a história do corcunda”. Em seguida, ordenou a um de seus
secretários que saísse com o alfaiate e trouxesse o barbeiro da prisão; disse:
“Gostaria de ver esse barbeiro taciturno, olhar para ele e ouvir as suas histórias e
palavras. Será por meio dele que vocês todos se salvarão de mim. Também
vamos enterrar esse corcunda bufão, que está morto e abandonado desde ontem à
noite, e construir-lhe um túmulo”. Mais do que rapidamente, o secretário do rei
da China e o alfaiate saíram e retornaram com o barbeiro. Ao olhar para ele, o rei
da China viu-se diante de um senhor de idade avançada, que ultrapassara os
noventa anos, de barbas e sobrancelhas brancas, orelhas cortadas, nariz
comprido e modos de toleirão. Ante essa visão, ele riu e lhe disse: “Ó silencioso,
quero que você me conte as suas histórias”. O barbeiro perguntou: “Ó rei do
tempo, e qual é a história deste cristão, deste judeu, deste muçulmano e deste
corcunda morto aqui entre vocês?[308] Qual o motivo desta reunião?”. O rei
disse, rindo: “E por que você está perguntando sobre isso?”. O barbeiro
respondeu: “Perguntei sobre eles para que o rei saiba que eu não sou
intrometido, e que sou inocente disso que me acusam, de falar demais e ser
intrometido. Meu nome é Silencioso”.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

170ª
noite das histórias das
mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia de que o rei da China ordenou àqueles homens que contassem
ao barbeiro a história do corcunda do início ao fim. O barbeiro balançou a
cabeça e disse: “Isso é assombroso. Descubram esse corcunda para que eu o
examine”. O barbeiro sentou-se ao lado do corcunda, colocou sua cabeça no
colo, examinou-lhe o rosto e começou a rir tão alto que logo o riso virou uma
gargalhada, que o fez revirar-se no solo; disse: “Mas que coisa assombrosa! Toda
morte tem um motivo; a história deste corcunda deveria ser registrada com tinta
de ouro”. Todos ficaram espantados com o barbeiro, e o rei lhe perguntou: “O
que você tem, ó Silencioso?”. O barbeiro respondeu: “Juro pelo bem que o
senhor faz que este corcunda bufão ainda tem vida”, e puxou uma bolsa que
trazia amarrada à cintura, retirou um frasco de pomada, untou o pescoço do
corcunda e o massageou com força; depois, extraiu da bolsa uma haste de ferro
comprida, com a qual manteve a boca do corcunda aberta; pegou uma pinça de
ferro, introduziu-a na garganta do corcunda e extraiu o naco de peixe com a
espinha, que estava empapada de sangue. O corcunda espirrou, deu um salto,
parou em pé e esfregou as mãos no rosto. O rei e seus acompanhantes ficaram
espantados com a história daquele corcunda bufão, que permanecera um dia e
uma noite inteiramente desfalecido, e desfalecido continuaria não o houvesse
Deus agraciado com o barbeiro que lhe devolveu a vida. Em seguida o rei da
China determinou que a história do barbeiro e do corcunda fosse registrada nos
anais do reino; concedeu trajes de honra para o despenseiro, o alfaiate, o cristão
e o judeu, dando-lhes então ordens para que se retirassem; contratou o barbeiro
para trabalhar no palácio,[309] ordenou que lhe pagassem um ordenado e lhe
concedeu um traje de honra. E assim viveram todos, usufruindo da hospitalidade
do rei, até que lhes adveio o destruidor dos prazeres[310] e a morte os atingiu a
todos.
E a aurora alcançou Šahrāzād, que parou de falar. Dīnārzād disse para a irmã:
“Como é agradável e assombrosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu ficar viva. Trata-
se da história do perfumista Abū Alḥasan ᶜAlī Bin Ṭāhir, de Nuruddīn ᶜAlī Bin
Bakkār, e do que sucedeu a este último com Šamsunnahār, a escrava do califa.
Trata-se de uma história que emociona o ouvinte, um espetáculo de bons
augúrios.[311]
ANEXOS
Os anexos da presente edição são textos que podem servir como elementos de
comparação para o leitor interessado na história da constituição deste livro.
ANEXO 1
A história introdutória das Mil e uma noites, também chamada de “prólogo-
moldura”, apresenta mais de uma redação. Aqui, apresenta-se a tradução desse
“prólogo-moldura” a partir do que se convencionou chamar “ramo egípcio
recente”. Foi utilizada a primeira edição de Būlāq, cotejada com a segunda
edição de Calcutá.[312]
Em nome de Deus, Misericordioso, Misericordiador
Louvores a Deus, senhor do universo, e que as preces e as saudações estejam
com o senhor dos enviados, nosso amo e senhor Muḥammad, e com seus
familiares – preces e saudações permanentes e contínuas até o dia do Juízo Final.
As crônicas dos antigos tornaram-se uma lição para os pósteros, a fim de que
o homem veja as lições que ocorreram aos outros e então reflita, e verifique as
histórias das nações do passado e o que lhes sucedeu e fique alerta. Louvado seja
quem fez, das histórias dos antigos, lições para os pósteros! Entre essas lições
estão as narrativas denominadas As mil e uma noites, com o que contêm de
coisas insólitas e paradigmas.
Assim, conta-se – mas Deus sabe mais e é mais sapiente, poderoso e generoso
– que havia em tempos passados e remotos, muito tempo atrás, em períodos e
momentos que já se foram, certo rei do clã sassânida nas penínsulas da Índia e da
China, possuidor de soldados, auxiliares, criados e servidores. Ele tinha dois
filhos, um mais velho e outro mais novo, que eram dois bravos cavaleiros. O
maior, mais bravo do que o menor, tornara-se rei do país, governando com
justiça entre os súditos e sendo amado pelo povo de seu país e reino; seu nome
era rei Šahriyār; seu irmão menor se chamava rei Šāh Zamān,[313] e reinava na
Samarcanda persa. As coisas permaneceram estáveis em seus países, onde
ambos os reis eram governantes justos entre seus vassalos, durante vinte anos,
período no qual viveram na mais completa felicidade e tranquilidade; ainda se
encontravam em tal estado quando o rei mais velho sentiu saudades do irmão
mais novo, e ordenou a seu vizir que viajasse até ele e o trouxesse. O vizir
correspondeu, ouvindo e obedecendo, e viajou, levando a bom término o
empreendimento. Foi ver o irmão de seu rei, transmitiu-lhe saudações, e o
informou de que seu irmão mais velho estava com saudades e gostaria que fosse
visitá-lo. O rei correspondeu ouvindo e obedecendo, e se preparou para a
viagem, mandando providenciar tendas, camelos, asnos, criados e auxiliares;
nomeou seu vizir governador do reino, e saiu rumo ao país de seu irmão mais
velho. Quando a noite ia pela metade, ele se lembrou de algo que esquecera no
palácio e retornou; entrou no palácio e encontrou sua esposa deitada em seu
colchão e abraçada a um dos escravos negros. Aquela visão fez o mundo
escurecer diante de sua face; pensou: “Se isso já aconteceu e eu nem sequer saí
da cidade, qual será a situação dessa marafona[314] quando eu me ausentar e
passar algum tempo junto ao meu irmão?”. Então desembainhou a espada e
golpeou os dois, matando-os ali mesmo no colchão. Retornou imediatamente e
ordenou que se iniciasse a viagem, avançando até chegar à cidade do irmão, que
ficou contente com a sua chegada e saiu para recepcioná-lo, saudando-o com o
mais extremo regozijo; já enfeitara a cidade por sua causa, e se sentou com ele
para que pudessem conversar com tranquilidade.
No entanto, quando o rei Šāh Zamān se recordava do que acontecera com a
mulher, era acometido por intensa tristeza; sua cor se amarelava e seu corpo se
debilitava. Vendo-o em tal estado, o irmão, julgando interiormente que aquilo se
devia à separação de sua terra e de seu reino, deixou-o e não o inquiriu a
respeito.
Então, certo dia, Šahriyār disse: “Irmão, notei que o seu corpo está debilitado
e sua cor, amarela”. Šāh Zamān respondeu: “Irmão, carrego uma ferida em meu
íntimo”, e não lhe informou sobre o que presenciara por parte da esposa.
Šahriyār continuou: “Eu quero que você viaje comigo para caçar, pois quem sabe
assim o seu íntimo não se recupera”. Mas Šāh Zamān recusou, e o irmão viajou
sozinho para a caça. No palácio do rei havia janelas que davam para o jardim de
seu irmão; Šāh Zamān olhou por elas e viu que a porta do palácio se abrira, dela
saindo vinte escravas e vinte escravos; a mulher de seu irmão caminhava entre
eles, extremamente bela e formosa; chegaram até a fonte, despiram-se e se
acomodaram uns junto com outros; foi então que a mulher do rei Šahriyār gritou:
“Ó Masᶜūd!”, e veio até ela um escravo negro que a abraçou, e ela a ele;
derrubou-a ao solo e a possuiu, e assim fizeram os outros escravos com as
escravas. Permaneceram em beijos, abraços, fornicações e tudo o mais até que o
dia se findou.
Ao ver aquilo, o irmão do rei pensou: “Por Deus que a minha desgraça é mais
leve do que essa”, e a partir daí a tristeza e a derrota que sentia perderam a
relevância. Ele disse: “Isso é bem pior do que o que me ocorreu”, e pôs-se a
comer e a beber.
Mais tarde, seu irmão voltou da viagem e ambos se cumprimentaram.
Olhando para o irmão, o rei Šahriyār notou que suas cores haviam voltado e suas
faces estavam de novo coradas; começara a comer com apetite depois de ter se
alimentado bem parcamente. Espantado com aquilo, perguntou: “Meu irmão, eu
via você amarelado, mas agora sua cor foi recuperada. Fale-me sobre o que lhe
ocorreu”. Šāh Zamān respondeu: “Quanto à alteração de minha cor, eu lhe
contarei, mas me dispense de informá-lo sobre a recuperação da minha cor”.
Šahriyār disse: “Conte-me primeiro sobre a sua alteração de cor e debilidade,
para que eu possa ouvir”. Šāh Zamān respondeu: “Saiba, irmão, que quando
você enviou o seu vizir para me convidar a vir para cá, eu me preparei e saí da
cidade, mas lembrei ter deixado no palácio aquelas contas de vidro que eu dei a
você; voltei e encontrei minha mulher com um escravo negro, que dormia no
meu colchão; matei a ambos e vim até você pensando nesse assunto. É esse o
motivo da minha alteração de cor e debilidade; quanto à recuperação de minha
cor, dispense-me de lhe contar o motivo”. Ao ouvir essas palavras, o irmão disse:
“Eu lhe peço por Deus que você me informe o motivo da recuperação de sua
cor”, e então Šāh Zamān lhe relatou tudo quanto vira. Šahriyār disse ao irmão:
“Eu quero ver com meus próprios olhos”. Šāh Zamān então lhe respondeu:
“Faça de conta que você vai viajar para caçar e esconda-se comigo. Assim, você
presenciará o que eu lhe contei, e se certificará com seus próprios olhos”. O rei
Šahriyār imediatamente mandou anunciar que partiria em viagem; soldados e
tendas saíram para além dos muros da cidade, bem como o rei, que se instalou
em suas tendas e disse aos criados: “Que ninguém entre”, e em seguida se
disfarçou e retornou às escondidas até o palácio onde estava o seu irmão;
instalou-se à janela que dava para o jardim e, depois de alguns momentos, as
servas e sua senhora entraram junto com os escravos, e agiram conforme
descrevera Šāh Zamān; permaneceram, igualmente, até o entardecer. Ao ver
aquilo, o rei Šahriyār ficou transtornado e disse ao irmão: “Vamos sair pelo
mundo. Não teremos necessidade de reinar até ver se aconteceu a alguém algo
semelhante ao que nos ocorreu; se não aconteceu, nossa morte será melhor do
que nossa vida”. Šāh Zamān respondeu afirmativamente, e ambos saíram por
uma porta secreta do palácio; viajaram por dias e noites até chegar a uma árvore
no meio de um prado; junto à árvore havia uma fonte de água, que estava
próxima de um mar salgado. Os irmãos beberam daquela fonte e se sentaram
para descansar. Passadas algumas horas do dia, eis que eles viram o mar se agitar
e dele sair uma coluna negra que se elevava até os céus e avançava em direção
àquele prado.
Disse o narrador : quando viram aquilo, os dois irmãos ficaram com medo e
subiram ao topo da árvore, que era alta, e puseram-se a observar o que iria
acontecer; viram então um gênio de estatura elevada, rotundo cocuruto e peito
largo, carregando à cabeça um baú; subiu à terra seca e se encaminhou até a
árvore em cujo topo eles estavam; sentou-se debaixo dela e abriu o baú, do qual
retirou uma caixa; abriu a caixa e dela saiu uma belíssima jovem branca e
resplandecente, que parecia o sol brilhante, tal como disse o poeta:[315]
“Ela brilhou nas trevas e o dia surgiu,
e as árvores se iluminaram com sua luz;
é através de seu brilho que brilham os sóis
quando aparecem, e desaparecem as luas;[316]
todas as criaturas se ajoelham diante dela
quando aparece, inteiramente humilhadas;
se os relâmpagos de suas defesas coruscam,
desfazem-se em lágrimas as praças-fortes”.
Disse o narrador : olhando para ela, o gênio disse: “Ó senhora de todas as
mulheres livres, a quem sequestrei na noite de seu casamento, agora eu gostaria
de dormir um pouco”, e, repousando a cabeça no joelho da moça, adormeceu.
Ela então ergueu a cabeça para o cume da árvore e avistou os dois reis que ali
estavam; ergueu a cabeça do gênio de seu joelho, depositou-a no chão, ficou em
pé debaixo da árvore e disse a eles, por sinais: “Desçam e não tenham medo
deste ifrit”. Eles responderam: “Por Deus, dispense-nos disso!”. Ela lhes disse:
“Por Deus, se vocês não descerem eu acordarei o ifrit, e ele irá matá-los da
maneira mais cruel”. Temerosos, eles desceram até ela, que se ofereceu a ambos
e disse: “Metam com toda a força, ou então eu acordarei o ifrit!”. Era tanto o
medo que o rei Šahriyār disse ao irmão, o rei Šāh Zamān: “Meu irmão, faça o
que ela lhe ordenou”, mas ele respondeu: “Não farei antes que você o faça”. E
começaram a trocar sinais e piscadelas sobre quem copularia com ela, que lhes
disse: “Por que os vejo trocando sinais e piscadelas? Se não avançarem e fizerem
o que mandei, vou acordar o ifrit!”. Então, com medo do gênio, ambos fizeram o
que a jovem lhes ordenara. Quando terminaram, ela lhes disse: “Recomponham-
se”, e lhes mostrou um saco que retirou do bolso; do saco ela extraiu um colar
composto de quinhentos e setenta anéis; exibiu-o e perguntou: “Porventura vocês
sabem o que é isto?”. Responderam: “Não sabemos”. Ela disse: “Todos os donos
destes anéis me possuíram durante o sono deste ifrit cornudo. Agora, deem-me
também seus anéis”, e eles lhe deram os anéis de suas mãos. Ela disse: “Este ifrit
me raptou na noite do meu casamento e me escondeu numa caixa, e enfiou a
caixa dentro de um baú, e colocou no baú sete cadeados, e me pôs no fundo do
mar encapelado, de ondas agitado, sem saber que as mulheres como eu, quando
pretendem algo, não são impedidas por nada, conforme disse alguém:
‘Jamais confie nas mulheres
nem creia em suas promessas,
pois sua satisfação e cólera
estão ligadas à vagina:
demonstram afeto fingido,
e a traição é o recheio de suas vestes.
Reflita sobre a história de José[317]
e se previna de suas artimanhas;
não vê que Satanás expulsou
Adão por causa delas?’.
E outro disse:
‘Evite censuras que depois reforcem o censurado
e façam a paixão aumentar muito de intensidade;
se eu estou apaixonado, não estou fazendo senão
o que desde antigamente os outros homens fizeram;
mas o que de fato faz crescer o assombro é aquele
que do encanto das mulheres escapa ileso’”.
Quando ouviram tais palavras, os reis ficaram extraordinariamente assombrados
e disseram entre si: “Mesmo sendo um ifrit, o que lhe aconteceu foi bem mais
grave do que o acontecido conosco. Isso é algo que nos conforta”, e
imediatamente se retiraram e deixaram a jovem; voltaram para a cidade do rei
Šahriyār e entraram no palácio. O rei Šahriyār cortou o pescoço de sua mulher,
bem como o das servas e escravos, e passou a, toda noite, casar com uma moça
virgem: ele a deflorava e matava naquela mesma noite. Manteve-se nessa prática
pelo período de três anos, e as pessoas entraram em grande agitação e fugiram
levando as filhas, até que não restou naquela cidade uma única moça que ele
pudesse possuir. Então o rei ordenou ao seu vizir que lhe trouxesse uma jovem,
conforme o hábito, e o vizir saiu e procurou, mas não encontrou nenhuma jovem.
Tomou, então, o rumo de casa, encolerizado, derrotado, com medo de que o rei
fizesse algo contra ele. O vizir tinha duas filhas, a maior chamada Šahrazād e a
menor, Dunyāzād; a mais velha havia lido livros de história, biografias de reis do
passado e crônicas de antigas nações; conta-se que ela havia reunido mil livros
de história relativos a nações extintas, a reis já desaparecidos e a poetas. Ela
disse ao pai: “Por que o vejo alterado, carregando preocupações e tristezas? Pois
já disseram sobre isso a seguinte poesia:
‘Diga a quem carrega uma tristeza
que tristezas não perduram;
assim como se vai a felicidade,
também as tristezas se vão’”.
Ao ouvir tais palavras da filha, o vizir contou o que lhe sucedera com o rei do
começo ao fim. Ela disse: “Por Deus, papai, case-me com esse rei! Ou eu fico
viva ou então servirei como resgate para as filhas dos muçulmanos,[318] e serei
a causa de sua salvação desse rei”. O vizir disse: “Por Deus, não arrisque a vida,
de jeito nenhum!”. Ela disse: “Isso é absolutamente imperioso”. O vizir disse:
“Eu temo que ocorra a você o mesmo que ocorreu ao burro e ao boi com o
fazendeiro”. Šahrazād perguntou: “E o que ocorreu a eles, papai?”. Ele
respondeu:
Saiba, minha filha, que certo mercador possuía cabedais e montarias, e tinha
esposa e filhos. Deus altíssimo lhe havia concedido o conhecimento da fala dos
animais e das aves. Esse mercador morava no interior, e tinha em sua casa um
burro e um boi. Certo dia, o boi foi até o local onde ficava o burro, e verificou
que ele estava escovado e esfregado, e que em seu pesebre tanto a cevada como
a palha haviam sido peneiradas. O asno encontrava-se descansado, e somente em
uma ou outra ocasião o dono montava nele para acudir a alguma necessidade que
se lhe deparava, mas logo depois o asno retornava à sua boa situação. Após
alguns dias, o mercador ouviu o boi dizendo ao burro: “Meus parabéns, pois
enquanto eu estou cansado, você está descansado, comendo cevada peneirada e
sendo bem tratado; numa ou noutra ocasião o dono monta em você, mas logo
retorna. Eu, porém, estou sempre na lavoura e na moenda”. O burro lhe disse:
“Quando você for para o campo e lhe colocarem a canga ao pescoço, deite-se e
não se levante nem que lhe batam; se acaso levantar, torne a deitar-se. Quando o
trouxerem de volta e puserem fava na sua frente, não coma, como se estivesse
doente; evite comer e beber um ou dois ou três dias, e assim você descansará de
tanto esforço”. O mercador ouviu a conversa. Quando o condutor levou a ração
ao boi, este comeu muito pouco; pela manhã, quando foi levá-lo para a lavoura,
verificou que estava fraco. O mercador lhe disse: “Pegue o burro e faça-o arar
em lugar do boi o dia inteiro”. O homem retornou e levou o burro em lugar do
boi, fazendo-o arar o dia inteiro. No final do dia, quando o burro retornou, o boi
lhe agradeceu a gentileza de o ter livrado do cansaço naquele dia. Bastante
arrependido, o burro não deu resposta. No dia seguinte o lavrador veio, pegou o
burro e o fez arar até o fim do dia; o burro retornou com o pescoço esfolado,
bem enfraquecido. O boi olhou para ele com admiração, louvou-o e o glorificou.
O burro disse a ele:[319] “Eu estava tranquilo e descansado, mas a minha
curiosidade me prejudicou”, e prosseguiu: “Saiba que sou seu conselheiro: ouvi
o nosso dono dizendo: ‘Se o boi não se mexer do lugar, entreguem-no ao
açougueiro para que o sacrifique e corte o seu couro em pedaços’; por isso, eu
temo por você. Já dei meu conselho, agora passe bem”. Ao ouvir as palavras do
burro, o boi lhe agradeceu e disse: “Amanhã sairei com eles”, e então devorou a
ração inteira e lambeu o pesebre. Isso ocorreu enquanto o dono dos animais
ouvia. Quando amanheceu, o mercador e sua esposa foram para o curral e se
acomodaram; chegou o condutor, pegou o boi, e saiu; ao ver seu dono, o boi
mexeu o rabo, soltou um peido e exibiu vitalidade. O mercador riu até cair
sentado. A mulher então lhe perguntou: “De que está rindo?”. Ele respondeu:
“De algo[320] que vi e ouvi, mas não posso revelar, senão morrerei”. Ela disse:
“É absolutamente imperioso que você revele para mim qual o motivo do seu
riso, mesmo que por isso você morra”. Ele disse: “Não posso revelar-lhe, pois eu
tenho medo da morte”. Ela disse: “Você não estava rindo senão de mim”, e tanto
insistiu e pressionou com palavras que se impôs a ele, deixando-o aturdido. O
mercador convocou os filhos, mandou trazer juiz e testemunhas, com a intenção
de fazer suas recomendações, e em seguida revelar o segredo à mulher e morrer,
pois tinha um enorme amor por ela, que era sua prima e mãe de seus filhos, e
também porque ele já vivera cento e vinte anos. Assim, ele mandou convocar
todos os parentes da mulher e todas as pessoas do bairro, e lhes relatou a sua
história, bem como o fato de que, quando ele revelasse a alguém o seu segredo,
morreria. Todos os presentes disseram à mulher: “Por Deus, deixe essa questão
de lado, caso contrário vai morrer o seu marido, pai dos seus filhos”. Ela
respondeu: “Não o deixarei em paz até que ele me revele o segredo, ainda que
morra”. Então todos se calaram. O mercador se retirou e rumou para o quintal,
onde ficavam os animais, a fim de fazer abluções e em seguida retornar, revelar
o segredo e morrer. Ele – que tinha um galo sob cujo domínio estavam cinquenta
galinhas, e também um cachorro – ouviu o cachorro chamando o galo, a quem
insultou e disse: “Você está feliz embora o nosso dono vá morrer?”. O galo
perguntou: “E por que isso se dará?”. Então o cachorro repassou-lhe a história; o
galo disse: “Por Deus que o nosso dono possui pouco juízo. Eu tenho cinquenta
esposas; agrado essa e irrito aquela, ao passo que ele, que não tem senão uma
esposa, não sabe se arranjar com ela? Que tem ele que não pega uma vara de
amoreira, entra com a mulher no quarto de dormir e lhe aplica uma surra até que
ela morra ou desista, e não volte a questioná-lo sobre nada?”.
Disse o narrador : ao ouvir o discurso que o galo dirigira ao cachorro, o
mercador recuperou o juízo e resolveu dar uma surra na mulher. Nessa altura, o
vizir disse à filha: “Talvez eu faça com você o mesmo que o mercador fez com a
esposa”. Šahrazād perguntou: “E o que ele fez?”. O vizir continuou:
Depois de ter arrancado algumas varas de amoreira e escondido no quarto, o
mercador entrou ali com a esposa dizendo: “Venha aqui dentro do quarto para
que eu lhe conte sem que ninguém veja e depois morra”. A mulher entrou com
ele, que trancou a porta e se pôs a surrá-la, até que ela desmaiou, e depois disse:
“Eu me resigno!”, e lhe beijou as mãos e os pés; resignada, saiu com ele do
quarto e os presentes, bem como seus familiares, ficaram contentes. E viveram
todos na mais próspera situação até a morte.
Depois de ouvir a fala do vizir, a filha lhe disse: “É absolutamente imperioso
que eu me case com o rei”. Então ele a preparou e conduziu até o rei Šahriyār.
Šahrazād havia feito a seguinte recomendação à irmã mais nova: “Quando eu
estiver com o rei, mandarei chamá-la; quando você chegar até mim, e vir que o
rei já se satisfez comigo, diga: ‘Minha irmã, conte-nos uma história insólita com
a qual atravessemos o serão desta noite’; e então eu lhe contarei uma história
mediante a qual vai se dar a salvação, se Deus quiser’”.
E o pai de Šahrazād, o vizir, conduziu-a até o rei, que olhou para ela e,
contente, perguntou: “Você trouxe o que eu pedi?”. O vizir respondeu: “Sim”.
Mas, quando o rei pretendeu consumar o casamento, Šahrazād começou a chorar.
Ele perguntou: “O que tem você?”. Ela respondeu: “Ó rei, eu tenho uma irmã
pequena da qual gostaria de me despedir!”. O rei mandou chamá-la; ela chegou,
abraçou a irmã e depois se acomodou debaixo da cama. O rei desvirginou
Šahrazād e, em seguida, eles se puseram a conversar; foi então que a irmã menor
disse: “Por Deus, minha irmã, conte-nos uma história com a qual atravessemos o
serão desta noite”. Šahrazād respondeu: “Com muito gosto e honra, se acaso este
rei cavalheiresco[321] me autorizar”. Ao ouvir essas palavras, o rei, que estava
com insônia, ficou contente em ouvir uma história, e concedeu a autorização.
[322]
ANEXO 2
As histórias do terceiro xeique
Conforme se viu no fim da sétima noite e início da oitava, o ramo sírio das Mil e
uma noites não apresenta a história do terceiro xeique. Essa lacuna tanto pode
ser deliberada como derivada de transmissão defeituosa.[323] Quatro
manuscritos do ramo egípcio antigo contêm as diferentes versões abaixo
traduzidas dessa história.
1. Manuscrito “Bdl. Or. 550”, da Bodleian Library, em Oxford, fls. 19 v.-26 f.
(A narrativa se inicia imediatamente após a história do segundo xeique, a qual
envolve uma gênia; a história é contada na quinta noite.)
Disse o narrador : quando o gênio ouviu essa história, ficou extremamente
assombrado e perguntou ao segundo xeique: “Você conhece o nome dessa
gênia?”. Ele respondeu: “Sim, eu conheço o seu nome. Ela me disse chamar-se
Qurkāza, filha de Danhaš, o gênio, e disse ainda: ‘Tenho um irmão chamado
Qušquš. Nós residimos no monte azul, junto a uma fonte, uma gruta e uma
árvore’. Esse é o local que ela descreveu para mim”.
Disse o narrador : ao ouvir essa descrição, o gênio disse: “Ó xeique, essa com
quem você se casou, e cuja história me contou, é minha filha. Hoje mesmo nós
estávamos indo até a casa dela, a fim de que livre os seus irmãos da situação em
que se encontram. Foi quando se deu aquilo entre nós e o mercador: ele matou o
meu filho, irmão da sua mulher, e agora a ação dela não está sendo retardada
senão pela morte do irmão. Eu lhe concedo a vida do mercador, especialmente
porque você é meu genro, esposo de minha filha. Seja como for, estou
igualmente disposto a ouvir a história do terceiro xeique, que está com a mula”.
Ao ouvir as palavras do gênio, o xeique da mula deu um passo adiante e disse:
Saiba, ó gênio, que minha história é tão assombrosa que, se fosse escrita com
tinta de ouro, seria mais assombrosa do que qualquer assombro. Saiba, ó gênio,
que esta mula é minha esposa, pela qual eu tinha um amor enorme, e ela também
por mim. Contudo, meu amor por ela era exterior e interior, mas com ela era o
contrário: afetava amor por mim apenas exteriormente, mas Deus é quem
domina os segredos. Assim, certa feita entrei em minha casa, depois de ter me
ausentado vários dias devido a uma viagem, da qual acabara de regressar; logo
que cheguei, entrei em minha casa e encontrei junto com a minha mulher uma
escrava alta e larga. Perguntei: “De onde você trouxe essa escrava?”. Ela
respondeu: “Primo, eu a comprei no mercado por vinte dinares. Pensei que ela
me distrairia quando estivesse sozinha, pois eu me aborreci e me irritei com a
solidão. Se você, porém, estiver achando caro, eu venderei algumas de minhas
joias para lhe repor a quantia que paguei por ela”. Eu disse: “Prima, que o meu
dinheiro seja o seu resgate”. Ela disse: “Primo, se eu não soubesse que ela é uma
escrava esperta e trabalhadeira, não teria comprado. Ela me serve direitinho e,
quando me deito, fica acordada e me massageia até eu pegar no sono”.
Respondi: “Não há problema. Agora, eu gostaria que você fosse à casa de banho
e deixasse a escrava aqui em casa fazendo comida para nós, até você voltar do
banho”. Ela respondeu: “Eu me banharei aqui em casa. Não tenho necessidade
de ir à casa de banho; lá as pessoas vão olhar para mim e ficar dizendo: ‘Vejam a
mulher de fulano!’. Isso é vergonhoso, primo”. Eu disse: “Então não há
problema”. Ela foi, esquentou água, banhou-se, vestiu as roupas e se acomodou
até o cair da noite. A escrava nos serviu a refeição, e comemos até nos fartar.
Pusemo-nos a conversar, minha mulher e eu, enquanto a escrava permanecia
isolada, sozinha, sem ninguém por perto. Quando a noite avançou, fomos
dormir; acordei logo e abri os olhos, mas não vi minha mulher. Levantei-me
imediatamente e caminhei até a despensa em que estava a escrava. Ouvi então
uma voz de macho, que parecia trovão; ele dizia: “Sua maldita, você me
esqueceu até agora; nem pensou em mim, que estou aqui deitado sozinho. Juro
pela família das duas varas, pelos brios dos negros e pela família das cervejas
que não vou ficar mais com você, nem você vai voltar a me ver neste lugar, sua
cadela, sua arrombada! Não tenho mais precisão nenhuma de você, vá procurar
outro!”.
Disse o narrador : isso tudo ocorria enquanto eu estava parado, ouvindo atrás
da porta. Observei quem estava falando, e eis que era a escrava que eu vira antes
com minha esposa, agora sentada ouvindo aquelas palavras, e dizendo: “Meu
senhor Saᶜīd,[324] não se irrite, pois eu não tenho bem que não seja você, nem
paixão que não seja a sua beleza. Diga-me o que você pretende e eu o farei
atingir o seu desejo”. Ele disse: “Não quero senão que você largue esse cornudo
putanheiro e fiquemos, você e eu, juntinhos; que você nunca mais me abandone
e nem eu a você”. Ela disse: “Vá, pegue essa faca e o mate; depois carregamos o
corpo e jogamos da murada no rio Tigre”. Ele disse: “Matar eu não mato; isso eu
não faço”. Ela disse: “Juro por Deus que o que lhe falta é coração para matar o
homem, é capacidade igual à dos valentes. Mas eu vou lhe mostrar o que farei
com ele, vou deixá-lo com pena de si mesmo”. Ao ouvir tais palavras, pensei:
“Ai, qual será a próxima ação dessa traidora?”. E retornei ao local onde estava
deitado, mantendo-me alerta. Então ela se aproximou de mim e me viu
dormindo; encarando-me, perguntou: “Você está acordado ou dormindo?”.
Respondi: “Estava dormindo, mas tive um sonho que me fez acordar. Estou
trêmulo e temeroso por causa desse sonho”. Ela perguntou: “E qual foi esse
sonho?”. Respondi: “Foi um sonho que mostra a situação das adúlteras putas que
traem o consorte e amigo”. Ouvindo tais palavras, ela se colocou em pé, pegou
uma taça de cobre, encheu-a, fez uns esconjuros sobre ela, e a água começou a
ferver como se estivesse sobre fogo; então ela me borrifou e disse: “Eu conjuro
por estes nomes que você saia dessa forma humana e passe para a forma canina”;
nem bem terminou de falar e eu me sacudi, bambeei e me vi transformado em
um cachorro preto.[325] Em seguida, ela abriu a porta e me enxotou. Saí
assombrado comigo mesmo, enquanto outros cachorros latiam para mim e me
mordiam, machucando-me e lacerando o meu corpo. Quando amanheceu, entrei
no mercado dos cozinheiros. Quem quer que me visse me expulsava e agredia.
Finalmente entrei no estabelecimento de um cozinheiro, um velhinho de barbas
brancas como lâminas de prata. Quando viu que os demais cachorros latiam para
mim, pegou a sua bengala e lhes deu uns golpes, enxotando-os para longe.
Tomou um pedaço de carne e o atirou no chão; como ficou sujo de terra, não
aceitei pegar nem comer. Vendo que eu não comia a carne do chão, o velho
pegou uma tigela, esfarelou pão, molhou-o com caldo, jogou nele quatro pedaços
de carne e ofereceu a mim; dei um passo adiante e comi até me saciar. Comi com
as patas, ao contrário dos cachorros, e o cozinheiro ficou intrigado comigo.
Quando a noite caiu, o homem, pretendendo trancar o estabelecimento e ir
embora para casa, fez menção de me expulsar dali de dentro. Fiquei com medo
dos cachorros lá fora e lhe disse por meio de sinais: “Dormiremos aqui”, e então
ele disse: “Você dormirá aqui”. Balancei a cabeça e ele percebeu que eu lhe dizia
“sim”; deixou-me, trancou o restaurante e foi para casa. Dormi no restaurante.
Quando amanheceu, o cozinheiro chegou, abriu a porta, acendeu o fogo e pôs-se
a cozinhar. As pessoas vieram almoçar e passaram a lhe pagar com moedas de
cobre. Ele não sabia aferir. Eu observava sentado, à distância, e então me
aproximei da caixa em que ele depositava a féria. Toda vez que alguém lhe
pagava com meia moeda, de cobre ou raspada, ele a jogava perto de mim e eu
lhe dizia por meio de sinais: “Isto é cobre”. Percebendo que o que eu lhe dizia
era de seu interesse, o homem devolvia a moeda ao freguês, que então lhe
pagava com outra. Passei a conferir-lhe toda a féria; quando chegava o final do
dia, ele contava o dinheiro e era tudo moeda de prata, sem cobre ou raspagem.
Assim se passou cerca de um mês, e eu naquela situação. Certo dia, o escravo do
cozinheiro, rapaz de entregas, foi para casa e falou a meu respeito para a família
do cozinheiro; todos ficaram extremamente assombrados. Quando o mestre
cozinheiro retornou para casa, a filha lhe disse: “Papai, estou com vontade de ver
esse cachorro que o senhor tem no restaurante, pois eu ouvi falar a respeito
dele”. O homem respondeu: “Ouço e obedeço; amanhã eu o trarei até aqui”.
Quando amanheceu, o cozinheiro chegou ao restaurante, abriu e fez seus
negócios até o final do dia; depois me levou, enxotando os cachorros pelo
caminho. Chegamos à sua casa, mas a filha, assim que me viu, cobriu o rosto e
perguntou: “Quem é esse que você trouxe para dentro de casa?”. Ele respondeu:
“É o cachorro do qual você falou”. Ela disse: “Papai, ele não é cachorro, é
humano, filho de humanos”. O pai perguntou: “E quem a avisou disso?”. Ela
respondeu: “Papai, foi a esposa que fez isso com ele, mas eu, se Deus altíssimo
quiser, irei livrá-lo desse estado”. O pai disse: “Se você souber como, aja e o
salve, se estiver falando a verdade”. Ela respondeu: “Com a condição de que,
caso eu o livre, possa enfeitiçar a esposa que fez isso tudo com ele”. O pai disse:
“Faça!”. Ouvindo a autorização do pai, ela pegou uma taça, encheu-a de água e
fez uns esconjuros até que a água espumou e borbulhou como se estivesse ao
fogo; então ela disse: “Deus meu, por estes nomes que pronunciarei, se esta for a
forma na qual ele nasceu, que assim permaneça, mas se ele estiver enfeitiçado,
por estes nomes que pronuncio, que ele volte à forma humana na qual nasceu”, e
borrifou-me com a água da taça; eu me sacudi, estremeci e voltei à forma que eu
tinha, conforme Deus altíssimo me criara. A filha do cozinheiro me disse: “Leve
esta taça” – e fez uns esconjuros com palavras incompreensíveis, entregando-a a
mim –, “e vá até a sua esposa; quando ela abrir a porta, jogue nela a água dessa
taça; sua esposa vai se transformar em qualquer animal que você desejar”.
Beijei-lhe a mão, peguei a taça, e me retirei. Caminhei sem parar até chegar à
porta de minha casa. Ao me ver, minha mulher bateu no peito:[326] “De onde
você veio? Quem o livrou da forma em que estava?”. Quando viu a taça em
minha mão, tentou me ludibriar, mas eu me antecipei, joguei a água nela e disse:
“Seja uma mula tordilha”. Então ela se sacudiu, bambeou e ficou como você está
vendo. Tomei-a, amarrei-lhe uma albarda, um alforje cheio de areia e montei
nela, fazendo-a trotar por desertos e terras inóspitas, conforme você está vendo.
Passei por este lugar e vi estes dois xeiques sentados junto a este mercador; fiz-
lhes uma saudação, e eles retribuíram; perguntei-lhes então sobre o motivo de
estarem neste lugar, e eles me contaram a história deste mercador e o que
sucedeu entre ele e você. Sentei-me entre eles e disse: “Por Deus que não irei
embora até ver o que ocorreu entre você e o mercador”. Daí você chegou, nós
três viemos até você e lhe contamos nossas histórias; o acordo feito entre nós era
que, para cada história que lhe agradasse, você concederia um terço da vida do
mercador.
Disse o narrador : o gênio ficou sumamente assombrado ao ouvir essa
história. E a aurora alcançou Šahrāzād, que interrompeu o discurso que o rei lhe
autorizara[327] e disse: “Quando for a próxima noite, se acaso eu viver e o rei
me preservar, eu continuarei a lhes contar o que o gênio fez com o mercador e os
três xeiques, o dono da gazela, o dono dos dois cães, e o dono da mula; é uma
história espantosa, um assunto emocionante, insólito e maravilhoso”. Quando
amanheceu, o rei se retirou, conforme o hábito, para a sala de audiências, ali
ficando até o anoitecer.[328] Dunyāzād disse para a irmã: “Se você não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas belas histórias autorizadas”. Šahrāzād
respondeu: “Ouço e obedeço”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de palavras bem guiadas, de que o gênio,
depois de ouvir essa história, ficou extremamente assombrado e libertou o
mercador, ordenando ainda à filha que libertasse os dois cachorros irmãos do
segundo xeique, bem como a gazela e a mula; ela agiu conforme ele ordenou,
pois todos haviam se arrependido dos pecados cometidos, e Deus perdoou o que
passou; cada um deles foi cuidar de sua vida. O gênio perdoou o mercador,
concedeu-lhe a vida de seu filho, e foi cuidar da vida. Foi isso que chegou até
nós da história deles, ó rei do tempo, mas Deus é quem sabe mais.
2. Manuscrito “Arabe 3615”, da Biblioteca Nacional da França, fls. 15 f.-17 f.
(A narrativa se inicia no final da sétima noite.)
O terceiro xeique disse: “Eu lhe contarei uma história mais espantosa e insólita
do que essas duas histórias, e você me concederá o terço restante da vida do
mercador”. O gênio disse: “Sim”. E a aurora alcançou Šahrāzād, que
interrompeu o discurso que o rei lhe autorizara.
Na oitava noite,
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de parecer bem guiado, de que o terceiro
xeique deu um passo adiante e disse:
Saiba que eu me casei com quinze mulheres, das quais tive filhos e filhas.
Depois, os meninos morreram todos. Ouvi então que na cidade de Basra vivia
um homem que praticava a adivinhação por meio da areia, e viajei até lá.
Cheguei à cidade, indaguei a respeito do homem, e me indicaram onde morava;
deixei-o a par de minha história, que meus filhos homens não ficavam vivos, e
então ele lançou areia num tabuleiro, examinou-o e chorou; perguntei: “Por que
chora?”. Respondeu: “Apareceu que os filhos homens que você tiver de
concubinas abissínias não viverão. Tome, portanto, duas concubinas brancas”.
Rumei então para a terra dos turcos, e comprei duas jovens; casei-me com elas,
dei-lhes vestimentas, e fui equânime com ambas no que tange à convivência,
vestuário e coabitação; fiquei com elas por algum tempo, e Deus me concedeu
por meio delas dois filhos varões de bonita figura. Cresceram até que o mais
velho completou três anos, e dois anos o mais novo, que morreu, restando
somente o mais velho. A mãe do menino que morrera foi atingida por fortes
ciúmes e inveja, que quase a mataram. Depois, morreu a mãe do menino
sobrevivente. Então, certo dia, ela sequestrou o filho da mulher que morrera,
subiu com ele até o telhado da casa e me disse: “Erga a cabeça e olhe para o seu
filho! Eu vou jogá-lo e deixá-lo despedaçado!”. Ergui a cabeça e, vendo o
menino em suas mãos, meu coração estremeceu. Passei a me humilhar e a
implorar-lhe, garantindo que faria tudo quanto ela desejasse, por medo de perder
meu filho. Ela perguntou: “Você quer a integridade do seu filho?”. Respondi:
“Sim”. Ela disse: “Prometa que você não vai ficar injuriado pela falta de filhos,
nem vai me culpar pela perda do seu filho, nem vai tomar outra mulher”.
Respondi afirmativamente àquilo, e lhe fiz juras imensas quanto ao que ela
queria. Então ela disse: “Não, eu não quero mais isso, pois você não tem palavra,
você é incréu. Mas se você quiser mesmo a integridade do seu filho, traga uma
navalha e corte o seu pênis enquanto eu olho”. Humilhei-me então seguidamente
para ela, que não aceitou. Temeroso por meu filho, peguei uma navalha e fiquei
num dilema: não suportaria nem o corte do meu pênis nem a morte do meu filho.
Toda vez que eu fazia tenção de cortá-lo, meu corpo se crispava e eu não
conseguia. Ela disse: “Parece que você está com a intenção de mantê-lo, mas
então eu lhe mostrarei o seu filho espatifado”, e ergueu o menino com a mão,
olhou para ele, e fez menção de jogá-lo. Tornei a humilhar-me, mas ela não
aceitou. Peguei a navalha e decidi cortar o pênis; ergui-me e, como a navalha
estava encostada em minha genitália, ela deslizou e cortou-me o pênis. Caí
desfalecido, afogado em meu próprio sangue.[329]
E a aurora alcançou Šahrāzād, que interrompeu seu discurso autorizado.
Quando foi a nona noite,
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o terceiro xeique disse ao gênio:
Quando caí afogado em meu próprio sangue, os vizinhos acorreram até mim,
carregaram-me e depuseram-me dentro de casa, trazendo um cirurgião que me
tratou. Fiquei bastante adoentado, a tal ponto que quase sucumbi à morte. Mas
depois me curei e recuperei a saúde. Ouvi então notícias sobre um homem
feiticeiro que vivia por esta região; fui até ele, informei-o do que a mulher fizera
comigo e disse: “Eu quero que você a enfeitice e a transforme em mula”. E lhe
dei um par de dirhams. O homem pegou uma taça de cobre, gravou nela umas
palavras talismânicas e disse: “Quando você estiver em sua casa, encha a taça de
água, jogue-a sobre a mulher, e diga: ‘Transforme-se em mula com a permissão
de Deus’”. Peguei a taça e caminhei até chegar à minha casa; enchi a taça de
água, joguei-a na mulher e disse: “Transforme-se em mula com a permissão de
Deus”. E em mula ela se transformou: é esta que está comigo. Eu a monto e a
faço provar o sofrimento como punição pelo que me fez. Saí com ela por
desertos e lugares inóspitos, para fazê-la provar o sofrimento, e vim parar aqui.
Jurei então que não sairia deste lugar até ver o que ocorreria entre você e o
mercador.
Em seguida, o velho se voltou para a mula e perguntou: “Não é verdade o que
eu disse?”. E a mula balançou a cabeça. O velho perguntou ao gênio: “Minha
história não é assombrosa?”. O gênio respondeu: “Sim”. O velho disse: “Então
solte o mercador, a fim de que ele volte para junto da esposa e dos filhos”. E o
gênio soltou-o. O mercador se despediu do grupo, montou em sua cavalgadura e
avançou cortando desertos e locais inóspitos até que entrou em seu país e chegou
à sua casa. A mulher e os filhos recepcionaram-no e o felicitaram por ter
retornado bem, e ele contou o que lhe ocorrera com o gênio, e como Deus o
salvara depois que o gênio se mostrara decidido a matá-lo. Todos se
assombraram com aquilo. E permaneceram na vida mais feliz até que lhes
adveio o destruidor dos prazeres e dispersador das comunidades.
3. Manuscrito “Arabe 3612”, da Biblioteca Nacional da França, fls. 6 f.-7 v.
(A narrativa se inicia no final da quinta noite.)
Então o terceiro xeique, o da mula, deu um passo adiante e disse...
E a aurora alcançou Šahrazād, que interrompeu seu discurso autorizado. Sua
irmã Dunyāzād lhe disse: “Como é bela, saborosa, deliciosa, atraente e formosa
a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cavalheiresco me
preservar”. O rei pensou: “Por Deus que não a matarei até ouvir o que ocorreu
entre o xeique, sua esposa, o ifrit e o mercador”.
Quando foi a noite seguinte, que era a sexta noite,
Sua irmã Dunyāzād lhe disse: “Por Deus, maninha, e pela vida do rei,
continue a história para nós”. Ela respondeu: “Sim, com muito gosto e honra, se
o rei cavalheiresco permitir”. Ele disse: “Conte”. Ela respondeu: “Ouço e
obedeço”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso e bem guiado, que o terceiro xeique deu um
passo adiante e disse ao gênio: “Não me magoe; se eu lhe contar uma história
mais espantosa do que as deles dois, conceda-me também o restante do delito
cometido por este jovem mercador”. O gênio respondeu: “Sim”. O terceiro
xeique disse:
Saiba, ó sultão, ó líder dos reis dos gênios, que esta mula era minha esposa,
com a qual me casei quando ela ainda era virgem; agraciou-me com dezesseis
filhos, machos e fêmeas, mas nenhum deles sobreviveu. Então Deus louvado e
altíssimo determinou que eu me ausentasse numa viagem por cidades e lugarejos
durante dois anos completos. Comprei para a minha mulher presentes de peso
leve e valor elevado. Voltei para minha cidade e cheguei à noite, tendo já gasto o
que possuía, e rumei para a minha casa, cuja porta, em virtude de um desígnio
predeterminado por Deus altíssimo, encontrei aberta. Entrei, subi para o piso
superior e encontrei, deitado no colchão junto com a minha mulher, um escravo
negro de aparência tão hedionda que metia medo em quem o visse; estavam
brincando, rindo, trocando carícias, beijos e bolinações. Ao me ver e se certificar
de que eu presenciara tudo, ela gritou na minha cara. Aturdido por aquela cena,
desfaleci, como se estivesse num outro mundo. Assim que isso ocorreu, ela
pegou uma moringa de água, pronunciou algumas palavras, fez alguns
esconjuros em uma língua que não compreendi, aspergiu-me com um pouco de
água e disse: “Saia da forma humana e assuma a forma canina”; imediatamente
me transformei em um cachorro. Ela então me enxotou dizendo “Fora, seu
desgraçado”. Saí pela porta e, a cada vez que outros cachorros me viam,
rosnavam, latiam e me mordiam, enquanto eu fugia e as pessoas os afastavam de
mim. Vi-me numa terrível enrascada e desgraça. Permaneci naquela condição,
faminto e sedento, só bebendo nas vasilhas para cachorro. Cheguei enfim ao
estabelecimento de um açougueiro, e ali entrei. Os outros cachorros me
perseguiram e tentaram entrar também, mas o dono do lugar os enxotou dali e
jogou para mim alguns ossos. Passei então a comer de seus restos; quando o
açougueiro saía, eu ia atrás dele; quando entrava, eu entrava atrás dele. Vendo-
me fazer aquilo, o açougueiro se afeiçoou a mim, e começou a me fornecer
comida e bebida; ao ir embora para casa, deixava-me dormindo no interior do
açougue. Até que, certo dia, o açougueiro foi para casa a fim de resolver um
problema, e eu fui atrás dele; entrou em casa e entrei também: lá dentro,
encontrei sua esposa e sua filha. Ao me ver, a filha cobriu o rosto com a manga e
disse ao pai: “Papai, não é correto nem bonito isso que o senhor fez; trazer
homens para dentro de casa? Como pôde fazer isso?”. O pai perguntou: “E onde
estão os homens, minha filha?”. Ela respondeu: “Esse cachorro que entrou com
você é um homem enfeitiçado pela esposa. Ela o fez padecer torturas com as
mordidas dos outros cachorros. No entanto, papai, por Deus que eu posso
libertá-lo e salvá-lo disso, com o poder de Deus altíssimo”. Ouvindo aquelas
palavras, o pai lhe disse: “Por Deus, minha filha, pelo valor que a minha vida
tem para você, liberte-o! É uma caridade que reverterá a seu favor. Por mim,
dignifique-o, pois por Deus que eu me afeiçoei a ele e fui tomado de pena e
carinho, pois se trata de um bom companheiro”. Ela disse: “Com muito gosto e
honra”, e pegou uma taça de cobre, encheu-a de água e falou em uma língua que
nem eu nem o seu pai ou a sua mãe entenderam; pronunciou algumas palavras,
fez esconjuros e pôs-se a dizer: “Depressa, depressa! Agora, agora!
Imediatamente, imediatamente! Deus os abençoe!”. Depois disse: “Se você
estiver enfeitiçado, e se você for um ser humano, retorne para a sua forma
primitiva com o poder de Deus altíssimo, que diz ‘Seja e é’”.[330] Então
aspergiu-me com a água, e de imediato retomei a minha forma primitiva; acorri a
ela, beijei-lhe as mãos, a cabeça e os pés, e disse: “Pelo amor de Deus, minha
senhora, eu quero que você enfeitice a minha esposa e me dê o direito de
vingança”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra. Por Deus que a punição
que sua mulher irá sofrer será semelhante ao que ela fez com você”. E, pegando
a moringa de água, pronunciou algumas palavras, murmurou, fez esconjuros e
me disse: “Vá hoje mesmo até a sua casa; você chegará à noite e encontrará sua
mulher mergulhada no sono; aproxime-se, lance esta água sobre ela e diga no
que você quer que ela se transforme; ela vai se transformar naquilo que você
desejar”.
Disse o narrador : peguei a moringa com a água e me dirigi até minha
mulher; cheguei à porta da casa e a encontrei aberta; entrei, subi até o seu quarto
e a encontrei dormindo como morta; aproximei-me, lancei a água nela e disse:
“Abandone essa forma e transforme-se numa mula tordilha”. Ela imediatamente
virou mula; peguei-a pela crina, desci, amarrei-a no piso inferior e, no dia
seguinte, fui comprar para ela freio de ferro, albarda, cilha e um chicote de
couro; coloquei esporas em meus sapatos e passei a montá-la e a me servir dela
para minhas necessidades de transporte. Saí então para resolver um problema, e
avistei estes dois xeiques e este mercador; indaguei-os: “O que vocês estão
fazendo aqui?”, e eles me contaram a sua história, ó sultão, ó líder dos reis dos
gênios, com este mercador.
Em seguida, o terceiro xeique apontou para a mula e perguntou-lhe: “Não é
verdadeira a minha história?”, e ela balançou a cabeça dizendo, por meio de
sinais, que era verdade. E o velho concluiu: “É essa a minha história, foi isso que
me aconteceu”.
Disse o narrador : o gênio ficou assombrado, estremeceu de emoção e disse:
“Eu também concedo a você um terço do delito do mercador”, e, libertando-o,
desapareceu. O mercador voltou-se para os três xeiques e lhes agradeceu a
atitude. Os três o felicitaram por ter ficado bem, despediram-se e se separaram,
cada qual retornando para sua casa. O mercador foi coabitar com sua esposa, e
viveu com ela até que foi alcançado pela morte.[331]
4. Manuscrito “Gayangos 49”, da Real Academia de la Historia, em Madri, fls.
28 r.-29 f.
A história se inicia no final da sétima noite. Entretanto, nesse, como em muitos
outros pontos, o manuscrito não apresenta a numeração das noites. Foi essa a
versão que, polida e corrigida, prevaleceu afinal nas edições impressas do livro.
O terceiro xeique então disse: “Ó gênio, eu também tenho uma narrativa mais
assombrosa e insólita do que as desses dois; você me concederia um terço do
sangue do mercador?”. O gênio respondeu: “Sim”. E o velho disse:
Saiba, ó gênio...
E começou a contar a história para o gênio. Mas a aurora alcançou Šahrazād,
que parou de falar. Sua irmã Dunyāzād lhe disse: “Como é bela esta narrativa e
esta história”, e Šahrazād respondeu: “E o que falta é mais assombroso e
insólito, e sua retórica, mais poderosa. Se acaso eu viver e o rei me preservar, na
noite seguinte eu lhes contarei”. O rei pensou: “Por Deus que não a matarei até
ouvir o que ocorrerá entre o xeique e o gênio, mas depois a matarei tal como foi
o meu procedimento com as outras”. E então, conforme o hábito, o rei saiu e
ficou cuidando de seus interesses, até que o dia se encerrou e a noite chegou e
escureceu. Ele entrou no palácio e subiu em sua cama, conforme o hábito.
Šahrazād se arrumou e deitou com o rei, conforme o hábito. Depois, ambos
acordaram, e Dunyāzād disse: “Minha irmã, delicie-nos com sua saborosa
história”. Šahrazād disse: “Ouço e obedeço”, e pediu autorização ao rei, que
disse: “Seja, pois, a continuidade da história da salvação do mercador das garras
do gênio”. Ela disse: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o terceiro xeique disse ao gênio:
Saiba, ó sultão e líder dos reis dos gênios, que esta mula era minha esposa.
Ausentei-me em viagem por um ano inteiro e, resolvendo o assunto que me
levara a viajar, retornei até ela à noite. No entanto, encontrei um escravo negro
deitado com minha mulher no colchão. Estavam conversando, trocando carícias,
risos, beijos e bolinações. Quando me viu, ela pegou uma moringa de água,
pronunciou algumas palavras e atirou a água em mim dizendo: “Abandone essa
forma e transforme-se em cachorro”. Imediatamente me transformei em
cachorro; ela me enxotou e saí da casa. Continuei andando até chegar ao
estabelecimento de um açougueiro. Instalei-me à porta do açougue e passei a me
alimentar do que havia por ali. Quando me viu, o dono do açougue me pegou,
afeiçoou-se a mim e conduziu-me até a sua casa. Ao me ver, a filha do
açougueiro cobriu o rosto e disse ao pai: “Você traz um homem estranho para
dentro de casa?”. Ele perguntou: “E onde está o homem?”. Ela respondeu: “Esse
cachorro foi enfeitiçado pela mulher. Eu posso libertá-lo”. Ouvindo essas
palavras o pai da jovem lhe disse: “Por Deus, minha filha, liberte-o disso!”.
Então a filha do açougueiro pegou uma moringa de água, pronunciou algumas
palavras e me aspergiu com um pouco de água dizendo: “Abandone essa forma e
retorne para a sua forma primitiva, com a permissão de Deus altíssimo”, e então
eu retomei minha forma primitiva. Beijei as mãos da jovem e lhe disse: “Pelo
amor de Deus, enfeitice minha esposa para mim, da mesma maneira que ela me
enfeitiçou”. A jovem me deu um pouco de água e disse: “Quando você a vir
dormindo, lance esta água sobre ela e diga em que você quer que ela se torne; ela
se transformará no que você desejar”.
Disse o narrador : peguei a água e fui até minha mulher. Encontrei-a
dormindo, mergulhada no sono. Lancei a água sobre ela e disse: “Abandone essa
forma e transforme-se em uma mula”. Minha esposa imediatamente se
transformou em uma mula, que é esta que você está vendo com os seus próprios
olhos, ó sultão, ó líder dos reis dos gênios”.
E o terceiro xeique perguntou à mula: “Isso não é verdade?”. Ela balançou a
cabeça e disse, por meio de sinais, que era verdade. O terceiro xeique disse:
“Essa é a minha história, foi isso que me aconteceu”.
Disse o narrador : o gênio ficou assombrado, estremeceu de emoção, e disse:
“Eu lhe concedo o terço restante do sangue do mercador”, e o entregou a eles,
desaparecendo em seguida. O mercador, voltando-se para os três xeiques,
agradeceu-lhes o procedimento, e eles o felicitaram por ter ficado bem;
despediram-se, e cada um foi cuidar de sua vida, enquanto o mercador retornava
ao seu país.
ANEXO 3
A história do mercador salvo das garras do gênio pela narrativa de três xeiques
(da quarta à oitava noite) apresenta analogia com o relato aqui traduzido,
atribuído ao profeta Muḥammad no livro Alfāḫir, de Almufaḍḍal Bin Salama.
[332]
Sobre o dizer conversa de Ḫurāfa.[333]
Ismāᶜīl Bin Abbān Alwarrāq disse: Ziyād Bin ᶜAbdullāh Albakkā’ī conversou
conosco e disse, a partir do que lhe foi relatado por ᶜAbdurraḥmān Bin Alqāsim,
a partir do que a este foi relatado por seu pai Alqāsim Bin ᶜAbdurraḥmān:
“Questionei a meu pai sobre a locução conversa de Ḫurāfa e sobre o fato de as
pessoas sempre a citarem”. Então seu pai lhe respondeu: “Ḫurāfa tem uma
história assombrosa”. E continuou:
Eu tive notícia de que ᶜā’iša[334] pediu ao Profeta, que a paz e as preces de
Deus estejam com ele: “Ó Profeta de Deus, conte-me a história de Ḫurāfa”.
Então o Profeta, que a paz e as preces de Deus estejam com ele, disse:
Deus tenha piedade da alma de Ḫurāfa, que era um homem bom. Ele me
contou que, certa noite, saiu devido a uma necessidade qualquer, e, em meio à
caminhada, topou com três gênios que o aprisionaram. Um deles disse: “Vamos
perdoá-lo”; o segundo disse: “Vamos matá-lo”; o terceiro disse: “Vamos
escravizá-lo”. Enquanto eles discutiam sobre o que fazer com ele, surgiu um
homem que lhes disse: “A paz esteja convosco”, e eles responderam: “Convosco
esteja a paz”. O homem perguntou: “O que são vocês?”, e eles responderam:
“Somos da raça dos gênios. Capturamos este homem e estamos discutindo o que
fazer com ele”. O homem lhes disse: “Se acaso eu lhes contar uma história
espantosa, vocês me dariam sociedade nele?”. Disseram: “Sim”. Então ele disse:
Eu era um homem a quem Deus havia concedido muitos benefícios, mas eles
se esgotaram e eu acabei me consumindo em dívidas. Então fugi, e, no meio do
caminho, fui acossado por grande sede. Dirigi-me a um poço e desci para beber,
quando alguém gritou de dentro do poço: “Alto lá!”, e então saí sem beber.
Como a sede novamente me fustigasse, retornei, mas a voz gritou comigo: “Alto
lá!”, e tornei a sair sem beber. Depois retornei pela terceira vez, e bebi sem dar
atenção à voz. Alguém então disse de dentro do poço: “Ó Deus, se ele for
homem, transformai-o em mulher; e, se for mulher, transformai-a em homem!”,
e eis que me transformei em uma mulher. Cheguei a uma cidade – de cujo nome
Ziyād, que me transmitiu esta história, afirmou ter se esquecido – e me casei
com um homem, com quem tive dois filhos. Depois minha alma passou a ansiar
pelo retorno à minha cidade natal. Passei pelo poço do qual havia bebido e desci
para beber. Uma voz gritou comigo da mesma maneira que havia gritado da
primeira vez, mas não lhe dei atenção e bebi. Então a voz disse: “Ó Deus, se for
homem, transformai-o em mulher; e, se for mulher, transformai-a em homem!”,
e então voltei, como antes, a ser homem. Cheguei à minha cidade natal e me
casei com uma mulher que me deu dois filhos. Tenho, portanto, quatro filhos:
dois de minhas costas,[335] e dois de minha barriga.
Disseram os gênios: “Ó Deus poderoso! Isso é assombroso! Você é nosso
sócio neste homem!”. E enquanto eles continuavam a discussão, apareceu um
boi voando; assim que passou por eles, surgiu, no encalço do boi, um homem
carregando um pedaço de pau. Assim que os viu, parou e perguntou: “O que
vocês têm?”, e eles lhe deram a mesma resposta que haviam dado ao primeiro
homem. Ele disse: “Se eu lhes contar algo mais assombroso do que isso, vocês
me dariam sociedade nesse homem?”. Eles responderam: “Sim”. Ele disse:
Eu tinha um tio paterno muito rico, cuja filha era belíssima. Éramos sete
irmãos, mas ela foi prometida em casamento a um outro homem. Meu tio
também criava um bezerrinho. Certo dia, enquanto estávamos na casa dele, o
bezerrinho desapareceu e meu tio nos disse: “Aquele de vocês que encontrar o
bezerrinho terá a mão de minha filha!”. Peguei então este pedaço de madeira e
saí atrás do bezerrinho. Na época eu era um garoto, e agora meus cabelos já
encaneceram, mas nem eu o alcanço nem ele para de voar!
Disseram os gênios: “Ó Deus poderoso! Isso é assombroso! Você é nosso
sócio nesse homem!”. E enquanto eles continuavam a discussão, surgiu um
homem montado numa égua e um seu criado montado num belo cavalo.
Cumprimentou-os da mesma maneira que os outros haviam feito e, depois de
lhes perguntar o que estava ocorrendo, recebeu a mesma resposta que os outros.
Disse então: “Se eu lhes contar uma história mais assombrosa do que essa, vocês
me dariam sociedade nesse homem?”. Responderam: “Sim, conte a sua
história!”. Ele disse:
Eu tinha uma mulher perversa, e perguntou à égua sobre a qual estava
montado: “Não é isso?”, e ela respondeu balançando a cabeça: “Sim”.
Prosseguiu: E suspeitávamos dela com este escravo, e apontou para o cavalo no
qual estava montado seu criado e perguntou: “Não é assim?”, e o cavalo
respondeu balançando a cabeça: “Sim”. Prosseguiu: Certo dia, mandei este meu
criado que está sobre o cavalo resolver alguns assuntos, e minha mulher o reteve;
ele adormeceu, e sonhou que minha mulher gritava chamando um rato, que se
apresentou; ela lhe disse: “Regue!”, e ele regava; “De novo!”, e ele repetia;
“Plante!”, e ele plantava; “Colha!”, e ele colhia; “Pise!”, e ele pisava. Depois, ela
mandou vir uma pedra de moinho, com a qual moeu aquilo e colocou em uma
taça. Quando o criado acordou, assustado, aterrorizado, ela lhe disse: “Leve isto
e dê de beber ao seu patrão!”. O rapaz veio até mim e me relatou o que ela fez, e
todo o resto. Então eu elaborei um ardil contra minha mulher e o escravo,
fazendo-os beber da taça; ei-la aí: é a égua; ei-lo aí: é o cavalo. “Não é assim?”,
e tanto a égua como o cavalo responderam “sim!” com a cabeça.
Disseram os gênios: “Ó Deus poderoso! Esta é a história mais assombrosa que
já ouvimos! Você é nosso sócio neste homem!”. E os três homens se reuniram e
libertaram Ḫurāfa, que foi até o Profeta – que a paz e as preces de Deus estejam
com ele – e lhe relatou a história.
ANEXO 4
No início da décima quarta noite, na história do rei Yūnān e do médico Dūbān,
o rei conta ao seu vizir a história do marido ciumento e do papagaio. Nas
edições impressas do ramo egípcio tardio, que alterou a numeração das noites, é
outra a história contada pelo rei, e isso se dá na quinta noite.[336]
E quando foi a quinta noite,
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Yūnān disse ao seu vizir: “Ó
vizir, a inveja pelo sábio invadiu você; agora, quer que eu o mate e depois me
arrependa, tal como o rei Sindabād se arrependeu por ter matado o falcão”. O
vizir perguntou: “E como foi isso?”. O rei disse:
Conta-se que certo rei da Pérsia gostava de passeios, divertimentos e caças.
Ele tinha um falcão, ao qual criara e nunca abandonava, fosse noite ou fosse dia.
Carregava-o na mão por toda a noite e, quando saía para a caça, levava-o
consigo. Ele fizera uma taça de ouro que ficava pendurada no pescoço do falcão,
e da qual lhe dava de beber. Certa feita, estando o rei sentado, de repente chegou
o encarregado de adestrar as aves de caça e disse: “Ó rei do tempo, este é o
momento de sair para a caça”. Então o rei se aprontou para sair, e levou o falcão
na mão. Avançaram até chegar a um vale; cercaram o local destinado à caça, e
logo uma gazela caiu ali. O rei disse: “Matarei quem quer que deixe a gazela
escapar”, e então eles foram apertando o cerco. A gazela foi na direção do rei e
ergueu as patas traseiras, levando o peito até as patas dianteiras, como se
estivesse beijando o solo diante do rei, que hesitou; nesse instante, ela pulou por
cima de sua cabeça, fugindo para o deserto. O rei se voltou para os soldados e os
viu trocando piscadelas pelas suas costas. Perguntou ao vizir: “O que os soldados
estão dizendo?”. O vizir respondeu: “Eles estão dizendo que o senhor havia
afirmado que quem deixasse a gazela escapar seria morto”. O rei disse: “Por
minha honra, eu a seguirei e trarei”, e saiu no rastro da gazela; manteve-se na
sua perseguição,[337] e o falcão começou a bicá-la nos olhos até que a deixou
cega e tonta. O rei puxou então uma clava e lhe desferiu um golpe que a fez cair
e revirar-se; apeou-se, degolou-a, arrancou-lhe a pele e a pendurou no arção da
sela. Naquela hora, o sol estava causticante; a selva era inóspita e não tinha água.
O rei sentiu sede, e também o cavalo; procurou e avistou uma árvore da qual
escorria um líquido que parecia manteiga. O rei, que estava calçando luvas de
couro, pegou a taça do pescoço do falcão, encheu-a daquele líquido e colocou-a
diante de si para beber, mas o falcão deu uma bicada e virou a taça; o rei pegou a
taça uma segunda vez, encheu-a e, supondo que o falcão estivesse com sede,
depositou-a diante dele, mas o falcão tornou a bicá-la e fazê-la virar; irritado
com o falcão, o rei pegou a taça pela terceira vez, encheu-a e depositou-a diante
do cavalo, mas o falcão a virou com a asa. O rei disse: “Maldita seja, ó mais
funesta das aves! Você me impediu de beber, impediu a si mesma e impediu o
cavalo”, e golpeou o falcão com a espada, cortando-lhe as asas. O falcão pôs-se
a erguer a cabeça e a dizer por meio de sinais: “Olhe o que há no alto da árvore”.
O rei ergueu os olhos e viu, no alto da árvore, uma serpente; o líquido que
escorria era o seu veneno. Já arrependido de ter cortado as asas do falcão, o rei
se levantou, montou o cavalo, e se pôs a caminho, carregando a gazela, até
chegar ao local onde estava antes. Entregou a gazela ao cozinheiro e lhe disse:
“Pegue-a e cozinhe”. Em seguida, sentou-se no trono com o falcão na mão. A
ave soltou um suspiro e morreu. O rei gritou de tristeza e desespero por ter
matado o falcão que o salvara da morte. Essa foi a história do rei Sindabād.[338]
ANEXO 5
Confira-se, abaixo, uma narrativa sobre relações incestuosas, que apresenta
similaridades com o que se narra na trigésima nona noite. Foi traduzida da
obra Alwāḍiḥ almubīn fī ḏikri man istašhada mina-lmuḥibbīn (cuja tradução
seria algo como “Livro esclarecedor e eloquente sobre os mártires do amor”),
de Muġalṭāy.[339]
Abū Alqāsim ᶜAlī Bin Almuḥassin Attanūḫī disse que Almuhallab Bin Alfatḥ
Albaġdādī transmitiu o seguinte relato, feito por seu pai, Alfatḥ:
Um jovem alugou uma casa na minha vila e, sob a alegação de estar se
escondendo por causa de dívidas, pediu-me que providenciasse alguém para
comprar-lhe diariamente as coisas de que necessitava. Despendia somas vultosas
na compra de pães, carnes, frutas e doces, e permaneceu nisso por um ano:
ninguém o visitava e ninguém o via, nem eu nem quem quer que fosse. Até que,
certa noite, ele veio até mim e disse: “Socorra-me! Traga-me uma parteira!”.
Então levei-lhe uma parteira, que ficou na casa dele por uma noite. Quando
começou a entardecer, porém, a mulher do jovem faleceu. Nunca antes eu vira
um desespero semelhante ao dele; dizia: “Deus! Deus! Que ninguém chore por
mim nem me dê pêsames!”. Enviei uma pessoa para cavar o túmulo. O jovem
disse: “Não quero que nenhum dos coveiros me veja. Eu e você carregaremos o
féretro, se me fizer essa gentileza”. Respondi: “Como quiser”. Quando
escureceu, eu lhe disse: “Vamos sair”. Ele respondeu: “Por acaso você não
aceitaria adotar a recém-nascida em sua casa, com uma condição?”. Perguntei:
“Qual condição?”. Ele respondeu: “Minha alma não mais suportará permanecer
nesta casa, nem mesmo nesta cidade, depois da morte de minha mulher. Possuo
muito dinheiro. Faça a gentileza de aceitá-lo, bem como à recém-nascida, e
utilizá-lo para criar a criança. Caso ela morra, esse dinheiro será seu; caso ela
viva e cresça, arranje-lhe a vida com ele”.
Admoestei-lhe aqueles ímpetos, mas de nada adiantou. Agi conforme ele
ordenara: carregamos o féretro e, quando estávamos nas bordas do túmulo, ele
disse: “Faça a gentileza de se distanciar, pois eu gostaria de me despedir dela”.
E, descobrindo-lhe o rosto, debruçou-se sobre ela e pôs-se a beijá-la; depois,
puxou-a pela mortalha e depositou-a no túmulo. Então ouvi um grito provindo
do túmulo; olhei e vi que ele retirara uma adaga que trazia escondida sob a roupa
e se deitara sobre ela, fazendo-a sair pelas costas; morreu, e parecia estar morto
há mil anos. Coloquei-o deitado ao lado da mulher na campa, e joguei terra sobre
ambos. Eu não sabia nada sobre aquele rapaz.
Passado um ano, estando eu sentado à porta de minha casa, apareceu um
xeique de boa aparência, montado sobre uma mula vivaz. Falou-me um pouco
sobre aquele jovem, e então eu lhe contei o que sabia. Após pronunciar “Não há
poderio nem força senão em Deus altíssimo!”, o xeique continuou: “Entregue-
me a criança e fique com o dinheiro”. Eu disse: “Conte-me o que aconteceu”. O
xeique disse:
Meu irmão, as desgraças do mundo são muitas. Aquele rapaz era meu filho, a
quem dei educação e ensino. Ele tinha uma irmã, e em toda a Bagdá não havia
jovem tão bonita; era mais jovem do que ele. Ele se apaixonou por ela, e ela por
ele, sem que nós nos déssemos conta. Depois, acabei descobrindo a coisa e
briguei com eles. Mas a questão chegou ao ponto de ele a deflorar, e a notícia
chegou até mim; surrei ambos com chicote, e escondi o fato para evitar
escândalos. Separei-os e proibi que se vissem; a mãe deles foi tão rigorosa
quanto eu. Mas eles usavam de artimanhas para se reunir, tal como fazem os
estranhos. Também essa notícia chegou até nós, e então expulsei o rapaz de casa
e acorrentei a moça. Assim se passaram meses. Eu tinha um criado a quem
tratava como filho, mas ele começou a atuar como mensageiro entre ambos.
Desse modo, conseguiram levar de mim muito dinheiro e, lançando mão de um
ardil que seria muito longo explicar, fugiram faz alguns anos. Não tive mais
notícias deles. A perda do dinheiro me pareceu de pouca monta quando
comparada ao alívio proporcionado por seu sumiço. Contudo, minha alma
continuava tendo afeição por eles. Tendo-me chegado a notícia de que o rapaz
que era meu criado estava morando em determinada rua, fui até lá e lhe pedi que
me informasse sobre eles. Ele disse: “Vá até a vila de Alfatḥ e lá você terá
notícias deles”.
E então o xeique pediu: “Gostaria que você me mostrasse o túmulo”. Mostrei-
lhe o túmulo, entreguei-lhe a menina e o dinheiro, e ele foi-se embora.
ANEXO 6
O historiador Muḥammad Ibn ᶜAbdūs Aljahšiyārī, morto em 932 d.C.,
apresentou, no Kitāb alwuzarā’ wal-kuttāb [Livro dos vizires e dos escribas], o
relato sobre um filho “desaparecido” do segundo califa abássida, ᶜAbdullāh Bin
Muḥammad Abū Jaᶜfar Almanṣūr, nascido em 714, e que governou de 754 até
sua morte, em 775 d.C. O relato se abre discutindo os motivos que teriam levado
o califa a ordenar a morte de um de seus mais importantes escribas e
secretários, Sulaymān Abū Ayyūb Almawriyānī. O episódio se inicia quando
Almanṣūr ainda não era califa e lutava arduamente contra a dinastia omíada,
que então reinava em Damasco. Existe alguma similaridade entre este relato e
algumas passagens da história dos dois vizires, sobretudo na octogésima oitava
noite.[340]
As pessoas falam muito a respeito do motivo da morte de Sulaymān Abū Ayyūb
Almawriyānī. Uma das informações que tenho é a seguinte: quando Almanṣūr
estava escondido em Alahwāz,[341] hospedou-se e obteve esconderijo na casa
de um dirigente persa que o dignificou de todo modo que podia, fazendo
inclusive sua filha servi-lo. Era uma jovem extremamente bonita, e então
Almanṣūr disse: “Não considero legítimo utilizar os serviços dela nem ficar a sós
com ela. Mas, como se trata de uma jovem livre, case-a comigo”. Então o
homem casou-a com Almanṣūr, e ela engravidou dele.
Depois Almanṣūr teve de ir para Basra, e se despediu de todos. Entregou para
a jovem sua camisa e seu anel e disse: “Se você der à luz, cuide bem da criança.
E quando ficar sabendo que o novo líder dos homens é alguém chamado
ᶜAbdullāh Bin Muḥammad, alcunhado de Abū Jaᶜfar, vá até ele com seu filho, e
leve consigo esta túnica e este anel. Ele reconhecerá os seus direitos e lhe
dispensará o melhor tratamento”. E partiu.
A mulher deu à luz um menino, que cresceu e se desenvolveu, passando a
brincar com os de sua idade. Nesse ínterim, Abū Jaᶜfar Almanṣūr tomou o poder.
O rapaz passou a ser ridicularizado por seus colegas devido ao fato de não
conhecer o pai. Entrou em casa entristecido e amargurado, e a mãe lhe perguntou
o que tinha; então ele lhe relatou o que seus colegas haviam dito. Ela disse:
“Nada disso, por Deus que o seu pai está acima de todas as pessoas!”. Ele
perguntou: “E quem é ele?”. Ela disse: “Ele é o detentor do poder”. Ele disse:
“Então meu pai é esse e eu estou nesta situação? Existe algo mediante o qual ele
possa me reconhecer?”. E a mãe lhe entregou a túnica e o anel.
O rapaz se apresentou e foi ter com Arrabīᶜ Bin Yūnus,[342] a quem disse:
“Trago um conselho”. Arrabīᶜ disse: “Diga-o”. O rapaz respondeu: “Não o direi
senão ao comandante dos crentes”. O homem levou a notícia a Almanṣūr e
conduziu o rapaz até ele. O califa disse: “Dê o seu conselho”. O rapaz
respondeu: “A sós”, e então o califa esvaziou o aposento, restando apenas
Arrabīᶜ, e disse: “Dê o seu conselho”. O rapaz disse: “Não, a não ser que você o
faça sair”, e então o califa fez Arrabīᶜ retirar-se, e disse: “Dê o seu conselho”. O
rapaz disse: “Sou seu filho”. O califa perguntou: “Existe alguma prova disso?”.
O rapaz mostrou-lhe a túnica e o anel, e estes foram reconhecidos por Almanṣūr,
que perguntou: “E o que o impediu de dizer isso na frente dos outros?”. Ele
respondeu: “Temi que você negasse, pois aí seria a infâmia eterna”. Então
Almanṣūr o abraçou, beijou e disse: “A partir de agora você é de fato meu filho”.
Chamou Sulaymān Abū Ayyūb Almawriyānī e lhe disse: “Este rapaz irá morar
com você. Faça por ele o mesmo que faria por um filho meu”. Em seguida
determinou a Arrabīᶜ que dispensasse o rapaz de autorização para ir ter com ele.
E ordenou ao rapaz que todos os dias pela manhã viesse ficar consigo, e depois
partisse, até que o caso fosse revelado, pois o califa tinha planos para ele.
Almawriyānī abraçou o rapaz e lhe deu um vasto aposento, além de regalias de
todo gênero. Pela manhã o rapaz ia ficar com o califa, que se isolava bastante
com ele. O jovem, de muito juízo e perfeição, ficava a sós com o califa.
Almawriyānī então lhe perguntava o que ocorria entre ambos, mas o rapaz nada
lhe informava, e dizia: “O comandante dos crentes não me conta nenhum
segredo”. Almawriyānī então se perguntava: “Então por que o califa precisa que
esse rapaz fique comigo?”.
E Almawriyānī foi tomado de inveja e repulsa pelo rapaz, cuja posição
começou a incomodá-lo tanto que ele acabou ministrando-lhe veneno. O rapaz
morreu. Alamawriyānī foi até o califa, informou-o de que o jovem morrera
repentinamente, e se retirou. Almanṣūr disse: “Você o matou! Que Deus me mate
se eu não matar você por causa dele”. E, depois disso, não demorou muito até
que o matou.[343]
ANEXO 7
Entre a centésima vigésima primeira noite e a centésima trigésima noite narra-
se a história do jovem mercador de Bagdá e da criada de Zubayda, esposa do
califa Hārūn Arrašīd. O autor das Mil e uma noites adaptou essa história
diretamente do relato constante do livro Alfaraj baᶜda aššidda [A libertação após
a dificuldade], do juiz bagdali Abū ᶜAlī Almuḥassin Bin ᶜAlī Attanūḫī, morto em
994 d.C. Note-se que, embora no “original” os eventos se passem em algum
momento entre os anos de 908 e 932 d.C., o autor das Mil e uma noites, ao
transpor a presente história para o seu livro, preferiu situar a ação na época do
califa Hārūn Arrašīd (786-809 d.C.), mais de um século antes, e introduziu
significativas alterações no enredo.[344]
Abū Alfaraj Aḥmad Bin Ibrāhīm, jurisconsulto ḥanifita[345] conhecido como
Bin Annarsī, do bairro da Porta de Šām, em Bagdá, que sucedeu a Abū Alḥasan
ᶜAlī Bin Abī Ṭālib Bin Albahlūl Attanūḫi como juiz na cidade de Hīt,[346] e que
eu sei ser um homem probo, contou-me o seguinte: “Ouvi certo mercador” – e
mencionou-lhe o nome, mas eu me esqueci – “contar ao meu pai o seguinte”:
Fui convidado a visitar certo amigo meu, afamado mercador de tecidos, e,
entre os pratos que nos serviu, havia zīrbāja. Como ele não comesse, nós
também não comemos. Então ele nos disse: “Gostaria que vocês comessem
desse prato, mas me isentassem de fazê-lo”, porém não o deixamos em paz até
que ele comeu. Quando nos pusemos a lavar as mãos, ele se afastou para fazê-lo,
e um criado postou-se a seu lado para contar o número de vezes que ele as
lavava, até que lhe disse, finalmente: “Você já lavou as mãos quarenta vezes”, e
então ele parou. Perguntamos: “Qual o motivo disto?”, e ele não quis falar, mas,
como insistíssemos, ele disse:
Meu pai morreu quando eu tinha cerca de vinte anos, deixando-me numa
situação remediada. Antes de sua morte, recomendou-me que lhe quitasse as
dívidas, que me dedicasse ao mercado – sendo o primeiro a entrar e o último a
sair – e que fosse cuidadoso com meu capital. Quando ele morreu, quitei-lhe as
dívidas, guardei o que ele tinha me deixado e dediquei-me à loja – e de tudo isso
auferi grandes benefícios.
Certo dia, estando eu acomodado em minha loja, antes que o mercado tivesse
começado a funcionar, eis que surgiu uma mulher montada num burro em cujo
traseiro havia um tecido de Dubayq[347] e que era puxado por um serviçal.
Apeou-se diante de mim, e eu a dignifiquei, dirigindo-me a ela e perguntando-
lhe do que necessitava. Ela mencionou tecidos – e por Deus que então ouvi uma
voz melódica como nunca ouvira mais bela em minha vida, e vi um rosto que
nunca tinha visto igual. Perdi a razão, e apaixonei-me por ela imediatamente.
Disse-lhe: “Espere até que o mercado comece a funcionar, e então eu lhe trarei
tudo o que deseja”, e ela assim fez. Pôs-se a conversar comigo, enquanto eu
morria de paixão.
As pessoas chegaram, e então eu juntei o que ela pedira; ela recolheu tudo e
montou em seu burro sem me perguntar a respeito do preço – que era, numa
palavra, cinco mil dirhams. Assim que ela se foi, eu despertei, e pressenti a
chegada da pobreza. Disse: “Espertalhona, enganou-me com sua bela face; viu
que sou jovem e me tratou como um tolo! Não lhe perguntei o endereço nem lhe
cobrei o preço por estar impressionado com ela!”.
Escondi esse fato, a fim de não ser desmascarado e precipitar alguma
ocorrência ruim. Eu estava decidido a encerrar as atividades em minha loja e
vender tudo o que ela continha a fim de pagar às pessoas o valor de suas
mercadorias. Ficaria em minha casa, limitando-me a viver dos pequenos
rendimentos que me proporcionava uma propriedade que meu pai me deixara.
Decorrida uma semana, eis que ela me chega bem cedo, apeando-se diante de
minha loja. Ao vê-la, esqueci-me de tudo quanto eu estava passando, e levantei-
me para recebê-la. Ela disse: “Ó jovem, prejudicamos você com esse atraso. Não
temos dúvidas de que o deixamos aterrorizado, e que você julgou que nós o
havíamos enganado!”. Eu disse: “Deus colocou você acima desse tipo de
suspeita!”. Ela mandou trazer uma balança e me pagou, em dinares, o valor das
mercadorias. Depois exibiu uma lista com o pedido de outras mercadorias.
Acomodei-a e pus-me a conversar com ela, deliciando-me em observá-la, até
que o mercado começou a funcionar; levantei-me, paguei a cada mercador seu
dinheiro, e lhes pedi o que ela queria; eles me entregaram tudo e fui até ela, que
recolheu as mercadorias e se retirou, sem me dirigir uma sílaba a respeito do
preço.
Arrependi-me assim que ela se ausentou. Disse: “Eis a desgraça! Ela me
pagou cinco mil dirhams, e levou mercadorias no valor de mil dinares. Agora é
que não vou mais ter notícias dela. Não me resta senão a pobreza, a venda das
mercadorias de minha loja e a propriedade que herdei”.
Ela sumiu de minhas vistas por mais de um mês, e os demais mercadores
começaram a me pressionar, exigindo o valor de suas mercadorias; ofereci-lhes
minha propriedade, e preparei-me para a aniquilação.
Estava eu nessa situação, e eis que ela se apeou na frente da minha loja. Ao
vê-la, desapareceram meus pensamentos a respeito de dinheiro, e esqueci o que
estava passando. Dirigiu-se a mim, conversando, e disse: “Traga a balança”, e
então eu lhe pesei o valor das mercadorias em dinares. Comecei a esticar a
conversa, ela correspondeu, e eu quase morri de felicidade e alegria; então ela
perguntou: “Você tem esposa?”. Respondi: “Não, por Deus, minha senhora. Não
conheço mulher nenhuma...”, e chorei. Ela perguntou: “O que você tem?”.
Respondi: “Está tudo bem”, e, com toda a reverência, levantei-me, tomei pela
mão o criado que estava com ela e, apresentando-lhe uma porção de dinares,
pedi-lhe que intermediasse a relação entre mim e sua senhora. Ele riu e disse:
“Por Deus que ela está mais apaixonada por você do que você por ela! Ela não
tem necessidade alguma das coisas que comprou, e só vem aqui pelo desejo de
conversar longamente com você. Diga-lhe o que deseja e ela aceitará. Sou
prescindível para você”. Então retornei até a jovem; como eu lhe havia dito que
estava saindo para contar o dinheiro, ela perguntou: “Já contou o dinheiro?”, e
riu, pois me vira conversando com o criado. Eu disse: “Minha senhora... Ai, meu
Deus! Por minha vida...”, e lhe revelei o que desejava; ela gostou e aceitou da
melhor maneira; depois disse: “O criado virá trazer-lhe minha mensagem sobre o
que você deve fazer”. Levantou-se e saiu sem comprar nada. Paguei o que devia
ao demais mercadores e obtive um grande lucro. Depois, fui assaltado por
preocupações, temeroso de que minhas relações com ela se interrompessem. Não
pude dormir de preocupação e medo. Após alguns dias veio o criado, e eu o
tratei com a maior honra; dei-lhe alguns dinares de boa qualidade,[348] e
interroguei-o a respeito dela. Respondeu: “Por Deus que ela está doente por
causa da paixão que nutre por você”. Eu disse: “Explique-me qual é a condição
dela”. Ele disse: “Essa jovem foi criada pela mãe do califa Almuqtadir,[349] e é
a mais próxima, a de melhor sorte, e a mais amada por ela. Desejosa de conhecer
as pessoas, e ter liberdade de entrar e sair do palácio califal, fez várias gestões
até se tornar a camareira-mor, passando assim a sair quando se apresenta alguma
necessidade, o que lhe possibilita ver as pessoas. Por Deus que ela já conversou
a seu respeito com a mãe do califa, e pediu a ela que a casasse com você. A mãe
do califa disse: ‘Não o farei até vê-lo para saber se ele é digno de você; caso
contrário, não permitirei que você efetue essa escolha’. Agora, é necessário um
ardil para introduzir você no palácio do califa. Caso dê certo, casará com ela;
caso seja descoberto, irão cortar-lhe o pescoço. O que me diz?”. Respondi: “Vou
submeter-me a isso”. Ele disse: “Quando anoitecer, vá ao bairro de Almuḫarram
e entre na mesquita construída pela mãe do califa, às margens do rio Tigre; em
sua última parede, após o rio, o nome dela está gravado nos tijolos. Durma ali”.
[Continuou Abū Alfaraj Bin Annarsī:] Essa mesquita é aquela cuja porta foi
bloqueada pelo agregado do sultão Muᶜizz Addawla,[350] o chanceler-mor
Subuktakīn, conhecido como Jāšankīr,[351] que a transformou em anexo do
jardim de sua casa, e faz dela local de reza de seus criados.
Disse o mercador : dirigi-me ao bairro de Almuḫarram antes do entardecer; fiz
na mesquita as duas preces da noite, e dormi ali. Quando alvoreceu, eis que um
simpático grupo se aproximou; criados surgiram carregando baús vazios:
depositaram-nos na mesquita e se retiraram, só restando um criado; examinei-o,
e eis que era o intermediário entre mim e ela. Em seguida, a jovem chegou e me
chamou; levantei-me, abracei-a e lhe beijei as mãos; ela me deu muitos beijos e
me abraçou; chorou, e eu chorei. Conversamos por cerca de uma hora, e a seguir
ela me acomodou num dos baús, que era bem grande, e trancou-o. Vieram os
criados carregando tecidos, água de rosas, perfumes, e outras coisas trazidas de
vários lugares. Ela as distribuía pelos outros baús, os quais então foram
carregados pelo grupo, que se retirou.
Logo fui acometido por grande arrependimento e disse: “Matei-me por um
prazer que talvez nem se realize, e mesmo que se realize não mereceria o
sacrifício de minha vida”. Pus-me a chorar e a rogar a Deus altíssimo e
poderoso, a entregar-me a Ele e a fazer promessas, até que os baús ficaram a
ponto de adentrar o palácio do califa; meu baú era carregado por dois criados,
um dos quais o intermediário. Toda vez que se passava por algum grupo de
serviçais responsáveis pela vigilância do palácio e eles diziam “queremos
revistar os baús”, ela gritava com alguns, insultava alguns e ludibriava alguns,
até que chegou a um funcionário que eu imaginei ser o chefe dos vigias, ao qual
ela dirigiu a palavra com submissão e humildade. Ele disse: “É necessário que os
baús sejam abertos”, e iniciou com o baú em que eu estava. Ao perceber isso,
perdi meu juízo e fiquei zonzo; de medo, urinei no baú, por cujos vãos a urina
escorreu. Ela disse: “Ó mestre, você está me aniquilando e aniquilando os
mercadores que fizeram a venda, pois nos obrigou a estragar mercadorias no
valor de dez mil dinares neste baú, entre elas tecidos estampados e uma garrafa
com quatro medidas de água do poço de Zamzam; ela se emborcou e se
derramou sobre a roupa; agora as cores dos tecidos estão se deteriorando”. Ele
disse: “Pegue o seu baú e vá, você e ele, para o inferno! Passe!”. Então os dois
criados carregaram o baú, e rapidamente se misturaram aos outros carregadores.
Eram passados apenas alguns instantes quando eu a ouvi dizer: “Ai de nós! O
califa!”; então eu morri, e me veio aquilo que não pude conter. O califa disse a
ela: “Ai de você, fulana! O que há nesses baús?”. Ela respondeu: “Roupas para a
senhora”. Ele disse: “Abra-os para que eu as veja!”. Ela disse: “Mas meu amo,
daqui a pouco a senhora os abrirá na sua frente!”. Ele disse: “Passe, pois, que eu
já vou”. Ela disse aos criados: “Depressa!”; entrou num aposento, abriu meu baú
e disse: “Suba aquelas escadas”, e eu assim fiz. Depois, recolheu um pouco do
que estava em cada um dos outros baús, colocou no que eu estava, e trancou-o.
Chegou o califa Almuqtadir, e os baús foram colocados diante dele. Em
seguida, ela foi até mim, tranquilizou-me e trouxe-me comida, bebida e tudo o
mais do que eu precisava, trancou o aposento e saiu.
No dia seguinte ela entrou, subiu até onde eu estava e disse: “Agora a senhora
virá para examinar você. Veja lá!”. E logo chegou a senhora; sentou-se numa
cadeira e mandou as criadas uma para cada canto, só restando uma ao seu lado; e
então a jovem me fez descer de onde eu estava.
Ao ver a senhora, beijei o chão, ergui-me e roguei a Deus por ela, que disse à
jovem: “De fato ele é o melhor que você poderia escolher para si. Por Deus que
ele é inteligente e ajuizado”, e saiu. Minha amiga levantou-se e saiu atrás dela,
voltando até mim após uns instantes. Disse: “Regozije-se! Por Deus que ela se
comprometeu a casar-me com você. Por ora, a única dificuldade a resolver é a
sua saída daqui do palácio”. Respondi: “Deus Altíssimo vai ajudar”.
No dia seguinte fui carregado no baú, e saí como entrei; o zelo da vigilância
era menor, e fui deixado na mesma mesquita da qual havia sido carregado.
Ergui-me depois de algum tempo e me dirigi à minha casa, onde distribuí
esmolas e cumpri minhas promessas.
Após alguns dias, veio até mim o seu criado portando uma carta, com a letra
dela, que eu já conhecia, e um saco com três mil dinares em moeda. Na carta ela
dizia: “A senhora ordenou-me que lhe enviasse este saco com três mil dinares da
verba dela. Compre roupas, um animal de galope e um criado para caminhar
diante de você; arrume a sua aparência, embeleze-se com tudo que puder e
dirija-se, no ‘dia da recepção’,[352] à porta do povo no palácio do califa.[353]
Espere até que seja possível levá-lo ao califa; peça-me em casamento na
presença dele”. Respondi à carta, tomei os dinares, comprando com eles o que
me fora determinado, e guardei o que sobrou.
Montei minha égua no dia da recepção e fui até a porta do povo. Parei, e
alguém veio chamar-me, levando-me para diante do califa Almuqtadir, que
estava no trono; os juízes, os membros do clã de Hāšim[354] e a corte estavam
de pé. Fui acometido por grande medo. Um dos juízes proferiu um discurso,
casando-me, e saí. Entrei num corredor que me conduziu a uma grande casa,
luxuosamente mobiliada, com toda espécie de apetrechos e criados. Fui instalado
e deixado a sós, retirando-se a pessoa que me acomodara.
Fiquei o dia inteiro sem ver um só rosto conhecido, com criados entrando e
saindo, e muita comida sendo carregada para cá e para lá. Eles diziam entre si:
“Esta noite serão as núpcias de fulana – e citavam o nome de minha mulher –
com seu esposo, bem aqui”.
Quando anoiteceu, a fome me atingiu; as portas foram trancadas, e desanimei
em relação à jovem. Pus-me a zanzar pela casa, até que cheguei à cozinha, onde
um grupo de cozinheiros estava sentado. Pedi-lhes comida, e eles, que não me
conheciam, imaginando que eu fosse algum encarregado, me ofereceram zīrbāja.
Comi e lavei as mãos com išnān[355] que havia na cozinha, apressadamente, a
fim de que não me descobrissem. Imaginei que me tivesse purificado de seu
odor, e retornei a meu lugar.
No meio da noite, eis que soaram tambores e tocaram-se flautas; as portas se
abriram, e minha amiga foi entregue a mim; trouxeram-na e exibiram-na toda
enfeitada e depilada; para mim, tudo parecia um sonho, no qual eu não podia
acreditar, tamanho era o meu regozijo; minha vesícula quase estourava de tanta
felicidade e alegria. Depois, as pessoas foram embora e ficamos a sós.
Quando me aproximei dela e a beijei, ela me empurrou, jogando-me no sofá;
disse: “Você se recusa mesmo a vencer na vida, homem vulgar, ou melhor,
homem vil!”. E levantou-se para sair. Agarrei-a, beijando-lhe as mãos e os pés, e
disse: “Diga qual foi meu erro, e depois faça o que bem entender!”. Ela disse:
“Ai de você! Come e não lava as mãos? E ainda quer ficar a sós com alguém
como eu?”. Eu disse: “Ouça minha história, e depois faça o que quiser”. Ela
disse: “Fale!”, e então eu lhe contei minha história; quando já estava quase no
fim, comecei a dizer: “Minha culpa! Minha culpa!”, e fiz imensas juras de que
nunca mais comeria zīrbāja, e, se o fizesse, lavaria as mãos quarenta vezes.
Ela se enterneceu, sorriu, e gritou pelas criadas, e então vieram cerca de vinte,
e ela lhes disse: “Tragam algo para comer”, e nos foi apresentada uma bela mesa,
com pratos de gêneros sofisticados, da mesa dos califas. Comemos todos, e ela
pediu bebida, e bebemos, ela e eu. Algumas criadas cantaram.
Fomos para a cama, e a possuí: era virgem, e eu a desvirginei, vivendo uma
noite do paraíso. Durante uma semana não nos separamos dia e noite, até que se
encerrou o “banquete da semana”.[356] No dia seguinte ela me disse: “O palácio
do califa não aceita hóspedes por um período maior do que este; o único que
passou as núpcias aqui foi você, e isso por causa dos cuidados que a senhora tem
para comigo. Ela me deu cinquenta mil dinares em moeda, papel, joias e tecidos.
E também tenho, fora do palácio, cabedais e tesouros que constituem o dobro
disso. É tudo seu. Saia, pois, leve dinheiro consigo e compre para nós uma bela
casa, bem grandiosa, em que haja um formoso jardim e muitos aposentos. Não
seja avarento como costumam ser os mercadores; meu costume é morar em
palácios. Muito cuidado: não vá comprar algo pequeno, pois eu não morarei lá.
Quando você comprar a casa, avise-me para que eu ponha em seu nome o meu
dinheiro e minhas criadas, e para que eu me mude até você”. Respondi: “Ouço e
obedeço!”, e ela me entregou dez mil dinares; tomei-os, fui à minha casa, visitei
várias casas e escolhi uma que correspondesse à sua descrição Depois escrevi-
lhe a respeito. Ela passou para mim todos aqueles bens – e ela possuía tal quantia
que eu jamais julgara ver, e isso além do que eu próprio possuía. Ficou comigo
muitos anos, e vivi com ela uma vida de califa. Durante esse período, não deixei
de exercer o comércio, pois meu espírito não me permite o abandono dessa
atividade nem a perda dos meios de subsistência. Meu dinheiro e opulência
aumentaram, e ela me deu estes rapazes – (e apontou para seus filhos). Ela
morreu, que Deus tenha piedade de sua alma, e sobre mim continuou a pesar a
promessa da zīrbāja: quando a como, lavo as mãos quarenta vezes.
ANEXO 8
Na obra Murūj Aḏḏahab wa Maᶜādin Aljawhar [Pradarias de ouro e minas de
pedras preciosas], o historiador ᶜAlī Bin Alḥusayn Almasᶜūdī, morto em 956
d.C., apresenta uma narrativa da época do califado de Alma’mūn, que reinou
em Bagdá entre 813 e 833. Conforme se pode constatar adiante, essa ocorrência
apresenta similaridades com a história do barbeiro de Bagdá, na centésima
quinquagésima primeira noite e na seguinte, e foi uma das fontes de que se
serviu o autor das Mil e uma noites.[357]
Alma’mūn recebeu denúncias sobre dez maniqueus,[358] adeptos da doutrina de
Mānī,[359] que fala de luz e treva. Eram todos de Basra. Depois que lhe deram o
nome de um por um, o califa ordenou que fossem conduzidos até ele.
Quando esses homens foram reunidos, um intrujão[360] avistou-os e pensou:
“Esses aí não se reuniram senão para alguma função”. Então entrou no meio
deles e pôs-se a caminhar com aqueles homens, sem saber quem eram.
Finalmente os encarregados chegaram com o grupo até uma embarcação, e o
intrujão pensou: “Sem dúvida que será um belo passeio”, e entrou com eles na
embarcação. Mais que rapidamente foram trazidas correntes e o grupo todo foi
acorrentado, inclusive o intrujão, que disse: “A minha intrujice foi denunciada e
me acorrentaram”. Em seguida ele se voltou para aqueles senhores e perguntou:
“Seja eu o seu resgate! Quem são vocês?”. Eles retrucaram: “Mas e você, quem
é? Que posição ocupa entre os nossos irmãos?”. Ele respondeu: “Por Deus que
só sei que sou, por Deus, um intrujão que hoje saiu de casa e deparou com vocês.
Vi então um belo cenário, sintomas promissores, uniformes oficiais e bem-estar.
Pensei: ‘Senhores, anciões e jovens foram reunidos para um banquete’, e logo
me enfiei no meio de vocês, entrando na fila como se fizesse parte do grupo.
Vocês vieram para esta embarcação, a qual eu vi que estava muito bem equipada
e arrumada; vi ainda mesas cheias, mochilas e cestos e pensei: ‘É um passeio;
estão indo para algum palácio com jardins. Este é um dia abençoado’, e me
maravilhei de alegria, até que veio esse encarregado e acorrentou vocês e a mim.
Isso que me aconteceu está me fazendo perder o juízo. Contem-me o que está
acontecendo”.
Então eles riram dele, sorriram, ficaram felizes e alegres, e disseram: “Agora
você já está na lista de acusados, preso com correntes de ferro. Quanto a nós,
somos maniqueus que foram delatados ao califa Alma’mūn. Seremos conduzidos
até ele, que vai nos questionar sobre nossa condição e tentar nos fazer revelar
nossa doutrina. Irá nos exortar ao arrependimento e à desistência da doutrina
maniqueísta, submetendo-nos a provações de várias espécies, entre as quais
exibir uma imagem de Mānī e ordenar que cuspamos sobre ela e declaremos não
ter nada que ver com Mānī; ou então nos ordenará que sacrifiquemos uma ave
aquática, o francolim.[361] Quem obedecer às suas ordens se salvará, mas quem
desobedecer será morto. Portanto, quando o chamarem e submeterem às
provações, informe quem você é e fale sobre a sua fé, conforme os sinais que for
extraindo ali. Você alegou ser intrujão, e os intrujões normalmente conhecem
conversas e notícias. Assim, ajude-nos a atravessar essa viagem até a cidade de
Bagdá contando alguma história e peripécia”.
Quando chegaram a Bagdá, foram conduzidos até Alma’mūn, que se pôs a
chamar cada um deles pelo nome. Interrogava-o sobre a sua doutrina, e o homem
informava que era o islã. Então o califa submetia-o a uma prova, pedindo-lhe
que declarasse não ter nada a ver com Mānī, e lhe mostrava uma imagem dele,
ordenando-lhe que cuspisse sobre ela e declarasse não ter nada que ver com ela.
Conforme eles iam se recusando, ele mandava que fossem passados a fio de
espada. Até que, depois de ter acabado com os dez, chegou a vez do intrujão. No
entanto, como já se houvessem contado os dez membros do grupo, o califa
perguntou aos encarregados: “Quem é este?”. Responderam-lhe: “Por Deus que
não sabemos. Mas, como o encontramos no meio do grupo, o trouxemos junto”.
Alma’mūn lhe perguntou: “Qual é a sua história?”. Ele respondeu: “Ó
comandante dos crentes, divorcio-me de minha mulher se eu souber algo a
respeito da doutrina deles. Sou apenas um intrujão”, e lhe contou a sua história
do começo ao fim. Então o califa riu e lhe mostrou a imagem de Mānī, que o
intrujão amaldiçoou e declarou nada ter a ver com ela. Disse: “Entreguem-ma
para que eu defeque sobre ela! Por Deus que não sei quem é Mānī, se judeu ou
muçulmano”. Alma’mūn disse: “Castiguem-no pela excessiva intrujice e por
colocar a vida em risco”.[362]
ANEXO 9
As histórias dos seis irmãos do barbeiro de Bagdá, narradas entre a centésima
quinquagésima terceira noite e a centésima septuagésima noite, tiveram como
fonte as histórias de seis personagens constantes de um livro denominado
Alḥikāyāt Alᶜajība wa Al’aḫbār Alġarība [Histórias espantosas e crônicas
prodigiosas], cujo manuscrito remonta aos séculos xiii ou xiv d.C., muito
embora a data da elaboração dessas histórias deva ser anterior. Nessa obra,
seis personagens com defeitos físicos, cujos relatos recebem a denominação de
ḥadīṯ muḍḥik [“história cômica”], são reunidos pela aia de um rei insone (e
inominado, num país indeterminado, e num tempo também indeterminado) para
lhe contar suas histórias e distraí-lo. Traduz-se aqui o primeiro desses relatos,
que é o do alfaiate corcunda (correspondente à história do primeiro irmão do
barbeiro de Bagdá, na centésima quinquagésima terceira noite e nas três noites
seguintes), a fim de que o leitor possa verificar o grau de alterações que o autor
das Mil e uma noites operou no texto ao introduzi-lo em sua obra.[363]
Fique sabendo, ó rei, que eu vivia na cidade tal e tal, exercendo a alfaiataria num
estabelecimento por mim alugado, havia algum tempo, de um homem próspero e
de abundantes cabedais, que tinha, no andar térreo de sua residência, uma
moenda. O homem morava no alto dessa residência, que era portentosa. Certo
dia, enquanto eu costurava em minha alfaiataria, ergui a cabeça e vi, pela
claraboia da casa do mercador, uma mulher que parecia o plenilúnio em
ascensão; era a esposa dele, e estava espreitando as pessoas; sua beleza era
esplêndida e sua figura, formosa. Assim que a vi, o fogo se acendeu em meu
coração, e permaneci o dia inteiro sem costurar, com a cabeça erguida para a
claraboia, olhando para o ponto em que ela estava. Quando aquilo já se tornava
demasiadamente prolongado e a noite caía, já sem esperanças de ter alguma
coisa com ela, fui embora entristecido e amargurado; não consegui comer, beber
ou dormir por causa daquilo em que meu coração incidira. Com tudo isso, eu
censurava e repreendia minha alma por haver chegado àquele ponto. Continuei
em tal estado até o amanhecer, quando então, apressado, tomei o caminho da loja
e me sentei no mesmo lugar, ansioso por vê-la. Dispensei todos que trouxeram
algo para costurar, a fim de que a costura não me distraísse e impedisse de ver a
mulher. Continuei assim até que ela veio, conforme seu hábito. Quando botei os
olhos sobre ela, meu coração disparou, meu juízo desapareceu, e caí desmaiado
por horas. Em seguida acordei e me retirei da loja no mais deplorável estado. No
dia seguinte, estava eu refletindo, com a mão espalmada sob o queixo, sentado,
com os olhos voltados em sua direção, quando ela apareceu e se instalou no
lugar em que ficava; vendo que eu não desviava meu olhar dela, afetou amor e
sorriu para mim, e eu sorri para ela, que fez sinal enviando uma saudação, e eu
respondi à saudação. Depois, sumiu de minhas vistas e me enviou sua criada
com um embrulho de pano, no qual estavam enrolados muitos tecidos de
qualidade. A criada me disse: “Minha patroa lhe envia saudações e lhe diz, ‘Pelo
valor que a minha vida tem para você’, que desses tecidos você lhe tire a medida
de uma túnica e a costure com muito esmero”. Respondi: “Ouço e obedeço.
Louvores a Deus, que me manteve vivo para que ela tivesse necessidade de
mim!”, e, em seguida, cortei-lhe uma túnica enquanto ela permanecia lá parada
na minha frente, observando. Eu mantinha a cabeça abaixada na costura, e
quando fazia menção de descansar, ela dizia: “Pelo valor que a minha vida tem
para você, não largue o pano!”. Então minha alma se agradava com as suas
palavras e mais cobiçava a mulher. Nem bem anoiteceu e terminei a túnica,
entregando-a a ela. Logo na manhã do dia seguinte a criada veio até mim e disse:
“Minha patroa lhe envia especiais saudações e lhe pergunta: ‘Como passou a
noite? Pois eu nesta noite não provei o sono de tanto que o meu coração está
ocupado com você. Não fosse o medo dos delatores, iríamos até você sem
maiores delongas’, e também lhe diz: ‘Corte umas calças grandes para mim e
costure com esmero, a fim de que eu as vista com a túnica’”. Respondi: “Ouço e
obedeço”, e comecei a cortar, mergulhando na costura, até que a mulher se
dirigiu à claraboia e me cumprimentou, agradando à minha alma enquanto eu
costurava e não me deixando sair dali até que terminei o serviço e me retirei para
minha casa, perplexo, sem ter condições de arranjar algum alimento nem saber
como fazê-lo. [...][364] Antes que eu me desse conta, a criada veio até mim e
disse: “O meu patrão convida-o a ir até sua casa”. Ao ouvir a referência ao
patrão, amedrontei-me, temeroso de que ele houvesse descoberto a minha
situação. Mas a criada disse: “Nada tema, pois não se deu senão o bem. Minha
patroa o agradou bastante para que você e ele entabulassem conhecimento. As
coisas estão correndo do jeito que ela quer”. Ergui-me então, contente, e fui até o
homem; saudei-o, ele retribuiu à minha saudação, deu-me boas-vindas,
perguntou com gentileza como eu estava, e mandou trazer umas caixas, das
quais retirou sedas de Dubayq, e me disse: “Faça com este tecido umas túnicas
caprichadas”. Então não parei de trabalhar até que cortei vinte túnicas, e o
mesmo tanto de meias e lenços.[365] Fiquei tirando a medida dos tecidos até que
escureceu, sem parar nem provar comida ou levar algo à boca. Depois o homem
me disse: “Ó pai do galho,[366] de quanto é o seu pagamento pela costura?”.
Como eu não respondesse, ele insistiu: “Diga e não tenha vergonha”. Então eu
disse: “Não receberei pagamento, meu amo!”. Ele disse: “Mas é imperioso que
você receba”. Eu disse: “Vinte dirhams”. De repente, a jovem surgiu por trás
dele, como se estivesse encolerizada e aborrecida comigo – “como você está
cobrando?” –, e então eu, percebendo aquilo, disse: “Por Deus, meu amo, não
cobrarei nada esta noite”, e recolhi os panos, mergulhando naquele trabalho,
embora estivesse necessitado nem que fosse de um único centavo. Passei três
dias me alimentando de menos de cem gramas[367] diárias de pão, mais nada, e
a fome me devastou. Quando terminei a costura, a criada veio e perguntou: “O
que você fez com os tecidos?”. Respondi: “Terminei”. Ela disse: “Pegue-as e
venha comigo”, e então recolhi as roupas e caminhei com ela até o esposo da
jovem; entreguei-as a ele, que fez menção de me pagar os dirhams, mas eu jurei
que não receberia, e disse: “Meu amo, não receberei nada. Qual o valor desta
costura? Temos ainda muito tempo à nossa frente; eu lhe pertenço e estarei
sempre ao seu dispor”. O homem me fez os melhores votos, e fui embora para
minha casa. Naquela noite, não dormi devido à fome e ao mau estado em que me
encontrava; costurando para a mulher e para o seu marido, eu deixara de obter
meu sustento. Quando amanheceu, fui para a loja; ainda não tinha terminado de
abri-la e um mensageiro daquele homem veio me chamar. Fui até ele, que me
disse: “Ó pai do galho, você fez a gentileza de costurar estas roupas e não
receber paga, mas aceitar isso está sendo penoso para mim. Agora eu quero fazer
alguns gibões e gostaria que você cuidasse do assunto e os costurasse com
capricho, que desta vez eu lhe pagarei e não aceitarei recusas. Costure cinco
gibões para mim”. Então costurei e me retirei para casa numa situação
deplorável, morto de fome. Todo dia eu era obrigado a lançar mão de alguma
artimanha para conseguir algo com que me manter. Bastava porém que eu me
lembrasse daquela mulher e de sua beleza para tudo se tornar suportável; eu
então pensava: “Um só beijo dela lavará toda essa penúria; quando aquele belo
rosto estiver ao meu alcance, nenhum desses sofrimentos terá importância”.
Terminei, portanto, aquelas costuras, e as levei ao homem, que apreciou o
trabalho e me agradeceu muito dizendo: “Que Deus o recompense, ó pai do
galho. Eu gostaria que você recebesse a paga por todo o seu serviço”, e mandou
que se trouxesse um saco a fim de me pagar.[368] Eu esperava receber qualquer
coisa, por mínima que fosse, devido ao estado de penúria ao qual me reduzira.
Quando fiz menção de receber, a jovem me apareceu ao longe fazendo com as
mãos sinais para que eu não recebesse nada; seus sinais diziam: “Se você receber
um único dirham, eu ficarei zangada”. Temeroso daquele recado, eu disse ao
homem: “Não tenha pressa, meu senhor. Ainda temos muito tempo; o que ficar
em suas mãos não está perdido, e, embora eu seja pobre, não estou precisando
agora”,[369] e tanto insisti que ele recolheu os dirhams e me agradeceu. Saí de lá
perplexo pela perda daqueles dirhams. Em meu coração, devido ao amor pela
jovem, lavrava um incêndio. Retirei-me para minha casa. Várias coisas tinham
se reunido contra mim: paixão, falência, fome, nudez e exaustão. Apesar disso,
eu procurava estimular minha alma, prometendo-lhe o triunfo em sua paixão.
Mas o fato é que, sem que eu desconfiasse, a mulher dera a saber ao marido de
minha situação, que eu a amava e me exibia para ela, e então juntos eles
deliberaram explorar o meu trabalho de costura e divertir-se às minhas custas.
Quando terminei todos os serviços que eles me pediram, ela se pôs a me vigiar;
se porventura visse alguém contando dinheiro para me pagar, ela me enviava a
criada com o recado: “Minha patroa lhe envia saudações e manda dizer:
‘Empreste-me agora a quantia tal e tal’”. Eu não conseguia desobedecer. Assim,
ela começou a levar toda moeda que brilhava diante de mim. Fiquei na maior
dificuldade de sobrevivência, e na mais portentosa paixão. Em meio a tudo isso,
ela me fazia promessas dizendo: “Tenha paciência, não estrague o que você já
fez; estou preparando-lhe algo cujo benefício reverterá em seu favor. Logo você
verá. Aquiete-se, portanto, que o meu coração ficará tranquilo”.
[Continuou o corcunda:] Certo dia, estando eu sentado com o olhar fixo na
claraboia, de repente veio ver-me um dos meus mestres. Como eu insistisse em
ficar olhando para a claraboia, e como o mestre, depois, visse a jovem, a minha
situação ficou clara para ele; levantou-se e foi para casa, desaparecendo por
algum tempo; a seguir, retornou empunhando três grandes peças de tecido, e me
disse: “Ó, pai do galho, eu conheço os astros, sou perito em feitiços, e
clarividente em esconjuros. Você sabe o afeto que lhe tenho. Examinei o seu
horóscopo e verifiquei que o seu coração se encontra ocupado, que você está
apaixonado por uma jovem que também está apaixonada por você. Entretanto,
você precisa de auxílio com incensos e esconjuros, além de um papel escrito no
qual se registrem bons augúrios zodiacais.[370] Quando você o pendurar em seu
braço, e ela lhe puser os olhos, mal conseguirá se conter, lançando-se em seus
braços e se entregando; então você terá obtido o que deseja”. Fiquei feliz com as
palavras do mestre e roguei que me ajudasse a triunfar e alcançar o meu intento
por meio de seus feitiços; disse-lhe: “Meu senhor, estou numa situação difícil”, e
comecei a me queixar dos meus sofrimentos de amor. Ele disse: “Eu o farei
atingir o seu objetivo. Costure rapidamente estas roupas; além delas, serão
necessários incensos e poções. Se você não fosse meu amigo, eu lhe cobraria
alguns dinares. De qualquer modo, é imperioso conseguir incenso, pois eu tenho
de incensar o local onde escreverei os bons augúrios zodiacais. Preciso de
muitos dirhams, devido ao preço do incenso e dos demais materiais. Se estiver
mesmo disposto, traga-me os dirhams para eu comprar as coisas necessárias,
perfumes e incensos; irei ajudá-lo escrevendo eu próprio os bons augúrios
zodiacais, e isso pela solidariedade e pelo afeto que nutro por você”. Levantei-
me imediatamente, tomei alguns dirhams emprestados, e entreguei-os a ele;
arranjei-lhe também muitos perfumes e incensos, e disse: “Meu senhor, vou
iniciar a costura das roupas. Não esqueça de fazer o que eu preciso”, e comecei a
costurar-lhe as roupas dia e noite. Em menos de dois dias terminei tudo e lhe
levei as roupas; pensei ainda: “Esse homem se ofereceu voluntariamente para
satisfazer minha necessidade; é imperioso, pois, que eu lhe dê um presente”.
Vendi então uma roupa que eu usava, e com o dinheiro lhe comprei um presente.
Ele não quis aceitá-lo, mas eu tanto insisti que ele acabou aceitando. Pus-me
então a aguardar. Depois de cinco dias ele foi me visitar carregando uma
pequena folha de papel amarrada, e disse: “Já preparei muito bem o que você
desejava. Pegue esta folha, pendure-a no braço, e agora mesmo a verdade de
minhas palavras lhe ficará evidente”. Peguei a folha, pendurei-a em mim por
alguns instantes, e logo a mulher apareceu na claraboia. Pus-me a rir para ela e a
pensar: “Quem dera você soubesse que eu a enfeiticei para possuí-la, a despeito
de sua vontade”. Não demorou muito e sua criada veio até mim, transmitiu-me
saudações e disse: “Minha patroa lhe diz: ‘Já se aproxima a hora da sua
satisfação, a despeito do meu marido, que irá viajar para certa aldeia a fim de
resolver algum interesse dele, e ali permanecerá alguns dias. Quando isso
ocorrer, você alcançará o que deseja’”. Agradeci-lhe as palavras e pensei:
“Como é clarividente em feitiços e esconjuros esse mestre!”. Dormi feliz
naquela noite, mal podendo esperar o amanhecer. Mas a mulher combinara com
o marido toda a história, sem que eu desconfiasse. Quando amanheceu, a criada
foi até mim e disse: “Minha patroa o saúda, totalmente vencida pela paixão por
você, e diz: ‘Meu marido decidiu viajar nesta noite; portanto, não saia daí’”. Mal
pude esperar o anoitecer, quando então vi o seu marido sair montado e vestindo
roupas de viagem. Soube então que meu objetivo seria satisfeito. Ao escurecer, a
criada veio e disse: “Levante-se”, enquanto eu mal podia acreditar em tanta
felicidade. Quando entrei na casa, a mulher me recepcionou, deu boas-vindas, e
disse: “Meu senhor, vida e fruto do meu coração, não tive paz nem sossego até
que meu marido saiu! Louvores a Deus, que nos reuniu um ao outro na mais
completa alegria”. Em seguida mandou trazer comida, que foi posta diante de
nós, e então comemos. Minha felicidade seria ganhar um beijo seu. Quando
terminamos e lavamos as mãos, eu lhe disse: “Minha ama, cumpra-me um
desejo: um beijinho que me faça reviver, pois estou morto!”. Ela disse: “Que
pressa é essa, seu frívolo? A noite está toda diante de nós; você vai conseguir o
que deseja!”. Ela mal terminara essas palavras quando ouvimos fortes batidas à
porta. Perguntei: “O que é isso?”. Ela respondeu: “Por Deus que meu marido já
chegou!”. Eu disse: “Ai de você! O que está dizendo?”. Ela respondeu: “Isso
mesmo que você ouviu!”. Perguntei: “E o que farei?”. Ela disse: “Por Deus que
não sei!”. Fiquei atarantado, e ela disse: “Venha para que eu o amarre na
moenda, no lugar do jumento. Depois apagarei o lampião. Quando entrar, meu
marido dormirá, totalmente exausto, e então retomaremos a comida e a bebida”.
Respondi: “Faça logo”, e ela tomou a iniciativa: soltou o jumento, amarrou-me
em seu lugar, apagou o lampião e disse: “Gire a moenda sem parar! Ó Deus! Ó
Deus! Muito cuidado!”. Deixou-me, saiu e abriu a porta para o marido, que
entrou e ficou algum tempo sentado, enquanto eu girava a moenda. Parei então
para descansar, e ouvi o homem dizendo: “Qual é o problema desse jumento
miserável? Parou! Nesta noite não o estou ouvindo trabalhar com a mesma
velocidade de antes. Temos muito grão para moer! Quando vai acabar?”. Então
ele foi até a moenda, colocou trigo no balde, veio até mim empunhando um
chicote, e não parou de me chicotear nas pernas enquanto eu corria moendo
trigo, e ele gritava comigo no escuro como se não me visse. Assim ficamos até
que se aproximou a aurora; a cada vez que eu mostrava intenção de descansar,
ele vinha e me aplicava dolorosas chicotadas, dizendo: “Miserável! O que você
tem que não gira nesta noite?”. Quando chegou a aurora, ele subiu para sua casa
e eu parei como se estivesse morto, pendurado naquelas cordas e madeiras. A
criada veio e me disse: “Por Deus que me dói o que lhe sucedeu. Eu e minha
patroa não dormimos nesta noite por causa de suas terríveis tribulações”. Minha
língua não conseguiu lhe dar uma resposta. Saí morto de cansaço e da dor das
chicotadas, e fui para casa. Então o mestre que escrevera a folha veio visitar-me.
Saudou-me e disse: “Que Deus lhe preserve a vida, ó pai do galho! Eis aí a
fisionomia que indica bem-estar, agrados, beijos e abraços!”. Respondi: “Que
não viva quem mente, seu cafetão de mil cornos! Por Deus que não passei a
noite senão moendo no lugar do jumento e apanhando até o amanhecer”. O
homem disse: “Conte-me o que lhe aconteceu”, e então eu contei. Ele disse:
“Seu astro não foi compatível com o dela. Se você quiser, porém, posso alterar
os bons augúrios zodiacais”. Respondi: “Presumo que em sua casa ainda reste
um corte de tecido que você quer que eu costure”, e tomei o rumo da alfaiataria a
fim de esperar algum freguês para o qual costurar, e receber alguma coisa com
que me sustentar. Quando me sentei, a criada chegou e disse: “Como está, meu
senhor? Minha patroa lhe envia especiais saudações. O coração dela está em
chamas por você. Não fique triste, pois a situação está sob o seu controle”. Então
eu lhe respondi: “Suma-se, ó...[371] Presumo que o trigo de vocês já acabou!”.
Ela disse: “Louvado seja Deus! Parece que você está acusando a minha patroa!”.
Respondi: “Fulana, retire-se daqui! Quem sabe Deus não me proporciona algum
freguês para que eu faça uma costura e receba algo com que me manter. Não
quero falar com sua patroa nem com você!”. A criada saiu e informou a patroa
do que eu dissera. Antes que eu me desse conta, a mulher foi para a claraboia
com a mão no rosto, como se estivesse chorando e dizendo: “Ó amado dos meus
olhos! Como está?”. Mas não respondi. Ela se pôs então a fazer imensas juras de
inocência, e que o sucedido comigo se dera apesar dela. Quando vi a beleza de
seu rosto, a dor e a surra que me atingiu se dissiparam e aceitei suas desculpas.
Fiquei contente em vê-la, e pensei: “Um rosto formoso como esse não mente”.
Então saudei-a, ela me saudou, e conversamos longamente. Durante algum
tempo fiquei sem costurar nem trabalhar de graça para ela. Certo dia, a criada
veio e disse: “Minha patroa lhe envia saudações e diz: ‘Meu marido decidiu
visitar um amigo do qual está com saudades e em cuja casa irá dormir. Quando
eu souber que ele está com esse amigo, esconderei você dentro de algum
cômodo. Quando todos os caminhos estiverem fechados e não houver mais
ninguém nas redondezas, abrirei o cômodo e passaremos muito bem a noite;
você gozará de bem-estar, será compensado dos sofrimentos da outra noite e
receberá tudo quanto perdeu’”. Mas o fato é que o seu marido lhe havia dito: “O
corcunda desistiu de ser seu amigo!”. Ela respondera: “Deixe-me fazer-lhe uma
artimanha que irá torná-lo infame na cidade inteira”. Eu não sabia de nada disso.
Quando anoiteceu, a criada veio, introduziu-me na casa e me escondeu. Quando
os caminhos foram fechados e ninguém mais caminhava pelas ruas, a mulher me
retirou e, ao me ver, deu boas-vindas e disse: “Deus sabe o que meu coração
sente por você! Por Deus que estou com saudades de você, de verdade. Nesta
noite você resgatará tudo quanto perdeu. Não fique chateado”. E mandou servir
comida. Eu disse: “Vamos, minha senhora, dê-me logo um beijo, pois eu a amo
mais do que a vida!”. Mal terminei de pronunciar essas palavras e eis que o
marido dela surgiu de dentro de um dos cômodos. Agarrou-me e disse: “Seu
depravado! É essa a recompensa que me dá! Introduzi você em minha casa, dei-
lhe preferência a outros, e você vem me trair e desonrar? Por Deus que não o
largarei até colocá-lo diante do encarregado de polícia”. Quando amanheceu, fui
levado ao chefe de polícia, surrado com cem chibatadas e exibido pela cidade no
dorso de um camelo enquanto gritavam: “Esse é um ladrão que avançou contra a
mulher dos outros!”. Depois fui expulso da cidade, e saí sem saber qual rumo
tomar. Então encontrei essas pessoas[372] correndo a toda a pressa por aí, e me
juntei a eles.
E o rei riu tanto de sua história que quase desmaiou. Em seguida, deixou o
corcunda num canto. E é essa a sua história.[373]
ANEXO 10
As maqāmas [“sessões” ou “assembleias”] constituem um gênero (mais
reconhecidamente cômico, embora nem sempre o seja) surgido nas letras árabes
por volta do século X. Consistiam em aventuras redigidas em prosa rimada e
preciosista, e narradas em primeira pessoa por um personagem com
características de pícaro. O principal autor do gênero, também considerado por
muitos seu fundador, foi Badīᶜ Azzamān Alhamaḏānī (968-1007 d.C.), de cujas
maqāmas somente uma parte (52) chegou até os dias de hoje. Eram todas
narradas por um personagem chamado ᶜĪsa Bin Hišām, e contavam as
peripécias do protagonista, o anti-herói Abū Alfatḥ Aliskandarī. Uma delas, a
maqāma da maḍīra [“carne cozida na coalhada”], pode ter servido como
referencial, ainda que longínquo, para a história do sexto irmão do barbeiro, o
de lábios cortados (centésima sexagésima sexta noite e as duas seguintes).[374]
A sessão da carne cozida na coalhada
ᶜĪsa Bin Hišām nos relatou o seguinte:
Eu estava em Basra com Abū Alfatḥ Aliskandarī, o homem da eloquência, à
qual ele chama e ela comparece, e da retórica, à qual ele ordena e ela obedece.
Fomos com ele a um banquete oferecido por certo mercador, e então nos foi
servida uma carne cozida na coalhada que fazia o elogio da civilização ao se
balançar dentro da tigela; anunciava o bem-estar e testemunhava que a liderança
de Muᶜāwiya,[375] que Deus o tenha, era legítima, num recipiente pelo qual o
olhar deslizava e no qual sua boa aparência se destacava. Quando os pratos
tomaram seu lugar na mesa e ocuparam os corações, levantou-se Abū Alfatḥ
Aliskandarī e se pôs a amaldiçoar a comida e quem a servira, e a declarar sua
náusea por ela e por quem já a comera, e a ofendê-la e a quem a cozinhara.
Supusemos que ele estivesse gracejando, mas era exatamente o contrário, pois se
tratava de coisa muito séria. Afastou-se do prato e abandonou o socorro dos seus
camaradas. Mandamos então que fosse retirada, e com ela se retiraram nossos
corações, viajando em seu encalço os olhos, salivando por ela as bocas,
lambendo-se por sua causa os lábios, incendiando-se devido a ela os fígados,
enquanto o coração seguia seu rastro. Contudo, apoiamo-lo em dispensá-la e lhe
perguntamos qual era o problema. Ele disse: “A desgraça que vivi por causa dela
é mais forte do que a minha vontade de comê-la, e, se eu a contar a vocês, não
estarei seguro de que não os deixarei exasperados nem os farei perder seu
tempo”. Dissemos: “Conte!”. Então ele disse:
Certo mercador convidou-me para comer em sua casa uma carne cozida na
coalhada quando eu estava em Bagdá, e me perseguiu tal como alguém persegue
um devedor, ou um cão ao seu senhor.[376] Então respondi afirmativamente, e
fomos para lá. Durante todo o caminho ele se pôs a louvar sua esposa, dizendo
que daria o sangue de seu próprio coração para resgatá-la, e descrevendo a sua
habilidade no que fazia bem como sua perícia em cozinhar; dizia: “Ah, meu
amo, se você a visse de avental à cintura, indo de cômodo em cômodo, do forno
às panelas, das panelas ao forno, assoprando o fogo com a boca e amassando os
grãos com as próprias mãos. Ah, se você visse a fumaça cobrindo aquele rosto
formoso e atingindo aquela face de alabastro! É um cenário que deixa os olhos
perplexos. Eu a amo porque ela me ama, e a felicidade do homem consiste em
ser agraciado por uma companheira que o auxilie e uma esposa que o apoie,
especialmente se ela for de sua natureza, e ela é minha prima paterna de sangue,
sua natureza é a minha natureza, sua cidade é a minha cidade, seus tios paternos
são os meus tios paternos e sua origem é a minha origem. Contudo, ela é mais
generosa do que eu, e também mais formosa”. E me causou dor de cabeça com
as virtudes de sua esposa. Então chegamos à vila onde ele morava. Ele disse:
“Está vendo esta vila, meu amo? É a mais nobre de Bagdá. Os homens de bem
disputam entre si para habitá-la, e os maiorais fazem ciúme uns aos outros vindo
morar aqui. E somente os mercadores residem aqui, pois o vizinho é que faz o
vizinho. Minha casa é a melhor joia deste colar, ponto central nesta
circunferência. Quanto você calcula, meu amo, que se gastou para construir cada
casa desta vila? Diga por hipótese, se não tiver certeza!”. Respondi: “Muito”.
Ele disse: “Louvado seja Deus, que grande erro! Você disse ‘muito’, apenas!”. E,
suspirando profundamente, continuou: “Louvado seja Deus, que sabe das
coisas!”. Chegamos então à porta de sua casa. Ele disse: “Eis a minha casa.
Quanto você avalia, meu amo, que eu gastei nesta janela? Por Deus que foi um
valor maior que o suportável, mais que insuperável. O que você acha de sua
construção e forma? Por Deus, já viu igual? Observe a exatidão de sua
construção, contemple a formosura de sua inclinação! Parece que foi desenhada
com compasso! Repare só na perícia do marceneiro que construiu esta porta! De
quantas placas ele a fez?; responda ‘e como vou saber?’, pois se trata de uma
peça inteiriça de plátano, sem insetos nem umidade. Se a abro ou fecho, suspira;
se bato, brame. E quem a fez, meu senhor? Quem a fez foi Abū Isḥāq Bin
Muḥammad de Basra, que por Deus é um homem de serviço limpo, clarividente
na construção de portas, e cuja mão trabalha com leveza. Como é excelente
aquele homem! Por vida minha que não utilizo senão os seus trabalhos, ou de
quem lhe seja semelhante. Esta aldrava que você está vendo, comprei-a no
mercado de raridades, de ᶜUmrān Aṭṭarā’ifī, por três dinares egípcios. Quanto
cobre amarelo ela contém, meu senhor? São sete arráteis! Ela gira por meio de
um pino preso à porta. Por Deus, gire-a! Agora bata nela e contemple-a. Pelo
valor que minha vida tem para você, só compre aldravas de ᶜUmrān Aṭṭarā’ifī,
pois ele não vende senão coisas preciosas!”. Então ele bateu à porta e entramos
no saguão. Ele disse: “Que Deus a mantenha bem construída, ó casa! Que nunca
a destrua, ó parede! Como são firmes os seus muros, resistente a sua estrutura, e
sólido o seu alicerce! Por Deus, observe as suas escadarias, contemple os seus
corredores de entrada e saída, e me pergunte: ‘Por quanto você a comprou? De
quantos ardis lançou mão para se tornar seu proprietário?’. Eu tinha um vizinho
cuja alcunha era Abū Sulaymān, que residia nesta vila e tinha tantos cabedais
que não cabiam nos armários, e tanto ouro e prata que não conseguia pesar. Ele
morreu, que Deus o tenha, e seu herdeiro dilapidou o patrimônio entre bebidas e
cantoras, e o rasgou entre partidas de triquetraque e jogos de azar. Temeroso de
que o império da necessidade o obrigasse a vender a casa – e de que ele o fizesse
num momento de desequilíbrio, ou a colocasse em perigo, e me deixasse
arrependido de não haver agido, lamentando-me com o que fora perdido até o
final dos meus dias –, recolhi roupas velhas cujo comércio já não se fazia,
carreguei-as até ele e lhas ofereci em negócio. Propus-lhe que as comprasse a
prazo, pois os desprevenidos, quando compram a prazo, pensam que receberam
uma doação, e os remediados, que ganharam um presente. Pedi-lhe um
documento comprovando a dívida, e ele o fez e assinou. Deixei a cobrança de
lado por algum tempo, até que a túnica de sua condição se amarfanhasse e
corroesse; só então fui até ele e cobrei; ele pediu prazo, e eu dei. Foi então atrás
de outras roupas; chamei-o e lhe pedi que desse a casa em garantia, mediante
documento assinado e comigo depositado, e ele assim agiu. Depois, fui
gradualmente envolvendo-o em negócios que o forçaram a vender a casa. Foi
então que, com uma sorte crescente a me auxiliar e muita firmeza de decisão, ela
chegou às minhas mãos. Um grande esforço muitas vezes resulta em proveito do
alheio.[377] E eu, graças a Deus, tenho muito boa estrela, o que em situações
como essa é bastante louvável. Basta-lhe saber, meu amo, que há algumas noites
estava eu dormindo na casa, junto com todos os seus moradores, quando bateram
à porta. Perguntei: ‘Quem bate tão fora de hora?’. E eis que era uma mulher
oferecendo à venda um colar de pérolas transparentes como água e delicadas
como miragem. Comprei-o dela como se o estivesse sorrateiramente roubando,
porquanto o preço que paguei foi ínfimo. Esse colar trará visíveis benefícios e
vastos lucros, com a ajuda de Deus e seu império. Só lhe contei essa história
para que você fique sabendo como é bem-aventurado o meu destino no
comércio. A felicidade faz a água brotar das pedras. Como Deus é grande! Não
há nada que mais verazmente lhe fale do que sua própria alma, nem nada mais
próximo de si do que suas experiências passadas. Este tapete, comprei-o num
leilão. Foi retirado da casa da família Alfurāt, na época das expropriações,
quando houve muitas lutas e rapinagens. Eu procurava um tapete igual já fazia
longo tempo, mas não encontrava. O destino é uma grávida: não se sabe o que
irá parir. Por coincidência, eu passava no bairro de Aṭṭāq no momento em que
este tapete era oferecido. Paguei por ele tantos dinares. Por Deus, contemple sua
perfeita confecção, suavidade e cor: é portentoso o seu valor, e só raramente se
encontra um igual. Se porventura você já ouviu falar de Abū ᶜUmrān, o
tapeceiro, foi ele quem o fez; agora, em seu estabelecimento, ele já tem um filho
que cuida dos negócios; é somente ali que se encontram coisas valiosas. Por vida
minha, não compre tapetes senão dele: o homem crente deve aconselhar seus
irmãos, em especial aquele que se torna seu comensal. Mas voltemos a falar da
carne cozida na coalhada, pois já é meio-dia. Criado, traga água e bacia!”.
Pensei: “Deus é grande! A liberdade está próxima, e a saída, ao alcance!”. O
criado veio. O mercador disse: “Está vendo este criado? É bizantino de origem e
iraquiano de nascimento. Venha cá, rapaz, descubra a cabeça, as pernas e os
braços. Exiba os dentes. Dê uma volta”, e o criado agiu conforme ele ordenara.
O mercador perguntou: “Por Deus, quem o comprou? Por Deus que foi
comprado, de um mercador de escravos, por Abū Alᶜabbās! Deixe a bacia e traga
a chaleira”. Então o criado trouxe a chaleira. O mercador pegou a bacia e pôs-se
a girá-la, correndo os olhos por ela e finalmente lhe dando um piparote. Disse:
“Veja só este cobre amarelo: parece uma labareda de fogo ou um pedaço de
ouro. Cobre de Damasco, fabricação do Iraque. Peça rara, mas não estragada,
que já conheceu mansões de rei e por elas circulou. Contemple só sua beleza e
me pergunte: ‘Quando você a comprou?’. Comprei-a, por Deus, em ano de
grande seca e fome, mas reservei-a para uma hora como esta. Criado, a
chaleira!”, e o rapaz entregou-lhe o utensílio, que o homem se pôs a revirar, e
depois disse: “Seu bico não tem solda. Esta chaleira não serve senão para esta
bacia, e esta bacia não serve senão para este aposento elevado, e este aposento
elevado não serve senão para esta casa, e esta casa não fica bonita senão com
este hóspede. Ponha água na bacia, criado, pois já é hora de iniciar a refeição.
Por Deus, contemple esta água! Que limpidez, azul como olho de gato, pura
como haste de cristal. Foi trazida do Eufrates,[378] e somente está sendo usada
depois de ter passado a noite aqui em casa;[379] por isso parece luz de vela e
tem a pureza da lágrima. O importante não é o aguadeiro, mas sim o recipiente.
Não existe sinal mais veraz da limpeza dos recipientes usados do que a limpeza
da própria água. E esta toalha, indague-me sobre a sua história! Seu tecido é de
Jurjān e sua costura e acabamento, de Urrajān.[380] Foi-me oferecida e a
comprei; minha mulher fez de uma parte dela calções, usando a outra como
toalha. Só de calções foram vinte braças, e me foi muito custoso tomar-lhe este
pedaço, que entreguei ao costureiro para que a confeccionasse e adornasse
conforme você está vendo. Depois, desisti de vendê-la e a guardei neste armário,
reservando-a para os que fossem gentis dentre os hóspedes, a fim de que não
fosse vulgarizada passando pelas mãos de árabes do populacho nem pela tintura
de olhos femininos. Mas toda preciosidade tem seu dia de ser usada, e todo
objeto tem gente que pode usufruí-lo. Criado, traga logo o prato, pois isto já está
demorando. E também as travessas, pois a conversa já está aborrecendo”. Então
o rapaz trouxe o prato. O mercador começou a revirá-lo, deu-lhe um peteleco
com a ponta dos dedos, e testou-o dando-lhe uma mordida. Depois disse: “Que
Deus aumente a prosperidade de Bagdá! Como suas coisas têm qualidade, e
como é bela a sua produção! Por Deus, examine esta mesa. Veja só a sua
superfície, sua leveza, a solidez de sua madeira e a beleza de seu formato”.
Perguntei: “Assim é o formato. Mas quando virá a comida?”. Ele respondeu:
“Agora! Criado, traga depressa a comida. Mas veja que os pés e a mesa
constituem um só bloco”.
Disse Abū Alfatḥ Aliskandarī: então fiquei muito irritado e disse:
“Ainda falta descrever os materiais de panifício, bem como o pão e suas
características. E a farinha, de onde foi originariamente comprada, como se
alugou seu serviço de carregamento, em que moinho foi moída, em qual
recipiente se fez a massa, em qual forno foi assada, e qual padeiro foi contratado
para fazê-lo. Faltou dizer de onde veio a lenha, quando foi trazida, como foi
armazenada e secada, e guardada e ressecada. Faltou falar do padeiro e suas
características, e do seu discípulo e suas qualidades, e do trigo e seu elogio, e do
fermento e sua descrição, e do sal, como salga. Faltou descrever as prateleiras:
quem as construiu e como foram compradas? Quem as utilizou? Quem as
montou? E o vinagre, para se produzi-lo como se escolheram as uvas ou de onde
foram compradas as tâmaras? De que modo se passou cal nas cabaças, como se
extraiu sua polpa, como se passou alcatrão nos jarros? Quantas vasilhas encheu?
Faltou falar das verduras: qual a artimanha utilizada em sua colheita? Em que
recipiente foram ajuntadas, e com qual habilidade foram limpas? Faltou falar do
prato principal: onde se comprou a carne? Como se retirou o sebo? Como foi
colocada na panela? Como se acendeu o fogo? Como foi temperada para que
ficasse bem cozida e seu caldo engrossasse? Tais questões são de uma gravidade
espetacular e inesgotável.” E me levantei. Ele perguntou: “Aonde vai?”.
Respondi: “Satisfazer uma necessidade premente”. Ele disse: “Meu amo,
gostaria de um banheiro que deixa para trás as residências de primavera de um
príncipe, ou as moradas de outono de um vizir? Na sua parte alta se passou
gesso, e na baixa, cal; seu telhado foi consertado, e seu piso é de mármore. Em
suas paredes, uma formiga escorregaria, e em seu assoalho, uma mosca
deslizaria; sua porta é uma mistura de plátano e marfim, misturados da melhor
maneira. O hóspede chega a desejar fazer suas refeições ali”. Eu disse: “Coma
você nessa porcaria, pois o banheiro não constava dos meus planos”. Abalei em
direção à porta e me escafedi a toda a pressa. Pus-me a correr enquanto ele me
perseguia, gritando: “Ó Abū Alfatḥ, a carne cozida na coalhada!”. Os meninos
da rua supuseram que “carne cozida na coalhada” era minha alcunha, e
começaram a gritar como ele. Tamanha era a minha irritação que atirei uma
pedra num deles, mas um homem que passava acabou recebendo em seu
turbante a pedra, que se afundou em sua cabeça. Tomei então pancadas com
sapatos velhos e novos, e bofetões legítimos e velhacos. Depois fui levado para a
cadeia, e permaneci dois anos naquela calamidade. Jurei, por isso, não comer tal
comida enquanto vivesse. Ó gente de Hamaḏān, estou sendo injusto nesse
quesito?
Disse ᶜĪsa Bin Hišām: aceitamos então suas desculpas, e fizemos a mesma jura
que ele. Dissemos: “Em tempos passados, a carne cozida na coalhada cometeu
um crime contra os homens livres, e deu preferência aos canalhas em prejuízo
dos probos”.
[1] Para a datação, este texto apresentará o ano ou século da Hégira, seguido do ano cristão. Como se sabe, a Hégira, ou migração do
Profeta de Meca para Medina, ocorreu no ano de 622 da era cristã e marca o início do calendário muçulmano. Para eventuais
interessados, a fórmula de conversão de uma data para a outra é a seguinte, convencionando-se “C” para o ano cristão e “H” para o ano
islâmico: a) para encontrar o ano cristão: C = H - (H ÷ 33) + 622; b) para encontrar o ano islâmico: H = C - 622 + [(C - 622) ÷ 32].
[2] Saliente-se o fato de que, com anterioridade ao árabe, não existiu em nenhum outro idioma qualquer referência a um livro com o
título Mil e uma noites. O crítico Muhsin Mahdi, na introdução à sua edição crítica desse livro (Leiden, Brill, 1984, pp. 26-28),
pondera que toda remissão a supostas “fontes” ou “originais” persas ou sânscritos não passa de especulação sem respaldo material
algum. Na cultura árabe, é certo ter havido obras distintas carregando esse título ou assemelhado. Um resumo das teses sobre as fontes
e origens do livro pode ser lido em Elisséef, Nikita. Thémes et motifs des Mille et une nuits, Beirute, Institut Français de Damas, 1949,
pp. 15-28.
[3] Sobre as objeções, que não serão discutidas aqui, há algumas referências no meu trabalho “O ‘prólogo-moldura’ das Mil e uma
noites no ramo egípcio antigo”, in Tiraz, Revista de Estudos Árabes. São Paulo, Humanitas/fflch-usp, n. 1, 2004, pp. 70-117.
[4] Abbott, Nabia. “A ninth-century fragment of the ‘Thousand nights’. New light on the early history of the Arabian nights”, in
Journal of Near Eastern Studies, Chicago, vol. viii, n. 3, 1949, pp. 129-164.
[5]Op. cit., pp. 132-133, pranchas xv e xvi.
[6] Também conhecido como Os sete vizires; traduzido para o espanhol no século xiii sob o título Sendebar, ou “libro de los
asayamentos de las mujeres”.
[7] Califa fundador da dinastia omíada, morreu em 60 H./680 d.C. Kaᶜb Alaḥbār, morto em 32 H./652 d.C, foi nomeado um de seus
conselheiros; de origem judaica, é considerado um dos mais antigos narradores de tradições.
[8] A edição traz ḥilya, “joia”, mas preferiu-se ler ḥīla, “estratégia”, “artimanha”.
[9] “Elaboradas” traduz mawḍūᶜa, que também poderia significar “apócrifas” se não estivesse seguida da preposição min, “de”.
[10] Utilizou-se “fábula” para traduzir a palavra ḫurāfa, que de acordo com os autores antigos deriva do nome de um contemporâneo
do Profeta que contava histórias cuja espécie ganhou seu nome (cf. o Anexo 3 deste volume). Assinale-se que Abū Bišr Mattà Bin
Yūnus, tradutor da Poética de Aristóteles para o árabe na primeira metade do século iv H./x d.C., utilizou essa mesma palavra para
traduzir mythos.
[11] Almasᶜūdī, Murūj Aḏḏahab wa Maᶜādin Aljawhar, Beirute, Ed. M. M. Qamīḥa, Dār Alkutub Alᶜilmiyya, 1985, vol. ii, pp. 275-
276. Essa passagem, bem como muitas outras desse livro, apresenta grandes dificuldades de tradução. Existem manuscritos das Murūj
Aḏḏahab... [Pradarias de ouro...] que trazem simplesmente “mil noites”, o que lança dúvidas sobre o nome inicial da obra. Assim, a
mais antiga menção incontestável ao título “mil e uma noites” passa a ser a de um documento da Geniza do Cairo, divulgado pelo
orientalista S. D. Goitien e datado de 521 H./1127 d.C., no qual se refere o empréstimo do livro: “[...] o livro das mil e uma noites, com
Majd Alᶜazīzī”. Cf. Goitien, S. D. “The oldest documentary evidence for the title Alf Laila wa-Laila”, in Journal of the American
Oriental Society, vol. 78, n. 4, out.-dez. 1958, pp. 301-302. O historiador egípcio Almaqrīzī (765 H./1364 d.C. – 844 H./1441 d.C.),
numa citação de terceira mão, diz em sua obra Almawāᶜiẓ wa Aliᶜtibār fī flikr Alḫiṭaṭ wa Alaṯār [Admoestações e considerações na
menção de caminhos e vestígios]: “Bin Saᶜīd disse no livro Almuḥallà bi Alašᶜār [Ornamento de poesias], a partir da história de
Alqurṭubī [letrado morto em Mossul em 567 H./1180 d.C.], que as pessoas falam muito a respeito da beduína e de seu primo paterno
Ibn Mayyāḥ, e sobre o que deste caso se relaciona com o califa [fatímida] Alāmir bi-Aḥkām Allāh [495 H./ 1101 d.C – 525 H./1130
d.C.], a tal ponto que as narrativas a respeito se tornaram como as histórias do [cavaleiro] Albaṭṭāl, das Mil e uma noites e de outras
assemelhadas” (apud Elisséeff, Nikita, op. cit., p. 210). Essa passagem ocorre duas vezes na obra. Como se sabe, os fatímidas
estabeleceram seu califado xiita no Cairo do final do século iii H./x d.C. até o vi H./xii d.C. Não fica claro se o trecho quer dizer que a
história sobre a relação envolvendo a beduína, seu primo e o califa tenha se tornado como o Livro das mil e uma noites na época do
próprio califa, no século vi H./xii d.C., ou na época do historiador. Ou seja, o final da passagem fica em aberto, podendo tanto ser
entendido como “sua narrativa se tornou na época como são hoje as das Mil e uma noites”, ou como “sua narrativa se tornou como
suas contemporâneas das Mil e uma noites”. Fica igualmente em aberto o sentido da expressão “tornou-se como” [ṣārat kamā]:
“tornou-se do mesmo gênero das Mil e uma noites” ou “tornou-se tão falada quanto as Mil e uma noites”. Elisséeff traduz: “Ces
histoires, on alla jusqu’à les comparer aux histoires d’al-Battal, des Mille et une nuits et d’autres semblables” (p. 23).
[12] Quanto aos personagens citados nesse trecho: o historiador Abū ᶜAbdullāh Muḥammad Bin ᶜAbdūs Aljahšiyārī morreu em 331
H./942 d.C., e não existe vestígio algum das fábulas que reuniu, mas de seu Livro dos vizires e dos escribas um longo trecho chegou
até os dias de hoje; ᶜAbdullāh Ibn Almuqaffaᶜ, morto por volta de 140 H./758 d.C., traduziu para o árabe, entre outras obras, o livro
Kalīla e Dimna, tendo redigido ainda tratados sobre decoro; de Sahl Bin Hārūn Bin Rāhyūn, morto em 215 H./830 d.C., escriba
renomado, chegaram aos dias de hoje uma epístola sobre a avareza e um texto de fábulas chamado Livro do tigre e da raposa; ᶜAlī Bin
Dawūd (século iii H./ix d.C.), escriba, redigiu obras das quais somente o título chegou até os dias de hoje, como o Livro da mulher
livre e da escrava e o Livro dos elegantes; Zubayda, morta em 216 H./831 d.C., era mulher do califa Hārūn Arrašīd; protegeu poetas e
letrados e construiu mesquitas.
[13] Annadīm Alwarrāq, Alfihrist, Beirute, Ed. R. Tajaddud, Dār Almasīra, 1988, pp. 363-364.
[14] Ademais, o nome da personagem, Šīrazād (“coração de leão”, cf. Abbott, op. cit., p. 152), não consta de nenhuma das versões
conhecidas das Mil e uma noites.
[15]Murūj Aḏḏahab, op. cit., vol. i, p. 6.
[16] O relato completo está em Murūj Aḏḏahab, op. cit., vol. i, pp. 384-387. No século viii H./xiv d.C., o historiador Ibn Ḫaldūn
observou, em sua obra Almuqaddima [Prolegômeno], que essa passagem de Almasᶜūdī é uma “longa narrativa composta de fábulas e
absurdos, pois os reis não se envolvem em semelhantes aventuras [...], e tampouco se conhecem as formas específicas dos gênios [os
demônios marítimos], que podem assumir diversas formas; quando se mencionam suas múltiplas cabeças, o objetivo é ressaltar sua
fealdade e seu horror, e não dizer a verdade” (Almujallad Alawwal min Kitāb Alᶜibar wa Diwān Almubtadā wa Alḫabar, Dār Alkitāb
Allubnānī, Beirute, 1979, pp. 58-59; tradução brasileira de José Khoury e Angelina Bierrenbach Khoury: Os prolegômenos. São Paulo,
Ed. Safady, 1958, tomo i, pp. 88-89).
[17]Op. cit., p. 367. Pelo verbo “mentir” [kaḏabū] deve-se entender que eles mentiam atribuindo o que elaboravam a autores
renomados.
[18] O responsável pelo texto considerou um lapso a forma Šandiyār e optou por Sindabād. Mas preferiu-se manter como está no
original, porque o registro pode também ser leitura equivocada de Isfandiyār, herói mítico persa sobre o qual havia o Livro de Rustum e
Isfandiyār (Alfihrist, op. cit., p. 364).
[19]Aḫbār Arrāḍī Billāh wa Almuttaqī Lillāh, min Kitāb Alawrāq [Notícias dos califas Arrāḍī e Almuttaqī, do Livro das folhas], Cairo,
1935, Ed. de J. Heyworth Dunne, pp. 5-6. Esse Livro das folhas é uma obra pelo visto imensa, da qual chegaram até os dias de hoje
somente três partes.
[20] Processo idêntico se verifica em outra obra menos conhecida, As cento e uma noites, que parece ter circulado na parte ocidental do
mundo árabe, em particular na Tunísia.
[21] A edição do livro de Bin Wahb Alkātib, Alburhān fī wujūh albayān [Comprovação acerca dos aspectos da retórica], constitui um
dos maiores equívocos da história editorial árabe: devido a contingências que seria cansativo mencionar aqui, ele foi publicado no
Cairo (Dār Alkutub Almiṣriyya, 1933) sob um título errado, Naqd annaṯr [Crítica da prosa], e atribuído a outro autor, Qudāma Bin
Jaᶜfar, morto em 336 H./948 d.C. A passagem aqui traduzida é dessa edição (p. 57), com texto a cargo de Ṭāha Ḥusayn e ᶜAbdulḥamīd
Alᶜibādī.
[22] Rouby, Olfat al- (Ulfat Kamāl Arrūbī). “Almaṯal wa Attamṯīl fī Atturāṯ Annaqdī wa Albalāġī ḥattà Nihāyat Alqarn Alḫāmis
Alhijrī” [Paradigma e alegoria na tradição crítica e retórica até o século v da Hégira], in Alif, Majallat Albalāġa Almuqārana [Alif,
Revista de Retórica Comparada]. Cairo, Universidade Americana, 1992, n. 12, pp. 75-103.
[23] Trocadilho com a palavra ḥadīṯ, que pode significar tanto “história” como “novo”.
[24] Abū Ḥayyān Attawḥīdī, Alimtāᶜ wa Almu’ānasa, Cairo, edição de Aḥmad Amīn e Aḥmad Azzayn, Lajnat Atta’līf, vol. i, 1953, p.
23. O trecho “os sentidos, imediatos, são sedentos de incidentes, novidades e histórias, e buscam o que é curioso” também poderia ser
assim traduzido: “os sentidos são sedentos de incidentes, novidades e histórias, pois estes são recentes no mundo e têm seu quinhão de
curiosidade”.
[25] Com o acréscimo do terceiro intelecto.
[26] Lembre-se que a destruição perpetrada pelos mongóis foi logo remediada, e a vida retomou seu curso. No mesmo século vii H./
xiii d.C. já se encontram autores árabes dedicando obras a soberanos mongóis, nas quais chamam Hulagu, comandante dos invasores
de Bagdá, de “sultão” e lhe destacam a inteligência por ter reunido os jurisconsultos da cidade e proposto a seguinte questão: “O que é
preferível, um governante infiel justo [kāfir ᶜādil] ou um muçulmano injusto [muslim jā’ir]?”. Todos teriam inicialmente se calado, mas
um deles, bastante experiente e respeitado, recolheu a folha em que a questão estava proposta e assinalou a superioridade do
governante infiel justo. Então todos assinaram. Esse episódio é relatado por Ibn Aṭṭiqṭaqā, autor dessa época, no livro Alfaḫrī, Beirute,
Dār Ṣādir, s. d., p. 17.
[27] É possível, embora incerto, que o nome do soberano, Šāhriyār, consista na motivação de um personagem do mesmo nome,
príncipe da Pérsia, de quem o historiador Ibn Alaṯīr (555 H./1160 d.C. – 631 H./1234 d.C.) afirma ter tido problemas com as mulheres.
De outra parte, pretendeu-se assinalar com o termo “ensandecido” que o procedimento do rei poderia também pertencer à esfera da
estupidez. No livro Aḫbār Alḥamqà wa Almuġaffalīn [Notícias sobre os néscios e os idiotas], Ibn Aljawzī (509 H./1116 d.C. – 596
H./1220 d.C.) observa: “O sentido da nescidade e da estupidez é o erro no meio e no caminho para o que se procura, apesar de ser
correto o intento, ao contrário da loucura, que consiste em uma deficiência conjunta no meio e no intento. Assim, o intento do néscio é
correto, mas o caminho que ele trilha é corrupto, e sua visão do caminho que faz chegar ao objetivo é incorreta. Quanto ao louco, a
base de sua indicação [išāra] é corrupta, pois ele escolhe o que não deve ser escolhido. Isso será demonstrado pelo que mencionaremos
sobre certos néscios, entre os quais o caso de um príncipe cuja ave voou, e ele então ordenou que o portão da cidade fosse fechado. O
intento desse homem era conservar a ave” (Ed. de M. ᶜAlī Abū Alᶜabbās, Cairo, Maktabat Ibn Sīnā, 1990, p. 15). Nessa linha, Šāhriyār
não poderia ser louco, já que possui um objetivo – não ser mais traído por suas mulheres –, e chega mesmo a alcançá-lo
temporariamente, mas de maneira inadequada.
[28] Os Anexos deste volume servem para comparar desde as adaptações efetuadas nas fontes diretas das histórias até o tratamento
dado a determinados temas, como o incesto e a bastardia.
[29] Sobre o uso e a função da história exemplar no Livro das mil e uma noites, cf. Mahdi, Muhsin. “Religion and politics in the
Nights” e “Exemplary tales in the Nights”, in The thousand and one nights, Leiden, Brill, 1994, v. iii (Introdução e Índices), pp. 127-
139 e 140-163.
[30] Cf. o Anexo 3 deste volume, pp. 389-391.
[31] Como é evidente, fogem ao horizonte do advérbio “vulgarmente” as questões suscitadas por trabalhos como os de Paul Zumthor
(Essai de poétique médiévale, Paris, Seuil, 1972; e A letra e a voz: a “literatura” medieval, São Paulo, Companhia das Letras, 1993).
[32] Arrisco essa hipótese a partir das observações de Muhsin Mahdi (que no entanto não chega a formulá-la) na introdução de sua
edição crítica do Livro das mil e uma noites: “Almuqaddima”, in Kitāb alf layla wa layla min uṣūlihi alᶜarabiyya alūlà. Leiden, Brill,
1984, v. i (Almatn), pp. 11-51.
[33] Cf. a respeito o trabalho de Michel Sleiman: A arte do zajal. São Paulo, Ateliê/Programa de Pós-Graduação em Árabe-usp, 2007.
[34] Traduzido a partir da versão árabe de M. Mahdi, op. cit., v. i, p. 14.
[35] “Criador dos homens e da vida” traduz ḫāliq alḫalq wa alᶜibād, literalmente, “criador das criaturas e dos homens que o adoram”.
[36] Como no original a palavra se encontra no singular, trata-se possivelmente de menção genérica a todos os faraós ou então ao faraó
que as narrativas religiosas fazem ser tragado pelo mar enquanto perseguia os hebreus, e que no Alcorão é também referido
simplesmente como “faraó”. Quanto a fiamūd e ᶜād, trata-se de duas extintas tribos árabes pré-islâmicas, cujo desaparecimento o
Alcorão atribui à cólera divina.
[37] No original, firāsa, técnica beduína pré-islâmica para conhecer os caracteres por meio das fisionomias.
[38] Como o leitor não deixará de notar, essa fórmula, com variações, é utilizada amiúde no texto, e a tradução considerou por bem
mantê-la. O preâmbulo anterior consta dos manuscritos “Arabic 647”, da John Rylands Library, e do “Arabic 6299”, da India Office
Library, tendo sido publicado no volume i da primeira edição de Calcutá, em 1814. Mushin Mahdi o incorporou à sua edição.
[39] A dinastia sassânida, que em seus tempos áureos desfrutou de muito poder e glória, governou a Pérsia de 226 a 641 d.C., quando
foi destronada pela conquista muçulmana.
[40] O trecho “nas penínsulas da Índia e da Indochina” traduz fī jazā’ir alhind wa ṣīn aṣṣīn, literalmente, “nas ilhas da Índia e da China
da China [China Interior?]”.
A localização geográfica do reino, hoje, é imprecisa, e a dúvida consiste em saber se a palavra jazā’ir, “ilhas” ou “penínsulas”, rege
apenas “Índia” ou também “China da China”. Ademais, de modo semelhante ao português, essa palavra não indica, necessariamente,
porções de terra cercada de água, podendo significar, ainda, “locais isolados”.
O império sassânida não dominou a Índia, nem a Indochina, nem a China.
No tratado geográfico Ḫarīdat alᶜajā’ib wa farīdat alġarā’ib (“Pérola de espantos e singularidade de assombros”), de autoria
controversa e cuja elaboração se situa entre os séculos xiv e xv d.C., Ṣīn Aṣṣīn ou “China da China” (também compreensível como
“Cochinchina”) é assim descrita: “Quanto à China da China, ela fica no fim do mundo a Oriente, não existindo depois dela senão o mar
oceano.
A capital da Grande China se chama Assīlà. As notícias desse povo não nos chegam devido à grande distância, e conta-se que o rei
deles, caso não tenha cem esposas com dotes e mil elefantes com homens e armas, não é considerado rei. E se o rei deles tiver muitos
filhos e morrer, seu reino não será herdado senão por aquele que for o mais hábil na pintura e no desenho”.
[41] O nome Šāhriyār significa “rei da cidade”; Šāhzamān, “rei do tempo”.
[42] O termo “vizir” traduz wazīr, palavra árabe que nomeia uma espécie de administrador-geral, que na linha hierárquica do poder
vem logo abaixo do rei. Em árabe moderno significa “ministro”.
[43] O nome Šahrāzād significa “a de nobre estirpe”; Dīnārzād, “nobre moeda”, mas é bem provável que sua forma correta seja
Dīnāzād, que quer dizer “a de nobre fé”.
[44] Em lugar de “um dos rapazes da cozinha”, as edições de Būlāq e Calcutá e os manuscritos “Bodl. Or. 550” e “Arabe 3612” trazem
“um negro escravo”. Foi o que afinal prevaleceu nas edições impressas. Conforme aponta Muhsin Mahdi no aparato de sua edição
crítica, o manuscrito “Arabic 647”, da John Rylands Library, traz “um cozinheiro de aparência desprezível de tantas imundícies”.
[45] Por “se requebrava” traduziu-se o verbo tataḫaṭṭar. À margem do manuscrito “Arabe 3609”, Galland anotou, em latim, incedebat
[“andava com dignidade”], que, para o crítico Claude Hagège, é uma “tradução muito precisa do árabe”. Pensa-se aqui, porém, que o
sentido desse verbo, comum em outras narrativas com episódios assemelhados a esse, é mais bem contemplado por “requebrar-se” ou
até mesmo “rebolar”.
[46] “Arrombada” traduz kūra, que, neste caso, significa literalmente “buraco”. Conforme o dicionário de Ibn Manẓūr (1232-1311
d.C.), o verbo do qual deriva essa palavra tem, entre outras acepções, a de “escavar a terra” (cf. Lisān Alᶜarab, Qum, 1405 H., v. 5, p.
157). Como o personagem que profere a expressão não é nada carinhoso, trata-se de ofensa.
[47] Esse nome significa “fortuna da fé, o afortunado”.
[48] Como as palavras “demônio” ou “diabo” não dão conta do sentido, optou-se por uma transcrição aproximada do termo árabe ᶜifrīt,
já verificado no Alcorão (27, 39), e que indica criatura sobre-humana e maligna. Em outros manuscritos usa-se jinnī (de hábito
traduzido como “gênio”, como se fez adiante) ou mārid, que são semanticamente próximos.
[49] No original, yā sayyidat alḥarā’ir. Podia indicar também uma espécie de concubina. A palavra ḥarā’ir é plural tanto de ḥurra
[“mulher liberta”] como de ḥarīr [“seda”], o que provocou a tradução equivocada “senhora das sedas”, perpetrada por Mardrus. À
margem do manuscrito “Arabe 3609”, Galland anotou, em latim, ingenua.
[50] Boa parte do diálogo, se não todo ele, se dá por meio de sinais, numa pantomima que confere comicidade à narrativa.
[51] Alcorão, 12, 28.
[52] Ao contrário das versões do ramo egípcio, que falam, quase todas, em três anos, aqui não se especifica o tempo que durou a
matança. Veja o Anexo 1.
[53] Os trechos entre aspas simples têm rima e são ditados populares em árabe.
[54] Provérbio popular.
[55] A história do mercador, do burro e do boi não consta de dois manuscritos do ramo egípcio, o “Arabe 3615” e o “Bodl. Or. 550”.
[56] Existe aí um problema de concatenação narrativa, uma vez que, no início da história, parece que o segredo reside no próprio
conhecimento que o mercador detém acerca da língua dos animais; neste trecho, porém, parece que o segredo se limita ao conteúdo
desse conhecimento, ou seja, o mercador não poderia revelar o que os animais diziam, ou, conforme transparece mais adiante, como
ele conseguia compreender o que eles diziam.
[57] “Os dois filhos” é o que consta do manuscrito “Arabo 782” da Biblioteca Apostólica Vaticana; o original traz “as duas filhas” e os
demais manuscritos não contêm o trecho.
[58] Seria conveniente consultar a tradução da redação mais tardia do “prólogo-moldura”, no Anexo 1, ao final deste volume.
[59] “Caminho inóspito e desértico” traduz a palavra árabe barr.
[60] Embora descreva um ritual aparentemente islâmico e se valha da terminologia muçulmana, neste ponto o texto parece referir-se a
uma religião anterior ao islamismo.
[61] O trecho “começara logo antes a caminhar por aqui” traduz uma locução dialetal: kāna kamā mašà (talvez por *kāna kamā
yamšī), que somente pode ser compreendida mediante a comparação com outros trechos nos quais seu sentido é mais explícito.
[62] Ao contrário do que se possa imaginar, não existe aqui contradição: embora tivesse muitas mulheres e concubinas, o mercador, ao
que parece, tinha somente uma esposa (legítima). Mas note-se que um dos manuscritos (“Gayangos 49”) registra sistematicamente
“esposas”.
[63] O trecho “que tanto assombram” traduz a frase wa hāḏā albustān maᶜmūr, “e este bosque é habitado”, com elipse do complemento
do adjetivo maᶜmūr, “habitado”. No dicionário Larousse árabe, o filólogo contemporâneo Ḫalīl Aljurr atribui ao sintagma albayt
almaᶜmūr, literalmente “casa habitada”, o sentido de “casa habitada por gênios”. No Alcorão (52, 4), fala-se em albayt almaᶜmūr,
expressão que é interpretada por alguns exegetas, segundo o dicionarista Bin Manẓūr (século xiii d.C.), como referência a “uma casa
no céu, em posição paralela [bi-izā’] ao templo da Kaᶜba, em Meca; nessa casa entram diariamente setenta mil anjos, que depois saem
e não mais retornam”. Parece que a expressão sofreu uma espécie de inversão de sentido que a tornou próxima do português
“possuído” (mais comumente aplicado a pessoas mas que também o pode ser para lugares).
[64] Note que nas duas primeiras noites existe uma espécie de lapso de tempo entre a interrupção da história e a observação da irmã
caçula, como se a narrativa pretendesse realçar o plano combinado entre as duas.
[65] “Grande Festividade de Deus” traduz mawsim ᶜīd Allāh alakbar, que desde Galland vem sendo considerada pelos tradutores uma
festividade islâmica. É certo que os muçulmanos têm a sua festa do sacrifício [ᶜīd alaḍḥà], mas aqui a referência se afigura muito
frugal. Normalmente, se o texto tencionasse referir a festividade islâmica, ele o teria feito de modo mais enfático ou claro. Parece que
se pretendeu indicar uma festa religiosa que envolvesse rituais de sacrifício de animais, mas não necessariamente islâmica. Seja como
for, dada a incerteza a respeito, optou-se por uma formulação neutra.
[66] “Fiquei chocado” traduz o verbo istarabtu, que não consta dos dicionários. A maioria dos manuscritos suprimiu-o. Talvez, por
metástase, seja istabartu.
[67] Neste texto, “dinar” indica moeda de ouro e “dirham”, moeda de prata.
[68] Provérbio popular.
[69] Sobre o terceiro xeique e sua história (ou suas histórias, como se verá), confira o Anexo 2 deste volume. Veja também, no Anexo
3, a tradução de um ḥadīṯ [“dito”] atribuído ao profeta Muḥammad, no qual ele conta a história de um homem salvo dos gênios por
meio de histórias contadas por três velhos.
[70] Neste texto, “emoção” traduz sempre a palavra ṭarab, à qual dicionários como o de F. Corriente dão os seguintes correspondentes:
emoção estética, gozo, arroubo, êxtase, entretenimento estético etc.
[71] Conforme se verá adiante, são duas filhas e um filho. Os manuscritos, contudo, trazem “três filhas”. Corrigido nas edições
impressas.
[72] “Duas medidas” é tradução de irdabbayn, dual de irdabb, unidade de medida cujo valor foi impossível verificar. Trata-se de uma
busca labiríntica: um dicionário árabe diz que “um irdabb equivale a seis wayba ou a 24 ṣāᶜ”. Não foi possível encontrar tradução para
wayba, mas ṣāᶜ é unidade de medida que varia de país para país e que, em português, se traduz por “almude”; e o valor do almude,
conforme o dicionário de Antônio Houaiss, também varia; no Brasil, correspondia a 31,94 litros.
[73] “Hiena” [umm ᶜāmir] é o que consta no ramo egípcio. No ramo sírio, ocorre o obscuro “filho de ᶜāmir” [bin ᶜāmir].
[74] Datação “corrigida” pelos manuscritos do ramo egípcio. Devido a algum lapso, o ramo sírio traz “oitocentos anos”. Muhsin Mahdi
afirma que certamente era esse o número de anos – oitocentos – que constava da matriz e do arquétipo das Mil e uma noites.
[75] Nas edições impressas egípcias, o nome do sábio é Rūyān. As grafias de ambas as palavras, Dūbān e Rūyān, são muitíssimo
parecidas em árabe.
[76] Segundo o geógrafo árabe medieval Yāqūt, a terra de Zūmān ficava próxima da Armênia, logo depois de Mossul; e o povo de
Zūmān pertencia à etnia curda.
[77]Yūnān, palavra que, acompanhada de artigo definido, significa “Grécia” ou, mais propriamente, “Jônia”.
[78] O trecho entre colchetes é adição do tradutor. No original, decerto por um lapso de cópia, a narrativa é feita por Šahrāzād sem a
intermediação do pescador, que é o narrador de terceiro nível (um narrador conta que Šahrāzād conta que o pescador conta) e
primeiro narrador da história do rei Yūnān e do sábio Dūbān.
[79] Provérbio popular.
[80] Provérbio popular.
[81] No ramo egípcio tardio, a história do marido ciumento e do papagaio encontra-se substituída por outra, do rei e do falcão. Veja o
Anexo 4. No manuscrito “Arabe 3612”, o rei apenas faz alusão à história (“Você quer que eu o mate e depois me arrependa, tal como
se arrependeu o dono do papagaio por tê-lo matado”), mas não a conta.
[82] “Ogra” traduz o árabe ġūla, que designa, na mitologia beduína, um ser sobre-humano capaz de mudar de figura, e que se alimenta
de carne humana. Segundo uma tradição atribuída ao profeta Muḥammad, a simples menção a Deus bastaria para afugentá-lo.
[83] Alcorão, 66, 8.
[84] Provérbio popular.
[85] Os antigos tratados árabes de zoologia mencionam por mais de uma vez o crocodilo, cuja história, aqui, o sábio se furta a narrar.
Um curto relato de Aljāḥiẓ, autor do século viii-ix d.C., talvez dê conta, ao menos, das linhas gerais da história que o sábio não conta:
“Ouça o que se conta a respeito do crocodilo: os fiapos da carne que ele come se juntam nos vãos de seus dentes, que se enchem então
de vermes. Como isso lhe faz mal, o crocodilo se dirige até a margem, joga o corpo para trás e abre a boca como se estivesse morto.
Presumindo que ele esteja de fato morto, as aves pousam em sua boca e comem os vermes. Assim que percebe que sua boca está limpa
de vermes, ele a fecha e engole as aves. Por isso, as pessoas transformaram sua péssima recompensa às aves no seguinte provérbio:
‘Vou recompensá-lo com a recompensa do crocodilo’. Veja, pois, o que se reúne no crocodilo, com esse ardil instintivo, de expulsão do
que lhe é nocivo e conquista do que lhe é benéfico”, in Abū ᶜUṯmān ᶜAmrū Bin Baḥr Aljāḥiẓ, Kitāb alᶜibar waliᶜtibār [Livro das lições
e das considerações], Cairo, Alᶜarabī, s. d., p. 66.
[86] Em tradução literal, “os livros de minha ciência e de minha medicina”, logo, “os livros nos quais aprendi minha ciência e
medicina”.
[87] No original, ḫāṣṣ alḫawāṣṣ, também traduzível como “essência das essências”, “particularidade das particularidades” ou
“propriedade das propriedades.”
[88] O manuscrito “Arabe 3612” acrescenta: “pois estou no mar há mil e oitocentos anos”.
[89] A restrição – lançar a rede apenas uma vez por dia – consta de todos os manuscritos consultados, embora não seja obedecida.
[90] Pó negro utilizado pelas mulheres orientais, e não somente por elas, para enfeitar e proteger os olhos.
[91] Provérbio popular.
[92] Expressão obscura de conteúdo zodiacal: wa qad bunyà fī ṭāliᶜan [sic] saᶜīd.
[93]Mawālyā, forma poética não clássica que obedece a regras próprias. Teria sido elaborada em Wāsiṭ, no Sul do Iraque. Quanto à
popularidade, equivaleria à trova.
[94] O termo “abanassem” traduz, por suposição, yanšū ᶜalayya, sintagma que não se encontra em dicionário algum, constituído de
verboe preposição.
[95] A tradução procura acompanhar a fala “incorreta” das duas personagens.
[96] Para a locução traduzida por “minha mulher” o texto traz bint ᶜammī, literalmente, “filha de meu tio paterno”. Ainda hoje, na fala
popular de regiões interioranas, os dois sentidos, prima e esposa, se confundem, mesmo quando a esposa não é prima.
[97] O termo “bexiguento” traduz mubtalà, que poderia também significar “leproso”; contudo, para a “lepra” o texto já lançou mão do
termo mais comum baraṣ.
[98] “Montanhas do fim do mundo” foi sempre utilizada na presente tradução para jabal qāf, literalmente, “montanhas em torno do
paraíso terrestre, na cosmogonia islâmica”.
[99] “Jogar pedrinhas” traduz o sintagma šakif laqif, possível brincadeira infantil da qual nenhum dicionário conservou memória. O
único que se aproxima disso, o de R. Dozy, utiliza o texto, neste ponto defeituoso, da edição de Breslau, onde se registra šaqif lakif
(que Dozy lê li-kaffin). Note ainda que o escravo se refere a si mesmo no plural, tal como fazem, em árabe, os reis. Mais adiante,
“cerveja” traduz mizr.
[100] O original diz mufrad [“singular”, “único”], forma poética específica.
[101] “Claro, com o auxílio de Deus” traduz o sintagma bismillāhi (literalmente, “em nome de Deus”). Além da significação
propriamente religiosa, quando solto, esse sintagma também exprime concordância. É nessa acepção que ela aparece várias vezes na
presente obra.
[102] O original traz takārašā, verbo que não consta dos dicionários. Pode significar, literalmente, “encostar mutuamente as panças”
[kirš].
[103] Note a contradição: no início da história, conta-se que o pescador tinha três filhas.
[104] Esta é a primeira noite que termina sem suspense. Na noite seguinte se iniciará uma nova história, o que também indica o início
de um novo ciclo narrativo.
[105] “Bordado a ouro” é suposição para traduzir qalᶜiyya ou qalaᶜiyya, palavra de sentido obscuro (em forma de torre?). Pode também
ser: “da cor do chumbo”, ou, ainda, uma espécie de tecido grosso, que se usava para fazer velas de navio e alforjes.
[106] “Dourado” procura traduzir ḏarḫūnī ou zarḫūnī, palavra que não consta dos dicionários; supôs-se, aqui, uma possível confusão
com zarjūn, “dourado”.
[107] O trecho “com cílios cuidadosamente alongados” é uma tentativa de traduzir com alguma coerência a palavra cuja seqüência
consonantal é mdnbh. Entendeu-se, aqui, muḏannaba, “com cauda”. Pode indicar longos cílios postiços. E é também possível, embora
mais remotamente, que seja “tinha a bunda avantajada”.
[108] Estes versos não constam de nenhum dos manuscritos do ramo sírio. No entanto, como o contexto os exigia, foram traduzidos do
manuscrito “Gayangos 49”, que nesse passo acompanha de perto o ramo sírio e é o único ora utilizado a trazer versos. Sua eventual
grosseria, como se verá, não destoa do clima da história. Esse manuscrito, aliás, é o único em que o carregador tem nome: Badīr.
[109] “Jarro verde-oliva de vinho” traduz marwaqa zaytūniyya, sintagma quase incompreensível. A tradução acompanha as
especulações de Dozy (Supplément..., v. i, p. 572) sobre o produto aí comprado. Lembre-se que a venda de vinho era interdita aos
muçulmanos, sendo exercida por cristãos. Favorece tal suposição, ainda, o fato de a mercadoria não estar exposta. Como se verá ao
longo deste trecho, para muitos dos itens comprados no mercado usam-se palavras hoje incompreensíveis.
[110] A tradução de vários desses ingredientes não é segura; no primeiro caso, “aperitivos defumados”, tenta-se dar uma ideia genérica
do original, que diz alᶜuṣfūr almāliḥ, literalmente, “passarinho salgado”. Ressalve-se, contudo, que o sentido pode ser bem outro.
[111] “Duas medidas de açúcar” traduz ublūj-en sukkar, coloquialismo que para Dozy significa “pães de açúcar”, assertiva improvável
tendo em vista o fato de que a mercadoria se comprou num droguista – e o açúcar, como se sabe, era vendido em droguistas. Ademais,
a fonte de Dozy, o dicionário árabe-francês de E. Bocthor, não é confiável para termos do período mameluco. Para os doces da
passagem anterior, deu-se apenas a tradução mais ou menos literal, uma vez que já não se sabe com que ingredientes eram feitos. Em
um caso, a tradução viu-se obrigada a transliterar o nome, hoje absolutamente desconhecido. Basandūd, traduzido como “bolinho de
chuva”, designa uma iguaria egípcia composta de bolinhos arredondados de farinha e fritos, celebrada em versos citados por Ibn Ẓāfir
(m. 623 H./1226 d.C.) em Ġarā’ib attanbīhāt ᶜalà ᶜajā’ib attašbīhāt, “As mais insólitas advertências quanto às mais espantosas
analogias”. “Alfenim” traduz bānīd, transcrição árabe do persa pānīd, que por sua vez se origina do sânscrito phān.ita, “melaço”.
[112] Oitavo mês do calendário lunar muçulmano.
[113] É assim que o texto passará a se referir às moças, por sinédoque, a partir de suas primeiras ações (“compradeira”, no
coloquialismo alḥ-oškāša, porque fazia compras, e “porteira”, albawwāba, porque foi ela quem abriu a porta). A terceira, conforme se
verá adiante, será chamada de “a mais bela” [almalīḥa], ou “a dona da casa” [ṣāḥibat albayt]. Certamente para evitar possíveis
confusões, Galland inventou nomes próprios para as personagens: Amina, Zobeida e Safia.
[114] Isto é, fina e longa, pois o desenho da letra alif é semelhante a uma haste.
[115] Além de Ibn Attammām, um dos manuscritos traz ᶜAmmār, e outro, Ibn ᶜAmmār, mas é bem possível que se trate do poeta e
compilador árabe Abū Tammām (788-845 d.C.), contemporâneo de Hārūn Arrašīd.
[116] “Encadeio os relatos históricos e somente depois os narro” traduz wa asnadtu wa arwaytu, literalmente, “encadeei e narrei”.
Aqui, faz-se referência ao procedimento adotado por teólogos e historiadores muçulmanos clássicos, cuja técnica supunha, antes de
tudo, o isnād, ou seja, o encadeamento (que consiste em encadear testemunhos, por assim dizer, empíricos, para atestar a veracidade do
dito – “ouvi de fulano, que ouviu de beltrano, que ouviu de sicrano, que ouviu de mengano, que ouviu de alano que tal fato se deu
assim e assado” etc.). Somente depois disso é que se iniciava a narrativa propriamente dita.
[117] Neste ponto se usa uma expressão intraduzível, muito comum em árabe: “sobre a cabeça e o olho”.
[118] “Lá vou eu” é mera suposição para a, neste ponto, incompreensível seqüência consonantal škk, relativamente à qual nenhum
glossário apresenta solução satisfatória (Dozy, por exemplo, propõe que se trata do barulho do corpo ao entrar na água, o que parece
inaceitável aqui). Nos dicionários, essa palavra e seus derivados aparecem associados aos sentidos de “duvidar” e de “picar” ou
“enfiar”.
[119] Eis a transcrição dos nomes do órgão sexual feminino, na ordem em que aparecem: raḥm, farj, kuss, zunbūr, han, dandūl,
danīkat.
[120] Os nomes do órgão sexual masculino aparecem na seguinte ordem: zubb, ayr, zabra, nahd, šay, ḫaṣw, miḥašš.
[121] Provérbio popular.
[122] Trata-se de uma confraria de dervixes mendicantes fundada por um asceta andaluz chamado Qalandar Yūsuf; a expressão é de
origem persa, e significa “de barba raspada”. Os calênderes, detestados pelos alfaquis muçulmanos, introduziram-se no Egito na época
do sultão mameluco Baybars (1260-1277), que teria estimulado a difusão do grupo. Optou-se por “carendéis” em lugar de
“calênderes”, que seria a forma presumivelmente correta em português (a palavra foi excluída de dicionários brasileiros mais recentes),
para aproximar a tradução do original, no qual se registra qarandaliyya, com metátese, em vez da forma correta, que em árabe é
qalandariyya. Doravante, para maior leveza, serão referidos como “dervixes”, muito embora o original utilize o tempo todo o
coloquialismo qarandaliyya.
Miguel Nimer, em Influências Orientais na Língua Portuguesa (São Paulo, Edusp, 2a edição, 2005, pp. 506-507), esboça uma
etimologia diversa para essa palavra e dá informações sobre o seu uso em antigos textos portugueses. E F. Corriente, no Diccionario de
Arabismos y Voces Afines (Madri, Gredos, 1999, p. 269), não hesita, baseado em Morais, em incluí-la no léxico português.
[123] No original, a fala dos carendéis não tem nenhum sentido [huwa iqrand ašīma aḫīnā huwa ᶜarab sān darindān], e é puramente
jocosa. Mais de um escriba e revisor das Noites tentou dar-lhe algum sentido, que variou de “não há dúvida de que este homem é
estrangeiro” e “ele é um macaco selvagem”, até chegar, na edição de Būlāq de 1835, a “ele é um vagabundo como nós e nos fará
companhia”, e, na segunda edição de Calcutá, de 1839, “ele é um carendel como nós, seja estrangeiro, seja árabe”.
[124] “Está muito claro” traduz, por suposição, uma formulação hoje incompreensível: wa mā huwa bilfaqīrà.
[125] Hārūn Arrašīd, cujas credenciais o texto apresentará mais adiante, foi o quinto califa da dinastia abássida, que tomou o poder no
mundo muçulmano em meados do século viii e fundou a cidade de Bagdá. O governo de Arrašīd, que durou de 786 a 809 d.C., marca,
em mais de um sentido, o apogeu dessa dinastia. Quanto a Jaᶜfar, durante um bom tempo ele foi seu vizir mais poderoso. Pertencia à
família persa dos barmécidas [barāmika], a qual, por motivos ainda não bem esclarecidos, mas certamente relacionados à sua
extraordinária concentração de poder, caiu em desgraça junto a esse califa, tendo sido praticamente dizimada por sua ordem direta.
Jaᶜfar foi morto em 803. Masrūr, que surge mais adiante, atuou como uma espécie de ajudante-de-ordens e carrasco do califa. Formou-
se sobre esse califa a legenda de que ele costumava passear à noite, disfarçado, pela cidade de Bagdá, a fim de descobrir as injustiças
cometidas contra o povo.
[126] O manuscrito acrescenta, neste ponto, o incompreensível sintagma ᶜalà asr (ou asarr) muqaddam. Conforme sugestão colhida no
dicionário Asās Albalāġa, “Alicerce da Eloquência”, de Azzamaḫšarī (m. 538 H./1144 d.C.), pode tratar-se de corruptela de ᶜalà yusr
muqaddam, algo como “estejam previamente tranquilos”.
[127] Note que todos bebem. Nas versões mais recentes, em especial as do ramo egípcio, o califa apresenta a desculpa de que está se
preparando para peregrinar a Meca e não bebe, sendo-lhe então servida bebida não alcoólica.
[128] Gênero de poesia popular criado em Bagdá. Consistia em estrofes de quatro versos e significa, literalmente, “foi e foi”.
[129] Provérbio popular até hoje bastante comum: kullunā fī alhawà sawà, em que a palavra alhawà pode ser entendida como “paixão”
mas também como “vento” (hawā’, coloquialmente pronunciada hawà). Preferiu-se aqui a segunda hipótese, embora a primeira
também seja bastante plausível.
[130] Além de talvez estar relacionado com algum ritual hoje desconhecido, o gesto também pode ser compreendido como
manifestação de alívio: apalpar a cabeça e perceber que ela ainda estava no lugar...
[131] “Pó de cimento” traduz jīṣ, palavra para a qual os dicionários não trazem explicação adequada neste contexto. Em seu sentido
original, a palavra parece ter deixado de ser usada há muito tempo, pois ela consta somente do manuscrito “Arabe 3609”; em quase
todos os outros, usa-se expressão equivalente a “gesso”.
[132] Neste ponto o manuscrito “Arabe 3609” traz apenas “quando eu descer neste lugar, recoloque”; completou-se a partir de uma
leitura combinada do manuscrito “Arabe 3612” e do “Gayangos 49”. Note-se, a título de curiosidade, que este último traz ainda
“reponha a placa”, muito embora a reposição da placa de ferro talvez fosse desnecessária, visto que poderia ser efetuada pelo
personagem que desceu a escada.
[133] Neste ponto a narrativa parece falha: qual a funcionalidade da água e do pó de cimento? É possível, no entanto, argumentar, de
um lado, com a obviedade dessa função, e, de outro, com o fato de que, embora o narrador no presente esteja (relativamente) sóbrio, no
momento dos eventos narrados ele estava bêbado, e a elipse talvez sirva para realçar a atmosfera de pesadelo da história. Seja como
for, os manuscritos “Gayangos 49” e “Arabe 3612”, do ramo egípcio, dão um jeito de tornar a narrativa mais explícita. A seguir,
traduz-se, a partir da fala do primo no final da noite anterior, o que consta no “Gayangos 49”, que nesta noite acompanha bem de perto
o manuscrito de base: “E ele me disse: ‘Resta ainda, meu primo, uma só coisa para que se complete o favor’. Perguntei: ‘E qual é?’.
Respondeu: ‘Quando eu descer estas escadas, feche a porta [a placa], jogue terra sobre ela; em seguida, recoloque as pedras como
estavam, misture este pó de gesso [pó de cimento] com a água que está no recipiente e remonte o túmulo como estava antes, para que
ninguém suspeite dele. E depois vá em paz. Faz um ano que eu estou construindo este lugar, sobre o qual eu não informei a ninguém,
exceto Deus e depois você. Sentirei sua falta, primo’, e, abandonando-me, desceu as escadas. Logo que sumiu de minhas vistas, fechei
a porta, joguei terra sobre ela, repus as coisas como estavam antes e remontei o túmulo com o gesso como estava, fazendo tudo o que
ele me determinara. O túmulo ficou como estava antes, sem que ninguém pudesse suspeitar dele, meus digníssimos senhores. Depois
de ter feito tudo o que ordenara o meu primo, regressei e dormi”.
[134] Veja, no Anexo 5, a narrativa de um caso de incesto constante de um livro de crônicas históricas.
[135]Sāyir quer dizer “caminhante”.
[136] Faz parte do cânone religioso islâmico considerar a existência de sete sistemas legítimos para a recitação do Alcorão. O autor
aludido, Aššāṭibī, morto em 1194 d.C., nasceu em Játiva, na Andaluzia, e entre suas obras está o livro que o original menciona
[Aššāṭibiyya], na verdade uma exposição versificada sobre esses sete sistemas canônicos de recitação alcorânica.
[137] O trecho é quase incompreensível, tendo sofrido alterações em todos os manuscritos. Entendeu-se aqui albarīd, “correio”, não da
maneira neutra que se poderia supor, mas sim como um dos aparatos de segurança do Estado, sobretudo durante o período abássida.
[138] Ou seja, 1,65 metro.
[139] A expressão “marido que se foi” traduz o praticamente incompreensível sintagma baᶜl sālifah. A dificuldade reside na palavra
baᶜl, para a qual nenhum dicionário registra sentido mais razoável, na presente circunstância, do que “marido”. A expressão foi
modificada em todos os outros manuscritos, o que constitui um bom índice de sua ininteligibilidade.
Com base na descrição que antecede a poesia, e no fato de que a palavra sālifah (aqui entendida como “aquele que partiu”, no
masculino apesar da terminação feminina) também indica, entre outras coisas, os cabelos que crescem entre os olhos e as orelhas,
poder-se-ia, um pouco forçadamente, traduzi-la como “trança”. Mas, tal como está, o sintagma não tem sentido. Os dois únicos que
traduziram essa poesia foram René Khawam e Husain Haddawy; o primeiro traduz o verso como “lumière sur son front, avivant
encore les roses de ses joues”; o segundo, “A radiant brow and tresses that beguile”.
[140] Provérbio popular.
[141] No ramo egípcio, a execução da mulher é bem mais cruel, pois se cortam suas mãos, seus pés e finalmente sua cabeça.
[142] A história do invejoso e do invejado foi omitida no ramo egípcio do livro. Isso talvez se deva à sua (aparente) ineficácia.
[143] “Seu porto se tornou inteiramente visível” é mera suposição para o incompreensível fakamula marsāhā.
[144] Isto é, 6,6 metros de comprimento por 0,66 metro de largura.
[145] As curtas descrições que vêm depois das denominações caligráficas não constam, evidentemente, do original, tendo sido
introduzidas pelo tradutor para dar uma ideia, ainda que mínima, das diferenças que guardam entre si.
[146]Sittulḥusni significa “senhora da beleza” e Muqbil, o nome do criado, significa “aquele que vem”.
[147] Embora o nome do rei varie, todos os manuscritos falam de “Ilha de Ébano”, o que provocaria confusão com a personagem
morta pelo gênio. Por isso, optou-se por traduzir o que consta da edição de Būlāq.
[148] O kūfī é uma das mais antigas caligrafias árabes, caracterizada pelo predomínio de linhas retas. E “palavras talismânicas” traduz
o raro termo qalfaṭīriyyāt, que só consta do manuscrito mais antigo.
[149] Esse nome, que significa “Espantoso, filho do Generoso”, foi omitido no ramo egípcio do livro.
[150] “Defesa da fé” traduz jihād.
[151] Provérbio popular.
[152] “Égua de cobre” traduz faras min nuḥās. Tradicionalmente, esse objeto se popularizou como “cavalo de bronze”. Na verdade, a
palavra árabe faras (origem do português “alfaraz”) é híbrida, podendo indicar ambos os gêneros, “cavalo” ou “égua”; aqui, preferiu-se
o feminino para evidenciar outra possibilidade de leitura. Quanto ao metal, em árabe moderno, com efeito, nuḥās significa apenas
“cobre”, muito embora no árabe antigo, entre ou-tras coisas, pudesse também significar “bronze”, ou, mais genericamente, “metal”,
que tem sido a opção de alguns tradutores contemporâneos, como Husain Haddawy, para o inglês, e Claudia Ott, para o alemão.
[153] Embora não se possa ter certeza, talvez se trate de um jogo assemelhado ao de damas.
[154] Alcorão, 8, 42.
[155] O provérbio “O que os olhos não vêem, o coração não sente” literalmente se traduziria por “Olho que não vê, coração que não se
entristece”.
[156] “Roque”, ruḫḫ: gigantesca ave da mitologia árabe, também conhecida como “fênix”.
[157] O original introduz a história do terceiro dervixe sem a mediação necessária, como se Šahrāzād a contasse diretamente ao rei
Šāhriyār, apresentando-a, no início, em terceira pessoa. Para manter a coerência narrativa, a tradução viu-se obrigada a efetuar uma
pequena adaptação.
[158] O original traz “despedi-me delas duas”, mas o manuscrito da Bodleian Library (“Bodl. Or. 550”) traz as poesias de cada uma
das quarenta jovens.
[159] Neste ponto, parece evidente, como se fez em alguns manuscritos do ramo egípcio, que seria necessário iniciar uma nova noite, o
que não se deu por possível negligência do autor, ou mais possivelmente do copista.
[160] Ressalve-se que essa genealogia está errada e confusa. Hārūn Arrašīd era o quinto, e não o sétimo califa da dinastia abássida, que
se iniciara em 750 d.C. com Abū Alᶜabbās Assaffāḥ (750-754), sucedido por seu irmão Abū Jaᶜfar Almanṣūr (754-775), sucedido por
seu filho Muḥammad Almahdī (775-785), sucedido por seu filho Mūsà Alhādī (785-786), sucedido, enfim, por seu irmão Hārūn
Arrašīd (786-809). Dois manuscritos do ramo egípcio tentam corrigir os dados, mas cometem outros erros. Embora tradicionalmente se
considere que Hārūn Arrašīd seja um dos principais protagonistas, por assim dizer, “históricos” das noites, é curioso que essas
informações básicas fossem ignoradas pelo autor. Mas pode-se tratar de equívocos propositais.
[161] Provérbio popular.
[162] Provérbio popular.
[163] O trecho entre colchetes foi traduzido do manuscrito “Arabe 3615”.
[164] Cidade localizada no Sul do Iraque, nas proximidades do Golfo Pérsico. Foi fundada pelos árabes no século vii. Sua transcrição é
Albaṣra e, a rigor, em português não deveria vir desacompanhada do artigo, que em árabe é obrigatório. Deve-se evitar a forma
“Bassorá”.
[165] Provérbio popular.
[166] Este trecho deve ter parecido obscuro a copistas posteriores, pois se encontra truncado nos diversos manuscritos do ramo egípcio.
Talvez a dificuldade resida na aparente inexistência de uma referência direta de que a narradora se encontrava num palácio real. O
manuscrito 550 (“Bodl. Or. 550”) da Bodleian Library diz: “nos aposentos habitados pelo rei com suas mulheres”; já o “Gayangos 49”
traz uma descrição mais extensa, que parece guardar relação com o original da versão adotada por algumas edições impressas, como a
segunda edição do Cairo, além de modificar os motivos que levaram o navio à cidade, fazendo a narradora ver, antes da rainha, “o rei
sentado, tendo a seu lado seus secretários, ajudantes e vizires; vestia trajes que deixavam atônito o pensamento; ao me aproximar do
rei, verifiquei que estava acomodado num trono cravejado de pérolas e gemas, e cada pérola brilhava como o sol resplandecente; seu
traje estava ornado com ouro, e ao seu redor estavam parados cinquenta mamelucos vestidos de seda e trazendo às mãos uma espada
desembainhada”.
[167] Como se sabe, todo local de prece muçulmana deve ter um nicho que indique a Caaba, pois é na direção dela que os crentes se
prosternam.
[168] Parece óbvio que tais versos, originariamente, descreviam uma figura feminina. E sua adaptação está visivelmente mal-acabada,
conforme se evidencia pela referência às ancas, incomum para falar de homens, e à “romã” do peito, metáfora habitual para seios
empinados.
[169] No original, majūs, isto é, praticantes da religião de Zoroastro.
[170] O ramo egípcio apresenta mais detalhes sobre a relação entre a velha e o rapaz (realçando o fato de que ela lhe ensinava
secretamente a religião muçulmana), e, ao cabo, faz a velha morrer antes dos eventos seguintes, o que parece mais coerente, uma vez
que o rapaz foi o único a não ser transformado em pedra.
[171] A passagem não deixa claro se a península ou ilha era constituída pelos rochedos, nem se a faixa de terra ligava os rochedos à
península ou a própria ilha ao continente. O autor possivelmente pensou em trechos de terra que, na maré baixa, se ligavam ao
continente.
[172] “Quem deu livre curso aos dois mares” é como Deus é chamado no Alcorão, em 25, 53.
[173] Versos em kān wa kān, poesia de caráter popular anteriormente descrita.
[174] Por “administrador” traduziu-se a palavra mutawallī. É, possivelmente, um cargo acima do chefe de polícia.
[175] Provérbio popular.
[176] Curiosa referência a dois dos filhos do califa Hārūn Arrašīd, os quais, após sua morte, entraram em guerra pelo poder: Alamīn, o
sucessor imediato, governou de 809 a 813 d.C. Foi deposto e morto por uma sublevação comandada por Alma’mūn, que governou de
813 a 833 d.C., período em que as artes e as ciências conheceram grande desenvolvimento. Fundou a “Casa da Sabedoria” e estimulou
a tradução da filosofia grega para o árabe.
[177] O trecho “compreenderam o aspecto oculto dos casos em que estiveram envolvidos” traduz wa ᶜalimū bāṭina qaḍiyyatihim,
sintagma deveras obscuro.
[178] Neste ponto, o ramo egípcio apresenta uma poesia recitada pelo velho.
[179] Por “administrador-geral” traduziu-se wālī, que normalmente corresponderia a “governador” ou “prefeito”. Nesse passo, embora
essa palavra quase sempre corresponda ao responsável pela guarda e pela segurança, trata-se de um posto hierarquicamente superior ao
do chefe de polícia.
[180] Neste ponto, quase todos os manuscritos consultados trazem “num dia deste mês”. O curioso é que não se atentou para a
inverossimilhança, pois a mulher leva “um mês completo” para sarar, e mais outros quinze dias são consumidos em viagem para outra
cidade etc. Por isso, supondo-se lapso de cópia ou de cálculo, utilizou-se outra formulação.
[181] Provérbio popular.
[182] Alcorão, 8, 42.
[183] Provérbio popular.
[184] Nos manuscritos “Gayangos 49” e “Arabe 3615”, o escravo é crucificado e somente depois Jaᶜfar conta a história.
[185] Esta história não conta do manuscrito “Bodl. Or. 550”.
[186] O nome Šamsuddīn significa “sol da fé”, ao passo que Nūruddīn significa “luz da fé”.
[187] Cidade egípcia situada ao norte do Cairo, atualmente localizada no distrito do mesmo nome. Porém, como se verá adiante, o
personagem está despistando, pois ele se dirige para o Leste. Mais adiante, Bilbīs, na região oriental do Delta, é o nome até hoje usado
de uma antiga cidade faraônica que, desde a época fatímida, no século x d.C., até o fim do período mameluco, no século xvi d.C., foi a
capital das províncias orientais do Egito. Segundo o geógrafo Yāqūt, o vulgo pronunciava Bilbays.
[188] Essa referência elíptica à destruição de Bagdá e demais localidades, perpetrada pelas hordas mongóis de Hulagu em 1258, indica
que a redação do texto data de uma época não muito posterior. Confira também, linhas acima, a fala do personagem, que resolve
prosseguir a marcha “nem que vá parar em Bagdá”. Em condições normais, não haveria problema algum, antes pelo contrário, em ir a
Bagdá. Destruída, porém, a cidade se tornou, ao menos por algum tempo, um lugar perigoso.
[189] Essa mesma poesia já apareceu na quinquagésima quarta noite, durante a história do terceiro dervixe, e foi recitada a propósito
do rapaz cujo pai o escondera no subterrâneo, a fim de evitar-lhe a morte.
[190] O nome Badruddīn significa “plenilúnio da fé”. E Ḥasan significa “bom” ou “belo”.
[191] O original não deixa claro quem declama a poesia, nem a quem se atribuem as virtudes da educação, generosidade etc., nem,
consequentemente, a quem o sultão agradece pela poesia. Optou-se pelo que pareceu mais conforme à lógica da narrativa. Ao contrário
de algumas traduções, considerou-se improvável que o texto estivesse atribuindo as virtudes ao rei, que não as possui, como se
evidenciará mais adiante.
[192] Embora pareça redundância, é bom lembrar que se trata de uma observação absolutamente irônica.
[193] Este último hemistíquio é uma visível paródia da profissão de fé islâmica “declaro que não há divindade senão Deus”.
[194] A partir deste ponto, é mais comum que o texto se refira ao herói apenas como Ḥasan ou Ḥasan de Basra, omitindo o primeiro
nome, Badruddīn. Para evitar confusões, contudo, a tradução manteve o nome tal como está desde o início da história.
[195] Provérbio popular.
[196] Essa poesia já foi recitada na trigésima oitava noite pelo carrasco encarregado de executar o primeiro dervixe.
[197] Existe alguma fratura no andamento da narrativa, que mais de um tradutor procurou remediar por conta própria. O fato é que,
embora não pareça lógico que o recibo tenha permanecido em posse de Badruddīn, em vez de com o judeu Isḥāq, a funcionalidade
desse pedaço de papel ficará evidente mais adiante. O manuscrito “Gayangos 49” traz o seguinte: “Disse [o judeu]: ‘Meu senhor, dê-
me a honra de escrever com sua própria letra, e eis aqui os mil dinares de adiantamento, que o senhor pode levar agora’, e, mostrando-
lhe uma bolsa contendo mil dinares, estendeu-a para ele. Badruddīn recolheu-a e escreveu um papel sobre o recebimento e outro para si
mesmo: ‘no dia tal do ano tal’; apôs seu selo na folha e deixou o judeu”.
[198] Fique claro que, seguindo hábito até hoje corrente no Egito, o texto sempre se refere à cidade do Cairo como madīnat Miṣr
[“cidade do Egito”] ou Miṣr [“Egito”].
[199] “Menina dos olhos” traduz o incompreensível lu’lu’ albaṣīra, “pérola da visão” (?).
[200] O autor, obviamente, tinha por horizonte o calendário lunar muçulmano.
[201] Referência ao costume de, durante a cerimônia de casamento, exibir a noiva por diversas vezes, cada vez com roupas diferentes.
[202] Note-se que, nessa noite, mesmo os trechos em prosa estão redigidos em sajᶜ, prosa rimada ornamental muito comum em árabe,
que, aqui, determina o andamento da narrativa.
[203] Como já se disse, Sittulḥusni significa “senhora da beleza”.
[204] Locução poética recorrente em árabe: é a própria condição dos personagens (no caso, lisān ḥālihimā) que fala, por si só, a
respeito deles.
[205] Em vez dessa afirmação, a primeira edição de Būlāq traz: “Você ingeriu haxixe?”.
[206] Cidade do Norte do Iraque (cf. adiante).
[207] Esse trecho não é, em absoluto, claro. Em vez de “quarto de núpcias”, o texto diz, reiteradas vezes, “casa”.
[208]Mājid significa “glorioso”; Suttayta, “pequena dama”; e ᶜIzzuddīn, “altivez da fé”.
[209] Trocadilho com o nome do menino. Em árabe, ᶜAjīb significa “espantoso”, “admirável”.
[210] Veja, no Anexo 6, um relato histórico sobre o filho “desaparecido” de um grande líder político.
[211] Como o leitor não deixará de notar mais adiante, a participação na viagem da filha do vizir, Sittulḥusni, carece de funcionalidade
narrativa, mas consta de todos os manuscritos e edições.
[212] Provérbio popular.
[213] Essa poesia já havia sido declamada na septuagésima terceira noite, a propósito de Nūruddīn, pai de Badruddīn.
[214] “A cegueira cegou a gente e entramos” traduz o incompreensível li’anna alᶜāᶜamā wa’annā daḫalnā. Para a tradução, supôs-se
que fosse má leitura de li’anna alᶜamā ᶜamānā wa daḫalnā. No trecho todo, a fala do eunuco é marcada pelo uso de estereótipos a
respeito do sotaque dos negros.
[215] Homs [Ḥumṣ ou Ḥimṣ], uma das mais antigas cidades de toda a humanidade, situa-se no Oeste da Síria, ao norte de Damasco; os
latinos a designavam por “Emessa”; Hama [Ḥamāt], cidade do Oeste da Síria, é também bastante antiga, dela havendo registros que
remontam a quase dois mil anos antes de Cristo; Alepo [Ḥalab], cidade do Norte da Síria, conhecida como “a cinzenta”, tão antiga ou
mais do que a precedente; Mardin [Mārdīn], cidade atualmente situada na Turquia asiática; Mossul [Almawṣil], cidade situada no Norte
do Iraque, conhecida como “a corcunda” ou “a das duas primaveras”; ganhou renome durante a Idade Média, em virtude de sua
pujança e também do tecido que em português se conhece como “musselina”; Sinjār, cidadela situada no Norte do Iraque; Diyār Bakir,
cidade hoje situada na parte asiática da Turquia, às margens do rio Tigre.
[216] Quase todos os manuscritos consultados trazem “quinze anos”, com exceção do “Arabe 3615”, que traz “vinte” e do “Gayangos
49”, que traz “catorze”. Para não interferir demais no texto, a tradução optou por “uns quinze”. Veja adiante, nas noites 94, 99 e 100.
[217] Essa mesma poesia, com uma alteração mínima e quase imperceptível, já fora recitada na vigésima quarta noite pela mulher do
rei das Ilhas Negras, para o seu amante negro que fora mortalmente ferido. Note-se o uso da mesma poesia para situações
diametralmente opostas.
[218] O manuscrito-base registra “dez”, bem como todo o ramo sírio. Corrigido a partir dos manuscritos “Arabe 3615” e “Gayangos
49”.
[219] Essa mesquita, que existe até hoje, é um dos principais pontos turísticos de Damasco e uma das joias da arquitetura muçulmana.
O grande mercado da cidade se situa em suas proximidades.
[220] Para a palavra aqui traduzida como “suco”, o original traz o helenismo (registrado pelo dicionário de R. Dozy) uqsimā, “oximel”,
o qual, segundo o dicionário de Antônio Houaiss, é um “composto farmacológico de água, mel e vinagre”. Nesse trecho, entretanto, a
melhor acepção é mesmo a de “mistura líquida”, e, por extensão, “suco”, conforme se vê no dicionário de neologismos e vulgarismos
de Alḫafājī (1569-1659 d.C.), Šifā’ Alġalīl, o qual informa tratar-se de “suco de passas”.
[221] Ressalte-se que, ao contrário do governante de Basra, o de Damasco é tratado como subalterno em relação ao do Egito. No
período em que o texto foi produzido, as terras que hoje compreendem Síria e Egito estavam unificadas pelo Estado mameluco, com
sede no Cairo.
[222] Alcorão, 19, 23.
[223] Os trechos entre colchetes foram traduzidos da edição de Būlāq.
[224] Em tradução literal, o original diz: “até que, por fim, beberam da taça da morte” (servida pelo arcanjo da morte). Em português,
essa formulação não cabe, por passar a impressão de envenenamento. As duas edições de Calcutá possuem um final bem mais extenso,
em que o sultão do Egito ouve toda a história e fica muito interessado em conhecer Badruddīn, que então lhe é apresentado pelo tio etc.
etc. São acréscimos tardios.
[225] Trata-se, obviamente, do esposo da jovem retalhada em postas na história anterior.
[226] Cidade localizada no Noroeste da China, região de Xingjiang. Fazia parte da rota da seda. O texto árabe registra Qajqār.
[227] Observe-se que o texto traz ḫalīla, “amiga íntima”, e não zawja, termo que só aparecerá um pouco mais adiante. O trecho entre
colchetes, que se encerra na página 270, não consta do manuscrito-base, tendo sido traduzido das outras fontes.
[228] Embora o original traga ᶜAnz, deve-se ler, conforme sugere o crítico Muhsin Mahdi, ᶜAntar [Bin Šaddād Alᶜabsī] (525-615 d.C.),
considerado um dos grandes poetas do período pré-islâmico. A ele se atribui uma das sete muᶜallaqas, as mais famosas poesias árabes
do período. Como as crônicas históricas referem que ele era também guerreiro de valor, e que padeceu de amores por sua prima ᶜAbla,
a história de ᶜAntar acabou transformada numa grande novela de cavalaria. Ao lado das Mil e uma noites, a biografia de ᶜAntar foi uma
das narrativas mais populares entre os árabes, cantada em verso e prosa nas ruas do Cairo e de Damasco. Ressalve-se, porém, a
improbabilidade de que essa poesia seja de sua lavra.
[229] Esta poesia, com variantes mínimas, já fora recitada na septuagésima nona noite, a propósito de outro corcunda.
[230] O original diz muḫammas, “pentâmetro”, mas faltam versos na poesia que vem a seguir. Observe-se que, na tradução, cada
quatro linhas correspondem a uma unidade do pentâmetro. Logo, faltam duas linhas da quarta unidade e todas as quatro linhas da
quinta. Contudo, talvez pelo caráter meio autônomo desses versos cômicos, a falta mal se percebe.
[231] Trata-se dos quatro últimos versos da primeira poesia deste livro, recitada logo na primeira noite pelo mercador, quando o ifrit
afirma que irá matá-lo.
[232] Provérbio popular.
[233] Neste ponto, o original, embora facilmente inteligível, não apresenta um discurso bem concatenado. A fala do cristão se abre
com uma oração subordinada – “Saiba que antes de chegar a estas terras” – que não tem continuidade. Em vista disso, optou-se por
pequenas adaptações. Note-se, ainda, que a ideia de troca – uma narrativa “assombrosa” pela vida – não é explicitamente proposta, ao
contrário do que ocorreu em outras histórias.
[234] “Coptas” é como até hoje se denominam os cristãos nativos do Egito.
[235] Por “medida” traduziu-se a palavra irdabb, já discutida em nota à nona noite.
[236] Essa hospedaria é citada em obras históricas que descrevem o Cairo.
[237] “Evangelho” traduz literalmente injīl. A expressão árabe designa a totalidade do Novo Testamento.
[238] A etiqueta árabe determina que se utilize a mão direita para comer.A esquerda é reservada para atividades como higiene pessoal
etc.
[239] “Layla” é o nome da musa do poeta Qays Ibn Almulawwiḥ Alᶜāmirī, morto por volta de 688 d.C., e que se celebrizou como
majnūn Laylà, “o louco de Layla”, ao qual se atribuem muitas poesias cantando esse amor. Afirma-se, no vasto anedotário formado a
respeito do caso, que ambos jamais puderam consumar o seu amor devido à incontornável oposição da família dela. Contudo, parece
que essa Layla era tão “real” quanto a Cíntia de Propércio. No Livro das canções, do século x d.C., o cronista Abū Alfaraj Alaṣbahānī
apresenta o relato de um homem que foi até a localidade onde supostamente vivera esse poeta, a fim de pesquisar sobre ele e sua
amada. Obteve a esclarecedora resposta de um ancião: “A que louco te referes? Pois, aqui, todo aquele que se apaixona é louco, e toda
mulher pela qual alguém se apaixona é Layla”. Tanto a legenda do “louco de Layla” como a sua obra foram apropriadas para as mais
diversas finalidades; são muito caras, por exemplo, aos praticantes do misticismo muçulmano, o sufismo, como alegoria da relação
com o divino etc.
[240] Rua até hoje existente no Cairo. Significa “entre dois palácios” e é o título de um dos romances da célebre trilogia do escritor
egípcio contemporâneo Najīb Maḥfūẓ.
[241] “Centro comercial” traduz alqayāsiriyya (depois alqaysariyya), palavra que originou o termo português, hoje relegado ao
esquecimento, “alcaçaria” (ou “alcaceria”), que significa exatamente isso: área de concentração comercial. Jarkis ou djarkis
(eventualmente pronunciado tšarkis) significa “circassiano”, designação dada aos originários da região norte do Cáucaso, na Ásia.
Corresponderiam aos atuais tchetchenos.
[242] O original traz wiṣāl, que se refere mais ao contato físico, sexual; “gozo de amor”.
[243] O original diz “noite de sexta”, pois os muçulmanos consideram o dia como prolongamento da noite que o antecede. Assim, o
que no Ocidente seria a noite de quinta-feira, seguida do dia de sexta-feira, para os muçulmanos é a noite de sexta-feira, seguida do dia
de sexta-feira.
[244]Bāb Zuwayla, localidade até hoje existente no Cairo.
[245] Literalmente, “travessa (ou caminho) da piedade”.
[246] A narrativa do despenseiro é baseada num relato do século x d.C., do juiz Almuḥassin Attanūḫī, no livro Alfaraj baᶜda aššidda
[Libertação depois da dificuldade], cuja tradução pode ser conferida no Anexo 7 deste volume. Como se verá, trata-se de uma
adaptação um tanto ou quanto inverossímil, o que a torna uma das histórias mais incoerentes do livro. No relato do juiz, os
acontecimentos se dão durante o governo do califa Almuqtadir, que governou de 295 H./908 d.C. a 320 H./932 d.C., e não durante o de
Hārūn Arrašīd, que governou de 170 H./786 d.C. a 193 H./809 d.C. Compare-se esta localização histórica com a afirmação do
barbeiro, na centésima quadragésima quarta noite, que situa a ação por volta do ano de 653 H., correspondente a 1255 d.C.
[247] Ensopado de carne com tempero de cominho. Numa descrição mais pormenorizada, o advogado e escritor iraquiano ᶜAbbūd
Aššāljī informou: “prato constituído por carne cozida com canela e vinagre, à qual se acrescenta depois grão-de-bico, salsão, pimenta,
cominho e amêndoa descascada, e no qual, finalmente, se asperge água-de-rosas e se lança açafrão” (cf. o Anexo 7). O texto deixa
entrever alguma variação na feitura do prato.
[248] Como já se mencionou, pó negro muito usado entre os árabes para pintar e proteger os olhos.
[249] “Raiz aromática” traduz suᶜd, “junça”, planta da família das ciperáceas (Cyperus esculentus), comestível e muito comum na
África; contém óleo e açúcar.
[250] O período “assim descoberta, em plena luz do dia? Desse jeito ficaremos em apuros!” traduz wa taṭlaqī fī annahār alḥamrā,
literalmente, “e você sai caminhando em dia vermelho”, formulação meio obscura que tanto pode significar a primeira como a segunda
parte do período da tradução.
[251] Convém lembrar que dinar é moeda de ouro, ao passo que dirham é moeda de prata, de valor bem menor.
[252] Zubayda, morta em 831 d.C., era prima e esposa do califa Hārūn Arrašīd. Ambos eram netos de Almanṣūr, o segundo califa
abássida, que governou de 754 a 775 d.C.
[253] Fonte situada em Meca, cuja água é considerada sagrada pelos muçulmanos. Teria sido criada por Deus para matar a sede de
Ismael, considerado o patriarca dos árabes. Note-se a ironia: a jovem faz o criado pensar que a urina é, na verdade, água sagrada.
[254] O original diz assukkar almukarrar, “açúcar repetido”, e se traduziu conforme Dozy (vol. ii, pág. 460).
[255] A expressão “da minha classe” traduz miṯlī, “como eu”.
[256] O original traz “a jovem ralhou com ele, ofendeu-o e saiu”. Esse lapso pode evidenciar que a história estava sendo adaptada de
uma fonte na qual a narrativa se fazia em terceira pessoa.
[257] “Você não perde por esperar!” traduz a obscura frase mā ṣabart laḥẓa.
[258] “Morada da paz”, dār assalām, é ainda hoje um dos nomes de Bagdá. Atualmente, os egípcios é que se referem ao seu país como
“mãe do mundo”, umm addunyā.
[259] “Devolva o arco [...] curso” traduz fa’aᶜṭī alqawsa nāwilahā wa-ṣrif almā’a ’ilà majārīhā, provável alusão metafórica a alguns
rituais dessa festa.
[260] O poder “encantatório” dessa descrição deriva também da prosa rimada [sajᶜ] do original.
[261] Alcorão, 55, 52. Na passagem anterior, raḍwān significa “bênção” e também se usa como nome próprio.
[262] O original traz “dois ašrafīs”, moeda de ouro que pode ter sido cunhada em dois períodos: 1) no final do século xiii d.C., no
governo do sultão mameluco Ḫalīl Bin Qalāwūn, conhecido como Almalik Alašraf [“o rei mais digno”], o qual, durante o seu curto
governo (1290-1293), derrotou definitivamente os cruzados no Oriente, reconquistando Acre, Tiro, Saida e Haifa; 2) na primeira
metade do século xv, durante o governo de outro sultão mameluco, Sayf Addīn Barsbāy, também conhecido como Almalik Alašraf,
que durante seu governo realizou uma reforma monetária e tratou com rigor os súditos não muçulmanos, obrigando-os a usar trajes
dife-renciados. A segunda hipótese é mais viável (cf. o posfácio ao terceiro volume desta coleção). Quanto ao local da hospedagem,
note que, no século xvi d.C., o historiador damasceno Ibn Ṭūlūn Aṣṣaliḥānī, morto em 953 H./1547 d.C., re-gistrou que o sultão
otomano Salīm se hospedou em 923 H./1517 d.C., após derrotar os mamelucos, na mansão “antigamente co-nhecida como mansão de
Sūdūn ᶜAbdurraḥmān”. Entre 1424 e 1432 d.C., o governador mameluco de Damasco foi ᶜAbdurraḥmān Bin Sūdūn, provável parente
do proprietário original da mansão.
[263] “Ela aceitou a minha oferta” traduz o obscuro sintagma lazamatnī albīᶜa (ou albayᶜa). Como a palavra bīᶜa também significa
“templo”, pode ter o sentido de “entrou na minha casa”.
[264] “Petiscos delicados” traduz a sequência consonantal mšwr, de sentido obscuro.
[265] Alcorão, 23, 14.
[266] Provérbio popular. “Imagem transitória” traduz a palavra ṣūra, simplesmente “imagem”.
[267] Para esse verso a tradução é hipotética, uma vez que o seu sentido é obscuro: kallā wa lā bi-lmazmarī.
[268] “Opulento” traduz murabrab e “bem desenhado”, muᶜaqbar. São apenas hipóteses, pois o sentido originário de ambos os
adjetivos é hoje obscuro. Note-se a convenção poética, em que o eu lírico e a persona amada são masculinos.
[269] Ressalve-se que muitas palavras, e mesmo versos inteiros, dessa poesia, a mais longa do livro, são praticamente
incompreensíveis hoje.
[270] O termo “alvíssara” traduz o árabe albišra, palavra que é origem dessa expressão em português. Seu sentido também manteve o
do original do árabe. O dicionário de Antônio Houaiss, por exemplo, define-a como “recompensa oferecida a quem traz boas-novas”.
[271] A tradução desse verso é mera hipótese; ininteligível, o original diz: fabiḥaqq siḥr nawāᶜis fī muᶜanbarin.
[272] Como se viu, as casas de banho no mundo muçulmano funcionavam também como saunas e locais para revigorar o organismo.
[273] Durante muito tempo, realizar sangrias fez também parte do ofício de barbeiro.
[274] Corresponde a 29 de março de 1255 d.C.; ṣafar é o segundo mês do calendário islâmico; três anos depois, Bagdá seria devastada
pelos mongóis. As tabelas de conversão indicam que se tratava de uma segunda-feira, e não de uma sexta-feira, embora ocorram
discrepâncias. As datas variam nos manuscritos do ramo egípcio, mas a maioria deles traz o ano de 763 da Hégira, que corresponde a
1361 d.C. Note-se ainda que o discurso do barbeiro é confuso.
[275] Provérbio popular.
[276] Por ḥadīṯ se entende o conjunto das falas e tradições atribuídas ao profeta Maomé [Muḥammad]. Muslim e Albuḫārī, ambos do
século ix d.C., foram os mais eminentes compiladores de ḥadīṯ. A obra de ambos é até hoje considerada a mais importante e correta
pela ortodoxia muçulmana.
[277] Os nomes significam, respectivamente, “tagarela”, “fofoqueiro”, “tagarelinha”, “jarro de pedra” (ou “jarro triste”, ou ainda “jarro
de Assuã”), “fanfarrão” (ou “serrador”), “ruidoso” e “silencioso”. Mais adiante, no relato do barbeiro, o segundo irmão tem seu nome
modificado para Baqbāqa (que também pode significar “fofoqueiro” ou “tagarela”).
[278] Neste ponto, o texto seguido na tradução está correto, embora pareça, à primeira vista, faltar algo. Mas o fato é que, contrariando
a tendência geral do livro, neste caso específico a poesia também funciona como parte narrativa da história principal (e não somente
comentário, adorno ou narrativa marginal), pois é por meio dessa poesia, sem mais nenhum outro recurso narrativo, que o barbeiro
conta como conheceu o pai do jovem.
[279] Os dois trechos entre aspas simples são provérbios populares.
[280] O original diz “petiscos e frutas”. Corrigido a partir das edições impressas.
[281] Para traduzir “criador de pombos”, leu-se ḥamāmī; no entanto, poderia também ler-se ḥammāmī, que indica pessoa que trabalha
em casas de banho, atividade atribuída logo adiante a outro membro da confraria.
[282] O original diz bi-lmaġrafa, sintagma de difícil compreensão. Pensou-se, aqui, num trocadilho com a profissão do personagem,
pois a palavra maġrafa pode indicar um utensílio (uma espécie de concha) para recolher alimentos. Outra possibilidade de tradução é
“com acompanhamento” (no caso, a batida com essa peça).
[283] Momento final da prece muçulmana, quando o crente cumprimenta os anjos, primeiro o da direita e em seguida o da esquerda.
[284] A história do barbeiro foi adaptada de um relato histórico encontrado na obra Murūj Aḏḏahab... [Pradarias de ouro...], de
Almasᶜūdī, e em historiadores posteriores. Confira no Anexo 8 deste volume.
[285] Almustanṣir Billāh, penúltimo califa da linhagem abássida, governou de 623 a 640 H. (1226 a 1242 d.C.). Era bisneto, e não
filho do califa Almustaḍī’ Billāh, que governou de 566 a 575 H. (1170 a 1180 d.C.). No relato histórico de Almasᶜūdī, a ocorrência se
dá bem antes, durante o califado de Alma’mūn, que durou de 198 a 218 H. (813 a 833 d.C.). Alguns manuscritos do ramo egípcio
trazem o nome do califa Almuntaṣir, que reinou de 247 a 248 H. (861 a 862 d.C.), e um único, o “Gayangos 49”, traz o nome de
Almuᶜtaṣim, califa que reinou de 218 a 227 H. (833 a 842 d.C.).
[286] Como não terá passado despercebido ao leitor, a observação do califa é inteiramente extemporânea, uma vez que, em princípio,
ele nada sabe a respeito da vida pregressa do barbeiro. Note-se que as histórias dos seis irmãos do barbeiro foram inseridas nas Mil e
uma noites a partir de outro conjunto narrativo do século xiii ou xiv, denominado Histórias espantosas e crônicas prodigiosas
[Alḥikāyāt alᶜajība wa alaḫbār alġarība]. Nessa obra, tais histórias são narradas em primeira pessoa pelos personagens, que ali não são
irmãos, mas sim indivíduos levados por uma aia para divertir “certo rei” inominado. Quando as introduziu nas Mil e uma noites, o
responsável pelo texto, por mais de um momento, esqueceu-se de fazer as adaptações necessárias, tais como passar a narração para a
terceira pessoa, já que o narrador das histórias dos seis personagens é o barbeiro. Por isso, a fim de manter a legibilidade, a tradução
teve de realizar algumas correções e adaptações.
[287] Cidade egípcia conhecida por seu linho.
[288] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[289] O trecho “o mestre que redigira o contrato de casamento” traduz almuᶜallim allaḏī kataba alkitāb, “o mestre que escreveu o livro
[ou o escrito]”. Assim isolada, sem nenhum referencial anterior direto, a palavra alkitāb [“livro” ou “escrito”] só pode remeter ao
contrato de casamento. Leia, no Anexo 9, a tradução do texto que deu origem a este, e no qual essa passagem assume um sentido
completamente diferente.
[290] Entenda-se que se trata de uma pantomima.
[291] Veja, no Anexo 9, a tradução do texto que serviu de fonte para a história do primeiro irmão do barbeiro.
[292] Com base na fonte desta história (as Histórias espantosas e crônicasprodigiosas), a tradução desta passagem poderia ser: “Ela
respondeu: ‘Sim, e será seu desde que você seja ajuizado’. Meu irmão perguntou: ‘E por que você me preferiu a todas as outras
pessoas? O que a agradou em mim?’. Ela disse: ‘E eu não estou lhe dizendo que não fale demais? Cale-se e venha comigo’”.
[293] O enredo desta noite apresenta acentuada variação nos manuscritos. No entanto, como o texto principal é consistente, não se viu
necessidade de apontar as variantes.
[294] Trata-se, entre os árabes, de um gesto humilhante, que indica passividade sexual da vítima.
[295] A expressão “Só Deus é que pode ajudá-lo” traduz yaftaḥ allāh ᶜalayka (que Deus lhe abra [as portas]), palavras que, embora
gentis na aparência, são usadas para recusar ajuda a alguém.
[296] O episódio seguinte e a nova fuga constam somente da fonte e do ramo egípcio.
[297] Na fonte dessa história consta: “Então mexeram na minha cintura e encontraram uma enorme faca que eu carregava, por medo de
topar com algum inimigo”; na edição de Būlāq: “Revistaram-no e encontraram em sua cintura a faca que ele utilizava para cortar
sapatos”; já os manuscritos não trazem explicação para a existência da faca com o personagem.
[298] Neste ponto, o manuscrito “Gayangos 49” singulariza-se por introduzir uma passagem com o personagem Juḥā, misto de sábio e
bobalhão, muito comum no folclore muçulmano em suas vertentes popular e mística. Eis a tradução: “E esses cálculos, ó comandante
dos crentes, eram semelhantes aos sonhos de Juḥā, o qual certa noite dormiu e sonhou que tinha a seu lado uma travessa cheia de joias
e pedras preciosas, e também um grupo de mercadores que pretendiam comprá-las. Ele lhes disse: ‘Comprem, mas não sejam
avarentos na oferta!’. Eles lhe ofereceram quatrocentos dinares e ele respondeu: ‘Que Deus melhore as coisas!’. Então eles passaram a
fazer uma oferta mais elevada do que a outra, até que chegaram a mil dinares. Quis o destino que houvesse sobre a cabeça de Juḥā uma
travessa de cerâmica; tudo isso ocorria em sonho: aqueles mercadores continuaram insistindo, até que o valor oferecido pelas joias e
pedras preciosas chegou a dois mil dinares. Mas ele recusou a oferta, arrancando bruscamente a travessa das mãos dos mercadores, e
seu cotovelo bateu na travessa de cerâmica que estava sobre sua cabeça [e a quebrou]; ele acordou e, não vendo nada, tornou a fechar
os olhos e dormiu de lado; esticou a mão e disse: ‘Paguem algo que corresponda à abundância de seu mar!’. Assim, ó rei do tempo, é
que as esperanças do meu irmão eram semelhantes aos sonhos de Juḥā”. Trata-se da única aparição desse personagem em toda a obra.
[299] O trecho “não deixarei de me fazer de rogado com a noiva” traduz wa lā [a]zāl aᶜjab ᶜalà alᶜarūsa, em que a preposição ᶜalà,
aqui em uso dialetal e não dicionarizado, tem valor opositivo.
[300] As preces muçulmanas se contam pela quantidade de genuflexões feitas pelo devoto.
[301] Neste trecho, o original não deixa claro onde o quinto irmão dormiu, se em sua própria casa ou se na casa onde quase fora morto.
O desdobramento da narrativa, contudo, mostra que ele foi para a sua casa, tal como consta na fonte original desta história.
[302] No original, a pergunta do chefe de polícia é: “Como você conseguiu tudo isso?”. No entanto, tal pergunta não tem sentido, uma
vez que o personagem se encontra despojado de tudo e a polícia ignora o que de fato ocorreu. Por isso, a lógica do texto torna razoável
supor que o quinto irmão fora inopinadamente preso por causa da jovem que, após tê-lo enganado, conseguira de algum modo
denunciá-lo como ladrão às autoridades. A contradição, porém, reside no fato de que aquela jovem não conhecia o seu endereço
original nem sabia nada sobre ele. Nas Histórias espantosas, a pergunta do chefe de polícia é: “De onde você conseguiu todos aqueles
tecidos?”.
[303] O trecho “e lhe cortando as orelhas” é acréscimo a partir da edição impressa de Būlāq, cujo editor não deixou de notar a falta
desse pormenor que se anuncia na abertura da história, mas que não se realiza em seu decorrer. Pode-se imaginar, porém, que as
orelhas cortadas foram pensadas pelo autor como um dado prévio aos eventos narrados; isto é, o quinto irmão não tinha orelhas “antes”
de começar a história (tal como o primeiro irmão já era corcunda e o terceiro já era cego antes do início de suas histórias). Nas
Histórias espantosas, fonte a partir da qual o autor das Mil e uma noites adaptou esta narrativa, tampouco se faz menção às orelhas
cortadas, embora o título afirme que o personagem sofreu tal mutilação.
[304] Clã de origem persa que desfrutou de muito poder de 750 até 803 d.C., quando, por motivos obscuros, o califa Hārūn Arrašīd
exterminou os seus membros.
[305] O trecho “cozido de trigo e carne moída” traduz harīsa, prato que, com esse mesmo nome, também faz parte da culinária
armênia.
[306] A expressão “molho de vinagrete” traduz sikbāj, origem da palavra portuguesa “escabeche”.
[307] A história do sexto irmão, como as demais, tem por fonte as Histórias espantosas. Mas o episódio da refeição que nunca se serve
tem também um precedente mais antigo nas Maqāmāt [Assembleias] de Badīᶜ Azzamān Alhamaḏānī (968-1007 d.C.), um dos
principais autores do período. Veja a tradução no Anexo 10.
[308] Note a contradição: o corcunda, conforme se afirma na próxima noite, encontra-se coberto. Como o barbeiro, que não conhecia a
história, poderia adivinhar que se tratava de um corcunda morto?
[309] Todas as versões do ramo egípcio trazem, em vez de “contratou o barbeiro para trabalhar no palácio”, “tornou o barbeiro seu
hóspede permanente”.
[310] O “destruidor dos prazeres” é o arcanjo da morte.
[311] O trecho “um espetáculo de bons augúrios” traduz bahjat ḥusn aṭṭawāliᶜ, linguagem em chave astrológica.
[312] Cairo, 1835, vol. 1, pp. 2-6 (edição de ᶜAbdurraḥmān Aṣṣifatī Aššarqāwī), e Calcutá, 1839, vol. 1, pp. 1-10 (edição de William
Ḥ. Macnaghten). Para uma terceira vertente desse prólogo, cf. o artigo “O ‘prólogo-moldura’ das Mil e uma noites no ramo egípcio
antigo”, in Tiraz, Revista de Estudos Árabes. São Paulo, Humanitas/ fflch-usp, n. 1, 2004, pp. 70-117.
[313] A primeira edição de Būlāq grafa sistematicamente Šahrabāz em vez de Šahriyār e Šāh Ramān (ou Rummān) em vez de Šāh
Zamān. Tais grafias são bastante semelhantes em árabe. Aqui, a tradução adotou Šahriyār, com o primeiro a curto, e Šāh Zamān,
conforme a edição de Calcutá. Como o leitor irá notar, a grafia dos nomes no ramo egípcio difere da grafia do ramo sírio, e a tradução
respeitou essa divergência. O nome da heroína grafou-se somente com o último ā longo: Šahrazād. A mudança mais radical, porém,
ocorre no nome de sua irmã, que passa a ser Dunyāzād (algo como “nobre mundo”). Para a localização geográfica, leia o que se
escreveu na nota 6, p. 40 deste volume.
[314] Em lugar de ᶜāhira, “puta”, a edição de Calcutá traz malᶜūna, “maldita”.
[315] A edição de Calcutá apresenta pequenas divergências nesta passagem, trazendo, em vez de “branca e resplandecente” [ġarrā’],
“de estatura esbelta” [biqāmatin hayfā’], e acrescentando: “tal como disse, e o fez muito bem, o poeta ᶜUṭayya”. Os dicionários de
literatura árabe não fazem menção a tal poeta.
[316] O trecho “desaparecem as luas”, na edição de Calcutá, traz “parecem envergonhar-se as luas”.
[317] Referência ao personagem bíblico, também citado no Alcorão.
[318] Note-se que, nesta passagem, o ramo sírio não fala em muçulmanos. Em lugar de banāt almuslimīn, a edição de Calcutá
trazawlād almuslimīn, “os filhos de muçulmanos”. Pode-se pensar tanto num anacronismo como na naturalização da expressão com o
sentido de “toda gente” ou “gente de bem”.
[319] Embora ambas as edições tragam “o burro disse a ele”, é possível que seja “disse a si mesmo”.
[320] A edição de Calcutá traz: “De um segredo”.
[321] O termo “cavalheiresco” traduz muhaḏḏab.
[322] O trecho “e concedeu a autorização” foi traduzido da edição de Calcutá.
[323] Lembre-se que na história do carregador e das três jovens de Bagdá a terceira jovem não conta história alguma.
[324] O termo Saᶜīd significa “venturoso”.
[325] O original diz “cadela preta”.
[326] Na cultura árabe, bater no peito é demonstração de contrariedade ou desespero (em geral, batem-se as pontas unidas dos dedos
sobre o peito).
[327] O trecho “o discurso que o rei lhe autorizara” traduz alkalām almubāḥ (literalmente, “o discurso autorizado”), locução comum
no ramo egípcio, mas inexistente no ramo sírio.
[328] Apesar dessas palavras, não aparece a numeração da noite, o que, aliás, é comum nesse manuscrito.
[329] Pode-se rastrear, nessa narrativa, alguma preceptiva extraída dos manuais árabes de erotologia. Por exemplo: Assuyūtī, morto em
1505 d.C., escreveu em seu Īḍāḥ ᶜilm annikāḥ (“Esclarecimento sobre o saber matrimonial”) que “as mulheres turcas têm o sexo frio;
ficam prenhes ao primeiro golpe; seu caráter é vil; elas são rancorosas, mas a sua inteligência é muito vivaz” (apud Abdelwahab
Bouhdiba, La sexualité en islam, Paris, 1982, p. 189).
[330] Alcorão, 2, 117; 3, 47; 3, 59; 6, 73.
[331] No final da história ocorre alguma confusão com a voz narrativa e o relato do retorno dos xeiques, o que exigiu algumas
adaptações.
[332] Autor natural de Kufa, no Iraque, morto no início do século iv H./x d.C.. Utilizou-se a edição de C. A. Storey, Leiden, 1915, pp.
138-140.
[333] Em árabe, a palavra ḫurāfa significa “fábula” etc. Nesse texto, atribui-se a etimologia dessa palavra ao nome de um personagem
histórico que pertenceria à tribo árabe dos banū ᶜuḏra. Embora esse ḥadīṯ [tradição profética] não seja canônico, o personagem Ḫurāfa
é citado por mais de um autor antigo.
[334] Esposa favorita do profeta Muḥammad e filha de Abū Bakr, que foi o primeiro califa muçulmano.
[335] Alusão à antiga convenção médica de que o esperma se produz na espinha dorsal.
[336] Utilizou-se a citada edição de Būlāq, pp. 14-15, comparada com a de Calcutá, pp. 30-31.
[337] Na edição de Calcutá: “manteve-se na sua perseguição até que chegaram a uma montanha; ela tentou pular o precipício, e o rei
soltou em seu encalço o falcão, que começou a bicá-la...”.
[338] A partir desse ponto, o enredo geral volta a se aproximar do ramo sírio.
[339]ᶜAlā’uddīn Muġalṭāy Bin Qīlij, autor de origem turca nascido no Cairo, viveu de 1290 a 1361 d.C. (edição utilizada: Beirute,
1997, pp. 291-293). Antes desse livro, a narrativa em questão, com maior profusão de detalhes, fora apresentada na obra flamm alhawà
(“Censura da paixão”), de Ibn Aljawzī, historiador nascido em Bagdá (1116-1200 d.C.). Supondo que ela pertencesse ao conjunto
narrativo Nišwār Almuḥāḍara, do juiz Attanūḫī, o escritor ᶜAbbūd Aššālijī incluiu-a em sua edição dessa obra (Beirute, 1995, vol. 5,
pp. 129-134).
[340] Utilizou-se a edição preparada por ᶜAbdullāh Aṣṣāwī, Cairo, 1938, pp. 85-87. Compare-se também com a “História de Ali
Aljazzár com o califa Harun Arraxid”, constante de As cento e uma noites (São Paulo, Martins Fontes, 2a. edição, 2005, pp. 317-330).
[341] Cidade situada na regiãosudoeste do Irã.
[342] Secretário e depois vizir de Almanṣūr. Morreu em 786 d.C.
[343] Existem, no mesmo livro, outros relatos sobre o motivo da morte de Almawriyānī.
[344] Utilizou-se a edição preparada por ᶜAbbūd Aššālijī, Beirute, 1978, vol. iv, pp. 358-369.
[345] O ḥanifismo é uma das quatro escolas jurídicas muçulmanas; as outras são o šāfiᶜismo, o mālikismo e o ḥanbalismo.
[346] Situada no Iraque, às margens do Eufrates e a oeste de Bagdá, Hīt é uma das mais antigas cidades do mundo. Os gregos a
conheceram como Asiópolis. Possui, literalmente, córregos de petróleo, famosos desde os períodos babilônico e assírio.
[347] Conforme já se viu, cidade do Egito onde se produzia esse tecido.
[348] A expressão “dinares de boa qualidade” traduz danānīr lahā ṣūra (literalmente, “dinares com imagem”), locução obscura.
[349] Décimo oitavo califa da dinastia abássida; governou de 908 a 932 d.C. Sua mãe se chamava Šaġab, e alguns autores atribuem a
fraqueza desse califa ao predomínio de sua mãe e de suas mulheres no governo: “Saiba que o governo de Almuqtadir era bastante
desvairado devido à sua pouca idade e ao domínio que sua mãe, suas mulheres e sua criadagem exerciam sobre ele. Assim, as questões
de seu governo eram resolvidas por mulheres e criados, enquanto ele se mantinha ocupado em seus prazeres. Em sua época tudo se
deteriorou, os cofres públicos se esvaziaram e ocorreu divergência de comando; então ele foi destronado, reposto e depois morto”
(Muḥammad Bin ᶜAlī Bin Ṭabāṭabā, conhecido como Ibn Aṭṭaqṭaqā, autor do século xiii d.C., em Alfaḫrī, Beirute, s. d., p. 262).
[350] Líder militar (915-968 d.C.) que em 945 d.C. foi nomeado “chefe dos chefes” pelo califa abássida Almustakfī, a quem ele matou
nesse mesmo ano.
[351] Líder militar turco, morto em 997 d.C.
[352] Dia em que o califa recebia a população.
[353] Uma das portas do palácio califal, situada em sua parte leste, próxima à mesquita dos califas.
[354] Clã de Meca que apoiou o Profeta e depois a dinastia abássida.
[355] Palitos pequenos, amarelos ou brancos, que se amassam e se usam para lavar as mãos; quando dissolvidos na água, fazem bolhas
como o sabão.
[356] Tradição antiga, na qual se fazia um banquete no fim da primeira semana de casamento.
[357] Edição utilizada: Beirute,s. d., vol. iv, pp. 10-11. Esse relato também consta de outras obras históricas, como Alᶜiqd Alfarīd [O
colar único], do poetae compilador cordobês Ibn ᶜAbd Rabbihi (860-940 d.C.).
[358] Para “maniqueus” o original traz zanādiqa, plural de zindīq, vocábulo que também pode ter o sentido de “ateu”, “herege” e
“livre-pensador”.
[359] Mānī, líder religioso persa, viveu entre 215 e 276 d.C. Sua doutrina, o maniqueísmo, referia dois princípios, o bem e o mal, a luz
e a treva etc. Teria introduzido na pintura persa a simetria da pintura chinesa, bem como o desenho de anjos e demônios. Embora
duramente combatida pelo islã ortodoxo, a doutrina maniqueísta chegou a influenciar alguns grupos muçulmanos.
[360] O termo “intrujão” traduz ṭufaylī. Por algum motivo, a intrujice se tornou uma prática comumente referida nas obras históricas
daquela época. Seria também possível traduzir essa palavra como “pícaro”.
[361] O “francolim”, em árabe durrāj, é uma ave semelhante à perdiz. Conforme se depreende do texto, sacrificá-la era provavelmente
tabu para os adeptos do maniqueísmo.
[362] Nesse ponto, ocorre a intervenção de Ibrāhīm Bin Almahdī, tio paterno do califa, que sugere trocar o castigo ao intrujão (que
possivelmente consistiria em umas tantas bastonadas) por uma história passada consigo próprio, em que ele praticou a intrujice. O
califa acaba por apreciar a história do tio e dá um “bom presente” ao intrujão, dispensando-o em seguida.
[363] Utilizou-se a edição preparada por Hans Wehr, Wiesbaden/Damasco, 1956, pp. 46-54 (reimpressão: Cairo, 1998, em dois
volumes). Note-se que dessa obra não restou senão um único manuscrito, constante da Biblioteca Ayasofia, de Istambul.
[364] Evidente lacuna no manuscrito, não apontada por Hans Wehr. Em linhas gerais, contudo, é possível preenchê-la por meio da
narrativa das Mil e uma noites: o alfaiate passa a noite com fome e, no dia seguinte, se dirige para sua loja.
[365] Por “meias” traduziu-se šarb; por “lenços”, a obscura palavra marwaziyya, relativa à cidade de Merv; provavelmente, indica
algum tecido feito de algodão, conforme Dozy.
[366] A expressão “pai do galho” traduz literalmente o hoje obscuro sintagma abū alġuṣn. Talvez fosse usada para corcundas (algo
equivalente a “corcundinha”), mas não existem dados que permitam afirmá-lo. Em outras obras, a expressão é utilizada para o sábio-
bobalhão Juḥā.
[367] O trecho “menos de cem gramas” traduz wiqiyyatayni, que pela medida egípcia corresponde a 74 gramas (em medida síria,
corresponde a 428 gramas).
[368] O verbo “pagar”, aqui, traduz o verbo wazana, “pesar”. Porém o texto, visivelmente, lhe dá apenas o sentido de “pagar”, sem
implicar a idéia de “pesar para pagar”. É possível que se trate de uso coloquial.
[369] O original, que nesta passagem é falho, traz: wa anā faqīr muḥtāj ilayhi al’ān, literalmente, “eu sou pobre e preciso disso [do
dinheiro] agora”.
[370] O trecho “registrar bons augúrios zodiacais” traduz kitāb, “livro” ou “escrito”, mas que nesse caso apresenta essa acepção de
escritura que, a um só tempo, é astrológica e traz boa sorte.
[371] Neste ponto, há uma lacuna no original. Trata-se, visivelmente, de algum xingamento.
[372] Isto é, os outros cinco personagens.
[373] Após o relato das seis histórias, das quais a última é a do personagem das garrafas, o texto se encerra assim: “Então o rei ficou
espantado com as histórias deles todos, e também com a sua falta de juízoe [sobretudo] com o que [o último] fez com as garrafas. E
ordenou que se dessem prêmios e roupas a todos eles. Foi essa a história deles com o rei”.
[374] Edição utilizada: Beirute, 1993, pp. 104-117 (reimpressão da edição de 1889, preparada por Muḥammad ᶜAbduh). A tradução,
muito especialmente neste caso, é bem menos do que uma sombra. Foi impossível acompanhar os trocadilhos, as rimas e o ritmo do
original.
[375] Muᶜāwiya Bin Abī Sufyān (morto em 680 d.C.), quarto califa muçulmano (a partir de 661), primeiro da dinastia omíada, teve sua
liderança política e religiosa bastante contestada, entre outras coisas, por ter sido o mais contumaz inimigo do califa anterior, ᶜAlī,
genro e primo do profeta Muḥammad.
[376] O trecho “ou um cão ao seu senhor” traduz wa-lkalb li-aṣḥāb arraqīm, que, segundo M. ᶜAbduh, faz referência a uma parábola
alcorânica sobre o cão do “povo da gruta” [ahl alkahaf ], que não abandonava jamais os donos.
[377] “Um grande esforço muitas vezes resulta em proveito do alheio” traduz rubba sāᶜin liqāᶜidin, literalmente, “muitas vezes um
esforçado [beneficia] um sentado”, dito atribuído a ᶜAlī, genro do Profeta.
[378] Note-se que a história se passa em Bagdá, que é banhada pelo rio Tigre, mas não pelo Eufrates. Com isso, o mercador quer
realçar o fato de que usa a melhor água, mesmo que tenha de mandar buscá-la num local distante.
[379] A ideia é que, tendo ficado uma noite parada, a água se tornou totalmente límpida.
[380] Jurjān e Urrajān, locais distantes entre si e célebres, respectivamente, pelos bons tecidos e pela boa costura e acabamento.
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
volume ii – ramo sírio
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche

Copyright da tradução
© 2005 by Editora Globo s.a.

Copyright da introdução, notas e apêndices
© 2005 by Mamede Mustafa Jarouche


Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta edição pode ser utilizada ou reproduzida
– em qualquer meio ou forma, seja mecânico
ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem
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de dados, sem a expressa autorização da editora.

Texto fixado conforme as regras do Acordo
Ortográfico da Língua Portugesa
(Decreto Legislativo nº 54, de 1995).


título original
Kitåb alf layla wa layla

revisão
Beatriz de Freitas Moreira
Eugênio Vinci de Moraes

capa e projeto gráfico
Raul Loureiro
Claudia Warrak

edição digital
Erick Santos Cardoso

produção para ebook
S2 Books

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [cip]


Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil
Livro das mil e uma noites, volume ii : ramo sírio /
Anônimo; [introdução, notas, anexos e tradução do árabe: Mamede Mustafa Jarouche.] — 2. ed. São Paulo: Globo, 2006

isbn 978-85-250-5247-6[v. 1i]
839 kb; ePUB

1. Contos árabes 2. Fábulas orientais 3. Fábulas orientais –
História e crítica i. Jarouche, Mamede Mustafa

05-7453 cdd-892.73008
Índice para catálogo sistemático:
1. Fábulas : Literatura oriental : Coletâneas 892.73008
Direitos de edição em língua portuguesa
adquiridos por Editora Globo s.a.
Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 – São Paulo – sp
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CAPA

FOLHA DE ROSTO
CRÉDITOS
NOTA INTRODUTÓRIA
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
NŒRUDD∑N ¢AL∑ BIN BAKKÅR E AMSUNNAHÅR
AN∑SULJAL∑S E NŒRUDD∑N ¢AL∑ BIN ¿ÅQÅN
JULLANÅR, A MARÍTIMA, E SEU FILHO BADR
O REI QAMARUZZAMÅN E SEUS FILHOS AMJAD E AS¢AD
HISTÓRIA COMPLETA DE QAMARUZZAMÅN E SEUS FILHOS,
CONFORME O MANUSCRITO “BODL. OR. 551”.
NI¢MA E NU¢M
ANEXOS
NOTAS
nota introdutória

ramos (e florestas) entre o cairo e damasco

Com este segundo volume, completa-se a tradução do que, conforme convenção
da crítica filológica, é chamado de “ramo sírio” do Livro das mil e uma noites,
faltando agora a tradução do ramo egípcio, com suas 1001 noites literais,
consequência da iniciativa bem-sucedida de um escriba egípcio que, após reunir
materiais dispersos, produziu uma compilação ordenada que a posteridade
consagrou como versão “definitiva” da obra.
Aliás, a divisão do livro em dois ramos, “sírio” e “egípcio”, data do século
xix, é fruto do trabalho de orientalistas e foi enfaticamente reproposta pelo
scholar iraquiano Muhsin Mahdi, professor de Harvard e um dos maiores
especialistas no assunto, ao qual dedicou cinco lustros de sua vida.[1] Seria
conveniente esclarecer ou discutir alguns de seus pressupostos. Destaque-se que
tal divisão não se verifica na crítica árabe antiga. Os poucos autores que fizeram
referência ao Livro das mil e uma noites – ou, mais positivamente, a algum de
seus “ancestrais” – não entraram nessa questão, que decerto não os preocupava.
Para falar com concisão, o ramo sírio é constituído pelos manuscritos que se
copiaram, do século xiv até o xviii, na região árabe-asiática do Levante – nas
terras que hoje correspondem ao Líbano, à Síria e à Palestina. São poucos,
somente quatro, e servem para evidenciar alguns fatos importantes: primeiro,
que são bem distantes do que comumente é chamado de matriz original (ou
matrizes originais), elaborada mais a oriente, nos territórios dos atuais Iraque e
Irã, e a respeito da qual o conhecimento contemporâneo é escasso. Essa
diferença pode ser comprovada pela ocorrência, no enredo, de lugares, conceitos
e palavras que não pertencem ao tempo dessa matriz original. Isso relativiza
previamente a validade de quaisquer argumentações que, desconsiderando o
livro nas formas mediante as quais é hoje conhecido, pretendem analisá-lo com
base nessa suposta matriz original, ou, o que é pior, nas pretensas “fontes” dessa
suposta matriz original.[2] Não se sabendo, em detalhe, qual seria o enredo de
seu prólogo-moldura, e muito menos quais seriam as histórias narradas a partir
dele, é lícito pensar que semelhantes abstrações – cujo objetivo, em geral, é
produzir universais a respeito de temas como “a” narrativa, “o” comportamento
humano, “o” processo de criação, “a” relação homem-mulher e outros – têm seu
alcance limitado pelo desejo, entre cujos dedos e suspiros o objeto se esvai e
desaparece. Segundo, que o título do livro não correspondeu, desde sempre, ao
seu conteúdo, pois todos os quatro manuscritos do ramo sírio se encerram
abruptamente no mesmo ponto, ao final da 282ª noite, logo no início da história
“O rei Qamaruzzamån e seus filhos Amjad e As¢ad”. Terceiro, que tal
elaboração remonta à época do governo mameluco naquela região. Quarto, que
apresenta notável coerência interna, não existindo, por conseguinte, nenhum
respaldo textual para as afirmações e circunvoluções a respeito de sua suposta
“oralidade” pregressa – anacronismo da (moderna) oposição oral/escrito –,
lendária e fantástica, desarticulação articuladíssima anterior a tudo e a todos, aos
tempos e à criação, que não somente permearia e contaminaria a obra, mas que,
indo além, muito além, estaria na própria raiz de sua existência caótica, mais
bem traduzida numa espécie de inexistência prática, justificativa elegante para a
produção contínua de mais e melhores universais-livres.
Quanto ao ramo egípcio, Mahdi propõe uma subdivisão: antigo e tardio. De
modo similar ao sírio, o ramo egípcio é constituído pelos manuscritos copiados
nessa região. Todavia, a subdivisão proposta por Mahdi em antigo e tardio é
problemática, uma vez que o mais antigo dos manuscritos do ramo egípcio
antigo é do século xvii. Isso significa que, embora tenha existido uma forma
“antiga” no ramo egípcio – contemporânea do ramo sírio, ou seja, da segunda
metade do século xiii –, os manuscritos que dela sobreviveram são por demais
recentes e não permitem avaliar com precisão quais seriam, de fato, suas
divergências com o ramo sírio, e se haveria uma completa convergência de
histórias. São cinco os manuscritos que Mahdi classifica como integrantes do
ramo egípcio antigo: na Biblioteca Nacional de Paris, o “Arabe 3615” e o
“Arabe 3612”; na Real Academia de la Historia, em Madri, o “Gayangos 49”; na
Bodleian Library, o “Bodl. Or. 550” e sua continuação, o “Bodl. Or. 551” (de um
conjunto que vai até o número 556, sobre o qual se discorrerá adiante); e na
Christian Church Library, de Oxford, o “Arabic 207”. Pelo fato de serem
recentes e terem sofrido de modo mais visível a intervenção arbitrária de
copistas, tais manuscritos, em numerosas passagens, apresentam discrepâncias
entre si. Supondo-se, porém, que o ramo sírio, justamente por ter sua antiguidade
mais bem atestada,[3] seja o parâmetro mais adequado para comparação, pode-se
afirmar o seguinte: tal como o ramo sírio, também o egípcio possuiu o que a
filologia e Mahdi chamam de “arquétipo” (em árabe, dustœr), cujas
características, porém, em vista da maior liberdade com que os copistas no Egito
lidaram com o texto, são mais difíceis de determinar; e que, além da história “O
invejoso e o invejado”,[4] a qual não consta do ramo egípcio antigo nem do
tardio, as histórias “Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e ¸amsunnahår”,[5] “Jullanår,
a marítima, e seu filho Badr”[6] e, muito possivelmente, “O rei Qamaruzzamån e
seus filhos Amjad e As¢ad”[7] não constavam desse problemático ramo egípcio
antigo.
Nesse ponto é necessário aduzir uma explicação: devido ao já ressaltado
caráter recente de seus manuscritos, não existe um corpus por assim dizer “puro”
do ramo egípcio antigo. Nos dois melhores deles, o “Arabe 3615” e o “Gayangos
49”, verificam-se problemas: o primeiro, do final do século xvii ou do início do
xviii, contém duas histórias adicionais: uma versão mais arcaica de “Sinbdåd, o
marujo”, que consta somente do ramo egípcio tardio, e “Os dez vizires”, que, por
não constar de nenhuma outra versão das Noites,[8] deve ser considerada
acréscimo tardio; já o segundo, que é do final do século xviii ou do início do xix,
visivelmente modernizou a sua linguagem e distribuiu expressões picantes ao
longo do texto. O mais antigo desses manuscritos, o “Arabe 3612”, é do século
xvii, foi propriedade do diplomata francês Benoît de Maillet e chegou a 870
noites; é notória, no final, a falta de um fólio, pois em sua última página aparece
um registro de continuidade (o copista, adotando o procedimento técnico da
época, registrou na parte inferior dessa página as primeiras palavras da página
seguinte). Esse manuscrito acaba logo no início da história “Os corujões e os
corvos”, existente, em árabe, no Livro de Kal∑la e Dimna, cujas narrativas, ao
que tudo indica, o copista estava incorporando ao seu manuscrito com o fito de
“completá-lo”, fazendo-o chegar ao número de 1001 noites.[9] Com isso, fica
claro que, excetuando-se as histórias que também constam do ramo sírio, as
demais histórias desse manuscrito podem ser arroladas, de um modo ou de outro,
dentro do ramo egípcio tardio, desde que se entenda por “tardio” todo e qualquer
material estranho ao núcleo reconhecidamente mais antigo do livro. Desse modo,
convivem num mesmo manuscrito camadas “antigas” e “tardias”.
Essa divisão também é útil porque permite distinguir, nessas camadas tal
como se delinearam no ramo egípcio, uma tendência que não se verifica no ramo
sírio: a de “completar” o livro; isto é, de lhe fazer o número de noites
corresponder ao título. Como tal procedimento obrigava o escriba a reunir uma
enorme e quase impraticável quantidade de material, disso resultou, por mais de
uma vez, grande confusão, da qual tanto o manuscrito “Arabe 3612” como o
conjunto “Bodl. Or. 550-556” são exemplos cabais.
Assim, por motivos ligados a um modo diverso de produção de sentido, ou
mesmo a problemas de inteligibilidade, as supracitadas histórias “Nœrudd∑n
¢Al∑ Bin Bakkår e ¸amsunnahår” e “Jullanår, a marítima, e seu filho Badr” não
haviam sido incluídas no ramo egípcio antigo, que comumente encerrou o núcleo
primitivo, tal como se apresenta no ramo sírio, com a história de “An∑suljal∑s e
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån”. Isso pode ser confirmado com base no único
manuscrito classificado nesse ramo que as inclui, o “Arabe 3612”. Nele, ambas
se encontram deslocadas mais para o meio do livro, ocupando posições similares
às que se consolidaram, afinal, no ramo egípcio tardio, o que é compreensível:
presumivelmente premidos pela necessidade de “completar” o livro a qualquer
custo, os escribas já não podiam dispensar nenhuma história, e recuperaram,
provavelmente a partir de cópias soltas que teriam subsistido, essas duas
narrativas, talvez sem saber da existência pregressa dessas duas histórias num
mesmo livro.
A última história constante do presente volume, “O rei Qamaruzzamån e seus
filhos Amjad e As¢ad”, exige alguns esclarecimentos. Em todos os manuscritos
do ramo sírio, conforme se repetiu ad nauseam, ela está por assim dizer truncada,
interrompida logo em seu começo, encerrando-se na 282ª noite. Desse fato,
Muhsin Mahdi deduz que ela não constou inteira do arquétipo desse ramo. Qual
teria sido o problema? Por que o responsável abandonou a história? A
verificação de suas versões sobreviventes, tanto as completas – a do manuscrito
“Bodl. Or. 551” e a da edição de Bœlåq – como a incompleta – a do manuscrito
“Arabe 3612”, onde ela é interrompida antes de chegar à metade –, permite
avançar algumas hipóteses. A primeira: essa história, a exemplo de “Jullanår, a
marítima, e seu filho Badr”, e dos seis irmãos do barbeiro de Bagdá, preexistia
em outras fontes, e, quase se pode afirmá-lo com certeza, circulava de modo
independente, tendo sido introduzida no Livro das mil e uma noites após as
adaptações de praxe que visavam adequá-la aos efeitos específicos que o texto
produz. A segunda: a exemplo de “Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e ¸amsunnahår”
e “Jullanår, a marítima, e seu filho Badr”, “O rei Qamaruzzamån e seus filhos
Amjad e As¢ad” foi excluída do ramo egípcio antigo, pois no manuscrito “Arabe
3612” ela ocupa uma posição similar à da edição de Bœlåq, o que equivale a
dizer que foi igualmente reaproveitada para “completar” o livro por copistas
necessitados de histórias – é o que se pode imaginar com base nesse manuscrito,
no qual o fato de ela não estar inteira não foi obstáculo à sua introdução. A
terceira: sua inclusão, completa, no manuscrito “Bodl. Or. 551” parece ter sido
um golpe de sorte, pois o texto que ali consta sugere ser cópia de uma fonte na
qual essa história circulava de forma independente, sem nenhuma vinculação
com o Livro das mil e uma noites, o que é reforçado pelas diferenças de enredo
com as versões do manuscrito “Arabe 3612” e da edição de Bœlåq; a versão do
manuscrito “Arabe 3612”, em especial, cuja divisão por noites é claudicante,
aponta para uma situação análoga. A quarta: talvez o abandono, no ramo sírio,
tenha se devido a algo como uma saturação de tópicas, que teria provocado
desinteresse de sua continuação; já se disse que obras nunca são acabadas, mas,
sim, apenas abandonadas; haveria exemplo mais cristalino? Seja qual for a
explicação, este trabalho optou por traduzir até o fim tudo quanto consta do ramo
sírio, inclusive a última história truncada, e incluir, de cabo a rabo, a história tal
e qual se lê no manuscrito “Bodl. Or. 551”. Em vez de supor, como Muhsin
Mahdi, que se trata da história na forma em que se encontrava no ramo egípcio
antigo, parece mais plausível pensar que se trata antes de uma forma próxima da
que essa história teve em sua circulação independente – e portanto
imediatamente anterior à sua incorporação ao ramo egípcio do Livro das mil e
uma noites –, visto que a cópia não apresenta sinais de ocultamento dos traços
dessa incorporação.[10]
O manuscrito do qual a história “O rei Qamaruzzamån e seus filhos Amjad e
As¢ad” foi traduzido, repita-se, é o “Bodl. Or. 551”, cujo corpus, de acordo com
Muhsin Mahdi, é mais antigo que o do manuscrito “Arabe 3612”, onde está
incompleto, e que o da edição de Bœlåq. Ademais, comparada com as outras, a
versão do “Bodl. Or. 551” demonstra maior coerência interna e uma narrativa
mais bem detalhada. Contudo, para que o leitor não fique privado de conhecer as
diferenças de enredo constantes das duas outras versões, as notas procuraram ser
exaustivas, e no Anexo 1 deste volume traduziram-se algumas passagens
obscenas que ocorrem nas referidas versões, mas não no “Bodl. Or. 551”.
Quanto ao manuscrito “Bodl. Or. 551”, note-se que ele é o segundo de um
conjunto de sete tomos, que vão de 550 a 556. Esse conjunto pertenceu
inicialmente ao orientalista e viajante inglês Edward W. Montagu (1713-1776), e
foi copiado no Egito, onde ele passou a maior parte do período que vai de 1762
até praticamente o final de sua vida. Esses volumes, compilados durante o biênio
1177-1178 H. (1764 d.C.), constituem um exemplar “completo” das Noites, ou
seja, o número de suas noites corresponde ao título. O corpus do primeiro tomo,
o “Bodl. Or. 550”, foi classificado por Mahdi como pertencente ao ramo egípcio
antigo, não obstante os problemas que apresenta, como o texto muito lacunar e
as falhas na divisão e na numeração das noites. No segundo, o “Bodl. Or. 551”,
conservou-se, talvez por obra do acaso, como já se disse, o corpus mais antigo
da história de “O rei Qamaruzzamån e seus filhos Amjad e As¢ad”. Os demais
tomos, embora ao cabo cheguem ao total de 1001 noites, estão em tamanha
confusão que evidenciam ter sido uma compilação de ocasião – o que Muhsin
Mahdi chama de “iniciativa individual e isolada”, numa palavra, estéril, pois não
fundou nenhuma tradição de cópia –, levada a cabo em condições pouco
satisfatórias. A história que fecha o último tomo se encerra sem nenhuma
menção a ¸ahråzåd, que certamente foi abandonada devido à enorme massa de
material a manipular. Após a morte de Montagu, o manuscrito foi herdado por
seu filho egípcio Ma¬mœd, ficando sob a custódia do advogado Robert Palmer;
após a morte de Ma¬mœd, em 1787, Palmer emprestou os tomos ao escritor
William Beckford (1760-1844), que chegou, com a ajuda de um amigo
muçulmano chamado Sam∑r, a traduzir alguns de seus trechos, até hoje não
publicados. Em seguida, os tomos foram comprados por Joseph White, professor
em Oxford, que os vendeu, pouco antes de 1797, ao orientalista Jonathan Scott;
este último, apesar dos elogios que deixou registrados ao seu manuscrito
“completo” do Livro das mil e uma noites, vendeu-o em 1803 à Biblioteca
Bodleiana de Oxford, onde está conservado até hoje.[11] Eis aí, sintetizado, o
périplo de um manuscrito cuja maior importância reside no fato de haver
preservado o corpus mais antigo da história “O rei Qamaruzzamån e seus filhos
Amjad e As¢ad”, para cuja tradução adotou-se aqui um critério que convém
explicitar: a numeração de todos os sete tomos do manuscrito da Biblioteca
Bodleiana é caótica. O primeiro, o 550, não apresenta numeração na maioria dos
pontos, chegando a somente 91 noites, muito embora seu corpus corresponda,
grosso modo, às 170 primeiras noites dos manuscritos do ramo sírio. Seu
segundo tomo, o 551, inteiramente ocupado pela história “O rei Qamaruzzamån
e seus filhos Amjad e As¢ad”, começa na nonagésima segunda e vai até a 166ª
noite. A extensão das noites é desigual, e muitas delas se abrem com a fórmula
“Disse o narrador”, logo depois que ¸ahråzåd anuncia sua disposição de retomar
a narrativa. Isso, conforme se argumentou acima, pode se constituir numa
evidência de que o escriba ou compilador estava utilizando uma cópia
independente dessa história, isto é, uma cópia não incluída no Livro das mil e
uma noites. Aparentemente, a divisão das noites no manuscrito segue as
formulações “Disse o narrador”, que decerto constavam do original. Tal
procedimento serve para explicitar uma coisa: conquanto a numeração seja
caótica, e ainda que os copistas se equivoquem, repetindo ou saltando números,
a divisão em si é importante e caracterizadora da introdução de uma história
independente no Livro das mil e uma noites, devendo, por conseguinte, ser
mantida. Para a tradução, chegou-se a cogitar a possibilidade de continuar a
numeração a partir da 283ª noite, uma vez que, no ramo sírio, a história se
interrompe na 282ª noite. Após discussão com os editores, no entanto,
considerou-se que isso consistiria em um flagrante desrespeito à história e em
uma distorção enganosa para os leitores. Assim, a solução adotada foi a de
traduzir, integralmente, a história tal e qual se encontra nesse manuscrito,
observando tanto suas divisões por noites como sua numeração. O leitor,
portanto, não deve se surpreender com o fato de, na seção “A história completa
do rei Qamaruzzamån e de seus filhos Amjad e As¢ad”, a numeração ir da
nonagésima segunda à 165ª noite,[12] num aparente contrassenso, plenamente
justificado pela fidelidade ao original.
Comparadas às do volume anterior, as histórias deste volume são mais
extensas e não apresentam – com exceção de “Ni¢ma e Nu¢m”, no interior de
“O rei Qamaruzzamån e seus filhos Amjad e As¢ad” – sub-histórias; em
compensação, multiplicam de modo considerável a sua variedade de eventos.
Nesse sentido, sobretudo no caso das três últimas histórias, as constantes
mudanças de espaço geográfico e de condição dos personagens parecem
corresponder ao que, na maioria das histórias do primeiro volume, era
constituído como diversidade produzida por meio das sub-histórias; de maneira
simplificada, seria como se, aqui, se optasse por algo como transformar os seis
irmãos do barbeiro de Bagdá num único personagem que sofresse todas aquelas
tribulações. A mais coesa das histórias deste segundo volume, “Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår e ¸amsunnahår”, é também a de linguagem mais complexa e arcaica,
narrada por três dos personagens que dela participam e pelas cartas trocadas pelo
casal de heróis. Trata-se de uma terrível discussão sobre o amor e a sedução,
temas que a narrativa conduz ao paradoxo e ao esgarçamento.
Finalmente, caberiam umas poucas e concisas palavras sobre a tradução: o
princípio perseguido foi o da fidelidade ao original, matizada aqui e acolá por
relativizações de ordem estética. Por exemplo: nesse gênero de história, a prosa
árabe em geral tende, à primeira vista, a uma narrativa em que as ações se
sucedem sem nenhuma hierarquização sintática, o que pode levar,
equivocadamente, a presumir a inexistência de hierarquia na sequência dos
eventos narrados, que se sucederiam numa barafunda caótica e desagradável,
quando, ao contrário, tal hierarquia existe e se situa no plano semântico, o que
impõe o uso da subordinação para explicitá-la; foi o que, sem maiores rebuços,
se intentou fazer aqui. Para a transliteração (ou transcrição) dos nomes árabes, os
critérios permanecem os mesmos do primeiro volume.
Durante a realização de qualquer atividade intelectual, é comum e quase
inevitável que se contraiam inúmeras dívidas. Além dos amigos a quem já
agradeci no primeiro volume, gostaria agora de estender os agradecimentos a
Adriano Aprigliano, Andrea Paola Blum, Cláudia Falluh Balduíno Ferreira, João
Ângelo Oliva Neto, Marcelo Ferroni, Marco Sirayama e Marcos Martinho dos
Santos.

Mamede Mustafa Jarouche
São Paulo, 31 de julho de 2005
livro das mil e uma noites
NŒRUDD∑N ¢AL∑ BIN BAKKÅR E šAMSUNNAHÅR

171ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte, D∑nårzåd disse à irmã: “Se você não estiver dormindo,
maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas para que atravessemos o serão
desta noite”. O rei ¸åhriyår disse: “Que seja a história do perfumista Abœ
Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir e de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, e do que sucedeu a
este último com ¸amsunnahår, concubina do califa”.[13] ¸ahråzåd disse: “Com
muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que vivia na cidade de Bagdá um
perfumista chamado Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir. Possuía muito dinheiro, e
próspera era a sua situação, excelente a sua conduta, veraz a sua palavra,
agradável a sua convivência e bem-vinda a sua figura onde quer que aparecesse.
Quando entrava no palácio califal, a maior parte das servas e concubinas do
califa Hårœn Arraš∑d descia para falar com ele, que lhes supria as necessidades
de modo a deixá-las todas satisfeitas. Seu estabelecimento era frequentado por
filhos de nobres e notáveis. Junto com ele estava sempre um jovem descendente
de reis persas chamado Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, em quem Deus reunira
todas as partes louváveis da beleza superior, da formosura suave, da língua
eloquente, da pronúncia graciosa, da inteligência, do desprendimento, da
generosidade, da bondade, da doação, do pudor, do brio e da hombridade. Ele
convivia tão amiúde com Abœ Al¬asan que praticamente não se separava dele
nem por um piscar de olhos. Certo dia, estando o rapaz ali instalado na loja, eis
que surgiram, provenientes do mercado, dez servas de seios virgens, como se
fossem luas, e entre elas, montada em uma mula cinzenta, uma serva que
causaria vergonha ao mais perfeito plenilúnio, sobre a qual havia adornos de
seda vermelha cravejada de pérolas e gemas, e cuja beleza era bem superior à
das servas que estavam diante dela, tal como disse alguém a seu respeito, na
seguinte poesia:

“Ela foi criada tal como se deseja, até a perfeição,
no molde da formosura, sem tirar nem pôr;
parece que ela foi feita de pérola líquida:
em cada parte de seu corpo existe uma lua.
Sua aparição é plenilúnio, seu talhe, ramo,
seu aroma, almíscar; ninguém há como ela”.

Disse o narrador: ela cativara as inteligências com a beleza de seus olhos e a
perfeição de suas maneiras. Quando chegou à sua loja e apeou-se, Abœ Al¬asan
¢Al∑ Bin ˇåhir se colocou de pé diante dela, beijou o chão e lhe estendeu um
assento de brocado enfeitado com ouro, propondo-se então a servi-la. Mas ela
lhe pediu encarecidamente que se sentasse, e ele se sentou diante dela, que
começou a falar das coisas que queria. Enquanto isso, a razão do jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår já fora sequestrada, e sua cor se alterara do
vermelho ao amarelo; a um passo de perder os sentidos, fez menção de levantar-
se em reverência a ela, que o fitou com olhos de narciso e lábios inebriantes e
lhe disse: “Meu senhor, viemos em busca de sua hospitalidade, mas você quer
fugir de nós, pois não lhe agradamos!”. O jovem então beijou o chão e disse:
“Senhora, a minha razão foi sequestrada no momento em que a vi. Não digo
mais do que disse certo poeta em sua poesia:

‘Ela é o sol e tem o céu por morada;
consola teu coração do melhor modo,
pois não poderás até ela ascender,
e nem ela até ti poderá descer’”.

Ela sorriu – seus dentes brilhavam mais intensamente que um relâmpago – e
perguntou: “Ó Abœ Al¬asan, de onde você conhece este rapaz? Qual é a sua
posição?”. Abœ Al¬asan respondeu: “Seu nome é Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår,
e ele descende de reis”. Ela perguntou: “Dos persas?”. Ele respondeu: “Sim,
minha senhora”. Ela disse: “Quando esta minha serva vier até você, vá até nós
acompanhado desse rapaz, para que os recepcionemos em nossa morada, a fim
de que ele não nos censure nem diga que não existe generosidade no povo de
Bagdá, pois a avareza é a pior característica no homem. Ouviu o que lhe disse?
Se acaso não me acatar, você estará carreando para si a minha cólera, e nunca
mais o cumprimentarei”. O perfumista respondeu: “Longe e livre esteja eu de
desacatá-la, ó proprietária de todos os escravos! Refugio-me em Deus contra a
sua cólera!”. Ela se levantou imediatamente, montou e se retirou após ter se
apossado dos corações e sequestrado as razões. Quanto ao jovem Nœrudd∑n
¢Al∑ Bin Bakkår, ele já não sabia se estava no chão ou no céu. O dia ainda nem
se findara quando a serva da jovem apareceu e disse: “Meu senhor Abœ
Al¬asan, vamos então?”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

172ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a serva chegou e disse: “Meu senhor
Abœ Al¬asan, vamos então? Você e meu senhor Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår?
Atendam à minha patroa ¸amsunnahår, favorita do comandante dos crentes
Hårœn Arraš∑d”. O perfumista se levantou e disse para Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår: “Vamos então, meu senhor?”. Ele também se levantou e ambos saíram
disfarçados seguindo a serva de longe, até que ela os conduziu ao interior do
palácio do califa, avançando com eles até a residência de ¸amsunnahår. O rapaz
contemplou então um lugar que parecia ser um dos aposentos do paraíso, no qual
haviam sido colocados colchões, bancos e almofadas que ele jamais vira antes;
sentou-se, bem como o perfumista Abœ Al¬asan. Assim que o fizeram e se
acomodaram a contento, foi-lhes servido um banquete com boa comida. Uma
serva negra parou diante deles, que viram cordeiros ainda não desmamados,
galinhas gordas, confeitos açucarados, potes de picles, além de espécies que
flanavam e voavam de seus ninhos, tais como perdizes, codornas e filhotes de
pomba. O rapaz começou a comer, maravilhado.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:[14]
Comemos comida saborosa e bebemos bebida deliciosa. Quando terminamos
de fazer as duas coisas, foram-nos trazidas duas bacias douradas, e lavamos as
mãos; ofereceram-nos incenso, e nos incensamos; apresentaram-nos taças de
ouro e cristal trabalhado em cujo interior havia estatuetas de cânfora e âmbar,
cravejadas de várias classes de pedras preciosas, contendo almíscar e água de
rosas; perfumamo-nos e retornamos aos colchões. Então a serva negra ordenou
que nos puséssemos de pé; obedecemos e ela nos conduziu a outro aposento;
abriu-o e entramos num pavilhão todo forrado de seda, que se sustinha sobre
cem colunas, as quais formavam, na base, o desenho de um animal ou pássaro
coberto de ouro. Assim que nos sentamos, começamos a examinar o pavilhão,
cujo assoalho era tecido de ouro, com gravuras de aspecto de rosas brancas e
vermelhas; o teto era da mesma forma: continha mais de cem pontos elevados e
bandejas de ouro e cristal, cravejadas de várias espécies de pedras preciosas. No
ponto mais elevado do pavilhão havia muitas portinholas, em frente de cada uma
das quais se via um colchão gracioso tecido de diversas cores. As portinholas
estavam abertas e davam para um jardim cujo solo parecia ser igual ao do
pavilhão. Em suas laterais, a água escorria de uma grande piscina para outra
pequena, e à beira delas havia manjericão, nenúfar e narciso em vasos de ouro
incrustado. As árvores desse jardim já haviam se entrelaçado e suas frutas,
amadurecido; toda vez que os soldados do vento passavam por ali, as frutas
despencavam sobre as lâminas d’água e os pássaros se abatiam sobre elas,
batendo as asas e conversando por meio de toda a variedade de melodias. À
direita e à esquerda da piscina havia poltronas de teca[15] cobertas de prata, e,
em cada poltrona, uma jovem mais ofuscante que o sol, vestida com roupas
opulentas e trazendo ao peito um alaúde ou algum outro instrumento de
diversão. Seus ritmos se misturavam com o gorjeio dos pássaros; o assoprar do
vento acompanhava o escorrer da água. A brisa passava por uma rosa e a fazia
subir, tocava uma fruta e a fazia cair. Nossos pensamentos e olhares ficaram
perplexos. Começamos a ponderar sobre aquele poder e a refletir sobre aquele
bem-estar todo. Ficamos observando o jardim durante algum tempo, voltando-
nos às vezes para o pátio e para a piscina, contemplando aquele esplendor, a
formosura daqueles trajes e seus altos desígnios, espantados com a
grandiosidade do que presenciávamos e com o espetáculo ao qual assistíamos.
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår voltou-se para Abœ Al¬asan e lhe disse: “Fique
sabendo, meu amo, que até mesmo o sábio inteligente, arguto e decoroso, de
coração vazio, sentidos e miolos vigilantes, se apaixonaria por isso, admiraria,
consideraria belo, ficaria emocionado, espantado e encantado, em especial quem
tenha ficado na minha situação, com o coração em estado semelhante ao meu. O
que vi não evitará que eu pergunte nem impedirá que eu me informe. Não fui
envolvido nesta provação que o destino conduziu a mim e a desgraça depositou
na minha frente senão por algo bom que deverei obter. Se, como você diz, é esta
a situação do encarregado, a de quem lhe deu poderes é bem diferente. Quem
poderá lhe dirigir a palavra e estar seguro diante dele se o seu poderio é tão
grandioso e o seu reino é tão imenso?”.[16]
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd lhe disse:
“Maninha, como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não
é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite: será mais espantoso e
insólito, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

173ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
disse aquelas palavras, seu companheiro lhe respondeu: “Por ora, este assunto
continua obscuro para mim. Não ocorreu ainda nenhum contato que me
permitisse perceber a verdade desta situação e inferir o que fazer. Mas já estamos
chegando ao objetivo final: e logo as coisas lhe serão reveladas e o segredo se
porá diante de você. Por enquanto, não vimos senão o que provoca espanto nem
ouvimos senão o que emociona”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Estávamos nesse pé quando a serva negra surgiu e ordenou às jovens sentadas
nas poltronas que cantassem. A primeira delas afinou o alaúde e cantou a
seguinte poesia:

“Descuidosa, liguei-me a ele sem saber o que é a paixão;
logo se acendeu o fogo do abandono em meu peito e coração;
meu único delito não foi senão que minhas lágrimas
escorrem sem que meu íntimo tenha controle sobre elas”.

O jovem lhe disse: “Você desempenhou muito bem e inovou!”. Ela continuou:

“Anseio por você com longínqua esperança;
não tem importância que se anseie pelo enamorado
em desejos ardentes que se elevam em suspiros
dos quais os mais frios parecem estar em combustão”.

Ele suspirou profundamente e disse: “Você desempenhou muito, muitíssimo
bem, moça, e atingiu o máximo de qualidade e destreza”. Então, ele repetiu
aqueles versos, suas lágrimas escorreram e disse: “Cante!”, e ela começou a
recitar uma poesia:

“Ó aquele cujo amor em mim aumenta,
domine meu coração como bem lhe parecer
e resfrie pelo contato a chama de um coração
desmilinguido pelo abandono e pela rejeição.
Tome a recompensa ou cometa o delito que quiser,
pois a minha recompensa é morrer de amor”.[17]

E o rapaz pôs-se a chorar, e por alguns momentos repetiu a poesia. Em seguida,
vimos as jovens prontamente se levantarem de seus lugares. Afinaram suas
cordas e começaram a tocar numa só batida, cantando os seguintes versos:

“Deus é grande! Já fez surgir este plenilúnio
e realizou a reunião entre o amante e o amado;
quem vir o sol e o plenilúnio iluminando juntos,
saiba que o paraíso ao mundo terrestre se uniu”.

Dirigimos os nossos olhares para elas e eis que a primeira serva – a que fora até
nós na loja e nos conduzira até ali – estava de pé no ponto mais elevado do
jardim. Surgiram dez meninas carregando um grande trono de prata; colocaram-
no entre aquele arvoredo e se detiveram diante dela. Depois delas, apareceram
vinte jovens que pareciam luas cheias carregando diversas classes de
instrumentos musicais e vestindo várias espécies de roupas; todas tinham as
mesmas maneiras e cantavam com a mesma voz, até que se aproximaram do
trono; pararam ao seu lado, vibraram suas cordas por alguns momentos e era tal
a beleza do ritmo tocado que nós começamos a flutuar naquele lugar. Depois
apareceram à porta dez jovens indescritíveis, sobre as quais havia roupas e joias
que rivalizavam com a sua beleza e correspondiam à sua formosura. Detiveram-
se à porta. Depois apareceram outras jovens semelhantes, entre as quais estava
¸amsunnahår.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e espantosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, e que será mais espantoso,
insólito e belo, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

174ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que as jovens se detiveram à porta, e
depois surgiram outras semelhantes, misturada às quais se encontrava
¸amsunnahår, os longos cabelos enrolados na cintura, coberta por um manto azul
tecido a ouro, tão fino que revelava as roupas e as joias que estavam debaixo
dele. Ela parecia o sol sob nuvens, exibindo-se em seu caminhar e encantando
com seu marchar; subiu enfim ao trono, e o jovem se pôs a contemplá-la. Olhou
para o perfumista e mordeu os dedos até deixá-los rotos. Disse: “Não há mais
nada a falar depois do que vi, nem existe mais dúvida depois do que conheci”. E
recitou a seguinte poesia:

“É este, é este do meu penar o começo,
de minha tristeza e paixão o sem-fim.
Depois do que vi, já não pode em mim
a alma ficar nenhum momento mais!
Por Deus, ó alma, diga adeus a este corpo
debilitado de tristeza e me deixe em paz”.

Em seguida, disse ao perfumista: “Fulano, você não me fez nenhum bem nem
me conduziu a algo bom. Por que você não me deu a entender o estado da
questão, a fim de que eu preparasse minha alma e a munisse de paciência para
estas coisas, rumo às quais ela avança descontrolada?”. Suas lágrimas
escorreram como um riacho, e ele ficou parado, como que aturdido, diante do
perfumista Abœ Al¬asan, que mais tarde contaria:
Eu disse ao jovem: “Não pretendi senão o seu bem. Temi dizer-lhe a verdade
sobre ela e provocar-lhe grande tristeza. Sua ansiedade pela jovem era muito
grande, e essa informação impediria que você pudesse vê-la. Tenha paciência,
prepare os sentidos, acalme sua alma; não a rebaixe nem humilhe, mas fortaleça-
a. A jovem se inclina por você”. Ele perguntou: “Afinal, quem é ela?”. Respondi:
“É ¸amsunnahår, concubina do califa Hårœn Arraš∑d. Este local em que você se
encontra é o seu novo palácio, conhecido como ‘Palácio da Eternidade’. Foi o
meu estratagema que possibilitou reunir vocês dois aqui.[18] Os bons resultados
estão nas mãos de Deus altíssimo, a quem devemos pedir um feliz desenlace”.
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår se quedou atônito por alguns momentos e me
disse: “Saiba que o excesso de precaução impõe o amor pela alma e o desejo de
preservá-la. Mas a minha já está perdida, sendo indiferente que se perca por uma
paixão avassaladora ou pelas mãos de um soberano poderoso”, e se calou. E eis
que a jovem prestava atenção nele, que se encontrava diante da portinhola do
pavilhão. Os sinais do sentimento e do amor eram visíveis em ambos; os
movimentos de cada um deles manifestavam o predomínio da paixão e os
sentimentos latentes; a língua da devoção mútua era o seu porta-voz, apesar do
silêncio de ambos, e revelava seus segredos, apesar da mudez de ambos. Ela o
contemplou por instantes, ele a contemplou por instantes. Então, ela ordenou às
primeiras servas que retornassem aos seus assentos, e elas obedeceram; depois,
fez um sinal para as meninas, e cada uma delas trouxe um assento e colocou-o
diante das portinholas do pavilhão no qual estávamos; em seguida, ordenou às
servas cantoras que se acomodassem em tais assentos, e elas obedeceram;
finalmente, fez um gesto para uma delas e disse: “Cante”; ela afinou o alaúde e
começou a recitar:

“Enamorado que anseia por enamorado:
no amor, seus corações são um só coração;
pararam diante do oceano da paixão
e beberam, pois suas águas são potáveis;
pararam e disseram, com as lágrimas
pelo rosto escorrendo:
‘a culpa é do destino, e
não de quem se apaixona’”.

E imprimiu-lhe uma melodia que inquietava o indulgente e curava o adoentado.
Atormentado com aquilo, ele se voltou para uma das jovens que estavam entre
nós e lhe disse: “Cante estas minhas palavras:

‘Meu anseio muito se prolonga;
o choro me inflamou os olhos!
Ó sorte, ajude-me! Ó meu desejo,
ó minha busca extrema e minha fé!
Lamente aquele cujas partes se afogam,
com lições para o triste apaixonado;
entregue a devoção às suas entranhas:
longas paixões, longas lamentações’”.

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que lhes contarei na próxima noite, se acaso eu viver e for preservada”.

175ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Abœ Al¬asan contou:
Quando a jovem cantou com suave melodia os versos que o rapaz ordenara,
¸amsunnahår voltou-se para outra jovem e lhe disse: “Cante por mim os
seguintes versos:

‘Choro por quem, estivesse tão frágil quanto eu, choraria
[também;
por quem, tivesse um pouco de minha paixão, enlouqueceria.
A Deus somente peço, e a nenhum outro misericordioso,
a dádiva pela qual meu coração tanto, tanto sofreu.
Se a paixão e a dor que estão em mim estivessem
em humanos ou gênios, já se teriam extinguido os dois’”.

Delicadamente, ela executou a melodia, caprichou e tocou com excelência.
Então, o rapaz disse a uma outra jovem: “Cante por mim os seguintes versos:

‘Atingido pelo que há em suas pupilas, ele suspirou,
a bela paciência o abandonou e ele se vergou;
estropiado, suas súplicas gemeriam entre todas as
pessoas se assim conseguisse obter seu desejo;
você tem um coração inflexível e um corpo
que parece um ramo de flexibilidade sem igual’”.

Então ela cantou e inovou, tornando, com seu fazer, a atividade mais delicada.
¸amsunnahår suspirou profundamente e disse à jovem que estava mais próxima
de si: “Cante”, e ela cantou a seguinte poesia:

“Se não estiveres ouvindo os suspiros
meus, e se desconheces o meu afeto,
então – por teu amor! – minha paciência acabou:
quanto tempo poderia durar a paciência,
ó dono do peito estreito para o calor de um coração
que, não fosses tu, estaria quase à mostra?”.
No decorrer desse canto, ambos se agitavam de emoção e demonstravam tanto
sentimento e paixão que era um espanto. O jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
inclinou-se para uma jovem próxima e lhe disse: “Cante, cante os seguintes
versos:

‘O tempo para o contato é mais curto
do que este encarecimento e negaça,
pois tendes beleza, mas a negaça
não condiz com tamanha beleza’”.

E o canto da jovem foi seguido das lágrimas abundantes do rapaz, e contínuos
suspiros. Ao ouvir-lhe as palavras e ver-lhe as ações, a jovem ¸amsunnahår não
se conteve: avançou rumo ao pavilhão, enquanto ele avançava rumo à porta a
fim de encontrá-la, com as mãos estendidas. Abraçaram-se junto à porta do
pavilhão. Eu jamais vira dois seres mais belos do que eles, nem, antes daquilo, o
sol abraçar a lua. As servas carregaram a ambos, cujos movimentos se tornavam
débeis e cujas forças se esvaíam, e os conduziram ao ponto mais elevado do
pavilhão; trouxeram água de rosas e pó de almíscar, aspergindo-os no rosto.
Ficaram ali por alguns momentos até recobrar o ânimo e recuperar os sentidos.
[Prosseguiu ¸ahråzåd:] ¸amsunnahår voltou-se à esquerda e à direita mas não
avistou o perfumista Abœ Al¬asan, que se escondera atrás dos assentos.
Perguntou: “Onde está o perfumista?”, e então ele se mostrou. Ao vê-lo, ela o
saudou, deu-lhe boas-vindas e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

176ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem ¸amsunnahår agradeceu muito
ao perfumista Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir e lhe disse: “A sua benemerência
atingiu o propósito e ajudará a lhe dar a devida recompensa. No arco dos brios,
[19] você não deixou uma só flecha; na prática de obséquios, você não deixou
espaço para mais ninguém”. Então ele baixou a cabeça, encabulado, e rogou por
ela, que se voltou para o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e disse: “Na
paixão, não houve nível que você não tenha superado, nem obstáculo que não
tenha atravessado, meu senhor. Agora, não resta senão se submeter às
determinações e decisões de Deus, e ter paciência para ver o que ele fará”. O
rapaz disse: “A união com você, minha senhora, e sua contemplação não podem
apagar o fogo de meu sentimento nem afastar o que trago em mim. Já disse e
continuo dizendo que não desistirei do seu amor senão com o aniquilamento de
minha alma. O amor por você não partirá senão com a partida do meu coração”.
Então ambos choraram e soltaram lágrimas que pareciam pérolas espalhadas, e
suas faces se avermelharam feito rosas múltiplas[20] regadas pela chuva. O
perfumista Abœ Al¬asan disse a ela: “O caso de vocês é espantoso, e sua
situação, curiosa e insólita; se juntos vocês choram assim, o que será então
quando se separarem? Desfrutem a alegria e deixem de lado a tristeza e a perda,
pois os amantes só conseguem passar juntos momentos furtivos e horas
contadas”. Ambos acalmaram o choro, e a jovem fez um sinal para a primeira
serva, que saiu rapidamente e retornou trazendo duas pajens com uma grande
mesa de prata, repleta de iguarias, que foi depositada diante deles. ¸amsunnahår
voltou-se para os hóspedes e disse: “Após o ardor, os jogos e as conversas, nada
melhor do que folgar compartilhando o pão.[21] Tenham a bondade de
aproximar-se”. Então eles se aproximaram, e ¸amsunnahår começou a dar
comida na boca do rapaz, e ele a ela, até que ambos comeram o tanto que
quiseram. Em seguida, a mesa foi retirada e lhes apresentaram uma bacia de
prata e uma chaleira de ouro. Lavaram as mãos e regressaram aos seus lugares.
¸amsunnahår fez um sinal para a jovem serva, que se ausentou por alguns
instantes e logo retornou acompanhada de três pequenas pajens carregando
bandejas de ouro com vasilhas de cristal trabalhado contendo várias espécies de
bebida. As bandejas foram colocadas diante deles, uma vasilha para cada um.
¸amsunnahår ordenou a dez pajens que se postassem diante deles e a dez
cantoras que os servissem, dispensando as restantes; depois encheu uma taça,
voltou-se para uma das servas e disse: “Cante!”, e a serva cantou recitando os
seguintes versos:

“Minh’alma por quem me respondeu sorrindo a saudação
e renovou, depois da angústia, meus desejos de amar;
quando aparece, a paixão se manifesta em meu peito
e mostra aos censores o que está entre minhas costelas.
As lágrimas dos olhos formam barreiras entre nós,
pois elas compartilham comigo a paixão por ele”.

Então ¸amsunnahår sorveu da taça, pegou outra, encheu-a de bebida, beijou-a e
entregou-a ao seu amado Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, que recolheu a taça e a
beijou. ¸amsunnahår ordenou a uma serva: “Cante!”, e ela cantou a seguinte
poesia:

“Escorre-me a lágrima, e corresponde ao vinho:
meu olho bebe um símile do que a taça contém.
Por Deus que ignoro se foi a bebida que alisou
meus cílios ou se eu bebia minhas próprias lágrimas”.

E o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår sorveu da taça. ¸amsunnahår pegou
então uma terceira taça, encheu-a, beijou-a e entregou-a a Abœ Al¬asan ¢Al∑
Bin ˇåhir, que recolheu a taça de suas mãos e beijou-a. Ela estendeu a mão para o
alaúde de uma das servas, subtraiu-o dela e disse: “Nesta rodada sou eu que vou
cantar, e isso ainda é pouco perto do que você merece”. Pôs-se a cantar com
arrebatamento e a recitar estes versos:

“Maravilhosas lágrimas por sua face escorrem,
e em seu peito o fogo da paixão lavra;
quando estão próximos, chora temendo que se afastem,
e por isso há lágrimas, próximos estejam ou distantes”.

Os dois quase flutuavam de emoção, envolvidos numa situação espantosa. O
jovem sentiu-se uma ave cujas asas tinham sido sequestradas por causa da voz
dela, da qualidade de sua arte, da sua elevada categoria e da variedade de batidas
nas cordas,[22] e passou a balançar o corpo para a esquerda e para a direita até
que se passou uma hora. Estavam nessa situação quando apareceu uma serva
correndo; voava como abelha, trovejava como agitação de palmeira e disse:
“Minha senhora, os servidores do comandante dos crentes estão à porta; são eles
¢Af∑f, Masrœr e Waß∑f, e estão acompanhados de vários lacaios”. Ambos
estiveram a ponto de morrer de tristeza e aflição, e se aniquilar de medo e
pânico. As luas de seu prazer se eclipsaram, sumiram as estrelas de sua
felicidade e eles temeram que seu caso fosse descoberto. Mas a jovem
¸amsunnahår riu...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

177ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
e seu companheiro, o perfumista Abœ Al¬asan, ficaram temerosos ao ouvir o
aviso da serva, mas ¸amsunnahår riu e lhe disse: “Retenha-os por alguns
momentos, até que possamos ocultar os vestígios do que ocorreu aqui”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Depois de se aproximar do jovem, ela se levantou a contragosto e ordenou que
as portas do pavilhão fossem fechadas, bem como suas entradas e cortinas;
fecharam-se as portas do pátio e ela foi até o jardim enquanto nós
permanecíamos lá dentro; ordenou que as poltronas fossem retiradas e se
mantivesse apenas a sua, na qual ela se acomodou, fazendo uma serva sentar-se
diante de si e massagear-lhe os pés. Então, disse à outra serva: “Autorize-os a
entrar”, e entraram os três, seguidos de vinte lacaios vestidos com as mais belas
e formosas roupas, trazendo cinturões de ouro e armados de espadas. Saudaram-
na da melhor maneira, ela lhes respondeu e os recebeu com sorrisos e honrarias.
Dirigindo-se a Masrœr, ela perguntou: “Quais são as novas?”. Ele respondeu: “O
comandante dos crentes lhe envia saudações e saudades, indaga a seu respeito e
lhe informa que ele teve hoje um dia tão feliz que, para rematá-lo, será
necessário passar a noite ao seu lado, aqui em seus aposentos, contemplando
você. Portanto, prepare-se para a sua chegada e enfeite o palácio”. Então ela
beijou o chão e disse: “Ouço e obedeço a Deus e ao comandante dos crentes”.
Voltou-se para a serva e lhe ordenou que convocasse as aias, as quais logo
apareceram e se espalharam pelos aposentos e pelo jardim, somente para mostrar
aos serviçais do califa que ela estava cumprindo as ordens, pois o lugar estava
perfeito em todos os quesitos, ornamentos, tapeçaria etc. Depois ela lhes disse:
“Vão, com a proteção e a salvaguarda de Deus, e relatem ao comandante dos
crentes o que vocês viram, a fim de que ele espere um pouco, o suficiente para
que o lugar seja forrado e sua mobília, arrumada”.
Disse o autor: então eles saíram rapidamente. ¸amsunnahår se ergueu e foi até
o seu amado Nœrudd∑n e seu companheiro Abœ Al¬asan, porque estavam
ambos como pássaros assustados. Ela deu um forte abraço em Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår e chorou um choro lancinante. Ele lhe disse: “Ó minha senhora, esta
separação constituirá um auxílio à minha aniquilação e ruína. Que Deus me dê
resignação até o momento de poder contemplá-la ou então me forneça uma
sobrevida depois que me separar de você”. Ela respondeu: “Você pelo menos
sairá inteiro, com a sorte preservada, paixão protegida e escondida; os limites
serão dados pelo estado em que você já se encontra. Quanto a mim, cairei em
desgraça e má fortuna. O califa já está acostumado a coisas que, agora, a enorme
paixão por você e a dor da separação me impedirão de fazer. Com que língua
cantarei para ele? Com que coração ficarei ao seu lado e o lisonjearei? Com que
forças o servirei? Com que juízo conversarei com seus acompanhantes? Com
que inteligência me desvelarei por eles a fim de agradá-lo?”. Abœ Al¬asan disse
a ela: “Eu a exorto a resignar-se e a munir-se, nesta noite, do máximo possível de
paciência e firmeza, e Deus, com sua generosidade, irá reuni-los”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Estávamos nessa situação quando a serva de ¸amsunnahår apareceu e disse:
“Minha ama, os servidores do califa já vieram e a senhora continua aí parada?”.
¸amsunnahår respondeu: “Ai de ti! Rápido, ajude-os a subir ao salão[23] que dá
para o jardim, e esconda-os até que escureça; depois, faça-os sair e chegar em
segurança à casa deles”. A serva disse: “Ouço e obedeço”.
Assim, ¸amsunnahår despediu-se de ambos e saiu, embora não suportasse
sequer se mexer. Sua serva conduziu os dois e os fez subir ao salão que, de um
lado, dava para o jardim, e, de outro, para o rio Tigre. O lugar tinha muitos
compartimentos, num dos quais ela os instalou e fechou a porta. Anoiteceu.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

178ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte, D∑nårzåd disse à irmã: “Conte-nos a história”, e ela


respondeu: “Sim”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a serva os instalou no salão e saiu.
Quando anoiteceu, lá estavam os dois amigos naquela situação, dentro da
residência do califa e sem saber o que lhes aconteceria nem como se safariam
dali. Olhavam ambos para o jardim quando surgiram, repentinamente, mais de
cem criados vestidos parecendo noivos, com roupas coloridas, cinturões de ouro
e espadas. Cada criado conduzia um pequeno lacaio que trazia às mãos uma vela
de cânfora. Ladeado por Masrœr e Waß∑f, o califa Hårœn Arraš∑d se arqueava
de embriaguez e torpor. Atrás dele vinham vinte servas que pareciam sóis, com
as mais dignas vestimentas e joias brilhando no pescoço e na cabeça. Foram
recepcionados pelas servas de ¸amsunnahår, que tangiam as cordas de seus
instrumentos entre as árvores, tendo a sua senhora à frente. Ela beijou o solo e o
califa lhe disse: “Que seja muito bem-vinda, ó vida mais agradável, ó alegria dos
corações, ó felicidade”. E, apoiando-se na mão de ¸amsunnahår, caminhou até a
poltrona de prata, na qual se sentou. Foram trazidas para diante dele as outras
poltronas, enfileiradas até a beira das piscinas. O califa ordenou que as suas
servas se sentassem, e então elas sentaram cada qual em seu acolchoado.
¸amsunnahår se acomodou numa cadeira bem à frente do califa, que contemplou
o jardim por uma hora e depois ordenou que as portinholas do pavilhão fossem
abertas. Espetaram-se à sua direita e à sua esquerda tantas velas que
transformaram a escuridão em tardezinha e a noite em dia. Os criados puseram-
se a trazer os apetrechos para bebida.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Então eu vi pedras preciosas em tal profusão que nunca me passara pela mente
ou pelas vistas. Imaginei que estava num sonho e que meu discernimento partira
e meu coração entrara em colapso, enquanto Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
permanecia prostrado pela paixão, com os movimentos debilitados, vendo com
os olhos contrariados o mesmo que eu via, e pensando com o coração adoentado
o mesmo que eu pensava. Perguntei-lhe: “Você está vendo esse rei?”. Ele
respondeu: “Nossa desgraça é vê-lo; estamos aniquilados, não há escapatória.
Não serei aniquilado senão por uma única coisa que já me dominou: a paixão, a
separação depois do contato, o medo, a impotência, a periculosidade do lugar e a
impossibilidade de salvação. Somente em Deus haverá ajuda para isso em que
estou metido”. Eu lhe disse: “Só resta esperar que Deus altíssimo proporcione
alívio”. Então ele tornou a olhar. Quando todas as coisas ficaram bem dispostas
diante de si, o califa Hårœn Arraš∑d se voltou para uma das servas que tinham
vindo com ele e disse: “Cante, ó ˝aråm”,[24] e então ela movimentou o alaúde e
cantou a seguinte poesia:

“Se o fluxo do choro marcas deixasse
de ervas, verde estaria a minha face.
Entre minhas lágrimas, uma primavera
esverdeada de pudor teria sido vertida,
e contudo poucas lágrimas seriam, ainda.
De mim se despede o meu resto de vida;
eu disse, vendo que o só conforto
seria a morte: ‘seja muito bem-vinda’”.

Continuou o autor: ambos olharam para ¸amsunnahår, a qual, aborrecida, se
reclinou tanto em sua cadeira que caiu. As servas a socorreram e carregaram.
Abœ Al¬asan ficou ocupado em observá-la, e mais tarde ele contaria: “Voltei-me
para o seu amado, olhei para ele e eis que estava desfalecido, deitado de bruços,
sem se mexer. O decreto divino foi generoso com eles e decidiu coisas iguais
para ambos”. Aquilo fez com que o jovem ficasse exposto a terrível perigo. A
serva de ¸amsunnahår foi até os dois amigos e lhes disse: “Retirem-se, pois tudo
está se complicando demasiado e eu temo que o mundo despenque sobre nós
esta noite”. O perfumista lhe perguntou: “E quem poderá levantar esse rapaz?
Veja o seu estado!”. A serva começou a aspergir água de rosas no rosto do jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, e a friccionar-lhe as mãos, até que ele despertou.
Seu amigo perfumista lhe disse: “Desperte agora antes de se destruir e nos
destruir junto com você”. Em seguida, ele e a serva carregaram-no e o desceram
do salão. A serva abriu uma portinhola de ferro pela qual ambos saíram e foram
dar num dique. Levemente, a serva bateu palmas e surgiu uma canoa[25]
conduzida por um remador, que atracou colado ao dique.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Embarcamos na canoa enquanto o jovem amado de ¸amsunnahår estendia uma
das mãos na direção da residência e do palácio e colocava a outra sobre o
coração, recitando com voz débil a seguinte poesia:

“Estendi para a despedida a palma débil,
com a outra sobre o calor de meu coração.
Não seja este o último de seus compromissos,
nem seja esta a última de minhas provisões”.

Depois, o navegante remou conosco e com a serva a bordo.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar, pois será mais espantoso e insólito”.

179ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz recitou a poesia, o navegador
remou e a serva se manteve com eles até que atravessaram o rio, chegando à
outra margem. Desembarcaram em terra, e a serva se despediu deles dizendo:
“Não posso ir com vocês além deste ponto”, e foi-se embora, enquanto o rapaz
se mantinha prostrado, sem conseguir levantar-se, diante de Abœ Al¬asan, que
lhe disse: “Meu senhor, estamos perdidos! Não estamos a salvo da cobiça de
ladrões”, e começou a censurá-lo e a adverti-lo. Depois de algum tempo, ainda
sem conseguir andar, o rapaz levantou-se auxiliado pelo perfumista Abœ
Al¬asan, o qual, tendo amigos naquela região, dirigiu-se para a casa de um no
qual confiava e a quem costumava visitar. Bateu à porta e rapidamente o homem
atendeu. Ao vê-lo, o dono da casa ficou regozijante.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
O homem nos introduziu em sua casa. Quando nos vimos bem acomodados no
local, ele perguntou: “Onde estava, meu senhor, e a uma hora dessas?”.
Respondi: “Eu tinha negócio com um sujeito, mas recebi a notícia de que ele
pretende apossar-se do meu dinheiro e do dinheiro de outros. Então resolvi ir até
ele à noite e pedi ajuda a este cavalheiro” – e, apontando para o jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, continuei: “Levei-o comigo temeroso de que meus
desígnios se evidenciassem para aquele homem e ele se escondesse de mim. A
despeito de meus esforços, porém, não consegui localizá-lo nem obtive notícia
alguma de seu paradeiro, e assim decidi retornar, mas, preocupado com o
extremo cansaço deste cavalheiro e sem saber que direção seguir, tomamos a
liberdade de vir até sua casa, devido à confiança que sentimos em você”.[26]
Disse o autor: o homem se desdobrou para dignificá-los e se esforçou por
servi-los; permaneceram em sua casa o restante da noite, e mal raiou a aurora
foram para o rio; veio uma canoa, eles embarcaram, atravessaram até a outra
margem, desembarcaram e chegaram à casa do perfumista Abœ Al¬asan ¢Al∑
Bin ˇåhir, o qual, mediante juras, fez questão da entrada do jovem Nœrudd∑n
¢Al∑ Bin Bakkår e foi atendido: o jovem se jogou no chão, prostrado de amor,
cansaço e tristeza. Ambos se deitaram um pouco, mas logo acordaram. Abœ
Al¬asan ordenou que os tapetes fossem estendidos pela casa, e mais tarde
contaria:
Pensei então: “Deixe-me distraí-lo e reconfortá-lo. Não ignoro o que sucedeu
a ele e à sua amada, da qual teve de separar-se, e como esses fatos o deixaram
mortificado”. Agradeci a Deus por ter-me salvado daquele perigo, e distribuí
esmolas pela facilidade que ele me concedera.[27] Em seguida, o jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår recobrou o ânimo e se sentou. Sentei-me e lhe
disse: “Revigore-se”.
Disse o autor: então o jovem mandou trazer água, e esta lhe foi trazida; ele fez
suas abluções e compensou as preces diurnas e noturnas; em seguida, tentou
acalmar-se e distrair-se por meio de conversas. Ao notar-lhe tal comportamento,
Abœ Al¬asan aproximou-se dele e disse: “Meu senhor Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår, na situação em que se encontra é mais adequado passar esta noite aqui
comigo, distraindo-se, deleitando-se, aliviando a paixão e a ansiedade,
acalmando a sua alma e divertindo-se conosco. Quiçá Deus não o alivia daquilo
que está em você e daquilo em que você está”.[28] O jovem respondeu: “Faça o
que tiver planejado e eu não o impedirei”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Então convidei os seus criados e companheiros e mandei chamar uma cantora.
Ficamos naquela situação até o anoitecer, quando se acenderam as velas e os
momentos se tornaram agradáveis. A cantora cantou a seguinte poesia:

“O tempo me atingiu com uma flecha certeira;
minha paciência se esgotou e abandonei os amados;
o tempo me humilhou e minha paciência escasseou;
antes disso, porém, eu era um homem calculista”.

[Prosseguiu Abœ Al¬asan:] Ao ouvir as palavras da cantora, Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår ficou desmaiado até a alvorada, só acordando depois que eu já me
desesperara.
Disse o autor: o jovem pediu para retornar para sua casa, e Abœ Al¬asan,
temeroso das consequências, não teve como impedi-lo. O perfumista depois
contaria: “Mas, quando o vi instalado em sua residência, agradeci a Deus
altíssimo, excelso seja o seu nome”. Abœ Al¬asan tentou reanimá-lo, mas o
jovem, sem conseguir controlar-se, não lhe abriu o coração nem a audição, e
então o perfumista levantou-se e se despediu.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar, pois será ainda mais insólito”.

180ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao se despedir do perfumista Abœ
Al¬asan, o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår lhe disse: “Meu irmão, quem
sabe você não ouça alguma notícia de minha amada. Você já viu em que estado
ela estava. É absolutamente imperioso averiguar a seu respeito”. Ele respondeu:
“A serva dela necessariamente virá até nós e nós dará notícias sobre o caso”, e se
retirou, dirigindo-se para o seu estabelecimento, onde ficou à espera de notícias,
mas a serva de ¸amsunnahår não apareceu. Naquela noite, ele foi para casa
dormir. No dia seguinte, fez suas abluções e preces e foi para a casa do jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, entrou e o encontrou prostrado no colchão,
cercado por pessoas de várias categorias. Havia médicos, cada um lhe receitando
algo e medindo-lhe o pulso.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Ao me ver, ele se esticou em minha direção, muito contente, e sorriu um leve
sorriso. Saudei-o da maneira que a situação exigia, disse-lhe que sentia muito a
sua falta e indaguei-o sobre o seu estado e como passara a noite. Fiquei sentado
junto dele até que os presentes se retirassem. Então lhe perguntei: “O que
aconteceu?”. Ele disse: “Os criados espalharam que eu estava doente. Sem
forças, eu havia caído neste lugar, como você está vendo, e as pessoas vieram me
visitar. Não pude impedi-los. Mas deixe isso para lá; você viu a jovem?”.
Respondi: “Não, mas é bem possível que ela venha hoje”.
Disse o autor: então ele chorou copiosamente. Abœ Al¬asan lhe disse: “Muito
cuidado com o escândalo! Contenha o choro, oculte o seu estado e não revele a
ninguém o seu segredo”. Mas o seu choro aumentou e ele recitou os seguintes
versos:

“Ocultei a paixão, mas quando ela cresceu e amadureceram
suas forças, as lágrimas propagaram o que eu escondia.
Quando vi que as lágrimas anunciaram a minha paixão,
soltei-lhe as rédeas, pois soltá-las é mais saudável,
e revelei que, em verdade, minhas lágrimas escondiam
uma paixão bem mais terrível e grandiosa”.

[O jovem prosseguiu:] “O destino me lançou numa desgraça da qual bem podia
ter-me dispensado. Para mim, agora, não haveria nada mais reconfortante do que
a morte, pois nela eu encontraria descanso do sofrimento e alívio para os meus
males”. Abœ Al¬asan lhe disse: “Não, Deus vai socorrê-lo e curá-lo. É a
primeira vez que lhe acontece algo assim, e você não é a única vítima”.
Conversaram por algum tempo e depois o perfumista se retirou e foi ao mercado.
Abriu a loja e, antes que se sentasse, a serva de ¸amsunnahår surgiu.
Mais tarde Abœ Al¬asan contaria:
Cumprimentei-a. Sua beleza desaparecera e ela estava abatida. Eu lhe disse:
“Seja muito bem-vinda! Meu coração e minha fala estão com você. Como está a
sua senhora? Quanto a nós, sucedeu-nos isso e aquilo...”.
Disse o autor: e o perfumista lhe relatou tudo quanto ocorrera. Ela suspirou
assombrada e disse: “Pois a minha patroa também está no pior dos estados.
Quando vocês partiram, meu coração palpitava de ansiedade, pois eu não
acreditava que se salvariam. Quando voltei, encontrei minha patroa prostrada na
cúpula, sem responder às perguntas nem conseguir falar. O comandante dos
crentes estava à sua cabeceira, sem ter quem lhe desse informações sobre o
estado dela nem saber o que a acometera. Ela ficou nesse estado até o meio da
noite, cercada de todos os lados pelas servas, que se dividiam entre felizes e
chorosas. Depois ela despertou e o califa Hårœn Arraš∑d perguntou: “Qual é o
seu problema, ¸amsunnahår?”. Quando lhe ouviu as palavras, ela beijou os pés
do califa e disse: “Ó comandante dos crentes, faça-me Deus o seu resgate!
Alguma mistura me fez mal e acendeu o fogo em meu corpo. Isso me fez cair
sem perceber onde eu me encontrava”. Ele perguntou: “O que você ingeriu
durante o dia?”, e ela mencionou coisas que não ingerira, fingiu ter forças,
mandou trazer bebida, bebeu e pediu ao comandante dos crentes que retomasse a
festa. Ele retornou ao seu lugar e lhe ordenou que se sentasse na cúpula e não se
entediasse. ¸amsunnahår assim agiu. Fui até ela, que me perguntou sobre vocês
dois. Contei o que lhes sucedera e recitei para ela a poesia de Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår, que a fez chorar. Então uma serva chamada Li¬å≈ul¢åšiq[29]
cantou os seguintes versos:

“Por vida minha que sem vocês a vida não tem graça!
Quem dera eu soubesse como estão vocês sem mim!
É lícito que, por tê-los perdido, eu chore sangue,
enquanto vocês choram lágrimas por ter-me perdido”.

Então ¸amsunnahår tornou a cair da mesma maneira que caíra antes, e eu me pus
a tentar reanimá-la.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
preservada”.

181ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem serva contou a Abœ Al¬asan
que ela se pôs a tentar reanimar a patroa, a friccionar-lhe os pés e a aspergir-lhe
água de rosas no rosto até que ¸amsunnahår acordou. A serva disse:
Eu disse a ela: “Nesta noite você vai se destruir, bem como a todos quantos
vivem em sua residência! Pela vida do seu amado, você deve controlar-se e ter
paciência, ainda que sendo revirada em brasa ardente”. Ela me disse: “E a
questão comporta algo além da morte, que seria um descanso para alguém em
meu estado?”. Estávamos nesse pé quando outra serva chamada
Falaqulmahjœr[30] cantou a seguinte composição:

“Disseram: ‘Talvez à paciência preceda o conforto’.
Respondi: ‘E como ter paciência após a separação?’.
Pois o tratado entre mim e ele afirma a ruptura
das cordas da paciência quando eu o abraçar”.

Então minha senhora caiu desmaiada. O comandante dos crentes percebeu,
acorreu rapidamente e observou que o seu sopro vital estava a ponto de
abandoná-la. Ordenou que a bebida fosse suspensa e que cada serva se
recolhesse a seu aposento. Ficou o restante da noite ao lado dela, que continuou
no mesmo estado. Quando amanheceu, ¸amsunnahår despertou e o comandante
dos crentes convocou os médicos e ordenou que tratassem dela, ignorando a
paixão e o enamoramento em que incidira e que a haviam acometido. Manteve-
se ao seu lado até achar que ela melhorara, quando então foi para seu palácio, o
coração preocupado com a doença dela, entregando-a aos cuidados de um grupo
de servas e camareiras. Mal raiou a manhã, ela determinou que eu viesse até
você a fim de obter notícias sobre o cavalheiro Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår”.
Disse o autor: ao ouvir as palavras da serva, Abœ Al¬asan lhe disse: “Eu já
fiz você saber o estado em que ele se encontra. Cumprimente a sua senhora,
cuide muito bem dela e empenhe-se em manter em segredo o seu estado. Eu
deixarei o jovem a par das palavras dela que você me transmitiu”. A serva
agradeceu a Abœ Al¬asan, despediu-se e foi embora.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Passei o restante do dia vendendo e comprando. Depois, fui até a casa do
jovem; entrei e eis que ele ainda estava como eu o deixara. Saudou-me,
demonstrou alegria com minha presença e disse: “Não lhe enviei ninguém, meu
senhor, para tornar as coisas um pouco mais leves, uma vez que eu lhe impus um
peso do qual depende a manutenção do meu sopro vital, pelo resto da minha vida
e até o fim de meus dias”. Eu lhe respondi: “Deixe disso. Se fosse possível dar a
própria vida em resgate, eu daria a minha por você; se fosse aceita a proteção
com os olhos, eu daria os meus para protegê-lo. A serva veio falar comigo”.
Disse o narrador: Abœ Al¬asan lhe transmitiu as informações que ela lhe
dera. Aquilo foi muito penoso para o jovem; pareceu-lhe demasiado, e ele se
afligiu, suspirou e chorou dizendo: “Qual será a estratégia ante essa
enormidade?”. Pediu a Abœ Al¬asan que dormisse em sua casa, e este assim
agiu. Mas o perfumista era de pouco dormir: logo alvoreceu e ele saiu dali e foi
para a sua loja, em cujas proximidades topou com a serva em pé a aguardá-lo.
Ao vê-la, não abriu a loja; foi em direção à serva, que lhe fez um gesto como
cumprimento, transmitiu as saudações de sua patroa e perguntou: “Como está o
cavalheiro Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår?”. O perfumista respondeu: “Continua
na mesma. Como está a sua patroa?”. Ela respondeu: “Na mesma, e até pior. Ela
escreveu um papel ao cavalheiro Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, entregou-o a
mim e me disse: ‘Leve esta mensagem e proceda de acordo com as
determinações de Abœ Al¬asan’”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Fiz então o caminho de volta para a casa do rapaz, seguido pela serva, até que
cheguei à sua casa e entrei.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
preservada”.

182ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, tendo a jovem serva ido até Abœ
Al¬asan, ele a levou até a casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, entrou e deixou-
a num canto. Ao vê-lo, o rapaz perguntou: “Quais são as novas?”. Abœ Al¬asan
respondeu: “Tudo bem; o seu amigo fulano de tal enviou-lhe a serva com um
papel falando da falta que você lhe faz e justificando o motivo de não ter vindo
visitá-lo; é uma questão que você verificará. Autoriza a serva a entrar?”, e lhe
lançou uma piscadela. O rapaz respondeu: “Sim”, e então um criado saiu e a
trouxe para dentro. Ao vê-la, o rapaz a reconheceu e se agitou, demonstrando
felicidade com a sua chegada; perguntou por meio de sinais: “Como está aquele
senhor, que Deus o cure e recupere?”, e ela retirou o papel e estendeu para ele,
que o recolheu, revirou, leu e entregou a Abœ Al¬asan com as mãos trêmulas.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Abri o papel e eis que nele estava escrito:


“Deus é o maior

‘Peça ao meu enviado que lhe dê notícias minhas
e contente-se com o recado em vez do olhar;
você deixou um coração úmido de saudade e afeto,
e olhos que procuram a cura na insônia;
arme-se de paciência na desgraça, pois ninguém
pode evitar as decisões do destino.
Tranquilize-se, pois você não se moverá do
meu coração nem sairá de minha visão;
olhe para o seu corpo, no qual se planejou
o sentimento e conclua a partir dos vestígios’.

Conquanto eu lhe escreva, meu senhor, com as pontas dos dedos, me
pronuncie com a língua e me manifeste com eloquência, eu me exprimo
com um coração humilhado, e garras que, não fosse a ambição de agarrá-lo,
teriam desistido, e membros que, não fosse o anelo de que o sofrimento
causado pela separação de você será superado, teriam cessado de procurar o
objetivo. O testemunho sobre a minha situação dispensa explicações, e
minha condição, em resumo, é que tenho um olho do qual a insônia não se
desprega, uma mente que a angústia não abandona, um peito do qual o
tormento não se separa, um coração que não se livra do transtorno e
desígnios que só esbarram no que fere ou é ferido, e não passam senão por
um fígado destroçado e ulcerado. Nunca presenciei cenas magníficas nem
tive uma vida feliz! Quem dera eu esquecesse e fosse esquecida! Eu não me
queixaria senão para algum queixoso, nem choraria senão para algum
choroso. E digo:

‘Ó dor, não satisfiz o meu desejo por vocês,
nem gozei suficiente contato e aproximação,
pois fomos separados logo em seu início;
por vocês e para sempre, eis meu lamento vazio’.

Que Deus altíssimo produza alegria por meio do encontro e da reunião de
todos os amantes. Envie-me as suas palavras para que eu as faça minhas
companheiras e possa desfrutar de sua resposta, que me servirá de auxílio
e doce companhia, e também para que eu consiga ter uma bela paciência
até que Deus facilite um encontro.
Saudações a Abœ Al¬asan”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:

Li palavras que produziriam anseios mesmo num coração vazio, quanto mais
num cheio; palavras que fariam estacar um perplexo. Estive a ponto de
manifestar tais sentimentos, mas me contive envergonhado, ocultei tudo e disse
ao jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår: “O escriba dela foi muito bem,
emocionou, anelou e fê-la exprimir-se com hábeis palavras. Apresse uma
resposta bem engenhosa!”. Ele respondeu com voz débil: “Com que mão
escreverei? Com que língua chorarei e me lamentarei? Debilidades se acumulam
sobre a minha debilidade, e mortes sobre a minha morte”. Em seguida, sentou-
se, tomou um papel com as mãos e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

183ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
tomou um papel com as mãos e disse a Abœ Al¬asan: “Abra a carta para mim”,
e ele o fez. O jovem se pôs ora a olhar para a carta, ora a escrever por alguns
momentos, ora a chorar, até que realizou o que pretendia e entregou o papel a
Abœ Al¬asan dizendo: “Leia e depois envie para a jovem”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Tomei a carta e a li, e eis o que ela continha:

“Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador

‘Uma carta de anelos veio da lua
ofertar sua luz para a minha vista,
ampliando sua beleza aos olhos do leitor,
como se suas palavras fossem flores;
tornou um pouco mais leve o meu penar
e os pesados danos que me tocaram.
Meu senhor, chamem-no! É algo que
deixa o coração entre a compaixão e o alerta.
Meu afeto exagerado não lhe é segredo, nem
minha enorme paixão pode ser ocultada.
Meu coração e este meu flanco no fogo da paixão
choram, e este outro, devido às noites em claro, se dissolve.
Nem a torrente de minhas lágrimas cessará,
nem o fogo da paixão se apagará com brasas.
Pelo amor que tenho por vocês, e pelo respeito
que espero, não acrescentarei mais notícias,
nem desviarei a paixão desta alma miserável
para ninguém depois de ter me separado de vocês’.

Chegou sua mensagem, minha senhora, dando conforto a um espírito
fatigado pelo sentimento e pela paixão, e levando a cura a um fígado ferido
e ulcerado pelo torpor e pela fraqueza. Fez uma língua falar depois da
mudez e causou regozijo depois de silenciosa reflexão, aliviando o
observador de seu bosque florescente. Quando compreendi o conteúdo de
sua mensagem e ponderei suas palavras e sentidos, regozijei-me na mesma
medida em que ia compreendendo e meditando. Li a mensagem pela
segunda vez, e ela me reconfortou com o que traduziu e esclareceu; eu
nunca havia visto uma arte tão bem elaborada, e sofro com a dor da
separação em seus diversos gêneros e formas, acumulação de fraquezas e
multiplicação da paixão; a emoção se auto-alimenta e o anelo se amplifica.
Poesia:

‘O coração está amargurado, o pensamento, combalido,
o corpo, fatigado, e o olho passa a noite em claro;
a paciência se esvai e o abandono é constante;
o peito foi transtornado e a razão, subtraída;
em suma, depois do seu distanciamento, eu
em todas as minhas queixas estou derrotado’.

Não será esta queixa que apagará o fogo da desgraça, mas ao menos
justificará aquele que foi derrotado pela paixão e aniquilado pela separação,
até que um encontro deite um pouco de água à sua sede, e a cura aclare o
seu caminho.
Saudações”.

Disse Abœ Al¬asan:
Suas palavras revolveram a perturbação em que eu me encontrava, atingiram
meus órgãos vitais, fizeram escorrer--me lágrimas que não pude conter senão
após um exaustivo esforço e agitaram meu coração, que não consegui aquietar
senão após a paixão e a enfermidade. Entreguei a carta à serva e, quando ela a
recolheu, Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår lhe disse: “Aproxime-se de mim”, e ela
assim agiu. Ele então lhe disse: “Transmita a ele os meus cumprimentos e faça-o
saber de minha debilidade e fraqueza, e que o amor por ele se imiscuiu em
minha carne e ossos. Informe-o que sou um pobre a quem o tempo persegue com
suas desgraças. Será que quem voar conseguirá se livrar?”,[31] e suas palavras
foram seguidas de choro. Também choramos, a serva e eu; a serva se despediu e
saiu, alterada pelo choro.
Abœ Al¬asan se retirou junto com a serva e a acompanhou até um pedaço do
caminho, quando então se despediu e tomou o rumo de sua loja.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

184ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após a serva ter se despedido e
partido, Abœ Al¬asan retornou à sua loja com o coração opresso e, assaltado
pela reflexão a respeito de seus interesses e de quanto os sacrificara por causa
dos dois enamorados, teve certeza de que se destruiria entre ambos e seu negócio
iria à falência, inteiramente exposto às más consequências que poderiam advir a
eles, e nesse estado permaneceu por todo o seu dia e sua noite. Na manhã
seguinte, foi até Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, entrou e eis que, conforme o
hábito, havia pessoas junto a ele. O perfumista esperou até que todos se
retirassem, foi até o jovem, perguntou-lhe sobre seu estado e ele se pôs a
lamuriar-se. Abœ Al¬asan lhe disse: “Ei, fulano! Nunca vi nem ouvi falar em
ninguém como você em seu amor. Toda essa emoção, debilidade de movimentos
e parca atividade ocorrem quando o amado não é sincero, quando o namorado
não corresponde. Mas você não se apaixonou senão por quem também está
apaixonado por você, nem procura o contato senão de quem também procura o
seu. Como seria então caso se apaixonasse por alguém divergente e procurasse o
contato de quem o abandonasse e se entregasse a algum enganador? Se você
continuar nesse estado, sua história vai se revelar e a lua que o protege se
eclipsará. Força, levante-se, converse com as pessoas, cavalgue, exercite-se e
faça o seu coração aprender, pois caso contrário você estará inevitavelmente
aniquilado”.
Mais tarde, Abœ Al¬asan contaria:
Então ele aceitou as minhas palavras e agiu conforme eu dizia, agradecendo-
me por tudo da maneira pela qual eu já o conhecia. Despedi-me e retornei para a
minha loja. Eu tinha um amigo joalheiro que estava a par de minha situação e
sabia das minhas relações com Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Ele costumava
visitar-me na loja, e, naquele dia, logo após chegar, ele perguntou sobre a jovem,
mas eu dissimulei e disse que ela desaparecera: “As últimas notícias a respeito
foram as que lhe dei, e não escondi de você senão aquilo que só Deus sabe e eu
ignoro. E ontem eu percebi que algo está ocorrendo comigo, e agora passo a
expor-lhe o que foi: saiba que eu sou um mercador conhecido e tenho muitos
negócios com homens e mulheres de elevada condição. Não estou seguro de que
o caso dos dois não se revele e nisso esteja também o motivo de minha
aniquilação, da expropriação de meus bens e da humilhação de meus filhos e
familiares. Não posso deixar de me importar com eles depois de tão agradável
convivência. Assim, adotei o alvitre de liquidar meus negócios, pagar minhas
dívidas, interromper minhas atividades e mudar para Basra, onde me
estabelecerei para esperar a resolução desse caso e o que Deus decidirá a
respeito, de modo que ninguém me informe. O amor tomou conta dos dois e não
será extirpado senão com a destruição da vida de ambos. A intermediária entre
eles é uma serva que lhes guarda o sigilo, mas quem pode garantir que ela não se
aborrecerá e que o caso deles não lhe provocará dificuldades que a façam revelar
tal segredo? Assim, o caso será divulgado e levará à morte, e o que eu
precipitadamente fiz por eles também me conduzirá à destruição e morte.
Amanhã já não terei desculpas perante Deus nem perante os homens”.
O seu colega joalheiro disse-lhe: “Você está me dando uma notícia gravíssima,
de amedrontar o inteligente e preocupar o clarividente superior. Meu parecer é o
mesmo que o seu. Deus o livre daquilo que você teme e o assusta, e que ele lhe
dê as melhores recompensas”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Ele me fez guardar segredo do que me revelara nessa conversa.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
preservada”.

185ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após ter conversado e feito aquelas
confidências ao joalheiro, [as coisas se precipitaram para] o perfumista. Mais
tarde, ele mesmo contaria: “Quando dei pela coisa, eu já havia resolvido todas as
pendências e imediatamente segui viagem”. Quanto ao joalheiro, após quatro
dias ele foi visitar o perfumista Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir e encontrou o seu
estabelecimento fechado.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Elaborei, então, uma artimanha para chegar até Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår.
Fui até a casa dele e disse a um de seus criados: “Peça permissão para que eu
veja o seu amo Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår”. Ele concedeu a permissão e então
eu entrei, encontrando-o deitado sobre a almofada. Ao me ver, com algum
esforço se pôs de pé, recebeu-me com a fisionomia serena e me deu boas-vindas.
Cumpri minha obrigação de visita de enfermo e me desculpei pela tardança. Ele
me agradeceu efusivamente e disse: “Talvez você tenha sido impedido por
alguma necessidade ou por compromissos pessoais”. Respondi: “Saiba que entre
mim e o perfumista Abœ Al¬asan, que Deus o preserve e proteja, há amizade,
negócios, convívio e afeição já faz algum tempo. Depositário de minhas
confidências, eu o frequentava, resguardando o que de ruim lhe sucedia e
mantendo ocultas as suas confidências. Mas há alguns dias eu o negligenciei por
causa de um grupo de companheiros, e quando retornei a ele, conforme o
costume, encontrei sua loja fechada. Um de seus vizinhos me disse que ele se
mudou para Basra devido a negócios dos quais tinha de cuidar pessoalmente,
mas não acreditei em tais palavras. Como eu não tenho conhecimento de uma
amizade tão grande quanto a existente entre vocês dois, eu lhe peço que, caso
você saiba se isso é verdade, deixe-me a par de uma vez por todas, pois eu vim
até aqui por sentir falta dele, para desculpar-me com você e para obter
esclarecimentos”. Ao ouvir minhas palavras, as cores de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår se alteraram e seu ser se transtornou. Ele disse: “Eu não havia ouvido
nada disso antes de você falar. Ele não me contou nada que pudesse justificar
isso. Se a questão for mesmo como você afirmou, então ele terá me abandonado,
me transtornado, destruído o meu valimento e me exaurido”. Em seguida,
sufocado pelas lágrimas, pôs-se a recitar e disse os seguintes versos de poesia:

“Quando eu chorava meus passados tropeços,
aqueles de meu afeto não estavam dispersos.
Hoje, porém, que deles me apartou o meu
destino, choro por quem eu tanto amava.
O que é a vida de um homem cujo pranto
se divide entre quem vive e quem já morreu?”.

E, após permanecer alguns momentos cabisbaixo e reflexivo, ergueu a cabeça
para um de seus criados e lhe disse: “Vá até a casa de Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin
ˇåhir e pergunte se ele ainda mora lá ou se partiu, conforme se contou. Informe-
se sobre qual direção ele tomou e para que lugar viajou”. E o criado se retirou.
O joalheiro, que ficou conversando com Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, mais
tarde contaria:
Conversamos por algum tempo. Ele estava aturdido: ora prestava atenção em
minha conversa, ora se distraía, ora conversava, ora pedia esclarecimentos. Logo
o criado retornou e disse: “Amo, perguntei sobre o perfumista e alguns de seus
parentes me informaram que ele viajou para Basra há dois dias. Vi também uma
jovem parada à porta de sua casa perguntando sobre ele. Quando me viu,
reconheceu-me, embora eu não a tenha reconhecido, e me indagou: ‘Você é
criado de fulano?’. Respondi: ‘Sim’. Então ela alegou que tinha para você uma
mensagem de uma das pessoas que lhe são mais caras. Agora, está parada à
porta”. Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår disse: “Faça-a entrar”.
Então entrou uma bela jovem, acima de qualquer descrição, conforme o
perfumista Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir tinha dito. O joalheiro a reconheceu
pelas palavras que a seu respeito lhe dissera o perfumista. Ela avançou e
cumprimentou Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar, pois será ainda mais insólito”.

186ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após ter entrado, a jovem serva
cumprimentou Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, aproximou-se e conversou com ele
em segredo. Enquanto a jovem falava, ele jurava e asseverava não saber nada
daquilo. Depois ela se despediu e saiu, deixando-o ensandecido, como se
estivesse queimando em fogo.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Tendo logrado enfim uma boa oportunidade para me abrir, eu disse: “Não
resta dúvida de que você tem interesses na residência do califa, ou de que entre
você e as pessoas de lá existem negócios”. Ele perguntou: “E o que o fez saber
disso?”. Respondi: “O conhecimento que tenho sobre aquela jovem”. Ele
perguntou: “A quem ela pertence?”. Respondi: “Pertence a ¸amsunnahår, a
concubina mais querida do califa Hårœn Arraš∑d. Ele não tem nenhuma mais
inteligente, nem mais forte, nem mais livre, nem mais ativa. Há alguns dias, essa
serva me mostrou uma mensagem que ela alegou suspeitar ter sido encaminhada
à sua patroa por uma de suas aias”.
Em seguida, o joalheiro falou a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår sobre o verso e a
prosa contidos na mensagem. O jovem ficou muito transtornado, deixando
bastante penalizado o joalheiro, que mais tarde contaria:
Foram tamanhos os sinais de transtorno que eu temi por sua vida. Mas logo
ele me disse: “Eu lhe peço, por Deus, que me diga a verdade sobre como você a
conheceu”. Respondi: “Deixe disso”. Ele continuou: “Não sou do tipo que o
deixará em paz, salvo se me disser a verdade”. Respondi: “Para que não pairem
suspeitas contra mim, nem sobrevenham discórdias entre nós; para que não lhe
ocorram ilusões, nem o abatimento o invada; para que não o domine a vergonha,
nem o capture o medo, nem se lhe oculte nenhum segredo, eu juro por Deus que
nunca exporei nenhum segredo seu, nem revelarei nada enquanto viver; não o
enganarei em situação alguma, nem lhe pouparei meus bons conselhos”. Ele
disse: “Conte-me a sua história”, e então eu lhe contei minha história do começo
ao fim e emendei: “Não fiz isso senão devido ao meu afeto e zelo por você, e
piedade por seu coração. Decidi oferecer-lhe minha alma e meu dinheiro, ser seu
companheiro depois da partida do perfumista, ser seu principal auxiliar dentre
todos os seus fiéis companheiros, preservando-lhe o segredo e confortando-lhe o
coração e o peito. Esteja calmo e seguro”, e renovei aquelas juras. Ele
correspondeu muito bem e disse: “Não sei o que lhe dizer, senão que o deixo por
conta de Deus altíssimo e por conta de seus brios”, e em seguida recitou:

“Se eu disser que depois de seu afastamento estou paciente,
minhas lágrimas e imensos soluços serão o que me desmente.
Quem dera eu tivesse certeza de que minhas lágrimas correm
devido à distância de um querido ou separação de um amado.
Minhas faces não param de jorrar lágrimas devidas à distância
de quem já está distante ou pela partida de quem é achegado”.

E se calou por alguns momentos. Depois perguntou: “Porventura você sabe o
que a jovem me disse?”. Respondi: “Não”. Ele disse: “Ela alegou que fui eu que
sugeri a Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir que partisse, e o tornou cúmplice desse
suposto plano. Insistiu nessa opinião, sem aceitar minhas palavras nem parar de
me censurar. Agora já não sei o que fazer, pois ela o ouvia, apreciava a
companhia dele e aceitava as suas palavras”. Eu lhe disse: “Se você aceitar a
minha maneira de encarar as coisas, eu irei livrá-lo de preocupações quanto a
isso”. Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår me perguntou: “E como isso poderia ser
feito, se ela consegue escapar até de um animal selvagem?”. Respondi:
“Envidarei o meu máximo esforço para auxiliá-lo e apoiá-lo. Lançarei mão de
todos as artimanhas sem revelar segredos, nem provocar sustos, nem gerar
prejuízos, com a boa ajuda de Deus altíssimo, sua boa benevolência e bela
providência. Não angustie o seu coração! Por Deus que não pouparei nenhum
esforço para tornar possível aquilo por que você tanto anseia”, e pedi-lhe
autorização para sair. Ele disse: “Você deu uma contribuição generosa e me
acudiu de maneira engenhosa e rápida, meu senhor! Você compreende o que eu
desejo; utilize, portanto, suas relações para estabelecer o contato; faça de sua
companhia uma dádiva, da guarda do segredo o seu brio e da ligação o seu
ofício”, e me abraçou; beijei-o e nos despedimos.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar, pois será ainda mais insólito”.

187ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro disse:
Então me despedi e saí, sem saber para onde ir nem em que me apoiar. Não
consegui imaginar como preparar uma artimanha para a jovem perceber que eu
sabia do caso entre ambos. Pus-me a caminhar e refletir e eis que encontrei uma
carta jogada no meio do caminho. Recolhi-a, abri-a e eis que o seu escrito dizia:

“Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador.

‘Veio o mensageiro trazer novidades e renovar anseios;
eu supunha que tais coisas eram simples devaneios;
não fiquei feliz, mas sim muito mais entristecido,
ao saber que o mensageiro nada havia compreendido’.

Eu o faço saber, meu senhor – e que Deus o preserve e não rompa os laços
de confiança nem de afabilidade –, que, se acaso o delito foi perpetrado por
você, eu o devolverei com lealdade; se acaso a fidelidade fugiu de você, eu
a guardarei com paciência e ardor. Embora aquele amigo haja partido
levando junto o seu alento, você já obteve outro amado, protetor de seu
segredo e guardião de seu peito e coração. Não sou o primeiro que se
debilita por ter perdido o caminho, nem o primeiro que deseja algo, tendo
contra si, porém, a oposição do destino ao que ama e deseja. Que Deus
altíssimo decida, em prol da alma, por um rápido alívio e salvação não
distante. Passe bem”.

[Continuou o joalheiro:] Enquanto eu lia a mensagem, espantado e tentando
imaginar de quem ela caíra, eis que aquela serva apareceu assombrada e
perplexa, voltando-se à direita e à esquerda e esquadrinhando o chão; ao ver a
mensagem em minhas mãos, seguiu-me, avançou até mim e disse: “Meu senhor,
essa mensagem caiu de minhas mãos; por favor, faça a gentileza de me
devolver”. Não lhe dei resposta e me pus a caminhar, com ela atrás de mim, até
que cheguei à minha casa; entrei e ela entrou comigo. Quando me sentei, ela me
encarou e disse: “Ei, você! Que eu saiba, essa mensagem não lhe trará nenhum
proveito; você nem sequer sabe quem a enviou, nem para onde levá-la. O que o
leva, portanto, apegar-se a ela e a evitar entregá-la?”. Respondi: “Sente-se, cale-
se, tranquilize- se e escute”. Tão logo ela se sentou, eu lhe disse: “Esta não é a
caligrafia de sua patroa ¸amsunnahår, enviada para Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår?”. Sua face se ensombreceu e, irritada, ela disse: “Ele vai nos expor e a
si próprio ao escândalo! Já o vejo dominado pela paixão, afundado nos mares do
desvario, queixando-se de seus sofrimentos a amigos e fraternos companheiros
sem atentar para as consequências do destino nem para quem a verdade dos fatos
estará confiada!”, e se levantou para sair. Calculando que sua partida naquelas
condições poderia ser desabonador para Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e acabaria
por conduzi-lo à morte, eu disse a ela: “Ei, você, os corações das pessoas
testemunham uns pelos outros. O homem consegue desmentir e negar qualquer
coisa que pretenda manter em segredo, salvo a paixão – da qual ele se sente
muito necessitado de falar e socorrer-se em opiniões a respeito de seu penar, e
que, ademais, apresenta sinais e testemunhos que a demonstram e denunciam. O
perfumista Abœ Al¬asan foi acusado de coisas das quais posteriormente se
evidenciou a sua inocência, e se fizeram suposições que logo se mostraram
baldadas. Quanto a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, ele não revelou nenhum dos
segredos entre vocês, nada deixou entrever, nem praticou nenhuma ação
reprovável. As palavras que você falou a seu respeito são degradantes e sua
suposição é muito feia. Mas eu lhe revelarei algo que irá tranquilizá-la, acalmar
o seu peito, aquietar as suas preocupações e desculpá-lo perante você, mas
somente depois que eu estiver plenamente seguro e você me prometer que não
me esconderá nada do que ocorre entre vocês. Serei eu o guardião desse segredo:
terei paciência na adversidade, aplicar-me-ei em cumprir as prerrogativas do
amigo e agirei conforme as condições impostas pelo brio e hombridade em tudo
quanto eu realize e nas tarefas de que me encarregarem”. Minhas palavras
fizeram-na suspirar e ela disse: “Nenhum segredo que lhe for confiado será
perdido, nem se verá frustrado aquele de quem você cuidar e acompanhar. Eu lhe
confiarei um tesouro que não poderá ser mostrado senão ao seu proprietário,
nem deverá ser entregue senão ao seu destinatário. Agora fale e seja afável; se
porventura o seu discurso trouxer a verdade, Deus e seus arcanjos servirão como
testemunhas”.[32]
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

188ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem serva disse ao joalheiro: “Se o
seu relato transmitir o que de fato tiver ocorrido,[33] Deus é testemunha de que
eu depositarei o segredo com você e o farei seu guardião e encarregado”.
Disse o narrador: então o joalheiro lhe falou do mesmo modo que havia
falado ao jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, e agiu tal como ele havia agido
em relação ao perfumista Abœ Al¬asan, conforme o joalheiro mais tarde
contaria:
Contei tudo, inclusive como, gradualmente, levei o perfumista a me revelar o
segredo e como me introduzi junto ao jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. E
continuei: “O fato de ter a mensagem caído de suas mãos é um indício dos meus
bons propósitos quanto a esse assunto, pois me repugnaria ter ido atrás da folha,
e tê-la encontrado me espantou”. E lhe garanti por meio de juras e promessas
que preservaria o segredo dos dois enamorados, e também a fiz jurar que ela não
me esconderia nada sobre ambos. Ela pegou a mensagem, selou-a e me disse:
“Direi a ele: ‘A mensagem me foi entregue selada; quero a resposta igualmente
selada com o seu selo, a fim de me livrar dessa intermediação entre vocês dois’,
pegarei a resposta e a trarei até você antes de regressar à minha patroa”. E,
despedindo-se, partiu deixando o meu coração em chamas por sua causa. Não se
passou nem uma hora e já ela retornava trazendo uma mensagem selada na qual
estava escrito:

“Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador.

‘O mensageiro com quem nossos segredos
estavam guardados falou e se encolerizou.
Arranjem-me outro mensageiro de confiança,
que considere bela a veracidade e não a mentira’.

Não cometi nenhuma traição nem dissipei confiança alguma; não
contradisse nenhuma promessa nem rompi afeto algum; não me separei da
tristeza e só encontrei, depois da nossa separação, o aniquilamento; não sei
nenhuma notícia de quem vocês estão falando nem lhe vi rastro algum.
Aquilo por que eu anseio é reunir-me com você, porém a realização deste
meu anseio se distancia. Desejo um encontro, mas onde está a possibilidade
que este apaixonado tem de realizar seu desejo? Vocês podem inferir
minhas notícias através da minha aparência, meu íntimo através da minha
situação, e meu estado através de minhas palavras. Adeus”.

Mais tarde, o joalheiro contaria:
Aquela mensagem, com as palavras que continha, me fez chorar.
Acompanhando-me no choro e nos sentimentos, a serva me disse: “Não saia de
casa nem se encontre com ninguém até que eu venha amanhã. Ele suspeitou de
mim, justificadamente, e eu suspeitei dele, também justificadamente. Eu lhe
mostrarei isso por meio dele próprio e tentarei todos os estratagemas para
colocar você em contato com ela. Deixei-a prostrada, pedindo notícias do
depositário do segredo”, e se retirou. Dormi preocupado naquela noite. No dia
seguinte pela manhã ela apareceu contente e eu perguntei: “O que lhe
aconteceu?”. Respondeu: “Fui até minha patroa e lhe mostrei a mensagem.
Depois que a reflexão exerceu seu efeito sobre ela e dominou a irritação, eu lhe
disse: ‘Não tenha medo, nem se entristeça, nem tema que a ausência do
perfumista Abœ Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir leve à degradação do caso entre vocês,
pois já encontramos um substituto’, e lhe falei de sua relação com o perfumista e
como você fez contato com ele, e depois de sua relação com Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår, e de como eu perdi a mensagem devido às preocupações em meu
coração, e de como você a encontrou, e de como se estabeleceu que o segredo
seria guardado. Ela ficou assombrada e disse: ‘Gostaria de ouvir essa história da
boca dele próprio, e também de certificar-me a seu respeito a fim de que minha
alma se tranquilize e se fortaleça a disposição dele em fazer tamanha
generosidade’. Encaminhe-se, pois, com a bênção de Deus e seu bom êxito”.
Ao ouvir aquelas palavras, o joalheiro considerou a questão gravíssima, o que
tornava impossível lançar-se a ela com precipitação, e disse à jovem: “Saiba,
fulana, que eu pertenço à classe média,[34] e não sou como o perfumista Abœ
Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir, o qual, caso fosse encontrado no palácio califal, poderia
apresentar as suas mercadorias como argumento. Ele me contava histórias que
me faziam estremecer. Se a sua patroa pretende conversar comigo, que isso se dê
fora do palácio do comandante dos crentes. Não sofro de nenhuma loucura que
me faça obedecer ao que você disse”. E pôs-se a recusar a ida até lá, enquanto a
jovem o encorajava e garantia que ele ficaria bem e estaria protegido. Porém, a
cada vez que resolvia acompanhá-la, suas pernas o traíam e suas mãos
estremeciam. A serva lhe disse: “Que Deus lhe facilite as coisas![35] Ela virá até
você. Não saia daqui”, e saiu apressada; logo retornou e disse: “Muito cuidado
para que não haja em sua casa ninguém que ouça as suas conversas!”.
Mais tarde o joalheiro contaria:
Eu lhe disse: “Não há ninguém comigo”, e então ela, cautelosa ao extremo,
saiu ligeira e retornou conduzindo uma jovem atrás da qual havia duas pequenas
servas. A casa ficou impregnada de seu aroma e iluminada por sua beleza. Pus-
me imediatamente de pé, estendi-lhe uma almofada e me sentei diante dela,
calando-me em seguida até que ela descansasse; desvelou o rosto que não
parecia senão o sol ou a lua nascendo. A fraqueza lhe tolhia os movimentos, e
ela, virando-se para a sua serva, perguntou: “É ele?”. A serva respondeu: “Sim”.
Cumprimentei-a e ela, após me retribuir da melhor maneira, disse: “A fé em
você nos levou a vir à sua casa, a entregar-lhe o nosso segredo e a depender da
sua discrição. Seja conforme supomos e acreditamos, pois você possui altivez,
generosidade e brio”. A seguir, indagou-me sobre minha situação, meus
familiares e conhecidos. Revelei-lhe tudo a meu respeito e disse: “Saiba,
madame, que eu tenho outra casa, dedicada à reunião com os companheiros e
fraternos amigos, a qual não contém senão o que eu já descrevi para a sua
serva”. Ela me fez contar novamente o que eu já contara à serva, e eu o fiz até o
fim. A jovem pôs-se a gemer e a lamentar a partida do perfumista Abœ Al¬asan
¢Al∑ Bin ˇåhir, a quem rogou todo o bem, e depois disse: “Saiba, fulano, que as
almas dos seres humanos convergem na busca de prazeres, ainda que suas
condições divirjam; e que nisso seus propósitos são semelhantes, ainda que
dessemelhantes sejam suas ações, pois os seres humanos se equivalem.[36]
Nenhuma obra se realiza sem palavras, nenhum objetivo se atinge sem esforço, e
nenhum bem-estar se alcança sem fadiga”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse: “Maninha,
como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

189ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem ¸amsunnahår, quando fez
recomendações ao joalheiro, disse-lhe entre outras coisas: “Não se deixa
aparecer um segredo senão após o estabelecimento de confiança; não se é
encarregado de algo senão após demonstrar capacidade; o êxito não surge senão
quando se tem brio; não se confiam missões senão a quem detenha altivez e
generosidade; e para ninguém se perfilam louvores senão na medida do carisma
de seus atos e do bom augúrio de seus propósitos e dádivas. A questão se
descobriu e o que estava oculto se revelou diante de você. O brio e a humanidade
que você possui não podem ser aumentados, e não encontrarei paciência que me
sustente para além da cláusula dos meus dias. No que se refere a esta serva, você
já se certificou de sua boa conduta e da elevada posição de que goza junto a
mim; é ela quem guarda os meus segredos e zela pelas coisas a mim atinentes.
Confie em tudo o que ela disser e fique tranquilo onde quer que ela o leve. Você
estará a salvo do que quer que tema, pois não o convidaríamos para nenhum
lugar que não esteja devidamente preparado para tal. Ela lhe trará notícias
minhas e será a intermediária entre nós”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Em seguida, ¸amsunnahår se levantou, embora sem forças. Caminhei diante
dela até a porta da casa e retornei após ter observado a sua beleza, ouvido as suas
palavras e presenciado as suas ações, certificando-me de coisas que me
maravilharam e perturbaram. Logo me levantei, troquei as roupas, saí de casa, e
fui para a casa do jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, cujos criados me
recepcionaram e colocaram diante dele, a quem encontrei prostrado. Quando se
deu conta de minha presença, disse: “Seja muito bem-vindo! Você se atrasou e
aumentou ainda mais as minhas preocupações”, e continuou: “Desde que você
saiu não preguei o olho. Ontem, a serva veio visitar-me com uma mensagem
selada” – e me relatou o que sucedeu e o que escreveu – “e agora estou perplexo
com o que me acontece, ó fulano; minha paciência se esgotou e não encontro em
mim forças nem bons alvitres que me conduzam ao alívio. Aquele homem era
uma grande companhia e poderia me ajudar a atingir meu objetivo por causa da
afabilidade e do conhecimento que ela tinha com ele”. Então eu ri e ele
perguntou: “Você está rindo de mim depois de eu lhe ter confiado minha
paciência e desgraça?”. E recitou o seguinte:

“Ele se riu muito de meu pranto quando me viu;
se experimentasse o mesmo que eu também choraria;
não tem piedade dos sofrimentos de um desgraçado.
Quantos jovens como ele padeceram tamanha desgraça?”.

Ao ouvir a sua poesia, tomei a iniciativa de indagá-lo sobre o que se passara com
ele desde que eu o deixara. Quando terminou de contar, chorou amargamente e
disse: “Em qualquer dos casos eu estarei liquidado e farei companhia aos que já
se aniquilaram! Quem dera eu soubesse que Deus vai aproximar o fim antes
distante. Foi-me subtraída a paciência, perdi a recompensa e extraviei a coragem.
Não fosse você e eu teria morrido de tristeza e derretido de sentimento e
aniquilação. Você será meu auxiliar nesse assunto até o momento em que Deus, a
ele o louvor e a gratidão, decidir o que será, pois a ele pertencem a satisfação dos
desejos e a concessão das recompensas. Eis-me aqui, prostrado diante de você
feito um cativo; não me oporei a nenhum desígnio seu nem lhe desobedecerei
alvitre algum”. Então eu lhe disse: “Meu senhor, esse fogo não será apagado
senão pela reunião com a amada, mas em outro lugar que não aquele onde há
perigo, aniquilação e dano. E eu tenho um lugar que ela já examinou, escolheu e
preferiu; o propósito é que se reúnam, façam suas queixas recíprocas, conversem
e reafirmem mutuamente os compromissos entre si, sem fazer conta do lugar e
de seu espaço”. Ele respondeu: “Faça a respeito disso o que lhe parecer melhor”.
O joalheiro permaneceu com o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår naquela
noite, fazendo-lhe companhia e zelando por ele até que amanheceu.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

190ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei, que o joalheiro disse:
Passei aquela noite na casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Quando
amanheceu, fui para a minha casa e, antes que eu me deitasse, a serva chegou e
lhe relatei o que ocorrera entre mim e ele. Então ela disse: “Apronte este lugar
aqui, cuja construção é mais bela”. Respondi: “Aquele outro lugar é mais
protegido”. Ela disse: “Seu parecer é correto. Vou agora informar minha patroa
do que você me relatou e expor-lhe o que você me explicou sobre o
comparecimento dela aqui”. Saiu, retornou e disse: “Vá até o lugar do qual falou
e apronte-o da maneira adequada”, e puxou um saco, que entregou a mim
dizendo: “Isso é para ajudar na comida e na bebida”, mas eu jurei que não
utilizaria aquele dinheiro, e ela guardou o saco e saiu. Fui para a minha outra
casa com o peito apertado por causa da atitude da jovem, e não deixei de
providenciar nenhum utensílio, nem amigo de quem não emprestasse joias,
reunindo então todo o ouro, a prata, os tapetes e as cortinas que seriam
necessários; comprei e preparei tudo de que eles necessitariam. A serva chegou e
gostou do que viu. Eu lhe disse: “Vá até Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår agora e
traga-o em sigilo”. Ela saiu e retornou trazendo-o vestido em roupas belíssimas,
encantos destacados e qualidades delicadas. Dei-lhe acolhida gentil e respeitosa,
fazendo-o sentar-se numa almofada, colocando diante dele toda espécie de
utensílio espantoso e pondo-me a conversar com ele. A serva saiu e regressou
depois da prece vespertina trazendo somente a jovem ¸amsunnahår e mais duas
pequenas servas. Quando ela o viu, e ele a ela, cada um dos dois foi vencido pela
emoção, a tal ponto que não puderam alcançar-se. Vi uma cena que me
aterrorizou e fui reanimá-lo de um lado, enquanto a serva a reanimava de outro,
até que ele acordou, e depois ela, e os dois foram recobrando as forças. Em
seguida, conversaram por alguns momentos com a língua débil; eu lhes trouxe
bebida, e ambos beberam; depois trouxe comida, e ambos comeram, pondo-se
então a me agradecer. Perguntei: “Gostariam de beber mais?”, ao que
responderam afirmativamente. Transferi-os pois para um outro aposento, no qual
se instalaram e se sentiram mais confortáveis, tranquilizando-se e aquietando as
preocupações. Espantados com o que eu fazia por eles, consideraram-no muito
belo e começaram a beber. A jovem ¸amsunnahår perguntou: “Você tem alaúde
ou algum instrumento musical?”. Respondi: “Sim”, e lhe entreguei um alaúde,
que ela pegou, afinou e cantou com arte refinada.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse: “Como é
agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

191ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro disse:
¸amsunnahår pegou o alaúde, afinou-o e cantou com arte refinada, pondo-se a
recitar a seguinte poesia:

“Ó mensageiro, deixa de lado
os pudores se de fato o fores.
Não digas o que ele não tiver dito
e satisfaz com a verdade esta sede.
Se ele tiver respondido reviveremos
mas, caso contrário, bela paciência.
Pela vida de meu pai, como é belo!
E que seus desígnios a tudo sobrepujem”.[37]

E disse também a seguinte poesia:

“Fiquei tão insone que pareço ter-me pela insônia apaixonado,
e tanto me derreti que a debilidade parece ter sido para mim
[serva.
Minhas lágrimas me rolaram ardentes pelas faces e as
[queimaram.
Acaso já se viu alguém que, afogado n’água, ardesse em
[chamas?”.[38]

E ouvi algo que me feriu os ouvidos como nunca dantes acontecera. Porém,
antes que nos déssemos conta, a casa como que desmoronava sobre nós tantas
eram as vozes e os gritos terrificantes que a invadiram. Um pequeno criado meu,
que eu posicionara diante da porta, entrou e disse: “Nossa porta foi quebrada e
não sabemos quem está batendo”. Enquanto ele falava, uma serva começou a
gritar sobre o telhado. Repentinamente, avançaram sobre nós dez indivíduos de
rosto velado portando alfanjes e armados de espadas, logo seguidos de outros em
igual quantidade. Ao vê-los fugi pela porta em disparada e me refugiei na casa
de um vizinho. Foi então que, ouvindo bulha e vozes na casa, acreditei que o
chefe de polícia os surpreendera. Permaneci escondido até o meio da noite.
[Continuou ¸ahråzåd:] Assim, o joalheiro não conseguiu sair de onde estava.
O dono da casa em que ele se refugiara desceu para sair e, vendo escondida num
canto do saguão uma pessoa que ele não reconheceu, ficou com medo, entrou de
novo em casa, retornou com uma espada desembainhada e perguntou: “Quem é
você?”. O joalheiro respondeu: “Sou fulano, seu conhecido!”. O homem largou a
espada e disse: “Minhas condolências pelo que lhe aconteceu. Possa Deus, com
sua generosidade, restituir-lhe o que roubaram”. O joalheiro disse: “Meu amo,
diga-me quem foram esses que invadiram a minha casa”. O homem respondeu:
“Foram os mesmos assaltantes que levaram o dinheiro de fulano e mataram
sicrano. Eles o viram ontem transportando muitos utensílios opulentos e valiosos
para a casa e então tramaram contra você”. Em seguida, o joalheiro caminhou
para casa acompanhado pelo vizinho, e eis que a encontrou inteiramente
depredada,[39] esvaziada de tudo quanto continha; suas janelas haviam sido
arrancadas e suas portas, quebradas. Aquela situação deixou-o estupefato,
produzindo um baque em seu coração e mergulhando-o em reflexões sobre o que
lhe sucedera, o ponto a que chegara e o que fizera a si mesmo. Pôs-se a pensar
em que desculpa daria aos donos do ouro e da prata emprestados, e na maneira
de dizê-la. O joalheiro pensou também em ¸amsunnahår e Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår, e teve medo de que o califa soubesse a respeito deles por meio de algum
criado, caso em que perderia a vida e seria condenado à morte. Voltando-se então
para o vizinho, indagou: “O que você sugere que eu faça, meu irmão?”.
Respondeu: “Paciência, boas ações e resignação em Deus altíssimo, pois aqueles
homens já mataram gente na casa do próprio chefe de polícia, bem como um
grupo de soldados da guarda pessoal do califa. Foram espalhados espiões e
vigias pelas estradas, mas ninguém ainda os encontrou. Eles são muitos e não se
consegue enfrentá-los”. Então o joalheiro suplicou pelo socorro de Deus e
retornou para a sua outra casa.[40]
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

192ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro, após ter suplicado o
socorro de Deus, retornou para casa dizendo: “Era isso que o perfumista Abœ
Al¬asan ¢Al∑ Bin ˇåhir temia, e foi nisso que eu caí”. As pessoas acudiram de
todos os lados e o cercaram, silenciosas algumas, consoladoras outras e
reclamantes outras mais, e ele se pôs a agradecer a um, a repetir a história a
outro e a defender-se de outro mais durante boa parte do dia, sem ingerir nenhum
alimento. Estava em tal situação quando um de seus criados entrou em casa e
disse: “Amo, responda àquele homem que o procura ali no portão de casa. Não o
conhecemos e eu nunca o tinha visto antes desta ocasião”. O homem saudou o
joalheiro e disse: “Tenho algo a lhe dizer”. O joalheiro respondeu: “Entre”. O
homem disse: “Não, é melhor que você venha comigo para a sua outra casa”. O
joalheiro perguntou: “E por acaso ainda me resta outra casa?”. O homem
respondeu: “Estou a par do que lhe ocorreu e trago alívio para o problema”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Acompanhei-o até onde o homem desejava; caminhamos ambos até chegar à
minha outra casa. Ao vê-la, ele disse: “Está sem porta. Não é possível ficar aqui.
Vamos embora”, e começou a ir de um ponto a outro até que anoiteceu sem que
chegássemos a lugar algum.
Atarantado, o joalheiro nada questionou. Continuaram andando até chegar a
um espaço às margens do rio Tigre. O homem disse: “Siga-me”, e avançou, com
o joalheiro, um pouco mais animado, caminhando atrás de si, até chegar a um
barco, diante do qual pararam e embarcaram. O barqueiro remou até a margem
oposta, quando então desceram; o homem conduziu o joalheiro pela mão e
entrou com ele numa longa estrada pela qual nunca havia passado, pois ele não
conhecia nada naquela região de Bagdá. O homem parou à porta de uma casa e a
abriu; entraram e ele a trancou com um grande cadeado de ferro. Em seguida,
apresentou o joalheiro a dez rapazes que pareciam um único homem; ele os
cumprimentou, eles retribuíram e lhe determinaram que se sentasse; ele assim o
fez, morto de cansaço e dominado pelo medo. Trouxeram-lhe água fresca e ele
lavou o rosto e as mãos; depois, ofereceram-lhe bebida, e ele bebeu, e comida,
da qual comeram todos.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Se eu estivesse correndo algum perigo, eles não teriam feito a refeição junto
comigo. Após lavarmos as mãos, cada um deles retomou seu lugar e eu me
sentei diante deles.
Eles lhe perguntaram: “Você nos conhece?”. Ele respondeu: “Não, nem este
lugar e tampouco o homem que me trouxe aqui”. Eles disseram: “Conte-nos sua
história e não tente nos enganar”. O joalheiro lhes disse: “Minha história é
assombrosa. Vocês têm alguma notícia a respeito?”. Responderam: “Sim, fomos
nós que assaltamos ontem a sua casa e sequestramos o hóspede e a cantora que
lá estavam”. O joalheiro disse: “Que Deus estenda o véu de sua proteção sobre
vocês! Onde estão o hóspede e a cantora?”. Os homens apontaram para dois
cômodos diante deles e disseram: “Cada um deles está num cômodo. Eles
alegaram que ninguém além de você pode revelar a história deles. Depois disso,
não nos reunimos com eles nem os indagamos. As belas roupas que estão usando
nos pareceram fora do comum para pessoas de tal condição, e foi isso que nos
impediu de matá-los. Conte-nos a verdade sobre eles e esteja seguro quanto à sua
vida e às deles”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

193ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro, ao ouvir aquelas palavras,
quase morreu de medo. Mais tarde ele contaria:
Eu lhes disse: “Caso o brio seja perdido, ele não se encontrará senão entre
vocês; caso o segredo seja revelado, temer-se-á a calamidade que isso provocará,
a qual não será ocultada senão pelo peito de vocês; caso alguma questão se torne
dificultosa, não será contornada senão pela força e pela capacidade de vocês”. E
fiquei exagerando tais sentidos.
O joalheiro considerou que tomar a iniciativa de contar a história verdadeira
seria mais adequado e proveitoso do que ocultá-la, pois, naquele momento,
quanto mais o tempo passasse, mais a história transpareceria. Assim, ele lhes
contou a história do começo ao fim. Eles perguntaram: “Então esse é Nœrudd∑n
¢Al∑ Bin Bakkår e essa é ¸amsunnahår?”. Ele respondeu: “Sim, eu nada omiti,
nem ocultei segredo algum”. Muito incomodados, eles se lamentaram e foram
até os jovens, a quem pediram desculpas.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Eles me disseram: “Quanto ao que se roubou de sua casa, uma parte foi
perdida, mas eis aqui o que restou”, e me devolveram a maior parte do ouro e da
prata dizendo: “É nossa obrigação restituir essas coisas à sua outra casa”.
Dividiram-se em dois grupos, um comigo e outro com o casal, e saímos daquela
casa. Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e ¸amsunnahår haviam a custo se safado da
morte, e só o que os sustinha em pé era o medo e o desejo de escapar dali.
Dirigi-me a eles e perguntei: “O que fez a serva e onde estão as duas
pequenas?”. ¸amsunnahår respondeu: “Não tenho nenhuma notícia delas”.
Aqueles homens nos conduziram afinal até o rio, onde nos fizeram embarcar no
mesmo barco em que eu viera. Remaram, nos depositaram na outra margem e
desembarcaram. Mal tínhamos posto os pés em terra, fomos cercados por
homens a cavalo. Os ladrões fugiram com a rapidez de águias até o barco e
dispararam em fuga. Ficamos nós três na beira do rio sem conseguir nos mover.
Os homens da cavalaria perguntaram: “Quem são vocês?”. Ficamos em dúvida
sobre o que responder, e então eu disse: “Aqueles eram um bando de ladrões e
nós somos jovens que eles ontem sequestraram. Eles nos retiveram até agora, e
não se apiedaram de nós senão depois que os envolvemos com suaves palavras;
foi por isso que eles se comprometeram a nos soltar e devolver a liberdade. E
então ocorreu o que vocês viram”. Após olhar detidamente para mim, para a
jovem e para Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, disseram: “Você não falou a
verdade. Quem são vocês? Como são conhecidos? Em que região moram?”. Não
soubemos o que responder, e ¸amsunnahår se isolou com o chefe dos cavaleiros e
conversou com ele, que imediatamente apeou-se de seu animal e a fez montar,
pondo-se a conduzi-lo pelas rédeas; fez o mesmo com Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår e também comigo. Levou-me a um ponto e gritou por alguém, que
apareceu empurrando dois barcos; entramos num deles, nós e o casal, enquanto
seus companheiros embarcavam no outro; em seguida, os navegantes remaram
até chegarmos ao palácio do califa; estávamos à beira da morte. O chefe fez um
gesto para os condutores do barco[41] no qual eu me encontrava e eles remaram
e cortaram as águas até chegar ao local que conduzia à nossa casa.
Desembarcamos acompanhados por dois soldados encarregados de nossa
segurança. Fomos à casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Os dois homens se
despediram e nós entramos, deixando-nos enfim desabar na casa sem nos mexer
e sequer saber onde estávamos. Quando a manhã se abateu sobre nós, não
acordamos, tamanha era nossa exaustão. No final do dia fiz leves movimentos e
eis que notei um choro de homens e mulheres à cabeceira de Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin Bakkår, que não se mexia. Quando perceberam que eu despertara, fizeram-
me sentar e disseram: “Conte-nos o que sucedeu a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår,
pois você é a desgraça e o mal desse jovem”. Então eu disse: “Ó gente...”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

194ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro disse:
Indagado sobre Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, respondi: “Gente, não é nada
disso! É impossível divulgar a história dele na presença de tantas testemunhas!”.
Implorei aos presentes e ameacei armar um escândalo. De repente, o jovem se
mexeu na cama e eles ficaram contentes. Alguns se retiraram e outros
permaneceram. Eu me encontrava impedido de retornar à minha casa ou de fazer
qualquer outra coisa. Aspergiram o rapaz com água de rosas e essência de
almíscar; ele acordou e começaram a lhe fazer perguntas, mas era tamanha a sua
fraqueza que ele não pôde responder, limitando-se a fazer-lhes sinais para que
me soltassem. Mal pude acreditar quando saí dali; cheguei à minha casa
carregado por dois homens. Quando me viram naquele estado, meus familiares
puseram a se estapear nos rostos e a gritar, mas eu lhes fiz um gesto para que se
calassem; eles obedeceram e eu dispensei os dois homens.
Assim, o joalheiro ficou prostrado pelo resto da noite. Mais tarde, ele contaria:
Quando acordei, meus familiares, filhos e amigos estavam à minha cabeceira
e me perguntaram: “O que o atingiu?”. Mandei trazer água e lavei o rosto e as
mãos; trouxeram-me bebida e então bebi; troquei as roupas, agradeci a quem
viera me visitar e disse: “Eu me excedi na bebida e acabou me acontecendo o
que vocês viram”. Então o grupo foi-se embora; desculpei-me com meus
familiares e me comprometi a não fazê-los mais passar por aquilo. Eles me
revelaram que algumas das coisas roubadas lhes haviam sido restituídas por um
homem que as lançara no saguão e fugira a toda a pressa. Tranquilizei-me e
permaneci dois dias naquele local sem conseguir me levantar. Assim que me
revigorei, fui ao banho, com o coração em chamas por causa do jovem
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e do que sucedera à jovem ¸amsunnahår. Naqueles
dias não ousei aproximar-me de sua casa nem ir a lugar algum por temor de que
isso pudesse prejudicá-lo. Renunciei, por Deus, a retomar aquele caminho;
distribuí tantas esmolas quantas me foi possível e conformei-me com o resto das
coisas que perdera. Eu disse: “Vou para o outro lado da cidade ver as pessoas e
espairecer. O destino já me cobrou um alto preço para instruir-me”, e saí
andando e me autocensurando. Cheguei ao mercado de tecidos, onde me sentei
junto a um amigo por algum tempo. Quando resolvi partir, vi uma mulher parada
diante de mim; examinei-a e eis que era a serva de ¸amsunnahår! Então o mundo
escureceu diante de meus olhos. Caminhei tropegamente enquanto ela me seguia
e fui invadido por um terrível medo. Cada vez que eu resolvia lhe dirigir a
palavra, o terror me assaltava. Ela dizia: “Pare, meu senhor, e ouça o que lhe
direi”. Até que finalmente cheguei a uma mesquita num local ermo e entrei. Ela
entrou atrás de mim, condoeu-se por minha desdita e perguntou sobre o meu
estado. Relatei-lhe o que sucedera a mim e a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e
pedi: “Conte-me o que sucedeu a você, em especial, e o que aconteceu à sua
patroa após a nossa partida”.
E ela disse:
Quanto à minha história, ao ver os assaltantes invadindo a sua casa, temi que
fossem soldados e me levassem a mim e à minha patroa, e nesse caso eu
rapidamente estaria liquidada. Por isso, fugi pelos telhados junto com as duas
pequenas servas; pulamos de telhado em telhado até que topamos com algumas
pessoas que foram tomadas de piedade por nós e nos acolheram muito bem.
Chegamos ao palácio pela manhã no pior estado, mas ocultamos o que
acontecera. Eu estava como que fritando em fogo. Ao anoitecer, abri a porta que
dá para o rio, chamei o barqueiro que fica por ali e lhe disse: “Ai de ti!
Esquadrinhe o rio por todos os lados, quiçá você localize um barco com uma
mulher a bordo”. Quando a noite já ia pela metade, um barco veio na direção da
porta. Havia dois homens a bordo, um remando e outro em pé; uma mulher
estava deitada num canto. Colei-me à porta. A mulher desembarcou e eis que era
a minha patroa. Fiquei maravilhada de alegria por ela estar ilesa.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar, e que será ainda mais assombroso e insólito”.

195ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a serva disse ao joalheiro:
Quando vi a minha patroa, fiquei contente por ela estar bem e fui ficar à sua
disposição. Ela me ordenou que pagasse mil dinares àquele homem. Paguei –
com o dinheiro do saco que eu lhe trouxera e você recusara –, agradeci, ele se
retirou e tranquei a porta. Carreguei-a auxiliada por duas outras servas e a
deitamos em sua cama. Seu sopro vital estava a ponto de abandoná-la.
¸amsunnahår permaneceu naquele estado pelo resto da noite e no dia seguinte.
Enquanto isso, eu impedia as demais servas de se aproximarem dela. Depois ela
acordou parecendo que havia saído de um túmulo. Aspergi água de rosas e
almíscar sobre ela, troquei-lhe as roupas, lavei seus pés e mãos e dei-lhe uma
bebida. Agradei-a até conseguir fazê-la comer algo, embora ela tentasse recusar.
Quando se prenunciava que ela ia melhorar, pus-me a censurá-la e lhe disse:
“Você já viu o suficiente e esteve a ponto de levar a sua vida à aniquilação”. Ela
respondeu: “A morte me seria mais leve que as coisas que me ocorreram. Não
pude acreditar que escaparia nem duvidei de que morreria. Quando os ladrões
me raptaram da casa, indagaram a minha história e lhes respondi: ‘Sou cantora’;
indagaram meu amado sobre si e ele respondeu: ‘Sou um homem do vulgo’. Eles
nos conduziram ao seu esconderijo e só o que nos sustinha em pé era o temor, o
medo. Quando enfim se acomodaram em seus lugares, examinaram-me, viram
em mim tantas joias que estranharam a condição que eu alegara ter e disseram:
‘Uma cantora não usa tantas joias; conte-nos a verdade’. Contive-me, e então
perguntaram a ele: ‘E você, quem é? Seus trajes não correspondem aos de um
homem do vulgo’. Ele e eu nos pusemos a tentar esconder nossa condição, e
então os ladrões perguntaram: ‘Quem é o dono do lugar onde vocês estavam?’.
Respondemos: ‘Fulano filho de fulano’. Um deles disse: ‘Eu o conheço e sei
onde mora. Eu logo o trarei aqui se o destino me ajudar’. Eles combinaram me
colocar num cômodo e meu amado em outro. O chefe do bando nos disse:
‘Descansem até que sua história seja investigada. Nada temam, pois sua vida e
seus bens estão em segurança’. O membro do grupo saiu e trouxe o fulano que
indicamos, isto é, o joalheiro, que revelou a nossa condição. Eles se
desculparam, levantaram-se imediatamente e trouxeram um barco no qual nos
embarcaram, atravessando conosco até a outra margem. Fomos surpreendidos
pelo chefe da patrulha, e então eu lhe fiz um sinal e disse: ‘Sou fulana,
embriaguei-me e fui para a casa de algumas mulheres conhecidas, mas veio esse
bando e me raptou; encontrei com eles esses dois homens; fomos os três
conduzidos pelo bando até aqui e agora eu estou disposta a recompensar você’.
Ele se apeou, ajudou-me a montar, procedendo do mesmo modo com os outros
dois, e nos fez chegar, como você viu. Mas não sei agora o que é de meu amado
e do joalheiro, e meu fígado está em chamas por causa deles, sobretudo o
companheiro de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, cujos bens foram subtraídos.
Pegue algum dinheiro e vá até ele, cumprimente-o e peça-lhe notícias de
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår”. Eu a censurei e atemorizei dizendo: “Tema a
Deus em sua alma, rompa com essa relação e contenha-se com o manto da
paciência”. Mas ela gritou comigo e se encolerizou com minhas palavras. Saí
então de sua frente e vim procurar você aqui na sua casa, pois não ousei dirigir-
me à casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Estou à sua disposição. Por favor,
tenha a bondade de receber o dinheiro, e para isso você está bem justificado, pois
é imperioso que você compense as pessoas que perderam os bens”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Dirigi-me com a serva até outro local e ela me disse: “Espere aqui até eu
retornar”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à sua irmã
¸ahråzåd: “Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu:
“Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite”.

196ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro disse:
A serva me disse: “Espere aqui até eu retornar”, e logo retornou carregando
tudo quanto era capaz de transportar; entregou a mim e disse: “Vá com a
proteção de Deus. Onde nos encontraremos?”. Respondi: “Vá até a minha casa;
enquanto isso, não pouparei os mais penosos esforços para encontrá-lo e agirei
para colocá-lo em contato com você; este dinheiro irá facilitar aquilo que eu
considerava difícil”. Ela disse: “Meu medo é que você não consiga chegar até ele
e contatá-lo, e então eu não saberei onde nos encontrarmos”. Respondi: “Vá até
a minha outra casa que agora mesmo providenciarei novas portas e a deixarei
segura; poderemos nos encontrar ali”. Ela se despediu e eu saí carregando o
dinheiro; retornei para casa e verifiquei que a quantia era de dois mil dinares.
Muito contente com aquilo, entreguei uma parte aos meus familiares e com outra
satisfiz aos credores; acompanhado de meus criados, fui para a outra casa e
mandei chamar artesãos; reconstruí as janelas e as portas de um modo melhor do
que antes, coloquei duas servas para zelar pela segurança e duas jovenzinhas
para servir; saí com o coração revigorado, esquecido de tudo quanto me
ocorrera, e rumei para a casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Mal cheguei e
seus criados vieram me recepcionar; um deles, alvissareiro, beijou a minha mão
e me conduziu até Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, que estava na cama sem
conseguir falar. Sentei-me ao seu lado e lhe tomei a mão; ele abriu os olhos e
disse: “Muito bem-vindo” – e se ergueu para sentar, mas não conseguiu senão a
muito custo – “graças a Deus que o vejo”. Esforcei-me por fazê-lo levantar-se,
caminhar alguns passos, trocar as roupas e beber algo – tudo isso para me
agradar. Conversei sobre as coisas entre nós e, quando a sua inquietação passou,
eu lhe disse: “Sei o que você deseja. Alvíssaras, não se renovou senão o que irá
alegrá-lo e acalmar o seu coração”. Então ele fez um gesto para os criados, que
se dispersaram, e perguntou: “Você viu o que se abateu sobre nós?”. Pediu-me
desculpas e me fez indagações; relatei-lhe tudo o que ocorrera depois de nossa
separação e também falei de ¸amsunnahår. Ele agradeceu a Deus altíssimo,
louvou-o e disse: “Por Deus, como ela é excelente, e como é perfeito o seu
brio!”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

197ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, que o joalheiro disse:
Conversei com Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e lhe falei sobre o dinheiro que a
jovem ¸amsunnahår me providenciara. Ao ouvir as minhas palavras, o jovem
disse: “Por Deus, como ela é excelente, e como é perfeito o seu brio!”, e
continuou: “Eu irei compensá-lo por todos os utensílios e demais objetos
roubados”. E, dirigindo-se ao seu despenseiro, determinou que me trouxesse os
móveis, as cortinas, a prata, o ouro e a maior parte das coisas que me haviam
sido roubadas. Encabulado, agradeci-lhe o desvelo para comigo e disse: “Minha
preocupação em agradar a vocês dois é maior do que meu apego às coisas
roubadas. Na verdade, eu me lançaria à morte por vocês e pela paixão mútua que
nutrem”. Permaneci junto a ele pelo resto do dia e noite adentro. Seus
movimentos eram débeis, estava fragilizado, em contínuas lamúrias e lágrimas
abundantes. Quando a manhã se anunciou, ele me disse: “Fulano, saiba que
todas as coisas têm um termo; o termo da paixão é a morte ou o contato
contínuo. Estou mais próximo da morte, que para mim será mais adequada e
repousante do que isto. Quem dera eu tivesse me resignado e morrido ou então
conseguido consolo, descansando e dando descanso aos outros. Depois do que já
havia ocorrido, aquele foi o segundo encontro, um turbilhão durante o qual
sucedeu aquilo que você já sabe. Como poderá a alma suportar uma terceira vez?
Isso não terá justificativa perante ninguém depois daquele alerta, pois, não fosse
a generosidade de Deus poderoso e magnífico, estaríamos mergulhados em
grande escândalo. Estou perplexo e não sei que providências tomar para salvar-
me. Não fosse o meu temor a Deus, eu daria cabo de minha vida; sei que ela e eu
vamos morrer, mas somente num prazo predeterminado”. Chorou copiosamente
e recitou:

“Acaso pode o pesaroso algo mais que o choro?
É somente pelo anseio que assim me exponho.
Deito-me e parece que a noite diz às estrelas:
‘Vamos, fiquem aqui e não deixem amanhecer’”.

Então eu lhe disse: “Arme-se de paciência, meu senhor, seja firme e faça a sua
alma conformar-se com a tristeza e com a alegria. Paciência”. Ele me encarou e
pôs-se a recitar os seguintes versos:

“A torrente das lágrimas se habituou ao lacrimejar
ou é a angústia que o impede de ter bela paciência?
Aquele que reunia os segredos também os guardava,
mas seus olhos espalharam aquilo que ele ajuntava.
Sempre que tencionava conter as lágrimas, opunha-se
vigorosamente a isso um sábio em questões de paixão”.

Eu lhe disse: “Preciso voltar para casa, pois é possível que a serva venha trazer
alguma notícia”. Ele respondeu: “Vá em boa companhia[42] e apresse o retorno,
por favor, pois você está vendo o meu estado”. Fui para a minha casa. Mal me
acomodara e a serva de ¸amsunnahår chegou perturbada, chorosa, preocupada,
aterrorizada, medrosa e espantada. Perguntei-lhe: “Qual é a história?”. Ela
respondeu: “O destino nos surpreendeu e se abateu sobre nós aquilo que já
prevíamos. Ontem eu saí daqui e cheguei justamente quando minha patroa
ordenava que fossem surradas as duas pequenas servas que estavam conosco.
Uma delas escapuliu de suas mãos, topou com a porta aberta e saiu. Foi
encontrada por um dos criados encarregados de vigiar o aposento, e que também
trabalha como espião para outra concubina do califa. Aproveitando a
oportunidade, ele pegou a menina, escondeu-a e agradou-a. Depois, interrogou-a
e ela lhe fez menção de algumas coisas que nos sucederam na primeira e na
segunda noite. Ele imediatamente a conduziu até o comandante dos crentes, que
a fez confessar, e ela contou tudo. Ontem, ele ordenou que minha patroa fosse
transferida para o palácio califal, e encarregou vinte criados de vigiá-la. Não foi
encontrar-se com ela nem lhe informou o motivo da transferência. Lançando
mão de várias intermediações, consegui sair, e ‘uma coisa acontece depois da
outra’.[43] Não sei como agir nem como elaborar uma artimanha para que nós
duas nos safemos. Ela não tem ninguém de maior confiança do que eu. Você
sabe que sou a guardiã de seus segredos”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

198ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a serva disse ao joalheiro: “Vá à casa
de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e avise-o para que esteja preparado para o pior
até que ajeitemos as coisas;x[44] caso as coisas não deem certo, ele ao menos
terá salvo a vida e os bens”.
Mais tarde o joalheiro contaria:
Foi então que a enormidade do assunto me assaltou, a tal ponto que não me
restaram forças para levantar. Mas logo que a serva partiu me pus de pé, retornei
rapidamente para a casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e lhe disse: “Enrole-se
no manto da paciência, adorne-se de firmeza, afaste a preocupação, tome o
caminho da coragem, deixe seus sentidos em alerta e largue mão dessa
prostração e dessa moleza, pois aconteceu algo que acarretará a perda de sua
vida e de seus bens”. Então ele se alterou e, bastante incomodado, disse: “Meu
irmão, você está nos matando! Diga-me o que aconteceu em detalhes e com
clareza”. Eu disse: “As novidades são tal e tal; você está irremediavelmente
liquidado”, e então ele ficou aparvalhado por algum tempo, e parecia que seu
sopro vital se esvairia. Em seguida ele se recuperou e disse: “O que fazer?”.
Respondi: “Das suas coisas, recolha aquilo cuja perda você teme, e dos seus
criados, aqueles em quem você confia; agirei da mesma maneira. Rumemos para
a cidade de Alanbår[45] antes que o dia termine”. Então ele se levantou
perturbado, ora andando, ora tropeçando. Arrumou o que lhe foi possível
arrumar, desculpou-se com seus familiares, fez-lhes as recomendações que
considerava necessárias e tomamos o rumo de Alanbår, mantendo-nos em
marcha pelo resto do dia e pela noite; ao final da noite, depusemos os fardos,
amarramos as montarias e dormimos tão profundamente que não percebemos
quando alguns homens roubaram nossas bagagens, montarias e todo o dinheiro
que transportávamos em nossos cinturões; deixaram-nos sem roupas e mataram
nossos criados, largando-nos naquele lugar na pior situação.
[Prosseguiu ¸ahråzåd:] Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår perguntou ao seu
companheiro joalheiro: “O que é preferível, isto ou a morte?”. O joalheiro
respondeu: “E o que podemos fazer? Foi Deus quem determinou isso, pois é esta
a sua vontade”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Caminhamos então até o amanhecer. Tomamos a direção de uma mesquita e
nela entramos, forasteiros, pobres e desconhecidos. Acomodamo-nos à sua
sombra durante o dia inteiro, e não ouvimos uma só voz nem vimos uma só
pessoa; ninguém entrou, fêmea ou macho. Ali permanecemos pelo restante da
noite. Quando amanheceu, eis que um homem entrou, fez suas preces, voltou-se
para nós e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

199ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o joalheiro disse:
Eis que entrou um homem, fez suas preces, voltou-se para nós e disse: “Que
Deus os preserve, minha gente! Vocês são forasteiros?”. Respondemos: “Sim.
Fomos atacados por bandoleiros e não conhecemos ninguém que nos dê abrigo”.
Ele perguntou: “Vocês gostariam de vir comigo para a minha casa?”. Eu disse a
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår: “Vamos com ele, pois eu temo que alguém entre
na mesquita e nos reconheça. Ademais, somos forasteiros e não dispomos de
nenhum refúgio”. O jovem respondeu: “Faça como quiser”. O homem insistiu:
“Então, que me dizem?”. Respondemos: “Ouvimos e obedecemos”. Então ele
retirou algumas de suas roupas, cobriu-nos com elas e disse: “Vamos enquanto
ainda está meio escuro”. Saímos com ele e, quando chegamos à sua casa, ele
bateu na porta e um pequeno criado veio abri-la. Ele entrou e entramos atrás;
ordenou que se providenciasse uma trouxa com roupas e lenços. Vestiu-nos, a
mim e a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår, e pusemos turbantes, após o que nos
acomodamos, e de repente uma serva apareceu trazendo comida. Disseram-nos:
“Comam com a bênção de Deus altíssimo”. Comemos um pouco e a mesa foi
retirada. Permanecemos ali até o anoitecer, quando então Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
Bakkår começou a gemer, a arquejar profundamente, a demonstrar melancolia e
me disse: “Saiba, fulano, que estou irremediavelmente aniquilado. Eu lhe faço
uma recomendação: assim que eu morrer, procure a minha mãe, recomende-lhe
que venha até aqui, me lave, me prepare para o enterro e tenha paciência com a
minha separação”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

200ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
lhe disse: “Recomende à minha mãe que tenha paciência”.
Mais tarde, o joalheiro contaria:
Em seguida ele ficou desmaiado por algum tempo. Quando acordou, a serva
do homem cantava e recitava os seguintes versos:

“A morte apressou nossa separação
depois do amor, amizade e harmonia.
Por que separação depois da união?
Oxalá não atingisse nenhum apaixonado.
Uma hora de estertor, depois o decreto
e a separação dos amantes no coração fica.
Promova Deus a união de todos os amantes
e comece por mim, pois estou apaixonado”.

Ao ouvir aquilo, Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår estrebuchou e morreu.
Recomendei-o ao dono da casa e o amortalhei. Passados dois dias, acompanhei
um grupo que ia a Bagdá e entrei em minha casa; depois saí e fui até a casa de
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår. Ao me verem, seus criados me cercaram e
saudaram. Pedi permissão para falar com sua mãe; ela permitiu, entrei e a
cumprimentei. Quando me senti mais confortável no lugar, disse-lhe: “Escute –
que Deus lhe dê êxito e a trate bem –; Deus altíssimo provê os homens da
maneira que bem entende e não há escapatória de seus decretos e decisões”.
Então ela chorou copiosamente e perguntou: “Por Deus! Meu filho morreu?”.
Meu choro e altos soluços impediram-me de responder. Quando a tristeza já se
apoderara também de si, a mulher caiu de bruços por algum tempo, e então as
servas acorreram envergonhadas e a ajeitaram. Ao despertar, a mulher me
perguntou: “O que aconteceu com ele?”. Respondi: “Foi isso e aquilo. Isso é
muito duro para mim, por Deus! Tínhamos a maior amizade e bem-querer”[46] –
e lhe relatei tudo quanto sucedera com ele. A mulher disse: “Ele já me revelara o
âmago de seu segredo. Fez alguma recomendação?”. Respondi: “Sim”, e contei
qual fora. Então a mulher não parou mais de se lamuriar e chorar junto com as
servas. Saí da casa arrasado, momentaneamente cegado por aquelas desgraças.
Recordei-me de sua juventude, de meu entra-e-sai da sua casa, e chorei. Súbito,
uma mulher agarrou a minha mão; abri os olhos, contemplei-a e eis que era a
serva de ¸amsunnahår, trajando preto e completamente abatida. Meu choro e
meus gemidos aumentaram, e ela também chorou; caminhamos juntos até chegar
à minha casa na qual eles haviam se encontrado e lhe perguntei: “Você já sabe o
que aconteceu a ele?”. Ela respondeu: “Não, por Deus!”. Então eu lhe contei
tudo enquanto ambos chorávamos. Depois eu lhe perguntei: “E o que mais
ocorreu à sua senhora que a levou à morte?”.
Ela respondeu:
O comandante dos crentes a transferiu de lugar, conforme eu já lhe contara,
mas não a informou de nada do que estava ocorrendo. Afinal, o amor e o afeto
que o comandante dos crentes nutria por ela levaram-no a considerar que a
denúncia era absurda. Ele lhe disse: “Como você é a pessoa mais amada para
mim, ¸amsunnahår, e goza de meu apreço, eu afasto o mal de você e a absolvo de
tudo quanto seus inimigos lhe assacam”. E ordenou que lhe dessem um gracioso
aposento e um palácio dourado. Isso instilou nela um grande e grave terror. No
final do dia, ele sentou-se para beber, conforme o hábito, e mandou que viessem
as concubinas. Acomodou-se num dos colchões e fez ¸amsunnahår acomodar-se
ao seu lado, a fim de mostrar-lhes a posição que ela desfrutava diante dele e o
lugar que ocupava em seu coração. Ela estava presente-ausente, sem os sentidos
e sem a capacidade de se mexer. A situação dela piorou, pois suas palavras
traíam apreensão quanto ao que o califa iria fazer. Então uma serva cantou os
seguintes versos:

“Lágrimas que a paixão convocou responderam;
escorrem de mim e se encontram em meu rosto;
os cílios dos olhos se cansam de carregar o seu peso,
mostrando o que escondo e escondendo o que mostro;
como almejar o segredo e esconder a paixão?
Minha paixão por você mostra o que trago no peito.
A morte já me é agradável após perder meus amados.
Quem dera após a morte eu soubesse o que os agrada!”.

Sem conseguir controlar-se, ela chorou e desabou desmaiada. O califa atirou a
taça que tinha na mão e a puxou até si, mas eis que estava morta! Ele gritou, e
com ele as servas. Ordenou que fossem quebrados todos os objetos que havia
diante de si, e tudo foi quebrado. Saindo dali a toda a pressa, o califa determinou
que ela fosse carregada até o seu aposento particular, e ali ela ficou, diante dele,
por toda a noite. Quando amanheceu, ele ordenou que o corpo fosse lavado e
amortalhado, enterrando-a sem nada questionar a seu respeito.
[Prosseguiu ¸ahråzåd:] Então a serva disse ao joalheiro: “Por Deus, eu lhe
peço que você me conte em que dia o corpo de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår
chegará a Bagdá para ser enterrado”. O joalheiro perguntou: “E onde poderei
encontrar você?”. Ela respondeu: “O comandante dos crentes me libertou, bem
como a todas as servas de ¸amsunnahår. Eu vou constantemente ao cemitério
onde ela está enterrada, no lugar tal e tal”.
Mais tarde o joalheiro contaria:
Fui com ela e nos dirigimos àquele cemitério; visitei o seu túmulo e fui
embora. No quarto dia, chegou o funeral de Alanbår. Todas as classes da
população de Bagdá, eu inclusive, saíram para acompanhá-lo. Ele foi recebido
por homens e mulheres. Foi um dia como jamais vi outro em Bagdá. De repente,
aquela serva introduziu-se entre os familiares de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e
superou ao grande e ao pequeno com sua tristeza; repetiu a oração ritual[47] e
enumerou-lhe os méritos com uma voz que dilacerava o fígado e derretia os
corpos. Chegaram enfim ao cemitério onde ele foi enterrado. Nunca deixei de
visitá-lo.
Essa é a história de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e de ¸amsunnahår.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. Sua irmã lhe disse: “Como é
agradável essa história”, e ela respondeu: “Na próxima noite irei contar-lhes algo
gracioso, insólito e emocionante para o ouvinte; consiste numa história
espantosa, se assim quiser Deus altíssimo”.
201ª
noite das histórias das mil e uma noites

AN∑SULJAL∑S E NŒRUDD∑N ¢AL∑ BIN ¿ÅQÅN


Na noite seguinte, D∑nårzåd disse à sua irmã ¸ahråzåd: “Por Deus, maninha, se
você não estiver dormindo, conte-nos uma de suas belas historinhas, a fim de
atravessarmos o serão desta noite”. Ela respondeu: “Ouço e obedeço”.
Conta-se, mas Deus sabe mais sobre o que já é ausência, e é mais sapiente no
que se refere ao que se passou, aconteceu e acabou na história dos povos, que
havia na cidade de Basra certo rei que apreciava o pobre e o desvalido; o coxim
de sua montaria era um lugar sagrado para a sua infantaria; seus dedos eram os
mares, seus serviçais eram homens livres e seus criados eram o dia e a noite; sua
vida se tornava agradável para ele quando seus serviçais e soldados usufruíam de
seus bens, conforme disse a seu respeito o poeta:

“É um rei que, mesmo cercado por naus,
enfrenta o inimigo com ira sem prelúdio.
Escreve as linhas com vigor quando ataca;
no dia de montar o corcel, a mão comprime:
a forma das letras é espadeirada, os pingos,
setas atiradas, e a caligrafia, lanças afiadas;
os corcéis são mar de sangue, gigantes vagas,
cuja fonte são as suas cabeças ou narinas;
um mar cujos mastros são alabardas, cujas torres
são seus cálamos e cujos elmos são pérolas ocultas.
Da ponta de seus dedos escorrem três mares,
em cada um dos quais há mil bravos guerreiros.
O tempo jurou que nos daria alguém igual a ele,
mas sua promessa falhou, ó tempo! Reflita, pois!”.[48]

Seu nome era Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑.[49] Ele tinha dois vizires,
um chamado Almu¢∑n Bin Såw∑, e o outro Fa®ludd∑n Bin ¿åqån,[50] que era
um dos homens mais generosos de seu tempo; em tal quesito, naquela época,
ninguém se comparava a ele: conduta excelente, pensamentos agradáveis, os
corações das pessoas eram unânimes em amá-lo, e as mulheres, nas casas,
rogavam para que longa fosse a sua vida, pois ele intercedia pelo bem e
extinguia o mal, conforme disse a seu respeito alguém que assim o descreveu:

“Amigo de conduta impoluta e sublime
com quem o destino é feliz e exultante;
todo ansioso que o procura, esperançoso,
recebe, às suas portas, gentil acolhida”.

Já o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑ era um dos homens mais avarentos, canalhas,
perversos e estúpidos que havia. Nunca falava sobre algo gracioso nem
abandonava qualquer ato vicioso; mais ardiloso que uma raposa e mais
oportunista que um cachorro, conforme disse a seu respeito alguém que assim o
descreveu:

“Filho de torpes e de dois mil renegados,
assaltante, rapina o que vem e o que vai;
em seu corpo não nasce um só pelo
que não tenha arrancado de alguém”.

Os súditos, na mesma medida em que amavam Fa®ludd∑n Bin ¿åqån,
detestavam Almu¢∑n Bin Såw∑. E quis o destino que, um dia, estando sentado
no trono de seu reino e estando os notáveis do governo a prestar-lhe serviços, o
rei Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑ gritasse por seu vizir Fa®ludd∑n Bin
¿åqån e lhe dissesse: “Ó Fa®ludd∑n, eu desejo uma concubina que não exista
neste nosso tempo nenhuma mais bela, nem mais virtuosa, nem mais inteligente.
Que seja perfeita na formosura e formosa na perfeição”. Os notáveis do Estado e
os chefes do conselho disseram: “Ó rei do tempo, uma mulher assim não será
encontrada por menos de dez mil moedas de ouro”. Nesse momento, o sultão
gritou por seu tesoureiro e lhe disse: “Entregue dez mil moedas de ouro a
Fa®ludd∑n Bin ¿åqån”. O tesoureiro, obedecendo à ordem, entregou-lhe a
quantia, e o vizir saiu após receber a determinação sultânica de pesquisar
diariamente no mercado de escravos e recomendar aos negociantes que
providenciassem aquilo que se mencionou, e que não se vendesse nenhuma
escrava de beleza, formosura e preço superior a dez mil dinares senão depois de
ser oferecida ao vizir. Assim, eles não puderam mais fazer tais negócios senão
após consultar o vizir.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.
202ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que todos os negociantes de escravos
passaram a não vender nenhuma escrava sem antes consultar o vizir, ao qual,
porém, nenhuma das mulheres exibidas agradou. Até que, certo dia, um desses
negociantes se dirigiu ao vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån e o surpreendeu já
montado para iniciar a jornada ao palácio do sultão; lançou-se aos estribos do
animal antes que o vizir saísse e, fazendo-lhe um sinal, pôs-se a recitar estes
versos:

“Ó quem salvou o reino da ruína,
tu és o vizir que continuará vitorioso
sobre o inimigo, ó minha esperança.
Sem ti, o reino irá fragmentar-se!”.[51]

E disse: “Ó senhor dos vizires, o que se pediu na augusta determinação foi
conseguido”. O vizir disse: “Quero vê-la agora”. O negociante sumiu por algum
tempo e retornou trazendo a seu lado uma jovem de estatura mediana, seios
fartos, olhos negros, faces compridas e brilhantes, cintura esbelta e quadris
pesados; sua juventude era a melhor que havia; sua saliva, mais saborosa que
calda doce; seus pulsos, mais harmoniosos que galhos inclinados e rosas; suas
palavras, mais sutis do que a brisa da aurora, tal como alguém a descreveu na
seguinte poesia:

“Espantosa, a beleza de seu rosto é lua cheia;
poderosa entre os seus, tem criados e reses.
O Deus do trono lhe cedeu poder e altivez,
encanto e sentido, e um porte bem talhado.
No céu das faces ela tem sete astros,
e vigias no rosto, instalados em torres;
quem quiser furtar-lhe uma espiadela,
satânico, será queimado pelos astros”.

Ao vê-la, o vizir ficou sumamente admirado por ela. Voltando-se para o
negociante, indagou: “Qual o preço desta jovem?”. O homem respondeu: “Meu
senhor, chegaram a oferecer por ela dez mil moedas de ouro, mas seu dono
declarou que tal quantia não paga sequer o preço dos frangos que ela comeu,
nem das bebidas que bebeu, nem das roupas que foram enviadas ao mestre que a
adestrou, pois ela aprendeu caligrafia, pronúncia, língua árabe, interpretação do
Alcorão, gramática, medicina e fundamentos de jurisprudência; ademais, sabe
tocar todos os instrumentos musicais”. Então o vizir disse: “Traga-me o dono
dela”, que foi imediatamente trazido. Era um persa de quem o pouco que sobrara
se arruinara: o destino o maltratara a não mais poder, tão débil que por um fio de
cabelo seria arrastado e num caroço de lótus teria tropeçado; parecia uma águia
depenada ou uma parede derrubada, tal como disse a seu respeito alguém que o
descreveu:

“O destino me deixou maltratado,
destino que é tão poderoso e violento:
antes eu caminhava e não me cansava,
mas agora me canso sem caminhar”.[52]

O vizir lhe disse: “Ó xeique, você aceitaria vender esta jovem por dez mil
moedas de ouro para o sultão Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑?”. O persa
respondeu: “É claro, meu senhor! Por Deus que, mesmo se a oferecêssemos
gratuitamente para o sultão, ainda assim seria a nossa obrigação”. Nesse
momento o vizir ordenou que a verba fosse trazida, o que se fez, e pesou para o
persa dez mil moedas de ouro. Em seguida, o negociante se colocou diante do
vizir e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

203ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o negociante de escravos se colocou
diante do vizir e lhe perguntou: “Meu amo, o vizir, me dá permissão de falar?”.
O vizir respondeu: “Pode falar”. O homem disse: “Amo, o meu parecer é que o
senhor não conduza esta jovem ao sultão hoje, pois ela acabou de chegar de
viagem e foi castigada pelas ventanias; os vestígios do abatimento provocado
pela viagem ainda são visíveis nela. O mais apropriado é que ela permaneça em
seu palácio por uns quinze dias, até recobrar suas qualidades; depois disso, leve-
a ao banho, faça-a vestir os melhores trajes e conduza-a ao sultão. Assim, o
senhor terá a melhor das sortes”. O vizir analisou as palavras do negociante e
concluiu que estavam corretas. Conduziu a jovem para o seu palácio, no meio do
qual lhe destinou um aposento. Todo dia, enviava-lhe bebida, frangos assados e
mudas de roupas luxuosas. Ela permaneceu nessas condições durante algum
tempo. O vizir tinha um filho varão que parecia a esfera da lua: rosto radiante,
faces rosadas com uma pinta que parecia âmbar e costeletas que pareciam murta
viçosa, tal como disse a seu respeito alguém que o descreveu:

“Lua que se furta aos olhares quando ilumina,
galho que encanta retamente quando se inclina,
negras são as suas melenas, dourada a sua cor,
suaves os membros, sua estatura imita o mastro.
Oh, como é duro seu coração e suave sua cintura!
Por que não trocar uma característica pela outra?[53]
Se a suavidade de sua cintura estivesse no coração,
não seria tão injusto nem funesto com quem o ama.
Ó censor de minha paixão, tente compreender-me,
pois ele dominou meu coração e nele fez morada.
A culpa não é senão do meu coração e dos meus olhos.
A quem censurar, se quem me matou fui eu mesmo?”.

O rapaz nada sabia a respeito da jovem. Seu pai, o vizir, havia recomendado a
ela: “Minha filha, saiba que eu não a comprei senão para o sultão Mu¬ammad
Bin Sulaymån Azzaynab∑. Eu tenho um filho que é um demônio: não deixou
nesta propriedade uma só moça que não tivesse desvirginado. Fique atenta e
cuide para que ele não veja seu rosto ou escute as suas palavras. Saiba como
proceder”. A jovem respondeu: “Ouço e obedeço”. Então ele a deixou e se
retirou. Certo dia, quis aquilo que estava predeterminado que a jovem entrasse
no banho do palácio, onde foi lavada por algumas criadas. O banho vestiu-a com
o traje da satisfação, realçando sua beleza e formosura. Ela saiu dali e lhe foram
oferecidas roupas adequadas à sua juventude; ela as vestiu e foi até a esposa do
vizir, senhora da casa, cuja mão beijou. A mulher lhe disse: “Muito bem,
An∑suljal∑s!”.[54] Ela respondeu: “Que Deus a beneficie e lhe dê boa vida,
madame!”. A mulher perguntou: “Como está a sala de banhos agora?”. Ela
respondeu: “Madame, o lugar agora está bem gostoso e a água, agradável; só lhe
falta a sua juventude”. Então a mulher do vizir disse às criadas: “Vamos, vamos
comigo ao banho! Faz alguns dias que não me banho!”. As criadas responderam:
“Por Deus, patroa, a senhora se antecipou a nós! Era isso que tínhamos em
mente”. Ela disse: “Então vamos, com a permissão de Deus”, e foi para lá,
seguida pelas criadas. An∑suljal∑s foi para o aposento no qual estava
hospedada, de cuja porta a mulher do vizir havia encarregado duas pequenas
criadas, às quais dissera: “Prestem muita atenção e não deixem ninguém se
aproximar do aposento”. Enquanto a patroa entrava na sala de banhos,
An∑suljal∑s se acomodava no aposento, exibindo ainda vestígios de banho. De
repente, Nœrudd∑n ¢Al∑,[55] o filho do vizir, entrou na parte do palácio
destinada à sua mãe e, vendo aquelas duas criadas postadas na porta do
aposento, perguntou-lhes sobre sua mãe e elas responderam...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

204ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑ indagou sobre sua
mãe e as pequenas criadas lhe responderam: “Foi à sala de banhos”. Ao ouvir a
voz de Nœrudd∑n ¢Al∑, An∑suljal∑s pensou: “Quem será esse rapaz que está
falando? Será aquele que me recomendaram evitar?”. Em seguida ela se
levantou, ainda exibindo vestígios de banho, foi até a porta do aposento, olhou
para Nœrudd∑n ¢Al∑ e viu um jovem que parecia a lua cheia na noite em que se
completa; seu olhar foi seguido de um suspiro. O rapaz olhou inopinadamente,
também a viu e seu olhar foi igualmente seguido de um suspiro – o transtorno de
ambos caiu na rede do amor pelo outro. O jovem voltou-se para as duas meninas
e gritou com elas, que ficaram atemorizadas e fugiram, pondo-se a observar de
longe o que ele ia fazer: avançou até a porta do aposento, abriu-a, entrou e
perguntou para a jovem: “Você é quem meu pai comprou para mim?”. Ela
respondeu: “Sim, por Deus, meu senhor, sou eu”. Nesse momento, o jovem
avançou até ela – estava completamente embriagado –, pegou-a pelas pernas e
ergueu-as até a sua cintura, enquanto ela lhe enlaçava o pescoço com as mãos e o
recebia com beijos intensos e lascivos. Imediatamente ele rasgou pela cintura as
roupas que ela trajava e a deflorou. Quando viram esses atos, as duas pequenas
criadas começaram a berrar e a chorar, e o jovem se levantou e fugiu correndo,
temeroso das consequências de seu procedimento. Ao ouvir os gritos das
meninas, a mulher do vizir saiu apressadamente do banho para averiguar o que
era essa gritaria que tomava conta da casa. Aproximou-se delas e perguntou: “Ai
de vocês! Que história é essa?”. As meninas responderam: “Nosso senhor
Nœrudd∑n veio e nos bateu. Não pudemos impedi-lo e fugimos dele, que entrou
no aposento de An∑suljal∑s e a abraçou por um tempo. Não sabemos o que ele
fez depois disso, apenas que saiu correndo”. Então a mulher do vizir foi até o
aposento de An∑suljal∑s e perguntou: “Como isso pôde lhe acontecer, minha
filha?”. Ela respondeu: “Madame, eu estava aqui sentada e, antes que me desse
conta, um jovem bonito entrou e me perguntou: ‘Não é você que o meu pai
comprou para mim?’. Por Deus, madame, acreditei que suas palavras eram
verdadeiras e lhe respondi: ‘Sim’. No mesmo instante, ele avançou até mim e me
agarrou”. A mulher do vizir perguntou: “E ele lhe disse algo a respeito?”.
An∑suljal∑s respondeu: “Foram três estocadas e mais nada”. A mulher do vizir
disse: “Quem dera isso não tivesse ocorrido! E que eu não me prive de você por
causa disso!”, e, acompanhada das criadas, começou a chorar e a estapear-se.
Seu maior temor era que o pai de Nœrudd∑n ¢Al∑ o matasse por causa daquilo.
Estavam nesse estado quando o vizir entrou ali e perguntou: “Ai de vocês! Qual
é a história?”. Como ninguém teve coragem de lhe relatar o sucedido, ele
avançou para a esposa...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for
preservada”.

205ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir avançou para a esposa e disse:
“Conte-me, de verdade, o que aconteceu”. Ela respondeu: “Só lhe contarei se
você me jurar que me obedecerá, seja o que for que ouvir de mim”. Ele
respondeu: “Sim”, e ela contou: “Seu filho foi até a jovem An∑suljal∑s
enquanto estávamos nós todas na sala de banhos; avançou até ela e a deflorou”.
Ao ouvir tais palavras da esposa, o vizir caiu sem forças, estapeou-se nas faces
até sangrar pelo nariz, pôs a mão na barba e a arrancou, retirando tufos com os
dedos. A esposa lhe disse: “Agora vai se matar, meu senhor? Pois eu lhe darei de
meu dinheiro o valor dela, dez mil moedas de ouro”. Nesse momento o vizir
ergueu a cabeça para a mulher e disse: “Ai de ti! Não estou preocupado com o
valor! O que tenho é medo de, por esse motivo, perder a vida e os bens!”. Ela
perguntou: “E como se daria isso, meu senhor?”. Ele respondeu: “Você não sabe
que temos à nossa espreita aquele inimigo chamado Almu¢∑n Bin Såw∑? Logo
que ouvir sobre esse assunto, ele irá até o sultão e lhe dirá: ‘Amo, o seu vizir –
que o senhor diz amar e amar os seus dias – tomou-lhe dez mil moedas de ouro e
comprou uma jovem tão bela como ninguém nunca viu; ao notar isso, ele se
agradou dela e disse ao filho: ‘Tome esta jovem, pois você tem mais direito a ela
do que o sultão!’. E assim, meu senhor, o rapaz a tomou e a deflorou dentro de
casa’. Nesse momento, o sultão lhe dirá: ‘Você o está caluniando’, e então Almu
¢∑n dirá: ‘Se o senhor me permitir, trarei essa jovem à sua presença’. O sultão o
autorizará a fazê-lo com uma escolta, e então ele invadirá nossa casa, levará a
jovem e a apresentará ao sultão, que a questionará, e ela não terá condições de
negar; então Almu¢∑n lhe dirá: ‘Isso tudo é para que o meu senhor saiba que
sou seu fiel conselheiro e apreciador de seus dias. Contudo, meu senhor, por
Deus que não sou afortunado e as pessoas têm inveja de mim’. Então o rei
ordenará que meus bens sejam confiscados e minha vida, sacrificada”.[56] Ao
ouvir essas palavras, a esposa lhe disse: “Acaso não sabe, meu senhor, que as
generosidades de Deus são ocultas?”. Ele respondeu: “Sim”. Ela disse:
“Entregue o assunto nas mãos de Deus altíssimo, meu senhor. Eu rogo a Deus
altíssimo que ninguém fique ciente da história da jovem, nem saiba o que
aconteceu a ela. Meu senhor, ‘o dono do incognoscível prepara o
incognoscível’”.[57] Nesse instante, o vizir Fa®ludd∑n se acalmou e lhe
trouxeram uma taça de bebida, e ele bebeu. Já o seu filho Nœrudd∑n ¢Al∑,
temeroso das consequências de seu ato, permaneceu o dia inteiro escondido de
seus companheiros, nos jardins e passeios. Quando anoiteceu, bateu à porta; as
criadas abriram e ele entrou e dormiu, retirando-se antes da prece matinal. Fez
isso durante cerca de um mês, e não cruzou o olhar com o do pai. Passado esse
tempo, sua mãe disse a seu pai: “Meu senhor, você foi privado da jovem e agora
quer se privar de seu próprio filho? Por Deus que, se esse assunto se prolongar
mais um pouco, ele vai se perder por aí”. O vizir perguntou: “O que fazer?”. Ela
respondeu: “Mantenha-se acordado hoje, meu senhor, até o meio da noite, que é
quando ele vem. Fique de vigia, pegue-o e comece a vociferar contra ele; então
eu virei e o salvarei de você. Faça as pazes com ele e lhe dê a jovem, pois ambos
se amam, e eu lhe pagarei o valor dela”. E o vizir aguardou até o momento em
que o filho chegava; quando o rapaz bateu à porta, o vizir ouviu e se escondeu
num canto escuro enquanto as criadas abriam a porta. O rapaz entrou e, antes
que se desse conta, alguém o agarrou e derrubou. Ao erguer a cabeça para
descobrir quem fizera aquilo consigo, ele viu que era seu pai.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável, espantosa e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me preservar”.

206ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz viu que fora seu pai quem o
derrubara e se ajoelhara sobre seu peito, puxando uma faca como se pretendesse
degolá-lo. Nesse momento, a esposa o segurou por trás e perguntou: “O que
pretende fazer?”. Ele respondeu: “Vou matá-lo”. O rapaz disse: “E porventura
lhe seria suportável a minha morte, meu senhor?”, e olhou para ele. Seus olhos
estavam marejados de água e, já movido pelo poder divino, o vizir disse: “E por
acaso lhe seria suportável o desperdício da minha vida e dos meus bens, meu
filho?”. O rapaz disse: “Meu senhor, alguém disse o seguinte:

‘Suponha que não errei: quem adverte sempre
dá a quem erra o perdão dos crimes cometidos.
Da vileza eu já manipulei todos os gêneros,
então manipule você os gêneros do bom aviso.
Aquele que roga o perdão de seus superiores
deve perdoar os pecados de seus inferiores’”.

Nesse instante, o vizir, já enternecido, saiu de cima do filho. O rapaz beijou as
mãos e os pés do pai, que lhe disse: “Ó Nœrudd∑n ¢Al∑, se eu tivesse certeza
de que você será justo com An∑suljal∑s, eu os casaria”. O jovem disse: “Mas
meu senhor, como ser justo com ela?”. O vizir respondeu: “Não tome nenhuma
outra mulher depois dela, não a maltrate e não a venda”. O jovem disse: “Meu
senhor, eu lhe juro isso”, e de fato jurou conforme mencionado; tomou-a por
concubina[58] e, durante um ano completo, viveu com An∑suljal∑s na maior
abundância, e Deus fez o rei se esquecer da história da jovem que ele queria por
concubina. Quanto ao vizir Almu¢∑n Bin Såw∑, ele não pôde falar nada em
virtude do elevado prestígio de Fa®ludd∑n perante o rei. Certo dia, decorrido
esse ano completo, o vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån foi a uma casa de banhos, saiu
suado e recebeu um golpe de ar que o deixou febril e o prostrou na cama, com
longas insônias e fraqueza cada vez mais intensa. Foi então que ele disse:
“Tragam-me o meu filho”, e o jovem veio à sua presença. O vizir chorou e disse:
“Saiba, meu filho, que a fortuna é predestinada e o fim, predeterminado; é
imperioso que todo homem beba da taça do decreto divino. O poeta diz:

‘Estou morto; exalçado seja quem não morre,
pois eu me certifiquei de que vou morrer.
Não é rei aquele que pela morte é colhido;
a realeza, na verdade, pertence a quem não morre’.

Meu filho, a única recomendação que lhe faço é temer a Deus e avaliar as
consequências de suas ações, além da recomendação pela jovem An∑suljal∑s”.
O rapaz respondeu: “Papai, este é o seu exemplo, pois você ganhou renome
graças às boas ações e aos rogos a seu favor que se fazem nos púlpitos das
mesquitas”. O vizir disse: “Meu filho, eu imploro que Deus me aceite”. Em
seguida, estrebuchou e morreu. O palácio virou de pernas para o ar pela
choradeira das criadas, e a notícia chegou ao sultão. Também a população da
cidade foi informada da morte do vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån, e então choraram
os pequenos nos bancos escolares, choraram os crentes nos nichos das
mesquitas, choraram as mulheres em suas casas. O jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ foi
preparar o corpo do pai para o enterro, ao qual compareceram todos os líderes,
vizires e notáveis do reino. O jovem fez os melhores preparativos para lançar o
corpo do pai à terra. Algumas pessoas compuseram elegias em sua memória,
entre as quais os seguintes versos:

“Na quinta-feira me separei dos entes amados;
lavaram meu corpo numa prancha de madeira;
despiram-me das roupas que eu estava usando
e me vestiram outras às quais não estava habituado;
carregaram-me sobre os ombros de quatro homens
até o local de prece, onde alguns rezaram por mim:
foi uma prece na qual não se fazia prosternação;
meus amigos rezaram pela memória de todos,
levaram-me a uma casa bem-feita e lá se despediram;
podem os tempos acabar, mas sua porta não se abrirá”.[59]

Assim que se deitou terra ao cadáver, os familiares e amigos foram embora, bem
como seu filho Nœrudd∑n ¢Al∑, desfigurado de tanto chorar. Em sua mudez, a
situação do jovem dizia:

“Eles partiram na noite de quinta-feira,
e só me despedi quando se levantaram;
ao saírem, minha alma se foi com eles.
Eu disse: ‘Volte’; ela respondeu: ‘Para onde?
Para um corpo sem carne nem sangue,
que só tem ossos que se vão esfarelar,
olhos cegados pelo pranto convulso,
e ouvidos moucos que desafiaram os alertas?’”.

Nœrudd∑n ¢Al∑ permaneceu vários dias em amarga tristeza pela perda do pai.
Então, certo dia...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

207ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑, o filho do vizir,
estava certo dia sentado na casa de seu pai quando bateram à porta. Ele se
levantou, abriu, e eis que era um de seus convivas e companheiros; beijou-lhe a
mão e disse: “Quem gerou alguém igual ao senhor não morre. Meu senhor
Nœrudd∑n, que seu coração se conforte, seu peito se tranquilize e a tristeza se
dissipe”. Nesse momento, Nœrudd∑n ¢Al∑ foi até a sala onde recebia seus
convivas e companheiros, providenciou todo o necessário e vieram seus amigos;
levou também a sua serva An∑suljal∑s. Eram dez amigos, todos filhos de
mercadores. Nœrudd∑n ¢Al∑ comeu, bebeu vinho e foi promovendo novas
festas uma atrás da outra, pondo-se a dar presentes, dádivas e concessões.
Chegou então um de seus tesoureiros e lhe disse: “Meu senhor Nœrudd∑n, você
por acaso não sabe que já se disse: ‘Quem gasta sem calcular empobrece sem
notar’? Meu senhor, estes gastos vultosos e tantos presentes generosos
liquidariam montanhas”. Ao ouvir essas palavras, Nœrudd∑n ¢Al∑ olhou para o
homem e disse: “De tudo o que você disse eu nada aceitarei, nem uma só
palavra. Por acaso já não ouviu alguém dizendo os seguintes versos:

‘Se eu dominar minha palma e não gastar dinheiro,
minha palma não se estende e minha perna não levanta.
Tragam-me um avarento que com avareza colheu glória,
e tragam-me, mostrem um pródigo que morreu pobre’?

O que eu pretendo de você é que, caso sobre dinheiro para o meu almoço, não
fique me cobrando preocupações com o meu jantar”. O tesoureiro perguntou: “É
isso mesmo?”. Ele respondeu: “Sim”. Então o tesoureiro deu-lhe as costas e foi
cuidar da vida, enquanto Nœrudd∑n ¢Al∑ continuava naquela vida de prazeres;
se alguém lhe dissesse: “Meu senhor Nœrudd∑n, aquele seu pomar no lugar tal e
tal é muito gracioso”, ele respondia: “É um presente meu para você, e a dádiva
dos generosos não tem retorno”. Então essa pessoa lhe dizia: “Meu senhor,
escreva isso com a sua letra”, e ele escrevia. Outro lhe dizia: “Meu senhor, a casa
localizada no lugar tal”, e outro dizia: “E a casa situada no lugar tal e tal”, e
outro lhe dizia: “Meu senhor, a casa de banho tal”, e Nœrudd∑n ¢Al∑ ia lhes
dando tudo e promovendo uma festa atrás da outra, uma no início do dia e outra
no meio da noite. Agiu dessa maneira durante um ano inteiro. Certo dia,
enquanto ele estava sentado, a jovem An∑suljal∑s cantava e dizia os seguintes
versos:

“Você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e não teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que sucede a torpeza”.[60]
De repente, bateram à porta. Um dos presentes disse: “Meu senhor Nœrudd∑n, a
porta!”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

208ª
noite das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que um dos presentes disse: “Alguém bate
à porta!”, e então Nœrudd∑n ¢Al∑ levantou-se para ver quem era, sendo
seguido, sem perceber, por um de seus convivas. Nœrudd∑n ¢Al∑ abriu a porta
e, topando com seu tesoureiro ali em pé, perguntou-lhe: “O que aconteceu?”. O
tesoureiro respondeu: “Meu senhor, aquilo que eu temia ocorreu”. O jovem
perguntou: “Como?”. O tesoureiro respondeu: “Meu senhor, saiba que não lhe
resta em minhas mãos nada que valha uma única moeda, nem menos, nem mais.
Eis aqui a sua letra abrindo mão de todas as coisas das quais este seu criado
cuidava”. Ao ouvir tais palavras, Nœrudd∑n ¢Al∑ ficou cabisbaixo e disse: “É o
desejo de Deus, não há força senão em Deus”. Tendo ouvido as palavras do
tesoureiro, o conviva de Nœrudd∑n ¢Al∑ que se escondera para ouvir a
conversa voltou aos outros convivas e lhes disse: “Vejam lá o que fazer, pois
Nœrudd∑n ¢Al∑ faliu, não lhe resta mais nada”. Disseram: “Então não
permaneceremos aqui!”. Enquanto isso, Nœrudd∑n ¢Al∑ dispensou o tesoureiro
e retornou aos convivas com a tristeza estampada no rosto. Nesse instante, um
dos convivas se levantou, olhou para Nœrudd∑n ¢Al∑ e pediu: “Meu senhor,
será que poderia autorizar-me a partir?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “Por
quê?”. Ele respondeu: “Meu senhor, hoje a minha mulher vai dar à luz e não
posso deixar meus familiares sozinhos; quero ficar junto deles”, e Nœrudd∑n
¢Al∑ autorizou-o a retirar-se. Outro conviva se levantou, arranjou uma desculpa
e se retirou. E todos sucessivamente foram arranjando desculpas até que os dez
se retiraram, deixando sozinho Nœrudd∑n ¢Al∑, que chamou por sua concubina
e lhe perguntou quando ela apareceu: “Veja só o que me aconteceu,
An∑suljal∑s” – e lhe contou o que o tesoureiro dissera. Ela disse: “Meu senhor,
seus familiares e as pessoas que o amam o alertaram, mas você não escutou.
Quanto a mim, meu senhor, há algumas noites eu me prontificara a falar-lhe
sobre tal situação, mas ouvi você recitando os seguintes versos:

‘Se a fortuna for pródiga contigo, sê pródigo
com todas as criaturas antes que ela te escape,
pois a prodigalidade não a dissipará quando ela vier
nem a avareza a substituirá quando ela partir’.

Quando o ouvi recitando esses versos, calei-me e não lhe dirigi o discurso que
cogitara”. Nœrudd∑n ¢Al∑ lhe disse: “Você sabe, An∑suljal∑s, que eu não
dissipei toda a minha riqueza senão com aqueles meus dez companheiros. Não
acredito que eles irão deixar-me sem nada”. Ela disse: “Meu senhor, por Deus
que eles não lhe serão de nenhuma utilidade”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu:
“Pois eu vou agora mesmo até eles fazer uma visita. Quiçá eu obtenha deles
alguma coisa que me sirva de capital para comerciar e abandonar as diversões”.
Em seguida ele se levantou e caminhou até chegar à rua onde moravam seus dez
companheiros – pois todos eles viviam na mesma rua. Bateu à primeira porta e
saiu uma criada que perguntou: “Quem é?”. Ele respondeu: “Diga ao seu patrão,
criada: ‘Meu senhor Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån está parado à porta, beija-lhe as
mãos e o saúda’”. A criada foi até o patrão e lhe passou a informação. O homem
aplicou-lhe uma bronca e disse: “Saia e diga-lhe que o patrão não está”. A criada
retornou e disse: “O patrão não está em casa”. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

209ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑ disse de si para si:
“Se esse aí é um bastardo que se esconde, nem por isso os outros serão bastardos
como ele”, e bateu na segunda porta, sendo atendido por uma criada, a quem
disse o mesmo que dissera à primeira; ela entrou e retornou dizendo: “Meu
senhor, ele não está aqui”. Nœrudd∑n ¢Al∑ riu e pensou: “Quem sabe não
encontrarei alívio junto a outro deles”; foi até a terceira porta pensando: “Faça o
mesmo que fez com o primeiro”, mas também o terceiro se escondeu dele. Nesse
instante Nœrudd∑n ¢Al∑ se arrependeu de ter se submetido àquilo, chorou e se
queixou recitando o seguinte:

“Em tempo de fartura, o homem é como a árvore
cercada de pessoas quando está cheia de frutos:
assim que estes caem, levam-nos e se retiram,
abandonando-a a sofrer com aflições e poeira.
Malditos sejam todos os filhos desta época,
pois com nenhum dentre dez se pode contar”.

Em seguida, com as aflições intensificadas, Nœrudd∑n ¢Al∑ retornou para
An∑suljal∑s, que lhe disse: “Já reconheceu a gravidade do que eu lhe disse, meu
senhor?”. Ele respondeu: “Por Deus que entre eles nenhum me deu atenção ou se
prontificou a me ajudar”. Ela disse: “Meu senhor, venda alguns móveis e
utensílios da casa até que Deus altíssimo, poderoso e excelso arranje as coisas”.
Então Nœrudd∑n ¢Al∑ pôs-se a vender os objetos da casa pouco a pouco para
usar o dinheiro, até que não sobrou nada. Quando constatou isso, ele olhou para
An∑suljal∑s e perguntou: “E o que nos restou para vender?”. Ela respondeu:
“Meu senhor, o melhor parecer é que imediatamente me conduza ao mercado de
escravos e me venda. Você sabe que seu pai me comprou por dez mil moedas de
ouro. Talvez Deus poderoso e excelso melhore as coisas para você por
intermédio do meu preço. Depois disso, se Deus poderoso e excelso quiser nos
juntar novamente, nós ficaremos juntos”. Ele disse: “Ó An∑suljal∑s, por Deus
que para mim não é aceitável separar-me de você uma única hora que seja”. Ela
disse: “Por Deus, meu senhor, que comigo ocorre o mesmo. Porém as
necessidades fazem as suas imposições, conforme disse alguém nesses versos:

‘Em algumas questões, as necessidades levam a
uma conduta incompatível com o bom decoro,
mas ninguém se lança à toa por um caminho
senão por algum motivo adequado para isso’”.

Nesse instante, Nœrudd∑n ¢Al∑ se levantou e abraçou a sua concubina
An∑suljal∑s. As lágrimas do rapaz lhe escorriam pelo rosto como chuva,
enquanto ele recitava sobre sua situação o seguinte:

“Parem! Deixem-me dar mais um olhar antes da separação,
alegrando um coração que, por isso, está quase aniquilado.
Porém, se porventura tal coisa lhes parecer custosa,
deixem-me morrer de paixão e não se desgastem”.

Depois, ele saiu com ela até o mercado e entregou-a ao leiloeiro dizendo: “Ó
¬åjj[61] Æasan, conheça o valor daquilo que apregoa”. O leiloeiro respondeu:
“Meu senhor Nœrudd∑n, o procedimento básico é o de sempre”,[62] e
perguntou: “Esta não é An∑suljal∑s, que o seu pai comprou já faz algum tempo
por dez mil moedas de ouro?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu: “Sim”. Então o
leiloeiro olhou para os mercadores e notou que eles ainda não estavam todos
reunidos; esperou até o mercado lotar e que começassem a ser vendidas escravas
de várias raças, tais como núbias, senegalesas, francas, sudanesas, gregas,
mongóis e outras.[63] Portanto, logo que o mercado de escravos se encheu, o
leiloeiro ficou de pé e gritou: “Ó mercadores!”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável, espantosa e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me preservar, e que será ainda mais insólito”.

210ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o leiloeiro disse: “Ó mercadores, ó
donos do dinheiro! Nem todo redondo é noz, nem todo comprido é plátano,[64]
nem todo vermelho é carne, nem todo branco é sebo! Ó mercadores, tenho aqui
comigo uma pérola singular! Por quanto vão comprá-la? Por quanto abro o
pregão?”. Um mercador disse: “Ofereço quatro mil moedas de ouro”, e então o
leiloeiro abriu o pregão por esse valor e começou a dizer: “Isso é oferta que se
faça?”. De repente passou por ali o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑ e viu Nœrudd∑n
¢Al∑ parado num canto do mercado. Almu¢∑n disse de si para si: “Por que será
que Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån está aqui parado? Será que ainda sobrou algum
dinheiro para esse moleque comprar escravas?”. E, girando rapidamente o olhar,
viu o leiloeiro no meio do mercado, cercado pelos mercadores, e pensou: “Se
minha adivinhação está certa, não suponho senão que ele faliu e veio trazer a
escrava An∑suljal∑s para ser leiloada. Isso é um refresco para o meu fígado!”.
Ato contínuo, chamou o leiloeiro, que se aproximou e beijou o solo diante dele.
Almu¢∑n Bin Såw∑ lhe disse: “Leiloeiro, mostre-me essa jovem que você está
vendendo”, e o homem, incapaz de desobedecer, disse: “Sim, meu senhor, em
nome de Deus!”. Aproximou-se conduzindo a jovem e mostrou-a ao vizir, que se
agradou muito dela e perguntou: “Quanto já lhe ofereceram por esta jovem,
Æasan?”. Ele respondeu: “Meu senhor, abrimos as ofertas em quatro mil moedas
de ouro”. O vizir disse: “Eu pagarei essas quatro mil moedas”. Quando se ouviu
aquilo, nenhum mercador ousou aumentar a oferta, pois todos eles conheciam a
injustiça e a perfídia do vizir, que olhou para o leiloeiro e disse: “Ai de ti! Está aí
parado esperando o quê? Vá consultar o dono sobre os quatro mil dinares!”. O
leiloeiro foi até o jovem e lhe disse: “Meu senhor, sua escrava foi perdida a troco
de nada”. Ele perguntou: “E como se deu isso?”. O leiloeiro respondeu: “Meu
senhor, nós abrimos o pregão em quatro mil dinares. Oferta inicial. Mas chegou
esse opressor inescrupuloso, Almu¢∑n Bin Såw∑, que passava pelo mercado.
Ao ver a moça, gostou dela e me disse: ‘Vá consultar se ele aceita quatro mil
dinares’. Não creio senão que ele sabe ser sua a escrava. Se ele lhe entregasse
agora os quatro mil dinares estaria bom, mas eu sei que, em sua injustiça, ele lhe
escreverá um título de dívida para ser sacado junto a algum negociante de
câmbio a quem ele enviará uma ordem dizendo: ‘Embromem-no e não lhe
paguem nada por esses dias’. Assim, toda vez que você for sacar, eles lhe dirão:
‘Pois não, venha amanhã’. Eles lhe farão isso diariamente e você, como é
orgulhoso, irá se irritar, pegar o papel e rasgá-lo, perdendo assim o preço da
jovem”. Ao ouvir tais palavras do leiloeiro, Nœrudd∑n ¢Al∑ olhou para ele e
perguntou: “O que fazer?”. O homem respondeu: “Meu senhor, eu lhe darei um
conselho que, se for seguido, irá assegurar-lhe melhor sorte”. O jovem
perguntou: “E qual é o conselho?”. O leiloeiro disse: “Vá até mim assim que eu
estiver parado no meio do mercado, arranque a jovem de minhas mãos, dê-lhe
um safanão e diga: ‘Sua arrombada, venha cá! Já cumpri a promessa que havia
feito de trazê-la ao mercado e oferecê-la em leilão’. Quando você fizer isso,
estará justificado perante o vizir e os presentes, pois todos acreditarão que você
não a trouxe ao mercado senão para cumprir uma promessa”. Nœrudd∑n ¢Al∑
disse: “Isso é o mais acertado a fazer”, e o leiloeiro deixou-o, foi até o meio do
mercado, pegou a jovem pela mão, encarou o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑ e lhe
disse: “Amo, o dono dela está chegando”, e Nœrudd∑n ¢Al∑ avançou até o
leiloeiro e arrancou de suas mãos a jovem, na qual deu um safanão.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

211ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑ golpeou a moça e lhe
disse: “Ai de ti! Venha cá! Eu só vim com você ao mercado por causa da minha
promessa! Volte para casa e não torne a fazer aquelas coisas! Ai de ti! E por
acaso eu preciso do seu preço? Se eu vendesse alguns móveis de minha casa
obteria muitas vezes o seu valor!”.[65] Ao ouvir essas palavras, o vizir encarou-
o e disse: “Ai de ti! E por acaso lhe restou alguma coisa para ser vendida por
uma moeda que seja, de ouro ou de prata?”. E, avançando para ele, fez tenção de
agredi-lo. Nesse instante, Nœrudd∑n ¢Al∑ olhou para os mercadores, leiloeiros
e frequentadores do mercado – todos ali gostavam muito dele – e lhes disse:
“Não fossem vocês, eu o mataria”. Então todos lhe fizeram com os olhos sinais
que significavam: “Vire-se e faça o que bem entender com ele, pois aqui
ninguém vai interferir”. Nœrudd∑n ¢Al∑, que era um rapaz robusto, avançou
para o vizir, puxou-o da sela, derrubou-o no chão, no meio de uma poça de lama
que existia ali, e pôs-se a golpeá-lo e a esmurrá-lo; um dos murros o atingiu nos
dentes, deixando-o banhado em sangue. O vizir tinha dez mamelucos que, ao
verem seu mestre apanhando daquela maneira, levaram as mãos aos punhos de
suas espadas, manifestando querer desembainhá-las e lançar-se sobre Nœrudd∑n
¢Al∑ para fazê-lo em pedaços. Mas as pessoas se interpuseram e os mercadores
lhes disseram: “Um é vizir e o outro é filho de vizir. Talvez eles mais tarde
façam as pazes e vocês se tornem detestáveis para ambos. Também é possível
que vocês o acertem com um golpe mortal e sejam por isso sacrificados da pior
maneira. O melhor alvitre, enfim, é que vocês não se intrometam”. Quando
terminou de surrar o vizir, Nœrudd∑n ¢Al∑ pegou An∑suljal∑s pela mão e
voltou para casa. Quanto ao vizir, ao se levantar ele tinha três cores: o preto da
lama, o vermelho do sangue e o branco das roupas. Vendo-se naquele estado, o
vizir envolveu-se numa esteira, agarrou um tufo de grama em cada mão e não
parou de correr até chegar às portas do palácio do sultão Mu¬ammad Bin
Sulaymån Azzaynab∑, onde começou a gritar: “Ó rei do tempo, fui
injustiçado!”. Ao ouvir aquilo, o sultão disse: “Tragam-me esse que está
gritando!”. Quando o conduziram à sua presença, o sultão o examinou e eis que
era seu vizir-mor! Então ele lhe disse: “Vizir, quem fez isso com você?”. Nesse
momento o vizir chorou diante do sultão e recitou o seguinte:

“Sofro injustiça nesse teu tempo?
Lobos me devoram e tu és leão?
Não bebe de sua fonte todo sedento?
Tenho sede à tua sombra, e és chuva?”.

E então perguntou: “Meu senhor, irá acontecer o mesmo a todo aquele que ama o
seu reinado e aconselha o seu governo?”. O sultão lhe disse: “Ai de ti! Rápido,
conte-me, como isso lhe sucedeu e quem lhe fez essas coisas? Respeitar você é
respeitar a mim próprio!”. O vizir respondeu: “Meu senhor, eu saí hoje de casa e
fui até o mercado de escravas para comprar uma cozinheira; vislumbrei uma
jovem cuja beleza nunca ninguém viu igual e me dispus a comprá-la para nosso
amo, o sultão. Indaguei o leiloeiro a respeito dela e de seu dono, e ele me disse
que o dono da jovem era Nœrudd∑n ¢Al∑, filho do vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån,
ao qual nosso amo, o sultão, havia dado dez mil moedas de ouro para comprar-
lhe uma concubina; era aquela jovem que ele havia comprado mas que, tendo
gostado dela e mostrando-se avaro com nosso amo, o sultão, entregou-a ao filho.
Quando o vizir Fa®ludd∑n morreu, seu filho vendeu tudo quanto possuía, a
ponto de se ver sem nada. Inteiramente falido, ele foi com a jovem até o
mercado e a entregou ao leiloeiro, que a colocou à venda; os mercadores fizeram
seus lances até que o preço chegou a quatro mil moedas de ouro. Foi então que
eu lhe disse: ‘Meu filho, aceite esses quatro mil dinares; eu comprarei essa
jovem para nosso amo, o sultão, que tem mais direito a possuí-la, porquanto o
seu preço, na origem, já foi pago por ele’. Ao ouvir minhas palavras, Nœrudd∑n
¢Al∑ me encarou e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

212ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑ disse ao
sultão: “Nœrudd∑n ¢Al∑ me encarou e disse: ‘Seu velho safado! Eu a venderia
para cristãos e para judeus, mas nunca para você’. Eu disse a ele: ‘É assim que
você compensa nosso amo, o sultão, por nos ter criado, a mim e ao seu pai, à
sombra de suas benesses?’. Logo que ouviu essas minhas palavras, ele se atirou
sobre mim, arrancou-me de minha montaria – eu, que sou um ancião –,
derrubou-me, surrou-me com suas próprias mãos e me deixou nesse estado. Isso
tudo não me ocorreu senão porque eu zelava por seus interesses”. Ao terminar o
relato, o vizir se atirou ao solo e começou a chorar, a fingir desmaios e a tremer.
Ao observar o seu estado e ouvir as suas palavras, o rei, pingando cólera por
entre os olhos, voltou-se para os principais de seu governo e notou que havia
quarenta guardas armados de espada ali parados de prontidão; disse-lhes: “Vão
até a casa de Bin ¿åqån, saqueiem tudo, destruam-na e tragam-no até mim
amarrado; arrastem-no junto com a jovem e não parem até que ambos estejam
em minha presença”. Eles disseram: “Ouvimos e obedecemos”, colocaram sua
equipagem e tomaram o rumo da casa de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån. Entre os
servidores do sultão, havia um secretário chamado ¢Alamudd∑n[66] Sanjar, que
fora inicialmente mameluco do vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån, tendo sido depois
promovido a secretário pelo sultão. Naquele instante, ao ver que inimigos se
preparavam para matar o filho de seu mestre, não se conformou e, saindo da
presença do sultão, cavalgou sem parar a toda a pressa até chegar à casa de
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån. Bateu à porta e Nœrudd∑n ¢Al∑ saiu para ver
quem era; verificou que se tratava do secretário Sanjar e o cumprimentou. O
secretário lhe disse: “Ó Nœrudd∑n ¢Al∑, não resta mais tempo nem para
cumprimentos, pois o poeta diz:

‘Atingido por infortúnio, salva a vida,
e deixa a casa chorar por quem a construiu,
pois poderás trocar uma terra por outra,
mas com tua vida o mesmo não poderás fazer;
tampouco envies teu mensageiro em missão importante,
pois para a vida o melhor conselheiro é o seu dono:
as cervizes dos leões só engrossaram tanto
porque eles próprios cuidam de seus interesses’”.[67]

Nœrudd∑n ¢Al∑ lhe perguntou: “O que aconteceu, ¢Alamudd∑n?”. O
secretário respondeu: “Meu senhor Nœrudd∑n, levante-se e salve sua vida e a da
jovem, pois o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑ montou uma armadilha para vocês;
basta um descuido e você cairá; o sultão acaba de enviar quarenta guardas
armados de espada para saquear a sua casa, e amarrar você e a jovem para levá-
los à presença dele. Meu parecer é que vocês se levantem imediatamente e fujam
antes que eles cheguem”. Em seguida, Sanjar estendeu a mão para seu alforje, no
qual encontrou quarenta dinares e os entregou para Nœrudd∑n ¢Al∑, dizendo:
“Meu senhor, leve este dinheiro para a viagem; seu eu tivesse mais, mais lhe
daria, mas agora não há tempo para críticas”. Nœrudd∑n ¢Al∑ foi até a jovem,
informou-a do que ocorria, e as mãos dela ficaram paralisadas. Em seguida os
dois fugiram rapidamente; Deus os protegeu e enfim saíram pelos portões da
cidade. Continuaram em marcha até chegar a uma praia, na qual encontraram um
grande navio prestes a zarpar, com o capitão parado no meio dele.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

213ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑ verificou que o
capitão estava parado no meio do navio perguntando: “Ó mercadores, ainda
existe entre vocês alguém que precisa de coisas da cidade? Pensem bem,
esqueceram-se de algo?”. Responderam em uníssono: “Ó capitão, não
precisamos de mais nada”. Nœrudd∑n ¢Al∑ chegou com sua concubina,
embarcou com ela e perguntou: “Aonde vão?”. Responderam: “Bagdá”.
Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Muito bem”. O navio zarpou e pareceu estar voando,
tal como disse alguém:

“Veja só um barco cuja imagem arrebata:
concorre com o relâmpago na ida e na volta
e se parece com pássaro pela sede torturado,
que irrompe dos céus atirando-se nas águas”.

Os ventos lhes foram favoráveis. Foi isso o que sucedeu a Nœrudd∑n ¢Al∑ e
sua concubina. Quanto aos quarenta mamelucos que o sultão enviara, eles
chegaram à casa de Nœrudd∑n ¢Al∑, invadiram-na, abriram-na toda e
reviraram-na atrás dele e da jovem, mas deles não encontraram vestígio nem
notícia. Então, destruíram a casa, retornaram e cientificaram o sultão, que lhes
disse: “Procurem-no e, onde quer que o encontrem, tragam-no à minha
presença”. Eles responderam: “Ouvimos e obedecemos”. O vizir Almu¢∑n Bin
Såw∑ foi para casa após o sultão ter-lhe dado um traje honorífico e lhe
tranquilizado o coração dizendo: “Serei eu, e não outro, que vingará você”. O
sultão ordenou que se apregoasse pela cidade que Nœrudd∑n ¢Al∑ era
procurado. Os arautos saíram gritando: “A todos os súditos: o sultão Mu¬ammad
Bin Sulaymån Azzaynab∑ determinou que quem lhe conduzir Nœrudd∑n ¢Al∑,
filho do vizir Fa®ludd∑n Bin ¿åqån, ganhará um traje honorífico e mil dinares, e
que quem lhe der abrigo e for denunciado, não deve nem perguntar o que irá
acontecer consigo”. A informação de que ele era procurado circulou por todos os
cantos, mas não apareceu notícia nenhuma. Foi isso o que sucedeu ao rei e ao
vizir. Quanto a Nœrudd∑n ¢Al∑ e sua concubina An∑suljal∑s, Deus escreveu
que eles chegariam bem a Bagdá, a cidade da paz. O capitão lhe disse: “Meu
senhor, congratulações por ter chegado bem. Esta é uma cidade agradável e
segura, que se ondula sob os pés do morador e se mexe sob os pés do residente.
[68] Acabou a estação de inverno com seu frio, e começou a estação da
primavera com suas rosas. Suas flores estão se abrindo, seus galhos, frutificando,
suas árvores, embelezando-se, e seus pássaros, trinando. Ela é como disse
alguém a seu respeito nos seguintes versos:

‘Eis uma cidade a cujos moradores
nada aterroriza, e cujo dono é a segurança,
como se fosse um paraíso decorado
para os moradores, cheio de maravilhas’”.[69]

Após ter pago cinco dinares ao capitão, Nœrudd∑n ¢Al∑ desembarcou com a
concubina e passeou com ela até que a vontade divina os fez chegar a uma rua
entre jardins. Dirigiram-se a um lugar varrido e lavado, provido de bancos
compridos, vasilhas e potes pendurados cheios de água fresca; corria uma cerca
por todo o comprimento da rua, em cuja parte mais elevada estava a porta que
dava acesso ao jardim, só que trancada. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “Esse não é
um belo lugar, An∑suljal∑s?”. Ela respondeu: “Por Deus, meu senhor, vamos
nos estirar por uma horinha nesses bancos e descansar um pouco”. Então
subiram os dois e se acomodaram no banco, depois de terem bebido um pouco
da água e lavado o rosto e as mãos. Logo foram bafejados pela brisa, ouviram o
som das aves e torcazes trinando nas árvores do jardim, e o murmúrio da água;
logo ambos adormeceram. Aquele jardim era denominado Jardim do
Espairecimento, e nele havia um palácio chamado Palácio das Estátuas. O califa
Hårœn Arraš∑d construíra aquele jardim, que não possuía igual em Bagdá;
quando estava angustiado, ia para lá e subia ao palácio, ao redor do qual
mandara fazer oitenta janelas e pendurara oitenta lampiões. Entre cada dois
lampiões, colocara candelabros com uma grande vela. Quando se instalava nesse
palácio, o califa acendia os lampiões e as velas, abria as janelas e, rodeado por
suas concubinas de todas as raças, ordenava a Is¬åq Annad∑m[70] que cantasse
para ele. Assim que isso era feito, o califa se reconfortava e a angústia se
dissipava. Aquele jardim estava sob os cuidados de um velho capataz chamado
xeique Ibråh∑m, por quem o califa tinha extremo apreço. Quando retornava de
suas idas para a cidade a fim de ali resolver algum problema, o xeique
costumava encontrar à porta do jardim homens acompanhados de prostitutas.
Como isso o irritava e lhe parecia muito grave, ele escondia os casos ao califa.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse para a irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

214ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o capataz Ibråh∑m costumava
esconder aqueles casos ao califa até que, certo dia, acabou contando-lhe a
história. O califa lhe disse: “Quem quer que você flagre às portas do jardim, faça
com ele o que bem lhe aprouver”. No dia em que Nœrudd∑n ¢Al∑ e
An∑suljal∑s entraram, o capataz tinha ido resolver um problema na cidade.
Quando terminou, regressou e encontrou aqueles dois, cobertos com um xale,
dormindo no banco ao lado do jardim. Nesse momento ele disse: “Por Deus que
essa é boa. Eles não sabem que o califa me deu autorização para matar quem
quer que eu encontre aqui? Mas eu vou usar esses dois como exemplo para que
ninguém torne a se aproximar do portão do jardim”. E, entrando no jardim,
arrancou uma vara de palma, voltou até eles e ergueu o braço até o branco da
axila aparecer, pretendendo dar-lhes uma tremenda sova. Mas ele refletiu e disse
para sua mente: “Ó Ibråh∑m, você vai aplicar uma surra nesses dois sem saber
se eles são forasteiros ou viajantes a quem o destino jogou aqui dentro? Deixe-
me descobrir qual é a história deles, e também descobri-los para poder vê-los”.
Largou portanto a vara de palma que arrancara do jardim, avançou até eles,
descobriu-lhes o rosto, observou-os e viu que os dois pareciam duas luas
luminosas, tal como disse alguém nos seguintes versos:

“Eu os vi com meus olhos, dormindo sobre estrelas,
e desejei que andassem sobre minhas sobrancelhas:
crescentes de esplendor, sóis da manhã, luas do bem,
gazelas, não me desgosta a pureza desses belos ídolos”.

Ao observá-los e ver-lhes a graça e a beleza, ele disse: “Por Deus que esses dois
têm um belo tipo”. Então lhes cobriu os rostos e, dirigindo-se aos pés de
Nœrudd∑n ¢Al∑, começou a massageá-los. Nœrudd∑n ¢Al∑ abriu os olhos e,
vislumbrando a seus pés um velho xeique, ficou envergonhado e recolheu-os,
pondo-se imediatamente sentado; pegou a mão do xeique e beijou-a dizendo: “O
senhor está acima disso, que Deus o recompense!”. O xeique perguntou: “Meu
filho, de onde são vocês?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu: “Somos forasteiros,
meu velho”. O xeique disse: “Sejam bem-vindos”, e continuou: “Meus filhos,
por que não se levantam e vêm comigo para o jardim, a fim de se distraírem e
espairecerem?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “Ó xeique, a quem pertence este
jardim?”. O xeique respondeu: “A mim. Herdei-o do meu pai” – a intenção do
xeique com tais palavras não era senão que eles entrassem no jardim mais
tranquilos –, e continuou: “Meu filho, eu só estou lhe fazendo esta oferta para
que se dissipem as suas preocupações e tristezas e vocês se deleitem”. Ao ouvir
essas palavras do xeique Ibråh∑m, Nœrudd∑n ¢Al∑ lhe agradeceu e, junto com
a jovem, seguiu-o e entrou no jardim. E que jardim! Seus portões tinham a forma
abobadada de uma tenda, e pareciam ser do paraíso. O portão através do qual
eles entraram dava para uma cerca também abobadada feita de videiras com uvas
de cores variadas: as vermelhas pareciam rubis; as negras, o rosto dos abissínios;
já as brancas, no meio das negras e vermelhas, pareciam pérolas entre contas
negras de rosário e pedras coral; indo além daquelas bem cuidadas videiras,
topava-se com as frondosas árvores do jardim, nas quais havia “pares e
singulares”.[71] Os pássaros gorjeavam das maneiras mais diversas: o rouxinol
produzia bela melodia; o pombo, com seu arrulho, enchia o mundo; o
pintassilgo, com seu canto, levava ao pranto; o melro ali em frente parecia gente;
o pio da torcaz deixava a tristeza para trás; a pomba de colar turturinava
riminhas prontamente respondidas pelas rolinhas. As árvores estavam repletas de
frutas aos pares, romãs doces, azedas e mais ou menos, maçãs doces e amargas e
peras duras e macias. E havia coisas que a língua é incapaz de descrever e que os
olhos jamais viram igual.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

215ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao contemplar o jardim e sua beleza,
Nœrudd∑n ¢Al∑ ficou admirado e se tranquilizou, lembrando-se dos dias que
havia desfrutado, com seus companheiros e convivas, da prosperidade, e dos
bons tempos que vivera. Olhou para o xeique e perguntou: “Como é o seu nome,
ó xeique?”. Respondeu: “Meu nome é Ibråh∑m”. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ó
xeique Ibråh∑m, por Deus que é um belo jardim. Que Deus altíssimo o abençoe
com ele! Ó xeique Ibråh∑m, você acabou de ser muito gentil jurando por sua
vida que deveríamos entrar aqui. Não temos o direito de lhe impor nenhum outro
custo; por isso, leve estes dois dinares e mande trazer-nos pão, carne e outras
necessidades”. Ibråh∑m imediatamente pegou os dois dinares, muito contente, e
disse com os seus botões: “O máximo que eles comerão é dez dirhams, e o troco
ficará para mim”. E foi comprar-lhes boa comida em quantidade suficiente.
Enquanto ele ia fazer as compras, Nœrudd∑n ¢Al∑ e sua concubina
An∑suljal∑s passeavam pelo bosque, espairecendo. O destino acabou
conduzindo-os ao palácio pertencente ao califa, localizado no meio do jardim e
denominado Palácio das Estátuas, conforme já dissemos. Nœrudd∑n ¢Al∑ e a
jovem olharam para o palácio, para sua altura e boa construção, e quiseram subir
até ele, mas não conseguiram entrar. Quando o xeique Ibråh∑m retornou do
mercado, disseram-lhe: “Ó xeique Ibråh∑m, você não havia dito que este jardim
é seu?”. Ele respondeu: “Sim”. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “E este palácio é de
quem?”. O xeique pensou: “Se eu disser que o palácio não é meu, eles vão
questionar ‘E como é isso?’”, e lhes respondeu: “Meu filho, o palácio também é
meu”. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ó xeique Ibråh∑m, nós somos seus hóspedes,
este palácio é propriedade sua e você não o abre para nós nem jura por sua vida
que passeemos lá dentro?”. Então o xeique se envergonhou: convencido pelo
argumento, desapareceu por alguns instantes e retornou munido de uma grande
chave. Dirigiu-se até a porta do palácio, abriu-a e disse: “Em nome de Deus, por
favor, entrem”, e seguiu na frente, com os dois jovens logo atrás. Caminharam
até chegar ao saguão suspenso. Ao olhar para as velas espetadas, os lampiões
pendurados e as janelas, Nœrudd∑n ¢Al∑ se recordou das reuniões que
promovera outrora e disse ao xeique: “Por Deus que é um belo local”. Em
seguida, acomodaram-se para fazer a refeição e comeram até se fartar; depois,
lavaram as mãos e Nœrudd∑n ¢Al∑ foi até uma das janelas, abriu-a e chamou
sua concubina, que foi se postar do seu lado. Ele contemplou as árvores,
carregadas de toda espécie de fruta, e, olhando para o xeique, perguntou-lhe: “Ó
xeique, você tem algo para se beber?”. O xeique perguntou: “Meu filho, o que
você vai fazer com a bebida depois de ter comido? As pessoas costumam
quebrar o jejum com bebida antes de comer”. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Não, mas
neste caso tem de ser depois da refeição”. O xeique perguntou: “Não vá me dizer
que você quer vinho?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu: “Sim”. O xeique disse:
“Deus me livre, meu filho. Eu já peregrinei treze vezes a Meca. Essa é uma coisa
sobre a qual eu nem converso”. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ouça de mim duas
palavrinhas”. O xeique disse: “Diga, meu filho”. Ele disse: “Esse asno que está
amarrado ao lado do jardim: se ele for amaldiçoado, isso lhe fará algum mal?”.
O xeique respondeu: “Não”. O jovem continuou: “Então leve estes dois dinares e
estes dois dirhams, monte aquele asno e vá até a taverna. Apeie-se a uma boa
distância e grite para o primeiro desgraçado que você vir: ‘Tome estes dois
dirhams e me compre com estes dois dinares duas boas jarras de vinho’. Assim
que ele tiver comprado e sair da taverna, diga-lhe: ‘Coloque-as neste alforje e
ponha-o sobre o asno’; quando ele tiver feito isso, conduza o asno até chegar
aqui e nós iremos descarregar a bebida do lombo do asno. Desse modo, você não
terá carregado o animal com vinho nem montado nele junto com o vinho, e
nenhum mal lhe advirá por isso”. Sorrindo das palavras de Nœrudd∑n ¢Al∑, o
xeique disse: “Por Deus, meu filho, que nunca vi nem ouvi ninguém tão gracioso
como você ou como suas palavras”, e fez o que lhe pediu Nœrudd∑n ¢Al∑.
Após a compra do vinho, foram os dois jovens que o descarregaram. Então
Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ó xeique, agora nós estamos por sua conta, e você não
poderá senão concordar com tudo o que dissermos”. O xeique perguntou: “Como
o quê, meu filho?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu: “Queremos que você traga
agora, de seus armários, todos os utensílios e apetrechos de que necessitarmos
para beber etc.”. Então o xeique pegou as chaves dos armários e depósitos e lhes
disse: “Enquanto eu lhes trago frutas, vão pegando o que for necessário”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

216ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o xeique Ibråh∑m lhes disse: “Vão
pegando o que for necessário”. Nœrudd∑n ¢Al∑ abriu então todos os armários e
depósitos, recolhendo o que necessitava e desejava. O xeique retornou com toda
espécie de fruta, de flor etc. A jovem An∑suljal∑s arrumou as coisas para o
festim, enfileirando taças, canecas, utensílios longos e curtos de ouro e de prata,
travessas com acepipes e frutas de várias espécies e formas. Quando tudo estava
pronto, eles se acomodaram para comer e beber. Nœrudd∑n ¢Al∑ encheu uma
taça, olhou para sua concubina An∑suljal∑s e disse: “Como foi abençoado o
nosso caminho até este jardim”, e passou a recitar os seguintes versos:

“Que agradável este dia, e que perfeito!
Que beleza, completude e formosura!
Na mão direita a taça, na esquerda a lua.
Se alguém censura, não dou a mínima”.

E se pôs a beber com a jovem até que o dia se foi com suas luzes e chegou a
noite com suas sombras. Nesse momento o xeique Ibråh∑m foi até eles para ver
se estavam precisando de algo. Parou na porta, olhou para Nœrudd∑n ¢Al∑ e
disse: “Por Deus, meu senhor, que este é um dia venturoso. Você honra este
nosso lugar, pois alguém costuma dizer:

‘Se a casa soubesse quem ora a visita,
daria alvíssaras e lhe beijaria os pés,
dizendo em muda recitação:
bem-vindos, ó bondosos e generosos’”.

Já dominado pela embriaguez, Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Você está acima disso, ó
xeique Ibråh∑m. Por Deus que fomos nós que nos aproveitamos de suas dádivas.
Só mesmo a sua generosidade é que pode nos recepcionar”. An∑suljal∑s olhou
para o seu senhor e disse: “Meu senhor Nœrudd∑n, o que acontecerá se alguém
fizer o xeique Ibråh∑m beber vinho?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “Por minha
vida, você conseguiria?”. Ela respondeu: “Sim, por sua vida!”. Ele disse: “Ai de
ti! Como fará?”. Ela disse: “Meu senhor, peça-lhe, jurando por sua vida, que ele
venha até aqui. Quando ele já estiver acomodado entre nós, beba de uma taça,
finja que pegou no sono e deixe-me cuidar do resto”. Ao ouvir tais palavras de
sua concubina, Nœrudd∑n ¢Al∑ olhou para o xeique Ibråh∑m e lhe disse: “Ó
xeique Ibråh∑m, é assim que agem as pessoas?”. O xeique perguntou: “Sobre o
que você está falando, meu filho?”. Ele respondeu: “Nós somos seus hóspedes e
você nem fica conosco para nos deleitar com suas conversas e histórias a fim de
que atravessemos a noite”. O xeique Ibråh∑m olhou para os dois – já dominados
pela embriaguez do vinho, as faces avermelhadas, os sentidos confusos, os olhos
revirando-se e a testa molhada de suor –, e disse com seus botões: “Qual o
problema se eu me sentar com eles? Quando terei por aqui pessoas como eles?”.
Então entrou e se acomodou num canto do aposento. Nœrudd∑n ¢Al∑ lhe disse:
“Por minha vida, venha sentar-se perto de nós!”. O xeique se aproximou,
Nœrudd∑n ¢Al∑ encheu uma taça e, encarando o xeique, disse-lhe: “Beba,
xeique!”. O homem respondeu: “Deus me livre, eu estou cansado e sonolento”.
[72] Então Nœrudd∑n ¢Al∑ bebeu e fez o homem acreditar que pegara no sono.
An∑suljal∑s olhou para o xeique e disse: “Veja só o que esse aí faz comigo”. O
xeique perguntou: “Que tem ele?”. Ela disse: “Bebe um pouquinho e dorme,
deixando-me sozinha, sem alguém que me acompanhe na bebida”. Os membros
do xeique amoleceram, e a jovem encheu uma taça e lhe disse: “Por minha vida,
satisfaça o meu coração e beba”. O xeique estendeu a mão, pegou a taça e bebeu.
Ela encheu mais uma, da qual o xeique também bebeu e disse: “Isso me basta”.
Ela disse: “Uma ou cem, o que é que tem?”,[73] e lhe deu uma terceira taça, da
qual ele bebeu. Então ela encheu a quarta taça e a estendeu ao xeique; assim que
ele fez menção de beber, Nœrudd∑n ¢Al∑ subitamente se sentou.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

217ª
noite das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem An∑suljal∑s encheu a quarta
taça e a estendeu ao xeique, que fez menção de beber. Nesse instante, Nœrudd∑n
¢Al∑ se sentou e disse: “Ó xeique, o que é isso? Eu jurei por minha vida
pedindo-lhe que bebesse e você me disse que estava cansado e sonolento!”.
Envergonhado, o xeique respondeu: “Não tenho culpa”, e Nœrudd∑n ¢Al∑ riu.
Eles continuaram bebendo e a jovem An∑suljal∑s disse às escondidas para
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån: “Beba e não lhe ofereça, que eu vou mostrar uma
coisa a você”, e puseram-se a beber e a oferecer bebida um ao outro. O xeique
olhou para eles e disse: “O que é isso? Não vão me oferecer?”. Ao ouvirem essas
palavras, ambos riram, e continuaram a beber e a oferecer ao xeique até que
metade da noite se passou. An∑suljal∑s disse: “Vou acender uma dessas velas
enfileiradas”. O xeique disse: “Vá e não acenda mais que uma”. A jovem se
levantou, acendeu todas as velas, o xeique não disse nada e ela se sentou. Depois
de algum tempo, Nœrudd∑n ¢Al∑ disse ao xeique: “E o que você vai me
oferecer? Deixe-me acender um desses lampiões”. O xeique disse: “Vá e não
acenda mais que um”. Nœrudd∑n ¢Al∑ se levantou e acendeu todos os
lampiões, e o local ficou profusamente iluminado. Vencido pela embriaguez, o
xeique disse: “Vocês são mais debochados do que eu”, e abriu as oitenta janelas.
Quis o destino que, naquela mesma noite, em seu palácio, o califa fosse para a
janela que dava para o rio Tigre. Olhando distraidamente, ele viu o Palácio das
Estátuas como que incendiado. Em grande alvoroço, considerando aquilo o fim
do mundo, mandou convocar seu vizir Ja¢far, a quem lançou um olhar
encolerizado e disse: “Seu cachorro de vizir, a cidade de Bagdá foi tomada de
mim e você nem me avisa!”. Ja¢far respondeu: “Por Deus, por Deus,
comandante dos crentes! Estas são palavras bem drásticas!”. O califa disse: “Seu
cachorro, se Bagdá não tivesse sido tomada, o Palácio das Estátuas não estaria
aceso nem suas janelas estariam abertas. Quem teria coragem de fazer isso, a não
ser tomando o califado de nós?”. Com os membros tiritando, Ja¢far perguntou:
“Ó comandante dos crentes, quem lhe informou que o Palácio das Estátuas está
aceso e que suas janelas foram abertas?”. O califa respondeu: “Ai de ti! Venha cá
e veja!”. Ja¢far se aproximou então do califa, olhou para a direção do jardim e
viu que o palácio parecia estar em chamas em meio à escuridão mais cerrada.
Querendo encobrir alguma falha do capataz Ibråh∑m – pois agora ele tinha
certeza de que o homem recebera visitas –, o vizir disse: “Ó comandante dos
crentes, o xeique Ibråh∑m veio me procurar na última sexta-feira e disse: ‘Meu
senhor, eu gostaria de circuncidar os meus filhos durante a vida do comandante
dos crentes e durante a sua vida’. Perguntei-lhe: ‘E o que você quer?’, e ele
respondeu: ‘Autorização do califa para que a circuncisão seja no palácio’. Eu lhe
disse: ‘Pode fazê-lo. Eu irei me reunir com o califa e informá-lo a respeito’, mas
me esqueci de lhe contar, ó comandante dos crentes”. O califa disse: “Ó Ja¢far,
você tinha uma culpa perante mim e agora se tornaram duas, a primeira por não
ter me contado, e a segunda por não ter entendido o objetivo do xeique, pois ele
só veio até você e lhe disse aquelas palavras para pedir algum dinheiro que o
auxiliasse nos gastos com a circuncisão. Você não lhe deu nada, tampouco me
informou para que eu desse algum presente a ele”. O vizir disse: “Eu me distraí,
ó comandante dos crentes”. O califa disse: “Pelo túmulo de meus pais e
ancestrais que não completarei o resto de minha noite senão junto com eles.
Nessa questão estão envolvidos grandes interesses para mim e para eles. O
interesse deles é que ficarão mais tranquilos e apaziguados com a minha
presença, e isso deixará o xeique Ibråh∑m contente; quanto ao meu interesse, eu
verei os homens pios e religiosos que estão reunidos com ele”.[74]
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

218ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o califa disse a Ja¢far: “Veremos os
homens pios que estão reunidos com o xeique Ibråh∑m”. O vizir disse: “Ó
comandante dos crentes, já é tarde e eles agora já devem ter acabado”. O califa
disse: “É imperioso que eu vá para lá, seja como for”. Atônito e sem saber o que
fazer, Ja¢far se calou. O califa se pôs de pé, secundado pelo vizir e por seu
criado Masrœr, e saíram os três disfarçados. Saíram do palácio, atravessaram as
ruas de Bagdá em roupas de mercadores e rumaram para o jardim, cuja porta o
califa encontrou aberta. Espantado, disse: “Ó Ja¢far, o xeique Ibråh∑m deixou a
porta aberta até agora, embora não seja esse o seu costume. Talvez a festa o
tenha de fato distraído”. Eles entraram e foram até o fim do jardim, parando sob
o palácio. O califa disse: “Ó Ja¢far, eu gostaria de dar uma espiada neles antes
de entrar, para ver o que estão fazendo e quem são os religiosos presentes, pois
eu não estou ouvindo nenhuma voz ou recitação, e tampouco há pobres fazendo
pedidos. Isso se deve, sem dúvida, a uma extraordinária reverência”. E,
perscrutando o lugar, o califa viu uma árvore bem alta e disse: “Por que não me
aproveitar desta árvore? Vou subir nela, pois seus galhos estão próximos das
janelas e olharei lá dentro para ver o que estão fazendo”. O califa trepou naquela
árvore e não parou de escalar de galho em galho até que subiu num galho que
ficava diante das janelas; olhou o palácio e viu um jovem e uma jovem que
pareciam duas luas, bem como o xeique Ibråh∑m com uma taça de mosteiro na
mão e dizendo: “Ó dama das graciosas, bebida sem música é preferível que seja
ao jarro devolvida, pois o poeta diz:

‘Faça-a rodar entre grandes e pequenos,
pegue-a de minha mão, esta lua luminosa,
e nunca beba sem música, pois eu notei que
até os cavalos quando bebem emitem sons’”.

Ao ver o xeique com aquele comportamento, gotas de cólera começaram a
pingar por entre os olhos do califa, que olhou para Ja¢far e disse: “Já vi os
homens pios que estão lá dentro. Suba você também e veja, não vá perder as
bênçãos dos homens pios”. Ao ouvir aquilo, Ja¢far ficou com a razão atônita e
subiu na árvore para olhar. Viu o velho capataz, Nœrudd∑n ¢Al∑ e a jovem
bebendo. Sua cor se alterou e, certo de que perderia a vida, ele desceu da árvore
e estacou. O califa lhe disse: “Enfim, alcançamos a cerimônia de circuncisão!”.
Ja¢far não pôde responder, tamanha era a sua vergonha e seu pavor. O califa
perguntou-lhe: “Quem fez essas pessoas chegarem aqui e como elas se atreveram
a entrar no meu palácio? Contudo, eu nunca vi beleza igual à desse jovem e à
dessa jovem”. Buscando agradar ao califa, Ja¢far disse: “É verdade, ó
comandante dos crentes”. O califa disse: “Ó Ja¢far, subamos você e eu até o
galho que está diante deles para assistir-lhes a noitada”, e subiram os dois até o
tal galho; puseram-se a olhar, e ouviram o xeique perguntando à jovem: “Ó dama
das graciosas, o que ainda falta neste nosso festim?”. Ela respondeu: “Se você
dispuser de algum instrumento musical, nossa alegria será completa”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

219ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que An∑suljal∑s disse ao xeique: “Se você
dispuser de algum instrumento musical, nossa alegria será completa”. O xeique
disse: “Eu já trago”, e saiu. O califa perguntou a Ja¢far: “O que ele foi buscar?”.
Ja¢far respondeu: “Não sei, ó comandante dos crentes”. O xeique sumiu por
alguns instantes e voltou empunhando um alaúde. Após observar com atenção e
constatar que o alaúde pertencia ao músico Is¬åq Annad∑m, o califa disse: “Ó
Ja¢far, aquela jovem pegou o alaúde! Contudo, pelo túmulo de meus pais e
ancestrais, se ela cantar bem, eu os perdoarei e crucificarei você, e se ela cantar
mal, crucificarei vocês todos”. Ja¢far disse: “Ó meu Deus, faça com que ela
cante bem mal”. O califa perguntou: “E por que isso?”. Ja¢far respondeu: “Para
que você nos crucifique todos juntos e assim possamos nos distrair uns com os
outros”. O califa riu. De repente, a jovem dedilhou as cordas do alaúde após tê-
lo experimentado e afinado, e começou a tocar de modo estupendo, produzindo
nostalgia nos corações e deixando melancólico o mais saudável. Ela cantava:

“Ó quem repele os amantes miserandos,
façam o que fizerem, nós o merecemos:
Protegemo-nos em vocês, de vocês, por vocês,
ó quem estende as mãos aos miserandos!
Não nos matem, somos pobres coitados,
e pensem em Deus quando nos fizerem algo.
Não há glória em nos matar dentro de sua casa,
mas tememos que vocês prevariquem conosco”.

O califa disse: “Ó Ja¢far, eu nunca ouvi nada igual a isso!”, e o vizir, percebendo
por tais palavras que o califa já estava apaziguado, disse: “É verdade, ó
comandante dos crentes”. Ambos desceram da árvore, e o califa disse a Ja¢far:
“Eu quero ficar entre eles e ouvir a jovem cantar na minha frente”. O vizir disse:
“No momento em que entrarmos lá, estragaremos o festim e o xeique vai morrer
de medo dentro de sua pele”. O califa disse: “Eu farei com que ele não me
reconheça”, e, deixando Ja¢far ali, encaminhou-se para o lado do jardim que
dava para o rio Tigre; pensava no que faria quando encontrou um pescador
pescando nas águas que margeavam o palácio. Já havia algum tempo, o califa
ouvira alguns barulhos naquele local e perguntara ao xeique Ibråh∑m: “Que
barulho é esse?”. O xeique respondera: “Ó comandante dos crentes, são
pescadores”. O califa dissera: “Se você tornar a abrir o portão para os
pescadores, irei crucificá-lo”. E então a presença de pescadores foi proibida.
Naquela noite, o pescador de que falamos, cujo nome era Kar∑m,[75]
caminhava pela noite quando viu o portão do jardim aberto. Logo pensou: “O
capataz deve ter adormecido e esquecido a porta aberta. Deixe-me pegar a rede e
aproveitar sua distração para entrar e pescar nas águas ao lado do palácio, pois a
esta hora a pesca é garantida por causa do silêncio”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.
220ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o pescador se voltou para trás a fim de
observar o local e de repente se viu diante do califa. Reconhecendo-o, o
pescador começou a tremer e disse: “Ó comandante dos crentes, eu não fiz isso
por desrespeito às suas determinações, mas foram os filhos e a pobreza que me
empurraram a isto”. O califa lhe disse: “Nada tema, pode pescar com a minha
garantia”. Então o pescador atirou a rede e a puxou: havia pescado várias
espécies de peixes. Muito contente, o califa lhe disse: “Separe os peixes råy[76]
e limpe-os para mim”, e o homem agiu conforme o califa ordenara. Depois o
califa lhe disse: “Tire as roupas, pescador”, e ele tirou a túnica, que tinha
noventa remendos, e o turbante. O califa recolheu essas roupas, vestiu-se e disse
ao pescador: “Vista você as minhas roupas”, e ele vestiu. Em seguida, o califa
colocou um véu no rosto e disse ao pescador: “Agora vá cuidar da sua vida”;
pegou um cesto limpo, colocou nele os peixes com algumas ervas e se dirigiu até
onde estava Ja¢far, parando diante dele, que pensou tratar-se do pescador, mas,
como o califa riu, o vizir o reconheceu e perguntou: “Comandante dos crentes?”.
O califa respondeu: “Sim”, e Ja¢far disse: “Por Deus que eu não supus senão que
você fosse o pescador Kar∑m”. O califa disse: “Espere aqui, Ja¢far, até que eu
retorne”, e foi bater na porta do palácio. Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ó xeique,
alguém bate na porta do palácio”. O xeique perguntou: “Quem é?”. O califa
respondeu: “Sou o pescador Kar∑m. Soube que você está com hóspedes e vim
mostrar-lhes alguns peixes que tenho comigo”. Ao ouvirem falar em peixe,
ficaram contentes e a jovem disse: “Por Deus, por minha vida, abra e deixe-o vir
até aqui com os seus peixes”. O xeique foi então abrir a porta. Quando o califa
entrou e os saudou, o xeique lhe disse: “Boas-vindas ao ladrão viciado em
jogatina! Mostre-nos o que você tem”, e ele depositou a cesta diante deles. A
jovem An∑suljal∑s disse: “Por Deus que são bons peixes, mas se estivessem
fritos seriam melhores!”. O xeique Ibråh∑m lhe disse: “Por que você trouxe o
peixe sem fritar? O que faremos com ele? Vá fritá-lo para nós e traga-o logo!”, e
gritou com ele. O califa desceu correndo até chegar a Ja¢far, a quem disse: “Ó Ja
¢far!”. O vizir disse: “Não tenha ocorrido senão o bem, ó comandante dos
crentes”. O califa disse: “Eles pediram o peixe frito”. Ja¢far disse: “Eu frito”. O
califa disse: “Pelo túmulo de meus pais e ancestrais, o peixe não será frito senão
por minhas próprias mãos!”. Então o califa foi até a cabana do capataz e ali
encontrou tudo quanto era necessário, até mesmo sal e tomilho. Foi ao fogão, no
qual colocou a frigideira, verteu-lhe óleo de sésamo, acendeu o fogo e fritou os
peixes. Em seguida, colocou limão e rabanete, saiu levando tudo até o palácio e
depôs a refeição diante deles. Nœrudd∑n ¢Al∑ e a jovem, secundados pelo
xeique, acomodaram-se diante da refeição e comeram. Quando terminaram,
Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Ó pescador, você nos fez uma grande mercê”, e,
enfiando a mão no bolso, sacou um embrulho de papel.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

221ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Nœrudd∑n ¢Al∑ sacou do bolso um
embrulho de papel contendo trinta dinares – era o que restava do ouro que o
secretário ¢Alamudd∑n havia lhe dado quando ele saíra em viagem –, entregou-
o ao pescador e disse: “Perdoe-me, ó pescador, pois eu não tenho mais nenhum
recurso além disto. Por Deus que, se acaso eu o houvesse conhecido antes de se
esgotar a minha herança, extirparia do seu coração a amargura da pobreza. Mas
leve isto por ora, como prova de minhas boas disposições”, e atirou-lhe o
embrulho, que o califa recolheu, beijou e guardou. E como a sua intenção não
era outra senão ouvir a jovem cantando, ele disse: “Você foi generoso, amo, mas
eu gostaria que, de sua benevolência, essa jovem cantasse algo para mim”.
Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Cante, jovem, para esse pescador”. An∑suljal∑s tomou
do alaúde e tocou, depois de afiná-lo e regular-lhe as tarraxas, cantando o
seguinte:

“Doce jovem acaricia o alaúde,
e ao som o espírito quase se alçou;
quando ela canta se cura o surdo
e diz ‘muito bem’ quem era mudo”.

E tocou tão maravilhosamente que deixou as mentes atônitas. Cantou também o
seguinte:

“Estamos honrados com sua vinda para nossa terra;
espalham-se fragrâncias, a atmosfera se colore,
e por isso tenho o direito de perfumar minha casa
com almíscar, com água de rosas e cânfora”.

Admirado com aquilo, o califa disse: “Nunca vi nada igual”. Nœrudd∑n ¢Al∑
lhe disse: “Pois essa jovem é um presente meu a você”, e se levantou, fazendo
menção de vestir suas roupas e tomar algum rumo. An∑suljal∑s olhou para ele e
perguntou: “Aonde vai? Se for mesmo imperioso ir embora, pare e ouça a
descrição do meu estado”, e recitou o seguinte:

“A nostalgia, a lembrança e o tormento que carrego
tornaram meu corpo, pela dor excessiva, um fantasma.
Não suponham, meus amados, que eu os esqueci,
pois ainda sou a mesma, apesar de todo o sofrimento.
Se houver um vivente que louva a Deus com rosário
de lágrimas, serei eu a primeira a fazê-lo.
Ó aquele cujo amor se introduziu em meu coração,
tal como o vinho preparado se introduz na taça!
É esta a separação que tanto me preocupou!
Ó aquele cujo amor em meu coração e entranhas chora!
Ó filho de ¿åqån, minha súplica, minha esperança!
Ó aquele cujo amor de meu coração não sai nunca!
Se acaso você virou inimigo de nosso amo e senhor
por minha causa, tornado errante de terra em terra,
que Deus não permita que sinta minha falta, pois
você me deu a Kar∑m, o que não deixa de ser elogio”.


Quando o califa a ouviu dizer “Você me deu a Kar∑m”...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

222ª
noite das histórias das mil e uma noites

Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o califa, ao ouvir a jovem dizer “Você me
deu a Kar∑m”, voltou-se para o jovem e disse: “Meu senhor, ela mencionou na
poesia que você virou inimigo do senhor e proprietário dela. Você virou inimigo
de alguém? Alguém o procura?”. Nœrudd∑n ¢Al∑ respondeu: “Ó pescador,
sucedeu a mim e a essa jovem uma história espantosa”. O califa disse: “Conte-
me”. Nœrudd∑n ¢Al∑ perguntou: “Quer ouvir a minha história em verso ou
prosa?”. O califa respondeu: “Meu senhor, a prosa é palavra solta, e a poesia é
metrificação”.[77] Nœrudd∑n ¢Al∑ abaixou a cabeça por alguns momentos e a
seguir recitou o seguinte:

“Meu doce amigo, eu fui privado do meu lar
e a distância de minha terra me aumenta o penar.
Eu tinha um pai que sempre me acudia,
mas que ora se ausentou no sono eterno.
Depois de sua partida me ocorreram coisas
que me deixaram o fígado dilacerado.
Ele comprara no mercado uma jovem
cujo talhe ondulado os ramos invejavam.
Gastei toda a minha herança com ela
e com dádivas a homens bem situados.
As coisas se agravaram tanto que a levei
ao mercado, embora não quisesse vendê-la.
O leiloeiro então a ofereceu no mercado
e ela foi comprada por um velho pervertido,
o que me deixou extremamente furioso,
e eu a arranquei das mãos do leiloeiro,
sendo agredido com ódio pelo velho canalha
em cujo coração apareceu o ressentimento.
Ofendido, esmurrei-o, com a mão direita
e esquerda, até satisfazer o meu coração.
Depois, com medo, fugi para minha casa
e me escondi, para evitar os inimigos.
O rei do país ordenou minha prisão,
mas antes veio o honesto secretário-mor
e me ordenou que do país eu fugisse
e para derrotar os invejosos viajasse.
Saímos de casa no meio da noite,
e em Bagdá procuramos pousada,
à qual chegamos em bom tempo.
Estamos, porém, desprevenidos
e não tenho dinheiro para pagar
pela pesca que você me ofereceu.
Mas lhe dou a amada do meu coração:
ela é tudo quanto quero, minha vida e fé.
Leve agora aquilo com que o agracio
e tenha certeza de que dei meu coração”.

O califa disse: “Meu senhor Nœrudd∑n, conte-me a questão com mais clareza”,
e então o rapaz lhe contou tudo quanto lhe sucedera do começo ao fim. O califa
perguntou: “E agora, para onde você vai?”. Ele respondeu: “Por aí, pelas terras
de meu Deus”. O califa disse: “Eu lhe escreverei uma mensagem para o sultão
de Basra, Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑. Quando a ler, ele o deixará em
paz e não lhe fará mal”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

223ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o califa disfarçado de pescador disse:
“Eu lhe escreverei uma mensagem para o sultão e ele não lhe fará mal”.
Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “E por acaso existiu alguma vez um pescador que se
correspondesse com reis?”. O califa disse: “Ele e eu estudávamos juntos, na
mesma carteira e com o mesmo mestre. Era eu que lhe esclarecia as dúvidas,
mas depois ele virou sultão e eu virei pescador. Quando mando pedir-lhe algo ou
lhe escrevo uma mensagem ele atende tudo quanto eu digo e quero”. Ao ouvir
aquilo, Nœrudd∑n ¢Al∑ disse: “Escreva então para vermos o resultado”. O
califa pegou tinteiro, papel e escreveu, depois de “Em nome de Deus,
misericordioso, misericordiador”, o seguinte:

“Esta é uma carta de Hårœn Arraš∑d, filho de Almahd∑, para sua senhoria
Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑, meu primo, arbusto de minhas
benesses e copartícipe de meu reino. O homem que lhe conduz esta
mensagem é o vizir Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån. Quando ele chegar com
esta mensagem, você deve imediatamente renunciar ao reino e nomeá-lo em
seu lugar. Sem perguntas e passe bem”.

A seguir, entregou-a a Nœrudd∑n ¢Al∑, que a pegou, beijou, escondeu-a no
turbante e imediatamente se retirou. Foi isso o que sucedeu a Nœrudd∑n ¢Al∑
Bin ¿åqån. Quanto ao califa, o capataz Ibråh∑m olhou para ele e disse: “Chega,
chega. Em resumo, a história é a seguinte: você nos trouxe aí dois peixinhos que
não valiam nem vinte centavos, ganhou um embrulho de dinheiro e agora
também quer ficar com a jovem”. Antes de retornar ao grupo com os peixes
fritos, o califa dissera a Ja¢far: “Retorne ao meu palácio e traga-me um traje
completo. Esteja com Masrœr e mais quatro mamelucos diante da janela, e
quando você me ouvir gritando ‘a mim, a mim’, subam imediatamente todos,
faça-me vestir o traje e se coloque na posição de servidor”. Ja¢far fez o que o
califa ordenara e se postou diante da janela. Quando o xeique Ibråh∑m disse
aquelas coisas, o califa retrucou: “Ó xeique, eu repartirei com você o que me foi
dado por Nœrudd∑n ¢Al∑ no embrulho, mas a jovem é minha”. O xeique disse:
“Por Deus que da jovem você não verá senão o lenço de cabelo. Quanto ao
embrulho, abra-o para que eu examine. Se for prata, pegue uma moeda e me dê o
resto; se for ouro, entregue-me tudo, que eu tenho uns centavos na minha bolsa e
lhe pagarei o valor dos peixes, uma moedinha de prata. Depois, vá embora e
passe bem”. O califa disse: “Por Deus que eu não lhe darei nada”. O xeique
pegou uma bandeja e atirou-a no califa, que se desviou, e ela atingiu a parede.
Então o xeique foi para os armários procurar um porrete.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

224ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, enquanto o xeique ia para os armários
procurar um porrete para agredir o pescador, que era o califa, este gritou diante
da janela “a mim, a mim!”, e num átimo Ja¢far e os mamelucos estavam diante
dele; vestiram-lhe o traje real e o instalaram numa cadeira, colocando-se em
posição de servidores. Quando o xeique retornou com o porrete querendo agredir
o pescador, não viu senão Ja¢far parado e o califa sentado na cadeira. O xeique,
atônito e ainda meio inconsciente, pôs-se a morder os dedos e a dizer: “Será que
eu estou dormindo ou acordado?”. O califa o encarou e disse: “Ó xeique
Ibråh∑m, venha até mim! O que é isso?”. O xeique Ibråh∑m acordou então
definitivamente da bebedeira, começou a esfregar a barba branca no chão e
recitou os seguintes versos:

“Suponha que meu erro derivou de um tropeção:
o perdão é pedido aos senhores pelos servos.
Meus atos, a ignorância os impôs, reconheço:
mas o perdão e a generosidade, não se impõem?”.

Disse o narrador: então o califa perdoou o capataz, ordenou que a jovem
An∑suljal∑s fosse conduzida ao palácio – onde lhe foi atribuído um aposento
individual –, colocou criadas à sua disposição e lhe disse: “Saiba que eu enviei o
seu senhor a Basra como sultão. Quando lhe enviarmos a guarda honorífica e o
diploma de nomeação,[78] enviaremos você junto, se Deus altíssimo quiser”.
Isso foi o que sucedeu a eles. Quanto a Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån, ele viajou
sem interrupção até chegar à cidade de Basra, onde tomou o rumo do palácio do
sultão e lhe entregou a mensagem. Ao lê-la, o sultão beijou-a, colocou-se de pé
três vezes e disse: “Ouço e obedeço a Deus altíssimo e ao comandante dos
crentes”. Em seguida, fez menção de renunciar ao reino. Nesse momento
apareceu o vizir Almu¢∑n Bin Såw∑, e o sultão lhe entregou a mensagem. Após
lê-la, ele arrancou a parte em que se invocava o nome de Deus, enfiou-a na boca
e mastigou-a. O sultão perguntou: “Por que fez isso?”. O vizir respondeu: “E por
acaso você, nosso amo e sultão, está achando que essa é a letra do califa?”. O
sultão perguntou: “E por que não?”. O vizir respondeu: “Não, por sua vida, ó rei
do tempo, essa é a letra de algum demônio; falsificaram-na a fim de parecer a do
califa. Do contrário, alguém viria tomar o poder sem guarda honorífica nem
diploma de nomeação, assim, sozinho?”. O sultão perguntou: “E qual é o
parecer?”. O vizir disse: “O parecer é que você o entregue a mim e espere o
tempo necessário para sair de Bagdá e chegar a Basra. Se não chegar ordem de
nomeação, nem diploma de investidura, fique ciente de que minhas palavras são
corretas e castigue esse sujeito devido ao que ele me fez”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

225ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que, quando o vizir Bin Såw∑ pronunciou essas
palavras, o sultão disse: “Pode levá-lo”. E o vizir o levou até a sua casa, onde
gritou para os seus criados: “Estendam-no!”, e eles o estenderam. Nœrudd∑n
¢Al∑ foi espancado até desmaiar e depois acorrentado e preso. O vizir gritou
com o carcereiro, que se chamava Qu†ay†,[79] dizendo-lhe: “Jogue-o na cela
mais profunda, Qu†ay†, e torture-o”. O carcereiro torturou-o até o meio da noite,
quando ele desfaleceu. Acordou mais tarde, chorou e pôs-se a recitar a seguinte
poesia:

“Serei paciente até que a paciência se espante da minha
[paciência;
serei paciente até que Deus decida o meu caso em sua
[clemência;
quem pensar que a vida é feita de doçura e benevolência
deveria viver um dia mais amargo que a paciência”.[80]

Disse o narrador: Nœrudd∑n ¢Al∑ permaneceu nessa situação por dez dias.
O vizir quis decapitá-lo e, para tanto, levou presentes para um grupo de beduínos
desconhecidos, a quem disse: “Entreguem estes presentes ao sultão”, e eles
assim agiram. Então, o vizir lhe disse: “Amo, estes presentes não eram para
você, eles não eram senão destinados ao novo sultão”. O sultão disse: “Você me
fez lembrar dele. Vá trazê-lo para que o decapitemos”. O vizir disse: “Naquele
dia em que ele me surrou, meus inimigos zombaram de mim. Por isso, gostaria
que você me autorizasse a apregoar pela cidade: ‘Quem quiser assistir à
decapitação de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån que compareça ao palácio e poderá
fazê-lo’. Assim, afluirá gente de todo canto e a sede do meu coração será
aplacada”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

226ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse: “Assim a sede do meu
coração será aplacada”. O sultão respondeu: “Faça como quiser”. O vizir saiu e
ordenou ao arauto que apregoasse aquilo. As pessoas ouviram, choraram e se
entristeceram pelo jovem Nœrudd∑n ¢Al∑. Acompanhado de dez mamelucos, o
vizir se dirigiu à prisão e disse ao carcereiro: “Traga aquele rapaz que está aqui”.
O carcereiro o conduziu até o vizir. Nœrudd∑n ¢Al∑ abriu os olhos doloridos e
viu o vizir, seu inimigo, querendo matá-lo. Olhou bem para ele e disse: “Eu
confio no destino; por acaso você nunca ouviu aquele que disse:

‘Exerceram a opressão, e nisso exageraram;
por muito pouco, poderia ter sido outra a decisão’”.[81]

O vizir replicou: “Você está me ameaçando, seu moleque? Mas depois que eu lhe
cortar o pescoço, a despeito da vontade da população de Basra, deixe que o
destino traga o que for, pois o poeta diz:

‘Quem vive mais que inimigo
um único dia atingiu o objetivo’”.

Em seguida, o vizir ordenou aos seus criados que conduzissem Nœrudd∑n ¢Al∑
no lombo de um jumento. As pessoas choraram, cercaram-no e disseram: “Ó
senhor Nœrudd∑n, autorize-nos agora a apedrejar o vizir, colocar as nossas
vidas em risco, matar esse velho maligno e seus criados e salvá-lo desse
sofrimento, haja o que houver”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

227ª
noite das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o povo disse: “Haja o que houver”.[82]
Os guardas conduziram Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån até defronte do palácio e o
deitaram na esteira de execuções. O carrasco se aproximou, desembainhou a
espada, vendou os olhos do rapaz e o indagou duas vezes sobre seu último
desejo. Em seguida, sentou-se diante dele, retirou-lhe a venda e disse: “Meu
senhor, eu sou um servo que recebe ordens. Não tenho mais nada a fazer, e de
sua vida só restam uns instantes até que venha a ordem do sultão”. Nesse
momento, Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån olhou à direita e à esquerda, mas não viu
ninguém para socorrê-lo ou ajudá-lo. Atingido por sede intensa, começou a
recitar:

“Meus dias se acabaram e chegou a hora de morrer.
Será que algum misericordioso terá a recompensa divina,
olhando para o meu estado e descobrindo por que sofro,
e me acudirá com água para diminuir meu tormento?
Se porventura eu morrer com sede, estarei ligado
ao puro filho de ¢Al∑ no dia de seu martírio”.[83]

Disse o narrador: os circunstantes choraram. O carrasco pegou um copo de água
e estendeu-o para Nœrudd∑n ¢Al∑, mas o vizir deu um salto, gritou e deu um
golpe no copo, quebrando-o. Disse ao carrasco: “Corte-lhe o pescoço”. Os
circunstantes protestaram: “Não é justo!”. Estavam nisso quando subiu uma
poeirada e o burburinho cresceu. O sultão disse: “Procurem descobrir o que está
acontecendo”. O vizir disse: “Cortemos agora a cabeça dele!”. O sultão disse:
“Esperem para vermos o que sucede”. Aquela poeirada era de Ja¢far e de seus
acompanhantes. O motivo de sua vinda...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

228ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que certa noite o califa estava entrando no
palácio quando ouviu alguém recitando:

“O que enfrento me queima o coração e as entranhas,
pois o destino decidiu que devemos ficar separados.
Que Deus promova a reunião de todos os amantes,
e comece por mim, porque estou apaixonada”.

O califa perguntou: “Quem está nesse aposento?”. Responderam-lhe: “É a serva
An∑suljal∑s, amo, cujo proprietário o senhor enviou a Basra e lhe deu o posto
do comandante Mu¬ammad Bin Sulaymån Azzaynab∑. Ao ouvir aquilo, o califa
mandou convocar Ja¢far e lhe disse: “Esquecemos Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån,
e não lhe enviamos nem guarda honorífica nem diploma de nomeação. Tememos
que o inimigo tenha feito algo contra ele e o matado. Monte os cavalos do
correio e vá até Basra. Se você constatar que o mataram, enforque o vizir, e se o
encontrar vivo, traga-o à minha presença junto com o sultão e o vizir, estejam
como estiverem. Não se demore mais que o tempo estritamente necessário para
percorrer o caminho até lá”. Ja¢far se preparou e, acompanhado de um grupo de
notáveis do governo, imediatamente iniciou viagem.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

229ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse: “Sim”.


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Ja¢far imediatamente iniciou
uma cavalgada sem interrupção até chegar a Basra, onde Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin
¿åqån estava na situação que já descrevemos, prestes a ser decapitado, com o
carrasco diante dele empunhando a espada desembainhada. Assim que chegou,
Ja¢far apresentou-se ao sultão, cumprimentou-o e indagou sobre Nœrudd∑n
¢Al∑. O sultão então o informou das coisas nas quais se baseara. Ja¢far ordenou
que ele fosse trazido até ali, e Nœrudd∑n ¢Al∑ foi carregado sobre a esteira de
execuções, com a espada diante de si. Ja¢far ordenou que o jovem fosse
libertado, o que se fez de imediato, e que a corda fosse colocada em torno do
pescoço do vizir Almu¢∑n Bin Såw∑, que também foi amarrado. Retornaram
com todos eles a Bagdá, onde, ao chegar, apresentaram-se ao califa, colocando
Nœrudd∑n ¢Al∑ diante dele, e lhe relataram as ocorrências. O califa disse: “Ó
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån, pegue esta espada e corte a cabeça de seu inimigo
com as suas próprias mãos”. Nœrudd∑n ¢Al∑ pegou a espada e avançou na
direção do vizir, que olhou para ele e disse: “Ó Nœrudd∑n, eu agi conforme a
minha natureza, aja você conforme a sua”. Nœrudd∑n ¢Al∑ deixou a espada
cair e disse ao califa: “Meu amo, o poeta diz:

‘Enganei-o muito bem quando ele se recusou,
pois os livres são enganados por belas palavras’”.

O califa disse: “Ó Masrœr, corte você o pescoço dele”. Nesse momento Masrœr
avançou até o vizir Bin Såw∑ e aplicou uma espadeirada que lhe separou a
cabeça do corpo. O califa encarou Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin ¿åqån e disse: “Pode
pedir o que desejar”. Ele respondeu: “Meu senhor, eu não tenho necessidade
alguma de ser rei de Basra. Meu desejo é ser seu privado, desfrutar de sua
companhia e ser seu conviva”. O califa lhe atendeu o pedido e o transformou em
seu comensal, não sem antes tê-lo agraciado com a jovem serva An∑suljal∑s.
Ambos viveram da maneira mais opulenta e feliz até que lhes adveio o
destruidor dos prazeres e separador dos grupos. Que Deus esteja do nosso lado
nesse dia!
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar.
Eu lhes contarei algo mais insólito e espantoso do que isso”.
230ª
noite das histórias das mil e uma noites

JULLANÅR, A MARÍTIMA, E SEU FILHO BADR


Na noite seguinte ela disse:[84]
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que havia na Pérsia um rei de elevada
posição e grande autoridade, que possuía províncias e países, sendo obedecido
pelos súditos e acatado pelos reis persas e pelos soldados. Era justo nas
contendas entre o forte e o fraco, e tinha bom parecer, clarividência e fé; tratava
com generosidade os ofendidos; era amado pelo distante e pelo próximo, e todos
rogavam por ele, para que tivesse vida longa, vitórias e mais elevação. A sede de
seu governo era em ¿uråsån.[85] Ele possuía cem concubinas das mais diversas
raças, cada qual instalada num aposento particular, mas nunca em toda a sua vida
fora agraciado com um filho varão, muito embora fizesse promessas, desse
esmolas, praticasse toda sorte de bem e favor e rogasse a Deus para que o
agraciasse com tal filho varão, que lhe traria felicidade e herdaria o reino após a
sua morte. O rei pensava: “Receio morrer sem ter sido agraciado com um filho
varão, pois assim o reino escapará de nossas mãos e será tomado por alguém que
não carrega o nosso nome”. Cientes de que ele gostava de moças e concubinas,
os mercadores de escravos, mal botavam as mãos em alguma jovem de qualquer
raça, levavam-na até ele; se porventura o agradasse, o rei a comprava pelos mais
altos preços, enriquecendo o mercador, presenteando-o com um traje honorífico,
tratando-o com generosidade, escrevendo-lhe com sua própria letra uma carta na
qual determinava que não lhe cobrassem impostos nem taxas e elevando sua
posição ante o trono. Em consequência disso, os mercadores acorriam a ele
provenientes de todas as regiões e todos os países, oferecendo-lhe concubinas e
amásias. Apesar disso tudo, no coração do rei havia um fogo que não se apagava
e uma chama que não se ocultava.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

231ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei, apesar daquilo tudo, tinha no
coração um fogo que não se apagava e uma chama que não se ocultava, pelo fato
de não haver sido agraciado com um filho varão que herdasse o reino após a sua
morte. E nesse estado ele permaneceu durante vários anos. Então, já velho,
estando certo dia sentado no trono de seu reino – cercado pelos notáveis de seu
governo, pelos comandantes militares e pelos principais, todos sentados diante
dele, e com os escravos e serviçais em pé a seu serviço, conforme o hábito, além
do vizir, instalado a seu lado –, de repente entrou um criado e disse: “Ó rei do
tempo, está à porta um mercador com uma jovem que serve para nosso amo, o
sultão. Ele solicita conduzi-la à sua presença, e, se ela servir, ele a oferecerá a
você. O mercador lembra que neste tempo não existe mulher igual a ela, nem
mais bela ou graciosa”. O rei disse ao criado: “Traga o mercador à minha
presença”. O criado saiu e trouxe o mercador, que estava acompanhado de um
dos secretários do rei, o qual o apresentou. O mercador beijou o chão e
permaneceu inclinado. O rei ordenou-lhe então que se sentasse, conversou com
ele e lhe dirigiu palavras afáveis, até que seu terror se acalmou e desapareceu o
temor que o atingira devido à autoridade do rei. E essa é uma das marcas dos
reis, líderes e sultões: quando algum mensageiro, mercador ou outro qualquer
vem à sua presença resolver um negócio qualquer, eles o tratam com gentileza e
afabilidade para que desapareçam os temores que o acometem devido à
autoridade real. Em seguida, o rei encarou o mercador e disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

232ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o rei encarou o mercador e lhe perguntou:
“Onde está a jovem que você afirmou ser adequada para mim?”. O mercador
respondeu: “Eu lhe trarei essa jovem cuja beleza e graça, altura e esbelteza são
tamanhas que a língua é incapaz de a descrever. Ela está à porta, amo, junto com
os criados, aguardando que o rei a autorize a entrar”. O rei ordenou que fosse
trazida, e, quando ela entrou, o rei viu uma jovem alta como uma lança, enrolada
num manto de seda com brocados de ouro. Ele se ergueu do trono, entrou num
de seus aposentos e ordenou ao mercador que lhe conduzisse a jovem para ali. O
mercador assim procedeu, levando-a à sua presença e descobrindo-lhe o rosto. O
rei olhou para ela e viu que era mais bonita que um bordado e mais esbelta que
um cálamo, e que faria vergonha à lua quando esta aparecesse. Tinha sete tranças
que lhe chegavam ao chocalho na canela, semelhantes ao rabo do cavalo e ao
escuro da noite; seus olhos estavam pintados com pó negro, seu rosto era
oblongo e cheio, pesado o seu quadril e fina a sua cintura. Ao olhar para ela,
para sua beleza e graça, sua mente ficou estupefata, pois a jovem era como as
poesias que disse a seu respeito um dos que a descreveram:

“Apaixonei-me por ela assim que a exibiram,
ornamentada de respeito e gravidade;
não aumentou nem diminuiu; é contudo
avantajada, e seu manto está apertado;
no meio disso, esbelteza e boa altura:
nada a acrescentar e nada a excluir;
é um cabelo que arrasta o chocalho,
e se torna para sempre invejado”.

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for preservada”.

233ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que, ao examinar atentamente a jovem, a mente do
sultão ficou maravilhada com tanta beleza, e sua razão foi sequestrada por sua
graça; o amor por ela se apoderou de seu coração, e então ele encarou o
mercador e perguntou: “Ó xeique, qual o preço desta jovem?”. O homem
respondeu: “Ó rei, eu a comprei de outro mercador por dois mil dinares. Já faz
três anos que eu viajo com ela, por quem despendi, até chegar a você, mil
dinares. Este seu escravo não quer cobrar por ela, que é um presente ao nosso
amo, o sultão”. Ao ouvir suas palavras, o sultão o presenteou com um traje
honorífico e ordenou que lhe dessem dez mil dinares e um dos cavalos de sua
propriedade. O mercador se levantou, beijou o solo e se retirou da presença do
rei, que entregou a jovem aos cuidados das aias e criadas, dizendo-lhes:
“Arrumem-na e instalem-na num de meus aposentos privativos”. Elas
responderam: “Ouvimos e obedecemos”. Tendo recebido tal ordem, as aias e
criadas pegaram a jovem, arrumaram-na e lhe providenciaram todas as roupas,
criadas, alimentos e bebidas de que necessitava. Naquela época, o rei estava
instalado numa ilha chamada Albay®å’.[86] As criadas levaram a jovem ao
banho, trataram-na, e ela saiu dali ainda mais bela e graciosa; vestiram-na com
as roupas e as joias adequadas à sua condição, e conduziram-na ao aposento
onde ficaria, o qual dava para o mar. Ao anoitecer, o rei foi até ela e a viu parada
diante da janela olhando para o mar. Quando seu olhar cruzou com o do rei, ela
não deu a menor importância à sua vinda nem demonstrou temor, continuando
parada a olhar para o mar, sem lhe prestar atenção. Vendo-a naquela situação, o
rei compreendeu que ela provinha de povos ignorantes que desconheciam o
decoro. Olhou para ela, que parecia o sol resplandecente e os astros celestes,
trajando bonita vestimenta e usando joias que lhe multiplicavam a formosura e
aumentavam a graça e beleza. Assim olhando para ela, o rei disse: “Louvado
seja Deus, que a criou ‘de um líquido vil, num lugar seguro’”.[87] Então foi até a
jovem, que se mantinha parada diante da janela, estreitou-a ao peito, sentou-se
na cama, estendeu-a sobre a perna e começou a beijá-la e a se admirar de sua
formosura e da beleza de sua figura. Em seguida, ordenou às criadas que
trouxessem uma refeição, e elas colocaram diante dele comida em recipientes de
ouro e prata, adequados aos reis. No meio da mesa, uma grande travessa de
cristal branco contendo doce de amêndoas. O rei se pôs a comer e a dar bocados
a ela, que comia cabisbaixa, sem lhe fazer festas nem erguer a cabeça para ele.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

234ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Conta-se, ó rei venturoso, que o sultão continuou comendo e dando bocados à
jovem enquanto ela se mantinha cabisbaixa, sem lhe fazer festas ou erguer a
cabeça ou lhe dirigir a palavra. Ele lhe falava e perguntava o nome, mas ela não
se pronunciava, nem dava resposta, nem se manifestava; não dizia uma só
palavra nem proferia um único som, mantendo, ao contrário, a cabeça inclinada
para o chão, e assim foi até que as demais jovens retiraram a mesa e ambos
lavaram as mãos. Vendo que ela não falava nem respondia às perguntas que lhe
fazia, o rei pensou: “Louvado seja Deus grandioso! Como é bela a figura desta
jovem, e como é ignorante! Mas não tenho dúvida de que ela é muda, pois a
perfeição pertence a Deus poderoso e excelso. Se ela falasse, seria perfeita”.
Assim, imensamente preocupado com o seu silêncio, o rei indagou às outras
jovens a seu respeito, ao que lhe responderam: “Por Deus, ó rei, que ela não nos
dirigiu uma só palavra nem proferiu um único som; ao contrário, tem
permanecido calada do jeito que nosso amo está vendo”. Então o rei mandou
convocar suas jovens, criadas e concubinas, para cantar diante dela todos os
gêneros musicais. O rei ficou intensamente emocionado com a exibição, mas a
jovem se manteve calada a olhar para todos, sem esboçar sorriso; pelo contrário,
continuou cabisbaixa e com o rosto zangado. Com o peito apertado por causa
daquilo, o rei dispensou as mulheres e ficou a sós com a jovem. Tirou a roupa,
deitou-se na cama, fê-la dormir ao seu lado, olhou para o seu corpo e viu que
parecia uma lâmina de prata, ficando então encantado ao extremo e muitíssimo
apaixonado; possuiu-a e constatou que era virgem, fato que o deixou exultante;
pensou: “Por Deus que isto é espantoso! Uma jovem que é posta à venda e
comprada, com tal beleza e perfeição, e ainda virgem! Com efeito, sua história
deve ser espantosa”. Devotou-se por inteiro a ela, que passou a gozar de elevado
prestígio junto a ele e a ocupar em seu coração uma posição grandiosa. O rei a
tornou seu destino e a elegeu sua parte neste mundo; por causa dela, abandonou
as outras concubinas, deixando de se interessar por suas amantes e mulheres, e
durante um ano viveu com a jovem como se fosse um único dia, sem que ela lhe
dirigisse uma só palavra; ele conversava com ela, mas ela não conversava com
ele nem respondia às suas perguntas, o que provocava terrível aflição ao rei.
Certo dia, ele olhou para ela...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar; será ainda mais insólito”.

235ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, passado um ano, o sultão olhou certo
dia para a jovem, pela qual estava encantado e ainda mais apaixonado e tomado
de amor, e disse: “Ó desejo de minh’alma, por Deus que meu reino perde todo o
valor ante os meus olhos quando a vejo calada, sem me dirigir a palavra nem
conversar comigo! Você, para mim, é mais querida que meus olhos, e por sua
causa abandonei todas as minhas mulheres, jovens e concubinas, elegendo você
a minha parte no mundo. Tenho tido paciência e rogado a Deus altíssimo que
suavize o seu coração, fazendo-o sensibilizar-se comigo, e que você me dirija ao
menos uma palavra se puder falar; mas, se for muda, deixe-me saber para que eu
não me angustie mais com isso. Quem sabe Deus não me agracia por seu
intermédio com um filho que constitua a minha felicidade e herde o reino após a
minha morte. Sou aqui forasteiro e solitário, não tenho parentes nem quem cuide
do reino em minha vida. Já estou velho e fraco para desempenhar minhas
funções e me ocupar dos outros. Por Deus, minha senhorinha, se você tiver
condições de responder, responda! Pobre de mim! Quisera ouvir uma só palavra
sua, e então morrer!”. Ao ouvir tais palavras do rei, a jovem manteve-se de
cabeça baixa, refletindo, e depois ergueu-a para ele, sorriu em seu rosto e disse:
“Ó rei enérgico, ó leão valoroso, que Deus o fortaleça, humilhe seus inimigos,
prolongue-lhe a vida e faça-o atingir seus intentos! Deus altíssimo atendeu aos
seus rogos, aceitou suas manifestações de humildade e confidências. Eu, ó rei,
estou grávida de você, e já se aproxima o momento de dar à luz, não sei se um
menino ou uma menina. Se acaso não estivesse grávida, não lhe dirigiria a
palavra nem o atenderia ou responderia às suas perguntas”. Ao ouvir essas
palavras, o rei ficou muito contente e se pôs a beijar-lhe o rosto, a estreitá-la ao
peito e a dizer: “Minha senhorinha, luz de meus olhos! Deus me atendeu
aliviando-me de duas preocupações: a primeira, com aquilo que me é mais caro
do que tudo quanto possuo, que é a sua capacidade de falar após esse longo
silêncio, e a outra é o fato de você ter dito ‘estou grávida’”. Em seguida, ele foi
para o seu trono, sentou-se feliz e alegre e ordenou ao vizir que distribuísse
esmolas no valor de cem mil moedas de ouro aos pobres, aos miseráveis, às
viúvas, aos despojados e aos órfãos, e o vizir procedeu conforme tais ordens.
Depois, o rei retornou à jovem e lhe disse: “Minha senhorinha, sustento de meu
coração, por que motivo você ficou comigo um ano inteiro, dormindo ao meu
lado na cama noite e dia, sem pronunciar uma única palavra, e só falou hoje?
Como você conseguiu fazer isso e qual foi o motivo daquele silêncio?”. Ela
disse: “Ó rei, saiba que eu sou forasteira, prisioneira, oriunda de terras
longínquas. Meu coração está alquebrado e dolorido porque abandonei minha
família, meus parentes, meu irmão e meu pai”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver”.

236ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando o rei ouviu as suas palavras,
perguntou: “Quanto à sua afirmação de que é forasteira e está com o coração
alquebrado, qual o motivo? Meu reino está em suas mãos e eu sou seu escravo.
Quanto à sua afirmação de que tem mãe, pai e irmão, onde estão eles? E qual é o
seu nome, ó mulher?”. Ela respondeu: “Eu lhe direi meu nome. Chamo-me
Jullanår,[88] a marítima. Meu pai era um dos reis do mar e morreu deixando seu
reino para mim, para meu irmão e para minha mãe, mas outro rei do mar se
tornou mais poderoso do que nós e nos tomou o reino. Meu irmão se chama
Øåyi¬,[89] e a minha mãe tem origem nas mulheres do mar e não nas mulheres
da terra e do chão seco. Saiba que certo dia briguei com meu irmão e saí da
presença dele jurando por Deus altíssimo que eu faria questão absoluta de me
atirar na frente de qualquer homem da terra e do chão seco. Desse modo, saí das
profundezas e me instalei no litoral da Ilha da Lua. Enquanto estava nessa
situação, eis que um velho se aproximou de mim, capturou-me e me levou para
sua casa, onde tentou me possuir, mas eu me recusei e lhe dei uma pancada na
cabeça que, de tão forte, quase o matou. Então ele me levou e vendeu para
aquele mercador que me trouxe até você, e que é um homem bom, religioso e de
brios. Ele me comprou por dois mil dinares e me vendeu a você. E se você, ó rei,
não demonstrasse sua generosidade e seu amor por mim, se não me preferisse a
todas as suas mulheres, concubinas, jovens e amantes, eu não permaneceria aqui
nem sequer uma hora, antes me atiraria no mar através desta janela e voltaria à
minha família. Fiquei envergonhada de ir até eles grávida, pois poderiam duvidar
de mim e fazer más suposições a meu respeito, ignorando que um rei me
comprara com seu próprio dinheiro e me elegera a sua parte neste mundo.
Mesmo que eu jurasse, não acreditariam”. Ao ouvir as suas palavras, o rei
agradeceu-lhe, beijou-a entre os olhos e disse: “Minha senhorinha, luz de meus
olhos, por Deus que, se você me abandonasse uma única hora que fosse, eu
morreria. Por Deus, como vocês caminham dentro da água sem se afogar nem
morrer?”. Ao ouvir a pergunta do rei, ela respondeu: “Ó rei, nós caminhamos na
água da mesma maneira que vocês caminham na terra. A água não nos faz mal
nem molha os nossos corpos”. E prosseguiu: “Saiba, ó rei, que nós
pronunciamos as palavras que estavam gravadas no anel do profeta de Deus
Salomão, filho de Davi, que a paz esteja com ele, e não somos molhados pela
água; ela não atinge nossas roupas nem nossos corpos. Saiba, ó rei, que o dia de
dar à luz se aproxima e eu gostaria de trazer minha mãe, minhas primas e meu
irmão a fim de que eles vejam que estou aqui e engravidei de você; quero torná-
los cientes de que você me comprou com seu dinheiro, tratou-me bem e é um
dos reis da terra. Isso me deixará justificada perante eles. Ademais, as suas
mulheres, mulheres da terra, não saberão como fazer uma mulher do mar dar à
luz, nem saberão me servir ou cumprir as suas obrigações. Finalmente, quero
que você saiba que estou dizendo a verdade e não mentindo, que eu pertenço às
mulheres do mar e que meu pai era rei”. Ao ouvir aquilo, o rei...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

237ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ouvir as palavras de Jullanår, o rei
lhe disse: “Aja como bem quiser e eu lhe obedecerei”. Ela disse: “Saiba, ó rei,
que nós caminhamos no mar, abrimos os olhos dentro d’água e enxergamos o
dia, o céu, o sol e tudo quanto existe sobre a terra; à noite, enxergamos a lua e as
estrelas, sem que isso nos faça mal. No mar existem comunidades e espécies de
todas as raças, tal como na terra, e mais ainda”. O rei ficou assombrado com tais
palavras. A jovem puxou da ombreira[90] uma caixinha de aloés javanês, dela
retirando uma miçanga do mesmo material; lançou-a ao fogo, assoprou e
começou a falar em uma língua que o rei não compreendia; subiu uma enorme
fumaceira, e ela disse ao rei: “Vá esconder-se naquele aposento e veja o meu
irmão, minha mãe, meus parentes e primas de um ponto em que eles não
consigam vê-lo, pois eu pretendo trazê-los aqui; então você verá o assombro que
é a obra de Deus altíssimo e essas espécies que ele criou no mar”. O rei entrou
no aposento e pôs-se a observá-la e às suas ações; ela mal terminou de
pronunciar aquelas palavras incompreensíveis e o mar se encheu de espuma, se
encapelou e cindiu, dele saindo um jovem gracioso, mais belo que a lua, com
bigode verde, rosto rosado e dentes que pareciam gemas, semelhante a Jullanår
em formosura; depois dele saiu uma velhota encanecida acompanhada de cinco
mocinhas que pareciam luas, também semelhantes a Jullanår em formosura.
Quando o rei viu a velha, o jovem e as mocinhas...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

238ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei viu o jovem, a velha e as
mocinhas caminhando sobre as águas, sem interrupção, até se aproximarem do
castelo. Jullanår foi recepcioná-los na janela. Quando se viram, deram alvíssaras
e, saltando do mar como pássaros, num instante estavam todos junto de Jullanår;
abraçaram-se e começaram a chorar queixando-se da falta que ela lhes fizera;
disseram: “Ó Jullanår, faz três anos que você nos abandonou! Por Deus que a sua
ausência tornou o mundo intolerável para nós; não achávamos graça em comer
nem em beber”. Nesse momento, ela beijou a cabeça, as mãos e os pés do irmão,
e fez o mesmo com a mãe e as primas. Em seguida sentaram-se por algum tempo
queixando-se mutuamente das dores provocadas pela separação. Perguntaram-
lhe como e com quem ela estava; a quem pertencia o castelo e como chegara
àquele lugar. Ela respondeu: “Saibam que, quando os abandonei e saí do mar,
sentei-me num canto da Ilha da Lua e fui capturada por um de seus habitantes,
que me vendeu a certo mercador, o qual, por sua vez, me vendeu ao rei desta
cidade por dez mil moedas de ouro. Estou muito bem ao seu lado, pois ele
abandonou todas as suas outras mulheres e concubinas por minha causa, e se
dedica mais a mim que a qualquer um de seus afazeres”. Ao ouvir-lhe as
palavras, o irmão disse: “Vamos, minha irmã, voltar para o nosso país e para a
nossa gente”. Quando ouviu as palavras do irmão dela, o rei quase perdeu o
juízo, tamanho foi seu medo e temor, e pensou: “Receio que ela atenda ao irmão
e parta. Eu morreria sem ela, pois a amo intensamente, sobretudo agora, que está
grávida; morrerei de saudades dela e do meu filho”. Mas Jullanår, tendo ouvido
as palavras do irmão, riu e disse: “Saiba, meu irmão, que este com quem estou é
um homem de fé, generoso e de brios, que me trata muito bem. Desde que estou
com ele nunca lhe ouvi uma única palavra grosseira. Com ele, estou na melhor
situação”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

239ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Jullanår disse ao irmão aquelas
palavras e lhe contou que estava grávida do rei: “Tal como eu sou descendente
de rei, também ele é rei e descendente de rei. Deus não me abandonou, pois ele
não tinha um filho e eu rogo a Deus altíssimo que me agracie com um filho
varão que herde o reino do pai”. Ouvindo tais palavras, seu irmão, sua mãe e
suas primas se tranquilizaram e disseram: “Você conhece a posição que desfruta
entre nós. Se for como você disse, fazemos muito gosto e temos muita honra”.
Ela disse: “Sim, por Deus!”. Tendo ouvido essas palavras, o rei, com o coração
grato, sentiu que seu amor pela jovem aumentava e percebeu que ela o amava e
pretendia permanecer ao seu lado. Em seguida, ela ordenou às criadas que
trouxessem a mesa, todas as espécies de comida, além de pratos de doces e
frutas. Seus parentes comeram e disseram: “Esse homem é estranho. Entramos
em sua casa sem convite dele, não o vimos nem comemos com ele. Apesar disso,
você lhe é grata e terna pelo que ele lhe fez de bem e generosidade”. E, como
ficassem aborrecidos com o rei, o fogo começou a sair de suas bocas em
labaredas. Quando viu aquilo, o rei quase perdeu a razão de tanto medo. Jullanår
foi até onde ele estava e lhe disse: “Ó rei, você viu e ouviu meus agradecimentos
a você, bem como as palavras deles, que pretendiam me levar para o fundo do
mar, para junto de nossos familiares”. O rei respondeu: “Que Deus a
recompense! Por Deus que não tive certeza de que você me ama senão nesse
momento”. Ela disse: “Ó rei, ‘e por acaso a recompensa pela benevolência pode
ser algo que não benevolência?’.[91] Você foi benevolente e nobre comigo,
elegendo-me a sua parte neste mundo. Como eu poderia aceitar a separação de
você?”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

240ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a jovem disse ao rei: “Como eu
poderia aceitar a separação de você? Saiba, porém, que quando eu o louvei
diante deles, meu irmão, minha mãe e minhas primas passaram a nutrir grande
amor por você, e disseram: ‘Não partiremos antes de nos reunir e fazer uma
refeição com ele, a fim de que tenhamos compartilhado do pão e do sal’. Eles
desejam muito vê-lo”. Ele respondeu: “Ouço e obedeço, mas estou com medo
deles por causa desses bólidos de fogo que vi saindo de suas bocas. Morri de
temor por isso e nem sequer estava diante deles!”. Jullanår sorriu e disse: “Você
não corre nenhum risco. Eles ficam assim quando se aborrecem, e isso só
aconteceu porque eu lhes ofereci a refeição sem que você estivesse presente”, e,
conduzindo o rei pela mão, introduziu-o onde eles estavam, com a mesa posta, a
esperá-lo. Ao entrar, ele os saudou e lhes deu boas-vindas, e os visitantes,
quando o viram, retribuíram as saudações e se desfizeram em demonstrações de
reverência e generosidade; levantaram-se, beijaram o chão diante dele e
disseram: “Ó rei do tempo, nada temos a lhe recomendar com exceção desta
pérola singular chamada Jullanår, a marítima, que é rainha, descendente de rei, e
não serve senão para você, assim você não serve senão para ela. Por Deus que
todos os reis do mar vieram pedi-la em casamento, mas nós não aceitamos dá-la
a nenhum deles, pois não suportávamos ficar longe dela por um piscar de olhos
que fosse. Se você não fosse dotado de brios, bravura, retidão e fé, Deus não o
teria agraciado com esta rainha. Louvado seja aquele que tornou você aprazível
aos olhos dela e a criou para você. Vocês são como disse o poeta:

‘Ela não servia senão para ele
e ele não servia senão para ela;
se algum outro a pretendesse,
a terra um terremoto sofreria’”.

O rei agradeceu a eles e a Jullanår, e se acomodou para se alimentar.
Conversaram até se fartar de comer, lavaram as mãos e passaram para um
cômodo agradável que ele esvaziou a fim de hospedá-los; não se separou deles
em nenhum instante pelo período de um mês completo, findo o qual Jullanår
disse: “Aproxima-se a hora de parir”. O rei providenciou todos os remédios e
beberagens que fossem necessários para ela e para a criança. Então, um dia ela
sentiu as pontadas do parto e as mulheres se juntaram ao seu redor; as pontadas
se intensificaram e, com a permissão de Deus altíssimo, ela deu à luz um bebê
varão que parecia a lua; ao olhar para ele, ficou muito feliz; sua mãe se levantou
e foi ao rei anunciar a boa-nova do nascimento de um varão.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

241ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a mãe de Jullanår foi até o rei e lhe
anunciou a boa-nova do nascimento. O rei ficou feliz, prosternou-se em
agradecimento a Deus altíssimo, distribuiu vestimentas honoríficas, deu
presentes e dinheiro. Perguntaram: “Que nome lhe dará?”. Ele respondeu:
“Chamem-no de Badr”,[92] e ordenou que os secretários e os comandantes
militares enviassem mensagens para que a cidade fosse decorada e a boa-nova,
alardeada. Libertou os presos, deu roupas aos órfãos e às viúvas, concedeu
esmolas, promoveu um magnífico banquete ao qual compareceram a nobreza e o
vulgo e libertou servos, servas e mamelucos. A festança durou dez dias, e no
décimo primeiro dia o rei se sentou ao lado de Jullanår, de seu irmão, de sua mãe
e de suas primas. O irmão de Jullanår pegou o recém-nascido Badr, brincou com
ele, fê-lo dançar e o ergueu. O rei e Jullanår estavam radiantes de felicidade; o
tio esperou que os pais se distraíssem e saiu voando com ele através da janela;
foi até o meio do mar e mergulhou, carregando o menino. Ao ver que seu filho
tinha sido levado pelo tio, que mergulhara com ele no mar e desaparecera de
suas vistas, o rei soltou um terrível grito que quase fez o seu espírito separar-se
de seu corpo, rasgou as roupas, estapeou-se e começou a chorar e a se lamuriar.
Mas Jullanår olhou para ele e disse: “Ó rei do tempo, nada tema nem se aflija
por seu filho, pois eu amo o meu filho mais que você! Meu irmão está com ele; o
mar não lhe faz mal nem existe risco de afogamento. Se meu irmão soubesse que
ele corre qualquer perigo, não teria feito o que fez. Já, já ele vai voltar com o
menino, ambos muito bem, se Deus altíssimo quiser”. Passado pouco tempo, eis
que o mar se agitou, encapelou e cindiu, dele saindo o tio Øåyi¬ e seu sobrinho,
o filho do rei, inteiramente são. Øåyi¬ saiu voando do mar e regressou até eles
tendo nas mãos o pequeno, calado e parecendo a lua. Em seguida, o tio Øåyi¬
olhou para o rei e perguntou: “Espero que você não tenha receado quando entrei
com ele na água!”. O rei respondeu: “Sim, por Deus, ó Øåyi¬, eu não achei que
ele sairia ileso”. Øåyi¬ respondeu: “Ó rei, levei-o para passar-lhe nos olhos um
pó que conhecemos e recitei para ele os nomes que estavam gravados no anel de
Salomão, filho de Davi. Entre nós, quando a criança nasce...”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

242ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Øåyi¬, o irmão de Jullanår, disse ao
rei: “Entre nós, quando a criança nasce, fazemos com ela isso que eu lhe disse.
De agora em diante, você não precisa mais temer que ele se afogue ou sufoque,
nem que qualquer água lhe faça mal. Do mesmo modo que vocês caminham
sobre a terra, nós caminhamos no mar”. E retirou do cinturão uma bolsa selada,
cujo lacre ele rompeu e a chacoalhou de cabeça para baixo; saíram dela gemas e
rubis de toda espécie dispostos em colar, trezentas esmeraldas lapidadas e
trezentas gemas lapidadas, tão grandes que pareciam ovos de pomba e
resplandeciam como a luz do sol. Então Øåyi¬ disse: “Ó rei, estas trezentas
gemas são para o seu pequeno filho Badr, e as gemas e rubis dispostos em colar
e as esmeraldas são um presente nosso para você; ainda não havíamos lhe dado
nada porque não sabíamos onde Jullanår estava, nem dela tínhamos notícia.
Vendo agora que você estabeleceu relações conosco e nos tornamos uma única
família, estamos lhe dando este presente, e na hora em que quisermos poderemos
dar outros iguais, pois estas gemas e estes rubis os temos em abundância no mar.
Eu posso lhe conseguir mais dessas joias do que qualquer um na terra e no mar,
pois conheço a localização de suas minas; para mim, é muito fácil”. Ao ver
aquelas joias, o rei ficou estupefato e, com o juízo flanando, pensou: “Cada uma
dessas joias equivale a todo o meu reino”; agradeceu ao jovem Øåyi¬, olhou
para a rainha Jullanår e lhe disse: “Estou envergonhado do seu irmão, pois ele se
mostrou superior a mim e me deu este valioso presente, que ninguém na terra é
capaz de ter igual”. A rainha agradeceu a ele e ao irmão, que disse: “Ó rei do
tempo, você tem prerrogativas prévias sobre nós, que temos a obrigação de lhe
agradecer, pois você tratou com gentileza a minha irmã e nós entramos em sua
casa e comemos de suas provisões, tal como disse o poeta:

‘Se antes de Su¢da chorar tivesse eu chorado à beça,
sem arrependimento a minha alma eu teria lavado.
Porém, ela chorou antes, e meu choro foi provocado
pelo dela. Eu disse: a preferência é de quem começa’.

Portanto, mesmo que nos puséssemos a seu serviço por mil anos ininterruptos, ó
rei do tempo, ainda assim não conseguiríamos recompensá-lo de modo
suficiente”. O rei lhe fez agradecimentos profundos. Eles permaneceram ali
durante quarenta dias, findos os quais Øåyi¬, irmão de Jullanår, beijou o solo
diante do rei e disse: “Ó rei do tempo, você foi muito generoso conosco, mas já
vamos nos tornando um fardo. Gostaríamos que a sua generosidade fizesse o
favor de nos dar permissão para partir, pois já estamos com saudades de nossos
familiares, parentes e lares. Mas não deixaremos de estar a seu serviço e de
nossa irmã Jullanår. Por Deus poderoso que o separar-me de vocês não é
agradável para o meu coração; entretanto, que fazer? Nós fomos criados no mar
e a terra não nos apetece”. Ao ouvir tais palavras, o rei se colocou em pé e se
despediu do jovem Øåyi¬, das primas e da mãe de Jullanår, que também se
despediu e chorou junto com elas a dor da separação. Disseram: “Sempre
viremos visitá-los” e pularam na direção do mar, ao qual logo chegaram e
mergulharam, sumindo de suas vistas. Muito admirado com aquilo, o rei
começou a tratar Jullanår melhor ainda, dignificando-a da melhor maneira. O
pequeno desenvolveu-se, cresceu e foi carregado nos ombros dos criados. O rei
tinha-lhe um amor bem intenso devido à sua graciosidade; quanto mais crescia,
mais belo ficava. Seu tio, sua avó e as primas de sua mãe vinham amiúde até o
rei, ali permanecendo um mês ou dois. O menino era singular entre a gente de
seu tempo, em virtude de sua beleza, formosura, esplendor e perfeição; aprendeu
caligrafia, crônicas das nações antigas, Alcorão, gramática e língua; sabia atirar
flechas e lutar com lanças.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

243ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei, de que o menino aprendeu as artes de cavalaria, tais
como lançar flechas, lutar com lanças, jogar com bola e taco e todas as coisas
indispensáveis aos filhos de reis. Na cidade, não havia ninguém, entre homens e
mulheres, que falasse de outra coisa que não dele, que era como disse a seu
respeito o poeta:

“O recato se desenhou no espelho de sua face
como um bordado, ampliando meu assombro:
parece um lampião que ficou pendurado,
com corrente de âmbar, em meio à treva”.

Disse o narrador: o rei tinha um grande amor pelo garoto. Quando se completou
o aprendizado daquilo que é necessário aos soberanos, o rei convocou os
comandantes militares, os notáveis do governo e os maiorais do reino e os fez
jurar lealdade a Badr, que agora assumiria o trono em seu lugar. Eles juraram e
ficaram muito felizes, pois gostavam muito dele, que era generoso com as
pessoas, tinha palavras gentis, praticava o bem e só falava de coisas atinentes ao
interesse geral. No dia seguinte, o rei cavalgou com os notáveis de seu governo,
colocando na vanguarda os comandantes militares e os soldados. Desfilaram
todos até a praça central e deram meia-volta. Quando se aproximaram do palácio
de governo, o rei e os comandantes apearam, colocando-se à espera do novo rei;
o estandarte real[93] foi carregado diante dele, enquanto o chefe dos oficiais ia à
sua frente. Continuaram avançando até chegar à entrada do palácio, e ali o novo
rei desmontou com o amparo de seu pai e dos comandantes. Instalou-se no trono
real – seu pai manteve-se parado diante dele, na posição de comandante –,
promulgou éditos, destituiu injustos, nomeou justos e tomou decisões até a
aproximação do meio-dia, quando então se levantou do trono real e foi até sua
mãe Jullanår, a marítima, com a coroa cingida à cabeça e parecendo a lua. Ao
vê-lo já detentor do trono, a mãe acorreu até ele, beijou-o, parabenizou-o pelo
reino e rogou que ele e o pai tivessem vida longa e permanência e que
vencessem os inimigos. Sentado com a mãe, ele descansou. Quando entardeceu,
montou e, com os comandantes à sua frente, cavalgou até a praça central, onde
jogou bola e taco até o anoitecer com o pai e os principais do governo, voltando
a seguir ao palácio com as pessoas caminhando diante dele. Continuaram
fazendo isso diariamente.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

244ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que durante um ano inteiro o rei Badr
passou a cavalgar todo dia até a praça central e, quando voltava, se instalava no
trono real e julgava as demandas do povo de seu reino, fazendo justiça entre
poderosos e paupérrimos. Completado esse ano, ele passou a cavalgar para a
caça; percorria cidades e províncias que lhe pertenciam, proclamava paz e
segurança e agia conforme agem os reis. Era singular dentre os homens de seu
tempo, nas artes de cavalaria, na coragem e na justiça para com os súditos. Certo
dia, o pai do rei Badr se dirigiu ao banho e foi atingido por um golpe de ar que
lhe causou febre; pressentiu então que ia morrer e se mudar para a vida eterna.
Fortemente adoentado, já próximo da morte, mandou chamar o filho e lhe
ministrou recomendações acerca do reino, de sua mãe e de todos os notáveis do
governo. Em seguida, convocou os comandantes militares, os maiorais e os
líderes, e os fez jurar uma segunda vez obediência a seu filho, certificando-se
assim de sua lealdade; depois, viveu mais uns poucos dias e se transferiu para a
misericórdia de Deus altíssimo. O rei Badr ficou triste pelo pai, bem como
Jullanår, os comandantes, os vizires e os notáveis do reino; escavaram-lhe um
túmulo e o enterraram.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.
245ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após o enterro, eles permaneceram um
mês de luto. O irmão de Jullanår, sua mãe e suas primas vieram dar-lhes os
pêsames pela perda do rei velho e disseram: “Ó Jullanår, ainda que tenha
morrido, ele pelo menos deixou esse adorável rapaz, esse leão rompedor, essa
lua radiante”. Os notáveis e os maiorais foram à presença do rei Badr e lhe
disseram: “Ó rei, guardar luto não é adequado senão para as mulheres. Não
imponha mais aflições a si mesmo nem a nós por causa de seu pai, pois ele já
morreu e ‘toda alma irá provar a morte’;[94] ademais, não pode ser considerado
morto quem deixou alguém como você”. Em seguida, fazendo-lhe juramentos
por suas vidas de que ele deveria cuidar-se, levaram-no a um banho. Ao
terminar, ele vestiu um traje opulento, todo de ouro cravejado de gemas e rubis,
cingiu na cabeça a coroa e se instalou no trono real, julgando as questões que lhe
eram levadas pela população, sendo equânime entre o forte e o fraco e dando ao
pobre seus direitos contra o poderoso; as pessoas o amavam e rogavam por ele,
que continuou nessas práticas por mais um ano, sendo de pouco em pouco
visitado, ele e sua mãe, pelos parentes marinhos. Sua vida voltou a ser agradável
e tranquila, e assim permaneceu por um bom tempo. Certa noite, seu tio foi até
Jullanår, cumprimentou-a, ela foi recebê-lo, abraçou-o, acomodou-o ao seu lado
e lhe perguntou: “Como vai, meu irmão? Como estão minha mãe e minhas
primas?”. Ele respondeu: “Estão bem, minha irmã, e não lhes falta senão ver a
sua face”. Jullanår lhe ofereceu algo para comer e ambos comeram. Em seguida,
a mesa foi retirada e eles começaram a conversar; falaram do rei Badr, de sua
beleza e formosura, esbelteza e estatura, seu domínio das artes de cavalaria, sua
inteligência e seu decoro. O rei Badr encontrava-se deitado e, ao ouvir a mãe e o
tio falando a seu respeito, fechou os olhos e fingiu estar dormindo para saber o
que diziam. Øåyi¬ disse a Jullanår: “Minha irmã, o seu filho já tem dezesseis
anos e ainda não se casou. Receamos que lhe aconteça algo e ele acabe não
tendo um filho varão. Eu gostaria de casá-lo com alguma rainha do mar que
tenha sua beleza e formosura”. Jullanår lhe disse: “Por Deus, meu irmão, que
você está me lembrando de um assunto que eu olvidara. Você acha que a filha de
algum rei do mar lhe corresponde, meu irmão? Vá citando os nomes delas, pois
eu as conheço todas”. Então ele começou a enumerá-las uma atrás da outra,
enquanto ela ia dizendo: “Não, não a quero para o meu filho. Não o casarei
senão com quem lhe for equivalente em beleza, formosura, inteligência, fé,
decoro, brios, domínios, nível e linhagem”. Øåyi¬ enfim lhe disse: “Por Deus,
por Deus! Não conheço mais nenhuma jovem rainha do mar; nomeei mais de
cem jovens e nenhuma agradou a você. Porém, minha irmã, veja bem se o seu
filho está dormindo ou não”. Ela disse: “Está dormindo. O que você está
querendo dizer?”. Ele disse: “Irmã, saiba que me lembrei agora da filha de um
rei do mar que serve para o seu filho, mas receio falar dela com ele acordado,
pois então seu coração ficará apaixonado e, se porventura não conseguirmos
chegar até essa jovem, sofreremos grandes fadigas, ele, nós e todos os notáveis
do governo; nos veremos envolvidos numa enorme preocupação, pois o poeta
diz:

‘De início, a paixão não é mais que brincadeira,
mas, quando se fortalece, provoca muita canseira’”.

Ao ouvir-lhe as palavras, sua irmã disse: “Você está falando a verdade, irmão.
Porém, diga-me quem é essa jovem, qual o seu nome e de quem é filha, pois
conheço todos os reis do mar e suas filhas. Se eu achar que ela serve, irei pedir-
lhe a mão a seu pai, ainda que tenhamos de perder todo o nosso reino por causa
dela. Diga quem é, pois o rapaz está dormindo”. Øåyi¬ disse: “Receio que esteja
acordado, pois o poeta diz:

‘Apaixonei-me por ele logo que o descreveram,
pois às vezes o ouvido se apaixona antes do olho’”.[95]
Finalmente Øåyi¬ contou: “Por Deus, irmã, que a única adequada para o seu
filho é a rainha Jawhara,[96] filha do rei Samandal,[97] que lhe corresponde em
esplendor, beleza e formosura. Não existe nos mares nem na terra ninguém mais
gracioso do que ela, nem de melhores qualidades, pois é dotada de faces rosadas,
fronte luminosa e dentes que parecem gemas”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

246ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Øåyi¬ disse à irmã: “Dentes que
parecem gemas, olhos negros, quadril pesado, cintura fina e rosto formoso; se
acaso se vira, envergonha as gazelas; se acaso requebra, provoca-lhes ciúmes;
doces lábios e colo suave”. Ao ouvir as suas palavras, Jullanår disse: “É verdade,
meu irmão. Já vi essa jovem várias vezes; era minha companheira em nossa
infância,[98] mas hoje faz dezoito anos que não a vejo. Por Deus que ela não
corresponde senão a ele, e ele não corresponde senão a ela”. O rei Badr, que
estava acordado, ouviu as palavras do tio e da mãe, a descrição que fizeram da
tal rainha Jawhara, filha do rei Samandal, e se apaixonou de oitiva; continuou a
fingir que dormia, mas em seu coração se acendeu por essa jovem um fogo
inapagável e uma labareda inocultável. Øåyi¬ olhou para Jullanår e disse: “Não
existe, entre os reis da terra e do mar, nenhum que seja tão estúpido quanto o pai
dela, nem tão prepotente ou arrogante. Portanto, nada fale a seu filho sobre essa
jovem até que peçamos a mão dela ao rei Samandal. Se ele a conceder, louvores
ao poder de Deus altíssimo, mas, se ele nos rejeitar e se recusar a casar a filha
com seu filho, conformemo-nos e procuremos outra”. Ao ouvir-lhe as palavras, a
irmã disse: “Esse é o melhor alvitre”, e ambos se calaram. O rei passou aquela
noite com o coração em chamas devido à paixão pela rainha Jawhara, mas
escondeu o que lhe sucedia e nada falou de seu sentimento por ela para a mãe
nem para o tio, embora estivesse ardendo em brasas. Quando amanheceu, o rei e
seu tio foram ao banho, lavaram-se, saíram, beberam e a mesa lhes foi servida. O
rei Badr, sua mãe e seu tio comeram juntos até se fartar e lavaram as mãos.
Então, Øåyi¬ levantou-se e disse ao rei Badr e à irmã: “Sentirei saudades; com
sua licença, planejei ir até minha mãe, pois já estou aqui faz uns bons dias e
todos devem estar preocupados comigo, me esperando”. Com o coração ardendo
em chamas, o rei Badr despediu-se de seu tio Øåyi¬ e, montando em seu cavalo,
cavalgou sem interrupção até chegar a um rio corrente com prado, árvores
entrelaçadas e sombras abundantes. Desmontou – estava sozinho,
desacompanhado até mesmo de seus criados – e fez tenção de dormir, mas
lembrou-se do que o seu tio Øåyi¬ dissera a respeito da jovem Jawhara, de sua
beleza e formosura, e chorou lágrimas copiosas. E, entre as coisas
predeterminadas, estava a de que, quando ele se despedira de Øåyi¬, este havia
notado que a fisionomia do sobrinho estava alterada e, temendo que ele tivesse
ouvido seu diálogo com a irmã, pensou: “Vou segui-lo para ver o que ele fará”, e
o seguiu. Quando o rei Badr se apeou nas proximidades da água corrente, seu tio
se escondeu num lugar onde o sobrinho não pudesse vê-lo e ouviu-o recitando o
seguinte:

“Quem me salva da tirania de uma jovem coxuda,
dona de um rosto como o sol, ou ainda mais belo?
Meu coração está na dependência do seu amor,
espantado por esta paixão pela filha de Samandal.
Não a esquecerei por todo o meu tempo e vida!
Não! Nem da busca de sua afeição desistirei”.

Disse o narrador: ao ouvir a poesia do sobrinho, Øåyi¬ bateu uma mão contra a
outra e disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso”. Em seguida, mostrou-se ao rapaz e lhe disse: “Meu filho, eu ouvi
suas palavras. Você, meu filho, ouviu a conversa que tive com a sua mãe esta
noite a respeito de Jawhara e a descrição que fiz dela?”. O rei Badr respondeu:
“Sim, tio, e me apaixonei por ela de oitiva. Ouvi o que vocês disseram e meu
coração se apaixonou por ela; agora não há mais retorno”. Øåyi¬ disse: “Ó rei,
vamos voltar até a sua mãe e lhe contar a história. Eu direi a ela que levarei você
comigo e lhe pedirei a mão da rainha Jawhara. Depois nos despedimos dela e
vamos cuidar disso, tendo deixado a sua mãe a par da assunto; temo que, caso eu
o leve sem consultá-la nem lhe pedir autorização, ela irá se zangar comigo e
estará coberta de razão, pois terei sido o motivo da separação entre vocês, e a
cidade ficará sem rei, não existindo ali ninguém quem os lidere ou zele por sua
condição; então, as questões do reino podem se voltar contra vocês, levando-os a
perdê-lo”. Ao ouvir as palavras do tio, o rei Badr disse: “Fique sabendo, tio, que
não regressarei à minha mãe nem a consultarei a respeito, pois sei de antemão
que, se eu voltar e consultá-la, ela não me deixará partir com você; então, não
vou voltar”. E chorou na frente do tio, dizendo: “Irei com você agora e depois
retornarei sem dizer nada à minha mãe”. Ouvindo as palavras do sobrinho,
Øåyi¬ ficou perplexo e disse: “Rogo ajuda a Deus altíssimo em todas as
situações”. Em seguida, ao ver...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

247ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr disse ao tio: “É-me
imperioso ir com você”. Então, Øåyi¬ tirou do dedo um anel no qual estavam
inscritos alguns dos nomes de Deus altíssimo e o entregou ao rei Badr, dizendo:
“Coloque este anel no dedo e você estará a salvo do afogamento e de qualquer
dano que os animais e os peixes marítimos possam lhe causar”. O rei pegou o
anel e o colocou no dedo. Em seguida, ambos mergulharam no mar e avançaram
até chegar ao palácio de Øåyi¬, no qual entraram. O rei Badr viu a avó, mãe de
sua mãe, sentada ao lado dos parentes; entrou e beijou a mão da avó, que ao vê-
lo levantou-se, abraçou-o e beijou-o entre os olhos dizendo: “Que a sua vinda
seja abençoada, meu filho. Como deixou sua mãe Jullanår?”. Ele respondeu:
“Muito bem, vovó; ela envia saudações a você e às primas”. Øåyi¬ informou à
mãe que o rei Badr se apaixonara de oitiva por Jawhara, filha do rei Samandal, e
lhe contou a história do começo ao fim; “e agora veio até aqui a fim de que eu a
peça ao pai dela e ele a despose”. Ao ouvir essas palavras, a avó do rei Badr
ficou irritada e aborrecida, e disse: “Meu filho, foi um erro mencionar essa
rainha Jawhara, filha do rei Samandal, diante de seu sobrinho, pois você sabe
que Samandal é estúpido, prepotente, de pouca inteligência e bem arrogante; a
maioria dos reis pediu-lhe a filha em casamento, mas ele os rejeitava dizendo
‘vocês não são adequados à minha filha, nem em beleza nem em domínios’ e os
expulsava. Temo que você lhe peça a mão dela e o pai lhe diga o mesmo que
disse para os outros, pois nós somos orgulhosos e voltaremos humilhados e
envergonhados”. Ao ouvir as palavras da mãe, Øåyi¬ disse: “O que fazer então,
mamãe? O rei Badr se apaixonou por esta jovem quando eu falei sobre ela para
minha irmã Jullanår, e disse que lhe é imperioso pedi-la em casamento ao pai,
ainda que tenha de trocá-la por todo o seu reino, e, se acaso Samandal não
aceitar casá-los, seu neto morrerá de paixão e ardor por ela”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

248ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Øåyi¬ disse para a mãe: “Saiba que o
meu sobrinho é superior a ela. O pai de Badr era o rei de todos os persas e ele o
sucedeu; Jawhara não é adequada senão para ele, e ele não é adequado senão
para ela. Decidi levar gemas, rubis, colares e demais presentes apropriados e
pedir ao seu pai que a case com meu sobrinho. Se ele nos questionar com base
nas posses, o rei Badr é igualmente um rei bem situado, tem mais cidades,
auxiliares e soldados; ademais, seu reino é mais vasto. É imperioso que eu tente
resolver esse problema, ainda que perca a minha vida, pois fui o responsável. Do
mesmo modo que o atirei nos mares da paixão pela jovem, tentarei uni-los, e que
Deus altíssimo me ajude nisso”. Sua mãe lhe disse: “Faça como quiser, mas
muito cuidado para não cometer nenhum equívoco quando lhe falar e responder,
pois você conhece sua estupidez e arrogância. Receio que Samandal o agrida,
pois ele não sabe reconhecer o valor de ninguém”. Øåyi¬ disse: “Ouço e
obedeço”, levantou-se, pegou dois alforjes cheios de colares, rubis, brocados,
esmeraldas, pérolas e diamantes, entregou-os a seus criados e foi acompanhado
por eles até o palácio do rei Samandal, pedindo e recebendo permissão para
entrevistar-se com ele. Quando se viu diante do rei, beijou o chão e saudou-o da
melhor maneira. Samandal se levantou e ordenou-lhe que se sentasse. Depois
que Øåyi¬ ficou bem acomodado, o rei Samandal disse-lhe: “Que a sua chegada
seja abençoada! Sua ausência nos causou saudades. Do que você precisa? Diga e
eu o satisfarei”. Øåyi¬ levantou-se, beijou o chão e disse: “Ó rei do tempo, o
meu pedido pode ser atendido em primeiro lugar por Deus altíssimo e depois
pelo rei poderoso, leão corajoso, cujas justiça e fama são divulgadas pelos
cavaleiros, e cujas notícias de generosidade, nobreza, perdão, magnanimidade e
benevolência são propagadas pelas províncias e pelos países”. E, abrindo os
alforjes, tirou deles as gemas valiosas, os colares, as pérolas, os rubis, os
brocados e os diamantes, espalhou-os diante do rei Samandal e disse: “Ó rei,
quem sabe você me faça a gentileza de receber meus presentes e agrade o meu
coração aceitando-os”. O rei Samandal disse: “Esses presentes não têm
justificativa nem cabimento. Qual o motivo de me presentear com essa riqueza
toda? Por acaso deseja alguma retribuição de mim? Diga-me qual a sua questão
e demanda; se eu puder, irei satisfazê-la agora mesmo, sem que você tenha
necessidade de se afadigar e desgastar; se eu for incapaz de satisfazê-la, estarei
desculpado, pois ‘Deus não impõe a nenhuma alma senão aquilo de que ela é
capaz’”.[99] Então Øåyi¬ se ergueu, beijou o chão e disse: “Ó rei, mas a minha
demanda você é, sim, capaz de atender, pois trata-se de algo que se encontra sob
seu domínio e lhe pertence. Eu não encarregaria o rei de uma demanda que ele
fosse incapaz de satisfazer, pois não sou louco”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

249ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Øåyi¬ disse ao rei Samandal: “Ó rei,
certo sábio disse: ‘Se quiser ser desacatado, peça o que não pode ser alcançado’.
[100] Mas minha demanda o rei pode satisfazer, pois ela está sob suas ordens e
cuidados”. O rei disse: “Fale qual é a sua demanda, explique sua história e peça
o que deseja”. Ele disse: “Ó rei do tempo, saiba que eu vim aqui pedir a pérola
singular e portentosa, a rainha excelsa Jawhara, filha de nosso amo. Não
decepcione, ó rei, quem o procura, e aceite quem o aceita”. Ao ouvir essas
palavras, o rei gargalhou de desprezo até cair sentado e disse: “Ó Øåyi¬, eu o
supunha um homem inteligente, um rapaz virtuoso, que só fala com correção e
só se pronuncia com sensatez! O que lhe deu na cabeça, o que o levou a cometer
essa enormidade, essa coisa gravíssima que é pedir em casamento as filhas dos
reis, senhores de cidades e províncias, exércitos e ajudantes? Informe quem o fez
considerar-se em tão alta conta e diminuiu tão drasticamente a sua inteligência
para que você me dirija a palavra desse modo!”. Øåyi¬ respondeu: “Ó rei, que
Deus lhe dê prosperidade! Saiba que eu não a estou pedindo em casamento para
mim, e, mesmo que o fizesse, estaria à sua altura e mais ainda, pois você sabe
que meu pai também era um rei marítimo e que hoje nosso reino se acabou por
nos ter sido usurpado. Mas eu a estou pedindo em casamento para o rei Badr,
senhor da província da Pérsia, de cujas ações e autoridade você já ouviu falar. Se
você alega que seu reino é poderoso, o do rei Badr também é, e ainda mais; se
você disser que a sua filha é graciosa, bela e formosa, o rei Badr tem a figura
melhor que a dela, é mais belo e gracioso e de caráter superior; é o mais valente
dos homens de seu tempo, o mais nobre, o mais belo e o mais justo. Se você
atender e corresponder ao meu pedido, ó rei, terá feito a coisa adequada e
resolvido a questão, tal como faria o sábio inteligente. Você sabe, ó rei, que é
imperioso que a rainha Jawhara, sua filha, nosso amo, tenha um marido. O sábio
diz: ‘É imperioso que a jovem tenha marido ou túmulo’.[101] Se você estiver
disposto a casá-la, meu sobrinho tem mais direito a ela, mas se você nos recusar
e se mostrar avaro, o rei não encontrará ninguém melhor do que nós”. Ao ouvir
as palavras de Øåyi¬ o rei ficou muito encolerizado, saiu da linha da razão e seu
espírito vital esteve a pique de lhe sair do corpo; ele disse: “Seu cachorro!
Alguém da sua laia me dirige esse discurso e fala da minha filha em
assembleias! E ainda afirma que o filho de sua irmã Jullanår equivale a ela!
Quem é você? Quem é o seu pai? Quem é a sua irmã? Quem é o filho dela?
Quem é o pai dele? De que cachorros descendem todos? Como é que você me
fala essas coisas e me faz esse discurso? Criados, peguem esse traste e cortem-
lhe cabeça!”.
Disse o narrador: os criados levaram as mãos às espadas, puxaram-nas e
foram atrás de Øåyi¬, que disparou rumo à porta do palácio. Olhou para seus
primos, guarda-costas, parentes e criados...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.
250ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem Øåyi¬ fugiu em direção à
porta do palácio, onde viu seus primos, parentes, guarda-costas, criados e
séquito, que tinham sido enviados por sua mãe para apoiá-lo; eram mais de mil
cavaleiros mergulhados em ferro e várias camadas de cotas de malha,
empunhando lanças. Quando o viram naquela situação, perguntaram: “O que
aconteceu?”. Então Øåyi¬ lhes relatou o sucedido e, ao ouvir as suas palavras,
eles confirmaram que aquele rei era estúpido e deveras arrogante. Apearam-se de
seus cavalos, desembainharam as espadas e, junto com Øåyi¬, invadiram o
palácio de Samandal e logo o viram instalado no trono do reino, com tanto ódio
de Øåyi¬ que não lhes percebeu a presença. Seus criados, serviçais, cortesãos e
companheiros não estavam preparados para combater, e então os companheiros
de Øåyi¬ entraram com as espadas. Ao vê-los, Samandal disse: “Vamos, cortem
a cabeça desses cães!”, mas, antes que se passasse uma hora, os companheiros
do rei Samandal bateram em retirada e ele foi agarrado e amarrado. Quando
ouviu que seu pai fora aprisionado e que seus companheiros e ajudantes foram
mortos, Jawhara fugiu do palácio para certa ilha, onde se escondeu em uma
árvore elevada.
Enquanto os dois grupos travavam combate, um criado de Øåyi¬ foi até a mãe
de seu patrão e a informou da batalha. Quando ouviu aquilo, o rei Badr fugiu em
disparada, receoso por sua vida, pensando: “Essa guerra foi por minha causa; sou
eu o procurado”, e fugiu sem saber para onde se dirigir. Os fados o conduziram à
ilha onde se refugiara a rainha Jawhara; chegou exausto ao sopé da árvore sobre
a qual ela estava, e se atirou ali como morto, pondo-se a descansar. Em seguida
virou-se de costas e estendeu o olhar para o topo da árvore; seus olhos caíram
sobre a rainha Jawhara, que parecia a lua quando resplandece; pensou: “Louvado
seja Deus, criador dessa figura maravilhosa. Se minha conjectura não falha, ela é
a rainha Jawhara. Acho que ela ouviu a respeito da guerra entre seu pai e meu tio
e fugiu para cá. E, caso não seja a rainha, será melhor do que ela”. E pôs-se a
refletir sobre ela e a pensar: “Vou pegá-la e perguntar-lhe quem é. Se for a
rainha, peço-a em casamento para si própria, pois é esse o meu objetivo”. Então,
dirigindo a palavra à jovem, disse-lhe: “Ó alvo extremo de busca, quem você é e
quem a trouxe a este lugar?”. Ela olhou para o jovem, que parecia o plenilúnio
completo, de membros esbeltos e sorriso gracioso, e disse: “Ó gracioso de
formas, eu sou a rainha Jawhara, filha do rei Samandal. Fugi para cá porque
Øåyi¬ e seus soldados entraram em guerra com meu pai, mataram a maioria dos
seus soldados, prenderam-no e acorrentaram-no. Então, temerosa por minha
vida, fugi para esta ilha”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

251ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha Jawhara disse ao rei Badr:
“Então, temerosa por minha vida, fugi para esta ilha”. Ao ouvir-lhe as palavras,
Badr ficou espantado com essa insólita coincidência, e pensou: “Não restam
dúvidas de que meu tio Øåyi¬ derrotou o rei Samandal”, e, exultante, concluiu
seu pensamento: “Tampouco restam dúvidas de que eu alcancei meu alvo e
consegui o que procurava com a prisão do pai dessa jovem”. E, olhando para ela,
disse: “Minha senhora, desça até mim, pois eu morro de paixão por você, e sou
cativo de seus olhos. Foi por nossa causa que se deram estas sedições e guerras.
Saiba que eu sou o rei Badr, senhor da terra da Pérsia, e meu tio paterno é Øåyi¬,
que foi até o seu pai pedi-la em casamento para mim. Saiba também que
abandonei o meu reino, minha mãe e meus familiares, exilei-me de meu torrão
natal, separei-me de meus companheiros e amigos e vim por sua causa. Já que
ocorreu esta coincidência, desça até mim e vamos juntos para o palácio do seu
pai. Pediremos ao meu tio Øåyi¬ que o liberte e me casarei licitamente com
você”. Ao ouvir-lhe as palavras, a rainha Jawhara disse de si para si: “Então foi
por causa desse pulha imprestável, desse covarde miserável que tudo isso
aconteceu, meu pai foi preso, seus companheiros e soldados foram mortos e eu
fiquei vagando longe da minha terra, vindo como prisioneira para esta ilha! Se
eu não preparar uma artimanha, esse traste vai me agarrar e alcançar seu
objetivo, pois está apaixonado, e o apaixonado, por mais que apronte, ninguém o
condena”. E o enganou com palavras e doce discurso, pondo-se a bancar a
manhosa, a mexer as sobrancelhas e a piscar; ela disse: “Ó luz de meus olhos!
Você é o rei Badr, filho de Jullanår, a marítima?”. Ele respondeu: “Sim, minha
senhora”. Ela disse: “Que Deus corte as mãos do meu pai, subtraia o seu reino,
não lhe console o coração nem o devolva do exílio! Que pretendia ele? Alguém
superior a você, ou melhor que esses membros graciosos, ou mais esbelto do que
essa justa estatura? Por Deus que ele é um homem de pouco discernimento e
capacidade”, e continuou: “Ó rei, se a sua paixão por mim tem um palmo, a
minha por você tem duas braças. Já caí na rede da paixão por você e faço parte
das mortas por sua causa. A paixão que estava em você se transferiu para mim, e
em mim se multiplicou”. Então Jawhara desceu da árvore, aproximou-se do rei
Badr, abraçou-o, estreitou-o ao peito e começou a beijá-lo. Ao ver-lhe tal atitude,
o amor do rei Badr aumentou e sua paixão se intensificou; supondo que a jovem
estava apaixonada, confiou nela e começou a beijá-la e a estreitá-la ao peito,
enquanto pensava: “Por Deus que o meu tio não descreveu nem a quadragésima
parte de sua beleza, nem um grão de sua formosura”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

252ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr pensou: “Nem um grão de
sua formosura”, e então a jovem estreitou-o ao peito, pronunciou palavras que
ele não compreendeu, cuspiu em seu rosto e disse: “Seu pulha imprestável, saia
da forma humana para a forma da mais bela das aves, de penas brancas e bico e
pés vermelhos”. Ela mal terminou suas palavras e, como um raio, o rei Badr se
transformou, passando da forma humana para a de uma ave de bela aparência.
Ele se sacudiu e, pondo-se de pé, olhou para a rainha Jawhara, que trouxera
consigo para aquele lugar uma de suas criadas, a quem disse: “Por Deus que, não
fosse o receio de que meu pai seja prisioneiro do tio dele, eu o mataria. Que
Deus não lhe dê boa recompensa nem o faça recobrar a integridade! Como foi
agourenta a sua vinda! Toda essa sublevação se deve a ele. Vamos, criada,
pegue-o e leve-o até a Ilha Ressecante; deixe-o lá e volte rápido para cá”. A
criada pegou o rei, que estava na forma de ave, e se dirigiu com ele para a Ilha
Ressecante; deixou-o ali e fez tenção de voltar, mas disse de si para si: “Por
Deus que essa beleza e formosura não merecem morrer de sede” e, recolhendo-o
daquele lugar, conduziu-o a uma outra ilha, grande e repleta de água e frutas,
verdejante e fértil. Depositou-o ali e regressou até a rainha Jawhara, a quem
informou do que fizera.
Isso foi o que sucedeu a Badr e a Jawhara. Quanto a Øåyi¬, tio do rei Badr,
quando ele dominou o rei Samandal, matando seus auxiliares e criados e
aprisionando-o, procurou por Jawhara, mas não a encontrou e retornou ao seu
palácio, o palácio de sua mãe, a quem perguntou: “Mamãe, onde está o filho de
minha irmã, o rei Badr?”. Ela respondeu: “Por Deus que eu não sei o que lhe
ocorreu nem qual o seu paradeiro, meu filho. Quando ele teve notícia de que
você entrara em combate com Samandal, e que a guerra lavrava entre vocês,
ficou atemorizado e fugiu”. Ao ouvir as palavras da mãe, Øåyi¬ ficou muito
triste e disse: “Mamãe, isso tudo que fizemos não vai adiantar nada! Você
descuidou do rei Badr e agora temo que ele morra ou caia nas garras de algum
soldado do rei Samandal ou de sua filha Jawhara. Eles irão matá-lo, e entre nós e
a mãe dele pode acontecer algo muito ruim, pois eu o trouxe para cá sem o
conhecimento dela”. Em seguida, enviaram soldados e ajudantes atrás de Badr,
em todas as direções do mar, mas ninguém localizou nenhum vestígio dele nem
ouviu nenhuma notícia a seu respeito. Voltaram e informaram Øåyi¬, e então sua
tristeza e aflição cresceram. Øåyi¬ se entronizou no lugar de Samandal, que era
seu prisioneiro, com o peito opresso por causa do rei Badr. Isso foi o que
sucedeu a Badr, sua mãe e Samandal.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

253ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha Jullanår, a marítima, depois
que o seu filho Badr desceu aos mares com seu tio Øåyi¬, esperou-o, mas ele
não retornou e dele não obteve notícias; continuou esperando vários dias. Então,
após algum tempo, ela desceu aos mares e foi ao palácio de sua mãe, a qual, ao
vê-la, levantou-se, abraçou-a e beijou-a; suas primas fizeram o mesmo. Ela as
interrogou sobre seu filho, o rei Badr, e se ele viera com seu tio Øåyi¬. A mãe
respondeu: “Ele veio com o tio, que levou rubis e joias para oferecer ao rei
Samandal e pedir a mão de Jawhara para o seu filho Badr. Mas Samandal não
aceitou e dirigiu ao seu irmão palavras grosseiras. Enviei então, para socorrê-lo,
mil cavaleiros munidos de tudo e se travou a batalha e o combate entre Samandal
e seu irmão, que saiu vitorioso depois de matar-lhe os ajudantes e soldados e
aprisioná-lo. A notícia da batalha chegou ao seu filho antes da vitória do tio;
parece que ele ficou com medo e fugiu daqui, sem que eu pudesse impedir. Não
ouvimos mais nenhuma notícia a seu respeito”. Jullanår perguntou sobre seu
irmão Øåyi¬, e a mãe lhe informou que ele se entronizara no reino de Samandal,
“e enviou gente para todas as direções à procura do seu filho e da rainha
Jawhara”. Ouvindo as palavras da mãe, Jullanår ficou muito entristecida pelo
filho; chorou e ficou com mais raiva do irmão, que trouxera o rapaz para o mar
sem o seu conhecimento. Disse por fim: “Mamãe, temo pelo nosso reino, pois
vim até aqui sem avisar a nenhuma pessoa de lá. Meu receio é que, caso eu me
demore, a notícia se espalhe, as coisas se voltem contra nós[102] e o reino
escape de nossas mãos. Não me resta senão retornar logo e ir conduzindo as
coisas até que Deus altíssimo tome as suas providências. Não esqueçam meu
filho Badr nem arrefeçam em sua procura; se ele morrer, também eu estarei
inapelavelmente morta, pois não vejo o mundo senão com ele e não me alegro
senão se ele estiver vivo”. Responderam-lhe: “Com muito gosto e honra”, e a
mãe disse: “Nem pergunte, filhinha, como estou desde que ele se ausentou e
partiu”, e, por seu turno, enviou quem procurasse pelo rei Badr.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

254ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a mãe de Jullanår enviou pessoas para
procurar o rei Badr enquanto sua mãe retornava ao reino com os olhos em
lágrimas, o coração entristecido e deprimida.
Isso foi o que sucedeu entre Jullanår e sua mãe. Quanto ao rei Badr, quando a
jovem o levou até a ilha e o abandonou ali, conforme já dissemos, ele foi até as
frutas, comeu até se fartar e bebeu. Ficou nisso durante uns poucos dias, na
forma de pássaro, sem saber para onde se dirigir nem como voar. Um dia,
pousado sobre o galho de uma árvore, eis que arribou à ilha um caçador à
procura de algo com que se alimentar. Aproximou-se do rei Badr – que estava na
forma de pássaro branco, de pés e bico vermelhos, maravilhando a mente e
cativando o observador –, olhou para ele, admirou-o e pensou: “Esse é um
pássaro gracioso e belo como nunca vi igual” e, atirando uma rede sobre ele,
capturou-o e o levou para a cidade. Pensou: “Irei vendê-lo”, e foi para o
mercado, onde um homem lhe disse: “Ó caçador, qual o preço desse pássaro?”.
O caçador perguntou: “Se comprá-lo, o que fará com ele?”. O homem
respondeu: “Vou sacrificá-lo e comê-lo”. O caçador disse: “Quem teria o coração
tão insensível a ponto de sacrificar e comer este pássaro?”. O homem perguntou:
“Seu bobalhão! Para que então ele serve?”. O caçador respondeu: “Pretendo
presenteá-lo ao rei, que me dará mais do que o seu valor, pagará mais do que o
seu preço. Ele irá deleitar-se com o pássaro e com sua beleza. Em toda esta
minha vida de caçador, nunca peguei algo que se lhe equiparasse. Por mais que
você se esforce para me pagar por ele, a quanto chegaria? Um dirham. Por Deus
que nem por um dinar eu o venderia”. Em seguida, o caçador foi para o palácio
do rei e permaneceu parado ali na frente por uma hora, com a ave na mão. O rei
a viu, apreciou-lhe a beleza, a brancura das penas, o vermelho do bico e dos pés,
e disse ao seu criado: “Se ele a estiver vendendo, compre-a”. O criado foi até o
caçador e indagou: “Vende esta ave?”. Ele respondeu: “É um presente para o
rei”. O criado levou-a, entregou ao rei, e o informou do que o caçador dissera. O
rei ordenou: “Vá até ele e entregue-lhe dez dinares”. O caçador recebeu o
dinheiro, beijou o chão e se retirou. O criado levou o pássaro para o palácio do
rei, depositou-o numa bela gaiola e deu-lhe comida e bebida. Quando o rei
chegou de sua cavalgada, perguntou ao criado: “Onde está o pássaro? Traga-o
para que eu o contemple. Por Deus que é muito gracioso”. O criado retornou
trazendo o pássaro e o depôs diante do rei.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

255ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o criado trouxe o pássaro e o depôs
diante do rei. Não comera nada do que haviam posto à sua frente. O criado disse:
“Eu lhe dei esta comida, meu amo, mas ele não comeu nada. Eu lhe daria outra
coisa se soubesse quais são seus alimentos”. O rei ficou olhando para o pássaro,
espantado com sua beleza, e ordenou que a sua refeição fosse servida. As mesas
foram dispostas na sua frente e o rei comeu. Ao ver aquela refeição e aquela
carne, o pássaro voou, pousou sobre a mesa e começou a comer pão, carne,
cozidos, doces e frutas. Comeu de todo o banquete que estava diante do rei, que
ficou atônito, espantou-se com aquilo – bem como os demais circunstantes –, e
disse aos criados e mamelucos ali presentes: “Nunca em minha vida vi um
pássaro comer como esse”. Ordenou então que sua esposa viesse vê-lo. O criado
foi até ela e lhe disse: “Madame, o rei a chama para que a senhora veja um
pássaro que ele comprou; quando servimos a refeição, ele voou da gaiola,
pousou na mesa e comeu de tudo! Venha assistir, madame, pois ele é de
aparência graciosa, o maior prodígio!”. Após ouvir as palavras do criado, a
rainha foi rapidamente ver o pássaro. Assim que seus olhos caíram sobre ele, a
mulher cobriu o rosto e fez meia-volta. Vendo que a sua esposa cobrira o rosto e
fizera meia-volta, o rei correu até ela e perguntou: “O que você tem? Por que
cobriu o rosto e deu as costas? Só estão aqui os criados e as criadas que também
lhe pertencem”. Ela respondeu: “Ó rei, esse pássaro não é pássaro, mas sim
homem”. Àquelas palavras da mulher, o rei disse: “Você está mentindo!
Homem? Como poderia se tornar ave? Que brincadeira é essa?”. A mulher
respondeu: “Por Deus que não estou gracejando com você. Não falei senão a
verdade; esse pássaro é o rei Badr, senhor do reino da Pérsia, e sua mãe é
Jullanår, a marítima”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o
rei me preservar”.

256ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha informou ao marido: “Esse
pássaro é o rei Badr, senhor do reino da Pérsia, sua mãe é Jullanår, a marítima,
seu tio paterno é Øåyi¬, e sua avó se chama Faråša.[103] Ele foi enfeitiçado pela
rainha Jawhara, filha do rei Samandal”, e lhe contou a história de cabo a rabo,
como Jawhara fora pedida em casamento ao seu pai, que não aceitou, e o
combate travado entre Øåyi¬ e o rei Samandal, com a vitória do primeiro e a
prisão do segundo. Espantado com as palavras da esposa, que era a mais hábil
feiticeira de seu tempo, o rei lhe disse: “Por vida minha, liberte-o desse feitiço e
não o deixe sofrer mais nessa forma. Que Deus quebre a mão daquela meretriz
Jawhara. Que falta de fé! Que exagero de perfídia!”. A esposa respondeu: “Ó rei,
diga ao pássaro: ‘Ó rei Badr, entre no quarto’”. Assim que ouviu essas palavras
pronunciadas pelo rei, o pássaro entrou no quarto. Então a esposa do rei vestiu
um véu, cobriu o rosto, empunhou uma taça de água, entrou no quarto e proferiu,
sobre a água, palavras que ninguém compreendia, borrifou o pássaro com a água
e lhe disse: “Pelo direito destes nomes poderosos e destas juras nobres e
veneráveis, por Deus altíssimo, criador dos céus e da terra, ressuscitador dos
mortos e distribuidor das fortunas e dos prazos de vida, saia desta forma na qual
você se encontra, que é a de pássaro, para a forma na qual Deus o criou”. Mal ela
terminou de falar, o pássaro estremeceu violentamente e retomou sua forma
humana. O rei viu então um jovem superior, ao qual não existia ninguém na face
da terra. O rei Badr, ao ver aquilo, disse: “Louvado seja Deus, criador das
criaturas e determinador das coisas”, e beijou as mãos e os pés do rei dizendo:
“Que Deus o recompense!”. O rei beijou a cabeça do rei Badr e lhe disse:
“Conte-me, ó Badr, sua história, de cabo a rabo”, e ele lhe contou toda a sua
história, sem nada ocultar, deixando o rei sumamente espantado. Depois o rei
disse: “Ó rei Badr, o que você decidiu? O que pretende fazer?”. Ele respondeu:
“Ó rei do tempo, eu gostaria que a sua benemerência me preparasse um barco e
enviasse comigo alguns de seus serviçais e todo o necessário para a viagem,
conduzindo-me ao meu país, pois já faz tempo que me ausentei das vistas de
minha mãe, de meus parentes e de meu reino, o qual eu receio perder se a
demora se prolongar. Ademais, acho que minha mãe já não está viva por causa
dessa separação, sendo bem possível que tenha morrido de tristeza por não saber
onde estou, se vivo, se morto. Essa é a gentileza que peço a nosso amo, o rei”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

257ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr pediu ao rei e à sua esposa
que completassem sua atitude benemérita para com ele preparando-o para viajar.
Reparando em sua eloquência, beleza e formosura, o rei gostou dele e disse:
“Ouço e obedeço”. Preparou-lhe um barco, proveu-o de todo o necessário para a
viagem, encaminhou junto com ele um grupo de seus ajudantes particulares e se
despediu. Badr embarcou e avançou no mar com bons ventos durante dez dias
consecutivos. No décimo primeiro dia, o mar se encapelou terrivelmente e um
vendaval soprou com força, erguendo e abaixando a embarcação sem que os
marinheiros pudessem controlá-la. Permaneceram naquela situação, com as
ondas atirando-os de um lado para o outro, até que o barco se aproximou de um
rochedo contra o qual se chocou, espatifando-se. Alguns se afogaram, outros se
salvaram. O rei Badr montou numa das tábuas do barco depois de quase ter
morrido. As ondas o erguiam e abaixavam e ele não tinha noção de onde estava
indo nem aonde chegaria; tampouco dispunha de alguma artimanha contra as
ondas, sendo, pelo contrário, arrastado ao sabor dos ventos. Permaneceu nesse
estado por três dias e três noites, e no quarto dia foi jogado pelas ondas numa
praia. Observando o lugar, o rei Badr avistou uma cidade de um branco tão suave
quanto a alvura das pombas,[104] cujas estruturas eram assentadas na praia, de
excelente construção e muralhas elevadas contra as quais as ondas batiam. Ao
pousar os olhos na cidade, o rei Badr ficou contente porque estava quase
morrendo de fome e de sede. Desceu da tábua e pretendeu subir à cidade, mas
foi atacado por jumentos, asnos e cavalos tão numerosos quanto a areia;
começaram a escoiceá-lo, impedindo que subisse do mar para a cidade. O rei
Badr ficou boiando na água até chegar ao outro lado da cidade, onde subiu à
terra e não viu ninguém; espantado, pensou: “A quem pertence esta cidade? Por
que não há pessoas nem rei? Que tinham aqueles cavalos, camelos, jumentos,
asnos e vacas que me impediram de subir? A quem pertencem?”. E assim
refletindo, caminhou sem saber para onde ir. Então viu um velho xeique...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

258ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr, quando viu o velho xeique,
que era um verdureiro em sua venda, cumprimentou-o. O velho ergueu a cabeça,
retribuiu-lhe o cumprimento, examinou-o e, constatando a formosura de seu
rosto, perguntou: “De onde você veio, meu rapaz, e o que o fez chegar a esta
cidade?”. Badr contou-lhe a história toda e o xeique, sumamente espantado,
perguntou: “Meu filho, você viu alguém no caminho?”. O jovem respondeu:
“Não, por Deus que não vi ninguém, meu pai, e fiquei espantado com o fato de
estar vazia a cidade”. O velho lhe disse: “Meu filho, entre nesta venda, caso
contrário será morto”.
Disse o narrador: então o rei Badr entrou e se instalou no ponto mais elevado
da venda. O xeique lhe trouxe um pouco de comida e disse: “Entre bem para
dentro, meu filho. Louvado seja quem o salvou daquela demônia”. Bastante
amedrontado, o rei Badr comeu até ficar satisfeito, lavou as mãos, encarou o
velho e disse: “Meu senhor, qual o motivo de tais palavras? Você me deixou com
medo da cidade e de seus moradores”. O velho disse: “Saiba, meu filho, que esta
cidade é chamada de Cidade dos Feiticeiros. Há uma jovem rainha feiticeira que
parece a lua. Todos os animais que você viu são seres humanos como eu e você,
mas enfeitiçados, pois todo jovem como você que entra na cidade é pego por
aquela feiticeira ímpia, que o desfruta durante quarenta dias, findos os quais...”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.
259ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o velho disse: “Findos esses quarenta
dias, ela enfeitiça o jovem, que se transforma em jumento, asno ou algum dos
animais que você viu na praia. Quando qualquer morador desta ilha precisa
resolver algum problema, ele monta num desses animais. Todos os moradores da
ilha são feiticeiros como ela. Quando você quis ascender à ilha, eles lhe deram
coices para impedi-lo, e somente agiram assim por compaixão, a fim de que
aquela maldita não lhe faça o mesmo que fez com eles. A maldita é rainha desta
cidade, e não existe nesta época ninguém mais belo do que ela. Seu nome é Låb,
que significa ‘retificação do sol’”.[105] Ao ouvir as palavras do velho, Badr
sentiu um grande temor e começou a tremer como um relâmpago. Pensou:
“Ainda nem bem acredito que me livrei do feitiço em que estava e já os fados me
atiram num lugar cujo feitiço é bem pior”, e pôs-se a refletir sobre o que fazer.
Vendo-o tão cheio de medo, o velho disse: “Meu filho, venha sentar-se à porta da
venda e note como os habitantes da cidade são numerosos. Nada tema, pois tanto
a rainha como os habitantes me respeitam e estimam, e nunca me magoam o
coração”. Quando ouviu essas palavras, o rei Badr saiu e sentou-se à porta da
venda para espairecer.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

260ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que quando o rei Badr se sentou à porta da
venda, as pessoas passaram por ele, que as viu em quantidade incalculável. Ao
vê-lo, todos se admiraram de sua beleza e foram até o velho, a quem
perguntaram: “Ó xeique, esse é seu prisioneiro e sua caça nestes dias?”. Ele
respondeu: “Não, por Deus! Este jovem é filho de meu irmão. Ele estava
distante; fiquei sabendo que seu pai faleceu e mandei buscá-lo para matar
saudades”. Disseram-lhe: “Ele possui bonitas formas, mas receamos que a rainha
Låb acabe tomando-o de você, pois ela tem inclinação por jovens graciosos”. O
velho lhes disse: “A rainha não me desacataria; ela me respeita e estima; quando
souber que se trata do meu sobrinho, não o seduzirá nem confundirá”. O rei Badr
permaneceu junto com o verdureiro durante um mês, comendo e bebendo. O
velho adquiriu imenso afeto por ele. Passado esse período, quando o rei Badr,
conforme o hábito, estava na venda, eis que surgiram mil lacaios empunhando
espadas e vestidos de roupas sortidas, com cinturões cravejados, montados em
cavalos árabes de selas douradas. Passaram pela venda e saudaram o velho, que
lhes retribuiu a saudação; depois deles, passaram mil mamelucos que pareciam
luas, com trajes de criados e empunhando espadas douradas desembainhadas;
aproximaram-se do velho, saudaram-no e se retiraram; depois deles passaram
mil servas que pareciam luas, usando roupas sortidas de seda e cetim com
bordados de ouro, empunhando lanças e portando escudos; no meio delas, havia
uma jovem montada em uma égua árabe com sela de ouro cravejada de várias
espécies de gemas e rubis. As servas acorreram na direção do velho, saudaram-
no e ele lhes retribuiu a saudação. Em seguida, a jovem que estava no meio – e
que era a rainha Låb – parou diante do velho e saudou-o. Ele se levantou e
beijou o chão diante da jovem, que disse olhando para ele: “Ó Abœ ¢Abdillåh,
[106] esse gracioso rapaz de maneiras gentis e face radiante é seu prisioneiro?
Quando você o capturou?”. O velho respondeu: “Não, por Deus, ó rainha! Este é
meu sobrinho, a quem eu não via há tempos. Muito saudoso, mandei trazê-lo a
fim de matar as saudades e expulsar a tristeza de não o ver, pois tenho por ele um
grande amor, já estou velho e seu pai faleceu. Quando eu estiver para morrer,
terei quem me herde após a morte e cuide de mim durante a vida”. A rainha lhe
disse...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

261ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha disse ao velho: “Ó meu pai,
por que você não o doa para mim? Gostei dele! Juro pelo fogo, pela luz, pela
sombra e pelo vento abrasador[107] que farei dele a minha parte neste mundo.
Nada tema, pois eu, ainda que faça mal a qualquer um sobre a terra, não o faria a
esse rapaz. Você conhece o seu prestígio comigo e o meu prestígio com você”. O
velho replicou: “Ó rainha, não posso fazer isso; não o entregarei a você”. Ela
disse: “Juro pelo fogo, pela luz, pela sombra e pelo vento abrasador, juro pela
minha fé que somente partirei daqui com ele, e que não lhe farei mal algum nem
o enfeitiçarei. Ele não receberá de mim senão o que for de seu agrado”. Temendo
pela sua vida e pela do rei Badr, o velho não pôde desobedecer-lhe, e se limitou a
fazê-la confirmar o juramento de que não lhe faria mal e que o devolveria tal e
qual o levava; disse-lhe: “Amanhã, quando você retornar da praça, eu o
entregarei”. Ela agradeceu e rumou para o seu palácio. O velho olhou para o rei
Badr e disse: “Meu filho, era isso que me preocupava e causava receio. Ela é
adepta do zoroastrismo e jurou por sua fé que não o prejudicará nem enfeitiçará.
Ela me estima e respeita; caso contrário, teria levado você à força. É costume
dessa rainha ímpia e feiticeira fazer com os forasteiros aquilo que eu lhe disse
antes. Que Deus a amaldiçoe e abomine! Quão grande é a sua perversidade e a
sua depravação! Quão pequeno é o seu bem!”. Ao ouvir as palavras do velho, o
rei Badr disse: “Meu amo, por Deus que estou com medo dela! Já provei o gosto
do feitiço há um mês, quando a rainha Jawhara, filha do rei Samandal, me
enfeitiçou, e fez de mim uma lição para quem reflete. Não fui salvo de seu
feitiço senão pela esposa de certo rei. Já provei o gosto do sofrimento doloroso e
das provações enfrentadas pelo enfeitiçado”, e começou a chorar. Cheio de
comiseração, o velho lhe disse: “Nada tema, pois ela, ainda que faça mal aos
próprios pais, a mim não pode fazer”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

262ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o velho disse ao rei Badr: “Ainda que
ela faça mal aos seus próprios pais, a mim não pode fazer. Você não viu como
seu séquito e soldadesca pararam à porta de minha venda e me
cumprimentaram? Por Deus, meu filho, que essa rainha ímpia não gosta de
cumprimentar nem os reis, mas, toda vez que passa por aqui, cumprimenta-me e
conversa comigo, conforme você viu e ouviu”. E naquela noite eles dormiram.
Quando amanheceu, a rainha Låb chegou cercada de servas, mamelucos e
criados empunhando espadas e lanças. Parou diante da porta da venda e
cumprimentou o velho, que lhe retribuiu o cumprimento, pôs-se de pé e beijou o
chão diante dela. A rainha disse: “Ó meu pai, cumpra sua promessa e seja rápido
naquilo que ficou estabelecido”. O velho disse: “Jure de novo para mim que
você não o prejudicará nem enfeitiçará, nem lhe fará algo que o desgoste”. Ela
jurou novamente conforme a sua crença, desvelou o rosto, que parecia a lua, e
disse: “Ó meu pai, quanta soberba por causa da beleza do seu sobrinho! Não sou
eu mais bela do que ele?”. O rei Badr reparou em sua formosura e, com a mente
perplexa, pensou: “Por Deus que ela é melhor do que a rainha Jawhara! Se ela se
casasse comigo, eu abandonaria meu reino, viveria junto dela e não voltaria para
a minha mãe. Seja como for, depois de desfrutá-la por quarenta dias e quarenta
noites numa só cama, não me importo, deixe que me mate, me enfeitice... Por
Deus que cada noite passada com ela vale uma vida!”. O velho pegou a mão do
rei Badr e disse à rainha: “Receba-o de mim. É filho de meu irmão e seu nome é
Badr. Devolva-o tal qual o leva. Não lhe faça mal, nem nos separe”. Então, pela
terceira vez, a rainha jurou que não o prejudicaria nem enfeitiçaria, e ordenou
que lhe oferecessem uma boa égua com a sela inteiramente de ouro e entregou
mil dinares ao velho.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

263ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha entregou mil dinares ao velho
verdureiro e lhe disse: “Que lhe sirvam de ajuda”. Depois, pegou o rei Badr e foi
com ele, que parecia o plenilúnio ao seu lado. Todos quantos olhavam para ele e
para sua formosura se compadeciam e diziam: “Por Deus que esse jovem
gracioso não merece ser enfeitiçado por essa maldita”. O rei Badr ouvia tais
palavras calado, pois se entregara a Deus altíssimo. Avançaram sem parar até o
palácio; quando chegaram às suas portas, os comandantes, os criados e os
notáveis do governo desmontaram e se puseram a seu serviço; então, ela e o rei
Badr apearam e se sentaram no trono. A rainha ordenou aos comandantes, aos
secretários e aos responsáveis pelo governo que se retirassem, o que fizeram
depois de beijar o solo. Acompanhada pelos criados e pelas servas, a rainha foi
para o interior do palácio conduzindo o rei Badr pela mão. O lugar parecia ser
um dos palácios do paraíso: suas paredes eram salpicadas de ouro, em seu centro
existia uma grande piscina, e a seu lado um gracioso jardim com pássaros
cantando todos os ritmos e sons; os cômodos continham todo gênero de
vestimentas e utensílios. O rei Badr viu um reino portentoso e pensou: “Louvado
seja Deus, cuja generosidade e bondade enriquecem quem não o adora!”. A
rainha Låb se acomodou perto de uma janela que dava para o pomar. Estava num
trono de marfim, sobre o qual havia uma grande almofada. O rei Badr
acomodou-se ao seu lado e ela começou a beijá-lo e a estreitá-lo contra o peito.
Em seguida, ordenou às criadas que trouxessem uma mesa de ouro vermelho
cravejada de gemas e com travessas do mesmo material contendo toda espécie
de alimentos e doces. Comeram até se fartar e lavaram as mãos. A seguir foram
trazidos recipientes de ouro, prata e cristal para beber, bem como flores,
substâncias odoríferas e pratos com petiscos. Vieram dez servas que pareciam
luas empunhando toda sorte de instrumentos musicais. A rainha encheu uma
taça, bebeu e encheu...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

264ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha encheu outra taça e a estendeu
ao rei Badr, que a pegou e bebeu. Continuaram bebendo até a embriaguez se
avizinhar. Låb ordenou às servas que cantassem, e elas cantaram tantas
variedades de melodias que se afigurou ao rei Badr que o palácio estava
dançando de emoção. Sua mente ficou confusa, seu peito se tranquilizou e ele
esqueceu o exílio. Pensou: “Por Deus que esta rainha é uma jovem graciosa.
Nunca mais vou deixá-la, porque seu reino é mais extenso que o meu e ela é
superior à rainha Jawhara”. E continuou bebendo até o anoitecer, quando então
se acenderam velas e se espalhou incenso. A noitada era como disse a respeito o
poeta na seguinte poesia:

“Dia que foi todo alegria de viver,
de prazeres desfrutados em pencas,
ao lado de um riacho, céu de murta,
estrelas de narciso, sóis de rosa,
relampos de vinho, nuvens de taça,
trovões de incenso, bruma de arco-íris”.

Continuaram bebendo, enquanto as cantoras cantavam até o fim da noite.
Quando ficou bêbada, a rainha Låb esticou-se e se deitou no trono, ordenando às
servas que se retirassem.
[Mais tarde Badr contaria:[108]] “Ela me ordenou que deitasse ao seu lado e
as criadas arrancaram as roupas que ela me pusera; fiquei apenas com uma
camisa de fios de ouro, bem como Låb”.
Curtindo as delícias da vida, dormiram até o amanhecer, quando então a
rainha acordou e foi com o rei Badr ao banho do palácio, onde ambos se
lavaram. Quando saíram dali, desnudaram-se e lhes trouxeram taças de bebida,
que eles beberam. Em seguida, tendo as criadas diante de si, a rainha pegou na
mão de Badr...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

265ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha pegou na mão do rei Badr e
ambos saíram do banho precedidos das servas. Foram até o local do banquete e
se acomodaram uma hora para descansar. Prepararam-lhes uma refeição e eles
comeram, lavaram as mãos e a mesa foi retirada; trouxeram-lhes utensílios de
bebida, frutas, flores e petiscos. Ambos se mantiveram bebendo, enquanto as
servas cantavam em vários ritmos e vozes até o crepúsculo. E pelo período de
quarenta dias eles comeram, beberam, beijaram-se e rolaram.[109] Após esse
período, ela lhe perguntou: “Ó Badr,[110] onde é mais gostoso, este lugar ou a
venda do seu tio verdureiro?”. Ele respondeu: “Não, por Deus, ó rainha, que este
lugar é mais gostoso! Aquele é um pobre-diabo que vende verduras e legumes!”,
e ela riu de suas palavras. Permaneceram deitados no colchão até o amanhecer,
no mais completo gozo. O rei Badr acordou e, não a vendo, pensou: “Onde ela
foi?”. Sentiu sua falta e se pôs a aguardá-la, mas ela não retornava. Levantou-se
da cama, vestiu-se e começou a procurá-la, mas não a encontrou. Pensou:
“Talvez esteja no jardim”, e foi até lá, vendo-se então diante de um pequeno
córrego em cuja margem havia um pássaro preto, e, ao lado dele, um pássaro
branco; também havia na margem do córrego uma grande árvore, em cujo topo
estavam pousados pássaros de várias cores.
[Mais tarde ele diria:] “Pus-me a observá-los de modo que eles não me
vissem. O pássaro preto pulou três vezes em cima do pássaro branco, o qual,
depois de algum tempo, se transformou em ser humano, e eis que era a rainha
Låb! Percebi então que o pássaro preto era um homem enfeitiçado, e que ela o
amava e se transformava em pássaro para copular com ele”.
O rei Badr foi invadido pelo ciúme, irritou-se e ressentiu-se contra a rainha
Låb por causa do pássaro negro. Retornou para a cama e, depois de algum
tempo, a rainha veio até ele, beijou-o e começou a brincar com ele, que, com
muita raiva, não lhe dirigia uma única palavra. Ela percebeu a reação e ficou
certa de que ele havia visto o que o pássaro negro fizera consigo, mas não
demonstrou nada e escondeu tudo. Quando o dia clareou, ele disse: “Ó rainha, eu
gostaria que você me autorizasse a ir até a venda do meu tio, de quem estou com
saudades, pois faz hoje quarenta dias que não o vejo”. Ela respondeu: “Ó Badr,
não se demore lá, pois eu não consigo ficar longe de você, nem posso suportar a
sua ausência uma única hora!”. Ele disse: “Ouço e obedeço”, e cavalgou até a
venda do velho.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

266ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr cavalgou até chegar à venda
do velho verdureiro, que lhe deu boas-vindas, levantou-se, abraçou-o e disse:
“Como você está com aquela ímpia?”. Ele respondeu: “Vivo, bem e com saúde.
Contudo, nesta noite ela dormiu ao meu lado e, quando acordei, não a vi. Vesti
minhas roupas e procurei por ela até chegar ao jardim...”, e lhe contou o que
sucedera entre a rainha e o pássaro preto que copulara com ela. Ao ouvir suas
palavras, o velho disse: “A maldita já começou com as canalhices. Fique
prevenido e saiba que os pássaros na árvore eram todos jovens estrangeiros por
quem ela se apaixonou, dos quais desfrutou e depois transformou em aves.
Aquele pássaro preto era um de seus mamelucos, que ela amava ardorosamente.
Mas ele esticou os olhos para uma das servas, e então Låb o transformou em
pássaro. Toda vez que sente saudades dele, transforma-se em pássaro para que
ele monte em cima dela. Ela o ama, e, depois de perceber que você sabe, deixará
de ser boa. Mas não se preocupe, pois estou em sua retaguarda e não existe neste
tempo ninguém mais conhecedor da feitiçaria do que eu. Nada farei, no entanto,
antes do momento necessário, e salvarei a maioria das pessoas das mãos daquela
maldita que não tem nenhum poder contra mim e me teme. Todos os habitantes
desta cidade são como ela e adoram o fogo. Amanhã, venha até aqui e me
informe o que ela pretende fazer com você. Já nesta noite ela vai fazer algo para
destruí-lo, mas faça-a adiar para a noite seguinte, e venha até mim para que eu
lhe diga como agir”. Em seguida, o rei Badr despediu-se do velho e regressou até
a rainha, a quem encontrou sentada à sua espera. Ao vê-lo, ela se levantou, deu-
lhe boas-vindas e então trouxeram algo para comer. Ambos comeram, lavaram
as mãos e logo se trouxe bebida, e ambos beberam até o meio da noite. Ela lhe
ofereceu várias taças de vinho e ele se embriagou e perdeu o juízo. Ao vê-lo
assim, ela perguntou: “Por Deus, pelas prerrogativas daquele que você idolatra,
se eu lhe perguntar algo você me dirá a verdade?”. Ele respondeu: “Sim”, mas
tinha perdido o discernimento e não sabia o que estava dizendo. Ela perguntou:
“Meu senhor, luz dos meus olhos, quando deu por minha falta e não me
encontrou, começou a procurar por mim e veio até o jardim, não foi? Lá, você
me viu na forma de um pássaro branco e observou que um pássaro negro montou
em cima de mim, e que depois disso voltei à minha forma, não foi?”. Ele disse:
“Sim”. Ela disse: “Pois saiba que aquele pássaro negro era um dos meus
mamelucos. Eu o amava, mas ele botou os olhos em cima de uma serva;
enciumada, enfeiticei-o e o transformei em pássaro, e matei a serva. Mas não
consigo viver sem ele e, toda vez que sinto saudades, me transformo em pássaro
e o deixo me possuir, conforme você viu. É por isso que está encolerizado
comigo e enciumado. Mas eu, pelas prerrogativas do fogo e da luz, passei a amar
você mais ainda”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

267ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a rainha Låb disse ao rei Badr: “Pelas
prerrogativas do fogo e da luz, você me ama e eu o faço minha parte neste
mundo”. Ao ouvir tais palavras, ele, que estava bêbado, disse-lhe: “Isso tudo
estava em meu espírito”. Então ela o estreitou ao peito, beijou-o, afetou amor e
dormiu; ele dormiu ao seu lado. No meio da noite, ela se levantou da cama. O rei
Badr, que estava acordado mas fingia dormir, abriu um dos olhos para espreitar o
que ela fazia, e verificou que pegara um saco de terra vermelha, espalhando-o no
meio do palácio; repentinamente, aquilo virou um riacho corrente. Ela pegou um
punhado de cevada, espalhou-a à margem desse riacho, sobre a terra, regou-o
com a água do rio e o punhado de cevada se transformou em espigas que ela
colheu, debulhou e moeu. Aquilo virou uma farinha que ela recolheu, e então foi
se deitar ao lado do rei Badr, dormindo até o amanhecer. Quando amanheceu, o
rei Badr se levantou, lavou o rosto e pediu permissão à rainha para ir ver o velho.
Ela o autorizou e ele foi, encontrou o velho e o deixou a par do que a vira
fazendo. Ao ouvir aquilo, o velho riu e disse: “Por Deus que essa ímpia o
atraiçoou, mas não se preocupe com ela”. Então entregou-lhe cerca de meio
quilo[111] de farinha e lhe disse: “Leve isto consigo. Quando estiver com Låb e
ela vir esta farinha, vai perguntar: ‘O que está fazendo com isso?’. Responda:
‘Aumentar o bem é um bem’, e coma da farinha. Quando Låb lhe exibir a
farinha que ela preparou e lhe disser: ‘Coma desta farinha’, finja que está
comendo, mas coma desta que lhe dei. Muito cuidado para não comer nem um
pouco da farinha dela, ainda que o peso de um só dirham ou grão, pois nesse
caso você estará exposto às ações dela. Quando ela achar que você já comeu da
sua farinha, irá tentar enfeitiçá-lo dizendo que você saia da sua forma humana
para qualquer forma que ela quiser. É isso que Låb fará com você se comer de
sua farinha. Se não comer, não se preocupe com ela, pois seu feitiço não surtirá
efeito nem o contaminará. Então ela ficará envergonhada e dirá: ‘Eu estava
brincando com você’, e irá fingir amor e amizade, mas tudo isso não passará de
abominação. Diga-lhe: ‘Você, minha senhora, luz de meus olhos, coma desta
farinha’, e finja amor. Assim que ela comer um grão que seja, pegue água com a
palma da mão, atire-a no rosto dela e diga-lhe que saia de sua forma para
qualquer forma que você desejar, deixe-a e venha até mim para que eu lhe
prepare um útil estratagema”.[112] Então Badr se despediu, voltou ao palácio e
foi até a rainha, a qual, ao vê-lo, deu-lhe calorosas boas-vindas, levantou-se,
beijou-o, e disse: “Você demorou, meu senhor!”. Ele respondeu: “Eu estava com
meu tio, que me deu de comer desta farinha”. Ela disse: “Temos aqui uma
farinha melhor do que essa”, e colocou a farinha dele num prato e a dela em
outro; depois disse: “Coma desta farinha, que é mais gostosa que a sua”, e ele
fingiu que comia. Quando achou que Badr já comera, ela pegou água na palma
da mão, atirou-a sobre ele e disse: “Saia dessa forma, seu pulha imprestável, para
a de um jumento miserável, manco, aleijado e de horrenda aparência”. Mas Badr
não se transformou. Ao ver que ele ficara como estava, e que não se modificara,
ela se levantou, beijou-o, e disse: “Meu amado, eu estava brincando para ver o
que você diria”. Ele respondeu: “Por Deus, minha senhora, que depois do seu
amor nada poderia me modificar!”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

268ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Badr disse à rainha: “Depois do seu
amor, nada poderia me modificar[113] em relação a você, pois o meu amor é
maior que o seu. Agora, coma você da minha farinha”. Ela pegou um bocado e
engoliu. Quando chegou ao seu estômago, ela se agitou e o rei Badr colheu um
punhado de água com a palma da mão, atirou-a em seu rosto e disse: “Saia dessa
forma para a forma de uma jumenta malhada”, e imediatamente ela se
transformou e se tornou uma jumenta malhada. Ao se ver em tal estado, suas
lágrimas começaram a lhe escorrer pelo rosto, e ela se pôs a esfregar as faces nos
pés de Badr, que acorreu para lhe colocar arreios, mas ela o impediu. Ele então a
deixou ali, foi até o velho e o informou do que sucedera. O velho lhe entregou
um par de arreios e lhe disse: “Coloque-lhe estes arreios, pois ela se submeterá
quando os vir e os aceitará”. Ele os pegou e foi até Låb, que, ao vê-lo, dirigiu-se
docilmente até ele. Badr colocou-lhe os arreios na boca, montou nela, saiu do
palácio e foi até o velho, o qual disse ao vê-la: “Que Deus a amaldiçoe, sua
maldita! Como vê o que Deus lhe fez?”. Em seguida, o velho disse a Badr: “Meu
filho, você não pode mais continuar neste país. Monte nessa jumenta e vá para
onde quiser. Muito cuidado para não entregar os arreios a ninguém!”. O rapaz
agradeceu, despediu-se e viajou por três dias, ao cabo dos quais entrou numa
cidade onde foi recebido por um velho de graciosas cãs, que lhe perguntou: “De
que lugar você veio, meu filho?”. Ele respondeu: “Da Cidade dos Feiticeiros”. O
velho lhe disse: “Você será meu hóspede”. Enquanto estavam nessa conversa, de
repente surgiu uma velha que olhou para a jumenta e chorou, dizendo: “Esta
jumenta se parece com a falecida jumenta de meu filho! Meu coração vive
apenado por causa dela! Por Deus, venda-me essa jumenta, meu filho!”. Ele
respondeu: “Por Deus, minha mãe, que não posso vendê-la”. Ela disse: “Por
Deus, não recuse o meu pedido, pois meu filho morrerá inevitavelmente se acaso
eu não lhe comprar esta jumenta”, e pediu com mais intensidade. Badr disse:
“Não a venderei senão por mil dinares”. Ela disse: “Diga-me: ‘Vendida a você
por mil dinares’”. O rei Badr pensou: “Onde esta velha vai arranjar mil dinares?
Vou declarar a venda só para ver de onde ela trará tanto dinheiro”, e disse à
velha: “Vendida!”. Ao ouvir aquilo, a velha puxou da cintura mil dinares. Vendo
aquele ouro, o rei Badr perguntou: “Minha mãe, eu estava brincando com você!
Não posso vendê-la!”. Então o velho olhou para ele e disse: “Saiba, meu filho,
que nesta terra ninguém mente; quem o fizer é morto”. O rei Badr desceu da
jumenta...
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e for
preservada”.
269ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Badr desceu da jumenta e a entregou à
velha. Assim que a recebeu, a velha tirou-lhe os arreios da boca, pegou água
com a mão, atirou-a sobre ela e disse: “Saia, minha filha, dessa forma para a sua
forma humana”, e ela imediatamente se transformou, retomando sua forma
primitiva. Quando a velha olhou para ela, abraçaram-se, e cada uma beijou a
outra. O rei Badr percebeu que aquela velha era a mãe de Låb e que ele fora
enredado por um estratagema; tentou fugir, mas não conseguiu: a velha soltou
um grande assobio e surgiu diante dela um ifrit que parecia uma montanha, em
cujas costas ela montou, colocando a filha na garupa. O ifrit pôs o rei Badr no
ombro e saiu voando. Não se passou nem uma hora e lá estavam eles no palácio
da rainha Låb, que se acomodou no trono, olhou para o rei Badr e disse: “Seu
imprestável! Você chegou longe e atingiu seu objetivo, mas agora eu lhe
mostrarei o que vou fazer com você e com aquele velho verdureiro nojento.
Tanto que o tratei bem e ele agora me faz esse mal! Você só chegou aonde
chegou por meio dele!”. E, pegando água, atirou-a sobre ele e disse: “Saia dessa
forma para a forma do mais horrendo dos pássaros”, e ele imediatamente se
revirou e adquiriu a forma de um pássaro de aparência horrenda, que ela enfiou
numa gaiola sem comida nem bebida. Então uma das servas o viu e começou a
lhe dar comida e bebida às escondidas da rainha. A serva também enviou ao
verdureiro notícias e informações sobre o sucedido, avisando-o de que Låb
estava disposta a matá-lo. O velho tomou todas as precauções, refletiu sobre o
que fazer e disse a si mesmo: “É imperioso que eu tome dela esta cidade”. Em
seguida, deu um grande assobio e surgiu um ifrit de quatro asas, ao qual ele
disse: “Ó Relâmpago, pegue aquela serva que estava aflita pelo rei Badr e lhe
matou a fome e a sede e vá com ela até a cidade de Jullanår, a marítima, cuja
mãe é Faråša – ambas são as mais hábeis feiticeiras do mundo. Informe-a que o
rei Badr foi aprisionado pela rainha Låb”. Então o ifrit carregou a serva, voou e,
antes que se passasse uma hora, ele já pousava com ela no palácio da rainha
Jullanår. A serva desceu do telhado, foi até a rainha, beijou o chão diante dela e
deixou-a a par do que ocorrera com seu filho de cabo a rabo. Jullanår foi até ela,
beijou-lhe o rosto, agradeceu-lhe, ordenou que se rufassem os tambores pela
cidade em celebração e avisou a seus familiares que o rei Badr fora encontrado.
Logo Jullanår, sua mãe Faråša e seu irmão Øåyi¬ convocaram todas as tribos de
gênios e soldados do mar, pois os reis dos gênios haviam passado a prestar-lhes
obediência após a prisão de Samandal. Em seguida, voaram pelos ares e
sumiram, pousando por fim na Cidade dos Feiticeiros, onde invadiram o palácio
real e mataram, num piscar de olhos, todos quantos nele se encontravam, bem
como os moradores da cidade. Jullanår perguntou à serva: “Onde está o meu
filho?”, e ela foi pegar a gaiola e a depositou diante dela. Ao ver o filho diante
de si, Jullanår retirou-o da gaiola, pegou água com a mão e aspergiu-a sobre ele
dizendo: “Saia dessa forma para a sua forma humana pela força do senhor da
humanidade”. Mal terminou de pronunciar essas palavras, ele se transformou,
voltando a ser um humano perfeito. Quando o viu retomar sua forma, ela foi até
o filho, abraçou-o e começou a chorar, bem como seu tio Øåyi¬, sua avó Faråša
e suas primas, que se puseram a beijar-lhe os pés e as mãos. Jullanår mandou
chamar o velho verdureiro Abœ ¢Abdillåh e, quando ele surgiu na sua frente,
agradeceu-lhe a bela atitude que tivera com Badr, e o casou com a serva que fora
informá-la do ocorrido.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

270ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o velho se casou com a serva conforme
determinou Jullanår.[114]
O rei Badr disse a Jullanår: “Minha mãe, só está faltando eu me casar para que
possamos todos ficar juntos”. Ela disse: “Meu filho, o que você disse é
excelente. Mas temos de indagar qual filha de rei lhe serve”. Então sua avó
Faråša, seu tio Øåyi¬ e suas primas disseram: “Ó rei Badr, nós todos neste
momento iremos atrás de tudo quanto você quiser”. Suas primas foram procurar
pelas cidades e sua mãe Jullanår enviou servas montadas nos ombros de ifrites e
lhes disse: “Não deixem uma única cidade, província ou palácio de reis sem
examinar se ali vivem boas jovens adequadas para o meu filho”. Ao ver o que a
mãe fazia, Badr lhe disse: “Mamãe, pare com isso, pois não me satisfaz...”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

271ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Badr disse à sua mãe Jullanår:
“Não me satisfaz senão a rainha Jawhara, filha do rei Samandal, pois ela é uma
jóia até no nome”. A mãe lhe disse: “Você alcançou seu objetivo, meu filho”, e
enviou imediatamente quem lhe trouxesse o rei Samandal, que logo foi
conduzido à sua presença e beijou o chão diante dela. Jullanår mandou chamar o
rei Badr e avisá-lo de que Samandal chegara. O rei Badr parou diante dele, deu-
lhe boas-vindas e lhe pediu em casamento a sua filha Jawhara. Samandal
respondeu: “Ela é sua serva e está à sua disposição”, e enviou alguns de seus
companheiros à sua cidade, ordenando que lhe trouxessem Jawhara e a
informassem de que ele estava na companhia do rei Badr. Esses companheiros
voaram pelos ares, sumiram por uma hora e trouxeram a rainha Jawhara, a qual,
ao ver o pai, correu até ele, abraçou-o e chorou. Ele a encarou e disse: “Saiba,
filhinha, que casei você com este rei enérgico, este leão ferocíssimo, o rei Badr.
É o melhor homem de seu tempo, o mais belo e excelso. Não serve senão para
você, e você não serve senão para ele”. Jawhara respondeu: “Papai, não posso
discordar de você, faça como quiser”. Então foram trazidas testemunhas,
redigiram o contrato de casamento, foram tocados tambores em celebração,
soltaram-se presos, deram-se roupas às viúvas e aos órfãos, os notáveis do
governo e os comandantes foram presenteados com trajes honoríficos,
realizaram a festa de casamento, ofereceram banquetes e comemoraram do
amanhecer ao anoitecer durante dez dias. Em seguida, por sete vezes exibiram a
noiva diante do rei Badr, com sete diferentes trajes de gala. Depois, ele a possuiu
e, encontrando-a virgem, desvirginou-a e ficou muito feliz com isso; adquiriu
tranquilidade, amou-a, e ela o amou muito intensamente. Badr deu um traje
honorífico para o pai dela, o rei Samandal, devolveu-o ao seu país, deu-lhe
dinheiro e lhe agradou o coração. O rei Badr ficou com a jovem Jawhara, sua
mãe, seus familiares e parentes, todos comendo e bebendo até que lhes adveio o
destruidor dos prazeres e dispersador das comunidades. Esta é a sua história
inteira e completa.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver. Será
a história do rei, de seu filho Qamaruzzamån e dos prodígios que lhes
ocorreram”. O rei ¸åhriyår disse em seu coração: “Por Deus que não a matarei
até ouvir os prodígios que ocorreram aos dois, e só então a matarei, como as
outras de sua igualha”.
272ª
noite das histórias das mil e uma noites

O REI QAMARUZZAMÅN E SEUS FILHOS AMJAD E AS¢AD[115]


Na noite seguinte, D∑nårzåd disse à sua irmã ¸ahråzåd: “Se você não estiver
dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas historinhas, a fim de
atravessarmos o serão desta noite”. O rei ¸åhriyår disse: “Que seja a história do
rei e de seu filho Qamaruzzamån”. Ela disse: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que havia numa terra distante um rei
poderoso,[116] a quem nobreza e vulgo prestavam obediência. Das províncias,
ele dominou tanto as mais remotas como as mais próximas, e dos cavalos, até as
crinas. No final da vida, Deus o agraciou com um filho, ao qual deu o nome de
Qamaruzzamån,[117] tamanha era a sua beleza e formosura. Quando cresceu e
atingiu idade de homem, era tão esbelto quanto uma vara de salgueiro,
enfeitiçando todos os corações com sua beleza e sequestrando todas as
inteligências com sua perfeição. Suas formas eram perfeitas como criação, e ele
supe-rava os graciosos em imagem; de seu rosto, as gazelas furtavam a menina
dos olhos e o pescoço, pois ele era conforme dissera a seu respeito um dos que o
descreveram no seguinte poema:

“É de seu olhar de pérola que vem o contorno da aurora;
é de suas faces que provém o vermelho das rosas;
é do negrume de seu cabelo que vem o escuro da noite,
cujas trevas se iluminam com a luz de sua fronte.
É ele o príncipe dos graciosos, e quem nega
tal juízo ele submeterá ao seu jugo.
Juro por ele, que para mim é querido e caro,
juro por ele e por sua vida duas vezes,
que todos os graciosos com ele se honram,
pois a beleza está nele e nos que dele se acercam;
belíssimo, se toma o espelho na palma da mão,
sua formosura será o espelho de seu espelho”.

Desde pequeno, Qamaruzzamån já lia, compreendia, discernia e estudava
ciências, história, biografias de reis e poesias dos árabes; lia bem, escrevia bem e
recitava poesia bem. Quando atingiu idade de homem e cresceu, um cinturão
verde se estendeu sobre a pureza de sua face rosada; tinha na base do rosto uma
pinta que parecia um círculo de âmbar, tal como disse a respeito dela o poeta na
seguinte poesia:

“Sua esbelteza, do cabelo à fronte,
deixa os demais num claro-escuro;
não lhe estranhem a pinta no rosto:
toda anêmona tem seu ponto negro”.[118]

Seu pai lhe tinha um amor tão extremoso que não largava o jovem, fosse noite,
fosse dia. Então o rei fez ver, a um dos vizires, seus temores em relação ao filho,
devidos ao amor que lhe tinha e à sua excessiva formosura. Disse: “Receio que
as desgraças do tempo e as calamidades do destino se abatam sobre o meu filho,
e por isso gostaria de fazê-lo sultão durante a minha vida”. O vizir respondeu:
“Saiba, ó sultão venturoso e dono de correto parecer, que, antes, você deve casar
o seu filho e só depois fazê-lo sultão”. O sultão então disse: “Tragam-me meu
filho Qamaruzzamån!”, e o jovem compareceu, beijou o chão diante dele e se
manteve de cabeça abaixada. O pai lhe disse: “Meu filho Qamaruzzamån, eu
pretendo casá-lo e alegrar-me com você”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

273ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o jovem, ao ouvir as palavras do pai,
manteve a cabeça baixa após seu rosto se haver ruborizado de vergonha e sua
figura ter se empapado de suor. Ele respondeu: “Ó rei do tempo, não tenho
necessidade de casamento nem minha alma é propensa às mulheres, pois já ouvi
histórias a respeito delas e da amargura que fazem provar. O poeta disse a
seguinte poesia:

‘Se acaso me indagais sobre as mulheres, digo que
sou perito nos remédios das mulheres – um médico:
se a cabeça do homem embranquece e diminui seu dinheiro,
ele já não terá sorte nenhuma no afeto delas’.

Casamento é uma coisa que não farei nunca, nem que tenha de beber da taça da
apostasia”. O sultão ficou muito aborrecido com aquilo, pois o filho não lhe
obedecia a determinação de casar-se. Porém, ele o amava tanto que não insistiu.
Dia a dia, a beleza e a formosura de Qamaruzzamån aumentavam, a tal ponto
que ele começou a aturdir o juízo das pessoas. O sultão teve paciência por um
ano, durante o qual a eloquência do jovem se aperfeiçoou e todo mundo
começou a ficar prevenido contra ele,[119] que era a discórdia dos apaixonados
e o jardim dos enamorados: com palavras doces, envergonhava o plenilúnio
perfeito; vergava-se de mimo tal qual um ramo de salgueiro ou uma haste de
bambu; suas faces representavam as rosas e as anêmonas; suas partes eram
graciosas, tal como disse a respeito um poeta na seguinte poesia:

“Ele surgiu e disseram: ‘benza-o Deus:
excelso seja quem o esculpiu e desenhou’.
Eis o absoluto reizinho da beleza,
de quem todos se tornaram súditos.
Em sua saliva existe mel dissolvido,
e pérolas se formaram em seus lábios.
Tão perfeito na beleza, único e singular,
deixa estupefatos todos os homens.
Em suas bochechas a formosura escreveu:
‘Declaro que não há formoso senão ele’”.[120]

Quando se passou mais um ano, o sultão o chamou e lhe perguntou: “Meu filho,
por que não me ouve?”. Qamaruzzamån se atirou ao chão, beijou-o, e disse: “Por
Deus, por Deus! Ó rei do tempo, tudo quanto você me ordenar eu não
desobedecerei!”. O sultão disse: “Meu filho, quero que você se case para que
possa me alegrar e para torná-lo sultão durante a minha vida”. Ao ouvir as
palavras do pai, Qamaruzzamån abaixou a cabeça, em seguida ergueu-a e disse:
“Ó rei do tempo, por Deus que essa é uma coisa que nunca farei, pois li em
antigos livros sobre as desgraças e calamidades que ocorreram às criaturas por
causa das mulheres; alguém disse estes versos:

‘Fazem as mãozinhas,
colorem a cabeleira,
humilham os turbantes
e fazem engolir o desgosto.
Acaso podes colher o relâmpago com rede
ou transportar água em uma gaiola?’”.[121]

Sem dar resposta ao filho, o pai lhe concedeu mais honrarias e encerrou a
reunião; depois, mandou chamar o vizir.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã:
“Como é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

274ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o sultão mandou chamar o vizir e lhe
pediu: “Diga-me o que fazer com meu filho, pois foi você que me sugeriu casá-
lo e ele me desobedeceu; indique-me o que fazer”. O vizir respondeu: “Ó rei,
tenha paciência com ele por um terceiro ano ainda, e que isso se mantenha
secreto somente entre vocês dois; passado esse prazo, reúna todos os principais
do país e fale-lhe sobre casamento diante deles; seu filho se envergonhará, não
lhe desobedecerá e você atingirá seu objetivo”. O sultão ficou contente,
presenteou o vizir com um traje honorífico e esperou mais um ano, durante o
qual o rapaz crescia em beleza e formosura, chegando então às proximidades dos
vinte anos, e mais beleza se acrescentava à sua beleza; ele era tal como disse a
seu respeito um dos que o descreveram quando recitou os seguintes versos:

“Juro por seu quebrar de pálpebra e esplendor,
e pelas setas lançadas por seu feitiço;
pela suavidade de seus flancos e seu olhar agudo;
pelo branco de seus dentes e negrume de seu cabelo;
pelos supercílios que impedem o sono de meus olhos
e me dominam negando e dando ordens;
pelas setas pontiagudas lançadas por sua fronte,
procurando matar os amantes que ele abandona;
pelo rosado de suas faces, pelo mel de seu rosto;
pelo coral de sua boca e pelas pérolas de seus dentes;
pelo seu doce aroma, e pelo rio de mel que escorre
de sua boca, misturando-se ao seu vinho”.

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar”.

275ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que assim os três anos passaram por
Qamaruzzamån, e ele, com mais de vinte anos, completara sua beleza e
formosura. O rei aguardou então um dia em que todos se punham a seu serviço –
quando sua assembleia estava cheia de comandantes, vizires, secretários,
encarregados, notáveis e membros de sua corte – e mandou convocar o filho,
conforme lhe sugerira o vizir. Quando Qamaruzzamån compareceu e beijou o
chão, o rei lhe disse: “Saiba, meu filho, que, após esse tempo todo, não mandei
chamá-lo senão na presença desta alta assembleia em razão de um assunto que
lhe direi e que você não deverá desobedecer; o fato é que eu, meu filho, lhe
sugiro que se case; gostaria de casá-lo para me alegrar com você antes de minha
morte”. Ao ouvir as palavras do pai, Qamaruzzamån permaneceu um tempo de
cabeça abaixada, enquanto sua cólera aumentava; ergueu a cabeça para o pai e,
atingido pelo frenesi da mocidade, disse-lhe: “Não me casarei, não me casarei,
não me casarei! Você é um velho cuja idade aumentou e cujo siso diminuiu! Já é
a segunda ou terceira vez que me fala de casamento e eu não o atendo!”, e gritou
com o sultão, injuriou-o, cheio de cólera, e ridicularizou-o diante dos
comandantes e vizires. Aquilo pesou para o sultão, que, irritado e vexado diante
dos circunstantes, berrou com seu filho Qamaruzzamån, ordenando aos
mamelucos que estavam diante de si que o detivessem e em seguida o
amarrassem; eles assim agiram e colocaram diante do pai o rapaz, que estava
cabisbaixo, a fronte empapada em suor, as gotas escorrendo pelo rosto como
pérolas;[122] o sultão o insultou e lhe disse: “Ai de você! É essa a resposta que
alguém como você dá a alguém como eu, diante de meus súditos? Mas você,
quem é que lhe deu educação? Ainda que um homem do vulgo fizesse isso, já
seria horroroso”, e ordenou aos mamelucos que o desamarrassem e o
prendessem numa das torres do palácio. Eles levaram-no até uma torre tão antiga
quanto imemorial; chegaram até um saguão arruinado, em cujo centro havia um
poço bizantino; vieram camareiros, rasparam o lugar, limparam-lhe o piso,
montaram uma cama para o jovem, estenderam sobre ela um colchãozinho
delgado e um tapete, além de travesseiro, lampião e vela, pois o lugar era escuro,
e ali deixaram, com um criado vigiando à porta, o jovem Qamaruzzamån, que se
deitou à cama com o coração e a mente alquebrados; recriminou-se, arrependido
pelo que fizera contra o pai, e pensou: “Maldito seja o casamento; quem dera eu
tivesse ouvido o meu pai!”. Isso foi o que lhe sucedeu. Quanto ao sultão, ele se
manteve onde estava até o entardecer, dispensou os soldados, entrou em seu
aposento, reuniu-se com o vizir e lhe disse: “Ouça, você foi o motivo disso,
fazendo ocorrer tudo aquilo entre mim e meu filho”. O vizir respondeu: “Ó rei,
deixe-o agora ficar uns quinze dias e depois o traga à sua presença; ele não
tornará a desobedecer-lhe”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

276ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei se separou do vizir e dormiu
aquela noite com a mente preocupada com o filho, pois o amava tanto que
ambos sempre dormiam abraçados. Passou a noite com insônia, revirando-se de
um lado para o outro; não conciliou o sono naquela noite, que lhe foi muito
comprida; pensando no filho Qamaruzzamån, elaborou e se pôs a recitar os
seguintes versos de poesia:

“Minha noite se prolonga e os delatores dormem!
Isso sem falar de um coração que teme a separação;
enquanto falo, minha noite mais longa se torna!
Ó luz da manhã, por acaso você não vai retornar?”.

Foi assim que o sultão passou a noite. Quanto à noite de Qamaruzzamån, quando
anoiteceu o criado lhe acendeu o lampião e a grande vela no castiçal, colocando-
a diante dele; também lhe ofereceu algo para comer. O jovem sentou-se e comeu,
preocupado, a mente turvada, recriminando sua alma pela falta de respeito com o
pai. Comeu um pouco e disse com seus botões: “Ó alma, acaso você não sabe
que o ser humano é prisioneiro de sua língua? É ela que o conduz à aniquilação”.
E as lágrimas escorreram de seus olhos, em razão da atitude que tomara, e ele
elaborou e se pôs a recitar os seguintes versos:

“O jovem morre por um tropeço de sua língua,
mas não morre por um tropeço de suas pernas;
o tropeço da boca lhe desaba sobre a cabeça
e o tropeço das pernas se cura bem devagar”.

E foi lavar as mãos. O criado lhe ofereceu bacia e jarra e ele lavou as mãos, fez
abluções e as preces do crepúsculo e da noite; sentou-se, leu um pouco do
Alcorão, fez rogos, subiu na cama, deitou-se e se cobriu com o cobertor, tendo o
lampião a seus pés e a vela à sua cabeça; dormiu durante o primeiro terço da
noite sem saber o que lhe fora preparado pelo incognoscível, pois quis o destino
que aquele saguão e aquela torre antiquíssima, que estava abandonada havia
anos e em cujo centro existia um poço bizantino – quis o destino que aquele
poço estivesse possuído e habitado por uma gênia que descendia de Satanás, o
maldito; chamava-se Maymœna, filha de Addamriyå†, um dos reis dos gênios.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

277ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Qamaruzzamån havia já dormido o
primeiro terço da noite quando a ifrita Maymœna saiu do poço, com o objetivo
de alçar-se ao céu para ouvir às ocultas o que lhe era vedado.[123] Assim que
saiu, avistou na torre uma luz e brilho de velas queimando, o que era incomum,
pois ela vivia no lugar havia anos e nunca presenciara nada por ali; espantada
com aquilo, foi na direção da luz e, verificando que saía do saguão, entrou e
encontrou o criado a dormir, e viu a cama, sobre a qual existia o corpo[124] de
um ser humano dormindo, vela e lampião. Aproximou-se aos poucos, parou
diante da cama, descobriu-lhe o rosto, observou-o e, atônita com sua beleza,
lançou-lhe a luz da vela sobre as faces, e então o esplendor, a formosura e a
opulência de sua fronte rebrilharam como pérolas, e seu aroma de almíscar se
espalhou; ele era como disse a seu respeito um dos que o descreveram nos
seguintes versos:

“A fragrância é almíscar; as faces, rosa;
os dentes, pérola; a saliva, vinho;
o talhe, ramo; o quadril, duna;
os cabelos, noite; o rosto, lua cheia”.[125]

Ao vê-lo, a ifrita Maymœna exaltou e glorificou o criador e disse: “Louvado seja
Deus, o melhor dos criadores”;[126] em seguida, ficou por um bom tempo
observando-lhe o rosto, invejosa de sua formosura; disse com seus botões: “Por
Deus que ele é gracioso! Como puderam os seus pais fazê-lo dormir neste lugar
horroroso e arruinado? Se algum dos nossos gênios topasse com ele, iria aleijá-
lo!” e, inclinando-se, beijou-lhe a fronte, cobriu-o, abriu as asas e saiu voando
rumo aos céus; quando já se tinha elevado até as proximidades do céu terrestre,
ouviu um ruído de asas batendo ao vento e foi naquela direção; aproximou-se e
notou que se tratava de um gênio ímpio chamado Danhaš, filho de ¸amhœraš,
que era o juiz dos gênios. Ao vê-lo, reconheceu-o e se lançou de assalto contra
ele, para exterminá-lo; Danhaš percebeu-lhe a presença, reconhecendo a filha do
rei dos gênios, e, temeroso, estremeceu e se colocou sob sua proteção, dizendo:
“Eu lhe suplico, pelo nome mais poderoso de Deus, que me trate com
benevolência e não me prejudique, pois eu nunca lhe fiz mal algum”. Ao ouvir
tais palavras, Maymœna se apiedou dele, controlou-se, e disse: “Você me
suplicou pelo nome mais poderoso de Deus. Mas me diga onde estava e de onde
vem, a esta hora”. Danhaš respondeu: “Ó senhora, venho do interior de Kashgar,
[127] na China, e do interior das ilhas. Eu a informarei de algo maravilhoso que
vi nesta noite; se acaso eu lhe fizer o relato, e deixá-la presenciar tal maravilha,
você me deixará em paz e me escreverá, com a sua própria letra, uma ordem
para que nenhum dos reis dos gênios celestes ou subterrâneos[128] me
detenha?”. Ela respondeu: “Sim. Mas se você, seu maldito, estiver mentindo
para escapar de mim... Eu juro pelas palavras gravadas no anel de Salomão, filho
de Davi, que, se as suas palavras não forem corretas, vou arrebentar as suas
penas, rasgar o seu couro, cortar a sua carne e quebrar os seus ossos”. Danhaš
respondeu: “Sim, minha senhora”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

278ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o gênio Danhaš disse para a gênia:
“Saiba, minha senhora, que nesta noite eu passei pelas Ilhas da Região Interior,
terra do rei Al©uyœr,[129] dono de ilhas e mares. Esse rei tem uma filha[130]
que Deus, neste nosso tempo, não criou nenhuma igual; sua beleza é tamanha
que eu não conseguiria descrevê-la para você, pois disso é incapaz tanto a minha
língua como a de meus semelhantes; seus cabelos são como a cauda plissada de
um corcel: se acaso os solta, escorrem feito cachos de uva; sob esses cabelos
existe uma fronte que parece espelho polido, radiante e luminosa como uma bela
jovem no vigor da mocidade,[131] e sob essa fronte uns olhos de jasmim que
não se deixam tomar por escravidão nem tibieza, com um branco que é como o
da atmosfera no crepúsculo, e com um negro que é como o da escuridão de
ontem, escuro inicial noturno;[132] entre eles, um nariz como ponta de espada
afiada, no qual não se percebe curteza nem comprimento, ladeado por duas
bochechas semelhantes à púrpura, num rosto com a brancura do palmito,[133] e
uma boca que semelhava coroa de romã – a distribuição de seus dentes
parecendo pérolas –, dentro da qual se agita uma língua dotada de doçura e
eloquência, movida por uma inteligência abundante e uma resposta sempre
pronta, lábios[134] como manteiga em flor de romãzeira, e saliva como mel, em
cima de um pescoço tenro e macio, parecendo o gargalo de um jarro de prata,
desembocando num pescoço semelhante a um espelho; o peito, feitiço para quem
o vê, liga-se a dois braços tão lisos que em sua pureza são como pérola e coral,
dotados de dois antebraços que não precisam de lampiões,[135] nos quais há
duas palmas com dedos que parecem prata revestida em ouro puro; tem seios
que parecem potes de marfim, cujo brilho ilumina a noite mais trevosa, sobre
uma barriga que parece tela de linho fino recamada, com dobraduras
semelhantes à folha de papel em rolo, e que termina numa cintura cuja esbelteza
sem igual quase voa, sobre um quadril que a faz sentar quando se levanta e a
acorda quando dorme; é carregada por pernas lisas e coxas sem pelo; tudo isso é
sustentado por dois pés gentis, cujas extremidades, tendo a agudeza da flecha,
como poderiam suportar o que carregam? Etc. etc.”.
Disse o narrador: depois de descrevê-la para Maymœna, o ifrit contou ainda
que o pai da jovem era um rei despótico e valente cavaleiro que desprezava a
morte e não temia a sorte, tirânico e opressor, dono de exércitos, soldados,
províncias, ilhas, cidades e aldeias; seu nome era rei Al©uyœr, “e ele ama esta
filha que descrevi de tal maneira que construiu para ela sete palácios, cada qual
de uma cor, e os encheu todos com peças de seda, recipientes e utensílios de
ouro e prata e todo o mais necessário. Fez a filha morar um mês em cada palácio,
revezando-se. Quando as notícias sobre a sua formosura se espalharam pelo país,
os reis enviaram delegações para pedi-la em casamento ao pai, que a consultou a
respeito, mas ela se mostrou irritada e disse: ‘Não tenho nada que fazer com
casamento; sou senhora e rainha e não quero homem que me controle’. Então os
reis das ilhas prepararam presentes, joias e dinheiro para o pai da jovem, e lhe
escreveram pedindo-a em casamento. O rei Al©uyœr repetiu então para a filha a
consulta sobre o casamento, mas ela discordou dele, gritou, ridicularizou-o e
disse: ‘Se você mencionar de novo o casamento, eu pegarei uma espada, enfiarei
no meu coração e a farei sair pelas costas; morrerei, descansarei, e farei você
sofrer com a minha perda’. Com o coração em chamas, o rei ficou perplexo com
o caso e com a resolução do problema ante os outros reis. Pensou: ‘Se for
mesmo imperioso, vou proibi-la de sair, escondendo-a em algum aposento e ali
deixando-a vigiada’, e imediatamente o fez, pondo-a sob a escolta de dez velhas
e proibindo-a de aparecer pelos palácios; afetou estar muito encolerizado com
ela, e enviou correspondências aos reis pretendentes dizendo: ‘Ela enlouqueceu e
foi atingida em seu juízo; estou me esforçando por medicá-la e, assim que ela se
curar, eu a darei em casamento àquele que tiver a sorte de merecê-la’. Agora, já
faz um ano que ela está enclausurada; toda noite vou observá-la, fartar-me com
sua beleza e beijá-la. Eu lhe suplico, minha senhora, que venha comigo e
contemple a sua beleza e formosura; então, vai ficar claro se estou falando a
verdade ou mentindo. Depois disso, se quiser, poderá me perdoar ou matar”. Em
seguida, abaixou a cabeça e recolheu as asas. Maymœna riu, escarneceu do ifrit e
disse: “E você se exauriu com essa descrição? Que droga é essa? Que grande
porcaria! Por Deus que pensei que você tinha alguma novidade para contar... Se
você visse então o amado[136] do meu coração, o meu adorado que vi nesta
noite, você sofreria um derrame e sua baba escorreria!”. Danhaš perguntou:
“Madame Maymœna, e qual é a história desse belo?”. Ela respondeu: “Saiba, ó
Danhaš, que a esse belo ocorreu o mesmo que ocorreu à sua amada; sua beleza e
formosura são tamanhas que o pai lhe ordenou diversas vezes que se casasse,
mas ele não aceitou; o pai então se encolerizou e o enclausurou na torre em que
moro; eu o vi nesta noite, logo que saí do poço”. Danhaš disse: “Por Deus,
minha senhora, mostre-me esse jovem a fim de que eu o contemple e compare
com a minha amada. Eu lhe direi qual dos dois é o mais belo, muito embora eu
continue afirmando que não existe neste tempo ninguém igual à minha amada”.
Maymœna lhe disse: “Está mentindo, seu amaldiçoado! Absolutamente, de jeito
nenhum, não existe ninguém igual ao meu amado!”.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd lhe disse: “Como
é agradável e insólita a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada
perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me
preservar; será ainda mais espantoso, mais insólito e mais belo”.

279ª
noite das histórias das mil e uma noites
Na noite seguinte ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Maymœna disse a Danhaš: “Ai de
você! Está louco! Como ousa comparar o meu amado à sua amada?”. Danhaš
disse: “Então venha comigo, minha senhora, examine a minha amada e eu
voltarei com você para examinar o seu amado”. Ela perguntou: “E isso lhe é
imperioso, seu amaldiçoado?”. Ele respondeu: “Sim”. Ela disse: “Não irei com
você senão mediante uma condição a ser cobrada. Se a sua amada for mais bela
que o meu amado, você é que vai definir o que será feito; mas se for o meu
amado o mais belo, então quem definirá serei eu”.[137] Danhaš lhe disse: “Sim,
aceito, venha comigo até o interior das ilhas”. Ela disse: “Não! Minha moradia é
próxima, venha você comigo observar o meu amado, e depois vamos juntos ver
a sua amada”. Danhaš respondeu: “Ouço e obedeço”. Em seguida, o ifrit e a
ifrita se deslocaram em direção ao solo e pousaram num dos degraus da torre;
entraram no aposento e Maymœna fez Danhaš parar ao lado da cama; estendeu a
mão, tirou a coberta do rosto do jovem, que brilhou e resplandeceu de luz; olhou
para ele e, voltando-se para Danhaš, disse-lhe: “Veja, seu doido! Não seja
cretino!”. Danhaš contemplou Qamaruzzamån por algum tempo, movimentou a
cabeça e disse: “Louvado seja Deus, o melhor dos criadores![138] Minha
senhora, você está justificada no que pensa; porém, madame, a doçura das
mulheres é diferente da doçura dos homens. Juro por minha fé que esse rapaz é a
criatura mais semelhante à minha amada; na beleza, ambos parecem irmãos de
pai e mãe”. Maymœna se encolerizou, lhe deu uma pancada e disse: “Juro pela
luz da beleza superior que se você não for agorinha mesmo e carregar a sua
arrombada até aqui, para reunirmos os dois, fazê-la dormir ao lado dele e
distinguirmos o belo do feio – juro que, se você não o fizer, vou queimá-lo com
meu fogo lançando os meus raios contra você”. Danhaš disse: “Pois eu farei
isso! Por Deus que a minha amada é mais bela e doce”, e saiu voando junto com
Maymœna, que o mantinha sob vigilância. Logo retornaram carregando a jovem,
que vestia uma fina túnica acastanhada, com bordados de ouro marroquino,
touca egípcia em estilo grou,[139] cauda e cabeça; na manga estavam escritos
versos poéticos que diziam o seguinte:

“O coração do amante é exaurido pelos amados;
seu corpo é pelos gemidos do sentimento saqueado;
se alguém me pergunta como é o sabor do amor,
responderei que doce, mas cheio de sofrimento”.

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.
280ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o ifrit e a ifrita pousaram com a jovem
e a deitaram ao lado de Qamaruzzamån; descobriram os rostos de ambos, que
pareciam duas luas ou dois plenilúnios; eram as criaturas mais parecidas entre si,
como se fossem irmãos, tal como disse a seu respeito alguém que os descreveu
quando recitou os seguintes versos poéticos:

“Eu os vi com meus olhos, dormindo sobre estrelas,
e desejei que dormissem sobre minhas sobrancelhas:
minhas gazelas, sublimes crescentes, sóis da manhã,
luas da noite, me sufoca a pureza desses belos ídolos”.[140]

Observaram ambos e Danhaš disse: “Por Deus que essa é boa! Minha amada é
mais linda”. Maymœna se encolerizou e disse: “Ai de você! Está mentindo! Meu
amado é que é mais lindo”, e continuou: “Ai de você, cego! Olhe só para a sua
beleza, formosura, talhe e esbelteza! Mas, ai de você!, escute o que eu digo a
respeito dele e, se for mesmo um amante sincero, diga o mesmo que eu digo!”.
E, inclinando-se até Qamaruzzamån, beijou-o e pôs-se a recitar os seguintes
versos:

“Como? Estou doente e os censores xingam!
Onde o consolo se tu és um galho esbelto?
Torna-se, de tristeza, mais que humilhado,
tomado, em razão de teus olhares, por tremores.
Outro se refugiaria no consolo e no ódio,
mas só o meu coração conhece a tua graciosidade;
tuas pupilas de negro pintadas, demoníacas,
delas não há como escapar da paixão sem gozo,
turcas nos olhares que agem nas entranhas
mais intensamente do que o polido delgado.
Ó tu que te atrasas aos encontros com os amantes!
Eia, os compromissos que incriminam se atrasam?
Tu me fizeste suportar o peso da paixão, mas agora
sou incapaz de suportar o peso da túnica e menos ainda![141]
Já sabes de meu sentimento por ti; meu desespero
é uma natureza, e minha paciência com outro é um custo.
Se o meu coração fosse como o teu, eu não dormiria;
meu corpo está tão delgado quanto a tua cintura.
Ai, socorram-me desta lua que possui toda a graça
existente entre os homens e toda a beleza descrita!
Os censores disseram a seu respeito: ‘Quem é esse?
És tu o desesperado?’. Respondi: ‘Sou o amaldiçoado!’.
Ó senhor do coração duro, conhece os teus sentimentos
e teu tamanho! Assim quiçá se compadeça e penalize!
Tua beleza tem, meu comandante, alguém que observa
e me domina, e também um vigia que não é justo.
Toma minha mão, pois o teu talhe é elemento
que não ouve queixumes e teu desdém é esbanjador.
Minha esperança é ver alguém atravessar teu caminho
e quem sabe assim as trevas se desfaçam sobre mim.
Mentiu aquele que supôs estar toda a graciosidade
em José![142] Quanta beleza tem José perto da tua?
Quanto a mim, os gênios me temem se os encontro,
mas o meu coração, quando te vê, estremece.
Os cabelos são negros, a fronte, luminosa,
os olhos, bem desenhados, e os membros, esbeltos”.

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

281ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando a ifrita recitou esses versos, o
ifrit ficou extasiado, balançou a cabeça e disse: “Por Deus, madame, que você se
superou ao recitar versos por quem está apaixonada. Quanto a mim, meu coração
ficou ocupado, mas de qualquer modo vou me esforçar na medida de minhas
ideias”. E, inclinando-se até a jovem, beijou-a e pôs-se a dizer os seguintes
versos:

“Censuraram com virulência o amor pelos graciosos,
mas não foram justos em seu julgamento, não foram.
Por Deus, como é formosa a gazela esbelta,
inclinando-se como se fora um galho de aråk![143]
Quem te ama enfermo está de humilhação, e se
tu insistires na ausência e rispidez, ele morrerá.
Teu coração não se condói das lágrimas que verto?
Meus olhos, após a tua ausência, não param de piscar.
Tanto te chorei que até o meu censor observou:
‘É sangue o que escorre pelos olhos deste jovem!’.
Não me espanto de amar-te; me espanto, isto sim,
de ainda reconhecer o meu corpo, depois de você!
Perdi o teu contato, e mesmo te ver já não posso,
por mais que se entedie ou sofra o coração do amor”.

Maymœna disse: “Muito bem! Você não falhou. Agora decida: qual deles é mais
belo e formoso?”. Danhaš respondeu: “A minha amada”. Ela disse: “Você está
mentindo. Meu amado é mais formoso”. Ele disse: “Não!”. Então eles discutiram
e a disputa foi ficando renhida; Maymœna gritou com Danhaš e quis agredi-lo,
mas ele conseguiu dobrá-la com palavras e disse: “Minha senhora, acaso a
verdade lhe é tão custosa? Nem a minha opinião nem a sua, pois cada um de nós
declara que o seu amado é mais formoso; vamos fazer diferente: eu gostaria que
um terceiro julgasse, e nós aceitaríamos a sua decisão”. Ela disse: “Sim”, e bateu
a palma da mão no solo, do qual saiu um gênio corcunda e caolho, com o olho
fendido ao comprido no rosto; na cabeça tinha seis cornos e quatro tranças de
cabelo estendido até os pés; suas mãos pareciam as patas de um cachorro;[144]
suas unhas, as de um leão; seus pés, os de um ogro;[145] e seus cascos, os de um
burro. Beijou o chão, cruzou os braços e perguntou: “Do que você precisa, ó
filha do rei?”. Ela lhe respondeu: “Eu quero, ó Qušquš, que você decida entre
mim e este amaldiçoado Danhaš” e, colocando-o a par da questão, prosseguiu:
“Observe-os!”. Qušquš observou o rosto dos dois, o jovem e a jovem, viu-os
abraçados, mergulhados no sono, o pulso dele debaixo da cabeça dela, a mão
dela debaixo da axila dele, enfim, abraçados e na formosura assemelhados.
Assombrado com os dois, voltou-se para Maymœna e Danhaš e recitou os
seguintes versos:

“Visita a quem amas e esquece os invejosos;
os que censuram a paixão em nada auxiliam.
Deus misericordioso nada criou mais formoso
do que dois amantes deitados no mesmo colchão,
abraçados e cobertos pelo adorno da satisfação,
tendo os pulsos e os braços por travesseiro![146]
Ó quem pela paixão censura os apaixonados!
Será que podes consertar um coração corrompido?”.

Em seguida disse-lhes: “Não há entre eles superior nem inferior. Ambos se
equivalem em beleza e formosura. Porém, existe uma outra possibilidade:
acordemos, alternadamente, cada um deles, e deixemos o outro a dormir. Dentre
ambos, aquele que arder em paixão pelo outro será considerado inferior em
beleza”. Maymœna respondeu: “Sim”, e Danhaš respondeu: “Sim”. Qušquš disse
então para Maymœna: “Acorde primeiro o seu amigo”; ato contínuo, ela se
transformou em pulga e picou o rapaz.
E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar.

282ª
noite das histórias das mil e uma noites

Na noite seguinte ela disse:


Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ser picado por Maymœna no
pescoço, Qamaruzzamån esticou a mão por causa da picada ardida, revirou os
olhos e viu alguém ao seu lado. Sua mão caiu sobre um peito mais macio do que
manteiga cremosa; abriu bem os olhos e viu ao seu lado alguém dormindo, o
corpo estirado. Espantado, acordou inteiramente do sono, sentou-se
imediatamente, examinou a pessoa e constatou que se tratava de uma jovem que
parecia boneca, afigurando-se tal como uma pérola brilhante, um sol luminoso
ou um pavilhão montado. Ao vê-la e ver sua beleza enquanto dormia de
comprido, usando uma túnica acastanhada sem ceroulas, Deus introduziu o amor
por ela em seu coração. Ele disse: “Por Deus que essa é boa, minha amada!”;
revirou-a, abriu-lhe a túnica, e apareceram seu pescoço e seios; o amor por ela
aumentou e tentou acordá-la; porém, os gênios haviam tornado mais pesado o
seu sono entrando em sua cabeça, e a jovem não acordou. Qamaruzzamån
continuou balançando-a e movimentando-a enquanto dizia: “Eu sou
Qamaruzzamån!”, mas ela nem erguia a cabeça. O jovem refletiu a seu respeito
por alguns momentos e disse: “Se a minha intuição me diz a verdade, é esta a
jovem que o meu pai quis casar comigo. Faz três anos que ele me pede uma
decisão e eu fico bancando o rogado. Por Deus que, mal amanheça o dia, vou
dizer-lhe: ‘Case-me com ela!’; não deixarei passar um dia e terei me casado com
ela e me saciado com sua beleza”. Em seguida, inclinou-se sobre ela para beijá-
la. Maymœna estremeceu e Danhaš se alegrou. Qamaruzzamån tencionava beijá-
la na boca mas, dominando a cabeça, pensou: “Paciência! Preciso ver direito!
Depois que eu desobedeci ao meu pai, que se encolerizou comigo e me
enclausurou neste local, não terá ele esperado que eu dormisse, trazido esta
jovem para cá, pedido a ela que se deitasse ao meu lado e lhe recomendado que,
caso eu tentasse acordá-la, ela não se levantasse? O que ele fez com você? Diga
para mim! Estará meu pai escondido em algum lugar observando o que eu farei
com ela para depois ralhar comigo e dizer: ‘Ai de você! Diz que não tem
vontade de se casar! Então como pegou nela e a beijou?’. Estarei denunciado!
Por Deus que não a beijarei nem olharei para ela. Porém, vou levar dela uma
lembrança e sinal”. Em seguida, pegou na mão da jovem e retirou de seu dedo
mindinho um anel de ouro com cabeça de gema, colocando-o em seu próprio
dedo; retirou o seu anel e o colocou no dedo da moça. Depois disso, deu-lhe as
costas e dormiu. Maymœna disse para Qušquš e Danhaš: “Vocês viram que o
meu amado não deu bola para ela nem a beijou, mas sim lhe virou as costas e
dormiu, querendo dizer: ‘Não penso em você’”. Eles disseram: “Sim”. Em
seguida, Danhaš se transformou em pulga, introduziu-se sob as roupas da jovem
e aplicou uma picada que lhe queimou a razão; ela abriu os olhos, sentou-se, e
viu o jovem dormindo ao seu lado e ressonando, com olhos e sobrancelhas que
nem as mulheres tinham iguais, narinas e papada caída, boca pequena,
labiozinhos delicados e bochechas como maçãs; a língua seria incapaz de
descrever-lhe as características, tal como disse a seu respeito o poeta na seguinte
poesia:

“Foi até a beleza para ser avaliado,
e ela abaixou a cabeça, envergonhada;
perguntaram: ‘Já viste algo assim, beleza?’,
e ela respondeu: ‘Desse jeito, não’”.[147]

E a aurora alcançou ¸ahråzåd, que parou de falar. D∑nårzåd disse à irmã: “Como
é agradável e insólita a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite, se acaso eu viver e for preservada; será
ainda mais insólito”.[148]
Na noite seguinte, que era a

92ª
HISTÓRIA COMPLETA DE QAMARUZZAMÅN E SEUS FILHOS,
CONFORME O MANUSCRITO “BODL. OR. 551”.

Viu-se que, no ramo sírio, a história de Qamaruzzamån permanece inconclusa,
pois os manuscritos se encerram abruptamente em sua parte inicial. Das versões
completas existentes em árabe, a mais antiga, de acordo com a avaliação de
Muhsin Mahdi, é a que ocupa integralmente o manuscrito “Bodleian Oriental
551”, do ramo egípcio antigo, da nonagésima segunda à 166ª noite. Aqui se
apresenta a tradução integral desse manuscrito, a fim de que o leitor também se
inteire das diferenças de enredo entre as versões do ramo egípcio e do ramo
sírio. Nas notas, apontaram-se algumas variantes de outro manuscrito do ramo
egípcio antigo, o “Arabe 3612”, no qual a história se encontra incompleta,
abrangendo da 245ª à 289ª noite, bem como da edição de Bœlåq, em que ocupa
da 170ª à 249ª noite. Quem preferir a leitura apenas a partir do ponto que
continua imediatamente o corpus do ramo sírio, poderá começá-la na metade da
nonagésima quinta noite, à página 197. O local exato está indicado com nota.
A página de rosto do manuscrito “Bodleian Oriental 551” traz os seguintes
dizeres: “Esta é a segunda parte das Mil e uma noites, completa. Noventa e três
noites completas e inteiras. Graças a Deus em qualquer situação, e só em Deus
pode haver êxito, amém”; depois, a história se inicia com os dizeres: “Conta-se,
em tempos remotos das histórias das mil e uma noites, e esta é a nonagésima
segunda noite, que havia...”. Para maior legibilidade, optou-se por padronizar a
abertura da história. Manteve-se a grafia dos nomes próprios tal e qual se
encontra nesse manuscrito, e que vez por outra difere ligeiramente dos
manuscritos do ramo sírio.


Entre as histórias antigas das mil e uma noites, conta-se nesta noite, que é a
nonagésima segunda, que em tempos remotos existiu um rei chamado ¸åhramån,
[149] o qual tinha um filho chamado Qamaruzzamån, dotado de beleza,
perfeição, altura e esbelteza, tal como disse a seu respeito o poeta:

“Eu conto e quem tiver sorte que o veja:
as maçãs de seu rosto brilham, relíquias,
almíscar misturado com cânfora, sem água;
correram diante dele todas as pérolas.
Como, meu amo, preservar um coração
pelo qual são responsáveis as letras låm e ßåd?”.[150]

Disse o narrador: seu pai, ¸åhramån, tinha-lhe um amor imenso, e não o
deixava, fosse noite, fosse dia. Tão imenso era esse amor que certa feita ele se
queixou a um de seus vizires, dizendo: “Receio que as desgraças do tempo e as
calamidades do destino se abatam sobre o meu filho, e por isso gostaria de fazê-
lo sultão durante minha vida, antes de minha morte”. O vizir respondeu: “Ó rei
venturoso, antes de entronizar seu filho, você deve casá-lo, e somente depois
disso torná-lo sultão, pois o casamento controla os homens”. O rei ¸åhramån
disse: “Tragam-me meu filho Qamaruzzamån!”. Quando o jovem compareceu,
beijou o chão diante do pai e se manteve de cabeça abaixada. O pai lhe disse:
“Meu filho Qamaruzamån, eu pretendo casá-lo e alegrar-me com você”.
Disse o narrador: então as bochechas de Qamaruzzamån se ruborizaram de
vergonha, seu rosto se empapou de suor e ele respondeu: “Papai, não tenho
necessidade de casamento, e a esse respeito um poeta disse a seguinte poesia:

‘Se acaso me indagam sobre as mulheres, direi que
sou perito nos remédios das mulheres – um médico:
se a cabeça do homem encanece e mingua seu dinheiro,
ele já não terá sorte nenhuma no afeto delas’.

Papai, casamento é uma coisa que não farei nunca, nem que eu tenha de beber da
taça da apostasia”.
Disse o narrador: o rei ficou encolerizado com o filho, que não lhe obedecia a
determinação de casar-se. No entanto, ele o amava tanto que não insistiu nem
tentou seduzi-lo. Ao contrário, dignificou-o da melhor maneira e esperou cerca
de um ano, quando então sua graciosidade se aperfeiçoou, da eloquência se
tornou senhor, aprisionou as mentes das mulheres com a beleza de sua
juventude, envergonhou com o seu talhe as árvores e os galhos da acácia, e todos
os olhos se inclinaram para vê-lo, tal como disse a seu respeito o poeta
encantado nos seguintes versos poéticos:

“Ele surgiu e disseram: ‘benza-o Deus:
excelso seja quem o esculpiu e desenhou’.
Eis o absoluto reizinho da beleza,
de quem todos se tornaram súditos.
Em sua saliva há néctar inebriante,
e pérolas se formaram em seus lábios.
Ele se apoderou de toda a beleza sozinho,
deixando estupefatos todos os homens.
Em suas bochechas a formosura escreveu:
‘declaro que não há formoso senão ele’.”.[151]

Disse o narrador: quando se passou mais um ano, o pai o chamou ao palácio e
lhe perguntou: “Meu filho Qamaruzzamån, por que não me ouve?”.
Qamaruzzamån disse: “Por Deus, por Deus! Ó meu pai, como não o ouviria, se a
obediência a você é uma obrigação e Deus me ordenou que não lhe
desobedecesse nenhuma ordem?”. O pai disse: “Meu filho, case-se para que eu
possa me alegrar e torná-lo sultão durante a minha vida”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras do pai, Qamaruzzamån, vexado,
abaixou a cabeça por alguns momentos, e em seguida ergueu-a e disse: “Ó papai,
por Deus que essa é uma coisa que nunca farei, pois eu li nos livros dos antigos o
que lhes sucedeu por parte das mulheres, e como elas dão motivo às
calamidades, tal como disse o poeta:

‘Fazem as mãozinhas,
colorem a cabeleira,
humilham os turbantes
e fazem engolir o desgosto’.

E também, como se disse sobre elas nestes versos:

‘Ó quem espera honestidade de uma fêmea:
largue a esperança e se salvará do desgosto.
Acaso podes colher o relâmpago com rede
ou transportar água em gaiola?’”.[152]

Disse o narrador: sem dar resposta ao filho em razão de seu amor por ele, o pai
lhe concedeu mais honrarias e encerrou a entrevista; depois, mandou chamar seu
vizir e lhe disse: “Ó vizir, aconselhe-me a respeito do meu filho, pois foi você
que me sugeriu casá-lo, mas não estou sendo capaz de fazê-lo. Aconselhe-me,
pois, sobre como agir”. Respondeu o vizir: “Tenha paciência com ele, ó rei, por
mais um ano e, quando for falar-lhe sobre casamento, não o faça senão na frente
de muita gente, comandantes e notáveis do governo, pois quiçá ele se
envergonhe diante das pessoas, não lhe desobedeça e assim você atinja o seu
objetivo e o case”. O rei ficou feliz com aquilo, presenteou o vizir com um traje
honorífico e teve paciência por mais um ano com seu filho Qamaruzzamån, cuja
beleza e formosura aumentavam, cujas faces luziam de tão rosadas, e cujas
pálpebras brilhavam; a brancura de seus dentes era como a lua, e o negrume de
seu cabelos era como a noite mais densa; agitava-se em seus flancos e sua
cintura queixava-se do peso de seu quadril, tal como disse a seu respeito um dos
que o descreveram com estas palavras na seguinte poesia:

“Juro por seu quebrar de pálpebras e dentes,
e pelas setas lançadas por seu feitiço;
pela suavidade de seus flancos e seu talhe agudo;
pelo branco de seus dentes e negrume de seu cabelo;
pelos supercílios que impedem o sono de meus olhos
e me dominam negando e dando ordens;
pelas setas pontiagudas lançadas por sua fronte,
procurando ameaçar as amantes que ele abandona;
pelo rosado de suas faces, pelo mel de seu rosto;
pelo coral de sua boca e pelas pérolas de seus dentes;
pelo seu doce aroma, e pelo rio de mel que escorre
de sua boca, misturando-se ao seu vinho;
por seu colo e pela haste de seu talhe, e pelo que
é uma romã pendurada em seu peito;
por seu quadril que se sacode quando se mexe
ou se aquieta, e pela delicadeza de sua cintura;
pela seda de seu toque e leveza de seu espírito;
pela beleza que ele contém em sua totalidade;
pela bondade de seu repouso e veracidade de sua língua;
pelo seu bom nascimento e elevada capacidade;
o almíscar, quando o percebem, não é senão seu suor
que a brisa espalhou a partir de seu odor;
igualmente o sol radiante é a luz dele,
e até o crescente é menos visto do que ele”.[153]

Disse o narrador: depois de ter deixado passar os três anos, o rei aguardou um
dia em que todos se punham a seu serviço – quando sua assembleia estava cheia
de comandantes, vizires, secretários, encarregados e principais do governo – e
mandou convocar o filho, conforme lhe sugerira o vizir. Quando Qamaruzzamån
compareceu, beijou o chão e estacou, o pai lhe disse: “Saiba, meu filho, que,
após esse tempo todo, eu não mandei chamá-lo senão na presença desta alta
assembleia para lhe sugerir que se case e eu me alegre com você antes de minha
morte”.
Disse o narrador: ao ouvir essas palavras, Qamaruzzamån abaixou a cabeça e
sua cólera aumentou; ergueu a cabeça para o pai e, atingido pelo frenesi da
mocidade, disse-lhe: “Não me casarei! Você é um velho cuja idade aumentou e
cujo siso diminuiu! Já é a segunda ou terceira vez que me fala de casamento e eu
não o atendo!”, e gritou com o pai na frente dos comandantes e soldados. Aquilo
pesou para o rei, que, vexado diante dos circunstantes, berrou com seu filho
Qamaruzzamån, assustando-o, e disse: “Ei-lo aí! Prendam-no!”, e trinta
mamelucos se precipitaram em direção ao rapaz e o agarraram. O rei lhes
ordenou que o amarrassem, e eles assim agiram, colocando diante do pai o rapaz,
que estava cabisbaixo, a fronte empapada em suor. O rei o insultou e lhe disse:
“Ai de você! Por acaso já é capaz de me responder desse jeito?”. Em seguida,
ordenou que suas amarras fossem soltas e o instalassem em uma das torres do
palácio; levaram-no e introduziram-no numa torre velha e escura, e conduziram-
no até um saguão que tinha muita terra e um poço bizantino abandonado no
centro. Entraram então os camareiros, rasparam o lugar, limparam-lhe o piso,
montaram uma cama e estenderam sobre ela um colchãozinho com brocado e
uma almofada do mesmo tipo, um grande lampião com argola, candelabro e
vela, pois o lugar era escuro. Ali introduziram Qamaruzzamån e deixaram, para
vigiá-lo, um criado à porta do saguão. Qamaruzzamån subiu na cama atordoado,
derrotado, o coração triste, e pôs-se a censurar a sua alma, arrependido de suas
ações contra as prerrogativas do pai: “Amaldiçoe Deus o casamento; quem dera
eu tivesse ouvido as palavras de meu pai!”.
Isso foi o que se passou com o filho; quanto ao pai, ele convocou o vizir e lhe
disse: “Ouça, você foi o motivo do que ocorreu entre mim e meu filho”. O vizir
respondeu: “Ó rei, que ele fique lá preso cerca de dez dias, findos os quais
mande-o apresentar-se a você; se Deus altíssimo quiser, ele não voltará a
desobedecer-lhe”, e se retirou. O rei dormiu naquela noite com a mente
preocupada com seu filho Qamaruzzamån, pois seu coração estava todo com ele.
O rei o amava tanto que não dormia senão com o braço debaixo de sua cabeça.
Pensou no filho e seus olhos ficaram marejados de lágrimas, e ele então recitou a
seguinte poesia:

“Dou minhas pupilas por alguém que se revolta
contra mim, e minha lágrima escorre pela perfídia.
Não sei se meu amanhecer morreu depois deles,
ou se enfeitiçaram minha noite e já não acordo”.

Disse o narrador: isso quanto ao rei. Quanto a Qamaruzzamån, assim que
anoiteceu, o criado lhe acendeu o lampião e a vela e lhe ofereceu um pouco de
alimento. Qamaruzzamån sentou-se para comer; refletia, a mente atrapalhada, já
arrependido do que dissera na cara do pai. Pensou: “Ó alma, acaso você ignora
que o homem é refém de sua língua, e que é a língua que lança o ser humano na
aniquilação? Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e
poderoso”, e recitou:

“O jovem morre por um tropeço de sua língua,
mas não morre por um tropeço de suas pernas;
o tropeço da boca lhe desaba sobre a cabeça
e o tropeço das pernas se cura bem devagar”.[154]

Disse o narrador: depois ele lavou as mãos, fez as abluções e as preces do
crepúsculo e da noite. Sentou-se, recitou os capítulos “Yå S∑n”, “O
Misericordioso”, “Abençoado Seja” e as duas “Buscar Refúgio”,[155] e depois
dormiu sobre a cama e o colchão, que era fino de brocado como a almofada,
ambos recheados com penas de avestruz; despiu-se de todas as roupas e vestiu
uma fina túnica de lã; parecia o plenilúnio quando brilha. Cobriu-se com uma
coberta de lã e dormiu com o lampião aceso a seus pés, e a vela acesa à sua
cabeceira; dormiu e continuou dormindo até o primeiro terço da noite, sem saber
o que lhe fora preparado pelo incognoscível, pois aquele saguão e aquela torre
antiquíssima, que estavam abandonados havia anos e em cujo centro existia um
poço bizantino perpétuo, conforme descrevi – quis o destino que esse poço fosse
possuído; nele vivia uma gênia chamada Maymœna,[156] filha de Addamriyå†,
rei dos gênios. Então, quando aquela gênia saiu do poço...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado.[157]
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se
acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

93ª
A irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido, sensato e dotado de correto
parecer, que a gênia Maymœna saiu do poço e viu na torre uma luz acesa, o que
era incomum, pois ela ali morava havia anos e nunca vira luz alguma. Espantada
com aquilo, foi em direção à luz e notou que provinha do saguão; entrou e
encontrou o criado dormindo, viu uma cama e sobre ela algo que aparentava ser
um homem dormindo, uma vela e um lampião acesos à sua cabeceira e a seus
pés. Espantada, aproximou-se aos poucos, baixou as asas, parou diante da cama
e retirou-lhe a coberta do rosto, que se irradiou como pérola no rosto dela; seus
olhos produziram encanto, suas sobrancelhas formaram um arco, seu cabelo
brilhou, sua fronte resplandeceu, sua face luziu e seu almíscar se espalhou; ele se
tornou tal como disse certo eloquente nestes versos poéticos:

“A fragrância é almíscar; as faces, rosa;
os dentes, pérola; a saliva, vinho;
o talhe, ramo; o quadril, peso;
os cabelos, noite; o rosto, lua cheia”.[158]

Disse o narrador: ao vê-lo, a gênia Maymœna exaltou e glorificou o criador, e
disse: “Louvado seja Deus, o melhor dos criadores”,[159] pois ela fazia parte
dos gênios crentes. Em seguida, ficou por um bom tempo observando o rosto de
Qamaruzzamån, invejosa de sua formosura; disse com seus botões: “Por Deus
que não lhe farei mal! Esteja sempre bem este rosto formoso! Mas como
puderam os seus pais deixá-lo neste lugar assustador e arruinado? Se algum dos
nossos gênios e ifrites rebeldes topasse com ele, iria aleijá-lo!”, e, inclinando-se,
beijou-o entre os olhos, cobriu-o de novo com a coberta, abriu as asas e saiu
voando rumo aos céus; do centro do saguão ela subiu e não cessou de subir até
que se aproximou do céu terrestre, quando então eis que ela ouviu um ruído de
asas batendo ao vento e foi naquela direção; aproximou-se e notou que se tratava
de um gênio ímpio chamado Danhaš.[160] Ao vê-lo, reconheceu-o e se lançou
de assalto contra ele para exterminá-lo; Danhaš percebeu-lhe a presença,
reconheceu a filha do rei dos gênios e, temeroso, estremeceu e se colocou sob
sua proteção, dizendo: “Eu lhe suplico, pelo nome mais poderoso, mais
venerável e mais dignificado de Deus, que me trate com benevolência e não me
prejudique, pois eu sou inferior a você”.
Disse o narrador: ao ouvir suas palavras, Maymœna se apiedou dele,
controlou-se e disse: “Você me suplicou pelo nome mais poderoso de Deus. Mas,
ó amaldiçoado, me diga onde estava e de onde vem a esta hora”. Danhaš
respondeu: “Ó senhora, venho do interior de uma das regiões interiores de
Kashgar,[161] na China. Eu a informarei de algo maravilhoso que vi nesta noite;
se acaso você vir e presenciar isso, me libertará e escreverá, com a sua própria
letra, que eu sou seu liberto, a fim de que não me incomode nenhum dos meus
inimigos dentre os gênios celestes ou subterrâneos, voadores ou submarinos?”.
Ela respondeu: “Concedido. Faça o relato do que você viu nesta noite, seu
maldito. Mas se você enfeitar a conversa e caprichar na mentira para aplicar
contra mim, para escapar de minhas mãos, juro pelas palavras gravadas no anel
de nosso senhor Salomão, filho de Davi, esteja a paz sobre ele, que, se as suas
palavras não forem corretas, eu vou arrebentar as suas asas e rasgar o seu couro”.
Danhaš respondeu: “Sim, minha senhora! Saiba, minha ama, que passei nesta
noite pelas regiões interioranas, terra do rei Al©uyœr,[162] dono de penínsulas e
mares. Esse rei, minha senhora, tem uma filha que Deus, neste nosso tempo, não
criou ninguém mais belo, nem mais formoso, nem mais perfeito. Não a descrevo,
pois disso é incapaz tanto a minha língua como a de meus semelhantes. De
qualquer modo, entre algumas de suas características estão as seguintes: é dotada
de beleza, formosura, esplendor e perfeição; um cabelo semelhante às longas
noites, sob o qual há uma fronte que parece espelho polido, brilhando tal como
mecha acesa de lampião; sob essa fronte, uns olhos de jasmim que não se
deixam tomar por escravidão nem tibieza,[163] cuja brancura é como a da
atmosfera no crepúsculo, e cujo negrume é como o do escuro inicial noturno;
[164] entre eles, um nariz como ponta de espada afiada, no qual não se percebe
curteza nem comprimento o enfeia, ladeado por duas bochechas semelhantes à
púrpura, num rosto com a brancura da luz, e uma boca que semelhava coroa de
romã – a distribuição de seus dentes parecendo pérolas –, dentro da qual se agita
uma língua dotada de doçura e eloquência, movida por uma inteligência
abundante e uma resposta sempre pronta, e nessa boca lábios como manteiga e
rapidez como a das águias; saliva como mel, pescoço que parece de prata; o
peito, feitiço para quem o vê, liga-se a dois braços tão lisos que em sua pureza
são como belas pérolas, dotados de dois antebraços com lampiões,[165] nos
quais há duas palmas que parecem prata revestida em ouro puro; tem peitos que
parecem potes de marfim e cujo brilho ilumina a noite mais trevosa, sobre uma
barriga que parece tela de linho fino recamada, com dobraduras semelhantes à
folha de papel em rolo, e que termina numa cintura cuja esbelteza sem igual
quase voa, sobre um quadril que a faz sentar quando se levanta e a acorda
quando dorme; é carregada por pernas e coxas lisas; tudo isso é sustentado por
dois pés gentis, cujas extremidades, tendo a agudeza da flecha, como poderiam
suportar o que carregam? O que vai além disso, minha senhora Maymœna, eu
deixei para trás devido à minha incapacidade para descrevê-lo. O pai da jovem é
um rei despótico e valente cavaleiro que desafia a noite e o dia, despreza a morte
e não teme a sorte, tirânico e opressor, dono de soldados, combatentes, exércitos,
províncias, ilhas, cidades, memórias, vistas e tribos; seu nome é rei Al©uyœr, e
ele ama esta filha que descrevi de tal maneira que pilhou os cabedais e os
tesouros de outros reis e construiu para ela sete palácios, cada qual de uma cor, e
fez suas janelas de ouro cravejado de metais preciosos; encheu-os todos com
mobílias, recipientes e utensílios de ouro e prata e todo o mais necessário.
Ordenou à filha que morasse um mês em cada palácio, revezando-se. Quando as
notícias sobre a sua formosura se espalharam pelo país, os reis enviaram
delegações para pedi-la em casamento ao pai, que a consultou a respeito, mas
ela, não querendo e detestando aquilo, disse: ‘Não tenho nada que fazer com
casamento; sou senhora, rainha e governante e não quero homem que me
controle’. Então os reis das ilhas enviaram dinheiro e presentes valiosos para o
pai dela, e lhe escreveram pedindo-a em casamento. Ele repetiu então para a
filha a consulta sobre o casamento, mas ela gritou com ele, ridicularizou-o e
disse: ‘Se você mencionar de novo o casamento, eu irei pegar uma espada,
encostar seu punho no chão e enfiar sua ponta no meu peito; vou me matar e
fazer você sofrer com a minha perda’. Com o coração em chamas pela filha, o
rei ficou perplexo com o caso e com a resolução do problema diante dos outros
reis; pensou: ‘Se for mesmo imperioso, vou me esconder no palácio e depois
introduzi-la no fundo de um dos palácios, enclausurando-a num aposento,
colocar dez aias velhas para vigiá-la, proibi-la de aparecer nos palácios, e
mostrar-lhe que estou encolerizado’. E enviou mensagens escritas aos reis
informando-os de que a moça enlouquecera, fora atingida em seu juízo, ‘e eis-
me aqui agora me esforçando para medicá-la. Assim que ficar curada, irei dá-la
em casamento àquele que tiver a sorte de merecê-la’. Faz um ano que ela está
enclausurada e eu, toda noite, vou observá-la para saciar-me com seu rosto e sua
beleza e beijá-la entre os olhos; sua beleza é tamanha que não ouso fazer-lhe mal
nem possuí-la; não, a juventude dela não merece. Eu lhe suplico, minha senhora,
que venha comigo e veja a sua beleza e formosura; assim se evidenciará se estou
falando a verdade ou mentindo. Depois, se quiser, prenda-me ou solte-me. A
questão está em suas mãos”; dito isso, abaixou a cabeça e recolheu as asas.
Depois de rir e cuspir no rosto de Danhaš, Maymœna lhe disse: “Não tem
vergonha na cara? Foi isso que você se esfalfou tanto para descrever? Que
penico de mijo é este? Que nojo, que nojo! Por Deus que eu supus que você
tinha alguma notícia espantosa e assunto insólito. Mas, seu maldito, se você
visse o meu amado[166] e querido, o qual vi nesta noite, teria um derrame e sua
baba escorreria”. Danhaš disse: “Minha senhora Maymœna, e qual é a história
desse rapaz?”. Ela disse: “Saiba, ó Danhaš, que com ele ocorreu o mesmo que
ocorreu com a sua amada, devido à sua grande beleza e formosura, pois o pai lhe
ordenou diversas vezes que se casasse, mas ele se recusou; o pai então se
encolerizou e o prendeu na torre em cujo poço eu moro; nesta noite eu saí e o
vi”. Danhaš disse: “Eu lhe rogo, minha senhora, que me mostre esse jovem a fim
de que eu o contemple, compare com a minha amada, veja qual dos dois é mais
belo e lhe diga a verdade, muito embora eu continue supondo que não existe
neste tempo nada igual à beleza da minha amada”. Maymœna lhe disse: “Está
mentindo, seu maldito, mais vil dos gênios e dos demônios! Absolutamente, de
jeito nenhum, não existe ninguém igual ao meu amado! Se você não fosse louco,
não estaria comparando a sua amada com o meu amado!”. Danhaš disse: “Minha
senhora, venha comigo e examine a minha amada”. Ela perguntou: “E isso lhe é
imperioso? Você é um demônio, amaldiçoado e arrogante. Porém, não irei com
você nem você virá comigo senão mediante uma condição a ser cobrada. Se a
sua amada da qual você tanto gosta e a quem tanto valoriza for mais bela que o
meu amado, que eu tanto valorizo, você poderá definir os termos da condição a
ser cobrada; e, se o meu amado for o mais belo, eu é que definirei os termos”.
[167] Danhaš disse: “Aceito e me satisfaço com isso. Venha comigo até essa
região do interior”. Ela disse: “O local onde fico é mais próximo que o seu; está
logo aqui debaixo de nós. Venha comigo ver o meu amado, e depois disso vamos
até a sua amada”. Disse Danhaš: “Ouço e obedeço”. E os dois desceram
buscando a terra e pousaram num dos degraus da torre; entraram no aposento e
Maymœna colocou Danhaš ao lado da cama, estendeu a mão, tirou a coberta do
rosto de Qamaruzzamån, que irradiou, brilhou, se iluminou de luzes e
resplandeceu. Maymœna olhou para o jovem e, voltando-se para Danhaš, disse-
lhe: “Veja, seu maldito! Ser louco é feio e não se encante tanto pelo amor de um
seio!”. Danhaš olhou para Qamaruzzamån durante algum tempo, balançou a
língua e a cabeça, e disse: “Louvado seja Deus, o melhor dos criadores![168]
Minha senhora, você está justificada; escapa-lhe, contudo, a doçura das
mulheres, que é diferente da doçura dos homens. Juro por minha fé que esse
rapaz é a criatura mais semelhante à minha amada; na beleza, ambos parecem
irmãos de pai e mãe”. Maymœna se encolerizou, lhe deu uma pancada na cabeça
com a asa e disse: “Eu juro, pela luz excelsa da grandeza de Deus, que se você
não for agorinha mesmo carregar a sua puta arrombada e trazê-la até aqui para
reunirmos os dois, fazê-la dormir ao lado dele e se demonstrar que ele é mais
belo e gracioso – juro que se você não o fizer eu irei queimá-lo com meu fogo
lançando os meus raios contra você, e quebrarei as suas asas, impedindo-o de
voar pelos desertos e tornando-o uma lição para o mergulhador e o caminhante”.
Danhaš disse: “Sim, concedido! Por Deus que a minha amada é mais bela,
graciosa e doce”, e saiu voando junto com Maymœna.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu o discurso autorizado. Sua
irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, agradável e boa a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

94ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, termine para nós a sua história”, e ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido, sensato e dotado de correto
parecer e inteligência, que o gênio saiu voando com a gênia Maymœna atrás de
si, vigiando-o. Voaram por algum tempo e voltaram ambos carregando nos
ombros a jovem, que usava uma roupa fina acastanhada com bordados de ouro,
touca egípcia,[169] cauda e cabeça; nas mangas estavam escritos os seguintes
versos poéticos:

“O coração do amante é exaurido pelos amados;
seu corpo, mercê da fraqueza, é saqueado;
se alguém me pergunta como é o sabor do amor,
responderei que doce, mas cheio de sofrimento”.

Em seguida eles pousaram com a jovem e a estiraram ao lado de
Qamaruzzamån; descobriram os rostos de ambos, que pareciam duas luas ou
dois plenilúnios florescentes; eram as criaturas mais parecidas entre si, como se
fossem irmãos, tal como disse a seu respeito alguém que os descreveu na
seguinte poesia:

“Eu os vi com meus olhos, dormindo sobre estrelas,
e desejei que se guardassem em minhas sobrancelhas:
hastes puras, sóis da manhã, luas da noite espessa,
gazelas, não me sufoca sua pureza, minha pálpebra os abraça”.[170]

Danhaš disse: “Por Deus que essa é boa, madame Maymœna! Ela é mais bela do
que ele”. Maymœna se encolerizou e disse: “Está mentindo, seu maldito! Meu
amado é que é mais belo!”. Maymœna continuou: “Ai de você! A verdade lhe
escapa ou ficou cego? Olhe só para a sua beleza e formosura, esplendor e
perfeição, talhe e esbelteza! Mas escute o que eu digo a respeito dele!”. E,
inclinando-se até Qamaruzzamån, beijou-o entre os olhos e pôs-se a recitar os
seguintes versos:
“Que tem contra mim aquele que te injuria?[171]
Onde o consolo, se tu és um galho esbelto?
Acorda, com a tristeza, mais que humilhado,
tomado, quando tu o alcanças, por tremores.
Outro se refugiaria no consolo e no pasmo,
mas só o meu coração conhece a censura;
tu tens pupilas grandes e faces avermelhadas;
delas não há como escapar da paixão sem gozo,
turcas nos olhares que agem nas entranhas
mais intensamente do que o polido delgado.
Ó tu que te atrasas aos encontros com os amantes!
Acaso incriminadores compromissos se atrasam?
Tu me fizeste suportar o peso da paixão, mas agora
sou incapaz de suportar o peso da túnica e menos ainda![172]
Já sabes de meu sentimento por ti; meu desespero
é uma natureza, e minha paciência com outro é um custo.
Se o meu coração fosse como o teu, eu não dormiria;
meu corpo está tão frio quanto a tua cintura.
Mentiu aquele que supôs estar toda a graciosidade
em José![173] Quanta a beleza tem José perto da tua?
Quanto a mim, os gênios me temem se os encontro,[174]
mas o meu coração, quando te vê, estremece.
Os cabelos são negros, a fronte, luminosa,
os olhos, bem desenhados, e os membros, esbeltos”.[175]

Disse o narrador: nesse momento, Danhaš ficou emocionado, balançou a cabeça
e disse: “Por Deus, madame, você desempenhou muito bem para este seu amado.
Quanto a mim, não tenho a sua capacidade, mas me esforçarei na medida de
minha emoção e perspicácia”. Em seguida, inclinou-se até a jovem, beijou-a
entre os olhos, olhou para Maymœna e para a jovem e recitou a seguinte poesia:

“Censuraram com virulência o amor pelos graciosos,
mas não foram justos em seu julgamento, não foram.
Por Deus, que brancura de membros! Parece
galho de aråk[176] ou de salgueiro quando se arranca.
Volta, pois quem te ama está humilhado, e se
tu insistires na ausência e rispidez, ele morrerá.
Teu coração não se condói das lágrimas que verto?
Meus olhos, após a tua ausência, não param de piscar.
O sangue que chorei fez alguém observar:
‘É sangue o que escorre pelos olhos deste jovem!’.
Perdi a tua satisfação, e me dedico à tua traição,
por mais que se entedie ou sofra o coração do amor”.

Maymœna disse: “Muito bem! Você não falhou. E agora: qual deles é mais belo
e formoso?”. Ele respondeu: “A minha amada”. Ela disse: “Você está mentindo.
Meu amado é mais formoso”. Ele disse: “Não, a minha amada é que é!”. Ela
disse: “Está mentindo!”. Então eles discutiram e a disputa foi ficando renhida;
Maymœna gritou com Danhaš e quis agredi-lo, mas ele, temeroso, usou palavras
hábeis e disse: “Minha senhora, acaso a verdade lhe é tão custosa? Mas não seja
a minha opinião nem a sua. Cada um de nós declara que o seu amado é mais
formoso; vamos fazer diferente: gostaríamos que um terceiro julgasse entre nós,
e aceitaríamos a sua decisão”. Ela disse: “Sim”, e bateu a palma da mão no solo,
do qual saiu um gênio corcunda e caolho, com o olho fendido ao comprido no
rosto; na cabeça tinha seis cornos e quatro tranças; sua barba chegava até os pés;
suas mãos pareciam as patas de um cachorro;[177] suas unhas, as de um leão;
seus pés, os de um ogro;[178] e seus cascos, os de um burro. Quando subiu e viu
Maymœna, beijou o chão, cruzou os braços, e perguntou: “Do que você precisa,
ó madame, ó filha do rei?”. Ela lhe respondeu: “Eu quero, ó Qušquš,[179] que
você decida entre mim e este amaldiçoado Danhaš”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu o discurso autorizado. Sua
irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, agradável e boa a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

95ª
Disse sua irmã Dunyåzådah: “Por Deus, maninha, se você estiver acordada, não
dormindo, termine para nós a sua história”, e ela disse: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, dono de sensato parecer e belo proceder, de
que Maymœna disse ao gênio Qušquš: “Observe estes dois”.
Disse o narrador: então o gênio Qušquš observou o rosto do rapaz e da moça,
e os viu dormindo, abraçados, mergulhados no sono, o pulso de um no pescoço
do outro, a mão de um no pescoço do outro, abraçados, na formosura
assemelhados e na graciosidade irmanados. A contemplação deixou-o
maravilhado e, voltando-se para Maymœna e Danhaš, apontou para os dois
jovens e recitou a seguinte poesia:

“Deus misericordioso nada criou mais formoso
do que dois amantes deitados no mesmo colchão,
abraçados e cobertos pelo adorno da satisfação,
tendo os pulsos e os braços por travesseiro!
E quando a paixão harmoniza os corações,
quem tenta impedi-la malha em ferro frio.
Ó quem pela paixão censura os apaixonados!
Será que podes consertar um coração corrompido?”.

Em seguida disse-lhes: “Por Deus, minha senhora, que não há entre eles superior
nem inferior. Ambos se equivalem em beleza e graciosidade; são as criaturas
mais parecidas entre si que existem, e só o que os diferencia é o pênis e a vagina.
Porém, existe uma outra possibilidade: acordemos um e deixemos o outro
dormindo. Dentre ambos, aquele que arder em paixão pelo outro será
considerado inferior em beleza”. Maymœna respondeu: “Você disse a melhor
coisa”, e Danhaš respondeu: “Essa é a verdade, o bom alvitre e a correção”.
Qušquš disse então para Maymœna: “Acorde primeiro o seu amigo”, e então ela
se transformou em pulga e picou o rapaz no pescoço, debaixo da goela; ele
esticou a mão por causa da picada ardida e se revirou de um lado para o outro,
verificando que havia alguém ao seu lado. Sua mão caiu sobre um corpo mais
macio do que manteiga cremosa; abriu os olhos e viu ao seu lado algo dormindo,
o corpo estirado. Espantado, sentou-se imediatamente, examinou a pessoa e
constatou que se tratava de uma jovem que parecia boneca, afigurando-se,
graciosa e opulenta, tal como uma pérola brilhante, um sol luminoso, talhe
esguio como a letra alif,[180] olhos babilônicos, sobrancelhas que pareciam arco
inclinado, estatura mediana, faces rosadas, tal como disse a seu respeito um dos
que a descreveram nestes versos poéticos:

“São quatro as coisas que, ao se reunirem,
contra minha vida e meu sangue atentam:
luz da fronte, noite que se vai,
rosado das faces e um belo sorriso”.[181]

Disse o narrador: e então ele a viu, bem como à sua juventude e beleza,
enquanto dormia de comprido, usando uma fina túnica acastanhada com
bordados e colar de ouro com todo gênero de pedras preciosas no pescoço
rosado. Assim que a viu e contemplou, Deus lançou o amor por ela em seu
coração; o desejo instintivo agiu e o jovem disse: “Por Deus que essa é boa!”, e
pôs-se a revirá-la, abriu-lhe a túnica e avistou seu pescoço; olhou para seus seios
e o amor por ela aumentou. Os gênios haviam tornado mais pesado o sono da
jovem e entrado em sua cabeça; por isso ela não acordou. Qamaruzzamån
continuou balançando-a e movimentando-a, “Acorde minha querida, eu sou
Qamaruzzamån!”, mas ela nem erguia a cabeça. O jovem refletiu a seu respeito
por alguns momentos e disse: “Se minha intuição me diz a verdade, é esta a
jovem que o meu pai quis casar comigo. Faz três anos que ele me pede uma
decisão e fico bancando o rogado. Por Deus que, mal amanheça o dia, vou dizer-
lhe: ‘Case-me com ela!’; não deixarei passar metade do dia e a terei possuído e
me saciado com sua beleza e juventude”. Em seguida, inclinou-se sobre ela para
beijá-la. Maymœna estremeceu e Danhaš se alegrou. Qamaruzzamån tencionava
beijá-la na boca mas, dominando a cabeça, pensou: “Paciência! Será que o meu
pai, depois de minha desobediência e de ter se encolerizado comigo e me
prendido neste lugar, não terá ele esperado até que eu dormisse e trazido para
mim esta graciosa jovem, fazendo-a deitar-se ao meu lado e lhe recomendando
que, caso eu a acordasse, ela não se levantasse?”. E continuou: “O que fazer com
você? Diga para mim! Não estará meu pai parado em algum lugar observando o
que quer que eu faça com ela para brigar comigo e me censurar dizendo: ‘Ai de
você, que diz não ter necessidade nem desejo de se casar! Como então beijou a
moça?’, e isso me denunciará ante os olhos dele. Por Deus que não a beijarei
nem olharei para ela. No entanto, vou levar apenas uma lembrança e um sinal”.
E, deixando-a, tirou de seu dedo mindinho um anel feminino de ouro com
cabeça de gema pura, cercado de rubis, e no qual estavam gravados os seguintes
versos:

“Não pensem que esqueci os seus compromissos
ou que se perdeu aquilo a que me habituaram.
O meu coração está em brasas infernais
desde a hora em que vocês me abandonaram”.

Em seguida, enfiou-o em seu próprio dedo mindinho, colocou nela o seu anel e
então deu-lhe as costas e dormiu. Maymœna disse a Qušquš e Danhaš: “Vocês
viram que o meu amado não pensou nela nem a tocou, mas sim lhe deu as costas
e dormiu, ou seja, ‘Não estou nem aí com você’”. Eles disseram: “Sim”. Em
seguida, Danhaš se transformou em pulga, introduziu-se sob as roupas de sua
amada, caminhou em sua perna, subiu por sua coxa até chegar debaixo de seu
umbigo, que media quatro dedos, e lhe aplicou uma picada ardente; ela abriu os
olhos, pôs-se sentada e viu um jovem deitado ao seu lado, ressonando a sono
solto, com olhos e sobrancelhas que nem as mulheres tinham iguais, olhos
caídos, boca pequena, labiozinhos delicados e bochechas como maçãs; a língua
seria incapaz de descrever-lhe a beleza e dá-lo a conhecer, tal como se disse a
seu respeito na seguinte poesia:

“Foi até a beleza para ser avaliado,
e ela abaixou a cabeça, envergonhada;
perguntaram: ‘Já viste algo assim, beleza?’,
e ela respondeu: ‘Desse jeito, não’”.[182]

Disse o narrador:[183] quando a jovem viu aquele jovem gracioso dormindo ao
seu lado, lamentou-se e disse: “Ai, ai! Que vergonha é essa? Um homem
dormindo comigo na cama! Por Deus que é um jovem gracioso! Ó, que vergonha
de você! Por Deus que, caso eu tivesse sabido que foi você que pediu minha mão
a papai, eu não teria recusado o casamento”, e o sacudiu, mas Maymœna
adormecera o rapaz e tornara pesada a sua cabeça, e ele não acordou. A jovem
balançou-o e disse: “Meu querido, por minha vida, está tomando a sua vingança
de mim? Acorde e me divirta!”. Mas ele não lhe deu resposta alguma, nem
palavra, continuando, pelo contrário, a ressonar. Ela disse: “Ai, ai! O que é você?
Eles o instruíram contra mim! Aquele velho safado do meu pai lhe recomendou
que você não falasse comigo esta noite”. Ele não abriu os olhos, e o amor e o
desejo dela aumentaram. Deus altíssimo depositou o amor por ele no coração da
jovem, e ela lhe lançou um olhar seguido por mil suspiros; seu coração disparou,
suas entranhas se agitaram, seus membros se curvaram, e ela disse: “Meu senhor,
fale comigo! Meu querido, responda-me! Ó você que me desgraça, converse
comigo!”, mas Qamaruzzamån continuava mergulhado no sono. Ela disse: “Ai,
ai! O que você tem, está convencido consigo mesmo e com sua beleza?”, e o
chacoalhou. Então, voltando o olhar para a mão do jovem, notou que o seu anel
estava no dedo dele; deu um forte soluço, seguido de um gemido, e disse: “Ai,
ai! Por Deus que você está me provocando. Você gostou de mim enquanto eu
dormia! Vá lá saber o que fez comigo? Que escândalo que você causou! Por
Deus que vou tirar o meu anel do seu dedo”. Em seguida, abriu o botão de sua
túnica, inclinou-se sobre ele, e o beijou no pescoço e na boca; procurou por algo
para levar como sinal, mas nada encontrou com ele. Verificando que estava sem
calções, esticou a mão pela parte inferior da túnica, acariciou-lhe as pernas, e sua
mão escorregou para cima em razão da suavidade do corpo do jovem, chegando
a algo entre suas coxas. Seu coração deu um pulo, suas entranhas estremeceram,
e todos os seus órgãos amoleceram – a excitação da mulher é mais forte que a do
homem. Em seguida envergonhou-se, tirou a mão e o beijou entre os olhos, na
boca e nas palmas das mãos; depois o abraçou, colocou uma das mãos debaixo
da cabeça do rapaz e a outra sobre ele, em sua axila, e mergulhou no sono.
Maymœna disse a Danhaš: “Está vendo, seu maldito, que você foi derrotado?
Viu que a sua amada é inferior ao meu amado? Mas eu irei perdoá-lo”, e lhe
escreveu um papel libertando-o, e assinou-o. Em seguida, voltou-se para Qušquš,
o corcunda, e disse: “Entre com ele e ajude-o a transportá-la para o lugar dela,
pois boa parte da noite já passou e me atrasei em algumas obrigações”. Qušquš
respondeu: “Ouço e obedeço”, e Danhaš ficou contente. Ambos se introduziram
debaixo da jovem, carregaram-na e voaram, enquanto Maymœna voava para
cuidar de seus assuntos. Quanto a Danhaš e Qušquš, ambos conduziram a jovem
até o seu lugar, puseram-na deitada em sua cama e cada qual tomou seu rumo.
Não restavam, entre a noite e o dia, senão três horas. Quando a alvorada
irrompeu, Qamaruzzamån acordou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado. Sua
irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita e boa a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se
acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

96ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, maninha, se você não estiver
dormindo, continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto
e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo proceder,[184] de que Qamaruzzamån despertou e, não
encontrando a moça ao seu lado, pensou: “Por Deus que essa é boa! Meu pai
estava me provocando”, e gritou com o criado: “Ai de você, seu arrombado! Vai
dormir até quando?”. O criado acordou zonzo e levou a bacia e o jarro para junto
do lavatório. Qamaruzzamån foi ao banheiro, saiu, abluiu-se, fez a prece matinal
e sentou-se para ler e louvar a Deus. Olhou para o criado, viu-o de pé ao seu
dispor e lhe disse: “Ai de você, Øawåb![185] Quem retirou a moça do meu
lado?”. O criado respondeu: “Que moça, meu senhor?”. O jovem disse: “A moça
que dormiu comigo esta noite”. Ao ouvir aquilo, o criado se encolheu todo e
disse: “Não, por Deus, meu senhor! Por onde teria entrado essa moça, se eu
estou dormindo atrás da porta? Por Deus, meu senhor, que ninguém entrou!”.
Qamaruzzamån disse: “Você está mentindo, seu escravo safado! Você também
está me provocando? Não aceitará me dizer aonde foi a moça graciosa que
estava dormindo comigo, nem quem a trouxe até aqui?”. O eunuco, já irritado,
respondeu: “Por Deus, meu senhor, que não a vi nem avistei”. Ao ouvir aquilo,
Qamaruzzamån se encolerizou e disse: “Não há dúvida de que você está
instruído contra mim! Venha até aqui, maldito cachorro!”. O criado avançou até
ele, e Qamaruzzamån o agarrou pelos braços, atirou-o ao solo, ajoelhou-se sobre
ele, deu-lhe um chute e apertou-lhe a garganta até que ele desmaiou. Em seguida
carregou-o, amarrou-o nas cordas do poço e o fez chegar até a água, quando
então o soltou – era inverno – e o criado mergulhou; Qamaruzzamån o retirou e
tornou a mergulhá-lo repetidamente, enquanto o criado pedia socorro e gritava;
Qamaruzzamån dizia: “Não vou largá-lo até que você me dê notícias da moça e
de quem a trouxe”. O criado pensou: “Não resta dúvida de que meu patrão
enlouqueceu, e eu não devo senão mentir, utilizar a mentira; caso contrário, não
me salvarei”, e então o chamou, dizendo: “Deixe-me pegar a sua mão, meu
senhor, e lhe contarei tudo”. Qamaruzzamån retirou-o e ele subiu, quase
desfalecido em razão do afogamento que sofrera, trêmulo, os dentes tiritando, as
roupas pesadas por causa da água, e disse: “Permita que eu vá espremer as
minhas roupas, estendê-las e vestir outras; então retornarei a você e lhe contarei
sobre a moça graciosa”. Qamaruzzamån disse: “Seu escravo nojento, só quando
viu a morte é que confessou a verdade! Saia logo e volte para me contar tudo”. O
escravo saiu.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita e boa a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

97ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo proceder, de que o criado saiu mal acreditando que se safara. Não
parou de correr até chegar ao rei ¸åhramån, com o qual estava o vizir, sentado ao
seu lado; ambos tinham realizado a prece matinal e estavam sentados a conversar
sobre o caso de Qamaruzzamån. O rei dizia ao vizir: “Ai de você, vizir! Não
consegui dormir ontem de tanto que o meu coração estava preocupado com o
meu filho. Tenho medo de que lhe ocorra algum mal naquela velha torre.
Aprisioná-lo não foi acertado”. O vizir respondeu: “Nada lhe ocorrerá. Deixe-o
agora por algum tempo até que ele se acalme”. Estavam ambos nessa conversa
quando o criado entrou naquele estado e disse: “Meu senhor, a verdade é que seu
filho enlouqueceu, fez isto comigo e disse que uma moça dormiu com ele. Não
conhecemos essa moça! Venha conosco! Venha conosco!”. Ao ouvir e
compreender as palavras do criado, o rei ¸åhramån gritou: “Ai, meu filhinho! Ai,
meu queridinho!”, e, voltando-se para o vizir, disse: “Ai de você, cão de vizir!
Vá descobrir o que aconteceu com o meu filho!”.
Disse o narrador: o vizir se levantou e foi até a torre. O sol já despontara e ele
entrou onde estava Qamaruzzamån, a quem encontrou sentado lendo o Alcorão
Sagrado. Saudou-o, o jovem devolveu a saudação, e se sentou ao seu lado
dizendo: “Deus amaldiçoe o criado! Esse escravo nojento que irrompeu diante
do rei e nos aborreceu”. Qamaruzzamån perguntou: “E o que disse o escravo
para ter incomodado o meu pai? Na verdade, ele é que me incomodou”. O vizir
disse: “Eu lhe informo, meu senhor, que ele nos disse palavras que longe estejam
de você! Mentiu, o escravo nojento! Esteja sempre íntegra a sua graciosa
juventude, seu talhe elegante e sua língua eloquente”. Qamaruzzamån insistiu:
“Mas o que ele disse?”. O vizir respondeu: “O escravo diz que você veio com a
história de uma tal moça”.[186] Qamaruzzamån disse: “Que ótimo! Por Deus,
que ótimo!”, e continuou: “E vocês criticaram o escravo por causa dessas
palavras! Por Deus, essa é boa! Agora você é mais ajuizado do que o criado.
Onde está a moça graciosa que dormiu comigo esta noite, e que aliás foram
vocês que fizeram dormir comigo?”.
Disse o narrador: ao ouvir suas palavras, o vizir disse: “Pronuncie-se o nome
de Deus ao seu redor! Por Deus, meu filho, que ninguém dormiu com você. A
porta estava trancada e o criado dormia do lado de dentro. Ninguém veio até
você. Recobre o juízo, meu senhor, e que seu juízo esteja sempre íntegro”. Muito
irritado, Qamaruzzamån disse: “Ai de você! A minha jovem e graciosa amada,
dona dos olhos negros e das faces rosadas, com quem dormi abraçado esta
noite!”.
Disse o narrador: espantado, o vizir pronunciou uma frase que nunca
desampara quem a diz: “Não existe força nem poderio senão em Deus
altíssimo!”, e continuou: “Meu senhor, você viu essa jovem com seus próprios
olhos?”. O rapaz respondeu: “Não, seu velho safado, mais sujo dos vizires,[187]
eu a vi com meus ouvidos! Eu a vi, revirei e fiquei acordado ao lado dela metade
da noite, mas vocês a instruíram para não falar comigo, e então dormi ao lado
dela, mas depois acordei e não a encontrei”. O vizir disse: “Meu senhor,
porventura não a terá visto durante o sono, em sonho? São alucinações”.
Qamaruzzamån disse: “Seu velho safado, você também está me gozando? Você
diz que foi sonho, mas o eunuco já confessou e voltará para me informar de
tudo”. Em seguida, levantou-se e pegou o vizir pela barba...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, agradável e boa a
sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na próxima noite”.

Na noite seguinte, que era a

98ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de juízo
acertado e benéfico e belo proceder, de que Qamaruzzamån agarrou a barba do
vizir, que era comprida, enrolou-a na mão, puxou-a e jogou-o fora da cama. O
vizir caiu de cabeça, e o rapaz começou a lhe desferir coices e pontapés no
pescoço até deixá-lo atordoado.[188] O vizir pensou: “Mas se até um escravo
salvou a vida com uma mentira, não poderei eu também mentir e salvar a minha
vida? Não há dúvida de que ele enlouqueceu; sua loucura é inquestionável”, e
fez para Qamaruzzamån um sinal: “Pare de me bater”, e ele interrompeu as
pancadas. O vizir disse então: “Meu senhor, não nos leve a mal, pois o rei nos
recomendou que lhe escondêssemos a história da moça sua amada. Agora estou
fraco, sou um ancião, e meu couro não aguenta pancada. Tenha um pouco de
paciência e eu lhe contarei tudo”.
Disse o narrador: então Qamaruzzamån largou-o e disse: “Você não me
contará a verdade senão após a humilhação e a surra. Vamos, conte logo”.
Perguntou o vizir: “Meu senhor, você indaga sobre a jovem graciosa, dona do
rosto gracioso e talhe elegante?”. Qamaruzzamån respondeu: “Sim, sim! Conte-
me quem a trouxe e a fez deitar comigo. Onde ela está agora para que eu vá até
ela. Se o meu pai tiver feito isso comigo por causa do casamento, então eu
aceito. Informe-o disso e deixe-o casar-me com aquela jovem que estava aqui, e
que ele se apresse nisso! Vamos, vá informá-lo, rápido!”.
Disse o narrador: o vizir mal acreditou que escaparia; levantou-se e correu,
aos tropeções, até o rei, mal podendo acreditar que continuava ileso. Quando
parou diante do rei, este lhe perguntou: “O que aconteceu? Por que o vejo em
lágrimas e aterrorizado?”. Ele respondeu: “Eu lhe trago uma alvíssara”. O rei
perguntou: “E qual é?”. Respondeu: “Seu filho Qamaruzzamån enlouqueceu,
sem dúvida”.
Disse o narrador: então o rei gritou, lamuriou-se e perguntou: “É mesmo
verdade que meu filho enlouqueceu?”. O vizir respondeu: “Sim”. O rei disse:
“Sua alvíssara não merece senão que sua cabeça seja cortada, cão de vizir, mais
nojento dos comandantes! Tudo isso não é senão resultado do seu miserável
conselho e parecer, que está no início e no fim de tudo! Por Deus que, se ocorrer
qualquer coisa com meu filho, eu matarei você e lhe enfiarei pregos nos olhos”,
e se pôs de pé.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, agradável e boa a
sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite seguinte, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

99ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e bom e louvável proceder, de que o rei se levantou e, levando o vizir
consigo, dirigiu-se à torre, entrou e foi até seu filho Qamaruzzamån, o qual, ao
ver o pai, desceu da cama, colocou-se em pé, beijou-lhe a mão, afastou-se e
manteve-se de cabeça baixa, erguendo-a a seguir com uma lágrima que lhe
brotou do olho e escorreu pela face; apontou para o pai e recitou os seguintes
versos poéticos:

“Se eu tiver cometido delitos pretéritos
contra vós e feito coisas condenáveis,
já me arrependi de meu crime, e vossa anistia
engloba quem errou e vem rogando perdão”.

Disse o narrador: o coração do pai se enterneceu e ele o abraçou, chorou,
beijou-lhe o rosto, fê-lo sentar ao seu lado, lançou um olhar encolerizado para o
vizir e disse: “Pobre de você, cão dos vizires! O que você falou sobre o meu
filho?”, e, voltando-se para Qamaruzzamån, disse-lhe: “Meu filho, que dia é
hoje?”. Ele respondeu: “Papai, hoje é sábado, amanhã será domingo e depois
segunda, depois terça, quarta, quinta e sexta”. O rei disse: “Graças a Deus, meu
filho, que você está bem, que a sua juventude está bem!”. E, de novo, perguntou-
lhe: “E que mês é este?”. Ele respondeu em árabe claro: “∂œlqa¢da, depois dele
∂œl¬ijja, mu¬arram, ßafar, os dois meses de jumådà, os dois meses de rab∑¢,
rajab, ša¢bån, rama®ån e šawwål”.[189] Muito contente, o rei cuspiu no rosto
do vizir e disse: “Seu velho nojento, quem está louco é você!”. O vizir mexeu a
cabeça e pensou: “Espere só”. O rei perguntou ao rapaz: “Do que é que você
estava falando? Uma tal de jovem? O que é que sucedeu com a tal jovem?”.
Sorrindo, Qamaruzzamån respondeu: “Ouça, meu pai”, e continuou: “Por Deus
que não posso mais aguentar. Não aumente mais essa história. Você me
aconselhou e eu explodi com aquela sua importunação. Mas agora eu aceito o
casamento, com a condição de que me case com aquela moça que você fez
dormir aqui ontem e levou de mim hoje cedo”. O pai disse: “Pronuncie-se o
nome de Deus ao seu redor, meu filho! Que você fique bem! Que jovem é essa
sobre a qual você está falando? Por Deus que nada sabemos dela! Por Deus, meu
filho, reponha o juízo na cabeça, peça refúgio a Deus contra o demônio
pusilânime, pois isso foi alucinação. Não resta dúvida de que você dormiu
preocupado com o casamento – que Deus amaldiçoe o casamento e quem lhe
sugeriu casar-se –, nem resta dúvida de que, após ter sofrido tudo aquilo de
minha parte, você pensava no casamento e sonhou enquanto dormia que uma
jovem o abraçava e que você a viu. Por Deus que isso tudo, meu filho, foi sonho
e alucinação. Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e
poderoso”. Qamaruzzamån disse: “Meu pai, deixemo-nos disso. Em nome do
criador dadivoso, vencedor dos tiranos e aniquilador dos sassânidas, você não
tem conhecimento do que estou falando?”. O rei respondeu: “Não, juro por Deus
poderoso, meu filho. Isso foi alucinação. Foi isso que você viu nesta noite”.
Qamaruzzamån disse: “Meu pai, eu vou lhe aplicar um exemplo. Concordarei
com a sua palavra, que o ocorrido foi sonho. Mas alguma vez ocorreu de alguém
dormir, ver no sonho que estava numa batalha, num combate em que lutou
bravamente, e depois acordar e encontrar na mão uma espada desembainhada e
engolfada em sangue?”. O rei respondeu: “Não, por Deus!”. Qamaruzzamån
disse: “O mais grave é que, no sonho desta noite, vi como se eu tivesse
despertado no meio da noite e encontrado uma jovem deitada ao meu lado, de
comprido, com o mesmo talhe que o meu, e a mesma cor que a minha. Beijei-a,
[190] abracei-a, tomei o anel de seu dedo, pondo-o no meu, arranquei o meu
anel, pondo-o em seu dedo, e dormi com vergonha de que você estivesse em
algum lugar nos observando. Depois acordei em plena manhã, não encontrei a
jovem, mas encontrei o anel. Como pode ser isso? Eis aqui o anel dela, que até
agora continua no meu dedo mindinho. Olhe para isto, não é um anel
feminino?”, e entregou-o ao pai, que examinou o anel e disse: “Pertencemos a
Deus e a Deus retornaremos”,[191] e prosseguiu: “Meu filho, essa é uma questão
complexa. Não sei por onde esse intruso nos invadiu. Nada me fez prejudicar
você mais do que o vizir, que estava no início e no fim de tudo. Ele é o motivo
da discórdia. Mas, meu filho, paciência”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita e boa a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
noite seguinte, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

100ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto
e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dotado de correto
parecer e de belo proceder, de que o rei disse ao seu filho Qamaruzzamån:
“Paciência, meu filho. Quem sabe Deus não lhe traga rápido alívio, tal como
disse alguém nestes versos poéticos:

‘Quem sabe o destino afrouxe as rédeas
e, apesar de ingrato, traga enfim algo bom
que me renove as esperanças e me satisfaça.
Deixe que, depois disso, outras coisas ocorram’.[192]

Por Deus que agora confirmei que você não foi atingido pela loucura. Do seu
caso, só sabe Deus altíssimo”. Qamaruzzamån disse: “Por Deus que, caso vocês
não me tragam logo essa moça, morrerei de tristeza”. Em seguida, suspirou
profundamente, demonstrou grande sofrimento, ficou cabisbaixo e recitou a
seguinte poesia:

“Supunham que o seu compromisso de vir era falso;
ao menos toquem-no ou visitem-no enquanto dorme,
isso se vocês permitirem que durma um jovem
que de dormir está impedido e afastado,
pois ao partirem vocês deixaram em meu coração
um fogo que nesse ponto deixa marcas sem igual.
Quem por sua causa me inveja ri do meu abandono!
Até quando serei abandonado e invejado?
As lágrimas de meus olhos escorrem em suas casas,
e o coração, no grau dos anseios, está afetado.
Meu sentimento e minha paciência estão lutando:
a paciência, alquebrada, e o sentimento, desperdiçado”.

E continuou: “Por Deus, meu pai, que já não tenho paciência”.
Disse o narrador: seu pai bateu uma mão na outra[193] e disse: “Para este
caso não existe nenhuma artimanha; você foi vítima de mau-olhado”; depois,
pegou o rapaz pela mão e saiu com ele até o palácio. Qamaruzzamån deitou-se
no colchão e se encostou ao travesseiro; o pai se instalou à sua cabeceira, muito
triste e com os olhos chorosos, censurando o tempo e reclamando do destino e de
suas alterações. Chorou e recitou os seguintes versos poéticos:

“Meu destino me maltrata como se eu fosse inimigo,
diariamente me recebendo com coisas ruins;
mesmo que alguma vez eu tenha tido um bom dia,
no dia seguinte os desgostos retornaram”.[194]

Disse o narrador: e Qamaruzzamån parou de comer e beber; só o que fazia era
dizer: “Ai, sua esbelteza! Ai, sua beleza! Ai, seu talhe!”, e chorava lágrimas
copiosas noite e dia; seu pai ficava à sua cabeceira e não o abandonava. Então o
vizir entrou e se sentou aos pés de Qamaruzzamån, que abriu os olhos e olhou
para o pai, depois para o vizir, e seus olhos começaram a escorrer. Olhou na
direção de ambos e fez um sinal dizendo a seguinte poesia:[195]

“Fiquem alertas com o olhar dela, que é feiticeiro,
e nem as pedreiras poderão escapar ao seu encanto.
Aqueles negros olhos, cheios de languidez,
atravessam até as espadas brancas mais aguçadas.
Não os engane a sutileza de suas palavras,
pois a excitação é para a inteligência engodo.
Pujante, sua face, quando a roçam as rosas,
chora e de suas pálpebras escorrem primícias.
As de modesta mirada lhe invejam a beleza –
são adversárias, e até mesmo as fogueiras o são.
Se quando ela dorme o zéfiro por sua sombra resvala,
sua fragrância o torna melhor e mais perfumado.
Se o chocalho reclama notícias de seu brinco,
que longo espaço vão cobrir suas tranças!
Tenho um censor que não me perdoa o seu amor,
Sem clarividência, a visão de nada serve.
Censor, não, por Deus que você não é justo!
Acaso para esta beleza não haveria exceção?”

Disse o narrador: então o vizir disse: “Ó rei do tempo, até quando você ficará
isolado de seus soldados? A situação do exército se corrompeu por causa de sua
ausência para ficar com seu filho. Temo que a sua situação se corrompa por
causa deles. O inteligente arguto, quando sofre de duas doenças diferentes no
corpo, trata da mais grave. Para mim, o melhor parecer é que você transfira o seu
filho para o palácio interno que dá para o mar e se isole com ele; às quintas e
segundas, porém, que os comandantes sejam recepcionados por você e se
coloquem ao seu dispor; então, designe-lhes tarefas, julgue entre eles, tome,
recolha e ordene, tudo às quintas e segundas. Quanto aos dias restantes, você
ficará com seu filho até que Deus altíssimo proporcione alívio. Não confie no
tempo e suas calamidades nem nos dias e suas adversidades. Como são
excelentes os dizeres de alguém nos seguintes versos poéticos:

‘Você pensa bem dos dias quando tudo vai bem,
e não teme as reviravoltas que o destino reserva;
nas noites você passa bem, e com elas se ilude,
mas no sossego da noite é que se encontra a torpeza’”.[196]

Disse o narrador: ao ouvir as palavras do vizir, o rei considerou-as acertadas e
receou que as questões do poder se corrompessem contra ele. Ordenou, portanto,
que transferissem Qamaruzzamån para o palácio interno que dava para o mar, e
cuja construção invadia as águas; em seu centro havia uma base à qual se
chegava por meio de uma plataforma de vinte braços em medida ordinária;[197]
tinha por toda a sua circunferência janelas que davam para o oceano; sua
superfície era revestida de mármore colorido; suas paredes, salpicadas de pérolas
diversas, e seu teto, pintado com tintas de todas as espécies e inscrições de ouro
e lazurita. Haviam-no disposto com tapetes de seda, cortinas e almofadas.
Estenderam um colchão para Qamaruzzamån, que estava, devido à vigília
noturna, falta de alimentação e preocupação, amarelo, magro e enfermiço;
dormia pouco e mantinha-se acordado na noite comprida. Consternado, o rei se
instalou à cabeceira do filho; todas as quintas e segundas, seus comandantes
eram recebidos por ele e se punham à sua disposição até o anoitecer, quando
então se retiravam e o rei se mantinha com o filho, dele não se apartando noite
ou dia. O rei ¸åhramån e seu filho Qamaruzzamån permaneceram nesse estado
durante dias e noites.
Isso foi o que sucedeu a eles. Quanto ao que sucedeu à senhorita Budœr,[198]
ela foi transportada naquela noite pelos gênios, que a depositaram em sua cama.
Não passou senão um pouco da noite e eis que já alvorecia. Quando acordou, no
período da aurora, pôs-se sentada e não viu o rapaz.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, divertida e boa a
sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

101ª
Disse o narrador: quando a senhorita Budœr se sentou e não viu seu jovem
amado, seu coração estremeceu e ela gritou. As criadas e as camareiras
acordaram, e as aias foram acudi-la. A mais velha avançou até ela e lhe
perguntou: “Senhorita, o que a atingiu?”. Ela respondeu à velha: “Onde está o
querido do meu coração, meu amado, onde está?”. Ao ouvir estas palavras, a
velha se encolheu toda e disse: “Ai, senhorita! Que horríveis palavras são
essas?”. Budœr respondeu: “Ai de você! O meu amado é o jovem gracioso, dono
dos olhos negros e das sobrancelhas espetadas que dormiu comigo esta noite, e
com quem dormi abraçada desde o anoitecer até o amanhecer”. Ela disse: “Por
Deus, senhorita! Por Deus, não faça conosco essa brincadeira tão feia que assim
você acaba com a minha vida! Sou uma mulher velha, à beira do túmulo, e você
quer me deixar morta, a cabeça decepada, fazer-me perder a vida com tamanho
sofrimento? Isso não é permitido por Deus altíssimo”. Budœr disse: “Sua velha
safada, você é que está rindo de mim e me fazendo de brinquedo”, e, erguendo-
se rapidamente da cama, desceu e empurrou a velha, que caiu de costas, com as
pernas erguidas; estava sem as roupas de baixo, e suas partes íntimas
apareceram. Budœr olhou para ela, e eis que a velha fazia tempo que não ia ao
banho; por isso, seu pelame estava muito denso, inclusive na vagina; montou em
seu peito e gritou pelas outras criadas e velhas, dizendo: “Montem-lhe no peito e
paralisem as suas mãos e os seus pés”; elas assim agiram, e Budœr então
arrancou os seus pelos. Assim que despertou, a velha foi secretamente, por temor
ao rei, até a mãe de Budœr, a quem informou o que acontecera a si e o que
sucedera à senhorita Budœr. Ela disse: “Madame, vá até a sua filha, pois ela
enlouqueceu”. Acompanhada da velha, a mãe foi até a senhorita Budœr e a
cumprimentou, e a jovem respondeu com as melhores palavras. A mãe sentou-se
ao seu lado, perguntou-lhe como estava e sobre o que dissera a velha. Budœr
respondeu: “Já chega de conversa, minha mãe. Estou perdendo a paciência por
meu amado, pelo querido do meu coração, o jovem gracioso a quem abracei até
o amanhecer”. E recitou os seguintes versos de poesia:

“Ó, que belo, pois a beleza é seu atributo,
e o feitiço depende dos seus movimentos.
Plenilúnio, se o plenilúnio lhe dissesse à noite:
‘Escolha’, ele diria: ‘Serei uma de suas auras’.
Se o crescente do horizonte lhe contempla o rosto,
eu o verei como se fosse o plenilúnio no espelho.
Dá ao repouso da tardezinha um galho inclinado,
e a aurora carrega um pouco de suas flores.[199]
A presunção goteja das maçãs de seu rosto,
e o correr da tinta já registrou sua assiduidade;
cometeu crimes ao saquear as nossas almas,
que Deus as faça parte de suas boas ações!
Continuo pedindo ao destino seu contato,
mas, no prazo, ele, como de hábito, atraiçoa.
Perdoei o delito do destino na noite em que o tive,
e encobri todos os deslizes que cometeu.
Dormimos abraçados com ele, nosso hóspede,
bêbado com minha sedução e suas palavras.
Abracei-o tal como um sovina abraça o dinheiro,
guardando-o com cuidado por todos os lados.
Estreitei-o em meus braços, ele que semelhava
uma gazela que eu temia perder quando se mexia”.

Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, a mãe começou a estapear-se no rosto e
a dizer: “Ai, minha filhinha! Minha filha enlouqueceu! Senhorita Budœr, que
história é essa? Tenha vergonha!”. A moça respondeu: “Por Deus, minha mãe,
não me provoque e me case com meu amado, que estava dormindo comigo esta
noite; caso contrário, irei suicidar-me”. A mãe disse: “Minha filha, ninguém
estava dormindo com você”. Ela disse: “Está na cara que você mente!”, e
começou a unhar a mãe no rosto, ajoelhando-se sobre ela e rasgando-lhe todas as
roupas; a mãe então se convenceu de que a moça enlouquecera e disse: “Não
existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso! Essa menina foi
atingida no juízo!”. Em seguida, clamou pelas criadas, que a livraram da
senhorita Budœr. A mulher se levantou, foi até o rei Al©uyœr e lhe disse após
ter chorado: “Ó rei...”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, divertida e boa a
sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

102ª
Disse o narrador: quando a mulher chorou e disse: “Ó rei, vá ver a sua filha,
pois ela enlouqueceu e seremos atingidos por sua perda”, o rei se levantou
irritado e começou a dizer: “Minha filhinha!”. Em seguida, foi até ela, entrou,
cumprimentou-a e ela se levantou, cobriu a cabeça e respondeu ao cumprimento.
O rei perguntou: “Minha filha Budœr, que história é essa que ouvi a seu
respeito? Que você esteja sempre bem!”. Ela respondeu: “Papai, deixe dessa
conversa e me case com aquele que vocês fizeram dormir comigo, um jovem
gracioso de talhe elegante e pálpebras lânguidas mas saudáveis;[200] fiquei
abraçada com ele até o amanhecer”.
Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, o pai soube que ela estava louca;
ajoelhou-se sobre ela, amarrou-a com um lenço e ordenou que se
providenciassem cadeias e grilhetas de ferro fino; colocou em seu pescoço a
cadeia, cuja ponta ele prendeu num gancho que havia no centro do quarto;
isolou-a das criadas, das velhas e de sua mãe e disse: “Juro por tudo que, se
acaso eu ouvir alguém mencioná-la ou dar notícias sobre ela, irei cortar-lhe a
cabeça”. Em seguida, colocou à porta, como vigias, eunucos de sua confiança, e
saiu entristecido e preocupado, a mente inteira com sua filha Budœr. Sentou-se
no trono e convocou seu vizir e os homens de seu governo; apresentaram-se
então vizires, comandantes, secretários e oficiais; beijaram o chão diante do rei
Al©uyœr, dono de ilhas, mares e dos sete palácios, e ele os deixou a par do caso
de sua filha e do que lhe sucedera naquela noite: que ela sem dúvida fora
atingida pelos gênios, e que sem dúvida um gênio se afigurara a ela na forma de
um rapaz gracioso, dormira com ela naquela noite e penetrara em sua cabeça. E
continuou: “Mas nós a justificamos por uma só coisa, pois vimos em seu dedo
um anel masculino de altíssimo valor. Eu os faço testemunhas, meus
comandantes, de que eu a casarei com quem a curar disso, e com ele repartirei
meu reino; mas cortarei o pescoço de quem quer que vá ter com ela e não a
cure”. Ao ouvir as palavras do rei, os presentes o compreenderam e fizeram
rogos por ele e por ela, e que Deus a livrasse do que a atingira. Havia, entre os
comandantes, quem escrevesse, quem lesse[201] e quem exorcizasse. Então um
dos presentes disse: “Ó rei, eu irei ter com ela e exorcizarei o gênio”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bonita, divertida e boa a
sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

103ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido, dono de correto parecer e belo
e louvável proceder, de que, quando o homem disse: “Eu irei ter com ela e
exorcizarei o gênio”, o rei lhe respondeu: “Com as seguintes condições: se você
for e curá-la do que ela tem, eu lhe darei a mão dela em casamento; mas se você
sair sem a ter curado, cortarei o seu pescoço, pois não estou atrás de quem visite
minha filha, não a cure e saia falando a seu respeito e descrevendo-lhe as
características por aí, contando aos outros sua cor, sua beleza, suas qualidades, e
assim expondo a dignidade de minha filha diante de tudo quanto é gente”. O
homem aceitou os termos e foi ter com a senhorita Budœr, acompanhado do rei.
Sentou-se e fez esconjuros e rezas. Budœr olhou para ele e disse ao pai: “Você
trouxe esse homem para fazer o quê? Não tem vergonha de trazer homens
estranhos à minha presença?”. O rei respondeu: “Minha senhorita, minha
querida, eu o trouxe para exorcizar isso que está perseguindo você e a atacou
nesta noite”. Budœr lhe disse: “Seu velho safado, apesar de encanecido! E
porventura o que me atacou nesta noite foi um gênio? Está mentindo, seu velho
safado! Ele não é senão um jovem gracioso, meu amado, meu querido, fruto do
meu coração e luz dos meus olhos!”. E se pôs a recitar os seguintes versos:

“Quer partir meu coração? Calma!
Você já acertou; recolha as flechas!
Ó você que é tão cheio de culpas,
estou impedida até da sua saudação!
Quem lhe tornou lícito matar-me?
Erga só um pouquinho o seu véu
e sorria; quem sabe eu ressuscito
se acaso contemplar seu sorriso.
Se você de fato me quisesse viva,
ficaria comigo nos seus sonhos”.

Disse o narrador: quando aquele comandante ouviu tais palavras, percebeu que
ela não estava louca e sim que fora atingida por paixão e sedução; mas,
envergonhado de dizer ao rei: “Sua filha está apaixonada”, beijou o chão diante
dele e disse: “Ó rei, não posso curá-la”. O rei pegou-o, saiu com ele até a
assembleia e ordenou que seu pescoço fosse decepado, e isso foi feito. Os
demais comandantes disseram: “Repúdio voluntário! Deus amaldiçoe quem lhe
invejar tal noivado”. Então, depois que o rei mandou cortar o pescoço daquele
comandante, os outros se afastaram do assunto. Ele ficou por dias sem comer
nem beber por causa da filha e ordenou aos arautos que apregoassem por sua
cidade, pelas regiões interiores, pelas fortalezas marítimas e por todas as aldeias
vizinhas: “Quem quer que seja astrólogo, venha ao rei Al©uyœr, dono de ilhas,
mares e dos sete palácios”, e os arautos assim procederam: apregoaram por todas
as partes da cidade, e alguns deles se espalharam, acompanhados de
governadores, por todas as regiões. As gentes lhes acudiram de todas as terras e
países; reuniu-se uma enorme quantidade de pessoas, conhecedoras e
desconhecedoras do assunto, e foram até o rei. Ao vê-los e notar sua grande
quantidade, o rei Al©uyœr mandou convocar testemunhas e o juiz; todos se
apresentaram, e ele lhes disse: “Eu os faço testemunhas, ó grupo de homens
justos e aqui presentes, que casarei minha filha e repartirei a minha opulência
com quem quer que a cure; mas cortarei o pescoço de quem for ter com ela e não
a curar”.
Disse o narrador: as testemunhas então testificaram as palavras do rei. Logo
se apresentou um dos astrólogos do grupo que se reunira – e cuja casa da vida
entrara na conjunção de Saturno –,[202] beijou o chão diante do rei e dos
presentes e disse: “Ó rei do tempo, eu irei vê-la e curá-la”. O rei respondeu: “Vá
e faça a declaração diante das testemunhas”; ele foi até aqueles homens justos e
disse: “Eu os faço testemunhas de que, caso não cure a filha do rei do mal que a
aflige, meu sangue será lícito para ele”.[203] E o rei lhe disse: “Eu os faço
testemunhas de que, caso cure a minha filha, ela se tornará sua esposa e ele, seu
marido, e repartirei meu reino com ele”. E as testemunhas tudo testificaram. O
rei disse ao criado: “Pegue na mão deste astrólogo e entre com ele no quarto
onde está sua patroa Budœr”. Então o criado pegou-o pela mão...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

104ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido, dono de correto parecer e belo
e louvável proceder, de que o criado pegou o astrólogo pela mão, atravessou o
vestíbulo e entrou no quarto. Ao ver a senhorita Budœr com cadeias e grilhetas
ao pescoço, o homem teve certeza de que ela estava louca. Sentou-se e retirou da
mochila um incensório de cobre, placas de chumbo, cálamo e folhas; espalhou
incenso, traçou um círculo no chão,[204] em torno da jovem, e pôs-se a fazer
esconjuros. A senhorita Budœr olhou para ele e perguntou: “Quem é? Ai de
você!”. Ele respondeu: “Madame, este seu escravo é astrólogo. Estou
exorcizando aquele seu companheiro que a atacou e a deixou nesse estado. Vou
atraí-lo e prendê-lo nesta garrafa de cobre, tapá-la com chumbo e lançá-la ao
mar”. A senhorita Budœr lhe disse: “Seu pedaço de cafetão! Cale-se, seu
maldito! Maldito! Por acaso o meu companheiro merece que se façam com ele
essas coisas?”. O astrólogo disse: “Madame, e por acaso ele não é um gênio?”.
Ela respondeu: “Cale-se! Que os gênios estejam sobre o seu pescoço! Meu
companheiro que ficou comigo não é senão gracioso, formoso, de sobrancelhas e
olhos negros, e ficou no meu colo até o amanhecer. Você seria capaz de o
devolver a mim e de me reunir a ele?”. E recitou a seguinte poesia:

“Pela beleza de seu rosto, não traia os compromissos;
pela delícia que é seu contato, não permaneça distante;
por tudo que existe entre mim e você, por toda a paixão,
a veracidade da crença e a dos meus compromissos:
esteja certo de que eu em seu amor sou constante;
não dê ouvidos às palavras de quem me inveja”.

Disse o narrador: ao ouvir as palavras dela, o astrólogo disse: “Por Deus,
madame, que somente o putanheiro do seu pai poderá reunir você ao seu
amado”, e recolheu seus objetos, guardou o aparelho de cobre, saiu encolerizado
até a assembleia e disse: “Ó rei, vocês me introduziram a uma louca, ou a uma
apaixonada, ou a uma escrava abandonada?”. Quando ouviu tais palavras, o rei
se encolerizou e disse: “Era isso que temíamos. Assim que foi ter com minha
filha, você espionou as mulheres de minha família;[205] incapaz de curá-la, saiu
dizendo que ela tem defeitos. Ó testemunhas, o que ele merece?”. Responderam:
“Ter o pescoço cortado”, e então o rei ordenou que seu pescoço fosse cortado.
Depois entrou um segundo astrólogo, a quem sucedeu com a senhorita Budœr o
mesmo que aconteceu com o primeiro astrólogo, e então o rei ordenou que o seu
pescoço fosse cortado, e pendurou-lhe a cabeça numa das soteias do palácio. E o
rei continuou matando um astrólogo atrás do outro, até dar cabo de cinquenta
deles, cujas cabeças deixou penduradas balançando nas soteias externas do
palácio; a população da cidade saiu para vê-los e rir deles. Continuaram afluindo
gentes e astrólogos de todos os países, e a todos sucedia o mesmo que sucedera
aos primeiros. O rei Al©uyœr permaneceu nessa situação por dez dias, durante
os quais matou exatamente duzentos astrólogos. As pessoas então deixaram de ir
atrás disso, e o rei deixou de ouvir quem quer que fosse dizer “sou astrólogo”.
Sua preocupação aumentou, e sua mente se ocupou mais ainda por causa da
filha. Quando lhe sucedeu aquilo tudo, sucedeu também o seguinte: a aia-mor,
que criara Budœr, tinha um filho[206] e amamentara a ambos; Budœr então se
tornou irmã de leite do menino, que foi criado junto com ela até que cresceu,
época em que os proibiram de ficar juntos. Havia dez anos que ele não entrava
no palácio. Passara a trabalhar com astronomia e estrelas, geomancia,
fisiognomonia, elaboração de calendários para prece, adição e subtração, sintaxe,
multiplicação, divisão e cálculos sobre a posição dos astros; estudara as grandes
batalhas,[207] decorara as linhas e os versículos do Alcorão,[208] viajara, fora
para longe e convivera com sábios, doutos e sacerdotes – tudo durante esse
período de dez anos. Retornara à cidade nos dias em que haviam sucedido
aquelas coisas à senhorita Budœr, e viu penduradas as cabeças dos astrólogos.
Indagou o motivo e lhe contaram a história da jovem e o que lhe ocorrera. Ele
foi até sua mãe, que o cumprimentou, deu-lhe boas-vindas e perguntou: “Meu
filho, você não sabe o que aconteceu com a sua irmã, a senhorita Budœr, e o que
a atingiu?”. Ele respondeu: “Ouvi notícias sobre ela de um viajante: que a
senhorita Budœr, filha do rei Al©uyœr, enlouqueceu, e que ele convocou
testemunhas para testificarem que ele a casaria com quem a curasse e mataria
quem não a curasse. Retornei então de minha viagem e vi as cabeças dos
astrólogos dependuradas; são muitas, e eles perderam a vida por esse motivo.
Agora, peço sua intercessão para uma coisa”. A mãe perguntou: “E o que é, meu
filho?”. Ele disse: “Eu gostaria que você me introduzisse em sigilo à presença de
minha irmã Budœr, sem que o pai dela nem mais ninguém saiba, a fim de que eu
examine o seu caso e teste os meus conhecimentos por meio dela, curando-a,
recebendo o dinheiro e as recompensas, e depois saindo. Se eu for incapaz de
medicá-la, sairei em segredo, sem que ninguém saiba. Se você não me introduzir
secretamente, meu amor por minha irmã me levará a ir até o rei e dizer-lhe: ‘Sou
astrólogo; faça as testemunhas atestarem tudo’, e me acontecerá o mesmo que
aconteceu aos outros astrólogos: meu pescoço será cortado e você me perderá”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras do filho, a mãe, após permanecer
cabisbaixa por algum tempo, ergueu enfim a cabeça, encarou o filho e
perguntou: “Meu filho Marzawån, é-lhe de fato imperioso ir ter com a senhorita
Budœr?”. Ele respondeu: “Sim”. Ela disse: “Dê-me um prazo até amanhã cedo, a
fim de que eu possa elaborar uma artimanha para esse assunto”. Em seguida, a
velha foi reunir-se com o criado que estava de vigia à porta de Budœr. Deu-lhe
um belo presente e disse: “Ó Am∑r,[209] tenho uma filha que vivia com a
senhorita Budœr e a quem eu casei. Quando ocorreu isso com a senhorita Budœr,
minha filha ficou muito preocupada com ela e desejosa de vê-la. Eu gostaria de
trazê-la até aqui, para ela dar uma olhada e depois sair sem que ninguém saiba”.
O criado respondeu: “É claro! Mas não a traga senão à noite; depois que o rei
vier vê-la e sair, entre você com sua filha”. A velha beijou-lhe a mão e saiu. No
dia seguinte, ao anoitecer, ela foi até o filho, vestiu-o com trajes femininos,
enfeitou-o e levou-o pela mão, entrando com ele no palácio, atravessando o
vestíbulo e chegando ao criado que vigiava a porta, o qual se pôs de pé e disse:
“Em nome de Deus, entre sem mais delongas”. Quando Marzawån chegou junto
da senhorita Budœr, ela estava naquele estado. Vendo duas velas acesas junto
dela, Marzawån sentou-se, cumprimentou-a depois de tirar os trajes femininos,
retirou os cálamos, o livro e os amuletos que trazia consigo, e acendeu diante de
si uma vela. A senhorita Budœr olhou para ele e disse: “Meu irmão Marzawån!
Como vai? É assim que se faz? Viaja e ficamos sem nenhuma notícia sua!”. Ele
disse: “Por Deus, minha senhora, não fui trazido de volta senão pelas notícias
que ouvi a seu respeito. Meu coração se abrasou por você e vim para, quem sabe,
salvá-la do que a atingiu”. Ela disse: “Por Deus, meu irmão, que não estou
acometida por nenhuma loucura”, e fez um sinal dizendo o seguinte poema:[210]

“Disseram: ‘Enlouqueceste por quem amas!’. Respondi:
‘O sabor da vida não o sentem senão os loucos!
Levai minha loucura e trazei quem me enlouqueceu.
Se ele merecer a minha loucura, não me censureis’”.

Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, Marzawån compreendeu que ela estava
apaixonada e disse: “Minha senhora, por que esse choro? Conte-me sua história
e o que lhe ocorreu. Quem sabe Deus não me proporciona que o seu alívio se dê
por minhas mãos?”. Então a senhorita Budœr disse a Marzawån: “Ouça minha
história, irmão...”
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é belo, divertido e bom o
seu discurso, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

105ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de inteligência
certeira e proceder belo e louvável, de que a senhorita Budœr disse a Marzawån:
“Ouça minha história, irmão. Durante o terço final de certa noite, despertei e
senti uma respiração próxima de mim. Sentei-me de imediato e vi ao meu lado
um jovem gracioso que parecia uma vara de bambu, e a quem a língua é incapaz
de descrever. Supus ter sido o meu pai que lhe ordenara fazer aquilo, e foi essa
suposição que me impediu de acordá-lo, pois temi que qualquer coisa que eu
fizesse ele contaria ao meu pai pela manhã. Ai, que pena que não o acordei e me
saciei com sua conversa! Porém, meu irmão, de manhã acordei e vi no meu dedo
o anel dele, e o meu anel está no dedo dele. É essa, meu irmão, a história do que
me aconteceu. Quando olhei para ele, esse olhar foi seguido de mil suspiros.
Meu coração ficou preso na rede do amor por ele; desde então, não experimento
o sono nem o gosto da comida; não tenho senão lágrimas copiosas e recitação de
poesias”, e recitou uma poesia:

“Depois do meu amor, a vida já não dá prazer;
é uma gazela cujo pasto são os corações;
deixe a mente o mais tranquila possível,
pois o resto de vida do apaixonado se derrete.
Ele tem a melhor parte da minha paixão
por ele, mas dele eu não tenho tal sorte;
concedo para obter sua benevolência[211] e me queixo
a ele de meus sofrimentos, mas ele nada concede.
Não espanta que por ele me tenha arruinado,
mas ao contrário que ainda me alegre em vê-lo.
Tenho ciúmes, tamanha é minha aflição por ele;
estou toda, estou inteira, vigiando a mim mesma;
oh, que atraentes membros, que sublimes!
Sua menor qualidade é ser como ramo fragrante.
Maltratou-nos quando lançou suas flechas,
que somente acertaram o coração aflito.
O seu lugar em meu coração passou a ser
um lugar no qual não entra outro amado.
Por que deixou doente um coração apaixonado
para o qual você, neste mundo, é a parte única?
Oculto meu amor, mas minha lágrima o denuncia!
Quanto esforço faz quem se está derretendo!
Está próximo, mas seu contato é distante,
e sua memória distante de mim é próxima”.

Disse o narrador: em seguida ela disse: “Meu irmão Marzawån, estude o que
fazer por mim; decifre isso que me ocorreu”. Marzawån abaixou a cabeça,
pensativo, por alguns momentos, espantado, sem saber o motivo daquilo. Mas
logo levantou a cabeça e disse: “Minha senhora, o que lhe ocorreu é verdadeiro,
e esta é uma história que me escapa; porém, se Deus quiser, agora mesmo vou
sair em viagem para as terras exteriores, entrarei nas terras interiores, no Iraque
persa e no Iraque árabe; perguntarei, me introduzirei em todos os lugares, e
envidarei todos os meus esforços; quem sabe Deus altíssimo me facilita
encontrar o seu remédio. Só tenha paciência e não se preocupe”. Então se
despediu dela, fez-lhe rogos, beijou-lhe as mãos e saiu dali, ouvindo-a ainda
recitar os seguintes versos de poesia:

“Quero censurá-lo; quando nos encontrarmos,
os pensamentos vão se censurar dentro dos peitos,
pois um pensamento entende o outro”.[212]

Então Marzawån pôs o véu feminino e saiu dali, com a mãe à sua frente. Mal
haviam atravessado a porta[213] quando entrou o rei[214] Al©uyœr para ver a
filha, e Marzawån continuou caminhando até o aposento da mãe, onde dormiu
naquela noite. Quando amanheceu, preparou-se para a viagem e saiu,
deslocando-se de cidade em cidade e de região em região pelo período de um
mês completo. Entrou então numa cidade denominada A≈≈ayran, onde indagou
notícias sobre o que ocorria pelos países. Em toda cidade em que entrava ou
região que atravessava, Marzawån ouvia notícias a respeito da senhorita Budœr,
filha do rei Al©uyœr: que ela enlouquecera e que seu pai assumira o
compromisso de casá-la com quem quer que a curasse e cortar o pescoço de
quem se apresentasse e não conseguisse curá-la, tendo matado astrólogos em
profusão por causa dela. Marzawån não deixou de ouvir notícias dela e sua
história em toda cidade pela qual passava, até que chegou àquela cidade
denominada A≈≈ayran, na qual ouviu notícias a respeito de Qamaruzzamån,
filho do rei ¸åhramån, dono da Península ¿alidån;[215] ouviu que o rapaz estava
doente, atingido por aturdimento e loucura durante a noite.
Disse o narrador: quando ouviu tais notícias, Marzawån indagou sobre sua
capital, e lhe disseram: “A capital da Península ¿alidån se situa à distância de um
mês por navio e de seis meses por terra”. Marzawån entrou num navio de
mercadores que viajava para a Península ¿alidån e embarcou com eles; o navio
se preparou e eles partiram em viagem após a prece matinal. Os ventos lhes
foram favoráveis por dias e noites durante o período de um mês, quando então se
delineou a principal região da Península ¿alidån, e logo eles avistaram suas casas
e palácios. Não restava senão lhe adentrar o litoral quando, repentinamente, uma
violenta ventania atingiu e quebrou o mastro do navio; cada qual tratou então de
salvar a própria vida, e Marzawån foi empurrado pela força da correnteza até o
sopé do palácio do rei ¸åhramån, no qual estava instalado o enfermo
Qamaruzzamån. Por coincidência, era dia em que os comandantes se punham a
serviço do rei; eles estavam lá, junto com os secretários, os representantes e os
oficiais de trabalho. Encontravam-se todos parados ao redor do palácio,
enquanto o rei ¸åhramån se mantinha à cabeceira de seu filho no quarto e um
criado ficava parado com um leque abanando-o. O rei estava entristecido pelo
filho, que não falava nem comia ou bebia havia dois dias; estava muito magro. A
seus pés, o vizir, que estava próximo da janela que dava para o mar, olhou para
aquela direção e avistou Marzawån, que se encontrava a ponto de morrer por
causa da correnteza; a agitação das águas o puxava e submergia, e ele estava no
fim de suas forças. O coração do vizir se condoeu dele e, inclinando-se para o
rei, esticou a cabeça até ele e disse aos sussurros: “Ó rei do tempo, eu lhe peço
permissão para descer até as comportas do palácio e abri-las para retirar um
homem que está quase se afogando e salvá-lo da morte; quem sabe assim Deus
louvado e altíssimo, do mesmo modo que livraremos esse homem da morte, livre
o seu filho do mal que ele sofre”. O rei ¸åhramån disse: “Tudo o que nos tem
sucedido foi motivado por você; você foi o responsável por esta desgraça; agora,
quer salvar esse afogado, que ficará entre nós e descobrirá nossa situação; verá
meu filho nesse estado e fará chacotas, ou sairá contando para o vulgo sobre a
nossa situação. Eu juro por aquele que faz germinar as sementes, que estendeu a
terra e ergueu o céu que, se ele subir, vir meu filho e for contar para alguém, eu
cortarei o seu pescoço antes do dele. Já basta o que você provocou do início ao
fim! Ainda pretende revelar nossa situação ao vulgo? Faça o que melhor lhe
parecer”. O vizir saiu devagarinho, abriu a comporta que dava para o mar,
desceu pela plataforma vinte passos e chegou até o mar, onde viu Marzawån já
nos últimos suspiros, quase morrendo; esperou que ele subisse, estendeu a mão,
pegou-o pelos cabelos, puxou-o e retirou-o, praticamente morto, com o coração
alterado por causa das águas. Esperou por alguns momentos até que ele
recobrasse as forças e ordenou-lhe que vomitasse toda a água que engolira.
Depois, arrancou-lhe as roupas e vestiu-o com sua própria túnica de mangas
largas, deu-lhe algo para enrolar a cabeça e disse: “Ouça, meu filho, fui o motivo
da preservação de sua vida e salvação da morte; por isso, não seja você o motivo
da minha morte e da sua. O fato, meu filho, é que agora, ao sair, você se verá em
meio a comandantes, vizires, soldados e criados; todos estão quietos por causa
de Qamaruzzamån, filho do rei.
Disse o narrador: ao ouvir a menção a Qamaruzzamån, Marzawån soube de
quem se tratava, pois ouvira a respeito em outros países. Perguntou ao vizir:
“Meu senhor, quem é esse Qamaruzzamån?”. O vizir respondeu: “Meu filho, é o
filho do rei ¸åhramån, um maiores reis de nosso tempo. É dono deste país, que se
chama Península ¿alidån. O silêncio se deve ao fato de Qamaruzzamån estar
fraco, há seis meses deitado no colchão, vertendo lágrimas, sofrendo penas, certo
da morte, sem tranquilidade nem estabilidade, sem diferençar a noite do dia, já
distanciado da vida tal é a debilidade de seu corpo; já faz parte dos mortos,
tamanha é a alteração de sua figura; seu dia passa em brasas e sua noite, em
enumerações; suas lágrimas são abundantes e ele, sem escapatória, estará
aniquilado; já perdermos a esperança de que viva, e estamos certos de seu
perecimento. Por isso, meu filho, muito cuidado: de modo nenhum olhe para ele
nem se aproxime. Limite-se a passar no meio dos comandantes, com as vistas
voltadas para baixo, onde puser os pés; caso contrário, eu perderei a vida”.
Marzawån perguntou: “Por Deus, meu senhor, isso que você descreveu a
respeito do filho do rei é de azular os olhos e arrebentar os corações só de ouvir.
Qual o motivo de ele estar nesse estado?”. O vizir respondeu: “Por Deus, meu
filho, que não sabemos. Só sabemos é que há três anos o pai dele lhe pede que se
case e ele se recusa. Então ele dormiu uma noite e acordou alegando que estava
dormindo ao seu lado uma jovem com tais características, qualidades, beleza e
formosura que descrevê-las deixaria perplexo o homem inteligente.
Qamaruzzamån afirmou ter retirado o anel do dedo da jovem e enfiado em seu
próprio, e retirado o seu anel e enfiado no dedo da jovem. Contudo, nós não
conhecemos o âmago dessa questão. Assim, por Deus, meu filho, saia, não olhe
para ele nem se volte, abaixe a cabeça e vá cuidar da sua vida, pois o rei está
com o coração cheio de cólera contra mim”. Marzawån disse: “Ouço e obedeço”,
e sua mente começou a trabalhar. Pensou: “Por Deus que é esse que enlouqueceu
minha irmã, a senhorita Budœr. O que ocorreu a esse rapaz é o mesmo que
ocorreu a ela quanto à questão do casamento e da troca de anéis. Por Deus que é
ele o procurado!”. E caminhou devagar atrás do vizir, até que chegou ao palácio.
O vizir se instalou em seu lugar, aos pés de Qamaruzzamån, e Marzawån entrou
e continuou caminhando até parar diante de Qamaruzzamån; olhou para ele e o
vizir morreu dentro de sua pele; começou a dar-lhe de olho, mas Marzawån se
fez de desentendido; observou Qamaruzzamån e seus gemidos e soube que era
ele o procurado; pensou: “Louvado seja Deus! Seu talhe é o dela, sua cor é a
dela, sua maçã do rosto é a dela, seu olho é o dela, e suas sobrancelhas são as
dela!”.
Disse o narrador: o filho do rei abriu os olhos e apurou os ouvidos, e então
Marzawån recitou os seguintes versos poeticamente arranjados:

“Chorei por aquela cujo talhe a beleza adorna;
e em cidade alguma meus olhos viram igual.
De galhos colossais, partes excelentes,
faces rosadas, boca saborosa.
Tem a sabedoria de Luqmån, a imagem de José,
a melodia de Davi e a pureza de Maria.
E eu tenho a tristeza de Jacó, a aflição de Jonas,
as dores de Jó e as penas de Adão.[216]
Não a matem se puderem fazê-lo,
mas perguntem por que meu sangue lhe é lícito”.[217]

Disse o narrador: quando Marzawån terminou sua poesia, esta penetrou nos
ouvidos de Qamaruzzamån como se fosse um ruibarbo. Seus terrores cessaram,
sua língua se mexeu na boca e ele fez para o rei um gesto com a mão.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

106ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de inteligência
certeira e proceder belo e louvável, de que Qamaruzzamån falou e fez para o rei
um gesto: “Deixe-o sentar-se ao meu lado”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras do filho, o rei ficou imensamente feliz,
depois de ter se encolerizado e decidido matar Marzawån e em seguida o vizir.
Mal acreditou que o filho abrira os olhos e despertara de seu torpor.
Disse o narrador: o rei se pôs de pé e fez Marzawån ocupar o seu lugar à
cabeceira de Qamaruzzamån. Voltou-se para ele e perguntou: “Meu rapaz, qual o
seu nome?”. Ele respondeu: “Marzawån”. O rei perguntou: “De que país você é,
meu rapaz?”. Ele respondeu: “Das regiões interiores da terra do rei Al©uyœr”. O
rei perguntou: “Não estaria em suas mãos, meu rapaz, a cura do meu filho?”. Ele
respondeu: “Se Deus quiser, ó rei do tempo”, e, voltando-se para
Qamaruzzamån, cochichou-lhe ao ouvido: “Força, meu amo; fique tranquilo e se
alegre, pois nem queira saber como está aquela por causa da qual você ficou
nesse estado. Você escondeu o que tinha e se debilitou; ela, ao contrário, revelou,
enlouqueceu e está com correntes de ferro ao redor do pescoço, na pior das
condições. Se Deus quiser, o remédio dela estará nas minhas mãos”.
Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, o coração de Qamaruzzamån se
fortaleceu e ele fez um sinal para o rei: “Ponham-me sentado”. Muito contente, o
rei se levantou, junto com o vizir, e colocaram-no sentado sobre duas almofadas.
Os comandantes e os soldados se alegraram com aquilo e o rei ¸åhramån
ordenou que todos os presentes no palácio fossem perfumados com açafrão e que
cantoras tocassem adufes e conclamassem à alegria e à felicidade; sentou-se,
aproximou Marzawån de si e disse: “Sua chegada até nós foi abençoada. Não
falharam as palavras do vizir: salvamos você do afogamento e Deus salvou
nosso filho”. Concedeu-lhe vastas honrarias. Marzawån solicitou que servissem
comida e bebida, e Qamaruzzamån comeu e bebeu; trouxeram-lhe cozidos e
frangos. Marzawån dormiu ali naquela noite, e também o rei, tamanha era a sua
alegria pelo restabelecimento do filho e a felicidade por suas faces reanimadas.
Marzawån pôs-se a conversar com Qamaruzzamån e a lhe dizer: “Meu senhor,
esta jovem com a qual você esteve à noite existe; disso não há dúvida; seu nome
é senhorita Budœr, filha do rei Al©uyœr, dono de ilhas, mares e dos sete
palácios”. Em seguida, relatou-lhe o que sucedeu à senhorita Budœr do começo
ao fim – e repeti-lo agora não vai trazer nenhum proveito. Contou-lhe a história
da senhorita Budœr, do imenso amor que o pai lhe tinha, e disse: “O que sucedeu
entre você e seu pai, meu amo, também sucedeu entre ela e o pai dela. Você é o
desejado, o procurado por ela, e ela é a sua desejada, a sua procurada. Anime-se
e fortaleça o coração, pois eu o farei chegar a ela e os reunirei um ao outro. E
farei por você o que alguém disse nestes versos de poesia:

‘Se um amigo ficar privado de seu amor,
perdido e exausto na procura por todo prado,
tentarei aproximar as suas duas pessoas
como se eu fosse o rebite de uma tesoura’”.

Disse o narrador: e continuou estimulando-o e fazendo-o reanimar-se até que ele
comeu e bebeu, recuperando as energias e livrando-se do estado em que se
encontrava: Marzawån conversava com ele, servia-o, divertia-o, recitava-lhe
poesias, contava-lhe notícias e lhe relatava as histórias dos grandes amantes
árabes, do sofrimento de abandono e separação dos apaixonados. E
Qamaruzzamån encaminhou-se enfim ao banho. Assim que ele entrou, o rei
determinou que a cidade fosse enfeitada, o que se fez, anunciando-se a boa-nova.
O rei deu vestes honoríficas a todos os seus soldados, do maior ao menor,
distribuiu esmolas e presentes, soltou presos, extinguiu impostos e atirou, aos
punhados, ouro e prata aos andarilhos e aos pobres. Quando o filho saiu do
banho, o rei presenteou Marzawån com um traje honorífico completo no valor de
mil dinares, entregou-lhe outros mil dinares, e deu-lhe de seu harém concubinas
de igual valor. Depois, sentaram-se para comer, após o que Qamaruzzamån ficou
a sós com Marzawån e disse: “Saiba, meu irmão, que o meu pai me ama
imensamente e não pode ficar sem mim uma só hora, e por isso não poderei
atingir o meu desejo, que é ir reunir-me à minha amada. Escolha você algum
modo de resolver isso, e eu não discordarei de nenhuma ordem sua”. Ele
respondeu: “Meu amo Qamaruzzamån, não vim de meu país senão por esse
motivo; deveu-se a isso minha viagem e meu exílio; foi para retornar ao rei
Al©uyœr, pai da senhorita Budœr, e salvá-la da situação em que se encontra; eis
meu objetivo. Só nos resta preparar uma artimanha, pois seu pai não concordará
com o que faremos nem suportará separar-se de você. O que eu lhe peço, porém,
é que você peça para irmos caçar, você e eu sozinhos; leve um alforje e dois
cavalos de raça, e eu farei o mesmo; levaremos conosco quatro pangarés[218]
para transportar água e provisões; diga ao rei: ‘Gostaria de sair para espairecer,
procurar grandes espaços vazios e me aprofundar no deserto; se porventura eu
dormir uma noite fora, não preocupe o coração por minha causa’. E, quando o
fizermos, pediremos auxílio a Deus’”. Muito contente com aquilo,
Qamaruzzamån foi imediatamente ao rei e falou a ele conforme Marzawån lhe
ensinara. O rei autorizou e disse: “Meu filho, não durma no deserto senão uma
única noite e retorne rapidamente, pois você sabe que minha vida não tem gosto
sem a sua presença; mal acreditei que Deus o devolveu a nós”, e autorizou-o a
pegar quatro cavalos de raça e quatro pangarés, e preparou-lhe água e provisões
adequadas para o deserto. Qamaruzzamån proibiu que alguém do palácio o
acompanhasse. O pai despediu-se dele, estreitou-o ao peito, beijou-o entre os
olhos e disse: “Por Deus, meu filho, não se ausente por mais de uma noite, e
mesmo isso será um pecado, pois não conseguirei dormir”.
Disse o narrador: em seguida, chorou copiosamente e Qamaruzzamån saiu
acompanhado de Marzawån, ambos montados num cavalo de raça, com o
reserva ao lado e os pangarés carregados de provisões. Atravessaram o deserto
no primeiro, no segundo e no terceiro dia, até o anoitecer, quando então
chegaram a um local amplo com fontes e prado; era a encruzilhada de quatro
caminhos, e eles apearam para descansar. Marzawån voltou-se para
Qamaruzzamån e disse: “Meu amo, saiba que seu pai não irá esperar por você
mais de uma noite; depois, irá mobilizar seus soldados e persegui-lo. Você não
alcançará seu intento se não acatar o que me aprouver”. Qamaruzzamån
respondeu: “Aja como melhor lhe parecer; não desacatarei nenhuma ordem ou
palavra sua, de modo algum”. Então eles dormiram naquele lugar. Quando bem
amanheceu, Marzawån se pôs de pé, pegou um dos pangarés que estavam com
eles e sacrificou-o. Tomou uma túnica de Qamaruzzamån, cortou-a em pedaços e
reduziu-a a trapos após tê-la mergulhado no sangue do cavalo; espalhou os
trapos pela encruzilhada dos quatro caminhos, junto com algumas flechas,
alguns equipamentos de Qamaruzzamån e pedaços de carne do cavalo; quanto às
patas e partes de sua pele, fez um buraco e as enterrou.[219] Em seguida,
carregaram os cavalos e viajaram, e continuaram viajando por dias e noites até
que vislumbraram as terras do rei Al©uyœr. Muito contente, Qamaruzzamån
considerou aquilo excelente e agradeceu a Marzawån pelo que lhe fizera. E
avançaram até entrar na cidade, onde descansaram por três dias para se recuperar
dos vestígios da viagem e da fadiga. Qamaruzzamån foi a uma casa de banho e,
quando saiu, Marzawån o fez vestir um traje de mercador, com enfeites, e lhe
produziu um tabuleiro para a prática da geomancia, todo de ouro cravejado de
pedras valiosas, e lhe montou um aparelho de astrologia, junto com um tinteiro
elegante, um cálamo de esmeralda verde recoberto de ouro e um astrolábio[220]
com pranchas de prata cravejada de ouro, gastando mil dinares com esse
equipamento. E o traje que ele o fez vestir também valia uma boa quantia em
dinheiro. Marzawån lhe disse: “Meu amo, saia agora e grite defronte do palácio:
‘Astrólogo! Escriba! Exorcista!’; então o rei mandará alguém chamá-lo e irá
com você até a sua amada; quando ela o vir, desaparecerá o que ela tem; o pai
ficará feliz, lhe dará a sua mão em casamento e repartirá o reino com você, pois
foi isso que ele prometeu diante de testemunhas legais”. Qamaruzzamån aceitou
essas sugestões e saiu da hospedaria com aqueles trajes e levando consigo seus
equipamentos. Caminhou até chegar defronte do palácio e gritou: “Astrólogo!
Exorcista! Escreve livros de esconjuro, efetua cálculos, traça com o cálamo e
invoca ausentes! Escriba, calculista, astrólogo!”. Quando a população da cidade
ouviu, ficou espantada e saiu para vê-lo, pois havia tempos que não se ouvia
alguém dizer “Sou astrólogo”. Pararam ao seu redor e, vendo que era de bonita
figura, ficaram pesarosos por ele e lhe disseram: “Por Deus, meu senhor, não
faça isso consigo mesmo por ambição de se casar com a filha do rei. Veja essas
cabeças dependuradas: todos morreram por causa dessa questão”.
Qamaruzzamån continuou gritando sem lhes dar atenção: “Astrólogo!
Astrólogo! Exorcista! Benzedor!”. As pessoas se introduziram na sua frente e lhe
fizeram juras para que parasse, e ele disse: “Astrólogo! Astrólogo!”. Disseram-
lhe: “Você não é senão um teimoso! Mas tenha dó de sua juventude!”, e
Qamaruzzamån gritou: “Astrólogo! Astrólogo!”. Estavam nessa conversa
quando o vizir desceu até ele, pegou-o pela mão e levou-o até diante do rei
Al©uyœr. Ao vê-lo, Qamaruzzamån se prostrou em obediência, beijou o chão
três vezes e recitou os seguintes versos de poesia:

“Oito não se separam depois de juntados,
nem se afastam de quem observa os livros:
Certeza, devoção, ânimo e liberalidade;
palavras, sentido, disposição e auxílio”.

Disse o narrador: o rei Al©uyœr examinou-o, instalou-o ao seu lado, voltou-se
para ele e disse: “Meu filho, por Deus, não se faça de astrólogo nem se submeta
às minhas condições, pois eu já firmei o compromisso de cortar o pescoço de
todo aquele que for ver a minha filha e não a curar do que a atingiu; e a casarei
com quem a curar. Não se iluda por ser belo e formoso, meu filho, nem com seu
talhe e esbelteza. Por Deus que, caso você a veja e não a cure, cortarei o seu
pescoço”. Qamaruz-zamån respondeu: “Isso é o melhor para você”. Então o rei
fez as testemunhas ouvirem, entregou-o ao criado e disse: “Conduza-o até a sua
patroa”. O criado pegou-o pela mão e atravessou com ele o saguão.
Qamaruzzamån ia correndo e tropeçando na frente do criado, que lhe disse:
“Nem se apresse! Não vi nenhum outro astrólogo se apressar para ver nossa
patroa, com exceção de você”. Qamaruzzamån olhou para ele e recitou os
seguintes versos de poesia:

“Conhecedor de sua beleza, estou ignaro,
perplexo, e nem ao menos sei o que digo;
se eu disser ‘plenilúnio’, os plenilúnios não são
perfeitos, mas você, sua beleza é perfeita;
e se eu disser ‘sol’, a sua beleza nunca se põe
de minha vista, eu que vejo os sóis se pondo”.

Disse o narrador: assim que chegaram à porta de dentro, na qual havia uma
cortina, Qamaruzzamån se voltou para o criado e lhe perguntou: “O que você
apreciaria mais, que eu vá ver a sua patroa e a cure de seu mal lá dentro, ou que
a cure sentado atrás desta cortina?”. Espantado com tais palavras, o criado
respondeu: “Meu senhor, aqui mesmo é melhor”.
Disse o narrador: Qamaruzzamån sentou-se atrás da cortina, tirou um papel, e
nele escreveu o seguinte:

“Este é um escrito daquele que o desdém abandonou, o tormento do amor
deixou insone e a infelicidade devido à enorme paixão liquidou; perdeu a
esperança de viver e está certo da morte. Um coração entristecido que não
tem quem o ajude nem apoie; seu olhar insone de preocupação não tem
quem o auxilie; seu dia passa em fogo e sua noite, em sofrimento; já se
desfez de tanta magreza e recita a seguinte poesia:

‘Ocultei, mas meu coração por sua memória está aceso,
e minhas pálpebras, aquecidas pela saudade, lacrimejam,
e meu corpo foi vestido pela paixão ardente; a angústia
é sua túnica magra, pois sua prosperidade foi destruída.
Mas agora notei que o amor, sem dúvida, vai me matar,
e que ocultar minha paixão não vai trazer proveito algum’”.

Disse o narrador: em seguida, escreveu o seguinte sob a poesia:

“Do sozinho isolado à lua nova, do apaixonado prisioneiro ao senhor
comandante, do insone vagamundo ao despreocupado adormecido, do
escravo submisso ao senhor imponente: a cura do coração está no encontro
do amado. O mais forte tormento é a separação dos amados. Quem trai seu
amado por Deus será cobrado. Quem trai não deveria existir. Quem, dentre
vocês ou nós, trair não alcançará o que deseja. Daquele que não se nomeia e
precisa ser reconhecido para quem é mais belo e formoso. Do apaixonado
sincero ao amado indiferente. Do vagamundo atormentado à gazela sedenta,
ao plenilúnio perfeito e singular dentre os seres humanos. Saudações dos
depósitos da misericórdia de meu Deus para aquela que detém minha vida e
meu coração. Saudações divinas, ainda não surgiu uma constelação que se
iguale a essa natureza orgulhosa”.

E selou o escrito com estes versos, dizendo a seguinte poesia:

“Eis meu escrito a vocês, com minhas desculpas;
dá-lhes notícia, hoje, de minha situação e dor;
minhas lágrimas ainda deslizam sobre o papel,
e o papel queixou-se da paixão ao meu cálamo.
Então, seja gentil, boa, tenha piedade e simpatia.
Eu lhe envio o seu anel; envie-me, pois, o meu”.[221]

Disse o narrador: colocou o anel feminino no papel e entregou-o ao criado, que
o recolheu, entrou e o entregou à senhorita Budœr. Ela pegou o papel, abriu-o,
leu seu conteúdo, constatou que aquele anel era mesmo o dela, compreendeu o
objetivo e percebeu que seu amado estava atrás da cortina; seu coração voou de
alegria, que a tal ponto foi intensa que uma lágrima pulou de seus olhos e lhe
escorreu pela face. Então ela reuniu as forças, encostou os pés na parede, deitou-
se de costas, arrebentou a cadeia de ferro, levantou-se e caminhou, deixando
abestalhado o criado; ergueu a cortina e viu seu amado, que olhou para ela e a
reconheceu, bem como ela a ele. Seus olhos se encontraram e ela se atirou sobre
ele, que a envolveu no colo. Abraçaram-se e desfaleceram por alguns momentos.
Em seguida, puseram-se a fazer queixumes mútuos e a recordar aquela noite,
admirados do que teria provocado a reunião entre ambos. O criado, ao vê-los
naquela situação, correu até chegar ao rei, ao qual informou do sucedido e disse:
“Meu senhor, ele não só é astrólogo como é o mestre dos astrólogos. Curou
nossa patroa com o papel por trás da cortina”, e lhe relatou o que ocorrera.
O rei ficou muito contente e agradeceu a Deus altíssimo, que lhe dava por
genro nada menos que um jovem gracioso. Levantou-se de imediato, foi vê-los,
e encontrou sua filha sentada. Quando olhou para ele, a jovem se levantou,
cobriu a cabeça, beijou-lhe a mão e sorriu.
Disse o narrador: o rei beijou-lhe a cabeça e entre os olhos, voltou-se para
Qamaruzzamån, agradeceu-lhe e indagou-o sobre sua condição. O jovem
informou-o então de seu nome e origem, que era rei filho de rei, e que seu pai
¸åhramån era senhor da Península ¿alidån; contou-lhe o que sucedera naquela
noite entre ele e sua filha, e que fora ele que tirara o anel da mão da jovem.
Espantado, o rei disse: “Por Deus, é imperioso que a história de vocês seja
registrada para ser lida pelas próximas gerações”, e foi até as testemunhas,
escreveu o contrato de casamento, ordenou que a cidade fosse enfeitada e ficou
feliz pela recuperação de sua filha “e com aquele que não nos deu por parente
senão um rei filho de rei”. Depois, exibiram a jovem para Qamaruzzamån
durante a noite; os dois eram muito parecidos. Qamaruzzamån dormiu com ela e
satisfez seu desejo; também Budœr curou seu anelo por ele, e ficaram abraçados
até o amanhecer. No dia seguinte o rei Al©uyœr mandou preparar um banquete,
para o qual convidou toda a população de sua terra, estendendo mesas com
comida pelas praças; a festa perdurou pelo período de um mês inteiro, após o
qual Qamaruzzamån lembrou do rei ¸åhramån e do amor que o pai tinha por ele.
Sua vida se tornou um desgosto e, enquanto dormia naquela noite, sonhou que o
pai o admoestava dizendo: “Meu filho, é assim que você faz comigo? Quão
depressa me esqueceu! Por Deus, meu filho, venha rápido me ver para que eu
cure minhas saudades e veja você uma última vez antes de morrer”.
Disse o narrador: Qamaruzzamån acordou aterrorizado por ter visto, no
sonho, o pai a censurá-lo. Acordou com o coração entristecido.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

107ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, tendo acordado com o coração
entristecido, Qamaruzzamån contou o sonho à esposa, a senhorita Budœr, que foi
com ele até o rei Al©uyœr, a quem informaram do ocorrido e pediram permissão
para viajar até o pai do rapaz. O rei Al©uyœr concedeu a permissão e Budœr
disse: “Eu não tenho paciência de suportar a separação”, e o rei permitiu que
ambos viajassem juntos e permanecessem fora por um ano completo; determinou
que a filha viesse visitá-lo uma vez por ano, e ela aceitou. E o rei Al©uyœr se
pôs a prepará-los para a viagem; abasteceu-os de provisões e feno para as
montarias. Para a filha, montou uma liteira sobre três asnos e destacou alguns
homens para o seu serviço; preparou-lhes, enfim, tudo quanto fosse necessário
para a viagem, e no dia da partida deu um traje honorífico a Qamaruzzamån e
lhe ofereceu vinte cavalos de raça e um comboio composto de cavalos sem raça.
Entregou-lhe bastante dinheiro, recomendou-lhe a filha e acompanhou-os até os
limites do reino, onde ele, seus vizires e seus comandantes se despediram de
Qamaruzzamån. O rei entrou na liteira e se despediu de sua filha Budœr;
estreitou-a ao peito, beijou-a e chorou; depois disso, saiu e roçou as faces de
Qamaruzzamån, que lhe beijou a mão. Separaram-se então: o rei Al©uyœr
regressou para os seus rincões e Qamaruzzamån determinou a seus
acompanhantes que se prosseguisse a viagem, e eles viajaram pelo primeiro,
pelo segundo, pelo terceiro e pelo quarto dia, e assim continuaram, pelo período
de um mês completo, quando então pararam em uma vasta campina, montaram
tendas, deram descanso às montarias, cozinharam e comeram; começou o calor
do meio-dia e todos dormiram; dormiu também madame[222] Budœr, sem saber
o que o destino predeterminara: Qamaruzzamån entrou em sua tenda e a
encontrou dormindo de costas, com uma túnica fina, o cabelo enrolado num
lenço e uma touca; o vento lhe ergueu a túnica e Qamaruzzamån observou-lhe os
seios e o ventre branco como a neve, mais puro que o cristal e mais suave que a
manteiga, com dobras e pregas e um umbigo muito bem desenhado; sua paixão
por ela aumentou e se confirmou seu amor; extasiado de sentimento, paixão e
atração, recitou uma poesia:

“Se me dissessem, enquanto a soalheira rosna
e o fogo me abrasa o coração e as entranhas:
‘O que mais gostaria de ter agora, seu amado
ou um trago de água pura?’, diria: ‘O amado!’”.

Disse o narrador: Qamaruzzamån esticou a mão e soltou o laço dos calções de
Budœr; no laço havia um nó, que ele desfez e encontrou um engaste vermelho
como sangue ou tintura,[223] no qual estavam inscritas duas linhas ilegíveis.
Admirado com aquilo, Qamaruzzamån pensou: “Se este engaste não lhe fosse
muito valioso, ela não o guardaria num lugar tão caro; se não gostasse
imensamente deste engaste, não o teria amarrado no laço de seus calções a fim
de nunca abandoná-lo. Quem dera eu soubesse o que ela faz com ele e qual o
segredo que carrega!”. Em seguida, saiu da tenda para examiná-lo; saiu, abriu a
palma da mão e pôs-se a contemplar o engaste, maravilhado com sua beleza.
Quis, então, fechar a mão...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

108ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Qamaruzzamån quis fechar a mão em
cuja palma estava o engaste quando, repentinamente, um pássaro se lançou sobre
ele dos céus e agarrou a joia; voou e pousou no chão, próximo a ele. Com o
coração abrasado, em chamas, Qamaruzzamån correu rápido atrás do pássaro,
que começou a se afastar num voo próximo ao solo; Qamaruzzamån corria atrás
dele, e o pássaro continuava a se afastar do mesmo modo; voava, e
Qamaruzzamån corria atrás dele, e assim foi de um vale a outro, de um bosque a
outro, de um monte a outro e de um espaço a outro, até que anoiteceu e ficou
muito escuro; o pássaro dormiu numa árvore alta, em cujo sopé Qamaruzzamån
parou, aparvalhado com aquilo, cansado de tanto correr e se esfalfar, aniquilado;
quando a noite o surpreendeu, ele fez tenção de retornar, mas não reconheceu o
ponto de onde viera, pois sua atenção não estava concentrada no caminho: ele
somente se preocupara em alcançar o pássaro, cujo voo seu olhar acompanhava.
Não conseguiu, portanto, regressar. O escuro o colheu, e ele pronunciou uma
fórmula que nunca decepciona quem a diz: “Não existe força nem poderio senão
em Deus altíssimo e poderoso; somos de Deus e a ele retornaremos”. Em
seguida, dormiu debaixo da árvore até o amanhecer, quando então o pássaro
retomou seu voo lento, no ritmo dos passos de Qamaruzzamån, que disse com o
coração encolerizado: “Quão espantosa é essa ave! Ontem ela voava no ritmo de
minha correria, e hoje, que acordei cansado, ela voa no ritmo do meu caminhar.
Isso é assombroso!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura”.
Na noite seguinte, que era a

109ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Qamaruzzamån se espantou com o
voo do pássaro: “Ou ele vai me conduzir para algum local arruinado, para o meu
mal, ou para algum local próspero, para o meu bem.[224] Por Deus que irei
segui-lo com certeza, pois ele deve conhecer alguma cidade”. E se pôs a
caminhar debaixo do pássaro, de pouco em pouco, enquanto este voava da
mesma maneira. Quando amanheceu, o pássaro dormiu numa árvore, e
Qamaruzzamån dormiu debaixo dela. Continuou seguindo o pássaro pelo
período de dez dias, alimentando-se de plantas do solo, água de rios e folhas de
árvore. Após esses dias, aproximaram-se de uma cidade próspera e populosa, e o
pássaro, mal a vislumbrou, nela entrou num piscar de olhos e desapareceu das
vistas de Qamaruzzamån, que ficou sem saber para que lado dirigir-se;
espantado, pensou: “Graças a Deus que me manteve íntegro até aqui, e que Deus
recompense aquela ave, pois, não fosse ela, eu não teria senão morrido. Graças a
Deus por isso”. E caminhou até o portão da cidade, sentou-se, lavou os pés, as
mãos e o rosto, repousou por alguns momentos, lembrou-se de sua condição de
rei, do conforto que desfrutava e das relações com sua amada Budœr, e olhou
para a situação em que ora se encontrava: exílio, solidão, fome e cansaço; seus
olhos soltaram lágrimas que lhe escorreram pelas faces, e ele recitou a seguinte
poesia mu∆ammas:[225]

“O que eu ocultava por você, agora surgiu;
depois de você, o sono abandonou os olhos.
E gritei quando meu coração se encheu de cismas:
‘Ó destino, não te apiedas de mim?
Eis minha vida, entre a labuta e o risco’”.

“Se quem domina o amor fosse justo comigo,
o sono não teria expulsado de minhas pálpebras.
Meus senhores, tenham dó de um doente ardoroso.
Apiedem-se de um homem outrora poderoso a quem
a paixão humilhou, e outrora rico, que empobreceu”.

“Volte, por vida deste enamorado que se derrete!
O anseio me aniquila e me desfaz as articulações.
Você não tem piedade de minha enorme humilhação.
Revelar o segredo tão bem conservado é meu direito,
pois o Louco de Laylà[226] revelou um segredo e se celebrizou”.

“Os detratores atacaram você, mas não os segui;
desviei-me de suas palavras e os abandonei;
indagaram: ‘Sua paixão é uma bela?’. Respondi:
‘Dentre as belas me apaixonei pela melhor
Chega, pois quando vem o destino, os olhos se cegam’”.

Disse o narrador: e Qamaruzzamån, após descansar alguns instantes, entrou pelo
portão da cidade, sem saber para onde se dirigir.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como são belas, divertidas e boas
as suas palavras, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

110ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto juízo
e belo proceder, de que, tendo entrado na cidade sem saber que rumo tomar,
Qamaruzzamån atravessou-a inteira, até sair pelo outro portão, que se limitava
com toda a extensão do mar, o mar salgado e agitado. Passeou pela praia até que
adentrou os pomares da cidade; caminhou entre as árvores e chegou a outro
pomar diante de cuja porta estacou. O capataz veio recepcioná-lo, deu-lhe boas-
vindas e disse: “Vamos, meu filho, avance. Graças a Deus que você está a salvo
da gente desta cidade! Entre!”. Qamaruzzamån entrou com maneiras de aturdido
e disse: “Ó xeique, qual é a história da gente desta cidade?”. Ele respondeu:
“Meu filho, a gente desta cidade é toda constituída de magos,[227]
blasfemadores contra o Deus sagrado. Graças a Deus que você escapou ileso
deles, meu filho. Como você chegou à nossa cidade, meu filho?”. Então
Qamaruzzamån relatou o que lhe ocorrera, do começo ao fim, e o velho capataz
ficou espantado e se tomou de compaixão por ele; disse-lhe: “Saiba, meu filho,
que a terra dos muçulmanos está a quatro meses de viagem por mar, e a um ano
inteiro por terra. Temos, anualmente, um navio que sai com mercadorias e
mercadores e se dirige à mais próxima terra muçulmana, uma cidade na costa
chamada de Península do Ébano, cujo rei se chama Armånœs.[228] Se você ficar
aqui comigo, espere até o final do ano, quando os mercadores preparam as
mercadorias e eu o farei viajar no navio deles. Você irá para a Península do
Ébano, e a partir dela chegará à Península ¿alidån, cujo rei é ¸åhramån”.
Disse o narrador: Qamaruzzamån refletiu por alguns instantes com seus
botões e percebeu que não havia por ora nada melhor do que ficar com o velho
no pomar; ficou pois com ele, que o ensinou a fazer o rodízio de cultivo entre as
árvores; Qamaruzzamån começou então a alqueivar e a escavar com a enxada; o
capataz lhe deu um manto de lã para a lavoura e ele se pôs a trabalhar com o
enxadão de anoitecer a anoitecer; durante o dia todo se exauria, e durante a noite
inteira se consumia em lágrimas abundantes, recitando poesias, tresnoitando-se
em razão das lembranças e pensando em sua amada Budœr e em seu pai
¸åhramån.
Disse o narrador: isso foi o que sucedeu a Qamaruzzamån, após a separação
de sua amada Budœr, filha do rei Al©uyœr. Quanto ao que ocorreu com ela...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

111ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, ao acordar, madame Budœr procurou
Qamaruzzamån e não o encontrou. Viu que o laço de seus calções estava solto,
desfeito o nó que neles havia, e sumido o engaste que neles se guardava. Pensou:
“Ó Deus, que assombro! Onde está meu amado Qamaruzzamån? Levou o
engaste sem saber o segredo que nele se ocultava! Levou-o, e foi aonde? Isso se
deve a alguma história espantosa, pois, do contrário, ele não me abandonaria.
Deus amaldiçoe o engaste! Quem dera nunca tivesse existido!”. Em seguida,
refletiu com seus botões, dizendo: “Não direi a nenhum dos nossos
acompanhantes que ele desapareceu, pois assim quererão se aproveitar de mim;
de qualquer modo, sou mulher”, e manteve tal arrojo. Em seguida, vestiu a
túnica de Qamaruzzamån, apertou seu cinturão, calçou suas botas com espora,
colocou na cabeça o turbante e o gorro de algodão dele, e estendeu o véu
masculino. Deixou na liteira uma de suas criadas e saiu; gritou com os criados,
que lhe trouxeram um corcel puro-sangue; ela montou, os fardos foram ajeitados
e os homens se levantaram e iniciaram a viagem. Aquilo lhes passou
despercebido porque ela era a criatura mais parecida que havia com ele, na
beleza, na formosura, no talhe, na esbelteza, na cor e na idade; ninguém duvidou
de que ela não fosse Qamaruzzamån. E Budœr permaneceu viajando por dias,
noites, e mais dias até que se aproximou de uma cidade situada na costa; fez alto
em suas cercanias, montou sua tenda e descansou. Budœr indagou sobre a cidade
e lhe disseram que seu rei se chamava Armånœs, sua cidade se chamava
Península do Ébano, e que ele tinha uma filha que era a mais bela jovem de seu
tempo; seu nome era Æayåtunnufœs.[229] Logo chegou um emissário que o rei
Armånœs mandara para descobrir notícias sobre os recém-chegados. Após
checar as coisas, o emissário se retirou e retornou ao rei Armånœs, a quem
informou que aquele era um filho de rei que se perdera no caminho para a
Península ¿alidån, cujo rei era o seu pai ¸åhramån. Ao ouvir aquilo, o rei
Armånœs desceu de seu palácio...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
noite vindoura”.

Na noite seguinte, que era a

112ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Armånœs montou junto com os
membros de sua corte e foi ao encontro de Budœr. Ao vê-lo, ela se apeou, e ele
fez o mesmo; abraçaram-se e cumprimentaram-se. Armånœs pegou na mão de
Budœr, entrou com ela na cidade, subiu ao palácio e ordenou que servissem as
mesas e as refeições; transferiu o grupo que acompanhava Budœr para o palácio
dos hóspedes, e para ela preparou uma luxuosa recepção que durou três dias,
após os quais ele se voltou para Budœr, que fora ao banho, desvelara o rosto e
ficara parecendo o plenilúnio quando se completa; as pessoas então ficaram
loucas por ela e disseram ao vê-la: “Glória a Deus, o melhor dos criadores”.
[230] O rei Armånœs voltou-se para ela, que usava um cafetã com gravuras de
caça, pele de esquilo, e debaixo dele outro cafetã tecido com fios de ouro e prata,
e disse: “Meu filho, saiba que eu já sou um ancião e nunca fui agraciado com um
filho macho; só tenho uma filha que, graças a Deus altíssimo, se aproxima de
você em beleza e formosura. Eu já estou incapaz de reinar. Você gostaria de
morar em nossa terra e adotar nosso país? Eu o casaria com minha filha, lhe
entregaria o reino, e descansaria”. Budœr se manteve cabisbaixa, a fronte suando
de vergonha, e pensou: “Como?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

113ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que madame Budœr pensou: “O que
fazer? Sou mulher e, se eu discordar, não estarei segura de que ele não mandará
um exército atrás de mim e me entronize à força; assim, meu segredo será
desmascarado. Por outro lado, para onde hei de ir se não sei o que sucedeu ao
meu amado? Por ora, vou morar nesta terra até que ‘Deus faça ocorrer o que já
estava predeterminado’”.[231] Então ergueu a cabeça e lhe respondeu
afirmativamente, ouvindo e obedecendo à sua determinação. O rei Armånœs
ficou contente e mandou que se divulgasse a boa-nova do casamento por toda a
Península do Ébano, que fosse adornada e que se demonstrasse regozijo. Reuniu
os vizires, comandantes, secretários, oficiais, maiorais do governo, nobres do
reino e juízes da cidade; todos compareceram e ele renunciou ao trono e
entronizou Budœr, fazendo-a vestir o traje dos reis e entregando-lhe a cimitarra
real. Em seguida entraram os comandantes e todo o exército; fizeram juramento
de lealdade a Budœr, sem duvidar de que se tratava de um homem; todos se
encabulavam de olhar para ela, tamanha era sua beleza e formosura. Quando
Budœr, filha do rei Al©uyœr, foi entronizada, a população se rejubilou com
aquilo. Pela manhã, o rei Armånœs escreveu o contrato de casamento de sua
filha Æayåtunnufœs com Budœr, jogou moedas e se tocaram instrumentos
anunciando a boa-nova; imediatamente ele se pôs a arrumá-la, e mais do que
rápido exibiram-na para Budœr; ambas pareciam dois plenilúnios ou duas luas.
Em seguida, deixaram Æayåtunnufœs, filha do rei Armånœs, a sós com Budœr,
filha do rei Al©uyœr, trancaram a porta, deixando-lhes velas e lampiões acesos e
o quarto com panos de seda. Vendo-se a sós com Æayåtunnufœs, Budœr
recordou-se de seu amado Qamaruzzamån, cuja ausência tanto se prolongava, e
chorou copiosamente; suas lágrimas escorreram e ela recitou os seguintes versos
de poesia:

“Ó vocês que partiram deixando meu coração preocupado!
Após sua partida, a este meu corpo não resta nem um olhar.
Não tenho outra culpa ante eles senão o amor que lhes tenho.
E as pessoas se dividem entre felizes com eles e amarguradas”.[232]

Disse o narrador: tendo recitado estes versos, Budœr sentou-se ao lado de
Æayåtunnufœs e a beijou. Em seguida levantou-se, foi fazer abluções e ficou
rezando até que Æayåtunnufœs adormeceu. Budœr deitou-se ao seu lado na
cama e lhe voltou as costas. Quando amanheceu, Armånœs e a esposa foram ver
sua filha Æayåtunnufœs, que lhes relatou o que fizera o rei Budœr e repetiu os
versos que recitara. O rei Armånœs disse: “Minha filha, talvez ele se tenha
recordado de seus pais e de sua terra e por isso se abateu e recitou o que você
ouviu. Mas nesta noite ele irá possuí-la”.
Isso foi o que sucedeu a eles. Quanto a Budœr, ela saíra pela manhã...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como são boas as suas palavras,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


114ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Budœr saiu pela manhã e se instalou
no trono real. Subiram então os comandantes, os vizires e os principais do reino
para felicitá-la pela posse e fazer-lhe os melhores votos. Ela os recebeu sorrindo,
deu-lhes trajes honoríficos, presenteou-os e ofertou muitas dádivas aos
comandantes e aos soldados. Todo mundo gostou muito dela, e lhe foram feitos
rogos de que tivesse vida longa. Ela então distribuiu ordens, estabeleceu
proibições e julgou. Quando anoiteceu, entrou no aposento destinado a ela e ali
viu velas acesas e Æayåtunnufœs sentada. Acomodou-se ao seu lado, acariciou-
a, beijou-a entre os olhos e, recordando-se de seu amado Qamaruzzamån, arfou
pesadamente, suspirou tristemente, gemeu e recitou os seguintes versos de
poesia:

“Ó vocês que abandonam o ardor! Deixaram
um corpo por vocês exaurido e uma alma vazia!
Ele supera os homens em generosidade e pureza,
a bondade de Bin Zå’ida e a clemência de Mu¢åwiya”.[233]

Disse o narrador: então ela se levantou, limpou as lágrimas, foi fazer suas
abluções e se pôs a rezar até que o sono vencesse Æayåtunnufœs. E Budœr se
deitou ao seu lado até o amanhecer, quando se dirigiu para a assembleia do reino,
onde distribuiu ordens e julgou. Quanto ao rei Armånœs, ele foi ver a filha
durante o dia e a indagou sobre seu estado. Ela lhe relatou o que Budœr fizera,
os versos que recitara, e disse: “Nunca vi ninguém mais ajuizado e encabulado
do que ele. E como chora e suspira!”. O rei Armånœs lhe disse: “Tenha
paciência. Não resta senão esta terceira noite; caso ele não a possua, teremos de
tomar alguma providência, depô-lo do trono e expulsá-lo de nosso país”; tal foi a
sua resolução. Quando anoiteceu, os oficiais do exército se retiraram e madame
Budœr foi até o aposento onde estava Æayåtunnufœs, a quem encontrou sentada,
com velas acesas, parecendo a lua na vigésima quarta noite do mês. Olhou para
ela, lembrou-se de seu amado Qamaruzzamån, da vida feliz que levavam, com
braços ao redor do pescoço, peito contra peito, cabelo desfeito, mordidelas nas
faces e lambiscadas nos seios; então chorou, suspirou fundo, demonstrou tristeza
e recitou a seguinte poesia:

“Não guarda segredo não quem é de confiança,
e o segredo entre os melhores é que é guardado.
Comigo, o segredo está numa casa trancafiada,
cujas chaves se perderam e a casa está selada”.

Disse o narrador: em seguida, fez menção de ir rezar, mas Æayåtunnufœs se
levantou, pegou-a pelo rabo da roupa e disse: “Chega! Já basta! Não tem
vergonha do meu pai depois de tudo o que fez por você?”. Budœr então sentou-
se e perguntou: “O que você está dizendo, minha querida?”. Ela respondeu: “O
que estou dizendo? Nunca vi uma pessoa tão convencida como você! Mesmo
sendo assim tão gracioso, não é lícito que você tenha tanta admiração por si
mesmo e por sua beleza! Por Deus que não lhe estou dizendo estas palavras para
que você me deseje; porém, meu pai está resolvido, caso você não me possua
esta noite, a depô-lo do reino pela manhã e expulsá-lo daqui; talvez a raiva
aumente e o leve a matá-lo. Só que eu me apiedei de você e o aconselho. Agora,
faça o que bem entender, pois ‘quem alerta está justificado e quem adverte
pratica a justiça’”.[234] Budœr permaneceu cabisbaixa por alguns instantes,
atônita com aquela situação. Pensou: “Se eu desobedecer, serei morta. Ademais,
não irei reunir-me ao meu amado senão aqui neste lugar, pois seu caminho
necessariamente passará por aqui, é o único caminho que o levará à sua terra.
Estou perplexa com essas coisas todas, e não posso possuir essa jovem para que
ela se tranquilize”. E, voltando-se para Æayåtunnufœs, falou-lhe com palavras
sutis e femininas, que constituíam as suas verdadeiras e instintivas palavras, e
revelou a sua condição.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

115ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”. Ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de belo e
louvável juízo e correto parecer, de que madame Budœr revelou sua condição e
lhe relatou tudo quanto ocorrera entre ela e seu amado marido Qamaruzzamån.
Mostrou-lhe o órgão sexual e disse: “Eu sou mulher, com vagina e seios”, e lhe
contou, enfim, tudo quanto lhe sucedera, do começo ao fim, pedindo-lhe para
ocultar o seu estado até que ela se juntasse a Qamaruzzamån, quando então, de
qualquer modo, ela mesma revelaria o segredo.
Disse o narrador: quando ficou a par da verdade do caso, e de todas as outras
coisas, Æayåtunnufœs assombrou-se com a história, tomou-se de compaixão por
ela, lamentou sua situação e fez-lhe votos de que logo se reunisse a seu amado e
ficasse com ele; guardou o segredo e, contente com a revelação, disse:
“Maninha, não fique triste; seu segredo comigo será preservado, trancafiado e
guardado, pois ‘os segredos são preservados pelas pessoas livres’”.[235] E
continuou: “Por Deus que não lhe desobedecerei nem revelarei nenhum segredo
seu”. Então conversaram, brincaram, riram juntas e dormiram. Quando se
aproximou o horário da prece matinal, Æayåtunnufœs se levantou, pegou uma
galinha, tirou os calções e soltou um grito depois de matar a galinha; sujou-se
com seu sangue e untou o lenço. Em seguida, escondeu a galinha, vestiu os
calções e gritou[236] por suas parentes, que entraram; em alvoroço, sua mãe
emitiu alaridos jubilosos,[237] beijou-a e disse: “Deus salvou a sua dignidade,
[238] minha filha”. E cercaram Æayåtunnufœs, enquanto Budœr se dirigia ao
trono. O rei Armånœs ouviu os alaridos jubilosos, perguntou o que se sucedia e
lhe informaram a história. Ele ficou muito contente, e fizeram-se banquetes,
trombeteou-se a novidade, e todos mergulharam em alegria e felicidade, exceto
Budœr, que durante o dia se distraía e se ocupava com o governo, as ordens e as
proibições, e quando anoitecia ia ter com Æayåtunnufœs; conversavam e ela
desabafava suas preocupações e saudades do amado Qamaruzzamån.
Mantiveram-se em tal situação por algum tempo, com Budœr como rainha da
Península do Ébano, ao passo que Qamaruzzamån vivia no pomar da cidade dos
magos. Quanto à história do rei ¸åhramån...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, saborosa, divertida e
boa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

116ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de juízo
louvável e correto parecer, de que, quanto à história do rei ¸åhramån, senhor da
Península ¿alidån, pai de Qamaruzzamån, ocorreu-lhe o seguinte: depois de seu
filho ter saído para caçar, conforme alegara de início, anoiteceu e ele não
conseguiu dormir; sua preocupação extrema aumentou-lhe a aspereza e o
abrasamento do rosto; tão longa foi aquela noite de insônia e preocupação que
ele mal acreditou quando a alvorada irrompeu. Assim que amanheceu, ele
começou a esperar o filho, e o fez até o meio-dia, mas dele não recebeu notícia
alguma; gritou, pressentiu a separação e se inflamou pelo filho; dizia: “Ai, meu
filho! Ai, pedaço do meu fígado”, e chorou amargamente até empapar a barba
encanecida.
Disse o narrador: após limpar as lágrimas e contê-las, ele determinou que seu
exército se preparasse para partir e fizesse convocações para a expedição de
busca; todo o exército montou e o rei ¸åhramån saiu entristecido, desalentado e
confuso pela separação de seu filho Qamaruzzamån. Ele disse aos soldados: “O
ponto de encontro será a encruzilhada dos quatro caminhos”. Os soldados se
dispersaram; as pessoas foram nos corcéis, e o rei ¸åhramån conduziu o seu pelo
restante do dia até a noite e ainda até o amanhecer, e depois por mais um dia e
uma noite, e no terceiro dia, ao meio-dia, chegou à encruzilhada dos quatro
caminhos; foi a certo ponto, examinou a terra e viu vestígios de uma túnica
despedaçada, carne espalhada com restos de sangue ainda visíveis, cada pedaço
num canto. Ao ver aquilo, o rei gritou e disse: “Ai, meu filho!”, e caiu
desfalecido por alguns momentos. Ao acordar, estapeou o próprio rosto,
arrancou sua barba branca, rasgou as roupas e disse: “Pelo amor de Deus, onde
está o meu filho?”, e teve certeza de sua morte. Os mamelucos que o
acompanhavam choraram, tornaram a chorar e carpiram-se bastante. Os soldados
restantes, que tinham se espalhado para procurar, começaram a afluir aos grupos,
cada qual com uma só palavra, a de que não tinham avistado nenhum vestígio de
Qamaruzzamån, nem dele encontrado nenhuma notícia. Todos tiveram certeza de
que ele morrera, rasgaram suas roupas, jogaram areia em suas cabeças e
choraram até o anoitecer; o rei continuava chorando e se carpindo; recordou o
filho, a maneira como o perdera, e chorou mais, carpiu-se, e recitou a seguinte
poesia:

“Não censure o entristecido por sua tristeza,
pois lhe basta o sentimento de suas aflições;
ele chora pela excessiva dor e preocupação;
seu sofrimento anuncia o fogo que o queima;
sua comoção é pela perda do plenilúnio florescente;
nuvens de lágrimas lhe escorrem das pálpebras!
Ele nos atingiu com o afastamento, a rudeza
e a distância; seu abandono é um tormento.
O amor lhe concedeu uma taça bem cheia
no dia da partida, e ele fugiu de sua terra!”.

Disse o narrador: em seguida, retornou com seus soldados e, já desesperançado
de encontrar o filho, disse: “Ele foi atacado por um animal selvagem ou por
salteadores”. Entrou em sua capital, mandou anunciar que na Península ¿alidån
se usasse o preto em luto por seu filho Qamaruzzamån, e construiu uma casa que
denominou Casa das Tristezas. Passou a exercer o governo às quintas e às
segundas, e no restante da semana entrava na Casa das Tristezas para prantear
seu filho Qamaruzzamån e chorar a sua perda.
Disse o narrador: isso foi o que sucedeu ao rei ¸åhramån, que chegara a um
estado tal que ora chorava e se carpia, ora vasculhava outras terras atrás de seu
filho Qamaruzzamån. Quanto a madame Budœr, filha do rei Al©uyœr, dono de
ilhas, mares e dos sete palácios, dormia toda noite ao lado de Æayåtunnufœs, e
governava, distribuía ordens, estabelecia proibições e pensava em
Qamaruzzamån.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

117ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que madame Budœr ficou pensando em
Qamaruzzamån e desabafando com Æayåtunnufœs, permanecendo em tal
situação por dias e noites, e noites e dias inteiros. Quanto ao pobre e desalentado
Qamaruzzamån, instalado com o capataz, pôs-se a chorar noite e dia, do
anoitecer ao amanhecer, a recitar poesias, a verter lágrimas copiosas, a pensar
em madame Budœr, a lamentar-se pela perda dos momentos de alegria e a
censurar os dias e os meses. Permaneceu nesse estado enquanto passavam por
ele meses e dias, e o capataz lhe prometendo que no final do ano a embarcação
aportaria. Chegou então o feriado, e ele viu as pessoas reunidas em grupos,
amigos junto com amigos, e o capataz lhe disse: “Chega de chorar. Descanse e
cuide do pomar enquanto eu vou buscar notícias sobre as embarcações e também
sobre os mercadores. Falta pouco e então iremos enviá-lo para o seu país, o país
do islã”. O velho capataz saiu, e Qamaruzzamån ficou sozinho e isolado no
pomar; com a mente alquebrada, suas lágrimas lhe escorreram pelas faces e ele
se lembrou de sua amada madame Budœr; chorou, verteu lágrimas e recitou os
seguintes versos de poesia:

“Acaso não vês o amor retornando no feriado?
Perdido de amor e pelo farto abandono abatido!
Fomos privados de seu contato e da mais feliz
vida que ela eternizou num tempo de venturas”.

Disse o narrador: e chorou amargamente até desfalecer. Despertou após alguns
momentos e foi caminhar pelo pomar, pensando sobre o que o destino decidira
contra ele, naquele excessivo afastamento e exílio, e recitou os seguintes versos
de poesia:

“Sua sombra está comigo e nunca me abandona,
e eu lhe dei em meu coração o mais digno lugar.
Sem esperança de contato, nem uma hora viveria.
Não fora a sombra do teu espectro, não dormiria”.

Disse o narrador: e andando com os olhos encharcados de lágrimas, tropeçou e
caiu de cara; sua testa bateu num montículo e seu sangue escorreu, misturando-
se às lágrimas; impedido de ver o caminho, limpou o sangue e as lágrimas,
amarrou a cabeça com um trapo, recordou-se de seu antigo estado e recitou a
seguinte poesia:

“Tenho suspiros que, se aflorassem, me matariam
pelas saudades de nossas noites que se repetiam.
Se disser: ‘Este foi o suspiro de hoje e já passou’,
quem me salvará do outro que lhe virá em seguida?”.

Disse o narrador: então ele caminhou ao redor do pomar, mergulhado no oceano
de suas reflexões, já esgotada toda a paciência. Seus olhos olharam para uma
árvore sobre a qual havia dois pássaros brigando e se bicando; um deles bicou o
outro na garganta, arrancando-lhe a cabeça, com a qual saiu voando na direção
de Qamaruzzamån, enquanto o pássaro morto caía no chão, diante dele.
Qamaruzzamån fez tenção de recolhê-lo, mas repentinamente dois outros
pássaros pousaram junto do pássaro morto, um à sua cabeça e outro a seus pés,
abaixando os bicos e estendendo os pescoços como se estivessem pranteando-o e
enumerando-lhe as qualidades; depois, chilrearam e abaixaram as cabeças.
Qamaruzzamån chorou por eles e, observando-os novamente, viu que haviam
escavado um buraco no qual enterraram o pássaro assassinado.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

118ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, após terem lançado à terra e
enterrado o pássaro assassinado, os dois pássaros alçaram voo por algum tempo,
pegaram o pássaro assassino, subiram em cima dele até que o mataram e lhe
romperam o ventre; retiraram suas vísceras e fizeram o seu sangue escorrer sobre
o túmulo do assassinado. Em seguida, depenaram-no, dilaceraram-lhe as carnes,
rasgaram-lhe a pele, retiraram o conteúdo de seu ventre e espalharam-no em
pontos diversos. Tudo isso ocorreu com Qamaruzzamån olhando para eles,
assombrado. Lançou então um olhar para o local onde o pássaro fora abatido e
viu um brilho refletindo a luz do sol de tal modo que sequestrava a vista;
aproximou-se, examinou e constatou que a vesícula do pássaro assassinado
estourara e que o brilho saía da fenda causada pelo estouro. Qamaruzzamån
pegou a vesícula, espremeu-a com os polegares, dividindo-a em dois pedaços, e
dela pulou um engaste vermelho que brilhava intensamente se colocado sob os
raios do sol, quase sequestrando a vista de quem o olhasse. Observou-o,
examinou-o e verificou tratar-se do engaste que ocasionara sua separação da
amada madame Budœr – era o engaste que estava amarrado em seus calções, no
laço que ele desfizera, e que a ave roubara da palma de sua mão. Ao vê-lo, ao
olhar bem para ele, caiu no chão de alegria e disse: “Por Deus que esse é um
sinal de que o bem vai ocorrer! A boa-nova é que me reunirei com minha esposa,
madame Budœr, pois desde o dia em que perdi este engaste também perdi o meu
amor. Deus não o devolveu a mim senão por pretender devolver à minha
amada!”. E, cingindo o engaste ao peito, beijou-o, passou-o pelos olhos, chorou
e recitou os seguintes versos de poesia:

“Vejo seus vestígios e me derreto de saudades,
vertendo copiosas lágrimas onde eles ficavam
e pedindo a quem, afastando-os, me desgraçou,
que me conceda a graça de fazê-los retornar”.[239]

Disse o narrador: Qamaruzzamån pegou o engaste, amarrou-o no braço e, muito
otimista com aquilo, disse: “Por Deus que este é um sinal de que o bem vai
ocorrer. Que presságio abençoado!”. Em seguida, alegre, voltou ao seu lugar e se
sentou para aguardar o velho capataz, e o fez até o anoitecer, mas, como ele não
chegasse, Qamaruzzamån dormiu. Acordou cedo para trabalhar, amarrou uma
corda de buxo na cintura, muniu-se de enxada e alcofa,[240] atravessou o pomar
com a enxada ao ombro, foi a uma alfarrobeira[241] e começou a escavar com a
enxada, que logo tiniu; ele foi verificar, e eis que era uma tampa de cobre.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

119ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de belo e
louvável proceder, de que Qamaruzzamån, ao bater com a enxada e ver a tampa
de cobre amarelo, raspou a terra, limpou ao seu redor e abriu-a, descobrindo que
havia uma escadaria em forma de caracol que descia sob a cúpula de pedra
nacarada. Desceu dez degraus e chegou a um elegante saguão, antiquíssimo e
bizantino, da época de ¢Åd Bin ¸addåd;[242] o saguão era constituído por uma
sala abobadada cercada por vasos[243] de cobre, cada qual do tamanho de uma
grande tenda. Ele estendeu a mão para dentro de um dos vasos, verificou que
estava cheio de ouro vermelho puro e pensou: “Por Deus que ‘partiu a incerteza
e chegou a salvação’.[244] Isso indica que logo Deus vai me juntar à minha
amada”. E recitou a seguinte poesia:

“Se acaso as calamidades chegarem ao limite
e por sua causa as almas quase se derreterem;
se a desgraça crescer e a resignação decrescer,
somente ao seu término se dará a libertação”.

Disse o narrador: então ele contou os vasos de cobre e constatou que eram vinte,
cheios de ouro puríssimo. Subiu pelo túnel até a superfície, recolocou a tampa
como estava antes, foi ao pomar, plantou e se manteve ocupado com as
atividades de jardinaria até que o capataz chegou, saudou-o e disse: “Meu filho,
eu lhe trago a boa-nova de seu retorno à sua terra, pois os mercadores já estão
preparados para a viagem e o barco, que completou o carregamento, daqui a três
dias partirá para a Península do Ébano, que é a mais próxima cidade muçulmana,
[245] e cujo rei é Armånœs; quando chegar à Península do Ébano, dali você
viajará por terra, durante seis meses, para a península da terra de ¿alidån, do rei
¸åhramån”.
Disse o narrador: Qamaruzzamån ficou contente ao ouvir a menção ao nome
de seu pai, e recitou os seguintes versos de poesia:

“Não abandonem quem não se habituou ao seu abandono,
nem torturem com seu afastamento quem nenhum mal fez;
um outro que não eu, após tão longa distância, os repeliria
e teria modificada a sua situação; apenas eu é que não”.

Disse o narrador: em seguida, Qamaruzzamån beijou a mão do velho e lhe
disse: “Meu pai, tal como você me deu essa boa-nova, também quero lhe dar
uma”, e falou dos vasos ao capataz, que ficou contente e disse: “Meu filho, essa
fortuna é sua. Eu vivo neste pomar desde o tempo do meu pai, há oitenta anos, e
nunca encontrei nada. Você está comigo faz um ano e encontrou; é, portanto, a
sua fortuna, a compensação do seu cansaço, a chegada à sua família e a reunião
com os seus”. Qamaruzzamån disse: “Por Deus que é imperioso dividi-los entre
mim e você”. E desceu com o capataz até os vasos e os repartiu, dez para ele e
dez para si. O capataz lhe disse: “Meu filho, encha alguns odres com a azeitona
deste pomar; as nossas azeitonas – cujo nome é azeitona de passarinho[246] –
não existem em nenhum outro lugar e são vendidas para todos os países.
Carregue o ouro nos odres, debaixo das azeitonas, e transporte-as consigo no
navio”. Ele disse: “Ouço e obedeço”, e encheu cinquenta odres, em trinta dos
quais colocou dois terços de ouro e um terço de azeitonas de passarinho por
cima, e os tampou. Em seguida, tirou o engaste vermelho do braço e colocou-o
sobre o ouro num dos odres.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

120ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Qamaruzzamån enfileirou o ouro e os
odres ao lado do muro do pomar e sentou-se para conversar com o capataz. O
jovem estava tão feliz que mal podia esperar o fim dos três dias, já certo de se
reunir aos seus e juntar-se aos familiares. Ele pensava: “Quando chegar à
Península do Ébano, viajarei dali até a terra do meu pai e indagarei sobre a
minha amada madame Budœr, e o que fez com ela o destino predeterminado.
Quem dera eu soubesse! Será que ela volveu à sua terra ou prosseguiu viagem
para a minha terra? Isso se não lhe sucedeu algum acidente! Ai, ai, ai! Ai, minha
amada!”. E gemendo profundamente, e suspirando de tristeza, recitou a seguinte
poesia:
“Introduziram o afeto em meu coração e partiram;
meu lar ficou deveras esvaziado, pois quem amo
está demasiado longe desta casa e de seus moradores,
e distante está o local de visita: logo, não me visitam.
Toda a minha firmeza se foi desde que eles se foram,
e estou acompanhado de minha paixão e paciência;
desde que eles partiram também minha alegria partiu,
e minha coragem desapareceu para não mais voltar;
na separação, o sangue escorreu por minhas pálpebras:
lágrimas copiosas pela separação para jamais;
se um dia eu sofrer pelo anelo de os ver,
e a carinhosa espera se mostrar muito longa,
sua figura se desenhará no meio de meu coração;
minha paixão e reflexão me deixam excitado.
Ó donos da memória que me aniquila,
e pelos quais meu amor já virou emblema!
Socorram um apaixonado que por vocês está doente!
Um atormentado que vive aos tropeções!
Amados, até quando vai durar essa indiferença?
E até quando esse afastamento, essa esquiva?”.[247]

Disse o narrador: e se pôs a esperar a passagem dos dias e a partida do navio.
Contou para o velho a história das aves, do que lhes ocorrera e como encontrara
o engaste, e o capataz ficou espantado. Dormiram aquela noite e o capataz
amanheceu bastante fraco no segundo dia; no terceiro, a morte se tornou mais
próxima do que a vida. Qamaruzzamån se entristeceu e sua mente se condoeu
pelo velho. Estava nessa situação quando os marinheiros do navio chegaram e
indagaram a respeito do capataz. Qamaruzzamån lhes respondeu que ele estava
doente. Os marinheiros perguntaram: “E onde está quem vai viajar conosco para
a Península do Ébano?”. Qamaruzzamån respondeu: “Sou eu”, e lhes ordenou
que transportassem os odres ao navio; os homens colocaram os odres às costas,
[248] carregaram-nos até o navio, depositaram-nos num canto, selaram-nos e
disseram a Qamaruzzamån: “Venha logo, pois os ventos estão favoráveis”. Ele
respondeu: “Sim”, e transportou até o navio provisões, água e equipamentos.
Voltou ao capataz para se despedir e encontrou-o nos estertores. Sentou-se à sua
cabeceira e disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso”; fechou-lhe os olhos e o fez repetir os dois testemunhos,[249] com o
que o velho ficou entre os bem-aventurados. Depois, preparou o cadáver,
enterrou-o e, bem no fim do dia, com o coração em chamas, foi até o navio e
avistou-o já de velas içadas, irrompendo em meio ao alto-mar, e num piscar de
olhos desapareceu de suas vistas. Os mercadores o haviam esperado por longas
horas, mas, como os ventos se mostrassem favoráveis, içaram as velas e não
conseguiram esperá-lo por mais nenhum momento, embora ele tivesse cinquenta
odres no navio, pois cada mercador tinha ali mercadorias no valor de cem mil
dinares. Então fizeram-se ao mar e Qamaruzzamån ficou consternado.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, saborosa e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

121ª
Disse-lhe a irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo, continue
para nós a sua história, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer, de que Qamaruzzamån ficou consternado e confuso, sem nada falar ou
responder, sentou-se no chão, jogou terra na cabeça e estapeou-se no rosto.
Retornou ao pomar, alugou-o de seu proprietário e contratou um homem para
ajudá-lo a regar as árvores e no serviço. Desceu ao lugar onde estavam os vasos,
depositou seu conteúdo em cinquenta odres, jogou azeitonas por cima e os
tampou, a exemplo do que fizera com os outros odres. Desesperançado de voltar
à sua amada, perguntou sobre as embarcações e lhe disseram que somente saíam
uma vez por ano. Sua obsessão aumentou, bem como sua aflição pelo que
ocorrera, em especial com o engaste pertencente à sua amada. Disse:
“Pertencemos a Deus e a ele retornaremos”, e pôs-se a chorar noite e dia e a
recitar poesias. Isso foi o que sucedeu a Qamaruzzamån. Quanto ao navio e aos
mercadores, eles viajaram com bons ventos durante dias e noites; Deus escreveu
que ficariam bem e eles chegaram à Península do Ébano, em cujo litoral o navio
adentrou. E estava predeterminado que madame Budœr estivesse à janela e visse
com seus próprios olhos o navio aportando na costa. Seu coração se acelerou,
suas entranhas se reviraram e sua mente se agitou; montou em seu cavalo e, com
seus soldados, comandantes e secretário na vanguarda, foi até a costa e indagou
a respeito do navio, e isso depois que os mercadores já haviam transferido as
suas mercadorias para os depósitos. Mandou chamar o capitão e lhe perguntou o
que trouxera. Ele respondeu: “Ó rei, eu tenho neste navio mercadorias tais como
drogas, pomadas, pós medicamentosos, cremes, tecidos, tinturas, espécies de
seda e musselina, perfumes, especiarias, louças, porcelanas, almíscar, aloés,
canela, tamarindo, madeira de Cabul, cana, sândalo, perfume de reis, noz-
moscada e azeitona de passarinho.[250] Em seguida beijou o chão e estacou.
Disse o narrador: ao ouvir a referência à azeitona de passarinho, o coração de
Budœr teve vontade de comê-la e ela disse: “Por Deus que faz tempo, desde que
eu era criança com meu pai, em minha terra, que gosto de azeitona de
passarinho”. Perguntou ao dono do navio: “E quanto você tem dessa azeitona?”.
Ele respondeu: “Ó rei, tenho cinquenta odres cheios dela, mas o dono teve
problemas e não veio conosco. Vossa Majestade, o rei, que Deus lhe prolongue a
permanência, levará o quanto quiser”. Ela disse: “Tragam a mercadoria”, e o
capitão gritou com seus homens: “O navio!”, e eles saíram com os cinquenta
odres. Assim que os viu, Budœr abriu um deles, olhou para as azeitonas, e disse:
“Comprarei os cinquenta odres. Qual o preço?”. O capitão respondeu: “Por
Deus, meu amo, que isso não tem valor. Os cinquenta odres valem cem dirhams.
Porém, aquele que os encheu é pobre, pois essa mercadoria somente é
comercializada por homens pobres”. Budœr perguntou: “E quanto ela vale neste
país?”. Ele respondeu: “Meu amo, aqui ela vale mil dirhams”. Budœr disse:
“Fico com ela por mil dinares”.[251] E regressou rumo ao palácio, ordenando
que os odres fossem transportados até lá. Então os carregadores levaram para lá
os cinquenta odres. Quando anoiteceu, ela foi até um dos odres – estava sozinha
no palácio com Æayåtunnufœs –, colocou diante de si uma grande travessa e
ordenou que despejassem nela o conteúdo de um dos odres; viraram o odre, e
dele saiu um monte de ouro vermelho, puro. Atônita, ela perguntou: “O que é
isso?”, e foi esvaziar todos os odres, verificando que todos estavam cheios de
ouro e que todas as azeitonas mal encheriam um odre.[252] Revolveu aquele
ouro e encontrou no meio dele o seu engaste; pegou-o na mão...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

122ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de belo e
louvável proceder, de que madame Budœr pegou o engaste na mão, examinou-o
e, reconhecendo-o, deu um grito, bufou e caiu desmaiada. Ao acordar, disse:
“Por Deus que foi este o motivo da minha separação do meu amado! Este é um
bom auspício, e me dá a boa-nova de que Deus nos reunirá e breve me colocará
junto dele”. Beijou o engaste, voltou-se para Æayåtunnufœs, filha do rei
Armånœs, e lhe disse: “Este é o engaste que provocou a minha separação; ele
não voltou senão para provocar o reencontro, se Deus, o criador-mor, quiser”.
Disse o narrador: e ela mal pôde esperar que a aurora chegasse para mandar
um de seus secretários trazer o capitão, que veio e beijou o chão. Ela perguntou:
“Onde vocês deixaram o dono dessas azeitonas?”. Ele respondeu: “Ó rei do
tempo, em nossa terra, a terra dos zoroastristas, onde ele é capataz de um
pomar”.[253] Ela disse: “Por Deus que, se vocês não o trouxerem para mim, irei
despedaçá-los até o último”. Ele disse: “Ouço e obedeço”, e mandou um grupo
conduzir Qamaruzzamån até ali. E eles o trouxeram, bem como aos odres que
estavam com ele – eram os outros cinquenta odres –, e levaram-no à presença de
Budœr, que mandou chamar o rei Armånœs.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, saborosa e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

123ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer, que madame Budœr mandou chamar o rei Armånœs e lhe relatou toda a
história, do começo ao fim. Ele disse: “Por Deus que esta história merece ser
escrita e registrada com tinta dourada”, e, voltando-se para Qamaruzzamån,
disse: “Por Deus, meu filho, que ficamos satisfeitos com você por ser rei filho de
rei, mas tenho uma condição: que você se case com minha filha Æayåtunnufœs e
a possua – que ela seja a sua mulher, ou, ao menos, sua concubina”. Budœr
disse: “Por Deus que ela e eu teremos direitos iguais; uma noite para mim, outra
para ela. Moraremos juntas na mesma casa, pois eu me acostumei com ela e
aceito que seja assim”.
Disse o narrador: o rei Armånœs ficou contente e mandou convocar os
comandantes, os vizires e os maiorais do país. Quando eles entraram, contou-
lhes a história completa, “e o rei que eu entronizara antes era uma jovem, fêmea,
e eis agora o rei Qamaruzzamån!”. Eles o aceitaram, lhe juraram fidelidade e se
retiraram espantados com a história dele e felizes com o juramento; em seguida,
veio todo o exército. O rei Qamaruzzamån ordenou que lhe vestissem o traje real
e se instalou no trono. A cidade foi enfeitada e a boa-nova, trombeteada; o povo
ficou feliz e trouxeram juiz e testemunhas; escreveram o contrato de casamento
de Qamaruzzamån com Æayåtunnufœs, filha do rei Armånœs. Ele a possuiu
naquela noite, deflorou-a, deu banquetes, mandou fazer alimentos e doces e
presenteou todos os comandantes e mestres de ofício do palácio com vestimentas
honoríficas; distribuiu esmolas, donativos, soltou presos, eliminou impostos, e
todas as criaturas e povos rogaram por ele; governou com justiça, e isso se
divulgou por todos os países e ilhas. O rei Qamaruzzamån permaneceu por um
bom tempo nessa situação: dormia uma noite com Æayåtunnufœs e outra com
Budœr, na melhor vida, dissipadas as tristezas e já esquecido de seu pai
¸åhramån. Deus o agraciou com dois filhos machos que pareciam duas luas ou
duas gazelas brilhantes, um de Budœr, o maior e ao qual deu o nome Amjad, e o
outro de Æayåtunnufœs, o menor e ao qual deu o nome As¢ad,[254] e que era
melhor, mais belo e mais formoso do que Amjad. Os meninos cresceram,
desenvolveram-se, aprenderam o decoro, a sabedoria, a caligrafia e a boa escrita,
aperfeiçoaram sua beleza e formosura[255] e assim chegaram à idade de vinte
anos, atingindo a força de homens. Ambos, Amjad e As¢ad, se queriam muito
bem, tinham afinidade e um não suportava a ausência do outro; dormiam juntos
no mesmo aposento, numa só cama, cavalgavam juntos, e as pessoas os
invejavam; a afinidade dos dois era a mesma. Sempre que viajava,
Qamaruzzamån colocava os dois para governar em seu lugar, Amjad num dia e
As¢ad no outro. Permaneceram nessa ordem e, toda vez que entravam em casa
para ver suas mães, estas os benziam e fumigavam contra o mau-olhado. Mas,
por causa do destino predeterminado e pronto, ocorreu que madame Budœr, mãe
de Amjad, começou a ter uma queda por As¢ad.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, divertida e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

124ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que madame Budœr começou a ter uma queda
por As¢ad, filho de Æayåtunnufœs, passando a seduzi-lo e a dar-lhe de olho, e
também Æayåtunnufœs passou a seduzir Amjad e a dar-lhe de olho; cada uma
delas se apaixonou pelo filho da outra com seu marido; o demônio lançou a
paixão por Amjad no coração de Æayåtunnufœs e a paixão por As¢ad no
coração de Budœr. Satanás lhes enfeitou essa ação e a paixão delas por Amjad e
As¢ad aumentou. Cada uma delas passou a abraçar o filho da outra, sem que
estes soubessem qual a intenção, e se fartavam de beijá-los, chupar-lhes os
lábios, sugar-lhes a língua, abraçá-los e apertá-los contra os seios, enquanto os
rapazes supunham que tais atitudes eram afeto e carinho, e não fornicação e
adultério. Aquilo se prolongou muito para ambas as mulheres, e elas pararam de
se alimentar e abandonaram o prazer do sono por causa do sentimento de paixão.
Assim, numa das vezes em que o rei Qamaruzzamån saiu em viagem para caçar
e se distrair, colocou seus filhos Amjad e As¢ad em seu lugar, e, conforme o
hábito, os dois se revezavam diariamente no trono. E Qamaruzzamån saiu em
viagem com seus soldados. No primeiro dia, Amjad, filho de madame Budœr,
instalou-se no trono, pondo-se a governar, a distribuir ordens e probições, a dar
presentes e dádivas. Então a mãe de As¢ad, Æayåtunnufœs, escreveu-lhe uma
carta buscando o seu amor, deixando claro que estava apaixonada por ele,
revelando-lhe tudo e informando-o de que pretendia ter relações sexuais com ele.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

125ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Æayåtunnufœs, apaixonada por
Amjad, e desejando manter relações sexuais com ele, pegou um papel e
escreveu, dizendo:

“Da pobre coitada e entristecida, apaixonada e abandonada, cuja paixão por
você lhe consome a juventude, daquela cujo sofrimento se prolonga. Se eu
descrevesse toda a infelicidade, o pesar de que padeço, o choro, os gemidos,
as preocupações, as cismas contínuas e a aflição, o quanto sofro em razão
da distância, da ansiedade e da combustão, enfim, este escrito se
prolongaria demasiado e seria impossível respondê-lo; a terra e o céu se
tornariam estreitos para mim e eu não teria esperança nem refúgio; estou a
ponto de morrer e próxima do passamento; derreti-me nas chamas, na dor
do abandono e da separação! Se eu descrevesse toda a paixão que tenho, o
papel seria insuficiente; é tamanha a minha debilidade que eis o que recito e
digo, nestes versos de poesia:

‘Se eu almejasse explicar tudo o que me queima,
e a minha paixão, meu sentimento e sofrimento,
não sobrariam no mundo cálamo nem papel,
nem tinta nem nenhum material para a escrita’.

Tenha piedade daquela cuja condução está em suas mãos, e cujo alento
pertence desde sempre a você, cuja paixão fremente é sua somente e de
você dependente. Meu escrito, ó rei Amjad, dono do astro mais venturoso, é
o escrito daquela cuja noite é insônia e cujo dia é desespero, cujas entranhas
queimam e cujas lágrimas apostam corrida em suas faces, na ânsia de vê-lo
e no desejo de receber um olhar seu; é daquela cuja imaginação é dominada
por sua figura, e que fez da sua pessoa o seu exemplo; o sono não lhe atinge
as pálpebras nem lhe permite conforto algum. É para você que se dirigem
suas queixas, é você o seu pilar e o seu anelo”.

E ela ainda recitou e escreveu estes versos de poesia:

“Até quando essa resistência e secura?
Será que não bastam as lágrimas que já verti?
Você prolonga meu abandono de propósito.
Se foi por um invejoso, já está satisfeito.
Cuide de mim, pois a paixão por você me faz mal.
Ó mais glorioso, não é hora de abrandar e ter pena?
Se o destino traidor fosse justo com o apaixonado
eu não estaria clamando ao vento por alguém justo.
A quem me queixarei? A quem revelarei meu amor?
Ó meus senhores, a calamidade da secura é o que é”.[256]

Escreveu mais o seguinte:

“Por sua causa, Deus – que lhe dê permanência e saúde – fez meu corpo
experimentar a debilidade e tudo o mais. Que Deus o poupe de todas as
amarras e me conceda a graça de um encontro, ó herdeiro de minha vida e
soberano de minha morte! Meu alento está em desespero, meu olho, insone,
minha lágrima, escorrendo; você é a minha fraqueza, a minha preocupação,
o meu tormento, a minha aflição. Entenda o que contém este meu escrito e
me dê rápida resposta, pois meu fogo e minha ansiedade já estão a me
matar”.

Disse o narrador: terminada a carta, ela a enviou por intermédio de um criado –
cuja casa da vida estava em Saturno[257] –, depois de ter enrolado a supracitada
carta no seu laço de cabelo, que era feito de fina seda iraquiana, com
extremidades de ouro vermelho e bordados egípcios floridos em seda colorida;
enrolou a carta num lenço, entregou ao criado e lhe ordenou que fizesse chegar
ao rei Amjad, e o criado foi com a carta até o rei Amjad.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

126ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o criado pegou a carta e foi com ela até
Amjad; beijou o chão diante dele e entregou-lhe o lenço com a carta. Amjad
recolheu-o, desatou o laço, examinou-o, enfiou-o dentro de sua bolsa de couro,
pegou o papel, desenrolou, leu, compreendeu seu conteúdo e soube que a sua
madrasta tinha a fornicação nos olhos e que traía o seu pai; censurou então o
tempo e disse: “Amaldiçoe Deus as mulheres traidoras e faltas de juízo e fé”. Em
seguida ficou muito encolerizado, tão encolerizado que desembainhou a espada,
voltou-se para o criado e disse: “Maldito escravo perverso! Você carrega as
correspondências da esposa de seu senhor? Você não presta, homem de sujas
atitudes!”, e o golpeou com a espada, decepando-lhe a cabeça. Depois foi até sua
mãe, madame Budœr, deixou-a a par do que ocorrera, ofendeu-a, insultou-a e
disse: “Todas vocês são uma mais repulsiva do que a outra! Deus as amaldiçoe!
Por Deus que, não fora o temor de faltar ao decoro com meu pai, eu iria até ela e
lhe deceparia a cabeça com a espada, a exemplo do que fiz com o criado dela!”.
E saiu dali encolerizado. Sua mãe, Budœr, o amaldiçoou, insultou, rogou-lhe
pragas e pôs-se a ruminar contra ele coisas ruins, perversidades e ciladas. Quanto
a Amjad, naquela noite ele dormiu fraco e perturbado. Quando amanheceu, foi a
vez de As¢ad sair para governar no trono do pai, e Æayåtunnufœs também
amanheceu debilitada em razão do que lhe informaram sobre o comportamento
de Amjad e pela morte de seu criado.
As¢ad se instalou no trono para governar, distribuir ordens e proibições; então
ele julgou, exerceu a justiça e fez concessões até as proximidades do entardecer;
enquanto isso, madame Budœr, mãe de Amjad, mandara chamar uma velha, à
qual revelara o que trazia no coração; pegou um papel e nele escreveu uma carta
para As¢ad, filho de seu marido, queixando-se de seu amor e afeto.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

127ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto juízo
e belo e louvável proceder, de que madame Budœr enviou uma carta ao rei As
¢ad queixando-se de seu amor, afeto e desejo por ele; dizia na carta:

“Meu corpo já se derreteu, e minha pele já definhou; minha paciência
diminuiu, a ansiedade e a vigília me atormentam, o sono e o repouso me
tratam mal, afligem-me as coitas de amor, a paixão, a languidez e a
debilidade; meu alento se sacrificaria por você, e meu corpo o protegeria;
minha fraqueza se prolonga, minhas preocupações se multiplicam e minha
angústia aumenta”.

E recitou e escreveu a seguinte poesia:

“O destino determinou que eu me apaixonasse por você!
Ó dono da beleza que parece o plenilúnio resplandecente!
Você superou toda a graciosidade e toda a eloquência,
e agora tem em meu coração uma bandeira tremulante!”.

Disse o narrador: em seguida ela enrolou a folha com alguns fios de seu cabelo,
perfumou-a e entregou-a à velha, ordenando-lhe que a entregasse ao rei As¢ad. E
a velha, sem saber o que o destino lhe reservava, foi até As¢ad naquele fim de
tarde em que ele já estava sozinho, entregou-lhe a carta com os fios que a
amarravam e estacou à espera de resposta.
Disse o narrador: As¢ad recolheu aquilo, leu o papel, compreendeu o seu
conteúdo, enrolou-o novamente nos fios, colocou-o no bolso de sua túnica e foi
invadido por uma cólera insuperável; seu ódio se amplificou e ele amaldiçoou as
mulheres traidoras. Em seguida, desembainhou a espada e golpeou a velha,
separando-lhe a cabeça do corpo; foi até sua mãe Æayåtunnufœs e a encontrou
debilitada em razão do que lhe sucedera com Amjad; insultou-a, ofendeu-a,
amaldiçoou-a e saiu dali, indo encontrar-se com seu irmão Amjad, a quem
contou o que lhe ocorrera com sua mãe, Budœr, e como matara a velha. Ele
disse: “Por Deus, meu irmão, que, não fosse você, eu iria agora até ela e lhe
cortaria a cabeça com esta espada”. Amjad respondeu: “Por Deus, meu irmão,
aconteceu algo semelhante comigo ontem. Quando me instalei no trono, a sua
mãe me mandou uma carta” – e lhe contou o que sucedera entre ambos – “e, por
Deus, meu irmão, não fosse você, eu iria até ela e lhe faria o mesmo que fiz ao
seu criado”. E passaram aquela noite conversando e amaldiçoando as traidoras
dentre as mulheres. Em seguida, combinaram esconder esse assunto a fim de que
seu pai, Qamaruzzamån, não ficasse sabendo de nada. Isso foi o que sucedeu às
rainhas Æayåtunnufœs e Budœr e a Amjad e As¢ad. Quanto a Qamaruzzamån...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.[258]

Na noite seguinte, que era a


128ª
Dunyåzådah disse para sua irmã ¸ahrazåd: “Por Deus, minha irmã, se você não
estiver dormindo, continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão
desta noite”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei Qamaruzzamån terminou de caçar
e voltou com seus soldados para a cidade; subiu ao palácio, concedeu licença aos
comandantes, que se retiraram para suas casas, e foi ter com suas mulheres.
Encontrou Æayåtunnufœs e Budœr deitadas na cama – ambas tinham armado
uma cilada e combinado liquidar com seus dois filhos, pois estes as haviam
desmascarado e elas temiam ficar sob a ameaça de ser humilhadas. Ao vê-las
naquele estado, o rei perguntou: “O que as atingiu?”. Nesse momento, ambas
começaram a chorar na sua frente – elas haviam passado açafrão no rosto – e
inverteram a questão, dizendo-lhe: “Ó rei do tempo, eis a recompensa que seus
filhos lhe dão! Você os criou sob suas benesses e eles cometeram traição contra
as suas mulheres, e o submeteram a uma infâmia que não se apaga!”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Qamaruzzamån perdeu a razão de tanto
ódio e disse: “Ai de vocês! Esclareçam a questão para mim!”. Budœr disse: “Seu
filho As¢ad, filho dessa aqui, há alguns dias me manda correspondência e eu lhe
digo não. Mas, quando você viajou para caçar desta vez, ele me atacou
embriagado, de espada desembainhada em punho, e com ela golpeou o meu
criado, matando-o; montou em meu peito de espada em punho, e eu tive medo de
tentar impedi-lo e ser morta tal como ele matara meu criado, e então ele me
possuiu e se satisfez em mim. Se você não resguardar os meus direitos, vou me
matar”. Em seguida, Æayåtunnufœs falou o mesmo que Budœr; cada uma delas
acusou o filho da outra, e ambas choraram diante do rei.
Disse o narrador: Qamaruzzamån ficou terrivelmente encolerizado e ordenou
que seus filhos Amjad e As¢ad fossem decapitados. Æayåtunnufœs disse: “Por
Deus, se acaso você não resguardar meus direitos, contarei tudo ao meu pai
Armånœs. O fato é que seu filho Amjad há alguns dias me manda
correspondência e eu o rejeito e proíbo, até que você viajou e ele me atacou
embriagado – até parecia que ambos haviam se mancomunado contra nós – e,
encontrando-se comigo a minha aia, desembainhou a espada e a golpeou,
decepando-lhe a cabeça; montou em meu peito com a espada pingando sangue e
eu, temerosa de rejeitá-lo e ser morta tal como ele matara a velha, fiquei calada
até que ele me possuísse e se satisfizesse em mim. ‘Cuidado com a infâmia, que
o lança na desonra.’[259] Saiba que os filhos é que são os inimigos e os
oponentes”.[260] Em seguida, as duas mulheres choraram e se carpiram;
Qamaruzzamån perdeu definitivamente o juízo e, desembainhando a espada,
avançou contra seus filhos As¢ad e Amjad. No caminho, topou com o rei
Armånœs, pai de Æayåtunnufœs, que vinha cumprimentá-lo pela volta da
viagem, e este, vendo-o de espada desembainhada em punho, dominado pela
cólera e pingando veneno, perguntou o que estava acontecendo e o motivo
daquilo tudo. Qamaruzzamån lhe informou o que haviam feito seu neto As¢ad e
o irmão dele, Amjad, e concluiu: “Não vou até eles senão para matá-los”. O rei
Armånœs disse: “É o melhor a fazer. Deus não bendiga filhos que fazem coisas
assim com o seu pai e progenitor. Contudo, meu filho, já diz o provérbio: ‘Quem
não observa as coisas não tem o destino como bom companheiro’. Eles são seus
filhos. Entrar e matá-los com suas próprias mãos, engolir o desgosto por sua
perda, e depois se arrepender de tê-lo feito? É mais apropriado enviá-los com
algum de seus mamelucos para que os matem no deserto, longe de suas vistas. Já
diz provérbio: ‘Ficar distante de quem amo é para mim melhor e mais
adequado’; ‘olhos que não veem, coração que não se entristece’”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras de Armånœs, Qamaruzzamån notou
que eram acertadas. Embainhou a espada, saiu, sentou-se no trono do reino,
convocou o chefe da guarda,[261] que era um velho entrado em anos,
conhecedor das coisas e das reviravoltas do destino, e lhe disse: “Vá agora até os
meus filhos As¢ad e Amjad, amarre-os, coloque-os em dois baús, carregue-os
num asno, monte, leve-os com eles até o deserto inóspito, retire-os dos baús e
corte-lhes o pescoço; depois, encha dois recipientes com seu sangue e traga para
mim, depressa”.
Disse o narrador: o chefe da guarda foi atrás de Amjad e As¢ad e topou com
eles no saguão do palácio, vestidos com suas roupas, as túnicas e os barretes, de
espada, ambos indo ao encontro do pai a fim de felicitá-lo por ter chegado bem
de viagem. Ao vê-los, o chefe da guarda agarrou-os e perguntou: “Meus
senhores, o seu pai me deu uma ordem. Vocês me obedecerão ou resistirão?”.
Responderam: “Não, por Deus que obedeceremos”. Então o chefe da guarda os
amarrou com seus próprios lenços, enfiou-os dentro de dois baús, carregou-os no
dorso de um asno, montou em seu cavalo e saiu da cidade para o coração do
deserto. Quando se aproximava o entardecer, chegaram a um deserto inóspito e
assustador; ele desmontou do cavalo e desceu os baús; abriu-os, tirou As¢ad e
Amjad, beijou-os e começou a chorar amargamente. Desembainhou a espada e
disse: “É muito difícil para mim fazer-lhes tamanha atrocidade. Eu lhes peço
desculpas, mas o pai e progenitor de vocês me ordenou que lhes cortasse o
pescoço”. Disseram: “Faça o que o rei lhe ordenou; nosso sangue é lícito para
você”, e se abraçaram, choraram e se despediram. As¢ad disse ao chefe da
guarda: “Por Deus, meu velho, não me faça sofrer o desgosto de presenciar a
morte de meu irmão Amjad e mate-me primeiro”. Amjad disse: “Não faça isso,
pois ele é o caçula. Mate-me primeiro, pois os meus olhos não suportarão ver o
meu irmão assassinado”. E choraram ambos, e seu choro fez também o velho
chefe da guarda chorar. Os dois irmãos se abraçaram, beijaram-se e começaram a
se despedir e a chorar. Disseram-lhe: “Ó velho, ‘foi isso que autorizou o
Alcorão, foi isso que autorizou o misericordioso’.[262] Por causa de qual delito
você vai nos matar?”. Ele respondeu: “Meus filhos, isso é muito dificultoso para
mim, mas sou um escravo que recebe ordens”. Então As¢ad disse a Amjad: “Por
Deus, meu irmão, que isso é coisa daquelas rameiras da minha mãe e da sua
mãe, como resultado do que ocorreu entre você e minha mãe e entre mim e a sua
mãe. Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso”. E,
voltando-se para seu irmão Amjad, chorou e pôs-se a recitar estes versos sobre
separação:

“Ó luz de meus olhos! Juro pelos pilares e pelas pedras
que a sua morte é inaceitável, ó minha audição e visão!
Quem dera fosse eu, no dia da desgraça, o seu resgate!
Sua figura não sumiu desde que o apartaram de minha vista”.

Disse o narrador: então Amjad disse ao chefe da guarda: “Eu lhe peço, em nome
do único, daquele que a tudo derrota, modificador da noite e do dia e criador do
astro que gira, mate-me antes de meu irmão As¢ad! Deixe o fogo de meu
coração se converter em cinzas! Não lhe ponha mais brasa!”. Então As¢ad
chorou, agarrou-se ao irmão, e disse: “Meu irmão, eu é que vou morrer antes de
você!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

129ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, se você não estiver dormindo, continue sua
história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que Amjad disse a
seu irmão As¢ad: “Eu é que vou morrer antes de você!”, e As¢ad replicou: “Eu é
que vou morrer antes de você!”. Então Amjad disse: “Se for mesmo imperioso,
abrace-me, eu o abraçarei, e morreremos juntos”. E ambos se abraçaram face a
face, mantiveram-se agarrados e disseram ao chefe da guarda: “Amarre-nos forte
com a corda, enrole nossas pernas bem apertado, amarre nossos braços,
desembainhe a espada, pegue seu cabo com as duas mãos e dê-nos um golpe
bem potente, no pescoço ou na barriga, como preferir, e morreremos os dois
juntos, sem que nenhum possa ver a morte do outro. Nosso sangue é lícito para
você”. E choraram os dois; também chorando, o chefe da guarda disse:
“Pertencemos a Deus e a ele retornaremos!”, e retirou uma tira de couro
comprida de dezoito metros[263] de extensão, enrolou-a sobre os dois, desde as
mãos até os ombros; ele chorava, bem como Amjad e As¢ad, cujas lágrimas
escorriam abundantes. Então o chefe da guarda desembainhou a espada e disse:
“Meus senhores, por Deus que isso é muito difícil para mim”, e, aproximando-se
deles, cutucou-os com a ponta da espada e perguntou: “Vocês tem alguma
necessidade que eu satisfaça antes da morte? Algum pedido que eu cumpra
depois da morte?”. Amjad respondeu: “Quanto à sua pergunta sobre se temos no
coração alguma necessidade, não temos nenhuma; quanto ao pedido, o meu é
que você me mate em cima do meu irmão ou deite-o em terra debaixo de mim,
comigo em cima. Seu primeiro golpe de espada deverá me atingir e me cortar, e
só depois atingir o meu irmão. Também o encarrego, em confiança, de entregar
uma mensagem: quando chegar a nosso pai e ele lhe perguntar: ‘O que você
ouviu deles?’, responda-lhe: ‘Seus filhos lhe mandam saudações e dizem que o
sangue deles era lícito para o senhor, que não conhecia a interioridade da
questão, se eles eram inocentes ou culpados’. E recite-lhe a seguinte poesia:

‘Fazem as mãozinhas,
ajeitam a cabeleira,
humilham os turbantes
e obrigam a engolir o desgosto’.
E emende o seguinte:

‘Acaso podes colher o relâmpago com rede
ou transportar água em uma gaiola?’.[264]

Portanto, nosso pedido é que você lhe faça chegar essa mensagem e nos deixe
morrer com nosso segredo, que guardaremos a fim de não desonrar nosso pai.
Contudo, transmita-lhe os versos e nossas saudações. Dê-me algum tempo,
velho, para que eu recite uma poesia de despedida para o meu irmão; assim que
eu concluir a recitação, golpeie-nos, mate-nos, e chega de falar conosco”. Então
Amjad olhou à direita e à esquerda, chorou copiosamente e recitou para o irmão
a seguinte poesia:

“Nos primeiros que se foram,
dentre os reis, temos lições:
quando eu vi que entradas
tem a morte mas não saídas,
e vi que para ela caminham
dos pequenos até os grandes,
tive certeza de que, fatalmente,
para onde foram os outros eu irei”.[265]

E então disse ao chefe da guarda: “Golpeie, pois foi isto que para nós
determinou o rei que a tudo derrota”. O chefe da guarda chorou, marejaram-se
de água os olhos de Amjad, que então chorou e fez um sinal para o homem, e
este se aproximou com o fígado despedaçado de tristeza pelos rapazes. Já erguia
a mão com a espada para golpeá-los quando seu cavalo se assustou, forçou as
amarras, rompeu-as e fugiu pelo deserto. O valor desse cavalo era de quinhentos
dinares, e nele havia uma sela com detalhes de ouro e enfeites egípcios
trabalhados com martelo,[266] que valia uma boa quantia de dinheiro, além de
arreios de ouro e saco de couro. O chefe da guarda jogou a espada e correu atrás
do cavalo, com o coração em chamas. Continuou em seu encalço até que o
cavalo entrou numa floresta; o chefe entrou atrás dele; o cavalo irrompeu pelos
caniços, bateu as patas no chão, perfurando-o com seus cascos; a poeira subiu e
ele relinchou e bufou. Vivia naquela floresta um leão – de aspecto horrendo,
muitíssimo perigoso e cujos olhos lançavam faíscas, cara de bravo e nariz chato
– que, ouvindo os relinchos do cavalo, deu um salto e se pôs a procurar a voz,
encolerizado, e, num piscar de olhos, já estava bem atrás do chefe da guarda, que
se voltou, viu o leão vindo em sua direção para pegá-lo e não encontrou
nenhuma escapatória, nem a sua espada; ele disse, pois: “Não existe força nem
poderio senão em Deus altíssimo e poderoso! Este é o resultado do delito de ter
trazido para cá aqueles rapazes; desde o início, esta foi uma viagem infausta”.
Foi isso o que aconteceu ao chefe da guarda.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

130ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, se você não estiver dormindo, continue sua
história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei, de que foi aquilo que ocorreu ao chefe da guarda.
Enquanto isso,[267] o calor abrasava Amjad e As¢ad, e uma violenta sede os
acometia, a tal ponto que suas línguas ficaram pendentes e eles começaram a
pedir socorro. Amjad disse a As¢ad: “Está vendo, irmão, quanta sede e
ressecamento estamos padecendo? Quem dera ele já nos tivesse matado, pois
assim descansaríamos. Veja como as coisas são predestinadas: o cavalo do chefe
da guarda fugiu tão assustado que ele largou a espada para persegui-lo, e nós
agora estamos aqui amarrados, e qualquer animal feroz que vier nos atacará e
mastigará sem que possamos resistir. Nossa morte pela espada nos seria mais
fácil do que sermos dilacerados por feras como lobos e ter os olhos lambidos por
eles”. O caçula disse: “Paciência, meu irmão! A libertação está próxima. O
cavalo do chefe da guarda não fugiu assustado senão por um motivo, que é a
manutenção de nossa vida. Só o que nos faz mal agora é a sede, que nos
aniquila”. E tanto se agitou para a direita e para a esquerda que suas amarras se
soltaram e ele soltou seu irmão Amjad. Em seguida, pegaram a espada do chefe
da guarda e disseram: “Por Deus que não partiremos sem antes ver o que
sucedeu a ele e ao cavalo e, se for possível, ajudá-lo a dominar o animal”. Então
foram atrás do chefe da guarda por meio dos rastros do cavalo, que os
conduziram à floresta. Disse Amjad: “Nem o cavalo nem o chefe da guarda
ultrapassaram essa floresta, na qual não é impossível que viva algum leão.
Espere um pouco aqui para que eu entre na floresta”. As¢ad lhe disse: “Não, por
Deus, meu irmão, que não o deixarei entrar sozinho. Não entraremos senão
juntos, você e eu. Se encontrarmos algum bem, ficaremos juntos, e se
encontrarmos a morte, morreremos juntos”, e entraram os dois na floresta, onde
encontraram o leão avançando sobre o chefe da guarda; já se aproximara, dera-
lhe uma patada e o colocara debaixo de si; o chefe da guarda fazia a profissão de
fé muçulmana, e com o olhar apontava para o céu. Ao ver aquilo, Amjad, com o
coração forte, avançou para o leão empunhando a espada do chefe da guarda;
soltou um grito contra o leão, atacou-o e derrubou-o ao solo, golpeando-o com a
espada entre os olhos com tamanha potência que ela foi parar entre as pernas do
animal. O chefe da guarda saiu de baixo do leão, olhou para aqueles por meio
dos quais Deus altíssimo satisfizera seu desejo de salvar-se da morte e viu que se
tratava dos filhos de seu patrão, os filhos cuja morte ele quisera, Amjad e As¢ad.
Lançou-se sobre eles e pôs-se a beijar-lhes as mãos e os pés, nos quais esfregou
a sua barba encanecida. Ele disse: “Ó meus senhores! Porventura seria acertado
cometer injustiça contra pessoas como vocês? Não, por Deus! Não exista quem
lhes quiser mal! Seja a minha vida o seu resgate!”. Abraçou-os, perguntou como
haviam chegado até ali, e eles o informaram que, acometidos pela sede, haviam
seguido os seus rastros[268] e chegado até ele; seu objetivo era retomar o cavalo
e os três, auxiliando-se mutuamente, pegaram-no e saíram para as bordas da
floresta, onde Amjad e As¢ad lhe disseram: “Vamos, velho! Cumpra logo a
ordem de nos matar que nosso pai lhe deu!”. O chefe da guarda respondeu:
“Deus me livre de lhes fazer algum mal, direta ou indiretamente. Porém, meus
filhos e meus senhores, eu gostaria que vocês me entregassem as suas roupas –
vou lhes dar as minhas roupas e a minha túnica para vestirem – pois irei até o
seu pai, o rei Qamaruzzamån, e lhe direi que os matei. Vocês se embrenhem pelo
país, pois as terras de Deus são vastas para viajar.[269] Por Deus que me é muito
difícil abandoná-los e cometer injustiça contra vocês”, e chorou, acompanhado
pelos dois irmãos. Em seguida, ambos despiram-se e suas roupas foram
recolhidas pelo chefe da guarda, que fez com elas duas trouxas e lhes deu de
vestir suas próprias roupas, entregou-lhes um pouco de ouro que trazia consigo,
encheu duas garrafas com o sangue do leão, jogou as duas trouxas no dorso do
cavalo, despediu-se, rogou por eles e foi para a cidade.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

131ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o chefe da guarda se despediu de As
¢ad e Amjad e seguiu para a cidade, foi até o rei Qamaruzzamån e beijou o chão
diante dele. Vendo que ele estava trêmulo e com o semblante alterado – e isso se
devia ao que sofrera com o leão –, Qamaruzzamån supôs que fosse por ter
matado os seus filhos; ficou contente e perguntou ao chefe da guarda: “Cumpriu
a tarefa?”. Ele respondeu: “Sim”, e lhe estendeu as duas trouxas de roupas dos
jovens e as garrafas com sangue. O rei perguntou: “Meus filhos lhe fizeram
alguma última recomendação?”. Ele respondeu: “Sim. Eu os vi conformados,
calculando o que lhes ocorrera; eles disseram: ‘Nosso pai está justificado pelo
destino. Assim é a calamidade. Contudo, transmita-lhe as nossas saudações e
diga-lhe: seus filhos o saúdam, dão-lhe o direito de dispor de seu sangue e lhe
dizem que compreenda os seguintes versos e reflita sobre eles:

‹Fazem as mãozinhas,
ajeitam a cabeleira,
humilham os turbantes
e obrigam a engolir o desgosto›.

Depois disseram os seguintes versos soltos:

‹Acaso podes colher o relâmpago com rede
ou transportar água em uma gaiola?›’”.

Disse o narrador: ao ouvir a resposta do chefe da guarda, o rei ficou cabisbaixo,
percebeu o sentido daquelas palavras enviadas por Amjad e As¢ad e pensou:
“Isso indica que eles foram mortos injustamente”, e vieram à sua mente os ardis
e as falsidades das mulheres. Pegou as trouxas com as roupas dos filhos, abriu-
as, contemplou-as e chorou. Remexeu no bolso da túnica de seu filho As¢ad e
encontrou um papel escrito com a letra de sua esposa Budœr, enrolado com os
fios do cabelo dela. Abriu o papel, leu-o, compreendeu seu conteúdo e descobriu
que o filho fora injustiçado. Depois remexeu nas roupas de Amjad e encontrou
em sua bolsa de couro um papel escrito com a letra de sua esposa
Æayåtunnufœs, amarrado com a sua fita de cabelo; abriu o papel, reconheceu a
sua letra e leu o conteúdo da carta; atirou-as de lado, bateu uma mão na outra e
disse uma frase que nunca decepciona quem a pronuncia: “Não existe força nem
poderio senão em Deus altíssimo e poderoso; a Deus pertencemos e a ele
retornaremos! Matei meus filhos injustamente! Ai, meus filhos!”. Estapeou-se
no rosto, queimou as roupas e ordenou que se construíssem dois jazigos numa só
casa; entrou, sentou-se entre os dois jazigos, escreveu num deles o nome de seu
filho As¢ad e no outro o nome de seu filho Amjad. Atirou-se sobre o jazigo de
Amjad, gemeu até seu coração ficar quase dilacerado e pranteou-o com os
seguintes versos poéticos:

“Ó lua! Desde que te ausentaste sob a terra,
foste chorada até pelas estrelas brilhantes!
Ó ramo depois do qual não foram tocados
os ramos de mais nenhuma outra árvore!
Coloquei-te em minhas pálpebras por temer
perder-te, até que partiste para a outra vida”.

Disse o narrador: e chorou lágrimas copiosas. Virando-se para o jazigo de As
¢ad, atirou-se sobre ele, gemeu até seu coração ficar quase dilacerado e
pranteou-o com os seguintes versos poéticos:

“Teu rosto era perfeito plenilúnio mas se ocultou;
teu talhe era ramo de chorão mas foi podado!
Ó flor! Entre as flores, tu foste a mais madura,
mas mãos criminosas te pegaram e arrancaram!
Pérola depositada em jazigo e que possuía
nas entranhas amuletos que quem cavar a terra achará!
Estando a teu lado, eu tinha inveja de mim mesmo,
mas então você morreu, e minha inveja virou tristeza!”.

Disse o narrador: e chorou lágrimas copiosas. Passou a morar naquela casa, à
qual deu o nome de Casa das Tristezas e se isolou ali para prantear os filhos – tal
como fizera seu pai ¸åhramån por sua causa –, abandonou suas esposas e não
revelou a ninguém o que ambas haviam feito – nem elas tampouco. Descobriu
sozinho que fora ele próprio que as ensinara a agir para destruí-lo. Refugiou-se
em Deus contra seus malefícios e traições, abandonou-as e se limitou a ficar no
jazigo de seus filhos pranteando noite e dia. Isso foi o que aconteceu a
Qamaruzzamån. Quanto a seus filhos Amjad e As¢ad...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

132ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que, ao se
separarem do chefe da guarda, Amjad e As¢ad partiram, atravessando terras e
desertos, comendo ervas terrestres e bebendo de regatos; à noite, enquanto um
dormia, o outro ficava de vigília, cada qual em seu turno. Avançaram nessas
condições pelo período de um mês completo, chegando ao final da caminhada a
uma montanha de pedra negra que circundava toda aquela região e bloqueava o
caminho. Sem saber até onde chegaria a extensão da montanha, na qual havia
uma trilha que apontava para o alto e conduzia ao cume, e não querendo galgá-la
por medo da sede e da falta de ervas, viraram à sua direita e caminharam,
acompanhando o sopé da montanha, durante cinco dias, mas não vislumbraram o
seu final e inverteram o percurso, retornando ao ponto inicial e caminhando à
esquerda da montanha durante outros cinco dias, mas tampouco vislumbraram
seu final. Retornaram então ao ponto inicial, exaustos de tanto andar e esgotados
pela falta de descanso, pois não estavam habituados a fadigas nem a duros
esforços. Não lhes restando senão a trilha que subia a montanha, resolveram
galgá-la. Quanto mais subiam, mais a montanha os forçava a subir, e isso durante
o dia inteiro. Anoiteceu e eles, naquela altura, disseram: “Não existe força nem
poderio senão em Deus poderoso! Nós nos destruímos!”. Exaurido, As¢ad disse:
“Meu irmão, cansei, me esgotei e renunciei à vida”. Amjad respondeu: “Força e
ânimo, meu irmão! Quem sabe Deus não nos trará alívio!”. E se arrastaram por
mais uma hora, até que escureceu e As¢ad, exausto, sentou-se e disse: “Meu
irmão, cansei e perdi a esperança”, e Amjad respondeu: “Paciência!”, mas As¢ad
se jogou no chão e chorou. Amjad então carregou-o e pôs-se a caminho no meio
da noite, ora avançando com o irmão às costas, ora parando para descansar.
Quando amanheceu, aproximaram-se bastante do cume da montanha e divisaram
uma fonte de água corrente, um pé de romã e um nicho para preces montado;
mal acreditando nisso, lançaram-se à fonte e beberam até se saciar. Em seguida
se deitaram no chão por algum tempo até que o sol raiasse, quando então se
sentaram, lavaram as mãos, os pés e o rosto, comeram daquelas romãs e
descansaram. Deixaram-se ficar por ali o dia inteiro, jantaram daquelas romãs,
beberam daquela fonte e dormiram aquela noite; quando quiseram prosseguir a
marcha, As¢ad não conseguiu em razão das dores e das pernas inchadas, e
ambos descansaram o segundo e o terceiro dia. Depois, o cume da montanha
apareceu em toda a sua extensão diante dos dois irmãos, que por ele caminharam
durante dias e noites, sendo agraciados o tempo todo por Deus altíssimo com
energia, muitas ervas e água potável. Quanto mais avançavam, mais vasto se
tornava o espaço – e isso pelo período de um mês inteiro, durante o qual eles se
fartaram de andar, de se cansar e de não dormir. Então, descortinaram ao longe
uma cidade, alegraram-se e avançaram por mais três dias. Verificando que a
cidade se situava ao lado do mar salgado, alegraram-se, agradeceram a Deus
altíssimo por aquilo e descansaram na montanha durante uma hora. Amjad disse
a As¢ad: “Meu irmão, deixe-me descer até a cidade, descobrir a que rei ela
pertence e comprar alguma comida. Assim poderemos ver em que terra estamos
e saber qual a distância que atravessamos no alto dessa montanha e quanto
perigo corremos. Se acaso tivéssemos caminhado embaixo, ladeando o sopé da
montanha, não teríamos chegado a esta parte senão após um ano. Graças a Deus
que chegamos bem”. As¢ad respondeu: “Por Deus, meu irmão, quem descerá até
a cidade sou eu; quero me sacrificar por você e não tenho condições de perdê-lo.
Se você descer e se ausentar por algum tempo, ficarei elaborando mil hipóteses.
É melhor que eu vá”, e jurou por Amjad, que lhe disse: “Vá você, meu irmão,
mas não se demore”. As¢ad levou um dinar consigo e desceu da montanha,
enquanto Amjad se sentava para aguardá-lo. Quando chegou lá embaixo,
procurou o portão da cidade, entrou e se viu diante de uma de suas ruelas, na
qual entrou e topou com um xeique que vinha da parte de cima da ruela; era um
velho entrado em anos, cuja barba branca se dividia em duas partes a partir da
altura do seu peito, parecendo corrente ou vara de prata, e lhe chegava até o
umbigo; nas mãos portava um cajado, vestia roupas opulentas e um grande
turbante. Ao olhar para ele, As¢ad, admirado com sua indumentária e modo de
vestir, saudou-o e perguntou: “Meu senhor, o caminho para o mercado é por
aqui?”. O velho sorriu em seu rosto e lhe disse: “Meu filho, parece que você é
estrangeiro”, e continuou: “Meu filho, que este lugar lhe seja confortável, vasto,
generoso e aprazível! Fique tranquilo desde já![270] Você está fazendo falta ao
seu país e tornando mais agradável o nosso! O que vai fazer no mercado, meu
filho?”. As¢ad respondeu: “Senhor, o meu irmão mais velho está comigo; deixei-
o lá atrás e vim comprar comida de sua cidade e investigar como ela é para
depois regressar até ele”. O velho disse: “Meu filho, receba a boa-nova de que
está tudo bem. Hoje eu preparei um banquete e trouxe de tudo; vieram muitos
convidados para os quais cozinhei bastante comida; distribuí alimentos e ainda
tenho em casa muita coisa gostosa. Gostaria de vir comigo para minha casa? Eu
lhe oferecerei comida e pão sem cobrar nada e lhe darei notícias sobre a nossa
cidade. Graças a Deus que você topou comigo e não com algum outro!”. As¢ad
respondeu: “Senhor, faça por mim o que estiver ao seu alcance. Quem pratica o
bem não se decepciona. Mas depressa, pois meu irmão me espera e está
preocupado comigo”.
Disse o narrador: então o velho pegou na mão de As¢ad e refez o caminho
pela ruela, sorrindo e dizendo: “Louvado seja quem o salvou do povo de minha
cidade!”. Não parou até chegar à sua casa, na qual entrou seguido por As¢ad,
que viu um amplo saguão no meio do qual havia quarenta xeiques entrados em
anos reunidos em círculo, e no meio do círculo uma fogueira acesa; o xeique que
o recebera e o grupo adoravam o fogo acima do rei todo-poderoso.[271]
Ao vê-los, As¢ad ficou aturdido, sem saber o que eram, e o xeique gritou: “Ó
meus senhores, que dia afortunado!”, e em seguida gritou: “Ó ˝a®bån!”.[272]
Apareceu então um escravo negro tão alto quanto uma montanha, parecendo um
dos sete da família ¸addåd ou um sobrevivente da tribo de ¢Åd,[273] comprido
como um poço e largo como um banco de pedra, com a cara fechada e o nariz
achatado; para resumir, sujo, chato e feio, e adeus. Não tinha outro objetivo que
não fosse acertar o rosto de As¢ad; acertou, o rapaz caiu, e ele imediatamente o
amarrou. O velho mago disse ao negro: “Leve-o até o saguão subterrâneo e deixe
minha filha Bustån e minha criada Qawåm[274] maltratarem-no dia e noite e o
alimentarem com um pão pela manhã e outro ao anoitecer, e que não exagerem
nos maus-tratos até que chegue o momento de viajarmos para o Mar Azul e a
Montanha do Fogo, quando então o mataremos ali e o ofereceremos em
sacrifício”. Então o escravo levou o rapaz.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

133ª
Disse-lhe sua irmã Dunyåzådah: “Por Deus, maninha, se você não estiver
dormindo, continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que o escravo pegou o rapaz e foi saindo com ele
de porta em porta, entrando afinal num cômodo dentro do qual puxou uma
tampa, desceu com As¢ad vinte degraus de escada, atirou-o no saguão
subterrâneo e colocou-lhe nas pernas pesadas correntes, saindo a seguir para
informar seu patrão. O xeique passou o dia com os adoradores do fogo e, quando
as visitas se retiraram, ele foi até a sua filha Bustån e disse a ela e à criada
Qawåm: “Vão até aquele muçulmano que capturei hoje e aprisionei no saguão
subterrâneo. Vão até ele, espanquem-no e maltratem-no dia e noite, cedo e tarde,
e alimentem-no com um pão e um bule de água somente. Pretendo sacrificá-lo
na Montanha do Fogo e fazer uma oferenda com seu sangue”. A criada Qawåm
disse: “Sim, patrão!”, e desceu até o rapaz naquela noite, despiu-o e lhe aplicou
dolorosa surra, até que o sangue escorreu dos seus flancos e ele desfaleceu. A
criada depositou, ao lado de sua cabeça, um pão seco e um bule de água salobra,
e se retirou. As¢ad acordou no meio da noite e, vendo-se acorrentado, espancado
e cheio de dores por causa da surra, chorou, clamou por socorro, gemeu e suas
lágrimas lhe escorreram pelo rosto. Pensou em seu irmão, na anterior condição
que gozava junto ao seu pai Qamaruzzamån, a felicidade e o reino no qual vivia
e, chorando amargamente, recitou a seguinte poesia:

“Parem diante do traçado da casa e peçam notícias nossas;
não imaginem que na casa continuamos como estávamos!
Foi nesta moradia dispersada que a nossa união se perdeu,
e tal distância deu alegria àquele que por ela nos invejava.
Fui desgraçado por uma negra, que Deus lhe denigra a face,
trapaceira, cujo coração não se compadece nem suaviza.
Quiçá Deus me alivie o prejuízo que no coração carrego,
e o alegre com aquilo pelo qual ele tanto anseia”.

Disse o narrador: em seguida, tateou com a mão pelos lados e encontrou o pão,
do qual comeu um pequeno pedaço para enganar a fome. Bebeu um pouco de
água e permaneceu acordado até o amanhecer, incapaz de dormir por causa dos
percevejos, chatos e demais insetos daquele calabouço subterrâneo. Mal
amanheceu, antes mesmo que ele se desse conta, já estava diante dele a criada
Qawåm; despiu-lhe as roupas – que se haviam empapado em sangue e grudado
na pele; sua camisa parecia uma bolacha de sangue – e as puxou de seu corpo;
sua pele saiu junto com a camisa e ele gritou: “Ai! Ai! Senhor meu Deus, se isso
for de seu agrado, dê-me mais do que você decidiu para mim! Senhor, não se
esqueça de quem me oprimiu e atirou nesta desgraça!”, e a criada se pôs a
espancá-lo, não parando até que ele desmaiou. Atirou-lhe um pão, um bule de
água salobra e, deixando-o ali, subiu, enquanto o sangue esguichava dos flancos
de As¢ad. Ao acordar – vendo-se naquela situação, com o sangue a escorrer de
seus flancos, nu, dilacerado, acorrentado, distante das pessoas que amava, jurado
de morte ritual – As¢ad chorou amargamente, lembrou-se de seu irmão e da
situação anteriormente desfrutada, reinado, felicidade, união com os parentes e
todas as demais condições; olhando a situação para a qual passara – preso,
punido, espancado, acorrentado, despido e esfomeado –, recitou os seguintes
versos de poesia:

“Devagar, ó destino! Quanto injustiças e agrides!
Quanto aos injuriados cometes reviravoltas!
Já não é tempo de chorares minha longa desdita
e te enterneceres, ó aquele de coração de pedra?”.

Disse o narrador: As¢ad ficou nessa situação durante um bom tempo, sofrendo
várias espécies de sofrimento de noite e de dia. Foi isso o que lhe sucedeu.
Quanto a seu irmão Amjad, este o esperou até a metade do dia, mas, como não
retornasse, seu coração disparou e, ressentido com a sua ausência, chorou de um
choro copioso. Em seguida, desceu da montanha com as lágrimas a lhe escorrer
pelas faces e entrou na cidade. Deus o lançou diretamente no mercado, e ali ele
perguntou a um homem sobre o nome daquela cidade, e lhe foi respondido:
“Esta é a Cidade dos Magos, porque a maioria de seus habitantes adoram o
fogo”. Perguntou sobre a Península do Ébano, e lhe foi respondido: “Por terra,
fica a um ano de caminhada sob a névoa; por mar, fica a quatro meses; depois
disso você chegará à Cidade do Ébano e a seu rei Armånœs. Hoje, seu rei é o
justo e honesto Qamaruzzamån”.
Disse o narrador: ao ouvir a menção à sua terra e a seu pai, os olhos de
Amjad começaram a escorrer e seu coração se inflamou de saudades do irmão
As¢ad. Sem saber para onde se dirigir, entrou numa loja, comprou algum
alimento e com ele entrou em outra loja, para se ocultar dos olhares das pessoas.
Fez tenção de comer, mas se lembrou do irmão e o desgosto o invadiu,
impedindo-o de ingerir mais que o mínimo para a manutenção, e mesmo assim à
força. Foi caminhar pela cidade para tentar descobrir o paradeiro de seu irmão e
procurá-lo; encontrou então um alfaiate muçulmano em cuja loja se sentou,
contou-lhe a sua história, e que ele entrara naquela cidade a fim de procurar o
irmão. O alfaiate lhe disse: “Meu irmão, se o seu irmão caiu nas mãos de algum
mago, você não tornará a vê-lo nem a se reunir com ele. Contudo, meu irmão,
você gostaria de se hospedar comigo?”. Amjad respondeu: “Sim”, e se instalou
com o alfaiate, lá permanecendo por dias, enquanto o homem o exortava a ter
paciência e o distraía. Deixou-se estar pelo período de um mês completo, durante
o qual começou a aprender costura; findo esse mês, Amjad se dirigiu até a praia,
lavou as roupas, foi ao banho, vestiu roupas limpas e, quando regressava para a
loja do alfaiate, topou no caminho com uma mulher dotada de beleza e
formosura.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

134ª
Disse-lhe sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, quando Amjad se dirigia à loja do
alfaiate, encontrou no caminho uma mulher dotada de beleza e formosura, de
maravilhosa perfeição, sem igual no talhe e na esbelteza.
Disse o narrador: quando se viram, ela retirou o véu dos olhos, lançou-lhe um
sinal com o sobrolho e depois piscou, sequestrando-lhe o coração e o juízo. Em
seguida fez-lhe um gesto que dizia os seguintes versos de poesia, tamanho era o
seu amor por ele:

“Eu te vi chegando e baixei os olhos,
como se olhasse para a luz do sol.
Eu te vi ontem mais belo do que antes,
e te vejo hoje mais belo do que ontem.
Fosse a beleza dividida em seis partes,
uma seria para José e cinco para ti”.[275]

Disse o narrador: ao ouvir as suas palavras, a mente de Amjad foi invadida pela
confiança nela, seus membros se enterneceram pela mulher e, apontando para
ela, sua língua testemunhou dizendo a seguinte poesia:

“Depois de vós, a trilha do afeto
virou a mais dificultosa de todas.
Acertou meu coração um disparo
semelhante aos fogos de Målik.[276]
Eis um pouco de minha história;
dê-me agora a sua resposta”.

Disse o narrador: ao ouvir a sua poesia, ela percebeu que ele estava apaixonado
e desejava ficar com ela; sorriu de admiração e mimo e retirou o véu,
sequestrando o juízo de Amjad, que ficou aturdido diante dela, perplexo e
atingido pelo deslumbramento. Ele disse: “Louvado seja o criador dos graciosos,
que lhes deu as vestimentas da excelência”. E recitou:

“Pelo sangue do assassinado;
por seus olhos bem pintados!
Ó meu paraíso e meu fogo!
Ó meu anelo e minha procura!
Quem suporta ficar sem ver
as suas faces formosas?
Não fosse você, quem me veria,
senão os que me repreendem?
Toda a magreza de meu corpo
deve-se à delgadeza de sua cintura”.

Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, os membros da moça se enterneceram
e, voltando-se para ele, mostrou-lhe seu sorriso e a suavidade de suas palavras.
Amjad perguntou: “Minha senhora, comigo ou com você?”.[277] Ela respondeu:
“Que Deus malfade as mulheres no que elas têm consigo! O ‘comigo’ pertence
aos homens; as mulheres não têm ‘comigo’!”.[278] Amjad abaixou a cabeça e,
querendo ficar com a jovem, mas envergonhado de ir com ela até o alfaiate,
começou a caminhar à sua frente, conduzindo-a de ruela em ruela e de ponto em
ponto enquanto ela perguntava: “Meu querido, onde é o seu lugar?”. Ele
respondeu: “Senhorita, está próximo”, e continuou caminhando até que ambos se
cansaram. Ela perguntou: “Meu senhor, onde é a sua casa?”. Ele respondeu:
“Senhorita, já chegamos!”. E, desorientado, embarafustou com a jovem por um
beco, que ele logo percebeu não ter saída; premido por suas próprias palavras,
[279] disse: “Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso”
e, olhando para o alto do beco, divisou uma casa graciosa com portão grande e
dois bancos almofadados na frente; como o portão estava trancado, Amjad
sentou-se num dos bancos, a jovem no outro, e ela lhe perguntou: “O que espera,
meu senhor?”. Ele respondeu cabisbaixo: “Espero o meu escravo, pois a chave
se encontra com ele e eu lhe ordenara que trouxesse comida, bebida, frutas e
travessas para servir enquanto eu estivesse voltando do banho. E agora eis-me
aqui já chegado e não o encontro!”, e pensou: “Quem sabe se a espera demorar
ela vai embora”. Mas a jovem, ao ouvir as suas palavras, disse: “Meu senhor,
não fique só dizendo que seu escravo se atrasou. Não é um vexame ficarmos
sentados aqui na rua?”, e avançou até a porta após pegar uma pedra para
arrebentar a fechadura. Amjad lhe disse: “Não, não! Isso não é certo! Espere!”.
Ela porém deu dois golpes com a pedra na fechadura e a quebrou. Transtornado,
Amjad lhe disse: “E o que lhe deu na cabeça para fazer isso?”. Ela respondeu:
“Ai ai, meu senhor! Qual é o problema? O lugar não é seu? Não é você o
dono?”. Ele respondeu: “Sim, mas a fechadura está danificada!”. Em seguida,
gemeu e suspirou profundamente, enquanto a jovem se antecipava e entrava na
casa. Amjad ficou com um pé dentro e outro fora, perplexo quanto ao que fazer.
A jovem se voltou para ele e disse: “Meu senhor, entre em sua casa” e,
cabisbaixo, ele respondeu: “Sim, mas o meu escravo se demora porque eu lhe
ordenei que cozinhasse, providenciasse as travessas necessárias para servir,
limpasse o mármore e arrumasse o lugar. Não sei se ele fez ou não o que lhe
determinei”. Então entraram os dois e depararam com um salão acolhedor,
amplo e gracioso, dotado de quatro aposentos com entrada abobadada de frente
um para o outro, armários, mobílias e mais alguns aposentos menores,[280]
todos equipados com materiais de seda e assentos de brocado; no centro havia
uma piscina em forma octogonal, sobre a piscina uma mesa compacta com
toalha de seda, e a seu lado uma grande travessa de cobre cheia de frutas e
substâncias aromáticas; ao lado destas um candelabro com velas dispostas em
dupla e uma moringa cheia d’água fresca, coada e purificada; no local, um baú
cheio de tecidos, tapetes, almofadas de seda e caixas trancadas; em cima dos
aposentos, uma fileira de cadeiras com trouxas de tecidos e um saco cheio de
dirhams. Era uma casa ampla e venturosa, de superfície inteiramente revestida
de mármore colorido. Ao ver aquilo, Amjad ficou aturdido, levou o dedo à boca
e pensou: “Estou morto! Pertencemos a Deus e a ele retornaremos”. Quanto à
jovem, ao ver aquele lugar, ela, louca, quase flanando de alegria, disse a ele:
“Meu senhor, por Deus, que palácio! Seu escravo limpou o mármore, preparou a
carne e providenciou frutas e utensílios para comer! Vim no lugar da outra! Ai,
meu senhor, o que tem que está aí abobalhado e parado? Se você tiver marcado
compromisso com alguma outra, não faz mal! Eu me resignarei a servir”. Amjad
riu em meio à irritação e foi sentar-se, preocupado e pensando: “Que morte
terrível eu vou sofrer!”. A jovem sentou-se ao seu lado e pôs-se a rir e a brincar,
mas Amjad estava de cara feia, preocupado, fazendo em seu íntimo milhares de
cálculos e pensando: “O que diremos ao dono da casa? Não resta dúvida de que
vou morrer!”. Então a jovem se levantou, arregaçou as mangas...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

135ª
Disse-lhe sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a jovem se levantou, arregaçou as
mangas, pegou a mesa, estendeu a toalha, começou a comer e disse: “Meu
senhor, cumpra um só desejo do meu coração e coma comigo, nem que seja um
bocadinho, pois o seu escravo se atrasou”. Amjad foi até ela e fez menção de
comer, mas, sem apetite, continuou espiando a porta enquanto ela comia, se
saciava, retirava a mesa e trazia a travessa de frutas para adoçar a boca. Em
seguida, abriu a jarra, pegou um copo, encheu-o, bebeu, encheu outro e
estendeu-o a Amjad, que o recolheu e pensou: “Ai, ai! Será que o dono da casa
não nos está observando?”, e conservou o olho pregado no saguão. Estava nessa
situação quando, de repente, chegou o dono da casa. Era um soldado mameluco,
um dos maiores do rei da cidade, e ocupava o posto de chefe do estábulo real.
[281] A casa, que lhe pertencia, era de solteiro, e ali ele descansava, se divertia e
levava quem bem lhe aprouvesse. Naquele dia, para lá enviara uma pessoa para
abastecê-la de comida e arrumá-la; de nome Bahådur,[282] era um homem
generoso, dono de liberalidade, benevolência, mérito, esmolas e dádivas.
Quando chegara à casa e vira a porta aberta, espantara-se, entrara caminhando
devagarinho, estendera a cabeça e topara com Amjad e a jovem diante da
travessa de frutas e da jarra de vinho aberta; naquele instante, Amjad acabara de
pegar a taça, com o olho voltado para a porta; ao olhar para a entrada, seus olhos
se encontraram com os do dono da casa; sua cor se amarelou e seu ser se
aterrorizou. Mas Bahådur, ao vê-lo, fez-lhe um discreto sinal com o dedo sobre a
boca, significando: “Fique quieto”. Em seguida, fez-lhe um gesto com a mão que
significava: “Venha até aqui”. Então Amjad se levantou e largou a taça. A jovem
perguntou: “Para onde vai, meu senhor?”. Ele coçou a cabeça, respondeu: “Vou
urinar” e foi descalço até a entrada. Ao olhar para ele, percebeu que se tratava do
proprietário da casa e se apressou a beijar-lhe a mão e a dizer: “Meu senhor, por
Deus! Antes de me mandar ao governador, ouça o que tenho a dizer”, e lhe
contou toda a sua história, do começo ao fim, o motivo da saída de sua terra e de
seu reino, o motivo de sua entrada naquele país – à procura do irmão –, e que ele
não adentrara a casa por opção própria, mas que fora a jovem que forçara a porta
e fizera tudo aquilo. Quando ouviu a história de Amjad e tudo por que passara, e
que ele era filho de um grande rei, Bahådur se compadeceu dele, foi
misericordioso e disse: “Ouça, ó Amjad, eu lhe juro por tudo quanto é sagrado
que, se acaso você me desobedecer, providenciarei para que seja morto”. Amjad
respondeu: “Então, meu senhor, eu não lhe desobedecerei uma só palavra”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

136ª
Disse-lhe a sua irmã Dunyåzådah: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Amjad disse ao proprietário da casa:
“Eu não lhe desobedecerei uma só palavra. Tornei-me agora alguém que foi
libertado pelos seus brios”. O homem lhe disse: “Retorne agora ao lugar em que
estava sentado, acomode-se, tranquilize-se e não se angustie com nada. Irei até
vocês – meu nome é Bahådur – e assim que eu entrar insulte-me, repreenda-me,
e pergunte: “Que moleza é essa hoje?”, não aceite as minhas desculpas, levante-
se, jogue-me ao chão e me espanque; se por acaso você sentir pena de mim, juro
por Deus poderoso que o farei perder todo o seu brio. Depois se acomode e dê as
ordens que bem entender; tudo quanto pedir, neste dia e nesta noite, você obterá;
mas amanhã tomem seu caminho. Isso é uma dignificação por você ser
estrangeiro, pois eu gosto de estrangeiros e os dignifico”.
Disse o narrador: Amjad beijou-lhe a mão e entrou com o rosto novamente
vestido de rosa e branco. Logo que entrou disse à jovem: “Senhorita, conserve-se
em seu lugar. Este é um dia bendito”. A jovem se alegrou e disse: “Meu senhor, é
espantoso de sua parte ter resolvido ser mais afável comigo”. Amjad respondeu:
“Por Deus, senhorita, que eu acreditava que o meu escravo Bahådur havia me
roubado alguns colares de gema, cada qual no valor de dez mil dinares, mas
quando fui ao banheiro me lembrei de onde estão os colares. Agora, o meu
escravo está atrasado e me é imperioso puni-lo”. Ambos se tranquilizaram,
brincaram, riram, folgaram, comeram e beberam até a aproximação do
entardecer, quando o dono da casa entrou repentinamente, de roupa trocada, com
um avental à cintura e usando sapatos grosseiros de escravo. Cumprimentou-os,
beijou a mão de Amjad, cruzou os braços atrás das costas e abaixou a cabeça,
como se reconhecesse a sua culpa. Amjad lhe lançou um olhar severo e disse:
“Ai de você, ó mais nojento dos escravos!”. Ele respondeu: “Meu senhor, estive
ocupado lavando as minhas roupas. Eu não sabia que o senhor estava aqui, pois
o nosso compromisso era durante o dia”. Amjad gritou com ele: “Está mentindo,
ó mais nojento dos escravos! Por Deus que é imperioso espancá-lo!”, e,
levantando-se, prostrou Bahådur, o dono da casa, ao solo, pegou um bastão e o
golpeou com cuidado. A jovem se levantou, tomou o bastão de suas mãos e pôs-
se a espancar o mameluco com violência, a tal ponto que, dolorido, suas
lágrimas escorreram e ele pediu socorro e rilhou os dentes. Amjad começou a
gritar com a jovem e a dizer: “Ai de você, não faça isso!”, ao que ela respondia:
“Deixe-me descarregar minha raiva para que ele não volte a falhar com você”, e
o espancou até o braço cansar. Amjad tomou o bastão de suas mãos e a
empurrou. Enquanto isso, o mameluco, sumamente dolorido, limpou as lágrimas
e passou a servi-los; arregaçou as mangas, limpou o salão, saiu, acendeu os
lampiões e as velas, foi até eles, colocou-se a postos e os abasteceu do que
necessitavam, tudo isso enquanto a jovem o insultava, ralhava com ele e o
amaldiçoava, ao passo que Amjad dizia a ela: “Deixe-o, pois ele não está
acostumado a isso”. Continuaram comendo e bebendo enquanto Bahådur
permanecia de pé a seu serviço até o meio da noite. A jovem se embriagou, e o
dono da casa dormiu no meio do salão, afundado no sono, exausto de tanto
servir, apanhar e se esforçar. Embriagada, a jovem disse a Amjad: “Por Deus,
meu senhor, pegue aquela espada dependurada e faça voar o pescoço desse
escravo. Se você não o fizer, juro por Deus que serei eu a fazê-lo”. Amjad
perguntou: “E o que lhe deu na cabeça para querer matar o meu escravo?”. Ela
respondeu: “Se você não o matar, eu o farei”. Disse Amjad: “Deixe dessa
conversa”. Ela disse: “Isso é absolutamente imperioso”, e, levantando-se,
desembainhou a espada e foi na direção de Bahådur para matá-lo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

137ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a jovem pegou da espada e Amjad lhe
disse: “Eu tenho mais direito de matar o meu escravo”; tomou-lhe a espada e
pensou: “Um homem age conosco da maneira mais digna, nos prodigaliza sua
casa, e lhe damos tratamento oposto ao seu belo proceder?”, e, erguendo a mão
até que aparecesse o negrume de sua axila, voltou-se totalmente para a direção
da jovem e aplicou um golpe que lhe separou a cabeça do corpo, e ela desabou
sobre o peito de Bahådur, o dono da casa, que despertou de seu sono, viu Amjad
com a espada na mão e a cabeça da jovem soltando sangue. Perguntou-lhe: “O
que o levou a isso?”, e Amjad respondeu: “Meu senhor, ela fez isso e aquilo” – e
lhe relatou o que ela fizera do início ao fim. Bahådur lhe disse: “Eu a teria
perdoado. Mas isso estava predestinado, e contra o destino não existe artimanha.
Não me resta senão sair com ela neste momento, antes do amanhecer”. E,
recobrando o alento, Bahådur pegou a jovem, enrolou-a em seu manto de lã,
colocou-a num fardo, carregou-a e disse a Amjad: “Você é estrangeiro e não
conhece lugar nenhum. Fique aqui e me espere até o alvorecer. Se acaso eu
voltar, será imperioso que eu faça por você todo o bem e envide todo o meu
esforço para descobrir notícias de seu irmão. Mas se o sol raiar e eu não
regressar, saiba que fui apanhado e morri; nesse caso, fique em paz nesta casa,
pois ela e tudo quanto contém se tornará sua propriedade”. Em seguida,
carregando o fardo, saiu da casa e atravessou os mercados em busca da costa
para ali atirar a jovem. Continuou caminhando, e já se aproximava da costa
quando, de repente, o governador, os almocadéns e os comissários de polícia o
cercaram.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

138ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que os comandados do governador flagraram o
dono da casa carregando a jovem morta por Amjad. Pegaram-no, reconheceram-
no como chefe do estábulo real, investigaram-no e viram que trazia consigo uma
mulher assassinada; agarraram-no e o mantiveram preso até o amanhecer,
quando então ele e seu fardo foram conduzidos até o rei, a quem informaram da
prisão. Nisso, Bahådur já estava certo de que iria morrer. O rei perguntou: “O
que se sucedeu com ele?”, e expuseram-lhe a história. Ao tomar conhecimento
daquilo, ficou extremamente encolerizado e disse: “Ai de você! Faz isso sempre?
Assassina as pessoas, atira-as ao mar e lhes rouba todo o dinheiro? Há quanto
tempo você mata?”. Bahådur abaixou a cabeça e não pronunciou palavra. O rei
gritou com ele e disse: “Ai de você! Quem matou esta jovem?”. Ele respondeu:
“Fui eu, meu senhor. Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso”. O rei se encolerizou e primeiro determinou que seu pescoço fosse
cortado mas depois decidiu que o homem fosse enforcado. O governador desceu
e ordenou ao arauto que convocasse pelas ruelas da cidade “para que se assista
ao chefe do estábulo, Bahådur, sendo enforcado ao meio-dia”. Os arautos
circularam pelos mercados e ruelas. Quanto a Amjad, assim que alvoreceu e
Bahådur não veio, ele disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus
altíssimo e poderoso. O que será que lhe aconteceu?”. Quando o sol raiou, ele
ouviu um arauto conclamando a “assistir Bahådur, que daqui a pouco será
enforcado”. Amjad chorou e disse: “Pertencemos a Deus e a ele retornaremos!
Esse homem será morto injustamente, pois fui eu o assassino. Por Deus que
assim não pode ser”. E, fechando a casa, saiu e cruzou a cidade para localizar
Bahådur, não desistindo até que o localizou; foi então até o governador, após ter
atravessado a multidão, dividindo-a em duas, e disse: “Meu senhor, não faça
nada contra Bahådur, pois ele, por Deus, é inocente! A jovem não foi morta por
outro que não eu!”.
Disse o narrador: ao ouvir suas palavras, o governador levou-o junto com
Bahådur...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

139ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o governador levou Bahådur e Amjad
até o rei e o informou do que dissera Amjad. Após examinar o jovem e o seu
estado, o rei lhe disse: “Você matou esta jovem?”. Amjad respondeu: “Sim, meu
amo”. O rei disse: “Conte-me o motivo que o levou a matá-la. Diga a verdade e
não recorra a nenhuma mentira”. Amjad respondeu: “Sim”, e continuou: “Saiba,
ó rei venturoso, que é tão espantosa a minha história e tão insólitos são os fatos
envolvidos que, fosse escrita com agulhas no interior da retina, se tornaria uma
lição para quem reflete”. E lhe contou toda a sua história, o que as esposas do pai
haviam feito a ele e a seu irmão, a perda de seu irmão, o modo como entrara na
cidade para procurá-lo, e o que lhe sucedera com a jovem na casa de Bahådur.
[283] Assombrado com aquilo, o rei lhe disse: “Saiba que você está justificado.
Portanto, meu filho, você gostaria de trabalhar comigo como vizir? Eu
investigarei para você o paradeiro de seu irmão”. Amjad respondeu: “Ó rei, ouço
e obedeço”, e então o rei deu trajes honoríficos a ele e a Bahådur, e fez de Amjad
seu vizir, dando-lhe uma bela casa, criados, servidores, tecidos, utensílios,
móveis e tudo quanto fosse necessário, remunerações e recompensas. Em
seguida, determinou-lhe que encontrasse o paradeiro de seu irmão As¢ad, mas
dele não se encontrou notícia nem se vislumbrou rastro. Com o peito opresso,
desorientado sobre o que fazer, permaneceu no vizirato com a vida transtornada
por causa do irmão, chorando-o noite e dia com poesias. Isso foi o que ocorreu a
Amjad. Quanto a As¢ad, o fato é que o mago que o sequestrara, cujo nome era
Bahråm,[284] maltratou-o dia e noite durante quase um ano, até que chegou o
feriado dos magos e Bahråm, que Deus o amaldiçoe, se equipou para viajar,
preparando um barco no mar e abastecendo-o do necessário. Em seguida, enfiou
As¢ad num baú, trancou-o e transportou-o para o barco. Mas, por uma questão
predeterminada, naquele mesmo instante Amjad, instalado em sua casa-mirante,
[285] viu o baú através da janela. Viu as coisas de Bahråm sendo transportadas
para o barco e seu coração disparou. Ordenou aos criados que lhe trouxessem
seu cavalo, que prontamente lhe foi trazido, e ele montou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

140ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o cavalo de Amjad lhe foi trazido e
ele montou junto com dois escravos; desceu até a orla marítima, parou diante do
barco do mago Bahråm, ordenou a todos que desembarcassem e que se
inspecionasse o seu conteúdo.
Disse o narrador: então todos os homens desembarcaram, o barco foi
inspecionado e nada se encontrou; os escravos saíram e informaram o resultado a
Amjad, que retornou para casa. Quando ali chegou e entrou, seu pensamento se
deprimiu, seu peito se oprimiu e seu coração se angustiou; seu olhar se fixou em
duas linhas gravadas numa das paredes da casa-mirante, que eram os seguintes
versos de poesia:

“Mesmo que o destino me atraiçoe e o esqueçam,
de meu coração e olhos vocês não desaparecem.
Vocês é que pediram nossa proximidade e contato,
e quando a paixão se firmou, nos abandonaram”.

Disse o narrador: após a leitura desses versos, a emoção e a ansiedade de Amjad
aumentaram e, pensando em seu irmão, chorou copiosamente e gravou o
seguinte sob aqueles versos:

“Eles partiram, e cada montaria que os carregou
foi seguida por meu coração até o último alento.
Queixei-me de nossa separação para a montaria,
e se ela entendesse as palavras, os teria derrubado”.

Disse o narrador: Amjad chorou um choro grosso nunca dantes chorado, e o
mundo se escureceu diante de seus olhos.[286] Saiu, montou e se encaminhou à
orla marítima; ali, o que trazia no coração se esfriou um pouco. Olhou para o
navio e suas entranhas se agitaram; mandou que fossem atrás do proprietário –
que era o mago Bahråm – e ele se apresentou. Amjad lhe disse: “Saiba que o
meu coração, minhas entranhas e meus membros me dizem que meu irmão está
com você nesse navio; mesmo que você não saiba, ele está em seu navio. Disso
não resta a menor dúvida”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Bahråm ficou amarelo mas se controlou,
fortaleceu o coração e a disposição e disse: “Meu senhor, eis aí o meu navio
diante de você”. Amjad subiu junto com um escravo carregando a cobertura da
sela; e quis o destino que ele não estendesse a cobertura senão sobre o baú em
que estava As¢ad, e foi ali que Amjad se sentou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

141ª
Disse-lhe a sua irmã: “Continue a sua história para nós, se acaso você não estiver
dormindo”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que Amjad se sentou sobre o baú no qual estava
As¢ad e ordenou que lhe mostrassem tudo quanto havia no navio, fossem
mercadorias, fardos, equipamentos ou outras coisas, e declarou que lhe era
imperioso examinar tudo. Não encontrando vestígio de seu irmão, disse: “Não
existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso!”, e Deus
altíssimo o fez esquecer de examinar o baú que tinha debaixo de si. Saiu então
do navio, montou em seu cavalo e retornou para casa.[287] Quanto ao mago
Bahråm, ele gritou com seus homens para que içassem as velas do navio e
zarpou, navegando por dias noites, até que se aproximaram da Montanha do
Fogo, só restando entre eles três dias de viagem. Mas começou a soprar um
vento fortíssimo, o mar se enegreceu, escureceu, espumou e estrondeou; agitou-
se, encapelou-se e se toldou com ondas gigantescas. O capitão se extraviou da
rota da Montanha do Fogo, indo na direção de outra terra, e viu-se diante de uma
cidade sobre a costa, com uma fortaleza inexpugnável que tinha em todo o seu
contorno janelas que davam para o mar salgado; o monarca dessa cidade era uma
mulher chamada rainha Murjåna.[288] Quando amanheceu e eles se
aproximaram da cidade, o capitão disse a Bahråm: “Nós nos desviamos da rota e
agora nos é imperioso passar por essa cidade, que pertence à rainha Murjåna. Se
você lhe disser que é mercador, ela lhe perguntará: ‘E qual é a sua mercadoria?’;
se você disser que está indo para a Montanha do Fogo, ela lhe perguntará: ‘Está
indo oferecer a vida de algum muçulmano em sacrifício?’, e você não se livrará
dela”. Bahråm disse: “Cogitei outra coisa. Pegarei esse muçulmano que está
comigo e o vestirei com uma roupa de escravo. Quando a rainha Murjåna me
questionar a respeito, direi a ela: ‘Eu trouxe escravos e os vendi. Não sobrou
comigo senão este escravo, que mantive com a tarefa de fazer o registro do meu
dinheiro e cuidar das minhas mercadorias, pois ele sabe ler e escrever’”. O
capitão lhe disse: “Muito bem calculado!”. Mal terminaram sua conversa e já
aportavam. A rainha Murjåna desceu de sua fortaleza para vê-los. Bahråm saiu
do barco, após ter vestido uma roupa de escravo em As¢ad e lhe determinado
que dissesse: “Sou escravo”; levou-o pois consigo e foi até a rainha Murjåna,
beijou o chão diante dela e lhe falou conforme planejara. A rainha Murjåna
olhou para As¢ad...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela e agradável a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

142ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a rainha Murjåna, ao olhar para As
¢ad, teve todo o seu coração tomado e lhe perguntou: “Qual o seu nome,
jovem?”. Ele respondeu: “Meu nome é escravo”, e seus olhos ficaram marejados
de lágrimas. Compadecida de ver as lágrimas lhe escorrendo pelas faces, a
rainha lhe perguntou: “Jovem, você sabe ler ou escrever um pouco?”. Ele
respondeu: “Sim”, e ela lhe estendeu uma folha na qual ele escreveu os seguintes
versos de poesia:

“Às vezes escapa o cego de um buraco
no qual despenca o lúcido clarividente;
ou escapa o ignorante de uma palavra dita
na qual tropeça o sapiente habilidoso;
ou sofre o crente para ter o seu ganha-pão
enquanto o celerado ímpio é premiado.
Qual a artimanha quando se fica perplexo?
Tal é a predeterminação de quem tudo pode”.

Disse o narrador: ao ler o papel, a rainha Murjåna se apiedou dele e disse a
Bahråm: “Venda-me esse escravo”. Ele respondeu: “Minha senhora, ele não está
à venda, pois já vendi todos os escravos e não deixei comigo senão ele”. A
rainha disse: “É imperioso que você me venda esse escravo ou o dê como
presente a mim”. Ele respondeu: “Não vendo nem dou de presente”.
Disse o narrador: a rainha se irritou e gritou com Bahråm, pegou As¢ad pela
mão e subiu com ele para a fortaleza. Depois enviou um aviso a Bahråm: “Se
você não se retirar de nosso país esta noite, ordenarei que todas as suas posses
sejam confiscadas e arrebentarei o seu barco”. Ao receber a mensagem, Bahråm
ficou muito aborrecido e disse: “Esta foi uma viagem sem benefício”. Depois foi
ao mercado, comprou tudo quanto queria e precisava; e enquanto esperava o
escurecer, disse a seus homens: “Façam seus preparativos, encham de água doce
os seus cantis e barricas e vamos zarpar no começo da noite”. Os homens agiram
conforme ele determinara e ficaram esperando anoitecer. Quanto à rainha
Murjåna, ela conduziu As¢ad até a sua fortaleza, abriu as janelas que davam para
o mar, ordenou às criadas que trouxessem comida, e ambos comeram até a
saciedade. Em seguida, ordenou-lhes que trouxessem bebida e beberam ambos,
ela e As¢ad. Deus lançou o amor pelo rapaz no coração da rainha, que o
estimulou a beber até perder a razão. As¢ad então se levantou para ir ao
banheiro; desceu até o saguão de entrada da fortaleza e ali viu uma porta aberta
da qual provinha luz; caminhou até o seu final e chegou a um elegante pomar
que continha todas as espécies de frutas e frutos; batido pela brisa e sentindo
extremo cansaço, ajeitou-se debaixo de uma árvore, urinou e caminhou até a
fonte que havia no centro do pomar; lavou as mãos, o rosto e fez tenção de
levantar-se, mas se entregou à brisa e, deitando-se de costas, dormiu.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

143ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver dormindo”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que As¢ad se deitou e dormiu enquanto
anoitecia. Isso foi o que ele fez. Quanto ao mago Bahråm, assim que anoiteceu
ele gritou para os tripulantes do navio: “Finalizem os preparativos, icem as velas
e vamos embora!”. Eles responderam: “Sim, mas espere que enchamos nossos
odres e barricas”. E os homens saíram com seus odres, caminharam em torno da
fortaleza, mas não encontraram senão o muro do pomar, no qual treparam,
desceram ao pomar, seguiram o curso da água e chegaram à fonte. Olharam por
ali e viram As¢ad deitado, totalmente desprevenido; reconheceram-no,
alegraram-se, encheram os odres, carregaram As¢ad, escalaram o muro,
retornaram depressa ao navio e disseram a Bahråm: “Alvíssaras! ‘Seu tambor
está batendo e sua flauta está tocando.’[289] Eis aqui o seu prisioneiro que a
rainha Murjåna havia lhe tomado à força”, e atiraram-no à sua frente. Ao vê-lo,
Bahråm ficou louco de alegria, distribuiu-lhes presentes e sentiu alívio. Em
seguida, deu suas ordens: os criados içaram velas e o navio zarpou rumo à
Montanha do Fogo, numa viagem ininterrupta até o amanhecer. Quanto à rainha
Murjåna, após a saída de As¢ad para o banheiro, ela o aguardou por cerca de
uma hora; como o rapaz não retornasse, ela foi em pessoa procurá-lo; revirou e
investigou, mas dele não vislumbrou vestígio. Então, acendeu algumas velas e
ordenou às criadas que o procurassem, enquanto ela descia ao saguão de entrada,
onde viu a porta do pomar aberta e deduziu que As¢ad ali entrara; entrou no
pomar e foi até a fonte, ao lado da qual viu as sandálias do rapaz e o local onde
fora vencido pelo sono. Circulou pelo pomar inteiro e dele não vislumbrou
vestígio. Continuou procurando até o amanhecer, quando se lembrou de
perguntar sobre o barco do mago; foi-lhe respondido que zarpara na noite
anterior, e ela então soube que As¢ad fora levado pelo mago; aquilo a
desagradou e encolerizou. Ordenou que se preparassem dez grandes navios, que
imediatamente foram providenciados; ela embarcou num deles, acompanhada de
criadas e de escravos vestidos e equipados para a guerra; içaram velas e ela disse
aos capitães: “Assim que alcançarem o navio do mago, terão de mim vestes
honoríficas e dinheiro; mas se não o alcançarem, irei matá-los todos, até o
último”.
Disse o narrador: então os homens acorreram aos barcos pela direita e pela
esquerda e zarparam com seus navios, viajando durante todo aquele dia e toda
aquela noite, e por mais um segundo e terceiro dias; no quarto, divisaram ao
longe o barco do mago Bahråm, o qual, naquele mesmo instante, mandara trazer
As¢ad lá de dentro e o espancava e torturava, enquanto o jovem gritava por
socorro, cheio de dores por causa da surra violenta e torturante. Então Bahråm
olhou ao longe e avistou os barcos já se aproximando e cercando-o tal como o
branco do olho cerca o preto, e, certo de que estava aniquilado, lamentou-se e
disse para As¢ad: “Ai de você! Tudo isso por sua causa!”. E, pegando-o pela
mão, ordenou a seus homens que o lançassem ao mar.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

144ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver dormindo, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer, de que o mago ordenou a seus homens que atirassem As¢ad ao mar e o
afogassem. Ele disse: “Por Deus que o matarei antes de morrer”. Seus homens
carregaram o jovem pelos pés e pelas mãos e lançaram-no ao mar, mas Deus
altíssimo permitiu – por querer sua salvação e a continuação de sua vida – que,
ao cair no mar, o jovem conseguisse nadar agitando os pés e as mãos com o resto
de suas forças.[290] Continuou a afundar, a subir, a bater as mãos e os pés, até
que Deus lhe facilitou as coisas e lhe concedeu a libertação, empurrando-o com
as ondas até que ele chegou à terra firme; subiu, sem conseguir acreditar que se
salvara. Quando se viu em terra firme, arrancou as roupas, espremeu-as,
estendeu-as e sentou-se nu, pondo-se a chorar pelas desgraças, pelas surras e
pelos espancamentos que o atingiram; chorou copiosamente e esperou que as
roupas secassem; vestiu-as e começou a caminhar sem saber para onde ir, nem
para onde retornar. Comeu ervas da terra e das árvores e bebeu da água de
regatos enquanto avançava noite e dia, e isso durante o período de dez dias,
findos os quais se aproximou de uma cidade e apressou o passo; foi colhido pelo
entardecer e depois pelo anoitecer, e então o portão da cidade se fechou na sua
cara. E, por um decreto predeterminado, tratava-se da cidade na qual seu irmão
era vizir. As¢ad retrocedeu, tomou o rumo do cemitério e das tumbas para ali
dormir. Ao chegar, dirigiu-se a uma tumba sem porta na qual entrou e dormiu,
enfiando a cara debaixo do sovaco. Na metade da noite – o destino também
determinara que o mago Bahråm, após ser cercado pelos navios da rainha
Murjåna e ter lançado As¢ad ao mar, fosse agarrado pela rainha, que o
questionara quanto a As¢ad; Bahråm então lhe jurara que não tinha notícia
alguma dele; a rainha esquadrinhara o navio e, não encontrando o rapaz, pegara
o mago e retornara com ele para a fortaleza, na qual entrou tencionando torturá-
lo e matá-lo, tamanha era a raiva que sentia pela perda de As¢ad, mas Bahråm
comprara a própria vida com todo o seu dinheiro, com o seu navio e tudo quanto
continha; a rainha se apossara de tudo aquilo e o libertara, e então ele saíra com
apenas um escravo; haviam se abastecido, tomado um navio qualquer e viajado
por dez dias, até que chegaram durante a noite à sua cidade, cujos portões
haviam encontrado trancados; dirigiram-se então ao cemitério, procuraram por
uma tumba para dormir, localizaram uma aberta[291] e nela entraram
pretendendo dormir, ali deparando com um homem adormecido e a ressonar.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

145ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver adormecido, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer, de que, ao entrar na tumba para dormir, o mago Bahråm deparou com
um homem adormecido, ressonando a sono solto e com a cara enfiada debaixo
do sovaco. Bahråm lhe ergueu a cabeça, examinou com atenção e o reconheceu.
Vendo que se tratava de As¢ad, soltou um grito estrondoso e disse: “Olé! Foi por
causa desse aí que perdi minha vida, meu dinheiro, meu barco e meus homens”.
Então amarrou-o, amordaçou-o, esperou que amanhecesse e os portões da cidade
se abrissem, e ordenou a seu escravo que carregasse As¢ad para sua casa, onde
foi recebido por sua filha Bustån e sua criada Qawåm, às quais informou tudo
quanto lhe ocorrera por causa do rapaz, e também como o atirara ao mar, como
tivera seu dinheiro e seu barco expropriados, como entrara no dia anterior no
cemitério, onde o encontrara dormindo numa tumba, e como o trouxera de volta.
Ordenou à sua filha Bustån e à criada Qawåm que o levassem ao subterrâneo e o
espancassem diariamente com mais intensidade, até que chegasse, no ano
seguinte, a época de visitar a Montanha do Fogo, quando então o levaria para lá
e o sacrificaria. Soltaram as amarras de As¢ad e o levaram para a prisão
subterrânea. O rapaz acordou após algum tempo e se viu no mesmo local onde
estivera preso antes. Bustån, filha de Bahråm, desceu até ele, despiu-o e o
espancou enquanto ele chorava e gemia em desespero, soltando berros
altíssimos. Chorou e se lamuriou das torturas, da punição e da fome que sofria, e
sua mente revolta o fez recitar a seguinte poesia:

“Não restam senão o tênue suspiro
e as pupilas de um homem pasmado”.

Disse o narrador: ao ouvir-lhe a poesia, o coração de Bustån se compadeceu de
As¢ad, seus membros todos simpatizaram com ele, e então perguntou: “Qual o
seu nome, jovem?”. Ele disse: “Você quer o meu nome hoje ou meu nome
antes?”. A jovem perguntou: “E acaso você tinha um nome antes e agora tem
outro?”. Ele respondeu: “Sim”. Ela perguntou: “E qual era?”. Ele respondeu:
“Senhorita, meu nome antes de hoje era As¢ad, e hoje meu nome é At¢as”,[292]
e chorou; a jovem também chorou por ele e disse: “Chega, As¢ad, não chore.
Por Deus que me apiedei de você. Não presuma que eu sou infiel como meu pai
Bahråm; sou muçulmana como você; converti-me secretamente pelas mãos de
uma aia e escondi de meu pai essa conversão ao islã. Agora, peço perdão a Deus
de tudo quanto fiz contra você. A partir de hoje, se Deus quiser, vou me esforçar
para salvá-lo”, e lhe vestiu as roupas. As¢ad ficou feliz, considerou aquilo um
bom prenúncio, e agradeceu a Deus altíssimo, que motivara a sua salvação.[293]
Em seguida, Bustån, filha de Bahråm, subiu e retornou trazendo uma taça de
bebida, que ofereceu a As¢ad; depois, preparou-lhe um cozido de frango e
passou a diariamente preparar-lhe cozidos, comendo com ele, dando-lhe de
beber, também diariamente, uma bebida fortificante, fazendo-o comer bem e
rezando com ele no saguão subterrâneo. Até que, certo dia, estando a jovem
Bustån parada diante da porta, eis que ouviu um arauto apregoando, seguido por
um grupo de escravos. Ele dizia: “A todos que ouvirem! O grão-vizir Amjad dá
uma ordem aos que vivem nas casas, nas moradias e nos abrigos! De acordo com
a ordem do grave grão-vizir, quem quer que esteja com seu irmão As¢ad, que é
um rapaz com as características tais e tais, ou quem quer que o faça aparecer,
receberá uma copiosa quantia em dinheiro e vestimentas honoríficas, mas quem
o esconder, e depois se descobrir que está com ele, terá sua casa saqueada, suas
mulheres presas, seu dinheiro e seu sangue tornados lícitos para o confisco do
grão-sultanato. ‘Está justificado quem alerta e é justo quem previne.’[294] Quem
não acreditar verá!”. Ao ouvir a descrição de suas características, a jovem
Bustån soube que se tratava de As¢ad e, ligeira, desceu até ele e o informou do
que ouvira. O rapaz gritou: “Ufa! Por Deus que é chegada a hora do alívio; é o
meu irmão Amjad!”. E subiu junto com a jovem.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

146ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver dormindo”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso e sensato, dono de correto parecer e belo e
louvável proceder, de que As¢ad subiu do saguão subterrâneo acompanhado da
jovem e saiu pela porta da casa, não se detendo até chegar ao seu irmão Amjad,
agarrando-se aos estribos de seu cavalo. Amjad observou-o, gritou e disse: “Meu
irmão As¢ad!”. Ambos se abraçaram e por todos os lados foram cercados pelos
mamelucos, que se apearam. Amjad e As¢ad permaneceram desmaiados por
alguns momentos, e depois Amjad lhe ordenou que montasse e o conduziu até o
rei, a quem informou a sua história. O rei ordenou que a casa de Bahråm fosse
saqueada e se pilhasse tudo quanto nela existia, e os homens foram até lá,
atacaram a casa, agarraram o mago Bahråm e o levaram até o rei, mas trataram
com muita deferência a sua filha. As¢ad relatou a Amjad as torturas às quais fora
submetido, a viagem e o que a filha de Bahråm fizera por ele; então, Amjad a
tratou com mais deferência ainda. Em seguida, Amjad relatou a As¢ad o que lhe
sucedera com a jovem, como escapara da forca e se tornara vizir. E ambos se
queixaram um para o outro dos sofrimentos passados durante a separação e o
exílio. Então o rei trouxe o mago Bahråm à sua presença e ordenou que seu
pescoço fosse cortado. Bahråm perguntou: “Ó rei de portentosos desígnios, é de
fato imperioso que eu seja morto?”. O rei respondeu: “Sim”. Bahråm perguntou:
“E quem poderia me salvar de suas mãos?”. O rei respondeu: “Você somente se
salvará de mim convertendo-se ao islã”.
Disse o narrador: Bahråm abaixou a cabeça, em seguida ergueu-a, pronunciou
os testemunhos de fé muçulmanos e se converteu pelas mãos do rei, tudo isso na
presença de Amjad e As¢ad, que assistiram à cena e ficaram felizes com a sua
conversão. Em seguida, Amjad contou a Bahråm tudo o que lhes havia sucedido,
do começo ao fim.
Disse o narrador: ao ouvir suas palavras, Bahråm ficou sumamente espantado
com aquela história e lhes perguntou: “Meus senhores, então a capital de seu pai
é a Península do Ébano, e ele hoje é genro do rei Armånœs?”. Responderam:
“Sim”. Bahråm disse: “Eu sei a respeito deles. Façam os preparativos que eu
viajarei com vocês num navio, os conduzirei até lá e farei a reconciliação entre
todos”.
Disse o narrador: ao ouvirem a menção ao pai, ambos choraram e Bahråm
lhes disse: “Não chorem, meus irmãos, pois seu destino é se unirem tal como se
uniram Ni¢ma e Nu¢m”. Amjad e As¢ad perguntaram: “E o que sucedeu a Ni
¢ma e Nu¢m?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

147ª
Disse-lhe a sua irmã: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver dormindo, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e ela
respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Amjad e As¢ad pediram a história de
Ni¢ma e Nu¢m, e Bahråm lhes disse que a história de Ni¢ma e Nu¢m era
espantosa e insólita. Amjad e As¢ad então disseram: “Por Deus, conte-nos o que
sucedeu a Ni¢ma e Nu¢m, e assim, quem sabe, você proporciona alívio aos
nossos corações e consolo às nossas preocupações”. Ele disse: “Com muito
gosto e honra”.

NI¢MA E NU¢M[295]
Eu tive notícia – mas Deus sabe mais – de que na cidade de Kœfa vivia um
homem, natural dali, que se chamava Arrab∑¢ Bin Æåtim, dono de vastos
cabedais e próspera situação, e que fora agraciado com um filho varão ao qual
dera o nome de Ni¢ma. Certo dia, estando sentado no banco dos vendedores de
escravos, ele viu uma escrava posta à venda que carregava no colo uma pequena
menina de resplandecente beleza e formosura, esplendor e perfeição. Então
Arrab∑¢ gritou para o vendedor e disse: “A quanto chegou o preço dessa jovem
escrava e de sua filha?”. O homem respondeu: “Cinquenta dinares”. Arrab∑¢
disse: “Redija então o contrato de venda, leve o dinheiro e entregue-o para o
dono dela”; pagou ao homem o valor da escrava, mais uma comissão de cinco
dinares, recebeu a jovem e sua filha e se encaminhou com elas para casa.
Quando sua esposa viu a escrava, perguntou-lhe: “Quem é essa moça, primo?”.
[296] Ele respondeu: “Comprei-a agora, mas não estou interessado senão na
filha que ela traz consigo. Saiba que, quando ela crescer, não existirá ninguém
como ela entre as filhas dos árabes, dos persas e dos turcos, nem em beleza, nem
em perfeição, nem em formosura”. A esposa perguntou: “Qual o nome da sua
filha, moça?”. Ela respondeu: “Sa¢då”. A esposa perguntou: “E o seu nome?”.
Ela respondeu: “Tawf∑q”.[297] A esposa disse: “Você acertou, pois ela a tornou
mais venturosa”, e perguntou ao marido: “Primo, que nome você dá à criança?”.
Ele respondeu: “Por que você não escolhe?”. Ela disse: “Vamos chamá-la de Nu
¢m”. Arrab∑¢ disse: “Você fez a melhor escolha”. E eles criaram aquela
pequena criança de colo Nu¢m junto com seu filho Ni¢ma, num só berço, até
que ambos alcançaram a idade de dez anos, cada qual mais belo do que o outro;
o jovem a chamava de irmã e dizia que era sua irmã, e a jovem o chamava de
irmão e dizia que era seu irmão. Então Arrab∑¢ conversou com seu filho Ni¢ma
e lhe disse: “Ela não é sua irmã, meu filho, mas sim sua escrava. Eu a comprei
em seu nome quando você ainda estava no berço. A partir de hoje, não mais a
chame de irmã”. O jovem respondeu: “Se for assim, então me casarei com ela”
e, indo até sua mãe, colocou-a a par daquilo. Ela disse: “Meu filho, ela é sua
escrava”. Então ele se dirigiu até onde estava a jovem e a possuiu. O amor por
ela aumentava dia a dia. Assim se passaram por eles os anos e os dias; não
existia em Kœfa uma jovem mais formosa, nem mais perfeita, nem mais
graciosa que Nu¢m, que lia, escrevia, jogava xadrez e tocava alaúde, no qual se
tornara muito hábil, bem como no canto e nas batidas no adufe e em todo gênero
de instrumento musical, nisso superando todos os demais de seu tempo. Certo
dia, estando ela sentada com seu amo Ni¢ma Bin Arrab∑¢, numa das reuniões
em que ambos bebiam, a jovem pegou do alaúde...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

148ª
Disse-lhe a sua irmã Dunyåzådah: “Por Deus, minha irmã, continue a sua
história para nós, se você não estiver dormindo, a fim de atravessarmos o serão
desta noite”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a jovem pegou do alaúde, cantou,
emocionou e recitou os seguintes versos de poesia:

“Se és um amo de cuja generosidade eu vivo,
ou sabre com que sacrifico os pobres-diabos,
então não terei socorro desse nem daquele,
mas só de ti, quando me oprimirem as doutrinas”.

Disse o narrador: ela pegou do adufe e, dele acompanhada, cantou e declamou
os seguintes versos de poesia:

“Juro por aquele cujas mãos me conduzem
que pela paixão enfrentarei os invejosos,
desobedecerei a meus censores e o acatarei,
abandonarei meus prazeres e meu descanso,
e cavarei em minhas entranhas para seu amor
um túmulo, sem que meu coração perceba”.

O jovem lhe disse: “Você é estupenda, Nu¢m!”. E assim, quando ele desfrutava
da vida mais agradável, eis que o governador Al¬ajjåj Bin Yœsuf A¥
¥aqaf∑[298] passava por sob a sua janela e ouviu o canto da jovem. Puxou a
cabeça do cavalo para ouvir o canto, ficou deliciado e perguntou: “A quem
pertence esta casa?”. Responderam-lhe: “É a casa de Ni¢ma, filho de Arrab∑¢”.
Al¬ajjåj retornou para sua casa dizendo: “Por Deus que tudo farei para tomar
essa jovem e enviá-la ao comandante dos crentes, ¢Abdulmalik Bin Marwån”.
[299]
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

149ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, continue a sua história para nós, se
você não estiver dormindo”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo proceder, de que Al¬ajjåj determinou-se a tomar a jovem e enviá-
la ao califa ¢Abdulmalik Bin Marwån, “pois não existe em seu palácio nenhuma
jovem como essa, e nenhuma canta melhor”.[300] Chamou a aia de seu palácio e
disse: “Velha, vá agora para a casa do filho de Arrab∑¢, encontre com as criadas
e a família dele e veja uma jovem que ele tem consigo, pois ela detém tamanha
beleza como não existe na face da terra; investigue isso tudo”.[301] A velha
respondeu: “Ouço e obedeço”, e quando amanheceu ela vestiu suas roupas de lã,
pendurou no pescoço um rosário de madeira e um lenço de lã, muniu-se de uma
bengala, uma caneca e um bracelete, e saiu dizendo: “Louvado seja Deus!
Graças a Deus! Não existe divindade senão Deus! Deus é o maior! Não existe
força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso!”. E assim prosseguiu, a
língua a Deus louvando e o coração a todos matando, até chegar à casa de Ni
¢ma, filho de Arrab∑¢, na hora da prece do meio-dia, e ali bateu à porta, sendo
atendida pelo porteiro, que lhe perguntou: “O que deseja?”. Ela respondeu: “Sou
uma pobre mulher, adoradora a Deus e ascética. Fui alcançada pela hora da prece
do meio-dia e gostaria de rezar nesta casa abençoada”. O porteiro lhe respondeu:
“Velha, esta é a casa de Ni¢ma, filho de Arrab∑¢, e não mesquita ou templo de
reza”. A velha disse: “Sei disso. Se não soubesse que esta é a casa de Ni¢ma,
filho de Arrab∑¢, eu não me permitiria sequer entrar nela. Sou aia do
comandante dos crentes, ¢Abdulmalik Bin Marwån, e saí à procura da adoração
a Deus, da peregrinação e do ascetismo”. O porteiro disse: “Nada posso fazer
nem a deixarei entrar”. Enquanto eles travavam forte discussão, Ni¢ma chegou à
sua casa. A velha o viu e se agarrou a ele, dizendo: “Meu amo, alguém como eu
ser impedida de entrar na sua casa? Pois se eu entro nas casas de comandantes e
maiorais, que me pedem bênçãos!”.
Disse o narrador: Ni¢ma riu de seu discurso, disse ao porteiro: “Deixe-a
entrar” e entrou seguido pela velha. Assim que viram Nu¢m, a velha a
cumprimentou da melhor maneira, atônita com a visão da jovem, a quem disse:
“Eu peço a Deus que a proteja, ó minha senhora, pois ele fez corresponder a sua
beleza, a sua formosura, a sua resplandecência e a sua perfeição às do seu
patrão”. Em seguida, a velha se dirigiu ao nicho de preces, prosternou-se,
ajoelhou-se, recitou versículos do Alcorão e fez rogos até que o dia se foi e a
noite chegou, quando então a jovem foi até ela e lhe disse: “Ó minha mãe, agora
descanse um pouco as suas pernas, pois o esforço a deixou cansada”. A velha
respondeu: “Minha filha, quem está voltado para a outra vida deve se cansar
nesta, pois quem não o fizer nesta vida não alcançará a posição dos grandes
virtuosos”.[302] E a jovem Nu¢m insistiu e lhe ofereceu comida dizendo:
“Coma das nossas provisões e rogue pela graça e pela piedade divina”. A velha
lhe disse: “Minha filha, você é uma jovem à qual convém a comida, a bebida e a
música. Que Deus lhe conceda a graça, pois ele disse em seu caríssimo livro:
“Somente aqueles que se arrependerem, tiverem fé e praticarem o bem”.[303]
Após ficar ao lado da velha por uma hora, a jovem foi até seu amo Ni¢ma e lhe
disse: “Meu amo, acaso não vê esta velha, sua adoração, seu esforço em adorar a
Deus? Por Deus, meu amo, peça-lhe para ficar, pois seu rosto está coberto dos
sinais da adoração a Deus e da iluminação”. O jovem respondeu: “Vou isolar
para essa velha um aposento no qual ela poderá entrar. Não deixe mais ninguém
entrar lá. Quem sabe Deus louvado e altíssimo não responda ao bom rogo que
ela lhe fizer para que nunca nos separe”. E a velha passou aquela noite rezando e
lendo o Alcorão até que amanheceu, quando então foi até Ni¢ma e lhe deu bom-
dia, bem como à jovem Nu¢m, e disse: “Por Deus, sua licença!”. A jovem lhe
perguntou: “Para onde vai, minha mãe? Meu patrão ordenou que eu lhe isolasse
um aposento para você ficar!”. A velha respondeu: “Que Deus preserve a vida de
seu patrão e eternize os benefícios que concede a ambos! Contudo, gostaria que
você ordenasse ao porteiro que não me impedisse de entrar quando eu quiser.
Rezarei nas mesquitas e em lugares nobres, e em seguida retornarei a vocês
diariamente”, e saiu da casa deixando a jovem Nu¢m a chorar por ela, sem saber
o motivo que a trouxera ali. Ao sair, a velha caminhou até chegar a Al¬ajjåj,
diante do qual beijou o chão. Ele perguntou: “O que você fez?”. Ela respondeu:
“Ó comandante, vi a jovem; mulher alguma jamais gerou jovem tão bela, nem de
tão bela voz, nem de tão belas qualidades, nem de palavras tão doces, nem de
caráter mais agradável”. Al¬ajjåj lhe perguntou: “O que você fará com ela?”. A
velha respondeu: “Trabalharei para retirá-la de lá”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

150ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e
ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que a velha aia
disse a Al¬ajjåj Bin Yœsuf: “Trabalharei para retirá-la de sua casa e fazê-la cair
em suas mãos”. Al¬ajjåj disse: “Se fizer isso, velha, você receberá de mim as
mais abundantes dádivas e os mais magníficos presentes”. A velha disse: “Quero
que você me conceda um mês de prazo”. Ele respondeu: “Aja durante esse mês”.
Então a velha passou a frequentar a casa de Ni¢ma, onde rezava, louvava
bastante a Deus e rogava por eles. A jovem e seu senhor a tratavam com
dignidade cada vez maior e lhe faziam grandes deferências, e a velha passou a
dormir com a mãe de Ni¢ma, amanhecendo e anoitecendo entre eles. Ao ver sua
adoração a Deus, sua recitação do Alcorão, suas preces e suas rezas no escuro da
noite, Arrab∑¢ e os demais moradores da casa passaram a apreciá-la
consideravelmente, até que se lhe deparou uma oportunidade: certo dia, ela ficou
a sós com a jovem Nu¢m e lhe disse: “Por Deus, minha senhora, que eu sempre
vou aos lugares abençoados nos quais Deus atende aos meus rogos; é ali que
fazemos pedidos a Deus, e gostaria que você estivesse presente comigo para ver
as preces dos pobretes, das velhas e dos jovenzinhos, e que rogue para si mesma
o que você escolher e desejar”. A jovem lhe respondeu: “Minha mãe, apenas um
dia que eu fosse já não seria suficiente para ajudá-la?”. A velha respondeu:
“Tenho medo do seu patrão”. A jovem disse: “Eu solicitarei a ele que me deixe
sair com você”, e em seguida disse à sua sogra: “Minha senhora, você pediria a
meu amo que saíssemos você e eu com a virtuosa velha para rezar e rogar junto
com os pobretes e visitar os lugares sagrados por um só dia?”. A mãe de Ni¢ma
respondeu: “Por Deus que eu apreciaria muito isso”, e, quando Ni¢ma chegou e
se instalou em seu lugar, a velha se aproximou dele e tentou beijar-lhe a mão,
mas ele a impediu e ela rogou muito por ele e saiu da casa. No dia seguinte, ela
chegou depois que Ni¢ma saiu de casa, foi até a jovem Nu¢m e disse: “Fiz
ontem três súplicas por você junto com os virtuosos e os pobretes”. A jovem
disse: “Quem dera eu estivesse com você!”. A velha respondeu: “Você não
perderá nada disso. Venha agora comigo e retorne para o seu lugar antes que o
seu patrão chegue”. A jovem disse à sogra: “Minha senhora, eu lhe peço por
Deus que me deixe sair com ela!”. A mãe de Ni¢ma respondeu: “Mas Nu¢m, eu
temo que o seu senhor saiba!”. A velha disse: “Por Deus que não a deixarei
sentar-se; ficará de pé e não demorará”, e levou a jovem com tal artimanha e
trapaça, saindo com ela.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

151ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue a sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta
noite”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a velha pegou a jovem e com ela saiu
de casa, levando-a ao palácio de Al¬ajjåj Bin Yœsuf, a quem anunciou a
chegada da jovem após deixá-la num aposento. Al¬ajjåj veio, olhou para a
jovem e contemplou uma aparência como jamais vira igual. Ao vê-lo, ela
escondeu o rosto e ele não a molestou. Chamou seu secretário e disse: “Vá, junto
com mais cinquenta cavaleiros, coloque-a num palanquim sobre um cavalo de
raça campeão, dirija-se com ela para Damasco, entregue-a ao comandante dos
crentes, ¢Abdulmalik Bin Marwån, dê-lhe esta minha carta, pegue a resposta e
apresse a volta”. Então o secretário arreou o cavalo, montou junto com seus
camaradas, colocou a jovem no dorso de uma cavalgadura – e ela estava com os
olhos chorosos e o coração triste por causa do que lhe sucedera e da separação
de seu amo Ni¢ma –, e galopou a toda velocidade até chegar com ela a
Damasco, onde pediu permissão para ver ¢Abdulmalik Bin Marwån, que lhe deu
a autorização, e ele entrou fazendo as melhores saudações. Tendo saudado e
manifestado a sua piedade, entregou-lhe a carta. Após lê-la, o califa perguntou:
“Onde está a jovem?”. O secretário respondeu: “Na entrada da cidade”.
¢Abdulmalik Bin Marwån ordenou a um dos serviçais do governo: “Vá até lá,
recolha a jovem e traga-a a mim, rápido!”, e então o criado foi até lá, trouxe-a e
entregou-a ao califa, que a conduziu a um aposento. Sua irmã lhe perguntou:
[304] “Será que o comandante dos crentes comprou uma concubina?”. Ele
respondeu: “Minha irmã, chegou-me uma carta de Al¬ajjåj afirmando que ele
comprou uma serva filha de reis no mercado de Kœfa por dez mil dinares. É ela
que chegou, minha irmã, e só atingiu esse preço porque sua beleza e sua
formosura são únicas”. A irmã lhe disse: “Que Deus lhe aumente suas benesses,
ó comandante dos crentes!”. Então o secretário trouxe a jovem Nu¢m para
¢Abdulmalik Bin Marwån, e ela foi recebida por sua irmã, que a levou para um
quarto que se singularizava por conter todas as variedades de tecidos, uma cama
de marfim cravejada de ouro brilhante, situado num local aprazível. A irmã do
califa avançou, ergueu o véu, trocou a roupa da jovem Nu¢m, examinou-a e
disse: “Não se decepcionam aqueles em cujas casas você esteja, ainda que seu
preço seja cem mil dinares”. Nu¢m lhe perguntou: “Ó madame, ó dona do rosto
resplandecente, a quem pertence este palácio, e que cidade é esta?”. Ela
respondeu: “A cidade é Damasco, e o palácio pertence a meu irmão, o
comandante dos crentes, ¢Abdulmalik Bin Marwån”, e prosseguiu: “Ó moça,
parece que só agora você ficou sabendo!”. Nu¢m disse: “Por Deus que eu não
sabia”. A irmã do califa perguntou: “E aquele que a vendeu e recebeu seu preço?
Al¬ajjåj não a informou, quando a comprou por dez mil dinares, que ele a daria
como presente ao comandante dos crentes?”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Nu¢m começou a chorar lágrimas espessas
e pensou: “Por Deus que realizaram uma artimanha contra nós. Se acaso eu falar
alguma coisa, me tornarei suspeita e ninguém acreditará em minhas palavras.
Porém, mais hora, menos hora, Deus trará o alívio”, e se sentou. Seu rosto, por
causa dos efeitos da viagem e do sol, estava com as bochechas vermelhas. A
irmã do califa a deixou por aquele dia. Quando amanheceu, veio mostrar-lhe
roupas de ouro, colares de pérola e gemas, de esmeralda e de âmbar, e não a
deixou até que ¢Abdulmalik entrou e se acomodou ao seu lado. Sua irmã lhe
disse: “Olhe para esta moça; Deus altíssimo tornou perfeita a sua imagem”.
¢Abdulmalik disse a Nu¢m: “Tire as mãos do rosto. Por Deus altíssimo,
proprietário do céu, eu sou o califa sobre a terra!”, mas ela não retirou as mãos
do rosto. Sua irmã disse: “Meu irmão, a beleza, a formosura, o esplendor e a
perfeição a impedem”. Então o califa se aproximou dela e retirou-lhe as mãos do
rosto, olhou os seus pulsos, sua perfeição e sua espessura, e seu coração foi
tomado de grande desejo por ela. Admirado com o que vira, disse à irmã:
“Minha irmã, não virei ter com ela senão após três dias, para que ela se
familiarize e adquira confiança em você. Que não fique uma única criada nem
um único criado que não a sirva e se aproxime de seu coração”, e, deixando-a,
retirou-se. Nu¢m ficou refletindo sobre sua situação, sobre a separação de seu
senhor Ni¢ma, sobre sua sogra, sobre o que lhe ocorreria, e tanto se preocupou
que foi tomada por febre e calafrios.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

152ª
Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver
dormindo, continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto
e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a febre tomou a jovem, que teve
calafrios, parou de comer e beber, ficou com a cor e a face alteradas, e perdeu
sua beleza. Informado do que lhe ocorria, o califa ficou muito pesaroso e lhe
enviou médicos, sábios e gente entendida, mas ninguém conseguiu atinar-lhe
com remédio, nem medicina, nem cura. Isso foi o que sucedeu a eles. Quanto a
Ni¢ma, filho de Arrab∑¢, ao voltar para casa ele se sentou em seu lugar e
chamou: “Ó Nu¢m!”, mas ninguém lhe respondeu. Ficou de pé por algum
tempo, sentou-se e tornou a chamar, mas nenhuma das criadas veio até ele – pois
cada uma havia procurado um lugar para se esconder –; então aquilo lhe pareceu
prolongado e, num átimo, dirigiu-se para o aposento de sua mãe, a quem
encontrou sentada com a mão no rosto. Perguntou às criadas: “Onde está a sua
patroa Nu¢m?”, mas, como ninguém lhe respondesse, calou-se por uns instantes
e perguntou: “Mamãe, onde está a minha esposa?”. Ela respondeu: “Por Deus
que a sua esposa está com alguém que a protege melhor do que eu, e esse
alguém é a velha virtuosa; foram visitar os pobretes e os xeiques respeitáveis,
mas logo retornarão”. Ele perguntou: “E ela tem o costume de fazer isso? Faz
quanto tempo que saiu?”. Ela respondeu: “Desde cedinho até este início de
tarde”. Ele perguntou: “Foi você que a autorizou?”. Ela respondeu: “Meu filho,
foi ela que escolheu sair”. Ni¢ma disse: “Não existe poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso!”, e saiu de casa completamente desnorteado; montou
em seu cavalo e foi ao chefe de polícia, a quem disse: “Mediante artimanha se
roubou uma jovem de minha casa; é imperioso que eu vá até Damasco para me
queixar ao comandante dos crentes, ¢Abdulmalik Bin Marwån”. O chefe de
polícia perguntou: “E quem a roubou?”. Ele respondeu: “Uma velha com as
características tais e tais, vestida com roupas de lã, com um rosário de
pérola[305] e uma bengala na mão esquerda”. O chefe de polícia disse: “Dê-me
a conhecer essa velha e eu libertarei a sua moça”. Ele perguntou: “E quem
conhece essa velha?”. O chefe de polícia disse: “E quem detém o conhecimento
do invisível?”, pois percebera que se tratava da embusteira de Al¬ajjåj. Ni¢ma
lhe disse: “Mas é de você mesmo que eu a estou reclamando, e entre nós existe,
em primeira instância, Al¬ajjåj”. O chefe de polícia lhe disse: “Vá até ele e até
quem você quiser”, e então Ni¢ma foi ao palácio de Al¬ajjåj.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

153ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que Ni¢ma se
dirigiu ao palácio de Al¬ajjåj – e tanto Ni¢ma como seu pai Arrab∑¢ pertenciam
aos notáveis do povo de Kœfa –, e no mesmo instante entrou o secretário
particular de Al¬ajjåj, a quem Ni¢ma deixou a par da questão. O secretário
disse: “Venha comigo até ele”. Quando chegaram diante de Al¬ajjåj, este
perguntou a Ni¢ma: “O que foi?”. Ni¢ma respondeu: “Minha questão é tal e tal”.
Al¬ajjåj disse: “Venha já o chefe de polícia!”, e este se apresentou diante dele.
Sabedor de que o homem conhecia a velha, Al¬ajjåj lhe disse: “Eu quero de
você a moça de Ni¢ma, filho de Arrab∑¢”. O chefe de polícia respondeu: “Não
conhece o invisível senão Deus altíssimo!”. Al¬ajjåj disse: “Que os cavalos
sejam montados imediatamente e se procure a moça pelas estradas; que se vá a
outras cidades para se descobrir o seu rastro!”, e, voltando-se para Ni¢ma, disse-
lhe: “Se a sua moça não for devolvida, eu lhe entregarei como compensação dez
moças da casa do chefe de polícia”,[306] e gritou com o chefe de polícia e lhe
disse: “Saia e vá procurar a moça!”.
Disse o narrador: o chefe de polícia então saiu, e com ele saiu Ni¢ma, já
desesperançado de encontrar Nu¢m e de continuar a viver – ele contava catorze
anos e o seu bigode nem sequer brotara –, e começou a chorar e a lamuriar-se.
Em seguida isolou-se num quarto escuro e se pôs a chorar, com a mãe, o pai, as
criadas e os criados diante dele também chorando e lamentando a perda da
jovem. Quando amanheceu, seu pai apareceu e disse: “Meu filho, Al¬ajjåj
elaborou uma artimanha para capturar a moça, mas você não corre perigo; de
uma hora para outra haverá o alívio, e o alívio de Deus não tarda”. Carregado de
preocupações e tristezas, Ni¢ma já não distinguia quem o visitava nem quem o
cumprimentava; ficou doente durante três meses, e sua condição se alterou:
desapareceu-lhe a beleza e sua mãe e seu pai perderam a esperança de que
sobrevivesse. Sábios e médicos foram visitá-lo, e todos disseram: “Para ele não
temos remédio que não seja o retorno da moça”.
Disse o narrador: certo dia, estando o seu pai sentado, eis que ouviu falar a
respeito de um médico-cirurgião persa sábio e astrólogo; disse então à esposa:
“Trarei esse persa para examinar meu filho; quem sabe o alívio esteja em suas
mãos”.
Disse o narrador: e imediatamente mandaram chamar o persa, que se
apresentou; Arrab∑¢ o acomodou, dignificou e lhe disse: “Examine o estado do
meu filho”. O persa disse ao rapaz: “Estenda-me a sua mão”, apertou-lhe o
pulso, examinou-lhe o rosto, riu, voltou-se para o pai e disse: “Seu filho não tem
senão o mal do amor”.[307] Arrab∑¢ respondeu: “Sim, ó sábio”. O médico
disse: “Conte-me a história dele e não me oculte nada”, e então Arrab∑¢ contou
ao persa a história da moça Nu¢m, de como haviam elaborado uma artimanha
para levá-la e do amor de seu filho por ela. O persa disse: “Saiba que essa moça
não foi elevada ao céu nem afundada na terra; na verdade, ela está em Basra, ou,
se eu estiver errado, em Damasco. Seu filho não tem outro remédio que não seja
juntar-se a ela”. Arrab∑¢ disse: “Ó irmão dos persas,[308] se você juntar o meu
filho à moça dele, eu acomodarei você à minha frente e lhe darei tal quantia de
dinheiro que chegará aos seus ombros”. O persa disse: “A questão não exige
tanto”, e, voltando-se para Ni¢ma, disse-lhe: “Você não corre perigo; fortaleça o
seu coração!”, e disse a Arrab∑¢: “Traga de seu dinheiro quatro mil dinares”, e
de imediato Arrab∑¢ trouxe dez mil dinares e os entregou ao persa, que disse:
“Resta uma só ação”. Arrab∑¢ perguntou: “E qual é ela?”. Ele respondeu: “Seu
filho tem de viajar comigo, e por Deus que não voltarei senão com a moça”.
Arrab∑¢ respondeu: “Concedido”. O persa perguntou: “Qual o nome do seu
filho?”. Ele respondeu: “Ni¢ma”, e então o persa disse ao rapaz: “Meu filho Ni
¢ma, sente-se em segurança, pois Deus irá reuni-lo à sua moça”, e Ni¢ma se
sentou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, saborosa, agradável e
boa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

154ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que Ni¢ma se sentou. O persa lhe disse: “Ânimo
e disposição! Daqui a alguns dias partiremos a esta hora de Kœfa. Coma e beba a
fim de ficar forte para a viagem”, e Ni¢ma se pôs a comer, a beber, a encher o
coração de expectativa e a se reanimar pelo período de oito dias, durante os
quais o persa comprou tudo quanto precisava e necessitava de joias, cavalos,
camelos e outras coisas para a viagem. Ni¢ma se despediu da mãe, do pai e de
todos os moradores da casa, e viajou com o sábio persa até Mossul, chegando em
seguida a Alepo. Não encontrou nenhuma notícia da moça. Então o persa viajou,
acompanhado de Ni¢ma, para Damasco, onde ficou três dias, alugou uma loja,
que encheu de boas mercadorias, utensílios chineses, cobertas de prata,
prateleiras de chapas metálicas, aparelhos de qualidade e peças valiosas; diante
dele, colocou travessas sobre as quais havia garrafas contendo toda espécie de
pomada, toda espécie de beberagem e taças de cristal; na frente de tudo, pôs
joias e vestiu a indumentária dos sábios. Fez Ni¢ma vir para a loja vestido com
túnica de Báctria, conjunto bizantino tecido a ouro, calções e um avental de seda
de Dab∑q[309] amarrado à cintura. O médico persa se sentou e disse: “Ó Ni
¢ma!”. Ele respondeu: “Aqui estou, amo!”. O persa disse: “Você, a partir de
hoje, é meu filho. Por Deus, muita atenção! Não me chame senão de pai, e eu o
chamarei de filho”. Ni¢ma respondeu: “Sim, amo”. Toda a população de
Damasco acorreu ao estabelecimento do persa para vê-lo e apreciar o local e a
qualidade de suas mercadorias, ocupando-se também com Ni¢ma, sua beleza e
formosura e a meiguice de seu discurso. O médico pôs-se a falar com ele em
persa, e nessa língua Ni¢ma lhe respondia, enquanto as pessoas compravam
mercadorias. Depois, ele passou a lhes prescrever remédios; traziam-lhe urinóis
que ele examinava e dizia: “O dono desta urina sofre disso e daquilo”; então o
adoentado dizia: “Meu amo, avie as coisas de que preciso”, e o persa dizia: “Ni
¢ma, avie isto e aquilo”. Passou, portanto, a satisfazer as necessidades das
pessoas, acertando e nunca errando. Virou unanimidade entre a população de
Damasco, as notícias a seu respeito se espalharam pela cidade, seu nome chegou
às casas dos venturosos, dos comandantes e dos maiorais, e as pessoas passaram
a procurá-lo, provenientes de todo rincão e lugar. Certo dia, estando ele instalado
no estabelecimento, veio no meio do dia uma velha montada num asno negro,
com equipamentos de prata branca e correia cravejada de ouro; ao chegar, parou
diante do estabelecimento puxando a cabeça da montaria e fez-lhe sinal para que
pegasse em sua mão. Ele se levantou, foi até ela, deu-lhe boas-vindas, pegou em
sua mão e ela se apeou e sentou ao seu lado por algum tempo. Em seguida,
voltou-se para ele e perguntou: “É você o médico persa recém-chegado da terra
do Iraque?”. Ele respondeu: “Sim, madame”. Ela disse: “Saiba que tenho uma
filha, e ela tem uma doença que lhe provoca dores há algum tempo”, e lhe
mostrou um urinol que o persa recolheu e examinou, perguntando a seguir para a
velha camareira: “Minha senhora, qual é o nome dessa jovem? Preciso dele para
calcular seu astro regente e qual a hora adequada para ingerir o remédio”. Ela
respondeu: “Saiba, ó irmão dos persas, que o nome dela é Nu¢m”; ele se pôs a
fazer cálculos no estrado de areia e disse: “Saiba, minha senhora, que não
poderei prescrever nenhum remédio para a dona desta urina enquanto não souber
em que terra ela foi criada, para avaliar as diferenças de atmosfera. Diga-me em
que terra se criou essa moça e qual a sua idade”. A velha respondeu: “Ela tem
cerca de catorze anos e se criou na terra de Kœfa, no Iraque”. O persa perguntou:
“E há quanto tempo ela está nesta cidade?”. A velha respondeu: “Poucos meses”.
Ele disse: “Você falou a verdade” – Ni¢ma, ao ouvir o nome de Nu¢m,
desmaiara. O persa disse: “Serão adequados para ela os remédios tais e tais e os
alimentos tais e tais”. A velha disse: “Avie para mim a receita do que é adequado
para ela, com a bênção e o auxílio de Deus”, e jogou dez dinares sobre o banco.
O sábio olhou para Ni¢ma e lhe ordenou que aviasse os remédios – enquanto a
velha olhava para o rapaz e dizia: “Que Deus o proteja! Você possui uma
fisionomia inteiramente formosa!”, perguntando a seguir ao persa: “Ó irmão dos
persas, ele é seu filho ou seu escravo?”. Ele respondeu: “Meu filho, amigo da
minha alma!”. Ni¢ma aviou os remédios, enrolou-os, escreveu no embrulho o
seu nome e enfiou no meio deles uma simpática folhinha na qual se escrevera
com tinta de ouro os seguintes versos poeticamente arranjados:

“É de Deus a lembrança do tempo convosco,
em boas obras, tempo digno de ser lembrado.
Foi ali que o contato, já maduro, pude colher,
enquanto a delícia da vida era um galho verde.
Amados, tivesse eu nas mãos meus desígnios,
não ficaria cercando vossa casa atrás de notícias”.
Disse o narrador: e assim ele enfiou a folha no meio das coisas, selou a caixa,
escreveu sobre ela “Bin Arrab∑¢ de Kœfa”, beijou-a e estendeu-a para a velha,
que a pegou, despediu-se do persa e tomou o rumo do palácio de ¢Abdulmalik
Bin Marwån. Ao entrar, atravessou-o até a jovem Nu¢m, depositou o remédio à
sua frente e disse: “Saiba, madame, que chegou à nossa cidade um médico persa
que eu nunca vi mais clarividente nem mais conhecedor das coisas e das
doenças. Reclamei das suas dores e ele as reconheceu, e em seguida ordenou ao
seu filho que lhe aviasse os remédios. Por Deus que não existe em Damasco nem
em suas províncias ninguém mais formoso nem mais bonito que ele e que seu
filho, nem ninguém possui um estabelecimento igual ao dele”. Nu¢m pegou o
remédio e encontrou o nome de seu amo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

155ª[310]
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e
ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto e
louvável parecer, de que a moça Nu¢m pegou o remédio e leu o nome de seu
amo, que ali estava escrito. Ao vê-lo, sua cor se alterou e ela pensou: “Não resta
dúvida de que meu amo é o dono do estabelecimento e aqui chegou à minha
procura, atrás de notícias minhas”. E disse à velha: “Descreva para mim o jovem
filho do persa”. Ela disse: “Seu nome é Ni¢ma e sobre sua sobrancelha direita há
um sinal; veste roupas ricas e bonitas, tem beleza resplandecente e perfeita
formosura”. A moça disse: “Dê-me o remédio, em nome de Deus e pela saúde
que provém de Deus”, e, pegando o remédio, ingeriu-o sorrindo e disse:
“Remédio abençoado!”; reanimou-se e alegrou-se. Ao ver aquilo, a velha disse:
“Este é um dia abençoado!”. Nu¢m disse: “Ó camareira, quero algo para comer e
beber”. A velha então ordenou às criadas: “Sirvam a mesa, com todas as espécies
de comida”, e eis que ali entrou ¢Abdulmalik Bin Marwån, viu a jovem
comendo e se alegrou. A camareira lhe disse: “Ó comandante dos crentes, nós o
felicitamos pela boa saúde da moça, e isso se deve ao fato de que chegou à nossa
cidade um médico que nem Hipócrates nem Galeno poderiam sequer servir. Por
Deus que nunca vi maior conhecedor de doenças e moléstias que ele. Com um só
remédio minha ama Nu¢m sarou e retomou a boa saúde”. O comandante dos
crentes disse: “Ó camareira, tome estes mil dinares, faça-os chegar a ele, e cuide
você mesma da questão dos medicamentos dela”, e saiu contente com a
recuperação da moça. A camareira foi até o estabelecimento do persa, a quem
disse: “Meu amo, estes são mil dinares do amo da moça para a qual você
prescreveu remédios ontem. Saiba que ela é moça do comandante dos crentes,
¢Abdulmalik Bin Marwån”, e lhe estendeu uma folha em que Nu¢m escrevera; o
persa recebeu-a e entregou-a a Ni¢ma, que, ao ver a escrita, reconheceu a letra,
soltou um gemido e permaneceu desmaiado por uma hora; acordou, olhou a
carta e verificou que nela se escrevera o seguinte:

“Da jovem espoliada de seu favor,[311] enganada, pela desgraça de seu
astro regente e separada do amado de seu coração; ela é Nu¢m,
anteriormente chamada Sa¢då, filha de Tawf∑q. A carta que vos escrevo
excitou uma alma que se eleva e provocou, nas entranhas, dores crescentes;
não descanso em razão da distância de meu lar, e de tanta preocupação e
reflexão recito e digo estes versos de poesia:

‘Ó aquele cujas histórias excitaram-me a mente,
trago exausto o coração, débil e exangue o corpo;
as lágrimas têm histórias que parecem encadeadas
dos dois livros de ¬ad∑¥,[312] por suposição e memória.
Abandonaste-me refém das saudades e deprimida;
nenhum outro homem, no entanto, me apeteceu’”.

Disse o narrador: ao ler a folha, os olhos de Ni¢ma soltaram lágrimas
abundantes, e a camareira perguntou ao persa: “Ó meu amo, o que faz o seu filho
chorar? Que Deus nunca lhe faça os olhos verterem lágrimas!”. O persa lhe
respondeu: “Ó minha mãe, como ele não choraria? Estou resolvido a dar-lhe
ciência de coisas que gostaria que você mantivesse em sigilo. Saiba que a moça
pertence a ele, que é o nosso amo Ni¢ma Bin Arrab∑¢ de Kœfa. Foi por causa
dele que ela se recuperou, e foi também por causa dele que, antes, ela adoecera.
O único problema que ela tem é ele. Portanto, ó camareira, ó madame, leve o
saco com os mil dinares que você trouxe, e terá de mim mais ainda. Olhe para
ele com os olhos da misericórdia e da piedade. Ele e eu somos hoje seus
prisioneiros; a reparação do caso desse rapaz está em suas mãos”. A velha
perguntou a Ni¢ma: “Você é o patrão daquela moça?”. Ele respondeu: “Sim”.
Ela disse: “Você fala a verdade, pois por sua causa ela se derreteu de tanto
pensar e suas lágrimas não secam”. Então Ni¢ma lhe relatou tudo quanto lhe
ocorrera, tudo o que sofrera da parte da velha que se fizera de virtuosa, e que ele
não saíra em viagem senão para procurá-la. A velha lhe disse: “Meu rapaz, você
não corre perigo. Eu serei o motivo de sua união com ela, ainda que tenha de
morrer”. E o persa disse...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

156ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e
ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que o persa disse
à camareira: “Que Deus torne boa a sua ajuda, se encarregue de compensá-la, e
faça magnífica a sua recompensa. Tenha piedade de sua juventude e beleza, e
veja como foi atingido. Tenha piedade de minhas cãs, e também daquela moça e
da sua juventude”. A velha disse: “É meu compromisso”, e, montando em seu
asno, retornou imediatamente, foi ter com a moça, olhou-a no rosto, riu e disse:
“Não a censuro por ter chorado e adoecido em razão de seu amor por seu amo Ni
¢ma Bin Arrab∑¢ de Kœfa”. Nu¢m perguntou: “Minha mãe, já se desvendou a
preocupação e a tristeza por seu intermédio, pois quem salva a vida de alguém ‘é
como se salvasse todas as vidas’,[313] sobretudo um jovem e uma jovem”. A
camareira disse: “Por Deus que irei reuni-los, mesmo que com isso minha vida
se vá”. Então, quando amanheceu, foi até Ni¢ma e disse: “Alvíssaras! Estive
ontem com a sua moça e notei que a paixão dela é muitas vezes maior que a sua.
Embora o comandante dos crentes deseje ficar com ela e ouvi-la cantar, e já
esteja impacientado, ela tem justificado o adiamento com as doenças e
enfermidades, tudo isso por você. Se tiver força de coração e controle do frenesi,
eu os reunirei após ter colocado a minha vida em risco”, e prosseguiu: “Ó Ni
¢ma, saiba que são agora quatro almas envolvidas – a minha, a sua, a do persa e
a da moça –, e esta noite prepararei uma artimanha e traçarei um plano para que
você entre no palácio do comandante dos crentes e se reúna à moça, uma vez que
ela não pode sair do local onde se encontra”. Nesse momento Ni¢ma disse à
velha: “Deus lhe conceda magnífica recompensa”. A velha se despediu, foi até a
moça e disse a ela: “Seu amo Ni¢ma está quase perdendo a vida por causa da
paixão e do desejo de estar com você. O que me diz?”. Ela respondeu: “Também
eu, a minha vida está quase partindo!”. Nesse instante a velha pegou a caixa de
pintura[314] com adornos e colares, sapatilhas, joias e levou tudo até Ni¢ma. Já
havia transcorrido um terço da noite; bateu à porta, entrou, pintou-lhe as mãos,
enfeitou-o, escureceu-lhe os olhos, alisou-lhe o cabelo, vestiu-o com túnica
perfumada, manto, calções, touca aromatizada, véu iemenita, colares cravejados
de pedras preciosas, chocalhos de ouro, arrumou-lhe o cabelo, alisou-lhe as
madeixas das têmporas e da fronte e ele ficou como o plenilúnio na noite em que
se completa, deixando pasmada a mente de quem o via; calçou-lhe por fim
pantufas de fios de ouro. Quando terminou de vesti-lo e o contemplou naquele
estado, a camareira lhe disse: “Por Deus que você é melhor do que a moça.
Levante-se agora, caminhe, balance o quadril e segure os ombros” – e pôs-se a
instruí-lo. Quando ele entendeu tudo, ela lhe disse: “Amanhã, se Deus quiser,
estarei aqui e o introduzirei no palácio do califa, onde você enfrentará
dificuldades da parte dos secretários, criados e porteiros. Fortaleça o coração e a
disposição, abaixe a cabeça, feche os olhos e não fale com ninguém. Se você
estiver passando comigo e algum criado se interpuser, eu responderei por você,
que irá manter a cabeça baixa e entrar. Quando atravessar os portões e for até o
fim, você deparará com dois corredores contendo aposentos, uma fila à sua
direita e outra à sua esquerda; tome a esquerda, conte cinco aposentos e entre no
sexto, que é o da sua moça Nu¢m. Entendeu o que eu lhe disse?”. Ele respondeu:
“Ouvi e compreendi”. A velha então o deixou e saiu; quando amanheceu, ela foi
até Nu¢m e disse: “Fui até o seu amo, pus-lhe os adereços da corte, enfeitei-o da
melhor maneira e ele ficou parecendo o plenilúnio perfeito; sua beleza e
integridade são superiores. Hoje eu pretendo introduzi-lo aqui. Veja lá como
você vai estar”.
Disse o narrador: a moça agradeceu-lhe por aquela ação e a presenteou com
uma boa quantia de dinheiro. Em seguida a velha deixou-a, saiu, pegou as roupas
de que necessitava e foi para a casa em que Ni¢ma estava, vestiu-o após colocar-
lhe um véu e lhe disse: “Fortaleça o coração”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

157ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a velha disse a Ni¢ma: “Fortaleça o
coração e não vacile”. Ele respondeu: “Ouço e obedeço”, e foi levado pela velha,
que com ele rumou para o palácio, chegando então aos corredores, onde o
encarregado da portaria lhe perguntou: “Quem é ela, mãezinha?”. A velha
respondeu: “Nu¢m, a moça do califa, pretende adquirir uma criada e me
recomendou que cuidasse disso. Eis aqui uma criada que lhe levo para ser
examinada; se for de seu agrado, ela a comprará; do contrário, a devolverá ao
dono”. Então o eunuco disse: “Em nome de Deus, pode passar”, e a velha
passou, não cessando de introduzi-la de uma porta a outra até chegar à última
porta, quando foi parada pelo chefe da guarda especial, que perguntou: “Quem é
essa jovem?”. A camareira respondeu: “Nossa patroa Nu¢m pretende comprá-
la”. O guarda disse: “Ó camareira, ninguém passa por aqui sem autorização do
comandante dos crentes. Leve-a de volta, pois não a deixarei entrar. A
preservação da minha cabeça depende disso”. A camareira disse: “Ó grão-
senhor! Ponha juízo nessa cabeça! Nu¢m é moça do comandante dos crentes,
que está enrabichado por ela. Embora ela esteja se curando, o califa ainda mal
acredita em seu restabelecimento. Não impeça esta criada de entrar; do contrário,
Nu¢m pode sofrer alguma recaída. Por Deus que, se isso acontecer, ela própria
cuidará para que seu pescoço seja decepado! Entre, moça, não lhe dê ouvidos
nem conte à rainha que o guarda a proibiu de entrar. Ai, meu Deus, ai, meu
Deus!”. Ni¢ma avançou de cabeça abaixada, olhou os corredores e fez tenção de
entrar à esquerda mas entrou à direita, fez tenção de contar cinco aposentos mas
contou seis e entrou no sétimo, e o lugar que ali viu era forrado de brocado, com
cortinas marcadas com ouro e prata penduradas pelas paredes, incensórios de
aloés, almíscar e âmbar, colchões de brocado e várias espécies de seda iraquiana;
no ponto mais alto do aposento havia um colchão no qual ele se acomodou, dali
contemplando um local magnífico e de suma importância, sem saber o que o
destino lhe reservara às ocultas, pois ele presumia não estar senão no aposento
da moça Nu¢m. Enquanto estava ali sentado, pensando na sua vida, eis que a
irmã do califa adentrou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

158ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que repentinamente a irmã do califa adentrou o
aposento acompanhada de sua criada. Ao ver Ni¢ma sentado no colchão da parte
mais elevada do local, ela se aproximou e perguntou: “Quem é você, moça?
Quem a introduziu no meu quarto sem permissão?”. Mas ele não lhe respondeu
uma só palavra. Ela disse: “Moça, se for uma das concubinas do comandante dos
crentes, e ele tiver brigado com você, eu falarei com ele a seu respeito e os
reconciliarei”. Mas ele não respondeu nem reagiu. Então ela disse à sua criada:
“Criada, posicione-se diante da porta e não deixe ninguém entrar”; aproximou-se
de Ni¢ma, ergueu o véu de seu rosto e, estupefata com sua beleza e formosura,
disse: “Jovem, identifique-se para mim! Qual é o seu nome? Qual a sua história?
Quem a conduziu até aqui? Eu nunca a tinha visto neste palácio”, mas Ni¢ma
nenhuma resposta lhe deu. Irritada, a irmã do califa suspeitou, pôs a mão no
peito de Ni¢ma e, não encontrando vestígio de seios, ficou ainda mais cheia de
suspeitas. Ni¢ma enfim disse: “Minha senhora, sou seu escravo. Proteja-me, pois
é a você que peço socorro, e a seus pés me arrasto pedindo perdão, indulto de
meu delito e desculpa por minha transgressão!”. Ela disse: “Não há perigo.
Quem é você e quem o trouxe até o meu aposento?”. Ele disse: “Ó rainha, meu
nome é Ni¢ma Bin Arrab∑¢ de Kœfa. Coloquei minha vida em risco por causa
da minha moça Nu¢m, que foi enganada e capturada; foi por causa dela que
coloquei a minha vida em perigo e arrisquei a minha alma”, e contou a ela o que
lhe ocorrera e à sua moça, e como fora dele levada mediante artimanha – e
repetir não vai trazer nenhum benefício. A irmã do califa lhe disse: “Não há
perigo”, e chamou por sua criada, a quem disse: “Vá até o aposento de Nu¢m e
diga-lhe: ‘Minha patroa a convida para ir visitá-la; hoje ela será sua anfitriã’”. A
criada foi para o aposento de Nu¢m. A camareira também fora até Nu¢m e
perguntara: “Ni¢ma já chegou?”. Ela respondera: “Não, por Deus!”. A camareira
dissera: “Então ele entrou em outro aposento e se perdeu”. A jovem Nu¢m
dissera: “Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso!
Aproxima-se a morte de todos nós! A destruição de todos nós!”, e sentaram-se
ambas pensando no que fazer. Enquanto estavam nisso, eis que entrou a criada
da irmã do califa, cumprimentou Nu¢m e lhe disse: “Minha patroa a convida a ir
até seu aposento, para que ela seja hoje a sua anfitriã”. Nu¢m respondeu: “Ouço
e obedeço”. A camareira disse: “Seu patrão deve estar com a irmã do califa,
talvez desmascarado e delatado, a não ser que ela o perdoe”. A jovem rumou
imediatamente para lá e entrou. A irmã do califa lhe disse: “O seu amo está
comigo. Ele se perdeu e entrou em meu aposento. Não existe risco nem temor”,
e Nu¢m lhe beijou a mão e rogou por ela, avançando em seguida para o seu amo
Ni¢ma, o qual, ao vê-la, levantou-se, abraçou-a, também ela o abraçou, e caíram
ambos desmaiados. Ao acordarem, a irmã do califa lhes disse: “Sente-se, Nu¢m,
e vamos planejar algo para nos livrar desta situação em que caímos”. Ela disse:
“Minha ama, isso está em suas mãos”. Ela disse: “Por Deus! No que depender de
mim vocês não sofrerão dano algum”, e ordenou à sua criada: “Vá nos trazer
comida e bebida”. Depois, sentaram-se os quatro para comer e beber – Ni¢ma,
Nu¢m, a rainha[315] e sua criada. Comeram e beberam até se fartar e saciar, e
então se sentaram para beber; os copos circularam entre eles e aumentaram a
alegria e a felicidade. Ni¢ma disse: “Ó rainha, depois disso nada mais me
importa”. Ela perguntou: “Jovem, você ama Nu¢m?”. Ele respondeu: “Minha
ama, foi a paixão por ela que me fez chegar ao ponto de arriscar a vida”. Então a
rainha perguntou: “Ó Nu¢m, você ama Ni¢ma?”. Ela respondeu: “Ó rainha
poderosa, foi por ele que meu corpo se derreteu, se apagaram os meus traços, me
debilitei e se alterou o meu estado”. A rainha disse: “Por Deus que vocês são
amantes sinceros! Agora, Nu¢m, cante, reconforte-se e beba”. Nu¢m disse:
“Tragam-me o alaúde”, e este lhe foi trazido; ela o pegou, experimentou-lhe as
cordas, afinou-o e deixou as mentes perplexas ao tocar com mestria, entoando a
seguinte poesia:

“Causas nos corações pensamentos secretos,
que se escrevem e dobram, mas não se publicam.
Ó tu, que humilhas a lua radiante com tua beleza,
e cujos encantos imitam os da manhã nascente!
E eu me derreto em brasa no paraíso de teu rosto,
e morro de sede por tua saliva paradisíaca”.[316]

Disse o narrador: a rainha sorveu da taça, encheu-a e entregou-a ao rapaz,
ordenando a Nu¢m que cantasse, e a jovem, muito contente, entoou a seguinte
poesia:

“O plenilúnio te imitaria, não lhe fosse custoso,
e o sol seria como tu, não tivesse ele o ocaso!
Ó aquele a quem a beleza fez cerco!
É do teu olhar que os relâmpagos roubam o brilho!
Concede-me algum desejo, pois agora me possuis,
e o livre, quando possuído pelo nobre, se apaixona”.

Disse o narrador: então a rainha tornou a sorver de uma taça, encheu-a,
depositou-a diante de Nu¢m e lhe disse: “Cante por esta taça”, e ela entoou a
seguinte poesia:

“Tristeza e aflição no coração assentadas,
terrível ardor nas entranhas indo e vindo,
visível languidez no corpo, aos poucos surgindo.
São tantas preocupações que, suponho, debilitou-se.
Até quando, até que ponto vai durar esta paixão,
este sofrimento assentado sobre o amante?”.

Disse o narrador: então Nu¢m sorveu da taça, encheu-a e ofereceu-a à criada. A
rainha disse: “Ó Nu¢m, a taça já está na mão da minha criada! Não vai cantar?”.
A jovem respondeu: “Ouço e obedeço”, e tocou o alaúde entoando a seguinte
poesia:

“Ó aquele a quem entreguei minha alma para a tortura,
e de cujas mãos pretendi livrá-la, mas não suportei!
Tenha dó de um sopro de vida que você conhece,
antes que morra – pois este é o seu último alento”.

Disse o narrador: então a rainha bebeu, e eles se mantiveram na maior alegria e
felicidade. Em meio a isso, eis que entrou o comandante dos crentes.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

159ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e louvável proceder, de que o califa entrou quando eles estavam em
estado de grande satisfação. Ao verem-no, levantaram-se, beijaram o chão e
fizeram reverências. O califa olhou para Nu¢m, que empunhava o alaúde, e
disse: “Ó Nu¢m, foram-se o mau estado e a dor e chegou a saúde”. Depois ele
olhou para Ni¢ma, imaginou que se tratava de uma jovem e perguntou à irmã:
“Estou contente com a recuperação de Nu¢m. Quem é a jovem ao seu lado?”.
Ela respondeu: “Saiba, meu irmão, que cada moça do palácio tem uma
companheira para diverti-la, e essa é a sua companheira, sem a qual ela não
comeria nem beberia”. Então o califa folgou e seu coração se alegrou; olhou para
Ni¢ma e Nu¢m, uma poesia lhe circulou pela mente, e ele declamou os seguintes
versos:

“Vi as rosas semelhando a face do meu amor,
e as flores de fava semelhando suas pupilas;
então disse: ‘Admirem a obra de meu Deus:
as coisas assemelhadas se atraem entre si!’”.

O califa prosseguiu: “Por Deus que essa moça é tão graciosa quanto Nu¢m, e
amanhã mesmo mandarei providenciar-lhe um aposento ao lado do dela, e
também que, em honra de Nu¢m, seja provido de tapetes, colchões, cortinas,
belos utensílios e tudo o mais que lhe seja adequado”.
Disse o narrador: a rainha ordenou que se servisse comida e esta foi servida
ao califa, que comeu até se saciar. Sentou-se para beber, encheu uma taça e fez
sinal para Nu¢m, que pegou o alaúde e tocou com excelência tal que deixou
perplexa a mente dos presentes, entoando a seguinte poesia:

“Obtive o que sempre espera todo esperançoso:
algum nobre que me corrigisse a tortuosidade.
Sempre que minhas casas sofrem alguma perda,
o criminoso lá fora brilha como um lampião.
Moisés fez incender o fogo num archote
de pau seco, pois era o melhor rogador a Deus.
Assim são as coisas: ao homem em apuros
sempre sobrevém a hora da libertação”.

Disse o narrador: o comandante dos crentes ficou sumamente emocionado,
bebeu, encheu outra taça, olhou para Nu¢m como que admirado de sua beleza,
perfeição, talhe e esbelteza, e ela entoou a seguinte poesia:

“Ó orgulho de todos os reis da terra!
E quem lhe equivaler já se orgulha!
Ó único na glória, e da bondade o extremo!
Ó líder, ó senhor por todos celebrado!
Ó rei de todos os reis da terra!
Dás do melhor sem pedido nem irritação;
continues, malgrado os tiranos, sempre assim,
e viverás com poder, prosperidade e triunfo”.

Disse o narrador: emocionado e admirado, o califa disse: “Você foi muito bem
em sua poesia, Nu¢m, por Deus!”, e lhe prometeu toda sorte de favores; encheu
outra taça e disse: “Cante para mim, Nu¢m, em homenagem a esta minha taça,
pelo valor que a minha vida tem para você!”. Então ela entoou a poesia, após
haver ajustado o alaúde e afinado as suas cordas; ela disse:

“Tenho um pranto igual ao pranto da nuvem!
Ó liberador da paixão, onde está o vento?
Nos dois casos somos uma só coisa, e ao que
parece os nossos olhos estão no mesmo estado.
Ó olhos da nuvem! Suas lágrimas compensariam
as minhas, mas elas tampouco têm fim!”.

Disse o narrador: então o califa, tocado por aquelas palavras, gritou e lhe disse:
“Como você é excelente, Nu¢m! Como é eloquente a sua língua para os belos
discursos!”. E permaneceram na maior alegria e felicidade até o meio da noite,
quando a irmã do califa se levantou e lhe disse: “Ó comandante dos crentes, por
efeito da moléstia e das dores, Nu¢m deve ora cantar, ora ouvir histórias. Aliás,
ouça, ó comandante dos crentes, uma história que ouvi de certo livro antigo[317]
sobre gente de alta posição”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

160ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós, a fim de atravessarmos o serão desta noite”, e
ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a irmã do califa se propôs a contar-lhe
o que ouvira a partir dos livros; ele disse: “Conte para mim, minha irmã”, e ela
então disse:
Conta-se, mas Deus sabe mais, que em certa ocasião houve na cidade de Kœfa
um jovem chamado Ni¢ma Bin Arrab∑¢ de Kœfa, e ele tinha uma moça à qual
amava e por cujo amor ansiava. Ela se criara com ele desde pequena e, adulta,
casara-se com ele. Depois que se ligara a ele, ó comandante dos crentes, o
destino o atingiu com suas calamidades e o injustiçou com suas desgraças,
determinando que fossem afastados. Ela foi afastada de sua casa e subtraída aos
seus favores. O objetivo de quem a roubara era vendê-la a certo rei por dez mil
dinares. Existia na moça um grande amor por seu amo, bem como ele era
extremamente apegado a ela e apaixonado; assim, arriscou a vida, envidou todos
os esforços, separou-se de seus familiares e de seu conforto, viajou à sua procura
e entabulou um modo de se encontrar com ela. Mal conseguiu fazê-lo, porém, o
tal rei chegou ao lugar onde ambos estavam, pôs-se a encará-los e sem mais
delongas ordenou que fossem mortos, sem fazer justiça a nenhum dos dois nem
esperar para proferir a sentença de morte. O que você diz, ó comandante dos
crentes, sobre essa injustiça?
¢Abdulmalik Bin Marwån disse: “Por Deus que essa é uma coisa espantosa.
Ele deveria ter tornado possível[318] o perdão; para tanto, o caminho seria
observar três argumentos: primeiro, eles se amavam e estavam compromissados;
segundo, estavam em sua casa, sob seu jugo; terceiro, ele era mais capacitado a
perdoar do que eles. Esse rei praticou uma ação que não parece ação de reis”.
[319] Sua irmã lhe disse: “Ó comandante dos crentes, pelas prerrogativas de
quem o entronizou sobre a terra, ouça o que Nu¢m canta”, e disse à jovem:
“Cante para nós, Nu¢m, suas próprias palavras”, e ela entoou os seguintes versos
de poesia:

“Miserável destino, que continua traidor:
debilita corações, transmite desgostos
e separa amantes depois de acidentes;
jorram então lágrimas sobre as faces”.

Disse o narrador: o comandante dos crentes ficou sumamente emocionado, e sua
irmã lhe disse: “Meu irmão, quem estabelece algo para si próprio deve cumprir a
palavra. Você, rei da terra, estabeleceu algo para si próprio, e Deus louvado e
altíssimo é o rei da terra e do céu”, e prosseguiu: “Ó Ni¢ma, levante-se, e você
também, ó Nu¢m”; ambos se ergueram. A irmã do califa prosseguiu: “Ó
comandante dos crentes, este que está de pé é Ni¢ma Bin Arrab∑¢ de Kœfa, e
esta é a sua moça Nu¢m, roubada de sua casa e dele subtraída por Al¬ajjåj Bin
Yœsuf A¥¥aqaf∑, que a fez chegar até você e mentiu em sua carta, falando
demasiado e dizendo que a comprara por dez mil dinares que ele tomou de você,
devido à cobiça por tudo quanto seja do governo. Eu lhe rogo, por Æamza,
¢Aq∑l e Al¢abbås.[320] Por favor, conceda-lhes o indulto, perdoe-lhes o delito,
e entregue um ao outro; colha a gratidão na outra vida e a recompensa divina
com isso, pois eles estão em seu palácio, respeitaram as mulheres de sua
intimidade, comeram de sua comida e beberam de sua bebida. Sou eu que
intercedo por eles e que peço que o seu sangue me seja concedido”. O califa
disse: “Você está certa, pois fui eu que decidi isso e nunca volto atrás em minhas
decisões”, e perguntou: “Ó Nu¢m, este é o seu amo?”. Ela respondeu: “Sim, ó
comandante dos crentes e califa do senhor dos mundos”. Ele disse: “Vocês não
correm nenhum risco; eu os dou um ao outro”, e perguntou: “Ó Ni¢ma, como
você soube onde ela estava? E quem o trouxe até aqui?”. O jovem respondeu: “Ó
comandante dos crentes, ouça o que me ocorreu”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

161ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ni¢ma disse: “Ouça o que me
ocorreu, ó comandante dos crentes, e preste atenção na minha história. Por seu
pai e seu avó que nada ocultarei”, e lhe contou tudo que se passara com ele, o
que fizera o sábio persa, o que fizera a camareira, como ela o introduzira no
palácio, como ele se equivocara entrando no aposento da rainha, e como se
pusera sob a sua proteção. O califa ficou espantado com aquilo e disse: “Tragam-
me o persa!”. Passados poucos instantes, eis que o persa se apresentou e foram
informar ao califa, que fez dele o administrador do palácio, regalou-o com trajes
honoríficos e ordenou que lhe dessem uma preciosa concubina; e então disse:
“Alguém capaz de traçar planos tão bons deve permanecer conosco”. Depois
disso, Ni¢ma e Nu¢m ficaram hospedados por algum tempo com ¢Abdulmalik
Bin Marwån na mais feliz condição. Em seguida, Ni¢ma determinou que se
preparasse a viagem e levou a camareira consigo, após ter-lhe dispensado
generoso tratamento. Viajou com Nu¢m até Kœfa, onde se reuniu a seus pais e
viveram a vida mais opulenta. Foi isso o que sucedeu a Ni¢ma e Nu¢m.
Disseram As¢ad e Amjad: “Por Deus! O que sucedeu a eles é mais espantoso
e insólito. Você de fato aliviou as nossas preocupações, ó Bahråm! Graças a
Deus, que o conduziu ao islã!”, e dormiram aquela noite o sono mais agradável.
Quando amanheceu, As¢ad e Amjad saíram, levando Bahråm a seu serviço;
pretendiam ir até o rei quando o povo da cidade se assustou e se agitou; os
homens gritaram e o secretário foi até o rei, que lhe perguntou: “Quais são as
notícias?”. O homem respondeu: “Amo, está às portas da cidade um rei com suas
tropas e soldados; estão montados, de espadas desembainhadas, e não sabemos
qual a sua intenção”. O rei convocou seus vizires Amjad e As¢ad e lhes deu a
notícia. Disse Amjad: “Vou até esse rei na qualidade de emissário para descobrir
quem é ele”. Saiu, foi até a entrada da cidade e encontrou um grande exército de
mamelucos montados. Ao verem Amjad, perceberam tratar-se de um emissário e
o conduziram ao rei. Assim que se viu diante dele, Amjad o observou e, notando
que se tratava de uma mulher, abaixou a cabeça para ela, que disse: “Saiba,
mensageiro, que não tenho nenhum assunto nessa cidade. Não vim senão por
causa de um jovem escravo; vim procurá-lo porque ele me foi roubado; se acaso
eu o encontrar entre vocês, não haverá risco; mas se acaso eu não o encontrar,
ocorrerá entre mim e vocês uma violenta batalha”. Ele perguntou: Ó rainha, qual
é a descrição desse jovem? Como ele chegou a você?”. Ela respondeu: “Chama-
se As¢ad; e eu sou chamada de rainha Murjåna. Esse jovem passou por mim
quando estava na companhia de um mercador que não quis vendê-lo; então, eu o
tomei à força, mas, antes que ele terminasse a noite comigo, o mercador tornou a
pegá-lo. Sua descrição é tal e tal”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Amjad descobriu que se tratava de seu
irmão e disse: “Minha senhora, o alívio se aproxima; é meu irmão”, e lhe contou
a história de ambos, o que lhes sucedera no exílio e o motivo de sua saída da
Península do Ébano. A rainha Murjåna ficou espantada e se alegrou por
encontrar As¢ad. Então Amjad retornou ao rei e o informou do que ocorrera.
Disse o narrador: o rei, Amjad e As¢ad estavam saindo do palácio com o
propósito de ir até a rainha quando, de repente, uma enorme poeira subiu e um
alarido se espalhou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

162ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, de que, quando
Amjad, As¢ad e o rei saíam do palácio para encontrar a rainha Murjåna, eis que
uma poeira subiu e se desfez, revelando um exército serpeante como o mar
encapelado, cujos soldados estavam todos equipados e armados; haviam cercado
a cidade tal como o branco do olho cerca o preto; suas espadas se exibiam
brilhando como raios. Disse As¢ad a Amjad: “Que exército é esse? Não há
escapatória, deve ser algum inimigo! E se ele tiver combinado tomar a nossa
cidade junto com a rainha Murjåna e matar seus habitantes? Não existe outra
artimanha neste caso: você deve ir até eles na qualidade de emissário e descobrir
a quem pertence esse exército”. Amjad recebeu a ordem ouvindo e obedecendo;
saiu pelo portão da cidade, atravessou o exército de Murjåna e chegou aonde
estava o segundo exército, a cujo rei procurou; colocaram-no diante desse rei,
que era o avô de Amjad, pai de sua mãe Budœr. Beijou o chão, rogou que ele
tivesse glória e um longo reinado, e disse: “Saiba, emissário, que eu sou o rei
Al©uyœr, dono de ilhas e mares e dos sete palácios; estou por aqui de passagem;
o destino me fez sofrer a dor da perda de minha filha Budœr, que se separou de
mim. Nunca mais ouvi nenhuma notícia a seu respeito nem lhe localizei vestígio
algum. Vocês têm alguma notícia a seu respeito? Pois ela se casou, em meu
reino, com Qamaruzzamån, filho do rei ¸åhramån, dono da Península ¿alidån.
Eles foram para lá e nunca mais recebi nenhuma carta, notícia ou recado. As
saudades dela me afligem! Não teriam vocês nenhuma notícia a seu respeito?”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Amjad abaixou a cabeça e descobriu que se
tratava de seu avô materno. Lançou-se sobre ele, beijou-lhe o peito e as mãos, e
informou-o de que era filho de sua filha Budœr. Ouvindo aquilo, o rei se
enterneceu, atirou-se sobre ele e disse: “Meu filho, graças a Deus me encontrei
com você!”, e Amjad lhe contou que sua mãe Budœr estava bem, assim como
seu pai Qamaruzzamån, que ambos estavam num país chamado Península do
Ébano, e que seu pai se tornara genro do rei daquele lugar. Em seguida, contou-
lhe a sua própria história. O rei Al©uyœr disse: “Eu levarei você e seu irmão até
o seu pai, os reconciliarei de vez e permanecerei com vocês por um bom tempo”,
e ficaram muito felizes. Amjad retornou sorridente e alvissareiro por ter se
encontrado com o avô, e foi informar a história ao seu rei, que ficou espantado e
ordenou que fossem oferecidos pavilhões completos de hospedagem,
mantimentos, reses, ração de cevada, camelos e corcéis; tudo foi providenciado,
e o rei ordenou que Amjad e As¢ad levassem tudo aquilo para o rei Al©uyœr.
Quando pretendiam começar a fazê-lo, eis que uma poeira se elevou...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na noite vindoura, se
acaso eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

163ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Amjad e As¢ad haviam recolhido as
coisas para hospedar o rei Al©uyœr quando, de repente, uma poeira se ergueu e
tudo escureceu, desfazendo-se em meio a gritarias e berros: tropas haviam
cercado a cidade e os dois exércitos que a cercavam! Ao ver aquilo, o rei disse a
Amjad: “Este só pode ser um dia abençoado, pois, graças a Deus, todos acabam
sendo gente conhecida. Seja como for, vão vocês dois na qualidade de emissários
e descubram qual é a notícia”. Então eles saíram – os portões tinham sido
fechados e tornaram a ser abertos –, atravessaram os dois exércitos, o da rainha
Murjåna e o do rei Al©uyœr, e chegaram até o terceiro exército; verificaram que
era enorme, entraram no meio dele e ali reconheceram algumas pessoas: eram
seus conhecidos da Península do Ébano, e o rei era seu pai Qamaruzzamån, que
se atirou sobre eles, chorou copiosamente, desculpou-se, estreitou-os ao peito e
desmaiou por alguns momentos, logo acordando. Contou-lhes o quanto sofrera
com a tristeza e a separação após a sua partida. Amjad o deixou a par da história
de seu sogro, o rei Al©uyœr, “que é o dono desse exército”. Qamaruzzamån
então cavalgou acompanhado de um grupo de secretários, levou consigo Amjad
e As¢ad e chegou até o exército do rei Al©uyœr. Amjad foi na frente e,
encontrando o rei já a cavalo, informou-o de tudo, e Al©uyœr cavalgou até sair
do círculo de seu exército e se apeou para receber Qamaruzzamån;
cumprimentaram-se calorosamente e se abraçaram com força, encostando as
barrigas. Qamaruzzamån lhe relatou tudo quanto lhe ocorrera depois que saíra de
seu país, e como se perdera no caminho e se ausentara por anos até que chegara
à Península do Ébano – enfim, contou-lhe exatamente tudo quanto já contamos,
e repetir não vai trazer benefício. Todos ficaram felizes, considerando isso
alvissareiro, e disseram: “Graças a Deus por este encontro”. Em seguida, Amjad
e As¢ad conduziram seu pai Qamaruzzamån e o rei Al©uyœr para a cidade. As
¢ad foi na frente de todos até a rainha Murjåna, que o reconheceu e se alegrou
com o fato de ele estar bem. Ele a informou de que os reis que estavam
chegando eram seu pai e o sogro de seu pai, e ela ficou contente, saiu com ele,
cumprimentou os reis Al©uyœr e Qamaruzzamån, que lhes deram boas-vindas e
a trataram com grande deferência. Os três reis, acompanhados de alguns
secretários, entraram na cidade, cujo rei, informado de que eles haviam entrado,
saiu a pé para recepcioná-los, junto com alguns secretários. Encontrou-os e
parou diante deles, que lhe agradeceram. Qamaruzzamån voltou-se para ele,
elogiou-o e o aproximou de si. Todos ficaram contentes uns com os outros e se
espantaram com todas essas espantosas coincidências. O rei da cidade preparou
um banquete com muita comida e doces, e mandou estender as mesas. Os reis
iam começar a comer quando o mundo como que se fechou...
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável, saborosa e
boa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei me preservar; será ainda
mais espantoso, insólito, agradável e emocionante; terá mais palavras e melhor
disposição”.

Na noite seguinte, que era a

164ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que os reis iam começar a comer quando o
mundo como que se fechou, o tempo escureceu, e a poeira tanto revoou que
cobriu os países; o mundo veio abaixo com os gritos, o coruscar dos ferros, o
rebrilhar das lanças, o relincho dos cavalos, as espadas como o mar encapelado e
os equipamentos de campeões; todo um exército vestido de preto, apresentando
sinais de luto, e, no meio dos soldados, um ancião entrado em anos, com a barba
até o peito, de roupas negras e vestes de enlutado.
Disse o narrador: quando viram esse enorme exército, essas tropas
magníficas, todos se espantaram, bem como o rei da cidade, que disse: “Hoje, a
toda hora chega um exército. Com a graça de Deus, entretanto, eles serão
conhecidos e amigos. Não sei de quem seja esse exército serpeante que bloqueou
os horizontes e os países, mas, seja o que for, não precisamos nem nos
preocupar, já que somos agora três exércitos”. Estavam nessa conversa quando
um emissário do dono do exército recém-chegado entrou na cidade. Ao se ver
diante dos reis – que eram o rei Al©uyœr, o rei Qamaruzzamån, a rainha
Murjåna e o rei da cidade, chamado Nardšåh[321] –, beijou o chão e os
cumprimentou. Eles responderam ao seu cumprimento e lhe indagaram que
mensagem portava. Ele disse: “Esse rei é da terra dos persas, da parte interior
oriental; ele perdeu um filho há muitos anos e ouviu dizer que esse filho se
tornou rei. Está à procura dele pelas cidades e pelos países. Se o filho estiver
entre vocês, não haverá perigo, mas se não o encontrar aqui, ele destruirá a
cidade e jogará as suas pedras ao mar”. Nardšåh perguntou: “Quem poderia
chegar até ele? Qual o nome desse rei?”. O emissário disse: “Trata-se do grande
¸åhramån, dono da Península ¿alidån; ele perdeu o seu filho Qamaruzzamån, que
agora já está ausente há muitos anos e sem enviar notícias. Então ele reuniu esse
exército e saiu pelo mundo, destruindo as cidades em que não encontrou o filho.
O que vocês têm a dizer?”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras do emissário, Qamaruzzamån soltou
um berro altissonante e caiu desmaiado por alguns momentos; acordou, chorou e
disse: “Ai, meu pai!”, e, olhando para Amjad e As¢ad, disse-lhes: “Meus filhos,
venham comigo cumprimentar seu avô! Esse é o meu pai ¸åhramån, que até
agora está vestido de luto, de roupas pretas, por minha causa!”. E relatou aos
presentes o que lhe ocorrera em sua juventude, como saíra do reino do pai sem
permissão, as coisas que depois lhe sucederam e que o atingiram. Todos se
espantaram e balançaram de emoção, e disseram: “Isso deve ser escrito com tinta
de ouro”. Então Amjad e As¢ad desceram na companhia do emissário, e depois
deles desceram Qamaruzzamån e todos os outros reis. Chegaram até o rei
¸åhramån e, verificando que ele se tornara um ancião curvado e vestido de preto,
beijaram o chão diante dele. Amjad e As¢ad haviam ido na dianteira e o
informado de tudo; ele agradeceu a Deus altíssimo pela reunião com os seus.
Quando Qamaruzzamån entrou, ele ficou de pé com as lágrimas lhe jorrando
sobre as barbas brancas; beijou-o e choraram ambos, bem como As¢ad, Amjad,
todos os reis e todos os presentes. O rei ¸åhramån desmaiou por algum tempo e,
ao acordar, perguntou: “É mesmo verdade, meu filho Qamaruzzamån, que eu me
encontrei com você antes de morrer?”. E recitou a seguinte poesia:

“Jurei com minhas pálpebras pelos ventos dispersantes
e com as lágrimas de meus olhos jurei pelos emissários
que ao amor por vós serei para sempre devotado
até que minha alma veja os anjos que a extirparão”.[322]

Disse o narrador: então uma segunda vez o abraçou, e mais uma terceira; falou-
lhe de suas saudades e indagou-lhe o que ocorrera durante aquele período.
Qamaruzzamån lhe relatou tudo quanto lhe acontecera, do começo ao fim – e
repetir não vai trazer benefício; contou-lhe como se separara de seus filhos
Amjad e As¢ad, como mandara matá-los, como haviam ido embora, e como se
reuniram todos naquele lugar. O rei ¸åhramån ficou sumamente espantado e,
voltando-se para Nardšåh, agradeceu-lhe, elogiou-o pelo que fizera e devolveu-o
à cidade dizendo: “Somos agora muitos, um rico ajuntamento”; todos os reis lhe
agradeceram, rogaram por ele e se foram. O rei ¸åhramån e seu filho
Qamaruzzamån se voltaram para a rainha Murjåna, agradeceram-lhe e
devolveram-na a seu país, fazendo juras de que gostariam de tornar a vê-la, e ela
se despediu e saiu com seu exército de volta para sua terra. Qamaruzzamån se
pôs em marcha ao lado de seu pai e de seus filhos. Não interromperam a viagem,
acompanhados do rei Al©uyœr, até chegarem à Península de Ébano, depois de
sofrerem com a enorme distância durante quatro meses completos. Ao chegarem
à capital, enquanto os reis ¸åhramån e Al©uyœr acampavam à sua entrada,
Qamaruzzamån entrava com seus filhos Amjad e As¢ad e os levava ao sogro, o
rei Armånœs, a quem relatou que encontrara os filhos, seu pai ¸åhramån e o rei
Al©uyœr, pai de sua esposa Budœr. Armånœs ficou sumamente espantado,
inclinou-se de emoção, levantou-se com ele e montou; ordenou que levassem
mantimentos e equipamentos para hospedar os reis lá fora acampados. Amjad e
As¢ad foram ter cada qual com sua mãe, atirando-se com beijos sobre elas, que
gritaram, choraram e estreitaram os filhos ao peito, aos prantos. Amjad informou
à mãe da vinda do pai dela, seu avô, o rei Al©uyœr, e Budœr ficou contente.
Qamaruzzamån e Armånœs foram até os reis ¸åhramån e Al©uyœr, que os
recepcionaram, cumprimentaram, mandaram trazer comida e todos se
alimentaram. Quando terminaram, sentaram-se para conversar e se divertir,
assombrados com todas essas coincidências e coisas insólitas. Assim ficaram
alguns dias, após os quais o rei Al©uyœr foi cumprimentar sua filha Budœr e
matar as saudades; ali permaneceram durante um mês inteiro, depois do qual
Qamaruzzamån ficou a sós com o pai e lhe perguntou: “O que faço?”, pedindo o
seu conselho.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar e interrompeu seu discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela, agradável e boa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na noite vindoura, se acaso eu viver e o rei cavalheiresco me preservar;
serão palavras ainda mais espantosas, insólitas e emocionantes”.

Na noite seguinte, que era a

165ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se você não estiver dormindo,
continue a sua história para nós”, e ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de corretos
proceder e parecer, de que Qamaruzzamån consultou o pai à noite, e então eles
entraram em acordo sobre o que fazer.
Disse o narrador: assim, quando se determinou ao rei Al©uyœr que voltasse
com sua filha Budœr e seu neto Amjad para a sua capital, a cidade das ilhas, dos
mares e dos sete palácios, e que entronizasse seu neto Amjad no reino, ele
aceitou e disse: “Já sou um ancião. Meu neto Amjad, filho de minha filha
Budœr, tem mais direito ao reino do que eu”. Amjad vestiu o traje real, se
despediu de seu pai Qamaruzzamån, de seu irmão, de seu avô, de novo de seu
pai, e finalmente de todas as outras pessoas, e viajou com seu avô Al©uyœr, sua
mãe Budœr e seu exército, até chegar à cidade da ilhas, dos mares e dos sete
palácios. Amjad entrou e se entronizou no lugar do avô, tornando-se rei. Após a
retirada do rei Al©uyœr, de Amjad e de Budœr, Qamaruzzamån ordenou a As
¢ad que vestisse o traje real e se instalasse no trono da capital de seu avô
Armånœs, que disse: “Eu aceito, pois já me tornei um ancião, e As¢ad, filho de
minha filha, tem mais direito ao reino do que eu”. As¢ad se tornou rei, e
Qamaruzzamån lhe recomendou o avô e a mãe, Æayåtunnufœs. Depois de tudo
isso, Qamaruzzamån se preparou com o pai, o rei ¸åhramån, e disse: “Eu não
quero mais esposas nem filhos; só quero ficar com meu pai”. Despediu-se de seu
filho As¢ad, de sua esposa Æayåtunnufœs e, junto com o pai, avançou até chegar
à Península ¿alidån, que foi enfeitada para recebê-los; todos ficaram contentes
com a sua vinda, tanto o vulgo como a nobreza. Promoveram-se festejos e se
estenderam mesas de banquete; foi algo nunca antes visto! Louvado seja quem
prepara o tempo, constrói os mundos e não se distrai de uma coisa por outra! A
felicidade, a alegria e o regozijo entre eles eram contínuos. Assim que eles
chegaram, foram recepcionados com honrarias[323] e o rei ¸åhramån começou a
distribuir esmolas, a dar presentes e benesses, a doar dinheiro aos pobres, órfãos
e viúvas. Depois disso, Qamaruzzamån foi entronizado como rei, pondo-se a
governar, a ordenar e a proibir e tudo o mais que é considerado parte dos
misteres do sultanato na Península ¿alidån. Como exemplo de sua justiça,
libertou presos, eliminou impostos e taxas sobre os pobres e desvalidos, e sua
palavra e sua força se impuseram a todos os habitantes do reino. Ficou com seu
pai durante algum tempo, exercendo a justiça e a benevolência para com os
súditos. Concediam e presenteavam quantias copiosas de dinheiro, até que o rei
¸åhramån se mudou para a misericórdia divina e seu filho Qamaruzzamån
continuou como rei durante a passagem das noites e dos dias.[324]

Foi isso que chegou até nosso conhecimento da quarta parte das mil e uma
noites. Escrito aos vinte dias do mês de ša¢bån do ano de 1177.[325]
anexos

Os anexos da presente edição são textos que podem servir como elementos de
comparação para o leitor interessado na história da constituição deste livro.
Anexo I
anexo i

O REENCONTRO DE QAMARUZZAMÅN E BUDŒR EM VERSÕES
OBSCENAS

Conforme se registrou na nota , p. , da “História completa de
Qamaruzzamån e seus filhos”, o relato do reencontro entre Qamaruzzamån e
Budœr, embora consistente, é um tanto ou quanto lacônico, o que o faz parecer,
à primeira vista, incompleto. Talvez em virtude dessa aparente falha, as duas
outras redações da história fazem, ao episódio do reencontro entre os dois
personagens, acréscimos bastante obscenos, cujo objetivo é aumentar-lhe a
carga dramática e realçar a comicidade. Tendo optado, nesta tradução, por
respeitar a integridade da história conforme a redação do manuscrito escolhido,
o “Bodleian Oriental ”, apresentam-se neste anexo tais passagens
obscenas, a partir do manuscrito “Arabe ” e da edição de Bœlåq, as
quais, apesar de suas curiosas diferenças de redação, provavelmente apontam
para um original comum, que seria o próprio arquétipo do ramo egípcio,
conforme se discutiu na nota introdutória a este volume.

1. Manuscrito “Arabe 3612”, da Biblioteca Nacional da França, fls. 241 v.-243 f.

ª noite
Na noite seguinte, sua irmã lhe disse: “Minha irmã, conte-nos a história de
Qamaruzzamån”, e ela respondeu: “Sim, com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ver seu engaste, Budœr disse: “Por
Deus que esse foi o motivo de minha separação do meu amado, e agora é um
prenúncio do bem, de que Deus me reunirá aos meus proximamente”. Em
seguida, recolheu-o, guardou-o e foi até Æayåtunnufœs, filha do rei Armånœs, a
quem disse: “Este é o engaste que motivou a minha separação, e não terá voltado
agora senão para motivar o meu reencontro, se assim o quiser Deus, o rei que
tudo pode criar”. E, chorando, recitou os seguintes versos de poesia:

“Como é bom o anunciador de vossa vinda;
ele veio com notícias que confortam o ouvido;
caso desejasse um traje honorífico, eu lhe daria
um coração dilacerado na hora da despedida”.

E mal pode se conter até que amanhecesse, quando então enviou um secretário
para lhe trazer o capitão do navio, o qual, ao chegar, beijou o solo. Ela lhe disse:
“Onde vocês deixaram o dono dessas azeitonas?”. O capitão respondeu: “Em
nosso país, a terra dos magos, ó rei do tempo, onde ele é capataz num pomar”.
Ela disse: “Por Deus que, se acaso vocês não o trouxerem, não ocorrerá nada de
bom nem a você, nem ao seu navio, nem aos seus mercadores!”, e ordenou que
os depósitos e estabelecimentos dos mercadores fossem fechados e lacrados, e
que os maiorais dentre eles fossem colocados sob vigilância; disse-lhes: “O dono
dessas azeitonas é meu devedor; tenho contra ele exigências e direitos; se vocês
não o trouxerem, irei matá-los até o último e confiscar seu dinheiro”. Os
mercadores dirigiram-se então em conjunto ao capitão e lhe prometeram o
pagamento de um novo aluguel do navio; disseram-lhe: “Livre-nos desse
opressor tirânico”. Então o capitão saiu, reuniu mantimentos, preparou-se e
zarpou em viagem; Deus escreveu que tudo correria bem e ele chegou num
prazo menor que o esperado; aportou na península e foi até o pomar, no qual
Qamaruzzamån, naquele momento, chorava, após ter passado a noite em claro
em razão do que lhe ocorrera; pensando na situação que antes desfrutava,
recitara os seguintes versos de poesia:

“Ai de vós! Não caminheis até ele,
que de seu lugar não consegue sair!
É como se o Dia do Juízo durasse
e só depois, na torre, amanhecesse”.

O capitão bateu à porta; Qamaruzzamån perguntou: “Quem é?”, e saiu.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado.
Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é agradável e boa a sua história”, e ela
respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite”.


ª noite
Na noite seguinte, Dunyåzåd disse: “Por Deus, maninha, continue para nós a
história de Qamaruzzamån”, e ela respondeu: “Sim, com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando o capitão bateu à porta,
Qamaruzzamån abriu-a e não recebeu mais do que um soco, caindo no chão. O
capitão e seus homens o carregaram, retornaram ao barco, içaram velas e
zarparam, viajando por dias e noites, sem que Qamaruzzamån soubesse o que
estava acontecendo. O capitão lhe disse: “Você é devedor do rei, o genro do rei
Armånœs, dono da Península do Ébano”. Qamaruzzamån disse: “Por Deus que
nunca na minha vida entrei nesse país!”. Viajaram com ele noite e dia, até que
entraram no litoral da Península do Ébano pela noite, carregaram
Qamaruzzamån e o conduziram até o sultão, que era madame Budœr, filha do rei
Al©uyœr. Ao vê-lo, ela o reconheceu e, carregando-se de paciência, disse:
“Entreguem-no aos criados para que o levem ao banho”; liberou o dinheiro dos
mercadores, deu um traje honorífico no valor de mil dinares ao capitão e foi
naquela mesma noite avisar tudo a Æayåtunnufœs, a quem disse: “Mantenha
essa situação em segredo até que eu faça algo que será registrado na história, e
depois da minha morte será lido diante dos reis. Mas eis aqui o meu amado
Qamaruzzamån”. Quando amanheceu, ela ordenou que ele fosse conduzido ao
banho, e assim se fez; vestiram-no com vestimentas de rei e ela o nomeou
comandante, dando-lhe mamelucos, criados e ajudantes.
Disse o narrador: Qamaruzzamån saiu do banho parecendo um galho de
salgueiro, inteiramente reanimado. Entrou no palácio e beijou o chão; ao vê-lo,
ela encheu o coração de paciência até que fizesse o que pretendia; nomeou-o
tesoureiro-mor e deixou todo o dinheiro em suas mãos; convocou-o, aproximou-
o, e todos passaram a apreciá-lo, a dignificá-lo e a oferecer-lhe opulentos
presentes. Budœr o aproximava de si cada vez mais, e a cada dia o convocava e
mandava que lhe concedessem melhores benefícios. Espantado, sem saber o
motivo daquilo, Qamaruzzamån se pôs a fazer concessões e presentear com
generosidade, a distribuir vestimentas honoríficas e a oferecer benefícios ao
grande e ao pequeno, e a servir ao rei Armånœs, honrando-o e dele se
aproximando. Tanto fez que todos passaram a gostar dele: o rei Armånœs, os
comandantes e todo o povo da cidade; começaram a jurar em nome de
Qamaruzzamån, enquanto este dizia para si mesmo: “Que afeto é esse que o rei
tem por mim? Qual será a causa?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar. Disse Dunyåzåd: “Maninha,
como é boa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei
contar-lhes na próxima noite”.


ª noite
Na noite seguinte, disse Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, continue para nós a
história de Qamaruzzamån”, e ela respondeu: “Sim, com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, assim que soube que todas as pessoas
haviam passado a estimar seu marido, e que de todos ele se apossara do coração
e dominara a mente, Budœr o aproximou de si e lhe disse: “Ó Qamaruzzamån,
durma aqui esta noite, pois eu tenho consultas a lhe fazer”. Qamaruzzamån
beijou o chão diante dela e disse: “Ouço e obedeço”. Quando anoiteceu, ela se
pôs a sós com ele no quarto de dormir, dispensou os mamelucos e os oficiais do
turno, mandou o eunuco-mor se postar à porta por fora, subiu na cama, deitou-se
com o cotovelo apoiado numa almofada redonda e estendeu os pés.
Qamaruzzamån ficou em pé diante dela, os braços cruzados para trás, inquieto e
pensando: “Por que será que o rei ficou a sós comigo, às escondidas de todo
mundo?”. De repente Budœr lhe disse: “Venha, meu querido Qamaruzzamån,
suba na cama!”, e ele, cabisbaixo, respondeu: “Por Deus, por Deus, ó rei do
tempo! Ficarei aqui em pé”. Madame Budœr lhe disse: “Então lhe ordeno uma
coisa e você me desobedece? Suba já na cama!”. Qamaruzzamån respondeu:
“Meu amo, este seu escravo está bem de pé”. Ela disse: “Por Deus, seu sujo,
suba até aqui para que eu o consulte sobre uma questão!”, e gritou com ele, que
subiu na cama e se sentou a seus pés; ela os ergueu, colocou no colo de
Qamaruzzamån e disse: “Por minha vida, massageie os meus pés”; então ele se
deu conta da coisa[326] e disse: “Nunca em minha vida massageei ninguém,
nem sei massagear”. Ela lhe perguntou: “Ai de você! Não sabe acariciar meus
pés com as mãos?”. Ele pensou: “Por Deus que é isso mesmo! Este sultão está
querendo abominação comigo! A Deus pertencemos e a ele retornaremos!”, e
respondeu: “Por Deus, meu amo, que essa é uma coisa que nunca fiz em minha
vida!”. Ela gritou com ele, que então acariciou por um bom tempo seus pés
macios com os calcanhares pintados.[327] Depois Budœr recolheu os pés, soltou
as roupas, arrancou-as, ficou quase desnuda e, esticando os pés para
Qamaruzzamån, disse-lhe: “Meu querido, acaricie minhas pernas”;
Qamaruzzamån respondeu: “Que situação é essa, meu amo?”, mas ela berrou
com ele e disse: “Para cima!”; sua mão chegou então até os joelhos, e ela disse:
“Para cima!”; então ele esticou a mão para cima e, topando com algo mais suave
do que a manteiga, sua mão escorregou até chegar às coxas; Budœr lhe disse:
“Minha alma,[328] acaricie um pouco mais para cima”, e ele pensou: “Eta, rei!
Que maciez é essa?”; Budœr lhe disse: “Mais para cima”; Qamaruzzamån disse:
“Isso eu não faço”, e continuou: “Já entendi o que você quer. Isso é algo que
jamais farei em minha vida. Por Deus, deixe-me livre e tome de volta tudo
quanto você me deu; deixe-me ir cuidar da minha vida”. Ela sorriu e lhe
perguntou: “E o que eu estou fazendo?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar. Dunyåzåd lhe disse:
“Maninha, como é gostosa e boa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é
nada perto do que lhes contarei na próxima noite; será mais gostoso, mais belo e
mais espantoso”.
Na noite seguinte,[329] Dunyåzåd disse: “Por Deus, maninha, continue para
nós a história de Qamaruzzamån”, e ela respondeu: “Sim, com muito gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Qamaruzzamån disse: “Tome de volta
todo o seu dinheiro e liberte-me”. Budœr disse: “E que mal lhe fará? Amanhã
irei nomeá-lo meu vizir”. Ele disse: “Não tenho precisão de vizirato, meu amo.
Deixe-me ser mendigo, mas isso eu não farei”. Ela disse: “Sua bichinha![330] O
meu é pequeno e não grande, e você é grande e não pequeno! Tem medo de
quê?”. Qamaruzzamån chorou dizendo: “Ai de mim, ai de mim!”. Budœr riu,
ficou séria e disse: “Ai de você! Por Deus que, se não fizer o que estou
mandando, cortarei o seu pescoço; porém, se você me obedecer, irei enviá-lo de
volta para o seu país e lhe farei um grande bem; mas, se me desobedecer, decepo
o seu pescoço. Escolha!”. Qamaruzzamån gemeu pedindo socorro e disse: “Meu
amo, não faça isso”, e lhe suplicou humilhado. Budœr respondeu: “Isso é
absolutamente imperioso”, e ele disse: “Nesse caso, ó rei, jure para mim que, se
eu o fizer desta vez, você não pedirá uma segunda”. Ela respondeu:
“Concedido”, e lhe jurou. Qamaruzzamån levantou-se, tirou a roupa e caminhou
até o banheiro, onde se examinou, satisfez suas necessidades e pensou: “Não
existe poderio nem força senão em Deus! Farei isso forçado”, e subiu à cama
triste, temeroso, bambo, trêmulo e cabisbaixo. Ela lhe disse: “Vamos, meu
querido, sente-se sobre ele”, e se deitou de costas, tal como a mulher se deita
para o homem. Com as lágrimas escorrendo, Qamaruzzamån abriu as pernas
para um lado e para outro, descobriu o traseiro, sentou-se sobre suas coxas, que
estavam cobertas pela túnica,[331] e teve vergonha de lhe erguer a roupa. Ao
senti-lo sentado sobre si, as entranhas de Budœr se agitaram, ela sorriu e disse:
“Minha alma, por vida minha, estenda a mão por baixo da túnica, aperte meu
pênis e brinque com ele para que suba, pois é este o seu hábito”. Qamaruzzamån
disse: “Eu não me envolvo com nada que me prejudica, e isso que você está
ordenando é um ato que me fará mal; portanto, faça você a sua parte e levante
seu pênis como quiser, ou então me deixe em paz e me liberte. Não cometa
comigo nenhuma abominação!”, e chorou. Budœr gritou com ele e disse: “Sua
bichinha, que mal lhe fará? Esse é um hábito, o meu só se levanta depois que
outro brinca com ele! Estique a mão!”, e gritou com ele, que esticou a mão por
baixo da túnica e sentiu coxas mais macias que manteiga.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que parou de falar. Disse Dunyåzåd: “Maninha,
como é saborosa e boa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei contar-lhes na próxima noite”.


ª noite
Na noite seguinte, disse Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, conte-nos o que
ocorreu a Qamaruzzamån”, e ela respondeu: “Sim, com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Qamaruzzamån estendeu a mão por
baixo da túnica e, sentindo coxas mais macias que manteiga, pensou: “Por Deus
que nunca em minha vida vi nada mais macio do que este rei”; e subiu a mão
trêmula, pensando: “Esticarei minha mão, pegarei e apertarei seus testículos até
que ele morra”, e esticou a mão para o meio de suas pernas a fim de agarrar o
escroto do rei, mas ela caiu numa vagina gorda e macia, depilada e aterradora,
que parecia cardo liso e quente conforme se disse na poesia:

“Quando se tiram as roupas, ela tem escondida
na virgindade uma seta que ainda não se ergueu;
se você for picado, morda-a como compadecido,
mas, ao tirá-la, chupe-a como quem mama”.

Quando sua mão caiu ali, ele se espantou, riu, ergueu a cabeça para o rei, e
pensou: “Por Deus que essa é boa! Esse rei tem boceta?”, e perguntou rindo:
“Meu senhor, você é homem e tem boceta? Como poderei me sentar sobre ela?”.
Budœr riu, gargalhou, e disse: “O segredo se revelou, a verdade e o sigilo
surgiram, e acabaram-se os dias de esquiva e abandono! Quão depressa você me
esqueceu, ó Qamaruzzamån!”. Sentou-se, abraçou-o e soltou um grito; só então
ele a reconheceu, arregalou os olhos e disse: “Budœr, minha senhora!”; gritou e
caíram ambos desmaiados; depois se sentaram, beijaram-se, queixaram-se
mutuamente da ausência do outro e do quanto haviam sofrido após se separarem.
Qamaruzzamån lhe contou e recontou o que lhe ocorrera com o engaste, no
pomar, as aves e o ouro; madame Budœr, por seu turno, também contou e
recontou o que lhe sucedeu, como vestira suas roupas, chegara até ali, se salvara,
fora entronizada, se casara e mantivera a verdade sobre si oculta de todos.
Qamaruzzamån ficou contente, riu, e perguntou: “Por Deus, o que lhe deu na
cabeça para fazer aquelas coisas comigo?”. Ela respondeu: “Para que se realize
aquilo que irei fazer. Amanhã, se Deus quiser, se realizará”. Dormiram
abraçados até o amanhecer, quando então Budœr acordou, cobriu a cabeça e
mandou chamar o rei Armånœs, que foi até lá. Budœr lhe revelou a verdade
sobre si e sua história com Qamaruzzamån, mostrando-lhe que era mulher e que
sua filha continuava virgem até aquele momento. “E este aqui é Qamaruzzamån,
rei filho de rei. O que você me diz sobre ele, ó rei?”. Ao ouvir-lhe a história e o
que ocorrera a ela, o rei Armånœs ficou sumamente assombrado e disse: “Por
Deus que isso deve ser registrado com tinta de ouro”; voltando-se para
Qamaruzzamån, disse-lhe: “Meu filho, por Deus que o aceitamos, porque você é
rei filho de rei. Mas tenho uma condição: que você se case com a minha filha
Æayåtunnufœs; caso você não aceite, eu a farei sua concubina”. Budœr disse:
“Não, por Deus! Ela não será senão igual a mim: uma noite para cada uma.
Moraremos juntas numa só casa, pois me acostumei a ela e concordo com isso”.
O rei Armånœs ficou contente e mandou convocar os comandantes, os maiorais
e os principais conselheiros.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado. Sua
irmã lhe disse: “Como é boa a sua história, minha irmã”, e ela respondeu: “Isso
não é nada perto do que irei contar-lhes na próxima noite, se Deus altíssimo
quiser”.

2. Edição de Bœlåq, Cairo, 1835, vol. 1, pp. 381-384.

E quando foi a noite seguinte, que era a ª
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ver o engaste, a rainha Budœr deu
um grito de alegria e caiu desmaiada; quando despertou, pensou: “Este engaste
foi o motivo da separação de meu amado Qamaruzzamån, mas agora é um
prenúncio do bem”. Em seguida, avisou à senhora Æayåtunnufœs que o
aparecimento do engaste era prenúncio de que ela e seu amado se reuniriam.
Quando amanheceu, Budœr se instalou no trono e mandou convocar o capitão do
navio, que ao comparecer beijou o chão diante dela. Budœr lhe perguntou:
“Onde vocês deixaram o dono dessas azeitonas?”. Ele respondeu: “Ó rei do
tempo, nos o deixamos na terra dos magos, onde ele é capataz de um pomar”.
Ela disse: “Se não o trouxer para mim, não sabe os prejuízos que irão recair
sobre você e seu barco”; ordenou que os depósitos dos mercadores fossem
lacrados e lhes disse: “O dono dessas azeitonas me deve dinheiro e nunca pagou.
Se ele não me for trazido, irei matá-los todos e confiscar suas mercadorias”. Eles
então foram ao capitão e lhe prometeram o valor do aluguel do barco se ele
retornasse à terra dos magos. Disseram-lhe: “Livre-nos desse tirano”. O capitão
entrou no navio, içou velas e zarpou; Deus escreveu que chegaria bem; aportou
na península à noite e foi até o pomar, no qual Qamaruzzamån, insone na longa
noite, se recordava de sua amada e chorava pelo que lhe ocorrera. Nesse
momento o capitão bateu à porta, e Qamaruzzamån abriu-a e saiu, sendo então
agarrado pelos marinheiros, que o carregaram até o barco, içaram velas e
zarparam, avançando sem interrupção por dias e noites; ignorando o que
determinava aquilo, Qamaruzzamån indagou o motivo e lhe foi respondido:
“Você deve dinheiro ao rei da Península de Ébano, genro do rei Armånœs; você
roubou o dinheiro dele, seu safado!”. Ele disse: “Por Deus que nunca na minha
vida entrei nessa terra, que nem sequer conheço”. Mas eles continuaram
avançando até chegarem à Península do Ébano, quando então o conduziram até a
senhora Budœr, a qual o reconheceu logo que o viu e disse: “Deixem-no com os
criados para que o levem ao banho”. Liberou os mercadores e presenteou o
capitão com um traje honorífico no valor de dez mil dinares. Foi até
Æayåtunnufœs, informou-a daquilo e disse-lhe: “Guarde essa notícia até que eu
atinja o que pretendo; farei algo que será registrado e lido diante dos reis e dos
súditos”. Ela ordenara que conduzissem Qamaruzzamån ao banho e depois o
vestissem com indumentária de reis. Ao sair, inteiramente reanimado, ele parecia
um ramo de salgueiro ou um astro cuja ascensão envergonhava o sol e a lua.
Encaminhado até a rainha, entrou no palácio, e ela, ao vê-lo, encheu o coração
de paciência para atingir o que pretendia; presenteou-o com mamelucos, criados,
camelos e asnos, bem como com um depósito de dinheiro. E não deixou de
promover Qamaruzzamån de uma posição a outra até que o fez tesoureiro-mor,
deixando em suas mãos todo o dinheiro; aproximou-o de si e cientificou os
comandantes dessa nova posição; todos passaram a gostar dele, e a rainha Budœr
todo dia lhe elevava o salário, sem que Qamaruzzamån soubesse o motivo de
tamanho engrandecimento. Era tanto dinheiro à sua disposição que ele começou
a distribuir presentes e honrarias, e a servir o rei Armånœs, que também passou a
apreciá-lo, bem como os comandantes, a nobreza e o vulgo, que passaram a jurar
por sua vida. Enquanto tudo isso ocorria, Qamaruzzamån, admirado com tanto
engrandecimento por parte da rainha Budœr, pensava: “Por Deus que toda essa
afeição deve, imperiosamente, ter algum motivo. Talvez esse rei me conceda
todo esse exagero de honrarias em razão de algum objetivo corrupto. É
imperioso que eu lhe peça licença e viaje deste país”. Então ele foi até a rainha
Budœr e lhe disse: “Ó rei, você me concedeu amplas honrarias, e para completá-
las só falta me autorizar a viajar e eu lhe devolver tudo quanto me deu”. A rainha
Budœr sorriu e lhe perguntou: “O que o leva a pedir para viajar e a arrostar
perigos, gozando das mais amplas honrarias e das maiores benesses?”.
Qamaruzzamån respondeu: “Ó rei, tantas honrarias sem motivo são o espanto
dos espantos, sobretudo porque você me concedeu posições para as quais seria
mais lícito fazer outra seleção, pois eu ainda sou garoto, muito jovem”. Disse-lhe
a rainha Budœr: “O motivo disso é que gosto de você por causa da sua beleza
excessiva e pujante, e da sua formosura estupenda e meiga. Se você me der o
que desejo, eu lhe aumentarei as honrarias, as dádivas e as benesses, e o farei
vizir, malgrado a sua pouca idade, tal como as pessoas me fizeram sultão sendo
eu tão jovem. Não é de espantar que hoje os garotos governem; por Deus que é
excelente quem disse:

‘É como se o nosso tempo, por causa dos sodomitas,[332]
tivesse anelos de pôr no comando os mais jovens’”.

Ao ouvir tais palavras, Qamaruzzamån se envergonhou, suas faces se
enrubesceram até ficar parecendo tochas e ele disse: “Não tenho necessidade de
tais honrarias que levam a cometer pecados; viverei, isto sim, pobre em dinheiro
e rico de brios e virtude”.[333] Disse-lhe a rainha Budœr: “Não me iludo com o
seu temor a Deus, que deriva da fuga e do mimo. Por Deus, como é excelente
quem disse:

‘Lembrei-o do gozo sexual, e ele me disse:
‹Até quando vai me falar palavras dolorosas?›.
Mostrei-lhe então o dinheiro, e ele recitou:
‹Como escapar do destino implacável?›”.

Ao ouvir tais palavras e entender o sentido da poesia, Qamaruzzamån disse: “Ó
rei, eu não tenho o hábito dessa prática, nem posso suportar esse peso que
mesmo os mais velhos que eu não suportam. Que dizer então de mim, que sou
tão moço?”. Ao ouvir tais palavras, a rainha Budœr sorriu e disse: “Isso é
deveras assombroso! Como distinguir o erro do acerto se você é bem novo?
Como tem medo do pecado e de cometer crimes se você ainda não atingiu uma
idade em que possa ser responsabilizado? Não existe cobrança nem repreensão
para o delito do jovem. Sua argumentação se voltou contra você, e o
comprometeu com o gozo sexual; portanto, não afete, depois disso, empecilhos
nem rejeições. O desígnio de Deus é destino predeterminado. O temor de cair em
erro atinge a mim mais do que a você. Foi muito bem quem disse:

‘Meu pênis é grande e o pequeno me diz:
‹Enfie-o nas entranhas, como um valente!›.
Respondi: ‹Isso não é lícito›. Ele disse:
‹Para mim é!›, então o fodi conforme sua lei’”.

Ao ouvir tais palavras, as luzes do rosto de Qamaruzzamån foram substituídas
pelas trevas e ele disse: “Ó rei, você possui esposas e belas concubinas em
quantidade incomparável neste tempo. Por que as troca por mim? Experimente o
que você pretende com elas e deixe-me em paz”. Budœr respondeu: “Suas
palavras são corretas, mas as mulheres não saciam a dor e a tortura da paixão por
você, pois quando se corrompem os humores e a natureza, esta passa a não ouvir
nem obedecer aos conselhos. Portanto, deixe de argumentar e ouça os dizeres de
quem disse:

‘Acaso não vês que no mercado já se enfileiram frutas?
Alguns querem figo, mas a maioria quer sicômoro’.[334]

E também os seguintes dizeres:

‘Seu chocalho silencia mas seu cinturão barulha;
este a tudo dispensa e aquele da pobreza se queixa;
ignara, ela quer, com sua beleza, me distrair de você,
mas eu, após ter crido, não aceitaria a impiedade!
Juro, pelas faces que desprezam as tranças dela,
que não desculparei aquela que me quer distrair!’.[335]

E também os seguintes dizeres:

‘Ó homem de singular beleza, o amor por ti é minha fé
e minha escolha, acima de todas as outras doutrinas;
já abandonei as mulheres por tua causa, a tal ponto que
hoje as pessoas andam espalhando que sou monge’.

E também os seguintes dizeres:

‘Minha mente se distrai de Zaynab e Nawår
com a rosa de uma face sobre um triste rosto.
Fiquei, pelo antílope de túnica, apaixonado,
e nada digo sobre a paixão pelas de pulseira.
Ele é minha companhia, no clube e na solidão,
diferente da só companhia no repouso do lar.
Ó meu censor pelo abandono de Zaynab e Hind!
Minha justificativa é clara como a pura manhã!
Queres que me torne prisioneiro de prisioneira
sempre encarcerada ou por detrás das paredes?’.[336]

E também os seguintes dizeres:

‘Não compares um imberbe a uma fêmea nem ouças
detrator algum que afirme ser isto depravação.
Entre uma fêmea cujos pés o teu rosto beija,
e um antílope que beija o chão, diferença existe’.

E também os seguintes dizeres:

‘Seja eu teu resgate! Te quis de propósito,
pois tu não mestruas nem ovulas;
se tendêssemos a ficar com as hetairas,
nossa prole tornaria apertado um vasto país’.

E também os seguintes dizeres:

‘Ela me diz, colérica de tanto melindre,
após me pedir algo que não se consumou:
‹Se não foderes como o homem à mulher,
não me censures quando corno te tornares!
Teu pau parece ter a frouxidão da cera:
quanto mais o esfrego, mais se inclina›’.

E também os seguintes dizeres:

‘Ela disse, após eu me ter recusado a cobri-la:
‹Ó estúpido, que em sua ignorância se abstém,
já que não aceitas olhar de frente este nicho,
apresentemos-te um nicho que aceites olhar!›’.

E também os seguintes dizeres:

‘Ofereceu-me sua boceta macia,
mas eu disse: ‹Não foderei!›,
e ela se retirou dizendo:
‹Só a evita quem é torpe,
pois a foda pela frente neste
nosso tempo já foi abandonada›,
e virou para mim um cuzinho
que parecia prata fundida.
‹Muito bem, minha senhora!
Muito bem! Que eu não a perca!
Muito bem, ó mais larga
que as conquistas do nosso rei!›’.

E também os seguintes dizeres:

‘As pessoas pedem perdão com as mãos,
mas as mulheres o pedem com os pés!
Oh, mas que proceder meritório!
Eleve-o Deus para a parte mais baixa!’”.[337]

Ao ouvir todas essas poesias recitadas por ela, Qamaruzzamån se convenceu de
que não teria como escapar às suas pretensões e disse: “Ó rei do tempo, se isso
for mesmo imperioso, prometa-me que você só fará isso comigo uma única vez,
ainda que isso não sirva para corrigir uma natureza corrupta. Depois de fazê-lo,
nunca mais me peça para repetir, e quem sabe Deus corrija o que em mim se
corromper”. Ela disse: “Eu lhe prometo o que você quer, rogando a Deus que nos
perdoe e apague, com sua generosidade, os nossos mais terríveis pecados. O
âmbito de atuação dos astros do perdão não é tão estreito que não nos englobe e
nos absolva de nossas piores más ações, e nos retire das trevas da perdição para a
luz da boa senda. Acertou, e foi muito bem, quem disse:

‘As pessoas supuseram algo em nós e insistiram
nisso, dentre eles, algumas almas e corações.
Confirmemos pois suas suposições e os aliviemos
dos crimes a nós atribuídos e depois nos penitenciemos’”.

Depois ela lhe deu todas as promessas e os compromissos e lhe jurou por quem
possibilitava a existência que aquele ato não ocorreria entre eles senão aquela
única vez, ainda que a paixão por ele a levasse à morte e ao extravio. Nessas
condições, Qamaruzzamån foi com Budœr até o seu aposento particular, onde
ela apagaria os fogos de sua lubricidade; ele dizia: “Não existe poderio nem
força senão em Deus altíssimo e grandioso; isso é predeterminação do poderoso,
que tudo sabe”. Em seguida, extremamente envergonhado, arriou os calções, os
olhos escorrendo de tanto temor. Ela sorriu, subiu com ele para a cama e disse:
“Após esta noite, você não sofrerá mais nada desagradável”, e se inclinou sobre
ele aos beijos e abraços; enrolou as pernas nas dele e disse: “Estique sua mão
entre minhas coxas, até o conhecido,[338] e quiçá ele se levante e se erga de sua
prostração”. Qamaruzzamån chorou e disse: “Eu não sei fazer nada disso!”. Ela
disse: “Por minha vida, faça o que lhe ordenei e pegue nele!”. Então, com o
coração palpitando, ele esticou a mão e encontrou uma coxa mais suave que
manteiga e mais macia que seda; sentiu prazer ao toque e movimentou a mão por
todos os lados, até que chegou a uma cúpula cheia de bênçãos e contrações;
pensou: “Talvez esse rei seja hermafrodita, nem macho nem fêmea”, e disse: “Ó
rei, não lhe encontrei um membro igual ao dos homens! O que o leva, pois, a tais
atitudes?”. A rainha Budœr riu até cair sentada e lhe disse: “Meu querido, quão
rápido você esqueceu as noites que dormimos juntos!”, e lhe revelou sua
identidade. Só então ele reconheceu sua esposa, a rainha Budœr, filha do rei
Al©uyœr, dono das penínsulas e dos mares. Abraçou-a, e ela o abraçou; beijou-
a, e ela o beijou; deitaram-se afinal na cama do gozo, e se recitaram mutuamente
os seguintes versos de quem disse:

“Quando foi incitado a me buscar por uma virada
de pescoço, com doçura que por si se recomenda,
regando-lhe a secura do coração com sua brandura,
ele só aceitou após opor empecilhos e revoltas.
Os críticos temem que ela o veja quando aparece,
e ele chegou como quem do triunfo está convicto.
Os presentes reclamaram das ancas que sustinham
os seus pés, num passo à maneira de camela,
imitando, com seus olhares, o sabre bem afiado
em meio às trevas, no próprio brilho envolvido.
Sua fragrância me deu a boa-nova de sua vinda,
e voei então como ave que escapa da gaiola,
de minha face ao solo fazendo tapete à sua pisada,
e com o colírio de seu rastro meus olhos curando;
hasteei, abraçando-as, bandeiras do gozo amoroso,
e desfiz o nó de minha sorte malfazeja;
promovi festanças a cujo chamado respondeu
a pura emoção, livre do encanecido desgosto;
o plenilúnio enfeitou com estrelas os dentes
perfeitos, em rostos de bailarina volúpia.
Assentei-me ante o fórnice de seu prazer,
aquilo que, consumido, conquista o mais rebelde,
e o faz jurar pelos versículos da luz matinal em sua face,
sem esquecer de jurar pelo capítulo da sinceridade”.[339]

Então Budœr contou a Qamaruzzamån tudo quanto lhe ocorrera, do início ao
fim, e também ele contou a ela tudo quanto lhe ocorrera. Depois disso, passou a
censurá-la dizendo: “O que a levou a fazer isso comigo nesta noite?”. Ela
respondeu: “Não me leve a mal! Meu objetivo era gracejar e ampliar a alegria e
o regozijo!”. Quando surgiu a manhã, e sua luz iluminou e brilhou, a rainha
Budœr mandou chamar o rei Armånœs, pai da rainha Æayåtunnufœs, e o deixou
a par da verdade sobre si, que era esposa de Qamaruzzamån, e lhe relatou ainda
a história de ambos e o motivo da separação; também o informou que sua filha
Æayåtunnufœs continuava virgem. Ao ouvir a história da rainha Budœr, filha do
rei Al©uyœr, o rei Armånœs, dono da Península do Ébano, ficou sumamente
espantado e determinou que fosse registrada com tinta de ouro; depois voltou-se
para Qamaruzzamån e lhe disse: “Ó filho de rei, você gostaria de ser meu genro
casando-se com minha filha Æayåtunnufœs?”. Ele respondeu: “Somente após
consulta à rainha Budœr, pois a ela devo favores incomensuráveis”. E, ao
consultá-la, ela respondeu: “Este é o melhor parecer! Case-se com
Æayåtunnufœs e serei escrava dela, pois lhe devo reconhecimento pelas
gentilezas, pelo bem e pelas mercês que me fez, e também, sobretudo, porque
estamos no país dela, mergulhados na generosidade de seu pai”. Ao ver que a
rainha Budœr se inclinava a aceitar a oferta, e que não tinha ciúme de
Æayåtunnufœs, Qamaruzzamån se acertou com ela a tal respeito. E a aurora
alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado.
Anexo 2
anexo 2

Outra história de incesto

No Anexo do primeiro volume, apresentou-se a tradução de uma narrativa de
incesto contida na obra Alwå®i¬ almub∑n f∑ ∂ikri man istašhada mina-
lmu¬ibb∑n [“Livro esclarecedor e eloquente sobre os mártires do amor”], do
autor egípcio de origem turca ¢Alå’udd∑n Mu©al†åy Bin Q∑lij. Tal narrativa
apresenta alguma similaridade com a primeira parte da história do primeiro
dervixe, em especial na ª noite. Segue abaixo a tradução da narrativa que
possivelmente deu origem à de Mu©al†åy. Mais completa e detalhada, consta
da obra flamm alhawà [“Censura da paixão”], do historiador bagdali Bin
Aljawz∑ (século XII d.C.), o qual, por seu turno, faz o relato remontar ao juiz,
também bagdali, Abœ ¢Al∑ Almu¬assin Bin ¢Al∑ Attanœ∆∑, morto em 384
H./994 d.C.[340]


Mu¬ammad Bin ¢Abdulbåq∑ Albazzåz nos relatou o seguinte: Abœ Alqåsim
¢Al∑ Bin Almu¬assin Attanœ∆∑, a partir de seu pai, nos relatou o seguinte:
Ibråh∑m Bin ¢Al∑ Annaß∑b∑ me contou o seguinte: Abœ Bakr Anna¬aw∑ me
contou o seguinte: Abœ ¢Al∑ Bin Fat¬ me contou o seguinte: Meu pai me
contou o seguinte:
Certo ano, estava eu sentado em minha vila quando entrou um rapaz de belo
rosto e aparência, com vestígios de uma vida de bem-estar, e pediu uma casa
vazia para alugar ali na vila, cuja maior parte pertencia a mim. Fui com ele a
uma casa grande, bonita e vazia, e mostrei-a ao rapaz, que gostou dela, entregou-
me o valor do aluguel de um mês e levou a chave. No dia seguinte, chegou
acompanhado de um criado; abriram a porta, e o criado varreu e lavou a casa; o
rapaz se sentou, enquanto o criado saía e retornava após o entardecer,
acompanhado de um grupo de carregadores e de uma mulher; entraram na casa,
a porta foi fechada, e não lhes ouvimos nenhum ruído. O criado saiu antes do
anoitecer, enquanto o homem e a mulher permaneciam na casa. Por dias a porta
não foi aberta. Finalmente, ele veio a mim no quarto dia. Perguntei-lhe: “Ai de
você! O que tem?”. Ele então me fez um sinal de que estava se escondendo por
causa de dívidas, e me pediu que arranjasse alguém para comprar-lhe,
diariamente e de uma única vez, as coisas de que necessitava, e assim eu
procedi.
Uma vez por semana ele saía, contava muitos dirhams e os entregava ao
criado que eu lhe arranjara, a fim de que, com esse dinheiro, ele lhe comprasse,
para alguns dias, o suficiente de pão, carne, frutas, vinho e verduras, e lhe
enchesse de água os muitos cântaros que ele providenciara para aqueles dias; a
porta somente se abriria quando tais provisões se esgotassem.
Assim ele fez durante um ano; ninguém entrava em sua casa, nem dela saía;
nem eu nem mais ninguém o via. Até que, logo no início de certa noite, ele bateu
à minha porta; saí e lhe perguntei: “O que você tem?”. Ele respondeu: “Saiba
que a minha esposa está com dores de parto; socorra-me com uma parteira”.
Havia em minha casa uma parteira para a mãe de meus filhos, e eu a conduzi até
o rapaz. A mulher ficou com ele naquela noite, e, quando amanheceu, ela veio
até mim e contou que, à noite, a mulher dera à luz uma menina, de quem ela
tratara bem, mas que a parturiente estava à beira da morte, e retornou até ela. À
tardezinha a mulher morreu, e a parteira veio nos avisar.
O rapaz dizia: “Por Deus, por Deus, não me venha mulher nenhuma, nem
quem pranteie, nem vizinho me dar pêsames, nem ocorra nenhuma aglomeração
em minha casa!”. Assim eu agi. Encontrei-o chorando e gemendo de um modo
terrível. Arranjei as coisas para o funeral durante a primeira parte da noite; eu já
enviara alguém para escavar um túmulo num cemitério ali próximo de nós; os
coveiros se retiraram assim que anoiteceu, e fora ele que me fizera providenciar-
lhes a retirada; dissera: “Não quero que ninguém me veja. Eu e você
carregaremos o féretro, se puder me conceder essa gentileza e apreciar a
recompensa divina”. Fiquei encabulado e lhe disse: “Seja”. Quando estava a
ponto de escurecer, fui até ele e lhe perguntei: “Sai o enterro?”. Ele respondeu:
“Antes, por favor, faça a gentileza de levar esta criança para a sua casa, com uma
condição”. Perguntei: “Qual é ela?”. Respondeu: “Minha alma não suportará
viver nesta casa após a morte de minha companheira, e nem mesmo ficar nesta
cidade. Tenho enorme quantidade de dinheiro e de tecidos; faça a gentileza de
ficar com eles e com a menina; para sustentá-la, use esse dinheiro e os valores
provenientes dos tecidos, até que ela cresça; se acaso ela morrer e restar algum
dinheiro, será seu com as bênçãos de Deus. E se acaso ela viver, esse dinheiro
lhe bastará até que ela cresça, quando então sua vida estará garantida com isso
que você está vendo. Eu partirei após o enterro, e sairei da cidade”. Admoestei-o
e argumentei, mas não houve meio de convencê-lo, e então levei a criança para a
minha casa. Ele saiu carregando o féretro, e eu o acompanhei e ajudei. Quando
estávamos à beira da cova, ele me disse: “Por favor, faça a gentileza de se
afastar, pois quero me despedir dela, desvelar-lhe o rosto, olhar para ele, e só
então enterrá-la”. Assim fiz, e ele lhe desvelou o rosto e se debruçou sobre ela
aos beijos; em seguida, fechou-lhe a mortalha e fê-la descer à sepultura. Logo
depois ouvi um grito provindo de lá; fiquei com medo, acorri e olhei: eis que ele
puxara de um sabre desembainhado que estava amarrado sob suas roupas, sem
que eu soubesse, e se deitara sobre ele, que lhe penetrara o coração e saíra pelas
costas; o rapaz deu aquele grito e morreu, como se estivesse morto há mil anos.
Fiquei sumamente espantado com aquilo, e temi que se espalhasse e se
transformasse numa história. Deitei-o sobre ela na campa, ocultei-a por meio de
tijolos, joguei bastante terra por cima, ajeitei o túmulo e despejei sobre ele várias
jarras de água que tínhamos no local. Retornei e carreguei para a minha casa
tudo quanto havia na casa deles, coloquei tudo num quarto, lacrei-o e pensei: “É
imperioso que esse assunto tenha alguma consequência; não devo tocar nesse
dinheiro nem nessas mercadorias” – e era muito, equivalendo a milhares de
dinares –; “me encarregarei dos gastos com essa criança, e considerarei que a
encontrei na rua e que a criei pela recompensa divina”. E assim procedi. Passou-
se então cerca de um ano da morte do rapaz e da jovem.
Certo dia, estava eu sentado com meu pai quando passou um ancião com
vestígios de nobreza e boa vida, montado numa ágil asna; diante dele havia um
criado negro. Saudou-nos, estacou e perguntou: “Qual o nome desta vila?”.
Respondi: “Vila de Fat¬”. Perguntou: “Você é desta vila?”. Respondi: “Sim”.
Perguntou: “Mora aqui desde quando?”. Respondi: “Desde que nasci; é
conhecida por meu nome, e em sua maior parte pertence a mim”. Ele dobrou os
pés e desmontou. Levantei-me e o dignifiquei; ele se sentou à minha frente para
conversar comigo e disse: “Preciso de uma coisa”. Respondi: “Diga”. Perguntou:
“Você conhece, por estas bandas, uma pessoa que chegou há dois anos, um rapaz
cuja situação e características são as seguintes” – e descreveu o rapaz – “e que
alugou por aqui uma casa?”. Respondi: “Sim”. Perguntou: “Qual foi a história
dele? Que fim levou?”. Perguntei: “E quem é você para que eu lhe conte?”.
Respondeu: “Conte-me!”. Eu disse: “Não o farei, a menos que me fale a
verdade”. Ele disse: “Sou seu pai”. Contei-lhe então a história, em todos os seus
detalhes. Prorrompeu em prantos e disse: “Minha desgraça é que nem posso dar-
lhe minha bênção”. Supondo que estivesse aludindo ao suicídio, eu disse:
“Talvez ele tenha enlouquecido e se matado”. Ele chorou e disse: “Não foi a isso
que me referi. Onde está a criança?”. Respondi: “Está comigo, bem como as suas
coisas”. Ele disse: “Entregue-me a criança”. Respondi: “Não, a menos que me
fale a verdade”. Ele disse: “Dispense-me disso”. Respondi: “Juro-lhe por Deus
que somente assim o farei”. Ele disse: “Meu irmão, as desgraceiras do mundo
são muitas. Entre elas: este meu filho nasceu e lhe dei ensino e instrução;
nasceu-lhe uma irmã, um ano mais nova do que ele, e em toda a Bagdá não havia
mais bela. Ele se apaixonou por ela, e ela por ele, sem que soubéssemos. Depois,
seu caso foi descoberto. Repreendi-os e condenei-os, mas o caso chegou ao
ponto de ele deflorá-la. Quando a notícia chegou a mim, surrei-o com chicote, e
também a ela, e escondi o fato, temendo o escândalo. Separei-os e tranquei-os, e
a mãe deles foi tão rigorosa quanto eu, mas ambos se encontravam lançando mão
de um estratagema, como se fossem estranhos. Também essa notícia chegou a
nós, e então retirei o rapaz de casa e acorrentei a moça. Ficaram separados por
muitos meses. Eu tinha um criado que me servia, e que era como um filho, e foi
por meio dele que meu filho elaborou um estratagema para me enganar. Esse
criado entregava mensagens entre eles; acabaram por me tomar muito dinheiro e
tecidos, com os quais fugiram há dois anos. Para levar tudo e fugir, elaboraram
um estratagema que seria longo explicar. Não obtive mais notícias deles, e a
perda do dinheiro me foi aceitável, porque eles partiram e me deram descanso,
muito embora minha alma os quisesse bem. Há alguns dias recebi a notícia de
que aquele criado estava morando em certa rua, e o surpreendi em sua casa; ele
subiu no telhado. Disse-lhe: ‘Por Deus, fulano, o que fizeram meus filhos? A
saudade por eles me matou! Você está em segurança’. Ele respondeu: ‘Você deve
ir à vila de Fat¬, no lado ocidental. Indague sobre ambos lá’. E pulou para outro
telhado e fugiu. Eu sou fulano, um dos mais prósperos mercadores do lado
oriental”. Chorando, continuou: “Mostre-me a sepultura”. Fui com ele e lhe
mostrei a sepultura. Depois voltamos, introduzi-o em minha casa, mostrei-lhe a
criança, que ele se pôs a beijar intensamente e a chorar. Carregou-a e se
levantou. Eu lhe disse: “Fique em seu lugar. Leve as suas coisas”. Ele respondeu:
“Eu as concedo a você; use-as da maneira que desejar”. Passei então a lisonjeá-
lo, até que conquistei a sua simpatia, e lhe disse: “Leve o dinheiro e me alivie
desse fardo”. Ele disse: “Com uma condição: que o dividamos entre mim e
você”. Eu disse: “Não aceitarei um único grão dele”. Ele disse: “Então chame
carregadores”, e eu os trouxe. E o homem partiu levando a herança e a criança.
[1] Ressalve-se, conforme já se afirmou no primeiro volume, que nem todos os estudiosos do livro aceitam
essa divisão. Leia, por exemplo, a crítica de Patrice Coussonnet no Bulletin Critique des Annales
Islamologiques, n. 5, 1988, pp. 15-18. Discuti o assunto em “O ‘prólogo-moldura’ das Mil e uma noites no
ramo egípcio antigo”, in Tiraz, Revista de Estudos Árabes e das Culturas do Oriente Médio. São Paulo, n.
1, 2004, pp. 70-117.
[2] 2 Ilustração característica desse procedimento são os trabalhos de Cosquin, E., “Le prologue-cadre des
Mille et Une Nuits, les légendes perses et le livre d’Esther”, extrait de la Revue Biblique Internationale,
1909, e Pryzulski, J., “Le prologue-cadre des ‘Mille et Une Nuits’ et le thème du Svayamvara”, Journal
Asiatique, 1924, pp. 101-137. A título de comparação, pense numa fórmula que pretendesse reduzir
Machado de Assis a esquemas abstraídos de autores diversos que sabidamente ele lia e conhecia, como
Stendhal, Sterne, Prevost e Voltaire; ou o Livro do Gênesis, na Torá, a tópicas extraídas de mitos
babilônicos.
[3] Lembre-se que o mais antigo de seus manuscritos, ora utilizado nesta tradução (“Arabe 3609-3611”),
contém, como mais antigo registro de leitura, uma datação, com letras árabes, correspondente ao ano de
1455 d.C. Mahdi calcula que, pelo papel e pela tinta, pode-se garantir que o manuscrito foi produzido pelo
menos um século antes dessa data. Como o responsável pelo registro, Bin Ab∑ Alfaraj Bin Sulaymån,
utilizou a datação cristã, talvez fosse essa a sua religião.
[4]No primeiro volume, da quadragésima sexta à quadragésima oitava noite.
[5]Neste volume, da 171ª à 200ª noite.
[6]Neste volume, da 230ª à 271ª noite.
[7]Neste volume, da 272ª à 282ª noite, e, depois, a partir da p. 181, inteira, da nonagésima segunda à 166ª
noite; leia adiante a explicação para essa quebra na sequência da numeração.
[8]Com exceção da edição de Breslau, sobre a qual se falará no próximo volume.
[9]Embora ninguém se tenha dado o trabalho de contá-las, é possível que, nesse manuscrito, a quantidade
das noites não seja essa, devido aos recorrentes saltos e repetições na numeração, e à sucessão de dezenas
de páginas sem divisão alguma. A confusão desse manuscrito comprova, conforme Muhsin Mahdi, que até
o século xvii, apesar de tentativas esparsas de copistas aqui e acolá, o corpus “completo” (ou “ampliado”)
do Livro das mil e uma noites, salvo as histórias mais antigas, ainda não fora estabelecido.
[10]Corrobora essa suposição o fato de a história de Qamaruzzamån se abrir, no manuscrito “Bodl. Or.
551”, sem nenhuma referência a ¸ahråzåd. Cf. na p. 181 deste volume.
[11]Os dados sobre a história desse manuscrito foram extraídos do segundo volume da edição de Muhsin
Mahdi, pp. 280-290. Com base nas pesquisas da estudiosa egípcia Fatima Moussa, esse autor informa ainda
que a inédita (até 1994) tradução de Beckford é a primeira realizada diretamente do árabe para o inglês.
[12]No manuscrito, a numeração vai da nonagésima segunda à 166ª noite, mas, como o copista saltou
inadvertidamente a 155ª noite, a tradução renumerou as últimas noites, pois insistir nessa distração seria um
zelo inoportuno.
[13]A presente história – cuja linguagem é a mais difícil de todo o livro – foi suprimida nos manuscritos do
ramo egípcio antigo das Mil e uma noites. A exceção é o manuscrito “Arabe 3612”, no qual ela se encontra
deslocada para mais adiante, ocupando da 229ª à 250ª noite. Tal deslocamento, que também ocorreu nas
edições impressas, revela que, no ramo egípcio, ela somente foi reincorporada às Mil e uma noites quando
das tentativas mais tardias de completar o livro. O nome ¸amsunnahår significa “sol do dia”, e seu status –
apesar de “concubina” indicar condição inferior à de “esposa” – é o de uma espécie de “preferida” ou
“favorita” do califa, o que lhe proporcionava vários privilégios. Salvo algumas poucas exceções (como no
início da 172ª a noite), o personagem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår é chamado, na maioria das passagens
desta história, de ¢Al∑ Bin Bakkår, sem o Nœrudd∑n, forma que prevaleceu afinal no ramo egípcio. Para
evitar confusões, porém, a tradução acrescentou sempre o primeiro nome do personagem, o qual, sobretudo
a partir das traduções francesas, passou a ser chamado de Ali Ben Becar. O nome Bakkår possivelmente
significa “madrugador”.
[14]Como o narrador muda sem que isso seja diretamente explicitado no texto, considerou-se adequado, tal
como procedeu Muhsin Mahdi em sua edição crítica, indicar quem fala: além de ¸ahråzåd, a história
também é contada pelo perfumista Abœ Al¬asan e, mais adiante, pelo joalheiro e pela serva. Ainda assim,
em mais de um momento a tradução foi obrigada a efetuar pequenas alterações ou acrescentar frases
explicativas para tornar o texto inteligível, como “mais tarde, Abœ Al¬asan contaria” etc.
[15]“Teca”, såj, de acordo com o Dicionário Houaiss, é “árvore (tectona grandis) da família das labiadas,
nativa da Índia, de folhas opostas e flores brancas em panículas terminais, cuja madeira amarela é usada em
carpintaria, marcenaria e construção naval”.
[16]O discurso de Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår é praticamente incompreensível. De acordo com Muhsin
Mahdi, nesse trecho a sua fala imita o árabe dos persas. Por “encarregado” traduziu-se wak∑l, e por “quem
lhe deu poderes” se traduziu muwakkil. Para alguns, essas duas palavras fariam referência, respectivamente,
ao jovem Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e a ¸amsunnahår; para outros, a ¸amsunnahår e ao califa Hårœn
Arraš∑d, o que é improvável, uma vez que, mais adiante, o jovem demonstra desconhecer com quem está
tratando.
[17]O último verso é quase incompreensível: fa-inna alajra maytuhu šah∑du.
[18]“Foi o meu estratagema que possibilitou reunir vocês dois aqui” é tradução de wa qad amkanatn∑
al¬∑la ¬attà jamma¢tu baynakumå. O trecho parece incoerente, uma vez que, aparentemente, não se
verifica nenhuma influência do “estratagema” (al¬∑la) do perfumista na reunião dos dois jovens. Também
parece incoerente a pergunta do jovem sobre a identidade da moça, uma vez que isso fora revelado antes.
[19]“No arco dos brios”, f∑ qaws almurœ’a: preferiu-se traduzir literalmente essa metáfora, ainda que um
pouco desajeitada em português.
[20]A expressão “rosas múltiplas” traduz alward almu®a¢¢af.
[21]A frase “Após o ardor, os jogos e as conversas, nada melhor do que folgar compartilhando o pão”
traduz lå yakœn ba¢da-la©®å wa-lmumåza¬a wa-lmu†åra¬a illå-lmubåsa†a f∑-lmumåla¬a.
[22]“Variedade de batidas nas cordas” traduz imtizåj tarj∑¢atihå bi-awtårihå.
[23]Embora o original traga rawšan, que significa mais propriamente “claraboia”, o sentido aqui é “salão”.
[24]O termo ˝aråm significa “paixão”.
[25]“Canoa” traduz o coloquialismo iraquiano summåriyya, cuja forma correta, conforme Dozy, seria
sumbåriyya.
[26]A fala do perfumista ao anfitrião não é fácil de compreender, e foi alterada em outras versões, como a
do manuscrito “Arabe 3612”, que traz: “Por Deus, meu irmão, o que me fez sair e tornou isso necessário
para mim foi um sujeito com o qual negociei algum dinheiro; tive a notícia de que ele pretendia viajar com
meu dinheiro e o de outras pessoas; saí então nesta noite para ir atrás dele, e tomei a companhia deste
cavalheiro, Bin Albakkår; eu o trouxe comigo e viemos às escondidas, mas o homem o viu e se escondeu de
nós; como não o vimos, voltaremos de mãos vazias, mas ficou difícil regressar assim no meio da noite; sem
saber para onde nos dirigir, viemos a você, na tentativa de experimentar a sua generosidade, benemerência e
bons hábitos”.
[27]As versões da edição de Bœlåq e do manuscrito “Arabe 3612” modificam essa passagem, que apresenta
problemas para a compreensão, e a transformam numa fala contínua. Eis a tradução do que consta no
manuscrito: “Por Deus que é absolutamente imperioso distrair, reconfortar e divertir esse rapaz da situação
em que se encontra, pois eu estou bem a par do que lhe sucedeu, e graças a Deus, que nos salvou da melhor
maneira daquilo em que estávamos”.
[28]Até este ponto, o parágrafo, em conformidade com o procedimento adotado por Muhsin Mahdi, foi
traduzido do manuscrito “Arabe 3612”, bem como o próximo parágrafo e a poesia que o segue.
[29]Li¬å≈ul¢åšiq significa, aproximadamente, “marca no olho do apaixonado”.
[30]Falaqulmahjœr significa “alvorada do abandonado”.
[31]“Será que quem voar conseguirá se livrar” traduz a enigmática frase coloquial hal man yi†∑r
yitzawadhu. O manuscrito “Arabe 3612” traz: “Quem me livrará de suas desventuras?”. Note-se que, para
despistar, Nœrudd∑n se refere a ¸amsunnahår no masculino.
[32]Toda essa fala é de compreensão muito difícil. A tradução procurou se apoiar, não raro inutilmente, no
manuscrito “Arabe 3612”.
[33]“Se o seu relato transmitir o que de fato tiver ocorrido” é tradução de in anta j∑ta bil¬ad∑¥ ¢alà
jaliyyatihi, literalmente, “se você trouxer a história (¬ad∑¥) em sua verdade”, frase em que a palavra ¬ad∑
¥ funciona como “narrativa” e “ocorrência”.
[34]Embora pareça anacronismo, “classe média” é tradução de awså† annås, literalmente, “os medianos (no
sentido social) dentre os homens”.
[35]Apesar de não parecer, trata-se de uma expressão dialetal (hawwin ¢alayk) de censura ainda hoje muito
usada.
[36]O trecho “que as almas dos seres humanos [...] equivalem” traduz a obscura formulação anna arwå¬a-
nnåsi mutadånyatun f∑-š ahwåti wa in tabå¢adati-la¬wåli wa-la©rå®a mutaqåribatun wa in tanå’at
baynahumu-laf¢ålu, wa-nnåsu bi-nnåsi. Outra tradução possível (com interpretação diversa das relações
sintáticas entre os termos) seria: “que as almas das pessoas convergem na busca de prazeres ainda que
divirjam suas condições e propósitos; que são próximas, mesmo que as suas ações sejam distanciadas, pois
as pessoas se utilizam de outras pessoas”.
[37]Trata-se de mais uma poesia praticamente ininteligível, que talvez por isso tenha sido suprimida no
ramo egípcio do livro.
[38]Note-se que, conforme a preceptiva retórica árabe, essa imagem se constitui como impossível absoluto,
e é disso que deriva a sua força.
[39]O trecho “inteiramente depredada” traduz a formulação alcorânica hiya ∆åwiyatan ¢alà ¢urœšihå
(Alcorão, 2, 259 e 18, 42).
[40]Na edição de Bœlåq, os eventos são distintos: após as poesias, o joalheiro deixa os dois sozinhos,
retorna para casa, dorme, acorda, reza e bebe qahwa (“vinho” ou “café”, uma das raras menções a essa
palavra na obra), sendo então avisado do assalto pelo vizinho. A redação muito elíptica e obscura do texto
pode ter sido um dos motivos da reformulação. No manuscrito “Arabe 3612”, a narrativa está resumida.
[41]A elipse, que consta nos manuscritos e edições impressas, talvez não permita subentender que, antes de
dar essa ordem gestual, o chefe dos cavaleiros já desembarcara junto com ¸amsunnahår e outros cavaleiros.
[42]“Vá em boa companhia” traduz a obscura expressão (nesse caso) mußå¬aban. Talvez queira dizer “Vá
com Deus”.
[43]O trecho entre aspas simples é provérbio popular.
[44]Quanto ao trecho “avise-o para que esteja preparado para o pior até que ajeitemos as coisas”, o original
é quase incompreensível. Muhsin Mahdi sugere que se leia: im®∑ ilà ¢Al∑ Bin Bakkår yå∆ud linafsihi
¢annå ¬attà nakœn qad dabbarnå nufœsanå.
[45]Antiga cidade situada à beira do rio Eufrates. Foi capital da dinastia abássida antes da fundação de
Bagdá. Hoje, é nome de um distrito do Iraque.
[46]“Tínhamos a maior amizade e bem-querer” traduz wa anå a¢azz a߬åbihi wa a¬båbihi, literalmente,
“eu era o seu maior amigo e amado”.
[47]O trecho “repetiu a oração ritual” traduz o verbo rajja¢at, ou seja, disse a habitual frase muçulmana
innå lillåhi wa innå ilayhi råji¢œn, “a Deus pertencemos e a ele retornaremos”. Na formulação seguinte,
“enumerou-lhe os méritos” traduz o verbo ¢addadat, que indica justamente esse procedimento, comum
durante os funerais muçulmanos.
[48]Essa poesia, de difícil compreensão, aplica de modo um tanto informe a tópica das armas e das letras,
que associa a bravura guerreira ao saber letrado.
[49]Conforme diz Muhsin Mahdi, o texto parece fazer referência a um personagem histórico – Mu¬ammad
Bin Sulaymån Bin ¢Abdillåh Bin Mu¬ammad Bin Ibråh∑m, conhecido por Azzaynab∑ –, primo do califa
Hårœn Arraš∑d, que o teria nomeado governador de Basra.
[50]Em algumas passagens, o primeiro nome do vizir é Alfa®l (“superioridade”, “mérito”); em outras,
Fa®ludd∑n (“superioridade [ou mérito] da fé”). Preferiu-se, como padrão, a segunda forma.
[51]Falta um hemistíquio dessa poesia no original; completada a partir do manuscrito “Gayangos 49”. Mais
adiante, na descrição da jovem, “estatura mediana” traduz ∆umåsiyyat alqadd, “de cinco pés de altura”
(cerca de 1,5 metro), medida que não se deve, obviamente, levar ao pé da letra.
[52]Essa poesia já fora recitada durante a quinquagésima quarta noite, na história do terceiro dervixe.
[53]Literalmente, “Por que não transferir para cá o que está ali?”.
[54]Por absoluta falta de correspondente em português, “muito bem” traduz a expressão na¢∑man (“bem-
estar” ou “delícia” na forma acusativa ou adverbial), comumente usada em árabe depois que se corta o
cabelo, se faz a barba, se sai do banho etc. Já o nome da jovem, An∑suljal∑s, significa “aquele (ou aquela)
que é afável com os convivas”.
[55]Na edição de Bœlåq, o nome desse personagem está invertido: ¢Al∑ Nœrudd∑n.
[56]Note-se que essa narrativa de hipotéticos eventos futuros se dá num tom de fato consumado.
[57]O trecho entre aspas simples é um provérbio.
[58]Conforme se nota, o status de An∑suljal∑s não é o de esposa, embora ela, na prática, exerça esse papel.
[59]Essa curiosa poesia, cujo ponto de vista é o do morto, descreve os passos do ritual funerário
muçulmano, no qual o corpo deve ser lavado e amortalhado, e em cuja prece específica (realizada de corpo
presente), ao contrário das outras preces, não se faz a prosternação característica dessa religião.
[60]Esses versos já apareceram outras duas vezes neste livro: na primeira noite (são os quatro últimos da
poesia recitada pelo mercador diante do ifrit que pretende matá-lo), e na 104ª noite (recitados pela mulher
do médico judeu).
[61]Expressão muçulmana de reverência que significa “peregrino”. É usada para indicar quem fez a
peregrinação a Meca, ou, ainda, pessoas respeitáveis que estão em idade de fazê-la.
[62]O trecho “o procedimento básico é o de sempre” traduz o sintagma alußœl ma¬fœ≈a, literalmente “os
fundamentos estão preservados”.
[63]A origem das escravas varia nos manuscritos. Assim, há também berberes, circassianas, etíopes, turcas,
hircanas etc. “Franco”, ifranj∑ ou faranj∑, era como os árabes se referiam a quem fosse da Europa
Setentrional (germânicos, francos, anglo-saxões etc.). Já “grego”, rœm∑, poderia ser utilizado para os
cristãos da Europa Meridional, tais como os latinos e os gregos.
[64]O termo “plátano” traduz mawza, que também pode significar “banana”, o que manteria o paralelismo
com a formulação anterior (“nem todo redondo é noz”). Como o texto é, pelo menos, do século xiv, e não se
sabe se nessa época a banana já era conhecida no Velho Mundo – conquanto se creia comumente que essa
fruta seja originária da América, existem controvérsias, havendo mesmo quem proponha que a palavra
banana vem do árabe –, preferiu-se evitar o risco de anacronismo. O dicionário Lisån Al¢arab, de Bin
Man≈œr (1232-1311), registra somente o sentido de “plátano”.
[65]Na edição de Bœlåq, o jovem diz o contrário: “Mesmo que eu vendesse o que tenho em casa, não
alcançaria o seu valor”. Esse é um exemplo de como a reformulação da história lhe empobreceu o sentido
por meio da reiteração de detalhes e eliminação de sutilezas.
[66]¢Alamudd∑n significa “estandarte da fé”.
[67]Essa poesia já apareceu duas vezes neste livro: na trigésima oitava noite, recitada pelo carrasco
encarregado de executar o primeiro dervixe, e na septuagésima quinta noite, por um ex-servo que foi avisar
a Nœrudd∑n ¢Al∑ do Egito que o rei de Basra pretendia prendê-lo, numa situação muito similar a esta.
[68]Preferiu-se aqui manter a metáfora, muito comum em árabe para cidades prósperas, de que são elas que
se movimentam, tal é a agitação nelas verificada.
[69]Essa poesia já foi recitada na quadragésima segunda noite, na história do segundo dervixe.
[70]Cantor e músico (767-850 d.C.) de grande e reconhecida habilidade. Era muito apreciado pelo califa
Hårœn Arraš∑d.
[71]Alcorão, 14, 3.
[72]O trecho “estou cansado e sonolento”traduz, conforme sugestão de Muhsin Mahdi, a expressão anå
¢åyyib. Mas pode se tratar de anå tå’ib, “já me penitenciei disso”. Os manuscritos “Arabe 3612” e “Bodl.
Or. 550” e a edição de Bœlåq coincidem em atribuir ao xeique a afirmação de que “há treze anos eu não
bebo (ou ‘provo’, ou ‘faço’) isso”.
[73]Provérbio popular.
[74]A circuncisão dos filhos é uma ocasião festiva, cujo ritual envolve a presença de pessoas versadas em
religião.
[75]Kar∑m significa “nobre”, “generoso”, e é um dos 99 epítetos de Deus.
[76]O escritor egípcio Ibn ˛åfir (m. 623 H./1226 d.C.) consagra um pequeno capítulo a esse peixe
(“Analogias que se disseram a respeito do macio råy”) em seu interessante ˝arå’ib attanb∑håt ¢alà ¢ajå’ib
attašb∑håt, “As mais insólitas advertências quanto às mais espantosas analogias”. Em nota, os
organizadores da edição explicam: “peixe nilótico em cuja cauda há uma pinta vermelha; come-se frito e
salgado”. Observe-se que, sintomaticamente, trata-se de um peixe característico da região do Nilo, e não da
Mesopotâmia.
[77]O trecho “a prosa é palavra solta, e a poesia é metrificação” traduz anna¥r kalåm wa-šši¢r ni≈åm, frase
na qual não se pôde vislumbrar preferência alguma. Leia a fala posterior à poesia.
[78]O trecho “a guarda honorífica e o diploma de nomeação” traduz tašr∑fa wa taql∑d, palavras cujo
campo semântico parece próximo e para as quais não há nos dicionários definições satisfatórias. Preferiu-se
ler a primeira, tašr∑fa, como “guarda honorífica”, para evitar redundâncias e para seguir a lógica das
nomeações, pois os nomeados certamente tomavam posse do cargo acompanhados de alguma força militar.
[79]Qu†ay† significa “gatinho”.
[80]Essa poesia é constituída de quatro versos, com uma única modificação, de uma poesia bem maior já
recitada na quinquagésima segunda noite pelo segundo dervixe.
[81]Esses são os dois primeiros versos recitados pelo médico Dœbån na décima sétima noite, depois que o
rei que o condenara à decapitação foi morto pelo veneno.
[82]Na edição de Bœlåq e no manuscrito “Arabe 3612”, Nœrudd∑n pede às pessoas que não intervenham e
recita uma poesia. Na edição impressa, são os próprios criados do vizir que se revoltam, ao passo que no
manuscrito-base é a população que acompanha o processo.
[83]Alusão a Æusayn, filho mais novo de ¢Al∑, primo do Profeta e quarto califa do islã. Reverenciado
pelos xiitas junto com o pai, Æusayn (ao contrário de seu irmão mais velho, Æasan, que fez um acordo e se
afastou das lutas pelo poder califal) foi massacrado com seguidores e familiares em 61 H./680 d.C. na
cidade de Kerbala, no Iraque, pelas tropas do califado omíada. Antes do massacre, eles foram privados de
água.
[84]Esta história consta originariamente da mesma coletânea do século xii da qual foram extraídas as
histórias dos irmãos do barbeiro, isto é, Al¬ikåyåt al¢aj∑ba wa ala∆bår al©ar∑ba, “Histórias espantosas e
crônicas insólitas”; no ramo egípcio antigo, somente se manteve no manuscrito “Arabe 3612”, no qual vai
da 177ª noite (equivocadamente numerada como 179ª) à 197ª noite, além do ramo tardio representado pela
edição de Bœlåq, na qual ocupa da 738ª à 756ª noite.
[85]O ¿uråsån – em português é comum ver-se a grafia “Khurassan” na imprensa – é uma região situada no
Nordeste do Irã, e seu nome significa “lugar onde nasce o sol”. Em tradução literal, o texto diz “era na
cidade de ¿uråsån”, fórmula usualmente utilizada para indicar a capital da região, no caso, N∑šåpœr
(compare-se com “cidade do Egito”, que indica o Cairo). Contudo, conforme se verá adiante, a história se
passa numa cidade à beira-mar. Seria mero engano ou teria o autor pensado em algum rio? Nas Histórias
espantosas... e no manuscrito “Arabe 3612”, o nome do rei é ¸åhriyår; na edição de Bœlåq, ¸ahramån.
[86]Albay®å’ significa “a branca”.
[87]Alcorão, 77, 20-21.
[88]Jullanår, em persa, significa “flor de romãzeira”. Em português, a forma “Gulnare”, ao modo de
Galland, foi adotada por Gonçalves Dias nas Sextilhas de frei Antão (“Gulnare e Mustafá”).
[89]Øåyi¬, “aquele que grita”. Por equívoco, neste ponto o manuscrito registra Øåli¬ modificando-o depois
para Øåyi¬). Øåli¬ consta da edição de Bœlåq e das Histórias espantosas..., e significa “bom”, “íntegro”
etc.
[90]Embora isso pareça estranho, todas as redações trazem katif, “ombro”.
[91]Alcorão, 55, 60.
[92]Badr, “plenilúnio”. O manuscrito “Arabe 3612” e a edição de Bœlåq acrescentam Båsim, “risonho”.
[93]“Estandarte real” é a tradução de ©åšya, palavra que normalmente significaria “véu”. Sobre o sentido
aqui traduzido, Dozy, no Supplément..., observa o seguinte: “Sob os seljúcidas, os mamelucos etc., [a
©åšya] constituía uma das insígnias da ssoberania, e era carregada diante do sultão”.
[94]Alcorão, 3, 185; 21, 35 e 29,57.
[95]Poesia completada com base na edição de Bœlåq.
[96]Jawhara, “gema” ou “pedra preciosa”.
[97]Samandal (que em mais de um passo, por provável equívoco de cópia, ora aparece como ¸amandal, ora
com artigo definido, Assamandal ou Aššamandal) significa “salamandra”.
[98]Nesse ponto, tanto os manuscritos como as edições impressas dizem o mesmo (“era minha companheira
em nossa infância”); é lícito supor, contudo, que falta, no início, a expressão “sua mãe”.
[99]Alcorão, 2, 286.
[100]Provérbio.
[101]Provérbio.
[102]O trecho “as coisas se voltem contra nós” traduz wa yunfad alamr ¢alaynå, construção obscura que
talvez seja fruto de erro de cópia. Usou-se o manuscrito “Arabe 3612” e a edição de Bœlåq.
[103]O nome da avó, que não aparece na edição de Bœlåq nem nas Histórias espantosas..., significa
“borboleta”.
[104]A pomba da comparação talvez não seja uma solução precisa para traduzir o original ¬amåma rå
¢ibiyya, locução que já foi utilizada na sexagésima terceira noite, e que, segundo o dicionário de Bin
Man≈œr, designa “a pomba que arrulha com muita intensidade [...]; também se diz que se trata de referência
a algum local cuja grafia não conheço”. O mesmo Bin Man≈œr refere cognatos do adjetivo rå¢ib∑ (ra¢bab,
ru¢bœb), que indicam “brancura suave”.
[105]A expressão “retificação (ou ‘disposição’) do sol” traduz taqw∑m aššams, e é o que consta em todas
as redações das Mil e uma noites. Nas Histórias espantosas... consta šams almalika, “sol da rainha”,
possível deformação de šams almamlaka, “sol do reino”.
[106]Abœ significa “pai [de]” e ¢Abdillåh significa “servo de Deus”; portanto, “pai do servo de Deus”.
[107]Tais palavras parecem aludir a uma passagem do Alcorão (35, 21), na qual se condena essa espécie de
juramento.
[108]Acréscimo da tradução devido à mudança do narrador.
[109]O termo “rolaram” traduz o vulgarismo dawlaba, que não consta das outras redações (edição de
Bœlåq, manuscrito “Arabe 3612” e Histórias espantosas...), e cujo significado somente é possível inferir
pelo contexto. Dozy informa que essa palavra indicava, no período mameluco, um imposto cobrado sobre o
uso do dœlåb, “roda hidráulica”. Termos cognatos têm o sentido de “rodar”, “girar”, “revirar(-se)” etc., daí a
presumível extensão de sentido.
[110]O original traz “ó rei Badr”, num aparente contrassenso, já que a mulher nada sabe de seu passado.
Existe a possibilidade de que, sendo ela rainha, o clima de intimidade e cumplicidade instaurado entre
ambos a levasse a tratá-lo por “rei”, o que sem dúvida consistiria numa grande sutileza por parte do autor.
Porém, como é mais provável que seja engano (a passagem é bem diferente das Histórias espantosas...),
traduziu-se conforme consta do manuscrito “Arabe 3612” e da edição de Bœlåq.
[111]Literalmente, “cerca de um arrátel” (miqdår ra†l), medida que equivale a 459 gramas.
[112]A expressão “útil estratagema” traduz maßla¬a, cuja tradução literal é “interesse”.
[113]O verbo traduzido por “modificar” é yu©ayyir, que também pode ser lido como yu©∑r, “causar
ciúmes”. Aliás, é bastante plausível que se trate de um jogo de palavras.
[114]Aparentemente, existe uma lacuna neste ponto. O manuscrito “Arabe 3612”, a edição de Bœlåq e as
Histórias espantosas... apresentam redações mais ou menos semelhantes para tal lacuna. A melhor é a do
manuscrito “Arabe 3612”: “Ordenaram que fossem libertados os prisioneiros do reino transformados em
toda espécie de animal, livrando-os da situação em que se encontravam. O velho ¢Abdullåh tornou-se rei da
Cidade dos Feiticeiros. Então, o rei Badr, sua mãe e sua avó se despediram dele e regressaram ao seu
reino”.
[115]Nos manuscritos do ramo egípcio, esta história somente se encontra (incompleta) no “Arabe 3612” (da
245ª à 289ª noite) e (completa) no “Bodl. Or. 551” (da nonagésima segunda à 166ª noite), além das edições
impressas – na edição de Bœlåq e na segunda de Calcutá, encontra-se da 170ª à 249ª noite; na de Breslau,
da 218ª à 243ª noite. Conforme se discutiu na nota introdutória a este volume, parece que a narrativa de
Qamaruzzamån somente reencontrou seu lugar no ramo egípcio durante o processo de reformulação do
livro. Leia a história completa a partir da p. 181 deste volume.
[116]Nas edições impressas, e no manuscrito “Arabe 3612”, o nome desse rei é ¸åhramån; no manuscrito
“Bodl. Or. 551”, primeiramente aparece Armåmœnis (provável erro de cópia, por Armånœs), e depois,
igualmente, ¸åhramån (forma que, aliás, é quase idêntica a ¸åhzamån, nome do irmão do rei ¸åhriyår;
apenas um pingo as diferencia). No manuscrito “Arabe 3612”, o reino é inicialmente localizado em Tawr∑z
(mais conhecida como Tabr∑z, atualmente no Norte do Irã, e que os antigos geógrafos muçulmanos
situavam na província do Azerbaijão); a partir de certo momento, porém, o lugar é identificado como as
“Ilhas ¿alidån”, de localização incerta (veja as notas à história completa, a partir da p. 181).
[117]Qamaruzzamån significa “lua do tempo”. Lembre-se que, em árabe, “lua” é palavra masculina, ao
passo que “sol” é feminina.
[118]Com variações mínimas, essa poesia já fora recitada na vigésima primeira e na septuagésima terceira
noite.
[119]O trecho “ficar prevenido contra ele” traduz tahattaka ¢alayhi, locução para a qual os dicionários não
apresentam solução razoável.
[120]Essa poesia, com alterações mínimas, já foi recitada na septuagésima quarta noite. E, como se
observou ali, o último hemistíquio é uma visível paródia da profissão de fé islâmica: “declaro que não há
divindade senão Deus”.
[121]Os quatro primeiros hemistíquios desta poesia encontram-se, com variação mínima, no “prólogo-
moldura” do manuscrito “Arabe 3615”. Conforme observa Muhsin Mahdi, essa poesia pertence ao gênero
muwašša¬, que segundo alguns historiadores foi criado pelos árabes na Espanha; caracteriza-se, entre outras
coisas, pela variação nas rimas.
[122]O trecho “as gotas escorrendo pelo rosto como pérolas” traduz wa takallala wajhuhu; nesse passo,
seguiu-se Dozy, ii, 488.
[123]O trecho “para ouvir às ocultas o que lhe era vedado” traduz litastariqa assam¢a. Segundo Muhsin
Mahdi, a locução parece relacionada ao Alcorão, 15, 18, num trecho que alude aos gênios que procuram
introduzir-se no céu a fim de ouvir o que os entes celestiais preparam para os homens na terra. O versículo
fala que, nessa tentativa de espionagem, tais criaturas são atingidas por setas flamejantes; compare com a
octogésima terceira noite do primeiro volume.
[124]A palavra “corpo” traduz a desconhecida palavra håya, que nos outros manuscritos foi alterada para
hay’a, “aparência”, “boa fisionomia” etc. A ideia é que o corpo coberto parecia ser de um homem.
[125]Essa poesia já fora recitada na septuagésima terceira e na nonagésima noite.
[126]Alcorão, 7, 54.
[127]Trata-se da mesma cidade onde se passa a história do corcunda, da 102ª à 170ª noite.
[128]O trecho “gênios celestes ou subterrâneos” traduz aljinn al¢ulwyya wa assufliyya, literalmente,
“gênios do alto e do baixo”.
[129]“Ilhas da Região Interior” traduz jazå’ir aljuwwaniyya; o manuscrito “Arabe 3612” traz jawånib
aljazå’ir, algo como “flancos das ilhas”; a edição de Bœlåq, “as ilhas [ou terras] interiores do país da
China”; e o manuscrito “Bodl. Or. 551”, como se verá adiante, traz “Ilhas Interiores”. Já o nome do rei
aparece nesse ponto como Dawr Al©ubœr, estabilizando-se mais adiante como Al©uyœr, que significa
“zeloso” ou “ciumento”. A variação inicial no nome do rei ocorre em todos os manuscritos.
[130]Note que, neste manuscrito, o nome da princesa não é citado em nenhum momento.
[131]O trecho “bela jovem no vigor da mocidade” traduz arrad∑ka, expressão que é provável forma
coloquial de arrawdaka, palavra essa, por sua vez, cujo sentido somente se encontra no dicionário Lisån Al
¢arab, de Bin Man≈œr.
[132]Quanto a essa estranha descrição, deve-se ponderar o seguinte: primeiro, o original, em prejuízo do
sentido, dá preferência a palavras repletas de sons sibilantes; segundo, o gênio afirmou não saber
descrever...
[133]O trecho “num rosto com a brancura do palmito” traduz a sequência aqui lida como bima¬®ar bayå®
kaljammår. Ao contrário do que eventualmente possa parecer, trata-se de elogio.
[134]Em observância do contexto, a tradução, seguindo Muhsin Mahdi, preferiu ler “lábios”, šafatån, em
vez de “pernas”, s∑qån, que é o que consta do manuscrito. A grafia dessas palavras é semelhante em árabe.
[135]O trecho “dois antebraços que não precisam de lampiões”, no original, literalmente, aparece como
“dois antebraços nos quais não se veem lampiões”, isto é, cujo brilho é tão intenso que dispensa o uso de
lampiões.
[136]Nesta passagem, por “amado/a” traduziu-se ma¢šœq/a, “aquele/a pelo qual se tem paixão”.
[137]Essa estranha “condição a ser cobrada” (šar† wa rahn), cujos termos se definem a posteriori,
encontra-se assim mesmo no original.
[138]Alcorão, 7, 54.
[139]A descrição da túnica contém trechos incompreensíveis; “touca egípcia em estilo grou” traduz o
sintagma que foi lido do seguinte modo: bidåyr mißr∑ kasara [ou kusira] ¢alà al©aråniq. Mas pode se
tratar de coisa completamente diversa. Veja a p. 192.
[140]Poesia já recitada, com algumas variantes, na 214ª noite.
[141]Esse verso já fora recitado naa sexagésima oitava noite, durante a história da segunda jovem de Bagdá.
[142]Referência ao personagem bíblico do Velho Testamento.
[143]Espécie de planta espinhosa utilizada como pasto e muito comum no Oriente Médio. Não tem nada
que ver com a bebida conhecida como ¢araq (em português, áraque).
[144]A palavra cachorro traduz qu†rub, que pode também significar “demônio”.
[145]O termo ogro traduz ©œl, entidade fantástica da mitologia beduína sobre a qual já se falou em nota ao
primeiro volume.
[146]Deste ponto até o fim, foi arrancada a última folha do manuscrito. Alguém, possivelmente um arabista
europeu, tentou remediar a mutilação, que é anterior ao século xvii, acrescentando duas folhas ao
manuscrito, copiadas a partir de uma fonte mais recente. Por isso, a tradução viu-se forçada a lançar mão do
que consta no manuscrito “Arabo 782”, da Biblioteca Apostólica do Vaticano, o segundo mais antigo do
livro.
[147]Versos já recitados na quinquagésima quarta e na septuagésima terceira noite.
[148]Nesse ponto se encerra a narrativa do ramo sírio do Livro das mil e uma noites. Tanto o manuscrito
“Arabo 782” como o “Arabic 6299”, da Índia Office Library, terminam aqui. Como se disse, falta a última
folha do manuscrito-base “Arabe 3611”, e as folhas com as quais alguém a substituiu também se encerram
neste ponto. No verso da última página do manuscrito “Arabo 782”, um homem chamado Ibråh∑m
Arrammål [“o areeiro”], que não era o copista, registrou: “E o rei pensou consigo mesmo: ‘Por Deus que
não a matarei até ouvir o que ocorrerá a Qamaruzzamån com Budœr e depois a matarei como fiz com as
outras’, mas Deus sabe mais”. Trata-se de um acréscimo curioso, pois no corpus do manuscrito, como o
leitor não terá deixado de perceber, não se indica qual o nome da princesa. Depois disso, ele escreveu: “Em
Deus se busca ajuda. Terminou e se completou pelas mãos do pobre e desprezível, reconhecedor de seus
pecados e falhas e rogador do perdão de seu senhor poderoso, Ibråh∑m Arrammål, na protegida cidade de
Alepo, diante de meu patrão ˝œt Bin Darw∑š Almi¢mår∑ Bin Yœsuf Alqaß∑r∑, da doutrina šåfi¢∑, do
rito rifå¢∑, adorno [ou com o hábito] de seus ancestrais, escravo dos pobres [ou que eram escravos dos
pobres], servidor das gentes de saber e rogador do perdão e da misericórdia de seu mestre. Concluiu-se a
cópia deste livro na tarde de quarta-feira, onze dias passados do generoso mês de ßafar do ano mil e um
[correspondente a 17 de novembro de 1592 d.C.]. Louvor a Deus pela conclusão e perfeição”. Muhsin
Mahdi avalia que a data de confecção do manuscrito pode ser anterior em até um século a essa, e que a
declaração desse homem não tem sentido, uma vez que, além de escrever tais palavras, não existe mais
nenhum vestígio de sua letra no manuscrito. Ressalte-se a curiosa coincidência de um manuscrito das Mil e
uma noites receber um registro de “conclusão” no ano 1001 da Hégira. Nas folhas acrescentadas ao
manuscrito “Arabe 3611”, a história também se encerra com o rei pensando em matar ¸ahråzåd, “tal como
fiz com as outras”, após ouvir o final da história de Qamaruzzamån.
[149]Conforme já se observou, neste passo isolado o texto registra Armåmœnis, mas em seguida a forma se
estabiliza como ¸åhramån (palavra persa que significa marganso, “ave aquática pouco menor que a
cegonha”). Ao contrário do manuscrito “Arabe 3612” (veja nota na p. 164), que se contradiz, aqui a
localização geográfica desse reino somente será dada na 105ª noite.
[150]As letras låm e ßåd formam, em árabe, a palavra lißß, “ladrão”. Essa poesia apresenta vários
problemas para leitura e compreensão, e as soluções apresentadas na tradução podem conter equívocos.
[151]Conforme se disse na 273ª noite do ramo sírio, esta poesia já fora recitada na septuagésima nona noite.
[152]Note-se que esta poesia, que se apresenta como uma só na 273ª noite, aqui vem subdividida em duas, e
com o acréscimo de dois hemistíquios.
[153]O último hemistíquio é praticamente ininteligível. Compare com os versos correspondentes, na p. 167.
[154]No manuscrito, o texto está registrado como se fosse prosa.
[155]Referência às sœras (capítulos) 36, 55, 67, 113 e 114 do Alcorão, todas recitadas em momentos de
grande dificuldade e aflição. As duas “Buscar Refúgio” (almu¢awwi∂atayn), que se chamam “A Alvorada”
e “Os Homens”, receberam tais epítetos por se iniciarem com a fórmula “Busco refúgio...”.
[156]Maymœna significa “afortunada”.
[157]Note que, no ramo egípcio, modificam-se as fórmulas de encerramento e de início das histórias.
“Discurso autorizado”, alkalåm almubå¬, refere-se ao fato de a fala de ¸ahrazåd ser autorizada pelo rei.
[158]Essa poesia já fora recitada na septuagésima terceira e na nonagésima noite.
[159]Alcorão, 7, 54.
[160]A edição de Bœlåq utiliza uma grafia legível como Dahanš ou Dahnaš.
[161]Trata-se da mesma cidade onde se passa a história do corcunda, da 102ª à 170ª noite, no primeiro
volume. O texto fala em jazå’ir, “ilhas” ou “penínsulas”, o que não procede, conforme se verá adiante.
[162]Conforme já se viu, o manuscrito traz “Ilhas Interiores”. Já o nome do rei aparece nesse ponto como
Dawr Al©ubœr, estabilizando-se adiante como Al©uyœr, que significa “zeloso” ou “ciumento”. A variação
inicial no nome do rei ocorre em todos os manuscritos.
[163]Os termos “escravidão” e “tibieza” seguem o que consta no manuscrito “Arabe 3611”, pois o original
aqui é incompreensível.
[164]Quanto a essa estranha descrição, deve-se ponderar o seguinte: primeiro, o original, em prejuízo do
sentido, dá preferência a palavras repletas de sons sibilantes; segundo, o gênio afirmou não saber
descrever...
[165]Provável erro de cópia; confronte com o trecho correspondente do manuscrito “Arabe 3611”, à p. 172.
[166]Nesta passagem, por “amado/a” traduziu-se ma¢šœq/a, “aquele/a pelo qual se tem paixão”.
[167]Essa estranha “condição a ser cobrada” (šar† wa rahn), cujos termos se definem a posteriori,
encontra-se assim mesmo no original.
[168]Alcorão, 7, 54.
[169]A expressão, que no manuscrito “Arabe 3611” (veja na p. 175) se lia como ¢alà al©aråniq, sintagma
incompreensível e que ali se traduziu, um pouco a trouxe-mouxe, como “estilo grou”, neste manuscrito está
¢alà al¢awåtiq, sintagma cuja grafia é bem parecida, e que significa “sobre os ombros” – que só podem ser
os do casal de gênios. É também o que consta do manuscrito “Arabe 3612”.
[170]Poesia já recitada, com variantes, na 214ª noite. É possível que haja erros de cópia no manuscrito.
[171]Trecho incompreensível no original, corrigido com base na edição de Bœlåq e no manuscrito “Arabe
3612”.
[172]Esse verso já fora recitado na sexagésima oitava noite, durante a história da segunda jovem de Bagdá.
[173]Referência ao personagem bíblico do Velho Testamento.
[174]Nesse verso, preferiu-se manter o que consta no manuscrito “Arabe 3611”, pois o original traz uma
formulação incompreensível: “Os leões se escondem de quem [os] beija”.
[175]Note-se que muitas das variações dessa poesia em relação à que consta no manuscrito “Arabe 3611”
(p. 176) são óbvios erros de cópia. No entanto, foram mantidos quando produzem leituras interessantes.
[176]Espécie de planta espinhosa que serve como pasto e é muito comum no Oriente Médio. Não tem nada
que ver com a bebida conhecida como ¢araq; em português, áraque.
[177]A palavra “cachorro” traduz qu†rub, que pode também significar “demônio”. O original traz, por
metátese e erro de cópia, qur†ub.
[178]O termo “ogro” traduz ©œl, entidade fantástica da mitologia beduína sobre a qual já se falou em nota
ao primeiro volume.
[179]Este nome próprio não consta nos dicionários árabes, que registram qušqœš como nome de certa
variedade de peixe pequeno.
[180]É útil notar que o alif, primeira do alfabeto árabe, é uma haste fina semelhante ao l em letra de forma.
Mais adiante, “estatura mediana” traduz ∆umåsiyyat alqadd. Veja nota na p. 76 deste volume.
[181]Versos já recitados, com alguma variação, na quadragésima segunda noite. O trecho que ali era
ininteligível, “marido que se foi”, aqui corresponde a “noite que se vai”, e faz mais sentido. O manuscrito
“Arabe 3612” traz “noite com companhia”.
[182]Versos já recitados na quinquagésima quarta e na septuagésima terceira noite.
[183]É a partir deste ponto que continua a narrativa interrompida na 282ª noite do ramo sírio.
[184]Nesse ponto, a narrativa é introduzida pela fórmula “Disse o narrador”, que se considerou mais
adequado suprimir, pois quebra demasiadamente a sintaxe. Sempre que isso ocorrer, essa fórmula será
omitida.
[185]Esse nome significa “correção”.
[186]O trecho “veio com a história de uma tal moça” é o que consta do manuscrito “Arabe 3612”; o original
traz “referiu uma moça”.
[187]Neste ponto, “mais sujo dos vizires” é o que consta no corpus do manuscrito “Arabe 3612”.
[188]O trecho que vai de “O vizir caiu de cabeça” até “atordoado” está dessa forma no manuscrito “Arabe
3612”: “O vizir sentiu que iria morrer pelo fato de sua barba estar sendo arrancada, e o jovem continuou
dando-lhe pontapés, esmurrando-o na garganta e esganando-o até que ele se cagou”.
[189]Trata-se, evidentemente, dos doze meses do calendário lunar muçulmano. Nos meses de jumådà e
rab∑¢, fala-se em “dois” porque existem o primeiro e o segundo (jumådà a, jumådà a, rab∑¢ a e rab∑¢ a).
[190]Neste ponto, ou o personagem está mentindo para o pai ou existe erro de cópia, pois não houve beijo.
A possibilidade de erro de cópia está dada pelo fato de, no episódio da cama, Qamaruzzamån ter “revirado”
a moça. Em árabe, “revirar”, qallaba, e “beijar”, qabbala, são formas fáceis de confundir durante a cópia,
bastando uma simples metátese. Outra possibilidade que o texto deixa entrever é a da reformulação:
partindo da suposição, bem plausível, de que essa história preexistia em outra fonte antes de sua
incorporação às Mil e uma noites, e do fato de que, normalmente, durante tal processo essas histórias eram
modificadas, na forma e no conteúdo, a fim de se adequarem aos propósitos do livro, pode-se pensar que
essa oscilação indica um estágio inicial desse processo.
[191]Frase pronunciada pelos muçulmanos em momentos de adversidade e morte.
[192]Poesia já recitada naquinquagésima sétima noite; não consta do manuscrito “Arabe 3612”.
[193]Embora se assemelhe às palmas, esse gesto, em que as mãos ficam em alturas diferentes e se faz de
baixo para cima, com a mão de baixo vindo na transversal, indica forte contrariedade.
[194]Versos muito semelhantes já haviam sido recitados na quadragésima quarta noite.
[195]Entenda-se: é o sinal feito por ele, que “diz” a poesia.
[196]Esses versos, constituídos dos quatro últimos hemistíquios da primeira poesia do livro, recitada na
primeira noite, já haviam aparecido, com mínimas variações, também na 104ª do primeiro volume e na 207ª
deste.
[197]A expressão “em medida ordinária” traduz bil¢amal, expressão que, suprimida nas edições impressas,
somente encontra abrigo no dicionário de Dozy, o qual, por sua vez, não é preciso ao defini-la, limitando-se
a referir que ela serve “para indicar a medida ordinária, legal”.
[198]Budœr quer dizer “plenilúnios”. Note-se que a personagem é nomeada pela primeira vez no texto.
[199]Este verso e o anterior foram traduzidos do manuscrito “Arabe 3612”.
[200]O trecho “lânguidas mas saudáveis” traduz mar∑® ßa¬∑∆.
[201]Os termos “escrevesse” e “lesse” estão, neste caso, associados a práticas mágicas. Certamente, o texto
quer dizer “escrevesse mandingas” e “lesse a sorte”, ou algo que o valha.
[202]O trecho “e cuja casa da vida entrara na conjunção de Saturno” traduz wa qad ßådafahu zu¬al f∑ bayt
nafsihi, formulação meio obscura mas que possui evidente conteúdo zodiacal e, ao mesmo tempo, faz ironia
com o astrólogo. No original, em lugar de zu¬al, “Saturno”, consta rajul, “homem”, ambas palavras de
grafia praticamente idêntica e fáceis de confundir numa construção pouco inteligível. Foi possível corrigir o
equívoco por meio do que se encontra, episódios adiante, no manuscrito “Arabe 3612” (cf. o final da 125ª
noite, p. 257).
[203]Formulação comum na antiga justiça muçulmana; “tornar lícito o sangue de alguém” significa declarar
lícita a sua morte. Nesse caso, é a própria vítima que se oferece para morrer, caso não obtenha êxito.
[204]O trecho “traçou um círculo no chão” traduz wa qa¢ada ya®rib almandal, ritual mágico que consiste
em traçar um círculo no solo, introduzir nele as pessoas possuídas e invocar espíritos etc.
[205]A expressão “mulheres de minha família” traduz a palavra ¬ar∑m∑, que possui vários sentidos, todos
ligados à ideia de “proibição” e “intimidade”. É ela a origem da palavra “harém”.
[206]O manuscrito “Arabe 3612” acrescenta: “chamado Marwån Bin Måzån”. Mas, conforme se verá
adiante, no original o nome do rapaz é Marzawån, corruptela da palavra de origem persa marzubån (em
persa, marzabån), que significa “sátrapa”. Essa palavra tem também a acepção de “sodomita”.
[207]O trecho “estudara as grandes batalhas” traduz wa na≈ara [ou na≈ru] almalå¬im. Pode tratar-se,
contudo, de algo inteiramente diverso.
[208]O trecho “decorara as linhas e os versículos do Alcorão” traduz wa ¬kama alus†ur wa alåyåt,
literalmente, “dominou as linhas e os versículos”, e a palavra “versículo” remete, necessariamente, ao
Alcorão.
[209]Am∑r, que significa “comandante”, pode ser tanto o nome do criado como uma adulação que a velha
lhe dirige.
[210]Repita-se aqui o que já se observou antes: é o sinal que “diz” o poema.
[211]O trecho “concedo para obter sua benevolência” é tradução do quase incompreensível uj∑bu ilà arridå
minhu.
[212]Falta um hemistíquio nessa poesia, que somente é legível no manuscrito “Arabe 3612”. Por
“pensamento” traduziu-se a palavra ®am∑r, igualmente compreensível como “consciência”.
[213]Note a contradição: na noite anterior, o criado dissera para que eles não viessem senão depois que o rei
tivesse entrado.
[214]O texto nomeia constantemente esse personagem como rei e sultão ao mesmo tempo. Para evitar a
redundante formulação “o sultão e rei Al©uyœr”, a tradução optou por manter apenas “rei”.
[215]Aqui se faz a primeira referência ao local onde se situava o reino de Qamaruzzamån: Jazå’ir ¿alidån,
“Ilhas (ou Penínsulas) ¿alidån”; preferiu-se aqui o singular “península”, visto que o local não é uma ilha (já
se discorreu, em nota ao primeiro volume, sobre a problemática tradução da palavra jazå’ir). Tal como a
cidade de A≈≈ayran, a Península ¿alidån não é citada nas inúmeras obras geográficas dos árabes. Mas, para
complicar um pouco essa delirante geografia imaginativa, não custa lembrar que as Ilhas Canárias eram
chamadas em árabe de Ilhas ¿ålidåt (em árabe, a grafia das letras t e n é muitíssimo assemelhada, podendo
ser facilmente confundida). Era a partir dali que os geógrafos árabes (e antes deles os gregos) iniciavam a
contagem dos círculos terrestres.
[216]Com exceção de Luqmån, são todos personagens bíblicos, muito presentes nas culturas árabe e
muçulmana. Quanto a Luqmån, trata-se de um personagem citado no Alcorão como profeta e exemplo de
sabedoria.
[217]Na edição de Bœlåq, esses versos estão inseridos numa poesia muito maior.
[218]Na edição de Bœlåq, eles levam, além dos cavalos de raça, um pangaré para carregar o dinheiro e um
camelo para carregar água e comida. “Pangaré” se usou aqui para traduzir haj∑n, “cavalo sem raça”.
[219]Na edição de Bœlåq, os personagens discutem sobre o motivo desses atos.
[220]“Astrolábio”, uߥurlåb, é o que consta da edição de Bœlåq; no manuscrito, consta o ininteligível,
nesse caso, us†ur, “linhas”.
[221]Poesia arranjada e traduzida conforme a edição de Bœlåq. No manuscrito, os dois últimos versos estão
transcritos como prosa.
[222]O texto sempre dá a Budœr o tratamento de sitt, que estava sendo traduzido por “senhorita” e depois
do casamento passou a “madame”.
[223]Por “sangue” e “tintura” traduziram-se as palavras ¢andam e buqqam, que passariam a ser usadas,
respectivamente, como “pau-brasil” e “pau-campeche”, ambas espécies de madeira somente encontradas na
América, se é que no original já não tinham esse sentido, pois a cópia é tardia e, de qualquer modo, o
dicionarista Bin Man≈œr, do século xiii, já dava para ambas as palavras o sentido de tintura extraída da
madeira.
[224]Os sintagmas “para o meu mal” e “para o meu bem” traduzem, de forma literal e respectivamente,
lihalåk∑, “para a minha aniquilação”, e ilà ¬ayåt∑, “para a minha vida”.
[225]Mu∆ammas é referência a uma forma poética na qual os dois últimos versos (hemistíquios) de cada
bloco fazem parte de outra poesia. As rimas acompanham o primeiro hemistíquio, e não o último. Na poesia
em questão, o leitor notará que os dois versos finais dos dois primeiros blocos fazem parte da primeira
poesia da vigésima primeira noite. Muhsin Mahdi observa que a poesia é da lavra de Øaf∑’udd∑n Al¬ill∑,
poeta e tratadista morto em 1349 d.C., e que os dois últimos versos de cada bloco constituem uma poesia de
Wa®®å¬ Alyaman, poeta falecido em 708 d.C. Teria sido enterrado vivo por ordem do califa omíada
Alwal∑d, para cuja esposa ele fizera poesias de amor.
[226]Sobre esse personagem, já se discorreu na nota 203 do primeiro volume.
[227]A palavra “magos” traduz majœs, designação dos praticantes da religião de Zoroastro.
[228]Esse nome parece ser uma corruptela, encontradiça em historiadores árabes antigos como Bin Ala¥∑r
(1160-1234 d.C.), de Romanus, nome de alguns reis bizantinos. Na edição de Bœlåq, seu reino se chama
“Cidade do Ébano”.
[229]Æayåtunnufœs significa “vida dos espíritos”, em que a palavra “espíritos” tem o sentido de “sopro
vital”; enfim, o nome quer dizer algo como “aquela que dá vida às almas”.
[230]Alcorão, 23, 14.
[231]Alcorão, 8, 42 e 44.
[232]Entre os dois primeiros e os dois últimos hemistíquios, existem, na edição de Bœlåq, outros oito
hemistíquios, e, no manuscrito “Arabe 3612”, outros doze.
[233]Bin Zå’ida é referência ao comandante e líder militar omíada Ma¢an Bin Zå’ida Ašš∑bån∑, morto em
151 H./768 d.C., renomado entre os árabes por sua proverbial generosidade. Protegeu e ajudou poetas,
numa espécie de mecenato, e tão boa era sua reputação que o califa abássida Almanßœr, dinastia inimiga
dos omíadas, nomeou-o governador de Sijistån. Mu¢åwiya é referência ao líder político Mu¢åwiya Bin
Ab∑ Sufyån, morto em 60 H./680 d.C., fundador e primeiro califa da dinastia omíada. Era conhecido por
sua astúcia, dahå’, e não por sua clemência (ou cordura), ¬ulm. Esses versos não constam do manuscrito
“Arabe 3612”, e, na edição de Bœlåq, encontram-se distribuídos em uma poesia maior.
[234]Provérbio popular.
[235]Provérbio popular.
[236]Para o acordo das duas jovens, o manuscrito “Arabe 3612” acrescenta, talvez como compensação às
suas várias lacunas nesta história, uma passagem que acentua a cumplicidade entre ambas. Eis aqui a
tradução a partir da cena em que Budœr revela seu segredo: “Æayåtunnufœs pensou nos dizeres de Budœr e
perguntou: ‘Que espantoso! Você não sabe para onde ele foi?’. Ela respondeu: ‘Não, por Deus que não sei
em que lugar ele está. Já mandei que o porto fosse vigiado; de qualquer embarcação que aportar ninguém
sairá antes que seja examinada; também mandei bloquear o caminho por terra. Agora estou na sua frente e
gostaria que você arranjasse um plano para mim’. Æayåtunnufœs disse: ‘Senhorinha, já que a sua situação é
essa, ocorreu-me um plano, que consiste no seguinte: pegarei e matarei uma pomba sobre minhas túnicas;
correrá por todas as aldeias, rincões e terras, e igualmente entre os soldados do meu pai, entre minha mãe e
as mulheres, a notícia de que Qamaruzzamån já extirpou a virgindade de Æayåtunnufœs. Porém,
senhorinha, tenho uma condição sem a qual o seu segredo não será preservado’. Budœr perguntou: ‘E qual é
essa condição?’. E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu seu discurso autorizado. Dunyåzåd disse:
‘Maninha, como é saborosa e boa a sua história’, e ela respondeu: ‘Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite’.
279ª noite
Na noite seguinte Dunyåzåd disse: ‘Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo, conte-nos o restante
da história de Qamaruzzamån’. Ela respondeu: ‘Sim, com muito gosto e honra’. Eu tive notícia, ó rei
venturoso, de que Budœr perguntou: ‘E qual é a condição?’. Æayåtunnufœs respondeu: ‘Que você me jure,
sobre o livro de Deus altíssimo, que não esconderá de mim segredo nenhum, e eu tampouco lhe esconderei
nenhum segredo’. Então ambas fizeram as juras recíprocas sobre as palavras de Deus altíssimo.
Æayåtunnufœs trouxe uma pomba, sacrificou-a sobre suas túnicas, untou com seu sangue a cama, e soltou
um grande grito...”.
[237]O trecho “emitiu alaridos jubilosos” traduz a expressão zar©a†at, forma coloquial de za©ra†at. É um
modo de expressar alegria muito comum às mulheres do Oriente Médio, e consiste em barulhos que se
fazem com a língua correndo entre o céu da boca e os dentes e lábios superiores. Trata-se de procedimento
cada vez mais restrito às regiões interioranas.
[238]Traduzida literalmente, a frase “Deus salvou a sua dignidade” seria “Deus embranqueceu a sua face”.
[239]Poesia já recitada, com poucas variantes, na quinquagésima sexta e na octogésima sétima noite do
primeiro volume.
[240]A palavra “alcofa” traduz a árabe alquffa, da qual se origina, e indica um cesto de vime ou de folhas
de palmeira.
[241]Árvore frondosa, nativa do Mediterrâneo, cujo nome em português deriva do árabe al∆arrœb.
[242]Mítico rei iemenita do período pré-islâmico. A edição de Bœlåq traz “da época de fiamœd e ¢Åd”,
povos árabes pré-islâmicos cuja arrogância, conforme o Alcorão, teria levado Deus a destruí-los.
[243]Por “vasos” traduziu-se a palavra samåwiyyåt, para a qual não se encontrou solução satisfatória.
Utilizou-se aqui o que consta do manuscrito “Arabe 3612”, que traz zila¢, “vasilhas”.
[244]Segundo Muhsin Mahdi, trata-se de provérbio popular. Possivelmente o seja, mas não se encontra em
nenhuma das recolhas consultadas, não se menciona em dicionário algum e, ademais, sua formulação é
incompreensível. Diz o original: ∂ahaba al∆uyœl wa jå’a alj∑r, que, lido literalmente, se traduziria como
“foram-se os cavalos e veio a cal”, o que não faz sentido. Assim, leu-se a palavra al∆uyœl como (pseudo-
)deverbal do verbo a∆åla (¢alà), “ser ambíguo, confuso ou obscuro para”, e alj∑r também como (pseudo-)
deverbal do verbo ajåra (min), “salvar”, “livrar de”. Na edição de Bœlåq, em lugar do provérbio encontra-
se uma formulação mais direta: “Foi-se o cansaço e vieram a alegria e a felicidade”.
[245]O trecho “que é a mais próxima cidade muçulmana” foi traduzido da edição de Bœlåq; o manuscrito
traz um obscuro “que são as cidades da paz”. É provável que aí tenha havido alguma confusão entre a grafia
de “paz”, salåm, e “islã”, islåm.
[246]A expressão “azeitona de passarinho” é tradução literal de zaytœn ¢aßåf∑r∑. Dozy afirma: “Creio que
é uma espécie de azeitona que atrai estorninhos”, mas trata-se de mera especulação.
[247]Dos vinte hemistíquios dessa poesia, dezoito constavam, com variantes mínimas, de uma já recitada na
octogésima nona noite.
[248]Em árabe, literalmente, “entraram debaixo dos odres”.
[249]A expressão “os dois testemunhos”, aššihådatåni, consiste em dizer “testemunho que não existe
divindade senão Deus e que Maomé é seu profeta”, e equivale à conversão ao islã.
[250]Desses produtos, certamente há certa imprecisão em “cana”, que no original está como qaßab, “cana”,
e addar∑ra, palavra que, entre outros significados, tem o de “brilhante”; e “perfume de reis” é tradução
literal de ¢a†ršåh, palavra que não se encontra nos dicionários. Note-se que “louças e porcelanas” traduzem
duas palavras sinônimas, ß∑n∑ e farfœr∑. Finalmente, sobre “azeitona de passarinho” já se falou.
[251]Não custa lembrar que o dinar, moeda de ouro, vale muito mais que o dirham, moeda de prata.
[252]Compare com o final da 119ª noite e note que, neste ponto, a narrativa não é lá muito coerente.
[253]A narrativa parece muito lacônica quanto à chegada de Qamaruzzamån. Talvez para remediar tal
laconismo, a edição de Bœlåq e o manuscrito “Arabe 3612” trazem uma longa passagem obscena que não
consta do manuscrito de base, e que está traduzida no Anexo 1, pp. 333-347.
[254]Amjad significa “mais glorioso” e As¢ad, “mais venturoso”. No original, ambos os nomes vêm
precedidos de artigo definido – Alamjad e Alas¢ad –, mas aqui se preferiu, para maior leveza, a forma
desacompanhada de artigo.
[255]O manuscrito “Arabe 3612” acrescenta: “e se tornaram uma sedução para mulheres e homens”; a
edição de Bœlåq acrescenta o mesmo, com exceção de “homens”, e inclui a cavalaria entre as artes que os
irmãos aprenderam.
[256]Os dois primeiros hemistíquios dessa poesia já haviam sido recitados na vigésima sexta noite, e os seis
primeiros, na trigésima quinta noite.
[257]Trata-se da mesma construção constante do final da 103ª noite (p. 213) da presente história, mas, nesta
passagem, o texto do manuscrito principal está truncado e foi reconstituído conforme o manuscrito “Arabe
3612”. No lugar dessa formulação, a edição de Bœlåq traz: “sem saber o que o destino lhe ocultava”.
[258]Nesta altura se encerra o corpus da história de Qamaruzzamån no manuscrito “Arabe 3612”.
[259]Provérbio popular.
[260]A aparente contradição do relato das duas mulheres, cujos servidores aparecem em posição invertida, é
corrigida na edição de Bœlåq. Contudo, não custa lembrar que as duas mulheres estavam mancomunadas e
que a inversão pode ter o propósito de tornar suas histórias menos investigáveis.
[261]A expressão “chefe da guarda” traduz am∑r jandår, nomenclatura do período mameluco. Já a edição
de Bœlåq traz ∆åzindår, “tesoureiro”, o que não faz muito sentido, pois nesse episódio parece mais
verossímil a participação de alguém ligado, por ofício, às armas.
[262]Provérbio popular.
[263]O original fala em seis bå¢a, medida que corresponde a cerca de três metros.
[264]Veja o que se afirmou sobre essa poesia na 273ª noite.
[265]Estes versos são, na verdade, parte de uma célebre prédica em prosa rimada do pregador pré-islâmico
(e dizem que cristão) Quss Bin Så¢ida, morto por volta de 600 d.C.
[266]O trecho “sela com detalhes de ouro e enfeites egípcios trabalhados com martelo” traduz markab
∂ahab mufarraq taknœš mißr∑ šu©l almi†raqa. O significado exato dessas palavras morreu junto com
aqueles que as utilizavam; a tradução é meramente aproximativa. A edição de Bœlåq elimina totalmente
essa descrição.
[267]Embora a redação não indique simultaneidade, a ação é simultânea com os acontecimentos da
passagem anterior e exige o uso de “enquanto isso”.
[268]Este ponto, escolhido aleatoriamente, serve para exemplificar a tendência da edição de Bœlåq de
assinalar o óbvio: onde o manuscrito traz somente “haviam seguido os seus rastros”, essa edição traz:
“haviam se soltado das amarras e seguido os seus rastros”. Ora, a afirmação de que haviam se soltado das
amarras é óbvia, e a dúvida se prenderia somente a como eles haviam chegado até ali: seguindo os seus
rastros.
[269]O trecho “as terras de Deus são vastas para viajar” traduz ar® allåh wåsi¢at alfalå, em que a última
palavra pode ser lida como alfalåt, “deserto”, ou alfalå, “viagem”. Preferiu-se a última hipótese. Caso se
optasse pela primeira, a tradução, por sinédoque, poderia ser: “nas terras de Deus existem muitos
esconderijos”.
[270]O trecho “fique tranquilo desde já!” traduz, de modo aproximado, a expressão ¢alà asr muqaddam, já
discutida no primeiro volume.
[271]Isto é, acima de Deus. Os velhos, obviamente, eram magos, ou seja, praticantes do zoroastrismo.
[272]Palavra que significa “encolerizado”.
[273]Referência a elementos pré-islâmicos que aqui são usados como metáfora de cunho pejorativo,
indicando grosseria.
[274]Bustån significa “pomar” e Qawåm, “integridade” ou “força”.
[275]Nunca é demais lembrar que “José” faz referência ao patriarca bíblico, paradigma de beleza.
[276]Possível alusão a algum chefe militar que utilizava fogo em suas batalhas.
[277]O trecho “comigo ou com você?” traduz o coloquialismo ¢ind∑ aw ¢indik, cuja solução talvez ficasse
mais apropriada em português com a comuníssima fórmula “na minha casa ou na sua?”. Porém, conforme
se verá adiante, essa tradução é necessária para a inteligibilidade do trocadilho feito pela mulher.
[278]Outra possibilidade de tradução, que no entanto ficaria muito explicativa, é: “Quem determina o lugar
são os homens; as mulheres não têm lugar”.
[279]O trecho “premido por suas próprias palavras” traduz o sintagma lazamathu alb∑¢a, por mais de uma
vez utilizado nesta obra e para o qual os dicionários não oferecem explicação.
[280]O trecho “mais alguns aposentos menores” traduz maqåß∑r mudalliyyåt, literalmente “recintos
rebaixados”, cujo sentido não foi possível apurar; por isso, lançou-se mão do substitutivo constante da
edição de Bœlåq, sadalåt, que na época mameluca indicava um aposento menor do que o ∑wån, aqui
traduzido como “aposento com entrada abobadada” (Am∑n, M. et al, Almu߆ala¬åt almi¢måriyya f∑ alwa
¥å’iq almamlœkiyya [“Termos arquitetônicos nos documentos mamelucos”], Cairo, 1990).
[281]A expressão “chefe do estábulo real” traduz am∑r yå∆œr [å∆œr], cargo cuja nomenclatura pertence ao
período mameluco e aparece citado no historiador egípcio ¢Abdurra¬mån Aljabart∑, 1754-1822
(Sulaymån, A. S., Ta’ß∑l må warada f∑ ta’r∑∆ Aljabart∑ min adda∆∑l [“Origem dos neologismos
ocorridos na História de Aljabart∑”], Cairo, 1979). É bem possível que, neste ponto, a narrativa faça um
jogo com os sentidos da palavra mamlœk, “mameluco”, que inicialmente significava apenas “escravo,
possuído” e depois passou a designar a casta dos oficiais dessa origem que tomaram o poder no Egito, uma
vez que Amjad afirmara: “Estou esperando o meu mameluco”, no primeiro sentido, mas a verdade é que a
casa pertencia, de fato, a um “mameluco”, no segundo sentido.
[282]Bahådur é um nome persa que, de acordo com o dicionário persa-inglês de Steingass, significa “bravo,
arrojado, valente, corajoso, magnânimo, guerreiro, soldado” etc.; era também “um título de honra conferido
pelo grão-mogol e outros potentados orientais, e que possui certa semelhança com o título europeu de
fidalguia militar”.
[283]Existe uma narrativa similar à de Amjad com a jovem num dos manuscritos da obra Cento e uma
noites (São Paulo, 2005, pp. 350-353).
[284]De acordo com Steingass, essa palavra persa pode significar: Marte (o planeta); o vigésimo dia de
cada mês; o nome de um anjo; espada. Nome próprio tradicional, era assim que se chamavam vários heróis
e reis persas (que nos autores gregos aparecem sob a corruptela “Varanes”).
[285]O termo “casa-mirante” foi a alternativa para traduzir man®ara [man≈ara], expressão característica
da arquitetura mameluca que designa, conforme o já citado dicionário de termos arquitetônicos, “uma casa
que se toma numa base elevada para que aquele que observa possa ver tudo quanto ocorre em seu redor em
pontos distantes”. A edição de Bœlåq põe o personagem, por coincidência, a passear pela orla marítima.
[286]Talvez convenha comentar, acerca dessa frase tantas vezes utilizada no texto e literalmente traduzida,
que sua recepção pode divergir em ambas as línguas: em português, é possível que sugira uma espécie de
prelúdio do desmaio, da perda de sentidos; já em árabe, ela indica exclusivamente que tudo se torna triste e
sem esperança.
[287]Na edição de Bœlåq, o episódio da segunda inspeção foi suprimido.
[288]Murjåna significa “coral”.
[289]Provérbio popular.
[290]O trecho “com o resto de suas forças” traduz o coloquialismo, ainda hoje usado, min ¬alåt arrœ¬.
[291]O manuscrito diz “de porta aberta”, o que é contraditório. Corrigido com base na edição de Bœlåq.
[292]Trocadilho: As¢ad quer dizer “mais venturoso” e At¢as, seu antônimo, “mais desgraçado”.
[293]Na edição de Bœlåq, essa cena é bastante diversa. Leia-se a tradução: “Então sua filha Bustån desceu
para espancar As¢ad, e verificou que se tratava de um rapaz de formosas características, doce aspecto,
sobrancelhas arqueadas e pupilas negras bem delineadas; o amor por ele invadiu-lhe o coração e ela
perguntou: ‘Qual o seu nome?’. Ele respondeu: ‘Meu nome é As¢ad’. Ela disse: ‘Você ganhou a ventura, e
venturosos serão os seus dias. Você não merece a tortura, e já compreendi que está sendo injustiçado’, e
pôs-se a agradá-lo com palavras; soltou-o das correntes e lhe perguntou sobre a religião muçulmana; ele a
informou de que o islã é que era a fé verdadeira e reta, e que nosso senhor Mu¬ammad era responsável por
esplêndidos milagres e versículos manifestos, e que o fogo prejudica e não beneficia. Deu-lhe a conhecer os
fundamentos do islã; ela o ouviu e o amor pela fé entrou em seu coração, e Deus altíssimo misturou esse
amor ao amor por As¢ad; pronunciou as duas sentenças [‘testemunho que não existe divindade senão Deus
e que Mu¬ammad é seu profeta’] e ingressou entre os bem-aventurados”.
[294]Provérbio popular. E já se discorreu em nota anterior sobre “tornar lícito o sangue de alguém”.
[295]Ni¢ma significa “favor”, “graça”, “benefício” etc., ao passo que seu cognato Nu¢m significa
“prosperidade”, “felicidade” etc. Não são comuns como primeiro nome, embora Ni¢ma seja bem usado
como sobrenome, sobretudo entre cristãos. No Brasil, curiosamente, para as pessoas de origem árabe com
esse nome de família, adotou-se, em geral, a grafia “Neme”. Em sua tradução francesa, Jamel Eddine
Bencheikh suprime esta história sob a alegação de que, neste momento, “a intensidade do relato não tolera
tal digressão”, o que parece um tanto ou quanto arbitrário. É até possível que, na fonte, essa fosse uma
história autônoma – na edição de Breslau, por exemplo, ela está editada em separado no sétimo volume –,
mas o fato é que todos os manuscritos e edições das Noites, com exceção da controversa edição de Breslau,
apresentam esta história neste ponto.
[296]O texto usa as expressões bin ¢amm∑ e bint ¢amm∑, que no caso funcionam indistintamente como
“primo/a” e “esposo/a”; para cada situação, traduziu-se o termo que pareceu mais conveniente.
[297]Sa¢då, corruptela de Sa¢då’, significa “mais venturosa”; já Tawf∑q significa “êxito” e, pelo menos
hoje em dia, é nome tipicamente masculino.
[298]Al¬ajjåj Bin Yœsuf A¥¥aqaf∑, morto em 95 H./714 d.C., foi notável líder militar e orador durante o
período omíada, a cuja dinastia serviu fielmente. Como comandante das tropas omíadas, debelou vários
levantes e expandiu o império muçulmano até a Ásia Central. Os relatos históricos o constituem como
personagem violento. Morreu em Wåsi†, no Iraque, cidade por ele mesmo fundada.
[299]¢Abdulmalik Bin Marwån (26-86 H./646-705 d.C.), quinto califa da dinastia omíada, nasceu em
Medina e morreu em Damasco. Durante seu governo ocorreram vários levantes, todos debelados graças,
sobretudo, ao supracitado Al¬ajjåj Bin Yœsuf A¥¥aqaf∑.
[300]O trecho “e nenhuma canta melhor” foi traduzido da edição de Bœlåq. O manuscrito apresenta uma
formulação estranha: famå a†yab Ni¢ma, wa lå ®arranå minhå, “como Ni¢ma é muito bom, não nos
prejudicará [negando-a]”. Nessa mesma edição, o governador ouve o canto de seu palácio e já conhece o
nome da jovem.
[301]A edição de Bœlåq tenta remediar esta aparente falha (na realidade não é, pois, embora fale da beleza
de quem não viu, o personagem está manipulando a velha): “Vá até a casa de Arrab∑¢, reúna-se com a
jovem Nu¢m e arranje um modo de tomá-la, pois não existe igual a ela na face da terra”.
[302]A frase da velha foi completada com base na edição de Bœlåq.
[303]Alcorão, 19, 60. A continuação desse versículo é: “entrarão no paraíso e não sofrerão dano algum”.
[304]Na edição de Bœlåq, a personagem que intervém nessa cena é a esposa do califa.
[305]Note que, na descrição da velha na 149ª noite, falou-se num “rosário de madeira”.
[306]A edição de Bœlåq traz: “dez moças da minha casa e outras dez da casa do chefe de polícia”.
[307]O original traz “mal [ou doença] do coração”, que hoje, mesmo em árabe, passa mais a impressão de
problema cardíaco.
[308]Tratamento comum, entre os árabes, para evidenciar a pertinência étnica: um árabe é “irmão dos
árabes”, um persa é “irmão dos persas”, e assim por diante.
[309]A expressão “conjunto bizantino tecido a ouro” traduz ¥awb zarba∆t rœm∑. Zarba∆t é possível
deformação do persa zarbaft, que, conforme o já citado dicionário de A. S. Sulaymån, significa “tecido a
ouro”; a palavra “calções”, saråw∑l, está acompanhada do incompreensível adjetivo s∑ql∑ – que deve
indicar algo bem chique, obviamente (embora s∑ql, de acordo com Corriente, não passe de uma espécie de
“cebola albarrã”). Porém, com base no Dictionnaire Détaillé des Noms des Vêtements chez les Arabes, de
Dozy, pode-se presumir que s∑ql∑ é mero equívoco de cópia por s∑qån (lit. “pernas”, provável origem do
antigo termo espanhol çahon), que indicava, na época, uma calça bem larga. Mais adiante, Dab∑q é o nome
de uma cidade egípcia conhecida por sua seda.
[310]Ocorre neste passo um pulo na numeração das noites. Como, porém, trata-se de evidente lapso do
copista, optou-se por corrigi-lo. Tenha-se claro, contudo, que no manuscrito não consta a ª noite, e
que a história continua na ª noite.
[311]Aqui há um trocadilho, pois “favor” em árabe é ni¢ma. O texto da carta é em prosa rimada.
[312]O trecho “dos dois livros de ¬ad∑¥” faz alusão às obras dos eruditos Muslim e Bu∆år∑, do século ix
d.C., os dois principais compiladores de ¬ad∑¥, que consiste precisamente no conjunto das falas, atos e
silêncios do profeta Mu¬ammad.
[313]Alcorão, 5, 32.
[314]A expressão “caixa de pintura” traduz o sintagma coloquial al¬iqq bitå¢ annaqš.
[315]O manuscrito às vezes se refere à irmã do califa como “rainha”, como neste passo, e ao próprio califa,
por mais de uma vez, como “rei”; porém, para evitar confusões, a tradução optou sistematicamente por
“califa”.
[316]Esses versos, com uma ligeira alteração no segundo, já haviam sido proferidos na nonagésima quinta
noite do primeiro volume.
[317]Quanto ao trecho “que ouvi de certo livro antigo”, preferiu-se traduzir literalmente essa formulação do
original, que não é contraditória, pois implica que alguém leu para ela tal história de um livro antigo.
[318]A expressão “ter tornado possível” traduz ¢inda almaqdara.
[319]“Esse rei praticou uma ação que não parece ação de reis” traduz wa qad fa¢ala fi¢ål lå yušbihu af¢ål
almulœk.
[320]Æamza e ¢Aq∑l, ambos mortos em 680 d.C., eram companheiros do profeta Mu¬ammad. Al¢abbås,
morto em 653 d.C., era seu tio paterno; dele descende o clã dos abássidas, que destronou os omíadas em
meados do século viii d.C.
[321]Esse nome significa “rei do xadrez”.
[322]Conforme observa Muhsin Mahdi, nesses versos há referência direta aos títulos de três sœras
(capítulos) do Alcorão, sem as quais eles não poderiam ser compreendidos: “ventos dispersantes” traduz
a∂∂åriyyåt, título do capítulo 51 do Alcorão, que é aberto aludindo à inevitabilidade da ressurreição dos
homens no dia do Juízo Final; “emissários” traduz o plural feminino almursalåt, título do capítulo 77 do
Alcorão, e que pode referir-se, entre outras coisas, aos próprios versículos, aos anjos, aos ventos etc.; enfim,
“anjos que a extirparão” traduz annåzi¢åt, título do capítulo 79.
[323]O trecho “foram recepcionados com honrarias” traduz, por suposição, wa qaddamœ lahum attaqådum,
em que a última palavra não apresenta nenhum sentido dicionarizado razoável para o presente caso. Talvez
se trate de attaqåd∑m, “presentes”, “oferendas”.
[324]Toda essa conclusão, desde a passagem anterior à última poesia na 164ª noite, está resumida na edição
de Bœlåq.
[325]Correspondente a 23 de fevereiro de 1764.
[326]O trecho “ele se deu conta da coisa” traduz fa¬assa biššu©li, provável coloquialismo do qual ainda há
resquícios nos dialetos levantinos.
[327]A expressão “calcanhares pintados” traduz ka¢b ad©am.
[328]“Minha alma” traduz yå jånim, expressão persa introduzida no árabe a partir do turco (jån é “alma”
em persa, e o im é marca de possesivo de primeira pessoa em turco). Jånim foi nome próprio de mais de um
líder mameluco, mas no sentido ora utilizado é raro e, até onde a pesquisa pôde alcançar, só se verifica uma
vez no autor egípcio ¸ihåbudd∑n Alibš∑h∑ (790-850 H./1338-1442 d.C.), em sua célebre compilação
Almusta†raf f∑ kulli fann musta≈raf [Recortes de toda arte considerada bela].
[329]Nesse ponto, falta a numeração da noite, o que não é incomum nesse manuscrito. E a partir dessa
passagem todas as noites são introduzidas pela fórmula “Disse [o narrador]”, que foi omitida na tradução.
[330]“Sua bichinha” traduz yå ma’bœn, “ó pederasta”.
[331]Aqui, o manuscrito apresenta uma palavra borrada.
[332]O termo “sodomitas” traduz qawm lœ†, “povo de Loth”, personagem bíblica que vivia em Sodoma e
que advertia seu povo contra o “vício nefando” da sodomia. Em árabe, numa injustiça poética, seu nome é
que ficou associado à prática.
[333]A palavra “virtude” traduz kamål, que, literalmente, se traduziria como “perfeição”, o que não seria
adequado aqui.
[334]O propósito dessa poesia não parece muito evidente, uma vez que jummayz possui mais de um sentido:
“amora”, “sicômoro” (certa variedade pequena de “figo”, t∑n), ou ainda “sâmara”; são todas frutas que
tecnicamente se chamam “indeiscentes”, isto é, que “não se abrem naturalmente ao alcançar a maturação”;
nessa chave, ficaria evidente a metáfora de sua oposição ao figo. Eis a transcrição do original: a må tarà
assœqa qad ßuffat fawåkihuhu/ litt∑ni qawmun wa liljummayzi aqwåmu. Esse gênero de metáfora também
se verifica na poesia erótica grega e latina. Veja a obra de João Ângelo Oliva Neto, Falo no jardim (São
Paulo, 2006). Registre-se ainda que palavra jummayz pode também designar uma árvore, o “falso-plátano”.
[335]Na segunda edição de Calcutá, o último verso assim se traduz: “que nenhuma virtuosa [ou hetaira]
virgem me desviará de você”.
[336]Essa poesia não consta da segunda edição de Calcutá.
[337]Existe nesse último hemistíquio (yarfa¢uhu allåhu ilà asfali) um trocadilho não muito compreensível,
já que o verbo yarfa¢, que se traduziu como “elevar”, também era utilizado no sentido de “ir copular com
alguém”, em formulações como rafa¢tu ©ulåman etc. Jamel Eddine Bencheikh o traduz como “que Dieu
hausse vers les profonders!”; Juan Vernet, “que Dios recompensa según la profundidad”; Husain Haddawi,
“Which God will raise, deep down to lie”. Na poesia anterior, existem versos semelhantes atribuídos ao
célebre poeta fescenino Abœ Nuwås, que viveu entre 757 e 814 d.C.
[338]O termo “conhecido” traduz ma¢hœd, “familiar”.
[339]Referência às sœras (capítulos) 93 e 112 do Alcorão; ambas são muito curtas, com respectivamente
onze e quatro versículos, e a última é uma profissãode fé monoteísta que praticamente todo muçulmano
sabe de cor.
[340]Traduzido de Nišwår almu¬å®ara wa a∆bår almu∂åkara [Palestras agradáveis e notícias
memoráveis], de Almu¬assin Attanœ∆∑, Beirute, 1995, vol. 5, pp. 129-134, edição de ¢Abbœd Aššålij∑.
Ao juiz Attanœ∆∑ atribuem-se, ainda, outras obras consideradas notáveis repertórios de homens e coisas da
Bagdá de sua época: Alfaraj ba¢da aššidda [O alívio após o sofrimento], e Almustajåd min fa¢alåt alajwåd
[“As mais generosas dentre as ações dos generosos”].
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
volume iii – ramo egípcio
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche
CRÉDITOS
Copyright da tradução
© 2007 by Editora Globo S.A.

Copyright da introdução, notas e apêndices
© 2007 by Mamede Mustafa Jarouche


Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta edição pode ser utilizada ou reproduzida – em qualquer
meio ou forma, seja mecânico ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem apropriada ou estocada em
sistema de bancos de dados, sem a expressa autorização da editora.


Texto fixado conforme as regras do novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa (Decreto Legislativo nº
54, de 1995).


TÍTULO ORIGINAL
Kitåb alf layla wa layla

REVISÃO
Beatriz de Freitas Moreira
Maria Sylvia Corrêa
Agnaldo Holanda

CAPA E PROJETO GRÁFICO
Raul Loureiro
Claudia Warrak

EDIÇÃO DIGITAL
Erick Santos Cardoso

PRODUÇÃO PARA EBOOK
S2 Books

1ª edição, 2007

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [CIP]
Câmara Brasileira do Livro, sp, Brasil
Livro das mil e uma noites, volume iii: ramo egípcio /
Anônimo; traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche.
– São Paulo: Globo, 2007
1.133 kb; ePUB

ISBN 978-85-250 -5248-3 [v. iii]

I. Contos árabes 2. Fábulas orientais 3. Fábulas orientais –
História e crítica.

07-8887 CDD 892.73008
Índices para catálogo sistemático:
1. Fábulas: Literatura oriental: Coletâneas 892.73008

Direitos de edição em língua portuguesa
adquiridos por Editora Globo S.A.
Avenida Jaguaré, 1485 -05346–902 São Paulo – SP
www.globolivros.com.br
SUMÁRIO
Créditos
Nota introdutória
Livro das Mil e uma noites
O rei Mu¬Ammad Bin Såbik e o ¿Awåja Æasan
Sayf Almulūk e Bad∑¢at Aljamāl
O naufrágio do vizir Så¢id
As aventuras do xeique alΔaylaΔån Bin Håmån
A jovem sequestrada pelo gênio
Os Sete Irmãos E O Xeique
A mulher, seu irmão e as feiticeiras
O primeiro acorrentado
O pássaro-gênio e a bela
O segundo acorrentado
O velho que incensava o ídolo
Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån
O Homem Sequestrado
O xeique Albāz Alašhab, o cambista e sua esposa
O rei Qāßim Ala¢mār e sua filha Sitt Alaqmār
O homem sequestrado pela gênia

O rei BaΔT Zåd e seus dez vizires
O mercador de má sorte
O mercador apressado e seu filho ponderado
A paciência de Abœ Øåbir
Barzåd, o príncipe impaciente
A paciência da asceta
O rei e o auxílio divino
O rei e o santo homem
O perdão e o rei injusto
O rei „Lån ¸åh e o leal Abœ Tamåm
O rei e seu enteado
O rei Bahr∑z, seu filho e o destino
Sindabåd, o navegante
Primeira viagem
Segunda viagem
Terceira viagem
Quarta viagem
Quinta viagem
Sexta viagem
Sétima viagem

O rei ¸åh baΔt e o seu vizir Rahwån
O homem de ¿urååsån, seu filho e o preceptor
O perfumista, sua esposa e o cantor
O rei conhecedor de essências e seu filho
O homem rico que casou a filha com um velho pobre
O sábio e seus três filhos
O rei que se apaixonou por uma imagem
O lavadeiro, sua esposa e o soldado
O mercador, o rei e a velha
O estúpido curioso
O rei e o coletor de impostos
Sentenças de Davi e Salomão
A mulher e o ladrão
Os três homens e Jesus Cristo
A aventura do discípulo de Jesus
O rei que recuperou o reino e o dinheiro
O homem morto pela própria cautela
O homem gentil com o desconhecido
O homem rico que perdeu o dinheiro e o juízo
¿ubluß, sua esposa e o sábio
A devota piedosa acusada de corrupção
O empregado e a jovem
Galeno e o tecelão que virou médico a mando da esposa
Os dois ladrões que fizeram artimanhas um contra o outro
Os espertalhões e o cambista
O ladrão decoroso
O falcão e o gafanhoto
O rei e a esposa de seu secretário
A velha e a esposa do mercador de tecidos
A bela mulher e o homem feio
O rei que tudo perdeu e depois recuperou
O rapaz de ¿uråsån, sua irmã e sua mãe
O rei da Índia e seu vizir
Anexo
Posfácio: Uma configuração do que poderia ter sido
NOTA INTRODUTÓRIA
NOTA INTRODUTÓRIA


Sem que se possa propriamente chamá-las de inúmeras, as configurações do
Livro das mil e uma noites em terras egípcias são bastante plurais, fato do qual se
procurou dar conta neste terceiro volume da série. Um de seus propósitos é a
caça de tradições – seriam esses precisamente os termos? – manuscritas
anteriores à ordenação final e fatal, no Cairo, de um vago escriba anônimo do
século xviii. Trata-se de ensaios esporádicos, fadados ao esquecimento não fosse
a frígida resistência de documentos que os constituem como ruína de um caos
deslocado para outro lugar pela ânsia da ordenação, e talvez por outras
ansiedades mais, superpostas às de todos os personagens do livro. Embora
acidental e devida à variedade das fontes, a metáfora mais que adequada desse
caos insubordinante, diga-se assim, é o caráter errático da numeração das noites
deste volume – um bloco de histórias vai da 198ª à 275ª noite, outro, da 176ª à
210ª noite, e o terceiro, da 885ª à 929ª noite, sem contar os anexos, da 471ª à
486ª e da 563ª à 566ª. Tudo dependeu da fonte escolhida. Insista-se, aliás, que é
a sucessão quase sempre idêntica da noite e da aurora – o seu inexorável devir, a
sua mecânica repetição de falas pragmaticamente ansiosas (plenas de lições e
similitudes) e gozos febris – que instaura a incorporação de qualquer história ao
repertório de ³ahrazåd, não passando os números propriamente ditos de mera
formalidade.
As histórias aqui traduzidas obedecem a múltiplas determinações, que se
desdobram e não raro se entrecruzam: seus personagens viajam, na demanda de
alguma paixão, seja ela amor, cobiça ou fé, mostrando-se, em lutas contra o
demônio, quase sempre valentes; também praticam e sofrem intrigas, mentiras,
calúnias, tentando provocar a morte e dela fugindo; têm sede de saber e ouvir,
arremedo de lubricidade muitas vezes irrealizada, esmagados pela dor de atrozes
insônias que alegorizam os medos do poder e deformam os jogos da dominação;
enfim, seus personagens desejam, o tempo todo, a tudo e a todos. Antegozo de
escribas, leitores e ouvintes, a narrativa de ³ahrazåd duplica, às vezes em tom de
falsete, a situação por ela vivida, antecipando ou premeditando o desfecho de sua
própria exterioridade, afugentando fantasmas com movimentos e empuxos
contínuos para dentro e para fora do quadro de sua narradora principal.
Em mais de uma história, alguns aparentes defeitos de transmissão podem ser
lidos como coisa diversa: abuso de elipse que evidencia saturação de tópicas,
busca de renovados espantos, amor do insólito elevado ao paroxismo,
apropriação e adulteração de relatos de viagem, islamização descuidada de
fábulas originariamente árabe-cristãs, e mais uma pletora de possibilidades das
quais seria imp(r)udente pretender dar conta.
Ressalte-se, enfim, que o leitor interessado na minúcia dos procedimentos
adotados para a execução deste volume encontrará os devidos esclarecimentos
no posfácio que o acompanha.

Mamede Mustafa Jarouche
São Paulo, 20 de abril de 2007
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
E quando foi a 198ª noite
O rei Mu¬ammad Bin Såbik e o ¿awåja Æasan [1]
Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que existiu um rei estrangeiro, chamado
Mu¬ammad Bin Såbik,[2] o qual governava a terra de ¿uråsån; todo ano ele
fazia algaras contra as terras dos infiéis, a Índia, o Sind[3] e a China, as terras
para além do rio e, mais adiante, todas as terras estrangeiras e outras também.
Era um rei justo, corajoso, nobre e liberal, que apreciava tertúlias, narrativas,
poesias, crônicas, histórias, serões e relatos sobre os antigos. Quem quer que
conhecesse uma história de cor ia lhe contar, e por ela ganhava presentes; dizia-
se que, se acaso um forasteiro chegasse com uma boa história e a contasse diante
dele, causando a sua admiração e espanto, o rei oferecia-lhe uma valiosa
vestimenta, entregava-lhe mil dinares e o fazia montar em uma égua ajaezada de
cima a baixo;[4] o premiado, destarte, embolsava tudo e prosseguia o seu
caminho.[5] As notícias a respeito desse sultão se espalharam por todos os
países, sendo então ouvidas por um homem chamado ¿awåja[6] Æasan, que era
inteligente, eloquente, nobre, liberal, sábio, poeta e virtuoso; foi isso que ele
ouviu: que o sultão Mu¬ammad Bin Såbik dava, a qualquer um que lhe
expusesse uma boa narrativa ou história, mil dinares de ouro, uma égua
totalmente ajaezada a ouro e uma vestimenta valiosa com certa quantia em
dinheiro. Esse rei tinha um vizir invejoso, ingrato, que não gostava de ninguém,
nem de ricos, nem de pobres; sempre que alguém ia até o sultão e dele recebia
algo, o vizir ficava com inveja e dizia ao rei: “São atitudes assim que esgotam o
dinheiro e arruínam o lar”. Nisso e em mais nada consistiam os seus esforços.
Ao ouvir tais palavras de seu vizir, o rei, tendo recebido notícias a respeito
daquele ¿awåja, mandou chamá-lo e lhe disse: “Ó ¿awåja Æasan, o vizir diverge
de mim e me hostiliza devido ao dinheiro que dou aos poetas por causa das
histórias;[7] quero que você me conte uma boa narrativa, uma história espantosa
e insólita, um conto que eu jamais tenha ouvido em toda a minha vida. Se acaso
me agradar, eu lhe darei muitas cidades com castelos e vilas, para além das
propriedades que você já tem, e colocarei meu reino inteiro em suas mãos,
tornando-o meu principal vizir, aquele que se sentará à minha direita,
governando depois de mim, em minha ausência; isso se você me trouxer o que
eu lhe disse; porém, se não trouxer, tomarei tudo quanto você possui e mandarei
surrá-lo e expulsá-lo do meu reino”. O homem respondeu: “Ouço e obedeço ao
meu amo o sultão; conceda, porém, um ano de prazo a este seu criado, e então
lhe trarei uma narrativa que em toda a sua vida nem o senhor nem qualquer outro
jamais terão ouvido igual nem mais bela”. O sultão respondeu: “Vá e permaneça
em sua casa; não cavalgue nem saia de seu lugar pelo período de um ano, ao
cabo do qual você comparecerá com o que eu lhe disse; se trouxer, gozará
benefícios especiais e regozijar-se-á recebendo o que prometemos; caso
contrário, não respondo pelo que acontecerá”. O ¿awåja Æasan beijou o chão
diante do sultão e saiu de sua presença, dirigindo-se para casa, onde escolheu,
entre seus secretários,[8] cinco que sabiam ler, escrever e eram educados,
virtuosos e ajuizados – seus auxiliares mais próximos. Deu a cada um deles
cinco mil dinares e lhes disse: “Eu não os criei senão para uma ocasião como
esta; ajudem-me e salvem-me das mãos desse sultão”. Perguntaram: “E o que
quer que façamos? Sejam nossas vidas o seu resgate!”. Ele respondeu: “Viajem
cada um para uma região e investiguem junto aos sábios, letrados, conhecedores
de histórias, narrativas e crônicas;[9] vejam para mim a história de Sayf
Almulœk;[10] se acaso a encontrarem com alguém, paguem-lhe quanto ouro
pedir e o agradem; mesmo que lhes peça mil dinares, tragam-no até mim!
Aquele dentre vocês que topar com ele receberá uma vestimenta valiosa e
honrosos benefícios, e será para mim o mais caro”. Em seguida, o ¿awåja Æasan
disse a um deles...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 199ª– noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o ¿awåja Æasan disse a um deles: “Vá
você para a terra da Índia e do Sind e suas províncias e distritos”; a outro: “Vá
para a terra de Al¬a≈å, Al¿atan[11] e China, com suas províncias e distritos”; a
outro, que era o terceiro: “Você vá para a terra de ¿uråsån e Tabr∑z da Pérsia e
suas províncias e distritos”; disse ao quarto: “Você vá para as terras do Iraque e
dos Árabes,[12] suas províncias e distritos”; e disse ao quinto: “E você vá para a
Síria, o Egito, suas províncias e distritos”. O ¿awåja Æasan escolheu um dia de
bons augúrios para a viagem e então lhes disse: “Vão, partam e se esforcem para
conseguir aquilo de que necessito; não esmoreçam, ainda que para isso tenham
de dar suas vidas; agradem com dinheiro a quem o merecer”.
Disse o narrador: então ele se despediu deles e voltou. Os auxiliares viajaram
cada qual para a localidade a si destinada, mas quatro deles, após uma ausência
de oito meses procurando, voltaram sem nada ter encontrado. O peito do ¿awåja
Æasan se apertou, e a sua aflição era tamanha que ele desmaiou. O quinto
auxiliar viajou até entrar na Síria, atravessando a cidade de Jilliq, que é a própria
Damasco,[13] aprazível com seus jardins, e ali ele morou, considerando-a um
deleite com suas árvores, rios, flores, tâmaras e muitas frutas, romãs, aves que
reverenciavam o Deus único, o vencedor, que criou a noite e o dia. Permaneceu
ali por dez dias indagando por aquilo que procurava, mas, como ninguém
atendesse o seu pedido, preparou-se para partir, quando então topou com um
rapaz que corria e tropeçava nas próprias pernas; o auxiliar lhe perguntou: “Por
que você está correndo desesperado? Aonde vai?”. O rapaz respondeu: “Vive
aqui um xeique sábio e virtuoso que todo dia a esta hora se senta em uma cadeira
e conta histórias e contos agradáveis que nunca ninguém ouviu iguais. Deixe-me
continuar correndo para eu encontrar um ponto próximo a ele, pois há tanta
gente que vou acabar não achando lugar”. O auxiliar do ¿awåja Æasan pediu:
“Leve-me com você para que eu ouça as histórias dele”, e o rapaz respondeu:
“Venha atrás de mim!”; o auxiliar fechou a porta e seguiu o rapaz até chegar à
mesquita na qual o xeique contava as suas histórias. Quando conseguiu entrar,
viu um xeique de rosto radiante falando, sentado em uma cadeira, e as pessoas
acorrendo até ele. O auxiliar se acomodou nas proximidades e ouviu a sua
história. O sol se aproximava do ocaso quando o xeique terminou a narrativa, e
os circunstantes, tendo ouvido o que ele contara, saíram de seu redor.
Disse o narrador: então o auxiliar se aproximou dele, cumprimentou-o, e o
xeique lhe retribuiu o cumprimento, dirigindo-lhe calorosa saudação. O auxiliar
lhe disse: “Por Deus, meu senhor, que você é um homem agradável e respeitável,
e sua história também é agradável. Gostaria de lhe perguntar uma coisa”. O
xeique respondeu: “Diga e pergunte o que desejar”. O auxiliar perguntou: “Por
acaso você tem, meu senhor, a história de Sayf Almulœk e Bad∑¢at Aljamål?”.
O xeique lhe disse: “De quem você ouviu isso? De onde você obteve
conhecimento dessa história? Quem lhe informou a respeito?”. O auxiliar
respondeu: “Eu nunca ouvi essa história; porém, sou de um país distante e só
vim para cá por causa dela. Peça o quanto pedir e eu lhe pagarei se você a tiver;
serei generoso e por essa história distribuirei esmolas em sua honra; por ela você
pode tomar minha vida”. O xeique lhe disse: “Fique tranquilo, pois essa história
virá. Trata-se, porém, de uma narrativa que ninguém faz na rua, nem para
qualquer um”. O auxiliar do ¿awåja Æasan disse: “Por Deus, meu senhor, não
seja avaro comigo! Cobre o que desejar!”. O xeique lhe disse: “Se você quiser
esta história, dê-me cem dinares para que eu lhe dê a narrativa completa, com
cinco condições”. Ao ouvir que o xeique tinha a história, o auxiliar ficou
muitíssimo contente e lhe disse: “Dou-lhe cem dinares mais dez! Diga-me quais
são as cinco condições que você mencionou”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de narrar.

E quando foi a 201ª– noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o xeique disse ao auxiliar: “Vá buscar
o ouro e volte para pegar o que você precisa”. O auxiliar beijou a mão do xeique,
foi para casa feliz e contente, recolheu os cento e dez dinares, colocou-os em um
saco que estava consigo e, assim que Deus iluminou o dia com sua luz, fazendo-
o amanhecer e brilhar, o auxiliar se vestiu, pegou os dinares e foi até o xeique, a
quem viu sentado à porta de sua casa. Cumprimentou-o e lhe entregou os cento e
dez dinares; o xeique recolheu o dinheiro, entrou na casa, instalou o auxiliar no
local, estendeu-lhe tinteiro, cálamo e papel, além de um livro, e lhe disse: “Copie
deste livro, pois ele contém a história que você procura”. O auxiliar do ¿awåja
Æasan sentou-se na casa do xeique e pôs-se a copiar a história até terminar de
escrevê-la, lendo-a em seguida para o xeique e corrigindo-a; depois, disse-lhe:
“Ó xeique, meu senhor, diga-me agora quais são as condições de que falou”. O
xeique respondeu: “Meu filho, a primeira é que você não leia esta história em
público nem diante de mulheres, concubinas e escravos; nem diante de néscios e
ignorantes; nem diante de garotos; você deve lê-la, isto sim, diante de reis, de
sultões, de cortesãos e de sábios.[14] O auxiliar beijou a mão do xeique,
despediu-se, saiu dali e viajou no mesmo dia, feliz e contente, conduzindo-se
com extrema velocidade em virtude da enorme felicidade por ter encontrado a
história. Chegou à sua terra, entrou em casa e enviou um de seus serviçais para
transmitir a boa-nova ao ¿awåja Æasan, inteirando-o de que chegara são e salvo
e atingira seu propósito e meta. Quando o auxiliar chegou à cidade, faltavam
cinco dias para terminar o prazo que seu mestre lhe dera, e restavam dez dias
para se esgotar o prazo que o rei dera ao seu mestre. Por isso, assim que ele
chegou e informou tudo ao ¿awåja Æasan, este ficou muito contente, e o auxiliar,
após ter descansado em seu quarto, foi até o mestre e lhe entregou o livro que
continha a história de Sayf Almulœk e Bad∑¢at Aljamål. Ao ver o livro, o
¿awåja Æasan o presenteou com todas as suas roupas, deu-lhe dez camelos, dez
corcéis e dez asnos, e fez dele o seu auxiliar-mor. Depois, o ¿awåja Æasan pegou
a história e a escreveu, interpretando-a, com a sua letra; a seguir, dirigiu-se
munido dela até o rei, a quem disse: “Saiba, ó rei venturoso, que eu lhe trouxe
uma história agradável e rara que nunca ninguém escutou”. Ao ouvir as palavras
do ¿awåja Æasan, o rei determinou que imediatamente se apresentassem ali
todos os comandantes, sábios, nobres, poetas e letrados. O ¿awåja Æasan se
acomodou e leu a história diante do rei, e todos os presentes também a ouviram e
lhe atiraram ouro, prata e pedras preciosas. Em seguida, o sultão ordenou que se
desse ao seu vizir, o ¿awåja Æasan, uma valiosa vestimenta – das mais opulentas
que possuía – e uma grande cidade com todos os seus castelos e aldeias; fez dele
o seu grão-vizir, dando-lhe assento à sua direita, e ordenou que a história fosse
copiada com ouro e enfeitada com prata.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 201ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei ordenou que a história fosse
escrita com ouro e enfeitada com prata, e que a guardassem em sua biblioteca
pessoal, lendo-a sempre que sentia o peito opresso.[15]
Sayf Almulœk e Bad∑¢at Aljamål
Retomemos agora a sequência dessa história.[16]
Disse o narrador: conta-se que havia na capital do Egito um rei chamado
¢Åßim Bin Øafwån, que era justo, generoso, bom, acatado e reverenciado. Tinha
muitos países, fortificações, castelos, tropas e soldados, bem como um vizir
chamado Fåris Bin Øåli¬. Todos eles adoravam o Sol, e não a Deus altíssimo e
poderoso. Esse rei se tornara um ancião enfraquecido pela idade avançada e
debilitado pela doença; já vivera cento e oitenta anos e não tinha filho nem filha,
consumindo as noites e os dias em preocupações e pensamentos a respeito disso.
Conta-se que certo dia, estando instalado em seu trono – com outros reis, vizires,
cortesãos e notáveis do reino prestando-lhe reverência, conforme era o hábito
deles, e os presentes e ingressantes se faziam acompanhar por um, dois ou três
filhos, os quais se postavam ao lado de seus pais, prestando reverência ao rei de
acordo com a sua posição –, o rei ¢Åßim lançou um olhar de inveja aos
circunstantes e disse de si para si: “Todo mundo está contente e feliz com seus
filhos, mas eu, que não tenho filhos, amanhã morrerei deixando meus serviçais,
trono, corcéis, criados e tesouros para serem tomados por estranhos, e ninguém
se lembrará de mim nem terei memória neste mundo”. Em seguida, engolfando-
se nessa ideia enquanto os presentes passavam por ele acompanhados de seus
filhos, o rei ¢Åßim chorou, saiu do trono e se sentou no chão, sobre a terra,
chorando e gemendo. Vendo esse comportamento do rei, o vizir e os demais
circunstantes temeram por suas próprias vidas, e logo os oficiais da guarda e os
maiorais do reino começaram a gritar para as pessoas: “Vão para suas casas e
descansem até o rei se recuperar do que lhe sucedeu”. Assim, não permaneceu
junto ao rei senão o seu vizir Fåris Bin Øåli¬. Quando o rei se recuperou, o vizir
beijou o solo diante dele e perguntou: “Ó rei de todos os tempos, por que esse
choro e esses lamentos? Conte-me quem, dentre os reis da terra, dos donos de
fortalezas e castelos ou dos notáveis do reino, se tornou seu inimigo! Alguém lhe
desobedeceu as ordens, ó rei? Ficaremos todos contra ele e lhe arrancaremos o
espírito do corpo!”. Mas, como o rei não respondeu nem ergueu a cabeça, o vizir
tornou a beijar o chão diante dele e lhe disse: “Meu senhor, sou como seu pai e
escravo. Criei-o e carreguei-o em meus ombros, e, se eu não puder saber suas
angústias, preocupações, tristezas e o que está passando, então quem saberá?
Quem desfruta do mesmo prestígio diante de você? Conte-me a que se devem
este choro e esta tristeza”. Mas o rei não se pronunciou nem abriu a boca nem
ergueu a cabeça, prorrompendo, ao contrário, em choro e altos gritos, ao que o
vizir, pacientemente, lhe disse: “Ó rei, se não me disser o que o aflige, vou me
matar! Se não me contar o que lhe ocorreu, vou enfiar esta espada em meu
coração e me matar!”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 202ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei ¢Åßim ergueu a cabeça, enxugou
as lágrimas e disse: “Ó vizir de bons conselhos, inteligente, honrado e ajuizado,
deixe-me com minhas preocupações e angústias! Basta o que já me sucedeu!”. O
vizir lhe disse: “Ó rei, conte-me o motivo desse choro, e talvez a solução esteja
em minhas mãos!”. Disse-lhe o rei: “Ó vizir, eu não choro por dinheiro nem pelo
reino nem por qualquer outra coisa dessas, mas sim porque eu me tornei um
homem velho, com cerca de cento e oitenta anos, e ainda não fui agraciado com
nenhum filho ou filha. Se eu morrer, meu nome será enterrado, meus traços
desaparecerão, algum estranho conquistará meu trono e meu reino e ninguém
nunca mais se lembrará de mim”. O vizir Fåris lhe disse: “Meu senhor, eu sou
cem anos mais velho que você e tampouco fui agraciado com filhos; passo
minhas noites e meus dias em angústias e preocupações com isso! Como
faremos?”. O rei disse: “Ó vizir, para essa questão não existe estratégia ou
saída”. O vizir respondeu: “Sei lá! Porém, eu ouvi dizer que na terra de Sabá
existe um rei chamado Salomão Bin Davi, que alega ser profeta e ter um rei
poderoso nos céus, o qual lhe concedeu o governo de todos os seres humanos,
aves, animais, ventos e gênios. Ele conhece a linguagem de todos os pássaros, as
línguas de todas as criaturas, e, apesar disso, prega para todos os seres a religião
do seu deus, e os estimula a adorá-lo. Vamos enviar-lhe, de sua parte, um
mensageiro para pedir-lhe aquilo de que você precisa. Se a religião dele for
verdadeira, e o seu deus for todo-poderoso, pediremos a ele que nos agracie com
um filho para você e um filho ou filha para mim. Se isso der certo, adotaremos a
sua religião e adoraremos o seu deus; do contrário, vamos ver direito e encontrar
outro estratagema”. O rei ¢Åßim lhe disse: “Está certo! Agora, o meu peito se
desanuviou por causa desse discurso. No entanto, onde encontrar um mensageiro
para essa missão tão importante? Pois Salomão Bin Davi não é um reizinho
qualquer, e ir até ele constitui um pesado encargo. Não quero que se dirija a ele
em tal missão outro que não você, ó vizir, que é grande e conhece todos os
assuntos. Quero que você se dê esse trabalho, esforçando-se como se fosse eu
mesmo, e viaje até ele, pois para enfrentar tais assuntos ninguém é como você.
[17] Quiçá minha libertação se dê pelas suas mãos”. O vizir respondeu: “Ouço e
obedeço, mas agora se levante imediatamente e acomode-se no trono para que
entrem os comandantes, os notáveis do reino, a gente toda e os soldados a fim de
lhe prestar reverência, segundo o hábito, pois todos saíram daqui com os
pensamentos abalados por sua causa. Em seguida, sairei e viajarei em busca do
pedido do rei”. O rei imediatamente se levantou e se instalou no trono; o vizir
saiu e disse ao secretário-mor: “Diga às pessoas que voltem ao serviço conforme
o hábito”, e os soldados, militares e notáveis do reino entraram depois que as
refeições foram servidas; comeram, beberam e se retiraram, conforme o hábito.
Então o vizir Fåris saiu do palácio do rei ¢Åßim e foi para casa ajeitar as
coisas para a viagem; em seguida, regressou até o rei, que lhe abriu os depósitos
e preparou joias, presentes e corcéis – em conformidade com o hábito dos reis –,
tecidos opulentos e preciosidades sem igual, que não eram possuídas nem por
príncipes nem por vizires. O rei lhe recomendou que tratasse Salomão Bin Davi
com reverência, transmitisse-lhe suas saudações e não falasse muito em sua
presença; e completou: “Em seguida, faça-lhe o seu pedido; se ele responder
positivamente, você terá cumprido a missão; portanto, regresse até nós com
rapidez, pois estou à sua espera”. O vizir Fåris beijou a mão do rei, saiu de sua
presença e se pôs a caminho.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 203ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Fåris beijou a mão do rei,
despediu-se, recolheu as joias e se pôs a caminho noite e dia até chegar ao reino
de Sabá. Quando faltavam quinze dias de marcha para que o vizir chegasse,
Deus inspirou a Salomão Bin Davi, que a paz esteja com ele,[18] o seguinte: “O
rei do Egito enviou até você o seu grão-vizir com presentes e joias. Ele é assim e
assado... Envie, você também, o seu vizir Åßif Bin Bar¿iyya para recepcioná-lo.
Quando ele estiver diante de você, diga-lhe: ‘O rei não o mandou senão para
conseguir isso e aquilo, e sua demanda é isso e aquilo...’, e então lhes ofereça a
fé e o islã”. Nesse momento, Salomão Bin Davi, que a paz esteja com ele,
ordenou a seu vizir Åßif Bin Bar¿iyya que escolhesse um grupo de sua corte, se
munisse de fartas provisões e forragens boas e abundantes e fosse recepcionar o
grão-vizir do Egito. Åßif então saiu, preparou-se e foi ao encontro do grão-vizir
do Egito, a quem recepcionou, saudou e acolheu muito bem, oferecendo a ele e a
seu séquito as provisões e forragens e dizendo-lhes: “Sejam muito bem-vindos
os hóspedes e viajantes! Recebam a boa-nova da satisfação de suas demandas!
Tranquilizem as suas almas!”. Então o vizir Fåris pensou: “Quem informou
vocês sobre isso?”,[19] e de pronto o vizir Åßif Bin Bar¿iyya respondeu: “Foi o
nosso profeta Salomão, que a paz esteja com ele, que nos informou disso”. O
vizir Fåris perguntou: “E quem informou o seu senhor Salomão?”. Åßif
respondeu: “Quem o informou foi o senhor dele, o senhor dos céus e da terra”. O
vizir Fåris disse: “Esse não é senão um deus poderosíssimo”. Åßif lhe perguntou:
“E vocês, o que adoram? Quem é o seu deus?”. Fåris respondeu: “Nós adoramos
o Sol e diante dele nos prosternamos”. Åßif disse: “O Sol é um dentre outros
corpos celestes criados, e jamais seria ele o senhor, pois o sol nasce e morre, e
Deus tudo pode”.[20] Então eles se puseram em marcha por algum tempo até
que chegaram à cidade, e Salomão, que a paz esteja com ele, ordenou a todas as
feras selvagens que aparecessem e formassem duas fileiras, uma para cada
gênero. Em seguida convocou os bandos de gênios, todos visíveis, com formas
diversas e terríveis; formaram eles também duas fileiras, enquanto as aves
faziam sombra para todas as criaturas e cantavam em todas as línguas e
melodias. Quando os egípcios chegaram, ficaram com medo e não ousaram
caminhar até eles. Åßif então lhes disse: “Atravessem e caminhem sem medo
deles, pois são todos escravos de Salomão Bin Davi, que a paz esteja com ele, e
nenhum lhes fará mal”, e passou no meio deles, entre todas aquelas criaturas; os
egípcios foram atrás dele, assustados, até que chegaram, entraram na cidade e
foram instalados na Casa de Hospedagem, sendo extremamente bem tratados e
dignificados; forneceram-lhes provisões e opulentos regalos de hospedagem
durante três dias, passados os quais os levaram à presença de Salomão, que a paz
esteja com ele.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 204ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Fåris foi conduzido com seus
companheiros e seu grupo à presença do rei Salomão Bin Davi, que a paz esteja
com ele. Mal entraram, fizeram menção de beijar o chão diante dele, mas
Salomão os impediu de fazer aquilo e disse: “Só devemos nos prosternar diante
de Deus altíssimo e poderoso, criador dos céus e da terra”, emendando em
seguida: “A terra pertence a Deus, e todos somos escravos de Deus altíssimo e
poderoso. Aquele de vocês que desejar se sentar, que se sente, e aquele que
desejar ficar em pé, que fique. Todavia, que ninguém se sente para me prestar
reverência!”. Então o vizir Fåris e alguns de seus companheiros se sentaram,
enquanto outros menos importantes se colocaram em posição de reverência. Mal
haviam se acomodado, foram-lhes servidas refeições e comeram todos, sem
exceção.
Depois Salomão, que a paz esteja com ele, ordenou ao vizir egípcio que
falasse e mencionasse a sua demanda, a fim de que fosse satisfeita, e lhe disse:
“Fale sem nada ocultar, pois você não se extenuou nem veio até nós senão para
satisfazer alguma demanda. Se não falar, eu mesmo lhe direi o que você veio
pedir”. E Salomão, que a paz esteja com ele, continuou: “Ó vizir, o rei ¢Åßim se
tornou um ancião e Deus não o agraciou com filhos, nem macho nem fêmea, e
ele se mantém noite e dia nessa preocupação e nesse pensamento. Então, certo
dia ele se sentou no trono e vieram ter com ele vizires, comandantes e notáveis
do governo, cada um deles acompanhado de um, dois ou três filhos que ficavam
parados ao seu lado, prestando reverência. Ele refletiu e disse, tamanha era sua
tristeza: ‘Quem será que tomará meu reino após a minha morte e governará os
meus súditos? Será o meu reino tomado por um estranho, e, quanto a mim, será
como se eu nunca tivesse existido?’. Ele tanto pensou nisso que seus olhos se
inundaram de lágrimas, e ele cobriu o rosto com o lenço e chorou copiosamente,
descendo em seguida do trono e indo ao chão chorar e se lamentar. Não sabia o
que lhe ia pelo coração senão Deus exalçado. Depois, os secretários e oficiais da
guarda retiraram as pessoas do local e lhes deram licença dizendo: ‘Vão para
suas casas, pois o sultão não está passando bem’, e todos saíram, ficando o rei
sozinho com você, que nesse momento beijou o solo diante dele e lhe perguntou
o que tinha e por que chorava, mas ele não respondeu; você então uma segunda
vez beijou o solo, implorou de maneira bem eloquente e repetiu-lhe o discurso,
dizendo-lhe ainda: ‘Se não me disser o que ocorreu, qual o motivo desse choro
caudaloso, quem se tornou seu inimigo, e por que você chora, sairei e
imediatamente me matarei para não vê-lo nesse estado’. Nesse instante, o rei
ergueu a cabeça, limpou as lágrimas e disse: ‘Ó vizir de bons conselhos, o
motivo do meu choro não é nem dinheiro nem o reino nem tecidos nem corcéis,
nem servidores nem criados; choro, isto sim, por ter me tornado um ancião que
em vida não se alegrou neste mundo terreno com um filho ou uma filha; amanhã
morrerei e alguém conquistará meu reino depois de mim, talvez um estranho, e
ninguém nunca mais me recordará’, e você respondeu: ‘Ó rei, você poderá ser
agraciado com um filho, a não ser que no mundo incognoscível haja alguma
coisa. Por Deus que eu sou cem anos mais velho que você e tampouco fui
agraciado com filha ou filho, e durante a noite e o dia inteiros penso nisso e me
preocupo’; o rei lhe perguntou: ‘Ó vizir, haverá para isso alguma estratégia ou
remédio que o homem faça?’, e você lhe respondeu: ‘Por Deus que não sei;
porém, ouvi que neste nosso tempo surgiu na terra de Sabá um rei a quem
chamam Salomão Bin Davi, que alega ser profeta e portador de uma mensagem,
e que prega para conduzir as pessoas ao bom caminho, afirmando ter um deus
poderosíssimo, onipotente, e levando-as à adoração desse deus. Nós lhe
enviaremos mensageiros e estes lhe pedirão que rogue a seu deus para que nos
agracie com filhos; se ele satisfizer nossa demanda, entraremos em sua fé e
seguiremos a quem ele adora; se as coisas não se derem assim, arranjaremos
outro estratagema para resolver a questão’; o rei lhe disse: ‘Sim, você não disse
senão coisas boas; porém, um assunto complexo como esse, com esse rei tão
poderoso, não deve ser encargo senão de um homem conhecedor e
experimentado, que o preserve’, e completou: ‘Para ir ter com reis, não há senão
você; portanto, satisfaça sua demanda e retorne a nós rapidamente’.[21] Isso
tudo está correto, ó vizir? O que eu disse é veraz e verdadeiro?”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 205ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Fåris disse: “Ó profeta de Deus,
isso tudo é correto, verdadeiro e veraz. Contudo, ó profeta de Deus, enquanto o
rei ¢Åßim e eu conversávamos sobre essa questão, não havia ninguém que eu
visse. Quem foi que lhe informou essas coisas todas?”. Salomão respondeu: “Foi
o meu senhor, que sabe o que os olhos não vêem e o que se manifesta no peito”.
Nesse momento, o vizir Fåris disse: “Ó profeta de Deus, esse não é senão um
senhor poderoso, uma divindade onipotente”, e, ato contínuo, converteu-se ao
islã, ele e todos quantos o acompanhavam. Depois Salomão Bin Davi, que a paz
esteja com ele, perguntou: “Você traz consigo as joias e os presentes tais e tais?”.
O vizir respondeu: “Sim”. Salomão, o profeta de Deus, lhe disse: “Aceito-os
todos e os concedo a você”, e continuou: “Vá descansar por esta noite na
hospedagem que lhe foi destinada, vizir Fåris, pois você está cansado da viagem.
Amanhã, se Deus altíssimo quiser, não vai ocorrer senão o bem e sua demanda
será satisfeita da melhor maneira, conforme a vontade do senhor dos céus e
criador das luzes após a escuridão”. Então o vizir Fåris se retirou e foi para o
local de hospedagem, pondo-se a refletir durante a noite sobre o senhor
Salomão; quando amanheceu, levantou-se e foi até o senhor Salomão, que lhe
disse: “Quando você chegar ao rei ¢Åßim e ambos se reunirem, saiam no mesmo
dia munidos de arcos, flechas e espadas, e vão os dois até o lugar tal, onde
encontrarão uma árvore na qual subirão ambos [e se mantenham quietos; após as
duas preces, quando o calor tiver diminuído, desçam para a base da árvore],[22]
da qual sairão dois dragões, um com cabeça de vaca e outro com cabeça de ifrit,
e em cujos pescoços haverá um colar de ouro; assim que vocês virem os dragões,
alvejem-nos com as flechas e matem-nos; depois, cortem-lhes um palmo além do
começo da cabeça e um palmo além do começo do rabo; cozinhem o resto de
suas carnes com cebola frita, façam suas mulheres comerem e nessa noite
durmam com elas, que engravidarão, com a permissão de Deus altíssimo, e terão
filhos machos”. Em seguida, Salomão Bin Davi, que a paz esteja com ele,
mandou trazer um anel, uma espada e uma trouxa contendo duas túnicas
cravejadas de joias e disse: “Quando os filhos de ambos crescerem, vizir, dêem
uma túnica destas para cada um”, e continuou: “Que Deus atenda a sua
demanda, vizir. Não restou nenhum entrave; viaje com a bênção de Deus
altíssimo, pois o rei ¢Åßim lhe deu um prazo e está à sua espera noite e dia, com
os olhos pregados na estrada”. Então o vizir despediu-se do senhor Salomão e
partiu em viagem.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 206ª noite


[23]
Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir Fåris partiu em viagem pelo
resto do dia, feliz por ter conseguido satisfazer sua demanda; forçou a marcha
dia e noite até que chegou às proximidades do Egito, mandando então um de
seus criados avisar o rei de sua chegada. Ao ouvir a notícia, o rei ¢Åßim, seus
cortesãos, os principais do governo e as tropas ficaram muito contentes com o
fato de o vizir estar são e salvo. Assim que se encontraram, o vizir se apeou
diante do rei, aproximou-se, beijou-lhe a mão e o pé e lhe deu a boa-nova da
satisfação de seu interesse da melhor maneira. Ofereceu-lhe a fé e o islã e o rei
¢Åßim se converteu junto com os membros de seu governo, o povo de seu reino
e todos quantos viviam no Egito. Muito contente, o rei ¢Åßim disse ao vizir: “Vá
para casa e descanse alguns dias, vizir; vá ao banho e depois venha até mim a
fim de que eu lhe diga o que faremos”. E o vizir beijou o chão e se retirou, com
seu séquito, criados e serviçais, para casa, onde descansou por exatos oito dias e
depois retornou ao serviço, relatando ao rei tudo quanto sucedera entre ele e o
senhor Salomão, que a paz esteja com ele, e lhe dizendo ao cabo: “Venha, vamos
comigo, apenas você!”, e foram ambos, munidos de arcos, flechas e espadas, até
a árvore, na qual treparam, permanecendo quietos desde o meio-dia até a
tardezinha, antes do anoitecer,[24] quando então os dois dragões saíram da base
daquela árvore. Ao avistá-los, o rei gostou deles, apreciou-os por causa dos
colares de ouro e disse: “Eles estão com colares de ouro, vizir! Por Deus que isso
é algo espantoso! Vamos capturá-los e colocá-los em uma jaula para ficar
assistindo!”. O vizir respondeu: “Eles foram criados por Deus para produzir
benefício.[25] Lance você uma flecha em um deles que eu lançarei no outro”.
Então ambos lançaram suas flechas, desceram da árvore, mataram-nos,
cortaram-lhes um palmo além do começo da cabeça e um palmo além do
começo do rabo; carregaram o restante de suas carnes e foram para a casa do rei,
que chamou o cozinheiro, entregou-lhe aquelas carnes e disse: “Cozinhe
imediatamente e sem demora esta carne com bastante cebola frita, encha duas
tigelas e traga-as até aqui”. O cozinheiro pegou a carne, foi para a cozinha, lavou
tudo, colocou em uma panela e cozinhou a carne com cebola frita bem oleosa,
com especiarias e pimenta, enchendo então duas tigelas e levando-as até o rei,
que pegou uma das tigelas e deu de comer à sua mulher, enquanto o vizir levava
a outra tigela e dava de comer à sua mulher. Naquela mesma noite, pelo desígnio
e vontade de Deus, ambos copularam com suas mulheres.
Disse o narrador: durante três meses o rei permaneceu com os pensamentos
turbados, dizendo de si para si: “Será que deu certo ou não?”, até que, certo dia,
a sua esposa estava sentada e a criança se remexeu em seu ventre.[26]
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 207ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que certo dia a mulher do rei estava
sentada quando a criança se remexeu em seu ventre e ela percebeu que estava
grávida; sentiu dores, sua cor se alterou, e ela chamou um dos criados à sua
disposição, o mais importante, e lhe disse: “Vá até o rei, onde quer que ele
esteja, e lhe dê a boa-nova dizendo-lhe: ‘Meu senhor, a boa notícia de que a
senhora está grávida é verdadeira, pois a criança se mexeu em seu ventre!’”. O
criado caminhou apressadamente, muito feliz, e viu o rei sentado sozinho com a
mão no rosto, refletindo e dizendo: “Será que a minha esposa ficará ou não
grávida com aquela comida?”. Estava assim perturbado quando o criado entrou,
beijou o chão diante dele e disse: “Alvíssaras, meu senhor! A senhora sua esposa
está grávida, pois a criança se remexeu em seu ventre, ela sentiu dores e sua cor
se alterou”. Ao ouvir as palavras do criado, o rei ficou tão contente que se pôs de
pé incontinente, beijou a mão e a cabeça do criado, presenteou-o com uma roupa
honorífica[27] e disse aos membros de sua corte: “Quem quer que esteja
presente nesta assembleia, se de fato gostar de mim, tratará bem este criado e lhe
dará dinheiro, joias, rubis, corcéis, asnos, propriedades e jardins”, e então lhe
deram tantas coisas que era impossível contá-las. Naquele mesmo instante, o
vizir adentrou e disse: “Meu senhor, eu estava agorinha sentado em casa,
sozinho, refletindo preocupado e dizendo: ‘Será que a minha esposa vai de fato
engravidar ou não?’, e eis que um criado veio até mim e me deu a boa-nova da
manifestação da gravidez dela, pois a criança se remexeu em seu ventre, ela
sentiu dores e teve a cor alterada. Minha felicidade foi tamanha que coloquei
sobre ele todas as minhas roupas, dei-lhe mil dinares e o tornei o meu criado-
mor”. Então o rei ¢Åßim disse ao vizir: “Ó vizir, Deus bendito e altíssimo
generosamente nos concedeu a reta religião, com seu mérito e nobreza,
retirando-nos das trevas para a luz, e por isso eu quero fazer o bem ao povo”. O
vizir disse: “O que você quiser eu farei”, e então o rei lhe disse: “Quero tirar
todo mundo da cadeia – ladrões e devedores de impostos –, e deixá-los livres.
Depois disso, punirei da forma merecida quem cometer algum crime.[28] Vamos
dar isenção de impostos por três anos, e também deixarei comidas prontas ao
longo dos muros desta cidade...”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 208ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei disse ao vizir: “Deixarei prontas,
no entorno dos muros desta cidade, comidas de toda espécie e cozinheiros que
cozinhem noite e dia. Todo mundo, nesta cidade, nas vizinhanças e cidades
próximas, comerá, beberá e levará uma vida agradável. A cidade será enfeitada e
as lojas não serão fechadas nem de dia nem de noite. Vamos, vizir, saia e faça o
que eu ordenei, senão cortarei o seu pescoço!”. O vizir saiu imediatamente e fez
o que lhe ordenara o rei ¢Åßim; puseram os melhores enfeites no forte e nas
torres; todos vestiram as melhores roupas, comeram, beberam, brincaram e se
divertiram até que, em dada madrugada, as dores do parto atingiram a mulher do
rei: era hora de dar à luz. O rei ¢Åßim ordenou que todos os sábios, astrônomos,
letrados, chefes, nobres, astrólogos, estudiosos e escribas comparecessem, e
compareceu muita gente; todos se puseram a esperar para ver quando se atiraria
uma miçanga pela portinhola,[29] pois era esse o sinal combinado entre os
astrólogos e as aias;[30] aguardaram todos até que o sinal foi feito: a senhora deu
à luz um menino que se assemelhava à aparição da lua, e logo os presentes, em
conjunto, puseram-se a traçar o seu mapa zodiacal, a hora de seu nascimento, as
datas; depois todos beijaram o chão e foram dar ao rei ¢Åßim a boa-nova de que
o surgimento do seu filho era abençoado e a hora de seu nascimento, venturosa –
“porém, no início de sua vida, lhe ocorrerá algo que tememos mencionar diante
do rei”. Ele disse: “Falem e nada temam”, e então eles emendaram: “Senhor, ele
sairá desta terra, viajará exilado, naufragará, cairá prisioneiro, em dificuldades e
desditas; terá pela frente enormes tribulações; depois, livrar-se-á de tudo,
atingirá seus objetivos e viverá o restante de sua vida da maneira mais agradável,
governando sobre os homens e mandando no país, apesar dos inimigos e dos
invejosos”. Ao ouvir as palavras dos astrólogos, o rei lhes disse: “Isso é fácil.
Tudo quanto Deus altíssimo houver escrito para seus adoradores se realizará. É
imperioso que, até a chegada desse dia, ocorram mil alegrias”, e, sem atribuir
maior importância às palavras dos astrólogos, deu-lhes e aos demais presentes
vestimentas honoríficas e todos se retiraram. Então, o vizir Fåris chegou até o
rei, beijou o chão e, muito feliz e contente, disse: “Alvíssaras, senhor! Neste
momento minha mulher deu à luz um menino varão que parece um pedaço da
lua”. O rei disse: “Ó vizir, traga a sua esposa, a criança e seus pertences;
deixemos que os dois cresçam juntos no palácio”, e o vizir trouxe a esposa e a
criança. As aias e as amas-de-leite ficaram com os dois rebentos por sete dias,
colocaram-nos nos berços e levaram-nos à presença do rei.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 209ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que os dois rebentos foram colocados nos
berços e levados à presença do rei, a quem perguntaram: “Que nomes lhes
daremos?”. O rei respondeu: “Dêem-lhes vocês os nomes”. Disseram-lhe: “Não
lhes dará os nomes outro que não o rei!”. Então o rei disse: “Chamem o meu
filho de Sayf Almulœk, conforme o nome do meu avô, e chamem o filho do vizir
de Så¢id”;[31] presenteou as aias e as amas-de-leite com vestimentas honoríficas
e continuou: “Tenham afeto por eles e criem-nos da melhor maneira”.
E as aias criaram os dois meninos até que cada um atingiu a idade de cinco
anos, quando então os entregaram a um alfaqui na escola para que lhes ensinasse
o Alcorão e a escrita; ficaram com ele até os quinze anos, sendo entregues a
mestres que os ensinaram a cavalgar, atirar flechas e lanças, jogar péla e lutar a
cavalo, até que ambos atingiram a idade de vinte anos e já não havia ninguém
que pudesse rivalizar com eles nessa arte.[32] Cada um podia enfrentar mil
cavaleiros e derrotá-los sozinho. O rei ¢Åßim os via e ficava sumamente feliz.
Quando eles chegaram aos vinte e cinco anos, o rei pediu para conversar a sós
com o vizir Fåris e lhe disse: “Vizir, estou cá cismando em uma coisa que
pretendo fazer. Preciso consultar você”. O vizir respondeu: “O que quer que lhe
tenha ocorrido, faça, pois seu parecer é abençoado”. O rei ¢Åßim prosseguiu:
“Eu me tornei um velho de idade avançada; quero me instalar em um canto
qualquer, adorar a Deus altíssimo e entregar meu reino e poder a meu filho Sayf
Almulœk, pois ele se tornou um jovem agradável, perfeito na arte da cavalaria,
no juízo, no decoro, no pudor e na liderança. O que me diz a respeito de minhas
palavras e meu parecer?”. O vizir respondeu: “É o melhor dos pareceres – um
parecer venturoso – esse que você proferiu. Se assim fizer, também eu o farei,
entregando meu vizirato a meu filho Så¢id, que é agora um rapaz agradável, de
conhecimento e bom parecer. Destarte, os dois ficarão um com apoio do outro.
Jovens! E nós ficaremos de olho neles e lhes indicaremos o caminho do bem, da
justiça e da benemerência”. O rei ¢Åßim disse ao seu vizir Fåris: “Escreva as
mensagens e envie os correios para todas as províncias, cidades, castelos e
fortalezas sob nosso governo; que todos estejam, no mês tal, presentes na Praça
da Justiça”, e o vizir Fåris foi imediatamente escrever a todos os funcionários,
encarregados, comandantes de fortalezas, em suma, todos quantos estivessem
sob as ordens do rei, que comparecessem após algum tempo, junto com todos os
moradores da cidade, nobreza e vulgo...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 210ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei ordenou aos camareiros que
arrumassem o centro da praça e que o decorassem com os mais opulentos
enfeites e ornamentos, ali montando o grande trono no qual não se sentava senão
em ocasiões festivas, e eles sem mais delongas montaram o trono enquanto as
pessoas estavam ali reunidas provindas de todos os lugares, as cabeças
apreensivas, pensando no motivo pelo qual o rei as convocara. Após algum
tempo, apareceram os secretários reais, os representantes, os comandantes e os
oficiais da guarda dizendo, alto e bom som, “Por Deus, abram alas para os
serviçais do rei”, e então passaram os régulos com seus criados, os governadores
de vilas e províncias, os comandantes, os vizires, enfim, todos passaram por
aquela praça, foram para o seu centro e, conforme o hábito, cada qual ocupou o
lugar correspondente à sua posição. O rei ¢Åßim se dirigiu para o meio deles e
se sentou em seu lugar. Alguns permaneceram em pé até que todos chegassem, e
o rei ordenou que fossem servidas as refeições, o que se fez de imediato, junto
com doces e bebidas. Todos comeram, beberam e rogaram pelo rei. Em seguida,
o rei ordenou aos seus secretários que gritassem no meio do povo: “Que
ninguém vá embora até ouvir o discurso do rei”; ergueram as cortinas e o rei
disse: “Quem gostar de mim que permaneça e ouça meu discurso”. Todos se
tranquilizaram e se sentaram, as almas já despreocupadas depois do temor. O rei
se colocou de pé, fê-los jurar que ninguém sairia do lugar e disse: “Ó reis,
comandantes de fortalezas, vilas, províncias e castelos; ó vizires, comandantes e
encarregados do governo, grandes e pequenos; ó presentes e ausentes! Vocês
conhecem este reino e seu protocolo desde meus pais e avós”; responderam:
“Sim, ó rei, é verdade que conhecemos isso”. O rei ¢Åßim prosseguiu: “Vocês e
eu, todos nós, adorávamos o Sol e a Lua, mas Deus nos agraciou com a fé e nos
salvou daquele extravio no qual nos encontrávamos, conduzindo-nos para a fé do
islã! Saibam, contudo, que eu sou um homem velho e incapacitado, e quero ficar
no meu canto adorando a Deus altíssimo e pedindo perdão pelos pecados
passados. E eis aqui o meu filho Sayf Almulœk, que vocês conhecem muito
bem. É um jovem agradável, eloquente, generoso, sagaz, ajuizado, sábio,
virtuoso e justo, e quero, agora, transmitir-lhe o meu reino para que ele seja
sultão no meu lugar. Assim, enquanto eu estiver no meu canto adorando a Deus
altíssimo, Sayf Almulœk governará o reino. Que me dizem vocês todos?”. Então
todos se levantaram, beijaram o chão e responderam: “Ouvimos e
obedecemos!”; continuaram: “Ó nosso rei e protetor! Mesmo que você nos
impusesse um de seus escravos nós lhe obedeceríamos e por você o ouviríamos!
Que dizer então de seu filho Sayf Almulœk? Já aceitamos e já estamos
satisfeitos com ele, sobre a cabeça e o olho!”.[33] O rei ¢Åßim se levantou,
desceu do trono e disse aos comandantes e a todos os presentes: “Assim, o seu
rei entroniza seu filho neste reino”, e, retirando a coroa de ouro de sua cabeça,
depositou-a na cabeça do filho, colocou-lhe o cinturão real e o fez sentar-se no
grande trono, sentando-se ele próprio, o rei ¢Åßim, em uma cadeira de ouro ao
lado. Então, levantaram-se os régulos, os vizires, os comandantes, os notáveis do
governo e os demais presentes, beijando o solo e dizendo a Sayf Almulœk: “Ó
rei, você merece o reino, que lhe pertence mais que a qualquer outro”. Os
oficiais bradaram seu juramento de lealdade, “alamån, alamån!”, rogaram-lhe
vitórias e prosperidade, e atiraram ouro, joias e rubis para a população; [pai e
filho][34] distribuíram vestimentas honoríficas, donativos e justiça. Após alguns
momentos, o vizir Fåris levantou-se, beijou o chão e disse aos régulos e
comandantes: “Ó presentes a este local, vocês sabem que sou vizir e que meu
vizirato é antigo, anterior mesmo ao governo do rei ¢Åßim. Por isso, agora que
ele se retirou do governo e entronizou o filho, também eu, por minha vez, estou
me retirando do vizirato e nomeando meu filho Så¢id para me suceder. Que
dizem todos vocês?”. Responderam: “Não serve para ser vizir do rei Sayf
Almulœk senão seu filho Så¢id! Ambos são adequados um para o outro”. O vizir
Fåris levantou-se, tirou o turbante do vizirato e o colocou na cabeça de seu filho
Så¢id, depositando na frente dele os seus instrumentos de trabalho. Os oficiais
da guarda bradaram: “Parabéns! Parabéns! Ele merece! Ele merece!”. Nesse
momento, o vizir Fåris e o rei ¢Åßim se levantaram, abriram os depósitos reais e
distribuíram valiosas vestes honoríficas aos régulos, ministros e notáveis,
concedendo-lhes igualmente pensões e outros benefícios. Escreveram decretos
nomeando o rei Sayf Almulœk e o vizir Så¢id, e os convidados permaneceram
ainda uma semana, após o que cada qual foi para seu posto e país. Acompanhado
de seu filho Sayf Almulœk e do vizir Så¢id, o rei ¢Åßim foi ao palácio, onde o
tesoureiro-mor lhe trouxe anel, espada, trouxa e arco. O rei disse: “Meus filhos,
façam a sua escolha dentre estes presentes”. O primeiro a estender a mão foi
Sayf Almulœk, que pegou o anel e o pôs no dedo; depois, Så¢id estendeu a mão
e pegou a espada; em seguida, Sayf Almulœk pegou a trouxa e enfim Så¢id
recolheu o arco;[35] beijaram a mão do rei ¢Åßim e foram para suas casas.
Quando escolheu a trouxa, Sayf Almulœk, sem olhar o que ela continha,
jogou-a sobre a cama em que dormia à noite. Conforme o hábito, as camas foram
feitas e os dois subiram para se deitar, com velas acesas sobre as cabeças e diante
dos pés. No meio da noite Sayf Almulœk acordou, viu aquela trouxa ao lado de
sua cabeça e pensou: “Qual será o conteúdo desta trouxa que o rei nos deu como
regalo?”; então, levantando-se, recolheu a trouxa, uma vela, desceu da cama e se
afastou de Så¢id para que ninguém o visse indo para a despensa, onde colocou a
vela no castiçal; abriu a trouxa, e eis que ela continha uma túnica produzida por
gênios; abriu-a e viu pregada no seu forro interno a imagem de uma jovem
pintada com tinta de ouro, uma coisa espantosa. Mal contemplou aquela
imagem, Sayf Almulœk perdeu o controle da razão e ficou feito louco:
apaixonou-se pela imagem, abraçou a túnica e caiu no chão, desmaiado,
chorando, lamentando-se, batendo no peito, beijando a imagem e recitando
poesias para ela; dizia:

“Soubesse eu que a paixão é assim,
sequestradora de vidas, teria cuidado;
porém, descuidoso, a ela me atirei,
ignorante do amor, e aprisionado fiquei”.[36]

Disse o narrador: Sayf Almulœk permaneceu assim, lamentando-se, chorando,
gemendo e golpeando o próprio rosto; o vizir Så¢id acordou, não viu o rei, viu
uma só vela e pensou: “Aonde terá ido Sayf Almulœk?”. Levantou-se e
perambulou por todo o palácio até chegar à despensa na qual estava Sayf
Almulœk, a quem viu sentado chorando e se lamentando. Perguntou-lhe: “Por
que está chorando, meu irmão? O que lhe aconteceu? Vamos, levante-se e me
conte, me fale sobre isso”, sem que ele ouvisse nem erguesse a cabeça ou
prestasse atenção às suas palavras; pelo contrário, continuou chorando,
gemendo, lamentando-se e batendo com as duas mãos no peito. Então Så¢id
beijou o chão e disse: “Meu senhor, sou seu vizir, seu irmão, e me criei com
você! Se não contar a mim o seu segredo, a quem contará?”. E continuou por
algum tempo, ora suplicando, ora beijando o chão, sem que Sayf Almulœk lhe
desse atenção nem lhe dirigisse uma única palavra.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 211ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que por algum tempo Sayf Almulœk não
lhe deu atenção nem lhe dirigiu a palavra, apenas chorando e se lamentando.
Disse o narrador: [assustado e esgotado com aquilo, Så¢id saiu dali, pegou
uma espada],[37] retornou à despensa, colocou a ponta da espada no próprio
coração e, perdendo a razão, disse a Sayf Almulœk: “Se você não esclarecer o
que de fato lhe aconteceu, meu irmão, eu me mato para não ver você nesse
estado”. Somente então Sayf Almulœk ergueu a cabeça para o seu vizir Så¢id e
lhe disse: “Meu irmão, eu estou com vergonha de lhe dizer o que me aconteceu”.
Så¢id lhe disse: “Eu lhe peço por Deus, o senhor dos senhores, salvador dos
pescoços, motivador de tudo, o único, o doador: diga-me de verdade o que lhe
aconteceu sem se envergonhar, pois sou seu escravo, vizir e conselheiro para
todas as situações”. Sayf Almulœk disse: “Venha ver essa imagem”, e Så¢id a
viu, contemplou por algum tempo, e notou que sobre a coroa da imagem estava
escrito, com pérolas organizadas e sabiamente arranjadas: “Esta é a imagem de
Bad∑¢at Aljamål, filha de ³ahbål Bin ³årœ¿,[38] rei dos reis dos gênios crentes
que vivem e moram na ilha da Babilônia, no Jardim de Iram [Bin ¢Åd, o
Grande][39]”. Após ler e discernir do que se tratava, Så¢id perguntou ao rei:
“Meu irmão, porventura você sabe o que é essa imagem e por que a
desenharam?”. Sayf Almulœk respondeu: “Por Deus que não sei, meu irmão”.
Så¢id prosseguiu: “Venha, veja, contemple e leia!”. Sayf Almulœk avançou e, ao
ler o que estava escrito sobre a coroa, compreendeu e soltou um grito do interior,
das profundezas do coração, dizendo: “Ai, ai, ai!”, e continuou: “Meu irmão, se
acaso a dona dessa imagem, essa a quem chamam Bad∑¢at Aljamål, existir em
algum lugar do mundo, eu a procurarei sem tréguas até atingir meu objetivo”. Så
¢id disse: “Não chore, meu irmão! Agora vá para a sua cama, pois pela manhã
entrarão os membros do governo para lhe prestar reverência. Durante a
serenidade do dia, convoque mercadores, andarilhos[40] e gente que viajou o
mundo, e indague-os sobre essa localidade; talvez alguém, com a bênção de
Deus altíssimo e sua ajuda, nos indique a ilha da Babilônia e o Jardim de Iram”.
Quando amanheceu, Sayf Almulœk se levantou, subiu e se instalou no trono,
mas sem tranquilidade nem constância. Entraram comandantes, vizires e
membros do governo. Depois que o cortejo se completou e rufaram os tambores
para todos, o rei Sayf Almulœk disse ao vizir: “Apareça diante deles e diga-lhes
que o rei está indisposto”. Så¢id então foi até eles e lhes comunicou que “o rei
está indisposto; mal dormiu ontem e está debilitado”. Ao ouvir aquilo, o rei
¢Åßim, preocupado com o filho, mandou convocar médicos e astrólogos, indo
todos ter com Sayf Almulœk; os médicos o examinaram, prescrevendo-lhe
beberagens, remédios e ervas, escrevendo-lhe fórmulas mágicas e incensando-o
com sândalo e aloés por três dias, mas a doença perdurou por três meses.
Encolerizado, o rei ¢Åßim disse aos médicos e aos demais presentes: “Ai de
vocês, seus cachorros! São todos incapazes de curar o meu filho! Pois agora
mesmo vou matá-los!”. Disse então o médico-mor: “Meu senhor, este nosso
rei...”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 212ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o médico-mor disse: “Por Deus, meu
senhor, que nós não trapaceamos nem sequer no tratamento de estranhos! Como
trapacearíamos no tratamento de seu filho, nosso rei? Contudo, ele está com uma
doença rara. Você quer que digamos qual é e conversemos a respeito?”. O rei
¢Åßim perguntou: “O que a sua ciência lhes mostrou a respeito da doença do
meu filho? Contem-me!”. O médico-mor respondeu: “Ó rei do tempo, seu filho
está agora apaixonado, apaixonadíssimo! Ele ama, caiu de paixões por alguém”.
O rei se irritou com os médicos e lhes disse: “Como é que vocês ficaram
sabendo que o meu filho está apaixonado? Como é que o meu filho poderia estar
apaixonado?”. Responderam-lhe: “Pergunte sobre isso ao irmão dele, o vizir Så
¢id, que sabe da situação”. Então o rei ¢Åßim se levantou, entrou sozinho na
despensa e mandou chamar Så¢id, a quem perguntou: “Diga-me a verdade: qual
é a doença do seu irmão?”. Så¢id respondeu: “Não sei”. O rei ¢Åßim disse ao
carrasco: “Leve Så¢id, vende-lhe os olhos e decepe-lhe a cabeça”. Então,
temeroso por sua vida, Så¢id disse: “Meu senhor, dê-me o seu amån!”,[41] e o
rei redarguiu: “Amån concedido”. Så¢id disse: “Seu filho está apaixonado”. O rei
perguntou: “E por quem ele está apaixonado?”. Så¢id respondeu: “Ele está
apaixonado pela filha do rei dos gênios”. O rei ¢Åßim perguntou: “Como o meu
filho viu a filha dos gênios?”. Så¢id respondeu: “Na túnica que Salomão, a paz
esteja com ele, tinha dado para nós”. O rei ¢Åßim foi então até Sayf Almulœk e
lhe disse: “Meu filho, o que é isso que o atingiu? Que imagem é essa pela qual
você se apaixonou? Conte-me!”. O rei Sayf Almulœk respondeu: “Eu estava
com vergonha de você, meu pai, e por isso não conseguia revelar-lhe nada sobre
isso que está no meu coração. Agora, que você já sabe da minha situação, veja o
que fazer por mim”. O pai lhe disse: “Qual a artimanha? Que fazer, se ela é filha
de gênios? Quem pode com ela? Só se fosse o próprio rei Salomão Bin Davi!
[42] Seja como for, levante-se agora, crie coragem, monte seu cavalo, vá caçar,
pescar e jogar péla na praça; coma, beba e dissipe as aflições de seu coração que
eu lhe trarei, como compensação por ela, cem filhas de reis. Você não tem
precisão das filhas de gênios, que não são do nosso gênero, nem nós do deles”.
Sayf Almulœk disse: “Por Deus, meu pai, que eu não consigo deixá-la nem ir
atrás de outra”. O pai lhe disse: “Que fazer, então, meu filho?”. Ele respondeu:
“Traga todos os mercadores e viajantes à minha presença para que lhes
indaguemos a respeito desse Jardim de Iram e dessa ilha”. O rei ordenou que
trouxessem todo mercador, todo capitão de navio, todo andarilho e todo
peregrino que houvesse na cidade; compareceram todos e o rei ¢Åßim a todos
perguntou sobre a ilha da Babilônia e o Jardim de Iram, mas ninguém soube
dizer nada sobre aquilo nem puderam lhe dar notícia alguma. Contudo, no fim,
um dos indagados afirmou: “Meu senhor, se quiser conhecer essa ilha e esse
jardim, deve ir até a China, que é um grande país e possui preciosidades,
tesouros e gente de todas as espécies. Você não conhecerá essa ilha senão por
meio da China, pois talvez alguém de lá lhe indique o seu objetivo. Então Sayf
Almulœk disse: “Prepare um navio para eu viajar até a China, meu pai”, e o pai
lhe disse: “Meu filho, instale-se no trono do reino e governe os súditos que eu
viajarei por você e irei até a China, onde investigarei essa questão, a ilha da
Babilônia e o Jardim de Iram”. O filho respondeu: “Essa é uma questão que me
diz respeito, meu pai; ninguém poderá investigá-la melhor que eu. O que me
acontecerá se você me der permissão para viajar e ficar distante algum tempo?
Se acaso eu encontrar alguma notícia ou pista, estará tudo bem; caso contrário, é
possível que a própria viagem traga conforto ao meu peito; longe de casa, talvez
as coisas se tornem mais suportáveis, e permanecendo vivo eu voltarei são e
salvo para você”. O rei ¢Åßim olhou bem para o filho e não enxergou nenhuma
possibilidade de artimanha: teve de agir do modo como ele queria, dando-lhe
permissão para viajar e providenciando-lhe quarenta fragatas, mil serviçais,
dinheiro, munições, provisões e tudo quanto fosse necessário para lutar e
combater; disse-lhe: “Meu filho, viaje bem e fique bem”, e, despedindo-se,
prosseguiu: “Vá, pois eu entreguei você em depósito para aquele que jamais
falha na devolução dos depósitos”. Nesse momento, Sayf Almulœk se despediu
do pai e da mãe, embarcando, acompanhado de seu irmão e vizir Så¢id, em uma
das fragatas, que foram carregadas de água, provisões, armas e os soldados que
faltavam. Viajaram até chegar à capital da China.[43]
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 213ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ouvir que quarenta fragatas
armadas com combatentes estavam chegando à sua costa, os chineses pensaram
que se tratava de inimigos que lhes vinham fazer guerra e cerco; fecharam, pois,
os portões da cidade e prepararam as catapultas. Informado daquilo, Sayf
Almulœk logo lhes enviou dois de seus criados particulares, a quem disse: “Vão
até o rei da cidade, cumprimentem-no e digam-lhe: ‘Trata-se de Sayf Almulœk,
filho de ¢Åßim, rei do Egito. Ele veio à sua cidade como hóspede – para
conhecer o país e suas províncias durante algum tempo, retornando em seguida à
sua terra –, e não como guerreiro ou inimigo; se você o aceitar, ele será seu
hóspede; caso contrário, retomará o caminho dele sem criar confusões para você
nem para o povo da cidade’”. Quando chegaram à cidade, os criados disseram:
“Nós somos mensageiros de Sayf Almulœk”, e então abriram-lhes o portão e os
conduziram à presença do rei, cujo nome era Qacfœr ³åh,[44] e que entretinha
antigas relações de conhecimento com o rei ¢Åßim. Ao ouvir as palavras de Sayf
Almulœk, presenteou os mensageiros com vestimentas honoríficas e determinou
que os portões da cidade e das províncias fossem abertos, saindo pessoalmente
com os notáveis de seu governo; Sayf Almulœk chegou, ambos se abraçaram e
ele disse: “Muito boas-vindas para quem veio até mim e até minha cidade! Sou
seu criado e criado do seu pai, e minha cidade é toda sua! Tudo quanto você
quiser será providenciado!”, e forneceu-lhe provisões e rações, oferecendo
montarias a Sayf Almulœk e a seu vizir Så¢id. Acompanhados dos notáveis e
das tropas, cavalgaram do litoral até a cidade; tocaram-se cornetas anunciando a
sua chegada, e Sayf Almulœk e seu séquito ficaram muito bem hospedados com
o rei da China durante quarenta dias, findos os quais ele lhe perguntou: “Como
vai, ó filho de meu irmão? Apreciou o meu país?”. Sayf Almulœk respondeu: “O
mérito é todo seu, ó rei”. O rei da China lhe disse: “Você não foi trazido para cá
senão por alguma necessidade que lhe sucedeu ou algo que você quer em meu
país”. Sayf Almulœk lhe disse: “Minha história é espantosa: eu me apaixonei
pela imagem de Bad∑¢at Aljamål”, e chorou tanto que o rei da China sentiu
pena e chorou junto, perguntando-lhe: “Que posso fazer, Sayf Almulœk?”, ao
que ele respondeu: “Eu lhe peço que traga à minha presença todos os peregrinos,
andarilhos e capitães de navio, todos quantos tenham o hábito de viajar, para que
eu lhes pergunte sobre a dona desta imagem, e quiçá alguém me dê alguma
notícia sobre ela”. Então o rei determinou que os secretários e verdugos
apregoassem em todas as localidades: “Que se apresente já todo capitão de
navio, todo andarilho e todo viajante!”, e compareceram todos, e era muita
gente. Sayf Almulœk lhes perguntou sobre a ilha da Babilônia e o Jardim de
Iram, mas, como ninguém lhe deu resposta, ele se quedou perplexo com a
situação. Um dos capitães disse: “Ó rei venturoso, se você quiser se informar a
respeito disso, deve ir às ilhas marítimas e terrestres[45] nas proximidades da
Índia, pois lá eles conhecem essa região”. Ato contínuo, Sayf Almulœk
determinou que preparassem as fragatas e embarcações, o que logo se fez, sendo
elas lançadas ao mar e abastecidas de água, provisões e tudo o mais; Sayf
Almulœk e seu irmão e vizir Så¢id despediram-se do rei da China, embarcaram e
zarparam, navegando pelo período de quarenta meses com bons ventos por todos
os lados, sãos, salvos e seguros, até que certo dia foram atingidos por maus
ventos por todos os lados, com borrascas e granizo despencando sobre eles. O
mar se tornou revolto, cheio de ondas, e eles ficaram com enorme...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 214ª noite
Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que eles ficaram com enorme temor e
medo durante os dez dias em que os ventos açoitaram fragatas e embarcações,
que afundaram todas, naufragando todos os que nelas se encontravam, com
exceção de Sayf Almulœk, que se salvou com um grupo de criados em uma
pequena fragata. A ventania enfim cessou e com isso as ondas se amainaram; o
sol surgiu, Sayf Almulœk abriu os olhos e – não vendo nenhum dos navios e
nada além do céu, da terra, do mar e da pequena fragata em que se salvara –
perguntou: “Onde estão as embarcações e fragatas? Onde meu irmão Så¢id?”.
Responderam: “Senhor, não restaram embarcações nem fragatas; todos
naufragaram e se transformaram em comida de peixe”. Encolerizado, Sayf
Almulœk gritou, estapeou-se no rosto e fez tenção de se atirar ao mar, sendo
impedido pelos criados, que lhe disseram: “Senhor, e o que isso iria resolver?
Foi você mesmo quem o provocou! Se tivesse escutado as palavras de seu pai,
nada disso lhe aconteceria. Porém, isso tudo está escrito há muito tempo e cada
homem tem de cumprir o que lhe foi determinado.[46] Quando você nasceu, os
astrólogos predisseram que todas estas dificuldades lhe sucederiam. Não resta
senão ter paciência até que Deus poderoso e exalçado nos liberte desta
adversidade”. Sayf Almulœk pronunciou então uma frase que nunca decepciona
quem a pronuncia: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
grandioso! Não há escapatória dos decretos de Deus exalçado!”, e se arrependeu
do que havia feito.[47] Depois, pediu um pouco de comida e comeu. Não sabiam
para onde iam nem com o que topariam, e os ventos os arremessavam para o sul
e para o norte. Em tais condições, logo não lhes sobrou nada para comer ou
beber, mas então a determinação de Deus altíssimo fez com que avistassem uma
ilha para a qual se dirigiram, deixando um vigia na fragata. Encontraram frutas e,
famintos, ocupavam-se em comê-las quando, repentinamente, um homem
sentado entre as árvores de frutas, de rosto comprido, aparência espantosa e
corpo branco, chamou um dos criados pelo nome e lhe disse: “Não coma dessas
frutas, pois elas ainda não estão maduras. Venha até mim que eu lhe darei frutas
saborosas e maduras”. Supondo que o homem fosse um dos náufragos, o criado
ficou contente e foi até ele, mas, quando se aproximou, o maldito deu um salto e
trepou em seus ombros, enrolando as pernas, uma em seu pescoço, outra em suas
costas, e disse-lhe: “Ande! Você não escapa mais de mim! De agora em diante
vai ser o meu burro”. O criado gritou e chorou, enquanto seu patrão...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 215ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o criado gritou e chorou, enquanto seu
patrão e os demais fugiam para se salvar adentrando na fragata. O maldito os
seguiu até o mar dizendo: “Para onde vocês vão? Para onde? Venham até nós,
que os alimentaremos, mataremos sua sede e montaremos nas suas costas para
que sejam nossos burros!”. Ouvindo aquilo, eles remaram até se distanciar[48] e
se entregaram a Deus altíssimo. Ficaram nesse estado por cerca de um mês, até
que avistaram outra ilha, em cuja floresta entraram ressabiados; tendo
encontrado frutas no local, ocupavam-se em comê-las quando avistaram no
caminho algo que brilhava ao longe; foram na sua direção, e eis que era algo
estirado como uma coluna; um dos criados o chutou dizendo: “O que é isso?”, e
eis que aquilo acordou e imediatamente se pôs de pé: o que se viu era um
homem alto, de dois corpos compridos,[49] olhos fendidos, escondido sob as
orelhas: quando dormia, punha uma orelha sob a cabeça e para se cobrir usava a
outra orelha. Agarrou o criado que o chutara e o levou ao interior da ilha, onde
se preparou para devorá-lo cortando-o em pedaços. O criado gritou: “Meu
senhor, fujam e saiam desta ilha, pois seus moradores são ogros canibais; eles
vão me retalhar e devorar”. Ao ouvir tais palavras, fugiram e entraram na fragata
sem ter colhido nada daquelas frutas. Navegaram mais alguns dias até que
avistaram outra ilha; logo chegaram, e eis que nela havia uma alta montanha na
qual subiram e, vendo-se em uma grande floresta com muitas árvores,
ocuparam-se, famintos, em comer as frutas, só dando por si quando foram
agarrados por negros nus que saíram do meio da floresta, cada qual com
cinquenta braças de altura, dentes para fora da boca, tal como presas de elefante;
[conduziram-nos até um local onde][50] um negro estava sentado em um pedaço
de feltro preto sobre um rochedo, cercado por um grande grupo em pé, em
posição de reverência; os negros depuseram Sayf Almulœk e seus companheiros
diante dele e lhe disseram: “Ó rei, encontramos estas aves entre as árvores”.
Como estivesse com fome, o rei pegou dois criados, matou-os e devorou-os. Ao
ver aquilo, Sayf Almulœk ficou com medo, chorou e lamentou sua vida.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 216ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ouvir-lhes o choro, o rei disse:
“Estes pássaros têm boa voz e canto. Gostei da voz deles! Façam uma gaiola
para cada um, coloquem-nos nelas e pendurem-nas à minha cabeceira a fim de
que eu os ouça”.[51] E foi assim que Sayf Almulœk e seus criados passaram a
viver nas gaiolas; davam-lhes de comer e de beber, e eles ora choravam, ora
contavam, ora riam. Isso posto, o rei dos negros se deliciava com suas vozes, e
eles permaneceram em semelhante condição naquelas gaiolas, ó rei, por quatro
anos. O rei dos negros tinha uma filha casada, residente em outra ilha, a qual,
tendo ouvido a respeito dos pássaros de boa voz de seu pai, enviou um grupo
para pedi-los a ele, que lhe enviou, por meio de um dos mensageiros, Sayf
Almulœk e mais três de seus criados em quatro gaiolas. Tão logo chegaram, ela
os observou e admirou, ordenando que fossem pendurados à sua cabeceira. Sayf
Almulœk ficou espantado com o que lhe ocorrera, pensando no poder que já
detivera e chorando por si, bem como os três criados, e isso levava a filha do rei
a imaginar que eles estavam cantando. Um dos hábitos dela era o seguinte:
quando capturava alguém proveniente do Egito ou das proximidades, e esse
alguém a agradava, passava a ter uma boa posição diante dela. E foi por decreto
e desígnio de Deus que ela olhou para Sayf Almulœk e lhe admirou a beleza e
formosura, a altura e esbelteza; então, ordenou que o soltassem e a seus
companheiros das gaiolas, passando a dignificá-los, alimentá-los e bem tratá-los.
Certo dia, ficou a sós com Sayf Almulœk e lhe pediu que a possuísse, mas ele se
recusou, dizendo: “Minha senhora, eu sou um jovem abandonado, pelo amor de
quem amo desgraçado, e não aceito outro destino que não estar com esse
amado”. Assim, a filha do rei não conseguiu se achegar a ele de jeito nenhum, e,
quando se cansou de tentar, encolerizou-se e determinou que ele e seus criados a
serviriam como lacaios, situação na qual permaneceram por quatro anos.
Esgotado por aquilo, Sayf Almulœk enviou um pedido de clemência para a filha
do rei: que ela os libertasse para que eles pudessem seguir seu caminho e
descansar de tanto sofrimento. Esperou até que ela apareceu e disse: “Ó Sayf
Almulœk, se você fizer o que me agrada eu o libertarei disso que está sofrendo e
você irá a seu país são e salvo”, e lhe suplicou que a possuísse, mas Sayf
Almulœk não lhe obedeceu. Ela lhe ordenava: “Vá buscar lenha!”. Sayf
Almulœk e os criados ficaram ali naquela situação e se tornaram conhecidos,
pelos habitantes da ilha, como os pássaros da filha do rei, motivo pelo qual
ninguém os maltratava. O coração da filha do rei estava tranquilo em relação a
eles, pois sabia que não tinham como escapar da ilha, deixando-os, por
conseguinte, soltos sem vigilância, em ausências eventuais de um, dois ou três
dias, por alguma das extremidades da ilha, catando lenha, que levavam para a
cozinha da filha do rei, e nessa situação permaneceram por cinco anos.
Certo dia, Sayf Almulœk se sentou na beira da praia, contemplou-se a si
mesmo e a seus criados naquela situação, lembrou-se de seu pai, de seus
parentes, de sua mãe, de sua criadagem, de seu reino e de seu poder pretérito, e
chorou; pensou em seu irmão Så¢id e seu choro e gemidos aumentaram; também
chorando, os criados lhe disseram: “Senhor, o choro não vai adiantar nada. O
destino está inscrito na fronte de cada um dos servos. Isso tudo foi determinação
de Deus altíssimo; o cálamo correu conforme a decisão dele, não nos restando
senão ter paciência, e talvez Deus, que decretou contra nós, acabe nos
libertando”. Disse Sayf Almulœk: “Meus irmãos, que faremos para nos livrar
dessa maldita? Não temos outra chance de salvação senão Deus altíssimo.
Todavia, tive uma ideia para fugirmos e descansarmos deste sofrimento”. Eles
disseram: “Senhor, para onde fugiremos desta ilha? Todos são ogros canibais e
para onde quer que fujamos eles nos perseguirão, ou nos devorando ou nos
devolvendo a este lugar, e a filha do rei se encolerizará conosco”. Sayf Almulœk
redarguiu: “Eu vou cá fazer uma coisa, e quiçá Deus altíssimo nos ajude a
escapar e nos livrar desta ilha”. Perguntaram: “Como você agirá?”. Respondeu:
“Cortaremos destas madeiras compridas, confeccionando com suas cascas
cordas que amarremos umas nas outras, transformando-as em uma jangada, a
qual lançaremos ao mar, encheremos de frutas e dotaremos de remos, e
quebraremos nossas correntes com o machado. Quiçá Deus altíssimo nos dê, por
meio disso, a libertação, pois ele tudo pode, e talvez nos agracie com ventos
favoráveis para a terra da China, livrando-nos das mãos dessa maldita”.
Disseram: “É um bom parecer”, e, muito contentes com aquelas palavras,
imediatamente se puseram a cortar as madeiras; em um mês amarraram as cordas
e fizeram a jangada.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 217ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao terminar a jangada, atiraram-na ao
mar, abasteceram-na de frutas e até o último dia a ninguém disseram o que iriam
fazer; um dos criados pegou o machado, quebrou as correntes e eles embarcaram
na jangada, remando mar afora durante quatro meses, ignorando onde iam parar.
As provisões se esgotaram e sua fome já se tornara muito aguda quando
repentinamente o mar espumou e se encapelou, dele se erguendo altas ondas, e
eis que foram atacados por um enorme crocodilo que esticou a pata e agarrou um
dos criados, engolindo-o e devorando-o; Sayf Almulœk, agora só com dois
criados [...],[52] se pôs a remar com o criado que restara para bem longe,
temerosos, conduzindo a jangada, até que certo dia lhes surgiu uma imensa e
elevada montanha, e ambos ficaram muito contentes; logo avistaram uma ilha e
remaram com denodo, renovando as esperanças de libertação conforme iam se
aproximando, mas eis que o mar se agitou, suas ondas se ergueram e o crocodilo
botou a cabeça para fora, esticou a pata e agarrou o último criado que restara.
Sayf Almulœk ficou sozinho e chegou à ilha, na qual se refugiou, galgando a
montanha, à espera de que alguém aparecesse. Lembrou-se de quando saíra de
seu país e começou a chorar; embrenhou-se pela floresta, pondo-se a comer
frutas em meio ao arvoredo, quando subitamente surgiram mais de vinte
macacos, cada qual maior que um asno, causando-lhe muito medo. Cercaram-no
por todos os lados e caminharam na sua frente, conduzindo-o, até chegar a uma
torre de elevada construção e colunas maciças, na qual havia todas as espécies de
tesouros, pedras de ouro, pedras de prata, metais, pedras preciosas e outras
coisas indescritíveis; também havia ali um jovem ainda sem penugem nas faces,
porém alto, bem alto, e que, ao ver Sayf Almulœk, simpatizou com ele. O rapaz
era o único ser humano naquela torre e, tendo se admirado com Sayf Almulœk,
perguntou-lhe: “O que você busca? Qual o seu nome? De que país você é? Como
chegou até aqui? Conte-me a sua história e não me esconda nada”. Sayf
Almulœk lhe disse: “Por Deus que não cheguei aqui de propósito, nem poderei
me fixar em lugar nenhum até atingir meu objetivo”. O rapaz perguntou: “E qual
é o seu objetivo? Qual o seu nome? Você é de que país?”. Sayf Almulœk
respondeu: “Sou do Egito, meu nome é Sayf Almulœk, meu pai é o rei ¢Åßim
Bin Øafwån”, e lhe contou tudo quanto lhe ocorrera do começo ao fim – e agora
não adianta repetir. Então o rapaz se levantou e prestou reverência a Sayf
Almulœk dizendo-lhe: “Senhor, quando eu estava no Egito, ouvi dizer que
viajara para a China”. Ele disse: “Sim, eu viajei para a China e depois para a
Índia; durante quatro meses tudo foi bem, mas depois vieram ventanias, o mar se
agitou e todos os navios se destroçaram, restando apenas alguns criados e eu em
uma pequena fragata. Sucederam-nos vários horrores e dificuldades até que só
restei eu, e cheguei aqui”. O jovem disse: “Ó filho de rei, com a sua chegada
aqui terminou seu exílio e sua dificuldade! Fique comigo e me faça companhia;
quando eu morrer, você será o rei deste reino e destas províncias. Ninguém
conhece esta ilha, e para percorrer a sua superfície toda se gastam muitos dias.
Estes macacos que você está vendo têm ofícios, e tudo que quiser aqui você vai
encontrar”. Sayf Almulœk lhe disse: “Meu irmão, não posso me fixar em local
nenhum até satisfazer a minha demanda! Procurarei e perguntarei pelo mundo
todo, e talvez Deus me conceda meu objetivo ou me faça chegar a algum local
onde esteja meu fim e então eu morra de uma vez”. O jovem se voltou para os
macacos, fez-lhes um sinal e eles desapareceram por alguns momentos,
retornando com toalhas de seda amarradas na cintura; serviram o banquete,
colocando cerca de cem suportes de ouro com tigelas de prata e ouro que
continham todas as espécies de alimento, e ficaram em pé, segundo o hábito de
quem serve os reis. Em seguida, o rapaz fez um sinal aos secretários para que se
sentassem e eles se sentaram, ficando em pé o macaco cujo hábito era servir.
Assim, o rapaz, Sayf Almulœk e os notáveis dentre os macacos se acomodaram
para o banquete e comeram. O banquete foi retirado, trouxeram bacias e jarros
de ouro com água de rosas e almíscar e todos lavaram as mãos. Depois,
trouxeram recipientes para bebida, aperitivos, doces e açúcar vegetal. Beberam,
apreciaram e se divertiram.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 218ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que eles beberam, se embriagaram e
passaram momentos agradáveis. Todos os macacos começaram a dançar e a
brincar, deixando Sayf Almulœk estupefato com o que via e fazendo-o esquecer
as dificuldades que passara. Quando anoiteceu, acenderam velas, espetaram-nas
em candelabros de ouro cravejados de pedras preciosas e trouxeram petiscos e
frutas. Na hora de dormir, estenderam-lhes a cama e dormiram. Quando
amanheceu, o rapaz se pôs de pé antes que o sol nascesse, acordou Sayf
Almulœk e lhe disse: “Ponha a cabeça nessa portinhola e veja o que há diante
dela”. Sayf Almulœk pôs a cabeça na portinhola e, vendo a vastidão do território
inteiramente recoberta de macacos em tamanha profusão que somente Deus
saberia seu número, perguntou: “Por que eles se reuniram aqui?”. O rapaz
respondeu: “É esse o costume dos macacos desta ilha: vir aqui, caminhando dois
ou três dias, todos os sábados; ficam parados – até eu acordar e colocar a cabeça
nessa portinhola – para me ver, prestar reverência e beijar o chão, após o que se
retiram para seus misteres, e quem tem alguma atividade vai cuidar dela”. Assim
dizendo, o rapaz enfiou a cabeça pela portinhola de modo que o vissem e,
quando suas vistas caíram sobre ele, saudaram-no abaixando a cabeça e se
retiraram para seus misteres. Sayf Almulœk ficou na companhia do rapaz por um
mês completo, findo o qual se despediu e partiu. O rapaz ordenou que um grupo
de cerca de duzentos macacos ficasse a seu serviço durante sete dias,
conduzindo-o até os limites do país, quando então se despediram e retornaram
para o seu lugar. Sayf Almulœk prosseguiu viagem sozinho,[53] atravessando
montanhas, planícies, desertos e locais inóspitos durante quatro meses, ora
passando fome, ora se alimentando, ora comendo ervas. Arrependido do que
fizera consigo mesmo abandonando a companhia daquele rapaz, já tencionava
retornar seguindo seu próprio rastro quando vislumbrou ao longe uma mancha
negra e pensou: “É uma cidade ou um arvoredo. Vou até lá ver de que se trata”, e
caminhou pelo deserto até chegar às proximidades e constatar que se tratava de
um palácio bem elevado, construído em pleno deserto por Jafé, filho de Noé, que
a paz esteja com ele; era o castelo mencionado por Deus altíssimo em seu livro
caríssimo, “poços inutilizados e palácios abandonados”.[54] Sayf Almulœk
sentou-se à porta do palácio e pensou: “Quais reis estarão dentro desse palácio?
Quem será seu dono? E seus moradores, serão humanos ou gênios?”. Ficou por
algum tempo sentado, mas, não encontrando ninguém que estivesse ali fora ou
viesse lá de dentro, resolveu ir em frente e confiar em Deus poderoso e excelso:
entrou no palácio, contou sete cômodos e não encontrou ninguém; na sétima
entrada viu uma cortina; ergueu-a com as mãos e entrou, vendo-se em um grande
galpão triangular dotado de tapetes de seda, em cujo centro havia um leito de
ouro no qual estava sentada uma jovem como a lua iluminada, vestida com roupa
de reis e enfeitada como uma noiva na noite de núpcias; sob o trono havia
quarenta suportes para banquete, e, sobre os suportes, travessas de ouro e prata
repletas de alimentos opulentos. Ao vê-la, Sayf Almulœk foi em sua direção e a
cumprimentou; ela retribuiu o cumprimento e perguntou: “Você é gênio ou
humano?”. Ele respondeu: “Sou dos melhores dentre os humanos, rei filho de
rei”. A jovem lhe disse: “Sente-se para comer, e depois me conte como chegou
aqui”. Sayf Almulœk se acomodou e, faminto, comeu daquelas travessas até se
fartar, refreando então as mãos e se pondo a beber. Depois, subiu no leito e se
sentou junto da jovem, que lhe perguntou: “Quem é você? Qual o seu nome? De
onde veio? Quem o fez chegar até aqui?”. Ele respondeu: “Eu? Minha história é
longa!”. Ela perguntou: “Diga-me de onde é e o que veio fazer aqui”. Ele
respondeu: “Diga-me você quem a trouxe aqui e o que está fazendo sentada
neste palácio assim sozinha, sem mais ninguém!”. Ela respondeu: “Meu nome é
Dawlat ¿åtœn, filha do rei da Índia; meu pai mora na capital de Sarand∑b[55] e
possui um belo e grande jardim, o mais formoso de toda a Índia, no qual existe
uma grande piscina. Certo dia, acompanhada de minhas criadas, entrei naquele
jardim, despimo-nos e mergulhamos na piscina, onde ficamos brincando e nos
divertindo. Porém, antes que nos déssemos conta, algo semelhante a uma nuvem
se arrojou sobre mim e me capturou no meio das criadas, carregou-me e saiu
voando rumo ao céu enquanto dizia: ‘Ó Dawlat ¿åtœn,[56] não tenha medo e
mantenha o coração tranquilo!’. Voou comigo mais um pouco e mal me apercebi
quando pousamos no palácio, e quem me carregava imediatamente se
transformou em um rapaz gracioso, de bela mocidade e roupas sem sujidade, que
me perguntou: ‘Você me conhece?’. Respondi: ‘Não, meu senhor, não tenho
nenhum conhecimento consigo’. Ele disse: ‘Eu sou filho de Alazraq,[57] rei dos
gênios. Meu pai mora às margens do Mar Vermelho, e tem às suas ordens
seiscentos mil gênios voadores e mergulhadores. Eu estava passando em viagem,
voando pelo meu caminho, quando vi você e me apaixonei; apaixonei-me por
sua figura, desci e a sequestrei do meio de suas criadas. Trouxe-a para este sólido
castelo, que foi construído para ser meu lugar e residência. Ninguém pode
chegar até aqui, seja humano, seja gênio. Daqui até a Índia a distância é de cento
e vinte anos. Nunca mais você vai ver a terra de seu pai nem sua mãe. Fique aqui
comigo de bom coração e boa vontade, e eu lhe trarei tudo que você quiser’. Em
seguida me abraçou e beijou”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 219ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [a jovem disse:] “Ele me abraçou,
beijou e disse: ‘Sente-se e nada tema’; deixou-me, ausentou-se por uma hora e
voltou trazendo estes suportes, esta cama e estes tapetes. Toda terça-feira ele
vem ficar comigo três dias, até a sexta-feira à tarde, quando então parte e se
ausenta até a terça. É nessa condição que ficamos juntos, comendo e bebendo,
ele e eu, e ele me beija e abraça. Continuo virgem como Deus me criou, pois ele
nada fez comigo. Meu pai, o rei Tåj Almulœk,[58] não tem notícia alguma sobre
mim nem encontrou nenhum rastro meu. Essa é a minha história. E você? Conte-
me a sua!”. Sayf Almulœk lhe disse: “Minha história é longa; eu temo demorar
demais para contar, e então o gênio talvez chegue”. A jovem disse: “Hoje é
sexta-feira e ele acabou de sair daqui;[59] hoje ele não volta mais, só na terça-
feira. Por isso, mantenha a mente tranquila e me conte o que lhe aconteceu de fio
a pavio”.
Então, ele iniciou a sua narrativa, mas, quando tocou no nome de Bad∑¢at
Aljamål, os olhos da jovem marejaram lágrimas abundantes[60] e ela disse: “É
esse o nome de uma irmã minha, meu irmão! Bad∑¢at Aljamål! Ai, ó tempo! Ó
Bad∑¢at Aljamål! Ai, Bad∑¢at Aljamål, você não se recorda de mim nem diz
‘Onde está minha irmã Dawlat ¿åtœn? Aonde foi ela?’”, e durante um bom
tempo chorou mais ainda, e se lamentou pelo fato de Bad∑¢at Aljamål não se
lembrar dela. Sayf Almulœk disse: “Ó Dawlat ¿åtœn, você é humana e Bad∑¢at
Aljamål é gênia. Como poderia ser sua irmã?”. Ela respondeu: “É minha irmã de
leite. No dia em que minha mãe me deu à luz no jardim, [a mãe de Bad∑¢at
Aljamål também estava lá e foi][61] surpreendida pelo parto, dando à luz Bad∑
¢at Aljamål em uma das partes do jardim, e enviou então algumas criadas para
pedir comida e acessórios de parto à minha mãe, que lhe atendeu o pedido e a
convidou para se hospedar ali. A mãe de Bad∑¢at Aljamål veio então com a
filha, que mamou de minha mãe, e permaneceu dois meses conosco no jardim,
viajando em seguida para sua terra, não sem antes entregar um objeto à minha
mãe e lhe dizer: ‘Se você precisar de mim, eu virei até você no meio deste
jardim’. Todo ano Bad∑¢at Aljamål vinha nos visitar com a mãe, passando
algum tempo conosco e em seguida retornando a seu país. Se eu estivesse com
minha mãe, ó Sayf Almulœk, e tivesse encontrado você na terra dela,[62] como
nós, de hábito, somos muito unidas, eu armaria um estratagema e faria você
lograr seu propósito. Porém, estou aqui, e eles não têm notícias de mim; se acaso
soubessem que estou aqui, conseguiriam libertar-me deste lugar. O caso está nas
mãos de Deus altíssimo. Que posso eu fazer?”. Sayf Almulœk lhe disse: “Venha!
Vou levá-la e fugir!”. Ela disse: “Aonde você poderá ir? Por Deus que se fugisse
por um ano esse gênio maldito o alcançaria em uma hora, mataria você e me
mataria junto”. Disse Sayf Almulœk: “Eu me esconderei em algum lugar aqui e
quando ele vier e passar por mim aplico-lhe um golpe de espada e o mato!”.
Disse Dawlat ¿åtœn: “Você não poderá matá-lo senão matando-lhe o espírito!”.
[63] Ele perguntou: “E o espírito dele, onde está?”. Ela respondeu: “Perguntei-
lhe a respeito diversas vezes e ele nunca respondia, até que um dia, muito
irritado, me disse: ‘Que tanto você pergunta sobre o meu espírito? O que você
tem que ver com o meu espírito?’. Respondi: ‘Ó Æåtim,[64] já não tenho
ninguém além de Deus e de você! Enquanto estiver vivo, eu estarei bem. Meu
espírito está ligado[65] ao seu, e, se eu não cuidar dele e colocá-lo bem no meio
dos meus olhos, como poderei viver sem você? Se eu souber onde está o seu
espírito, guardá-lo-ei tal como guardo os meus olhos’. Foi aí que ele disse:
‘Assim que nasci os astrólogos me disseram que minha vida seria suprimida
pelas mãos de um filho de reis, humano, e então eu levei meu espírito e o
coloquei na vesícula de um passarinho, prendi o passarinho em um pote, e
tranquei o pote em sete caixinhas, e as sete caixinhas em sete baús, e os sete baús
em um caixão de mármore, e o caixão de mármore enterrei no mar oceano, que é
muito distante desta terra e ao qual nenhum ser humano tem acesso. Agora eu
lhe contei, mas não diga a ninguém; é um segredo entre nós dois’. Eu perguntei:
‘E por acaso existe alguém comigo, ou alguém me vê além de você para que eu
conte?’, e prossegui: ‘Por Deus que você escondeu o seu espírito em um lugar
magnífico, ao qual ninguém além de você pode chegar. Mas como poderia
acontecer outra coisa, isto é, como poderia esse humano [do qual falaram os
astrólogos] chegar até o seu espírito?’.[66] Ele respondeu: ‘No seu dedo estará
um dos anéis de Salomão Bin Davi, sobre ele esteja a paz. Esse humano chegará
bem aqui, colocará seu anel na superfície da água, porá a mão sobre o anel e
dirá: ‘Pelos nomes existentes neste anel, que o espírito do gênio fulano saia!’ e
então o caixão virá à tona, sendo quebrado junto com os baús e as caixas; o
passarinho sairá do pote, ele o estrangulará e eu morrerei’”. Sayf Almulœk disse:
“Sou eu o filho de rei, e eis aqui no meu dedo o anel de Salomão Bin Davi, que a
paz esteja com ele. Vamos até a beira da praia para averiguar se a conversa dele
era mentira ou verdade”, e ambos foram até a orla marítima, onde Dawlat ¿åtœn
estacou. Sayf Almulœk avançou até o meio do mar, colocou o anel na superfície
das águas e disse: “Pelos nomes que existem neste anel, exijo que saia o espírito
do gênio fulano, filho do rei Alazraq”. Nesse momento o mar se agitou...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 221ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o mar se agitou e o caixão veio à tona.
Sayf Almulœk pegou-o e atirou-o contra as rochas, quebrando-o; quebrou os
baús, as caixas, retirou o passarinho da caixinha, agarrou-o,[67] retornou ao
palácio, subiu ao leito com a moça, e eis que então uma poeira subiu e algo
enorme se avizinhou dizendo: “Ó filho de rei, poupe-me e não me mate; faça de
mim seu liberto e eu o farei atingir seu objetivo!”. Dawlat ¿åtœn disse: “Que está
esperando? Mate logo esse passarinho, pois assim que entrar no palácio aquele
maldito vai tomá-lo das suas mãos, matar você e depois me matar!”, e então Sayf
Almulœk estrangulou o passarinho e o gênio caiu morto na porta do palácio,
transformando-se em um monte de cinzas negras, e se acabou. Dawlat ¿åtœn
disse: “Já nos livramos das garras deste maldito! Que faremos agora?”. Sayf
Almulœk respondeu: “Buscaremos ajuda em Deus, que nos mandou a desgraça e
agora vai arranjar as coisas, ajudando-nos a ficar livres desta situação”.
Arrancou quatro grandes tábuas das portas do palácio, que eram de aloés e
sândalo, com pregos de ouro vermelho e também de prata branca; pegou as
cordas dos mosquiteiros, que eram de seda especial entretecida com corda de
palma, e com elas amarrou as tábuas arrancadas das portas umas nas outras;
levou tudo até Dawlat ¿åtœn e montou uma jangada que ambos arrastaram até o
mar, jogaram na água e amarraram nas estacas; retornaram ao palácio,
recolheram tudo quanto ali havia – suportes de ouro, tigelas de prata, gemas,
rubis, pérolas e metais preciosos – e carregaram, ele e Dawlat ¿åtœn, para a
jangada, na qual embarcaram; confiaram-se a Deus, soltaram as cordas e, usando
duas tábuas como remo, zarparam, dando livre curso à jangada e pondo-se a
remar no meio das águas, sem saber para onde iam enquanto os ventos sopravam
sobre a jangada. Ficaram naquela situação por quatro meses, ao cabo dos quais a
comida acabou. Para dormir, Dawlat ¿åtœn apoiava as costas em Sayf Almulœk,
e ele apoiava também as costas nela para dormir, deixando a espada entre ambos.
Certa noite, enquanto Sayf Almulœk dormia, Dawlat ¿åtœn, acordada, viu que a
jangada subitamente adentrava terra firme: um porto no qual existiam
embarcações, em uma das quais um homem conversava com marinheiros; era ele
o chefe de todos os capitães, o capitão-mor. Ouvindo a voz do capitão, Dawlat
¿åtœn teve certeza de que se tratava do porto de uma cidade e que haviam
chegado à civilização. Muito contente, acordou Sayf Almulœk dizendo: “Vamos
perguntar ao capitão que está no mar sobre o nome deste país e como é
conhecido este porto”. Sayf Almulœk se levantou contente e perguntou ao
capitão: “Qual o nome deste país, meu irmão? E como é conhecido este porto?”.
O capitão respondeu: “Seu idiota tresloucado![68] Se você não conhece este país
nem esta cidade, como veio parar aqui?”. Sayf Almulœk respondeu: “Sou
forasteiro”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 222ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Sayf Almulœk respondeu: “Sou
forasteiro e estava em um navio de passageiros que se quebrou e afundou com
todos quantos estavam a bordo. Eu subi em uma tábua de madeira e foi assim
que cheguei até aqui. Fiz-lhe uma pergunta que não é nenhuma vergonha”. O
homem lhe disse: “Esta é a cidade de ¢Ammår, e este é o porto de Kam∑n
Alba¬rayn”.[69] Ao ouvir tais palavras, Dawlat ¿åtœn ficou muito contente e
disse: “Receba a boa notícia da libertação próxima, Sayf Almulœk, pois o rei
desta cidade é meu tio paterno, cujo nome é ¢Ål∑ Almulœk! Vamos, pergunte se
o sultão da cidade se chama ¢Ål∑ Almulœk!”, e ele perguntou. O capitão
respondeu irritado: “Como você é cretino! Diz que nunca veio para cá – ‘sou
forasteiro’ – e como é que não sabe o nome da cidade mas sabe o nome do rei?”.
Ouvindo as palavras do capitão, Dawlat ¿åtœn o reconheceu – seu nome era Mu
¢∑n Add∑n[70] –, e disse a Sayf Almulœk: “Diga-lhe: ‘Ó Mu¢∑n Arriyåsa,
venha até aqui falar com a sua patroa!’”, e ele assim procedeu. Ao ouvir-lhe as
palavras, o capitão ficou deveras encolerizado e disse: “Seu cachorro, seu
ladrão! Você não é senão um espião! De onde conhece o meu nome?”. E gritou
para alguns marinheiros: “Tragam-me o bastão de freixos para eu quebrar a
cabeça desse nojento que fala torpezas!”, e eles lhe entregaram o bastão. Ele se
aproximou da jangada e, vendo algo espantoso, iluminado, sua mente ficou
encantada com tal visão; aguçou o olhar, avistou uma jovem como a lua, e
perguntou: “O que você tem aí?”. A jovem então disse que se chamava Dawlat
¿åtœn e o capitão Mu¢∑n Add∑n caiu desmaiado ao ouvir-lhe a voz e o nome,
pois a moça era filha de seu rei. [Ao acordar, deixou a jangada],[71] montou em
sua égua, galopou até a cidade, entrou no palácio do rei e disse ao criado: “Vá
até o rei e diga-lhe que Mu¢∑n Add∑n veio lhe trazer uma boa-nova que irá
alegrá-lo”. O criado foi então transmitir o recado ao rei, que concedeu a sua
permissão dizendo: “Deixe-o vir até aqui”; Mu¢∑n Add∑n entrou, beijou o chão
e disse: “Ó rei, receba a boa-nova de que a sua sobrinha Dawlat ¿åtœn chegou
bem ao porto em uma jangada, na companhia de um jovem de graciosa figura,
semelhante à lua na noite do dia catorze”. Ao ouvir as palavras sobre sua
sobrinha, o rei ficou muito contente e presenteou o capitão com uma valiosa
vestimenta honorífica; ordenou que a cidade fosse ornamentada em homenagem
à sobrinha, e ambos entraram nela. O tio de Dawlat ¿åtœn mandou chamar seu
irmão, Tåj Almulœk, que veio encontrar a filha, e todos ficaram contentes. Tåj
Almulœk permaneceu no reino do irmão durante algum tempo, após o que pegou
a filha e Sayf Almulœk e viajaram até chegar a Sarand∑b, sua terra. Dawlat
¿åtœn reencontrou a mãe e ambas ficaram felizes por tudo haver terminado bem;
fizeram-se festas e a tristeza partiu. O rei tratou Sayf Almulœk com honrarias e
lhe disse: “Você fez por mim e por minha filha todo esse bem que não posso
compensar, e só quem pode fazê-lo é o senhor dos mundos. Porém, eu gostaria
que você ocupasse o meu lugar no trono e governasse a terra da Índia, pois eu
lhe concedo o trono, o reino, os tesouros, os criados e todo o meu dinheiro; é
tudo seu!”. Nesse momento, Sayf Almulœk fez uma reverência, beijou o chão,
agradeceu e disse: “Ó rei da terra, aceito tudo quanto você me concedeu e o
devolvo a você. Eu, ó rei, não desejo reino nem poder; não desejo de Deus
altíssimo senão que me faça atingir meu propósito e objetivo”. O rei disse:
“Todos os meus tesouros pertencem a Sayf Almulœk; dêem-lhe dali tudo quanto
ele pedir, e não me consultem”. Sayf Almulœk disse: “Gostaria de percorrer a
cidade e passear por ela, por seus mercados e ruas”. O rei então determinou que
selassem os cavalos e Sayf Almulœk cavalgou, entrou na cidade e se pôs a cortar
suas ruas, quando de repente, ao ver um jovem carregando uma túnica pela qual
pedia quinze dinares, julgou-o parecido com seu irmão Så¢id; e eis que de fato
era o seu irmão Så¢id, que no entanto não o reconheceu em virtude do longo
período de separação e da modificação na cor em todas as partes do corpo por
causa das viagens excessivas. Sayf Almulœk deteve-se e disse aos criados:
“Peguem aquele jovem e enviem-no ao palácio; retenham-no com vocês até eu
retornar do passeio”. Os criados, porém, supuseram que ele lhes dissera:
“Peguem aquele lá e ponham-no na prisão”, e pensaram: “Esse aí deve ser algum
criado fugido”; então, levaram-no para a cadeia e o deixaram ali trancafiado.
Como Sayf Almulœk voltou do passeio ao palácio esquecido de Så¢id –
tampouco os criados lhe fizeram alguma menção a respeito –, ele permaneceu na
prisão. Quando vieram recolher os presos acorrentados, Så¢id foi levado no
meio deles para trabalhos forçados como pedreiro, e, enquanto pensava naquela
situação degradante...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 222ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Så¢id permaneceu um mês naquela
situação, depois que Sayf Almulœk se esquecera dele durante o passeio. Certo
dia, porém, ele se lembrou e perguntou aos criados: “Onde está aquele que enviei
com vocês?”. Responderam: “Ué, você não mandou levá-lo para a prisão?”. O
rei Sayf Almulœk disse: “Não, o que eu lhes disse foi que o levassem ao
palácio!”, e mandou atrás dele os secretários e comandantes, e estes trouxeram
Så¢id ainda acorrentado e o colocaram diante do rei, que lhe perguntou: “De que
país é você, meu jovem?”. Ele respondeu: “Sou do Egito, meu nome é Så¢id,
filho do vizir Fåris”. Ao ouvir suas palavras, Sayf Almulœk se atirou do trono
sobre ele, pendurou-se em seu pescoço e de tão contente chorou um choro
copioso; disse-lhe: “Meu irmão Så¢id! Pude viver para vê-lo! Sou seu irmão
Sayf Almulœk, filho do rei ¢Åßim!”, e eles se abraçaram por longo tempo e
choraram, deixando espantados os criados. Sayf Almulœk ordenou que
conduzissem Så¢id ao banho e o vestissem com roupas opulentas, trazendo-o em
seguida. Ele se sentou junto do irmão, que o colocou ao seu lado no trono. Tåj
Almulœk apareceu e ficou contente com o que aconteceu. Sentaram-se para
conversar sobre o que lhes sucedera; Sayf Almulœk contou tudo do começo ao
fim, e então Så¢id disse:
O naufrágio do vizir Så¢id[72]
Logo que o navio naufragou, meu irmão, alguns criados e eu montamos em um
pedaço de madeira durante um mês inteiro, e os ventos, pelo poder de Deus,
empurraram-nos para uma ilha. Famintos, começamos a esquadrinhá-la e nos
embrenhamos por seu arvoredo.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 223ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Så¢id disse:
Embrenhamo-nos pelo arvoredo da ilha e começamos a comer frutas, com isso
nos distraindo; quando nos demos conta, fomos surpreendidos por gentes
semelhantes a gênios, que subiram em nós, montando em nossos ombros, e
disseram: “Andem! Vocês viraram nossos burros”. Eu disse ao que montara em
mim: “O que é você? E por que montou em mim?”. Ele enroscou uma das pernas
no meu pescoço, apertou até eu quase sufocar e bateu com o outro pé nas minhas
costas; senti que minha espinha se deslocava e caí de cara no chão, pois já não
me restavam forças, tamanhas eram minha fome e fadiga devido à viagem no
mar. Percebendo que eu estava faminto, conduziu-me pela mão até debaixo de
uma grande árvore de frutas e disse: “Coma desta árvore até se fartar”; foi o que
fiz: comi até me fartar e, sem alternativa, caminhei um pouco, mas logo aquele
indivíduo tornou a trepar em meus ombros; ora eu caminhava, ora eu corria, ora
eu me apressava, enquanto ele ria dizendo: “Nunca em minha vida montei em
um burro como você!”. Foi assim, em tal situação, que ficamos com eles durante
dois anos. Certo dia, vimos que eles tinham muitos pomares com cachos de uva;
reunimos então aquelas uvas, colocamos em uma grande cavidade no solo e as
esmagamos com os pés, até que a cavidade ficou parecendo uma grande lagoa; o
sol atingiu aquele líquido, transformando-o em vinho, e dele passamos a beber à
vontade; nós nos embriagávamos, nossas faces se avermelhavam, cantávamos,
corríamos e dançávamos. Eles nos perguntaram: “Por que essas faces e
bochechas avermelhadas, tanta cantoria, dança e alegria?”. Respondemos: “E
para que estão perguntando? O que pretendem de nós?”. Disseram: “Contem
para que saibamos!”.[73] Dissemos: “Essa é uma bebida, o vinho”. Disseram:
“Deem-nos de beber disso”. Dissemos: “Acabou-se a uva”, e eles então nos
levaram a um vale de incalculável vastidão, e do qual não se vislumbrava início
nem fim; era todo cheio de vinhedos com cachos pendentes de cinquenta quilos
bem pesados.[74] Eles disseram: “Ajuntem essas uvas”, e nós as ajuntamos em
grande quantidade. A seguir, encontrando um grande buraco, maior que a
cavidade que havíamos usado, nele jogamos as uvas e as pisoteamos, deixando-
as por um mês; quando elas fermentaram e viraram vinho, dissemos a eles: “Já
fermentou. Em que recipiente vocês vão beber?”. Responderam: “Tínhamos
outros burros como vocês que morreram; nós então os comemos e restaram as
cabeças; dêem-nos de beber nos seus crânios”, e nos fizeram caminhar até umas
cavernas onde havia muitos ossos humanos; encontramos e levamos as cabeças,
e demos-lhes de beber. Quando beberam, disseram: “Isso é amargo!”. Dissemos:
“Por que vocês estão dizendo que é amargo? Todo aquele que diz que isso é
amargo deve beber dez vezes, ou então morrerá no mesmo dia”. Com medo de
morrer, eles disseram: “Deem-nos de beber”, beberam e se embriagaram;
começaram a gostar da bebida e disseram: “Deem-nos para beber, mais e mais!”,
e nós lhes demos até que se embriagaram completamente e ficaram sem forças
para nos montar; corremos com eles sob o sol e o vento, que os atingiu e lhes fez
pesar as pestanas; pediram para dormir e nós dissemos: “Deixem-nos correr”,
assim ficando até que, vencidos pelo sono, dormiram sobre os nossos ombros;
suas pernas afrouxaram a pressão sobre os nossos pescoços e finalmente os
tiramos das costas e atiramos um em cima do outro; ajuntamos bastante madeira
dos vinhedos, depusemos em torno e em cima deles, ateamos fogo e ficamos
observando de longe: após alguns instantes as chamas cresceram, eles se
queimaram e transformaram em um montão de cinzas, não restando nenhum
com vida.[75] Agradecemos a Deus altíssimo por nos haver livrado deles e
tentamos sair daquela ilha bordejando a praia e separados uns dos outros; dois
criados e eu caminhamos e chegamos a uma floresta de muitas árvores, onde nos
distraímos comendo frutas, sendo então surpreendidos por um homem muito
alto, de longas barbas, longas orelhas, olhos semelhando fogueiras; à sua frente
havia muitas ovelhas que ele apascentava. Quando ele nos viu, julgamos que
fosse algo alvissareiro.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 224ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Så¢id disse:
Ao nos ver, o xeique nos deu boas-vindas, demonstrando contentamento e
dizendo: “Muitíssimo bem-vindos! Venham comigo, para que eu lhes sacrifique
ovelhas e asse-as para dar-lhes de comer”. Perguntamos: “E onde você mora?”.
Ele respondeu: “Próximo à curva da ilha, na montanha; é uma caverna; passem
por lá, pois tenho muitos hóspedes como vocês; vão para lá e fiquem com eles”.
Acreditamos que ele falava a verdade, que fazia parte das pessoas cuja fala é
verdadeira, e fomos à tal caverna, na qual entramos, e eis que havia gente como
nós, seres humanos, todos cegos, dos quais nos acercamos, e eis que um deles
dizia: “Estou doente!”; outro dizia: “Estou fraco”; perguntamos então: “O que é
isso que vocês estão dizendo?”; eles responderam: “Vocês são agora nossos
companheiros! O que os jogou nas mãos desse maldito? Não existe poderio nem
força senão em Deus altíssimo e grandioso! Ele é um ogro canibal!”. Perguntei-
lhes: “Como ele cegou vocês?”. Responderam: “E agora mesmo ele vai cegar
vocês também!”. Perguntamos: “Como ele nos cegará?”. Responderam:
“Trazendo-lhes taças de leite e dizendo-lhes: ‘Vocês acabaram de chegar de
viagem. Tomem, bebam deste leite enquanto eu asso a carne que trarei daqui a
pouco para vocês’. Assim que beberem do leite, ficarão cegos”. Pensei: “A única
saída é entabular uma artimanha”, e fiz um pequeno buraco no solo. Após algum
tempo, aquele maldito ogro entrou pela porta empunhando três taças de leite;
estendeu-me uma delas, as outras para os dois criados que me acompanhavam, e
disse: “Vocês chegaram do deserto com sede! Tomem, bebam este leite! Bebam
enquanto eu asso carne!”. Peguei a taça que ele me ofereceu, aproximei-a de
minha boca, derramei o leite no buraco e gritei: “Perdi minha vista! Fiquei
cego!”, e cobri os olhos com as mãos, chorando e gritando enquanto ele ria e
dizia: “Ó Så¢id, você se tornou igual aos que estão na caverna”. O maldito supôs
que eu de fato ficara como aqueles cegos. Quanto aos criados que me
acompanhavam, ambos beberam o leite e ficaram cegos. Imediatamente o
maldito fechou a porta da caverna e veio apalpar minhas costelas; verificando
que eu estava enfraquecido, sem carne nenhuma, agarrou um homem gordo,
sacrificou três ovelhas, esfolou-as, tomou um espeto de ferro, pegou o resto da
carne, assou tudo e comeu.[76] Depois, trouxe um odre cheio de vinho, bebeu,
dormiu de borco e roncou. Ao perceber que ele mergulhara no sono, pensei:
“Como matá-lo?”; olhei ao meu redor, vi dois espetos bem quentes no fogo, que
os deixara como brasa; recobrei o ânimo, fiquei em pé, agarrei os dois espetos,
retirei-os do fogo, aproximei-me do ogro e o golpeei com todas as minhas forças
bem no meio dos olhos. Ele se ergueu desesperado querendo me pegar, e fugi
para o interior da caverna com ele correndo no meu encalço. Não encontrei lugar
nenhum onde fugir dele nem saída, pois a caverna estava bloqueada com pedras.
Estarrecido com o que me sucedia – um ogro a me perseguir! –, perguntei aos
cegos que ali estavam: “Que fazer com esse maldito?”, e um deles me
respondeu: “Suba, corra, pule e atravesse aquela entrada no alto; ali você
encontrará uma espada de cobre; pegue-a, retorne para cá, espere que lhe
digamos: “Que está fazendo?”, e aí golpeie o ogro na cintura que ele morrerá de
imediato”. Então eu corri, pulei, alcancei a entrada no alto com a força e o
poderio de Deus, entrei, agarrei a espada, desci, vi o ogro – o qual também
estava cansado de tanto correr atrás de mim, além de ter ficado sem os olhos –
agarrando os cegos da caverna com a intenção de matá-los, aproximei-me dele e
lhe assestei um único golpe com a espada, cortando-o em duas partes. Ele
berrou: “Mate-me direito, homem! Aplique mais um golpe”, e me preparei para
dar-lhe outra espadeirada no pescoço, mas o homem que me mostrara a entrada
superior e a espada disse: “Não lhe dê um novo golpe, caso contrário ele irá
viver, e não morrer, e nos matará a todos!”, e eu o atendi.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 225ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Så¢id disse]:
Quando eu o golpeei, o ogro caiu dividido em dois pedaços, morreu e se
acabou. O cego disse: “Vamos tentar abrir a porta da caverna; quiçá Deus nos
ajude a fazê-lo e então nos livraremos deste lugar”. Eu disse: “Agora nada mais
resta que possa nos prejudicar; vamos, isto sim, descansar, comer destas ovelhas
e beber deste vinho”. Permanecemos naquela ilha pelo período de dois meses,
comendo daquelas ovelhas e frutas, até que certo dia avistamos ao longe uma
grande embarcação no mar; acenamos e gritamos, mas os tripulantes ficaram
com medo daquele maldito ogro, a quem já conheciam e que sabiam viver
naquela ilha, e nada sabiam a nosso respeito. Fizemos mais acenos e imploramos
dizendo: “Aquele maldito ogro se acabou e morreu! Venham se apossar de suas
ovelhas e objetos!”, e então um grupo deles veio em um bote; subiram a terra,
entraram e nós os conduzimos ao ogro maldito, cuja morte eles puderam
constatar. Transportaram ao navio tudo quanto havia na caverna de tecidos,
ovelhas e dinheiro, bem como frutas para muitos dias e meses. Embarcamos com
eles, que viajaram até este lugar, e me vi em uma bela cidade, cujo sultão e povo
são a melhor gente; passei a morar aqui, onde estou há sete anos, vivendo como
leiloeiro. Graças a Deus, que fez com que no final tudo ficasse bem, pois minha
grande aflição era saber onde você estava e o que lhe sucedera, e eu pedia a
Deus poderoso e onipotente que me deixasse viver para ver você; graças a ele
nos encontramos, e agora não me resta no coração tristeza alguma.[77]
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Sayf Almulœk imediatamente se pôs de pé, foi para o
interior da casa, onde ficavam as mulheres, encontrou Dawlat ¿åtœn e lhe disse:
“Minha senhora, onde está a promessa que me fez no palácio elevado? Acaso
você não me dissera que ‘Se eu estivesse com meus familiares elaboraria um
estratagema para você alcançar o seu objetivo’?”. Ela respondeu: “Sim, ouço e
obedeço!”, e foi até a mãe, a quem disse: “Mamãe, vamos comigo agora nos
arrumar e passar incenso para que Bad∑¢at Aljamål venha com a mãe dela, a
fim de me verem e se alegrarem!”. A mãe lhe disse: “Com muito gosto e
honra!”; foi até o jardim, passou uma espécie de incenso que se elevava, e após
uma boa hora vieram todos ao jardim montar suas tendas. A mãe de Dawlat
¿åtœn foi se reunir com a mãe de Bad∑¢at Aljamål, informando-a de que a filha
chegara bem, e ambas ficaram contentes. Dawlat ¿åtœn se reuniu com sua irmã
Bad∑¢at Aljamål e ambas se alegraram uma com a outra; montaram uma tenda
para cozinhar pratos opulentos e mandaram ajeitar o local. Dawlat ¿åtœn
providenciou ainda para ficar a sós com Bad∑¢at Aljamål em uma tenda, em
cima da cama, as duas comendo, divertindo-se e bebendo. Dawlat ¿åtœn disse:
“Como é difícil a separação, minha irmã, e como é bom o encontro, conforme
disse o poeta:

‘No dia da separação se dilacerou meu coração.
Deus dilacere o coração do dia da separação!
Se para a separação achássemos saída,
ninguém provaria essa coisa tão ardida’”.

Bad∑¢at Aljamål disse: “Ah, minha irmã Dawlat ¿åtœn!”, e esta disse: “Minha
irmã, fiquei sozinha por anos no palácio elevado. Eu chorava noite e dia
pensando em nossa separação, na separação de minha mãe, de meu pai e de
minha família. Agora, graças a Deus que estou bem!”. Bad∑¢at Aljamål
perguntou: “Como você se livrou daquele tirano opressor, o filho do rei
Alazraq?”. Nesse momento Dawlat ¿åtœn se levantou e começou a falar,
contando a história de Sayf Almulœk desde o início, ou seja, o que lhe sucedera
durante a viagem, os tormentos e terrores que o afligiram, até que chegou ao
palácio elevado, onde matou o filho do rei Alazraq, arrancou as portas,
transformando-as em jangada e remos, e depois entrou na cidade. Admirada com
as façanhas de Sayf Almulœk, Bad∑¢at Aljamål disse: “Por Deus que ele é de
fato um homem, mas por que abandonou os pais e viajou, expondo-se a todos
esses perigos?”. Dawlat ¿åtœn respondeu: “Por Deus, minha irmã, quero agora
lhe contar a origem de toda a história, e não terei vergonha de você”. Bad∑¢at
Aljamål disse: “Minha irmã, existem muitas coisas entre nós duas...”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 226ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Bad∑¢at Aljamål disse: “Existem
muitas coisas entre nós duas; você é minha irmã e companheira, e não me
pediria nada que não fosse bom! Por que teria vergonha de mim, ou me ocultaria
as coisas? Diga o que quiser, sem nada esconder!”. Dawlat ¿åtœn disse: “Por
Deus que tais desditas não aconteceram a esse pobre coitado senão por sua
causa; você foi o motivo!”. Bad∑¢at Aljamål perguntou: “Como pode ser isso,
minha irmã?”. Dawlat ¿åtœn respondeu: “Ele viu a sua imagem na túnica que
seu pai enviou a Salomão Bin Davi, que a paz esteja com ele, e Salomão Bin
Davi enviou essa túnica ao rei ¢Åßim, do Egito, pai de Sayf Almulœk, em meio
a outros presentes e regalos. O rei ¢Åßim deu a túnica a Sayf Almulœk, e ele, ao
abri-la para examinar, viu a sua imagem, apaixonou-se por ela, saiu à sua
procura e sofreu todas essas dificuldades”. Enrubescida e com vergonha de
Dawlat ¿åtœn, Bad∑¢at Aljamål disse: “Por Deus que isso não pode ser, nunca!
Os humanos não se combinam com os gênios!”. Dawlat ¿åtœn passou a
descrever-lhe Sayf Almulœk e sua beleza, sua formosura, sua bravura, e
continuou descrevendo-o até dizer: “Minha irmã, por Deus altíssimo e por mim,
deixe-me mostrá-lo a você. Venha vê-lo você mesma!”. Bad∑¢at Aljamål disse:
“Por Deus, minha irmã, essas coisas que você está querendo nunca acontecerão”.
Ela não correspondeu, nem o amor por Sayf Almulœk lhe penetrou o coração.
Então Dawlat ¿åtœn se pôs a descrever Sayf Almulœk com mais veemência, e a
suplicar-lhe dizendo: “Não existe no mundo ninguém melhor que ele!”,
beijando-lhe os pés e pedindo: “Ó Bad∑¢at Aljamål, em nome do leite que
mamamos juntas! Em nome do desenho que existe no anel de Salomão Bin Davi,
que a paz esteja com ele! Por favor, ouça-me, ouça minhas palavras! Eu jurei a
ele, eu prometi, no palácio elevado, que o faria vê-la! Por Deus, pelo meu
juramento, por mim, deixe-o vê-la uma única vez! E você também dê uma
olhada nele!”, e a outra também chorou e suplicou, beijando-lhe as mãos e os
pés, até que enfim concordou e disse: “Por você, vou deixá-lo ver o meu rosto,
uma única visão bem rápida”. Nesse instante, o coração de Dawlat ¿åtœn ficou
feliz e, após beijar-lhe as mãos e a cabeça, saiu e se dirigiu ao palácio,
ordenando aos camareiros que arrumassem o palácio do jardim, onde montaram
um gracioso leito de ouro, prepararam bebida e trouxeram taças de ouro. Em
seguida, Dawlat ¿åtœn foi até onde estavam Så¢id e Sayf Almulœk, e lhe deu a
boa-nova de que ele atingiria seu intento; disse-lhe: “Pegue seu irmão e vá com
ele ao palácio do jardim; mantenham-se escondidos e não deixem que ninguém
os veja até Bad∑¢at Aljamål chegar”. Então Så¢id e Sayf Almulœk se dirigiram
até o lugar indicado, e, muito contente, ele beijou a cabeça de Dawlat ¿åtœn.
Caminharam pelo jardim e viram o leito de ouro montado, sobre o qual havia
almofadas douradas; viram ainda os utensílios de bebida. Ambos tinham comido
e bebido muito, e Sayf Almulœk sentiu o peito opresso; pensou em sua amada, e
foi invadido pela ansiedade e pela paixão; levantou-se, saiu do galpão em que
estava escondido e disse ao seu irmão Så¢id: “Fique aí no seu lugar; não me
siga, espere meu regresso”, e, saindo, pôs-se a caminhar pelo jardim.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 227ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Sayf Almulœk se pôs a caminhar pelo
jardim; estava embriagado, abalado pela ansiedade e vencido pela paixão e pelo
amor, e recitou a seguinte poesia:

“Ó Bad∑¢at Aljamål, quem a ti equivale?
Tem dó de quem por tua paixão se desgraçou!
És minha procura, meu destino, minha alegria;
meu coração já recusou outra amar que não a ti!
A noite inteira acordado, os olhos chorosos!
Quem dera eu soubesse que conheces meu choro!
As lágrimas ainda me escorrem pela face;
será que o teu consentimento te abandonou?
Ordenarei ao sono que me envolva os olhos
e assim quem sabe em sonhos te vejo,
se neles fizeres essa gentil caridade:
teu encontro terá dó deste débil doente.
Aumente Deus teu regozijo e alegria,
sejam todos os humanos teu resgate,
sob tua bandeira estejam todos os belos!”.

E, chorando, recitou o seguinte:

“Ó Bad∑¢at Aljamål, és minha vida!
E no interior do coração és o segredo!
É só a ti que me refiro, quando falo,
e é só em ti que penso, quando calo.
Só quero do mundo encontrar-vos;
outro, por Deus, pela mente não me passa!”.

Sayf Almulœk recitou ainda:

“Em meu fígado há um fogo que cresce;
oculto meu estado mas a paixão aumenta;
desejo a vós, não me desgosta vossa fala;
rogo encontrar-vos: o apaixonado tudo suporta!
Tende pena de quem o amor macerou o corpo!
Minha cor se amarelou, doente está meu coração,
mas a vós não trocarei nem de vós me apartarei”.

E se lamentou:

“Ó minha senhora Bad∑¢at Aljamål,
ó aquela que na beleza é sem igual!
Tem dó deste escravo teu que tanto chora,
e que de pai e mãe está separado agora!
Tem dó daquele que a insônia cegou,
e que pelo repouso foi abandonado!
Tem dó de quem passa a noite acordado,
Tem dó de quem passa o dia abismado!”.

E depois recitou:

“Por Deus que, sol nascendo ou se pondo,
Bad∑¢at de meu coração é desejo e sussurro;
com quem quer que me sente para falar,
tu és sempre o assunto de meus convivas.
Por mais pura que seja a água que bebo,
no meu copo é a tua imagem que eu vejo”.[78]
Sayf Almulœk continuou caminhando pelo jardim até topar com uma azenha;
caiu debaixo de uma árvore e dormiu. Quanto a Bad∑¢at Aljamål, após sua
conversa com Dawlat ¿åtœn, ela atentou para Sayf Almulœk, para sua juventude,
sua virilidade, beleza e formosura, sua altura e esbelteza, e o amor por ele se
infiltrou em seu coração; ela se apaixonou de ouvir falar, tal como se diz: “Às
vezes, o ouvido se apaixona antes do olho”. Bad∑¢at Aljamål estava sentada...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 228ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Bad∑¢at Aljamål estava sentada na
tenda com suas serviçais e criadas, alegrando-se e divertindo-se, admirada;
embriagou-se e o amor e a paixão se agitaram em seu coração; lembrou-se de
Sayf Almulœk e pensou: “Por Deus que eu gostaria agora, nesta noite agradável,
de ir até onde ele está e ver sua imagem, a imagem desse sobre quem tanto falou
Dawlat ¿åtœn, ver direito qual é a sua história; se for mesmo como descreveu
Dawlat ¿åtœn, vou aceitá-lo, viver com ele e fazê-lo minha parte neste mundo;
se for diferente de sua descrição, vou tirá-lo de minha mente e nunca mais me
lembrar dele”. Levantou-se do meio das criadas e saiu dizendo: “Que ninguém
me siga nem saia do lugar até meu regresso”. Penetrou no jardim e caminhou até
chegar à azenha, onde viu Sayf Almulœk deitado no chão, sobre a terra, tão
bêbado de vinho e amor que não acordou. Reconhecendo-o graças à descrição
que lhe fizera a irmã, ela se sentou junto à sua cabeça, que colocou sobre os
joelhos, e se pôs a observar-lhe o rosto, a contemplá-lo e a gemer, pois seu amor,
anelo e paixão haviam aumentado; suas lágrimas escorreram e, sem poder
reprimir o choro, ela recitou:

“Ó adormecido noite afora!
Sono de amante é sempre pecado,
pois quem deseja o amor
tampouco quer dormir!”.

Mas Sayf Almulœk continuou a dormir e Bad∑¢at Aljamål a chorar e se
lamentar; uma de suas lágrimas escorreu sobre o rosto dele, acordando-o. Viu
Bad∑¢at Aljamål sentada à sua cabeça, reconheceu-a, chorou de alegria e
recitou:
“Este é meu choro por ti, e contém desculpas,
informando-te hoje sobre meu estado e segredo;
a felicidade avançou sobre mim com tal força,
e foi tamanha a alegria que me fez chorar!
Plenilúnio que surge sobre galho de bambu,
seu amor me fez perder paciência e consolo,
e nele o coração se perdeu em segredo oculto;
ofertei a ti, com sentimento, minhas pálpebras,
o negro dos meus olhos, o rubro de meus lábios;
as maçãs de tua face eram como as anêmonas,
e eu quis, de tanto anelo e tanta ansiedade, recitar:
é isto que quero, e não troco uma pessoa por outra.
Por Deus eu te peço, ó aquela que não tem igual
para o amante: ó minha vida, ó minha anêmona,
por toda a beleza que em tuas faces se reúne,
pelo branco, pelo vermelho-escuro da anêmona,
e pelo encanto e pintura que há em teus olhos,
e pela esbelteza de ramo que há em tua cintura:
não deseje a danação deste pobre condenado!
Não restaram senão restos de meu débil corpo.
Isto é o que te peço após exaltar-te, e já
cumpri minha obrigação, dentro do que posso”.

Em seguida, Sayf Almulœk...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 229ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que em seguida Sayf Almulœk recitou:

“A paz esteja convosco: a saudação é um sinal,
e todo generoso por outro generoso se inclina!
A paz esteja convosco, não perca eu vossa vida,
pois em meu coração tendes posição e repouso.
Tenho ciúme de vós e nunca vos esqueço:
o amante por seu amado sempre se debilita!
Não negueis a vosso amado vossa generosidade:
ele morrerá de saudade, com o coração enfermo!
À noite apascento as estrelas, humilhado,
enquanto meu coração se distorce de paixão;
já não me sobra paciência nem estratagema,
e só me resta falar a mim mesmo. Para que falar?
Convosco a paz de Deus esteja por toda hora!
Saudações de um amante que ainda a tudo suporta!”.

Em seguida, recitou o seguinte:

“Devera eu procurar por outros, meus senhores,
pois de vós não alcancei meu objetivo ou desejo!
Mas quem, além de vós, atingiu tamanha beleza,
para que atrás dele eu vá até o meu juízo final?
Quem dera pudesse eu amar a outros, eu que
em vós saturei minhas pupilas e entranhas!”. [79]a

Ao concluir as suas poesias, Sayf Almulœk chorou e Bad∑¢at Aljamål lhe disse:
“Ó filho de rei, eu temo me entregar a você por inteiro e não receber, de sua
parte, companheirismo nem amor, pois os seres humanos são de pouca fidelidade
e muita perfídia e indiferença. Até o senhor Salomão, que a paz esteja com ele,
casou-se por amor com Belquis,[80] mas abandonou-a tão logo encontrou outra
de quem gostou”. Sayf Almulœk lhe disse: “Meu coração, meus olhos, minha
vida, Deus altíssimo não fez todos os homens iguais. Eu, se Deus altíssimo
quiser, me manterei fiel ao compromisso, e morrerei aos seus pés. Você vai
testemunhar a verdade das minhas palavras, das quais Deus é fiador e vigia”.
Bad∑¢at Aljamål lhe disse: “Venha, sente-se agora, e me jure, conforme a sua fé
nos compromissos perante Deus – e quem trai será por Deus traído”. Então Sayf
Almulœk se sentou, um pegou nas mãos do outro, e ambos fizeram o juramento
recíproco de que nenhum deles daria preferência a outro, fosse gênio, fosse
humano, e depois se abraçaram por um bom tempo, beijaram-se e choraram por
sua muita alegria. Sayf Almulœk recitou o seguinte:

“Chorei de paixão, de anseios, ardendo pela
distância de quem meu coração e olhos amam,
ainda que teu longo abandono me aumente as dores,
e seja curto meu braço para alcançar meu desejo,
e me cresça a tristeza com a queda de minha fortaleza,
e a ampliação da desgraça me diminua a paciência,
que, tendo sido bem vasta, na verdade ora se estreita
e contrai depois de minha satisfação e alegria.
Será que antes de minha morte Deus nos reunirá
e eu vou me curar de tanto tormento e fraqueza?”.

Após o juramento mútuo, [Sayf Almulœk foi caminhar um pouco, bem como
Bad∑¢at Aljamål, acompanhada de uma criada, que carregava um pouco de
comida e uma garrafa de bebida, e, quando sua patroa se sentou, ela depôs
comida e bebida diante dela; após alguns instantes, Sayf Almulœk chegou e][81]
ela o recebeu com saudações; abraçaram-se, beijaram-se e se puseram a comer e
a beber durante algum tempo, após o que ela disse: “Ó filho de rei, quando você
entrar no Jardim de Iram, verá uma grande tenda de cetim vermelho com bordas
de seda vermelha e estacas de ouro vermelho; entre nessa tenda e verá uma velha
sentada em um leito de ouro sob o qual haverá uma cadeira de ouro; logo que
entrar, cumprimente-a com educação, respeito e autoridade; pegue as sandálias
dela, beije-as, coloque-as na cabeça, enfie-as debaixo de sua axila direita e pare
diante dela calado e cabisbaixo. Quando ela lhe perguntar: ‘De onde você veio?
Quem é você? Como chegou aqui? Quem o trouxe? Por que você reverenciou
estas sandálias dessa maneira?’, saia da frente dela calado; esta minha criada vai
entrar e conversar com a velha; observe como ela lhe dirige a palavra e lhe
conquista o coração e a mente, e assim talvez Deus os faça inclinar-se por você e
lhe conceda o seu desejo”; em seguida, chamou uma de suas criadas, chamada
Murjåna,[82] e disse a ela: “Em nome do afeto que lhe tenho, por favor atenda
hoje a este meu pedido, sem negligência; depois de atendê-lo, você será
libertada, por Deus altíssimo: receberá todas as honrarias, não haverá ninguém
mais próximo de mim e não revelarei meus segredos senão a você”. Murjåna
respondeu: “Patroa, luz de meus olhos, diga-me qual é o seu pedido e eu o
atenderei com meus dois olhos!”. Disse Bad∑¢at: “Carregue este humano em
seus ombros e mostre-lhe o Jardim de Iram, onde está minha avó, mãe de meu
pai. Leve-o até a tenda dela e coloque-o lá dentro. Quando Sayf Almulœk entrar
na tenda e fizer as reverências com a sandália de minha avó, ela lhe perguntará:
‘De onde você é? De onde veio? Quem o trouxe a este lugar? Por que
reverenciou estas sandálias? Qual o seu pedido para que eu o atenda?’; nesse
momento entre você depressa, cumprimente-a e lhe diga: ‘Patroa, fui eu quem
trouxe aqui este rapaz; é filho do rei do Egito, e foi ele quem chegou ao palácio
elevado e matou o filho do rei Alazraq, salvando Dawlat ¿åtœn e conduzindo-a
ao pai dela sã e salva. Enviaram-no comigo para que você o veja e ele lhe dê
uma boa-nova. Seja bondosa com ele, patroa! Não é um rapaz gracioso?’. Ela lhe
dirá: ‘Sim, por Deus’, e você lhe dirá: ‘Patroa, este rapaz é perfeito em boas
qualidades e coragem, é rei do Egito, possui todas as virtudes apreciáveis’.
Quando ela lhe perguntar: ‘Qual é o pedido dele?’, responda-lhe: ‘Minha patroa
Bad∑¢at Aljamål envia-lhe saudações e lhe diz: ‘Minha avó, até quando vocês
deixarão esta jovem assim solteira, sem casamento? Por acaso ela é trigo para
que a deixem armazenada? Por que não a casam enquanto a mãe dela e a senhora
estão vivas, como se faz com todas as jovens?’. Quando ela lhe perguntar: ‘O
que faremos? Se ela conhecesse alguém que caísse no seu gosto e nos
informasse, agiríamos para a sua total satisfação’, diga: ‘Vovó, vocês queriam
dá-la ao senhor Salomão Bin Davi, sobre ele esteja a paz, mas não foi seu
destino ficar com ela. Salomão enviou a túnica ao rei do Egito, que a deu ao seu
filho, este rapaz, o qual, ao abri-la e vesti-la, viu a imagem de minha patroa,
apaixonou-se por ela, abandonou seu reino, sua mãe, seu pai, tudo quanto
possuía e saiu transtornado mundo afora à procura dela, arrostando dificuldades
e terrores até chegar ao palácio elevado, onde matou o filho do rei Alazraq e
encontrou Dawlat ¿åtœn, irmã de minha patroa, entregando-a aos parentes, ao
pai e à mãe. Dawlat ¿åtœn foi o motivo de tudo, pois o colocou em contato com
minha patroa. Você já lhe viu a beleza, a capacidade, a juventude, a formosura. A
mente de minha patroa está com ele. Se vocês pretendem casá-la, casem-na com
ele e não a impeçam, pois trata-se de um rapaz gracioso, grandioso, rei do Egito;
melhor que ele não vão encontrar, e se não a derem a este jovem, ela vai se
matar, não se casando com mais ninguém, seja humano, seja gênio’.[83] Veja,
minha mãezinha Murjåna, como fazer para conquistar o coração da minha velha
avó e levá-la a aceitar. Se você cumprir esta missão, será libertada em nome de
Deus altíssimo. Trate-a com doçura e quiçá ela me atenda. Se cumprir esta
missão, não haverá para mim ninguém mais caro que você, mãezinha”. A criada
respondeu: “Patroa, sobre a cabeça e os olhos eu a servirei e agirei para
satisfazê-la”, e, carregando Sayf Almulœk nos ombros,...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 230ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que a criada carregou Sayf Almulœk nos
ombros e lhe disse: “Feche os olhos, filho de rei”; ele fechou e depois de uma
boa hora ela lhe disse: “Abra os olhos, filho de rei”; ele abriu e viu o jardim, que
era o de Iram. A criada lhe disse: “Entre naquela tenda, sem medo”; Sayf
Almulœk entrou, mencionou o nome de Deus altíssimo, espichou os olhos e viu
a velha sentada no trono, com criadas a servi-la; cumprimentou-a, fez
reverências com respeito e educação, pegou suas sandálias, beijou-as, enfiou-as
debaixo do braço direito e parou cabisbaixo. A velha lhe perguntou: “Quem é
você? De que país é? Quem o fez chegar até aqui? Quem o trouxe a este lugar?
Por que fez essas reverências? Qual o seu pedido para que eu o atenda?”. Nesse
instante, a criada Murjåna entrou, cumprimentou-a, fez reverências e disse:
“Patroa, fui eu quem trouxe este jovem até aqui, até este palácio. Foi ele quem
entrou no palácio elevado e matou o filho do rei Alazraq, salvando a princesa
Dawlat ¿åtœn e levando-a até o pai e a mãe, virgem e imaculada. É um rei
grandioso, filho do rei do Egito, possui muito decoro, bela compleição, é
importante, valente e respeitoso. Enviaram-no comigo para servi-la, para que
você o veja. Por Deus, patroa, não se trata de um jovem gracioso?”. A velha
respondeu: “Sim, por Deus, Murjåna, é um rapaz gracioso, de bela compleição e
formosa figura”. Nesse momento a criada principiou a falar de acordo com as
instruções de Bad∑¢at Aljamål, e, ao ouvir tais palavras, a velha gritou e se
irritou dizendo: “E desde quando os humanos se combinam com os gênios?”.
Sayf Almulœk disse: “Minha senhora, eu me combino com os gênios! Serei seu
criado, morrerei às suas portas, não prestarei atenção a mais ninguém e
preservarei o compromisso. A senhora saberá que sou veraz e não minto, e verá
o meu bom afeto, se assim o quiser Deus altíssimo”.[84] Então a velha refletiu
por algum tempo, de cabeça baixa, erguendo-a a seguir para perguntar:
“Gracioso rapaz, você preservará o compromisso, o pacto e a fidelidade?”.
Respondeu Sayf Almulœk: “Sim, em nome daquele que estendeu a terra e
ergueu os céus, preservarei o compromisso, o pacto e a fidelidade”. Nesse
momento a velha disse: “Em nome de Deus, atenderei seu pedido se Deus
altíssimo assim o quiser. Agora vá descansar e passear pelo Jardim de Iram;
coma de suas frutas, as quais não têm igual no mundo, enquanto vou atrás de
meu filho ³ahbål para conversar com ele, que não diverge de minhas ordens nem
me desobedece, e casarei você com minha neta Bad∑¢at Aljamål, enquanto seu
pai, sua mãe e eu ainda estamos vivos; se Deus altíssimo quiser, ó Sayf
Almulœk, ela será sua esposa e você, seu marido”. Ele beijou a mão da velha,
fez uma reverência, agradeceu e se dirigiu ao jardim. A velha disse à criada que
trouxera Sayf Almulœk: “Vá você procurar meu filho ³ahbål, esteja onde estiver,
e traga-o até mim”, e a criada partiu, procurou-o e o trouxe à presença da velha.
Quanto a Sayf Almulœk, enquanto ele passeava pelo Jardim de Iram, deu-se
que ali se encontravam cinco gênios do grupo do rei Alazraq; vigiavam-no e
diziam: “Quem o trouxe para este lugar? Não terá sido senão ele quem matou o
filho do nosso mestre! Vamos observá-lo, inquiri-lo e armar um estratagema”.
Foram até a extremidade do jardim e se puseram a caminhar devagarinho, até
que cruzaram com Sayf Almulœk, dele se acercando e perguntando: “Gracioso
rapaz, você agiu muito bem liquidando o filho do rei Alazraq e salvando Dawlat
¿åtœn daquele cachorro que a sequestrou! Não fosse você, ela, filha do rei do
Sarand∑b, nunca teria se livrado dele. Como o matou?”. Julgando que fossem
habitantes do jardim, Sayf Almulœk lhes respondeu: “Sim, eu o matei com este
anel que está em meu dedo”, e então, seguros de que fora ele o matador do
gênio, agarraram-no, dois pelas pernas, dois pela cabeça – o quinto tapou-lhe a
boca para que não gritasse, fosse ouvido e viessem resgatá-lo; carregaram-no e
voaram com ele, levando-o até o rei Alazraq, diante do qual o depuseram
dizendo: “Ó rei de todos os tempos, encontramos o assassino do seu filho!”. Ele
perguntou: “Onde está ele?”. Responderam: “Ei-lo aqui”. O rei Alazraq então lhe
perguntou: “Como matou o meu filho? Por que o matou?”. Sayf Almulœk
respondeu: “Porque ele era injusto e opressor; sequestrava filhas de reis,
aprisionava-as no palácio elevado, separava-as de seus familiares, fornicava e as
corrompia. Matei-o com este anel que está em meu dedo, e Deus mandou o
espírito dele para o fogo, o pior paradeiro”. Tendo assim se certificado de que
aquele era o matador de seu filho, o rei Alazraq convocou todos os vizires e
demais membros de seu governo e lhes disse: “Esse é o assassino de meu filho!
Como devo matá-lo? Digam-me, o que faço com ele? Como matá-lo? Qual
tortura lhe devo infligir?”. O grão-vizir lhe disse: “Corte todo dia um membro
dele”; disse outro: “Dê-lhe uma surra violenta todo dia”; disse outro: “Corte-lhe
todos os dedos e queime-os”; disse outro: “Corte-o pela metade”; disse outro:
“Empale-o”; enfim, cada um deles se pôs a fazer uma sugestão. O rei Alazraq
tinha um comandante entrado em anos, de boas propostas, que disse: “Ó rei de
todos os tempos, eu lhe falo e você me acata” – era ele conselheiro do reino e do
governo, e tudo quanto ele propunha era seguido; esse homem beijou o chão e
disse ao rei: “Meu filho, você vai acatar o que eu lhe disser e me dará garantia de
vida?”. O rei disse: “Diga, pois você tem a garantia de vida”. Ele disse: “Ó rei,
se você aceitar meu conselho e minha palavra, matá-lo não é do seu interesse,
pois ele está em suas mãos, sob seu arbítrio; é seu prisioneiro e você pode matá-
lo quando bem entender. Ele foi ao Jardim de Iram, casou-se com Bad∑¢at
Aljamål, filha de ³ahbål, tornando-se um deles. Seus criados foram capturá-lo no
Jardim de Iram, e a situação dele não lhes permanecerá oculta; o rei ³ahbål, pela
filha, exigirá a devolução do rapaz, e com soldados atacará você, que não poderá
resistir-lhe – nem a ele, nem aos seus soldados”.
Bad∑¢at Aljamål ordenou, tão logo ³ahbål chegou ao jardim, que uma criada
buscasse o rapaz, mas ela procurou por ele e, como não encontrasse ninguém,
revirou o jardim inteiro, mas todos lhe disseram: “Não vimos ninguém”, exceto
um, que lhe disse: “Eu vi, sob uma árvore, um humano que repentinamente foi
cercado por criados do rei Alazraq, os quais conversaram com ele, agarraram-no,
taparam-lhe a boca, voaram com ele e partiram”. Ao ouvir tais palavras, a velha
não aceitou, encolerizou-se bastante, pôs-se de pé e disse a seu filho ³ahbål:
“Você é o rei, e ainda durante a sua vida, e também a minha, vêm os criados do
rei Alazraq ao nosso jardim, raptam nosso hóspede e retornam sãos e salvos?”.
³ahbål disse: “Mamãe, aquele humano matou o filho do rei Alazraq, e agora
Deus altíssimo o lançou nas mãos dele! Ele é gênio e eu sou gênio; agora, só por
causa de um humano, irei me inimizar com ele e combatê-lo, deflagrando a
discórdia entre nós?”. A mãe lhe disse: “Por Deus que é imperioso que você vá,
lute com ele e exija nosso filho e hóspede. Se ele ainda estiver vivo, pegue-o e
venha; se o tiver matado, pegue o rei Alazraq, seus filhos, suas mulheres, quem
estiver junto dele e seu povo; traga-o até mim vivo para que eu o mate com
minhas próprias mãos e destrua sua cidade. Caso contrário, não perdoarei você
das obrigações decorrentes do meu leite, com o qual o amamentei,[85] nem da
educação que lhe ministrei”. Nesse momento, para honrar sua mãe, para
satisfazê-la, e também por algo que estava escrito desde a eternidade, o rei ³ahbål
levantou-se e ordenou a seus soldados que se pusessem em marcha, saindo ele
mesmo no dia seguinte; os dois exércitos se encontraram e combateram até a
morte, sendo derrotado o rei Alazraq com seus soldados; o restante de seu grupo
foi capturado, bem como os notáveis de seu governo; amarrados, foram todos
conduzidos à presença do rei ³ahbål, que disse: “Onde está meu hóspede
humano, Alazraq?”. O rei Alazraq respondeu: “³ahbål, você é gênio, tal como eu.
Por causa de um humano que matou meu filho você age desse jeito comigo? Era
meu filho, o alento do meu fígado e da minha vida! Foi por isso que você
produziu toda essa inimizade e derramou o sangue de tantos gênios?”. ³ahbål lhe
respondeu: “Acaso você não sabe que, perante Deus, cada humano é melhor que
mil gênios? Deixe dessa conversa! Se ele estiver vivo, traga-o já aqui e eu
libertarei você e todos os seus filhos e companheiros que aprisionei; se o tiver
matado, vou degolar você e destruir a sua cidade”. O rei Alazraq disse: “Ó rei,
ele me atacou e matou meu filho!”. ³ahbål disse: “Seu filho era um opressor [e
mereceu],[86] pois sequestrava filhas de reis e as aprisionava no palácio elevado
a fim de fornicar e corrompê-las”. O rei Alazraq disse: “[Sayf Almulœk está
vivo em meu reino].[87] Faça-se, portanto, a conciliação entre nós”, e então a
conciliação entre ambos se fez; o rei ³ahbål presenteou-o com uma vestimenta
honorífica, e escreveu um acordo mediante o qual o rei Alazraq declarava Sayf
Almulœk inocente da morte de seu filho; ofereceu-lhes boa hospedagem,
inclusive aos soldados, durante três dias. Também foi até sua mãe levando Sayf
Almulœk, e ela ficou extremamente contente; ³ahbål se impressionou com a
beleza e a formosura do rapaz, a quem disse, após a velha ter-lhe contado a sua
história de cabo a rabo: “Eu o aceito para minha filha. Leve-o até Sarand∑b e
faça lá a sua festa de casamento com Bad∑¢at Aljamål, pois é um gracioso rapaz
que enfrentou muitos terrores por causa dela”. A velha viajou, acompanhada de
suas criadas, até que chegaram a Sarand∑b e entraram no jardim da mãe de
Dawlat ¿åtœn; Bad∑¢at Aljamål os viu quando passaram em direção à tenda,
onde a velha contou de cabo a rabo tudo quanto sucedera ao rapaz, e como ele
quase morrera na prisão do rei Alazraq – e a repetição não trará nova
informação.[88]a Ficaram muitíssimo espantados com tudo, e o rei Tåj
Almulœk, pai de Dawlat ¿åtœn, convocou os notáveis de seu governo e escreveu
o contrato entre Bad∑¢at Aljamål e Sayf Almulœk, casando-a com ele. Quando
se encerrou a celebração do contrato, os oficiais da guarda gritaram “Parabéns,
ele merece!”, e atiraram ouro e prata na cabeça de Sayf Almulœk, distribuíram
vestimentas honoríficas e serviram comida. Nesse momento, Sayf Almulœk
beijou o chão diante de Tåj Almulœk e disse: “Ó rei de todos os tempos, gostaria
de fazer-lhe um pedido; não se recuse nem me decepcione!”. Disse o rei Tåj
Almulœk: “Por Deus, ainda que você peça meu reino e minha vida, eu não lhe
recusaria, devido ao grande favor que me fez”. Sayf Almulœk disse: “Eu
gostaria que você casasse sua filha Dawlat ¿åtœn com meu irmão Så¢id, a fim de
que todos nos tornemos seus criados”. O rei Tåj Almulœk respondeu: “Ouço e
obedeço!”, e, reunindo os notáveis de seu governo, ordenou que os escribas
redigissem o contrato de casamento de sua filha com Så¢id”; jogaram ouro e
prata sobre Så¢id, o rei ordenou que a cidade de Sarand∑b fosse enfeitada com
todas as espécies de adorno e se realizou a festa de casamento; Sayf Almulœk
possuiu Bad∑¢at Aljamål e Så¢id possuiu Dawlat ¿åtœn, ambos na mesma noite.
Sayf Almulœk permaneceu isolado em seu palácio com Bad∑¢at Aljamål
durante quarenta dias, e ela lhe perguntou: “Ó rei, ainda resta em seu coração
alguma tristeza?”. Ele respondeu: “Meu desejo foi atendido e não resta em meu
coração nenhuma tristeza. Porém, tenho o propósito de me encontrar com meus
pais no Egito, e ver se continuam vivos”; então Bad∑¢at Aljamål ordenou a um
grupo de criados que os fizessem chegar ao Egito, e eles foram levados a seus
parentes; Sayf Almulœk se encontrou com sua mãe e seu pai, bem como Så¢id
com os dele, ficando todos juntos por três anos, ao cabo dos quais se despediram
e se encaminharam para a capital de Sarand∑b. Tanto Sayf Almulœk, ao lado de
Bad∑¢at Aljamål, como Så¢id, ao lado de Dawlat ¿åtœn, viveram a melhor vida,
até que se abateu sobre eles o destruidor dos prazeres e dispersador das
comunidades.[89]
Dunyåzåd disse: “Como foi boa, minha irmã, esta história de Sayf Almulœk
com Bad∑¢at Aljamål!”. ³ahrazåd respondeu: “Se acaso eu viver até amanhã e o
rei me preservar, irei contar-lhe uma história melhor”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.[90]
E quando foi a 251ª noite
As aventuras do xeique Al¿ayla¿ån Bin Håmån[91]
Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Conte para mim, minha irmã, uma de suas
graciosas histórias a fim de atravessarmos o serão desta noite, se você não
estiver dormindo”. ³ahrazåd disse: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que havia nas cidades de Al¬a®ra e Al
¢amdån um rei chamado Badr Jarwån Arrayån, dono do reino da Pérsia.
Acometido, dada noite, por forte insônia, o rei ficou com vontade de ouvir
algumas histórias e crônicas, informando então aquilo ao seu vizir, que lhe disse:
“Tenho um homem que se tornou sábio graças às experiências e viagens por terra
e mar; já atingiu a idade de cento e quarenta anos, e seu nome é Al¿ayla¿ån Bin
Håmån,[92] o persa. Se o nosso amo assim o desejar, eu o trarei para que lhe
conte tudo quanto viu”, e ele respondeu: “Traga-o à minha presença”; então o
vizir o trouxe, colocando-o diante do rei. O velho beijou o chão, cumprimentou o
rei e rogou por ele, que lhe ordenou que se sentasse, e foi obedecido. O rei lhe
disse: “Conte-me o que de mais espantoso você viu, e diga a verdade”. O homem
respondeu:
Saiba, ó rei, que pertenço à classe dos grandes dirigentes, da qual era membro
o meu pai, após cuja morte, porém, perdi a disputa por seu cargo para um
homem que armou tramoias contra mim, acabando por me desterrar para
Nisåpœr,[93] onde permaneci cinco anos e gastei tudo quanto possuía; saí de lá
pobre e andarilho, e adentrei em certa cidade, passando por um de seus
intendentes, que estava a acertar contas com um encarregado. Parei perto deles e
pensei: “Quando eles terminarem de acertar as contas, irei pedir-lhes alguma
coisa”. Comecei a calcular interiormente os seus acertos de contas, atividade na
qual se mantiveram até terminar, a tudo registrando no caderno. O encarregado
tomou seu rumo e eu me aproximei do dono do dinheiro, cumprimentei-o e
disse-lhe: “Meu senhor, ele o enganou em dez mil dinares”. Refiz-lhe os
cálculos, entre nós, e ele, constatando que minhas palavras estavam corretas,
disse-me: “Que Deus o recompense!”, e me agradeceu pelo que fizera dando-me
um punhado de dirhams, que embolsei, e fiz menção de me retirar, mas ele me
ordenou que me acomodasse em sua casa; obedeci, ele entrou na minha frente, e
eis que se tratava de uma bela casa que tinha servidores e criados. Ele retornou e
serviram uma refeição, da qual comi até me fartar; em seguida ele disse:
“Construí um grande navio. Você aceitaria minhas palavras e viajaria nele? Meu
coração gostou de você, que para mim passou a ser como filho. Eu lhe darei
capital suficiente para praticar um pequeno comércio, e quiçá Deus o ajude e
favoreça pelo resto de sua vida”. Respondi: “Com muito gosto e honra, meu
senhor!”. O homem ficou contente comigo, deu-me boas roupas e mandou
chamar o capitão do navio, ao qual me recomendou dizendo-lhe: “Este é meu
filho. Olhe por ele e obedeça-lhe todas as ordens”. Em seguida, instruiu-me a
não divergir do mestre, que era o mais entendido de seus capitães do mar.
Transportei todas as mercadorias para o navio e zarpamos, viajando por quarenta
dias, após o que os ventos pararam; deitamos âncora e baixamos velas em um
lugar conhecido como Mar de Labd∑, onde permanecemos dez dias, até que os
ventos se tornaram favoráveis; levantamos então as velas e viajamos por sete
dias, chegando a um local chamado Ilha dos Ventos.[94] O capitão disse:
“Receio que os ventos deste lugar nos levem de encontro ao deserto dos negros,
cujo único alimento são os seres humanos. A tática deles consiste em apanhar as
pessoas e alimentá-las com avelã,[95] para que engordem, e então as assam e
devoram”. Com muito medo, eu disse: “Não fiquem neste lugar! Vamos
zarpar!”. O capitão disse: “Nada tema”, e pegou no interior do navio uma caixa
contendo artimanhas que ele arranjara para este local; entre elas, retirou
máscaras de ferro e de madeira, com aspecto de rostos de demônios, e fez os
marinheiros vestirem-nas. Quando chegamos à ilha, os ventos cessaram e o
navio parou. Fomos então atacados por dez navios, a bordo de cada um dos quais
havia trinta homens que nós combatemos ferozmente. O capitão apanhou alguns
ganchos e enganchou cinco navios, e os outros cinco fugiram, pondo-se a nos
espreitar ao longe. [Capturamos os homens dos cinco navios enganchados][96] e
verificamos que seus cabelos eram longos como os cabelos das mulheres, suas
roupas eram de seda e seus dentes pareciam serrotes; nas orelhas, tinham sinos
de cobre amarelo, e em cada sino havia uma pérola que valia muito dinheiro.
Pegamos aquelas joias de suas orelhas e atiramos os homens ao mar. Os ventos
se tornaram favoráveis e viajamos na segurança de Deus altíssimo. O capitão nos
disse: “Essa ilha à nossa frente contém um demônio que, ao ver o navio, soltará
um grito tal que cegará todos quantos o ouvirem,[97] e então tapamos os
ouvidos. Depois, o capitão disse aos marinheiros: “Usem o equipamento de
batalha”, e eles assim procederam; enquanto estávamos nisso, eis que nos
aproximamos da ilha, que tinha em seu centro uma montanha imensa em cujo
topo havia um palácio que resplandecia de tão branco, com alicerces constituídos
por abóbadas verdes semelhando esmeralda; como não se ouvisse nenhum som
do demônio que ali morava, o capitão ordenou que todos desembarcassem do
navio, nele permanecendo eu na companhia de vinte homens. O capitão me
disse: “Vou atacar o demônio. Se eu o matar, tudo bem; caso contrário, você
ocupará o meu posto e me substituirá no navio. Muito cuidado e não nos siga.
São estas as minhas instruções. Adeus!”, e partiu. Pouco depois de sua saída, eis
que gritos e berros encheram a terra. Incomodei-me, tive muito medo, embarquei
em um bote junto com meus acompanhantes e fomos para a ilha, onde verifiquei
que o nosso grupo localizara o demônio e o atacava com espadas. O capitão me
disse: “Eu não o proibira de desembarcar?”. Respondi: “Por Deus que eu temi
por você”. Ele me agradeceu por aquilo e me disse: “Olhe bem para esse
demônio”; observei a sua cabeça, e eis que ela era um pedaço de montanha;
tinha três olhos, quatro mãos, rabo e crina com comprimento de duzentas braças
e largura de duzentas braças. Em seguida, retornamos para o navio, temerosos
das feras marítimas. Quando amanheceu, ouvimos alguém dizendo: “Que Deus
os recompense! Vocês nos fizeram um grande favor matando aquele demônio.
Nós não podemos recompensá-los, mas procurem na ilha e encontrarão muitos
muçulmanos presos. Libertem-nos!”. Ao ouvir tais palavras, desembarcamos,
fomos ao lugar onde estava o demônio, e eis que deparamos com uma grande
árvore sob a qual havia uma fonte de água e um tanque de mármore cheio de
vinho, e ao lado dele uma caixa de pedra com quatro cadeados pesando cada
qual quatro arrobas.[98] Como não conseguíssemos abrir nenhuma, trouxemos
lenha e fogo com a intenção de incendiar a caixa, e repentinamente ouvimos algo
dizendo: “Não queimem, caso contrário serão aniquilados pelo demônio”. O
capitão disse: “Quem é você? Apresente-se a nós!”. Ela respondeu: “Sou uma
mulher-gênio”. O capitão disse: “Deus altíssimo liquidou o demônio por
intermédio de nossas mãos; ele já foi morto. Por acaso você tem alguma notícia
sobre como abrir esta caixa?”. Ela disse: “Se vocês tiverem de fato matado o
demônio, então as chaves estão debaixo do tanque vermelho ao lado da fonte de
água; virem-no e vocês encontrarão um ídolo de ouro em cujas mãos estão as
chaves”. Então viramos o tanque, apanhamos as chaves, abrimos a caixa e dela
retiramos uma jovem que parecia o plenilúnio luminoso; apresentou-se em árabe
e persa, falava todas as línguas, e a enviamos ao navio com todos os seus
pertences. O capitão ordenou que arrancassem o ídolo, e então um marinheiro
avançou e o puxou, dele saindo sete cabeças e quatro patas como de fera:
tratava-se de um ifrit, que assoprou sobre o marinheiro, transformando-o em um
monte de cinzas, e fugiu por uma entrada que havia no ídolo. Então o capitão
pegou uma garrafa de óleo, amarrou uma das cordas do navio na cintura e disse:
“Chacoalhem este ídolo; se o ifrit sair e eu conseguir matá-lo, tudo bem; mas se
eu não o matar, puxem-me por esta corda que está amarrada na minha cintura”.
Então pegamos a corda e o capitão foi chacoalhar o ídolo e, quando o ifrit saiu
para atacá-lo, arremessou contra ele o óleo da garrafa; o ifrit soltou um grande
grito, fazendo desmaiar todos que estavam conosco; ficamos caídos por alguns
instantes, mas logo o capitão gritou dizendo: “Vamos, o demônio foi liquidado!”.
Levantamos, encontramos seu rosto inteiramente queimado e o golpeamos com
nossas espadas, retalhando-o por completo; em seguida, entramos no subterrâneo
da ilha e encontramos um ídolo de pedra empunhando uma espada
desembainhada; colocamos um colar[99] em seu pescoço e ele caiu; tomamos-
lhe a chave e abrimos uma porta que ali havia; topamos com um enorme
aposento contendo um ídolo de ouro cercado por muitos outros ídolos pequenos
e grandes de ouro e prata; levamos tudo para o navio e, em seguida, encontramos
um grande leito sobre o qual gemia um grupo de sete homens que nos
perguntaram: “Quem são vocês?”. Respondemos: “Somos gente, somos
muçulmanos. Já matamos o demônio”, e os transportamos para o navio. Depois,
encontramos um quartinho na qual havia um homem e uma mulher; tiramos os
dois de lá, verificamos que as correntes lhes tinham amputado as pernas, e os
levamos para o navio. Comemos, bebemos e perguntamos à jovem que estava na
caixa como o demônio a capturara. Ela respondeu:
A jovem sequestrada pelo gênio
Saibam que eu descendo dos reis do Iêmen, e certo rei pediu minha mão ao meu
pai, que me deu em casamento a ele. Passamos a nos amar. No entanto, fomos
atacados por outro rei, que conquistou nosso país à força; vagamos errantes pelo
mundo afora durante três dias, e no quarto avistamos na montanha uma gruta
com árvore e fonte de água, [e lá fomos nos abrigar. Saí então][100] para
espairecer, deixando meu marido no interior da gruta, e um gênio me sequestrou,
trazendo-me para esta ilha, onde foi morto por este demônio, que me tomou do
gênio e me pôs nesta caixa, da qual constantemente me retirava para ficar com
ele. Quando por cá aportava algum navio, ele apanhava tudo quanto nele havia e
devorava os passageiros, menos os loiros, aos quais ele dava de beber e de comer
até a chegada de seu dia sagrado, quando então os trazia, abria a caixa, retirava-
me, virava o tanque, recolhia as chaves, ia até o ifrit postado à porta e este o
deixava entrar com aquelas pessoas à sua frente, e então lhes devorava as
cabeças, deixando o resto para os filhos. Todo ano ele repetia essas coisas, e foi
por isso que eu lhes indiquei o caminho para as chaves.
[Prosseguiu o xeique Al¿ayla¿ån:] Ficamos espantados com a história dela.
Depois perguntamos ao grupo dos sete sobre a história deles, e eles nos
responderam em persa:[101]
Os sete irmãos e o xeique
Somos de ¿uråsån, irmãos de pai e mãe, e embarcamos para fazer comércio na
Índia. Viajamos durante um mês completo e entramos em um mar chamado
Kamlåbån, em cujo centro havia montanhas e ilhas que atravessamos em sete
dias. Após nos livrarmos daquilo, avistamos uma ilha na qual entramos para nos
abastecer, e ali encontramos um homem cujos pelos o haviam coberto; nós o
cumprimentamos e lhe perguntamos quem era, constatando que era da Pérsia; ele
nos disse: “Estava eu em um navio que se rompeu; salvei-me e arribei nesta ilha,
na qual vivo há vinte anos. Vocês são os primeiros que passam por mim”. Então
o conduzimos ao navio e lhe dissemos: “Conte-nos o que lhe sucedeu desde o
dia em que chegou até agora”, e ele respondeu:
Saibam que sou de K∑rwån, e tinha uma bonita esposa a quem amava, e ela
também me amava; engravidou de mim e deu à luz um varão de bela figura, mas
em seguida ela foi se debilitando pouco a pouco e morreu. Sem poder suportar a
separação, vaguei errante pelo deserto durante dois dias, ao cabo dos quais entrei
em uma gruta para dormir; no meio da noite, ouvindo som de passos, peguei
minha espada, saí para verificar o que acontecia e vi à entrada da gruta um leão
carregando ao dorso uma jovem que parecia o plenilúnio; soltei um grito, matei-
o e salvei a garota, que trajava a mais luxuosa vestimenta e fora ferida no ombro
pelo leão. Perguntei-lhe: “De onde é você?”, e ela respondeu: “Sou deste país.
Saí para brincar sob a lua com minhas criadas e fui capturada do meio delas por
esse leão, que me trouxe para este lugar. Agora, Deus altíssimo me livrou dele
por intermédio de suas mãos”. Dormimos na caverna até o amanhecer, e então
nos levantamos. Perguntei-lhe: “Você consegue andar?”, e ela respondeu: “Sim”.
Caminhamos, pois, até chegar à terra da jovem, onde a conduzi aos seus
familiares, que ficaram contentes; ela lhes contou como fora salva e eles me
dignificaram bastante; deram-me uma égua na qual montei e cavalguei até o
mar; fui colhido pelo anoitecer ao lado de um jardim fechado, em cujos portões
bati, sendo atendido por um jardineiro que recolheu minha égua, amarrou-a,
introduziu-me em uma choupana de folhas, deu-me de jantar, ração para minha
égua, trancou a porta e saiu para cuidar de sua vida. Enquanto eu estava sentado,
eis que um leão enorme começou a esfregar os testículos na choupana; ao vê-lo,
puxei minha faca, estendi as mãos por entre a folhagem e lhe cortei as bolas. O
leão fugiu berrando e dormi aquela noite. Quando amanheceu, o jardineiro não
apareceu e saí da choupana para caminhar pelo jardim; gritei e ninguém
apareceu; caminhei mais um pouco pelo jardim e encontrei o jardineiro estirado
e morto sob uma árvore, e, em cima da árvore, chorando por ele, uma mulher a
quem perguntei: “Qual era a condição desse homem? Quem é você?”. Ela
respondeu: “Saiba que este jardineiro era meu amigo e nesta noite eu viera
visitá-lo; como você também veio, ele ficou com vergonha e o fez dormir no
local onde ele dormia, por temor de que lhe acontecesse algo, pois neste jardim
existem muitas feras. Assim, subimos os dois e dormimos juntos nesta árvore; ao
conciliar o sono, porém, ele despencou e morreu”. Terminando de ouvir as
palavras dela, montei em minha égua e cavalguei até a beira-mar, onde encontrei
um navio de partida para a Índia. Vendi a égua e parti em viagem; fomos
empurrados por bons ventos até que dois monstros marítimos nos atacaram e
afundaram o nosso navio com todos os que nele estavam, mas Deus escreveu
que eu me salvaria tal como outros se salvaram. Permaneci boiando até que as
ondas me fizeram chegar a esta ilha.
Disse o grupo dos sete:
[Pedimos ao homem:][102] “Conte-nos sobre o que de mais espantoso você
viu”.[103] Ele disse:
Em uma parte desta ilha vive uma anciã em uma gruta com árvores e rios; ela
se senta em um trono de ouro cravejado com várias espécies de joias e rubis,
cercado por oito pés que formam a base de uma abóbada de ouro com pilares de
coral e cortinas de várias espécies de seda; diante dela há um ídolo, e ela possui
um vinhedo de ouro com cachos de gema, além de coral e estacas de esmeralda.
A velha se prosterna ante o ídolo duas vezes ao dia. Querendo descobrir como
ela comia e bebia, lancei mão de todas as artimanhas, até que entrei debaixo de
sua cama; ao anoitecer, surgiu um cão preto que se pôs a girar e a latir até o
alvorecer, quando então parou diante dela e gritou. A velha lhe disse: “Cale-se,
pois eu me cansei nesta noite”, e ele se retirou. A velha se levantou da cama,
prosternou-se diante do ídolo, girou ao seu redor por uma semana e se sentou
novamente na cama, e de repente apareceram muitas aves que pousaram em
torno da cama e se chacoalharam, transformando-se em moças que pareciam
luas; cumprimentaram-na e lhe solicitaram um pouco de magia; a velha as
ensinou por algum tempo com atenção, e em seguida elas se retiraram; então, eis
que uma grande ave pousou ao seu lado à tarde; chacoalhou-se e se transformou
em uma jovem graciosa empunhando um prato coberto; descobriu-o, e eis que
ele continha uma comida branca como a neve; a jovem deu-lhe bocados daquela
comida até que a velha se saciou, retirando-se em seguida. Então eu saí de baixo
da cama, prosternei-me diante do ídolo, circulei em seu redor e cumprimentei a
velha, que me retribuiu o gesto e disse: “O que você quer?”. Respondi: “Preciso
de companhia e quero um conselho seu”. Ela disse: “Não saia do lugar onde está
vivendo, ao lado do mar, pois dali você verá os navios. E, muito cuidado, não vá
para o oeste da ilha!”. Respondi: “Aceito as suas palavras”, e me sentei para
conversar com ela. Mantive-me no local onde eu vivia e passei a fazer-lhe
visitas. Certo dia, enquanto eu conversava com ela, eis que a grande ave pousou
e se transformou em uma jovem, o que me fez correr para baixo da cama.
Enquanto era alimentada pela jovem, a velha lhe falou a meu respeito. A jovem
perguntou: “Onde está ele?”. A velha respondeu: “Entrou embaixo da cama”. A
jovem disse: “Vou matá-lo!”. A velha disse: “Você já não pode matá-lo, pois ele
se prosternou diante do nosso ídolo e circulou em torno dele, e eu sou obrigada a
matar quem lhe fizer mal. Depois vou ordenar a ele que coma desta árvore”, e eu
vi qual árvore era. Mal a jovem se retirou, saí de baixo da cama em uma
distração da velha e comi da árvore três frutos que jamais eu comera mais doces.
Fui dormir no local onde eu vivia e, quando amanheceu, voltei até a velha,
cumprimentei-a e me sentei. Olhando para mim, ela disse: “Parece que você
ouviu ontem as minhas palavras e comeu da árvore!”. Eu disse: “Sim, comi três
frutos”. Ela se irritou e disse: “Você agiu corretamente. O primeiro fruto fará
com que nenhuma das nossas magias o prejudique; o segundo tornará sem efeito
os nossos feitiços contra você; e o terceiro evitará que adoeça até o final de seus
dias; nada lhe resta a temer”. Enquanto conversávamos, conforme o hábito,
chegaram os pássaros, os quais se retiraram depois que ela lhes ensinou diversas
espécies de feitiçaria. Indaguei-a a respeito e ela respondeu: “Esses são os
feiticeiros espalhados pelo mundo; sou a professora deles”. Estávamos nisso, e
eis que a filha dela chegou e se aproximou de nós. A velha me disse: “Levante-se
e vá beijar a cabeça dela”; aproximei-me então para fazê-lo, e ela se transformou
em uma víbora que me picou mas não me causou dano algum. A mãe lhe disse:
“Ele comeu três frutos da árvore”, e, ao ouvir tais palavras, ela retomou sua
forma. Cumprimentei-a e disse: “Sou seu escravo e escravo de sua mãe”. A
velha lhe disse: “Alimente-o de nossa comida e, desse modo, o sangue dele se
tornará proibido para nós”, e a jovem me deu três bocados mais saborosos que o
mel. Fiquei com elas até o entardecer, quando fiz menção de me retirar, mas a
velha me disse: “Agora é o momento em que os monstros se movimentam; não
saia daqui esta noite”. Ao escurecer, veio o cão preto, prosternou-se diante do
ídolo e circulou em volta dele; em seguida, foi para o centro da ilha e sumiu por
algum tempo. Logo ouvi gritos e a velha disse: “Aconteceu algo ao cachorro”;
balbuciou palavras que não compreendi, e eis que avançou em nossa direção
algo semelhante a um elefante, rosto como de leão, corpo como de ser humano e
cauda como de dragão; conduziam-no pelas mãos dois homens imensos
empunhando bastões de ferro com os quais o surravam; não interromperam a
marcha até chegar diante da velha, que lhe perguntou: “Quem é você, seu
iníquo? Quem o introduziu em nossa terra e país?”. Ele respondeu rindo e
demonstrando submissão: “Faça os seus criados me tratarem com gentileza e eu
lhe contarei toda a minha história”. A velha disse então aos criados: “Deixem-
no!”, e ambos obedeceram. Ele disse: “Saiba, minha senhora, que eu tinha uma
esposa a quem amava, mas um mágico a corrompeu contra mim e ambos se
apaixonaram e fugiram juntos; faz um ano que não a vejo nem sei onde ela se
encontra. Indicaram-me você, e então vim por causa de minha mulher”. Ela
perguntou: “Qual o nome do feiticeiro que enfeitiçou a sua prima?”.[104]Ele
respondeu: “É conhecido como Al¿a†∑b Bin Naß∑b”. A velha balançou a
cabeça, soltou um grito tremendo e imediatamente a sua filha apareceu na forma
de leão com duas asas, acompanhada de um dragão, que era seu marido, e
perguntou: “Mamãe, o que aconteceu para você soltar esse grito tremendo?”. A
velha a informou do caso e disse: “Eu quero que você o traga à minha presença,
bem como a esposa desse gênio”. A filha disse: “E quem é ele dentre os
feiticeiros para que eu vá em pessoa? Deixe que o meu escravo Jahßar,
encarregado de vigiar o trono, vá até ele e traga os dois”. Então a velha chamou
Jahßar e lhe disse: “Traga-me agora Al¿a†∑b Bin Naß∑b e junto com ele a
esposa deste homem”. O escravo se chacoalhou, tomando a forma de leão com
dois longos cornos rachados e olhos como lampiões, fendidos ao comprido.
Avançou, prosternou-se diante do ídolo, deu uma volta em torno dele e voou,
ausentando-se por uma horinha e logo retornando com Al¿a†∑b Bin Naß∑b e a
esposa do gênio, os quais depôs diante da velha, cuja cabeça Al¿a†∑b avançou
para beijar, mas ela o increpou e admoestou dizendo: “Seu asqueroso! Quantas
vezes já o proibimos de fazer essas coisas? Você não para!”. Ao ouvir tais
palavras, ele respondeu com grosserias e a filha da velha lhe disse: “Seu
asqueroso! E por acaso lhe resta algum poder para responder desse jeito à minha
mãe e discutir com ela?”. Então Al¿a†∑b saiu voando para o mais alto do céu,
transformou-se em uma bola de fogo e se lançou sobre a filha da velha, que
gritou, mas a moça não viu de onde vinha a bola de fogo. A velha se transformou
em um fogo imenso e se lançou contra Al¿a†∑b; saiu fumaça de seu embate e
então a velha retomou a sua forma original; sua filha desmaiara e Al¿a†∑b virara
um monte de cinzas à nossa frente. Voltando-se para a esposa do gênio, a velha
lhe disse: “Se por acaso você desobedecer ao seu marido, eu lhe darei o mesmo
destino de Al¿a†∑b”; depois, disse ao marido: “Receba-a de minhas mãos.
Quando ela fugir de você, me avise, pois eu lhe garanto que a encontrarei”, e
então o gênio se despediu e partiu levando a esposa.
Continuei minhas conversas com a velha até que certo dia lhe disse: “Minha
senhora, aceitei o seu conselho quanto ao lugar onde devo me manter; porém,
gostaria que me informasse sobre o que existe no lado oeste, contra o qual me
preveniu”. Ela disse: “Existe ali uma cobra cujo comprimento é de trezentas
braças, cuja cabeça parece um pedaço de montanha, cujos olhos semelham dois
escudos; a cada três dias, ela mergulha no mar, e fica até a tardinha, saindo
depois com alguns monstros marinhos, chamados de filhotes, do tamanho de um
elefante e com oito patas, quatro embaixo e quatro em cima; trata-se da comida
com que ela se alimenta”. Eu disse: “Minha senhora, eu gostaria de ver essa
cobra”. Ela respondeu: “Você não tem necessidade de vê-la”. Eu disse: “É
absolutamente imperioso!”, e ela ordenou à filha que me mostrasse a cobra. A
jovem me levou à região oeste da ilha, onde encontramos uma montanha enorme
que era uma continuidade do céu; subimos nela e fomos dar em uma terra negra
malcheirosa, com colinas e uma árvore tão enorme, de folhas semelhantes a
orelhas de elefante, que abrigaria mil cavaleiros à sua sombra; em suas
proximidades, um monte vermelho e outro negro, um fosso descomunal...
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 252ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[Disse o grupo dos sete:]
[O homem disse:]
Vi um monte vermelho e outro negro, um fosso descomunal e muita fumaça
saindo de duas grutas. Disse à filha da velha: “Vi algo assombroso!”. Ela
perguntou: “E o que é?”. Respondi: “Esta terra negra, estes dois montes, estas
duas grutas e esta fumaça que sai delas”. Ela disse: “Não são dois montes, nem
duas grutas; trata-se, isto sim, da cobra que você quer ver. Ela está enrolada, e
estas duas grutas são suas narinas; a terra da ilha se queimou e escureceu por
causa da sua respiração”. Quando o sol raiou, a cobra se mexeu, e eis que ela era
os dois montes que eu vira; esticou-se e ergueu a cabeça, a qual notei que tinha
vinte braças; olhei para sua boca, que parecia uma fossa com presas como as de
elefante, e seus pelos eram como lanças. Continuou se esticando até mergulhar
no mar, sumindo e ressurgindo logo depois com um animal gigantesco que ela
lançou na praia; mergulhou a seguir e voltou com outro animal; não parou de
fazer isso até encher a praia com dez daqueles animais, e então devorou-os
todos, não restando senão os ossos. Em seguida ela se aproximou[105] da árvore
e girou ao seu redor, deixando-me espantado. Descemos da montanha e a filha
da velha passeou comigo pelas diversas partes da ilha; avistei uma colina
formada pelas maiores criaturas das quais aquela cobra se alimentava, bem como
uma árvore gigantesca na qual estavam pousados pássaros brancos; perguntei à
jovem: “O que é essa árvore? E esses pássaros?”. Ela respondeu: “É uma árvore
nobre, embaixo da qual certo homem abençoado reza para o seu Deus; esses
pássaros são anjos que vêm ter com ele por ordem do senhor destes céus”. Eu
disse a ela: “É absolutamente imperioso que eu veja esse homem e o conheça”.
Ela respondeu: “Não posso ir até ele”, e continuou: “Você já conhece o caminho
para cá?”. Respondi: “Sim”. Ela disse: “Por Deus que, não tivesse você comido
da nossa árvore e ficado imune à nossa magia, eu o mataria, pois estou certa,
meu camarada, de que você nunca mais voltará para nós, e tememos que nossa
aniquilação se dê por seu intermédio. Minha recomendação é a seguinte: quando
você chegar até esse homem, rogue-lhe por nós, pois ele quebrará os nossos
ídolos”, e me deixou, retirando-se. Encaminhei-me até a árvore e vi pérolas,
aljôfares e rubis espalhados debaixo dela, e, ao seu lado, água corrente;[106]à
direita havia um turíbulo enorme, retangular, semelhante a um trono, e à
esquerda também. Quando me aproximei da árvore, os pássaros revoaram,
desaparecendo por alguns instantes e logo retornando com uma ave gigantesca à
frente, de duas asas, rosto humano, coroa de ouro na cabeça e em uma das patas
uma placa na qual estavam escritas duas linhas que não compreendi.
Repentinamente, alguém disse: “Afaste-se do lugar do virtuoso xeique Abœ
cAbdillåh! Não o conspurque!”. Meus membros ficaram arrepiados com aquelas
palavras e eu disse: “Por Deus que eu quero seguir esse xeique e entrar em sua
religião”. A voz disse:[107] “Ele tem um Deus generoso, e você não chegará a
ele senão purificando o corpo e o coração da prática de adoração dos ídolos.
Purifique-se nessa fonte e conserve-se em seu lugar, pois o xeique chega à
tardezinha. Não lhe dirija a palavra; quando ele chegar e fizer as abluções, imite-
lhe as ações; quando ele rezar, reze igual; quando o xeique terminar a prece,
acerque-se dele e diga-lhe: ‘Que a paz, a misericórdia e as bênçãos de Deus
estejam convosco’, e ele lhe retribuirá o cumprimento; conte-lhe então toda a sua
história”. Respondi: “Ouço e obedeço”, e decorei tudo quanto ouvi. À tardinha,
chegou um homem: era o xeique, de rosto bonito, roupas brancas, na cabeça um
turbante preto, montado em um asno. Apeou-se diante do mi¬råb,[108] fez suas
abluções – imitei-o – e se pôs a rezar – imitei-o, atrás dele. Quando terminou de
rezar, fui até ele, cumprimentei-o, ele retribuiu, e lhe contei minha história com a
velha feiticeira. Ele disse: “Fique comigo três dias e Deus o libertará”.
Permaneci então com ele naquela noite, durante a qual ele rezou sem interrupção
até o amanhecer, quando então montou em seu asno e fomos até a velha, a quem
ele golpeou no alto da cabeça e puxou pelos cabelos; avançou até o ídolo, cuspiu
nele e o agarrou, agarrando a filha da velha com a outra mão; os pássaros
brancos chegaram, pondo-se a voejar em seu entorno; ordenou-lhes que
cavassem um buraco, o que se fez rapidamente, e atirou dentro dele o ídolo, a
velha e sua filha. Em seguida, soltou um grito gigantesco, e eis que a cobra que
eu vira surgiu e se apresentou submissa e humilhada, parando diante dele, que
lhe ordenou queimasse o ídolo, a velha e sua filha. A cobra avançou então até
eles e soltou um único assopro; o fogo que saiu de sua boca queimou-os todos e
o xeique lhe ordenou que se retirasse, sendo prontamente obedecido. O xeique se
virou para mim e disse: “Pronto, Deus aniquilou a velha, sua filha e o ídolo.
Recomendo-lhe que não abandone a religião na qual você me seguiu, pois o
Deus destes céus é poderosíssimo. Volte para o seu lugar que amanhã passará
por você um navio; embarque com os que nele estiverem e estará a salvo, se
Deus altíssimo quiser”. Assim, fui para o meu lugar e lá dormi aquela noite.
Quando amanheceu, eis que um navio passou por mim; levaram-me e tudo bem!
Respeitei a recomendação do velho e perseverei em sua fé; suas palavras
atingiram o meu coração.
[Depois, as palavras dele atingiriam o coração dos sete irmãos, que disseram:]
[109]
[Foi assim que conhecemos na ilha][110] aquele xeique e o cumprimentamos;
à noite o víamos rezando e o imitávamos. [Ele veio conosco e prosseguimos a
viagem][111] no navio por mais quarenta dias, quando fomos atingidos por forte
vendaval; soltamos as velas e então aquele demônio que vocês mataram veio,
levou todos aqueles que estavam a bordo – éramos mais de quarenta pessoas –, e
devorou todos enquanto olhávamos e dizíamos: “Ó Deus do céu e da terra, salve-
nos deste demônio!”. Ao ouvir nossas palavras, ele nos agarrou e fez conosco o
que vocês viram. Mas não sabemos o que ele fez com Abœ Håmån.[112]
[Prosseguiu Al¿ayla¿ån:]
Então o capitão gritou: “Ó Abœ Håmån, você está bem?”, e eis que um
homem, o que estava preso junto com a mulher, respondeu: “Sim, eis-me aqui
salvo, e a Deus pertence o mérito de eu estar bem”. O capitão se levantou, beijou
a cabeça de todos e lhes disse: “Não se esqueçam de mim em suas preces”.
Dormimos até o amanhecer, retornamos à ilha e procuramos por todos os seus
cantos, topando então com um ídolo de pedra de cuja boca aberta saía uma
gigantesca fumaça. O capitão ordenou que colocassem o colar em seu pescoço e
o puxassem até sair do lugar; eles assim procederam e, quando o ídolo foi
arrancado, saiu um fogo enorme de baixo dele; esperamos até que se apagasse e
apareceu uma gruta; acendemos velas e entramos, ali encontrando um rio
corrente que atravessamos; vimos então sete portas e as abrimos, encontrando-as
cheias de trigo, farinha, grãos, banha, mel e todo tipo de comida: eram estas as
coisas que o demônio roubava dos navios. Levamos tudo e o capitão ordenou aos
marinheiros que consertassem dez dos navios que estavam na ilha, o que foi
providenciado, carregando-os então com aquelas mercadorias; amarramos os
navios ao nosso e o capitão chamou a mulher que estava com Abœ Håmån no
pequeno compartimento e lhe pediu: “Informe-me como você chegou a este
lugar”. Ela disse:
A mulher, seu irmão e as feiticeiras
Sou de uma cidade chamada Nahruwån, e meu pai era daqueles que praticam o
comércio nas embarcações de mar salgado. Certo dia, ele partiu em viagem,
deixando minha mãe e se ausentando cerca de vinte anos. Minha mãe estava
grávida e deu à luz tanto a mim como a meu irmão, de uma só barrigada.
Quando atingimos a idade de cinco anos, ela o entregou ao alfaqui na escola,
onde ele aprendeu tudo quanto necessitava do Alcorão e das ciências, passando a
alternar-se entre a escola e a mesquita até crescer.[113] Ao se completarem trinta
anos de ausência, minha mãe perdeu toda a esperança do regresso de meu pai e
disse ao meu irmão: “Meu filho, apanhe o que me resta do dinheiro de seu pai e
faça comércio com ele, vendendo e comprando; quiçá você obtenha lucros e
ocupe a posição dele”. Meu irmão aceitou o conselho de minha mãe, e ela o
enviou com alguns mercadores que o levaram consigo e ganharam muito
dinheiro na empreitada; o capital de meu irmão aumentou e ele comprou
escravos e criados, casando-se então com a filha de um cristão da região do
Iêmen, de uma cidade conhecida como Alyamåniyya, e a possuiu. Essa moça,
que meu irmão amava, tinha uma mãe feiticeira. Ao ir morar com a esposa, ele
abandonou as viagens e o comércio, gastando com ela todo o dinheiro que
possuía. Certo dia, estando nós sentados em casa, eis que um estafeta anunciou a
chegada de meu pai! Minha mãe o cumprimentou, abraçou e, sem saber o que
lhe sucedera, choraram ambos; depois ele perguntou sobre a situação e sobre o
que Deus altíssimo fizera com a sua gravidez, sendo então informado que meu
irmão e eu nascêramos de uma só barrigada, e papai deu graças a Deus altíssimo.
Ele trouxe todos os seus pertences para casa, que se encheu com sua riqueza, e
se concedeu um descanso de três dias. Em seguida, vendeu todas as mercadorias
que trouxera, obtendo grandes lucros, e foi informado do que meu irmão fizera,
ficando profundamente pesaroso com aquilo.
Quanto à esposa de meu irmão, ela se apaixonou por um indivíduo da cidade
de Alafqah, que era um grande feiticeiro e com o qual fugiu. Tendo recebido
notícias de que a esposa estava em determinado país, meu irmão perdeu o juízo e
a inteligência, quase morrendo devido ao amor que nutria por ela. Ele me
contava seus segredos e desabafava comigo; parou de comer e de beber por três
dias e eu lhe perguntei: “Meu irmão, o que vai acontecer ao final disso?”. Ele
respondeu: “Por Deus, minha irmã, que é imperioso que eu viaje para obter
notícias dela. Ou me reúno a ela, e atinjo meu desejo, ou morro!”. Tentei
dissuadi-lo daquilo, mas, como ele não desistisse, disse-lhe: “Meu irmão, é-nos
difícil ficar separados de você. Leve-me consigo!”, e ele ficou contente, indo
incontinente preparar duas éguas e munindo-se do que queria e precisava.
Montamos e saímos juntos à noite, sem que ninguém soubesse de nós,
mantendo-nos em marcha até chegar ao Iêmen. A terra da minha cunhada ficava
na região das dunas, e então passamos pelo poço desativado e pelo grande
palácio. A sogra, que não gostava dele,[114] pertencia ao que restara das tribos
de ¢Åd e da grande Tubba¢,[115] e ninguém podia com ela, tão poderosa era a
sua magia. Quando nos aproximamos do vale, apeamos discretamente e
alugamos uma casa, nela colocando tudo quanto precisávamos, a fim de que a
mãe de minha cunhada não ficasse sabendo da presença de meu irmão, caso
contrário o liquidaria. Ficamos nessa situação por alguns dias, ao cabo dos quais
perguntamos sobre ela, sendo-nos respondido que se mudara daquele vale para
outro país, e fomos então procurá-la. Meu irmão vestira sua couraça de batalha,
[116] e eu também. Montamos e avançamos para o Alto Iêmen; a noite nos
colheu e dormimos no alto de uma elevada montanha, sob uma romãzeira.
Quando acordamos, vimos uma fonte de água fresca; comemos então da romã,
bebemos da fonte, pegamos um pouco de romã e avançamos rumo ao local que
pretendíamos. Enquanto avançávamos, fomos cercados por cem cavaleiros que
disseram ao meu irmão: “Salve a sua vida e deixe essa moça conosco”, mas, sem
responder, ele os atacou e não parou de enfrentar um cavaleiro após o outro até
matar cinquenta deles, e o resto fugiu de sua frente. Avançamos até o final da
montanha e topamos com um pastor de ovelhas, o qual, ao nos ver, caminhou em
nossa direção, oferecendo ao meu irmão uma taça cheia de leite e dizendo: “Em
nome de Deus!”. Meu irmão pegou a taça, bebeu e me deu de beber. Então o
pastor nos convidou para sermos seus hóspedes; amarramos as montarias sob
uma árvore, ele lhes deu ração de cevada, ofereceu-nos uma refeição composta
de pão, leite e tâmaras e disse: “Comam, meus senhores, e me desculpem”,
sentando-se para conversar conosco e dizendo ao meu irmão: “Congratulações, ó
cavaleiro do tempo![117] Eu o vi combatendo os cavaleiros, bem como o que fez
com eles, e fiquei contente por você estar bem; Deus o salvou deles e pôs ponto
final à sua perversidade; eram ladrões e salteadores de estrada, e você nos livrou
deles”. Vendo meu irmão preocupado, perguntou-lhe: “Conte-me a sua história, e
quiçá Deus altíssimo o liberte de suas preocupações por meu intermédio, pois
você agora se tornou para mim como um irmão, e o afeto por você invadiu o
meu coração quando lhe observei a coragem. Vocês são as duas únicas pessoas
que, sozinhas, conseguiram atravessar este país, pois somente consegue
atravessá-lo quem se acompanha de muitos cavaleiros”. Meu irmão então falou e
informou a sua história e tudo quanto lhe sucedera ao pastor, que perguntou:
“Como se chama a velha mãe de sua esposa?”; meu irmão lhe disse o nome e o
pastor balançou a cabeça e disse: “Por Deus que ela é uma grande feiticeira.
Você está a dez jornadas de distância dela, mas eu lhe indicarei um local
próximo onde saberá como chegar até ela e pegar a sua esposa”. Meu irmão
disse: “Faça o que estiver ao seu alcance”. Então o pastor saiu e voltou com um
saco; abriu-o, dele retirando uma caixa; abriu-a, dela retirando um anel de ferro
com inscrições, e o entregou a meu irmão, bem como uma garrafa com óleo, um
pote cheio de essências aromáticas, um incensório e incenso enrolado em uma
folha; disse-lhe: “Guarde o que vou lhe dizer e aconselhar, meu filho. Muito
cuidado para não ser desobediente como as mulheres, caso contrário se
arrependerá e será destruído!”. Meu irmão lhe respondeu: “Aconselhe-me sobre
o que quiser”. O pastor disse: “Você partirá daqui hoje mesmo e avançará até o
final da tarde, quando então chegará a uma vasta montanha; suba nela e chegará
ao seu cume na metade da noite; quando estiver no ponto mais elevado,
encontrará um grande tapete; durma nele pelo restante da noite, sem pronunciar
palavra; quando amanhecer, caminhe um pouco no pico e encontrará um ídolo de
pedra com um manto a enfeitá-lo, e na mão um bastão sobre o qual se apoia;
ponha então o óleo desta garrafa na mão esquerda e besunte o rosto e a cabeça
do ídolo; abra este pote, pegue sua essência aromática e esfregue nas bochechas
do ídolo; pare depois ao seu lado e ele levantará a perna direita para você;
estenda a sua mão direita e tire de baixo do pé uma chave, pederneira, iscas
secas e enxofre; faça faíscas com a pederneira, queime as iscas, atice fogo no
enxofre,[118] incense o entorno do ídolo com apenas um pedaço deste incenso e
guarde o resto, porquanto ele lhe será necessário e útil nas outras atividades. Em
seguida, vá para o lado esquerdo do ídolo e caminhe sem olhar para trás, pois ali
você não verá nada, avistando, no declive da montanha, um vale imenso onde,
ao entrar, topará com um descomunal leão de cobre, e, quando chegar perto dele,
você deverá produzir faíscas com a pederneira, atiçar fogo e incensar com outro
pedaço deste incenso. Assim que terminar, surgirá diante de você um xeique
enorme de boas feições e roupas; borrife-o com as essências aromáticas e o óleo,
tal como fez com o ídolo, e incense-o com um pedaço de incenso; em seguida,
pare diante dele, que movimentará a cabeça para você dizendo: ‘Já compreendi
que você veio da parte de meu irmão; o que deseja? Agora você passou a ter
prerrogativas sobre mim!’. Dê-lhe então o anel que pegou debaixo do pé do
ídolo e explique-lhe a sua situação e história, o motivo pelo qual foi até lá. Esta é
a minha recomendação. Aceite os meus dizeres e não me desobedeça. Muito
cuidado para não errar ou se esquecer!”. Meu irmão respondeu: “Eu ouço e
obedeço, meu senhor!”. Então o pastor se despediu e nós nos pusemos a
caminhar o dia todo até o anoitecer, quando chegamos à montanha, que
escalamos até a metade e depois o topo, onde mal pisamos e já era metade da
noite, tal como dissera o pastor; dormimos e, quando Deus fez amanhecer,
avançamos até o ídolo de pedra; meu irmão agiu conforme as determinações do
pastor; chegamos até o xeique, com o qual meu irmão também agiu conforme
lhe ordenara o pastor. O xeique disse: “Fale-me do que precisa. Já compreendi
que você vem da parte de meu irmão, sendo-me necessário, portanto, dignificá-
lo”. Meu irmão lhe contou toda a sua história e o motivo de sua ida até ele. O
xeique disse: “Quer dizer então que aquela maldita chegou a esse ponto, voltou a
fazer aquelas coisas mesmo depois de se haver penitenciado? Juro pela minha
senectude que me é imperioso liquidá-la, bem como a todos que com ela estão,
inclusive a filha, pois ambas estavam aqui há dois dias na forma de aves”. A
seguir, o xeique disse ao meu irmão: “Venham, durmam em minha casa esta
noite e, quando acordarmos amanhã de manhãzinha, faremos tudo quanto você
quiser e escolher”. Descemos para o leito do vale onde despontava um sólido
palácio cercado por árvores. O xeique ia bem à nossa frente e o seguimos até nos
aproximar do palácio, em cujo portão encontramos criados e serviçais que, ao
avistar o xeique, se colocaram todos em pé, e logo beijaram o solo na frente dele.
O ancião entrou seguido por nós, introduzindo-nos em um saguão mobiliado de
todo gênero de mobília luxuosa, almofadas bordadas a ouro, várias espécies de
estofados[119] de seda, mosquiteiros com enfeites de ouro e muitas outras
coisas. Mal nos acomodamos e trouxeram bacia e vasilha; lavamos as mãos e
nos ofereceram magnífico banquete; comemos e os pratos foram retirados,
chegando então dois moços que pareciam duas luas; traziam bebidas das quais
bebemos, pondo-nos a conversar até o fim da noite. Quando amanheceu, vieram
a nós dois xeiques veneráveis com roupas pretas de algodão e bengalas de ouro
vermelho; saudaram-nos, sentaram-se ao nosso lado e perguntaram ao meu
irmão: “O que você acharia, jovem, de resolver logo o assunto que o trouxe até
aqui?”. Ele respondeu: “Se vocês me fizerem esse favor, meus amos, terão a
minha gratidão”. Um dos xeiques disse a um dos rapazes: “Traga-me
imediatamente a feiticeira, sua filha e o amante”.
Disse o narrador: não se passou nem um instante, e eis que todos foram
trazidos acorrentados a ferros. Meu irmão disse a ela: “Louvores a Deus, que
possibilitou agarrá-la, ó inimiga de Deus!”. Vi então a velha se inchar até encher
a casa, transformando-se em uma chama que se estendeu em direção aos céus e
atirando-se em seguida sobre nós com a intenção de nos atingir. O velho disse:
“Ai de você! Faz isso na minha presença?!”, e gritou com ela, pronunciou
palavras que não entendi, e eis que a velha se transformou em cinzas. O xeique
disse ao meu irmão: “Já está morta. O que você ordena que eu faça com a filha e
o amante?”. Meu irmão respondeu: “O caso está nas suas mãos”. Voltando-se
para o amante, o xeique gritou com ele e disse: “Seja pedra!”, e pedra ele se
tornou. O xeique chamou o jovem e lhe disse: “Jogue-o na ponte e sacrifique-lhe
um galo que o vigie a fim de que ele nunca escape”,[120] e o jovem agiu
conforme o instruíra o xeique, que perguntou ao meu irmão: “Que lhe parece que
devemos fazer com a sua iníqua esposa?”. Ele respondeu: “Quero ficar sozinho
com ela esta noite”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 253ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[A mulher disse:]
Meu irmão disse: “Ficarei sozinho com ela esta noite”. O xeique respondeu:
“Faça o que bem entender, pois ela está à sua mercê”. Conduzindo-a pela mão,
meu irmão a levou a uma sala e se pôs a censurá-la, enquanto ela se conservava
calada, sem nos dar resposta alguma. Isso durou até o amanhecer. Sem encontrar
nela nenhuma obediência, meu irmão se calou e então uma palma de mão saiu da
parede, aplicando em minha cunhada um golpe que imediatamente a
transformou em pedra branca, e eis que surgiu o xeique e disse ao meu irmão:
“De modo algum me passaram despercebidas as palavras que você lhe dirigiu,
pois, se acaso houvessem permanecido a sós, ela o teria matado”. Meu irmão
disse: “Meu senhor, minha alma já está vingada dela e de sua iníqua mãe. O que
você fez por mim não poderei pagar jamais”. O xeique presenteou meu irmão
com uma linda jovem, abasteceu-nos para a viagem de volta e disse a um dos
jovens: “Vá agora mesmo até o posto do navegador e ordene-lhe que prepare o
navio e os conduza para a terra deles o mais rápido possível”.
Disse o narrador: o rapaz foi para a praia, encontrou o navegador, aproximou-
se e lhe transmitiu a mensagem, e o homem então preparou o navio; embarcamos
e navegamos com bons ventos durante três dias e três noites, mas quando foi o
quarto dia amanhecemos diante desta ilha e fomos atacados por aquele ifrit, que
devorou meu irmão, a jovem e o navegador, restando apenas eu aprisionada
naquele compartimento, até que Deus atendeu aos meus rogos enviando vocês.
[Prosseguiu Al¿ayla¿ån:][121]
Perguntamos à mulher: “O que vocês comiam?”. Ela respondeu: “A cada três
dias vinha um escravo negro nos trazer uma comida que não sei o que era, nem o
que Deus fez com ele”. Perguntei-lhe: “Era humano?”. Ela respondeu: “Sim, e
creio que continua na ilha”. Ficamos espantados com a história dela e, quando
amanheceu, o capitão chamou os homens, vestiu-os com roupas de batalha e
caminhamos pela ilha rumo ao palácio que havia no pico da montanha.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 254ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
Assim que o capitão e seus homens se aproximaram do palácio, eis que nos
vimos diante de um rio que corria na direção de uma imensa lagoa, a qual,
quando a água chegava até ela, submergia nas profundezas, e não sabíamos onde
ia parar. O capitão ordenou e um dos marinheiros mergulhou por alguns
momentos, retornando com uma esmeralda verde, que deixamos ali e
continuamos galgando a montanha até chegar ao palácio, o qual estava cercado
por uma enorme fossa, e na ponte que conduzia a ele havia um ídolo de cobre de
uma braça de altura com uma chave de ferro pendurada no pescoço e na mão um
livro no qual estava escrito: “Este é o vigia do palácio do sábio feiticeiro
Månbœs,[122]que reinou sobre as sete regiões e possui as chaves do palácio.
Quem o abrir não deve levar nada, caso contrário se arrependerá. Que aprenda
com as lições que irá presenciar”.
Disse o narrador: apanhamos as chaves, abrimos o palácio, entramos no
saguão, e eis que deparamos com dois homens acorrentados aos quais
perguntamos: “Vocês são humanos ou gênios?”, e eles responderam: “Humanos,
e temos uma história espantosa”. Soltamos ambos, prosseguimos a incursão pelo
palácio, e eis que deparamos em seu centro com um grande aposento de ouro
vermelho sobre quatro pilares de esmeralda, com uma cama de ouro vermelho ao
meio, cravejada de rubis e pérolas e recoberta com guarnições de brocado; sobre
a cama estava um xeique de cabeça e barba brancas, cujas pálpebras a idade
fizera cair sobre os olhos; à sua cabeceira estava um garoto que o abanava com
leque. Ao perceber a nossa presença, ele perguntou ao garoto: “O que é esse
descomunal alarido?”, e este respondeu: “O palácio foi aberto e homens
entraram aqui”.
Disse o narrador: o xeique estendeu a mão para a bengala ao lado, pegou-a,
usou-a para erguer as pálpebras de sobre os olhos e nos contemplou. O capitão
deu um passo adiante, saudou-o e foi correspondido. O xeique perguntou:
“Vocês mataram o demônio?”. O capitão respondeu: “Sim”. O velho disse:
“Portanto, a ilha agora passou a ser propriedade de vocês. Chegou a hora de
minha morte”, e perguntou: “Há entre vocês algum dos filhos de Israel?”.
Respondemos: “Sim”. O xeique disse: “Então vocês de fato se tornaram donos
do palácio e da ilha”, e continuou dizendo ao capitão: “Resta-lhes agora uma
única coisa: vocês devem se apossar do palácio e da ilha; caso contrário, estarão
liquidados. Abram as portas trancadas e nelas verão prodígios”. Perguntei: “E
quais são esses prodígios?”. Ele respondeu: “Saibam que A††aliqån Bin
˝aydån...”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 255ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
O xeique disse: “Saibam que o sacerdote A††aliqån Bin ˝aydån – amigo de
¢Imlåq, o sacerdote-gênio que se uniu a ³addåd Bin ¢Åd, dono da cidade de Iram
flåt Al¢imåd –[123] colocou sob minha responsabilidade estes sete aposentos
trancados e me disse: ‘Não os abra’, dando-me como propriedade esta ilha, da
qual cuidei até envelhecer e me debilitar. Não me restam senão este filho e dez
gênios que me protegem e servem. Atrás do palácio vivem, apascentando vacas e
ovelhas, mil de meus escravos, com suas esposas e filhos. Vocês não chegarão
até eles senão por detrás daquela porta”. Perguntamos: “Do que você está nos
alertando?”. Ele respondeu: “Temo que os dez gênios façam mal a vocês”.
Perguntamos: “E qual a forma correta de nos livrarmos deles?”. Ele respondeu:
“Vocês devem ler o Evangelho e a Torá diante deles, que então morrerão.
Saibam que vou morrer hoje mesmo e lhes recomendo este garoto. Cuidem dele,
pois foi de fato o meu melhor companheiro e filho. Se acaso ele lhes der alguma
ordem, ouçam-no e obedeçam-lhe; e se acaso os advertir contra algo, não o
façam”. Voltando-se para o garoto, disse-lhe: “Meu filho, quando eu morrer,
enterre-me no mesmo túmulo de meu pai”; estendeu-se na cama e desfaleceu;
fomos mexer nele e, constatando que estava morto, começamos a preparar-lhe o
corpo, junto com o filho. Carregamos o xeique e o levamos a uma tenda no canto
do palácio, onde havia uma cama de cristal e sobre ela um xeique com um manto
vermelho tecido a ouro e outro de pérolas; em sua cabeceira uma placa na qual
se registrara seu nome, o nome de seu pai e sua idade. Lemos, e eis que nela
estava assim escrito: “Vivi oitocentos e setenta anos, e meu pai viveu
quatrocentos e oitenta anos”. Depositamos o xeique ali na cama, saímos,
fechamos a porta e nos pusemos a perambular pelo palácio. À noite o garoto nos
disse: “Iniciem a leitura do Evangelho e da Torá”, e assim nós fizemos até a
quarta parte da noite, quando então o garoto, cujo nome era Za¢∑m,[124] nos
fez um sinal e disse: “Olhem o que veio até vocês”. Nós nos voltamos, e eis que
eram indivíduos na forma de leões e tigres dotados de enormes asas!
Prosseguimos a leitura e eles fugiram em disparada. Pela manhã saímos para
caminhar e de repente um homem altíssimo se inflou até preencher o horizonte;
Za¢∑m então gritou com ele, que se pronunciou e perguntou: “Ó Za¢∑m, o
xeique morreu?”. O garoto respondeu: “Sim”. O homem disse: “Ai, por Deus
que essa é uma terrível desgraça! Se estes humanos não tivessem lido o
Evangelho, o demônio os teria matado, e nenhum deles teria chegado aqui nem
cobiçado as nossas coisas”. Za¢∑m nos disse: “Saibam que esse era um ajudante
que vinha dos céus para o meu pai com notícias sobre as gentes da terra, e agora
ele quer lhes fazer uma recomendação”. O capitão deu um passo adiante...
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 256ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
O capitão deu um passo adiante e disse ao ajudante: “Fale, ó generoso,
espiritual e magnífico senhor, pois estamos ouvindo e obedeceremos ao que você
apreciar!”. Ele disse ao capitão: “Saiba, ó xeique, que você se tornou
proprietário de algo que nunca antes alguém possuiu, nem nenhuma criatura
chegou perto. Muito cuidado, não vá destruir nada do que aqui está construído.
Quando você abrir as portas, não pegue nada dos aposentos, caso contrário,
morrerá; feche-as tal como as abriu e observe o indivíduo que estiver lá dentro;
preserve suas [palavras] e aja conforme ele sugerir. Não ataque os escravos e
escravas que vivem atrás do palácio, pois eles farão o que você desejar. Muito
cuidado para não deixar de entrar nos depósitos malditos onde estão os criados
do falecido; quando os encontrar, mate-os todos, pois eles são ímpios. Você não
chegará até eles senão mediante o anel do abençoado xeique dono deste palácio;
o anel está enterrado sob a cabeça dele em uma caixinha de ouro; quando
apanhar o anel, mostre-o a eles, que assim não poderão aproximar-se de você.
Então saia e verá aquele negro que servia e alimentava o falecido xeique; rogue
por esse negro e ele lhe será fiel e lhe mostrará os depósitos do ifrit; abra-os e
apanhe o seu conteúdo. Esteja alerta para não desobedecer às minhas ordens, e
saiba que senti a falta de vocês todas as noites”.
Disse o narrador: ele voou e se retirou – que Deus lhe dê boa recompensa. Za
¢∑m me pegou pela mão e me conduziu à tenda, colocando-me diante do local
onde estava o anel, que apanhamos após escavar, e o enfiei no dedo do capitão.
Sentamo-nos e o garoto nos trouxe um pouco de alimento, do qual comemos; em
seguida, eu disse ao capitão e a Za¢∑m: “Seria bom se fossem trazidos aqui os
dois xeiques que encontramos acorrentados, a fim de lhes perguntarmos sobre a
sua história, a não ser que você, Za¢∑m, saiba algo da história deles e nos
conte”. O garoto disse: “Na noite passada, passou por nós um ifrit carregando
aqueles dois xeiques, ambos acorrentados. Quando estava à altura da metade do
palácio, no céu, pretendendo atravessar para o lado onde ficava o demônio que
vocês mataram, um dos criados do meu pai, sabedor do que vocês haviam feito
na ilha, olhou para o céu e viu aquele ifrit, amigo do demônio, e o avisou com
um grande grito dizendo: ‘Solte esses dois indivíduos e salve a sua vida, pois o
seu amigo foi morto!’. Então o ifrit largou os dois e logo vocês apareceram,
abriram a porta e os salvaram. Mas ignoro qual é a história deles”. Eu disse:
“Gostaria que você os trouxesse aqui”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 257ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
O capitão também disse: “Gostaria que eles fossem trazidos para indagar-lhes
a sua história”. Imediatamente o garoto gritou por um escravo e lhe ordenou que
trouxesse os dois xeiques, a quem o capitão perguntou quando chegaram: “Meus
jovens, Deus foi gentil com vocês livrando-os da situação em que estavam.
Contem-nos, pois, a sua história, e o motivo pelo qual se envolveram com aquele
gênio amigo do demônio”. Disseram: “Meu senhor, nossa história é longa, e
cada um de nós tem uma”. O primeiro deu um passo e disse:
O primeiro acorrentado
Saibam, meus irmãos, que eu sou do Iêmen e era muito aficionado à caça. Meu
pai pertencia ao clã iemenita dos Tubba¢, e gostava tanto de mim que me
impedia de caçar por temor à minha vida. O máximo que eu conseguia era caçar
no vale de Sabá, onde eu tinha uma velha avó que alcançara a idade de duzentos
anos. Certo dia, estando eu a caçar naquele vale, fui surpreendido pelo anoitecer
e ordenei aos meus criados que montassem uma tenda, na qual dormi aquela
noite, retomando a caça pela manhã. Afastei-me de meus criados durante a
perseguição a uma corça, que acabou por entrar em uma gruta da montanha; saí
no seu encalço, e eis que fui atacado por três homens armados com espadas que
de lá saíram; desembainhei a minha espada e fiz carga contra eles, que me
cercaram; avancei na direção de um e o acertei, decepando-lhe a cabeça. Quando
viram aquela minha ação, seus companheiros me pediram paz e eu a aceitei.
Aproximaram-se e disseram: “Nosso senhor, filho de nosso senhor, somos seus
escravos! Viemos a este lugar em busca de um tesouro do qual nos falaram: que
em dado ponto da gruta haveria dinheiro enterrado. Escavamos até chegar a ele e
o encontramos; então você apareceu e matou o nosso companheiro, que era
quem nos indicara o tesouro”.
Disse o narrador: ao ouvir as palavras deles, louvei e agradeci a Deus
altíssimo e lhes disse: “Se a situação for como vocês descreveram, sentem-se até
que venham os meus escravos e criados, e assim resolveremos o assunto, se
Deus altíssimo quiser”. Tão logo meus criados chegaram, ordenei-lhes que
montassem uma tenda naquele lugar e pus-me a observar a escavação: eles
haviam chegado a uma placa enorme. Ordenei aos criados que arrancassem a
placa, e eis que debaixo dela havia um corredor subterrâneo. Acendemos velas e
entramos, avançando até topar com um aposento escavado na própria montanha;
no centro desse aposento havia uma cama de ouro vermelho.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 258ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
Quando adentramos o corredor, vimos[125] uma cama de ouro vermelho na
qual estava deitado um ancião coberto com sete mantos e em cuja cabeceira
havia uma placa de ouro com inscrições em alfabeto ¬imyarita,[126]que eu não
soube ler. Ordenei que tudo aquilo fosse retirado, arranquei os mantos de cima
do ancião, quebrei a cama, e eis que debaixo dela havia uma caixa, uma gazela
de ouro e uma espada. Quando retiramos tudo aquilo, ordenei-lhes que
demolissem o lugar, e nos sentamos; dividi o ouro em três partes, cada qual de
nós levando a que lhe cabia. Ao cabo, ficou restando apenas a caixa, a gazela e a
espada. Um deles disse: “Não sabemos o que a caixa contém”. Eu lhes disse:
“Vamos sortear essas coisas”, e então a caixa coube a mim, ficando eles com a
espada e a gazela. Carreguei minha parte nas minhas bestas de carga, cheguei à
cidade, mostrei aquelas coisas a meu pai e fui me isolar para abrir a caixa, dentro
da qual encontrei um traje de brocado colorido, cuja túnica, com grandes
pérolas, gemas e rubis vermelhos, era de linho fino com fios de esmeralda verde,
[127]e cuja coroa era cravejada de joias; dentro dela havia ainda outra caixa
trancada que abri, nela encontrando um grande espelho em cujo verso, após meu
exame, revelou-se a existência de duas linhas escritas em uma língua para mim
desconhecida. Pretendi contemplar a minha face[128] no espelho, e eis que nele
havia um belo frasco de incenso; olhei mais atentamente para o espelho e vi a
imagem de uma jovem que nenhum olho jamais vira igual; ia e vinha no que
parecia um jardim com muitos rios, repleto de árvores e flores, refrescando-se à
beira de um regato. Tornei a guardar o espelho no lugar onde estava e ordenei
aos meus criados que varressem uma casa que utilizávamos para hospedagem e a
mobiliassem; entrei lá e ordenei que, mal chegasse ao país algum mercador ou
viajante estrangeiro, conduzissem-no até ali para que me contasse o que de mais
insólito vira e ouvira, pois quiçá algum deles tivesse notícias sobre aquele
espelho, com o qual passei a ficar a sós na casa, observando-o, e parei de
cavalgar e de conviver com as pessoas. Após permanecer em tal estado por um
ano inteiro, sem revelar a ninguém o que eu tinha, aquilo pesou para meus
amigos[129] e meu pai, o qual me disse: “Meu filho, não tenho outro senão
você, que agora resolveu isolar-se de todo mundo nesta casa! Está parecendo
morto, apesar de vivo! Fale-me a verdade sobre o que o está prendendo a esta
casa, de onde você não se afasta nem sai!”. Justifiquei-me com meu pai dizendo-
lhe: “Como não encontro nenhum amigo que me faça espairecer ou ajude a
liberar angústias e expulsar preocupações e aflições, dediquei-me à leitura dos
livros, cuja companhia me apetece”.
Disse o narrador: nesse momento ele se retirou, mas mandou vir ver-me [às
escondidas][130]um homem perspicaz de idade bem avançada – tinha trezentos
anos – chamado Jah∑m Bin Låw∑ Bin Fah∑m, a quem meu pai mencionara o
estado de isolamento em que eu me encontrava; ele dissera: “Gostaria de ir ao
local onde seu filho está, de modo que ele não perceba a minha presença. Tenho
esperança de que Deus lhe dê libertação por meu intermédio”. Então meu pai
mandou chamar o criado que me levava comida e lhe disse: “Quando o seu amo
se isolar, introduza este homem sábio na casa de modo que meu filho não o veja
nem ouça”. O criado disse: “Amo, o meu patrão, depois que come, quer ficar
sozinho; desembainha a espada e inspeciona o palácio; ordena-me: ‘Muito
cuidado! Que ninguém entre nem se aproxime de mim!’, e se isola no quarto;
fico sem saber dele até a hora da refeição”. O criado afinal foi levar alimento,
acompanhado pelo sábio; quando a comida foi servida, saí conforme o hábito
para inspecionar a casa, e o sábio Jah∑m Bin Låw∑ Bin Fah∑m entrou e se
escondeu debaixo da minha cama. Voltei após ter circulado pela casa, tranquei as
portas, soltei as cortinas e apanhei o espelho, pondo-me a contemplá-lo e a
chorar dizendo: “Parabéns, viva quem vir esta imagem no mundo!”, e chorei e
me lastimei mais ainda. Nesse estado, ouvi alguém dizer: “Não se apresse,
venturoso e nobre senhor! Controle-se, pois a liberdade está próxima, se Deus
altíssimo quiser. Dê-me salvaguarda de seu poderio para que eu seja seu
camarada e o faça chegar a seu propósito e amor”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, fiquei seduzido e disse: “Apareça, que a
salvaguarda já está concedida”; o sábio saiu de baixo da cama e disse: “Saiba,
meu amo, que arrisquei a minha vida para fazê-lo chegar ao seu objetivo. Ouça
as minhas orientações, pois por mim passaram-se as eras e os tempos, com
espantos e assombros. Conte-me a sua história do começo ao fim. Para resolver
o problema, buscarei auxílio em meus ajudantes, gênios, ifrits e tudo o que eu
quiser”. Quando ouvi aquilo...
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 259ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
Ao ouvir tais palavras, contei-lhe a minha história do começo ao fim. Quando
viu o espelho e a imagem nele contida, o sábio desatou a rir desbragadamente e
perguntou: “Meu senhor, como é o incenso que veio junto com o espelho?”.
Respondi: “É pra já!” e, apanhando o frasco que continha o incenso, entreguei-o
a ele, que começou a revirá-lo e a rir. Depois disse: “Já está chegando a hora,
meu amo. Saiba que este incenso é o que mostra a imagem e informa a seu
respeito”, e se pôs a conversar comigo pelo resto da noite até o amanhecer,
quando então disse: “Meu senhor, traga-me fogo”, e eu lhe trouxe fogo. Ele
pegou um incenso que parecia folha de murta, pronunciou palavras que não
compreendi, e eis que o lugar se encheu de indivíduos. Um dos homens que
surgiram parecia do povo de ¢Åd, gigantesco, acompanhado de três que
pareciam ser seus secretários; montou uma cadeira de ouro vermelho e, logo que
se acomodou direito, o xeique o cumprimentou e ele disse: “Meu irmão, estou
contente por ter chegado a você. Vim de um país distante. O que deseja?”. O
xeique disse: “Preciso do que está neste espelho”. O homem riu ao olhar para o
espelho e disse: “Já sei tudo a respeito dele. O espelho foi encontrado sozinho ou
estava com o deflagrador?”. O xeique perguntou: “O que o deflagra?”. O homem
respondeu: “O incenso que estava com ele”, e o xeique lhe entregou o frasco. O
homem pegou-o, cheirou-o, sinalizou para um de seus companheiros, o qual
mais que rapidamente lhe estendeu uma taça e um frasco de onde retirou
incenso, lançando-o ao fogo e vendo-se então diante de um indivíduo com forma
de chacal alado. O xeique Jah∑m Bin Låw∑ Bin Fah∑m saudou-o, aproximou-
se e lhe disse: “Meu senhor, necessito de algo”; a criatura perguntou: “O quê?”.
O xeique respondeu: “Esta mulher”, e lhe mostrou a imagem. Ao olhar para ela,
a criatura respondeu: “Como chegou até ela? Faz duzentos e vinte anos que foi
enterrada por Råfi¢ Bin ³addåd, de Æimyar. É a imagem de Layla, filha do gênio
¢Åd Bin Musa††a¬, e esse rapaz não chegará até ela senão após arrostar grandes
fadigas e imensos sofrimentos”, e atirou incenso ao fogo, surgindo então um
indivíduo na figura de monge, empunhando cesta e báculo. O xeique o
cumprimentou, deu-lhe boas-vindas e, quando ele se acomodou, voltou-se para
mim e disse: “Meu filho, você está se impondo coisas somente suportáveis
mediante o enfrentamento de esforços incomensuráveis e terrores descomunais.
Contudo, tenho esperança de que tudo se resolverá, se Deus altíssimo quiser”.
Em seguida, fez-nos todos levantar e caminhou na nossa frente até um rochedo,
em cujas dunas nos sentamos; o xeique se pôs a conversar conosco, a esconjurar
e a incensar, e então o rochedo se encheu de cavalos e homens, e legiões de
gênios começaram a passar por nós em tropéis.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 260ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
Legiões de gênios começaram a passar por nós em tropéis. Estávamos nessa
situação quando chegaram sete cavaleiros com fisionomias semelhando luas e
mantos de seda verde na cabeça; pararam diante de nós, cumprimentaram-nos,
apearam-se e vieram ter conosco. O xeique Jah∑m e seus companheiros olharam
bem para eles e se levantaram imediatamente; abraçaram-nos e disseram após os
cumprimentos: “Já vem o xeique Abœ Mi¿†af, dono do Caminho das Rosas”.
Então acenderam incenso para sua vinda e o reverenciaram acendendo uma
imensa fogueira, e eis que surgiram mil cavaleiros cujo comandante empunhava
uma bandeira, vestia roupa branca e estava montado em um corcel cinzento com
sela de ouro vermelho cravejada de pérolas e pedras preciosas. Quando se
aproximou, todos se atiraram sobre ele, pondo-se a beijar-lhe mãos e pés, e a
cuidar-lhe dos estribos. Veio até nós, apeou-se e, tão logo se acomodou, indagou
de nossa situação, voltou-se para o monge e lhe perguntou: “Como vai, meu
irmão? De que precisa?”. O monge respondeu: “Estava eu tranquilo quando fui
convocado por este meu irmão” – e sinalizou na direção do xeique Jah∑m –
“para uma questão que lhe sucedeu”, passando a explicar-lhe a história, enquanto
eu me ocupava em acender incenso. O cavaleiro pôs-se a me examinar e
observar, e então bateu palmas, voltou-se para o nosso grupo ali presente e disse:
“Meus irmãos, para mim o caso do rapaz não é nenhuma enormidade, nem o que
vocês me pediram para fazer. Mas temo que, antes de atingir o objetivo, ele aja
irrefletidamente e seja aniquilado. Por isso, vou ditar-lhe algumas condições que,
se ele respeitar, lhe permitirão atingir o seu propósito, e, se desrespeitar, o farão
ser aniquilado, ou, mesmo que se salve da aniquilação, vagar pelo mundo,
extraviado, sem nunca mais ver os pais. Caso vocês me ordenem, eu lhe
ensinarei o caminho do triunfo”. O xeique Jah∑m lhe disse: “Faça-o, meu
senhor!”.
Disse o narrador: o cavaleiro se voltou para mim e disse: “Vejo que você é
nobre. Se acaso tiver paciência com os horrores, alcançará o seu intento. Saiba,
meu filho, que desde o seu primeiro contato com o espelho ela já tem notícias
suas. Ela o vê, tal como você a vê, desde que o espelho existe. Não tenho dúvida
de que ela o ama; não fosse assim, você teria morrido já no primeiro dia. Como
quer que seja, mantenha-se aqui, e, no terceiro dia a partir de hoje, virei ter com
você, fazendo-o chegar até ela, se Deus altíssimo quiser”. E, pondo-se em pé,
despediu-se. Todos foram embora, restando o xeique Jah∑m e eu; ele me disse:
“Como você está resolvido a viajar para um país distante, meu senhor, vá ao seu
pai e se despeça dele”. Então fui falar com meu pai e despedi-me dele dizendo:
“Meu pai, estou resolvido a viajar em busca de meu desejo”. Ele me disse: “Não
o faça”, mas eu me recusei a obedecer e saí acompanhado de Jah∑m, dirigindo-
me para o vale, onde acendemos fogo e incenso,[131]e, antes que nos
apercebêssemos, o companheiro do xeique Jah∑m, os dois ifrits e o monge
chegaram e nos cumprimentamos; depois, antes que nos déssemos conta, Abœ
Mi¿†af apareceu e todos nos pusemos de pé para cumprimentá-lo. Ele me disse:
“Eu lhe faço uma recomendação; guarde-a”, e me entregou turbante, lança e
incenso.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 261ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
Abœ Mi¿†af me estendeu turbante, lança e incenso e me disse: “Quando você
chegar ao fim da província de Al¬arås, pegue o turbante e a lança, pois eles o
orientarão”. Em seguida, entregou-me o anel que tinha no dedo, fez-me levantar,
ficando eu de pé junto com ele, e caminhamos até a orla marítima, onde havia
um barco simpático com um homem negro, para o qual Abœ Mi¿†af gritou
assim que o viu: “Ó ¢Aq∑m Bin Sal∑m, leve este seu amo e conduza-o para
baixo da frondosa árvore[132] sobre cujo estado lhe falei; ordene a ele que
durma ali e proteja-o durante a noite, até que chegue o dono da árvore, a quem
você o entregará”. Então nos despedimos, o dono do navio me carregou,
arrumou as velas e zarpamos com bons ventos naquele dia, até que se passou um
quarto da noite, quando então nos aproximamos da costa, e eis que nos vimos
diante de uma árvore gigantesca sob cuja sombra poderiam se abrigar mil
cavaleiros, e ao seu lado uma fonte de água corrente. ¢Aq∑m me ordenou que
desembarcasse, e eu lhe obedeci; ele também desembarcou e ficou conversando
comigo por algum tempo, até que, de súbito, aves negras se aproximaram da
árvore e nela pousaram. De repente, surgiu um pássaro gigante carregando uma
jovem, que ele se pôs a estreitar ao peito após pousar na árvore. Espantei-me
com aquilo, e eis que o pássaro falou aos gritos: “Ó ¢Aq∑m Bin Sal∑m! Como
está você? Por que esse humano está neste recôndito desolado?”. ¢Aq∑m
respondeu: “O senhor Abœ Mi¿†af enviou-o comigo e me ordenou que cuidasse
dele até entregá-lo ao dono desta árvore”. Ao ouvir tais palavras, o pássaro
desceu da árvore, balançou-se, e eis que se transformou em um belo jovem que
se aproximou de mim, cumprimentou-me e disse: “Boas-vindas ao hóspede!
Qual é o seu nome?”. Respondi: “Øåcid Bin Muhalhil Al¬imyar∑”, e prossegui:
“Meu senhor, o que é essa mulher que está com você?”. Ele respondeu: “Ela é
humana”. Perguntei: “Qual é a história dela?”. Ele respondeu: “Meu irmão, faz
quatrocentos anos que vigio esta ilha de Azzahra, e nunca me passou pela cabeça
algo semelhante à minha história com essa moça”.[133]¢Aq∑m disse: “Conte-
me a história dela”. Ele disse:
O pássaro-gênio e a bela
Certo dia, circulava eu pela região de Assalåhib, que vem depois da região de
Al¬ijåz, e súbito passa por mim essa jovem; então, foram tais meu assombro
com sua beleza e minha admiração por sua formosura, que estive a ponto de
morrer de amor por ela: retirei-me com o coração em chamas e, quando foi o dia
seguinte, dirigi-me ao local onde a vira e, encontrando-a, assumi a forma de um
ser humano.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 262ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
[O grande pássaro disse:]
Assumi a forma de ser humano e me ofereci a ela, que me rejeitou; insisti e
ela perguntou: “O que você quer de mim?”. Respondi: “Você me priva do prazer
da vida e do conforto. Temo morrer de amor por você, ó senhora das graciosas”,
ficando estonteado, diante dela, a contemplar-lhe a beleza de cima a baixo. E
recitei:

“Que a casa nos deixe e se afaste,
que a visita fique difícil e custosa:
jamais eu abandonarei aquele afeto!
Tanta pureza não merece degradação”.

Ao ouvir as minhas palavras, ela riu como que admirada de meus versos e disse:
“Você está apaixonado, mas não parece, pois seu corpo está bem forte! Por Deus
que o apaixonado somente será apaixonado quando se desmanchar de paixão e
amor. Mas o que o levou a desejar o meu amor e a supor que eu lhe obedecerei e
morarei com você em regiões inóspitas, abandonando terras prósperas e praças-
fortes e indo deambular e me arriscar?”. Intrigado com suas palavras, perguntei:
“Como você percebeu que sou um gênio?”; espantado com a força de sua
inteligência, transformei-me imediatamente em vento, fazendo tenção de entrar
em seu corpo, mas ela se protegeu de mim por intermédio de um amuleto
pendurado em seu braço. Não consegui prejudicá-la nem beneficiá-la.
Pensamentos perplexos me aturdiram e foi forte meu estupor. Ela se riu daquilo e
disse: “Mas que assombroso! Você tenta me prejudicar e alega estar apaixonado
por mim e me amar! Absolutamente não me conquistará! Quem é você? Qual o
seu nome?”. Respondi: “Sou Råqib, da ilha de Azzahra, de cuja vigilância sou o
encarregado”. Ela disse: “Isso a minha mãe já havia me contado”, e saiu de
minhas vistas. Na manhãzinha do dia seguinte, reuni a minha tribo e o meu
povo, assumimos a forma humana e fomos até ela, encontrando-a sentada à porta
da tenda. Cumprimentei-a e pedi-lhe para ser apresentado à sua mãe. Ela me
reconheceu e disse: “Já voltou, seu desgraçado? Você se recusa a ir para suas
terras inóspitas?”. Em seguida, chamou a mãe, que era um demônio humano,
uma das grandes feiticeiras. Ao nos ver, deu-nos boas-vindas, dignificou-nos,
introduziu-nos na tenda e mandou servir uma refeição, da qual comemos; depois,
trouxe perfumes, perfumamo-nos e, antes que nos déssemos conta, já um xeique
adentrara e nos cumprimentara; respondemos ao cumprimento, e a mãe,
piscando para mim, disse: “Este é o pai dela; peça-a em casamento”. Então
dissemos a ele: “Nós viemos pedir em casamento a mão de sua filha, pela qual
muito ansiamos; por isso viemos atrás de você; portanto, aprecie o apreciador e
intervenha a favor de quem pede”.
Disse o narrador: o xeique me atendeu e casou-me com a filha; mandou trazer
tinteiro e papel e escreveu o contrato de casamento: “Este é o casamento de
Råqib, da ilha Azzahra, com Qåri¢a, filha de Suwayd, a gassânida”.[134]Assim,
consumei o casamento com ela, que é essa que está comigo; tenho-lhe um amor
imenso e não suporto ficar longe dela; levo-a para passear por todo lugar e
semanalmente vou com ela ver os seus pais.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 263ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
O pássaro da ilha Azzahra disse: “Semanalmente, vou com ela ver os seus
pais, para visitá-los. É essa a minha história e narrativa”.
Fiquei assombrado com aquilo. Continuamos conversando até o sol nascer,
quando então o gênio saiu voando com sua esposa. Ato contínuo, depois dele
veio até nós um homem de rosto formoso e cabeça e barba brancas. Estava
montado em um cavalo de raça cinzento e disse: “Boas-vindas ao hóspede!”;
apeou-se, tirou de baixo de si um simpático alforje e disse: “Meu irmão, não me
atrasei ontem senão porque estava resolvendo o seu caso”; sentou-se e
prosseguiu: “O xeique Abœ Mi¿†af, que Deus altíssimo o dignifique,
recomendou-me que zelasse por você, e já aprontei as coisas para a sua viagem;
portanto, levante-se, com a bênção e a ajuda de Deus, e monte nesta égua; não a
chicoteie nem lhe dirija a palavra até que ela lhe fale, e então você deverá
limpar-lhe o suor. Quando sentir sede, peça-lhe água que ela o levará até a água;
quando você atingir, em sua marcha, o local que a égua lhe determinar, ponha
este turbante e, chegando onde há poço, árvore, banco e pássaro, apeie-se,
desaperte-lhe as amarras da sela e demore-se junto dela enquanto pasta; depois,
dê um passo adiante, cumprimente o pássaro e peça-lhe tudo quanto deseja; faça-
o saber que você é enviado de Abœ Mi¿†af, mostre-lhe o anel e ele o servirá,
trazendo-lhe o dono do vale e do poço”. Em seguida, ordenou-me que montasse,
e obedeci, despedindo-me de ¢Aq∑m e do dono da árvore; avancei, e a égua
cortou nuvens e atravessou terras inóspitas até chegar a uma ponte enorme, cuja
altura era de cem braças; ela subiu comigo, e eis que no alto da ponte havia um
ídolo; a égua me disse: “Ó senhor, desça, prosterne-se diante do ídolo e
cumprimente-o”, e então desci e fiz o que ela dissera, tornando em seguida a
cavalgá-la e sendo por ela levado a duas montanhas descomunais que sumiam
nas alturas, e em cujo sopé havia fontes de água corrente, árvores frutíferas e um
grande exército em trajes de guerra; a égua me disse: “Vista o turbante e eles não
irão vê-lo”, e assim agi; a égua passou me carregando e, quando deixamos os
soldados para trás, ordenou-me que me apeasse, e me apeei, comi e bebi.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 264ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
A égua ordenou que me apeasse, e me apeei, comi e bebi; depois, ordenou que
montasse, montei e ela prosseguiu viagem até que chegamos a um bosque verde
que tinha uma fonte de água corrente, e ao seu lado um banco branco e uma
árvore na qual estava pousado um pássaro. Apeei-me, cumprimentei o pássaro,
detive-me longamente ao lado da égua enquanto ela pastava, desapertei-lhe a
sela e sentei-me no banco. O pássaro se chacoalhou e assumiu a forma humana,
cumprimentando-me e dizendo: “Meu senhor, as notícias a seu respeito
chegaram a mim, bem como o que você pretende fazer”; em seguida, sentou-se e
pôs-se a conversar comigo, quando repentinamente surgiu um velho com uma
coroa na cabeça e uma espada desembainhada na mão; estava montado em um
corcel amarelo e se dirigiu a nós, que o cumprimentamos. O pássaro me disse:
“Meu senhor, este é ³alhœb! Levante-se na presença dele!”, e então me levantei,
cumprimentei-o e ele me retribuiu o cumprimento; fez-me sentar no banco,
trinou um apito que fez todo o local estremecer, e súbito surgiu uma velha
montada em um leão; ao vê-lo, cumprimentou-o e se apeou do leão; ³alhœb pôs-
se de pé diante dela e eu o imitei; em seguida, ele informou a velha a meu
respeito, e que eu viera da parte de Abœ Mi¿†af.
Disse o narrador: a velha se voltou para mim, cumprimentou-me e disse:
“Vamos, meu filho, monte atrás de mim neste leão, sem medo, pois a libertação
já se aproxima”. Ao ouvir tais palavras, minha alma e meu coração se
fortaleceram, e montei em sua garupa; despedimo-nos de nossos companheiros e
avancei com a velha por um deserto onde havia um galpão;[135] a velha se
apeou do leão, eu também, e entrou comigo naquele galpão, e eis que ali
estavam duas jovens parecendo luas; a velha – após me acomodar em um leito
forrado com os mais luxuosos lençóis e me trazer uma porção de comida da qual
comi à saciedade – disse-me: “Prepare-se, meu filho, para ir satisfazer a sua
demanda; veja aí como se arrumar, endireite juízo e inteligência e saiba que ela é
a rainha deste lugar; é uma digna senhora, e você, um nobre senhor”. Em
seguida, conduziu-me pela mão e ordenou que eu me banhasse; colocou sobre
mim uma valiosa vestimenta, perfumou-me e levou-me para o interior do galpão,
e, quando cheguei, ouvindo barulho de cascos, alarido de homens e agitação de
cavaleiros, perguntei à velha: “Minha senhora, que bagunça é essa?”. Ela
respondeu: “É o mensageiro da sua amiga”. Enquanto estávamos nisso, de súbito
veio a nós um criado branco que parecia o sol nascente; cumprimentou-nos,
atirou-se sobre mim, cobrindo-me a cabeça de beijos, e me entregou uma coroa
de ouro vermelho cravejada de rubis e gemas, uma túnica de pérolas e uma
espada, ordenando-me que as usasse. Após ter obedecido, trouxeram-me um
corcel no qual montei. Cumprimentei a velha e me despedi dela, que me disse:
“Saiba como agir, meu filho”, e me deixou aos cuidados do criado, que me levou
e saiu. Olhei para o deserto e vi que estava repleto de cavalos, homens e criados;
avançamos então até vislumbrarmos uma enorme cidade com muralhas de cobre
que se alçavam aos céus, e, quando nos aproximamos, eis que nos vimos diante
de um imenso rio que a circundava, e sobre o qual havia sete pontes;
atravessamos todas elas e adentramos pelo portão da fortaleza, topando com
homens de pé em duas fileiras e equipados com trajes de guerra; passamos por
eles e demos na porta do palácio, e eis que era um grande palácio fortificado,
construído de mármore branco com colunas de mármore verde. Continuei
marchando, passei por sete vestíbulos e enfim chegamos ao palácio, em cujo
centro havia uma grande piscina, e sobre a piscina uma tenda com quatro
colunas verdes; no ponto mais alto daquele local, um pavilhão com um leito no
qual havia várias espécies de guarnição; era de aloés e estava cravejado com
distintas qualidades de pedras preciosas; à sua direita e à sua esquerda havia dois
leões de âmbar. O criado que estava comigo me ordenou que me apeasse do
cavalo e me acomodou naquela cama; assim que me alojei, entraram secretários,
pararam diante de mim e disseram: “Ó amo, o rei Al©ammås[136] está à porta
pedindo a sua permissão para entrar e felicitá-lo por estar bem após ter
enfrentado as dificuldades e fadigas da viagem”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 265ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O primeiro dos acorrentados disse:]
Os secretários me disseram: “Ó amo, Al©ammås está à porta pedindo a sua
permissão para entrar e felicitá-lo por estar bem após ter enfrentado as fadigas da
viagem”. Perguntei: “Eu, dar-lhe permissão em sua casa, em sua terra?”.
Responderam: “Ó senhor, desde o primeiro dia em que saiu de sua terra e país
para vir até nós, este palácio foi construído e preparado para você, com toda
espécie de equipamento, conforme está vendo, e nós faremos o que ordenar;
somos seus serviçais e escravos”.
Disse o narrador: nesse momento, concedi a permissão, e então entrou um
velho de face e fisionomia bonitas, seguido por três rapazes que pareciam
plenilúnios. Ao vê-los, pus-me de pé e os recebi no ponto mais elevado da sala;
eles acorreram até mim, abraçaram-me e sentaram-se, e o velho me perguntou
sobre meu estado. Contei-lhe tudo quanto se passara comigo e ele me disse:
“Levante-se, pois nós lhe preparamos a casa lá do alto, que dá para o rio e o
jardim; vamos até lá”; levantamo-nos, subimos até a casa situada no alto do
lugar, e eis que ela continha uma tenda suspensa no ar e fora mobiliada com o
melhor mobiliário, e dali contemplávamos um aprazível jardim e um rio corrente
em cujas beiras existiam árvores de vária espécie. Acomodamo-nos ali, a mesa
foi servida, comemos, a refeição foi retirada e lavamos as mãos; em seguida
anoiteceu e acendemos lampiões, lanternas e velas; foram trazidos utensílios
para bebida e vinho puro envelhecido; taças foram servidas por copeiros que
pareciam plenilúnios ascendentes; escravas cantoras cantaram e ficamos
acordados até o amanhecer, quando então criados vieram até mim e me levaram
no meio deles até o banho, onde me purifiquei, descansei, vesti meus trajes,
ergui a cabeça para o teto, e eis que minha imagem estava ali gravada, bem como
a dos rapazes que cavaram comigo em busca do tesouro, ambos repartindo entre
si a gazela e a espada enquanto eu ficava com a caixa que continha a imagem da
mulher, a fim de que eu não me esquecesse de nada.[137] Saí do banho e fui
conduzido a uma grande sala, onde me sentei em um leito e logo surgiram dez
escravas carregando a cauda do vestido de uma mulher até que ela parou diante
de mim, beijou-me a cabeça e disse: “Levante-se para ficar com sua amada, meu
senhor, pois já soou a hora de o amado encontrar sua amada”. Levantei-me então
com ela e caminhei até o saguão do palácio, e eis que ali havia uma cúpula de
ouro vermelho em cuja ponta, apitando e girando com a velocidade do vento,
estava uma águia produzida de ouro vermelho cravejado de várias espécies de
pérolas e gemas. Quando me aproximei da cúpula, as criadas e as escravas
acudiram e ergueram-lhe as cortinas, e eis que me vi diante da jovem que eu vira
no espelho, sentada no leito; quando olhei para ela, desabei desmaiado, e ela
acorreu até mim, ergueu-me do chão, estreitou-me ao peito e disse: “Meu senhor,
sou eu a sua amiga! Controle-se, pois você alcançou o seu desejo!”, e começou a
me beijar e a limpar o meu rosto com mãos mais macias e tenras que a seda, até
afastar de mim aquele mal-estar. Em seguida, conduziu-me e acomodou-me no
leito, sentando-se ao meu lado; sorriu, indagou-me sobre as fadigas que enfrentei
e, depois que lhe contei a respeito, ela me perguntou: “Meu senhor, por acaso
sabe qual a distância entre você e seus familiares?”. Respondi: “Não”. Ela disse:
“Saiba que entre você e seus familiares a distância é de cinquenta anos”; então,
subi em cima dela e satisfiz a minha necessidade; durante três anos vivi a melhor
vida com essa mulher, que engravidou, e, quando seus dias se completaram, deu
à luz um menino. Havia um primo seu que muito a amava e a pedia em
casamento ao pai, mas, como ela não o aceitava, um dia ele saiu vagando pelo
mundo, e, ao saber o que sucedera à prima, reuniu soldados e aliados e atacou-a,
derrotando-lhe o exército e capturando-a à força; em seguida, amarrou-me,
colocou correntes em meus pés e me entregou a um demônio-gênio a quem
disse: “Carregue esse aí e atire-o na ilha do gênio” – o gênio que vocês mataram.
Destarte, o demônio me carregou nos ombros e saiu voando comigo pelos céus;
de súbito, avistou o homem que vocês encontraram acorrentado comigo; estava
sentado à beira de uma montanha e o demônio se lançou sobre ele e o agarrou
também; carregou-nos ambos até que, ao passar sobre o centro deste palácio, um
dos moradores gritou-lhe: “Largue-os, ó inimigo de Deus, pois seu amigo já foi
morto!”, e então ele nos soltou dos ombros e fugiu. Permanecemos no mesmo
lugar ontem e hoje, até que Deus nos atendeu por meio de vocês, que nos
salvaram. Esta é a minha história.
Disse Al¿ayla¿ån:
Ficamos, ó rei do tempo, extremamente assombrados com sua história, e
dissemos ao outro homem: “Conte-nos também a sua história, e qual o motivo de
estar sentado na beira da montanha quando o demônio passou por você
carregando esse aí”. Então ele chorou copiosamente e disse: “Sim, eu lhes
contarei a minha história, e o que me desabou sobre a cabeça”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 266ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
O segundo acorrentado
O segundo homem disse:
Informo-lhes que sou do Oriente e tinha uma prima a quem eu amava e pela
qual estava apaixonado; pedi-a então em casamento ao pai, mas, como ele a
recusasse para mim, não deixei de buscar outras pessoas que o convencessem,
até que enfim concordou em me casar com ela, impondo porém um pesado dote
que eu não tinha como satisfazer. Saí, pois, à procura de certo rei de Æimyar,
[138] a quem elogiei em um panegírico poético e contei minha história; ele me
deu então vultosos cabedais e retornei para a minha família em imensa alegria.
Eu adorava ídolos e, no caminho de volta, converti-me ao islã pelas mãos
daquele rei de Æimyar, entrando portanto para a reta religião, à qual me apeguei.
Quando adentrei minha terra, dei ao meu tio tudo quanto ele exigira e realizei
minha festa de casamento. Na noite do casamento e de sua consumação com
minha prima, vieram membros da minha tribo e ordenaram que eu fosse ao
ídolo, que ficava em uma montanha próxima e se chamava Ya©œ¥,[139] e me
prosternasse diante dele antes de possuir a minha prima. Aquele ato era uma
tradição entre eles, e me encaminhei em direção ao ídolo refletindo sobre como
poderia me prosternar diante dele após haver me convertido e adotado o islã;
continuei caminhando em direção à montanha onde estava o ídolo e pensando
nesse ato até chegar à sua beira, sendo então sequestrado por aquele gênio, que
me deu o mesmo destino deste meu companheiro, atirando-nos aqui. Tal é a
minha história, a desgraça que me acometeu justamente na noite do meu
casamento.
O capitão lhe disse: “Você já não corre perigo, pois nós o levaremos para a sua
terra e seu país, se Deus altíssimo quiser”. Quando o dia raiou, saímos do palácio
acompanhados do jovem Za¢∑m e nos pusemos em marcha pela ilha; de
repente, topamos com um rapaz negro para quem o jovem Za¢∑m gritou,
dizendo: “Pare, ai de você!”, e então ele estacou, cumprimentando-nos quando
nos aproximamos; Za¢∑m lhe perguntou: “Ó Mis†a¬,[140] onde é a morada em
que o maldito demônio se refugia?”. Ele respondeu: “Nesta montanha”. Za¢∑m
disse: “Vá na frente e mostre-nos a casa dele”, e o rapaz caminhou na nossa
frente até chegarmos, e eis que era um grande palácio do qual Mis†a¬ se
aproximou, abrindo-o para nós e entrando; entramos atrás dele e Za¢∑m se pôs a
esconjurar e a fazer preces com palavras que não compreendemos, enquanto nos
dizia: “Matem os demônios deste lugar”, e nós os íamos matando, até que no
palácio não restou um único. Em seguida, Mis†a¬ desceu por um subterrâneo, e
descemos com ele, caminhando até chegar a uma casa ampla, na qual Mis†a¬
nos contou que vivia um demônio revoltoso aprisionado – “Se vocês
conseguirem salvá-lo, façam-no, mas, se não conseguirem, deixem-no”. Za¢∑m
avançou até a porta e ouviu palavras ditas com voz de trovão: “Por Deus que
nunca fiz mal a ninguém. Serei seu ajudante contra Qamaruzzamån”.[141] Za
¢∑m lhe disse: “Se suas palavras forem verdadeiras, faça-nos a sua promessa e
firme seu pacto”. Ele respondeu: “Ouço e obedeço, ó filho de meu senhor”, e lhe
fez a promessa e firmou o pacto de que ajudaria. Assim assegurado, Za¢∑m deu
a ordem a Mis†a¬, que abriu a porta e o demônio veio até nós: semelhava uma
palmeira gigante, seu rosto era como de leão, seus dentes, como de elefante, e
possuía quatro patas. Quando saiu, disse: “Não tenham medo de mim, e, quando
me quiserem, chamem ‘Ó ˇålib!’, que eu virei e ficarei com vocês”, e se retirou,
tomando seu rumo. Avançamos até a parte ocidental da ilha e vimos um grande
ídolo que tinha diante de si um velho xeique acorrentado e agrilhoado,
empunhando um incensório com o qual incensava o ídolo. Soltamos as suas
correntes e o levamos conosco. Quando foi a hora de voltar, dissemos-lhe:
“Conte-nos no que você estava metido”, e ele respondeu:
O velho que incensava o ídolo
Saibam que eu lia muito, noite e dia, e certa feita veio até mim um de meus
amigos e me disse: “Meu irmão, encontrei um antigo livro escrito na língua de
Æimyar, no qual se indica a existência de um tesouro – com muito dinheiro,
armas, equipamentos e várias outras coisas quase indescritíveis – em um dos
poços do Vale das Trevas”.[142] Respondi-lhe: “Mostre-me o livro”; meu amigo
mostrou, e eis que o livro continha o que ele dissera. Associei-me a ele no
investimento em equipamentos, montarias e armas para irmos até o tesouro, e
parti ao seu lado, levando comigo homens, montarias, equipamentos, comida e
bebida. Avançamos pelo deserto por três dias e chegamos ao lugar sobre o qual
ele falara. Escavamos durante todo aquele dia e quando anoiteceu dormimos ali,
em uma caverna próxima. Amanheceu e tornamos a escavar, persistindo nessa
atividade por três dias, até chegarmos a uma porta que abrimos após exaustivos
esforços; meu companheiro avançou e entrou por ela, e quando ele estava lá
dentro saiu um ídolo de cobre empunhando uma espada desembainhada com a
qual o golpeou, partindo-o ao meio.
Disse o narrador: retrocedemos, elaboramos uma artimanha e conseguimos
paralisá-lo,[143] pegando a chave ao lado de sua cabeça, com a qual
destrancamos o aposento seguinte, abrindo-o e encontrando-o cheio de caixas
com escudos, armaduras e couraças. Abrimos a quarta porta, entramos e
verificamos que continha estátuas[144] cheias de pérolas, gemas, metais, rubis,
esmeraldas e cornalina.[145] Em seguida, abrimos a quinta porta e verificamos
que o local estava cheio de ídolos de ouro e prata.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 267ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Al¿ayla¿ån disse:]
[O xeique] disse:
Dali subimos para a sexta porta, verificando que o local estava cheio de selas
de ouro cravejado de várias espécies de metal; dali saímos para a sétima porta, e
atrás dela encontramos muito dinheiro empilhado. Olhei para uma grande pilha
em cujo centro havia uma caixa com um livro, que peguei às escondidas de meus
companheiros; saímos e nos pusemos a carregar tudo aquilo, até que enfim nada
deixamos nos aposentos. Carregamos os camelos e asnos com o que recolhemos
e, após dividi-lo, rumamos para nossas casas. Passei a distribuir esmolas aos
pobres e desvalidos durante três anos, quando então ouvi o profeta dizer que fora
enviado [por Deus], conclamando as pessoas à adoração do deus dos céus e
advertindo-as contra a adoração de ídolos; tive anseios de vê-lo e entrar em sua
fé, e então me lembrei do livro que trouxera comigo, e que estava escrito na
língua de Æimyar; mostrei-o a uma pessoa que o leu, e eis que nele estava
escrito: “Em nome de Deus, clemente, misericordioso; em nome de Deus, que
impede os céus de caírem sobre a terra somente com sua permissão, senhor da
outra vida e também desta. Eu sou Qåbœs, filho de Alhumaysa¢, filho de
Qaydår, filho de Lœ’∑, filho de Qa¬†ån, filho de Hœd, profeta de Deus, que a
paz esteja com ele.[146] Escrevi esta folha que contém a imagem do
profeta[147] portador da clara verdade, com provas e argumentos evidentes; é
ele o interventor [junto a Deus]”. Pensei então: “Por Deus que é imperioso que
eu o siga e entre em sua religião”. Preparei-me arranjando provisões e montaria
de viagem e, sem avisar ninguém de minha tribo, saí marchando pelo deserto, do
amanhecer até o anoitecer, quando então vi um velho entrado em anos que me
cumprimentou e a cujo cumprimento respondi; disse-me: “Sossegue e se
tranquilize, filho de meu irmão! Você não é fulano, filho de fulana?”. Respondi:
“Sim”. Ele disse: “Seu pai era meu amigo. Venha comigo para minha casa”.
Perguntei: “E onde é sua casa, tio?”. Respondeu: “Atrás daquela montanha e
daquela colina arenosa”. Avancei com ele por aquela noite enluarada e, em certo
ponto do deserto, ele soltou um grito portentoso e o lugar se encheu de escravos
aos quais ele disse: “Levem este seu senhor Målik Bin ˇœq para a casa da
generosidade”, e os escravos me levaram para o interior de um palácio no
deserto, acomodando-me em um leito ao lado de uma piscina. Tão logo me
recompus, veio ter comigo um rapaz de rosto gracioso que me cumprimentou e
se sentou ao pé de mim, ordenando que se trouxesse comida, e então comemos;
trouxeram-nos bebida, e bebemos. Deixei-me estar ali com eles naquela situação
durante um mês inteiro, comendo, bebendo, divertindo-me e alegrando-me, entre
escravas e criadagem formosa. Ao final do mês, fiquei a sós com uma escrava
que me perguntou: “Você sabe, meu senhor, em que lugar está?”. Respondi:
“Não sei”. Ela disse: “Você está no país dos gênios; agora, com Lúcifer, o
maioral dos demônios. Eu temo por você por causa da perversidade e da perfídia
dele”. Perguntei a ela: “Que tenho eu com ele?”. Ela respondeu: “Ele soube que
você estava indo até Mu¬ammad, e que abandonou seu país para visitá-lo e
ingressar em sua religião por amor a ele. Quando soube disso, foi encontrar
você, convidando-o para cá e dignificando-o. O que ele quer é corromper seu
juízo e sua fé; está lhe preparando um deus para ordenar-lhe que o adore.
Amanhã pela manhã você vai ver algo assombroso da parte dele se acaso
divergir. Por Deus, meu senhor, que eu vim aqui pelo meu temor do que ele
possa fazer com você. Mantenha-se prevenido contra ele”. Eu lhe disse: “Que
Deus bem a recompense!”, e dormi com ela até o amanhecer; quando o dia raiou,
o xeique me chamou, cumprimentou-me e se pôs a conversar comigo, até que o
dia avançou, e eis que chegaram rapazes trazendo um grande ídolo de ouro
cravejado de pedras preciosas e com coroa e diadema na cabeça, depositando-o
diante de nós. O xeique se ergueu e fez uma longa prosternação diante do ídolo,
levantando em seguida a cabeça e ordenando aos criados que se prosternassem, e
eles obedeceram. Depois, disse-me: “Ó Målik, venha e prosterne-se ante este
deus, o mais magnífico! Uma única prosternação, pois este é o dia do grande
feriado”. Respondi: “Não devemos prosternar-nos senão diante do Deus
adorado; por Deus que nunca me prosternarei diante de um ídolo”. Terrivelmente
encolerizado, o xeique ordenou a seus criados que amarrassem pesadas correntes
em minhas pernas, e eles assim agiram; ato contínuo, ordenou-lhes que me
carregassem e depositassem diante do ídolo para incensá-lo; disse-me: “Você
está encarregado de incensar este ídolo até aceitar prosternar-se ante ele”. Foi
assim que os criados me carregaram e depositaram neste local, para que eu
incense o ídolo. Se acaso eu fazia menção de interromper o incensamento, era
atacado por uma enorme víbora, e então, temeroso, retomava a atividade, até que
Deus altíssimo me libertou com a chegada de vocês a este local e me salvou
pelas suas mãos. É essa a minha história, é esse o motivo de minha chegada a
este lugar.
Ao ouvir-lhe tais palavras, o capitão ficou assombrado, bem como todos
quantos estavam presentes. Enquanto estávamos nessa conversa, eis que Za¢∑m
disse: “Meu amo, veio até mim um grupo de seus criados; eles querem residir
nesta ilha, no palácio, e vieram indagar-me a respeito. Eles o cumprimentam e
lhe dizem: ‘Recolham todo o dinheiro e todos os cabedais existentes nesta ilha e
levem-nos com vocês’, pois só o que eles pretendem é residir e estabelecer-se
nesta ilha”. Ao ouvir as palavras de Za¢∑m, o capitão ordenou aos criados e
marinheiros que transportassem cabedais e dinheiro, e eles carregaram tudo
quanto viram para o navio.
Disse o narrador: quando terminamos de transportar o dinheiro e os cabedais,
despedimo-nos de Za¢∑m, zarpamos e nos fizemos ao mar, viajando por sete
meses até chegar à nossa terra, onde descobri que o proprietário da embarcação
falecera e deixara dois filhos pequenos, que me encarreguei de criar, e dos quais
cuidei até agora. Estou muitíssimo bem, e a Deus louvo e agradeço. O tempo
total que durou a minha ausência por causa da viagem foi de vinte anos. Essa é
minha história e o que me sucedeu, ó rei do tempo.
[Disse ³ahrazåd:] Em seguida, Al¿ayla¿ån puxou da manga um saco do qual
retirou sete aljôfares que ninguém vira iguais e os ofertou ao rei dizendo: “Este é
o meu presente para você, ó rei; pertenciam àquela ilha”. O rei recolheu as joias,
colocou-as na coroa e passou a se orgulhar delas perante todos os outros reis. Foi
isso o que chegou até nós da história de Al¿ayla¿ån, inteira e completa. Mas ela
não é mais assombrosa que a história de Munamnam e de ¢Awba¥ån.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 268ª noite


Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån[148]
Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, minha irmã, conte-nos uma de
suas graciosas histórias para com ela atravessarmos esta noite”. Disse ³ahrazåd:
“Com muito gosto e honra”, e continuou:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que existia, em tempos remotos, certo rei
persa que, dada noite, estava sentado conversando com alguns de seus convivas,
quando se começou a discorrer sobre datas, biografias e coisas espantosas do
mar. Entre os presentes havia dois velhos xeiques, um chamado Munamnam e o
outro, ¢Awba¥ån,[149] cada qual com a idade de cento e cinquenta anos.
Questionado pelo rei sobre o motivo de não ter um pelo branco sequer na barba
nem na cabeça, Munamnam respondeu:
Saiba, ó rei, que tenho uma história inusitada, e que consiste no seguinte: no
início da minha mocidade, eu vendia comida e ração. Contudo, ocorreu um
incêndio na loja onde eu vendia, queimando-se tudo quanto nela havia; tornei-
me pobre e fiquei angustiado. Fui então a um homem do mar chamado Alablah,
[150] que era um velho capitão a quem me aluguei como marinheiro, mais um
entre os trezentos de que ele dispunha em seu navio. Zarpamos com bons ventos
e a viagem se tornou a mais prazerosa possível, e um dos passageiros entrou no
banheiro,[151] localizado em uma das alas do navio, ali se acomodando para
descansar e satisfazer-se. Um dos marinheiros usava o local para abluir-se, e,
como tal passageiro ali se demorasse, quis ver o que lhe sucedera: entrou e não o
viu; inquirimos os seus companheiros, os quais nos informaram que ele não
regressara; gritamos pelo homem, procuramos, e não o encontramos. Um de nós
disse: “Talvez ele tenha caído ao mar sem que percebêssemos”, e então dez
marinheiros entraram em um pequeno barco[152] e o procuraram bastante, mas
não o viram. Aflitos por sua causa, choramos, e, enquanto conversávamos sobre
o assunto e prosseguíamos viagem, eis que ele gritou alto e bom som: “Ó capitão
fulano!”. Olhamos, e eis que era o nosso companheiro, a quem nada ocorrera, e
que estava sentado sobre algo semelhante a um leito; perguntamos: “Quais as
suas notícias?”. Ele respondeu: “Não se preocupem comigo, pois estou bem. O
que me sucedeu é prodigioso, mas, como não posso ir até vocês, prossigam a
viagem, com a proteção e a ajuda de Deus”, desaparecendo em seguida de
nossas vistas, e então o deixamos, assombrados com o que lhe sucedera. Após
um mês, eis que ele apareceu acomodado em uma das alas do navio, exalando
um aroma agradável, com o rosto banhado em luz fortíssima e vestindo roupas
limpas e formosas. Ao vê-lo, agradecemos a Deus altíssimo por reencontrá-lo e
ficamos extremamente felizes, indagando-o sobre sua história e notícia. Ele
respondeu:[153]
O homem sequestrado
Eu lhes contarei a minha história sem nada ocultar a respeito. Saibam que,
quando fui ao banheiro,[154] veio até mim alguém enquanto eu urinava.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 269ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique Munamnam] disse:
[O homem disse:]
Enquanto eu urinava[155] no banheiro, veio alguém que me agarrou, tapou
minha boca e me carregou, alçando-se comigo aos céus; nada pude fazer, e
fiquei assim até que ele me fez chegar a um palácio cuja beleza jamais eu vira
igual no decorrer de toda a minha vida, tantas eram suas mobílias e suas diversas
espécies de revestimentos de tecido, objetos e joias: era algo que deixava
atordoado quem via, e perplexo o inteligente. Avistei um velho sentado, de
formosas cãs, e de belas gravidade, circunspecção e solenidade. Quando me
aproximei, ele me fez sentar ao seu lado, dirigiu-me a palavra e me informou que
pertencia aos seres do mar; disse: “Nada tema, pois você não corre perigo”, e me
deixou um pouco, até que meu terror passasse, pois eu conjecturava que perderia
a vida. Depois perguntou: “Ó homem, será você digno do favor que lhe farei?”.
Respondi: “Sim, eu lhe serei grato por todos os dias da minha vida”. Ele disse:
“Quero casá-lo com esta minha filha, e não aceitarei outro marido que não você,
embora ela tenha um primo paterno. Eu lhe garanto – se você me obedecer e
respeitar – providenciar tudo quanto você quiser, deixá-lo visitar sua família e
exercer o seu comércio na hora que desejar e nunca lhe fazer o mal. Nós somos
um bando de gênios muçulmanos – os piedosos dentre eles –, reconhecemos a
unicidade de Deus e a missão profética de Mu¬ammad; vivemos no mar e eu sou
o chefe deste lugar, quer dizer, o rei desta região”.
Disse o narrador: perguntei-lhe: “Como você foi querer isso? Quer casar-me
com a sua filha, preferindo-me ao primo dela, sendo ambos gênios e eu, homem
humano?”. Ele respondeu: “Eu lhe direi a verdade, que é a seguinte: minha filha
foi hoje à praia com suas criadas para espairecer, e então viu você e se
apaixonou. Veio correndo até mim e me pediu para casá-la com você. Ofereci-
lhe homens de nosso povo, mas ela se recusou, e não lhe entrou no coração outro
que não você. Ouça-me, portanto, e não me encolerize”.
Disse o narrador: gostei do que ouvi e respondi positivamente ao seu desejo,
pedido e discurso; nesse momento ele tomou meu juramento e promessa,
casando-me com a filha; realizaram para mim um festival gigante que ninguém
nunca viu mais formoso. Fiquei com eles alguns dias e agora eis-me aqui, meus
irmãos, regressando a vocês.
[Prosseguiu o xeique Munamnam:] Em seguida, deu um salto e [fez menção
de] se atirar ao mar. Quando vimos aquilo, avançamos até ele, agarrando-o e
amarrando-o; imobilizados os seus membros, nós o largamos no meio do navio,
quando repentinamente se ergueu no meio do mar uma voz que ouvíamos, sem
ver quem a emitia: “Mu¬ammad, o que o fez atrasar-se? Que afazeres o retêm no
navio? Se você estiver desejando algo que se interponha entre nós, e querendo
trair a nossa paixão, nunca mais vai retornar aos seus!”.
Disse o narrador: o nome do rapaz era Mu¬ammad. A voz se interrompeu e
deixamos de ouvi-la; conservamo-nos o dia inteiro em viagem com bons ventos,
e, quando amanheceu, o capitão nos disse: “Estamos no mesmo lugar. Não
avançamos nem retrocedemos”. Estávamos nisso, até que, súbito, ouvimos uma
voz alta, cujo emissor não víamos, recitando a seguinte poesia:


“Ó marinheiros, libertem seu prisioneiro,
pois as amarras, minha gente, lhe fazem mal;
deixem-no escolher o que deseja e o agrada,
ou, então, quando quisermos iremos até ele,
primeiramente cobrindo seu barco com ondas:
tenham, portanto, certeza da morte no extravio”.

Disse o narrador: quando ouviram esse discurso, os marujos começaram a dizer
uns aos outros: “Soltem o homem, admoestem-no e aconselhem-no; se ele
aceitar, tudo bem; caso contrário, deixem-no fazer o que escolher, ou então serão
mortos”.
Disse o narrador: soltamos o homem, que se pôs a nos fazer as melhores
recomendações.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 270ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o xeique Munamnam disse:
O homem disse: “Saibam que eu vejo o que ninguém vê;[156] é-me imperioso
estar com os meus, mas dentro em pouco tempo retornarei[157] e lhes
informarei o que me ocorreu”, e, levantando-se ligeiro, atirou-se no mar,
desaparecendo de nossas vistas. O barco avançou, e era eu quem mais temia pela
vida de todos. Navegamos dias e noites até chegar ao país da Índia, e, quando o
navio se aproximou da terra, eis que vimos nosso companheiro ali sentado;
retirara suas mercadorias do navio sem que ninguém visse e ali estava ele a
vendê-las. Quando terminamos de atracar, fomos cumprimentá-lo e fizemos
menção de perguntar-lhe sobre seu estado, mas ele piscou para nós como a dizer:
“Guardem segredo enquanto eu estiver por aqui”.
Disse o narrador: nós então o deixamos até que concluísse a venda de suas
mercadorias, após o que ele se atirou ao mar e desapareceu. Não tornamos a vê-
lo até terminar de vender todas as nossas mercadorias, quando então nos
dirigimos ao ponto onde ele se atirara ao mar e o avistamos ao longe. Zarpamos
com bons ventos, chegamos à nossa cidade e ali informamos aos seus parentes
do que lhe ocorrera, ficando eles bastante contristados.
Disse o narrador: certo dia, estando eu a caminhar, subitamente topei com ele,
que estava com a melhor das aparências. Cumprimentamo-nos, perguntei-lhe
sobre sua condição e ele me informou estar muito bem; convidei-o à minha casa,
ele foi comigo e lá comemos alguma coisa. Em seguida, fi-lo prometer que viria
visitar-me; ele prometeu e foi embora. Passou a me visitar uma vez por mês,
trazendo-me regalos e raridades do mar como presente. Depois, realizei uma
viagem por força da qual me ausentei quarenta anos. Envelheci.
Disse o narrador: estava eu assim viajando pelo mar, com vários mercadores,
quando de repente um monstro marítimo começou a jogar com o navio em que
estávamos, afundando-o e desfazendo-o em tábuas, a uma das quais me agarrei,
as ondas me lançando à direita e à esquerda, até que Deus me colocou sobre algo
para o qual olhei, e eis que se assemelhava a um disco. Quando o vi, começou a
remexer-se nas águas; montei, examinei, e eis que se tratava de uma tartaruga
marítima; pôs-se a avançar comigo às costas, como se fora uma nau, até me
depositar, são e salvo, em uma ilha pela qual vaguei e ouvi uma voz humana, a
chorar e a implorar, em cuja direção segui, e eis que era de um homem que
estava conosco no navio; chamei-o: “Fulano!”, e ele respondeu: “Eis-me aqui!”;
eu disse: “Conte-me o que lhe aconteceu”; ele respondeu: “Saiba, meu irmão,
que quando o barco naufragou eu me pendurei em uma tábua, e foi nessa
situação que de repente um bicho do mar começou a morder a minha perna, mas
Deus me socorreu por intermédio de outro bicho do mar, que atacou o primeiro e
aliviou a minha perna, não parando de fazê-lo até livrá-la inteiramente; depois,
atirou-me nesta ilha, e agora chegou você”. Em seguida, mostrou-me a perna
machucada, e eu lhe trouxe frutas das árvores da ilha, alimentei-o e cuidei dele;
saí então a caminhar pela ilha e vi uma árvore semelhante ao malvaísco, de cujas
frutas comi, mas, quando elas se assentaram em meu estômago, perdi os
sentidos, assim permanecendo por dois dias, e no terceiro meu terror diminuiu;
constatei que meu cabelo todo caíra e eu me tornara careca, e lá fiquei até que
me nasceram cabelos negros, como você está vendo, ó rei. Fiquei conversando
com meu companheiro na orla marítima e súbito surgiu um navio cujos
tripulantes nos indagaram sobre nosso estado, e nós lhes demos as notícias e os
informamos do que nos sucedera; colocaram-nos a bordo e zarpamos com bons
ventos, por dias e noites, até que aportamos nesta cidade. Esta é a minha história
e o motivo dos meus cabelos serem pretos, ó rei.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Espantado com aquilo, o rei se voltou para ¢Awba¥ån
e lhe disse: “Conte-nos o que sabe, ó ¢Awba¥ån!”.
Disse o narrador: ¢Awba¥ån deu um passo adiante e disse:
O xeique Albåz Alašhab, o cambista e sua esposa
Conta-se, ó rei, que certo rei de autoridade e poderio ficou doente em dada
ocasião; quando se curou da doença, distribuiu esmolas, fez donativos e libertou
prisioneiros, e, enquanto ele ordenava a libertação, eis que saiu da cadeia um
velho de altura mediana. O rei olhou para ele e, vendo em suas pernas pesadas
correntes, soltou-as, libertou-o, deu-lhe um dinar e lhe recomendou que não se
envolvesse com nada proibido.
Disse o narrador: o velho assentiu dizendo: “Ouço e obedeço”, e, quando ele
já tinha ido embora, os carcereiros foram até o rei e lhe perguntaram: “Ó rei, que
Deus lhe prolongue a permanência, por acaso sabe quem você acabou de libertar
da cadeia?”. O rei respondeu: “Libertei um velho xeique e lhe dei um dinar.
Vocês o conhecem?”. Disseram: “Ó rei, ele é o maioral dos velhacos,
insuportável, tão amargo que nem se prova! Nós lhe pedimos que o devolva à
prisão!”.
Disse o narrador: então o rei determinou que o velho fosse devolvido à
cadeia.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 271ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique ¢Awba¥ån disse:]
O rei ordenou que o velho fosse devolvido à cadeia e, quando o trouxeram,
perguntou-lhe: “Qual o seu nome, velho?”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, percebendo que fora denunciado por algum
dos carcereiros, o velho respondeu: “Ó rei, meu nome é Albåz Alašhab, e minha
alcunha é Abœ Lahab.[158] Não aceite a meu respeito, ó rei, as palavras dos
detratores, pois eles às vezes falam demais”, e recitou:

“Se eu tiver praticado erros no passado,
meus atos perpetrando coisas condenáveis,
arrependi-me do que cometi, e seu perdão
abrange a quem errou: é o que lhe rogo”.

Disse o narrador: impressionado com tal discurso, o rei lhe disse: “Ó xeique,
ouvi falar a seu respeito e o libertei. Alguém como eu não liberta alguém como
você e depois volta atrás. Entretanto, farei em sua mão uma tatuagem na qual
escreverei meu nome, e então o libertarei. Se você cair de novo em minhas
mãos, deceparei a sua mão”. O xeique respondeu: “Ouço e obedeço”. Após
fazer-lhe a tatuagem, o rei ordenou que fosse libertado.
Disse o narrador: o velho se retirou com o dinar recebido; trocou-o e entrou
no banho, ali cortando o cabelo e se lavando; vestiu a roupa, pagou um dirham
ao dono do banho e três dirhams ao barbeiro;[159] o primeiro rogou por ele, mas
o barbeiro, que era curioso e estúpido, fez o seguinte: ao ver que o xeique se
retirara, vestiu as roupas, fechou sua caixa de ferramentas e pôs-se a segui-lo –
sem que o xeique se desse conta –, pensando: “Não resta dúvida de que esse
Albåz Alašhab estava entre os prisioneiros que acabaram de ser soltos da cadeia
pelo rei. De onde vieram esses dirhams com os quais ele entrou no banho e
pagou a mim e ao rapaz do banho? Não resta dúvida de que ele roubou algo e
nos pagou com o que roubou. Vou atrás dele para ver o que fará, pois quem sabe
ele roube mais alguma coisa e me dê uma parte; caso contrário, irei denunciá-lo
ao delegado”.[160]
Disse o narrador: enquanto o barbeiro o seguia, o xeique parou no mercado,
onde comprou dois pães de trigo, um arrátel[161] de assado e outro de doces,
entrando em seguida em uma mesquita para fazer sua refeição. O barbeiro
pensou: “Fosse ele mercador, não teria feito isso, desperdiçando tanto dinheiro”.
Parou para observá-lo às escondidas, a fim de espreitar o que faria a seguir, cheio
de suposições idiotas sobre ele.
Disse o narrador: após terminar de comer, já saciado, Albåz Alašhab deu o
resto a um homem enfermo e saiu da mesquita, caminhando até certo ponto onde
se pôs a examinar uma faca à venda, tudo isso com o barbeiro atrás dele a
espreitá-lo. O xeique comprou a faca do vendedor, pagou o preço, enfiou a faca
na manga e saiu sem perceber o barbeiro em seu encalço; chegou enfim perto de
um grupo de pessoas que travavam discussão, passou no meio delas e saiu pelo
outro lado, entrando em uma loja de câmbio, onde parou. O barbeiro se voltou e,
não vendo Albåz Alašhab no meio do grupo que discutia, caiu desmaiado.
Quando acordou as pessoas lhe perguntaram sobre seu estado, mas ele nada lhes
informou. Foi isso o que sucedeu ao barbeiro. Quanto ao xeique, ele entrou na
loja de câmbio, cujo proprietário examinava o ouro e a prata que tinha diante de
si.
Disse o narrador: Albåz Alašhab deu um passo adiante e lhe disse: “Troque-
me isto em dinar”, mas o cambista lhe respondeu: “Por hoje já fechei a loja e não
trocarei mais nada”.
Disse o narrador: encolerizado, Albåz Alašhab se afastou do cambista e se
pôs a observá-lo e a espreitá-lo, enquanto ele guardava o ouro e a prata do lugar
em sacos, gritando em seguida por um carregador a quem disse: “Ponha estes
sacos em uma caixa e carregue até a minha casa!”. Trancou a loja e foi para casa
acompanhado do carregador; Albåz Alašhab foi atrás sem que o cambista
percebesse. Após descarregar os sacos da caixa levada sobre a sua cabeça e
receber o pagamento do cambista, o carregador se retirou. O cambista bateu na
porta de casa e saiu uma criada a quem ele fez carregar aquele dinheiro.
Enquanto ambos entravam, Albåz Alašhab aproveitou a oportunidade e entrou,
escondendo-se em um canto escuro do corredor. O cambista tirou as roupas e
entrou no banheiro, e então Albåz Alašhab entrou no lugar, encontrando à sua
direita uma tenda na qual havia uma cama com lençóis de seda estendidos. A
criada estava no banheiro com o patrão, servindo-o até que ele terminasse. O
xeique entrou debaixo da cama, encontrando atrás dela uma grande porta com
duas maçanetas. Ao sair do banheiro, o cambista foi até uma elegante sala
contígua àquele lugar; estava com a esposa, que parecia o sol luminoso;
estendeu-lhe a mesa e ambos comeram até se fartar, lavaram as mãos e foram
servidas as bebidas, junto com os utensílios adequados; a criada acendeu velas
ao redor do lugar; a esposa gritou-lhe e ela trouxe um alaúde desregulado,
afinou-o e, levando-o ao colo, recitou o seguinte:

“As taças parecem pérolas espalhadas
quando seu sabor se torna cânfora;
contemplei o carregador da pura taça:
parecia o crescente com lampião luminoso.
Percebam, continua a dar ao meu coração
e aos meus olhos frescor e felicidade;
a alma sempre quer recolher-lhe as tranças,
e suas frontes são o paraíso e a seda;
de sua saliva me fez beber o néctar celeste
e taças contendo bebidas puríssimas
em garrafas de prata nas quais boiam
pérolas a que se dá altíssimo valor;
antes de servir e rogar o bem, eu nada
tinha, e ninguém de mim se lembrava”.

Disse o narrador: o cambista não parou de beber e de dar de beber à esposa até
que ambos se fartaram e ela perguntou: “Você sabe o que aconteceu hoje?”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 272ª noite
Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique ¢Awba¥ån disse:]
A esposa do cambista perguntou ao marido: “Você sabe o que aconteceu
hoje?”. Ele respondeu: “O quê?”. Ela disse: “Hoje eu vi um prodígio”. Ele
perguntou: “O que você viu?”. Ela respondeu: “Vi as pessoas reunidas, no meio
das quais estava um homem que apontava para outros dois ali presentes
enquanto eles o amarravam; prenderam-lhe fortemente os polegares atrás das
costas com cânhamo, e então suas mãos foram envolvidas em um pano de lã e
ele as retirou soltas”. O cambista disse: “Devagar... Isso lá é prodigioso? Eu
também posso fazer”. Então a mulher saiu e retornou trazendo cânhamo
mergulhado em vinagre; colocou-lhe as mãos nas costas e lhe amarrou os
polegares com tamanha força que suas mãos parecia que se romperiam, pois o
cânhamo lhe chegou até os ossos; ele dizia: “Você está me matando!”, e ela
respondeu: “Solte as mãos!”, mas, como não conseguisse, ele respondeu: “Por
Deus, solte as minhas mãos!”. Percebendo que ele não conseguiria soltá-las, ela
lhe deu um chute no peito que o fez cair de costas, desmaiado; deixou-o assim
desmaiado e foi até o armário, abrindo-o e dizendo: “Saia, meu querido, querido
do meu coração!”.
Disse o narrador: saiu então do armário um escravo negro de pernas fendidas
e com os lábios semelhando dois fígados; ela se agarrou a ele, abraçou-o, pôs-se
a beijá-lo e disse: “Faça o que quiser com esse cachorro! Mate-o e livre-nos
dele!”. O escravo riu de suas palavras e, tomando nas mãos uma espada,
perguntou-lhe: “Mato?”. Ela respondeu: “Mate-o e vamos jogá-lo no rio Tigre”.
Disse o narrador: o escravo avançou até o cambista, ajoelhou-se em seu peito
e se preparou para matá-lo. Tendo visto o escravo e toda a traição que a mulher
do cambista cometera, de cabo a rabo, Albåz Alašhab descobriu que se tratava
de seu amante e pensou: “Que coisa insólita! Vim para cá esta noite a fim de
tomar o dinheiro do cambista e matá-lo, mas então me vem esse escravo também
a fim de matá-lo e tomar o seu dinheiro! Eis-me aqui, pois, fazendo esta jura e
promessa a Deus: nunca mais farei mal a ninguém e socorrerei pessoalmente o
cambista contra essa adúltera maldita. Vou ajudá-lo!”. E assim, tomado pela
altivez[162] masculina, pulou sobre o escravo e o golpeou com a faca que
trouxera consigo, cortando-lhe a garganta e fazendo-o tombar morto; foi até o
cambista, desamarrou-o e perguntou-lhe: “Você me reconhece?”. O cambista
respondeu: “Sim”. Albåz Alašhab disse: “Era eu que iria matá-lo nesta noite e
roubar o seu dinheiro. Vi então este escravo e esta adúltera tramando o seu
assassinato e, tomado pela altivez masculina, matei-o e salvei você das mãos
dela”. O cambista perguntou: “Qual foi o motivo de você ter vindo aqui?”; o
xeique lhe contou a história e disse: “Deus fez com que sua vida se salvasse por
minhas mãos”, perguntando em seguida: “Gostaria de me ordenar que eu dê a ela
o mesmo destino do escravo?”. O cambista respondeu: “Não, meu senhor”. O
xeique perguntou: “Talvez você queira torturá-la...”. O cambista respondeu:
“Sim”.
Disse o narrador: ato contínuo, o cambista foi até a mulher, amarrou-a,
colocou-a diante da porta da latrina e se pôs a espairecer e a conversar com
Albåz Alašhab até o amanhecer, quando então foi surrar a esposa com uma vara
de bambu; disse ao xeique: “Ela é minha prima, e esse escravo me pertencia,
mas fugiu há um ano e parei de procurá-lo, sem saber o que ele planejava, às
ocultas, fazer comigo”. Em seguida, escavou um buraco, enterrou o negro,
convocou testemunhas e juiz e disse: “Eu os torno testemunhas de que este
xeique é meu irmão de pai e mãe, e não tenho ninguém para me herdar senão
ele”. Isso feito, o cambista deu-lhe a loja com tudo quanto continha de dinheiro e
entregou-se à devoção, adoração, frequentação de mesquitas e total dedicação a
Deus altíssimo. Mal eram passados três dias e a esposa do cambista morreu,
sendo por ele enterrada. Nesse ínterim, Albåz Alašhab já tomara posse da loja
com tudo quanto continha, e se pusera a trocar e a comprar moeda na qualidade
de proprietário.
Disse o narrador: certo dia, estando ele sentado na loja a comprar e a vender,
com dinares e dirhams diante de si, subitamente passou por ali o barbeiro que o
seguira no dia da briga; reconheceu-o e pensou: “Não presumo senão que ele
tenha matado o cambista dono da loja e lhe tomado o dinheiro. Deixe-me botar-
lhe medo, e quem sabe assim ele não me dá algum dinheiro”. Avançou até ele
contente, cumprimentou-o, o xeique retribuiu o cumprimento, examinou-o,
reconheceu-o e pensou: “Esse homem é pobre, ao passo que eu recebi de Deus
muito dinheiro. Ele serviu-me naquele dia no banho, e talvez hoje esteja
necessitando de algum dinheiro para gastar”; estendeu a mão e lhe entregou dez
dirhams, que o barbeiro lhe atirou na cara dizendo: “Não tem vergonha de me
oferecer dez dirhams?”; Albåz Alašhab lhe perguntou: “E o que você quer?”. O
barbeiro respondeu: “Que você me dê metade do seu dinheiro”. O xeique
perguntou: “E por que isso?”. O barbeiro respondeu: “Porque você matou o dono
desta loja e lhe tomou o dinheiro. Eu presenciei quando você comprou a faca, e
desde aquele dia o procuro. Agora, vendo-o na loja dele, percebi que você o
matou e lhe roubou o dinheiro, e então vim para dividir meio a meio o que você
pegou. Caso se recuse, irei até o delegado e lhe contarei a sua história”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Albåz Alašhab se encolerizou bastante,
avançou até ele e o socou no rosto. O barbeiro ergueu-se e correu rapidamente
até o delegado, entrou, informou-o do que ocorrera de cabo a rabo e disse afinal:
“Você é quem tem poderes sobre isso”.
Disse o narrador: o delegado se voltou para o barbeiro e perguntou: “Onde o
xeique está agora?”. Ele respondeu: “Na loja do cambista”. Então o delegado
enviou-lhe seus homens acompanhados pelo barbeiro, e, quando eles chegaram,
reconheceram-no e disseram: “O barbeiro diz a verdade, pois aquele é o maior
ladrão do Iraque”. Albåz Alašhab ergueu a cabeça, viu os homens do delegado
avançando em sua direção e perguntou: “O que vocês procuram?”.
Responderam: “O delegado mandou buscá-lo agora”. Ele disse: “Com muito
gosto e honra”, ajuntou o dinheiro, colocou em uma caixa, trancou a loja e saiu
com eles.
Disse o narrador: estava Albåz Alašhab nessa situação quando o cambista
chegou para ter notícias dele e de seus negócios e, vendo as pessoas aglomeradas
em torno da loja de câmbio, perguntou-lhes: “Quais são as notícias?”, e então o
informaram do que ocorrera. O cambista se escondeu e foi na frente de todos
para a casa do delegado, com quem tinha amizade. Quando entrou, o delegado o
acomodou ao seu lado e perguntou: “Do que está precisando?”, e ele lhe fez o
relato completo e integral de sua história com Albåz Alašhab e do que ocorrera
entre sua esposa e o negro, bem como que o xeique era seu irmão de pai e mãe e
seu único herdeiro.
Disse o narrador: enquanto estavam conversando, eis que Albåz Alašhab
entrava em meio a vultoso alarido, cercado pelos homens do delegado, que
perguntou ao barbeiro: “Qual é a sua história com este homem?”. O barbeiro
respondeu: “Amo, ele matou fulano, o cambista, e roubou-lhe o dinheiro”. Albåz
Alašhab disse: “Esse que você alega que eu matei está presente aqui na frente”.
Disse o narrador: voltando-se para o barbeiro, o delegado lhe disse: “Maldito!
Está mentindo para os vivos?”,[163] e ordenou que ele fosse surrado, o que
prontamente se levou a cabo, sendo o barbeiro exibido pela cidade com arautos
que anunciavam: “Este é o castigo de quem mente para as pessoas!”.
Disse o narrador: após isso, o delegado voltou-se para Albåz Alašhab e lhe
perguntou: “Como você se salvou? Por que ele o acusou de haver matado o
cambista?”, e o xeique lhe contou o que acontecera de cabo a rabo, tal como
antes o cambista contara ao delegado, que se voltou para o cambista e disse:
“Você ainda vive com a sua esposa?”. O cambista respondeu: “Não, ela morreu”.
O delegado ordenou que fosse servida a refeição e comeram os três; em seguida,
voltando-se para Albåz Alašhab, o delegado lhe disse: “Sua história, Albåz, é
assombrosa”. Albåz respondeu: “A história do cambista com a esposa não é
assombrosa; assombrosa, isto sim, é a história de Sitt Alaqmår, filha de Qåßim
Ala¢mår”.[164] Ao ouvir aquilo, o delegado voltou-se para ele e disse: “Conte o
que você sabe a respeito!”. Albåz respondeu: “Sim, comandante”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 273ª noite[165]


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique ¢Awba¥ån disse:]
Albåz Alašhab disse ao delegado:
O rei Qåßim Ala¢mår e sua filha Sitt Alaqmår
Saiba, ó comandante, que Sitt Alaqmår era filha de Qåßim Ala¢mår, cujo pai era
um rei dos primeiros tempos chamado Ifti¿år Dår,[166] dotado de poderio e
força, e a quem todos os outros reis iam pagar tributo. Ficou em tal situação por
algum tempo, durante o qual foi agraciado com dois filhos: um foi Qåßim Ala
¢mår, pai de Sitt Alaqmår; já o outro foi sequestrado um por gênio no próprio dia
de seu nascimento. O rei Ifti¿år Dår continuou no poder por mais algum tempo,
até que seu filho Qåßim Ala¢mår cresceu e se mostrou um homem muito
enérgico. Quando o rei Ifti¿år Dår faleceu, foi coroado no reino seu filho Qåßim
Ala¢mår, que após algum tempo no poder foi agraciado com a filha Sitt
Alaqmår, dotada de muita formosura e beleza. Seu pai, que reduzira à obediência
todos os outros reis, não fora agraciado com outro filho que não ela, embora
tenha vivido por longo tempo. Tratava com generosidade seus súditos e os
principais do reino, que estavam felizes e contentes com ele. Certo dia, seus
vizires se reuniram e disseram: “Nosso rei é justo com os súditos, mas não
estamos a salvo de que o destino nos faça perdê-lo; portanto, vamos nos reunir
com ele e ordenar-lhe que aumente o número de suas esposas a fim de que,
quiçá, Deus altíssimo o agracie com um filho varão que possa substituí-lo”.
Assim acordados, foram até o rei e o cumprimentaram. Qåßim Ala¢mår lhes
disse: “Eu queria mesmo me reunir com vocês neste dia, pois me ocorreu que já
estou velho e ainda não tenho um filho varão. Quero consultá-los sobre este
assunto”. Responderam: “Por Deus! Foi mesmo por esse assunto que viemos até
você”.
Disse o narrador: o grão-vizir se colocou diante dele e disse: “Ó rei, peça as
moças que quiser e elas lhe serão trazidas”. Então o rei ordenou ao grão-vizir
que os vizires lhe trouxessem todas as suas filhas, e eles assim procederam,
ouvindo e obedecendo: foram imediatamente para casa, arrumaram e adornaram
as filhas e levaram-nas até o rei, acompanhadas de camareiras carregando
luxuosos equipamentos. O rei instalou cada uma em um aposento, chamou os
pais delas, celebrou os contratos de casamento, distribuiu trajes honoríficos e os
dispensou dignificados. Começou a passar uma noite com cada uma, e todas
engravidaram de varões no mesmo ano, com a permissão de Deus altíssimo.
Qåßim Ala¢mår agradeceu a Deus altíssimo por aquilo e criou os filhos até que
completaram vinte anos, quando então a morte os colheu e matou a todos em um
único mês, não restando senão sua filha Sitt Alaqmår. Invadido por grande
tristeza e preocupação, o rei convocou o grão-vizir e os demais vizires, que
vieram ter com ele, deram-lhe pêsames pela morte dos filhos e disseram: “Ó rei,
que Deus mantenha Sitt Alaqmår!”. Contente com aquelas palavras, o rei lhes
agradeceu e dispensou. Então, as mulheres dos notáveis da cidade foram ter com
Sitt Alaqmår, pondo-se a ensinar-lhe decoro, artimanhas e astúcias, e ela
aprendeu de tudo uma parte, até que se aperfeiçoou e alcançou juízo, decoro,
leitura e estratégias. Ao perceber que o pai pretendia lhe entregar o reino, ela foi
até ele e disse: “Meu pai, confie em Deus no que se refere a mim, pois aprendi
leitura, decoro, artimanhas e astúcias, de tudo o suficiente. Pode me entregar
aquilo que desejar, pois obedecerei à sua vontade”. O rei respondeu: “Filhinha,
sempre esperei de você o bem e a concórdia em tudo quanto se lhe pede. Você
sabe que tenho vizires os quais me é imperioso consultar a seu respeito para
saber o que eles me aconselham a fazer”. Ela disse: “Proceda como desejar”, e se
retirou. O rei ordenou que um arauto convocasse a presença de seus vizires,
encarregados, secretários e dignitários, e quando todos apareceram perguntou-
lhes: “Vocês aceitam, minha gente, que minha filha Sitt Alaqmår seja a sua
rainha depois de mim?”.
Disse o narrador: levantou-se então o grão-vizir e respondeu: “Quanto ao que
o rei mencionou sobre essa nobre moça, os vizires dizem: ‘É-nos imperioso
apresentar a ela algumas indagações a fim de verificar se serve para reinar ou
não’”. O rei disse: “Vocês estão corretos”, e ordenou-lhes que se retirassem,
chamando em seguida a filha, a quem relatou o que os vizires haviam dito. Ela
disse: “Fique tranquilo e sossegado, pois eu responderei a tudo que eles me
perguntarem”. Nesse momento, o rei chamou os vizires e lhes informou o que a
filha respondera. O grão-vizir disse: “Temos dez questões que o rei deverá levar
para sua filha e nos transmitir a sua resposta. Nós aguardaremos aqui onde
estamos”. O rei disse ao grão-vizir: “Escreva em um papel a fim de que ela possa
pôr as respostas sob as perguntas”, e então o grão-vizir escreveu: “Ó rainha, que
Deus tenha misericórdia de você! Dentre as pessoas, quais são as mais
sabedoras, as mais experientes, as mais pacientes, as mais corajosas, as mais
eloquentes, as mais arrojadas, as mais diligentes, as mais inteligentes e as mais
generosas?”.[167]
Disse o narrador: quando o papel chegou à rainha Sitt Alaqmår, ela escreveu
a resposta: “Já li o que os senhores vizires escreveram. A mais sabedora das
pessoas é aquela que dá preferência a Deus, interior e exteriormente; a mais
experiente, aquela que engole a contrariedade e corre atrás da oportunidade; a
mais generosa, aquela que interiormente cuida de todas as questões; a mais
paciente, aquela cujo decoro é superior às suas paixões; a mais corajosa, aquela
que reprime a própria grosseria diante das pessoas; a mais eloquente, aquela que
deixa a curiosidade de lado e se limita à concisão; a mais diligente, aquela que
cuida ela própria das coisas, sem ligar para alheias animosidades;[168] a mais
arrojada, aquela que cuida de si mesma e se previne das armadilhas; a mais
inteligente, aquela que aflige suas tentações e se livra da calamidade [provocada]
pela razão”.[169]
Disse o narrador: quando a resposta da filha do rei chegou às mãos dos
vizires e eles a leram, viram escrito no fim do papel: “Retirem-se, ó vizires, para
que eu converse com o rei sobre algo que me acudiu ao coração”. Nesse
momento os vizires depositaram o papel diante do rei e se retiraram, e ele,
compreendendo o que estava escrito em seu final, foi até a filha, que lhe disse:
“Ó rei, eu gostaria de deixá-lo a par de algo que pode ter certeza que ocorrerá.
Estudei geomancia, calculei o seu mapa astral e constatei que não lhe restam
senão três anos[170] de vida, e que será sucedido por um rei de sua estirpe, um
rapaz varão”. Ele perguntou: “Esse rapaz será meu filho?”. Ela respondeu: “Não.
Será filho de outro, embora pertencente à sua estirpe”. Quando o diálogo se
encerrou, Sitt Alaqmår se retirou para seus aposentos.
Disse o narrador: nesse momento, o rei ordenou que astrólogos e sacerdotes
fossem trazidos, e eles vieram e se colocaram diante dele, que lhes ordenou que
se acomodassem e lhe calculassem o mapa astral, e eles constataram que as
coisas se dariam conforme dissera sua filha Sitt Alaqmår. Ao saber que a questão
era verdade, o rei convocou seus encarregados e vizires e lhes disse: “Gostaria
de casar minha filha com o homem que ela aceitar e escolher para si. Divulguem
a notícia entre os presentes, nobres e povo. Ninguém irá desposá-la sem que ela
o veja com seus próprios olhos; caso lhe agrade e eu permita que vocês o vejam,
tê-lo-ei aceitado”.
Disse o narrador: então as pessoas aceleraram as providências, cartas foram
encaminhadas para todos os países e lugares distantes do reino de Qåßim Ala
¢mår, e começaram a afluir reis pretendendo se casar com ela por causa do reino.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 274ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique ¢Awba¥ån disse:]
[Albåz Alašhab disse ao delegado:]
Todos os reis acorreram até ela, provenientes de todos os lugares, não obstante
a longa viagem, na esperança de ter êxito na jornada, cada um deles deixando em
seu reino alguém para substituí-lo até o retorno. Os que iam chegando à terra do
pai de Sitt Alaqmår permaneciam alguns dias bem hospedados, a fim de
descansar das fadigas de viagem e arrumar-se da melhor maneira possível para o
dia determinado pela jovem para a audiência de pedido de sua mão em
casamento. Cada um falava sobre suas intenções com o grão-vizir, especialmente
destacado para esse assunto. Muitas pessoas já a haviam pedido em casamento
quando surgiu, no meio dos pretendentes, um jovem filho de rei que era primo
paterno de Sitt Alaqmår, a qual notou semelhanças entre o jovem e seu pai; os
vizires, assim que o viram, perceberam que a moça se inclinava por ele mais do
que por qualquer outro. Sitt Alaqmår foi até o rei e lhe disse: “Papai, desejo
perguntar-lhe algo. Não esconda nada de mim!”. O pai disse: “Por Deus que
nada esconderei de você!”. Ela perguntou: “Ó rei, você tem irmão?”. Ele
respondeu: “Sim, eu tinha um irmão cuja história é assombrosa”. Ela perguntou:
“Como é isso?”. Ele respondeu: “Antes de mim, meu pai teve um filho que na
mesma hora de seu nascimento foi sequestrado pelos gênios. Dele não se sabe
notícia alguma, nem sequer chegaram a lhe dar um nome”. Sitt Alaqmår disse:
“Vocês não lhe deram nome depois do sequestro?”. Ele respondeu: “Até morrer,
a mãe dele o lastimou com o nome de Almu¿ta†af.[171] Também morreu meu
pai, que era o rei desta cidade, e, após a sua morte, fui eu coroado em seu lugar.
E você é o único parente consanguíneo que me resta”. Ela lhe disse: “Saiba, ó
rei, que o filho de seu irmão encontra-se hospedado em sua casa, e a questão está
se resolvendo da maneira que lhe apetece”. O rei perguntou: “Por acaso meu
irmão tem filho?”. Ela respondeu: “Sim, e ele está aqui”. No mesmo instante o
rei mandou chamar o rapaz, que se apresentou, e lhe perguntou: “Qual é o seu
nome?”. Ele respondeu: “Meu nome é Mubtadir,[172] filho de Alma¿†œf, filho
de Ifti¿år Dår”. Então Qåßim Ala¢mår disse: “É o filho do meu irmão, pelo Deus
mais elevado!”, e perguntou-lhe: “Você conhece a história do seu pai, meu
jovem?”. Ele respondeu: “Sim”.
O homem sequestrado pela gênia
Meu pai me contou que, mal a mãe o deu à luz, os gênios o sequestraram, na
mesma hora – alegava que a filha do rei dos gênios o sequestrara e criara, a ele
se devotando até que cresceu e atingiu força de homem. Ela o levava para
passear por todos os recantos da terra e o vestia com várias espécies de ricas
vestimentas. Certo dia, a gênia o carregou para uma ilha no meio do mar e lhe
perguntou: “Que acha de ser introduzido na terra dos humanos, ficar por lá um
ano e depois retornar a mim?”. Ele respondeu: “Por Deus que não gosto de me
separar de você um só momento!”. Ela disse: “Para mim, é imperioso que você
vá. Trata-se de uma questão determinada por Deus altíssimo, a fim de que a
memória de vocês não se aparte dos títulos de reinado. Depois virei buscá-lo
para mim até que Deus efetive o que pretende com você”. Em seguida, saiu e o
levou até os portões de uma grande cidade, em cujas cercanias ela lhe mostrou
um local onde havia dinheiro e lhe disse: “Quando você desejar algo das coisas
mundanas – ouro, prata, gemas ou roupas –, venha até aqui, onde encontrará o
que desejar. Ademais, irei atendê-lo”; depois, despediu-se e foi embora. Meu pai
entrou na cidade, mas durante dias estranhou os seres humanos, até que enfim a
gênia veio vê-lo e o censurou dizendo: “Até agora você não se acostumou aos
seres humanos! Se você não noivar e casar, nunca mais virei vê-lo”.
Disse o narrador: ao ouvir tais palavras, meu pai percebeu que o caso era
sério. Dirigiu-se a uma casa ampla, alugou-a do dono por uma porção de dinares
e ali se instalou, comprando criados, serviçais e cavalos, e deixando bem clara a
sua situação de bem-estar. Como as pessoas passassem a falar a seu respeito, não
entrava na cidade tecido luxuoso que não lhe levassem, e ele o comprava
pagando várias vezes o valor. Em seguida, pôs-se a adquirir vilas e, passado
pouco tempo, tornou-se mais importante que o próprio rei daquela cidade; pediu-
lhe então a filha em casamento, cumulando-o de dinheiro para que o pedido
fosse atendido. Consumou enfim o matrimônio, permanecendo junto dela até que
se completasse o ano mencionado pela gênia, junto da qual ficava por dias
durante suas constantes escapadas para caçar sozinho, até que ela lhe dissesse:
“Vá ficar com sua esposa, que está grávida, para que ela dê à luz e termine de
amamentar seu filho, pois eu não o abandonarei”. Meu pai ficou com minha mãe
três anos, ao cabo dos quais a filha do rei dos gênios lhe disse: “Peça para viajar;
diga-lhes: ‘Irei ausentar-me por três anos’, e deixe-lhes quanto dinheiro eles
quiserem. Nomeie um procurador para suas vilas e plantações”.
Disse o narrador: meu pai foi até minha mãe e o pai dela, deixando-os a par
de que pretendia viajar e ausentar-se por três anos. Muito triste com aquilo, meu
avô lhe disse: “Não me agrada separar-me de você uma só hora”. Meu pai lhes
disse: “Eu lhes deixei o suficiente até a minha volta”. Percebendo que meu pai
imperiosamente viajaria, meu avô levou o exército até os portões da cidade para
se despedir dele, mas meu pai ordenou-lhe que retornasse junto com todos os
acompanhantes, e ele retornou. Meu pai se dirigiu até o ponto onde se
encontrava com a gênia, sentou-se por alguns momentos e ela apareceu,
ordenando-lhe que largasse cavalo, espada e tudo quanto trazia; ele obedeceu e
ela o conduziu até a sua casa na ilha, e ambos ali ficaram três anos, findos os
quais ela o levou a certo país onde ele comprou trigo e tecidos como presentes e
voltou para a terra de minha mãe, sendo ali recepcionado com toda a pompa por
meu avô; ficou junto de minha mãe um ano e em seguida viajou até a gênia, com
a qual permaneceu dez anos, findos os quais retornou à minha mãe, sendo
recebido por meu avô, que o saudou. Crescido, reconheci e cumprimentei meu
pai, que me estreitou ao peito. Apeguei-me tanto a ele que não suportava por um
só momento a sua distância. Como ele fizesse tenção de ir caçar, eu lhe disse:
“Pai, leve-me com você”. Ele respondeu: “Sim”, e ordenou que os cozinheiros,
garçons, criados, adestradores de falcões, cachorros, aves e panteras saíssem no
dia seguinte pela manhã. Ao amanhecer, saíram meu avô, meu pai – comigo ao
lado – e o exército, e nos pusemos em marcha. Já distantes da cidade, sentimos o
peso do calor excessivo e nos sentamos para almoçar. Eu disse ao meu pai: “Eu
gostaria, papai, de caçar animais sozinho”. Ele respondeu: “Quando terminarmos
de comer e o dia se refrescar, montaremos e sairemos, você, seu avô e eu; vamos
nos dividir, e cada qual irá caçar por si só”. Como meu pai já me instruíra
dizendo: “Quando você me vir perseguindo um animal, vá atrás de mim”, eu
respondi: “Sim”. Comemos, descansamos e comecei a dizer ao meu pai:
“Vamos!”; ele respondeu: “Sim”, e disse ao meu avô: “Não saia daqui até
voltarmos”. Saímos ele e eu, caçamos um pouco, e eis que chegávamos a uma
fonte de água da qual bebiam gazelas e feras. Começamos a persegui-las: fui
atrás de duas gazelas, sendo seguido por meu pai, e nos mantivemos em seu
encalço até que elas nos conduziram a uma gruta na qual entraram. Meu pai
apeou-se, eu fiz o mesmo, e ele sacou uma relha de ferro que espetou no solo,
nela amarrando os nossos cavalos; disse-me: “Siga-me”, eu o segui, e eis que
nos aproximamos de lampiões, velas acesas e um templo[173] subterrâneo
adornado com várias espécies de imagens e teto de ouro cravejado de pérolas e
gemas: vi então algo como jamais vira antes.
Disse o narrador: enquanto eu caminhava atrás de meu pai, eis que surgiu
uma jovem que parecia o sol luminoso; gritou por mim: “Meu senhor
Mubtadir!”, e respondi: “Estou aqui ao seu dispor, minha ama!”. Ela disse:
“Venha até mim”, e eu parei diante dela, que se aproximou, estreitou-me ao
peito, beijou-me e disse: “Muito cuidado, meu filho, para não se casar com
alguém da cidade da sua mãe, ou de qualquer outra! Não se case senão com a
sua prima, Sitt Alaqmår, filha de Qåßim Ala¢mår, filho de Ifti¿år Dår, dono de
ilhas e mares, mesmo que você gaste por ela todo o dinheiro que possui, pois ela
é a senhora de todas as filhas de reis neste tempo, e conquistou uma porção
notável de sabedoria, juízo, decoro, planejamento, artimanha, astúcia e trapaça, e
muita coisa de beleza, formosura, opulência e perfeição”.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.

E quando foi a 275ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o xeique ¢Awba¥ån disse:]
Albåz Alašhab disse ao delegado:
Ó comandante, o jovem filho de Almu¿ta†af disse ao tio:
Após me dizer aquilo, ó rei, a gênia abriu uma porta e entrou [no templo],
entrando eu [e meu pai] atrás, e eis que à nossa direita e à esquerda havia
aposentos com portas de ouro e prata que ela, sem interrupção, abriu uma atrás
da outra, mostrando-nos o que ali havia, e vimos ouro, prata e outros metais
valiosos. Em seguida, ela nos ordenou que regressássemos, e saímos, enquanto
ela ia fechando as portas atrás de nós; não paramos de andar por aquele templo
até retornarmos ao local onde primeiramente estávamos. Meu pai me disse:
“Meu filho, esta é sua senhora e senhora de seu pai. Nunca lhe desobedeça as
ordens, nem conte a ninguém sobre o que viu. Foi ela que me criou até que eu
atingisse força de homem, e me conduziu à cidade onde me casei com a sua
mãe”, e continuou: “Siga o seu caminho, meu filho, pois irei abandoná-lo, e a
todos os seres humanos. Se acaso lhe acudir alguma necessidade ou desejo, é
este o local; venha para esta gruta. Não faça nada sem antes participar ao seu
avô, pai de sua mãe. Quando ele morrer, procure a sua prima, e, por maior que
seja o dote exigido pelo pai dela, pague-lhe mais do que ele quiser. Muito
cuidado, não vá falar a ninguém sobre mim ou sobre esta sua senhora!”; em
seguida, disse: “Leve quanto dinheiro quiser”.
Disse o narrador: eu disse: “Já tenho dinheiro suficiente”, e fui até os dois
cavalos, os quais encontrei no mesmo lugar. Montei no meu, conduzi o de meu
pai com as mãos e me encaminhei a meu avô, a quem informei que meu pai
chegaria depois. Entramos na cidade e após pouco tempo meu avô morreu;
indagaram-me então sobre meu pai e respondi que não sabia por que caminhos
ele andava. Enterrei meu avô, fiz donativos, distribuí esmolas, reformei o que
quis no país e fui visitar meu pai. Quando cheguei, ele e a gênia ficaram
contentes, e fiquei junto deles por um dia; quando amanheceu, ele me ordenou
que viesse até você. Eis-me aqui, portanto, pretendente à mão de sua filha e
desejoso de me casar com ela; qual é o seu parecer, ó rei?
Disse [Albåz Alašhab]: as suas palavras agradaram extremamente ao rei, que
disse: “Seja muito bem-vindo! Minha filha lhe pertence, pois você dentre todos é
quem mais a merece; foi ela quem nos falou a seu respeito, que você é seu
parente e primo”. Dignificou-o, honrou-o, chamou a filha e lhe disse: “Minha
filha, concordei em dar a sua mão em casamento a ele”. Ela respondeu: “Papai,
gostaria de apresentar-lhe algumas questões; se ele as responder, ter-se-á
completado a opulência e a formosura”. E Sitt Alaqmår se dirigiu para seus
aposentos, onde escreveu um papel em que dizia: “Ó adventício, muito bem-
vindo! Dê-nos ciência dos motivos do afeto, do amor, da castidade, do lucro, da
aversão, da fraternidade, do abandono, do ódio e do saber”. Ao ler o papel, o
rapaz mandou trazer tinteiro e escreveu: “Você me trouxe o papel de quem testa,
solícito. O motivo do afeto é o decoro; o do amor, a dádiva; o da castidade, o
desvio do olhar; o do lucro, o esforço; o da aversão, a sabedoria; o da
fraternidade, a afabilidade; o do abandono, a punição; o do ódio, a mentira; o do
saber, a busca”.[174]
Disse o narrador: ao ler aquilo, Sitt Alaqmår ficou feliz, considerou um bom
presságio, chamou o pai, que logo veio, e informou-o de que o rapaz era
adequado a ela. Extremamente feliz, o rei saiu de imediato, ordenou que o
palácio fosse adornado, colocou um trono de ouro vermelho e nele se instalou,
fazendo o sobrinho sentar-se ao seu lado. Chamou comandantes e vizires e lhes
disse: “A todos os presentes: este é o filho de meu irmão, e eu sou seu tio. Ele
veio pedir a mão de minha filha, e eu o casarei com ela. Sejam testemunhas
disso”. Eles responderam: “Nós testemunhamos!”.
Disse o narrador: então parabenizaram-no e saíram dali. O rei foi para os
subúrbios da cidade e deu um enorme banquete, convocando a população a que
se reunisse sem mais tardar, e todos responderam ouvindo e obedecendo;
comeram, beberam e, quando se fartaram, tomaram seus lugares. O rei lhes
disse: “Saibam que este é o filho de meu irmão, e eu os convoquei para que
sejam testemunhas de que estou renunciando ao reino em seu favor. É ele agora
o seu rei, pois estou muito velho. Mantenham-se sob sua palavra e parecer”. Em
seguida, entregou-lhe a filha, realizaram-se banquetes, o matrimônio se
consumou, e o rapaz se tornou rei da cidade, obtendo a obediência de todos. Sitt
Alaqmår viveu a vida mais deliciosa e feliz. Esta é a história dela.
Quanto ao delegado, ele ficou muito admirado com a história de Albåz
Alašhab e lhe disse: “Você vai morar aqui comigo noite e dia”; o xeique
respondeu ouvindo e obedecendo, e morou com ele até que lhe sobreveio o
destruidor dos prazeres e dispersador das comunidades.
E nesse momento a aurora alcançou ³ahrazåd, que parou de falar.[175]
O rei Ba¿t Zåd e seus dez vizires[176]

E quando foi a 176ª noite


Disse [³ahrazåd]:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que havia, em tempos antigos e eras
remotas, um rei chamado Ba¿t Zåd, dotado de bom parecer e conhecimentos,
cujo domínio se situava na cidade de S∑stån,[177] na região da Índia, com dez
vizires que lhe cuidavam dos assuntos do reino. Certo dia, ele saiu para caçar e
viu, montado em uma égua, um lacaio puxando pelas rédeas uma camela sobre a
qual havia uma liteira coberta de brocado tecido a ouro. O rei, que se afastara de
seus soldados, perguntou ao lacaio: “De quem é essa liteira, e quem vai nela?”.
O lacaio respondeu: “Esta liteira pertence a Isfihsalår,[178] um rei mais
poderoso que Ba¿t Zåd” – o lacaio ignorava com quem estava a falar. Ba¿t Zåd
perguntou: “Quem vai na liteira?”, e ele respondeu: “A filha do rei”. Enquanto
dialogavam, eis que a jovem ergueu uma borda da cortina para ver quem falava
com o lacaio, caindo então sobre ela as vistas do rei, que se viu diante de uma
beleza sem par, a qual lhe arrebatou o coração inteiro, dominando-lhe razão e
inteligência. Disse ao lacaio: “Entregue-me as rédeas dessa camela com quem
nela está. Sou eu o rei Ba¿t Zåd. Não leve embora esta jovem, pois o pai dela
não encontrará genro melhor que eu; vou enviar-lhe uma carta e dar-lhe como
dote uma grande província”. O lacaio disse: “Esta jovem, portanto, pertence-lhe
e está sob seu arbítrio; porém, o correto é que por ora você me deixe levá-la ao
pai dela para depois pedi-la em casamento. Não convém que a despose desta
maneira, pois isso consistiria em uma ofensa ao pai, sem cuja autorização
desposá-la será deveras condenável”. O rei disse: “Não aguento esperar que você
vá ao pai dela e depois volte. Ademais, não será nenhuma vergonha para ele que
eu me torne seu genro”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 177ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o lacaio disse: “Ó rei, tudo quanto se
faz com pressa não perdura, e tudo quanto pode ser feito conforme os bons
costumes não deve ser feito com torpeza. Se as coisas estão sob seu controle, a
pressa não produz nenhum benefício. E sei que o pai dela ficará aborrecido caso
você a despose à força, e talvez esse erro acabe tendo algum efeito sobre o seu
reino”. O rei disse: “Ai de você! O pai dela é meu vassalo, e pouco me importa
que ele se revolte ou aceite”. E, chamando em voz alta um de seus soldados,
disse-lhe: “Tome as rédeas dessa camela!”; gritou com o lacaio, que fugiu em
disparada, e levou consigo a jovem, cujo nome era Mahraja,[179] casando-se
com ela e possuindo-a assim que chegou ao reino.
Quanto ao lacaio, ele retornou à sua cidade e informou ao pai da jovem que o
rei Ba¿t Zåd a levara à força, “sem observar os seus direitos nem manter o
respeito por você”. Encolerizado, o pai da jovem reuniu o exército e disse: “O rei
Ba¿t Zåd está surrupiando os nossos filhos, e já não existe nenhum proveito em
servi-lo”. Em seguida, escreveu-lhe uma carta na qual afirmava ser seu criado, e
sua filha, sua criada – “e que Deus altíssimo prolongue os seus dias e a sua
felicidade; minhas congratulações pelo casamento. Eu já era muito zeloso em
servi-lo, protegendo as províncias e afastando os inimigos, mas agora serei ainda
mais zeloso nos serviços e no aconselhamento, dado que me tornei seu parente –
Deus seja louvado! –, e você, meu genro”, e enviou um mensageiro com tal
carta, acompanhado de presentes e regalos para o rei Ba¿t Zåd, o qual, ao
recebê-los, se alegrou bastante, tranquilizando-se e entregando-se aos prazeres
noite e dia. Um de seus vizires foi vê-lo e lhe disse: “Ó rei, saiba que o pai da
jovem é agora seu inimigo, pois ele não se esqueceu do que você lhe fez,
tomando-lhe a filha à força. É inevitável que esse erro afete o seu reino”, mas o
rei não deu atenção a tais palavras, perseverando no que já estava: comida,
bebida e prazeres. O pai da jovem reuniu soldados e cavaleiros, atacando à noite
a terra do rei, que apenas se deu conta quando o alarido começou na cidade, e
perguntou à esposa: “Que fazer?”; ela respondeu: “Você é quem sabe!”. Então,
ele preparou duas éguas corredoras e dois sacos com mil dinares cada um;
ambos cavalgaram e saíram da cidade, fugindo para o deserto de Kirmån,
enquanto Isfihsalår[180] se assenhoreava da cidade.
A esposa do rei Ba¿t Zåd estava grávida, em dias de dar à luz, sendo
surpreendida pelo parto durante a fuga. Foram até uma montanha, em cujo sopé
ele a desapeou ao lado de uma fonte de água, e ali a mulher deu à luz um menino
varão que parecia a lua. Ela trajava uma rica vestimenta de brocado tecida a
ouro, e foi nela que envolveu o bebê, após ter cortado o cordão umbilical.
Passaram a noite naquele local e, quando amanheceu, o rei disse: “Nós estamos
muito ocupados para cuidar dessa criança; não podemos ficar aqui nem
tampouco carregá-la. Vamos deixar o menino aqui e, se Deus houver
determinado que ele viva, irá enviar-lhe alguém que o crie”. Chorando, a mãe
enfiou debaixo da cabeça da criança um saco com mil dinares e disse: “Quem o
encontrar irá criá-lo com este dinheiro”, e o depositou ao lado da fonte,
envolvido na vestimenta de brocado; subiram ambos em suas montarias e
partiram.
Por coincidência,[181] alguns bandoleiros que haviam roubado um cofre
chegaram àquela montanha para repartir o butim; olhando para o seu sopé, viram
ao lado da fonte algo brilhando sob a luz do sol – era o brilho do ouro tecido na
vestimenta em que o bebê fora envolvido. Desceram, viram aquela criança que
parecia a lua, e disseram: “Louvado seja Deus! Quem o jogou aqui?”. O chefe do
bando, cujos filhos não sobreviviam, tomou-o para si e disse: “Eu o farei meu
filho”, e enviou um de seus cavaleiros para um acampamento de beduínos nas
redondezas da montanha, e ele retornou trazendo uma tigela de leite, da qual o
chefe fez a criança beber até chegar à sua terra, onde lhe arranjou uma nutriz
para amamentá-lo e cuidar dele.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 178ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o chefe dos ladrões arranjou uma
nutriz que cuidou do bebê até que ele cresceu e se desenvolveu.
Quanto ao rei e sua esposa, ambos continuaram em fuga até que se refugiaram
junto a um rei persa que, após dignificar e engrandecer Ba¿t Zåd, indagou do
motivo de sua vinda, sendo logo informado do que o pai da jovem esposa fizera.
Então, o rei persa enviou, junto com Ba¿t Zåd, soldados e régulos com o apoio
dos quais ele atacou o reino durante a noite, matou o pai da jovem e se reinstalou
no trono. Assim que dominou a situação em seu reino, enviou um emissário à
montanha para procurar seu filho, mas dele não se encontrou rastro nem notícia.
Quando completou quinze anos de idade, o filho do rei passou a sair para
assaltar com o bando do chefe dos ladrões.
Por coincidência, [certo dia, quando assaltavam][182] uma caravana
proveniente de S∑stån, os ladrões foram tenazmente enfrentados por alguns
homens corajosos que nela se encontravam. Daquela feita, o chefe não estava
presente, e os corajosos mataram vários ladrões, enquanto os restantes batiam
em retirada. O rapaz foi capturado e, vendo que era formoso e de bom porte,
[perguntaram-lhe: “Quem é o seu pai? Como você veio parar no meio destes
ladrões?”. Ele respondeu: “Sou filho do maioral dos ladrões”].[183]
E, por algo que Deus queria, a caravana entrou na cidade do rei Ba¿t Zåd, ao
qual os membros da caravana se dirigiram e informaram o que lhes sucedera
com os bandoleiros; o rei lhes ordenou que lhe encaminhassem o rapaz e,
quando seus olhos pousaram sobre ele, o sangue se enterneceu com o sangue, e
Deus – tal é a divina sapiência – lançou o amor por ele no coração do rei, que
perguntou ao chefe da caravana: “Quem será este rapaz?”. O homem respondeu:
“Ó rei do tempo, ele é filho do chefe dos ladrões”. O rei disse: “Eu quero esse
rapaz”, e eles lho deram. Ba¿t Zåd ordenou a seus criados que o conduzissem ao
banho e o vestissem com um valioso traje honorífico, e eles obedeceram,
reconduzindo em seguida o rapaz à presença do rei, que o dignificou, aproximou
do trono e o elegeu para seu serviço pessoal. O rapaz o serviu por algum tempo,
durante o qual o rei lhe observou o decoro, o juízo, a honestidade e a
competência e, admirado, passou a atribuir-lhe um valor consideravelmente
maior, deixando todos os seus tesouros nas mãos dele e ordenando que dali não
saísse um único centavo sem a sua autorização, consulta e sinete. As mãos dos
vizires ficaram então impossibilitadas de avançar no dinheiro do rei. As coisas
permaneceram nesse estado por um bom tempo, durante o qual o rei não viu do
rapaz senão retidão, perfeição e seriedade; antes dele, o tesouro real estava nas
mãos dos vizires, que com ele agiam conforme lhes aprazia; quando saiu de suas
mãos, transferindo-se para as do rapaz – cuja palavra se tornou aceita pelo rei,
que passou a valorizá-lo imensamente e a preferi-lo a todos os demais –, eles o
invejaram e começaram a elaborar tramoias para destruí-lo, mas fracassaram, ao
passo que o rapaz alcançava boa sorte junto às criadas e as concubinas do rei.
Contudo – em razão de algo que Deus queria para executar a decisão que tomara
a respeito de suas criaturas –, coincidiu que, certa noite, o rapaz se embriagou e
começou a perambular pelo palácio real, sendo atirado, por desígnio e decreto
divinos, em um quarto onde o rei costumava dormir com a esposa, que era a mãe
do rapaz. Ao chegar à porta desse quarto, a embriaguez o levou a entrar. Era fim
de tarde. Ele entrou e, encontrando uma cama de mármore folheado com ouro
vermelho, guarnecida de um valioso colchão, deitou-se ali; vencido pela
embriaguez e com a cabeça pesada, dormiu. Aquele quarto tinha sido arrumado
por uma criada que nele colocara toda espécie de fruta, bebida e murta, acendera
velas de âmbar, encostara a porta e partira. O rapaz chegou após a sua partida e
dormiu ali, conforme dissemos.
[Nesse ínterim], o rei se ergueu do trono, pegou pela mão a esposa, mãe do
rapaz, e foi para o quarto, no qual, ao entrar, deparou com o próprio ali
dormindo. Perguntou então à esposa, encolerizado: “Que faz ele aqui?”. Ela
respondeu: “Não sei!”. Ele disse: “Não acredito que ele tenha ousado entrar aqui
senão com você!”, e aplicou um pontapé no rapaz, que acordou, colocando-se
em pé e beijando o chão ao ver o rei, o qual lhe disse: “Seu filho-da-puta, criado
na indecência! O que o trouxe ao espaço mais íntimo[184] de minha casa?”, e
determinou que a esposa fosse aprisionada em um lugar e o rapaz em outro;
mandou convocar os dez vizires, aos quais disse: “Não estão vendo o que fez
este moleque ladrão? Entrou no meu quarto e dormiu na minha cama! Temo que
ele tenha alguma coisa com a minha mulher. Como vocês veem essa questão?”.
Um dos vizires respondeu: “Deus prolongue a sua permanência, ó rei do tempo!
Que mérito você viu naquele rapaz para o ter escolhido? Não é ele filho de
ladrão, de baixa origem? Dele não provirá bem nenhum, e somente se verão más
ações. Quem cria cobras delas não recebe senão picadas. Quanto à mulher, não
creio que tenha culpa, pois dela até agora não se manifestou senão o bem, a
retidão e a honestidade. Se acaso o rei permitir que eu vá ter com ela a fim de
indagá-la sobre o assunto todo, será mais conveniente”; o rei permitiu, o vizir foi
até a mulher e disse: “Você praticou uma grande vergonha! Conte-me a verdade
e diga-me como as coisas de fato ocorreram”. Ela se calou e depois disse: “Em
nome do criador da criação, eu nunca vira aquele jovem antes desta noite! Não
sei como ele chegou ao quarto”. O vizir percebeu que ela não tinha culpa.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 179ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir pensou: “Agora temos a
possibilidade de matar o rapaz”, e, voltando-se para a esposa do rei, disse: “Se
quiser escapar da aniquilação e salvar a sua honra, fale conforme as minhas
instruções e eu a justificarei perante o rei com bastante clareza, livrando-a da
morte”. Ela perguntou: “E o que é?”. Ele respondeu: “Quando o rei indagar
sobre o motivo da ida do rapaz ao quarto, diga-lhe: ‘Ó rei do tempo, este rapaz
me viu certo dia, apaixonou-se por mim e enviou-me, por meio de uma velha,
recados dizendo: ‘Eu lhe darei do tesouro real mil peças de ouro, cada qual no
valor de mil dinares, para me reunir com você por uma hora’. Então eu insultei e
escorracei a velha, que voltou até ele e o informou do que eu lhe fizera; ele
tornou a me enviar um recado dizendo: ‘Se você não concordar comigo no que
desejo, irei embriagar-me, entrar no quarto do rei e dormir em sua cama; desse
modo, ele me matará e você chafurdará no escândalo e na vergonha aos olhos do
rei e de todos’. É isso que você deve dizer ao rei; irei agora mesmo até ele
informá-lo de que você me disse estas palavras”. A esposa do rei acedeu: “É isso
que direi a ele”. Então, o vizir foi ao rei e disse: “Merece punição o ingrato que
nega o bom tratamento desfrutado e a generosidade recebida. As sementes de
coloquinto nunca são doces. É certo que a mulher é inocente, sem culpa
nenhuma nisso”, e lhe fez o relato segundo combinara com a mulher. Ao ouvir
aquilo, o rei ficou sumamente encolerizado, ordenou que o rapaz fosse
conduzido à sua presença e lhe disse: “Seu filho-da-puta, dei-lhe poderes sobre o
meu tesouro e prevalência sobre os meus vizires! Por que me traiu com minha
mulher, invadindo meu aposento e sendo desleal com o nosso compromisso?”. O
rapaz disse: “Ó rei, não fiz aquilo por minha vontade ou escolha, e nem sequer
sabia haver chegado ao quarto; aquilo somente me ocorreu por minha falta de
sorte e debilidade do meu ascendente zodiacal, pois quem extravia a boa estrela
acaba por cair em coisas semelhantes a essa: alheias línguas passam a falar
coisas que redundam em seu mal e suas virtudes se transformam em vícios. Fiz
um enorme esforço para não ter defeitos e erros, mas a má sorte se antecipou, e
eis que sobreveio a desgraça, de nada adiantando, agora, o esforço e o cuidado,
tal como sucedeu ao mercador que foi atingido pela má sorte”. O rei perguntou:
“Qual é a sua história? Como seus esforços se voltaram contra ele?”. O rapaz
disse:
O mercador de má sorte
Deus preserve o rei. Conta-se que existiu em tempos remotos um mercador que
tinha, em sua atividade, importância e força, mas, como sua estrela da sorte se
tornasse má sorte, ele disse: “Apesar de possuir muito dinheiro, tenho vagado
errante de país em país. O mais correto é que eu compre e venda estabelecido em
minha terra”, e, com metade de seus cabedais, comprou trigo durante o verão,
pensando: “Quando vier o inverno, obterei grandes lucros”, mas, quando o
inverno chegou, o preço caiu pela metade.[185] Muito abatido, ele conservou o
trigo por mais um ano, e o preço caiu ainda mais que no ano anterior. Um de
seus amigos lhe disse: “Você não tem sorte com trigo. Venda-o por qualquer
preço”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 180ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Um dos amigos do mercador lhe sugeriu que vendesse o trigo por qualquer
preço, “pois você já ganhou muito em anos passados”. O mercador respondeu:
“Mesmo que se passem dez anos, não o venderei senão com lucro”, e tapou com
argila a boca do silo em que guardava o trigo, tamanha era a sua cólera, mas
ocorreu uma inundação gigante que fez o teto do silo desabar sobre o trigo, o
qual apodreceu e se estragou, sendo o mercador obrigado a contratar pessoas
para recolhê-lo e jogá-lo fora. O amigo lhe disse: “Eu não advertira que teria
sido mais feliz vender o trigo? Seja como for, porém, vá a um geomante[186]
que leia a sua sorte na areia”, e ele foi a um geomante, a quem disse: “Leia a
minha sorte na areia”; o homem, após lançar a areia, disse-lhe: “Sua estrela é de
mau augúrio. Não faça nenhum negócio por estes dias”, mas, sem atribuir
importância às suas palavras, o mercador pegou a outra metade de seus cabedais,
alugou um navio, encheu-o de mercadorias e partiu em viagem; atingido, porém,
por uma tempestade, o navio afundou com tudo quanto continha. O mercador se
agarrou a uma tábua e foi empurrado pelas ondas até a praia de uma aldeia, na
qual entrou nu e faminto, mas agradeceu a Deus por estar bem. Avistou um
velho que lhe perguntou como estava, e ele então informou-o de tudo quanto lhe
sucedera, inclusive que o navio naufragara levando junto as suas posses.
Bastante contristado com aquilo, o velho lhe trouxe comida, e ele comeu até se
saciar; em seguida, trouxe-lhe roupas, e ele as vestiu; finalmente, o velho lhe
disse: “Fique comigo e farei de você meu homem de confiança para cuidar de
meus grãos. Como salário, pagarei dez dirhams por dia, além de comida e
bebida”. O mercador lhe respondeu: “Que Deus o recompense!”, aceitando
trabalhar naquela roça. Quando chegou a época da colheita, o mercador calculou
quanto tinha a receber à base de dez dirhams por dia, e, verificando que daria
muito dinheiro, pensou: “Não acredito que o velho se permitirá pagar-me tanto
dinheiro; por isso, levarei destes grãos a quantidade correspondente ao valor que
tenho a receber como salário; se ele honrar o compromisso, devolverei; caso
contrário, terei garantido o que é meu”. Assim, calculou quantos dias trabalhara,
tomou uma quantidade correspondente de grãos e a escondeu em certo local,
entregando em seguida o restante dos grãos ao velho, que lhe pagou o salário
com a mesma quantidade de grãos que ele escondera e lhe disse: “Venda esses
grãos e dê um jeito em sua situação. Se você trabalhar comigo dez anos, todo
ano receberá essa quantidade”. O mercador pensou: “Cometi um ato detestável
contra esse velho, que tão bem me tratou. O correto é que eu lhe devolva os
grãos que peguei”, e, dirigindo-se ao local onde os escondera, não os encontrou,
retornando então perplexo. O velho lhe perguntou: “Que tem você?”, e ele o
informou sobre as sementes que ocultara e que tencionava devolver.
Encolerizado, o velho lhe disse: “Para a falta de sorte não existe estratagema”;
tomou de volta o que lhe pagara, surrou-o e expulsou-o. Bastante entristecido, o
mercador dirigiu-se até o litoral da Índia, onde encontrou dez homens que
mergulhavam à cata de pérolas. Logo que o viram, reconheceram-no e
perguntaram-lhe: “Onde foram parar os seus cabedais? Que lhe aconteceu?”. Ele
respondeu: “A má sorte afugentou os meus cabedais”. Condoídos, eles disseram:
“Vamos mergulhar agora, e desta vez de tudo quanto extrairmos lhe daremos
metade”, e mergulharam, saindo cada um deles com uma ostra que continha duas
pérolas, cada qual do tamanho de uma avelã. Muito contentes, deram-lhe cada
qual uma pérola, deixando o mercador, por seu turno, muito contente e
pensando: “Minha boa fortuna retornou!”. Os mergulhadores lhe disseram:
“Entre na cidade, venda as pérolas e com elas refaça o seu capital”. Ele então
enfiou tudo no bolso e se dirigiu à cidade, sendo seguido no caminho por dois
ladrões, os quais, vendo-lhe as roupas puídas, disseram: “É um vagabundo”. Ao
se aproximar da cidade, o mercador colocou na boca as pérolas, deixando no
bolso somente duas; contudo, tossiu inadvertidamente e uma das pérolas caiu de
sua boca, sendo avistada pelos ladrões, que saltaram sobre ele e lhe apertaram a
garganta até fazê-lo desmaiar, após o que levaram as pérolas e o deixaram ali
crentes de que ele morrera, tamanha a força com que lhe apertaram a garganta.
Um homem passou por ali e lhe aspergiu água ao rosto, fazendo-o recobrar a
consciência.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 181ª noite


Disse ³ahrazåd:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Depois que o mercador recuperou a consciência, o homem o transportou até a
cidade em sua azêmola e lhe indagou de sua história; o mercador respondeu:
“Não adianta nenhum esforço contra a má sorte”. Chegando à cidade, dirigiu-se
ao mercado de joias, sacou as duas pérolas restantes e as ofereceu a um joalheiro
que, ao reparar em suas roupas puídas, em seus sinais de fraqueza e nas duas
pérolas de altíssimo valor, desconfiou de que ele as roubara e lhe perguntou:
“Onde estão as outras oito pérolas?”. O mercador respondeu: “Os ladrões as
levaram!”.[187] O joalheiro então o prendeu e disse: “Estas pérolas pertenciam a
mim; eram dez, e essas duas fazem parte do conjunto. Onde estão as outras oito
pérolas?”. O mercador se pôs a gritar por socorro, mas ninguém lhe deu ouvidos
e arrastaram-no até a cadeia, onde afirmaram que ele era ladrão e roubara dez
pérolas, das quais duas haviam aparecido; agora, exigiam-lhe o restante. O
mercador disse: “Até quando esse malfadado destino e esta falta de sorte?”.
Quem dera essas duas pérolas houvessem sido levadas com as outras! Se assim
fosse, eu não teria vindo parar nesta cadeia”. E na cadeia permaneceu algum
tempo, até que os mergulhadores foram à cidade e um deles acabou preso,
encontrando-se, na cadeia, com o mercador, ao qual perguntou o que fazia ali, e
ele então lhe relatou tudo quando sucedera. Ao sair da cadeia, o mergulhador
avisou aos seus companheiros do ocorrido com o mercador, e eles foram até o
governador da cidade, a quem informaram haver dado dez pérolas ao mercador,
e tudo quanto sucedera entre este e o joalheiro. O governador acreditou neles,
ordenou que o joalheiro fosse surrado, confiscou-lhe os bens e os deu ao
mercador dizendo: “Fique comigo para que eu o beneficie”. Ele então entrou
para o serviço do governador e pensou: “Minha boa fortuna retornou, e se
apagou a má sorte”. Manteve-se em tal serviço por um período durante o qual
conquistou boa posição, a tal ponto que despertou a inveja dos membros da corte
do governador, o qual tinha uma filha cuja residência ficava ao lado da do
mercador; as duas casas eram separadas por uma fina parede na qual o mercador
encostou uma caixa, cuja ponta acabou provocando um pequeno furo que o
mercador se apressou em tapar com argila. Vendo-o tapar o buraco, um dos
criados do governador foi lhe dizer: “O mercador perfurou o muro da parede a
fim de espiar a sua filha”. Furioso, o governador se dirigiu imediatamente à casa
do mercador e, vendo-o tapar o buraco, não duvidou das palavras do criado e
ordenou que lhe arrancassem os olhos. O mercador disse: “E eu que pensava que
a boa fortuna retornara, sem saber que a má sorte perdura! Só lhe resta levar
minha vida embora!”.
[Prosseguiu o rapaz:] “Portanto, ó rei, é isso que ocorre com quem não tem
sorte: todos os seus movimentos, tudo quanto faça de bom se tornará ruim,
resultando inúteis tanto os seus esforços como a sua prevenção. Isso que me
aconteceu deve-se à má sorte e aos fados nefastos”. Mal o rapaz findou a
história, também o dia se findou, e o rei ordenou que ele fosse reconduzido à
cadeia até o amanhecer.
Quando foi o segundo dia, veio o segundo vizir, que se chamava Zœr,[188] e
disse: “Que Deus favoreça o rei! Isso que o rapaz cometeu é uma enormidade,
um escândalo horroroso contra o rei”. Este ficou então furioso, ordenou que o
rapaz fosse trazido à sua presença e, quando ele chegou, disse: “Você perpetrou
uma descomunal transgressão, um grande crime, e por isso vou matá-lo da
maneira mais terrível, a fim de que você constitua para todas as criaturas uma
lição”. Disse o rapaz: “Ó rei, examine o meu caso sem pressa, pois os árabes
dizem: ‘O fruto da pressa é o arrependimento’, e o exame acurado de todos os
assuntos é uma coroa na cabeça dos reis, plenilúnio de excelentes ações e
sustentáculo do reino. Todo aquele que não examina os assuntos com cuidado
nem os estuda se arrependerá tal como se arrependeu o mercador, ao passo que
todo aquele que os examina com vagar se regozijará tal como se regozijou o
filho do mercador”. O rei perguntou: “E como foi a história do mercador e de
seu filho?”. O rapaz disse:
O mercador apressado e seu filho ponderado
Deus lhe dê vida longa! Conta-se que certo mercador...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 182ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Conta-se que certo mercador, que tinha um filho e uma bela esposa, viajou
quando ela estava grávida e lhe disse: “Se Deus quiser, voltarei antes de você dar
à luz”. Despediram-se e ele viajou, vagando de terra em terra até chegar a uma
grande cidade, onde lançou mão de tantas artimanhas que conseguiu entrevistar-
se com o rei, o qual lhe ofereceu boa recepção, e, vendo tratar-se de homem
ajuizado, entendido, de boa figura, doces palavras e espírito agradável, ordenou-
lhe que se estabelecesse consigo. O mercador não pôde desobedecer, mas,
saudoso da mulher e do filho, certo dia beijou o chão diante do rei, desejando-lhe
a manutenção do poder e do fausto, além da pronta eliminação de qualquer
adversidade ou desgraça. O rei lhe perguntou: “Está precisando de algo?”. Ele
respondeu: “Ó rei do tempo, estou com saudades de meu filho e de minha
família. Peço de sua generosidade que me permita ir até eles, buscá-los e
retornar a você”. O rei lhe concedeu a permissão e lhe deu presentes e regalos; o
mercador se despediu, embarcou e partiu em viagem.
Entrementes, a sua mulher dera à luz um menino, o qual já completara dez
anos, e durante essa longa ausência do marido perdera as notícias a seu respeito.
Nas proximidades da cidade onde ela estava havia outra cidade, na qual, por
coincidência, aportou o navio que lhe transportava o marido. Tendo recebido a
notícia de que um navio aportara na cidade vizinha, a mulher pegou os dois
filhos e rumou para lá a fim de indagar dos passageiros alguma notícia sobre o
marido, e ali chegou à hora do crepúsculo, dirigindo-se então para a beira-mar.
No navio, um dos marinheiros disse aos mercadores: “Tomem cuidado esta
noite, pois na cidade existem muitos ladrões”. A chegada da mulher com os dois
meninos à beira-mar se deu à noite, quando o seu marido já dormia com um saco
de cem dinares sob a cabeça. Ela disse aos filhos: “Subam ao navio e indaguem
sobre o seu pai”. Logo que eles subiram, o mercador acordou e, ao ver os dois
meninos, supondo que fossem ladrões, pegou a lança e os atacou aos gritos; o
saco com os dinares que estava sob a sua cabeça caiu no meio dos fardos.
Vencidos pelo medo, os dois meninos foram agarrados por um dos marinheiros,
que os levou ao mercador, e este, dando falta do saco de dinheiro, acreditou que
eles o haviam roubado e os espancou para que confessassem, mas eles não o
fizeram. Encolerizado em razão do saco, jurou que, se não o devolvessem, ele os
jogaria ao mar. Os meninos disseram: “Não temos notícia do saco. Examine bem
o nosso caso e não se apresse!”. O marinheiro disse ao mercador: “Não lhes dê
ouvidos! Foram eles que roubaram o saco de dinheiro e o entregaram a algum
terceiro que os acompanhava em terra. Não vão confessar!”. A cólera do
mercador aumentou tanto que ele pegou dois fardos de linho que havia no navio,
amarrou-os aos meninos e os atirou ao mar, e, enquanto as ondas os arrastavam,
ele ia dormir aflito por causa dos dinares.
Já a esposa do mercador, vendo que os meninos se demoravam, foi até a beira-
mar e perguntou deles aos marinheiros, que responderam: “Não vimos
ninguém”. Ela chorou dizendo: “Nesta noite escura, dois garotos estrangeiros
que não conhecem ninguém! Temo que se tenham afogado no mar!”, e chorou
mais alto e gritou. Um marujo lhe perguntou: “De que país é você?”. Ela
respondeu: “Sou do país tal, mulher de fulano de tal, o mercador. Os dois garotos
são filhos dele, que está ausente faz um bocado de tempo. Ouvimos falar sobre a
chegada deste navio, e viemos buscar notícias a seu respeito”. O mercador, já
desperto, escutou as palavras da mulher e, quando ela terminou de falar, deu um
salto, rasgou as roupas e gritou: “Ai de mim! Atirei meus filhos ao mar com
minhas próprias mãos, sem saber!”. A mulher também gritou, pediu ajuda e fez
tenção de se jogar ao mar, sendo impedida pelo marido. Ambos se sentaram e
choraram juntos. Quando amanheceu, o homem viu o saco de dinheiro entre os
fardos; sua tristeza aumentou e sua lágrima se multiplicou.
[Prosseguiu o rapaz:] “Veja, ó rei, como é ruim a pressa e a falta de exame
dos assuntos. Não se apresse em me matar e talvez a verdade se esclareça”.
[E o rapaz continuou a história:]
Em seguida, o mercador levou a esposa para o navio e ambos saíram em busca
dos filhos. Foi isso que sucedeu ao casal. Quanto aos garotos, o mar, após tê-los
separado, arrastou cada um para um litoral. O mais velho foi lançado na praia de
uma cidade cujo rei cavalgava para ir caçar e pescar; passava pela orla quando
viu aquele fardo sendo empurrado pelas ondas, e sobre ele um garoto semelhante
ao plenilúnio; ordenou então que fosse conduzido até a sua presença. Um grupo
de mergulhadores o trouxe e, assim que o rei deitou-lhe os olhos, Deus lançou o
afeto por ele em seu coração. Disse aos vizires: “Farei dele meu filho”, pois os
filhos desse rei não sobreviviam. Pediu aos vizires que mantivessem aquilo em
segredo, e eles responderam ouvindo e obedecendo. Ordenou que o colocassem
sobre um de seus corcéis e cavalgaram até a cidade, onde o rei determinou que o
vestissem com um traje honorífico, no que foi prontamente obedecido. Depois, o
rei convocou os líderes de seu governo e lhes disse: “Este é o meu filho.
Mantive-o escondido esse tempo todo por medo ao mau-olhado, mas agora estou
mostrando-o”. Os notáveis ficaram contentes, atiraram aljôfares sobre o menino
e lhe deram presentes e joias correspondentes aos filhos de rei. Passado um ano,
o rei faleceu e o rapaz foi entronizado e reconhecido pelos notáveis e pelos
súditos. Quando se estabilizou no reino, recordou-se dos pais e do irmão,
mandando procurá-los por todo lugar, mas deles não obteve notícia.
Quanto ao mercador e sua esposa, ambos vagaram por muitos países, mas dos
meninos não encontraram notícia nem vislumbraram rastro. O mercador entrou
enfim em uma cidade onde deparou com um mergulhador – desses que
buscavam pérolas – oferecendo um menino à venda. Ao vê-lo, o coração do
mercador simpatizou com ele.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 183ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
A simpatia pelo menino invadiu o coração do mercador, em cujo interior se
moveu o afeto da paternidade, e – sem saber que se tratava de seu filho – ele
pensou: “Comprarei esse menino e me consolarei da perda dos meus dois
filhos”. E assim procedeu, levando-o para seu país, onde disse à esposa:
“Comprei um criado que parece o plenilúnio!”. Mal pousou os olhos sobre ele, a
mulher o reconheceu e gritou: “Este é o meu filho caçula! Deus o devolveu para
nós!”. Sumamente felizes, eles distribuíram esmolas em quantidades vultosas e
jejuaram em agradecimento a Deus altíssimo; perguntaram ao menino sobre o
irmão, mas ele respondeu: “Não sei onde está”. O mercador se pôs a viajar de
país em país à procura de notícias, mas nada encontrou. Dez anos se passaram e
o mercador se tornou um ancião. A cidade em que moravam era próxima da
cidade da qual seu filho era rei. Quando o caçula completou vinte anos e
adquiriu maioridade,[189] o pai lhe preparou uma caravana para a cidade cujo
rei era seu irmão e lhe disse: “Busque notícias sobre o seu irmão. Quiçá Deus
nos reúna a ele!”. O rapaz viajou então para a cidade cujo rei era seu irmão,
carregando fardos de brocado, seda e outras mercadorias luxuosas, [ali chegando
à noite].[190] Pela manhã, o chefe da alfândega foi ao rei e o informou daquilo,
dizendo: “Chegou um mercador com tecidos luxuosos e outras mercadorias”, e o
rei ordenou que fosse conduzido à sua presença, ignorando tratar-se de seu
irmão, em virtude do longo tempo em que não o via e também da barba
comprida. Comprou tudo quanto ele vendia, tecidos e demais mercadorias, e o
amor fraterno se moveu em seu coração, que simpatizou com o jovem; disse-lhe:
“Gostaria que você ficasse aqui comigo e não se separasse mais de mim por
nenhum momento, a seu gosto e escolha. Não o deixarei viajar e farei todo o
bem por você”. Não lhe sendo possível recusar, o rapaz ficou com o rei, que não
o deixava dia e noite, exceto nas horas de sono; não conseguia privar-se dele
uma hora sequer. O rapaz escreveu uma carta aos pais dando-lhes notícias de si,
informando que o rei não o deixava viajar e ordenando-lhes, por conseguinte,
que viajassem até ele, fosse como fosse, a fim de que morassem juntos no maior
conforto. Ambos então se aprestaram e viajaram, chegando à presença do filho,
que os recebeu, dignificou e lhes deu trajes honoríficos.
Coincidiu com a chegada deles o ataque de um inimigo ao rei, que reuniu seus
soldados e montou acampamentos nos arredores da cidade, acompanhado do
irmão caçula; acomodaram-se ambos em uma das tendas. Quando anoiteceu, o
rei se embriagou e dormiu. Seu irmão pensou: “O rei já dormiu e se colocou sob
os meus cuidados. Como ele tem muitos inimigos, minha missão é vigiá-lo”, e,
desembainhando a espada, postou-se à sua cabeceira. Passou então por ali um
criado que não gostava do rapaz, por causa das atenções que o rei lhe
dispensava, e, vendo-o à sua cabeceira de espada desembainhada, achou que ele
pretendia matá-lo e gritou pelos demais criados, que agarraram o rapaz e o
surraram até que desmaiou. O rei então lhes fez sinal para que parassem e eles
disseram: “Deixe-nos matá-lo, pois ele pretendia matar você!”. O rei disse:
“Deixem-no até amanhã. Quando ele acordar, examinarei o caso. Se o matar
agora, não será possível ressuscitá-lo. Matá-lo eu posso a qualquer hora”.
Quando amanheceu, trouxe-o à sua presença e ordenou que fosse punido com
torturas de variada espécie; disse-lhe: “Conte a verdade e escapará. Confesse por
qual motivo pretendeu matar-me, tendo eu feito tudo de bom por você!”. Ele
disse: “Ó rei do tempo, Deus sabe que eu não pretendi matá-lo; tudo quanto eu
queria era protegê-lo!”. Os notáveis do governo disseram: “Ele não pretendeu
senão matar você”. Invejosos da proximidade que o rapaz mantinha com o rei, e
da atenção que este lhe dispensava, eles disseram: “Ó rei do tempo, ele é espião
de algum rei. O mais correto é que você o mate”. O rei disse: “A reflexão sobre
qualquer assunto é melhor que a pressa, a qual conduz ao arrependimento”. Em
seguida, ordenou que o rapaz fosse aprisionado e marchou contra o inimigo
rebelde, a quem derrotou e retornou vitorioso. A notícia da prisão do rapaz
chegou aos seus pais, bem como o fato de que o rei pretendia matá-lo. O pai
escreveu ao rei contando a sua história, suplicando, contando a história do rapaz,
e dizendo-lhe que não o matasse: “Mate-me no lugar dele, pois fui eu que o
lancei ao mar quando era pequeno, junto com o irmão, e então Deus me reuniu a
ele e à sua pobre mãe”.
Ao ler a história, o rei mandou chamar o mercador e lhe disse: “Como você
jogou os seus filhos ao mar?”, e o mercador lhe contou tudo do começo ao fim,
mencionando tudo quanto lhe sucedera. Ouvindo aquilo, o rei teve certeza de
que se tratava de seu pai e se lançou sobre ele, abraçou-o, estreitou-o ao peito,
beijou-lhe a mão e disse: “Você é meu pai e aquele é meu irmão! Agora tenho
certeza de que ele não quis senão me proteger”, e ordenou que decepassem a
cabeça do criado que gritara dizendo que o rapaz pretendia matá-lo. Em seguida
disse ao irmão: “Graças a Deus que não me apressei em matar você; caso
contrário, ter-me-ia arrependido quando já não adiantasse mais nada”, e mandou
dar-lhe uma valiosa vestimenta honorífica, fazendo-o sentar-se ao seu lado e lhe
dizendo: “Nada é melhor do que a reflexão sobre todos os assuntos e o exame
das consequências”. Disse ao pai: “Se você tivesse refletido um pouco, não se
teria entristecido e arrependido por todo esse tempo. Se eu não tivesse refletido e
examinado o caso do meu irmão, ter-nos-ia sucedido a ambos aflição e tristeza
tais que nos levariam à morte”. Depois, mandou trazer a mãe e viveram uma
vida muito feliz e prazerosa.
[Prosseguiu o rapaz:] “Que coisa é melhor, ó rei, que a reflexão e o exame
detido dos assuntos?”. O rei disse: “Devolvam-no à prisão a fim de que
examinemos o seu caso”.
Terceiro dia da paciência: no terceiro dia, o terceiro vizir apresentou-se ao rei,
rogou por ele e disse: “Ó rei, esse rapaz nos jogou na boca das pessoas, devendo
por isso ser morto rapidamente, a fim de que as línguas dos súditos parem de
falar sobre nós!”. O rei ordenou que ele fosse trazido, e, quando ele chegou...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 184ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que quando o rapaz chegou, o rei lhe disse:
“Seu baixo de origem, você nos transformou em ditado na boca das pessoas, e
por isso devemos matá-lo rapidamente!”. O rapaz lhe disse: “Tenha paciência, ó
rei, pois ela faz parte da moral dos nobres, e Deus ama os pacientes. Foi por
mérito da paciência que Abœ Øåbir[191] alçou-se do fundo do poço ao trono do
reino”. O rei perguntou: “Quem é Abœ Øåbir? E qual a sua história?”. O rapaz
respondeu:
A paciência de Abœ Øåbir
Conta-se que em certa aldeia vivia um homem chamado Abœ Øåbir, que tinha
ovelhas e vacas, e também uma bela mulher e dois filhos. Um leão começou a
investir contra o rebanho de Abœ Øåbir, dele subtraindo presas diariamente. A
esposa lhe disse: “Vá atrás desse leão e quiçá você o mate”. Respondeu: “Quem
pratica o mal, o mal acaba se virando contra ele”. Certo dia, o rei da cidade saiu
para caçar, encontrou o leão e o matou. Abœ Øåbir disse para a esposa: “Eu não
lhe disse para ter paciência? O mal se volta contra quem o pratica”. Após alguns
dias, uma pessoa foi assassinada na aldeia e acusaram Abœ Øåbir. O rei lhe
confiscou os bens e o rebanho, e o expulsou – juntamente com mulher e os filhos
– da aldeia. A esposa lhe disse: “Envie a sua história para o rei, e quem sabe ele
lhe devolva o rebanho”. Abœ Øåbir respondeu: “Ele fez o mal contra nós e irá
encontrá-lo. Todo aquele que mata será morto. Não se preocupe com o confisco
de meus bens, mas sim com as consequências disso”. E, assim dizendo, partiu
com a família. Quando chegaram ao deserto, foram atacados por dez ladrões que
lhes roubaram todos os dirhams e as roupas que sobraram, e também os filhos. A
mulher lhe disse: “Vá, siga os ladrões e peça os seus filhos! Quem sabe eles os
devolvam!”. Ele respondeu: “Tenha paciência, pois aquele que pratica o mal
encontrará o mal”. Avistaram uma cidade por volta do entardecer e, como ainda
estivessem distantes dela, a mulher disse: “Vamos rápido para entrar na cidade
antes de sermos colhidos pela noite!”. Ele respondeu: “Dormiremos aqui e
entraremos na cidade pela manhã”. Foram para a beira de um rio. Ele disse à
esposa: “Espere aqui até que eu vá para a cidade e traga comida”, e partiu. A
mulher se sentou, mas passou por ela um cavaleiro que a viu, admirou-se de sua
beleza e lhe disse: “Venha comigo”, prometendo-lhe tudo de bom. Ante a sua
recusa, porém, ele desembainhou a espada e, temerosa, ela se levantou, sendo
colocada na garupa, não sem antes escrever na areia, com o dedo: “Ó Abœ
Øåbir, você não cessou de ter paciência até perder os bens, o rebanho, os filhos e
a esposa. Reconquiste agora o que perdeu!”. Abœ Øåbir retornou, não encontrou
a esposa, leu o que ela escrevera e chorou dizendo: “Terei paciência, pois talvez
tenham sido afastadas de mim coisas ainda piores”. Partiu à procura da esposa,
mas dela não encontrou notícia. Entrou em uma cidade cujo rei estava
construindo um palácio, e foi agarrado para trabalhar à força no carregamento de
argila e pedras; trabalhou no meio dos operários por um mês inteiro, recebendo
um pão por dia. Havia, entre os operários, um homem que, após servir por um
ano, caiu das escadas, quebrou o braço, gritou, e Abœ Øåbir lhe disse: “Tenha
paciência, pois ela retira o homem do fundo do poço e o instala no trono do
reino”. O rei, que estava em uma janela próxima, ouviu as palavras de Abœ
Øåbir e se encolerizou: mandou trazê-lo à sua presença e, quando o viu diante de
si, mandou baixá-lo em um poço seco e profundo existente no quintal do palácio.
Passou a jogar-lhe todo dia um pão com as mãos, dizendo-lhe: “Ó Abœ Øåbir,
tenha paciência, pois você vai sair do fundo do poço para o trono do reino!”.
Abœ Øåbir permaneceu no poço por cinco anos.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 185ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, [de que o rapaz disse]:
Abœ Øåbir permaneceu no poço por cinco anos, durante os quais aumentou a
injustiça daquele rei contra os notáveis do governo. Ele tinha um irmão mais
jovem, a quem prendera e matara às escondidas, mas os notáveis, sem saber
disso, supunham que o jovem ainda estava vivo. Quando as injustiças e as
iniquidades do rei aumentaram, os soldados se rebelaram e tentaram matá-lo, e
ele fugiu. Procuraram então seu irmão mais jovem, mas não o encontraram. Um
de seus secretários disse: “Eu via o rei diariamente indo àquele poço, jogando
um pão com as mãos e falando com ele. Não resta dúvida de que o irmão dele
está lá!”. Dirigiram-se ao poço e retiraram-no, ignorando tratar-se de Abœ Øåbir,
pois já fazia dez anos que o rei matara seu irmão caçula; assim, acreditando que
fosse ele, levaram-no ao banho, vestiram-no com a roupa de reis e o instalaram
no trono, dizendo-lhe: “Pretendíamos matar o seu irmão, mas ele fugiu. Você
tem mais direito ao trono que ele”. Então Abœ Øåbir compreendeu que aquilo
era uma benesse de Deus, que desse modo o recompensava por sua paciência:
com um reino. Louvou a Deus, enumerou-lhe os méritos, guardou segredo e teve
boa conduta nas decisões de governo: deu aos oprimidos seus direitos nas
demandas, distribuiu vestimentas honoríficas aos vizires, secretários e notáveis
do governo, aumentou as rações da soldadesca e lhe distribuiu dinheiro, bem
como aos seus líderes; escolheu para si escravos, escravas e criados.
Coincidentemente, por decreto e desígnio divinos, o rei que expulsara Abœ
Øåbir de sua aldeia e lhe confiscara os bens se excedeu em injustiças e
iniquidades, provocando uma revolta dos soldados, que tentaram matá-lo; ele
fugiu e, ouvindo notícias sobre Abœ Øåbir, foi atrás dele a fim de pedir-lhe ajuda
com o fornecimento de tropas. Quando chegou, Abœ Øåbir o hospedou,
dignificou e tratou bem; em seguida, tomou-lhe tudo e o expulsou da cidade sem
nada. Espantados com aquela atitude, os notáveis do governo o acusaram de falta
de juízo, mas ocultaram aquilo em seus interiores, pois ninguém pôde indagá-lo
a respeito. Após algum tempo, apareceram por ali os ladrões que lhe haviam
levado os filhos e o dinheiro; chegaram à cidade e disseram: “Esse rei foi
entronizado há pouco e quer construir um império e ter escravos”. Foram até
Abœ Øåbir, beijaram o chão diante dele e lhe ofereceram escravos, dizendo:
“Que Deus prolongue a vida do rei! Nós lhe trouxemos estes dois rapazes de
Bizâncio, em seu nome”. Ao vê-los, Abœ Øåbir reconheceu os filhos e ordenou
que fossem levados a seu secretário doméstico, que as mãos dos que os
trouxeram fossem decepadas e que lhes confiscassem tudo. Os notáveis do reino
ficaram aborrecidos e disseram: “Ele é mais opressor que o irmão”.
Quanto ao cavaleiro que sequestrara a esposa de Abœ Øåbir, era ele dono de
uma fazenda e possuía muito dinheiro; envidou todos os esforços para que a
mulher se submetesse, mas, não o conseguindo, acorrentou-a e a fez empregada
de suas outras mulheres. Certo dia, ela armou uma artimanha e fugiu, mas ele
correu atrás dela, agarrando-a, e ela gritou: Ó muçulmanos! Este homem me
tomou à força de meu marido!”, e contou toda a sua história; pegaram então o
cavaleiro, conduzindo-o junto com a mulher até a presença de Abœ Øåbir, que a
reconheceu ao vê-la, e ordenou que fosse levada para junto dos filhos; ela ficou
muito contente e compreendeu que Deus compensara o seu marido pela
paciência. Abœ Øåbir ordenou que o cavaleiro sofresse mil chibatadas e o
incômodo dos notáveis aumentou; disseram: “Este rei chegou ao cúmulo da
opressão! Tornou-se pior que o irmão!”. Quando tais palavras chegaram ao rei,
ele reuniu seus ministros e auxiliares e lhes disse: “Saibam que quem pratica o
bem o encontra. Quantas imagens horríveis não têm belos sentidos?”. Não
entendendo o sentido de suas palavras, disseram: “Ó rei, esclareça-nos a verdade
desta situação”. Ele respondeu: “Saibam que o rei que se refugiou aqui – a quem
tratei bem e de quem depois tomei tudo, expulsando-o da cidade – foi
recompensado da mesma maneira que agiu comigo, porquanto eu era um de seus
súditos e ele tomou tudo que eu possuía e me expulsou, com meus filhos e minha
esposa, separando-nos, sem que houvesse culpa. Assim, eu o recompensei por
sua atitude. Quanto aos dois homens cujas mãos decepei, eles eram ladrões que
nos atacaram no caminho, levando tudo quanto nos restara, bem como aqueles
dois meninos, que são meus filhos, aos quais Deus agora me reúne. Quanto a
esta mulher, ela é minha esposa, mãe dos dois meninos, e foi levada à força por
esse cavaleiro, a quem recompensei conforme a sua atitude. Quanto ao rei que
reinava antes de mim, ele me atirou no poço e Deus dele me retirou, instalando-
me no trono do reino com seu mérito e generosidade, além da bênção da
paciência e do bom pensamento em relação a Deus altíssimo”. Os notáveis
ficaram contentes e perceberam que ele não era o irmão do rei deposto, mas sim
uma dádiva de Deus altíssimo; beijaram o chão diante dele, oferecendo presentes
e joias caras aos seus filhos e desculpando-se com o rei pelo que haviam pensado
dele. Abœ Øåbir lhe disse: “Depois deste dia, não voltem a pensar mal dos
outros nem se oponham às decisões dos reis. Desta vez, eu os perdoo”.
Quanto ao primeiro rei, que o prendera no poço, ele se refugiou junto a outro
rei, que lhe forneceu tropas com as quais foi combater Abœ Øåbir, e este, por seu
turno, enfrentou-o com seus soldados e lhe derrotou o exército, capturando-o e
dizendo-lhe: “Eu sou Abœ Øåbir, que me alcei do fundo do poço ao trono do
reino com minha paciência, e você é aquele que, em virtude da falta de
paciência, caiu do trono do reino ao mais fundo do poço”, e ordenou que fosse
atirado no mesmo poço onde ele estivera. Abœ Øåbir passou o resto de sua vida
com a mulher e os filhos.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 186ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Ó rei do tempo, Abœ Øåbir passou o resto de seus dias na vida mais deliciosa
e feliz.
[Prosseguiu o rapaz:] “É esse o fruto da paciência. Tenha o máximo de
paciência possível, não se apresse em me matar, e quiçá Deus faça aparecer a
verdade e impeça a falsidade”. O rei ordenou que ele fosse devolvido à prisão e,
quando foi o quarto dia, apresentou-se o quarto vizir, cujo nome era Zœr ³åh, e
disse: “Ó rei, sua inteligência é muito grande para ser dominada pelas palavras
desse rapaz! Ou você o mata e descansa, ou o perdoa. Mas enquanto ele estiver
vivo, essa história não sairá da boca das pessoas”. Então o rei ordenou que ele
fosse trazido, dizendo-lhe quando apareceu: “Ó rapaz, já durou muito a atenção
que meu coração está dando às suas histórias; hoje irei matá-lo”. O rapaz disse:
“Ó rei, não se apresse, pois todo aquele que não tem paciência é atingido pelo
mesmo que atingiu o rei Barzåd por causa da pressa”. O rei perguntou: “E como
foi a história dele?”. O rapaz respondeu:
Barzåd, o príncipe impaciente
Saiba, ó rei do tempo, que houve na Pérsia, em tempos remotos, um rei cujo
filho, o mais belo e inteligente de toda aquela época, se chamava Barzåd, e
gostava muito de estrangeiros, aos quais recebia bem, dava presentes e
perguntava: “Acaso vocês viram, nos países pelos quais passaram, alguém mais
belo que eu?”, e eles respondiam: “Nunca vimos alguém como você”. Certo dia,
ele fez a mesma pergunta a um viajante proveniente do Egito, que lhe respondeu:
“Você é perfeito em beleza e formosura, porém dizem que a filha do rei do Egito
é que é a singularidade de seu tempo”. Ao ouvir aquilo, a paixão pela moça
dominou o coração do rapaz, que disse: “Ela é que serve para mim”, e ficou
doente, tamanha era sua paixão de oitiva. Seu pai o examinou e, notando-lhe a
cor amarelada e a constituição alterada, perguntou-lhe: “O que o atingiu?”; o
rapaz informou-o do que ouvira e disse: “Se eu não conseguir meu desejo,
estarei morto!”. Então seu pai enviou um emissário com presentes e joias ao rei
do Egito, pedindo-lhe que casasse a sua filha com seu filho. O rei do Egito
consentiu, feliz por se tornar seu parente, informando, na resposta, que exigia
cem mil dinares como dote pela filha, além de vários outros gêneros de
presentes. O pai do rapaz enviou-lhe oitenta mil dinares, mas não dispunha do
restante. O filho do rei disse: “Não tenho paciência de esperar até você conseguir
o dinheiro”. O pai lhe respondeu: “Não se apresse ou se arrependerá”, e
ordenou-lhe paciência e reflexão. Encolerizado, o rapaz, que era valente, iludiu-
se com a própria valentia, vestiu trajes de guerra, montou no seu cavalo e saiu
pelo deserto assaltando caravanas para obter dinheiro. Atacou então uma
caravana proveniente do Iêmen rumo ao Egito, que tinha entre seus membros
homens corajosos. O rapaz gritou com a caravana e cavalgou em sua direção,
sendo cercado de todos os lados por cavaleiros a quem combateu ferozmente,
mas seu cavalo afinal tropeçou e ele foi aprisionado; fizeram tenção de matá-lo,
mas, quando lhe tiraram o capacete e viram seu rosto como a lua, levaram-no até
o Egito; ao lhe perguntarem quem era, não respondia por vergonha e medo de
escândalo. Entretanto, já havia se espalhado a notícia de que o filho do rei da
Pérsia desaparecera sem deixar notícias, e o mercador que o capturara, tendo
ouvido a respeito, identificou-o graças à sua beleza[192] e descrição. Quando
entraram no Egito, hospedou-o em sua casa e lhe disse: “Você é filho do rei da
Pérsia e genro do rei do Egito. Por que não me disse quem é? E por que virou
salteador de estrada?”. O rapaz abaixou a cabeça e o mercador continuou:
“Conte-me o motivo de você ter se tornado ladrão”; então o rapaz lhe contou sua
história. O mercador se compadeceu dele e o tratou extremamente bem, dando-
lhe os vinte mil dinares e dizendo: “É uma dádiva minha para você. Agora, volte
ao seu pai e não se apresse, pois o fruto da pressa é o arrependimento”. Em
seguida, alugou-lhe animais de carga, deu-lhe presentes e joias e o enviou ao pai.
Assim que se viu fora do Egito, o rapaz disse: “Para onde estou indo? Quando
vai encerrar-se o prazo? O melhor é que eu vá até o rei entregar-lhe os vinte mil
dinares que restam do dote”, e retornou ao Egito, dirigindo-se até a recepção da
corte, na qual cumprimentou o rei e o informou que trazia o restante do dote. O
rei o aproximou e instalou em um palácio ao lado do de sua filha. Ordenou aos
serviçais que o arrumassem e mobiliassem opulentamente, colocando nele
utensílios, comidas, bebidas, criados e tudo quanto fosse necessário para a
ocasião.
Em seguida, fez uma colossal festa de casamento com banquetes, e na
primeira noite de desfile[193] as camareiras foram até a filha do rei para arrumá-
la. Mas a impaciência do filho do rei era tamanha que ele foi e disse: “É
absolutamente imperioso que eu a veja para saber se é mais bela que eu,
conforme me informou aquele viajante”. Havia na parede que separava o seu
palácio do palácio da jovem uma portinhola, à qual ele se dirigiu, espiando-a
através dela. A mãe da jovem o viu e, pensando que fosse algum criado, pegou
uma flecha e jogou-a contra ele, acertando seu olho e arrancando-o. O rapaz
gritou e caiu desmaiado. A notícia chegou ao rei, que se entristeceu deveras e
disse: “Quem não tem paciência com as coisas é atingido pelo pior”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 187ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Quando o olho do rapaz foi arrancado, o pai da jovem disse: “Quem não tem
paciência é atingido por tudo quanto é detestável”, e o filho do rei arrependeu-se
quando já não lhe adiantava nada, pois já perdera o olho, a dignidade e o
respeito; se acaso houvesse esperado, teria atingido seu anelo da melhor
maneira.
[Prosseguiu o rapaz:] “Observe a pressa, ó rei, como são más as suas
consequências e como quem a pratica é atingido pelo arrependimento. Não se
apresse em me matar, pois estou à sua mercê e quando quiser poderá fazê-lo; se
o fizer, porém, e depois descobrir a verdade, não poderá ressuscitar-me”. O rei
ordenou então que ele fosse devolvido à prisão, e, quando foi o quinto dia,
compareceu o quinto vizir, cujo nome era Jahrasœs, e disse: “Não se deve adiar
para amanhã a tarefa de hoje, pois tal adiamento provocará calamidades. Não se
iluda com as histórias desse rapaz, pois isso será para você uma infâmia na boca
do povo”. O rei se encolerizou e determinou que o rapaz fosse trazido à sua
presença; quando ele compareceu, lhe disse: “Suas ações foram péssimas e você
me traiu depois de todas as benesses que lhe proporcionei. Não há proveito em
adiar a sua execução: vou matá-lo hoje, impreterivelmente”. O rapaz disse: “Ó
rei, Deus sabe que não o traí nem tenho culpa. A Deus rogo a salvação. Se eu
tivesse feito algo do que alegam o rei e seus amigos, o mal porventura praticado
teria revertido contra mim, tal como reverteu contra o rei Dådib∑n[194] e seu
vizir”. O rei perguntou: “E como foi isso?”. O rapaz respondeu:
A paciência da asceta
Conta-se, ó rei, que havia no Tabaristão um rei chamado Dådib∑n, que tinha
dois vizires, o primeiro chamado Zœrkån e o segundo, Kårdån. Zœrkån tinha
uma filha que não havia naquele tempo melhor nem mais casta e religiosa: ela
rezava, entregava-se à adoração de Deus e era ascética; chamava-se Arw∑. O rei
ouviu falar de sua beleza e, nutrindo por ela profundo anelo, convocou seu pai e
lhe disse: “Quero que você me dê a sua filha em casamento”. O vizir respondeu:
“Vou ver se ela concorda”. O rei disse: “Depressa!”. O pai foi então pedir o
consentimento dela, que respondeu: “Não quero marido, papai. Estou
inteiramente dedicada à adoração a Deus altíssimo e abandonei os desejos e os
prazeres. Não posso praticar a adoração a Deus tendo marido. Se for mesmo
imperioso, case-me então com alguém que seja menor e menos importante que
eu. Mas não me case com alguém que é maior que eu, pois nesse caso serei
como uma miserável concubina”. O vizir informou o que dissera a filha ao rei,
cujo amor por ela aumentou, e ele disse: “Se você não me casar com ela, irei
tomá-la à força!”. O vizir disse: “Vou retornar a ela e informá-la disso”. Ela
disse: “Não quero marido. Se ele me obrigar, suicido-me!”. Desnorteado entre o
rei e a filha, à noite o vizir pegou-a e fugiu com ela. Quando amanheceu, o rei
mandou procurá-lo, mas, como não o encontrassem, enviou cavaleiros à procura
deles, montando ele próprio; encontraram-nos e conduziram-nos a ele, cuja
cólera contra o vizir aumentou tanto que o golpeou com uma clava na cabeça,
matando-o, e se casou com a moça, que foi morar com ele, mas se pôs a adorar a
Deus diuturnamente, mantendo-se assim por um bom tempo. Pretendendo viajar
até certo ponto do país, o rei lhe disse: “Saiba que encarreguei o vizir Kårdån de
cuidar de você. Não confio em ninguém além dele”, e viajou. Certo dia, o vizir
passou pelo palácio da jovem e a viu, encantando-se com ela; enviou-lhe uma
velha com o objetivo de seduzi-la para ele, informando-a de seu amor; disse-lhe:
“Concorde e não divirja de mim; se concordar, prepararei as coisas de um modo
que você vai apreciar”. Quando a velha lhe informou aquelas coisas, a jovem a
destratou e enviou uma dura resposta ao vizir; disse-lhe, depois de maltratá-la e
admoestá-la: “Diga ao vizir: ‘Prenda o seu coração à sua esposa; que seu coração
esteja com sua esposa e lhe dê atenção, pois em qualquer mulher o desejo se
satisfaz do mesmo jeito. Desta vez eu o desculparei por causa do respeito que
você merece, mas que isso não se repita; não se precipite à aniquilação e
destruição; volte a Deus altíssimo’”. Quando aquilo chegou ao vizir, ele
percebeu que ela não lhe obedeceria e se arrependeu do que fizera. Temendo que
a mulher o denunciasse ao rei e este o matasse, pensou: “Não me resta senão
elaborar alguma artimanha”, e pôs-se a refletir sobre o que faria, lembrando-se
enfim de um cozinheiro, ¿ayr,[195] que pertencera ao pai assassinado da jovem.
O rei elegera esse cozinheiro para servi-lo pessoalmente, bem como a seu harém
e seus parentes mais chegados, em virtude de sua honestidade e religiosidade,
determinando-lhe ainda que servisse sua esposa, a filha do vizir que matara,
porque ele a havia criado desde pequena; já bem ancião, o cozinheiro levava a
comida para a esposa do rei. Era conhecido no palácio e gozava de imenso
respeito e valorização. Quando o rei regressou de viagem, o vizir e os notáveis
receberam-no, e a primeira pergunta do rei foi sobre Arw∑, sua esposa. O vizir
respondeu: “Tudo está como o rei gosta e prefere, graças a Deus altíssimo;
contudo, corre por aí uma piada que não é possível ocultar-lhe, nem tampouco
lhe contar, pois contém uma enormidade”. O rei disse: “Diga o que sabe sem
nada esconder”. Ele disse: “Ó rei, todo aquele que pronuncia palavras torpes,
ainda que verdadeiras, torna-se inimigo, mas vou informar ao rei desta conversa
antes que outro o faça, muito embora minha língua não fale na presença do rei
estas coisas, que considero horríveis”. O rei disse: “Fale o que você tem!”. Ele
disse: “Ó rei do tempo, quanto a essa mulher pela qual você se apaixonou,
dando-lhe preferência sobre todas as suas mulheres em razão do que nela vê de
fé, ascetismo e adoração a Deus, saiba o seguinte: alguns dias após sua partida,
chegou um homem que me levou à porta do palácio de Arw∑ e me disse: ‘Pare
diante desta porta e ouça e veja com os seus próprios olhos o que ocorre de
abominações e escândalos nesse palácio’, e então ouvi Arw∑ dizendo: ‘Fulano,
que escândalo! O motivo da morte de meu pai foi você, que tirou a minha
virgindade, e quando o rei pediu a minha mão, fiquei com medo do escândalo,
não aceitando casar-me por tal motivo, e afetei ascetismo e temor a Deus para
evitar suspeitas. Assim, meu pai morreu injustamente por sua causa, e quando o
rei se casou comigo, elaborei uma artimanha a fim de que ele não descobrisse
que eu já era mulher. Continuo elogiando você diante do rei e fazendo-o apreciá-
lo, a tal ponto que ele o aproximou e o tornou um de meus servidores íntimos,
mas você, apesar disso, me destrata e desobedece às minhas pretensões. Temo
que o rei descubra a nosso respeito e sejamos mortos’. ¿ayr, o cozinheiro,
perguntou: ‘Então qual artimanha vamos fazer para liquidá-lo?’. Ela respondeu:
‘Existem muitas espécies de veneno. Esta castidade e este ascetismo que exibo
são por sua causa’. O cozinheiro ¿ayr disse: ‘Se a questão for essa, então
adicione veneno à comida dele, que comerá e morrerá. Se fizer isso em segredo,
ninguém perceberá nada e você terá se vingado por seu pai, pois foi o rei que o
matou’”. Em seguida, o vizir fez imensos juramentos de que fora esta a conversa
que ouvira entre os dois, e de que ele não fizera a denúncia senão como
aconselhamento ao rei e por temor à vida. E continuou: “Você sabe melhor qual
é o seu interesse”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 188ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [o rapaz disse ao rei:]
O vizir disse ao rei: “Você sabe melhor qual o seu interesse. Na minha
opinião, o correto é mandar matá-lo”. Ao ouvir essa história de seu vizir, o rei se
encolerizou deveras e, entrando no palácio, mandou convocar o cozinheiro ¿ayr
e lhe decepou a cabeça sem lhe perguntar nada. Em seguida, mandou trazer a sua
esposa, Arw∑, a fim de matá-la. O vizir disse a ela: “Ó mulher de más ações e
origem vil, o que o rei lhe fez para que você lhe dê tal recompensa com suas
ações, levando-o à infâmia e ao escândalo?”. Arw∑, percebendo então que o
vizir pretendia destruí-la pelo fato de ela o ter desacatado, disse: “Eu lhe peço o
amån,[196] ó rei! Não se apresse e examine o meu caso”. Desviando o rosto de
sua direção, o rei lhe disse: “Não tenho nada para conversar com você. Ai, que
pena! Tanta beleza e formosura e me faz essas más ações!”, e ordenou que fosse
morta e servisse de exemplo diante de testemunhas. Um de seus secretários,
chamado Faraj,[197] deu um passo adiante, beijou o chão diante do rei e lhe
disse: “Ó rei, isso é uma enormidade, em especial contra mulheres. Você já lhe
matou o pai por causa dela. Se o rei achar melhor agir conforme a lei de Deus
altíssimo, deverá proceder conforme eu disser, e obterá a recompensa. Trata-se
de algo pior que a morte”. O rei perguntou: “E o que devo fazer com ela?”. O
secretário disse: “Mande carregá-la em um camelo até um deserto inóspito onde
ninguém more; não lhe forneça comida nem água e deixe-a por lá. Caso seja
culpada, ela morrerá, e você se manterá isento do assassinato. Caso seja
inocente, Deus altíssimo cuidará dela e lhe proverá o sustento”. Essa proposta
agradou ao rei e aos notáveis do reino, com exceção do vizir, que pretendia
matá-la. O rei ordenou que se procedesse conforme dissera o secretário,
enviando junto com a mulher um de seus criados particulares, que a abandonou
em um deserto inóspito e foi embora. A mulher se pôs a rezar e a declarar a
unicidade de Deus altíssimo e a sua grandiosidade, sabedora de que ele seria
generoso sigo; construiu com pedras um nicho que indicava a direção de Meca e
continuou rezando.
Por coincidência, ocorreu de passar por ali um cameleiro a quem havia fugido
um de seus animais mais valiosos, e ele o vinha procurando havia dias, sem
resultado. Passando por aquele deserto, viu a mulher rezando e foi até lá,
parando admirado até que ela encerrou a reza. Ao notar-lhe a beleza e a
formosura, perguntou: “Quem é você?”. Ela respondeu: “Uma das adoradoras de
Deus altíssimo”. Ele perguntou: “E o que está fazendo aqui?”. Ela respondeu:
“Adorando a Deus”. Ele lhe ofereceu pão, tâmaras e água, e ela comeu. O
homem perguntou: “Se quiser casar-se comigo, eu a levarei para minha casa e
farei por você todo o bem”. Ela respondeu: “Quanto ao casamento, dele não
tenho precisão, pois estou entregue à adoração de meu senhor e abandonei a
companhia das pessoas. Mas, se você quiser fazer algum bem comigo, leve-me
para algum lugar que tenha uma fonte de água onde eu possa me abluir e rezar”.
Enquanto conversavam, eis que o camelo perdido apareceu! O homem o
apanhou, considerando isso um sinal de bom augúrio proveniente da mulher, e a
carregou sobre o camelo até uma fonte de água, diante da qual a fez apear-se,
entregando a ela tudo quanto carregava de pão e tâmaras; depois, deixou-a e foi
até o rei da cidade, ao qual informou sobre o caso daquela adoradora de Deus,
que era a melhor das pessoas, de rosto e de beleza. O rei lhe disse: “Leve-me até
ela”, e cavalgou, acompanhado de um grupo de auxiliares e do cameleiro.
Quando chegaram até ela, verificaram que estava rezando; vendo então uma
beleza como nunca vira igual, enamorado e com o coração todo conquistado, o
rei disse: “Afastem-se de mim!”, e, assim que se afastaram, desceu do cavalo e
se sentou próximo da mulher, dizendo-lhe quando a reza terminou: “Saiba que
sou o rei desta cidade e minha intenção é casar com você”. Ela respondeu: “Você
já tem muitas mulheres, ó rei, e eu não tenho vontade de me casar; vou me
manter aqui, adorando o meu senhor e declarando a sua unicidade”, e foi rezar.
Quando terminou, o rei lhe disse: “Se não vier comigo, ficarei com você”, e
ordenou que lhe montassem uma tenda ali perto, pondo-se a jejuar e a rezar junto
com ela; a admiração dele aumentou e ela lhe disse: “Ó rei, estou com vergonha
de você e já não posso desacatá-lo; faça, portanto, o que quiser”. Ele então
ordenou que se trouxesse uma tenda de brocado, na qual levou a mulher para
seus palácios, instalando-a no melhor deles e determinando que o mobiliassem
opulentamente; depois, fez menção de fazer o contrato de casamento, e ela lhe
disse: “Ó rei, aos olhos das pessoas eu sou defeituosa, e também aos seus olhos,
pois você me encontrou no deserto, e por isso não pensa bem a meu respeito. No
entanto, eu era esposa do rei Dådib∑n, e isso que me ocorreu se deve ao seu
vizir. Exijo que compareçam aqui o rei, o vizir e o secretário Faraj; caso
contrário, não concordarei com as suas intenções, ainda que você me corte em
pedaços”. Então o rei enviou um enorme exército, cujo comando entregou a um
de seus secretários, a quem ordenou que trouxesse à sua presença o rei, o vizir e
o secretário; eles partiram e os trouxeram, colocando-os diante do rei; Arw∑
postou-se atrás das cortinas e disse ao vizir: “Ó Kardån, essa é a punição por sua
vil atitude! Diga-me por que você mentiu contra mim e me expulsou do convívio
com o rei após ter-me infamado, lançado o seu rei em tamanha humilhação e
liquidado aquele pobre inocente do cozinheiro ¿ayr. Diga o que ocorreu de fato,
pois você não será salvo senão pela veracidade!”. O vizir respondeu: “Quem
pratica o mal o encontra ainda que tarde. Eu errei e fiz o que fiz – tudo por causa
do meu amor por você!”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 189ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
O vizir Kardån disse: “Só fiz aquilo por causa do meu amor por você, que não
quis se submeter a mim e por isso a caluniei e difamei. Livre-nos Deus de existir
na terra alguém de maior pureza que você, maior ascetismo ou maior adoração a
Deus!”. Ela disse: “Graças a Deus que fez aparecer a minha inocência”, e depois
disse ao rei Dådib∑n, seu marido: “Você matou o meu pai; portanto, é
absolutamente imperioso que morra”, e ordenou ao rei que lhe golpeasse a
cabeça com uma clava tal como ele fizera com seu pai; golpearam-no então e lhe
despedaçaram a cabeça; ordenou que jogassem o vizir no mesmo deserto em que
a haviam jogado, sem comida nem água. Enfim, ordenou que o secretário Faraj
fosse dignificado, e assim fez o rei, tratando-o bem e nomeando-o no lugar do rei
morto.
[Prosseguiu o rapaz:] “Assim, todo aquele que pratica o bem o encontra, e
todo aquele que pratica o mal o encontra. Eu rogo a Deus que nenhum invejoso
me derrote”. O rei ordenou que ele fosse devolvido à prisão e, no sexto dia,
compareceram três vizires – o primeiro chamado Ha∂waΩåh, o segundo,
Sådjahar, e o terceiro, Sulaymån –, que disseram: “Ó rei, você está prolongando
demais a vida desse rapaz. Dê alívio a si mesmo e ao povo livrando-se dele; não
se iluda com as suas histórias”. O rei ordenou que ele fosse trazido, e, quando
apareceu, disse-lhe: “Ó rapaz de infausta visão! Vejo toda gente desejando a sua
morte e ninguém tendo misericórdia de você”. O rapaz disse: “Eu imploro
àquele cujos adoradores não se decepcionam quando lhe pedem e rogam, àquele
que, quando quer salvar seu adorador, ninguém o poderá prejudicar. Minhas
ambições se limitam a Deus, e todo aquele que lhe pede ajuda encontra o mesmo
que encontrou o rei Ba¿t Azmån∑”. [O rei perguntou: “Como era esse rei? E
qual é a sua história?”. O rapaz disse:][198]
O rei e o auxílio divino
O rei Ba¿t Azmån∑, que herdara o reino de seus ancestrais, não se ocupava
senão com divertimentos e fruição de prazeres, e não tinha inimigos. Após um
período, todavia, foi atacado por um poderoso inimigo, que ele combateu e
derrotou, tomando-lhe muitíssimo dinheiro, despojos e corcéis. O rei derrotado
retornou à sua terra e pediu ajuda a outro rei, que lhe forneceu tropas e soldados;
então, ele retomou a guerra contra Ba¿t Azmån∑, derrotando-o desta feita e
capturando-lhe o reino e os filhos. Ba¿t Azmån∑ refugiou-se junto a um
poderoso rei, ao qual pediu ajuda e contou o que lhe sucedera. Comovido, esse
rei enviou junto com ele um grande exército fortalecido por vastos cabedais e
homens. Ba¿t Azmån∑ foi fazer nova guerra a seu inimigo, que o enfrentou e,
pela segunda vez, o derrotou. Vencido, Ba¿t Azmån∑ fugiu sozinho, os soldados
em seu encalço, até chegar a uma praia na qual viu um navio pronto para zarpar;
entrou, atravessou o mar e saiu do outro lado, em um deserto a partir do qual
despontava uma enorme cidade, fortificada e inexpugnável, cujo nome ele
perguntou, bem como o de seu rei, sendo então informado de que o rei se
chamava ¿ad∑dån e era um homem de boa conduta. Ba¿t Azmån∑ procurou-o e
se colocou a seu serviço, sendo então empregado por ¿ad∑dån, que o dignificou
e lhe deu presentes – mas o seu coração continuou preso ao seu reino, seus filhos
e suas mulheres.
Certo dia, um inimigo atacou aquele reino com um imenso exército. ¿ad∑dån
o enfrentou com suas tropas, em cujo comando colocou Ba¿t Azmån∑, e disse
aos soldados: “Que nenhum de vocês inicie o combate”. E, mal as fileiras se
dispuseram e os homens se organizaram aos milhares, ¿ad∑dån apanhou sua
lança e carregou contra as tropas inimigas, atingindo no peito o comandante, de
cujas costas a ponta da lança saiu brilhando. Quando viram que o seu
comandante fora morto, os soldados jogaram as armas, fugindo à procura de
salvação, e ele lhes tomou despojos e cabedais, retornando ao seu trono feliz e
contente. Após alguns dias, Ba¿t Azmån∑ lhe perguntou: “Ó rei, você arriscou a
própria vida! O rei está na posição do espírito, e os soldados, na do corpo”.
¿ad∑dån riu e respondeu: “Não busco ajuda nos soldados, mas somente em Deus
altíssimo, a quem peço socorro”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 190ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
O rei ¿ad∑dån respondeu ao rei Ba¿t Azmån∑:
O rei e o santo homem
Eu não peço socorro senão a Deus altíssimo, pois os soldados não passam de
instrumentos nas mãos do rei. Fiz para mim mesmo o voto de não combater
inimigo algum senão sozinho, e o motivo é que, no início do meu reinado, eu
tinha muitos soldados nos quais me apoiava, iludido com sua grande quantidade.
Eu pensava: “Mesmo que todos os povos do mundo fossem meus inimigos, eu
não me preocuparia, pois eles não poderiam comigo, tamanha é a quantidade de
soldados dos quais disponho”. Deixei de me apoiar em Deus, e ele enviou contra
mim oitenta homens, que entraram em meu país e o devastaram. Saí para
combatê-los com minhas tropas e soldados, mas aqueles oitenta homens[199] me
venceram e mataram os notáveis de meu governo; fugi derrotado com cinquenta
cavaleiros para o mar, e ali embarquei em um navio. Encontramos então uma
montanha na qual subimos todos, enquanto os inimigos dominavam o meu reino
e se apossavam dele. Perplexo, não sabia o que fazer: havia perdido meu reino,
meu dinheiro, meu governo. Encontrei naquela montanha um homem santo,
[200] o qual, ao me ver chorando angustiado, perguntou-me sobre a minha
situação, e eu lhe respondi que era um rei cujo exército, composto por cem mil
cavaleiros, fora derrotado por oitenta homens que se apoderaram do meu reino,
dos meus cabedais, dos meus filhos, das minhas concubinas e dos meus
depósitos. Ele riu de minhas palavras e perguntou: “Você sabe por que isso lhe
sucedeu?”. Respondi: “Não”. Ele disse: “Porque você se apoiou em seus
soldados e deixou de se apoiar em Deus altíssimo, esquecendo-o, e ele o
desamparou; já aqueles oitenta homens foram fiéis a Deus altíssimo, nele se
apoiaram e fortaleceram, e Deus altíssimo os socorreu”.
Disse o narrador: Então eu chorei e afirmei estar penitenciado em Deus
altíssimo e nele apoiado; já não me fiaria em meu dinheiro nem em meus
soldados, e roguei a ele que me devolvesse o reino a fim de que eu alterasse meu
modo de governar, distribuísse esmolas e corrigisse a minha situação. O homem
santo me disse: “Volte ao seu reino e observe a situação daqueles oitenta
homens: se acaso eles estiverem governando com justiça, você não poderá com
eles; porém, se eles tiverem fortificado a cidade e aumentado o número de
soldados por medo de você, tal como você próprio fizera, então poderá derrotá-
los”. Enviei um espião para a minha terra a fim de ver como estavam o governo
e a conduta deles; ele retornou e me informou que eles estavam ocupados com
divertimentos, jogos, comidas e prazeres – “oprimem o povo, apoiam-se no
exército e fortificaram a cidade por medo a você”. Percebi então que Deus
altíssimo já me devolvera o reino, com sua generosidade e mérito, e que o seu
auxílio já estava assegurado. Os cinquenta homens e eu nos pusemos a adorar a
Deus à beira-mar e a suplicar-lhe. Enviei alguém que reconquistasse o coração
dos soldados para mim, e eles aos poucos passaram a vir até nós, até que nos
tornamos cem homens; embarcamos em um navio, fomos até a cidade e os
cercamos; eles abriram os portões da cidade, saíram para nos combater, e nós os
derrotamos, matando-os a todos, sem que um só escapasse. Reinstalei-me no
trono do reino e passei a governar os súditos com justiça; compreendi que o
único que prejudica ou beneficia é Deus altíssimo, e todo aquele que se apoia em
outro se extravia. Desde aquela época, nunca mais os inimigos me encontraram,
pois sou eu quem os encontra, e Deus sempre me socorre contra eles.
Após ouvir aquilo, Ba¿t Azmån∑ disse-lhe: “Ó rei, é essa a minha situação!
Sou rei da cidade tal, meu nome é Ba¿t Azmån∑, e me sucedeu o mesmo que lhe
sucedeu. Agora, vou partir, apoiar-me em Deus altíssimo e confiar-me a ele, que
talvez assim devolva o meu reino”. Em seguida, escalou uma montanha até o
cume, penitenciou-se em Deus altíssimo, apoiou-se nele e dedicou-se
integralmente à sua adoração. Passado um ano, ouviu uma voz dizer sobre a sua
cabeça: “Ó Ba¿t Azmån∑, vá sem medo de ninguém, pois seu reino voltará a
você”, e então ele caminhou até se aproximar de sua cidade, ali vendo um grupo
de soldados do inimigo. O rei que lhe tomara o trono havia imposto aos seus
súditos que todo aquele que encontrasse um forasteiro deveria levá-lo à sua
presença, a fim de ser indagado sobre Ba¿t Azmån∑; se acaso o conhecesse,
seria morto. Assim, os soldados lhe perguntaram ao vê-lo: “Quem é você? E de
onde veio?”. Ele pensou: “A voz me disse que Deus me ajudará”, e lhes
respondeu: “Sou Ba¿t Azmån∑, rei desta cidade. Vim para que vocês me matem
e me livrem da tristeza”. Os corações dos soldados se apiedaram dele e, com
pena, perguntaram-lhe: “Você já purificou a sua consciência perante Deus
altíssimo?”. Ele respondeu: “Não tivesse feito isso, não retornaria à minha
cidade”. Disseram: “Nosso rei até agora lhe tem medo. Portanto, jure que nos
recompensará pelo que fizermos por você; jure que nos dará preferência a
qualquer outro e nós o recolocaremos em seu trono”. Ele então se comprometeu
a lhes dar o que pediram e eles o fizeram jurar por sua fé; disseram-lhe: “Vá e
fique disfarçado nesta aldeia até que retornemos”, e, separando-se dele, entraram
na cidade, reuniram-se com os comandantes, secretários e principais do governo
e os fizeram jurar lealdade a Ba¿t Azmån∑. Seu rei havia extrapolado na
injustiça e na opressão. Após obter o juramento, os soldados retornaram a Ba¿t
Azmån∑, introduziram-no na cidade, atacaram o rei e saíram apregoando: “Deus
auxilia Ba¿t Azmån∑!”. Em seguida, prenderam o rei e seus seguidores,
matando-os a todos, e instalaram Ba¿t Azmån∑ no trono do reino. Seus
secretários e servidores de governo vieram vê-lo, postando-se diante dele e
felicitando-o pela reconquista do reino. Ele lhes distribuiu vestimentas
honoríficas e os dignificou mais e mais.
[Prosseguiu o rapaz:] “Saiba, ó rei, que todo aquele que purifica a consciência
perante Deus será por ele salvo”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 191ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei seu pai: “Todo
aquele que purifica a consciência Deus altíssimo o salva dos males que teme, e
também eu busquei apoio em Deus e a ele me entreguei”. O rei ordenou que ele
fosse devolvido à prisão.
Quando foi o sétimo dia, apareceu [o sétimo vizir, que se chamava Bahkamål],
[201] e disse: “Ó rei, eu o vejo negligenciando a morte desse rapaz, e isso é uma
vergonha descomunal para você, pois o povo da cidade está pisoteando a sua
honra”. Então o rei ordenou que o rapaz fosse trazido e, cheio de cólera, disse-
lhe: “Seu moleque de origem baixa, até quando vai me enganar com seus
disparates? Hoje mesmo irei matá-lo, sem escapatória!”. O rapaz disse: “Que
Deus o preserve, ó rei! Seja cuidadoso com quem já está sob sua mercê e Deus
será cuidadoso com você. Deus altíssimo gosta do perdão, sobretudo vindo dos
reis. E quem pratica o bem o encontrará tal como o encontrou o rei Karad”. O rei
perguntou: “E como foi a sua história?”. O rapaz respondeu:
O perdão e o rei injusto
Conta-se, ó rei do tempo, que havia em tempos remotos e priscas eras um rei
chamado Karad, que possuía um vasto reino, soldados e tropas. Seu proceder
com os súditos era vil, e ele não perdoava ninguém que errasse. Certo dia, Karad
saiu para caçar acompanhado dos principais de seu governo. Um dos criados
lançou uma flecha contra uma ave e acertou a orelha do rei, despedaçando-a. Ele
disse: “Investiguem quem lançou esta flecha e o tragam à minha presença”.
Verificou-se então que se tratava de um criado chamado Bayrahan, o qual, ao ser
colocado diante do rei, caiu desmaiado de medo. O rei ordenou que fosse morto
e ele disse: “Ó rei, o que ocorreu não foi por minha escolha nem vontade.
Perdoe-me, pois o perdão é a melhor obra, podendo mesmo constituir-se em
proteção algum dia, afastando-o de perigos bem maiores”. O rei então o
perdoou. Na origem, esse criado era filho de um rei chamado Hamåy e fora
aprisionado durante um dos combates da guerra que ocorrera entre seu pai e
certo inimigo. O pai havia enviado emissários para vários países à sua procura e
em busca de notícias a seu respeito. Um desses emissários entrou afinal na
cidade em que o menino estava e, reconhecendo-o, entregou-lhe a carta de seu
pai. O menino lhe disse: “Guarde segredo, pois o rei daqui está irritado comigo”,
e o emissário manteve tudo em segredo. O menino preparou as coisas e fugiu
com o emissário; não cessaram de se esconder durante o dia e avançar durante a
noite até que ele chegou ao seu pai, que ficou muito contente com o seu retorno
e mandou enfeitar a cidade para celebrar a ocasião. Por seu turno, o rei Karad
deu por falta do menino e foi informado de que ele fugira.
Certo dia, o rei Karad, tendo saído para a caça nas proximidades do mar, pôs-
se a perseguir uma gazela, que de tanto correr chegou à praia, com o rei em seu
encalço. Veio então uma onda enorme que o alcançou e jogou no meio do mar, e
ali ele viu uma tábua sobre a qual subiu, enquanto seu cavalo se afogava; as
ondas o impeliram até outra praia, onde ele subiu a terra seca e louvou Deus
altíssimo por ter escapado com vida. Em seguida, caminhou sem saber que rumo
tomar. Nas proximidades se localizava a cidade cujo rei era o pai do menino que
lhe despedaçara a orelha; Karad entrou nela ao anoitecer e, encontrando uma loja
sem porta, dormiu ali mesmo. O andar superior da loja pertencia a um mercador
endinheirado que lá dormia quando ladrões chegaram e a invadiram, matando-o
e levando-lhe todo o dinheiro. Entre a loja de baixo e o andar do mercador havia
uma abertura pela qual o sangue deste escorreu, caindo sobre as roupas de Karad
e lhe sujando as mãos enquanto dormia, sem saber de nada. Quanto amanheceu,
chegou o governador e as pessoas se aglomeraram ao ver o sangue escorrendo
do andar superior; subiram, encontraram o mercador assassinado, o andar
despojado de tudo quanto continha, e disseram a Karad: “Foi você que matou o
mercador”, agarraram-no e o levaram ao rei, que estava dormindo; então,
colocaram Karad na cadeia, e ele, perplexo consigo mesmo, com o exílio e com
as suas escassas artimanhas, pensou: “Tanto que oprimi as pessoas!”; lembrou-se
do menino que lhe despedaçara a orelha e a quem perdoara, e teve esperança.
Enquanto mergulhava nessas reflexões, uma ave pousou no muro da cadeia, e
Karad, apanhando uma pedra, lançou-a contra ela; naquele momento, porém, o
menino que o atingira com a flecha cavalgava na praça, a jogar péla com bastão,
e foi atingido pela pedra na orelha, que se despedaçou. Logo se espalhou pela
cidade uma gritaria: “Descubram quem foi que atirou a pedra!”; disseram: “Foi
atirada por um forasteiro que está na cadeia por ter matado um mercador na noite
passada”, e foram informar ao rei a história do mercador assassinado por aquele
prisioneiro que agora arrancara a orelha de seu filho. O rei foi para a praça e
determinou que Karad fosse trazido da cadeia à sua presença, bem como os
familiares do mercador assassinado, e, na presença de todos, ordenou que Karad
fosse crucificado. Quando lhe descobriram a cabeça, o rei viu que ele não tinha
orelha e lhe disse: “Agora aparecem em você as provas da nocividade! Sua
orelha não foi decepada senão por causa da sua corrupção!”. Ele respondeu: “Ó
rei, não veja a falta de minha orelha como prova de algum crime cometido; ela
foi, na verdade, cortada por engano por um menino que eu tinha comigo, cujo
nome era Bayrahan, tal como ocorreu com a orelha de seu filho. Aquele menino
disparou uma flecha contra um pássaro, mas ela acertou a minha orelha,
decepando-a”. Ao ouvir aquilo, Bayrahan pôs-se a contemplar o rosto de Karad
e, reconhecendo-o, foi abraçá-lo, contou ao pai a história – que Karad o perdoara
apesar do poder que tinha sobre ele – e pediu: “Papai, perdoe-o tal como ele me
perdoou”; então o rei perdoou Karad e lhe perguntou sobre o motivo de sua
vinda ao país, sendo logo informado da história da perseguição à gazela, a
entrada na água, a subida na tábua, o afogamento do cavalo, a chegada à cidade
durante a noite, a dormida na loja, os ladrões que mataram o mercador e o
sangue escorrido nas roupas através da abertura enquanto ele dormia sem saber
de nada. O rei se desculpou, deu-lhe um rico traje honorífico, hospedou-o em um
magnífico palácio, tratou-o bem, dignificou-o e lhe disse: “Essa é a
compensação pelo favor que você fez ao meu filho, perdoando-o apesar de
dispor de poderes sobre ele”. Em seguida, enviou-o à sua cidade com presentes,
joias, cavalo, escravos e um grupo de soldados para escoltá-lo até seu reino.
Karad aprendeu então que o bem não se perde e que quem perdoa tendo poder
será libertado por Deus de toda dificuldade.
[Prosseguiu o rapaz:] “Saiba, ó rei, que nada é melhor que o perdão de quem
tem poder, em especial os reis. Se eu for culpado, ser-me-á absolutamente
imperioso sofrer as más consequências disso; se eu for inocente, peço a Deus a
salvação”. Quando ele encerrou a história, o rei determinou que ele fosse
devolvido à prisão.
No oitavo dia, os dez vizires reuniram-se e disseram: “Se não conseguirmos
providenciar a sua morte hoje, isso começará a ficar muito longo”;
compareceram todos diante do rei e disseram: “Ó rei, esse rapaz é feiticeiro, pois
está enganando-o com sua conversa e enfeitiçando-o com suas mentiras e
calúnias. O povo já está falando da sua honra de modo inadequado. Você está
negligenciando o assunto, mas nós dez testemunhamos que ele merece morrer;
se isso não se fizer hoje, dê-nos licença para abandonar o seu reino”.
Encolerizado, o rei ordenou que o rapaz fosse trazido da prisão à sua presença, e,
quando ele apareceu, os dez vizires lhe disseram: “Seu demônio, você pretende
se salvar por meio da calúnia, da difamação e da trapaça, esperando obter perdão
desta enormidade que cometeu!”. O rei ordenou que lhe decepassem o pescoço e
eles disseram: “Nós mesmos o mataremos e salvaremos a honra do rei”, e o rei
disse: “A única unanimidade apresentada por esses dez é a de que você merece
morrer. O testemunho de dois já é aceitável, o que dizer então de dez?”. O rapaz
perguntou: “Ó rei, como podem eles testemunhar sem ter visto?”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 192ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz perguntou ao rei: “Como
poderiam testemunhar sem ter visto? Na verdade, eles me invejam devido à
minha proximidade de você e do bom tratamento que me dispensa; é por isso
que desejam a minha morte: querem agir a seu bel-prazer com o seu dinheiro, tal
como faziam antes. Se você me matar e lhes conceder esse desejo, temo que se
arrependa tal como se arrependeu o rei „lån ³åh por causa de seus vizires”. O rei
perguntou: “E como foi a sua história?”. O rapaz respondeu:
O rei „lån ³åh e o leal Abœ Tamåm
Conta-se, ó rei, que existiu um homem chamado Abœ Tamåm,[202] ajuizado,
veraz, letrado, virtuoso e dono de muito dinheiro. O rei da cidade onde ele vivia
era opressor e tirânico, e nenhum de seus súditos demonstrava ter dinheiro por
medo de que ele o tomasse. Por isso, Abœ Tamåm mudou-se para outra cidade,
cujo rei se chamava „lån ³åh, onde construiu uma casa, para lá transferindo todos
os seus bens e familiares. As notícias sobre o seu bom caráter e proceder
chegaram ao rei, que o convocou para uma entrevista e, quando ele compareceu,
dignificou-o, aproximou-o de si e lhe disse: “Mantenha tranquilo o coração, não
esconda de mim o que quer que necessite, nem deixe de comparecer às reuniões
comigo”. Abœ Tamåm beijou o chão, rogou pelo rei e pensou: “Difícil manter-se
à vontade na convivência com os reis, pois se trata de um risco de vida. Todo
aquele que se aproxima dos reis ganha invejosos e inimigos. Porém, vou servi-lo
de longe, sem me aproximar inteiramente”. Passou a levar diariamente presentes
ao rei, e a servi-lo bastante. O rei lhe concedeu posição e valor superiores a
qualquer outro de seus súditos. „lån ³åh tinha três vizires que nunca o
abandonavam, fosse dia, fosse noite. Quando o rei aproximou de si Abœ Tamåm,
passou a ocupar-se com ele, abandonando os vizires, que se reuniram um dia e
disseram: “O rei concedeu proeminência a este forasteiro, elegeu-o e o
encarregou de todo o seu tesouro, de cuja aproximação e manipulação ora nos
impede. Se não prepararmos alguma artimanha para afastá-lo, estaremos
aniquilados”. Um deles disse: “O rei dos turcos, cuja filha não possui semelhante
em nenhuma região, mata todos os mensageiros dos reis que pretendem desposá-
la. Assim, o mais correto é que se mencione o nome dela na frente do rei „lån
³åh; exageremos nos elogios a seus méritos e formosura até que o amor por ela
invada o seu coração, e, quando isso ocorrer, ele enviará Abœ Tamåm, em cuja
inteligência tanto se apoia, para pedi-la em casamento; quando for ao rei dos
turcos, Abœ Tamåm será morto por ele e nós enfim descansaremos”. Reuniram-
se então com o rei, mencionaram a jovem, e tanto exageraram nos elogios à sua
beleza que „lån ³åh se apaixonou por ela. Disseram: “Ela serve para sua esposa”,
e um dos vizires emendou: “Amo, envie para pedi-la em casamento um homem
ajuizado, honesto e virtuoso”. O rei refletiu sobre um homem adequado a tal
propósito e não vislumbrou senão Abœ Tamåm; mandou chamá-lo e disse:
“Quero que você vá até o rei dos turcos,[203] entregue-lhe este meu presente e
peça a filha dele em casamento para mim”. Abœ Tamåm respondeu: “Ouço e
obedeço”.
Disse o narrador: então o rei preparou-o com presentes e joias e escreveu uma
carta pedindo a mão da filha do rei dos turcos, para cujo reino Abœ Tamåm se
dirigiu e chegou. Assim que recebeu a notícia de sua chegada, o rei dos turcos,
pai da jovem, enviou-lhe alguém para recepcioná-lo com apreço e hospitalidade;
deu-lhe ainda uma cavalgadura e hospedou-o em uma casa adornada da melhor
maneira. Na manhã do dia seguinte, o rei convocou-o e, ao comparecer, Abœ
Tamåm fez reverências, saudou-o, rogou a sua benevolência e entregou-lhe a
mensagem, os presentes e as joias. Ao ler a carta, o rei dos turcos disse: “Sim,
sobre a cabeça e o olho![204] Vá até ela para que ambos se vejam; assim, você
ficará a par do estado dela, e ela ouvirá de sua boca a descrição do rei que deseja
a sua mão, pois o mensageiro é um bom indicativo da inteligência do rei”. E,
assim dizendo, enviou-o até a filha na companhia de um criado. Ao entrar no
palácio em que ela morava, Abœ Tamåm notou que estava luxuosamente
mobiliado e com os melhores ornamentos; a jovem estava sentada em uma
cadeira de ouro vermelho, com mantos, joias e gemas que assombrariam
qualquer mente. Abœ Tamåm viu aquilo e, percebendo que o pai dela pretendia
testá-lo e experimentá-lo, pensou: “Dizem os provérbios: ‘Quem cala escapa’,
‘Quem estica o olho cansa a mente’ e ‘Mãos compridas são decepadas’”. Então,
abaixou a cabeça e não olhou para nada; calou-se e não pronunciou palavra. A
filha do rei indagou-o sobre diversas questões, mas ele nada respondeu. Ela
disse: “Abra os olhos, veja o que pus aqui para você e leve o quanto quiser”, mas
ele não olhou para nada; ela disse: “Fale, pois o mensageiro nunca é mudo nem
cego nem surdo”, mas ele nada respondeu. Ao ver aquilo, a jovem enviou uma
mensagem ao pai: “Este mensageiro é cego, surdo e mudo”, e então o pai
mandou chamar Abœ Tamåm e perguntou-lhe sobre o que vira, dizendo: “Você
viu se a minha filha serve para o rei ou não?”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 193ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
O rei dos turcos perguntou: “Você viu se a minha filha serve para o seu rei?”.
Abœ Tamåm respondeu: “Eu nada vi, nem vim para ver nada, mas somente para
pedir a mão dela em casamento e ser leal e honesto”. O rei dos turcos disse: “Eu
só o enviei à minha filha para que você a visse e apanhasse o que lhe agradasse,
e para que ela o visse e às joias”. Ele respondeu: “Não é minha atribuição ver ou
apanhar o que não me pertence. Não vim passear nem espairecer ou ganhar
dinheiro, mas sim como honesto conselheiro do meu rei, que me enviou”.
Ouvindo-lhe tais palavras, o rei dos turcos encostou a cabeça nele, beijou-o, deu-
lhe um rico traje honorífico, e lhe disse: “Estou admirado de encontrar um ser
humano ajuizado, honesto e casto”, e lhe mostrou um poço. Abœ Tamåm
perguntou: “O que é isso, ó rei?”. Ele respondeu: “É aqui que estão as cabeças
dos mensageiros que vieram pedir a mão de minha filha. Matei-os porque os
experimentei, a exemplo do que fiz com você, constatando então que se tratava
de traidores e ignorantes que sairiam daqui fuxicando sobre o que viram; com
base na ignorância deles pude deduzir a ignorância de quem os enviou, e matei-
os. Agora, porém, meu coração está tranquilo com você, pois notei que o seu
decoro deriva do decoro de seu rei”. E tratou Abœ Tamåm com generosidade, fê-
lo sentar-se ao seu lado, dignificado, respeitado e honrado, e após alguns dias
preparou-o para a viagem, enviando junto com ele um mensageiro carregado de
presentes e joias para o rei „lån ³åh, o qual ficou muitíssimo contente com a
chegada de ambos, dignificando o mensageiro do rei dos turcos, hospedando-o
em um lugar dotado de ameno jardim e arranjando-lhe roupas e rações. Depois,
„lån ³åh tornou a enviar Abœ Tamåm com o dote da jovem, no valor de cem mil
dinares, além de muitas joias e brocado. Na chegada, Abœ Tamåm foi
dignificado e saudado pelo rei dos turcos, que preparou a filha para a viagem,
escoltada por criados e soldados, e a colocou em uma liteira cravejada de joias e
com cortinas de brocado tecido a ouro brilhante. Viajaram até chegar à cidade de
„lån ³åh, que os recebeu acompanhado dos notáveis de governo, reservando para
a jovem um magnífico palácio no qual a hospedou. A cidade foi enfeitada e „lån
³åh realizou os banquetes e a festa de casamento, após o que a possuiu,
verificando que ela era superior à descrição. Distribuiu trajes honoríficos aos que
vieram com ela, dignificou-os bastante e eles retornaram ao seu rei.
O afeto do rei por Abœ Tamåm aumentou tanto que ele lhe concedeu
permissão para vir vê-lo sem autorização prévia. Os três vizires disseram:
“Erramos em nosso cálculo. Se isso demorar demasiado, estaremos aniquilados,
pois ele vai ser tão inimigo nosso quanto nós somos dele. Suas palavras têm
aceitação perante o rei! É de nosso interesse agir para destruí-lo”. O rei tinha
dois pequenos criados que dormiam à sua cabeceira, e os vizires os convidaram
para visitá-los na casa de um deles; deram a cada um dos meninos mil dinares e
lhes disseram: “Gostaríamos que vocês atendessem a um pedido nosso, que
reverterá em seu interesse”. Os meninos perguntaram: “Qual é o pedido?”. Os
vizires responderam: “Quando o rei se deitar e vocês perceberem que ainda não
está dormindo, que um diga ao outro: ‘Não se pode confiar no resultado das
ações de quem não tem boa origem! Dele não se deve esperar o bem nem buscar
apoio!’. O segundo deve perguntar: ‘Qual o sentido dessas palavras?’, e o
primeiro deve responder: ‘Esse Abœ Tamåm, por quem o rei fez todos os
favores, fiando-se nele – que não é honesto – e fazendo-se representar por ele.
Trata-se, porém, de um traidor com quem os favores são desperdício. Honesto é
quem não trai seu amigo, seja em pessoa, em dinheiro ou em família. Quando o
rei „lån ³åh o enviou para pedir a mão da filha do rei dos turcos, ele se reuniu a
sós com ela, beijou-a e combinaram que a levaria em nome do rei „lån ³åh, mas
que se reuniria com ela em segredo, sabendo previamente que o rei não a
afastaria dele. O rei a tudo ignora devido à sua fé na virtude e na castidade de
Abœ Tamåm, bem como no fato de apoiar-se nele. Ninguém se atreve a levar
isso ao conhecimento do rei em razão do respeito e do afeto que Abœ Tamåm
desfruta diante dele. Um grupo já sabe disso e conversa a respeito, e meu temor
é que a notícia se espalhe e não seja possível ocultá-la, ficando o rei
desmoralizado e infamado perante os outros reis’”. Os meninos disseram:
“Faremos isso e mais ainda, pois ele é uma das pessoas mais detestáveis para
nós”. Quando o rei se deitou, eles foram se instalar à sua cabeceira e trocaram
diálogos conforme haviam sido instruídos pelos vizires, e até exageraram. O rei
fingiu estar dormindo do início ao fim do diálogo que ambos travaram, enquanto
o fogo lhe consumia o coração pelo que ouvia; pensou: “Não fosse isso verdade,
esses criados não falariam a respeito, sem nenhum motivo nem justificativa, pois
não são dissimulados”. Súbito, levantou-se, chamou Abœ Tamåm em um local
isolado e lhe perguntou: “Qual a punição de quem trai o companheiro com sua
mulher e naquilo em que se lhe depositara a confiança? O que merece?”. Abœ
Tamåm respondeu: “A morte!”, e então o rei cuspiu-lhe no rosto, insultou-o e
golpeou-o na cabeça com uma clava, matando-o, tamanho era o seu ódio.
Atirou-o em um poço e manteve o caso em segredo. Quando seu ódio passou,
arrependeu-se bastante por tê-lo matado e se condoeu, pois apreciava a sua
companhia. Sua tristeza era tão grande que [um dos vizires][205] lhe perguntou:
“Por que essa aflição, ó rei do tempo? Se você fez algo que deveria ter feito, não
se entristeça; se tiver feito algo que não deveria ter feito, a aflição não resolve o
que já passou, e a permanência do rei é compensação suficiente para qualquer
coisa que tenha ocorrido”. [Percebendo que a tristeza do rei devia-se ao
arrependimento pela perda de Abœ Tamåm],[206] os que o invejavam ficaram
contentes com sua morte, que o rei não revelou à mulher, pois a amava muito.
Todo dia ela lhe perguntava sobre o motivo de sua tristeza, mas ele não a
informava. Separar-se de Abœ Tamåm foi-lhe tão duro que ele não sentia mais
alegria de viver nem tranquilidade: toda noite ele se ocultava e ia à porta do
quarto dos dois meninos para tentar ouvir o que diziam, à espera de palavras que
talvez revelassem algo mais. Certa noite, o rei se pôs a espionar à porta do
quarto e viu que eles tinham consigo o dinheiro ganho dos vizires; atiraram-no
de lado, suspiraram profundamente e disseram: “Maldita a hora em que
ganhamos este dinheiro, aceitando-o daqueles opressores e participando do
crime contra aquele pobre inocente que jamais fizera mal a nós nem a
ninguém!”. O outro menino disse: “Nós não sabíamos que o rei se apressaria em
matá-lo! Porém, graças a Deus que ele não fez mal à esposa”. Então o rei
empurrou a porta e, com um alfanje nas mãos, disse-lhes: “Contem-me a
verdade; revelem quem os instruiu a dizer o que disseram, e quem lhes deu este
dinheiro! Como foi essa história?”. Responderam: “Dê-nos garantias de vida, ó
rei, e nós contaremos a verdade!”. Ele disse: “Concedido”. Eles disseram: “Os
vizires fulano e sicrano nos instruíram a dizer tudo quanto você ouviu e nos
deram este ouro”. O rei saiu como louco e ordenou a convocação dos vizires, e,
quando eles se apresentaram, o rei os insultou, amaldiçoou e disse: “Vocês se
privaram do bem nesta vida e na outra. A inveja os levou a fazer o que fizeram e
é imperioso que eu os torne uma lição para todos”. Ordenou que fossem
crucificados, torturou-os de várias maneiras e lhes confiscou os bens,
entregando-os aos descendentes de Abœ Tamåm, aos quais também presenteou
com trajes honoríficos e cobriu de gentilezas; em seguida, foi até a esposa,
contou-lhe toda a história e disse: “Os invejosos precipitaram Abœ Tamåm na
aniquilação e conspurcaram a sua honra, mas graças a Deus que você está bem”.
A mulher respondeu: “Pobre Abœ Tamåm! Por Deus que nunca vi homem mais
casto! Não fora ele, você jamais teria ficado comigo”, e lhe contou tudo quanto
Abœ Tamåm fizera quando o rei o enviara com o pedido de casamento, e como
fora zeloso com ela durante o caminho. O rei ficou enormemente arrependido, e
sua vida se tornou um desgosto pela perda de Abœ Tamåm, cujo cadáver a
esposa do rei resgatou do poço e enterrou no melhor lugar, nele construindo uma
vastíssima cúpula, e tanto o lamentou e chorou que morreu, sendo enterrada ao
seu lado. A vida do rei se tornou um desgosto maior ainda pela perda da esposa e
de Abœ Tamåm.
[Prosseguiu o rapaz:] “Foi isso o que sucedeu a ele, ó rei do tempo, em razão
da pressa em matar. E temo que a você ocorra o mesmo arrependimento que
ocorreu ao rei que matou Abœ Tamåm. Adiar as coisas não é nocivo, pois, se
aquele rei tivesse adiado a morte de Abœ Tamåm, se tivesse tido paciência, as
coisas se teriam esclarecido e sua inocência se demonstraria; contudo, ele se
apressou em matá-lo e se arrependeu quando o arrependimento já não
adiantava”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 194ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei: “Caso você se
apresse em me matar, arrepender-se-á tal como o rei „lån ³åh se arrependeu por
ter matado Abœ Tamåm; tomara Deus se demonstre a minha inocência”. O rei
então ordenou que ele fosse devolvido à prisão.
Quando foi o nono dia, [207] o nono vizir compareceu e disse: “Ó rei, você
está apreciando as palavras desse rapaz e prolongando-lhe demasiado a
existência, sem saber o que o povo anda dizendo sobre a sua honra – são
infâmias e vergonhas contra você e contra nós”. Em seguida saiu dali, reuniu-se
aos outros vizires e foi até a mulher do rei, a quem disse: “O rei já não tem zelo
nem preocupação em defender a honra. Se você ouvisse o que o povo anda
falando do rapaz e de você! Estão dizendo que você está apaixonada por ele e
por isso não deixa o rei matá-lo”. Ouvindo aquilo, a mulher foi até o rei e lhe
disse: “Ó rei, mantendo esse rapaz vivo você me veste com os trajes da infâmia!
Já não tem zelo por mim! Ou você me mata e me dá repouso, ou o mata, fazendo
com que as pessoas parem de falar a nosso respeito”. Encolerizado, o rei
ordenou que o rapaz fosse trazido à sua presença. Já tendo ouvido muita
conversa, e informado das palavras dos vizires e da mulher, que incitara o rei a
matá-lo, o rapaz disse: “Que Deus apoie o rei! Saiba que a melhor precaução é o
aquietar-se durante a cólera. Ninguém deve fiar-se nas palavras das mulheres,
pois a elas lhes faltam juízo e fé; as mulheres não atentam para o que dizem. Por
isso é que o testemunho de um homem vale o de duas mulheres, e na herança
elas recebem a metade do que recebe o homem – é porque elas não se
preocupam com as consequências. Tudo quanto essa mulher disse deve-se ao
medo. O coração[208] das mulheres é fraco, elas não têm paciência e querem
preservar a honra,[209] tal como a mulher de ³åh „wån, que de tão preocupada
consigo mesma quis matar o próprio filho”. O rei perguntou: “E como foi a
história dele?”. O rapaz respondeu:
O rei e seu enteado
Que a sua existência se prolongue! Saiba, ó rei do tempo, que certo rei antigo
houve, denominado ³åh „wån, temido pelos outros reis graças ao seu grande
exército, de muitos soldados. Ocorreu então que alguns dos notáveis de seu
governo reuniram-se para conspirar e disseram: “Se o rei não for corajoso nas
guerras e nos combates, atacando seus inimigos, nem ele nem seu exército
gozarão de respeito ou terão lei que os governe”. O vizir disse: “Eu lhes
prepararei um estratagema”, e em dada noite disse ao rei: “Amo, Deus já lhe
concedeu um reino magnífico e vastas províncias. Agora, você necessita de uma
esposa que lhe cause orgulho diante dos reis, uma que não tenha neste tempo
quem se lhe assemelhe em beleza, e que descenda dos maiores reis, a fim de lhe
dar um filho que ocupe o poder depois de você”. O rei perguntou: “Onde acharei
alguém com tais características?”. O vizir respondeu: “Peça a mão da filha do rei
de Bizâncio, que é a maior e melhor descendente de reis” – mas ele sabia que o
pai dela não a daria em casamento. O rei ³åh „wån enviou ao rei de Bizâncio um
mensageiro carregado de presentes e joias para pedir-lhe a mão da filha em
casamento; ao chegar, porém, o rei de Bizâncio lhe disse: “Ela não serve para o
rei de vocês”, e devolveu os presentes. O mensageiro retornou e inteirou ³åh
„wån de tudo quanto fora dito, informando-lhe ainda não existir naquele tempo
ninguém mais belo que a sua filha, e então o amor por ela se apossou do coração
de ³åh „wån, que se apaixonou de oitiva, pois, conforme se diz, às vezes o
ouvido se apaixona antes do olho.
A paixão por ela levou-o a preparar um exército enorme, entre cujos membros
ele distribuiu dinheiro e trajes honoríficos, ordenando-lhes que realizassem
algaras contra as terras do rei de Bizâncio – matando e fazendo prisioneiros – e o
trouxessem cativo.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 195ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
³åh „wån disse a seus soldados: “Vão até o rei de Bizâncio e tragam-no
aprisionado para mim”. Os soldados viajaram, as expedições saindo uma após a
outra, até que invadiram o início de seu reino, cativando, matando, aprisionando
e destruindo, sem que o rei bizantino os pudesse enfrentar. Seu vizir lhe disse:
“Ó rei, você já perdeu a maior parte de seu país e seus soldados foram
aniquilados, tudo por causa de sua filha. O interesse impõe que você peça um
acordo ao rei ³åh „wån, casando-o com sua filha e nos livrando desta guerra”, e
então o rei bizantino enviou um mensageiro a ³åh „wån e o casou com ela.
Ao consumar o casamento, ³åh „wån[210] se encantou com a esposa, que se
apossou de seu coração por inteiro, e o amor por ela levou-o a negligenciar tudo
o mais. O pai da jovem, porém, prometera-a em casamento a outro rei antes de
³åh „wån, e a mãe a entregara àquele rei sem o conhecimento do pai; ela
engravidara e dera à luz um menino, mas esse rei a quem fora prometida morreu
e sua mãe escondeu o caso, inventando que o menino era filho da camareira de
sua filha. Quando o afeto pelo menino ficou muito forte, ela o tornou um dos
principais escravos de seu pai, que passou a dignificá-lo pelo fato de ser ele filho
da camareira de sua filha. A mãe se contentava em vê-lo de longe e, por isso, não
se casava nem viajava para nenhum outro país. Após seu casamento com ³åh
„wån, contudo, muito saudosa do filho, sua paciência se esgotou e ela disse certo
dia ao marido: “Ó rei, Deus lhe deu de tudo que os reis podem possuir; contudo,
eu tenho um criado sem igual em inteligência, conhecimento e beleza; por isso,
gostaria que ele fosse seu”. ³åh „wån respondeu: “Enviarei ao seu pai um
mensageiro para pedi-lo”. Ela disse: “Creio que ele não concederá, pois lhe tem
muito afeto; você deve, isto sim, enviar alguém que o engane e traga o rapaz sem
que ele saiba”. O rei então convocou um homem inteligente e ardiloso, a quem
informou os sinais do rapaz, e lhe disse: “Veja algum ardil para trazê-lo sem que
ninguém perceba”. O homem se encaminhou até a capital do rei bizantino, pai da
moça, e fez artimanhas até conseguir ver o rapaz a sós, dizendo-lhe, enfim, após
dirigir-lhe palavras afáveis: “Coitado de você! Se acaso estivesse com o rei ³åh
„wån, ele lhe daria um grande país!”, e tanto o agradou, e tantas promessas lhe
fez, que o rapaz perguntou: “Como chegar até esse rei?”. O homem respondeu:
“Eu posso levá-lo até ele, com a condição de que você me dê uma parte de tudo
quanto ele lhe der”. O menino respondeu: “Sim!”, e o homem o levou, fugindo
por outro caminho, até fazê-lo chegar a ³åh „wån, o qual, ao vê-lo, agradou-se
dele, dignificou-o e aproximou-o. A mãe se contentava em observá-lo. Quando
as criadas a viram esticando os olhos para o lado do rapaz, desconfiaram e
supuseram que ela estava apaixonada, pois não sabiam que se tratava de seu
filho. Certo dia, quando ele passava perto dela, o afeto a fez perder o juízo e
aninhar-lhe a cabeça junto ao peito. O rapaz se subtraiu dela e fugiu. Ao ver
aquilo, o rei refletiu e disse: “Não restam dúvidas de que esta mulher, quando
estava com o pai, amava este rapaz e lançou mão dessa artimanha para trazê-lo
até aqui, a fim de atingir seu anelo”; ordenou então que o rapaz fosse preso, mas
a deixou em paz, pois era intenso o seu amor por ela; como o desgosto com
aquilo, porém, impedia-o de brincar com a mulher conforme era seu hábito, ela
lhe disse: “Ó rei do tempo, nunca ninguém me tocou além de você. A infâmia e a
desonra me atingiram por causa desse rapaz, que lhe fez alterar o coração. O
mundo tornou-se para mim um desgosto em razão do seu desgosto, e eu lhe peço
que nos mate”. O rei ordenou que o rapaz fosse morto por um de seus
secretários, mas este levou-o para casa e pensou: “Como matar esse rapaz que
nenhum erro cometeu?”. Colocou-o então em um sótão de sua casa e lhe
arranjou comida e bebida.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 196ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
O secretário guardou o rapaz no sótão, providenciou-lhe comida e bebida, e
informou o rei de que o matara; o rei informou à esposa, mãe do rapaz, e ela,
muito entristecida, disse-lhe: “Você fez a melhor coisa”, mas em seu coração
crepitavam as chamas da tristeza pelo filho; alterada pela enormidade que lhe
sucedera, perdeu todo o equilíbrio. Na casa do rei havia uma velha camareira em
quem a mulher confiava; gostava dela e lhe fazia confidências. A velha
perguntou à mulher: “Por que todo esse choro e essa tristeza em que está
mergulhada? Conte-me o motivo disso!”. Como não obtivesse resposta, a velha
tanto insistiu nas perguntas que a mulher disse: “Choro por algo que já passou, e
para o qual já não existe artimanha”. A velha disse: “Não há doença para a qual
não exista remédio. Não esconda nada de mim e conte-me toda a sua história”, e
então a mulher lhe revelou tudo, e que no final das contas acabara provocando a
morte do filho por causa do rei. A velha lhe disse: “Você produziu cólera tal em
seu amo que o levou a matar-lhe o filho, e, no entanto, não reconquistou o
coração do rei. Existe desgraça maior que essa? Porém, não fique angustiada
com isso, pois se Deus quiser eu dispersarei essa aflição de você e do rei, de
modo a fazê-lo saber que você é inocente e não errou, e a deixá-lo arrependido
pelo que cometeu, tornando-a para ele a pessoa mais querida. Para tanto, quero
que, nesta noite, você se deite na cama e finja estar dormindo; quando o rei
chegar, colocar algo sobre o seu peito e disser: ‘Gostaria que você me informasse
de tudo quanto fez por causa daquele rapaz’, conte-lhe tudo quanto você me
contou, do começo ao fim, inclusive que foi a sua mãe que reuniu você a seu
primeiro esposo; depois, cale-se e não fale mais nada”. Em seguida, a velha se
retirou, foi até o rei e se pôs a conversar com ele, passando de uma história a
outra, enquanto o rei refletia sobre a morte do rapaz e se condoía por estar
distanciado da esposa. A velha lhe disse: “Ó rei, conte-me qual o motivo de sua
tristeza, e quiçá disso não provenha a sua libertação!”. Então o rei lhe contou a
história da esposa e do rapaz. A velha disse: “Essa é uma questão fácil! Se você
quiser saber a verdade dessa história, bem como o que vai pelo coração de sua
mulher, traga-me cinco penas de pavão para que eu faça nelas alguns sortilégios.
Quando a sua mulher dormir, coloque essas penas sobre o peito dela e diga: ‘Por
esses nomes que recitei e pelos sortilégios, revele-me o que seu coração sente
pelo rapaz, com a sua própria língua’. Ela falará com a sua própria língua sobre
o que tem no coração, e você saberá a verdade sobre esse assunto, dispersando-
se assim dúvidas, cismas e tentações”. Muito contente, o rei ordenou a um
caçador que lhe trouxesse penas de pavão, as quais foram trazidas e entregues à
velha, que as recolheu, levou-as para casa e retornou antes do anoitecer,
reunindo-se com o rei, entregando-lhe as penas e ordenando-lhe que as colocasse
sobre o peito da mulher. O rei pegou as penas, entrou no quarto, viu que a
mulher estava dormindo, colocou-lhe as penas sobre o peito e disse: “Por esses
nomes que foram recitados, e pelos sortilégios realizados, revele-me qual o seu
caso com o rapaz”, e então a mulher contou toda a sua história. Espantado, o rei
disse: “Como é decidida essa mulher! Ela suportou a morte do filho, por
vergonha e amor por mim!”, e a acordou, tratou-a com gentileza e disse: “Por
que você não me informou que o rapaz era seu filho?”. Ela chorou e disse: “Foi
por vergonha de você! Com isso, eu desejava a sua satisfação!”. Arrependido, o
rei chorou e se lamentou pela morte do rapaz, determinando que lhe
providenciassem uma cerimônia de pêsames. O secretário perguntou ao rei:
“Pêsames por quem?”, e o rei lhe informou a história de cabo a rabo. O
secretário então disse: “Não fique angustiado, ó rei do tempo, pois o rapaz está
vivo em minha casa; posterguei a morte dele até que houvesse certeza dos fatos,
pois a pressa em matar produz enorme arrependimento”. O rei ficou muitíssimo
contente e ordenou que o rapaz fosse trazido à sua presença; quando ele chegou,
colocou-o ao lado da mãe e, constatando que era parecido com ela, estreitou-o ao
peito, revelando-lhe que a mulher era sua mãe; o rapaz ficou contente, bem
como ela, que o estreitou ao peito, e desde então passaram a levar uma boa vida.
[Prosseguiu o rapaz:] “Saiba, ó rei, que as mulheres não se importam em
causar a morte de seus próprios filhos para salvar a honra. Tema a Deus e não se
apresse em me matar”. Então o rei ordenou que ele fosse reconduzido à prisão.
No décimo dia, compareceram os dez vizires, acompanhados dos notáveis e
maiorais da cidade, e pediram para ver o rapaz; quando ele se apresentou,
disseram ao rei: “Ouça destas pessoas o que o povo está dizendo sobre você e
sobre a honra de sua esposa. Ou você mata o rapaz ou abandonaremos a cidade”.
Encolerizado, o rei disse ao rapaz: “Seu traidor, até quando vai me enganar com
as suas histórias? É imperioso que você morra hoje ou me conte a verdade
integral sobre a sua história”. Em seguida, o rei determinou que ele fosse morto.
O rapaz disse: “Ó rei do tempo, se Deus houver estabelecido que devo morrer
agora, de nada me adiantarão precauções, tal como não adiantaram para o rei
Bahr∑z”. O rei perguntou: “E como é a história do rei Bahr∑z? Quais os
prodígios que lhe sucederam?”. O rapaz disse:
O rei Bahr∑z, seu filho e o destino
Conta-se, ó rei do tempo, que entre os poderosos reis do passado um houve
que, embora detentor de grandes províncias, exércitos e tropas, não fora
agraciado com um filho varão que pudesse exercer o poder após a sua morte.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 197ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei:
Como não fora agraciado com um filho varão, Bahr∑z rogou a Deus altíssimo
que o agraciasse com tal filho, a fim de que o sucedesse no reino. Deus então o
agraciou com um filho e, quando este completou um ano, o rei ordenou aos
astrólogos que lhe traçassem o mapa zodiacal; eles assim procederam, efetuaram
cálculos, e lhe disseram: “Ó rei, após sete anos, um leão irá devorar o menino, e
ele, caso escape, irá matar você com as próprias mãos”. O rei Bahr∑z disse:
“Vou levá-lo para um local aonde não cheguem leões e de onde ele não possa
chegar até mim”. Fora da cidade havia uma enorme montanha, em cujo cume se
situava um poço de boca estreita e fundo largo. Quando o menino completou
cinco anos, o rei ordenou que fosse levado para aquele poço, e o abasteceu de
comida, móveis e utensílios, enviando ainda, em sua companhia, uma aia de
confiança. Toda sexta-feira, o rei montava e ia para a boca do poço, a fim de
inspecionar o menino e a camareira.[211]
Ocorreu então que um leão subiu naquela montanha enquanto caçava uma
gazela, a qual, ao se ver no cume, atirou-se dentro do poço, e o leão lhe seguiu
no encalço. A aia fugiu para um dos lados do poço, cujo fundo era bem amplo, e
o leão agarrou o menino pelo braço, atirando-o para fora do poço, e em seguida
devorando a aia. Quanto ao menino, ele rolou até o sopé da montanha, onde um
cameleiro passou e, vendo-o naquele estado, com o sangue a lhe escorrer pelo
braço, em razão do golpe do leão, carregou-o, levou-o consigo para casa, trouxe-
lhe um médico e não parou de tratá-lo até que sarou.
Conforme o hábito, o rei Bahr∑z foi para a boca do poço e gritou pela aia,
mas ninguém respondeu. Alguns criados então lhe amarraram cordas na cintura e
começaram a descê-lo até o fundo do poço, sem que ele avistasse ninguém. Ao
se aproximar do fundo, todavia, viu o leão e gritou para os criados, que o
puxaram de volta. Avisados pelo rei de que no fundo do poço havia um leão
enorme, os criados o alvejaram com flechas, mataram-no, e desceram até o
fundo do poço, mas ali não encontraram nem a aia nem o menino. O rei chorou,
entristeceu-se pelo filho, e disse: “Estavam corretas as palavras dos astrólogos”.
Quando retornou, providenciou uma cerimônia de pêsames, chamou os
astrólogos e lhes informou da história; eles disseram: “Se ele tiver sido devorado
pelo leão, você não morrerá senão em sua cama, e não terá nada que temer de
ninguém”. O rei disse: “Não há escapatória do que Deus altíssimo houver
determinado”.
O filho do rei viveu com o cameleiro até completar vinte anos de idade,
quando então se uniu a um bando de salteadores de estrada e começou a cometer
assaltos e a roubar caravanas. Veio então uma caravana da cidade de seu pai e
eles foram atacá-la, sendo porém derrotados. A caravana entrou na cidade e
informou ao rei Bahr∑z da existência dos bandoleiros, e ele logo lhes saiu no
encalço com uns poucos soldados, os quais acabaram sendo derrotados pelos
bandoleiros. Sozinho, o rei se viu em combate com o filho, que lhe aplicou uma
espadeirada na cabeça, derrubando-o do cavalo; também o rapaz, pela força do
golpe, caiu, sendo atacado e agarrado por um [novo] grupo de soldados, que
fizeram menção de matá-lo, mas o rei lhes disse: “Não o matem até que eu
investigue quem é esse rapaz que me enfrentou em combate e me derrotou”. Em
seguida, convocou os astrólogos e lhes disse: “Não creio que eu vá continuar
vivo, mas não terei sido morto por meu filho!”. Eles disseram: “Ou você se
curará e viverá, ou quem o golpeou é seu filho, ou a previsão dos astros é falsa”.
Ele mandou que o rapaz fosse trazido e lhe perguntou assim que ele apareceu:
“Quem é você? Quem é seu pai?”. O rapaz respondeu: “Só sei que fui criado em
um poço situado no alto da montanha tal e tal, e minha mãe estava comigo.
Quando completei sete anos, fomos atacados por um leão; minha mãe fugiu, o
leão me agarrou pelo braço e me jogou para fora do poço. Fui visto por um
cameleiro que me levou para sua casa e me trouxe um médico que me tratou até
me curar; eis aqui as marcas da pata do leão em meu braço. Quando atingi a
força de homem, passei a assaltar caravanas junto com meus companheiros, até
que se sucedeu isso”. Ao ouvir-lhe a história, o rei chorou junto com os
soldados, e teve certeza de que se tratava de seu filho; todos ficaram espantados
com o poder de Deus altíssimo, convencidos de que a sua predestinação se
efetuara, e de que a precaução contra o destino é inútil. O rei disse: “Graças a
Deus que o reino passará a meu filho depois de mim, e não a meus inimigos”.
Em seguida, cingiu a coroa na cabeça do filho, cuja autoridade sobre o reino foi
reconhecida pelos soldados e pelos notáveis do governo, que lhe prestaram
obediência e colocaram os tesouros do país à sua disposição. Notáveis e vizires
aceitaram que ele fosse o rei; o pai recomendou-o a eles, recomendou-lhe justiça
e atenção para com os súditos. Depois, a doença [provocada pelo ferimento] se
intensificou e ele foi recolhido pela misericórdia divina; seu filho o preparou,
enterrou e se instalou no trono do reino em seu lugar.
[Prosseguiu o rapaz:] “Portanto, saiba, ó rei, que esforços e artimanhas não
têm utilidade contra os decretos de Deus e sua predestinação. É imperioso que
suceda a cada ser humano o que lhe foi escrito na eternidade. Envidei todos os
esforços para que Deus altíssimo prolongasse a minha vida por dez dias, e a ele
rogo que me salve”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 198ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rapaz disse ao rei: “Eu rogo a Deus
que me salve”. Os vizires disseram: “Por Deus que não arredaremos pé daqui até
que ele seja morto!”. O rei lhes disse: “O dia de hoje já se encerrou; amanhã, um
arauto vai anunciar às pessoas, mal amanheça, que compareçam e se ajuntem
para assistir à execução do jovem ladrão”, e ordenou que o rapaz fosse devolvido
à prisão. Quando foi o décimo primeiro dia, o rapaz foi trazido com uma
corrente de ferro ao pescoço e as duas mãos amarradas para trás; as pessoas
acorreram de todo lugar, pondo-se a contemplá-lo e a chorar por ele, pela perda
de sua formosa juventude, enquanto diziam: “Se o rei aceitasse dinheiro, nós
pagaríamos o seu peso em ouro como resgate”. Mas Deus altíssimo determinou,
com sua generosidade, que o chefe dos ladrões – aquele que encontrara o rapaz
ao lado da fonte e o criara –, tendo ouvido notícias de que ele alcançara, junto ao
rei, posição, riqueza e respeito, dirigiu-se para aquela cidade no intuito de
encontrá-lo e informar ao rei que fora ele quem o criara, a fim de receber alguma
benesse. O ladrão entrou na cidade naquele mesmo dia e viu que mercado e lojas
estavam fechados, e que um arauto apregoava: “Quem quiser ver o que será feito
com uma pessoa de baixa origem compareça ao lugar tal, e quem se atrasar não
deve censurar senão a si mesmo!”. O ladrão se aproximou, olhou para o rapaz e
viu que estava amarrado, e o carrasco à sua cabeceira esperando autorização;
reconheceu-o então, gritou, rasgou as roupas, atirou-se sobre ele, empurrando o
carrasco, e implorou socorro ao rei dizendo: “Este é meu filho!”. O rei ordenou
que lhe trouxessem aquele homem, o qual, ao ser colocado diante dele, beijou o
solo e rogou que o seu poder, felicidade e elevação se conservassem. O rei lhe
perguntou: “Este rapaz é seu filho?”. Ele respondeu: “Não, mas eu o criei desde
que tinha um dia ou dois, e dele não vi senão o bem, o decoro, a castidade e a
honestidade. Qual crime o fez merecer a morte, se eu me habituei somente com
seu juízo, fidelidade e bons modos? Não creio senão que seja descendente de
reis!”. O rei perguntou: “Onde você o encontrou?”. Ele respondeu: “No sopé de
uma montanha, enrolado em um manto de brocado bordado a ouro, e sob sua
cabeça havia um saco com mil dinares”. O rei perguntou: “Você ainda possui
algum pedaço desse manto?”. Ele respondeu: “Sim!”. O rei disse: “Traga-o para
mim”, e então ele saiu, retornando com o pedaço de pano, que o rei, ao vê-lo,
reconheceu: pertencia ao manto com o qual eles haviam enrolado a criança!
Recolheu-o, foi até a sua esposa, mãe do rapaz, e lhe perguntou: “Quem estava
enrolado com isto?”. Ao ver o pano, a mulher gritou e disse: “Ai, que pena de
quem estava enrolado nele! Ai!”. O rei lhe perguntou: “Você reconheceria o seu
filho se acaso o visse?”. Ela respondeu: “Sim, ele possui um sinal”. O rei
perguntou: “Qual é o sinal?”. Ela respondeu: “O polegar de seu pé direito está
colado ao indicador”. Então o rei ordenou que o rapaz fosse trazido,
desacorrentado, junto com o chefe dos ladrões; quando eles chegaram, o rei os
introduziu no castelo e disse ao chefe dos ladrões: “Conte-nos em detalhe a
história do menino que você encontrou no deserto de Kirmån enrolado em um
manto bordado a ouro e com um saco de mil dinares sob a cabeça”, e então ele a
contou de cabo a rabo, mencionando a data em que o encontrou, data essa que o
rei registrara; pegou o papel que continha o registro do menino e constatou que
batia com o que dissera o chefe dos ladrões; em seguida, a esposa do rei
descobriu os dedos do pé do rapaz e, vendo o sinal, gritou: “É meu filho, pelo
Deus da Kaaba!”; abraçou-o, o rei também o abraçou, e a notícia correu pela
cidade; acorreram então os notáveis do governo dentre os secretários,
comissários, oficiais e soldados, todos para congratular-se com o rei pelo fato de
seu filho estar bem, e lançaram sobre ele ouro, prata, gemas e pérolas; o rei
libertou prisioneiros, liberou impostos e distribuiu esmolas entre pobres,
miseráveis, letrados e recitadores de Alcorão. Todo mundo se admirou da
capacidade e da generosidade de Deus altíssimo, que fizera aquele ladrão
comparecer naquele dia e informar ao rei a história do rapaz, o qual, não fora
isso, teria sido morto injustamente. Louvado seja aquele que salva das
aniquilações, aquele que não desaponta quem o procura, e para cujos adoradores
nunca se interrompem seus favores!
Quanto aos dez vizires, suas vesículas quase estouraram e eles perceberam
que estavam liquidados. O rei convocou uma assembleia, ordenando, quando se
reuniram oficiais, vizires, secretários, comissários e outros, que o chefe dos
ladrões lhes contasse a história do rapaz de cabo a rabo, e, depois que ele a
contou, agradeceram-lhe pela atitude, deram-lhe bastante dinheiro e roupas
honoríficas e disseram: “Isso se deve à generosidade de Deus. Você foi o motivo
disso: não houvesse comparecido hoje, o rei teria matado seu filho, colérica e
equivocadamente”. O rei deu ao chefe dos ladrões um traje honorífico, bastante
dinheiro e a vila onde morava, para que nela vivesse, ele e sua prole, até a
extinção de sua descendência, homens e mulheres; cingiu a coroa real na cabeça
de seu filho e lhe deu o nome de Ba¿t Dår;[212] em seguida, perguntou à esposa:
“Conte-me a verdade sobre sua história com seu filho, sobre como ele entrou no
quarto e dormiu na minha cama”. Ela então lhe fez sólidas juras de que não
havia visto o rapaz senão naquela hora, e ele também jurou o mesmo. Em
seguida, a mulher disse: “Saiba, ó rei do tempo, quanto à história que lhe contei
a respeito do rapaz, que ela me foi ensinada pelos vizires, a fim de que ele fosse
morto, tal é a inveja que lhe têm devido à proximidade dele com você. Eu não
concordei em dizer aquilo senão por vergonha de você. Agora, porém, graças a
Deus, que fez prevalecer a verdade e desmascarou a falsidade, concedendo-nos a
integridade do nosso filho, o bom final, e a salvação de minha honra; é essa a
generosidade de Deus e sua bondade para conosco”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 199ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o rei se voltou para seus vizires e lhes
disse: “Seus extraviados ignorantes! O que lhes fez este rapaz para que
lançassem calúnias e difamações contra ele?”. Não encontrando o que responder,
os vizires abaixaram a cabeça e se mantiveram calados. O filho do rei disse: “O
que lhes sucedeu foi provocado por suas próprias mãos, pés e línguas”. O rei
perguntou: “E como é isso?”. Ele respondeu: “É com esses membros que se
buscam as coisas: a mão traidora que não evita a traição, a língua mentirosa que
não fala a verdade, e os pés, que vão atrás da mão e da língua. Esses aí estavam
habituados a comer seu dinheiro e a meter a mão em seus tesouros; quando você
me encarregou de tais tesouros, as mãos deles encurtaram e eles não puderam
continuar fazendo o que bem entendiam, sendo então tomados por inveja, ódio e
hostilidade. Quando entrei no quarto e sucedeu tudo aquilo, abriu-se-lhes uma
porta pela qual pretenderam me aniquilar: elaboraram aquela artimanha,
instruíram minha mãe sobre o que dizer e passaram, diariamente, a incitá-lo a
matar-me. Quando Deus altíssimo foi generoso comigo e demonstrou minha
inocência, a armadilha deles se enrolou em suas próprias gargantas, pois não têm
o que dizer”. O rei então lhes perguntou pela segunda vez: “Por que motivo
vocês quiseram matar e aniquilar o meu filho?”. O maioral dos vizires
respondeu: “Não há o que me censurar. Quem vê alguém menor que si em
capacidade e idade receber mais autoridade deve eliminá-lo”. O segundo dos
vizires respondeu: “Como pode ter paciência quem vê outro tomar seu lugar e
posição, tornando-se maior que ele?”. O terceiro respondeu: “Aquele em quem
eu mandava passou a mandar em mim; logo, não quero senão eliminá-lo”. E,
assim, cada um dos vizires respondeu algo. O rei disse: “Nunca vi nada melhor
que a prática do bem; quem o pratica o encontra em si mesmo; assim também
ocorre com o mal. Cada ser humano não deve desejar para os outros senão o que
deseja para si mesmo”.[213] Em seguida, o rei determinou que seus pescoços
fossem cortados e disse: “Ó vizires perversos, engendradores de armadilhas e
trapaças! Quiseram matar meu filho sem que ele tivesse cometido crime
nenhum, e tentaram me levar a matá-lo, tudo por inveja dele! Porém, Deus lhe
concedeu paciência e vitória, e vocês encontrarão a iniquidade de suas ações”.
Ordenou que fossem crucificados e que suas casas e bens fossem saqueados.
Instalou o filho no trono, e os outros reis lhe enviaram presentes.
Sindabåd, o navegante[214]
[Prosseguiu ³ahrazåd:] “Mas esta história não é mais assombrosa que a de
Sindabåd”.[215] A irmã lhe perguntou: “E como foi a história dele? O que lhe
aconteceu?”. Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que havia em Bagdá[216] um homem
chamado Sindabåd, o carregador, que certo dia transportou um pesado
carregamento até um local distante debaixo de um sol bem forte, sendo então
prejudicado pelo cansaço e exaurido pelo esforço. O calor intenso fez-lhe
escorrer o suor e aumentar a preocupação. Passou então por uma ruela de brisa
suave e eflúvio agradável, da qual emanavam odores de sândalo e almíscar.
Largou o fardo dos ombros, quase desmaiando de cansaço, e se sentou para
descansar. Ouviu então, de uma casa situada no ponto mais elevado da ruela,
sons de alaúde e outros instrumentos musicais; aspirou aroma de flores e de
saborosas comidas; viu criados e escravos parecidos com luas entrando e saindo,
vestidos de roupas opulentas; viu coisas que deliciavam os olhos e
proporcionavam repouso à alma; erguendo o olhar para o céu, disse, movido
pelo cansaço excessivo e pelo esgotamento: “Ó criador de tudo, em você busco
ajuda e perdão dos pecados. Não me oponho ao que você quer, mas por que
enriquecer esse daí, que vive na luxúria, enquanto mal consigo matar a minha
fome com pão de cevada? O outro goza de delícias sem labuta nem cansaço, e
reúne tudo quanto é esplendoroso!”. Abaixou a cabeça, abatido, e recitou com o
coração contristado:

“Sou um desgraçado sem repouso,
a quem o destino impôs peso sem igual;
ele se refestela em constantes prazeres,
caçando, cantando, bebendo e comendo,
e eis-nos aqui, meras estátuas de metal!
Mas o meu caso é bem pior que os outros!”.[217]

Assim que ele concluiu a sua poesia, subitamente um criado saiu da casa, pegou-
o pela mão e disse: “Atenda o meu senhor! Ele não suporta desobediências!”. O
criado deixou-lhe o fardo no quintal da casa, recomendando ao porteiro que o
vigiasse, e subiu até o palácio com o carregador, que viu o local arrumado para
bem receber, cheio de comensais, com várias espécies de comidas, aromas,
instrumentos musicais, belos criados e, no ponto mais elevado da sala, um velho
de aspecto respeitável e cerimonioso, com luzes de venerabilidade, a quem,
assombrado e extasiado, o carregador Sindabåd cumprimentou, sendo
correspondido e chamado pelo velho, que, dono do lugar, acomodou-o ao seu
lado, pondo-se a conversar com ele animadamente e dando-lhe comida e bebida.
Tão logo seu terror e exaustão passaram, o velho lhe perguntou: “Qual o seu
nome, meu irmão?”. Ele respondeu: “Sindabåd, o carregador”. O velho disse:
“Você nos honrou e entreteve com a demonstração poética feita agora há pouco”.
O carregador beijou o chão de constrangimento e, tomado pela vergonha, disse:
“Meu amo, a exaustão e as dificuldades resultam em estupidez! Eu estava fora
de minha razão devido ao cansaço, e então me escapou aquilo que você ouviu”.
O velho disse: “Você não corre nenhum risco, meu irmão! Recite os versos para
mim!”. O carregador os repetiu, e o dono da casa disse: “Saiba que sou chamado
de Sindabåd, o navegante, e não suponha que todo este conforto foi obtido sem
fadigas ou canseiras; ao contrário, minhas fadigas foram as maiores, e sofri
dificuldades e terrores. A simples audição da minha história é de arrebentar a
vesícula e deixar perplexa a mente dos inteligentes. Ouçam, portanto, o relato de
minhas sete viagens, meus senhores, e fiquem perplexos, pois seus pontos de
partida são assombrosos, e insólitos os seus pontos de chegada”. Em seguida,
ordenou a um criado que enviasse o fardo do carregador Sindabåd para o local
aonde teria de levá-lo, e o criado o enviou por meio de outro carregador. Então, o
navegante Sindabåd voltou-se para o grupo e disse:
Primeira viagem
Saibam que meu pai era um grande mercador, proprietário de vastos cabedais, e,
quando ele se mudou para a misericórdia divina, herdei muito dinheiro e passei a
conviver com amigos e camaradas, em cuja companhia efetuei gastos tão
vultosos que, ao acordar da embriaguez de minha estupidez, verifiquei que o
dinheiro partira e a boa situação sumira.[218] Despertei do meu torpor
parecendo aterrorizado, e, considerando a situação sumamente grave, temi a
pobreza e me acudiu à mente a lembrança do que se dizia: “Três coisas são
melhores que outras três: o dia da morte é melhor que o dia do nascimento, um
cão vivo é melhor que um leão morto, e o túmulo é melhor que a pobreza”.[219]
Apressei-me em me desfazer do que me restava de metais, mobílias e
instrumentos: levei tudo ao mercado e ali vendi, reunindo três mil dirhams, com
os quais comprei mercadorias e reforcei minha disposição de viajar, lembrando
as palavras do poeta:

“É com esforço que se alcançam as alturas,
e quem quer elevar-se passa a noite desperto.
Se desejas crescer e contudo dormes à noite,
os caçadores de pérola mergulham no mar.
Quem procura subir sem no entanto cansar
desperdiça a vida na procura do impossível”.

Em seguida desloquei-me, a bordo de um navio, até Basra, e pus-me a navegar
por seu mar, em cuja margem direita ficam os árabes,[220] e em cuja margem
esquerda ficam os persas. Menciona-se no Livro dos reinos e das rotas[221] que
esse mar possui setenta parasangas de largura e muitas montanhas, confinando
com a Terra dos Negros[222] e com o Mar Vermelho; a partir daí, passa a ser o
grande Mar Oriental, cujo comprimento desde o Mar Vermelho até as Ilhas de
Alwåq é de quatro mil e quinhentas parasangas, e dele saem grandes pérolas; em
suas cercanias, está a Terra dos Negros e a Abissínia. Permanecemos viajando de
ilha em ilha, vendendo e comprando, até nos aproximarmos de uma ilha verde na
qual atracamos, e os passageiros ali desembarcaram, espalhando-se pela ilha,
onde se puseram a comer e a beber. Estávamos nessa situação quando
repentinamente o solo da ilha estremeceu, balançou e se agitou, e o capitão
gritou alto e bom som: “Voltem para o navio e procurem salvar-se, pois essa ilha
é um monstro marítimo ao qual dão o nome de baleia!”. Todos acorreram para o
navio, mas alguns não chegaram a tempo, e eu estava entre os que se atrasaram!
Antes que nos déssemos conta, o monstro mergulhou; com o resto de minhas
forças, agarrei-me a uma tábua e pus-me a bater os pés enquanto as ondas me
empurravam. A agitação do mar aumentou, e ele se elevou, encapelou e crispou
de ondas, que me arrastaram dia e noite. Quando amanheceu, meu sopro vital a
ponto de esvair-se, eis que uma onda jogou-me na orla de uma ilha na qual subi,
mal controlando meu aniquilamento, e ali me estirei feito morto.[223] Logo que
o sol amainou, pus-me a vagar, ora de pé, ora de rastos, ora caindo, ora me
levantando. Encontrei na ilha alguma fruta e fonte de água doce; comi o
suficiente para matar a fome, bebi da fonte e dormi enfim naquela noite,
recuperando então ânimo e vigor; caminhei, pois, e vislumbrei na orla marítima
algo semelhante a uma montaria; avancei em sua direção, e eis que se tratava de
uma égua amarrada da qual me aproximei, sendo então repreendido aos gritos
por um homem que estava em uma vala, e, ao voltar-me, ele me perguntou: “Por
acaso, quem é você?”. Respondi: “Sou náufrago”. Ele se achegou e me pegou
pela mão.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 200ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Sindabåd, o navegante, disse ao grupo:
Ele me pegou pela mão e me fez descer à vala, onde me providenciou comida
e bebida. Perguntei-lhe: “Por que você está aqui, meu irmão? Por que motivo
aquela égua está amarrada?”. Respondeu: “Somos cavalariços do proprietário
desta ilha, cujo nome é rei Mihråj.[224] Todo ano ele envia conosco uma égua
que amarramos na orla, escondendo-nos em seguida neste lugar; então, surge um
cavalo-marinho e a cobre; quando desce de cima dela, faz tenção de matá-la, e é
nesse momento que nós começamos a gritar, afugentando o cavalo-marinho para
o mar. Recolhemos a égua, voltamos de onde viemos e cuidamos dela até que dê
à luz o filhote, ao qual criamos; [vale muito dinheiro e não tem igual sobre a face
da terra].[225] Este é o último dia de nossa estada aqui e, se acaso não tivesse
vindo agora, teríamos voltado e você morreria, pois a civilização está tão
distante daqui que você não saberia encontrar o caminho de volta”. Enquanto ele
assim falava, subitamente emergiu do mar um cavalo-marinho que, após cobrir a
égua amarrada, desceu de cima dela e fez tenção de matá-la, mas o homem
gritou com ele, fazendo-o atirar-se ao mar. Em seguida, gritou alto e bom som e
seus companheiros foram chegando, cada qual com uma égua. Montaram todos,
fizeram-me montar e cavalgamos até a cidade do rei Mihråj, diante do qual me
depuseram. Ele me indagou a respeito de minha história e eu lhe contei tudo
quanto se passara comigo. Admirado com o meu relato, ordenou que me dessem
bastante dinheiro, e permaneci naquela cidade algum tempo, durante o qual o rei
me questionava sobre Bagdá, sobre sua situação e arquitetura, e de tudo eu lhe
dava notícia. Nas [proximidades da] cidade daquele rei havia uma ilha a que
chamavam Kåsil, na qual se ouvia som de tambores ao longo da noite, e os
marinheiros diziam que o Anticristo estava lá aprisionado.[226] Avistei naquele
mar uma espécie de peixe cujo comprimento é de seiscentos e sessenta metros;
nos navios, que temem tais peixes, tocam-se tambores e placas de metal[227]
quando eles são avistados, pois, caso se aproximem, fazem o navio adernar e
afundar. Também vi naquele mar um peixe de cerca de sessenta centímetros com
rosto semelhante ao da coruja.
[O rei me nomeou responsável pelo porto, encarregado de registrar a entrada
de todos os navios],[228] e após alguns dias chegou e aportou no litoral da
cidade um navio com mercadores e suas mercadorias. Logo me pus a registrar o
nome de cada mercador escrito em suas mercadorias, e então o capitão retirou
uns fardos e disse: “Isto está consignado em confiança no nome do navegante
Sindabåd”. Ao ouvi-lo, dei um passo adiante e lhe perguntei: “Meu senhor, e
onde está o dono desta consignação?”. Ele respondeu: “Havia conosco um
mercador de Bagdá. Desembarcamos no dorso de um monstro marinho
presumindo que fosse uma ilha, mas, quando os passageiros começaram a
cozinhar em seu dorso, o monstro sentiu o calor do fogo e submergiu no mar;
alguns se afogaram e outros se salvaram. Sindabåd estava entre os que se
afogaram. Estes são seus cabedais, e estamos comerciando-os para depois fazê-
los chegar aos seus filhos e familiares”. Gritei: “Eu sou Sindabåd! Estas são
minhas mercadorias! Ouça a minha história”. O capitão disse: “Ninguém mais
tem confiança nem diz a verdade... Nós o vimos sendo arrastado no mar pelas
ondas! Ele se afogou; deixe-se de absurdos”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 201ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Sindabåd disse ao seu grupo de
comensais:
Eu disse ao capitão: “Não se apresse, amo, e ouça a minha história”, e lhe
contei que me acontecera isso e aquilo, relatando-lhe minha história de cabo a
rabo, citando o nome dos mercadores que estavam no navio e informando que os
cavalariços do rei dali é que me tinham feito chegar à cidade, caso contrário eu
teria morrido naquela ilha. O capitão então me examinou e reconheceu: eu havia
mudado em razão da fome e do medo que sofrera. Levantou-se, abraçou-me e
disse: “Graças a Deus que você está bem! Por Deus que você nos deixara sem
saber o que fazer! Estes são os seus fardos; leve-os”. Recolhi meus fardos e
escolhi um presente para o rei Mihråj, a quem informei do que ocorrera; seu
espanto aumentou e ele me cumulou de presentes. Os mercadores venderam suas
mercadorias e compraram daquela cidade o que era apropriado para a cidade de
Bagdá, e eu agi como eles. Despedi-me do rei, compramos aloés, sândalo,
cânfora e cravo, embarcamos e zarpamos, passando de ilha em ilha até chegar a
Basra, de onde nos deslocamos a Bagdá. Com um lucro de cem mil dinares, fui
para minha casa, juntando-me aos meus familiares e filhos; comprei criados e
criadas, bem como as posses das quais me desfizera. Lancei-me avidamente à
busca de prazeres e ao desfrute de deleitamentos e gozos, esquecido das
dificuldades e das situações de aniquilamento que enfrentara.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Quando terminou sua história, o navegante Sindabåd
ordenou que trouxessem comida e bebida, e todos comeram, beberam,
desfrutaram prazeres e se divertiram;[229] depois, ordenou às escravas que
tocassem os instrumentos musicais, e todos se emocionaram; em seguida,
ordenou que dessem dez dinares ao carregador Sindabåd e lhe disse: “Amanhã
retorne a este lugar para ouvir a segunda história”. O carregador pegou o
dinheiro, beijou-lhe a mão, rogou por ele e voltou feliz para os seus familiares,
dizendo: “Graças a Deus, que foi generoso conosco por meio desse homem!”.
Quando amanheceu, o carregador foi até o mercado e comprou para seus
familiares o que eles necessitavam, sendo pródigo nos gastos. Em seguida,
retornou à casa do navegante, onde encontrou um criado na porta a esperá-lo.
Quando ele entrou, cumprimentando e rogando para o dono a proteção e a
misericórdia divinas, Sindabåd lhe deu boas-vindas e determinou que se
acomodasse, pois os comensais já estavam reunidos desfrutando prazeres,
aproveitando todos os momentos e deleitando-se com os gozos; quando afinal
colheram a sua cota de prazeres, o navegante Sindabåd disse: “Ouçam a segunda
história”, e prosseguiu:
Segunda viagem
Fiquei naquela situação por um ano completo, ao cabo do qual, novamente
acometido pelos anseios de viajar, comprei tecidos e demais mercadorias
adequadas para aquela região.[230] Embarquei em um navio pronto para zarpar,
com companheiros convenientes, e nos fizemos ao mar, pondo-nos a passar de
ilha em ilha, a vender e a comprar, até que por fim desembarcamos em uma ilha
de muitas árvores e frutas, mas vazia de gente e de construções; ali descemos e
passeamos. Peguei minha refeição e me sentei sozinho na beira de um rio,
inteiramente desacompanhado; comi, bebi e, confortavelmente batido pela brisa,
dormi. Exalçado seja aquele que não dorme! Quando acordei, corri para a praia e
constatei que o meu navio já partira! Haviam me esquecido! Fiquei ali sozinho,
tão solitário que minha vesícula esteve a ponto de estourar. Perdi a esperança no
mundo, desesperei-me da vida e censurei minha alma, que tanto adornara para
mim as viagens marítimas. Arrependi-me de ter saído de Bagdá, mas já de nada
me adiantava o arrependimento! Trepei em uma árvore elevada, olhei à direita e
à esquerda, mas não vi senão céu e água; então, despontou na ilha algo branco ao
longe; desci da árvore, muni-me de comida, fui na direção daquele branco, e eis
que se tratava de uma grande abóbada branca e lisa. Aproximei-me.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 202ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Aproximei-me da abóbada e caminhei em seu entorno, mas não encontrei
nenhuma porta nem pude subir nela por causa da sua lisura; sua circunferência
era de cinquenta jardas. Quedei-me perplexo, o sol se aproximando do ocaso, e
eis que de repente o tempo escureceu em virtude de uma nuvem que surgiu;
lancei-lhe um olhar, e eis que era um pássaro imenso que chegava, e que me fez
lembrar uma conversa de marinheiros segundo a qual existia na ilha uma ave
chamada roque. Aquela abóbada era o seu ovo, e sobre ele o pássaro pousou. Eu
ficara ali grudado ao ovo, e uma das garras do pássaro pousou à minha frente,
parecendo uma barra de ferro. Aproximei-me da garra, soltei meu cinto, que era
bem resistente, amarrei uma das pontas em minha cintura e a outra à garra, e
apertei com firmeza, pensando: “Quando ele voar talvez me leve à civilização,
pois aqui estarei inevitavelmente liquidado”. Quando a aurora raiou, o pássaro
roque saiu voando comigo amarrado à sua pata, e tanto se elevou que me
pareceu que se encostaria no céu; em seguida voltou-se para baixo em busca da
terra, aproximando-se de celeiros de trigo fora da cidade. Quando restavam uns
três metros entre mim e a terra, saquei uma faca que trazia na cintura e tentei
cortar aquela amarra, mas ela não se rompeu, e a ave tornou a subir comigo,
descendo em um vale, e então rompi a amarra, e eis que o pássaro descera para
pegar uma cobra enorme, após o que subiu, enquanto eu permanecia naquele
vale que, de tão profundo – situado no sopé de quatro montanhas –, a vista não
lhe alcançava a parte superior. Pensei: “A Deus pertencemos e a ele
retornaremos! Cada calamidade que vem é bem pior que a anterior!”. Caminhei
pelo vale, e eis que ele continha o metal diamante, que é uma pedra branca que
perfura todas as outras pedras, sendo usado para perfurar pérolas; nem o rochedo
nem o ferro o quebravam; somente o chumbo podia fazê-lo. Naquele vale
também viviam cobras enormes, cada qual do tamanho de um elefante; durante o
dia se escondiam daquele pássaro; só apareciam à noite. Quando o crepúsculo se
aproximou, entrei em uma gruta no sopé de uma das montanhas e lhe tapei a
entrada com uma grande pedra. Subitamente, as cobras apareceram e eu as
observei por uma fenda na pedra; eram do tamanho de um búfalo, e o que vi me
deixou aterrorizado. Quando o sol raiou e sua temperatura subiu, elas se
esconderam. Estava eu sentado quando de repente caiu ao meu lado um pedaço
de carne macia, lançado do alto da montanha. Lembrei-me então de notícias
correntes de que mercadores se dirigiam para aquele vale, onde retalhavam
pedaços de carne untados com algo semelhante à cola, ao qual tudo quanto
encosta se gruda; atiram tais pedaços de carne no vale, diamantes se grudam a
eles, as águias descem do alto da montanha atrás deles, recolhem-nos, tornam a
subir para o alto da montanha, e ali os mercadores gritam com as aves, que
largam os pedaços de carne e fogem voando; cada mercador então recolhe os
diamantes grudados ao seu pedaço de carne, e é apenas mediante tal artimanha
que se podem extrair os diamantes daquele vale. Ajuntei o que me foi possível
de diamantes, corri até um grande pedaço de carne e amarrei fortemente minha
cintura a ele com o que restara do cinto. As águias desceram em grande
quantidade, e cada uma agarrou seu pedaço de carne; uma grande águia me
agarrou, voando comigo até me lançar no ponto mais elevado da montanha, e
súbito ouvi gritos altos contra as águias, que largaram os pedaços de carne e
saíram voando. O dono do pedaço de carne ao qual eu me amarrara veio recolher
os seus diamantes, e, ao me ver, exclamou: “Ai, você atrapalhou o meu
negócio!”. Respondi: “Não se preocupe, pois tenho comigo muito diamante, e
lhe darei mais que os seus camaradas conseguiram”. Os mercadores me
cercaram, indagaram a minha história, e lhes contei tudo quanto me sucedera.
Extremamente espantados, levaram-me para a cidade, que ficava no cume da
montanha, e me conduziram ao mercado de joias, onde saquei minha sacola de
couro, que eu enchera de diamantes, tão valiosos que os mercadores jamais
haviam visto iguais. Dei muitas coisas ao dono do pedaço de carne com o qual
eu subira à montanha, e naquela noite me convidaram para jantar e me
dignificaram. Eu imaginava estar sonhando.
Naquelas paragens havia o rinoceronte, que é do tamanho do búfalo; ele se
alimenta de ervas terrestres e tem na testa um chifre de aproximadamente
sessenta centímetros de comprimento e um palmo de largura. Esse chifre é
desenhado de cabo a rabo, e, se você o cortar, verá uma imagem branca em
fundo preto semelhante à de um ser humano ou de certo animal. Os chineses
utilizam-no para fazer cinturões, cuja unidade vendem ao preço de mil dinares.
Os marinheiros relatam que o rinoceronte golpeia o elefante enfiando-lhe o
chifre no ventre, erguendo-o depois a fim de livrar-se dele, mas não consegue, e
a gordura do elefante lhe escorre pelos olhos, impossibilitando-o de enxergar e
consistindo, destarte, no motivo de sua aniquilação, pois cego ele se põe a vagar
pela montanha e dali despenca no precipício, morrendo então.[231] Também
existe naquela ilha um búfalo sem orelhas, além de muitos outros prodígios.
Enfim, vendi os diamantes e comprei mercadorias; chegou um navio com
mercadores que efetuaram vendas e compras; perguntei ao capitão para onde se
dirigiam e ele respondeu: “Bagdá”. Comprei então uma passagem, embarquei
minhas mercadorias e viajamos por dias e noites até chegar, sãos e salvos, a
Bagdá,[232] onde regressei para esta minha casa.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 203ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Então entrei nesta minha casa carregando muito dinheiro; distribuí esmolas,
vesti os pobres, convoquei alfaquis para fazerem preces, e em seguida entreguei-
me aos prazeres e à busca ávida por gozos.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Encerrada a história, ele ordenou que servissem
comida e bebida, e que fossem tocados os instrumentos musicais. Todos
comeram, beberam, gozaram e se emocionaram, sumamente espantados com a
sua história. Quando o dia findou, ordenou que dessem dez dinares ao carregador
Sindabåd, e que este retornasse no outro dia cedo. O carregador beijou-lhe a
mão, rogou por ele e se retirou para casa feliz e contente, retornando na manhã
seguinte para a casa do navegante Sindabåd, e ali cumprimentou, rogou
misericórdia e viu a audiência reunida. O navegante disse: “Ouçam a terceira
história!”.
Terceira viagem
Pus-me, portanto, a buscar avidamente os prazeres, esquecido das dificuldades
que enfrentara, pelo período de um ano, findo o qual minha alma teve anseios de
viajar; adquiri então tecidos e mercadorias, comprei passagem em um navio e
zarpamos, viajando de um lugar a outro. De repente, eis que o capitão, largando
o velame, prorrompeu em lamúrias por nossa ruína em razão das terríveis
catástrofes que aconteceriam. Perguntamos qual era a notícia e ele respondeu:
“Saibam que caímos no arquipélago dos selvagens, que já nos cercaram, e não
podemos matar nenhum deles, pois são mais numerosos que os gafanhotos de
uma praga. Se matarmos um deles sequer, eles matarão todos quantos estão no
navio; se não os hostilizarmos,[233] levarão nossos cabedais e nos salvaremos”.
E, de fato, eis que eles cercaram o navio, nus, vermelhos os pelos e de
palavreado incompreensível, pois eram humanos selvagens, cada qual com altura
de quatro palmos; galgaram o madeirame do navio com as mãos, sem usar os
pés, escalaram-no e subiram a bordo; soltaram as velas e nos conduziram ao
litoral, onde desembarcamos em terra firme; levaram tudo quanto o navio
continha e o destruíram, deixando-nos naquela ilha sem saber para onde ir;
comemos das frutas que ali havia a fim de aplacar a fome. Divisando um castelo
em uma das extremidades da ilha, fomos em sua direção, e, quando chegamos,
eis que era um palácio de construção elevada, cuja porta, adornada com ébano,
estava apenas encostada, abrindo-se quando a empurramos; entramos e vimos
em sua parte superior uma tenda elevada, camas, restos de ossos e espetos de
ferro. Embora intrigados com aquilo, deixamo-nos ficar por ali pelo medo e pelo
cansaço; o sol já se aproximava do ocaso quando súbito adentrou pela porta do
palácio um negro bem escuro, que parecia uma palmeira gigante; os olhos,
brilhantes como brasa, semelhavam crateras; os dentes eram como espetos
compridos; a boca, mais larga que a de um jumento; seus lábios inferiores lhe
chegavam ao peito; suas orelhas eram como as de um elefante; as unhas das
mãos e dos pés pareciam garras. Quando o vimos, perdemos os sentidos e ele
nos rodeou, sentou-se na cama por algum tempo, levantou-se, veio diretamente
até mim, puxou-me pela mão e me ergueu, colocando-me diante de sua cara e
pondo-se a me revirar tal como o açougueiro revira carneiros a fim de distinguir
os gordos dos magros; ao ver que eu era leve, de carnes escassas, largou-me de
lado e agarrou outro; fez isso até que sua mão parou no capitão, que era pesado
de corpo, largo de ombros, o mais corpulento dos homens, e, agarrando-o tal
como o gavião agarra o passarinho, pegou um dos espetos, introduziu-o em seu
ânus, fê-lo sair-lhe pela cabeça, amarrou-lhe mãos e pés, acendeu o fogo, assou-
o na brasa por alguns momentos, acomodou-se na tenda, retalhou-o com as
unhas e o devorou por inteiro, jogando fora os ossos. Em seguida, estirou-se na
cama e dormiu aos roncos até o raiar da aurora, quando então se levantou e saiu.
Ao percebermos que ele de fato se ausentara, acorremos uns aos outros, apesar
da nossa lamentável situação, e dissemos: “Que terrível maneira de morrer!
Haverá alguma artimanha que proporcione salvação?”. Saímos e vagamos pela
ilha, pois assim talvez encontrássemos um local onde nos abrigar, mas nada
encontramos e, incapazes de nos separar uns dos outros, quando anoiteceu
regressamos ao palácio;[234] logo o solo estremeceu e o negro surgiu,
investindo contra nós e fazendo com o mais gordo de meus companheiros o
mesmo que fizera com o capitão: agarrou, assou, devorou e depois se deitou,
dormindo aos roncos. Quando despontou o amanhecer, levantou-se e saiu.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 204ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Assim que o dia surgiu, o negro se levantou e saiu. Dissemos uns aos outros:
“Vamos nos atirar ao mar e morrer afogados! Ainda assim é melhor que esta
morte!”. Eu disse: “Façamos, com estas madeiras, jangadas em que caibam três
homens cada. Elaboremos uma artimanha para matá-lo, e, se ele morrer,
permaneceremos neste palácio, pois quiçá passe por aqui algum navio que nos
transporte; porém, se não conseguirmos matá-lo, embarcaremos aos trios nas
jangadas e navegaremos; salvos ou afogados, será melhor do que esta morte”.
Eles concordaram com a minha proposta e então ajuntamos madeira, enrolamos
cordas com fibras de palmeira, amarramos umas tábuas nas outras e construímos
muitas jangadas, deixando-as na orla. Quando anoiteceu, entramos no palácio, o
negro devorou um de nós, e dormiu. Esperamos que começasse a roncar, pois já
conhecíamos seus hábitos: ele não se levantava senão ao amanhecer. Dois dos
mais fortes dentre nós se levantaram, pegaram dois espetos, e os aqueceram até
ficarem como brasa; depois cada dez de nós agarramos um dos espetos,
aproximamo-nos do negro, que estava deitado de costas, roncando como trovão
de tempestade, e os enfiamos em seus olhos, empurrando-os com o corpo. Ele
soltou um grito pavoroso que nos fez cair de cara, já duvidosos de sobreviver, e
se dirigiu à porta, que estava encostada, empurrando-a com o peito e saindo; nós
corremos até a praia dizendo: “Se o sol se puser e ele não retornar, então terá
morrido”. Ficamos aguardando na praia, e eis que surgiu o negro apoiado em
outros dois, tendo atrás de si um grupo cujos membros eram do seu tamanho ou
chegavam mesmo a ser maiores; quando os vimos, embarcamos nas jangadas e
as empurramos para o mar. Os negros nos perseguiram aos gritos e atiraram
pedras contra nós, atingindo a maioria, alguns dos quais se afogaram. Salvei-me
junto com outros dois. As ondas nos arremessavam de um lado a outro, sem que
soubéssemos para onde estávamos indo; colhidos pela escuridão, navegamos ao
longo da noite, e, quando amanheceu, os ventos nos lançaram na praia de uma
ilha repleta de árvores e frutas. Muito felizes por estarmos bem, agradecemos a
Deus, que nos salvou de tantas calamidades, descansamos, comemos das frutas e
dormimos em seguida na beira da praia, sendo subitamente acordados pelo
barulho de uma serpente do tamanho de uma palmeira, que, mal se aproximou,
agarrou um de nós, fazendo-o soltar um grito pavoroso, com parte do corpo no
interior de sua boca; quando a serpente já o engolira até a altura das axilas, ele
estendeu as mãos para impedi-la de lhe engolir o resto do corpo, mas ela
começou a batê-lo contra o solo, quebrando-lhe as mãos; devorou-o então por
inteiro, cuspiu os ossos e foi-se embora. Quando o dia clareou, meu
companheiro e eu saímos dali como que mortos em razão do que víramos, certos
de que a serpente faria conosco o mesmo que fizera com o nosso outro
companheiro. Enquanto a noite se avizinhava, topamos com uma árvore elevada
em cujo topo subi, seguido de meu companheiro, logo abaixo de mim. Quando
estava bem escuro, a serpente veio até a árvore, subiu, engoliu o meu
companheiro e foi-se embora. Permaneci na árvore até o raiar do sol, desci como
se fora morto, certo da aniquilação, e pensei que à noite a serpente me engoliria.
Vi pela ilha madeira cortada e amarrei-a em torno do meu corpo, na largura e na
altura, em meus flancos e pés, apertando os nós com bastante força; deitei-me e
esperei a morte, e, quando anoiteceu, a serpente chegou e se pôs a me revirar; eu
me afastava e ela tornava a me puxar para si, mas sem conseguir me engolir
graças à madeira amarrada pelos meus pés e corpo; continuou brincando comigo,
tal como o gato brinca com o rato, até o raiar da aurora, quando então me deixou
e partiu. Com o sol a brilhar, soltei-me das madeiras; estava tal e qual morto pelo
que padecera com a serpente, com o seu hálito repugnante, e achei que a morte
seria mais fácil. Quando o sol se aproximou do crepúsculo, avistei um navio no
mar; parecia um pedaço de montanha; ergui meu turbante em uma das madeiras;
no navio, pensaram: “É um náufrago”, e desceram um bote com alguns
tripulantes que remaram até a ilha, recolheram-me, colocaram-me no navio, e
indagaram a minha história; informei-os de tudo, de cabo a rabo, e eles se
espantaram deveras. Um dos passageiros disse: “Os marinheiros contam que
aquele negro pertence à raça dos macacos gigantes com forma de ser humano, os
quais cozinham as pessoas ainda vivas para devorá-las.[235] Quem fez isso com
vocês é o rei dessa raça. Já ouvíramos falar deles e de seu palácio, mas nunca os
havíamos visto. Quanto à serpente que você viu, ela enxerga à noite, mas não de
dia”. Em seguida, o capitão me deu uma roupa de mercador e comida; eu mal
conseguia acreditar que me salvara. Navegamos até chegar a uma ilha a respeito
da qual o capitão disse: “Esta é a ilha de Salåhi†, que contém sândalo”. Atracou
e os mercadores desembarcaram carregando seu dinheiro para comprar coisas
dali. O capitão me disse: “Temos conosco já faz um ano, em confiança, as
mercadorias de um homem chamado Sindabåd, o navegante”.[236] Quando os
mercadores se ajuntaram...
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 205ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse a seus
comensais:
Quando os mercadores se ajuntaram, avancei para o capitão e lhe perguntei:
“E onde está o dono destas mercadorias, meu amo? O que lhe sucedeu?”. O
capitão respondeu: “Havia conosco um homem chamado Sindabåd, o navegante.
Como atracamos em uma ilha com muitas árvores e frutas, os passageiros
desembarcaram, inclusive ele, que se isolou em um local tão distante que não o
avistamos. Ele comeu, bebeu e dormiu, e nós zarpamos e o esquecemos lá. Estes
são os seus cabedais, com os quais estamos negociando para ele”.
Então eu disse aos gritos: “Eu sou o navegante Sindabåd, e isto é de minha
propriedade!”. O capitão disse: “Deus do céu! Deus o salvou da morte e agora
você quer se apossar dos bens de um homem morto! Deixe-se de tolices!”.
Retruquei: “Eu sou Sindabåd! Ocorreu-me isso e aquilo... Os mercadores que
estão indo para o vale dos diamantes podem testemunhar isso a meu favor!”.
Todos quantos estavam no navio haviam se ajuntado ali, e eis que um dos
mercadores, ao ouvir a menção ao vale dos diamantes, deu um passo adiante e
disse: “Eu não lhes contara que o maior prodígio por mim presenciado em
minhas viagens foi a ocasião em que lançamos no vale dos diamantes pedaços de
carne para se grudarem aos diamantes e, quando as águias as retiraram, apareceu
um homem no meu pedaço de carne? Vocês não acreditaram, mas por Deus que
foi esse homem que veio grudado ao meu pedaço de carne!”. Só então o capitão
me examinou detidamente e, reconhecendo-me, abraçou-me e disse: “Graças a
Deus que você está bem! Por Deus que a sua história é uma das mais
espantosas!”. Recebi meu dinheiro e pus-me a negociar com meus fardos,
vendendo e comprando. Avançamos até outra ilha, onde compramos espigas de
trigo, cravo, pimenta e várias espécies de tempero. Vi naquele mar um peixe de
cerca de dez metros de comprimento, que gera e nasce na água, [237] com cuja
pele se produzem escudos; também há nesse mar um peixe com aparência de
camelo, e uma ave que constrói seu ninho com os detritos do refluxo do mar,
para neles botar e chocar, na própria superfície da água, de onde nunca sai.
Continuamos viajando de um ponto a outro até chegar a Bagdá, onde fui para
minha casa levando um dinheiro incontável e inestimável. Distribuí esmolas aos
pobres, comprei criadas, criados e propriedades, e pus-me a desfrutar
avidamente gozos e prazeres.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Quando anoiteceu, Sindabåd ordenou que dessem dez
dinares ao carregador,[238] e ordenou-lhe que retornasse ao amanhecer. O
carregador lhe beijou a mão, rogou por ele e seguiu para casa feliz e contente.
Quando amanheceu, retornou para aquela casa e encontrou as pessoas já
agrupadas nos tapetes dos prazeres, da felicidade e dos gozos. Após terem
colhido seu quinhão de deleites, o navegante lhes disse: “Ouçam a quarta
história!”.
Quarta viagem
Permaneci naquela situação por um ano inteiro, após o que minha alma teve
anseios de viajar. Esqueci dos terrores e situações de risco que enfrentara,
comprei mercadorias, amarrei os fardos, encontrei um navio pronto para partir,
mandei trazer meus fardos, adquiri minha passagem e viajamos, atravessando as
ilhas e nos distanciando no mar profundo; repentinamente, fomos atingidos por
forte borrasca, e o capitão soltou as velas, mas logo o mastro se rompeu e o
navio afundou com todos que nele estavam; agarrei-me a uma de suas tábuas,
junto com um grupo de mercadores, e remamos com um pedaço de madeira o
dia inteiro e a noite inteira; ao amanhecer, as ondas nos lançaram em uma ilha;
subimos, agradecemos a Deus altíssimo, e divisamos ao longe um prédio em
cuja direção seguimos; quando chegamos, fomos atacados por gente negra de
cabelo pixaim, que nos capturou e distribuiu entre si. Cinco outros homens e eu
coubemos ao chefe, que nos levou para a sua casa e nos deu uma erva por eles
conhecida, da qual não comi, mas meus companheiros comeram e logo a razão
deles se transtornou; em seguida, o chefe nos serviu arroz cozido com gordura de
coco, e meus companheiros se puseram a comer, bem mais do que comiam
habitualmente, como se estivessem enlouquecidos. Eu não comi senão um
pouco, apenas o suficiente para conter a fome. Notei que as pessoas eram ali
cevadas com aquele arroz,[239] e, a cada vez que alguém engordava, eles o
sacrificavam, assavam e degolavam; meus companheiros não atinaram com isso
em razão da transformação que se operara em seu raciocínio. Emagreci de medo,
meu corpo se debilitou, e eles, supondo-me doente, deixaram de se preocupar
comigo; certo dia, então, saí, afastei-me da cidade, e vi um velho apascentando
as pessoas que eles engordavam; ao notar que eu estava de posse da minha
razão, fez-me um sinal dizendo “vá naquela direção”, e eu fui, caminhando sem
parar por sete dias e sete noites; no oitavo dia, avistei homens ao longe, fui até
eles, e eis que eram pessoas colhendo pimenta! Ao me verem, acorreram a mim
e me perguntaram: “Quem é você?”. Respondi: “Um náufrago”. Perguntaram-
me: “Como se safou dos negros canibais desta ilha?”. Contei-lhes então minha
história, e eles ficaram sumamente espantados; alimentaram-me de suas
provisões, conduziram-me ao navio e me levaram até o seu rei, que me fez
perguntas; contei-lhe minha história e, espantado com o meu caso, ordenou que
me dessem roupas.
Verificando que todas as pessoas daquela cidade cavalgavam sem selas nem
estribos nem freios, e que tampouco o rei os usava, indaguei-o: “Meu senhor, por
que não cavalga com selas e freios?”. Ele respondeu: “E o que são selas e
freios?”. Respondi: “Eu lhe confeccionarei uma sela”, e, indo até um
marceneiro, desenhei-lhe no papel uma sela e lhe disse: “Faça uma dessas de
madeira”, e ele me fez uma sela de madeira que levei até um coureiro e disse:
“Cubra isto com couro e costure”, e ele assim fez; depois, fui a um ferreiro e lhe
desenhei as formas de freios e estribos, e ele os fez de ferro; recolhi-os e levei ao
coureiro, que os prendeu à sela; fui ao encarregado da estrebaria e lhe ordenei
que me trouxesse um dos cavalos que o rei montava, e ele assim procedeu;
coloquei-lhe a sela nas costas, amarrei o cinturão, pendurei os estribos em seus
flancos, coloquei-lhe os freios e mostrei-o ao rei, ordenando-lhe que cavalgasse.
Ao fazê-lo, o rei sentiu extremo conforto e, imensamente feliz, presenteou-me
com muito dinheiro; o vizir ouviu falar a respeito e me pediu sela, estribos e
freios, dando-me bastante dinheiro; também me pediram isso os notáveis do
governo, os secretários, os encarregados e os principais da cidade; enfim, para
todos fabriquei tais apetrechos, e eles me deram dinheiro em quantias
incontáveis, passando eu a desfrutar de uma posição consideravelmente elevada
perante o rei e os maiorais do governo e da cidade. Após algum tempo, o rei me
disse: “Gostaria de casá-lo [com alguém daqui][240] para que você fique
morando conosco”. Não pude discordar: ele me arranjou a filha de um notável,
realizou a festa de casamento e me casou com ela. Fui morar em uma casa
arrumada com mobílias, utensílios, serviçais e tudo quanto fosse necessário. Eu
disse: “Graças a Deus que agora tenho casa e esposa”, e vivi uma vida
confortável e feliz, com constantes visitas ao rei – por algum tempo.[241] Eu
tinha um vizinho cuja esposa faleceu e fui visitá-lo para lhe prestar meus
pêsames e dar consolo; notando que ele estava na pior das condições, disse-lhe:
“Meu irmão, que Deus prolongue a sua vida e nela lhe multiplique as dádivas!
Existem muitas mulheres!”. Ele respondeu: “E como Deus iria prolongar-me a
vida, se dela só resta uma hora?”. Perguntei: “Como é isso?”. Ele respondeu:
“Hoje irão enterrar-me com minha mulher. É um costume de nossa terra: quando
a mulher morre, enterram junto o marido, ainda vivo, e quando o marido morre,
enterram junto a mulher, ainda viva”. Em seguida, lavaram-na; reuniu-se toda a
população da cidade, carregaram o esquife, conduzindo-o – eu a tudo
acompanhava – até fora da cidade, onde se dirigiram à encosta de uma
montanha, retiraram uma pesada rocha da boca de um poço profundo, e fizeram
descer a mulher por meio de cordas; depois, desceram-lhe os ornatos, as joias, as
roupas, as mobílias, enfim, nada deixaram em sua casa; em seguida, puseram-se
a abraçar o marido e a despedir-se dele, um por um; sentaram-no em uma cadeira
de madeira, colocaram ao seu lado um jarro cheio de água e sete pães, e
desceram-no, por meio de cordas, uma altura de cerca de cento e cinquenta
metros, repondo então a rocha na boca do poço e se retirando. Perguntei a um
homem ao meu lado: “Como podem enterrar um homem vivo?”. Ele respondeu:
“Tal é o nosso hábito! Se a mulher morre, enterramos o marido junto; se o
marido morre, enterramos a mulher junto”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 206ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Não se passaram senão poucos dias e minha mulher adoeceu; de pronto a
doença se agravou, e fui tomado de desespero; em seguida ela morreu, e os
vizinhos vieram até mim para me dar pêsames pela perda; prepararam o corpo de
minha mulher, carregaram-na, levaram tudo quanto havia na casa de roupas e
joias, e avançamos até o mencionado poço, de cuja boca retiraram a rocha,
descendo então minha mulher e seus pertences; isso feito, o rei se aproximou de
mim para despedir-se e me agarrei às bordas de suas roupas, dizendo: “Sou
estrangeiro!”, e continuei gritando: “Sou estrangeiro!”, mas, sem me dar atenção,
agarraram-me e desceram-me à força, após colocarem ao meu lado sete pães e
um jarro de água, repondo a seguir o rochedo sobre a boca do poço e indo
embora. Quando cheguei ao fundo do poço, verifiquei que ali embaixo era
amplo, escuro e terrivelmente malcheiroso por causa dos mortos. Alimentei-me
daquele pão no primeiro, no segundo e no terceiro dia, até acabar; também bebi
da água do jarro e, a partir do quarto dia, já sem comida nem bebida, dormi no
meio dos mortos, à espera de que o meu sopro vital se esvaísse, sem distinguir a
noite do dia na escuridão do poço. Caminhei por aquele subterrâneo e constatei
que era mesmo bem amplo, cheio de cadáveres e ossadas; repentinamente, eis
que a boca do poço se abriu e desceram um homem morto e sua mulher ainda
viva, com pão e água; quando ela chegou ao fundo, peguei a perna de um
cadáver e golpeei-a na cabeça, matando-a, e pegando seu pão e sua água para
deles me alimentar. A cada vez que desciam alguém vivo, eu o matava para
tomar o pão e a água, assim sobrevivendo durante algum tempo. Estava nessa
situação quando ouvi sons no subterrâneo, e, ao me aproximar, o som fugiu de
mim; segui-o, ele se afastou, examinei-o, e eis que era algo brilhante como um
astro; fui na direção do brilho, e, quanto mais me aproximava, mais ele
aumentava, e eis que era uma luz proveniente de um buraco que dava para a orla
marítima. Minha mente se tranquilizou e meu coração se confortou; aproximei-
me do buraco, ampliei-o e deixei-o do tamanho de uma portinhola – o suficiente
para um homem sair –, avistando então o mar e a montanha que se situava entre
mim e a cidade. O que eu vira brilhando como astro eram os olhos de algum
animal marinho que entrara pelo buraco, a fim de se alimentar da carne dos
cadáveres do poço. Ao ver a cidade, fiquei muito contente, retornei ao poço,
ajuntei joias, adornos de ouro e pérolas que faziam baixar junto com as mulheres
mortas, enrolei tudo em um pano, amarrei com força e saí do subterrâneo,
sentando-me na encosta daquela montanha, com a trouxa ao meu lado. Passou
por mim um navio, e então ergui meu turbante e gritei: “Náufrago!”. Quando me
avistaram, enviaram um bote com três homens, que me resgataram e remaram
até o navio; ao embarcar, o capitão e os passageiros me perguntaram sobre meu
estado, e lhes contei que o navio no qual eu estava se rompera e eu subira em
uma tábua; ficaram espantados. Quis pagar minha passagem ao capitão, mas ele
não aceitou. Continuamos indo de ilha em ilha até aportar na ilha de NåkœΩ,
que fica a dez dias de Sarand∑b;[242] dali, navegamos por seis dias até a ilha de
Kal∑, que constituiu um reino tributário da Índia; contém minas de chumbo e
plantações de bambu, além de cânfora de boa qualidade; o rei, que é bem grande,
usa túnica de ouro, seu povo se alimenta de carne humana, e a extensão do reino
se percorre em dois dias; vendemos, compramos e prosseguimos de um lugar a
outro até que entramos em Bagdá, onde fui para a minha casa carregando
dinheiro, joias de ouro, adornos, gemas e pérolas em grande quantidade; distribuí
esmolas aos pobres, comprei criados, criadas, roupas e utensílios.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Quando anoiteceu, o navegante Sindabåd ordenou que
fossem dados dez dinares ao carregador Sindabåd, determinando-lhe que
retornasse ao amanhecer. O carregador beijou-lhe a mão, rogou por ele e se
retirou feliz e contente; fez amplos gastos com a família e ficou com seus filhos
e sua esposa na melhor e mais abundante vida. Quando a manhã despontou, o
carregador Sindabåd foi para a casa do navegante e, encontrando a audiência de
comensais e camaradas já reunida, cumprimentou e rogou misericórdia; recebeu
as boas-vindas da audiência e do proprietário, o qual lhe determinou que se
acomodasse, e ele obedeceu; trouxeram comida e bebida, e todos comeram e
beberam; ordenou-se às criadas que tocassem música, e elas assim procederam,
cantando com suas belas vozes. Após todos terem se deleitado, o navegante
Sindabåd disse: “Ouçam a quinta história”.
Quinta viagem
Passei um período matando o tempo com divertimentos e prazeres.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 207ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Pus-me a caçar avidamente os prazeres por cerca de um ano, após o que
minha alma teve saudades de viajar, e me esqueci do que enfrentara de fadigas e
situações de aniquilamento. Mandei fretar um navio com meu próprio dinheiro,
carreguei-o, e nele embarcou um grupo de mercadores. Zarpamos e nos
mantivemos em curso até chegar a uma ilha sem civilização, na qual aportamos e
desembarcamos; divisando ao longe uma cúpula branca, fomos em sua direção, e
eis que era um ovo do pássaro roque, do qual o filhote já estava pondo o bico
para fora; atacamos o ovo a machadadas, quebramos, retiramos o filhote, cujo
tamanho era de uma búfala grande, sacrificamos, cortamos a sua carne,
esquentamos as panelas, cozinhamos e comemos. Estávamos nisso quando no
céu apareceu uma nuvem negra e o capitão gritou: “Corram para o navio, caso
contrário serão mortos! O pássaro roque chegou!”. Saímos correndo em direção
ao navio, embarcamos, fizemos velas e zarpamos, mas logo ouvimos, parecendo
trovões estrondosos, os gritos do pássaro em nosso encalço: ao ver o ovo
quebrado, fora buscar um enorme rochedo com suas garras, soltando-o tão logo
se viu sobre o navio; como a ventania estava muito forte, o navio adernou para
cima e o rochedo caiu ao seu lado no mar, fazendo o seu fundo aparecer; a lateral
do navio se quebrou, e estávamos nas proximidades de uma ilha em cuja direção
uma onda me atirou, e na qual subi, nela encontrando frutas e frutos, e um rio
corrente de água doce; comi, bebi e agradeci a Deus altíssimo. O anoitecer me
encontrou amedrontado, abandonado e sozinho. Quando o sol raiou, caminhei
entre o seu arvoredo, topando com um regato em cuja margem estava sentado
um velho, de quem me aproximei para cumprimentar, e ele respondeu com um
menear de cabeça. Perguntei-lhe: “O que está fazendo aqui?”, e ele respondeu
com um gesto de mão: “Quero atravessar estas árvores para comer destas
frutas”. Carreguei-o então nos ombros, adentrei o arvoredo e ele se pôs a colher
frutas e a comê-las, até que, cansado, eu lhe disse: “Desça”; como ele não
obedecesse, fiz tenção de baixá-lo dos meus ombros ao solo, mas eis que ele
enrolou as pernas em meu pescoço, como se fossem couro de vaca,[243] e me
apertou a garganta até eu quase sufocar; caí no chão, e o velho, sempre grudado
em meus ombros, afrouxou um pouco as pernas para que meu sopro vital
retornasse, e então enrolou uma das pernas em meu pescoço e a outra em meus
flancos, de um modo que, conforme constatei, era mais doloroso que chicotadas
vigorosas. Levantei-me e ele sinalizou com a mão: “Leve-me para o meio do
arvoredo”; entrei e ele se pôs a comer daquelas frutas. Por um instante fui lento e
ele me agrediu de modo mais doloroso que o anterior. E assim permaneceu,
montado nas minhas costas, deixando-me descansar por instantes, até me afastar
da orla marítima. Contemplei a morte, tamanhos eram os sofrimentos pelo seu
peso e pelas agressões; toda vez que eu estendia a mão em sua direção,
estrangulava-me com as pernas e me agredia.[244] Notando que na ilha existiam
grandes cabaceiras secas, peguei uma delas, cortei-lhe a cabeça, espremi
bastante uva, coloquei dentro dela e deixei ao sol alguns dias, até que se
transformasse em bebida forte, da qual tomei a fim de me consolar das
preocupações, embriagando-me e me pondo a dançar e a cantar; então, o velho
me sinalizou: “Dê-me de beber”. Dei-lhe, ele se embriagou, suas pernas se
afrouxaram de meu pescoço, derrubei-o ao solo, peguei uma grande pedra e
golpeei-o na cabeça, quebrando-a.[245] Retornei ao litoral da ilha, e eis que ali
estava atracado um navio ao qual me dirigi, e, quando me viram, indagaram
sobre meu estado; respondi-lhes: “Sou um náufrago”; perguntaram-me sobre o
velho e disseram: “Esse é o velho do mar, e qualquer um que caia em suas garras
dele não se livra até a morte”. Contei-lhes então que o matara com aquela
artimanha, e eles ficaram sumamente espantados; em seguida, ofereceram-me
alimentação e roupa e zarparam comigo.
Viajamos por dias e atracamos na costa de uma cidade cujo solo era
inteiramente constituído de pequenas pedras.[246] Um dos mercadores me
pegou, entregou-me um saco, colocou-me no meio de um grupo de moradores da
cidade também munidos de sacos, e lhes disse: “Este homem é um náufrago.
Levem-no com vocês para recolher coco”, e me recomendou a eles. Disse-me:
“Proceda conforme eles procederem, e não se afaste, caso contrário será morto”,
deu-me provisões e acompanhei o grupo. Embrenhamo-nos por entre altas
árvores, tão lisas que ninguém as poderia escalar. Havia no local muitos
macacos, os quais, ao nos verem, galgaram as árvores, e passamos a atirar-lhes
pedras, ao que eles arrancavam cocos para atirá-los em nós. Quando escureceu,
retornamos à cidade, e eu tinha tanto coco que mal conseguia carregar; entreguei
tudo ao companheiro com quem estava, e ele o vendeu e me repassou o valor
dizendo: “Acompanhe-os diariamente”, e eu me mantive naquilo por dias, até
que ajuntei bastante dinheiro. Então embarcamos e adentramos a ilha [de Ma
¢arråt, que contém o aloés da espécie qimår∑, e depois dela chegamos a uma
ilha localizada a cinco dias de distância, que contém o aloés chinês, mais caro
que o qimår∑. Todas as árvores dessa ilha ficam dentro do mar, e seu povo vive
uma condição religiosa mais feia que o da ilha do aloés qimår∑, pois ali se ama
a fornicação e o adultério, bebe-se álcool e não se conhecem almuadens nem
convocações para a prece].[247] Dali fomos ao local onde se pescavam pérolas;
dei de minhas mercadorias aos mergulhadores e eles me trouxeram valiosas
pérolas. Viajamos então até chegar a Bagdá, onde fui para casa e passei a gastar
meu tempo em deleites e prazeres.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Quando anoiteceu, o navegante Sindabåd ordenou que
se dessem dez dinares ao carregador Sindabåd, recomendando-lhe que
regressasse ao amanhecer. O carregador beijou-lhe a mão e se retirou, retornando
para a casa do navegante ao amanhecer. Conforme o hábito, encontrou a
audiência já reunida, cumprimentou e se acomodou. O dono da casa chegou e
disse: “Ouçam a sexta história”.
Sexta viagem
Depois de haver permanecido algum tempo no desfrute de prazeres, minha alma
teve anelos de viajar, e então amarrei fardos, comprei passagem em um navio
bem resistente e zarpamos. Entramos em meio a um arquipélago e, enquanto
avançávamos, eis que o capitão arrancou o turbante e começou a estapear o
próprio rosto! Reunimo-nos em torno dele e inquirimos a razão daquilo. Ele
respondeu: “O navio se aproximou de uma região cheia de montanhas, e agora
só nos resta atravessá-la, caso contrário morreremos! Peçam salvação a Deus
altíssimo!”. Então, os ventos assopraram com fúria e o navio soçobrou de
encontro às encostas de uma montanha, em um local onde havia muitos navios
que se haviam quebrado e afundado. Avistei na ilha um rio de água corrente e
subimos até lá; verifiquei então que o rio corria da ponta da montanha e a
percorria por dentro. Caminhamos por lá e encontramos minas de rubi, valioso
aloés e uma fonte de água da qual o âmbar flui, desaguando no mar, onde é
tragado pelos animais marítimos, em cujas entranhas se modifica; nas suas
fontes, contudo, é colhido em estado bruto.[248] Ninguém consegue sair dessa
ilha, pois se trata de um precipício que conduz ao mar e a montanha bloqueia os
ventos; não atinando com nenhuma artimanha para escalá-la, quedamo-nos ali
perplexos, à espera da morte. Aquele que dispunha de provisões para um mês,
consumia-as em dois, e, quando acabavam, morria e o enterrávamos, coisa que
não paramos de fazer até que morreram todos quantos estavam comigo no navio,
e a mim não me restavam senão parcas provisões; pensei: “Enterrei o último
sobrevivente. Quem será que vai me enterrar?”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 208ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Escavei então uma cova para mim mesmo e disse: “Quando eu me debilitar,
dormirei nela”. Estava em tal estado de penúria que o arrependimento me fez
morder a palma da mão até sangrar; censurei-me por ter viajado e comecei a
andar feito um louco; enquanto eu refletia, Deus altíssimo me inspirou, fazendo-
me parar à beira do rio e pensar: “É imperioso que este rio desemboque em
algum lugar; se acaso não chegar a lugar nenhum, de qualquer modo estou
liquidado, mas, se ele chegar à civilização, isso será a minha liberdade”. Reuni,
portanto, bastante madeira de aloés, confeccionei algo que me transportasse, ao
qual dão o nome de jangada, amarrando-a fortemente com cordas; dei-lhe peso
com pedras de cristal, rubi, esmeralda e o dinheiro dos mercadores que haviam
morrido, e enchi a jangada daquele âmbar; em seguida, coloquei-a no rio que
corria pela encosta da montanha, fiz de um pedaço de madeira o meu remo,
embarquei e empurrei-o na correnteza; minha razão voava. A jangada penetrou
em um estreito escuro; deitei-me sobre a barriga enquanto a montanha me roçava
a cabeça, e fiquei sem poder distinguir o dia da noite. Comi algo para aplacar a
fome. Com a gruta ora se estreitando, ora se alargando, avancei por cerca de um
dia e uma noite; dormi, afinal, e, quando acordei, eis que estava em espaço
aberto, à beira de um rio! A jangada estava amarrada e um grupo de negros da
Índia[249] me cercava. Levantei-me e cumprimentei-os; responderam-me em
uma língua por mim desconhecida. Eu supunha estar sonhando, mas era tamanha
minha alegria por estar a salvo que me esqueci de tudo quanto sofrera. Um
homem se aproximou de mim e me disse em árabe: “Meu irmão, vínhamos
buscar neste rio água para irrigar nossa plantação, quando divisamos algo na
superfície das águas, dirigindo-nos então a ele, e eis que era esta jangada, com
você deitado! Amarramos e esperamos você acordar. Agora, conte-nos a sua
história, pois ela deve ser espantosa”. Respondi: “Dêem-me de comer e depois
perguntem”, e eles me trouxeram pão e outros alimentos, dos quais comi até
recobrar as forças, e lhes relatei tudo quanto me sucedera. Eles disseram: “O rei
tem de ouvir esta história”. Ofereceram-me montaria, carregaram a jangada com
tudo que continha em uma mula, e avançamos até chegar à ilha de Sarand∑b,
onde me levaram à presença do rei, a quem cumprimentei como se devem
cumprimentar os reis. Ele me deu boas-vindas, tratou-me com palavras afáveis, e
indagou sobre a minha história. Contei-lhe tudo o que me ocorrera e ele
perguntou: “De que país é você?”. Respondi: “De Bagdá”, deixando-o
sumamente admirado. Quando trouxeram a jangada à sua presença, o rei viu
rubis, âmbar, esmeraldas e aloés – coisas de valor incalculável, inexistentes em
seus tesouros, pois provinham de um lugar aonde ninguém chegava, e do qual
nenhum mercador trazia algo. Beijei então o solo diante dele e disse: “Ó rei do
tempo, a minha jangada e eu estamos às suas ordens”. Sorrindo de minhas
palavras, o rei disse: “Livre-nos Deus de cobiçar o que Deus lhe concedeu! Não
tenho necessidade disso, por Deus! Pelo contrário, vamos ajudá-lo a chegar ao
seu país”, e eu roguei por ele. A um sinal do rei, um dos servidores me levou e
alojou em um grande aposento, onde me arranjou comida, bebida, criados e tudo
quanto era necessário. Passei a frequentar diariamente a assembleia do rei, e,
quando ela se encerrava, eu ia para a cidade, passear por seus mercados. Esta
ilha fica abaixo da linha do equador; as suas construções são as primeiras que
surgiram no mundo, sua noite e seu dia têm igualmente doze horas, e isso nunca
se altera. Possui oitenta parasangas de comprimento e trezentas de largura; é
grande, estendendo-se entre elevadas montanhas e um vale profundo; tais
montanhas são as montanhas de Sarand∑b, nas quais foi lançado Adão – sobre
ele esteja a paz –, e podem ser vistas a uma distância de três dias. Nessas
montanhas existem vestígios das pegadas de Adão: é uma marca de pé afundada
[na beira do] mar, com cerca de setenta braças; a outra pisada, Adão a deu no
meio do mar. Na montanha, havia várias espécies de rubi e tempero,
almiscareiros e civetas.[250] Nessa montanha subi e vi todos os seus prodígios.
Após algum tempo, fui ao rei e lhe pedi para retornar ao meu país; ele
permitiu e me deu presentes de tudo quanto havia na ilha, bem como uma carta e
presentes ao califa Hårœn ArraΩ∑d; disse-me: “Faça-os chegar a ele e
transmita-lhe meus cumprimentos”, e eu respondi: “Ouço e obedeço”. Os
presentes consistiam em uma taça de rubi com boca de um palmo, espessura de
um dedo, cheia de pérolas – contei duzentas –, com cerca de dez gramas cada
uma, bem como uma almofada de pele de cobra com escamas do tamanho de um
dinar cada uma; se alguém acometido de hemorróidas nela se sentasse, curar-se-
ia. Enviou ainda cem mil medidas de aloés indiano, trinta grãos de cânfora do
tamanho de uma amêndoa cada uma, e uma escrava com suas vestes e joias,
parecendo a lua florescente. Embarcou-me em um navio, forneceu-me tudo
quanto eu precisava de comida e bebida, recomendou-me ao capitão e zarpamos
até chegar a Bagdá, onde peguei os presentes e a carta e os levei ao califa, diante
do qual beijei o solo, entregando-lhe tudo. Quando ele leu a carta e viu os
presentes, gostou de tudo e perguntou: “O reino dele é grandioso, Sindabåd?”.
Beijei o chão e disse: “Ó califa de Deus, o reino dele é um dos países mais
espantosos, e seu governo é grandioso! No dia em que sai em desfile, monta em
um elefante com roupas de brocado tecidas a ouro; seus serviçais particulares
são cerca de quinhentos, todos munidos de lanças e maças de ouro; quando
cavalga, cavalgam com ele mil cavaleiros adornados de ouro e seda; sua justiça e
saber são tais que em sua cidade não existem juízes, pois os habitantes conhecem
seus deveres”. Hårœn ArraΩ∑d disse: “Esse rei é de fato poderoso”, e me deu
bastante dinheiro.[251] Então fui para a minha casa, e pus-me a distribuir
esmolas e efetuar donativos.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] O navegante Sindabåd, ordenando que lhe dessem dez
dinares, disse ao carregador que regressasse ao amanhecer. O carregador pegou o
dinheiro, retirou-se e, ao amanhecer, chegou à casa e viu a audiência, conforme o
hábito. Cumprimentou, acomodou-se, pôs-se a comer, beber e divertir-se. O
navegante disse: “Ouçam a história da sétima viagem”.
Sétima viagem[252]
Alguns dias após o meu retorno, estava eu acomodado em minha casa quando
súbito bateram à porta. Um criado abriu, e eis que era um enviado do califa, que
me disse: “O califa o deseja”. Acompanhei-o então, sendo conduzido à presença
do califa, diante do qual beijei o chão, cumprimentando-o e rogando por ele, que
me retribuiu com o melhor cumprimento e me ordenou que fosse até a cidade de
Sarand∑b, para cujo rei ele escreveu uma carta e enviava, por meu intermédio,
um magnífico presente, ordenando ainda que me entregassem mil dinares. Beijei
o chão e disse: “Por Deus, meu amo, que agora, quando diante de mim
mencionam o mar, chego a desfalecer de medo, em razão dos terrores que lá
sofri! Não tenho vontade de viajar. Já não posso sair de Bagdá”. Ele me fez
sentar e disse: “Conte-me o que lhe sucedeu no mar”, e eu lhe relatei tudo quanto
enfrentara e me sucedera. Assombrado com a minha história, ele me disse:
“Você tem de fato o direito de detestar o mar, e de não viajar nele. Mas só mais
esta vez, para levar a minha mensagem e o meu presente”. Sendo-me impossível
desobedecer-lhe, peguei o presente e a mensagem e viajei de Bagdá até o mar
salgado, onde embarquei em um sólido navio. Viajamos de ilha em ilha até
entrar na ilha de Sarand∑b, onde fui visitar o rei, beijando o chão diante dele,
cumprimentando-o e entregando-lhe a mensagem, que ele leu. Os presentes –
uma égua no valor de dez mil dinares, com equipamento todo de ouro e arreios
de variadas espécies de seda luxuosa, uma taça de vidro com a espessura de um
dedo, um palmo de abertura, e no centro a imagem de um leão que tinha diante
de si um homem ajoelhado colocando flecha no arco, e uma mesa que pertencera
ao nosso senhor Salomão filho de Davi, sobre ambos esteja a paz – foram aceitos
pelo rei de Sarand∑b, que por sua vez me deu muitos presentes, e então me
despedi e deixei a ilha. Estávamos em plena viagem, passando por várias ilhas
rumo a Bagdá, e eis que súbito o navio foi cercado por muitos botes repletos de
homens munidos de espadas, adargas, flechas e arcos; pilharam tudo quanto
havia no barco, mataram quem lhes resistiu, e nos tomaram como prisioneiros,
conduzindo-nos a uma ilha no meio do mar, onde nos venderam como escravos.
Fui comprado por um homem que me levou para a sua casa, deu-me comida,
bebida e roupa, e então me senti seguro. Ele me perguntou: “Você conhece
algum ofício?”. Respondi: “Sou mercador”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 209ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Eu disse ao homem que me comprara: “Sou mercador, e não conheço nenhum
ofício”. Ele perguntou: “Sabe atirar flechas?”. Respondi: “Sim”, e ele trouxe um
arco e flechas; era noite, e ele cavalgou, levando-me junto, até que entramos em
meio a um arvoredo espesso; fez-me trepar em uma árvore elevada e disse:
“Fique aqui, e, quando os elefantes vierem para baixo desta árvore, dispare as
flechas contra eles. Se atingir algum, deixe-o, e ao entardecer tome o caminho de
volta até nós e me informe o que caçou”. Respondi: “Ouço e obedeço”. O
homem foi-se embora e eu me escondi na árvore até o sol raiar, e eis que os
elefantes surgiram em meio às árvores, e contra cada um que se aproximava eu
atirava uma flecha, que o atingia e matava. Acertei muitos elefantes e fiquei em
tal situação até o final da tarde, quando então desci, tomei o caminho e encontrei
meu patrão, informando-o de quantos elefantes eu abatera. Tornamos a cavalgar
na segunda noite, e na terceira, e na quarta... Permaneci em tal situação por um
mês, ao cabo do qual fui à casa de meu patrão, que me deu de comer e beber;
pela manhã, cavalguei com ele, dirigindo-nos para a árvore onde eu ficava, e ali
ele se pôs a enterrá-los para [depois] extrair-lhes os ossos. Continuei matando
elefantes durante dois meses, até que, no último dia, conforme o hábito, trepei na
árvore e me sentei escondido. Ouvi então o alarido e o barulho dos elefantes
fazendo a terra balançar por alguns instantes; vi então que incontáveis elefantes
haviam cercado a minha árvore, que no entanto era rija e grossa, com um
diâmetro de quinze metros. Os elefantes estenderam as suas trombas, e eis que
entre eles havia um, gigantesco, que enrolou a tromba na árvore, puxou-a e
derrubou-a. Ao me ver no chão, entre os elefantes, meu sopro vital esteve a
ponto de sair. O elefante gigantesco se aproximou de mim, enrolou a tromba em
minha cintura, ergueu-me, colocou-me em seu dorso – eu estava feito morto – e
avançou, seguido pelos outros elefantes, até me conduzir a um local onde me
apeou com a tromba, deixando-me ali e se retirando, seguido por todos os
elefantes. Recobrei as forças e me vi em uma colina de ossos de elefante! Eu
disse: “Exalçado seja quem inspirou este animal, pois ele percebeu que,
matando-os, o propósito era levar seus ossos, e este lugar que nos indicou é o
cemitério deles!”. Caminhei por um dia e uma noite até chegar à casa de meu
patrão, a quem informei do que sucedera, e ele ficou sumamente espantado e me
dignificou. Em seguida, preparou um elefante e montamos nós dois, avançando
até que lhe indiquei aquela colina de ossos, que ali ele encontrou em enorme
quantidade, carregando o que bem entendeu, e então retornamos à sua casa.
Como o homem me cumulasse de honrarias, eu lhe disse: “Meu senhor, eu
gostaria de voltar para o meu país”, e ele disse: “Na próxima estação, que já se
avizinha, os mercadores virão comprar estes ossos, e, quando chegarem,
entregarei você a eles, junto com algo que o auxilie na viagem”. Roguei por ele
e, passados poucos dias, eis que ali aportaram mercadores, que carregaram os
ossos e amarraram os fardos, embarcando-os no navio. Meu patrão me embarcou
junto com provisões, recomendou-me aos mercadores, e me deu ainda
quatrocentos e cinquenta quilos de ossos de elefante, despedindo-se então.
Zarpamos, viajando de ilha em ilha, e vendi aqueles ossos, amealhando bastante
dinheiro. Em seguida, atracamos em uma cidade onde aluguei um asno para
seguir viagem com os mercadores, pois ali eles montavam e continuavam por via
terrestre até Bagdá. Viajamos por todo aquele dia e chegamos a uma cidade com
o sol se pondo. Meus companheiros se anteciparam e entraram na cidade, mas eu
me retardei atrás deles e encontrei os portões da cidade já fechados; bati e fui
atendido de cima das muralhas por um grupo que me perguntou: “O que você
quer?”. Respondi: “Abram para que eu entre e siga meus companheiros”.
Disseram: “Nosso costume é não abrir os portões depois que o sol se põe, por
causa da grande quantidade de leões que existe fora das muralhas”. Gritei e
disse: “Levem tudo que tenho, mas abram-me os portões! Sou estrangeiro!”.
Disseram: “Não podemos abri-los, pois são ordens do rei. Vá até aquela
mesquita, tranque a porta e durma lá até o amanhecer. Corra, rápido, caso
contrário os leões irão pegá-lo!”. Entrei então na mesquita com o asno, tranquei
a porta, amarrando o animal na maçaneta da porta, por dentro, e me acomodei,
mas logo um leão chegou e empurrou a porta, que se abriu e o asno saiu; o leão
ficou do lado de dentro, e o asno, de fora.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.

E quando foi a 210ª noite


Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o navegante Sindabåd disse ao grupo:
Então, o asno ficou do lado de fora, e o leão, de dentro. Toda vez que ouvia o
rosnado do leão, o asno puxava a porta, e o leão também a puxava, os olhos
postos no asno e a ponta do seu rabo ao meu lado; Deus o deixou cego no que se
referia a mim. Manteve-se vigiando a porta até a alvorada, quando chegou o
almuadem, o qual, ao ver o asno amarrado na maçaneta da porta e a entrada
cheia de esterco, disse: “Amaldiçoe Deus os que amarram suas montarias na
porta da mesquita!”, e o desamarrou; o leão saiu da mesquita, golpeou o
almuadem com a pata, caçou-o, devorou-o e partiu. Começou uma gritaria na
cidade, e as pessoas acorreram à mesquita; encontrando-me desmaiado como
morto, retiraram-me lá de dentro, borrifaram-me com água e despertei do meu
desmaio. Meus companheiros me acudiram, carregamos nossas montarias e
partimos, eles assombrados com o que me sucedera. Mantivemo-nos em marcha
até entrar em Bagdá, onde me dirigi à minha casa. Quando amanheceu, fui até o
califa Hårœn ArraΩ∑d, diante do qual beijei o solo e lhe transmiti os
cumprimentos do rei da ilha de Sarand∑b. O califa congratulou-me por eu estar
bem e me indagou sobre a viagem; contei-lhe a minha história e ele ficou
sumamente espantado, ordenando que me dessem mil dinares.
Em seguida, o navegante Sindabåd voltou-se para o carregador Sindabåd e lhe
perguntou: “Meu irmão, porventura você já ouviu terrores maiores que estes?
Não poderei eu desfrutar as volúpias e me entregar aos prazeres depois de todas
essas provações, não saindo senão para ir ao banho público e à mesquita?”. O
carregador Sindabåd ergueu-se, beijou o solo diante do navegante e disse: “Deus
perdoe o que me escapou!”. O navegante ordenou que lhe dessem cem dinares e
fez dele seu comensal.[253]
[E quando foi a]885ª noite
O rei ³åh Ba¿t e o seu vizir Rahwån[254]
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.

Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que][255] havia, em épocas remotas e
pretéritas eras e períodos, certo rei do tempo a quem chamavam ³åh Ba¿t, que
possuía muitos soldados, servidores e criados, bem como um vizir a quem
chamavam Rahwån, sábio, ajuizado, bom gestor e zeloso nos assuntos atinentes
a Deus altíssimo, poderoso e excelso, e ao qual o rei encarregara das questões do
reino e dos súditos, e nessa condição ele permaneceu algum tempo: a sua palavra
era a palavra do rei. Esse vizir tinha muitos inimigos que lhe invejavam o
prestígio e procuravam prejudicá-lo, sem para isso, contudo, encontrar caminho.
Porém, Deus altíssimo determinou, com seu julgamento e decreto prévios, que o
rei visse em sonho que o vizir Rahwån lhe dava o fruto de uma árvore, e que ele
comia esse fruto e morria. O rei acordou aterrorizado e amedrontado, e, antes
que o vizir comparecesse, ficou a sós com algumas pessoas nas quais confiava e
lhes relatou o sonho; sugeriram-lhe, então, que trouxesse astrólogos e intérpretes
de sonhos, e depois sugeriram que consultasse um sábio cuja sabedoria era por
eles atestada, e o rei o aproximou de si. Antes, porém, alguns inimigos do vizir
já se haviam reunido a sós com tal sábio, pedindo-lhe que caluniasse o vizir e
sugerisse ao rei que o matasse, e para tanto lhe prometeram bastante dinheiro. O
sábio concordou e informou ao rei que o vizir iria matá-lo dentro de um mês, e
que, caso não se apressasse a executá-lo, o vizir fatalmente o mataria. Foi apenas
depois disso que o vizir chegou. O rei lhe indicou que esvaziasse a local, ele
sinalizou aos presentes que se retirassem, e somente depois que eles se retiraram
o rei lhe perguntou: “Qual o seu parecer – ó bom vizir, aconselhador em todas as
disposições – a respeito de uma visão que tive em sonho?”. O vizir perguntou:
“Qual foi essa visão, ó rei?”. Então o rei lhe relatou o sonho e continuou: “O
sábio interpretou-a para mim e me disse: ‘Se você não matar o vizir dentro de
um mês, ele fatalmente o matará’. Eu me arrependeria amargamente de matar
alguém como você, mas temo mantê-lo vivo! O que me aconselha a fazer a
respeito?”. Após se manter cabisbaixo por alguns instantes, o vizir ergueu a
cabeça e disse: “Deus felicite o rei! Qual a necessidade de manter vivo alguém
que o rei receia? Para mim, o parecer mais correto é matar-me sem mais
delongas”. Ao ouvir seu discurso, e compreender as suas palavras, o rei se voltou
para ele dizendo: “É muito penoso para mim, ó vizir conselheiro!”, e informou-o
de que todos os sábios haviam corroborado aquilo. Ao ouvir a fala do rei, o vizir
suspirou fundo e percebeu que o rei, embora procurasse aparentar frieza, estava
com medo dele; disse-lhe então: “Que Deus dê prosperidade ao rei! Meu parecer
é que o rei execute o seu desígnio e efetue o seu destino, pois a morte é
imperiosa e, para mim, é preferível morrer injustiçado a morrer como injusto. Se
o rei aceitar o adiamento de minha morte para amanhã, poderá despedir-se de
mim esta noite, que passaremos juntos, e amanhã fará o que quiser”, e depois
chorou até molhar a barba encanecida. Enternecido, o rei concedeu o adiamento
por aquela noite e esvaziou o conselho. No final da tarde, mandou convocar o
vizir, que compareceu, fez mesuras, beijou o chão diante dele e disse...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]886ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que] o vizir disse:

Primeira noite do mês
O homem de ¿uråsån, [257] seu filho e o preceptor
Certo homem de ¿uråsån tinha um filho para o qual desejava todo o bem,
embora o rapaz gostasse de ficar sozinho, longe das vistas do pai, a fim de
entregar-se aos prazeres e deleites. Um dia, ele pediu ao pai que o deixasse
peregrinar à Kaaba, em Meca, e visitar o túmulo do profeta, que a paz de Deus
esteja com ele, em Medina, a uma distância de quinhentas parasangas. O pai não
pôde discordar, pois essa é uma obrigação da fé, e ele desejava todo o bem para
o filho; assim, arranjou-lhe a companhia de um preceptor no qual se fiava, deu-
lhe muito dinheiro e se despediu. O rapaz partiu para a nobre peregrinação, junto
com o preceptor, mas se estabeleceu a meio caminho e começou a gastar muito,
pois não sabia administrar o dinheiro. Era seu vizinho um homem pobre, que
tinha uma escrava de grande beleza e formosura pela qual o rapaz se apaixonou,
e tal paixão, aliada à beleza da moça, provocou-lhe transtornos e tristezas que
quase o levaram à aniquilação; também a moça se apaixonou por ele, mais do
que ele por ela; e, chamando uma velha de sua estima a quem confidenciara o
seu estado, disse-lhe: “Se não me reunir com ele, morrerei!”. Após lhe prometer
que se esforçaria por reuni-los, a velha se arrumou, foi até o rapaz,
cumprimentou-o, informou-lhe o estado da moça, e lhe disse: “Como o patrão
dela é ambicioso, convide-o até aqui e seduza-o com dinheiro, pois assim ele a
venderá a você”. O rapaz preparou então um banquete, postou-se no caminho
por onde o patrão da moça passava, convidou-o para comer e ele aceitou, sendo
logo levado para a casa do rapaz; sentaram-se, comeram, beberam e puseram-se
a conversar. O rapaz disse: “Ouvi que você tem uma escrava e que pretende
vendê-la”. O homem respondeu: “Por Deus, meu senhor, que não tenho vontade
de vendê-la”. O rapaz disse: “Ouvi que a compra dela lhe custou mil dinares;
pois eu lhe darei seiscentos dinares a mais”. O homem respondeu: “Vendida!”;
então, trouxeram notários, fizeram as escrituras, e o rapaz lhe pagou metade da
quantia dizendo: “Deixe-a com você até que eu complete o valor e possa levar a
minha escrava”. O homem aceitou e se registrou o valor que faltava; a escrava
ficou com seu patrão como depósito. Em seguida, o rapaz entregou mil dirhams
ao preceptor, e o enviou ao seu pai a fim de trazer dinheiro para quitar o restante
do preço da escrava; disse-lhe: “Não vá desaparecer!”. O preceptor pensou:
“Como irei até o pai dele contar-lhe que o rapaz torrou todo o dinheiro,
gastando-o em suas paixões? Com que olhos olharei para ele, se eu lhe
assegurara e garantira que cuidaria de seu filho? Não é esse um bom parecer;
não, vou mais é acompanhar esta caravana de peregrinos e deixar para trás esse
rapaz estúpido. Quando se aborrecer, ele retomará o dinheiro e voltará para o pai.
Assim, livro-me de fadigas e reprimendas”, e seguiu para a peregrinação. Quanto
ao rapaz, ele esperou o retorno do preceptor, mas, como este não retornasse,
aumentaram suas aflições e preocupações com a moça, e seus sentimentos por
ela se tornaram tão fortes que ele quase se suicidou. Percebendo aquilo, a moça
mandou dizer-lhe, por meio de um mensageiro, que viesse vê-la, e ele foi; ela
indagou o que estava acontecendo, e o rapaz informou o que sucedera com o
preceptor. A moça disse: “Meu afeto é tão grande quanto o seu. Imagino que o
seu enviado tenha morrido no caminho ou seu pai o tenha matado. Dar-lhe-ei
todas as minhas joias e tecidos; venda tudo, pague o restante do meu preço e irei
com você até o seu pai”, e lhe entregou todas as suas posses, que o rapaz vendeu,
obtendo e pagando o restante de seu preço; sobraram-lhe ainda cem dirhams que
ele gastou para passar a noite com a moça, em uma vida tão deliciosa que a sua
alma quase voava de alegria. Quando amanheceu, porém, ele começou a chorar e
a moça lhe perguntou: “O que o faz chorar?”; ele respondeu: “Não sei se meu pai
morreu! Ele não tem outro herdeiro que não eu! Como poderei ir até ele sem um
único dirham?”. A moça disse: “Tenho uma pulseira; venda-a e compre com seu
valor pérolas pequenas; reduza-as a pó e faça delas pérolas grandes que você
venderá e obterá grandes lucros, com os quais chegaremos ao seu país”. O rapaz
pegou a pulseira, foi até o joalheiro e disse: “Quebre esta pulseira e venda-a”. O
joalheiro disse: “Como o rei pediu uma pulseira de qualidade, irei até ele e lhe
trarei o valor dela”, e levou a pulseira até o rei, o qual, bastante admirado com a
boa confecção da joia, chamou uma velha agregada de seu palácio e lhe disse:
“É imperioso que eu tenha a dona desta pulseira, ainda que por uma única noite;
caso contrário, morrerei!”. A velha lhe disse: “Eu a trarei para você”, e, trajando
a roupa dos piedosos, foi até o joalheiro e lhe perguntou: “A quem pertencia
aquela pulseira que está com o rei?”. O joalheiro respondeu: “O dono é um
forasteiro que comprou uma escrava desta cidade e vive com ela no lugar tal e
tal”. A velha foi até a casa do rapaz e bateu à porta, sendo atendida pela moça,
que a cumprimentou, e, vendo nela a roupa dos piedosos, perguntou-lhe:
“Porventura você tem algum pedido?”. A velha respondeu: “Queria um lugar
isolado para fazer as minhas abluções”, e a moça lhe disse: “Entre!”. A velha
entrou, satisfez-se, abluiu-se, rezou e puxou um rosário, pondo-se a entoar
preces. A moça perguntou: “De onde você veio, peregrina?”,[258] e ela
respondeu: “De junto do ídolo dos ausentes, na igreja tal. No caso de mulheres
cujos entes estejam ausentes, basta que lhe contem as suas necessidades: ele lhes
dá informações sobre o estado delas e sobre o do ausente”. A moça disse: “Ó
senhora peregrina, nós temos um ausente ao qual o coração do meu senhor está
ligado! Gostaria de ir a esse ídolo para indagá-lo sobre esse ausente”. A velha
disse: “Amanhã, peça permissão ao seu marido; eu virei até você e iremos em
paz”, e partiu. Quando o seu amo chegou, a moça lhe pediu permissão para ir
com a velha e ele concedeu. Então, a velha veio, levou a moça e a conduziu até
as portas do rei, sem que ela soubesse; entraram e ela viu uma bela casa, com
aposentos adornados que não seriam de ídolos; logo o rei chegou e, vendo a
beleza e a formosura da moça, avançou para beijá-la, mas ela caiu desmaiada,
batendo os pés e as mãos.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]887ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Ao ver aquilo, o rei se afastou e, condoído, retirou-se. O estado da moça se
agravou: parou de comer e de beber e, a cada vez que o rei se aproximava, ela o
rejeitava. Jurando que somente se acercaria dela com a sua aceitação, ele passou
a tratá-la com generosidade, dando-lhe roupas e joias, mas ela somente fazia
aumentar a rejeição.
Quanto ao rapaz, amo da moça, ele a aguardou, mas, como ela não retornasse,
sentiu o coração abrasado e saiu vagando sem rumo e sem saber o que fazer;
pôs-se a jogar terra na cabeça e a gritar: “A velha levou-a e foi embora!”;
moleques correram atrás dele e lhe atiraram pedras dizendo: “Louco! Louco!”. O
secretário do rei, que era um homem velho e bom, encontrou-o e, ao notar-lhe a
juventude, ralhou com os moleques, enxotou-os, foi até o rapaz e lhe perguntou
o que tinha, sendo então informado de sua história. O secretário lhe disse: “Não
há problema! Eu vou encontrar essa moça para você! Contenha o seu
desespero!”, e continuou tratando-o com carinho até que o rapaz se acalmou. O
secretário o levou para casa, tirou-lhe as roupas, deu-lhe farrapos, chamou uma
velha que era sua camareira, e lhe disse: “Leve este rapaz, coloque-lhe no
pescoço este sino de ferro e circule com ele por todas as ruas da cidade; quando
terminar, leve-o até o palácio do rei”; disse ainda ao rapaz: “Onde quer que você
veja a sua moça, não pronuncie uma sílaba; apenas me avise em que lugar ela
está, pois sou o único que poderá libertá-la”. O rapaz lhe agradeceu e saiu com a
velha conforme fora orientado pelo secretário, sendo por ela conduzido até a
cidade e em seguida ao palácio do rei, onde se pôs a dizer: “Olhe, ó gente de
posses, para um rapaz que os demônios tomam duas vezes por dia; paguem para
evitar esta desgraça!”; continuou caminhando com ele até chegar a uma casa no
setor oriental do palácio, onde as concubinas do rei acorreram para vê-lo, e,
perplexas com sua beleza e formosura, choraram e chamaram a moça
sequestrada para ver; ela saiu, olhou e não o reconheceu; ele, porém,
reconheceu-a, abaixou a cabeça e chorou; compadecida, a moça lhe deu algum
dinheiro e retornou para o seu lugar, enquanto o rapaz regressava com a
camareira para a casa do secretário real, a quem informou que a moça estava na
casa do rei. Aflito, o secretário disse: “Por Deus que prepararei um estratagema
para resgatá-la”, e o rapaz beijou-lhe as mãos e os pés. O secretário ordenou à
camareira que trocasse de roupa e mudasse a aparência. A velha tinha palavras
graciosas e espírito agradável, e o secretário lhe deu um perfume luxuoso e
disse: “Vá até as concubinas do rei, venda-lhes este perfume, acerque-se da
moça sequestrada e pergunte-lhe se ela quer o patrão ou não”. A velha saiu,
chegou ao palácio e foi ter com a moça sequestrada, da qual se aproximou e
recitou os seguintes versos:

“Preserve Deus os dias do contato e os melhore!
Como neles a vida era agradável e doce!
Antes não houvesse discórdia no dia da separação,
que tantos corpos liquidou e tantos juízos destruiu!
Sem culpa, fez meu sangue escorrer e minhas lágrimas,
e me roubou quem amo e de quem não me posso privar”.

Ao ouvir a recitação da velha, a moça chorou tanto que inundou as roupas e se
aproximou dela, que lhe perguntou: “Você conhece fulano?”. A jovem chorou e
disse: “É meu amo! Como você o conhece?”. A velha respondeu: “Patroa, você
não viu o louco que veio aqui ontem com a velha? É ele o seu amo!”, e
emendou: “Agora não é hora de conversa; quando anoitecer, suba até o alto do
palácio, sobre o telhado, a fim de que o seu amo venha a você e aja para libertá-
la”; em seguida, deu-lhe o tanto que ela quis de perfume e retornou, informando
o ocorrido ao secretário do rei, que por seu turno informou ao rapaz. Quando
anoiteceu, o secretário preparou duas éguas, água, muitas provisões, uma
montaria para viagem e um guia para o caminho, a quem deixou escondido fora
da cidade; depois, munido de longas cordas presas a um gancho, foi junto com o
rapaz até o palácio, e, vendo a moça em pé no telhado, lançaram-lhe uma ponta
da corda com o gancho; ela enrolou as palmas das mãos nas mangas da roupa e
deslizou, chegando até eles, que a levaram até a saída da cidade, onde o rapaz e a
moça montaram e partiram conduzidos pelo guia, que lhes mostrava o caminho;
avançaram sem interrupção, noite e dia, até chegar à casa do pai do rapaz, o
qual, após ser informado pelo filho de tudo quanto acontecera, se alegrou por ele
estar bem.
Quanto ao preceptor, ele dilapidou tudo de que dispunha e retornou à cidade,
ali encontrando o rapaz, com quem se desculpou e perguntou o que lhe sucedera,
ficando espantado com o que este lhe contou. Em seguida, o preceptor voltou a
acompanhar o rapaz, que passou a não lhe dar atenção nem lhe pagar o
ordenado, conforme seria o hábito, nem lhe revelar nenhum de seus segredos.
Ao ver que não obteria nenhum benefício dele, o preceptor foi até o rei que
sequestrara a moça, contou-lhe o que fizera o secretário, sugerindo-lhe que o
matasse, e o encorajou a retomar a moça, dizendo-lhe que a traria de volta após
ministrar veneno ao rapaz; depois, foi embora. O rei mandou convocar o
secretário, a quem censurou por sua atitude; então, o secretário investiu contra o
rei e o matou, e os criados do rei investiram contra o secretário e o mataram. Já o
preceptor foi até o rapaz, que o questionou sobre a sua ausência, sendo
informado de que estivera no país cujo rei sequestrara a moça. Ao ouvir-lhe as
palavras, o rapaz ficou alerta e não lhe confiou mais nada. O preceptor cozinhou
uma grande quantidade de doce, nele colocando veneno mortal, e o deu ao rapaz,
o qual, ao olhar para o doce, pensou: “Mas esse é um prodígio da parte do
preceptor! Esse doce imperiosamente contém alguma desgraça! Vou
experimentá-lo nele próprio”; então, fez comida e nela incluiu o doce,
convidando-o em seguida para sua casa e lhe servindo a refeição; o preceptor
comeu e lhe ofereceram o doce, do qual ele comeu e morreu imediatamente.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]888ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Compreendendo que se tratara de uma artimanha contra si, o rapaz disse:
“Quem procura a fortuna na medida de suas possibilidades não é prejudicado”.
[Prosseguiu o vizir Rahwån:] “E essa história, ó rei do tempo, não é mais
espantosa que a do cantor, do perfumista e de sua esposa”. Nesse momento, o rei
³åh Ba¿t consentiu que o vizir Rahwån se retirasse para casa, onde ele
permaneceu o resto da noite e o dia seguinte, até que anoiteceu, quando então o
rei, acomodando-se no aposento em que se isolava, pensou na história do cantor
e do perfumista e mandou convocar o vizir, ordenando-lhe que a contasse. O
vizir disse: “Sim”.

Segunda noite do mês
O perfumista, sua esposa e o cantor
Conta-se, ó senhor, que certo jovem de Hamdån[259] – de boa aparência, bom
cantor e tocador de alaúde, apreciado pelos conterrâneos – saiu de sua cidade
para percorrer o mundo[260] e, munido de seu alaúde e de outros instrumentos
musicais, marchou até se acercar de uma bela cidade pela qual começou a
perambular, passando então por um perfumista que, ao vê-lo, o chamou. O
cantor atendeu, o perfumista determinou-lhe que se sentasse e ele se sentou,
sendo então interrogado sobre a sua condição; o cantor lhe relatou os seus planos
e o perfumista fê-lo entrar na loja, comprou-lhe comida, alimentou-o e disse:
“Venha, pegue o seu alaúde e caminhe pelas ruas da cidade; quando sentir cheiro
de bebida, vá até os bebedores e diga-lhes”...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]889ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
O perfumista disse: “Diga-lhes:] ‘Sou cantor’. Eles rirão e lhe dirão: ‘Venha
conosco!’, e quando você cantar, eles passarão a conhecê-lo e gostarão de ouvi-
lo; você se tornará conhecido nesta cidade e sua situação irá melhorar”. O cantor
se pôs a vagar, conforme lhe ordenara o perfumista, até que o sol ficou
demasiado quente; não tendo encontrado ninguém que estivesse bebendo,
dirigiu-se a um beco para descansar, e ali viu uma casa bela e alta a cuja sombra
parou, pondo-se a contemplar a beleza de sua construção. Enquanto observava,
abriu-se uma portinhola através da qual surgiu um rosto que parecia a lua, e cuja
jovem dona lhe perguntou: “Por que está parado aqui? Acaso precisa de algo?”.
Ele respondeu: “Sou forasteiro”, e lhe contou a sua história. Ela perguntou: “O
que acha de comer, beber, deleitar-se com uma face graciosa e ganhar algo para
gastar?”. Ele respondeu: “Madame, é este o meu propósito; é isso que estou
procurando!”. Ela abriu a porta, fê-lo entrar, acomodou-o em um aposento alto
da casa e lhe ofereceu comida. Ele comeu, bebeu, deitou-se com ela e a possuiu;
em seguida, ela se deitou em seu colo e começaram a brincar, a rir e a se beijar.
Por volta do meio-dia, o marido da mulher chegou, e ela escondeu o cantor
enrolando-o em um tapete. O marido entrou, viu o lugar em que se dera a
batalha, sentiu cheiro de vinho e a interpelou a respeito. Ela respondeu: “Estava
aqui uma amiga minha para a qual jurei, por vida dela, que deveria beber, e então
bebemos juntas um jarro; ela se retirou agorinha antes de você entrar”. Crendo
que as suas palavras eram verdade, o marido retornou para a loja – era ele o
perfumista amigo do cantor, que o convidara e alimentara! O cantor voltou para
a jovem e retomaram o que estavam fazendo até o fim da tarde, quando então ela
lhe deu dinheiro e disse: “Amanhã de manhã volte para cá”. Ele respondeu:
“Sim”, e partiu; quando anoiteceu, foi a um banho público, e pela manhã se
dirigiu à loja do perfumista seu amigo, o qual lhe deu boas-vindas ao vê-lo e lhe
perguntou como estava e como havia sido o dia anterior. O cantor respondeu:
“Que Deus o recompense, meu irmão! Você me guiou ao conforto”, e lhe contou
sua história com a mulher, até o ponto em que o marido dela chegou, quando
então emendou: “O corno do marido dela chegou ao meio-dia e bateu à porta.
Ela me enrolou em um tapete e, quando ele se retirou, saí e retomamos o que
estávamos fazendo”. Exasperado com aquilo, o perfumista, arrependido pelas
instruções que lhe dera e desconfiado da esposa, perguntou-lhe: “O que ela lhe
disse quando você se retirou?”. O cantor respondeu: “Ela me disse: ‘Volte para
mim amanhã’, e eis-me agora indo para ela! Só vim aqui avisá-lo para que você
não se preocupe comigo”, despediu-se e partiu. Quando o perfumista calculou
que o cantor já chegara, cobriu a porta da loja com uma rede, rumou para casa,
suspeitoso da esposa, e bateu à porta. Lá dentro, a esposa disse ao cantor, que já
entrara: “Vamos, entre nesta caixa!”, ele entrou e ela fechou a tampa, indo então
abrir a porta para o marido, que entrou perplexo, vasculhou a casa, passando
despercebido pela caixa, e não encontrou ninguém. O perfumista pensou:
“Talvez a minha casa seja parecida com a casa na qual ele entrou, e a mulher,
parecida com a minha”, e retornou para a loja. O cantor saiu da caixa, foi até a
mulher e se satisfez nela, homenageando-a com medidas muito bem pesadas,
após o que comeram, beberam, beijaram-se, abraçaram-se, e assim atravessaram
a tarde. Ela lhe pagou dirhams e, apreciando o seu caprichado acabamento,
marcou mais um encontro para o dia seguinte, e o cantor se retirou...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]890ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
O cantor se retirou] e dormiu por aquela noite. Quando amanheceu, retornou à
loja de seu amigo perfumista, que o cumprimentou, deu boas-vindas e perguntou
como estava. O cantor lhe contou a história até o ponto em que o marido
chegava, quando então disse: “O corno do marido chegou, mas ela me colocou
em uma caixa e a tampou. O idiota e putanheiro do marido dela começou a rodar
pela casa de cima a baixo, e, quando ele saiu, retomamos o que estávamos
fazendo”. Certo de que a casa era a sua, e a esposa, também a sua, o perfumista
perguntou: “E hoje, o que você fará?”. O cantor respondeu: “Voltarei a ela, para
tecê-la e rasgar a sua tessitura.[261] Só vim para agradecer-lhe pelo que fez por
mim”, e se retirou. Acendeu-se um fogo no coração do perfumista, que trancou a
loja, retornou para casa e bateu à porta. Lá dentro, o cantor disse: “Deixe que eu
me esconda na caixa, pois ontem ele não me viu”, mas ela lhe disse: “Não,
enrole-se no tapete!”, e ele se enrolou, encostando-se a uma parede da casa. O
perfumista entrou exclusivamente preocupado com a caixa, na qual nada
encontrou. Circulou pela casa de cima a baixo, mas não encontrou nada nem
ninguém, ficando entre crédulo e incrédulo. Pensou: “Talvez eu tenha suspeitado
de minha mulher por algo que ela não fez”, e assim, acreditando que ela era
inocente, saiu e retornou para a loja. O cantor se desenrolou do tapete e ambos
retomaram o que de hábito faziam, nisso se mantendo até o fim da tarde, quando
então ela lhe deu uma camisa do marido, que ele aceitou e saiu, indo dormir em
sua casa. Ao amanhecer, foi até o perfumista, que o cumprimentou, recepcionou,
alegrou-se com sua presença e sorriu para ele, crente que estava na inocência da
esposa. Perguntou-lhe como passara o dia anterior e o cantor lhe contou a sua
história e disse: “Meu irmão, quando o corno bateu à porta, fiz tenção de entrar
na caixa, mas a esposa me impediu e me enrolou no tapete. O homem entrou
exclusivamente preocupado com a caixa, quebrando-a e comportando-se como
louco, subindo e descendo; depois, tomou seu rumo. Saí de onde estava e
retomamos o de sempre até o fim da tarde, quando então ela me deu uma das
camisas do marido. Agora, eis-me aqui indo até ela!”. Ao ouvir as palavras do
cantor, o perfumista se certificou da história e teve certeza de que toda a
desgraceira estava ocorrendo em sua casa, e que a mulher era a sua; ao examinar
a camisa, sua certeza aumentou e ele perguntou: “Você está indo agora até ela?”.
O cantor respondeu: “Sim, meu irmão!”, e se despediu e retirou. O perfumista
saiu da loja como louco e trancou-a, e, nesse ínterim, o cantor alcançou a casa.
Quando o perfumista chegou e bateu à porta, o cantor quis enrolar-se no tapete,
mas a mulher o impediu dizendo: “Vá para a parte de baixo da casa, entre no
forno e tampe-o”, e ele obedeceu. A mulher foi receber o marido e abriu a porta;
ele entrou como louco, circulou pela casa e não encontrou ninguém, pois o forno
lhe passou despercebido. Após refletir um pouco, ele jurou que não sairia de
casa senão no dia seguinte. Quando achou que já passara muito tempo no forno,
o cantor saiu e, imaginando que o marido fora embora, subiu ao telhado e dali
espreitou o interior da casa, reconhecendo o seu amigo perfumista!
Extremamente aborrecido com aquilo, pensou: “Oh, que vergonha! Este é o meu
amigo perfumista, que tão bem me tratou e tantos favores me fez! Eis a
abominável recompensa que lhe dei!”. E, temeroso de retornar ao perfumista,
desceu e abriu a primeira porta para escapulir e evitar que ele o visse, mas
verificou que a porta de fora estava trancada e não avistou a chave; começou
então a pular de telhado em telhado, até que os moradores de uma casa cujo
dono era persa ouviram-no, perseguiram-no e, enfim, agarraram-no, supondo
que fosse ladrão. O dono da casa começou a surrá-lo, afirmando: “Você é
ladrão!”, ao passo que ele respondia: “Não sou ladrão, mas sim cantor
estrangeiro! Ouvi suas vozes e vim cantar para vocês”. Quando as pessoas dali
ouviram aquilo, falaram em libertá-lo, mas o persa disse: “Gente, não se deixe
enganar pelas palavras dele! Não se trata senão de um ladrão que sabe cantar, e
que, ao ser flagrado por gente como nós, alega ser cantor!”. Disseram-lhe: “Ó
senhor, este homem é estrangeiro e, portanto, é imperioso libertá-lo!”. O persa
disse: “Por Deus que meu coração antipatizou com esse homem! Deixem-me
matá-lo de pancada!”. Disseram: “Não existe motivo para tal”, e livraram-no das
mãos do persa dono da casa, acomodando-o no meio deles. O cantor pôs-se
então a cantar e os alegrou. O persa tinha um criado que parecia o plenilúnio, e o
cantor ficou atrás dele chorando e demonstrando afeto; beijou-lhe as mãos e os
pés, conquistando o rapaz, que disse: “Quando anoitecer, e meu patrão e o povo
se retirarem, deixarei que você me possua; eu durmo no lugar tal”. O cantor
retornou aos convivas. Mais tarde, o persa e seu criado se retiraram. O cantor
descobriu onde o criado ficava, mas coincidiu que, no meio da noite, o criado
saiu do seu lugar, a vela se apagou, e o persa adormeceu de bruços, bêbado;
acreditando tratar-se do criado, o cantor disse: “Muito bom!”, desamarrou-lhe as
calças, cuspiu no pau e enfiou-o nele. O persa acordou aos gritos, agarrou o
cantor, amarrou-o e moeu-o de pancadas, prendendo-o em seguida em uma
árvore do quintal; naquela casa também vivia uma graciosa cantora, a qual, ao
vê-lo amarrado, esperou o persa se recolher à cama e foi até o cantor, começando
a se lamuriar e condoer pelo sucedido, piscando para ele e acariciando e
massageando o seu pênis até endurecer, quando então lhe disse: “Me coma e eu
o desamarro para que o persa não volte a surrá-lo, pois as intenções dele em
relação a você são abjetas”. O cantor disse: “Solte-me que eu farei isso”. A
cantora disse: “Meu receio é que, solto, você não o faça. Mas me coma em pé, e,
quando terminar, eu o solto”; ergueu as roupas e se fez penetrar pelo pênis do
cantor, dando início ao vai-e-vem. No quintal da casa havia um bode – usado
pelo persa para torneios de chifradas – que, ao ver o que a mulher fazia, supôs
que ela o desafiava, e, rompendo suas amarras, correu na direção dela e aplicou
um trompaço que lhe rachou a cabeça; a mulher caiu de bunda e gritou,
acordando imediatamente o persa, que olhou para a cantora, e, vendo o pênis
duro do cantor...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]891ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
O persa] disse-lhe: “Ó maldito! Não lhe bastava o que já fez?”, e, após
aplicar-lhe tremenda surra, abriu a porta e arremessou-o para fora no meio da
noite, cujo resto ele passou em umas ruínas, e, quando amanheceu, disse:
“Ninguém tem culpa! Eu quis o melhor[262] para mim, e não é nenhuma
estupidez alguém querer o melhor para si; também a mulher do perfumista quis o
melhor para si. De qualquer modo, o destino derrotou a precaução e agora já não
tenho lugar nesta cidade”. E abandonou aquela cidade.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história, ainda que espantosa, não o é mais que a
história do rei, seu filho, e os espantos e assombros que sucederam a ambos”.
Após ter ouvido aquela história, que considerou bela, o rei pensou: “Ela é
próxima do que sei. O melhor parecer é ser paciente e não ter pressa em matar o
vizir, até me beneficiar dele”. Assim, ordenou-lhe que fosse para casa, e o vizir
agradeceu e se manteve em casa durante o dia inteiro; à noite, o rei foi para seu
assento, mandou convocar o vizir e lhe ordenou que cumprisse o que prometera.

Terceira noite do mês
O rei conhecedor de essências e seu filho
Disse o vizir:
Conta-se, ó rei, que certo rei teve, já velho, um filho bonito, inteligente e
ajuizado, ao qual, quando atingiu a puberdade, o pai disse: “Fique com este reino
e tome conta dele por mim, pois desejo refugiar-me em Deus altíssimo”; vestiu
um gibão de lã e se entregou à adoração. O rapaz disse: “Também eu desejo
refugiar-me em Deus altíssimo!”. O pai lhe disse: “Vamos fugir daqui, ir para
montanhas nas quais praticaremos a adoração por pudor a Deus altíssimo”. E
assim ambos recolheram trajes de lã, vestiram-no, saíram e perambularam por
desertos e regiões inóspitas. Passados alguns dias, emagreceram de fome e se
arrependeram do que fizeram, mas já então o arrependimento de nada lhes
adiantava. O rapaz se queixou de cansaço e fome ao pai, que respondeu: “Meu
filho, eu lhe fiz aquilo que devia, mas você não me obedeceu. Agora, não há
como recuperar o estado anterior, pois o reino foi tomado por outro, que
defenderá a sua posse. Eu lhe sugiro algo, esperando que você faça a gentileza
de aceitar”. O rapaz perguntou: “Que é?”. O pai disse: “Leve-me até o mercado,
venda-me, receba o valor e faça com ele o que bem entender. Eu ficarei com
quem me comprar”. O rapaz disse: “Quem o compraria? Você é velho! Ao
contrário, venda-me você, pois existe maior demanda por mim”. O pai disse: “Se
você retomar o reino, poderá me recomprar!”. Então o filho acatou o pai e o
levou até um vendedor de escravos ao qual disse: “Venda este velho”. O homem
perguntou: “Quem o compraria, se ele já está nos oitenta anos?”, e, dirigindo-se
ao velho: “O que você sabe fazer?”. O velho respondeu: “Conheço a essência
das essências: a essência dos cavalos, das pessoas, enfim, todas as essências”. O
vendedor pegou-o e pôs-se a oferecê-lo ao público, mas ninguém o comprou.
Veio então o chefe da cozinha real e perguntou: “Quem é esse?”. O vendedor
respondeu: “Um escravo à venda”. Intrigado com aquilo, o cozinheiro o
comprou, após ter indagado sobre seu ofício, por dez mil dirhams; pagou o preço
e o levou para casa, mas não se atrevia a obrigá-lo a nenhum serviço, e, ademais,
viu-se obrigado a sustentá-lo, arrependendo-se de tê-lo comprado; pensou: “Que
farei com ele?”. Sucedeu então que, indo passear no bosque, o rei daquela
localidade ordenou ao cozinheiro que o acompanhasse e deixasse em seu lugar
alguém que lhe preparasse a refeição, a fim de que ela estivesse pronta quando
de seu retorno. O cozinheiro se pôs a pensar em quem colocaria em seu posto, e
ficou em dúvida. O velho chegou e, vendo-o em dúvida, disse-lhe: “Conte-me o
que você tem! Quem sabe eu não tenha a solução?”. O cozinheiro lhe contou o
que o rei pretendia fazer, e o velho lhe disse: “Não pense mais no assunto. Deixe
um criado a meu serviço e vá com tranquilidade. Eu lhe resolverei isso”. Então o
cozinheiro partiu com o rei, após lhe ter providenciado tudo quanto precisava, e
deixado junto dele um soldado, ao qual o velho, tão logo o cozinheiro partiu,
ordenou que lavasse os recipientes da cozinha. A seguir, preparou excelente
comida, servindo-a ao rei assim que ele retornou, e fazendo-o provar um sabor
que jamais provara; desconfiado, o rei indagou sobre quem cozinhara aquela
comida, sendo informado a respeito do velho, o qual ele ordenou que fosse
trazido à sua presença, e lhe perguntou os segredos daquela comida, tratando-o
com gentileza e ordenando que ele e o cozinheiro dividissem os encargos da
cozinha, e o velho obedeceu. Após algum tempo, foram ter com o rei dois
mercadores com duas pérolas valiosas; o primeiro declarou que a sua equivalia a
mil dinares, e, como todos se mostrassem incapazes de avaliar a outra, [que era
maior][263]a, o cozinheiro disse: “Que Deus felicite o rei! O velho que eu
comprei afirmou conhecer a essência das essências; ele conhece comida, e nisso
já o testamos, comprovando que é de fato o maior conhecedor. Caso o
chamemos e testemos a respeito de pedras preciosas, comprovaremos a sua
alegação”. Chamado, o velho atendeu e parou diante do rei, que lhe mostrou as
duas pérolas; o velho disse: “Esta vale mil dinares”. O rei disse: “Assim falou
seu dono”. O velho continuou: “Esta outra vale quinhentos dinares”, e então os
presentes riram espantados com tal afirmação. O mercador lhe disse: “Como
assim? A minha pérola tem maior volume, aparência mais límpida e é mais
redonda! Como pode valer menos que a outra?”. O velho disse: “Só afirmei o
que sei”. O rei disse: “Na aparência, ela é igual à outra pérola. Por que seu valor
é a metade?”. O velho respondeu: “Sim, mas seu interior é de má qualidade”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]892ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O mercador perguntou: “Por acaso a pérola tem aparência e interior?”. O
velho respondeu: “A sua é oca e contém um verme, ao passo que a outra é de boa
qualidade e não quebra”. O mercador lhe disse: “Mostre-nos o sinal disso. Como
poderemos avaliar a correção de suas palavras?”. O velho respondeu:
“Quebremos a sua pérola. Se eu estiver mentindo, minha cabeça lhe pertence; se
eu estiver dizendo a verdade, você terá perdido sua pérola”. O mercador disse:
“Aceito!”. A pérola foi quebrada, e seu interior era como afirmara o velho:
centro oco e um verme no meio. Admirado com o que vira, o rei lhe perguntou
como soubera aquilo, e o velho respondeu: “Ó rei, essa joia se produz no ventre
de um animal chamado almutabattil,[264] e sua origem é uma gota de chuva.
Quando toquei na pérola, notei que estava quente e que havia algum animal
dentro dela, pois o animal só vive no calor”. O rei disse ao cozinheiro:
“Aumente-lhe a ração”, e o cozinheiro assim fez.
Transcorrido algum tempo, dois mercadores com dois cavalos foram ter com o
rei. Um deles disse: “Eu cobro mil dinares pelo meu cavalo”, e o outro disse:
“Eu cobro cinco mil dinares pelo meu cavalo”. O cozinheiro disse: “Já nos
acostumamos com a boa orientação do velho. O que acha o rei de chamá-lo?”, e
o rei assim ordenou. Após examinar os dois cavalos, o velho disse: “Este cavalo
vale mil dinares, e este outro vale dois mil”. As pessoas retrucaram: “Ambos
visivelmente são de raça! Mas o segundo é mais jovem, veloz, tem membros
mais robustos, cara mais fina, cor e pele mais límpidas!”, e continuaram:
“Mostre-nos o sinal da correção de suas palavras”. Ele respondeu: “Tudo que
vocês disseram está certo. Porém, este é filho de cavalo velho, e aquele, de
cavalo jovem. O filho de cavalo velho, quando para, não se recupera, deixando o
cavaleiro à mercê de quem o persegue, ao passo que o filho de cavalo jovem, por
mais que você o faça competir e correr, e por mais que o monte e desmonte, verá
que se mantém firme e não se cansa”. O mercador disse: “O cavalo é como
descreveu o velho, que, de fato, é o melhor avaliador!”. O rei disse ao
cozinheiro: “Aumente-lhe a ração”, e, como o velho ficou parado no lugar, sem
se mexer, perguntou-lhe: “Por que não vai agora cuidar de seu serviço?”. O
velho respondeu: “Meu serviço é junto ao rei”. O rei disse: “Diga o que precisa”.
O velho respondeu: “Preciso que você me pergunte sobre a essência das pessoas,
tal como perguntou sobre a essência dos cavalos”. O rei respondeu: “Não temos
precisão de lhe pedir isso”. O velho disse: “Mas eu tenho precisão de informá-lo
a respeito!”. O rei disse: “Diga o que quiser”. O velho disse: “O rei é filho de
padeiro”. O rei disse: “Como pode saber?”. O velho disse: “Saiba, ó rei, que
examinei os cargos e as posições e descobri isso”. O rei então saiu, foi até a sua
mãe, e indagou-a a respeito do pai; ela o informou que seu marido, o rei, era de
constituição débil e não podia ter filhos; “então, temendo que o reino se perdesse
após a sua morte, entreguei-me a um jovem padeiro do qual engravidei, e o reino
passou às mãos de meu filho, que é você”. O rei retornou ao velho e disse: “Sou
filho de um jovem padeiro! Esclareça para mim como você me reconheceu”. O
velho respondeu: “Eu sabia que, fosse você filho de rei, ter-me-ia presenteado
com valiosos rubis; fosse filho de juiz, dar-me-ia algumas moedas; filho de
algum mercador, muito dinheiro; mas, vendo que não ia além dos pães, descobri
que você é filho de padeiro”. O rei disse: “Você acertou”, deu-lhe muito dinheiro
e elevou-lhe a posição.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] O rei ³åh Ba¿t ficou espantado e admirado com a
história. O vizir lhe disse: “Mas ela não é mais espantosa que a história do
homem rico que casou sua bela filha com um velho pobre”. Então, com a mente
ocupada por essa história, o rei ³åh Ba¿t ordenou que o vizir se retirasse para
casa, onde ele passou o resto da noite e o dia inteiro. Ao cair da noite, o rei ³åh
Ba¿t, sozinho, determinou que o vizir fosse trazido à sua presença, e disse-lhe
quando chegou: “Conte-me a história do homem rico”. O vizir respondeu:
“Sim”.

Quarta noite do mês
O homem rico que casou a filha com um velho pobre
Saiba, ó rei poderoso, que certo mercador rico tinha uma bela filha que parecia o
plenilúnio. Quando ela atingiu a idade de quinze anos, o pai chamou um velho
pobre, hospedou-o em sua sala, alimentou-o, tratou-o bem e lhe disse: “Quero
casá-lo com a minha filha”. O velho se recusou em razão da sua pobreza e disse:
“Não a mereço nem convenho a ela”. Como o rico homem insistisse, o velho
repetiu as palavras e disse: “Só aceitarei se você me informar o motivo de sua
opção por mim. Se eu vir nisso algo bom, concordarei; caso contrário, não o
farei de modo algum”. Disse-lhe o rico homem:
Saiba que sou oriundo da China, e em minha juventude era muito bonito e
próspero. Nenhuma mulher me atraía, e eu preferia a companhia dos rapazes. Vi
então em sonho uma balança montada, em torno da qual se dizia: “Aqui está a
fortuna de fulano!”. Fiquei por ali até ouvir o meu nome. Olhei, e eis que me vi
diante de uma mulher extremamente feia! Acordei aterrorizado, dizendo: “Não
me casarei jamais! Talvez me caiba essa feiosa!”. Na sequência, viajei para este
país em uma caravana comercial; gostei da viagem e do lugar, e aqui me
estabeleci durante esse período todo, fazendo amigos e parceiros de negócio.
Quando terminei de vender minhas mercadorias e recebi o preço, não me restou
outro afazer senão passear com as pessoas.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]893ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse que o homem rico disse:]
Troquei minhas roupas, escondendo alguns dinares na manga, e pus-me a
perambular pela cidade; estava nisso quando vi uma casa cuja beleza me deixou
tão maravilhado que parei para contemplá-la. Súbito, surgiu na casa uma
formosa mulher que, ao me ver, entrou rapidamente. Intrigado, fui até um
alfaiate que havia por ali e o interroguei sobre a casa, e a quem pertencia. Ele
respondeu: “Pertence a fulano, o notário, que Deus o amaldiçoe!”. Perguntei:
“Por acaso ele é o pai da moça?”. [O alfaiate respondeu: “Sim”].[265] Dirigi-me
então ao homem em cuja loja eu vendia minhas mercadorias, e lhe informei de
que gostaria de ter contato com o notário fulano da cidade. O homem se reuniu
com seus amigos e fomos todos juntos até o notário; quando chegamos,
cumprimentamo-lo e nos acomodamos. Eu disse a ele: “Vim pedir em casamento
sua filha, a quem desejo”. Ele respondeu: “Não tenho filha que lhe sirva”. Eu
disse: “Que Deus o castigue! A recusa é sua, e não dela!”, mas ele se manteve
irredutível. Seus companheiros lhe disseram: “Ele é adequado e digno; não é
justo recusar a boa fortuna à jovem!”. O notário disse: “Ela não lhe serve”, eles
insistiram e ele disse: “Minha filha que vocês estão pedindo é extremamente feia
e possui tudo quanto é característica reprovável”. Eu lhe disse: “Eu a aceito tal
como você a descreve”. O grupo disse: “Louvado seja Deus, acabou a conversa!
Não há mais o que dizer! Qual é o dote?”. O notário respondeu: “Quatro mil
dinares”. Eu disse: “Ouço e obedeço”. A questão então se resolveu, celebramos o
contrato de casamento, promovi o banquete e, na noite de núpcias, vi uma
criatura que jamais Deus altíssimo criara tão horrenda! Supondo que seus
familiares haviam aprontado aquilo a título de brincadeira, ri-me e esperei que a
moça que eu vira aparecesse. Todavia, como o tempo fosse passando e eu não
visse ninguém senão aquela criatura, quase enlouqueci com tal trapaça, e pus-me
a rogar a Deus e a lhe suplicar que me salvasse dela. Quando amanheceu, veio a
camareira e perguntou: “Alguém precisa de banho?”. Respondi: “Não”. Ela
perguntou: “Quer almoçar?”. Respondi: “Não”, e assim permaneci por três dias,
sem nada comer nem beber. Vendo-me em tal estado, a moça com quem eu me
casara disse: “Homem, conte-me a sua história! Por Deus que, se eu puder salvá-
lo, não deixarei de fazê-lo”. Ouvi atentamente as suas palavras e, com
esperanças em sua sinceridade, contei-lhe a história da moça que eu vira e pela
qual me apaixonara. Ela disse: “Se for minha criada, tudo o que é meu é seu; se
for de meu pai, irei pedi-la a ele, recebê-la e entregá-la a você”. Em seguida,
pôs-se a chamar criada por criada, exibindo-as para mim, até que vi a criada pela
qual me apaixonara, e disse: “É ela!”. Minha esposa disse: “Não inquiete o seu
coração, pois se trata de uma criada que o meu pai me deu; agora, estou dando-a
a você. Aquiete-se, portanto, tranquilize-se e folgue”. Quando anoiteceu, ela me
trouxe a criada, a quem adornou, perfumou e disse: “Não desobedeça a seu amo
em nada do que ele desejar de você!”. Ao nos deitarmos na cama, porém, pensei:
“Essa jovem está sendo mais nobre que eu!”. Dispensei a criada sem a haver
tocado e fui imediatamente até minha esposa; dormi com ela, deflorei-a e ela
engravidou na mesma hora; completaram-se seus meses e deu à luz esta minha
filha, cuja extrema formosura me deixou feliz: herdou a inteligência da mãe e a
beleza do pai. Um grupo de notáveis veio pedi-la em casamento, mas eu recusei.
Outro dia, contudo, vi em sonho aquela mesma balança montada; homens e
mulheres estavam por ali pesando, e foi então como se eu visse você e me
dissessem: “Esse é fulano, e é ele a fortuna de fulana, sua filha”. Compreendi
então que Deus altíssimo não a destinou senão a você, e por isso gostaria de
casá-los ainda em minha vida, antes que se casem depois de minha morte!”.[266]
Ao ouvir tais palavras, o velho aceitou se casar com a jovem, o que logo se
fez, sendo por ela agraciado com imenso amor.
[Prosseguiu o vizir:] “Mas essa história não é mais espantosa nem insólita que
a do sábio, seus três filhos, e a recomendação que ele lhes fez”. O rei, após ter
ouvido a história de seu vizir, adiou-lhe a morte pensando: “Vou dar-lhe mais um
prazo a fim de me beneficiar com a história do sábio e seus filhos”; ordenou-lhe
que fosse para casa, e, quando foi a noite seguinte, o rei se acomodou sozinho,
mandou chamá-lo e lhe pediu que contasse a história do sábio e seus filhos.

Quinta noite do mês
O sábio e seus três filhos
Disse o vizir Rahwån:
Saiba, ó rei, que certo sábio tinha três filhos, e esses filhos lhe deram netos;
quando eles se reproduziram demasiado, tornando-se muitos, iniciaram-se as
divergências. O sábio reuniu os três e disse: “Sejam uma só mão contra os
outros; não humilhem, caso contrário serão humilhados, e saibam que o
paradigma de vocês é como o do homem que rompia cordas mas que, ao
debilitar-se, já não pôde fazê-lo. Tal é a situação da separação e da união. Muito
cuidado! Jamais busquem apoio em gente de fora contra si mesmos, pois nesse
caso estarão à beira da aniquilação: a palavra de quem os auxiliar na vitória terá
mais peso que a de vocês. Possuo um dinheiro que enterrarei em algum lugar;
será a sua reserva por ocasião da necessidade”. Mas os filhos não lhe deram
ouvidos e se separaram; um deles pôs-se a vigiar o pai, que saiu da cidade para
esconder o dinheiro e, isso feito, regressou. Pela manhã, esse filho, que vira o
local onde o dinheiro fora enterrado, foi até o local, escavou, pegou o dinheiro e
partiu. Quando a morte se aproximou, o velho chamou os filhos, informou-os
onde escondera o dinheiro e morreu; os filhos foram até o local, escavaram e
encontraram muito dinheiro, que dividiram entre si; o dinheiro levado pelo filho
que vigiara o pai estava na parte de cima do buraco, e ele não percebera que
embaixo havia ainda mais dinheiro; mas, mesmo assim, ele levou sua parte na
divisão com os dois irmãos, reuniu-a ao que já pegara antes sem o conhecimento
do pai e dos irmãos, e se casou com a filha de seu tio paterno, sendo por ela
agraciado com um menino varão que era a mais bela das criaturas de seu tempo.
Quando o menino cresceu, temeroso de que o filho empobrecesse por alguma
reviravolta em sua situação, o pai lhe disse: “Saiba, meu filho, que na juventude
dispensei aos meus irmãos um péssimo tratamento no que se refere ao dinheiro
de nosso pai. Por ora vejo que você está bem, mas, se acaso precisar de algo, não
peça a nenhum dos meus irmãos nem a mais ninguém, pois guardei para você,
nesta casa, um tesouro. Somente o abra se estiver precisando para a sua
manutenção diária”, e morreu; seu dinheiro passou ao filho e, como era muito, o
rapaz nem esperou que se esgotasse o que tinha em mãos. Pelo contrário, abriu o
lugar onde se encontrava o tesouro, um cômodo pintado de branco, em cujo
centro havia uma corda estendida...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]894ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
... bem como] dez pedras, uma sobre a outra, e um pedaço de papel no qual se
escrevera: “Como a morte forçosamente ocorrerá, enforque-se, mas nada peça
aos meus irmãos nem a ninguém; chute as pedras até que a sua alma abandone
toda artimanha; assim estará a salvo do escárnio dos inimigos e invejosos, bem
como da amargura da pobreza”. Ao ler aquilo, intrigado com a atitude do pai, o
rapaz disse: “Este é o pior tesouro!”. Começou a sair diariamente para comer e
beber com seus companheiros, e tanto gastou que nada lhe restou; após dois dias
sem comer nem beber, pegou um lenço de rosto, vendeu-o por dois dirhams,
comprando com esse valor pão e leite que deixou sobre uma prateleira, e saiu;
veio então um cachorro que comeu o pão e estragou o leite; ao voltar e
presenciar aquilo, o rapaz estapeou-se no rosto e saiu sem rumo, passando por
um amigo, a quem relatou o que lhe sucedera; o amigo disse: “Não tem vergonha
de falar isso? Como então? Desperdiçou o dinheiro e agora vem contar mentiras,
afirmando que o cachorro subiu na prateleira? Invencionice!”, e o admoestou
severamente. O rapaz tomou o caminho de volta, vendo tudo escuro em torno de
seus olhos e rosto, e dizendo: “Meu pai falou a verdade”. Abriu a porta do
cômodo, subiu nas pedras, amarrou a corda no pescoço, chutou as pedras,
balançou-se, e então a corda se rompeu, o teto se fendeu, e caiu sobre ele muito
dinheiro. Percebendo destarte que o pai o instruíra, o rapaz o bendisse,
recomprou as terras e outros bens que vendera, deu bom uso ao dinheiro e
retornaram os amigos, aos quais, após convivência de alguns dias, ele disse:
“Tínhamos em casa um pão que foi devorado por ratos, e então colocamos no
lugar desse pão um rochedo de uma braça de comprimento e uma braça de
largura, mas os ratos voltaram e o roeram, por causa do cheiro do pão”. O amigo
que lhe desmentira a história do pão e do leite disse: “Não se impressione com
isso, pois os ratos fazem coisas ainda piores”. Ele disse: “Vão todos para suas
casas. Por ocasião da pobreza, eu mentia quanto ao fato de o cachorro subir na
prateleira, comer o pão e estragar o leite, mas agora, em virtude da existência da
riqueza, vocês acreditam que ratos roem rochedos de uma braça de largura e uma
braça de comprimento?”. Vexados com aquele discurso, eles se retiraram. E o
jovem fez prosperar o seu patrimônio e melhorou a sua situação.
[Prosseguiu o vizir:] “Mas isso não é mais insólito nem espantoso que a
história do rei que se apaixonou pela imagem”. O rei ³åh Ba¿t pensou: “Se eu
ouvir essa história, talvez me beneficie com alguma sabedoria. Não irei apressar-
me em tirar a vida deste vizir; não o matarei antes de trinta dias”. Na sequência,
ordenou-lhe que se retirasse, e o vizir foi para casa. Então, mais um dia raiou;
quando entardeceu, o rei se acomodou no local onde ficava a sós, mandando
chamar o vizir, que compareceu, e pedindo-lhe que contasse a história. O vizir
disse:

Sexta noite do mês
O rei que se apaixonou por uma imagem
Saiba, ó rei venturoso, que certo rei na região da Pérsia, bastante poderoso,
desfrutava de respeito e auxiliares, mas era estéril, e no final da vida foi
agraciado por Deus com um filho varão. O menino, que era bonito, cresceu,
aprendeu todos os saberes, e tomou para si um local isolado, que consistia em
um palácio elevado, construído de mármore colorido e ornado com pedras
preciosas e pinturas. Ao entrar naquele palácio, viu em seu teto uma imagem [de
mulher], cuja aparência ele jamais vira mais bela.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]895ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Em torno daquela imagem [de mulher no coche][267] havia criadas, e ele caiu
desmaiado, dominado pelo amor por ela, sentando-se em seguida debaixo da
imagem. Certo dia, seu pai entrou no palácio, encontrando-o emagrecido e com a
cor alterada, de tanto que ele fitava a imagem. Presumindo que o rapaz estava
doente, o pai mandou chamar sábios e médicos para tratá-lo. Acabou dizendo,
por fim, a uma das pessoas que recebeu: “Se descobrir o que meu filho tem,
minha mão será bem generosa com você”.[268] O homem entrou onde o rapaz
estava e se pôs a lisonjeá-lo, até descobrir que tudo se devia àquela imagem;
então, retirou-se e contou ao rei, que mandou transferir o filho para outro lugar,
transformando aquele palácio em uma mansão para receber seus hóspedes, e, a
todo aquele que ali se hospedava, o rei indagava sobre a imagem daquela mulher
no coche, mas ninguém sabia informá-lo, até que, certo dia, hospedou-se no
palácio um viajante que olhou para a imagem e disse: “Não existe divindade
senão Deus! Essa imagem foi pintada por meu irmão!”. O rei mandou chamá-lo
para pedir-lhe notícias sobre aquela imagem, e onde se encontrava aquele que a
pintara. O viajante respondeu: “Meu senhor, somos irmãos! Meu irmão foi para a
Índia e lá se apaixonou pela filha do rei. É ela nessa imagem. Em qualquer
cidade onde entre, meu irmão pinta a imagem dela. Estou atrás dele, em uma
longa viagem!”. Quando ouviu aquilo, o filho do rei disse: “É absolutamente
imperioso que eu viaje até essa jovem”. Ato contínuo, recolheu todo gênero de
joias, muito dinheiro, e viajou por dias e noites, até que entrou na terra da Índia,
aonde somente chegou após grandes fadigas. Perguntou sobre o rei da Índia, que
também soube a seu respeito e lhe permitiu que fosse visitá-lo. Ao se ver diante
dele, o rapaz pediu a mão de sua filha em casamento. O rei da Índia disse: “Você
é adequado à minha filha. Porém, ninguém pode mencionar homens diante dela,
de tanto que os odeia!”. Então o rapaz montou tendas defronte do palácio da
jovem, e ali ficou até que, certo dia, conseguiu falar com uma de suas criadas
particulares, para isso dando-lhe muito dinheiro. Ela perguntou: “Precisa de
algo?”. Ele respondeu: “Sim”, e lhe contou a sua história. Ela disse: “Você
arriscou a vida!”. Ele passou a buscar ajuda até que todo o seu dinheiro acabou e
os criados começaram a evitá-lo. Ele disse a alguém em quem confiava:
“Gostaria de ir ao meu país, pegar o que necessito e retornar para cá”. Disse-lhe
essa pessoa: “Você é quem sabe!”, e então o rapaz tomou o caminho de sua terra;
a viagem foi longa, acabou tudo quanto ele tinha e seus acompanhantes
morreram, não lhe restando senão um criado, a quem ele fez carregar o que era
possível de provisões, abandonando o resto; continuaram avançando até que uma
fera surgiu e devorou o criado, e o filho do rei se quedou sozinho; logo, sua
montaria parou e ele a abandonou, pondo-se a caminhar até que suas pernas se
incharam e ele chegou à terra dos turcos, nu, esfomeado e não dispondo senão de
umas joias que estavam penduradas em seu braço. Dirigiu-se ao mercado de
joalheiros, chamou um agenciador e lhe entregou as joias. O agenciador
examinou-as e, vendo que se tratava de duas pedras de rubi, disse: “Siga-me”, e
foi até um joalheiro, ao qual entregou as pedras dizendo: “Compre-as”. O
joalheiro perguntou: “De onde são?”. O agenciador respondeu: “O dono é este
rapaz”. O joalheiro perguntou ao rapaz: “Onde conseguiu estas pedras?”, e o
rapaz contou tudo quanto lhe sucedera, e que era filho de rei. Espantado com tais
acontecimentos, o joalheiro conseguiu vender os rubis por mil dinares, e o rapaz
lhe disse: “Apronte-se e viaje comigo ao meu país”. O joalheiro então se
aprontou e viajou com o filho do rei, até que se aproximaram da fronteira com o
país de seu pai, e ali as pessoas o dignificaram bastante, enviando ao rei a notícia
da chegada de seu filho. O pai foi recepcioná-lo, dignificaram o joalheiro, e o
filho do rei permaneceu algum tempo em sua terra, retomando em seguida, com
o joalheiro, o caminho da terra da graciosa filha do rei da Índia, mas foram
surpreendidos no caminho por ladrões. Embora combatesse com denodo, o filho
do rei foi morto, sendo então enterrado pelo joalheiro, que pôs uma marca em
seu túmulo e saiu vagando sem rumo, entristecido, sem informar a ninguém da
morte do rapaz, e finalmente regressou à sua própria terra.
Foi isso que sucedeu ao filho do rei e ao joalheiro. Quanto à filha do rei da
Índia – à procura da qual o rapaz partira e em virtude da qual morrera –,
enquanto ele esteve lá ela o observara de cima do palácio, bem como à sua
beleza e formosura, e certo dia perguntou à criada: “Ai de você! O que foi feito
da tenda que estava montada ao lado do meu palácio?”. A criada respondeu: “Era
a tenda de um rapaz, filho do rei da Pérsia, que veio pedi-la em casamento e se
exauriu por sua causa, mas você não teve dó!”. A filha do rei perguntou: “Ai de
você! E por que não me avisou?”. A criada respondeu: “Fiquei com medo da sua
irritação!”. Então a jovem pediu permissão para falar com o pai e lhe disse: “Por
Deus que irei atrás dele do mesmo modo que ele veio atrás de mim! Do
contrário, não terei sido justa com ele”. Em seguida, preparou-se e saiu
atravessando terras inóspitas e gastando dinheiro até chegar a Sijistån,[269] onde
chamou um joalheiro a quem pediu que lhe confeccionasse algumas joias. Ao
vê-la, o joalheiro a reconheceu, pois o filho do rei da Pérsia lhe havia falado a
respeito e a pintado para ele. Indagou-a sobre a sua história, ela o informou e o
homem estapeou o rosto, rasgou as roupas, jogou terra na cabeça e pôs-se a
chorar. A jovem perguntou: “Por que está fazendo isso?”, e ele lhe contou a
história do filho do rei, a quem acompanhara, informando-a afinal de sua morte.
Entristecida, a jovem viajou até o pai e a mãe do rapaz. Então, o pai, o tio
paterno, a mãe e os notáveis do reino foram visitar-lhe o túmulo; a jovem
lamentou-se por ele, soltou altos gritos e ficou um mês em seu túmulo, para o
qual trouxe pintores e lhes ordenou que a pintassem junto com o filho do rei;
também escreveu sua história, nela registrando os terrores que enfrentou, e
depositou-a no alto do túmulo. Após algum tempo, todos foram embora.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]896ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
[Prosseguiu o vizir:] “Mas essa história, ó rei, não é mais espantosa que a do
lavadeiro, sua mulher, o soldado, e o que ocorreu entre eles”. Nesse momento, o
rei ordenou ao vizir que se retirasse para sua casa, e este passou o dia inteiro em
casa. No final da tarde, o rei se acomodou, mandou que trouxessem o vizir à sua
presença, e lhe disse: “Conte-me a história do lavadeiro e sua mulher”. O vizir
respondeu: “Com muito gosto e honra”, e, dando um passo adiante, disse:

Sétima noite do mês
O lavadeiro, sua esposa e o soldado
Saiba, ó rei, que vivia em certa cidade uma bela mulher que se apaixonara por
um soldado. Seu marido era lavadeiro, e quando ele saía para o serviço o soldado
vinha ficar com ela até a hora do regresso do lavadeiro, retirando-se então.
Ficaram naquela situação por algum tempo, até que o soldado disse à mulher:
“Quero arranjar uma casa nas proximidades daqui. Escavarei um túnel da minha
casa até a sua. Você dirá ao seu marido: ‘Minha irmã, que estava ausente com o
marido, retornou; eles chegaram de viagem por estes dias e eu os acomodei aqui
na vizinhança, a fim de que possamos nos reunir a qualquer momento. Vá até o
marido dela, que é soldado, levando-lhe algo para comer, e diga que quer ver a
minha irmã; você vai achar que ela sou eu e que eu sou ela, sem dúvida! Ai, meu
Deus! Ai, meu Deus! Vá até o marido de minha irmã e veja o que ele lhe dirá!’”.
Assim, quando o soldado arranjou as coisas do jeito que dissera, a mulher disse
ao marido lavadeiro tão logo ele chegou à sua casa: “Por Deus, vá lá agora, pois
minha irmã perguntou a seu respeito!”. Então o idiota do lavadeiro, sem saber da
história, obedeceu, e a sua esposa também foi pelo túnel que o soldado
construíra ligando a sua casa à casa dele; chegou, subiu, e se sentou ao lado do
seu amante soldado. O lavadeiro chegou, entrou, cumprimentou o soldado e a
esposa e, perplexo com as coincidências da história, ficou em dúvida e retornou
às pressas para casa, mas a mulher foi mais rápido pelo túnel, chegou, vestiu as
roupas que estava usando em casa, sentou-se, e disse quando ele entrou: “Eu não
lhe disse que fosse até minha irmã, cumprimentasse o marido dela e conversasse
com os dois?”. Ele respondeu: “Eu fiz isso, mas fiquei em dúvida ao ver-lhe a
mulher!”. Ela disse: “Eu não avisei que ambas nos parecemos muito, e que só
nos distinguimos pela roupa? Volte e sossegue!”. A estultice do homem era tanta
que ele acreditou, retornando e entrando na casa do soldado, onde a sua mulher,
que se antecipara, já estava. O lavadeiro olhou para ela, pensou e a
cumprimentou; a mulher retribuiu o cumprimento, e quando ela falou o lavadeiro
se atrapalhou e perguntou ao soldado: “Como ela fala assim?”. O soldado
respondeu: “Esta é a minha mulher e essas são as palavras dela!”. Então o
lavadeiro se levantou às pressas, retornou para casa, e viu a esposa, que se
antecipara através do túnel. Retornou para a casa do soldado, e a viu sentada no
mesmo lugar; envergonhado, sentou-se ao lado do soldado e ambos comeram e
beberam; o lavadeiro se embriagou, e, quando o dia virou noite, o soldado
raspou parte dos cabelos do lavadeiro, que eram longos, ao modo dos turcos,
aparou o resto, vestiu-o com capa, tarbuche e um alforje; colocou-lhe sapatilhas
e um cinturão com espada; na cintura, pôs-lhe aljava, arco e flechas, e lhe enfiou
na manga uma carta assinada ordenando ao governador da província de Ispahã
que “pague a Rustum ¿ammårtakn∑, mensalmente, a quantia de cem dirhams,
cem arráteis de pão, cinco arráteis de carne, e o faça membro de sua guarda
turca”; deixou-lhe ainda alguns dirhams no bolso, carregou-o e largou-o em uma
mesquita, onde o lavadeiro ficou dormindo até o sol raiar, quando então
despertou e, vendo-se naquela situação, desconfiou de si mesmo e acreditou ser
de fato turco; pôs-se a ir e vir, e em seguida pensou: “Vou para minha casa. Se a
minha mulher me reconhecer, então sou A¬mad, o lavadeiro; caso contrário,
serei o turco ¿ammårtakn∑. Assim pensando, foi para casa, e, quando a
embusteira da esposa o viu, gritou na sua cara: “Para onde vai, soldado? Está
invadindo a casa de A¬mad, o lavadeiro! Trata-se de um homem conhecido que
tem um cunhado turco de influência ante o sultão! Se não for embora, avisarei ao
meu marido, e ele irá castigá-lo por tal atitude!”. Ao ouvir-lhe as palavras, o
álcool agiu em sua cabeça e, imaginando ser o turco ¿ammårtakn∑, o lavadeiro
saiu da casa. Enfiando a mão na manga, encontrou a carta e a entregou a alguém
que a leu; ao ouvir-lhe o conteúdo, ficou um pouco mais esperto e pensou:
“Talvez minha mulher esteja me enganando. Irei aos meus colegas lavadeiros, e,
se eles não me reconhecerem, então de fato serei o turco ¿ammårtakn∑”.
Dirigiu-se até os lavadeiros, os quais, vendo-o ao longe, supuseram que ele fosse
o turco ¿ammårtakn∑, ou algum outro turco dos que vinham lavar as roupas de
graça com eles, sem lhes pagar nada. Os lavadeiros haviam se queixado disso
havia algum tempo ao sultão, que lhes dissera: “Se algum turco vier atrás de
vocês, apedrejem-no”. Quando o viram, atacaram-no com paus e pedras, ferindo-
o. Ele disse: “Sou turco e não estou sabendo!”. Em seguida, pegou os dirhams
que levava no alforje, comprou comida, alugou uma montaria e foi para Ispahã,
deixando sua esposa para o soldado e seguindo seu caminho.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]897ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:] “Essa história,
conquanto espantosa, não o é mais que a história do mercador, da velha e do rei”.
Admirado com aquilo, o rei ³åh Ba¿t ficou com o coração ansioso pela história
do mercador e da velha. Ordenou ao vizir que se retirasse para casa, e ele foi
para lá, ali passando o dia seguinte. No final da tarde, o rei se acomodou no local
onde ficava a sós e ordenou que o vizir lhe fosse trazido. Quando este chegou,
pediu-lhe a história do mercador, da velha e do rei. O vizir disse: “Com muito
gosto e honra”.

Oitava noite do mês
O mercador, o rei e a velha[270]
Saiba, ó rei, que um grupo da cidade de ¿uråsån desfrutava de boa vida e
autoridade, mas isso se extinguiu e sua boa vida se acabou. O povo da cidade
invejava tais pessoas pelas benesses que Deus lhes concedera, e delas não restou
senão uma velha que, apesar de muito fraca, não foi perdoada pelo povo, que a
expulsou da cidade dizendo: “Não queremos a vizinhança desta velha, para a
qual fazemos o bem, mas ela nos recompensa com o mal”. A velha se refugiou
numas ruínas onde os estrangeiros lhe davam esmolas, e com isso ela se manteve
por algum tempo. O rei da cidade de ¿uråsån, detestado pela população, era
desafiado por um primo a quem, afinal, Deus altíssimo proporcionou vitória
sobre o rei, que ele destronou, mas ao qual continuou, no fundo da alma,
invejando. Tal inveja não passou despercebida ao vizir, que deixou de temê-lo e,
ávido por dinheiro, começou a convocar à sua presença os homens da cidade,
apresentando-lhes questões de ordem religiosa e mundana, e confiscando o
dinheiro de quem não soubesse responder. Sucedeu então que um dos mais
prósperos mercadores muçulmanos de ¿uråsån – o qual estava de viagem e, por
conseguinte, desconhecia o que ali estava acontecendo – regressou à cidade tarde
da noite, e chegou às ruínas onde a velha morava; deu-lhe alguns dirhams e disse
a ela: “Nada tema!”. A velha elevou a voz em rogos pelo homem, que depositou
suas coisas com ela durante toda a noite e o dia. Alguns ladrões haviam-no
seguido para roubar-lhe o dinheiro, mas nada puderam fazer. O mercador beijou
a cabeça da velha e passou a tratá-la ainda melhor. A velha lhe disse: “Não quero
que nada de mal aconteça ao senhor, e estou temerosa das perguntas que o vizir
está fazendo, com má intenção, aos ignorantes”, e lhe explicou detalhadamente a
situação, emendando por fim: “Mas não se preocupe. Leve-me para a sua casa. O
vizir lhe fará perguntas e, estando com você, irei interpretá-las”. Então o
mercador levou a velha consigo para a cidade, hospedou-a em sua casa e a tratou
bem. Informado da chegada do homem, o vizir mandou trazerem-no à sua casa,
questionando-o durante algum tempo sobre as suas viagens e o que nelas
enfrentara; em seguida, disse: “Vou fazer-lhe perguntas. São questões que será
melhor você me responder”. O mercador se conservou calado. O vizir perguntou:
“Qual o peso do elefante?”. Perplexo, o mercador nada respondeu e, certo da
aniquilação, disse: “Conceda-me três dias de prazo”; o vizir concedeu. O
mercador saiu do palácio e contou à velha o que sucedera. Ela disse: “Amanhã
vá ao vizir e lhe diga: ‘Construa um barco, lance-o ao mar e ponha um elefante
sobre ele. Quando o barco afundar, marque o ponto a que a água chegou e retire
o elefante, colocando em seu lugar pedras, até que o barco suba ao nível do
sinal; então, leve as pedras, pese-as, e assim você saberá o peso do elefante’”.
Quando amanheceu, o mercador foi até o vizir e falou-lhe tal como o instruíra a
velha. O vizir ficou espantado e logo disse: “O que você me diz de um homem
que vê em sua casa quatro buracos nas paredes, e em cada buraco uma cobra
querendo atacá-lo? Na casa existem quatro estacas, e cada buraco não pode ser
tapado senão com duas estacas. Como ele fará para tapar todos os buracos e se
salvar das cobras?”. Atingido por grande medo, nada acudiu à memória do
mercador, que pediu ao vizir: “Conceda-me um prazo para pensar na resposta”, e
o vizir respondeu: “Venha com uma resposta; do contrário, confiscarei tudo
quanto você possui”. O mercador saiu e foi até a velha com a cor alterada. Ela
lhe perguntou: “O que o velhote lhe indagou?”, e o mercador lhe fez o relato. A
velha lhe disse: “Vou livrá-lo disso”, e ele muito lhe agradeceu. Ela disse:
“Amanhã vá até ele com o coração forte e diga: ‘A resposta ao que você
perguntou é que se deve colocar a ponta de duas estacas no primeiro buraco,
pegar uma terceira estaca, juntá-la à metade das duas primeiras estacas, e colocar
a sua ponta no segundo buraco; em seguida, cruzar a ponta da terceira estaca
com a da quarta estaca, e com ambas as pontas tapar o quarto buraco; em
seguida, pegar a outra ponta das duas primeiras estacas e tapar o terceiro
buraco’”.[271] O mercador repetiu essa resposta ao vizir, que se espantou com
seu acerto e disse: “Pode ir embora! Por Deus que nunca mais lhe perguntarei
nada, pois você, com seu conhecimento, está destruindo meu fundamento”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]898ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Depois disso, o vizir o tratou com gentileza e ele lhe falou sobre a velha. O
vizir disse: “Ao homem ajuizado é imperioso ter a companhia de outro ajuizado.
Essa frágil mulher devolveu a este homem a vida e o dinheiro do modo mais
simples”.
[Prosseguiu ³ahrazåd:] Concluindo a história, o vizir Rahwån disse: “E isto
não é mais espantoso que a história do estúpido curioso que foi fazer o que não
lhe concernia”. Ao ouvir aquilo, o rei pensou: “Como é semelhante ao que nós
estamos vivendo!”, e ordenou que o vizir se retirasse para casa, e ali ele
permaneceu até o amanhecer. No final da tarde, o rei se acomodou no lugar onde
ficava a sós, mandou chamar o vizir e lhe pediu que contasse a história. O vizir
disse:

Nona noite do mês
O estúpido curioso
Saiba, ó rei venturoso, que havia em tempos remotos um homem estúpido e
ignorante que tinha muito dinheiro, e cuja bela mulher era apaixonada por um
belo rapaz que esperava o homem se ausentar para ir ficar com ela, mantendo-se
nesse hábito por longo período. Certo dia, estando ambos a sós, o amante disse à
mulher: “Minha senhora, minha amada, se você me ama e me quer, entregue-se a
mim e me satisfaça diante de seu marido! Do contrário, nunca mais virei até
aqui, nem me aproximarei de você”. Ao ouvir-lhe as palavras, a mulher – que o
amava imensamente, não suportava ficar longe dele uma hora sequer, nem
aguentava a sua irritação – respondeu: “É claro, em nome de Deus, meu amado,
alegria dos meus olhos! Não viva o seu inimigo!”. Ele perguntou: “Hoje?”. Ela
respondeu: “Sim, por vida sua!”, e prometeu que lhe satisfaria o pedido. Quando
o marido chegou, ela disse: “Quero sair para passear”, e ele respondeu: “Sim,
com muito gosto e honra!”; saíram então, dirigindo-se a um belo local que tinha
muita uva e água; ele levou tudo para ela e lhe armou tenda ao lado de uma
grande árvore. A mulher fez um esconderijo ao lado da tenda e disse ao marido:
“Quero subir na árvore!”. O marido disse: “Como quiser!”, e ela subiu. Já no
alto da árvore, ela gritou e começou a estapear-se dizendo: “Seu depravado! São
esses os seus hábitos? Você jura, mas mente! São esses os seus hábitos!”; repetiu
essa fala uma, duas e três vezes, e desceu em seguida, rasgando as roupas e
dizendo: “Seu depravado! É isso que faz comigo, diante de meus olhos! Então o
que é capaz de fazer quando está distante de mim?”. O homem perguntou: “Qual
é a história?”. Ela respondeu: “Você estava trepando com uma mulher bem
diante dos meus olhos!”. Ele disse: “Não, por Deus! Mas deixe que eu suba e
veja!”. Tão logo ele subiu na árvore, o amante da mulher veio e agarrou-a pelas
pernas. O marido olhou, e eis que um homem estava trepando com a sua esposa!
Ele disse: “Sua depravada! Que atitude é essa?”, e desceu às pressas do alto da
árvore ao chão. A mulher perguntou: “O que você viu?”. Ele respondeu: “Um
homem trepando com você!”. Ela disse: “Mentiroso! Você não viu nada, e só
está dizendo isso para me enganar!”. Repetiram aquilo três vezes, e por três
vezes o amante dela saiu do esconderijo e a possuiu, enquanto o marido
observava e ela gritava: “Seu mentiroso! Por acaso está vendo algo?”. Ele
respondia: “Sim”, e descia às pressas, mas não encontrava ninguém. Finalmente
ela lhe disse: “Por vida minha, olhe bem e não diga senão a verdade!”. O homem
disse: “Vamos embora deste lugar, pois aqui há muitos demônios e gênios”. O
homem ficou em dúvida se aquilo era ilusão e imaginação, e o amante satisfez o
seu desejo.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]899ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:] “E isso, ó rei do tempo,
não é mais espantoso que a história do rei e do coletor de impostos”.[272] Ao
ouvir as palavras do vizir, o rei o dispensou; no final da tarde mandou chamá-lo,
pedindo-lhe a história do rei e do coletor de impostos. O vizir disse:

Décima noite do mês
O rei e o coletor de impostos
Saiba, ó rei, que certo rei vivia em uma terra próspera, plena de benesses, mas
ele tanto oprimiu e maltratou seu povo que a arruinou, e não o chamavam senão
de tirano opressor; se acaso ouvisse falar em algum opressor de outra terra,
mandava chamá-lo, seduzindo-o com dinheiro para que ficasse consigo. Havia
um coletor de impostos que era extremamente opressor, um dos que mais
maltratavam as pessoas, e então o rei mandou chamá-lo e ele veio; ao se ver
diante dele, notando que se tratava de um homem poderoso, o rei lhe disse: “Já
haviam descrito você para mim, mas vejo que é superior à descrição! Conte-me
como trabalha e o que diz, a fim de que eu saiba tudo a seu respeito”. O homem
respondeu: “Com muito gosto e honra. Saiba, ó rei, que eu oprimo as pessoas e
faço prosperar o país, ao passo que outros o arruínam e não o fazem prosperar”.
O rei, que apoiava a cabeça na mão, pôs-se de pé e pediu: “Fale-me sobre isso!”.
O homem respondeu: “Sim. Vou até o homem do qual cobrarei impostos, armo
uma artimanha, invento coisas para fazer, até isolá-lo das pessoas; então,
exploro-o da maneira mais cruel, até deixá-lo sem nenhum dinheiro. Em seguida,
apareço, as pessoas vêm até mim e começam a perguntar sobre o homem; eu
respondo que havia recebido ordens de fazer muito pior – ‘pois ele foi
denunciado ao rei por fulano, que Deus o amaldiçoe’ –, e em seguida devolvo ao
homem, em público, parte do seu dinheiro e o envio para casa dignificado,
carregando o dinheiro devolvido e rogando por mim, bem como todos quantos
estejam com ele. Espalha-se pela cidade a notícia de que devolvi o dinheiro, e
também ele o diz às pessoas, e assim todos vão me louvando, embora eu tenha
tomado metade do seu dinheiro. Esqueço-o até que se passe algum tempo,
quando então o chamo, menciono-lhe algo que devia antes e lhe peço, em
segredo, um tanto de dinheiro; ele aceita, vai para casa, e volta carregando de
boa vontade o que lhe ordenei. Em seguida, mando chamar algum homem com o
qual ele tenha inimizade, prendo-o e dou a entender que foi tal homem que o
denunciou e levou metade de seu dinheiro. E as pessoas ainda me agradecem”.
Espantado com tal atividade e providência, o rei encarregou-o de todos os seus
assuntos, bem como os do reino, e o país continuou sob seu domínio; disse-lhe:
“Tome e faça prosperar”. Certo dia, o coletor saiu, viu um velho lenhador
carregando lenha, e lhe disse: “Pague-me um dirham de imposto por sua lenha”.
O velho respondeu: “Só se você me matar e matar meus filhos”. O coletor
perguntou: “Quem é que vai matar quem?”. O velho disse: “Se você me deixar,
entrarei na cidade e venderei o carregamento por três dirhams; dar-lhe-ei um
dirham, e com os outros dois comprarei sustento para os meus filhos. Porém, se
você me cobrar o imposto fora da cidade, o carregamento será vendido por
apenas um dirham que você levará, e meus filhos e eu não teremos o que comer.
Para você, as duas atitudes são indiferentes, tal como sucedeu a Davi e Salomão,
que a paz esteja com eles”.
Sentenças de Davi e Salomão
O velho lenhador disse: “Saiba que Davi, sobre ele esteja a paz, recebeu de
alguns agricultores queixa contra pastores cujo rebanho invadiu à noite a sua
plantação e ali pastou, devorando tudo. Davi, que a paz esteja com ele, ordenou
que se calculasse o valor da plantação. Salomão, que a paz esteja com ele,
levantou-se e disse: ‘É melhor que se entregue aos agricultores o rebanho, a fim
de que eles colham seu leite e sua lã, sendo assim ressarcidos do valor de sua
plantação, e depois o rebanho será devolvido aos donos’. Davi corroborou a
sentença de Salomão, voltando atrás em sua própria sentença. Embora Davi não
fosse opressor, a sentença de Salomão era mais adequada e tinha visão”.
Ao ouvir tais palavras, o coletor se apiedou e disse: “Ó velho, eu lhe concedo
o que me deve, contanto que você me acompanhe e não se separe de mim, pois
quiçá sua companhia me traga alguma vantagem que minore os meus erros e me
guie retamente”. Então o velho o seguiu, e eles encontraram outro lenhador com
seu carregamento. O coletor lhe disse: “Pague o que deve”. O lenhador
respondeu: “Dê-me um prazo até amanhã, pois hoje tenho de pagar o aluguel;
amanhã venderei outro carregamento e lhe pagarei o imposto de dois dias”.
Como o coletor recusasse a proposta, o velho disse: “Se você o obrigar a pagar,
estará também obrigando-o a sair do país, pois se trata de estrangeiro que não
terá onde morar. Assim, caso ele se mude por causa de um dirham, a perda será
de trezentos e sessenta dirhams anuais, uma grande perda para você em troca de
muito pouco”. O coletor disse: “Eu lhe concedo um dirham mensal para
pagamento do aluguel de sua casa”, e partiram, topando com outro lenhador, ao
qual o coletor disse: “Pague o que deve”. O lenhador respondeu: “Terei um
dirham quando entrar na cidade. Leve estes quatro centavos!”. O coletor disse:
“Não aceito!”. O velho disse: “Leve os quatro centavos que ele está oferecendo.
São mais fáceis de carregar e causam menos danos na devolução”.[273] O
coletor disse: “Por Deus que essa é boa!”, e, afastando-se, gritou alto e bom som:
“Não posso suportar isso que me aconteceu hoje!”; arrancou as roupas e saiu
pelo mundo em penitência ao seu Deus.
[Prosseguiu o vizir:] “E esta não é mais espantosa que a história do ladrão que
acreditou na mulher e rogou não encontrar nenhuma semelhante a ela, a tal ponto
ela defendia seus próprios interesses”. O rei pensou: “Se o coletor se penitenciou
com duas admoestações, impõe-se que eu preserve este vizir até ouvir a história
do ladrão”. Ordenou ao vizir que se retirasse para casa, e no final da tarde do dia
seguinte acomodou-se, mandou chamar o vizir e lhe pediu a história do ladrão e
da mulher. O vizir disse:

Décima primeira noite do mês
A mulher e o ladrão
Saiba, ó rei, que certo homem era ladrão por ofício, mas só roubava quando já
não tinha nada; não assaltava vizinhos nem andava com nenhum ladrão, por
medo de que o descobrissem e denunciassem. Assim ele se conservou por largo
tempo, situação tranquila e segredo guardado. Deus altíssimo determinou então
que entrasse na casa de um pobre vagabundo que ele supôs ser rico. Ao se ver no
interior da casa, nada encontrou; exasperou-se e, premido pela necessidade,
acordou o dono da casa, que dormia ao lado da esposa.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]900ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O ladrão acordou o homem e lhe disse: “Mostre-me onde estão as suas
reservas!”, mas o homem não tinha nenhuma reserva para mostrar. Incrédulo, o
ladrão insistiu, ameaçou-o e espancou-o, mas, vendo que não obteria vantagem
alguma, disse-lhe: “Para eu acreditar que você não tem dinheiro, jure que se
divorciará de sua esposa se não for verdade!”.[274] Tão logo o homem jurou, a
esposa disse: “Ai de você! Quer se divorciar de mim? Acaso as reservas não
estão enterradas naquele cômodo?”, e, voltando-se para o ladrão, rogou-lhe que
batesse mais no marido, a fim de que este lhe entregasse o dinheiro cuja
inexistência ele mentirosamente jurara; o ladrão enfiou o homem no cômodo e o
surrou com mais força ainda, a fim de que lhe entregasse o dinheiro ali
escondido; tão logo ambos entraram no cômodo, a mulher trancou a porta, que
era bem resistente, e disse: “Ai de você, ignorante! Agora está pego! Vou gritar
para que a guarda noturna venha prendê-lo! Está liquidado, seu demônio!”. Ele
disse: “Deixe-me sair!”. Ela disse: “Você é homem e eu sou mulher; você está
munido de uma faca e eu estou com medo de você”. Ele disse: “Tome a faca”. A
mulher pegou a faca e disse ao marido: “Por acaso você é mulher e ele, homem?
Espanque-o até lhe deixar o traseiro dolorido, tal como fez com você, e, se ele
reagir, darei um grito tão forte que os guardas virão prendê-lo e o farão em dois
pedaços”. O marido disse ao ladrão: “Seu mil vezes cornudo! Seu cachorro! Seu
traiçoeiro! Por acaso você tinha algum depósito comigo para vir me exigir
restituição?”, e lhe aplicou dolorosa e terrível surra com um pedaço de carvalho,
enquanto o ladrão pedia socorro à mulher e lhe implorava que o salvasse, mas
ela disse: “Espere aí mesmo, pois quando amanhecer você vai ver o que é bom!”.
O marido surrou o ladrão dentro da casa até deixá-lo liquidado e desmaiado, e,
quando ele acordou, o marido parara de surrá-lo, enquanto a mulher lhe dizia:
“Homem, esta casa é alugada e estamos devendo aos proprietários um monte de
dirhams, mas não temos nada para pagar. O que você fará?”. Eram essas as
palavras que ela dirigia ao marido quando o ladrão perguntou: “E qual é o valor
da dívida?”. O marido respondeu: “Oitenta dirhams”. O ladrão disse: “Eu lhe
pagarei esse valor! Liberte-me!”. A mulher disse ao marido: “Homem, quanto
devemos ao padeiro?”. O homem respondeu: “Um bom dinheiro”. O ladrão
perguntou: “E qual seria essa quantia?”. O homem respondeu: “Cento e vinte
dirhams”. O ladrão disse: “Já são duzentos dirhams. Liberte-me e lhe darei essa
quantia”. A mulher disse: “Querido, nossa filha já está crescida, e é
absolutamente imperioso que a casemos e lhe arranjemos as coisas de que
precisa!”. O ladrão perguntou: “E de quanto ela precisa?”. O homem respondeu:
“Cem dirhams, para ser moderado”. O ladrão disse: “Já são trezentos dirhams”.
A mulher disse: “Querido, se a nossa filha se casar, precisará de gastos de
inverno, de carvão e de lenha, e de outras coisas indispensáveis!”. O ladrão
perguntou: “O que mais você quer?”. Ela respondeu: “Cem dirhams”. O ladrão
disse: “Pagarei então quatrocentos dirhams!”. A mulher disse: “Querido, alegria
de meus olhos, é absolutamente imperioso que o meu marido tenha em mãos um
capital para comprar mercadorias e abrir uma loja”. O ladrão perguntou: “E
quanto é isso?”. Ela respondeu: “Cem dirhams”. O ladrão respondeu: “Divorcio-
me três vezes de minha esposa se eu tiver algo a mais que isso. É um dinheiro
que estou guardando há vinte anos! Solte-me para que eu o entregue a você!”.
Ela disse: “Seu ignorante, como iria libertá-lo? É impossível! Dê-me um sinal de
que fala a verdade”, [e o ladrão lhe deu o sinal]. A mulher gritou pela filha, a
quem disse: “Vigie esta porta”, e recomendou ao marido que também vigiasse
até que ela retornasse. Foi então até a esposa do ladrão, contou-lhe o que
sucedera ao marido, que ele era ladrão e fora preso, e que havia negociado sua
libertação por setecentos dirhams; também lhe mencionou o sinal, e então a
esposa do ladrão lhe pagou os setecentos dirhams.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]901ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
A mulher recebeu o dinheiro e retornou para casa quando já alvorecia.
Libertou o ladrão e lhe disse quando ele saiu: “Querido, quando o verei de novo?
Quando virá roubar o nosso dinheiro?”. O ladrão respondeu: “Ó endividada,
virei quando você estiver precisando de setecentos dirhams para arrumar a sua
vida e a dos seus filhos, e para quitar as suas dívidas!”, e saiu, mal acreditando
que se safara.
[Prosseguiu o vizir:] “E esta não é mais espantosa que a história dos três
homens e nosso senhor Jesus Cristo”. Então o rei ordenou ao vizir que se
retirasse para casa, e no final da tarde do dia seguinte mandou chamá-lo e lhe
ordenou que contasse a história. O vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Décima segunda noite do mês
Os três homens e Jesus Cristo
Saiba, ó rei poderoso, que três homens saíram à procura de riquezas e
encontraram uma pedra de ouro com cinquenta minas de peso;[275] assim que a
viram, ergueram-na e carregaram-na nos ombros; aproximando-se de certa
cidade, um deles disse: “Vamos sentar no templo, enquanto um de nós vai
comprar algo para comermos”, e um deles foi comprar. Contudo, ao entrar na
cidade, sua alma cogitou de atraiçoar os dois e ficar com o ouro somente para si;
para tanto, comprou comida e a envenenou, mas, quando marchava ao encontro
dos outros, ambos o atacaram e mataram, a fim de ficar com o ouro sem ter de
reparti-lo com ele, e em seguida comeram a comida e morreram, ficando os
restos da refeição jogados diante deles. Então Jesus, filho de Maria, passou por
ali, e, vendo aquilo, perguntou o que sucedera a Deus altíssimo, que lhe revelou
a história deles. O assombro de Jesus cresceu e ele relatou aos seus discípulos o
que vira. Um deles disse: “Ó espírito de Deus, como isso é semelhante à minha
história!”. Jesus perguntou: “E como foi isso?”. O discípulo respondeu:
A aventura do discípulo de Jesus
Eu estava na cidade tal, e escondi mil dirhams no eremitério tal. Após algum
tempo, recolhi esse dinheiro, coloquei-o em minha cintura, e parti. Quando
atravessava o deserto, seu peso se tornou excessivo e vi, galopando atrás de
mim, um cavaleiro que se aproximava e ao qual eu disse: “Ó cavaleiro, carregue
estes dirhams e ganhe paga e rogos!”. Ele respondeu: “Não o farei, pois do
contrário me fatigarei e fatigarei meu cavalo”. Em seguida, após avançar um
pouco, ele pensou: “Se eu levar o dinheiro e fizer o cavalo correr, como ele
poderá me alcançar?”, enquanto eu pensava: “Equivoquei-me, pois se ele tivesse
carregado o dinheiro e fugido, o que faria eu?”. O cavaleiro voltou até mim e
disse: “Dê-me o dinheiro, a fim de que eu o carregue para você”. Respondi: “O
mesmo que passou pela sua cabeça passou pela minha; vá com segurança”.
Disse Jesus, que a paz esteja com ele: “Se aqueles três tivessem agido com
integridade, teriam preservado suas vidas, mas deixaram de lado as
consequências de suas ações, pois quem age com integridade fica bem e vence,
mas quem perde a integridade se aniquila e se arrepende”.
Em seguida, o vizir Rahwån disse ao rei ³åh Ba¿t: “Essa história não é mais
espantosa que a do rei que retomou o reino e o dinheiro após ter se tornado
pobre, despojado até mesmo de um único dirham”. Depois de ter ouvido a
história, o rei pensou: “Como isso é parecido com a minha história, com o
assassinato de meu vizir. Se eu não agir com integridade, terei aniquilado o
vizir”,[276] e determinou-lhe que se retirasse para casa, mandando chamá-lo no
final da tarde do dia seguinte, a fim de que comparecesse diante dele, e então
ordenou que contasse a história. O vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Décima terceira noite do mês
O rei que recuperou o reino e o dinheiro
Conta-se, ó rei, que havia em certa cidade da Índia um rei justo e de bom
proceder, o qual tinha um vizir ajuizado, de correto parecer e louvado em seus
métodos. A esse vizir todas as questões eram submetidas: seus princípios lhe
haviam aplainado o caminho até o rei, e a estima em que o tinham os seus
contemporâneos era portentosa. O rei lhe observava as opiniões e a ele delegara
todos os seus assuntos, graças à boa administração que dedicava aos súditos,
para a qual contava com a ajuda de gratos auxiliares. O rei tinha ainda um irmão
que o invejava e queria estar em seu lugar. Considerando, porém, que aquilo já
se demorava demasiado, e que a permanência do rei seria longa, consultou
alguns dos seus convivas, os quais lhe disseram: “A boa administração do rei se
deve ao vizir...”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]902ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
Os convivas disseram:] “... e, não fora o vizir, o rei perderia o reino”. Então
ele tencionou destruir o vizir, mas não encontrou nenhum pretexto para
entrevistar-se com ele. Julgando que aquilo já tardava, disse à esposa: “Vou fazer
algo, e quero saber se você acha que terá proveito”. Ela perguntou: “E o que é?”.
Ele respondeu: “O vizir é que incita o meu irmão à devoção e à frugalidade com
as suas posses, e lhe impõe tal prática, corrompendo-lhe a inteligência,
monopolizando a administração e dominando as verbas e as situações”. A
mulher disse: “O que você afirma é verdade. Qual o estratagema contra ele?”. O
irmão do rei disse: “Para o estratagema é necessário que você me ajude no que
eu lhe ordenar”. Ela disse: “Você terá minha ajuda em tudo quanto desejar”. Ele
disse: “Escavarei um buraco fundo no corredor interno”, e assim fez, cobrindo-o
à noite com uma fina cobertura que, pisada, se romperia. Em seguida, mandou
um mensageiro chamar o vizir, alegando ser da parte do rei, e ordenou ao
mensageiro que o fizesse entrar pela porta interna. O vizir entrou por ali sozinho
e, ao pisar na cobertura do buraco, esta se rompeu, ele caiu, e o irmão do rei pôs-
se a apedrejá-lo lá de cima. Vendo-se naquela situação, o vizir teve certeza de
que estava aniquilado; não se agitou mais que uns momentos e logo se paralisou.
Ao notar que ele já não fazia o menor movimento, o irmão do rei retirou-o dali,
enrolou-o em um saco e o atirou ao mar revolto, no meio da noite. Tão logo
sentiu o contato da água, o vizir acordou e nadou por algum tempo. Passou então
por ele uma embarcação, ele gritou e foi recolhido. No reino, os súditos
começaram a procurá-lo; não o encontrando, entristeceram-se. Ao saber do
sumiço, o rei ficou perplexo, sem saber o que fazer; em seguida, procurou um
vizir para substituí-lo, e seu irmão lhe disse: “Tenho um vizir competente”. O rei
disse: “Traga-o”, e o irmão o trouxe: era um homem que ele já havia instruído, e
que agarrou o rei e o acorrentou. O irmão ocupou seu lugar e a tudo corrompeu
imensamente. As pessoas se revoltaram com aquela situação, e o vizir lhe disse:
“Temo que os indianos peguem seu irmão e lhe devolvam o reino; se isso
ocorrer, estaremos todos liquidados. Que tal levá-lo, atirá-lo ao mar, ficarmos
livres dele, e espalharmos entre o povo que ele morreu?”. Ambos concordaram,
carregaram-no e atiraram-no ao mar. Quando sentiu o contato com a água, o rei
se pôs a nadar, e continuou nadando até chegar a uma ilha, na qual permaneceu
por cinco dias sem encontrar nada para comer. No sexto dia, já desenganado de
se manter vivo, eis que passou por ali uma embarcação para a qual ele fez sinais,
e então o viram e vieram resgatá-lo, conduzindo-o a um país, no qual ele
desembarcou desnudo e viu um homem plantando, a quem pediu orientação. O
camponês lhe perguntou: “Você é estrangeiro?”. Ele respondeu: “Sim”. O
agricultor sentou-se ao seu lado, conversou com ele e, vendo tratar-se de um
homem ajuizado e inteligente, perguntou-lhe: “Gostaria de ver um companheiro
meu, companheiro esse que vi no mesmo estado em que você se encontra agora,
e que hoje é meu amigo?”. O rei respondeu: “Você me provocou muita vontade
de vê-lo! Seria possível reunir-me a ele?”. O camponês disse: “Com muito gosto
e honra”. Ficaram juntos até o camponês terminar o plantio, quando então o
levou para casa, apresentando-o ao homem de que lhe falara, e eis que era o seu
vizir! Assim que se viram, ambos se puseram a chorar e se abraçaram, e o choro
deles fez o camponês chorar também. Para manter em sigilo a situação de
ambos, o rei disse: “Este homem é de meu país! É como se fosse meu irmão!”.
Permaneceram ambos com o camponês, auxiliando-o em troca de comida, por
longo tempo, durante o qual buscavam notícias sobre seu país, sendo informados
da opressão e da injustiça às quais o povo era submetido. Certo dia, aportou na
ilha uma embarcação com um mercador de seu país, que os reconheceu e,
contentíssimo, deu-lhes boas roupas e lhes sugeriu que regressassem ao país e à
companhia de seus entes queridos; eles lhe relataram a tramoia da qual haviam
sido vítimas e que Deus altíssimo os faria regressar – e ambos de fato
regressaram; o povo se uniu ao rei, que atacou seu irmão e o vizir dele, aos quais
derrotou e trancafiou na cadeia. Assim, o primeiro rei foi reentronizado e o vizir
se colocou à sua disposição, recuperando ambos a sua anterior posição.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]903ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
No entanto, como se encontrassem arruinados e sem nenhum cabedal, o rei
perguntou ao vizir: “Como poderemos subsistir neste país em tamanha
pobreza?”. O vizir respondeu: “Mande chamar o seu mensageiro; não se
preocupe”. Destacou um dos oficiais e lhe disse: “Deixe os navios à nossa
disposição”. O país tinha cinquenta mil súditos, e igual quantia nos campos. O
vizir enviou a todos uma ordem, dizendo: “Que cada um traga um ovo e o
coloque sob uma galinha”, e todos assim agiram, pois não era pesado nem
custoso. Passados vinte dias, todos chegaram à capital, e o rei ordenou que todas
as aves, machos e fêmeas, fossem postas juntas e bem cuidadas, e assim as
pessoas procederam, sem que tal fosse penoso a ninguém; esperaram por algum
tempo, até que o vizir indagou sobre os pintinhos: contaram-lhe que haviam
crescido e lhe trouxeram todos os seus ovos; em seguida, o vizir ordenou que
fossem preparados,[277] e após vinte dias cada ave produziu entre trinta e vinte
e cinco, no mínimo quinze, e cada pessoa cuidou da parte que lhe tocava. Após
dois meses, o vizir indagou das galinhas e dos galos adultos, obtendo de cada
pessoa cerca de dez galináceos. O vizir mantinha as galinhas com os criadores, e
ordenou que no campo se mantivessem os galos, e assim obteve uma grande
produtividade, especializando-se no comércio de galináceos e ganhando, no
período de um ano, dinheiro suficiente para a manutenção do poder do rei, cuja
situação, com a administração do vizir, consolidou-se, o país prosperou,
praticou-se a justiça entre os súditos, aos quais se devolveu tudo quanto lhes fora
tomado, e todos viveram uma vida feliz. O bom parecer e a integridade são
melhores que o dinheiro, pois a inteligência é útil a qualquer tempo e momento.
[Prosseguiu o vizir:] “Essa história não é mais espantosa que a do homem que
foi morto por sua própria cautela”. Tendo ouvido as palavras do vizir, o rei,
sumamente espantado, ordenou-lhe que se retirasse para a sua casa, e, quando
ele retornou, pediu-lhe que contasse a história do homem morto pela própria
cautela. O vizir disse:

Décima quarta noite do mês
O homem morto pela própria cautela
Saiba, ó rei venturoso, que certo homem, extremamente cauteloso com a própria
vida, viajou para uma terra cheia de feras selvagens, e, como a caravana na qual
ele estava chegou durante a noite à cidade, os portões não foram abertos. Os sete
membros da caravana tiveram, pois, de dormir fora da cidade, e aquele homem,
em virtude de sua excessiva cautela, não conseguia parar em um só lugar para
dormir, por medo de animais selvagens e répteis, indo procurar um local vazio
para pernoitar. Existia nas proximidades uma ruína, e ele se pôs a escalar um
muro elevado, mas as suas pernas claudicaram...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]904ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
... e ele escorregou do alto e morreu, enquanto seus companheiros
permaneceram com saúde. Se acaso ele tivesse derrotado seu corrompido
parecer, e se entregado ao decreto e à predestinação divina, seria mais correto e
melhor, mas ele fez pouco-caso dos outros, desconsiderou-lhes a inteligência, e
não aceitou ficar junto deles, pois sua alma lhe afigurou que ele era inteligente, e
sua ignorância o precipitou à aniquilação. Ele supôs que morreria se ficasse com
os seus companheiros.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história não é mais espantosa que a do homem
que ofereceu casa e comida a quem não conhecia”. Ouvindo isso, o rei pensou:
“Não me afastarei das pessoas matando meu vizir”, e ordenou-lhe que se
retirasse para casa. No final da tarde do dia seguinte, mandou chamá-lo e lhe
pediu que contasse a história. O vizir disse:

Décima quinta noite do mês
O homem gentil com o desconhecido
Saiba, ó rei, que certo beduíno tinha bom aspecto e aparência, elevado brio e
orgulho na alma. Seus companheiros íntimos, que o distraíam e com os quais
convivia, reuniam-se a cada vez na casa de um deles. Em dada ocasião, sendo a
sua vez de recepcioná-los em casa, ele preparou boa comida saborosa, bebida
bem coada, perfumes cheirosos, belas frutas, e várias espécies de divertimento e
diversos gêneros de tesouros, compostos de ditos sapienciais, histórias, anedotas
graciosas, notícias e poesias peregrinas, entre outras coisas. No grupo de seus
convivas, ninguém deixaria de se deliciar com aquilo: todas as artes graciosas e
tudo quanto para eles fosse necessário. Prontas as coisas, ele saiu pela cidade à
cata de seus companheiros, não deixando ninguém em casa.
Vivia naquela cidade um homem galante, jovem, de rosto resplandecente,
largos brios e que, mercador bem situado em sua terra, ali chegara abarrotado de
mercadorias e com muito dinheiro; tendo, porém, apreciado a vida naquela
cidade, expandira-se nos gastos e dilapidara todas as suas posses, das quais nada
mais lhe restava senão as roupas que trazia, vendo-se forçado, certa feita, a
abandonar a casa onde residira nos tempos de abundância, não sem antes ter
perdido toda a sua mobília. Pôs-se a buscar abrigo nas casas dos moradores
locais, dormindo uma noite em uma, outra noite em outra. Naquele dia, enquanto
vagava, avistara uma mulher de tão extrema beleza e formosura que o
encantamento o fez esquecer a situação em que se encontrava. A mulher se
dirigiu a ele gracejando, ele lhe pediu que ficassem juntos e namorassem, e ela
concordou dizendo: “Vamos para a sua casa”. O rapaz então se arrependeu e
lamentou, perplexo com aquilo e com a perda da oportunidade de ficar com a
moça por causa da sua penúria e falta de recursos. Envergonhado de dizer “não”
após ter-lhe aplicado uma cantada, começou a caminhar diante dela pensando em
como se livrar do problema e inventar uma justificativa que a convencesse.
Continuou entrando de rua em rua até chegar a um beco sem saída, no fim do
qual havia uma porta com cadeado; [era ali a casa do beduíno]. Ele disse à
jovem: “Desculpe-me, pois o meu criado trancou a porta! Como fazer agora?
Quem a abrirá?”. Ela disse: “Meu senhor, os cadeados desta casa valem dez
dirhams!”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]905ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
A jovem arregaçou as mangas – descobrindo dois braços que pareciam cristal
–, pegou uma pedra e com ela golpeou os cadeados, quebrando-os. A porta se
abriu e ela disse ao rapaz: “Entre, meu senhor”. Ele entrou, entregando-se a Deus
altíssimo e poderoso, e ela entrou atrás, fechando a porta por dentro: eis que
estavam em uma casa simpática, que reunia todo o necessário para o bem e a
alegria. O rapaz subiu para a sala – e eis que estava equipada com as melhores
mobílias, conforme já se disse –, onde se debruçou em uma almofada, enquanto
a jovem pegava o véu, arrancava-o e ficava em trajes menores, exibindo as suas
belezas. O rapaz abraçou-a, beijou-a e a possuiu, após o que foram ambos
banhar-se, retornando então para onde estavam; o rapaz disse: “Saiba que não
conheço direito a minha casa porque dependo do meu criado. Vá ver o que ele
preparou na cozinha”. A mulher levantou-se, foi até a cozinha, e viu panelas
sobre a lenha, contendo toda espécie de boa comida, além de pão, trigo e
verduras frescas; colocou pão em um prato, serviu-se do que havia nas panelas, e
levou-lhe comida e bebida; brincaram e se divertiram por um bom tempo, e,
enquanto estavam nisso, o dono da casa chegou com os seus convidados para o
serão habitual. Tendo visto que a porta não estava trancada, bateu sutilmente e
disse aos convidados: “Paciência! Alguns parentes meus vieram visitar-me. As
desculpas pertencem primeiramente a Deus altíssimo e depois a vocês”. Então os
amigos se despediram e dispersaram. O dono da casa tornou a bater levemente
na porta, e o rapaz, ao ouvir as batidas, ficou lívido. A mulher disse: “Creio que
o seu criado voltou”, e ele disse: “Sim”. A mulher levantou-se, abriu a porta e
disse ao dono da casa: “Onde estava? Seu patrão está furioso com você!”. Ele
respondeu: “Minha senhora, eu não estava senão resolvendo os problemas dele”,
e, amarrando uma toalha na cintura, entrou e cumprimentou o rapaz, que lhe
perguntou: “Onde você estava?”. O dono da casa respondeu: “Estava resolvendo
as suas coisas”. O rapaz lhe disse: “Vá, coma, e venha beber aqui conosco”, e
então ele saiu conforme lhe fora determinado, comeu, foi lavar-se e se sentou no
tapete da sala, pondo-se a conversar com ambos. O rapaz se tranquilizou e
alegrou, dominado pelo prazer. Foi assim que, na melhor vida e gozando as mais
amplas delícias, eles atravessaram o primeiro terço da noite, quando então o
dono da casa se levantou e lhes arrumou a cama, sugerindo que dormissem, e
ambos dormiram até a alvorada – enquanto ele permanecia acordado, pensando
nos dois –, quando então a mulher acordou e disse ao seu companheiro: “Quero
ir embora”; despediram-se e ela se retirou, sendo seguida pelo dono da casa, que
lhe deu um saco de dirhams e disse, desculpando o rapaz: “Não leve a mal o meu
patrão”. Retornando até o rapaz, disse-lhe: “Vá até o banho”, e começou a
massagear-lhe as mãos e os pés. O rapaz pôs-se a rogar por ele e a dizer: “Meu
senhor, quem é você? Não acredito que exista no mundo alguém igual, nem com
natureza mais bela!”. Em seguida, cada um deles explicou ao outro a sua história
e condição, e se encaminharam ao banho. O dono da casa fez questão que o
rapaz voltasse consigo, convocou seus companheiros, comeram, beberam, a
história lhes foi contada, e todos agradeceram ao dono da casa e o enalteceram.
O rapaz continuou convivendo com aquelas pessoas durante o período em que
ficou na cidade, até que Deus lhe proporcionou viajar, e então se despediram e
ele partiu.
[Prosseguiu o vizir:] “E acabou-se, ó rei do tempo, a história dele, que não é
mais espantosa que a do rico que perdeu o dinheiro e o juízo”. O rei apreciou a
história que ouvira e disse ao vizir: “Retire-se para a sua casa”. No final da tarde
do dia seguinte, instalou-se em sua sala e ordenou que o vizir fosse trazido à sua
presença e contasse a história do homem rico que perdera o dinheiro e o juízo. O
vizir disse:

Décima sexta noite do mês
O homem rico que perdeu o dinheiro e o juízo
Saiba, ó rei, que certo homem rico perdeu o dinheiro, e então as preocupações e
as obsessões o derrotaram a tal ponto que ele também endoidou e perdeu o juízo.
De seu dinheiro haviam restado cerca de vinte dinares. Ele pedia esmolas às
pessoas e reunia o que lhe davam aos dinares que lhe haviam restado. Na cidade
havia um meliante que, sempre atrás de informações para roubar, soube que o
louco dispunha de algum ouro escondido, e não parou de vigiá-lo até que o viu
pondo os dirhams esmolados em uma vasilha e entrando em uma ruína
abandonada, onde urinou, escavou um buraco, nele enfiou a vasilha e jogou terra
por cima, deixando como estava antes; quando ele partiu, o meliante entrou,
retirou o dinheiro e repôs as coisas tais como estavam. Mais tarde, o louco
retornou trazendo consigo algo para acrescentar ao dinheiro, mas nada
encontrou.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]906ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O louco refletiu sobre quem o teria seguido: ele notara que o meliante passara
a ficar muito tempo próximo de si e a lhe fazer perguntas, tendo sumido quando
a vasilha fora roubada. Assim, procurou-o até encontrá-lo, sentado a um canto;
caminhou na sua direção e, tão logo o meliante o viu, pôs-se a murmurar
baixinho de si para si, dizendo: “Na vasilha há sessenta dinares, eu tenho mais
vinte no lugar tal, e hoje ajuntarei tudo na vasilha”. Ao ouvi-lo rezingando,
titubeando e disparatando, o meliante se arrependeu de ter levado o dinheiro e
disse: “Agora, ele vai retornar à vasilha, não encontrará nada, e eu perderei o que
ele guardou. O mais correto para mim é repor os dinares, a fim de que ele os veja
e deixe tudo quanto possui dentro dela; assim, levarei tudo”. Receoso de que o
louco o seguisse para lá e visse algo que lhe destruísse o que concertara, disse-
lhe: “Ó apressado, gostaria que você viesse comigo à minha casa e comesse pão
comigo”. E o meliante levou o louco para a sua casa, acomodou-o ali e foi para o
mercado, onde vendeu algumas de suas roupas e penhorou alguns objetos de
casa; depois, foi para o local em que estava a vasilha, enterrou-a e retornou para
casa levando uma boa refeição, da qual deu de comer e de beber ao louco, e
saíram ambos; o meliante se escondeu para não ser visto pelo louco, que foi
recolher a vasilha, e em seguida o meliante foi até o local, feliz com aquilo que
cobiçava encontrar, mas escavou e nada encontrou. Percebendo que o louco o
enganara, a aflição o fez estapear-se na cabeça, e pôs-se a seguir o louco por
todo canto, a fim de roubar o que lhe pertencia, mas não conseguiu porque o
louco soube qual era o anelo do meliante, certo de que este o vigiava, e se
preveniu. Se acaso tivesse examinado a pressa e o que ela gera de perdas, não
teria feito aquilo.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história, ó rei do tempo, não é mais espantosa,
nem mais insólita, nem mais emocionante que a história das ocorrências entre
¿ubluß, sua esposa e o sábio”. Após ter ouvido a história, o rei abandonou a
vontade de matá-lo e se estimulou a deixá-lo vivo. Ordenou-lhe que se retirasse
para casa, chamando-o no final da tarde do dia seguinte, e, quando ele apareceu,
pediu-lhe que contasse a história. O vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Décima sétima noite do mês
¿ubluß, sua esposa e o sábio
Saiba, ó rei venturoso, que certo homem chamado ¿ubluß, corrupto e
espertalhão, tornou-se conhecido e famoso nessas artes. Sua mulher, graciosa e
caracterizada pela beleza e formosura, atraiu a paixão de um homem da cidade,
pelo qual ela também se apaixonou. Ardiloso e dono de artimanhas, ¿ubluß
frequentava, com o propósito de espreitar as pessoas, as reuniões que se faziam
diariamente na casa de um de seus vizinhos, um sábio para quem as pessoas
acorriam a fim de lhe ouvir as histórias e os sermões, e cuja esposa se
caracterizava pela beleza, formosura, inteligência e juízo. Em uma dessas
reuniões, com o propósito de entabular uma artimanha para se aproximar da
mulher de ¿ubluß, o apaixonado acercou-se dele, confidenciando-lhe que vira a
esposa do sábio e se apaixonara por ela, e pediu-lhe ajuda naquilo. ¿ubluß então
informou que ela era extremamente casta e recatada, e não cairia em nada
condenável. O homem disse: “Não posso deixá-la. É uma mulher que me dá
atenção e se inclina por mim, cobiçosa que está do meu dinheiro; ademais, meu
amor por ela é grande. Não me resta senão a sua ajuda”. ¿ubluß disse: “Você terá
de mim o que quiser”. O homem disse: “Eu lhe darei dois dirhams por dia, desde
que você fique junto do sábio e, quando ele for encerrar a reunião, fale bem alto
para indicar isso”. Acertaram-se, portanto, e, quando ¿ubluß foi se sentar ao pé
do sábio, o homem compreendeu que o segredo estava guardado e preservado,
pois, enquanto ¿ubluß, feliz e satisfeito com os dois dirhams, mantinha-se na
reunião do sábio, o homem fazia o que queria com sua esposa. Quando o sábio
fazia menção de levantar-se e encerrar a reunião, ¿ubluß, sem saber que a
desgraça se dava na sua própria casa, falava alto e o amante ouvia, deixando a
sua esposa.
Considerando excessivas as palavras que diariamente ¿ubluß pronunciava tão
logo ele fazia menção de encerrar a reunião, o sábio tomou-se de suspeitas,
sobretudo porque o lugar era conhecido. Certo dia, irritado, fez menção de
encerrar a reunião em dado momento e, dirigindo-se a ¿ubluß, agarrou-o e disse:
“Por Deus que, se proferir um único som, eu farei com você algo bem
desagradável”. E, ainda agarrado a ele, foi ver a esposa, a quem encontrou
sentada em sua cama, sem fazer nada de suspeito ou condenável. Após refletir
algum tempo sobre aquilo, o sábio, sempre agarrado a ¿ubluß, dirigiu-se à casa
deste, ali encontrando o amante deitado na cama com a esposa do vizinho. O
sábio disse a ¿ubluß: “Ó maldito, a desgraça está em sua casa!”. Então ¿ubluß
bateu em retirada e não mais retornou àquela terra, abandonando a mulher. Tais
são as punições dos corrompidos. Quem acredita dominar astúcias e ardis é por
eles dominado, e, se acaso se precavesse das suspeitas e das desgraças que
planeja contra os outros, não seria prejudicado.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]907ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:] “Essa história,
conquanto espantosa e insólita, não o é mais que a história da devota piedosa que
foi acusada de corrupção pelo cunhado”. Ao ouvir tais palavras, tomado de
espanto e ainda mais admirado com o vizir, o rei lhe ordenou que se retirasse
para casa e retornasse depois. O vizir dormiu em casa, ali passando o dia; no
final da tarde o rei mandou chamá-lo, e, quando ele apareceu, pediu-lhe que a
contasse. O vizir respondeu: “Sim”.

Décima oitava noite do mês
A devota piedosa acusada de corrupção
Saiba, ó rei, que havia um homem de Nisåpœr que foi fazer a peregrinação, e
cuja mulher era extremamente bela e religiosa. Quando partiu, recomendou-a ao
irmão, pedindo-lhe que a auxiliasse nos seus misteres e a apoiasse nas suas
necessidades até que ele retornasse. Ambos os irmãos se davam muito bem. O
peregrino embarcou em um navio e a sua ausência se prolongou; seu irmão ia
constantemente ver-lhe a mulher para perguntar a ela como estava e lhe trazer as
coisas das quais necessitava. Depois de tanto visitá-la, ouvir-lhe as palavras e
ver-lhe o rosto, o amor por ela invadiu o seu coração; desejou-a, e sua alma,
seduzida e iludida, levou-o a convidá-la para dormir consigo. A mulher se
recusou e considerou horrendo tal proceder. Não encontrando outro caminho
para satisfazer a sua ambição, pôs-se a tratá-la com lhaneza e sutileza, mas ela,
em todas as suas questões, ia muito bem e não voltou atrás em sua palavra. Ao
ver que a mulher não gostava dele, imaginou que ela o delataria ao irmão tão
logo este voltasse, e lhe disse: “Se você não aceitar o que propus, vou lançar-lhe
uma acusação que irá destruí-la”. Ela respondeu: “Deus exalçado e altíssimo está
entre nós. Saiba que, mesmo me retalhando em postas, não farei o que você
quer”. Então, a estupidez cega o fez julgar que ela contaria tudo ao irmão e,
tomado pela ira, foi até um grupo de pessoas na mesquita e lhes avisou que vira
um homem fornicando com a cunhada. Acreditando em suas palavras,
escreveram um relatório a respeito e concordaram em apedrejá-la: escavaram um
buraco fora da cidade, colocaram-na dentro dele e apedrejaram-na até achar que
ela morrera, abandonando-a então ali. Um xeique do interior passou pelo lugar,
levou-a para casa e tratou-a. Esse homem tinha um filho que, ao vê-la, se
apaixonou e tentou seduzi-la, mas ela se recusou, desobedecendo-lhe, e a atração
e a paixão por ela aumentaram tanto que o levaram a sugerir a um rapaz de sua
aldeia que fosse roubar, à noite, alguma coisa da casa de seu pai e, quando
flagrado, dissesse que agira de comum acordo com a mulher e contasse que se
tratava de sua namorada e que por sua causa ela fora apedrejada na cidade. O
rapaz assim procedeu, entrando na casa à noite e roubando objetos e roupas; o
dono da casa acordou, agarrou-o, amarrou-o e surrou-o para que confessasse; o
rapaz então confessou que a mulher tramara aquilo com ele e que se tratava de
sua namorada da cidade. A notícia se espalhou e os habitantes da aldeia
decidiram matá-la, mas o xeique que lhe dera abrigo impediu-os dizendo: “Eu
recolhi esta mulher no intuito de obter a recompensa divina, ignorando o que se
dizia a respeito dela; não permitirei que ninguém a machuque”; em seguida, deu-
lhe mil dirhams de esmola e a expulsou da aldeia. Quanto ao rapaz que assaltara
a casa, após alguns dias de prisão foram indagar o que fazer com ele ao xeique, e
este o desamarrou quando lhe disseram: “É jovem, e errou”.
Quanto à mulher, ela saiu errando sem rumo, vestida com os trajes da
devoção, e não deixou de vagar até adentrar uma cidade cujos fiscais ela viu
intempestivamente exigindo da população o pagamento de impostos.
Aproximou-se de um homem do qual se exigia pagamento e lhe perguntou o que
ocorria; informada de sua situação, deu-lhe os mil dirhams que possuía,
livrando-o do espancamento e ensejando a sua soltura; agradecido, o homem
pôs-se a caminhar ao seu lado e lhe sugeriu que o acompanhasse até a sua casa;
ela o acompanhou, jantou, e ali passou a noite. Quando escureceu, a alma do
homem o levou ao mal devido à beleza e formosura da devota: cobiçando-a,
tentou seduzi-la, mas ela o rechaçou e o atemorizou com Deus altíssimo,
recordando-lhe a mercê que lhe fizera, salvando-o da surra e da humilhação. O
homem não desistiu, mas, vendo a sua resistência, receou que ela contasse aos
outros e, pela manhã, escreveu um papel no qual depositou tantas falsidades e
calúnias quantas quis; foi até o sultão e disse: “Tenho um conselho”, recebendo
permissão para entrar; entregou o tal papel com as calúnias ao sultão e disse:
“Encontrei esta carta com a mulher devota e asceta; ela é espiã, infiltrada contra
o rei pelo inimigo. Verifiquei que o direito do rei prevalece sobre todo e qualquer
direito, e seu aconselhamento detém preferência, pois é ele quem conserva a
integridade dos súditos, os quais seriam aniquilados sem a sua existência. É por
isso que apresento tal conselho”. Supondo que essas palavras fossem verdade, o
rei enviou junto com o homem alguém para prender e matar a mulher, mas ela
não foi encontrada. Foi isso que ocorreu ao homem.
Quanto à mulher, ela decidiu iniciar viagem tão logo o homem saiu da casa.
Quando se preparava para partir, pensou: “Não sairei em trajes femininos”, e
vestiu o traje utilizado pelos homens piedosos, pondo-se a vagar sem rumo, e
não parou até adentrar certa cidade cujo rei[278] tinha uma filha única a quem
muito admirava e amava. Essa filha olhou para aquele devoto e, imaginando
tratar-se de um jovem em peregrinação, disse ao pai: “Quero que este rapaz se
hospede comigo a fim de que eu aprenda com ele o saber, o ascetismo e a fé”.
Contente com aquilo, o pai ordenou ao devoto que se hospedasse em seu palácio,
junto à sua filha, alojando-se ambos em um só local, e, embora a filha do rei
fosse extremamente ascética, casta, digna de alma, sobranceira e dedicada à
devoção, os ignorantes começaram a difamá-la; os membros do governo
passaram a dizer que a filha do rei se apaixonara pelo jovem peregrino, e que ele
a amava. O rei era velho e os fados decretaram que chegasse à cláusula de seus
dias: ele morreu, e durante seu enterro as pessoas reuniram-se e começaram a
falar demais, bem como os parentes do rei e seus soldados; a opinião geral
concordava em matar a filha do rei e o jovem peregrino; as pessoas disseram:
“Ele constitui o nosso escândalo, junto com aquela meretriz; e não aceita a
infâmia senão a destruição”.[279] Avançaram então contra os dois, matando a
filha do rei em sua mesquita, sem nada lhe perguntar, e a devota, que eles
suponham ser um rapaz, disse-lhes: “Ai de vocês, seus hereges! Mataram uma
senhora religiosa!”. Disseram-lhe: “É isso que nos diz, seu corrompido? Você
estava apaixonado por ela, e ela por você! Vamos matá-lo, não há escapatória!”.
Ela disse: “Deus me livre! A questão é bem diferente disso!”. Perguntaram: “E
qual a prova?”. Ela respondeu: “Tragam-me mulheres”, e lhe trouxeram algumas
que, após a examinarem, constataram tratar-se de uma mulher, e então todos se
arrependeram e consideraram uma enormidade o que haviam feito; pediram-lhe
perdão e disseram: “Em nome daquele a quem você adora, é necessário que nos
perdoe!”. Ela respondeu: “Já não posso permanecer entre vocês, vou me
retirar!”. Eles lhe imploraram, choraram e disseram: “Em nome de Deus
altíssimo, por favor, aceite tomar conta do reino e dos súditos!”, mas ela se
recusou e rejeitou; chorando, as pessoas a cercaram e não a deixaram até que ela
aceitou e se fixou no país; a sua primeira ordem foi que enterrassem a filha do
rei e que se construísse uma abóbada sobre o túmulo, na qual ela se instalou para
adorar a Deus altíssimo e governar com justiça entre o povo. Deus exalçado e
altíssimo concedeu-lhe – graças à sua excelente devoção, paciência e ascetismo
– a satisfação dos rogos que lhe fazia, não deixando de atender a um único que
fosse. As notícias a seu respeito se propagaram por todos os quadrantes, as
pessoas acorreram a ela de todo lugar, e ela rogava pelo oprimido a Deus
altíssimo e poderoso, que logo o libertava e quebrava o opressor, ou então
rogava pelo doente, e Deus o curava. Permaneceu nisso por algum tempo.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]908ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Isso foi o que sucedeu à mulher. Quanto ao seu marido, ele voltou da
peregrinação e foi informado pelo irmão e pelos vizinhos do fim que levara a sua
esposa. Ficou muito triste, mas duvidou do que eles contaram pelo que conhecia
da castidade e das preces da esposa, e chorou a sua perda.
Voltando à devota, ela rogou a Deus altíssimo que a inocentasse ante o seu
marido e as pessoas, e então Deus enviou ao seu cunhado uma grave doença cuja
cura ninguém conhecia. Ele disse ao irmão: “Na cidade tal há uma devota
ascética cujos rogos são atendidos. Leve-me até lá para que ela rogue por mim e
Deus altíssimo e poderoso me cure desta doença!”. Então o irmão recolheu-o e
se puseram em viagem, chegando à aldeia do xeique que retirara a devota do
buraco e a tratara em sua casa. Hospedaram-se com ele, e o xeique lhes
perguntou como estavam e o motivo da viagem. O marido disse: “Pretendo levar
este meu irmão, que está doente, para a devota cujos rogos são atendidos, a fim
de que ela rogue por ele e Deus o cure pela bênção do rogo dessa mulher”. O
xeique disse: “Por Deus que o meu filho também está sofrendo de uma grave
doença! Já ouvimos falar dessa devota, que roga pelo doente e ele se cura. As
pessoas me sugeriram que o levasse até ela, e eu de fato acompanharei vocês!”.
Responderam: “Sim”, e concordaram todos naquilo, pondo-se em marcha até a
devota, um carregando o filho e o outro carregando o irmão. Também o rapaz
que roubara objetos da casa, caluniando-a e afirmando ser seu namorado,
contraíra uma grave doença, e seus pais o carregaram até a devota a fim de que
rogasse por ele; o destino os reuniu no caminho, e todos marcharam juntos até
chegar à cidade onde vivia o homem ao qual ela dera mil dirhams, salvando-o da
punição; encontraram-no indo até ela em razão da doença que contraíra; todos
foram até ela sem saber que era a mesma pessoa que haviam tratado tão mal;
avançaram sem interrupção até chegar a ela, aglomerando-se à porta de seu
palácio, no qual se localizava o túmulo da filha do rei. As pessoas iam até ela,
cumprimentavam-na e lhe pediam o rogo, mas por ninguém ela rogava antes que
lhe relatasse os pecados cometidos, e somente depois ela pedia perdão por ele e
rogava pela cura; então, a pessoa se curava com a permissão de Deus altíssimo.
A devota disse ao grupo que chegara, cujos membros ela reconhecera, embora
eles não a houvessem reconhecido: “Que cada um de vocês cite seus pecados
para que eu peça perdão por ele e realize os rogos”. O cunhado disse: “Quanto a
mim, ó devota asceta, tentei seduzir a esposa de meu irmão, mas ela me
rechaçou, e a cólera e a estupidez me levaram a caluniá-la e a acusá-la de
adultério diante das pessoas da minha cidade, que então a apedrejaram e
mataram injustamente. Esta é a consequência da injustiça e da calúnia, e do
assassinato de uma pessoa, que é proibido por Deus”. O filho do xeique da aldeia
disse: “Quanto a mim, ó mulher piedosa, meu pai trouxe até nossa casa uma
mulher apedrejada a quem meus familiares trataram até se curar. Era
extremamente bela e formosa e tentei seduzi-la, mas ela me rechaçou e se
fortaleceu em Deus altíssimo e poderoso. Minha estupidez me fez tramar com
um rapaz para que roubasse roupas e dinheiro da casa de meu pai, a fim de que
em seguida eu o capturasse diante do meu pai e o fizesse confessar, e ele deveria
alegar que a mulher era a sua amante na cidade, que fora apedrejada por sua
causa e que tramara aquele roubo com ele, abrindo-lhe as portas da casa. Tudo
mentira contra ela, pelo fato de não me ter obedecido em meus intentos. Fui,
como você vê, atingido pela punição”. Disse o rapaz que bancara o ladrão: “Fui
eu quem combinou o roubo com ele, abri a porta e aleguei falsidades e calúnias
contra ela. Mas Deus exalçado sabe muito bem que eu nunca fizera mal nenhum
a ela nem a conhecia de modo algum”. Disse o homem que a difamara perante o
sultão mediante a falsificação de uma carta – mostrando-se ingrato, pois ela o
salvara da punição dando-lhe mil dirhams –, e que tentara seduzi-la em sua casa
ao se encantar com a sua beleza: “Eu a injusticei e menti contra ela, e esta é a
punição dos opressores”. Ao ouvir as palavras deles diante dos presentes, a
devota disse: “Louvores a Deus, o rei onipotente, e que as preces sejam sobre
seus profetas e enviados”, e continuou: “Testemunhem, pessoas aqui presentes,
as palavras destes homens, e saibam que sou eu a mulher que eles declararam
haver injustiçado”. Em seguida, voltando-se para o cunhado, disse-lhe: “Sou a
esposa de seu irmão, e Deus exalçado e altíssimo me salvou das acusações que
você me assacou e da estupidez de que falou, mostrando, com suas virtudes e
generosidade, a minha inocência. Pode retirar-se agora, pois eu o absolvo da
injustiça cometida contra mim”, e rogou por ele, que se curou da doença. Ela
disse ao filho do xeique da aldeia: “Saiba que sou eu a mulher que seu pai salvou
do mal e do prejuízo, e contra a qual você cometeu o que cometeu de acusações
e de estupidez mencionadas”, pediu perdão e rogou por ele, que se recuperou da
doença. Depois, disse ao homem do imposto: “Fui eu que lhe dei os dirhams, e
você fez o que fez comigo”, pediu perdão e rogou por ele, que se recuperou.
[280] Os presentes espantaram-se com aqueles homens que haviam prejudicado
a mulher e que haviam sido ali reunidos, todos juntos, a fim de que Deus
exalçado e altíssimo demonstrasse a inocência dela diante de testemunhas. A
devota voltou-se para o xeique que a salvara do buraco, rogou por ele, deu-lhe
muitos presentes, entre os quais um saco com dez mil dirhams,[281] agradeceu-
lhe e retiraram-se todos, exceto o seu marido.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]
[E quando foi a]909ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Ao se ver a sós com o marido, a devota o aproximou, feliz com sua chegada,
[e lhe deu a opção de ficar com ela ou retornar para o seu país, e ele preferiu
ficar].[282] Então ela reuniu a população da cidade e informou a integridade do
marido, sugerindo que a ele se entregassem os misteres do governo e fosse
entronizado. As pessoas concordaram e o homem se tornou rei e se estabeleceu
entre eles. A mulher se entregou à devoção a Deus e retomou, com o marido, a
situação em que vivia antes.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história, ó rei do tempo, não é mais espantosa
nem mais emocionante que a do empregado que rasgou o ventre da jovem e
fugiu”. Ao ouvir isso, o rei ³åh Ba¿t pensou: “É bem possível que tudo o que
disseram sobre o vizir seja mentira, e que sua inocência apareça tal como
apareceu a inocência da devota”. Em seguida, tratou o vizir com afabilidade e
lhe ordenou que se retirasse para casa. No final da tarde do dia seguinte,
determinou que fosse trazido e lhe pediu a história do empregado e da jovem. O
vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Décima nona noite do mês
O empregado e a jovem
Saiba, ó rei venturoso, que havia em tempos remotos, em certa região habitada
pelos árabes, uma mulher grávida do marido. O casal tinha um empregado de
bom entendimento. Quando veio o momento de parir, a mulher deu à luz uma
menina; era noite, e mandaram o empregado pedir fogo aos vizinhos. Na região
vivia uma sacerdotisa que perguntou ao empregado se o recém-nascido era
macho ou fêmea. O empregado respondeu: “Menina”. A sacerdotisa disse:
“Fornicará com cem homens, casar-se-á com um empregado e será morta por
uma aranha”. Ao ouvir aquilo, o empregado deu meia-volta, retornou, entrou,
pegou a criança, rasgou-lhe a barriga e saiu em fuga pelo deserto, permanecendo
no exílio pelo período que Deus quis, e durante o qual ganhou dinheiro. Após
vinte anos retornou para a sua terra, indo residir nas vizinhanças de uma velha a
quem agradou, tratou bem e pediu que lhe arranjasse uma mulher para fornicar.
A velha disse: “Não conheço senão uma bela mulher que se tornou famosa com
essa ocupação”, e lhe descreveu a sua beleza, seduzindo-o por ela. O empregado
disse: “Vá chamá-la imediatamente e ofereça-lhe o quanto desejar”. A velha foi
fazer a oferta à mulher, convidando-a a ficar com aquele homem, mas ela
respondeu: “Saiba que eu praticava a fornicação, mas agora me penitenciei em
Deus altíssimo e já não desejo fazê-lo; desejaria, isto sim, licitamente; se ele
aceitar, estarei diante dele”. A velha retornou e informou as palavras da mulher
ao empregado, que a desejou graças à sua beleza e penitência, e se casou com
ela, apaixonando-se quando da consumação do casamento, e também ela se
apaixonou por ele. Passado um bom tempo, o empregado indagou-a sobre uma
cicatriz que tinha no corpo, e ela respondeu: “Só o que sei é o que minha mãe me
contou; trata-se de algo cujo sentido é espantoso!”. Ele perguntou: “E o que é?”.
Ela respondeu: “Minha mãe me contou que me deu à luz em certa noite de
inverno. Tínhamos um empregado ao qual ela ordenou que lhe procurasse fogo.
Após uma curta ausência, ele logo voltou, roubou-me das mãos dela e rasgou o
meu ventre e barriga, fugindo a seguir. Quando viu aquilo, tomada pela piedade
e dominada pela misericórdia, minha mãe costurou-me a barriga e medicou-me
até que o corte cicatrizou pelo poder de Deus poderoso e exalçado”. O
empregado perguntou: “Qual o seu nome? E o de sua mãe? E o de seu pai?”. Ela
lhe deu os nomes e ele, percebendo que era a criança que tentara matar,[283]
perguntou: “Onde estão sua mãe e seu pai?”. Ela respondeu: “Morreram todos”.
Nesse momento ele lhe disse: “Sou eu o empregado que rasgou a sua barriga”.
Ela perguntou: “Por que fez isso?”. Ele respondeu: “Em razão de palavras que
ouvi da sacerdotisa”. Ela perguntou: “Quais foram essas palavras?”. Ele
respondeu: “Ela alegou que você fornicaria com cem homens, e que depois disso
eu me casaria com você”. Ela disse: “Sim, eu forniquei com cem homens, nem
mais nem menos, e ei-lo agora casado comigo”. Ele disse: “A sacerdotisa
afirmou que você morreria no final da minha vida por causa da picada de uma
aranha. Ela acertou quanto à fornicação e ao adultério, e meu receio é de que ela
também acerte quanto à morte”. Então, dirigiram-se para um local fora da
cidade, onde construíram um castelo com pedra maciça e gesso branco,
colocando-lhe lampiões[284] no interior, pintando-o de branco e não lhe
deixando nenhum buraco; o homem empregou no palácio duas criadas para
servir, varrer e limpar, tudo por medo da aranha, e ali se instalou com a esposa
por algum tempo. Certo dia, ele olhou para o teto e eis que viu uma aranha;
derrubou-a, e, quando a mulher a viu, disse-lhe: “É isto que a sacerdotisa alegou
que me mataria! Por vida sua, deixe-me matá-la com minhas próprias mãos!”. O
homem alertou-a contra aquilo, mas ela o forçou a prometer que a deixaria matá-
la; cheia de medo e cuidado, pegou um pedaço de pau e golpeou a aranha com
um golpe tão forte que o pedaço de pau se quebrou e uma lasca entrou em sua
mão, fazendo-a supurar e inflamar; a inflamação se estendeu ao braço, daí aos
flancos, até o coração, e ela morreu.
[Prosseguiu o vizir:] “E isso não é mais espantoso nem mais insólito que a
história do tecelão que virou médico por ordem de sua esposa”. Tendo ouvido a
história, a admiração do rei cresceu e ele pensou: “O destino está
verdadeiramente escrito para as pessoas. Não aceitarei maledicências contra este
meu vizir conselheiro”. Ordenou-lhe que se retirasse para casa, mandando
chamá-lo no final da tarde do dia seguinte, e, quando ele apareceu, pediu-lhe que
contasse a história. O vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Vigésima noite do mês
Galeno e o tecelão que virou médico a mando da esposa
Saiba, ó rei, que havia na Pérsia certo homem que se casou com uma mulher
mais nobre que ele, e de melhor origem.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]910ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
A mulher não tinha um protetor que a impedisse de fazer dilapidações,[285] e
por isso, mesmo a contragosto, casou-se com um homem inferior à sua condição
pela necessidade, fazendo-o registrar no contrato de casamento, porém,
condições que o colocavam sob as ordens e exigências dela, vedando-lhe o
caminho a qualquer desobediência em atos ou palavras. Esse homem era tecelão,
e estabeleceu para si como condição no contrato de casamento a obrigação de
pagar vinte mil dirhams à mulher, quantia essa que ele demoraria muito tempo
trabalhando para ajuntar. Certo dia, a mulher saiu para comprar coisas de que
necessitava e viu um médico que estendera o seu tapete no caminho, com muitas
mezinhas e instrumentos médicos, pondo-se a falar no jargão médico,[286]
cercado por gente de tudo quanto é lugar. Espantada com a sua vasta riqueza, a
mulher pensou: “Se o meu marido fosse como ele, a nossa vida seria melhor, e o
aperto e a pobreza em que vivemos diminuiriam”. Retornou para casa
entristecida e preocupada; vendo-a em tal estado, o marido perguntou-lhe o que
tinha, e ela respondeu: “Meu peito está opresso por causa de você e da sua
pobreza”, e prosseguiu: “Não quero viver em apertos. Com o seu ofício, você
não ganha nada; mude de ofício ou liberte-me e pague o meu preço”. O marido a
censurou e admoestou, mas ela, sem voltar atrás, disse: “Saia e veja como age
aquele médico; aprenda com ele o que falar”. O homem disse: “Não preocupe o
seu coração, pois irei todo dia para o lugar onde fica o médico”. Assim, ele
passou a ir diariamente escutar o jargão que o médico falava, até que enfim
decorou, dominou e assimilou tudo aquilo. Isso feito, dirigiu-se à mulher
dizendo: “Decorei as palavras do médico e conheci sua maneira de falar o
jargão, de fazer receitas e tratamentos, e decorei o nome dos remédios, bem
como o de todas as doenças. Nada mais resta do que você ordenou; o que me
ordena agora?”. Ela respondeu: “Largue mão da tecelagem e monte um
consultório médico”. Ele retrucou: “Mas os meus conterrâneos me conhecem!
Isso não dará certo senão em um país estrangeiro. Vamos viajar desta terra para
viver em outro lugar”. Ela disse: “Faça o que preferir”. O homem recolheu os
aparelhos de tecelagem, vendeu-os, e com o dinheiro comprou remédios e
mezinhas; fez um tapete para si, e viajaram para uma aldeia na qual se
estabeleceram. Após vestir indumentária de médico, o homem passou a circular
pelas aldeias, pelos bairros e regiões isoladas, provendo seu sustento com os
ganhos que auferia; sua condição se estabilizou, sua situação melhorou, e ambos
agradeceram a Deus pelo que tinham. A aldeia tornou-se sua terra, enquanto a
passagem dos dias e das noites continuava a levá-lo de uma terra a outra, até que
enfim ele chegou à terra dos gregos, instalando-se em uma de suas cidades, na
qual vivia o sábio Galeno,[287]a a quem o tecelão não conhecia nem sabia quem
era. Conforme o hábito, ele saiu à procura de um local onde as pessoas se
aglomerassem, e viu a praça de Galeno, ali estendendo seu tapete, exibindo suas
mezinhas e instrumentos médicos, e pondo-se [a recitar o jargão médico][288] e
a entoar loas a si mesmo e a seu ofício, alegando possuir tamanha inteligência
como nenhum outro alegara. Ao ouvir aquilo, Galeno cogitou que se tratava de
um dos médicos sábios da Pérsia, e que “se ele não estivesse seguro de seu saber
e disposto a debater e discutir comigo, não teria vindo à porta de minha casa
falar essas coisas”. Invadido por preocupações e suspeitas, Galeno se aproximou
para disfarçadamente vigiar o tecelão e ver aonde chegaria. As pessoas
começaram a se aglomerar ao seu redor, descrevendo-lhe as coisas, e ele lhes
respondia, ora acertando, ora errando, sem que Galeno pudesse certificar-se de
seus conhecimentos; finalmente, veio-lhe uma mulher carregando uma garrafa
de água com urina, e o tecelão, olhando a garrafa de longe, disse-lhe: “Esta é a
urina de um homem estrangeiro”. Ela disse: “Sim”. Ele disse: “É judeu e seu
problema é indigestão”. Ela disse: “Sim”. Todos ficaram espantados, e aquilo foi
portentoso aos olhos de Galeno, que ouviu palavras que os médicos somente
proferem após detida observação, pois não avaliam a urina senão remexendo-a e
examinando-a de perto, sendo incapazes de distinguir se é de homem, se de
mulher, se de estrangeiro, se de judeu ou se de nobre. A mulher perguntou ao
tecelão: “Qual é o remédio?”. Ele disse: “Passe o pagamento”. Ela lhe pagou um
dirham...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]911ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
... e ele lhe deu remédios que não correspondiam àquele problema, e só iriam
agravá-lo. Tendo presenciado aquela incapacidade, Galeno ordenou a seus
discípulos e criados que lhe trouxessem aquele médico, bem como os seus
instrumentos e mezinhas, e mais que rapidamente eles o colocaram à sua frente.
Ao vê-lo diante de si, Galeno perguntou-lhe: “Você me conhece?”. Ele
respondeu: “Não, nem nunca o vi antes de hoje”. Galeno perguntou: “Você
conhece Galeno?”. Ele respondeu: “Não”. Galeno perguntou: “E o que o levou a
fazer isso?”. O tecelão contou-lhe então a sua história, o dote que devia à esposa
e as cláusulas de casamento que ela lhe impusera. Espantado com aquilo, Galeno
certificou-se do valor do dote[289] e hospedou o tecelão em uma casa próxima à
sua, tratou-o com gentileza, ficou a sós com ele e lhe disse: “Explique-me como
foi a história da garrafa. Como você soube que se tratava de um homem, e
estrangeiro, e judeu? Como soube que o problema dele era indigestão?”. O
tecelão respondeu: “Sim, eu soube, porque nós, os persas, dominamos a
fisiognomonia. Vi que a mulher era loira de olhos azuis, alta, de traços fortes;
mulheres assim, quando se apaixonam por um homem, perdem-se de amor; vi
que ela estava ardendo em desespero por ele, e percebi que era seu marido;
quanto a ser estrangeiro, vi que a roupa da mulher era diferente da roupa dos
habitantes daqui, e percebi que era estrangeira; vi que a boca da garrafa estava
tapada com um trapo amarelo,[290] e percebi que era judeu e ela, judia; ela me
veio em um domingo, e é hábito dos judeus comer har∑sa[291] e outros
alimentos que passam a noite no forno; no sábado, eles a comem quente e depois
fria, em grandes quantidades, o que lhes provoca indigestão. Foi por meio disso
que efetuei tais deduções, e por meio dos seus indicativos eu soube aquilo que
você ouviu”. Nesse momento, Galeno ordenou que trouxessem o valor do dote
da esposa do tecelão e lhe disse: “Separe-se dela”. Proibiu-o de voltar a exercer a
medicina, pagou-lhe o que gastara, e forçou-o a retomar seu ofício.
[Prosseguiu o vizir:] “Mas isso não é mais espantoso nem mais insólito que a
história dos dois homens ardilosos que fizeram ardis um contra o outro”. Tendo
ouvido aquela história, o rei ³åh Ba¿t pensou: “Como essa história se assemelha
com a situação em que me encontro com este inigualável vizir!”, e lhe ordenou
que se retirasse para casa e reaparecesse no final da tarde do dia seguinte.
Quando anoiteceu, o vizir foi até o rei, que lhe ordenou contá-la, e ele
respondeu: “Ouço e obedeço”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]912ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]

Vigésima primeira noite do mês
OS dois ladrões que fizeram artimanhas um contra o outro
Saiba, ó rei venturoso, que havia na cidade de Merv[292] um homem ardiloso,
que a toda gente saturara com suas artimanhas, as quais o tornaram famoso por
todos os quadrantes; por exemplo, certa feita, tendo recolhido um fardo de
excrementos de ovelha, ele jurou para si que não voltaria para casa antes de
vendê-lo pelo preço das uvas-passas; vivia na cidade de Array[293] outro
homem ardiloso, que com a gente dali fizera o mesmo por meio de suas
artimanhas, e que também recolhera um fardo de excrementos de cabra,[294]
jurando para si que não o venderia senão ao preço dos figos secos, e que tal não
se daria senão declaradamente e mediante aviso prévio;[295] cada qual deles se
pôs a caminho com seu carregamento, até que se cruzaram em certa hospedaria,
onde começaram ambos a queixar-se um ao outro das fadigas da viagem e da
deterioração de sua mercadoria, e cada qual percebeu que o outro pretendia
enganá-lo. O mérvida perguntou ao rázi:[296] “Você me venderia a sua
mercadoria?”. O rázi respondeu: “Sim”. O mérvida perguntou: “E compraria a
minha mercadoria?”. O rázi respondeu: “Sim”. Acertaram então aquilo, cada
qual vendeu ao outro o que tinha e se despediram; tão logo desapareceram um
das vistas do outro, resolveram espiar os fardos para ver o que continham, e,
constatando que só tinham excrementos de ovelha e de cabra, voltaram ambos
para tomar satisfações um com o outro, mas, encontrando-se diante da
hospedaria, riram um do outro, compactuando afinal em fazer artimanhas juntos
e dividir entre si o dinheiro que deviam e o que possuíam – sociedade em partes
iguais para os dois –, e o rázi disse: “Venha comigo para a minha terra, que está
mais próxima que a sua”; o mérvida aceitou,[297] acompanhando-o, e, quando
chegaram à sua casa, o rázi disse à esposa, aos vizinhos e aos moradores de sua
casa: “Este é meu irmão que estava ausente na terra de ¿uråsån, mas agora
retornou”. Durante três dias o mérvida ficou ali hospedado e dignificado, e no
quarto dia o rázi lhe disse: “Saiba, meu irmão, que estou disposto a fazer algo”.
O mérvida perguntou: “O quê?”. O rázi respondeu: “Quero me fingir de morto.
Vá você ao mercado e alugue carregadores e ataúde; carregue-me então e circule
comigo pelos mercados da cidade recolhendo dinheiro”. O mérvida respondeu:
“Sim”, e no dia seguinte dirigiu-se ao mercado, alugou carregadores e ataúde,
retornou e encontrou o seu companheiro com a barba desgrenhada[298] e os
olhos fechados, atirado ao chão do vestíbulo, amarelado, ventre inchado,
membros murchos e sozinho. Supondo que o rázi estivesse de fato morto, mexeu
nele, que nada falou; pegou uma faca e lhe espetou os pés, mas, sem se mexer, o
rázi perguntou: “Que está fazendo, seu estúpido?”. O mérvida respondeu:
“Imaginei que você estava morto!”, e prosseguiu: “Aja a sério e deixe de lado a
galhofa”; levou-o então ao mercado, recolheu donativos por sua alma e retornou
para casa, onde aguardou o amanhecer e saiu com ele para outro mercado,
topando porém com o chefe de polícia, que no dia anterior dera o seu donativo
no primeiro mercado, e, irritado, investiu contra os carregadores, espancou-os,
pegou o rázi e o levou, dizendo: “Eu o enterrarei e ganharei a recompensa
divina”; sua comitiva carregou-o até a sua casa, e para lá trouxeram escavadores
que lhe escavaram um túmulo; compraram-lhe túnica, mortalha e, para lavá-lo,
chamaram o xeique do bairro, que o desnudou, colocou em um banco, lavou e
começou a amortalhá-lo, mas interrompeu a tarefa para defecar; ao retomá-la,
tornou a lavá-lo e só então o introduziu na mortalha, após o que foi abluir-se,
sendo acompanhado pelos presentes, como parte dos preparativos para o enterro.
Ao se ver sozinho, o morto levantou-se como se fora um demônio; vestiu as
roupas do xeique, enfiou a mortalha debaixo do braço, recolheu as taças e o
balde, cobriu-os com um pano, e saiu.[299] Os porteiros, supondo que fosse o
xeique encarregado de lavar o cadáver, disseram-lhe: “Se você já terminou de
lavar, informaremos ao patrão”. Ele respondeu: “Sim”, e foi embora para casa,
onde encontrou o mérvida dizendo à sua mulher: “Por vida sua que não tornará a
ver-lhe a face, jamais, pois a esta hora ele já está enterrado. Eu mesmo só
escapei deles com muito esforço e sofrimento! Se ele falar, irão matá-lo!”. A
mulher perguntou: “E o que deseja de mim?”. O mérvida respondeu: “Quero
satisfazer-me em você! Saciar a minha febre! Sou melhor que o seu marido!”, e
começou a seduzi-la. Ao ouvi-lo, o rázi pensou: “Esse safado está cobiçando a
minha mulher. Vou tratá-lo da pior maneira”, e entrou célere na casa. Vendo-o, o
mérvida se espantou e perguntou-lhe: “Como escapou?”. O rázi lhe contou a
artimanha que usara, e ambos se puseram a conversar sobre quanto haviam
arrecadado das pessoas: era muito dinheiro. O mérvida disse: “Faz tempo que
estou ausente e quero voltar para a minha terra”. O rázi perguntou: “O que você
quer?”. Respondeu: “Que você divida o dinheiro arrecadado e venha comigo
para a minha terra, onde lhe mostrarei as minhas artimanhas e atitudes”. O rázi
respondeu: “Venha amanhã e dividiremos o dinheiro”, e, quando o mérvida
partiu, o rázi foi até a mulher e lhe disse: “Ajuntamos muito dinheiro e aquele
cachorro traidor pretende levar a metade! Nunca! Estou com raiva e minhas
disposições em relação a ele mudaram desde que o ouvi[300] galanteando você.
Vou lhe fazer algo que me fará ficar com o dinheiro todo só para mim. Não me
desobedeça!”. A mulher respondeu: “Sim!”. Ele disse: “Pela madrugada vou me
fingir de morto. Grite, arranque os cabelos – pois assim as pessoas se
aglomerarão ao seu redor – e me enterre. Quando as pessoas forem embora,
escave e me retire. Não tema por mim, pois suporto dias no túmulo”. A mulher
disse: “Faça como quiser”. Quando veio a madrugada, ela lhe amarrou a barba,
jogou-lhe um lençol por cima e começou a gritar; as pessoas se aglomeraram ao
seu redor, mulheres e homens do bairro. O mérvida chegou para repartir o
dinheiro e, ouvindo o choro, perguntou: “O que aconteceu?”. Responderam-lhe:
“Seu irmão morreu!”. Ele pensou: “O maldito está de artimanha contra mim para
ficar sozinho com o dinheiro. Vou aprontar-lhe uma que o fará esquecer as
artimanhas”; rasgou as roupas, descobriu a cabeça e chorou, gritando: “Ai meu
irmão mais velho e mestre!”. Foi na direção dos homens, que lhe deram
pêsames, e dali até a esposa do rázi, a quem perguntou: “Como foi a morte
dele?”. Ela respondeu: “Só o que sei é que amanheceu morto!”. Ele perguntou
sobre o dinheiro, os dirhams que ela tinha consigo.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]913ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
A mulher respondeu ao mérvida: “Disso eu nada sei nem tenho notícia”. O
mérvida se instalou à cabeceira do morto e disse: “Saiba, ó rázi, que não me
separarei de você senão após dez dias com suas noites; dormirei e acordarei ao
lado de sua tumba. Portanto, levante-se e deixe de ser estúpido!”. Como o rázi
não respondesse, o mérvida, tencionando fazê-lo se mexer, passou a espetá-lo
com um canivete nas mãos e nos pés, e o fez até cansar e acreditar que ele de
fato morrera. Todavia, logo se recordou do que o outro fizera antes e pensou: “É
artimanha para ficar com o dinheiro todo para si”, e se pôs a prepará-lo para o
enterro, comprando-lhe[301] mortalha e demais coisas necessárias, e conduzindo
o cadáver para ser lavado; o mérvida esquentou a água até borbulhar, e ela
ferveu tanto que um terço se evaporou. Começou a derramar aquela água sobre o
couro do morto, que se avermelhou, azulou e inchou, mas ele continuou na
mesma; as pessoas enfiaram-no na mortalha, depositaram-no no ataúde e o
carregaram até o cemitério, onde o colocaram na cova, jogaram terra em cima e
se dispersaram. O mérvida e a esposa do rázi ficaram chorando ao lado do
túmulo, e assim permaneceram até que o sol se pôs, quando então a mulher
disse: “Vamos para casa, pois esse choro não é útil nem trará o morto de volta”.
O rázi respondeu: “Por Deus que não sairei daqui; passarei a noite e amanhecerei
ao lado do túmulo por dez dias com suas noites”. Ao ouvir-lhe tais palavras, a
mulher – não obstante seus receios de que ele cumprisse a promessa e jura, o que
lhe mataria o marido – pensou: “Ele só pode estar com artimanhas. Tão logo eu
saia e vá para casa, ele ficará mais um pouco e também irá embora”,[302] e
partiu. O mérvida ficou ali até o meio da noite, quando então pensou: “Quando e
como poderei deixar esse cachorro trapaceiro morrer, perdendo todo o dinheiro?
O mais acertado é escavar o túmulo, retirá-lo e recuperar os meus direitos
castigando-o com uma dolorosa surra”. Isso dito, escavou o túmulo, retirou o
rázi, arrancou galhos da árvore de um bosque próximo, fez varas, puxou-o pelas
pernas e lhe aplicou dolorosa sova, sem que o morto se mexesse. Depois de um
bom tempo, seus ombros começaram a doer, e, temeroso de ser flagrado e preso
por algum comissário do policiamento noturno, entrou debaixo do morto e
retirou-o daquele cemitério, levando-o ao cemitério dos zoroastristas, onde
tornou a surrá-lo violentamente, até ficar com os ombros adormecidos, mas o
morto não se mexeu. Após sentar-se ao seu lado para descansar, o mérvida logo
retomou a surra até o dia se findar. Por coincidência do destino, chegaram alguns
ladrões que tinham o hábito de levar os produtos de seus roubos para reparti-los
naquele local. Eram dez portando muito dinheiro, e, quando chegaram ao
cemitério, ouviram lá dentro sons de espancamento. O maioral deles disse: “É
um zoroastrista sendo punido pelos anjos!”. O bando entrou no cemitério e, ao se
aproximar, o mérvida, temendo que fosse a polícia, fugiu, escondendo-se entre
as tumbas. Os ladrões foram se aproximando e toparam com o rázi, que estava
de pernas amarradas, e ao seu lado setenta varas; sumamente assombrados,
disseram: “Combata-o Deus! Esse era um herege tão cheio de pecados que a
terra o expeliu de seu ventre! Por vida minha que a pele dele ainda está macia!
Trata-se de sua primeira noite, e os anjos há pouco o estavam castigando! Dentre
vocês, quem tiver pecados que o espanque para se aproximar de Deus
altíssimo!”. Disseram: “Todos nós temos pecados!”, e cada um deles se
aproximou do rázi e lhe aplicou cerca de cem vergastadas, dizendo conforme o
surrava: “Essa é por meu pai! Essa, por meu avô! Essa, por meu irmão!”, bem
como: “Essa é por minha mãe!”. Não cessaram de se revezar no espancamento
até ficar cansados, enquanto o mérvida permanecia escondido no meio dos
túmulos, ouvindo, rindo e dizendo: “Parece que nem comecei a fazê-lo pagar por
seus pecados... Não existe força nem poderio senão em Deus exalçado e
grandioso!”. Nesse ínterim, os ladrões passaram a dividir o dinheiro e os bens
que tinham, entre os quais estava uma espada sobre cujo destino divergiram. O
maioral deles disse: “Minha opinião é que devemos experimentá-la; se for boa,
saberemos o seu valor; se for ruim, também saberemos”. Disseram:
“Experimentem-na neste morto zoroastrista, que ainda está tenro”. O maioral dos
ladrões empunhou a espada, desembainhou-a, puxou o cadáver e fez menção de
golpeá-lo.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]914ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Quando o morto rázi viu a espada, teve certeza de que morreria de verdade e
pensou: “Já suportei ser lavado com água fervente, amortalhado e espetado com
canivete; suportei o túmulo e sua estreiteza; suportei a surra, e tudo isso para
escapar da morte; agora, a espada eu não posso suportar, pois é um só golpe e
acabou!”. Nesse instante ele se pôs de pé, agarrou o tendão de um cadáver, e
gritou alto e bom som: “Ó mortos, levem-nos!”. Ele próprio golpeou com o
tendão o ladrão da espada, que a largou e fugiu derrotado, enquanto o seu colega
mérvida pegava uma perna de cadáver e com ela golpeava outro ladrão; ambos
gritaram e golpearam nos traseiros os ladrões, que fugiram espavoridos, ali
abandonando o que tinham, e não pararam de correr até ficar à distância de uma
parasanga do cemitério dos zoroastristas, quando então interromperam a
correria, aterrorizados com a enormidade dos assombros que lhes sucederam, e
estarrecidos com os mortos. Quanto ao rázi e ao mérvida, ambos se
reconciliaram e começaram a repartir o dinheiro dos ladrões. O mérvida disse:
“Não lhe darei um único dirham deste dinheiro até você me dar a minha parte do
dinheiro que está na sua casa”. O rázi respondeu: “Não o farei”. O mérvida
disse: “Descontarei deste dinheiro o que você me deve”. Divergiram a respeito,
começaram a brigar, e cada um se pôs a dizer ao outro: “Não lhe darei nenhum
dirham!”, com o tom da conversa se elevando e a discussão se prolongando.
Quanto aos ladrões, quando eles pararam de correr, perguntaram-se uns aos
outros: “Que coisa foi aquela? Vamos voltar para ver!”.[303] O maioral deles
disse: “Isso é impossível! Nunca ouvimos que os mortos ressuscitam[304] nessa
forma. Voltemos para resgatar o nosso dinheiro, pois os mortos dele não têm
necessidade”. Destarte, combinaram retornar e disseram: “Perdemos as nossas
armas e não temos forças para enfrentá-los. Não nos aproximaremos de onde
eles estão; somente um de nós irá observar e, se porventura não lhes ouvir som,
veremos então como proceder”.[305] Concordaram em enviar um membro do
grupo,[306] que foi até os túmulos, avançando até o portão, e ali ouviu o
mérvida dizendo ao rázi: “Não lhe darei deste dinheiro um único dirham!”, ao
passo que o outro dizia a mesma coisa; discutiam e insultavam-se, sem parar de
falar. O ladrão retornou célere, trêmulo, aos seus companheiros, que lhe
perguntaram: “O que você presenciou?”. Ele respondeu: “Corram e deem o fora,
seus ignorantes! Salvem as suas vidas, pois muitas criaturas ressuscitaram da
morte e agora discutem e brigam!”. Então os ladrões fugiram em disparada,
enquanto o mérvida e o rázi retornavam para casa, apaziguados, tendo
acumulado dinheiro sobre dinheiro, e viveram por um bom período.
[Prosseguiu o vizir:] “Mas isso não é mais espantoso nem mais insólito que a
história dos espertalhões que fizeram artimanhas contra o cambista por meio de
um asno”. Tendo ouvido a história, o rei sorriu e a apreciou;[307] determinou
que o vizir se retirasse para sua casa e, quando anoiteceu, mandou chamá-lo e
ordenou-lhe que contasse a história.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]915ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que] o vizir Rahwån disse ao rei ³åh Ba¿t:

Vigésima segunda noite do mês
Os espertalhões e o cambista
Quatro espertalhões resolveram ir ter com um cambista cheio de dinheiro, após
terem entabulado uma artimanha para apropriar-se de uma parte desse dinheiro.
Um dos trapaceiros, conduzindo um asno com uma bolsa de dirhams, foi até o
cambista, apeou-se e lhe pediu dirhams especiais de prata.[308] O cambista
trouxe os dirhams, fez o preço, e o espertalhão pôs-se a negociar bancando o
débil, o que levou o cambista a cobiçar os seus pertences; nesse momento,
chegaram os outros espertalhões e cercaram o asno. Um dos espertalhões disse:
“É ele!”. O outro disse: “Espere até eu examiná-lo”, e começou a observar o
asno e a limpá-lo desde o pescoço até as orelhas, enquanto o terceiro acariciava
o animal e o limpava desde a cabeça até o dorso; ele dizia: “Sim, ele tem!”; o
outro dizia: “Não tem!”. Após algum tempo agindo dessa maneira, dirigiram-se
ao dono do asno e lhe fizeram um lance de compra, ao que ele retrucou: “Não o
vendo senão por dez mil dirhams”. Ofereceram-lhe mil dirhams e ele se recusou,
jurando que somente o venderia pelo sobredito valor; continuaram a lhe fazer
propostas até que o valor chegou a cinco mil dirhams, mas o homem disse: “Não
o vendo senão por dez mil dirhams!”, enquanto o cambista lhe fazia sinais para
que o vendesse, mas ele se recusava dizendo: “Meu amigo, você nada sabe sobre
a condição deste asno! Cuide do ouro e da prata, e bastam-lhe as desditas com as
moedas de prata especial e com o câmbio! Os benefícios[309] deste asno lhe são
ocultos. Cada ofício tem quem o exerça, e cada atividade,[310] quem a
pratique”. Quando aquilo se prolongou demasiado, os espertalhões
interromperam a discussão, ficaram a um canto e, indo às escondidas até o
cambista, confidenciaram-lhe: “Se você puder comprá-lo para nós, faça-o, e lhe
daremos cinquenta[311] dirhams”. Ele disse: “Saiam e fiquem longe dele”, e eles
obedeceram. O cambista se dirigiu ao dono do asno, e não cessou de seduzi-lo
com dinheiro até que enfim lhe disse: “Deixe aqueles para lá e me venda esse
asno, que eu o considerarei um presente seu”, e lhe pagou cinco mil e quinhentos
dirhams; pesou-lhe o valor e tratou-o com benevolência, até que a venda se
efetuou e o espertalhão recebeu o dinheiro, dizendo-lhe ao se retirar: “É uma
confiança que deposito sobre o seu pescoço: não o venda para aqueles ladrões
senão por dez mil dirhams, pois eles o comprarão em razão de um tesouro do
qual tiveram conhecimento e que não lhes será indicado senão por este asno.
Portanto, prenda-o com mão firme e não divirja de mim, caso contrário, se
arrependerá”. Tão logo se separaram, chegaram os outros três espertalhões,
companheiros do primeiro, e disseram ao cambista: “Deus o recompense por nós
por haver comprado o asno! Como poderemos compensá-lo?”. O homem
respondeu: “Não o vendo senão por dez mil dirhams”. Ouvindo aquilo, os três
foram examinar e acariciar o asno, e disseram enfim ao cambista: “Nós nos
equivocamos. Não é este o asno que buscávamos. Não pagaremos por ele senão
dez centavos”, e, abandonando-o, retiraram-se. Pesadamente atingido, e irritado
com as palavras deles, o cambista disse: “Minha gente, depois de me pedir que o
comprasse para vocês, agora vêm me dizer que estão confusos e que não lhes
serve senão por dez centavos?”. Responderam: “Considerávamos que ele tinha o
que queríamos, mas eis que ele é o contrário do que queremos e tem defeitos,
pois o seu dorso é curto”, e, desprezando o animal, deram as costas e
debandaram. O cambista chegou a imaginar que eles pechinchavam para
comprar o asno pelo preço que pretendiam, mas, como eles se demorassem em
retornar, começou a lamuriar-se aos brados e a reclamar das desgraceiras da
vida, gritando e rasgando as roupas. Os mercadores se aglomeraram ao seu redor
e lhe perguntaram o que ocorria, e ele lhes contou a sua história, descrevendo o
que os espertalhões haviam dito e como o enganaram, fazendo-o cobiçar e
comprar um asno cujo preço equivalia a cinquenta dirhams por cinco mil e
quinhentos dirhams. Seus amigos censuraram-no e as pessoas riram dele,
espantadas com a sua estupidez e crença nas palavras dos espertalhões, das quais
não duvidou, sua intromissão no que não conhecia e seu envolvimento com o
que não investigara.
[Prosseguiu o vizir:] “É esta, ó rei ³åh Ba¿t, a punição pelos zelos para com o
mundo e a cobiça pelo que não se conhece: ruína e arrependimento. E essa
história, ó rei do tempo, não é mais espantosa que a do ladrão decoroso”.[312]
Após ter ouvido a história anterior, o rei pensou: “Se eu tivesse ouvido as
palavras dos meus conhecidos e me inclinado pelas falsidades a respeito do meu
vizir, teria chegado ao extremo arrependimento. Graças a Deus, que bem me
concedeu a satisfação e a reflexão, e me agraciou com a paciência”; voltou-se
para o vizir e lhe ordenou que se retirasse para casa e retornasse conforme o
hábito. No final da tarde do dia seguinte, mandou trazê-lo e lhe pediu que
contasse a história. O vizir respondeu: “Ouço e obedeço”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]916ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]

Vigésima terceira noite do mês
O ladrão decoroso
Saiba, excelso senhor, que em tempos remotos houve certo espertalhão que era
decoroso, tinha razão, inteligência, conhecimento e sagacidade. Seu costume era
entrar nas cidades e fingir-se de mercador, aproximando-se dos abastados e
convivendo com mercadores; para tanto, afetava bondade e fé, e em seguida
elaborava, cuidadosamente, uma artimanha, tomava-lhes dinheiro para os seus
gastos e se retirava para outro local. Permaneceu nessa situação por um bom
período de tempo, e então lhe ocorreu entrar em certa cidade, na qual vendeu
algumas mercadorias que levava consigo e fez amigos entre os mercadores dali,
pondo-se a conviver com eles, a frequentá-los e a convidá-los para a sua casa e
os seus serões, e também eles o convidaram para as suas casas. Ficou naquilo
por algum tempo até que resolveu sair da cidade; a notícia se espalhou entre os
seus amigos, que ficaram tristes com a separação; ele então escolheu o amigo
que tinha mais dinheiro e melhor situação: foi à sua casa, sentou-se com ele,
pediu-lhe algumas coisas emprestadas[313] e, quando se preparava para sair,
ordenou ao homem que lhe devolvesse “aquele depósito que deixei com você”.
O homem perguntou: “Qual depósito?”. O espertalhão respondeu: “Aquele saco
com mil dinares”. O homem perguntou: “E quando você me entregou esse
saco?”. O espertalhão respondeu: “Exalçado seja Deus magnífico! Porventura
não foi no dia tal, com a marca tal, que era assim e assado?”. O homem disse:
“Não sei nada disso”. A discussão se acalorou entre ambos, e em decorrência
também os demais presentes passaram a discutir aos brados, deixando a
vizinhança a par do que ocorria. O homem dizia: “Não sei do que se trata”, ao
passo que o espertalhão afirmou enfim: “Minha gente, este homem é meu amigo,
mercador dos mais acreditados,[314] com o qual deixei um depósito, mas ele
agora está negando. Depois dessa, em quem as pessoas vão acreditar?”. Os
circunstantes se agitaram e gritaram [em apoio ao espertalhão]: “Trata-se de um
homem que pratica o bem! Dele não conhecemos senão a lealdade, a
honestidade e o decoro. Possui inteligência e brios, e não alegaria absurdos, pois
nos tornamos seus companheiros e convivemos com ele; nós conhecemos a
verdade de sua fé!”;[315] alguns passaram a dizer ao mercador: “Fulano,
consulte a memória e lembre-se! É capaz de você ter esquecido!”, ao que ele
respondia: “Minha gente, não sei do que ele está falando, nem deixou nenhum
depósito comigo!”. Como a discussão se prolongasse, o espertalhão lhe disse:
“Estou de viagem e graças a Deus altíssimo possuo muito dinheiro, de modo que
tal quantia não me fará falta. Que você jure para mim, porém”.[316] As pessoas
disseram: “Este homem está sendo justo às próprias custas!”. O mercador então
ficou em situação constrangedora, próximo da punição e da má fama, mas um
seu amigo, que se arrogava sagacidade e inteligência, aproximou-se dele às
escondidas e lhe disse: “Deixe que eu arme um estratagema contra esse
espertalhão, a quem já conheço bem; trata-se de um mentiroso, e você,
inescapavelmente, está a ponto de lhe pagar o ouro, mas eu afastarei as suspeitas
e direi a ele: ‘O depósito está comigo, mas você se confundiu e imaginou que
estava com outro!’. Com isso, eu o afastarei de você”. O mercador respondeu:
“Faça-o e me livre da maldade e das suspeitas do povo”. O homem então se
voltou para o espertalhão e lhe disse: “Meu senhor, sou fulano! Você se
confundiu, pois o saco de dinheiro está comigo, você o depositou comigo! Este
xeique está inocente disso”. O espertalhão respondeu, com humor agudo e
irritação: “Exalçado seja Deus! Quanto ao saco que está com você, ó homem
livre e honesto, eu sei que está depositado com Deus! Minha alma está sossegada
a respeito, pois tal saco, estando com você, é como se estivesse comigo. Só
comecei falando do saco que está com este mercador por saber que ele cobiça o
dinheiro alheio!”. Então o homem ficou perplexo, parou e nada respondeu, e
ambos se limitaram a pagar-lhe cada qual mil dinares. O espertalhão ganhou dois
mil dinares e, quando ele partiu, o mercador voltou-se para o seu amigo sagaz e
inteligente e lhe disse: “Fulano, o nosso exemplo é o mesmo do falcão e do
gafanhoto”. [O amigo perguntou: “E como foi esse caso?”. Ele disse:][317]
O falcão e o gafanhoto
[Conta-se que um falcão construiu seu ninho nas proximidades de uma casa de
gafanhoto],[318] e este, orgulhoso com a sua proximidade, foi até ele,
cumprimentou-o e disse: “Meu senhor e senhor de todas as aves, estou orgulhoso
de sua proximidade, muito honrado em ser seu vizinho, e minha alma se
fortaleceu com a sua presença!”. O falcão lhe agradeceu por tais palavras e se
entabulou entre ambos uma amizade. Certo dia, o gafanhoto disse ao falcão: “Ó
senhor das aves, por que o vejo solitário e isolado, sem a companhia de um
amigo de sua espécie, uma ave com a qual fique sossegado nos dias de bonança
e a qual o apoie nos dias de dificuldade? Pois se costuma dizer que [é nos
momentos de maior potência do seu corpo e presença da sua força que o homem
mais necessita de um amigo que seja o fundamento de sua felicidade e o
sustentáculo do seu espírito, e no qual se apoie na dificuldade e na bonança].
[319] Eu, conquanto lhe deseje o bem que possa melhorar a sua situação, sou
incapaz de fazer o que minha alma gostaria; porém, por que não consente que eu
procure para você uma ave que lhe corresponda em corpo e força?”. O falcão
respondeu: “Pois eu lhe confiro tal prerrogativa e a você estou me confiando”.
Nesse momento, meu irmão, o gafanhoto foi até a sociedade das aves, mas nada
viu que se assemelhasse ao falcão em sua aparência e corpo, salvo um gavião, e,
supondo que fosse uma boa ave, apresentou-o ao falcão, ao qual aconselhou que
ficasse amigo dele.[320] Já ocorrera de o falcão adoecer, e o gafanhoto ficara
com ele por algum tempo, até que se curou, recuperou e fortaleceu, e ele lhe
agradeceu pelo favor; alguns dias depois daquilo,[321] o falcão teve uma recaída
e precisou da ajuda do gavião; o gafanhoto saiu, ausentou-se por um dia e voltou
com outro gafanhoto. Quando o falcão olhou para ele, o gafanhoto lhe disse:
“Foi isso que eu lhe trouxe”, e o falcão o recompensou e disse: “Você fez uma
bela busca e foi gentil na escolha”.
[Prosseguiu o mercador:] “Isso tudo, meu amigo, e se tratava de um
gafanhoto, que desconhece as essências que se ocultam nos corpos
esplendorosos. Mas, no seu caso, meu amigo, rogo a Deus que bem o
recompense, pois você foi gentil e cuidadoso em fazer a artimanha...”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]917ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
O mercador disse:] “... mas a precaução não evita o destino: é a predestinação
que derrota a prevenção. Como são boas as palavras do poeta que disse os
seguintes versos:

‘Às vezes escapa o cego de um buraco
no qual despenca o lúcido clarividente;
ou escapa o ignorante de uma palavra dita
na qual tropeça o sapiente habilidoso;
ou sofre o crente para obter seu ganha-pão
enquanto o celerado ímpio é premiado.
Qual o ardil do espertalhão, dentre tantos?
Tal é a predeterminação de quem tudo pode’”.[322]

[Prosseguiu o vizir:] “E essa, ó rei do tempo, não é mais insólita nem mais
espantosa que a história do rei e da esposa de seu secretário, essa sim mais
insólita e mais emocionante”. Tendo ouvido aquela história, fortaleceu-se a
disposição do rei de perdoar o vizir e abandonar o açodamento em um assunto
do qual ele não tinha certeza; tratou-o com gentileza e ordenou-lhe que fosse
para a sua casa; quando anoiteceu, mandou chamá-lo e lhe pediu para ouvir a
história. O vizir disse: “Ouço e obedeço”.

Vigésima quarta noite do mês
O rei e a esposa de seu secretário[323]
Saiba, ó rei venturoso, que havia, em tempos remotos e épocas e períodos
passados, certo rei da Pérsia que era apaixonado pelo amor das mulheres.
Falaram-lhe então da esposa de um de seus secretários, a qual tinha beleza e
formosura, esplendor e perfeição, e isso o levou a ir visitá-la. Ao vê-lo, a mulher
reconheceu-o e perguntou: “O que leva o rei a fazer isso?”. Ele respondeu:
“Tenho por você uma enorme afeição, e é absolutamente imperioso possuí-la!”, e
lhe deu dinheiro em quantidade tal que satisfaria qualquer mulher. Ela disse:
“Não posso fazer o que o rei está dizendo, por temor ao meu marido”, e,
evitando-o da maneira mais vigorosa, não se submeteu. O rei saiu tão
encolerizado que esqueceu o seu manto na casa. Coincidiu então que o marido
chegou logo após a saída do rei e, vendo o manto, reconheceu-o. Sabedor do
amor do rei pelas mulheres, perguntou à esposa: “O que é isto que estou vendo
aqui?”. Ela respondeu: “Eu lhe direi a verdade”, e lhe contou a história. O
homem não acreditou, e a dúvida invadiu o seu coração. Quanto ao rei, ele
passou a noite preocupado e triste, e, quando amanheceu, mandou chamar aquele
secretário, a quem encarregou de uma das províncias, ordenando-lhe que fosse
para lá, confiante em que, se o homem saísse e se afastasse, poderia juntar-se à
sua esposa. Sagazmente, o secretário atinou com o seu objetivo e lhe disse:
“Ouço e obedeço”, e continuou: “Sairei, arrumar-me-ei, recomendarei as coisas
de que preciso e, em seguida, me dirigirei para onde o rei ordenou”. O rei lhe
disse: “Faça isso depressa”. O secretário foi arrumar as coisas das quais
precisava, reuniu os parentes de sua esposa e disse: “Estou disposto a largar a
minha mulher”. Suspeitosos, os parentes queixaram-se dele ao rei, que o
convocou junto com os queixosos à sua presença, e então todos se puseram a
discutir. Sem saber direito o que sucedera, o rei perguntou ao secretário: “Por
que você vai deixá-la? Como pode se permitir isso? Ir a uma terra imaculada e
depois abandoná-la?”. O secretário respondeu: “Deus dê prosperidade ao rei! Por
Deus, ó rei, que vi nessa terra rastros de leão, que temo me devore caso eu entre
nela. O meu caso e o dela, o exemplo do que aconteceu entre nós, é como o da
velha e da esposa do mercador de tecidos”. O rei lhe perguntou: “Como foi essa
história?”. O secretário respondeu:
A velha e a esposa do mercador de tecidos[324]
Saiba, ó rei, que certo mercador de tecidos tinha uma esposa bela, protegida e
casta, a qual foi um dia vista, ao sair do banho público, por um rapaz, que se
apaixonou e teve seu coração invadido por ela, pondo-se então a tentar todas as
artimanhas para conquistá-la. Quando se cansou, e sua paciência se esgotou, e
sua firmeza o traiu, já sem ter à mão nenhuma artimanha, queixou-se a uma
velha de mau agouro que prometeu reuni-lo à mulher; o rapaz agradeceu e
assegurou que lhe daria muitos presentes. A velha disse: “Vá até o marido dela e
compre uma roupa luxuosa”. Então ele foi até o mercador, comprou um turbante
de linho com fios de ouro e o levou para a velha, que o pegou e, após queimá-lo
em dois lugares, levou-o, vestida com a roupa dos ascetas piedosos, à casa do
mercador, em cuja porta bateu. Ao vê-la naqueles trajes, a mulher do mercador
abriu, recepcionando-a magnificamente e dando-lhe boas-vindas. A velha entrou,
conversou com a mulher por algum tempo, e disse enfim: “Quero abluir-me para
as preces!”. A mulher lhe trouxe água, a velha se abluiu e foi rezar; ao concluir,
largou o turbante no local onde rezara e partiu. O mercador chegou à sua casa
após a partida da velha, já na hora da prece vespertina, indo rezar no mesmo
local onde a velha rezara, e ali, aguçando o olhar, viu o turbante e o reconheceu.
Como o caso lhe provocasse suspeitas, a cólera transpareceu em seu rosto e,
irritado com a esposa, tratou-a com rispidez, ficando o resto do dia e da noite
sem lhe dirigir a palavra – isso tudo sem a mulher compreender por que o
marido se encolerizara. Então, ela olhou bem e viu, diante do marido, o turbante
com marcas de queimadura.
Disse o narrador: assim, ela deduziu que o marido não se encolerizara senão
por causa do turbante, isto é, passou a achar que o motivo eram tais
queimaduras. Quando amanheceu, tão logo o mercador, ainda encolerizado, saiu,
a velha retornou e, vendo a mulher com a cor alterada, a face empalidecida, e o
coração e o ânimo abatidos, [perguntou-lhe: “Por que a vejo assim, a cor alterada
e o coração abatido, minha filhinha?”, e então a jovem lhe falou a respeito da
cólera do marido e de sua causa. A velha agourenta disse:][325] “Não se
entristeça, minha filha, pois tenho um filho cerzidor, e ele – por vida sua! – irá
cerzir o turbante e deixá-lo como era”. Contente com aquelas palavras, a mulher
perguntou: “E quando será isso?”. A velha respondeu: “Amanhã, se Deus
altíssimo quiser, eu lhe trarei o meu filho na hora da saída de seu marido; ele
cerzirá o turbante e se retirará imediatamente”, e, após fazer uns agrados à
jovem, foi embora, dirigindo-se para a casa do rapaz, a quem informou de tudo.
Depois, ela o levou, pela manhã, para diante da casa do mercador – o qual,
quando vira o turbante, decidira separar-se da esposa, e só não o fizera de
imediato para ter tempo de reunir o valor do dote e um pouco mais, por temor
aos pais dela. Assim, quando ela bateu e a mulher lhe abriu a porta naquele dia, a
velha agourenta, acompanhada do rapaz, entrou dizendo: “Vá, traga o turbante
para cerzir e entregue-o ao meu filho”, e fechou a porta com ambos lá dentro. O
rapaz agarrou a mulher, submeteu-a, nela se satisfez e foi embora. A velha disse
à mulher: “Saiba que aquele é meu filho, que a amava imensamente, tanto que
quase a vida lhe feneceu por sua causa, pelos anseios dele por você! Tramei
então esta artimanha e provoquei isso; o turbante não pertence ao seu marido,
mas sim ao meu filho. Agora, que já atingi meu objetivo, deixe-me elaborar uma
artimanha contra o seu marido para a reconciliação, e assim você deverá
obediência a mim e ao meu filho”.[326] A mulher respondeu:[327] “Sim, faça-
o”. A velha foi até o rapaz e lhe disse: “Saiba que eu já arranjei[328] o seu caso
com ela. Vá até o mercador, comece a falar-lhe a respeito do turbante e, quando
eu passar, levante-se e me segure para que eu providencie a reconciliação entre
ele e a esposa”. O rapaz foi então para a loja do mercador, sentou-se lá dentro e
lhe perguntou: “Sabe o turbante que comprei de você?”. O mercador respondeu:
“Sei”. O rapaz perguntou: “Sabe o que lhe aconteceu?”. O mercador respondeu:
“Não”. O rapaz disse: “Comprei-o de você, fui aplicar incenso e sucedeu que ele
se queimou em dois lugares, nos quais ficaram dois furos. Então o peguei e
entreguei a uma mulher cujo filho me disseram ser cerzidor; ela levou o turbante
e partiu, e agora não sei onde encontrá-la”. Ao ouvir aquilo, o mercador ficou
desconfiado, espantou-se com a história do turbante e tranquilizou-se a respeito
da esposa; não demorou e a velha mãe do cerzidor passou por ali, e o rapaz
ergueu-se de supetão, segurou-a e exigiu o turbante. A velha lhe disse: “Saiba
que entrei em certa casa, fiz abluções, rezei no tapete [da dona da casa, ali
esqueci o turbante][329] e saí; como eu não conhecia a casa onde rezei, não
consegui localizá-la; eis-me aqui, agora, vagando todo dia até o anoitecer para,
quem sabe, achar a casa, cujo dono não conheço!”. Quando ouviu as palavras da
velha, o mercador disse a ela: “Pois então Deus já lhe devolveu o que você
perdeu! Alvíssaras, porque o turbante está comigo em minha casa”, e, pondo-se
de pé imediatamente, entregou-lhe o turbante tal como estava...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]918ª noite
[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
O secretário disse:]
... e a velha entregou-o ao rapaz. O mercador fez as pazes com a esposa, a
quem deu roupas e joias para contentá-la e agradá-la.
[Prosseguiu o vizir:] Ao ouvir essa história de seu secretário, o rei se
envergonhou, acabrunhou e lhe disse: “Continue servindo, conforme o seu
hábito, e habite a sua terra, pois o leão esteve lá mas não a corrompeu, e a ela
nunca mais retornará”. E lhe deu um valioso presente. Satisfeito, o homem
regressou para a mulher, com a qual passou a viver sossegado, e recebeu,
contente, os seus familiares.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história, ó rei, não é mais espantosa nem mais
insólita que a da bela e graciosa mulher mimada e o homem de horrenda
aparência”. Após ter ouvido a história anterior, o rei a considerou curiosa e bela,
determinando ao vizir que se retirasse para casa, onde ele permaneceu o dia
inteiro. Quando se findou a tarde, o rei mandou chamá-lo e lhe ordenou que a
contasse. O vizir disse: “Sim”.

Vigésima quinta noite do mês[330]
A bela mulher e o homem feio
Saiba, ó rei, que certo homem árabe tinha vários filhos, entre os quais um
menino de aparência tão bela e formosa como nunca se vira, e tampouco
inteligência tão perfeita. Quando ele atingiu a força de homem, o pai casou-o
com uma prima cuja beleza não era nenhum esplendor, nem louváveis as suas
características; por isso, não agradou ao rapaz, o qual, porém, se resignou a
aceitá-la em virtude dos laços de parentesco. Certo dia, ele saiu no encalço de
um seu camelo que se extraviara, e ficou nisso durante o dia inteiro e a noite.
Quando escureceu, foi hospedar-se na casa de um árabe daquela vila, sendo
recebido por um homem de baixa estatura e feia aparência, que o cumprimentou
e acomodou ao lado da tenda, sentando-se e travando com ele a melhor das
conversas. Quando a refeição ficou pronta, a mulher veio servi-la. O rapaz olhou
para a dona da casa, e viu uma aparência que mais formosa não havia! Tamanha
beleza e formosura o deixaram tonto,[331] bem como seu talhe e estatura!
Permaneceu assim embasbacado a olhar ora para ela, ora para o marido, e, como
isso se prolongasse, o homem lhe perguntou: “Ó filho de gente generosa, ocupe-
se de seu jantar,[332] pois esta mulher e eu temos uma história espantosa, mais
formosa que a formosura que você vê nela. Eu lhe contarei essa história assim
que terminarmos de comer”. Quando enfim concluíram a refeição, o rapaz lhe
pediu a história e o homem lhe disse:
Saiba que em minha juventude eu já era assim feio, de horrível aparência, e
tinha irmãos que eram gente da maior formosura, motivo pelo qual meu pai os
preferia a mim, os tratava melhor que a mim, e me atribuía serviços inferiores
aos deles, tal como atribuía aos escravos. Certo dia, uma camela do rebanho de
meu pai se extraviou, e ele me disse: “Vá procurá-la, e não volte senão com
ela!”. Retruquei: “Mande algum outro dos seus filhos”, mas ele não o fez e me
tratou com rispidez, insistindo até chegar ao ponto de pegar um chicote e me
surrar com ele; corri então para um dos seus animais de viagem, montei nele e
saí em disparada, fazendo tenção de viver nos desertos e não mais retornar para
o meu pai. Avancei por aquela noite e anoiteci junto à família desta que agora é
minha esposa, cujo pai me hospedou; era um velho entrado em anos, e, passada
metade da noite, levantei-me para satisfazer as minhas necessidades, sendo então
seguido por cachorros, sem que ninguém soubesse nada a meu respeito, com
exceção desta mulher; os cachorros me estranharam e me perseguiram até que
caí de costas em um buraco cheio de água, profundo, e um dos cachorros caiu
comigo. Naquele tempo, esta mulher era uma jovem solteira, muito forte e ativa,
e, condoída de minha situação, foi até mim com uma corda e me disse: “Agarre-
a!”. Agarrei a corda e nela me prendi, mas, quando se aproximou e eu puxei a
corda, ela caiu junto comigo no buraco, e ali passamos a ser três:[333] ela, eu, e
o cachorro. Quando amanheceu e não a viram, seus pais começaram a procurá-la
pela vila, mas não a encontraram. Dando também por minha falta, presumiram
que havíamos fugido juntos. Ela tinha quatro irmãos semelhantes a águias, que
montaram em seus cavalos e se espalharam à nossa procura. Passada a manhã, o
cachorro começou a latir, e os outros cachorros a responder-lhe e a se aproximar,
parando na beira do buraco e ganindo para ele. Ao ouvir o latido dos cachorros,
o velho xeique caminhou em sua direção, até parar na beira do buraco...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]919ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
... e ao chegar ali viu algo espantoso. Era um homem corajoso, ajuizado, um
xeique experimentado com as coisas; trouxe cordas e nos retirou todos dali;
perguntou-nos sobre nosso estado, e ela lhe contou a história de cabo a rabo. O
velho chorou[334] e se pôs a refletir; quando os irmãos retornaram, relatou-lhes
o caso de cabo a rabo e disse: “Saibam, meus filhos, que a sua irmã não
pretendeu senão fazer o bem. Se acaso vocês matarem este homem, [que é seu
hóspede],[335] estarão granjeando para si a infâmia eterna, cometendo uma
injustiça com ele, consigo mesmos e com sua irmã. Não existe motivo claro que
imponha a sua morte. Trata-se de uma coincidência, e não se pode negar a
ocorrência de outras iguais a ela”; em seguida, voltou-se para mim e me indagou
a respeito de minha origem, e eu lhe tracei minha árvore genealógica. Ele disse:
“Um nobre par, e ajuizado!”, e me ofereceu casamento com a filha, ao que
respondi positivamente; o velho então a casou comigo e fui morar com ele; Deus
altíssimo abriu diante de mim as portas do bem e da fortuna, tanto que me tornei
o homem mais rico da vila; louvado seja Deus pelas benesses que me concedeu!
[Prosseguiu o vizir:] Impressionado com a sua história, o rapaz dormiu ali e,
pela manhã, encontrou o seu camelo extraviado, capturou-o e retornou [aos seus
pais],[336] informando-os o que vira e o que lhe sucedera.
[Prosseguiu o vizir:] “E essa história não é mais espantosa nem assombrosa
que a do rei que perdeu o reino, o dinheiro, a esposa e os filhos, e depois Deus os
recuperou para ele, compensando-o com um reino mais poderoso, melhor, mais
admirável, rico e altivo”. Admirado com aquilo, o rei ³åh Ba¿t lhe ordenou que
se retirasse para casa, e, quando anoiteceu, mandou chamá-lo e determinou que
lhe contasse a história do rei que perdera o reino, a esposa e o dinheiro. O vizir
Rahwån disse: “Ouço e obedeço”.

Vigésima sexta noite do mês
O rei que tudo perdeu e depois recuperou
Saiba, ó rei, que houve certo rei da Índia, de bom proceder e métodos louváveis,
justo com os seus súditos, generoso com as pessoas de saber, piedade, ascetismo,
adoração e fé, e esquivo aos corruptos, ignorantes e traidores. Ele permaneceu
nessa conduta em seu reino por tantos dias, meses e anos quantos quis Deus
altíssimo, e se casou com uma prima sua dotada de beleza, formosura, esplendor
e perfeição, pertencente à casa real, de boa vida e bem tratada, que logo lhe deu
dois varões que eram os mais belos. Veio então o que estava decretado e não
pode ser obstado: Deus altíssimo lhe enviou outro rei que lhe atacou o país,
recebendo apoio, entre o seu povo, daqueles que apreciavam o mal e a
corrupção, e com essa gente o agressor se fortaleceu contra o rei e lhe
conquistou o reino, derrotando-lhe os exércitos e matando-lhe os soldados. O rei
pegou a esposa e os dois filhos, recolheu tudo quanto pôde e escapou para salvar
a vida, fugindo no meio da noite turva sem saber para onde se dirigir. Após um
bom tempo em marcha, foi surpreendido no caminho por alguns ladrões que
levaram tudo quanto ele e os seus carregavam, a ponto de não deixá-los senão
com as roupas, abandonando-os sem suprimentos nem cavalo nem montaria. A
família prosseguiu a caminhada até se aproximar de um bosque de árvores, para
chegar até o qual se impunha atravessar um braço de mar que se interpunha entre
eles. Como fossem pouco profundas tais águas, ele carregou um dos filhos,
atravessou-as e o deixou do outro lado; voltou, pegou o outro filho, atravessou as
águas e o deixou ao lado do irmão, voltando para pegar a mãe deles, à qual
carregou e atravessou; quando chegou, porém, não encontrou as crianças; olhou
para o centro da ilha e viu um velho e uma velha que tinham construído para si
uma cabana; deixou a esposa com eles e saiu em busca dos filhos, mas deles não
obteve notícia; procurou à direita e à esquerda, e não os viu em lugar nenhum.
Isso foi o que aconteceu com ele. Quanto aos meninos, ambos se haviam
embrenhado para urinar no bosque, cujo arvoredo era tão espesso que qualquer
um nele se perderia,[337] e dele não se distinguia começo nem fim. Os meninos
entraram, não souberam voltar, e se perderam naquele bosque graças a algo que
Deus altíssimo desejava. O pai procurou por eles e, não os encontrando, retornou
para junto da esposa e começaram a chorar a perda dos filhos. E o que sucedeu
aos dois meninos foi que, quando entraram para urinar no bosque, e foram por
ele engolidos, ficaram vagando por dias e dias, sem saber por onde haviam
entrado, até que saíram do lado oposto.[338] Já os seus pais permaneceram na
ilha junto com o casal de velhos,[339] e passaram a se alimentar de suas frutas e
a beber da água de seus rios, até que, [certo dia, estando ambos sentados, eis que
atracou na beira da ilha, para se abastecer de água, um navio cujos tripulantes os
viram e lhes dirigiram a palavra. O navio pertencia a um mago, bem como toda a
sua carga, com as suas bagagens e bens, pois ele era mercador e viajava pelos
países. O velho da ilha, iludido pela cobiça, subiu a bordo e falou ao dono do
barco a respeito da esposa do rei, descrevendo-lhe a sua beleza de modo tal que
ele a desejou ardentemente, e sua alma o levou a cogitar traição e ardis contra
ela, a fim de tomá-la do esposo,][340] para tanto lhe enviando um mensageiro,
que disse: “Temos conosco no navio uma mulher grávida, e receamos que ela dê
à luz esta noite! Você tem conhecimento de parto?”. Ela respondeu: “Sim”. No
final do dia, o mago lhe determinou que subisse a bordo para fazer o parto da
mulher, cuja hora chegara, e lhe garantiu roupas e comissão. A esposa do rei
subiu a bordo de boa vontade e coração tranquilo, bem como o de seu marido,
[341] mas, quando se viu lá dentro, as velas foram erguidas e estendidas e o
navio zarpou. O rei gritou, a sua esposa chorou e tentou se atirar ao mar, mas o
mago ordenou aos criados do navio que a detivessem, e eles assim agiram. Não
passou nem uma hora e já a noite escurecia e o barco desaparecia das vistas do
rei, que desmaiou de tanto chorar e se afligir; passou a noite chorando pela
mulher e pelos filhos, e, quando amanheceu, compôs e pôs-se a recitar os
seguintes versos:
“Ó destino, quanto injustiças e agrides!
Dize-me: ainda tens algo contra mim?
Eis-me aqui, depois da partida de todos os meus amados,
com os quais partiu minha felicidade:
foram-se todos no mesmo dia.
A pureza de minha vida se turvou com a separação dos amados!
Por Deus que eu não lhes sabia o valor,
nem o valor de estar junto deles!
Então nos separamos, e meu coração lavra a chama do meu
[sofrimento!
Não esqueço o dia em que partiram,
deixando-me para trás, sozinho,
chorando, com minha solidão e meu sofrimento!
Dize-me e me responde, se acaso
meus ouvidos voltarem a ouvir:
a voz do mensageiro anuncia o retorno dos ausentes!
Esfregarei o rosto na terra onde pisarem,
direi à minha alma: sossega, eles voltarão;
não me censures o coração por sua ausência,
pois eu o rasguei antes de rasgar as roupas!”.

[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida. Sua
irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]920ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O rei chorou até o amanhecer a separação de sua mulher e de seus filhos, e saiu
vagando sem rumo, sem saber como agir, não parando de caminhar pela praia
por dias e noites, sem saber para onde se dirigir, nem comer comida nenhuma,
salvo plantas rasteiras, nem ver pessoa nenhuma, animal ou o que quer que seja,
até que a caminhada o conduziu ao alto de uma montanha,[342] e ali o rei
permaneceu sozinho, alimentando-se de suas frutas e bebendo de sua água.
Depois, desceu da montanha, caminhou por três dias, passando por vilas e
povoados, e não interrompendo a marcha até topar com uma enorme cidade
situada à beira-mar, diante de cujo portão chegou ao final do dia, motivo pelo
qual os porteiros não lhe permitiram entrar; passou aquela noite esfomeado e
amanheceu [sentado diante de uma loja][343] nas proximidades do portão. O rei
daquela cidade morrera sem deixar herdeiro, e a população divergira em dizeres
e opiniões sobre quem o substituiria, a tal ponto que uma guerra civil estava a
pique de eclodir por aquele motivo. Agora, porém, haviam entrado em acordo,
decidindo que o novo rei, inconteste, seria aquele por quem se afeiçoasse o
elefante deixado pelo falecido rei. Juraram aquilo e, pela manhã, exibiram o
elefante e levaram-no para fora da cidade; não restou um único homem ou
mulher que não comparecesse. Eles encheram o elefante de atavios, colocaram o
trono em seu dorso, a coroa em sua tromba, e o animal começou a examinar as
faces dos presentes, mas não parou diante de nenhum, até chegar àquele rei
solitário e estrangeiro que tinha perdido a esposa e os filhos: prosternou-se
diante dele, cingindo-lhe a coroa na cabeça, e ergueu-o, depondo-o em seu
dorso; então, todas as pessoas se prosternaram e trocaram alvíssaras [na
expectativa da justiça],[344] e foram tocados diante dele os instrumentos que
anunciavam a boa-nova. O rei entrou na cidade, dirigiu-se até o palácio da
justiça e ao saguão do palácio, alojou-se no trono real com a coroa na cabeça, e
as pessoas entraram para lhe dar congratulações e rogar por ele. Então, conforme
seu costume, ele começou a atender aos pedidos que lhe eram encaminhados
pela população, a organizar os soldados conforme suas patentes e a contemplar-
lhes os interesses, bem como de todos os demais súditos; libertou prisioneiros,
eliminou impostos, distribuiu trajes honoríficos, fez doações, deu presentes,
aproximou de si os comandantes, vizires e mestres de ofícios, e recebeu os
secretários e representantes. Muito contente com ele, a população da cidade
disse: “Esse não era senão um dos maiores reis!”. Em seguida, ele mandou
chamar os sábios, os letrados e os descendentes de reis, com os quais conversou
e aos quais apresentou questões e indagações, pesquisando com eles muitos
assuntos relativos a todas as artes, o que indicou a legitimidade de sua posição
real. Também os questionou sobre obscuridades e verdades a respeito das
religiões e das leis do reino e das políticas, sobre o que deve fazer o rei, como
estudar a situação dos súditos, e afastar o inimigo e suas astúcias na guerra. Com
isso, a felicidade e o júbilo das pessoas aumentou com o presente que Deus
altíssimo lhes fizera mediante a entronização daquele homem como rei, que
cuidou bem dos assuntos do reino, e a situação se estabilizou em virtude das leis
satisfatórias. O rei anterior tinha uma mulher, uma irmã e uma filha, e pretendia-
se casar alguma delas com ele, a fim de que o reino não saísse das mãos da casa
reinante; portanto, ofereceram-lhe casar-se com uma dessas parentas do rei
anterior,[345] e então ele se comprometeu a fazê-lo mais tarde e se afastou delas,
temendo romper o compromisso com a sua prima, para a qual jurara que não se
casaria com outra. Pôs-se a rezar durante o dia e a ficar acordado à noite, a
distribuir muitas esmolas e a rogar a Deus exalçado e altíssimo que o reunisse
aos filhos e à esposa. Deu-se então que, após um ano, arribou à cidade um navio
com mercadores e muitas mercadorias. Era costume naquela cidade, quando
aportava algum navio, que o rei enviasse os seus criados de confiança para
inspecionar as mercadorias que lhe seriam oferecidas, e somente depois disso lhe
eram levadas: o que lhe servisse era comprado, e o que não servisse recebia
permissão para ser vendido à população. Seguindo esse costume, ele enviou
alguém para inspecionar as mercadorias e marcá-las com o sinete real, deixando
um criado encarregado de vigiá-las. Quanto à sua prima,[346] o mago, depois do
sequestro, tentou conquistá-la e lhe ofereceu muito dinheiro, mas ela o rechaçou
e quase se matou de desespero, pelo que lhe sucedera, e tristeza, pela separação
de seu primo; parou de comer e de beber e, como manifestasse o propósito de se
atirar na água, o mago acorrentou-a firmemente, obrigou-a a vestir uma túnica de
lã, e lhe disse: “Vou maltratá-la e humilhá-la até que você me obedeça e agrade”,
mas ela teve paciência e considerou que Deus altíssimo a salvaria das mãos
daquele maldito; forçada, viajou com ele de terra em terra, até que chegaram
àquela cidade cujo rei era o seu marido. As mercadorias do mago foram
marcadas com o sinete real, e a mulher fora enfiada em uma de suas caixas. Dois
dos criados do rei que falecera, e que agora serviam ao novo rei, tinham sido
encarregados de vigiar o barco e as mercadorias; quando escureceu, puseram-se
a conversar sobre o que lhes sucedera durante a infância, e como o seu pai e a
sua mãe haviam saído de seu país e reino quando este fora conquistado pelos
perversos, e como haviam se perdido no bosque, e como o destino os separara de
seus pais; enfim, conversaram sobre a sua história de cabo a rabo, e, ao ouvi-la, a
mulher, percebendo que se tratava dos seus filhos, gritou de dentro da caixa: “Eu
sou fulana, mãe de vocês, e o sinal entre nós é assim e assado”, e então eles
reconheceram o sinal, atiraram-se à caixa, quebraram-lhe os cadeados e
retiraram a mãe, a qual, vendo-os, estreitou-os ao peito, e ambos caíram sobre
ela; desmaiaram todos, e, quando acordaram, choraram por algum tempo;
espantadas com o que viam, as pessoas os rodearam, perguntando qual era a
história, e os dois rapazes, filhos do rei, tomaram a iniciativa de contá-la aos
circunstantes. O mago chegou e, ao ver aquilo, prorrompeu em gritos e lamúrias,
perguntando aos rapazes: “Por que motivo quebraram a minha caixa? Eu tinha
dentro dela joias que vocês roubaram. Esta é minha criada, que tramou com
vocês tal artimanha para tomar o meu dinheiro”. Em seguida, rasgou as roupas e
pediu socorro dizendo: “Recorremos a Deus e ao rei justo, que me salvará destes
dois rapazes opressores!”. Eles responderam: “Ela é nossa mãe, e você a
sequestrou!”. A discussão aumentou entre eles e os circunstantes também
discutiram, dando início ao disse me disse sobre a mulher, os rapazes e o mago;
a coisa se acirrou a tal ponto que eles foram levados até o rei, e, quando se viram
em sua presença, explicaram a história a ele e aos circunstantes. O rei lhes ouviu
as palavras, reconheceu-os, e seu coração quase voou de alegria; a lágrima saltou
de seus olhos ao observar os filhos e a esposa, e ele agradeceu a Deus altíssimo e
o louvou por tê-lo reunido aos seus; [controlando-se,][347] ordenou aos
presentes que se retirassem, e que o mago, a mulher e os dois rapazes
permanecessem no depósito real, cuidando de tudo quanto ali havia, até que
Deus bem fizesse amanhecer e viessem juiz, árbitros e testemunhas idôneas, a
fim de que se julgasse o caso conforme a nobre lei, tudo na presença de quatro
juízes.[348] Eles assim procederam, e o rei passou aquela noite a rezar e louvar a
Deus altíssimo pelos bens que lhe concedera: reino, poder e reencontro com
aqueles cuja perda o angustiava.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]921ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O rei passou a noite agradecendo a Deus altíssimo, que o reunira aos seus, e,
quando amanheceu, ele convocou juízes, representantes da justiça e testemunhas
idôneas; chamou o mago, os dois rapazes e sua mãe, e os indagou sobre a
história deles. Os dois rapazes deram início e disseram: “Somos filhos do rei
fulano, e, como o reino foi conquistado por inimigos perversos, nosso pai nos
pegou e fugiu conosco por medo aos inimigos”, [e narraram toda a sua história
até chegar à caixa na qual a mãe estava presa].[349] O rei disse: “Vocês
relataram algo espantoso. O que sucedeu ao seu pai?”. Responderam: “Não
sabemos o que o tempo fez dele depois que nos perdemos”. O rei se calou e, em
seguida, dirigiu-se à mulher, a quem perguntou: “E o que diz você?”. A mulher
lhe explicou a sua história, o que sucedera a ela e ao marido, de cabo a rabo,
contando inclusive a história do casal de velhos que vivia à beira-mar, bem como
a artimanha que o mago entabulara contra ela, levando-a para o navio, e as
humilhações e os castigos que padecera. Tudo isso ocorria com os juízes,
árbitros e representantes da justiça ouvindo tudo. Ao ouvir o fim da história de
sua mulher, o rei lhe disse: “Sucederam-lhe coisas terríveis! Por acaso você sabe
o que fez seu marido, e o que lhe sucedeu?”. Ela respondeu: “Não, por Deus que
dele não tenho notícia; só sei que não deixo de fazer meus bons rogos por ele
uma hora que seja, e, enquanto eu viver, não deixarei o pai dos meus filhos, filho
do meu tio paterno, minha carne e meu sangue!”, e chorou. O rei abaixou a
cabeça e os seus olhos marejaram sob o efeito daquela história; em seguida,
ergueu a cabeça na direção do mago e lhe disse: “Conte você, agora”. O mago
disse: “Essa aí é minha criada, que comprei com meu dinheiro no país tal por
tantos dinares, fiz dela minha concubina e, apaixonado, dei-lhe acesso ao meu
dinheiro, mas ela me traiu e concertou meu assassinato com um criado meu,
seduzindo-o com a promessa de que se tornaria sua esposa; quando tomei ciência
disso, e me assegurei da traição que se dispunha a praticar, despertei e lhe fiz o
que fiz, por temor à minha vida, à sua traição e perfídia, à sua língua trapaceira,
com a qual ela ensinou a esses dois rapazes as alegações que apresentaram! Tudo
artimanha e perfídia da parte dela, e cinismo! Não se iludam com essa mulher,
nem com as suas palavras!”. O rei lhe disse: “Você mente, seu maldito!”, e
ordenou que fosse preso e acorrentado; em seguida, voltou-se para os dois
rapazes, seus filhos, estreitou-os ao peito e chorou copiosamente, dizendo: “Ó
juízes aqui presentes, idôneas testemunhas e povo deste reino, saibam que estes
são meus filhos e ela é minha esposa e prima. Eu era rei lá para os lados de tal e
tal”, e contou-lhes a sua história do começo ao fim, e agora a repetição não trará
nova informação; as pessoas prorromperam em choros e lamentos pela
enormidade do que ouviram, pelas espantosas coincidências dessa insólita
história. A esposa do rei foi conduzida à residência real, e ele cobriu-a e aos
filhos de boas e adequadas benesses; as pessoas se puseram a rogar por ele e a
felicitá-lo pelo retorno da esposa e dos filhos, e, quando concluíram os rogos e as
felicitações, pediram ao rei que fosse rápido na punição ao mago, uma punição
humilhante que lhes satisfizesse a sede de vingança contra ele por meio de
castigos e humilhações. O rei então se comprometeu a marcar um dia no qual
todos se reuniriam para presenciar o castigo e as punições que o mago sofreria;
depois, ficou a sós com a mulher e os filhos.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]922ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Durante três dias o rei ficou a sós com a mulher e os filhos; mantiveram-se
isolados das pessoas, e, no quarto dia, ele foi ao banho, saiu, e se sentou no trono
do reino. As pessoas foram então entrando segundo sua categoria e posição;
seguindo o hábito, os comandantes, vizires, secretários, representantes, notáveis
do governo, falcoeiros, mestres de ofício e chefes de polícia.[350] Sentado no
trono, coroa na cabeça, o rei colocou um filho à sua direita e outro à sua
esquerda, e todos se sentaram diante dele e alçaram as vozes agradecendo a Deus
altíssimo e enaltecendo-o, e fizeram longos rogos pelo rei, citando as suas
virtudes e os seus méritos; ele lhes respondeu da melhor maneira, e ordenou que
o mago fosse conduzido para fora da cidade e colocado em um elevado banco
que se construíra para ele; disse então às pessoas: “Eis-me aqui aplicando-lhe as
mais diversas espécies de sofrimento”, e se pôs a contar aos presentes as
artimanhas que o mago fizera contra sua prima, provocando a separação entre
ela e seu marido, e como tentou seduzi-la, e ela se fortaleceu contra ele em Deus
poderoso e excelso, preferindo a humilhação à obediência, apesar da dureza do
castigo, e sem se importar com o dinheiro, as roupas e as joias que ele lhe
oferecia. Quando concluiu a sua história, o rei determinou que os presentes
cuspissem no rosto do mago e o amaldiçoassem, e eles assim agiram; em
seguida, ordenou que a sua língua fosse arrancada; no segundo dia, que as suas
orelhas e o nariz fossem cortados, e os olhos, arrancados; quando foi o terceiro
dia, mandou que lhe decepassem as mãos, e, no quarto dia, os pés; e não parou
de retalhá-lo, membro por membro, e atirar cada membro cortado ao fogo – com
o mago observando-o –,[351]a até que seu sopro vital se extinguiu, depois de ele
ter experimentado várias formas e espécies de sofrimento; ao cabo, o rei ordenou
que o cadáver fosse pendurado na muralha da cidade por três dias, findos os
quais mandou que fosse queimado, e suas cinzas pulverizadas e lançadas ao
vento. Em seguida, o rei mandou chamar o juiz e as testemunhas idôneas, e
ordenou que se efetuasse o casamento da filha e da irmã do rei morto com seus
filhos, e as entregou a eles depois de fazer-lhes um banquete de três dias, e elas
foram exibidas para eles desde o anoitecer até o amanhecer; ambos as
possuíram, desvirginaram-nas, engravidaram-nas, e foram por elas agraciados
com filhos; o rei, pai deles, ficou com a esposa, sua prima, mãe dos dois, pelo
tempo que quis Deus poderoso e excelso, ambos felizes por se terem reunido; o
reino permaneceu em suas mãos, bem como o poder e o auxílio divino, e o rei
governou com justiça e equanimidade – sendo amado pelos súditos, que
rogavam a Deus para que ele e seus filhos se mantivessem por longo tempo –, e
todos levaram a vida mais feliz, até que lhes sobreveio o destruidor dos prazeres,
dispersador das comunidades, destruidor dos palácios e construtor dos túmulos.
[Prosseguiu o vizir:] “É isso que chegou a nós da história do rei, de sua
mulher e de seus filhos. E se porventura ela é deleite e recreio, não é mais
deleitosa nem recreativa que a do rapaz de ¿uråsån, sua mãe e sua irmã”. Quando
ouviu a história, que o agradou, o rei ³åh Ba¿t ordenou que o vizir se retirasse
para casa, e, no final da tarde do dia seguinte, mandou que fossem buscá-lo, e,
quando ele chegou, ordenou-lhe que contasse a história. O vizir disse: “Ouço e
obedeço”.

Vigésima sétima noite do mês
O rapaz de ¿uråsån, sua irmã e sua mãe
Saiba, ó rei – mas Deus sabe mais sobre o que está ausente, e é mais sapiente
quanto ao que ocorreu e se passou nas nações antigas –, que, em certa parte de
¿uråsån, vivia um de seus homens mais ricos, mercador dos mais importantes,
que fora agraciado com uma prole constituída por um filho e uma filha, em cuja
educação ele caprichou e se esmerou, e então ambos tiveram o melhor
desenvolvimento. O pai ensinou tudo quanto se deveria ensinar ao filho, as
tradições do profeta Mu¬ammad, bem como o decoro, as artes de bendizer e as
ações dos reis,[352] e este por sua vez ensinou à irmã. O rapaz se chamava
Sal∑m, e a garota, Salmå. Quando os seus filhos cresceram, o pai lhes construiu
um palácio ao lado do seu e os fez morar nele, provendo-o de criadas e criados
para servi-los, e estabelecendo-lhes pensões e dotações para roupas, além de
tudo o mais de que necessitassem, caro ou barato, carne, pão, bebidas, vestidos,
provisões, utensílios e outros. Salmå e Sal∑m foram residir naquele palácio, e
pareciam um único espírito em dois corpos: dormiam na mesma cama,
acordavam juntos, e se consolidavam no coração de cada um deles o amor, o
afeto e a harmonia. Certa noite, que já ia em meio, estando Sal∑m e Salmå
sentados a conversar e a se distrair, eis que ouviram um som proveniente lá de
baixo e foram observar pela janela, através da qual se avistava a entrada do
palácio de seu pai: alguém dera uma leve[353] batida na aldrava da porta, que se
abriu, saindo lá de dentro uma criada com uma vela, e atrás da criada a mãe
deles, e viram um homem cujas roupas estavam cobertas por um grande manto, e
a cabeça, oculta por uma toalha.[354] A mãe acorreu até ele, cumprimentou-o,
saudou-o, abraçou-o e lhe disse: “Ó amado de meu coração, luz de meus olhos,
delícia do meu coração, entre!”, e o homem entrou, trancando a porta atrás de si.
Vendo aquilo, Salmå e Sal∑m ficaram perplexos; voltando-se para a irmã,
Sal∑m perguntou: “Está vendo essa provação, minha irmã?”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]923ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Sal∑m perguntou a Salmå: “O que você sugere que se faça a respeito?”. Ela
respondeu: “Não sei o que dizer sobre uma coisa como essa, meu irmão.
Contudo, quem procura o melhor não se decepciona, nem se arrepende quem
pergunta.[355] Saiba que isso é uma provação que nos sucedeu e uma desgraça
que nos foi destinada. Urge uma providência que a descubra e uma artimanha
com a qual lavemos tal infâmia de nossas faces”. Salmå e Sal∑m mantiveram-se
vigiando a porta até que a aurora raiou, e então o jovem que entrara abriu a
porta; a mãe dos dois irmãos se despediu, ele foi embora, e ela entrou junto com
a criada. Sal∑m disse à irmã: “Saiba que estou disposto a matar esse homem se
ele retornar outra noite, e dizer às pessoas que se trata de um ladrão, a fim de que
ninguém saiba o que ocorreu, e depois matarei quem o apresentou à minha mãe”.
Salmå disse: “Se acaso você o matar em nossa casa, e ele não tiver nenhuma
relação com roubos, meu receio é de que as suspeitas se voltem contra nós;
ademais, não estamos seguros de que ele não pertença a algum grupo cujo poder
seja temível e cuja inimizade seja arriscada, pois nesse caso você terá saído da
infâmia oculta e caído na infâmia aberta, no horror aberto e permanente”. Ele
perguntou: “E qual é o melhor parecer?”. Ela respondeu: “Se for de fato
absolutamente imperioso matá-lo, não se apresse em fazê-lo, pois tirar uma vida
sem justificativa é uma enormidade!”.
³ahriyår pensou: “Por Deus que eu estupidamente estava matando mulheres e
meninas! Louvores a Deus, que, ocupando-me com esta jovem ³ahrazåd, me
impediu de continuar matando, pois tirar uma vida é uma enormidade! Por
Deus que, se acaso o rei ³åh Ba¿t perdoar o seu vizir, também eu perdoarei
³ahrazåd!”. E continuou prestando atenção à história dela:[356]
Salmå disse a Sal∑m: “Não se apresse em matá-lo; reflita sobre o assunto e a
quais consequências conduzirá, pois ‘quem não pensa nas consequências não
tem o destino como companheiro’”.[357] Então, pela manhã, ambos começaram
a trabalhar no preparo de algo que afastasse aquele homem de sua mãe, a qual,
pressentindo da parte deles algum mal, em virtude das alterações que lhes notou
nos olhos – a mulher era sagaz e ardilosa[358] –, ficou em guarda contra os dois.
Sal∑m disse a Salmå:[359] “Já vi em que essa mulher nos fez cair; ela pressentiu
o que estamos planejando e percebeu que já descobrimos tudo; sem dúvida que
está planejando contra nós tal como estamos planejando contra ela. Ela antes
escondia de nós o que fazia, mas agora vai nos enfrentar. Isso que nos sucedeu,
presumo, já estava escrito para nós[360] por Deus exalçado e altíssimo, com seu
conhecimento prévio, e mediante o qual ele realizará o decreto de seu cálamo e a
sua sapiência”. Ela perguntou: “E o que é?”. Ele respondeu: “Vamos, você e eu,
sair no meio desta noite, abandonar este país e buscar outro onde viver, e aonde
não chegue notícia nenhuma desta adúltera; ‘o que se ausenta aos olhos se
ausenta ao coração’.[361] Certo poeta disse os seguintes versos:

‘Distanciar-me de vocês é para mim melhor e mais belo,
pois, olho que não vê, coração que não se entristece’”.

A irmã lhe disse: “O seu é o melhor parecer. Faça isso, em nome de Deus!
Vamos embora, e teremos êxito e graça”. Ambos pegaram suas roupas mais
opulentas, e as joias e dinheiros mais leves de seus depósitos, ajuntaram tudo,
prepararam dez asnos, e alugaram criados de fora da cidade; Sal∑m ordenou à
sua irmã que vestisse roupas masculinas – ambos eram muitíssimo parecidos –, a
fim de que ninguém distinguisse entre os dois – exalçado seja aquele que não
tem semelhante, nem divindade que não seja ele! –; ordenou-lhe que montasse
em um cavalo, ele montou em outro, e saíram à noite sem o conhecimento de
nenhum de seus familiares ou membros de seu palácio; vagaram pelas vastas
terras de Deus e avançaram sem interrupção, noite e dia, por dois meses, findos
os quais chegaram, na terra de Makrån, a uma cidade situada no litoral,
denominada Aššarr,[362] a primeira do Sind, em cujas cercanias se apearam.
Pela manhã, viram uma cidade próspera, graciosa, de bela aparência, grande,
repleta de árvores, rios e frutas, de vastos campos cultivados. O rapaz disse à sua
irmã Salmå: “Não saia daqui até que eu entre na cidade, verifique-a, teste seus
moradores, e encontre uma casa para comprarmos e nos mudarmos; se o lugar
for bom, ficaremos aqui; caso contrário, prepararei viagem para outra
localidade”. Ela respondeu: “Faça isso, com a graça e a bênção de Deus
poderoso e excelso”. O rapaz pegou um saco com mil dinares, amarrou-o à
cintura, entrou na cidade e vagou sem interrupção por suas ruas e mercados,
observando-lhe as casas e sentando-se para conversar com aqueles, dentre os
seus moradores, nos quais augurava o bem, até que o dia chegou à metade e ele
fez tenção de retornar para a irmã, mas pensou antes: “É absolutamente
imperioso que eu compre comida pronta para que comamos, minha irmã e eu”.
Foi então até um homem que, embora fanfarrão, vendia assados de bom aspecto,
e lhe disse: “Cobre o preço deste prato e acrescente-lhe galinha e carneiro, e tudo
o mais que o seu mercado tenha de doces e pães; ajeite tudo em pratos”. O
homem cobrou o preço, ajeitou as coisas como ele pedira, e as depositou em uma
caixa de carregador. Por aquilo tudo, Sal∑m pagou ao churrasqueiro[363] o mais
generoso dos preços, e, quando pretendia se retirar, o homem lhe disse: “Não há
dúvida de que você é estrangeiro, meu jovem”, e ele respondeu: “Sim”. O
churrasqueiro continuou: “Existe uma tradição do profeta, meu jovem, que diz
que o conselho é parte da fé, e afirmam os entendidos que aconselhar faz parte
do caráter dos crentes. Gostei de ver a sua juventude, e por isso quero lhe dar um
conselho”. Sal∑m disse: “Faça-o, diga o seu conselho, que Deus o fortaleça!”. O
churrasqueiro disse: “Saiba, meu filho, que o estrangeiro, quando entra nesta
nossa terra e se alimenta de comidas gordurosas, sem tomar bebidas
envelhecidas, é prejudicado e acaba contraindo graves doenças; caso você não
tenha algo disso pronto, posso conseguir-lhe antes que você leve a comida”.
Sal∑m lhe disse: “Que Deus bem o recompense! Você poderia me mostrar onde
se vende?”. O churrasqueiro respondeu: “Dessa bebida, tenho tudo quanto você
quiser!”. Sal∑m perguntou: “Será que posso ver?”.
Disse o narrador: o churrasqueiro se pôs em pé e disse: “Passe para este
lado!”. Sal∑m entrou na loja e, após o churrasqueiro ter lhe mostrado algumas
bebidas, disse: “Quero o melhor”. O churrasqueiro abriu uma porta, entrou e
disse a Sal∑m: “Entre e siga-me”, e Sal∑m o seguiu até um quarto escuro onde
lhe mostrou algumas bebidas que lhe serviam; enquanto o mantinha distraído
com aquilo, o churrasqueiro puxou uma faca da cintura, agarrou o rapaz por trás,
derrubou-o e sentou-se sobre seu peito.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]924ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
O churrasqueiro encostou a faca no pescoço de Sal∑m, esquecido de Deus e
de tudo quanto este ordenara. Sal∑m perguntou: “Por que você está fazendo
isso, rapaz? Observe e tema a Deus altíssimo! Não está vendo que sou
estrangeiro e tenho de sustentar uma esposa abandonada? O que você pretende
matando-me?”. O churrasqueiro respondeu: “É absolutamente imperioso matá-lo
para levar o seu dinheiro!”. O rapaz disse: “Leve o meu dinheiro e não me mate,
pois assim pesará contra você o crime de minha morte; será um favor comigo,
pois tomar o dinheiro é mais leve que tomar a vida”. O churrasqueiro disse:
“Impossível. Você não vai escapar com essa, meu jovem, pois em sua salvação
estará a minha morte”. Sal∑m disse: “Mas eu lhe juro, e lhe dou o compromisso
de Deus poderoso e excelso, o pacto que ele firmou com seus profetas, que
jamais revelarei o seu segredo!”. O churrasqueiro disse: “Quem dera, quem dera!
Não há como fazer isso por você!”.
Disse o narrador: Sal∑m continuou jurando, humilhando-se e chorando, mas,
como o churrasqueiro insistisse em matá-lo, ele então se pôs a recitar os
seguintes versos de poesia:

“Reflita e não se apresse em fazer o que pretende;
seja piedoso com os outros e encontrará um piedoso;
não existe mão sobre a qual não esteja a mão de Deus,
nem opressor que não acabe encontrando outro opressor”.

O churrasqueiro disse: “É absolutamente imperioso matá-lo, fulano, pois se
porventura lhe conservar a vida, serei eu o morto”. Sal∑m disse: “Meu irmão,
tenho uma sugestão diferente”. O churrasqueiro disse: “Qual é? Seja breve antes
de sua morte”. Sal∑m disse: “Mantenha-me como seu escravo e exercerei para
você um ofício de sábios, que lhe proporcionará, diariamente, dois dinares”. O
churrasqueiro perguntou: “E qual é esse ofício?”. Sal∑m respondeu: “Perfuração
de joias”. Ao ouvir tais palavras, o churrasqueiro pensou: “Que mal me fará se
eu o mantiver preso, acorrentado, e lhe trouxer o que fazer? Se estiver falando a
verdade, mantê-lo-ei vivo; se estiver mentindo, matá-lo-ei”. Trouxe então fortes
correntes, colocou-as em suas pernas e o prendeu em sua casa, encarregando
uma pessoa de vigiá-lo; indagou-lhe quais os equipamentos de que necessitava
para trabalhar, o rapaz os descreveu, e o churrasqueiro, após se ausentar algum
tempo, providenciou-lhe tudo. Sal∑m se pôs a fazer aqueles trabalhos, com os
quais ganhava diariamente dois dinares; essa passou a ser a sua faina e a rotina
com o churrasqueiro, que não lhe matava senão metade da fome.
Isso foi o que sucedeu a Sal∑m. Quanto à sua irmã Salmå, ela o aguardou até
o final do dia, e o irmão não veio; aguardou pelo segundo, pelo terceiro e pelo
quarto dia, mas, como dele não recebesse notícia, chorou copiosamente, bateu
com as mãos no peito, pensou em sua situação e exílio, na ausência do irmão, e
recitou os seguintes versos de poesia:

“A paz esteja convosco, quem dera vos víssemos
e nossos corações se tranquilizassem, e os olhos;
vós não sois senão toda a minha esperança,
e o amor por vós entre as costelas se oculta”.

Em seguida, esperou-o até o final do mês, mas dele não obteve notícia nem
encontrou vestígio; muito incomodada, despachou os seus criados à procura do
irmão, e ficou na maior tristeza e aflição. No mês seguinte, em dada manhã,
ordenou que apregoassem o nome dele pela cidade e esperou condolências, não
ficando ninguém na cidade que não viesse dar-lhe condolências e entristecer-se
por ela – sem duvidar de que se tratava de um homem. Passadas três noites com
seus dias, no segundo mês, já sem esperanças de que o irmão retornasse, e sem
que as suas lágrimas estancassem, Salmå resolveu estabelecer-se naquela cidade;
procurou então uma casa e se mudou para lá; as pessoas procuravam-na
provenientes de todo local, conviviam com ela, ouviam-lhe as palavras e
testemunhavam o seu decoro; pouco tempo depois, subitamente morreu o rei
daquela cidade, e as pessoas divergiram sobre quem entronizar, a tal ponto que a
guerra civil quase eclodiu entre eles. As gentes dotadas de bom parecer, as de
inteligência e as experimentadas sugeriram que se entronizasse o rapaz que
perdera o irmão – eles acreditavam que ela era homem. Tendo todos concordado
com aquela sugestão, foram oferecer o reino a ela, que recusou a princípio, mas
tanto insistiram que acabou aceitando. Salmå pensou: “Que desejo teria eu em
reinar sem meu irmão? [Mas quem sabe assim não obtenho alguma notícia
dele?]”.[364] Destarte, instalaram Salmå no trono, cingiram-lhe a coroa na
cabeça, e ela começou a tomar as suas providências e a agir nos misteres
relativos ao reino; todos ficaram muitíssimo felizes com ela.
Isso foi o que sucedeu a Salmå. Quanto ao seu irmão Sal∑m, ele ficou com o
churrasqueiro pelo período de um ano inteiro, trabalhando diariamente para
proporcionar-lhe um lucro de dois dinares; após tanto tempo, o churrasqueiro se
apiedou e se condoeu do rapaz, supondo que, se acaso o soltasse, Sal∑m não
denunciaria as suas ações ao sultão – pois o churrasqueiro de tempos em tempos
enganava uma pessoa, trazia-a para a sua casa, matava-a, roubava-lhe o dinheiro,
cozinhava-lhe a carne e a servia para as pessoas. Ele perguntou ao rapaz:
“Garoto, quer que eu o livre disso, desde que você seja ajuizado e jamais
denuncie nada do que lhe aconteceu?”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]925ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Sal∑m lhe disse: “Juro-lhe pelo que você quiser que guardarei o seu segredo e,
enquanto viver, não pronunciarei uma única palavra contra você”. O
churrasqueiro disse: “Estou resolvido a fazê-lo sair acompanhado de meu irmão,
com o qual você viajará pelos mares como se fosse o seu escravo. Quando
chegarem à terra da Índia, ele o venderá, e assim você se livrará da prisão e da
morte”. Sal∑m respondeu: “Essa é a melhor das resoluções. Que Deus altíssimo
bem o recompense!”. Então o churrasqueiro preparou o irmão, e lhe equipou um
navio com mercadorias, ali deixando Sal∑m aos cuidados dele. O navio zarpou,
e Deus escreveu-lhes que viajariam bem; chegaram à primeira cidade, conhecida
como Almanßœra, onde atracaram. O rei daquela cidade morrera,[365] deixando
esposa e filha. A esposa, que era uma das mais ajuizadas e inteligentes pessoas
de seu tempo, alegou que a sua filha era um rapaz, a fim de que o reino
permanecesse em suas mãos; supondo que aquilo fosse verdade, isto é, que a
menina fosse rapaz, os militares e comandantes lhe prestaram obediência. A mãe
preparou as coisas, vestindo a filha com trajes masculinos e fazendo-a sentar-se
no trono real, a fim de que fosse vista por todos. Os notáveis do governo e
privados do rei entravam, cumprimentavam-na, faziam reverências e se
retiravam, sem duvidar de que se tratava de um rapaz. Essa situação perdurou
por meses e anos, até que o navio do irmão do churrasqueiro, com Sal∑m a
bordo, entrou na cidade, e ele foi ao palácio oferecê-lo à esposa do rei, que o
comprou, tratou bem dele, dignificou-o e se pôs a testar-lhe o caráter e a
experimentá-lo em algumas questões, notando nele, afinal, tudo quanto têm os
filhos de rei: inteligência, decoro e bom caráter; então, ficou a sós com ele e lhe
disse: [“Quero que você me esclareça a sua história, pois não creio que seja
escravo; jamais alguém como você o seria!”, e então Sal∑m lhe contou tudo
quanto lhe sucedera de fio a pavio; lembrou-se da irmã e chorou. A mulher disse:
“Não fique triste, pois chegou a hora da sua libertação. Quero lhe fazer um favor,
torná-lo meu filho,] [366] mas você deve guardar segredo”. Ele prometeu
conforme tudo o que a mulher bem quis, e então ela lhe revelou o segredo sobre
a sua filha e disse: “Irei casá-lo com ela e encarregá-lo de cuidar de seus
misteres; farei de você rei e governante desta cidade”. O rapaz agradeceu e se
comprometeu a fazer tudo quanto ela lhe ordenasse. A mulher deu um passo em
sua direção e lhe disse: “Saia e vá escondido até um local fora da cidade”, e
então ele saiu; na manhã seguinte, a mulher lhe preparou carregamentos,
equipamentos, joias e muitas outras coisas que foram colocadas no dorso de
camelos; a mulher fez as pessoas imaginarem que o primo do rei estava
chegando, e ordenou aos privados e a todos os soldados que o recepcionassem;
enfeitou a cidade para ele, determinou que se rufassem os tambores, e todos os
membros da corte descavalgaram diante dele e lhe prestaram reverência; o rapaz
foi hospedado no palácio, e a esposa do rei ordenou que os nobres do reino
comparecessem à sua audiência; eles assim procederam, testemunhando da parte
dele tamanho decoro que se fascinaram e olvidaram o decoro dos reis
precedentes. Quando estavam mais à vontade diante dele, a mulher se pôs a
chamar os comandantes e privados um a um, fazendo-os jurar que guardariam
segredo, e, sentindo-se segura, revelou-lhes que o falecido rei não deixara senão
uma filha, e que ela não agira daquele modo senão com o fito de preservar o
reino nas mãos da família e evitar que delas escapasse; informou-os de que
estava disposta a casar a filha com o primo recém-chegado, e que seria ele o
responsável pelo reino; eles aceitaram esse parecer, e, quando chegou ao último,
ela revelou o segredo abertamente, fazendo com que fosse divulgado. Trouxe
juízes e testemunhas idôneas, escreveu-se o contrato de casamento, distribuíram-
se numerosos presentes entre os soldados, que foram cumulados de benesses; a
noiva foi exibida ao rapaz, que tomou conta do reino e do seu governo, assim
permanecendo por um ano inteiro, após o qual disse à esposa: “Saiba que não
tenho prazer na vida nem sossegarei ao seu lado até obter notícias de minha
irmã, onde ela foi parar, e qual seu estado sem mim. Partirei, ausentado-me por
um ano, e depois retornarei para vocês, se Deus altíssimo quiser, tendo atingido
o que espero”. A esposa lhe disse: “Não suportarei a sua ausência,[367] e por
isso irei com você e o ajudarei no que pretende; serei sua auxiliar nisso”. Em
seguida, encheu um navio de tudo quanto é coisa opulenta – mercadorias, bens,
alimentos e outros –, encarregou do governo um vizir, em cuja pessoa, ações e
preparo confiava, e lhe disse: “Fique governando por um ano inteiro do modo
que for necessário”. Então, saíram os três em viagem – a mulher do rei falecido,
[368] sua filha, e seu genro Sal∑m; embarcaram no navio e zarparam, viajando
até a terra de Makrån, aonde chegaram no final do dia, e dormiram no navio até
o amanhecer. Pela manhãzinha, o jovem Sal∑m desceu do navio para ir ao
banho; caminhou até o mercado, chegou às proximidades do banho, e no
caminho esbarrou com o churrasqueiro, que o reconheceu, agarrou, amarrou e
levou para casa, onde lhe acorrentou as pernas com a mesma corrente,
imediatamente enfiou-o no mesmo lugar onde ficara aprisionado da primeira vez
[e lhe ordenou que voltasse a perfurar joias, como da primeira vez].[369] Sal∑m
chorou ao se ver naquele miserável estado, novamente atingido pela mesma
desventura em razão de sua má sorte – de rei, voltara às correntes, à prisão e à
fome. Chorando, queixou-se e recitou os seguintes versos de poesia:

“Meu Deus, acabou minha paciência e força,
e meu peito se oprime, ó senhor dos senhores!
Meu Deus, quem é mais poderoso do que tu?
És generoso, e bem sabes de minha situação”.[370]

Isso foi o que sucedeu a Sal∑m. Quanto à sua esposa e à sua sogra, a primeira
aguardou o marido, mas, como ele não retornasse, pressentiu que algo ruim lhe
acontecera, e enviou os criados à sua procura; porém, eles retornaram sem dele
ter encontrado vestígio nem notícia.[371] Refletindo sobre a sua situação, ela se
queixou, chorou, lamentou, reclamou, censurou o destino traiçoeiro, lamuriou-se
contra esse mesmo destino, pranteou e recitou os seguintes versos de poesia:

“Preserve Deus os dias do gozo de amor, e
melhore! Como a vida era neles boa e feliz!
Quem dera não se desse o motivo da separação,
que a tantos corpos debilitou, e vidas extinguiu,
fazendo, sem culpa, jorrar-me lágrimas e sangue,
e me subtraindo quem amo, sem o qual não vivo!”.

Disse o narrador: quando concluiu a recitação, ela continuou refletindo sobre o
seu caso e pensou: [“Por Deus que essas coisas só ocorreram por decreto de
Deus altíssimo e com o seu poder; isso estava registrado e inscrito na fronte”];
[372] então, desembarcou do navio, caminhou até um lugar aprazível, perguntou
às pessoas, e logo alugou uma casa, para ali transferindo tudo quanto era
mercadoria que o navio continha; mandou chamar agentes de venda, aos quais
vendeu tudo quanto possuía, e, com parte do dinheiro, pôs-se a indagar as
pessoas, na esperança de farejar alguma notícia a respeito do marido; pôs-se a
distribuir esmolas, a ministrar remédios aos doentes, a doar roupas para quem
tinha o corpo desnudo e a socorrer os desvalidos, mantendo-se nesse labor
mediante a gradual venda de mercadorias; assim, deu esmolas aos débeis e
miseráveis pelo período de um ano inteiro, após o que as notícias a seu respeito
se espalharam pela cidade e as pessoas passaram a louvá-la intensamente.
Enquanto tudo isso acontecia, Sal∑m era mantido acorrentado e preso,
dominado por obsessões em razão da provação em que caíra.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]926ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Quando suas aflições se tornaram demasiadas, e suas desgraças se
prolongaram, Sal∑m caiu gravemente enfermo. Ao ver o seu estado – ele estava
quase morto de tanto desespero –, o churrasqueiro entregou-o aos cuidados de
uma velha, cujo nariz era do tamanho de uma jarra, ordenando-lhe que o
medicasse, servisse e tratasse bem, e assim quem sabe ele se restabelecesse da
doença que contraíra; desacorrentou-o, tirou-o da prisão, e aquela velha o
recebeu e levou para casa, onde passou a tratá-lo e a dar-lhe comida e bebida.
Afinal livre daquela tortura, Sal∑m se curou da doença. Tendo ouvido, por
intermédio das pessoas, notícias a respeito da mulher que distribuía esmolas aos
débeis, e cuja bondade chegara a pobres e a ricos, a velha levou Sal∑m para a
porta da casa, colocou-o sobre uma esteira, enrolou-o em um manto e se sentou
ao seu lado; por coincidência, a mulher passou por eles e, quando a viu, a velha
levantou-se, rogou por ela, e lhe disse: “Minha filha, este moço é um jovem
estrangeiro a quem a carência, os piolhos, a fome, a nudez e o frio estão
matando”. Ao ouvi-la, a mulher lhe fez um donativo com o dinheiro que tinha, e
o seu coração se tomou de simpatia por Sal∑m. A velha pegou o donativo dado a
Sal∑m, reservou uma parte para si e, com o restante, foi comprar-lhe uma túnica
velha; pegou então o rapaz, desnudou-o, jogou fora o gibão que ele usava, lavou-
lhe as sujidades que tinha no corpo, perfumou-o com um pouco de perfume,
vestiu-lhe a túnica, comprou-lhe alguns frangos e lhe preparou um cozido, que
ele comeu, recuperando as forças. Sal∑m gozou a melhor vida até o amanhecer,
quando então a velha[373] lhe disse: “Se a mulher vier até você, levante-se,
beije-lhe as mãos e diga-lhe: ‘Sou estrangeiro e o frio e a fome estão me
matando’; destarte, quiçá ela lhe dê algo para você gastar consigo”; Sal∑m
respondeu: “Ouço e obedeço”. A velha pegou-o pela mão, saiu, acomodou-o
diante da porta de casa, e, enquanto ele estava ali sentado, eis que a mulher
passou pelo local; a velha ficou em pé, e, quando ela chegou, Sal∑m beijou-lhe a
mão, rogou por ela, e, ao encará-la, reconheceu a própria esposa! Então gritou,
chorou, gemeu e reclamou, e nesse momento ela se aproximou e se atirou sobre
ele, pois já o reconhecera por completo, tal como ele a reconhecera; agarrou-o,
abraçaram-se, ela chamou os seus homens, criados e todos quantos a cercavam, e
carregaram-no, retirando-o daquele local; nesse momento, a velha gritou pelo
churrasqueiro lá dentro da casa, e este lhe disse: “Vá na minha frente!”; ela foi à
sua frente, e ele correu atrás dela sem interrupção, até que se agarrou a Sal∑m e
disse: “Qual é a de vocês? Estão levando o meu criado!”. A mulher gritou com
ele dizendo: “Saiba que este é o meu marido, que eu perdera!”. Sal∑m gritou:
“Socorro! Socorro! Busquemos refúgio em Deus e no sultão contra esse
demônio [opressor e injusto]!”.[374] Imediatamente as pessoas se aglomeraram
ao redor daquilo, aos berros e gritos, e a maioria disse: “Encaminhem o caso
para o sultão”, que era Salmå, irmã de Sal∑m; então a questão lhe foi
encaminhada, e um intérprete, diante do sultão, disse-lhe: “Ó rei do tempo,
comparece aqui uma mulher indiana, proveniente da Índia, agarrada a um criado,
um jovem que ela alega ser o seu marido e ter sumido por dois anos; afirma
ainda que não veio para cá senão por causa dele, e já faz alguns dias que ela anda
distribuindo esmolas. Também comparece um indivíduo, um churrasqueiro, que
alega ser o rapaz seu criado”.
Disse o narrador: quando a rainha ouviu aquelas palavras, seu coração
disparou e, ferido, fê-la gemer, lembrando-se de seu irmão e do que lhe sucedera.
Em seguida, ordenou aos presentes que trouxessem os querelantes à sua
presença; ao vê-los, reconheceu o irmão, [mas ele não a reconheceu,][375] e,
embora a ponto de gritar, controlou-se afinal, limitando-se a se levantar, sentar
de novo, acumular paciência sobre paciência, e finalmente dizer: “Saibam que
cada um de vocês deve me informar de sua história”. Então Sal∑m deu um passo
adiante em direção ao rei, beijou o chão, louvou-o, e lhe contou a sua história do
começo ao fim, até o momento em que chegara à cidade junto com a irmã...
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]927ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:
E Sal∑m continuou contando] como entrou na cidade e caiu nas mãos do
churrasqueiro, o que lhe sucedeu, com as surras, a exploração, a prisão e o
acorrentamento aos quais o submeteu, transformando-o depois em escravo de
seu irmão, que o vendeu na Índia, o motivo de ali ter sido coroado, seu
casamento e demais histórias e notícias, bem como que não teria sossego em sua
vida enquanto não encontrasse a irmã, “mas este churrasqueiro me capturou uma
segunda vez, amarrando-me e acorrentando-me”, e Sal∑m relatou a doença e a
debilidade que o vitimaram pelo período de um ano inteiro.
Disse o narrador: quando ele terminou de falar, imediatamente a esposa deu
um passo adiante e contou a sua história do começo ao fim, até o momento em
que a mãe dela comprara Sal∑m do irmão do churrasqueiro, e como depois os
súditos ficaram sob seu governo, falando sem interrupção até a narrativa de sua
chegada àquela cidade.
Disse o narrador: quando ela concluiu a sua história, o churrasqueiro disse:
“Ai, como agem os iníquos!”, e continuou: “Por Deus que esta mulher mente
contra mim! Este rapaz é cria minha, filho de uma de minhas criadas; fugiu de
mim [embarcando em um navio, mas voltou][376] e eu o recapturei!”. Depois de
ouvir todas as histórias, a rainha disse ao churrasqueiro: “A decisão a respeito de
vocês não se dará senão com justiça!”; dispensou os presentes, voltou-se para o
irmão, e disse: “Para mim já está clara a sua veracidade e a veracidade de suas
palavras. Louvores a Deus, que reuniu você à sua esposa; leve-a, tome o rumo de
seu país, esqueça a sua irmã Salmå e retire-se em paz”.
Disse o narrador: ao ouvir aquilo, Sal∑m disse: “Juro, pelo rei sapientíssimo,
que não deixarei de procurar a minha irmã até morrer, ou encontrá-la se assim o
quiser Deus altíssimo”. Em seguida, recordando-se da irmã, recitou, de coração
ferido, aflito e entristecido, os seguintes versos de poesia:

“Ó quem me censura e critica o coração,
provasse o mesmo que ele, me perdoaria!
Por Deus, ó censor por minha irmã, deixe
meu coração, tenha piedade e me socorra!
Habituei-me à paixão em segredo e em público;
e no meu coração, que a tristeza não deixa,
lavra um fogo que não se assemelha nem
ao fogo do inferno, e ainda vai me matar!”.[377]

Disse o narrador: quando sua irmã Salmå ouviu as palavras que ele pronunciou,
não conseguiu dominar-se e se atirou sobre ele,[378] revelando-lhe a sua
situação; ele a reconheceu e se atirou sobre ela, permanecendo desmaiado por
algum tempo; ao despertar, disse: “Louvores a Deus, o generoso contemplador!”.
Em seguida, cada qual queixou-se para o outro das dores da separação.
Espantada com aquilo, e considerando muito bonita a paciência e a resignação
da irmã, a esposa de Sal∑m cumprimentou-a, agradeceu-lhe o que fizera, e lhe
disse: “Por Deus, minha senhora, que toda essa felicidade em que nos
encontramos somente se deu por meio da sua bênção! Louvores a Deus, que nos
agraciou com o poder vê-la!”.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]928ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Então os três – Salmå, Sal∑m e sua esposa – isolaram-se no mais completo
estado de felicidade, júbilo e regozijo durante três dias. Espalhou-se na cidade a
notícia de que o rei encontrara o seu irmão, perdido há anos, localizando-o na
casa do churrasqueiro. No quarto dia, todos os soldados e súditos aglomeraram-
se às portas do rei, pediram permissão, entraram, prestaram-lhe reverência, e
felicitaram-no pelo encontro de seu irmão. Salmå determinou às pessoas que
prestassem reverência ao seu irmão, e todos obedeceram, prestando reverência a
Sal∑m, e em seguida se calando para ouvir quais eram as ordens do rei, que
disse: “Soldados e súditos, todos bem sabem que foram vocês que me forçaram a
aceitar o reino, e me pediram que dele me encarregasse; concordei em ser
empossado e assim procedi, mas saibam que sou mulher e que me disfarcei e
protegi em trajes masculinos para tentar esconder a minha condição quando
perdi meu irmão. Agora, porém, que Deus altíssimo me reuniu a ele, não é
correto que, mulher, seja eu a rainha, exercendo meu império sobre os súditos,
pois as mulheres não têm império quando há homens.[379] Se preferirem,
coloquem o meu irmão no trono do reino; ei-lo aqui, e eu me devotarei à
adoração e ao louvor de Deus altíssimo por ter me reunido a ele; ou, se
preferirem, peguem seu reino e entronizem quem vocês quiserem”. Toda gente
gritou: “Nós o aceitamos como rei”. Todos lhe prestaram reverência e o
felicitaram pelo reino; os sermões se fizeram em seu nome, os poetas o
enalteceram, e ele agraciou os soldados e a corte com imensas benesses,
estendendo aos súditos justiça, equanimidade e boa conduta; realizadas aquelas
suas determinações, ordenou que o churrasqueiro fosse trazido à audiência, bem
como os seus parentes, preservando apenas a velha, que fora a causa da sua
libertação e o servira. Reuniu-os na saída da cidade, torturou o churrasqueiro e
os seus de várias maneiras, e depois o matou da maneira mais cruel; em seguida,
queimou-o no fogo e lhe espalhou as cinzas ao vento. Permaneceu no governo,
detendo toda a autoridade, pelo período de um ano completo, após o que [deixou
um vizir no posto e, levando a irmã,][380] retornou a Almanßœra, ali
permanecendo um ano. E assim ficaram eles, indo de um país a outro e ficando
um ano em cada um; então, Deus agraciou Sal∑m com filhos, e, quando eles
cresceram, o pai designou como seus sucessores aqueles que eram mais
adequados ao reino; viveu com a irmã, a esposa e os filhos pelo tempo que Deus
altíssimo quis, [até que lhes sobreveio o destruidor dos prazeres e dispersador
das comunidades].[381]
[Prosseguiu o vizir:] “E essa, ó rei do tempo, não é mais espantosa nem mais
insólita que a história do rei da Índia e seu vizir injustiçado e invejado”. Ao
ouvir aquilo, o rei ficou preocupado e lhe ordenou que se retirasse para casa; no
final da tarde, mandou chamá-lo e determinou que contasse a história do rei da
Índia e seu vizir. Ele respondeu: “Ouço e obedeço”.

Última noite do mês[382]
O rei da Índia e seu vizir
Saiba, ó rei de venturosa fortuna, que havia na Índia um rei de excelso poder,
dotado de juízo e capacidade, cujo nome era ³åh Ba¿t. Ele tinha um vizir bom,
ajuizado e de arrojado parecer, correspondente a ele em capacidade, correto em
suas opiniões, que com seu juízo e correção passou a dominar o reino, e então
aumentou o número dos que o invejavam e se ampliaram os seus adversários,
passando todos a procurar-lhe defeitos e fomentar artimanhas contra ele, até que
traçaram nos olhos do rei ³åh Ba¿t o rancor e o despeito contra esse vizir, e no
coração lhe plantaram o ódio. Começaram a fazer seguidos complôs, e o seu
cerco contra ele aumentou, até que enfim levaram o rei a detê-lo, aprisioná-lo,
confiscar-lhe o dinheiro e torná-lo inócuo. Quando essas pessoas viram que ele
nada mais tinha que o rei pudesse ambicionar, temeram que este o soltasse mercê
de um bom parecer que lhe tocasse o coração, e assim o vizir recuperaria o seu
anterior estado, estragando-lhes a situação e rebaixando-lhes a posição, pois
perceberam que o rei precisaria de pareceres reconhecidamente bons e não
esqueceria a prática habitual do vizir. Coincidiu então que um indivíduo de
corrompida doutrina encontrou um modo de disfarçar e adornar uma fraude, e
fez coisas com as quais ocupou os corações do vulgo, corrompendo-lhes a mente
com suas falsidades: preparou bandeiras indianas e nelas fez sinais para negar o
artífice e criador do universo – excelsa seja a força de Deus altíssimo contra as
falas dos que o negam, e se alce bem mais alto que elas.
[E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.
Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Maninha, como é boa, saborosa, agradável e
esplêndida a sua história!”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes
contarei na próxima noite, se acaso eu viver e o rei educado e bem guiado me
preservar”.]

[E quando foi a]929ª noite


[Disse Dunyåzåd à sua irmã ³ahrazåd: “Por Deus, maninha, se não estiver
dormindo, conte-nos uma de suas historinhas para que atravessemos a noite”.
Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o vizir disse:]
Afirmando que os astros é que são responsáveis pelos misteres do mundo, ele
colocou doze casas em doze constelações, cada constelação representada por
trinta avelãs, correspondendo a trinta dias, que constituíram, nas doze casas,
trezentos e sessenta, número dos dias do ano. Nesse trabalho, ele mentiu,
blasfemou e negou – esteja Deus altíssimo acima disso! –, e logrou dominar o rei
mediante o auxílio dos invejosos e dos que detestavam o vizir; aproximaram-se
do rei, e corromperam-lhe as disposições com relação ao vizir, até que o
abateram; o rei o abandonou e demitiu, e aquele homem alcançou o que
pretendia contra o vizir. A questão se prolongou, as condições do reino se
corromperam por causa das más disposições, deixando-o à beira do colapso, e,
com a maior parte de seu governo dando para trás, o rei despertou para a
importância dos conselhos de seu resoluto vizir, de suas boas disposições e de
suas opiniões exitosas, mandando então chamá-lo, bem como àquele homem
perverso; fez comparecer os notáveis de seu governo e os nobres do reino,
consentiu-lhes que falassem, discutissem e criticassem aquele homem perverso,
procurando dissuadi-lo de sua doutrina corrompida. O vizir ajuizado, sábio
resoluto, levantou-se, agradeceu a Deus altíssimo, louvou-o, glorificou-o,
santificou-o, declarou a sua unicidade e discutiu com o homem perverso,
derrotando-o, calando-o e não cessando de contestá-lo, até que o levou a
penitenciar-se de sua doutrina. Extremamente contente com aquilo, o rei ³åh
Ba¿t disse: “Graças a Deus que me livrou disso e me pôs a salvo da extinção de
meu reino e das benesses de que desfruto”. A situação do vizir voltou à ordem e
ao bom estado, e o rei reintegrou-o ao seu lugar e elevou-lhe a posição, reunindo
aqueles que haviam tramado contra ele e os dizimando todos.
[Prosseguiu o vizir:] “E como essa história do rei ³åh Ba¿t se assemelha ao
que me sucedeu com a alteração do procedimento do rei com relação a mim e a
sua crença no que disseram contra mim, mas depois você se certificou de que
minhas ações são boas, e Deus altíssimo lhe inspirou sabedoria e o agraciou com
reflexão e paciência, como agraciara o outro rei, até que evidenciou a minha
inocência e lhe mostrou a verdade. Eis agora passados os dias após os quais o rei
dissera que me extinguiria a vida; o prazo passou, bem como o tempo da
desgraça, e se acabou para êxito do rei”. Ditas essas palavras, o vizir abaixou a
cabeça e se calou. Ao ouvir-lhe as palavras, o rei ³åh Ba¿t, encabulado e
envergonhado, espantado com a gravidade de sua inteligência e com a sua
paciência, avançou para ele e o abraçou, e o vizir lhe beijou os pés; o rei lhe
presenteou opulentas vestes honoríficas, premiou-o, tratou com extrema
generosidade, aproximou-o, recolocou-o na posição que ocupava no vizirato,
prendeu aqueles que haviam tentado destruí-lo com suas mentiras e encarregou o
próprio vizir de julgar o sábio que lhe interpretara o sonho. E o vizir ficou
cuidando dos misteres do reino, até que todos foram colhidos pela morte.[383]
[Prosseguiu ³ahrazåd:] “Foi isso que nos chegou, ó rei do tempo, da história
do vizir e de seu rei ³åh Ba¿t”. Sumamente espantado com ³ahrazåd, o rei
aproximou-a de seu coração, tamanho era seu amor por ela, que adquiria cada
vez mais valor, e pensou: “Por Deus que alguém como ela não merece a morte,
pois o destino não permitirá que surja outra igual. Por Deus que eu estava
enceguecido, e se ele, com sua misericórdia, não me tivesse endireitado e me
agraciado com ela – que me contou esplêndidos paradigmas, situações
verdadeiras, admoestações verazes e agradáveis anedotas –, eu não teria
retomado o bom caminho! Louvores a Deus por isso, e a ele eu rogo que no fim
me faça ficar com ela, como o vizir com o rei ³åh Ba¿t”. Em seguida, vencido
pelo sono, o rei ³ahriyår dormiu, excelso seja aquele que não dorme!
ANEXO
Os anexos da presente edição são textos que podem servir como elementos de
comparação para o leitor interessado na história da constituição deste livro.
ANEXO 1

No decorrer da história do rei Ba¿t Zåd e seus dez vizires (páginas 135 a 189),
observou-se em nota que, a partir do nono dia, a versão do volume vi da edição
de Breslau e das Noites egípcias difere bastante da versão ali utilizada para a
tradução, que é a do manuscrito “Arabe 3615”, da Biblioteca Nacional de
Paris. Por isso, segue abaixo a tradução a partir do texto constante em Breslau,
mais completo que o das Noites egípcias. Nessa história, bem como em muitas
outras de sua já lendária edição, o editor de Breslau (ou o copista do
manuscrito que lhe serviu de base) efetuou uma divisão por noites puramente
mecânica, quase intrusiva, não mencionando ³ahrazåd nem eventuais outros
narradores, tampouco retificando a sintaxe – a exemplo do que fez em muitas
outras partes de sua edição. À primeira vista, ele se limitou a introduzir, um
tanto ou quanto aleatoriamente, os números das noites no meio das frases,
procedimento esse que foi mantido nesta tradução, muito embora o mais
acertado talvez fosse, neste caso, simplesmente eliminar tal divisão. Também se
mantiveram as observações por assim dizer exteriores ao fluxo narrativo, e que
constituem na verdade pequenos títulos e descrições – ao modo de didascálias –,
provavelmente constantes do original incorporado à edição de Breslau.

[471 ª noite]
[...]
Quando foi o nono dia, os vizires disseram: “Esse rapaz já nos exauriu. Toda vez
que o rei vai matá-lo, ele o tapeia e enfeitiça com suas histórias. Qual seria o
melhor parecer para matá-lo e nos livrarmos dele?”. Concordaram então em ir
até a mulher do rei, à qual disseram: “Você ainda não se deu conta desta questão
na qual está envolvida. Essa indiferença em nada a beneficiará, e o rei está
ocupado em comer, beber e distrair-se, esquecido de que o povo está tocando
adufes, cantando por sua causa e dizendo: ‘A mulher do rei se apaixonou por um
rapaz’, e, quanto mais tempo esse rapaz ficar vivo, mais essa conversa vai
aumentar, e não diminuir”. Ela disse: “Vocês me açularam contra ele. Por Deus,
o que devo fazer?”. Responderam: “Vá até o rei, chore e lhe diga: ‘As mulheres
vêm me contar do sarcasmo contra mim na cidade. Por que você está aí tranquilo
mantendo esse rapaz vivo? Se você não o matar, então me mate para que essa
conversa acabe’”. Nesse momento a mulher se ergueu, rasgou as roupas e foi até
o rei, na presença dos ministros; atirou-se sobre ele e lhe disse: “Ó rei, acaso a
infâmia contra mim não é também contra você? Não teme a infâmia? Não é
característica dos reis que sejam zelosos para com as suas mulheres? É assim,
mas você permanece indiferente enquanto toda a população da cidade fala a seu
respeito, homens e mulheres. Mate-o, portanto, a fim de que essa conversa
acabe, ou mate-me no caso de não poder permitir-se matá-lo”. Nesse momento a
cólera do rei se reforçou e ele disse: “Não tenho nenhum conforto em mantê-lo
vivo. É imperioso que ele morra hoje mesmo. Volte para os seus aposentos e
tranquilize o coração”. Ordenou que o rapaz fosse trazido, e, quando foi
colocado diante do rei, os vizires se voltaram para ele e disseram: “Ai de você,
rapaz de baixa origem! Sua hora final se aproxima. A terra está ansiosa para
rasgar o seu corpo”. O rapaz lhes disse: “A morte não se dá com as suas palavras
nem com a sua inveja; a morte, isto sim, é uma predeterminação inscrita na
fronte. Se na minha fronte estiver escrito algo, esse algo imperiosamente vai
chegar, e nenhum esforço, cuidado ou resguardo hão de evitá-lo, tal como
sucedeu ao rei Ibråh∑m e seu filho”. O rei perguntou: “Quem era o rei Ibråh∑m?
Quem era o seu filho?”. O rapaz respondeu:

O REI IBRÅH„M, SEU FILHO E O QUE SUCEDEU A AMBOS
Havia certo rei que se chamava Sultão Ibråh∑m, ao qual todos os reis se
submetiam e acatavam. Ele não tinha filho, o que o deixava angustiado, pois
temia que o reino se lhe escapasse das mãos. Não deixou de precaver-se e de
comprar concubinas com as quais dormia, até que uma delas engravidou.
Muitíssimo feliz, o rei concedeu prêmios e benefícios abundantes. Quando os
dias da concubina se completaram e se aproximou a hora do parto, foram
trazidos astrólogos que previram a sua hora, puseram os astrolábios para
funcionar e certificaram-se do tempo; a jovem deu à luz um varão, e o rei ficou
muitíssimo contente. As pessoas compartilharam aquela boa-nova e os
astrólogos logo efetuaram seus cálculos: ao examinarem seu horóscopo e
ascendente, porém, empalideceram e se assustaram. O rei lhes disse: “Falem-me
sobre o seu horóscopo. Dou-lhes a minha palavra de que vocês nada têm a
temer”. Eles responderam: “Ó rei, o horóscopo deste menino indica que, aos sete
anos de idade, existe o risco de que um leão o devore; se ele se safar do leão,
ocorrerá algo mais grave e mais difícil”. O rei perguntou: “O que é?”.
Responderam: “Não contaremos até que o rei nos ordene e nos dê garantia de
vida”. O rei disse: “Por Deus que vocês têm garantia de vida”. Eles disseram:
“Se acaso ele se safar do leão, a morte do rei se dará pelas suas mãos”. O rei
empalideceu e se angustiou.

472 ª noite
O rei disse: “Vou me precaver e me esforçar para evitar que o animal o devore e
que ele me mate. Os astrólogos estão mentindo”. Então o menino foi criado por
aias e damas do palácio, muito embora o rei não deixasse de pensar nas palavras
dos astrólogos, e, como a sua vida se tornasse um desgosto, subiu ao cume de
uma elevada montanha, cavou um poço profundo, dividindo-o em vários
compartimentos e despensas e enchendo-o de todo gênero de alimentos, roupas e
demais coisas necessárias, escavou canais de água da montanha em direção ao
buraco e lá colocou o menino junto com uma aia para cuidar dele. Todo início de
mês o rei ia e se postava na boca do poço, jogava uma corda e puxava o menino
até si para abraçá-lo, beijá-lo e brincar com ele por algum tempo, devolvendo-o
em seguida ao mesmo lugar e retornando ao palácio. Ele contava os dias para
que se passassem sete anos, e, quando chegou o tempo previsto e o decreto
escrito na fronte – restavam dez dias para que o menino completasse sete anos –,
caçadores de feras chegaram àquela montanha, nela subiram no encalço de um
leão que avistaram, e que fugiu e entrou no poço, em cujo centro caiu. A aia
fugiu de imediato e se escondeu em uma das despensas ao ver o leão, que foi
atrás do menino, agarrando-o e lhe ferindo o ombro; depois, foi até a despensa
em que a aia se escondera e a devorou, enquanto o menino ficava caído e
desmaiado. Já os caçadores, quando viram que o leão se atirara ao poço, foram
para a sua entrada e ouviram gritos infantis e femininos, cuja interrupção os fez
achar que ambos tinham sido mortos; postaram-se na boca do poço, e eis que de
súbito o leão se ergue e dá contínuos pulos procurando sair; a cada vez que sua
cabeça surgia, os caçadores o atacavam com pedras, até que o feriram bastante e
ele desabou; um deles desceu ao poço, matou o leão e viu o menino ferido; foi
até a despensa e encontrou a mulher morta, da qual o leão comera até se fartar.
Vendo os tecidos e as outras coisas que ali havia, informou a seus companheiros
e pôs-se a passar-lhes tudo, até que finalmente carregou o menino e o retirou do
poço, levando-o para a casa deles, onde lhe trataram o ferimento. O menino
cresceu ali, sem que soubessem quem era na verdade, e, quando o questionavam,
ele não sabia o que responder, pois ao ser levado para o fundo do poço ainda era
pequeno.
Disse o narrador: espantados com a sua história, afeiçoaram-se extremamente
ao menino, e um dos caçadores o adotou como filho, adestrando-o na caça e na
montaria até que chegou à idade de doze anos, quando se tornou um valente
cavaleiro que saía com o grupo para caçar e assaltar. Coincidiu então que, certo
dia, eles saíram para assaltar e atacaram à noite uma caravana cujos membros
estavam dispostos à luta e os enfrentaram, derrotando-os e matando-os. O rapaz
se feriu e ficou estirado em um canto até o amanhecer, quando então abriu os
olhos e, verificando que os seus companheiros estavam mortos, reuniu forças e
se pôs a caminho, topando com um homem que procurava um tesouro e lhe
perguntou: “Aonde você vai, meu rapaz?”, e ele o informou do que lhe sucedera.
O homem lhe disse: “Tranquilize o coração, pois a sua sorte chegou; Deus lhe
trouxe alegria e felicidade. Eu tenho um tesouro no qual há muito dinheiro.
Venha comigo ajudar-me e eu lhe darei dinheiro suficiente para o resto da vida”.
E levou-o para casa, tratou-lhe os ferimentos e o fez descansar por alguns dias.

473 ª noite
Em seguida, o homem pegou o rapaz, duas montarias, e tudo quanto
necessitasse, e marcharam até uma elevadíssima montanha. O homem puxou de
um livro, leu-o, e escavou cerca de cinquenta braças no pico da montanha; surgiu
então um rochedo que ele arrancou, e eis que esse rochedo era a tampa de um
poço; esperou que o ar saísse dali de dentro e depois amarrou uma corda na
cintura do rapaz, baixando-o até o fundo do poço. Com uma vela acesa, o rapaz
olhou bem e viu muito dinheiro na parte mais elevada do poço. O homem
baixou-lhe corda e cesto, e o içou após o rapaz tê-lo enchido, e assim
repetidamente até içar tudo. Carregou as montarias com o dinheiro e terminou o
serviço, enquanto o rapaz esperava que lhe lançasse a corda e o içasse; porém, o
homem tapou a boca do poço com uma grande pedra e partiu.
Ao ver o que o homem lhe fizera, o rapaz confiou-se a Deus altíssimo e
louvado, ficando perplexo quanto ao que fazer e dizendo: “Que morte mais
amarga!”. O mundo se escurecera ao seu redor, no poço nada se enxergava, e ele
se pôs a chorar e a dizer: “Escapei do outro poço e dos ladrões, e agora a minha
morte neste poço será pela paciência”. Ficou aguardando a morte e, enquanto
refletia, eis que ouviu barulho bem forte de água corrente; levantou-se e
caminhou no poço em direção àquele som, chegando enfim a uma das
extremidades do poço, onde estava mais forte o barulho da água; encostou o
ouvido e, notando que era muito forte, pensou: “Trata-se de uma poderosa
corrente de água; neste lugar, imperiosamente morrerei, hoje ou amanhã; sendo
isso imperioso, vou me atirar na água e assim não morrerei de tanto esperar neste
poço”. Fortaleceu o espírito, reuniu as forças e se atirou na água, que o carregou
com força, passando com ele por baixo da terra e lançando-o afinal em um vale
profundo, onde havia um grande rio que corria por baixo da terra. Ao se ver
sobre a face da terra, o rapaz, perplexo, chorou e desfaleceu pelo resto do dia.
Ao despertar, vagou por aquele vale, ...

474 ª noite
... teceu louvores a Deus altíssimo e saiu dali, não interrompendo a caminhada
até chegar a um local habitado, uma grande aldeia que era parte das províncias
de seu pai. Entrou e se encontrou com os moradores, que lhe perguntaram sobre
o seu estado. O rapaz lhes contou a sua história, e eles se admiraram de como
Deus o salvara de tudo aquilo. Ficou morando com aquela gente, que muito se
afeiçoou a ele.
Isso foi o que sucedeu ao rapaz. Quanto ao seu pai, quando ele foi ao poço,
conforme o hábito, gritou pela aia, que não respondeu. Com o peito opresso, ele
baixou ao poço um homem que lhe informou do sucedido. Ouvindo as suas
palavras, o rei estapeou a própria cabeça e chorou copiosamente. Foi ao centro
do poço para certificar-se da situação, e viu mortos o leão e a aia, mas não o
menino. Avisou então os astrólogos de que a sua previsão era verdadeira, e eles
responderam: “Ó rei, se o leão o devorou, seu destino se cumpriu e você escapou
das mãos dele; mas se ele tiver escapado do leão, então por Deus que tememos
por sua vida, pois o rei será morto pelas mãos de seu próprio filho”. Passaram-se
os dias, o rei deixou aquilo de lado e se esqueceu do assunto. Mas Deus quis a
realização de seu desígnio, que nenhum esforço pode impedir: o rapaz
permaneceu na aldeia, juntando-se a um grupo de moradores para assaltar. As
pessoas se queixaram ao rei, que era o pai do rapaz, e o rei saiu para combater o
grupo, acompanhado de alguns membros de sua corte; cercaram os ladrões, e o
rapaz, que estava junto com eles, disparou uma flecha que atingiu mortalmente o
rei; ferido, foi carregado para seu palácio, após terem capturado o rapaz e seus
companheiros, colocando-se todos diante do rei, a quem se perguntou: “O que
nos ordena que façamos com eles?”. Ele respondeu: “Agora estou muito
angustiado com a minha própria vida; portanto, tragam-me os astrólogos”, e
estes foram trazidos e postos diante dele. O rei lhes disse: “Vocês haviam dito:
‘Sua morte se dará pelas mãos de seu filho’. Como é então que a minha morte se
dará pelas mãos de um desses ladrões?”. Espantados, os astrólogos disseram: “Ó
rei, não é impossível, combinando-se o conhecimento dos astros com a
capacidade de Deus, que quem o atingiu seja seu filho”. Ao ouvir as palavras dos
astrólogos, o rei mandou trazer os ladrões e lhes perguntou: “Digam-me a
verdade, qual de vocês disparou contra mim a flecha que me acertou?”.
Responderam: “Foi este rapaz que está conosco”. O rei se pôs a examiná-lo e lhe
disse: “Rapaz, informe-me sobre a sua condição, sobre quem é o seu pai. Por
Deus que você tem garantia de vida”. O rapaz respondeu: “Meu senhor, não
conheço meu pai; meu pai era o poço onde eu morava com uma aia que me
criava. Fomos atacados certo dia por um leão que me feriu o ombro e me largou,
atacando e devorando a aia. Deus arranjou quem me tirasse do poço”, e contou
tudo quanto o acometera, de cabo a rabo. Ouvindo-lhe as palavras, o rei deu um
grito e disse: “Por Deus que esse é meu filho”, e lhe pediu: “Descubra o ombro”.
O menino obedeceu, e eis que seu ombro tinha uma cicatriz. Nesse instante o rei
reuniu corte, súditos e astrólogos, e lhes disse: “Saibam que o que Deus escreveu
na fronte, ventura ou desventura, ninguém pode apagar. Tudo o que estiver
predestinado a ocorrer ao homem ocorrerá. Notem que todo o meu cuidado e
esforço não me foram nada úteis. O que Deus predestinou ao meu filho ele
sofreu, e o que ele predestinou a mim eu encontrei. Todavia, louvo e agradeço a
Deus, porquanto isso se deu pelas mãos de meu filho e não de outro qualquer.
Graças a Deus, que fez o reino chegar ao meu filho”; estreitou-o ao peito,
abraçou-o, beijou-o e disse: “Meu filho, foi assim que a história se sucedeu.
Precavi-me contra você colocando-o no poço, mas essa precaução de nada
adiantou”. Em seguida, pegou da coroa e a cingiu à cabeça do rapaz, a quem
corte e povo juraram fidelidade; o rei lhe recomendou os súditos, a equidade e a
prática da justiça. Naquela própria noite se despediu e morreu, e o filho reinou
em seu lugar.
[Prosseguiu o rapaz:] “Também no seu caso, ó rei, se Deus houver escrito
algo em minha fronte, esse algo imperiosamente ocorrerá, e minhas palavras ao
rei de nada me valerão, bem como nada vale a aplicação de paradigmas contra o
desígnio de Deus. De igual maneira, esses vizires, apesar de seus cuidados e
esforços para me aniquilar, em nada serão beneficiados se Deus for me salvar, e
ele me dará apoio contra eles”. Ao ouvir tais palavras, o rei se quedou perplexo e
disse: “Devolvam-no à prisão e amanhã examinaremos o seu caso. O dia já se
acabou e pretendo dar-lhe uma morte horrível; faremos o que ele merece”.

Décimo dia do prazo escrito, que não se adianta nem se adia
No décimo dia, que era chamado de Dia do Festival, pois nele as pessoas –
nobreza e povo – iam dar parabéns ao rei e cumprimentá-lo, retirando-se em
seguida, os vizires planejaram conversar com um grupo de notáveis da cidade,
aos quais disseram: “Quando hoje vocês forem ter com o rei para cumprimentá-
lo, digam-lhe: ‘Ó rei, graças a Deus que a sua conduta e política são louvadas, e
que você é justo com todos os súditos. Contudo, este rapaz que você tratou tão
bem retornou à sua vileza de origem e dele se manifestaram coisas muito feias.
O que você pretende mantendo-o vivo, preso em seu palácio, todo dia dando-lhe
ouvidos e deixando-o viver? Acaso não sabe o que as pessoas andam falando?
Mate-o e livre-se dele!’”. Os notáveis disseram: “Ouvimos e obedecemos!”, e,
quando foram ter com o rei, prosternaram-se, deram-lhe parabéns e ele lhes
elevou a posição. Habitualmente, as pessoas o cumprimentavam e se retiravam,
mas, quando os notáveis se apresentaram, o rei, percebendo que desejavam
dizer-lhe algo, voltou-se e disse a eles: “Solicitem a sua demanda”, e os notáveis
falaram ao rei do modo como os haviam industriado os vizires, que estavam ali
presentes e reforçaram tais palavras. O rei lhes disse: “Saiba, minha gente, que
suas palavras sem dúvida contêm afeto por mim e conselho. Vocês sabem que,
quisesse eu matar metade das pessoas aqui presentes, tê-las-ia matado, pois isso
não me seria difícil; como então não poderia matar aquele rapaz que está em
minha prisão, à minha mercê, sendo que a sua culpa se demonstrou e ele merece
a morte? Eu só retardei a execução em razão da enormidade do crime; porém,
assim postergando e fortalecendo os meus argumentos contra ele, aplacarei a
sede do meu coração e do coração dos meus súditos. Se não o matar hoje, de
amanhã ele não escapará”. Nesse instante, mandou trazer o rapaz, que ao se ver
diante do rei se prosternou e rogou por ele, que lhe disse: “Ai de você! Até
quando as pessoas irão me faltar com o respeito por sua causa, censurando-me
pelo adiamento de sua execução? O povo de minha terra tanto me critica por sua
causa que me tornei tema de chacotas entre todos! Vieram até mim me faltar
com o respeito por não o ter matado! Até quando esse adiamento? Hoje mesmo
quero fazer correr o seu sangue e deixar as pessoas livres da sua conversa”. O
rapaz disse: “Ó rei, se acaso lhe fazem chacotas por minha causa, por Deus, por
Deus poderoso que os responsáveis por isso são os seus vizires, que conversam
com as pessoas, contando-lhes sobre vilanias e males da casa real. Porém, eu
rogo a Deus que lhes reverta as artimanhas contra as suas próprias cabeças.
Quanto às ameaças de morte que o rei me faz, eu estou à sua mercê, e ele não
deve preocupar-se com a minha morte, pois me assemelho a passarinho em mãos
de caçador, que o pode sacrificar ou libertar, a gosto. Quanto ao adiamento da
minha morte, isso não se deve ao rei, mas sim àquele em cujas mãos minha vida
está; seja como for, ó rei, por Deus que, caso Deus queira a minha morte, você
não poderia adiá-la uma única hora. O homem não pode afastar de si algo ruim,
tal como de nada adiantaram para o filho do rei Sulaymån ³åh os cuidados e
esforços em atingir seus intentos relativamente à criança recém-nascida, cuja
morte foi adiada diversas vezes, pois Deus a salvou até que completasse sua vida
e atingisse o fim de seus dias”. O rei lhe disse: “Ai de você! Quão enormes são a
sua perfídia e as suas palavras! Conte-me como foi a história deles!”.

HISTÓRIA DO REI SULAYMÅN ³ÅH, SEUS FILHOS, SUA SOBRINHA, OS
FILHOS DELA E AS DIFICULDADES QUE OS ACOMETERAM, E DAS
QUAIS SE SAFARAM

475 ª noite
Disse o rapaz:
Havia, ó rei, um rei chamado Sulaymån ³åh, de boa conduta e bom parecer. Ele
tinha um irmão que morreu deixando uma filha, a qual foi muito bem criada por
Sulaymån ³åh. A menina possuía juízo e perfeição, não existindo naquele tempo
ninguém superior a ela. O rei Sulaymån ³åh tinha dois filhos, [ambos
apaixonados pela moça e cada qual acreditando que o pai pretendia casá-lo com
ela].[384] O mais velho se chamava Bahlawån, o mais novo, Malik ³åh, e a
moça, ³åh ¿åtœn.
Certo dia, o rei Sulaymån ³åh foi ver sua sobrinha ³åh ¿åtœn; beijou-lhe a
cabeça e disse: “Você é minha filha, mais cara para mim que os meus filhos,
graças ao afeto que eu nutria por seu falecido pai. Pretendo casá-la com um dos
meus filhos e dele fazer meu sucessor e rei depois de mim. Veja quem você quer
dos meus dois filhos, pois se criou com eles e os conhece”. A moça se ergueu,
beijou a mão do rei e disse: “Meu senhor, sou sua serva; você é que me governa,
e, assim, faça o que achar melhor, pois a sua vontade é mais elevada, sublime e
digna; e se você quiser que eu o sirva pelo resto da vida, isso será mais
gratificante para mim que qualquer outra coisa”. O rei apreciou-lhe as palavras,
presenteou-a com um traje honorífico e lhe deu valiosos presentes. Depois, sua
escolha recaiu sobre o filho mais novo, Malik ³åh, casando-o então com ela e
dele fazendo seu sucessor, e o povo lhe prestou juramento de fidelidade. Quando
tal notícia chegou ao seu irmão Bahlawån – que seu irmão menor recebera a
preferência –, seu peito se oprimiu e ele foi atingido por inveja e rancor, que
ocultou no coração, enquanto o fogo lhe devorava o interior, pela moça e pelo
reino.
Quanto à jovem ³åh ¿åtœn, ela coabitou com o filho do rei e dele engravidou,
dando à luz um filho que parecia a lua iluminada. Ao ver o que sucedera ao
irmão, Bahlawån, derrotado pelo ciúme e pela inveja, passou dada noite pelo
palácio do pai e se dirigiu aos aposentos do irmão, em cuja porta uma aia dormia
segurando o berço onde o seu sobrinho também dormia. Parou diante dele e se
pôs a contemplar-lhe o rosto, cujos raios luminosos eram como os da lua. O
demônio então lhe penetrou no coração, fazendo-o pensar o seguinte: “Por que
esse menino não é meu? Tenho mais direito a ele que o meu irmão! Tenho mais
direito à jovem e ao reino!”. Tais pensamentos o venceram e foram sucedidos
pela cólera, tanto que ele pegou uma faca e a enfiou na garganta da criança,
procurando cortar-lhe a jugular para matá-la.[385] Deixou-a quase morta e
entrou no quarto do irmão, a quem encontrou dormindo com a jovem ao lado.
Fez tenção de matá-la, mas pensou: “Vou deixá-la para mim”, e, indo na direção
do irmão, matou-o separando-lhe a cabeça do corpo; saiu e se retirou, mas,
desesperado e desprezando a morte, procurou o local onde estava seu pai
Sulaymån ³åh para matá-lo, mas não conseguiu chegar até ele, saindo então do
palácio e se refugiando na cidade até o dia seguinte; depois, procurou um dos
castelos do seu pai e nele entrou para se entrincheirar.
Isso foi o que lhe sucedeu. Quanto à criança, a aia acordou para amamentá-la
e, vendo o berço a escorrer sangue, gritou e acordou quem dormia. O rei acordou
e foram até o local dos gritos, encontrando a criança [quase] degolada, o berço
pingando sangue, e o pai da criança também morto em seu quarto. Examinaram
bem o menino e verificaram que ainda estava com vida, com a jugular
inatingida; costuraram então o ferimento...

476 ª noite
... e o rei procurou por seu filho Bahlawån, mas não o encontrou; vendo que
fugira, percebeu que fora ele o responsável por aquilo, e isso pesou muito sobre
o rei, sobre a população do reino e sobre a jovem ³åh ¿åtœn. Sulaymån ³åh
preparou o corpo de seu filho Malik ³åh e o enterrou; fizeram-lhe uma grande
recepção de condolências e se entristeceram muito por ele. O rei tomou a seu
cargo a educação do menino.
Quanto ao seu filho Bahlawån, seu poder aumentou consideravelmente depois
que fugiu e se refugiou no castelo; não lhe restava senão fazer guerra ao pai, cuja
amizade agora era toda devotada à criança, a quem ele criava sobre os próprios
joelhos e rogava a Deus viver para poder entregar-lhe o governo; quando
completou cinco anos, fê-lo montar a cavalo, e a população da cidade nutriu as
melhores expectativas em relação ao menino, para o qual rogavam uma longa
vida a fim de que imitasse os passos do pai e o coração do avô.
Quanto ao revoltoso Bahlawån, ele se pôs a serviço de Qayßar, rei de
Bizâncio,[386] nele buscando apoio para guerrear contra o pai. Os bizantinos
então se inclinaram a seu favor e lhe forneceram muitas tropas. Ao ouvir notícias
a tal respeito, Sulaymån ³åh enviou mensagem ao Qayßar dizendo: “Ó rei de
excelsa capacidade, não ajude um opressor contra mim. Ele é meu filho e fez
isso e aquilo, matou o irmão e o sobrinho no berço”, sem informar ao rei dos
bizantinos que o menino sobrevivera. Ao tomar conhecimento disso, o rei dos
bizantinos considerou o fato monstruoso e enviou mensagem dizendo a
Sulaymån ³åh: “Se você quiser, ó rei, decepar-lhe-ei a cabeça e a enviarei a
você”. A resposta foi: “Não tenho necessidade disso. Ele encontrará punição por
seus atos e maldades, se não hoje, amanhã”. Depois disso, passaram a trocar
mensagens e informações. O rei de Bizâncio ouviu falar a respeito da jovem ³åh
¿åtœn, de sua beleza e formosura; com o coração apaixonado por ela, enviou um
pedido de casamento a Sulaymån ³åh, que, impossibilitado de recusar, foi até a
jovem e lhe disse: “Minha filha, o rei dos bizantinos pediu a sua mão em
casamento. O que me diz?”. Ela chorou e respondeu: “Ó rei, como o seu coração
pode se aprazer em me falar dessa maneira? Por acaso quero algum marido
depois do meu primo?”. O rei disse: “Minha filha, você fala a verdade, mas nós
temos de ver as consequências das coisas. Eu levo a morte em consideração; já
estou velho e não tenho outra preocupação que não você e o seu filho pequeno.
Escrevi ao rei de Bizâncio e a outros reis dizendo que o tio o matou, sem revelar
que ele sobreviveu; ocultei o fato. Agora, o rei de Bizâncio escreveu pedindo-a
em casamento; não é algo que se recuse; queremos com ele fortalecer a nossa
retaguarda”. A moça se aquietou e não pronunciou palavra, e o rei Sulaymån ³åh
respondeu ao Qayßar de Bizâncio ouvindo e obedecendo; enviou-lhe a jovem, o
bizantino a possuiu e, verificando que era superior à descrição que lhe haviam
feito, seu afeto por ela aumentou tanto que lhe deu preferência sobre todas as
suas mulheres; seu afeto por Sulaymån ³åh também cresceu consideravelmente.
Mas o coração de ³åh ¿åtœn continuou ligado ao filho, a respeito do qual ela
nada podia falar.
Quanto ao filho de Sulaymån ³åh, o rebelde Bahlawån, ao ver que o rei de
Bizâncio se casara com ³åh ¿åtœn, isso se constituiu em um severo golpe para
ele, que perdeu as esperanças de ficar com ela. Já seu pai, Sulaymån ³åh, apegou-
se extremamente ao menino, ao qual deu o mesmo nome do pai, Malik ³åh, e,
quando ele atingiu a idade de dez anos, a população lhe fez juramento de
fidelidade e o rei o nomeou seu sucessor, morrendo ao cabo de alguns dias. Mas
Bahlawån tinha radicais defensores em um grupo de soldados, os quais lhe
enviaram mensagens e o trouxeram às escondidas; foram até o rei, o pequeno
Malik ³åh, prenderam-no e instalaram seu tio Bahlawån no trono, jurando-lhe
fidelidade e obediência; disseram-lhe: “Nós o quisemos e lhe entregamos o trono
do reino, mas não queremos que mate o seu sobrinho, pois a sua proteção está a
nosso encargo, e foi essa a nossa promessa e jura ao pai e ao avó dele”. Ele lhes
respondeu positivamente e prendeu o menino em uma masmorra[387] apertada.
Essa grave notícia chegou à mãe do menino, a qual, muito aflita e sem poder
contar nada, entregou a questão a Deus altíssimo. Ela não podia falar nada a seu
marido, o Qayßar, para não desmentir seu tio Sulaymån ³åh.

477 ª noite[388]
Quanto ao rebelde Bahlawån, ele se tornou rei no lugar de seu pai e controlou a
situação; o pequeno Malik ³åh permaneceu quatro anos na masmorra, após o que
as suas condições e sua figura se modificaram, e foi então que o excelso
altíssimo quis libertá-lo e tirá-lo da prisão. Certo dia, Bahlawån sentou-se com
alguns membros da corte e do governo e se pôs a conversar com eles sobre o seu
pai Sulaymån ³åh e sobre o que lhe ia pelo coração. Entre os presentes, estavam
alguns vizires de bem, que lhe disseram: “Ó rei, Deus lhe concedeu e o fez
chegar ao seu objetivo, tornando-o rei no lugar de seu pai; você atingiu o que
procurava. Qual a culpa do menino? Desde o dia em que nasceu nunca teve
sossego nem alegria. A figura dele se modificou e a condição se alterou. Que
culpa tem ele para merecer tamanho sofrimento? A culpa é de outros, sobre os
quais Deus lhe concedeu a vitória. Esse pobre coitado não tem culpa”. Então
Bahlawån disse: “O caso é como vocês dizem, mas temo a sua perfídia e não
confio em sua perversidade; quiçá a maioria das pessoas o apóie”. Disseram-lhe:
“Ó rei, o que ele poderia fazer? Qual a sua força? Se estiver com medo dele,
envie-o para alguma região recôndita”. Ele respondeu: “Vocês disseram a
verdade. Vamos enviá-lo como comandante em uma guerra longínqua”. Nesse
lugar, combatiam-se inimigos de coração cruel, e a intenção de Bahlawån era
que o rapaz fosse morto. Ordenou que fosse retirado da masmorra, aproximou-o
de si, examinou-lhe o estado, deu-lhe trajes honoríficos e todos ficaram
contentes com aquilo. Bahlawån concedeu-lhe autoridade, muitas tropas e o
enviou para aquela região, onde todos os enviados morriam ou caíam
prisioneiros. Malik ³åh foi com os seus soldados para lá, e eis que um dia,
subitamente, os inimigos os atacaram à noite. A maioria dos companheiros de
Malik ³åh fugiu, e os restantes foram aprisionados; levaram Malik ³åh prisioneiro
e o atiraram em um poço junto com alguns de seus camaradas, que muito se
lamentaram pela sua beleza e formosura. Malik ³åh ficou no poço por um ano
inteiro, enfrentando as piores condições. Quando foi o ano-novo, conforme era
hábito daqueles inimigos, os prisioneiros eram retirados e atirados do alto de
uma torre; jogaram-nos então, inclusive Malik ³åh, que conseguiu cair de pé,
nada sofrendo ao chegar ao solo,[389] pois a sua vida estava protegida. Os que
eram atirados morriam e ali ficavam até que as feras os devorassem e as
ventanias os dilacerassem. Malik ³åh ficou estirado no solo, desmaiado por todo
aquele dia e aquela noite. Ao acordar e se ver são e salvo, agradeceu a Deus
altíssimo e se pôs a caminhar sem destino, alimentando-se de folhas de árvores;
durante o dia, escondia-se em um canto qualquer, e à noite caminhava sem saber
para onde. Fez isso por dias até chegar a uma construção onde viu pessoas; foi
até elas e lhes contou o seu estado: estivera aprisionado na fortaleza, fora atirado
do alto da torre, e estava são e salvo por obra de Deus altíssimo. Condoídas,
aquelas pessoas lhe deram de comer e beber, e ele permaneceu com elas alguns
dias, ao cabo dos quais indagou sobre o caminho que levava até a cidade do rei
Bahlawån, sem lhes revelar que se tratava do seu tio. Informaram-lhe o caminho
e ele se pôs em marcha, descalço, até chegar às proximidades da cidade, nu,
famélico, magérrimo e pálido. Sentou-se diante dos portões da cidade, e eis que
de repente chegou um grupo de cortesãos do seu tio Bahlawån. Estavam caçando
e, pretendendo dar de beber aos cavalos, apearam-se para descansar. O rapaz foi
até eles e disse: “Quero perguntar-lhes algo que vocês sabem”. Responderam:
“Fale o que deseja”. Perguntou-lhes: “O rei Bahlawån está vivo?”. Os homens
riram-se dele e disseram: “Como você é tonto, seu moleque! Estrangeiro e
vagabundo, de onde é para vir perguntar sobre reis?”. Ele respondeu: “É meu
tio!”. Espantados, disseram: “Era uma só questão, mas agora são duas”, e lhe
perguntaram: “Rapaz, parece que você é maluco. De onde esse parentesco com
reis? Não sabemos senão que ele tinha um sobrinho preso que foi enviado para
combater os infiéis, e estes o mataram”. Ele respondeu: “Sou eu mesmo. Eles
não me mataram. Sucedeu-me isso e aquilo...”. Então os homens o reconheceram
e imediatamente se puseram de pé diante dele, beijaram-lhes as mãos e, muito
contentes, disseram-lhe: “Ó senhor, você de fato era rei e filho de rei. Não lhe
desejamos senão o bem; rogamos-lhe vida longa! Veja como Deus o salvou de
seu tio opressor, que o enviou para um lugar do qual ninguém se salva, com o
único intuito de liquidá-lo! Você foi exposto à morte e Deus o salvou dela. Como
então você torna a se jogar nas mãos do inimigo? Por Deus, salve-se e não
retorne a ele de novo! Quiçá você se mantenha vivo sobre a face da terra até
quando Deus altíssimo quiser. Se acaso você cair nas mãos de Bahlawån mais
uma vez, ele não irá deixá-lo vivo uma única hora!”. O rapaz lhes agradeceu e
disse: “Deus os recompense por mim com todo o bem, pois vocês me
aconselharam. Aonde ordenam que eu vá?”. Responderam-lhe: “Para a terra dos
bizantinos, onde está a sua mãe”. Ele disse: “Quando o rei dos bizantinos
escreveu ao meu avô Sulaymån ³åh, pedindo a mão de minha mãe, ela ocultou a
minha existência, manteve-a em segredo, e não posso desmenti-la”. Disseram-
lhe: “É verdade. Seja como for, nós queremos ajudá-lo. Até mesmo se servir
alguém como criado será melhor”.

478 ª noite
Então, cada um daqueles homens sacou uma quantia, que juntaram e entregaram
a ele, dando-lhe também roupas e alimento. Caminharam ao seu lado por cerca
de uma parasanga, distanciando-o da cidade e informando-o de que já estava a
salvo, e se retiraram. O rapaz caminhou até sair dos domínios de seu tio e entrar
no domínio dos bizantinos, ali se dirigindo a uma aldeia onde se empregou como
criado de um dos moradores, a quem serviu como agricultor, além de outros
serviços. Quanto à sua mãe ³åh ¿åtœn, tornaram-se muito agudas as saudades
que ela tinha do filho, em quem não parava de pensar e cujas notícias haviam se
interrompido, tornando-lhe a vida um desgosto; já não dormia e lhe era
impossível falar a respeito diante de seu marido, o rei Qayßar. Quando se casara,
viera junto com ela, da parte de seu tio Sulaymån ³åh, um criado ajuizado,
inteligente e sábio. Certo dia, a sós com ele, ela chorou e lhe disse: “Você me
serve desde que sou pequena! Não poderia descobrir notícias do meu filho? Já
não consigo falar por causa dele!”. Ele respondeu: “Minha senhora, esse é um
assunto que ocultei desde o início. Mesmo que o seu filho estivesse aqui, você
não poderia admitir o fato, sob risco de perder o respeito do rei, e ninguém
jamais acreditaria, pois já se espalhou a notícia de que o seu filho foi morto pelo
tio”. Ela disse: “A questão é como você afirma; suas palavras são verdade.
Porém, só quero saber se o meu filho está vivo, não importa que esteja deste lado
da fronteira pastoreando ovelhas, não importa que não me veja e que eu não o
veja!”. O criado perguntou: “E qual seria a artimanha neste caso?”. Ela
respondeu: “Eis aí o meu dinheiro e as minhas reservas. Leve o quanto quiser e
traga-o para mim, ou ao menos notícias dele”. Assim, ambos entabularam uma
artimanha entre si, alegando que tinham coisas a resolver em seu país: desde a
época de seu marido Malik ³åh, ela possuía lá dinheiro enterrado, cuja
localização ninguém conhecia com exceção do criado, que iria trazer esse
dinheiro. ³åh ¿åtœn informou o rei daquilo e pediu permissão para o criado, que
a recebeu e partiu, com a recomendação de elaborar alguma artimanha para
passar despercebido.
Disse o narrador: o criado partiu vestido de mercador e entrou na cidade de
Bahlawån, pondo-se a espionar sobre a situação do rapaz e sendo informado de
que estivera aprisionado em uma masmorra, da qual o tio o retirara e enviara
para o local tal e tal, onde fora morto. Aquela informação pesou muito sobre o
criado, oprimindo-lhe o peito e deixando-o sem saber o que fazer. Ocorreu então
que, certo dia, um dos cavaleiros que haviam topado com o pequeno Malik ³åh
na entrada da cidade, dando-lhe roupas, alimento e dinheiro, avistou o criado na
cidade, e o reconheceu apesar dos trajes de mercador; perguntou-lhe como
estava e sobre os motivos de sua vinda. O criado respondeu: “Vim vender
mercadorias”. O cavaleiro lhe disse: “Vou revelar-lhe algo; conseguirá você
guardar segredo?”. O criado perguntou: “O que é?”. O cavaleiro respondeu: “Eu
e alguns cavaleiros que estavam comigo encontramos o filho do rei Malik ³åh no
lugar tal e lhe fornecemos provisões, roupas e dinheiro, mandando-o ir para os
lados da terra dos bizantinos, próximo da mãe, pois temíamos que seu tio
Bahlawån o matasse”, e lhe contou tudo quanto se passara. Com a fisionomia
alterada, o criado disse ao cavaleiro: “Peço-lhe garantia de vida”, e o cavaleiro
respondeu: “Garantia concedida, garantia concedida, ainda que você tenha vindo
atrás dele”. O criado disse: “É esse o meu objetivo! A mãe dele já não sabe o que
é paz, sono ou vigília! Ela me enviou para descobrir notícias dele”. O cavaleiro
disse: “Vá em paz. Ele está no lado bizantino da fronteira, conforme eu lhe
disse”. O criado agradeceu, rogou por ele, e cavalgou o caminho de volta,
seguindo rastros. O cavaleiro o acompanhou até parte do caminho, e lhe disse:
“Foi aqui que nos separamos dele”, e fez meia-volta, retornando ao seu país. O
criado prosseguiu o caminho, perguntando sobre o rapaz em cada aldeia onde
entrava, descrevendo-o tal como o descrevera para ele o cavaleiro; seguiu agindo
assim até entrar na aldeia onde o rapaz se encontrava...

479 ª noite
... ali entrando e se hospedando; indagou do rapaz e ninguém lhe deu notícias;
perplexo, fez menção de ir embora: montou em seu cavalo, atravessou a aldeia, e
avistou uma besta amarrada e um rapaz dormindo ao seu lado com as rédeas na
mão; olhou para ele e passou, sem que o seu coração questionasse a respeito;
logo adiante, porém, parou e pensou: “Se o rapaz que estou procurando já está
do tamanho daquele rapaz adormecido por quem passei, como vou reconhecê-
lo? Ó meu longo cansaço, ó minha longa privação! Como posso estar
procurando uma pessoa que não conheço, e que, se acaso eu vir próxima de
mim, não reconhecerei?”. Em seguida, retomou as reflexões acerca do rapaz
adormecido e foi até ele, que continuava dormindo. Apeou-se do cavalo, sentou-
se ao seu lado e se pôs a contemplá-lo, examinando-lhe o rosto com atenção.
Pensou: “Se porventura eu sei alguma coisa, esse rapaz é Malik ³åh!”, e começou
a sacudi-lo, dizendo: “Ó rapaz!”, e o rapaz despertou e se sentou. O criado lhe
perguntou: “Quem é o seu pai nesta aldeia? Onde é a sua casa?”. Entristecido, o
rapaz respondeu: “Sou forasteiro”. O criado perguntou: “De que país é você?
Quem é o seu pai?”. Ele respondeu: “Do país tal”. E o criado não cessou de
perguntar, e o rapaz de responder, até que se certificou e o reconheceu; levantou-
se, abraçou-o, beijou-o, chorou por seu estado, informou-o de que o vinha
procurando, e contou-lhe que viera às escondidas do rei, marido de sua mãe, a
qual ficaria satisfeita em saber que ele estava com saúde, mesmo sem vê-lo. Em
seguida, o criado entrou na aldeia, comprou um cavalo, fez o rapaz montar, e
ambos se mantiveram cavalgando até chegarem às cercanias de sua cidade,
sendo ali atacados por ladrões que lhes roubaram tudo, amarraram-nos,
arrojaram-nos em um poço à beira do caminho, e partiram deixando-os para
morrer naquele local, onde já haviam atirado muita gente, que ali morrera. O
criado começou a chorar e o rapaz lhe perguntou: “Que choro é esse? Que
utilidade ele terá aqui?”. O criado respondeu: “Não choro por medo da morte,
mas sim de tristeza por você, pela sua má situação e pelo coração de sua mãe.
Depois de todos os horrores a que foi submetido! Morrer, depois de enfrentar
tantas provações, esta morte humilhante!”. O rapaz respondeu: “Tudo o que me
sucedeu já estava escrito, e o que está escrito ninguém pode apagar. Se a minha
hora tiver soado, ninguém poderá retardá-la”.

480 ª noite
Passaram ambos ali aquela noite, o dia seguinte, a segunda noite, o segundo
dia... até que a fome os enfraqueceu tanto que passaram a emitir um débil
gemido. Ocorreu então, mediante a sabedoria de Deus altíssimo e o seu poder,
que o rei de Bizâncio, Qayßar, marido de sua mãe ³åh ¿åtœn, perseguisse, junto
com alguns companheiros, uma caça que acossaram até as proximidades daquele
poço. Um dos membros da comitiva se apeou do cavalo para sacrificar a presa
na beira do poço e, ouvindo leves gemidos provenientes do fundo, montou
novamente, reuniu-se à comitiva e informou aquilo ao rei, que ordenou a um de
seus criados que descesse ao fundo do poço, de onde regressou carregando o
rapaz e o criado, cujas amarras foram rompidas; como ambos estavam
desmaiados, passaram a jogar-lhes bebida na boca até que despertaram. O rei
olhou para o criado, reconheceu-o e disse: “Fulano?”. O criado respondeu: “Sim,
meu senhor rei!”, e se prosternou. Sumamente espantado, o rei perguntou:
“Como chegou a este lugar? O que lhe sucedeu?”. O criado respondeu: “Viajei,
recolhi o dinheiro e o carreguei até aqui; porém, havia espias me observando
sem que eu soubesse; armaram uma tocaia aqui, levaram o dinheiro e nos
atiraram no poço para que morrêssemos de resignação, tal como fizeram com
outros. Mas Deus altíssimo piedosamente o enviou a nós”. O rei e sua comitiva
ficaram espantados, enquanto ambos louvavam a Deus altíssimo pela chegada do
rei até eles naquele lugar.

481 ª noite
Voltando-se para o criado, o rei perguntou-lhe: “Quem é esse rapaz que está com
você?”. O criado respondeu: “Ó rei, esse é o filho de uma aia que nos pertencia e
a quem deixamos pequeno. Hoje eu o vi e sua mãe me disse: ‘Leve-o com você’,
e então eu o tomei como companhia para ser criado do rei, pois trata-se de um
rapaz esperto e inteligente”. O rei, sua comitiva, o criado e o rapaz se puseram
em marcha, e durante o caminho o rei perguntou ao criado sobre Bahlawån e sua
conduta com os súditos. O criado respondeu: “Por sua cabeça, meu senhor, que
com ele as pessoas estão consideravelmente prejudicadas; ninguém gosta de vê-
lo, seja da nobreza, seja do povo”.
O rei foi até a sua esposa ³åh ¿åtœn e lhe disse: “Dou-lhe a boa-nova da
chegada de seu criado”, e lhe relatou tudo quanto sucedera a ele, falando-lhe
também a respeito do rapaz que viera com o criado. A mulher quase voou de
ansiedade ao ouvir aquilo e quis gritar, só sendo impedida por seu juízo. O rei
perguntou: “O que você tem? É tristeza pelo dinheiro ou pelo criado?”. Ela
respondeu: “Não, por sua cabeça, ó rei! É que as mulheres são mesmo débeis de
coração”. Depois, o criado foi ter com ela, deixando-a a par de tudo quanto lhe
ocorrera, e também do estado de seu filho, das dificuldades que enfrentara, de
como o tio o expusera à morte, de como fora aprisionado, jogado em um poço,
atirado do alto de uma torre, e de como Deus o salvara de todas essas
dificuldades. Enquanto o criado contava, ela chorava, e depois lhe perguntou:
“Quando o rei o viu e lhe perguntou sobre ele, o que você respondeu?”. O criado
disse: “Respondi que ele é filho de uma aia que nos pertencia e a quem deixamos
pequeno; ele cresceu e eu o trouxe comigo para ser criado do rei”. Ela disse:
“Muito bem”.

482 ª noite
Depois, ela recomendou ao criado que zelasse pelos serviços do rapaz ao rei, que
passou a tratá-lo muito bem. Uma nova fortuna foi escrita para o rapaz, que
entrava e saía do palácio do rei, a quem servia o dia inteiro, e diante do qual sua
posição melhorava sempre. Quanto a sua mãe ³åh ¿åtœn, ela se punha a observá-
lo através da varanda e das janelas, olhando para o filho e ardendo por sua causa,
sem poder dirigir-lhe a palavra; tendo passado um longo tempo naquela situação,
morta de saudades dele, certo dia ela parou na porta do quarto e o abraçou,
beijando-o no rosto e no peito; estava nessa situação quando o mestre do palácio
real subitamente saiu e a viu abraçando-o; perplexo, perguntou a quem pertencia
o quarto, e lhe responderam que a ³åh ¿åtœn, esposa do rei. O homem retornou
tremendo como um raio, a tal ponto que o rei lhe perguntou: “Ai de você! Qual é
a nova?”. Ele respondeu: “Ó rei, e qual nova pode ser mais terrível do que eu
vi?”. O rei disse: “E o que você viu?”. O homem respondeu: “Vi aquele rapaz
que o criado trouxe consigo; ele não veio senão por causa de ³åh ¿åtœn, pois
agora mesmo passei pela porta do quarto dela e a vi abraçando-o e beijando-o no
rosto”.
Ao ouvir aquilo, o rei abaixou a cabeça, perplexo e assombrado; em seguida,
ajeitou-se no trono, pegou na barba e começou a puxá-la, quase arrancando-a.
Levantou-se imediatamente, agarrou o rapaz e o prendeu, junto com o criado, em
uma masmorra do palácio; depois foi até ³åh ¿åtœn e disse: “Por Deus que você
fez muito bem, ó filha dos livres, ó mulher que os reis pediram em casamento
graças à sua fama excelente e às belas histórias sobre si! Mas o que é a sua
essência interior? Amaldiçoe Deus aqueles cujo interior é oposto ao exterior, tal
como a sua abjeta figura, cuja aparência é graciosa mas cuja essência é
horrorosa! Rosto gracioso e ações horrorosas! Quero fazer de você e daquele
traste uma lição para todas as pessoas. Você não enviou seu criado senão atrás
dele, para trazê-lo e introduzi-lo em minha casa, pisando com ele na minha
cabeça. Isso não é senão um enorme atrevimento, mas você verá o que lhes
farei!”. Em seguida, cuspiu-lhe no rosto e saiu. ³åh ¿åtœn nada falou, sabedora
de que, se dissesse algo naquele momento, ele não acreditaria, e implorou a Deus
altíssimo dizendo: “Ó Deus poderoso, você conhece as coisas secretas, as
exteriores e as interiores! Se a minha hora tiver soado, que não se retarde, mas,
se não tiver, que se retarde!”.

483 ª noite[390]
Passaram-se alguns dias e a situação continuou a mesma. Mergulhado em
cismas, o rei já não comia, bebia ou dormia, sem saber o que fazer, e dizendo:
“Se eu matar o criado e o rapaz, minha alma não se sentirá satisfeita, pois eles
não têm culpa; foi ela que mandou trazê-lo. Se eu matar todos os três... minha
alma não me permitirá fazer isso! Vou, isto sim, postergar-lhes a morte, pois
temo arrepender-me”. Deixou-os um tempo, portanto, para estudar o caso. O rei
tinha uma velha aia sobre cujos joelhos ele se criara; tratava-se de uma mulher
inteligente, que ficou intrigada com ele, e, impossibilitada de vê-lo, foi ter com
³åh ¿åtœn, constatando que ela se encontrava em pior estado que o rei;
perguntou-lhe: “Quais são as notícias?”, mas, como a mulher se mostrasse
desconfiada, pôs-se a agradá-la e a indagá-la com palavras gentis, até que ³åh
¿åtœn a fez jurar segredo; a velha jurou que guardaria segredo de tudo quanto
lhe dissesse, e então a mulher lhe contou sua história de cabo a rabo, e que o
rapaz era seu filho.
Disse o narrador: nesse momento, a velha se prosternou diante dela e disse:
“Esta é uma questão fácil de resolver”. A rainha perguntou: “Por Deus,
mãezinha, que prefiro morrer e que meu filho morra a afirmar algo em que não
acreditarão e dirão: ‘Ela está alegando isto para afastar a infâmia’. Não tenho
mais remédio senão esperar”.
Disse o narrador: apreciando-lhe as palavras e a inteligência, a velha lhe
disse: “O caso é como você diz, minha filha. Rogo a Deus que demonstre a
verdade. Paciência, pois imediatamente irei ao rei ouvir o que ele tem a dizer, e
depois prepararei algo a respeito, se Deus altíssimo quiser”, e se levantou, indo
ao encontro do rei, a quem encontrou com a cabeça entre as pernas, desesperado;
sentou-se ao seu lado alguns instantes, dirigiu-lhe palavras amáveis e disse:
“Meu filho, você está me queimando o coração, pois já faz alguns dias que não
cavalga, aí desesperado, sem que eu saiba o que tem!”. Ele respondeu: “É tudo
por causa daquela maldita, minha mãe! Embora eu pensasse bem a seu respeito,
ela fez comigo isso e aquilo...”, e lhe contou tudo de cabo a rabo. A velha disse:
“Essa preocupação toda por causa de uma mulher sem valor!”. Ele disse: “Agora
só estou pensando em como irei matá-los, a fim de que as pessoas os tomem
como lição”. Ela disse: “Meu filho, muito cuidado com a pressa, pois a sua
herança é o arrependimento. Não lhe faltará ocasião para matá-los. Quando você
se certificar disso, aja como bem entender”. Ele disse: “Minha mãe, a questão
não requer investigações. O fato é que ela mandou o criado, e o criado trouxe o
rapaz para ela”. Ela disse: “Esta é uma coisa que temos como fazê-la confessar, e
você descobrirá tudo o que passa pelo coração dela”.

484 ª noite
O rei perguntou: “E como fazer isso?”. Ela respondeu: “Eu lhe trarei um coração
de pavão; quando ela estiver dormindo, coloque-o sobre o peito dela e lhe
pergunte tudo quanto quiser, pois ela será sincera e a verdade ficará
demonstrada”. Muito contente, o rei disse: “Traga logo, e que ninguém saiba!”.
A velha se retirou, foi até ³åh ¿åtœn e disse: “Resolvi o seu problema. Vai ser
assim: esta noite, quando o rei entrar aqui, finja estar dormindo e, a toda
pergunta que ele lhe fizer, responda dormindo”.
Disse o narrador: a rainha lhe agradeceu, e a velha saiu, arranjou um coração
de pavão e o entregou ao rei, que mal pôde esperar o anoitecer, quando então foi
até a rainha, sentou-se ao seu lado – ela estava deitada dormindo –, e depositou o
coração de pavão sobre o seu peito. Parou uns instantes para certificar-se de que
ela ainda dormia e lhe perguntou: “É essa a recompensa que você me dá, ³åh
¿åtœn?”. Ela perguntou: “E qual é o delito?”. Ele disse: “Qual delito pode ser
maior que esse? Você mandou buscar o tal garoto e o trouxe por causa da paixão
de seu coração, para fazer com ele o que desejar”. Ela respondeu: “Não conheço
a paixão, e entre os seus criados existe quem seja mais belo e formoso que ele.
Não estou apaixonada por ninguém”. Ele perguntou: “Então por que você o
agarrou e beijou?”. Ela respondeu: “Ele é meu filho, pedaço do meu fígado. Era
tanta a minha saudade, e tanto o meu afeto, que não pude conter-me, e me atirei
sobre ele e o beijei”. Ao ouvir aquilo, perplexo e assombrado, o rei disse: “Você
argumenta que se trata de seu filho, mas tenho comigo uma carta com a letra de
seu tio Sulaymån ³åh, na qual ele afirma que o menino foi degolado por seu tio
Bahlawån”. Ela respondeu: “Sim, ele tentou degolá-lo, mas não lhe rompeu a
jugular. Meu tio mandou costurar o ferimento e o criou, pois a sua hora ainda
não havia soado”. Ouvindo aquilo, o rei disse: “Basta-me esse argumento”, e
naquele mesmo instante, no meio da noite, mandou trazer o rapaz e o criado,
examinou a garganta do menino à luz de velas, e viu que estava cortada de uma
orelha a outra; era uma cicatriz que parecia uma linha esticada. Nesse momento
o rei se prosternou para Deus por ter salvado o garoto de todos os terrores e
dificuldades que enfrentara, extremamente feliz por ter adiado e não apressado a
execução, que lhe provocaria enorme arrependimento. O garoto não se salvara
senão porque sua hora não soara.
[Prosseguiu o rapaz:] “Também eu, ó rei, tenho uma hora que vai soar e um
período que devo cumprir. Seja como for, rogo a Deus altíssimo que me auxilie
contra esses perversos vizires”.
Disse o narrador: assim que o rapaz encerrou a história, o rei disse:
“Devolvam-no à prisão”, e, quando isso foi feito, ele se voltou para os vizires e
lhes disse: “Esse rapaz está disparando a língua contra vocês. Bem sei dos seus
cuidados para com o meu governo, e dos seus conselhos; acalmem os seus
corações, pois farei tudo quanto vocês sugerem”. Ouvindo aquelas palavras, os
vizires exultaram e cada um deles se pôs a dizer algo. O rei disse: “Não lhe adiei
a execução senão para que se prolonguem as conversas e aumentem as histórias;
é absolutamente imperioso que ele morra, e para tanto quero que vocês espetem
um poste de madeira nos confins da cidade e que um arauto convoque o povo a
reunir-se, pegá-lo e carregá-lo até esse poste, enquanto o arauto grita: ‘Este é o
castigo de quem, aproximado pelo rei, pratica a traição!’”. Os vizires ficaram tão
felizes em ouvir aquilo que não dormiram aquela noite; mandaram divulgar a
notícia, instalaram o poste e, de manhã, já estavam às portas do rei, a quem
disseram: “Ó rei, as pessoas estão aglomeradas desde a sua porta até o local onde
está o poste, para presenciar a realização das ordens do rei com relação ao
rapaz”.

Décimo primeiro dia do apressamento da liberdade com a felicidade
Disse o narrador: no décimo primeiro dia, os vizires compareceram e o povo se
aglomerou. O rei ordenou que o rapaz fosse trazido, e, quando ele chegou, os
vizires se voltaram para ele e lhe perguntaram: “Seu rapaz de vil origem, você
ainda ambiciona viver? Ainda espera a salvação depois de hoje?”. Ele
respondeu: “Seus vizires perversos, e por acaso alguma pessoa com inteligência
perde as esperanças em Deus altíssimo? Por mais que a pessoa seja injustiçada, a
libertação lhe advirá do meio da adversidade, e a vida, do meio da morte”.

HISTÓRIA DE COMO O PRISIONEIRO FOI POR DEUS LIBERTADO
O rei perguntou: “E como foi essa história?”. O rapaz respondeu:
Conta-se, ó rei, que certo rei tinha um elevado palácio que dava para uma de
suas prisões. Toda noite ele ouvia alguém dizer: “Ó aproximador da libertação, ó
doador da libertação, liberte-me!”. Certa feita o rei se encolerizou e disse: “Esse
estúpido pretende libertar-se de seu crime!”...

485 ª noite
... e então indagou: “Quem está nessa prisão?”. Responderam-lhe: “Um
homem[391] sobre o qual encontramos sangue”. Após ordenar que lhe
trouxessem aquele homem, o rei lhe perguntou: “Seu estúpido, homem de pouca
inteligência, como pretende escapar dessa prisão, tendo cometido um crime tão
terrível?”. Entregou-o então a alguns soldados e lhes disse: “Levem-no e
crucifiquem-no nos arredores da cidade”. Era noite, e os soldados conduziram-
no para fora da cidade na intenção de crucificá-lo, mas, tendo sido subitamente
atacados por ladrões de espada em punho e armas, largaram-no, e então aquele
homem que caminhava para a crucificação escapou, correndo sem parar por
terras inóspitas. Quando deu por si estava em uma floresta, onde foi atacado por
um leão de aspecto aterrorizante, que o agarrou e se sentou sobre ele; em
seguida, foi até uma árvore, arrancou-a, colocou-a sobre o homem, e saiu em
busca de uma leoa. Durante todo esse tempo, o homem continuou confiando que
Deus altíssimo o libertaria; pensou: [“Isto não é senão uma guerra; não é hora de
dormir”. Saiu de baixo da árvore],[392] retirou as folhas, e viu então naquele
lugar muitos ossos de pessoas que o leão devorava; aguçou o olhar, e eis que viu
um monte de ouro, jogado, a perder de vista. Admirado, o homem se pôs a
recolher ouro no colo e depois saiu correndo da floresta, sem se voltar para a
direita nem para a esquerda, tamanho era seu medo do leão; continuou correndo
até chegar a uma aldeia, e desabou como morto, assim ficando até o amanhecer;
recuperado das fadigas, enterrou o ouro, entrou na cidade, e Deus o libertou.
Depois, ele recolheu o ouro.
O rei disse ao rapaz: “Até quando, rapaz, vai nos enganar com a sua conversa?
Já é hora de matá-lo”, e ordenou que o crucificassem no poste. Quando
começaram a levantá-lo, eis que o chefe dos ladrões, aquele que o encontrara e
criara, chegava à cidade naquele instante; perguntou: “Que aglomeração é essa?
Quem são esses coitados aqui reunidos?”, e então lhe informaram que o rei tinha
um criado que cometera um delito gravíssimo e agora ia matá-lo. O chefe dos
ladrões abriu caminho, olhou para o rapaz, reconheceu-o, avançou até ele,
abraçou-o, pôs-se a beijá-lo na boca e disse: “Encontrei esse menino na
montanha tal, enrolado em um manto de brocado, e o criei; ele passou a assaltar
conosco e, certo dia, atacamos uma caravana que nos derrotou e feriu muitos de
nós; levaram o garoto, e desde esse dia vago por todo lugar atrás dele, mas até
agora não havia conseguido nenhuma notícia. É ele!”. Ao ouvir aquilo, o rei se
convenceu de que verdadeiramente se tratava de seu filho, gritou alto com todas
as forças e se atirou sobre ele, abraçando-o, beijando-o e chorando; disse: “E eu
que pretendia matá-lo para depois morrer de arrependimento!”. Em seguida,
rompeu-lhe as amarras, tirou a coroa, colocou-a na cabeça do filho, e o som das
trombetas e dos tambores se alteou; uma enorme alegria se manifestou e a cidade
foi enfeitada. Foi um dia tão portentoso que até os pássaros pararam no ar, por
causa da gritaria e do alarido. Soldados e povo carregaram com esplendor o
rapaz, e a notícia chegou até a sua mãe, Bahrajœr, que saiu e se atirou sobre ele.
O rei ordenou que as prisões fossem abertas e retirados todos quantos nelas
estivessem. Durante sete dias e sete noites promoveram festanças e ficaram
muitíssimo felizes.
Isso foi o que sucedeu ao rapaz. Quanto aos vizires, desabou sobre eles o
pavor, o silêncio, a vergonha e o medo, pois estavam certos da morte. O rei fez o
menino sentar-se diante de si, com os vizires ali acomodados, e ordenou que
entrassem os membros da corte e a gente da cidade. O rapaz se voltou para os
vizires e lhes perguntou: “Viram, seus vizires perversos, a ação de Deus e a
aproximação da libertação?”, mas eles não pronunciaram palavra. O rei disse:
“Basta-me que hoje ninguém, nem mesmo os pássaros no céu, deixou de se
alegrar por mim! Vocês, contudo, parece que estão com o peito opresso! Esta é a
maior hostilidade que poderiam demonstrar por mim. Se lhes tivesse dado
ouvidos, meu arrependimento se prolongaria e eu morreria de tristeza e
resignação”. O rapaz disse: “Meu pai, não fossem os seus bons pensamentos, a
sua visão, a morosidade e a reflexão acerca das coisas, você agora não teria sido
alcançado por tamanha felicidade; se acaso me houvesse matado rapidamente,
aumentariam em muito o seu arrependimento e a sua tristeza. Assim é: quem se
apressa se arrepende”.

486 ª noite
Em seguida, o rei mandou trazer o chefe dos ladrões, a quem ordenou que se
desse um traje honorífico, determinando ainda que todo aquele que gostasse do
rei deveria dar trajes honoríficos ao chefe dos ladrões, e estes despencaram em
tal quantidade sobre ele que o cansaram; em seguida, nomeou-o chefe da polícia
local. Também ordenou que instalassem outros nove postes ao lado do poste já
instalado, e disse ao filho: “Você não tinha culpa, mas esses vizires perversos
buscavam matá-lo”. O rapaz disse: “Eu não tinha outra culpa que não a tentativa
de aconselhá-lo, meu pai. Como você protegeu o seu governo e afastou as mãos
deles dos seus tesouros, os vizires ficaram com ciúme e inveja de mim, e a raiva
contra mim os levou a desejar a minha morte”. O rei disse: “A hora deles já se
aproximava, meu filho! Que tal fazermos com eles o mesmo que pretenderam
fazer com você? Esforçaram-se para matá-lo, infamaram-no, caluniaram a minha
intimidade entre os reis...”. Então, voltando-se para os vizires, o rei lhes disse:
“Como vocês são mentirosos! Qual desculpa lhes resta?”. Responderam: “Ó rei,
nenhuma desculpa nos resta. A má ação que pretendíamos contra esse vil rapaz
se voltou contra nós; nós lhe desejávamos o mal e o mal encontramos; cavamos
um poço para ele e nesse poço fomos atirados!”. Nesse momento o rei ordenou
que os vizires fossem pendurados nos postes, e que ali fossem crucificados, pois
Deus é justo e dá os direitos.
E o rei ficou com o seu filho e a sua esposa vivendo em alegria e felicidade,
até que lhes sobreveio o destruidor dos prazeres[393] e morreram todos.
Exalçado seja o vivo que nunca morre, aquele que detém a glória e cuja
misericórdia está sobre nós até a eternidade, amém.

ANEXO 2

A SÉTIMA VIAGEM DE SINDABÅD

Conforme se observa nas notas à tradução (páginas 189 a 218) e no posfácio a
este volume, o texto da sétima viagem de Sindabåd nas edições impressas de
Bœlåq, Calcutá 2.ed. e Breslau, e do manuscrito “Z13523”, é inteiramente
diverso do texto do manuscrito “Arabe 3615”. Por esse motivo, considerou-se
adequado traduzir esse texto diferente da sétima viagem, de modo integral, no
presente anexo. Utilizou-se a edição de Bœlåq, cujo texto é, na prática, idêntico
ao de Calcutá 2.ed. e ao do manuscrito “Z13523” (aqui genericamente
designados como “compilação tardia”), e levemente distinto do da edição de
Breslau.


E quando foi a 563 ª noite
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após o navegante Sindabåd ter
realizado o relato de sua sexta viagem, cada um tomou seu rumo, e o Sindabåd
terrestre dormiu em sua casa. Em seguida, fez a prece matinal e regressou à casa
do navegante Sindabåd. Os outros também foram chegando e, quando o grupo se
completou, o navegante Sindabåd tomou a palavra para contar a história da
sétima viagem. Disse:
Saiba, minha gente, que após retornar de minha sexta viagem, retomei o que
eu vivera em tempos d’antanho: alegria, regozijo, diversão e música. Mantive-
me nessa condição por algum tempo, em contínua e diuturna felicidade e
satisfação, pois já obtivera muitos ganhos e magníficos proventos. Mas a minha
alma teve anelos de passear por outros países, de fazer-se ao mar, de conviver
com os mercadores e de ouvir relatos; assim, movimentei-me para tanto, amarrei
fardos para o comércio marítimo com mercadorias luxuosas e as transportei da
cidade de Bagdá para a de Basra, onde vi um navio preparado para viajar, com
um grupo de grandes mercadores a bordo; embarquei com eles, entabulei
camaradagem e zarpamos, [na mais extrema alegria e felicidade; o navio nos foi
agradável, com a permissão de Deus altíssimo, e fomos de cidade em cidade,
viajando dias e noites, passeando de ilha em ilha e de mar em mar,][394] e
conversando uns com os outros sobre questões de viagem e comércio. Enquanto
estávamos nessa situação, eis que uma violenta borrasca nos atingiu pela proa, e
despencou sobre nós uma forte chuva que nos encharcou, bem como aos nossos
fardos, os quais cobrimos com feltro e lona, por medo de que as mercadorias se
estragassem, e pusemo-nos a rogar a Deus altíssimo, suplicando-lhe que nos
salvasse daquilo. Nesse momento, o capitão apertou o cinto, arregaçou as
mangas, subiu ao mastro e, após voltar-se à direita e à esquerda, olhou para os
passageiros e se pôs a estapear o próprio rosto e a arrancar a barba. Perguntamos:
“Qual a notícia, capitão?”, e ele respondeu: “Peçam a Deus altíssimo a salvação
disso em que nos metemos! Chorem a perda de suas próprias vidas, despeçam-se
uns dos outros, e saibam que a borrasca nos derrotou e arrojou para os confins
dos mares do mundo!”. Em seguida, desceu do mastro e abriu uma caixa, dela
retirando um saco de algodão; abriu-o e dele retirou uma terra que parecia cinza,
umedeceu-a com água, esperou um pouco e a cheirou; em seguida, retirou da
mesma caixa um pequeno livro, leu-o e nos disse: “Saibam, passageiros, que há
neste livro algo espantoso: ele indica que todo aquele que chega até esta terra
dela não se salva, mas sim morre; ela se chama Região dos Reis,[395] e nela se
localiza o túmulo de nosso senhor Salomão filho de Davi, esteja a paz sobre
ambos; existem aqui víboras de tamanho colossal e monstruosa aparência; todo
navio que chega a esta região é atacado por um monstro marinho[396] que o
engole com tudo quanto contém!”. Ficamos sumamente espantados com essas
palavras do capitão; mal terminou ele de falar, o navio começou a se erguer e
baixar no mar; ouvimos um grito portentoso, semelhante ao trovão tonitruante,
que nos deixou aterrorizados; parecendo mortos, certos da aniquilação naquele
momento, eis que um monstro marinho avançava qual montanha elevada em
direção ao navio. Amedrontados, choramos por nossas vidas, um choro copioso,
e nos preparamos para morrer, olhando assombrados para a monstruosa
aparência daquele animal, e então eis que surgiu, vindo em nossa direção, outro
animal maior ainda! Começamos a nos despedir uns dos outros, chorando a
perda de nossas vidas, e eis que um terceiro animal surgiu, maior ainda que os
dois anteriores! Quedamo-nos inconscientes, sem nada entender, as mentes
estarrecidas de tanto medo e pavor! Os três animais se puseram a girar em torno
do navio. O terceiro se preparou para abocanhar o navio com tudo quanto
continha, até que de súbito um violento vendaval assoprou e ergueu a
embarcação, que, ao cair, se quebrou e despedaçou em muitíssimas partes,
dispersando-se todas as suas tábuas e afundando-se a totalidade dos seus fardos,
mercadores e passageiros. Arranquei todas as minhas roupas, deixando somente
uma, e nadei um pouco, alcançando assim uma das tábuas, à qual me agarrei e
subi, enquanto as ondas e os ventos me fustigavam sobre a água, e eu me
agarrava com força àquela tábua, as ondas erguendo-me e baixando-me. Meu
sofrimento, medo, fome e sede eram enormes, e comecei a me censurar por ter
feito aquilo: submeter-me a tais fadigas após ter conquistado tanto conforto.
Disse para mim mesmo: “Ó Sindabåd, ó navegante! Você não desiste, apesar de
sempre padecer dificuldades e fadigas! Não desiste de navegar! E, mesmo que
desista, será uma desistência mentirosa! Sofra, portanto, tudo quanto sofrer!
Você merece!”.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.


E quando foi a 564 ª noite
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao naufragar, o navegante Sindabåd
disse de si para si: “Eu mereço tudo quanto me acontece. Tudo isso me foi
predestinado por Deus altíssimo, a fim de que eu abandone a ambição, pois isso
que estou sofrendo se deve a ela. E eu já tenho tanto dinheiro!”. E continuou:
Recobrando a razão, pensei: “A partir desta viagem, eu me rendo a Deus
altíssimo, com sinceridade: não tornarei a viajar, e pelo resto de minha vida não
mencionarei viagens, quer em minha língua, quer em meu pensamento”.
Continuei chorando e suplicando a Deus altíssimo, e então me recordei de meu
conforto, alegria, diversão, festas e tranquilidade, e fiquei nessas recordações
durante o primeiro dia e o segundo, até que cheguei a uma ilha enorme, que
tinha muitas árvores e rios, e pus-me a comer de suas frutas e a beber de sua
água até me recuperar, reanimar, fortalecer e tranquilizar o peito. Então caminhei
pela ilha, encontrando do seu lado oposto um enorme rio de água doce, mas cuja
correnteza era muito forte. Lembrando-me da jangada em que embarcara antes,
pensei: “É imperioso que eu construa uma jangada igual e quem sabe me salvo
disto; se acaso conseguir, terei atingido o meu propósito, e me renderei a Deus
altíssimo, desistindo de viajar; e se acaso morrer, meu coração descansará de
fadigas e de sofrimentos”. Ajuntei madeira daquelas árvores de sândalo raro,
[397] sem igual, que eu não sabia o que era, e, depois disso, mediante artimanha,
enrolei os galhos e as plantas da ilha como se fossem cordas, com eles
amarrando a jangada; disse: “Se eu me salvar, será por Deus”, e embarquei,
avançando pelo rio até sair da ilha, da qual me afastei; continuei avançando pelo
primeiro dia, mais o segundo e o terceiro de minha saída dali, sem dormir[398]
nem comer nada nesse período, mas quando sentia sede bebia água do rio; fiquei
como um frango entontecido, tamanhos eram meu cansaço, fome e medo, e a
jangada enfim chegou às proximidades de uma montanha elevada, com um rio
que corria debaixo dela. Ao ver aquilo, temi por minha vida, em razão da
estreiteza que eu enfrentara da primeira vez em um rio semelhante, e pretendi
parar a jangada e desembarcar ao lado da montanha, mas fui vencido pela
correnteza, que puxou a jangada comigo ainda a bordo e a arrastou para baixo da
montanha. Vendo aquilo, tive certeza da morte e disse: “Não há força nem
poderio senão em Deus altíssimo e grandioso”. A jangada avançou por um curto
espaço, que desembocou em um local amplo, e eis que era um grande vale no
qual o bramido das águas se assemelhava ao trovão, e sua corrente era como o
vento. Deitei-me agarrado à jangada, temeroso de despencar dali, enquanto as
ondas me arremessavam à direita e à esquerda, no meio daquele lugar. A jangada
continuou empurrada pelo curso das águas do vale, sem que eu conseguisse
pará-la nem deslocá-la em direção à terra firme, até que finalmente passou diante
de uma cidade enorme e de graciosas construções, bastante povoada: quando me
viram na jangada no meio do rio, tangido pela corrente, os moradores da cidade
[atiraram cordas para mim, mas, como eu não conseguisse pegá-las, atiraram
redes que envolveram a jangada, puxando-a até a margem];[399] caí entre eles
como morto, tamanhas eram minha fome, sono e pavor. Fui resgatado do meio
deles por um homem entrado em anos, um magnífico xeique, que me deu boas-
vindas e jogou sobre mim muitas e belas roupas, com as quais cobri a minha
nudez. Em seguida, ele me pegou e levou ao banho público, ali me trazendo
bebidas revigorantes e essências aromáticas. Depois que saímos do banho,
conduziu-me para casa, e sua família ficou contente com a minha presença.
Alojou-me em um local simpático, preparou-me comida suculenta, da qual comi
até me saciar, agradecendo a Deus altíssimo por minha salvação. Feito isso, os
criados trouxeram água quente e lavei as mãos, enxugando-as e limpando a boca
com toalhas de seda trazidas pelas criadas. O xeique então se levantou e arranjou
para mim um local isolado ao lado da sua casa, colocando os seus criados e
criadas para me servir, satisfazer as minhas necessidades e resolver tudo quanto
me interessasse, e eles se puseram a cuidar de mim. Por três dias fiquei nessa
situação na sua casa de hóspedes, com boa comida, boa bebida e bons perfumes;
recuperei o alento, meu terror se dissipou, meu coração se apaziguou e minha
alma repousou. No quarto dia, o xeique veio até mim e disse: “Sua presença nos
deleita, meu filho, e louvores a Deus por você estar bem! Gostaria de vir comigo
até a orla e descer ao mercado para vender a sua mercadoria e receber o preço?
Quiçá você compre com esse dinheiro algo para praticar o comércio”. Calei-me
por alguns instantes, pensando: “De onde é que eu tenho mercadoria? Qual o
motivo dessas palavras?”. O xeique me disse: “Não se preocupe nem cisme, meu
filho. Vamos até o mercado, e, se acaso encontrarmos quem lhe pague por sua
mercadoria um preço que lhe agrade, eu o receberei para você, mas, se acaso não
receber oferta que lhe agrade, eu a guardarei para você no meu depósito até que
chegue a época de vender e comprar”. Pensei a respeito, dizendo à minha razão:
“Obedeça-lhe para ver o que será essa tal mercadoria”, e respondi ao xeique:
“Ouço e obedeço, meu velho tio! O que você fizer será abençoado e não posso
desobedecer-lhe em nada!”. Acompanhei-o até o mercado e verifiquei que ele
desmontara a jangada na qual eu viera, construída de madeira de sândalo, e a
entregara a um pregoeiro para vendê-la.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.


E quando foi a 565 ª noite
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ir com o xeique para a orla, o
navegante Sindabåd percebeu que a jangada na qual viera, construída de madeira
de sândalo, estava desmontada, e que o pregoeiro estava recebendo ofertas por
ela. Os mercadores logo acorreram e começaram a fazer lances, disputando a
madeira, até que o preço chegou a mil dinares, quando então os mercadores
interromperam os lances.
[Disse o navegante Sindabåd:]
O xeique se voltou para mim e perguntou: “Ouça, meu filho, é esse o preço de
sua mercadoria nestes dias. Quer vendê-la por ele ou esperar? Ou prefere que eu
a guarde para você dentro do meu depósito até o momento em que o preço subir,
e então a vendemos?”. Respondi: “Meu senhor, a questão é toda sua. Faça como
quiser”. Ele disse: “Não quer vender para mim essa madeira, meu filho? Pago-
lhe cem dinares de ouro a mais do que lhe ofereceram os mercadores”.
Respondi: “Sim, vendido! Pegue e pague”. Nesse momento, ele ordenou aos
criados que transportassem a madeira para o seu depósito. Retornamos para a
sua casa, sentamo-nos, ele contou para mim o valor total da madeira, e trouxe
sacos nos quais depositou o dinheiro, guardando-os em um cofre de ferro cuja
chave me entregou.
Após alguns dias e noites, o xeique me disse: “Eu lhe farei uma oferta, meu
filho. Desejo muito que você aceite”. Perguntei: “Qual é a ordem?”. Respondeu:
“Saiba que já estou entrado em anos e não tenho um filho varão, mas apenas
uma filha de pouca idade, aparência simpática e com muito dinheiro e beleza.
Gostaria de casá-los para que você viva com ela em nosso país, e depois lhe
darei posse de tudo o que me pertence e está sob meu domínio, pois estou velho
e você me substituirá”. Calei-me sem responder, e ele disse: “Obedeça-me, meu
filho, no que lhe digo, pois o meu intento é o seu bem. Se me acatar, eu o casarei
com a minha filha e você passará a ser como meu filho, e tudo quanto possuo,
tudo o que está sob meu domínio, será seu. Se quiser praticar o comércio e viajar
para o seu país, ninguém o impedirá. É seu dinheiro, ao seu dispor, e faça com
ele o que bem quiser e escolher”. Respondi: “Por Deus, velho tio, que você
agora é como se fosse meu pai. Sofri muitos terrores, e já não me resta opinião
nem conhecimento. A questão está em suas mãos, em tudo o que quiser”. Nesse
momento o xeique ordenou que seus criados trouxessem juiz e testemunhas, que
foram prontamente trazidos, e me casou com a sua filha, promovendo para nós
um magnífico banquete e uma grande festa de casamento; deixou-me então a sós
com ela, e vi que era extremamente bela e formosa, de boa estatura, carregada de
muitas joias, roupas, adornos, colares e pedras preciosas, cujo valor não seria
menor que milhões de moedas de ouro, mas que ninguém saberia calcular ao
certo. Tão logo a possuí, gostei dela e nasceu o amor entre nós. Fiquei com ela
por algum tempo, na maior tranquilidade e satisfação. Seu pai se mudou para a
misericórdia de Deus altíssimo, e então preparamos o corpo e o enterramos.
Apropriei-me do que lhe pertencia; todos os seus criados passaram a ser meus,
sob a minha autoridade e a meu serviço, e os mercadores me distinguiram com o
mesmo estatuto que lhe concediam: o xeique era o maioral dentre eles, e nenhum
mercador fazia negócios sem lhe dar conhecimento, pois se tratava de seu
mestre; e eu o substituí.
Ao me envolver com os moradores da cidade, verifiquei que a condição deles
se alterava mensalmente: cresciam-lhes asas com as quais se alçavam aos céus, e
não ficavam na cidade senão as crianças e as mulheres. Pensei: “No começo do
mês pedirei a algum deles, e quiçá me carreguem para o lugar aonde vão”. E, no
começo daquele mês, a cor dos habitantes se alterou e sua imagem se modificou;
fui então a um deles e lhe disse: “Por Deus, me carregue consigo para que eu
passeie e retorne junto com vocês!”. Ele me respondeu: “Isso é algo impossível”.
Mas continuei insistindo até que enfim aceitou; entramos em acordo e me agarrei
àquele homem, que se alçou comigo pelos ares. Não contei a ninguém em minha
casa, nem aos meus criados ou aos meus amigos. O homem não parou de voar
comigo agarrado aos seus ombros, e tão alto subiu que ouvi as preces dos anjos
na cúpula dos astros; assombrado, eu disse: “Exalçado seja Deus! Louvores a
Deus!”. Mal terminei a prece, e já um raio de fogo veio dos céus, quase os
queimando; todos então desceram, e me atiraram em uma elevada montanha,
sumamente encolerizados comigo, partindo e me abandonando. Sozinho naquela
montanha, censurei-me pelo que fizera, dizendo: “Não existe força nem poderio
senão em Deus altíssimo e magnífico! Sempre que me livro de uma desgraça,
caio em outra pior!”. Permaneci naquela montanha sem saber para onde ir, e eis
que surgiram, caminhando, dois garotos que pareciam duas luas, cada qual
empunhando uma bengala de ouro, na qual se apoiava. Aproximei-me deles,
cumprimentei-os, e eles me retribuíram o cumprimento. Perguntei-lhes: “Por
Deus, quem são vocês? O que fazem?”. Responderam: “Somos adoradores de
Deus altíssimo”, e em seguida me entregaram uma bengala de ouro vermelho,
igual às que tinham, e seguiram seu caminho, deixando-me só. Pus-me a vagar
pelo cume daquela montanha apoiando-me na bengala e refletindo a respeito dos
dois garotos, quando súbito uma cobra saiu de baixo da montanha, tendo na boca
um homem que ela engolira até o umbigo enquanto ele gritava: “Quem me
salvar será salvo por Deus de toda dificuldade!”. Avancei até a cobra e a golpeei
com a bengala de ouro na cabeça, e ela então soltou o homem.
E a aurora alcançou ³ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida.


E quando foi a 566 ª noite
Ela disse:
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, ao ser golpeada com a bengala de ouro
empunhada pelo navegante Sindabåd, a cobra cuspiu o homem. Disse o
navegante Sindabåd:
O homem se aproximou de mim e disse: “Como me salvei dessa cobra por seu
intermédio, não irei abandoná-lo. Você é agora meu companheiro nesta
montanha”. Respondi: “Bem-vindo!”, e caminhamos pela montanha. De repente,
um grupo veio em nossa direção. Olhei para aquelas pessoas, e eis que entre elas
estava o homem que me carregara nos ombros e voara comigo! Acerquei-me
dele, desculpei-me, tratei-o com gentileza, e disse-lhe: “Não é assim que os
companheiros fazem uns com os outros, camarada!”. O homem me respondeu:
“Foi você que nos aniquilou com suas preces enquanto estava montado em
minhas costas”. Eu disse: “Não me leve a mal, mas é que eu não estava ciente.
Depois disso, no entanto, não voltarei a falar nada!”. Então ele se permitiu
transportar-me, com a condição, porém, de que eu não mencionasse o nome de
Deus nem lhe fizesse preces enquanto estivesse em suas costas, e me carregou;
[entreguei a bengala ao homem que estava no ventre da cobra e o deixei ali].
[400] O homem voou comigo como da primeira vez, até me fazer chegar à
minha casa, onde fui recebido pela minha esposa, que me cumprimentou e
felicitou por eu estar bem; disse-me: “Depois disso, acautele-se de sair com tais
pessoas, nem conviva com elas, pois são irmãos dos demônios e não sabem
mencionar Deus altíssimo”. Perguntei a ela: “Como é que o seu pai se dava com
eles?”. Respondeu: “Meu pai não fazia parte deles nem agia como eles. Minha
opinião é a seguinte: já que o meu pai morreu, venda tudo o que temos, pegue o
preço em mercadorias e viaje para a sua terra e sua família; eu irei com você,
pois não tenho necessidade de permanecer nesta cidade após a morte da minha
mãe e do meu pai”. A partir daí comecei a vender os bens do xeique, um após o
outro, enquanto aguardava que alguém partisse daquela cidade para viajar com
ele. Estava nessa situação quando um grupo [de estrangeiros][401] pretendeu
viajar, mas, não encontrando embarcação, comprou madeira e construiu um
grande navio; comprei passagem, paguei meu frete na totalidade, e embarquei
com a minha esposa e tudo quanto possuíamos, deixando para trás algumas
propriedades e imóveis, e partimos. Mantivemo-nos em viagem marítima, de
ilha em ilha, e de mar em mar, e com bons ventos chegamos sãos e salvos à
cidade de Basra, na qual não me detive: comprei passagem em outra
embarcação, para a qual transportei tudo o que tinha, e me dirigi para a cidade de
Bagdá, onde entrei em meu bairro e fui para a minha casa, sendo recebido pelos
meus familiares, companheiros e entes queridos. Guardei tudo quanto trouxera
em meus depósitos. Meus familiares calcularam o período de minha ausência na
sétima viagem em vinte e sete anos. Haviam perdido a esperança de me rever.
Quando cheguei, contei-lhes tudo que fora e que me sucedera, e todos se
quedaram grandemente assombrados com aquilo e me felicitaram por estar bem.
Então, penitenciei-me ante Deus altíssimo e desisti de viajar por terra ou por
mar depois dessa última viagem, termo de todas as viagens e quebrantadora dos
desejos. Agradeci a Deus exalçado e altíssimo, louvei-o e o enalteci por haver-
me devolvido aos meus familiares, à minha terra e ao meu país.
[Prosseguiu o navegante Sindabåd:] “Veja, portanto, ó Sindabåd, o que me
sucedeu, o que sofri, e o que foi de mim”. O Sindabåd da terra disse então ao
Sindabåd do mar:[402] “Por Deus, não me leve a mal pelo que falei contra
você!”. E continuaram convivendo amistosamente, na maior satisfação, alegria e
tranquilidade, até que lhes sobreveio o destruidor dos prazeres, separador das
comunidades, demolidor dos palácios e construtor dos túmulos, que é a taça da
morte. Exalçado seja o vivente que nunca morre!
POSFÁCIO: UMA CONFIGURAÇÃO DO QUE PODERIA TER SIDO
POSFÁCIO
UMA CONFIGURAÇÃO DO QUE PODERIA TER SIDO

Para Júlia e Letícia

Com o presente volume tem início a tradução do assim chamado, segundo
convenção filológica, “ramo egípcio” do Livro das mil e uma noites,
basicamente constituído pelas histórias que, pelo menos a partir do século xvi,
foram utilizadas para completar a obra e fazer o seu título corresponder-lhe ao
conteúdo. Não se trata, conforme se explicou nas notas introdutórias aos dois
primeiros volumes desta coleção, de uma única iniciativa, mas de várias, das
quais a mais bem lograda foi a levada a cabo no Cairo, durante a segunda metade
do século xviii, por um mestre escriba egípcio cujo nome não chegou até os
nossos dias. É a essa iniciativa que se dá o nome de “ramo egípcio tardio”, base
das modernas edições impressas, a primeira das quais foi a egípcia de Bœlåq, de
1835, secundada pela segunda edição de Calcutá (Calcutá 2.ed.), de 1839-1842.
E é dessas duas que derivam todas as edições “completas” atualmente difundidas
no Mundo Árabe.
No presente projeto de tradução, contudo, optou-se por dar à estampa um
texto o mais possível plural, evitando a rigidez dos esquemas preconcebidos que
congelam a fala de ³ahrazåd como “obra” dada e acabada, coisa que ela,
claramente, não é. Para este volume, pensou-se em perseguir outros leques de
configuração, legíveis ou ao menos reconstituíveis por meio de alguns
manuscritos “incompletos”, todos egípcios, que chegaram aos dias de hoje, nos
quais se evidenciam possibilidades diversas de agrupamento narrativo.
Enfeixando histórias pertencentes ao que, por falta de melhor denominação,
chamaremos de “ramo egípcio antigo” – pois são todas anteriores à segunda
metade do século xviii – este volume tem a pretensão de ser, talvez, o mais
“aberto” de todos quantos farão parte da coleção: quase um ensaio do que
poderia ter sido, se é que não chegou a ser efetivamente, uma das sequências de
leitura do Livro das mil e uma noites. Suas histórias diferem das contidas no
chamado “ramo egípcio tardio” por dois motivos principais: primeiro, por
ocuparem posição distinta e apresentarem conteúdo também distinto de suas
homônimas no “ramo egípcio tardio”, como é o caso das histórias “O rei
Mu¬ammad Bin Såbik e o ¿awåja Æasan, contendo Sayf Almulœk e Bad∑¢at
Aljamål” e “Sindabåd, o navegante”; segundo, por terem sido completamente
elididas desse ramo, como é o caso de “As aventuras do xeique Al¿ayla¿ån Bin
Håmån”, “Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån”, “O rei Ba¿t Zåd e os seus dez
vizires” e “O rei ³åh Ba¿t e seu vizir Rahwån”.

MANUSCRITOS E IMPRESSOS UTILIZADOS

a) Manuscrito “Arabe 3612” da Biblioteca Nacional de Paris, que se estima ter
sido copiado no século xvii e pertenceu ao cônsul francês no Egito Benoît de
Maillet. Já descrito nos dois primeiros volumes desta coleção. Utilizado para as
três primeiras e para a sexta história deste volume.

b) Manuscrito “Arabic 646” da John Rylands Library, em Manchester. Estima-se
ser do séculoxvi , foi copiado para certo “mestre Maßarà” (ou “Maßr∑”, ou
“Maßarrà”) por um escriba cristão – “o devoto desprezível, humilde, incapaz e
coitado”, como ele próprio se descreve – de nome Nas∑m Bin Yœ¬annå Ibn
Abœ Almaså’, e pertenceu ao mercador francês Jean Varsy, que foi discípulo do
eminente orientalista Silvestre de Sacy (1758-1838), viveu muito tempo no Egito
e morreu na primeira metade do século xix.[403] Esse manuscrito começa na
255ª noite e vai até a 541ª, mas muitas de suas folhas se perderam, problema
esse que Jean Varsy procurou remediar acrescentando-lhe novas folhas que
contêm trechos equivalentes aos faltantes, copiados, com sua bela caligrafia
árabe, do manuscrito “Arabe 3612”, conforme foi possível depreender por meio
de comparação. Varsy também acrescentou ao “Arabic 646” algumas folhas com
esboços de tradução, provavelmente de sua lavra, de trechos das histórias, bem
como a descrição do conteúdo desse manuscrito, mas sua letra em caracteres
latinos, ao contrário da sua caligrafia em árabe, é dificultosa de ler. Além da
segunda e terceira histórias deste volume, para cuja tradução foi utilizado como
fonte subsidiária, esse manuscrito contém, ainda, a mais antiga versão da história
de ¢Umar Annu¢mån, que deverá estar no próximo volume desta coleção.

c) Manuscrito “Bodl. Or. 550”, da Bodleian Library, Oxford. Copiado em 1764,
pertenceu a Edward Montagu e Jonathan Scott, entre outros. Já descrito nos dois
primeiros volumes desta coleção. Utilizado, como fonte de comparação, para a
primeira história deste volume.

d) Manuscrito “Arabe 3615”, da Biblioteca Nacional de Paris. Já descrito no
primeiro volume desta coleção, estima-se ter sido copiado no séculoxvii . De
excelente legibilidade, da lavra de um escriba bastante cuidadoso, embora não
particularmente hábil no manejo dos instrumentos de escrita, foi utilizado para a
quarta e quinta histórias do presente volume.

e) Edição de Breslau,[404] em doze volumes, publicada entre 1825 e 1843 sob
supervisão de Maximilian Habicht para os primeiros oito volumes e, após sua
morte, de Heinrich Fleischer para os quatro últimos. Já descrita no primeiro
volume desta coleção, essa edição não pode receber o mesmo tratamento das
outras, objeto que é de sérios questionamentos quanto à sua legitimidade.[405]
No entanto, precisamente por não obedecer a nenhum plano pré-traçado, tendo
sido produzida um pouco ao léu, ao sabor de circunstâncias fora do padrão,
oferece vasta gama de alternativas a leitores e pesquisadores. Aqui, foi utilizada
sobretudo para a sexta história e para o Anexo 1, tendo também servido como
fonte de comparação para o Anexo 2, bem como para a primeira, quarta e quinta
histórias deste volume.

f) “Compilação tardia”, em vez de “ramo egípcio tardio”, é como se decidiu
chamar o conjunto composto pelos dois volumes da primeira edição de Bœlåq,
de 1835, pelos quatro da segunda edição de Calcutá (Calcutá 2.ed.), de 1839-
1842, além dos quatro volumes do manuscrito “Z13523”, da Biblioteca Nacional
do Egito, de 1808-1809, cuja utilização foi parcimoniosa, pois a sua cópia
digitalizada somente ficou disponível quando já ia bem adiantada a tradução do
presente volume. De qualquer modo, para os propósitos deste volume, a
diferença entre esse manuscrito e as edições impressas, ao que pareceu, é exígua.
Uma das curiosidades do “Z13523” é que ele ultrapassa o número de noites do
título, chegando à quantia de mil e sete noites. O conjunto aqui denominado
“compilação tardia” foi utilizado para a tradução do Anexo 2 e para comparação
na primeira e quinta histórias.
Nas notas à tradução de cada história, chamou-se de “texto-base” o
manuscrito principal do qual se lançou mão.

AS HISTÓRIAS E SUA ORDENAÇÃO

1. “O rei Mu¬ammad Bin Såbik e o ¿awåja Æasan, contendo Sayf Almulœk e
Bad∑¢at Aljamål”:
Sua principal fonte, ora chamada de “texto-base”, foi o manuscrito “Arabe
3612” da Biblioteca Nacional de Paris, no qual ocupa as noites 198ª a 228ª
(nesta tradução, de 198ª a 230ª, pois ocorre a repetição dos números, não do
conteúdo, das noites 205ª e 220ª, que foram então renumeradas pelo tradutor).
Nesse mesmo manuscrito, entre as noites 267ª e 273ª, repete-se uma versão
ligeiramente diversa, aqui citada como “3612b”, contendo cerca de metade dessa
história, com vários passos interessantes para a compreensão de certas
obscuridades e falhas da primeira versão. É estranho que o único copista desse
manuscrito – dono de uma caligrafia boa e uniforme – não tenha se dado conta
de que copiava pela segunda vez a mesma história, o que dá margem a, no
mínimo, duas hipóteses: ou o trabalho se realizou aos poucos, com largos
períodos de abandono, o que explicaria a distração, ou então se trata da junção, a
toque de caixa, de vários pedaços de manuscritos independentes entre si –
produzidos sob demandas diversas – para fazer volume, o que explicaria não
somente a repetição dessa história, mas também a constante repetição de blocos
de numeração de noites, com idas e vindas aparentemente injustificáveis. Já no
manuscrito “Bodl. Or. 550”, a história se limita a uma única e extensa noite, a
nonagésima primeira, e é bem mais curta, o que pode igualmente se dever a dois
motivos: trata-se de cópia da versão mais antiga ou, então, de alguma versão
resumida. Seja como for, a versão do “Bodl. Or. 550” contém incongruências e
insuficiências – fato do qual se procurou dar conta nas notas – e por esse motivo
não pôde servir de base para a tradução. Na “compilação tardia”, essa história
situa-se entre as noites 756ª e 778ª; na edição de Breslau, não aparece a
“moldura” constituída pela história de “Mu¬ammad Bin Såbik”, iniciando-se
diretamente a história de “Sayf Almulœk e Bad∑¢at Aljamål”, entre as noites
291ª e 320ª. Todas essas versões são inferiores, de qualquer ponto de vista, à
versão do texto-base.

2. “As aventuras do xeique Al¿ayla¿ån Bin Håmån”:
Foi traduzida dos dois únicos manuscritos que a contêm, o “Arabe 3612”, no
qual ocupa as noites 251ª a 267ª, e o “Arabic 646”, no qual ocupa as noites 255ª
a 272ª. Na tradução, seguiu-se a numeração do primeiro, a cujo texto também se
deu preferência. Ressalve-se, porém, que neste caso não seria adequado chamá-
lo de texto-base, uma vez que as diferenças entre os dois manuscritos são bem
exíguas. Ao segundo manuscrito, conquanto mais antigo em pelo menos um
século, faltam várias folhas, conforme já se salientou. Dá-se um fato curioso,
embora filologicamente banal, com essa história, e com a próxima: a fonte de
onde ambas foram copiadas pelo escriba do manuscrito “Arabe 3612”, no século
xvii , certamente derivava do “Arabic 646”, do século xvi, ou de algum outro
que lhe era similar. Depois, azares difíceis de determinar, mas comuníssimos em
manuscritos antigos, provocaram a perda de várias folhas do manuscrito “Arabic
646”, até que um de seus proprietários europeus, o arabista francês Jean Varsy,
no século xix, acrescentou-lhe folhas para suprimir as lacunas, depois de copiá-
las ele próprio do mesmo manuscrito “Arabe 3612”, que decerto pôde consultar
na Biblioteca Nacional de Paris. Desse modo, no que tange a esta história e à
próxima, ambos os manuscritos mantêm uma relação de circularidade: o “Arabe
3612” foi copiado de um manuscrito semelhante ao “Arabic 646”, e este último
foi completado a partir do “Arabe 3612”.

3. “Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån”:
Traduziu-se do manuscrito “Arabe 3612”, no qual ocupa as noites 268ª a 275ª, e
do “Arabic 646”, no qual ocupa as noites 273ª a 280ª. O que se afirmou a
respeito da história anterior se aplica integralmente a esta, com a ressalva de que,
no “Arabic 646”, o número de folhas perdidas desta história – três de um total de
onze – é menor que o da anterior – nove de um total de vinte e duas.[406]
Essas três primeiras histórias foram apresentadas em um único bloco por
provirem de um mesmo manuscrito, no qual estão quase em sequência – entre a
primeira e as outras duas medeia a história “Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e
³amsunnahår”, nas noites 229ª a 250ª, que faz parte do ramo sírio e já foi
traduzida no segundo volume desta coleção. Ademais, a posição da história “O
rei Mu¬ammad Bin Såbik e o ¿awåja Æasan, contendo Sayf Almulœk e Bad∑
¢at Aljamål” nos manuscritos “Arabe 3612” e “Bodl. Or. 550” leva a pensar que
ela foi a primeira – pelo menos em algumas configurações do Livro das mil e
uma noites – a ser utilizada para completar o livro no ramo egípcio antigo.
Infelizmente, faltam várias partes do início do manuscrito “Arabic 656”, um dos
mais antigos das Noites (século xvi), mas a ordenação de suas partes
conservadas apresenta tamanha similaridade com o “Arabe 3612” que torna
lícito supor que, nele, essa história ocupava a mesma posição, isto é, era a
primeira estranha ao corpus do ramo sírio. Nas edições e nos manuscritos do
ramo egípcio, ela também aparece, mas no final da obra – noites 756ª a 778ª –, e
com redação bem diversa, o que pode indicar que, a princípio “descartada”, ela
acabou sendo reaproveitada, no final do livro, para completá-lo. Daí, portanto, a
sua posição no início deste volume.
Depois dela, a posição das histórias “As aventuras do xeique Al¿ayla¿ån Bin
Håmån” e “Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån” se justifica por sua existência
nos ditos manuscritos “Arabic 646” e “Arabe 3612”, os únicos que as contêm.
Ambas as histórias apresentam problemas de leitura que afugentaram editores e
tradutores – nunca haviam sido editadas em árabe nem traduzidas, até onde se
saiba, a nenhuma língua ocidental. É bem possível que sua preeminência para
“completar” o Livro das mil e uma noites tenha sido ofuscada pela obscuridade
de alguns de seus trechos, levando copistas posteriores a descartá-las. Mas, que
elas tiveram seu lugar em alguma configuração do livro, isso fica provado
também por dois manuscritos turcos do século xvii que são as primeiras
traduções conhecidas das Noites: neles, constam essas duas histórias, uma após a
outra, respectivamente nas noites 347ª a 372ª e 373ª a 381ª.[407]

4. “O rei Ba¿t Zåd e seus dez vizires”:
Foi traduzida do manuscrito “Arabe 3615”, no qual ocupa as noites 176ª a 199ª.
Utilizou-se para comparação a versão que consta do sexto volume da edição de
Breslau, noites 435ª a 486ª, e a versão independente incluída em um livro
editado no Cairo em 1997, por HiΩåm ¢Abdulcaz∑z e ¢Ådil ¢Abdul¬am∑d,
sob o título de Alf layla wa layla bi-al¢åmmiyya almißriyya, “As mil e uma
noites em dialeto egípcio” (abreviadamente referidas, nas notas, como Noites
egípcias). Na verdade, trata-se da edição de cinco histórias, com base em um
manuscrito de 1772, escritas em dialeto egípcio e nas quais não se faz menção
alguma ao Livro das mil e uma noites, não passando a intitulação do livro de
mera especulação dos organizadores, que partiram do pressuposto, discutível, de
que as cinco histórias do manuscrito por eles editado apresentam similaridades
com as histórias de ³ahrazåd. Do cotejo entre as três versões evidenciou-se que o
texto do manuscrito “Arabe 3615” é mais antigo e melhor que o da edição de
Breslau, e muito mais bem-acabado que o das Noites egípcias, fato que se
procurou destacar nas notas. No Anexo 1, traduziu-se a parte final da versão
dessa história do manuscrito em Breslau, que é inteiramente diverso do seu final
no “Arabe 3615”.[408]

5. “Sindabåd, o navegante”:
Traduziu-se do manuscrito “Arabe 3615”, no qual ocupa as noites 199ª a 210ª.
Para comparação, utilizou-se a compilação tardia, na qual a história ocupa as
noites 536ª a 566ª, e a edição de Breslau, na qual ocupa as noites 250ª a 271ª.
[409] Note-se que no ramo egípcio tardio, cujos manuscritos em geral
apresentam quatro tomos, a história de Sindabåd abre o terceiro tomo, situando,
logo em seu início, os eventos da história no tempo do califa Hårœn ArraΩ∑d
(786-809 d.C.), tal como se vê no manuscrito “Z13523”, da Biblioteca Nacional
do Egito, e na segunda edição de Calcutá (Calcutá 2.ed.), que imitou a divisão
adotada nos manuscritos do ramo egípcio tardio. Na versão do manuscrito
“Arabe 3615”, esse califa somente aparece no final da narrativa, o que consiste
em um índice de sua antiguidade, bem como a referência ao livro Almasålik wa
Almamålik, “As rotas e os reinos”. Segundo Paul Casanova,[410] a versão do
“Arabe 3615” é singular dentre todas que chegaram até hoje de “Sindabåd, o
navegante”.[411] Uma comparação com relatos árabes de viagem à Índia e ao
Extremo Oriente, como os do mercador Sulaymån e de Ibn Wahb, do século ix,
evidencia que muito do conteúdo, obviamente ficcionalizado, das viagens de
Sindabåd é fruto da apropriação de tais relatos.[412]
A quarta e a quinta histórias apresentam-se em sequência, formando um único
bloco, pelo mesmo motivo das três primeiras, isto é, estão no mesmo manuscrito,
o “Arabe 3615”, o qual, de acordo com a avaliação de Muhsin Mahdi, contém o
corpus mais antigo dentre todos os do ramo egípcio.

6. “O rei ³åh Ba¿t e seu vizir Rahwån”:
A inclusão dessa história foi a decisão mais difícil que o tradutor teve de tomar
para este volume. Trata-se de um conjunto de narrativas de um vizir para o seu
rei, relativamente às quais não restam dúvidas de que fizeram parte das primeiras
tentativas de completar o livro, pois aparecem duas vezes no manuscrito “Arabe
3612”, e em pontos diferentes. O problema é que nenhuma dessas duas versões
está completa, pois lhes faltam grandes partes do início. A única versão completa
dessa história, da qual o tradutor dispunha, é a do décimo primeiro volume da
controversa edição de Breslau. O dilema era: como incluir essa história a partir
de uma fonte tão contestada pela crítica? Por outro lado, como deixar de incluí-
la, se ela comprovadamente faz parte de um manuscrito antigo das Noites? Após
alguma hesitação, o tradutor resolveu adotar a seguinte saída: traduzi-la, com
redobrado cuidado por assim dizer “filológico”, da edição de Breslau, até o
ponto em que as versões do manuscrito se iniciam, e então usá-las maciçamente.
O resultado final mostrou, de modo surpreendente, que a versão de Breslau
fornece um texto bastante razoável, e que seus inegáveis problemas em minúcias
da edição do texto árabe não chegam a interferir no âmbito da tradução
propriamente dita.
Quanto às duas versões de “O rei ³åh Ba¿t e seu vizir Rahwån” no manuscrito
“Arabe 3612”, referidas nas notas como “3612a” e “3612b”, deve-se notar que o
texto de ambas é basicamente o mesmo, com uma diferença: enquanto em
“3612b” as várias narrativas encaixadas, à semelhança da edição de Breslau, são
narradas pelo vizir, na versão “3612a” elas são apresentadas de modo
independente, sem o prólogo-moldura que as engloba, constituído pela história
do rei com seu vizir. Teriam essas narrativas encaixadas circulado inicialmente
agrupadas, mas independentes de um prólogo-moldura que as englobasse, ou,
pelo contrário, foram a certa altura desmembradas dele mas mantidas em
sequência devido à sua fluidez temática? Tal questão é ainda irrespondível à luz
dos documentos hoje disponíveis, mas não custa supor que o prólogo-moldura
pode ter sido especialmente criado para as Noites, a fim de produzir uma
situação similar à da narradora principal, ³ahrazåd.[413]

NÓTULA SOBRE A TRANSCRIÇÃO

Resta explicar, ao cabo, que se adotou um critério mais confortável para a
transcrição dos nomes próprios compostos por regência: assim, em lugar de
Sayfulmulœk, “espada dos reis”, preferiu-se Sayf Almulœk. Em suma, preferiu-se,
nas expressões compostas, fazer a transcrição obedecer à escrita do árabe, e não
à sua pronúncia, ao contrário do que se fez nos dois primeiros volumes. Espera-
se, com isso, obter maior fidelidade e, ao mesmo tempo, poupar o leitor de
nomes excessivamente longos, que muita vez assustam, como seria o caso de
Bad∑¢atuljamål, “maravilha de beleza”, cuja beleza em português é mais bem-
vista, supõe-se, na forma Bad∑¢at Aljamål.

PÓS-ESCRITO AO RAMO SÍRIO

A respeito da datação do mais antigo manuscrito do ramo sírio, utilizado na
tradução dos dois primeiros volumes desta coleção, o arabista alemão Heinz
Grotzfeld[414] observa, com base em uma ocorrência na 133ª noite[415] – em
que o aluguel de uma casa em Damasco é de duas moedas, chamadas aΩraf∑,
por mês –, o seguinte: houve dois períodos durante os quais circularam moedas
com tal nome no Oriente Árabe, em ambos os casos derivados dos nomes de
governantes mamelucos do Egito: ¿al∑l Bin Qalåwœn, dito Almalik AlaΩraf,
que governou de 1290 a 1293 d.C., e AlaΩraf Sayf Add∑n Barsbåy, que
governou de 1422 a 1437 d.C. Os dois cunharam moedas que receberam o nome
de aΩraf∑. O crítico iraquiano Muhsin Mahdi, de Harvard, cujo ponto de vista
foi encampado no prefácio e na nota 226 do primeiro volume desta coleção,
remete a denominação ao período do primeiro dos dois governantes, mas
Grotzfeld, que para tanto pesquisou finanças e moedas no Mundo Islâmico
Medieval, contesta-o vigorosamente, informando que as moedas cunhadas
durante o governo de ¿al∑l Bin Qalåwœn, dito Almalik AlaΩraf, não passavam
de lingotes sem peso certo nem valor nominal fixo, o que tornaria impossível um
pagamento da forma indicada pelo texto. Segundo esse autor, as moedas
cunhadas com o nome do segundo, AlaΩraf Sayf Add∑n Barsbåy, responsável
por uma reforma monetária na metade do século xv, é que tinham valor nominal,
e, portanto, foi somente a partir dessa época que o nome dessa moeda se
popularizou, tornando-se praticamente sinônimo de dinar, designação genérica
de moeda de ouro, a ponto de os historiadores desse período utilizarem a palavra
aΩraf∑ para referir preços de épocas em que tal moeda não existia. Essa questão
é fundamental para Grotzfeld em sua querela contra Muhsin Mahdi a respeito da
datação do manuscrito, o qual, diferentemente do que supôs este último, não
poderia ser de meados do século xiv, mas sim, como sustenta Grotzfeld, da
segunda metade do século xv. Embora a sua argumentação seja bastante
convincente e, como já se afirmou, respaldada por sólida pesquisa,[416] isso não
implica necessariamente que a elaboração do Livro das mil e uma noites seja
desse período tardio, pois o manuscrito mais antigo também pode ser cópia, com
as adaptações de praxe, de manuscritos mais antigos que não chegaram até hoje.
Basta lembrar a constante recorrência, no mesmo manuscrito, do verbo wazana,
“pesar”, com o sentido de “pagar”, o que somente se justificaria em um contexto
no qual se empregam, como moeda, lingotes sem peso certo nem valor nominal
estabelecido. Ademais, conforme o próprio Grotzfeld notou, o termo aΩraf∑,
como substituto de “dinar”, popularizou-se tanto que passou a ser
anacronicamente utilizado para períodos anteriores, e não é inteiramente
descabido imaginar que o copista desse manuscrito das Noites, deixando-se levar
pelo hábito de seu tempo, tenha escrito aΩraf∑ onde o seu original trazia
“dinar”. Talvez a data precisa do chamado “manuscrito Galland” – ou
manuscrito “Arabe 3609”, “Arabe 3610” e “Arabe 3611” da Biblioteca Nacional
de Paris – não seja, afinal, tão determinante assim para o estudo das Noites.

* * *

O tradutor agradece os apoios de variado gênero recebidos de Ana Cristina
Lopes, Antônio Brancaglion Jr., Cilaine Alves Cunha, Clayton da Silva Viana,
Denis Pierre Araki, Fatma Moussa, Khaled Al-Maaly, Maged El Gebaly, Marly
Shibata, Mona Anis, Paul Achcar, Paulo Martins, Ricardo Musse e Ronald
Polito.
[1] Além do texto-base (o “Arabe 3612”), utilizaram-se o “3612b”, o “Bodl. Or. 550” e as edições de
Bœlåq, Calcutá 2.ed. e Breslau, esta última com parcimônia: nas notas à tradução, a remissão a “todas as
versões” não a inclui, salvo referência explícita. Veja o posfácio a este volume.
[2] Bœlåq e Calcutá 2.ed. trazem Mu¬ammad Bin Sabå’ik; o “Bodl. Or. 550”, Mu¬ammad Bin Såbil. No
próprio texto-base ocorre a variação Mu¬ammad Bin ³åbik.
[3] O Sind designa uma região correspondente, grosso modo, ao atual Paquistão. E a província de ¿uråsån,
“sol do oriente”, amiúde citada nesta obra, situa-se na região oriental do Irã.
[4] Para “ajaezada de cima a baixo” seguiu-se o manuscrito “Bodl. Or. 550”, pois o texto-base dá, e Bœlåq e
Calcutá 2.ed. o confirmam, que “o rei a provia de cima a baixo”; o “3612b” omite esse passo.
[5] Bœlåq e Calcutá 2.ed. acrescentam: “Deu-se então que foi até o rei um homem importante com uma
história insólita e a contou a ele, que a considerou bela e gostou de seu discurso, mandando que lhe dessem
um prêmio valioso, o qual continha, entre outras coisas, mil dinares de ¿uråsån e uma égua com equipagem
completa”. Conforme se verá, esse acréscimo de intenções esclarecedoras é perfeitamente inútil para a
compreensão e o andamento da narrativa.
[6]¿awåja, termo utilizado para designar estrangeiros, apresenta uma acepção semelhante à de “gringo” em
português. A palavra provém do persa, podendo significar, nessa língua, “senhor”, “dono da casa”,
“mercador abastado”, “governante”, “mestre” e “eunuco”. Bœlåq e Calcutá 2.ed. utilizam tåjir, “mercador”,
o que não é de estranhar, pois era comum a existência de estrangeiros mercadores. A partir de certo ponto,
os manuscritos passam a se referir a ele como waz∑r, “ministro”, como que antecipando o desfecho, mas a
tradução preferiu evitar tal denominação.
[7] Bœlåq, Calcutá 2.ed. e “3612b” dizem: “por causa do dinheiro que dou aos poetas, convivas e
contadores de histórias” (al¬akwåtiyya no “3612b”, e arbåb al¬ikåyåt, “donos das histórias”, nas
impressas, que acrescentam: “recitadores de poesia”).
[8] O texto-base utiliza, neste passo, a palavra mamlœk, “mameluco”, “escravo”, “serviçal”, “criado” etc.
Porém, aqui, o sentido é mais próximo de “secretário”, “auxiliar”.
[9] “Conhecedores de histórias, narrativas e crônicas” traduz a߬åb alasmår wa al¬ikåyåt wa ala¿bår.
Bœlåq e Calcutá 2.ed. trazem: “conhecedores de histórias espantosas e crônicas insólitas”, a߬åb al¬ikåyåt
al¢aj∑ba wa ala¿bår al©ar∑ba, título de pelo menos uma coletânea de histórias do século xiii d.C. que foi
em parte incorporada ao Livro das mil e uma noites. Registre-se que o texto varia bastante o uso dos termos
em árabe: qißßa, ¬ikåya, ¬ad∑¥, s∑ra, ¿abar, samar etc., sem que se possa atinar, de modo claro, com
alguma diferença conceitual entre eles.
[10]Sayf Almulœk significa “espada dos reis”. Conforme se verá adiante, a história é dele e de Bad∑¢at
Aljamål, que significa “maravilha de beleza”. No manuscrito, a grafia do primeiro nome da personagem
varia entre Bad∑¢ e Bad∑¢at, “maravilhoso” e “maravilhosa”, e sua tradução literal seria “maravilhoso/a
de beleza”. Preferiu-se a forma feminina, embora a masculina, no caso desse nome, não fosse absurda.
[11]Al¬a≈å e Al¿atan constituem possíveis erros de cópia; em Bœlåq e Calcutá 2.ed., tais palavras foram
suprimidas, e nos outros dois manuscritos aparecem grafias diferentes: Al¬a†å e Aljilliq (“3612b”), Al¬a≈å
e Aljanaq (“Bodl. Or. 550”), que também parecem equivocadas.
[12] “Árabes” é o que se lê no “3612b”; no texto-base e no “Bodl. Or. 550”, consta al©arb, “o Ocidente”,
em vez de al¢arab, “os árabes”, cujas grafias são muito semelhantes (a diferença é de apenas um pingo).
Bœlåq e Calcutá 2.ed. substituem a referência por “terras do Magrebe, seus países, distritos, províncias e
todas as suas extremidades”.
[13] Embora inusual, a descrição está correta, conforme se pode constatar no Mu¢jam Albuldån,
“Dicionário dos países”, de Yåqœt de Æamå: “Jilliq é o nome da circunferência dos campos (©œ†a) de
Damasco, e se disse que é a própria cidade de Damasco”. Referência eliminada em Bœlåq e Calcutá 2.ed.
[14] Como talvez já tenha ficado claro, as quatro primeiras condições são negativas, introduzidas pelas
palavras “não/nem” (lå/wa lå), e apenas a última condição é positiva. Nesse ponto, o “Bodl. Or. 550” é
bastante abreviado e omisso, e o “3612b”, Bœlåq e Calcutá 2.ed. acrescentam outros elementos para os
quais as histórias devem ser contadas, tais como “comandantes”, “vizires” e “hermeneutas”.
[15] A passagem para a história de Sayf Almulœk e Bad∑¢at Aljamål é feita de modo abrupto em todas as
versões. Nos manuscritos “3612b” e “Bodl. Or. 550”, “sempre que o rei sentia o peito opresso, liam-na para
ele”; em Bœlåq e Calcutá 2.ed., “sempre que sentia o peito opresso, o rei chamava o mercador Æasan, que a
lia para ele”. Note-se que não se voltará a fazer menção ao rei Mu¬ammad Bin Såbik em nenhuma versão,
permanecendo assim em suspenso todas as possibilidades que a narrativa levanta ao descrever a sua corte, o
seu vizir invejoso e mau etc. Na edição de Breslau, como já se informou, é nesse ponto que a narrativa
começa, sem a moldura constituída pela história do rei Mu¬ammad Bin Såbik.
[16] Em lugar de “sequência” (siyåqa, que hoje, na forma masculina, se usa para “contexto”), Bœlåq e
Calcutá 2.ed. trazem “conteúdo” (ma®mœn): “E o conteúdo dessa história é que havia em um passado
distante, em um tempo muito remoto...”. Aliás, todas as outras versões colocam os eventos desta narrativa
em um passado bem remoto.
[17] Esse trecho é confuso nas duas versões que o contêm, o texto-base (tusåfir lahu anta wa tu¢ån∑ ha∂ihi
alumœr) e o “3612b” (tusåfir lahu anta wa ta¢ålà famå lihå∂ihi alumœr illå anta). Talvez a melhor
interpretação seja: “viaje até ele, pois ambos enfrentamos igualmente o problema” (tusåfir lahu wa nu¢ån∑
ha∂ihi alumœr anå wa anta).
[18] Bœlåq e Calcutá 2.ed. trazem, meticulosa e sistematicamente, “que a paz esteja sobre ambos”, isto é,
Salomão e Davi.
[19] Nas outras versões, o vizir Fåris antes pensa e somente depois enuncia a pergunta. Embora exista a
possibilidade de “pulo” de cópia, uma vez que a frase é repetida, preferiu-se manter a versão do texto-base,
na qual o vizir Åßif responde à pergunta mentalmente elaborada por Fåris.
[20] O texto-base apresenta uma redação curiosa, mas que pode ser fruto de “pulo” durante a cópia: “Fåris
respondeu: ‘Nós adoramos o Sol dentre todos os corpos celestes criados. Jamais seria outro o senhor, pois o
sol nasce e morre, e a tudo vigia’”. O que se traduziu, porém, concorda com o “3612b”, Bœlåq e Calcutá
2.ed. O “Bodl. Or. 550” contém uma redação demasiado resumida.
[21] Essa repetição toda se encontra bastante resumida em Bœlåq, Calcutá 2.ed. e no “Bodl. Or. 550”.
[22] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612b”, Bœlåq, Calcutá 2.ed. e “Bodl. Or. 550”, que
apresentam praticamente a mesma redação nesta passagem.
[23] Corrigiu-se aqui a numeração, pois no texto-base ela se repete.
[24] Tanto o texto-base como o “3612b” e o “Bodl. Or. 550” trazem a mesma formulação estranha, ilà ba¢d
a≈≈uhri qabla al¢aßri f∑ alqå’ila, “até depois da tarde, antes do anoitecer, ao meio-dia”. Como as três
versões concordam, é possível que exista aí algum sentido não apreendido pelo tradutor, que se resignou a
socorrer-se da redação quase sempre clara e meridianamente medíocre da edição de Bœlåq.
[25] Todas as versões falam em manfa¢atuhum, “benefício deles”..
[26] Nas outras três versões, a gravidez das mulheres é informada imediatamente após a cópula.
[27] Não terá passado despercebido ao leitor a constante, dir-se-ia mesmo abundante, prática de “distribuir
vestimentas honoríficas” por parte de muitos dos personagens reais desta obra. Em alguns manuais de
conduta de reis exumados pelo crítico Jal∑l Al¢a†iyya – tais como A¿låq Almulœk [O caráter dos reis], de
A¥¥a¢lab∑, do século iii H./ix d.C., e Ådåb Almulœk [O decoro dos reis], de Ibn Raz∑n, do século vi H./xii
d.C. –, nos quais se mencionam hábitos dos antigos reis sassânidas, evidencia-se que tais “trajes
honoríficos” poderiam não passar, na verdade, das próprias roupas usadas dos reis.
[28] No texto-base, o rei diz: “cortarei o pescoço de quem quer que cometa um crime e punirei da forma
adequada”, o que parece ilógico. Por isso, preferiu-se traduzir o que consta das outras versões.
[29] “Atiraria uma miçanga pela portinhola”, yarmœ ¿araza min a††åqa, é leitura colhida em Calcutá 2.ed.;
o texto-base, o “3612b” e a edição de Breslau trazem o enigmático “atiraria uma miçanga na taça”, yarmœ
¿araza f∑ a††åsa, que talvez indicasse alguma espécie de ritual hoje incompreensível. Mas, como diria
algum autor árabe antigo, o mais provável, se Deus quiser, é que se trate de erro de revisão.
[30] No texto-base e no “3612b” menciona-se também os mu¬tasim∑n, palavra inexistente no léxico árabe,
ou mu¬tašim∑n, “pudibundos”, como está em Calcutá 2.ed. e Breslau, o que não parece fazer muito
sentido.
[31] Palavra que significa “antebraço”.
[32] O texto-base fala em cinco, vinte e vinte e cinco anos, ao passo que as outras versões trazem cinco, dez
e quinze anos (“3612b” e Calcutá 2.ed.), e cinco, dez e vinte anos (“Bodl. Or. 550”). Para a tradução,
preferiu-se cinco, quinze e vinte anos. Toda essa passagem, por descuido ou talvez por sua forte
inconsistência histórica (pula-se do rei Salomão para o Alcorão com a maior naturalidade, conforme se leu),
foi eliminada da edição de Bœlåq, mas mantida na de Calcutá 2.ed., evidenciando-se assim que, na
primeira, tal eliminação ocorreu durante o processo de composição gráfica.
[33] “Sobre a cabeça e o olho”, ¢alà arra’s wa al¢ayn: expressão típica de concordância entre os árabes,
ainda hoje bastante utilizada.
[34] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[35] Nesse ponto se encerra a redação do “3612b”, que é arrematada com esta declaração: “termina aqui a
[décima] nona parte das mil e uma noites, completas e inteiras”. Mas a vigésima parte do manuscrito, e as
seguintes, a exemplo de tantas outras, perderam-se, uma vez que o fólio seguinte começa com a vigésima
quarta parte.
[36] O manuscrito “Bodl. Or. 550” não contém nenhuma poesia nesse passo. Em Bœlåq e Calcutá 2.ed., ela
foi mantida com o acréscimo de alguns versos: “No início, o amor é uma doçura (mujåja, ‘suco’)/ que o
destino traz e conduz/ mas quando o jovem depara seus abismos/ sucedem coisas insuportáveis e graves”.
[37] Trecho traduzido da segunda edição de Calcutá. O manuscrito “Bodl. Or. 550” é incompreensível nesse
ponto.
[38] No texto-base lê-se Sahhål, por erro de grafia, como se evidenciará mais adiante. Bœlåq e Calcutá
2.ed. trazem ³ammå¿ Bin ³årœ¿, e o “Bodl. Or. 550”, Yašhåk Bin ³åwa¿.
[39] O trecho entre colchetes consta de todas as outras versões. Iram flåt Al¢imåd, “Iram das Colunas”,
mencionada no Alcorão e associada à tribo de ¢Åd, alimentou muitos relatos e é pensada desde a tradição
árabe imediatamente anterior ao islã como uma cidade de localização incerta; seu tema é o do lugar muito
rico que foi destruído pela ira divina em razão da impiedade e da soberba de seus habitantes. Sua história,
aliás, foi tardiamente incorporada ao ramo egípcio do Livro das mil e uma noites.
[40] “Andarilhos” usou-se aqui e em algumas outras passagens para traduzir fuqarå’, “pobres”, pois tal
palavra, no atual contexto, não dá a ideia imediata de “viagem” ou “mobilidade geográfica” – muito embora
esses elementos tenham sido desde sempre associados, como é fácil constatar.
[41]Amån é uma garantia de vida que se dá a quem se dispõe a falar a verdade.
[42] “Só se fosse o próprio rei Salomão Bin Davi” é tradução inspirada pelos textos de Bœlåq, Calcutá 2.ed.
e “Bodl. Or. 550”. O texto-base diz: “Pois se nem o próprio rei Salomão Bin Davi poderia!”, o que contraria
a concepção muçulmana, largamente explorada nas narrativas míticas – que a trataram como tópica –, de
que o rei Salomão detinha o poder de dominar os animais e as criaturas sobrenaturais.
[43] “Capital da China” traduz mad∑nat aßß∑in, “cidade da China”, fórmula habitual em árabe para
designar capitais ou cidades importantes de um país.
[44] Como seria de esperar, o nome varia em cada uma das versões: Qa¢fœ ³åh (Bœlåq), Qa¢nœr ³åh
(“Bodl. Or. 550”), Fa©fœr ³åh (Calcutá 2.ed. e Breslau). ³åh, em português “xá”, é palavra persa que
significa “rei”.
[45] “Ilhas marítimas e terrestres” é o que consta do texto-base e da edição de Breslau. Faz-se referência,
provavelmente, a ilhas de fato e a porções de terra ligadas ao continente por algum braço. O “Bodl. Or. 550”
traz apenas “ilhas terrestres”, ao passo que as edições de Bœlåq e Calcutá 2.ed. se limitam a dizer “as ilhas”.
[46] Em Bœlåq e Calcutá 2.ed., a determinação religiosa muçulmana da fala dos criados é mais rigorosa.
[47] Nas edições de Bœlåq e Calcutá 2.ed., ele profere os seguintes versos: “Por Deus, sem dúvida que
estou perplexo!/ Preocupações me sobrevêm não sei de onde./ Terei paciência até que todos saibam/ que fui
paciente com coisas mais amargas que a paciência./ Minha paciência não foi por boa fruta,/ mas sim por
algo mais quente que a brasa./ Não tenho nenhum ardil para esta questão/ e me entrego ao senhor de todas
as questões”. O quinto e o sexto hemistíquios faltam em Calcutá 2.ed. Poesia mais longa, mas com versos
semelhantes, foi recitada pelo segundo dervixe na quinquagésima segunda noite do primeiro volume desta
coleção.
[48] Nesse episódio, o andamento da narrativa em Bœlåq e Calcutá 2.ed. (nas quais os moradores da ilha
são gênios) é mais minucioso: “o criado gritou por seus companheiros, pôs-se a chorar e dizer: ‘Senhores,
saiam e salvem-se desta floresta; fujam, porque um dos moradores montou em meus ombros e os outros
estão atrás de vocês querendo fazer o mesmo que ele fez comigo!’. Ouvindo as palavras do criado, todos
fugiram e entraram no escaler, e os moradores os seguiram mar adentro dizendo-lhes...”. O episódio dessa
primeira ilha não consta do “Bodl. Or. 550”.
[49] Aqui, cada versão diz uma coisa. No texto-base está †aw∑l albadanayn, “de dois corpos compridos”;
no “Bodl. Or. 550”, †aw∑l alyadayn, “de duas mãos compridas”; em Bœlåq e Calcutá 2.ed., †aw∑l al
¢aynayn, “de dois olhos compridos” (o que faz com que a característica seguinte seja “de cabeça fendida”);
em Breslau, o editor Habicht leu †aw∑l alu∂unayn, “de duas orelhas compridas”. Preferiu-se manter o que
está no texto-base, que pode ser entendido como “muito corpulento”.
[50] Acréscimo exigido pelo contexto, mas que não consta de nenhuma das versões manuseadas.
[51] Em Bœlåq e Calcutá 2.ed., são duas poesias recitadas por Sayf Almulœk que provocam essa reação
admirada do rei dos negros.
[52] Neste ponto, existe uma falha de concatenação na narrativa do texto-base, fruto de provável erro do
original comum (pois se repete no manuscrito “Bodl. Or. 550”), e que tampouco foi percebido pelos
editores de Bœlåq e Calcutá 2.ed. O fato é que, no início da viagem de fuga, três são os criados; o crocodilo
devora o primeiro – e portanto restaram dois –, mas o texto, em se-guida, diz “o criado que restara”. É
possível que o desaparecimento do segundo criado tenha se dado em uma cena semelhante à do
desaparecimento do primeiro criado, com as mesmas palavras, o que facilmente poderia causar um “pulo”
de cópia, problema esse muito banal em manuscritos. Na edição de Breslau, o editor Maximilian Habicht
corrigiu a falha fazendo com que dois criados desaparecessem na mesma cena.
[53] Note que não existe explicação de como o personagem saiu da ilha; ou bem se tratava de “península”,
ou então essa comezinha verossimilhança não importa aqui.
[54] Alcorão, 22, 45.
[55] Preferiu-se manter o nome árabe dessa localidade, cujo correspondente em português é Ceilão, atual
Sri Lanka.
[56]Dawlat pode significar, entre outras coisas, “estado” ou “modificação de situação”; e ¿åtœn, “senhora”.
[57]Alazraq significa “azul”.
[58]Tåj Almulœk significa “coroa dos reis”.
[59] “E ele acabou de sair daqui” traduz wa huwa kamå rå¬ min ¢ind∑, sintagma no qual se verifica o uso
de um coloquialismo antigo, kamå (“como”, “tal como”), com função de “agora”, a exemplo do que se
verifica na história do mercador e do gênio, no primeiro volume desta coleção, p. 57, nota 26.
[60] O texto-base diz que os olhos do rapaz se encheram de lágrimas. As outras versões, que os olhos da
jovem. Pelo desenrolar da narrativa, parece que eram os da jovem. É visível que o original comum, neste
ponto, apresentava problemas de concatenação.
[61] O trecho entre colchetes foi traduzido do manuscrito “Bodl. Or. 550”. Bœlåq e Calcutá 2.ed.
apresentam uma narrativa mais floreada.
[62] Trecho estranho, embora confirmado pelo desenrolar da narrativa. O texto-base e o “Bodl. Or. 550”
apresentam a mesma redação: wa na≈artuka ¢indahå f∑ bilådihå, literalmente “e [se eu] visse você com ela
no país dela”. Poder-se-ia, ainda, considerar que a construção correta seria wa na≈artuka tur∑d an tarœ¬
ilà ¢indahå f∑ bilådihå, “e visse você querendo ir ao país dela [de Bad∑¢at Aljamål]...”. Nas edições
impressas, Breslau inclusive, os revisores consideraram que havia erro no pronome oblíquo e optaram por
uma formulação mais clara: wa na≈artuka ¢indanå f∑ bilådinå “e [se eu] visse você conosco em nosso
país”. Mais adiante, outra possibilidade de leitura: quando ela afirma que “somos muito unidas”, talvez
esteja se referindo à irmã de leite, que desse modo aceitaria encontrar-se com Sayf Almulœk.
[63] Por “espírito” traduziu-se rœ¬. Poderia ainda ser traduzida como “vida”, “sopro vital” e até mesmo
“alma” (para a qual, no entanto, é mais comum o uso da palavra nafs).
[64]Æåtim, nome próprio usual em árabe que significa “juiz”. Pode-se ler também ¿åtim, “anel”. A primeira
forma foi escolhida em Bœlåq e Calcutá 2.ed., e a segunda em Breslau.
[65] “Ligado” traduz mu¢allaqa, que é como o editor de Breslau corrigiu o que consta do texto-base:
muqliqa (ou muqlaqa), “preocupante”, talvez coloquialismo de qaliqa, “preocupada”.
[66] Frase confusa no texto-base. Lançou-se mão das edições impressas, Breslau inclusive. No manuscrito
“Bodl. Or. 550”, o relato inteiro de Dawlat ¿åtœn está bastante resumido. O trecho entre colchetes é
acréscimo do tradutor.
[67] O texto-base e o “Bodl. Or. 550” trazem “estrangulou-o”, equívoco evidente que passou despercebido
também ao editor de Breslau. Corrigido em Bœlåq e Calcutá 2.ed. Outra possibilidade interpretativa é que,
no texto, a repetição dos trechos – a sequência das ações já fora enunciada – se impôs ao andamento
presumível dos eventos narrados.
[68] “Seu idiota tresloucado” traduz yå saq∑¢ alli¬ya bårid alwajh, expressões obscuras, literalmente, “ó
de barba pálida e face frígida”. Seguiu-se, para a tradução, o Supplément aux Dictionnaires Arabes de Dozy,
segundo o qual os dois sintagmas são semanticamente próximos.
[69] O nome do porto foi traduzido a partir de Bœlåq e Calcutá 2.ed., e significa “alçapão dos dois mares”.
No texto-base lê-se K∑n Alba¬rayn, sintagma no qual claramente falta uma letra na primeira palavra, que o
editor de Breslau tentou corrigir para Am∑n Alba¬rayn, “o secretário dos dois mares”.
[70]Mu¢∑n Add∑n, “o apoiador da fé”, é como está em Bœlåq, Calcutá 2.ed. e no “Bodl. Or. 550”. O texto-
base, que nesse ponto apresenta redação assaz confusa, atribui-lhe inicialmente o nome de Mu¢∑n Arriyåsa,
“o apoiador da chefia”, e, mais adiante, Mu¢∑n Add∑n Arriyåsa (ou Arru’aså’). Em Bœlåq e Calcutá 2.ed.
há um acréscimo que não parece gratuito e reforça a coerência da narrativa: “era um dos capitães de seu pai
e saíra para procurá-la quando ela fora sequestrada, mas, não a encontrando, continuou a busca até chegar à
cidade do tio paterno da moça”. O nome desse tio, ¢Ål∑ Almulœk, significa “o elevado entre os reis”, e foi
traduzido a partir das outras versões, pois o texto-base apresenta um equívoco na transcrição.
[71] O trecho entre colchetes foi traduzido a partir de Calcutá 2.ed., Bœlåq e o “Bodl. Or. 550”. A redação
do texto-base apresenta frases aparentemente desconexas, que parecem ter sido copiadas de um rascunho ou
de mais de uma versão, sem que o copista se decidisse pela melhor.
[72] No texto-base, repete-se o número da noite anterior, 221; aqui, renumerou-se de acordo com a
sequência.
[73] O relato de Så¢id está resumido em três linhas no manuscrito “Bodl. Or. 550”.
[74] “Para que saibamos” foi traduzido de Bœlåq e Calcutá 2.ed.; o texto-base traz “para que vejamos”.
[75] O texto-base diz um qin†år, que em medida egípcia equivale a quase 45 quilos.
[76] Compare esta primeira parte da história de Så¢id com a quinta viagem do navegante Sindabåd, neste
volume (p. 208).
[77] Aqui, há uma evidente falha no encadeamento narrativo. Bœlåq e Calcutá 2.ed. introduzem outros
elementos que também carecem de nexo: “Apalpou outro e, vendo que estava gordo, ficou contente.
Depois, sacrificou três
[78] Bœlåq e Calcutá 2.ed. dão um remate diverso para as aventuras de Så¢id após a morte do ogro: “Certo
dia, avistamos uma grande embarcação ao longe; acenamos para os seus tripulantes e gritamos, mas eles
tiveram medo daquele ogro, pois sabiam que ele vivia na ilha e era canibal, e fizeram tenção de fugir.
Acenamos-lhes então com nossos turbantes, nos aproximamos e gritamos. Um dos passageiros, cuja vista
era aguda, disse: ‘Ó passageiros, eu vejo que aqueles vultos são seres humanos como nós, e não estão com
roupas de ogros’. Então eles vieram em nossa direção lentamente, aproximaram-se e, certificando-se de que
éramos seres humanos, cumprimentaram-nos, retribuímos o cumprimento, demos a boa nova da morte do
ogro maldito e eles nos agradeceram. Em seguida, nos abastecemos com as frutas da ilha, embarcamos e os
bons ventos nos empurraram por três dias, mas depois a ventania se voltou contra nós, a escuridão da
atmosfera recrudesceu e não era passada nem uma hora e já a ventania arremessava o barco contra uma
montanha, e ele se quebrou e suas tábuas se soltaram. Deus grandioso determinou que eu me agarrasse a
uma das tábuas, na qual montei e naveguei por dois dias; vieram bons ventos e eu me pus, sobre a tábua, a
remar com os pés por algum tempo, até que Deus altíssimo me fez chegar incólume à terra. Entrei nesta
cidade, forasteiro, sozinho e abandonado, sem saber o que fazer. Premido pela fome e exaurido pelo grande
esforço, fui ao mercado da cidade; escondi-me, tirei esta túnica e pensei: ‘Vou vendê-la para comer, até
Deus decidir o que tiver de ser’. E assim, meu irmão, enquanto eu empunhava a túnica e as pessoas
assistiam e faziam ofertas, você me viu e ordenou que eu fosse levado ao palácio, mas os criados me
levaram para a prisão. Após algum tempo você se lembrou de mim e mandou trazer-me à sua presença. Já
lhe contei tudo quanto me sucedeu, e graças a Deus por este encontro”.
[79] Em Bœlåq e Calcutá 2. ed., as poesias são mais copiosas e apresentam redação diferente. O “Bodl. Or.
550”, bastante resumido, não contém nenhuma poesia.
[80] Note o uso do masculino para referir personagens femininas. Era procedimento comum na poesia
árabe.
[81] O trecho entre colchetes foi traduzido de Bœlåq; o texto-base traz: “Sayf Almulœk saiu dali enquanto
Bad∑¢at Aljamål permanecia à sua espera, acompanhada de uma criada, um pouco de comida e uma
garrafa cheia de vinho até a boca. Quando ele voltou, ela o recebeu...”, o que é uma redação visivelmente
falha.
[82]Murjåna quer dizer “coral”.
[83] Nas recomendações de Bad∑¢at a Murjåna, ora se usa a primeira pessoa, ora a terceira. Padronizou-se
com a terceira pessoa.
[84] O discurso de Sayf Almulœk para a velha é, em síntese, o mesmo que ele dirigira antes à sua amada
Bad∑¢at Aljamål. Embora pareça existir aí alguma falha de cópia, tal discurso é praticamente idêntico em
todas as versões compulsadas. Para sanar a dúvida, consultaram-se outras edições – inclusive a libanesa do
padre jesuíta An†œn Øåli¬ån∑, que sofreu revisões, correções e mutilações drásticas –, mas em todas a fala
é a mesma, sinal de que, mesmo nesse formato, o discurso satisfez os mais variados editores e copistas.
[85] “Não perdoarei [...] amamentei” (må aj¢al laka f∑ ¬illin min laban∑): formulação de difícil
compreensão que foi mantida em Bœlåq e Calcutá 2.ed. Traduziu-se conforme Lane, citado por Dozy.
[86] A expressão entre colchetes foi traduzida do “Bodl. Or. 550”.
[87] Traduzido de Bœlåq e Calcutá 2.ed.
[88] Trata-se de tradução do bordão laysa f∑ ali¢åda ifåda.
[89] Alcunhas do arcanjo da morte, comandado por Deus.
[90] No texto-base, após tais dizeres, registra-se o seguinte: “Terminou a quarta parte das mil e uma noites,
bem, inteiras e completas. Louvores, por tudo, a Deus, que é o que me basta e o meu melhor protetor”.
Após essa história, o texto-base apresenta, em noites cuja numeração vai da 229a à 250a noite, a de
Nœrudd∑n ¢Al∑ Bin Bakkår e amsunnahår, já traduzida no segundo volume desta coleção, da 171a à 200a
noite, e que ocupa toda a quinta parte do manuscrito “Arabe 3612”.
[91] Foram utilizados os manuscritos “Arabe 3612”, da Biblioteca Nacional de Paris, e o “Arabic 646”, da
John Rylands Library. Seguiu-se a numeração das noites do primeiro; no segundo, a história cobre da 255a à
272a noite. Veja o posfácio a este volume, pp. 364 e 366-367.
[92] Essa é a grafia do manuscrito “Arabic 646” (¿ayla¿åna significa, em persa, “família ilustre”); já o
manuscrito “Arabe 3612” traz Al¿aylajån, que não tem significado conhecido. Segundo Zotenberg, a leitura
correta do último nome seria Måhån.
[93] Capital da província de ¿uråsån, na Pérsia, foi uma das maiores e mais prósperas cidades do islã. Terra
natal do poeta Omar Khayyam (¢Umar Al¿ayyåm), morto em 1123 d.C., e do místico Far∑d Add∑n
¢A††år, morto em 1230 d.C. Também é possível transcrevê-la N∑šåpœr.
[94] “Ilha dos Ventos” traduz Jaz∑rat Arr∑¬ån, que seria mais propriamente “Ilha das Murtas”; porém, a
palavra r∑¬ån, “murta”, foi nesse caso utilizada como plural de r∑¬, “vento”.
[95] Ambos os manuscritos trazem funduq, “hotel” ou “hospedaria”, em lugar de bunduq, “avelã”, que é
obviamente o étimo correto.
[96] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[97] Assim no texto-base: o grito “cegará”, e não “ensurdecerá”.
[98] O texto-base traz um qin†år, antiga medida árabe, origem da medida portuguesa “quintal”, desusada.
[99] Provavelmente tenha sido pulado, na cópia, o trecho no qual se faz referência à origem desse colar, que
tornará a aparecer na narrativa, sempre determinado: “o colar”.
[100] O trecho entre colchetes é adição do tradutor. No texto-base consta o seguinte: “[...] fonte de água, e
então entrei para espairecer, deixando meu marido no interior da gruta” etc., o que não faz sentido.
[101] O texto, obviamente, está em árabe, o que o constitui, no âmbito de sua própria ficcionalidade, como
uma tradução – não importando se de fato “o original” era em persa etc.
[102] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[103] Neste ponto, ocorre confusão entre as vozes narrativas. O texto-base traz: “Dissemos: ‘Conte-nos o
que de mais espantoso você viu’, e então o grupo dos sete disse-lhe: ‘Conte-nos o que de mais espantoso
você viu’, e ele disse: [...]”. Evidencia-se a ocorrência, no fluxo narrativo, de uma falha que desencadeará
inconsistências, conforme se constatará adiante, muito embora o conjunto permaneça compreensível. Não é
possível saber se se trata apenas de erros de cópia ou se a elaboração original já conteria problemas de
concatenação que acabaram não sendo corrigidos (veja o posfácio a este volume).
[104] Antes disso, a velha pergunta: “Qual o seu país?”, mas a resposta foi provavelmente “pulada” durante
a cópia.
[105] No texto-base, a palavra traduzida por “aproximou-se” é incompreensível: faßarat, ou fa®arat,
palavras não constantes de nenhum dicionário.
[106] A partir desse ponto, o texto do manuscrito “Arabic 646” é o original do século xvi, o que amplia um
pouco as possibilidades de leitura e tradução.
[107] Não fica claro se a voz é da ave gigantesca.
[108] Trata-se do ponto que, nas mesquitas e nos locais de prece, indica a direção de Meca.
[109] Os dois manuscritos trazem “as suas palavras atingiram o meu coração e o coração dos meus irmãos”,
o que apresenta óbvios problemas para o andamento da narrativa, uma vez que não é nenhum dos sete
irmãos quem está narrando, mas sim o velho que encontraram na ilha, e cuja narrativa, neste instante, eles
estão reproduzindo. Efetuando este e outros pequenos ajustes no texto (todos marcados com colchetes), o
tradutor não pretendeu apagar o problema, mas sim conferir alguma legibilidade ao relato (veja o posfácio a
este volume).
[110] Colchetes do tradutor. O texto-base traz: “Viajamos até o xeique”, o que não faz sentido. O
pressuposto da intervenção é que o discurso pertence aos sete irmãos e que o xeique mencionado é o velho a
quem eles encontraram no começo de seu relato, e não o que matou as feiticeiras e destruiu o ídolo.
[111] Colchetes do tradutor. O texto-base traz apenas “Viajamos”.
[112]Abœ Håmån é, decerto, a alcunha do velho a quem os sete irmãos encontraram na ilha.
[113] O trecho “do Alcorão [...] até crescer” foi traduzido do manuscrito “Arabic 646”. O “Arabe 3612”
traz: “do Alcorão, tornando-se diácono e alternando-se entre a escola e o comércio até crescer”, o que não
faz sentido por dois motivos: primeiro, a palavra šammås, “diácono”, é designação de um ofício cristão, o
que contradiz a afirmação anterior de que ele estudara o Alcorão com um alfaqui, doutor da lei religiosa
muçulmana; segundo, o exercício do comércio é posterior, conforme se verá logo adiante. O leitor
tampouco deixará de notar certa incongruência na descrição da passagem dos anos, o que não é incomum
nesse gênero de narrativa.
[114] Ambos os manuscritos trazem “que gostava dele”, o que parece não fazer sentido.
[115] Tribos árabes pré-islâmicas da região do Iêmen.
[116] “Sua couraça de batalha” traduz o que consta em ambos os manuscritos: la’amat jarbihi, algo como
“a couraça de sua sarna”, o que não faz sentido; por isso, supôs-se que fosse la’amat ¬arbihi, dada a
semelhança de grafias, em árabe, entre o ¬ e j.
[117] “Congratulações” traduz o árabe ¬ayyåka Allåh, literalmente, “que Deus lhe preserve a vida”,
saudação até hoje bastante usual.
[118] Os dois manuscritos trazem fa¬m, “carvão”, mas preferiu-se manter o que havia antes, kabr∑t,
“enxofre”.
[119] “Estofados” traduz o obscuro vocábulo kišåyåt, constante de ambos os manuscritos; supôs-se que a
forma correta seria kisåyåt, plural de kiså’, que segundo Dozy era “um estofo de lã tecido pelos beduínos, e
que servia para diferentes usos”.
[120] Referência a algum ritual hoje desconhecido.
[121] Com o fim da história da mulher, o narrador volta a ser, obviamente, Al¿ayla¿ån, mas em algumas
passagens, por provável distração do copista, o texto se refere a ele como personagem de sua própria
narrativa, o que foi corrigido na tradução.
[122] No “Arabic 646” o nome é BalnœΩ.
[123] Todos os nomes que aparecem nesse trecho pertencem a entidades mitológicas e sofrem uma que
outra variação na grafia, que a tradução regularizou. ¢Imlåq tem que ver com a tribo de gigantes conhecida
como “amalecita”; addåd Bin ¢Åd foi um dos reis da dinastia de ¢Åd, que governou o Iêmen em tempos
pré-islâmicos; já a referência à cidade de Iram flåt Al¢imåd, de incerta localização, deriva de uma
controvertida locução alcorânica (Alcorão, 89, 7).
[124] Em árabe, Za¢∑m quer dizer “líder”.
[125] A fala se inicia na terceira pessoa (“Quando eles adentraram o corredor, viram...”), regularizando-se
em seguida.
[126] Referência ao reino de Æimyar, que se desenvolveu no Iêmen, sul da Península Arábica, antes do islã,
e cuja escrita era diferente da árabe; sua própria língua era diferente da árabe, embora muito assemelhada.
[127] Como de hábito, ocorrem termos hoje obscuros na descrição da indumentária. Ambos os manuscritos
trazem qu®bån azzumurrud ala¿®ar, “bastões (ou ramos) de esmeralda verde”, o que não faz sentido, ao
menos em vista dos sentidos rastreáveis nos dicionários. Supôs-se aqui que, em vez de qu®bån, o correto
seja qaßbà, “roupa fina de linho com fios de ouro”; a grafia, em árabe, é assemelhada.
[128] No “Arabic 646” lê-se: “não pretendi contemplar a minha face”. Em todo caso, alguma coisa parece
não estar bem concatenada nesse trecho.
[129] O “Arabic 646” traz, em sua forma coloquial, a¿awåt∑, “meus irmãos”, que se preferiu ler como
i¿wån∑ “meus amigos”, devido à frase adiante. As duas palavras têm grafia semelhante. Já o “Arabe 3612”
traz a¿wål∑, “meus tios paternos”.
[130] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[131] Nenhum dos dois manuscritos volta a tocar no assunto dos três dias de prazo anteriormente pedidos.
Poder-se-ia presumir que passaram?
[132] “Frondosa árvore” traduz daw¬a, que por equívoco o copista registrou dawja, palavra inexistente em
árabe.
[133] “E nunca me passou pela cabeça algo semelhante à minha história com essa moça” traduz a obscura
formulação fa-amarr [ou: fa-amara] ¢alà ra’s∑ mi¥lu [ou: ma¥alu] qißßat∑ ma¢a hå∂ihi aljårya, que
certamente contém equívocos e comporta várias leituras, entre elas a adotada para a tradução: fa-lam
yamurr ¢alà ra’s∑ mi¥lu qißßat∑ ma¢a hå∂ihi aljårya.
[134] Os gassânidas eram uma tribo árabe cristã cujo reino, que sucumbiu ao islã, se situava ao norte da
Península Arábica. Quanto a alguns nomes que aparecem no texto, eis seu sentido: Azzahra significa “flor”;
Råqib, “vigilante”; Qåri¢a, “calamidade”; Øå¢id, “aquele que se eleva”; Al¬ijåz significa “barreira” e é
uma região da Arábia; Abœ Mi¿†af, “pai do gancho”; ¢Aq∑m, “estéril”; Sal∑m, “sadio”.
[135] Ambos os manuscritos trazem kar¿, nome de várias localidades, entre elas um bairro de Bagdá – não
é obviamente o caso – ou “cela monacal”, o que tampouco é o caso. É mais plausível que se trate de
abreviatura de kar¿åna, palavra que tem o sentido de lugar onde se trabalha: fábrica, oficina, loja etc. Aqui,
preferiu-se “galpão”.
[136]Al©ammås significa “ferrete”.
[137] Parece evidente, nesse ponto, que o texto se refere a imagens em movimento.
[138] Dinastia de reis que governou o Iêmen, no sudoeste da Península Arábica, em tempos pré-islâmicos.
[139] Trata-se, com efeito, de uma das divindades pré-islâmicas, descrita no Kitåb Alaßnåm, “Livro dos
ídolos”, de Ibn Alkalb∑, morto em 819 d.C.
[140]Mis†a¬ significa “cilindro”; mais adiante, ˇålib significa “aquele que procura” ou “estudante”.
[141] “Lua do tempo”. Também é nome do personagem cuja história se conta no segundo volume desta
coleção.
[142] “Vale das Trevas” traduz Wåd∑ A≈≈ulam, que é o que consta do manuscrito “Arabic 646”; poderia
também ser lido como Wåd∑ A≈≈ulm, “Vale da Opressão”. O manuscrito “Arabe 3612” traz Alwåd∑
A≈≈al∑m, “Vale Oprimido” ou “Vale do Avestruz”, possível erro de cópia.
[143] É bem possível que esteja faltando algo nesta passagem.
[144] “Estátuas” traduz afråd, palavra que significa “indivíduos”.
[145] “Cornalina” traduz bal¿aš, “rubi vermelho”; trata-se da designação popular de uma variedade dessa
pedra preciosa encontrada na província persa de Bada¿šån. É, conforme Dozy, expressão egípcia do período
mameluco. Segundo o dicionário Houaiss, a cornalina é uma variedade da calcedônia, palavra de origem
grega que designa certa “pedra preciosa frequentemente encontrada na região de Cartago”. Os árabes devem
tê-la associado ao rubi devido à cor.
[146]Hœd é profeta na tradição islâmica, citado várias vezes no Alcorão e em outras obras.
[147] Referência ao profeta Maomé, ou Mu¬ammad.
[148] Foram utilizados os mesmos manuscritos da história anterior, o “Arabe 3612” e o “Arabic 646”.
Seguiu-se a numeração das noites do primeiro; no segundo, a história ocupa da 273a à 280a noite.
[149]Munamnam significa “adornado”; já ¢Awba¥ån é nome de um árabe ancestral da região da Síria, que
teria também praticado a poesia. Ambas as palavras remetem a tempos remotos.
[150] Em árabe, ablah quer dizer “néscio”, “idiota”.
[151] “Banheiro” traduz zœl∑, palavra que não consta de nenhum dicionário consultado. A forma feminina
dessa palavra, zœliyya, significa “tapete”, mas não é o caso. Talvez se trate de “latrina”.
[152] “Barco” traduz, pelo contexto, ¢aΩ∑r∑ ou ¢as∑r∑, palavras de cujo sentido para este uso os
dicionários não dão conta.
[153] Por mais de uma ocasião, como neste passo, o texto traz “disse a eles”; pode, como em outros casos,
tratar-se tanto de distração do copista como de resquício de uma fonte em que a narrativa se dava em
terceira pessoa.
[154] Agora, “banheiro” traduz sindås, cujo sentido somente foi encontrado no dicionário de Dozy
(commodités, lieux d’aisanse, privés). Segundo Dozy, tal vocábulo foi recolhido no Vocabulista aravigo en
letra castellana de Pedro de Alcalá, publicado em 1505, com o sentido de “privada”.
[155] Nesse ponto, a narrativa se interrompe e é introduzido o seguinte: “Terminou a sexta parte das mil e
uma noites, inteiras e completas; por tudo graças a Deus, o vivente que é o melhor patrono [ou: ‘meu amado
e melhor patrono’]; acabou-se”. E, na mesma página, a narrativa é retomada após o título em letras garrafais
que o copista usava para o que queria destacar: “Sétima parte das mil e uma noites”.
[156] “Eu vejo o que ninguém vê” traduz an≈ur lišay’ dœna ©ayr∑; outra leitura possível, clara no “Arabic
646”, é an≈ur linafs∑ dœna ©ayr∑, “olho para mim mesmo antes de qualquer outro”.
[157] “Retornarei” traduz sa’åt∑kum, leitura hipotética, pois ambos os manuscritos registram wißåyatukum,
“seu mandato”.
[158]Albåz Alašhab quer dizer “falcão cinzento”; já Abœ Lahab quer dizer “pai da chama”.
[159] Neste ponto, o personagem é caracterizado como ballån, palavra que indica o empregado que atende
as pessoas que se dirigem ao banho, mas mais adiante o mesmo personagem é identificado como muzayyin,
“barbeiro”. Como antes o texto falara em ßå¬ib al¬ammåm, “o dono do banho”, é possível que o uso
indistinto das duas palavras indique a prática simultânea das duas atividades – cortar cabelo e servir no
banho – por parte de um único encarregado. Preferiu-se manter “barbeiro” em razão da recorrente tópica
que os produz como impertinentes.
[160] “Delegado” traduz wål∑, que normalmente se traduziria como “governador”. Como aqui, contudo, o
personagem parece reduzido a funções exclusivamente policiais, preferiu-se uma palavra mais restrita a
esse campo semântico.
[161] “Arrátel”, medida de origem árabe – arra†l – equivalente a 459 gramas.
[162] Usou-se “altivez” para traduzir na¿wat. Como, porém, tal palavra se encontra determinada pela
locução “dos homens” (na¿wat arrijål), é plausível aqui que o termo se refira a um sentimento específico
de homem para homem, o que permitiria a sua tradução como “solidariedade”.
[163] “Está mentindo para os vivos?” traduz a tak∂ib ¢alà ala¬yå’, mas é possível que a frase contenha
algum erro de cópia.
[164]Sitt Alaqmår significa “senhora das luas”, e Qåßim Ala¢mår, “destruidor das vidas”.
[165] Por provável distração do copista, o manuscrito pula, neste passo, a 273a noite, passando diretamente
para a 274a noite. O equívoco foi corrigido na tradução.
[166]Ifti¿år Dår, locução árabe-persa, significa “árvore (ou: companheiro) da vanglória (ou: do orgulho)”.
[167] Conforme o leitor não terá deixado de notar, existem aí nove questões, e não dez, e a coincidência
entre as respostas e as perguntas não é total, o que permite conjecturar algum erro de cópia.
[168] A palavra traduzida como “animosidade” parece estar incorreta no texto-base, no qual se lê ¢udwåt,
“iguais”, “semelhantes”; supôs-se que fosse ¢adåwåt.
[169] “Aquela que aflige as suas tentações” traduz man Ωajana tajribatahu; e “se livra da calamidade
[provocada] pela razão” traduz ta¿allaßßa min åfat ¢aqlihi.
[170] O texto-base traz “trinta anos”, mas é bem provável que sejam mesmo três.
[171]Almu¿ta†af, ou Alma¿†œf, como aparece adiante, significa “o sequestrado”.
[172]Mubtadir significa “aquele que toma a iniciativa”.
[173] “Templo” traduz b∑¢a, que pode ser tanto “igreja” como “sinagoga”.
[174] Para os motivos do “lucro” e do “saber”, apresenta-se a mesma palavra, †alab, literalmente, “procura”
ou “pedido”.
[175] Conforme talvez tenha sido notado, a narrativa se encerra sem fazer menção alguma ao seu “cenário
secundário”, diga-se assim, que é o da corte do remoto rei persa para o qual, respectivamente, os xeiques
Munamnam e ¢Awba¥ån contam as suas histórias, muito embora se possa supor, naturalmente, que ainda
aqui a tópica se repete e o “destruidor dos prazeres” cumpre a sua deleitosa função precípua. Depois dessa
história, inicia-se, nos manuscritos “Arabe 3612” e “Arabic 646”, a do rei ¢Umar Annu¢mån, longa
narrativa com diversas histórias encaixadas, que fará parte do próximo volume do Livro das mil e uma
noites.
[176] No texto-base, o “Arabe 3615”, a presente história se inicia na metade da 176a noite. Utilizou-se
ainda o volume vi da edição de Breslau, na qual ela cobre da 435a à 486a noite, e a versão constante do
livro Noites egípcias (veja o posfácio a este volume). O original grafa Zåd Ba¿t, mas essas palavras, de
origem persa, estão provavelmente em posição invertida no manuscrito: a grafia correta seria Ba¿t Zåd,
expressão que significa “filho da sorte”, e que foi aqui adotada.
[177] Cidade situada na região sudeste do Irã. Na edição de Breslau: “sua cidade se chamava Kan∑m
Madœd, e seu reino se estendia desde os limites de S∑stån e das fronteiras do Hindostão até o mar”. As
Noites egípcias não dão a localização do reino.
[178] O original traz Isfir Salåd, mas a forma correta é a registrada; trata-se de palavra de origem persa cujo
sentido, na origem, é “comandante do exército”. Em árabe, designava mais propriamente o encarregado-
mor das armas, conforme se registra no Dicionário de vocábulos dos períodos ayyœb∑, mameluco e
otomano, de Æasan Æallåq e ¢Abbås Øabbå©. Na edição de Breslau, afirma-se que se trata do vizir de Ba¿t
Zåd, o que é incongruente.
[179]Mahraja: forma feminina da designação genérica Mihråj, que os indianos davam aos governadores
provinciais. Na edição de Breslau, seu nome é Bahrajœr, e, nas Noites egípcias, Zåd Mahr.
[180] No original, Išhayår. Manteve-se a forma do nome tal como aparece na primeira vez. Kirmån é uma
região no sul do Irã.
[181] “Por coincidência” traduz a expressão árabe fa-ttafaqa, cujo deverbal se usa em construções como wa
min ©ar∑b alittifåqåt..., “e entre as mais insólitas coincidências...”, fórmula amplamente utilizada para
introduzir eventos.
[182] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau.
[183] O trecho entre colchetes foi, da mesma forma, traduzido da edição de Breslau.
[184] “Espaço mais íntimo” traduz ¬ar∑m, origem da palavra “harém”.
[185] Nas Noites egípcias, acrescenta-se a explicação de que o preço do trigo caiu porque o ano fora fértil, o
que ressalta o aspecto especulativo do procedimento.
[186] Na edição de Breslau o amigo sugere um astrólogo. Nas Noites egípcias, não se faz referência a isso.
[187] A edição de Breslau e as Noites egípcias trazem uma versão diversa desse episódio, fazendo o
mercador, inversamente, guardar duas pérolas na boca e oito no bolso. Em Breslau, cuja lição, aqui, parece
melhor, consta: “Ele foi à cidade, retirou as duas pérolas para vendê-las e o destino fez coincidir que a um
joalheiro da cidade tivessem roubado pérolas iguais às que o mercador tinha. Quando aquele mercador viu
as duas pérolas nas mãos do leiloeiro, perguntou-lhe: ‘A quem pertencem?’; ele respondeu: ‘Àquele
homem’, e então, vendo-o debilitado e em miserável estado, desconfiou dele e lhe perguntou: ‘Onde estão
as oito pérolas restantes?’, e o mercador, pensando que ele o indagava a respeito das pérolas que estavam
em seu bolso, respondeu: ‘Foram roubadas de mim por ladrões’, mas o joalheiro estava extraindo a sua
confissão...” etc.
[188]Zœr significa “falsificação”. Na edição de Breslau, o nome é Bahrœn, e nas Noites egípcias, Hårœn.
[189] “Adquiriu maioridade” traduz o obscuro dabba ¢i∂årahu; nas Noites egípcias consta a também
ininteligível construção ¬a††a ¢å®irahu.
[190] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[191]Abœ Øåbir significa, literalmente, “pai do paciente”.
[192] Por “sua beleza” traduziu-se a palavra ma¬aliyyatuhu, incompreensível.
[193] “Primeira noite de desfile” traduz laylat awwal aljalå’, quando a noiva é exibida diversas vezes, em
diversos trajes e paramentos, diante do noivo.
[194] O original traz Dånt∑n e depois Dåwn∑n. Seguiu-se o que consta em Breslau. Nas Noites egípcias
está Dåd∑bin.
[195]¿ayr significa “bem”.
[196] Como já mencionado em nota, amån é uma garantia de vida que alguém pede em virtude de algo que
vai revelar.
[197]Faraj significa “libertação”.
[198] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau, pois no texto-base não ocorre essa
transição. O nome do rei foi traduzido das Noites egípcias, que parecem conter a forma mais correta; no
texto-base ele se chama Ba¿t Azmåy, e, em Breslau, Ba¿t Zamån.
[199] Na edição de Breslau, são oitocentos os atacantes e oitocentos mil (!) os soldados do rei. Nas Noites
egípcias, os atacantes são “umas poucas pessoas” e os soldados do rei, oitocentos cavaleiros.
[200] Por “homem santo” traduziu-se rajul min alabdål, em que a última palavra, abdål, plural de badal (na
definição de F. Corriente, “homens eleitos que Deus vai substituindo sobre a terra”), é também característica
da terminologia do sufismo, a mística muçulmana. As outras duas versões trazem zåhid, “asceta”.
[201] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau, que é a única a nomear o vizir. O texto-
base diz somente “apareceu um vizir”, e as Noites egípcias trazem “apareceu o sétimo vizir”.
[202]Abœ Tamåm quer dizer “pai da plenitude”.
[203] Por equívoco, o texto-base traz, neste ponto, “rei dos gregos”, contradizendo a si mesmo e às outras
versões.
[204] Mais uma vez, traduziu-se ao pé da letra – ¢alà arra’s wa al¢ayn – essa expressão tão
caracteristicamente árabe, que indica a firme intenção, a um só tempo submissa e satisfeita, de realizar o
pedido de alguém.
[205] No original, “o vizir”.
[206] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau.
[207] A partir daqui, a diferença entre o texto-base e as outras versões são tão numerosas – trata-se, na
prática, de outra história – que se preferiu apresentar em separado a tradução do que consta na edição de
Breslau. Veja o Anexo 1 no final deste volume, entre as páginas 329 e 353.
[208] Não custa lembrar que, na concepção medieval, a função do “coração” era muita vez similar, hoje, à
do cérebro: lugar da inteligência, do raciocínio.
[209] “Honra” aqui traduz uma expressão árabe muito em voga: må’ wujœhihinna, “água de seus rostos”.
[210] A partir deste ponto, o nome do rei passa a ser escrito como „lån åh, personagem de outra história,
em um claro indício da desimportância dos nomes.
[211] Deste ponto em diante, a sucessão de peripécias diverge bastante entre o texto-base e as outras
versões. Veja a partir da página 331 do Anexo 1.
[212] Expressão persa que significa algo como “encarregado da sorte”.
[213] Nesse conhecido provérbio, traduziu-se por “os outros” a palavra que, no original, é almu’minœn, “os
crentes”, isto é, os muçulmanos.
[214] No texto-base, aqui também o “Arabe 3615”, esta história se inicia na 199a noite. Utilizaram-se como
apoio os textos das edições de Bœlåq e Calcutá 2.ed., além, eventualmente, do manuscrito “Z13523”; nesse
conjunto, ao qual se dará aqui o nome de “compilação tardia”, a história de Sindabåd tem início no final da
536a noite (nas edições impressas) e no final da 533a noite (no manuscrito). Na edição de Breslau, a
história está no final do terceiro volume e no início do quarto, ocupando da 250a à 271a noite.
[215] O original diz “a história do carregador Sindabåd”, mas é evidente que a palavra “carregador”, neste
caso, está sobrando, como se evidencia por meio das demais versões.
[216] Todas as outras redações acrescentam “no tempo do califa Hårœn ArraΩ∑d”, personagem histórica
que somente aparecerá mais adiante. A ausência da localização temporal logo no início talvez consista em
uma prova da antiguidade da redação do texto-base relativamente às outras redações.
[217] Nas outras versões, a poesia é bem mais longa.
[218] O original faz um jogo de palavras intraduzível: wajadtu almål qad mål wa al¬ål qad ¬ål.
[219] Nas outras versões, o dito é atribuído a “Salomão, filho de Davi, que a paz esteja sobre ambos”. No
começo do provérbio, o texto-base traz apenas “morte”, mas, por uma questão de paralelismo (“dia da
morte/dia do nascimento”), optou-se por traduzir “dia da morte”, tal como se encontra na compilação tardia.
[220] Em lugar de al©arb, “o ocidente”, que é o que está registrado, leu-se al¢arab, os “árabes”. A
diferença é um simples pingo.
[221] Compuseram-se vários livros com esse título – tratava-se mais propriamente de um gênero – nas
antigas letras árabes, dos quais nem todos chegaram até os dias de hoje. Entre os mais conhecidos estão o de
Ibn ¿urdå∂bah e o de Alkar¿∑, ambos do século ix d.C.
[222] “Terra dos Negros” traduz azzanj, “os negros”. Antes, “parasanga” traduz farsa¿, medida de origem
persa cuja unidade equivale a oito quilômetros.
[223] As demais versões incluem minúcias sobre peixes que atacam e ferem as pernas do herói etc.
[224] Conforme já se observou em nota, trata-se de palavra que designa, entre os indianos, os governadores
provinciais.
[225] O trecho entre colchetes foi traduzido da compilação tardia. O texto-base traz: “e é a égua-marinha”,
o que não faz sentido. De qualquer modo, o texto-base é, no geral, mais lógico, conquanto mais conciso (ou
justamente por isso). Por exemplo, na compilação tardia o cavalariço declara que realiza tal atividade
mensalmente, o que contraria o fundamento valorativo dessa prática, que consiste em sua própria raridade.
[226] “Anticristo” traduz Addajjål, “charlatão”, parte do sintagma Almas∑¬ Addajjål, “Anticristo”, que é o
vocábulo usado na Bíblia em árabe. Na edição de Breslau, a tradução dessa controversa passagem é assim:
“[...] uma ilha chamada Kåsil na qual se ouviam sons de tambor com adufes, o tambor como instrumento de
diversão e música, noite e dia. Os marinheiros dizem que [nesse lugar as pessoas] são [adeptas] de
discussões e opiniões” (em matéria religiosa, talvez, mas não necessariamente). O teor da compilação tardia
é semelhante, com menos detalhes, e o nome da ilha é Kåbil. Pode, obviamente, haver ocorrido, em algum
momento da transmissão da história, confusão entre as raízes árabes d j l, constitutiva de “charlatão”, e j d l,
constitutiva de “discussão”. Seja como for, no texto-base a ideia de “Anticristo” não é meramente fortuita,
pois foi incorporada como imagem, o que se evidencia pelo acréscimo do adjetivo “aprisionado” a ela.
Registre-se que as demais versões aqui consultadas da história de Sindabåd são igualmente mais profusas na
apresentação de outros dados, como, por exemplo, a visita de uma delegação de brâmanes, descritos como
pessoas que nunca tomam vinho etc.
[227] “Placas de metal” traduz uma palavra que pode ser lida como nu¬ås, “cobre”, mas pode tratar-se de
erro de cópia.
[228] O trecho entre colchetes foi traduzido da compilação tardia.
[229] No texto-base, todos os verbos dessa passagem estão na primeira pessoa do plural.
[230] Como não se informa qual região seria, presume-se que seja a mesma da primeira viagem. As outras
versões falam em “mercadorias adequadas ao comércio marítimo”.
[231] As outras versões contêm detalhes mais fantásticos, tais como: o rinoceronte passeia com o elefante
pendurado em seu chifre sem se dar conta, fica cego devido à gordura e é capturado, junto com o elefante,
pelo pássaro roque etc.
[232] Nas outras versões, Sindabåd retorna a Bagdá junto com os mercadores que o resgataram no vale dos
diamantes; também o roteiro nelas é mais detalhado, citando a passagem por Basra antes da chegada a
Bagdá, conforme seria de esperar em um relato de viagem marítima. No texto-base, porém, a redação é
mais enxuta, sem prejuízo da lógica narrativa.
[233] O original traz wa in qåtalnåhum, “se os combatermos”, mas o verbo deve ser qåbalnåhum, o que
daria “se os recebermos”. Nas outras versões, o ataque é realizado por macacos.
[234] Nenhuma das versões consultadas dá uma explicação claramente convincente para o motivo do
retorno dos homens ao palácio, onde fatalmente seriam devorados. A lógica narrativa parece pressupor que
o leitor saiba previamente tratar-se de uma ilha bem inóspita, na qual seria impossível sobreviver sem
abrigo, o que deixava a opção entre morrerem todos ou morrer apenas um – de cada vez.
[235] O sintagma “ainda vivas” traduz uma expressão cuja leitura é dificultosa. Essa fala não consta das
demais versões.
[236] Nas demais versões, em um longo discurso, o capitão oferece ao narrador a possibilidade de trabalhar
com as mercadorias para ganhar algum dinheiro, e garante que depois seria tudo entregue à sua família em
Bagdá etc.
[237] “Que gera e nasce na água” é o que consta do original.
[238] Uma curiosidade: neste ponto, em vez de ¬ammål, “carregador”, o copista grafou ¬imår, “asno”.
[239] Em lugar de “arroz”, o texto-base traz “erva”, evidente equívoco. Embora divergentes entre si neste
ponto, tanto a compilação tardia como a edição de Breslau são mais ricas em detalhes – tais como a
informação de que somente o rei, na verdade um ogro, comia carne humana, ou de que aquela gente era
adepta do zoroastrismo (mujœs) etc.
[240] O trecho entre colchetes foi traduzido da compilação tardia, cuja narrativa é aqui bastante longa e
cheia de explicações – mas, basicamente, os fatos descritos são os mesmos. Na verdade, quando o rei diz
“Gostaria de casá-lo para que você fique morando conosco”, é possível subentender que pretende casá-lo
com uma mulher do lugar.
[241] Na compilação tardia, o relato sobre a vida conjugal é mais pródigo: “O rei me deu uma casa imensa e
graciosa, isolada, bem como serviçais e criados; arranjou-me renda e tença, e fiquei no mais extremo
conforto, tranquilidade e bem-estar, olvidando todas as fadigas, canseiras e tribulações que me haviam
sucedido; pensei: ‘Quando retornar ao meu país, levá-la-ei comigo; é imperioso que ocorra tudo quanto está
predestinado ao homem, e ninguém sabe o que lhe sucederá’. Amei-a, e ela me amou demais; havia
concórdia entre nós, e vivemos a vida mais deliciosa com as melhores dádivas”.
[242] Como já mencionado em nota, Sarand∑b corresponde ao Ceilão, atual Sri Lanka.
[243] Nas demais versões: “Enrolou em meu pescoço as suas pernas, e, olhando para elas, vi que, em
negrume e aspereza, eram como couro de búfalo”.
[244] As demais versões são mais ricas em detalhes sobre o sofrimento do navegante: “Eu era praticamente
seu prisioneiro; entramos no centro da ilha, e ele se pôs a urinar e a defecar em meus ombros, dos quais não
descia, fosse noite, fosse dia; quando queria dormir, enrolava as pernas em torno de meu pescoço, dormia
um pouco e logo acordava e me agredia, e então apressadamente eu me erguia, incapaz de desobedecer”.
[245] Compare esta passagem com a primeira parte do relato do vizir Så¢id, na história do rei Mu¬ammad
Bin Såbik e o ¿awåja Æasan, neste mesmo volume, p. 52.
[246] No lugar desse início de parágrafo, nas outras versões constam as seguintes peripécias, aqui
traduzidas a partir da edição de Bœlåq: “Viajamos por dias e noites, sendo lançados pelo destino em uma
cidade de elevada construção, cujas casas todas davam para o mar. Tal cidade era chamada de Cidade dos
Macacos. Quando anoitecia, seus moradores saíam pelas portas que davam para o mar, embarcavam em
botes e navios e ali dormiam, no mar, por receio de que os macacos descessem à noite das montanhas e os
atacassem. Saí para ver a cidade e o meu navio zarpou sem que eu percebesse. Arrependi-me de ter saído
pela cidade, lembrei-me de meus companheiros e do que me sucedera com macacos na primeira e na
segunda vez, e pus-me a chorar, entristecido. Um dos moradores da terra veio até mim e me perguntou:
‘Meu senhor, por acaso não seria estrangeiro nesta terra?’. Respondi: ‘Sim, sou estrangeiro. E um pobre
coitado! Eu havia embarcado em um navio que aportara naquela [sic] cidade, e saí para vê-la, mas quando
retornei já não vi o navio’. Ele me disse: ‘Venha conosco. Entre no bote, pois, se você ficar na cidade à
noite, será morto pelos macacos’. Eu disse: ‘Ouço e obedeço’, e imediatamente embarquei no bote com
eles, que o empurraram da terra até o distanciarem no mar cerca de uma milha, e ali dormiram naquela
noite, comigo junto. Quando amanheceu, voltaram à cidade, e cada um foi cuidar de seus misteres. Era isso
o que faziam todas as noites, e todo aquele que ficava para trás na cidade era atacado e morto pelos
macacos. Durante o dia, os macacos saíam da cidade e se alimentavam dos frutos dos bosques, dormindo
nas montanhas até o anoitecer, quando então retornavam à cidade, que fica na região mais longínqua do
Sudão. A coisa mais espantosa que presenciei dos habitantes dessa terra foi que um dos homens entre os
quais dormi no bote me disse: ‘Meu senhor, você é estrangeiro neste país. Tem algum ofício com o qual
ganhar a vida?’. Respondi: ‘Não, por Deus, meu irmão, não tenho ofício nem sei fazer nada. Sou apenas
mercador, proprietário de dinheiro e bens...’”, e lhe conta enfim toda a sua história, sendo então por ele
instado a catar coco, com o que enriquece e acaba por tomar um navio de volta para a sua terra, em uma
narrativa semelhante à do texto-base.
[247] O trecho entre colchetes é resultado de leitura combinada da compilação tardia e do texto da edição
de Breslau, sendo de ressaltar que nesta última não existe condenação explícita às práticas descritas
(fornicação, adultério, bebida, ausência dos rituais de reza etc.). Aliás, os textos divergem quanto a essa
afortunada localidade: na edição de Breslau, é a ilha onde existe aloés qimår∑, ao passo que na compilação
tardia é a ilha onde existe aloés chinês. A denominação Ma¢arråt é da edição de Breslau; em Bœlåq e no
manuscrito Z13523, a ilha se chama ¢Asaråt; em Calcutá 2.ed., ˝asaråt. No lugar desse trecho todo, o texto-
base traz apenas o seguinte: “Entramos na Ilha de Qimår∑, que contém o aloés qimår∑”. Graças à
qualidade de seu aloés, tal ilha é citada em relatos de antigos mercadores árabes, tais como o de um certo
Sulaymån, do século ix d.C.
[248] Eis a descrição da edição de Bœlåq: “E naquela ilha existe uma fonte da qual brota uma espécie de
âmbar bruto que flui ao seu lado como cera, pela força do sol, e vai até a costa, onde animais marinhos o
engolem e mergulham; o âmbar se aquece em seus ventres e eles o expelem pela boca no mar, em cuja
superfície endurece, alterando-se sua cor e seu estado, e as ondas o lançam na costa, de onde é recolhido
pelos viajantes e mercadores, que o conhecem e vendem. Quanto ao âmbar puro – o que não é engolido –,
ele corre ao lado daquela fonte, endurecendo no próprio solo; quando o sol o bate, derrete-se, e o aroma do
vale inteiro fica como almíscar. Quando o sol desaparece, torna a endurecer”.
[249] A compilação tardia traz “indianos e abissínios”; na edição de Breslau constam palavras
incompreensíveis, em que se vislumbram os semantemas “Caxemira”, “Abissínia” e, segundo sugestão de
Dozy, “indianos”.
[250] Trata-se de dois mamíferos: “Almiscareiro: mamífero artiodáctilo da família dos cervídeos (Moschus
moschiferus), da Ásia Central; de pequeno porte e chifres ausentes; algália [Os machos possuem no abdome
uma glândula produtora de almíscar, substância usada na confecção de perfumes]”; “Civeta: designação
comum a diversos mamíferos da família dos viverrídeos, encontrados especialmente na África e na Ásia, de
pelagem manchada e focinho pontiagudo” (Dicionário Houaiss). Note que ambas as palavras são de origem
árabe. Essa passagem não consta das outras versões.
[251] Na compilação tardia, o califa ordena que historiadores registrem por escrito a história do navegante,
“a fim de que se constituísse em uma lição para quem a visse”. Já a edição de Breslau não faz menção aos
presentes enviados ao califa, embora relate o encontro entre ele e Sindabåd: “O califa Hårœn ArraΩ∑d
ouviu falar de minha chegada e mandou me chamar; fui até ele, beijei o chão e lhe levei presentes
adequados, metais nobres, aljôfares, âmbar bruto valioso e aloés perfumado...”.
[252] Nas demais versões, a redação desta sétima viagem é inteiramente diversa. Confira no Anexo 2,
páginas 354 a 362.
[253] Neste ponto, com outra caligrafia e obedecendo à disposição característica dos finais dos antigos
manuscritos árabes – a de pirâmide invertida –, lê-se: “E isto foi o que chegou até nós da história do
navegante Sindabåd e do carregador Sindabåd, e ela não é mais espantosa do que o sucedido com ¢Aj∑b e
seu irmão ˝ar∑b. E a aurora alcançou ahrazåd, que deixou interrompida a sua fala permitida. E quando foi a
211a noite, o rei se recolheu à sua cama junto com a esposa, e se deliciaram em regozijos e agarrões. Sua
irmã Dunyåzåd lhe disse: ‘Por Deus, maninha’...”. E o manuscrito “Arabe 3615” aí se encerra.
[254] Traduzido do volume 11 da edição de Breslau, pp. 84-318. Conforme se explica no posfácio ao
presente volume, algumas das narrativas constantes desta história encontram-se, várias delas duplicadas, no
manuscrito “Arabe 3612”. åh Ba¿t é expressão persa que significa “rei da sorte” (registre-se que, para
Zotenberg, a forma mais correta desse nome seria åd Ba¿t). Já Rahwån, também palavra persa, quer dizer
“rocim” ou “bom caminho”. Fleischer, editor de Breslau, levanta a hipótese – derivada das recorrentes
obsessões de antigos arabistas europeus com as origens indianas de qualquer obra de ficção em árabe cuja
ação se dê na Índia – de que Rahwån seria deformação de Brahman, “brâmane”.
[255] Os trechos entre colchetes no começo e no fim das noites foram inseridos com base no que restou da
história nas duas versões do manuscrito “Arabe 3612”, uma vez que a edição de Breslau elide inteiramente
tais passagens, limitando a divisão à numeração das noites.
[257] Conforme já se observou em nota, o ¿uråsån situa-se na região oriental do Irã.
[258] “Peregrina” traduz ¬åjja, tratamento respeitoso dado a pessoas mais velhas que, por suposição, já
devem ter realizado a peregrinação a Meca. Antes, “rosário” traduz masba¬a, instrumento de prece
muçulmano parecido com o rosário cristão, do qual, diz-se, seria a origem.
[259] Cidade do Iêmen.
[260] O original diz “para viajar”, o que, pelo desenrolar da narrativa, tem aqui alguma conotação de
“ganhar a vida”.
[261] “Para tecê-la e rasgar a sua tessitura” traduz ansij lahå wa a¿mi† ©azlahå, expressão obscura cujo
sentido obsceno, porém, é evidente, conforme afirma Dozy. Lembre-se que, no dialeto egípcio moderno, o
verbo ¿ayya†a, “costurar”, também conota “possuir sexualmente”. Nessa expressão, como em outra,
ocorrida linhas atrás, as palavras têm ligação com a tecelagem.
[262] “O melhor” traduz a sequência j ∑ d, que não foi possível ler senão como aljayyid, “bom”,
“excelente”, “superior”. Talvez tenha, nessa passagem, o sentido de “prazer”.
[263] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[264]Almutabattil significa “asceta”, o que, obviamente, não é o caso aqui. Dozy supõe que se trate de
referência a algum “animal fabuloso”. É enorme, todavia, a possibilidade de que se trate de erro de revisão.
[265] O trecho entre colchetes é acréscimo exigido pelo contexto.
[266] O final desta história, na qual existem visíveis “buracos”, está bastante confuso.
[267] O trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor, justificado pelo andamento da narrativa.
[268] “Minha mão será bem generosa com você” traduz kåna laka ¢ind∑ alyad albay®å’, literalmente,
“você terá, comigo, mão branca”.
[269] Região situada entre o Irã e o Afeganistão. Note que, na passagem anterior, essa região havia sido
mencionada como “terra dos turcos”.
[270] A redação desta história apresenta problemas tão brutais de nexo e encadeamento – devidos, decerto,
a revisão descuidada – que a sua tradução exigiu contínuas intervenções.
[271] É bem possível que nesses enigmas, em especial no segundo, existam erros de revisão que impedem o
seu adequado entendimento.
[272] O original traz ¢ušr, “dízimo”.
[273] Entenda-se aqui que o velho alude à devolução no Juízo Final etc.
[274] Habitual jura entre os antigos árabes, hoje restrita a regiões interioranas, em que o homem jura que se
separará da mulher caso não se dê o que ele está dizendo (ou não seja verdade o que ele diz etc.). Hoje, nas
regiões urbanas, tal jura, por motivos assaz compreensíveis, está restrita ao âmbito da chacota.
[275] “Mina”, nesta passagem, refere-se à antiga medida de peso grega, equivalente a 324 gramas.
[276] Essa observação do rei, conforme não terá escapado ao leitor, refere-se à história seguinte. Portanto,
trata-se de uma expectativa gerada no espírito do rei, e não de uma análise.
[277] “Preparados” traduz tajh∑z, talvez “cruzados”. Essa parte do texto é praticamente incompreensível.
[278] A partir deste ponto, inicia-se a primeira versão contida na décima sétima parte do manuscrito “Arabe
3612”. Está dividida em noites em onze pontos que se abrem com: “e quando foi a noite seguinte, que era
a...”, sem, no entanto, atribuir-lhes numeração alguma. As histórias apresentam-se soltas, e não dentro do
quadro-moldura, isto é, não existem as figuras do rei åh Ba¿t nem do vizir Rahwån. E todas as noites são
iniciadas e encerradas com as fórmulas habituais aqui utilizadas. Embora a tradução, nessa altura, deva
continuar sendo feita a partir da edição impressa, convém notar que, nas discrepâncias – e sem que se visse
necessidade de apontá-las a todo momento –, amiúde lançou-se mão do texto do manuscrito.
[279] No manuscrito: “não mata a infâmia senão a destruição”.
[280] Nem a edição impressa nem o manuscrito mencionam a cura do ladrão, certamente por falha do
original comum.
[281] “Saco com dez mil dirhams” traduz badra, que é o que consta da edição impressa e do manuscrito.
[282] O trecho entre colchetes foi traduzido do manuscrito.
[283] Para o sintagma traduzido como “a criança que tentara matar”, o texto árabe traz apenas ßå¬ibatuhu,
literalmente, “sua companheira”, expressão que pode ser entendida também como “aquela que ele já
conhecia”.
[284] “Colocar lampiões” traduz asraja, que é o que consta do manuscrito. A edição impressa traz o verbo
samraja, que não consta dos dicionários, com exceção de Dozy, que só o introduz para informar que lhe
desconhece o sentido.
[285] “Um protetor que a impedisse de fazer dilapidações” traduz waliyy yaßœnuhå ¢an aliktifå,
literalmente, “um tutor que a protegesse da satisfação”, formulação meio incompreensível que consta do
manuscrito e do impresso.
[286] “Pondo-se a falar no jargão médico” traduz yah∂ur, que normalmente significa “disparatar”. Para a
particularidade do sentido aqui articulado, seguiu-se Dozy, que cita justamente esse trecho como exemplo.
Mais adiante, “jargão” traduz hå∂œr, da mesma raiz.
[287] Médico grego (131-201 d.C.), foi um dos grandes referenciais da medicina árabe.
[288] O trecho entre colchetes foi traduzido do manuscrito.
[289] “Certificou-se do valor do dote” foi traduzido da edição impressa. O manuscrito diz “aliviou o tecelão
do peso do dote”, o que, conforme se verá adiante, não faz sentido.
[290] Em algumas épocas, a cor amarela foi distintiva dos judeus no Oriente.
[291] Prato habitualmente constituído de carne moída com trigo.
[292] No manuscrito: “na cidade [ou capital] da China”; na edição impressa: “na cidade de Bagdá”.
Contudo, mais adiante se evidencia que o propósito era referir Merv, atual Mery, hoje situada no
Turcomenistão, cidade que na antiga tradição cômica árabe-islâmica era topicamente mencionada como
berço por excelência de gente avarenta e tacanha.
[293] Traduziu-se do manuscrito; a edição impressa traz “outra cidade”. Array situa-se a sudeste de Teerã e
é o local de nascimento do califa Hårœn Arraš∑d.
[294] No manuscrito: “camelo”.
[295] “E que tal não se daria senão declaradamente e mediante aviso prévio” foi traduzido do manuscrito.
Diversos trechos se traduziram do manuscrito ou mediante o auxílio da leitura nele contida.
[296] “Mérvida”: natural da cidade de Merv. “Rázi”: natural da cidade de Array. Por falta de um gentílico
conhecido em português, optou-se por transcrever a palavra árabe, mediante a qual mais de um letrado
muçulmano se celebrizou.
[297] No manuscrito, inverte-se a situação: o mérvida é que convida, e o rázi é que aceita. Mas isso,
obviamente, não tem importância, ou obedece a determinações que hoje têm escassa importância. Na
origem, provavelmente, a história se referia a locais vagos, indeterminados, “uma cidade” etc., e disso se
guardam vestígios no texto, que a todo instante diz: “um disse ao outro”. A introdução de nomes das
cidades e dos gentílicos é tardia. E, com toda a evidência, nem umas nem outros têm maior importância,
pois a oposição, aqui, é semanticamente motivada por “um” espertalhão de “um” lugar e “outro”
espertalhão de “outro” lugar.
[298] “Barba desgrenhada” traduz mašdœd alli¬ya, literalmente, “de barba puxada”.
[299] A partir deste ponto, tem início a segunda versão deste texto na vigésima quarta parte do manuscrito
“Arabe 3612”, da 674a à 690a noite. O texto é introduzido por: “Em nome de Deus, misericordioso,
misericordiador; e a recompensa pertence aos piedosos; e não há agressão senão contra os injustos; que as
bênçãos de Deus estejam sobre nosso senhor Mu¬ammad, sobre seus companheiros, esposas, apoiadores,
partidários e familiares, bem como sobre todos os profetas e enviados, e seus companheiros, amém”. As
fórmulas com que se iniciam e terminam as noites são as mesmas da primeira versão, mas, ao contrário
daquela, nesta as histórias apresentam-se inseridas no mesmo prólogo-moldura da edição impressa, isto é,
são narradas pelo vizir Rahwån para o rei åh Ba¿t. Para evitar confusões, as notas indicarão a primeira
versão do manuscrito como “3612a”, e a segunda como “3612b”.
[300] “Desde que o ouvi”: nas três versões, o texto diz “desde o dia em que o ouvi”. Como na narrativa o
galanteio é imediatamente anterior à conversa entre marido e esposa, fica evidente que a tentativa de
produzir um lapso temporal maior foi falha. Semelhante incongruência ocorre em outros passos desta
história.
[301] O “3612a” acrescenta: “rapidamente, com dirhams tomados à sua esposa”.
[302] A edição impressa acrescenta: “O mérvida lhe disse: ‘Vá você para casa’”, o que não tem muito
cabimento.
[303] “Que coisa foi aquela?” traduziu-se dos manuscritos; “Vamos voltar para ver” traduziu-se da edição
impressa.
[304] “Ressuscitam” traduz ¢åšœ, “vivem”.
[305] “Veremos então como proceder” traduziu-se dos manuscritos; a edição impressa diz: “ele nos dirá
como agir”.
[306] A edição impressa e o manuscrito “3612b” acrescentam: “e lhe deram duas flechas”, o que não faz
muito sentido, ou, por outra, só faria sentido caso o posterior desenrolar da narrativa fosse outro (por
exemplo, duas setas, uma para o rázi e outra para o mérvida; veja a nota anterior). Este passo evidencia ser
possível que o compilador tivesse diante de si narrativas assemelhadas com desfechos diversos, e, optando
embora por um deles, o resquício de algum outro tenha permanecido.
[307] Nessa passagem, e em outras semelhantes, a redação é prolixa, mas deve-se entender, obviamente,
que o rei sorriu da história contada, e não da história por contar.
[308] “Dirhams especiais de prata” traduz daråhim nuqra, que é o que consta em todas as versões. Embora
o dirham, conforme se sabe, designe normalmente uma moeda de prata, não raro de baixo valor, a locução
aqui indica alguma classe especial, motivo pelo qual se adotou, com base em Dozy, tal solução.
[309] Nos manuscritos, em lugar de “seus benefícios”, ¿ayruhu, consta “suas notícias”, ¿abaruhu, palavras
facilmente confundíveis uma com a outra.
[310] “Atividade” traduz ma¢∑ša, “modo de viver”, que é o que consta em todas as versões.
[311] Na edição impressa consta “vinte”.
[312] Na edição impressa, “a história do espertalhão”; no manuscrito “3612b”, “a história do espertalhão
que disse”; ambos os títulos estão incorretos. O manuscrito “3612a” não dá nome à história.
[313] “Pediu emprestadas” traduz istaqra®a, que é o que consta da edição impressa; já os manuscritos
trazem ista¢ra®a, “exibiu”, “ofereceu”. É possível que ambas as grafias estejam incorretas. A redação da
passagem é ambígua, permitindo supor que a vítima do golpe é que fora à casa do espertalhão, e não o
contrário. Para a tradução, optou-se pela leitura que pareceu ter maior nexo.
[314] “Mercador dos mais acreditados” foi traduzido das duas versões manuscritas; mais adiante, “se
agitaram” também se traduziu dali. E o trecho entre colchetes é acréscimo do tradutor.
[315] A palavra traduzida como “fé”, d∑n, poderia também ser lida como dayn, “dívida”, o que mudaria
inteiramente o teor da afirmação. Aliás, no “3612a” o copista, dando-se conta da ambiguidade, acrescentou
diacríticos sobre a palavra a fim de que ela fosse lida como dayn, “dívida”, mas aqui se preferiu ler d∑n,
“fé”, porque nenhum dos circunstantes poderia ter presenciado algo que o texto constitui como falsidade.
Para o caso de se ler a palavra como “dívida”, a tradução da frase ficaria: “Reconhecemos que a dívida [do
mercador] é verdadeira”.
[316] “Que você jure para mim, porém”, wa låkin i¬lif l∑, é o que consta em todas as versões. Pode tanto
significar “jure que você nada me deve” como “jure que me pagará depois”. Em ambos os casos, contudo,
não se compreende o desconforto da vítima.
[317] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612b”.
[318] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612b”, cuja narrativa é similar à do “3612a”. Já na edição
impressa a história se abre com: “Saiba que havia um falcão e um gafanhoto, em tempos remotos...”.
[319] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612b”, com algum apoio no “3612a”. Eis a tradução do
trecho correspondente na edição impressa: “o homem busca repouso para o corpo e preservação das suas
forças, e nisso ele está mais que ninguém necessitado de um amigo que seja a complementação da sua
felicidade e o pilar do seu espírito, e no qual se apoie na dificuldade e na bonança”.
[320] “Ficasse amigo dele”: no “3612a”, “que o dispensasse”. A partir desta passagem, até o final da
história do falcão e do gafanhoto, a redação é obscura nas três versões, cujos visíveis erros e lacunas
provavelmente remontam ao original comum.
[321] “Depois daquilo”, isto é, depois de ter sido apresentado ao gavião. A tradução de toda essa passagem,
desde “já ocorrera de o falcão adoecer”, é fruto de interpretação do tradutor. A gramática do texto árabe
induz a pensar que as coisas se deram imediatamente após as duas aves terem travado conhecimento, e que
foi o gavião que tratou do falcão em sua primeira “crise”, o que explicaria a passagem seguinte – a procura
inútil do gafanhoto – como resultado do sumiço do falso amigo (pois o gavião, ou milhafre, é pensado como
um animal traiçoeiro). Enfim, conforme se afirmou, existem vários problemas na redação, alguns dos quais
talvez derivem da grafia semelhante, em árabe, das palavras “gavião”, ¬id’a, e “gafanhoto”, jaråda.
[322] Com variações mínimas, tais versos foram recitados durante a 142a noite do segundo volume, na
história do rei Qamaruzzamån. Tal como se encontra nas duas versões, a impressa e o “3612b”, o penúltimo
verso talvez esteja com a redação estropiada, e nesse caso a leitura correta seria a da história de
Qamaruzzamån, “Qual a artimanha quando se fica perplexo?”. No “3612a” constam apenas os dois
primeiros versos.
[323] Esta história – que parece ser apropriação de um dos relatos constantes do livro conhecido em árabe
como “Os sete vizires” ou “O sábio Sindabåd” – não consta do “3612a”.
[324] Esta história, ao contrário da que lhe serve de moldura, consta do “3612a”.
[325] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[326] Na edição impressa, “a mim, a ele [ao marido] e ao meu filho”.
[327] No “3612b”, “a mulher respondeu encolerizada [ou: forçada]”.
[328] A palavra traduzida por “arranjei” constitui um bom exemplo de certa espécie de dificuldade de
tradução em razão das metástases na transcrição do árabe: a edição impressa traz handastu, “delineei”,
“projetei”; o manuscrito “3612a” traz hadamtu, “destruí”, e o “3612b”, hamadtu, “apaguei”, mas a palavra,
com certeza, é mahhadtu, “aplainei [o caminho]”.
[329] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612a”.
[330] Na edição impressa falta a marcação da noite do mês, que foi traduzida do “3612b”.
[331] Nas versões do manuscrito, “o encantaram”.
[332] Na edição impressa, “ocupe-se de seu trabalho”, ou seja, “do que é de sua conta”, o que parece falha
de cópia. Traduziu-se das versões do manuscrito.
[333] Por um óbvio erro de revisão, a edição impressa traz: “onde ficamos três dias”.
[334] “Chorou” se traduziu do “3612a”, e não consta das outras versões.
[335] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[336] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[337] Existe um possível erro de cópia na edição impressa, pois ali se diz: “nele entravam as sombras [ou: a
imaginação] e se perdiam na sexta-feira [ou: na semana]”, ou seja, até as sombras que nele entravam se
perdiam na sexta-feira (?). Não foi possível utilizar as versões do manuscrito, cuja narrativa, neste passo, é
bastante diversa.
[338] Nas versões do manuscrito, não se faz, neste ponto, menção alguma aos meninos depois de seu
sumiço.
[339] Nas versões do manuscrito, os velhos vivem de abastecer e servir os navios que aportam na ilha, e o
casal passa a trabalhar para eles. O rei também indaga a que distância fica o ¢umrån, “a civilização”, sendo
informado “de uma grande distância, difícil de trilhar, distante de atingir, por terra”.
[340] Nas versões do manuscrito, o trecho correspondente ao que está entre colchetes é bem mais extenso.
Eis a tradução do “3612b”, que está mais legível: “Certo dia, chegou àquele local um navio enorme cujos
tripulantes e passageiros desceram para recolher água e pão, e ali passaram a noite e o dia. O dono do barco,
que era judeu, enviou um criado seu com uma galinha para a esposa do rei assar; ela a pegou, limpou,
colocou na travessa, enfiou no forno, e disse ao criado: ‘Fique ao lado e retire-a quando estiver pronta; não
se distraia, caso contrário se queimará’, e se pôs a trabalhar na massa do pão e no preparo de outras coisas
para a gente do navio. O criado ficou contemplando a mulher, encantado com a sua beleza e espantado com
a sua formosura; perplexo, insistiu em olhar para ela, distraindo-se da galinha, que se queimou; seu cheiro
se espalhou, a mulher sentiu, e correu para tirá-la do forno, já meio queimada. O criado pegou a galinha e a
levou para o judeu, dono do navio, ao qual falou a respeito da esposa do rei, descrevendo-lhe a sua beleza
de modo tal que ele a desejou ardentemente, e sua alma o levou a cogitar traição e ardis contra ela, para
tomá-la do marido...”. A partir daí, a narrativa volta a concordar com a da versão impressa, salvo em
detalhes. “Mago” traduz majœs∑, isto é, praticante do zoroastrismo.
[341] “Bem como [o coração] do seu marido”, wa qalb zawjihå, foi traduzido das versões do manuscrito. A
edição impressa traz: “e transportou sua bagagem” [para o navio], wa naqalat ra¬lahå, o que não tem
cabimento. A escrita das duas frases, em árabe, é facilmente confundível.
[342] As versões do manuscrito observam que se tratava de uma montanha “de difícil acesso, e então ele
pelejou e subiu, até chegar ao cume”.
[343] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[344] Do mesmo modo, o trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[345] Neste ponto, nenhum dos textos apresenta um relato coerente. Na edição impressa, fala-se em “uma
filha e uma esposa”, e logo depois se fala em “filhas”; nas versões manuscritas dá-se o mesmo, com o
acréscimo de uma irmã. A tradução procurou ater-se à coerência narrativa.
[346] No “3612b”, a expressão “e quanto à sua prima” está escrita em letras garrafais, como se se tratasse
da abertura de um novo tópico.
[347] A palavra entre colchetes foi traduzida das versões do manuscrito.
[348] Alusão às quatro escolas jurídicas do islã, a saber, ¬anafiyya, målikiyya, šåfi¢iyya e ¬anbaliyya, cujas
denominações derivam dos nomes de seus fundadores, os imames Nu¢mån Abœ Æan∑fa (699-768 d.C.),
Målik Ibn Anas (712-795 d.C.), Mu¬ammad Bin Idr∑s Aššåfi¢∑ (767-820 d.C.) e A¬mad Ibn Æanbal
(780-855 d.C.).
[349] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[350] “Falcoeiros” traduz bazdåriyya, e “chefes de polícia” traduz umarå’ aljandåriyya.
[351] A contradição entre os olhos arrancados do mago e o fato de ele “ver” as punições restantes deve-se à
junção de duas tópicas de tortura, ao arrepio da verossimilhança.
[352] “Decoro e artes de bendizer” traduz adab, que neste caso pode significar tanto uma como outra coisa;
“as ações dos reis” foi traduzido do “3612b”; no “3612a” consta: “aquilo que os reis decoram”. A redação
das versões do manuscrito está melhor que a da edição impressa.
[353] “Leve”: no “3612b”, “violenta”.
[354] Esta passagem está bastante confusa em todas as versões, com repetições e inverossimilhanças que
forçaram a intervenção do tradutor. A edição impressa traz “homem de bela figura”, o que é incongruente,
uma vez que a mesma descrição diz que ele mal se podia ver; também traz “irmã deles” em vez de “criada”,
o que contraria o que se afirmara antes; ademais, ocorrem confusões com as grafias das palavras minΩafa,
“toalha”, muštamil, “abrangente”, miΩmala, “espécie de manto” (conforme explicação de R. Dozy em seu
Dictionnaire detaillé des noms des vêtements chez les arabes, 1843) etc., quase sempre resultado de má
leitura. Nas versões do manuscrito, a entrada do homem está repetida, o que indica que o equívoco
provavelmente remonta ao original do qual a história foi copiada.
[355] A edição impressa acrescenta ainda wa lå ≈afira man å¥ara al¬arq bil¢ajala, “nem triunfa quem
trata a queimadura com pressa” (?), formulação meio obscura que se considerou mais adequado deslocar cá
para as notas. O “3612a” acrescenta: “a respeito de delitos”.
[356] Esta passagem aparentemente extemporânea encontra-se nas três versões, inclusive no “3612a”, no
qual, em princípio, as histórias são apresentadas de modo independente, como se narradas diretamente por
ahrazåd, sem referência alguma ao rei åh Ba¿t e ao vizir Rahwån, que é o narrador “direto” no “3612b” e
na edição impressa. Nesta última, aliás, o final da passagem é: “E continuou prestando atenção à história
dela, ouvindo-a dizer à irmã [Dunyåzåd]”, como se as narrativas de ahrazåd se dirigissem à irmã e não ao
rei. Já nas duas versões do manuscrito, a passagem se fecha com: “Ela continuou a sua história, e ele a
ouviu dizendo:”.
[357] Provérbio popular.
[358] No “3612a”, “rameira renitente”.
[359] Nas versões do manuscrito, é Salmå que diz a Sal∑m, o que, pelo andar da narrativa, é equivocado.
[360] Nas versões do manuscrito, “já estava escrito na face dela”.
[361] Provérbio popular.
[362]Makrån: no “3612a”, Baqrån; no “3612b”, Bakrån. Aššarr, “o mal”: no “3612a”, Attazrœr; no
“3612b”, Assurœr, “a alegria”.
[363] “Churrasqueiro” traduz šawwå’, “assador”, pessoa que prepara o mašw∑, “carne assada”.
[364] O trecho entre colchetes foi traduzido do “3612b”.
[365] Nas versões do manuscrito, “viajara” em vez de “morrera”.
[366] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito. Na edição impressa consta apenas:
“Quero lhe fazer um belo favor”.
[367] “Não suportarei a sua ausência” foi traduzido das versões do manuscrito; na edição impressa consta:
“Não acredito em você”.
[368] Conforme se constatará, a presença da sogra carece de funcionalidade narrativa.
[369] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[370] Os versos são um pouco diferentes nas versões do manuscrito.
[371] Nesta passagem, a redação da edição impressa está confusa e com visíveis erros de revisão; por isso,
utilizaram-se como apoio as versões do manuscrito, simplificadas porém compreensíveis.
[372] O trecho entre colchetes é inteiramente diverso nas versões do manuscrito, que trazem: “Essas coisas
somente se resolvem mediante embuste”.
[373] As versões do manuscrito acrescentam: “com vergonha da mulher”.
[374] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[375] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito. Eliminou-se, ainda, uma pequena
incongruência da edição impressa, que diz que a rainha “reconheceu-os”.
[376] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[377] Nas versões do manuscrito, consta apenas um dístico, cuja tradução é a seguinte: “Deitei da paixão a
taça, quebrada, apequenado,/ e a paixão me dominou coração e alma”.
[378] As versões do manuscrito acrescentam: “e descobriu o rosto” (“3612a”), “e retirou o véu” (“3612b”).
[379] “Império” traduz sul†ån(a), usado respectivamente como “detentor(a) de poder” e “autoridade”.
Recorde-se que, em meados do século xiii d.C., quando no Egito os mamelucos aceitaram ajarat Addur
(“árvore de pérolas”), ex-concubina do sultão ˇœrån åh, como sultana, o califa de Bagdá lhes enviou uma
mensagem um tanto ou quanto jocosa, dizendo: “Se porventura faltam homens aí no Egito, podemos enviar-
lhes alguns aqui do Iraque”. Nas versões do manuscrito, “não é certo que eu seja mulher e rei”.
[380] O trecho entre colchetes foi traduzido das versões do manuscrito.
[381] O trecho entre colchetes foi traduzido de “3612b”, no qual, nesse ponto, se encerram as histórias
narradas pelo vizir ao rei, sem conclusão, começando abruptamente, na 672a noite, uma história contada por
um sábio a um rei e sua esposa Nuzhat Azzamån, “deleite do tempo”, história essa que tampouco apresenta
conclusão, interrompendo-se abruptamente duas noites depois.
[382] “Última noite do mês” traduz literalmente o que está na edição impressa. Esta história também se
encontra no “3612a”, mas resumida em dezoito linhas.
[383] Como não se terá deixado de notar, tanto a última história como o remate do vizir parecem padecer de
um problema qualquer. Caso não seja proposital, a coincidência entre o nome do rei da última história e da
moldura pode ser indício de falha na transmissão da história.
[384] O trecho entre colchetes foi traduzido das Noites egípcias, cuja redação neste ponto é melhor e mais
clara. A edição de Breslau traz: “e ambos estavam apaixonados por ela, um dos quais o pai estava
intimamente resolvido a se casar com a moça, ao passo que o outro estava por seu turno intimamente
resolvido a se casar com ela”.
[385] “Jugular” traduz o desconhecido vocábulo zakrœra, cujo sentido deixou o arabista Dozy em dúvida.
Seguiu-se aqui a lição das Noites egípcias, claríssima nesta passagem.
[386]Qayßar, forma árabe de “César”, era uma espécie de título por eles atribuído aos imperadores de
Bizâncio (cf. o alemão kaiser, o russo tsar etc.).
[387] “Masmorra” traduz o vocábulo árabe ma†mœra, que é a sua origem.
[388] Equivocadamente numerada como 447a noite. O erro se repete nas duas noites seguintes, 478a e
479a, numeradas como 448a e 449a.
[389] As duas versões concordam nessa passagem, embora com termos diversos.
[390] Equivocadamente numerada como 482a noite.
[391] O original traz “um grupo”.
[392] O trecho entre colchetes foi traduzido das Noites egípcias. Na edição de Breslau consta o seguinte:
“pensou: ‘O que é isto?’, e, retirando as folhas, viu...”.
[393] Como já mencionado em nota, “destruidor dos prazeres” é outra das alcunhas, apropriadíssima, do
arcanjo da morte, comandado por Deus.
[394] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau. O texto da redação final parece menos
consistente: “zarpamos, seguros e sãos, objetivando viajar, acompanhados de bons ventos, até que nos
aproximamos de uma cidade denominada Cidade da China”.
[395] Consta na edição de Breslau: “Todo aquele que chega até este mar morre, e dele ninguém se salva;
chama-se Mar da Região do Rei”.
[396] “Monstro marinho” traduz ¬œt, “baleia”.
[397] “Sândalo raro” traduz aßßandal al¢ål. O adjetivo não tem referência em nenhum dicionário, e sua
única ocorrência registrada, ao que parece, é essa passagem da história de Sindabåd.
[398] A expressão “sem dormir” foi traduzida a partir da edição de Breslau. As outras versões, por um erro
que decerto remonta ao original comum, trazem “eu dormi”.
[399] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau, pois nas outras versões a passagem
apresenta redação confusa.
[400] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau. Nenhuma das outras versões fornece
pistas sobre o destino do homem quase engolido pela cobra.
[401] As palavras entre colchetes foram traduzidas da edição de Breslau. As outras edições falam em “um
grupo da cidade”, ou “um grupo que estava na cidade”.
[402] Houve-se por bem, nesta última passagem, preservar a literalidade na tradução “da terra/do mar”, para
manter a oposição pretendida pelo original entre os dois Sindabåds: um que se esfalfava em terra,
carregando, e outro que se arriscava ao mar, mercadejando.
[403] Não foi possível apurar a data da morte de Jean Varsy (ou Varsi), que se assinava em árabe Yœ¬annå
Bin Yœsuf Alwåris∑, e sobre cujo destino o escritor Robert Irwin se limita a informar, em sua disseminada
pesquisa sobre as Noites, que, “discípulo francês de Silvestre de Sacy, estabeleceu-se no Egito como
mercador no final do século xviii” (The arabian nights, a companion, Londres, 2004, p. 58). Dublê de
mercador e arabista, Varsy foi o responsável pelo mais antigo texto árabe da história de Ali Babá (¢Al∑
Båbå), que ele parece ter traduzido do texto francês de Jean-Antoine Galland, “arabizando-o” e
acrescentando-lhe trechos de sua própria lavra.
[404] A partir de 1945, a cidade voltou a pertencer à Polônia, e em polonês o seu nome é Wroclaw.
[405] O arabista britânico Duncan B. McDonald desmascarou o mito engendrado por Maximilian Habicht –
o de que a sua edição derivava de um manuscrito tunisiano –, provando que seus argumentos eram falsos.
Baseado nisso, e em pesquisas próprias, Muhsin Mahdi emitiu um juízo extremamente severo a respeito
dessa edição, desqualificando-a por completo. Todos esses juízos, no entanto, podem ser matizados:
embora, de uma perspectiva rigorosamente centrada na filologia da língua árabe, a edição decerto tenha
escasso valor, isso não invalida outros usos que se lhe deem, pois reúne histórias de manuscritos dispersos
que de outro modo talvez nunca tivessem sido publicados, servindo, de alguma forma, para fornecer uma
viva ideia, bem ilustrada com exemplos, das várias tentativas de completar o livro a partir do século xvii,
pelo menos.
[406] “As aventuras do xeique Al¿ayla¿ån Bin Håmån” e “Os xeiques Munamnam e ¢Awba¥ån” talvez
sejam histórias especialmente elaboradas para o Livro das mil e uma noites, uma vez que não existe vestígio
delas em nenhum outro lugar, com exceção das mencionadas traduções turcas. Na forma como ora podem
ser lidos, ambos os textos, que merecem estudo mais aprofundado, efetuam uma espécie de saturação de
tópicas, que no entanto parecem nunca ser levadas às últimas consequências: amuletos que se exibem com
pompa mas não são utilizados; pais que retornam após longa ausência sem que isso tenha qualquer
importância no destino de seus filhos; quebras de tabu que não redundam em punição alguma etc. Tais
reticências fazem entrever, no mínimo, duas possibilidades: erro de transmissão ou ironia. Como narrativa,
apresentam semelhança com os relatos de viagem, tais como a ri¬la, “viagem”, de Abœ Æåmid de
Granada, morto em 1169 d.C.
[407] Hermann Zotenberg, Notice sur quelques manuscrits des Mille et Une Nuits, Paris, 1888, p. 22.
[408] Para essa história, uma das fontes da edição de Breslau provavelmente é, além do manuscrito “Arabe
3616” da Biblioteca Nacional de Paris, copiado pelo padre sírio Denis Chavis, o manuscrito “Arabe 3637”
da mesma biblioteca, de 1772, que contém histórias avulsas sem relação direta com as Noites.
[409] São sete as viagens de Sindabåd. Mas, como a sétima viagem da compilação tardia é inteiramente
diversa da constante no manuscrito “Arabe 3615”, ela foi traduzida à parte no Anexo 2.
[410] “Notes sur les voyages de Sindbâd le marin”, Bulletin de l’Institut Français d’Archéologie Orientale,
1922, pp. 113-199.
[411] Lembre-se que nem todas as versões conhecidas dessa história fazem parte do Livro das mil e uma
noites, pois dela existem manuscritos independentes. A propósito do uso da palavra “navegante” para
traduzir o epíteto alba¬r∑, “marítimo”, que acompanha o nome próprio “Sindabåd”, seria conveniente
esclarecer que as usuais “marujo” ou “marinheiro” são inadequadas, pois caracterizam pessoas que
trabalham em navios, o que não é o caso desse personagem, para o qual o navio era mero meio de transporte
– e eventual pretexto para naufrágios. Em vista disso, optou-se por um termo mais neutro: “navegante”.
[412] Tais relatos são hoje costumeiramente editados, em árabe, sob o título impróprio de Ri¬lat Ass∑råf∑
[A viagem de Ass∑råf∑], pois esse tal Ass∑råf∑ não passava de um letrado do século x que, aparentemente
sem nunca ter viajado para aquelas paragens, reuniu relatos anteriores, polindo-os e comentando-os. Além
de orientalistas franceses do xix, como Langlès e Reinaud, também o crítico egípcio Æusayn Fawz∑, em
1932, estabeleceu com agudeza as relações das viagens de Sindabåd com tais relatos no seu excelente livro
Æad∑¥ Assindabåd Alqad∑m [História do antigo Sindabåd], Cairo, 1943.
[413] Zotenberg cita um manuscrito da Biblioteca Nacional de Paris, “de origem egípcia, escrito no século
xvii ou início do xviii, [...] que contém uma série de fábulas e historietas (noites 823a a 836a), a história de
åh Ba¿t (noites 837a a 892a) e a história de Rukn Add∑n Baybars (noites 893a a 909a)” (Notice sur..., op.
cit., p. 48), do qual não foi possível, desafortunadamente, obter cópia.
[414] “The age of Galland manuscript of the Nights: numismatic evidence for dating a manuscript?”,
Journal of Arabic and Islamic Studies, 1996, pp. 50-64.
[415] Na página 303 do primeiro volume desta coleção.
[416] Seu juízo final é categórico: “Não existe nenhum argumento para datar o manuscrito de Galland das
Noites como mais antigo que 1450, aproximadamente”.
livro das mil e uma noites
volume 4 — ramo egípcio + Aladim & Ali Babá
traduzido do árabe por Mamede Mustafa Jarouche
Copyright da tradução
© 2012 by Editora Globo s.a.

Copyright da introdução, notas e apêndices
© 2012 by Mamede Mustafa Jarouche

Todos os direitos reservados. Nenhuma parte
desta edição pode ser utilizada ou reproduzida
– em qualquer meio ou forma, seja mecânico
ou eletrônico, fotocópia, gravação etc. – nem
apropriada ou estocada em sistema de bancos
de dados, sem a expressa autorização da editora.

TÍTULO ORIGINAL
Kitáb alf layla wa layla

EDITOR RESPONSÁVEL
Alexandre Barbosa de Souza

ASSISTENTE EDITORIAL
Juliana de Araujo Rodrigues

PREPARAÇÃO
Eugênio Vinci de Moraes

REVISÃO
Ana Lima Cecilio
Cecilia Ramos

TRADUÇÃO E NOTAS DO ANEXO 2
Christiane Damien Codenhoto

CAPA E PROJETO GRÁFICO
Raul Loureiro
Claudia Warrak

EDIÇÃO DIGITAL
Erick Santos Cardoso


PRODUÇÃO PARA EBOOK
S2 Books

1ª edição, 2012

Dados Internacionais de Catalogação na Publicação [CIP]


Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil
Livro das mil e uma noites, volume iv: ramo egípcio + Aladim & Ali Babá / Anônimo; traduzido do árabe por Mamede
Mustafa Jarouche. — São Paulo: Globo, 2012.
1.312 kb; ePUB

Título original: Kitáb alf layla wa layla
ISBN 978-85-250-5342-8

1. Contos árabes 2. Fábulas orientais 3. Fábulas orientais –
História e crítica.

12-10316 CDD-892.73008
Índice para catálogo sistemático:
1. Fábulas: Literatura oriental: Coletâneas 892.73008

Direitos de edição em língua portuguesa


adquiridos por Editora Globo s.a.
Avenida Jaguaré, 1485 05346-902 – São Paulo – sp
www.globolivros.com.br
Sumário
Capa

Créditos

Nota introdutória: um universo inesgotável

Livro das mil e uma noites

Manuscrito "Arabe 4678", Biblioteca Nacional da França, Paris

calau’ddin e a lâmpada mágica

Manuscrito "Bodleian Oriental 554", Biblioteca Bodleian, Oxford

A insônia do califa

Os amantes de Basra

Andanças do califa por Bagdá

Os sofrimentos do jovem Manjåb

A investigação de Ja¢far

O dervixe, o aprendiz de barbeiro e o sultão

A beduína, seu marido e seu amante

O corno e a sua mulher I: o chacareiro

O corno e a sua mulher II: o azeiteiro

Os amores de Hayfå e Yusœf

O sofrimento das dez criadas

Os três filhos do rei da China


O bravo guerreiro e a sua mulher

O valentão e a sua mulher

O homem que não calculava e a sua mulher

A mulher do Cairo e os três tarados

Manuscrito "Arabe 3612", Biblioteca Nacional da França, Paris

Conselhos a reis

A justiça divina e os encarregados dos homens

O rei Dåwœd e o dinheiro público

Histórias sobre o califa ¢Umar

O asceta e o califa

Matar ou perdoar?

Jesus e os mentirosos

A coragem segundo Mu¬ammad

Mœsà e o demônio

Máximas e sentenças (I)

Jesus, os três homens e o tesouro

O arcanjo da morte e o rei poderoso

O arcanjo da morte e o rei endinheirado

O arcanjo da morte e o rei tirânico

Sulaymån e o homem que quis fugir do arcanjo da morte

Alexandre Bicorne entre dois crânios


Três histórias sobre o último suspiro

Admoestações a um líder

O rei da Pérsia e as ruínas

O fiscal opressor e o pobre pescador

M¬sà e a justiça divina

A felicidade segundo Alexandre

A justiça do rei e a dos súditos

A Pérsia e as alcaparras

O elogio dos antigos

Três reis na vinha

¢Umar e a família esfomeada

Quatro histórias de ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z

Ordens são ordens

Os reis, a justiça e a tirania

Kisrà e a preservação do reino

Quem merece ser rei, segundo Aristóteles

Histórias de Alexandre

Máximas e sentenças (II)

O peregrino, a miséria e a tirania

Máximas e sentenças (III)

A justiça de Ziyåd
Como dividir o dia do soberano

Kisrà e seus encarregados

Alma’mœn e seus encarregados

Máximas e sentenças (IV)

Kisrà e o aumento de impostos

Máximas e sentenças (V)

A educação dos príncipes

A fuga pode ser vitória

Máximas e sentenças (VI)

Ladrão sem querer

A caça da corrupção

A sagacidade de Ardaš∑r

Máximas e sentenças (VII)

Cuidados com os mensageiros

O dinheiro do rei e a necessidade pública

Os reis e as audiências públicas

Yazdagard e o cavalo

A administração da justiça

Os reis e os bons vizires

A retidão do rei Sulaymån

Máximas e sentenças (VIII)


A importância dos escribas e da escrita

A elevação de desígnios

Reis não devem ser avarentos

Governo e comércio

O desapego de ¢Amåra

O desapego dos barmécidas

O desapego e a tocadora de alaúde

Mais uma história de desapego dos barmécidas

O desapego de Kisrà

O desapego e a traição

Uma falsificação oportuna

Qual o clã mais generoso?

A dignificação do nome

Máximas e sentenças (IX)

Um homem misterioso

Máximas e sentenças (X)

A bebida e o intelecto

O califa e a súplica do seu colega inconveniente

Manuscrito "ARABE 3619", BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS

O grou, sua mulher e o caranguejo

Os francolins e os reis de taifas


O menino, a pega e o zodíaco agourento

Anedotas sobre gente avarenta

Casos de Muzabbid, o medinês

Anedotas sobre defeitos físicos

A alegria, segundo uns e outros

O divertido Aš¢ab e o governador avarento

Anedotas sortidas

O avarento e a carne

É comer e morrer

O presente do avarento embriagado

O avarento e o seu filho

Água fresca para a mãe do avarento

Tal pai, qual filho

As fases do homem, segundo a mulher

O sultão mameluco Baybars e os seus capitães

O primeiro capitão e a mulher ambígua

O segundo capitão e a mulher ardilosa

O terceiro capitão e a punguista

O quarto capitão e a ladra

O quinto capitão e a mulher delatada

Segunda história do quinto capitão: a amante do desembargador


O sexto capitão, seu amigo mercador e a velha golpista

O sétimo capitão, seu amigo mercador e a arapuca

Salvo por um triz

Mais uma arapuca

A vingança da sequestrada

O oitavo capitão e a cantora com os manetas

O nono capitão e as moedas roubadas

O décimo capitão, o capitão de Damasco e o ouro roubado

O décimo primeiro capitão e o ladrão justo

O décimo segundo capitão, seu amigo e o ex-criado

O décimo terceiro capitão e o intrujão assassinado

O salteador no meio do trigo

O velho malandro

O décimo quarto capitão, o ladrão cruel e o francolim

O décimo quinto capitão, o assassino e o crocodilo

O décimo sexto capitão, salvo sem querer

Segunda história do décimo sexto capitão: o mercador e a concubina do califa

Epílogo

Anexos

História De ¢al∑Båbå, Os quarenta ladrões e a escrava Murjåna, completa e


integral; louvores a Deus, somente
Do diário de Galland: as agudezas de Morgiane ou os quarenta ladrões
exterminados pela destreza de uma escrava

O epílogo: a noite perdida de Jorge Luis Borges

Um “ancestral” de aladim

“O alfaiate alexandrino e a lâmpada mágica”

Posfácio

Notas
NOTA INTRODUTÓRIA: UM UNIVERSO INESGOTÁVEL

“(…) há duas maneiras de ler um livro: podemos conside
rá-lo como uma caixa que remete a um dentro, indo então
lhe buscar o significado, e depois, se formos ainda mais per
versos ou corrompidos, partimos em busca do significante”.
Deleuze, Conversações.

Em seu célebre diálogo sobre as noções de autor e autoria, Michel Foucault se
interroga se o presente livro constitui uma “obra”, palavra que segundo ele seria
tão problemática, pela coesão e unidade implicadas, quanto a suposta
individualidade autoral. Uma visão a posteriori dos textos traduzidos neste
volume — colhidos em oito fontes diferentes, quatro delas manuscritas —
evidencia o quão enganoso pode ser o acerto dessa intuição, na medida em que
semelhante variedade de fontes, tempos e tons mal lhe empana certa unidade
subjacente, a qual, no presente caso, parece girar em torno de dois eixos
temáticos principais (embora não únicos), com todo o corolário de técnicas e
decoros que os pressupõem: a manutenção do poder e a domesticação do sexo
feminino, ambos eventualmente repousando à sombra de outro tema obsessivo, a
ascensão social.
Dos textos do primeiro eixo não se pode dizer que difiram, em substância, do
que se lê nas recomendações e instruções constantes do gênero letrado
convencionalmente chamado, na cultura árabe, de aladab assul†ån∑, “literatura
sultanesca”, versão local do que no Ocidente é conhecido, na terminologia em
português, como “espelho de príncipes”. Em síntese, como já observado alhures,
tal gênero concebe o exercício do poder como um conjunto de regras fixas e
providências cuja finalidade precípua é a sua exclusiva perpetuação: os
conselhos ora se dão declaradamente como tais, segundo se lê na íntegra de um
dos manuscritos aqui traduzidos, ora de maneira sub-reptícia, passe o termo,
como pressuposto geral da eficácia do próprio discurso šahrazådiano, ou, ainda,
como consequência quase que natural de muitos contos. Exercido em
conformidade com as condições que lhe predeterminam a perpetuação, o poder
se mostra, nesse gênero de discurso, com um moto-contínuo cuja
autorreferencialidade mesma é que lhe permite extrapolações para os campos
ético e moral.
Já os textos do segundo eixo, que implicitamente ou não encenam e discutem
o papel feminino, são bem mais interessantes, funcionando como jogo que serve
tanto para reiterar o imperativo da supremacia masculina como, o que é mais
relevante, para exorcizar os fantasmas produzidos pela simples presunção da
excessiva liberdade feminina, tormento que, se de um lado se suaviza pela
inserção dessas narrativas no gênero cômico, de outro se brutaliza pela
recorrência de transgressões e traições que esgarçam ao limite, expondo-lhe o
ridículo, a despicienda “honra” masculina, espezinhada aqui e malfadada acolá.
E tão abrasadora chega a ser essa liberdade meramente imaginada que a
“repetição sem conceito” da máquina narrativa — em cujo interior ¸ahrazåd é
apenas uma das engrenagens — intervém ela própria, com seu tom mais
profundo e empertigado, num ensaio para apaziguar o pavor patriarcal e lhe
acariciar as verdades senis postas em xeque.
Enfim, marginalmente a esses dois eixos também é possível identificar duas
linhas ético-morais que empolgam as histórias: a da extrema piedade, numa
ponta, e a da perversidade extrema, na outra, ambas atuando de modo integrado
e complementar. Assim, conforme a primeira linha, não basta olhar pelos pobres:
é preciso sofrer e ser por eles admoestado, humilhar-se, servi-los e ainda assim
sentir-se aquém de imperativos éticos, religiosos e morais. E, de acordo com a
segunda linha, não basta cometer adultério: é preciso esmigalhar a
masculinidade alheia, possuir a mulher do terceiro na sua frente e, mais além,
torná-lo cúmplice do prazer obtido. Encenações de extremos constituídos como
mediania, conforme se vê, mobilizando dispositivos de nomadismo textual que
lhes conferem todo o seu vigor e ardor.
No volume anterior, o objeto principal da pesquisa foram as histórias que
detiveram a primazia no processo de complementação do Livro das mil e uma
noites, isto é, as primeiras histórias sobre as quais, por motivos desconhecidos,
recaiu a escolha dos escribas egípcios para fazer o conteúdo do livro
corresponder-lhe ao título. Este quarto volume, por seu turno, procurou oferecer
um exemplo — pálido, quiçá — da pluralidade dessas fontes, da diversidade de
vozes e tons que a fala de ¸ahrazåd pode assumir e, eventualmente, de algum
limite ou non plus ultra da narração. Todas as histórias dele constantes provêm
de manuscritos do ramo egípcio, ou dele derivados, nos quais se caçou a
diversidade das soluções apresentadas pelos diferentes e anônimos escribas ante
a tarefa de completar o livro. Contando os “anexos”, são oito as fontes diretas
deste volume, textos cuja compilação vai do século xvii ao xix.
Com o presente volume, dou por encerrado o meu trabalho de tradução de
fontes manuscritas do Livro das mil e uma noites. Quando se iniciou o projeto,
no já longínquo ano de 2003, devo confessar que, iludido por uma já
desvanecida nesga de entusiasmo, eu acreditava na factibilidade do
recenseamento da maioria das fontes manuscritas e, sobretudo, estava movido
por certa depreciação, que hoje questiono, da chamada vulgata impressa do livro
como fonte, depreciação essa haurida na leitura do crítico iraquiano Muhsin
Mahdi, cujas análises, forçoso é reconhecê-lo, por vezes demonstram
preconceito e arbitrariedade, em que pese o extraordinário valor de suas
pesquisas, e o enorme salto qualitativo que propiciaram à história crítica desta
obra. Na verdade, essa vulgata, representada pela primeira edição do Cairo, de
1835, e pela segunda de Calcutá (doravante referida como Calcutá[1]), de 1839-
1842, é tão legítima — e tão problemática — quanto qualquer outra, e dela
passarei a me ocupar num futuro por ora impreciso.
Sobre o professor e crítico Muhsin Mahdi vale a pena, aliás, lembrar que, a
par do fundamental trabalho filológico com o texto das Noites, ele também
deixou ensaios nos quais sobressai um tom de censura ao processo de
“complementação” das Noites, isto é, ao esforço, levado a cabo no Egito por
dezenas de copistas a partir do século xvi, pelo menos, para completar um livro
cujo conteúdo ficava por assim dizer aquém do título. Tal “incompletude” — os
manuscritos mais antigos, conforme tem se dito à exaustão, contêm “somente”
282 noites — fez escorrer demasiada tinta, sem que se tenha chegado, no
entanto, a uma solução satisfatória para esse claro enigma: por que alguns dos
manuscritos de um livro cujo título é Mil e uma noites apresentam menos de
trezentas noites? A clareza da resposta se deve à obviedade de todas as
proposições aventadas: tratar-se-ia de uma primeira versão, ao modo de
rascunho, flagrada em pleno processo de constituição; seriam manuscritos
defeituosos; o primeiro compilador, por motivos que podem ir do desinteresse
(ou da sua forma radical, a morte) à falta de material para a complementação do
trabalho, teria abandonado o projeto etc. Nas letras árabes, é célebre o caso do
historiador Mu¬ammad Ibn ¢Abdœs Aljahšiyår∑, cuja morte, em 942, o
impediu, segundo o livreiro Annad∑m, de completar uma compilação na qual
pretendia reunir histórias de vários povos.[2]
Seja como for, é ponto pacífico que foi justamente essa “falha” inicial a
origem das diversas e muita vez desencontradas tentativas de complementação,
todas no Egito, e de cuja variedade os volumes terceiro e quarto desta coleção
procuram dar conta. No primeiro momento, como se disse, perseguiu-se alguma
regularidade: após o núcleo por assim dizer “duro” do livro, composto pelas
histórias constantes do ramo sírio — e, em sua maioria, do egípcio —, existiriam
histórias que teriam recebido alguma espécie de primazia para completar o livro?
Foi esse o princípio guia do terceiro volume. Já neste quarto volume, como
estamos dizendo, radicalizou-se definitivamente a contestação da crença
enunciada por Muhsin Mahdi: para ele, tudo quanto foi incluído pelos escribas
egípcios careceria, num ou noutro sentido, de “legitimidade”. Em mais de uma
passagem dos seus estudos, tanto em árabe como em inglês, ele afirma coisas
como “e depois o escriba introduziu as histórias que lhe aprouveram”, “fez o que
bem entendeu com o livro” etc., das quais se infere forte censura à suposta falta
de critérios, quase constituídos como um oportunismo desonesto, de tais escribas
egípcios, que teriam agido movidos pelo afã de completar o livro — ou seja,
fazer-lhe o conteúdo corresponder ao título — a qualquer custo, sem nenhuma
consideração de ordem moral, ética ou estética. Trata-se de uma crítica
discutível, para não dizer injusta, que não explica uma indagação trivial e quase
espontânea que ocorre a quem porventura se detenha sobre o livro: se o objetivo
fosse apenas e tão somente completá-lo a qualquer custo, fazendo-o encorpar,
como explicar que, no ramo egípcio tardio, as 282 noites do ramo sírio se
encontrem comprimidas em pouco mais de cinquenta noites? Não seria razoável
esperar o contrário? E, para além, por que as noites dessas tentativas de
complementação são geralmente mais longas que as do ramo sírio?
Após anos estudando o assunto, na vã tentativa de sacudir os manuscritos do
seu sono rancoroso, essa crítica passou a me parecer, ademais, excessivamente
arbitrária. O próprio Mahdi, entre muitos outros estudiosos, demonstrou que,
mesmo em seu núcleo mais antigo, não era incomum que as histórias do Livro
das mil e uma noites consistissem em apropriação de narrativas de outras fontes.
Um livro como “Histórias espantosas e crônicas maravilhosas” (século xiii), por
exemplo, foi impiedosamente “saqueado”, se cabe o termo, pelo compilador das
Noites, que lhe adaptou várias histórias ou simplesmente as enxertou em seu
trabalho, limitando-se a operar pequenos ajustes de ordem gramatical e
adaptações ao novo contexto. Ainda outro livro, como “O sábio Sindabåd” ou
“Os sete vizires”, também teve o seu quinhão de desapropriações por parte do
compilador das Noites, sem que nada disso — nem na opinião de Mahdi, nem de
outros estudiosos — lhes diminuísse ou relativizasse o valor e a importância.
Ora, se as apropriações efetuadas durante o processo inicial de redação do livro
não o diminuem, por que o diminuiriam as tentativas dos escribas egípcios, a
partir do século xvi pelo menos, de completá-lo? O que tornaria tais
procedimentos ilegítimos em comparação com os do compilador/autor do núcleo
antigo do livro? A antiguidade? Alguma visão essencialista — a despeito do
“furioso contato da existência” de que falava o poeta — a respeito das Noites?

* * *

No intuito de corrigir uma omissão no mínimo injusta, deve-se registrar aqui que
o primeiro a verter o Livro das mil e uma noites do árabe ao português foi o
imperador Pedro ii (1825-1891), cuja curiosidade intelectual é notória. Ele
traduziu cento e vinte noites, das quais as primeiras trinta e seis,
desafortunadamente, estão por ora extraviadas. Uma rápida análise do material
manuscrito evidenciou que a edição árabe das Noites utilizada pelo imperador
para a tradução foi a de Breslau (cf. pp. 519-520 deste volume), presente do seu
amigo e professor de árabe Christian F. Seybold (1859-1921), orientalista
alemão muito respeitado. Iniciada num enfado bolorento qualquer de alguma das
suas residências no Brasil, a tradução foi retomada no desterro parisiense, num
trabalho que parece tê-lo acompanhado até a cláusula dos seus dias.[3]

* * *

Nietzsche observa, num ensaio não tão bom mas ainda assim pleno de sugestões,
que às traduções não raro lhes falta o próprio tempo, “alegre e corajoso”, do
texto traduzido; noutras palavras: falta-lhes tudo. Em defesa desta tradução, e
acaso de muitas outras, talvez seja lícito argumentar que se executa,
especialmente hoje, num tempo que, oposto absoluto do da hipótese
nietzschiana, exige a sombra dessa refração como antídoto à tristeza e covardia
que caracterizam todo e qualquer presente, ou, adaptando os termos de
Benjamin, num tempo que só pode libertar-se de si mesmo exilando-se em outro
tempo.

Mamede Mustafa Jarouche
Cairo/ São Paulo, janeiro de 2011/ fevereiro de 2012
LIVRO DAS MIL E UMA NOITES
Manuscrito "Arabe 4678", Biblioteca Nacional da França, Paris
MANUSCRITO "ARABE 4678",
BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
C
ALÅU’DD„N E A LÂMPADA MÁGICA[4]
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. Disse o rei: “E que seja a
história de ¢Alå’udd∑n e a lâmpada maravilhosa”. ¸ahrazåd respondeu: “Com
muito gosto e honra”.

514ª
noite

Eu tive notícia, rei do tempo, de que vivia em certa cidade da China um


alfaiate pobre[5] cujo filho, chamado ¢Alå’udd∑n,[6] era vagabundo e rebelde
desde bem pequeno. Quando completou dez anos, o pai quis ensinar-lhe um
ofício, mas, devido à pobreza — que o impedia de investir nisso ou de fazê-lo
estudar ou tornar-se aprendiz —, levou-o à sua loja para ensinar-lhe o próprio
ofício, a alfaiataria. Porém, desobediente e já acostumado a brincar com os
moleques do bairro, ¢Alå’udd∑n nunca permanecia o dia inteiro na loja, mas
esperava que o pai saísse por uma necessidade qualquer, ou para visitar algum
freguês, e se escafedia imediatamente, correndo aos jardins para ficar com os
demais jovens vagabundos como ele. Assim era a sua situação: tanto
desobedecia à família, sem aprender ofício algum, que o seu pai, amargurado e
triste pela rebeldia do filho, adoeceu e morreu, mas nem por isso ¢Alå’udd∑n
mudou a conduta. Ante a morte do marido e a rebeldia do filho, bem como a sua
inutilidade para o que quer que fosse, a mulher vendeu a loja e todos os bens que
possuía, pondo-se a fiar algodão a fim de sustentar a si, bem como ao filho
vagabundo, com o próprio trabalho. Ao se ver livre da pressão do pai,
¢Alå’udd∑n se tornou ainda mais vagabundo e rebelde, não indo para casa senão
à hora das refeições, enquanto sua pobre mãe o sustentava com o trabalho de
fiar, e assim foi até completar quinze anos de idade.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

515ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, já tendo atingido a idade de quinze anos,
¢Alå’udd∑n estava certo dia no bairro brincando com os demais garotos
baderneiros quando um dervixe magrebino[7] chegou e se pôs a observá-los,
fixando-se em ¢Alå’udd∑n e examinando-lhe atentamente a figura, sem ligar
para os outros. Proveniente da terra do Magrebe interior, esse dervixe era um
feiticeiro[8] cuja mágica arremessaria uma montanha contra a outra; conhecedor
dos caracteres pela fisionomia,[9] pensou após bem examinar ¢Alå’udd∑n:
“Este rapaz é quem eu procuro! É por causa dele que saí de minha terra a
investigar”. E, puxando de lado um dos moleques, indagou-o sobre ¢Alå’udd∑n,
quem era seu pai e todas as demais informações a respeito. Em seguida, foi até
ele, levou-o para um canto e lhe disse: “Rapaz, você não é filho de fulano, o
alfaiate?”. Respondeu: “Sim, meu senhor, mas meu pai morreu faz tempo”. Ao
ouvir aquilo, o bruxo magrebino atirou-se sobre ¢Alå’udd∑n, abraçou-o, pôs-se
a beijá-lo e a chorar, suas lágrimas escorrendo abundantes sobre as faces do
rapaz, o qual, ao vê-lo em tal estado, foi tomado pelo espanto e lhe perguntou:
“Por que o choro, meu senhor? De onde você conhece meu pai?”. O magrebino
respondeu com voz triste e alquebrada: “Como você me faz essa pergunta, meu
filho, após ter-me informado que o seu pai — meu irmão! — morreu? Seu pai é
meu irmão! Cheguei há pouco da terra onde vivia, e a despeito desse tempo todo
de exílio eu estava muito contente, pois tinha a esperança de vê-lo, compensando
desse modo a minha longa ausência, e agora você me dá a notícia da morte dele!
Mas a voz do sangue não me ocultou que você é meu sobrinho, e eu o reconheci
em meio a todos os outros rapazes, embora o seu pai ainda fosse solteiro quando
me separei dele”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

516ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino disse a ¢Alå’udd∑n:
“Meu filho ¢Alå’udd∑n, agora perdi o meu consolo e a minha alegria com o seu
pai, meu irmão, a quem eu esperava ver após o exílio e antes de morrer, mas o
destino me privou dele. Não existe, porém, escapatória do fato consumado nem
artimanha contra o decreto de Deus altíssimo”. E, conduzindo o rapaz,
continuou: “Meu filho, não me resta como consolo senão você, que agora me
compensará o seu pai, pois você é descendente dele, e quem tem descendência
não morre, meu filho”. O feiticeiro puxou dez dinares e entregou-os a
¢Alå’udd∑n dizendo: “Onde é a casa de vocês, meu filho? Onde está a sua mãe,
mulher do meu irmão?”, e então o rapaz lhe mostrou o caminho para casa. O
feiticeiro disse: “Tome este dinheiro, meu filho, entregue à sua mãe, transmita-
lhe os meus cumprimentos e informe-a de que o seu tio paterno enfim está
presente após a ausência, e, se Deus quiser, amanhã irei visitá-los para
cumprimentá-la e ver a casa onde meu irmão morava, bem como o seu túmulo”.
Em seguida, ¢Alå’udd∑n beijou a mão do magrebino e foi para casa correndo de
alegria, indo rapidamente para junto da mãe, ao contrário do seu hábito, pois ele
não ia ter com ela senão à hora das refeições; entrou feliz e disse: “Mamãe, eu
lhe dou a boa nova de que meu tio paterno retornou após longa ausência, e ele
lhe envia cumprimentos”. A mãe disse: “Meu filho, parece que você está rindo
de mim. Quem é esse tio paterno? Desde quando, nesta vida, você tem tio
paterno?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Mamãe, como você me diz que não tenho
tios paternos nem parentes nesta vida? Aquele homem é meu tio, abraçou-me,
beijou-me chorando e me disse que a informasse disso!”. A mãe lhe disse: “Sim,
meu filho, eu sabia que você tinha um tio paterno, mas ele morreu, e eu nunca
soube que você tivesse outro”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

517ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino saiu pela manhã e se
pôs a procurar por ¢Alå’udd∑n, pois já não suportava ficar separado dele; vagou
pelas ruas da cidade e encontrou o rapaz brincando com outros baderneiros,
conforme o hábito. Ao se aproximar dele, pegou-o pela mão, abraçou-o, beijou-o
e, retirando dois dinares da algibeira, entregou-os a ele e disse: “Vá até a sua
mãe, entregue-lhe este dinheiro e diga: ‘Como o meu tio pretende jantar
conosco, tome estes dois dinares e faça um jantar gostoso’. Porém, antes de mais
nada, mostre-me de novo o caminho da casa de vocês”. ¢Alå’udd∑n disse:
“Sobre a cabeça e os olhos, meu tio”,[10] e caminhou à frente dele mostrando-
lhe o caminho de casa. O magrebino então o deixou e se retirou, enquanto o
rapaz entrava em casa e informava aquilo à mãe, a quem entregou o dinheiro
dizendo: “Meu tio quer jantar aqui em casa”. Imediatamente, a mãe de
¢Alå’udd∑n se dirigiu ao mercado, comprou tudo que era necessário e retornou
para casa, onde se pôs a aprontar a refeição, emprestando aos vizinhos os pratos
e demais utensílios de que precisava e dizendo ao filho quando chegou a hora do
jantar: “A comida já está pronta, meu filho, mas, como é possível que o seu tio
não conheça o caminho para cá, vá encontrá-lo”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Ouço
e obedeço”,[11] mas, enquanto ambos conversavam, ouviram-se batidas à porta,
o jovem foi abri-la e eis que era o bruxo magrebino acompanhado de um criado
carregando bebidas e frutas. O rapaz os fez entrar, o criado se retirou e o
magrebino foi cumprimentar a mãe de ¢Alå’udd∑n, a quem, chorando, indagou:
“Onde o meu irmão costumava sentar-se?”; ela lhe mostrou o lugar em que o
marido ficava e o magrebino se prosternou e pôs-se a beijar o chão dizendo: “Ai,
mas como é parca a minha sorte e infeliz o meu destino! Perdi você, meu irmão,
veia dos meus olhos!”, e tanto chorou e se lamuriou dizendo coisas assim que a
mãe de ¢Alå’udd∑n acreditou que ele dizia a verdade, pois o homem chegou a
desmaiar de tanta lamúria! Inclinando-se na sua direção e erguendo-o do chão, a
mulher lhe disse: “Matar-se não vai resolver nada”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

518ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n consolou o bruxo
magrebino e o fez sentar-se, e ele, antes que a mesa fosse servida, contou-lhe o
seguinte: “Cunhada, não se espante de nunca em tempo algum ter me visto nem
sabido sobre mim durante a vida do meu falecido irmão. Isso se deu porque eu
deixei este país há quarenta anos, exilando-me de minha terra e viajando pela
Índia, pelo Sind e por toda a Arábia;[12] depois, entrei no Egito, morando
durante algum tempo na esplêndida cidade [do Cairo], que é a maravilha do
mundo, e por fim viajei para as terras do Ocidente Interior,[13] ali vivendo
durante trinta anos. Certo dia, cunhada, estando eu sentado em minha casa a
pensar em meu país, em minha terra, em meu falecido irmão, minhas saudades
por revê-lo aumentaram, e comecei a chorar e a me lamentar do meu exílio e da
distância entre nós, até que finalmente as saudades tanto me afligiram que me
dispus a viajar para este país, meu torrão natal, minha terra, a fim de ver meu
irmão; eu disse para mim mesmo: ‘Homem, há quanto tempo está exilado do seu
país, da sua terra! E você tem um único irmão, sem outro! Vamos, levante-se,
viaje e vá vê-lo antes de morrer! Quem é que pode adivinhar as agruras do
destino e as calamidades do tempo? Será uma grande tristeza morrer sem ver o
seu irmão. Deus, louvado seja, lhe deu muito dinheiro, e se acaso o seu irmão
estiver em apertos e pobreza, você o terá visto e ajudado’. Imediatamente
levantei-me, preparei-me para a viagem, recitei o capítulo de abertura do
Alcorão e, ao final da prece da sexta-feira, cavalguei e cheguei a esta cidade,
nela adentrando após ter enfrentado muitas dificuldades e fadigas, com a
proteção de Deus poderoso e excelso. Anteontem, enquanto vagava pelas ruas
daqui, avistei o meu sobrinho ¢Alå’udd∑n brincando com outras crianças, e juro
por Deus poderoso, cunhada, que nesse momento o meu coração se derreteu por
ele, pois o afeto do sangue se manifestou, e o meu coração me fez sentir que se
tratava do filho do meu irmão; ao vê-lo, esqueci todas as minhas fadigas e
tristezas, e planei de alegria.[14] Porém, quando ele me comunicou que o
falecido se mudara para a misericórdia de Deus altíssimo, desmaiei de aflição e
tristeza. Talvez ¢Alå’udd∑n lhe tenha informado o que me ocorreu, mas, de
certo modo, consolei-me com a existência dele, pois quem deixa descendência
não morre”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

519ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino disse à mãe de
¢Alå’udd∑n: “Quem deixa descendência não morre”; em seguida, ao ver a
mulher chorar por efeito dessas palavras — já planejando fazê-la esquecer o
marido e fingindo consolá-la a fim de completar a sua artimanha contra ela —,
voltou-se para o rapaz e lhe disse: “Meu filho ¢Alå’udd∑n, qual profissão você
aprendeu? Qual é o seu trabalho? Possui algum ofício para sustentar-se e à sua
mãe?”. Envergonhado, encabulado, ¢Alå’udd∑n abaixou a cabeça, fixando o
olhar no chão, enquanto a sua mãe respondia: “Qual o quê! Por Deus que ele não
sabe nada, de jeito nenhum! Nunca vi um menino tão vagabundo, o dia inteiro
zanzando com outros moleques vagabundos daqui do bairro. O pai — ai que
tristeza! — não morreu senão por causa dele. E agora eu também estou muito
mal, fiando algodão e me esfalfando noite e dia a fim de conseguir alguns pães
para comermos. Esta é a situação dele, cunhado. Por vida sua que ele não entra
em casa senão na hora da refeição, mais nada, e eu estou até pensando em
trancar a porta da casa e deixá-lo ir procurar algo de que viver, pois já estou
velha e não tenho forças para me fatigar tanto e sustentá-lo. Mal e mal obtenho o
meu sustento, meu Deus! Preciso[15] é de quem me sustente, isso sim!”. O
magrebino voltou-se para ¢Alå’udd∑n e lhe disse: “Por que, filho de meu irmão,
você anda nessa vagabundagem? Que vergonha! Não é adequado para homens
como você, que é ajuizado, meu filho, e filho de gente de bem! É uma infâmia
que a sua velha mãe o sustente, agora que você já está um homem. Você tem a
obrigação de se arranjar de um modo que lhe permita extrair o seu sustento, meu
filho. Veja que, graças a Deus, em nosso país os mestres de ofício são muitos;
escolha um ofício que lhe agrade e eu o colocarei nele, a fim de que, quando
crescer, meu filho, você encontre um trabalho e viva dele. Como é possível que
você não queira a profissão do seu pai, então escolha alguma outra que lhe
agrade, me diga e eu o ajudarei em tudo quanto for possível, meu filho”. Ao ver
que ¢Alå’udd∑n se calava e nada respondia, o magrebino percebeu que ele não
queria ofício nenhum que não fosse a vagabundagem, e lhe disse: “Não me
considere chato, filho de meu irmão. Se você tampouco quiser aprender um
ofício, eu lhe abrirei uma loja comercial com os mais caros tecidos, e você
travará contato com muita gente, fará trocas, venderá e comprará, tornando-se
conhecido na cidade”. Quando ouviu estas palavras do seu tio magrebino, ou
seja, que ele tencionava torná-lo um grande mercador, ¢Alå’udd∑n alegrou-se
imensamente, certo de que todos os mercadores usam roupas boas e elegantes;
olhou para o magrebino, sorriu e meneou a cabeça em direção ao solo,
manifestando aprovação.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

520ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino viu o sorriso de
¢Alå’udd∑n e, percebendo que ele gostaria de aprender o ofício de mercador,
disse-lhe: “Já que você aceita que eu o ensine a ser mercador e lhe abra uma loja,
então seja homem, sobrinho, e se Deus quiser amanhã eu primeiro o levarei ao
mercado e mandarei costurar-lhe um belo traje ornamentado[16] de mercador;
depois procurarei para você uma loja e cumprirei a minha promessa”. Ao ouvir a
promessa de que abriria uma loja de mercador de tecidos para o filho, com
capital e tudo o mais, dissiparam-se as poucas dúvidas que a mãe de ¢Alå’udd∑n
nutria quanto ao fato de o magrebino ser seu cunhado, e ela passou a acreditar
piamente naquilo, pois um estranho não faria isso pelo filho dela! Pôs-se então a
orientar o rapaz e a instruí-lo a tirar da cabeça aquela ignorância toda, a ser um
homem e obedecer ao tio, que era como se fosse o seu pai, e a compensar o
tempo que passara vagabundeando com outros desordeiros. Feito isso, ela se
levantou, estendeu a mesa, serviu o jantar e todos se sentaram e começaram a
comer e a beber, enquanto o magrebino conversava com ¢Alå’udd∑n sobre os
misteres do comércio e outras coisas. Naquela noite ¢Alå’udd∑n não dormiu de
alegria. Quando viu que a noite já avançava, o magrebino se retirou,
comprometendo-se a retornar pela manhã e levar ¢Alå’udd∑n para lhe fazer um
traje de mercador. E pela manhã, com efeito, o magrebino bateu à porta; a mãe
de ¢Alå’udd∑n se levantou e abriu, mas ele não quis entrar, pedindo que
¢Alå’udd∑n o acompanhasse ao mercado; o rapaz saiu, saudou o tio e lhe beijou
a mão. Então o magrebino, conduzindo o rapaz pela mão, levou-o ao mercado, e
ambos entraram numa loja de tecidos que continha tudo quanto é gênero de
roupa, ali pedindo um traje ornamentado e valioso, e prontamente o mercador
lhe trouxe vários já costurados. O magrebino disse a ¢Alå’udd∑n: “Escolha, meu
filho, o que o agradar”. Muito contente de ver que o tio lhe dava tal liberdade, o
rapaz escolheu à vontade os trajes que lhe agradavam, cujo preço foi pago sem
demora ao mercador pelo magrebino, que em seguida levou ¢Alå’udd∑n ao
banho público, onde ambos se banharam; quando saíram, foram beber e
¢Alå’udd∑n, ao vestir o seu novo traje, todo feliz e satisfeito, agradeceu ao tio,
beijou-lhe a mão e louvou-lhe a generosidade.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

521ª
noite
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, após sair com ¢Alå’udd∑n do banho
público, o magrebino foi mostrar-lhe o mercado, as atividades de compra e
venda, e lhe disse: “Você deverá conviver com esta gente, meu filho,
especialmente os mercadores, a fim de com eles aprender o comércio, pois
doravante será esse o seu ofício”. Também o levou para passear pela cidade,
mostrando-lhe as mesquitas e todas as atrações que ali existiam, e depois a um
restaurante onde a refeição lhes foi servida em travessas; almoçaram, comendo e
bebendo, até se fartarem, e saíram; o magrebino foi mostrar a ¢Alå’udd∑n os
locais de diversão e recantos magníficos da cidade, entrando com ele no palácio
do sultão e apresentando-lhe todos os seus belos e esplêndidos lugares; depois,
levou-o à hospedaria dos mercadores estrangeiros, onde ele próprio estava
hospedado, e convidou alguns mercadores para o jantar; assim que eles se
acomodaram, ele lhes deu a notícia de que aquele era filho do seu irmão e que o
seu nome era ¢Alå’udd∑n. Depois de comerem e beberem, já entrada a noite, o
magrebino conduziu o rapaz de volta para a mãe, e a pobre coitada, ao ver o
filho semelhante a um mercador, planou de alegria e se pôs a agradecer a
generosidade do cunhado magrebino dizendo: “Cunhado, não me será suficiente
agradecer-lhe por toda a minha vida e louvá-lo pelo bem que está fazendo ao
meu filho”.[17] Ele respondeu: “Mulher, isso não é favor nenhum — trata-se do
meu irmão! É meu filho, e minha obrigação é substituir o pai dele, meu irmão.
Esteja tranquila”. A mulher disse: “Peço a Deus, pela glória dos póstumos e dos
pósteros, que o preserve e mantenha, cunhado, e que — por vida minha! —
prolongue a sua vida para poder agasalhar este menino órfão que sempre lhe
obedecerá e estará às suas ordens, não fazendo senão o que você ordenar”. O
magrebino disse: “Mulher de meu irmão, ¢Alå’udd∑n já está homem, é ajuizado
e boa gente. Peço a Deus que ele substitua o pai e a deixe orgulhosa. Amanhã
terei dificuldades, pois é sexta-feira, e não poderei abrir uma loja para ele, pois
nesse dia, após a reza, os mercadores vão passear nos jardins e locais de
diversão, mas se Deus quiser já no sábado, com a permissão do Criador, a gente
encaminha a coisa. Seja como for, amanhã venho e levo ¢Alå’udd∑n para
passear nos jardins e locais de recreio fora da cidade, os quais ele até agora
talvez nem conheça, podendo ainda por cima ver e travar contato com os
mercadores e os figurões que por ali vão se divertir”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
522ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que naquela noite o magrebino foi pernoitar
na hospedaria e pela manhã retornou à casa do alfaiate, a cuja porta bateu.
¢Alå’udd∑n não dormira nem conseguira pregar o olho naquela noite, tamanha
era a sua alegria com os trajes que vestira, com o tratamento recebido no banho
público no dia anterior, com a comida, com a bebida, com as pessoas que vira e
com a expectativa de que pela manhã o tio viria levá-lo para passear nos jardins;
mal pôde esperar o dia raiar, e assim que ouviu a porta bater correu para abri-la,
rápido como uma brasa, dando de cara com o seu tio magrebino, que o abraçou,
beijou e o levou pela mão; enquanto caminhavam juntos, o tio disse: “Sobrinho,
hoje vou lhe mostrar uma coisa que você nunca viu”, e logo começou a pilheriar
e a diverti-lo com a sua conversa. Atravessaram os portões da cidade e o
magrebino se pôs a caminhar pelos jardins e a mostrar ao rapaz esplêndidos
locais de diversão, palácios exuberantes e espantosos; a cada jardim, castelo ou
palácio que avistavam, o magrebino estacava e dizia ao rapaz: “Isso lhe agrada,
¢Alå’udd∑n meu filho?”, ao que este planava de felicidade, pois estava vendo
algo que em toda a vida jamais vira igual. Continuaram avançando e a tudo
contemplando até que, cansados, entraram num jardim que de tão esplêndido
reconfortava a mente e fazia o espectador enxergar ao longe, com fontes que
esguichavam entre as flores e águas que escorriam da boca de leões de cobre
amarelo como ouro. Sentaram-se defronte de uma lagoa para descansar um
pouco, e ¢Alå’udd∑n, deleitado e muito alegre, começou a brincar com o tio e a
se soltar, como se faz com um tio de verdade. Em seguida, o magrebino soltou a
amarra da cintura, dela retirando uma trouxa cheia de comida, frutas e outros
alimentos, e lhe disse: “Você já deve estar com fome, sobrinho. Venha e coma do
que apreciar”. ¢Alå’udd∑n se aproximou e ambos comeram até se fartar e
contentar, repousando em seguida. O magrebino disse: “Levante, sobrinho, se já
estiver descansado, a fim de caminharmos um pouco e irmos adiante”.
¢Alå’udd∑n então se levantou e com ele o magrebino tornou a atravessar um
jardim atrás do outro até deixarem todos os jardins para trás, chegando então ao
sopé de uma montanha elevada. ¢Alå’udd∑n, que em toda a sua vida jamais
avançara além dos portões da cidade nem caminhara tanto, disse ao magrebino:
“Tio, para onde estamos indo? Já deixamos todos os jardins para trás e estamos
diante desta montanha. Se o caminho ainda for distante, já não terei forças para
caminhar, pois estou morto de cansaço. Como já não existem jardins à nossa
frente, façamos meia-volta e retornemos à cidade”. O magrebino respondeu:
“Não, meu filho, este é o caminho e os jardins ainda não acabaram. Estamos
avançando para ver um jardim que nem sequer os reis possuem algo semelhante,
e em comparação ao qual todos os jardins que você já viu nada valem. Força
para a caminhada, portanto. Graças a Deus você já é homem!”, e assim
continuou distraindo-o com palavras afáveis e lhe contando histórias insólitas,
algumas mentirosas e outras verazes, até chegarem ao local que o bruxo
magrebino visava, e em virtude do qual viera do Ocidente até a China. Quando
chegaram, ele disse ao rapaz: “Sobrinho, sente-se para descansar, porque este é o
nosso lugar, o lugar que ora buscávamos, e se Deus quiser eu lhe mostrarei
coisas insólitas que ninguém neste mundo viu iguais, nem contemplou aquilo
que só você vai contemplar”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

523ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino disse a ¢Alå’udd∑n:
“Nenhuma criatura contemplou o que só você vai contemplar; porém, depois que
estiver descansado, vá procurar pedaços de madeira e gravetos finos e secos para
acendermos uma fogueira com eles, e então eu lhe mostrarei, sobrinho, uma
coisa que não vai lhe custar nada”. Ao ouvir aquilo, ¢Alå’udd∑n, já ansioso para
ver o que o tio faria, esqueceu o cansaço e imediatamente pôs-se a juntar tocos
de madeira e gravetos secos, até que o magrebino lhe disse: “Basta, sobrinho”,
retirando então do bolso um frasco que abriu e do qual apanhou determinada
quantia de incenso; acendeu-o, fez passes e esconjuros, pronunciando palavras
desconhecidas, e logo o solo se rachou, balançou e estremeceu, e produziram-se
trevas. Amedrontado e aterrorizado com isso, ¢Alå’udd∑n fez tenção de fugir,
mas ao ver aquela disposição do rapaz o bruxo magrebino ficou furibundo com
ele, pois todo aquele trabalho não funcionaria sem ¢Alå’udd∑n: o tesouro que
ele buscava não se abriria para ele senão por meio do rapaz. Por isso, ao vê-lo
querendo fugir, agarrou-o, ergueu a mão e lhe desferiu no rosto uma bofetada tão
forte que por pouco não lhe quebrou os dentes. ¢Alå’udd∑n caiu desmaiado mas
logo acordou devido aos feitiços do magrebino, e começou a chorar, dizendo:
“Meu tio, o que eu fiz para merecer tamanha agressão?”. O magrebino se pôs a
agradá-lo e a consolá-lo dizendo: “Filho, o meu objetivo é torná-lo um homem!
Não me desobedeça, pois sou seu tio, e estou no lugar do seu pai. Obedeça às
minhas palavras, pois dentro em pouco, quando vir coisas espantosas, você
esquecerá todo este sofrimento e fadiga!”. Em seguida, o solo se fendeu aos pés
do magrebino, diante dele irrompendo uma pedra de mármore com uma argola
de cobre fundido.[18] Então o bruxo se voltou para ¢Alå’udd∑n e disse: “Se agir
conforme as minhas instruções, você se tornará mais rico que todos os reis. Foi
por esse motivo, meu filho, que eu bati em você! Existe aqui um tesouro que está
em seu nome, mas você pretendia abandoná-lo e fugir! Agora, preste atenção em
como eu fendi a terra com os meus esconjuros e invocações”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

524ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino disse ao rapaz:
“¢Alå’udd∑n, meu filho, preste atenção que debaixo da pedra na qual está a
argola encontra-se o tesouro de que lhe falei. Ponha a mão na argola e remova a
laje que a tampa, pois ninguém além de você neste mundo tem condições de
abri-la, nem ninguém, além de você, tem forças para colocar os pés dentro deste
lugar onde se encontra o tesouro, que está reservado apenas para você. É
necessário, porém, que me obedeça e aja segundo as minhas instruções, sem
esquecer uma única letra do que eu lhe disser. Isso tudo, meu filho, é para o seu
bem, pois se trata de um tesouro bem portentoso, semelhante ao qual nenhum
dos reis do mundo possuiu, e agora ele será seu e meu!”. O pobre ¢Alå’udd∑n,
já esquecendo a fadiga, a agressão e o choro, ficou maravilhado com as palavras
do magrebino, feliz em se tornar tão rico, mais até do que os reis, e disse:
“Ordene-me tudo quanto quiser, meu tio, que eu obedecerei às suas ordens”. O
magrebino disse: “Você é como se fosse meu próprio filho, sobrinho, e até mais,
por ser filho do meu irmão. Não tenho parentes senão você, meu filho, que será o
meu herdeiro e sucessor!”. E, avançando para ¢Alå’udd∑n, beijou-o e
prosseguiu: “Eu, quer dizer, todas essas minhas fadigas, são em prol de quem,
meu filho? São por você, para torná-lo um homem rico entre os figurões!
Portanto, não me desobedeça em nada do que eu lhe disser. Pegue essa argola e
puxe-a tal como eu lhe ordenei”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Tio, esta argola é
pesada para mim, e não posso puxá-la sozinho; venha ajudar-me você também a
puxá-la, pois ainda sou de pouca idade!”. O magrebino respondeu: “Sobrinho, se
acaso eu ajudá-lo já não poderemos fazer nada, e todas as nossas fadigas terão
sido baldadas! Basta-lhe pôr a mão na argola e puxá-la, que ela de imediato se
erguerá por seu intermédio, pois, como eu lhe disse, ninguém além de você pode
tocá-la, e tão logo a tocar para puxá-la pronuncie o seu nome, o nome do seu pai
e o da sua mãe, e imediatamente ela se erguerá sem que você lhe sinta o peso”.
Então ¢Alå’udd∑n se armou de forças e disposição, agindo conforme o
magrebino o instruíra, e ergueu a laje com a maior facilidade quando pronunciou
o próprio nome, o de seu pai e o de sua mãe, tal como dissera o magrebino; a laje
se ergueu e ele a jogou de lado.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

525ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, após remover a laje da entrada do
tesouro, ¢Alå’udd∑n vislumbrou uma galeria subterrânea cujo acesso se dava
por meio de escadas com doze degraus contados. O magrebino lhe disse:
“¢Alå’udd∑n, preste atenção e aja exatamente conforme eu lhe disser, sem
esquecer nada. Desça com todo o cuidado a essa galeria subterrânea, até chegar
ao fundo, onde você encontrará uma câmara dividida em quatro compartimentos,
em cada um dos quais você verá quatro cubas contendo ouro, prata e outros
metais preciosos, mas cuide para não tocá-las ou pegar alguma coisa delas; passe
e continue até chegar ao quarto compartimento, sem deixar que nem a sua roupa
nem os seus membros encostem nas cubas ou nas paredes, e tampouco
interrompa a sua marcha por um minuto sequer; se você agir de modo diverso,
imediatamente se transformará numa pedra negra. Quando chegar ao quarto
compartimento, encontrará uma porta, que você abrirá pronunciando os nomes
que já havia pronunciado quando levantou a laje, e entrará, chegando então a um
jardim todo enfeitado de árvores e frutas; dali, avance cerca de trinta metros pelo
caminho que verá à sua frente, após o que você encontrará uma abóbada com
uma escada de trinta degraus, e então verá no alto da abóbada…”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

526ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o bruxo magrebino instruiu ¢Alå’udd∑n
sobre como descer ao local do tesouro dizendo-lhe: “Quando chegar à abóbada,
em seu alto você verá uma lâmpada pendurada; pegue-a, [apague-a,] jogue fora o
óleo nela contido, enfie-a dentro das suas roupas, sem temer que o óleo as suje,
pois não se trata de óleo de verdade; na volta, você poderá colher tudo quanto
quiser das árvores, que terão se tornado suas por você estar com a lâmpada nas
mãos”. Quando concluiu as instruções a ¢Alå’udd∑n, o magrebino tirou do dedo
um anel, enfiando-o no dedo do rapaz, e lhe disse: “Meu filho, este anel o
salvará de todo mal e medo que lhe sucederem, com a condição de que você
decore tudo quanto eu lhe disse. Vá agora, desça, anime-se, fortaleça a sua
disposição e nada tema, pois você já não é criança e sim adulto; após isso tudo,
meu filho, dentro em pouco você alcançará enorme riqueza, a tal ponto que se
tornará o homem mais rico do mundo!”. Então ¢Alå’udd∑n desceu à câmara
subterrânea, ali encontrando quatro compartimentos, em cada qual havia quatro
cubas de ouro; com todo cuidado e esforço, deixou tudo para trás, conforme o
instruíra o magrebino, e entrou no jardim, atravessando-o até chegar à abóbada,
em cujo interior entrou pela escadaria, e encontrou a lâmpada; apagou-a, jogou
fora o óleo, enfiou-a dentro da roupa, desceu ao jardim e pôs-se a contemplar o
arvoredo em cujos galhos estavam pousados pássaros que cantavam louvores ao
grande criador, e os quais ele não notara ao entrar. Todos os frutos eram pedras
preciosas que em cada árvore tinham cores e espécies diferentes, e todas as cores
estavam ali: verdes, brancas, amarelas, vermelhas e outras, cujo brilho era mais
forte que o dos raios do sol ao amanhecer, e cujo tamanho descomunal estava
além de toda descrição, sendo impossível que qualquer rei do mundo possuísse
alguma daquele tamanho, mesmo que fosse a menor delas.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

527ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n entrou no meio do arvoredo
e pôs-se a contemplá-lo, bem como aquelas coisas que maravilhavam o olhar e
sequestravam a razão, observando que, em lugar de estarem carregadas de frutas,
as árvores carregavam magníficas pedras preciosas, tais como esmeralda,
diamante, rubi, pérolas e outras, que deixariam perplexa qualquer mente, em
especial a de ¢Alå’udd∑n, que jamais vira algo assim e nem sequer tinha idade
adequada para conhecer o valor destas pedras preciosas, e justamente por ainda
ser garoto imaginou que se tratasse de vidro ou cristal, delas reunindo uma
quantidade suficiente para encher a roupa, e pondo-se a verificar se as pedras
preciosas — todas em forma de uva, figo e outras frutas — eram comestíveis,
mas, ao perceber que eram como vidro, enfiou na roupa um tanto de cada
espécie de fruto dessas árvores, sem saber que se tratava de pedras preciosas
nem qual o seu valor. Por não ter alcançado o seu desejo, que era comida,
pensou: “Reunirei estas frutas de vidro para brincar com elas em casa”, e foi por
tal motivo que passou a arrancá-las e enfiá-las nos bolsos e no meio da roupa, até
enchê-los; isso feito, colheu ainda mais um tanto e o enfiou no cinturão,
carregando o máximo que podia e pensando em utilizar essas coisas em casa
como enfeite, na suposição de que se tratava de vidro, como já se disse. Em
seguida, apressou o passo, por medo a seu tio magrebino, até atravessar os
quatro compartimentos e entrar na câmara subterrânea, sem olhar, nesse caminho
de volta, para as cubas de ouro, embora lhe fosse permitido, na volta, pegar o
que quisesse de seu conteúdo; tão logo chegou à escada, começou a subir os
degraus, mas, quando não lhe restava senão o último degrau, mais alto que os
demais, não pôde subi-lo sozinho devido ao seu carregamento, e então pediu ao
magrebino: “Tio, dê-me a sua mão e me ajude a subir”. O magrebino respondeu:
“Meu filho, dê-me a lâmpada a fim de aliviar o peso, pois é possível que ela lhe
esteja pesando”. ¢Alå’udd∑n disse: “Tio, a lâmpada não me pesa em nada.
Apenas dê-me a sua mão e assim que eu subir a entregarei a você!”. O bruxo
magrebino, cujo único intento era a obtenção da lâmpada, e nada mais, insistiu
para que ¢Alå’udd∑n lhe entregasse a lâmpada, mas o rapaz, que a enfiara por
dentro das roupas e carregava sacos de frutas por fora, não conseguiu esticar a
mão para pegá-la e entregá-la ao tio. O magrebino, após ver frustradas suas
reiteradas tentativas de fazer com que ¢Alå’udd∑n lhe entregasse a lâmpada,
ficou extremamente enfurecido com ele, exigindo-a, sem que o rapaz pudesse
alcançá-la.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

528ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n não conseguiu alcançar a
lâmpada para dá-la ao seu mentiroso tio magrebino, que se zangou por não ter
obtido seu objetivo, enquanto o rapaz prometia que lhe daria a lâmpada tão logo
saísse do subterrâneo, sem ocultar nenhuma trapaça ou má intenção. Mas, ao ver
que ¢Alå’udd∑n não pretendia entregá-la [antes de sair], o magrebino,
extremamente encolerizado e já sem esperanças de obtê-la, fez invocações e
esconjuros, atirando o incenso na fogueira, e de imediato o mármore se soltou e
se fechou violentamente sobre si mesmo graças à força da sua magia, recobrindo
a superfície tal como estava antes. ¢Alå’udd∑n ficou no subterrâneo, impedido
de sair. O bruxo, que era um estranho e não tio do rapaz, conforme eu já
mencionara, havia se disfarçado e contado aquelas mentiras com o propósito de
apoderar-se da lâmpada por intermédio de ¢Alå’udd∑n, a quem tal tesouro se
destinava. Esse magrebino maldito fez a terra se fechar sobre o rapaz e ali o
deixou para morrer de fome. Esse maldito bruxo magrebino procedia da África
Ocidental Interior, e desde pequeno se apegara à bruxaria e a todos os saberes
sobrenaturais[19] que tornaram renomada aquela região africana, e os quais ele
não cessou de estudar e aprender em sua terra desde a infância, até chegar ao
ponto de dominá-los; e mercê do seu exaustivo conhecimento desse assunto,
derivado do estudo incansável pelo período de quarenta anos e da prática
contínua de invocações e esconjuros, logrou descobrir certo dia que na mais
distante das cidades da China, denominada Qal¢ås, havia um imenso tesouro que
nenhum dos reis do mundo possuía igual, e o mais estranho era que esse tesouro
consistia numa lâmpada maravilhosa que proporcionaria a seu detentor riqueza e
poder tamanhos que ninguém na face da terra teria iguais, e nem mesmo o mais
poderoso dos reis do mundo possuía ao menos uma fração da riqueza e do poder
desta lâmpada.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

529ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o magrebino, ao descobrir aquilo
mediante o seu saber, e ao ver que o tesouro estava destinado a um jovem de
pobre origem chamado ¢Alå’udd∑n, e que esse rapaz era daquela cidade, e que
ele era fácil de lidar, não dificultoso, imediatamente, sem mais delongas,
preparou-se para viajar à China, conforme dissemos, fazendo tudo o que fizera
por ¢Alå’udd∑n no intuito de apoderar-se da lâmpada, mas, como os seus
propósitos e esperanças se frustraram e seus esforços se baldaram, decidiu
liquidar ¢Alå’udd∑n trancando-o, mediante a sua magia, no subterrâneo a fim de
que o rapaz morresse, mas para aquele que está destinado a viver não há quem o
mate;[20] o segundo objetivo era que ¢Alå’udd∑n não saísse daquele
subterrâneo com a lâmpada. Ato contínuo, o homem tomou estrada e retornou a
seu país, a África, triste e desenganado do seu intento: foi isso o que sucedeu ao
mágico. Quanto a ¢Alå’udd∑n, depois que o subterrâneo se fechou sobre si, ele
se pôs a gritar por aquele que julgava ser seu tio magrebino, pedindo que lhe
estendesse a mão para sair pelo túnel que conduzia à superfície, mas, como
chamasse sem encontrar quem respondesse, percebeu de imediato o ardil que o
magrebino lhe armara, e que este não era seu tio, mas sim um feiticeiro
mentiroso. Desenganado de se manter vivo e reconhecendo, triste, que não
retornaria à superfície, começou a chorar e a gemer pelo que lhe sucedera, e
passado algum tempo levantou-se e desceu a fim de ver se Deus altíssimo lhe
facilitaria alguma porta pela qual sair, pondo-se então a virar-se à direita e à
esquerda, sem ver, contudo, senão a escuridão e quatro paredes fechadas sobre
si, pois o feiticeiro magrebino, com seu feitiço, trancara todas as portas,
inclusive as do jardim pelo qual o rapaz entrara, com o fito de não lhe deixar
uma única saída para a superfície e apressar a sua morte; o choro e as lamúrias
de ¢Alå’udd∑n aumentaram quando notou que todas as portas estavam
trancadas, inclusive as do jardim, no qual ele pensava se distrair um pouco, o
que o fez chorar aos berros como um desesperado, voltando então às escadas do
túnel pelo qual inicialmente entrara.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

530ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n se sentou na escadaria do
túnel chorando e se lamuriando, desesperançado; porém, considere[21] que Deus
exalçado e altíssimo, quando quer algo, basta-lhe dizer “seja”, e então será; é ele
quem cria a libertação em meio à dificuldade. Assim, quando o feiticeiro
magrebino fizera ¢Alå’udd∑n descer o túnel, dera-lhe um anel e o colocara em
seu dedo dizendo: “Este anel o salvará de toda dificuldade, ainda que você esteja
em desgraças e terrores, afastando todas as nocividades e ajudando-o onde quer
que você esteja”. Esse foi um cálculo de Deus altíssimo a fim de que o anel se
tornasse instrumento de salvação para ¢Alå’udd∑n, o qual, sentado a chorar e a
se lamuriar por sua situação, já desesperançado da vida e dominado pela
angústia, passou, tamanha era a sua tristeza, a esfregar as mãos de acordo com o
hábito dos desesperados, erguendo-as, suplicando a Deus e dizendo: “Declaro
que não há divindade senão você, único, magnífico, poderoso, vencedor,
ressuscitador dos mortos, causador das necessidades e seu provedor,
solucionador de problemas e dificuldades e deles libertador, a mim você me
basta, pois é o melhor a quem posso me entregar; também declaro que
Mu¬ammad é seu servo e enviado, em nome de cuja dignidade, meu Deus, eu
peço que me salve desta desgraça na qual caí!”. Enquanto ele assim rogava a
Deus, esfregando as mãos de angústia com a desgraça que lhe sucedera,
casualmente a sua mão roçou o anel e eis que, de imediato, um escravo surgiu
em pé diante dele dizendo: “Eis-me aqui às suas ordens;[22] sou seu escravo,
pois o anel do meu senhor está na sua mão”. Olhando bem, ¢Alå’udd∑n viu uma
criatura enorme — semelhante a um dos gênios de nosso senhor Salomão —
parada diante de si, visão essa tão amedrontadora que o aterrorizou; porém,
ouvindo o escravo dizer-lhe: “Peça o que quiser; sou seu escravo, pois o anel do
meu senhor está na sua mão”, aí sim recobrou o ânimo, lembrando-se das
palavras que o magrebino dissera ao lhe entregar o anel, e felicíssimo encorajou-
se para dizer-lhe: “Ó escravo do senhor do anel, quero que você me transporte à
superfície”, e imediatamente, antes mesmo que terminasse de pronunciar, eis que
a terra se fendeu e ele se viu diante da entrada do tesouro, do lado de fora, a céu
aberto.[23] Ao se ver em tal situação, recebendo em plena face a luz do dia e os
raios do sol após três dias no escuro subterrâneo do tesouro, ¢Alå’udd∑n não
pôde abrir os olhos logo, mas sim a pouco e pouco, ora abrindo-os, ora
fechando-os, até que sua vista se fortaleceu, iluminou-se com a luz e os seus
olhos se livraram do escuro.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

531ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, mal saiu do subterrâneo do tesouro,
¢Alå’udd∑n abriu os olhos e, vendo-se na superfície, ficou felicíssimo, embora
perplexo por também se ver sobre a entrada do tesouro pela qual descera quando
o feiticeiro magrebino a abrira: ela estava fechada e a terra arrumada, sem
absolutamente nenhum vestígio da entrada; a perplexidade aumentou, e ele
imaginou estar em algum outro local, não o reconhecendo senão quando avistou
o lugar onde haviam acendido a fogueira, com tocos de madeira e gravetos
secos, e o ponto no qual o feiticeiro magrebino derramara incenso e fizera
esconjuros. Em seguida, voltando-se à direita e à esquerda, divisou ao longe os
jardins e, olhando para o caminho, reconheceu que fora por ali que viera.
Agradeceu então a Deus altíssimo, que o transportara para a superfície,
salvando-o da morte depois que ele já havia perdido a esperança de viver, e pôs-
se a caminhar pelo já reconhecido caminho da cidade até chegar, nela entrando e
se dirigindo para casa, onde foi ter com a sua mãe; ao vê-la, invadido pela
enorme alegria de haver se safado, desabou no chão diante dela, desmaiando por
causa dos terrores e fadigas, tudo isso misturado à fome. Muito triste desde a
separação, a mãe passara todo esse tempo chorando e se lamuriando, e quando o
viu entrar também ficou extremamente feliz, mas foi tomada pela tristeza ao vê-
lo cair desmaiado; contudo, sem esmorecer, no ato ela aspergiu-lhe o rosto com
água e pediu aos vizinhos algumas essências, fazendo-o cheirá-las. Quando
¢Alå’udd∑n se recuperou um pouco, pediu à mãe que lhe trouxesse algo para
comer, dizendo: “Mamãe, faz três dias que não como nadinha!”. Ela se levantou
e preparou-lhe comida com o que tinha em casa, colocando-a diante do jovem e
dizendo-lhe: “Levante-se, meu filho, coma até se satisfazer, e quando estiver
descansado conte-me o que lhe ocorreu e o que o atingiu, meu filho! Agora nada
perguntarei, porque você está muito cansado”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

532ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n comeu, bebeu, se satisfez e,
após ter descansado e recobrado o ânimo, disse para a mãe: “Mamãe, eu devia
fazer enormes queixas contra você por me deixar com aquele maldito cujo
objetivo era me destruir, pois ele pretendia matar-me! Saiba que com os meus
próprios olhos eu teria visto a morte pelas mãos daquele maldito, que você
acreditava ser meu tio paterno, não fosse Deus altíssimo ter me salvado! Eu e
você, mamãe, fomos iludidos por aquele maldito com todas aquelas promessas
de me fazer o bem e tantas demonstrações de afeto, mas saiba, mamãe, que ele é
um maldito feiticeiro magrebino, mentiroso, trapaceiro, ardiloso e hipócrita. Não
imagino que nem sequer entre os demônios subterrâneos ele encontre algum que
lhe seja assemelhado.[24] Amaldiçoe-o Deus em todos os livros sagrados! Ouça,
mamãe, o que o maldito me fez. Tudo quanto digo é fato e verdade. Veja as
trapaças do maldito, as promessas de que me faria todo o bem, e veja aquele
amor que ele simulava por mim, e como forjou tudo isso para conseguir o seu
intento, e pretendia matar-me, mas louvado seja Deus, que me salvou. Saiba e
ouça, mamãe, o que fez o maldito”. E ¢Alå’udd∑n, chorando de exorbitante
alegria, contou para a mãe tudo quanto lhe ocorrera, desde quando a deixara e
fora conduzido pelo magrebino para a montanha na qual se localizava o tesouro,
e como ele havia esconjurado e incensado. E disse: “Em seguida, mamãe, me
deu um tapa que me fez desmaiar de dor; fui dominado por um terrível medo
quando ele fendeu a montanha e a terra se abriu diante de mim com a sua
bruxaria; estremeci e me apavorei com o som de trovão que ouvi e a escuridão
que caiu quando ele incensou e esconjurou; quis fugir ao presenciar todos esses
terrores, tamanho era o meu medo, e quando ele me viu querendo fugir me
xingou e bateu; porém, a entrada do tesouro se abriu e ele não podia descer para
pegá-lo — ela se abriu para mim porque o tesouro estava no meu nome, e não no
dele. Mas, por ser um nojento feiticeiro, ele descobriu que essa entrada se abriria
diante de mim, e que essa busca era minha”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

533ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n relatou à mãe tudo quanto
lhe sucedera com o feiticeiro magrebino dizendo: “Após ter-me batido,
desdobrou-se em agrados com o fito de me fazer descer até o tesouro, cuja
entrada se abrira, e obter o que procurava. Ao me fazer descer, deu-me para
enfiar no dedo um anel que estava consigo. Desci atrás do tesouro e encontrei
quatro aposentos repletos de ouro, prata e demais pedras preciosas, muito
embora isso ainda não fosse nada, pois o maldito me instruíra a não pegar nada;
depois, entrei num enorme bosque composto de árvores elevadas cujas frutas
sequestravam o pensamento, mamãe, todas de cristais de cores diversas; quando
cheguei ao palácio onde estava esta lâmpada, imediatamente a recolhi, apaguei-a
e lhe derramei o conteúdo” — e ¢Alå’udd∑n, retirando a lâmpada do bolso
situado na altura da axila, mostrou-a à mãe, bem como as joias que trouxera do
pomar, em dois sacos grandes e cheios, dessas joias das quais não existe nem ao
menos uma igual entre os reis do mundo, e cujo valor ¢Alå’udd∑n ignorava,
imaginando-as compostas de mero vidro e cristal. E ¢Alå’udd∑n continuou
contando para a mãe: “Depois de pegar a lâmpada, mamãe, saí, cheguei à
entrada do tesouro e gritei pelo maldito magrebino, meu falso tio paterno, a fim
de que me estendesse a mão e me içasse para fora, pois eu carregava coisas
pesadas que me impossibilitavam de sair sozinho. Mas, além de não me estender
a mão, ele pelo contrário me disse: ‘Entregue-me a lâmpada e só depois lhe darei
a mão e o içarei’, mas eu — sem poder alcançar a lâmpada para entregá-la a ele,
dado que estava enfiada em meu bolso interno sob a axila, e por fora eu
carregava esses sacos — disse-lhe: ‘Titio, não posso dar-lhe agora a lâmpada,
mas assim que sair a entregarei a você’. Ele não pretendia tirar-me dali, e só
queria a lâmpada; seu propósito era tomá-la de mim e depois fechar o
subterrâneo comigo dentro a fim de me aniquilar, o que afinal acabou de fato
fazendo. Foi isso o que se passou da parte daquele nojento feiticeiro, mamãe”, e
¢Alå’udd∑n continuou contando tudo quanto ocorrera até o fim, e pôs-se então a
insultar o magrebino com todo o ódio e rancor, dizendo: “Ah!, que maldito
feiticeiro nojento, opressor, cruel, totalmente desumano, trapaceiro, hipócrita,
desprovido de misericórdia e piedade!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

534ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras do filho e o que o
feiticeiro magrebino lhe fizera, a mãe de ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Pois é, meu
filho, trata-se de um infiel e hipócrita, hipócrita que mata os outros com a sua
feitiçaria, mas o mérito pertence a Deus altíssimo, meu filho, que salvou você
das trapaças e ardis dele, feiticeiro maldito que acreditei ser, de verdade, seu tio
paterno”. Como havia ficado três dias sem dormir, ¢Alå’udd∑n sentiu sono e
pediu para dormir, o que ambos fizeram, primeiro ele, depois a mãe.
¢Alå’udd∑n não acordou senão no dia seguinte à tarde, e assim que despertou
pediu imediatamente algo para comer, pois estava faminto, mas a mãe lhe disse:
“Nada tenho para você comer, pois tudo quanto eu tinha ontem você já comeu.
Mas espere um pouco, tenho aqui um bocadinho de bordados de algodão[25] que
vou tentar vender no mercado e comprar com o dinheiro algo para você comer”.
¢Alå’udd∑n respondeu: “Mamãe, guarde os bordados, não os venda; dê-me a
lâmpada para que eu a venda e com seu valor compre algo para comermos.
Suponho que o preço dela será superior ao dos bordados”, e então a mãe de
¢Alå’udd∑n foi trazer para o filho a lâmpada, mas, vendo-a muito suja, disse:
“Eis a lâmpada, meu filho, mas está muito suja! Se a lavarmos e lustrarmos, ela
se venderá por um preço maior”. Assim, recolhendo um punhadinho de areia, a
mulher pôs-se a esfregar a lâmpada, e dali a pouco apareceu na sua frente um
gênio de aparência assustadora, elevada estatura, semelhante aos maiores
gigantes, e lhe disse: “Diga o que deseja de mim. Eis-me aqui, sou seu escravo e
escravo de quem tem a lâmpada nas mãos, não apenas eu mas também todos os
escravos da lâmpada mágica que você tem nas mãos”. A mãe de ¢Alå’udd∑n
estremeceu, dominada pelo medo, sua língua ante a visão daquela figura
amedrontadora se paralisou e ela não conseguiu lhe responder, pois não estava
habituada a ver a imagem de fantasmas como aquele.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

535ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n não conseguiu dar
uma resposta ao gênio, tamanho era o seu medo, mas sim caiu desmaiada de
terror. Seu filho ¢Alå’udd∑n estava parado à distância, e, já tendo visto gênios
graças ao anel que esfregara enquanto estava no esconderijo do tesouro, ao ouvir
as palavras dirigidas por aquele gênio à sua mãe correu rapidamente, pegou a
lâmpada das mãos da mãe e lhe disse: “Ó escravo da lâmpada, estou com fome,
e o meu desejo é que você me traga algo para comer, algo saboroso, acima das
expectativas!”. O gênio sumiu e num piscar de olhos trouxe-lhe uma mesa
estupenda e valiosa, de prata pura com doze travessas de diversas espécies de
comida, das mais opulentas, duas taças de prata e duas garrafas escuras de vinho
puro[26] e envelhecido e pão mais branco que a neve, colocando-a então diante
de ¢Alå’udd∑n e sumindo novamente. ¢Alå’udd∑n aspergiu o rosto da mãe com
água de rosas e a levou-lhe às narinas odores agradáveis, e logo ela acordou.
¢Alå’udd∑n disse: “Mamãe, levante para comermos dessa comida que Deus
altíssimo facilitou para a gente!”. Ao ver aquela mesa enorme, e ainda por cima
de prata, a mãe de ¢Alå’udd∑n, muito espantada com aquilo tudo, disse ao filho:
“Meu filho, quem foi esse generoso, dadivoso, que notou a nossa fome e
pobreza? Agora lhe devemos esse grande favor. Parece que o sultão, sabendo da
nossa condição de penúria, nos enviou essa mesa!”. Ele respondeu: “Mamãe,
essa não é hora de perguntas. Levante-se e venha logo comer, pois estamos com
fome!”. Então ambos se sentaram à mesa e começaram a comer. Quando provou
daquela comida, que ela nunca em toda a sua vida comera igual, a mãe de
¢Alå’udd∑n passou a comer com toda a disposição e vontade, tamanha era a sua
fome.[27] Ademais, era comida que se oferecia a reis, e ambos ignoravam se a
mesa era valiosa ou não, pois jamais em sua vida haviam visto algo igual.
Quando terminaram de comer e se saciaram, ainda sobrou o suficiente para o
jantar e também para o dia seguinte. Levantaram-se, lavaram as mãos e se
sentaram para conversar. A mãe de ¢Alå’udd∑n se voltou para ele e perguntou:
“Meu filho, agora que graças a Deus já comemos e nos fartamos por meio das
suas dádivas, você não tem mais a desculpa de estar com fome; conte-me,
portanto, o que sucedeu da parte daquele escravo-gênio”, e então ¢Alå’udd∑n
contou-lhe tudo quanto sucedera entre ele e o escravo depois que ela caíra
desmaiada de medo. Tomada por enorme espanto, ela disse: “Então é verdade
que os gênios aparecem para os filhos de Adão! Pois eu, meu filho, em todo o
meu tempo nunca vi nenhum, e acho que foi ele mesmo que salvou você lá no
esconderijo do tesouro”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Não foi ele, mamãe. O
escravo que apareceu diante de você é escravo da lâmpada”. Ao ouvir tais
palavras, a mulher indagou: “Como é isso, meu filho?”. Ele respondeu: “Esse
escravo tem a forma diferente da do outro escravo, que era servidor do anel. Esse
que você viu é escravo da lâmpada que estava nas suas mãos”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

536ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n disse para a mãe: “O
escravo que apareceu na sua frente, mamãe, é o da lâmpada”. Ao ouvir essas
palavras, ela perguntou: “Ai ai! Quer dizer então que o maldito que apareceu na
minha frente e quase me matou de medo é escravo da lâmpada?”. Ele respondeu:
“Sim”. Ela disse: “Eu lhe rogo, meu filho, em nome do leite que lhe dei de
mamar, que você jogue fora essa lâmpada e esse anel, pois ambos nos causam
pavor, e eu não suportarei, uma segunda vez, ver tais gênios; ademais, é
pecaminoso para nós conviver com eles, pois o profeta, sobre ele sejam as preces
e a saudação de Deus, nos previne contra isso”. O rapaz disse: “Mamãe, as suas
palavras eu sempre ouço e obedeço, mas isso que você está dizendo agora é
impossível; não posso perder a lâmpada nem o anel. Você já viu o bem que nos
fizeram quando estávamos famintos. Saiba, mamãe, que o mentiroso feiticeiro
magrebino, quando eu desci para onde estava o tesouro, não pediu nada do ouro
nem da prata dos quais os quatro aposentos estavam repletos; ao contrário, ele
me recomendou apenas que lhe trouxesse a lâmpada e mais nada, pois sabia de
seus magníficos benefícios, e se acaso não tivesse certeza de que eram
magníficos ao extremo não se teria afadigado, exaurido e viajado da sua terra até
aqui à procura dela, e muito menos teria trancado sobre mim a entrada do
tesouro quando se viu sem a lâmpada que eu lhe negava. Desse modo, mamãe,
impõe-se que cuidemos desta lâmpada e a guardemos, porque ela será nosso
meio de sustento e nossa riqueza. Não devemos mostrá-la a ninguém, e a mesma
coisa no que se refere ao anel, o qual tampouco me é possível tirar do dedo, pois
se não fosse ele você já não me veria nesta vida, pois eu estaria agora morto, no
subterrâneo do tesouro. Como eu poderia, então, largá-lo? Quem sabe o que
poderá ocorrer-me da parte do destino: um tropeço, uma desgraça ou um
acidente fatal qualquer? Este anel é que me salvará! No entanto, para satisfazer
os seus pruridos, eu esconderei a lâmpada e nunca mais a deixarei vê-la”. Ao
ouvir-lhe as palavras e refletir sobre elas, a mãe viu que eram corretas e lhe
disse: “Faça o que quiser, meu filho, pois de minha parte não quero nunca mais
vê-los nem tornar a presenciar a cena medonha que presenciei”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

537ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n e sua mãe se alimentaram da
comida trazida pelo gênio durante dois dias, ao cabo dos quais ela foi toda
consumida. Vendo que já não lhes restava nada para comer, o rapaz pegou uma
das travessas trazidas junto com a mesa pelo escravo, todas de ouro puro; muito
embora não soubesse do que eram, levou uma delas ao mercado, onde foi visto
por um mercador judeu mais malicioso que os demônios; entregou-lhe a
travessa, e, ao examiná-la, o judeu levou ¢Alå’udd∑n para um canto a fim de
que ninguém os observasse; examinou de novo a travessa, contemplou-a e
verificou ser de ouro puro, mas, sem ter certeza de que ¢Alå’udd∑n sabia o valor
da travessa ou era algum imbecil, perguntou-lhe: “Quanto é esta travessa, meu
senhor?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Você sabe quanto ela vale”. Em dúvida
quanto ao valor a pagar ao rapaz devido a essa resposta típica do ofício, o judeu
cogitou pagar-lhe pouco, mas temeu que ¢Alå’udd∑n soubesse o valor; também
cogitou pagar-lhe muito, mas pensou que o rapaz talvez ignorasse o valor; assim,
tirou do bolso um dinar de ouro e o deu a ¢Alå’udd∑n, o qual, ao ver a moeda
em suas mãos, tomou-a e saiu correndo. Percebendo então que o rapaz não sabia
o valor da travessa, o judeu se arrependeu amargamente por ter pago um dinar
em vez de lhe pagar a sexagésima parte. E ¢Alå’udd∑n, sem delongas, foi de
imediato até o padeiro, de quem comprou pão e trocou o dinar, indo em seguida
até a mãe, a quem entregou o pão e o resto do dinheiro e disse: “Vá, mamãe,
comprar para nós aquilo de que necessitamos”, e então a mãe se levantou e foi
até o mercado, ali comprando tudo de que necessitavam, e ambos comeram e se
saciaram. ¢Alå’udd∑n, sempre que o dinheiro de alguma travessa se esgotava, ia
até o maldito judeu, que dele comprava as travessas a preço módico. O judeu
pretendia mesmo diminuir o valor, mas, como pagara um dinar na primeira vez,
temeu que o rapaz fosse vender para algum concorrente caso ele diminuísse a
oferta, perdendo, em consequência, os enormes lucros que obtinha no negócio
com ele, que não parou de vender-lhe uma travessa atrás da outra até vendê-las
todas, não lhe restando senão a mesa sobre a qual estavam as travessas. Como
era grande e pesada, trouxe o judeu até a casa e lhe mostrou a mesa. Ao vê-la e
notar-lhe o tamanho, o judeu lhe pagou dez dinares, que ¢Alå’udd∑n aceitou, e
foi embora. ¢Alå’udd∑n e sua mãe passaram então a viver dos dez dinares, até
que acabaram, quando então ¢Alå’udd∑n pegou a lâmpada, esfregou-a, e dela
saiu o escravo que antes lhe aparecera.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

538ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o gênio escravo da lâmpada disse a
¢Alå’udd∑n: “Peça o que quiser, meu senhor, pois eu sou seu escravo e escravo
de quem está com a lâmpada”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Meu desejo é que você
me traga uma mesa de comida igual à que me trouxe anteriormente, pois estou
com fome”. E num piscar de olhos o escravo lhe trouxe uma mesa igual à
anteriormente trazida, com doze travessas opulentas contendo alimentos
saborosos, além de garrafas de vinho puro e pão de boa qualidade.[28] A mãe de
¢Alå’udd∑n — a qual, ao perceber que o filho fazia tenção de esfregar a
lâmpada, se retirara para não ver o gênio de novo — retornou logo depois e,
vendo aquela mesa repleta de travessas de prata e o aroma da comida opulenta
pela casa toda, espantou-se e alegrou-se, enquanto ¢Alå’udd∑n lhe dizia: “Olhe,
mamãe, você tinha me dito que jogasse fora a lâmpada, mas veja só os seus
benefícios!”. Ela respondeu: “Que Deus lhe aumente as benesses,[29] meu filho,
mas eu não quero tornar a vê-lo”. Então, ¢Alå’udd∑n sentou-se à mesa com a
mãe e ambos comeram e beberam até se fartar, guardando as sobras para o dia
seguinte. Quando acabou toda a comida, ¢Alå’udd∑n colocou uma das travessas
sob a túnica e saiu à procura do judeu a fim de vendê-la a ele, mas por obra do
destino acabou entrando na loja de um velho ourives, homem magnânimo,[30]
piedoso e temente a Deus. Ao ver ¢Alå’udd∑n, o velho ourives lhe perguntou:
“O que você quer, meu filho? Eu já o vi diversas vezes passando por aqui e
negociando com um judeu. Observei que você lhe entrega alguns objetos, e
suponho que também agora você traz algo consigo e procura por ele a fim de
vender-lhe esse objeto. Mas você não sabe, meu filho, que tomar o dinheiro dos
muçulmanos, unificadores de Deus altíssimo, é lícito para os judeus? Eles
sempre enganam os muçulmanos, especialmente este judeu maldito com o qual
você negocia e em cujas garras caiu. Se porventura, meu filho, você tiver algo
que pretende vender, mostre-o para mim e nada tema, absolutamente, pois eu lhe
pagarei o seu valor, por Deus altíssimo!”. Então ¢Alå’udd∑n exibiu a travessa
para o velho ourives, que ao vê-la pegou-a, pesou-a na balança e perguntou a
¢Alå’udd∑n: “É uma dessas que você vendia ao judeu?”. ¢Alå’udd∑n
respondeu: “Sim, uma dessas, igualzinha”. Perguntou o ourives: “E quanto ele
lhe pagava pela travessa?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Ele me pagava um dinar”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

539ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir de ¢Alå’udd∑n que o judeu lhe
pagava um único dinar pela travessa, o velho ourives disse: “Oh, quem é esse
maldito que assim engana os adoradores de Deus altíssimo?”, e, encarando o
rapaz, continuou: “Meu filho, esse judeu trapaceiro o enganou, riu da sua cara,
pois esta travessa é de prata pura, da melhor qualidade. Eu a pesei e constatei
que vale setenta dinares! Se você quiser esse preço, leve agora o dinheiro”, e
contou-lhe setenta dinares, que o rapaz levou, agradecendo-lhe a gentileza de o
ter alertado contra a trapaça do judeu. Toda vez que se acabava o dinheiro da
travessa, o rapaz levava outra para o velho ourives, e assim ele e a mãe se
tornaram ricos, muito embora continuassem a viver com humildade, num padrão
de vida médio, sem gastos excessivos nem desperdícios; ¢Alå’udd∑n
abandonara a vagabundagem e a convivência com os moleques, passando a
conviver com homens adultos e indo diariamente ao mercado, onde se sentava
tanto com os grandes como com os pequenos mercadores, a todos indagando
sobre a situação do seu comércio, os valores das mercadorias e coisas afins.
Passou a frequentar o mercado dos ourives e dos vendedores de joias, onde se
sentava para assistir às coisas relativas às pedras preciosas, observando as que ali
se vendiam e se compravam, o que o deixou a par, então, de que os dois sacos
que enchera com frutos das árvores no pomar do esconderijo do tesouro não
eram vidro nem cristal, mas sim legítimas pedras preciosas! Também descobriu
que amealhara enorme riqueza, que nenhum rei jamais tivera igual. Examinando
todas as pedras preciosas daquele mercado, notou que nem a maior delas se
aproximava da menor que ele possuía. E assim continuou a se dirigir diariamente
ao mercado dos joalheiros, ali conhecendo pessoas, fazendo amizades e
indagando a respeito das compras e vendas, das trocas e barganhas, bem como
sobre o valioso e o barato, até que certo dia, depois que ele se levantara de
manhã, vestira-se e conforme o hábito saíra para o mercado de joalheiros, ouviu
ao entrar um arauto real anunciando o seguinte: “Conforme determinou o
provedor dos benefícios, o rei do tempo, o senhor desta época e de todas as
épocas, todo mundo deve fechar seus depósitos e lojas e entrar em casa, porque a
jovem dama Badrulbudœr,[31] filha do sultão, pretende ir ao banho público, e
todo aquele que desobedecer a ordem será punido com a morte, e o seu sangue
estará no seu pescoço”. Ao ouvir tal ordem, ¢Alå’udd∑n teve vontade de espiar
a filha do sultão, e pensou de si para si que todo mundo falava a respeito de sua
graça e beleza, “então meu maior desejo é vê-la”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

540ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n começou a procurar uma
artimanha para poder espiar a filha do sultão, a jovem dama Badrulbudœr, e
concluiu que o melhor era se postar atrás do banho público a fim de lhe ver o
rosto enquanto ela entrava. Imediatamente dirigiu-se para o tal banho público,
chegando um pouco antes dela, e se postou atrás da porta, num ponto em que
ninguém poderia vê-lo. Quando a filha do sultão chegou e ergueu o véu, seu
rosto cintilou como se fosse sol brilhante ou pérola resplandecente, tal como
disse a seu respeito um dos que a descreveram:

“Quem lhe aspergiu alquifa mágica no olhar,
fazendo brotarem flores nas suas bochechas?
Quem fez os seus cabelos tal noite espessa,
iluminada pelo fulgor da sua fronte?”.

Disse o narrador: quando ela ergueu o véu do rosto e ¢Alå’udd∑n logrou
contemplá-la, disse: “Em verdade, a sua fisionomia é um louvor ao criador
poderoso! Exalçado seja quem a criou e ornamentou com tamanhas graça e
beleza!”. Suas costas [como que] se quebraram ao vê-la, seu pensamento ficou
perplexo e sua inteligência, estupefata. O amor por ela tomou conta de todos os
recantos do seu coração, e então ele retornou para casa, onde entrou tão
atarantado que a sua mãe lhe falava e ele não reagia nem respondia. Como
continuasse nesse estado quando ela lhe serviu o almoço, a mãe perguntou: “O
que aconteceu, meu filho? Está com alguma dor? Conte-me se algo o aflige! Não
é seu costume deixar de me responder quando falo com você”. ¢Alå’udd∑n, que
pensava serem todas as mulheres iguais à sua mãe, já havia ouvido a respeito da
beleza da jovem dama Badrulbudœr, filha do sultão, mas não sabia o que eram a
graça e a beleza; assim, voltou-se para a mãe e respondeu: “Deixe-me em paz!”.
De tanto a mãe insistir para que se alimentasse, aproximou-se e comeu um
pouco, indo em seguida deitar-se no colchão, onde se deixou estar pensativo até
o amanhecer, continuando do mesmo modo no dia seguinte. Tomada de
perplexidade por causa do filho, ao qual não conseguia saber o que sucedera, a
mãe, supondo que ele talvez estivesse doente, indagou-o a respeito dizendo:
“Meu filho, se você estiver sentindo alguma dor ou algo assim diga-me para que
eu vá lhe trazer o médico que hoje está na cidade; trata-se de um médico da terra
dos árabes que o sultão mandou vir, e a notícia que se divulga a respeito dele é a
sua grande habilidade; se estiver doente, vou chamá-lo para você”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
541ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir que o intento da mãe era trazer-
lhe o médico, ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Mamãe, eu estou bem, e não doente. O
fato é que eu pensava que todas as mulheres fossem como você, mas ontem eu vi
a jovem dama Badrulbudœr, filha do sultão, indo para o banho público” —
¢Alå’udd∑n lhe contou tudo quanto lhe sucedera —, e continuou: “Talvez você
tenha ouvido o arauto apregoando que ninguém deveria abrir sua loja nem ficar
parado no caminho até que a jovem dama Badrulbudœr entrasse no banho
público, mas eu a espiei e vi tal como é, pois quando ela chegou à porta do
banho público ergueu o véu do rosto; quando lhe contemplei a imagem e vi
aquela digna aparência, atingiu-me, mamãe, um enorme sentimento graças ao
amor por ela; a paixão me invadiu todas as partes do corpo, e agora já não
poderei ter repouso se não ficar com ela; por isso, estou refletindo sobre como
pedi-la em casamento ao sultão, o pai dela, conforme a tradição religiosa
legítima”.[32] Ao ouvir as palavras do filho, a mãe de ¢Alå’udd∑n considerou
que o seu juízo se avariara e disse: “Meu filho, o nome de Deus esteja sobre
você! Está claro que perdeu o juízo, meu filho! Aquiete-se e pare de agir como
os loucos!”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Mamãe, não perdi o juízo nem sou louco
nem essas suas palavras vão mudar o que enfiei na cabeça. Não posso ter
repouso sem conquistar a força vital do meu coração, a jovem dama
Badrulbudœr, a bela, e desejo pedi-la em casamento ao seu pai, o sultão”. A mãe
disse: “Meu filho, por vida minha, pare de falar essas palavras, pois alguém
poderá ouvi-lo e dizer que você é louco! Deixe-se dessa obsessão! Quem é que
se ofereceria para uma missão dessas, pedir algo assim ao sultão? Nem sei como
agir para que você faça esse pedido ao sultão, se essas suas palavras forem
verdadeiras! Acompanhado de quem você pretende pedi-la em casamento?”.
¢Alå’udd∑n respondeu: “Fazer um pedido desses acompanhado de quem, minha
mãe? Você é que estará presente! Quem eu tenho de mais confiança? Eu quero
que você mesma, precisamente, faça para mim esse pedido”. Ela disse: “Que
Deus me afaste disso, meu filho! Por acaso eu perdi o juízo que nem você? Tire
essa ideia da cabeça! Lembre-se de quem você é filho! Um dos alfaiates mais
pobres desta cidade! Também eu, sua mãe, sou filha de gente muito pobre!
Como vamos nos atrever a pedir em casamento a mão da filha do sultão, cujo pai
não se satisfaria senão casando-a com filhos de reis e sultões que estejam no
mesmo nível de grandeza, importância e dignidade que ele? Se estiverem um só
nível abaixo de si, ele não lhes daria a filha em casamento”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

542ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n esperou a mãe parar de falar
e lhe disse: “Mamãe, tudo em que você pensou eu já sabia, e tenho pleno
conhecimento de que sou filho de gente pobre. Todo esse seu discurso não vai
mudar o meu propósito de jeito nenhum. Só lhe peço, se eu for seu filho e você
de fato me amar, que me faça esse favor, caso contrário me perderá, pois a morte
me advirá rapidamente se eu não atingir o meu desejo relativamente à amada do
meu coração. Afinal, mamãe, não sou seu filho para o que der e vier?”. Ao
ouvir-lhe as palavras, a mãe chorou de tristeza por ele e disse: “Meu filho, sim,
eu sou sua mãe, e não tenho filho nem sopro vital do fígado que não seja você.
Todo o meu desejo é casá-lo e me alegrar com você. Porém, se estiver mesmo
querendo, eu lhe procuro uma noiva do nosso nível e condição, [e mesmo assim
os pais dela] vão logo perguntar se você possui ofício ou terras ou comércio ou
pomar do qual viver. O que lhes responderei? Se eu não posso responder nem a
gente pobre como nós, como poderei me atrever, meu filho, a pedir a [mão da]
filha do rei da China, que não tem antes nem depois? Reflita com a sua
inteligência sobre esse assunto. Quem a estará pedindo em casamento? Um filho
de alfaiate. Eu sei muito bem que, se por acaso eu falar assim, para piorar a
desgraça esse assunto nos colocará em enorme perigo diante do sultão,[33] e
talvez nos acarrete a morte, para mim e para você. Eu mesma, como me atreveria
a enfrentar esse perigo com tamanho descaramento? Meu filho, de que maneira
eu pediria ao sultão a mão da filha dele para você? Como chegar à presença do
sultão? Se me questionarem na entrada, o que responderei? Talvez me imaginem
louca. Suponha que fui lá e me encontro na presença do sultão: o que oferecerei
como presente para ele?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
543ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Exato,
meu filho, o sultão é tolerante e não expulsa nem rechaça ninguém que lhe peça
justiça ou misericórdia, ou o procure em busca de alguma dádiva, pois se trata de
um homem generoso tanto para o próximo como para o distante; contudo, ele
somente distribui benesses para quem as merece, ou que tenha realizado algo
pelo país, guerreando ou defendendo-o. Quanto a você, me diga o que fez pelo
sultão ou pelo reino que o faça merecedor de tamanha benesse; ademais, você
não está à altura da benesse pedida, que o rei não vai conceder; quem vai até o
sultão para pedir benesses tem a obrigação de presenteá-lo com algo adequado à
sua alta dignidade, como eu já lhe disse. Como você poderá correr tal risco
diante do sultão? Colocar-se diante dele e pedir-lhe a mão da filha em casamento
sem poder oferecer nada adequado a pessoas da condição dele?”. ¢Alå’udd∑n
respondeu: “Mamãe, você falou com correção e pensou em coisas verdadeiras;
eu tinha o dever de pensar em tudo isso que você me lembrou; todavia, mamãe,
o amor pela filha do sultão, a jovem dama Badrulbudœr, invadiu o âmago do
meu coração e agora já não terei descanso caso não a conquiste. Você me
lembrou de algo que eu esquecera, e isso me encoraja ainda mais a pedir a mão
da jovem por seu intermédio, mamãe. Você me pergunta qual o presente que
oferecerei ao sultão conforme o hábito assentado, mamãe, e o fato é que possuo
uma oferta e um presente que suponho nenhum rei tenha semelhante, de jeito
nenhum, nem sequer aproximado”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

544ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n disse à mãe: “Aquelas
coisas que eu supunha serem vidro ou cristal, mamãe, são na verdade pedras tão
preciosas que suponho nenhum dos reis do mundo possua algo igual à menor
delas. Da minha convivência com os joalheiros aprendi que se trata de pedras de
alto valor, e são essas que eu trouxe em sacos do esconderijo do tesouro. Se
quiser dar-se o trabalho, vá e traga a travessa de porcelana que ainda temos, para
eu enchê-la com essas pedras que você levará como presente ao sultão. Tenho
certeza de que com essa intermediação as coisas ficarão mais fáceis para você,
que se postará diante do sultão e lhe fará o meu pedido. Se você não quiser fazer
esse esforço para satisfazer o meu desejo em relação à jovem dama
Badrulbudœr, saiba que vou morrer, e não se preocupe com esse presente, pois
se trata de pedras muito preciosas; tenha certeza, mamãe, de que eu fui muitas
vezes ao mercado dos joalheiros e os vi vendendo pedras preciosas — que não
equivalem nem a um quarto da beleza destas que temos — por preços tão altos
que a mente não alcança. Quando presenciei aquilo, certifiquei-me de que as
pedras que temos em casa são muito preciosas. Portanto, mamãe, levante-se e
faça o que eu lhe disse; traga-me a travessa de porcelana da qual falei para que
eu coloque dentro dela as pedras preciosas, e então veremos como se encaixarão
dentro dela”. E a mãe de ¢Alå’udd∑n se levantou e pegou a travessa de
porcelana pensando: “Deixe-me só confirmar se o que meu filho está dizendo
sobre essas pedras é verdade ou não”, e colocou-a diante do filho, que retirou as
pedras dos sacos e pôs-se a dispô-las dentro da travessa, sortindo as várias
espécies, até enchê-la toda, após o que a mãe tentou fixar os olhos na travessa
mas nem conseguiu encará-la direito, sendo, ao contrário, obrigada a fechá-los
por causa do brilho intenso das pedras, da sua luz e do seu fulgor irradiante,
tanto que a sua mente se aturdiu, muito embora ela ainda não estivesse certa de
que o valor daquelas pedras fosse tão elevado assim; contudo, também pensou
que as palavras do filho podiam sim estar corretas quanto ao fato de os reis não
possuírem nada semelhante. Voltando-se para ela, disse ¢Alå’udd∑n: “Viu só,
mamãe, que esse é um magnífico presente para qualquer sultão? Tenho certeza
que disso lhe advirá uma enorme dignificação, e ele a recepcionará com todas as
honrarias. Agora, mamãe, você já não tem argumento. Por favor, dê-se o
trabalho, pegue essa travessa e vá levá-la ao palácio”. A mãe objetou: “Sim, meu
filho, de fato o presente é muito caro, valioso, e ninguém tem algo igual,
conforme você diz; contudo, quem tem coragem de se apresentar ao sultão e
pedir-lhe a mão da sua filha Badrulbudœr? Eu não conseguirei ter a ousadia de
lhe dizer ‘quero a mão de sua filha’ quando ele me perguntar ‘o que você quer?’,
pois fique sabendo, meu filho, que na hora a minha língua vai se engrolar. Mas
admitamos que, caso Deus permita, eu tenha a coragem de lhe dizer ‘meu desejo
é tornar-me sua parente por meio [do casamento] da sua filha, a jovem dama
Badrulbudœr, com o meu filho ¢Alå’udd∑n’. Nesse momento vão acreditar que
sou louca, e me tirarão dali maltratada e humilhada,[34] isso para não dizer que
me arriscarei a ser morta, aliás não apenas eu, mas você inclusive. Seja como for,
a despeito disso tudo, meu filho, e para honrar a sua vontade, devo criar coragem
e ir. Porém, meu filho, mesmo que o rei me receba e me dignifique por causa do
presente, quando eu lhe pedir o que você deseja…”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

545ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n disse ao filho: “…
quando eu pedir ao sultão o que você deseja, isto é, casar-se com a sua filha, se
acaso ele me questionar sobre as suas posses e proventos, conforme é hábito em
todo o mundo, o que responderei? Talvez, meu filho, ele me questione sobre isso
antes mesmo de questionar sobre você!”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Será
impossível que o sultão questione a respeito disso após olhar para as pedras
preciosas e perceber-lhes a magnificência. Desnecessário pensar em algo que
não ocorrerá. Apenas peça-lhe em meu nome a mão da filha em casamento e
ofereça-lhe estas pedras preciosas, sem dificultar mais o assunto em sua mente.
Desde antes você já tinha notícia, mamãe, da lâmpada que tenho e que agora é
responsável por nossa subsistência, pois me provê de tudo quanto peço, e a
minha esperança é, por seu intermédio, saber como responder ao sultão caso ele
indague sobre isso que você mencionou”. ¢Alå’udd∑n e a mãe passaram toda
aquela noite discutindo o assunto, e quando amanheceu a mulher encheu o
coração de coragem, especialmente após o filho explicar-lhe um pouco da
situação da lâmpada, que lhes proporcionaria tudo quanto pedissem, mas
¢Alå’udd∑n, ao perceber que a mãe se encorajara depois da explicação sobre a
lâmpada, temeroso de que ela falasse sobre o assunto a estranhos, disse:
“Mamãe, muito cuidado para não falar a ninguém sobre a lâmpada e os seus
benefícios, pois nela reside a nossa prosperidade! Lembre-se de não tagarelar
com ninguém a respeito, pois nesse caso poderemos ficar sem ela e sem a
prosperidade em que vivemos, e que dela provém!”. A mãe lhe respondeu: “Não
tenha medo nenhum quanto a isso, meu filho” e, pegando a travessa com as
pedras preciosas, saiu a tempo de conseguir entrar no salão de audiências[35]
antes que se lotasse; enrolou a travessa num lenço fino, dirigiu-se ao palácio,
aonde chegou quando as audiências ainda não se haviam iniciado, e viu o vizir e
alguns dos principais do governo entrando no salão; pouco depois o ofício para
as audiências se completou com a presença dos demais vizires, dos notáveis do
governo, dos nobres, dos príncipes e dos maiorais; pouco depois, apareceu o
sultão e todos ficaram em pé diante dele, vizires e outros dos notáveis e
maiorais. O sultão se instalou no trono para a audiência, enquanto todos os
presentes se mantinham em pé, de braços cruzados diante dele, esperando sua
ordem para sentar, só o fazendo quando ele a deu, cada qual na cadeira destinada
ao seu posto, e os pedidos começaram a ser apresentados, cada qual sendo
resolvido pelo sultão à sua maneira, até que a audiência se encerrou, o rei entrou
no palácio, e cada vivente tomou o seu rumo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

546ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n, embora tivesse
chegado antes de todos e conseguido lugar para entrar, não encontrou ninguém
que lhe dirigisse a palavra e se prontificasse a colocá-la diante do sultão, ficando
então parada até que a audiência se encerrou, o sultão retornou ao palácio e cada
vivente foi cuidar da própria vida. Ao ver que o sultão se levantara do trono e
entrara em seu espaço íntimo,[36] refez o caminho de volta e entrou em casa. Ao
vê-la, e ver a travessa em suas mãos, ¢Alå’udd∑n percebeu que talvez lhe
tivesse sucedido algum incidente, e não dirigiu nenhuma pergunta à mãe,
esperando-a entrar, largar a travessa e lhe relatar o sucedido, o que afinal ela fez
e finalizou dizendo: “Graças a Deus, meu filho, que eu tive coragem e arranjei
hoje um lugar na audiência, e mesmo não tendo tido oportunidade de dirigir a
palavra ao sultão, amanhã se Deus quiser falarei com ele, pois hoje havia muita
gente que tampouco pôde falar com o sultão. Amanhã, meu filho, fique
tranquilo, pois eu hei de falar com ele por você, e deixe as coisas acontecerem”.
Ao ouvir tais palavras, ¢Alå’udd∑n ficou extremamente feliz e resolveu adotar a
paciência, apesar de aguardar a resposta hora a hora, tamanha era a sua paixão e
ânsia pela jovem dama Badrulbudœr; dormiram naquela noite e quando
amanheceu a mãe de ¢Alå’udd∑n levantou-se e foi, munida da travessa, até o
salão de audiências do sultão, mas, topando com ele fechado, indagou os
passantes, deles ouvindo como resposta que o sultão, de hábito, não concedia
audiências senão três vezes por semana, e por isso foi obrigada a voltar para
casa. Passou a ir diariamente ao salão de audiências: quando estava aberto ela
ficava parada ali em frente até que a sessão se encerrasse ou então o encontrava
fechado. Ficou nessa situação por uma semana, e em toda sessão o sultão via
aquela mulher. Quando foi o último dia, finalmente, ela se postou diante da
sessão, conforme o hábito, até que se encerrasse, sem ganhar coragem de entrar
ou falar algo. Nesse dia, enquanto retornava para o interior do palácio, o sultão
voltou-se para o grão-vizir, que então o acompanhava, e lhe perguntou: “Faz seis
ou sete dias, vizir, que em toda audiência eu vejo aquela velha vir aqui, sempre
carregando alguma coisa sob o manto. Por acaso você tem alguma informação a
respeito dela e de sua pretensão, vizir?”. O vizir respondeu: “Meu amo sultão, as
mulheres têm pouco juízo, e talvez essa daí tenha vindo reclamar do marido ou
de algum parente”. Insatisfeito com a resposta do seu grão-vizir, o sultão
ordenou-lhe que a mulher fosse conduzida à sua presença se voltasse outra vez, e
imediatamente o vizir colocou a mão na cabeça e disse: “Ouço e obedeço, meu
amo sultão!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

547ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a mãe de ¢Alå’udd∑n adquirira o hábito
de se dirigir diariamente ao salão de audiências do sultão e ali se postar de pé no
decorrer das audiências e, muito embora a coitada ficasse bem cansada, ela tudo
suportava por seu filho ¢Alå’udd∑n, desdenhando o próprio cansaço. Certo dia,
tendo chegado ao salão conforme o hábito, postou-se em pé diante do sultão, que
ao vê-la chamou o vizir e lhe disse: “Aquela é a mulher sobre a qual eu lhe falei
ontem; traga-a à minha presença para eu ver qual a sua demanda e atendê-la”, e
então o vizir foi lá e imediatamente colocou a mãe de ¢Alå’udd∑n na frente do
sultão. Ao se ver ali, a mulher começou a rogar por ele e a desejar-lhe força,
permanência e prosperidade duradoura, beijando o chão diante dele. O sultão lhe
disse: “Mulher, já faz alguns dias que eu a vejo vir até este lugar e ficar sem falar
nada. Conte-me se você tem alguma necessidade para que eu a satisfaça”. A mãe
de ¢Alå’udd∑n tornou a beijar o chão, rogou pelo sultão e lhe disse: “Sim, claro,
por vida sua e cabeça, ó rei do tempo, que eu tenho uma necessidade, mas antes
de tudo dê-me garantia de vida para que eu possa expô-la aos ouvidos de nosso
amo o sultão, pois talvez Sua Excelência considere estranho o meu pedido”. A
fim de entender qual era o pedido da mulher, e sendo por natureza muito
tolerante, o sultão lhe deu garantia de vida, ordenou imediatamente que se
retirassem todos os presentes, restando no recinto apenas ele e o grão-vizir, e
disse voltando-se para a mulher: “Fale qual é o seu pedido, e conte com a
garantia de vida de Deus altíssimo”. Ela disse: “Ó rei do tempo, eu também
quero o seu perdão”, e ele respondeu: “Que Deus a perdoe”. Então ela disse:
“Nosso amo o sultão, eu tenho um filho chamado ¢Alå’udd∑n que certo dia
ouviu o arauto apregoando que ninguém abrisse sua loja nem aparecesse nas ruas
da cidade porque a jovem dama Badrulbudœr, filha do nosso amo o sultão, se
dirigia ao banho público. Ao ouvir isso, meu filho ¢Alå’udd∑n quis vê-la e se
escondeu num local através do qual podia fazê-lo muito bem, e isso atrás da
porta do banho público. Quando ela chegou, ele a viu, contemplou-a bem, mais
do que o desejável, e desde esse momento até agora, ó rei do tempo, perdeu o
gosto de viver e me pediu para pedir a Sua Excelência que a case com ele. Não
consegui tirar essa ideia de sua cabeça porque o amor por ela se assenhoreou do
seu coração, a tal ponto que ele me disse: ‘Saiba, mãezinha, que se eu não
conseguir o meu pedido sem dúvida estarei morto’, e por isso eu rogo a Sua
Excelência que seja tolerante, perdoe a ousadia, minha e de meu filho, e não nos
leve a mal por isso”. Ao ouvir a história da mulher, e tendo em vista a sua
tolerância, o rei se pôs a rir e lhe perguntou: “Que é que você traz aí? O que é
essa trouxa?”. A mãe de ¢Alå’udd∑n, notando que o rei não se encolerizara com
suas palavras e sim rira, abriu imediatamente o lenço e lhe ofereceu a travessa
com as pedras preciosas. O sultão pôde então ver bem, quando ela ergueu o
lenço, que todo o salão se iluminou como se por lustres e candelabros, ficando
estupefato e boquiaberto com o brilho intenso das pedras preciosas, cuja
magnificência, grandeza e beleza pôs-se a admirar.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

548ª
noite
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão, ao ver as pedras preciosas, pôs-
se a admirá-las e a dizer: “Nunca eu tinha visto nada igual a estas pedras
preciosas, com esse brilho, esse tamanho e essa beleza. Não acredito que exista
em meu tesouro uma só que lhes equivalha!”, e, voltando-se para o vizir,
perguntou-lhe: “O que me diz, vizir? Por acaso você já viu na vida algo
semelhante a estas magníficas pedras preciosas?”. O vizir respondeu: “Nunca vi,
meu amo o sultão, nem acredito que exista no tesouro do meu senhor o rei algo
semelhante à menor delas!”. O rei perguntou: “Alguém que me dá um presente
desses merece ou não ser o noivo da minha filha Badrulbudœr? Pelo que estou
vendo, ninguém é mais merecedor do que ele!”. Ao ouvir as palavras do sultão,
o vizir ficou tão severamente aborrecido que a sua língua se travou, pois o rei lhe
prometera que casaria a filha com o seu filho. Passados alguns instantes, ele
enfim respondeu: “Ó rei do tempo, seja Sua Excelência indulgente comigo, pois
me prometeu que a jovem dama Badrulbudœr seria do meu filho, e a indulgência
impõe a sua Altíssima Senhoria um prazo de três meses, após os quais se Deus
quiser o presente do meu filho será bem mais grandioso do que esse”. O rei,
mesmo sabendo que essa era uma coisa que nem o vizir nem o rei mais poderoso
conseguiriam alcançar, concedeu-lhe gentilmente os três meses, conforme
pedira, e virando-se para a velha mãe de ¢Alå’udd∑n disse-lhe: “Vá ao seu filho
e diga-lhe que eu lhe dou a palavra de que a minha filha terá o seu nome, mas é
necessário que eu regularize a situação e os bens dela, o que bem merece um
prazo de três meses”. Com a resposta, a mãe de ¢Alå’udd∑n agradeceu ao
sultão, rogou por ele, saiu e se dirigiu a toda pressa para casa, planando de
alegria. Quando chegou e entrou, o seu filho ¢Alå’udd∑n, notando-lhe o rosto
sorridente, preparou-se para a boa nova, sobretudo porque ela voltara
rapidamente, sem demora nem travessa, ao contrário dos outros dias, e
perguntou: “Queira Deus que você traga boas novas, que as pedras preciosas e
seu alto valor tenham surtido efeito, que o sultão a tenha recebido, sido
indulgente com você e ouvido o seu pedido!”. Então a mãe lhe relatou tudo,
como o sultão a recebera e se admirara com a grandiosidade e magnificência das
pedras, bem como o vizir, e como lhe prometera que “a filha estaria no seu
nome, mas, meu filho, o vizir lhe cochichou alguma coisa antes da promessa, e
depois dessas palavras secretas do vizir ele me prometeu o casamento para daqui
a três meses. Comecei a temer que o vizir tenha preparado algo ruim para alterar
as disposições do rei”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
549ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ao ouvir de sua mãe que o sultão lhe
prometera [a mão da filha] para dali a três meses, a mente de ¢Alå’udd∑n se
desanuviou e, muito contente, ele disse: “Bom, o sultão prometeu para daqui a
três meses… Sim, é um tempo longo, mas de qualquer modo a minha alegria é
enorme”, e agradeceu à mãe, valorizou o bem que ela lhe fizera ao custo de
tantas fadigas e disse: “Por Deus, mamãe, agora é como se eu tivesse estado num
túmulo e você me resgatasse. Graças a Deus altíssimo que agora eu tenho certeza
de que neste mundo não há ninguém mais rico nem mais feliz que eu”. E pôs-se
a esperar, até que, tendo se passado dois dos três meses, a mãe de ¢Alå’udd∑n
saiu certo dia à tarde para o mercado a fim de comprar óleo mas encontrou as
lojas todas fechadas, a cidade toda enfeitada, as pessoas com velas e flores nas
janelas, e avistou guardas, soldados e oficiais nos seus cavalos em procissão,
archotes e candelabros acesos; tomada pelo espanto com tanta maravilha e
ornamento, aproximou-se da loja ali aberta de um azeiteiro, comprou óleo e lhe
perguntou: “Por vida sua, tio, conte-me o que ocorre hoje na cidade que faz o
povo colocar esses adornos, com os mercados e casas enfeitadas, e os soldados
montados!”. O mercador respondeu: “Suponho que você seja estrangeira,
mulher! É de outra cidade?”. Ela respondeu: “Não, sou desta cidade”. Ele disse:
“É desta cidade e não tem notícia de que o filho do grão-vizir nesta noite
consumará o casamento com a jovem dama Badrulbudœr, filha do sultão? Ele
agora está no banho público, e estes oficiais e soldados estão em séquito,
parados, esperando-o sair do banho público para acompanhá-lo até o palácio, a
fim de se juntar à filha do sultão”. Ao ouvir tais palavras, a mãe de ¢Alå’udd∑n
ficou muito aflita e cheia de dúvidas na cabeça: de que maneira informar o filho
desta notícia infeliz, já que o pobre coitado estava esperando hora a hora que se
passassem os três meses? No mesmo instante ela retornou para casa, e ao chegar
foi logo ter com o filho, a quem disse: “Filho, a minha intenção é informá-lo de
uma notícia, mas a sua aflição será dificultosa para mim”. Ele respondeu: “Diga
qual é essa notícia”. Ela disse: “O sultão traiu a promessa de lhe dar a mão da
filha, a jovem dama Badrulbudœr. Nesta noite, quem irá consumar o casamento
com ela é o filho do vizir. Desde o começo, meu filho, eu pensei que o vizir
poderia alterar as disposições do sultão, pois eu já contei a você que ele tinha
cochichado algo na minha frente”. ¢Alå’udd∑n perguntou à mãe: “Como você
soube disso, que o filho do vizir vai consumar esta noite o casamento com a
jovem dama Badrulbudœr, filha do sultão?”, e a mãe então o informou de tudo
quanto vira na cidade, os enfeites quando foi comprar óleo, e como os oficiais e
os notáveis do governo estavam em séquito aguardando o filho do vizir sair do
banho público, e essa noite seria a consumação. Ao ouvir aquilo, ¢Alå’udd∑n
foi tomado de febre devido à aflição, mas logo se lembrou da lâmpada e,
contente, disse à mãe: “Por vida sua, mamãe, acredito que o filho do vizir não irá
regozijar-se com o casamento, ao contrário do que você acredita. Mas agora
deixemos de lado essa história e vá servir a janta para a gente comer e depois,
quando eu entrar no meu quarto daqui a pouco, lá estará o alívio”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

550ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que após o jantar ¢Alå’udd∑n entrou no
quarto, trancou a porta, pegou a lâmpada, esfregou-a e imediatamente surgiu-lhe
um escravo que disse: “Peça o que quiser, pois sou seu escravo e escravo de
quem possui a lâmpada, eu e todos os escravos da lâmpada”. ¢Alå’udd∑n lhe
disse: “Ouça, eu pedi ao sultão para me casar com a sua filha, e ele me prometeu
o casamento para três meses, mas não manteve a promessa; ao contrário, deu-a
ao filho do vizir, que nesta noite tem o propósito de consumar o casamento. Eu
lhe ordeno, se você for um escravo fiel à lâmpada, que nesta noite, quando vir a
noiva e o noivo[37] se deitando juntos, carregue a ambos, em cima do próprio
colchão, até este lugar. Isso é o que lhe peço”, e o gênio respondeu: “Ouço e
obedeço. Se você precisar de algum outro serviço além desse, ordene-me tudo
quanto quiser”. Disse ¢Alå’udd∑n: “Não tenho mais nada além do que já pedi”.
O escravo desapareceu e ¢Alå’udd∑n voltou para continuar o jantar com a mãe.
Quando chegou a hora em que ele sabia que o escravo chegaria, ¢Alå’udd∑n
entrou no quarto, e dali a pouco eis que o escravo surgia com os dois noivos em
seu colchão. Imensamente feliz com aquela visão, ¢Alå’udd∑n ordenou ao
escravo: “Suma daqui com esse traste e faça-o dormir no banheiro”, e antes de
sair o gênio deu no filho do vizir um assoprão que o paralisou, deixando-o em
situação lastimável. Em seguida, o escravo voltou até ¢Alå’udd∑n e lhe
perguntou: “Acaso você precisa de mais alguma coisa?”. ¢Alå’udd∑n
respondeu: “Volte pela manhã a fim de levá-los de volta para o lugar deles”. O
gênio respondeu: “Ouço e obedeço” e desapareceu. ¢Alå’udd∑n, que mal
acreditava que aquilo daria certo, olhou para a jovem dama Badrulbudœr, agora
em sua casa, e malgrado o seu inflamado amor por ela, já havia tempos, manteve
o decoro e lhe disse: “Ó senhora das beldades, não pense que eu a trouxe até
aqui a fim de lhe violar a dignidade — longe disso! —, mas sim para não
permitir que outro se deleite com você, pois seu pai, o sultão, me deu a palavra
de que a casaria comigo. Esteja em segurança e conforto”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

551ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a jovem dama Badrulbudœr, ao se ver
naquela miserável casa escura, e ouvir as palavras de ¢Alå’udd∑n, foi tomada de
medo e terror, sendo tamanho o seu transtorno que nem conseguiu dar resposta
ao rapaz, o qual logo em seguida tirou as roupas, colocou a espada entre si e a
jovem e dormiu ao seu lado no colchão, sem tentar nenhuma aleivosia: só o que
ele pretendia era impedi-la de consumar o casamento com o filho do vizir;
apesar disso, a jovem dama Badrulbudœr passou a mais desgraçada das noites,
pois nunca vira nada pior em toda a sua vida; já o filho do vizir, que dormiu no
banheiro, não conseguia sequer se movimentar tamanho o medo que o invadira
por causa daquele escravo. Quando amanheceu, sem que ¢Alå’udd∑n esfregasse
a lâmpada, o escravo apareceu na sua frente e disse: “Se quiser me dar uma
ordem para cumprir, meu senhor, eu ouço e obedeço”. ¢Alå’udd∑n então lhe
disse: “Vá e carregue o noivo e a noiva para o lugar deles”, e num piscar de
olhos o escravo fez o que lhe ordenou ¢Alå’udd∑n: pegou o filho do vizir,
juntamente com a jovem dama Badrulbudœr, carregou-os e depositou-os em seu
lugar no palácio, tal como estavam antes, sem que ninguém visse. Mas ambos
morreram de medo quando se viram carregados de um lugar a outro, e mal o
escravo os depositou ali e saiu, eis que o sultão veio visitar a filha para ver como
estava. Ao ouvir a porta se abrindo, o filho do vizir, sabedor de que ninguém
senão o sultão poderia entrar ali, imediatamente se ergueu do colchão — o que
lhe foi deveras dificultoso, pois ele preferia antes se aquecer um pouco, dado que
saíra havia pouco tempo do banheiro — e vestiu as roupas.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

552ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão entrou no quarto de sua filha, a
jovem dama Badrulbudœr, beijou-a entre os olhos, deu-lhe bom dia e a indagou
sobre o noivo — estava contente com ele? Sem lhe dar nenhuma resposta, a
jovem lançou um olhar colérico ao pai, que lhe fez seguidamente várias
perguntas, enquanto ela se mantinha calada, sem responder uma única palavra.
Então o sultão tomou o caminho de volta, saiu do quarto e foi até a rainha, a
quem informou do sucedido entre ele e a jovem dama Badrulbudœr, ao que a
rainha, a fim de evitar que o sultão se irritasse com a jovem, respondeu: “Ó rei
do tempo, é este o hábito da maioria das noivas, que no dia do casamento ficam
encabuladas e meio dengosas; não a leve a mal, que daqui a alguns dias ela
voltará a ser como era e falará com todo mundo. Por ora, rei do tempo, a
vergonha a impede de falar. Seja como for, eu quero falar com ela e vê-la” e,
levantando-se, vestiu-se e foi até a filha, a jovem dama Badrulbudœr, da qual se
aproximou, dando bom dia e beijando-a entre os olhos, mas a jovem nada
respondia, o que fez a rainha pensar: “É imperioso que lhe tenha sucedido algo
muito estranho para estar aborrecida desse jeito!”. E perguntou-lhe enfim: “Qual
é o motivo desse seu estado? Conte-me o que aconteceu, pois eu vim aqui lhe
desejar bom dia e você nem me responde!”. Então a jovem dama Badrulbudœr
levantou a cabeça e disse: “Não me leve a mal, mamãe, era minha obrigação
recebê-la com toda pompa e circunstância, pois você me honra ao vir até mim,
mas eu lhe rogo que ouça o motivo deste meu estado e veja como esta noite que
passei foi a pior das noites! Mal nos havíamos deitado, mamãe, e eis que alguém
nunca antes visto por nenhum de nós carregou o colchão e nos transportou a um
local escuro, sujo, miserável…”, e a jovem dama Badrulbudœr informou à sua
mãe, a rainha, tudo quanto lhe sucedera naquela noite, e como lhe levaram o
noivo, deixando-a sozinha, e como pouco depois veio até ela um outro jovem
que dormiu no lugar do seu noivo e colocou uma espada entre ambos, e como
“pela manhã retornou aquele que nos levara, trazendo-nos de volta para cá, a
este lugar, e nos deixando logo que nos fez chegar; ato contínuo, papai, o sultão,
entrou, bem na horinha em que chegamos, de modo que eu não tinha coração
nem língua para responder a papai, o sultão, tamanhos foram o medo e o pavor
que me atingiram. Como talvez ele tenha se chateado com o que fiz, eu lhe rogo,
mamãe, que o avise do motivo deste meu estado, para ele não me levar a mal por
não haver respondido, nem me censurar, mas sim me perdoar”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
553ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ao ouvir as palavras de sua filha
Badrulbudœr, a rainha lhe disse: “Minha filha, muito cuidado para não falar estas
coisas na frente de ninguém, caso contrário dirão que a filha do sultão perdeu a
razão! Você fez muito bem de não contar nada disso ao seu pai. Acautele-se,
minha filha, acautele-se muitíssimo de informá-lo a respeito disso!”. A jovem
dama Badrulbudœr disse: “Mamãe, mas eu lhe falo com a razão! Eu não a perdi,
ao contrário, foi isso mesmo que me aconteceu! Se não estiver acreditando em
mim, pergunte ao meu noivo!”. A rainha disse: “Vamos, filha, agora tire essas
coisas imaginárias do pensamento, vista as roupas e veja a festa que por seu
casamento se faz na cidade, e as comemorações em todo o reino, por você! Ouça
os tambores, as cantorias, e veja esses ornamentos, tudo em sua homenagem,
minha filha!”, e imediatamente chamou as camareiras, que vestiram a jovem
dama Badrulbudœr e a arrumaram. A rainha se levantou, foi até o sultão,
informou-o de que a filha dormira mal e tivera pesadelos nessa noite e disse-lhe:
“Não a leve a mal por não lhe haver respondido”. Em sigilo, mandou chamar o
filho do vizir e o indagou sobre a questão — seriam ou não verdadeiras as
palavras da jovem dama Badrulbudœr? Então o filho do vizir, temeroso de
perder a noiva, deixando-a escapar pelas mãos, respondeu: “Minha senhora, não
tenho notícia do que você está dizendo”, e a rainha se certificou de que a filha
imaginara coisas e tivera um pesadelo. As festas continuaram no decorrer
daquele dia, com muita gente, cantores e toda espécie de instrumento musical
tocando. A rainha, o vizir e seu filho se esforçaram deveras para a realização da
festa, a fim de que a jovem dama Badrulbudœr se alegrasse e se dissipassem as
suas preocupações, não se esquecendo de fazer na sua frente tudo quanto
pudesse estimular a alegria, qualquer coisa para ela deixar de lado o que lhe
corroía a mente e espairecer, mas nada disso a afetava; ao contrário, mantinha-se
silenciosa, pensativa, perplexa com o que lhe sucedera naquela noite. É verdade,
sim, que ao filho do vizir sucederam coisas piores, uma vez que ele dormira no
banheiro, mas o jovem desmentiu o fato e afastou tal desgraça do pensamento
por medo de perder a noiva e a honra, sobretudo porque a maioria das pessoas
passara a invejá-lo pela sorte, que lhe aumentava a honra, e também pela
magnífica beleza da jovem dama Badrulbudœr, e sua graça insuperável. Naquele
dia, ¢Alå’udd∑n saiu para observar as comemorações que se realizavam na
cidade e no palácio, pondo-se então a rir, sobretudo quando ouviu as pessoas
falando sobre a honra obtida pelo filho do vizir, sobre a sua boa sorte e sobre o
fato de que se tornara parente do sultão, bem como sobre a enorme festa que se
realizava em seu noivado e casamento. ¢Alå’udd∑n pensou de si para si: “Vocês
só o invejam por não saberem, pobres coitados, o que sucedeu a ele nesta noite”.
Quando anoiteceu e chegou a hora de dormir, ¢Alå’udd∑n entrou em seu quarto,
esfregou a lâmpada e de imediato dela saiu o escravo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

554ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, quando o escravo surgiu na sua frente,
¢Alå’udd∑n lhe ordenou que trouxesse a filha do sultão e o seu noivo, tal como
na noite anterior, antes que o filho do vizir a desvirginasse. Então o escravo
imediatamente, sem mais delongas, desapareceu uns instantes, e quando era a
hora de dormir veio com o colchão sobre o qual estavam Badrulbudœr e o filho
do vizir, com quem se fez o mesmo que na noite anterior: o escravo levou-o ao
banheiro e ali o fez dormir, deixando-o paralisado de tanto pavor e medo,
enquanto ¢Alå’udd∑n colocou a espada entre si e a jovem dama Badrulbudœr e
dormiu. Quando amanheceu, o escravo surgiu e devolveu os dois ao lugar onde
estavam. ¢Alå’udd∑n estava cheio de alegria com o filho do vizir. Ao acordar de
manhã, o sultão quis ir até a filha Badrulbudœr a fim de verificar se ela faria
com ele a mesma coisa do dia anterior e, despertado do seu sono, levantou-se,
vestiu-se, foi até os aposentos da filha e abriu a porta; o filho do vizir
imediatamente se levantou, desceu da cama e começou a vestir-se, as costelas
estralando de frio, pois o sultão entrou mal eles haviam sido devolvidos pelo
escravo. Assim, o sultão entrou, foi até a sua filha, a jovem dama Badrulbudœr,
que ainda estava na cama, ergueu o mosquiteiro bordado, deu-lhe bom dia,
beijou-a entre os olhos e lhe indagou a situação, mas a viu de cara fechada, sem
responder nada, a lançar-lhe, pelo contrário, um olhar encolerizado, numa
situação de dar pena. Irritado com ela, que não lhe respondia, e imaginando que
algo ocorrera à filha, desembainhou a espada e lhe disse: “O que aconteceu? Ou
você me diz o que foi ou eu lhe tiro a vida agora mesmo! É assim que você me
honra e dignifica? Falo com você e não me responde?”. Ao ver o pai tão irritado
que desembainhara a espada, a jovem dama Badrulbudœr perdeu o medo, ergueu
a cabeça e disse: “Meu prezado pai, não se irrite comigo nem se apresse em sua
raiva, pois tenho justificativas para agir como você está vendo. Ouça o que
aconteceu, e o lógico é que, ao ouvir o relato do que me ocorreu nestas duas
noites, me desculpe, e Sua Excelência vai se abrandar de compaixão, conforme
me habituou o seu amor”; e, após contar ao pai tudo quanto lhe sucedera, a
jovem dama Badrulbudœr lhe disse: “Se não acredita em mim, papai, pergunte
ao meu noivo e ele contará tudo a Sua Excelência, ainda que eu não saiba o que
fazem com ele quando o tiram do meu lado, nem onde[38] o põem”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

555ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras da filha, o sultão foi
tomado pela tristeza e seus olhos ficaram marejados de lágrimas; colocou a
espada na bainha, aproximou-se, beijou-a e lhe disse: “Filha, por que você não
me informou disso na noite passada? Eu teria podido evitar que esse sofrimento
a atingisse, bem como esse medo pelo qual passou à noite. Sem problemas,
porém: levante-se e tire esse pensamento da cabeça, pois nesta noite eu colocarei
guardas para protegê-la, e assim você não será mais atingida pelo que já a
atingiu”, e retornou para o seu palácio, ordenando imediatamente que
convocassem o vizir, o qual ao chegar e se postar na sua frente foi indagado:
“Como você está vendo esse caso, ó vizir? Talvez o seu filho o tenha informado
sobre o ocorrido com ele e minha filha”. O vizir respondeu: “Ó rei do tempo,
não vi o meu filho ontem nem hoje”, e então o sultão, após lhe relatar tudo
quanto sua filha, a jovem dama Badrulbudœr, contara, disse: “Agora o meu
desejo é que você busque informações com o seu filho sobre a verdade nesse
caso, pois é possível que a minha filha, devido ao medo, não saiba o que lhe
sucedeu, embora eu julgue que as palavras dela são inteiramente verdadeiras”. O
vizir se retirou, mandou chamar o filho e o indagou se era verdade ou não tudo
quanto lhe contara o sultão. O rapaz respondeu: “Papai, vizir, a jovem dama
Badrulbudœr está acima das mentiras, pois tudo quanto ela falou é verdade:
passamos essas duas noites da pior maneira possível, em vez de serem noites de
bonança e alegria. O que aconteceu é ainda mais terrível, pois eu, ao invés de
dormir com a minha noiva na cama, dormi no banheiro de um lugar escuro,
aterrorizante, fedorento e amaldiçoado, e minhas costelas encolheram devido ao
frio” — enfim, o rapaz o informou de tudo quanto lhe sucedera, após o que
concluiu: “Querido pai, eu lhe suplico que converse com o sultão para que ele
me livre desse casamento. Sim, é uma enorme honra para mim ser genro do
sultão, especialmente porque o amor pela jovem dama Badrulbudœr se apoderou
do meu coração, mas já não tenho forças[39] para suportar uma só noite igual às
duas que se passaram”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

556ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras do filho, o vizir se
entristeceu e afligiu bastante, pois ele queria engrandecer e magnificar o filho
tornando-o genro do sultão. Pensou e ficou em dúvidas quanto a esse assunto,
sobre qual seria a artimanha a respeito, visto que lhe seria muito doloroso anular
o casamento, justo ele que tanto forçara a convivência para conseguir algo assim.
Disse então ao filho: “Tenha paciência, meu filho, para que nós próprios vejamos
nesta noite; colocaremos guardas para vigiá-los. Não perca a chance
proporcionada por essa imensa honra, que ninguém mais teve além de você”, e o
deixou, retornando ao sultão, a quem informou que o relato da jovem dama
Badrulbudœr era verdadeiro. O sultão disse: “Já que a situação está nesse pé, não
precisamos de casamento”, e ordenou que imediatamente fossem suspensas as
festividades e se revogasse o casamento, deixando todo o povo da cidade
espantado com essa estranha decisão, sobretudo quando viram o vizir e o seu
filho saindo do palácio numa condição lastimável, em meio à aflição e forte
irritação. Todos se puseram a questionar o que teria acontecido e por qual motivo
se revogara o noivado e se desfizera o casamento, mas ninguém dispunha de
notícia alguma, com exceção do causador de tudo,[40] ¢Alå’udd∑n, que ria às
escondidas. O casamento foi anulado e o sultão e muito menos o vizir já nem se
lembravam da promessa feita à mãe de ¢Alå’udd∑n; ambos ignoravam de onde
aquilo tudo viera desabar sobre eles, e ¢Alå’udd∑n esperou até que se passassem
os três meses que o sultão lhe dera de prazo para casá-lo com sua filha, a jovem
dama Badrulbudœr, e quando o prazo se findou, sem mais delongas, ele enviou a
mãe ao sultão para exigir o cumprimento da promessa. A mulher foi até o
palácio e quando o sultão chegou e a viu parada na sua frente lembrou-se da
promessa feita — de que passados três meses casaria a filha com o filho dela —
e, voltando-se para o vizir, disse: “Vizir, aquela é a mulher que me presenteou
com as pedras preciosas, e a quem havíamos dado a palavra de que após três
meses [casaríamos a jovem dama Badrulbudœr com o filho dela]. Traga-a até
mim antes de qualquer outra coisa”. O vizir foi e colocou na frente do sultão a
mãe de ¢Alå’udd∑n, que ao entrar lhe fez os melhores votos e rogou por ele
desejando força e manutenção da prosperidade. O sultão lhe perguntou se ela
tinha alguma demanda, ao que ela respondeu: “Ó rei do tempo, os três meses que
você estabeleceu como prazo para casar o meu filho ¢Alå’udd∑n com a sua
filha, a jovem dama Badrulbudœr, já se passaram”. O rei embatucou com esse
pedido, sobretudo porque notara a pobre condição da mãe de ¢Alå’udd∑n, que
fazia parte das camadas mais baixas, embora o presente dado por ela fosse assaz
magnífico, de valor incalculável; voltou-se para o vizir e lhe disse: “Como você
administraria esse caso? Na verdade, eu lhe dei a minha palavra, mas parece
evidente que se trata de gente pobre, e não graúda”.[41]
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

557ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o vizir, morto de inveja e particularmente
triste pelo que ocorrera ao filho, pensou: “Como é que alguém como o filho
dessa aí se casaria com a filha do sultão, mas o meu filho não obtém essa
honra?”, e disse ao sultão: “Barrar esse estranho é uma questão fácil, meu
senhor, pois não é adequado a Sua Excelência dar a filha a um homem desses,
que ninguém sabe quem é”. O sultão perguntou: “De que maneira rechaçaremos
esse homem a quem dei a minha palavra? Não é a fala dos reis um argumento?”.
O vizir respondeu: “O melhor parecer, meu senhor, é que você lhe peça quarenta
travessas de ouro fundido puro cheias das mesmas pedras preciosas que ela lhe
trouxe outro dia, e quarenta escravas e escravos carregando as travessas”. O
sultão disse: “Por Deus, vizir, que você falou com correção, porquanto isso é
algo que ele não poderá fazer e assim nos livraremos dele com método”, e,
dirigindo a palavra à mãe de ¢Alå’udd∑n, disse: “Vá e diga ao seu filho que
mantenho a promessa que fiz. Porém, ele deve poder dar o dote da minha filha,
que é o seguinte: quero dele quarenta travessas de ouro puro, todas cheias das
mesmas pedras preciosas que você me trouxe, carregadas por quarenta escravas
acompanhadas por quarenta escravos a seu serviço. Se o seu filho tiver a
capacidade de conseguir isso, eu o casarei com a minha filha”. Então a mãe de
¢Alå’udd∑n voltou para casa balançando a cabeça e dizendo: “Onde o coitado
do meu filho vai arranjar tantas travessas e tantas pedras preciosas? Suponhamos
que, quanto às pedras e às travessas, ele possa retornar ao tesouro e extraí-las das
árvores, muito embora eu não creia que seja possível; admitindo, porém, que as
consiga, de onde conseguirá as escravas e os escravos?”. E assim a mãe de
¢Alå’udd∑n continuou falando sozinha até chegar à sua casa, onde ¢Alå’udd∑n
a aguardava. Assim que entrou, disse a ele: “Meu filho, eu não lhe disse para não
ficar achando que alcançaria a jovem dama Badrulbudœr? Isso é algo impossível
para gente como nós!”. Disse ¢Alå’udd∑n: “Conte-me toda a história”, e ela
respondeu: “O sultão me recebeu com toda a dignidade, meu filho, conforme o
seu hábito. Parece que as intenções dele para conosco são boas, mas o seu
maldito inimigo o vizir — tendo eu transmitido ao sultão as suas palavras, tal
como você disse, de que o prazo que ele prometeu se esgotou, e também lhe
solicitado ‘que Sua Excelência determine o casamento de sua filha, a jovem
dama Badrulbudœr, com meu filho ¢Alå’udd∑n’ —, o maldito vizir cochichou
algo ao sultão, quando este se voltou para ele, e depois disso…”, e então a mãe
de ¢Alå’udd∑n informou o filho do que o sultão pedira, concluindo: “Filho, ele
quer agora uma resposta de você, mas eu acho que nós não temos como
atender”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

558ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras da mãe,
¢Alå’udd∑n riu e disse: “Você está dizendo, mamãe, que não temos como
atender por considerar essa questão muito difícil! Bom, por enquanto faça o
favorzinho de trazer algo para comermos, e depois do almoço, se assim quiser o
misericordioso, você verá a resposta ao pedido. Assim como você, o sultão
também acreditou estar pedindo algo muito grandioso, a fim de me afastar da
jovem dama Badrulbudœr, mas o caso é que ele pediu algo bem menor do que eu
esperava. Mas por ora vá comprar algo para comermos e me deixe preparar-lhe a
resposta”. Então a mãe se levantou e foi comprar no mercado o necessário para o
almoço, e enquanto isso ¢Alå’udd∑n entrou em seu quarto, pegou a lâmpada,
esfregou-a e imediatamente surgiu o escravo, que perguntou: “Peça, meu senhor,
o que bem quiser!”, e ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Pedi em casamento a filha do
sultão, e ele por sua vez pediu de mim quarenta travessas de ouro puro, cada
uma com o peso de dez arráteis, e que estejam cheias das mesmas pedras
preciosas existentes no pomar do tesouro, e que essas quarenta travessas sejam
carregadas por quarenta escravas, cada uma delas acompanhada por um servo,
no total de quarenta servos. Quero que você me prepare tudo isso”. O gênio
respondeu: “Ouço e obedeço, meu senhor”, e sumiu por alguns momentos, ao
cabo dos quais retornou com quarenta escravas, cada qual acompanhada por um
servo, e na cabeça de cada escrava uma travessa de ouro puro apinhada de
pedras preciosas; colocou tudo diante de ¢Alå’udd∑n e disse: “Isto é o que você
pediu. Informe-me se estiver precisando de algo ou de algum serviço mais”.
¢Alå’udd∑n respondeu: “Não preciso de mais nada, mas quando precisar vou
chamá-lo e informá-lo”, e o gênio desapareceu. Dali a pouco a mãe de
¢Alå’udd∑n chegou, entrou em casa e, vendo aqueles escravos e escravas, ficou
estupefata e disse: “Tudo isso é da lâmpada? Que Deus a perpetue para o meu
filho!”. Antes que ela tirasse o manto, ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Mamãe, esta é a
hora certa! Antes que o sultão entre no seu palácio, no harém, leve-lhe esse
pedido, vá até lá agora mesmo para ele saber que eu fui capaz de atender o
pedido e mais além, e que está iludido com o vizir, pois ambos pensaram que
mostrariam a minha incapacidade”. Ato contínuo, ¢Alå’udd∑n abriu a porta da
casa, de lá tirando escravas e escravos aos pares, cada escrava com um escravo
ao lado, até que eles encheram o quarteirão. A mãe de ¢Alå’udd∑n caminhou na
frente deles, e todos no quarteirão pararam para assistir a esse cenário espantoso
e magnífico, contemplando a figura das escravas, sua beleza e graça, vestidas
com roupas tecidas a ouro e cravejadas de pedras preciosas, a vestimenta mais
barata no valor de milhares [de dinares]. Olhando para as travessas, notaram que
os brilhos que delas saíam encobriam a luz do sol; cada travessa estava coberta
por um tecido trançado com fios de ouro e igualmente cravejado de pedras
preciosas.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

559ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que os moradores do quarteirão e mais muita
gente pararam admirados com esse inusitado cenário, e então a mãe de
¢Alå’udd∑n se pôs em marcha, com as escravas atrás de si, bem como os
escravos, na mais completa organização e ordem; conforme avançavam, o povo
ia parando a fim de contemplar a beleza das escravas e louvar o criador todo-
poderoso, até que afinal a mãe de ¢Alå’udd∑n entrou com o grupo no palácio,
cenário esse que deixou admirados e boquiabertos os oficiais, secretários e
almocadéns, os quais em toda a vida jamais tinham visto algo semelhante, em
especial as escravas, todas aprisionadoras da razão de qualquer vivente, mesmo
sendo todos os secretários e almocadéns do sultão descendentes dos principais
do reino. O maior espanto se deu com as valiosas vestimentas que as cobriam, e
as travessas sobre as suas cabeças, nas quais mal podiam fixar a vista, tão
intenso era seu brilho e fulgor. Em seguida, os delegados entraram e informaram
ao sultão, que imediatamente ordenou que lhes franqueassem a entrada no salão
de audiências, e então a mãe de ¢Alå’udd∑n entrou, e quando todos já estavam
diante do sultão fizeram-lhe, em conjunto, os melhores votos com a maior
cortesia e respeito, desejaram-lhe força e prosperidade e, retirando as travessas
da cabeça, depuseram-nas diante dele e estacaram de braços cruzados, não sem
antes retirarem os tecidos que cobriam as travessas. O sultão ficou muitíssimo
espantado e pasmado com as indescritíveis beleza e graça das escravas, e sua
mente ficou estupefata ao observar as travessas de ouro tão cheias de pedras
preciosas que sequestravam a vista. Perplexo com tanta maravilha, o sultão se
quedou tal e qual um mudo, incapaz de falar o que quer que fosse, tamanha era a
sua estupefação, e mais pasmada ainda ficou a sua mente, pensando sobre como,
em tão pouco tempo, reunira-se tudo aquilo. Em seguida, ordenou que as
escravas, com as travessas, entrassem no palácio da jovem dama Badrulbudœr, e
então elas carregaram as travessas e entraram, após o que a mãe de ¢Alå’udd∑n
deu um passo adiante e disse ao sultão: “Meu senhor, nada disso é demasiado se
comparado com a grandiosa honra da jovem dama Badrulbudœr, que merece
muitas vezes mais”. Voltando-se para o vizir, o sultão perguntou: “O que me diz,
vizir, de uma riqueza como essa, [reunida] em tão curto espaço de tempo? Não
seria ele merecedor de ser genro do sultão, e que a filha do sultão seja sua
noiva?”. Então o vizir — claro que espantado com a grandiosidade dessa
riqueza, mais até que o sultão, porém morto de inveja, que crescia à medida que
ele ia constatando a satisfação do sultão com o dinheiro e o dote, mas
impossibilitado de se opor à verdade e dizer “não merece!” — elaborou uma
artimanha contra o sultão, a fim de impedi-lo de dar a ¢Alå’udd∑n a mão de sua
filha, a jovem dama Badrulbudœr, dizendo-lhe: “Meu senhor, os tesouros do
mundo todo não valem sequer uma unha da sua filha Badrulbudœr. Mas você,
Sua Senhoria, está considerando isso tudo grandioso para ela!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

560ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras do vizir, o sultão
percebeu que se deviam à inveja excessiva; voltando-se para a mãe de
¢Alå’udd∑n, disse-lhe: “Mulher, vá ao seu filho e diga-lhe que aceitei a oferta
dele e vou cumprir a minha promessa: minha filha será sua noiva e ele, meu
genro; diga-lhe que compareça aqui a fim de que eu o conheça, e de mim ele não
receberá senão toda a honraria e consideração; nesta noite se iniciará o noivado,
mas, como eu já lhe disse, deixe-o vir até mim, sem delongas”. A mãe de
¢Alå’udd∑n retornou para casa tão ligeira que nem os ventos a alcançavam,
tamanha era a sua pressa, a fim de dar a boa nova ao filho, planando de alegria
ao pensar que ele se tornaria genro do sultão. Já o sultão, após a saída da mulher,
ordenou que a audiência fosse encerrada e entrou nos aposentos da jovem dama
Badrulbudœr, ordenando que para ali conduzissem as escravas com as travessas,
a fim de que ambos as contemplassem juntos. Ao contemplar as pedras
preciosas, a jovem dama Badrulbudœr ficou pasmada e disse: “Não acredito que
exista, em todos os tesouros do mundo, nenhuma pedra semelhante a estas”.
Igualmente maravilhada com a beleza e formosura das escravas, a jovem
percebeu que tudo isso provinha do seu novo noivo, uma oferta para servi-la, e
ficou muito contente, malgrado a aflição e tristeza passadas com o noivo
anterior, o filho do vizir. Agora, muitíssimo contente à vista das pedras preciosas
e da beleza das escravas, ela se reconfortou, deixando muito feliz o seu pai, que
enfim a via afastar a aflição e tristeza e lhe perguntou: “Minha filha, jovem dama
Badrulbudœr, isso a agrada? Creio que o seu atual noivo é melhor que o filho do
vizir, e se Deus quiser, filha, você será muito feliz ao seu lado”. Isso foi o que
sucedeu com o sultão, caros ouvintes; quanto a ¢Alå’udd∑n, sua mãe entrou em
casa sorrindo de alegria, e ao vê-la em tal estado ele percebeu a boa nova e
perguntou: “A Deus louvores eternos! Completou-se o que eu buscava?”. Ela
respondeu: “Regozije-se com a boa nova, meu filho! Fique doce o seu coração e
tranquilo o seu olho,[42] pois você atingiu seu desejo e seu presente foi aceito
pelo sultão, ou seja, o dinheiro e o dote da jovem dama Badrulbudœr, que agora
é sua noiva. Nesta noite, meu filho, será o noivado de vocês e a sua visita a ela e
ao sultão, para que ele cumpra a palavra a mim dada e mostre você a todo
mundo, que você é o seu genro! Ele avisou que a visita será nesta noite, e me
disse: ‘Deixe o seu filho vir até mim para que eu o conheça e recepcione com
toda a dignidade e pompa’; e agora eis-me aqui, meu filho — terminou a minha
jornada, e o que resta é sua parte”. Então ¢Alå’udd∑n beijou a mão da mãe,
agradeceu-lhe e louvou o bem que ela lhe fizera; depois, entrou em seu quarto,
pegou a lâmpada, esfregou-a e eis que o escravo surgiu e lhe disse: “Às ordens!
Peça o que quiser”. Disse ¢Alå’udd∑n: “Desejo que você me leve a um banho
público que não tenha igual no mundo, e me prepare uma vestimenta própria dos
reis, muito valiosa e que nenhum rei tenha igual”. O gênio lhe disse: “Ouço e
obedeço”, e, carregando-o, levou-o a um banho público que nenhum rei ou
membro da dinastia de Kisrà[43] jamais vira igual, todo de mármore e ágata,
com imagens espantosas que sequestravam o olhar; vazio, nele havia um saguão
cravejado de pedras preciosas, as mais valiosas, e assim que ¢Alå’udd∑n ali
entrou veio cuidar dele um gênio de aparência agradável, que o lavou e esfregou
da melhor maneira.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

561ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, após se lavar e banhar, ¢Alå’udd∑n saiu
do banho público, foi ao saguão externo e verificou que suas roupas haviam sido
levadas e substituídas por uma vestimenta de reis das mais opulentas. Logo lhe
trouxeram bebidas e vinho[44] com âmbar, e após ele beber surgiu um grupo de
escravos que o vestiram com aqueles trajes opulentos, e ele se arrumou e
perfumou. Lembra-se do ¢Alå’udd∑n que você conheceu, filho de um pobre
alfaiate? Agora ninguém imaginaria senão que ele era filho do maior dos reis!
Exalçado seja aquele que modifica mas não se modifica![45] Em seguida, o
escravo-gênio surgiu, carregou-o e o depôs em casa, perguntando-lhe: “Precisa
de mais algo, senhor?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Sim, quero que você me traga
quarenta e oito serviçais, vinte e quatro para caminharem à minha frente e vinte
e quatro para caminharem atrás de mim, todos a cavalo, com trajes adequados e
armas, e que tudo quanto esteja sobre eles e seus cavalos seja bem valioso e sem
igual nos tesouros reais. Traga-me um cavalo que seja montaria digna da dinastia
de Kisrà, com equipamento de ouro cravejado de pedras preciosas; providencie
igualmente que cada um desses serviçais tenha quarenta e oito mil dinares, e,
como eu pretendo dirigir-me até o sultão agora, não demore, pois eu não posso ir
para lá sem essas coisas. Quero que você providencie ainda doze escravas de
beleza singular, vestidas com os trajes mais opulentos, para acompanharem
minha mãe até a moradia do sultão; cada uma dessas escravas deve estar usando
um traje adequado às mulheres dos reis”. O escravo respondeu: “Ouço e
obedeço”, sumiu uns instantes e num piscar de olhos trouxe consigo tudo quanto
lhe fora ordenado, conduzindo um cavalo que nem os árabes mais legítimos
tiveram igual, ajaezado com o mais opulento tecido bordado a ouro.
Imediatamente ¢Alå’udd∑n chamou a mãe, entregou-lhe as doze escravas e o
traje, para que ela o vestisse e acompanhasse as escravas até a casa do sultão.
Enviou ao sultão um dos serviçais trazidos pelo gênio, a fim de verificar se ele já
saíra do seu espaço íntimo ou não, e lá se foi o serviçal, mais rápido que um
relâmpago, e logo retornou dizendo: “Meu senhor, o sultão o espera”.
¢Alå’udd∑n montou, e também montaram os serviçais, à sua frente e atrás dele;
todos — exalçado seja quem os criou! — vestidos com os trajes da beleza e da
formosura, lançando ouro ao povo diante de seu senhor ¢Alå’udd∑n, cuja beleza
e formosura superava a deles, para não falar dos filhos dos reis: exalçado seja
aquele que dá e perdura! Tudo isso se devia às propriedades da espantosa
lâmpada, a qual dava a todos quantos a possuíam beleza, formosura, riqueza e
saberes. Já admirado com a generosidade de ¢Alå’udd∑n e sua exorbitante
prodigalidade, o povo ficou boquiaberto ao lhe notar a beleza, a formosura, a
educação e a pompa, pondo-se a louvar o criador por essa nobre aparência; todos
rogavam por ele e, malgrado soubessem tratar-se do filho de fulano, o alfaiate,
ninguém o invejava; ao contrário, todos diziam que ele merecia.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

562ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que todos ficaram pasmados com
¢Alå’udd∑n e sua generosidade e prodigalidade: durante o percurso para a casa
do sultão, enquanto lançava ouro, grandes e pequenos rogavam por ele até que
chegou ao palácio, onde os seus serviçais, tanto os que iam na frente como os
que iam atrás, continuaram lançando ouro ao povo. O sultão havia convocado os
principais do governo para informá-los de que dera a sua palavra e casaria a filha
com ¢Alå’udd∑n, ordenando-lhes que ficassem atentos para recebê-lo quando
chegasse; o sultão também convocou comandantes, vizires, secretários,
delegados provinciais e almocadéns, que estavam todos à espera de ¢Alå’udd∑n,
na porta do palácio. Quando ¢Alå’udd∑n chegou e fez menção de descavalgar
na entrada do palácio, um dos comandantes incumbidos dessa tarefa pelo sultão
aproximou-se e disse: “Meu senhor, a ordem é que entre montado em seu cavalo,
e somente descavalgue na porta do salão de audiências”. E caminharam todos
diante dele, que foi conduzido até a porta do salão, onde alguns membros da
escolta se aproximaram e contiveram a montaria, enquanto outros lhe estendiam
a mão para descer; comandantes e principais guiaram-no e introduziram-no no
salão, próximo do trono do sultão, que imediatamente se levantou e o abraçou,
impedindo-o de beijar o tapete; beijou-o, acomodou-o bem junto de si, à sua
direita, e ¢Alå’udd∑n procedeu da maneira exigida e apropriada aos reis,
pronunciando bons votos e rogos pelo sultão, e dizendo em seguida: “Meu amo,
sultão, a generosidade de Sua Excelência decidiu-se a permitir que eu me case
com sua filha, a jovem dama Badrulbudœr, muito embora eu não seja merecedor
de tão grande benesse, pois estou dentre os seus servos mais desprezíveis. Peço a
Deus que o mantenha e prolongue os seus dias, e na verdade, ó rei, minha língua
é incapaz de agradecer-lhe a enormidade ilimitada dessas benesses com as quais
você gentilmente me agraciou. Rogo a Sua Excelência que agora me agracie
com um terreno adequado para que nele eu construa um palácio digno da jovem
dama Badrulbudœr”. O sultão, estupefato ao ver ¢Alå’udd∑n com aquela
vestimenta real, olhou para ele, contemplou-lhe a beleza e formosura, observou
os criados a seu serviço, a beleza e formosura que neles havia, e seu espanto
aumentou ante a chegada da mãe de ¢Alå’udd∑n vestida com valiosas e
opulentas roupas, parecendo uma rainha; viu também as doze escravas a serviço
dela, de braços cruzados à sua frente com toda a cortesia e respeito; o sultão
tampouco deixou de notar a eloquência de ¢Alå’udd∑n, a sutileza de suas
palavras, e ficou assombrado com tudo isso, bem como os demais presentes no
salão; o fogo lavrava no coração do vizir, tamanha era a inveja que sentia de
¢Alå’udd∑n, até o ponto de quase levá-lo à morte. Após ouvir os rogos de
¢Alå’udd∑n e ver a sua magnificência, humildade e eloquência, o sultão
estreitou-o ao peito, beijou-o e lhe disse: “Estou triste, meu filho, de não ter tido
a sorte de conhecê-lo senão hoje”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

563ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão, ao ver ¢Alå’udd∑n naquela
forma, ficou muitíssimo contente com ele e ordenou imediatamente que se
começasse a música e as bandas tocassem enquanto ele conduzia ¢Alå’udd∑n
para dentro do palácio, onde se servia o jantar e os criados estendiam a mesa. O
sultão sentou-se e acomodou ¢Alå’udd∑n a seu lado direito, sentando-se
igualmente todos os vizires, principais do reino e nobres, cada qual em sua
posição. As bandas começaram a tocar e se iniciou um magnífico festejo no
palácio. O sultão pôs-se a conversar afavelmente com ¢Alå’udd∑n, dele
recebendo respostas muitíssimo educadas e eloquentes, como se em palácios
reais se houvesse criado, e com reis convivido. Quanto mais a conversação entre
ambos se prolongava, tanto mais aumentava a alegria do sultão com as boas
respostas e a suave eloquência do rapaz. Após terem comido e bebido, o
banquete foi retirado e o sultão ordenou a vinda de juízes e testemunhas, que
compareceram, fixaram o contrato de casamento entre ¢Alå’udd∑n e a jovem
dama Badrulbudœr e o escreveram, após o que o rapaz fez menção de sair, mas o
sultão o conteve e lhe disse: “Aonde você vai, meu filho? As comemorações
estão em andamento, o noivado está em curso, o contrato foi fixado e escrito!”.
Disse ¢Alå’udd∑n: “Meu senhor, rei, eu pretendo construir para a jovem dama
Badrulbudœr um palácio que seja digno dela e de sua posição, pois não me é
possível consumar o casamento sem isso. Se Deus quiser, a construção do
palácio se ultimará mediante um portentoso esforço deste seu servidor e sob as
vistas de Sua Excelência no prazo mais curto possível. Sim, estou ansioso para
me deleitar com a jovem dama Badrulbudœr agora, mas a minha obrigação de
servi-la impõe que eu o construa!”. O sultão disse: “Escolha, meu filho, o terreno
que você julgar adequado ao seu propósito, e leve-o. Está tudo nas suas mãos,
mas o melhor terreno é aqui, na frente do meu palácio, bem amplo, e se o
agradar edifique nele o seu palácio”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “É isso o melhor
para o meu propósito, que seja próximo de Sua Excelência”. E, despedindo-se do
sultão, ¢Alå’udd∑n saiu, montou, seguido por seus serviçais, alguns na frente e
outros atrás, enquanto todo mundo rogava por ele dizendo: “Por Deus que ele
merece!”. Cavalgou até chegar à sua casa, onde se apeou do cavalo, entrou no
quarto, esfregou a lâmpada e eis que o escravo surgiu, postou-se à sua frente e
disse: “Peça o que quiser, meu senhor”, e ¢Alå’udd∑n respondeu: “Quero de
você um serviço importante para mim: construir um palácio diante do palácio do
sultão, com toda a rapidez, e cuja construção seja tão assombrosa que jamais os
reis tenham visto igual; que seja perfeita em todas as suas instalações, com
mobília de reis magnífica e tudo o mais”. O escravo disse: “Ouço e obedeço”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

564ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o escravo desapareceu e, antes que a
alvorada raiasse, retornou até ¢Alå’udd∑n dizendo: “Ó meu senhor, o palácio foi
concluído exatamente da forma pedida, e se você quiser vê-lo levante-se
imediatamente”. Então ¢Alå’udd∑n se ergueu, o escravo o carregou e num
piscar de olhos estavam no palácio, cuja construção deixou o rapaz estupefato.
Todas as suas pedras eram de jade, mármore e pórfiro, com mosaicos. O escravo
o introduziu num depósito cheio de toda espécie de ouro e prata valiosa, em
quantidade incontável, incalculável, inestimável, e em outro lugar no qual ele viu
tudo quanto é necessário para banquetes: travessas, colheres, jarras, pratos de
ouro e prata, bem como taças; conduzido à cozinha, nela viu cozinheiros com
todos os materiais e apetrechos necessários à atividade, tudo igualmente de ouro
e prata; em seguida, foi introduzido num aposento cheio de baús abarrotados de
roupas reais, uma coisa que sequestrava a razão, tantos eram os tecidos bordados
a ouro, indianos, chineses e brocados; introduziu-o igualmente em muitos outros
locais, todos cheios de coisas indescritíveis, até que enfim conduziu-o ao
estábulo, onde ele encontrou corcéis que não existem no mundo, que nenhum rei
tem igual; de uma pequena entrada, introduziu-o num depósito que ele verificou
estar repleto de equipamentos de cavalaria, selas valiosas tecidas com pérolas e
pedras preciosas, além de outras preciosidades mais. Tudo isso numa única
noite! ¢Alå’udd∑n ficou estupefato, pasmado com a magnificência de toda
aquela riqueza inalcançável até mesmo para o mais poderoso dos reis do mundo;
o palácio estava cheio de criados e criadas cuja beleza deixaria pasmado
qualquer vivente, e o mais espantoso disso tudo é que havia no edifício um
pavilhão elevado com vinte e quatro salões, todos de esmeralda, rubi e demais
pedras preciosas, mas um dos salões não estava terminado a pedido do próprio
¢Alå’udd∑n, a fim de provocar o espanto do sultão.[46] Após passar em revista
todo o palácio, ¢Alå’udd∑n ficou muito aliviado e feliz e, voltando-se para o
escravo, disse-lhe: “Gostaria de uma única coisa faltante, a respeito da qual me
esqueci de lhe falar”. O escravo respondeu: “Peça o que quiser, meu senhor”.
Disse ¢Alå’udd∑n: “Quero de você um tapete de magnífico brocado, todo tecido
a ouro, que seja estendido do meu palácio até o palácio do sultão, a fim de que a
jovem dama Badrulbudœr, quando vier para cá, caminhe sobre ele e não sobre o
chão”. Então o escravo saiu uns instantes, retornou e disse: “Meu senhor, o que
você pediu já está pronto”; levou-o e lhe mostrou o tapete, que sequestrava a
razão, estendido do palácio do sultão até o de ¢Alå’udd∑n. Em seguida, o
escravo carregou ¢Alå’udd∑n e o deixou em casa.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

565ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o escravo mostrou o tapete a ¢Alå’udd∑n
e depois o deixou em casa. Surgia a aurora e o sultão despertou, abriu a janela e
viu um edifício em frente do seu palácio! Pôs-se a esfregar os olhos,
arregalando-os para enxergar direito, e viu um enorme palácio, de pasmar todas
as mentes, bem como um tapete estendido desde o seu palácio até o novo
palácio. Também os porteiros e todos quantos estavam no palácio do sultão
ficaram com a razão aturdida com esse acontecimento. Enquanto isso, o vizir
chegou e, ao ver o novo palácio e o tapete, ficou igualmente espantado. O sultão
foi ter com ele e começaram a conversar sobre aquele caso prodigioso,
espantados de verem algo que pasmava a vista e alegrava a mente; disseram:
“Na verdade, não acreditamos que um palácio desses, e nem mesmo
assemelhado, possa ser construído por qualquer rei que seja!”. O sultão voltou-se
para o vizir e lhe perguntou: “Agora você já considera ¢Alå’udd∑n merecedor
de ser noivo da minha filha, a jovem dama Badrulbudœr? Por acaso olhou e
examinou essa construção real e essa riqueza que nenhuma mente humana pode
calcular?”. O vizir, com muita inveja de ¢Alå’udd∑n, respondeu: “Ó rei do
tempo, essa arquitetura, esse edifício e essa riqueza não podem ter sido obtidas
senão mediante feitiçaria, pois nenhum ser humano no mundo poderia fazer isso
— nem o mais poderoso rei, nem a riqueza mais gigantesca poderiam erguer e
finalizar numa única noite este edifício”. O sultão disse: “Estou perplexo com
você, como sempre pensa mal de ¢Alå’udd∑n! Mas suponho que isso derive da
sua inveja, por ter estado presente quando eu lhe dei este terreno; ele me pedira
um lugar para construir um palácio para a minha filha, e diante de você eu
consenti que ¢Alå’udd∑n fizesse uso deste terreno para o palácio. Quem
ofereceu como dote para a minha filha pedras preciosas das quais nenhum rei
possui nem sequer parte seria porventura incapaz de construir um palácio como
esse?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

566ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir as palavras do sultão e perceber
que ele gostava muito de ¢Alå’udd∑n, a inveja do vizir aumentou, mas, sem
nada poder contra ele, calou-se, incapaz de dar alguma resposta ao sultão.
Quanto a ¢Alå’udd∑n, ao ver que raiava a aurora e chegara o momento de ir ao
palácio — pois o seu noivado estava em curso, e os comandantes, vizires e
notáveis do reino acompanhavam o sultão a fim de presenciar o noivado —, ele
se levantou e esfregou a lâmpada, cujo escravo surgiu dizendo: “Peça o que
quiser, meu senhor, pois estou diante de você, ao seu dispor”. ¢Alå’udd∑n
respondeu: “Agora eu quero ir ao palácio do sultão. Hoje é a festa do meu
noivado, e preciso que você providencie dez mil dinares”. O escravo
desapareceu e num piscar de olhos ressurgiu trazendo os dez mil dinares.
¢Alå’udd∑n montou, seus serviçais também montaram, uns na sua vanguarda,
outros na retaguarda, e cavalgou até o palácio distribuindo ouro ao povo pelo
caminho, até que todos foram tomados de afeição por ele e por sua esplêndida
generosidade. Quando assomou ao palácio, mal o avistaram, os comandantes,
chefes militares e soldados parados à sua espera acorreram em bloco para
informar imediatamente o sultão, que pronto se levantou para recebê-lo,
abraçando-o, beijando-o e conduzindo-o pela mão para dentro do palácio, onde
se sentou e o acomodou à sua direita. O país inteiro estava enfeitado,
instrumentos musicais se tocavam no palácio e canções eram cantadas. Logo o
sultão ordenou que servissem o almoço, e os criados e serviçais acorreram e
serviram o banquete, um banquete digno de reis. O sultão, ¢Alå’udd∑n, os
principais do governo e os notáveis do reino se acomodaram, comendo e
bebendo até se fartarem, em meio à imensa alegria que tomava conta do palácio
e da cidade. Todos os principais do governo estavam felizes, contente o povo por
todo o reino, comia-se e bebia-se em todas as províncias, e os delegados de
regiões longínquas tinham acorrido para assistir às núpcias de ¢Alå’udd∑n e ao
seu noivado. O sultão estava particularmente intrigado com a mãe de
¢Alå’udd∑n, que viera vê-lo com vestimentas tão pobres enquanto seu filho
dispunha de toda aquela esplêndida riqueza! Todos quantos vinham ao palácio
do sultão a fim de presenciar as núpcias eram tomados de grande espanto ao
verem o palácio de ¢Alå’udd∑n e a sua bela arquitetura, matutando sobre como
um magnífico palácio daqueles poderia ter sido edificado numa única noite.
Todos começaram a rogar por ¢Alå’udd∑n dizendo: “Deus o felicite, por Deus
que é merecedor! Deus bendiga os seus dias!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

567ª
noite
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao terminar o almoço, ¢Alå’udd∑n se
levantou, despediu-se do sultão e montou, juntamente com os seus serviçais,
encaminhando-se para o novo palácio a fim de preparar-se para recepcionar a
noiva, a jovem dama Badrulbudœr, com todos gritando para ele enquanto
passava, em uníssono, “Deus o felicite! Deus lhe amplie a pujança! Deus o
conserve!”. O séquito que acompanhou o esponsal foi magnífico, constituído por
muitíssima gente que o conduziu ao palácio enquanto ele distribuía ouro, e
quando chegou apeou-se, entrou e sentou-se no saguão, enquanto os serviçais se
postavam de braços cruzados diante dele. Logo em seguida se ofereceram
bebidas e depois ele ordenou a seus serviçais, criadas, escravos e todos quantos
estavam no palácio que se preparassem para recepcionar a jovem dama
Badrulbudœr, sua noiva, e no entardecer, quando a brisa se tornou mais fresca,
quebrando um pouco o calor do sol, o sultão ordenou aos seus comandantes e
vizires que descessem até a praça, e após todos descerem ele próprio fez o
mesmo. Também ¢Alå’udd∑n se levantou, montou com seus serviçais e desceu
rumo à praça, onde exibiu a sua habilidade em cavalgar, pondo-se a galopar pelo
local sem que ninguém conseguisse interrompê-lo; seu cavalo não tinha igual
nem entre os árabes mais legítimos, e sua noiva, a jovem dama Badrulbudœr,
assistia à exibição da janela de seu aposento, e ao vê-lo com toda aquela beleza e
destreza em cavalgar ficou tão apaixonada por ele que quase se pôs a planar de
alegria. Em seguida disputaram-se alguns torneios na praça, e ninguém
demonstrou ter a mesma destreza de ¢Alå’udd∑n, que a todos superou. O sultão
retornou ao palácio, ¢Alå’udd∑n fez o mesmo, e quando anoiteceu os principais
do governo e os vizires pegaram ¢Alå’udd∑n e o conduziram até o célebre
banho público real, onde ele entrou, banhou-se e saiu vestido com um traje ainda
mais luxuoso que o anterior; montou, tendo em sua vanguarda soldados e
comandantes que o conduziram, num séquito magnífico, com quatro dos vizires
portando espadas em torno dele e todos os moradores do país, estrangeiros e
soldados, enfim, todos caminhavam à sua frente no séquito, carregando velas,
tambores, flautas e outros instrumentos musicais, até que o fizeram chegar a seu
palácio, onde ele se apeou e se sentou, sentando-se também os vizires e
comandantes que o acompanhavam. Os serviçais chegaram com as bebidas e
doces, servindo todos quantos o haviam conduzido no séquito, embora fosse
uma quantidade incalculável de gente. Após uma ordem de ¢Alå’udd∑n, os
serviçais retornaram aos portões do palácio e começaram a distribuir ouro ao
povo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

568ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão, ao retornar da praça e entrar em
seu palácio, ordenou incontinente que conduzissem[47] em cortejo nupcial a
filha, a jovem dama Badrulbudœr, até o palácio de seu noivo ¢Alå’udd∑n, e
prontamente os soldados e principais do governo que haviam conduzido o rapaz
montaram, e as criadas e serviçais saíram carregando velas, todos conduzindo a
jovem dama Badrulbudœr, num magnífico cortejo, até introduzi-la no palácio de
seu noivo ¢Alå’udd∑n, cuja mãe acompanhava a noiva, tendo à sua frente as
esposas dos vizires, comandantes, principais e nobres, bem como as quarenta e
oito criadas que o filho lhe dera, cada uma carregando uma grande vela de
cânfora e âmbar espetada num castiçal de ouro cravejado de pedras preciosas.
Todos, homens e mulheres, saíram do palácio acompanhando a noiva,
caminhando à sua frente até a fazerem chegar ao palácio do seu noivo, e ali a
introduziram em seu aposento, trocaram-lhe as vestimentas e, após o término da
exibição da noiva com diferentes vestes,[48] introduziram-na nos aposentos do
noivo, que entrou a seguir. ¢Alå’udd∑n ergueu o véu da noiva para que a sua
mãe, que ainda estava no quarto, pudesse contemplar-lhe a beleza e formosura.
Examinando o palácio, a mãe de ¢Alå’udd∑n viu que era tudo de ouro e pedras
preciosas trabalhadas, com lustres de ouro cravejados de esmeraldas e rubis, e
pensou: “E eu, que imaginava ser o palácio do sultão o mais esplendoroso, mas
este palácio aqui não imagino que ninguém, dentre os maiores imperadores da
dinastia de Kisrà ou quaisquer outros reis, tenha tido algo semelhante; não
acredito que nem mesmo o mundo inteiro conseguiria fazer um palácio como
este!”. Também a jovem dama Badrulbudœr pôs-se a contemplar e se assombrar
com esse palácio e seu esplendor. Em seguida, foi servido o banquete, e todos
comeram, beberam e se alegraram com a presença de oitenta criadas, cada qual
portando um instrumento musical, e elas com os movimentos de seus dedos e os
toques nas cordas musicais começaram a executar canções extasiantes,
arrebatando o coração dos ouvintes. A jovem dama Badrulbudœr pensou:
“Nunca em minha vida ouvi melodias como essas”, e o seu assombro tanto
cresceu que ela parou de comer para apenas ouvir, enquanto ¢Alå’udd∑n vertia
vinho em sua taça e lhe dava de beber, estabelecendo-se entre ambos harmonia e
esplêndida felicidade,[49] naquela noite igualmente esplêndida, a qual nem
Alexandre Bicorne[50] vivera igual em seus melhores tempos. Após terminarem
de comer e beber, o banquete foi retirado da frente deles e ¢Alå’udd∑n, ficando
a sós com a noiva, consumou o casamento.[51] Quando amanheceu,
¢Alå’udd∑n acordou e o intendente lhe deixara pronta uma roupa magnífica e
valiosa, que o jovem vestiu: tratava-se de traje real dos mais opulentos.
Serviram-lhe vinho com âmbar, que ¢Alå’udd∑n bebeu, ordenando então que se
trouxesse o seu cavalo, e ele foi logo aprontado. ¢Alå’udd∑n montou, bem como
os seus criados, alguns na retaguarda e outros na vanguarda, e se dirigiu ao
palácio do sultão, ali entrando juntamente com os seus criados, enquanto iam
informar ao sultão de sua presença.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

569ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ouvir que ¢Alå’udd∑n se encontrava
presente, o sultão imediatamente foi recepcioná-lo, abraçá-lo e beijá-lo como se
fora seu filho, acomodando-o à sua direita. Os vizires, comandantes, principais
do governo e notáveis do reino foram lhe dar parabéns, e também o sultão o
felicitou e parabenizou, ordenando então que se servisse o desjejum, que foi
oferecido e todos se alimentaram; após terem se fartado de comer e beber, o
banquete foi retirado e ¢Alå’udd∑n voltou-se para o sultão dizendo: “Meu
senhor, que Sua Excelência ordene que hoje eu tenha a honra de, no almoço com
a sua filha, a cara jovem dama Badrulbudœr, gozar a companhia de Sua
Excelência e de todos os seus vizires e principais do seu governo”. Muito feliz
com o genro, o sultão respondeu: “Você merece todas as gentilezas,[52] meu
filho”, e prontamente deu ordens aos vizires, principais do governo e notáveis do
reino; o sultão montou, todos também montaram, inclusive ¢Alå’udd∑n, até cujo
palácio chegaram. Ao entrar ali e contemplar a construção, a arquitetura, as
pedras de jade e ágata, o sultão ficou pasmado e perplexo com tanta felicidade,
tanta riqueza, tanta magnificência e, voltando-se para o vizir, perguntou-lhe: “O
que me diz, vizir? Por acaso você já viu, em toda a sua vida, algo igual? Por
acaso existe, mesmo entre os mais poderosos reis do mundo, tanta riqueza, tanto
ouro e tantas pedras preciosas como isto que agora estamos vendo aqui?”. O
vizir respondeu: “Meu senhor, isto é algo impossível de pertencer a qualquer rei
humano; é impossível a qualquer povo da terra construir um palácio como este;
não existem nem mesmo artesãos que façam um trabalho como este, senão,
conforme eu já disse a Sua Excelência, com a força da magia”. Percebendo que o
vizir nunca deixaria de falar de ¢Alå’udd∑n com inveja, querendo provar-lhe
que tudo aquilo não provinha de força humana, mas sim de magia, o sultão lhe
disse: “Basta, vizir! Mude o discurso, pois eu sei o motivo que o leva a
pronunciar tais palavras”. ¢Alå’udd∑n caminhou diante do sultão até levá-lo ao
pavilhão elevado, cujas janelas e gelosias, feitas de esmeralda, rubi e outras
pedras preciosas, o deixaram espantado e pasmado, a razão estupefata, bem
como perplexo o pensamento. Pôs-se a flanar pelo pavilhão, contemplando essas
coisas que sequestravam o olhar, até avistar a janela que ¢Alå’udd∑n, de
propósito, deixara inacabada, sem remate, e vê-la em tal estado o fez dizer:
“Pobre de você, janela, que está incompleta!”, e, voltando-se para o vizir,
perguntou: “Por acaso você saberia o motivo do não-acabamento desta janela e
de suas gelosias?”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

570ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o vizir respondeu ao sultão: “Meu senhor,
suponho que o não-acabamento desta janela tem como motivo o fato de que Sua
Excelência apressou ¢Alå’udd∑n para o noivado, e então ele não teve tempo de
terminá-la”. Nesse ínterim, ¢Alå’udd∑n fora ter com a esposa, a jovem dama
Badrulbudœr, para informá-la da presença do pai, o sultão, de quem ouviu, ao
voltar, a seguinte pergunta: “¢Alå’udd∑n, meu filho, por qual motivo as gelosias
e a janela deste pavilhão estão sem acabamento?”. O rapaz respondeu: “Ó rei do
tempo, por causa da rapidez os artesãos não conseguiram rematá-las!”. O sultão
lhe disse: “Eu gostaria de acabá-las!”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Que Deus lhe
mantenha a força, ó rei, e perpetue a sua memória no palácio da sua filha”, e
então o sultão mandou que chamassem ourives e artesãos de pedras preciosas, e
que lhes fornecessem, dos seus depósitos, todo o ouro, pedras preciosas e metais
de que precisassem, e quando eles chegaram ordenou-lhes que completassem o
que faltava das gelosias. Nesse instante Badrulbudœr saiu para receber o pai, o
qual percebeu, assim que viu a filha, o seu rosto a sorrir, e então a abraçou,
beijou e entrou com ela em seus aposentos, onde entraram todos. Já era hora do
almoço, e fora posta uma mesa para o sultão, a jovem dama Badrulbudœr e
¢Alå’udd∑n, e outra para o grão-vizir, os principais do governo, os notáveis do
reino, os almocadéns do exército, os secretários e os delegados provinciais. O
sultão sentou-se entre a filha e o genro, e ao estender a mão para a comida e
experimentá-la foi tomado pelo espanto com aqueles alimentos e o modo
opulento e perfeito como foram preparados. Diante deles estavam postadas
oitenta criadas, cada qual capaz de dizer ao plenilúnio: “Levante-se para que eu
ocupe o seu lugar!”, e na mão de cada uma delas um instrumento musical, que
elas regularam e cujas cordas passaram a planger com ritmos extasiantes que
reconfortavam corações entristecidos, e então o sultão ficou feliz, divertiu-se e
alegrou-se, dizendo: “Na verdade, isto é algo que está acima das possibilidades
dos imperadores cesáreos e dos reis”. E comeram e beberam, as taças circulando
entre eles, até se fartarem, quando então foram oferecidos doces, várias espécies
de fruta e outras sobremesas, tudo disposto em outro aposento para onde se
transferiram, cada qual se fartando em divertimentos e prazeres. O sultão foi
verificar se o trabalho dos joalheiros e ourives era compatível com o do restante
do palácio, e ao subir e observar a maneira como trabalhavam notou que havia
uma enorme diferença entre o que faziam e o trabalho existente no palácio de
¢Alå’udd∑n.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

571ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão, ao ver o trabalho dos ouvires e
joalheiros, foi por eles informado de que as pedras preciosas constantes do seu
tesouro eram insuficientes para o que estavam fazendo, e então o sultão ordenou
que fosse aberto o maior depósito do tesouro, do qual deveriam provê-los de
tudo quanto necessitassem, e, se ainda assim fosse insuficiente, que pegassem
daquilo que o próprio ¢Alå’udd∑n lhe presenteara. Os joalheiros reuniram todas
as pedras preciosas, conforme o sultão ordenara, e trabalharam nelas, mas logo
verificaram que também elas eram insuficientes, não cobrindo sequer metade do
que faltava nas gelosias daquele pavilhão, o que levou o sultão a ordenar o
confisco de todas as pedras preciosas em poder dos vizires e dos principais do
governo, e então os joalheiros levaram tudo aquilo para trabalhar, mas tampouco
assim foi suficiente. Quando amanheceu, ¢Alå’udd∑n subiu para acompanhar o
trabalho dos joalheiros e, vendo que ainda não tinham completado nem ao
menos metade das gelosias faltantes, ordenou imediatamente que arrancassem
tudo quanto tinham feito e devolvessem as pedras preciosas a seus donos, e
então eles arrancaram tudo, devolvendo ao sultão o que lhe pertencia e aos
vizires o que lhes pertencia e indo em seguida informar ao sultão que
¢Alå’udd∑n assim ordenara. O sultão perguntou-lhes: “O que ele lhes disse?
Qual o motivo? Por que não quis que se completassem as gelosias? Por que
desfez o que vocês tinham feito?”. Responderam-lhe: “Não temos nenhuma
informação, amo, apenas que ele nos ordenou desfazer tudo quanto havíamos
feito”. Imediatamente o sultão determinou que lhe trouxessem o cavalo, montou
e cavalgou até o palácio de ¢Alå’udd∑n, o qual, após ter dispensado os ourives e
joalheiros, entrara no seu quarto e esfregara a lâmpada, surgindo prontamente
diante de si o escravo, que lhe dissera: “Peça o que desejar; seu escravo está
diante de você!”, e então ¢Alå’udd∑n lhe dissera: “Eu quero que você complete
as gelosias faltantes do pavilhão”, e o escravo respondera: “Sobre a cabeça e os
olhos!”, sumindo alguns instantes, após os quais retornara dizendo: “Meu
senhor, já completei o que você me ordenou”. ¢Alå’udd∑n subiu ao pavilhão,
viu todas as gelosias completas e, enquanto as contemplava, eis que um eunuco
entrou e lhe disse: “Meu senhor, o sultão veio visitá-lo e já está à porta do
palácio”. ¢Alå’udd∑n desceu imediatamente para recebê-lo.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

572ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao ver ¢Alå’udd∑n, o sultão lhe
perguntou: “Por que você agiu assim, meu filho? Por que não deixou os
joalheiros concluírem as gelosias do pavilhão, para que não restasse em seu
palácio um só lugar incompleto?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Ó rei do tempo, eu
não as deixei incompletas senão por minha vontade, e não por incapacidade de
completá-las. Não seria possível que eu quisesse ter a honra da presença de Sua
Excelência num palácio onde algo estivesse incompleto. Para saber que eu não
sou incapaz de completá-las, suba Sua Excelência e veja por si só se há algo
incompleto nas gelosias do pavilhão”. Então o rei subiu, entrou no pavilhão e, ao
examinar à direita e à esquerda, não vislumbrou nenhuma gelosia faltante,
constatando, ao contrário, que tudo estava completo. Espantado de ver aquilo,
abraçou ¢Alå’udd∑n, pôs-se a beijá-lo e disse: “Meu filho, é muito estranho que
numa única noite você faça um trabalho que vários joalheiros seriam incapazes
de executar em meses. Por Deus, não creio que exista alguém assemelhado a
você neste mundo!”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Que Deus lhe prolongue a vida e
perpetue a existência! Este seu escravo não merece tal loa!”. O rei disse: “Por
Deus, meu filho, que você é merecedor de todas as loas por ter feito algo que
todos os artesãos do mundo seriam incapazes de fazer”. Em seguida, o sultão
desceu, entrou nos aposentos de sua filha, a jovem dama Badrulbudœr, a fim de
repousar ali, e a viu muito feliz com a esplêndida abundância em que vivia. Após
descansar um pouco junto da filha, o sultão retornou ao seu palácio, onde passou
a receber visitas diárias de ¢Alå’udd∑n, que para lá cavalgava acompanhado de
seus serviçais. ¢Alå’udd∑n também atravessava o país, com serviçais na
vanguarda e na retaguarda, distribuindo ouro ao povo, à direita e à esquerda, e
todos — o estrangeiro e o local, o próximo e o distante — começaram a amá-lo
devido à sua imensa generosidade e nobreza; distribuía constantemente roupas
aos pobres e desvalidos, entregando-as pessoalmente a eles. Essas atitudes
renderam-lhe largo renome no reino, cujos principais e comandantes, em sua
maioria, comiam à sua mesa, e não juravam senão por sua vida. De tempos em
tempos, saía para caçar, praticar equitação na praça e disputar torneios de flecha
na presença do sultão. A cada vez que o via exibindo-se na equitação, a jovem
dama Badrulbudœr mais o amava, pensando que Deus lhe fizera um enorme bem
quando das ocorrências com o filho do vizir, pois assim a preservara para o seu
verdadeiro marido, ¢Alå’udd∑n.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

573ª
noite
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que dia a dia a boa fama de ¢Alå’udd∑n
aumentava, bem como os elogios à sua pessoa, como também aumentava o afeto
por ele no coração de todos os súditos, aos olhos dos quais ele se engrandecia.
Por volta dessa época, certo inimigo atacou o sultão, que lhe enviou soldados
para combatê-lo, colocando, à testa das tropas, o próprio ¢Alå’udd∑n; ao se
aproximar do inimigo, cujos soldados eram muito numerosos, ele desembainhou
a espada e avançou, dando início à batalha e à luta, que se intensificou, mas
¢Alå’udd∑n afinal desbaratou as fileiras inimigas e as derrotou, matando a
maioria; quando entrou na cidade, que se engalanara de alegria com ele, o sultão
saiu, recebeu-o, parabenizou-o, abraçou-o e beijou-o. Decretou-se na cidade um
magnífico feriado, todos se regozijaram, e, acompanhado pelo sultão,
¢Alå’udd∑n entrou em seu palácio, onde foi recebido por sua esposa, a jovem
dama Badrulbudœr, a qual, muito feliz, beijou-o entre os olhos, e ambos se
dirigiram para os seus aposentos. Após algum tempo, o sultão retornou e as
criadas providenciaram bebidas que todos beberam. O sultão ordenou que o
reino inteiro fosse enfeitado em homenagem à vitória de ¢Alå’udd∑n sobre o
inimigo, e os súditos, os soldados, toda a gente, enfim, passou a ter Deus no céu
e ¢Alå’udd∑n na terra. O amor por ele aumentava proporcionalmente ao
aumento de sua generosidade, nobreza, luta pelo reino, bravura e desbarato do
inimigo.
Isso foi o que sucedeu a ¢Alå’udd∑n. Quanto ao feiticeiro magrebino, ele
retornou à sua terra e ali se fixou por todo esse tempo, triste pelas fadigas e
sofrimentos a que se submetera para obter a lâmpada, fadigas essas baldadas tal
como um alimento que, preste a ser levado à boca, lhe houvesse escapado das
mãos! Ele refletia sobre tudo aquilo, lamuriava-se e xingava ¢Alå’udd∑n,
tamanha era a sua fúria contra ele! Às vezes pensava: “Como aquele
bastardo[53] morreu no subterrâneo, pelo menos isso me consola, pois ainda
tenho esperanças de me apossar da lâmpada, que continua debaixo da terra”.
Certo dia, ao praticar a sua geomancia,[54] separou os desenhos formados pela
areia, lançando-a cuidadosamente, e interpretou-os para verificar e certificar-se
da morte de ¢Alå’udd∑n e da manutenção da lâmpada no subterrâneo. Porém, ao
analisar detidamente as formas, as maiores e as menores, não enxergou a
lâmpada e foi tomado pela fúria. Tornou a jogar a areia para certificar-se da
morte de ¢Alå’udd∑n e, tampouco o enxergando no lugar onde estava o tesouro,
ficou mais enfurecido, o que cresceu deveras quando se certificou de que ele
estava bem vivo neste mundo. Ao descobrir que o rapaz saíra do subterrâneo e se
apoderara da lâmpada pela qual ele tanto sofrera tormentos e fadigas
insuportáveis para qualquer outro ser humano, o magrebino pensou: “Por essa
lâmpada suportei tantos sofrimentos, passei por tantas fadigas que outro não
suportaria, e agora esse maldito se apropria dela sem nenhum esforço? É óbvio
que, se ele tiver descoberto os benefícios da lâmpada, não haverá no mundo
ninguém mais rico do que ele”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

574ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o feiticeiro magrebino, ao ver e se
certificar de que ¢Alå’udd∑n havia saído do subterrâneo e se apoderado do bem
que a lâmpada produzia, pensou: “É absolutamente imperioso que eu faça algo
para matá-lo!”, e, jogando a areia de sua geomancia pela segunda vez, examinou
as formas e, após constatar que ¢Alå’udd∑n alcançara enorme riqueza e se
casara com a filha do sultão, incendiou-se com o fogo da fúria, tamanha era a
sua inveja, e imediatamente, sem mais tardar, preparou-se e seguiu viagem para
a China, onde, chegando à cidade sede do sultão, onde vivia ¢Alå’udd∑n,
entrou, hospedou-se numa estalagem e notou que as pessoas não falavam senão
sobre a magnificência do palácio de ¢Alå’udd∑n. Depois de se refazer dos
cansaços da viagem, foi deambular pelas ruas da cidade, e não havia gente com a
qual conversasse que não lhe descrevesse o tal palácio e a sua magnificência ou
lhe falasse da beleza e formosura de ¢Alå’udd∑n, sua generosidade, bondade e
bom caráter. Dirigindo-se a um dos que tão elogiosamente descreviam
¢Alå’udd∑n, o magrebino lhe perguntou: “Meu gracioso jovem, quem é esse que
vocês descrevem e elogiam?”. O jovem respondeu: “É claro que você é
estrangeiro e veio de algum país distante, mas, mesmo supondo que assim seja,
nunca ouviu falar do príncipe ¢Alå’udd∑n, cuja fama eu creio que corre pelo
mundo todo, e o seu palácio, um milagre na terra sobre o qual ouviu falar tanto o
distante como o próximo? Não ouviu nada sobre isso ou sobre o nome de
¢Alå’udd∑n, que Deus lhe amplie a força e o felicite?”. O magrebino disse:
“Todo o meu desejo é ver esse palácio! Se puder me fazer esse favor, indique-me
onde se situa, pois sou estrangeiro”. O homem lhe disse: “Ouço e obedeço!”, e
caminhou na frente dele, levando-o até o palácio de ¢Alå’udd∑n, que o
magrebino se pôs a contemplar e, percebendo que tudo aquilo era trabalho da
lâmpada, disse: “Ai, ai! É absolutamente imperioso cavar um buraco para esse
maldito filho de alfaiate que não tinha nem o que jantar à noite! Mas se o destino
me der forças é necessário que eu faça a mãe dele voltar a costurar em sua roca,
tal como fazia antes; quanto a ele, quero que perca a vida!”, e voltou para o
albergue, aflito, triste e contrariado de inveja por ¢Alå’udd∑n.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

575ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao chegar ao albergue, o feiticeiro
magrebino recolheu seus apetrechos astrológicos e jogou sua areia a fim de saber
onde estava a lâmpada, verificando que estava no palácio e não com
¢Alå’udd∑n. Muitíssimo contente com aquilo, pensou: “Agora ficou fácil tirar a
vida desse maldito, e tenho uma maneira de resgatar a lâmpada”. Então foi até
um vendedor de cobre e pediu: “Faça-me uma boa quantidade de lâmpadas[55]
de cobre, e lhe pagarei o preço com gorjeta, só que eu quero rapidez”. O
vendedor respondeu: “Ouço e obedeço!”, e começou a produzi-las, executando
prontamente o trabalho; quando concluiu, o magrebino lhe pagou o valor pedido
e se dirigiu ao albergue, onde colocou as lâmpadas num cesto e pôs-se a
perambular pelas ruas e mercados da cidade gritando: “Quem quer trocar uma
lâmpada de cobre antiga por uma nova?”. Ao ouvi-lo apregoando aquilo, as
pessoas riam dele e diziam: “Não resta dúvida de que esse homem é um louco
que está por aí trocando lâmpadas novas por velhas!”. Muita gente começou a
segui-lo e os moleques nas ruas o seguiam de um lugar a outro, caçoando dele,
mas isso não o impedia nem preocupava; continuou circulando pela cidade até
chegar ao palácio de ¢Alå’udd∑n, onde passou a gritar, elevando a voz ainda
mais enquanto os moleques lhe gritavam “louco! louco!”. Por uma coincidência
do destino a jovem dama Badrulbudœr estava no pavilhão e ouviu alguém
gritando e moleques gritando com ele; contudo, sem entender o que ocorria,
chamou uma das criadas e perguntou: “Corra, vá ver o que aquele homem está
gritando!”, e a criada foi, olhou e viu um homem gritando: “Quem quer trocar
uma lâmpada de cobre velha por uma nova?”, com os moleques atrás dele
caçoando. A criada retornou e informou a patroa, a jovem dama Badrulbudœr,
dizendo: “Patroa, esse homem está gritando: ‘Quem quer trocar uma lâmpada de
cobre velha por uma nova?’, e os moleques estão atrás dele caçoando”, e então a
jovem dama Badrulbudœr riu também desse fato inaudito. ¢Alå’udd∑n havia
esquecido a lâmpada pelo palácio, sem a colocar em seu armário e trancá-la, e
uma das criadas, ao vê-la, disse à jovem dama: “A propósito, patroa, eu vi nos
aposentos do meu patrão ¢Alå’udd∑n uma lâmpada velha. Deixe-nos trocá-la
com esse homem por uma nova, até para ver se ele fala a verdade ou mente”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

576ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a jovem dama Badrulbudœr disse à
criada: “Traga a lâmpada antiga que você disse ter visto nos aposentos do seu
patrão”. Badrulbudœr não tinha nenhuma informação sobre as características da
lâmpada, nem que fora ela que colocara seu esposo ¢Alå’udd∑n em sua
magnífica situação atual; tudo o que ela queria era testar o juízo do homem que
trocava novo por velho. A criada subiu aos aposentos de ¢Alå’udd∑n e voltou
com a lâmpada, entregando-a à jovem dama Badrulbudœr; como ninguém tinha
notícia dos ardis e artimanhas do feiticeiro magrebino, ela ordenou ao chefe dos
eunucos que fosse lá embaixo trocar a lâmpada velha por uma nova, e foi o que
o eunuco fez, levando e entregando a lâmpada velha ao magrebino e dele
recebendo uma lâmpada nova. Então o eunuco retornou até a jovem dama e lhe
entregou a lâmpada trocada, que ela examinou e, vendo que era de fato nova,
pôs-se a rir do juízo do magrebino, o qual, por sua vez, ao apoderar-se da
lâmpada e reconhecê-la como a lâmpada do tesouro, enfiou-a imediatamente no
bolso debaixo da axila, abandonou as outras lâmpadas para quem desejasse
trocá-las e saiu correndo até os arredores da cidade, para além dos seus limites.
Caminhou pela planície, esperando anoitecer e assegurar-se de estar sozinho no
deserto, sem mais ninguém. Então, retirou a lâmpada do seu bolso sob a axila,
esfregou-a e de imediato surgiu diante dele o gênio, dizendo: “Eis-me aqui! Seu
escravo está na sua frente. Peça de mim o que quiser”. O magrebino lhe disse:
“Eu quero que você erga o palácio de ¢Alå’udd∑n do lugar onde está, com todos
quantos nele moram, comigo junto, e nos coloque na minha terra, a África, que
você já conhece. Quero que aquele palácio esteja em minha terra, entre os
pomares”. O gênio respondeu: “Ouço e obedeço! Num fechar e abrir de olhos
você se encontrará no seu país com o palácio”, e imediatamente, num piscar de
olhos, o magrebino e o palácio de ¢Alå’udd∑n, com tudo quanto continha,
foram transportados para a África. Isso foi o que se deu com o feiticeiro
magrebino.
Voltemos ao sultão e a ¢Alå’udd∑n. O sultão despertou do seu sono pela
manhã e, em vista de sua forte ligação e amor pela filha, a jovem dama
Badrulbudœr, habituara-se diariamente, ao acordar, a abrir a janela para vê-la.
Naquele dia, conforme o hábito, levantou-se e abriu a janela para ver a filha.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

577ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão, ao aproximar-se da janela de seu
palácio e olhar para o palácio de ¢Alå’udd∑n, não viu nada, apenas um terreno
vazio tal como era antigamente; não enxergando palácio nem edifício, tomado
pela perplexidade, a razão estupefata, pôs-se a esfregar os olhos, que talvez
estivessem nublados e enevoados, e voltou a contemplar o local, assegurando-se
enfim de que o palácio já não tinha vestígio nem existência, sem que ele
soubesse o que se passara nem aonde fora parar. Cada vez mais perplexo, bateu
as mãos espalmadas uma na outra e suas lágrimas começaram a lhe escorrer pela
barba; sem saber o que sucedera à filha, mandou imediatamente convocar o
grão-vizir, que ao chegar e o ver nesse lamentável estado perguntou: “Perdão, ó
rei do tempo, livre-o Deus de todo mal! Por que está tão aflito?”. O sultão
respondeu: “Parece que você ignora o que me aconteceu!”. O vizir disse: “Em
absoluto, meu senhor, por Deus que não tenho notícia nenhuma”. O sultão disse:
“Isso significa que você não olhou para a direção do palácio de ¢Alå’udd∑n”. O
vizir disse: “Não, meu senhor, ele ainda está trancado”. O rei disse: “Já que você
não tem nenhuma notícia a respeito, venha, olhe pela janela e veja onde está o
palácio de ¢Alå’udd∑n, que você afirma ainda estar trancado”. Então o vizir foi,
olhou pela janela para os lados do palácio de ¢Alå’udd∑n e nada viu, palácio ou
qualquer outra coisa; com a razão perplexa, pasmado, virou-se para o sultão, que
lhe disse: “Agora já sabe o motivo da minha tristeza e viu o [sumiço do] palácio
de ¢Alå’udd∑n, que você afirmou estar trancado”. O vizir disse: “Ó rei do
tempo, eu já dissera anteriormente à Sua Excelência que tanto esse palácio como
as demais coisas eram fruto de feitiçaria”. Explodindo de cólera, o sultão
perguntou: “Onde está ¢Alå’udd∑n?”. O vizir respondeu: “Está caçando”, e
então o sultão ordenou que, sem demora, alguns oficiais e soldados fossem trazê-
lo acorrentado e amarrado, e então eles foram, chegaram até onde estava
¢Alå’udd∑n e lhe disseram: “Senhor, não nos leve a mal, mas o sultão nos
ordenou que o levássemos amarrado e acorrentado. Rogamos que nos perdoe,
pois temos ordens reais a que não podemos desobedecer”. Ouvindo tais palavras
dos oficiais e soldados, ¢Alå’udd∑n foi tomado de espanto e sua língua se
paralisou, pois ele desconhecia o motivo daquilo. Voltou-se para eles e
perguntou: “Minha gente, vocês não têm informação sobre o motivo dessa
ordem do sultão? Sei que sou inocente e não cometi delito algum contra ele nem
contra o reino!”. Responderam-lhe: “Senhor, não temos nenhuma informação,
nada!”. ¢Alå’udd∑n descavalgou e disse: “Façam comigo o que o sultão lhes
ordenou, porque as ordens dele se cumprem sobre a cabeça e os olhos”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

578ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que os oficiais acorrentaram ¢Alå’udd∑n,
amarram-no, arrastaram-no a ferros e entraram com ele na cidade. Ao avistarem-
no naquela situação, os súditos compreenderam que o sultão pretendia decepar-
lhe a cabeça, e como tinham por ele um amor muito grande, juntaram-se,
pegaram em armas e saíram de suas casas, indo atrás dos soldados a fim de ver o
que estava acontecendo. Quando os soldados chegaram com ¢Alå’udd∑n até o
palácio, entraram e informaram o sultão, o qual imediatamente ordenou ao
carrasco que cortasse o pescoço do rapaz. Ao ouvirem tal ordem do sultão, os
súditos trancaram os portões do palácio e enviaram uma mensagem ao sultão
dizendo: “Neste momento vamos impedir a saída de quem quer que seja do
palácio, inclusive o sultão, caso ocorra o menor mal a ¢Alå’udd∑n”. O vizir foi
então avisar o sultão e disse: “Ó rei do tempo, essa ordem pode levar à nossa
destruição. O melhor será perdoá-lo, a fim de que não nos suceda algum grave
incidente, pois os súditos amam ¢Alå’udd∑n mais do que a nós”. O carrasco já
havia estendido o tapete para a execução, colocara ¢Alå’udd∑n nele, vendara-
lhe os olhos e dera três voltas ao seu redor, à espera da ordem final do sultão, o
qual, vendo que os súditos avançavam contra si e escalavam o palácio a fim de
destruí-lo, ordenou imediatamente ao carrasco que soltasse ¢Alå’udd∑n, e ao
arauto que fosse para o meio dos súditos anunciar que o perdoara e lhe
concedera sua graça. Ao ver-se livre, ¢Alå’udd∑n olhou para o sultão, que
estava sentado, aproximou-se dele e lhe perguntou: “Meu senhor, já que Sua
Excelência generosamente me concedeu a vida, seja mais uma vez generoso e
me informe qual foi o meu crime!”. O sultão respondeu: “Traidor! Então você
até agora não sabe qual o seu crime?”, e, voltando-se para o grão-vizir, disse-lhe:
“Leve-o para que ele veja, através das janelas, que fim levou o seu palácio!”.
Quando o vizir o colocou diante das janelas e ¢Alå’udd∑n pôde olhar para a
direção de seu palácio, avistou o terreno vazio, tal como estava antes de nele
construir o seu palácio, e deste não vislumbrou o menor vestígio! Perplexo e
pasmado, ignorando o que havia acontecido, ao retornar ouviu do rei: “O que
você viu? Onde está o seu palácio? Onde está a minha filha, minha filha única,
alimento do meu coração?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Ó rei do tempo, não tenho
ciência alguma disso, nem do que ocorreu!”. O sultão disse: “Saiba,
¢Alå’udd∑n, que eu o perdoei a fim de que você vá me investigar esse caso e
procurar a minha filha. Não retorne senão com ela! E, se por acaso você não a
trouxer, por vida minha que lhe cortarei a cabeça!”. ¢Alå’udd∑n respondeu:
“Ouço e obedeço, ó rei do tempo. Só lhe peço um prazo de quarenta dias, e se
decorrido esse prazo eu acaso não a trouxer corte a minha cabeça e faça o que
quiser”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

579ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o sultão disse a ¢Alå’udd∑n: “Concedi o
seu pedido de quarenta dias, mas não suponha que poderá fugir do meu braço,
pois eu o trarei de volta mesmo que você esteja em cima das nuvens e não sobre
a face da terra”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Meu amo o sultão, como eu disse à
Sua Excelência, se acaso eu não a trouxer dentro desse prazo, mesmo assim eu
retornarei à sua presença a fim de ter a cabeça decepada”. O súditos e os demais
presentes, ao verem ¢Alå’udd∑n, ficaram muitíssimo felizes com ele e se
alegraram por sua libertação, muito embora o escândalo provocado por essa
questão, o vexame e a ridicularização feita pelos invejosos tenham posto
cabisbaixo ¢Alå’udd∑n, que saiu do palácio e começou a perambular pela
cidade, perplexo consigo mesmo, ignorando como tudo aquilo havia sucedido.
Passou dois dias na cidade — durante os quais algumas pessoas foram
secretamente visitá-lo levando comida e bebida — numa situação de terrível
tristeza, sem saber o que fazer para localizar a sua noiva, a jovem dama
Badrulbudœr, e o palácio, e depois saiu vagando pelo deserto, sem saber que
direção tomar; caminhou até chegar às proximidades de um rio em cujas águas
tencionou atirar-se, tamanha era a sua desesperança e a aflição que o dominava.
Porém, como ele era um autêntico muçulmano, crente na unicidade divina e
temente a Deus,[56] parou à beira do rio para abluir-se, e ao tocar a água com as
mãos começou a esfregar os dedos, atingindo o anel, e então surgiu na sua frente
um gênio que lhe disse: “Eis-me aqui! Seu escravo está diante de você. Peça o
que quiser”. Imensamente contente de ver o gênio, ¢Alå’udd∑n lhe disse:
“Escravo, quero que você me traga meu palácio, no qual se encontra a minha
esposa, a jovem dama Badrulbudœr, e todos quantos lá moravam”. O gênio
respondeu: “Meu senhor, é muito difícil para mim isso que você pediu, é algo
que não posso, pois está ligado aos escravos da lâmpada, que eu não posso
desafiar”. ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Já que isso é algo impossível, leve-me para
junto do meu palácio, esteja onde estiver”. O escravo respondeu: “Ouço e
obedeço, meu senhor”, e, carregando-o, num piscar de olhos depositou-o junto
ao seu palácio na África, diante dos aposentos da sua mulher. Já era noite, e ao
olhar para o palácio suas preocupações e tristezas desapareceram; rogou a Deus,
após ter perdido as esperanças, para ver a mulher novamente, e pôs-se a refletir
sobre as bondades ocultas de Deus, manifesto seja seu poder, que lhe facilitara o
anel, e como ele teria perdido toda esperança se Deus não o tivesse agraciado
com o escravo do anel. Contente, dissipadas as aflições, e sem dormir havia
quatro dias tamanhas eram suas aflições, preocupações e tristezas, além do seu
muito cismar, ¢Alå’udd∑n foi para um dos lados do palácio e dormiu sob uma
árvore, pois o palácio, conforme já mencionei, estava em meio aos pomares da
África, fora da cidade.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
580ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n dormiu aquela noite ao lado
do seu palácio, sob a árvore, com todo o conforto, e malgrado quem esteja com a
cabeça a prêmio não durma à noite, a fadiga e a insônia durante quatro dias
seguidos impuseram o sono, fazendo-o dormir até o amanhecer, quando ele
acordou com o piar dos passarinhos e foi até um rio — que corria para dentro da
cidade — lavar as mãos, o rosto e abluir-se, após o que realizou a prece matinal.
Assim que terminou, foi acomodar-se sob as janelas dos aposentos da jovem
dama Badrulbudœr, a qual, muito pesarosa pela separação do marido e de seu
pai, o sultão, além da enormidade do que estava sofrendo nas mãos do maldito
feiticeiro magrebino, diariamente, na mais tenra alvorada, acordava e chorava,
sem conseguir dormir à noite, de forma alguma, e muito menos comer ou beber.
Por capricho do destino, a criada que subia as escadas para vesti-la abriu as
janelas naquele instante, para distraí-la com as árvores e os rios, e avistou
¢Alå’udd∑n, seu patrão, sentado ali debaixo. Disse então para a jovem dama:
“Patroa, patroa! Não é o meu patrão ¢Alå’udd∑n que está sentado ali embaixo
no palácio?”. A jovem dama Badrulbudœr se levantou rapidamente, olhou pela
janela e o viu, e ¢Alå’udd∑n ergueu a cabeça e também a viu. Ambos se
saudaram planando de felicidade e ela lhe disse: “Venha, entre pela porta secreta,
pois o maldito não está aqui agora”, e ordenou à criada que descesse e lhe
abrisse a porta secreta. ¢Alå’udd∑n entrou e a mulher o recebeu à porta,
abraçaram-se, beijaram-se com toda a felicidade, pondo-se a chorar tamanha era
a sua alegria. Depois sentaram-se e ¢Alå’udd∑n disse a ela: “Jovem dama
Badrulbudœr, antes de mais nada quero lhe perguntar uma coisa: eu tinha
colocado uma velha lâmpada de cobre em meu aposento, no local tal…”, e ao
ouvir a jovem suspirou profundamente e lhe disse: “Ai, meu amor, então foi esse
o motivo de termos caído nesta desgraça!”. Ele perguntou: “Como foi que isso
aconteceu?”, e a jovem dama Badrulbudœr o informou de todo o caso, do
começo ao fim, e como eles tinham trocado a lâmpada velha por uma lâmpada
nova, dizendo afinal: “Depois disso, no dia seguinte pela manhã não nos vimos
senão nesta terra. Aquele que me enganou com a troca das lâmpadas me
informou ter sido ele, com a força de sua feitiçaria, quem aprontou essas coisas
conosco por meio da lâmpada. Ele é magrebino da África, e nós estamos na terra
dele”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

581ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, ao término do relato da jovem dama
Badrulbudœr, ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Conte-me quais os propósitos desse
maldito em relação a você. Ele fala sobre o quê? Ele diz o que quer de você?”.
Ela respondeu: “Todo dia ele vem até mim uma única vez querendo atrair o meu
amor, que eu o torne o seu substituto, esquecendo e abandonando você. Ele me
disse que papai, o sultão, cortou a sua cabeça, e também que você é filho de
gente pobre, sendo ele o motivo da sua riqueza. Tenta me conquistar com essas
conversas, mas de mim só vê lágrimas e choro, não ouvindo nada que lhe dê
refresco”.[57] Disse ¢Alå’udd∑n: “Conte-me onde ele guarda a lâmpada. Você
sabe?”. Ela disse: “Sempre a carrega consigo. Impossível separar-se dela por um
só instante. Quando o magrebino me disse as coisas que relatei a você, ele
também tirou a lâmpada do bolso interno, debaixo da axila, para me mostrar”.
Muito contente com tais palavras, ¢Alå’udd∑n disse: “Jovem dama
Badrulbudœr, ouça bem: meu propósito agora é sair e voltar mais tarde, de
roupas trocadas. Não estranhe e tenha sempre uma das criadas parada à porta
secreta para abri-la assim que me vir, eu vou elaborar uma artimanha para matar
esse maldito”. Então, ¢Alå’udd∑n saiu pela porta do palácio e caminhou até
topar, no caminho, com um camponês, a quem disse: “Homem, leve a minha
roupa e me dê a sua”, mas, como o camponês não aceitou, ¢Alå’udd∑n o
obrigou, tomando-lhe as roupas, vestindo-as e entregando-lhe os seus valiosos
trajes. Em seguida, percorreu o caminho que levava à cidade, e ao entrar foi ao
mercado de droguistas, onde comprou, por dois dinares, duas medidas de [pó de]
velenho, um potente narcótico de ação instantânea,[58] tomando a seguir o
caminho de volta até o palácio. A criada postada à porta secreta abriu-a
prontamente quando o viu, e ele foi até a jovem dama Badrulbudœr.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.
582ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ao entrar no aposento da mulher, a jovem
dama Badrulbudœr, ¢Alå’udd∑n lhe disse: “Quero que você se vista bem, se
enfeite, afaste a tristeza e, quando o maldito magrebino vier, dê-lhe as boas-
vindas, receba-o de face risonha e diga-lhe que venha jantar com você. Finja que
esqueceu o seu amado ¢Alå’udd∑n e seu pai, e que passou a devotar-lhe imenso
amor; peça-lhe uma bebida que seja vermelha, finja toda a felicidade e alegria, e
brinde à saúde dele; faça-o beber duas ou três taças de vinho, o suficiente para
que ele se embriague, e então coloque-lhe este pó na taça, enchendo-a de vinho;
tão logo ele beba da taça com o pó, cairá de costas feito morto”. Ao ouvir as
palavras de ¢Alå’udd∑n, a jovem dama Badrulbudœr disse: “Essa é uma coisa
muito difícil de fazer para mim, mas — se for para nos livrarmos desse maldito
repugnante que tanto me afligiu separando-me de você e de meu pai — então a
morte dele é lícita. Maldito!”. ¢Alå’udd∑n comeu e bebeu com a esposa até se
fartar, saindo imediatamente do palácio. A jovem dama Badrulbudœr mandou
chamar a sua criada penteadora, que a arrumou e enfeitou, vestindo em seguida
trajes opulentos e perfumando-se. Enquanto estava nisso, eis que o magrebino
maldito chegou e, ao vê-la naquela situação, ficou muito feliz, e mais ainda
quando ela o recebeu com a face risonha, contrariamente ao costume,
aumentando-lhe o desejo de amá-la e a paixão por ela. Conduzindo-o a seu lado,
ela o acomodou e disse: “Meu querido, se você quiser, esta noite venha aqui para
jantar comigo. Já me basta de tristeza. Mesmo que eu permaneça triste mil anos,
qual a vantagem? ¢Alå’udd∑n não vai retornar do túmulo, e já me convenceram
os seus argumentos, ontem, de que meu pai, o sultão, talvez o tenha matado
devido à sua grande tristeza por se ver separado de mim. Não se admire,
portanto, com a minha mudança de ontem para hoje: o motivo é que eu penso em
tomar você como meu amado e companheiro em substituição a ¢Alå’udd∑n,
pois já não tenho homem senão você. Minha esperança, esta noite, é que você
venha para jantarmos juntos e também bebermos um pouco de vinho. Meu
pedido é que você me faça provar do vinho da sua terra, a África, que talvez seja
melhor. Eu tenho vinho aqui, mas é vinho da minha terra, e o meu maior desejo é
beber do vinho da sua terra”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

583ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o magrebino, ao ver a demonstração de
amor da jovem dama Badrulbudœr e as mudanças em seu estado de tristeza,
supôs que ela perdera as esperanças de ver ¢Alå’udd∑n e ficou muito feliz,
dizendo-lhe: “Ouço e obedeço, minha vida, a tudo o que você deseja e me
ordena. Em minha casa eu tenho um grande jarro de vinho da minha terra, que
há oito anos está guardado num subterrâneo. Vou lá pegar uma quantidade
suficiente para nós e voltar logo para você!”. A fim de enganá-lo mais e mais, a
jovem dama Badrulbudœr disse-lhe: “Meu amor, não vá assim e me deixe! Envie
algum dos seus criados para nos trazer o vinho do jarro e fique aqui comigo para
me divertir!”. O magrebino respondeu: “Minha jovem dama, ninguém além de
mim conhece o local do jarro; não vou demorar!”, e saiu, voltando logo em
seguida com vinho suficiente para ambos. A jovem dama Badrulbudœr lhe disse:
“Foi muito trabalho! Eu deixei você extenuado, meu amor!”. Ele respondeu:
“Absolutamente, meus olhos! É uma honra servir você!”. Em seguida, a jovem
dama Badrulbudœr sentou-se ao seu lado na mesa e puseram-se ambos a comer.
Ela pediu bebida e imediatamente uma criada lhe encheu a taça, bem como a do
magrebino. A jovem dama Badrulbudœr começou a beber pela vida dela,
brindando pela sua própria saúde, e ele também bebeu pela vida dela. Ela passou
a agradá-lo e, possuidora de uma singular retórica e palavras sutis, enganou-o
utilizando termos alegóricos atraentes a fim de lhe acentuar o desejo. Pensando
que aquilo era verdadeiro da parte dela, e ignorando que esse amor não passava
de armadilha montada para matá-lo, o magrebino ficou mais apaixonado e
sucumbiu de amores ao ver aquelas demonstrações fingidas com palavras sutis e
desconcertantes; a euforia lhe subiu à cabeça e o mundo ficou minúsculo aos
seus olhos. Ao final do jantar, percebendo que o vinho já o dominara, a jovem
dama Badrulbudœr lhe disse: “Em nossa terra, temos um hábito que não sei se
aqui vocês também empregam ou não”. O magrebino perguntou: “Qual hábito?”.
Ela respondeu: “Ao final do jantar, cada um pega a taça do amado e a bebe”, e
imediatamente pegou a taça dele, encheu-a de vinho para si e ordenou à criada
que lhe desse a taça em que ela bebia, na qual estava o vinho misturado com o
narcótico, conforme ela instruíra a criada. Todos os criados e criadas do palácio
desejavam a morte do magrebino, e se acumpliciaram contra ele junto com a
jovem dama Badrulbudœr. Então, a criada estendeu a taça ao magrebino, o qual,
ao ouvir as palavras da jovem e ver que ela já bebera da taça dele e lhe dera a
taça dela, achou-se o próprio Alexandre Bicorne por causa de todas aquelas
demonstrações de amor. A jovem dama disse a ele, inclinando-se para os dois
lados, a mão na mão dele: “Minha vida, a sua taça está comigo e a minha taça
está com você! É assim que os amantes bebem, uns nas taças dos outros”, e
virou a taça, bebeu-a inteira, colocou-a sobre a mesa, avançou até ele e beijou-o
no rosto, levando-o a planar de alegria. Com o propósito de fazer o mesmo, ele
levou a taça à boca e bebeu todo o conteúdo, sem cuidar se havia algo ali ou não;
assim que virou a taça, desabou de costas, tal como estivesse morto, e a taça caiu
de suas mãos, deixando feliz a jovem dama Badrulbudœr. Todos foram correndo
e as criadas abriram as portas do palácio para o patrão ¢Alå’udd∑n, que entrou.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

584ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n entrou no palácio e subiu até
os aposentos de sua esposa, a jovem dama Badrulbudœr, a quem encontrou
sentada à mesa e o magrebino diante dela feito morto. Dirigindo-se para a
mulher, beijou-a, agradeceu-lhe por aquilo, muitíssimo contente, e disse por fim,
encarando-a: “Vá com as suas criadas para o quarto lá de dentro e me deixe
sozinho agora, para que eu possa arranjar as minhas coisas”; sem nenhuma
delonga, antes pelo contrário, a jovem dama Badrulbudœr entrou com as criadas
no quarto interno, cuja porta ¢Alå’udd∑n trancou, voltando-se em seguida para o
magrebino e enfiando a mão no bolso interno dele, sob a axila, de onde retirou a
lâmpada; desembainhou a espada, decepou-lhe [a cabeça] e em seguida esfregou
a lâmpada, surgindo então na sua frente o escravo-gênio, que lhe disse: “Eis-me
aqui, meu senhor! Que deseja?”. ¢Alå’udd∑n respondeu: “Quero que você retire
este palácio daqui e o transporte até a China, colocando-o de volta no lugar onde
estava, defronte do palácio do sultão”. O gênio disse: “Ouço e obedeço, meu
senhor”. Em seguida, ¢Alå’udd∑n entrou no aposento da esposa, a jovem dama
Badrulbudœr, sentou-se ao seu lado, abraçou-a, beijaram-se e começaram a
conversar enquanto o gênio transportava o palácio e o repunha no lugar, diante
do palácio do sultão. ¢Alå’udd∑n determinou que as criadas servissem a mesa e
se acomodou ao lado da jovem dama Badrulbudœr, e puseram-se a comer e a
beber com toda a alegria e felicidade, até a saciedade. Depois, foram se sentar no
aposento destinado à bebida e ao espairecimento, e ali beberam, conversaram e
se beijaram com toda a volúpia, pois já havia algum tempo que não se viam a
sós, e assim ficaram até que o sol do vinho brilhou em suas cabeças e o sono os
dominou, quando então dormiram em seu colchão com total tranquilidade. Ao
despertar pela manhã, ¢Alå’udd∑n acordou a esposa, a jovem dama
Badrulbudœr, e as criadas acorreram até ela, vestiram-na, arrumaram-na e
enfeitaram-na. ¢Alå’udd∑n vestiu o seu traje mais luxuoso, os dois planando de
alegria por se terem reencontrado após a separação. A jovem dama Badrulbudœr
estava muito feliz porque naquele dia também reencontraria o pai.
Isso foi o que sucedeu com ¢Alå’udd∑n e a esposa. Quanto ao sultão, após
haver libertado ¢Alå’udd∑n, continuou triste com a perda da filha, e a todo
momento e instante sentava-se e chorava por ela tal como uma mulher, pois se
tratava de sua filha única, não tinha outra. Todo dia, pela manhã ao despertar, ele
corria rapidamente à janela e a abria a fim de olhar para a direção do palácio de
¢Alå’udd∑n e chorar até os olhos ficarem secos e suas pálpebras se ulcerarem.
Naquele dia, ele se levantou pela manhã, conforme o hábito, abriu a janela,
olhou e viu diante de si o edifício do palácio, pondo-se então a esfregar os olhos
e olhar bem para se certificar de que se tratava do palácio de ¢Alå’udd∑n, e
então ordenou que lhe trouxessem, naquele mesmo instante, o seu cavalo, que
foi selado, e o sultão montou e cavalgou até o palácio de ¢Alå’udd∑n, que ao vê-
lo chegando desceu para recebê-lo a meio caminho e, tomando-o pela mão,
conduziu-o aos aposentos da jovem dama Badrulbudœr, sua filha, igualmente
saudosa, muito saudosa, do pai; ela desceu pela escadaria que dava no saguão
inferior, sendo abraçada pelo pai, que se pôs a beijá-la e a chorar, bem como ela.
¢Alå’udd∑n os fez subir aos aposentos superiores, onde eles se acomodaram e o
sultão começou a perguntar à filha como estava e o que lhe sucedera.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

585ª
noite
Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a jovem dama Badrulbudœr informou seu
pai, o sultão, de tudo quanto lhe sucedera dizendo: “Papai, não recuperei o alento
senão ontem, quando vi meu marido, que me livrou da prisão do magrebino
feiticeiro e maldito! Não presumo que exista na face da terra alguém mais
repugnante do que ele. Não fosse meu amado ¢Alå’udd∑n eu não teria me
livrado dele, nem você — Deus lhe prolongue a vida — tornaria a me ver,
porque a tristeza e uma enorme aflição tinham me dominado, papai, não apenas
pela separação de você, mas também pela separação do meu marido, a cuja
generosidade serei devedora pelo resto dos dias da minha vida, pois ele me
salvou do feiticeiro maldito”, e pôs-se a relatar ao pai tudo quanto lhe sucedera e
a falar sobre como era o magrebino e o que lhe fizera, e que se fingira de
vendedor de lâmpadas que trocava novas por velhas. [E continuou:] “Tendo
considerado isso falta de senso, a princípio eu ri dele, sem perceber-lhe a trapaça
nem o propósito, e por meio de um eunuco mandei-lhe uma lâmpada velha aqui
dos aposentos do meu marido para ser trocada por uma nova. No dia seguinte,
papai, vimo-nos, com o palácio e tudo quanto continha, na África. Eu não
conhecia as propriedades da lâmpada, por mim trocada, do meu marido
¢Alå’udd∑n, até que ele conseguiu nos localizar e arquitetou uma artimanha que
nos salvou do magrebino. Se o meu marido não nos alcançasse, ele teria me
possuído à força, mas ¢Alå’udd∑n me deu ervas que eu coloquei na taça de
vinho do magrebino e lhe dei de beber; ele bebeu e desabou como um morto.
Depois disso, meu marido ¢Alå’udd∑n veio até mim e, sem que eu saiba o que
ele fez, mudou-nos da terra da África para o nosso lugar, aqui”. Disse
¢Alå’udd∑n ao sultão: “Meu senhor, quando olhei e o vi tal e qual morto,
adormecido graças ao narcótico, disse à jovem dama Badrulbudœr: ‘Entre você
com suas criadas nos aposentos de dentro’, e então ela e as criadas assim agiram,
afastando-se desse cenário aterrorizante. Avancei para o magrebino maldito, meti
a mão no bolso da sua axila e retirei a lâmpada, que a jovem dama Badrulbudœr
me informara estar sempre ali. Assim que peguei a lâmpada, desembainhei a
espada, decepei a cabeça do maldito e lancei mão da lâmpada, ordenando aos
seus escravos que nos transportassem, com o palácio e todo o seu conteúdo, e
nos repusessem aqui neste lugar. E se Sua Excelência estiver duvidando das
minhas palavras, venha comigo e veja o magrebino maldito”. O sultão se
levantou, ¢Alå’udd∑n o conduziu até o aposento onde estava o magrebino, e
então o viu; ordenou imediatamente que recolhessem o cadáver, queimassem-no
e espalhassem as cinzas,[59] e depois abraçou ¢Alå’udd∑n, começou a beijá-lo e
lhe disse: “Perdoe-me, filho, pois eu iria tirar-lhe a vida por causa da ação
asquerosa desse feiticeiro maldito, que o derrubou nesse buraco. Estou
justificado pelo que lhe fiz, meu filho, pois me vi despojado de minha filha,
minha única filha, que para mim é mais valiosa que o meu reino, e você bem
sabe como o coração dos pais é dedicado aos filhos, e ainda mais o meu, que só
tenho a jovem dama Badrulbudœr”, e o sultão ficou se desculpando com
¢Alå’udd∑n e beijando-o.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

586ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que ¢Alå’udd∑n disse ao sultão: “Ó rei do
tempo, você não fez comigo nada que contrarie a lei,[60] e tampouco eu tenho
culpa, que é toda do repugnante feiticeiro magrebino”. O sultão ordenou que a
cidade fosse enfeitada e se iniciaram os festejos e comemorações; ordenou
também que o arauto apregoasse o seguinte pela cidade: “Este dia é um feriado
grandioso no qual as festividades devem tomar conta do reino inteiro pelo
período de um mês, trinta dias contados, graças ao retorno da jovem dama
Badrulbudœr, filha do sultão, e seu marido ¢Alå’udd∑n”. Isso foi o que sucedeu
a ¢Alå’udd∑n e ao magrebino.
Apesar disso, ¢Alå’udd∑n não tinha se livrado do maldito. Embora o seu
cadáver tivesse sido queimado e as cinzas espalhadas ao vento, o magrebino
tinha um irmão bem pior do que ele na feitiçaria, quiromancia e astrologia, tal
como se diz no provérbio: “era uma só fava e se dividiu em duas”.[61] Os
irmãos moravam em pontos opostos do mundo a fim de enchê-lo com as suas
feitiçarias, ardis e trapaças. Sucedeu que certo dia o irmão do magrebino,
querendo saber como estava o irmão, pegou a areia, jogou-a, examinou e
contemplou as figuras formadas, tornou a examinar bem, viu a imagem de uma
sepultura e constatou que o irmão estava morto.[62] Muito triste, e já certo de
que o irmão morrera, tornou a jogar a areia para saber como tinha sido a sua
morte, e em qual lugar, constatando então que morrera na China e que fora a
mais indigna das mortes; tendo também sabido que quem o matara era um rapaz
chamado ¢Alå’udd∑n, imediatamente se preparou e saiu em viagem,
atravessando desertos, terras inóspitas e montanhas durante meses até chegar à
capital imperial da China, onde vivia ¢Alå’udd∑n. Dirigiu-se ao albergue dos
estrangeiros, alugou um quarto, repousou um pouco e foi zanzar pelas ruas da
cidade a fim de entabular um método que o ajudasse a atingir o seu desprezível
propósito, vingar-se de ¢Alå’udd∑n pela morte do irmão. No mercado, entrou
num amplo café[63] no qual se ajuntavam muitas pessoas, algumas jogando
manqala,[64] outras dama, outras xadrez, ou algum jogo qualquer. Acomodou-se
ali e ouviu os que estavam ao seu lado conversando sobre uma velha devota
chamada Få†ima,[65] isolada em seu eremitério fora da cidade, devotando-se a
Deus e não vindo para a cidade senão dois dias por mês apenas. Conversavam
sobre os seus muitos milagres, e ao ouvir tais palavras o feiticeiro magrebino
pensou: “Agora sim encontrei o que eu procurava! Por Deus altíssimo que, por
meio dessa mulher, alcançarei o que procuro!”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

587ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que o feiticeiro magrebino dirigiu-se às
pessoas que conversavam sobre os milagres da velha devota e perguntou a um
deles: “Titio, eu ouvi vocês falando dos milagres de uma santa chamada Få†ima.
Onde ela vive?”. O homem respondeu: “É espantoso como, estando em nosso
país, você ainda não tenha ouvido falar dos milagres da minha senhora Få†ima!
Parece claro, coitadinho, que você só pode ser estrangeiro para não ter ouvido
falar dos jejuns dessa devota, do seu ascetismo, da sua fé excelente!”. O
magrebino disse: “Sim, meu senhor, sou estrangeiro. Minha chegada à terra de
vocês se deu na noite de ontem. Eu lhe imploro que me informe dos milagres
dessa virtuosa, e onde ela vive, pois caí numa desgraça e o meu objetivo é ir até
ela e pedir-lhe que rogue por mim, e quiçá Deus altíssimo e poderoso me livre
dessa desgraça por meio dos rogos dela”. Então o homem lhe falou sobre os
milagres da devota Få†ima, de sua fé, de sua excelente devoção e, conduzindo-o
pela mão, saiu com ele da cidade e mostrou-lhe o caminho que conduzia até
onde ela vivia, numa gruta situada no alto de um pequeno monte. O magrebino
agradeceu efusivamente ao homem, louvou-lhe a generosidade e retornou ao
albergue onde se hospedara. Por obra do destino, no dia seguinte Få†ima desceu
para a cidade. O feiticeiro magrebino saiu do albergue pela manhã e, vendo a
multidão aglomerada, enfiou-se no meio para saber qual era a nova, vendo então
Få†ima parada, e todos quantos tinham alguma dor indo até ela pedir-lhe bênção
e rogos, curando-se de seus males assim que tocados por ela. O feiticeiro
magrebino a seguiu até que ela voltou à gruta e, após esperar o anoitecer, entrou
na loja de um vendedor de bebidas e sorveu uma taça,[66] saindo em seguida da
cidade e rumando para a gruta da asceta Få†ima, onde entrou e a viu dormindo
de costas sobre um pedaço de vime; avançou, sentou-se sobre o seu ventre,
puxou o punhal e gritou com ela, que acordou, abriu os olhos e, ao ver aquele
magrebino de punhal na mão sentado sobre o seu peito querendo matá-la,
assustou-se e teve medo. O magrebino lhe disse: “Ouça, se você disser algo ou
gritar vou matá-la no mesmo instante. Levante-se agora e faça tudo o que eu
ordenar”, jurando-lhe ainda que, se agisse conforme as suas instruções, ele não a
mataria. Få†ima se levantou e o magrebino lhe disse: “Dê-me as suas roupas e
tome as minhas roupas”, e então ela lhe deu as roupas, as tiras de amarrar o
cabelo, o lenço e a mantilha. Ele disse: “Agora é necessário que você me unte
com alguma coisa que torne a cor do meu rosto igual à cor do seu rosto”. Få†ima
foi para o fundo da gruta, apanhou um pequeno pote de pomada, colocou um
pouco na palma da mão e untou-lhe o rosto, cuja cor ficou igual à do rosto dela.
Entregou-lhe também o cajado, ensinou-o como caminhar e como agir quando
fosse para a cidade e lhe colocou no pescoço o seu rosário, entregando-lhe
finalmente um espelho e dizendo: “Veja, agora você não difere de mim em
nada”. Ao olhar, o magrebino verificou que de fato estava bem parecido com
Få†ima, sem tirar nem pôr, e então, tendo obtido o seu intento, traiu a jura que
fizera, pedindo à mulher uma corda, e, quando ela a trouxe, pegou-a e enforcou-
a dentro da própria gruta. Arrastou a morta e a atirou num poço dali, fora da
gruta.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

588ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, após matar Få†ima e atirar o seu corpo
no poço, o magrebino tornou a entrar na gruta, ali dormindo até o amanhecer,
quando então desceu para a cidade, dirigindo-se para o sopé do palácio de
¢Alå’udd∑n, onde foi cercado pela multidão, pois todos estavam certos de que
se tratava de Få†ima, a asceta. Ele começou a agir como ela, colocando a mão
em quem sentia dor, recitando para um os versículos de abertura do Alcorão,
para outros algum dos demais capítulos desse livro, e por outros fazendo rogos a
Deus. A aglomeração e balbúrdia eram tamanhas que a jovem dama
Badrulbudœr pediu às criadas: “Vejam qual é a novidade, e qual o motivo de
tanta balbúrdia”. O chefe dos eunucos foi verificar do que se tratava e voltou
dizendo: “Patroa, essa balbúrdia se deve à senhora Få†ima. Se você quiser,
ordene-me que a traga à sua presença para que ela a abençoe”. Badrulbudœr
respondeu: “Vá trazê-la para mim agora! Faz tempo que eu sempre ouço a
respeito dos seus milagres e virtudes, e tenho muita vontade de vê-la para
receber a sua bênção, pois todo mundo me fala bastante dessas virtudes!”. O
chefe dos eunucos saiu e retornou trazendo o feiticeiro magrebino disfarçado
com a roupa de Få†ima, o qual, vendo-se diante da jovem dama Badrulbudœr,
pôs-se a fazer um mar[67] de rogos a Deus por ela, e ninguém duvidou, em
absoluto, de que se tratasse da asceta Få†ima. A jovem dama Badrulbudœr
levantou-se, cumprimentou-o, acomodou-o ao seu lado e disse: “Minha senhora
Få†ima, meu desejo é que você fique morando aqui para sempre, para que
sejamos abençoados por seu intermédio e também para que eu aprenda com você
os comportamentos de devoção e fé em Deus, tomando-a como exemplo”. Era
exatamente esse o propósito do feiticeiro maldito, o qual, objetivando completar
a sua trapaça, disse: “Minha senhora, eu sou uma pobre mulher que vive no
deserto, e alguém como eu não merece viver nos palácios dos reis”. A jovem
dama disse a ele: “Nem pense nisso, minha senhora Få†ima. Eu lhe darei um
lugar em minha casa para que nela você possa se dedicar à devoção e ninguém a
interrompa. Aqui você poderá adorar a Deus mais do que em sua gruta”. O
magrebino respondeu: “Ouço e obedeço, minha senhora. Não discordo do que
você diz porque as palavras dos filhos de reis não devem sofrer oposição nem
hesitação. Porém, eu lhe rogo que a minha alimentação e residência sejam no
meu quarto sozinha, e que ninguém entre. Não necessito de alimentação
opulenta, ao contrário, basta que você me envie ao meu quarto, por intermédio
da sua criada, um pedaço de pão e um gole d’água. Quando tiver fome, como em
meu quarto, sozinha”. Com isso, o maldito tencionava afastar o receio de se
denunciar ao erguer o véu para comer e reconhecerem que se tratava de homem,
por causa de sua barba e bigodes. A jovem dama Badrulbudœr lhe disse: “Esteja
tranquila, minha senhora Få†ima, pois não acontecerá senão o que você quiser.
Agora levante-se comigo para eu lhe mostrar o aposento que pretendo arrumar
para você viver conosco”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

589ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que a jovem dama Badrulbudœr conduziu o
feiticeiro que fingia ser a asceta Få†ima ao lugar onde lhe permitira estabelecer-
se, e lhe disse: “Minha senhora Få†ima, é aqui que você vai morar. Este
aposento ficará em seu nome; portanto, viva nele com todo sossego e
tranquilidade interior”.[68] Após o magrebino lhe agradecer a generosidade e
rogar a Deus por ela, a jovem dama Badrulbudœr foi mostrar-lhe a sacada e o
pavilhão elevado de pedras preciosas, com os seus vinte e quatro salões, e lhe
perguntou: “Como você vê este espantoso palácio, minha senhora Få†ima?”. O
magrebino respondeu: “Por Deus, minha filha, que é sumamente assombroso, e
não creio que exista semelhante neste mundo. É extremamente magnífico, mas
— ai! — quem dera contivesse mais uma coisinha que lhe multiplicaria a beleza
e o adorno”. A jovem dama Badrulbudœr perguntou: “Minha senhora Få†ima, e
o que é isso que o adornará? Fale-me a respeito! Eu achava que este palácio era
totalmente perfeito!”. O feiticeiro respondeu: “Minha jovem dama,[69] falta-lhe
ter pendurado no alto da abóbada o ovo de um pássaro chamado roque.[70] Se
tal ovo estivesse pendurado no alto de sua abóbada, este palácio não teria igual
no mundo inteiro”. A jovem dama Badrulbudœr lhe perguntou: “O que é esse
pássaro? Onde encontramos seus ovos?”. O magrebino respondeu: “Minha
jovem dama, esse é um pássaro gigante que carrega camelos e elefantes entre as
unhas, e voa com eles graças ao seu tamanho descomunal. Existe em maior
quantidade na montanha de Qåf. O artesão que construiu o palácio pode trazer o
ovo desse pássaro”. Em seguida, pararam de conversar e, como era hora do
almoço, as criadas começaram a servir a mesa. A jovem dama Badrulbudœr
sentou-se e pediu ao maldito feiticeiro que fizesse a refeição consigo, mas ele
não aceitou nem quis, retirando-se para o aposento que a jovem dama lhe dera, e
as criadas levaram-lhe o almoço para lá. No final da tarde, ¢Alå’udd∑n
regressou da caça, sendo recebido pela jovem dama Badrulbudœr, que o
cumprimentou, e então ele a abraçou, beijou e, ao olhar para o seu rosto, notou
um pouco de chateação, sem nenhum sorriso, ao contrário do habitual.
Perguntou-lhe então: “O que lhe aconteceu, minha querida? Diga-me, algum
problema lhe incomoda os sentidos?”. Ela respondeu: “Nada, de jeito nenhum!
Só que, meu querido, eu achava que no nosso palácio nada faltava, nada, mas,
meu amado ¢Alå’udd∑n, se na abóbada do palácio houvesse pendurado um ovo
da ave roque, não haveria no mundo palácio igual ao nosso!”. ¢Alå’udd∑n lhe
disse: “E é por isso que você está chateada? Isso para mim é a coisa mais fácil de
todas. Fique calminha quanto ao seu desejo. Só me conte como é e eu trago para
você nem que seja do fim do mundo, o mais depressa possível”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

590ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, após suavizar a aflição[71] da jovem
dama Badrulbudœr prometendo-lhe tudo quanto ela pedia, ¢Alå’udd∑n entrou
imediatamente no seu quarto, pegou a lâmpada, esfregou-a e também
imediatamente surgiu na sua frente o gênio, que lhe disse: “Peça o que quiser”.
¢Alå’udd∑n lhe disse: “Quero que você me traga um ovo do pássaro roque e
pendure-o na abóbada do palácio”. Ao ouvir as palavras de ¢Alå’udd∑n, o gênio
contraiu a cara, enfureceu-se e gritou com voz tonitruante dizendo: “Ó ingrato!
Já não lhe basta que eu e todos os escravos da lâmpada estejamos ao seu
serviço? Ainda por cima você quer que eu lhe traga o nosso mestre para alegrá-
lo, pendurando-o na abóbada do seu palácio? Só para ficar contente com a sua
mulher? Por Deus que vocês dois merecem que agora mesmo eu os transforme
em cinzas e os espalhe ao vento! Mas, como eu sei que você e sua mulher são
ignorantes nesta questão e não sabem distinguir a aparência da essência, vou
perdoá-los, pois são inocentes. A culpa toda é do maldito irmão do feiticeiro
magrebino que está morando aqui fingindo ser a devota Få†ima, cujas roupas ele
passou a usar após matá-la em sua gruta; usando os trajes dela e imitando-lhe os
modos, ele veio aqui para destruir você a fim de vingar o irmão. Foi ele quem
instruiu a sua mulher a lhe pedir isso”. Em seguida, o gênio sumiu da frente de
¢Alå’udd∑n, que ao ouvir essas palavras quase endoidou, e, ainda tremendo por
causa dos berros do gênio, ajuntou forças e disposição, levantou-se
imediatamente, saiu do quarto, foi ver a esposa e fingiu estar com dor de cabeça
— por saber que Få†ima era famosa pelo enigma de curar qualquer dor. Ao vê-lo
com a mão na cabeça, reclamando de dores, a jovem dama Badrulbudœr
perguntou-lhe o motivo e ele respondeu: “Só sei que a minha cabeça dói muito”.
Então, a esposa imediatamente mandou chamar Få†ima para passar-lhe a mão na
cabeça. ¢Alå’udd∑n perguntou: “Quem é essa Få†ima?”, e a jovem dama
Badrulbudœr lhe explicou que convidara a asceta Få†ima para morar com eles
no palácio. As criadas então trouxeram o maldito magrebino, a quem
¢Alå’udd∑n se dirigiu fingindo nada saber a seu respeito, cumprimentando-o
como se cumprimentasse a asceta e beijando-lhe a ponta da manga. Deu-lhe as
boas-vindas e perguntou: “Minha senhora Få†ima, eu lhe imploro que me faça
um favor, pois sei que você tem por hábito curar dores, e eu estou com uma
terrível dor de cabeça”. O maldito magrebino mal acreditou nessas palavras, pois
isso era tudo que ele desejava.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu as suas agradáveis histórias.

591ª
noite

Disse D∑nåzåd:
“Se você não estiver dormindo, maninha, conte-nos uma de suas belas
histórias para atravessarmos o serão desta noite”. [¸ahrazåd respondeu:]
Eu tive notícia, rei do tempo, de que, vestido com os trajes da asceta Få†ima,
o feiticeiro magrebino avançou para ¢Alå’udd∑n a fim de pôr-lhe a mão cabeça
e curá-lo de sua dor. Quando se aproximou, pôs uma das mãos na cabeça de
¢Alå’udd∑n, e enfiou a outra debaixo das roupas para puxar um alfanje e matá-
lo. ¢Alå’udd∑n, porém, estava de olho: esperou-o puxar o alfanje, arrancou-o
das suas mãos e o enfiou no seu coração. Ao ver aquilo, a jovem dama
Badrulbudœr gritou e disse: “O que lhe fez essa asceta virtuosa para você
cometer esse terrível crime de sangue? Não tem medo da punição de Deus? Você
matou Få†ima, uma mulher virtuosa, de famosos milagres!”. ¢Alå’udd∑n
respondeu: “Não matei Få†ima, mas sim o assassino dela. Este é o irmão do
maldito feiticeiro magrebino que com a sua magia havia sequestrado você e
transferido o palácio para a África. Este maldito é o irmão dele, que veio a esta
terra, fez estas trapaças, matou Få†ima, vestiu-lhe as roupas e veio até aqui
vingar o irmão. Foi também ele que instruiu você a pedir para mim o ovo do
pássaro roque, a fim de que isso acarretasse a minha destruição. Se estiver
duvidando das minhas palavras, venha ver quem eu matei”, e puxou o véu do
magrebino. A jovem dama Badrulbudœr olhou e, vendo um homem de barba
cerrada, percebeu a verdade na hora. Disse a ¢Alå’udd∑n: “Meu querido, já é a
segunda vez que eu o coloco em perigo de morte!”. ¢Alå’udd∑n respondeu:
“Sem problemas, minha jovem dama Badrulbudœr. Por seus olhos eu aceito
qualquer coisa que provenha de você, com toda a alegria!”. Ao ouvir tais
palavras, ela foi correndo abraçá-lo e beijá-lo dizendo: “Meu querido, é tão
grande assim o seu amor por mim? Eu não sabia nem levava a sério esse seu
amor!”. Então ¢Alå’udd∑n a beijou e estreitou ao peito. O amor entre eles
cresceu. Naquele momento, o sultão chegou e foi avisado de tudo quanto
ocorrera da parte do irmão do feiticeiro magrebino, cujo corpo sem vida lhe
mostraram. O sultão determinou que o queimassem e espalhassem as cinzas ao
vento, tal como se fizera com o irmão. A vida de ¢Alå’udd∑n com a jovem dama
Badrulbudœr prosseguiu com toda a serenidade, pois aqui ele se livrou de todos
os perigos. Passado algum tempo, o sultão morreu e ¢Alå’udd∑n foi
entronizado, reinando com justiça entre os súditos, e todos o amaram; levou com
a esposa, a jovem dama Badrulbudœr, uma vida plena de felicidade, alegria e
regozijo, até que lhe adveio o destruidor dos prazeres e separador das gentes.[72]
Manuscrito "Bodleian Oriental 554", Biblioteca Bodleiana, Oxford
MANUSCRITO "BODLEIAN ORIENTAL 554",
BIBLIOTECA BODLEIANA, OXFORD
A INSÔNIA DO CALIFA[73]
Conta-se, entre as histórias dos mais dversos povos, uma sobre o califa Hårœn
Arraš∑d,[74] mas — afirma quem faz esta narrativa — Deus é que sabe mais
sobre o que já é ausência, e é mais sapiente sobre o que passou e se acabou entre
gentes de tempos antigos.
Certo dia, sentindo o peito opresso,[75] o califa Hårœn Arraš∑d procurou por
seu escravo Masrœr e o chamou: “Masrœr!”. Ele respondeu: “Estou aqui, meu
amo!”. O califa disse: “Hoje sinto o peito opresso, e quero que você me traga
algo que me reconforte coração e mente”. Masrœr respondeu: “Amo, saia até o
jardim, onde você verá árvores, flores e regatos, e ouvirá o canto dos pássaros”.
O califa respondeu: “Masrœr, você descreveu algo que eu estou habituado a ver,
mas nada disso me reconfortará o peito”. Masrœr disse: “Entre no palácio, reúna
as suas criadas diante de si e que cada uma diga o que tiver para dizer. Que
estejam todas enfeitadas de joias e belas roupas. Ao vê-las, o seu peito se
reconfortará”. O califa disse: “Masrœr, queremos algo diferente”. Ele disse:
“Mande convocar os vizires e os seus amigos, comandante dos crentes, e que
eles lhe recitem poesias e lhe narrem notícias e crônicas. Aí então o seu coração
se reconfortará”. O califa disse: “Masrœr, nada disso me será útil”. Ele
respondeu: “Amo, então não tenho outra sugestão que não a de que você pegue
uma espada e me decepe o pescoço, e aí quem sabe, talvez, o seu coração se
reconforte e se dissipe a sua angústia”.
Disse o narrador: Ao ouvir tais palavras do seu escravo Masrœr, o rei Hårœn
Arraš∑d riu e lhe disse: “Vá até a porta e veja se encontra algum conviva”.[76]
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

625ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o rei Hårœn Arraš∑d disse ao seu
escravo Masrœr: “Vá até a porta e veja se encontra algum conviva”. Ele
respondeu “sim” e saiu apressado, encontrando à porta um dos convivas, Ibn
Manßœr Addimišq∑, o qual, conduzido ao califa, recebeu a ordem de sentar-se
diante dele. O comandante dos crentes lhe disse: “Ó Ibn Manßœr, quero que
você me conte algo insólito, e quiçá assim o meu peito se reconforte e se dissipe
a minha angústia”. Ele perguntou: “Comandante dos crentes, você quer que eu
lhe conte algo que ocorreu no passado remoto ou algo por mim visto com os
meus próprios olhos?”. O califa respondeu: “Se você tiver visto algo com os seus
próprios olhos, então conte-nos a respeito, pois aquilo sobre o que se ouviu não é
igual àquilo que se viu”. Ibn Manßœr disse: “Se eu lhe contar essa história,
comandante dos crentes, será absolutamente imperioso que você me dê o seu
ouvido e coração”. Hårœn Arraš∑d respondeu: “Comece a falar, pois eis-me
aqui prestando-lhe atenção com os ouvidos e os olhos, e procurando entender
tudo com o coração”. Disse então Ibn Manßœr:
OS AMANTES DE BASRA[77]
Saiba, comandante dos crentes, que em certo ano fui até o sultão de Basra a fim
de receber um tributo, e quando cheguei encontrei-o pronto para caçar. Saudei-o,
ele me saudou e perguntou: “Quer cavalgar conosco para ir caçar, Ibn Manßœr,
ou prefere ficar na casa de hóspedes e caçar depois?”. Respondi: “Por Deus,
amo, agora não posso montar a cavalo nem lhe suportar a carreira. Deixe-me na
casa dos hóspedes e vá você caçar, mas antes ordene que me tratem bem,
alimentem e deem de beber”, e então ele ordenou que me hospedassem com
comida, bebida e outros, saindo depois para caçar. Sumamente dignificado e bem
tratado, pensei: “Que coisa espantosa, meu Deus! Faz tanto tempo que venho
sempre aqui para Basra e nunca passeei por seus mercados nem por suas ruas.
Me deixe ir agora passear, com o que obterei dois benefícios, digerir a comida e
me recrear nos mercados”. Então vesti o meu traje mais chique e saí passeando
pela cidade. Você sabe, comandante dos crentes, que Basra tem quarenta
quarteirões com a extensão de quarenta parasangas,[78] e enquanto eu passeava
por suas ruas, invadido pela sede, vi-me defronte de uma grande porta — atrás
da qual se destacava uma videira e em cuja fachada pendia uma bistorta[79] — e
parei para contemplar-lhe a beleza, para olhar aquela videira, e eis que lá de
dentro saiu uma cantiga de um fígado em brasas, recitando os seguintes versos
poéticos:

“Menos mal faria ouvir a conversa tua:
se vir o buquê, meu senhor se enfurece”.

Então eu pensei, comandante dos crentes: “Se o dono dessa voz for gracioso,
então ele terá empalmado toda a beleza”. Em seguida, comandante dos crentes,
aproximei-me da porta da casa, pus-me a espreitar um pouco pelas cortinas e eis
que vi uma jovem parecendo a lua brilhante na noite de vinte e quatro, com
sobrancelhas que pareciam a letra “n”,[80] seios como romã, lábios como
cornalina, boca como o anel de Sulaymån, dentes como pérola e coral de alto
valor, pescoço como o das gazelas; enfim, completa na beleza, no talhe, na
esbelteza, no esplendor e na perfeição. Ao vê-la, comandante dos crentes, fiquei
estupefato com a sua beleza, tal como disse a respeito dela um dos que a
descreveram nos seguintes versos poéticos:

“Quando surge, deslumbra com a sua grande beleza,
e, quando parte, a sua separação mata de tristeza:
é como se fora beduína que, graças à sua beleza,
decidiu vestir o seu caráter com os trajos da dureza.
Os jardins do Éden ficam nas dobras de sua túnica,
e o plenilúnio se aninha em torno dos seus colares”.

Então, comandante dos crentes, ela se voltou para a porta da casa e, vendo-me
ali parado, chamou uma das suas criadas e disse: “Veja quem está à porta”. A
criada veio atender e disse: “Ai de você! Um velho encanecido, e com defeitos”.
Eu disse à dona da casa: “Eu tenho uma justificativa, senhora das beldades”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

626ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
Eu disse à jovem dona da casa, comandante dos crentes: “Tenho uma
justificativa”, e ela perguntou: “Qual é a justificativa?”. Respondi: “Estou com
sede”. Ela disse: “Aceitamos a sua justificativa”, e gritou dizendo: “¸ajarat
Addurr,[81] traga-lhe um gole d’água!”. Trouxeram-me então água num jarro de
ouro vermelho cravejado de pérolas, rubis e pedras preciosas, e em cujas bordas
se aspergiram almíscar e âmbar. Comecei a beber, comandante dos crentes, e a
olhar às furtadelas para ela, que me disse quando terminei: “Vá-se embora com a
paz de Deus altíssimo”. Eu disse: “Senhora das beldades, lembrei-me de uma
coisa”. Ela perguntou: “O quê?”. Respondi: “Eu tinha nesta casa um amigo. Não
o vejo há tantos anos que até perdi as esperanças. Como era mesmo o nome
dele…”. Ela disse: “Fulano filho de beltrano, o persa”. Perguntei: “E onde ele
está?”. Respondeu: “Subiu para a misericórdia de Deus altíssimo”. Perguntei:
“Que espantoso! E por acaso ele não deixou descendência?”. Respondeu:
“Deixou uma filha chamada Badrulbudœr”.[82] Eu disse: “Minha senhora,
deixe-me ver a menina”. Ela disse: “Velho, essa conversa já está ficando
comprida, e você vai falando e direcionando. Você pediu água, e então lhe
demos de beber; depois perguntou sobre o dono da casa e se deixou
descendência, e também respondemos. Agora vá embora, velho. Tome o seu
rumo senão vamos expulsá-lo”. Nesse momento, comandante dos crentes, eu
disse a ela: “Minha senhora, veio-me à mente uma coisa”. Ela perguntou: “E o
que lhe veio à mente, velho?”. Respondi: “Vi que o seu estado se alterou e a sua
cor se amarelou. Quero que você me informe qual a sua história, e quem sabe,
talvez, a salvação esteja nas minhas mãos”. Ela disse: “Velho, conte-me quem
você é para que eu me permita aproximações, informações sobre mim e
revelações dos meus segredos. Acaso não ouviu o poeta que, entre as suas
palavras, disse os seguintes versos:

‘Só preserva os segredos o de boa linhagem:
entre os melhores, o segredo já está guardado’?”.

Ao ouvi-la recitar tais versos, comandante dos crentes, eu lhe disse: “Sou Ibn
Manßœr Addimišq∑, servidor do califa Hårœn Arraš∑d”. Quando ouviu o meu
nome, ela se levantou, me cumprimentou e disse: “Muito bem-vindo! Que o
espaço lhe seja amplo, comandante Ibn Manßœr! Você sem dúvida não foi
trazido senão por Deus altíssimo”. E prosseguiu: “Estou apaixonada e liquidada,
Ibn Manßœr!”. Perguntei: “Por quem você está apaixonada?”. Respondeu: “Pelo
meu primo paterno, um jovem excelente”. Não havia em Basra, comandante dos
crentes, nenhum jovem que o superasse em beleza e perfeição. Perguntei a ela:
“Senhora das beldades, porventura ocorreu entre vocês contato ou
correspondência?”. Ela respondeu: “Não. Eu tive por ele uma paixão juvenil. Ele
vinha nos visitar, e nem eu nem ninguém da casa se velava diante dele. Após
algum tempo, ele nos abandonou e parou de vir aqui. Estou perdida de amores
por ele”. Perguntei: “Qual o motivo da separação entre vocês? Por que ele os
abandonou e nunca mais veio?”. Respondeu: “Certo dia ele entrou aqui em casa,
conforme era o hábito, e eu estava sentada com esta criada, que me penteava os
cabelos. Ao terminar de arrumá-los, atraída pelo vermelho das minhas faces, ela
me deu um beijo no mesmo instante em que ele entrava em casa. Ao vê-la beijar-
me face, ele saiu enfurecido”.[83]
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


627ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
O jovem saiu enfurecido, comandante dos crentes, alterado, aflito, preocupado
e irritado, recitando os seguintes versos poéticos:

“É tamanha a abundância da putaria em comum, que
me afasta da paixão, nem que a distância me mate.
Eu disse: ‘Ó alma, veja se faz uma boa penitência,
pois não há notícia de paixão que tenha boa cara’”.

E então ela prosseguiu dizendo: “Depois disso eu nunca mais o vi, comandante
Ibn Manßœr. Dele não me chegou carta nem mensageiro. Contudo, Ibn Manßœr,
quero enviar a ele por seu intermédio uma carta. Se você me trouxer resposta,
terá de mim quinhentos dinares; se não trouxer, cem dinares, para que a sua ida
não seja em vão”. Respondi a ela, comandante dos crentes: “Farei isso, e o que
você quiser”. Ela gritou por uma de suas criadas, a quem disse: “Traga-me
tinteiro e papel”, e então lhe trouxeram. Ela escreveu os seguintes versos:

“Ó encabulador do sol brilhante e do plenilúnio,
ó quem submete os galhos, mas nem sabe como![84]
Porventura irão voltar entre nós os dias de antes,
vingando a proximidade após tamanho abandono?”.

Em seguida, comandante dos crentes, ela selou a carta e a entregou a mim, que a
peguei e fui até o primo paterno dela, Jubayr, constatando que ele saíra para
caçar. Postei-me à porta, à sua espera.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


628ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
Postei-me ali munido da carta, comandante dos crentes, e eis que Jubayr
retornou da caça, inclinando-se sobre a sua égua como se fosse a lua brilhante.
Quando me viu, comandante dos crentes, veio me cumprimentar e abraçar, e se
me afigurou que eu era abraçado pelo mundo com tudo quanto contém. Ele
entrou em casa, convidou-me a entrar, acomodou-me no seu sofá, sentou-se ao
meu lado e ordenou que servissem comida, que foi trazida, muito boa, com
vários gêneros de mesa: doces, alguns salgados, um pouco de fritura, assados e
assemelhados. Observei os recipientes, e eis que neles estavam gravadas
palavras espantosas. O jovem me disse: “Sirva-se, Ibn Manßœr”. Respondi: “Por
Deus, meu amo, que não comerei um só bocado da sua comida até que você me
atenda uma necessidade”, e, tirando o papel, entreguei-o a ele, que, após abri-lo,
lê-lo e compreender-lhe o conteúdo, rasgou-o, jogou fora e me disse: “Se você
tiver outras necessidades que não essa, Ibn Manßœr, eu as satisfarei, mas a dona
desse papel de mim não terá resposta”. Ao ouvir tais palavras, comandante dos
crentes, levantei-me irritado, mas ele me agarrou e disse: “Por vida minha, Ibn
Manßœr, mesmo que a dona deste papel lhe tenha dito: ‘Se você me trouxer
resposta receberá de mim quinhentos dinares’, por favor fique hoje aqui comigo,
e eu lhe darei, da minha parte, quinhentos dinares”. Fiquei lá, comandante dos
crentes, o dia inteiro, comi e bebi, e em seguida lhe perguntei: “Você não ouve
música, meu amo?”. Ele respondeu: “Já faz algum tempo, Ibn Manßœr, que eu
bebo sem ouvir nada, mas por você vou trazer quem toque música”, e deu ordens
a uma das suas criadas, que por seu turno trouxe outra criada do quarto; esta
última veio carregando um alaúde que jamais se vira igual.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver”.

Na noite seguinte, que era a


629ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
A criada veio carregando um alaúde, comandante dos crentes, que jamais se
vira igual. Sentou-se diante de nós, colocou o alaúde no colo, ajustou-lhe as
cordas, experimentou-o com uma palheta admirável e pôs-se a recitar os
seguintes versos:

“Quem nunca da paixão provou doçura ou amargura
não distingue o contato com o amado do abandono;
de igual modo, quem nunca tomou estrada pela noite
não distingue um bom caminho de outro dificultoso;
bebi em longos tragos a taça da sua purulência,
e nisso me submeti ao seu escravo e ao seu nobre.
Por quantas noites vivi a companhia do meu amado,
da sua saliva sorvendo e da doçura da sua boca!
Mas tão curta foi a vida dessa noite de contato,
que parece não ter durado mais que curta aurora.
O tempo que juntos nós passamos já se foi,
mas agora regressou e quer cumprir a promessa.
O tempo já tomou a decisão, não há retorno:
quem pode contestar a ordem de um senhor?”.

Após ouvir a poesia da criada, comandante dos crentes, Jubayr [soltou um
enorme grito, rasgou as roupas e caiu desmaiado. Uma das criadas foi cuidar
dele e me] disse: “Antes Deus o levasse, velho! Faz algum tempo que bebemos
sem ouvir música, e estávamos a salvo das crises do nosso amo. Agora ele ficou
excitado e não está bem. Vá, ó velho, para aquele aposento onde há um colchão,
e durma até o amanhecer”. Então me pus de pé, caminhei até o aposento e dormi
até que Deus bem amanheceu a manhã. Levantei-me, abluí-me, fiz a prece
matinal e eis que um criado chegou carregando um saco com quinhentos dinares
e me disse: “Amo, o meu patrão lhe dá bom dia e diz: ‘Leve estes quinhentos
dinares e que ninguém ouça sobre o que conversamos; quanto à jovem, jamais
torne a me trazer notícias dela’”. Peguei o dinheiro, comandante dos crentes, e
saí pensando: “Meu Deus, que espantoso! A jovem está à minha espera desde
ontem. Por Deus que me é absolutamente imperioso ir até ela e informá-la do
sucedido entre mim e ele”, e assim procedi, encontrando-a parada atrás da porta,
à espera da resposta. Ao me ver, ela disse: “Você não resolveu nada do que lhe
foi pedido, Ibn Manßœr”. Perguntei: “E quem a informou disso?”. Respondeu:
“O homem cuja necessidade é atendida chega feliz com a boa nova, caminhando
a passos largos. Contudo, Ibn Manßœr, entre o transcorrer da noite e do dia algo
o alterou”. E, erguendo os olhos para o céu, disse: “Ó Deus, da mesma maneira
que você me desgraçou com o amor por ele, transfira esse amor de mim para
ele!”;[85] em seguida, entrou em casa, dando-me as costas, e me retirei.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

630ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
A jovem, comandante dos crentes, me deu as costas, e me retirei, dirigindo-me
para um palácio dali, o de Mu¬ammad Ibn Sulaymån, de quem eu tinha algo
para receber. Caminhei até lá para buscar essa coisa, depois fui até o sultão de
Basra, onde também resolvi o que precisava, e retornei a Bagdá. No ano
seguinte, comandante dos crentes, tornei a ir para Basra e quando entrei na
cidade pensei: “Por Deus que é imperioso ir até a casa daquela jovem ver o que
sucedeu entre os dois, ou seja, ela e Jubayr”. Cheguei à porta da casa e fiquei
espiando um pouco pela cortina, conforme fizera da primeira vez, e eis que ela
estava sentada com dez criadas virgens diante de si, todas parecendo o plenilúnio
na noite de vinte e quatro, quando se completa, tal como disse a respeito um dos
que a descreveram nos seguintes versos:

“Se aos politeístas ela fosse mostrada,
fariam dela o seu senhor, e não os ídolos;
se ela cuspisse no mar, mar bem salgado,
sua saliva o tornaria água doce cristalina;
soubesse um monge que no Ocidente ela surgiu,
esqueceria o Oriente e para o Ocidente partiria”.

Então ela se voltou e, vendo-me ali parado à sua porta, reconheceu-me e disse:
“Muito bem-vindo! Que o espaço lhe seja amplo”, e autorizou a minha entrada.
Quando entrei e me sentei, ela me censurou e disse: “Eu o encarreguei de uma
coisa, Ibn Manßœr, e você não a resolveu”. Respondi: “Por Deus que é
imperioso que eu o faça imediatamente”, e saí incontinente dali, comandante dos
crentes, indo até Jubayr, verificando então que o amor se transferira do coração
dela para o dele, que estava desgraçado com tal amor ainda mais do que ela
estivera. Ao me ver, levantou-se, cumprimentou-me, com mais ênfase que na
primeira vez, acomodou-me e falou a respeito dela com o coração abrasado pelo
fogo do amor. Tirou do bolso uma carta que escrevera. Tomei-a da sua mão e lhe
disse: “Não se preocupe, Jubayr”. Nesse momento ele me fez uma promessa
dizendo: “Se você me trouxer resposta, dar-lhe-ei mil dinares”. Saí dali
imediatamente e voltei até a casa da moça, onde entrei apressado, sem a sua
permissão, e a encontrei sentada sozinha; tirei a carta do bolso e a entreguei a
ela, que a abriu, leu e, ao reconhecê-la e compreendê-la, riu e disse: “Asså¢id
não mentiu quando, entre outras coisas, disse os seguintes versos:

‘Fui firme, sem esperar pela sua paixão,
e agora ele vem mandar um mensageiro’”.

Em seguida prosseguiu: “De mim ele nunca mais terá resposta, Ibn Manßœr, tal
como ele procedeu comigo. Da mesma maneira que ele me abrasou o coração,
também eu abrasarei o dele”. Então saí de lá, comandante dos crentes, retornei
ao rapaz e o encontrei acamado por causa da paixão. Quando me viu, ele
perguntou: “O que ela fez, Ibn Manßœr?”. Respondi: “Ela agiu com você tal
como você agiu com ela”. Sua preocupação e paixão aumentaram, e sua
preocupação se intensificou, sem que nenhum dos seus parentes soubesse a
causa da doença.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

631ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Manßœr disse:
Jubayr caiu doente de amores, comandante dos crentes, mas não avisou o
motivo a nenhum dos parentes. O pai do rapaz [trouxe um médico que], ao entrar
e vê-lo naquela prostração, tomou-lhe o pulso, examinou-lhe pele, mãos e
cabeça, mas, incapaz de diagnosticar a enfermidade, abaixou a cabeça sem falar
nada. Jubayr olhou para ele e se pôs a recitar os seguintes versos de poesia:

“Lágrimas dos olhos me escorrem pela face,
meu coração que a enorme ansiedade devastou,
meu corpo esquálido de paixão e desespero,
este corpo cujo crânio agora está bem vazio;
meu amado me impediu de me apaixonar,
mas eu disse: ‘No mundo não tenho segundo’;
quem morava em meu recôndito me ignorou,
deixando-me largado e doente de tanta paixão;
encerrei-me na cama mas abandonei o sono,
pois aquele que ama a noite nela não dorme.
Então veio ver o que eu tenho um médico,
destro conhecedor dos males de quem ama:
examinou os meus ossos e abaixou a cabeça
dizendo: ‘Coitado, seu caso não tem jeito’”.

Em seguida, comandante dos crentes, ele se voltou para mim e disse: “Se você
não me trouxer resposta, Ibn Manßœr, eu vou morrer”. Eu disse: “Hoje, de
qualquer maneira, lhe traremos resposta”. Saí dali e fui até ela, que encontrei
sentada. Entrei, beijei-lhe as mãos, agradei-a, dirigi-lhe palavras suaves e tentei
seduzi-la para obter uma resposta. Ela disse: “Se escrevermos a resposta, Ibn
Manßœr, não será senão para agradar você. Mas se eu de fato responder, não
entregue senão depois que ele cumprir a promessa feita a você”. Eu disse: “Que
Deus a recompense por mim, senhora das beldades”. Ela mandou trazer tinteiro,
papel, e nele escreveu os seguintes versos de poesia:

“Não tenho nada com vossa promessa e traição:
vós lavastes as mãos, de mim despreocupados,
afastando-vos, demonstrando a maior secura e
traindo: é da vossa parte, pois, que veio a traição;
eu ainda vos preservava, de vosso afeto zelosa,
protegendo vossa honra e por vós me arreceando;
mas então avistei o mal que de vós se escapava
e ouvi horríveis notícias do que de vós se falava:
porventura o meu destino deve ser amar-vos,
ser vós o meu amor, e por vós ter de jurar?”.

Então eu disse a ela: “Por Deus, senhora das beldades, assim que ele ler esta
carta o seu sopro vital lhe abandonará o corpo!”. Ela disse: “Ibn Manßœr, você
não é mensageiro! Não passa de um fofoqueiro!”. Então respondi a ela,
comandante dos crentes: “Por vida minha, veja se lhe escreve outra carta que não
estes versos”. Levantei-me, entrei num aposento e escrevi os seguintes versos
poéticos:

“Mesmo uma parte do meu amor por vós
já é a mais forte dentre todas as criaturas,
mas sabei que inda assim eu estou aquém:
vossa posição é a mais alta no meu coração”.

Eu disse a ela: “Senhora das beldades, é este o papel que irá curar a doença
dele”. Então ela pegou a folha, dobrou-a, selou-a e a entregou a mim, que a
recolhi e fui até Jubayr, encontrando-o já levantado da cama, sentado, à espera
da resposta. Ao me ver, recebeu-me, entreguei-lhe o papel e ele o abriu, leu,
entendeu e, quando terminou, soltou um suspiro tão forte que o seu sopro vital
quase saiu junto, despencando ao solo inteiramente desmaiado.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

632ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Manßœr disse:]
Jubayr despencou ao solo inteiramente desmaiado, e ao acordar me perguntou:
“Ibn Manßœr, esse papel foi escrito com a própria mão dela ou com a falange
dos dedos?”. Respondi: “As pessoas costumam escrever com os pés”. Mal
concluí tais palavras e, juro por Deus, comandante dos crentes, eis que ouvimos
o som dos chocalhos dela, que chegava com uma das suas criadas. Ao vê-la, ele
perguntou: “É assim que são os corações?”. E, agarrando os seus dedos, beijou-
lhes as pontas. Depois, ele se sentou, mas ela não o fez. Perguntei: “Por que não
se senta conosco?”. Ela respondeu: “Por Deus que só me sentarei caso se cumpra
o trato existente entre nós”. Perguntei: “E qual o trato entre vocês?”. Ela
respondeu: “Ninguém deve se intrometer nos segredos dos amantes”. Em
seguida, comandante dos crentes, ela acorreu até ele e lhe segredou algo, ao que
ele respondeu: “Com muito gosto e honra”, e então, por sua vez, segredou algo a
um dos escravos, o qual se levantou e retornou com um juiz e duas testemunhas.
Jubayr pegou um saco contendo mil dinares e disse: “Sente-se, ó juiz, e registre
este dote oficial”. O juiz sentou-se e registrou o contrato de casamento deles.
Badrulbudœr abriu o saco, encheu a palma da mão com um punhado de dinares e
os entregou ao juiz; em seguida, repetiu o gesto e os entregou às testemunhas;
depois, entregou o restante para mim. O juiz e as testemunhas se retiraram,
permanecendo somente eu com os dois. Serviram comida, e nós comemos,
bebemos e lavamos as mãos. Após permanecer ali por longo período, pensei:
“Eles se amam, e há tempos esperam um pelo outro. Vá-se embora e deixe-os
em paz, para que fiquem sozinhos e se desfrutem”. Quando me pus de pé, ela me
segurou e disse: “Mas, Ibn Manßœr, a história não é assim!”. Perguntei: “Que
história?”. Ela respondeu: “Se quiséssemos que você se retirasse, nós o
dispensaríamos, sem você pedir. Não o deixaremos ir embora. Sente-se
conosco”. Então me sentei com eles por um período mais longo que o anterior,
após o que ela me disse: “Pode sair, Ibn Manßœr, mas não expulso!”, e então me
retirei dali após ter sido dignificado e bem tratado, cada um deles me dando
quinhentos dinares. Ignoro o que lhes aconteceu depois disso.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Ao ouvir a história de Ibn Manßœr, diminuiu um
pouco da preocupação e tristeza de Hårœn Arraš∑d, mas ele não sentiu nenhum
alívio naquela noite. Quando amanheceu, convocou o seu vizir, o barmécida Ja
¢far Bin Ya¬yà, e lhe disse: “Ja¢far!”. O vizir respondeu: “Eis-me aqui, que
Deus lhe prolongue a vida e o preserve!”. O califa disse: “Como sinto o peito
opresso, ocorreu-me de sairmos, eu e você, com o criado Masrœr como
terceiro…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

633ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o califa Hårœn Arraš∑d disse a Ja
¢far: “… com o criado Masrœr como terceiro. Caminharemos pelas ruas de
Bagdá, visitaremos alguns lugares na cidade e quiçá eu veja algo que me divirta
o coração, me alivie a preocupação e me desanuvie este aperto no peito”. Ja¢far
lhe disse: “Saiba, comandante dos crentes, que você é o califa, o governante,
além de primo paterno do mensageiro de Deus.[86] Talvez algum dos moradores
da cidade, ignorando que você a esquadrinha pela noite, diga algo que o
contrarie, ou palavras desagradáveis ao seu coração, e nesse momento você
ordene que o seu pescoço seja cortado. Aí então o que seria espairecimento se
transformará em cólera e equívoco”. Arraš∑d disse: “Juro pelos meus pais e
avós que, ocorra-nos o que ocorrer da parte da pessoa menos importante, diga
ela o que disser, nada lhe faremos. É absolutamente imperioso que
esquadrinhemos nesta noite os mercados da cidade”.
ANDANÇAS DO CALIFA POR BAGDÁ[87]
Disse o narrador desta história: Então Ja¢far disse ao califa: “Comandante dos
crentes, arroje-se e confie em Deus!”; levantaram-se ambos, chamaram Masrœr,
e os três trocaram os trajes que usavam por trajes normalmente usados pelos
bagdalis. Saíram pela porta secreta,[88] perambularam de um lugar a outro e
chegaram a uma rua pela qual avançaram até uma viela que ninguém vira igual
nem mais bela: brisa agradável, varrida, lavada e em seu ponto central uma casa
muito alta, pendurada nas nuvens, com sessenta braças de comprimento e vinte
de largura, porta de ébano cravejada de marfim e laminada com cobre amarelo,
cortina de seda na porta e no alto uma lâmpada de ouro acesa com óleo de
crisântemo iraquiano cuja luz iluminava toda a região.
Disse o narrador: O rei Hårœn Arraš∑d, o vizir e Masrœr estacaram
espantados ante tal visão, bem como com o aroma que aspiravam, proveniente
daquela casa, e que mais parecia a brisa do paraíso. Ficaram contemplando-a,
sua graciosa arquitetura e firmes alicerces, que não tinham igual naquele tempo,
a porta ornamentada com gravuras, bordados de ouro brilhante e linhas escritas
com lazulita. Após sentar-se debaixo daquela lâmpada, com Ja¢far à direita e
Masrœr à esquerda, Arraš∑d disse: “Esta casa não é senão a suma perfeição, Ja
¢far, tamanhos são o seu valor e a sua beleza. O dono deve ter gastado muito
dinheiro e ouro abundante. O aspecto exterior é muito bom. Como será o seu
interior?”. Então, olhando para a soleira superior da casa, viu que nela estava
escrito com tinta dourada, brilhando à luz da lâmpada: “Quem fala sobre o que
não lhe concerne ouve o que não lhe agrada”, e disse: “Ja¢far, o dono desta casa
só escreveu isso por algum motivo. Quero investigar isso. Vamos nos encontrar
com ele e perguntar sobre a razão dessas linhas ali escritas”. Ja¢far disse:
“Comandante dos crentes, essas linhas não foram escritas senão por medo de que
se viole alguma intimidade”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

634ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ja¢far, o barmécida, disse ao rei: “O
dono da casa não escreveu tais linhas senão por medo de ter a intimidade
violada”.
Disse [o narrador]: O califa se calou por alguns instantes, refletindo sobre a
questão, e depois disse: “Bata na porta, Ja¢far, e peça um copo d’água”.
Disse [o narrador]: Então Ja¢far bateu à porta e um escravo perguntou lá de
dentro: “Quem bate à porta?”. Masrœr respondeu: “Abra a porta pra gente,
primo, e nos dê um jarro d’água, pois o patrão está com sede”. Então o escravo
lá dentro foi até o seu amo, o dono da casa, e lhe disse: “Meu senhor, estão
batendo à porta três homens. Eles pediram um jarro d’água”. O dono da casa
perguntou: “Como eles são?”. O escravo respondeu: “Meu senhor, um deles está
sentado sob a lâmpada, com outro ao seu lado e um escravo diante de ambos. Há
neles dignidade e respeito infinitos”. O senhor disse: “Vá até lá e diga: ‘Meu
senhor os convida a ser seus hóspedes’”, e o escravo saiu e lhes falou segundo
fora instruído.
Disse [o narrador]: Então eles entraram e se viram diante de cinco linhas
escritas, cada qual com uma lâmpada pendurada, e em todas a mesma frase,
“Quem fala sobre o que não lhe concerne ouve o que não lhe agrada”. Aquelas
lâmpadas não haviam sido colocadas ali senão a fim de que a escrita ficasse clara
para quem quer que a lesse. Hårœn Arraš∑d entrou e notou um colchão de
sultões, uma casa espantosa, da mais extrema beleza e adorno, bem como cinco
escravos e cinco criados postados em posição de servir. Ao ver aquilo, Arraš∑d
ficou sumamente admirado com a casa e o dono, que lhes dava as boas-vindas.
Depois disso, o jovem dono da casa se sentou em seu colchão, acomodando
Arraš∑d diante de si e Ja¢far e Masrœr um diante do outro, enquanto os escravos
e criados se mantinham de pé, aguardando as ordens do patrão.
Disse [o narrador]: Ele mandou trazer uma grande vela com a qual iluminou
todo o lugar; depois, voltou-se para o rei e disse: “Seja muito bem-vindo, o
espaço seja amplo para o nosso hóspede, a pessoa mais cara para nós. Deus lhe
fortaleça a posição!”. E recitou os seguintes versos poéticos:

“Soubesse quem a visita, a casa se alegraria,
daria alvíssaras, beijaria o lugar onde pisam
e diria, com sua fala muda e tácita, o seguinte:
‘Seja muito bem-vinda, ó gente nobre!’”.

Em seguida, o jovem dono da casa ordenou que lhes servissem comida, refeição
de maiorais, com todos os gêneros e espécies de alimento, e então os criados e
escravos trouxeram o que lhes fora determinado; comeram à saciedade e depois
lhes serviram doces com água de rosas, de sabor espantoso. Nesse momento, o
jovem disse a Arraš∑d e seus acompanhantes: “Felicite-os Deus altíssimo! Não
nos censurem e desculpem-nos por esse pouco que Deus nos possibilitou servir-
lhes nesta noite e ocasião. Não há dúvida de que este dia em que vocês vieram é
[muito feliz para nós]”.
Disse [o narrador]: Eles lhe agradeceram e o peito e o coração de Arraš∑d
espaireceram, findando-se a angústia que sentia. O rapaz os transferiu para outro
local, onde os acomodou nos colchões mais elevados e lhes ofereceu uma
travessa com frutas de toda qualidade; ordenou que servissem alimentos cozidos
e fritos e colocou tudo diante dos hóspedes, providenciando em seguida
apetrechos para bebida e, junto com a bebida, quatro grupos musicais de
cantoras, cada qual composto por cinco moças, num total de vinte cantoras.
Assim que entraram, todas beijaram o chão diante do jovem e se sentaram, cada
qual no seu lugar; as taças começaram a circular, o mau agouro foi-se embora e
os pássaros bateram as asas[89] por algum tempo enquanto eles ouviam as
cantoras [do primeiro grupo] com os alaúdes e demais instrumentos; logo depois,
as cinco cantoras do segundo grupo deram um passo adiante e cantaram de
maneira maravilhosa, tal como fizera o primeiro grupo, e assim sucessivamente
um grupo tocou após o outro até todas as vinte cantoras se exibirem. Ao ouvir
aquilo, Arraš∑d estremeceu de êxtase.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

635ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Arraš∑d estremeceu de êxtase,
espanto e alegria graças à intensa felicidade, a tal ponto que rasgou as roupas, e
então o dono da casa disse ao vê-lo assim agir: “Que se dilacere o coração dos
seus inimigos!”. Entre as cantoras havia uma que recitou a seguinte poesia:

“O mundo se estreita quando tu não estás perto;
ausente de mim, do meu coração não te ausentas.
Tenho ânsias por ver o meu amado,
tal como Ya¢qœb[90] quando aprisionado”.

Disse o narrador: Então foi Ja¢far que ficou intensamente extasiado e rasgou as
roupas, tal como fizera o califa. Ao vê-los agirem assim, o dono da casa ordenou
que lhes trouxessem novos trajes adequados, trocando-os pelas roupas rasgadas.
O jovem disse: “Meus senhores, seja a sua vida agradável, felicite-os Deus,
espaireça-lhes o peito, expulse de vocês o que os incomoda e lhes mantenha a
força e a alegria!”. Em seguida, ordenou a outra jovem que cantasse o que sabia,
e ao ouvi-la o escravo Masrœr rasgou as roupas tal como haviam feito Arraš∑d e
o vizir. O dono da casa mandou trazer-lhe um novo traje adequado, fazendo-o
vesti-lo após despir-se das roupas rasgadas. Então o rapaz ordenou que uma das
jovens do quarto grupo cantasse, e ela cantou o seguinte:

“Contigo está meu amor, parecendo lua,
embora sua luz supere a do plenilúnio,
pois ela jamais cessa de se enfraquecer,
ao passo que a dele supera a perfeição”.

Disse [o narrador]: Então o dono da casa soltou um terrível grito, rasgou as
roupas e caiu desmaiado. Ao observá-lo caído, Arraš∑d, notou-lhe nos flancos
marcas de chicotadas e bastonadas e, intrigado, disse a Ja¢far: “Estou admirado
com este rapaz, com sua nobreza, generosidade e decoro, Ja¢far. Mas veja o
tanto de vergastadas que sofreu. Isso é que é o espanto!”. Ja¢far disse: “Amo,
talvez alguém lhe tenha tomado muito dinheiro e fugido em falência,
provocando a cólera do proprietário do dinheiro, que o agrediu; ou então alguém
o caluniou e ele caiu nas garras de algum sultão, que o surrou; ou então ele
incorreu em algum lapso de língua e o destino agiu contra ele”. Arraš∑d disse:
“Ja¢far, esse jovem não tem o jeito de nada do que você mencionou”. O vizir
respondeu: “Você está certo, amo, pois nós pedimos a esse rapaz um jarro d’água
e ele nos introduziu em casa, nos dignificou dessa maneira e desanuviou o nosso
coração, tudo graças à sua grande generosidade, à sua grande bondade”.
Disse [o narrador]: Arraš∑d continuou conversando com o seu vizir,
enquanto o rapaz não despertava da letargia. Nesse momento, uma das jovens
pronunciou-se e cantou os seguintes versos de poesia:

“O bastão lhe enfeita a estatura, como vedes,
e a gazela ama observá-lo quando ele canta;
foi a beleza que lhe criou tanta formosura,
e então de todos os corações ele se apoderou”.[91]

Disse [o narrador]: E eis que então o rapaz soltou um grito terrível, mais forte
que o primeiro, esticou as mãos para as próprias roupas e as rasgou e dilacerou,
caindo de novo desmaiado; seus flancos ficaram mais desnudos que antes, e suas
costas inteiras apareceram. Ao presenciar aquilo, Arraš∑d ficou mais impaciente
ainda, o peito perplexo, e disse: “É absolutamente imperioso, Ja¢far, perguntar
sobre esses vestígios de vergasta”. Enquanto eles assim discutiam sobre ele, eis
que o rapaz despertou e os seus criados lhe trouxeram um novo traje e o
vestiram. Arraš∑d avançou para o dono da casa e lhe disse: “Rapaz, você foi
generoso conosco, nos tratou bem e fez por nós o que ninguém mais faria, nem
sequer uma parte, mas em meu coração resta uma palavra…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

636ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Arraš∑d disse ao jovem dono da casa:
“Resta em meu coração uma palavra que, se acaso não for proferida, o manterá
engasgado, e tudo o que você fez por nós de nada terá valido. Queremos de você,
de seu nobre mérito, que complete o seu gracioso favor”. O rapaz perguntou: “E
o que você quer, ó senhor?”. Arraš∑d respondeu: “Quero que você me informe
sobre as vergastadas nos seus flancos, e me revele o motivo”.
Disse [o narrador]: Ao ouvir aquilo, o rapaz abaixou a cabeça, chorou por
algum tempo, limpou o rosto, ergueu a cabeça e lhe disse: “O que o leva a se
ocupar disso? Mas a culpa é minha. Eu mereço muito mais! Seus filhos de gente
nojenta, por acaso não leram as linhas escritas na porta da minha casa? E agora
ficam indagando sobre o que não lhes concerne? Pois então vão ouvir o que não
lhes agradará. Se não tivessem entrado na minha casa não teriam espionado a
minha situação e os meus defeitos. Mas a verdade está com aquele que disse,
entre outras coisas, esta poesia:

‘Plantamos a mercê e nos deram o contrário:
ei-lo aí o proceder dos canalhas traiçoeiros’”.

O rapaz prosseguiu: “Ó escória da humanidade! Vocês pediram um jarro d’água
e nós os introduzimos em nossa casa, dignificamos e lhes demos boas-vindas;
vocês comeram das nossas provisões e do nosso sal, e observaram as nossas
mulheres. Nós supúnhamos que fossem [boa] gente, mas eis que vocês mostram
ser gente de outra qualidade! Ai de vocês! Quem são?”, e pôs-se a execrá-los,
sem saber que se tratava do califa Hårœn Arraš∑d, que lhe disse: “Somos de
Basra”. O rapaz respondeu: “É verdade, pois de Basra não vêm senão a gente
mais abjeta e os intelectos mais vis. Mas levantem-se, vergonha da humanidade,
agourentos e sórdidos, e deem o fora daqui. Amaldiçoe Deus quem fala sobre o
que não lhe concerne”.
Disse o narrador: Imediatamente,[92] Ja¢far e Masrœr se retiraram,
envergonhados do rapaz e dos xingamentos que dele ouviram. Saíram todos dali
e Arraš∑d — com o humor alterado, a jugular inchada e uma veia despontando
entre os olhos — disse: “Ai de você, Ja¢far! Vá agora mesmo até fulano, o
delegado…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

637ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Arraš∑d disse a Ja¢far: “Ai de você,
Ja¢far! Vá agora mesmo até o delegado fulano e diga-lhe que reúna um grupo de
homens armados de bastões de ferro, dirijam-se todos até a casa do rapaz e a
destruam tão completamente que ela fique na mesma altura do solo, a fim de não
lhe restar vestígio algum sobre a face da terra”.
Disse o narrador: Ja¢far disse então a Arraš∑d: “Comandante dos crentes,
desde o início era justamente isso que temíamos. Qual era o nosso trato?
Portanto, meu amo, não destrua o bom por causa do ruim. Trata-se de uma ação
incorreta, e até mesmo hedionda. Certo sapiente já disse: ‘O generoso não se
conhece senão na hora da cólera’. Ademais, comandante dos crentes e califa do
senhor dos humanos, você jurou que, mesmo se insultado pela mais maligna das
pessoas, não a puniria, não responderia nem manteria essa enormidade[93] no
coração, e o rapaz, meu amo, não fez nada de mau, pois o erro partiu de nós: ele
já havia alertado e advertido, e escrito várias vezes que ‘quem fala sobre o que
não lhe concerne ouve o que não lhe agrada’. Portanto, você não deve matá-lo, e
sim enviar o delegado para trazê-lo até nós, e quando ele chegar, tratá-lo com
gentileza até que o seu terror se abrande e o seu assombro se dissipe, e só então
ele contará o que lhe sucedeu”. Arraš∑d respondeu: “Esse é o procedimento
correto. Que Deus bem o recompense, Ja¢far! É de gente como você que
consistem os vizires amigos e administradores das coisas dos reis”.
Disse o narrador: Hårœn Arraš∑d subiu para casa junto com Masrœr, e
ambos entraram pela porta secreta já mencionada, de modo que ninguém os
notou. Quanto a Ja¢far, ele chegou à sua casa, refletiu como resolveria a questão,
com o envio do delegado para trazer o jovem, e então fez meia-volta e se dirigiu
a pé até o delegado, a quem informou do caso do rapaz, cuja casa descreveu, e
disse-lhe: “É absolutamente imperioso que você nos traga esse rapaz logo pela
manhã. Porém, conduza-o com lhaneza[94] e trate-o com cuidado, sem o
aterrorizar nem assustar”. Depois disso, Ja¢far retornou para casa e o delegado
foi cuidar do assunto.[95] Quando amanheceu, o delegado, na companhia de um
único escravo, dirigiu-se até a casa do rapaz, batendo na porta ao chegar, e ele
próprio veio atender. O delegado, reconhecendo-o graças à descrição de Ja¢far,
ordenou-lhe que o acompanhasse. O coração do rapaz se aterrorizou.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a


638ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, tendo recebido do delegado a ordem
de acompanhá-lo, o rapaz ficou aterrorizado com aquela visão e assombrado
com aquilo, mas o homem lhe disse: “Você não corre perigo. Atenda o
comandante dos crentes”. Ao ouvir tais palavras, o rapaz, ainda mais
atemorizado e assombrado, entrou em casa, despediu-se dos familiares e filhos e
saiu, na companhia do delegado, dizendo: “Ouço e obedeço a Deus e ao
comandante dos crentes”. Subiu em sua montaria e avançou ao lado do delegado
até a casa do califa Hårœn Arraš∑d, onde pediu e recebeu permissão para entrar.
Ao se ver diante do califa, o rapaz se acalmou e sua língua se soltou. Beijou o
solo, acomodou-se polidamente e falou com língua escorreita, sem terror nem
temor, recitando a seguinte poesia:

“Seja a paz sobre esta morada, a qual,
sublime, é do comandante dos crentes,
morada e deleite do nosso amo Arraš∑d,
mais digno que os céus e ainda se eleva;
apressei-me no que escrevi nas paredes,
mas era a culta escrita de um tartamudo”.

Em seguida, prosseguiu: “A paz esteja sobre você, comandante dos crentes. Deus
lhe prolongue a vida e o felicite mediante o que lhe concedeu”. Arraš∑d ergueu
a cabeça, respondeu a saudação e a um sinal seu o vizir Ja¢far, que ali se
encontrava naquele instante, pegou o rapaz pela mão e o conduziu até perto do
califa, acomodando-o ao seu lado. Arraš∑d lhe disse: “Aproxime-se de mim”, e
o rapaz se aproximou até encostar nele. Então o califa lhe perguntou: “Qual o
seu nome, meu jovem?”. Ele respondeu: “Meu nome é Manjåb, o que perdeu
toda esperança de viver, e que há um ano padece de tormentos”. Arraš∑d lhe
disse: “Manjåb, o bem se paga com o bem, e quem inicia é o mais generoso; já o
mal se paga com o mal, e quem inicia é o mais injusto. Quem planta o bem colhe
o bem, e quem planta o mal colhe o mal. Saiba, Manjåb, que ontem éramos nós
os seus hóspedes. Contudo, não é sua culpa, pois fomos nós os intrusos após
você nos ter sumamente dignificado e tratado da maneira mais prodigamente
generosa. Seja como for, eu gostaria que você nos contasse o motivo daqueles
golpes no seu corpo. Não há perigo algum”. Manjåb respondeu: “Se pretende
ouvir, comandante dos crentes, coloque a almofada à sua direita e me dê três
[coisas]: sua audição, sua visão e seu coração”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

639ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o rapaz disse a Arraš∑d: “Deixe à
minha disposição três coisas suas: audição, visão e coração, pois a minha história
é espantosa e, fosse ela registrada com agulhas no interior das retinas, seria uma
lição para quem reflete, e um pensamento para quem pensa”.
OS SOFRIMENTOS DO JOVEM MANJÅB
Saiba, comandante dos crentes, que o meu pai era joalheiro, bom conhecedor da
matéria, e eu o seu único filho varão. Quando cresci e desempenei, Deus me deu
uma boa parte e cota de beleza, perfeição, formosura e esplendor, e o meu pai me
deu a melhor criação. Depois de mim, Deus o agraciou com uma menina.
Quando atingi a idade de vinte anos, meu pai se mudou para a misericórdia de
Deus altíssimo, deixando para mim um milhão de dinares em propriedades,
terras e posses. Providenciei-lhe uma mortalha adequada e demais assessórios
utilizados no funeral, acompanhei-o até o enterro, por sua alma recitei dez vezes
o Alcorão completo e distribuí muitas esmolas, guardando luto por ele durante
um mês inteiro, ao cabo do qual meu coração se aferrou à diversão e ao jogo, à
comida e à bebida. Fui generoso, distribuí dinheiro, dei esmolas com o cabedal
herdado, comprei terras valiosas e em seguida escravas cantoras a preços bem
elevados. Se algum companheiro meu se agradava de alguma escrava cantora, se
a apreciava, eu a dava para ele gratuitamente, e, indo além, eu a dava
acompanhada de um presente. Qualquer um que visse algo do seu agrado e me
dissesse: “Isso é bacana”, eu o dava a ele gratuitamente. Presenteei meus
companheiros com túnicas valiosas e lhes concedi as mais elevadas
dignificações com tudo quanto eu tivesse e fosse de minha propriedade.
[Disse ¸ahrazåd:] E o rapaz recitou a seguinte poesia:

“Vem, meu conviva, ter prazeres e emoções;
impaciente estou para sorver da uva o sumo!
Acaso não vês que partiu o exército da noite,
derrotado, e os exércitos da manhã espreitam?
As flores riem, as rosas silvestres se sorriem,
e o incenso e o aloés já foram bem dispostos!
Essa é a vida, meu amo, esse o seu regozijo,
e não ficar às portas de casa, com os livros”.

[Prosseguiu o jovem Manjåb:] Ao observar esse meu proceder, comandante dos
crentes, a minha mãe me advertiu mas eu não me emendei. Certa de que o
dinheiro seria irremediavelmente perdido, ela o dividiu entre nós dois,
exatamente a metade: uma para ela e a sua filha, e outra para mim. Em seguida,
afastou-se de mim com as suas posses e me deixou, indo morar longe e me
abandonando à diversão e embriaguez. Continuei a comer e a beber, a me alegrar
e deleitar com a companhia de graciosas coquetes, até que os dias me atingiram
com os seus disparos e o meu dinheiro todo se acabou, não me restando nada por
cima nem por baixo. Eu já não possuía mais nada: endividado, com a casa vazia
— afinal, vendi tudo, utensílios domésticos e até o meu tapetinho de reza. Não
sobrou coisa alguma, e passei a remendar os fundilhos das minhas roupas com
pedaços das mangas, e nessa situação ninguém me acudiu, nem amigo, nem
companheiro, nem amante; nenhum deles me dava sequer um pedaço de pão. A
situação ficou tão difícil que todos passaram a me evitar, não restando entre os
meus companheiros e amados ninguém que pensasse em mim: se por acaso eu
cruzava com algum pelo caminho ou numa reunião, ele se desviava. Passei a
arrancar pedaços do piso da casa para vender e sobreviver. Certo dia, enquanto
eu tentava arrancar mais um pedaço do piso, eis que debaixo dele se abriu uma
ampla entrada pela qual desci.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

640ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o jovem disse a Arraš∑d:
Então, comandante dos crentes, desci por aquela entrada e encontrei três
caixas, cada qual contendo cinco sacos, e cada saco contendo cinco mil dinares.
Peguei tudo, tirei dali, guardei num cômodo da casa e recoloquei o piso no lugar.
Pensei no que os meus amigos e camaradas haviam feito comigo, e resolvi então,
comandante dos crentes, comprar as mais belas roupas, retomando a postura
anterior. Quando os camaradas e amigos — que antes me frequentavam, com os
quais eu gastava e para os quais dava presentes — me viram em tal estado,
voltaram a me procurar, e eu os aceitei para um jogo a que pretendia submetê-
los. Esperei um mês inteiro — durante o qual eles diariamente vinham me visitar
— e no trigésimo primeiro dia eu trouxe juiz e testemunhas, escondi-os num
aposento e lhes ordenei que fizessem o registro oficial de tudo quanto ouvissem
dos meus camaradas e amigos. Isso feito, preparei a recepção e os chamei. Após
comermos, bebermos e espairecermos, estimulei-os a falar, perguntando a cada
um dos que eu presenteara: “Por Deus, fulano, eu não lhe dei tal e tal coisa sem
nada receber em troca?”, ao que ele respondia: “Sim, você me deu
graciosamente”. Comecei, comandante dos crentes, a fazer tais perguntas a um
por um, até que enfim fiz a todos, enquanto o juiz e as testemunhas anotavam
tudo quanto ouviam deles e as palavras que me dirigiam, não restando nenhum
sem ser questionado. Depois disso, comandante dos crentes, pus-me
apressadamente em pé, e trouxe juiz e testemunhas antes que alguém saísse da
reunião. Para cada um deles se fizera o registro, com o seu nome e o que levara
do jovem Manjåb. Nesse momento, comandante dos crentes, recuperei tudo
quanto tinham levado de mim, voltando tudo a ser minha propriedade. Recuperei
minha anterior condição e tomei consciência de mim,[96] até que certo dia
cogitei, comandante dos crentes, reabrir a loja do meu pai para ali me instalar e,
tal como ele, vender e comprar valiosos tecidos indianos, joias e pedras
preciosas. Fui até o local e encontrei a loja fechada, cheia de teias de aranha.
Contratei os serviços de um homem que a limpou e varreu toda a sujeira.
Quando os mercadores me viram, ficaram contentes comigo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

641ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o jovem Manjåb disse:
Ao me verem, comandante dos crentes, os mercadores e donos de lojas
ficaram contentes comigo e disseram: “Graças a Deus que a loja não foi reaberta
senão pelo dono depois do pai”. Deixei-a tão abarrotada de mercadorias que ela
ficou sem igual no mercado. Entre as coisas que ali pus à venda estava o ônix.
Entrei na loja, instalei-me naquele dia mesmo e comprei, vendi, peguei, dei,
continuando assim pelos nove dias seguintes. No décimo dia, fui ao banho
público e saí com um traje no valor de mil dinares. Fiquei mais bonito, minha
cor reluzia e pareci muito mais novo, a tal ponto que as mulheres quase
atiravam-se sobre mim. Ao chegar à loja, ali me instalei por algum tempo; de
repente ouço uma gritaria proveniente do centro do mercado, alguém dizendo:
“Esperem!”, e eis que surgiu uma mula tordilha com uma sela de ouro cravejada
com pérolas e pedras preciosas, na qual montava uma velha que tinha três
criados diante de si. A velha continuou avançando até parar, juntamente com os
criados, à porta da minha loja; cumprimentou-me e perguntou: “Há quanto
tempo você abriu esta loja?”. Respondi: “Hoje se completam dez dias”. Ela
disse: “Deus tenha misericórdia do dono desta loja, que era um mercador
[generoso]”. Eu disse: “Era meu pai”. Ela perguntou: “É você Manjåb, dos
amores reunidor?”. Respondi: “Sim”. A velha sorriu e perguntou: “Como vai a
sua irmã? E a sua mãe? Como estão os seus vizinhos?”. Respondi: “Estão muito
bem”. Ela disse: “Manjåb, meu filho, você cresceu e virou homem”. Eu disse:
“Quem vive cresce”. Ela perguntou: “Você tem aí um colar de pedras preciosas
que seja gracioso?”. Respondi: “Tenho aqui na loja muitos colares, mas tenho
em casa um gracioso colar. Posso trazê-lo para você amanhã de manhã, se Deus
altíssimo quiser”. Ao ouvir essas minhas palavras, a mulher fez meia volta e foi-
se embora, com os criados atrás dela. No final do dia, fui até minha mãe, contei-
lhe a história ocorrida com a velha e ela me disse: “Manjåb, meu filho, aquela
velha é camareira[97] e tem poder sobre todo mundo, mesmo sobre o seu pai,
antes de você. Seja muito cuidadoso em lhe atender o pedido. Não atrase os
compromissos com ela”. A velha se ausentou por um dia e retornou no dia
seguinte, da mesma maneira que a primeira vez. Assim que chegou à loja me
disse: “Levante-se, Manjåb, e monte nesta mula, em paz e boa saúde”. Então saí
da loja e montei na mula.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite”.

Na noite seguinte, que era a

642ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o jovem Manjåb disse:
Então, comandante dos crentes, montei na mula e avancei com a velha até
uma casa de pedra com a porta bem ampla; apeaneos das montarias e a velha
entrou na casa, comigo atrás, e avançamos até chegar ao fundo, comandante dos
crentes, onde deparei com um tapete de seda e móveis de junco, colchões
dourados, objetos também de ouro, tecidos e utensílios chineses, travessas de
cristal; enfim, vi coisas que não conseguiria descrever-lhe, comandante dos
crentes! Ao lado da casa e dentro dela havia bancos de cobre amarelo liso, sem
desenhos. A velha me fez sentar, comandante dos crentes, no colchão mais
elevado e em seguida me mostrou uma coluna na qual havia desenhos de
diversas espécies de animais e aves, bem como de flores e regatos. Enquanto eu
passeava o olhar por aquelas imagens, eis que surgiu uma jovem e, com voz
aguda e melódica — voz que curaria uma pessoa gravemente enferma —, disse
por detrás de um véu estas palavras: “Quem retirar este véu sofrerá cem
chibatadas”, mas em seguida ordenou que ele fosse tirado e eis que me vi,
comandante dos crentes, em presença de um raio tão brilhante e refulgente que
me ofuscou a vista, a tal ponto que quase dei com a cabeça ao solo; então, vi
uma jovem cujo talhe era como o da lança, uma face como a aurora, reluzindo
como uma estrela entre lâmpadas; suas vestimentas eram opulentas tal como
disse a seu respeito o poeta nesta poesia:

“Ela se inclinou, e o traje da noite, estendido,
quase esteve a ponto de nos ocultar tal visão,
e então seu chocalho ecoou, e depois o colar,
com o som da saudade, e as lágrimas avisaram;
ela me recebeu com uma face que tinha quatro [coisas]:
água, luz, dignidade, e depois uma lâmpada”.

Então, comandante dos crentes, a jovem disse às criadas: “Ai de vocês! Onde
está a camareira?”, e ela apareceu. A jovem lhe perguntou: “Você trouxe o
joalheiro?”. A camareira respondeu: “Sim, senhora das gazelas brancas. É esse
que está aí sentado, parecendo o plenilúnio quando brilha”. A jovem perguntou:
“Velha, é ele mesmo ou algum criado?”. A camareira respondeu: “Não, é ele
mesmo, senhora das gazelas brancas”. A jovem disse: “Por juventude minha que
ter trazido isso aí não a torna merecedora de nada. Nem acredito que por causa
dele você interrompeu a minha refeição! Eu supus que fosse alguém merecedor
disso”. Em seguida, voltando-se para mim, ela disse: “É assim que se apresenta?
Que sujeira! Que roupa imunda de pobretão! Por que não lavou o rosto?”. E eu,
comandante dos crentes, mal acabara de sair do banho público! Meu rosto
brilhava como um raio! Mas naquele momento eu me senti diminuído. Foi
humilhante ela ter me olhado na cara, insultado as minhas vestes e me
ridicularizado, a tal ponto que, diante dela, tornei-me o menor dos minúsculos.
Em seguida ela voltou a me observar e perguntou: “Você é Manjåb, dos
cachorros reunidor, ou, como disseram, dos amores reunidor?[98] Distante esteja
disso! Por Deus, não há nada mais distante de você, Manjåb, do que os amores!
Porém, joalheiro, espere-me comer, e quando terminar conversamos”. Nesse
momento, comandante dos crentes, trouxeram-lhe uma travessa de cristal com
coxas de galinha e um bule de ouro. Ela se sentou na minha frente, comendo
com bons modos e devagar, como se eu na frente dela não fosse sequer humano.
Observando-a levar as porções de comida à boca, notei-lhe nos pulsos desenhos
verdes, antebraço cheio de joias e pulseiras de ouro vermelho. E os dedos
naquela palma de mão branca! Exalçado seja quem a criou, ela que não era
senão um tormento[99] para quem a visse. Louvado seja Deus, o melhor dos
criadores, e tenha ele misericórdia do poeta que disse a respeito da beleza e do
seu detentor os seguintes versos:

“Levanta e me dá vinho, Ibn Manßœr:
não o desculparei se ela me abandonar,
a branca palma de uma dadivosa jovem
que parece ter saído do paraíso das huris;
quiçá víssemos os desenhos no seu pulso,
semelhante ao almíscar em estátua de luz”.[100]

Disse [o narrador]: Em seguida ela se pôs a conversar comigo, comandante dos
crentes, limpando a boca após cada bocado com um lenço bordado, e quando a
sua manga subia lhe aparecia o pulso, tal como disse a respeito o poeta na
seguinte poesia:

“Ela protege seu rosto das pessoas,
com um pulso ornado de perfumes,
que se assemelha, para quem olha,
a uma rara pilastra no círculo da lua”.

Quando terminou de comer, olhei para o seu rosto e ela sutilmente disse:
“Criadas, vejam que, enquanto como, Manjåb olha tanto para mim que fiquei
mais forte!”. E, voltando-se para mim, disse: “Manjåb, qual é o seu problema?
Venha comer desta comida!”. Então avancei, comandante dos crentes, e comi
com ela. Contudo, o meu intelecto estava atônito e embasbacado.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

643ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
Então, comandante dos crentes, avancei e comecei a comer com ela, mas, de
tão atônito e embasbacado que eu estava com a jovem, com a sua beleza, com a
sua visão, comecei a levar a comida aos olhos em vez de à boca, o que a fez rir
de mim e se inclinar de soberba e vaidade, dizendo: “Por Deus que esse aí é um
louco, um palhaço! Não distingue a boca dos olhos?”. Respondi: “Por Deus,
senhora das gazelas brancas, a sua beleza me aturdiu o intelecto e já não sei que
fazer”. Ela perguntou: “Eu lhe agrado, Manjåb?”. Respondi: “Sim, por Deus,
minha senhora, você me agrada”. Ela perguntou: “Qual seria a punição se aquele
a quem eu pertencesse me deixasse e tomasse outra?”. Respondi: “A punição
dele deve consistir em mil chicotadas no flanco direito, mil no flanco esquerdo,
ter a língua cortada, as mãos decepadas e os olhos arrancados”. Ela perguntou:
“Você se casaria comigo dentro dessas condições?”. Respondi: “Minha senhora,
você está brincando comigo e rindo de mim!”. Ela disse: “Não, por Deus! Minha
fala não é senão a verdade”. Eu disse: “Satisfaço-me e aceito tais condições.
Porém, seja rápida e não se demore”. Ao me ver e ouvir assim disposto ao
casamento, ela começou a tremer de êxtase e espanto, inclinando-se diante de
mim, e estive a ponto de perder a razão. Ela se levantou, ausentou-se por alguns
instantes e retornou vestindo um traje ainda mais opulento e belo que o primeiro,
[101] recendendo a perfume por todo o corpo, entre quatro criadas como a lua
luminosa. Ao vê-la naquele estado, soltei um grito e desmaiei, tamanhas eram a
sua beleza e perfeição; tudo isso, comandante dos crentes, devido ao meu desejo
por ela.[102] Quando despertei do desmaio, ela me perguntou: “Manjåb, o que
me diz a respeito da minha beleza e formosura?”. Respondi: “Por Deus, senhora
das gazelas brancas, ninguém neste século se compara a você”. Ela perguntou:
“Portanto, se eu lhe agrado, você aceita aquela condição?”. Respondi: “Aceito,
aceito, aceito”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

644ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue
a história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
Quando a jovem estipulou aquelas condições, comandante dos crentes,
respondi: “Eu aceito, aceito, aceito”; então ela mandou chamar juiz e
testemunhas, que compareceram sem demora, e disse ao juiz: “Ouça a fala do
noivo e registre-a com as mesmas palavras. Trata-se de argumento, documento e
juramento: se ele me trair e se casar com outra, lícita ou ilicitamente, eu lhe
aplicarei mil chibatadas no flanco direito, mil no flanco esquerdo, cortarei a sua
língua, deceparei as suas mãos e lhe arrancarei os olhos”. O juiz me perguntou:
“Podemos testemunhar que isso é verdade?”. Respondi: “Sim”, e ele escreveu,
comandante dos crentes, o testemunho e o juramento. Eu mal podia acreditar.
Em seguida, ela trouxe uma travessa com meio quilo de ouro e mil dirhams de
prata e os distribuiu ao juiz e às testemunhas, que receberam e se retiraram, após
terem redigido o contrato e registrado o juramento. Em seguida, serviu-se
comida e todos comemos e bebemos. Dormi com ela, e tão boa foi a noite, de
um viver tão gozoso, que desejei que o dia não voltasse a raiar, tamanhos eram o
meu regozijo e prazer com aquela mulher que eu nunca vira, nem ouvira, nem
tivera notícia de alguém que se lhe assemelhasse. Permaneci com ela,
comandante dos crentes, sete dias num só ritmo, e quando foi o oitavo ela me
disse: “Manjåb, amor dos amores, leve esta trouxa com mil dinares de ouro para
com eles ampliarmos o seu estoque de colares, pedras preciosas e tecidos, e
melhorarmos a sua loja de um modo apropriado a você, pois eu o quero o
maioral do mercado, proprietário de mais mercadorias que qualquer outro.
Contudo, Manjåb, quero que você se dirija à loja pela manhã e volte para mim
ao meio-dia, a fim de que meu peito não fique opresso com a sua ausência”.
Respondi: “Ouço e obedeço”. Porém, comandante dos crentes, meu desejo e
propósito eram não sair de perto dela, fosse noite, fosse dia, tamanho o prazer
que me proporcionava, ela que a todo instante ia vestir uma roupa diferente, e
sempre que a via em tal estado, comandante dos crentes, eu não me continha e a
possuía, e tampouco ela se continha. Pela manhã, levantava-me e me dirigia à
loja, abria e me instalava ali até o meio-dia, quando então me vinha uma mula
que eu montava e retornava para casa. Minha mulher me recebia sozinha no
saguão, que era onde se localizava a porta do seu palácio, e mal tinha entrado eu
já a abraçava e sofregamente a possuía, após o que ela gritava para as criadas
que nos trouxessem o almoço; comíamos ambos e ela ordenava às criadas que
limpassem o banho, passassem incenso de aloés e âmbar, adicionando água de
rosas, e entrávamos os dois. Tão logo ela tirava a roupa eu sofregamente tornava
a possuí-la por duas ou três vezes, após o que nos lavávamos e enxugávamos
com tecidos de seda de cores ondulantes e toalhas felpudas;[103] ela gritava
pelas criadas, que já tinham aprontado as bebidas, e elas as traziam; nós
bebíamos até o início da tarde, quando então eu montava na mula e me dirigia à
loja, [e ao final do dia,] após ordenar a um escravo que a trancasse, eu retornava
para casa. Assim foi durante dez meses. Certo dia, estando eu sentado na loja, eis
que surgiu, montada em sua camela, uma beduína cujos olhos dançavam sob a
burca de brocado que ela usava. Pareciam olhos de gazela, e ao vê-los,
comandante dos crentes, fiquei perplexo quanto ao que fazer.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

645ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
Olhei para os olhos da beduína sob a burca, comandante dos crentes, que
pareciam olhos de gazela, e nesse momento a desejei, esquecendo-me da
promessa, das testemunhas, do compromisso. Ela avançou para mim e disse:
“Deus lhe dê boa vida, ó melhor dos árabes!”, e respondi: “Melhor seja o seu
viver”. Ela perguntou: “Ó dono da face galharda, você tem algum colar gracioso
que sirva para alguém como eu?”. Respondi: “Sim”, e fui buscar-lhe um colar,
mas ao vê-lo ela disse: “Você não tem nada melhor que isto?”. Então,
comandante dos crentes, mostrei-lhe todos os colares que tinha na loja, mas nada
lhe agradou. Eu disse: “Não existem em nenhuma outra loja colares melhores
que estes”. Foi aí, comandante dos crentes, que ela tirou um colar do pescoço e
me disse: “Queremos um igual a este”. Examinei o colar que ela tirara do
pescoço: nunca tive em minha loja nada igual; aliás, tudo quanto ali se continha
— colares, joias e demais mercadorias — não valia uma única pedra daquele
colar, o que me levou a dizer-lhe: “Ó dona dos graciosos olhos, isso é algo que
ninguém pode ter igual neste nosso tempo,[104] salvo o comandante dos crentes
ou o seu vizir Ja¢far Bin Ya¬yà, o barmécida”. Ela perguntou: “Quer comprá-lo
de mim?”. Respondi: “Não posso pagar o preço!”. Ela disse: “Não quero
dinheiro por este colar; só o que quero de você é um beijo, um beijo em minha
face”. Eu disse: “Senhora das gazelas brancas, beijar sem enfiar é como ser
flecheiro e não poder atirar”.[105] Ela disse: “Quem beija enfia!”, e em seguida,
comandante dos crentes, desmontou da camela, sentando-se comigo no interior
da loja. Então me dirigi aos fundos, ao que ela, inesperadamente para mim, me
seguiu. Quando estávamos juntos no fundo da loja, ela me estreitou ao peito,
apertando os seios contra mim, sem retirar a burca para mostrar o rosto. Não
pude me conter, comandante dos crentes, e nesse momento, ao ver-me estreitado
ao seu peito, também a estreitei e nela me satisfiz da maneira desejada. Depois
que me satisfiz, ela se pôs em pé como um leão que se levanta do lugar e saiu
pela porta da loja, mais ligeira que um pássaro, montando na camela, partindo e
deixando o colar comigo. Tive a impressão, comandante dos crentes, de que
nunca mais voltaria para mim, e o meu coração se contentou com o colar ali
deixado comigo. Estava naquelas reflexões, conjecturando sobre o caso da
mulher, e eis que chegaram os criados [da minha mulher] com a mula.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

646ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o jovem Manjåb disse:
Eis que então os criados [da minha mulher] chegaram com a mula e me
disseram: “Senhor, venha para casa, pois a patroa o está chamando
imediatamente. Ela já preparou o almoço e teme que esfrie”. Por causa dos
criados ali parados com a mula na porta da loja, comandante dos crentes, não
pude lavar-me, e então montei e retornei para casa na companhia deles. Entrei e,
conforme o hábito desde a primeira vez, ela me recebeu e disse: “Amor, o meu
coração hoje ficou preocupado, pois você se atrasou bastante, fora do costume!”.
Respondi: “Hoje no mercado havia muitos mercadores, todos em suas lojas. Eu
não podia sair com todos eles por ali”. Ela me disse: “Meu amado, consolo da
minha alma, agora mesmo eu estava lendo o Alcorão Sagrado e me confundi na
recitação de uma coisinha no capítulo de Yå S∑n.[106] Gostaria que você me
corrigisse para que eu o decore com base na sua leitura”. Eu disse: “Senhora das
gazelas brancas, agora não posso tocar no Alcorão nem recitá-lo”. Ela
perguntou: “Qual o motivo?”. Respondi: “Estava eu sentado num canto da loja e
então tive uma polução”.[107] Ela disse: “Bom, se essas palavras forem verdade,
então a sua ceroula está suja. Tire-a para que eu a lave”. Eu disse: “A ceroula não
se sujou porque eu a havia tirado antes de me sentar”. Ao ouvir estas minhas
palavras, comandante dos crentes, ela chamou um dos escravos, cujo nome era
R∑hån, e lhe disse: “R∑hån, vá abrir a loja e traga de lá a ceroula”.[108] Eu
disse a ela: “Senhora das gazelas brancas, eu a dei como esmola para uma velha
de cabeça descoberta cuja situação e pobreza me incomodaram”. Ela me disse:
“Por acaso não era uma velha montada numa camela, dona de um colar valioso,
e que o vendeu para você em troca de um beijo? Aquela para quem você disse:
‘Dona dos olhos graciosos, beijar sem enfiar é como ser flecheiro sem ativar’?”.
Quando ela concluiu tais palavras, comandante dos crentes, voltou-se para as
criadas e lhes disse: “Tragam-me a cozinheira Sa¢∑da agora mesmo!”. Tratava-
se de uma criada negra, e foi colocada diante da minha mulher. Ela mesma é que
tinha ido até mim disfarçada de beduína. Ainda usava a mesma roupa, com a
burca de brocado sobre o rosto. Minha mulher lhe tirou a burca, despiu-a e ela
ficou nua, com o seu negrume de carvão. Ao ver aquilo, comandante dos crentes,
fiquei perplexo, refleti sobre a questão e não soube o que fazer. Recordei-me da
condição…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

647ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
Então, comandante dos crentes, recordei-me da condição e do compromisso
que fora registrado pelo juiz e pelas testemunhas, e perdi o senso. Minha mulher
olhou para mim e disse: “É essa a condição, ó Manjåb, dos cães reunidor”.
Ouvindo-lhe as palavras, comandante dos crentes, me mantive cabisbaixo, sem
conseguir dar-lhe resposta nem falar o que quer que fosse. Ela me disse: “Ai de
você! Eu não lhe dissera, ó Manjåb, que você era dos cães reunidor, e não dos
amores? Ai de você! Não mentiu quem disse que os homens não são de
confiança. Como, Manjåb, você prefere esta criada a mim, e a faz equivaler à
minha juventude e forma? Mas, criadas, mandem chamar o juiz e as
testemunhas”. Imediatamente, comandante dos crentes, eles foram trazidos e
exibiram o contrato com a promessa e o compromisso. Ela disse às testemunhas:
“Leiam tudo para ele”, e eles leram e me perguntaram: “O que você tem a dizer
sobre este contrato e este compromisso?”. Respondi: “O contrato está correto.
Nada tenho para dizer a seu respeito”. Nesse momento, comandante dos crentes,
ela mandou chamar o chefe de polícia e os ajudantes, diante dos quais reconheci
e confessei minha culpa. Eles me xingaram, me insultaram e, malgrado eu lhes
tenha contado a história inteira, nenhum deles me perdoou; ao contrário, todos
disseram: “Você merece ser partido em dois ou ter os quatro membros
amputados por ter abandonado esta beleza, perfeição, esplendor, talhe e
esbelteza para se atirar sobre uma criada preta como carvão! Abandonou esta
imagem que parece a luz da lua para ficar com esta imagem maligna que parece
as trevas”. Nesse momento, comandante dos crentes, ela disse ao chefe de
polícia: “Ouça o que lhe digo. Eu os faço testemunhas de que o absolvo de ter a
língua cortada, as mãos decepadas e os olhos arrancados, mas me façam justiça
contra ele em uma das condições”. Perguntaram: “Qual delas?”. Ela respondeu:
“Mil chibatadas no flanco direito e outras mil no flanco esquerdo”.
Disse [o narrador]: Nesse momento, comandante dos crentes, o chefe de
polícia avançou para mim, puxou-me e me aplicou mil golpes no flanco direito,
até que perdi totalmente a consciência; depois, pegou um punhado de sal e
passou onde eu fora golpeado; em seguida, aplicou outros mil golpes no meu
flanco esquerdo, dando-me ao cabo de tudo uns trapos com os quais me
cobriram. Quando consegui abrir os olhos após tanta pancada, comandante dos
crentes, o que somente se deu passados três dias, vi-me atirado num monturo de
lixo, mas mesmo em tais condições consegui reunir ânimo e me levantar. Fui até
a casa onde eu morava antes do casamento, encontrando-a trancada com três
cadeados, totalmente vazia, sem nenhum som que dela saísse, tal como disse a
seu respeito certo poeta nos seguintes versos de poesia:

“Eram gomos de colmeia, bem habitados,
e quando as abelhas partiram se esvaziaram”.

Parei à porta por alguns instantes e eis que uma mulher, comandante dos crentes,
saiu da casa vizinha e me perguntou: “O que você quer, mendigo? O que
procura?”. Respondi: “Procuro os donos desta casa”. Ela disse: “Nela moravam
muitas pessoas, mas depois sumiram, sem que se saiba o seu paradeiro. Deus
abençoe quem disse os seguintes versos de poesia:

‘Sumiram e com seu sumiço sumiu meu sossego:
após a separação, meu coração já não tem repouso,
cheio de preocupação com quem tão bem me tratou.
Acaso não vês que a porta deles já não tem chaves?’”.

Então, comandante dos crentes, arrependido pelo que fizera e aflito com o que
me sucedera devido à má ação por mim cometida, eu disse àquela mulher que
me dirigia a palavra: “Por Deus, minha senhora, você tem alguma pista ou
notícia?”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

648ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
[Perguntei à mulher:] “Minha senhora, você tem alguma pista ou notícia
deles? Por acaso não obteve alguma informação clara?”. Ela respondeu: “Você
teria obtido isso antes, pobre coitado, tal como disse o poeta nestes versos
poéticos:

‘Minhas lágrimas escorrem e meu coração não dorme:
meu coração se derrete e se arrebenta depois disso tudo.
Será que a minha pupila um dia ainda os contemplará?
A lua já desapareceu: teremos alguém para dar o adeus?
O mais espantoso é que ainda aqui eu esteja,
enquanto o fogo me queima as entranhas.
Embora a separação eu já tenha chorado,
não encontro bom conselheiro nem quem me ajude!
Ó lua, que tão ausente te encontras
dos olhos, por que não surges?
Se te ausentas de mim, quem me acompanha no exílio
entre os homens? Já não sei o que faço!
O destino já decidiu meu exílio. Quem é que
poderá enfrentá-lo e impedir que se consume?’”[109]

Então, comandante dos crentes, fiquei ainda mais saudoso, minha lágrima
escorreu copiosa e minha palavra se sufocou. Pus-me a perambular pelas ruas da
cidade, arrastando-me de parede em parede, tamanhos eram meu medo e meu
pesar por causa da ausência dos meus entes queridos; conforme caminhava eu ia
dizendo os seguintes versos de poesia:

“Desabei humilhado ao perder meus amores,
e atirei meu bom senso por aqueles caminhos.
Padeço há um bom tempo de dor e fraqueza,
e eu sofro por causa dos decretos do destino.
Alguém por gentileza poderia aproximá-los,
a meu coração fazendo mercê? Saudades, amores!
Beijei tantos pés por meu amor a vocês!
Não haveria informante, mesmo mendaz?”.

Continuei nesse estado, comandante dos crentes, padecendo preocupações e
tristezas, pensando e zanzando [pelos arredores da casa], e eis que um homem
me informou que os moradores tinham partido fazia três dias, e desde então
ninguém mais recebera notícias sobre aonde haviam ido. Voltei de novo para a
porta da casa, comandante dos crentes, e me sentei ao seu lado para descansar.
Casualmente olhei para o alto da porta e ali vi um papel dobrado no qual
estavam escritos os seguintes versos de poesia:

“O choro entre os justos não resolve,
pois fui traído por quem me subjugava.
Eu te era caro e contigo estava próspero,
mas ora mudaste e já não sou teu retorno.
Se me procurares e de modo algum encontrares,
terei partido e com outro estarei satisfeito.
Foi o que vi nos sonhos, pois sou bem-dotado;
resigna então o teu coração com o que ele teme.
Também eu chorei a perda do amor, mas depois
vi que chorar por alguém como tu não resolve.
Então, ó tu que paras às portas outrora tão caras,
talvez ouças um dia, quiçá, notícias de nós”.

Disse [o narrador]: Fui então até a minha mãe e a minha irmã,[110] informando-
as verbalmente o que me ocorrera do início ao fim. Ambas choraram por mim, e
minha mãe disse: “Nunca supus, filho, que isso pudesse acontecer com você.
Porém, qualquer desgraça abaixo da morte não é desgraça. Paciência, filho, pois
a recompensa do homem resignado é Deus quem dá. Isso que lhe sucedeu
também sucedeu a muitos iguais a você. Saiba que o decretado se efetua e o
destino é irreversível. Porventura você não ouviu a fala do poeta que disse os
seguintes versos de poesia:

‘O tempo são dois, um doce, outro amargo,
e a vida são duas, uma pura, outra turva.
Dize a quem urdiu as tramas do tempo:
o tempo só maltrata os importantes?
Não boia a carniça na superfície do mar,
em cujo fundo permanecem as pérolas?
São tantas plantas com folhas no solo,
mas não se arrancam senão as frutíferas.
Não vês que a ventania, quando assopra,
não arranca senão as árvores mais altas?
Nos céus existem incontáveis estrelas,
mas em eclipse só entram o sol e a lua.
Pensas bem dos dias quando tudo vai bem,
sem temeres o mal que o destino reserva:
se as noites são boas, com elas te iludes,
mas no sossego da noite é que se previne a torpeza’?”.[111]

Disse [o narrador]: Ao ouvir as palavras da minha mãe, comandante dos crentes,
e o discurso metrificado que ela me expôs, resignei-me e entreguei a questão a
Deus.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

649ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Manjåb disse:
Então, comandante dos crentes, resignei-me e entreguei a questão a Deus
altíssimo. Minha mãe se pôs a me medicar com pós, pomadas e outros tipos de
remédio que me beneficiaram, até que me curei, mas restaram os vestígios,
conforme você viu. Quanto a mim, não escrevi aquelas linhas que você leu,
comandante dos crentes, senão para que a minha notícia chegasse até você, e
assim nada da minha história lhe ficaria oculto, nem da minha condição. Foi isso
que me sucedeu e se abateu sobre mim, comandante dos crentes.
A INVESTIGAÇÃO DE JACFAR
Disse o narrador desta história extasiante, maravilhosa e insólita: Ao ouvir
aquilo, o califa Hårœn Arraš∑d bateu uma mão sobre a outra e disse: “Não
existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso!”. Em seguida,
gritou com o seu vizir Ja¢far, o barmécida, dizendo-lhe: “Se você não me trouxer
notícias sobre esse assunto, Ja¢far, se você não o investigar e desvendar o caso
deste rapaz, ordenaremos que o seu pescoço seja decepado!”. Ja¢far respondeu:
“Ouço e obedeço. Porém, comandante dos crentes, dê-me um prazo de três dias”.
O califa respondeu: “Prazo de três dias concedido”. Então Ja¢far saiu dali como
se fosse cego e surdo, sem ver nem ouvir, perplexo, refletindo sobre a questão e
dizendo: “Quem dera não nos tivéssemos reunido com esse rapaz, nem o visto”.
Continuou caminhando até chegar à sua casa, onde trocou de roupa e saiu
vagando pelas ruas de Bagdá, que era uma grande cidade no tempo de Hårœn
Arraš∑d. Em cada rua que entrava, ele procurava notícias, fazendo algumas
indagações a respeito de certas ocorrências na cidade. Agiu assim desde o
amanhecer até o anoitecer mas não encontrou nenhuma pista ou notícia clara
sobre o assunto. No segundo dia tampouco encontrou alguma coisa, desde o
amanhecer até o anoitecer. No terceiro dia ele saiu de casa dizendo esta poesia:

“Convive com o sultão mas cuida-te da tirania,
e não discutas com aquele que quando fala cumpre”.

Esquadrinhou a cidade até o meio-dia, mas nada encontrou. Voltou para casa,
onde tinha uma camareira a quem deixou a par do que lhe sucedia, sem nada
esconder. Ele disse: “O prazo que o rei me deu vai até hoje à noite. Se eu não lhe
der nenhuma notícia ele cortará a minha cabeça”. A camareira saiu e circulou
pela cidade até o entardecer, mas não trouxe nenhuma notícia, e então Ja¢far
disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e poderoso!”. Ja
¢far, cuja irmã vivia sozinha numa casa com as criadas e os criados, pensou:
“Vou até a minha irmã espairecer um pouco e despedir-me dela, pois talvez a
morte esteja próxima”. Ninguém podia pedir em casamento essa irmã, que na
cidade de Bagdá não tinha quem se lhe comparasse em beleza, nem mesmo as
mulheres do califa. Ja¢far foi, portanto, à casa dessa irmã e entrou. Ela veio
recebê-lo à porta do saguão, e ao vê-lo com as feições alteradas disse: “Que você
não esteja correndo perigo, meu irmão, pois as suas feições estão alteradas!”. Ele
respondeu: “Caí numa situação perigosa, um caso difícil do qual não serei salvo
senão pelo poder de Deus altíssimo. Se eu não tiver solução até o amanhecer, o
califa cortará a minha cabeça”, e lhe contou a história do começo ao fim. Ao
ouvir as palavras de Ja¢far, a irmã empalideceu e a sua condição se alterou; ela
disse: “Meu irmão, dê-me a sua garantia de integridade[112] e proteção que eu
lhe contarei a história desse rapaz”. Nesse momento, o terror de Ja¢far se
amainou, seu coração se tranquilizou e ele lhe deu garantia de integridade.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

650ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ja¢far, o barmécida, deu à irmã
garantia de integridade e proteção, comprometendo-se a não prejudicá-la, e então
ela lhe disse: “Irmão, as mulheres foram criadas para os homens, e os homens,
para as mulheres, e se a mentira salva, a verdade salva mais ainda.[113] Esse
assunto todo se refere a mim; fui eu que me casei com ele e estipulei as tais
condições, que ele aceitou, satisfazendo-se com o compromisso e a promessa”.
Ao ouvir o que a irmã lhe contava a respeito de Manjåb, Ja¢far ficou contente,
tranquilizando-se por fora mas se afligindo por dentro, pois ele havia imposto à
irmã que não se casasse e mesmo assim ela armara aquela artimanha e se casara.
[114] Imediatamente ele se levantou e caminhou até chegar ao califa Hårœn
Arraš∑d, cumprimentando-o e rogando por ele. O califa devolveu o
cumprimento e perguntou: “Você me trouxe notícias a respeito do caso, Ja¢far?”.
Ele respondeu: “Sim, amo, as notícias apareceram e se divulgaram. Trata-se de
uma questão interna. Não tivesse sido socorrido pelo criador — que me fez
encontrar a jovem ela mesma, em pessoa, por coincidência, sem nada
preestabelecido —, eu estaria aniquilado”. O califa perguntou: “E quem é ela,
para que possamos puni-la por seus atos e pelo que fez com Manjåb, que não
merece o que lhe aconteceu, mesmo tendo errado?”. Ja¢far então deu um passo à
frente e pediu ao califa perdão para a irmã. O califa perguntou: “Você está me
dizendo, Ja¢far, que foi ela que você encontrou?”. Ele respondeu: “Por Deus,
comandante dos crentes, que se trata da minha irmã Budœr!”. Ao ouvir aquilo, o
califa perguntou: “Ja¢far, por que a sua irmã agiu assim?”. O vizir respondeu:
“O que está predestinado fatalmente ocorre; não há como evitar o
preestabelecido, nem voltar atrás no que foi dado, nem dar o que foi negado.
Enfim, foi isso que ocorreu, e não adianta fazer nada. Agora, o que você ordenar
nós cumpriremos”. Então o califa entregou Manjåb ao vizir, que foi com ele até a
casa da irmã. Ambos entraram e as pazes foram seladas entre o casal, isso após o
rei ter concedido a Manjåb as maiores benesses. A partir daí, sempre, em
determinada época do ano, o califa se disfarçava e ia pela noite, junto com Ja
¢far, até Manjåb para ouvir histórias. Certa noite, o califa disse a Manjåb:
“Graças a Deus, Manjåb, que reuniu você à sua amada Budœr. Mas agora o meu
propósito é que você nos conte uma história que seja insólita e faça o meu peito
se desanuviar”. Manjåb disse: “Ouço e obedeço, comandante dos crentes”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

651ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o califa Hårœn Arraš∑d pediu ao
jovem Manjåb algumas histórias sobre reis antigos, e ele respondeu: “Ouço e
obedeço, comandante dos crentes”.
O DERVIXE, O APRENDIZ DE BARBEIRO E O SULTÃO
Conta-se, mas Deus sabe mais sobre o que é ausência, e é mais sapiente, que
vivia, no tempo de um rei chamado Addahmår, um barbeiro que tinha um jovem
aprendiz em sua loja. Certo dia, entrou na loja do barbeiro um dervixe que,
olhando para o aprendiz do barbeiro, achou-o belo e formoso, dotado de bom
talhe e esbelteza, e lhe pediu um espelho. O rapaz lhe trouxe o espelho, o dervixe
pegou-o, mirou-se nele, penteou a barba, enfiou a mão debaixo do braço, tirou
um ašraf∑[115] de ouro, colocou-o sobre o espelho e o devolveu ao rapaz. O
barbeiro, voltando-se para o dervixe, ficou espantado e disse: “Louvado seja
Deus! Este homem é dervixe e colocou um ašraf∑ no espelho. Essa é uma coisa
espantosa”.[116] O dervixe tomou o seu rumo e no segundo dia, logo pela
manhãzinha, eis que ele voltou, entrou na barbearia, pediu o espelho ao aprendiz
do barbeiro — que lho trouxe —, pegou-o, penteou a barba após mirar o próprio
rosto, puxou um ašraf∑ do bolso, colocou-o sobre o espelho e o devolveu ao
rapaz, recebendo novo olhar de espanto do barbeiro. Então, o dervixe se
levantou e tomou o seu rumo. Como continuou a fazer isso diariamente — olhar-
se no espelho e colocar um ašraf∑ sobre ele —, o barbeiro pensou: “Por Deus
que esse dervixe deve ter alguma história. É possível que ele esteja apaixonado
pelo rapaz; receio que o seduza e leve consigo”. Então, ele disse ao rapaz:
“Menino, quando o dervixe vier não se aproxime, e quando ele pedir o espelho
não lhe dê. Deixe que eu dou”. No dia seguinte, eis que o dervixe chegou,
conforme o hábito, e pediu o espelho ao rapaz, que fingiu não ouvir. O dervixe
então o encarou, lançando-lhe um olhar tão furioso que quase o matou, e o rapaz,
cheio de medo, entregou-lhe o espelho. O dervixe, encolerizado, olhou-se no
espelho, penteou a barba e, ao terminar, tirou do bolso dez dinares de ouro,
colocou-os sobre o espelho e o devolveu ao rapaz. O barbeiro olhou para ele
sumamente espantado e pensou: “Por Deus que esse dervixe todo dia vinha e
colocava um ašraf∑, mas hoje ele colocou dez, ao passo que eu, por dia, não
recebo nesta loja nem meio centavo?”. [E disse então ao rapaz:] “Menino,
quando o dervixe vier conforme o hábito, estenda-lhe um tapete no banco lá de
dentro; caso contrário, quem o vir aqui diariamente à porta pode suspeitar de
alguma coisa”. O menino respondeu: “Sim”. No dia seguinte, o dervixe chegou
e, quando entrou, o menino lhe fez um sinal e ele o seguiu até o fundo da loja. O
coração do dervixe se enamorara do rapaz.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

652ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O coração do dervixe se enamorara do aprendiz, graças à sua beleza e
perfeição, e por isso ele passara a ir diariamente até a barbearia. O rapaz o
recebia, estendendo-lhe um tapete, e o dervixe colocava dez ašraf∑s sobre o
espelho. Tanto o barbeiro como o menino estavam satisfeitos com ele. Certo dia,
o dervixe foi à barbearia, conforme o hábito, e não encontrou senão o rapaz, o
aprendiz apenas, sem mais ninguém na loja. Perguntou-lhe sobre o mestre e o
jovem o informou dizendo: “Tio, o meu mestre foi assistir à fundição de
canhões, pois hoje o sultão sairá, acompanhado do vizir e dos notáveis do
governo, para presenciar a cerimônia”. O dervixe disse: “Meu filho, vamos nós
também assistir e antes que as pessoas cheguem, antes que o seu mestre chegue.
[117] Vamos nos divertir, espairecer e assistir antes que eu viaje, pois o meu
propósito é viajar hoje após o meio-dia”. O rapaz respondeu: “Muito bem, tio”,
e, trancando a barbearia, caminhou com o dervixe, chegando ambos ao local
onde se realizava a fundição dos canhões, e onde já estavam presentes o sultão, o
vizir, os secretários, os notáveis do governo, os figurões do reino e todos os
demais, aguardando que os caldeirões fossem tirados do fogo, e então o primeiro
a se aproximar deles — que continham cobre derretido — foi o sultão, que
enfiou a mão no bolso, encheu-a de ouro e o atirou dentro dos caldeirões; depois
dele, o grão-vizir deu um passo adiante e imitou o sultão, e logo os principais do
governo também passaram a jogar moedas de prata, centavos e reais dentro dos
caldeirões. Nesse momento, o dervixe avançou, tirou da algibeira um frasco do
qual extraiu, com uma concha funda,[118] algo semelhante à hena, e se pôs a
atirar um pouco dentro de cada caldeirão, após o que se afastou da multidão,
pegou o menino e retornou com ele à barbearia. O menino abriu e o dervixe lhe
disse: “Meu filho, se o sultão mandar chamar você e o indagar sobre mim,
estarei na cidade tal, e se for me encontrar me achará sentado diante dos portões
dessa cidade”. Em seguida, despediu-se do jovem aprendiz de barbeiro e rumou
para a tal cidade. Isso foi o que sucedeu a ambos. Quanto ao sultão, ele
continuou parado até que levaram os caldeirões para as formas de metal a fim de
ali despejar-lhes o conteúdo, mas então verificaram que o conteúdo dos
caldeirões se transformara totalmente em ouro puro. O sultão perguntou ao vizir
e aos principais do governo: “Quem é que jogou coisas dentro dos caldeirões?
Estava presente algum estrangeiro?”. Responderam-lhe: “Nós vimos um dervixe
que pegou uma concha e dela se pôs a atirar algo dentro dos caldeirões”. Então o
sultão indagou a respeito um dos presentes, o qual o informou que o dervixe
andava fazendo a corte ao aprendiz do barbeiro que fica no lugar tal. Nesse
momento o sultão determinou a alguns dos seus secretários que lhe trouxessem o
aprendiz.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

653ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O sultão enviou em busca do aprendiz alguns dos seus secretários, os quais
foram até lá, trouxeram-no e colocaram-no diante dele. O rapaz saudou o sultão
e rogou por ele tal como se roga para os califas, e o sultão, após responder ao
cumprimento, indagou-o sobre o dervixe que o acompanhava. O rapaz disse: “Ó
rei do governo, ele me recomendou que dissesse: ‘Estou na cidade tal’”. Nesse
momento, o sultão lhe ordenou que viajasse até o dervixe e o trouxesse. O rapaz
respondeu: “Ouço e obedeço”. O sultão lhe destinou um carro, deu-lhe alguns
presentes, e o rapaz, após curta viagem, chegou à cidade. Desembarcou, foi até
os portões e tão logo entrou eis que o dervixe estava ali sentado num banco. Ao
vê-lo, foi cumprimentá-lo e lhe contou o que sucedera. Sem discutir com o
aprendiz de barbeiro, o dervixe se levantou e se dirigiu até o carro,
desamarrando-o e viajando até o sultão; entraram, beijaram o chão diante dele,
cumprimentaram-no e ele respondeu o cumprimento. Quanto ao rapaz, o sultão
lhe deu presentes e um cargo entre governantes, enviando-o para governar certa
província; quanto ao dervixe, ele ficou com Addahmår durante sete dias, após os
quais o sultão lhe disse: “Eu desejo que você me ensine a fabricar ouro”. O
dervixe respondeu: “Ouço e obedeço ao nosso amo o sultão”, e buscou um
fogão, pôs sobre ele um caldeirão, acendeu o fogo, trouxe uma porção de
chumbo, outra de estanho, outra de cobre, totalizando 45 quilos, e os deixou ao
fogo até se tornarem como líquido, enquanto o sultão assistia e observava. Com
a concha, o dervixe retirou algo de um frasco e o aspergiu sobre aquele chumbo,
cobre e estanho, que se transformaram em ouro puro, tudo isso feito e repetido
na presença do sultão, que então repetiu aquelas ações e também obteve ouro
puro, na frente do dervixe. Assim, toda vez que lhe dava vontade, o sultão se
sentava diante do dervixe, mexia o chumbo, o cobre e o estanho, lançava sobre
ele um pouco do pó que este lhe dera e transformava tudo em ouro puro. Até
que, certa noite, o sultão resolveu fazer diante das mulheres do seu harém o
mesmo que fazia diante do dervixe, mas não deu certo. Aborrecido, o sultão
disse: “Não fiz mais nem menos. Por que não deu certo?”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

654ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O rei disse: “Por que não deu certo?”, e quando amanheceu reuniu-se com o
dervixe, fez [a operação] diante dele e produziu ouro puro. Admirado, o rei
disse: “Por Deus que isso é espantoso! Quando faço sozinho não dá certo, e
quando faço diante do dervixe dá certo e se produz ouro”. E o sultão passou a
não fazer aquilo senão na frente do dervixe.
Certo dia, com o peito opresso, o sultão foi passear no bosque e saiu com os
principais de seu governo, levando também o dervixe consigo. Avançaram até as
proximidades do rio, o sultão na frente e o dervixe atrás do grupo. Devido à
força com que as agarrava, as rédeas da montaria beliscaram a mão do sultão,
obrigando-o a abri-la e fechá-la, e eis que o anel lhe escapou do dedo mindinho,
bateu no solo e caiu no fundo do rio. Aborrecido, o rei estacou e disse: “Não
sairemos deste lugar senão quando o anel voltar”. Então todos se apearam,
fazendo tenção de mergulhar no rio, e eis que o dervixe chegou, encontrou o rei
parado, chateado pelo anel, e lhe perguntou: “O que você faz aí parado, rei do
tempo?”. Ele respondeu: “O anel do reino escapou de mim e caiu no rio, neste
local”. O dervixe disse: “Não se aborreça, amo”, e, sacando da algibeira uma
caixinha, dela retirou um pedaço de cera de mel, moldou-a na forma de um
homem, atirou-o no rio, ficou à espera e eis que a forma saiu do rio com o anel
no pescoço e pulou no arção da sela, diante do sultão, que lhe retirou o anel do
pescoço, mas ao tentar pegá-la ela pulou na direção do dervixe, que a pegou,
amassou, fazendo-a voltar a ser um pedaço de cera como antes, recolocou-a na
caixinha e disse ao sultão: “Vamos”. Tudo isso aconteceu enquanto os principais
do governo olhavam e viam o dervixe e as suas ações. Depois disso, todos
avançaram até o bosque, onde se apearam dos seus cavalos e se sentaram para
conversar uns com os outros, espairecendo naquele dia até o anoitecer, quando
então tornaram a montar e retornaram para casa, bem como o dervixe retornou
ao local a ele destinado. Mas todos os principais do governo ficaram contra o
dervixe e disseram ao sultão: “Rei do tempo, você deve se manter extremamente
alerta com esse dervixe, pois, querendo, ele matará a todos no palácio e se
apossará do sultanato no seu lugar, e também o matará”. O sultão perguntou:
“Por quê?”. Responderam: “Será fácil para ele fazer homens de cera e empregá-
los contra você e contra nós para que nos matem. Ele irá se apoderar do sultanato
sem custo nenhum”. Ao ouvir aquelas palavras, o sultão ficou receoso e disse:
“Por Deus que vocês dizem a verdade; as suas palavras estão certas e a questão é
irretorquível”, e perguntou: “Como agir em relação a esse dervixe?”.
Responderam: “Mande chamá-lo, coloque-o na sua presença e mate-o aqui
mesmo. Muito cuidado para que seja morto de imediato bem na sua frente, caso
contrário ele lhe dirá: ‘Vou ali e já volto’. Não o deixe fazer isso!”. Então o
sultão mandou chamar o dervixe, colocou-o diante de si…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

655ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O sultão mandou chamar o dervixe, colocou-o diante de si e lhe disse:
“Dervixe, saiba que o meu desejo e propósito é matá-lo. Você tem alguma
recomendação para a sua família?”. O dervixe perguntou: “Por que vai me matar,
amo? Que coisa tão terrível fiz eu para que me mate? Diga qual o meu delito, e
se eu merecer a morte então me mate, ou se merecer o exílio, me exile”. O sultão
respondeu: “É absolutamente imperioso matá-lo”. O dervixe se pôs a agradá-lo,
mas nada conseguiu, e, percebendo e assegurando-se de que o sultão não o
esqueceria nem o deixaria escapar, levantou-se, desenhou um grande círculo no
chão, do tamanho de quinze braças, em forma de aro — traçando dentro dele um
círculo menor —, parou diante do sultão e disse: “Ó rei do tempo, esse círculo
maior é o seu reino, e o círculo menor é o meu reino”; deu alguns passos, entrou
no círculo menor e disse: “Se o seu reino, rei do tempo, não me cabe, morarei no
meu reino”, e mal entrou no círculo menor desapareceu das vistas dos presentes.
O sultão disse aos principais do seu governo: “Peguem-no!”, mas eles entraram e
não encontraram ninguém. O sultão lhes disse: “Ele estava aqui comigo agora
mesmo e entrou dentro desse círculo menor”. Vasculharam à sua procura,
procuraram e procuraram por ele mas não encontraram ninguém. Nesse
momento, o sultão se arrependeu e disse: “Não existe poderio nem força senão
em Deus altíssimo e poderoso! Fui injusto com esse dervixe e dei ouvidos às
palavras dos hipócritas, concordando com eles e acatando-lhes a fala. Porém, tal
como eles fizeram comigo farei com eles”; quando amanheceu e os principais do
governo se reuniram no salão do conselho, o sultão chamou aqueles que lhe
tinham dito para matar o dervixe, mandando matar alguns e desterrar outros.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Ao ouvir essa história de Manjåb, o califa Hårœn
Arraš∑d ficou sumamente espantado e disse: “Por Deus, Manjåb, que você serve
para ser companheiro de reis”, e fez dele seu conviva, em dignificação ao
barmécida Ja¢far, seu vizir, que se tornara cunhado do rapaz. Hårœn Arraš∑d
também lhe pediu algumas histórias sobre as astúcias das mulheres, e Manjåb
ficou cabisbaixo de vergonha do califa, que disse: “Manjåb, o espaço destinado à
intimidade dos reis é lugar de espairecimento”. Manjåb respondeu: “Na próxima
noite, comandante dos crentes, contarei uma história sucinta sobre as astúcias
das mulheres, e o que elas fazem com os maridos”. Na noite seguinte, o
comandante dos crentes mandou trazer Manjåb à sua frente, e quando ele entrou
beijou o solo diante do califa e disse: “Se for o seu desejo, comandante dos
crentes, que lhe contemos histórias sobre as astúcias das mulheres, que seja num
local escondido, pois talvez alguma das concubinas ou algum outro ouça e conte
para a rainha”. O califa respondeu: “Isso é que é correto e irretocável”, e então
ficou a sós com ele num local isolado, apenas os dois, e Manjåb disse:
A BEDUÍNA, SEU MARIDO E SEU AMANTE
Conta-se que havia um beduíno que vivia no deserto com a esposa, numa tenda.
Mas é costume dos beduínos mudar de um lugar a outro por causa dos pastos
para os camelos. A esposa desse beduíno, dotada de beleza e perfeição
exuberantes, tinha um amante que a visitava de quando em quando, nela se
satisfazia e então ia embora. Certo dia, esse amante veio até ela e disse: “Por
Deus que somente ficarei com você se deitarmos juntos e nos satisfizermos com
o seu marido olhando”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

656ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O amante da beduína disse a ela: “Por Deus que só ficarei com você se
transarmos juntos, eu e você, com o seu marido olhando”. Ela perguntou: “Por
quê? Fiquemos com a nossa transa sem que o meu marido ou outrem nos
vejam!”. Ele disse: “Isso é absolutamente imperioso. Se você não aceitar,
arranjarei outra amante”. Ela perguntou: “Como transarmos com o meu marido
olhando? Isso não é possível”. Mas após alguns momentos de reflexão sobre o
assunto, sobre como proceder, a mulher se levantou, escavou no centro da tenda
um buraco do tamanho de um homem e ali escondeu o amante. Nas
proximidades da tenda havia uma árvore. Quando o marido dela retornou do
pasto, ela lhe disse: “Fulano, suba em cima da árvore e nos traga um pouquinho
de sicômoro para comermos”. O marido respondeu: “Tudo bem”, e trepou na
árvore. A mulher piscou para o amante, que subiu em cima dela. Vendo-a, o
marido disse: “O que é isso, sua puta? O homem está montado em você na
minha frente, comigo olhando!”, e desceu rapidamente da árvore, e enquanto ele
descia o amante se satisfez na mulher, tornando a entrar no buraco no centro da
tenda, que foi coberto por ela com um tapete. Quando o marido desceu, não
encontrou ninguém. A mulher lhe disse: “Homem, você ficou louco dizendo:
‘Um homem está montado em você’, me fazendo falsas acusações!”. O marido
disse: “Por Deus que eu o vi com estes meus olhos!”. Ela disse: “Fique aqui
enquanto eu mesma vou olhar”, e trepou na árvore, chegou ao alto, olhou para o
marido e gritou dizendo: “Homem, tenha vergonha pela sua honra! Por que está
agindo assim, deitado e com um homem fazendo em cima de você?”. O marido
disse: “Não há ninguém aqui comigo, nem homem nem criança”. Ela disse: “É o
que estou vendo aqui de cima da árvore!”. Ele disse: “Mulher, só pode ser que
este lugar é encantado. Vamos nos mudar daqui”. Ela disse: “Por que mudar
daqui? Vamos continuar neste lugar!”.[119]
Finda a narrativa, o califa disse a Manjåb: “Por Deus que se tratava de uma
mulher iníqua”. Manjåb disse: “Mas entre o gênero feminino existem mulheres
mais iníquas ainda”. O califa disse: “É absolutamente imperioso que você nos
conte a respeito, Manjåb”, e o rapaz disse:
Conta-se que havia um homem cuja mulher, dotada de beleza e formosura
excessivas, fez com ele duas armações que são parte das astúcias femininas.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

657ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O CORNO E A SUA MULHER I: O CHACAREIRO
Certa mulher fez com o marido duas armações que são parte das astúcias
femininas. A primeira armação foi: bela e formosa, ela tinha dois amantes, o
primeiro dos quais, chacareiro, plantava melancias, e o segundo era azeiteiro. O
chacareiro disse a ela: “Por Deus, fulana, só será possível montar em você se o
seu marido estiver presente ao meu lado, acompanhando”. Ela perguntou: “Por
quê, fulano? Sempre que você me quer, a qualquer momento, eu venho até você
e gozamos”. Ele disse: “É absolutamente imperioso”. Ela disse: “Então espere a
gente lá na plantação, aguarde o dia tal”, e ele respondeu: “Tudo bem”. Quando
chegou o dia aprazado, a mulher disse ao marido: “Homem, desejo visitar os
meus parentes e familiares na vila tal”; ele respondeu: “Tudo bem” e, saindo
com ela, trouxe-lhe um burro, colocou-a em cima e avançaram até o meio-dia.
Quando chegaram à plantação do amante, que ficava no caminho, ela disse ao
marido: “Homem, fiquei com muito calor e sede, pois está muito quente. Faça-
me descer neste local, ao lado da plantação de melancia”, e então ele a apeou. A
mulher se sentou ao lado da plantação e disse: “Homem, entre na plantação e me
traga uma melancia para eu comer, pois estou com muito calor”.[120] O homem
entrou, arrancou uma melancia e, quando fazia menção de sair dali de dentro, eis
que o dono da plantação — o amante da sua esposa — avançava na sua direção
empunhando um porrete do tamanho de uma canga com uma cabeça de ferro de
dois arráteis e dizendo: “Seu putanheiro, seu corno! Recoloque já a melancia no
pé tal como estava antes, senão vou quebrar o seu pescoço com este porrete”, e
se aproximou ameaçando e dizendo: “Se não recolocar a melancia no pé vou
matar você!”. O homem começou a tremer de medo enquanto o dono da
plantação prosseguia com as ameaças. Então a mulher se levantou e, balançando
o corpo, disse ao dono da plantação: “Homem, dono da plantação, se a melancia
custar dez pratinhas nós lhe pagaremos vinte!”. Ele respondeu: “Não quero nada,
não estou pedindo dinheiro nem outra coisa, mas se ele não a recolocar tal como
estava eu vou matá-lo. Essa é a minha primeira e última palavra, e não quero
saber de outra coisa”, e continuou ameaçando e dizendo: “É absolutamente
imperioso matá-lo, seu putanheiro”. A mulher se pôs a intermediar, a agradar e a
adular o dono da plantação, e a dizer-lhe com a sua artimanha: “Por sua honra!”,
ao que ele respondia: “É imperioso matá-lo”, e ela dizia: “Senhor, por mim, não
o mate!”. Continuaram nessa situação — o dono da plantação dizendo: “Vou
matá-lo” e ela rogando pelo marido — até que o dono da plantação disse a ela:
“Mulher, se for absolutamente imperioso que eu não o mate, então será para
agradá-la que o perdoarei, mas com uma condição: só será possível se eu possuí-
lo. Se vocês aceitarem essa condição não o matarei, mas se não aceitarem eu o
matarei agora mesmo”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

658ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O dono da plantação disse ao marido da sua amante: “Se você não me deixar
possuí-lo, vou matá-lo”. A mulher interveio perguntando: “Meu senhor, como?
Um homem possuindo outro homem?”. Ele disse: “Já sei, chega! É assim que
faço com os outros, pois quem arranca uma melancia sem a minha autorização
eu mato ou possuo”. A mulher se pôs a dizer-lhe: “Meu senhor, isso não está
certo”, e a rogar pelo marido, que durante todo esse tempo continuou tremendo
de medo. No fim, ela disse: “Vamos, homem, eu substituo o meu marido e assim
a coisa fica um pouquinho mais fácil”. O dono da plantação disse: “Não é
possível, tem de ser ele”, e então o marido, amedrontado, lhe disse: “Homem,
obedeça à minha mulher, que já está aí do seu lado, e faça com ela”. O dono da
plantação disse: “Então se aproxime de mim que eu vou lhe pedir uma coisa”, e,
estendendo a mulher no chão, montou nela e disse ao marido: “Pegue o meu
saco por trás, e não deixe que encoste na bunda da sua mulher, porque se ele
encostar a plantação murcha e se estraga”, e então o marido se aproximou, pegou
o saco do dono da plantação e ficou esfregando-o na bunda da esposa enquanto o
outro montava nela até se satisfazer, descendo em seguida e dizendo ao marido:
“Por Deus que, não fossem as súplicas da sua mulher, eu o teria matado ou
possuído”. A mulher disse ao marido: “Homem, vamos embora para casa, já
basta o que aconteceu”. O marido disse: “Não se arrependa disso, mulher”. Ela
perguntou: “Como não me arrepender? Você é meu marido e o homem montou
em cima de mim na sua presença!”. O marido disse: “Deixa estar, mulher, que eu
fiz a plantação dele murchar, pois durante todo o tempo em que ele estava
montado em você eu mantive o saco dele grudado na sua bunda. Agora ele não
vai conseguir comer nem beber às custas daquela plantação”.
Ao ouvir essa história de Manjåb, o califa Hårœn Arraš∑d começou a rolar
para a direita e para a esquerda de tanto rir, dizendo: “Por Deus, Manjåb, que
essa é uma história espantosa sobre os ardis das mulheres”. Manjåb respondeu:
“Essa é a história do chacareiro. Quanto à história do outro amante, o
azeiteiro…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

659ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
O CORNO E A SUA MULHER II: O AZEITEIRO
O amante azeiteiro disse à mulher: “Por Deus, fulana, que eu não aceito senão
que nos sentemos — eu, você e o seu marido — e jantemos juntos, uma só
refeição”. Ela respondeu: “É mole”, e quando o marido chegou lhe disse:
“Homem, esta noite estou com vontade de que você me compre kunåfa[121]
para jantarmos”. Ele respondeu: “Sobre a cabeça e o olho, minha senhora”, e no
início da tarde foi ao mercado, dirigiu-se ao doceiro — cuja loja, por
coincidência, ficava do lado da do azeiteiro amante da sua mulher — e comprou
dois arráteis de kunåfa, dizendo-lhe: “Capriche aí nessa kunåfa”. O doceiro
respondeu: “Sim, claro”, e colocou sobre ela manteiga derretida e mel.[122] O
homem carregou tudo aquilo, foi para casa e disse à esposa: “Mulher, vá acender
uma vela para jantarmos à sua luz”. Ela respondeu: “Mas a luz de Deus ainda
está forte!”, pois o seu amante já estava ali por perto. O casal colocou a kunåfa
entre si para jantar e o amante se enfiou no meio dos dois, com muita sutileza,
pondo-se a comer com ambos. O marido lançou um olhar para a travessa e,
vendo três mãos tirando a comida do lugar, perguntou à esposa: “Mulher, a
travessa está com três mãos na comida”, e ela respondeu: “Somos dois, sem mais
ninguém”. Então o marido estendeu a mão, pegou na do amante e disse à esposa:
“Isto aqui é um homem!”. Levantando-se rapidamente do lugar, a esposa disse:
“Ai, que vexame para mim, fulano! Você trouxe um homem dentro da kunåfa?”.
O marido respondeu: “Cale-se, mulher! A esta hora o mercado já fechou. Deixe-
o aqui conosco até o amanhecer, e então eu o devolverei ao doceiro”.[123] Então
a esposa lhe disse com a sua artimanha: “Agarre-o e fique vigiando!”. O marido
respondeu: “Mulher, temo que ele fuja de mim!”. Ela disse: “Se você estiver
receoso de que ele fuja, eu o agarro e vigio”. O marido disse: “Mulher, pegue-o”,
e ela o pegou — piscando e sorrindo para ele — e lhe disse: “Por que é que você
veio no meio da kunåfa? Para me assustar e atemorizar! Por Deus, é
absolutamente imperioso que o meu marido pegue você e o devolva ao doceiro
para que ele lhe aplique uma boa surra”, colocando-o em seguida sozinho num
quarto.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

660ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Manjåb disse:]
A mulher pegou o amante, colocou-o sozinho num quarto e disse ao marido:
“Vá você dormir e eu me deitarei à porta do quarto onde está esse homem
traiçoeiro para vigiá-lo”. O marido disse: “Vigie com atenção”, e foi dormir no
seu quarto. Assim que ele pegou no sono profundo, a mulher entrou no quarto do
amante e ficou a noite inteira deitada com ele, transando e gozando até o
amanhecer, quando então ela saiu e se sentou à porta do quarto. O marido
acordou, lavou o rosto, pegou o amante e o conduziu ao doceiro seu vizinho, a
quem disse: “Você colocou este homem no meio da kunåfa!”. Ao ver o amante, o
doceiro notou que se tratava do seu vizinho e entendeu o caso, isto é, que a
esposa havia aprontado uma artimanha, e o pegou dizendo-lhe: “Seu danado! Eu
coloquei você no meio do azeite, mas não era para se afundar no meio da
manteiga e do mel. Por Deus, é absolutamente imperioso lhe dar uma surra”.
[Prosseguiu ahrazåd:] Ao ouvir essa história de Manjåb, o califa Hårœn
Arraš∑d caiu sentado de tanto rir das artimanhas femininas, e perguntou:
“Manjåb, você não conhece alguma história de reis dos tempos antigos ou
mesmo destes nossos tempos?”. Ele respondeu: “Por Deus, rei do tempo, eu
tinha um amigo que agora se encontra ausente, vivendo em certo país, chamado
Ibråh∑m Bin Mulœk.[124] Não se espante quando ouvir as suas histórias, pois
neste nosso tempo não existe ninguém como ele, e nenhum tempo jamais ouviu
falar de alguém que se lhe compare”. O califa perguntou: “Onde ele está? Para
que país viajou?”. Manjåb respondeu: “Por Deus, comandante dos crentes, não
sei para onde viajou nem em qual país vive”. Mas o califa, ao ouvir a referência
a Ibråh∑m Bin Mulœk, ficou transtornado por causa dele, com muita vontade de
lhe ouvir as histórias. Manjåb disse: “Ele virá hoje mas não ficará senão um
curto período, e [tão logo ele venha eu o trarei aqui]. Assim que soube de sua
chegada, Manjåb foi informar o califa, que então mandou conduzi-lo à sua
presença. Ao chegar, Ibråh∑m saudou o califa e rogou por ele, que respondeu e
ordenou-lhe que se sentasse. Ibråh∑m se sentou, pondo-se a entreter o califa
com sua fala eloquente e seu belo discurso, deixando-o bem satisfeito. O califa
lhe perguntou: “Ibråh∑m, por acaso você tem aí a história de algum rei?”.
Ibråh∑m respondeu: “Deus prolongue a vida do nosso amo o sultão, e lhe faça
perdurar o governo e [aniquile] os inimigos! Por Deus, comandante dos crentes,
tudo quanto você me pedir eu lhe contarei”. O califa disse: “Conte-nos conforme
o seu entendimento”. Ibråh∑m respondeu: “Ouço e obedeço”.
OS AMORES DE HAYFÅ E YŒSUF[125]
Conta-se, mas Deus sabe mais sobre o que já é ausência, e é mais sapiente, que
certo rei do tempo, tendo sentido o peito opresso e perdido o norte, mandou que
se trouxesse um dos seus convivas à sua presença e lhe disse: “Estou com o peito
opresso e não sei o que fazer. Quero que você me conte algo que viu ou ouviu,
uma história dos árabes antigos ou dos antigos registros históricos, a respeito dos
amantes e enamorados, de quem se apaixonou e de quem alcançou o anelo”. Ao
ouvir-lhe tais palavras, o conviva disse: “Ouço e obedeço”, e começou a sua
história dizendo: “Ouça e saiba que lhe contarei um caso espantoso”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

661ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m disse que] o conviva do rei
disse:
Saiba e ouça de mim esta história espantosa. Tenho nos países do Norte um
amigo chamado ¢Abduljawwåd, que é um grande mercador, próspero, com
dinheiro, e que gosta de viajar. Eu sempre o visito e me reúno com ele para
recitarmos poesia. Certo dia, tive vontade de visitá-lo e viajei até ele, reunindo-
nos quando cheguei à sua casa, e nos pusemos a entreter um ao outro. Ele me
disse: “Irmão, ouça só o que se deu e ocorreu neste tempo”.
Viajei para a terra do Iêmen, onde eu tinha um amigo. Quando sentamos para
nos entreter, ele me disse: “Irmão, deu-se e ocorreu na terra da Índia um caso
insólito, uma história espantosa”.[126]
Um dos grandes reis da Índia, cheio de dinheiro, soldados e auxiliares,
chamado o rei Mihrajån,[127] tinha grande força e prestígio. Já vivera muito
tempo sem, no entanto, ter sido agraciado com filhos, nem macho nem fêmea,
motivo pelo qual vivia preocupado e aflito, pois, sem filhos, não seria lembrado
após a morte. Certa noite ele pensou: “Quando eu morrer, meu nome se apagará,
meus vestígios desaparecerão e ninguém se lembrará de mim”, e ergueu as mãos
para o céu suplicando a Deus louvado e altíssimo que o agraciasse com um filho,
que seria o filho da sua vida, e por meio do qual seria lembrado.
Disse o narrador: Certa noite, deitado em sua cama e mergulhado em sono e
sonhos, eis que alguém cuja voz se ouvia mas cuja imagem não se via lhe disse:
“Ó Mihrajån, ó rei do tempo…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

662ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Veio até o rei alguém cuja voz se ouvia mas cuja imagem não se via e disse:
“Ó Mihrajån, ó rei do tempo, vá agora até a sua mulher, deite-se ao seu lado e a
possua, e então ela engravidará de você imediatamente. Se der à luz um menino,
ele será o seu auxiliar em todas as situações, e se der à luz uma menina, ela será
motivo da sua destruição, aniquilação e eliminação dos seus vestígios”. Ao ouvir
tais palavras e tal discurso da voz, o rei Mihrajån se levantou de imediato, feliz e
contente, e foi até a esposa, deitou-se ao seu lado e a possuiu. Quando se
levantou ela disse: “Ó rei do tempo, já senti que fiquei grávida. Deus queira que
assim seja”. Ao ouvir as palavras da esposa, Mihrajån ficou contente, deu
alvíssaras e registrou aquela noite por escrito; quando amanheceu, sentou-se no
trono do reino e mandou chamar astrólogos, matemáticos e astrônomos,
relatando-lhes o que lhe sucedera naquela noite, e o que ouvira da voz. Cada um
dos sábios se pôs a jogar areia e lhe estudar os auspícios, mas todos esconderam
o que viam, não lhe dando informação nenhuma nem lhe dirigindo qualquer
resposta; disseram-lhe: “Ó rei do tempo, a interpretação dos sonhos às vezes
acerta e às vezes erra, pois o homem, com a sua natureza melancólica, vê nos
sonhos coisas terríveis e atemorizantes que lhe causam medo. Esse sonho que
você teve talvez seja um pesadelo. Então, é melhor entregar a condução das
coisas ao senhor das criaturas, que faz o que bem entende e escolhe”. Ao ouvir
essas palavras dos sábios e astrólogos, Mihrajån deu presentes e dádivas,
libertou prisioneiros, distribuiu roupas às viúvas e aos desvalidos, e depois seu
coração ficou lhe sussurrando coisas ruins devido ao que ouvira da voz; refletiu
a respeito, perplexo, sem saber o que fazer, e assim se passou aquele dia.
Voltando à mulher de Mihrajån, com a passagem dos meses a sua gravidez se
evidenciou, e ela mandou informar o rei a respeito. Mihrajån ficou contente, deu
alvíssaras e ao cabo dos meses de gravidez, chegada a hora de parir, a mulher
deu à luz uma menina. Glorificado seja quem a criou e se esmerou na
constituição da sua aparência, da sua face galharda e bonita de se ver, bela de
membros, bochechas rosadas, olhos graciosos, sobrancelhas em forma de arco e
talhe perfeito. Ao receberem-na, as camareiras cortaram-lhe o cordão umbilical,
passaram-lhe alquifol nos olhos e mandaram avisar o rei Mihrajån que a esposa
havia parido uma menina. Quando os criados de Mihrajån vieram informá-lo, o
seu peito se oprimiu e, cheio de dúvidas, ele foi imediatamente até onde estava a
mulher, e ali lhe mostraram a menina. Ao lhe descobrir o rosto e ver-lhe a graça,
a beleza, o esplendor, a formosura, o talhe e a esbelteza, o seu coração bateu
forte e, dominado pelo amor paternal, deu-lhe, por sua graciosidade, o nome de
Hayfå. Em seguida, mimoseou a camareira com uma valiosa túnica.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

663ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
O rei Mihrajån mimoseou a camareira com uma valiosa túnica e mil dinares, e
quando ele saiu entregaram a menina às amas de leite, das quais recebeu a
melhor criação; quando completou quatro anos, trouxeram-lhe sábios e ela
decorou o alfabeto e aprendeu a fazer contas, mostrando-se inteligente, sagaz,
bem falante, eloquente em suas palavras e com um discurso agradável, a cada
dia acentuando-se a sua beleza, formosura, talhe e esbelteza; quando atingiu os
dez anos de idade, leu sobre as ciências, estudou história, aprendeu astrologia e
geomancia, escreveu com o cálamo, decorou os metros da poesia e o seu
discurso se tornou ainda mais belo; quando completou catorze anos, o pai a
colocou para morar num palácio só dela, com cem criadas de seios formados,
caracterizadas pela beleza e formosura. Já instalada no palácio, ela pegou dez
das criadas de seios formados, virgens, de esplêndida beleza e formosura, e as
ensinou a fazer poesias, a contar histórias curiosas e crônicas históricas e a tocar
os mais diversos instrumentos, até que elas a todos superaram em seu tempo. Por
um bom período, Hayfå dedicou-se, com elas, a beber taças de vinho e a
entreter-se com histórias e anedotas. Isso foi o que sucedeu à jovem; quanto ao
pai dela, o rei Mihrajån, certa noite, deitado em sua cama a refletir sobre o que
ouvira da voz, eis que alguém lhe disse, com uma voz que ele ouvia e uma
imagem que ele não via: “Ó rei do tempo…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

664ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
O rei Mihrajån ouviu a voz de alguém, sem lhe ver a imagem, e se levantou
aterrorizado, o coração acelerado e a mente transtornada, perplexo quanto ao que
fazer. Pediu a Deus auxílio contra o demônio maldito, leu um pouco do Alcorão
e se cercou de alguns dos grandiosos nomes de Deus, voltando a recolher-se à
cama, mas mal pousara a face na almofada e eis que a voz retornava e dizia: “Ó
Mihrajån, você será aniquilado por causa dela?”, e recitou os seguintes versos:

“Não vais, Mihrajån, ouvir o que te digo,
e atentar para o sentido da conversa em poesia?
Tua filha Hayfå, imperiosamente, será conquistada
por alguém nobre de ancestrais, de elevado destino,
que te fará beber taças de apostasia com a mão direita
e te tomará o reino com espada cruel e bem afiada”.

Disse o narrador: Ao ouvir o que a voz lhe dizia em versos, e entender o sentido
daquelas palavras, Mihrajån se levantou tal como embriagado, sem saber o que
fazer, o coração preocupado, cheio de angústia, aflição e tristeza, vagando de um
lugar a outro, lendo [o Alcorão] e se cercando [dos nomes de Deus]. Em seguida,
pousou a cabeça na almofada mas mal fechara os olhos e eis que a voz, alta e
dolorosa, retornou e o chamou dizendo: “Ó Mihrajån, por que não ouve as
minhas palavras e entende os meus versos? A sua filha Hayfå lhe acarretará a
infâmia e, por causa dela, você será aniquilado”. E lhe recitou os seguintes
versos desta poesia:

“Te vejo negligente, ó Mihrajån,
desatento aos donos dos sentidos!
Vejo Hayfå possuída por um enérgico,
de belo talhe e discursos acatados:
te fará, sem dúvida, morar nas tumbas,
reinando sobre o teu reino, às claras”.

Disse o narrador: Ao ouvir as palavras da voz, e o que ela demonstrava em seus
versos e discurso, Mihrajån se levantou da cama aterrorizado e preocupado, e
quando Deus bem fez amanhecer e com a sua luz iluminou e fez brilhar, mandou
chamar geomantas, astrólogos[128] e intérpretes, relatando-lhes o sonho
completa e integralmente. Cada qual praticou o seu ofício e o que lhes apareceu
eles ocultaram e não revelaram, mas sim disseram: “O que virá após o seu sonho
será o bem…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


665ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Os astrólogos disseram ao rei Mihrajån: “O que virá após o seu sonho será o
bem”. Na noite seguinte, Satanás,[129] o maldito, lhe apareceu numa boa
imagem e disse: “Ó rei, fui eu quem o assustou ontem no seu sonho, porque você
destruiu o mosteiro de Annašåba, no qual nós moramos. Porém, se acaso você o
reconstruir, [eu vou parar]. É esse o meu conselho, ó rei”. Mihrajån lhe
respondeu: “Eu vou reconstruí-lo, já que você me aconselhou, ó voz!”.
Disse [o narrador]: Satanás se pôs a mentir para o rei Mihrajån e a lhe dizer:
“Eu irei auxiliá-lo na construção de um palácio no rio dos Seios Formados, ó
meu viver, ó minha esperança, e anuncie isso abertamente para todos ficarem
sabendo”. Mihrajån despertou feliz e contente, e quando Deus fez amanhecer e
com a sua luz iluminou e fez brilhar, o rei chamou engenheiros, mestres e
arquitetos,[130] ordenando-lhes que reconstruíssem o mosteiro de Annašåba, e
eles trabalharam até concluir o trabalho da melhor maneira. Depois disso, o rei
Mihrajån ordenou que se construísse para a sua filha Hayfå um palácio que
jamais houvesse existido igual no mundo, e que fosse edificado às margens do
rio dos Seios Formados, bem amplo e constituído, cercado pelas montanhas.
Ordenou aos arquitetos que lhe construíssem tal palácio naquele vale, às
margens do rio, e eles lhe seguiram à risca as instruções: traçaram as fundações,
colocaram as pedras, deram-lhe o comprimento de uma parasanga, a largura
também de uma parasanga e mostraram o projeto ao rei, que então reuniu os
soldados e com eles retornou à cidade. Em seguida, os engenheiros e arquitetos
deram início à edificação do palácio, dotando-o de quatro pilares, deixando-o
bem elevado, mais de duas braças quadradas, e em seu centro construíram um
pátio também dotado de quatro pilares com quatro salões um defronte do outro, e
em cada salão um depósito e um cômodo para espairecimento; no ponto mais
elevado de cada salão uma janela dando para um jardim que será descrito a seu
tempo; pavimentaram-no com placas de mármore colorido e pedras de
marmoraria cravejadas de pérola e ágata iemenita, teto forrado com lazulita e
enfeitado com ouro, pérolas e pedras preciosas; pintaram-lhe as paredes de
branco, mediante o uso de carbono de chumbo, e as adornaram com ouro,
lazulita, prata e outros metais valiosos; as bases das janelas, fizeram-nas de
prata, metais e ouro trabalhado; as portas das salas de reunião, de madeira de
sândalo e ébano, cravejada de prata e pintada com tinta dourada e prateada; em
cada salão de reuniões, pilastras de aloés e sândalo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

666ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Cada sala de reuniões tinha pilastras de aloés e sândalo cravejadas de pérola, e
no ponto mais elevado abóbadas ligadas às pilastras, e no ponto mais elevado
das abóbadas enfeites de cristal, cornalina e ágata. No ponto mais alto de cada
salão colocaram um leito de zimbro com pés de marfim e rubi, e em cada leito,
estendido, um mosquiteiro tecido a ouro e cravejado de pedras preciosas, com
janelinhas de pérolas enfiadas em fio de ouro e cortinas de âmbar, colchão de
seda recheado com penas de avestruz, e almofadas recamadas a ouro; o piso dos
salões foi acolchoado e tapetes tecidos com seda forraram o centro do pátio. No
meio dos salões havia uma piscina com quatro pilares, tudo enfeitado, inclusive
o fundo e as bordas, com diamantes pintados de todas as cores; nas beiradas da
piscina também puseram estátuas de ouro e prata de animais e aves, cada animal
e cada ave de acordo com as suas características, formas e cores, com os
interiores ocos; no ponto mais elevado da piscina puseram uma fonte cuja água
entrava no oco das estátuas e lhes saía pela boca, esguichando umas nas outras,
como se fossem peixes em luta; aquela água caía no meio da piscina e dali era
escoada para um jardim que será descrito no ponto apropriado. As paredes do
pátio foram enfeitadas com pinturas maravilhosas, a ouro e lazulita, em todas as
cores. Também colocaram na porta dos salões lampiões de cristal pendurados
com correntes de ouro cravejado de rubis e valiosos diamantes, nelas escrevendo
versos de poesia que são os seguintes:

“Nosso salão está livre de detratores que o estraguem,
e de censores que de tanto censurar são censurados;
nele só quem procura é o servidor do vinho, e não
existe contra os convidados nenhum intrigante”.

E nos lampiões escreveram os seguintes versos de poesia:

“Elevei-me por generosidade sobre as cabeças,
quando elas viram a graça da minha condição:
sou o deleite de quem observa. Pois então eia,
ó observadores, deleitem-se com minha beleza.
Minha resignação com essa desgraça me deu
bom motivo para ficar neste local elevado”.

E escreveram na porta do palácio:

“Este palácio já aparece
como alegria para quem o vê;
o bom augúrio escreveu às suas portas:
‘Entrem em paz e segurança’”.

Disse o narrador desta história espantosa: Quando terminaram a escrita no
salão, saíram pela porta que estava no ponto mais elevado do pátio e deram num
amplo bosque repleto de árvores e abundante de riachos; colocaram-lhe uma
cerca de pedra-pomes, pintaram e enfeitaram com tintas, plantaram toda espécie
de fruta, anêmona, flores e frutos, enfim, toda espécie de planta, de todas as
cores, e distribuíram os galhos de maneira admirável, fazendo escorrer debaixo
deles fios d’água, com muita habilidade e técnica; forraram o solo com grãos e
sementes de todos os alimentos e verduras, e instalaram uma acéquia cujo poço
era de mármore.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


667ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Instalaram naquele palácio uma acéquia com poço de mármore, sustentáculos
e tampa de madeira de sândalo, baldes de porcelana e cordas de seda. Quando
concluíram a arrumação dos galhos, colocaram no meio das anêmonas e flores
uma abóbada de estrutura elevada, com quatro pilares cujas pedras eram de
mármore e rubi, teto baseado em pilares de mármore, aloés e sândalo, abóbada
cravejada de pérolas, rubis e outros metais, adornada com ouro e prata, e quatro
salões um defronte do outro; no ponto mais alto de cada salão, uma janela que
dava para aquelas anêmonas e flores; as bases das janelas eram de prata, e suas
portas, de sândalo cravejado de metais; cada janela tinha traçados de ouro com
poesias que serão citadas no local pertinente; tais traçados estavam cravejados de
diamantes e rubis, até que ela ficou parecendo uma das abóbadas do paraíso, em
cujas janelas ficavam penduradas hastes de anêmonas e flores. Quando
concluíram a abóbada e os seus adornos, fizeram dela um espetáculo. [O palácio]
foi cercado de três muros talhados em rocha, cada muro com a espessura de sete
braças, dotado de um portão inexpugnável de ferro chinês para além do qual se
subia por escadas de mármore até o seu ponto mais alto. Finalmente, desviaram
o curso do rio dos Seios Formados, fazendo-o cercar o palácio todo, até que o rio
em torno do palácio ficou parecendo um anel em torno do dedo, ou uma pulseira
em torno do pulso.[131]
Quando terminaram de construir o palácio e a abóbada, e de enxertar as
árvores, os engenheiros e arquitetos foram até o rei Mihrajån, beijaram o solo
diante dele…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


668ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Os engenheiros [e arquitetos] foram até o rei, beijaram o solo diante dele e o
informaram da conclusão. Ao ouvir aquilo, o rei Mihrajån montou, juntamente
com os principais do seu governo, e cavalgaram até o rio dos Seios Formados,
que distava três dias da sua cidade. Quando chegaram e o rei viu o palácio, a sua
elevação e fortificações, gostou muito, e também gostaram os seus parentes e os
principais do governo. Depois ele entrou, e ao ver os trabalhos e a técnica
despendidos na construção do palácio, bem como o jardim, a abóbada, sua
arquitetura e adornos, o rei mandou chamar os engenheiros, arquitetos e mestres
de ofício, agradeceu-lhes o trabalho, deu-lhes valiosas túnicas e outros presentes,
concedeu-lhes benefícios, mandou que lhes pagassem pensões e salários e eles
beijaram o solo diante dele, saindo dali em seguida. O rei Mihrajån se hospedou
no palácio com os seus soldados e ordenou que se fizessem banquetes e
organizassem recepções com comida opulenta, e ali permaneceu com os
soldados durante três dias, comendo, bebendo, divertindo-se, jogando e se
deleitando, após o que distribuiu vestes valiosas aos comandantes, vizires e
principais do governo e do reino, determinando-lhes depois que se retirassem.
Quando eles foram embora, mandou trazer Hayfå, as criadas e todos os seus
pertences, e quando ela chegou e viu o palácio, sua beleza, sua construção, seus
adornos, ficou muito agradada. Após permanecer com ela por três dias, o pai se
despediu e regressou à sua cidade. Quando o pai foi embora, Hayfå ordenou às
criadas que colocassem os leitos nos salões, em cada salão um leito de marfim
com lâminas de ouro brilhante, pés também de marfim, e sobre cada cama
mosquiteiros…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


669ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:][132]
Elas estenderam sobre cada cama mosquiteiros tecidos a ouro e seda, com
pérolas e pedras preciosas, e em cima das camas almofadas e travesseiros; já o
piso do palácio foi forrado com tapetes em cujos bordados de ouro havia os
seguintes versos de poesia:

“Quem neles se senta, meu amor, se deleita,
exceto algum condenado ou desgraçado”.

Depois, colocaram sobre os tapetes assentos nos quais se bordaram os seguintes
versos:

“Assento, seja cada vez mais belo:
minha alegria com você é contínua;
se me penitencio do meu erro e pecado,
amanhã ganho no paraíso um assento”.

Disse o narrador desta história espantosa: E tanto o adornaram que ele ficou
parecendo um dos palácios do paraíso. Quando terminaram de mobiliá-lo e
concluíram os trabalhos, Hayfå, muito agradada com ele, pegou as criadas pelas
mãos, passeou com elas em volta do palácio, todas olhando para aqueles adornos
e enfeites, para aquelas imagens desenhadas em suas paredes, e para a técnica
com que fora construído, e ficaram espantadas com aquilo, louvando os mestres
que o haviam edificado e feito tais gravuras.[133] Hayfå dirigiu-se para a
entrada do palácio, desceu as escadas e, chegando à porta que dava para o rio,
abriu-a, olhou como ele circundava o palácio, semelhando o anel no dedo ou a
pulseira no pulso, para a sua extensão, para a força da sua correnteza, e
considerou-o magnífico; olhou para a porta de ferro, para a sua firmeza e
segurança, e pediu perdão a Deus altíssimo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. [A irmã] lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

670ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå pediu perdão a Deus poderoso, bem como socorro contra o demônio
maldito, e disse: “Ninguém pode evitar o que decidiu o senhor, e nenhum
cuidado será útil contra o que já foi determinado pelo poderoso vencedor no que
ele resolveu relativamente a mim, cuja efetuação será absolutamente imperiosa”.
Em seguida, mandou que trouxessem um tinteiro de ouro e escreveu na porta do
palácio os seguintes versos poéticos:

“Olha para uma casa semelhante à do paraíso,
que medica o debilitado e cura o enfermo:
contém jovens como gazelas, os seios formados,
todo tipo de moça, com talhes equilibrados,[134]
cujos olhos abatem qualquer fera do deserto,
e todo valente atiram prostrado e enfermo.
Para aquele que por seus olhares for alvejado,
nenhum remédio de sábio algum vai resolver,
e todo atemorizado perseguido que a procure,
esta Hayfå, filha de um generoso, protegerá;
com o bebedor mais sedento ela se ocupa:
cinco taças de vinho e um pouco de carne,
com recitadoras de poesia que são o meu anelo!
Bem-vindo seja aquele que é o meu conviva,
e que o rubro vinho sorva no meu jardim!
De cada par já se gerou alguém nobre.[135]
As rosas e açucenas da sua enseada, e
o mirto, a rosa silvestre, cujo aroma é brisa,
a margarida, o girassol e o malmequer;
e o terno jasmim, que já está podado;
quem não bebe não tem generosidade:
se não for convidado que se una a eles;
poesia e bebida são o meu desejo,
mas no meu vinho não tenho convidado!
Ó violador das vestes, vai para mim
à noite buscar bebida envelhecida!
Ó leitor destas linhas, vê se entende
e pensa, eu te peço por Deus poderoso!
Neste caro palácio não te faças de rogado:
quem para cá vem é sempre meu convidado!
Não te envergonhes dos outros quando vieres,
pois no interior destas portas só temos mulher”.

Disse o narrador desta história espantosa: Quando terminou de escrever e exibir
a sua poesia e metrificação, Hayfå fechou a porta do palácio e entrou com as
suas criadas, refletindo e dizendo: “Será que esta fortificação tão poderosa feita
por Mihrajån vai evitar o que está predestinado?”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

671ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå disse: “Será que esta fortificação vai impedir o que está predestinado?
O que vai acontecer?”. Em seguida se dedicou, com as criadas, a comer, beber,
tomar vinho, conversar e ouvir música e canto, divertindo-se e alegrando-se, e
isso por um bom tempo, a salvo de acidentes e imprevistos.
Disse o narrador desta história espantosa, cujo assunto é extasiante,
maravilhoso e insólito: Continuemos a narrativa para que esta história se
encaminhe até a adequada complementação dos seus sentidos e dos seus suaves
vocábulos.
Entre as coisas ocorridas conforme o que estava predestinado e era
irrevogável, por decisão do senhor naquilo que ele determinou e provocou
relativamente às suas criaturas, havia na terra de Sind um rei chamado Sahl,
[136] um dos mais poderosos dali, que governava com força, energia e prestígio,
cheio de soldados e auxiliares. Deus louvado e altíssimo o agraciara com um
filho que não tinha em seu tempo ninguém que o igualasse em aparência: beleza
perfeita, língua eloquente, forte, valente, respeitado, cujo rosto superava o
plenilúnio. Adorava tomar vinho em taças e ficar na companhia de rostos
graciosos, bem como divertir-se e ouvir música, e vivia mergulhado em taças de
vinho, delas não despertando à noite nem na maior parte do dia. Era tanta a sua
beleza e a luz da sua face que, quando queria caminhar pela cidade, velava o
rosto a fim de que as mulheres — e demais criaturas — não se perdessem de
sedução por ele, sendo por isso chamado de Yœsuf, o belo esbelto.
Disse o narrador: Certa noite, a bebida foi mais forte do que ele e Yœsuf saiu
pela porta do seu quarto vagando a esmo, totalmente embriagado, sem entender
nem compreender o que fazia. Ao passar pelos aposentos do pai, Sahl, viu uma
de suas concubinas parada à porta do quarto e, dominado pela bebida, avançou
até ela, abraçou-a e atirou-a ao chão, enquanto ela gritava. Os criados do seu pai
estavam todos parados olhando, mas nenhum teve a ousadia de se aproximar e
salvar a concubina, que ele possuiu e deflorou,[137] levantando-se em seguida
de cima dela e deixando-a imersa no seu próprio sangue. Aquela jovem fora
dada de presente ao seu pai, o qual preferira esperar para quando ela estivesse
pronta. Quando Yœsuf retornou ao quarto, sem se dar conta do que fizera, os
criados pegaram a jovem, que estava imersa no próprio sangue, e a levaram ao
rei Sahl, o pai de Yœsuf, que ao vê-la naquele estado perguntou aos criados:
“Quem fez isso com ela?”. Responderam-lhe: “O seu filho Yœsuf”. Ao ouvir as
palavras dos criados, aquilo lhe doeu e ele mandou que trouxessem o filho, e
todos correram até ele. Um dos criados, que gostava muito de Yœsuf, foi
informá-lo da história, e que seu pai ordenara que ele fosse conduzido à sua
presença. Ao ouvir as palavras do criado, Yœsuf se levantou imediatamente,
armou-se de espada e lança, foi até o estábulo, onde estavam os cavalos, pegou o
melhor, pulou, montou nele, juntou vinte escravos e saiu com eles pelas portas
da cidade, avançando sem saber o que o oculto lhe reservava.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

672ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf, o filho do rei Sahl, saiu da cidade sem saber para onde ir nem que
rumo tomar, e continuou avançando com os seus criados durante dez dias,
atravessando desertos, terras inóspitas, vales e locais perigosos, perplexo quanto
ao que fazer. Enquanto avançava, eis que chegou às margens do imenso rio dos
Seios Formados, avistando no meio dele o palácio de Hayfå, sua elevação e suas
fortificações reforçadas.
Disse o narrador: Ao vê-lo, Yœsuf pensou: “Por Deus que esse magnífico
palácio, com toda força, firmeza e fortificação, não foi construído senão devido a
alguma questão importantíssima, algo muito grave. A quem pertencerá? Quem
mora nele?”. Com a mente ocupada em saber qual rei era o seu dono, Yœsuf
ordenou aos criados que desmontassem às margens do rio e descansassem,
perguntando-lhes depois que eles já haviam descansado: “Quem de vocês entrará
no rio e o atravessará, verá o dono do palácio e nos trará notícias a respeito de
tudo, do palácio, dos moradores e do dono?”. Como ninguém respondesse, ele
repetiu a pergunta, e tampouco recebeu resposta. Vendo aquilo, levantou-se de
imediato, tirou as roupas, mantendo somente a túnica, pegou o arco e a aljava,
amarrou-os na cabeça com a túnica, mergulhou na água e nadou até sair na outra
margem, dali se dirigindo à porta, mas logo notou ser de ferro, inexpugnável,
que ninguém poderia abrir; viu os versos nela escritos, leu-os e, ao compreender-
lhes o sentido, deu alvíssaras e teve certeza de que entraria naquele palácio; tirou
da aljava tinteiro e papel e nele escreveu os seguintes versos de poesia:

“À sua porta, fonte da generosidade, chegou
um forasteiro desterrado que se tornou errante;
talvez sua generosidade o salve da errância,
e o proteja da injustiça do inimigo contumaz.
Não tenho refúgio senão a sua porta, a qual
contém sentidos de versos como se fossem colares,
que o filho de Sahl leu, e recorreu a vocês.
Socorram o estranho que lhes chega sozinho”.

Quando terminou de escrever no papel, Yœsuf o dobrou, amarrou na flecha,
colocou-a no arco, dobrou-o e disparou para o alto do castelo, dentro do qual ela
caiu após ter subido. Por algo que estava predestinado, Hayfå estava caminhando
com as suas criadas quando a flecha caiu aos seus pés.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

673ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå — que passeava com as criadas pelo palácio quando súbito [a flecha
com] o papel caiu aos seus pés — recolheu-a e, notando o papel, pegou, abriu,
leu, compreendeu o conteúdo e, ao terminar, ficou contente, deu alvíssaras e,
rosto ruborizado, disparou em direção à porta. Do alto do palácio, as criadas
espiaram para ver quem chegara e, vendo Yœsuf parado ali, disseram à patroa:
“À porta se encontra um jovem gracioso, cujo rosto parece a lua crescente do
mês de ša¢bån”. Ao ouvir as palavras das criadas, Hayfå foi invadida por
alegria, alvíssaras e regozijo, suas entranhas se revolveram e ela se borrou nas
roupas. Em seguida, desceu até a porta, abriu e, ao ver Yœsuf, sorriu para ele,
demonstrou contentamento e o cumprimentou, ao que ele respondeu com doces
palavras e discurso atraente. Ela disse: “Muito bem-vindo! Que o espaço lhe seja
agradável e amplo, ó quem veio até nós e se refugiou em nossa fortaleza e
esconderijo. Aqui você terá segurança, respeito e dignificação”. E prosseguiu
dizendo: “Fique sob a nossa proteção, sem nenhum risco de hostilidade. Você
chegou aonde esperava, obteve o que pretendia e alcançou o que almejava, ó
dono do rosto resplandecente, ó perfeito de talhe, ó dono da face que supera o
crescente. Tenha você a vida, e dos inimigos a salvação”. Em seguida, rodeada
pelas criadas, Hayfå subiu as escadas com ele atrás; conversava, fazia-o
espairecer com as suas palavras e lhe dava boas-vindas. Quando já estavam no
interior do palácio, ela o pegou pela mão e o acomodou no lugar mais alto do
recinto. Contemplando o palácio e a sua bela arquitetura e adornos — que o
faziam assemelhar-se a um dos palácios do paraíso — e observando aquela
mobília, aqueles leitos, os mosquiteiros sobre eles, aqueles metais preciosos,
aquelas pérolas e gemas, Yœsuf considerou tudo grandioso e pensou: “Este
palácio não pertence senão a um rei deveras poderoso”. Em seguida, Hayfå
ordenou às criadas que lhe trouxessem uma trouxa de tecidos e, quando foi
colocada diante de si, abriu-a e retirou um traje daylaq∑ com um qibå†∑
egípcio,[138] recamado de ouro, fazendo-o vesti-lo; colocou-lhe na cabeça um
turbante forrado de ouro com as laterais cravejadas de gemas. Ao vestir aquilo, o
rosto de Yœsuf se iluminou, sua luz brilhou e suas faces ficaram rosadas; vendo-
o nesse estado a mente de Hayfå se atordoou e ela quase desmaiou, pensando:
“Esse aí não é um ser humano; não se trata senão de um dos efebos do paraíso”.
Em seguida, ordenou às criadas que trouxessem comida…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

674ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Em seguida, Hayfå ordenou às criadas que preparassem as mesas para a
comida, e elas assim procederam, colocando tudo diante de Yœsuf, que olhou e
viu uma mesa de ágata iemenita, outra de cornalina, outra de cristal, todas com
travessas de porcelana, esmeralda, prata e ouro, e nos pratos alimentos que
deixariam perplexa qualquer mente, tão opulentos eram, com variedades de
doces, perdizes, codornas, carne de carneiro, pombo, carne de gazela e de
antílope, aves e pássaros de toda espécie, verduras, legumes em conserva, grãos,
assados, frituras, todo gênero de conservas e cozidos com açúcar.[139] Em
seguida, Hayfå se acomodou ao lado de Yœsuf e se pôs a oferecer-lhe de todas
as comidas, doces e carnes, jurando e fazendo-o comer até que ele se saciou,
ambos em meio a risos, diversões e brincadeiras, contemplando-se mutuamente,
cada qual deles no molde da beleza, da formosura, do esplendor, do bom talhe e
da esbelteza, semelhando paus de bambu. Apesar de muito contente com Yœsuf,
Hayfå de quando em quando se lembrava do caso do pai, o rei Mihrajån, e
pensava: “Será que ele me casaria com este rapaz de tão belas feições? Se ele
não aceitar de bom grado, eu me casarei à força, mesmo que ele não queira”,
enquanto Yœsuf pensava: “Que providências o meu pai terá tomado quanto
àquela moça que eu desvirginei? Será que ele saiu à minha procura ou me
esqueceu e já não pergunta a meu respeito?”. Assim, os dois se indagavam a si
mesmos, o rapaz mal acreditando que se salvara e ambos ignorando o que lhes
destinara aquele que, quando diz para algo “seja”, é.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

675ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå e Yœsuf estavam nesse mar de reflexões, mas o deleite e regozijo os
fizeram esquecer o que estava escrito. Olhando para a mesa maior, Yœsuf viu
nela gravados os seguintes versos de poesia:

“Reunidora de amados e amigos,
sou posta ante vizires e sultões;
em mim está tudo que se deseja
de carnes e toda espécie de comida;
frua o prazer da comida que ofereço
e louve o seu senhor, criador do homem”.

Disse o narrador: Em seguida, serviram pão sobre a mesa, e Yœsuf viu que em
seu molde estavam gravados os seguintes versos de poesia:

“É o pão uma refeição de trigo
branco, quente, vindo do forno;
o censor me aconselhou dizendo:
‘Amigo, não me censure a ternura’”.

Depois, colocaram sobre a mesa as já mencionadas travessas de porcelana e
prata, nas quais havia tudo quanto desejassem a vontade e a língua: carne de
carneiro, perdiz, codorna, frango, pombo e tudo de toda espécie que um
esfomeado poderia desejar. Yœsuf viu gravados nas travessas de porcelana os
seguintes versos de poesia:

“Nossas travessas de porcelana
deixam atônitos todos os olhos:
ninguém viu em nossa praça-forte[140]
nada melhor que estas travessas”.

E logo ele viu gravados nas travessas de prata os seguintes versos poéticos:

“Travessas de prata branca, moldadas
com extrema beleza e arte, meu bem:
concluídas e completadas com qualidade,
se tornaram graciosas travessas sem igual”.

Nas travessas também estavam escritas outras coisas que sumiram e voaram por
causa dos gansos e dos frangos. Uma criada veio cortar as carnes empunhando
uma faca na qual Yœsuf viu gravados, em ouro vermelho, os seguintes versos
nos quais se dizia esta poesia:

“Sou uma faca graciosa,
nenhuma coisa fiz horrorosa:
estás livre do meu mal, amigo,
e degolado está o teu inimigo”.

Disse o narrador: Quando as criadas terminaram de ajeitar a mesa e depuseram
cada coisa no lugar, Hayfå se acomodou ao lado de Yœsuf, filho do rei Sahl, e
disse: “Meu senhor, seja gentil comigo e faça-nos o favor de comer conosco.
Este é um dia de alegria graças à reunião com você. Nossos aposentos estão
iluminados pela luz da sua chegada esplendorosa, sua preciosa louçania, sua
estada em nossa casa, a gentileza das suas palavras e dos seus belos sentidos! Ó
único desta era e destas horas! Ó aquele que não tem assemelhado neste tempo
nem em nenhum outro!”. Ao ouvir a fala de Hayfå, Yœsuf disse: “Por Deus, ó
adorno das luzes, ó encabuladora do sol e da luz do dia, ó dona da fronte
radiante, do talhe esbelto e mais luminoso, ó aquela cuja beleza e formosura
superaram todos os mortais! Ó aquela de boca atraente, de saliva salobra e doces
palavras! É você a dona do mérito e da bondade, da liberalidade e da gratidão!”.
Então, Hayfå se pôs a [comer e a] lhe dar bocados até ambos ficarem saciados,
[141] ordenando em seguida que as suas mãos fossem lavadas dos vestígios da
comida; trouxeram para Yœsuf uma bacia de ouro brilhante que o deixou
deslumbrado e mergulhado num mar de reflexões: olhando para Hayfå, perdia o
senso e se sentia atraído a fazer algo, de tanto que a jovem era bela e formosa,
mas se continha a si mesmo pensando: “Tudo tem o seu momento”…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

676ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf pensou: “Tudo tem o seu momento, pois já diz o provérbio: ‘Quem se
apressa em algo antes da hora é punido e fica sem nada’”. Quando lhe trouxeram
a bacia de água com uma jarra de cristal enfeitado com ouro, ele viu ali gravados
os seguintes versos de poesia:

“Sou uma bacia: de ouro me fizeram
e ante senhores distintos me puseram;
para lavar as mãos me chamaram bacia,
para molhá-las com a água das fontes”.

Disse o narrador: Yœsuf também viu gravados na jarra os seguintes versos de
poesia:

“Que bela forma de jarra pela qual se inclina
o nosso coração e na qual se fixa o nosso olhar!
Deleito-me quando olho para ela e me espanto
com tanta suavidade naquele corpo e pescoço”.

Quando terminou de lavar as mãos e enxugá-las com as toalhas, Yœsuf fez um
sinal para Hayfå dizendo os seguintes versos de poesia:

“A paixão me cresce no coração, como ocultar?
E minha lágrima me umedece o prato da face:
oculto a paixão mas a lágrima do olho a revela,
me armo de paciência, mas as entranhas a dobram.
Ó frequentador das águas, meus olhos escorrem,
mas não procures pela água senão na sua fonte.
Todo aquele que tenta ocultar o amor é incapaz,
porque as suas lágrimas lhes denunciam o medo.
Eu sou aquele que no amor por vós virei exemplo,
meus senhores! O amor já me deixou sem norte!
Vós morais no meu coração, que é a vossa casa,
e mais sabedor do que há no coração é o morador”.

Disse o narrador: Quando Yœsuf, filho do rei Sahl, concluiu a recitação e o que
pretendia demonstrar com a sua versificação, Hayfå lhe beijou a fronte, o que o
fez perder juízo e senso, e ele caiu desmaiado, assim permanecendo um bom
tempo; quando despertou, refletiu sobre a atitude dela e ficou ainda mais
desejoso de fazer uma coisa, mas se conteve, vencendo e derrotando o desejo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

677ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf, filho do rei Sahl, conteve o seu desejo derrotando-o e vencendo-o após
ter recitado aquela poesia e recebido na fronte um beijo de Hayfå, que lhe disse:
“Foi excelente a sua fala, ó aparição da lua crescente”, e, enchendo uma taça,
bebeu-a, tornou a enchê-la e a entregou para Yœsuf, que a pegou e beijou. Então
Hayfå lhe recitou os seguintes versos e disse na poesia:

“Contra a sedução da tua boca não tenho prevenção,
nem me recuso em confessar o meu afeto por ti!
Ó imagem de meus olhos, como calar a paixão por ti?
Esse talhe tão elevado, essa poesia tão bem recitada,[142]
o rubro das bochechas, que exibe uma vasta linha
deixada e bem marcada pelas taças do meu vinho.
Por Deus que lhe ocultei o fantasma, mas ele surgiu
ante o meu olhar, brilhando no perfume do seu rosto.
Como ocultar a minha paixão por ele, se eu tenho
o que me denuncie no vermelho da lágrima na face?
O fogo do seu rosto me incendiou o coração,
e ora se alastra, lavrando cada vez mais forte!
Por Deus que o amor por vós não se alterará jamais,
em nenhum dia, ainda que nele meu corpo se altere”.

Disse o narrador desta história espantosa: Quando Hayfå concluiu a recitação
da metrificação, Yœsuf, quase inconsciente, sorveu a taça, beijou-a e entregou a
ela, que a pegou, enquanto ele lhe recitava os seguintes versos de poesia:

“No amor por vós, criança, meu coração se perdeu.
Como ocultar a paixão por ela se o olho demonstra?
Lembrei os galhos de árvore se curvando de alegria,[143]
e cujo tronco me contou, sem sombra de confusão:
‘seu olho lhe vigia o próprio rosado da bochecha,
tal como protege meu fruto quem o deseja colher’.
Seus olhos denunciam o segredo de suas pupilas,
pois de um odre só se retira o que ele contém”.

Disse o narrador: Quando Yœsuf concluiu a recitação da metrificação, Hayfå se
sentou ao seu lado e começou a conversar com ele, usando a doçura do discurso
e a beleza dos lábios para dizer: “Seja muito bem-vindo, ó dono da beleza
maravilhosa, do belo discurso, do sorriso gracioso, do destino sublime e do
orgulho evidente. Você iluminou os nossos aposentos com a luz da sua fronte
radiante, deleitou corações, aliviou aflições e alegrou peitos. Este é um dia de
festa e alegria; satisfaça o nosso coração e beba da nossa bebida, pois você é
quem se procura, é o máximo que se pode desejar”.
Disse o narrador desta história: E, tomando uma taça de cristal, Hayfå
encheu-a da bebida mais pura, acrescentou almíscar e açafrão e ofereceu a
Yœsuf, que a recebeu dela com as mãos tremendo devido à sua formosura, bela
poesia e perfeição, e recitou os seguintes versos de poesia:

“Ó quem toma vinho com os amigos,
num jardim no interior de um pomar,
num lugar que nunca vimos igual
em nenhuma terra e nenhum país,
tome feliz este néctar e se apresse,
sorvendo isso que revigora o corpo.
A taça se expõe entre eles, na festa,
nunca possuída por nenhum grande rei.[144]
Entre o girassol e o mirto aromático,
margarida, rosa silvestre e açucena;
rosas e maçãs se veem nas suas faces,
nas bochechas brilhando como fogo;
vibram sons de instrumentos musicais,
de guitarras, de flautas, de alaúdes.
Se eu não conseguir logo ficar com ela,
irei morrer, por dentro, de abandono”.

Disse o narrador: Então Hayfå lhe respondeu com uma poesia cuja rima era a
mesma:[145]

“Ó tu que surgiste por detrás das dunas,
e cuja alma já revelou o que ocultavas:
tu sofres com o vinho enquanto ele dura;
ouvir-te é como ouvir bêbado apaixonado.
Olha para o nosso jardim e para a sua beleza,
cujas flores abrangem todas as cores,
e cujos pássaros piam alto nos galhos,
cantando a toda força as mais doces melodias:
toda espécie de rolinha, toda espécie de garça,
todas cantam no tom do melro e do alcaravão,
aqui, seus rouxinóis, e suas pombas de colar,
e ali, uma perdiz com uma codorna a gritar;
enche a nossa taça de vinho puro e contempla
outras taças cheias de nobreza e superioridade,
num jardim tão repleto de fontes e regatos,
que é melhor chamá-lo de paraíso das bênçãos”.

Disse o narrador: Tão logo Hayfå concluiu a sua poesia metrificada, mal ouviu
o último verso, o juízo de Yœsuf se transtornou, ele gemeu e, atônito com a
jovem e as criadas que a rodeavam, soltou um grito e tombou desmaiado por um
bom tempo, só acordando ao anoitecer, quando já se haviam acendido velas e
lâmpadas, o que só fez aumentar-lhe a violenta paixão e diminuir-lhe a
resignação; tentou se pôr de pé mas, sem forças nos joelhos, assustou-se e voltou
a sentar-se como estava.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

678ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Depois, vexado, Yœsuf se sentou em seu lugar e Hayfå lhe perguntou: “Qual o
seu nome, amado e alento do meu coração?”. Então ele respondeu dando o
nome, o nome do pai e tudo quanto lhe sucedera com a concubina deste, do
começo ao fim, incluindo a fuga da sua cidade e a chegada ao palácio dela, e
como nadara no rio e atirara o papel preso na flecha. E recitou os seguintes
versos de poesia:

“Deixei minha casa devido a uma moça
contra a qual eu perpetrei injustiça,
ignorando a quem ela pertencia;
o que fiz bem merece a vindita.
Só depois eu descobri quem era ela:
a moça pertencia ao bravo rei Sahl,
rei temido que a mandou convocar,
desejoso de tal beldade desfrutar,
[mas a encontrou no pior dos estados,
e os mensageiros sobre mim foram informar;
muito encolerizado, ele mandou me buscar.]
Envergonhado estou com o escândalo:
buscador da glória, ora temo as mulheres”.[146]

Disse o narrador: Ao tomar conhecimento do nome do rapaz, o amor de Hayfå
por ele aumentou imensamente e, pondo o alaúde no colo, experimentou-o com
os dedos, e então o instrumento se extasiou, chorou e se queixou, e ela se pôs a
dizer a seguinte poesia:

“Mil vezes sejas tu bem-vindo,
ó querido Yœsuf, filho de Sahl;
já lemos nos livros e entendemos
dês que nasceste valente cavaleiro;
por Deus, digo que sou a tua moça
entre os homens, e tu, meu marido;
conquistaste a mais linda face,
beleza perfeita e nobre origem,
dos reis do Norte vieste até nós,
para derrotar e humilhar Mihrajån;
durante o combate olhei para ele,
o primeiro a chegar ao palácio é o marido,
que meu pai vai matar e o reino empalmar,
governando o país de leste a oeste,
mas logo nos deixarás, sem culpa nossa,
proferindo contra nós injustiças;
assim o deseja o senhor dos humanos,
único nos céus, poderoso e excelso”.

Disse o narrador: Ao ouvir as palavras de Hayfå, Yœsuf ficou deveras
extasiado, bem como ela, e em seguida [se despiu e] a presenteou com todas as
roupas que vestia, e também ela se despiu e o presenteou com todas as roupas
que vestia, ordenando às criadas que trouxessem outros trajes, e então elas
providenciaram uma nova trouxa, cujas roupas opulentas Hayfå fez Yœsuf
vestir.
Disse o narrador: Yœsuf permaneceu com Hayfå no palácio por dez dias, na
melhor vida, comendo, bebendo, conversando e trepando.
Disse o narrador: Então Deus louvado e altíssimo determinou que, tendo
Yœsuf Bin Sahl se demorado, seu pai enviasse atrás dele Ya¬yå, o filho de sua
tia materna, junto com vinte cavaleiros.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

679ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
O rei Sahl enviou atrás de Yœsuf [seu sobrinho Ya¬yå com] vinte cavaleiros
para tentar encontrar pistas e notícias dele, e então Deus louvado e altíssimo os
conduziu até os criados de Yœsuf, que já estavam queimados pelo sol e
massacrados pela fome. Indagaram-nos a seu respeito e os criados informaram
que ele nadara pelo rio e entrara naquele palácio havia dez dias, “e não sabemos
se está vivo ou morto”. O primo Ya¬yå perguntou: “Algum de vocês poderia
atravessar o rio a nado e ir nos trazer alguma notícia?”, mas nenhum deles se
prontificou a fazer aquilo: sem pronunciar palavra, ficaram olhando como parvos
para ele, que repetiu a pergunta uma e duas vezes; como ninguém se
manifestasse, Ya¬yå os repreendeu e, pegando um tinteiro de cobre e papel,
escreveu os seguintes versos de poesia:

“Eu hoje vi uma coisa espantosa
sobre Yœsuf Bin Sahl, o querido:
dês que partiu, sem ele o palácio
ficou escuro e seu pai, deprimido;
ele parece plenilúnio entre estrelas:
quando some, a terra toda escurece;
o maior medo é que o seu coração
esteja ferido pelos fogos da paixão;
por Deus, ainda se rei fosses do mundo,
entre todos serás sempre estrangeiro”.[147]

Disse o narrador: Em seguida, Ya¬yå pegou um cálamo persa, dobrou o papel,
enfiou-o dentro dele, selou-o com vela, amarrou-o na flecha, pôs a flecha no
arco, retesou-o e disparou na direção do palácio. A flecha voou, caindo sob a
escada da porta bem no momento em que uma criada saía para buscar água; ela
encontrou a flecha, recolheu-a e foi levar para a sua senhora, que estava
conversando com Yœsuf. O rapaz pegou o cálamo, quebrou-o, retirou a carta,
desdobrou, leu, entendeu o sentido e chorou amargamente até desmaiar.
Disse [o narrador]: Hayfå tomou-lhe a carta das mãos, leu-a e, pesarosa por
ele, ordenou-lhe que aplicasse cem chibatadas na criada que trouxera a carta, e
ele a chicoteou até ela desmaiar.
Disse o narrador: Quando se recuperou do desmaio,[148] Yœsuf, lembrando-
se dos seus criados, da sua família, da sua casa e da sua tribo, disse a Hayfå:
“Por Deus, cometi um grande equívoco ao abandonar a minha gente lá no
interior. Foram o demônio e o vinho que me fizeram esquecê-la, esquecer da
família, da minha terra, tudo por causa da bebida. Agora, o meu propósito é ir
ver os meus criados e Ya¬yå, filho da irmã do rei, cumprimentá-los e mandá-los
de volta para casa, após o que voltarei para você rapidamente”. Hayfå disse:
“Por Deus, não consigo ficar sem você um único momento, caso contrário o meu
sopro vital vai me abandonar o corpo. Mas eu lhe peço, por Deus, que me deixe
responder essa mensagem!”. Yœsuf disse: “Como é que você vai dizer que eu
não vim até aqui? Os criados me viram quando entrei”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

680ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf disse a Hayfå: “Os criados me viram quando entrei aqui e já
informaram Ya¬yå a respeito”. Ela disse: “Deixe por minha conta a boa resposta,
a sutileza da palavra e a essência da poesia”. Pegou tinteiro, papel, cálamo de
cobre e fez tenção de escrever, mas Yœsuf a impediu dizendo de maneira
dengosa: “Não é certo que você lhe dê a resposta, pois nesse caso ele vai pegar
os meus criados, voltar com eles para minha casa e informar às pessoas tudo
sobre nós. O mais certo é que eu vá pessoalmente até eles, cumprimente-os e os
acompanhe até a minha terra, de onde retornarei para você rapidamente após
tranquilizar o meu pai. Não agirei assim senão por temor de que nos descubram,
denunciem e o caso chegue aos ouvidos do seu pai, que ficará muito aflito, pois
é custoso para os reis que se fale mal deles. Se ele ficar sabendo, ou vai fazer
você mudar para o palácio dele ou vai colocar vigias neste palácio, os quais a
impedirão de ficar comigo, e eu também serei impedido de ficar com você,
criando-se assim um motivo para a nossa separação”.
Disse o narrador: Ao ouvir tais palavras, Hayfå gritou, chorou e soluçou
dizendo: “Meu senhor, me leve com você, eu, minhas criadas e tudo quanto
existe neste palácio”. Ele respondeu: “Só vou demorar o tempo de ida e volta, se
eu viver e Deus altíssimo permitir”. Hayfå chorou lágrimas copiosas, soluçou e,
subjugada pela paixão, recitou os seguintes versos de poesia:

“Verto, olhos meus, lágrimas de sangue,
a vista turvada por nuvens vermelhas;[149]
ó magnífico, meus ossos estão em farelos,
ó dono do coração puro, derreto no fogo!
O amado do meu coração já vai partir!
Quem se resigna com a perda do amado?
Seja gentil e clemente com meu coração,
e volte logo ao meu palácio, sem tardança”.

Disse o narrador: Quando Hayfå concluiu a sua poesia, Yœsuf chorou
copiosamente e disse: “Por Deus que o meu propósito não era senão retornar a
você, mas somente poderei fazê-lo depois de dispersar esses que chegaram”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

681ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue
a história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf disse a Hayfå: “Espere até eu dispersar esses que chegaram, e então
voltarei, se Deus altíssimo quiser”, despediu-se e despiu-se. Hayfå perguntou:
“Por que está tirando essa roupa?”. [Ele respondeu:] “Não quero que ninguém
suspeite nada sobre o nosso caso, pois, em sua maioria, são vestes femininas”.
Yœsuf saiu dali, embora o seu coração se mantivesse preso a ela, que chorava e
pedia socorro, e também as criadas gritavam e choravam a sua partida.
Disse o narrador: Ao sair pela porta do palácio, Yœsuf tirou as roupas que
usava ao chegar, fazendo com elas um turbante, agarrou o arco e a aljava e
nadou até sair do outro lado, junto aos seus criados e aos recém-chegados;
cumprimentou o primo Ya¬yå, cujos acompanhantes lhe beijaram as mãos, e em
seguida Ya¬yå perguntou: “Por qual motivo você abandonou os seus criados
durante esses dez dias?”. Yœsuf respondeu: “Por Deus, primo, quando entrei
nesse palácio encontrei um jovem filho de reis que me recebeu muito bem, me
hospedou, me dignificou muito e me tratou com a mais suma deferência. Quando
pretendi ir embora, sofri um golpe de ar que me atingiu no âmago e me fez mal.
Fiquei com medo de atravessar o rio a nado e piorar. Foi esse o motivo da minha
demora”. Em seguida, montou no cavalo, Ya¬yå também montou e todos
cavalgaram em direção à sua terra, atravessando desertos, terras inóspitas, vales
e locais perigosos, até que se aproximaram do seu destino e vislumbraram a
cidade ao longe.
Disse o narrador desta história espantosa: Quando eles chegaram à cidade, a
notícia foi transmitida ao rei Sahl, que saiu junto com os principais do seu
governo para receber o filho, ordenando que a cidade fosse engalanada da
melhor maneira, com joias e adornos; o povo deu alvíssaras pela integridade do
filho do rei e o seu regresso são e salvo à cidade. O rei cavalgou, saiu para
recebê-lo e, ao vê-lo, apeou-se, abraçou-o, beijou-o entre os olhos e o conduziu
ao palácio, onde o dignificou e tratou muito bem. A alegria perdurou, e no dia do
seu retorno se decretou feriado.
Disse o narrador: À noite, Yœsuf se dirigiu aos seus aposentos, encontrando
então a mãe e as suas esposas, todas semelhantes ao plenilúnio brilhante. Yœsuf
tinha três esposas e quarenta concubinas, mas evitou-as todas e dormiu sozinho,
sem procurar nenhuma delas, arrulhando como arrulham as pombas quando
perdem o seu amado; por toda a noite pensou em sua querida, recitou poesias e
chorou.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

682ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf passou toda a noite chorando e recitando poesias, mas sem que se
pudesse interpretar o que estava dizendo, temeroso de que o seu segredo fosse
revelado, e então as mulheres supuseram que ele estava irritado com o pai, e não
descobriram o que lhe ia pelo coração, nem a sua enorme paixão por Hayfå.
Quando o amanhecer se aproximou e ele, vendo o anunciar da aurora, despertou
do seu sono, pensou, chorou, suspirou, queixou-se, arrulhou tal como as pombas
e recitou os seguintes versos de poesia:

“Depois dessa humilhação, já não tenho terra nem família,
só me restando o choro, os lamentos do coração e a tristeza;
sempre que minhas vistas se lançaram na direção de outrem,
começava a lavrar em mim e a me queimar o fogo da paixão,
mas meu coração sente prazer com o fogo da paixão por você,
bem como as pálpebras sentem prazer com a insônia por você!
Por Deus, me deixe em paz, isso é tudo quanto eu suplico![150]
Por que não me deixa a mente tranquila, e sim me tortura?”.

Disse o narrador: Quando terminou a poesia, Yœsuf caiu desmaiado, debatendo-
se como uma ave degolada, não acordando senão depois que o sol já estava alto
e a tudo iluminava. Atônito no chão, ausente, Yœsuf não respondia nem dirigia a
palavra a ninguém; depois, não saiu mais do colchão, e a notícia chegou ao seu
pai, o qual, acompanhado dos notáveis do reino, foi vê-lo, cumprimentá-lo e
perguntar: “Meu filho, eu o resgataria com a minha própria vida. Que doença
você contraiu? Qual a sua queixa?”. Yœsuf respondeu: “Pai, fui atingido por
uma corrente de ar que me destroçou as articulações”. O pai disse: “Que Deus
altíssimo o faça curar-se disso que o atingiu!”. Em seguida, saiu dali e lhe enviou
um médico, que era um judeu hábil e inteligente.
Disse [o narrador]: O médico judeu entrou, cumprimentou o rapaz, sentou-se
ao seu lado, tocou-lhe as articulações e o indagou sobre o seu estado. O rapaz
silenciou, sem dar resposta, e o médico logo compreendeu que ele estava
enamorado, afogado no mar da paixão; em seguida, saiu e disse ao rei: “Ele não
tem doença nenhuma; está apaixonado, o coração roubado e ulcerado”. Então a
mãe foi até Yœsuf e lhe disse: “Meu filho, Deus altíssimo suavize o que você
está sentindo. Olhe para as suas esposas e concubinas! Não obedeça à paixão,
pois ela vai fazer você se perder do caminho de Deus”, mas ele não lhe deu
resposta. Yœsuf permaneceu nessa situação três dias, sem conseguir comer nem
beber nem ter o prazer de conversar ou dormir, e depois chamou um dos seus
escravos…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

683ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf chamou um dos seus escravos, de nome Hilål,[151]e lhe perguntou:
“Hilål, você me acompanharia numa viagem?”. Ele respondeu: “Sim, meu
senhor, eu ouço e obedeço às suas ordens e desejos”. Então Yœsuf ordenou ao
escravo que lhe deixasse preparado o melhor dos cavalos, ao qual chamavam “o
touro guardado para o dia do combate prolongado”, que se tornara motivo de
provérbios. Esperou a quietude da noite, montou no cavalo, colocou Hilål na
garupa e avançou, cortando desertos e terras inóspitas, até se aproximar do
palácio de Hayfå e do rio dos Seios Formados.
Disse o narrador: Quando avistou o palácio e dele se aproximou, caiu
desmaiado e ao acordar disse: “Hilål, tire a sela do cavalo e esconda na gruta,
entre as pedras”. O escravo então levou a sela e a enterrou entre as pedras,
retornando em seguida. Yœsuf fez um turbante com as suas roupas e as de Hilål,
montou no cavalo e disse: “Hilål, agarre-se à cauda do cavalo”, e entrou no rio
com o animal, que nadou com os dois até sair diante da porta do castelo. Yœsuf
bateu à porta, e veio atendê-lo a criada Radå¬,[152] que abriu, abraçou-o,
beijou-lhe o peito, as mãos e entre os olhos e foi correndo informar a sua patroa
Hayfå, a qual, enlouquecida de alegria, veio rapidamente até ele e o abraçou, e
ele a abraçou, e o estreitou ao peito, e ele a estreitou, e se beijaram abraçados,
caindo em seguida desmaiados por tanto tempo que as criadas chegaram a supor
que eles haviam morrido e emitido os seus últimos suspiros.
Disse o narrador: Quando despertaram do desmaio, queixaram-se
mutuamente, choraram juntos e cada qual começou a se queixar para o outro da
dor da distância. Hayfå indagou a respeito de Hilål, e Yœsuf respondeu: “É meu
escravo, um dos muitos”. Admirada com a chegada a cavalo, Hayfå disse:
“Yœsuf, você me torturou com a sua ausência!”. Ele disse: “Deus, que é a única
divindade, [é testemunha de que] minha mão não encostou em nenhuma fêmea
nem mulher, nem mesmo uma gênia. Eu estava transtornado pela paixão e pela
preocupação abrasadora no meu coração”. Hayfå ordenou às criadas que
levassem Hilål para o jardim, e elas o levaram, indo todos juntos para lá,
enquanto a patroa se punha a caminhar com Yœsuf…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

684ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå levou Yœsuf para o salão de reuniões e ambos ficaram sozinhos pelo
dia todo, em deliciosa felicidade; Yœsuf permaneceu hospedado por trinta dias,
no mais completo regozijo, alegria e consumo de vinho. Hayfå lhe disse: “Luz
dos olhos meus, suba comigo à parte mais elevada do palácio para de lá
apreciarmos este rio corrente e contemplarmos estas montanhas e colinas, estes
desertos e vales com gazelas”.
Disse o narrador: Então ambos subiram à parte mais elevada do palácio para
ver as gazelas pastando as heras do deserto. Hayfå disse: “Ai, meu senhor, como
seria bom ter aqui no palácio um rebanho dessas gazelas”. Yœsuf disse: “Pelos
olhos seus, pelo negrume das suas pupilas, hei de encher este palácio de
gazelas!” e, descendo dali rapidamente, pegou o cavalo, enquanto Hayfå se
agarrava para impedi-lo de sair, mas ele se recusou a obedecer.
Disse o narrador: Hayfå então começou a praguejar muito contra si mesma, e
Yœsuf saiu, deixando ali o seu escravo Hilål, atravessou o rio puxado pelo
cavalo, chegou à terra firme e partiu no rastro das gazelas, delas caçando trinta,
que amarrou e carregou, avançando até chegar à margem do rio. Hayfå, que o
vira capturando as gazelas no dorso do cavalo, tal como um leão, ficou
sumamente espantada. Quando ele já estava próximo do retorno, ali perto do rio,
e fazia menção de [atravessá-lo para] entrar no palácio, eis que um barquinho…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

685ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Quando Yœsuf fazia menção de retornar, eis que surgiu no rio um barquinho
vindo da direção da cidade. Do palácio, Hayfå viu a aproximação do barquinho,
por meio do qual o seu pai Mihrajån lhe enviava grande quantidade de víveres.
Disse o narrador: Percebendo que o barquinho provinha do pai de Hayfå,
Yœsuf interrompeu a entrada no rio para ver o que aconteceria. Também Hayfå,
ao avistá-lo, percebera que fora enviado pelo pai e, pegando tinteiro, papel e um
cálamo de cobre, escreveu recitando e dizendo a Yœsuf os seguintes versos de
poesia:

“Desejo meu, suma e se esconda nas montanhas,
pois se aproxima um barquinho cheio de homens
que suponho terem sido enviados por Mihrajån,
mas que também a comida, necessária, contém.
Espere lá um pouquinho e depois retorne a nós;
ouça minhas palavras, dono da beleza maravilhosa”.

Disse o narrador: Em seguida, ela colocou a mensagem numa flecha, pôs a
flecha no arco, vergou-o e disparou para o alto; a flecha caiu na frente de Yœsuf,
que a pegou, leu a carta e lhe compreendeu conteúdo e sentido. Sabedor de que o
barquinho provinha do pai dela, recuou e deu a volta pela montanha, dizendo em
seguida: “É absolutamente imperioso descobrir quais são as notícias”. Apeou-se
do cavalo, introduziu-o numa gruta que havia ali, saiu caminhando, soltou as
gazelas, apoiou-se numas pedras e se pôs a observar o barquinho, que continuou
avançando até atracar às portas do palácio, dele saindo um rapaz de maravilhosa
beleza a quem Hayfå cumprimentou, abraçou e conduziu para o interior do
palácio; em seguida, descarregaram o que fora trazido; eram quatro rapazes,
entre os quais um homem chamado Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m,[153] conviva do
rei; o rapaz que ela abraçara era o filho da sua tia materna, chamado ¸alhœb.
Quando a viu abraçando-o, Yœsuf perdeu a cabeça, brasas começaram a sair dos
seus olhos e ele xingou e esbravejou; em seguida, controlando[154] a loucura,
ele disse: “Por Deus que atravessarei o rio à noite para ver o que estão fazendo”.
Hayfå havia deixado uma criada à porta e lhe dito: “Fique aqui mesmo, pois
talvez Yœsuf retorne à noite e então você abre para ele”. Em seguida, mandou
servir vinho, acomodou ¸alhœb e Ibn Ibråh∑m e sentou-se no meio deles, após
ter escondido o escravo Hilål num quarto e instalado os outros rapazes num dos
cômodos do palácio. Assim, ela se sentou no meio deles para tomar vinho.
Disse o narrador desta história espantosa: Isso foi o que sucedeu a eles.
Quanto a Yœsuf, ele esperou o anoitecer, atravessou o rio a nado, saiu diante da
porta do palácio e bateu levemente à porta, que foi aberta pela criada de plantão,
à qual ele indagou sobre a patroa. A criada respondeu: “Ela estava sentada com o
filho da sua tia Rådi¬[155] e com um comensal do pai dela”. Ele perguntou:
“Você poderia me levar para dar uma espiadela neles e ver o que estão
fazendo?”, e então ela o levou para um local de onde ele podia observá-los sem
ser notado. Pôs-se então a olhar, estupefato, para eles, para Hayfå tratando-os
bem e lhes recitando poesia, e aquilo lhe foi insuportável. Perguntou à criada:
“Você tem tinteiro, papel e cálamo?”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

686ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Desorientado pelos ciúmes, Yœsuf pegou da criada o tinteiro, o papel, o
cálamo, e escreveu os seguintes versos de poesia:

“Eu considerava que me preserváveis,
pois o meu coração vivia triste por vós;
mas vi que não preservais o compromisso,
e não só, mas que, indo além, me traístes;
os olhos não olham senão para o próprio amor,
salvo se esse amor se tornou detestável,
pois agora vos inclinais por outro alguém,
e por isso de vossa terra estamos partindo;
e, se acaso quiserdes negar tais enormidades,
tenho contra vós testemunhas de vossa parte.
E qual é a serventia da fera que vê o seu poço
frequentado por sedentos cachorros selvagens?
E quem é que aceita de bom grado ter um sócio
no amado, seja ele quem for, ó muçulmanos?”.

Disse o narrador: Em seguida, dobrou a mensagem, entregou para a criada e
perguntou-lhe: “Você sabe onde está Hilål?”. Ela respondeu: “Sim”. Ele disse:
“Traga-o para mim”, e então ela saiu e voltou trazendo-o. Yœsuf usou de uma
artimanha para fazer a criada se afastar, abriu a porta do palácio, fez um turbante
com as suas roupas e as de Hilål, entrou com ele no rio e nadaram até a margem,
dali se encaminhando até o cavalo, que Yœsuf selou, montou — colocando Hilål
na garupa — e cavalgou até chegar à sua terra. Isso foi o que sucedeu a Yœsuf.
Quanto a Hayfå, pela manhã ela indagou sobre Yœsuf, e a criada lhe estendeu a
mensagem, que ela pegou e leu, compreendendo-lhe conteúdo e sentido.
Disse o narrador: Nesse momento, Hayfå chorou copiosamente até desmaiar
e o sangue lhe sair dos olhos; ao despertar do desmaio, dispensou ¸alhœb e os
seus acompanhantes e disse a Ibn Ibråh∑m: “Fique aqui conosco, pois é possível
que homens atravessem o rio a nado e invadam o palácio”, e então Ibn Ibråh∑m
ficou e ¸alhœb partiu com os seus acompanhantes. Quando eles sumiram dali,
Hayfå perguntou: “Ibn Ibråh∑m, você poderia guardar um segredo meu e me
ajudar num caso de paixão?”. Ele respondeu: “Como eu não guardaria um
segredo seu, que é minha patroa, senhora e filha do meu senhor? Mesmo que
fosse com os próprios olhos!”. Ela disse: “Ibn Ibråh∑m, veio até aqui um jovem
chamado Yœsuf, o belo, filho do rei Sahl, do Sind, e me apaixonei por ele e ele
por mim. Após ter ficado aqui comigo por quarenta dias, eu lhe disse: ‘Vamos ao
alto do palácio para ver o panorama’. Então subimos, vimos bandos de gazelas e
eu lhe disse: ‘Ai, como eu gosto de gazelas!’. Ele disse: ‘Por Deus, pela vida dos
olhos seus e pelo negrume das suas pupilas que eu hei de lhe deixar o palácio
cheio dessas gazelas’, e saiu imediatamente, pegou o seu cavalo, cruzou com ele
o rio, saiu na outra margem e caçou três gazelas enquanto eu via; em seguida,
olhei na direção da cidade, vi um barquinho atravessando o rio e, percebendo
que era o meu pai que nele enviava para mim alguma coisa, escrevi-lhe numa
flecha um recado ordenando que sumisse das vistas dos forasteiros até que
fossem embora, e ele se escondeu atrás duma gruta, amarrou o cavalo, viu
quando cumprimentei o meu primo ¸alhœb e nesse instante foi invadido pelo
ciúme devido à maneira como o cumprimentei. Esperou o anoitecer, cruzou o rio
a nado e veio até aqui. Eu dissera à criada Radå¬: ‘Fique aqui à porta, e se acaso
ele voltar abra’. Quando ela lhe abriu a porta, ele foi a um cômodo de onde podia
nos observar e me viu sentada com vocês bebendo vinho. Sem conseguir
suportar isso, escreveu esta mensagem, pegou o seu escravo e partiu de volta
para a sua família e casa.[156] Eu quero que você vá até ele”…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

687ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå disse a Ibn Ibråh∑m: “Gostaria que você levasse esta carta para
Yœsuf”. Ele respondeu: “Ouço e obedeço. Porém, eu vou pegar a carta, ir para a
casa dos meus pais, montar o meu cavalo e só então ir até ele”.
Disse [o narrador]: Então ela lhe deu cem dinares e lhe entregou a carta, cujo
conteúdo eram os seguintes versos citados por Hayfå:

“Que tem esse teu coração, duro que não se dobra?
Para a tua secura eu não tenho nada que me auxilie,
senão o choro e o lamento que sai com as lágrimas
torrenciais, que ora escorrem e navegam no sangue.
Meu alento está tomado pelo fogo e pela debilidade,
ambos bem acomodados, morando no meu âmago.
Meu coração de ti não se cura jamais, ó meu desejo,[157]
ó meu sequestrador, ó tormento dos muçulmanos!
Eu não pensara na separação, mas assim determinou
o senhor altíssimo, dos determinadores o mais sábio”.

Disse o narrador: Então Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m pegou a carta e saiu. Hayfå
disse: “Ibn Ibråh∑m, não informe a ninguém que você esteve aqui conosco esta
noite”, e ele partiu, avançando até aproximar-se da casa dos pais, onde montou a
sua camela[158] e retomou a marcha até se aproximar da capital do Sind, onde
perguntou a respeito do filho do rei, e então lhe mostraram onde estava. Ibn
Ibråh∑m entrou e, encontrando-o sozinho, beijou-lhe as mãos e entregou a carta;
Yœsuf pegou, tirou o selo, leu e, ao compreender-lhe conteúdo e sentido, virou a
cara e franziu tanto o sobrecenho que quase rasgou a carta, atirando-a em
seguida para Ibn Ibråh∑m, que lhe disse: “Ó rei do tempo e das eras, não é assim
que procedem os filhos dos reis. Jogar as cartas fora sem responder?”. Yœsuf
disse: “Não tenho resposta para ela”. Ibn Ibråh∑m disse: “Ó rei do tempo, seja
misericordioso e receberá misericórdia!”.
Disse o narrador: Então Yœsuf mandou que lhe trouxessem tinteiro, papel e
cálamo de cobre e escreveu para Hayfå uma resposta à sua poesia, dizendo os
seguintes versos:

“Se acaso Hayfå, com a poesia da língua,
me procura desejando alguma promessa,
de mim ela não a terá, e que vá buscá-la
em outro lugar, pois o tempo é bem vasto:
traiu, me evitou, riu para outro e foi desleal,
e dês que viu a traição meu coração me traiu,
mas se ele hoje voltasse atrás e desejasse o
amor dela, para ele eu criaria novos desprezos;
e se os olhos meus acaso olhassem para ela,
eu os arrancaria em público com a ponta dos dedos;
foi diversão tudo quanto aconteceu no tempo dela,
se bem que, na verdade, o tempo dela nunca existiu”.

Disse o narrador desta história espantosa: Yœsuf dobrou a carta e,
acompanhada de uma gorjeta de cem dinares, a entregou a Ibn Ibråh∑m, que por
sua vez viajou até o palácio de Hayfå, amarrou a camela, escondendo-a numa
gruta e tapando-a com pedras; depois, foi ao rio, cruzou-o a nado, subiu até
Hayfå, puxou a carta e entregou-a a ela, que pegou, leu e, compreendendo-lhe
conteúdo e sentido, chorou copiosamente e se lamentou até desmaiar, do choro e
da enormidade que a atingiram ao tomar ciência do conteúdo da carta. Sem
poder atinar com o que aconteceria em consequência daquilo tudo, ficou
perplexa e bêbada sem vinho.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

688ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå ficou perplexa e bêbada sem vinho. Mal despertou do desmaio, mandou
que lhe trouxessem tinteiro, papel e cálamo de cobre e escreveu dizendo os
seguintes versos de poesia:

“Ó senhor dos humanos, dimensão do tempo,
encanto para o coração de graciosos e belos:
as queixas que te fiz, sobre os efeitos da paixão,
se fossem feitas a um rochedo o dobrariam;
tu te manténs indiferente à paixão que desejo;
fui humilhada e atingida pela flecha do desprezo”.

Disse o narrador: Quando concluiu a carta, dobrou-a e entregou a Ibn Ibråh∑m,
que a pegou e disse aos criados: “Selem a minha camela”. Montou-a e viajou até
a capital do Sind, onde foi ter com Yœsuf, a quem cumprimentou e entregou a
carta. Yœsuf pegou, leu, entendeu o conteúdo e ao terminar atirou-a na cara de
Ibn Ibråh∑m, deixando-o e se retirando. Ibn Ibråh∑m tentou ir atrás dele, mas
Yœsuf ordenou aos seus criados: “Façam-no ir embora mas não batam nele”.
Disse [o narrador]: Então os criados o expulsaram e ralharam com ele, que
montou na sua camela e viajou até o palácio de Hayfå; escondeu a camela
naquela gruta, cruzou o rio a nado, subiu até o palácio e ao ficar diante de Hayfå
entregou-lhe a carta; ao verificar que era a mesma por ela enviada, Hayfå
chorou, incapaz de suportar aquilo, e depois perguntou: “Ibn Ibråh∑m, quais são
as notícias?”. Ele disse: “Tão logo lhe entreguei a carta, ele abriu, leu, atirou-a
na minha cara e saiu encolerizado da minha frente. Tentei segui-lo mas ele
ordenou aos criados que me impedissem, e eles me impediram e ralharam
comigo”. E prosseguiu: “É por isso que estou sem carta nem resposta. Foi isso o
que sucedeu da parte dele”. Ao ouvir os dizeres de Ibn Ibråh∑m, Hayfå não
suportou e começou a chorar, sem saber como agir, permanecendo desmaiada
por um bom tempo. Ao acordar, disse: “Como agir, Ibn Ibråh∑m? O que
faremos? Ajude-me a administrar este assunto! Quiçá o alívio se dê por seu
intermédio, pois você é administrador e conviva de reis!”. Ele disse: “Minha
senhora, não interrompa o envio de notícias suas para ele, pois quem sabe Deus
altíssimo não lhe muda o coração de uma circunstância a outra. O insistente às
vezes derrota o indiferente”. Ela disse: “Tivesse ele enviado alguma carta, eu me
orientaria por ela sobre o que escrever, mas agora não sei. Se eu continuar nesta
situação, vou morrer”. Ibn Ibråh∑m disse: “Escreva para ele que eu vou até lá.
Por você sacrifico a vida, e não volto sem resposta”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

689ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Ibn Ibråh∑m disse a Hayfå: “Escreva para ele e eu imperiosamente lhe trarei
uma resposta, mesmo ao custo da minha vida”. Ela mandou trazer tinteiro, papel,
cálamo de cobre, e escreveu dizendo os seguintes versos de poesia:

“Será que sabeis como passo com a distância?
Sofro muito, seja às ocultas, seja às claras!
Paixão, sentimento, anseios e sofreguidão:
a minha desgraça se amplia, e estou sozinha;
tenha Deus os dias passados que não voltarão,
nos quais eu parecia estar no paraíso sempiterno;
eu vos cultivarei, com certeza, a vós e vosso amor,
fazendo-vos o mais caro dos seres para mim;
esteja convosco a paz de Deus, que estamos distantes,
e a despeito de mim ainda sobrevivo à distância;
contudo, meu senhor, se acaso não vierdes ter comigo,
o amor por vós me fará residir no interior de uma tumba”.

Disse o narrador: Quando terminou de escrever a carta, dobrou-a e a entregou a
Ibn Ibråh∑m, juntamente com cem dinares; ele pegou tudo, cruzou o rio a nado,
montou em sua camela e viajou até a capital do Sind, mas encontrou com Yœsuf
fora da cidade, caçando; cumprimentou-o, entregou-lhe a carta e Yœsuf retornou
para a cidade, instalou Ibn Ibråh∑m num bom aposento e passou toda a noite
indagando-o a respeito de Hayfå. Quando amanheceu, mandou trazer tinteiro,
papel, cálamo de cobre, e escreveu dizendo os seguintes versos de poesia:

“Mentiras mandais, com elas buscando a concórdia,
mas de mim não recebereis elogios nem louvores;
eu sou aquele cujo coração já não permite poesias,
ao contrário do que faz quem o pacto contrariou;
se quem eu amo me tornou sócio de outro alguém,
então o deixarei para esse amor, e sozinho viverei;
eia, portanto, juntai-vos com quem desejais ficar,
pois já não é o sentido da vossa beleza o que busco;
esta imensa distância, indiferença, secura, todos eles,
abertamente vossos amigos, são agora meus soldados;
vossa atitude, por Deus, não seria aceita nem sequer
por meus criados e escravos, e nem por vossos escravos”.

Disse o narrador: Yœsuf dobrou a carta e a entregou a Ibn Ibråh∑m, dando-lhe
como recompensa um traje verde e cem dinares. Ele recebeu tudo e viajou até o
palácio de Hayfå; escondeu a camela na gruta, cruzou o rio a nado, entrou no
palácio e entregou a carta a ela, que a pegou, rompeu o lacre, leu, compreendeu-
lhe conteúdo e sentido e chorou até soluçar; perplexa, já não sentia prazer em
comer ou beber, nem repousava ao dormir, tamanho era o seu anelo por Yœsuf;
sentiu vontade de atirar-se do alto do palácio…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

690ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå fez menção de se atirar do alto do palácio, sendo contida por Ibn
Ibråh∑m, que lhe disse: “Escreva-lhe uma carta atrás da outra, pois assim quiçá
ele se enterneça e retorne”. Então ela mandou trazer tinteiro, papel, cálamo de
cobre, e escreveu dizendo, das profundezas do seu coração, os seguintes versos
de poesia:

“Tens no meu coração um lugar que não será ocupado
senão por teu amor, o de outrem será a sua morte;
ó aquele cuja formosura de rosto, quando aparece,
[faz o censor descobrir que a sua censura é injusta;
teu rosto é plenilúnio com as maçãs da tua fronte;][159]
o talhe é galho de bela árvore,[160] e teu cabelo, sombra;
livre esteja alguém como eu de querer outro alguém,
pois a formosura do teu rosto não tem semelhante;
não existe entre os homens plenilúnio tão belo,
e é só em ti que a beleza hoje está, por inteiro”.

Disse o narrador: Ela dobrou a carta, selou-a e a entregou a Ibn Ibråh∑m, que a
pegou e viajou até chegar à capital do Sind, onde se encontrou com Yœsuf e lhe
entregou a carta, cujo selo ele rompeu, leu-a, compreendeu-lhe conteúdo e
sentido, que lhe foram difíceis de suportar, e, pegando um tinteiro, escreveu
dizendo os seguintes versos de poesia:

“Deixa-te de alinhavar cartas e carregá-las,
ó Ibn Ibråh∑m, e para de bancar o ignorante,
pois já me consolei da tua casa e seus amores,
e até esqueci daquele tempo e de quem conheci;
portanto, informa Hayfå, a meu respeito, que eu
desejo dela é distância pelo resto da minha vida;
não existe bem num amor que a outrem deseja,
como se fora de comida uma espécie qualquer;
vai procurar outro que não Ibn Sahl, pois ele
não aceita esse remédio e tampouco seus efeitos;
essas características não vão ser aceitas senão
por aquele que até os próprios pais desconhece”.

Disse o narrador: E, dobrando a carta, Yœsuf a entregou a Ibn Ibråh∑m, que a
recolheu e viajou, após ter recebido cem dinares, não interrompendo a marcha
até se aproximar do palácio de Hayfå; introduziu a camela na gruta, cruzou o rio
a nado, foi ao palácio, entrou, cumprimentou Hayfå e lhe entregou a carta, que
ela pegou, rompeu-lhe o lacre, leu, compreendeu- -lhe conteúdo e sentido e, sem
suportar aquilo, chorou até o coração soluçar.
Disse o narrador: Então, ela ergueu as mãos para o céu, rogou a Deus e lhe
suplicou dizendo: “Meu Deus, meu senhor! Abrande o coração de Yœsuf Ibn
Sahl, ponha-lhe afeto e faça-o cair de amores por mim tal como você me fez cair
de amores por ele! Você, que pode fazer tudo quanto quer, ó melhor dos
senhores, ó melhor dos auxiliadores!”. Em seguida ela escreveu dizendo a
seguinte poesia:

“A paixão me domina o coração, que passou a gritar:
‘Ai de mim, pois o poderoso derrotou o mais fraco’.
Violaste as frágeis pálpebras do meu coração,
e te impuseste a mim com a tua fina espada.
Tenho anseios de ver-lhe as tenras rosas da face,
e mesmo que outrem as colha continua bem-vindo;
ainda que a paixão por ele me deixe infeliz,
para sempre com essa beleza me darei por feliz.
Ó tudo quanto desejo, juro por quem criou o amor,
e determinou que em tua paixão fosses cruel:
ainda hei de te ver à excessiva tristeza fiel;
é Ya¢qœb que eu evoco na perda de Yœsuf”.[161]

Disse o narrador: Em seguida, dobrou a carta e a entregou, juntamente com cem
dinares, a Ibn Ibråh∑m, que recolheu tudo, saiu, cruzou o rio a nado, foi até a
camela, montou-a e viajou até chegar à capital do Sind, indo ter com Yœsuf, a
quem entregou a carta. Yœsuf a pegou, rompeu-lhe o lacre, leu-a, compreendeu-
lhe conteúdo e sentido e, lamentando-se, pensou: “Por Deus que Hayfå está
aferrada a esse amor”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

691ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf pensou: “Por Deus, se Hayfå tivesse outro alguém ela não teria escrito
todas essas cartas. E o destino irremediável dos corações é se apaixonarem e se
reunirem uns aos outros”. Em seguida, pegou tinteiro, papel e cálamo de cobre,
refletiu e escreveu uma carta na qual dizia os seguintes versos de poesia:

“Ó dona do talhe gracioso e esbelto,
que supera o galho da árvore elegante,
ouve palavras de doce essência poética,
que nunca entre os homens tiveram autor:
de um povo poderoso o senhor se hospedou
junto ao plenilúnio perfeito, e Yœsuf se tornou;
em vossas terras bem tratado eu estava
por seios formados que o coração debilitam;
vossas cantigas e alaúde, cujo som extasiou
o coração entristecido, a sorver taças de vinho;
vós porém permitistes o contato de outrem,
e até para informar-vos estou sendo digno;
meu interior se debilitou e angustiado fiquei,
afligido por pesares, por depressão e tristeza;
a graça não está só na beleza do corpo
mas também, e é bem melhor, no caráter;
quanta garota cuja fronte a lua crescente semelha,
mas cujo caráter depaupera e debilita o coração;
não possui o ser humano adorno que não o caráter,
que se junta à língua e ao intelecto apaixonado”.

Disse o narrador: Ao concluir a sua poesia e metrificação, Yœsuf dobrou a carta
e, juntamente com cem dinares, entregou-a a Ibn Ibråh∑m, que a recolheu e
viajou, cortando desertos e terras inóspitas, até se aproximar do palácio de
Hayfå, quando então colocou a camela na gruta, conforme o hábito, dirigiu-se ao
rio, cruzou-o a nado, foi até o palácio e entregou a carta a Hayfå, que a pegou,
leu, compreendeu-lhe conteúdo e sentido, e ao terminar chorou copiosamente até
soluçar; disse: “Ibn Ibråh∑m, esta carta é mais suave de todas. Porém, se você o
trouxer em pessoa, Ibn Ibråh∑m, terá de mim mil dinares e dois trajes
honoríficos com bordados”. E, pegando tinteiro, papel e cálamo de cobre, ela
escreveu dizendo a seguinte poesia:

“Meu senhor, tua fala me adoeceu as entranhas,
ó essência do mundo, plenilúnio da perfeição!
Quanto tempo ainda esse desdém, essa secura?
Teu coração é tão duro quanto as montanhas!
Deixaste meu coração afundado em languidez,
e é tão forte e me queima o fogo da distância!
Quanto me fazem gritar as labaredas do langor,
e assim quiçá faças o favor de retomar o contato;
tem piedade deste coração que tanto te cuidou
no interior das entranhas, antes da separação!”.

Disse o narrador: Ao concluir a poesia, Hayfå dobrou o papel e o entregou a Ibn
Ibråh∑m, que o pegou e viajou até se aproximar da capital do Sind, indo ter com
Yœsuf, cuja mão beijou e lhe entregou a carta, que ele leu, compreendendo-lhe
conteúdo e sentido. Então disse a Ibn Ibråh∑m: “Não volte a me trazer
cartas…”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

692ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Yœsuf disse a Ibn Ibråh∑m: “Não volte a me trazer nenhuma carta depois
desta”. Ibn Ibråh∑m perguntou: “Por que motivo eu não deverei trazer-lhe
cartas, meu senhor?”. Yœsuf respondeu: “Deixe-a conhecer o valor da
capacidade masculina”. Ibn Ibråh∑m lhe disse: “Eu lhe peço por Deus poderoso,
ó rei, filho de reis poderosos, não lhe frustre os rogos. Por Deus, por que não se
apieda da alma dela, para que não se abatam sobre você a aflição e a paixão?
[162] Tudo isso que ela fez se deve ao amor verdadeiro!”. Nesse momento
Yœsuf sorriu, pegou tinteiro, papel, e escreveu dizendo os seguintes versos de
poesia:

“Diminui o choro: dureza e abandono acabaram,
pois não é assim que desaparece o que se possui;
já desapareceram as coisas que me turvaram a alma,
após um abandono que já se prolongou demasiado;
sou uma fera predadora no que tange a sentimentos,
e a minha alma não aceita ficar na simples conversa;
hoje, meu coração e meu sopro vital estão convosco,
mas o coração e a mente, cá comigo, estão em luta:
mente e juízo, ambos em mim desejam a secura,
enquanto sopro vital e coração desejam a relação,
e se essa disputa entre coração e mente continuar,
nem o coração nem o sopro vital verão a relação”.

Disse o narrador: Quando concluiu a poesia e a metrificação, Yœsuf, após dar
cem dinares a Ibn Ibråh∑m, dobrou a carta e a entregou a ele, que a recolheu,
montou na camela e viajou sem interrupção até se aproximar do palácio de
Hayfå; cruzou o rio a nado, foi até a jovem e lhe entregou a carta; ela pegou, leu,
compreendeu-lhe conteúdo e sentido, chorou e disse: “Ibn Ibråh∑m, já que o
sopro vital e o coração dele estão conosco, Deus logo determinará que também
recobre a mente e o juízo”. Em seguida, pegou tinteiro, papel, cálamo de cobre, e
escreveu dizendo os seguintes versos de poesia:

“Ó senhor que fez do seu alento morada das paixões!
Ó aquele cuja presença aclara a escuridão das trevas!
Ó regozijo do coração! Ó delícia de relação! Ó
aquele cuja história emociona os vivos e a audição!
Ó detentor da glória! Ó mais poderoso dos reis!
Ó aquele cuja origem supera a dos reis da terra!
Porventura não temes o senhor do trono, meu bem?
Aquele que fez a debilidade morar em teu coração?
Sê generoso: me atende e dá um pouco de contato,
para me confortar o coração e minha dúvida dissipar;
dos homens o leão não me deixaria sem seu perdão,
pois dentre todos detém o poder, que é seu orgulho”.

Disse o narrador: Ao concluir a carta, Hayfå entregou-a a Ibn Ibråh∑m,
juntamente com cem dinares. Ele pegou tudo, saiu do palácio, cruzou o rio a
nado, montou a sua camela e viajou com rapidez até se aproximar da capital do
Sind; foi ter com Yœsuf, beijou-lhe as mãos, os pés, e lhe entregou a carta;
Yœsuf rompeu o lacre, leu-a, compreendeu-lhe conteúdo e sentido, sorriu, riu e
disse: “Ó Ibn Ibråh∑m, se Deus glorioso e altíssimo quiser que eu vá, eu logo
irei até ela. Agora, entrementes, volte para lá e a informe que eu estou
chegando”. Ibn Ibråh∑m disse: “Ai, meu senhor, escreva-lhe uma resposta, caso
contrário ela não vai acreditar em mim”. Yœsuf então pegou tinteiro, papel, e
escreveu os seguintes versos de poesia:

“Vejo o coração suavizado pela ausência,
e o seu adversário, o juízo, ainda se opõe,
mas dei ouvidos ao coração e lhe obedeci:
diante do coração a gente não tem escolha;
andei ouvindo que do amor me aborreceram
as súplicas, e que Deus lhe atendeu o rogo;
mas o fato é que perdoei e hoje vou até vós.
O jovem não se alça senão às suas virtudes”.

Disse o narrador: Ao concluir a carta, Yœsuf dobrou-a, selou-a e entregou,
juntamente com cem dinares, a Ibn Ibråh∑m, que recolheu tudo e viajou até se
aproximar do rio; escondeu a camela na gruta, cruzou o rio a nado, entrou no
palácio e entregou a carta a Hayfå, que a leu, compreendendo-lhe conteúdo e
sentido, e depois Ibn Ibråh∑m a informou que Yœsuf logo estaria com ela.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

693ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Ibn Ibråh∑m disse a Hayfå: “O propósito de Yœsuf é vir logo até você”. Ao
ouvir tais palavras, Hayfå não acreditou, mas o seu coração se alegrou, e Ibn
Ibråh∑m lhe recitou a seguinte poesia:

“Encanto do mundo, plenilúnio perfeito,
dá-me a alvíssara e me ouve as palavras:
o amor me prometeu que te vem visitar
logo e me disse: ‘Ide arrumando o lugar,
pois hoje despertei deprimido e fraco,
chorando bem triste, atônito e perdido;
a dureza e a distância que vós antes víeis
fugiram perplexas, derrotadas suas tropas”.

Disse o narrador: Quando Ibn Ibråh∑m concluiu a poesia, Hayfå ficou ainda
mais feliz e recitou emocionada em resposta às suas rimas uma poesia na qual
dizia os seguintes versos:

“Ó Ibn Ibråh∑m, ó dispersador de aflições,
pelo senhor altíssimo, no alto do trono fique,
e pelo nobre profeta, que extinguiu a idolatria,
o enviado Mu¬ammad, o melhor dos humanos,
pela fonte de Zamzam, pela parede da Kaaba,
pela esplêndida Kaaba, e o seu nobre lugar,
se verdadeiro for o teu dito e me vier o amado,
terás mil dinares, e também dois mil criados;[163]
tuas benesses, Ibn Ibråh∑m, serão verdadeiras:
sela enfeitada, estribo e rédeas para a montaria,
seis turbantes e quatro vestimentas de honra,
e junto um corcel, mais escuro que a noite;
não suponha ser eu como as outras pessoas,
que a generosidade só praticam em discurso”.

Disse o narrador: Tão logo Hayfå concluiu a poesia, Ibn Ibråh∑m lhe estendeu a
carta, e ao lê-la o seu coração se tranquilizou e ela foi tomada de imensa alegria,
ordenando que lhe dessem um belo traje honorífico e mil dinares numa bandeja.
Em seguida, conduzindo-o pela mão, levou-o a um quarto e disse: “Tudo quanto
existe aqui, Ibn Ibråh∑m, pertencerá a você quando o meu amor vier”.
Isso foi o que sucedeu a eles. Quanto a Yœsuf, sucedeu o seguinte: quando
Ibn Ibråh∑m foi embora, fogueiras começaram a lavrar no seu coração e,
chamando o seu escravo Hilål, disse-lhe: “Providencie para mim o cavalo
conhecido como ‘o touro guardado para o dia do combate’”, e então Hilål o
deixou pronto. Yœsuf montou, colocou o escravo na garupa e viajou depressa,
ansioso por Hayfå, não interrompendo o percurso até se aproximar do palácio,
quando então apeou a si e a Hilål, fez um turbante com as roupas de ambos,
montou no cavalo e entrou no rio, pedindo a Hilål que se agarrasse à cauda do
animal, que cruzou o rio a nado e saiu na frente do palácio; Yœsuf bateu e a
porta foi aberta por uma criada chamada Nuzhat Azzamån,[164] que ao
reconhecê-lo lhe beijou as mãos, indo sem delongas informar a patroa. Ao ouvir
que Yœsuf chegara, ela caiu desmaiada.
Disse [o narrador]: Ao acordar e ver Yœsuf parado à sua cabeceira, Hayfå
ficou de pé, abraçou-o longamente e durante esse momento recitou a seguinte
poesia:

“Ó quem visita o amor após abandono!
Já sumiram os intrigantes e os invejosos;
eu perdera um amor, que generoso me veio,
uma generosidade que nem se pode superar;
eram excessivas as mensagens que eu remeti,
e tu não vinhas, malgrado o nosso muito contato;
no mundo e no coração o que vejo é um só.
Desejo meu, Deus já não volte a nos separar!”.

Disse o narrador: Quando concluiu a poesia, Hayfå ordenou às criadas que
levassem Hilål e Ibn Ibråh∑m aos jardins, enquanto ela e Yœsuf iam para o
salão de intimidades. Ambos ficaram juntos em agrados e gozos, passando uma
noite de felicidade. Quando Deus fez amanhecer, Hayfå se levantou e disse:
“Que noite mais curta! Quem dera fosse mais longa! Porém, faço minhas as
palavras de Imru’ Alqays,[165] que entre as suas falas disse os seguintes versos:

“A noite me é comprida quando a desejo curta,
e quando a quero longa rapidamente amanhece;
ele fica comigo tanto tempo que eu digo: ‘É meu’,
e quando o possuo a sua partida está em minha mão”.

Disse o narrador: No dia seguinte, Hayfå se acomodou no salão de recepções…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

694ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå foi para o salão de recepções junto com Yœsuf, mandou chamar Ibn
Ibråh∑m e ordenou às criadas que trouxessem tudo quanto havia no aposento
[que ela lhe mostrara]. As criadas então trouxeram tudo, e ali havia, entre outras
coisas, dez trajes honoríficos, três baús de seda crua, linho, almíscar, cornalina,
pérola, rubi, coral e outros materiais assemelhados. Hayfå deu tudo a
Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m e recitou a seguinte poesia:

“Somos nobres, senhores liberais,
insistimos em presentear e doar;
tivéssemos que doar nossas vidas,
nós o faríamos às claras, sem dor”.

Disse o narrador desta história espantosa: Quando Hayfå concluiu a poesia e a
metrificação, Yœsuf disse gritando para Ibn Ibråh∑m: “De mim você terá mil
dinares, quarenta concubinas, cem camelas, cem trajes de brocado, oitenta
cavalos dos quais o mais barato custa quinhentos dinares, cada cavalo equipado
com uma sela dourada”. Em seguida, Yœsuf recitou esta poesia:

“A generosidade e os homens testemunham
que Ibn Sahl é o senhor de todos os nobres,
e todos os séculos e o mundo e a humanidade,
todos são testemunhas da minha generosidade;
presenteio aquele que tanto me foi procurar
querendo agradar, mesmo que com a luz dos olhos;
também protejo o meu vizinho que se refugia
da injustiça dos inimigos e de todas as dívidas;
quem tiver dinheiro mas nenhuma generosidade,
eu o vejo pilhado, e pelo menosprezo coberto”.

Disse o narrador: Quando Yœsuf concluiu a poesia e a metrificação, Ibn
Ibråh∑m lhe beijou as mãos, os pés, e lhe disse: “Deus lhe dê o que você
deseja”. Yœsuf disse: “Quando você for à minha cidade, vá me visitar e receba o
que lhe prometemos”. Yœsuf e Hayfå ficaram mergulhados na comida e no
vinho durante meses e anos. Ibn Ibråh∑m lhes pediu permissão para visitar os
pais, recebeu-a e então partiu levando o que era de peso baixo e valor alto. Hayfå
lhe disse: “Chegando bem aos seus pais, cumprimente o meu pai e lhe fale sobre
o cavalo, pois ele dará um a você, e também as rédeas”. Então ele se despediu e
saiu dali.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

695ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Ibn Ibråh∑m se despediu de Hayfå e Yœsuf, saiu do palácio, cruzou o rio a
nado, chegou à outra margem, tirou a camela da gruta, amarrou-lhe a sela,
montou e partiu para casa. Quando chegou à sua cidade, foi ver os seus
familiares, que o saudaram.
Disse o narrador: Quando o rei Mihrajån soube da chegada de Mu¬ammad
Ibn Ibråh∑m, mandou chamá-lo, e assim que o teve diante de si indagou-o sobre
o motivo da ausência. Ele respondeu: “Ó rei das eras e dos tempos, eu estava na
cidade de Ya¥rib”.[166] Como Ibn Ibråh∑m era um dos seus convivas, e por
obra do destino naquele momento se realizava no palácio uma enorme reunião, o
rei Mihrajån o convidou para ali beber. Também por obra do destino, uma das
cartas da correspondência entre Yœsuf e Hayfå, na qual se registrava o nome de
ambos e o seu, estava dentro do turbante de Ibn Ibråh∑m. Assim que ficou alto e
balançou a cabeça, a carta caiu do seu turbante e voou para o colo do rei
Mihrajån, que a pegou, leu, compreendeu-lhe conteúdo e sentido mas ocultou o
assunto no peito, mandando que os convidados fossem dispensados e logo em
seguida que Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m fosse chicoteado até os seus flancos se
esfacelarem; disse-lhe: “Fale-me a respeito desse jovem para o qual minha filha
envia correspondência, tendo você como mensageiro. Caso contrário, vou cortar
o seu pescoço”. Ibn Ibråh∑m disse: “Ó rei, essa poesia eu encontrei numa
história de tempos antigos”.[167]
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

696ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Ibn Ibråh∑m disse: “Encontrei esta poesia numa história de tempos antigos”, e
o rei Mihrajån ordenou que o seu pescoço fosse cortado. Socorreu-o então um
encarregado chamado ˇå’il Alwaßf,[168] e o rei determinou que ele fosse preso.
Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m perguntou ao carcereiro: “Você poderia trazer-me
tinteiro, papel e cálamo?”. Ele respondeu: “Sim”, e lhe providenciou o pedido.
Ibn Ibråh∑m escreveu a Yœsuf dizendo a seguinte poesia:

“Meu senhor Yœsuf, fugi e vos salvai,
pois Ibn Ibråh∑m caiu em desgraça
ao chegar, vindo daí, aos seus pais.
Célere, Mihrajån mandou chamá-lo,
e o colocou no centro de uma reunião;
ardiloso, deixou-o embriagar-se sozinho;
na cabeça ele tinha uma de vossas cartas,
que caiu, foi pega e lida por Mihrajån,
e ele agora, sabedor da paixão entre vós,
encolerizou-se e dispensou os presentes,
e, de bruços mandando pôr Ibn Ibråh∑m,
ordenou que fosse violentamente surrado,
lacerando-lhe, a chicotadas, os flancos,
usando de força na fraqueza de Ibn Ibråh∑m;
levantai e ide logo ao vosso povo convocar
o exército, rápido, para um ataque surpresa.
Quanto a mim, sabotarei os exércitos daqui,
e tudo farei por vós, ó filho de gente elevada,
pois a enormidade que me atingiu é tamanha
que me encorajou a desafiar o fogo da desgraça”.

Disse o narrador: Quando concluiu a sua poesia e metrificação, Ibn Ibråh∑m
disse ao carcereiro: “Traga-me o meu sobrinho Mannå¢ que eu lhe dou cem
dinares”, e então o carcereiro lhe trouxe o sobrinho, a quem ele disse: “Filho do
meu irmão, pegue esta carta e a leve até o palácio de Hayfå. Cruze o rio a nado,
saia na margem do palácio e quando entrar faça esta carta chegar às mãos do
jovem que você vir sentado com Hayfå; cumprimente-o de minha parte e
informe-o de tudo quanto me sucedeu, tudo quanto você presenciou e viu, e de
mim você receberá cem dinares”. O sobrinho pegou a carta e viajou no início da
noite até se aproximar do palácio.
Isso foi o que sucedeu a Ibn Ibråh∑m, com o envio do seu sobrinho Mannå¢
ao palácio de Hayfå. Quanto ao rei Mihrajån, assim que a manhã surgiu e
iluminou com a sua luz, e o sol raiou sobre a superfície, ele mandou chamar Ibn
Ibråh∑m, colocou-o diante de si e disse: “Juro pelo Deus que é único e uno em
seu reino e que ergueu os céus sem colunas e estendeu as terras sobre a água
gelada, Ibn Ibråh∑m, que se você não falar e me contar a notícia verdadeira e
correta eu vou mandar cortar-lhe o pescoço agora mesmo”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

697ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
O rei Mihrajån jurou que, ou Ibn Ibråh∑m lhe contava sobre a filha e quem
estava com ela, ou então lhe cortaria a cabeça. Então Ibn Ibråh∑m lhe falou a
respeito de Hayfå e Yœsuf, e o que existia entre ambos. O rei Mihrajån
perguntou: “E esse tal Yœsuf, de onde é?”. Ele respondeu: “É filho de Sahl, rei
do Sind”. O rei perguntou: “Ele ainda está no palácio ou voltou para a sua
terra?”. Ibn Ibråh∑m respondeu: “Está no palácio. Contudo, agora não sei se
continua lá ou se já foi embora”. Mihrajån ordenou aos seus soldados que
montassem.
Disse o narrador: Então todos montaram e galoparam em direção ao palácio
de Hayfå. Enquanto isso, Mannå¢ — que tinha em relação ao rei Mihrajån a
vantagem de apenas uma noite — subiu ao palácio após haver cruzado o rio e
bateu à porta; abriram-lhe, ele entrou, foi até Yœsuf e lhe entregou a carta, que
Yœsuf abriu, leu e, compreendendo-lhe conteúdo e sentido, gritou por Hilål, que
lhe foi trazido, e ordenou que providenciasse o cavalo. Hayfå disse: “Por Deus
eu lhe pergunto, meu senhor: o que está acontecendo?”. Ele respondeu: “Depois
de ter saído daqui para encontrar a família, Ibn Ibråh∑m foi chamado por seu pai
e foi até ele” — e lhe contou o que aconteceu do começo ao fim, entregando-lhe
em seguida a carta. Ao lê-la, ela disse: “Meu senhor, leve-me consigo para evitar
que ele me mate”. Ele disse: “Ó meu desejo extremo, não temos aqui senão este
cavalo, que não correrá com três, e então o seu pai nos alcançará no caminho e
matará a todos. Para mim, o melhor parecer é que você se esconda aqui no
palácio e instrua as criadas a dizerem ao seu pai, quando ele chegar, que eu levei
você comigo para a minha terra. Não ficarei distante senão poucos dias”.
Disse [o narrador]: E, pegando o seu cavalo e o seu escravo, Yœsuf cruzou o
rio a nado, saiu na outra margem, selou o cavalo, colocou Hilål na garupa e
partiu para a sua terra, viajando sem interrupção até se aproximar da cidade. Isso
foi o que se deu com Yœsuf, filho do rei Sahl. Quanto a Mihrajån e os seus
soldados, eles cavalgaram até chegar ao palácio de Hayfå — mas após a partida
de Yœsuf. Quando chegaram, os soldados, que pareciam um mar encapelado,
descavalgaram às margens do rio, e após breve descanso o rei chamou ¸alhœb e
lhe ordenou que nadasse e fosse ao palácio. ¸alhœb cruzou o rio a nado, saiu
diante do palácio, bateu à porta, as criadas abriram-lhe e o cumprimentaram, e
ele perguntou sobre Hayfå.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

698ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Quando ¸alhœb entrou no palácio e indagou a respeito de Hayfå, as criadas
responderam: “Veio até ela um jovem que a pegou e levou para o país dele”.
Então ¸alhœb retornou e informou aquilo ao rei Mihrajån, que montou com todo
o seu exército e cavalgou atrás de Yœsuf em marcha forçada. Havia entre ambos
menos de um dia de jornada. Quando Yœsuf se aproximou da sua cidade no
décimo dia de viagem, foi ver o pai e lhe contou tudo quanto se passara, do
começo ao fim, sem nada esconder.
Disse o narrador: Então o rei Sahl mandou apregoar entre todos os seus
soldados: “Todo aquele que se alimenta da ração do sultão, e todo aquele que
tem saúde, que cavalgue junto com o meu filho Yœsuf”. E os soldados
cavalgaram junto com Yœsuf, que avançou na vanguarda das tropas, e então os
dois exércitos ficaram frente a frente. Ibn Ibråh∑m tinha prometido cinco mil
dinares a cinco dos principais chefes militares do governo do rei Mihrajån, e
quando os dois exércitos se confrontaram um desses chefes militares a quem se
prometera o dinheiro foi até Yœsuf e lhe disse: “Ó filho de rei, Ibn Ibråh∑m
prometeu cinco mil dinares de ouro a cinco chefes militares, e disse que os
receberíamos de você”. Yœsuf respondeu: “Vocês terão de mim essa quantia e
tudo o mais que desejarem”.
Disse o narrador: Então esse chefe militar voltou até o rei Mihrajån e lhe
disse: “Eu pedi a esse jovem que suspendesse a batalha entre nós, mas ele não
aceitou e jurou que não voltará atrás até que as tropas se enfrentem, afirmando
possuir muitos soldados, e ninguém conhece o início nem o fim do seu exército
serpeante. Minha opinião é que você o pegue e tente agradá-lo, sobretudo porque
ele é filho de um rei dos mais poderosos e tem um milhão de soldados com toda
espécie de armadura e roupa, intimoratos na batalha”. Furioso com as palavras
do chefe militar, Mihrajån disse: “Que conversa é essa? Você quer que os reis
vindouros digam a meu respeito que um homem corrompeu a filha do rei
Mihrajån, tomando-a à força e por cima do nariz do pai? Jamais vou fazer uma
coisa dessas! Mas fique sabendo, ó comandante, que, se vocês não têm vontade
de combater, se não servem para a guerra, se não estão habituados senão a beber
vinho e ao conforto, eu juro por aquele que acendeu as luzes do sol e da lua que
me apresentarei pessoalmente para lutar com esse rapaz”. E, ignorando o que lhe
reservava o mundo das disposições ocultas, apareceu no centro do campo de
batalha.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
[próxima] noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

699ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
O rei Mihrajån se apresentou no centro do campo de batalha a toda
velocidade, desfilou entre as duas fileiras, mostrou tanta habilidade com a
espada, a lança e as flechas que deixou as mentes perplexas, e recitou os
seguintes versos:

“Ó filho de Sahl, ó homem de origem vil,
levanta e me enfrenta, sê digno e aparece!
sequestraste minha filha, ação condenável,
e ora de medo te escondes atrás dos soldados!
Viesses até mim pedir-lhe a beleza, às claras,
para com ela casar-te, generoso eu teria sido;
com a tua atitude, no entanto, tu me encheste
de infâmia, violando o limite de todo interdito”.

Disse o narrador: Quando o rei Mihrajån concluiu a poesia, Yœsuf se
apresentou para enfrentá-lo, soltando contra ele um grito que lhe aterrorizou o
coração e sequestrou os miolos, deixando-o atônito; em seguida, saltou com o
seu corcel para o centro do campo de batalha, exibiu a sua habilidade com a
espada e as lanças, deixando estupefatos os cavaleiros, e recitou em resposta os
seguintes versos:[169]

“Não sou eu de quem se diz ter vil origem,
ó filho da ralé, gente com cara de macaco;
não sou menos que um leão entre humanos,
jovem intrépido que com o chicote domino!
A bela Hayfå não é adequada senão para nós,
ó quem entre os homens imita a cor do macaco!”.

Disse o narrador: Quando Yœsuf concluiu as suas palavras, Mihrajån ficou na
sua frente; aproximaram-se e duelaram, atacando-se e golpeando-se
mutuamente, e pareciam duas montanhas ou duas embarcações que se
chocavam; aproximavam-se, afastavam-se, os estandartes tão cheios de pó que
não se viam; atacavam-se com arremetidas violentas e poderosas, e passados
alguns momentos Yœsuf fez carga contra Mihrajån, cercando-o e bloqueando-
lhe o caminho; aproximou-se, colou-se a ele e o golpeou com a espada na
cabeça, que caiu aos seus pés; Mihrajån desabou do cavalo ao solo, revolvendo-
se no próprio sangue. Então os ajuntamentos viram o que Yœsuf fizera com o
seu rei, separando-lhe a cabeça do corpo e matando-o.
Disse o narrador: Nesse momento, Yœsuf reconheceu no meio das tropas o
primo materno de Hayfå, ¸alhœb, [que era um bravo cavaleiro e] por causa do
qual a abandonara e ficara magoado com ela. Então, aproximou-se dele, [sem lhe
dar tempo de recitar a sua poesia,] atravessou-lhe o flanco direito com a espada,
que saiu brilhando pelo flanco esquerdo, e ele caiu se debatendo no próprio
sangue. Yœsuf o deixou prostrado sobre a terra e, após ter matado Mihrajån e
¸alhœb, recebeu os cumprimentos dos notáveis do governo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

700ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Os notáveis do governo do rei Mihrajån, ao vê-lo morto, foram até Yœsuf e o
cumprimentaram, admirados com a sua beleza, coragem e destreza, concordando
em seguida em fazê-lo sultão e aceitando-o de bom grado como o seu rei;
conduziram-no à capital de Mihrajån, e quando chegaram enfeitaram a cidade e
ele se instalou no trono do reino, dando ordens, estabelecendo proibições,
dispensando e contratando. Libertou Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m da cadeia,
fazendo-o seu vizir, e ele lhe mostrou todas as concubinas do rei Mihrajån e
onde estavam todas as suas riquezas, bens, escravos e escravas. Yœsuf verificou
que ele tinha duzentas concubinas, quatrocentos escravos e escravas, quatro
esposas, cem baús cheios de popelina, seda, brocado, cornalina, rubi, gemas,
pedras preciosas e muitas outras riquezas, e distribuiu tudo entre os seus chefes
militares, acrescentando a essas muitíssimas outras riquezas mais. Os súditos e
soldados se lhe afeiçoaram e foram oferecer presentes dos mais variados
gêneros, e toda a população do país, muito contente com ele, foi parabenizá-lo.
Disse o narrador: Em seguida, ele enviou Ibn Ibråh∑m até Hayfå, filha do rei
Mihrajån, dizendo-lhe: “Traga-a, bem como todas as suas criadas e tudo quanto
o palácio contém”. Então Ibn Ibråh∑m saiu em direção ao palácio de Hayfå, não
interrompendo a viagem até se aproximar. O rei Yœsuf também havia enviado
um navio por via fluvial.
Disse o narrador: Assim, quando chegou, Ibn Ibråh∑m topou com o navio já
atracado. Entrou no palácio, foi ver Hayfå, cumprimentou-a, informando-a do
que Yœsuf fizera ao seu pai e como o matara por causa de tudo quanto ocorrera.
Hayfå disse: “Não existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e
poderoso! Isso já estava registrado no livro”. Em seguida, ela indagou sobre a
mãe, e Ibn Ibråh∑m respondeu: “Está viva e bem, no seu lugar, do qual ela não
saiu, nem ninguém entrou. Está à espera da sua chegada”.
Disse o narrador: Em seguida, ele tirou os objetos pesados do palácio e todo o
dinheiro que ali havia, bem como as criadas. Não restou nada: levaram tudo e
colocaram no navio. Depois, embarcou Hayfå num estrado de sândalo com
lâminas de ouro vermelho, suas criadas numa liteira, e viajou com elas até a
cidade, onde foi ter com Yœsuf e informá-lo da chegada. Yœsuf disse: “Deixe-as
lá até o anoitecer”. Ibn Ibråh∑m aguardou o anoitecer, após o que Hayfå entrou
no palácio. Quando Deus fez o dia amanhecer e brilhar com a sua luz, o rei
Yœsuf mandou chamar juiz, testemunhas, e escreveu o contrato de casamento
com Hayfå, em conformidade com o livro e a tradição religiosa. Nesse
momento, Hayfå mandou chamar a mãe.[170]
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

701ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibråh∑m Bin Mulœk disse que o
conviva do rei disse que o amigo de ¢Abduljawwåd disse:]
Hayfå mandou chamar a mãe para morar consigo e todos ficaram bem e
felizes.
O SOFRIMENTO DAS DEZ CRIADAS[171]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] E Deus altíssimo determinou que, certa noite, o califa
Alma’mœn,com o peito opresso, convocasse Ibråh∑m [Bin Mulœk], o conviva;
como não o encontrou, mandou convocar outro, a quem chamavam AlΔad∑¢.
[172] Quando ele compareceu, Alma’mœn lhe disse: “Faz algum tempo que não
o vejo”. Ele respondeu: “É que eu estava viajando por terras do Leste,[173]
comandante dos crentes”. Alma’mœn disse: “Faça o peito do comandante dos
crentes desanuviar-se com alguma história agradável”. Ele disse: “Saiba,
comandante dos crentes, que eu tive notícia de uma história entre um jovem da
terra do Sind, chamado Yœsuf, o belo, filho de Sahl Al¬ab∑b, rei do Sind, e
Hayfå, filha do rei Mihrajån. É uma história que nunca ninguém ouviu igual”, e
então ele contou ao comandante dos crentes a história de Yœsuf e Hayfå, do
começo ao fim, e depois disse: “Ademais, comandante dos crentes, essa Hayfå
possui dez criadas sem semelhante até aqui no seu próprio palácio: sabem tocar
todos os instrumentos musicais e mais outros. É tanta a sua admiração por elas
que, entre outras coisas, Hayfå disse: ‘Eu hoje ganhei dez criadas que talvez nem
mesmo Alma’mœn possua iguais’”. [Ao ouvir esta história, o comandante dos
crentes lhe deu uma luxuosa túnica, uma bela escrava, e passou a noite toda
pensando na história delas.][174] Quando Deus fez amanhecer, mandou chamar
Ibråh∑m, o conviva, dizendo-lhe assim que se apresentou: “Monte
imediatamente, leve consigo mil escravos e vá até aquele rapaz que se tornou rei
do Sind,[175] cujo nome é Yœsuf, o belo, e me traga as dez criadas [que ele
tem]. Indague sobre ele e sobre os seus súditos; se for justo com eles, dê-lhe um
traje honorífico, e se ele for injusto, traga-o para mim”. Então Ibråh∑m se
despediu do comandante dos crentes e partiu sem mais delongas em direção à
terra do Sind, viajando sem interrupção até se aproximar, bem no momento em
que Yœsuf saía com o propósito de caçar. Porém, ao ver aquele exército se
aproximando…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

702ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, quando viu Ibråh∑m, o conviva, e
todos quantos estavam com ele, Yœsuf retornou para a cidade levando-os
consigo; ele e Ibråh∑m não se conheciam. Ao entrar na cidade, foi recepcionado
por seus servidores e soldados, que rogaram para ele uma vida longa e muitos
anos, e nesse momento Ibråh∑m percebeu que se tratava de um rei justo. Yœsuf
os conduziu, foi até a casa de hóspedes, subiu ao seu palácio e mandou chamar
Ibråh∑m, o conviva, após lhe haver preparado acomodações, abastecendo-as do
bom e do melhor. Quando Ibråh∑m entrou, Yœsuf ficou de pé, abraçou-o,
cumprimentou-o e o levou ao quarto que lhe preparara, instalando-o ali e logo
ordenando que comparecessem as dez criadas com dez instrumentos musicais, as
quais se sentaram ao seu redor. Em seguida, ordenou que servissem bebidas, e
então se serviram jarros de vinho, garrafas de cristal e taças de pedras preciosas.
Disse o narrador: Yœsuf fez sinal para que uma das criadas lhe recitasse
alguma de suas belas poesias, e então ela empunhou o alaúde, colocou-o no colo,
afinou, testou com os dedos, tocou em onze modulações, voltou à primeira e
pôs-se a recitar os seguintes versos:

“Meu coração se incendeia com o fogo da vossa distância,
e as pálpebras estão arregaladas, queimadas e submersas…
Ai, quão grande é a paixão! Dos mais apaixonados
atravessamos o caminho e deles a roubamos!
Quantos jovens não têm as entranhas habitadas
pelos súditos de olhares agudos e talhe gracioso!
Coitados dos que se tornaram vítimas da paixão,
pois de nada lhes adianta ter irmãos pressurosos,
nem para a paixão conseguirão achar mediadores,
nem camaradas afetuosos, e tampouco amigos”.

Disse o narrador: Quando a criada concluiu a poesia, o rei Yœsuf e Ibråh∑m, o
conviva, se extasiaram profundamente, e este último ordenou que dessem a ela
um magnífico traje honorífico; em seguida, a criada bebeu da taça e a passou
para a sua acompanhante, cujo nome era Taknå, que apanhou a taça, colocou-a
diante de si, empunhou o alaúde, tocou em várias modulações, retomou a
primeira delas e cantou até deixar atônitas as mentes, recitando os seguintes
versos:

“Vejo um alaúde que imita a catapulta:
suas cordas são de música, é verdade,
acompanhadas por flautas em voz alta,
célere seguidas de néctar delicioso;[176]
vê, os jarros de vinho já batem palmas,
e as taças estão em torno da taça de néctar”.

Disse o narrador: Quando Taknå concluiu a poesia, Yœsuf e Ibråh∑m, o
conviva, se extasiaram e o rei ordenou que lhe dessem um valioso traje
honorífico e mil dinares. Ela bebeu da taça de vinho, encheu-a e a entregou para
a sua acompanhante, cujo nome era Mubdi¢,[177] que a apanhou, colocou-a
diante de si, empunhou o alaúde, tocou em várias modulações, retomou a
primeira e recitou os seguintes versos:

“Meu afeto cresceu, me debilitou o corpo,
me derreteu o coração e lacerou o fígado,
e minha lágrima desaba qual tempestade,
pois está apaixonada pelo que não obterei;
ó Yœsuf, te peço, por quem te fez nosso rei,
ó filho de Sahl, ó meu apreço, ó meu sustento!
Acredite que esse estranho nos veio separar:
nos seus olhos se vê, muito clara, a inveja”.

Disse o narrador: Quando Mubdi¢ concluiu a poesia, o conviva Ibråh∑m sorriu,
e ambos, ele e Yœsuf, atingidos por violento êxtase, caíram desmaiados.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

703ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, ao ouvirem a poesia da criada Mubdi
¢, o rei Yœsuf e o conviva Ibråh∑m caíram desmaiados, assim ficando por
algum tempo, mas depois acordaram, e Ibråh∑m mandou dar à criada mil
dinares e um traje honorífico cujo brocado parecia ouro reluzente. Ela então
sorveu a taça, tornou a enchê-la e a entregou à sua acompanhante, cujo nome era
Nas∑m,[178] que a apanhou, colocou-a diante de si, empunhou o alaúde e tocou
em várias modulações, depois voltando à primeira, e recitou os seguintes versos:

“Ó censor, que me censura só pelo vinho,
pode censurar: para isso hoje me esforço;
como é bela sua visão por detrás da garrafa!
Me admiro de vê-la, é vida para meu corpo!
Mas como lembrá-la, se Deus ma proibiu,
fadando-a a permanecer no paraíso eterno?”.

Disse o narrador: Quando a criada concluiu a poesia, o conviva Ibråh∑m
determinou que dessem mil dinares e um traje honorífico ao seu patrão, o rei
Yœsuf. Ela então sorveu a taça de vinho, tornou a enchê-la e a entregou à sua
acompanhante, que a apanhou, colocou-a diante de si, empunhou o alaúde,
dedilhou-o e tocou em várias modulações, retomando a primeira, e recitou os
seguintes versos:

“Coração sofredor que bebe e canta,
onde estão as encantadoras dos olhos,
e o alaúde cujo som faz adoecer,
e o vinho saboroso que traz a cura?
Acaso viste algum vil aqui bebendo?
Ou então algum cretino ignorante, viste?
É vinho que em sua jarra envelheceu,
como o sol de verão na casa de Áries”.

Disse o narrador: Quando a criada concluiu a poesia, Ibråh∑m ordenou que lhe
dessem mil dinares e um valioso traje honorífico. Então, ela sorveu a taça de
vinho, tornou a enchê-la e a entregou à sua acompanhante, cujo nome era Radå¬,
que a apanhou, colocou-a diante de si, empunhou o alaúde, colocou-o no colo,
dedilhou-o, tocou em vinte e quatro modulações, depois retomando a primeira, e
se pôs a dizer os seguintes versos:

“Ó conviva do vinho, não mostres tédio;
dá-me de bebê-lo e deixa-te de preguiça;
entende as poesias e ouve-lhe a beleza,
larga mão do ‘disse’, deixa o ‘que me disse’,
nesta reunião em torno do vinho, bebida que
expulsa todo desgosto da casa do intelecto;
O poeta Imrœ’ Alqays adorava bebê-lo,
e então recitava poesias doces como mel,
bem como ¢Antar Al¢abs∑, que veio depois,
ou Muhalhil, ainda que tenha sido o primeiro”.

Disse o narrador: Quando Radå¬ concluiu a poesia e o que nela inovou em
sentidos ocultos, o rei Yœsuf e Ibråh∑m, o conviva, levantaram-se e arrancaram
as roupas, não ficando senão de ceroulas à cintura, apenas; ambos gritaram
juntos e pararam juntos, desacordados de si e do resto do mundo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

704ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o rei Yœsuf e Ibråh∑m, o conviva,
arrancaram as roupas e caíram ambos no chão desmaiados, devido ao vinho em
excesso que lhes subira à cabeça e à poesia da criada Radå¬, ficando
desacordados por algum tempo, e quando acordaram, perplexos e embriagados,
vestiram-lhes as roupas e ambos voltaram a se sentar. Radå¬ sorveu a taça de
vinho, tornou a enchê-la e a entregou à sua acompanhante, cujo nome era Na
¢∑m,[179] que a apanhou, colocou diante de si, empunhou o alaúde, tocou em
diversas modulações, retomou a primeira e recitou os seguintes versos:

“A essência de meus versos revela o que já foi,
desde que a pérola e o coral escorrem pela face;
lágrimas me saem da retina, e fogo, do fígado,
mas me espanto de chuvas que não apagam fogos.
Ai, o afeto! As mãos da paixão nos manipularam,
e o amor agora nos dilacera entranhas e membros!
Ó recitador de poesia, recita-me pois a sua essência,
enquanto estamos aqui bebendo, as taças bem cheias;
canta nesta reunião da qual o invejoso está ausente,
bem como o intrigante, mas onde o amor extasia.
Que belo vinho vermelho, que o intelecto faz cativo:
é tão suave, como suave é seu sentido dentro de nós”.

Disse o narrador: Quando Na¢∑m concluiu a poesia, o rei Yœsuf e o conviva
Ibråh∑m ficaram profundamente extasiados, cada um deles ordenando que lhe
dessem mil dinares. Ibråh∑m disse: “Por Deus poderoso, nunca nenhum califa
ou rei ou vizir ou chefe militar possuiu criadas iguais a essas”. Na¢∑m sorveu a
taça, tornou a enchê-la e a entregou à sua acompanhante, cujo nome era Surœr,
[180] que a apanhou, colocou-a diante de si, empunhou o alaúde, pôs no colo, e
com ele tocou em várias modulações, retomando a primeira, e recitou os
seguintes versos:

“Que tem o meu coração, cheio de paixões?
As lágrimas são tempestade que o afogam!
Choro um tempo que oxalá tivesse perdurado,
mas, pudera, o tempo da glória é traiçoeiro.
Ó meu senhor Yœsuf, ó tudo quanto anelo!
Juro, por quem te fez sultão da beleza,
temo que este tempo de glória nos separe,
e que o destino, após a bondade, atraiçoe!
Ó Deus, não viceje a mão da separação
antes da morte, e não atinja o nosso amo!”.

Disse o narrador: Quando Surœr[181] concluiu a poesia, tanto o conviva
Ibråh∑m como o rei Yœsuf ficaram extasiados e espantados com a sua
eloquência e boa metrificação, êxtase e espanto que foram aumentando tanto que
eles estiveram a ponto de rasgar as roupas que vestiam.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

705ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibråh∑m e o rei Yœsuf estiveram a
ponto de rasgar as roupas que vestiam, tamanho foi o êxtase que os acometeu
quando ouviram a recitação poética da criada Surœr na reunião. Então ela sorveu
a taça de vinho, e após enchê-la entregou-a à sua acompanhante, cujo nome era
Zahrat Al¬ay,[182] que a apanhou, colocou-a diante de si, empunhou o alaúde e
tocou em várias modulações, cantou e recitou os seguintes versos:

“Ó servidor de vinho, sê o meu conviva,
doce com meu coração, que enfermo está;
não me estendas as taças de vinho, pois eu
temo me perder se acaso ficar embriagado,
e cometer escândalos na frente do mundo,
e só me alegrar ao sopro da brisa mais fresca.
Como são boas todas as melodias do alaúde,
que me fazem provar os maiores tormentos,
junto com formosas palavras cuja essência
me queima o coração feito o fogo do inferno!
Por Deus, sê doce comigo e tem misericórdia,
pois Deus, ao julgar, perdoa e tem misericórdia”.

Disse o narrador: Quando Zahrat Al¬ay[183] concluiu a poesia, Yœsuf e
Ibråh∑m ficaram profundamente extasiados e Ibråh∑m pensou: “Elas são boas
como os anos férteis”, e em seguida ordenou que lhe dessem mil dinares, e
também assim procedeu o seu patrão. Então a criada sorveu a taça de vinho,
tornou a enchê-la e a entregou à sua acompanhante, cujo nome era Muhjat
Alqulœb,[184] que a apanhou, colocou diante de si, empunhou o alaúde, nele
tocou em várias modulações, retomando a primeira, e em seguida recitou os
seguintes versos:

“Ó meu censor, não sabes a minha condição!
Deixa-me, só canalhas censuram o apaixonado.
Quem das coisas da paixão nada sabe ou entende,
esse sim é entre os homens o maior desprezível.
Oh, que paixão! Ó gente de sangue quente, eu,
após ter mamado do contato, fiquei desmamado.
Eu, que conhecia os decretos da paixão, todos eles,
desde criancinha, ainda em meu berço vivendo;
por Deus, não me indaguem sobre a minha condição!
Como pode estar aquele cuja paixão virou sua inimiga?
Ó essência dos heroísmos, ó meu querido Yœsuf,
glorificado seja quem te vestiu com essa perfeita beleza,
e que o Deus do trono faça perdurarem os teus dias,
com poderio e benesses, para todo o sempre perdurem!
Ibn Is¬åq, de fato, dominou todas as espécies de arte
entre os homens, e dele todos os poetas são serviçais”.

Disse o narrador: Quando Muhjat Alqulœb concluiu a poesia, Yœsuf e Ibråh∑m
ficaram profundamente extasiados, e então Yœsuf lhe deu um valioso traje
honorífico, bem como mil dinares, e o conviva Ibråh∑m, após fazer o mesmo,
perguntou a ela: “Quem seria esse Ibn Is¬åq[185] que você cantou?”. Ela
respondeu: “Por Deus, meu senhor, que ele é o único do seu tempo e conviva de
califas. Trata-se de Ibråh∑m Ibn Is¬åq, o tesouro escondido, o comensal e
conviva do nosso amo comandante dos crentes Alma’mœn, a quem ele ensinou o
êxtase. Ai, como seria bom reunir-nos com ele, vê-lo, gozar do seu convívio
antes que morra! Por Deus que se trata do mestre do seu tempo, o singular da sua
época! Por Deus, meu senhor, se acaso estivesse nas mãos dele, este alaúde
falaria todas as línguas: as das aves, as das feras e as dos homens; qualquer lugar
em que esteja fica a ponto de dançar antes que ele comece a falar; ele deixa os
horizontes em êxtase, e aniquilados os apaixonados; depois da sua morte,
ninguém mais irá falar”. Tudo isso e Muhjat Alqulœb nem sequer o conhecia,
ignorando que era ele mesmo que estava ali sentado.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

706ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Muhjat Alqulœb começou a elogiar
Ibråh∑m, o conviva, sem saber que o próprio estava sentado à sua frente, pois
não o conhecia. Então ele tomou o alaúde das mãos dela e tocou tão bem que
todos os demais imaginaram tratar-se de filhotes de gênio gritando, e as cordas
falaram de tal modo que Yœsuf supôs estar o palácio flutuando entre o céu e a
terra; as criadas começaram a cantar com ele, atônitas; Ibråh∑m fez menção de
falar alguma coisa mas foi impedido por Yœsuf, que se pôs a recitar os seguintes
versos:[186]

“Juro por nosso amo, piedoso e clemente,
nosso purificado condutor, o nobre profeta,
e pela reluzente Kaaba, e o local onde fica,
e as suas paredes, e pela fonte de Zamzam:
eis que és tu, Ibråh∑m, entre os humanos;
se é verdade o que falo, dize que sou sagaz,
pois em tua face brilha o olhar da eloquência,
com o seu r, depois o seu ∑ e depois o seu m”.[187]

Disse o narrador: Escondendo a identidade e sem se revelar para ninguém,
Ibråh∑m se pôs a recitar os seguintes versos:

“Juro por quem elegeu Mœsà[188] seu amado,
e, entre o clã de Håšim, elegeu um órfão:[189]
onde está Ibråh∑m? Eu é que não sou ele!
O seu califa em Bagdá está estabelecido!
De seus ancestrais herdou a arte da palavra,
e neste seu tempo não há quem se lhe ombreie”.

Disse o narrador: Quando Ibråh∑m concluiu a sua poesia e metrificação, Yœsuf
lhe disse: “Juro por Deus poderoso que, ou eu estou muito enganado, ou você é
Ibråh∑m!”, mas, mantendo oculta a sua condição e segredo, ele respondeu:
“Meu senhor, Ibråh∑m é meu amigo. Quanto a mim, eu sou de Basra, mas dele
roubei algumas maneiras de tocar alaúde e outros instrumentos, e passei a
compor poesias”.
Disse o narrador: Enquanto Ibråh∑m assim falava, eis que apareceu no ponto
mais alto do recinto um dos criados do califa com uma carta na mão e a entregou
a Ibråh∑m, mas Yœsuf esticou o braço e a apanhou; após lê-la, descobriu que se
tratava, sem sombra de dúvida, de Ibråh∑m, e lhe disse: “Por Deus, meu senhor!
Você me colocou em situação vexaminosa ao não me revelar quem é!”. Ibråh∑m
respondeu: “Por Deus que eu tive receios de que você exagerasse nos gastos”.
Yœsuf disse: “Leve estas criadas que o comandante dos crentes mandou você vir
buscar”. Ibråh∑m disse: “Não levarei as suas criadas; ao contrário, vou
compensá-lo diante do comandante dos crentes”. Yœsuf disse: “Mas eu já
permiti que elas se tornem propriedade do comandante dos crentes. Se você não
as levar, eu as enviarei com outro”, e em seguida presenteou Ibråh∑m[190] com
muito dinheiro.
Disse o narrador: Ao ouvir aquilo, as criadas começaram a chorar
copiosamente, e Ibråh∑m, ouvindo-lhes o choro, ficou muito tocado e também
chorou dizendo: “Eu lhe peço em Deus, Yœsuf, que deixe essas dez criadas aqui
com você, e eu contornarei o problema junto ao comandante dos crentes!”.
Yœsuf disse: “Juro por aquele que tornou fixas as montanhas gigantes, se você
não as levar consigo eu as enviarei com outra pessoa”. Então Ibråh∑m as levou,
despedindo-se de Yœsuf, e viajou sem descanso até chegar a Bagdá, morada da
paz, onde se dirigiu ao palácio do califa Alma’mœn.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

707ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que, ao chegar a Bagdá, Ibråh∑m foi ao
palácio do comandante dos crentes, que lhe perguntou ao vê-lo diante de si: “O
que é que você nos trouxe dessa sua viagem, Ibråh∑m?”. Ele respondeu: “Eu lhe
trouxe, meu amo, tudo quanto você deseja e lhe apetece, por meio de dizeres
corretos e opiniões sensatas”. O califa perguntou: “E o que é?”. Ibråh∑m
respondeu: “As dez criadas”, e mandou que elas entrassem.
Disse o narrador: Após entrarem e beijarem o solo, cumprimentando o califa
e por ele rogando, as criadas se postaram lado a lado, e cada uma se pronunciou
com a língua mais diserta e afetuosa, deixando atônito o comandante dos crentes,
que ficou sumamente espantado com uma eloquência e um vocabulário tão doce
que ele jamais vira em alguém, e também com a sua beleza e formosura, com o
seu talhe e esbelteza. Como o coração do patrão delas se permitira deixá-las
partir? Em seguida, ele perguntou: “Ibråh∑m, como você se resolveu com o
senhor destas criadas? Ele as entregou forçado e desgostoso, ou com
magnanimidade de alma, peito aberto, alegria e risonha fisionomia?”. Ibråh∑m
respondeu: “Meu senhor, ele não as entregou senão de boa vontade. Deus
prolongue a vida daquele jovem, de face tão magnânima, tão belo e perfeito!
Que mãos magnânimas, e como fala rimado! Como é perfeito o seu intelecto,
como é bondoso, como é bom o seu convívio, como é suave a sua natureza!
Como é forte e justo com os seus súditos! Por Deus, comandante dos crentes,
quando cheguei a ele, encontrei-o de saída da cidade: ia caçar, pescar, encontrar
maneiras de divertir-se, mas por Deus, comandante dos crentes, assim que me
viu foi me receber, cumprimentou-me, deu boas-vindas e ficou sumamente feliz
com a minha presença, a despeito de nem sequer me conhecer, assim como eu
tampouco o conhecia. Pegou-me e retornou comigo para a cidade. Quando
entramos, os membros do seu governo vieram recebê-lo e os súditos rogaram por
ele, e só então percebi que aquele homem era o seu rei e guia, e também que era
justo com eles. Em seguida, hospedou-me na casa de hóspedes, foi ao seu
palácio e logo mandou me chamar; fui até lá e vi que tinha preparado
especialmente para mim um recinto no interior do palácio, para onde me
conduziu pela mão. Vi que homem melhor não pode existir. Mandou buscar
vinho, velas, frutas, petiscos, substâncias aromáticas e outras coisas apropriadas
a esse gênero de reunião. Depois, ordenou que viessem as criadas, que ali se
sentaram”…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

708ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibråh∑m disse: “Então Yœsuf
ordenou que viessem as criadas, e elas vieram, tocaram e cantaram poesias, cada
uma delas superando a anterior, e então uma delas citou o meu nome em sua
poesia, dizendo: ‘Esta poesia não poderia ter sido composta senão pelo conviva
Ibråh∑m Ibn Is¬åq’, embora eu tivesse ocultado a minha identidade do patrão
delas, sem lhe revelar o meu nome; quando concluiu a poesia, eu a mimoseei
com mil dinares e lhe perguntei, comandante dos crentes, ‘quem seria esse
Ibråh∑m que você cantou em sua poesia’, e ela respondeu: ‘Meu senhor, ele é
conviva do califa e um dos homens mais elegantes’, e se pôs a me elogiar,
mesmo sem me conhecer, de maneira tão profusa que seria impossível
acrescentar algo. Então tirei o alaúde das suas mãos e toquei de maneira diversa
da que as criadas haviam tocado. Nesse momento, o patrão delas tentou me
forçar a confessar, dizendo em sua poesia: ‘Você é Ibråh∑m, sem nenhuma
sombra de dúvida’, mas eu continuei ocultando a minha identidade e dizendo:
‘Sou de Basra, e Ibråh∑m é meu amigo’; era assim que eu estava respondendo
quando, subitamente, veio até nós um rapaz com uma carta sua que Yœsuf
pegou, abriu e leu, certificando-se de que era eu o conviva Ibråh∑m; ao me
reconhecer, censurou-me perguntando: ‘Você se esconde de mim, Ibråh∑m?’.
Respondi: ‘Meu senhor, eu apenas queria poupá-lo de gastos’. Ele disse: ‘Estas
dez criadas são meu presente para o comandante dos crentes’. Ao ouvi-lo dizer
isso, respondi: ‘Não levarei as criadas, mas sim compensarei isso por você
quando eu voltar ao comandante dos crentes’. Ele disse: ‘Se você não as levar,
Ibråh∑m, irei mandá-las para o comandante dos crentes por intermédio de outra
pessoa’. Em seguida, me presenteou com vinte cavalos de raça inteiramente
equipados, cinquenta escravas e escravos, cinquenta criados, quatrocentas
camelas e vinte frascos de almíscar”. E o conviva Ibråh∑m tanto elogiou Yœsuf
para o califa — atento e espantado com aquele homem, com a sua nobreza,
generosidade, eloquência e decoro —, que este desejou conhecê-lo, bem tratá-lo
e dignificá-lo.
Disse o narrador desta história: Então, Alma’mœn ordenou que as dez
criadas fossem trazidas à sua presença. Era hora do anoitecer, e o único visitante
naquele momento era o conviva Ibråh∑m, sem mais ninguém. Quando elas
entraram, o califa lhes ordenou que se acomodassem e depois foram passadas
entre elas as taças de vinho. O califa também ordenou que cantassem e tocassem,
e elas se puseram a tocar os instrumentos musicais e a cantar poesias, uma atrás
da outra, com o califa entrando em êxtase a cada exibição e poesia. A última
delas foi Muhjat Alqulœb…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

709ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a última a recitar poesia diante do
comandante dos crentes foi Muhjat Alqulœb, e ao ouvi-la ele gritou e tombou
desmaiado por algum tempo, dizendo quando acordou: “Por Deus, ó Muhjat
Alqulœb, ó alento dos olhos, repita a sua exibição!”. Então ela tocou de novo e
recitou a poesia de maneira diferente, cantando agora ao modo de Nahavend.
[191] Ao ouvi-la, o califa perdeu a cabeça, rasgou as roupas e caiu no chão
desmaiado, a ponto de Ibråh∑m e as dez criadas suporem que morrera; passados
alguns momentos, ele despertou e disse à criada: “Muhjat Alqulœb, peça o que
quiser e você terá”. Ela respondeu: “Eu peço a Deus e ao comandante dos
crentes o retorno de nós dez para o nosso senhor Yœsuf”, e incontinente o califa
lhe concedeu o pedido; depois de lhes dar presentes e benesses, escreveu ao
senhor delas, o rei Yœsuf, um decreto nomeando-o sultão de todos os reis do
Sind e da China, e também que “se acaso Alma’mœn se ausentar da cidade de
Bagdá, Yœsuf o substituirá no governo, ordenando e proibindo”. Em seguida,
enviou-lhe de volta as criadas com um grupo de secretários, além de muito
dinheiro e mais outros presentes e joias. Elas viajaram sem interrupção até a
capital do Sind,[192] e ao chegar mandaram avisar o rei Yœsuf que as dez
criadas haviam voltado. Ele mandou o seu vizir Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m
recebê-las e conduzi-las ao palácio; intrigado, Yœsuf pensava: “Será que as
criadas não agradaram ao comandante dos crentes?”. Chamou-as à sua presença
e as indagou, mas elas o informaram do que de fato ocorrera. Muhjat Alqulœb
avançou até ele e lhe entregou o decreto do califa e, ao lê-lo e compreender-lhe o
sentido, Yœsuf ficou mais alegre e feliz, pedindo a Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m
que dormisse ali, e quando anoiteceu ele[193] disse: “É absolutamente imperioso
que você nos conte uma história que nos divirta”. Ibn Ibråh∑m respondeu: “Por
Deus, ó rei, que eu ouvi uma história sobre certo rei”…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

710ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que Ibn Ibråh∑m disse:
OS TRÊS FILHOS DO REI DA CHINA[194]
Eu ouvi uma história sobre certo rei na terra da China que tinha três filhos varões
cuja mãe fora atingida por uma ignota perturbação mental, sem que nenhum dos
sábios e médicos trazidos soubesse diagnosticá-la, e ela permaneceu durante um
bom tempo prostrada na cama, até que certo sábio para o qual descreveram o
problema lhes disse: “Essa perturbação não pode ser curada senão pela água da
vida, que só existe na terra do Iraque”. Ao ouvirem aquelas palavras, os filhos
disseram ao pai: “É absolutamente imperioso que procuremos e viajemos a fim
de trazer a água da vida para a nossa mãe”. Então, providenciados todos os
mantimentos necessários, os rapazes se despediram do pai e saíram dali em
viagem à terra estrangeira, viajando sem descanso por sete dias, ao cabo dos
quais disseram uns aos outros: “Vamos nos separar aqui; que cada um de nós
siga uma direção e talvez encontremos o que buscamos”, e então se despediram
e separaram, com cada um pegando a sua parte nos mantimentos e tomando um
rumo diferente. O mais velho atravessou vários desertos sem chegar a nenhum
país senão após um bom tempo, quando os seus víveres se haviam esgotado e já
não lhe restava nada. Entrou numa cidade em cujo caminho topou com um judeu
que lhe perguntou: “Quer trabalhar, muçulmano?”. O jovem pensou: “Rapaz,
trabalhe e quem sabe Deus [o ajude a] encontrar o que procura”, e logo
respondeu: “Quero!”. O judeu lhe disse: “Trabalhe todo dia comigo nesta
sinagoga,[195] varrendo-a, limpando-lhe os tapetes e alcatifas e lavando-lhe as
lâmpadas”. O jovem respondeu: “Tudo bem”, e começou a trabalhar com o
judeu, até que certo dia este lhe perguntou: “Menino, quer fazer uma aposta?”. O
jovem perguntou: “Qual aposta?”. O judeu respondeu: “Todo dia você pode
comer um pão e meio, mas o pão partido não o coma, e o pão inteiro não o
quebre.[196] Fora isso, coma até se fartar, mas todo aquele que viola essa
condição nós lhe esfolamos o rosto. Isso se você quiser prosseguir no trabalho”.
O rapaz era tão idiota que respondeu: “Continuarei trabalhando”. Então o judeu
deixou com ele um pão e meio e foi-se embora, largando-o sozinho na sinagoga.
Quando foi ao meio-dia, o jovem teve fome e comeu aquele pão e meio. O judeu
chegou pela tarde e, vendo que o rapaz comera o pão e meio, indagou-o a
respeito; o rapaz respondeu: “Tive fome e comi”. O judeu lhe disse: “Desde o
começo eu estabeleci como condição que você não comesse o partido nem
partisse o inteiro” e, saindo dali, trouxe um grupo de judeus que agarraram o
rapaz e o mataram, enrolando-o numa esteira e deixando-o num canto da
sinagoga.
Enquanto isso, o irmão do meio mantinha-se em viagem, vagando por vários
países, até que o destino o lançou no mesmo local onde o seu irmão mais velho
havia sido morto. Ao se aproximar, topou à porta da sinagoga com o judeu, que
lhe perguntou: “Quer trabalhar, muçulmano?”. O rapaz respondeu: “Quero!”, e
então [o rapaz começou a trabalhar na sinagoga;] o judeu esperou o primeiro dia,
o segundo…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

711ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Após os dois primeiros dias de trabalho, o judeu fez com o filho do rei o
mesmo que antes fizera com o seu irmão mais velho, matando-o, enrolando-o
numa esteira e colocando-o ao seu lado.
Foi isso o que sucedeu a ambos. Quanto ao caçula, ele ficou perambulando
por várias terras, o que lhe acarretou exaustão, fome e andrajos. E, como já
estava decretado, o destino o lançou diante daquele judeu, o qual, parado à porta
da sinagoga, dirigiu-lhe a palavra perguntando: “Quer trabalhar, muçulmano?”.
Ele respondeu: “Trabalho!”; então, o judeu o encarregou dos mesmos serviços
que os seus irmãos, e o rapaz respondeu: “Tudo bem, patrão”. O judeu disse:
“Varra a sinagoga, limpe e tire o pó dos tapetes e alcatifas”. O rapaz respondeu:
“Tudo bem”, e, quando o judeu se separou dele e foi embora, o menino entrou na
sinagoga, notando de relance as duas esteiras nas quais os seus irmãos estavam
enrolados; puxando-as pelas beiradas, encontrou-os, cadáveres putrefatos, saiu
da sinagoga, abriu uma cova no chão e, muito triste e choroso, enterrou-os e
voltou. Enrolou os tapetes da sinagoga e os amontoou, bem como as alcatifas,
acendeu fogo debaixo deles e tudo se queimou; foi até as lâmpadas e as quebrou
todas, e quando entardeceu eis que o judeu chegou à sinagoga, encontrando tudo
quanto existia no seu interior em chamas, tapetes e alcatifas queimados, e ao ver
aquilo estapeou o próprio rosto e disse: “Por que fez isso, muçulmano?”. O rapaz
respondeu: “Alguém enganou você, patrão!”. O judeu disse: “Ninguém me
enganou coisa nenhuma. Mas vá à minha casa, muçulmano, e diga à sua patroa
que sacrifique uma pomba e a cozinhe, e então a traga para mim. Vá logo”. O
rapaz respondeu: “Tudo bem, patrão”. O judeu tinha dois filhos com os quais
estava muito feliz. O rapaz foi até a casa dele, bateu na porta, abriram e
perguntaram: “O que você quer?”. O rapaz disse à mulher do judeu: “Patroa, o
patrão mandou dizer que você sacrifique os carneiros aí da casa, cinquenta
galinhas e cem casais de pombo, tudo para os mestres que estão na sinagoga,
pois ele pretende circuncidar os meninos”. A judia perguntou: “E quem vai
sacrificar isso tudo para mim?”. O rapaz respondeu: “Eu”, e então a mulher lhe
trouxe os dois carneiros, as galinhas e os pombos, e ele os sacrificou a todos. A
judia foi chamar os vizinhos para ajudá-la a cozinhar, até que toda a comida
ficou pronta e foi colocada em travessas, que o rapaz se pôs a levar de dez em
dez para os famélicos[197] que viviam no bairro, batendo-lhes à porta e dizendo:
“Meu patrão lhes envia isto”, embora o judeu, na sinagoga, não tivesse nenhuma
notícia daquilo. Quando o rapaz já levara a última travessa, eis que o judeu,
estranhando a demora, chegou à casa para acompanhar como andavam as coisas
relativamente à pombinha que ele encomendara. Ao ver o lugar naquele
rebuliço, com coisas sendo postas e tiradas, perguntou: “Que história é essa?”, e
então lhe contaram tudo dizendo: “Foi você que mandou pedir isso e aquilo”. Ao
ouvir a história, estapeou o próprio rosto com as sandálias…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

712ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Quando o judeu retornou para casa e viu a situação armada pelo rapaz, bateu
no rosto com a sandália e disse: “Ai, minha perdição!”,[198] e eis que o rapaz
retornava; o judeu lhe perguntou: “Por que você fez isso, muçulmano?”. Ele
respondeu: “Você foi enganado!”. O judeu disse: “Fui enganado coisa
nenhuma”, mas pensou: “É imperioso que eu apronte alguma com esse rapaz e o
mate”; então, foi até a esposa e disse: “Estenda os colchões no telhado[199] e
vamos trazer o menino muçulmano, meu criado, para fazê-lo dormir na beirada;
quando ele mergulhar no sono faremos pressão uns sobre os outros e o
empurraremos, fazendo-o cair de cima do telhado, e o seu pescoço se quebrará”.
Por decreto do destino, o rapaz estava ali por perto e ouviu a conversa; ao
anoitecer, a mulher estendeu os colchões sobre o telhado, conforme a orientara o
marido. Assim que havia entardecido, o rapaz pegara um arrátel de avelãs e
guardara na manga com muito cuidado, e quando ele fez menção de ir embora o
judeu lhe disse: “Muçulmano, nós queremos dormir no telhado porque está
muito calor neste verão”. O rapaz respondeu: “Tudo bem, patrão”, e então o
judeu, a esposa e os dois filhos, juntamente com o criado, subiram ao telhado. O
primeiro a se deitar foi o judeu, com os dois filhos e a esposa ao seu lado;
disseram ao criado: “Deite-se aqui na beirada”; então ele subiu, tirou as avelãs
da manga e começou a mastigá-las, e toda vez que lhe diziam: “Vamos,
muçulmano, venha deitar”, ele respondia: “Assim que eu terminar as avelãs”. E
ficou acordado esperando que eles se deitassem e mergulhassem no sono,
quando então se deitou entre os dois filhos do casal e a mãe deles. O judeu
acordou e, supondo que o rapaz estivesse deitado na beirada, empurrou a esposa,
que empurrou o criado, que empurrou os filhos do judeu até o limite extremo do
telhado, e os dois caíram juntos, quebrando-se o pescoço de ambos, que
morreram.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Sua irmã Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história,
maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na
próxima noite, se eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

713ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Os dois filhos do judeu caíram de cima do telhado, seus pescoços se
quebraram e ambos morreram. Ao ouvir o barulho da queda, o judeu supôs que
quem caíra não fora senão o seu criado muçulmano, levantou-se alegre e
acordou a esposa dizendo: “O criado caiu de cima do telhado e morreu”. A
mulher se levantou e, não encontrando os filhos mas sim o criado a dormir,
começou a chorar, a gritar e a estapear o rosto, dizendo ao marido: “Os nossos
filhos é que caíram!”. Então o judeu tentou jogar o rapaz, mas este se desviou
mais rápido que um raio, ficou de pé, deu um grito que o assustou e aturdiu, e
por fim o golpeou com uma faca que carregava, prostrando-o morto ao solo, o
sangue lhe escorrendo aos borbotões. O rapaz então se voltou para a esposa, que
tinha formosura e beleza, talhe e esbelteza, disposto a também matá-la, mas ela
caiu aos seus pés e os beijou, obtendo-lhe a clemência, e ele a deixou viver,
pensando: “Essa é uma mulher e não tem malandragem”. Ela perguntou ao filho
do rei: “Meu senhor, qual o motivo de ter agido assim? Primeiro você veio aqui
contando um monte de mentiras, e depois provocou a morte dos meus filhos”;
ele respondeu: “O seu marido matou os meus dois irmãos injustamente, sem
motivo algum”. Ao ouvir sobre o assassinato dos irmãos do rapaz, a judia
perguntou: “Você era irmão deles?”. Ele respondeu: “Sim, meus irmãos”, e lhe
contou o motivo de sua saída da terra do pai em busca da água da vida para a
mãe. A judia lhe disse: “Por Deus, meu senhor, que a injustiça partiu do meu
marido, e não de você. Contudo, o que está decretado imperiosamente ocorrerá,
pois não há como fugir. Esteja tranquilo quanto a isso. Quanto à questão da água
da vida, eu a tenho. Só lhe peço que me leve com você para a sua terra que eu
lhe darei a água da vida, mas se não me levar eu não darei nada. Ademais, talvez
a minha ida lhe carreie alguma vantagem”. O rapaz pensou: “Leve-a, pois quiçá
ela lhe sirva para algo”, e prometeu levá-la. A mulher então se levantou e o
conduziu até um aposento no qual estava toda a riqueza do judeu: dinheiro, joias
e taças. Naquela terra viviam cerca de cinquenta judeus, e ela entregou ao rapaz
tudo quanto possuía de dinheiro e preciosidades, entre elas a água da vida. O
rapaz carregou tudo aquilo e levou consigo a judia, que era dotada de beleza e
formosura, de talhe e esbelteza, não existindo em seu tempo ninguém que se lhe
comparasse em beleza. Durante vários dias viajaram, atravessando desertos e
terras inóspitas, em busca da China.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a


714ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
O rapaz [e a judia] continuaram viajando até a capital da China,[200] onde,
por obra do destino e do seu decreto incontornável, verificou que o seu pai se
mudara para a glória de Deus altíssimo, e que a cidade sem rei se assemelha às
ovelhas sem pastor: o povo, os membros do governo do seu pai e os principais
do reino estavam ao léu. Quando entrou no palácio foi falar com a mãe e,
encontrando-a no mesmo estado de perturbação, pegou a água da vida e a fez
beber; então, ela se sentou, cumprimentou-o e lhe perguntou sobre os irmãos,
mas ele escondeu a notícia a respeito, nada lhe revelando e limitando-se a dizer:
“Nós nos separamos no lugar tal em busca da água da vida”. A mãe, vendo com
ele aquela judia dotada de beleza e formosura, indagou-o sobre ela, e ele lhe
contou a história do começo ao fim, apenas ocultando a parte relativa aos
irmãos, por medo de que a mãe sofresse uma recaída e a perturbação voltasse.
[201] No dia seguinte, espalhou-se na cidade a notícia do seu retorno, e então os
principais do governo, os chefes militares e os vizires e outros detentores de
cargos governamentais se reuniram com ele e o ungiram rei e sultão no lugar do
pai. Ele se sentou no trono e se pôs a distribuir ordens e proibições, a nomear e a
dispensar, assim permanecendo por um bom tempo.
Certo dia, ele quis caçar, pescar e se divertir, saindo então com os seus
soldados para além dos limites da cidade. Ao olhar de relance, viu uma jovem de
cerca de treze anos assistindo com o pai à passagem da comitiva, e o amor por
ela, que era dotada de beleza e formosura, invadiu o coração do rei e o ocupou.
Após vê-la, retornou ao palácio e dali mandou pedi-la em casamento ao pai, que
respondeu: “Sultão, nosso amo, não darei a mão da minha filha a não ser para
quem conheça algum ofício”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a


715ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Quando o rei pediu a mão da jovem beduína ao seu pai, este disse: “Não a
darei em casamento senão a quem tiver algum ofício, pois isso é uma segurança
contra a pobreza, e as pessoas dizem que o ofício, se não enriquece, ao menos
protege”. Nesse momento o rei pensou e disse ao pai da jovem: “Homem, eu sou
rei e sultão, e tenho muito dinheiro”. Ele respondeu: “Ó rei do tempo, o reinado
não tem garantia!”. E tão grande era o amor do sultão pela jovem que ele
mandou chamar, para ensiná-lo a tecer tapetes, o mestre dos tecelões, com quem
aprendeu a fazer tanto tapetes coloridos como lisos e riscados, só depois disso
mandando chamar o pai da menina a fim de informá-lo a respeito. O homem
disse: “Ó rei do tempo, a menina é pobre e vocês são reis, e de certas coisas
podem advir outras, com as pessoas comentando que o rei se casou com uma
beduína”. O rei lhe disse: “Amigo, todos são filhos de Adão e Eva”, e então o
homem permitiu o casamento da filha, escreveu o contrato e em pouco tempo a
deixou pronta. O rei a possuiu e constatou que a jovem era como uma pérola,
ficando muito feliz e confortável com ela durante o período de um ano.
Certo dia, o sultão quis sair disfarçado, sozinho, para caminhar pela cidade e
ver o que aconteceria. Entrou no quarto dos disfarces, tirou a roupa e vestiu outra
que o deixou parecido com um dervixe. Saiu pela manhã e se pôs a perambular
pela cidade, observando as suas ruas e mercados, sem saber o que o mundo das
coisas ocultas lhe preparara: por volta do meio dia entrou numa rua sem saída,
cujo início era no mercado; caminhou até o fim e, avistando no seu ponto mais
elevado o estabelecimento de um fazedor de kebab,[202] pensou: “Vou entrar aí
para almoçar”, sendo então recebido pelos donos, os quais, notando aquele
aspecto de dervixe, deram-lhe boas-vindas, cumprimentaram-no e o fizeram
entrar. Ele disse: “Quero almoçar”, e lhe responderam: “Sobre a cabeça e os
olhos”, introduzindo-o num recinto no interior daquele, no qual havia outro
recinto, até que ele chegou ao último recinto e lhe disseram: “Entre aqui, meu
senhor”. Ele abriu a porta com a mão e, vendo dentro desse recinto uma esteira e
um tapete sobre ela, pensou: “Por Deus que este local é bem escondido dos olhos
das pessoas”. Foi até o tapete para se sentar, descalçando-se antes das sandálias,
e mal se sentara um alçapão se abriu e ele despencou lá embaixo, de uma altura
de cerca de dez corpos. Quando percebeu que ia cair, ele pensou: “Ai, meu
Deus! Os donos deste restaurante usam o kebab como artimanha, pois possuem
aqui dentro um poço interno, e introduzem neste recinto todo aquele que vem
aqui almoçar, o qual, ao ver o tapete estendido, supõe que é justamente para
isso”. Quando o rei caiu naquele poço, os donos foram atrás dele querendo matá-
lo e roubar os seus pertences, tal como haviam feito com outros.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

716ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Quando o rei caiu no poço, vestido como estava com aquelas roupas de
dervixe, os donos foram atrás dele para matá-lo e levar os seus pertences, e então
ele lhes disse: “Por que me matar? Meus pertences não valem nem cem moedas
de prata. Mas eu não tenho ninguém e conheço um ofício que aprendi. Enquanto
eu estiver aqui no poço, levem o resultado do meu trabalho e vendam,
diariamente, por mil moedas de prata; todo dia eu trabalharei para vocês sem
exigir em troca senão comida e bebida, e deixem-me aqui para sempre”. Eles
perguntaram: “Qual dos ofícios você conhece?”. Ele respondeu: “Tecer tapetes.
Tragam-me um tostão de junco e um tostão de fios”, e então eles saíram e
trouxeram o que pedira. Ele teceu um tapete e disse: “Levem-no e não o vendam
senão por mil moedas de prata”. Eles pegaram o tapete, levaram-no ao mercado
e tão logo os presentes o viram começaram a brigar para comprá-lo, cada um
oferecendo mais que o outro, até que o preço chegou a mil e duzentas moedas de
prata. Os donos da kebaberia pensaram: “Por Deus que este dervixe nos trará
imenso benefício e nos dispensará de caçar outras vítimas”. Passaram a levar-lhe
diariamente um tostão de junco e um tostão de fios que ele transformava num
tapete que por sua vez eles vendiam por mil e duzentas moedas de prata, e isso
durante dez dias.
Isso foi o que sucedeu ao rei. Quanto aos membros do seu governo, eles
compareceram ao conselho no primeiro dia, no segundo dia, no terceiro dia, até
o sétimo dia, sempre à espera do sultão, mas dele não tiveram notícia nem
nenhuma pista. Ignorando para onde ele fora, os vizires, chefes militares e
principais do governo logo se cansaram e começou a balbúrdia, com muita
discussão, cada qual falando uma língua, sem atinar com o que fazer. Toda vez
que indagavam a família, respondiam-lhes: “Não temos notícia dele”.
Atarantados, concordaram então em substituí-lo por outro sultão.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

717ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Sentindo falta do rei e sem nenhuma notícia sobre ele, concordaram em
substituí-lo por alguém. Os vizires então disseram: “Tenham paciência até que
Deus nos abra alguma porta através da qual nos cheguem notícias dele”. O rei
pedira aos donos do poço juncos pintados de vermelho e verde e teceu um tapete
parecido com uma Δu†åya,[203] nele escrevendo, em código numérico, o nome
do local onde estava e desenhando o caminho para chegar ali. Disse: “Este tapete
não serve senão para o palácio do rei, e o seu valor é de sete mil moedas de
prata. Peguem-no e levem até o sultão, que vai comprá-lo de vocês e pagar essas
sete mil moedas de prata”. Eles então pegaram o tapete e o levaram até o
palácio, onde o vizir, os principais do governo e os chefes militares estavam
sentados conversando a respeito do rei, e eis que entraram aquelas pessoas com o
tapete. O vizir perguntou: “O que vocês têm aí?”. Eles responderam: “Um
tapete”. O vizir disse: “Estendam-no”, e eles o estenderam à sua frente. Aquele
vizir era um homem sagaz, conhecedor de todas as coisas, e ao ver o tapete pôs-
se a examiná-lo, a olhá-lo, a contemplá-lo, e eis que, notando o código numérico
no tapete, compreendeu-lhe o conteúdo e descobriu o local onde o rei estava.
Levantou-se imediatamente, ordenou a prisão dos que haviam levado o tapete e,
junto com um grupo, foi até o local, após haver anotado o código numérico
constante no tapete. Avançaram até chegar à kebaberia, para onde os donos
também haviam sido levados a força, abriram o poço e retiraram o rei, que
estava vestido com trajes de dervixe. Nesse momento, o vizir mandou chamar o
carrasco, que compareceu, agarrou todos os donos daquele lugar e lhes decepou
a cabeça. Quanto às mulheres, foram colocadas em barquinhos e afogadas no rio.
O lugar foi saqueado e o sultão ordenou que o demolissem, a tal ponto que ficou
no nível do solo. Depois de salvo, perguntaram ao rei sobre o motivo daquela
história, e então ele contou o sucedido do começo ao fim, e concluiu dizendo:
“Por Deus que o único motivo de eu ter me salvado desta situação não foi senão
o ofício de tecer tapetes. Deus altíssimo recompense da melhor maneira quem o
ensinou a mim, pois foi esse o motivo da minha salvação; não conhecesse eu tal
ofício, vocês não teriam sabido como chegar a mim, pois para cada coisa Deus
altíssimo criou um motivo”.
[Disse ¸ahrazåd:] Em seguida, Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m disse:
O BRAVO GUERREIRO E A SUA MULHER
Entre o que se conta sobre certo rei, diz-se que ele tinha um bravo guerreiro[204]
que, enviado a qualquer província cujos habitantes andassem em desobediência,
fazia-os volver à obediência após matar alguns deles. Esse bravo guerreiro tinha
uma esposa com a qual nenhuma outra mulher competia em beleza, não
existindo naquele tempo ninguém semelhante a ela. Deu-se então que chegou ao
rei uma correspondência de certa província com queixas e reclamações, e na
qual se dizia: “Fomos espoliados e se você não nos socorrer esta terra estará
perdida”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

718ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
Tão logo essa correspondência chegou às suas mãos, o rei mandou chamar o
bravo guerreiro e, ao tê-lo diante de si, ordenou-lhe que viajasse, juntamente
com o seu grupo, para aquela província. Ele respondeu: “Ouço e obedeço”, e
imediatamente saiu dali para se preparar; foi até a esposa e disse: “Mulher, vou
viajar. Você tem em casa comida e bebida suficientes. Se estiver precisando de
alguma outra coisa, diga agora para que eu providencie antes de viajar. Porém —
por Deus, mulher! — se nesta viagem a minha ausência se prolongar, fazendo-a
perder a paciência, e o demônio brincar com você, fazendo-a desejar aquilo que
as mulheres desejam dos homens, e se Deus altíssimo houver determinado que
você cometa a abominação e o adultério, então não se entregue a nenhum outro
que não fulano de tal. Mande chamá-lo a receba dele o que para você Deus
houver escrito”. Ela respondeu: “Que conversa é essa que você está falando?
Que vergonha, fulano! Eu sou fulana, filha de beltrana, filha de sicrano! Meus
familiares são conhecidos pela fé e honestidade!”. Ele respondeu: “Eu lhe disse
que, se Deus altíssimo tiver determinado que você cometa algo disso, então aja
de acordo com as minhas ordens, pois o demônio não se afasta de ninguém, e se
introduz no homem entre a carne e o osso, não existindo escapatória daquilo que
está predeterminado”. Depois disso, ele se despediu dela e saiu em viagem por
alguns dias e noites para a província determinada pelo rei. Isso foi o que sucedeu
àquele homem.
Quanto à sua mulher, ela permaneceu em casa sozinha, sem ninguém para
distraí-la nem lhe fazer companhia, com exceção de algumas mulheres que
vinham vê-la durante o dia; assim ela permaneceu por dias, mas logo a ausência
do marido começou a lhe parecer prolongada, e o demônio se achegou, brincou-
lhe com o intelecto e eis que ela sentiu vontade de fazer algo, reprimindo-se da
primeira vez, e também da segunda, mas a sua situação se agravou, pois, se os
homens têm um desejo, as mulheres têm setenta e dois. Agravada aquela
situação que lhe silvava na alma, ela mandou chamar o homem recomendado
pelo marido.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. Dunyåzådah lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

719ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
A mulher mandou chamar o homem recomendado pelo marido, mas, uma vez
após a outra, nunca o encontrava em casa, até que, certo dia, eis que ele passava
pelo bairro estando ela à janela, e então a mulher desceu e saiu rapidamente —
naquele momento, toda adornada e com os seus trajes mais luxuosos —, parando
à porta, enquanto ele entrava na rua, e lhe dizendo: “Meu senhor, apanhe a cesta
de pão e envie ao padeiro”. Ele respondeu: “Sobre a cabeça e o olho!”. Ela disse:
“Entre para apanhá-la”, e então o homem entrou de boa-fé, supondo que tais
palavras fossem verdadeiras; porém, quando já estavam no saguão, ela trancou a
porta. Ele perguntou: “Onde está o pão?”. Ela respondeu: “Meu senhor, luz dos
meus olhos, não existe pão nenhum! Neste dia, o que eu quero é que nos
divirtamos, eu e você, e transemos gostoso”. Nesse momento ele disse: “Ó flor
dos corações! Transar e se divertir sem banquete, nem vinho, nem perfume, nem
flores? Que diversão seria essa?”. Ela perguntou: “Então como é que fica?”. Ele
respondeu: “Saio eu daqui agora para trazer-lhe carne sem gordura e depois
torno a sair para buscar outros pedidos”, e saiu da casa pensando, sem saber o
que fazer; comprou um pequeno carneiro degolado e já esfolado, levou-o para a
mulher e lhe ordenou que o pendurasse, estabelecendo como condição que ela o
mantivesse pendurado, não cortasse nenhum pedaço e o vigiasse. Saiu em
seguida e partiu dali, após ter-se comprometido a voltar, mas se ausentou pelo
período de sete dias. Quanto à mulher, ela foi dormir naquela noite, e pela manhã
o esperou, mas o homem não voltou. Ela ficou o dia inteiro dizendo: “Ele virá,
ele virá”, mas ele não veio. Quando se aproximou a tardezinha, o odor do
carneiro se alterara, tornando-se fedido e podre. Pela noite, os cachorros da
vizinhança lhe sentiram o cheiro e pularam o muro e os portões para comê-lo. A
mulher pegou uma bengala e se pôs a enxotar os cachorros, e isso a noite inteira,
sem que eles fossem embora; amanheceu e eles não a abandonavam; quanto
mais sentiam o cheiro da carne apodrecida aumentar, mais os cachorros
avançavam, e quando ela os expulsava de um lado eles pulavam na casa pelo
outro lado.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

720ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
A mulher ficou protegendo a carne do carneiro enquanto os cachorros
pulavam sobre ela querendo devorá-la; ela os enxotava de um lado e eles
pulavam de outro, e isso durou sete dias, quando então o homem retornou e a
encontrou com a bengala na mão a enxotar os cachorros enquanto pulavam o
muro: tal era a situação em que ele a encontrou. A mulher disse: “Por que essa
ausência tão longa?”. Nesse momento ele respondeu: “Fulana, eu só me afastei
para que você percebesse certas coisas e delas compreendesse a lição e o sentido,
preservando a sua pessoa. Contudo — por Deus, fulana! — tivesse entre nós
ocorrido adultério ou abominação, houvesse eu me submetido ao que a sua
cabeça desejava e aceitado o adultério, você teria se tornado igual a esta carne
podre e fétida: os homens lhe saltariam em cima tal como esses cachorros —
sem que você conseguisse afastar nenhum — e talvez eles a traíssem e lhe
roubassem todas as posses, tornando-a, ademais, um caso na boca do povo”.
Nesse instante a mulher compreendeu e se atirou aos seus pés e mãos, beijando-
os, agradecendo-lhe e dizendo: “Deus o recompense da melhor maneira por
mim, meu senhor, que me impediu de cometer abominação e adultério”. Depois
disso, durante algum tempo, o homem — cujo ofício era o de alfaiate — passou
a visitá-la diariamente para lhe resolver alguns problemas e tudo o mais que ela
precisasse. Subitamente, o marido retornou da sua longa ausência, com a alma a
lhe sussurrar toda sorte de coisa ruim.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

721ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que [Ibn Ibråh∑m disse:]
O marido retornou da sua longa ausência com a alma a lhe sussurrar toda sorte
de coisa ruim; ele se perguntava: “Como será que a minha mulher se comportou
durante a minha ausência?”. Quando entrou na casa, a esposa lhe ofereceu uma
bela recepção, ficando contente com ele; à noite, ambos já a sós, o marido a
indagou sobre a sua situação durante o período da ausência, e ela contou sobre o
que lhe sucedera da parte do alfaiate, como ela tentara seduzi-lo movida pela
maldição do demônio, como ele procedera com o carneiro sobre o qual os
cachorros se atiraram noite e dia, e como lhe dissera: “Tivesse agido assim e
assado, você se assemelharia a esta carne apodrecida, e os homens lhe saltariam
em cima tal como esses cachorros”. Ao ouvir tais palavras, o marido agradeceu
muito o mérito daquele homem, elogiou-o e disse: “Mulher, os homens não são
todos iguais, pois já diz o provérbio: ‘Os homens não são senão um numa tribo,
e mil não se contam como um’”. Quando amanheceu, o marido saiu, encontrou-
se com o alfaiate e lhe pediu que cortasse tecidos para um traje completo; o
homem lhe atendeu o pedido, costurou os tecidos, concluiu o trabalho e o
entregou ao marido, que depois retornou ao alfaiate dizendo: “Este traje é um
presente meu para você, como recompensa pelo que fez em prol da minha
mulher durante o período em que me ausentei. Isto é que é atitude de gente de
bem”.
O VALENTÃO E A SUA MULHER
[Prosseguiu ahrazåd:] Conta-se de um valentão[205] que tinha um porrete
semelhante a um jugo em cuja ponta havia um bico de ferro de mais de meio
quilo, e também uma mulher, sua prima, de beleza exuberante. Todo dia o
valentão saía pela manhã com o porrete ao ombro, cofiando os bigodes,
fungando forte, e sumia desde a manhã até a tardezinha, quando retornava,
entrava em casa, bengala ao ombro, sempre com um pouco de sangue na ponta
de ferro do porrete e dizendo: “Pegue este porrete, prima, e observe a sua ponta:
hoje eu matei dois”; às vezes dizia: “Matei três ou quatro”; às vezes dizia: “Hoje
eu deitei por terra dez homens!”. A prima pensava: “Por Deus que o meu primo é
um homem valente e bravo!”. Até que certo dia…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

722ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a esposa do homem que alegava
bravura pensava sobre ele: “Por Deus que o meu primo é um bravo”, e durante
algum tempo o homem viveu naquela condição. Certo dia, porém, a mulher
pensou: “Por Deus que não acreditarei que o meu primo é valente e corajoso
senão se eu vir [essa coragem] com os meus próprios olhos”, e imediatamente se
esfregou com líquido de cúrcuma até a sua cor ficar amarela, deitando-se em
seguida e ficando a gemer[206] na cama. Quando o primo chegou e a encontrou
naquele estado, prostrada na cama a gemer, perguntou-lhe: “O que você tem,
prima? Melhoras! Que não seja nada grave!”, e se sentou ao seu lado, pondo-se a
acariciar-lhe o rosto e a perguntar: “O que dói?”. Ela respondia: “São dores por
todo o corpo”. Passou-se um dia, e mais outro, e a mulher ali prostrada. O
marido dizia: “Seja o que for que lhe faça bem, eu trarei”, e ela respondia: “Não
me fará bem senão me deitar numa plantação de favas”. Ele disse: “Isso é fácil”,
e nesse momento a pegou e levou para uma plantação de favas. Quando se
aproximou, eis que havia na montanha um beduíno conduzindo uma cabra. Ao
ver que o homem estava acompanhado da esposa e levava um porrete ao ombro,
o beduíno se aproximou rapidamente, olhou para a mulher, cujo molde era o da
beleza e formosura, e sentiu desejo por ela; aproximou-se do valentão, gritou
com ele, ameaçou-o, tomou-lhe a mulher e disse: “Segure esta cabra com as
mãos até que eu me satisfaça com esta beleza” e, entregando-lhe a cabra, agarrou
a mulher, entrou com ela na plantação de favas, satisfez-se, saiu, apanhou a
cabra e tomou o seu rumo. A mulher saiu da plantação de favas e disse ao primo:
“Toda vez que você volta para casa me diz: ‘Hoje eu matei um, eu matei três, eu
derrubei dez’, e banca o valentão para cima de mim. Mas esse beduíno grita com
você, me arranca das suas mãos, me viola e você fica aí parado sem nenhum brio
de homem?”. O marido disse: “Cale-se! Por Deus que você não tem notícia do
que eu fiz!”. Ela perguntou: “O quê?”. Ele respondeu: “Durante todo o tempo em
que ele estava montado em você eu fiquei enfiando o dedo no rabo[207] da cabra
dele”. Ela disse: “Dê-lhe Deus o malogro, ó mais abjeto dos homens!”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

723ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a mulher, em estado de desespero
devido ao que o beduíno lhe fizera, disse ao primo: “Ó mais abjeto dos homens!
Não zela por suas mulheres? Você se parece com os judeus. Mas agora siga você
um caminho que eu seguirei outro”. Nesse mesmo momento ela o abandonou,
tomou outro caminho e foi cuidar da vida.
O HOMEM QUE NÃO CALCULAVA E A SUA MULHER
[Prosseguiu ahrazåd:] Conta-se[208] que certo homem abestalhado tinha um
tanto de dinheiro e era casado com uma prima que em seu tempo era singular em
beleza, talhe e esbelteza. Possuidor de certa quantidade de grãos, e desejoso de
vendê-los, aluga dez burros, carrega-os com os grãos e viaja com tudo aquilo
para uma terra próxima da sua, onde vende os grãos que possuía, recebe o valor
e volta com os dez burros sem carga. Quando sai da terra aonde fora vender os
grãos, monta num dos burros, conduzindo os outros nove à sua frente, e pensa:
“Vou contar os burros”. Conta-os e verifica que há nove à sua frente, mas não
conta o burro sobre o qual está montado; então, bate uma mão contra a outra e
diz: “Não existe poderio senão em Deus, perdeu-se um burro!”; então desmonta,
torna a contar os burros e, verificando serem dez, o seu coração se reconforta e
ele diz: “Graças a Deus que não se perdeu nenhum burro!”; então, monta no
burro, conduz os restantes à sua frente, conta-os, verifica serem nove e diz: “Não
existe poderio senão em Deus! Um dos burros se perdeu!”; aflito, torna a
desmontar, põe-se a conduzi-los todos à sua frente e os conta, verificando serem
dez; continua, a pé, conduzindo os animais, até que, cansado, volta a montar
num deles, conduz os demais à sua frente, conta-os e verifica serem nove, pois
ele não contou o burro sobre o qual está montado; afinal derrotado, diz: “Quando
eu monto, um burro se perde; é melhor seguir a pé”, e desmonta, indo a pé até
chegar à sua terra, onde devolve os burros aos donos e retorna para a sua casa, de
quatro aposentos; entra, senta-se num dos aposentos, conta os que estão à sua
frente e verifica serem três, pois não contou o aposento em que ele próprio se
acomodara; diz então à esposa: “Mulher, o outro aposento foi aonde?”. A mulher
responde: “Não sei”, e então ele vai ameaçá-la dizendo: “Sua puta, me conte
aonde foi o aposento!”, e ela responde: “Não sei!”. Essa mulher tinha alguns
amantes, entre eles um moleiro. Certo dia, o homem entrou num dos quatro
aposentos…
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

724ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o homem entrou, sentou-se num dos
quatro aposentos da sua casa e disse à esposa: “Mulher!”. Ela disse: “Sim?”. Ele
perguntou: “Nossa casa tem quantos aposentos?”. Ela respondeu: “Quatro”.
Então ele os contou, verificou serem três, pois não contou aquele onde estava, e
disse à mulher: “Não existem aqui senão três aposentos! Onde está o quarto?”.
Ela respondeu: “Vou lhe contar a verdade. Ele está apaixonado por uma
aposenta”. Ao ouvir tais palavras, o homem disse: “Por Deus que é
absolutamente imperioso dar-lhe uma lição!”, e, pegando um porrete, perguntou
à esposa: “O aposento saiu atrás da amada?”. Ela respondeu: “Está fora desde o
amanhecer”. Então, armado com o porrete, o homem saiu correndo e
perguntando a todo aquele com quem topava: “Você por acaso não viu um
aposento por aí?”. A pessoa ria dele e respondia: “Está logo ali adiante”, e então
ele continuou correndo até chegar ao moinho cujo dono gostava da sua mulher;
parou na porta, entrou e perguntou: “Por acaso você não viu um aposento entrar
aqui?”. O moleiro respondeu: “Por Deus, meu senhor, ele diariamente passa por
mim, bem aqui, pela manhã, e só volta ao entardecer. Porém, entre aqui e se
sente; tão logo ele entrar, eu aviso. O homem entrou, sentou-se dentro do moinho
até aproximadamente o meio-dia, quando então se deitou e afundou no sono. Ao
vê-lo dormindo, o moleiro pegou uma navalha e lhe raspou a barba e os bigodes.
O homem continuou dormindo até o entardecer, quando então acordou e
perguntou ao moleiro: “O aposento passou?”. O moleiro respondeu: “Ele acabou
de ir embora, neste exato instante, pouco antes de você acordar”. O homem se
levantou apressado, empunhou o porrete e saiu correndo até chegar à sua casa,
onde bateu à porta, e a esposa, que também era sua prima, respondeu lá de
dentro: “Quem é que bate?”. Ele disse: “Abra”. Então ela veio espiar pelas
frestas da porta, pois estava na hora do encontro com o moleiro, seu amante, a
quem ela instruíra para raspar a barba do marido. Assim, ao espiar pelas frestas
da porta ela disse: “Ai, minha desgraça! Você? Você não é o meu primo!”. Ele
disse: “Por Deus que eu sou o seu primo!”. Ela disse: “O meu primo tem barba, e
você não tem!”. Então o homem passou a mão no rosto, nele não encontrando
nem um pelo.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.
Na noite seguinte, que era a

725ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o homem abestalhado passou a mão
pelo rosto e, nele não encontrando nem um só fio de barba, disse: “E a minha
barba, foi aonde?”. Confuso, pôs-se de pé e saiu correndo até chegar ao moinho,
onde parou e disse: “Homem! Moleiro!”, e o dono veio atendê-lo e perguntou:
“O que você tem?”. O homem perguntou: “Eu primeiro vim aqui com barba ou
sem barba?”. O moleiro respondeu: “Você veio até aqui com barba”. O homem
perguntou: “E aonde ela foi?”. O moleiro respondeu: “Só pode ser que o peão
carregou-a consigo quando partiu levando os cavalos ao pasto. Mas permaneça
aqui o período de trinta dias e assim que o peão retornar pegue a sua barba de
volta”. O homem respondeu: “Sim” e entrou no moinho, ficando ao lado do
moleiro durante o período que este dissera, até que, completados os trinta dias,
sua barba já crescera de novo; então [o moleiro][209] mandou chamar um
barbeiro, que lhe cortou o cabelo e lhe aparou a barba de cima a baixo até deixá-
la um pouquinho acertada, após o que lhe deu um espelho no qual ele se mirou e
viu a barba acertada e peluda. O moleiro lhe disse: “Veja aí que eu lhe trouxe a
barba de volta”. O homem respondeu: “É verdade”, e saiu dali, retornando para
casa após os trinta dias; bateu na porta, a mulher saiu para atender, espiou pelas
frestas da porta, abriu, cumprimentou-o e o questionou sobre aquela ausência
toda. Ele respondeu: “O peão do moleiro pegou a minha barba e viajou com ela.
Por isso, fiquei no moinho até que voltasse da viagem, pois ele fora levar os
cavalos ao pasto, e então a peguei de volta”. Como aquela era uma sexta-feira, a
mulher lhe disse: “Vou visitar a minha irmã e volto logo”. Ele disse: “Vá e não
demore. Olhe direito, é rápido!”. Ela respondeu: “Tudo bem”, vestiu o seu traje
mais luxuoso, enfeitou-se, perfumou-se e saiu: tinha compromisso marcado com
os seus amantes. Caminhou sem interrupção até o local onde eles estavam,
encontrando-os à sua espera; entrou, eles serviram um banquete com comida e
vinho, e todos comeram e beberam até perder a cabeça de tanta bebedeira;
olhando para ela, viram-na enfeitada e perfumada, e se puseram a agarrá-la e a
excitá-la até nela colher o gozo. Permaneceram em tal situação, ela e eles, sete
dias e sete noites, comendo, bebendo vinho e transando, até a sexta-feira
seguinte, quando então ela disse: “Agora eu preciso voltar ao meu marido”. Eles
disseram: “Vá, mas não nos abandone”. Ela disse: “Sempre que eu vier,
ficaremos juntos sete dias”. Ela se foi e ao chegar à sua casa encontrou o marido
parecendo um louco, ou parecendo um macaco numa corrente; tão logo a mulher
entrou, ele se pôs de pé e perguntou: “Onde é que você estava?”. Ela respondeu:
“Eu fui rápido e voltei, homem!”.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver”.

Na noite seguinte, que era a

726ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que o homem abestalhado perguntou à
esposa: “Onde é que você estava?”. Ela respondeu: “Quando saí daqui de casa,
fui rapidinho, nem me sentei, voltei e nem demorei, de jeito nenhum, nem dez
minutos”. O homem disse: “Sua puta, faz sete dias que você está ausente”. A
mulher disse: “Homem, você está caducando ou ficando louco? Hoje é que dia
da semana?”. Ele respondeu: “Sexta-feira”. Ela perguntou: “E eu saí daqui que
dia?”. Ele respondeu: “No dia de sexta-feira”. Ela disse: “Então ou você está
enlouquecendo ou saiu da sua cabeça uma torre! Eu saí daqui na sexta-feira e
hoje é dia de sexta-feira! Só pode ser que você está bêbado ou imbecilizado!”.
Nesse momento o homem se calou e não falou mais nada, pensando: “É verdade
que hoje é sexta-feira, e ela saiu no dia de sexta-feira; portanto, ela não se
ausentou”.
A MULHER DO CAIRO E OS TRÊS TARADOS
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Esta é uma das astúcias das mulheres. E, entre as demais
astúcias delas, conta-se que no Egito certa mulher dotada de beleza e formosura,
talhe e esbelteza, saiu dada manhã para ir ao banho público, cruzando no meio
do caminho com três homens que olharam para ela e disseram entre si: “Por
Deus que é uma beleza, e gostaríamos de possuí-la”. Seguiram-na até o banho, e
depois da sua entrada ficaram rondando as proximidades da porta até ela sair e
tomar o caminho de casa. Olhando de relance, ela percebeu os três homens atrás
de si a segui-la, e então parou e perguntou: “O que vocês querem?”.
Responderam: “Senhora, nós gostamos de você e queremos transar”. Ela disse,
com a sua astúcia: “Sem problemas com isso. Se Deus quiser quando o sol se
puser vocês venham. Esta é a minha casa”. Eles disseram: “Muito bem”. No
pátio da casa havia um depósito cheio de feno, que a mulher abriu ao entrar,
arregaçando as mangas e se pondo a empurrar o feno para cima. O depósito
também dispunha de uma porta superior, e ela não cessou de empurrar o feno até
conseguir abrir espaço para os três, após o que saiu e se sentou em casa até o
poente, quando súbito os três homens chegaram à sua casa.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

727ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que os três homens chegaram à hora do
poente, conforme o horário estipulado pela mulher, que lhes recomendara, ainda,
o uso de trajes os mais luxuosos, e cada um foi vestido com roupas no valor de
duzentas moedas de prata. Assim que se viram defronte da casa, bateram à porta,
a mulher foi abrir e os três entraram por ali. A mulher lhes disse: “Agora o meu
marido está aqui, mas entrem neste depósito e esperem o anoitecer, quando ele
dormirá, e então virei até vocês e os introduzirei na casa”, e lhes abriu o
reservatório de feno, onde entraram os três, após o que ela o trancou, subiu até a
porta superior, abriu-a e se pôs a jogar feno ali dentro e a socá-lo até que os três
ficaram cobertos e impossibilitados de sair, asfixiando-se e sendo esmagados,
sem encontrar maneira de se livrar daquilo; tal situação se prolongou, a
quantidade de feno aumentou e os três desmaiaram, logo perdendo o seu sopro
vital, e morreram. Aqueles três homens tinham por natureza a nocividade, e não
podiam ver mulher, moça ou garoto imberbe que logo iam agarrando,[210] e
passaram aquela noite mortos sob o feno; ao amanhecer, a mulher se levantou,
abriu o depósito e arrastou o primeiro dos homens até o pátio da casa, onde lhe
arrancou as roupas e mandou chamar um dos coveiros, ao qual disse: “Tenho um
empregado que morreu; leve-o e enterre”, e lhe pagou o valor da mortalha e
outras necessidades para o sepultamento; o coveiro levou o corpo, lavou-o,
amortalhou-o, alugou carregadores, transportou-o ao cemitério e ali o enterrou
num canto. No segundo dia, a mulher arrastou o segundo homem, mandou
chamar o coveiro e quando ele veio disse-lhe: “O homem que você levou ontem
voltou”. O coveiro perguntou: “Como é que ele voltou?”. A mulher respondeu:
“Talvez o cemitério não lhe tenha agradado. Mas agora leve-o e enterre
direitinho”. O coveiro avançou até o corpo e disse: “Por Deus, seu filho da puta,
que é imperioso enterrá-lo a sete côvados”; trouxe os seus carregadores,
transportou-o ao cemitério, lavou-o, amortalhou-o, escavou-lhe uma cova de
cinco côvados e o cobriu de terra. Isso foi o que aconteceu com eles.
Quanto à mulher, no terceiro dia ela abriu o depósito de feno com o propósito
de retirar o terceiro homem; afastou o feno, arrastou o corpo, verificando que
nele ainda havia um sopro de vida, e lhe arrancou as roupas, sem saber o que lhe
reservava o oculto.
E a manhã atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu a narrativa e o discurso
autorizado. A irmã lhe disse: “Como é bela a sua história, maninha”, e ela
respondeu: “Isso não é nada comparado ao que irei contar na próxima noite, se
eu viver e o rei me preservar”.

Na noite seguinte, que era a

728ª
Sua irmã lhe disse: “Por Deus, minha irmã, se não estiver dormindo, continue a
história para atravessarmos o serão desta noite”, e ela respondeu: “Com muito
gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, bem-sucedido e sensato, dono de correto
parecer e belo e louvável proceder, de que a mulher arrastou o terceiro homem
com o propósito de lhe arrancar as roupas, mas, por algo predeterminado, a porta
da casa estava aberta e eis que o chefe de polícia por ali passava; olhando de
relance, viu a mulher arrastando o homem de sob o feno e entrou perguntando:
“O que é isso que você está fazendo?”. Ao ver o policial, a mulher levou um
susto e se atrapalhou, e então ele a agarrou. Nesse momento chegava o coveiro
que enterrara os outros dois homens, a fim de cobrar o pagamento. O chefe de
polícia perguntou: “O que é que você quer, meu velho?”. O coveiro respondeu:
“Ontem eu enterrei um homem que voltou do cemitério e então eu o levei e
enterrei de novo”. O chefe de polícia perguntou: “Grande Deus! Você enterrou
um homem e ele voltou?”. O coveiro respondeu: “Sim”. Nesse momento, o
chefe de polícia, percebendo que eram três os homens que haviam morrido,
agarrou a dona da casa e a levou à delegacia, onde a prendeu. Isso foi o que se
deu com ela.
Já os familiares dos três mortos, ao darem pela falta dos seus entes, saíram à
sua procura, mas não os encontraram. Toparam então com o chefe de polícia, a
quem interpelaram a respeito, e ele os informou que os três haviam morrido
vítimas da artimanha de uma mulher, a qual estava presa com ele. Os familiares
perguntaram: “Como é que fica o caso? O que fazer?”. Ele respondeu:
“Processem-na e convoquem-na diante do rei”. Então eles a processaram,
convocaram e a acusaram, mas ela negou e disse: “Sultão, nosso amo, como é
que uma mulher poderia matar três homens? Essas palavras são corretas?”. O rei
disse: “Podem ser corretas dependendo do caso. Se você for uma pessoa
desonesta, são corretas, mas se for uma pessoa honesta,[211] então não
conseguiria matá-los”. Nesse momento, o juiz dos muçulmanos decidiu que se
tratava de uma questão de juramento, e então lhe impuseram a jura como
condição. A mulher jurou e a soltaram. Acabou-se.[212]
Manuscrito "Arabe 3612", Biblioteca Nacional da França, Paris
MANUSCRITO "ARABE 3612",
BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
CONSELHOS A REIS[213]
Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador.
Louvores a Deus, senhor dos humanos, e sejam as suas preces e saudações
sobre o nosso senhor Mu¬ammad, sobre todos os seus parentes, companheiros e
membros de sua família, e sobre todos os profetas e enviados, bem como os seus
parentes, companheiros, seguidores e seguidores dos seus seguidores, com obras
pias, até o dia do Juízo Final.
Quando foi a noite seguinte, que era a

[740ª]
A JUSTIÇA DIVINA E OS ENCARREGADOS DOS HOMENS
Conta-se que ¢Umar Ibn AlΔa††åb,[214] Deus esteja com ele satisfeito,
acompanhava certo dia um enterro quando um homem avançou, fez suas preces
e, quando o morto foi enterrado, aproximou-se do túmulo e disse: “Ó Deus, se
acaso o castigares, estarás com a razão, porque ele te terá desobedecido, e se
acaso dele tiveres misericórdia, tratar-se-á de alguém que a merece. E
congratulações a ti, ó morto, se acaso não fores comandante, ou inspetor, ou
escriba, ou espião do comandante,[215] ou coletor de impostos”. Mal concluiu
tais palavras, a sua figura desapareceu diante dos olhos dos presentes e,
conquanto ¢Umar Ibn AlΔa††åb tenha ordenado que o procurassem, não foi
encontrado. Então ¢Umar, Deus esteja satisfeito com ele, disse: “Esse era
AlΔi®r,[216] a paz esteja com ele”.
E disse o profeta, a paz esteja com ele: “Ai dos comandantes, dos inspetores,
dos escribas e dos espiões, pois se trata de gente que, no dia do Juízo Final, [será
pendurada nos céus pela cabeleira, e arrastada de cara para o fogo,] e desejará
então nunca ter exercido cargo algum”. E também disse: “Não existe homem
que, tendo sido encarregado de dez pessoas ao menos, não esteja, no dia do Juízo
Final, com as mãos acorrentadas ao pescoço; se acaso o seu trabalho tiver sido
bom, a corrente será solta, mas, se tiver sido ruim, ser-lhe-á acrescida mais uma
corrente”.
E a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu a sua fala autorizada. Sua irmã
Dunyåzåd lhe disse: “Como é bela, prazerosa, agradável e saborosa a sua
história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que lhes contarei
na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me preservar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

[741ª]
Disse Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo, conte-nos
uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
O REI DÅWŒD E O DINHEIRO PÚBLICO
Eu soube, ó rei venturoso, que se relata nas crônicas que Dåwœd, a paz esteja
com ele, saía à noite disfarçado de modo que ninguém o reconhecesse,
perguntando em segredo a quem quer que visse sobre a conduta de Dåwœd.
Então, certo dia lhe veio [o arcanjo] Jibrå’∑l,[217] a paz esteja com ele, na
forma de homem. Dåwœd lhe perguntou: “O que me dizes sobre a conduta de
Dåwœd?”. Jibrå’∑l respondeu: “É o melhor dos homens, com o porém de que se
alimenta por meio do dinheiro público e não por meio do seu trabalho e do
esforço das suas próprias mãos”, e então Dåwœd retornou ao nicho [do seu
templo] choroso e triste, dizendo: “Ensina-me, meu Deus, um ofício que me faça
alimentar-me por meio do esforço de minhas próprias mãos”, e então Deus
altíssimo o ensinou a fazer malhas.
HISTÓRIAS SOBRE O CALIFA CUMAR
E ¢Umar Ibn AlΔa††åb, Deus esteja satisfeito com ele, saía de sua casa e
rondava [pela cidade] com os seus guardas para corrigir qualquer falha que
visse. Ele dizia: “Se eu deixar uma só cabra com sarna na pata sem tratá-la com
pomadas, temo ser questionado a respeito no dia do Juízo Final”. Olha, ó sultão,
para ¢Umar, Deus esteja satisfeito com ele, os seus cuidados e a sua justiça:
embora nenhum filho de Adão se aproximasse dele em piedade, ¢Umar refletia
sobre os terrores do dia do Juízo Final e os temia, ao passo que tu te instalaste
[no trono] sem observar a condição dos teus súditos e indiferente à gente sob o
teu governo.[218]
¢Abdullåh Ibn ¢Umar[219] e um grupo de seus familiares contam:
“Rogávamos a Deus que nos mostrasse ¢Umar em nossos sonhos, e então eu o vi
em sonho, após doze anos; parecia que ele estava banhado e enrolado num
avental, e eu lhe perguntei: ‘Como encontraste o teu Deus, ó comandante dos
crentes, e com qual bênção ele te recompensou?’; então ele perguntou: ‘Quanto
tempo faz desde que me separei de vós, ó ¢Abdullåh?’; respondi: ‘Doze anos’;
ele disse: ‘Desde que me separei de vós estou prestando contas, e temi ser
aniquilado, mas Deus é perdoador, misericordiador, bom e generoso’. Tal é a
condição de ¢Umar, Deus esteja satisfeito com ele, o qual, em sua vida terrena,
da governança não detinha nenhum instrumento com exceção do chicote”.
História O César[220] dos romanos enviou um emissário a ¢Umar Ibn
AlΔa††åb, Deus esteja satisfeito com ele, a fim de espionar-lhe a condição e
acompanhar-lhe as ações. Quando entrou em Medina, o emissário perguntou ao
povo: “Onde está o vosso rei?”. Responderam-lhe: “Não temos rei, mas sim um
comandante, e ele foi para o limite exterior da cidade”. O emissário saiu atrás
dele e o viu deitado ao sol, dormindo sobre a areia escaldante, tendo o chicote
por travesseiro, o suor lhe escorrendo pela testa e molhando o chão. Ao vê-lo
naquela situação, a sua humildade lhe tocou o coração e ele pensou: “Um
homem que a maioria dos reis teme devido ao seu poder, e eis a sua situação!
Mas tu, ¢Umar, és justo e por isso te manténs seguro, e enquanto dormes o nosso
rei pratica injustiças; não é de estranhar, portanto, que ele se mantenha insone,
com medo! Declaro que a vossa religião é a verdadeira religião, e, não tivesse eu
vindo como emissário, ter-me-ia convertido agora ao islã. Porém, depois disso
voltarei para cá e me converterei”.
Ó sultão, os perigos do governo são enormes, e sua gravidade, gigantesca;
explanar a respeito seria muito longo, mas o governante não se salva senão
mediante a aproximação de sábios da fé que lhe ensinem os caminhos da justiça
e lhe facilitem as dificuldades nesse assunto.
O ASCETA E O CALIFA
Conta-se que ¸aq∑q AlbalΔ∑,[221] que a bênção de Deus esteja com ele, foi ter
com Hårœn Arraš∑d, que lhe perguntou: “Tu és ¸aq∑q, o asceta?”. Ele
respondeu: “Sou ¸aq∑q, o asceta, mas tu não és austero”.[222] O califa disse:
“Admoesta-me”. Respondeu: “Deus altíssimo te instalou no lugar de [Abœ
Bakr], o veraz, e te pede que sejas veraz como ele; deu-te o lugar de ¢Umar Ibn
AlΔa††åb, [o discernidor], e te pede cuidado e que como ele saibas discernir a
verdade da falsidade; acomodou-te no lugar de [¢U¥mån Ibn ¢Affån],[223] o das
duas luzes, e te pede que tenhas o mesmo recato e a mesma generosidade que
ele; te fez sentar no lugar de ¢Al∑ Ibn Ab∑ ˇålib,[224] e te pede saber e justiça,
tal como pediu a ele”. Disse o califa: “Dá-me mais de tuas recomendações!”.
Respondeu: “Pois não. Fica sabendo que Deus altíssimo possui uma casa que se
chama inferno, da qual te fez porteiro, e te deu três coisas, o tesouro público, o
chicote e a espada, ordenando-te que, por meio delas, impeças as pessoas de
chegarem ao fogo. Quem vier a ti necessitado, não o afastes do tesouro público;
quem desobedecer às ordens de Deus altíssimo, corrige-o com este chicote; e
quem matar alguém injustamente, mata-o com a espada, com a permissão do
responsável pelo morto. Se acaso não fizeres o que Deus te ordena, serás o líder
das gentes do fogo, à testa deles rumo à casa da aniquilação”. Disse o califa:
“Dá-me mais recomendações”. Respondeu: “O teu paradigma é como o da fonte
d’água, e o paradigma de todos os teus encarregados de trabalhos é como o do
aguadeiro: se a fonte d’água for pura, a sujeira do aguadeiro não a prejudicará, e
se a fonte d’água for impura, a limpeza do aguadeiro não a beneficiará”.[225]
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

742ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
MATAR OU PERDOAR?
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o califa Abœ Ja¢far Almanßœr[226]
ordenou a morte de um homem. Almubårak Ibn Alfa®l,[227] que estava
presente, disse-lhe:
Ó comandante dos crentes, ouve de mim uma história antes de matá-lo.
Al¬asan Albaßr∑,[228] Deus esteja com ele satisfeito, contou que o profeta de
Deus, com ele estejam suas preces e saudações, disse: “Quando for o dia do
Juízo Final e Deus reunir as pessoas num só planalto, um arauto gritará: ‘Que se
levante quem houver feito alguma boa ação perante Deus’, e somente se
levantarão aqueles que perdoaram os outros”.
Então o califa disse: “Libertai-o, pois eu já o perdoei”.
JESUS[229] E OS MENTIROSOS
Disse Jesus, a paz esteja com ele, a João, filho de Zacarias: “Se alguém falar de
ti e disser a verdade a teu respeito, lembra-te de Deus; e se mentir, agradece a
Deus e multiplica os agradecimentos, e ele multiplicará os registros [de tuas boas
ações sem que nada faças. Ou seja, as boas ações desse mentiroso serão
creditadas no teu registro]”.
A CORAGEM SEGUNDO MUÆAMMAD
Falou-se diante do enviado de Deus, sobre ele sejam suas preces e saudações, a
respeito de certo homem nos seguintes termos: “Fulano é forte e corajoso”. O
profeta perguntou: “Como?”. Responderam-lhe: “É mais forte do que qualquer
um e não luta com ninguém sem que o derrote”. O profeta disse: “O forte
corajoso é quem derrota a própria cólera, e não quem derrota outro homem”.
[230]
MŒSÀ E O DEMÔNIO
Conta-se que Ibl∑s, o demônio, Deus o amaldiçoe, viu Mœsà, a paz esteja com
ele, e lhe disse: “Mœsà, eu te ensinarei três coisas e tu pedirás a meu senhor uma
necessidade minha”. Mœsà, a paz esteja com ele, perguntou: “Quais são essas
três coisas?”. O demônio respondeu: “Acautela-te da inveja, da cólera e da fúria,
pois a cabeça do enfurecido é leviana e eu a manipulo tal como as crianças
manipulam uma bola. Acautela-te das mulheres, pois nenhuma das armadilhas
que montei para as criaturas é tão eficiente quanto elas. Acautela-te da avareza,
pois do avarento eu corrompo a fé e também a vida mundana”.[231]
MÁXIMAS E SENTENÇAS (I)
Fica sabendo, ó sultão, que o conforto no mundo é composto de poucos dias, a
maioria dos quais turvados pela fadiga e tisnados pela exaustão, mas é por causa
desse pequeno conforto que se perde o conforto da outra vida, a qual, ela sim, é
permanente e duradoura, reino que não termina nem tem fim. Para o dotado de
intelecto,[232] portanto, é fácil ter paciência com esses poucos dias para
alcançar o conforto permanente e inesgotável.
Anedota Caso algum homem tenha uma amada e lhe seja dito: “Se a visitares
nesta noite não tornarás a vê-la jamais, mas se tiveres a paciência de privar-te da
tua amada esta noite ela será tua por mil noites, sem fadiga nem exaustão” —
isto é, se ele se privar dela nessa noite irá ter a sua proximidade por mil noites
—, por mais que o seu amor por ela seja imenso e privar-se dela doloroso, essa
privação de uma noite lhe será facilmente suportável, pois ganhará a sua
proximidade por mil noites, e [não] perderá o bem-estar constante e permanente.
Este mundo não é mais do que a milésima parte da duração da outra vida, ou,
melhor dizendo, posto lado a lado com a outra vida, este mundo não é nada, não
havendo comparação entre ambos, pois a outra vida não tem fim, nem se pode
conjecturar a sua extensão.
JESUS, OS TRÊS HOMENS E O TESOURO
Havia no tempo de Jesus, a paz esteja com ele, três homens que, caminhando por
certa estrada, encontraram um tesouro e disseram: “Foi Deus quem nos reuniu
para encontrar isso.[233] [Estamos com fome,] que um de nós vá comprar
comida”. Então um deles foi buscar comida e pensou: “O mais certo é que eu
lhes coloque veneno na comida para que comam e morram, apoderando-me eu
sozinho do tesouro, sem ter de dividi-lo com eles”, e assim procedeu,
envenenando a comida. Os outros dois combinaram que, quando ele chegasse
com a comida, iriam matá-lo e apoderar-se, ambos, do tesouro, sem ter de
reparti-lo com ele.
Disse o narrador: Quando o terceiro homem chegou trazendo a comida
envenenada, os outros dois mataram-no, comeram da comida e morreram.[234]
Jesus, a paz esteja com ele, passou por tal lugar, e então os discípulos lhe
perguntaram: “O que são aqueles?”. Jesus respondeu: “Este é o mundo. Vede
como ele matou esses três, ao passo que ele permaneceu. Ai de quem busca o
mundo!”.[235]
Fica sabendo, ó sultão, que os filhos de Adão constituem dois grupos: um
grupo que só vê o que se fala sobre as [boas] circunstâncias do mundo e se apega
ao anseio por uma vida longa, sem pensar no derradeiro suspiro; e um grupo de
inteligentes, que colocaram o último suspiro diante de si e olham para onde será
o seu destino final, e como sairão do mundo e o abandonarão com a fé intacta, e
o que, deste mundo, descerá com eles para suas sepulturas, e o que deixarão para
suas famílias[236] após a partida, e disso quais suplícios e nocividades
reverterão contra si.
Este pensamento é obrigação de todas as criaturas, e mais ainda no caso dos
reis, pois eles não raro incomodam o coração dos homens e lhes enviam efebos
[para cometer pecados]; agridem as pessoas, introduzindo-lhes o terror no
coração. Na presença de Deus[237] altíssimo há um indivíduo chamado
¢Azrå’∑l, conhecido como arcanjo da morte, de cuja busca e tenacidade[238]
ninguém escapa. Enquanto todos os encarregados dos reis levam a sua paga em
ouro, prata e alimentos, este encarregado não leva senão o sopro vital como
paga; com todos os encarregados dos sultões, a intermediação de qualquer
intermediário funciona, [mas com este encarregado nenhuma intermediação de
intermediário algum funciona]; todos os encarregados dilatam o prazo dos dias e
das horas, mas este encarregado não dilata o prazo de nenhuma alma. As coisas
espantosas a respeito da condição de ¢Azrå’∑l são muitas, e sobre elas eu
contarei cinco histórias. A primeira…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

743ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, [do seguinte:]
O ARCANJO DA MORTE E O REI PODEROSO
A primeira história, narrada por Wahb Ibn Munabbih,[239] Deus esteja satisfeito
com ele, conta que certo rei poderoso um dia quis cavalgar junto com um grupo
[de gente] do seu reino, a fim de exibir ao povo as maravilhas de sua pompa.
Ordenou que seus comandantes[240] cavalgassem ao seu lado para que todos
vissem o seu poder, e também que lhe trouxessem os trajes mais luxuosos e,
ainda, os cavalos mais bem avaliados, escolhendo dentre eles um puro-sangue
conhecido por sua velocidade; montou-o com sela de ouro e arreio cravejado de
pedras preciosas, fazendo-o correr entre seus soldados, orgulhoso do temor
reverencial que impunha e de sua soberba. Então Ibl∑s, o demônio, que Deus
altíssimo o amaldiçoe, veio e colocou a boca em suas narinas, soprando-lhe o
vento da arrogância no nariz. O rei pensou: “Quem no mundo é como eu?”, e
pôs-se a correr com arrogância, jactando-se presunçosamente, sem enxergar mais
ninguém, tamanhas eram a suas autoadmiração, soberba e petulância. Foi
quando um homem de roupas puídas parou diante dele e o cumprimentou, mas o
rei não lhe retribuiu o cumprimento. Porém, como o homem segurasse as rédeas
do seu cavalo, o rei lhe disse: “Tira as mãos daí, pois não sabes a quem
pertencem as rédeas que estás pegando!”. O homem disse: “Preciso de algo de
ti”. O rei respondeu: “Espera até que eu descavalgue”. O homem disse: “O que
preciso de ti é agora, e não quando descavalgares”. O rei disse: “Dize o que
precisas”. O homem respondeu: “É segredo que não revelarei senão ao teu
ouvido”. Então o rei se abaixou para ouvi-lo e o homem disse: “Sou o arcanjo da
morte e quero levar o teu sopro vital”. O rei disse: “Dá-me um prazo para que eu
vá até a minha casa despedir-me dos meus filhos e da minha esposa”.
Respondeu: “De forma alguma. Não irás tornar a vê-los nunca mais. Terminou o
teu período de vida”. E lhe tirou o sopro vital sobre o dorso de seu cavalo, e o rei
voltou morto para casa. Saindo dali, o arcanjo da morte foi até um homem
piedoso com o qual Deus estava satisfeito. Cumprimentou-o e o homem retribuiu
o cumprimento. O arcanjo disse: “Preciso de algo de ti, e é segredo”. O homem
piedoso respondeu: “Dize o que precisas em meu ouvido”. Ele disse: “Sou o
arcanjo da morte”. O homem disse: “Bem-vindo! Graças a Deus vieste, pois eu
muito aguardei a tua chegada. Tua demora já me parecia demasiada”. O arcanjo
da morte disse: “Se te resta algum serviço a fazer, termina-o”. O homem piedoso
respondeu: “Para mim não existe nenhum serviço mais importante do que
encontrar o meu Deus”. O arcanjo da morte perguntou: “De que maneira preferes
que eu extinga o teu sopro vital? Eu recebi ordens para dar-te a opção”.[241]
Respondeu: “Permite que eu me ablua e reze; quando eu estiver prosternado,
leva o meu sopro vital”. Então o arcanjo da morte agiu como lhe fora ordenado,
e o transportou para a misericórdia de seu senhor.

O ARCANJO DA MORTE E O REI ENDINHEIRADO
A segunda história Conta-se que um rei muito endinheirado amealhara a sua
riqueza mediante o saque dos mais variados bens de tudo quanto é lugar criado
por Deus altíssimo, saques esses que constituíram os seus vastos cabedais.
Construiu então um palácio elevado que servia para reis e poderosos, nele
instalando dois portões muito seguros, bem como jovens criados, guardas e
porteiros, e ordenando que nele se cozinhassem as refeições mais saborosas.
Reuniu os seus familiares e cortesãos para lá comerem e desfrutarem a sua
liberalidade, enquanto ele, sentado no trono do reino, pensava: “Ó alma, reuniste
as delícias do mundo inteiro; come, portanto, destas delícias, felicitando-te com
a vida longa e a sorte generosa”. Mal terminara de falar assim de si para si
quando veio procurá-lo um homem cuja pobreza era evidente, roupas puídas e
alforje rasgado pendurado ao pescoço, com aparência de pedinte. Bateu
violentamente na argola do portão do palácio, fazendo-o estremecer,
atemorizando os jovens criados, que acorreram ao portão e disseram: “Ó
desvalido, que batidas violentas ao portão são essas? Que falta de modos é essa?
Espera que terminemos de comer e então te daremos as sobras”. Ele disse:
“Dizei a vosso patrão que venha até mim, pois tenho com ele um importante
serviço, uma questão premente”. Perguntaram-lhe: “Retira-te, ó desvalido!
Quem és para assim ordenares que nosso patrão venha até ti?”. Respondeu:
“Limitai-vos a informá-lo do que eu vos disse”, e quando eles o informaram o
rei perguntou: “Por que não o matastes?”. Então o homem tornou a bater na
argola do portão mais violentamente do que da primeira vez. Foram até ele
armados e correram para atacá-lo, mas o homem gritou com eles e disse:
“Permanecei em vossos lugares, pois eu sou o arcanjo da morte”, e então seus
corações se amedrontaram, suas peles se arrepiaram e seus membros
estremeceram. O rei lhes disse: “Dizei-lhe que leve alguém que me substitua e
compense”. O arcanjo respondeu: “Não levarei substituto nem compensação,
pois não vim senão por tua causa”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

744ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o arcanjo da morte disse: “Não levarei
substituto nem compensação, pois não vim senão por tua causa, para separar-te
dos bens que reuniste e do dinheiro que acumulaste e guardaste”. O rei suspirou
profundamente e disse: “Deus amaldiçoe esse dinheiro que me seduziu e
prejudicou, impedindo-me de adorar a meu senhor. Eu supunha que esse
dinheiro iria me beneficiar, mas hoje ele se transformou no meu pesar e na
minha desgraça. Amaldiçoe Deus este dinheiro que não me beneficiou e que
passará às mãos dos meus inimigos”. Então Deus altíssimo fez o dinheiro falar o
seguinte: “Por que me amaldiçoas? Amaldiçoa a ti mesmo, pois Deus altíssimo
me criou, e a ti, do pó, e me colocou nas tuas mãos a fim de ajuntares víveres
para a outra vida e me prodigalizares aos pobres, e dares esmolas aos desvalidos,
e por meu intermédio construíres fortalezas, mesquitas, [pontes,] de modo tal
que eu te auxiliasse na outra vida, mas tu me ajuntaste e acumulaste e em tuas
paixões me gastaste, e ao invés de me dares o justo agradecimento me
desagradeces, deixando-me agora para os teus inimigos. Por qual motivo me
insultas e amaldiçoas?”. Em seguida, o arcanjo da morte arrebatou o sopro vital
do rei antes que ele pudesse comer alguma coisa daqueles alimentos, e ele caiu
do trono e despencou morto.

A terceira história Yaz∑d Arruqåš∑,[242] que Deus esteja satisfeito com ele,
disse:
O ARCANJO DA MORTE E O REI TIRÂNICO
Havia entre os filhos de Israel um rei muito tirânico que, estando certo dia
sentado em seu trono, viu entrar-lhe pela porta da casa um homem de aparência
detestável e tamanho descomunal, e o medo do rei foi tamanho que ele se
levantou perguntando: “Quem és, ó homem? Quem te permitiu entrar em minha
casa?”. O homem respondeu: “Quem me permitiu foi o próprio dono da casa. Eu
sou aquele que nenhum secretário barra, e não necessito de permissão para ter
com reis e sultões, nem me amedronta nenhum tirano, nem ninguém pode
escapar do meu punho”. Ao ouvir tais palavras, o rei desabou desmaiado, as
mãos a tremer, e perguntou: “Tu és o arcanjo da morte?”. Respondeu: “Sim”.
Disse o rei: “Eu te peço, por aquele que te criou, que me concedas o prazo de um
dia, um único dia, para que eu me arrependa dos meus pecados, peça perdão ao
meu senhor e devolva aos donos o dinheiro que acumulei em meu tesouro, para
escapar ao terrível sofrimento de o haver acumulado”. Perguntou o arcanjo:
“Como poderia dar-te um prazo se os dias da tua vida já estão contados, e o teu
tempo, registrado?”. Disse o rei: “Dá-me nem que seja o prazo de uma hora!”.
Disse o arcanjo: “A hora que está na tua conta já se passou sem que tu
percebesses, e se encerrou enquanto estás aturdido. Já deste todas as tuas
respirações, não te restando mais nenhuma!”. O rei perguntou: “Quem estará
comigo quando me carregarem para a tumba?”. Respondeu o arcanjo: “Só estará
contigo a tua obra”. O rei disse: “Não tenho obra”. O arcanjo disse: “Não é de
estranhar. O teu descanso será o fogo, e o teu fim, a cólera do todo-poderoso”,
[243] e lhe arrancou o sopro vital; o rei despencou do trono e caiu no chão,
iniciando-se então a gritaria, cada vez mais alta, dos seus familiares.[244] No
entanto, se acaso soubessem quanta cólera de Deus ele receberá, chorariam e se
lamentariam ainda mais por ele.
SULAYMÅN E O HOMEM QUE QUIS FUGIR DO ARCANJO DA MORTE
A quarta história [Conta-se que] o arcanjo da morte foi certo dia ver Sulaymån,
filho de Dåwœd,[245] a paz esteja com ambos, pondo-se a encarar e olhar
longamente para um de seus companheiros, e depois saiu. O homem perguntou a
Sulaymån: “Ó profeta de Deus, quem era aquele homem que entrou aqui?”.
Sulaymån respondeu: “O arcanjo da morte”. O homem disse: “Temo que ele
queira extinguir o meu sopro vital. Livra-me, pois, da sua mão”. Sulaymån
perguntou: “Como eu poderia salvar-te?”. O homem respondeu: “Ordenando ao
vento que me carregue agora mesmo para a região mais extrema da Índia, e
quiçá ele se extravie de mim e não me localize”. Então Sulaymån ordenou e
imediatamente, sem delongas, o vento carregou aquele homem até a Índia. O
arcanjo da morte retornou e entrou na casa de Sulaymån, com ele esteja a paz,
que lhe disse: “Por que motivo olhaste longamente para aquele homem?”. O
arcanjo respondeu: “Eu estava admirado com ele por ter recebido a ordem de
extinguir-lhe a vida na Índia, da qual ele estava distante, até que, por
coincidência, o vento o carregou até lá a fim de que as coisas se dessem
conforme a determinação de Deus altíssimo”.
ALEXANDRE BICORNE ENTRE DOIS CRÂNIOS
A quinta história Conta-se que Alexandre Bicorne, com ele esteja a paz, passou
por um povo que, sem possuir nenhum bem terreno, escavava túmulos para
enterrar os mortos na porta de casa, varrendo tais túmulos de tempos em tempos,
limpando-os, visitando-os e adorando a Deus altíssimo sobre eles. Sua
alimentação não passava de ervas e plantas rasteiras. O Bicorne enviou a essa
gente dois homens para falar com o rei, que não os atendeu e disse: “Não tenho
precisão disso”. Então o Bicorne lhe disse: “Como estais? Não estou vendo
convosco ouro nem prata, nem nada dos bens do mundo!”. O rei respondeu: “É
que dos bens do mundo ninguém se farta jamais”. O Bicorne perguntou: “Por
que escavastes os túmulos…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

745ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o Bicorne perguntou ao rei: “Por que
escavais os túmulos diante de vossas portas?”. O rei respondeu: “Para que
estejam diante dos nossos olhos e os vejamos, renovando em nós a lembrança da
morte e arrancando dos nossos corações o amor ao mundo, que assim não nos
distrairá da devoção a Deus excelso e poderoso”. O Bicorne perguntou: “Por que
comeis ervas?”. Respondeu o rei: “Porque nos repugna transformar nossos
ventres em cemitério de animais, e porque o prazer da comida[246] não vai além
da laringe”. E, estendendo a mão para uma portinhola, dela retirou um crânio
humano, colocou-o diante de si e perguntou: “Ó Bicorne, acaso sabes quem era
este?”. O Bicorne respondeu: “Não”. Ele disse: “Este era um dos reis do mundo,
que oprimia os súditos e os injustiçava. Deus lhe extraiu o sopro vital e fez do
fogo a sua morada. Esta é a cabeça dele”. Em seguida, tornou a estender a mão e
puxou outro crânio humano, colocando-o diante de si e perguntando: “Acaso
reconheces este?”. O Bicorne respondeu: “Não”. O rei disse: “Era um rei justo e
piedoso com os seus súditos, amante das gentes de seu reino. Deus lhe extraiu o
sopro vital, instalou-o no paraíso e elevou-lhe a distinção”. Em seguida, o rei pôs
a mão na cabeça do Bicorne e perguntou: “Qual destas duas cabeças acreditas
que serás?”. Então o Bicorne chorou copiosamente e, estreitando aquele rei ao
peito, disse-lhe: “Se desejares permanecer na minha companhia eu te entregarei
os meus vizires e contigo dividirei o meu reino”. O rei respondeu: “Não
necessito disso, nem o desejo”. O Bicorne perguntou: “Por quê?”. O rei
respondeu: “Porque todas as criaturas são tuas inimigas por causa do dinheiro e
do poder. E todas são minhas amigas por causa da resignação e do ascetismo”.
[247] Então o Bicorne o deixou e seguiu o seu caminho.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] E agora te é necessário aprender as histórias do último
suspiro, como também deves ficar ciente de que os estúpidos que se deixam
seduzir pela dilatação de prazo não apreciam ouvir histórias sobre a morte, a fim
de que o amor pelo mundo não se esfrie em seus corações, nem lhes transtorne o
[prazer de] comer e beber.[248]
TRÊS HISTÓRIAS SOBRE O ÚLTIMO SUSPIRO
[Consta das crônicas: Quem muito se lembra da morte e das trevas da campa terá
como sepultura um dos jardins do paraíso. E quem olvida a morte e se distrai de
sua lembrança terá como sepultura um dos buracos do inferno. O enviado de
Deus, sobre ele estejam suas preces e paz, descrevia os túmulos dos mártires e a
recompensa dos bem-aventurados que morreram em luta contra os infiéis, e
então ¢Å’iša,[249] esteja Deus satisfeito com ela, perguntou: “Ó enviado de
Deus, quem não morre como mártir alcança a mesma recompensa que os
mártires?”. Respondeu o enviado, sobre ele esteja a paz: “Quem se lembra da
morte vinte vezes por dia terá a mesma recompensa e o mesmo estatuto dos
mártires”. E disse o enviado de Deus, com ele esteja a paz: “Lembrai-vos
deveras da morte, pois tal lembrança apaga os pecados e esfria o amor do mundo
nos corações”. E perguntou-se ao enviado de Deus, com ele esteja a paz: “Quem
são os mais arrojados e ajuizados dentre os homens?”. Respondeu: “Os homens
mais ajuizados são aqueles que mais se lembram da morte, e os mais arrojados
são os que fazem da morte algo bem-aventurado, com honra no mundo e
dignidade na outra vida”.
Para quem conhece o mundo tal como mencionamos, e repete no coração a
lembrança do último suspiro, as questões do mundo se lhe tornam mais fáceis, as
bases da árvore da fé se fortalecem em seu coração, crescendo e multiplicando-
se, bem como as ramificações daquela árvore, e Deus considerará adequada a
sua fé. E Deus, excelsa seja a sua força e exalçada a sua palavra, ilumina a visão
do sultão sábio para que veja o mundo e a outra vida tal como são, se esforce nas
questões atinentes à sua outra vida e trate bem os adoradores de Deus e a sua
criação, pois entre os seus súditos existe um milhão de criaturas, as quais, se ele
for justo com elas, irão defendê-lo, e aquele que tem como defensoras tantas
criaturas dentre os crentes estará a salvo do castigo no dia do Juízo Final, mas, se
ele as oprimir, todas serão suas contendoras, tornando-se o seu caso de extrema
dificuldade e enorme risco, pois, quando o advogado se torna contendor, o
assunto se complica.][250]
ADMOESTAÇÕES A UM LÍDER
História [Abœ] ¢Al∑ Bin Ilyås, comandante de N∑såpœr, certo dia foi à
presença do [xeique] Abœ ¢Al∑ Addaqqåq,[251] que Deus tenha dele
misericórdia, um dos maiores e mais sábios ascetas do seu tempo; ajoelhou-se
diante dele e disse: “Admoesta-me”. Disse o xeique: “Ó comandante, quero
fazer-te uma questão e pedir-te resposta sem hipocrisia”. O comandante
respondeu: “Responderei”. O asceta perguntou: “De que gostas mais, do
dinheiro ou do inimigo?”. O comandante respondeu: “Gosto mais do dinheiro do
que do inimigo”. O asceta disse: “Como então deixarás atrás de ti o que gostas e
tomarás para ti a companhia do inimigo de quem desgostas?”. Com os olhos
lacrimosos, o comandante chorou e disse: “É a melhor das admoestações, esta”.
O REI DA PÉRSIA E AS RUÍNAS
História Conta-se que o rei Kisrà Anœ ¸irwån certo dia fingiu estar doente para a
gente do seu reino, e ordenou a seus homens de confiança e secretários que
circulassem pelas suas diversas regiões à procura de um tijolo velho de alguma
aldeia em ruínas a fim de com ele medicar-se, informando-lhes que os médicos é
que lhe haviam prescrito tal remédio. Os seus homens partiram, circularam por
todo o país e retornaram dizendo: “Não encontramos em todo o reino um único
local em ruínas nem tijolo antigo”, e então Anœ ¸irwån ficou contente,
agradeceu ao deus dos deuses[252] e disse: “Com isso, eu só quis experimentar o
meu governo e testar os meus encarregados, a fim de saber se de fato restava no
reino algum local em ruínas para poder reconstruí-lo. Agora, que não resta local
que não esteja construído e próspero, completaram-se as questões relativas ao
reino, arrumou-se a situação geral e a prosperidade chegou ao nível da
perfeição”.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Fica sabendo, ó sultão, que a preocupação e o esforço
daqueles reis antigos era a prosperidade do país, pois eles estavam cientes de
que, quanto mais próspero for o governo, mais prósperos serão os súditos, mais
numerosos e mais gratos.
O FISCAL OPRESSOR E O POBRE PESCADOR
História Conta-se que havia entre os filhos de Israel um pescador que alimentava
a si, aos filhos e à esposa do fruto de sua pesca. Certo dia, enquanto pescava,
caiu-lhe na rede um grande peixe, o que o alegrou; pensou: “Levarei este peixe
ao mercado para vendê-lo e gastar o dinheiro com as crianças”. Então, topou
com um fiscal opressor que lhe perguntou: “Queres vender este peixe?”. O
pescador pensou: “Se eu disser que sim, ele o comprará por metade do valor”, e
disse: “Não o vendo”. Aquele fiscal opressor se enfureceu e, golpeando o
pescador na coluna com um pedaço de pau que carregava, tomou-lhe o peixe à
força, sem nada pagar.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar. Será
mais espantoso”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

746ª[253]
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o fiscal opressor golpeou o pescador na
coluna com um pedaço de pau que trazia consigo e lhe tomou o peixe à força,
sem nada pagar. Então o pescador rogou contra ele dizendo: “Meu Deus, me
fizeste pobre e fraco, e o fizeste forte e violento. Faze-me justiça contra ele já
neste mundo, pois não tenho paciência até a outra vida”. Nesse ínterim, aquele
fiscal se dirigiu para casa, entregou o peixe à esposa, ordenando-lhe que o
assasse, e quando ela terminou de assá-lo colocou-o diante dele para que o
comesse. Então o peixe abriu a boca e mordeu o dedo do fiscal com tanta força
que o seu coração quase parou, e com tanta violência que lhe abalou a segurança
e o vigor. Ele foi ao médico queixando-se da dor, da situação em que se
encontrava, e lhe contou o que sucedera. O médico lhe disse: “Esse teu dedo
deve ser amputado para evitar que a dor se espalhe para o resto da mão”, e lhe
amputou o dedo, mas a dor se transferiu para a mão, mais intensamente, e ele
retornou ao médico, que lhe disse: [“A mão deve ser amputada na altura do pulso
para evitar que a dor se espalhe para o antebraço”. Então o antebraço começou a
doer, e o médico lhe disse:] “O teu antebraço deve ser amputado para evitar que
a dor se espalhe até o ombro”, e amputou-lhe o antebraço; como a dor então
fosse até o ombro, o fiscal saiu correndo do lugar onde estava, implorando a
Deus que se descobrisse o que o atingira; topou com uma árvore, colocou-se sob
a sua sombra e foi vencido pelo sono, vendo então em sonho alguém a lhe dizer:
“Pobre coitado, até quando os teus membros serão amputados? Vai e agrada o
teu litigante”. O fiscal acordou de seu sono, pensou e disse: “Eu tomei o peixe à
força e causei dor ao pescador de tanto bater nele. Foi aquele peixe que me
mordeu”.[254] O fiscal então se levantou, foi até a cidade, procurou o pescador
e, ao encontrá-lo, colocou-se na frente dele, pediu perdão, deu-lhe um pouco do
seu dinheiro e se penitenciou dos seus atos. O litigante aceitou e de imediato a
dor cessou. Naquela noite, o fiscal dormiu em sua cama e se penitenciou
sinceramente a Deus altíssimo. No dia seguinte, com sua misericórdia e poder,
Deus corrigiu a sua situação e lhe devolveu a mão tal como era. Mœsà, a paz
esteja com ele, recebeu a seguinte mensagem divina: “Ó Mœsà, juro por meu
poder e magnificência que, não tivesse aquele homem agradado o seu litigante,
eu o teria feito sofrer por toda a vida”.
MŒSÀ E A JUSTIÇA DIVINA
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Mœsà, a paz esteja com ele, disse numa das preces que
fazia a Deus em certa montanha: “Meu Deus, mostra-me a tua justiça e
equanimidade”. Deus disse: “Mœsà, tu, homem sério e corajoso, não consegues
ter paciência”. Mœsà disse: “Conseguirei ter paciência com a tua ajuda”. Deus
disse: “Vai até a fonte tal, esconde-te nas proximidades e vê o meu poder e
conhecimento do que está oculto”.[255] Então Mœsà, a paz esteja com ele,
dirigiu-se até a fonte, subiu numa colina situada defronte dela e se escondeu. De
repente, um cavaleiro chegou, descavalgou, abluiu-se com água da fonte, bebeu,
tirou do cinturão um alforje com mil dinares de ouro, colocou-o ao seu lado,
rezou e montou, esquecendo o alforje naquele lugar, e foi-se embora. Em
seguida veio um garoto que bebeu da fonte, pegou o alforje e foi-se embora.
Depois do garoto veio um velho cego que bebeu da água e se pôs a rezar. Nesse
momento, o cavaleiro se lembrou do alforje e imediatamente retornou à fonte,
onde encontrou o velho cego, a quem abordou dizendo: “Eu tinha um alforje
com mil dinares de ouro, e enquanto me lavava nesta fonte coloquei-o aqui.
Ninguém veio a este lugar com exceção de ti”. O velho disse: “Eu sou cego!
Como poderia enxergar o teu alforje?”. Enfurecido com a resposta, o cavaleiro
desembainhou a espada e golpeou o cego, matando-o, mas ao revistá-lo nada
encontrou com ele, deixando-o então e indo-se embora.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Mœsà, a paz esteja com ele, disse: “Meu Deus, já se
esgotou a minha paciência e tu és justo; ensina-me, pois, o porquê dessas
situações”. Então Jibrå’∑l, a paz esteja com ele, pousou e disse: “Mœsà, o
criador, excelsa seja a sua força, te diz: ‘Eu conheço o mundo dos mistérios e
conheço o que não conheces. Quanto ao garoto que levou o alforje, ele levou o
que era seu direito, pois o pai dele havia sido empregado daquele cavaleiro, e os
proventos que este lhe devia equivaliam ao valor existente no alforje;[256]
agora, os direitos do garoto chegaram até ele. Quanto ao velho cego, antes de
cegar ele havia matado o pai daquele cavaleiro, que agora se vingou dele. Assim,
o direito chegou a quem era devido. Portanto, nossa justiça e equanimidade são
exatas, como viste’”. Ao tomar conhecimento daquilo, Mœsà ficou perplexo e
pediu perdão.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Trouxemos à tona essa história para que o ajuizado
saiba que nada se oculta a Deus, que dá justiça ao oprimido neste mundo.[257]
Contudo, nós somos negligentes, e quando nos advém a desgraça não sabemos
de onde veio.
A FELICIDADE SEGUNDO ALEXANDRE
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Perguntou-se a Alexandre Bicorne: “No teu reino, qual é
a coisa que te deixa mais feliz?”. Ele respondeu: “Duas coisas, sendo a primeira
a justiça e equanimidade, e a segunda, recompensar quem me fez um bem
fazendo-lhe um bem maior ainda”.
A JUSTIÇA DO REI E A DOS SÚDITOS
História Ocorreu no tempo de Kisrà Anœ ¸irwån, o rei justo, que um homem
comprou terras de outro homem e, nelas encontrando um tesouro, foi célere até o
vendedor e lhe disse: “O tesouro é teu!”. Respondeu o vendedor: “Eu só te vendi
a terra, e o que nela encontraste é teu. Parabéns a ti!”. Disse o comprador: “Não
o quero nem o ambiciono”, e então ambos levaram a questão ao rei justo Kisrà
Anœ ¸irwån, o qual, muito contente com aquilo, perguntou-lhes: “Porventura
tendes filhos?”. Um deles respondeu: “Tenho um filho”, e o outro respondeu:
“Tenho uma filha”. Disse Kisrà: “Eu gostaria que houvesse ligação e parentesco
entre vós, e que para tanto casásseis o rapaz com a moça e gastásseis este tesouro
com os preparativos do casamento, a fim de que o tesouro pertença a ambos e
aos vossos filhos”. Então eles procederam conforme essa ordem, ficando
mutuamente satisfeitos com o que ele determinara. Se acaso esses dois homens
vivessem no tempo de um rei injusto, cada qual teria dito: “O tesouro é meu!”,
mas, cientes de que o seu rei era justo, procuraram a veracidade e preferiram a
verdade à falsidade. Já diziam os sábios que o rei é como o mercado…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

747ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que os sábios já diziam que o rei é como o
mercado, para o qual cada um leva as mercadorias demandadas e não as
recusadas; assim, o que sabidamente se recusa não se leva ao mercado. Os dois
homens que [encontraram o tesouro e] foram levar a disputa ao sultão estavam
cientes de que a austeridade, a justiça e a veracidade lhe eram caras, e de que
com ele a verdade era demandada e a falsidade, recusada, sendo esse o motivo
de lhe levarem a questão e a exporem.[258] Agora nestes nossos tempos,
contudo, tudo quanto corre pelas mãos de nossos líderes e nas línguas de nossos
governantes é nosso merecido castigo, pois, tal como nossas obras são vis, e
feias as nossas ações, traiçoeiras e desleais, os nossos líderes são opressores
despóticos e tiranos hostis. Tal como sois são os vossos governantes.[259] Essa
história mostra como é certo que as ações das criaturas remetem às ações dos
reis. Acaso não vês que, quando um país é descrito como próspero, os seus
habitantes vivem em segurança, conforto e júbilo? Isso é um indicativo do
proceder do rei[260] e de suas boas intenções para com os súditos, mas não
provém deles. Portanto, está correto o que disseram os sábios: “As pessoas são
mais parecidas com os seus reis do que com o seu próprio tempo”.[261] E consta
nas crônicas: “As pessoas praticam a religião do seu proprietário”.[262]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Um [dos resultados] das políticas de Anœ ¸irwån era
que se algum homem deixasse um fardo de ouro [onde quer que fosse] ninguém
o tocava com a mão nem o retirava do lugar, até que o dono viesse e o levasse. E
Yœnån, o vizir de Anœ ¸irwån, disse-lhe certo dia: “Não faças companhia aos
malvados,[263] pois assim destruirás o teu governo e empobrecerás[264] os teus
súditos, e nesse momento o teu dinheiro[265] se tornará ruína, o teu sultanato,
pobreza, e o teu nome será enxovalhado pelo mundo”. Então Anœ ¸irwån
escreveu aos seus administradores provinciais: “Se eu for informado de que
restou uma única terra em ruínas — com exceção dos pântanos que não aceitam
plantação —, crucificarei o administrador de tal terra”. A ruína da terra provém
de duas coisas: a primeira é a incapacidade do sultão, e a segunda, a sua
injustiça. Os reis daqueles tempos se orgulhavam da prosperidade [dos seus
reinos] e disputavam ciumentamente entre si a agregação do reino.[266]
A PÉRSIA E AS ALCAPARRAS
História O rei do Hindustão enviou a Anœ ¸irwån um mensageiro para dizer-lhe:
“Detenho a primazia do reinado sobre ti; envia-me, portanto, tributos do teu
governo”. Anœ ¸irwån ordenou que o mensageiro fosse hospedado e no dia
seguinte reuniu os principais do governo e os notáveis do reino, permitiu que o
mensageiro entrasse e lhe disse: “Ouve a resposta à tua mensagem”. Ordenou
que se trouxesse uma caixa, abriu-a, tirou dela uma caixa menor da qual retirou
um punhado de alcaparras,[267] entregou-o ao mensageiro e perguntou: “Existe
disto em vosso país?”. O mensageiro respondeu: “Sim, temos uma grande
quantidade disso”. Anœ ¸irwån lhe disse: “Volta, portanto, e dize ao rei da Índia:
‘Deves fazer prosperar o teu país, que está em ruínas. E depois disso não
alimentes a ambição[268] de [conquistar] um governo próspero, pois se acaso
percorreres todas as regiões por mim governadas à procura de uma única raiz de
alcaparreira [não encontrarás. E, se acaso eu ouvir que nas terras por mim
governadas existe uma única raiz de alcaparreira], crucificarei o administrador
da região”. O rei deve trilhar o caminho dos reis que o precederam, agir
conforme a tradição por eles seguida quanto [à prática do] bem, e ler os livros
contendo as admoestações e recomendações feitas a eles, que viveram mais
tempo, tiveram mais experiências e gozaram de maior consideração, sabendo
distinguir o bom e o ruim, e discernir o manifesto do oculto. E tão boa era a
conduta de Anœ ¸irwån…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

748ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que tão boa era a conduta de Anœ ¸irwån
que ele lia os livros dos antigos, exigia ouvir as suas crônicas e agia conforme [o
que consta nas] histórias [que se contam a respeito deles] e o seu modo de
proceder, mas os reis deste nosso tempo evitam agir assim.[269]
O ELOGIO DOS ANTIGOS
História Certo dia, o justo [Kisrà] Anœ ¸irwån pediu ao seu vizir [Yœnån]:
“Informa-me a respeito da conduta dos antigos”. O vizir perguntou: “Queres que
eu os elogie por três coisas, duas, ou uma só?”. Respondeu o rei: “Elogia-os por
três coisas”. Disse o vizir: “Não lhes encontrei, em uma atividade ou obra
sequer, mentiras, nem vi da parte deles nada que fosse ignorância, e em nenhuma
situação os vi coléricos”. Disse o rei: “Elogia-os agora por duas coisas”. Disse o
vizir: “Sempre acorriam para a prática do bem, e se precaviam da prática do
mal”. Disse o rei: “Elogia-os por uma coisa só”. Disse o vizir: “O seu poder e
coragem se exerciam mais sobre si mesmos do que sobre os outros”. Então Anœ
¸irwån pediu uma taça e disse: “Um brinde aos generosos que virão depois de
nós e se apossarão de nossa coroa e trono, e se recordarão de nós tal como nos
recordamos de quem nos precedeu. O mais miserável dentre os homens é quem
se ilude com o seu reino, e vive longamente no mundo[270] sem saber como
nele viver, fazendo-o[271] mediante fadigas, e então o acomete na outra vida o
arrependimento sempiterno e o sofrimento eterno. Porém, aqueles reis antigos,
com o seu esforço em fazer prosperar o mundo, tinham como objetivo que, após
a morte, lhes permanecesse a boa memória pelo correr dos dias e das eras”.[272]
TRÊS REIS NA VINHA
História Anœ ¸irwån tinha uma [vinha conhecida como hazår][273] na qual
certo dia esse rei justo se reuniu com os seus hóspedes Qayßar, rei dos
bizantinos, e Qafqœrj∑n, rei do Hindostão,[274] e então cada um deles proferiu
a sua palavra. Disse Qayßar: “Nada neste mundo é melhor que a prática do bem,
a obra piedosa e a boa recordação, pois quem detém tudo isso será sempre
lembrado, e se dirá sobre ele após a sua morte: ‘Por que nós não somos como
ele?’”. Disse Anœ ¸irwån: “Vinde, pratiquemos nós o bem e nele pensemos”.
Disse Qayßar: “Quando eu penso no bem, pratico o bem, e, quando eu faço o
bem, atinjo o meu propósito”. Disse Qafqœrj∑n: “Que Deus altíssimo de nós
afaste o pensamento que ao se manifestar nos envergonha, ao ser por nós
lembrado nos acabrunha e ao ser ocultado nos deixa arrependidos”.[275]
Perguntou Qayßar a Anœ ¸irwån: “Qual é a coisa de que mais gostas?”.
Respondeu: “O que mais gosto é atender a necessidade de quem me quer para
isso”. Então Qayßar disse: “E eu gosto de não cometer erros para não ter medo”.
Vê, portanto, como eles procediam com os seus súditos, ó sultão do universo.
[276]
C
UMAR E A FAMÍLIA ESFOMEADA
História Disse Zayd Ibn Aslam,[277] esteja Deus satisfeito com ele:
Certa noite, vi [o califa] ¢Umar Ibn AlΔa††åb, esteja Deus satisfeito com ele,
circulando com os vigias, e então lhe perguntei: “Acaso me permites que te
acompanhe?”. Ele respondeu: “Sim”. Quando saímos de Medina, avistamos um
fogo ao longe, dissemos: “Talvez algum viajante tenha parado por ali”, e
rumamos naquela direção. Vimos então uma viúva com três crianças pequenas a
chorar, e para as quais ela colocara uma panela no fogo dizendo: “Meu Deus,
faze-me justiça contra ¢Umar e toma dele os meus direitos, pois ele está saciado
e nós, esfomeados”. Ao ouvir aquilo, ¢Umar deu um passo adiante, saudou a
mulher e lhe perguntou: “Acaso permites que eu me aproxime de ti?”. Ela
respondeu: “Se fores te aproximar para o bem, sim, em nome de Deus”. Então
¢Umar, esteja Deus satisfeito com ele, se aproximou e a indagou sobre a sua
condição e a de seus filhos. Ela respondeu: “Viemos, eu e meus filhos, de um
lugar distante,[278] todos esfomeados, e por causa deles estou enormemente
preocupada; e tão grandes são nossa fome e esgotamento que eles não
conseguem dormir à noite”. ¢Umar perguntou: “O que há nessa panela?”. Ela
respondeu: “Coloquei água para que eles se distraiam, imaginem tratar-se de
comida, e assim ganhem paciência e durmam”.
Prosseguiu Zayd Ibn Aslam:
Então ¢Umar, esteja Deus satisfeito com ele, voltou a Medina, foi à loja de um
vendedor de trigo e comprou um saco cheio; depois, foi ao açougueiro e
comprou [carne gorda,[279] colocou tudo nas costas, carregou e foi até a mulher
e as crianças]. Eu lhe disse: “Ó comandante dos crentes, dá-me o fardo para que
eu o carregue por ti”, e ele me respondeu: “Se neste mundo o carregares por
mim, quem me carregará os pesos e erros no dia do Juízo Final? Quem intervirá
entre mim e os rogos daquela mulher contra mim?”. E continuou caminhando e
chorando até chegar à mulher, que lhe disse: “Que Deus te dê, por nós, a melhor
recompensa”. ¢Umar pegou um tanto de trigo…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

749ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Zayd disse:]
¢Umar pegou um tanto de trigo, outro tanto de carne, colocou tudo na panela e
acendeu o fogo, soprando-o toda vez que queria se apagar, com as cinzas voando
para todas as partes do seu rosto,[280] até que a panela ferveu e se cozinhou a
comida, que ele colocou na tigela e deu de comer às crianças e à mulher, a quem
ele disse afinal: “Ó mulher, não rogues contra ¢Umar, pois ele não tinha
informações a respeito de vós”.
QUATRO HISTÓRIAS DE CUMAR IBN CABDULCAZ„Z
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Conta-se que perguntaram ao responsável pelo tesouro
público: “Por acaso [o califa] ¢Umar [Ibn ¢Abul¢az∑z] se refestelava com o
tesouro público?”. Ele respondeu: “No início [do seu califado], quando ele não
tinha nada para comer, pegava um pouco para a comida, mas quando ganhava
alguma coisa devolvia o dinheiro ao tesouro”.[281] Vê, ó sultão, as notícias
sobre ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z, pois nenhum dos omíadas era como ele: o único
contra o qual não se rogava, pois era justo, piedoso, generoso e de boa conduta.
História No tempo de ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z ocorreu uma terrível seca. Os
beduínos lhe enviaram uma delegação e escolheram um dos membros para falar
com ele. O homem disse: “Ó comandante dos crentes, viemos a ti devido a uma
enorme premência, pois as nossas peles já secaram sobre os nossos corpos pela
falta de comida. Nosso conforto está no tesouro público, que fatalmente
pertencerá a uma dessas três partes: ou a Deus altíssimo, ou aos adoradores de
Deus, ou a ti. Se pertencer a Deus, ele não precisa disso; se pertencer aos
adoradores de Deus, entrega-o a eles; se pertencer a ti, dá-o de esmola a nós,
pois Deus altíssimo recompensa quem dá esmolas”. Ao ouvir aquilo, o califa,
com os olhos rasos d’água, ordenou que as suas necessidades fossem atendidas
com dinheiro do tesouro público, e disse ao beduíno, que fazia menção de se
retirar: “Ó homem nobre, do mesmo modo que os adoradores de Deus
transmitiram a mim as suas necessidades e tu me fizeste ouvir as palavras deles,
transmite as minhas palavras e eleva a minha necessidade a Deus poderoso e
excelso”. Então o beduíno voltou o rosto para o céu e disse: “Meu Deus, com o
teu poder e magnificência, faze por ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z o mesmo que ele
fez pelos teus adoradores”. Mal terminou seu rogo, ergueram-se nuvens e choveu
torrencialmente, e com a chuva veio um grande granizo que caiu sobre uma telha
e se quebrou, dele saindo um papel no qual estava escrito: “Este é um alvará de
Deus poderoso a ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z, livrando-o do fogo”.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Conta-se que, certa noite, ¢Umar Ibn ¢Abul¢az∑z lia
alguns relatos dos súditos à luz de um lampião quando veio um de seus criados
falar-lhe sobre um fato ligado à sua casa. ¢Umar então lhe disse: “Apaga o
lampião e depois me conta, porque esta gordura provém do tesouro público dos
muçulmanos e não deve ser usada senão nas questões atinentes aos
muçulmanos”. É assim que se dão a prevenção e o êxito do sultão: se ele for
justo.
História ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z tinha[282] três filhas que na véspera do
feriado da peregrinação vieram dizer-lhe: “Amanhã é feriado e as mulheres e
filhas dos súditos nos censuram dizendo: ‘Vós sois filhas do comandante dos
crentes mas vos vemos malvestidas,[283] usando coisa pior que roupas
brancas’”, e choraram. Com o peito opresso, o califa mandou chamar o seu
criado encarregado do tesouro público e lhe disse: “Paga-me adiantado o salário
de um mês”. O encarregado respondeu: “Ó comandante dos crentes, vais levar
do tesouro público dos muçulmanos o empréstimo de um mês adiantado? Vê
antes se ainda tens um mês de vida e então recebe adiantado o teu salário!”.
Perplexo, ¢Umar lhe disse: “É muito bom o que disseste, rapaz. Que Deus te
parabenize”, e em seguida disse às filhas: “Recolhei vosso desejo, pois ninguém
entra no paraíso sem sacrifícios”. Se os líderes assim procedem, então sua corte
e servidores seguirão o mesmo método. A justiça perfeita é que faças equivaler o
anônimo que ninguém conhece ao respeitável dono de prestígio, colocando-os
no mesmo patamar durante os litígios e olhando-os com o mesmo olhar, sem
dares preferência a um sobre o outro com base na pobreza ou na riqueza, porque
a pedra preciosa e a argila têm um só preço na outra vida, e ninguém ajuizado irá
se queimar no fogo [por causa da respeitabilidade alheia].[284] Se um homem
fraco tiver litígio contra algum sultão, este deve sair da sua sala real e agir
conforme o decreto de Deus altíssimo a esse respeito, fazendo justiça àquele
homem fraco, satisfazendo-o, não o prejudicando nem se envergonhando da
verdade; deve agir conforme as palavras de Deus altíssimo: “Deus ordena a
justiça e a benevolência, e a concessão da esmola, e a doação aos parentes, e
adverte contra enormidades, coisas condenáveis”.[285] E isso na verdade quer
dizer que o rei, se acaso tiver direitos sobre alguém…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

750ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que isso na verdade quer dizer que o rei, se
acaso tiver direitos sobre alguém, deve perdoá-lo e concedê-los como dádiva,
ordenando aos seus encarregados que lhe imitem o exemplo e ajam conforme o
seu proceder, a fim de não ser questionado sobre os seus súditos.[286] A situação
é dessa forma. Fica sabendo disso.
ORDENS SÃO ORDENS
História Conta-se que Ismå¢∑l Ibn A¬mad, líder de ¿uråsån, hospedou-se em
Merv,[287] e o seu protocolo, em todo lugar que visitava, era ordenar que o
arauto anunciasse, entre militares e soldados, que eles não tinham nada de se
meter com os súditos. Então, sucedeu que ali um de seus ajudantes invadiu uma
plantação de melancias, delas colhendo umas poucas. O dono da plantação foi
até as portas do chefe gritar por socorro; então o chefe ordenou que o auxiliar
fosse trazido à sua presença e lhe perguntou: “Por tua causa devemos algo àquele
homem?”. O auxiliar respondeu: “Sim”. O chefe perguntou: “Por acaso não
ouviste o arauto?”. O auxiliar respondeu: “Ouvi”. O emir perguntou: “Por qual
motivo prejudicaste os meus súditos?”. O auxiliar respondeu: “Errei”. O emir
disse: “Não podemos entrar no fogo por causa do teu erro”, e ordenou que a sua
mão fosse decepada.
OS REIS, A JUSTIÇA E A TIRANIA
História[288] No livro “A conduta dos reis”, conta-se que Ismå¢∑l [Ibn A¬mad]
Assåmån∑[289] costumava se dirigir à região de Kawkabån∑, fazendo a prece
da tarde na cidade de Kundur, onde ordenava ao arauto que anunciasse ao povo
[a sua presença para a audiência]; mandava que fossem retirados os secretários e
afastados os porteiros, e pedia a Deus o acerto, a fim de que viesse a ele quem
tinha alguma queixa de injustiça; o queixoso parava diante do tapete [de reza] e
lhe dirigia a palavra, tendo a sua demanda satisfeita; ele julgava entre os
querelantes como um árbitro, até que se acabassem as demandas, quando então
ele se levantava de onde estava, comprimia a face[290] com as mãos e a voltava
para o céu dizendo: “Meu Deus, este é o meu esforço no qual gastei toda a
minha energia. Tu sabes os segredos, sabes o meu propósito, ao passo que eu não
sei qual dos teus adoradores prejudiquei, nem com qual deles fui injusto — eu
que nem sequer fui justo com um dos meus companheiros. Perdoa-me, meu
Deus, por aquilo que eu não conheço”.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] E tão puros eram os seus propósitos, e tão belo o seu
caráter, sem mácula, que a sua estrela se elevou, seus soldados chegando ao
número de um milhão[291] de cavaleiros equipados com armamentos [e
protegidos por ferro]. Com aquela justiça e equanimidade, e com a bênção que
lhe carreavam, Deus altíssimo lhe deu a vitória contra ¢Amrœ Ibn Allay¥,[292] a
quem ele prendeu, e a conquista de ¿uråsån. Então ¢Amrœ lhe enviou uma
mensagem da cadeia: “Tenho muito dinheiro em ¿uråsån, e abundantes tesouros.
Entregar-te-ei tudo se me soltares”. Quando ouviu aquilo, Ismå¢∑l riu e disse:
“Até agora ¢Amrœ Ibn Allay¥ não se corrigiu; quer pendurar no meu pescoço as
injustiças que cometeu e os crimes que perpetrou, a fim de se livrar do seu fardo
de iniquidades na outra vida! Dizei-lhe que não tenho precisão do seu dinheiro”.
Em seguida, retirou-o da cadeia e o enviou como mensageiro[293] a Bagdá,
ganhando então vestes honoríficas e honrarias do comandante dos crentes. Ismå
¢∑l se instalou em seu reino em ¿uråsån, tranquilo e em boa situação, e o reino
permaneceu nas mãos dos samânidas por cento e trinta anos. E, quando o poder
se transferiu para os pequeninos dessa dinastia, e para os garotos, eles oprimiram
o povo e rechaçaram a verdade.[294]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Conta-se nas crônicas que Dåwœd, com ele esteja a
paz, olhava certo dia para o céu quando viu algo como farelos caindo no ar, e
perguntou: “O que é isso, meu Deus?”, e então Deus lhe enviou a seguinte
inspiração: “Esta é a maldição que faço descer sobre as casas dos tiranos,
Dåwœd”.
História [Quando] Anœ ¸irwån se assenhoreou do reino, o seu sábio vizir
Yœnån escreveu-lhe o seguinte: “Fica sabendo, ó rei, que as questões do rei se
dividem em três partes: se ele é equânime com os seus súditos e não exige que
eles sejam consigo, este é um mérito, e o seu nível, o mais elevado; se ele pratica
a equanimidade com os seus súditos e a cobra deles para consigo, isso é justiça,
e o seu nível, médio; se ele exige dos seus súditos equanimidade para consigo e
não é equânime com eles, esse é o nível mais baixo de qualidade.[295] Olha, ó
rei, estas três partes e escolhe aquela que quiseres. E eu sei que o rei escolherá a
primeira, tal como disse o poeta na seguinte poesia:

‘Quem justiça faz aos outros e não a exige
deles para si, magnânimo, esse é o comandante;
quem quer justiça para os outros tal e qual
a quer para si mesmo, esse hoje não tem igual;
e quem quer que lhe façam justiça, mas aos
outros não a faz, esse é o desprezível abjeto’”.

Admoestação e conselho ¸ab∑b Bin ¸∑ba[296] foi ter com [o califa]
Almahd∑[297] e lhe disse: “Ó comandante dos crentes, Deus te deu o mundo!
Dá aos teus súditos, então, uma parte do que é bom em teu viver”. O califa
perguntou: “E o que eu deveria dar aos súditos?”. Respondeu ¸ab∑b: “Justiça,
pois quando os súditos dormem seguros em relação a ti, tu dormirás em
segurança na tua sepultura. Acautela-te, comandante dos crentes, de uma noite
que não será sucedida por dia, e de um dia que não será sucedido por noite! Sê
justo o quanto puderes, pois exercendo a justiça serás recompensado com justiça,
e exercendo a injustiça serás recompensado com injustiça. E ornamenta a tua
alma com a piedade, pois no dia da Ressurreição ninguém te emprestará o seu
ornamento, tal como disse o poeta na seguinte poesia:

‘Embeleza e ornamenta a tua alma com a piedade:
no dia da Ressurreição o piedoso a ninguém a emprestará;
[a mão que faz favores não se desgraça, então a mantenha,][298]
que muito ganharás de um cabedal que não se esgota’”.
KISRÀ E A PRESERVAÇÃO DO REINO
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Chegou ao rei Kisrà Anœ ¸irwån uma carta de Qayßar,
rei de Bizâncio, na qual lhe perguntava: “Com que meios se dá a permanência do
reino?”. Então Kisrà lhe escreveu como resposta: “Não determino nada com
desconhecimento, e, quando dou uma ordem, completo-a e não a abandono por
medo ou a rogo. Não altero nada do que ordenei”. E perguntou-se ao sapiente
Aristóteles…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

751ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
QUEM MERECE SER REI, SEGUNDO ARISTÓTELES
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se perguntou ao sapiente Aristóteles: “É
aceitável que alguém além de Deus altíssimo se declare ‘rei’?”. Ele respondeu:
“Quem reunir as seguintes características, ainda que [isoladas] sejam comuns: o
saber, a justiça, a liberalidade, a benevolência, a piedade e o que lhes
corresponde, pois os reis somente o eram graças à sombra divina, a luz da
bondade, a pureza de alma, amplitude de intelecto e saber, antiguidade de
governo, dignidade de origem. Por isso eram reis e sultões”. Quanto ao sentido
de suas palavras “sombra de Deus”, ele aparece em dezesseis coisas:[299]
intelecto, saber, agudez de inteligência, compreensão das coisas, imagem
perfeita, bravura, coragem, sagacidade, ousadia, reflexão, bom caráter,
equanimidade para com o fraco, demonstração de liderança,[300] abnegação,
adulação no momento adequado, bom parecer, administração dos problemas,
leitura constante das crônicas históricas, preservação do segredo[301] dos reis,
exame das situações e obras nas quais se basearam e conforme as quais agiram
os reis, pois este mundo não passa do resto dos governos dos antigos que o
dominaram, morrendo e se extinguindo em seguida, e tornando-se, para as
pessoas, memória por meio da qual cada um é lembrado graças às suas ações.
Tanto este mundo como a outra vida são tesouros, sendo o tesouro deste mundo
o bom elogio e a boa memória, e o tesouro da outra vida, a obra pia e a obtenção
de recompensa.
Sabedoria Alexandre perguntou ao sapiente Aristóteles: “O que é melhor para
os reis, coragem ou justiça?”. Respondeu: “Se o sultão for justo, não necessitará
de coragem”.
HISTÓRIAS DE ALEXANDRE
Sabedoria Alexandre cavalgava com um grupo dos que faziam parte do seu
governo quando lhe disse um dos almocadéns do exército: “Deus altíssimo te
deu um reino enorme. Toma, pois, muitas mulheres para que aumentem os teus
filhos, e por meio deles serás lembrado depois de partires”. Respondeu
Alexandre: “Após a sua partida, os homens não são lembrados pela abundância
de filhos, mas sim pela boa conduta e justiça da lei. Ademais, para um homem
que derrotou todos os homens do mundo não é aceitável ser derrotado pelas
mulheres”.
História Alexandre dispensou um de seus encarregados de um cargo
importante e grave, incumbindo-o de um assunto insignificante e desprezível.
Até que, certo dia, aquele homem foi vê-lo e Alexandre lhe perguntou: “Como
vês o teu trabalho?”. O homem respondeu: “Prolongue Deus a vida do rei! Não
são os homens que dignificam os trabalhos, mas os trabalhos que dignificam os
homens, e isso mediante a boa conduta, a equanimidade, a prática da justiça e o
evitar o desperdício”. Então Alexandre considerou boas as suas palavras e o
devolveu ao cargo anterior.
MÁXIMAS E SENTENÇAS (II)

Disse Sócrates: “O mundo é estruturado na justiça. Quando advém a injustiça, o
mundo não se equilibra nem se firma”.
Sabedoria Perguntou-se a Buzurjmihr:[302] “O que faz aparecer a justiça do
rei?”. Ele respondeu: “Três coisas: a segurança das regiões fronteiriças, a
dignificação e o fortalecimento dos sábios, e o amor aos virtuosos, pois, se a
política do sultão for temível, as gentes da fronteira, devido ao medo, não
divulgarão as benesses que ele distribui, ainda que muitas, ao passo que a
segurança faz com que as benesses que ele distribui se divulguem, ainda que
poucas, tal como consta nas crônicas”.[303]
O PEREGRINO, A MISÉRIA E A TIRANIA
História Conta-se que um homem se desgarrou da caravana de peregrinos e se
perdeu no caminho, vendo-se então no meio da areia; caminhou até chegar a
uma tenda na qual avistou uma velha, e à entrada, um cão dormindo. O
peregrino cumprimentou a velha e lhe pediu comida, ao que ela respondeu: “Vai
para aquele vale e caça uma quantidade de cobras suficiente para ti, a fim de que
eu as asse e te dê de comer”. O homem disse: “Não sei caçar cobras”. A velha
disse: “Caçarei contigo. Nada temas”, e saiu na sua frente, seguida por ele e pelo
cão. Após caçarem uma quantidade suficiente de cobras, voltaram e a velha pôs-
se a assá-las, não vendo o peregrino mais remédio que comer aquilo, pois temia
morrer de fome. Então comeu, pediu água e a velha lhe disse: “Vai até aquela
fonte e bebe dela”. Ele foi até a fonte, onde encontrou água salobra, mas não viu
saída senão beber, e foi o que fez, retornando em seguida até a velha, a quem
disse: “Estou de fato espantado contigo, ó velha, com a tua residência neste local
e com essa tua alimentação”. A velha perguntou: “Como é a situação em vosso
país?”. O homem respondeu: “Em nosso país existem casas espaçosas e
agradáveis…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

752ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o peregrino disse: “Em nosso país
existem casas espaçosas e agradáveis, frutas maduras e água potável, comida
saborosa e carnes gordas. As benesses são muitas”. A velha disse: “Já ouvi isso
tudo. Mas conta-me, acaso ficais sob o jugo de um sultão que pratica injustiça
contra vós? Se cometeis delitos, confisca os vossos cabedais, vos aniquila e
expulsa de vossas casas e propriedades?”. O homem respondeu: “Às vezes isso
acontece”. A velha disse: “Portanto, essa comida agradável e essa bela vida se
tornam, com a injustiça e a iniquidade, veneno agudo, ao passo que a nossa
comida, com a segurança, se torna antídoto benéfico. Acaso não ouviste que as
mais excelsas benesses, após a benesse do islã, são a saúde e a segurança, com a
justiça da política do sultão?”.
Portanto, o sultão deve usar a política, pois ele é o califa de Deus na terra, e
sua venerabilidade deve ser tanta que os súditos, ao verem-no, temam-no mesmo
que ele esteja distante. O sultão deste nosso tempo deve ter a mais leal
política[304] e a mais perfeita venerabilidade, porquanto as pessoas deste nosso
tempo não são como os antigos: trata-se de gente descarada e vulgar,[305] gente
arruaceira e turbulenta. Se o sultão — Deus altíssimo nos livre! — for débil ou
não tiver política, isso sem dúvida será motivo para a ruína do país, e a falha
atingirá tanto a fé como o mundo. Diz-se nos provérbios: “Injustiça de cem anos
do sultão, mas não injustiça de um só ano de súdito contra súdito”. Se os súditos
forem iníquos, Deus lhes imporá um sultão iníquo e um rei implacável.
MÁXIMAS E SENTENÇAS (III)
História Al¬ajjåj Bin Yœsuf[306] recebeu certo dia uma história na qual estava
escrito: “Teme a Deus e não sejas tão injusto com as pessoas”, e então ele, que
era eloquente, subiu ao púlpito e disse: “Ó gente, Deus me deu poderes sobre vós
devido às vossas obras, e se acaso eu morrer não vos livrareis da injustiça com
essas obras tão más, pois Deus altíssimo tem muitos iguais a mim, e se acaso não
for eu, virá algum outro pior ainda, tal como disse o poeta:

‘Não existe mão sobre a qual não esteja a mão de Deus,
nem existe opressor ao qual não se imporá outro opressor’”.

Perguntou-se a Buzurjmihr: “Qual rei é mais puro?”. Ele respondeu: “Aquele
com o qual os puros se sentem seguros e que os delinquentes temem. Quanto ao
sultão que não tem política, ele tampouco tem importância aos olhos dos súditos,
a todos deixando exasperados, a falar mal dele a todo instante. Acaso não vês
que o homem, se pertencer ao vulgo e for nomeado governador, logo quer pedir
contas aos súditos? E assim que lhes dirige a palavra quer causar-lhes temor e
mostrar a sua dignidade na política? Isso é porque ele sabe que os súditos
continuam a olhar para ele com os mesmos olhos de antes”.
A JUSTIÇA DE ZIYÅD
História espantosa Abœ Sufyån Bin Æarb tinha um filho chamado Ziyåd Bin
Ab∑hi,[307] pois lhe nascera na época da Jåhiliyya e ele o expulsara e repudiara
dizendo: “Não é meu filho”. Quando Mu¢åwya Ibn Ab∑ Sufyån ascendeu ao
poder, aproximou Ziyåd e o nomeou governador do Iraque. Ao chegar lá,
verificando que o povo do Iraque era desmazelado, corrupto e ladrão, Ziyåd se
dirigiu à mesquita, subiu ao púlpito, fez o seu sermão e disse após concluí-lo:
“Por Deus que se algum de vós sair [de casa] depois da última prece da noite eu
lhe cortarei o pescoço. Que o saibam os presentes e os ausentes!”. Em seguida,
ordenou que [um arauto] anunciasse aquilo durante três dias. Quando foi a
quarta noite, Ziyåd saiu, já passado um terço da noite, a vagar pelos bairros da
cidade, avistando então, parado, um beduíno com ovelhas. Ziyåd perguntou-lhe:
“O que fazes aqui?”. O beduíno respondeu: “Cheguei à noite, não encontrei
lugar para pernoitar e então fiquei aqui até o amanhecer para vender minhas
ovelhas”. Ziyåd lhe perguntou: “Não ouviste o anúncio do arauto?”. O beduíno
respondeu: “Sim”. Disse Ziyåd: “Sei que falas a verdade, mas se eu te soltar
temo que se espalhe sobre mim a notícia de que ‘Ziyåd fala, mas não faz’, com o
que minha política se corromperá e o respeito por mim se quebrará. O paraíso é
melhor para ti”, e lhe cortou o pescoço. Continuou caminhando e cortando o
pescoço e decepando a cabeça de quem encontrava. Quando amanheceu, o
número dos mortos de cabeça decepada era de mil e quinhentos homens, cujas
cabeças Ziyåd pendurou na porta de sua casa, como se fossem bolas.[308] Então
as pessoas passaram a respeitá-lo, atemorizadas com o que viram de suas ações.
Quando foi a noite [seguinte], ele saiu e vagou [pela cidade], fazendo a mesma
coisa com quem encontrasse, e foram trezentos homens cujas cabeças se
levaram. Depois disso, ninguém mais conseguiu sair depois da última reza da
noite. Quando foi a sexta-feira…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

753ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando foi a sexta-feira, Ziyåd subiu
ao púlpito e disse: “Ó gente, que esta noite ninguém feche as portas das lojas, e
tudo quanto for roubado eu ressarcirei”, e então ninguém se atreveu a fechar a
loja naquela noite. No dia seguinte, um cambista foi até Ziyåd e lhe disse:
“Ontem me foram furtados quatrocentos dinares”. Ele perguntou: “Podes jurar a
veracidade de tuas palavras?”. O cambista respondeu: “Sim”, e jurou. Ziyåd lhe
ressarciu os quatrocentos dinares e lhe disse: “Guarda segredo disso, não
informes a ninguém”. Na sexta-feira seguinte, as pessoas se reuniram [na
mesquita], Ziyåd subiu ao púlpito e disse: “Sabei que se roubaram quatrocentos
dinares da loja de fulano, o cambista. Todos vós estais presentes. Se acaso
devolverdes o dinheiro, o cambista terá o seu direito e dinheiro devolvidos. E se
acaso não devolverdes, impedirei que qualquer um de vós saia da mesquita e
ordenarei que sejais mortos agora mesmo”. Imediatamente as pessoas agarram
um homem de quem se desconfiava haver roubado e o colocaram diante de
Ziyåd. O homem devolveu o ouro que roubara e Ziyåd ordenou que fosse
crucificado sem delongas.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Depois disso, Ziyåd perguntou em qual localidade de
Basra não havia segurança. Responderam-lhe: “O bairro de Ban∑ Alazad”.
Então ele ordenou que ali se deixasse à noite uma roupa com brocados de ouro,
de pesado valor, de modo que ninguém visse [quem a deixara]. A roupa
permaneceu ali jogada por dias e ninguém [teve o atrevimento] de se aproximar
[nem tirá-la do lugar].
Depois disso, os seus parentes lhe disseram: “A tua política é a melhor coisa,
com o porém de que, primeiro, não poupas os muçulmanos, e, segundo, mataste
muita gente”. Ele respondeu: “Antes disso, por três dias, eu argumentei com
eles. Mas, devido às suas péssimas ações, não se emendaram, e o que os atingiu
se deve à sua péssima desobediência”.[309]
COMO DIVIDIR O DIA DO SOBERANO
O sultão não deve sempre se ocupar com jogos de gamão, xadrez, pela e caça,
pois isso o afasta das atividades [importantes] e o impede de realizá-las. Cada
atividade tem o seu tempo, e se ele for desperdiçado o lucro se reverte em perda,
e a alegria, em tristeza. Os antigos reis dividiam o dia em quatro partes: a
primeira, para a adoração de Deus altíssimo; a segunda, para analisar os assuntos
do poder, fazer justiça aos oprimidos, sentar-se com os sábios e os dotados de
intelecto para administrar as coisas, a condução do povo, a execução das ordens
e do protocolo, a escrita da correspondência e o envio de mensageiros; a terceira,
para comer, dormir, munir-se das coisas do mundo e gozar o seu quinhão de
alegria e felicidade; a quarta, para caçar, jogar bola, atirar flechas, apostar
corrida e coisas assemelhadas.
Conta-se que Bahråm G¯or[310] dividiu o seu dia em duas partes, dele
fazendo duas metades, a primeira das quais ele gastava resolvendo os problemas
das pessoas, e a segunda ele usava para desfrutar. Diz-se que em todos os dias de
sua vida ele jamais trabalhou um dia inteiro numa única atividade.
KISRÀ E SEUS ENCARREGADOS
[Kisrà] Anœ ¸irwån ordenava aos seus companheiros que subissem ao ponto
mais alto do país [para observar as casas das pessoas]. A toda casa de onde não
saía fumaça eles iam indagar sobre a situação dos moradores e qual o seu
problema. Se tivessem alguma aflição, informava-se Anœ ¸irwån, que lhes
solucionava as tristezas e extinguia as preocupações. O sultão tampouco deve
aceitar que os seus servidores tomem alguma coisa ilegalmente dos súditos, tal
como consta na seguinte crônica.
História Conta-se que Anœ ¸irwån, o justo, havia nomeado um encarregado
[administrador de certa região], e então esse encarregado lhe enviou três mil
dirhams a mais em tributos. Anœ ¸irwån ordenou que o excesso fosse devolvido
aos seus donos, e que o administrador fosse crucificado.
Conta-se que todo sultão que toma de seus súditos algo injustamente e à força,
e o coloca em seus depósitos, tem como paradigma o do homem que fez uma
parede para ser base de uma construção, mas, sem esperar que secasse, construiu
sobre ela enquanto estava úmida, e perdeu tanto a construção como a parede. O
sultão deve cobrar o seu direito dos súditos na mesma medida em que lhes dá os
seus direitos, pois cada um desses dois assuntos tem limites e medidas, [tal como
consta da seguinte história.]
História Conta-se que o califa Alma’mœn…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

754ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
ALMA’MŒN E SEUS ENCARREGADOS
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se conta que o califa Alma’mœn[311]
nomeou três homens como governadores. Ao primeiro, ele deu um édito para
governar ¿uråsån e um traje honorífico de três mil dinares; o segundo, ele
nomeou para governar o Egito e lhe deu um traje semelhante; o terceiro, ele
nomeou governador de ¿œzistån[312] e também lhe deu um traje semelhante.
Em seguida, chamou um sacerdote zoroastrista e lhe perguntou: “Chefe, acaso
algum dos reis persas deu a alguém, durante o seu reinado, algo como esses
trajes? Eu fui informado de que os trajes honoríficos deles valiam pouco mais de
quatro mil dirhams”. O sacerdote respondeu: “Deus te prolongue a vida, ó rei.
Os reis dos persas possuíam três coisas que vos faltam: a primeira é que eles
tomavam das pessoas e a elas davam na mesma medida; a segunda é que eles
tomavam dos lugares de onde era lícito levar, e davam a quem merecia receber; a
terceira é que eles não eram temidos senão pelos delinquentes”. O califa
respondeu: “Falaste a verdade”, e mais não disse. Foi por isso que Alma’mœn
abriu a porta da tumba de Kisrà, levantou a tampa do caixão, examinou-o,
observou-lhe a beleza do rosto, que ainda mantinha a sua água, sem se
corromper, as roupas ainda inteiriças, não rasgadas nem corroídas, o anel em seu
dedo com um valiosíssimo engaste de rubi que jamais nenhum outro rei vira
semelhante, e no qual estava escrito mah bih nih bih mah, isto é, “o melhor é o
maior, e não o contrário”.[313] Então Alma’mœn ordenou que ele fosse coberto
com um traje tecido em ouro. Estava com o califa um criado que, sem ser
percebido, levou o anel do dedo de Kisrà. Mas, quando soube do acontecido, o
califa mandou matar o criado e devolveu o anel ao dedo de Kisrà dizendo: “Ele
quis me desmoralizar, de modo que se dissesse a meu respeito, até o dia do Juízo
Final, que Alma’mœn era ladrão de tumbas, abriu o túmulo de Kisrà e levou-lhe
o anel”.
MÁXIMAS E SENTENÇAS (IV)
Sabedoria Certo dia, em preparativos para viagem, Alexandre perguntou a um
grupo de sábios que o acompanhava: “Esclarecei-me um método de sabedoria
que regule as minhas atividades e aperfeiçoe os meus trabalhos”. Respondeu o
sábio-mor: “Ó rei, não deixes que o amor ou o ódio pelo que quer que seja te
adentre o coração, pois o coração possui uma especificidade inscrita em seu
nome, não tendo sido chamado de coração senão por se revirar.[314] Age
mediante reflexão, tomando-a como vizir, faze do intelecto teu companheiro,
esforça-te para te manteres desperto durante a noite inteira,[315] não te
aventures a qualquer assunto que seja sem antes fazeres consultas, evita o
favoritismo e a parcialidade no momento da justiça [e da equanimidade. Se
assim procederes, todas as coisas seguirão o teu rastro e procederás com elas]
[316] como bem entenderes. O rei deve ser sábio, indulgente e imponente, e não
estouvado e apressado”. Os sapientes disseram: “Três coisas são feias, e mais
feias ainda em outras três: a cólera nos reis, a avidez nos sábios e a avareza nos
ricos”.
Sabedoria O vizir Yœnån escreveu para o rei Kisrà Anœ ¸irwån
recomendações e admoestações nas quais afirmou: “Deves sempre ter contigo,
rei do mundo, quatro coisas: justiça, intelecto, paciência e pudor, bem como
deves expulsar de ti quatro coisas: inveja, arrogância, dureza de coração — ele
queria dizer avareza — e hostilidade”. Também disse: “Fica sabendo, ó rei, que
os reis anteriores a ti já passaram, e os posteriores a ti ainda não chegaram;
esforça-te, pois, para que todos os reis do tempo e seus súditos te amem e
anseiem por ti”.
KISRÀ E O AUMENTO DE IMPOSTOS
História Conta-se que certo dia de primavera Kisrà Anœ ¸irwån cavalgava para
espairecer, pondo-se a galopar pelas campinas verdejantes, a notar-lhes as
árvores e frutas e a observar-lhes os pomares bem cuidados. Descavalgou então
em louvor ao seu senhor e se prosternou, mantendo a face encostada na terra por
um longo tempo, e ao erguer a cabeça disse aos seus acompanhantes: “A
fertilidade dos anos se deve à justiça dos reis e sultões, de suas boas intenções e
de sua benemerência para com os súditos. Gratidão a Deus, que fez aparecerem
as nossas boas intenções em todas as coisas”. E somente disse isso porque foi o
que ele vivenciou durante a maior parte do seu tempo.
História Conta-se que Kisrà Anœ ¸irwån…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

755ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se conta que Kisrà Anœ ¸irwån, em
certo dia de caça, apartou-se dos seus soldados, avistou uma aldeia nas
proximidades de onde se encontrava e, como estivesse com sede, foi até lá e
bateu à porta de uma casa pedindo água para beber. Saiu para atendê-lo uma
jovem que olhou para ele, entrou de novo em casa, espremeu um único gomo de
cana-de-açúcar, misturou o suco com água, colocou num copo e deu-o ao rei, o
qual, olhando para dentro do copo e nele vendo um pouco de terra e pedaços de
casca, bebeu aos poucos, até terminar, dizendo em seguida à jovem: “ åbåš[317]
— que significa ‘o melhor dos caldos’ —, apesar dos pedaços de casca que o
turvavam”. Ela respondeu: “Eu coloquei aquilo de propósito no copo”. Kisrà
perguntou: “Por que agiste assim?”. Ela respondeu: “Notei que estavas com
muita sede, e, se o caldo não contivesse aquelas casquinhas, tu o terias tomado e
sorvido rapidamente, num só gole, o que te faria mal”. Admirado com tais
palavras, Kisrà percebeu que ela dissera aquilo por inteligência e sagacidade, e
perguntou-lhe: “De quantos gomos espremeste o caldo?”. Ela respondeu: “De
um único gomo”. Admirado, Kisrà pediu o registro dos impostos recolhidos por
aquela região e, verificando serem baixos, refletiu, pensou: “Uma aldeia na qual
um único gomo de cana-de-açúcar é assim só paga isso de imposto?”, e
arquitetou o plano de, ao voltar, mandar aumentar os impostos daquela região.
Tempos depois retornou para aquela aldeia, passou sozinho pela mesma porta e
pediu água. Saiu para atendê-lo a mesma jovem, viu-o, reconheceu-o, entrou de
novo para espremer-lhe o suco mas, como se demorasse, Kisrà apressou-a
perguntando: “Por que tanta demora?”. Ela respondeu: “Não está saindo do
gomo a quantidade que te é necessária; hoje tive de espremer três gomos, e eles
não renderam o que rendia um único gomo, que te seria suficiente”. Kisrà
perguntou: “Qual o motivo disso?”. Ela respondeu: “O motivo disso é que a
modificação dos propósitos do sultão em relação a algum povo faz com que as
bênçãos desse povo se extingam”. Então Kisrà riu, afastou de si aquilo que
tencionava fazer com o povo da aldeia e se casou com aquela jovem, tamanha
foi a sua admiração pela inteligência dela.
MÁXIMAS E SENTENÇAS (V)
Sabedoria Diz-se que os verazes dentre os homens são três: os profetas, os reis e
os loucos. [E se diz que a embriaguez é loucura e que o louco teme o ébrio, pois
a embriaguez do louco é interior e a loucura do ébrio é exterior. E ai daquele que
permanece sempre na embriaguez da inadvertência, tal como disse o poeta:

“Quem pelo vinho é rapidamente embriagado
não deve, quando acorda, envergonhar-se,
mas quem estando no poder se embriaga,
será certo que dele o poder se transfira”.

São muito poucos os que se mantêm despertos da embriaguez do poder, os que
têm gente leal e honesta na execução de suas obras, e cujos frequentadores são
sinceros e auxiliadores. O sinal da embriaguez do sultão é quando ele entrega o
seu vizirato a alguém necessitado e carente, mantendo-o e se apegando a ele até
que a sua pobreza se acabe e suas necessidades se satisfaçam, quando então o
dispensa e nomeia outro; o seu paradigma é o de quem cria uma criança pequena
até atingir a maioridade e se tornar capaz de trabalhar e prestar serviços, e então
a mata e aniquila.][318] E se diz que quatro coisas nos reis são obrigatórias:
afastar os vis do seu reino; fazê-lo prosperar aproximando os dotados de
intelecto; preservar os pareceres dos anciões e experientes; incrementar a força
do rei mediante dizeres e ações.[319]
História Quando assumiu o poder, ¢Umar Ibn ¢Abdul¢az∑z, esteja Deus
satisfeito com ele, escreveu para Al¬asan de Basra: “Ajuda-me por meio dos
teus conselhos”[320], e Al¬asan lhe escreveu em resposta: “Quem procura o
mundo não te dará conselhos, e quem procura a outra vida não te deseja. O
sultão não deve entregar o seu vizirato nem [a execução de] nenhuma de suas
atividades a quem disso não for merecedor, pois, se acaso ele os entregar a
alguém assim, o seu reinado se corromperá e o seu reino se arruinará, surgindo
falhas enormes em todos os cantos e por todos os lados, tal como disse o poeta
na seguinte poesia:

‘Quando se avizinha a ruína de uma casa,
rachaduras começam a se traçar na parede;
se o rei der poder àqueles que não merecem,
entregarão o governo a toda sorte de imbecil’”.[321]

[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Quem serve os reis deve ser tal como disse o poeta:

“Se fores servir os reis, veste
a melhor roupa da piedade;
quando entrares, entra cego,
e quando saíres, sai mudo”.

Quem se sente à vontade na companhia do sultão está oprimindo a si mesmo,
ainda que seja o seu filho, pois não existe nenhuma regra que lhe permita sentir-
se à vontade na presença de sultões, conforme disse o poeta:

“Mesmo que do sultão sejas rebento, adula-o;
teme-o, se amas a tua cabeça, e sairás a salvo”.

O paradigma de quem se sente à vontade com o sultão é o mesmo do adestrador
de cobras, que com elas passa a vida, comendo, [dormindo,] sentando-se e
levantando-se ao lado delas, e o mesmo do homem no mar, no meio de
crocodilos, cuja vida estará sempre em risco.
Sabedoria[322] Sultões não têm amigo, nem parente, nem criado, nem filho…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

756ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que sultões não têm amigo, nem parente,
nem criado, nem filho, nem respeito por ninguém, nem protegem ninguém, a não
ser que desse alguém estejam necessitados, em virtude do seu saber ou da sua
coragem. E quando eles alcançam aquilo de que necessitam, essa pessoa deles já
não receberá nenhuma afeição, nem dignidade, nem pudor. Como a maior parte
de suas ocupações é hipocrisia, eles diminuem a importância dos seus grandes
pecados e aumentam excessivamente a importância dos pequenos pecados
alheios. Disse Sufyån A¥¥awr∑,[323] esteja Deus satisfeito com ele: “Não faças
companhia ao sultão, e acautela-te de servi-lo, pois, se acaso fores obediente,
esgotar-te-á, e, se dele divergires, matar-te-á”. Ninguém deve adentrar a porta
dos reis se para tanto não tiver permissão. Compreende, pois.
A EDUCAÇÃO DOS PRÍNCIPES
História Conta-se que Yazdagard Ibn ¸ahrabån[324] adentrou a porta do seu pai
numa hora em que ninguém tinha permissão para entrar. Então o rei ¸ahrabån
disse a Bahråm: “Vá e aplique no secretário fulano de tal trinta pauladas, e
depois demita-o da portaria do palácio, colocando sicrano em seu lugar. Naquela
época, a idade do seu filho Yazdagard era treze anos. O novo secretário da
portaria ficou sabendo daquilo, bem como os criados, e o primeiro secretário foi
afastado. Alguns dias depois, Yazdagard tornou a tentar entrar onde o pai estava,
mas o secretário colocou-lhe a mão no peito e o fez recuar dizendo-lhe: “Se eu
tornar a te ver aqui irei aplicar-te sessenta chicotadas, trinta pelo secretário
dispensado e trinta para que não tentes entrar onde o rei está fora do horário
permitido, e para que não me causes prejuízo e humilhação”. É necessário ao rei
que, toda noite, faça alguém dormir em sua cama e que ele se mude para outro
local, a fim de que, caso algum inimigo o procure para matá-lo, encontre outro
em seu lugar, [e assim a mão de tal inimigo não o atingirá, como consta na
seguinte história].
A FUGA PODE SER VITÓRIA
História Conta-se que, derrotado por Bahråm G¯or, disse ¿osraw [Bin Perv]ez:
[325] “Fugi, ainda que a fuga seja vergonhosa, para com ela salvar a vida de um
grupo de companheiros meus, e também porque, se acaso eu fosse morto, por
minha causa milhares de pessoas seriam igualmente mortas”. Com tal narrativa,
ó sultão, o meu desígnio é [mostrar] que este nosso tempo não é conveniente,
nele os homens se dividindo entre quem tem o juízo ruim e quem finge ter juízo,
[326] enquanto os reis estão ocupados com o mundo e o amor pelo dinheiro. Não
se deve tolerar nem negligenciar o homem mau, pois já se dizia nos provérbios
dos árabes: “O escravo se adverte com bastão, mas ao homem livre basta um
sinal”. Esse provérbio se aplica àqueles que têm estirpe e aos que não a têm. Mas
os homens tiveram um tempo e um momento nos quais um só homem dava
segurança aos homens do mundo todo, e lhes tomava [como tributo] uma bolsa
cheia de moedas de ouro, a qual ele carregava aos ombros. Esse homem era
¢Umar Ibn AlΔa††åb, esteja Deus satisfeito com ele. Mas hoje, se os súditos
fossem tratados dessa maneira, [não suportariam e] a terra se corromperia.
MÁXIMAS E SENTENÇAS (VI)
Perguntou-se[327] ao comandante dos crentes ¢Al∑ Ibn Ab∑ ˇålib, esteja Deus
satisfeito com ele, o seguinte: “Por qual motivo as admoestações não beneficiam
estes homens?”. Respondeu: “A notícia conhecida é que o enviado de Deus,
sobre ele sejam suas preces e saudações, quando estava às portas da morte e
fazia recomendações, exibiu três dedos e disse com o canto da língua: ‘Não me
indagueis a respeito destes’. Os seus companheiros disseram que aquilo era uma
referência a três meses, e um grupo disse que era referência a três anos, e outro
grupo disse que era referência a trinta anos, e outro grupo disse que era
referência a trezentos anos. [Ele quis dizer: ‘Mesmo que se passem trezentos
anos] não me indagueis sobre a condição destes homens’. Se o profeta, sobre ele
estejam as preces e as saudações de Deus, disse: ‘Não me indagueis sobre esses’,
por que as admoestações haveriam de beneficiá-los?”. Questionado sobre essa
pergunta, ele disse: “Os homens daquele tempo estavam acordados, e os sábios,
despertos, ao passo que hoje os sábios estão adormecidos e os homens, mortos.
Qual é então o benefício das palavras de um adormecido para um morto?”.
Quanto a este nosso tempo, nele todo mundo está morto, e as obras e desígnios
dos homens se tornaram malignos.
Disse Buzurjmihr: “O rei não deve ser, nos cuidados com o seu reino, menos
cuidadoso que o jardineiro nos cuidados com o seu jardim, pois este, quando
planta murtas e nascem ervas, apressa-se em arrancar as últimas a fim de que
não estraguem os locais onde estão as murtas”.[328] E o rei deve buscar o saber,
aprendendo com os sábios, ter méritos amplos, afastar do seu reino os caçadores
de defeitos e possuir intelecto abundante, pois os defeitos são resultado da sua
falta,[329] tal como disse o poeta:

“Diz o leão, sábio em discursos:
‘Chega de chiste, nisso não és leão,
preserva-te a ti com os dois olhos
teus, pois teu olhar ao rei faz amuo;
e teme desafiá-lo em seu reino,
e na hora da cólera dele te afasta:
é a cólera dele que mata, não teu crime’.
[Ouvi dizer a respeito do vinho que
o régulo dele se embriaga a desoras]”.

[O califa] Mu¢åwya perguntou a Ala¬naf Bin Qays:[330] “Ó Abœ Ya¬ya, como
é o tempo?”. Ele respondeu: “O tempo és tu, ó comandante dos crentes…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

757ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que [Ala¬naf Bin Qays] respondeu: “O
tempo és tu, ó comandante dos crentes; se fores bom, o tempo será bom; se fores
corrupto, o tempo será corrupto”. E continuou Ala¬naf Bin Qays: “Tal como o
mundo prosperou mediante a justiça, também se arruína mediante a opressão,
pois a luz da justiça brilha, e cintilam as suas alvíssaras, a uma distância de mil
parasangas”. Disse Alfa®∑l Bin ¢Ayyå®,[331] Deus dele se apiede: “Fossem os
meus rogos atendidos, eu não rogaria senão pelo sultão [justo], pois o sultão
justo é o bom estado dos súditos [e o adorno do país]”. Tal como consta na
notícia do que disse o senhor dos humanos,[332] sobre ele sejam as preces e as
saudações de Deus: “Os imparciais neste mundo estarão em púlpitos de pérola
no dia do Juízo Final”.
LADRÃO SEM QUERER
História Certo dia, Alexandre estava no trono, cercado por seus secretários,
quando colocaram diante de si um ladrão, que ele mandou crucificar. O ladrão
disse: “Ó rei, eu roubei mas não desejava o roubo, nem meu coração o pedia!”.
Alexandre respondeu: “Deixa estar, pois serás crucificado sem que o teu coração
peça a crucificação”. Assim, o sultão deve praticar a justiça e observar
escrupulosamente as políticas que determina.
A CAÇA DA CORRUPÇÃO
História O rei Guštåsip[333] tinha um vizir chamado Råst Rawšan, o qual,
graças a este nome,[334] era considerado pio e bom pelo rei, que não dava
atenção às palavras de quem falava mal dele, embora não o tivesse
experimentado. Råst Rawšan disse [certo dia] ao rei: “Os súditos se tornaram
insolentes devido à nossa demasiada justiça para com eles, e ao escasso
disciplinamento que lhes ministramos. Já se disse que, quando o sultão é justo,
os súditos se tornam injustos. Agora, o fedor da corrupção deles já se espalha, e
devemos discipliná-los, admoestá-los, afastar os hostis e expulsar os pervertidos
e corruptores”. Em seguida, o vizir começou a achacar todos quantos
necessitavam de disciplinamento e a dar-lhes total liberdade, até que os súditos
se debilitaram, a sua situação e atividade se tornaram críticas, e o dinheiro
acabou. Então, apareceu um inimigo. O rei Guštåsip inspecionou o tesouro e,
sem encontrar nada com que pudesse corrigir a situação dos súditos e soldados,
cavalgou certo dia, com o coração opresso, avançando pela estepe, e avistou ao
longe um rebanho de carneiros em cuja direção rumou. Vendo uma tenda
montada, o rebanho dormindo e um cachorro crucificado, aproximou-se da
tenda, da qual saiu um jovem que o cumprimentou e o convidou a descavalgar.
Quando o rei descavalgou, o rapaz o dignificou, colocando na sua frente o que
tinha de comida. Guštåsip disse: “Para que eu coma da sua comida, informa-me
antes sobre o caso desse cachorro”. O rapaz respondeu: “Fica sabendo, com toda
a certeza, que este cachorro era fiel para com o meu rebanho, até que conheceu
uma loba com a qual passou a conviver e dormir. Diariamente, essa loba ia até o
rebanho e roubava uma rês atrás da outra. Um dia, o responsável pelo lugar[335]
me pediu a paga do direito de pasto, e eu me pus a pensar, a calcular e a contar
as reses, constatando que o seu número havia diminuído; vi também um lobo
levando uma rês com o cachorro ali quieto ao seu lado, e percebi que era ele o
motivo da diminuição do rebanho, era ele o traidor. Então crucifiquei o
cachorro”. Guštåsip considerou aquilo e pôs-se a refletir de si para si. Pensou:
“Nossos súditos são o nosso rebanho, e nós é que devemos perguntar a seu
respeito para chegar à verdade da sua condição”. Retornou para casa, começou a
examinar os registros oficiais, todos constituídos por intermediações do vizir
Råst Rawšan. Então ele aplicou um provérbio dizendo: “Quem se ilude com o
nome de gente corrompida fica sem comida”, e “Quem trai na comida fica sem
vida”,[336] e em seguida ordenou que o vizir fosse crucificado. Esta história está
registrada por escrito no “Livro das obras”. A seu respeito disse o poeta:

“Eu é que não me iludo com o teu nome, pois
assim te chamaste para lograres riquezas,
mas quem faz do seu nome de riquezas cilada
é contado como incapaz, na angústia atirado”.
A SAGACIDADE DE ARDAš„R
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Conta-se que Ardaš∑r[337] era muito atento, e de tanta
sagacidade nas coisas que, quando lhe chegavam os convivas pela manhã, ele
conversava com cada um deles sobre o que haviam feito; dizia a um: “Ontem
agiste assim e assado, e fizeste tal coisa, e dormiste com a tua esposa [ou] com a
tua criada fulana”, e de tudo quanto havia sucedido aos seus convivas desde o
amanhecer ele lhes falava a respeito, a tal ponto que eles supunham que algum
anjo celeste o informava a respeito do que faziam. Também esse era o caso do
sultão justo Ma¬mœd Ibn Subuktak∑n,[338] que Deus dele tenha piedade.
Sabedoria Disse Aristóteles…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

758ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.

MÁXIMAS E SENTENÇAS (VII)
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Aristóteles disse: “O melhor dos reis é
aquele que, na agudeza do olhar, é igual ao abutre, e cujos soldados ao seu redor
sejam iguais aos abutres, e não à carniça”.[339] Disse Pervez:[340] “São três
aqueles que o rei não pode deixar para trás nem lhes perdoar os delitos: quem faz
intrigas contra o seu reinado, quem lhe corrompe o mulherio, e quem lhe divulga
os segredos”. Disse Sufyån A¥¥awr∑, Deus com ele esteja satisfeito: “O melhor
dos reis é aquele que se senta com a gente de saber”. E se diz que todas as coisas
são embelezadas pelos homens[341] que se embelezam com o saber, e cujos
destinos se elevam por meio do intelecto; por isso, para o rei não existe nada
melhor que o saber e o intelecto, pois no saber estão a manutenção do poder e a
sua permanência, e no [intelecto], a manutenção da felicidade. E quem reunir
doze características — a jurisprudência,[342] o decoro, a piedade, a confiança, o
pudor, a misericórdia, o bom caráter, a correção, a lealdade, a paciência, a
generosidade e a tolerância — terá o que caracteriza o decoro dos reis.
Conta-se que o conceito de Ya¢qœb Bin Allay¥[343] se elevou, seu destino se
destacou, seu nome apareceu e passou a ser mencionado e ele reinou sobre
muitos países. Foi ao Iraque, onde o califa, naquele tempo, era Almu¢tamid,
[344] que lhe escreveu perguntando: “Tu, que eras latoeiro, de onde aprendeste a
administrar um reino?”. Ya¢qœb lhe escreveu em resposta: “O rei que me
entregou o governo ensinou-me a administrar”.
E consta do “Testamento de Ardaš∑r”: “Qualquer poderoso que não ponha os
pés no tapete do saber terá como fim a humilhação. E toda justiça[345] que não
porta consigo temor a Deus terá por destino o arrependimento, ainda que
completa”.
¢Abdullåh Bin ˇåhir[346] perguntou certo dia ao filho: “Quanto tempo este
Estado permanecerá em nossas mãos e se manterá em nossa dinastia?”. O filho
respondeu: “Enquanto o tapete da justiça e da equanimidade se mantiver
estendido diante do palácio”.
História Certo dia, Alma’mœn se sentou para examinar as queixas e sentenças
a ele encaminhadas, quando chegou às suas mãos uma história que entregou ao
seu vizir, Alfa®l Bin Sahl,[347] dizendo: “Satisfaz imediatamente a demanda de
quem a enviou, pois é mais fácil que um astro, na velocidade de sua rotação,
pare sobre mim do que o amante desistir dos seus anelos”.[348]
Conta-se que Marwån,[349] [o último dos califas] omíadas, inspecionou o seu
exército, composto de trezentos mil homens totalmente armados. Seu vizir lhe
disse: “Esse exército é decerto o mais magnífico de todos”. Marwån respondeu:
“Cala-te, pois quando o prazo se esgota o armamento não resolve, e, mesmo que
dominemos o mundo inteiro, necessariamente ele nos será subtraído. Porventura
o mundo foi leal com alguém para ser leal conosco?”.
Conta Abœ Al¬asan Alahwåz∑[350] em seu livro “Pérolas e colares”: “O
mundo não tem carinho por ninguém nem perdura para ninguém; portanto,
abastece-te do teu dia para o teu amanhã, e não deixes para trás nenhum dia ou
manhã”.
Conta-se que estão gravados na tumba de Ya¢qœb Bin Allay¥ os seguintes
versos:

“Reinamos sobre ¿uråsån e demais recantos da Pérsia,
e mesmo de reinar sobre o Iraque não me desesperancei.
[Saudações à gente das tumbas, ao que é devastado,
que é como se nas reuniões não se tivessem acomodado;
como se da boa água gelada nada tivessem tomado,
nem comido de tudo quanto é seco e molhado.
Então veio a morte terrível com a sua embriaguez,
e não puderam me salvar nem um milhão de soldados.
Ó visitante das tumbas, pensa e reflete sobre nós:
eu, que de reinar sobre o Iraque não estava desesperançado].[351]
Saudações ao mundo, com as suas deliciosas benesses,
no qual é como se Ya¢qœb jamais tivesse estado”.

Pergunta e resposta Perguntou-se a um rei cujo reinado se extinguira: “Por qual
motivo a tua situação se transtornou e o reino te foi subtraído?”. Respondeu:
“Porque me iludi com o governo, com a força, me satisfiz com a minha opinião,
saber e intelecto, negligenciei as consultas, encarreguei gente pequena de
grandes obras, extraviei a artimanha, pouco refleti sobre ela nem a elaborei no
momento azado, procrastinei, parei quando deveria apressar-me e aproveitar a
ocasião, e me desviei do atendimento das demandas do povo”.
CUIDADOS COM OS MENSAGEIROS
Perguntou-se: “Qual maligno possui maior malignidade?”. Respondeu-se: “Os
mensageiros traidores, que traem a sua missão por causa de promessas. Toda
ruína do reino provém deles, tal como disse Ardaš∑r a seu respeito: ‘Quanto
sangue derramaram, quantos exércitos derrotaram, quantas honras de gente
decente conspurcaram, quanto dinheiro empalmaram, quantas juras desmentiram
com as suas traições, quantos compromissos quebraram com a sua
desonestidade!’”. Os reis persas se preveniam e se mantinham alertas contra
isso.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

759ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que os reis persas se preveniam e se
mantinham alertas contra isso, não enviando o mensageiro senão após o terem
testado e experimentado.
Sabedoria Conta-se que os reis persas, quando enviavam algum mensageiro a
outros reis, enviavam também um espião para registrar tudo quanto aquele dizia
e ouvia. Quando o mensageiro retornava, comparavam o seu relato com o
registro escrito do espião; se estivesse correto, certificavam-se de que se tratava
de um mensageiro veraz, passando, depois disso, a enviá-lo aos inimigos.[352]
História Alexandre enviou um mensageiro ao rei Dario. Quando ele regressou
com a resposta, Alexandre duvidou de uma das palavras nela contida, e a repetiu.
O mensageiro disse: “Eu ouvi tais palavras com estes meus dois ouvidos”. Então
Alexandre ordenou que aquela palavra fosse escrita [tal e qual] e enviou a carta,
pelas mãos de outro mensageiro, para Dario, o qual, quando a carta chegou e lhe
foi exposta, pediu uma faca, cortou aquela palavra e devolveu a carta a
Alexandre, escrevendo-lhe ainda: “A base do reinado está no bom apoio do rei e
na correção da sua natureza; a base da correção do sultão está na correção da
palavra dos seus embaixadores e na veracidade do discurso do mensageiro
honesto, [pois] o que ele diz [como porta-voz] do rei e as respostas que ouve
devem ser transmitidas ao rei. Agora, eu cortei aquela palavra da carta porque
ela não fazia parte do meu discurso, e porque não encontrei maneira de cortar a
língua do teu mensageiro”. Quando o segundo mensageiro retornou e Alexandre
leu a carta de Dario, chamou o primeiro mensageiro, gritou com ele e perguntou:
“Ai de ti! O que te levou a desconceituar um rei com aquela palavra que
disseste?”. O mensageiro confessou respondendo: “Ele me tratou com
desconsideração e me revoltou”. Disse Alexandre: “Glória a Deus! Por acaso nós
te enviamos para cuidares dos teus interesses e extraviares os nossos? Para
caluniar os outros diante de nós?”. Em seguida, ordenou que a sua língua lhe
fosse arrancada pelo traseiro.
O DINHEIRO DO REI E A NECESSIDADE PÚBLICA
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Quando os seus súditos sofrem algum aperto e lhes
sucedem dificuldades ou privações, impõe-se ao sultão socorrê-los,
especialmente em tempos de seca e carestia de preços, pois nesse momento eles
se tornam incapazes de se sustentar e nada conseguem ganhar, devendo o sultão
socorrê-los com alimentos, ajudá-los com dinheiro tirado do seu tesouro e
impedir a quem quer que seja — membros da sua corte, criados ou seguidores —
a prática da injustiça contra os súditos, a fim de evitar que as pessoas se
enfraqueçam, se coloquem sob outra autoridade[353] [e se mudem para outro
reino], com o que se quebraria o estatuto do sultão e diminuiriam os tributos
arrecadados.[354]
OS REIS E AS AUDIÊNCIAS PÚBLICAS
História[355] Conta-se que, entre as suas ordenações, os reis persas autorizavam
os súditos a vir falar com eles durante as festividades de Nayrœz e de Mihrajån,
[356] o que era anunciado alguns dias antes pelo arauto: “Preparai-vos para o dia
tal. Que cada um se prepare, se arranje, revele a sua história e aprimore os
argumentos.[357] Quem tiver algum contencioso deve apresentar a sua queixa ao
rei, que procurará satisfazê-lo”.[358] Quando chegava o dia, o arauto se postava
às portas do rei e anunciava: “O rei lava as mãos quanto ao sangue de quem
impedir alguém de entrar”. Em seguida, as histórias eram recolhidas das pessoas
e colocadas diante do rei, que examinava uma por uma, com o juiz supremo à
sua direita.
Disse o narrador: [Se entre as] histórias houvesse alguma na qual o súdito se
queixasse do rei, esse súdito saía do seu lugar, avançava e parava diante do juiz
supremo e diante de seu adversário, no caso, o rei, que dizia ao juiz:
“Primeiramente, faze justiça a este homem contra mim, sem favoritismo nem
parcialidade; não me dês preferência em detrimento de ti mesmo, pois Deus,
excelso seja, já escolheu os seus adoradores quando estabeleceu a sorte de cada
um, e os fez ser governados pelos melhores dentre eles; se Deus quisesse mostrar
aos seus adoradores qual é o valor que tal criatura tem diante de si, lhe tornaria a
língua tão escorreita quanto a tua”. Em seguida — caso o apelo do antagonista
do rei fosse legítimo e existissem provas contra ele —, o juiz supremo cobrava
total e integralmente os direitos devidos pelo rei. Mas, se as alegações do
litigante contra o rei não fossem legítimas…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

760ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, se as alegações contra o rei não
fossem legítimas, ordenava-se a punição do queixoso e se anunciava contra ele:
“Esta é a recompensa de quem pretende impingir defeitos ao rei e ao reinado”.
Quando terminava de examinar as queixas e se instalava no trono do reino, o rei
punha a coroa na cabeça e dizia:[359] “Fiz a justiça contra mim mesmo a fim de
que ninguém cobice praticar injustiça e opressão contra ninguém. Todo aquele
dentre vós contra o qual houver queixas que faça justiça ao queixoso”. Nesse
dia, o rei mantinha afastados todos quantos lhe eram próximos [e quem era forte
se tornava fraco para ele].
YAZDAGARD E O CAVALO
Os reis trilharam esse caminho e adotaram esse método até os dias de Yazdagard,
[360] que alterou os fundamentos do reinado, oprimiu as criaturas e as
corrompeu, até que certo dia surgiu um cavalo da mais extrema qualidade e
perfeição, a tal ponto que ninguém jamais vira nada igual a ele, à sua aparência e
perfeição de características. Esse cavalo entrou pela porta da casa do rei
Yazdagard, cujos soldados se ajuntaram para agarrá-lo, mas sem conseguir. O
cavalo se acercou do rei e parou quieto ao lado do seu aposento. Yazdagard
disse: “Afastai-vos desse cavalo! Que nenhum de vós se aproxime dele! Trata-se
de um presente de Deus altíssimo só para mim”. Levantou-se e começou a
acariciar vagarosamente a cara do cavalo, passando em seguida a alisar-lhe o
dorso, enquanto o cavalo se mantinha quieto, sem movimento. Yazdagard
mandou trazerem uma sela, colocou-a sobre o cavalo, amarrou o cinto, passou
por trás do cavalo a fim de amarrar-lhe a correia por trás, e então o cavalo lhe
deu um coice bem no coração que o fez despencar morto. Imediatamente o
cavalo saiu, sem que se soubesse de onde viera nem para onde fora. As pessoas
disseram: “Esse cavalo era um anjo mandado por Deus altíssimo para destruí-lo
e nos livrar de sua injustiça e opressão”.
A ADMINISTRAÇÃO DA JUSTIÇA
História Disse o juiz Abœ Yœsuf:[361] “Certo dia, Ya¬yå Ibn ¿ålid,[362] o
barmécida, veio ver-me no tribunal acompanhado de um seu litigante
zoroastrista, que fez queixas contra ele. Pedi-lhe uma testemunha e ele
respondeu: ‘Não tenho testemunhas. Faze-o jurar!’. Então fiz Ya¬yå jurar,
satisfazendo o seu litigante com tal juramento, e durante o julgamento equiparei
a ambos — pela glória do islã — sem favoritismo algum nem proteção a
ninguém, devido ao temor de que Deus me questionasse a respeito”.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Impõe-se a ti, ó sultão, conhecer o valor dos líderes e
dos grandes, e se impõe aos grandes que não oprimam os pequenos, que se
acautelem com os rogos do oprimido e que temam a opressão [daquele de quem
somente se escapa mediante o choro], pois não existem barreiras para os rogos
do oprimido, que são atendidos, em especial os rogos feitos durante a alvorada,
bem como as súplicas feitas na quietude da noite, dirigidas ao todo-poderoso, tal
como disse o poeta:

“Não te apresses à injustiça enquanto podes,
pois o fim dela é crime, temor e sofrimento;
dormes, mas o oprimido por ti não adormece,
e o seu rogo não esmorece diante de barreiras”.

Disse o mensageiro de Deus, sobre ele sejam as suas preces e saudações: “Fiquei
triste com a morte de quatro dos infiéis: [Kisrà] Anœ ¸irwån, por sua justiça,
Æåtim A††å’∑,[363] por sua generosidade, Imru’ Alqays,[364] por sua poesia, e
Abœ ˇålib,[365] por sua devoção filial.
OS REIS E OS BONS VIZIRES
Fica sabendo, ó rei venturoso, que o sultão é bem lembrado e valorizado graças
ao seu vizir, caso este seja bom, adequado e justo, pois nenhum rei pode utilizar
bem o tempo e administrar o poder sem um vizir. Quem se limita unicamente à
sua própria opinião falhará, sem dúvida. Acaso não vês que ao profeta, sobre ele
sejam as preces e saudações de Deus, a despeito da excelsitude do seu valor, da
magnificência do seu nível e da sua eloquência, Deus altíssimo e poderoso lhe
determinou que consultasse os seus companheiros ajuizados e sábios? Eis o que
disse o mais poderoso dos dizentes: “Consulta-os sobre as decisões [a tomar]”.
[366] E se informou em outro ponto, a respeito de Mœsà, sobre ele esteja a paz:
“E constitui para mim um vizir da minha família, o meu irmão Hårœn, e reforça
com ele a minha força, e associa-o ao que eu devo fazer”.[367] Se nem os
profetas, sobre eles seja a paz, puderam dispensar-se de vizires, as outras pessoas
têm deles necessidade ainda maior.
Perguntou-se a Ardaš∑r: “Qual dos companheiros é melhor para o rei?”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

761ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se perguntou a Ardaš∑r: “Qual dos
companheiros é melhor para o rei?”. Respondeu: “O bom vizir, ajuizado, solícito
e honesto, para com ele administrar as decisões e lhe segredar o que está
pensando”.[368] O rei deve lidar com o vizir mediante três coisas: a primeira, se
acaso ele incorrer em alguma falha ou se verificar alguma distração, não tratá-lo
senão com punição;[369] a segunda, se acaso o vizir enriquecer durante o
governo, e a sua sombra[370] se estender enquanto estiver a seu serviço, não lhe
cobiçar o dinheiro e a riqueza; a terceira, se acaso o vizir pedir para que lhe seja
atendida alguma questão, não hesitar em atendê-la. O rei também não deve
impedir o vizir de três coisas: não se subtrair quando o vizir quiser vê-lo, não
ouvir a seu respeito palavras de gente corrupta e não lhe ocultar nada do que lhe
vai pelo íntimo, pois o bom vizir é o que preserva os segredos do rei, lhe
administra as decisões, zela pela prosperidade das províncias e do tesouro, cuida
dos adornos do reino[371] e da força da autoridade; é ele quem detém a palavra
sobre as obras, ouve as respostas, faz a alegria do rei ao lhe reprimir os inimigos,
[372] constituindo-se, portanto, no mais merecedor de ser cativado, atendido,
bem valorizado e magnificado. Disse Kisrà Anœ ¸irwån ao filho: “Dignifica o
teu vizir, pois se acaso ele te vir fazendo algo que não deves, divergirá de ti”. O
vizir deve inclinar-se ao bem e precaver-se contra o mal. Se acaso o sultão for de
boa-fé e piedoso para com as criaturas, o vizir o ajudará nisso e lhe determinará
que amplifique tal proceder. Mas se o sultão for odioso e impiedoso, caberá ao
vizir orientá-lo a pouco e pouco, da maneira mais sutil, conduzindo-o ao
caminho louvável.
Perguntou-se a Bahråm G¯or: “Do que precisa o sultão para que o seu
sultanato se passe em alegria e em júbilo a sua época?”. Respondeu: “De seis
companheiros. Um bom vizir para quem revelar o que lhe vai pelo íntimo e com
o qual administre os pareceres e conduza as decisões. Um cavalo de raça que o
salve no dia da necessidade. Uma espada cortante e armas resistentes. Muitos
cabedais, leves de carregar e de pesado valor, tais como pedras preciosas, pérolas
e rubis. Uma boa esposa que lhe espaireça o coração e disperse as angústias. Um
cozinheiro experiente que, se acaso lhe sobrevier alguma constipação, lhe
prepare algo que o aliviará”.[373]
Sabedoria Disse Ardaš∑r: “É lícito que o rei procure quatro [pessoas], as
quais, encontradas, ele preservará: vizir honesto, escriba sábio, secretário
piedoso e conviva bom conselheiro,[374] pois, se honesto, o vizir assinalará a
manutenção do reinado; se sábio, o escriba assinalará o intelecto e a prudência
do rei; se piedoso, o secretário não incitará a cólera da população do reino contra
o rei; se bom conselheiro, o conviva assinalará a organização e bondade das
decisões”.
Sabedoria[375] O rei deve ser crente em Deus, e considerar que a sua força e
administração, o seu triunfo contra os inimigos, o bom auxílio [que recebe] e a
conquista dos seus objetivos provêm de Deus altíssimo, não devendo o rei cair
na autoadmiração, pois se ele o fizer temer-se-á por sua destruição, tal como
consta da crônica.
A RETIDÃO DO REI SULAYMÅN
História Conta-se que Sulaymån, a paz esteja com ele, estava sentado no trono
do reino quando o vento o elevou ao ar e carregou para o céu; enquanto ele
olhava espantado para o reino, para a obediência a ele devotada por gênios e
humanos e para a submissão deles à sua magnífica autoridade, o trono balançou
e esteve a ponto de virar de cabeça para baixo, e então Sulaymån, a paz esteja
sobre ele, lhe disse: “Fica reto!”. O trono se pronunciou respondendo: “Tu é que
deves ficar reto para que nós fiquemos retos”, [tal como] disse Deus altíssimo:
“Deus não modifica o que vai pelo [íntimo] de qualquer povo até que este povo
modifique o que lhe vai pelo íntimo”.[376]
MÁXIMAS E SENTENÇAS (VIII)
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] O vizir deve ser sábio, ajuizado, um xeique virtuoso,
pois o jovem, ainda que ajuizado, não terá a mesma experiência. E o aprendizado
das pessoas, com a experiência dos dias, não se dá senão por meio dos velhos.
Sendo o adorno do sultanato, o vizir necessita de cinco coisas: a vigilância, para
observar a correta maneira de sair de algo em que entrou; o saber, com o qual as
coisas ocultas se lhe tornam claras; a coragem, a fim de não temer coisas que não
constituem temor algum; a veracidade, a fim de não fazer com ninguém senão o
que é correto; e a guarda dos segredos do sultão, até que a morte o atinja.
Disse Ardaš∑r: “O vizir deve ser…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

762ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Ardaš∑r disse: “O vizir deve ser
experimentado a fim de facilitar as coisas para o rei; vigilante a fim de observar
as consequências das coisas; temente às mudanças dos destinos; e cuidadoso
para não ser atingido pelo olho do tempo”. Todo vizir que tiver amor ao seu rei e
com ele for piedoso terá muitos inimigos, e tais inimigos serão em maior número
que os amigos. O vizir deve ter métodos louváveis a fim de que, ao ver algum
proceder insensato no rei, demovê-lo para o hábito louvável, sem grosserias,
pois, se acaso o rei estiver fazendo algo indesejável, ao ouvir uma admoestação
que o desgoste passará a agir de maneira pior ainda. A prova disso é que o
criador — exalçado seja o seu poder —, quando enviou Mœsà, sobre ele seja a
paz, ao faraó, Deus o amaldiçoe, ordenou-lhe com o seu dizer: “Falai-lhe de
maneira afável”.[377] Assim, se Deus louvado e altíssimo ordenou ao seu
profeta que dissesse ao inimigo palavras afáveis, as pessoas [comuns] devem
com maior razão [tornar afáveis os seus dizeres].[378] Se o vizir tiver amor ao
rei, palavras corretas e boas ações, não será adequado que fique enumerando os
favores que lhe fez nem os jogue na sua cara.
Disseram as gentes de saber: “Se fizeres favores a alguém e te puseres a
enumerá-los, isso será pior do que jogá-los na sua cara”. O vizir e todos os
membros da corte real devem saber que, por mais numerosos que sejam, os
favores eventualmente feitos por eles se devem à boa acolhida do rei e à bênção
da sua sombra. O vizir[379] não deve encorajar o sultão à guerra e ao combate
em condições nas quais seja possível remediar a situação sem guerra, uma vez
que ela, em todas as situações, esgota as reservas e o dinheiro dos reis, nela se
desperdiçando as almas mais nobres. No “Livro das recomendações”, do adorno
dos sapientes:[380] “Toda questão que se resolva pelas mãos de outrem, sem
guerra nem violência, te é melhor do que aquela que resolves com as tuas
próprias mãos, por meio da guerra e da cólera”. Os sábios aplicam este
paradigma e dizem: “Deves pegar a cobra com as mãos de outrem”, e o que eles
pretendem dizer com isso é: os vizires tentam ao máximo possível guerrear por
meio de escritos, e quando não conseguem as coisas com artimanhas e
administração, esforçam-se para obtê-las por meio do dinheiro, das relações e
das mercês; quando o seu exército é derrotado, perdoam os delitos dos soldados
e não se apressam em matá-los, pois é possível matar os vivos, mas impossível
ressuscitar os mortos;[381] se acaso algum soldado dos companheiros do rei é
aprisionado, a obrigação do vizir é soltá-lo, pagar o seu resgate, libertá-lo e
comprá-lo, a fim de que os soldados ouçam a respeito e os seus corações se
fortaleçam para dar prosseguimento aos combates. O vizir deve preservar os
cabedais dos soldados, cada qual conforme o seu valor. Deve também adestrar os
homens corajosos com equipamentos de guerra e dirigir-lhes os melhores e mais
afáveis discursos, ainda que em tempos passados os soldados tenham matado
muitos vizires. Disse o mensageiro de Deus, sobre ele sejam as suas preces e
saudações: “Quando Deus quer o bem de algum homem, destina-lhe um bom
vizir que o lembra quando ele se esquece, e que o ajuda quando ele se lembra”.
[382]
Disse Buzurjmihr: “As coisas não se medem umas pelas outras porque a
essência do ser humano é mais excelsa do que qualquer essência. Todo o adorno
do mundo consiste nos seres humanos, e o criador — excelsa seja a sua força —
não se remete ao erro; ele concede a boa condição a quem quiser, dando a cada
ser humano o que é melhor para si e mais adequado”. Destarte, os vizires dos
reis devem possuir tais características e preservar as tradições e métodos dos
antigos, buscando o dinheiro que se recolhe dos súditos no tempo e momento
azados, quando for legal; que eles conheçam as tradições e só imponham aos
súditos o que lhes for suportável e conforme às suas forças, e que sejam em sua
caça como o caçador de grous, e não como o assassino de passarinhos, a fim de
que seja boa a sua memória neste mundo e que obtenham a melhor recompensa
na outra vida, se assim o quiser Deus altíssimo.
A IMPORTÂNCIA DOS ESCRIBAS E DA ESCRITA
Disse o mensageiro de Deus, sobre ele sejam suas preces e saudações: “A
primeira coisa criada por Deus altíssimo foi o cálamo, que escreveu tudo quanto
será até o dia do Juízo Final”. [Interpretando o seguinte versículo da história de
José, a paz esteja com ele]: “Faze-me responsável pelos cofres da terra, pois sou
um guardião sapiente”,[383] disse ¢Abdullåh Bin ¢Abbås,[384] esteja Deus
satisfeito com ambos: “Seu sentido é: torna-me encarregado dos tesouros da
terra, pois sou escriba e faço cálculos. E o cálamo é o produtor dos discursos”.
Disse o sábio Plínio:[385] “O cálamo é um grande talismã”. [Disse Ibn Almu
¢tazz:[386] “O cálamo é o metal, e o intelecto, a sua essência. O cálamo é pintor,
e a caligrafia é a sua arte”. Disse o sábio Galeno: “O cálamo é o médico do
discurso”]. Disse Alexandre: “O mundo está à mercê de duas coisas, a espada e o
cálamo, e a espada está à mercê do cálamo”. O cálamo faz parte do decoro dos
estudiosos, consistindo em sua mercadoria; é por meio dele que se conhece a
opinião de cada um, de perto ou de longe, e por mais que o homem seja
experimentado pelo tempo, se acaso ele não estudar nos livros, o seu intelecto
não será completo, pois o período da vida de um homem é sabido…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

763ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o período da vida de um homem é
sabido, como também é sabido [o quanto] neste período exíguo e nesta vida
curta lhe é possível aprender por meio das experiências e [quanto] ele preservará
no coração. A espada e o cálamo são árbitros em todas as coisas, e não fora eles
o mundo [não] se estabilizaria.
Quanto aos escribas, eles não devem conhecer mais que os limites da escrita a
fim de serem úteis no serviço dos notáveis.
Disseram os sábios e os reis antigos: “O escriba deve dominar dez coisas: a
proximidade e a distância da água sob a terra; a extração das coisas; o
encurtamento e o alongamento dos dias no verão e no inverno; a rota do sol, da
lua e das estrelas; a álgebra[387] e o cálculo com os dedos; cálculo de geometria
e de calendário; escolha dos dias adequados aos agricultores; medicina e
remédios; os ventos sul e norte; poesia e rima. E com tudo isso impõe-se ao
escriba que seja de espírito leve, agradável de encontrar, sabedor de como
apontar o cálamo[388] e cauteloso no [uso do] seu poder”.
Conta-se que o rei dos reis de Ray[389] tinha dez vizires, entre os quais
Aßßå¬ib Ismå¢∑l Ibn ¢Abbåd,[390] contra quem todos os demais se aliaram
para destruir, fazendo acordo para atacá-lo; disseram: “Aßßå¬ib não consegue
apontar o seu próprio cálamo”. Ao ser informado disso, o rei dos reis os reuniu e
Aßßå¬ib lhes disse: “Qual decoro vós possuís para vos atreverdes a falar na
presença do rei dos reis? Meu pai me ensinou o vizirato, e não a marcenaria, mas
a menor parte do meu decoro é o apontamento do cálamo. Agora, existe entre
vós alguém capaz de escrever uma carta com um cálamo de ponta quebrada?”.
Como o grupo se mostrasse incapaz daquilo, o rei dos reis disse a Aßßå¬ib:
“Escreve tu”. Então ele tomou um cálamo, quebrou-lhe a ponta e com ele
escreveu numa folha inteira, e o grupo admitiu o seu mérito, e lhe reconheceu o
decoro e a nobreza.
O melhor dos cálamos é o reto, de cor amarela, fino no meio, e o cálamo
cortado obliquamente do lado direito é bom para a caligrafia árabe, persa e
hebraica, ao passo que para a língua pahlevi o cálamo deve ser obliquamente
cortado do lado esquerdo. Os cálamos não podem ser nem grossos nem finos,
[devendo-se apontá-los com] uma faca aguda, de tal modo que a sua ponta fique
igual ao bico de um grou. O osso usado para apontar o cálamo deve ser firme ao
extremo. ¢Abdullåh Ibn Råfi¢, que era escriba do comandante dos crentes ¢Al∑
Ibn Ab∑ ˇålib, Deus esteja satisfeito com ele, disse: “Eu estava a escrever uma
carta quando ¢Al∑ me disse: ‘Prolonga a ponta do teu cálamo, aumenta o espaço
entre as linhas e deixa as letras mais ligadas, ¢Abdullåh’”.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] ¢Abdullåh Ibn Jibilla,[391] que era um escriba
generoso, disse [aos seus empregados]: “Que vossos cálamos sejam [abundantes]
como o mar, e se não forem, que sejam um zero.[392] Cortai os nós de vossos
cálamos a fim de que as coisas não fiquem cheias de nós. Não se deve enviar
uma carta sem selo, pois a dignidade da carta está no selo”. É de ¢Abdullåh Ibn
¢Abbås, esteja Deus satisfeito com ambos, [a interpretação do dizer do
altíssimo:] “Foi-me enviada uma carta digna”,[393] ou seja, selada. O profeta,
sobre ele sejam as preces e as saudações de Deus, ordenou que se escrevesse
uma carta aos persas e disse: “Eles nem olham para uma carta que não tenha
selo”, e a selou com o seu selo bendito, que era de prata, com três linhas
gravadas: “Não existe divindade senão Deus e Mu¬ammad é o mensageiro de
Deus”. Conta ØaΔr Bin ¢Amrœ[394] que o mensageiro de Deus, sobre ele sejam
as suas preces e saudações, ao escrever a sua carta ao Negus da Abissínia, jogou-
a por terra e só depois a enviou.[395] Disse o enviado de Deus, sobre ele sejam
as suas preces e saudações: “Colocai terra em vossas folhas, pois isso
proporcionará maior triunfo às vossas necessidades”.[396]
Quando o escriba redige a sua epístola, que a leia antes de dobrá-la, e, se ela
contiver erros, que os verifique e corrija. O escriba deve se esforçar para que o
discurso seja curto e o seu sentido, longo, e que não se repita a palavra já escrita.
[397]
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

764ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conte-nos uma de suas belas historinhas”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e
honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o escriba não deve repetir a palavra já
escrita, bem como acautelar-se de termos pesados e desagradáveis, a fim de ser
louvado. Como a respeito da escrita já existe muito discurso, baste-nos o tanto
que já dissemos, a fim de que não se torne longo.[398]
A ELEVAÇÃO DE DESÍGNIOS
Disse ¢Umar Ibn AlΔa††åb, Deus esteja satisfeito com ele: “Esforça-te para não
seres de baixos desígnios, pois eu nunca vi nada que rebaixe mais o valor de um
homem do que a baixeza de desígnios”. Disse ¢Amrœ Ibn Al¢åß,[399] Deus
esteja satisfeito com ele: “O homem coloca a alma onde quiser; caso a valorize,
seu valor se eleva, e, caso a rebaixe, diminui o seu valor”. E a interpretação do
sentido de “desígnio” é [que o homem] eleve a alma e não se apresse a fazer o
que não deve ser feito por alguém como ele, nem dizer coisas que os outros dirão
serem defeitos seus, e todo rei que não tiver tais características, que as aprenda
de seus vizires e cortesãos, tal como consta da crônica.
REIS NÃO DEVEM SER AVARENTOS
[História] Abœ Addawåniq ordenou que se dessem quinhentos dirhams a certo
homem. Disse então A¬mad Ibn AlΔa†∑b:[400] “O rei não deve gastar nada
cuja soma seja inferior a mil”. Certo dia, Hårœn Arraš∑d cavalgava com o seu
séquito quando caiu o cavalo de um membro de seu exército, e ele disse: “Que
lhe deem quinhentos dirhams!”. Então Ya¬yà Ibn ¿ålid lhe fez com o olho um
sinal que dizia: “Isso é um erro”. Quando descavalgaram, Hårœn lhe perguntou:
“Qual erro eu deixei escapar para que me fizesses um sinal com o olho?”. Ele
respondeu: “Não deve circular, pela língua de nenhum rei, menos de mil”.
Perguntou Hårœn: “E se ocorrer algo no qual não se deva dar mais do que
quinhentos, tal como agora, o que dizer?”. Respondeu: “Dize: ‘Que se lhe dê um
cavalo’, e então ele receberá um cavalo, conforme o hábito corrente, e tu
manterás os teus desígnios a salvo da menção desprezível”. Foi por esse motivo
que Alma’mœn afastou da sucessão o seu filho Al¢abbås. O fato foi que
Alma’mœn passava pelo aposento de Al¢abbås quando o ouviu dizendo a um
seu criado: “Rapaz, eu vi bons legumes na entrada de Arrußåfa[401] e fiquei
com vontade de comer. Toma meio dirham e vá lá me trazer um pouco”. Então
Alma’mœn disse: “Só agora fiquei sabendo que o dirham tem metade! Não
serves para herdeiro nem para a organização do reino. De ti não provirão coisas
boas nem êxito algum”.
História Conta-se que nas recomendações de Ardaš∑r ao seu filho constava o
seguinte: “Meu filho, se acaso quiseres conceder algo a algum dos teus filhos,
esforça-te para que a tua dádiva não seja menor que o valor dos proventos de
uma província, vila, cidade ou aldeia com campos cultivados, com os quais se
enriqueça [até mesmo] um homem de baixa condição e desapareçam as suas
carências, enriquecendo-se também os seus filhos e inclusive os filhos dos seus
filhos enquanto viverem, obtendo-se isso durante a vida, e não após a morte.
Esforça-te para não te apegares de modo algum ao comércio, pois tal coisa
indicaria a baixeza dos desígnios do rei”.
GOVERNO E COMÉRCIO
História Conta-se que o rei Hurmuzd Bin ¸åpœr[402] tinha um vizir que lhe
escreveu uma carta mencionando haverem chegado, por via marítima,
mercadores com pérolas, rubis e pedras preciosas de tamanho magnífico, “as
quais eu comprei deles, para o tesouro real, no valor de cem mil dinares. Agora,
compareceu aqui o mercador fulano de tal querendo comprar as joias por um
preço bem maior que o pago. Se o rei quiser, que dê a ordem com o seu parecer”.
O rei Hurmuzd lhe escreveu em resposta: “Cem mil a mais, cem mil a menos, é
tudo igual, não tendo aos nossos olhos uma importância que nos faça desejá-los;
ademais, se nós formos exercer o comércio, quem exercerá o poder? Olha bem, ó
ignorante da tua própria condição, e não tornes a repetir tais palavras, nem
mistures ao nosso dinheiro um só dirham, ou mesmo um único centavo, de
lucros com o comércio, pois isso faz decair o valor do rei, avilta-lhe o bom
nome, anuncia os seus maus fundamentos e decretos e lhe prejudica a
venerabilidade tanto durante a vida como depois da morte”.
O DESAPEGO DE CAMÅRA
História Conta-se que o comandante ¢Amåra Bin Æamza[403] estava sentado no
conselho do califa Almanßœr Abœ Addawåniq no dia em que este analisava as
queixas dos súditos, quando um homem se pôs de pé e disse: “Ó comandante dos
crentes, eu sou um injustiçado!”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

765ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que um homem se pôs de pé e disse: “Ó
comandante dos crentes, eu sou um injustiçado”. O califa perguntou: “Quem te
injustiçou?”. O homem respondeu: “¢Amåra Bin Æamza tomou à força minhas
aldeias, posses e propriedades”. Almanßœr disse então a ¢Amåra: “Levanta-te
do teu lugar e fica ao lado do teu querelante para o julgamento”. ¢Amåra disse:
“Ó comandante dos crentes, se as aldeias lhe pertencerem, eu não as disputarei
com ele, e se forem minhas eu lhas darei. Não tenho necessidade de julgamento
nem trocarei este meu lugar, com o qual o comandante dos crentes me
dignificou, por aldeias nem o que quer que seja”. Então os notáveis ali presentes
ficaram admirados com os seus elevados desígnios, a sua honradez e o seu brio.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] O desígnio e o [apetite insaciável][404] têm uma só
forma, e cada ser humano tem de ambos uma parte, um [com coragem e outro]
com generosidade, um oferecendo comida, outro agindo em prol do saber, outro
por meio da devoção, outro com a temperança, [outro com o ascetismo,
abandono do mundo e procura da outra vida, outro procurando ganhar mais.
Quanto ao desígnio da generosidade, da doação de dinheiro e da prestação de
favores, isso deve ser tal como consta da seguinte história.][405]
O DESAPEGO DOS BARMÉCIDAS
História Conta-se que Ya¬yà Bin ¿ålid, o barmécida, saiu a cavalo da sede do
califado e chegou à sua casa, a cuja porta viu um homem que, quando ambos se
aproximaram, acorreu até ele, saudou-o e disse: “Ó Abœ ¢Al∑, tenho
necessidade do que tens em mãos, e já fiz de Deus o meu instrumento para
chegar a ti”. Ya¬yà ordenou que reservassem um cômodo da casa para o homem,
lhe entregassem diariamente mil dirhams e que a sua comida fosse a dos
hóspedes especiais. O homem ficou nessa situação por um mês completo, ao
cabo do qual ele, tendo recebido trinta mil dirhams, recolheu o dinheiro e se
retirou. Questionado a respeito, Ya¬yà respondeu: “Por Deus que, se ele ficasse
comigo por toda a sua vida eu não lhe negaria o meu convívio nem a minha
hospitalidade”.
O DESAPEGO E A TOCADORA DE ALAÚDE
História Ja¢far Bin Mœsa Alhåd∑[406] tinha uma criada tocadora de alaúde
conhecida como Budœr, a grande, a qual não tinha naquele tempo ninguém que a
superasse na beleza facial nem na destreza da arte do canto e do dedilhar as
cordas. Tendo ouvido a respeito da criada, Mu¬ammad Alam∑n Ibn
Zubayda[407] tentou comprá-la de Ja¢far, que lhe disse: “Tu bem sabes que
alguém como eu não vende criadas nem entra em disputas por concubinas. Não
tivesse sido criada na minha casa,[408] eu a cederia para ti gratuitamente”. Mas,
[alguns dias] depois disso, Mu¬ammad Alam∑n Ibn Zubayda foi para a casa de
Ja¢far, que o instalou no cômodo onde se bebia, ordenando a Budœr que
cantasse para ele e o deixasse arrebatado. Mu¬ammad começou a beber e a se
arrebatar [com a música], também ordenando a Ja¢far que bebesse, até que,
tendo-o forçado a se embriagar, levou a criada consigo para a sua casa, sem no
entanto encostar a mão nela.[409] No dia seguinte, ordenou que Ja¢far fosse
convocado e, quando ele se apresentou, ofereceu-lhe bebida e ordenou que a
criada cantasse por detrás das cortinas. Ja¢far ouviu-lhe o canto mas nada falou
devido à dignidade dos seus desígnios, nem deixou escapar nenhuma alteração
em sua conversa. Em seguida, Mu¬ammad Alam∑n ordenou que se enchesse de
dirhams o barco no qual Ja¢far viera até ali. Conta-se que ele colocou no barco
mil bolsas de moedas que equivaliam, no total, a vinte mil dirhams,[410] a tal
ponto que os marinheiros pediram socorro e disseram: “O barco já não suporta
carregar mais nada”, e então ele ordenou que o dinheiro fosse levado à casa de Ja
¢far. Assim era o desígnio dos reis.
MAIS UMA HISTÓRIA DE DESAPEGO DOS BARMÉCIDAS
Contou Sa¢∑d Bin Sulaymån Albåhil∑:[411]
Minha situação ficou difícil no tempo de Hårœn Arraš∑d, pois acumulei
dívidas que fui incapaz de saldar e se me tornou impossível pagar, passando
então os credores a se aglomerar diante das minhas portas, e os cobradores, a se
atropelar, e os litigantes, a me perseguir. Desprovido de artimanha e cheio de
reflexões, fui atrás de ¢Abdullåh Bin Målik AlΔuzå¢∑[412] e lhe solicitei que
me desse a sua opinião e me guiasse à porta da libertação. Ele me disse:
“Ninguém pode salvar-te dessa provação, aflição, aperto e tristeza senão os
barmécidas”. Respondi: “E quem pode lhes suportar a arrogância e
prepotência?”. Ele respondeu: “Deves suportar isso para consertar a tua
situação”. Levantei-me então e fui até Alfa®l e Ja¢far, [os filhos de Ya¬yà Ibn
¿ålid], e relatei a ambos o meu tormento. Eles disseram: “Que Deus te ajude e te
proveja do suficiente!”.[413] Retornei a ¢Abdullåh Bin Målik AlΔuzå¢∑ com o
peito opresso, os pensamentos divididos, e lhe repassei o que ambos me haviam
dito. Ele respondeu: “Hoje te é necessário que permaneças aqui conosco a fim de
veres o que será e o que Deus altíssimo determinará”. Então fiquei na sua casa
por algum tempo, e eis que um criado meu entrou e me disse: “Meu senhor,
estão às nossas portas alguns jumentos…”.[414]
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

766ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Sa¢∑d Bin Sålim Albåhil∑ disse:
Eis que um criado meu entrou e me disse: “Meu senhor, estão às nossas portas
alguns jumentos carregados e um homem dizendo: ‘Eu sou o procurador de
Alfa®l e Ja¢far’”. ¢Abdullåh me disse: “Espero que a tua libertação já tenha
chegado! Levanta e vai ver qual é o caso”. Levantei-me, [saí correndo] e vi às
minhas portas um homem com uma folhinha na qual estava escrito:[415]
“Depois que foste embora de nossa casa, fomos até o califa e o pusemos a par da
situação que se abateu sobre ti, e então ele nos ordenou que carregássemos até ti,
da casa do tesouro, um milhão de dirhams. Perguntamos ao califa: ‘Estes
dirhams, ele os gastará com os seus credores, mas de onde extrairá os gastos
consigo mesmo?’, e então ele ordenou mais oitocentos mil dirhams, e nós
fizemos carregar, de nosso próprio dinheiro, mais um milhão e oitocentos mil
dirhams para com eles proveres as tuas necessidades”.[416]
O DESAPEGO DE KISRÀ
História[417] Conta-se que, enquanto Kisrà Anœ ¸irwån bebia com os seus
comensais, um deles roubou uma taça de ouro cravejada de pedras preciosas que
estava no local. Anœ ¸irwån o viu. Quando o copeiro procurou a taça e não a
encontrou, mandou anunciar no local: “Ó participantes, perdemos uma taça de
ouro. Ninguém vai sair, de jeito nenhum, até essa taça ser devolvida”. Anœ
¸irwån disse ao copeiro: “Deixa-os saírem, pois quem roubou a taça não a
devolverá, e quem o viu não o denunciará”.[418]
O DESAPEGO E A TRAIÇÃO
História[419] Conta-se que, por volta da época em que se voltou contra os
barmécidas, Hårœn Arraš∑d convocou Øåli¬[420] e lhe disse: “Øåli¬, vai até
Manßœr [Bin Ziyåd][421] e dize-lhe: ‘Tua dívida para conosco é de dez
milhões[422] de dirhams, e queremos que a pagues agora’. Se ele não pagar até
o entardecer, corta-lhe a cabeça e traze-a para mim”. Disse Øåli¬:
Fui então até Manßœr e o pus a par do que dissera Arraš∑d quanto à política a
adotar consigo. Ele me disse: “Estou morto, por Deus!”, e jurou que o valor de
todos os seus cabedais e haveres não ultrapassava cem mil dirhams. Então eu lhe
disse: “Prepara alguma artimanha para o caso, pois eu não me posso tardar nem
ser parcial no que ele me determinou”. Ele disse: “Perdoa-me, Øåli¬, e me
conduz aos meus parentes e filhos para eu me despedir”. Fui com ele, que se pôs
a despedir-se dos seus parentes, e pela casa o som do choro e a gritaria dos
pedidos de socorro se elevaram. Eu lhe disse: “Talvez consigas algum alívio por
intermédio dos barmécidas. Vamos até Ya¬yà Ibn ¿ålid”, e então nos
encaminhamos até ele. Como Manßœr chorava e gritava, Ya¬yà percebeu qual
era a sua situação e o que o atingira, ficando muito aflito com aquilo e abaixando
a cabeça em direção ao solo durante algum tempo, após o que a ergueu, chamou
o seu tesoureiro e lhe perguntou: “Quantos dirhams temos em nosso depósito?”.
O homem respondeu: “A quantia de cinco milhões de dirhams”, e Ya¬yà lhe
ordenou que os trouxesse; depois, mandou um emissário a [seu filho] Alfa®l e
lhe disse: “Dize-lhe que me foi oferecida a venda de aldeias excelentes, que não
se esgotam nem se arruínam nunca; por favor, envia-nos alguns dirhams”, e
então o pai lhe enviou dois milhões de dirhams; enviou ainda uma pessoa a [seu
filho] Ja¢far e lhe disse: “Dize-lhe que nos ocorreu um compromisso e
precisamos de alguns dirhams”, e então Ja¢far lhe enviou dois milhões de
dirhams. Ya¬yà disse: “Agora ajuntamos nove milhões de dirhams”. Manßœr lhe
disse: “Meu amo, estou agarrado à tua cauda, e não conheço este dinheiro senão
graças à tua generosidade; completa, pois, o restante da minha dívida”. Ya¬yà
abaixou a cabeça, chorou e disse: “Criado, o comandante dos crentes deu à nossa
criada [Danån∑r] uma pedra preciosa de valor formidável; vai até ela e dize-lhe
que me envie tal pedra”. O criado foi até ela, informou-a, e ela enviou a pedra.
Ya¬yà me disse: “Øåli¬, fui eu que comprei dos mercadores esta pedra para o
comandante dos crentes, por um milhão de dirhams, e ele a deu de presente para
[a nossa criada] Danån∑r, a tocadora de alaúde. Se acaso ele vir essa pedra, irá
reconhecê-la. Agora se completou o dinheiro da expropriação dos bens de
Manßœr. Dize ao comandante dos crentes que o entregue a nós”. Fui então, com
o dinheiro e a joia, até Arraš∑d, e enquanto estávamos a caminho…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

767ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que Øåli¬ disse:
Enquanto eu e Manßœr estávamos a caminho, eis que o ouvi citando como
paradigma um verso, e me espantei de sua vileza e sordidez. Eis o verso:

“Não me compraste por apego a mim,
Mas para livrar-te das setas, isso sim!”.[423]

[Prosseguiu Øåli¬:] Aborrecido com ele, eu lhe disse: “Que morras! Não existe
na face da terra ninguém mais generoso que os barmécidas, nem mais malvado
do que tu! Eles se associaram e te salvaram da morte, mas tu não lhes agradeces
nem os louvas”. Em seguida, fui até Arraš∑d, contei-lhe o que se passara e ele,
pasmado com a generosidade e o brio de Ya¬yà e com a baixeza de Manßœr,
ordenou que a pedra preciosa fosse devolvida a Ya¬yà [dizendo: “Uma coisa que
damos de presente não deve retornar a nós”].
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Øåli¬ retornou até Ya¬yà e lhe contou a história de
Manßœr e o seu mau proceder, e ele respondeu: “Quando o homem está em
penúria, o peito opresso, o coração turvado, pensando nas dificuldades de
provisão, tudo quanto diz não provém do coração”, e pôs-se a pedir desculpas
por Manßœr. Então Øåli¬ chorou e disse: “Este planeta rodante não tornará a
trazer à existência um homem como tu. Oh, tristeza, como é que poderá um
homem como tu desaparecer sob a terra!”.
UMA FALSIFICAÇÃO OPORTUNA
História Conta-se que havia entre o barmécida Ya¬yà Bin ¿ålid e ¢Abdullåh Bin
Målik AlΔuzå¢∑ uma hostilidade secreta que eles não demonstravam, e cujo
motivo [era que Hårœn Arraš∑d tinha por ¢Abdullåh um afeto tão extremado
que Ya¬yà e os seus filhos diziam que ele enfeitiçava o comandante dos crentes].
Passaram um bom tempo com aquele rancor no coração. Então Arraš∑d nomeou
¢Abdullåh governador da Armênia, e para lá o enviou. Depois, um iraquiano de
inteligência e decoro — que empobrecera e cujo dinheiro se acabara —
falsificou uma carta, que seria dirigida de Ya¬yà para ¢Abdullåh, e com ela
viajou até a Armênia. Quando chegou à porta da casa do governador, entregou a
carta a um dos secretários, e este a levou e entregou para ¢Abdullåh, que lhe
rompeu o lacre, leu, percebeu que era falsificada [e permitiu que o homem
entrasse]. Depois que o homem entrou, cumprimentou-o e rogou por ele,
¢Abdullåh lhe disse: “Suportaste os sofrimentos da jornada para me trazeres uma
carta falsificada? Contudo, fica tranquilo e não te aflijas, pois não frustaremos o
teu esforço”. O homem disse: “Que Deus prolongue a vida do comandante! Se a
minha chegada te foi pesada, não é necessária muita argumentação para evitar-
me, pois este mundo de Deus é vasto, e ele, que dá a riqueza, está vivo e firme, e
a carta que eu trouxe é verdadeira e não falsificada”. ¢Abdullåh lhe disse:
“Estabelecerei contigo duas condições. Escreverei uma carta ao meu procurador
em Bagdá determinando-lhe que pergunte sobre a situação desta carta que
trouxeste. Se ela for verdadeira, te entregarei a direção de uma das minhas terras,
mas se preferires presentes te darei duzentos mil dirhams mais um cavalo,
roupas honoríficas e outras honrarias. Agora, se a tua carta for falsificada
ordenarei que recebas duzentas pauladas e que o teu rosto seja raspado”. Em
seguida, ordenou que o homem fosse hospedado num quarto e lhe dessem
comida e tudo o mais quanto necessitasse, escrevendo então a seguinte carta ao
seu procurador em Bagdá: “Veio até mim um homem com uma carta de Ya¬yà
Bin ¿ålid, mas, como não conjecturo coisa boa, impõe-se que tu investigues este
caso, a fim de discernires a verdade da mentira, e depois me coloques a par da
resposta”. Quando a carta de ¢Abdullåh chegou, o procurador cavalgou e se
dirigiu até a casa de Ya¬yà Bin ¿ålid, a quem encontrou sentado com os seus
convivas e amigos particulares. Entregou-lhe a carta, Ya¬yà rompeu o lacre, leu-
a e disse ao procurador: “Retorna amanhã, para que eu te escreva a resposta”, e o
homem se retirou. Em seguida, Ya¬yà se voltou para os seus convivas e
perguntou: “Qual a punição de quem porta uma carta em meu nome, mas
falsificada, para um inimigo meu?”. Cada um dos presentes se pôs a lhe
enumerar uma espécie de castigo e uma forma de tortura, até que ele lhes disse:
“Estais equivocados! Isso que citais faz parte da baixeza de desígnios. Vós todos
conheceis ¢Abdullåh, sabeis da sua proximidade para com o comandante dos
crentes e tendes ciência do ódio e da hostilidade existentes entre mim e ele.
Agora, porém, Deus fez desse homem um intermediário para a paz entre nós, e
no-lo enviou a fim de apagar de nossos corações um rancor de vinte anos.
Impõe-se que eu seja leal às esperanças desse homem e lhe concretize as
aspirações. Escreverei, em seu favor, uma carta para ¢Abdullåh pedindo-lhe que
o dignifique e o atenda”. Quando ouviram aquilo, os convivas rogaram todo o
bem para Ya¬yà…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

768ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, quando ouviram aquilo, os convivas
rogaram todo o bem para Ya¬yà e se espantaram com a sua nobreza. Então ele
pediu tinteiro, papel e escreveu para ¢Abdullåh, com a sua própria mão, uma
carta que, após a basmala,[424] continha o seguinte: “Chegou-me a tua carta,
cujo lacre eu rompi e a li. Fiquei contente por estares bem. Tua suposição foi a
de que esse homem livre falsificou a carta, colocando palavras em minha boca,
mas isso não está correto. A carta foi escrita por mim, e com a minha própria
mão eu a enviei. Minha expectativa em relação à tua nobreza é que atenderás as
esperanças desse homem livre e nobre, cuja respeitabilidade de propósitos
conhecerás, e que lhe dedicarás abundantes benesses e muito reconhecimento.
Tudo quanto fizeres por ele, serei eu o penhorado e o agradecido”. Em seguida,
escreveu a destinação da carta, selando-a e entregando-a ao procurador, que por
sua vez a enviou a ¢Abdullåh, o qual, ao lê-la, se regozijou com o seu conteúdo,
mandou chamar o homem e lhe perguntou: “Qual das duas coisas que te
mencionei preferes?”. O homem respondeu: “Os presentes me são preferíveis”.
Então ¢Abdullåh ordenou que lhe dessem dois mil dirhams, dez cavalos árabes,
cinco dos quais com estribos adornados e [cinco com alcofas], vinte armários
cheios de roupas, dez escravos que sabiam cavalgar e tudo quanto convinha de
pedras preciosas coloridas, enviando-o em companhia segura para Bagdá. Assim
que se viu com os seus familiares, o homem se dirigiu às portas de Ya¬yà Bin
¿ålid e pediu permissão para vê-lo. O secretário foi até Ya¬yà e lhe disse:
“Patrão, está à porta um homem de evidente respeitabilidade, feições agradáveis,
de boa condição e com muitos criados”, e então se autorizou a sua entrada. O
homem beijou o solo diante de Ya¬yà, que lhe disse: “Eu não te conheço”. Ele
respondeu: “Eu era um homem morto pelas injustiças do tempo, e tu me
ressuscitaste e devolveste à vida. Fui eu que levei a carta falsificada em teu
nome para ¢Abdullåh Bin Målik”. Ya¬yà perguntou: “E o que ele fez contigo? O
que te deu e com que te presenteou?”. O homem respondeu: “Com a tua bênção
e por mercê da tua sombra, do teu desígnio e do teu mérito, ele me deu e
presenteou. Trouxe comigo tudo quanto ele me deu, e está aqui à tua porta. O
assunto te pertence e o julgamento está em tuas mãos”. Ya¬yà lhe disse: “O que
fizeste por mim é mais do que fiz por ti. Tens a minha enorme gratidão e a mão
generosíssima, pois transformaste em amizade a inimizade que havia entre nós e
aquele homem venerável. Foste o motivo disso e eu te presentearei com a mesma
quantia de dinheiro com a qual ele te presenteou”, e ordenou que lhe dessem o
mesmo que ¢Abdullåh havia dado. Olha bem para o caráter desses dois homens
generosos.[425]
QUAL O CLÃ MAIS GENEROSO?
História Conta-se que dois escravos puseram-se a disputar os méritos dos clãs
aos quais pertenciam, um deles ao clã hachemita, e o outro ao clã omíada.[426]
Cada um deles dizia: “Meus senhores são mais generosos que os teus”. Então
combinaram: “Vamos agora experimentá-los”. O escravo dos omíadas foi a um
dos seus senhores, [queixou-se de dificuldades e reclamou da pobreza,] e o
senhor lhe deu dez mil dirhams. Então ele passou por dez dos seus senhores, e
cada qual lhe deu dez mil dirhams, com o que ele ajuntou cem mil dirhams e foi
dizer ao outro escravo: “Agora vai tu aos hachemitas, experimenta-os e observa-
lhes a generosidade”. O escravo dos hachemitas foi então até Al¬asan Ibn ¢Al∑,
[427] que Deus esteja satisfeito com ambos, e reclamou da sua situação,
mencionando a pobreza em que vivia. Al¬asan lhe deu cem mil dirhams. Em
seguida, o escravo foi até ¢Abdullåh Bin [Ab∑] Rab∑¢a,[428] que lhe deu
outros cem mil dirhams; então, ele foi com o dinheiro até o escravo dos omíadas
e lhe disse: “Os teus donos aprenderam a generosidade com os meus senhores.
Mas vamos experimentá-los novamente devolvendo-lhes o dinheiro”. O escravo
dos omíadas foi até eles e disse: “Já não preciso destes dirhams, pois Deus me
facilitou outro lugar onde resolver a minha pobreza, e por isso não tenho
necessidade deste dinheiro”. E cada um deles recebeu de volta o seu dinheiro, os
seus dirhams. O escravo dos hachemitas levou o dinheiro aos seus senhores e
lhes disse: “Obtive, em outro lugar, o suficiente para eliminar a minha carência e
acabar com a minha pobreza, e agora devolvo o dinheiro que de vós eu
levara…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

769ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o escravo dos hachemitas disse: “E
agora devolvo o dinheiro que de vós eu levara”. Eles disseram: “Nós não
recebemos de volta nada que tenhamos dado, nem misturamos as nossas doações
com o nosso dinheiro. Portanto, se desse dinheiro já não tens necessidade, doa-o
como esmola”.
A DIGNIFICAÇÃO DO NOME
História ¢Abdul¢az∑z Bin Marwån[429] era comandante no Egito e certo dia,
cavalgando, passou por um local e eis que assim um homem chamava o filho:
“Ó ¢Abdul¢az∑z”. O comandante ouviu o chamado e ordenou que dessem ao
homem dez mil dirhams a fim de que os gastasse com aquele menino que era o
seu xará. Então a notícia se espalhou [no Egito] e, naquele ano, todo aquele que
teve um filho lhe deu o nome de ¢Abdul¢az∑z.[430]
MÁXIMAS E SENTENÇAS (IX)
Sobre esse assunto a conversa seria longa, e assim estenderíamos demais [o
livro. O que deves saber é que] o elevado desígnio, ainda que tarde, um dia
haverá de fazer o homem chegar ao seu intento, tal como disse o poeta:

“Se eu estiver buscando, a serviço do sultão,
sustento, de seus criados eu seria o mais diserto.
Busco glória e, não fosse minha plena certeza
de que a conseguirei, eu jamais a procuraria”.

[É louvável no homem que ele não ultrapasse, com o seu desígnio, a medida do
seu destino e capacidade, a fim de não viver aflito por toda a sua vida e
existência.] Outrem disse a seguinte poesia:

“Se te contentas com o suficiente, não verás
na vida ninguém mais confortável que tu.
Mas se ambicionares muito mais que isso,
o mundo e tudo quanto tem não te bastará.
De que adiantam os teus altos desígnios, se
não servem para atingir aquilo que se almeja?”.

Disse Hipócrates:[431] “Aquele a quem Deus deu sabedoria mas que deseja
dinheiro é como quem, estando com boa e íntegra saúde, troca-a pela fadiga e
pela doença, pois o fruto da sabedoria é a tranquilidade e a elevação, ao passo
que o fruto do dinheiro é a fadiga e o sofrimento”. Disse alguém:[432] “Os reis
da Índia tinham livros em tal quantidade que os elefantes os carregavam, daí eles
terem ordenado aos seus homens sapientes que os resumissem, e então os sábios
chegaram a um acordo para resumi-los em quatro formulações: a primeira,
‘justiça’, para os reis; a segunda, ‘obediência’, para os súditos; a terceira, ‘não
comer até a hora da fome’, para a alma; a quarta, ‘não olhar para si mesmo’, para
o ser humano.[433]
História Disse certo sapiente: “Os homens são [quatro]. O homem que entende
e sabe que entende; é o sábio, e deveis segui-lo. O homem que entende e não
sabe que entende; é o esquecido, e deveis lembrá-lo. [O homem que não entende
e sabe que não entende; é alguém à procura de orientação, e deveis orientá-lo.] O
homem que não entende e não sabe que não entende; é o ignorante, e deveis
tomar cuidado com ele”.
Perguntou-se a certo sapiente: “O que está mais perto?”. Ele respondeu: “O
fim”. Então se perguntou: “E o que está mais distante?”. Ele respondeu: “A
esperança”. Disse Ala¬naf Bin Qays: “Há duas coisas contra as quais nenhuma
artimanha resolve: quando o fim se aproxima não existe artimanha para fugir
dele, e quando a esperança foge não existe artimanha para se aproximar dela”.
[434] Disse o sapiente Luqmån[435] ao seu filho: “Há duas coisas que,
preservadas, te pouparão depois de preocupações com o que fizeres: o teu
dinheiro para a tua vida, e a tua fé para a tua outra vida”. Perguntou Anœ ¸irwån
a Buzurjmihr: “Por qual motivo o amigo pode virar inimigo e o inimigo não
pode virar amigo?”. Respondeu: “Porque arruinar o que está construído é mais
fácil do que construir o que está arruinado”.[436] E disse [Buzurjmihr]: “A
sanidade do corpo é preferível ao consumo de remédios; o abandono do pecado é
preferível ao pedido de perdão; a repressão do desejo é preferível à [repressão
da] tristeza; a desobediência às paixões da alma é preferível à entrada no fogo”.
Sabedoria Certo homem de tempos antigos vagou pelo mundo durante vários
anos ensinando às pessoas estas palavras: “Quem não tem saber não tem força
neste mundo nem na outra vida; quem não tem paciência não é íntegro em sua fé
[e em seu mundo]; quem não tem piedade não tem nobreza perante Deus; quem
não tem generosidade não terá sorte com dinheiro; e quem não tem bons
conselhos não tem argumento perante Deus”.
Sabedoria Perguntou-se a Buzurjmihr: “Qual é a força que está ligada à
humilhação?”. Respondeu: “A força a serviço do sultão, a força da cobiça e a
força da compaixão”. Também se perguntou a ele: “Como educar os fátuos?”.
Respondeu: “Ordenando-lhes que façam muitas atividades e utilizando-os nos
serviços mais pesados, de modo a não lhes deixar espaço para exercer a
curiosidade”. Perguntou-se-lhe: “E como educar os inúteis?”. Respondeu: “Com
humilhação e desprezo, a fim de que saibam a baixeza de sua condição”.
Perguntou-se-lhe: “Como educar os de nobre origem?”. Respondeu: “Não lhes
satisfazendo sempre as necessidades”. Perguntou-se-lhe também sobre o
generoso, e ele respondeu: “É aquele que dá e não lembra que deu”. Perguntou-
se-lhe: “Por que as pessoas arruínam a vida pelo dinheiro?”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

770ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se perguntou a Buzurjmihr: “Por que
as pessoas arruínam a vida pelo dinheiro?”. Respondeu: “Porque elas supõem
que o dinheiro é a melhor das coisas, e ignoram que aquilo que torna o dinheiro
desejável é melhor que o dinheiro”. Perguntou-se-lhe ainda: “Existe algo tão
mais caro que a vida que faça as pessoas darem as suas vidas sem
questionamento?”. Respondeu: “Três coisas são mais caras que a vida: a fé, o
intelecto[437] e o livrar-se de tormentos”. Perguntou-se-lhe igualmente: “Com o
que se adorna o saber, a liberalidade e a coragem?”. Respondeu: “O adorno do
saber é a veracidade; o da liberalidade, o sorriso; o da coragem, o perdão quando
se detém a força”.
Disse o vizir Yœnån: “Quatro coisas consistem em enormes desgraças: ter
muitos filhos e pouco dinheiro, mau vizinho, esposa sem vergonha nem
dignidade e afeto de gente iníqua”.
Os mundanos[438] concordaram que todas as atividades concernentes ao
mundo são de vinte e cinco espécies. Cinco delas pertencem ao juízo e decreto
divinos, e são: busca de esposa, de filho, de dinheiro, de posses e de prestígio.
Cinco delas pertencem à labuta e ao esforço, e são: o saber, a escrita, o heroísmo,
a entrada no paraíso e a salvação do fogo. Cinco delas pertencem à natureza: a
lealdade, a tolerância, a modéstia, a generosidade e a veracidade. Cinco delas
pertencem ao hábito: caminhar, comer, dormir, copular, urinar e defecar.[439]
Cinco delas pertencem ao decoro: capacidade de suportar,[440] bom caráter,
elevação de desígnios, orgulho e afabilidade.[441]
Consta que três calamidades não devem ser olvidadas pelos inteligentes: a
finitude e o término do mundo, a reviravolta das circunstâncias do tempo e as
provações dos séculos. E seis coisas equivalem ao mundo todo: comida
saborosa, filho de membros sadios, companheiro cordato, comandante piedoso,
discurso bem ordenado e intelecto pleno. Disse o sapiente: “Cinco coisas se
perdem ante outras cinco: a lâmpada ante o sol, a chuva ante a região estéril, a
mulher bela ante o cego, a boa comida ante o saciado, e a palavra de Deus
altíssimo ante o peito do opressor”.
Perguntou-se a Alexandre: “Por que dignificas o teu mestre mais do que o teu
pai?”. Respondeu: “Porque o meu pai é o motivo da minha vida finita, ao passo
que o meu mestre é o motivo da minha vida duradoura”. E continuou: “Se as
coisas ocorressem conforme a destinação que lhes dá Deus altíssimo, então o
esforço seria proscrito, e quem o abandonasse, louvado”. E disse também: “Se o
tempo não anda contigo conforme queres, então anda tu conforme ele quer, pois
o homem é escravo do tempo, e o tempo é inimigo do homem. A cada respirada
que dá, o homem se afasta da vida e se aproxima da morte”.
Sabedoria Um grupo perguntou a Buzurjmihr: “Dentre as partes da sabedoria,
ensina-nos o que é benéfico aos nossos espíritos e corpos, a fim de que nele nos
apliquemos, e o que lhes é nocivo, a fim de que dele nos afastemos. E que Deus
te recompense por essa boa ação”. Ele respondeu: “Sabei e tende certeza de que
quatro coisas aumentam a luz dos olhos e tornam a vista mais aguda, e outras
quatro lhe diminuem a luz; quatro coisas engordam o corpo e lhe dão volume, e
outras quatro o emagrecem e subtraem volume; [quatro coisas tornam o corpo
sadio, e outras quatro o debilitam;] quatro coisas ressuscitam o coração, e outras
quatro o fazem morrer. Quanto às quatro coisas que aumentam a luz dos olhos,
são elas o verde, a água corrente, a bebida[442] pura e a visão da face dos
amados; quanto às quatro que lhe diminuem a luz, são elas comer comida
salgada, despejar água quente na cabeça, olhar fixamente para o sol e ver o
inimigo. Quanto às quatro que engordam e aumentam o volume do corpo, são
elas o uso de roupas finas, a inexistência de tristezas na mente, o aroma
agradável e o sono em local aquecido; quanto às quatro que o emagrecem, são
elas o consumo de carne seca, o excesso de cópula, a permanência prolongada
no banho público e o uso de roupas grosseiras. Quanto às quatro coisas que
deixam o corpo sadio, são elas a alimentação no momento correto, o respeito
pelo destino das coisas, o evitar atividades exaustivas e o abandono da tristeza;
quanto às quatro que o fragilizam, são elas o trilhar caminhos inóspitos, montar
cavalo indócil, caminhar após ter se exaurido e copular com velhas. Quanto às
quatro coisas que ressuscitam o coração, são elas o intelecto útil, o professor
sábio, o sócio honesto, a esposa cordata e o amigo prestativo;[443] quanto às
quatro que o fazem morrer, são elas o frio cortante, o calor dos venenos, a
fumaça detestável e o medo ao inimigo”.
Disse o sapiente Sócrates: “São cinco as coisas com as quais o homem se
aniquila: enganar os amigos, distrair-se do trabalho, desprezar-se a si mesmo,
suportar a arrogância de quem não presta e seguir as paixões”. E disse
Hipócrates: “Cinco não enjoam de cinco: o olho, de olhar; a fêmea, do macho; o
ouvido, de notícias; o fogo, de madeira; e o sábio, de saber”.
Sabedoria Perguntou-se a um sapiente: “Qual a coisa mais amarga?”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a


771ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se perguntou a um sapiente: “Qual a
coisa mais amarga do mundo, e qual a mais doce?”. Ele respondeu: “A coisa
mais amarga é ouvir palavras grosseiras de quem não tem valor, ter dívidas
[enormes] e estar em estado de penúria. E as coisas mais doces são os filhos, as
boas palavras e a prosperidade”. Perguntou-se a [outro] sapiente: “O que é a
riqueza?”. Respondeu: “A temperança e a satisfação”. Perguntaram: “O que é o
apaixonar-se?”. Respondeu: “Doença do espírito e morte na tristeza”. Perguntou-
se a [outro] sapiente: “O que é a morte? E o que é o sono?”. Respondeu: “O sono
é uma morte leve, e a morte é um sono pesado”. Perguntou-se a Aristóteles:
“Qual é o amigo mais confiável, e o companheiro mais compassivo?”.
Respondeu: “O amigo legítimo é o mais confiável, e o companheiro mais antigo
é o mais compassivo, e a administração dos inteligentes é a melhor”. Disse
Galeno: “Sete coisas trazem o esquecimento: ouvir discursos grosseiros que o
intelecto não concebe, fazer sangria na cerviz,[444] urinar em águas paradas,
comer comida azeda, olhar na face do morto, dormir em excesso e fixar o olhar
em ruínas”. E ele também disse no “Livro dos remédios”: “O esquecimento
provém de sete coisas: a bílis, a gargalhada, a comida salgada, a carne gorda, o
excesso de cópula, a insônia com fadiga e toda espécie de [comidas] frias e
úmidas, [cuja ingestão] prejudica o corpo e deixa como sequela o
esquecimento”.
Sabedoria Disse o sapiente Abœ Alqåsim:[445] “As seduções do mundo
provêm de três elementos: do transmissor das notícias, do buscador das notícias
e do receptor das notícias. Esses três nunca se livram de censuras”. Disse certo
sapiente: “Três coisas não se juntam com outras três: alimento lícito com corrida
atrás dos desejos, piedade com prática de cólera, e veracidade no discurso com
tagarelice”. Disse Buzurjmihr: “Se pretendes fazer parte dos santos,[446]
transforma o teu caráter em caráter infantil”. Perguntaram-lhe: “Como fazer
isso?”. Respondeu: “As crianças têm cinco características que, estivessem nos
adultos, torná-los-iam santos, e que consistem no seguinte: não se afligem com a
riqueza, quando adoecem não duvidam do seu altíssimo criador, alimentam-se
em grupo, quando disputam alguma coisa não sentem rancor e rapidamente
fazem as pazes, são enganadas e se amedrontam com qualquer coisa, e seus
olhos vertem lágrimas”. Disse Wahb Ibn Munabbih: “Existem na Torá quatro
formulações registradas: todo sábio que não teme a Deus é como um ladrão, todo
homem desprovido de intelecto é exatamente igual a uma besta, todo rico que
não dá descanso ao corpo está no mesmo nível do serviçal, e todo pobre que se
humilha para um rico por causa da sua riqueza é do mesmo nível de um
cachorro”.
Sabedoria Disse o sapiente: “O homem não deve ser serviçal com o seu
coração, nem ousado com o seu corpo, nem idiota com o seu hábito, ou seja,
deve ficar além do bom e do ruim. E também deve [esperar] ouvir palavras
sapientes de quem não é sábio, pois às vezes se acerta o alvo sem querer”.[447]
Disse Ala¬naf Bin Qays: “Não existe amizade para com o escravo, nem lealdade
para com o mentiroso, nem descanso para com o invejoso, nem afabilidade para
com o vil, nem cuidados para com o mau-caráter”.[448]
História Disse flœ Arriyåsatayn:[449] “Um homem se queixou de um
adversário a Alexandre, que lhe perguntou: ‘Gostarias que eu ouvisse as tuas
palavras a respeito dele com a condição de ouvir as palavras dele a teu
respeito?’, e o homem teve medo e voltou atrás. Alexandre disse então: ‘Afastai
vossa língua dos outros a fim de ficardes a salvo dos perversos’ ”.
Sabedoria Disse Buzurjmihr: “A sanidade está em [quatro] coisas: sanidade da
fé, sanidade do dinheiro, sanidade do corpo [e sanidade da família]. Quanto à
sanidade da fé, está ela em três coisas: o não correres atrás das paixões, o agires
conforme os mandamentos da lei religiosa e o não invejares ninguém. Quanto à
sanidade do dinheiro, [ela está em três coisas: cuidado] no olhar, cumprimento
do que te foi confiado e fazê-lo render licitamente. Quanto à sanidade do corpo,
[ela está em três coisas:] alimentação parcimoniosa, poucas palavras e pouco
sono. Quanto à sanidade da família, ela também está em três coisas: temperança,
boa convivência e perseverança na obediência a Deus”. Perguntou-se a Æåtim
Alaßamm:[450] “Por que motivo não temos o que tiveram os antigos?”.
Respondeu: “Porque vos faltam cinco coisas: mestre conselheiro, companheiro
cordato, esforço permanente, ganhos lícitos e tempo que ajude”. Consta nas
crônicas que o mensageiro de Deus, sobre ele estejam suas preces e saudações,
disse: “¢Al∑, olha para mim e me entrega teu coração e audição. [Come] e
encobre, prepara-te, teme e sê forte”. Perguntou ¢Al∑, Deus esteja com ele
satisfeito…
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa,
gostosa e saborosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-
lhes na próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e sensato me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a


772ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que ¢Al∑ perguntou: “Qual o sentido
dessas palavras, ó mensageiro de Deus?”. Respondeu o mensageiro de Deus:
“[Come] a tua cólera, encobre o erro do teu irmão, teme a opressão do opressor,
prepara-te para aquele túmulo apertado e escuro, e sê forte na fé do islã”.
Sabedoria Um homem disse a certo sábio: “Faze-me recomendações”. O sábio
respondeu: “Observa as decisões dele, procura-lhe a satisfação e evita-lhe a
secura”.[451] Perguntou-se a alguém: “O que mais existe entre as criaturas?”.
Respondeu: “A administração, mas não o quanto merece, [pois o excesso não
elimina a necessidade]. O homem cobiça tudo, com exceção da pobreza, que
ninguém cobiça, pois todos buscam a riqueza. Ninguém tampouco cobiça a
aflição, pois todos buscam a alegria e cobiçam a felicidade. Ninguém tampouco
cobiça a morte, pois todos cobiçam a vida”. Disse o sapiente Abœ Alqåsim: “O
homem se aniquila em duas coisas, a desobediência e o limitar-se à sua própria
opinião. A desobediência reside no vulgo e o limitar-se à sua própria opinião
reside nos recitadores [de Alcorão].[452] A desgraça dos homens está em três
[coisas]: sábio extraviador, [leitores de Alcorão] idiotas e vulgo invejoso”. E se
disse: “Não peças companheirismo a um ambicioso nem lealdade a homem de
origem vil”.
Sabedoria Disse o sapiente: “Três coisas devem ser olhadas com três olhares:
olhar para o pobre com o olhar da modéstia, e não com o da superioridade; olhar
para os ricos com o olhar do aconselhamento e não com o da inveja; e olhar para
as mulheres com o olhar da piedade e não com o do desejo”. Disse Wahb Ibn
Munabbih, Deus esteja satisfeito com ele: “Eu li na Torá que as desobediências
são três, o orgulho, a cobiça e a inveja, e que elas são resultado de cinco coisas,
abuso no comer, abuso no dormir, repouso do corpo, amor pelo mundo e
adulação das pessoas”. E também disse: “Quem se livrar de três coisas terá como
refúgio o paraíso: cobrar favores feitos, ser pesado e praticar a censura — não
atirando sua generosidade na cara de quem a recebeu, diminuindo a sua carga
para os outros e não censurando alguém em quem veja defeitos”. Conta-se que
Ibn Alqarya,[453] que em sua época era um dos homens de mais notável
sagacidade, foi certo dia ver Al¬ajjåj, que lhe perguntou: “O que é a
blasfêmia?”. Respondeu: “Ser insolente com as benesses e desesperar-se da
misericórdia”. Perguntou: “O que é a satisfação?”. Respondeu: “A resignação
com o decreto de Deus e a paciência com os desgostos”. Perguntou: “O que é a
resignação?”. Respondeu: “A contenção da ira e o suportar aquilo que não se
deseja”. Perguntou: “O que é a magnanimidade?”. Respondeu: “A demonstração
de misericórdia quando se está por cima, e a paciência quando sucede [algo que
possa causar] a cólera”. Perguntou: “O que é a nobreza?”. Respondeu: “A
preservação do amigo e o cumprimento dos direitos”. Perguntou: “O que é a
temperança?”. Respondeu: “A paciência na fome e na nudez”. Perguntou: “O
que é a riqueza?”. Respondeu: “Considerar enorme [o pequeno] e excessivo o
pouco”. Perguntou: “O que é a habilidade?”. Respondeu: “É atingir muitas
coisas com poucos e desprezíveis instrumentos”. Perguntou: “O que é a
altivez?”. Respondeu: “É ficar lado a lado com quem está abaixo de ti”.
Perguntou: “O que é a coragem?”. Respondeu: “Atacar de frente inimigos e
infiéis, e ser firme no momento da fuga”. Perguntou: “O que é o intelecto?”.
Respondeu: “A veracidade no discurso e o agradar os homens”. Perguntou: “O
que é a justiça?”. Respondeu: “Veracidade no que se quer e correção de conduta
e de crença”. Perguntou: “O que é a equanimidade?”. Respondeu: “Dispensar
tratamento equivalente às alegações dos homens”. Perguntou: “O que é a
humilhação?”. Respondeu: “A doença proveniente das mãos vazias, e o
abatimento por causa da fortuna escassa”. Perguntou: “O que é a cobiça?”.
Respondeu: “A agudez do desejo na esperança”. Perguntou: “O que é a
confiança?”. Respondeu: “O cumprimento da obrigação”. Perguntou: “O que é a
traição?”. Respondeu: “A indolência quando se está por cima”. Perguntou: “O
que é o entendimento?”. Respondeu: “A reflexão e compreensão das coisas em
sua verdade”.
Sabedoria Oito [coisas] acarretam humilhação para quem as pratica. São elas:
sentar-se num banquete para o qual não foi convidado, querer dar ordens ao
dono da casa, ambicionar favores dos inimigos, prestar atenção na conversa de
outros que nela não o introduziram, desprezar o sultão, instalar-se num grau
acima do seu, falar a quem não lhe presta atenção nas palavras e ter amizade
com quem dela não é digno.
Sabedoria Perguntou-se a Buzurjmihr: “Qual coisa é feia de se mencionar nos
homens, ainda que verdadeira?”. Respondeu: “O louvor do homem para si
mesmo. Não existe avarento louvado, nem colérico feliz, nem inteligente
cobiçoso, nem nobre invejoso, nem desesperado rico, bem como não encontrarás
amigo para rei”.[454] E se disse: “Se preservares quatro coisas farás parte da
humanidade…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, e
prazerosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês me poupar”.
Quando foi a noite seguinte, que era a

773ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que se disse:
“Se observares quatro [coisas] farás parte da humanidade. A primeira: que o
que ocultas no peito seja de modo tal que, se descoberto, as pessoas o aceitem. A
segunda: que o que expões em público seja de modo tal que, se as pessoas te
imitarem, irás aceitá-las. A terceira: que trates as pessoas de modo tal que, se
elas te tratarem da mesma maneira, tu aceitarás. A quarta: que a condição em que
te apresentas para as pessoas seja de modo tal que, se elas assim se apresentarem
a ti, as aceitarás”. E se disse: “Cinco se alegram com cinco, e em seguida se
arrependem. O preguiçoso quando perde as oportunidades, o separado dos seus
irmãos quando atingido por dificuldades, aquele que tem a chance de derrotar os
inimigos e se mostra incapaz de aproveitá-la, aquele que se desgraça com uma
mulher ruim e se lembra da boa mulher [que tinha] antes dela, e o homem pio
que incide em pecados”. Perguntou-se a Buzurjmihr: “Porventura o dinheiro
provoca reviravolta no coração dos sábios?”. Respondeu: “Aquele cujo coração
se revolve por causa do dinheiro não é sábio”. Disse o sapiente: “O reproche
aberto é melhor do que o rancor oculto”. E disse também: “Os aflitos e tristes no
mundo são três: amante separado do seu amado, pai afetuoso cujo filho se
extraviou, e rico que retornou à pobreza”. E também disse: “Para cinco o
dinheiro é mais valioso que as suas próprias vidas: guerreiro que combate a
soldo, escavador de poços, mercador navegante, encantador de serpentes que as
caça com as próprias mãos, e devorador de veneno em apostas”. Disse ¢Amrœ
Bin Ma¢d∑ Karb:[455] “Palavras suaves suavizam mesmo os corações mais
duros que o ferro, e palavras ásperas tornam ásperos mesmo os corações mais
suaves que a seda”. Disse o sapiente: “A tristeza é um mal do coração, tal como
a dor é um mal do corpo; a alegria é o alimento do espírito tal como a comida é o
alimento do corpo”. Um sapiente pediu dinheiro emprestado a um homem, mas
ele se recusou. O sapiente então lhe disse: “Quem sabe não fosses impedido de
me emprestar se o meu rosto não se avermelhasse de vergonha!”. O homem
respondeu: “Quem sabe eu te emprestasse, não tivesse o meu rosto se amarelado
te cobrando, não só por esta vez, mas nas outras mil vezes!”.[456]
Sabedoria [Disse um sapiente:] “Quem nada planta, mesmo tendo a sua terra
umedecida, não [vale nada”. E também disse: “Quem não tem] coração nem
elevação é árvore sem fruto”. E também disse: “Quem desembainha a espada da
injustiça acaba se matando com ela. [Quem não é equânime consigo próprio] não
se livra da tristeza. Quem libera a mão no doar tem o rosto iluminado pela luz”.
E também disse: “Quem não se previne do seu pecado, o tem sempre ao seu
lado. A juventude é amamentada pela loucura, e a velhice é companheira da
respeitabilidade[457] e da placidez”.
UM HOMEM MISTERIOSO
Disse o sapiente Luqmån:
Caminhava eu por uma estrada quando vi um homem sobre o qual havia roupa
grosseira. Perguntei-lhe: “Quem és tu, ó homem?”. Respondeu: “Um filho de
Adão”. Perguntei: “Qual o teu nome?”. Respondeu: “Tenho de ver como me
chamarei”. Perguntei: “O que fazes?”. Respondeu: “Abandono o mal”.
Perguntei: “O que comes?”. Respondeu: “Aquilo que ele me dá de comer e
beber”. Perguntei: “De onde ele lhe dá?”. Respondeu: “De onde ele quiser”. Eu
disse: “Bem-aventurado sejas, consolada seja a tua alma”.[458]
MÁXIMAS E SENTENÇAS (X)
Sabedoria Disse o sapiente: “Três [coisas] dispersam a tristeza do coração: a
companhia do sábio, o pagamento da dívida e a visão do amado”. E também
disse: “Evita quatro coisas e te livrarás de outras quatro: evita a inveja e te
livrarás da [tristeza; evita a má companhia e te livrarás da] censura; evita
cometer a desobediência e te livrarás do fogo; evita acumular dinheiro e te
livrarás da hostilidade de todos”. Disse o sapiente: “Quatro atividades são
condenadas e por elas os homens que as praticam serão punidos neste mundo e
na outra vida…”.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

774ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que o sapiente disse: “Quatro atividades
são condenadas e por elas os homens que as praticam serão punidos neste mundo
e na outra vida. A primeira é a calúnia, da qual se diz ser um cavaleiro que
rapidamente se alcança; a segunda, o desprezo pelos sábios, pois quem faz isso
se torna ele próprio desprezível; a terceira, a ingratidão para com as benesses de
Deus altíssimo; a quarta, tirar uma vida ilicitamente, e os grandes sábios têm um
antigo provérbio, que é: ‘Todo aquele que mata será morto, ainda que tarde’ ”. O
poeta disse os seguintes versos:

“Ao ver um morto num caminho,
Jesus mordeu os dedos longamente e
disse: ‘Por que mataste? Já te vejo
igual a este que morto vejo e estirado,
e teu assassino, que te matou, também
provará a morte, e virão os gemidos’.
Quando na mão de alguém pões uma faca
para gente matar, lembra-te dessa rota”.[459]
A BEBIDA E O INTELECTO
História Conta-se que [não] existiu entre os califas abássidas nenhum mais sábio,
fosse qual fosse o ramo de saber, que Alma’mœn, o qual dedicava dois dias por
semana para debater com os jurisconsultos, além de mestres de vários saberes e
teólogos, que também se reuniam com ele. Certo dia, compareceu à sua tertúlia
um jovem estrangeiro com roupas esfarrapadas e se instalou na última fileira,
mantendo-se em local escondido atrás dos jurisconsultos. Quando começaram a
discutir os temas, como de hábito fazendo-os circular entre todos os presentes,
quem quer que conhecesse algum acréscimo divertido ou anedota curiosa
contava-o. Quando o tema chegou ao jovem estrangeiro, ele deu uma resposta
melhor que as de todos os jurisconsultos, e então Alma’mœn o apreciou e
ordenou que ele fosse retirado daquele local e colocado numa posição mais
elevada. Quando o segundo tema chegou até ele, o jovem respondeu melhor que
da primeira vez, e então Alma’mœn ordenou que ele fosse colocado numa
posição mais elevada ainda. Quando lhe chegou o terceiro tema, o jovem deu
uma resposta melhor e mais correta que as duas primeiras, e então Alma’mœn
ordenou que ele fosse instalado próximo de si. Quando terminou a discussão,
[trouxeram água e todos lavaram as mãos, e depois] serviram comida, todos
comeram, e então os jurisconsultos se levantaram e foram embora. Alma’mœn
aproximou-se daquele jovem, tratou-o muito bem[460] e lhe prometeu benesses
e ajudas. Em seguida, o califa pediu que se instalasse o sarau de bebidas,
chamou os comensais e as taças começaram a circular.[461] Quando chegou a
vez daquele jovem beber, ele se pôs de pé e disse: “Se o comandante dos crentes
permitir, falarei uma única coisa”. O califa disse: “Fala o que quiseres”. Ele
disse: “O sublime parecer — Deus o faça elevar-se mais e mais — sabe que este
escravo estava hoje na honrada tertúlia — Deus lhe aumente a honradez e
elevação —, entre o vulgo ignoto e os mais humildes presentes, e que o
comandante dos crentes, mercê do ínfimo intelecto que este escravo
[demonstrou, fê-lo conhecido, elevou-lhe a posição e guindou-o a uma altura à
qual sua importância não lhe permitiria chegar. Agora, o comandante dos crentes
pretende separar este escravo do seu ínfimo intelecto, que] o fortaleceu após a
humilhação e lhe deu abundância após a penúria. Isento esteja, absolutamente, o
comandante dos crentes de invejar esta ínfima porção de intelecto — ele que
possui intelecto, inteligência e mérito —, mas, se este escravo beber, o seu
intelecto se distanciará dele, aproximando-se a ignorância, que lhe subtrairá o
decoro, e então ele retornará àquela posição mesquinha, humilhado como antes,
e aos olhos de todos voltará a ser desprezível e ignoto. Assim, se o comandante
dos crentes, com o seu mérito, generosidade e caráter, considerar de bom alvitre
não lhe subtrair essa pedra preciosa, fará tal concessão por longo tempo e
generosamente lhe concederá esse obséquio”. Ao ouvir tal discurso, Alma’mœn
louvou-o, agradeceu-lhe, instalou-o em seu lugar e ordenou que lhe fossem
dados cem mil dirhams. Fê-lo ser carregado por um cavalo, deu-lhe roupas
opulentas, e a cada tertúlia passou a colocá-lo numa posição mais próxima à dos
jurisconsultos, até que ele os superou em posição e prestígio.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Só contamos esta história para elogiar o intelecto, que
guinda quem o possui a todas as posições elevadas e graus sublimes, ao passo
que a ignorância rebaixa a posição de quem a possui, fazendo-o despencar do
lugar mais alto.
O CALIFA E A SÚPLICA DO SEU COLEGA INCONVENIENTE
História Conta-se que certo dia um homem foi até [o califa] Abœ Addawåniq
Almanßœr e disse ao secretário: “Informa ao comandante dos crentes que está às
portas um homem proveniente da Síria, chamado ¢Åßim, e ele lembra que em
tempos passados foi companheiro do comandante dos crentes, cerca de um ano
ou menos, no estudo e no aprendizado. Ele chegou agora para saudá-lo e renovar
seu compromisso de obediência ao líder”. Quando o secretário relatou isso ao
califa, a entrada do homem foi autorizada, e, mal ele entrou e saudou o califa, a
sua presença se tornou pesada para Almanßœr.
E o amanhecer atingiu ¸ahrazåd, que interrompeu o seu discurso autorizado.
Disse-lhe sua irmã Dunyåzåd: “Como é boa a sua história, maninha, prazerosa e
gostosa”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei contar-lhes na
próxima noite, se acaso eu viver e o rei cortês e educado me poupar”.

Quando foi a noite seguinte, que era a

775ª
Disse sua irmã Dunyåzåd: “Por Deus, maninha, se você não estiver dormindo,
conclua a sua história”, e ela respondeu: “Sim, com gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que, após o homem ter entrado e saudado o
califa, a sua presença,[462] [devido à trivialidade da sua conversa e à sua falta de
decoro, se tornou pesada para Almanßœr, que o fez sentar-se e lhe perguntou:
“Qual necessidade te fez vir aqui?”. Ele respondeu: “A de ver o comandante dos
crentes, com base naquele antigo companheirismo”. Então o califa ordenou que
lhe dessem mil dirhams, que o homem pegou e se retirou. Depois de um ano o
homem retornou, por ocasião da morte de um dos filhos de Almanßœr, que
estava sentado para receber os pêsames. O homem entrou, cumprimentou-o e
rogou por ele, que lhe perguntou: “Vieste a propósito de quê?”. O homem
respondeu: “Sou aquele homem que estudava contigo na Síria. Vim dar-te os
pêsames pela perda da tua prole, em cumprimento à obrigação de fazê-lo”. Então
o califa ordenou que lhe dessem quinhentos dirhams. Ele era avarento, um dos
mais avarentos dos abássidas, motivo pelo qual o apelidaram de Abœ
Addawåniq.[463] No ano seguinte, o homem voltou, mas, sem dispor de
argumento para entrar, introduziu-se no meio das pessoas que entravam e o
cumprimentou. O califa lhe perguntou: “Por que motivo vieste aqui?”. Ele
respondeu: “Eu sou aquele homem que estudava contigo na Síria a leitura de
relatos históricos; também ouvíamos as tradições do profeta. Eu escrevi contigo
a ‘súplica da necessidade’, por meio da qual quem quer que a fizesse teria a sua
necessidade atendida por Deus altíssimo. Eu perdi aquela súplica, e vim até o
comandante dos crentes para escrever uma cópia e conservá-la comigo”.
Almanßœr respondeu: “Não te fatigues procurando aquela súplica, pois ela não
funciona. Eu a faço há três anos para que Deus me livre de ti e da dor de cabeça
que me provocas, mas não me livrei. Se ela funcionasse, eu já teria me livrado!”.
Então o homem se envergonhou ao ouvir tais palavras.
Só divulgamos esta história porque, se acaso o homem, mesmo sábio, não
utilizar o intelecto, decairá de prestígio e posição.][464]
Manuscrito "ARABE 3619", BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
MANUSCRITO "ARABE 3619",
BIBLIOTECA NACIONAL DA FRANÇA, PARIS
824ª
noite

Na noite seguinte,[465] o rei ¸åhriyår se recolheu à cama, juntamente com sua


esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos;[466] após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal,[467] Dunyåzåd saiu de
baixo da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a
sua história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
O GROU, SUA MULHER E O CARANGUEJO
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião e
forte disposição, de que certo grou, o mais gigantesco de todos, morava numa
praia do mar imenso e era muito ciumento com mulheres, motivo pelo qual
continuava solteiro e não pretendia casar-se. Dada manhã, foi até ele uma coruja,
que o cumprimentou e disse: “O celibato não traz sossego. O melhor parecer é
que você encontre uma esposa da sua espécie”. Ele respondeu: “Sou muito
ciumento e por isso temo. Se for mesmo o caso, porém, eu gostaria de uma
esposa de boa estirpe, de linhagem distinta, livre, formosa, cuja família seja
constituída por gente de nobreza, generosidade, virtude e boa condição. Não
permaneci todo esse tempo solteiro senão por receio de me casar com uma
mulher que me traia; agora mesmo, eis-me aqui cheio de temores”. Então a ave
de defunto[468] lhe disse: “Eu me esforçarei para lhe arranjar um casamento;
você apreciará os meus serviços e o meu conselho”, e em seguida voou e sumiu,
dirigindo-se a certa ilha do mar na qual viviam os grous; pousou no meio deles e
após cumprimentá-los indagou-os quanto à sua necessidade dizendo: “Saibam
que fui enviada a vocês por nosso amo, senhor e rei, aquele cujas ordens entre
nós são acatadas graças à grandiosidade do seu ser, e à sua grande força e poder.
Ele é da mesma espécie de vocês, e, como já se prolonga a sua solidão e
celibato, enviou-me até aqui a fim de que eu lhe arranje uma noiva, a ave mais
formosa e honesta para ser a sua esposa, fazer-lhe companhia e mitigar-lhe a
solidão. Vocês, que já conhecem as dificuldades da solidão e sofreram com o
isolamento, não me façam voltar derrotada”. Eles então responderam com
audição e obediência, arranjando-lhe, dentre os da sua espécie, uma fêmea
gigantesca, cujo corpo e estrutura se aproximavam dos dele em tamanho, e à
qual propuseram casamento com o grou; ela aceitou, escreveram o contrato de
casamento entre ambos, arrumaram-na e a enviaram para ele na companhia da
coruja, recomendando-lhe ainda que o servisse. As aves voaram até chegar ao
grou, a quem a coruja disse: “Eis aqui a sua esposa, que é uma boa mulher, de
uma linhagem de justos e nobres; portanto, cuide dela!”. Muitíssimo contente, o
grou a possuiu naquela noite e a fêmea caiu no seu gosto, mas poucos dias
depois ela se apaixonou e se envolveu com outro pássaro em encontros furtivos
na ausência do grou, o qual, logo percebendo o tédio e o aborrecimento da
esposa, disse de si para si: “Tenho muito medo de que o coração da minha
esposa esteja atraído por alguém da minha espécie!”, e então, com a vida tornada
um desgosto, dirigiu-se certo dia à praia, onde avistou uma garça branca que,
arrastando um caranguejo preso por uma das garras com uma corda de junco,
[469] gritava: “Este é Abœ Al¬ußayn,[470] que me caiu nas garras por desígnio
e decisão de Deus, e com ele pagarei a minha dívida!”. Espantado com aquela
garça, o grou parou diante dela e perguntou: “Qual é o caso desse que você
chama de Abœ Al¬ußayn?”. Ela respondeu: “Ó rei, tenho uma dívida de dois
dirhams emprestados por certo pássaro que, casado, começou a desconfiar da
esposa. Vencida a minha dívida, ele exigiu pagamento, mas, como eu me
encontrava em dificuldades para quitá-la, ele estabeleceu como condição para
liberá-la que eu lhe pescasse este Abœ Al¬ußayn marítimo a fim de deixá-lo em
casa vigiando-lhe a esposa, que desse modo não irá até ninguém nem ninguém
virá até ela. Assim, fazia dois ou três dias que estava à procura deste Abœ
Al¬ußayn, até que hoje o capturei, e eis-me agora gritando ‘Abœ Al¬ußayn,
foram o desígnio e a decisão de Deus que capturaram você!’ e arrastando-o a fim
de, por meio dele, quitar a minha dívida”. Ao ouvir as palavras da garça, o grou
percebeu que correspondiam ao que tinha em mente e disse: “Dê-me este
caranguejo para que eu o leve até a minha esposa, pois faz alguns dias que ela
anda mudada, e essa sua nova condição não me está agradando”. A garça
respondeu: “Como é que eu posso fazer isso? Fiquei três dias sem dormir, me
exauri para caçar este caranguejo e conseguir agradar o meu credor. Temo que
ele me prenda e me mantenha um bom tempo preso”. Disse o grou: “Eu compro
o caranguejo de você por dois dirhams; leve-os, vá ao seu credor e finja que não
conseguiu caçar o caranguejo. Assim resolvemos o meu problema e o seu
problema, e eu fico devendo um favor às suas mãos, que eu nunca irei punir”. A
garça respondeu: “Em nome de Deus, pague os dois dirhams”,[471] e aceitou a
oferta de compra. Com o bico, o grou puxou o caranguejo pela corda de junco e
voou até chegar aonde estava a esposa, diante da qual o atirou. Ao ver o
caranguejo, espantada, ela perguntou ao marido: “O que é isso?”. Ele respondeu:
“Um caranguejo”. Ela perguntou: “E que serventia ele tem?”. Ele respondeu: “A
menor coisa que ele faz é vigiar a mulher para que não traia o marido”. Ao ouvir
essa fala, a ave teve medo do caranguejo, acreditando que era verdade, e temeu
por si, mas deixou-se estar com ele. Naquele dia, o grou ficou na melhor vida,
descansado, e quando amanheceu saiu bem cedinho, enquanto a esposa
permanecia triste, o peito opresso, e eis que aí chegou o seu amante.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.
825ª
noite

Na noite seguinte, o rei ¸åhriyår se recolheu à cama, juntamente com sua esposa
¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após atingirem o
gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo da cama e
disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua história para
a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que, ao ver o amado do seu coração, o seu
adorado, a esposa do grou ficou com as penas arrepiadas e o bico amarelado,
com medo do caranguejo, e por sinais disse ao seu amado: “Não fale comigo,
pois esse aí foi trazido pelo meu marido, que disse que ele vai me vigiar e
impedir o meu envolvimento com outrem”. O amante riu daquelas palavras e
disse: “Vocês mulheres têm intelecto escasso e pouca fé. O que é que esse aí
poderá fazer? Ele não pode nada. Deixe de lado essa conversa”, e, após brincar
um pouco com a grou, agarrou-a, subiu em cima dela e, após gozar, foi até o
caranguejo, arrastou-o pelas cordas de junco, colocou-o debaixo das pernas e fez
menção de lhe urinar na cabeça. Então, o caranguejo agarrou o seu pênis com
uma das garras e a ave gritou. A esposa do grou acorreu e, vendo a situação,
disse: “Eu não falei?”. Ele gritou dizendo: “Jogue água em cima e quem sabe ele
me solta!”, e ela assim procedeu, mas ao sentir a água fria o caranguejo se
contraiu e apertou mais ainda o pênis do amante, que disse: “Me arranje água
quente!”. A grou respondeu: “Onde é que eu vou arranjar isso? Já está chegando
a hora da volta do meu marido”, mas, aflita e arfando, ela refletiu, foi até o
crustáceo, colocou uma pedra debaixo dele para deixá-lo mais alto, virou o rabo
e defecou e urinou na sua cabeça. Já com uma das patas apertando o pênis do
amante, com a outra o caranguejo agarrou a vagina da grou, e ambos começaram
a gritar e a berrar de dor, assim permanecendo até que chegou o grou e, vendo o
que o caranguejo fizera, agarrando a vagina de sua esposa e o pênis do amante
dela, gritou de alegria, bateu as asas e disse: “Por Deus que isso é excelente, meu
valoroso caranguejo! Eu só o comprei por dois dirhams porque você pegaria os
dois”. Em seguida, golpeou o amante com as asas e o cegou, soltando-o em
seguida, matou a esposa e ficou só com o caranguejo, limitando-se à sua
companhia.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] “Isso é o que me foi transmitido da história deles, ó rei
venturoso”. O rei disse: “Conte-me mais histórias como essas, ¸ahrazåd”, e ela
disse:
OS FRANCOLINS E O REI DE TAIFAS
Eu tive notícia, ó rei venturoso, de que os francolins[472] foram viver em
desertos e montanhas, longe dos países habitados, buscando a autopreservação,
pois se tratava de uma ave muitíssimo valorizada entre os reis por sua raridade,
sobretudo a bela espécie montanhesa. Existiu, porém, certo rei de taifas,[473]
perfeito em todas as suas qualidades, generoso, de boa conduta, louvado pelos
súditos, os quais rogavam pelo prolongamento do seu reinado; esse rei extraiu os
melhores frutos do governo, o seu reino se tornou magnífico, a sua justiça se
destacou e a memória dos seus feitos se espalhou. Certo dia, saiu para praticar a
caça — atividade pela qual era conhecido — e eis que topou, no deserto, com
um francolim, o qual, ao vê-lo avançando na sua direção, foi invadido pelo medo
e, com o coração angustiado, encostou o dorso no rochedo e ergueu as patas em
direção ao céu. Espantado com a sua beleza e graça, o rei mandou recolhê-lo e o
levou, dele se admirando e considerando-o belo; disse: “Eu não tinha prestado
atenção à caça das aves dessa espécie, mas agora não vou descansar até caçar
muitas delas”, e passou a caçá-las diariamente, até que naquele lugar não restou
um único francolim; ademais, os membros da corte, sabedores do seu amor pelos
francolins, reuniram-lhe uma quantidade que ele próprio não havia reunido. O
rei lhes destinou então um enorme jardim, cheio de árvores e frutos, e nele
colocou as aves, que ali botaram e se reproduziram, abandonando as montanhas
e enchendo as cidades. Conta-se que o louvor dos francolins a Deus é: “Exalçado
seja o antigo que perdura”. É isso que se conhece da história dessas aves.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

826ª
noite

Na noite seguinte, o rei ¸åhriyår se recolheu à cama, juntamente com sua esposa
¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após atingirem o
gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo da cama e
disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua história para
a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
O MENINO, A PEGA E O ZODÍACO AGOURENTO
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que certo rei de taifas, dotado de fé, intelecto,
decoro, mérito e boa conduta, era amado por todos os reis vizinhos, que lhe
escreviam desejosos de alcançar a sua amizade ou se tornar seus genros, pois ele
tinha dez filhas crescidas, todas elas em idade de mulher, mas não havia sido
agraciado com um filho varão que lhe desse sossego e o sucedesse. Muito
preocupado com isso, deixou igualmente aflitos os seus súditos, temerosos de
que o reino passasse às mãos de alguém inferior. De tanto pensar nesse assunto,
o rei perdeu o gosto por comer e beber, e reclamou para um dos seus vizires, a
quem disse: “Você conhece a minha conduta, a minha relação com os súditos e a
administração que dou ao reino. Temo morrer sem deixar um filho varão para me
suceder. Faça-me alguma sugestão, pois você bem sabe da fé que lhe tenho e de
como aceito o que diz”. O vizir respondeu: “Não se preocupe, ó rei, pois Deus
bendito e altíssimo lhe dará um filho varão que trará sossego a você. A sugestão
que farei é relativa àquilo mediante o qual Deus trará a concórdia e o bem com a
sua liberalidade e generosidade”. O rei disse: “Sugira e seja breve, homem de
opinião abençoada!”. O vizir disse: “Você já sabe, ó rei venturoso, que fulano, o
rei da Índia, tem uma filha dotada de beleza e formosura, esplendor e perfeição,
talhe e proporção. Meu parecer é que eu vá até lá com uma carta sua ao rei
pedindo-a em casamento, e eu rogo que por meio dela você seja agraciado com
um filho que o suceda após a sua partida”. Contente com tais palavras, o rei
concordou com o parecer e o propósito do vizir, determinando-lhe que fosse até
a Índia e enviando junto com ele presentes, joias em tão grande quantidade e
tanto gênero de roupa opulenta e pedra preciosa que nenhum ser humano seria
capaz de descrever e nenhuma lista poderia abarcar. O vizir e os seus criados
viajaram até chegar àquele lugar, onde ele fez a carta chegar ao respeitado rei
local, bem como os presentes enviados. Ao receber a carta e compreender o que
dizia, o rei da Índia mandou convocar os seus filósofos e sábios e lhes disse:
“Analisem o que indica o zodíaco da minha filha e da sua prole”. Como os
astrólogos analisaram e constataram que ela era adequada àquele rei de taifas em
todas as circunstâncias, o pai ordenou que ela fosse preparada e enviada para ele,
e assim foi feito. Quando a jovem chegou ao marido, ele a possuiu e ficou
imensamente feliz com ela, que de imediato engravidou e ao término do período
de gravidez deu à luz um menino varão perfeito, belo e formoso, tornando maior
ainda a alegria do rei e do povo do reino. Por escrito, ela informou o nascimento
do neto ao avô, o qual ordenou aos astrólogos que examinassem o zodíaco do
menino, mas após fazerem isso eles informaram ao rei os bons augúrios e
ocultaram os maus augúrios, pensando: “Não devemos informar verbalmente ao
rei sobre este menino, mas sim escrever-lhe que as suas características estão em
conformidade com as desta ave”, e a ave era a pega.[474] Conta-se que naquele
tempo a aparência da pega era diferente da de hoje, pois ela tinha rabo curto e
asas e penas compridas. Os astrólogos disseram uns aos outros: “Vocês sabem
que essa ave é conhecida entre os reis, os quais a consideram de mau agouro, e
por esse motivo devemos contornar o problema a qualquer custo. Procurem uma
saída para isso em que se meteram, na medida da sua capacidade, e se lhes for
possível modificar a aparência desta ave para a forma preferida pelos reis, aí
estará a salvação de vocês, bem como aquilo de que necessitam e gostam. Mas,
se acaso não conseguirem, terão informado o rei de que o garoto será corrupto e
obstruído”. Disse um deles: “Não pode modificar-lhe a aparência senão Deus
altíssimo. O único recurso é rogar a ele e esperar que se apresse em transformá-
la no que vocês desejam”. Disse outro: “Próximo daqui, à distância de uma
parasanga, vive um homem devoto, asceta, jejuador, vigilante e que não cessa de
citar o seu senhor. Vamos, então, até ele para pedir que rogue por nós para evitar
tal ocorrência, e talvez ele nos obtenha algum alívio”. Disseram: “Eis aí uma
opinião da qual não nos podemos desviar!”, e foram até o homem, a quem
contaram a sua história, e então ele ordenou que lhe trouxessem a ave.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do que irei lhes
contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me poupar. Eu lhes
contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e extasiante, com mais
palavras e ordem melhor”.

827ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o devoto lhes ordenou que trouxessem a
ave, e eles a trouxeram. O devoto estendeu a mão para ela, pronunciou algumas
palavrinhas e em seguida entregou-a a eles já com a aparência que desejavam:
cauda comprida, branco imaculado, preto escuro, pernas curtas, linhas
equilibradas e asas escondidas. Quando a viram com tal aparência, os astrólogos
ficaram muito felizes com a ave e a entregaram ao rei, a quem disseram: “O
recém-nascido, em sua conduta e tudo quanto lhe suceder, imitará esta ave.
Conserve-a, portanto, e jamais a expulse, pois toda situação em que ela estiver o
recém-nascido também estará”. Foi assim que se ocultou a questão ao rei, o qual
determinou a preservação e manutenção daquela [espécie de] ave, e ela, por sua
vez muito feliz, reproduziu-se abundantemente no país desse rei. Contava-se que
essa ave dizia nas louvações: “Ó grande, ó elevado, ó agente do bem, ó pródigo
em bênçãos, ó provedor das necessidades, ó atendedor das súplicas, ó sabedor do
que foi e do que será”.
[Prosseguiu ahrazåd:] O príncipe recém-nascido, cujas características
estavam amarradas às da pega, cresceu e atingiu idade de homem, e, como o seu
pai morresse, herdou o reinado, e os súditos lhe prestaram obediência. Ele
passou a se dedicar exclusivamente às diversões e festas, sem outra preocupação
além dessas: jogos e mulheres, negligenciando o cultivo do poder e os cuidados
com o reinado [e só se preocupando com os] deleites que proporciona. [Então os
seus vizires e membros da sua corte se reuniram] para deliberar entre si, aliando-
se contra ele e [concluindo que] ultrapassara [os limites]. Quando sentiu que os
seus servidores haviam adotado tal posição, muitíssimo temeroso,
superestimando-os e subestimando-se, ordenou que todos sem exceção
comparecessem diante de si a fim de prevenir-se contra os seus planos e o que já
circulava a respeito. Eles compareceram sem mais tardar, e o rei, instalado no
posto de vingança do seu palácio, selecionou os seus melhores ajudantes e
criados, em número de quinhentos, todos postados na sua frente e bem armados,
e começou a chamar [os conspiradores] um por um, matando-os a todos; deles
não restou senão um único homem que lhe disse: “Ó rei, você não foi levado a
fazer isso senão pelo seu pouco êxito. Nenhum deles merecia a morte. Qual seria
a sua resposta se acaso os carcereiros o prendessem fortemente e você se
tornasse semelhante àquela ave que, após ter as asas cortadas, tentou voar mas
não pôde? Pobre de você e do seu reino. A reviravolta já se anuncia contra você,
que só cevou os próprios desejos e ficou sem vizires nem bons conselheiros”, e
se retirou. Dali a pouco, gente de tudo quanto é lugar fez a informação circular e
o rei foi cercado, atacado e morto, juntamente com quem estava com ele.
Depois, escolheram para reinar um homem que descendia de reis, cuja
autoridade reconheceram, instalando-o no trono, e ele reinou com justiça, adotou
boa conduta e boas disposições e assim se manteve até que se abateu sobre eles o
destruidor dos prazeres e dispersador das comunidades.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

828ª
noite

Na noite seguinte, o rei ¸åhriyår se recolheu à cama, juntamente com sua esposa
¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após atingirem o
gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo da cama e
disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua história para
a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
ANEDOTAS SOBRE GENTE AVARENTA
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que certa pessoa disse a um avarento: “Por que
você não me convida para comer na sua casa?”. Ele respondeu: “Porque você
mastiga muito bem, engole rápido e, enquanto um bocado ainda está na sua
boca, o outro já está preparado”. Então aquela pessoa respondeu ao avaro: “E
por acaso você queria alguém que entre um bocado e outro fizesse a prece
noturna de Ramadã?”,[475] e o deixou vexado.
Disse alguém: “Fui à casa de certo avarento e nos serviram comida. Olhei bem
e, vendo que era muito pouca, disse: ‘Não tenho como comer’. Ele respondeu:
‘Basta-me Deus, que é o melhor procurador’ ”.[476]
Um avarento disse ao filho: “Seja como o jogador de xadrez, que preserva os
seus homens e faz artimanhas contra os homens do adversário”.
Um dia, certo avarento se queixou ao juiz contra o seu vizinho dizendo:
“Senhor juiz, este é meu vizinho. Ontem eu comprei um carneiro[477] e o comi,
juntamente com quem mora na minha casa, e depois atirei os ossos à porta para
adorná-la e me exibir entre os meus amigos. Então, veio este vizinho e colocou
os ossos na frente da sua casa!”. O juiz riu e lhe disse: “Vá embora, pois já está
claro para mim que você faz parte dos generosos”.
Perguntou-se a certo avarento: “Qual é o alívio após a angústia?”.[478]
Respondeu: “É quando você oferece comida a alguém, mas a pessoa recusa
dizendo estar de jejum”.
Conta-se que um avarento adoeceu tão gravemente que ficou para morrer, e
então [mandou] assar uma galinha, mas quando a serviram, notando que lhe
faltava uma asa, saiu gritando: “Ai, uma só! Ai, desespero!”, e circulou por
todos os cômodos da casa dizendo: “Quem se incumbiu abateu!”;[479] assim,
andava e se lamuriava: “Quem se incumbiu abateu!”, mas, como ninguém lhe
respondesse, jurou que não alimentaria ninguém naquela casa durante três dias.
Encontrava-se presente um homem eloquente que lhe perguntou: “Meu senhor,
‘porventura nos aniquilais por causa da ação dos desvairados?’”.[480] Ele
respondeu: “E por acaso você não ouviu os seguintes dizeres de Deus altíssimo:
‘Acautelai-vos contra uma sedição que não se limitará a atingir aqueles dentre
vós que foram injustos’?”.[481]
Conta-se[482] que certo homem, cuja avareza era tão grande que se tornou
proverbial, foi visitado por um vizinho asceta para o qual ele se pôs a reclamar
da avareza, das desgraças que lhe provocara e da sua falta de artimanhas contra
ela. O devoto asceta então lhe disse: “Esse assunto é muito longo e extenso, mas
eu afirmo, com base no seu relato, que você não é generoso consigo mesmo nem
com um centavo para comer pão”. O avarento perguntou: “Como assim? E a
descrição que lhe fiz?”. O devoto respondeu: “[Isso se dá] porque você
economiza todo o dinheiro para aquele que dele irá comer licitamente, com o
corpo sadio, enquanto você suporta o peso da avareza e presta as contas na outra
vida”. Então o avarento voltou atrás nessa sua característica, passando a ser
considerado, depois disso, um homem generoso.[483] Existe uma poesia que
fala sobre esses significados:

“Conta com a ajuda e benesse do misericordioso
quando te vier alguém te pedindo algum bem,
e nada negues ao necessitado que de ti espera,
pois não sabes quando serás tu o necessitado”.[484]

Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

829ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
CASOS DE MUZABBID, O MEDINÊS
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que Muzabbid[485] certo dia estava se banhando
e a esposa lhe perguntou: “O que é isso?”. Respondeu: “Chicoteei ¢Umayra”.
[486] Alguns dias depois, ele viu a esposa se banhando e perguntou: “O que
você tem?”. Ela respondeu: “¢Umayra veio e me chicoteou”.[487]
Certo dia, Muzabbid usou de palavras grosseiras e lhe disseram: “Dite alguma
coisa boa para os seus dois secretários!”. Respondeu: “Desgosta-me que eles se
confundam”.[488]
Os cabelos de Muzabbid foram aparados por um homem muito feio, que lhe
disse: “Ai de você! [Por que não roga por mim?”. Muzabbid respondeu:
“Desgosta-me][489] dizer-lhe ‘Que Deus afaste o mal de você’, pois nesse caso
eu temo que ele o deixe sem rosto”.
Certo dia, Muzabbid foi visitar um avarento, que ao pressentir a sua presença
escondeu um prato de figo debaixo da cama e disse a Muzabbid, para o qual a
manobra não passara despercebida: “O que o traz a esta hora?”. Respondeu:
“Passei ainda há pouco pela mesquita de fulano e nela havia um leitor do
Alcorão recitando com voz bela e melodiosa, e entonação agradável, e eu vim
mostrá-la a você, que talvez goste de entonações agradáveis”. O avarento disse:
“Dê-me o que você trouxe!”. Então Muzabbid recitou: “Em nome de Deus,
misericordioso, misericordiador. Pela oliva e pelo Monte Sinai!”.[490] O
avarento perguntou: “E onde está o figo?”. Respondeu: “Debaixo da cama”.
Então o avarento riu e lhe ofereceu os figos.
Conta-se que se deu uma ventania muito forte, com relâmpagos terríveis, [e
então as pessoas gritaram: “É o Juízo Final! O Juízo Final!”.] Disse Muzabbid:
“Será um Juízo Final bem desagradável, sem Anticristo nem besta nem Salvador,
sem Gog nem Magog”.[491]
Conta-se que Muzabbid estava comendo peixe com leite e lhe disseram: “Você
não deve reunir o peixe ao leite”. Ele respondeu: “O peixe está morto e não
saberá que eu o comi com leite”.
Muzabbid quis separar-se da esposa e lhe disseram: “Pense na longa
convivência”. Ele respondeu: “É esse o único crime dela”.[492]
Certa vez, Muzabbid dormia numa mesquita quando um homem entrou, fez
uma prece com duas genuflexões e ao terminar disse: “Ó meu Deus, enquanto eu
rezo esse aí está dormindo!”. Muzabbid ergueu a cabeça e disse: “Idiota, peça-
lhe o que quiser, mas não o incite contra mim!”.
Conta-se que a esposa de um vizinho foi até a casa de Muzabbid e perguntou:
“Às mulheres só é lícito o casamento com um único homem, e não podem
possuir um único escravo ou serviçal, ao passo que os homens podem se casar
com quatro de nós, além de ter quantas amantes secretas e concubinas quiserem.
O que você acha disso?”. A esposa dele respondeu: “É porque dos homens é que
provêm os profetas, os santos, os califas, os reis, os vizires, os comandantes e os
juízes; é por isso que eles tomam todas as decisões em causa própria”.[493]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

830ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que Muzabbid tinha um criado a quem
perguntava, após enviá-lo a uma missão qualquer: “Trigo ou cevada?”. Era um
sinal entre ambos: se o criado tivesse logrado êxito, dizia “trigo”, e se tivesse
fracassado, dizia “cevada”. Então, certo dia Muzabbid o enviou numa missão
qualquer e, quando ele retornou, perguntou-lhe: “Trigo ou cevada?”. O criado
respondeu: “Merda!”. [Muzabbid perguntou: “Ai de você! Por quê?”. O criado
respondeu:] “Além de não satisfazerem o meu pedido, humilharam-me com
xingamentos, me foderam e arrancaram merda”.[494]
Muzabbid ouviu um homem dizendo a outro: “Se você sair à noite e for
atacado por um cão feroz, recite: ‘Ó coorte de gênios e humanos, se puderes
atravessar os limites dos céus e da terra, então faze-o, e somente o farás
mediante ordem [divina]’”.[495] Disse Muzabbid: “Deixe-se disso e ouça o que
eu lhe digo: esforce-se para ter consigo pedras e pau, pois nem todos os cães
sabem o Alcorão de cor”.
Entre as coisas que lhe sucederam, conta-se que certo dia o chefe de
polícia[496] se enfureceu com ele e ordenou que a sua barba fosse raspada. Veio
então o alfageme para executar a tarefa e lhe disse: “Encha as bochechas”.
Muzabbid perguntou ao chefe de polícia: “Este putanheiro,[497] que Deus o
desgrace! Você lhe ordenou que raspasse a minha barba ou me ensinasse a tocar
flauta?”.[498]
Perguntaram-lhe: “Como é o seu amor pelos companheiros do profeta?”.
Respondeu: “A comida não deixou no meu coração espaço para amar ninguém”.
[499]
Ele vendeu uma escrava garantindo tratar-se de excelente cozinheira, mas,
como ela não soubesse cozinhar nada, foi-lhe devolvida, e ele não aceitou. Foi
então levado a um juiz diante do qual jurou e disse: “Torne-me Deus um
cachorro feroz que roa as pernas dos profetas no dia do Juízo Final se esta moça
não tiver cozinhado para mim, com uma lagosta, quatro espécies [de comida, e
ainda sobrou um pouco para fazer carne seca], sem contar um dos lombos, que
ela me deu de comer frito e assado, em espetinhos, [e com o outro fez doces”.
Então todos riram e o litigante, desanimando-se de receber dele o que quer que
fosse, deixou-o ir embora].[500]
Muzabbid reuniu em sua casa um homem e sua amante, e por um bom tempo
ambos ficaram se fazendo recriminações mútuas, após as quais o homem quis
pôr as mãos sobre ela, que lhe disse: “Isso não é hora nem lugar!”. Ao ouvir
aquilo, disse Muzabbid: “Sua puta, e quando será a hora e o lugar? Nos dias da
Peregrinação? Entre o pilar e a casa?[501] Por Deus que não construí esta casa
senão para putas e festejos adúlteros!”.[502]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

831ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que Muzabbid transportava um odre de
vinho vazio quando foi encontrado pelo chefe de polícia de Medina, que ordenou
o seu espancamento. Muzabbid disse: “Que Deus dê prosperidade ao
comandante! Por que você ordenou que eu seja surrado?”. O homem respondeu:
“Porque você está portando o instrumento de bebida”. Ele disse: “Mas eu
também estou portando o instrumento do adultério!”.[503]
Conta-se que um amigo foi visitá-lo enquanto ele cozinhava numa panela. O
amigo disse: “Louvado seja Deus magnífico! A fortuna é espantosa!”. Muzabbid
respondeu: “E a carência é mais espantosa ainda! Divorcio-me da minha
mulher[504] se você provar desta comida!”.
Conta-se que Muzabbid levou um rapaz para casa e o sodomizou, mas o rapaz
saiu alegando que ele é que tinha sido o ativo. Ao ouvir aquilo, Muzabbid
observou: “Deus proibiu a sodomia por causa dessas coisas, salvo se houver
duas testemunhas probas”.
Conta-se que certo dia Muzabbid exigiu copular com a esposa, mas ela se
recusou dizendo: “Estou menstruada”, e, ao se virar, soltou um flato. Muzabbid
lhe disse: “Sua maldita! Não basta que você nos livre do mal da sua vagina, mas
também do mal do seu ânus”.
Conta-se que certo dia se reuniram vários camaradas na casa de Ja¢far Bin
Sulaymån, que lhes perguntou: “O que vocês gostariam de comer?”, e cada um
deles respondeu citando uma espécie de comida. Perguntaram então a Muzabbid:
“E você, do que gostaria?”. Ele respondeu: “Que o que vocês estão dizendo
desse certo”.
Conta-se que Muzabbid levou uma criada à mesquita e lá fornicou com ela.
Então entrou o muezim, que os viu. Muzabbid foi até o púlpito e ali defecou. O
muezim perguntou: “Não basta o que você já fez nesta mesquita, inimigo de
Deus? Precisava defecar no púlpito?”. Ele respondeu: “Sabendo que ele
testemunhará contra mim no dia do Juízo Final, eu o transformei em meu
litigante a fim de que o seu testemunho não seja aceito”.[505]
Conta-se que um homem convidou Muzabbid e outras pessoas para visitá-lo
em casa, e pôs-se então a entrar e sair a todo instante, dizendo: “Cozinhamos
uma sikbåja que voa ao vento e uma ma©liyya que voa no céu!”.[506] Como a
sua fome aumentasse, Muzabbid lhe disse: “Meu senhor, traga-me um pão de
asas cortadas, pois eu temo que ele voe com a sua comida e então você não
possa contê-lo”.
Disseram-lhe: “O comandante dos crentes pretende dar-lhe de presente uma
graciosa escrava”. Ele respondeu: “Alguém como eu não se deixa seduzir nem
desmente o comandante dos crentes. Se ela me aceitar, desde que eu possa
sustentá-la, tudo bem; caso contrário, não obterá nada de mim”. Ao saber
daquilo, o califa riu e lhe deu a escrava.
Conta-se que Muzabbid enterrou dez dirhams numa ruína, mas foi visto por
um homem que foi para o lugar e os desenterrou. Quando voltou para apanhar o
dinheiro e encontrou o lugar escavado, Muzabbid se arrependeu longamente,
mas pouco depois, tendo descoberto quem era o homem que o roubara, enterrou
mais dez dirhams em outro local e se pôs a espionar se aquele homem viria, e ele
de fato veio. Muzabbid se dirigiu a ele e pediu: “Meu senhor, por favor, me faça
um cálculo, veja qual é a soma e me diga quanto ficou sendo a quantia total”. O
homem respondeu: “Sim”. Muzabbid perguntou: “Dez dirhams no lugar tal,
vinte no lugar tal, e duzentos no lugar tal… Qual é a soma?”. [O homem
respondeu: “Duzentos e trinta”. Muzabbid lhe disse: “Amanhã vou juntar tudo
no lugar onde estão os dez dirhams”.][507] Supondo que ele falava a verdade, o
homem levou os dez dirhams ao local de onde os escavara e enterrou-os de
volta, na ambição de que Muzabbid lhes acrescentasse a quantia à qual se
referira, e mesmo mais. Muzabbid foi ao local, escavou-o, recolheu os dirhams e
defecou no buraco. Quando o homem retornou para pegar o dinheiro, remexeu
no lugar, sua mão se sujou de cocô e ele percebeu que Muzabbid fizera uma
artimanha contra ele. Em seguida, encontraram-se no caminho e Muzabbid lhe
perguntou: “Faça-me uma conta: dez num lugar, vinte no outro, cheire a sua mão
e veja quanto é o total”, e então o homem fugiu.
Conta-se que Muzabbid entrou na mesquita sem estar ritualmente limpo para a
prece, e então pegou uma vasilha cheia de água do aguadeiro e se abluiu. O
aguadeiro foi então cobrá-lo, e Muzabbid lhe disse: “Não tenho nenhum
dinheiro!”. Como o homem exigisse com insistência o valor, Muzabbid soltou
um flato detestável e disse: “Tome de volta a sua limpeza ritual. Vou rezar sem
fazê-la!”.[508]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

832ª
noite
Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente
com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
ANEDOTAS SOBRE DEFEITOS FÍSICOS
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que um homem foi até o cego Baššår[509] e lhe
disse: “Deus altíssimo não tira de um crente os seus olhos sem lhe dar alguma
compensação. Com o que Deus o compensou pela perda da visão?”. Ele
respondeu: “Ter perdido a vista é para mim preferível a ver gente como você”.
Qutåda, que era cego, compareceu um dia à casa de ¿ålid Ibn ¢Abdullåh
Alqasr∑, e deu-se então que um dos assuntos foi sobre os cegos, que ¿ålid,
desgostoso, descreveu como desavergonhados, desrespeitando [a presença de]
Qutåda. Em seguida, lembrou-se dele, arrependeu-se do que falara e perguntou:
“Ó Qutåda, o que você ouviu lhe fez mal?”. Ele respondeu: “Sim”. [¿ålid
perguntou: “Você já passou por algo semelhante?”. Ele respondeu: “Sim”.][510]
¿ålid perguntou: “E o que foi?”. Ele respondeu: “Eu estava na casa de certo
nobre e nos foi servida uma galinha muito bem cozinhada. Quando íamos
estender as mãos para comer, como um mendigo se aproximasse da porta da
casa, o dono pegou a galinha, juntou-lhe dois pães e entregou tudo àquele
mendigo. Então eu, ao estender a mão em direção à galinha, não a encontrei e
perguntei: “Onde está a galinha?”. O dono da casa respondeu: “Eu a repus no
lugar, entre mim e você”. Eu pensei: “Que Deus ponha você no fogo do inferno,
tal como fez com ela!”. Então ¿ålid riu e ordenou que lhe dessem uma
recompensa.[511]
Conta-se que existem dois a cuja existência a morte é preferível: pobre sem
dinheiro e cego sem comida.
Conta-se que a esposa de certo cego um dia lhe disse: “Ai, se você pudesse
ver a minha beleza, formosura e brancura! Seu amor por mim aumentaria”. Ele
respondeu: “Se você fosse de fato como diz, os que enxergam não a teriam
deixado para mim”.
Conta-se que um grupo de cegos combinou ir passear num jardim, sob a
condição de que não houvesse entre eles um único que enxergasse. Destarte,
acertaram tudo, levaram consigo comida e bebida e quando chegaram ao local
trancaram os portões do jardim e puseram-se a comer, beber e brincar de dar
tapas, divertindo-se deveras. Um homem passou pelo jardim, ouviu o barulho,
observou-os por cima da parede, viu-os e pensou: “Não posso deixar que esses aí
passem. Irei até eles, comerei a sua comida, beberei a sua bebida e lhes darei uns
tapas no cangote”.[512] Desceu então até eles, estapeou um, dois e já no terceiro
os cegos disseram: “Existe alguém que enxerga no meio de nós!”, e ficaram
atentos, não tardando em agarrá-lo. Ele disse: “Eu lhes pergunto, por Deus, antes
de tudo: como perceberam que no meio de vocês havia um clarividente?”.
Responderam: “Quando um de nós esbofeteia o outro, o bofetão ora cai na mão,
ora no rosto, ora no ombro, ora na barriga, ora nas costas. Mas você não, sua
mão nunca deixou de acertar o meio do nosso cangote!”. Ato contínuo,
aplicaram-lhe uma surra de morte e o espancaram como soem os cegos espancar,
largando-o em seguida no jardim, e se retiraram.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

833ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que em dada reunião estava um cego com
um caolho ao lado. Então o cego se queixou ao caolho da perda da visão,
lamuriando-se de sua condição. O caolho respondeu: “Já tenho metade dessas
informações”.
Certo poeta disse os seguintes versos após a oração pelo senhor dos senhores:

“Ouvi um cego dizer numa reunião:
‘Ó gente, como dói perder a visão!’.
Dentre eles responde um caolho, então:
‘É verdade, pois tenho meia informação!’”.

Conta-se que um caolho cruzou com uma mulher no mercado e se voltou para
vê-la, ao que ela lhe disse: “Que Deus lhe tire a visão!”. Encarando-a, ele
respondeu: “Minha senhora, Deus já atendeu [metade do] seu pedido”.
Conta-se que um homem comprou um burro por duzentos dirhams e o exibiu
para um amigo caolho, a quem perguntou: “Quanto vale este burro?”. O amigo
respondeu: “Cem dirhams”. O homem disse: “Você o avaliou pela metade do
preço por só tê-lo visto com metade da visão”.
Conta-se que um grande sábio sofria de surdez e soltava flatos nas reuniões
achando que eram traques. Então o seu secretário lhe contou a verdade por meio
de um bilhete ao qual o sábio respondeu: “Será que entre os meus pares eu não
gozo de respeito suficiente para que suportem um barulho situado entre o traque
e o flato?”.
Conta-se que um surdo rezou atrás do xeique, tendo ao seu lado um
tartamudo. Quando o xeique finalizou a prece com os cumprimentos aos anjos, o
tartamudo disse ao surdo: “O xeique cochilou!”, ao que o surdo concordou:
“Sim, peidou!”.
Conta-se que um careca tinha uma mulher peluda que lhe disse: “Seria mais
adequado que os pelos do meu púbis estivessem na sua cabeça, e a sua careca
estivesse na minha vagina”.
Consta em dado livro que a liberalidade está nos surdos;[513] a memória, nos
cegos; a graça, nos estrábicos; a soberba, nos caolhos; a honradez,[514] nos
mudos; a pilhéria,[515] nos grandalhões; a sagacidade, nos aleijados; a higiene,
nos coxos;[516] a densidade, nos cegos; e a vileza, nos corcundas.[517]
Conta-se que um cego, um caolho, um paralítico, um eunuco e um aleijado se
reuniram numa festa, beberam e se extasiaram, combinando em seguida que
cada um entoasse uma canção.[518] Então o cego recitou os seguintes versos:

“Olhei, como que através da garrafa,
para a casa, em meio à forte neblina”.

E o caolho recitou estes versos dizendo:

“Se com Layla eu ficar a sós, deverei,
pés descalços, visitar a casa de Deus”.

E o paralítico disse os seguintes versos:

“Meus dedos escreveram para ti
reclamando do meu desconcerto”.

O eunuco disse os seguintes versos:

“Não fossem os pecados como perdizes assustadas,
eu os retomaria a todos, um por um”.

O aleijado disse os seguintes versos:

“Vamos dançar com minúcia,
sem temer nenhum enjoo”.

Conta-se que Abœ ¸uråba[519] contemplou no espelho a feiura do próprio rosto
e disse: “Graças a Deus, que não tornou nenhuma abominação bela para mim,
exceto ele”.
Certo homem riquíssimo tinha um filho muito feio de rosto, e para ele pediu
em casamento a filha de um homem nobre. O filho disse ao pai: “Eu tive notícia
de que a noiva é caolha”. O pai respondeu: “Quem dera fosse cega para não ver
a feiura da sua cara”.
Conta-se que um homem de aparência horrorosa contemplou certo dia a
própria cara no espelho e disse: “Graças a Deus, que me criou com a mais bela
aparência”. Um dos seus criados, que estava ali parado e lhe ouvira as palavras,
saiu e se encontrou com um homem que lhe perguntou sobre o patrão. O criado
respondeu: “Está lá dentro de casa mentindo contra Deus”.
A ALEGRIA, SEGUNDO UNS E OUTROS
Perguntou-se a um rei: “O que é a alegria?”. Respondeu: “É o afeto do
verdadeiro afetuoso e a derrota do invejoso”.
Perguntou-se a um poeta: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Inspiração
rápida[520] e cantor eloquente”.
Perguntou-se a um lutador: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Espada cortante
e escudo resistente”.
Perguntou-se a um árabe: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Esposa, butim e
benesses abundantes”.
Perguntou-se a um homem de nobre origem: “O que é a alegria?”. Respondeu:
“Tomar vinho e conviver com pessoas nobres”.
Perguntou-se a um indiano: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Uma benesse
distraída”.
Perguntou-se a um juiz: “O que é a alegria?”. Respondeu: “A boa aceitação e
intelectos que entendam o que digo”.
Perguntou-se a um escriba: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Papéis macios,
tinta brilhante e cálamo deslizante”.
Perguntou-se a um apaixonado: “O que é a alegria?”. Respondeu: “O encontro
do amado, reencontro próximo e ausência de vigia”.
Perguntou-se a um cantor: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Público, voz e
aparência boas, e alaúde que fala por meio das cordas”.
Perguntou-se a um intrujão: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Jovens de
coração puro e sem impaciência”.
Perguntou-se a um asceta: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Segurança
contra o medo da hora final”.
Perguntou-se a um inteligente: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Um amigo
com quem você possa contar e um amado que você possa socorrer”.
Perguntou-se a um alcoviteiro: “O que é a alegria?”. Respondeu: “Um amante
que me obedeça e uma amásia que nunca me desobedeça”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

834ª
noite
Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente
com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
O DIVERTIDO AšCAB E O GOVERNADOR AVARENTO
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que Aš¢ab[521] disse:
Medina passou a ser governada por um homem avarento e mesquinho do clã
dos Banœ ¢Åmir. A toda hora ele mandava me chamar para diverti-lo contando
histórias, enviando-me os seus asseclas, fosse noite, fosse dia. Se eu me
escondesse, ele me azucrinava por meio do chefe de polícia, e se eu estivesse
num banquete ele mandava recados ao dono da festa pedindo que me enviasse a
ele, e depois exigia que eu lhe contasse histórias e o divertisse, sem pausa nem
sono, e apesar disso não me dava de comer nem me pagava nada; dele eu só
recebi sofrimentos enormes e fadigas terríveis. Quando chegou a temporada da
peregrinação, ele me disse: “Peregrine comigo, Aš¢ab!”. Respondi: “Estou
doente e não tenho condições de peregrinar”. Ele disse: “Juro por tudo, e de
todas as formas possíveis entre os seres humanos, que, se acaso você não
peregrinar comigo, eu o meterei na cadeia até o meu retorno”. Então saí em
peregrinação com ele. Na primeira parada, simulando estar de jejum, ele dormiu
até que eu me ocupasse de outra coisa e comeu de tudo quanto havia sido trazido
na viagem, e depois mandou o seu criado guardar dois pães com sal para mim.
Fui até ele, crente de que estava em jejum, e fiquei esperando que ele saísse ao
entardecer, na suposição de que ele também estava esperando. Após fazer a
prece da tarde, perguntei ao seu criado: “Vocês não vão romper o jejum, não vão
comer?”. Ele respondeu: “O comandante já comeu faz tempo”. Perguntei ao
criado: “Ué, ele não estava de jejum?”. Respondeu: “Não”. Eu disse: “Então eu
vou romper o meu jejum [sozinho]”. O criado disse: “Ele guardou algo para você
comer”, e me mostrou os dois pães e o sal, que eu comi e depois fui dormir com
fome. Assim foi até chegarmos à segunda parada, quando ele disse ao criado:
“Compre carne para nós”, e, depois que o criado comprou, disse-lhe: “Asse a
carne para nós”, e o criado assou. Ele comeu e depois disse ao criado: “Corte-a
em pedaços pequenos, faça uma sopa com eles e me dê para comer”, e o criado
assim procedeu, enquanto eu me mantinha sentado olhando, sem que ele me
desse nenhum bocado nem me convidasse ou oferecesse algo. Quando a carne
acabou, ele disse: “Criado, dê comida para Aš¢ab”, e o rapaz me atirou os dois
pães. Fui até a panela mas não encontrei senão o caldo e os ossos, e então comi o
pão com o caldo. Em seguida, o criado lhe trouxe um saco com frutas secas das
quais ele apanhou um bocado e comeu, não restando em sua mão senão
amêndoas que ele não pôde quebrar porque eram pontiagudas; ao se ver sem
nenhuma artimanha para descascá-las, atirou-as na minha direção e disse:
“Coma isso, Aš¢ab!”. Fiz tenção de quebrar uma das amêndoas, mas eis que um
pedaço do meu molar se quebrou e caiu diante dele. Saí dali, procurei uma pedra
para quebrar alguma amêndoa, e então bati com força. A amêndoa voou Deus
sabe para onde, parecendo um disparo de flecha, e pus-me a procurá-la.
Enquanto eu o fazia, apareceram algumas pessoas do clã de Muߢab cantando
aquelas lindas melodias, e então eu gritei para eles: “Socorro! Socorro! Ajude-
me, ó clã de Muߢab”. Então eles correram até mim, me alcançaram e
perguntaram: “O que você tem?”. Respondi: “Levem-me com vocês e salvem-
me da morte vermelha!”. Então eles me levaram consigo e eu comecei a
chacoalhar as mãos tal como faz um bebezinho quando quer ser carregado pelos
pais. Eles me perguntaram: “Ai de você! O que há?”. Respondi: “Este não é o
lugar adequado para contar”, e então eles me carregaram no meio das coisas
deles e depois me perguntaram: “Conte-nos a sua história”, e então eu lhes
contei toda ela, após o que me disseram: “Pobre de você! O que o fez cair nas
garras do maior avarento deste tempo?”. Então jurei que me divorciaria se eu
tornasse a pôr os pés em Medina enquanto ele fosse o governador, e assim fiz até
a sua destituição.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

835ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
ANEDOTAS SORTIDAS
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que alguém contou o seguinte: “Vi um beduíno
fazendo o seu primogênito dançar[522] e dizendo-lhe: ‘Tenho por você o mesmo
amor que um avarento tem pelo dinheiro que ganhou após ter provado o gosto da
pobreza’”.
Disse alguém:
Entrei em Kufa e vi um garoto com um pão do qual ele arrancava pedaço por
pedaço, balançava-o diante de um buraco na parede do qual saía fumaça e depois
o comia. Estaquei, espantado com aquilo, e então o pai do garoto flagrou-o e lhe
perguntou o que estava fazendo. O garoto respondeu: “Nessa casa está havendo
um casamento, e eles cozinharam sikbåja azeda, e eu estou temperando o pão
com o cheiro”. O pai o esbofeteou com força e lhe disse: “Ai de você! Não vá se
acostumar a comer pão com tempero”.
Conta-se que Abœ ¢Amrœ disse:
Um homem me convidou para comer e serviu a mesa. Éramos um grupo.
Ofereceram cabrito. Enquanto comíamos, uma rês gritava. Eu disse: “Façam
essa que perdeu o filho calar-se!”. O dono da casa disse: “Como calá-la se
estamos devorando o alento de sua alma?”. O homem disse ao escravo: “Traga a
comida e feche a porta”, e então o escravo assim procedeu. O homem disse:
“Agora eu lhe concedo a liberdade, por Deus exalçado e altíssimo, graças ao seu
conhecimento de como servir!”.[523]
Perguntaram a Muzabbid: “Você almoçou na casa de fulano?”. Ele respondeu:
“Não, mas passei por sua porta”. Perguntaram: “E como foi isso?”. Respondeu:
“Vi os seus criados carregando os restos de avelã e os atirando ao vento”.
Um avarento disse a outro a cuja mesa estava: “Corte esse pão”. O outro
respondeu: “Deixe-o em paz”.
Perguntou-se a um avarento: “À mesa, quais são as melhores mãos?”.
Respondeu: “As decepadas”.
Disse Muzabbid: “Um homem avarento me convidou para comer e eu notei
que ele andava em torno da mesa, remexia em tudo, suspirava profundamente e
dizia: “E por sua paciência serão recompensados com o paraíso e a seda”.[524]
[Abœ Is¬åq Ibråh∑m Bin Sayyår Anna≈≈åm[525] me contou o seguinte:
Certa vez eu pedi a um meu vizinho, que era originário de ¿uråsån:[526]
“Empreste-me sua frigideira, pois estou precisando dela”. Ele respondeu: “Nós
tínhamos uma, mas foi roubada”. Então peguei uma frigideira emprestada de
outro vizinho. Ao ouvir os estalidos da carne fritando, e sentir o cheiro da carne
com ovos e cebola, o Δuråsånida veio me dizer com cara de revoltado: “Não
existe na terra ninguém mais estranho do que você. Se me tivesse avisado que
queria a frigideira para carne ou gordura, eu a teria emprestado rapidamente.
Mas eu temia é que você a quisesse para as favas, pois o metal da frigideira se
queima se o que se frita nela não contiver gordura. Como eu não a emprestaria
para isso, se depois de usada para fritar carne com cebola e ovos a frigideira
volta melhor do que quando estava em casa?”.][527]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

836ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
O AVARENTO E A CARNE
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião, forte
disposição e louvável ação, de que certo avarento dizia:[528] “Nunca mais
deixei de comer carne[529] desde que comecei a ganhar dinheiro”. Isso porque
ele comprava toda sexta-feira carne de vaca por um dirham; cebola por um
dåniq,[530] berinjela por um dåniq, carne de cabeça[531] por um dåniq, e
cenoura, quando era a estação, por um dåniq, cozinhando tudo numa panela,
como sikbåja;[532] naquele dia, junto com os seus familiares, comia pão
misturado com um pouco do que havia na borda da panela, e do que dela
escorria de cebola, berinjela, cenoura, carne de cabeça e gordura da carne; no
sábado, molhavam o pão no caldo e o comiam; no domingo, comiam cebola; na
segunda, cenoura; na terça, carne de cabeça; na quarta, berinjela; e na quinta,
carne de vaca. Era por isso que ele dizia: “Nunca mais deixei de comer carne
desde que comecei a ganhar dinheiro”.[533]
É COMER E MORRER
Disse Alaßma¢∑:[534]
Certa noite, Ma¬fœ≈ Annaqåš[535] me acompanhou na saída da mesquita, e
quando nos aproximamos da sua casa, que ficava mais perto da mesquita do que
a minha, ele me pediu que dormisse lá dizendo: “Aßma¢∑, onde você vai passar
este resto de noite?” — de fato, era uma noite fria e chuvosa —, “se a minha
casa é mais próxima [e agora está escuro, e você, sem fogo?] E eu tenho em casa
um leite de ovelha que nunca ninguém viu igual,[536] [e tâmaras de cuja
qualidade nem lhe falo,] não sendo isso adequado senão para você!”. Então
entramos juntos e após uma horinha ele desapareceu, demorou, e retornou
munido de uma cumbuca de leite e um prato de tâmaras; quando estendi a mão
— eu, que mais do que ninguém lhe conhecia a avareza —, ele me disse: “Ó
Aßma¢∑, temos uma advertência que consiste no seguinte: esta é uma noite
chuvosa, úmida, e isto é leite. Você é um homem já entrado em anos, além de se
queixar de hemiplegia, sendo, ademais, rapidamente acometido de sede
abrasadora, e tampouco, de ordinário, tem o hábito de jantar. Se você não comer
o bastante disso, não terá nem comido nem deixado de comer, além de agredido
a sua natureza e humor, interrompendo a alimentação com aquilo que mais
aprecia, e que lhe é mais benéfico. E se você comer o bastante, passaremos uma
péssima noite de preocupação com a sua saúde, sem que lhe tenhamos
providenciado vinho nem mel.[537] Só estou lhe dizendo estas palavras para que
amanhã você não fique de nhenhenhém. Por Deus que você está entre os dois
caninos do leão,[538] e, se acaso eu não lhe tivesse trazido a comida após tê-la
mencionado, você diria: ‘Foi avarento comigo e mudou de opinião’, e, se eu a
trouxesse mas não o alertasse quanto às consequências nem lhe lembrasse o que
poderia causar-lhe, você diria: ‘Não se compadeceu de mim nem me
aconselhou’. Por isso, nesta noite eu estou me inocentando das duas
possibilidades: [se você quiser, uma refeição e uma morte; caso contrário, não
coma, tenha um pouco de resignação, e bom sono’”.][539]
Prosseguiu Alaßma¢∑:
Em toda a minha vida, nunca ouvi algo[540] igual ao daquela noite. Comi
toda aquela comida, e [não] a digeri [senão] com risos, [vitalidade] e alegria,
[segundo penso].[541]
O PRESENTE DO AVARENTO EMBRIAGADO
Conta-se[542] que certa noite um avarento se embriagou com um amigo e lhe
deu de presente uma túnica. Ao se ver com a túnica, o amigo, temeroso de uma
reviravolta de opinião, e sabendo que aquilo não passava de distração provocada
pela bebedeira, foi imediatamente para casa e transformou a túnica numa
vestimenta para a esposa. Quando amanheceu, o avarento indagou sobre a túnica
e lhe disseram: “Você a deu de presente a fulano”. Ele então enviou uma
mensagem ao amigo: “Você não sabe que presente de bêbado, bem como as suas
vendas, compras, esmolas, preces [e divórcio][543] são inaceitáveis? Ademais,
desgosta-me não ser louvado, e que as pessoas me dirijam censuras por eu ter
presenteado em estado de embriaguez. Devolva a túnica para que eu a dê a você
em estado de sobriedade, de boa vontade, pois me desgosta desperdiçar o meu
dinheiro de maneira ilegítima”. Porém, ao ver que o amigo insistia em ficar com
a túnica, foi até ele e lhe disse: “[Homem,] as pessoas têm por hábito troçar e
pilheriar, sem que por isso sejam levadas a mal. Vamos, devolva a túnica, que
Deus lhe dê saúde!”. O amigo respondeu: “Deus também lhe dê saúde! [Como
era exatamente isso que eu temia], antes mesmo de descansar eu mandei costurar
a túnica para a minha mulher, encompridando-lhe as mangas, [tirando-lhe os
enfeites da fachada] e tornando-a uma vestimenta feminina. Se, depois disso
tudo, você ainda quiser levá-la, então leve”. O avarento respondeu: “Sim,
levarei, pois se a questão é de fato como você diz, a roupa servirá para a minha
mulher tal como serve para a sua”. O amigo respondeu: “[Está com o tintureiro,]
e só voltará pela manhã”. O avarento disse: “Vá buscá-la, então”. O amigo
respondeu: “Mas não fui eu que a entreguei, e sim a minha mulher!”. Ao
perceber que já havia sido enredado, o avarento disse: “Ai, meu pai e minha
mãe! Foi veraz o enviado de Deus, sobre ele sejam suas preces e saudações, ao
dizer: ‘O mal todo foi reunido e trancafiado numa só casa cuja chave é a
embriaguez’”. Depois disso, o avarento se penitenciou da embriaguez.[544]
O AVARENTO E O SEU FILHO
Conta-se que um homem gostava[545] da cabeça dos animais, [que ele elogiava
e descrevia], e não comia carne senão na “Festa do Sacrifício”, ou das sobras
desse dia, [ou quando] convidado para algum casamento, festa [ou banquete]. E
à cabeça ele dava o nome de [“festa”, graças às boas variedades que continha],
ora chamando-a de “reunidora”, ora de “perfeita”. Ele dizia: “A cabeça [embora
seja só uma, tem variedades] admiráveis e sabor diversificado. Cozida em panela
ou assada [é sempre muito boa]; ela contém o cérebro, cujo sabor é único, e os
olhos, cujo sabor é muito bom, [e o lóbulo da orelha, e a parte posterior dos
olhos, cujo sabor é singular.] Contudo, esse lóbulo tem melhor sabor que o dos
miolos, mais macio que a nata e mais substancioso que a manteiga derretida. Na
cabeça fica a língua, [de sabor único, e o focinho, e a cartilagem do focinho, de
sabor único. E a carne das faces, de sabor único”. E assim prosseguia até dividir
todas as partes que compunham a cabeça.] Também dizia: “A cabeça é o senhor
do corpo; ela contém o cérebro, [que é a origem do] intelecto, e nele se inicia o
nervo que contém o senso, o qual por sua vez é a sede do que mantém a
integridade do corpo. [O coração é a porta do intelecto, tal como a alma é que
faz a cognição; o olho é a porta das cores, mas é a alma que ouve e sente o
paladar.] O nariz e as orelhas também são portas. Não estivera ele na cabeça, o
intelecto não desapareceria quando ela é golpeada. Na cabeça estão os cinco
sentidos”.[546] E quando terminava de comer as carnes da cabeça, pegava o
crânio e as mandíbulas, colocando-os na proximidade de algum formigueiro até
ficarem cheios desses insetos, quando então ele os recolhia e esvaziava numa
bacia com água, repetindo várias vezes a operação até acabar com as formigas;
em seguida, utilizava o crânio e as mandíbulas como lenha para queimar sob as
panelas.[547] Ele tinha um filho que se sentava à mesa com ele e lhe dizia:
“Papai, muito cuidado, evite a gula dos garotos e não mastigue como os
beduínos. Coma do que está perto, pois é isso que lhe coube. Se acaso você vir
no meio da comida algo atraente, algum petisco saboroso, algum bocadinho
agradável, isso pertencerá a algum ancião venerado ou rapaz dengoso, e você
não é nenhum dos dois. Ademais, papai, você sempre é convidado a festas e
banquetes, frequenta a casa dos seus companheiros, e provou carne faz não
muito tempo. Seus companheiros estão mais esfomeados do que você. Como é
só uma cabeça, você deve diminuir o tanto que come. E já se disse: [‘O que
aniquila o homem são os dois vermelhos, a carne e o vinho. E o que aniquila a
mulher são os dois vermelhos, o ouro e o açafrão’]”. Eram estes os conselhos do
filho ao pai quando comiam uma cabeça.[548]
ÁGUA FRESCA PARA A MÃE DO AVARENTO
E conta-se[549] que a mãe desse avarento enviou-lhe, munida de um jarro vazio,
uma criada que entrou e disse: “Sua mãe o cumprimenta e lhe diz: ‘Eu soube que
você tem [um recipiente que mantém a][550] água fresca, e como está calor
envie para mim, nessa jarra, água para beber’”. Ele respondeu à criada:
“Mentirosa! Minha mãe é muito inteligente para me enviar uma jarra vazia
querendo que volte cheia. Volte, encha essa jarra com a água de vocês, esvazie-a
no meu recipiente e só então poderá enchê-la com a minha água fresca, a fim de
que se faça uma troca equânime”.[551]
TAL PAI, QUAL FILHO
Conta-se[552] que certo avarento, quando lhe caía nas garras um dirham,
conversava e discutia com ele dizendo: “Quantas terras você atravessou, quantas
algibeiras abandonou, [quantos distraídos enganou, quantos delicados distraiu!
Comigo você não se desnudará nem será queimado pelo sol!] Meu compromisso
é nunca tirá-lo daqui”. Em seguida, enfiava-o na algibeira e dizia: “Resida, com
a permissão de Deus altíssimo, neste seu lugar, sem ser humilhado nem
desprezado, [nem se aborreça”. E qualquer dirham que ali entrasse nunca mais
saía.] Quando seus parentes tentavam forçá-lo a gastar alguma coisa, ele os
repelia o quanto pudesse. Certa vez, ele sacou um dirham da algibeira e se
dirigiu ao mercado, mas no caminho encontrou um encantador que fazia uma
serpente andar por seu corpo para receber, por isso, um dirham. O avarento
pensou: “Por Deus que não vou mais gastar este meu dirham. [Desperdiçar algo
pelo qual se arrisca a vida? Só por causa de comida e bebida?!] Eis aí um alerta
de Deus exalçado e altíssimo! Enquanto esse encantador expõe a vida ao
aniquilamento para receber um dirham, eu saio com o meu dirham para agredi-lo
e atraiçoá-lo?”. Então ele recolheu o dirham, voltou para casa e o deixou consigo
até morrer, ser enterrado e o seu filho se apossar do dinheiro [e da casa]. Os
familiares então disseram: “Agora estamos livres dele e da sua avareza”. Mas
um dia o filho perguntou: “Com que o meu pai temperava o pão? Pois me parece
que a maior corrupção está no tempero!”. Responderam-lhe: “Ele temperava o
pão com um queijo que tinha”. O filho disse: “Mostrem-me o queijo”, e então
mostraram, e eis que nele havia uma incisão semelhante a um córrego. O filho
perguntou: “O que é esse buraco?”. Responderam-lhe: “Ele não cortava o queijo,
mas sim passava o pão sobre ele, e assim se formou esse buraco, como você está
vendo”. O filho disse: “Se eu soubesse que ele fazia isso não teria nem sequer
rezado por ele!”. Os parentes disseram: “Gostaríamos de saber como você vai
agir em relação ao queijo”. Ele respondeu: “Vou pendurá-lo e, de longe,
apontarei o pão para ele. E mesmo isso não me agrada!”.[553]
AS FASES DO HOMEM, SEGUNDO A MULHER
Conta-se que uma mulher perguntou a outra: “O que me diz do homem de
vinte?”. Ela respondeu: “Bonito e cheiroso, um requinte”. Perguntou: “E o
homem de trinta?”. Respondeu: “Arremete com força e tem pinta”. Perguntou:
“E o homem de quarenta?”. Respondeu: “Pai de família, não senta”. Perguntou:
“E o homem de cinquenta?”. Respondeu: “Só de vez em quando é que tenta”.
Perguntou: “E o homem de sessenta?”. Respondeu: “É flácida a sua ferramenta”.
Perguntou: “E o homem de setenta?”. Respondeu: “Tosse e geme que se
arrebenta”. Perguntou: “E o homem de oitenta?”. Respondeu: “Peidorreiro que
nem se aguenta”. Perguntou: “E o homem de noventa?”. Respondeu: “É matá-lo
com faca sedenta”. Perguntou: “E o homem de cem?”. Respondeu: “A tumba é o
que o contém, e nem forçada nem por gosto ele me tem”.[554]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.[555]

893ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.[556] O
rei mais velho, ¸åhriyår, disse a ela: “¸ahrazåd, conte-me histórias a respeito das
coisas estranhas e insólitas do tempo”. Ela respondeu: “Ó rei, tenho comigo uma
história espantosa sobre a astúcia e a perversidade das mulheres, a qual consiste
numa lição para quem reflete e num pensamento para quem raciocina. Eu temo
por mim mesma, porém, que o rei, ao ouvi-la, diminua o meu valor. Espero que
isso não ocorra, de modo algum; é uma história espantosa e insólita, e as
mulheres é que são as corruptoras: elas são a costela torta. E disse o profeta,
sobre ele sejam as preces e as saudações de Deus: ‘As mulheres foram criadas de
uma costela torta e, se você tentar endireitá-las, irá quebrá-las; quebrá-las é
divorciar-se delas’. Ele também disse: ‘As mulheres são tortas, mas deleitem-se
com elas apesar disso’”.[557] Disse-lhe a sua irmã Dunyåzåd: “Maninha, conte-
nos uma história sobre a astúcia das mulheres, suas malandragens e artimanhas,
sem temer que o rei se altere em relação a você, pois, assim como as pedras
preciosas são de variada classe, também entre as mulheres existe a perversa e
existe a boa, e quando uma pedra preciosa de alto valor cai nas mãos do
conhecedor, ele a compra para si e deixa as outras de lado. Algumas mulheres
são superiores às outras, tal como se dá com os homens, e seu paradigma é o do
oleiro que acende o forno após enchê-lo com todo tipo de argila, e quando
termina e ele a retira, não tem como evitar que alguma coisa se quebre, e das
peças boas uma parte será necessária e útil às pessoas, mas outras retornarão à
condição de argila. Portanto, não considere tão graves assim as histórias que
você tem sobre a astúcia feminina, pois elas contêm advertências para todo
mundo”. Então ¸ahrazåd disse:
O SULTÃO MAMELUCO BAYBARS E OS SEUS CAPITÃES[558]
Conta-se, ó rei, que havia na província do Egito um rei poderoso que fizera
imensas conquistas, e cujo nome era Almalik A≈≈åhir Ruknudd∑n Baybars
Albunduqdår∑,[559] cuja origem era estrangeira.[560] Esse rei adorava as
histórias do povo, gostava de presenciá-las com os seus próprios olhos e ouvir os
relatos a respeito. Certo dia, quando em seu sarau se conversava sobre os
diferentes procederes de homens e mulheres, um homem que ali se encontrava,
membro da classe dos sábios, escritores e artistas, disse: “Ó rei, há entre as
mulheres algumas que são mais corajosas que os homens, e muitíssimo mais
hábeis; entre elas, existem as que lutam com espada e as que fazem artimanhas
contra os governantes, causando-lhes toda sorte de prejuízos e arrependimentos”.
Disse Baybars: “Gostaria de ouvir alguma notícia de alguém que as tenha
experimentado e delas tenha sofrido prejuízos e problemas”. Então um dos
presentes ao sarau lhe disse: “Se for assim, você deve mandar chamar o delegado
de polícia da cidade, que lhe poderá dar o que deseja e procura”. Naquela época,
o delegado se chamava [¢Alamudd∑n] Sandjar Almurœr∑, a quem o sultão
Baybars, ao vê-lo diante de si, revelou o que pretendia, e que aquilo era
imperioso. O delegado respondeu: “Realizarei o desejo do rei com capricho”, e
em seguida voltou para casa, convocou os seus capitães e oficiais e disse:
“Pretendo casar o meu filho e dar um banquete. Gostaria que todos vocês se
reunissem num mesmo local e que cada um contasse o que ouviu e presenciou a
respeito das coisas espantosas dos antigos e dos contemporâneos de tal modo
que eu veja e ouça cada narrador narrando as suas experiências e cada contador
contando os seus sofrimentos”. Os capitães responderam: “Sim, ó comandante.
Todos nós vimos e ouvimos coisas espantosas e estranhas, e as presenciamos
com os nossos próprios olhos!”. Em seguida, o delegado pôs-se a preparar o
banquete, não deixando de lado nenhum detalhe. Informou ao sultão o dia no
qual ocorreria a reunião e ele deveria vir para ouvir. O sultão lhe disse:
“Excelente o que você fez!”, e lhe deu uma boa quantidade de ouro e prata
pensando: “Para ajudá-lo a realizar o banquete”. No dia marcado, o delegado
levou os oficiais e capitães para uma casa ampla, sem mais ninguém, na qual
havia um salão cujas janelas davam para o quintal, e no qual ele e o sultão se
acomodaram, sozinhos e às escondidas, sem que mais ninguém soubesse.
Mandou que a comida e a bebida fossem servidas no quintal, próximo ao salão,
numa riqueza que a língua é incapaz de descrever. Quando as taças circularam,
os convivas relaxaram e a bebida fez folia em suas cabeças: começaram a
conversar sobre tudo quanto lhes sucedera, e cada um contou as estranhezas e os
assombros que conhecia.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite; será algo mais espantoso e insólito, mais
prazeroso e extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

894ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o primeiro a falar foi o capitão Mu
¢∑nudd∑n,[561] que disse: “Com licença, eu vou lhes relatar um caso mais
espantoso dentre todos os espantos, que aumentou [o meu conhecimento das]
artimanhas [femininas], e cuja essência é o êxtase”. Os demais capitães lhe
disseram: “Conte-nos, você que é o nosso maioral, e dentre nós detém a
primazia. Faça-nos ouvir o que de mais espantoso você viu”. Ele disse:
O PRIMEIRO CAPITÃO E A MULHER AMBÍGUA
Deus sabe mais sobre o que já é ausência, e é mais sábio. Quando me coloquei a
serviço deste delegado, homem de altos desígnios, eu gozava de enorme
prestígio, respeito e proteção. Todos que viviam no Egito me veneravam e
temiam, e quando eu cavalgava e atravessava a cidade todo mundo apontava
para mim com o dedo e os olhos. Ocorreu certo dia, enquanto eu estava sentado
na sede da delegacia, as costas apoiadas à parede, que súbito alguma coisa me
caiu no colo; peguei-a, e eis que era uma trouxa selada; abrindo-a, verifiquei que
continha cem dirhams. Olhei para ver quem a jogara, mas, não encontrando
ninguém, fiquei muito espantado com aquilo. No dia seguinte, enquanto eu
dormia, eis que uma trouxa me caiu sobre o peito, me acordando; peguei a
trouxa mas não consegui ver quem a jogara. No terceiro dia, por artimanha eu
fingi estar dormindo, e enquanto uma mão depositava no meu colo uma trouxa,
agarrei-a, e eis que era uma mulher bela e formosa, que encantava quem a
olhasse, produzida no molde da perfeição e da beleza, cuja formosura não tinha
igual, parecendo o crescente, sobrancelhas em arco, disparando setas, e olhos
que imitavam os das gazelas. Perguntei: “Minha senhora, quem é você?”. Ela
respondeu: “Vamos sair daqui para que eu lhe revele quem sou. Não tema nem
se preocupe, pois eu pretendo deixá-lo a par tanto do meu interior como do meu
exterior”. Saí com ela e paramos à porta de uma casa [alta], onde eu lhe
perguntei: “Quem é você, que me fez esta grande mercê, logo de saída e sem me
conhecer? O que a levou a isso?”. Ela respondeu: “Por Deus, capitão, que não
fui derrubada senão pela paixão, que marca a data da minha desgraça. Sou uma
mulher apaixonada pela filha do juiz Am∑nul¬ukm.[562] Foi Deus que me
impôs essa paixão. Eu a vi certa vez no banho público, conversamos, brincamos
as duas a sós, e então entre nós aconteceu o que tinha de acontecer; o afeto por
ela me invadiu o coração e fizemos juras mútuas de amor e amizade. Agora,
porém, o pai dela passou a impedi-la de frequentar o banho. Tanto o meu
coração como o dela estão em brasas um pelo outro, mas fomos separadas”.
Espantado com tais palavras, eu lhe perguntei: “E o que você pretende fazer?”.
Ela respondeu: “Capitão Mu¢∑n, eu quero que você me ajude nesta minha
desgraça”. Perguntei: “O que eu tenho que ver com a filha do juiz
Am∑nul¬ukm?”. Ela respondeu: “Sei bem que você não tem nada que ver com
ela. Eu vou preparar uma artimanha para alcançar o meu propósito, mas ela não
se completará senão por seu intermédio!”. Eu disse: “Faça o que lhe parecer
melhor que eu a ajudarei nesta sua desgraça”. Ela disse:
Esta noite eu vou alugar joias, vestir roupas caras e me sentar diante da
mansão pertencente ao juiz Am∑nul¬ukm, pai da menina. Quando for a hora da
ronda, os guardas, com você no meio, me verão. Estarei com tantas joias
luxuosas que ninguém jamais terá visto iguais, e muitos perfumes. Você deverá
avançar e me perguntar como estou, ao que eu responderei que sou do Castelo, e
que só desci à cidade para resolver um assunto, mas a noite me apanhou
desprevenida e os portões de Zuwayla se fecharam, e “não conheço ninguém que
me dê acolhida e em cuja casa eu possa dormir. Vi a porta desta bela e agradável
mansão, sentei-me na frente dela e já percebi que aqui mora gente graúda. Me
acomodei aqui e disse para mim mesma: ‘Durmo aqui na frente até o amanhecer
e então vou para a minha casa, que é no Castelo’”. Quando eu disser tais
palavras, o chefe da patrulha, encarregado pelo grão-delegado ¢Alamudd∑n
Sandjar, imperiosamente lhe dirá: “Capitão, leve-a para dormir na casa de quem
possa protegê-la, ou então envie-a para a casa de alguém da sua escolha, até o
amanhecer”. Tão logo ele lhe disser isso, diga-lhe da sua parte: “Esta é a mansão
do juiz Am∑nul¬ukm. Vamos deixá-la com ele até o dia raiar. É melhor que ela
fique na casa do juiz”. Bata você mesmo na porta, me coloque lá dentro e eu já
terei atingido o que pretendo com a jovem e satisfeito a minha necessidade.
[Prosseguiu o capitão:] Ouvindo tais palavras, pensei comigo: “Isso é algo
que não me prejudicará e nem me acarretará nenhum mal”, e disse a ela: “Faça
como melhor lhe parecer. Sou seu e estou com você”. Fechado o trato, ela me
deixou, e quando anoiteceu demos início à ronda, passando pela entrada da
mansão após a meia-noite. Sentimos o cheiro de perfumes bem fortes e eu disse:
“Parece que estou vendo a sombra de alguém”. O chefe da ronda disse: “Olhem
e verifiquem de quem se trata”. Entrei, saí e lhe disse: “Uma bela mulher com
joias e vestes magníficas. Ela mencionou ser do Castelo, e que a noite a pegou
desprevenida, o Portão de Zuwayla[563] foi trancado e não conhece ninguém em
cuja casa possa dormir; viu esta mansão agradável e, percebendo que pertence a
algum homem de muita importância, ficou por aqui”. O chefe da ronda disse:
“Conduza-a para a sua casa”. Respondi: “Deus me livre! Minha casa não tem
segurança para uma mulher dessas, com tantas joias caríssimas. Ela não ficará a
salvo senão na casa do juiz em cuja porta está sentada. Ela fica até o amanhecer,
quando já teremos terminado a ronda”. O chefe da ronda disse: “Faça o que lhe
parecer melhor”. Então bati na porta do juiz e veio atender um criado a quem eu
disse: “Hospede essa mulher aí com vocês. Estamos deixando-a em confiança
até o dia raiar. O chefe da ronda a encontrou vestida com essas roupas e usando
essas joias, sentada ao lado da sua casa, e teve medo que lhe sucedesse algo de
ruim cujas consequências podem resultar, da parte do sultão, em prejuízos para
nós e para vocês. É mais lícito que ela passe a noite com vocês até o dia raiar”.
Então o criado a conduziu para dentro da casa, e nós prosseguimos o nosso
trabalho. Quando amanheceu, a primeira pessoa a aparecer diante das portas da
delegacia foi Am∑nul¬ukm, juiz do conselho do sultão, trazendo consigo
testemunhas isentas. Gritava pedindo o socorro de Deus e do delegado, e dizia:
“Vocês enfiaram dentro da minha casa uma ladra! Ela abriu os meus cofres e
roubou os depósitos deixados sob os meus cuidados![564] São seis sacos de
ouro! Estou indo informar ao nosso amo o sultão Baybars que vocês agem
mancomunados com ladrões, vestem-nos com roupas femininas e os introduzem
na casa da gente!”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

895ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o capitão disse:]
O juiz Am∑nul¬ukm disse ao delegado: “Vocês vestem os homens com
roupas de mulher e os introduzem na casa da gente para roubar!”. Irritado e
temeroso com as palavras do juiz, o delegado chamou os capitães e chefes da
guarda, indagou a respeito, e todos jogaram a coisa para cima de mim, afirmando
nada saberem a respeito da mulher, e “o motivo da entrada dela na casa do juiz
não foi senão o capitão Mu¢∑n”. Então o juiz me advertiu e insultou enquanto
eu me mantinha cabisbaixo, primeiro, por temor a ele, e, segundo, pensando em
como eu fora redondamente ludibriado pela tal mulher, e como ela pudera me
fazer sofrer essa catástrofe. O delegado me perguntou: “O que você tem, que não
fala nada?”. Respondi: “Meu amo, existe há tempos o costume que impõe, em
casos como este, um prazo de três dias para o investigador da polícia, após os
quais, se o delinquente não for encontrado, o próprio investigador deve repor o
dinheiro e os bens roubados. Eu sairei investigando e quem sabe Deus não me
faz encontrar o delinquente, se assim o quiser Deus altíssimo. Indague, portanto,
o juiz Am∑nul¬ukm a respeito”. O delegado o indagou, o juiz me deu o prazo
de três dias e assim ficou decidida a questão. Pus-me a vagar pela cidade e por
todos os seus lugarejos, o mundo escurecido em minha face. Vaguei o primeiro e
o segundo dias me recriminando e pensando: “Estou atrás de uma mulher que
nem conheço!”. No terceiro dia, vaguei até a tarde, quando passei pela entrada
de uma mansão na qual havia uma portinhola aberta, e nela uma mulher que ao
me ver bateu palmas; ergui a cabeça em direção à portinhola, ela me fez sinal
para subir e eu subi, espantado com aquilo. A mulher me perguntou: “Não me
reconhece?”. Respondi: “Não, por Deus”. Ela disse: “Foi a mim que você
introduziu na casa do juiz!”. Eu disse: “Moça, estou procurando por você!”, e
continuei: “Minha irmã, por que você fez essas coisas comigo? Me deixou às
portas da morte!”. Ela respondeu: “Você? O capitão dos homens e dos corajosos,
por todos tão falado? Ficou com medo deste caso?”. Respondi: “Como não
temer? Meu adversário quer me aniquilar!”. Ela disse: “Não vai acontecer senão
o bem. Você sairá vitorioso”. Em seguida, ela pegou uma das muitas caixas que
havia na casa, retirou delas seis sacos e me disse: “Estes são os sacos que roubei
da casa do juiz. Se quiser, pode levar tudo, ou, então, pode ser outra coisa. Eu
tenho tanto dinheiro que nem o fogo e a lenha conseguem consumir. Meu
propósito, capitão, não era senão me casar com você. Se eu quisesse esse
dinheiro, não teria deixado você conhecer a minha casa”; em seguida, abriu as
caixas, delas retirando tanto dinheiro, joias, tecidos e pedras preciosas que me
deixou aturdido, e disse: “Isso tudo será seu se você se casar comigo. Tudo
ficará sob seu controle”. Respondi: “Sou seu escravo e estou ao seu dispor. Faça
tudo quanto desejar”. Ela disse: “Nada tema nem fique com o peito opresso. Eu
não sairia da casa do juiz sem ter providenciado algo para salvar você”.
Perguntei: “Como?”. Ela respondeu: “Amanhã cedo, na hora em que o juiz
Am∑nul¬ukm chegar à delegacia gritando por socorro, espere que ele termine
de falar tudo o que quiser, e quando ele se calar não responda nada. Quando o
delegado lhe perguntar: ‘Por que você não lhe responde?’, diga: ‘Chefe, existe
algo que não bate nessa história,[565] e o homem não tem outro socorro que não
o de Deus altíssimo’. Quando o juiz lhe perguntar: ‘Qual o sentido dessas
palavras?’, responda-lhe: ‘Juiz, não existisse algo que não bate nessa história, a
jovem por mim depositada em sua casa — pertencente ao sultão Baybars e
portando objetos no valor de mil dinares —, não teria desaparecido sem deixar
vestígios nem depois você teria aparecido nos exigindo seis mil dinares de ouro.
A jovem foi atacada por alguém dentro da sua casa, e esse atacante também
roubou o dinheiro do senhor. Se você vasculhar a sua casa talvez encontre a
verdade’. O juiz ficará então mais irritado, sairá para vasculhar a casa e lhe
ordenará que entre lá e vasculhe por si mesmo, mas você dirá: ‘Não farei isso
sozinho, pois somos adversários. Se quiser que eu vasculhe, só irei com você e
com o delegado’. Então ele irá jurar para que vocês o acompanhem, e quando
estiverem na casa dele comece a vasculhar pelo sótão, depois os depósitos,
depois os quartos e enfim todos os lugares e pontos; depois de não encontrar
nada, faça-se de submisso e humilhado, e assim que a questão começar a ficar
tensa — quanto tempo resta, qual a decisão a tomar —, pare diante da porta, olhe
bem para a tina d’água, que fica num ponto escuro, vá até lá e arraste-a do lugar:
você encontrará um pedaço de tecido manchado de sangue, e então gritará pelo
delegado. Continue vasculhando e encontrará o meu véu, bem como as minhas
sandálias e roupas. Ali mesmo cumpra o seu papel, pois a razão terá se voltado
contra o juiz”. Suas palavras me agradaram, e eu já fazia menção de me retirar
quando ela me disse: “Leve estes seis sacos do juiz”. Perguntei: “Você não me
disse que iríamos nos casar?”. Ela respondeu: “Sim”. Eu disse: “Deixe os sacos
aqui com você para que nos sejam úteis depois”. Ela disse: “Então leve consigo
estes mil dinares a título de dote e ajuda para a noite de núpcias”. Peguei o
dinheiro e me retirei dali, feliz e contente com o casamento. Fui até a minha
casa, dormi até o amanhecer e me dirigi à casa do delegado. O juiz chegou
fazendo enorme alarido e foi logo perguntando: “Localizaram o meu inimigo?
Caso contrário, quero o meu dinheiro!”. Não lhe dei resposta, o que aumentou
muito a sua irritação. Como eu continuasse calado, a sua gritaria subiu e ele
disse ao delegado: “Esse cachorro está fazendo pouco caso de mim!”. Nesse
momento o delegado me disse: “Por que não responde ao nosso amo, o juiz das
terras egípcias? Ai de você, fale!”. Respondi: “Chefe delegado, preserve-o Deus
altíssimo, que é o meu único defensor. Existe alguma coisa que não bate nessa
história. Se alguém esquecer o juiz Am∑nul¬ukm e convier comigo, a verdade
aparecerá”. Já muito encolerizado, o juiz disse: “Seu safado, e porventura você
tem alguma verdade para demonstrar?”. Respondi: “Caro amo e juiz, como então
eu deixo em confiança junto ao senhor uma mulher — por displicência minha e
do meu chefe — encontrada por acaso às suas portas, com joias, pedras
preciosas e vestimentas luxuosas no valor de mil dinares, e daí ela desaparece tal
como o hoje desaparece no ontem? E depois disso o senhor vem me exigir seis
mil dinares? Isso não é senão uma terrível injustiça. É bem possível que você e
ela tenham sido vítimas do mesmo agressor. Se você vasculhar a sua casa, talvez
a encontre e seja guiado para a verdade”. Mais encolerizado ainda, aos berros o
juiz jurou triplamente pelo divórcio[566] e pela fé que lhe impunham todas as
escolas jurídicas dos muçulmanos:[567] “Pois venha você vasculhar a minha
casa!”. Respondi: “Por Deus — e que eu me divorcie! Não irei senão
acompanhado do meu chefe, o delegado”. Então nos dirigimos à casa do juiz,
entramos, subimos e vasculhamos no sótão, rodamos pela casa toda, e nada. O
juiz se irritou e o delegado, encolerizado, me encarou e disse: “Seu cachorro!
Você nos desmoralizou perante o juiz”. Já fazíamos menção de sair da casa
quando eu olhei para um cômodo escuro e disse: “Vasculhem ali!”. O juiz disse:
“É o cômodo onde fica a tina d’água”. Eu disse a eles: “Arrastem a tina do
lugar”, e eles assim procederam. Vi um pedaço de véu branco cuja ponta saía do
chão, e disse aos policiais: “Verifiquem o que é isso!”. Responderam: “Um
trapo”. Eu disse: “Escavem!”; eles assim procederam e eis que surgiu um véu,
uma calçola e uma sandália, tudo cheio de sangue. Soltei um grito e caí
desmaiado. Vendo as coisas nessa situação, o delegado disse: “O capitão está
absolvido”, e em seguida se puseram a me agradar e a espargir um pouco de
água sobre mim. O juiz se cagou nas roupas. Quando despertei e me levantei, vi
o juiz balançando a cabeça e lhe perguntei: “Você compreendeu que o intruso
atacou a moça dentro da sua casa, e que ela estava sendo seguida?
[Compreendeu que este caso não é simples, e que os parentes dessa mulher não a
esquecerão?”. Nesse momento o coração do juiz disparou], o seu rosto se
amarelou e ele parou de falar, entregando ao delegado uma boa quantia em
dinheiro, bem como aos demais policiais, para apagar a efervescência que
provocara. Também a mim ele deu uma boa quantia em dinheiro. Quando saímos
da sua casa, ele estava que mal podia acreditar que se safara. Esperei três dias, ao
cabo dos quais fui ao banho público, tomei uma bebida, mudei as roupas e saí a
passear pelas ruas do Cairo pensando: “Ela não vai me trair, pois foi sua a
iniciativa de se exibir na portinhola, deixando evidente para mim a sua afeição, e
eu nem conhecia o lugar onde ela morava”. Estava claro para mim que a
proposta de casamento era sincera.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

896ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o capitão [Mu¢∑nudd∑n] disse:
[Caminhando pelas ruas do Cairo, eu dizia:] “Ela não me trairá, pois foi sua a
demonstração de afeto. Ela se comprometeu a casar comigo!”. Em seguida, fui
até a casa de cujo interior ela me chamara, subi e encontrei a porta trancada [e já
bem suja de terra]. Indaguei sobre ela e me responderam: “Capitão, essa casa
estava vazia há anos. Porém, há uns três dias veio bem cedinho uma mulher com
jumentos carregando tecidos e ficou até bem entrada a noite. No dia seguinte, ela
tornou a carregar os jumentos e partiu. Já há muitos anos que ninguém além dela
mora aqui”. Então eu voltei perplexo com a artimanha daquela mulher, a
agudeza de sua maquinação, e percebi que com aquilo ela não desejara senão me
livrar do juiz. Até hoje não sei onde ela mora. Isto foi o que de mais espantoso
me sucedeu nas minhas rondas.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Os presentes ficaram espantados com tal ocorrência,
bem como o sultão Baybars e o delegado responsável daquela época. Então um
segundo capitão se levantou e disse:
O SEGUNDO CAPITÃO E A MULHER ARDILOSA
Eu lhes contarei algo mais espantoso, melhor e mais curioso, a respeito dessas
coisas que vi com os meus próprios olhos. Saibam que eu era o principal capitão
do comandante Kamaludd∑n Aqaš, delegado da região leste,[568] de cujo
coração eu era tão próximo que ele nada escondia de mim, [conquanto tivesse
grande autocontrole]. Sucedeu então que certo dia lhe disseram que a filha de
fulano — figurão da região leste, onde ninguém possuía mais dinheiro do que ele
— estava apaixonada por um judeu, a quem convidava para ficar a sós consigo,
em sua casa, com dia marcado, a fim de dormir com ela. Tantas vezes essa
denúncia se repetiu diante do delegado que ele decidiu investigar o assunto,
convocando o inspetor dos quarteirões para indagá-lo a respeito. O inspetor
respondeu: “Quanto ao jovem judeu, eu o vejo em algumas noites entrando
numa casa, mas não pude certificar-me de qual é a casa”. O delegado disse:
“Atenção com o judeu, e quando ele entrar na casa venha correndo e me avise”.
O inspetor respondeu: “Ouço e obedeço” e, saindo da presença do delegado,
ficou atento até que certa noite o judeu entrou na casa da filha do figurão. O
inspetor foi até a residência do delegado e disse: “O judeu chegou e já entrou na
casa tal”. O delegado imediatamente se levantou e correu para lá, não levando
consigo ninguém senão a mim. Ele me disse: “Esse é um gordo filé!”. Chegamos
ao local e esperamos à porta até que ela foi aberta por uma criada que saía para
comprar algo. Avançamos porta adentro e nos vimos numa bela casa, um
aposento feminino[569] dotado de duas salas, uma de frente para a outra,
armários, piscina alimentada por uma fonte, mármore na vertical e na horizontal,
entradas para cômodos contíguos, mosquiteiros montados, colchões, assentos,
cadeiras, almofadas enfeitadas com ouro e prata — enfim, coisas que deixavam
perplexos o pensamento e a visão —, mais vasos de flores e velas acesas. O
judeu e a mulher estavam no ponto mais elevado do lugar, sobre uma cama, e
entre eles havia taças e copos. Assim que os olhos da jovem caíram sobre o
delegado, ela [o reconheceu,] se levantou, abriu-lhe espaço, beijou-lhe as mãos e
os pés e disse: “Seja muito bem-vindo, delegado dos delegados, adorno dos
virtuosos. Por Deus que você fez um magnífico benefício a esta sua escrava não
revelando o meu segredo a ninguém. Que Deus altíssimo me dê forças para
recompensá-lo, meu amo e mestre”. Em seguida, ela o acomodou e lhe ofereceu
opulenta comida, da qual o delegado beliscou um pouco. Depois disso, a jovem
arrancou as joias, roupas e adornos que usava, pegou quatro sacos de ouro e
embrulhou tudo, tecidos e joias, numa grande toalha de seda; avançou, beijou a
mão do delegado e lhe disse: “Meu senhor, isto é o que lhe cabe da minha parte”.
Depois, voltou-se para o judeu e lhe disse: “Agora vá você e traga algo igual
para o delegado!”. Então o judeu se ergueu ligeiro, mal acreditando que se
safara, e saiu da casa. Assim que se certificou de que o judeu já estava a salvo
fora da casa, a mulher avançou para os tecidos e sacos de ouro, pegou-os e
retirou-os dali. Como ela tinha muitos escravos, escravas e criados distribuídos
por todos os pontos da casa, gritou por eles, que rapidamente acorreram aos
bandos de onde estavam; eram muitos, e quando se agruparam a mulher se
voltou para o delegado e lhe disse: “Generosidade não se paga senão com
generosidade. Você veio até mim sozinho e não me denunciou; portanto, pode se
retirar na paz de Deus altíssimo e do seu profeta. Caso contrário, darei um berro
tão alto que fará acorrer para todos os moradores deste quarteirão, aos quais eu
direi que esquecemos a porta de casa aberta, sem trancar, e você nos atacou no
meio da noite exigindo de mim o que não é do seu direito. Ninguém vai
desacreditar das minhas palavras”. Cheio de medo, o delegado se levantou, saiu
e não falou nada a respeito, por medo da desonra. Foi isso que lhe sucedeu.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

897ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o [segundo] capitão contou esta história,
ouvida pelo delegado e pelos demais presentes, bem como pelo sultão Baybars,
que balançou a cabeça de êxtase e disse: “Vejam só como ela salvou o judeu,
sem que o delegado conseguisse um único dirham, com a sua boa artimanha e
astúcia. Por Deus que nunca ninguém fez algo como isso”. Todos ficaram
sumamente espantados e estremeceram de êxtase. Então outro capitão, o
terceiro, disse-lhes: “Ouçam o que me sucedeu, que é mais espantoso, insólito,
prazeroso e extasiante”. E continuou:
O TERCEIRO CAPITÃO E A PUNGUISTA
Certo dia, enquanto eu caminhava a trabalho com os meus colegas, eis que
passamos por um grupo de mulheres, no meio das quais eu olhei para uma, a
mais bela de se ver, saltitante como uma gazela, e me detive, atrasando o passo
em relação aos demais. Ao notar o que eu fizera, ela também atrasou o passo em
relação às outras mulheres, dando tempo para que eu chegasse até ela e lhe
falasse. Ela respondeu: “Ao vê-lo deter-se, meu senhor, imaginei que você me
conhecesse. Se for isso mesmo, faça-me conhecê-lo melhor”. Respondi: “Por
Deus que eu não a conhecia antes, mas Deus lançou o amor por você dentro do
meu coração. Estou aturdido com a beleza dos seus traços, e com a graça e
formosura que Deus altíssimo lhe deu, e com esses olhos suaves e perfeitos que
disparam flechas. Isso tudo trouxe o amor naturalmente, sem dificuldades”. Ante
as minhas palavras, ela sorriu e disse: “Por Deus, o que me ocorre é o mesmo
que lhe ocorre [e talvez até mais, pois me parece que o conheço desde o
nascimento]. Quiçá isso se torne verdade”. Perguntei: “Será que o ser humano
pode obter nos mercados tudo quanto necessita?”. Ela perguntou: “Você dispõe
de algum lugar?”. Respondi: “Por Deus que não! Eu nem sequer moro nesta
cidade”. Ela disse: “Por Deus que eu tampouco disponho de um lugar. Mas vou
dar um jeito”. Em seguida, caminhou na minha frente, e eu atrás dela, até chegar
a um edifício no qual subiu, comigo atrás. Parou na porta de um dos andares e
disse: “Ó zeladora,[570] você tem um quarto vazio?”. A zeladora respondeu:
“Tenho!”. [A jovem disse: “Então me dê a chave”] e, pegando-a, subimos para
examinar o quarto, no qual entramos. Depois a jovem saiu, entregou um dirham
à zeladora e lhe disse: “Isto é um prêmio pela chave, pois o quarto nos agradou.
E eis aqui um segundo dirham como compensação pelo seu esforço: [vá nos
trazer uma tina d’água para nos reconfortarmos, expulsarmos o calor e nos
refrescarmos]”. Muito contente, a zeladora nos[571] enviou um tapete, um
almofadão, uma esteira de couro, cuias, um jarro d’água, uma chaleira e um
mosquiteiro. A jovem lhe disse: “Ficaremos aqui até o calor baixar;
descansaremos e depois tomaremos o nosso rumo”. A zeladora respondeu:
“Muito bem-vindos”. Ficamos ali até o entardecer, quando então a jovem disse:
“É imperioso que eu me lave antes de ir embora”. Respondi: “Por que não pega a
água e vai se lavar?”, e tirei do bolso a quantia de vinte dirhams a fim de dá-los a
ela. A jovem disse: “Deus me livre!” e, tirando da algibeira um punhado de
prata, continuou: “Por Deus que, não fora o destino e o amor por você que Deus
altíssimo me lançou no coração, nada disso teria acontecido”. Eu disse: “Mas
tome esse dinheiro para compensar o que você deu para a zeladora”. Ela
respondeu: “Meu senhor, a partir de agora nossa convivência será longa. Veja lá
se alguém como eu pensa em dinheiro ou favores”. Em seguida, ela se levantou,
lavou-se usando a jarra d’água e ao terminar foi rezar e pedir perdão a Deus
altíssimo pelo que fizera. Eu lhe havia perguntado o nome, que ela me dissera
ser R∑¬åna,[572] descrevendo em seguida o local onde morava. Ao vê-la
banhar-se e rezar, envergonhei-me do fato de uma mulher fazer isso e eu, mesmo
sendo homem, não, e por isso lhe disse: “Seria bom que você pedisse mais uma
jarra de água para eu me banhar”, e então ela gritou pela zeladora, dizendo-lhe
quando ela veio: “Traga-nos mais uma jarra”, e a mulher assim procedeu. Peguei
a jarra, entrei no banheiro e me banhei. Ao me desnudar, eu havia entregado
todas as minhas coisas para a jovem, e tão logo terminei o banho chamei-a:
“R∑¬åna, minha senhora”, mas ninguém respondeu. Saí do banheiro e não a
encontrei; procurei as minhas coisas e constatei que ela levara tudo, juntamente
com o dinheiro da minha algibeira, cuja quantia era de quatrocentos dirhams. Ela
também levara o meu turbante, o meu lenço, enfim, não encontrei nada com que
cobrir as pudendas! Achando que a morte seria mais suportável do que aquela
situação, pus-me a procurar por algo com que me cobrir, mas nada encontrei.
Bati com força na porta, e então veio a zeladora, a quem perguntei: “A mulher
que estava aqui, que fim a levou?”.[573] A zeladora respondeu: “Ela acabou de
descer [afirmando que ia cobrir as crianças com os tecidos], e disse: ‘Deixei-o
dormindo. Quando ele acordar, diga-lhe que não saia do lugar até que os tecidos
voltem’”. Eu disse: “Minha irmã, guardar segredo é coisa de gente decente. Por
Deus que aquela mulher não é minha esposa, e que antes deste dia eu jamais a
tinha visto na vida. Na verdade, o que me aconteceu foi o seguinte…”, e contei
para a zeladora toda a história, do começo ao fim, [pedindo-lhe que me
protegesse e lhe explicando que eu estava desnudo.] Ela riu de mim e chamou
pelas mulheres do prédio uma por uma: “Ó Få†ima! Ó ¿ad∑ja! Ó ¢Å’iša! [Ó
Æirr∑fa! Ó Saniyya!] Ó fulana! Ó beltrana!”, e logo todas as mulheres e criadas
do prédio, grandes e pequenas, estavam reunidas ao meu redor, rindo-se de mim
e dizendo: “Eis aí a sua punição, pobre coitado! O que é que fez você cair assim
nessa desgraça de paixão?”. Uma me encarava longamente e ria, outra dizia:
“Por Deus que era a sua obrigação ter percebido a mentira quando ela disse que
o amava e estava apaixonada! Afinal, o que é que você tem para deixar alguém
apaixonado?”, e uma terceira dizia: “Eis um senhor sem juízo!”. E puseram-se
todas a me imitar com trejeitos. Nunca fui tão humilhado em toda a minha vida.
Não obstante, uma das mulheres se apiedou de mim e me jogou uns panos gastos
e trapolentos com os quais cobri a bunda e o saco.[574] Deixei-me ficar ali por
uns instantes, mas logo pensei: “Já já virão contra você os maridos dessas
mulheres e aí o escândalo será pior”; então saí correndo pela porta do prédio.
Contudo, era decreto de Deus que os moleques do quarteirão estivessem ali
embaixo reunidos e passassem a me perseguir gritando: “Louco! Louco!”.
Continuei correndo, com os moleques atrás de mim, até chegar ao bairro onde
moro. Parei diante da porta de casa, bati e ela foi aberta. Quando entrei, a minha
mulher olhou para mim e, vendo-me nu, a cabeça descoberta, soltou um grito,
foi até a mãe dela e disse: “Ele enlouqueceu!”. Ao me ver, a minha sogra
começou a gritar junto com a minha mulher, e então eu disse a ambas: “Ladrões
me emboscaram, roubaram a minha roupa e quase me mataram!”. Não tive
coragem de contar sobre a mulher, por medo de que acontecesse o pior entre nós.
Ambas me felicitaram e louvaram a Deus por eu estar inteiro, e então vesti uma
das minhas outras roupas.[575]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

898ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o terceiro capitão disse:
Vesti então uma das minhas outras roupas, não a roubada pela jovem. Veja só,
minha gente, essa artimanha realizada contra mim, eu que sempre me considerei
tão esperto e malandro.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Todos ficaram espantados com a sua boa história e
com o que lhe ocorreu. Então outro capitão, o quarto,[576] disse:
O QUARTO CAPITÃO E A LADRA
O que fez você se enredar por essa jovem foi a beleza dela e o desejo inerente a
todo ser humano. Mas o espanto que sucedeu a mim e aos meus parentes é ainda
mais espantoso. O fato é que certa noite de verão nós estávamos dormindo sobre
o telhado[577] quando uma ladra invadiu a nossa casa, entre o entardecer e o
anoitecer. O quarto no qual se encontravam os nossos pertences estava aberto, e
então ela ajuntou tudo numa trouxa, apertou bem o nó e se preparou para dar o
fora. Mas a tal mulher estava grávida e, por desejo de Deus altíssimo, aquela era
a sua noite: o parto foi ali mesmo, com a permissão de Deus altíssimo, e ela deu
à luz no escuro; depois, tateando, encontrou um lampião, a sua mecha, e o
acendeu; vasculhou a casa e pegou tudo quanto continha. Enquanto ela zanzava
pela casa e a revolvia de ponta a ponta, o bebê começou a chorar e nós ouvimos.
Espantados com aquilo, nos levantamos e, ao observarmos pela claraboia, vimos
a mulher com o lampião já aceso e ouvimos o bebê chorando. A mulher ouviu a
nossa conversa, ergueu a cabeça em nossa direção e disse: “Não se
envergonham? Por acaso nós agimos assim com vocês? Ficamos espiando as
suas intimidades durante o dia? Por acaso não sabem que o dia pertence a vocês
e a noite pertence a nós? Retirem-se em paz! Por Deus que, não fossem vocês
nossos vizinhos há anos e anos, embora ainda não nos conheçam, já lhes
teríamos derrubado a casa!”. Temerosos e aterrorizados com tais palavras, não
duvidamos que ela fosse uma gênia.[578] Tiramos a cabeça dali e pela noite toda
não pudemos mais espioná-la. Esperamos o dia seguinte, e quando amanheceu
verificamos que ela roubara tudo quanto havia na casa e fora embora!
Constatamos que se tratava de uma ladra, e que agira com astúcia e artimanha,
mas já não adiantava nada o arrependimento de não termos descido
imediatamente e a agarrado.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Quando os presentes ouviram essa história,
espantaram-se com tais ações e se extasiaram. Disse então outro capitão, o
quinto, inspetor do estábulo:[579] “Eu lhes contarei o sucedido comigo, que foi
mais espantoso e extasiante do que essas histórias”. Os presentes perguntaram:
“Como assim?”. Ele respondeu:
O QUINTO CAPITÃO E A MULHER DELATADA
Estava eu na porta da delegacia quando um homem entrou e disse: “Capitão, a
esposa de fulano, o juiz, está com um grupo de desembargadores[580] da cidade
bebendo vinho no lugar tal”. Ao ouvir aquelas palavras, temeroso de escândalos,
expulsei o homem e lhe quebrei toda esperança que porventura nutrisse
relativamente àquela denúncia. Levantei-me e, caminhando sozinho, fui até o
lugar indicado e fiquei sentado à porta. Quando ela se abriu, arremeti e entrei,
encontrando o grupo tal como me descrevera o denunciante, com a mulher no
meio deles. Cumprimentei-os, eles retribuíram, dignificaram-se, acomodaram-
me e me ofereceram comida. Comi e os informei sobre quem os denunciara,
“mas eu o expulsei e vim até vocês sozinho a fim de que qualquer problema
porventura resultante caia em minhas mãos, e não nas de algum dos demais
capitães, que poderia informar o juiz, o que os deixaria numa situação delicada”.
Então eles me agradeceram, elogiando-me com todo o bem, e ato contínuo
sacaram para mim, ali entre si, dois mil dirhams, que eu embolsei e me retirei.
Passados dois meses dessa ocorrência, veio até mim um enviado do juiz com um
papel escrito por ele, no qual eu era convocado à justiça. Fui com o enviado e
entrei na sala do juiz. O meu litigante exigia de mim dois mil dirhams, alegando
que eu os tomara emprestados à esposa do juiz, conforme afirmava o advogado
dela.[581] Como eu negasse aquilo, o advogado puxou um papel com o
testemunho de quatro dos homens que estavam na reunião. Percebi então que se
tratava de uma cilada e paguei o valor. Depois disso, encontrei-me com aqueles
desembargadores e lembrei-lhes a minha mercê e generosidade. Eles
responderam: “Não fosse a sua generosidade, teríamos testemunhado contra
você um valor de dois mil dinares.[582] Também testemunharíamos que você é
apóstata e o queimaríamos no fogo”. Vi que estavam falando a verdade e sendo
sinceros, e jurei que nunca mais me envolveria com nenhum dos
desembargadores do tribunal.
SEGUNDA HISTÓRIA DO QUINTO CAPITÃO:
A AMANTE DO DESEMBARGADOR
[Prosseguiu o quinto capitão:]
Entre outras ocorrências, temos a de um desembargador-mor chamado
Am∑nudd∑n,[583] que servia junto ao juiz do exército do Cairo, chefiando[584]
outros três desembargadores. Certo dia, ante a denúncia de que esse homem
estava em casa com uma mulher, reuniu-se à porta do seu sobrado muita gente
do vulgo, além do delegado com o seu séquito. Ao ver tal aglomeração diante da
sua casa, o desembargador-mor perguntou: “O que têm vocês para estarem assim
apinhados?”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

899ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o quinto capitão disse:]
O desembargador-mor apareceu e perguntou: “O que têm vocês para estarem
assim apinhados?”. Responderam: “Fale com o delegado!”. Então ele desceu,
abriu a porta e o delegado lhe disse: “Traga para fora a mulher que está aí com
você”. Ele respondeu: “Por que trazê-la para fora se ela é minha esposa?”. O
delegado perguntou: “Ela é sua esposa com contrato ou sem contrato?”. O
desembargador-mor respondeu: “Com contrato”. O delegado perguntou: “E onde
está o contrato?”. O desembargador-mor respondeu: “Na casa da mãe dela”. O
delegado disse: “Mostre-o”. O desembargador disse: “Então saiam da frente para
que ela possa ir buscar o contrato”. Mas ele já tinha feito o seguinte: tão logo
ouvira o alarido das pessoas à sua porta e se certificara do assunto, pegara um
pedaço de papel e o tinteiro, sempre à disposição em sua casa, e escrevera o
contrato no nome da mulher, do pai dela, do seu próprio e do seu pai, estipulando
em seguida um determinado valor para o dote; antes que a mulher descesse,
ensinou-a como agir, bem como o caminho da casa dos três desembargadores
seus colegas, instruindo-a ademais a falar de acordo com o que ele tinha
planejado. E foi assim, então, que a mulher desceu, enviando-se com ela o criado
do delegado, que a acompanhou até a casa da mãe. Assim que entrou, porém, a
mulher trancou a porta na cara do criado e lhe disse: “Não vou mais descer!
Avise o seu patrão que ele próprio vá trazer os desembargadores e venha receber
o meu contrato”. O criado — um eunuco — foi-se embora e informou o patrão
que a mulher se rebelara. Mas a mulher, mal o criado se retirou, desceu e foi até
a casa dos desembargadores colegas do seu amante e os informou o que ele
dissera, mostrando-lhes o papel no qual ele redigira o contrato de casamento, e
eles compreenderam tudo. Quando o criado voltara e informara o seu patrão
delegado que a mulher havia se rebelado, a notícia foi levada ao desembargador-
mor, que disse ao delegado: “Ela está justificada! Contudo, delegado, envie o
criado para convocar o desembargador fulano” — que era um dos seus colegas.
O delegado mandou convocá-lo, ele se apresentou e o desembargador-mor lhe
disse: “Vá até a minha esposa fulana, aquela com quem vocês me casaram, e
traga aqui o contrato de casamento”, e lhe fez um sinal [que queria dizer: “Finja
que está indo e me proteja, pois a mulher é estranha e estou com medo do
delegado à minha porta! Peço a Deus altíssimo que me proteja e a você dos
problemas do mundo, amém”.][585] O colega perguntou: “Sim, não é fulana,
com quem você se casou no lugar tal?”. Ele respondeu: “Sim!”. Então o
desembargador saiu, trouxe o contrato — que eles tinham assinado
imediatamente quando ela fora informá-los — e o mostrou. Ao ver o contrato, o
delegado ficou inteiramente desanimado. O desembargador-mor, que sofrera a
batida, disse ao seu colega desembargador: “Vá até o nosso patrão e amo, o juiz
dos juízes, e deixe-o a par disso. Conte-lhe tudo o que aconteceu comigo”. Com
o desembargador já pronto para ir até o juiz, o delegado, muitíssimo temeroso
daquilo tudo, desfez-se em rogos ao desembargador-mor e tanto lhe beijou as
mãos que ele o perdoou. O delegado se retirou cheio de medo e pavor. Quanto ao
desembargador cúmplice,[586] ele acabou se casando com a mulher.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Todos ficaram sumamente espantados com aquele
caso.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

900ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que outro capitão, o sexto, disse:
O SEXTO CAPITÃO, SEU AMIGO MERCADOR E A VELHA GOLPISTA
Um amigo meu, mercador do porto de Alexandria, me contou[587] que apareceu
em sua loja uma velha afirmando ser aia do delegado da cidade. Após escolher
tecidos no valor de mil dinares, a velha lhe ofereceu como garantia uma caixinha
de joias cujo conteúdo ela despejou diante dele. Achando que aquilo tinha
grande valor, o mercador aceitou a caixinha como garantia, e ela fez então uma
criada carregar[588] os tecidos e se retirou, desaparecendo por um período tão
longo que o mercador, já sem esperanças de receber o valor dos tecidos, foi
indagar a respeito dela na casa do delegado, onde ninguém soube dar-lhe
resposta. Ele então levou a caixinha a um ourives, que examinou o conteúdo e
lhe disse que era pintado, de valor não superior a duzentos dirhams de prata.
Muito irritado, o homem se dirigiu à casa do delegado e o deixou a par da
artimanha contra si urdida. Experimentado, hábil, entendido e sagaz, o delegado
lhe disse: “Ai de você, mercador! Mantenha o assunto em segredo que eu vou
cuidar dele de um modo que vai favorecer você”. O mercador perguntou:
“Como, ó delegado?”. O delegado respondeu: “Leve para casa [à noite] a
maioria dos seus tecidos e quebre [os cadeados da sua loja]. Quando amanhecer,
abra-a e comece a gritar, a espernear e a berrar: ‘Estou por Deus e pelo delegado
do sultão! Ai meu dinheiro! Ai minha mercadoria! Mas o ladrão não vai se safar
de Deus altíssimo’. Alegue que a loja foi roubada, clame por socorro, [mostre a
todos os cadeados quebrados e] os informe que o seu maior receio é pela
caixinha com objetos e joias ‘que estava comigo como garantia, e que pertence a
um figurão da cidade’. Diga, com muita ênfase, que o seu grande temor é esse, e
então a velha virá até você”. O mercador assim procedeu, o fato foi falado e se
espalhou pela cidade, e foram chamados oficiais e policiais. O mercador se
queixou muito, e após três dias a velha, dona da caixinha com os objetos, ouviu a
história e arranjou o valor dos tecidos a fim de exigir de volta o que deixara em
garantia, pois, com a informação de que a caixinha fora roubada, queria alegar
que o seu conteúdo era bem mais valioso a fim de deflagrar um processo contra
o proprietário dos tecidos e fazê-lo pagar um valor maior do que o suportável,
lançando-o, por meio de sua astúcia e manha, nas cordas da humilhação e da
infâmia, impondo-lhe, com tal proceder, uma derrota e alcançando, graças a esse
recurso, o seu propósito e a sua esperança. Assim, ela se dirigiu à loja, onde viu
o mercador perplexo e melancólico devido ao que lhe sucedera; sua tristeza era
tamanha que as pessoas estavam dizendo: “Coitado desse mercador! Só pode ter
sido vítima de mau-olhado. Ele não merece essa catástrofe e esse prejuízo, mas o
destino atua e o ser humano nada pode fazer neste tempo traiçoeiro”. Nesse
momento, ela perguntou: “Mas qual é a história?” e, ao lhe contarem o que se
passara e sucedera ao dono da loja, e as calamidades do tempo que se abateram
sobre ele, a velha soltou um grito e disse: “Ai o meu dinheiro! Ai o dinheiro do
povo!”. As pessoas lhe perguntaram: “Qual o sentido dessas palavras?”. Ela
respondeu: “Eu tenho, penhorada com ele, uma caixinha de joias. O meu maior
medo é ele alegar que ela foi roubada junto com o dinheiro e os tecidos”. Em
seguida, ela chorou, esperneou e se lamentou dizendo: “Deus dê a vitória ao
sultão! Aquela caixinha pertencia a mulheres viúvas, cujas posses não se podem
perder tão descaradamente, nem com tanta conversa mole”. De imediato, tais
palavras iniciaram um diz que me diz que entre as pessoas, das quais algumas
diziam: “Essa mulher é uma coitada”, e outras diziam: “O homem está
desculpado e derrotado, e com a perda do seu dinheiro e a degradação da sua
condição ele sofreu o que já estava predeterminado”. Tanto as conversas a
respeito como as censuras se multiplicaram, e então o mercador disse: “Tenha
paciência, velha, pois quiçá Deus a reúna ao que você extraviou, e assim não se
perde o seu direito, nem o meu”, mas a velha clamou por socorro e disse: “Não
sei nada dessa conversa! Receba o seu dinheiro e o seu direito e me devolva a
minha caixinha e as minhas joias”. Então o mercador a pegou e conduziu ao
delegado da cidade, que disse a ela: “Ai de você, sua diaba! Não lhe basta o que
já aprontou com ele da primeira vez e agora vem aprontar de novo!”. A velha
respondeu: “Delegado, faço parte de um bando que tem essa prática, e cujos
membros se reúnem numa localidade chamada Aldan.[589] Toda noite nos
reunimos uma vez, como foi o caso de ontem”. O delegado perguntou: “Por
acaso você pode nos conduzir a eles?”. Ela respondeu: “Sim, mas se você
esperar até amanhã [eles se dispersarão. Nesta noite] eu o conduzirei até eles”. O
delegado disse: “Policiais irão com você”. Então a velha saiu levando consigo
um grupo cujos membros o delegado orientara a não desacatar em nada a velha,
que os conduziu até uma porta diante da qual os fez parar dizendo: “Agarrem
qualquer pessoa que sair por aqui. Eu sairei quando tudo estiver acabado”. Então
os policiais se postaram ali conforme a velha determinou, enquanto ela entrava
pela porta. Após longa espera, os policiais bateram à porta com violência e força,
mas, como ninguém respondeu, um deles entrou, sumiu por alguns instantes e
disse ao retornar: “Essa é uma porta que dá passagem para outra rua”. Os
policiais voltaram à delegacia e informaram o delegado.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Todos ficaram sumamente espantados com aquele
caso.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

901ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o sexto capitão disse:]
Os auxiliares do delegado voltaram, informaram-no do ocorrido, e então ele
percebeu que aquela trapaceira fizera um ardil para escapar dele, e se salvara.
Veja só, minha gente, essa história que merece ser escrita com tinta de ouro, e a
artimanha dessa mulher apesar do seu pouco intelecto:[590] aprontou com o
primeiro e, arrependida de ter retornado, também aprontou com o segundo para
se safar.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Sumamente espantados após a audição dessa história,
os presentes beberam, deleitaram-se e se emocionaram. O sultão Baybars,
igualmente espantado com o que ouviu, pensou: “Ocorrem muitas coisas neste
mundo enquanto os reis se mantêm isolados devido à sua dignidade. Isso é um
espanto”. Então se levantou outro capitão, o sétimo, e disse: “O que sei, por
intermédio de um dos meus amigos, é mais espantoso e insólito, [e mais
prazeroso e extasiante do que todas as histórias que vocês ouviram até agora”. O
grupo lhe disse: “Conte-nos o que lhe ocorreu, explique e conclua para que
vejamos o quão espantoso é”. Ele disse:]
Saibam que um grupo se reuniu para uma festa na casa desse meu amigo, que
também me convidou. Quando entrei, ele me disse: “Hoje é dia de alegria.
Desejo muito que você comemore conosco e não nos condene, já que bebe
pouco”. Apesar de não beber, concordei, e eles se puseram a conversar. Meu
amigo disse: “Vou lhes contar uma história que aconteceu comigo…”.
O SÉTIMO CAPITÃO, SEU AMIGO MERCADOR E A ARAPUCA[591]
Havia um homem que ia sempre à minha loja para tomar emprestado de mim o
dinheiro de que precisava, ora um, ora dois dirhams, até que os empréstimos
atingiram a casa dos dez dirhams. Sempre que conseguia ganhar alguma coisa,
ele vinha me pagar. Meus empréstimos a ele se tornaram constantes — eu mal o
conhecia — e ocorreram durante um bom tempo. Deu-se certo dia que, estando
eu em minha loja, eis que parou diante de mim uma mulher que parecia o
plenilúnio brilhante. Pus-me a conversar com ela, que me dirigiu palavras
suaves, e eu a desejei. Ela fez a compra e se retirou, deixando no meu coração
um fogo inapagável. Minha mente ficou com ela. Dois dias depois, eu mal
acreditei quando a mulher reapareceu e entrou na loja. Conversamos, mostrei
estar à sua altura e a convidei para subir à minha casa. Ela respondeu: “Não
entro na casa de ninguém”. Eu disse: “Então vou com você”. Ela disse: “Venha”.
Fui com ela, antes enrolando um bom dinheiro no lenço, por receio de algum
imprevisto ou de uma batida policial. Caminhando à minha frente, ela me
conduziu até certa rua, e então até uma porta que abriu com uma chave que
trazia consigo. Introduziu-me num corredor, trancou a porta, guardou a chave e
disse: “Sente-se para que eu entre e me assegure de que os arredores estão
vazios, e que ninguém o verá aqui”. A mulher entrou, sumiu por uns instantes e
voltou já sem o véu. Disse: “Venha, vamos!”. Entrei num salão que constatei não
ser nada gracioso, sem nenhuma higiene, pavoroso e bem fedorento. Quando me
vi no meio do salão, eis que fui cercado por sete homens quase despidos, usando
calções[592] de couro amarrados na cintura. Entraram pela porta da sala. Um
deles levou o meu turbante, outro, o meu lenço, outro me arrancou as roupas,
outro me amarrou as mãos com um pano, outro me amarrou as pernas,
derrubaram-me e me arrastaram na direção de uma latrina que havia ali a fim de
me degolarem, quando, repentinamente, bateram à porta com força. Os homens
ficaram com medo e se distraíram de mim. A mulher saiu e logo retornou
dizendo: “Não há perigo; é o amigo de vocês que lhes trouxe o almoço”, e em
seguida aquele que batera à porta entrou com o almoço — carneiro assado — e
perguntou: “Por que vocês estão assim despidos?”. Responderam: “Hoje
conseguimos caçar”, e então o homem veio, espiou o meu rosto — graças a algo
que Deus queria para a minha salvação — e gritou: “Ó Deus! Ó Deus! Esse é
meu irmão, filho da minha mãe e do meu pai! Graças a Deus que eu o alcancei
antes que o abuso abusasse dele!”. Em seguida me soltou e beijou a minha
cabeça. Encarei-o, e eis que era aquele amigo que tomava dinheiro emprestado
de mim!
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

902ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o sétimo capitão disse:]
[Prosseguiu o meu amigo mercador:] O homem me soltou, beijou a minha
cabeça e ao encará-lo verifiquei tratar-se daquele amigo que tomava dinheiro
emprestado de mim. Ele me disse: “Não se aterrorize nem tenha medo”,
pedindo-lhes em seguida tudo quanto eles me tinham roubado, roupas e dinheiro,
de modo que não perdi nada. Depois de me fazer beber uma limonada,
acomodou-me à mesa e comi com eles. Ele me disse: “Meu irmão, agora você já
sabe ao nosso respeito,[593] e observou a nossa condição. ‘Os segredos devem
ser guardados pelos nobres’”.[594] E me fizeram jurar pelo Alcorão, pela Caaba
e pelo divórcio três vezes que não os denunciaria nem nada contaria a ninguém,
não faria o menor sinal nem os delataria. Em seguida, após se garantirem me
obrigando a prestar juras imensas, soltaram-me, e saí limpando a cabeça da
poeira da morte. Permaneci em casa isolado por um mês, debilitado por causa
dos golpes, mas depois me recuperei, saí, fui ao banho público e então reabri a
loja, instalando-me à sua porta. Não tornei a ver aquele homem nem aquela
mulher. Passados alguns dias, veio à minha loja um jovem turcomano que
parecia o plenilúnio brilhante. Era mercador de ovelhas e tinha um alforje cheio
de dinheiro, resultado das suas vendas. Aquela mulher o seguira até a minha loja
e, mal ele parou, ela parou ao seu lado, mostrando estar à sua altura. Quase
morrendo de compaixão pelo jovem, que se inclinava fortemente pela mulher,
comecei a piscar na sua direção, até que ele se virou, me olhou e eu pisquei.
Desconfiada, a mulher me disse por sinais: “Por Deus que você está faltando
com a promessa!”, e se retirou, sendo seguida pelo turcomano, o qual eu percebi
que já estava irremediavelmente morto. Muito temeroso dos ardis da mulher,
tranquei a minha loja e saí em viagem, ausentando-me por um ano inteiro, após o
que regressei à minha terra, me reinstalei na loja e eis que a mulher passou por
mim e perguntou: “O que foi essa vasta ausência?”. Respondi: “Estava de
viagem”. Ela perguntou: “E como é que você piscou para o turcomano?”.
Respondi: “Deus me livre!”, e ela se retirou. Passou-se mais um ano, após o qual
um amigo me convidou para a sua casa, e quando cheguei comemos, bebemos e
conversamos. Meu amigo me disse: “Irmão, você passou por uma das mais
terríveis provações do destino”. Perguntei: “Como você sabe?”. Ele respondeu:
SALVO POR UM TRIZ
Vi certo dia uma mulher bonita, fui atrás dela e pedi que dormisse comigo. Ela
respondeu: “Não entro na casa de ninguém. Mas será na minha casa. [Se quiser,
venha no dia tal]”. Respondi: “Sim”. Quando foi o dia do compromisso, veio um
enviado da mulher para me levar até ela. Caminhei com ele até a entrada de uma
grande casa, cuja porta ele abriu, entramos, ele a fechou e, quando eu quis passar
[por outra porta], fui assaltado por grande medo, corri na frente dele até a outra
porta pela qual ele queria fazer-me entrar, fechei-a, gritei com ele e disse: “Por
Deus que, se você não abrir a primeira porta para mim, vou matá-lo! Não sou
daqueles que se submetem às suas artimanhas”. O enviado me perguntou: “E
onde você viu artimanha?”. Respondi: “Meu coração antipatizou com o
isolamento deste lugar”. O enviado disse: “Esta é uma porta secreta”. Eu disse:
“Não quero saber de secreta nem de pública! Abra para mim!”. Pouco depois de
sair da casa, topei com uma mulher que me disse: “A hora da sua morte só pode
ter sido retardada; caso contrário, você não conseguiria sair dessa casa”.
Perguntei: “Como?”. Ela respondeu: “Pergunte ao seu amigo fulano que ele vai
informá-lo de coisas espantosas”. Agora, meu irmão, conte-me o que lhe
sucedeu, pois eu contei o que me sucedeu.
[Prosseguiu o amigo do sétimo capitão:]
Eu disse: “Mas eu fiz juras imensas, meu irmão!”. Ele me disse: “Quebre aí as
suas juras e me conte, vai!”. Respondi: “Temo as consequências disso”. Mas ele
tanto insistiu que eu lhe contei, deixando-o espantado com a história, e depois
fomos embora.
MAIS UMA ARAPUCA
[Prosseguiu o amigo do sétimo capitão:][595]
Após longo tempo, um dos meus amigos me convidou para uma festa musical.
Respondi: “Não me reúno com ninguém”. Ele disse: “É absolutamente
imperioso”, e fez juras para que eu fosse. Dirigimo-nos então ao local, em cuja
entrada fomos recebidos por um homem que nos disse: “Bem-vindos” e, sacando
uma chave, abriu a porta. Perguntei: “Onde estão os convidados dessa festa
musical? Onde estão as canções?”. O homem respondeu: “No interior da casa.
Esta é uma porta secreta, para que vocês não se assustem com as pessoas nem
com a lotação”.[596] Fiquei com medo, mas o meu amigo disse: “Somos dois. O
que eles podem fazer contra nós?”. Então entramos e a porta foi fechada às
nossas costas. Quando chegamos ao salão, não vimos ninguém e sentimos um
terrível estranhamento. Meu amigo me disse: “Caímos! Não existe força nem
poderio senão em Deus altíssimo e poderoso”. Eu disse a ele: “Que Deus não te
dê boa recompensa por mim!”. Sentamo-nos num canto do salão e eis que vi um
pequeno cômodo ao meu lado. Espiei lá dentro e o que vejo? Corpos sem cabeça
e cabeças sem corpo. Disse ao meu amigo: “Olhe!”, e ele olhou e disse: “Por
Deus que estamos aniquilados! Pelo poder de Deus!”. Enquanto chorávamos os
dois por nossas vidas, eis que quatro homens entraram pela mesma porta usada
por nós. Estavam semidespidos, com calções de couro amarrados na cintura.
Avançaram para o meu amigo, que os enfrentou, esmurrando e derrubando um
deles. Os demais o atacaram e eu, aproveitando a oportunidade, escapei, pois
estavam ocupados com o meu amigo, que continuava enfrentando-os. Avistei
uma porta ao meu lado, abri-a e o que vejo? Uma escada pela qual subi,
chegando a um andar sem saída nem janela. Já certo da morte, eis que vi no alto
uma fileira de claraboias.[597] Com a vida por um fio, desnorteado, fui me
agarrando e escalando até chegar a uma claraboia, na qual me pendurei,
conseguindo então atravessá-la; atrás dela havia um muro que escalei e o que
vejo? Gente caminhando pelas ruas. Atirei-me do muro ao chão, e havia debaixo
de mim, graças ao desejo de Deus de me salvar, um fardo de alfafa. Caí são e
salvo e, quando me vi no chão, as pessoas me rodearam e perguntaram como eu
estava. Informei-os o que me sucedera; graças a algo predestinado e ao tempo de
vida deles ter se esgotado, o delegado da cidade passava pela rua naquele mesmo
instante, e então as pessoas o informaram a meu respeito. O homem me pegou e
eu mostrei-lhe a porta, que ele mandou arrancar. Entramos e avançamos contra
eles, que tinham acabado de degolar o meu amigo. Estavam ocupados com ele e
indagando sobre mim: “Aonde terá ido? Não existe saída. Está em nossas
mãos!”. De repente, o delegado e o seu grupo os cercaram e prenderam.
Perguntados sobre a sua condição, confessaram que quem lhes trazia as vítimas
não era senão a tal mulher, que vivia no Cairo, no lugar tal. Após ordenar que o
local fosse selado, o delegado os levou, comigo junto, até a casa onde a tal
mulher vivia. Como a porta estivesse trancada, o delegado ordenou que fosse
arrancada e entrou com o seu grupo, ali encontrando outro bando ocupado com
mais uma presa, que estava prestes a ser degolada. Prenderam o bando, bem
como a mulher, que havia acabado de trazer a vítima, a qual foi por sua vez
libertada, restituindo-se tudo quanto lhe fora roubado. Com todos presos,
inclusive a mulher, tiraram da casa muito dinheiro, tecidos e bens, em tal
quantidade que a língua é incapaz de descrever. Imediatamente foram todos
amarrados, a mulher com o seu próprio véu, e depois os exibiram pela cidade
montados em camelos. Entre outros frutos de roubo, recuperou-se o alforje cheio
de dinheiro pertencente ao turcomano mercador de ovelhas. Tudo isso aconteceu
comigo olhando. Foi assim que Deus os exterminou e me libertou do que eu
tanto temia e receava. Mas não vi no meio do bando o meu amigo [que me
salvara] da primeira vez, e fiquei muito intrigado. Transcorridos alguns dias, ele
foi me visitar: tinha se tornado asceta, estava trajando vestes de gente pobre,
cumprimentou-me e se retirou. Depois, voltou a me frequentar, e retomamos a
intimidade. Perguntei sobre o bando, e como, sozinho, vivia agora. Ele
respondeu: “Eu os abandonei desde o dia em que salvei você, pois eles
começaram a me pressionar e a dizer que lhe haviam deixado muita coisa. Jurei
então que não me relacionaria com eles pelo resto da vida. Por Deus que isso é
espantoso: você foi o motivo da minha salvação e eu fui o motivo da sua”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

903ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o sétimo capitão disse:]
[Prosseguiu o meu amigo:]
Ele me disse: “Por Deus que isso é espantoso: você foi o motivo da minha
salvação e eu fui o motivo da sua. Por Deus, meu irmão, que o mundo está cheio
de gente dessa espécie. Pedimos a Deus que nos mantenha a salvo desses filhos
da puta, que se introduzem no meio da gente com todo gênero de linguajar e
artimanha”. Eu disse a ele: “Conte-me o que de mais espantoso aconteceu a
vocês nessas desgraceiras que praticavam”. Ele respondeu:
A VINGANÇA DA SEQUESTRADA
Meu irmão, eu não participava das ações deles, nem muito nem pouco; nem
sequer as presenciava. A minha parte era cuidar das compras, das vendas e da
alimentação. Mas eu fui informado que a ocorrência mais espantosa por eles
vivida foi a seguinte: a trapaceira que caçava para eles enganou uma mulher
dizendo-lhe que haveria uma festa de casamento em sua casa, e a convidou a
participar. No dia marcado, essa mulher compareceu na casa e a trapaceira a fez
entrar pela porta dizendo-lhe: “Esta é uma porta secreta”. Tão logo entrou, a
mulher viu a situação lá dentro e, voltando-se para aqueles homens, disse-lhes:
“Vocês são rapazes, e eu, apenas uma mulher. Matar-me não vai ser nenhum
motivo de orgulho, nem vocês têm nada contra mim. Podem levar tudo que eu
tenho”. Eles disseram: “Receamos alguma vingança da sua parte”. Ela disse:
“Ficarei aqui com vocês, sem sair nem entrar”. Eles responderam: “Nós lhe
concedemos a vida”. Então o maioral deles examinou-a bem, admirou-a, gostou
dela e tomou-a para si. A mulher ficou um ano inteiro servindo-os, até que se
acostumaram a ela. Certa noite, estando eles bêbados, ela lhes ministrou um
entorpecente[598] que encontrou por ali, deixando-os inteiramente prostrados e
desnorteados. Então, recolheu os seus tecidos e tomou quinhentos dinares de
ouro do chefe; depois, [pegou uma navalha e] raspou-lhe a barba, bem como a
dos seus companheiros; em seguida, retirou a fuligem do fundo das panelas e
esfregou-a na cara de todos eles. Só então abriu as portas e saiu. Ao acordarem e
verem aquele vexame, arrependeram-se de não a ter matado, e por um bom
tempo andaram temerosos de alguma vingança. Fiquei espantado. Logo depois
eu e você nos tornamos amigos. Mas foi isso o que de mais espantoso eu vi: a
ação daquela mulher.
Disse [¸ahrazåd]:[599] Os capitães se espantaram com essas histórias e se
extasiaram, bem como o sultão Baybars e o delegado-chefe. Disseram: “Quantas
coisas espantosas e insólitas ocorrem!”. Então outro capitão, o oitavo, disse:
O OITAVO CAPITÃO E A CANTORA COM OS MANETAS
O melhor que ouvi no gênero “alívio após angústia” foi que uma [bela] cantora,
a melhor do seu tempo, renomadíssima, participou de uma festa de casamento e,
enquanto estava sentada no banco especialmente montado para ela, eis que um
maneta parou e lhe pediu uma esmola por Deus, [encostando nela o seu toco]. A
cantora respondeu: “Deus ajude”,[600] e ralhou com o homem, que saiu muito
zangado. Muito tempo depois, um homem veio contratá-la [para uma festa],
pagou-lhe o cachê e a mulher foi levando duas ajudantes.[601] Caminhou até
chegar ao local, onde foi introduzida num longo corredor em cujo fim havia um
salão no qual ela entrou, mas não encontrou ninguém, embora o local estivesse
arrumado, as velas acesas, e houvesse petiscos e vinho; num outro ponto havia
comida, e num terceiro, tapetes e almofadas, e foi ali que ela se instalou com as
suas companheiras. Em seguida, a cantora se voltou, notou que o porteiro que
abrira a porta era maneta, e isso a desgostou; logo depois veio um homem
acender os lampiões pendurados no salão e as velas, e eis que também ele era
maneta! Em seguida começaram a chegar os convidados, e não havia um que
entrasse que não fosse maneta, até que a casa toda se encheu de manetas.
Quando a assistência se completou, chegou o anfitrião, trajando roupas de tecido
luxuoso. Todos ficaram de pé para ele e o acomodaram no ponto mais elevado
do saguão. Suas mãos estavam escondidas pelas mangas da roupa. Trouxeram
comida e ele comeu, bem como os outros, e em seguida lavaram as mãos.[602]
[Disse a cantora:] Nesse momento, voltei-me para o anfitrião e notei que ele
também era maneta, e me encarava com insistência. Logo em seguida,
começaram a servir bebida; todos beberam, e me deram de beber. Bebi uma taça
e me pouparam de outras por causa da música, mas continuaram bebendo, e
quando já estavam bem satisfeitos o homem que chegara por último, o anfitrião,
voltou-se para mim e disse: “Não me reconhece? Não é gentil com quem lhe
pede esmolas? Não lhe diz ralhando ‘Deus ajude’? Como a sua natureza é má!”.
Olhando bem para ele, descobri tratar-se do maneta que me pedira esmola há
tanto tempo, vestido de mendigo, e lhe disse: “Meu senhor, não me lembro dessa
conversa”. Ele disse: “Espere só até o final da noite e então você vai se lembrar”,
e, movimentando a cabeça, acariciou a barba. Aterrorizei-me e fui tomada por
grande medo. Esticando a mão, o homem pegou as minhas sandálias e o véu,
colocou-os ao seu lado e disse: “Cante, ó cantora!”. Cantei até cansar, enquanto
eles se distraíam com a própria bebedeira e barulho. O porteiro se aproximou de
mim e disse: “Minha senhora, você não corre perigo nem deve ter medo. Quando
quiser ir embora me avise”. Perguntei-lhe: “Você quer me pôr à prova?”. O
porteiro respondeu: “Não, por Deus poderoso! É porque eu me apiedei de você,
pois o nosso chefe, o nosso maioral, não tem boas intenções a seu respeito. Acho
que ele vai matá-la nesta noite”. Eu disse: “Se você tiver o bem, essa é a hora de
fazê-lo”. Ele disse: “Quando o chefão for ao banheiro, eu irei com ele
carregando o lampião, deixarei a porta aberta e você deverá fugir para onde
quiser”. Então continuei cantando, e logo o chefão disse: “Por Deus que a sua
cantoria é muito ruim”. Lembrando-se do que eu lhe dissera, encarou-me
insistentemente e disse: “Nunca mais você vai respirar a brisa do mundo”. Seus
companheiros lhe disseram: “Não faça isso, chefe, pois se trata de uma bela
jovem de canto gracioso”, e se puseram a consolá-lo. Ele disse: “Se eu aceitar a
intermediação de vocês, então ela ficará conosco por um ano inteiro, sem sair
nem ir a lugar nenhum”. Eu disse: “Farei qualquer coisa que deixe você
satisfeito. Eu errei e você é o senhor do perdão”, e o homem balançou a cabeça,
bebeu mais ainda e se levantou para ir ao banheiro, enquanto os seus
companheiros permaneciam entretidos com a própria embriaguez. Nesse
momento, pisquei para as minhas duas acompanhantes e corremos todas na
direção do corredor, cuja porta encontramos aberta; saímos correndo, esgotadas,
sem saber qual rumo tomar, até nos distanciarmos da porta e encontrarmos um
cozinheiro trabalhando, ao qual perguntamos: “Você gostaria de ressuscitar
mortos?”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

904ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o oitavo capitão disse:]
[Prosseguiu a cantora:] Perguntei ao cozinheiro: “Você gostaria de ressuscitar
mortos?”. Ele respondeu: “Entrem”, e entramos; ele disse: “Deitem-se”, e nos
deitamos. Depois nos cobriu com uma toalha que ele punha debaixo da comida,
e mal nos tínhamos ajeitado quando ouvimos sons de correria, gente procurando
à esquerda, gente procurando à direita e gente indagando o cozinheiro: “Por
acaso alguém passou por aqui?”. Ele respondeu: “Por aqui não passou ninguém”.
[603] Continuaram nessa situação até o amanhecer, quando então disseram:
“Que pena que não as agarramos!”, e tomaram o seu rumo. O cozinheiro nos
descobriu e disse: “Levantem-se. Agora vocês estão a salvo da morte”.
Levantamos extenuadas, sem manta nem véu. O cozinheiro subiu conosco para a
sua casa, onde arranjamos véus e roupas, e nos enviou para as nossas casas.
Então nos penitenciamos em Deus altíssimo deste nosso ofício. Foi um imenso
alívio depois de uma imensa angústia.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Ao ouvir essa história, o sultão Baybars ficou
sumamente espantado e estremeceu de êxtase.[604] Então outro capitão, o nono,
disse:
O NONO CAPITÃO E AS MOEDAS ROUBADAS
A mim me ocorreu algo mais espantoso do que isso, e foi o seguinte: roubou-se
uma vultosa quantia na cidade de Qœß,[605] onde era eu o responsável pela
polícia. Como se tratava de moedas de muito valor, exigiram de mim e dos meus
companheiros que as encontrássemos, e foram apertando o cerco. Conseguimos
um prazo de dias contados e nos espalhamos à procura das moedas. Vasculhei a
cidade por um dia inteiro junto com cinco policiais. No dia seguinte, saímos e,
quando já estávamos afastados da cidade — a cidade de Qœß — em cerca de
uma parasanga ou duas, chegamos a um campo cultivado. Abrasado pela sede,
caminhei na direção de uma acéquia no interior de um jardim, bebi, fiz minhas
abluções e rezei. Passou por mim o chacareiro e disse: “Ai de você! Quem lhe
permitiu entrar neste jardim?”. E, agarrando-me, apertou violentamente as
minhas costelas, a ponto de eu quase morrer. Em seguida, amarrou-me ao boi e
me fez girar pela acéquia, açoitando-me com o seu chicote. Forçou-me a girar
pelo mesmo período que o boi trabalha na acéquia, e depois me soltou. Saí sem
conseguir distinguir o meu rumo e caí desmaiado por um bom tempo. Sentei-me
até o meu terror se amainar e voltei para os meus companheiros, aos quais disse:
“Já encontrei o dinheiro e também o ladrão [mas não o assustei nem o perturbei
para que não fuja]. Venham comigo elaborar uma artimanha para prendê-lo”. E,
conduzindo-os, levei-os ao chacareiro que me esfolara de chicotadas a fim de
fazê-lo experimentar o mesmo que fizera comigo, mentindo contra ele para
obrigá-lo a sentir o gosto das bastonadas. Quando avançamos contra a acéquia,
capturamos o chacareiro e também um rapaz que ali estava com ele. Ao se ver
amarrado, o rapaz disse: “Por Deus que eu não estava com eles!”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

905ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o nono capitão disse:
O rapaz me disse: “Por Deus, meu senhor, que eu não estava com eles! Faz
seis meses que não entro na cidade de Qœß, e só vi as moedas aqui!”. Dissemos
a ele: “Mostre-nos o lugar onde elas estão”, e então ele nos conduziu a um
depósito de palha[606] ao lado da acéquia; vasculhamos a palha, encontramos as
moedas, prendemos o jovem e o chacareiro e os conduzimos para a cidade de
Qœß, à sede da delegacia. Torturamos o chacareiro, [despimo-lo,] espancamo-lo
com bastonadas e cassetetes e ele confessou o roubo de muitas outras moedas. O
que eu fizera com o propósito de me aproveitar da ajuda[607] dos meus
companheiros acabou sendo verdade.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Os presentes se espantaram [sumamente] com aquela
coincidência espantosa e demasiada. Disse então outro capitão, o décimo:
O DÉCIMO CAPITÃO, O CAPITÃO DE DAMASCO E O OURO ROUBADO
Um companheiro meu, também capitão, informou-me de algo mais espantoso
que tudo isso, e foi o seguinte: era ele um grande capitão em Damasco, na Síria,
na época do sultão mártir Nœrudd∑n [Zink∑],[608] hábil e experiente em seu
ofício. Certo dia, ao avistar um cambista judeu com um cesto contendo cinco mil
dinares em moeda viva, ele disse a certo ladrão: “Ai de você! Roube para mim o
cesto desse judeu”, e o ladrão respondeu: “Sim”. Não demorou muito: no dia
seguinte, o ladrão voltou até ele com o cesto.
Disse [o capitão de Damasco]:[609]
Eu disse ao ladrão: “Vá enterrá-lo em algum lugar até o assunto esfriar”, e ele
assim procedeu, voltando em seguida e me informando. Mal o ladrão terminara
de enterrar o dinheiro e já se iniciava o Juízo Final: o judeu veio à delegacia na
companhia do tesoureiro do reino afirmando que o ouro pertencia ao sultão
Nœrudd∑n, o mártir, e que ele não voltaria a vê-lo senão por nosso intermédio.
Estabelecemos o prazo em conformidade com o hábito, isto é, três meses, e
depois eu disse ao ladrão que levara as moedas: “Apronte alguma coisa na casa
desse judeu que atraia as suspeitas para ele e as afaste de nós”. Então ele foi à
casa do judeu e armou uma magnífica artimanha, lá enterrando, sob uma placa
de mármore no quintal, um cesto com a palma da mão de uma mulher morta —
uma palma de mão pintada e com anel de ouro num dos dedos. Em seguida,
fomos à casa dele e revistamos tudo até encontrar o que o ladrão enterrara.
Pusemos o judeu a ferros por assassinato e, no segundo dia do prazo, veio o
tesoureiro do reino e nos disse: “O sultão Nœrudd∑n, o mártir, diz-lhes: ‘Metam
os pregos no judeu e achem o dinheiro, pois cinco mil dinares de ouro não
somem assim’”. Percebemos então que a artimanha não havia funcionado. Saí
disposto a resolver a questão e, topando com um jovem de Æawrån[610] na
região do mercado de ¸å©œr,[611] descavalguei imediatamente, agarrei-o, despi-
o e lhe apliquei bastonadas bem dolorosas; acorrentei-o e levei-o para a
delegacia, onde tornei a despi-lo e aplicar-lhe bastonadas dizendo: “É este o
ladrão que roubou o dinheiro!”. O delegado o examinou, [tentamos fazê-lo
confessar, ele se negou] e lhe aplicamos mais quatro sessões de bastonadas;
batemos até cansar. Ele parou de responder e de falar, mas no fim da surra nos
disse: “Eu trarei o dinheiro agora”. Saímos com ele e caminhamos até o local
onde o ladrão enterrara o ouro; ele escavou ali, tirou o ouro e retornamos à
delegacia. Eu estava no maior espanto com tudo aquilo. Quando o delegado viu
o ouro com os próprios olhos, ficou muito feliz, deu-me uma valiosa túnica e
imediatamente devolveu o dinheiro ao tesouro do sultão. Deixamos o rapaz
preso e eu perguntei ao meu amigo ladrão: “Alguém viu quando você enterrou os
dinares?”. Ele respondeu: “Não, por Deus poderoso!”. Fui então ver o rapaz
preso que encontrara o ouro, dei-lhe de beber, agradei-o e, quando ele enfim
acordou, eu lhe disse: “Revele para mim como você roubou este ouro”. Ele
respondeu: “Por Deus que eu não o roubei nem nunca o tinha visto antes de
desenterrá-lo”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

906ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o décimo capitão disse:]
[Prosseguiu o capitão de Damasco:] O rapaz me disse: “Por Deus que não o
roubei nem nunca o tinha visto antes de desenterrá-lo”. Perguntei: “E como é
esse caso?”. Respondeu: “Eu sei o motivo de eu ter sido agarrado por vocês: foi
praga da minha mãe, e isso porque eu a maltratei e agredi durante a noite, e
então ela me disse: ‘Deus lance contra você um opressor cruel, meu filho!’. Ela é
uma mulher pia. Saí de casa imediatamente, logo nos cruzamos no caminho e
você fez tudo aquilo comigo. Com as surras intermitentes, fiquei desnorteado e
eis que se me deparou alguém vestido de branco dizendo: ‘Traga-o’, e então eu
disse a vocês o que disse; saí e ele me guiava pelo caminho, até que chegamos
ao local onde o ouro estava, e foi desenterrado daquela maneira”. Espantado com
isso, não medi esforços para medicá-lo, pois percebi que esse rapaz pertencia à
linhagem dos xeiques pios. Continuei gastando com ele até que se curou, quando
então o tirei da cadeia e lhe pedi que me perdoasse e limpasse a minha
consciência.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Nesse momento, o sultão Baybars estremeceu de
êxtase e ficou espantado.[612] Então falou outro capitão, o décimo primeiro. Ele
disse:
Eu lhes contarei uma história, uma anedota sobre ladrões, da qual eu tive
notícia por meio de um homem que me disse o seguinte:
O DÉCIMO PRIMEIRO CAPITÃO E O LADRÃO JUSTO
Certo dia, a caminho do mercado, topei com um ladrão que havia arrombado a
loja de um cambista e roubado uma caixa que ele levou até o cemitério. Segui o
ladrão, vi-o abrindo-a e examinando-a, e de supetão eu lhe disse: “Que a paz
esteja convosco”. Ele se assustou, irritou-se comigo e eu o deixei e fui embora.
Passados meses e anos, tornei a topar com ele: estava sendo conduzido à cadeia
por policiais e ajudantes; ao olhar para mim, disse: “Prendam esse homem
também!”. Quando chegamos à delegacia, o delegado perguntou-lhe: “Qual a
sua ligação com esse homem?”. O ladrão voltou-se para mim, olhou bem no meu
rosto e perguntou: “Quem prendeu este homem?”. Os policiais responderam-lhe:
“Foi você que o delatou”. O ladrão disse: “Deus me livre! Por Deus que não o
conheço, nem ele me conhece. O fato é que eu o confundi com outro. Soltem-
no”. Após alguns dias tornamos a nos cruzar no caminho. Ele me cumprimentou
e disse: “Meu senhor, um susto por um susto. Mas, se você tivesse roubado algo
de mim, naquela noite você teria recebido o seu quinhão da minha punição”. Eu
lhe disse: “Deus está entre mim e você”.[613]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] O sultão Baybars riu dessa história, bem como os
demais presentes. Então outro capitão, o décimo segundo, levantou-se e disse:
Eu lhes contarei uma história que me foi relatada por um dos meus amigos.
Ele me disse:
O DÉCIMO SEGUNDO CAPITÃO, SEU AMIGO E O EX-CRIADO
Certa noite eu bebi com os meus amigos. Por volta de meia-noite saí sozinho, e
quando estava no caminho avistei um bando de ladrões. Ao nos vermos, minha
saliva secou e fingi estar bêbado, inclinando o corpo e pondo-me a chorar e
esbarrar nas paredes, à direita e à esquerda, dando-lhes a entender que não os
havia visto. Eles ficaram me seguindo até que cheguei à minha casa e bati na
porta, que foi aberta; entrei, tranquei e eles foram embora sem me fazer mal.
Agradeci a Deus altíssimo. Após alguns dias, eis que estava parado à minha
porta um garoto que fora meu criado havia muito tempo. Estava acorrentado por
um policial[614] e me disse: “Meu senhor, você tem algo para me dar, por
Deus?”. Respondi: “Que Deus ajude”. Ele olhou para mim longamente e disse:
“Qualquer coisa que você dê não valerá o seu turbante”. Perguntei: “Qual o
sentido dessas palavras?”. Respondeu: “Nem valerá a sua roupa nem nada do
que você usava ou do ouro e prata que carregava”. Como eu fiquei atônito, ele
disse: “Falo daquela noite, quando você cruzou com o bando de ladrões. Eles
queriam despi-lo, mas eu estava com eles e lhes disse: ‘Ele é meu senhor, meu
patrão, e me criou’. Fui o motivo de você escapar ileso e se salvar deles”. Eu lhe
disse: “Espere aí”. Entrei em casa e lhe dei o que encontrei pela frente. Ele
pegou tudo e continuou o seu caminho.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Todos os presentes ficaram espantados com aquilo,
inclusive o sultão Baybars. Então outro capitão, o décimo terceiro, tomou a
palavra e lhes disse:
O DÉCIMO TERCEIRO CAPITÃO E O INTRUJÃO ASSASSINADO
O que eu tenho é mais fino e espantoso. Deu-se que, antes de conhecer este
ofício de polícia, eu era proprietário de uma loja. Às vezes ia me visitar um
homem ao qual, embora não o conhecesse senão de rosto, eu fornecia tudo
quanto necessitava, sem exigir pagamento imediato, e ele era correto e logo me
pagava. Certa noite, reuni-me com meus amigos e nos pusemos a beber.
Folgamos, jogamos bola e nomeamos um de nós vizir, outro sultão, outro
verdugo. Estávamos sentados nesse estado quando de repente entrou um
intrujão, sem permissão.[615]
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

907ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o décimo terceiro capitão disse:
Estávamos sentados nessa situação quando de repente entrou um intrujão, sem
permissão nem convite. Acomodou-se próximo de nós, que estávamos bêbados,
brincando, o vinho agindo em nossa cabeça, bem como o demônio. O sultão
disse ao vizir: “Traga aqui este intrujão que invade o espaço dos outros sem
permissão e lhes viola os segredos”. Como era eu o vizir, peguei e trouxe o
intrujão. O sultão disse: “Corte-lhe a cabeça”, e então eu, na minha embriaguez,
golpeei-o com a espada, fazendo a sua cabeça voar longe do corpo. Ao vermos
aquilo, a embriaguez se foi e veio a sobriedade. Ficamos no mais lastimável
estado. Meus amigos recolheram o corpo para se livrar dele, ao passo que eu
peguei a cabeça para atirá-la ao mar. Bêbado, minhas roupas se molharam de
sangue. Enquanto eu caminhava, cruzei com um ladrão que ao me ver
reconheceu-me e perguntou: “Fulano?”. Respondi: “Sim”. Ele perguntou: “O
que você está levando aí?”. Contei-lhe a história inteira. O ladrão pegou a cabeça
de mim e fomos até o mar, onde ele a lavou do sangue, encarou-a e disse: “Por
Deus que é a cabeça do filho da minha mãe e do meu pai”. Em seguida, pegou as
minhas roupas, lavou-as, secou-as e eu as vesti. Ele me disse: “Vá para a sua
casa”, e me acompanhou até eu chegar, quando então se despediu e disse:
“Sentirei saudades. Eu era seu amigo, e você me fazia favores fornecendo o que
eu necessitava e atendendo os meus pedidos. A partir de agora, nunca mais vai
me ver”. Olhei bem e eis que era o homem que frequentava a minha loja. Ao
reconhecê-lo fiquei envergonhado e muitíssimo vexado. Ele foi embora e nunca
mais o vi até hoje.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] O sultão Baybars disse: “Por Deus que isso é brio,
castidade e fineza.[616] Nunca ouvi história melhor que essa. Os iguais a ele é
que são malandros.[617] Se eu o conhecesse, mandaria dar-lhe alguma coisa. E,
entre as anedotas de salteadores que se contam, existe uma, muito engraçada”.
O SALTEADOR NO MEIO DO TRIGO[618]
Conta-se que um salteador [árabe] invadiu uma casa para roubar um monte de
trigo sobre o qual havia um grande vaso de cobre. Os donos da casa perceberam
a sua presença e ele se escondeu sob o vaso, [no meio do trigo,] e eles não o
encontraram. Quando faziam menção de ir embora, eis que ouviram um enorme
flato saindo do interior do trigo; eles retornaram, remexeram o lugar onde estava
o vaso, encontraram o salteador e o agarraram. Ele disse: “Eu os livrei do
cansaço de revirar o trigo, e, como eu os poupei disso, tenham piedade”. Então
eles riram e o soltaram.
Disse [¸ahrazåd]: O sultão Baybars sorriu e disse: “Simpático, e os moradores
foram mais finos do que ele”.
O VELHO MALANDRO
Outra anedota Conta-se que um velho muito malandro foi com um amigo ao
mercado de roupas e furtou uma boa quantidade de tecidos. Dividiram tudo e se
separaram, cada qual indo para a sua terra. Depois disso, um bando de ladrões se
reuniu para beber. Um deles exibiu um valioso corte de seda e perguntou: “Qual
de vocês conseguiria vendê-lo no próprio mercado de onde foi roubado [para que
o elejamos chefe dos malandros?”. O velho respondeu: “Eu”], e levou a peça
para o mercado, sentando-se na loja da qual fora roubada. Entregou-a ao
leiloeiro, e então o dono da loja, reconhecendo a peça nas mãos do leiloeiro, foi
aumentando a oferta e mandou chamar o delegado. Informado do caso pelo dono
da loja, o delegado agarrou o velho que oferecera a peça e, notando tratar-se de
um homem íntegro, digno, respeitável, bem-vestido e calmo, perguntou-lhe: “De
onde você obteve essa peça?”. O velho respondeu: “Deste mercado, desta loja na
qual eu estava sentado”. O delegado perguntou: “Por acaso ela lhe foi vendida
pelo dono da loja?”. O velho respondeu: “Não, na verdade eu a roubei, essa e
outras”. O delegado perguntou: “E como você veio vendê-la no mesmo lugar de
onde a roubou?”. O velho respondeu: “Não responderei senão ao sultão, para o
qual eu tenho um conselho a oferecer”. O delegado disse: “Informe-me o que é”.
O velho perguntou: “Você é o sultão?”. O delegado respondeu: “Não”. O velho
ladrão disse: “Pois é, eu não direi senão ao sultão”. Então o delegado o pegou e
encaminhou ao sultão, que lhe perguntou: “Qual é o seu conselho, ó velho?”. Ele
respondeu: “Eu me penitenciarei e lhes trarei todos os corruptos. [E pagarei uma
compensação se não conseguir fazê-lo]”. O sultão disse: “Deem-lhe um traje
honorífico”, e então lhe deram um traje honorífico e o perdoaram. O velho saiu
dali e foi até os seus colegas e camaradas, que o declararam chefe dos malandros
e lhe pagaram o valor combinado. Dali ele foi para casa, pegou o restante do
dinheiro que possuía e levou tudo para o sultão, [a cujos olhos cresceu por ter
retornado. O sultão determinou ainda que não lhe tomassem nada.][619] Depois,
o velho saiu dali, se disfarçou e pouco a pouco foi esquecido, ficando com todo
o dinheiro.
Prosseguiu o sultão Baybars: “Resolveu bem a questão depois de ter corrido
riscos. Por Deus que é de fato um malandro”, e estremeceu de êxtase, espantado
com essa história.[620]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Em seguida outro capitão, o décimo quarto, disse:
O DÉCIMO QUARTO CAPITÃO, O LADRÃO CRUEL E O FRANCOLIM
Certo[621] líder de ladrões na região de Alwå¬ era tão corajoso que sozinho
atacava os viajantes. Sempre que autoridades e governantes o caçavam ele fugia
e se refugiava nas montanhas. Deu-se então que certo dia um mercador
desacompanhado trilhou aquele caminho, ignorando-lhe [os riscos], e o tal
ladrão arremeteu contra ele dizendo-lhe: “Entregue já tudo o que tem. [Vou
matá-lo, não há escapatória]”. O mercador disse: “Não me mate [e leve este
alforje]”. O ladrão disse: “É imperioso matá-lo e levar o que você tem”. O
mercador perguntou: “Eu lhe fiz algo que imponha vingança?”. O ladrão disse:
“É imperioso matá-lo”. O homem desmontou e se pôs a implorar, a invocar
piedade e lisonjear, o que só fazia aumentar a dureza do ladrão. Estavam nesse
pé quando, de repente, um francolim pousou do lado direito do mercador, que de
tão desesperançado disse: “Francolim, este homem quer me matar sem que eu
tenha cometido crime algum, injusta e cruelmente. Eu já lhe dei tudo quanto
possuo e lhe pedi que me libertasse para ir ter com os meus filhos, mas ele não
aceitou. Eu o faço minha testemunha, francolim, e Deus não se distrai das ações
dos opressores”. Sem se importar com tais palavras por causa de sua grande
crueldade e tirania, o ladrão golpeou o mercador com a espada, separando-lhe a
cabeça do corpo. Depois disso, as autoridades enviaram uma força policial para
capturar o ladrão, tantas eram as queixas contra ele, e essa força, graças a uma
artimanha, conseguiu capturá-lo. Na cadeia, o ladrão logrou se aproximar do
delegado e passou a comer e beber com ele. Ocorreu então que, certo dia, o
delegado mandou servir uma magnífica refeição na qual havia francolim assado.
Ao ver a ave, o ladrão riu e bateu palmas, encolerizando o delegado, que lhe
disse: “Qual o motivo desse riso? Você viu aqui alguma falha e está zombando
de nós? Os antigos já diziam que ‘o riso sem motivo é falta de decoro’”.[622] O
ladrão respondeu: “Não, por Deus que não, meu senhor! Não estou rindo senão
de uma ocorrência passada da qual me lembrei ao ver esta ave, o francolim.
Quão escasso era o juízo daquele que quis fazer de uma ave testemunha contra
mim!”, e começou a contar ao delegado o que sucedera entre ele e o mercador
assassinado, “que invocou o testemunho do francolim, mas eu não me apiedei
nem me preocupei com o testemunho do tal francolim”. Ao ouvir essas palavras,
o delegado se enfureceu muito com o ladrão, desembainhou a espada e o
golpeou, cortando-lhe a cabeça e fazendo-a cair sobre o banquete, e eis que uma
voz disse: “É este mesmo o francolim cujo testemunho foi invocado pelo homem
morto”.[623]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Espantado com essa história, o sultão Baybars disse:
“Por Deus que se trata de uma magnífica exortação”. [Os presentes disseram:
“Ai dos opressores!”.] Então levantou-se outro capitão, o décimo quinto, e disse:
O DÉCIMO QUINTO CAPITÃO, O ASSASSINO E O CROCODILO
Certo dia, em meio a uma viagem, topei de repente com um salteador de estrada
que me atacou e fez tenção de me matar. Perguntei-lhe: “Por qual motivo você
vai me matar? O que vai ganhar com isso?”. Ele respondeu: “Vou ganhar a sua
morte”. Perguntei: “Mas qual o motivo disso? Fiz algo que mereça a sua
vingança? Existia antes disto alguma desavença entre nós?”. Ele disse: “É
imperioso matá-lo”. Então fugi dele até as margens de um rio, mas ele me
seguiu, prostrou-me por terra e se sentou sobre o meu peito. Pedi ajuda ao senhor
do rio dizendo: “Salve-me deste opressor cruel!”. Ele já tinha puxado uma faca
para me degolar, mas eis que um enorme crocodilo, parecendo um pedaço de
montanha, saiu do rio, arrancou com a boca o homem de cima do meu peito, a
faca ainda na mão, e o levou para o fundo do rio. Mergulhou com ele três vezes,
e após a última não tornei a vê-lo. Fiquei muitíssimo contente e agradeci a Deus
altíssimo por ter-me mantido íntegro após essa angústia com quem queria matar-
me.[624]
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] Sumamente espantado, o sultão Baybars disse: “O
mundo dá voltas contra o iníquo”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

908ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que o sultão Baybars disse: “A iniquidade
destrói quem a pratica e contra o opressor o mundo dá voltas”. Nesse momento
outro capitão, o décimo sexto, tomou a palavra e disse: “Eu lhes contarei uma
história na qual a integridade se deu a contragosto”.
O DÉCIMO SEXTO CAPITÃO, SALVO SEM QUERER[625]
Prosseguiu [o décimo sexto capitão]:
Viajei por países, regiões diversas e praças fortes; entrei em grandes cidades,
cruzei países e trilhei caminhos inóspitos. Por fim, entrei numa cidade no fim da
civilização, cujo rei pertencia às dinastias sassânida, sudarábica e cesareia; uma
cidade plena de benesses, que era a cidade da China, governada por um rei
poderoso, extirpador e destruidor de vidas, cujo fogo não se apagava, e que
oprimia as criaturas e arruinara os países. Certo dia[626] de intenso calor,
estando eu parado à porta de minha casa, eis que passou uma bela mulher com
uma criada carregando uma sacola. Caminharam até se aproximarem de mim,
quando então a jovem perguntou: “Vocês têm um gole d’água?”. Respondi:
“Sim, minha senhora, entre aqui na área para beber”. Ela entrou, entrei atrás e
peguei um jarro de cerâmica incensado com almíscar e cheio de água fresca.
Para beber, ela revelou um rosto que parecia a lua quando irrompe por debaixo
das nuvens, um pescoço semelhante ao mármore e uma fronte rosada. Eu lhe
disse: “Vamos, minha senhora, suba e fique até o tempo refrescar, e então você
poderá ir embora na companhia da paz”. Ela me disse: “A sua mulher vai se
irritar com isso”. Respondi: “Por Deus, minha senhora, que sou solteiro, e não há
ninguém na casa”. Ela disse: “Se for solteiro, é você quem estou procurando”, e
subiu, tirou as roupas de cima e se acomodou parecendo o plenilúnio na noite em
que se completa. Perdi a razão e fui buscar todo gênero de comida e doce que
tinha estocado em casa, e lhe disse: “Desculpe-me, é só isso que tenho”. Ela
disse: “É muito. Era isto que eu procurava”. E, rindo, soltou-se, comeu e deu
comida para a criada. Quando terminou, ofereci-lhe uma bacia e um bule, e ela
mesma lavou as mãos. Levantei-me e fui buscar-lhe um frasco contendo água de
rosas, que verti sobre as suas mãos e pertences. Em seguida, ficamos juntos até o
entardecer: momentos nos quais me esqueci dos meus familiares, dos meus
filhos e da minha terra.[627] Ela retirou da sacola uma túnica, uma ceroula, uma
capa e um lenço circassiano, deu-os a mim e disse: “Saiba que eu sou uma das
quarenta concubinas do califa,[628] e cada uma de nós tem um amante que vai
visitá-la sempre que ela o chama. A única que está sem amante sou eu, mas hoje
saí justamente para ver se arranjo algum, e então vi você e aí sucedeu entre nós o
que já estava predeterminado. Já falei e pronto. Toda noite o califa dorme com
uma de nós, enquanto as outras trinta e nove se deitam com os seus trinta e nove
amantes. Eu quero que você esteja comigo no dia tal, quando você subirá ao
palácio do califa e me aguardará no lugar tal. Quando aparecer na sua frente um
pequeno criado dizendo-lhe ‘venha conversar’, pergunte-lhe: ‘Qual o seu
nome?’; se ele responder: ‘Sândalo’, vá atrás dele direitinho”. Em seguida, ela se
despediu de mim, e eu dela, com sete beijos; estreitei-a ao peito com um forte
abraço e ela se retirou, deixando-me o coração em chamas à espera do dia
marcado; chegado enfim esse dia, enquanto eu me dirigia ao local do
compromisso, cruzei com um dos meus mais caros amigos, o qual insistiu tanto
— jurando que afirmaria o divórcio três vezes e que era imperiosa a minha
entrada em sua casa — que acabei por entrar. Então ele trancou as portas e foi ao
mercado buscar algo para eu comer; deu meio-dia e ele não chegou; entardeceu e
ele não chegou; pensei: “Que coisas lhe terão acontecido?”. Findou-se a tarde,
ele não chegou e eu explodi de tristeza, invadido pelo desgosto. Fiquei ali até o
amanhecer, morrendo de raiva pela perda do compromisso acertado com a
mulher. Quando amanheceu, meu amigo chegou, abriu a porta, entrou com
har∑sa,[629] coscorão e mel de abelhas e me disse: “Por Deus, meu irmão, que
eu me esqueci de você! Deus baixou algo na minha memória e me fez esquecer
de você. Desculpe-me, meu amigo”.[630] Não lhe dei resposta nem falei nada,
limitando-me a comer um bocadinho, após o que saí correndo para, quem sabe,
alcançar o que perdera. Corri até chegar ao sopé do palácio do califa, onde
encontrei trinta e oito paus espetados nos quais havia trinta e oito [homens
crucificados e debaixo deles trinta e oito concubinas][631] enforcadas, cada qual
semelhando uma lua. Indaguei sobre aquilo e o delegado me respondeu: “Esses
homens foram encontrados dormindo dentro do palácio com as concubinas do
califa, que se enfureceu e mandou matar todos”. Dei então graças a Deus
altíssimo e me prosternei em agradecimento ao poderoso e exalçado pelo fato de
o meu amigo ter-me convidado e me retido em sua casa, deixando-me assim a
salvo dessa desgraça que se abatera sobre os outros. Pensei: “Recompense Deus
altíssimo o meu amigo por mim”.
[Prosseguiu o décimo sexto capitão:] Saiba, ó rei venturoso, que aquele era
um dos mais importantes califas de todos os tempos, soberano das eras e das
horas, mas não escapou das calamidades do tempo e das desgraças do destino. E
eu lhe contarei mais uma história.[632] Certa pessoa disse ter sido informada do
seguinte por um amigo mercador:
SEGUNDA HISTÓRIA DO DÉCIMO SEXTO CAPITÃO:
O MERCADOR E A CONCUBINA DO CALIFA
Certo dia eu estava sentado em minha loja quando me veio uma bela mulher
semelhante à lua quando resplandece, trazendo consigo uma criada. Naquela
época eu também era bonito. A mulher se sentou em minha loja, comprou
tecidos, pagou o preço e se retirou. Perguntei o seu nome à criada, que
respondeu: “Não sei”. Perguntei-lhe então o endereço, e a criada respondeu: “No
céu”. Eu disse: “Mas agora ela está na terra. Quando subirá ao céu? Onde está a
escada pela qual ela subirá?”. Ela respondeu: “No castelo entre Ba¬rayn e
ZåΔirayn, que é o castelo de Alma’mœn, o califa de Deus sobre a terra”.[633]
Eu disse: “Estou morto de paixão e sentimento”. Ela disse: “Paciência. Será
imperioso que ela volte”. Perguntei: “Como é que o comandante dos crentes
confia que uma mulher como essa saia sozinha?”. Ela respondeu: “Ele nutre por
ela um imenso amor, e não a contradiz em absolutamente nada”. Em seguida a
criada foi correndo atrás da patroa, enquanto eu me levantava, abandonava a loja
e ia atrás delas a fim de ver qual caminho tomavam, até que ela chegou aonde
morava, comigo atrás. Voltei com o coração ardendo em chamas.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

909ª
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o décimo sexto capitão disse que certa
pessoa disse que] o mercador disse:
A mulher entrou em casa enquanto o meu coração ardia em chamas. Alguns
dias depois ela retornou à minha loja, comprou tecidos e pagou o preço, mas eu
não quis receber. Ela disse: “Não precisamos das suas coisas”. Eu disse: “Minha
senhora, fica a título de presente”. Ela disse: “De jeito nenhum. Mas eu vou
colocá-lo à prova e experimentá-lo”; tirou da algibeira um saco de dinheiro,
dando-me dele mil dinares de ouro, e disse: “Faça comércio com esse dinheiro
até que eu volte aqui”. Peguei o dinheiro e ela se retirou, ausentando-se pelo
período de seis meses, durante os quais eu comerciei e trabalhei com o dinheiro,
fazendo os mil dinares gerarem outros mil. Quando ela voltou a mim depois
daquele período, eu lhe disse: “Eis aqui o seu dinheiro, que eu fiz render mil
dinares”. Ela disse: “Graças a Deus por isso!”, e me deu outros mil dinares
dizendo que eu fosse ao bairro de Arraw®a construir um belo palácio. Peguei o
dinheiro, fui a Arraw®a e ali construí um belo palácio tal como ela pedira,
mobiliando-o com todo gênero de móvel valioso, e depois mandei-lhe uma
mensagem pela criada informando ter concluído a construção, e ela respondeu
dizendo: “Encontre-me amanhã no lugar tal. Vá montado num burro e me
espere”. Assim procedi e quando cheguei ao local encontrei um rapaz ali à
espera, e enquanto eu estava parado eis que ela surgiu com a criada atrás de si.
Ao avistar aquele rapaz ela lhe disse: “Venha já aqui”, e ele respondeu: “Sim”.
Fomos todos para Arraw®a, entramos no palácio, cuja arquitetura e mobília ela
examinou e em seguida arrancou os tecidos que a cobriam, acomodando-se no
ponto mais elevado e gracioso. Eu saí e lhes comprei comida e bebida para o
início do dia, fazendo o mesmo no final do dia. Depois, eu lhes trouxe bebidas,
velas, petiscos e incenso. Estava a serviço dela, parado de pé, sem que me
dissesse, de modo algum, “sente-se”, nem “coma”, nem “beba”. Ficou sentada
com o rapaz, que se pôs a beijá-la e foi correspondido, um rolando por cima do
outro, sem que ela o impedisse; muito ao contrário, disse: “Até agora ainda não
estamos bêbados. Deixe-me beber e dar-lhe bebida” e, pegando a taça, encheu-a,
bebeu primeiro, tornou a enchê-la e a deu ao rapaz, fazendo-o beber mais e mais
até que ele perdeu a razão e ficou completamente embriagado, quando então
entraram ambos num dos quartos do palácio, onde ela se acomodou por um
tempinho — deixando-me mergulhado em reflexões — e de repente saiu do
quarto carregando a cabeça do rapaz, que pingava sangue. Não levantei os olhos
nem questionei o motivo daquilo. Ela me perguntou: “O que é isso?”. Respondi:
“Não sei”. Ela disse: “Você vai levá-lo e atirá-lo ao rio”. Respondi: “De acordo”
e, levantando-me imediatamente, recolhi o cadáver enquanto ela tirava as
roupas, rasgava-as, enfiava-as em três sacolas e me dizia: “Jogue tudo no rio”.
Agi conforme ela ordenou e quando voltei ela me disse: “Sente-se”, e me sentei.
Ela disse: “Quero contar-lhe uma coisa para você não ser invadido pelo pânico
por causa do que ocorreu entre mim e aquele rapaz. Saiba que sou concubina do
califa dos crentes Almu¢taßim,[634] a mais valorizada por ele. Ele me libera,
mensalmente, seis noites nas quais eu posso ficar na casa da minha avó,[635]
que me criou, onde ajo como bem entendo e escolho. Esse garoto era filho dos
vizinhos da minha avó; certa feita em que fiquei sozinha, a minha avó ausente
visitando alguns notáveis, fui dormir à noite no telhado, e mal me apercebi
quando ele pulou o muro, me agarrou e montou em meu peito. Empunhando um
alfanje, ele me disse: ‘Se falar alguma coisa, degolo você’. Incapaz de falar ou
de me livrar das suas garras, relaxei e ele me desvirginou, mas, não lhe bastasse
isso tudo, passou a falar das minhas intimidades para os outros, e toda vez que
eu descia do palácio califal ele se postava no caminho, me violentava e me
perseguia por onde quer que eu fosse. Pronto, agora contei a minha história.
Quanto a você, a sua paciência, inteligência, honestidade e serviços me
agradaram, e a partir deste momento não me resta ninguém mais caro do que
você”. Em seguida, atirou-se sobre mim; abracei-a e passei com ela uma noite
que eu nunca vira melhor em toda a minha vida. Ela me deu mais mil dinares e
começou a me visitar seis dias por mês, durante os quais ficava comigo no
palácio de Arraw®a. Fomos amantes durante um ano inteiro, após o que suas
visitas se interromperam por um mês. O fogo começou a lavrar no meu coração,
e no segundo mês de ausência o meu sopro vital estava a ponto de me sair pelo
nariz quando, repentinamente, um criado apareceu diante de mim e disse: “Fui
enviado por fulana”.
Então a aurora alcançou ¸ahrazåd, que interrompeu sua história e seu discurso
autorizados. Sua irmã Dunyåzåd lhe disse: “Como é prazerosa, boa, agradável e
deliciosa a sua história, maninha”, e ela respondeu: “Isso não é nada perto do
que irei lhes contar na próxima noite, se acaso eu viver e este rei cortês me
poupar. Eu lhes contarei algo mais espantoso e insólito, mais prazeroso e
extasiante, com mais palavras e ordem melhor”.

1000ª[636]
noite

Na noite seguinte, o rei mais velho, ¸åhriyår, se recolheu à cama, juntamente


com sua esposa ¸ahrazåd, deleitando-se ambos com libidinagens e amassos; após
atingirem o gozo sexual por meio do contato corporal, Dunyåzåd saiu de baixo
da cama e disse: “Por Deus, irmãzinha, se não estiver dormindo, termine a sua
história para a gente”. ¸ahrazåd respondeu: “Com muito gosto e honra”.
Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de certeira opinião,
forte disposição e louvável ação, de que [o décimo sexto capitão disse que certa
pessoa disse que] o mercador disse:
Enquanto eu me fritava no fogo, eis que um pequeno criado surgiu na minha
frente e disse: “Fui enviado a você por fulana. Ela o informa que o comandante
dos crentes determinou que ela e mais vinte e seis mulheres sejam afogadas no
dia tal nas proximidades de Dayr A††∑n pelo fato de que todas se acusaram
mutuamente de corrupção. Ela lhe diz para ver o que fazer e entabular alguma
artimanha para salvá-la, mesmo que ao custo de todo o seu dinheiro, pois este é
momento de brio e de prestação de contas”. Respondi ao criado: “Não conheço
essa mulher e nem sei do que você está falando. Vá embora, criado, e procure
outro. Você está querendo é provocar a minha ruína”. Então o criado foi-se
embora enquanto no meu coração se alastrava um fogo inapagável, mas logo me
levantei, peguei um pouco de dinheiro, troquei de roupa — pondo trajes de
marinheiro — e me dirigi a Dayr A††∑n, onde encontrei uma embarcação na
qual havia um marinheiro. Peguei um pouco de comida e fui até ele. Comemos
juntos e eu lhe perguntei: “Aluga este barco?”. Ele respondeu: “Não, pois ele foi
reservado pelo comandante dos crentes, que vai afogar as suas concubinas”, e
me contou a história do começo ao fim, a mesma contada pelo criado eunuco.
Após ouvir tudo, ofereci-lhe dez dinares de ouro e lhe revelei o que eu pretendia
em relação à jovem. O marinheiro me disse: “Meu irmão, guarde esta cabaça
grande e quando a sua amiga vier aponte-a para mim que eu preparo uma
artimanha para salvá-la”. Beijei-lhe a mão, roguei-lhe uma longa vida e agradeci
pela gentileza. Quando anoiteceu, eis que os criados do califa apareceram
trazendo as mulheres, que choravam e gritavam. Então, os criados gritaram por
nós e levamos o barco, para cujo proprietário perguntaram: “Quem é esse que
está com você?”. Ele respondeu: “Meu colega, que me ajudará a cuidar do barco
enquanto eu servir vocês”. Eles subiram conduzindo uma das mulheres e
disseram: “Atirem-na perto da ilha”. A mulher estava amarrada e tinha
pendurada no pescoço uma corda com uma jarra cheia de areia na ponta. Era
assim que eles agiam: iam trazendo uma por uma nessas condições até que enfim
me entregaram a minha companheira. Pisquei para o meu colega e então a
levamos até o meio do rio, onde lhe entregamos a cabaça e dissemos: “Agarre-se
a ela e nos espere na entrada do golfo”, soltando-a ao lado do barco [após a
termos desamarrado e retirado a jarra do seu pescoço]. Retornamos, [e depois
dela só restava uma, que levamos e afogamos.] Os criados foram-se embora e
nós retornamos de barco até a entrada do golfo, onde a vi me esperando. Içamo-
la ao barco e a levamos até o nosso palácio em Arraw®a. Assim que a mulher se
acalmou, dei presentes ao dono do barco, e ele se retirou e foi cuidar da vida. Ela
me disse: “Você é o companheiro com o qual eu conto para as dificuldades e
problemas”. Durante algum tempo ela sofreu tremores; depois, adoeceu, contraiu
tuberculose e foi ficando cada vez mais fraca, até que se mudou para a
misericórdia de Deus altíssimo. Minha tristeza foi muito forte; enterrei-a e
transferi tudo quanto havia no palácio para a minha casa. Ela trouxera consigo,
mantendo-a em lugar por mim ignorado, uma pequena caixa de cobre amarelo;
quando o testamentário chegou, vasculhou o lugar e a encontrou com a chave;
quando foi aberta, verificaram estar repleta de pedras preciosas, rubis, brincos e
anéis de ouro, coisas, enfim, somente possuídas por reis e sultões; [levaram a
caixa e me prenderam também,] e tanto me espancaram e torturaram que lhes
contei toda a história, do começo ao fim. Então me conduziram ao califa, a quem
contei tudo quanto sucedera, também do começo ao fim. O califa me disse: “Vá
embora deste país. Eu o liberto por causa da sua coragem, confiabilidade em
guardar segredos [e ousadia ante a morte]”. Imediatamente me levantei e viajei.
É esta a minha história e o que me sucedeu.
[Prosseguiu ¸ahrazåd:] O sultão Baybars ficou espantado com essas coisas;
portanto, não fique você espantado, rei ¸åhriyår, pois sucedeu aos reis, aos califas
e aos soberanos sassânidas anteriores, e outros, o mesmo que lhe sucedeu
relativamente às mulheres; a explanação seria muito longa e você ficaria
entediado de ouvir. O tanto que contei é suficiente para o homem de intelecto e
sagacidade. Você não é mais poderoso, ó rei, que os califas e os sassânidas, e
este relato contém admoestações para o ouvinte.
EPÍLOGO
Quando se completaram mil noites, ¸ahrazåd interrompeu a contação de
histórias, cujos sentidos e vocabulário despertaram a inteligência do rei ¸åhriyår,
[637] o qual, coração serenado e cólera aplacada, refletiu sobre a sua condição,
penitenciou-se,[638] voltou a Deus altíssimo e pensou: “Se com os califas e os
reis sassânidas ocorreu pior do que ocorreu comigo, vou parar de me
autocensurar. Quanto a esta ¸ahrazåd, não existe igual! Exalçado seja aquele que
fez dela a salvação das criaturas contra a morte e a teimosia”. E, levantando-se
imediatamente, aproximou-se dela e lhe beijou a cabeça; tanto ela como a sua
irmã Dunyåzåd ficaram sumamente contentes. Quando amanheceu, o rei
¸åhriyår, o mais velho, foi para o trono, dali convocando os principais do
governo, e logo apareceram os secretários, os delegados, os comandantes, os
vizires, outros membros do governo e demais pessoas importantes. Todos
beijaram o chão diante do rei, rogaram vida longa para ele, para a rainha
¸ahrazåd e para o pai dela, louvando este último pela educação e criação que
dera à filha. Quando isso foi concluído, o rei deu ao vizir uma vestimenta
luxuosa e outros presentes valiosos, e o aproximou de si. Em seguida, contou a
todos — vizires, maiorais do governo e gente importante — tudo quanto
ocorrera entre ele e a rainha ¸ahrazåd, e que voltara atrás quanto à morte das
jovens, e que estava arrependido do passado. Contou-lhes ainda que pretendia
promover um festival em homenagem a ela. Mandou trazer juiz e testemunhas
que firmaram o contrato de casamento entre ambos, ¸ahrazåd e ¸åhriyår, o mais
velho. Quando o contrato se escreveu, todos os notáveis do governo ficaram
felizes e beijaram o chão na frente do rei, rogando para ele a perpetuação do
poder e da fortuna, após o que se dispersaram e retiraram para as suas casas.
Espalhou-se pela cidade a notícia de que o rei se casara com a rainha ¸ahrazåd e
proibira a opressão contra os súditos. O povo ficou contente, rogando por ele e
pela pessoa responsável por salvar as suas filhas, que era ¸ahrazåd, a filha do
vizir. O rei deu início aos preparativos para a festa de casamento e mandou
chamar o seu irmão ¸åhzamån,[639] o qual, ao receber o emissário, aprontou-se
e viajou até chegar à terra de ¸åhriyår, o mais velho, que saiu para recepcioná-lo
acompanhado de seus soldados, vizires, e dos principais do reino. A cidade foi
engalanada da maneira mais bonita para a sua chegada, e os súditos queimaram
incenso, âmbar com almíscar e aloés em todos os mercados e quarteirões,
perfumaram-se com açafrão e tocaram tambores; gritaram enfim as intenções e
as taças:[640] foi um dia no qual os pensamentos ficaram perplexos. Quando
subiram ao palácio, o rei ordenou que o banquete fosse servido; os pratos eram
indescritíveis, e todos comeram: o rei ¸åhriyår e o seu irmão, todos os vizires,
líderes militares, secretários, delegados, notáveis do governo e líderes da
comunidade, com toda a sua clientela. Após estes se saciarem, foram convidados
a entrar e comer do banquete todos os súditos, que então acorreram de tudo
quanto era lugar e hospedaria, e também eles comeram à saciedade.[641] O rei
deu prosseguimento às comemorações pelo período de sete dias, até que todo
mundo se saciou; depois disso, ele se reuniu a sós com o seu irmão ¸åhzamån e
lhe relatou o que sucedera entre ele e ¸ahrazåd, a filha do vizir, as biografias e
belas histórias que lhe contara, com as ocorrências, casos e problemas vividos
pelos reis, califas e soberanos sassânidas, bem como os dizeres, poesias e
anedotas que ela o fizera ouvir. Sumamente espantado, o rei ¸åhzamån
estremeceu de êxtase e disse: “Meu irmão, eu quero me casar com a irmã dela,
Dunyåzåd, para que as duas irmãs fiquem com os dois irmãos”.[642] Ao ouvir
tais palavras do irmão, o rei mais velho, ¸åhriyår, ficou muito contente, levantou-
se e imediatamente foi falar com a sua esposa ¸ahrazåd para informá-la da
concordância entre ele e o irmão, que desejava casar-se com a irmã dela,
Dunyåzåd. ¸ahrazåd lhe respondeu: “Se o seu irmão quer se casar com a minha
irmã, ó rei, estabeleça-lhe como condição que não a afaste deste país, pois eu
não aguento ficar longe dela, e tampouco ela aguenta ficar longe de mim por
muito tempo. Se ele aceitar essa condição, ela será dele”. Então o rei ¸åhriyår
saiu de perto da esposa e foi até o seu irmão ¸åhzamån, informando o acordo
proposto por sua esposa ¸ahrazåd. O irmão respondeu: “Era isso mesmo que eu
tinha em mente, pois eu detesto ficar longe de vocês, e por esse motivo eu me
incomodava muito. Já se prolongou demasiado a separação entre nós! Louvores
a Deus, que nos reuniu antes que fosse tarde”. E eles imediatamente mandaram
convocar juízes e testemunhas, bem como os notáveis do governo, secretários,
delegados e detentores de postos oficiais, e escreveram o contrato de casamento
das duas irmãs com os dois irmãos, na presença do pai de ambas, o vizir.
Ordenaram que a cidade fosse engalanada, o que se cumpriu sem demoras, e
presentearam o vizir com uma luxuosa vestimenta, algum dinheiro e pedras
preciosas; em seguida, presentearam os juízes, as testemunhas, os notáveis do
governo e os homens poderosos com vestimentas valiosas, e só então se deu
início à festa de casamento, após o que as esposas foram conduzidas ao banho
público, onde as camareiras as enfeitaram com os mais belos enfeites,
pentearam-lhes os cabelos, apararam-nos, expuseram-nas à melhor classe de
incenso de aloés e almíscar com âmbar, vestiram-nas com belas roupas e joias
luxuosas, cravejadas de pérolas e gemas reservadas somente aos reis e aos
soberanos sassânidas. Cada um dos trajes tinha um manto bordado a ouro
vermelho com desenhos de animais e aves, além de várias espécies de imagens
cravejadas de rubi e esmeralda verde. Colocaram no pescoço de ambas colares
valiosíssimos que nem Kisrà, nem Qayßar, nem Iskandar[643] haviam possuído
iguais, com grandes pedras que deixavam atônito o pensamento dos mais
clarividentes; cada uma das jovens era mais resplandecente que o sol e a lua na
noite em que se completa. As camareiras acenderam diante delas velas tão
luminosas quanto o ouro brilhante, cuja luz lhes iluminou as faces: ambas
tinham olhos mais agudos que a espada desembainhada, os cílios das suas
pálpebras enfeitiçavam os corações, faces rosadas, ancas, seios e cintura tinham
a curvatura de um galho de árvore, e olhos de gazela. Foram recepcionadas pelas
criadas e cantoras com instrumentos musicais e adufes. Depois, os dois reis
também entraram no banho público, saíram e se instalaram em dois tronos de
zimbro[644] com lâminas de ouro e cravejados de várias espécies de pedras
preciosas, pérolas e esmeraldas verdes. Então chegaram as duas irmãs e pararam
diante de ambos, que lhes contemplaram a beleza e formosura, sua bela imagem,
as duas semelhando luas. ¸ahrazåd foi a primeira a ser conduzida para o desfile,
num luxuoso traje vermelho. O rei mais velho, ¸åhriyår, levantou-se e
acompanhou o primeiro desfile; [as mentes dos homens e das mulheres ficaram
atônitas, pois ela] era como disse um dos que a descreveram nestes versos:

“Sol em dunas como haste,
em rubra túnica ela surgiu:
a doce saliva de vinho sorvi
na taça de sua face, e repousei”.

Disse o narrador: Em seguida, eles fizeram Dunyåzåd desfilar num traje azul
bordado, o que a deixou como o plenilúnio quando aparece, e exibiram-na diante
do rei ¸åhzamån, que ficou felicíssimo, quase desmaiando de êxtase e paixão,
perdido de amores por ela ao vê-la tal como disse a respeito dela um dos que a
descreveram nestes versos:

[“Ela surgiu num traje azul
anil, da mesma cor do céu:
contemplei o traje e vi lua
de verão em noite de inverno”.

Em seguida, trouxeram ¸ahrazåd novamente e a fizeram desfilar com o segundo
traje excelente, vendando-lhe o rosto com os próprios cabelos e soltando-lhe as
tranças; ela estava tal como disse a seu respeito um dos que a descreveram nestes
versos:

“Ai de quem lhe soltou o cabelo sobre o rosto;
por vida minha que me matou com tal opressão:
‘Cobres a manhã com a noite?’. Respondeu: ‘Não,
mas cobri o plenilúnio com sombras, isto sim’”.

Em seguida fizeram Dunyåzåd desfilar com o segundo traje, depois o terceiro,
depois o quarto, todos parecendo curvar-se de admiração, e ela foi surgindo
como o sol nascente, tal como disse a seu respeito o poeta nestes versos:][645]

“Sol que, quando aparece ao povo, resplandece
e cresce com belo mimo que o pudor aumenta;
quando ela desfilou vimos o amanhecer sorrindo,
e o sol da manhã entre as nuvens se escondendo”.

Disse o narrador: Em seguida fizeram ¸ahrazåd desfilar pela segunda, depois a
terceira, depois a quarta, depois a quinta vez, e ela parecia uma haste de bambu,
uma gazela sedenta, de graciosa beleza, perfeita formosura e características, tal
como disse a seu respeito o poeta superior:

“Surgiu como plenilúnio em noite ditosa,
pujante de membros e esbelta de talhe,
e olhos cuja beleza a todos cativa,
imitando os rubis com o rosado da face;
sobre as suas ancas balança o negro cabelo:
cuidado com as cobras de seus fios ondulados,
que se curvaram ao seu costado e ao coração;
mas seu amor é mais duro que a pedra mais dura:
envia setas pelo olhar, por debaixo das pálpebras
que acertam, jamais erram, mesmo a distância”.

Disse o narrador: Em seguida, fizeram Dunyåzåd desfilar pela quinta e depois
pela sexta vez com um traje verde, e a sua beleza fez os horizontes se porem de
pé, e com o brilho da sua face ela encobriu a luz do plenilúnio, mostrando-se tal
como a descreveu o poeta superior nestes versos:

“Uma garota tal como o sol da aurora,[646]
que da sua própria face parece ter saído;
desfila agora envolta em túnica verde,
tal como as folhas protegem a flor de romã.
Perguntei: ‘Qual o nome dessa vestimenta?’,
e ela respondeu com palavras bem graciosas:
‘Como com ela rompemos a vesícula de muitos,
nós a chamamos das vesículas a destruidora’”.

Disse o narrador: Depois fizeram a rainha ¸ahrazåd desfilar pela [sexta,] sétima
e oitava vez com um traje de jovens, que parecia curvar-se de admiração. Ela
havia sequestrado o intelecto de todos e enfeitiçado com o olhar até os mais
sagazes, balançando as costas e remexendo as ancas; com o cabelo jogado por
cima do cabo da sua adaga, ela passou pelo rei ¸åhriyår, que ficou de pé para ela
e a abraçou tal como um nobre abraça o conviva, e lhe prometeu, ao pé do
ouvido, tudo de bom, recolhendo a adaga da mão dela, que neste sentido era
como disse o poeta superior a seu respeito nos seguintes versos:

“Fosse a beleza dos efebos dobrada,
tal como sempre foi a das beldades,
as camareiras, que cuidam da noiva,
lhes raspariam a barba da face rosada”.[647]

Disse o narrador: Fizeram o mesmo com Dunyåzåd diante do rei ¸åhzamån, e
quando terminou o desfile com os trajes e os presentes já estavam bem
satisfeitos, e todos os olhos e retinas já se haviam apartado dos casais, as duas
irmãs retiraram aqueles trajos cheios de pedras preciosas, deixando-os em seus
aposentos, e cada um dos reis possuiu a sua esposa: o rei ¸åhriyår a sua esposa
¸ahrazåd, e o rei ¸åhzamån a sua esposa Dunyåzåd, cada qual se ocupando de sua
amada. O coração dos súditos se tranquilizou, o país prosperou, e quando a
manhã surgiu, iluminando com a sua luz e brilhando, o vizir foi vê-los e beijou o
chão diante deles, rogando a perpetuação do seu poder e bem-estar e a
eliminação da miséria e do rancor, sendo então dignificado e bem tratado. Em
seguida, os reis determinaram-lhe que se sentasse, e depois que comparecessem
os demais vizires, os comandantes militares, os figurões, os membros da corte,
os notáveis do governo e os maiorais do reino. Todos beijaram o solo diante dos
dois reis, rogaram-lhes pela perpetuação do poder e longa vida, e ambos os
presentearam com luxuosas túnicas, de valor incalculável. O vizir pai das rainhas
foi nomeado governador da Samarcanda persa e toda a sua região, dali saindo
deveras feliz e contente, após ter novamente beijado o chão e rogado por eles.
Ele saiu da assembleia, acompanhado por batida de tambores e som de flautas, e
precedido por soldados, peões e oficiais, dirigindo-se para casa; no dia seguinte,
[foi até as filhas, cumprimentou-as, despediu-se e elas lhe beijaram a mãos,
ficaram contentes com o seu reino, deram-lhe muito dinheiro e se despediram do
pai,] que então saiu da cidade na companhia [dos dois reis] e de cinco notáveis
do governo; deram-lhe dinheiro, joias e pedras preciosas, além de muitas outras
coisas, e acamparam com ele durante três dias nos arredores da cidade, após o
que os dois reis lhe ordenaram que se pusesse em marcha. Ele se despediu,
recomendando-lhes vivamente as filhas, e, depois de terem cavalgado ao seu
lado por um dia inteiro, despediram-se e retornaram à cidade, juntamente com os
soldados do séquito. O vizir prosseguiu com os seus próprios soldados e
membros da comitiva, atravessando desertos e terras inóspitas por dias e noites,
aproximando-se de tudo quanto era distante e deixando para trás tudo quanto era
próximo. Quando enfim se aproximou de sua terra, enviou emissários para
informarem os moradores da sua chegada, e então todos os notáveis do governo,
pessoas importantes e governadores de cidades, vilas e praças-fortes, seus
representantes, os maiorais do país, enfim, todos saíram para recepcioná-lo,
numa marcha de três dias, envoltos na mais insuperável das felicidades. A seguir,
acompanharam-no até a capital, especialmente adornada para recebê-lo.
Igualmente contentes com a sua chegada, os súditos rogaram para ele uma vida
longa, fazendo da sua chegada um dia magnífico. Em seguida, conduziram-no ao
palácio e o instalaram no trono do reino, pondo-se a servi-lo os chefes militares,
os vizires, os notáveis do governo, as pessoas importantes, os governadores, os
maiorais da cidade, enfim, desde o grande até o pequeno. Rogaram que tivesse
êxito e longevidade, e ficaram contentes que fosse ele o seu rei e governante.
Disse o narrador: No tocante ao rei mais velho, ¸åhriyår, e o seu irmão
¸åhzamån, ambos, após a partida do sogro vizir, convocaram os principais do
governo, as pessoas importantes, os dirigentes e governadores, dando-lhes
túnicas e outros presentes e benesses. O rei ¸åhriyår dividiu o reino com o seu
irmão ¸åhzamån e, após entrarem em acordo, passaram a governar cada dia um.
O coração dos súditos se alegrou com tal situação, bem como as suas esposas
irmãs, e o amor entre eles se tornou perfeito e insuperável, e tão grande era que
não suportavam estar separados uns dos outros; rogavam por eles os pobres, os
desvalidos, os letrados, os sábios e os pregadores sobre os púlpitos. As notícias
sobre a justiça e a equanimidade dos dois reis se espalharam, tendo sido
revogados os impostos sobre mercadores e viajantes. Em seguida, o rei mais
velho, ¸åhriyår, mandou chamar historiadores e copistas, ordenando-lhes que
escrevessem tudo quando lhe sucedera com a sua esposa ¸ahrazåd, todas as
histórias, crônicas e anedotas que lhe contara, desde a primeira até a última, e
então eles escreveram tudo quanto lhes ordenara do início ao fim, que são as mil
e uma noites e o que nelas ocorreu de histórias maravilhosas e sentenças
preciosas; preencheram trinta volumes que o rei ¸åhriyår depositou na biblioteca
do seu reino, no local onde estudava. Os reis se estabeleceram com as suas
esposas na condição mais prazerosa, na vida mais opulenta, deliciosa e feliz;
Deus substituiu a sua tristeza por alegria, e assim eles permaneceram por um
bom tempo, por boas noites e momentos, até que lhes adveio o destruidor dos
prazeres e dispersador das comunidades, e todos se transferiram para a
misericórdia de Deus altíssimo, entronizando-se então um novo rei no lugar
deles,[648] pois Deus dá o seu reino para quem quiser, ele que é rápido na
prestação de contas, Deus, o único, o benfeitor.
Concluiu-se a história,[649] com os louvores a Deus e a sua ajuda, êxito,
generosidade e graça. É exata e perfeitamente isto o que chegou até nós da
história deles e das suas notícias. Louvores a Deus em qualquer situação. Deus
altíssimo é quem conduz ao acerto. Concluiu-se.[650]
ANEXOS

Os anexos da presente edição são textos que podem servir como elementos de
comparação para o leitor interessado na história da constituição deste livro.
ANEXO I

Em árabe, a história de ¢Al∑ Båbå existe num único manuscrito, o “Bod. Or.
633” da Biblioteca Bodleiana, em Oxford. Embora não esteja datado, é possível
situar-lhe a data de cópia na segunda metade do século xviii, possivelmente já
no seu final. Esse texto foi editado em 1910 pelo arabista escocês Duncan
Macdonald numa revista acadêmica, o Journal of Royal Asiatic Society, mas só
passou a circular de fato entre o público de língua árabe no ano de 2011, na
supracitada coletânea Allayål∑ Al¢arabiyya Almuzawwara, que reproduz
exatamente a edição de Macdonald. Foi dela que se fez a presente tradução.
[651]

HISTÓRIA DE ¢AL„ BÅBÅ, OS QUARENTA LADRÕES E A ESCRAVA
MURJÅNA, COMPLETA E INTEGRAL; LOUVORES A DEUS, SOMENTE

Em nome de Deus, misericordioso, misericordiador.
Conta-se — mas Deus sabe mais sobre o que já é ausência, e é mais sábio
quanto ao que sucedeu e passou nas histórias das nações antigas e dos povos
extintos — que houve em tempos remotos, já de há muito esgotados, numa das
cidades de ¿uråsån, na Pérsia, dois irmãos de pai e mãe, dos quais o primeiro se
chamava Qåsim, e o segundo, ¢Al∑ Båbå. Ao falecer, o pai não lhes deixara
senão uma bem pobrezinha herança e parcos bens. Mesmo minguada, essa
herança foi por eles repartida de maneira justa e equitativa, sem confusões nem
discussões. Depois da divisão do espólio paterno, Qåsim se casou com uma rica
mulher, dona de propriedades e jardins, pomares e lojas abarrotadas de luxuosas
mercadorias e cabedais valiosos e finos, e tanto ele se pôs a dar e a receber, a
vender e a comprar, que a sua condição melhorou e o destino o auxiliou,
tornando-se famoso entre os mercadores e adquirindo prestígio entre as gentes
abastadas e opulentas. ¢Al∑ Båbå, porém, casou-se com uma jovem pobre que
não possuía dirham nem dinar, nem casas nem terrenos, e em pouco tempo
perdeu o que do pai herdara, sendo dominado pela penúria, com as suas aflições,
e pela pobreza, com as suas carências e preocupações. Perplexo quanto ao que
fazer, incapaz de qualquer artimanha para obter sustento e sobrevivência, ¢Al∑
Båbå, que era sábio e inteligente, culto e letrado, recitou os seguintes versos:

“Dizem-me: ‘Entre os homens, tu és,
com teu saber, como noite enluarada’.
Respondi: ‘Deixai de lado essa conversa,
pois o saber não existe senão com o poder;
se me sequestrassem junto com meu saber,
e todos os livros desde sempre escritos,
pela comida do dia, seria o refém devolvido,
e me atirariam na cara a história e o desprezo,
pois o pobre, e a condição de quem é pobre,
e a existência do pobre, como são desgostosas!
No verão, seu sustento não consegue ganhar,
e no inverno só a muito custo é que se aquece;
contra ele avançam os cachorros nas ruas,
e qualquer ser mesquinho o quer humilhar;
quando se queixa para quem quer que seja,
ninguém neste mundo faz questão de acudir;
se for esta, portanto, a vida do pobre,
para ele o melhor dos lugares é a tumba’”.

Quando terminou de recitar, pôs-se a refletir sobre a situação, o que o futuro lhe
reservava, como administraria o assunto da sobrevivência, e qual seria a
artimanha para obter sustento; pensou: “Se, com o dinheiro que me restou, eu
comprar um machado e alguns jumentos para com eles subir a montanha, cortar
madeira e depois descer e vender no mercado da cidade, será imperioso que com
o valor obtido eu dissipe a angústia, gastando-o com a família”. Considerando
enfim correto esse parecer, acorreu para comprar os jumentos e o machado, após
o que se dirigiu para a montanha com três jumentos, cada um deles do tamanho
de um burro, e passou o dia cortando lenha e amarrando a carga. Quando
anoiteceu, carregou os jumentos e desceu em direção à cidade, vendendo no
mercado a madeira, cujo valor o ajudou a ajeitar a situação e gastar com os
familiares, diminuindo a angústia e aumentando a folga, e por isso ele agradeceu
a Deus e o louvou, dormindo com o coração feliz, o olho alentado e a alma
tranquila. Quando amanheceu, levantou-se e retornou à montanha, procedendo
do mesmo modo que o dia anterior; nisso passou a consistir a sua labuta de todos
os dias: ao amanhecer se dirigia à montanha e ao anoitecer retornava ao mercado
da cidade para vender a sua madeira e gastar o valor recebido com a família,
encontrando enfim a bênção com esse ofício.
Continuou nessa situação até que, certo dia, enquanto cortava madeira na
montanha, eis que avistou uma poeira subindo até encobrir a paisagem, e após
cuja dispersão apareceram, debaixo dela, vários cavaleiros semelhando leões mal
encarados, armados até os dentes, vestidos de armaduras, portando espadas,
carregando lanças e com arcos a tiracolo. Temeroso, assustado e aterrorizado,
¢Al∑ Båbå correu até uma árvore alta, subiu e se ocultou entre os seus galhos,
prevenindo-se contra eles por acreditar serem ladrões. Escondido atrás dos
galhos cheios de folhas, pôs-se a observá-los com atenção.
Disse o narrador desta história espantosa, deste caso emocionante e
estranho: Ao escalar a árvore e examinar os cavaleiros sob a ótica da
fisiognomonia, ¢Al∑ Båbå teve certeza de que se tratava de ladrões, bandoleiros
de estrada, e os contou, constatando serem quarenta homens, cada qual montado
num corcel da melhor espécie: seu medo cresceu, seu temor aumentou, seus
membros se contraíram, sua saliva secou e sua visão não conseguia distinguir o
caminho. Os cavaleiros estacaram, apearam-se dos corcéis — prendendo-lhes
[ao pescoço] sacos de cevada — e em seguida cada um deles pegou o alforje
amarrado no dorso do seu cavalo, soltaram-nos e os levaram ao ombro, tudo isso
com ¢Al∑ Båbå a espreitar e observar de cima da árvore. O chefe dos ladrões
caminhou na frente dos outros, conduzindo-os a um canto da montanha e se
detendo diante de uma pequena porta de aço num local tão coberto de ervas que
era impossível vê-la: as sarças e os espinhos eram em tal profusão que ¢Al∑
Båbå não havia notado ou visto a porta, nem topado com ela. Quando os ladrões
já estavam parados diante da porta de aço, o chefe deles disse em voz bem alta:
“Ó sésamo, abra a sua porta!”,[652] e tão logo ele pronunciou tais palavras a
porta se abriu e o chefe entrou, seguido pelos outros ladrões, cada qual
carregando um alforje. Espantado com aquilo, ¢Al∑ Båbå teve quase certeza de
que cada alforje daqueles estava carregado de prata branca e ouro amarelo
luzente, e o caso era bem esse, pois aqueles bandidos assaltavam as estradas e
faziam algaras contra aldeias e cidades, oprimindo as criaturas, e toda vez que
espoliavam uma caravana ou atacavam alguma aldeia carregavam o produto do
roubo para aquele local desabitado, oculto e distante das vistas de terceiros.
¢Al∑ Båbå continuou em cima da árvore — escondido, calado e inerte, embora
com o olhar atento para os ladrões e acompanhando-lhes os movimentos — até
que os viu sair, liderados pelo chefe, já esvaziados os alforjes, os quais eles
tornaram a amarrar tal como antes no dorso dos cavalos e, após lhes terem
colocado as rédeas, montaram e partiram, tomando a mesma direção de onde
tinham vindo e acelerando a cavalgada até se afastar e desaparecer das vistas.
Enquanto isso, calado de medo, ¢Al∑ Båbå continuava inerte sem nem respirar,
não descendo da árvore senão quando eles se afastaram e sumiram do seu campo
de visão.
Disse o narrador: Quando se sentiu a salvo do mal deles e o seu terror
amainou, ¢Al∑ Båbå ficou mais tranquilo e desceu da árvore, aproximando-se
da pequena porta, que ele parou para examinar, e pensando: “Se eu disser: ‘Ó
sésamo, abra a sua porta’, tal como fez o líder dos bandidos, será que ela se
abrirá ou não?”. Então ele deu um passo adiante, pronunciou aquelas palavras e
eis que a porta se abriu; o motivo disso é que o local havia sido construído por
gênios amotinados, encontrando-se protegido e encantado por potentes talismãs,
e a frase “ó sésamo, abra a sua porta” era o segredo estabelecido para desfazer o
encanto do talismã e abrir a porta. Ao vê-la aberta, ¢Al∑ Båbå entrou e, mal
ultrapassara a soleira, a porta tornou a se fechar às suas costas; assustado e
aterrorizado, ele disse uma frase que não envergonha quem a pronuncia: “Não
existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso”; em seguida, ao
se lembrar da frase “ó sésamo, abra a sua porta”, o medo e o terror que o
dominavam se acalmaram, e ele disse: “Não devo me preocupar com o
fechamento da porta, pois eu conheço o segredo de como abri-la”. Caminhou um
pouco, supondo que o local fosse todo escuro, e ficou sumamente admirado ao
topar com um amplo saguão iluminado, edificado em mármore, com colunas
bem construídas e bela arquitetura, onde se armazenava tudo quanto pode
desejar qualquer alma em termos de comida e bebida. Daquele saguão foi para
um segundo, maior e mais amplo que o primeiro, nele encontrando dinheiro,
joias e coisas tão espantosas e maravilhosas que deixariam estupefato quem as
visse, e incapaz de descrevê-las: ali estavam reunidos lingotes de ouro legítimo e
outros de prata, dinares bem cunhados, dirhams de valor, tudo isso em montes
tão numerosos como a areia e os pedregulhos, impossíveis de contar ou calcular.
Após ter zanzado por esse saguão espantoso, divisou outra porta que o
introduziu num terceiro saguão ainda mais esplêndido e belo que o segundo,
contendo tudo quanto existia nas mais diferentes terras e países: as melhores
roupas que os homens podem usar, peças de algodão caro e valioso, trajes de
seda e brocado luxuoso, enfim, não existia uma única espécie de tecido que não
estivesse depositada naquele local, fosse dos distritos da Síria ou das mais
remotas regiões da África, e até mesmo da China e do Sind, da Núbia e da Índia.
Dali ele foi para o saguão das pedras preciosas, o mais magnífico e espantoso,
pois continha pérolas e joias em quantidades tais que eram inimagináveis e
incalculáveis, fossem rubi, esmeralda, turquesa ou topázio; quanto às pérolas,
elas ali existiam aos magotes, e a cornalina se via ao lado da pedra coral; dali,
¢Al∑ Båbå entrou no saguão de perfumes, incensos e essências aromáticas, que
era o último, nele encontrando desses produtos categorias excelentes e
qualidades delicadas; o aroma de aloés e de almíscar ali recendia, e o esplendor
do âmbar e do incenso ali se sentia, e a fragrância do perfume e das essências
dali se exalavam, e o doce perfume e açafrão ali se notavam, e o sândalo estava
ali espalhado como se fora lenha para queimar, e as plantas aromáticas ficavam
ali abandonadas como se fossem palitos perdidos. ¢Al∑ Båbå ficou perplexo
com a visão dessas riquezas e tesouros, o seu pensamento se dispersou e a sua
mente se aturdiu, mantendo-se longo tempo parado, atônito, estupefato; em
seguida, começou a examinar tudo aquilo em detalhe, ora entre as pérolas
revirando uma singular, ora entre as joias contemplando alguma mais valiosa,
ora se detendo numa peça de brocado, ora se admirando com o ouro reluzente,
ora passando por entre as recém-feitas peças de ouro suave e brilhante, ora
aspirando o aroma do aloé e de outros perfumes. Logo lhe ocorreu que aqueles
ladrões, mesmo que tivessem estado a reunir tamanhas riquezas espantosas por
muitos anos e longos dias, não teriam conseguido acumular nem sequer uma
fração delas, sendo portanto absolutamente imperioso que tal tesouro já existisse
antes de os ladrões o encontrarem; ademais, de qualquer modo, a sua posse por
parte deles não tinha nenhum aspecto de legalidade nem fora trilhada numa
senda justa, e, portanto, se aproveitasse a oportunidade e levasse um pouco desse
dinheiro abundante não recairia sobre ele nenhum pecado nem seria atingido por
nenhuma censura; segundo, o dinheiro era tanto que eles não conseguiam contá-
lo ou calculá-lo, e por conseguinte não perceberiam o quanto dele fora levado e
nem sequer se dariam conta. Nesse momento, adotou o parecer de levar o que
fosse possível daquele ouro ali jogado, e pôs-se a transferir os sacos de dinares
de dentro do esconderijo do tesouro para fora, dizendo “Ó sésamo, abra a sua
porta” sempre que queria entrar ou sair, e então a porta se abria. Ao terminar de
transferir aquele dinheiro, carregou os jumentos, cobriu os sacos de ouro com
um pouco de madeira e conduziu os animais até a cidade, onde se dirigiu à sua
casa, feliz e apaziguado.
Disse o narrador: Entrando em casa, ¢Al∑ Båbå fechou a porta para evitar a
entrada de algum inoportuno e, após amarrar e trancar os jumentos no estábulo,
pegou um saco e subiu com ele até a sua mulher, colocando-o diante dela; em
seguida, desceu e trouxe outro saco, carregando assim um saco atrás do outro até
colocar todos os sacos na frente da mulher, que estava atônita e espantada com
aquele procedimento, mas ao tocar num dos sacos e sentir a aspereza dos
dinares, a sua cor se amarelou e o seu ser se alterou por imaginar que o marido
roubara aquele dinheiro copioso. Ela perguntou: “O que você fez, seu infeliz?
Não temos necessidade de obter nada em pecado, nem cobiçamos o dinheiro
alheio. Eu estava conformada com o que Deus me destinara, satisfeita com a
minha pobreza e agradecida por aquilo com que fui agraciada, sem desejar as
posses de outrem nem querer nenhum pecado”. Ele disse: “Mulher, fique
tranquila e sossegada! Deus me livre de fazer a minha mão se aproximar do
pecado. Este dinheiro eu encontrei numa caverna, e então aproveitei a
oportunidade, peguei e trouxe para cá”, e contou a ela o que lhe sucedera com os
ladrões do começo ao fim, e a repetição não vai trazer nova informação. Quando
terminou de contar, recomendou-lhe que contivesse a língua e guardasse
segredo. Ao ouvir aquilo, a mulher ficou sumamente espantada, os seus temores
se aquietaram, o seu peito folgou e ela se pôs muitíssimo contente. ¢Al∑ Båbå
esvaziou os sacos no meio da casa e o ouro formou um montículo, deixando
atônita a mulher, que, considerando aquilo uma quantia enorme, começou a
contar. O marido lhe disse: “Ai de você! Não vai conseguir contar os dinares
nem mesmo em dois dias; ademais, trata-se de uma coisa inútil e desnecessária
neste momento. Para mim, o mais correto é que escavemos um buraco para
enterrar os dinares, evitando assim que descubram o nosso caso e revelem o
nosso segredo”. Ela disse: “Ainda que você não enxergue a necessidade de
contá-los, é absolutamente imperioso pesá-los a fim de lhes saber o valor
aproximado”. Ele disse: “Faça o que achar melhor, mas muito cuidado para que
os outros não fiquem sabendo da nossa situação e o nosso segredo se revele, pois
aí nos arrependeremos, mas o arrependimento de nada vai adiantar”. Porém, ela
não deu ouvidos a tais palavras nem se preocupou; pelo contrário, saiu para
pegar emprestada uma balança, pois por causa da pobreza e penúria da sua
condição ela não possuía nenhuma; foi até a cunhada, a mulher de Qåsim, e lhe
pediu uma balança. A cunhada respondeu: “Com muito gosto e honra”, e foi
buscá-la pensando: “A esposa de ¢Al∑ Båbå é pobre e não tem por hábito pesar
nada. Que grãos será que ela tem hoje para ter de pesar?”. Querendo investigar
aquilo e conhecer a verdade, ela colocou um pouco de cera no fundo da balança
a fim de que alguns dos grãos pesados grudassem nela e lhe entregou a balança,
que a esposa de ¢Al∑ Båbå pegou, agradecendo à cunhada pelo favor e
retornando a toda pressa para casa, onde ajeitou as coisas e já se pôs a pesar o
ouro, do qual verificou haver dez medidas. Muito contente com aquilo, informou
ao marido, que nesse ínterim escavara um grande buraco onde depositou o ouro,
enterrando-o em seguida, enquanto a mulher ia devolver a balança à cunhada.
Foi isso que sucedeu ao casal.
Quanto à esposa de Qåsim, ela se pôs a examinar a balança tão logo a esposa
de ¢Al∑ Båbå foi embora, e, encontrando um dinar que se colara à cera,
estranhou aquilo, pois sabia da pobreza de ¢Al∑ Båbå. Ficou perplexa por algum
tempo, mas depois, tendo se certificado de que a coisa pesada na balança era
ouro legítimo, disse: “¢Al∑ Båbå finge pobreza mas calcula o seu ouro com
balança! De onde lhe proveio tamanha felicidade? Como ganhou esse dinheiro
abundante?”. Com o coração invadido e abrasado pela inveja, no pior dos
estados, ficou à espera do marido, que tinha o hábito de ir diariamente para a
loja, onde permanecia até o anoitecer, ocupado em comprar e vender, em dar e
tomar, mas naquele dia a mulher achou que ele se tardava demais, e isso devido
à intensa preocupação que a atingira, pois a inveja a estava matando. Quando
anoiteceu e a noite avançou, Qåsim fechou a loja e se dirigiu para casa, onde ao
entrar viu a sua esposa sentada, emburrada, deprimida, os olhos chorosos e o
coração entristecido. Como a amava muito, ele perguntou: “O que atingiu você,
alento dos meus olhos, delícia do meu coração? Qual o motivo dessa tristeza e
desse choro?”. Ela respondeu: “Você não é senão um homem de precária
artimanha e parcos brios! Quem dera eu tivesse me casado com o seu irmão, pois
ele, conquanto afete pobreza, exiba carência e alegue humildade, possui tanto
dinheiro que não pode ser avaliado senão por Deus, e não pode ser calculado
senão por meio de uma balança. Mas você, que apregoa boa condição e
felicidade, que se orgulha da riqueza, não é senão verdadeiramente pobre
comparado ao seu irmão, pois você conta os seus dinares por unidade,
resignando-se com o pouco e deixando o muito para ele!”. Em seguida, contou-
lhe o sucedido entre ela e a mulher de ¢Al∑ Båbå, e como esta lhe pedira
emprestada a balança, e como ela colocara no seu fundo um pouco de cera, e
como a moeda de ouro ficara grudada na balança. Ao ouvir as palavras da esposa
e ver o dinar que se grudara no fundo da balança, Qåsim teve certeza da sorte do
seu irmão, mas não ficou contente com isso, tendo isso sim o coração invadido
pela inveja, e lhe desejou todo mal, pois era invejoso, pusilânime, canalha e
avarento, e atravessou aquela noite, juntamente com a esposa, na mais terrível e
intensa aflição, agitação e preocupação, sem que nenhum dos dois conseguisse
abaixar as pestanas, nem pregar o olho, nem cochilar, nem dormir, ambos
passando a noite inteira, pelo contrário, tresnoitados e insones, até que Deus fez
amanhecer, e a sua luz iluminou e brilhou. Após a prece matinal, Qåsim foi até o
irmão e entrou-lhe em casa de supetão, encontrando-o distraído; ao vê-lo, ¢Al∑
Båbå lhe deu boas-vindas e o recebeu da melhor maneira, demonstrando alegria,
rosto sorridente, e acomodando-o no ponto mais elevado do recinto. Ao se ver
acomodado, Qåsim perguntou: “Por que, meu irmão, você finge pobreza e
carência quando tem nas mãos tanto dinheiro que nem o fogo pode queimar?
Qual é o motivo dessa avareza, dessa vida mesquinha a despeito da sua larga
riqueza e capacidade de gastar muito? Qual é a utilidade do dinheiro se a pessoa
dele não se beneficia? Porventura você ignora que a avareza se conta entre os
defeitos e as baixezas, sendo considerada uma das naturezas miseráveis e vis?”.
O irmão respondeu: “Quem dera eu estivesse nessa situação que você está
dizendo! Sou pobre, mal me mantenho e o único cabedal de que disponho são os
meus jumentos e o meu machado. Estou estranhando essas suas palavras, cujo
motivo desconheço e não compreendo de modo algum”. Qåsim disse: “Sua
astúcia e suas mentiras agora já não têm utilidade, e você não conseguirá me
enganar, porque a sua condição já transpareceu e se divulgou o que você
ocultava da sua situação”, e, mostrando o dinar que se grudara na cera,
continuou: “Foi isso que encontramos na balança por nós emprestada, e não fora
o seu muito dinheiro vocês dela não teriam necessidade, nem mediriam o ouro
com balança!”. Nesse momento, ¢Al∑ Båbå percebeu que o motivo da revelação
do seu segredo e o descobrimento da sua situação era a falta de inteligência da
esposa, que quis pesar o ouro, e que ele se equivocara quando se dobrara àquilo.
Porém, qual cavaleiro não tropeça, e qual espada não perde o corte?
Compreendendo que não poderia juntar o que se lhe escapara senão revelando o
segredo, e que o certo seria não ocultar mas sim revelar o seu caso ao irmão, e
que de qualquer modo — como o dinheiro era tanto, superando os cálculos mais
fantásticos e qualquer suposição, que a sua parte não se reduziria se o dividisse
com o irmão e se associasse a ele, e que eles não poderiam dilapidar tal dinheiro
mesmo se vivessem cem anos, dele gastando o seu sustento diário —, enfim, em
conformidade com essa opinião, ele informou o irmão sobre a história dos
ladrões e lhe narrou o sucedido entre ele e eles, e como entrara no esconderijo do
tesouro, dali transportando uma parte do dinheiro, todo metal precioso e todo
tecido que quisera; em seguida, disse: “Meu irmão, tudo quanto eu trouxe
pertencerá a ambos e dividiremos igualmente, e se você quiser mais que isso eu
lhe trarei, pois tenho comigo a chave do esconderijo, ali entrando e dali saindo
quando bem entendo, sem oposição nem obstáculo”. Qåsim disse: “Esse trato eu
não aceito. Meu desejo é que você me aponte onde fica o esconderijo e me
revele o segredo de como abri-lo, pois me fez ansiar por ele e quero vê-lo. Assim
como você entrou e dele levou o que bem entendeu, meu propósito é ir até lá, ver
o que contém e dele extrair o que me agradar. Se não concordar com a minha
pretensão, vou denunciá-lo ao delegado da cidade, revelar-lhe o seu caso, e então
você sofrerá da parte dele algo que não vai gostar”. Ao ouvir tais palavras, ¢Al∑
Båbå disse: “Por que motivo me ameaça com o delegado? Não estou divergindo
em nada, e vou ensinar o que você quiser saber. Minha posição se deve aos
ladrões, pois temo que lhe façam algum mal. Quanto à sua entrada no
esconderijo do tesouro, ela não me prejudica nem me beneficia. Apanhe de lá
tudo quanto lhe agradar, e por mais que se esforce no carregamento você não
conseguirá transportar tudo que se contém ali: o que vai deixar para trás será
muitíssimas vezes mais que aquilo que vai levar”. Em seguida, apontou-lhe o
caminho para a montanha e a localização do esconderijo, ensinou-lhe a frase “ó
sésamo, abra a sua porta” e disse: “Decore estas palavras muito bem e cuidado
para não esquecê-las, pois eu temo alguma perfídia contra você por parte dos
ladrões, e das consequências deste caso”.
Disse o narrador: Ao aprender o caminho até o esconderijo, ser informado da
maneira como chegar a ele e decorar as palavras necessárias, Qåsim se retirou da
presença do irmão, feliz, sem dar ouvidos à advertência nem se preocupar com
as suas palavras. Retornou para casa com o rosto aliviado, demonstrando alegria,
e contou à esposa o sucedido entre ele e ¢Al∑ Båbå, dizendo em seguida:
“Amanhã cedo, se Deus quiser, vou para a montanha e depois retorno para você
com mais dinheiro que o trazido pelo meu irmão, pois as suas críticas me
aborreceram e preocuparam. Meu propósito é fazer algo que me proporcione o
seu agrado”. E aprontou dez jumentas, colocando sobre cada uma duas caixas
vazias, bem como todos os apetrechos necessários e cordas, e dormiu planejando
dirigir-se até o esconderijo do tesouro e se apoderar do dinheiro, das riquezas
que contivesse, sem dar nenhuma parte ao irmão. Quando a madrugada raiou e o
amanhecer se anunciou, ele se levantou e arrumou as jumentas, conduzindo-as
diante de si em direção à montanha, e ao chegar orientou-se pelos sinais que o
irmão lhe descrevera para localizar a porta, não interrompendo a procura até
divisá-la num canto da montanha, entre ervas e plantas, e tão logo ele tomou a
iniciativa de dizer: “Ó sésamo, abra a sua porta”, eis que a porta se abriu diante
dele. Sumamente espantado com aquilo, entrou a toda pressa e velocidade no
esconderijo, cobiçando levar o dinheiro. Atravessada a soleira, a porta se fechou
às suas costas, conforme o hábito, e então ele passou pelo primeiro saguão, daí
indo para o segundo, o terceiro, e não parou de ir de um a outro até passar por
todos, quedando-se atônito com as coisas espantosas que viu e estupefato com os
objetos insólitos com que deparou: a sua razão quase saiu planando de alegria, e
ele ambicionou levar todo aquele dinheiro. Depois de vagar à direita e à
esquerda, e de remexer em todos aqueles dirhams e preciosidades por algum
tempo, resolveu ir embora: apanhou um saco de ouro, colocou-o no ombro e
rumou para a porta, onde fez menção de pronunciar as palavras necessárias para
abri-la, ou seja, dizer “ó sésamo, abra a sua porta”, mas elas não lhe vieram à
língua, pois as esquecera inteiramente; pôs-se a tentar lembrá-las, mas não lhe
acudiam à mente nem se desenhavam na sua memória: estava, ao contrário,
absolutamente esquecido delas. Disse então: “Ó cevada, abra a sua porta”, mas
ela não se abriu; disse: “Ó trigo, abra a sua porta”, mas ela não se mexeu; disse:
“Ó grão-de-bico, abra a sua porta”, mas ela continuou fechada; e dessarte ele foi
citando um grão atrás do outro até lhes citar todos os nomes, mas a frase “ó
sésamo, abra a sua porta” continuou ausente da sua memória. Quando teve
certeza de que em nada se beneficiaria com a nomeação das diferentes espécies
de grão, atirou o ouro das costas e começou a tentar lembrar qual era o grão cujo
nome o irmão o orientara a dizer, mas não lhe ocorria de jeito nenhum. Sua
preocupação durou tanto tempo que ele se exauriu, tudo isso sem que o nome se
desenhasse na sua memória; começou então a se lamuriar e lamentar,
arrependido do que fizera, arrependimento este que agora de nada lhe valia;
disse: “Quem dera eu tivesse me resignado com a oferta do meu irmão e
renunciado à cobiça que agora será a causa da minha aniquilação”, e começou a
se estapear no rosto, a arrancar a barba, a rasgar a roupa, a derramar terra sobre a
cabeça e a chorar lágrimas copiosas, ora gritando e gemendo com a voz mais
alta, ora chorando calado e deprimido. As horas se prolongaram e ele naquela
situação, o tempo se multiplicou, cada minuto que passava para ele constituía um
século, e quanto mais a sua estada no esconderijo se prolongava, mais e mais se
ampliava o seu medo e pavor, até que, perdida toda esperança de salvação, ele
disse: “Estou irremediavelmente aniquilado, pois não há como me safar desta
prisão estreita”. Isso foi sucedido com Qåsim.
Quanto aos ladrões, eles cruzaram com uma caravana na qual havia
mercadores com mercadorias e a assaltaram, roubando vastos cabedais, após o
que fizeram tenção de retornar ao esconderijo para ali depositar o saque,
conforme se tornara o seu hábito. Ao se aproximarem do esconderijo, avistaram
as jumentas ali paradas com as caixas, ficando então escabreados e cheios de
suspeitas com aquilo, e como se fossem um único homem arremeteram contra os
animais, que se dispersaram e desapareceram pela montanha. Sem lhes prestar
mais atenção, os ladrões pararam os cavalos, apearam-se, desembainharam as
espadas em alerta contra os donos das jumentas, na ilusão de que fossem muitos
e, não vislumbrando ninguém fora do esconderijo, aproximaram-se da porta.
Qåsim, tendo ouvido o tropel dos cavalos e a voz dos homens, atentou e
constatou tratar-se dos ladrões a respeito dos quais lhe falara o irmão. Na
esperança de safar-se e no afã de se escafeder, escondeu-se atrás da porta, já
pronto para fugir. O líder dos ladrões deu um passo adiante e disse: “Ó sésamo,
abra a sua porta”, e eis que a porta se abriu; nesse instante, Qåsim correu,
fugindo da aniquilação e almejando a salvação, e durante a corrida tropeçou no
líder, prostrando-o ao solo e continuando a correr entre os ladrões; escapou do
primeiro, do segundo, do terceiro, mas eram quarenta homens e não pôde passar
por todos, sendo alcançado por um deles, que o golpeou no peito e fez a seta sair
brilhando pelas suas costas, e ali mesmo Qåsim se finou. É essa a punição de
quem é dominado pela cobiça e tem a intenção de prejudicar e atraiçoar os seus
irmãos. Em seguida, os ladrões entraram no esconderijo e, notando o que dele se
roubara, foram tomados de grande cólera e tiveram quase certeza de que o
assassinado era o seu inimigo, e que fora ele quem levara o dinheiro faltante,
ficando, porém, perplexos quanto à sua chegada àquele local ignoto, afastado e
escondido das vistas, e ao seu conhecimento do segredo da abertura da porta,
que além deles próprios ninguém conhecia, com exceção de Deus exalçado e
altíssimo; quando o viram prostrado, morto e sem movimento, alegraram-se e
tranquilizaram-se, na suposição de que nenhuma outra pessoa voltaria a entrar no
esconderijo. Disseram: “Louvores a Deus, que nos deu descanso desse maldito”.
E, para que eventuais terceiros desanimassem e se assustassem, esquartejaram-
lhe o cadáver e o penduraram atrás da porta, a fim de que se constituísse numa
lição para todo aquele que se atrevesse a adentrar o local, após o que saíram e a
porta se fechou tal como antes. Eles montaram nos cavalos e tomaram o seu
rumo. Isso foi o sucedido com eles.
Quanto à mulher de Qåsim, ela passou o dia inteiro a aguardar, ansiosa pela
satisfação da sua necessidade, esperançosa de receber o que a seduzia neste
mundo e já pronta para acariciar as moedas de ouro e prata. Como já estivesse
para anoitecer e o marido tardasse, preocupada, ela foi até a casa de ¢Al∑ Båbå,
informando-o que o marido fora pela manhã à montanha mas até aquele
momento não voltara, e que ela temia lhe tivesse acontecido algum imprevisto
ou sobrevindo alguma desgraça. ¢Al∑ Båbå a tranquilizou dizendo: “Não se
preocupe, pois ele está ausente até agora devido a um único motivo: presumo
que esteja evitando entrar na cidade pela manhã por medo de[653] ser
descoberto, não tencionando regressar senão durante a noite, a fim de manter o
caso em segredo. Daqui a pouco você vai vê-lo retornando com o dinheiro.
Quanto a mim, quando ele me informou que pretendia ir à montanha eu resolvi
não subir, ao contrário do que costumo fazer, a fim de que a minha presença não
o incomodasse e ele supusesse ser o meu objetivo espioná-lo. Deus lhe facilite o
que for difícil e faça tudo acabar bem. Agora volte para casa e nada tema. Se
Deus quiser, não vai ocorrer senão o bem e você o verá retornando inteiro e com
dinheiro”. Então a esposa de Qåsim retornou para casa, ainda intranquila, e se
sentou deprimida, com mil pesares a lhe oprimir o coração por causa da ausência
do marido, pondo-se a fazer os mais negros cálculos e as piores suposições, até
que o sol se pôs, o tempo escureceu e a noite tomou conta de tudo; como não o
viu retornando, não quis se deitar e refugou o sono, à espera do marido. Passados
dois terços da noite sem que o visse retornando, desesperou-se da sua vinda e
começou a chorar e a gemer, evitando porém gritar e berrar, como fazem as
mulheres, por temor de que os vizinhos percebessem e lhe indagassem o motivo
do choro. Passou aquela noite em gemidos, preocupações, maus
pressentimentos, aflições, terror e depressão, a pior das condições, e, mal se deu
conta do amanhecer, célere se dirigiu para a casa de ¢Al∑ Båbå, a quem
informou o não retorno do irmão, falando triste e chorosa, lágrimas copiosas,
uma situação indescritível. Ao lhe ouvir as palavras, ¢Al∑ Båbå disse: “Não
existe poderio nem força senão em Deus altíssimo e magnífico. Até o presente
momento eu estava em dúvida sobre os motivos dessa demora, mas agora irei
pessoalmente descobrir alguma notícia para deixá-la a par do seu destino. Haja
Deus concedido o bem e nada de mal ou nocivo tenha ocorrido”, e
imediatamente preparou os burros,[654] apanhou o machado e tomou o rumo da
montanha, conforme o seu proceder diário. Quando se aproximou da porta do
esconderijo, sem encontrar os jumentos e notando vestígios de sangue, perdeu a
esperança de rever o irmão e teve certeza da sua morte. Avançou para a porta,
aterrorizado e pressentindo o sucedido, e disse: “Ó sésamo, abra a sua porta”.
Tão logo ele disse isso a porta se abriu e ele encontrou o cadáver de Qåsim
retalhado em quatro partes e pendurado atrás da porta; totalmente arrepiado com
aquela visão, dentes batendo e lábios contraídos, ele quase desmaiou de pavor e
medo. Presa de forte tristeza e enorme aflição pelo irmão, ele disse: “Não existe
poderio nem força senão em Deus altíssimo e magnífico. A Deus pertencemos e
a ele retornaremos. Do escrito não há como fugir. Aquilo que foi destinado ao
homem pelo oculto ele imperiosamente o receberá”. Em seguida, vendo que
naquele momento o choro e a tristeza utilidade não teriam nem retorno dariam, e
que o mais importante e necessário era imaginar uma artimanha e empregar a
opinião correta e a disposição certeira, ele se lembrou que amortalhar e enterrar
o irmão eram obrigação e imposição da religião muçulmana. Então, recolhendo
as quatro partes do cadáver retalhado, colocou-as sobre os burros, cobriu-as com
alguns tecidos e acrescentou aquilo que bem lhe aprouve de tesouros do
esconderijo, tudo quanto fosse de peso baixo e valor alto, completando a carga
dos burros com madeira; esperou pacientemente a noite cair e quando escureceu
se dirigiu à cidade, entrando numa situação pior que a da mãe que perdeu o filho,
sem saber como arranjar as coisas relativamente ao morto nem como proceder.
Submerso num mar de pensamentos, continuou a conduzir os burros até parar
diante da casa do irmão, onde bateu à porta, que lhe foi aberta por uma escrava
negra abissínia, a qual ali vivia a serviço deles, e era a mais bela de rosto e a
mais elegante de talhe, pequena de idade, rosto agradável, olhos bem
desenhados, de características perfeitas e, melhor que tudo, tinha correto parecer,
inteligência penetrante, altos desígnios e brio de sobra nos momentos de
necessidade, superando, na elaboração de artimanhas, o homem experiente e
habilidoso; os serviços da casa eram responsabilidade sua, e a satisfação das
necessidades estava em suas mãos. Assim, quando ¢Al∑ Båbå entrou no pátio,
disse-lhe: “Eis a sua hora, Murjåna! Estamos precisando das suas providências
numa questão grave que eu vou lhe revelar diante da sua patroa. Venha comigo
para ouvir o que direi a ela”. E, largando os burros no pátio, subiu até a cunhada,
com Murjåna atrás, perplexa e desconfiada do que ouvira. Ao avistar o cunhado,
a esposa de Qåsim perguntou: “Que notícias traz, ¢Al∑ Båbå? São boas ou
ruins? Encontrou algum vestígio dele, ou descobriu alguma notícia? Dê-me logo
a tranquilidade, e apague o fogo do meu coração!”. Como ele se demorasse em
responder, ela percebeu a verdade e se pôs a gritar e a se lamuriar. Ele disse:
“Agora contenha a gritaria e não eleve a voz. Temo que os vizinhos ouçam a
nosso respeito e você se torne causa da aniquilação de nós todos”, e lhe relatou o
sucedido, o que lhe ocorrera e como encontrara o irmão assassinado, com o
corpo em quatro partes retalhado, e dentro do esconderijo, atrás da porta,
pendurado; depois disse: “Saiba — e disso esteja certa — que o nosso dinheiro,
a nossa vida e os nossos parentes são auspiciosas dádivas de Deus, empréstimos
postos sob a nossa conta, e por isso ele nos impôs a gratidão quando dá, e a
resignação quando tira; o desespero não vai ressuscitar o morto nem evitar a
tristeza; você deve se resignar, e a consequência da resignação não é senão o
bem e a integridade; a entrega aos decretos de Deus é melhor que o desespero e a
oposição; agora, o parecer acertado e a correção é que eu seja seu marido e você
se torne da minha família; casar-me-ei com você e isso não será difícil para a
minha mulher, que é ajuizada e casta de alma e corpo, piedosa e temente a Deus;
seremos todos uma só família e, seja Deus louvado, temos dinheiro e benesses
que nos dispensam de trabalhar, nos exaurir e labutar pela sobrevivência. Isso
nos impõe a gratidão ao doador, pelo que nos deu, e o seu elogio, pelo que nos
carreou”. As palavras de ¢Al∑ Båbå, acalmaram um pouco do desespero da
esposa de Qåsim, e a sua imensa tristeza; ela parou de chorar, enxugou as
lágrimas e disse: “Serei a sua escrava obediente, a sua criada pressurosa, e em
tudo quanto você considerar bom eu lhe obedecerei. Contudo, qual será a
artimanha no tocante a este assassinado?”. ¢Al∑ Båbå respondeu: “Entregue a
questão do assassinado à sua escrava Murjåna, cuja vasta inteligência, excelente
entendimento, correção de parecer e capacidade de entabular artimanhas você já
conhece”, e, deixando-a, tomou o seu rumo. Quanto à escrava Murjåna, ao ouvir
tais palavras e ver o seu patrão morto e retalhado em quatro partes, ela
compreendeu exatamente o motivo daquilo e então acalmou a patroa dizendo:
“Não se preocupe e pode deixar tudo comigo no que se refere a ele, pois eu vou
tomar providências que nos trarão tranquilidade e impedirão a revelação do
nosso segredo”. Dito isso, saiu e se dirigiu a uma botica naquela rua, cujo
proprietário era um velho entrado em anos, célebre por seu conhecimento acerca
de todos os ramos da medicina e da sabedoria e dotado de habilidade na ciência
da preparação de remédios, drogas e demais substâncias medicinais. Murjåna
pediu-lhe um preparado que não se receitava senão para doenças graves, e ele
perguntou: “Quem é que precisa deste preparado em sua casa?”. Ela respondeu:
“Meu patrão Qåsim. Ele contraiu uma forte doença que o prostrou e agora está
quase morto”. O boticário se levantou e lhe entregou o preparado dizendo:
“Quiçá Deus coloque a cura nele”. Ela o recebeu das suas mãos, pagou os
dirhams que possuía e retornou para casa; pela manhã cedo, retornou ao
boticário, pedindo-lhe desta vez um remédio que não se ministrava senão em
caso de desespero. Ele perguntou: “O preparado de ontem não surtiu efeito?”.
Ela respondeu: “Não, por Deus! O meu patrão se encontra no último alento,
lutando para se manter vivo. Minha patroa está chorando e gemendo!”. Então o
boticário lhe entregou o remédio, que ela pegou, pagou o preço e se retirou; em
seguida, passou na casa de ¢Al∑ Båbå, a quem informou a artimanha que havia
preparado, recomendando-lhe que entrasse várias vezes na casa do irmão e
afetasse tristeza e depressão, e ele assim procedeu. Quando os moradores do
bairro o viram a entrar e a sair da casa do irmão com sinais de tristeza na face,
indagaram o motivo, e ele os informou da doença do irmão, que se agravara.
Aquilo se espalhou pela cidade e as pessoas começaram a discutir a respeito. No
dia seguinte, Murjåna saiu antes do alvorecer, atravessou as ruas da cidade até
chegar a um sapateiro chamado xeique Mu߆afà, já entrado em anos, obeso,
baixinho, barba comprida e bigodes, que abria o seu quiosque bem cedo, sendo
na verdade o primeiro a fazê-lo no mercado, costume esse que o tornara por
todos conhecido. Então Murjåna foi até ele, cumprimentou-o com cortesia e
polidez e lhe colocou uma moeda de ouro na mão. Ao ver-lhe a cor, o xeique
Mu߆afà ficou longo tempo a contemplá-la em sua palma e disse: “Esse é um
início de dia abençoado”, pois compreendera que ela tinha um interesse qualquer
nele, e continuou: “Explique-me quais são os seus objetivos, senhora das
escravas, e eu os satisfarei para você”. Ela disse: “Ó xeique, pegue linha e
agulha, lave as mãos, calce as sandálias e deixe-me vendar-lhe os olhos; depois
levante-se e venha comigo para resolver um assunto simples mediante o qual
você ganhará pagamento [neste mundo] e recompensa na outra vida, sem que
dele lhe advenha o menor prejuízo”. Ele respondeu: “Se você me procura para
algo aceito por Deus e por seu enviado, então sobre a cabeça e o olho, e não
divergirei. Porém, se você me procura para algo imoral ou criminoso, ou para
impiedades e pecados, eu não lhe obedecerei, e você deverá procurar outro para
resolver o problema”. Ela respondeu: “Não, por Deus, xeique Mu߆afà! Não se
trata senão de algo permitido e lícito; nada tema”, e lhe colocou na mão outra
moeda de ouro. Ao vê-la, ele já não pôde discutir nem retroceder, pondo-se de pé
e dizendo: “Estou a seu serviço e farei o que você determinar”. Fechou a porta
da sapataria, pegou linha, agulha e demais apetrechos de costura necessários.
Murjåna, que já viera com uma venda, rapidamente a sacou do bolso e lhe
vendou os olhos conforme o trato, para evitar que ele reconhecesse o local aonde
seria levado. Ela o conduziu pela mão, e ele caminhou atrás dela por ruas e
ruelas como se fora cego, sem distinguir para onde ia nem atinar com o
propósito daquilo; não pararam de caminhar juntos, com a escrava ora entrando
à direita, ora dobrando à esquerda, e se demorando no caminho a fim de que ele
se confundisse e não atinasse para onde era levado; não cessou de conduzi-lo
dessa maneira até se deter diante da porta do falecido Qåsim, na qual deu uma
leve batida, e ela foi imediatamente aberta. Murjåna entrou com o xeique
Mu߆afà, subindo e fazendo-o parar no local onde estava o seu patrão, quando
então lhe retirou a venda dos olhos. Quanto ao xeique Mu߆afà, assim que os
seus olhos se desvelaram, ele se viu num local desconhecido, com o corpo de um
assassinado à sua frente, ficando tão apavorado que os seus membros
estremeceram. Murjåna lhe disse: “Não tenha medo, xeique, pois você não corre
perigo. Só o que se lhe pede é uma costura bem costurada das partes deste
homem assassinado, juntando-as para que o corpo dele volte a constituir uma
única peça”, e lhe entregou uma terceira moeda de ouro, que o xeique Mu߆afà
recolheu e enfiou na algibeira sob a axila pensando: “Este é o momento de
praticar o arrojo e adotar o parecer acertado. Estou num lugar desconhecido,
entre gentes cuja pretensão ignoro; se acaso eu desobedecer, será absolutamente
imperioso que me prejudiquem; não me resta senão me curvar ao que pretendem,
e de qualquer maneira sou inocente do sangue desse homem assassinado, e o
justiçamento do assassino pertence a Deus glorioso e altíssimo; não existe crime
em costurar-lhe o corpo, e isso não fará recair pecado algum sobre mim, nem me
imporá punições”. Então se sentou e começou a costurar as partes do morto,
reunindo-as até que se tornaram um corpo inteiro. Concluído o trabalho e
realizado o que dele se pretendia, Murjåna tornou a lhe vendar os olhos, pegou-o
pela mão e o conduziu até a saída da casa, vagando então de rua em rua, de
desvio em desvio, guiando-o até a sapataria, antes que as pessoas começassem a
sair de casa, e assim ninguém os notou. Quando chegaram, ela lhe retirou a
venda dos olhos e disse: “Oculte este assunto e acautele-se de falar dele ou de
conversar sobre o que viu; não seja curioso com aquilo que não é da sua conta,
pois nesse caso talvez você incida no que não lhe agrade”. Em seguida, deu-lhe
um quarto dinar, deixou-o e partiu; ao chegar à sua casa, preparou água quente,
sabão, e se pôs a lavar o corpo do patrão até deixá-lo inteiramente limpo do
sangue; vestiu-lhe as roupas, deitou-o na cama e quando terminou tudo mandou
chamar ¢Al∑ Båbå e a esposa, informando-os do que fizera e dizendo-lhes:
“Anunciem agora a morte do patrão Qåsim e informem as pessoas a respeito.
Nesse momento as mulheres se puseram a chorar, a soluçar, a gemer, a se
lamentar, gritando e estapeando os próprios rostos, e logo os vizinhos ouviram e
os conhecidos foram chegando para dar pêsames; o choro aumentou, as lamúrias
se elevaram, o berreiro se deflagrou e os gemidos ficaram mais altos,
espalhando-se pela cidade a notícia da morte de Qåsim: os amigos começaram a
bendizê-lo e os inimigos, a maldizê-lo, e decorrido algum tempo compareceram
os lavadores a fim de lavar-lhe o corpo, em conformidade com o hábito, mas
Murjåna desceu e os informou que ele já fora lavado, enfaixado e amortalhado,
pagando-lhes uma remuneração maior que a habitual, e então eles se retiraram,
satisfeitos e sem questionar o motivo daquilo nem perguntar sobre o que não lhes
concernia. Depois disso trouxeram o esquife, onde colocaram o corpo,
conduzindo-o então para o cemitério, com as pessoas acompanhando o funeral.
Murjåna e as carpideiras caminhavam atrás de todos chorando e se carpindo até
o cemitério, onde escavaram uma cova e o enterraram, que Deus dele tenha
misericórdia. Logo as pessoas começaram a retornar, espalhando-se e tomando o
seu rumo. Foi dessa maneira que se ocultou o assassinato de Qåsim, sem que
ninguém se desse conta da verdade, com as pessoas supondo que ele morrera
repentinamente. Esgotado o tempo de luto, ¢Al∑ Båbå se casou com a cunhada,
escrevendo o contrato de casamento diante do juiz, e então coabitaram.[655]
Todo mundo considerou boa tal ação, atribuindo-a ao seu imensurável amor pelo
irmão. ¢Al∑ Båbå mudou as suas coisas, inclusive o dinheiro que trouxera do
esconderijo, para a casa da nova esposa, indo lá morar junto com a primeira
esposa. Em seguida, pôs-se a pensar sobre a loja do falecido irmão. ¢Al∑ Båbå
fora agraciado com um filho que completara doze anos e que servia a um
mercador com o qual aprendera o ofício do comércio, no qual se tornou muito
hábil; assim, quando o pai precisou de alguém para tocar a loja, tirou o filho do
serviço daquele mercador e o empregou na loja do falecido irmão, para ali
vender e comprar, colocando em suas mãos todas as mercadorias e objetos que o
tio deixara e prometendo-lhe que o casaria se acaso ele trilhasse a trilha do bem
e do êxito e seguisse o caminho da justiça e dos bons costumes. Isso foi o que
sucedeu a eles.
Quanto aos ladrões, tendo regressado ao esconderijo após um curto período,
entraram e, não encontrando o cadáver de Qåsim, deduziram que o assunto era
do conhecimento de mais de um inimigo, que o morto tinha companheiros e que
o segredo deles se espalhara entre mais gente. Considerando aquilo uma
enormidade, ficaram muitíssimo preocupados, e ao inspecionarem o que fora
levado do esconderijo verificaram que se tratava de muita coisa. Violentamente
enfurecidos, disse-lhes o líder: “Ó heróis e cavaleiros da guerra e do combate, é
este o tempo da vingança e de lavar a honra! Imaginávamos que o descobridor
do tesouro fosse um único homem, mas o fato é que se trata de pessoas cujo
número desconhecemos, e tampouco sabemos onde moram. Arriscamos a vida e
nos envolvemos em situações perigosas para ajuntar dinheiro, mas outros dele se
beneficiam sem esforço nem fadiga: eis aí uma coisa terrível que não podemos
suportar, sendo absolutamente imperioso prepararmos uma artimanha que nos
faça chegar ao inimigo, e se o encontrarmos vou me vingar dele da maneira mais
drástica, e matá-lo com esta espada, mesmo que isso implique a perda da minha
vida; é este o momento de arranjar e mostrar brio, coragem e destreza.
Espalhem-se, entrem nas vilas e aldeias, procurem pelos países e cidades,
espionem as notícias, perguntem se alguém tem informações sobre algum pobre
que enriqueceu, ou algum assassinado que se enterrou, e quiçá vocês consigam
localizar o nosso amigo e Deus os ponha cara a cara com ele. Precisamos, em
especial, de algum homem dotado de artimanha e astúcia, e que possua
hombridade, o qual deverá investigar sozinho nesta cidade, pois dela provém,
com certeza e sem sombra de dúvida, o nosso inimigo. Esse nosso companheiro
deverá se disfarçar de mercador, entrar na cidade com sutileza e farejar-lhe as
notícias, indagando sobre a situação, sobre as ocorrências, sobre quem morreu
ou foi morto ultimamente, e sobre a sua família, a sua casa, e como isso sucedeu;
talvez assim ele atinja o objetivo, pois o caso de alguém assassinado não se
oculta, sendo imperioso que a sua notícia se espalhe pela cidade, e que tanto
grandes como pequenos tenham conhecimento da história; se acaso encontrar o
nosso inimigo ou nos der a sua localização, ele nos terá feito o mais eminente
obséquio; eu lhe promoverei a posição e elevarei a sua condição, fazendo-o meu
sucessor. Porém, se falhar no que se lhe pede, descumprir o compromisso e
desmentir as esperanças nele depositadas, saberemos que se trata de um estúpido
ignorante, débil de parecer, curto de artimanha e incapaz de quaisquer
providências, e então o recompensaremos por sua má ação e pela nulidade do
seu esforço matando-o da maneira mais brutal, pois não teremos necessidade de
alguém sem brio, nem nos terá utilidade a manutenção de alguém sem
clarividência; não será um hábil ladrão senão o homem perspicaz e dotado de
inteligência em todos os gêneros de artimanha. O que me dizem disso, meus
campeões? Quem dentre vocês tomará a dianteira neste assunto difícil e
devastador?”. Ouvindo o seu discurso e a sua fala, os ladrões consideraram-lhe
correto o parecer e aceitaram as condições que ele explicou, jurando em
conformidade com elas e se comprometendo a cumpri-las. Então, entre eles se
levantou um sujeito alto e corpulento e se ofereceu para trilhar aquele caminho
difícil e penoso, aceitando as condições supramencionadas, com as quais todos
haviam concordado; beijaram-lhe os pés, dignificaram-no sumamente e lhe
elogiaram a coragem e a iniciativa, avaliando como boa a sua decisão e oferta,
agradecendo-lhe pelo brio e ousadia, e admirando-lhe a força e a intrepidez. O
líder lhe recomendou reflexão, arrojo, astúcia, trapaça e artimanhas ocultas,
ensinando-o como entrar na cidade vestido de mercador, na aparência atrás de
comércio, mas no interior tencionando espionar. Após concluir as
recomendações, deixou-os, retirou-se, e os ladrões se dispersaram. Quanto ao
ladrão que se ofereceu em sacrifício pelos irmãos, ele vestiu trajes de mercador,
adotou-lhes as roupas e dormiu planejando se dirigir à cidade. Quando a noite se
findou e a aurora se anunciou, ele saiu, com a bênção de Deus altíssimo, rumo
aos portões da cidade, e através deles adentrou as suas ruas e parques, cruzando-
lhe os mercados e as ruas enquanto a maioria dos moradores se mantinha
mergulhada no sono mais doce. Continuou avançando até se aproximar do
mercado onde ficava o xeique Mu߆afà, o sapateiro, que abrira o quiosque e
estava sentado costurando alguns sapatos, pois, segundo já mencionamos, ele ia
bem cedinho ao mercado e tinha por hábito abrir antes dos outros moradores do
bairro. O espião foi até ele, cumprimentou-o da melhor maneira e exagerou na
saudação e dignificação; disse: “Bendiga-o Deus em sua tarefa, e lhe aumente a
respeitabilidade. Dentre todos os membros do mercado, você é o primeiro a abrir
o quiosque”. O xeique Mu߆afà lhe respondeu: “Meu filho, o esforço em busca
do sustento é melhor que o sono, e tal é o meu costume de todo dia”. O ladrão
lhe disse: “Contudo, meu xeique, estou cá admirado: como é que você consegue
costurar a esta hora, antes de nascer o sol, malgrado a vista fraca, a idade
avançada e a luz parca?”. Ao ouvir aquelas palavras, o xeique Mu߆afà voltou-
se para ele irritado, olhou-o de soslaio e disse: “Suponho que você seja
forasteiro, pois se fosse daqui não pronunciaria tais palavras. Sou conhecido
entre ricos e pobres pela agudez da minha vista, e famoso entre grandes e
pequenos pela qualidade do meu conhecimento do ofício da costura, a tal ponto
que ontem umas pessoas me levaram para costurar um morto num local de luz
bem fraca, e eu o costurei bem costurado. Não fosse a agudez da minha vista,
não teria conseguido cumprir essa tarefa”. Nem bem ouviu tais palavras, o ladrão
augurou que alcançaria o seu propósito, e percebeu que a providência divina o
guiara para topar com a sua busca. Disse, afetando espanto: “Você se confundiu,
meu xeique; presumo que você não tenha costurado senão uma mortalha, pois eu
jamais ouvi que um morto se costurasse”. O xeique respondeu: “Não estou
dizendo senão a verdade, e o que pronunciei é a realidade. Contudo, parece-me
que o seu objetivo é bisbilhotar segredos alheios. Se for isso o que procura,
suma-se daqui e vá tentar suas artimanhas com outrem. Quem sabe você não
encontra algum curioso fofoqueiro. Quanto a mim, meu nome é mudo, e não
revelo o que se deve ocultar nem lhe falarei mais nada sobre este assunto”.
Diante disso — ampliada a sua certeza, e certo de que o morto era o homem que
eles haviam assassinado no esconderijo —, o ladrão disse ao xeique Mu߆afà:
“Xeique, não tenho necessidade de conhecer os seus segredos, e o fato de você
os silenciar é bom, pois se diz que guardar segredos é uma das características
dos piedosos. De você eu quero tão somente que me aponte a casa desse morto,
pois talvez ele seja algum parente meu, ou algum conhecido, e nesse caso eu
devo dar pêsames à família; estou há muito tempo distante desta cidade, e ignoro
o que nela sucedeu durante o período da minha ausência”. Em seguida, enfiou a
mão no bolso e tirou uma moeda de ouro, depositando-a na mão do xeique
Mu߆afà, que se recusou a recebê-la dizendo ao ladrão: “Você me pergunta
sobre algo que eu não posso responder, pois só me levaram à casa do morto após
colocarem uma venda sobre os meus olhos; portanto, eu desconheço o caminho
conducente à casa”. O ladrão disse: “Esse dinar é um presente meu, quer você
satisfaça a minha necessidade, quer não. Leve-o, que Deus o abençoe para você,
pois eu não exijo devolução. Contudo, se você refletisse um pouco, seria
possível, de olhos fechados, localizar o caminho percorrido?”. O xeique
Mu߆afà respondeu: “Isso não me será possível senão se você me amarrar uma
venda nos olhos, tal como antes fizeram comigo, pois eu me recordo como me
conduziram pela mão, como me fizeram caminhar, como entraram em desvios
comigo e como me fizeram parar. Só assim eu talvez me oriente para chegar ao
local procurado e apontá-lo para você”. Muito contente com tais palavras e
prevendo bons augúrios, o ladrão deu ao xeique Mu߆afà outro dinar e lhe disse:
“Agiremos conforme você disse”, e então os dois se ergueram e ficaram em pé.
O xeique Mu߆afà fechou o quiosque, o ladrão apanhou uma venda, amarrou-a
sobre os seus olhos, pegou-o pela mão e caminhou com ele. O xeique Mu߆afà
passou então ora a entrar à direita, ora a dobrar à esquerda, ora a tomar a
dianteira, procedendo tal como a escrava Murjåna fizera com ele, até chegar a
uma rua na qual deu poucos passos, parando e dizendo ao ladrão: “Creio que foi
neste ponto que eu parei”. E o ladrão lhe retirou a venda dos olhos. Por algo já
predestinado, o sapateiro parara justamente diante da casa do desgraçado[656]
Qåsim. O ladrão perguntou: “Você conhece o dono desta casa?”. O xeique
respondeu: “Não, por Deus, pois esta rua é distante do meu quiosque e eu não
tenho relações com os moradores deste bairro”. O ladrão agradeceu, deu-lhe um
terceiro dinar e disse: “Vá com Deus altíssimo”, e então o xeique Mu߆afà
retornou para o quiosque feliz com o lucro de três dinares. O ladrão parou para
espreitar a casa e examiná-la; ao ver que a sua porta era semelhante às outras
portas do quarteirão, temeu confundir-se e fez nela um sinal com tinta
branca[657] a fim de se orientar, voltando em seguida para os seus camaradas na
montanha, feliz, animado e certo de que o assunto em função do qual fora
enviado já estava resolvido, e que não restava senão a vingança. Isso foi o
sucedido a ele.
Quanto à escrava Murjåna, ao acordar e fazer a prece matinal, conforme o seu
hábito diário, ela arrumou as suas coisas e saiu para providenciar a comida e a
bebida necessárias, e ao voltar do mercado viu na porta da casa um sinal branco
que ela examinou e estranhou, logo suspeitando daquilo e dizendo de si para si:
“É bem possível que isso seja brincadeira de crianças, ou um desenho feito por
algum garoto da vizinhança, mas o mais plausível é que esse sinal seja obra de
algum inimigo antigo ou algum miserável invejoso, para algo ruim pretendido ou
alguma intenção perversa escondida. A melhor decisão é confundi-lo e estragar-
lhe este agourento ardil”. E, pegando tinta branca, desenhou nas portas das casas
dos vizinhos sinais semelhantes ao feito pelo ladrão, reproduzindo-o em cerca de
dez portas do quarteirão e em seguida entrando na casa e ocultando o fato. Isso
foi o sucedido com ela.
Quanto ao ladrão, ao se encontrar com os seus camaradas ele demonstrou
alegria e lhes deu a boa nova da conquista da esperança deles, a chegada ao seu
objetivo e a aproximação da vingança contra o inimigo, contando-lhes a
coincidência de ter topado com o sapateiro que costurara o morto, e como ele o
orientara até a sua casa, e como desenhara em sua porta um sinal por medo de se
extraviar e se confundir. O líder lhe agradeceu, elogiou-lhe o brio, ficou
sumamente feliz com aquilo e disse aos ladrões: “Dispersem-se, vistam roupas
comuns, escondam as armas e dirijam-se à cidade, onde deverão entrar por
diferentes vias e reunir-se na grande mesquita. Quanto a mim e a este homem —
isto é, o espião —, nós procuraremos a casa do nosso inimigo, e quando o
encontrarmos e dele nos certificarmos, iremos à mesquita e lá vocês discutirão
sobre o que fazer e chegarão a um acordo sobre o mais acertado, seja um ataque
noturno à casa, seja outra coisa”. Quando ouviram esse discurso, os ladrões o
consideraram bom, e corretas as suas palavras, concordando com o seu objetivo;
dispersaram-se, vestiram roupas comuns, escondendo debaixo delas as espadas,
tal como ordenara o líder, entraram na cidade por vias diferentes, por medo de
que as pessoas os notassem, e se reuniram na grande mesquita, conforme o
combinado. Já o líder e o espião partiram rumo à rua do inimigo, e quando
chegaram o líder viu um sinal branco e indagou o companheiro se aquela era a
casa procurada; ele respondeu “sim”, mas, tendo o seu olhar caído sobre outra
casa em cuja porta ele também viu um sinal branco, o líder perguntou qual era a
casa pretendida, a primeira ou a segunda, e o ladrão espião foi incapaz de
responder. Avançando alguns passos, o líder avistou mais de dez casas com os
mesmos sinais e perguntou: “Você fez sinais em todas essas casas ou numa só
delas?”. Ele respondeu: “Não, só fiz numa”. O líder perguntou: “Como então
agora elas são dez ou mais casas?”. Ele respondeu: “Não sei o motivo disso”. O
líder perguntou: “Você consegue distinguir, dentre essas casas, a que você
marcou com a sua própria mão?”. Ele respondeu: “Não, porque essas casas todas
se parecem, as portas são do mesmo molde e a imagem dos sinais também é a
mesma”. Ao ouvir tais palavras, o líder concluiu que de nada adiantaria
permanecer naquele local, e que desta vez não haveria como consumar a
vingança, pois a sua esperança se desfizera. Retornou com o homem até a
mesquita e ordenou aos cavaleiros que retomassem o caminho da montanha,
orientando-os a se dispersarem pelas estradas tal como haviam agido na vinda.
Quando eles se viram reunidos na montanha, no local de hábito, o líder lhes
relatou o sucedido com o ladrão espião, que fora incapaz de distinguir a casa do
inimigo, e depois lhes perguntou: “Devemos executar a pena dele conforme as
condições e os acordos estabelecidos entre nós?”. Eles concordaram que sim. O
ladrão espião, que era corajoso e duro de coração, não hesitou nem se acovardou
ao ouvir tais palavras, mas sim deu um passo adiante, ânimo forte, tristeza
nenhuma, e disse: “Eu me tornei verdadeiramente merecedor da morte e da
punição devido à corrupção do meu parecer e à minha débil artimanha, pois fui
incapaz de lograr o que de mim se pedia. Depois disso, já não tenho vontade de
viver e a morte é melhor que a vida na infâmia”. Nesse momento, o líder puxou
a espada e lhe aplicou um golpe no pescoço, separando-lhe a cabeça do corpo, e
em seguida disse: “Homens de ataque e combate, quem dentre vocês possui
denodo e bravura, coração corajoso e cabeça forte para tomar a iniciativa nessa
tribulação dificultosa e terrível, nessa questão terrível e aniquiladora? Não se
apresente o incapaz nem me venha o fraco, pois não aceitarei senão o dotado de
opinião certeira, ímpeto poderoso, pensamento firme e acostumado a
artimanhas”. Em meio ao grupo se levantou um homem chamado A¬mad, o
colérico, de talhe alto, corpulento, terrível de ver, péssimo de ouvir, moreno de
cor, horrível de aspecto, com bigodes como os do gato caçador de ratos e barba
como a do bode no meio de cabras e ovelhas, e disse: “Ó gente exemplar, não
serve para esta missão senão a minha pessoa. Se Deus quiser eu lhes trarei
informações corretas e lhes mostrarei a casa do inimigo da maneira mais clara”.
O líder lhe disse: “Para lançar-se a essa tarefa, as condições serão as mesmas já
citadas; se acaso voltar fracassado, você não receberá de nós senão o corte do
pescoço, mas se voltar triunfante elevaremos a sua posição e dignidade,
ampliaremos o seu posto e glorificação e você receberá tudo de bom”. Então
A¬mad, o colérico, vestiu um traje de mercador, entrou na cidade antes que a
aurora despontasse e foi sem mais delongas até o bairro do xeique Mu߆afà, o
sapateiro, sobre o qual ficara sabendo por intermédio das informações do seu
companheiro. Encontrando-o sentado em seu quiosque, cumprimentou-o, sentou-
se ao seu lado, agradou-o com palavras e foi direcionando a conversa até chegar
ao assunto do morto, e então o xeique contou como o costurara. Quando A¬mad,
o colérico, lhe pediu que mostrasse a casa, ele se recusou e parou de falar, mas,
assim que estimulado com dinheiro, já não conseguiu divergir, pois o dinheiro é
uma flecha certeira e um intermediário irrecusável. O ladrão lhe vendou os olhos
e agiu tal como agira o seu colega supracitado, caminhando com ele até o bairro
do falecido Qåsim e se detendo diante da sua casa; depois de a ter localizado, o
ladrão retirou a venda dos olhos do xeique Mu߆afà, pagou-lhe a quantia
prometida e o deixou ir embora. Tendo sido guiado ao seu alvo, A¬mad, o
colérico, temeu perdê-lo e, para se prevenir, desenhou um pequeno sinal
vermelho num canto escondido da porta, na crença de que ninguém a veria, e em
seguida retornou aos seus companheiros, comunicando-lhes o que fizera,
contente, sem duvidar do sucesso e certo de que ninguém enxergaria o sinal, por
ser ele pequeno e estar escondido. Isso foi o sucedido com os ladrões.
Quanto à escrava Murjåna, ela se levantou bem cedo e saiu, conforme o
hábito, para preparar carnes, verduras, frutas, doces e demais necessidades da
casa, e ao voltar do mercado não lhe passou despercebido o sinal vermelho,
sobre o qual, pelo contrário, suas vistas caíram e ela o viu bem; suspeitando e
estranhando aquilo, compreendeu, mediante o seu conhecimento da
fisiognomonia[658] e o seu abundante intelecto, que se tratava da ação de algum
inimigo distante ou invejoso próximo, e que ele desejava o mal aos moradores da
casa. Assim, para confundi-lo, traçou em vermelho nas portas dos vizinhos sinais
com a mesma forma e no mesmo ponto escolhido por A¬mad, o colérico,
ocultando e silenciando a respeito do assunto, temerosa de que daquilo adviesse
alguma preocupação ou perturbação ao seu patrão. Isso foi o sucedido com ela.
Quanto ao ladrão, quando chegou aos seus companheiros contou-lhes o
ocorrido entre ele e o sapateiro, e como localizara a casa do inimigo, e como ali
fizera um sinal em vermelho a fim de por ele se orientar no momento azado, e
então o líder lhes ordenou que vestissem roupas de gente comum, escondendo as
armas debaixo delas, e que entrassem na cidade por estradas diferentes, dizendo
em seguida: “Que vocês se reúnam na mesquita tal, onde permanecerão sentados
até a nossa chegada”. E saiu com A¬mad, o colérico, atrás da casa procurada,
para localizá-la e confirmar que era mesmo ela. Quando chegaram à rua já
conhecida, A¬mad, o colérico, foi incapaz de distinguir a casa em virtude do
excesso de sinais colocados nas portas, e, vexado com aquela visão, emudeceu;
já o líder, ao notar-lhe a incapacidade de reconhecê-la, emudeceu, franziu o
sobrecenho e ficou muitíssimo furioso, mas a necessidade o obrigou a conter a
cólera naquele momento, e ele retornou à mesquita com o ladrão envergonhado,
reuniu-se com os demais companheiros e lhes determinou o retorno à montanha;
o grupo se dispersou e os seus membros voltaram separados para o lugar onde
moravam, ali se sentando para deliberar. O líder os informou do ocorrido e que
naquele dia o destino não os auxiliara a tomar a vingança e a eliminar a infâmia
devido à má administração de A¬mad, o colérico, e à sua incapacidade de
reconhecer a casa do adversário. Em seguida, desembainhou a espada e o
golpeou na altura dos ombros, fazendo a sua cabeça voar para longe do corpo, e
Deus precipitou-lhe a alma ao fogo, no pior lugar. Após refletir sobre o assunto,
o líder pensou: “Meus homens servem para lutar, aplicar estocadas, roubar,
perpetrar carnificinas, cometer algaras, mas não possuem o entendimento das
diversas espécies de artimanha e dos vários gêneros de trapaça. Se eu os enviar
um atrás do outro para resolver este assunto irei perdê-los da mesma maneira,
sem benefício nem proveito. O mais acertado é que eu próprio me encarregue
dessa difícil missão”. Então, informou aquilo aos ladrões, ou seja, que seria ele e
não outro que iria à cidade. Eles responderam: “Você é quem manda e
desmanda; portanto, faça o que lhe parecer melhor”, e após trocar de roupa ele
tomou o rumo da cidade, atrás do peregrino Mu߆afà, o sapateiro, tal como
haviam feito os seus dois emissários supracitados. Mal o encontrou se dirigiu a
ele, cumprimentou-o, agradou-o com palavras e conduziu a conversa para a
questão do morto assassinado, não cessando de agradá-lo e de lhe prometer
moedas cunhadas até convencê-lo. O xeique Mu߆afà concordou com o seu
propósito e o líder obteve dele o que desejava conhecer sobre a casa do inimigo,
tudo isso de forma semelhante às que anteriormente relatamos. Quando ficou
defronte da casa, pagou ao xeique Mu߆afà uma recompensa maior que a
combinada e o dispensou, pondo-se a vigiar a casa e a examiná-la. Sem precisar
usar de sinal algum, contou as portas desde a esquina até a casa visada, decorou
o número, espreitou por suas portinholas e janelas e a distinguiu tão claramente
que passou a reconhecê-la perfeitamente, tudo isso enquanto caminhava pela rua,
por temor de que os donos desconfiassem de sua longa parada ali em frente. Em
seguida, retornou aos companheiros, informou-os do que fizera e disse: “Agora
conheci a casa do nosso inimigo. Se Deus quiser, chegou o momento da
vingança e da represália. Refleti sobre um método para conseguir isso, e um
meio para entrar e agarrar esse homem, e vou explicá-lo a vocês. Se porventura o
considerarem adequado, começaremos a executá-lo, mas, se acaso não o
considerarem acertado, quem tiver na cabeça uma artimanha mais eficaz que a
mencione e fale sobre o que lhe parece”. E lhes revelou o que planejara e
tencionava fazer, e eles consideraram bom, concordaram em executar e juraram
que nenhum deles hesitaria na tomada da vingança. Nesse momento, o líder
enviou um grupo deles para uma cidade próxima, ordenando a compra de
quarenta odres grandes, e enviou o restante dos homens para as aldeias vizinhas,
instruindo-os a comprar vinte jumentas. Comprado tudo quanto ele ordenara,
volveram à sua presença. Rasgaram a boca de cada odre a fim de que fosse
suficiente para um homem entrar nele, e cada um dos ladrões entrou num dos
odres rasgados empunhando um alfanje. Tão logo todos entraram e se
acomodaram nessa prisão estreita, o líder costurou as bocas dos odres tal como
estavam antes e os besuntou de azeite, a fim de que um eventual observador os
supusesse carregados de azeite; colocou dois odres no dorso de cada jumenta,
enchendo os dois odres a mais[659] com azeite de verdade e os colocando no
dorso de uma das jumentas, as quais passaram a ser, assim, vinte jumentas,
dezenove carregadas de homens e uma carregada de azeite, pois o número dos
ladrões caíra para trinta e oito após a perda dos dois mortos pelo líder.
Encerrados os preparativos, ele conduziu as jumentas à sua frente e entrou com
elas na cidade após o pôr do sol. Quando anoiteceu e a luz escureceu, dirigiu-se
para a casa de ¢Al∑ Båbå, que ele distinguia e conhecia muito bem. Ao chegar,
encontrou ¢Al∑ Båbå em pessoa sentado do lado de fora da porta, diante de uma
mesinha, sobre uma esteira de couro e apoiado numa graciosa almofada. O líder
olhou para ele e o viu feliz, alegre, satisfeito, numa condição de bem-estar e
prosperidade, e ao se aproximar cumprimentou-o polidamente, com cortesia,
humildade, respeito e submissão, e disse: “Sou de um país estrangeiro, uma terra
distante, uma casa longínqua, e comprei uma partida de azeite pretendendo
vendê-la com ganho e lucro nesta cidade, mas não consegui entrar senão ao
anoitecer por causa da longa distância e dificuldade do caminho; encontrei o
mercado já fechado e agora estou à procura, confuso, de uma casa ou um abrigo
onde pernoitar com os meus animais, mas como não achei nada continuei a
vagar e eis-me agora passando por você a esta hora. Assim que o vi agradeci a
Deus e o louvei por ter augurado a satisfação da minha necessidade e a obtenção
do meu anelo, pois a nobreza é evidente na sua nobre face, e o brio brilha nos
seus olhos saudáveis. Não tenho dúvidas de que você é homem de bem, sucesso,
fé e bons costumes. Porventura poderia me hospedar esta noite e dar abrigo às
minhas jumentas, com o que eu lhe deveria este belo favor e esta excelsa
generosidade, e você ganhará a minha recompensa ante o generoso obsequiador,
que bem recompensa e que com o perdão despreza os pecados?[660] Amanhã
cedo, se Deus quiser, irei ao mercado vender o meu azeite, após o que,
agradecido, deixarei você em paz e louvarei o seu favor”. ¢Al∑ Båbå então lhe
correspondeu ao pedido de bom grado, dizendo: “Seja bem-vindo, ó irmão que
bate à nossa porta. Você será o nosso hóspede neste dia abençoado, e nos fará
companhia nesta noite venturosa”. ¢Al∑ Båbå tinha bondade e generosidade, e
era liberal, de bom caráter, dotado das mais belas características, cândido, não
pensando a respeito dos outros senão o bem; por isso tudo, acreditou no
atrevimento do fingido mercador, sem lhe acudir à mente que se tratava do líder
dos ladrões da montanha, a quem ele não reconheceu, pois somente o vira uma
única vez, e com outra indumentária. Gritou por seu escravo ¢Abdullåh e lhe
ordenou que colocasse as jumentas para dentro, sendo prontamente obedecido. O
líder entrou atrás dos animais para descarregá-los, pondo-se, com a ajuda de
¢Abdullåh, a descer os odres do lombo das jumentas e depois as introduziu na
cocheira, pendurando-lhes no pescoço sacos de cevada. O líder tinha por
objetivo dormir no pátio, próximo aos odres, escusando-se de entrar na casa com
o pretexto de que temia constranger a família, embora, na verdade, fosse para
atingir o seu propósito e conseguir levar a cabo a traição planejada. Contudo,
¢Al∑ Båbå não concordou com aquilo, jurando, pelo contrário, que o homem
devia ficar dentro da casa, e tanto insistiu que praticamente o obrigou a entrar; a
contragosto e sem poder discutir, o líder entrou no interior casa, vendo-se num
amplo e gracioso salão, cujo piso fora revestido de mármore das mais diferentes
cores, e em cujo centro havia camas uma diante da outra, com os mais opulentos
tapetes e lençóis, e no ponto mais alto do local uma cama bem maior, com seda
real, colchões prateados e cortinas ornadas com pedras preciosas, na qual ¢Al∑
Båbå o acomodou, ordenando que se acendessem velas e mandando que
avisassem Murjåna da presença do hóspede, e que ela lhe preparasse um jantar
adequado, com as comidas mais saborosas. Em seguida, sentou-se ao seu lado e
se pôs a conversar com ele e a contar-lhe histórias, até que chegou a hora do
jantar e serviram a mesa, trazendo a comida em recipientes de prata e ouro, e
colocando o banquete diante do líder, que comeu, acompanhado por ¢Al∑ Båbå,
de tudo quanto fora servido, até a saciedade; em seguida, tiraram a mesa e
serviram vinho envelhecido, e a taça circulou entre eles; quando se saciaram de
comida e bebida, retomaram a conversa e as histórias até a noite avançar e
chegar a hora de esticar o corpo e deitar, momento em que o líder se levantou e
foi até o pátio dizendo que gostaria de verificar os seus animais antes de dormir,
mas na verdade era para combinar com os asseclas o que fazer. Aproximou-se do
primeiro, que como dissemos estava dentro do primeiro odre, e lhe disse com
voz baixinha: “Quando eu lhes lançar algumas pedrinhas pela portinhola
rompam os odres com os alfanjes e venham atrás de mim”; depois, disse o
mesmo ao segundo, ao terceiro, até chegar ao último.
Quanto a ¢Al∑ Båbå, ele planejava entrar no banho assim que amanhecesse, e
por isso instruiu Murjåna a lhe preparar as toalhas necessárias, entregando-as aos
cuidados de ¢Abdullåh, e lhe deixar pronto um caldo de carne para ele tomar ao
sair do banho; também a instruiu a dignificar o hóspede, a lhe estender roupas de
cama macias, adequadas à sua condição, e a servi-lo pessoalmente, satisfazendo,
relativamente a ele, todas as obrigações e todos os direitos impostos pela
hospedagem, e ela lhe respondeu ouvindo e obedecendo, após o que ¢Al∑ Båbå
se recolheu ao leito, estendendo-se e dormindo.
Voltemos agora a falar do líder. Diremos — e em Deus está o êxito — que,
após se acertar com os seus companheiros e seguidores[661] e planejar com eles
como seria necessário agir, ele subiu até Murjåna e a indagou sobre o local onde
dormiria; ela pegou uma vela e o conduziu a um aposento mobiliado com os
móveis mais luxuosos, contendo tudo quanto ele precisasse, cobertas etc., para
dormir. Depois de lhe desejar boa-noite, ela retornou à cozinha a fim de cumprir
a ordem do seu patrão: arrumou as toalhas e demais acessórios para banho,
entregando tudo ao escravo ¢Abdullåh, pôs a carne na panela e acendeu o fogo.
Enquanto isso, a luz do lampião ia se enfraquecendo pouco a pouco por falta de
azeite, até se apagar completamente. Verificando que a moringa de óleo estava
vazia, e como as velas também tinham acabado, Murjåna ficou em dúvida sobre
o que fazer, pois precisava de luz para terminar de cozinhar o caldo, e ao vê-la
nesse estado ¢Abdullåh disse: “Não se preocupe nem se irrite, pois ainda existe
azeite, muito azeite, aqui em casa. Esqueceu os odres cheios de azeite do
mercador estrangeiro, e que estão ali no quintal? Desça e pegue o quanto quiser,
e quando amanhecer pagamos a ele o preço do azeite”. Ao ouvir essa
argumentação, Murjåna gostou do que continha de correção[662] e lhe
agradeceu pelo louvável conselho, saindo então com a moringa em mãos e se
aproximando dos odres. Ao ouvirem a voz de Murjåna, os ladrões — já irritados
com a longa permanência naquele estreito cativeiro, cansados de ficar com as
costas curvadas, o que lhes causava dificuldades de respiração, com os membros
moídos, os ossos debilitados, totalmente impacientes com tal situação e já sem
energias para prolongar a prisão — supuseram, desatentos, que se tratava da voz
do líder — e isso para que se executasse a flecha do decreto divino contra eles e
prevalecesse a ordem de Deus. Assim, um dos ladrões perguntou: “Já chegou a
hora de sair?”.
Disse o narrador desta história espantosa e deste caso emocionante e
insólito: Ao ouvir uma voz de homem saindo do interior do odre, Murjåna ficou
bem amedrontada e os seus membros estremeceram de pavor, tão aterrorizada
que, fosse outra pessoa, teria caído ou gritado; porém, ela tinha coragem no
coração e rapidez de inteligência, percebendo de imediato a realidade, e
compreendendo, mais rápido que o olhar, tratar-se de ladrões cujo propósito era
atacar à traição; entabulou então, agilmente, o plano mais adequado, por saber
que, se acaso gritasse ou se mexesse, estaria sem dúvida liquidada, e levaria à
morte o seu patrão e os demais membros da casa; conteve, portanto, os gritos e
movimentos, e sem demora começou a artimanha a que se propunha: abaixou a
voz e respondeu ao primeiro ladrão dizendo: “Espere mais um pouco, pois o
tempo que falta é exíguo”; aproximou-se do segundo odre e o segundo ladrão lhe
perguntou o mesmo, e ela respondeu do modo supracitado, e continuou a passar
odre por odre, a ouvir a mesma pergunta dos ladrões e a dar-lhes a mesma
resposta pedindo paciência, até que chegou aos odres de azeite, no final da fila, e
quando deles não obteve resposta percebeu que estavam sem ninguém dentro;
mexeu neles e, certificando-se de que estavam cheios de azeite, abriu um,
encheu a moringa como podia e retornou à cozinha, onde acendeu a lâmpada,
pegou um grande caldeirão de cobre vermelho, foi ao quintal, encheu-o de
azeite, subiu, levou-o ao fogo, colocando muita lenha debaixo dele, e deixou o
azeite ferver; quando se deu a fervura, ela desceu ao quintal com o caldeirão e,
utilizando a moringa, derramou, na boca de cada odre, azeite fervente, que ao
cair na cabeça dos ladrões os matou, liquidando-os um por um. Após se
assegurar de que deles não restava ninguém, e que todos haviam morrido, voltou
para a cozinha, terminou de cozinhar o caldo de carne, conforme as instruções
do patrão, e, concluída a tarefa, apagou o fogo e a lâmpada, sentando-se para ver
e espreitar as atitudes do líder, o qual, tão logo entrara no aposento para ele
arrumado, trancara a porta, apagara as velas e se estirara na cama como se
adormecido, embora continuasse acordado, à espera da ocasião propícia e do
momento conveniente para levar a cabo o mal arquitetado contra os moradores
da casa: pegou então uns pedregulhos e os atirou no quintal, de acordo com o
combinado, e por alguns instantes ficou esperando a saída dos seus homens, mas
como eles continuassem calados, sem som nem movimento, o líder, tomado pelo
espanto, atirou mais pedregulhos pela janela, cuidando para que caíssem dentro
dos odres, mas ainda assim eles continuaram calados e inertes; já muito
preocupado, pela terceira vez atirou as pedras, esperando em vão que eles
saíssem; quando enfim perdeu a esperança de que os ladrões saíssem, o medo lhe
invadiu o coração e ele saiu para averiguar o sucedido e o motivo de tal
imobilidade. Ao se aproximar dos odres, um fedor detestável, junto com o ranço
do azeite fervido, penetrou-lhe as narinas e, prevendo algo de ruim, o seu medo e
terror aumentaram; passou pelos odres, falando com um por um, e os ladrões
continuaram silenciosos e mudos; nesse momento ele chacoalhou e revirou os
odres, vendo no seu interior os seus homens, todos aniquilados e mortos.
Quando finalmente notou o tanto de azeite que fora levado dos últimos odres,
compreendeu a maneira pela qual haviam morrido e o motivo da morte.
Arrasado com aquilo, chorou um choro dificultoso e, temeroso de ser apanhado,
fez tenção de fugir e escapar antes que todas as vias ficassem bloqueadas, para
isso abrindo a porta do jardim, escalando o muro e pulando para a rua, de onde
bateu em retirada e fugiu em direção à floresta, deprimido, esmagado pela
tristeza e com mil aflições no coração. Tudo isso era observado por Murjåna do
esconderijo no qual ela o vigiava: quando soube que ele já saíra da casa e fugira,
ela desceu ao quintal, fechou a porta do jardim, que o ladrão abrira, e retornou
para o seu lugar. Isso foi o que se deu com ela.
Quanto a ¢Al∑ Båbå — assim que Deus fez amanhecer, iluminando com a sua
luz e fazendo-a despontar, e o sol saudou o adorno dos graciosos —, ele
despertou do sono e de deliciosos sonhos, vestiu-se e saiu, dirigindo-se ao banho
público, com o escravo ¢Abdullåh atrás de si carregando os apetrechos de banho
e as toalhas necessárias. Entrou no banho, banhou-se e descansou no maior
conforto e contentamento, ignorando o sucedido na sua casa aquela noite, bem
como o perigo do qual Deus o livrara. Ao concluir o banho, tornou a vestir as
roupas, voltou para casa e na entrada do quintal viu os odres no mesmo lugar;
invadido pelo espanto, perguntou a Murjåna: “O que ocorre com esse mercador
estrangeiro, que se atrasa para ir ao mercado?”. Ela respondeu: “Meu senhor,
Deus lhe escreveu uma longa vida e lhe concedeu uma sorte vencedora, pois esta
noite você escapou de um enorme perigo, e Deus o salvou, graças aos seus bons
propósitos, de ser aniquilado e morto da maneira mais hedionda, você e a sua
família. Mas aqueles que lhe tinham escavado um buraco, Deus os fez cair nele,
punindo-os por seus maus propósitos, pois a punição da traição é o fracasso e a
ruína. Mantive tudo como estava para que você veja com os seus próprios olhos
o que lhe havia urdido aquele mercador atrevido em sua aleivosia, bem como a
coragem desta sua serva Murjåna. Vá ver o que há no interior desses odres”. Só
então ¢Al∑ Båbå deu uns passos adiante e, ao ver no interior do odre mais
próximo um homem empunhando um alfanje, ficou amarelo e alterado, recuando
com medo. Murjåna disse: “Não tenha medo, pois esse homem está morto”, e lhe
mostrou os odres restantes, em cada um dos quais havia um homem morto
empunhando um alfanje. ¢Al∑ Båbå estacou temeroso por alguns momentos,
olhando ora para Murjåna, ora para o odre, atônito e aterrorizado, ignorando qual
era a história e dizendo afinal: “Dê-me depressa uma explicação sobre o que
presenciei, e seja breve em sua fala, pois tal visão me deixou sumamente
aterrorizado”. Ela respondeu: “Reflita um pouco e não eleve a voz, para evitar
que os vizinhos percebam o que não deve ser tornado público. Acalme-se e vá
para o seu quarto, sente-se na cama e descanse enquanto eu lhe levo o caldo de
carne que cozinhei para você; quando beber, esse medo vai se abrandar”; foi até
a cozinha e voltou com o caldo, entregando-o a ele, que o bebeu, e então ela se
pôs a lhe falar as seguintes palavras:
Ontem você me ordenou que preparasse os apetrechos de banho e cozinhasse
o caldo de carne. Enquanto eu estava ocupada executando isso, eis que a minha
lâmpada se apagou por falta de azeite, cuja moringa eu procurei e encontrei
vazia. Fiquei em dúvida sobre o que fazer até que ¢Abdullåh me disse: “Não
fique preocupada, pois ainda existe muito azeite entre nós. Desça e pegue o
quanto precisar dos odres do mercador aqui hospedado, e amanhã nós pagaremos
o valor a ele”. Considerando louvável esse conselho, desci com a moringa e
quando me aproximei dos odres ouvi do interior deles uma voz masculina
dizendo: “Já chegou a hora de sair?”. Percebi que eles pretendiam cometer algo
traiçoeiro e disse a ele, sem pavor nem medo: “Não, mas não resta senão pouco
tempo”. Ao passar pelos odres restantes, verifiquei que no interior de cada um
deles havia um homem que me fazia a mesma pergunta, ou me dizia algo
assemelhado, e então eu dei a cada um a mesma resposta, até que cheguei aos
dois odres cheios de azeite, e então enchi a moringa, acendi a minha lâmpada,
apanhei um grande caldeirão, enchi de azeite, levei ao fogo até ferver e dele
derramei na boca de cada odre, e todos os ladrões morreram por causa do azeite
fervente, como você já viu. Em seguida, apaguei a lâmpada e me pus a espreitar
o traiçoeiro mercador, trapaceiro e mentiroso, e o vi atirando pedrinhas da janela
para avisar os seus homens, repetindo tal ação várias vezes; como não saíram,
perdida a esperança de vê-los, ele desceu para ver o motivo da inércia e os
encontrou todos mortos. Nesse momento, temendo ser flagrado ou morto,
escalou o muro do jardim, pulou para a rua e se escafedeu. Eu não quis acordá-lo
por medo de alguma confusão entre os moradores da casa, e então esperei o seu
retorno para lhe dar a notícia. Essa é a minha história com aqueles traiçoeiros,
mas Deus sabe mais. Agora, devo informá-lo sobre algo que ocorreu
ultimamente e eu escondi. Há pouco tempo, enquanto eu voltava do mercado,
avistei na porta da nossa casa um sinal branco. Essa visão me provocou suspeitas
e preocupações, e percebi que se tratava da ação de algum inimigo que
tencionava nos fazer mal. Para confundi-lo, desenhei nas portas das casas dos
vizinhos, com a mesma cor, sinais semelhantes, mas lhe ocultei isso por medo de
que vocês se assustassem, pois não restam dúvidas de que quem desenhou o
sinal foram esses homens mortos, que são os ladrões com os quais você topou na
montanha. Como eles haviam descoberto o caminho para a nossa casa, já não
teríamos descanso nem segurança enquanto um só deles estivesse sobre a face da
terra. Devemos estar em alerta contra os ardis desse que fugiu, porque ele sem
dúvida se empenhará em nos aniquilar. Devemos nos prevenir e eu estarei entre
os primeiros na prevenção e no alerta.
Disse o narrador: Ao ouvir a fala da escrava Murjåna, ¢Al∑ Båbå ficou
sumamente espantado com as estranhas coincidências sucedidas a ambos, e lhe
disse: “Não me salvei desta complicação nem escapei desse caso grave senão
pelo poder do criador generoso que nos beneficia com favores e benevolência, e
pelo acerto do seu parecer, Murjåna, e da sua sagacidade”. E lhe agradeceu por
sua boa ação, pela coragem do seu coração, pela excelsitude da sua opinião e
pela qualidade da sua administração, e lhe disse: “A partir de agora você está
livre e alforriada, graciosamente, mas as suas mercês em nosso favor vão
perdurar. Vou recompensá-la com todo o bem, pois como você disse não restam
dúvidas de que esses homens são os ladrões da floresta. Graças a Deus nos
salvamos deles, e agora precisamos enterrá-los e esconder o sucedido”. Em
seguida, chamou o seu escravo ¢Abdullåh e lhe pediu que trouxesse dois
enxadões; ele próprio empunhou um deles, entregou o outro ao escravo e
começaram ambos a escavar uma comprida vala no jardim, puxando os corpos
dos ladrões um por um, atirando-os lá dentro e cobrindo-os de terra, até que
deles não restou vestígio. Quanto às jumentas, eles as venderam no mercado, em
ocasiões diferentes, fazendo o mesmo com os odres. Isso foi o sucedido com
¢Al∑ Båbå e os seus.
Quanto ao líder dos ladrões, após a fuga da casa de ¢Al∑ Båbå para a floresta,
ele entrou no esconderijo na mais lastimável das situações, chorando a solidão e
o isolamento, lamuriando-se e condoendo-se do malogro das suas esperanças, do
azar das suas ações e da perda dos seus homens; detestou a vida e desejou a
morte dizendo: “Ai, quanta dor por sua perda, ó heróis do tempo, ó saqueadores
e guerreiros, ó cavaleiros da contenda no frêmito da batalha! Quem dera vocês
tivessem sido mortos guerreando e combatendo, e tivessem perecido e se finado
na luta e no tumulto! Mas a morte assim, repentina, é uma infâmia e eu, pobre
miserável, sou o motivo da aniquilação daqueles por quem daria a própria vida!
Quem dera eu tivesse bebido da taça da apostasia antes de presenciar tamanha
desgraça! Porém, o senhor, poderoso e excelso, não me preservou senão para
tomar a vingança e cobrir a infâmia. Eu me vingarei do meu inimigo da maneira
mais cruel, e o farei provar doloroso sofrimento e punição terrível. Eu sozinho
basto para fazer isso. Se Deus quiser, mesmo sozinho levarei a cabo aquilo que
fui incapaz de fazer com outros homens”. Em seguida dormiu, mas a sua mente
permaneceu navegando num mar de pensamentos, o coração ocupado à procura
de uma artimanha para alcançar o objetivo. Abandonou o repouso do sono e pela
manhã também abandonou a comida, tão importante; em seguida, fechou
questão quanto à preparação de uma artimanha com a qual, supunha, atingiria a
sua esperança, e atinou com algo para fazer, mediante o qual alcançaria o seu
propósito e curaria a sua enfermidade. Quando amanheceu, trocou de roupa,
vestindo um traje de mercador, dirigiu-se à cidade e alugou um quarto numa
grande hospedaria, bem como uma loja no mercado, e para lá transferiu, aos
poucos, valiosas e belas mercadorias do esconderijo do tesouro, além de caros
tecidos fiados a ouro, entre os quais peças indianas, panos sírios, roupas de
brocado, trajes honoríficos, vestimentas com enfeites de ouro, e ainda pedras
preciosas. Tudo quanto estava depositado nesse esconderijo era fruto de assaltos
ao país e ao dinheiro dos súditos; isso feito, instalou-se na sua loja, pondo-se a
vender, a comprar e a negociar com as pessoas, dando desconto nos preços,
cobrando barato, oferecendo aos compradores o que desejavam e falando-lhes o
que gostavam de ouvir, até que se tornou conhecido, passou a ser mencionado e
as histórias a seu respeito se avolumaram; os grandes o visitavam e os pequenos
se acotovelavam para ver o novo mercador, que a todos recebia com mercês e
sorrisos, tratando-os com suavidade e delicadeza, afetando liberalidade, bom
caráter, sutileza na conversação e bondade nas respostas, a tal ponto que todos
passaram a gostar dele. Embora tudo isso lhe contrariasse a natureza — que se
constituíra na brutalidade, na rudeza, na estupidez e na grosseria, no hábito de
matar, saquear, massacrar e roubar —, a necessidade tem lá as suas regras,
obrigando-o a fazer aquilo. Não houve ninguém por ali — fosse sábio, jurista,
testemunha de acordos verbais ou escritos, imame de mesquitas, pregador,
pressuroso emissor de decreto religioso, intérprete certo ou errado da lei
religiosa, hermeneuta das tradições do profeta, narrador de eventos antigos e
recentes, devoto sincero e justo, cavaleiro guerreiro e campeador, flecheiro,
lanceiro, pedreiro, patente, presente, parado, caminhante, primeiro, último,
ocultador de algo em seu interior, anunciador de algo em seu exterior, árabe,
estrangeiro, pastor de camelos ou de ovelhas, morador em tenda ou casa,
citadino ou beduíno, rentista de casas ou paredes, navegante em mares revoltos,
caminhante em desertos e terras inóspitas — enfim, não houve ninguém por ali
que não tivesse ido à sua loja comprar dos seus tecidos ou das outras
mercadorias, nem houve escrava — fosse ela grega de boa altura, de face lisa, de
seios empinados, de colo largo, de ancas enormes, de olhos como de gazela, de
sobrancelhas em forma de arco, de orelhas como saquinhos, de peitos como
romã, de boca como o anel de Sulaymån, de lábios como cornalina e coral, de
talhe como galho de salgueiro, de esbelteza de bambu, de hálito de bálsamo, que
fazia desaparecer as preocupações com os afetos do seu coração misericordioso,
e que curava o enfermo com o seu discurso doce e harmonioso — enfim, não
houve escrava que não o tivesse visitado, nem moça — fosse ela de rosto branco,
de olhos alquifados, de beleza completa, de características perfeitas, de ancas
pesadas, de nariz bem delineado, de lábios carnudos, de faces rosadas, de mãos
graciosas, de pernas finas, de bochechas rubras, dotada de beleza, formosura,
esplendor, perfeição, talhe e beleza indescritíveis para o prosador mais eloquente
ou para o sábio, que não conseguiria falar nem da metade —, nem velha que não
tivesse acorrido ao seu encontro — fosse ela de cara esfolada, de sobrancelha
depenada, de corpo sarnento, de cabelo cinzento, de rosto amarfanhado, de olhar
vesgo, de perna escura, de nariz esmagado, de pé torto, de fisionomia horrível,
com ranho escorrendo, de cor pálida, cagona, cheia de tosse, babando,
peidorreira, soltando traques, surda e inerte, faladeira e choradeira, de aparência
nojenta e horrorosa de olhar —, nem rapaz que não se tivesse sentado ao seu
lado — fosse de sobrancelhas finas e largas, barbeado, de bochechas rosadas, de
cintura grossa, de luzes resplandecentes, de luas despontando, despreocupado,
inclinando-se de vaidade e presunção, cheio de meiguice e com o mel
escorrendo da boca —, nem imberbe que não lhe frequentasse a loja — fosse
elegante, de olhar lânguido, de cintura leve, de roupa limpa, de suave rosto
branco, de face vermelha, de testa brilhante, de cintura esbelta, de ancas pesadas,
de pernas lisas, cuja visão curava o enfermo e cuja presença fazia sarar o ferido
—, nem velho que não lhe revirasse as mercadorias — tivesse ele os dentes
todos, molares fortes, alto, testudo, barbudo, sobrancelhudo, de pelos revoltos na
cara, mais valente e intrépido que um bravo cavaleiro e desafiador do leão
encolerizado —, nem xeique que não lhe comprasse as mercadorias — fosse ele
entrado em anos, careca, de vista curta, de bengala, experimentado pelas coisas e
avisado pelos anos e eras, de barba encanecida pelas desditas do tempo e
curvado pela sucessão das noites e dos dias, cuja situação recitava a seguinte
poesia:

“O destino me deixou maltratado,
ele que é tão poderoso e prepotente:
antes eu caminhava sem me cansar,
mas hoje eu me canso sem caminhar”.[663]

Enfim, a todos o ladrão recebia muito bem e calorosamente, tratando de maneira
equivalente o forte e o fraco, o vil e o nobre, sem distinguir entre comandante e
comandado, livre e prisioneiro, nem entre o elevado e o baixo, ou o rico e o
pobre; pelo contrário, magnificava o sábio letrado e não desdenhava o adventício
estrangeiro, dava atenção aos enamorados e dignificava o vizinho do lado, com
tamanha destreza que o afeto por ele invadiu todos os corações, e o amor por ele
englobou todas as almas. Para realizar um desígnio que ele já decretara e pelo
qual se decidira em relação às suas criaturas, o criador, excelso seja, determinou
que a loja desse traiçoeiro ficasse defronte da loja do filho de ¢Al∑ Båbå, cujo
nome era Mu¬ammad. Como eram vizinhos, impuseram-se a eles as regras da
boa vizinhança, em virtude das quais se conheceram e entabularam amizade,
sem que nenhum soubesse ao certo quem era o seu amigo, nem a sua origem;
com o crescimento do afeto e do apreço mútuos, ambos passaram a se
frequentar, sem que nenhum suportasse ficar sem o outro. Certo dia, coincidiu de
¢Al∑ Båbå ir até a loja do filho para visitá-lo e recrear-se no mercado,
encontrando então o mercador estrangeiro sentado ao lado do filho. Ao primeiro
olhar, o líder dos ladrões o reconheceu muito bem e teve certeza de que se
tratava do inimigo a cuja procura ele estava. Sumamente feliz, ele augurou a
satisfação da sua necessidade, a consecução do seu ardil e a obtenção da
vingança, mas ocultou isso e a sua aparência não se alterou. Depois que ¢Al∑
Båbå se retirou, o ladrão indagou o filho sobre ele, fingindo não conhecê-lo.
Mu¬ammad respondeu: “É o meu pai”. Ao ouvir a resposta e se certificar
daquilo, passou a frequentar mais assiduamente a loja de Mu¬ammad,
dignificando-o melhor ainda, desfazendo-se em mesuras e demonstrando amor,
afeto, amizade e bem querer, chamando-o constantemente para comer consigo,
preparando-lhe banquetes e recepções, fazendo com ele saraus noturnos, não
aceitando ficar sem ele em reuniões e conversas e dando-lhe valiosos presentes e
joias caras, tudo isso para executar o plano que entabulara e para tornar possível
o seu propósito traiçoeiro e maligno. Da sua parte, ao receber tamanhos e tão
pródigos favores, ao ver como era boa a convivência com ele e o crescimento da
amizade, Mu¬ammad passou a gostar do ladrão, afeto esse que chegou ao
extremo devido ao que nele enxergava de sinceros propósitos e bom caráter: não
suportava ficar distante dele um instante sequer e não o abandonava, fosse noite,
fosse dia; falou então ao pai das gentilezas que lhe fazia aquele mercador
estrangeiro, do afeto e da amizade que demonstrava, e que se tratava de um
homem rico, nobre, generoso e exemplar, elogiando-o a mancheias e contando
que ele sempre o convidava para ir à sua casa comer comidas deliciosas e lhe
dava presentes valiosos. O pai disse: “É obrigação sua, filho, retribuir-lhe a
maneira como ele o trata, preparando-lhe um banquete e convidando-o, e que
isso se dê na sexta-feira. Quando vocês saírem da prece, ao meio-dia, e passarem
pela nossa casa, convide-o a entrar e eu terei preparado algo adequado e
apropriado à condição desse hóspede excelso”. Quando foi a sexta-feira, o líder
dirigiu-se à mesquita por volta do meio-dia, acompanhado de Mu¬ammad, e
depois de fazer a prece coletiva saíram juntos para a rua com o fito de espairecer
pela cidade, pela qual passearam sem interrupção até chegar à rua de ¢Al∑ Båbå.
Quando se aproximaram da casa, Mu¬ammad convidou o companheiro a entrar
para comer, dizendo-lhe: “Esta é a nossa casa”, e ele se recusou e negaceou com
várias escusas, mas Mu¬ammad tanto insistiu e jurou, mantendo-se no seu
encalço, até que ele aceitou dizendo: “Vou concordar em fazer o que você quer
para ser fiel às prerrogativas da amizade e para agradá-lo, mas tenho uma
condição: que vocês não ponham sal na comida, pois eu detesto o sal com todas
as minhas forças, não conseguindo comê-lo nem lhe sentir o cheiro”.
Mu¬ammad respondeu: “Essa é uma questão muito simples. Como o seu
estômago não aceita o sal, não lhe serão oferecidos senão alimentos sem sal”. Ao
ouvir tais palavras, o ladrão ficou interiormente muitíssimo feliz, pois o seu
único propósito era mesmo entrar na casa, e todas as artimanhas que elaborara
haviam sido para atingir esse objetivo e alcançar esse desejo. Já certo de que
lavaria a honra e consumaria a vingança, pensou: “Deus os colocou nas minhas
mãos, inevitável e indubitavelmente”. Tão logo ele ultrapassou a soleira e entrou
na casa, ¢Al∑ Båbå veio lhe dar as boas-vindas, cumprimentando-o com a mais
extrema cortesia e reverência, acomodando-o no ponto mais alto do local, por
supor que se tratava de um nobre mercador e sem o reconhecer como o próprio
dono do azeite, devido à modificação da sua indumentária e aparência, e sem
tampouco lhe ocorrer que introduzira um lobo no meio de ovelhas, ou um leão
no meio do gado, sentando-se para conversar com ele e entretê-lo. Já o seu filho
Mu¬ammad foi até Murjåna recomendar-lhe que não colocasse sal nos
alimentos, pois o hóspede não podia consumi-lo. Irritada com aquilo, pois já
aprontara a comida e seria obrigada a cozinhar de novo, desta vez sem sal,
Murjåna estranhou e suspeitou do hóspede, ficando com vontade de ver quem
seria esse homem que não apreciava nem provava o sal, ao contrário de toda
gente, pois na verdade isso era algo inaudito e jamais ocorrido. Quando a comida
ficou pronta e chegou a hora de servir o jantar, auxiliada por ¢Abdullåh ela levou
a mesa e a depositou diante do grupo, lançando nesse momento uma olhada
furtiva para o mercador estrangeiro, a quem imediatamente reconheceu, graças
ao conhecimento da fisiognomonia e à sua excelente perspicácia. Certa de que se
tratava, sem nenhuma sombra de dúvida, do líder dos ladrões, ela o observou
longamente, divisando sob a sua roupa o cabo de um alfanje, e então pensou:
“Agora compreendo o motivo da recusa desse maldito em comer sal com o meu
patrão. É que ele pretende matá-lo e considerou horrendo e abominável fazer
isso após ter compartilhado o sal. Porém, com a permissão de Deus altíssimo, ele
não logrará o seu intento nem eu o deixarei levá-lo a cabo”. Em seguida, retirou-
se para os seus afazeres e ¢Abdullåh ficou por ali para servir. Eles comeram de
todos os gêneros e ¢Al∑ Båbå se pôs a dignificar o hóspede e a incitá-lo a comer
mais. Quando se saciaram, a comida foi retirada e trouxeram vinho, petiscos,
doces, frutas e confeitos, e então eles adoçaram a boca e comeram frutas; em
seguida, começou a circular a taça, que o maldito repassava aos outros dois sem
nada beber, com o propósito de embriagá-los enquanto ele se mantinha sóbrio,
sem bebida, com o juízo íntegro, a fim de atingir o seu objetivo: assim que
ambos, vencidos pela bebida, pegassem no sono, ele aproveitaria a oportunidade
para fazer-lhes o sangue escorrer, matando-os com o alfanje e depois fugindo
pela porta do jardim, tal como agira da outra vez. Estavam eles nessa situação
quando repentinamente entraram Murjåna e ¢Abdullåh, ela com uma túnica de
malha alexandrina, um gibão de brocado real e outros tecidos luxuosos, um
cinturão de ouro trançado com várias espécies de pedras preciosas que lhe
cobriam a cintura e lhe destacavam as ancas, na cabeça uma rede de pérolas, ao
redor do pescoço um colar de esmeraldas, e os rubis e corais eram um seio a lhe
recobrir os seios, que pareciam duas enormes romãs; de tão enfeitada com trajes
e joias ela parecia uma flor de primavera no seu primeiro sorriso, e o plenilúnio
na noite em que se completa; também ¢Abdullåh trajava roupas luxuosas,
munido de um tambor no qual batia enquanto ela dançava tal como dançam os
praticantes do ofício. Ao vê-la, ¢Al∑ Båbå ficou contente, sorriu e disse: “Seja
muito bem-vinda, escrava afável e criada preciosa. Por Deus que você agiu da
melhor maneira, pois nós estávamos ansiosos por dança nesta hora, a fim de que
se completassem a nossa sorte e alegria, e se tornassem perfeitos o nosso êxtase
e regozijo”. Em seguida, disse ao líder: “Essa escrava não tem igual, pois é hábil
em tudo, serve muito bem e não ignora nenhuma das artes do decoro; possui
beleza e qualidades, correção de parecer, rápida perspicácia; não tem igual neste
nosso tempo, e me fez muitos favores. Para mim, é mais cara que uma filha.
Olhe, meu senhor, para a formosura do seu rosto, a esbelteza do seu talhe, a
beleza da sua dança, a elegância do seu gingado e a sutileza dos seus
movimentos”. Mas o ladrão não lhe percebeu as palavras nem prestou atenção ao
que ele dizia; estava, isso sim, ausente, tamanhos eram o seu ódio e a sua
irritação com a entrada daquelas duas pessoas que lhe atrapalharam o mal que
havia planejado contra os moradores da casa, e a traição e malignidade que
ocultava. Murjåna dançou de modo tão belo que faria frente aos profissionais do
ofício, intensificando o ritmo até puxar do cinturão um alfanje, que empunhou e
passou a dançar com ele em punho, conforme o hábito dos árabes, ora
encostando-lhe a ponta no próprio peito, ora no peito de ¢Al∑ Båbå, ora
aproximando-o do peito do seu filho Mu¬ammad, ora encostando-o ao peito do
líder. Em seguida, apanhou o tambor da mão de ¢Abdullåh, entregou-o a ¢Al∑
Båbå e sinalizou que lhe desse algo, e então ele lhe atirou um dinar; em seguida,
ela foi com o tambor na direção do seu filho Mu¬ammad, que também lhe atirou
um dinar; em seguida, aproximou-se do líder com o alfanje numa das mãos e o
tambor na outra, e ele fez menção de lhe dar algo, para isso enfiando a mão no
bolso; enquanto fazia tal movimento, ocupado em puxar a quantia possível de
dirhams, eis que ela lhe enfiou o alfanje no peito, e o homem, após soltar um
terrível gemido, morreu, e Deus lhe precipitou a alma ao fogo, o pior dos
lugares. Quando viram o que fizera, ¢Al∑ Båbå e o filho se levantaram
rapidamente, pararam aterrorizados e gritaram com ela dizendo: “Sua traidora!
Sua filha de uma adúltera! Sua puta! Sua indigna! Qual o motivo dessa horrível
perfídia? Você nos jogou numa desgraça da qual não nos safaremos nunca, e será
o motivo do nosso aniquilamento, da perda das nossas vidas! Mas a primeira
punida vai ser você, sua maldita! E mesmo que escape da mão da justiça não vai
escapar das nossas mãos!”. Ela lhes respondeu sem temor: “Tranquilizem-se e
acalmem esse pânico. Se for essa a recompensa de quem arriscou a vida por
vocês, então ninguém mais se arriscará a praticar o bem. Não se apressem a
pensar mal ao meu respeito, a fim de não serem punidos pelo arrependimento; ao
contrário, ouçam a minha história e depois decidam sobre mim como quiserem.
Ao contrário do que ele alegava e vocês acreditavam, esse homem não é
mercador, mas sim o líder dos ladrões da floresta, que primeiro alegou ser
vendedor de azeite e introduziu muitos homens aqui na casa de vocês, no interior
dos odres, a fim de matá-los e eliminá-los. Quando eu lhe destruí o ardil e ele
fracassou nas suas pretensões, fugiu e abandonou a casa, mas não tomou isso
como lição nem se emendou; pelo contrário, nutriu mais rancor e ódio contra
vocês e se obstinou nos seus malignos desígnios. Para conseguir o seu intento e
alcançar a sua esperança, abriu uma loja no mercado, encheu-a de mercadorias
luxuosas e valiosas e em seguida empregou ardis secretos, artimanhas ocultas e
maquinações ímpias, até que finalmente fez uma artimanha contra o meu senhor
Mu¬ammad, enganando-o com demonstrações de mentiroso afeto e falsa
amizade e perseguindo-o com trapaças, até que se lhe franqueou entrar nesta
casa e sentar-se com vocês numa só mesa, e nesse momento ele esperava
aproveitar a oportunidade para atraiçoá-los, matá-los da pior maneira e apagar os
seus vestígios, para tanto utilizando o fio das armas e a força da mão e do braço.
Não existe força nem poderio senão em Deus altíssimo e poderoso, e louvores a
Deus, que lhe apressou a ruína e a destruição por meu intermédio. Olhem para o
rosto dele, examinem-lhe a fisionomia e a verdade das minhas palavras se
evidenciará para vocês”. Em seguida, ela retirou a capa do ladrão e lhes mostrou
o alfanje escondido sob as suas roupas. Explicação dada e resposta ouvida, pai e
filho observaram o rosto do mercador mentiroso e traiçoeiro com muitíssima
atenção, e então o reconheceram bem e se certificaram de que se tratava
exatamente do vendedor de azeite; ao verem o alfanje, compreenderam
perfeitamente que Deus os salvara de um enorme perigo e de uma terrível ruína,
e a escrava Murjåna consistira no seu instrumento. Assegurados da veracidade
das suas palavras, a coragem do coração dela e as suas ações se avultaram
imensamente aos olhos de ambos, que lhe agradeceram pelo ato louvável e lhe
elogiaram o correto parecer. ¢Al∑ Båbå lhe disse: “Quando anteriormente eu a
alforriei, comprometi-me a fazer mais ainda, e agora é necessário que eu cumpra
o meu compromisso e efetive o que prometi, mostrando-lhe o que eu
intimamente pretendia promover como compensação pelo bem que você fez por
nós, e recompensa pela sua boa ação: quero casá-la com o meu filho
Mu¬ammad. O que me dizem sobre isso?”. Mu¬ammad respondeu dizendo: “A
você eu ouço e obedeço no que planejou e estipulou, e não divirjo do que você
proibiu ou jurou fazer, mesmo que seja algo que me incomode ou aborreça.
Quanto ao casamento com Murjåna, é o que mais desejo, o meu objetivo mais
extremo”, e isso porque ele a amava havia tempos, paixão essa que havia
chegado ao auge graças à sua beleza e formosura, e ao seu esplendor e perfeição,
bem como perspicácia e bom caráter, além da origem nobre e excelente estirpe.
Em seguida, apressaram-se em enterrar o líder dos ladrões, escavando-lhe no
jardim um grande buraco no qual o enterraram, e ele se juntou aos seus
desgraçados, ímpios e malditos companheiros, sem que ninguém neste mundo
tivesse percebido nada desses sucessos tão insólitos nem dessas coincidências
tão espantosas. Quanto à sua loja, como a sua ausência se prolongasse
demasiado sem que do proprietário surgissem notícias ou aparecessem vestígios,
o tesouro público se apropriou das suas mercadorias, além do seu dinheiro e
demais objetos do espólio. Depois, tão logo eles se acalmaram e tranquilizaram,
sentindo-se novamente seguros em sua terra, as coisas estabilizadas, a alegria de
volta e o mal afastado, Mu¬ammad se casou com a escrava Murjåna; o contrato
de casamento foi escrito junto ao juiz dos muçulmanos; o marido lhe pagou o
dote e se comprometeu a suprir tudo quanto faltasse; as pessoas foram reunidas e
se fez a festança, com todos passando acordados noites agradáveis, em meio a
banquetes e recepções; reuniram-se donos de casas de diversão, cantores,
palhaços, e fizeram Murjåna desfilar diante dele; quando se viram a sós, ele lhe
extirpou a virgindade. As festas duraram três dias. Decorrido um ano desses
eventos, ¢Al∑ Båbå quis ir ao esconderijo, o que evitara fazer desde a morte do
irmão, por medo de alguma aleivosia da parte dos ladrões. Com efeito, quando
Deus, por intermédio de Murjåna, exterminou trinta e oito deles, com o líder por
último, ¢Al∑ Båbå supôs que restavam dois homens, pois na montanha os
contara e verificara serem quarenta. Foi por isso que durante esse período todo
ele hesitou em ir lá, temendo alguma aleivosia, mas como as notícias sobre eles
desapareceram, não lhes surgindo vestígio algum, ele teve certeza de que já não
existiam e criou coragem para ir ao esconderijo, levando consigo o filho a fim de
lhe mostrar o local e ensinar-lhe o segredo da chegada e da entrada; ao se
aproximarem, constataram que as ervas, o mato e os espinheiros haviam se
adensado em torno da porta, tapando o caminho, e deduziram que havia tempos
não entrava ali nem intimidade de gente nem murmúrio de vivente, e se
asseguraram de que os dois ladrões restantes também haviam sido mortos,
dissipando-se assim o seu medo. Criaram coragem, avançaram e atravessaram o
caminho, e com o machado ¢Al∑ Båbå cortou o mato e os espinheiros, abrindo
espaço e conseguindo chegar à porta, diante da qual disse: “Ó sésamo, abra a sua
porta”, e ela se abriu, entrando ele e o filho, ao qual mostrou o dinheiro, as
coisas insólitas, as preciosidades e os assombros ali contidos, deixando-o
estupefato ante tal visão, e extremamente espantado. Após circularem e flanarem
pelo esconderijo, passando e caminhando pelos seus salões, e se fartarem de
revirar-lhe as joias e metais preciosos, resolveram ir embora e levaram consigo o
que lhes agradou das preciosidades do esconderijo — tudo quanto pesasse pouco
e valesse muito —, retornando para casa felizes e contentes com o dinheiro
amealhado. Não pararam de transferir tudo quanto desejavam do esconderijo,
vivendo a vida mais agradável e feliz, até se abater sobre eles o destruidor dos
prazeres, separador das comunidades, destruidor dos palácios e construtor das
tumbas. Esse é o final do que chegou até nós da sua história, e o máximo que
tivemos das suas notícias, da mais antiga à mais recente.
Com a letra do pobre rogador do perdão do seu altíssimo e poderoso Senhor,
Yœ¬annå Bin Yœsuf Wåris∑,[664] que Deus lhe releve os escorregões e erros, e
valorize a sua recompensa e bons feitos, e faça do paraíso a sua morada, e da
casa da eternidade o seu abrigo, pois ele tudo pode, e costuma atender.
ANEXO 2

Em 1913, na mesma revista em que publicara o texto árabe de ¢Al∑ Båbå,
Macdonald desta feita deu à estampa uma espécie de resumo dessa história
anotado por Antoine Galland em seu diário, no qual afirma tê-la ouvido do
maronita alpino Æannå Diyåb. O texto seria mais tarde republicado pelo
estudioso Mohamed Abdel-Halim em sua tese sobre o eminente tradutor e
erudito francês.[665]

DO DIÁRIO DE GALLAND: AS AGUDEZAS DE MORGIANE
OU OS QUARENTA LADRÕES EXTERMINADOS PELA DESTREZA
DE UMA ESCRAVA[666]

Em uma cidade da Pérsia, próxima aos confins das Índias, havia dois irmãos, um
muito rico, grande comerciante bem alocado, e, o outro, um pobre camponês que
ganhava a vida cortando lenha numa floresta vizinha: um se chamava Cassem e
o outro Hogia Baba. Um dia, como de costume, Hogia Baba encontrava-se na
mesma floresta com três jumentos e viu ao longe um bando de gente a cavalo
que levantava uma nuvem de poeira e vinha em sua direção. Ele subiu em uma
árvore enorme. Com a aproximação deles, a poeira se dissipou e ele viu quarenta
cavaleiros, grandes, bem armados; desmontaram, amarrando os cavalos em torno
de um dos braços da enorme árvore. Havia um grande rochedo: os ladrões
avançaram até uma porta fechada etc., tão perto da árvore que Hogia Baba ouviu
o que pronunciou primeiro estas palavras: abre-te, Sésamo! Imediatamente a
porta se abriu; eles entraram, a porta se fechou, lá demoraram um longo tempo,
saíram. Quando todos estavam do lado de fora, o último se virou e, ao se virar,
pronunciou estas palavras: fecha-te, Sésamo, e a porta se fechou. Eles montaram
de novo a cavalo. Quando se afastaram, Hogia Baba desceu, ficou diante da
porta, pronunciou as mesmas palavras: a porta se abriu, a porta se fechou e,
graças a uma luz que vinha de uma câmara, ele encontrou a mesa posta e muitos
mantimentos, víveres, amontoados de riquezas etc., e, sobretudo, dinheiro e
pilhas de ouro. Há muito tempo, esse lugar era um refúgio dos ladrões. Eles
roubavam longe dali, traziam seu espólio de vez em quando e se abstinham de
fazer qualquer mal nas redondezas etc. Com sacos que o lenhador encontrou
entre os móveis, carregou seus três jumentos com ouro e, por cima, colocou
lenha, e ele retorna à cidade; em sua casa, entra por um pequeno pátio, fecha a
porta e descarrega os jumentos, carrega os sacos para dentro de casa; sua esposa
vem toda espantada, supõe que seu marido é um ladrão; Hogia Baba impõe-lhe
silêncio e conta-lhe o fato. A mulher quer contar o ouro. O marido lhe diz que
ela é uma tola, que isso é inútil; ela quer ao menos medi-lo. O marido cede,
deixa-a fazer; ela vai buscar um medidor na casa de Cassem, irmão do marido; a
mulher de Cassem lhe empresta. Como ela sabia de sua pobreza, estava curiosa
para saber qual grão ela queria medir, ela esfrega banha embaixo do medidor. A
mulher vai medir o ouro, ela sabe a quantidade de ouro que havia medido.
Enquanto seu marido enterra o dinheiro em um lugar da casa, ela devolve o
medidor à sua cunhada que o olha por debaixo e lá encontra uma moeda
grudada. No fim do dia, quando seu marido retorna, ela lhe conta o fato. No dia
seguinte, Cassem, ávido, não se contentando, vai encontrar o irmão, quer saber
onde ele pegou tanto dinheiro, ameaça denunciá-lo. Ele lhe conta tudo como
aconteceu e lhe oferece parte do tesouro. O irmão quer saber o lugar, as
indicações. Hogia Baba faz objeções: ele é forçado a obedecê-lo. Cassem, no dia
seguinte, vai à floresta com dez burros, ele encontra o lugar, pronuncia as
palavras; a porta se abre, ele entra, ela se fecha, ele vê o [sic].[667] Quando ele
quer sair para carregar os burros, não se lembra mais das palavras, de tão
absorvido que estava pelo que acabava de ver, ele encontra muitos tipos de grãos
etc. Os ladrões chegam de repente, eles se surpreendem e não compreendem:
eles o dividem em quatro partes e cada quarto de um lado e de outro da escada
por onde desciam e tronco do corpo [sic].[668] Eles saem depois da refeição e
fecham a porta. No fim do dia, quando a mulher de Cassem vê que o marido não
voltou, vai até Hogia Baba, pede novamente pelo marido, grita etc. Hogia Baba a
acalma, dizendo-lhe que ele pode voltar durante a noite etc. No dia seguinte ela
faz mais barulho. Hogia Baba pega seus três jumentos, retorna à floresta etc.; ele
chega à gruta, pronuncia as palavras, a porta se abre e ele vê o estado de seu
irmão: carrega seus jumentos com ouro e, juntamente, o corpo, em diversos
sacos, cobre tudo com lenha, volta, conta à sua cunhada; para impedir seus
gritos, ele a previne propondo tomá-la por esposa junto com a sua; ela aceita.
Para esconder a coisa, Morgiane,[669] no mesmo dia, vai pedir na vizinhança
tabletes próprios para doentes que estão em risco. No dia seguinte, ela faz a
mesma coisa para pedir uma essência como um último remédio. No fim do dia,
ela se mostra chorosa. No outro dia, bem cedo, ela vai à praça e se dirige a um
velho sapateiro que estava aberto antes dos outros, começa por lhe dar uma
moeda de ouro: “Boa estranha! O que queres de mim?”. Ela lhe diz que vai
fechar os olhos dele até certo lugar. Ele se faz de difícil. Ela lhe dá outra moeda
de ouro: ele se deixa levar, ela lhe fecha os olhos e o conduz até a casa de seu
amo, ela lhe mostra do que se trata. Ele faz objeções, ela promete outra moeda
de ouro: ele costura etc. Ela o leva de volta com os olhos vendados, tira-lhe a
venda e ele retorna para seu estabelecimento. Vão informar a mesquita para o
enterro e, enquanto isso, Morgiane esconde o defunto. Os ministros da mesquita,
quando chegam, querem lavar o corpo, Morgiane diz que isso já foi feito; o
defunto é conduzido. Morgiane segue adiante arrancando os cabelos etc. O irmão
segue o corpo, os vizinhos o acompanham gritando à moda da região etc. Hogia
Baba vai morar na casa de seu irmão, transporta seu dinheiro durante a noite etc.
Ele tem um filho que ocupa a loja de seu tio etc. Os ladrões retornam algum
tempo depois. Ficam surpresos por não encontrar o corpo e por ter diminuído a
pilha de ouro em relação àquela que havia antes, o capitão os incita à vingança e
propõe recompensa ou morte àquele que descobrir a morada. Um se apresenta,
ele muda de traje, vai à cidade e, bem cedo, dirige-se a um sapateiro. Ele lhe
pergunta, vendo-o tão velho, se ainda enxerga com clareza e se era capaz de
costurar bem. “Eu costurei bem um defunto!” O ladrão se alegra, dá-lhe uma
moeda de ouro, pede-lhe o endereço. Ele ressalta que não pode porque lhe
vendaram os olhos. “Tu bem que podias te lembrar[670] do caminho que fizeste,
vem que eu vou vendar os olhos etc”. Com o dinheiro na mão, ele acompanha o
ladrão e encontra a casa. O ladrão marca a porta com giz etc. Morgiane sai da
casa; ao voltar, percebe a marca, ela pega o giz e faz a mesma marca nas outras
portas de um e do outro lado, à direita e à esquerda. O ladrão, entretanto, vai
avisar os ladrões etc.; eles vêm à cidade, se dispersam, o ladrão e o capitão
passam o dia para reconhecer; eles veem muitas portas marcadas da mesma
forma etc.; ele retorna com os outros ladrões e aquele que não havia obtido
sucesso é punido. Um segundo se apresenta etc.; ele vai se dirigir ao mesmo
sapateiro, que o faz conhecer a casa da mesma maneira, ele marca a porta de
vermelho em outro lugar menos aparente. O ladrão é punido como o outro. O
próprio capitão se encarrega da coisa: ele toma conhecimento da casa pelo
mesmo sapateiro: torna a marcá-la bem e retorna à floresta e à gruta; providencia
grandes odres para azeite proporcionalmente ao número que tem de homens.
Encerra cada um dentro desses odres que ele besunta com azeite, e enche um
deles com esse óleo. Ele os carrega sobre burros, põe-se a caminho e chega
diante da casa de Hogia Baba, no lugar certo. Ele estava à sua porta onde, depois
do jantar, tomava um ar. O capitão dos ladrões roga-lhe abrigo em sua casa para
passar a noite. Ele não somente o consente como também ordena que coloquem
os cavalos na estrebaria, que lhe deem cevada, feno. Os odres são descarregados
no pátio, servem o jantar ao capitão. Depois do jantar, ele vai a cada odre e avisa
os ladrões para cortar os odres com as facas de que estavam munidos, quando ele
lançasse pequenas pedras para avisá-los. Dão-lhe um quarto para dormir. Hogia
Baba, antes de se deitar, recomenda a Morgiane que deixe pronta sua roupa de
banho para o dia seguinte e que lhe prepare uma sopa para sua volta. Morgiane
coloca a panela no fogo e a luz se apaga. Um empregado lhe diz para pegar
azeite nos odres que estavam no pátio etc. O ladrão que estava no primeiro odre
pergunta, falando baixo, se já estava na hora. Devido à sua perspicácia, ela
responde que não, mas dentro em breve. Ela vai a todos e faz a mesma coisa. O
odre com azeite era o último da fila; ela pega o azeite para acender a lâmpada e
encher[671] um caldeirão, que ela põe para ferver com breu; ela entorna todo o
líquido fervente em cada odre e faz perecer todos os ladrões etc. O capitão lança
as pedras, ninguém responde; ele desce e encontra todos os ladrões; ele se salva
de casa em casa.[672] Hogia Baba retorna do banho, ele toma conhecimento do
que se passou, enterra os ladrões em seu jardim, encontra um meio de vender os
burros etc.
O capitão dos ladrões fica sozinho, se disfarça de mercador; ele aluga uma
loja em frente àquela do filho de Hogia Baba, faz amizade com ele, grande
familiaridade: ele oferece várias vezes boas refeições. O filho quer retribuir, fala
com o pai, que o consente. Morgiane prepara o jantar. O filho e o falso mercador
chegam, sentam-se à mesa. O capitão se desculpa por não querer comer dizendo
que não comia pão, nem carne, nem guisado que tivesse sal. Baba Hogia [sic]
chama Morgiane e lhe pede para fazer, sem demora, pão e qualquer guisado sem
sal. Morgiane desconfia da malevolência, porque o sal é marca da amizade e não
há nenhum prejuízo desde que seja ingerido. Jantam; depois do jantar,
dançarinos etc., Morgiane coloca uma máscara, a baioneta ao lado, dança a
última e se faz admirar.[673] Ao final, ela se aproxima de Hogia Baba, que lhe
dá muitas moedas de ouro. Da mesma forma, ela se aproxima do filho, que faz a
mesma coisa. Ela enterra o punhal no peito do falso mercador. Hogia Baba grita,
ela o acalma mostrando de que maneira o capitão dos ladrões estava armado.
Elogio a Morgiane, ele a oferece em casamento a seu filho. A notícia ofusca a
morte, ele dá a conhecer disfarçando aquilo que era preciso disfarçar.[674] Em
diferentes vezes, ele tirou tudo o que havia de ouro e dinheiro etc., às
escondidas. Eles vivem felizes e contentes etc.
ANEXO 3


O EPÍLOGO: A NOITE PERDIDA DE JORGE LUIS BORGES

No ensaio “Magias parciales del Quijote”, Jorge Luis Borges observa, a
respeito do Livro das mil e uma noites, o seguinte: “A necessidade de completar
mil e uma seções obrigou os copistas da obra a interpolações de todas as
espécies, mas nenhuma tão perturbadora quanto a da noite dcii [602], a mais
mágica de todas: nela, o rei ouve da boca da rainha a sua própria história.
Ouve o começo da história, que abarca todas as demais, e também — de modo
monstruoso — a si mesma. Intuirá claramente o leitor a vasta gama de
possibilidades dessa interpolação, o seu curioso perigo?”.[675] Essa magnífica
passagem, bem como a rica extrapolação que a sucede — a obra se torna, em
suas palavras, “infinita e circular” —, chamou a atenção de escritores e críticos
de literatura. Chegou-se a especular — como afirmou, por exemplo, Italo
Calvino — que se tratava de uma invenção de Borges,[676] mas isso está
incorreto, e por dois motivos. O primeiro, mais imediato e comezinho, é que ele
a leu na tradução inglesa de Richard Burton, o qual por seu turno a introduzira
num dos “volumes suplementares” do seu gigantesco trabalho de tradução e
recenseamento das Noites; a própria numeração — 602 — é de Burton. O
segundo é que essa passagem, efetivamente, também existe em árabe, no décimo
segundo e último volume da edição de Breslau, cuja publicação em 1843 foi
supervisionada pelo arabista alemão Heinrich L. Fleischer.[677] A narrativa
toda se dá na milésima primeira noite, e se encontra traduzida abaixo.[678]

O rei ¸ahrabån[679] ficou espantado e disse: “Por Deus, a iniquidade mata quem
a pratica”. Em seguida, ele se admoestou com o que lhe disse ¸ahråzåd, pediu
auxílio a Deus altíssimo e disse: “Conte-me mais das suas histórias, ¸ahråzåd,
uma historinha agradável que seja o remate das histórias”. Ela respondeu: “Com
muito gosto e honra”.
Eu fui informada, ó rei venturoso, de que certo homem disse:
Conta-se que uma pessoa disse a alguns dos seus companheiros:
Eu lhes falarei sobre a vitória da integridade sobre a violência.[680] Um
amigo meu me contou o seguinte:
Encontramos a vitória da integridade sobre a violência, mas na origem as
coisas não eram assim. Deu-se que viajei por várias terras, regiões e países,
entrei em grandes cidades, cruzei caminhos e perigos e, no fim da vida, entrei
numa cidade cujo rei era [tão poderoso quanto os] da dinastia de Kisrà, dos reis
do sul da Arábia e dos de Bizâncio. Essa cidade era populosa devido à justiça e
equanimidade, mas o seu rei era cruel, extirpador de vidas e anos, guerreiro
invencível que não deixava apagar-se o fogo da vingança, e que oprimia os
súditos e arruinara o país; o irmão dele reinava sobre a Samarcanda persa, e cada
um deles viveu no seu país e lugar por determinado período, mas depois tiveram
saudades um do outro e então o rei mais velho enviou o vizir para convidar o
mais novo a visitá-lo. Quando o vizir chegou, ele se curvou à solicitação
ouvindo e obedecendo; preparou-se, fez tenção de viajar, mandou que
transportassem as tendas e os pavilhões e, passada a meia-noite, foi até a esposa
para despedir-se, mas encontrou dormindo com ela, na mesma cama, um homem
estrangeiro; matou-os a ambos, arrastou-os pelos pés, atirou-os do alto do
palácio e saiu em viagem. Quando chegou, o irmão mais velho ficou muito
contente com ele, hospedou-o num palácio ao lado do seu, destinado aos
hóspedes, e que dava para o jardim. O caçula ficou ali por alguns dias e,
pensando no que a esposa fizera consigo, lembrando-se da sua morte, e de que
mesmo sendo rei não escapara das desditas do tempo, ficou tão abalado que
parou de comer e beber, e quando comia algo nem sentia o sabor. Ao vê-lo
assim, o irmão, supondo que isso se devia à separação da família, disse-lhe:
“Vamos caçar e pescar!”, mas ele se recusou a ir, e então o mais velho saiu para
caçar e o caçula permaneceu no palácio. Enquanto ele olhava pelas janelas do
palácio para o jardim, eis que viu a cunhada com dez escravos e dez escravas;
cada escravo agarrou uma escrava, e um deles agarrou a cunhada; quando
terminaram o serviço, voltaram por onde haviam vindo. Presa de grande espanto,
o caçula se tranquilizou e aos poucos se curou da sua enfermidade; decorridos
alguns dias, o mais velho retornou e, encontrando-o curado do seu mal, disse:
“Conte-me, irmão, qual foi o motivo da sua doença e do amarelo [da sua face], e
qual o motivo, agora, do retorno da sua saúde, e do vermelho da sua face”, e
então o caçula lhe relatou todo o caso. O mais velho considerou aquilo uma
enormidade e ambos, escondendo o sucedido, combinaram abandonar o reinado
e vagar pelo mundo sem destino nem direção, pois supuseram que a ninguém
ocorrera o mesmo que a eles. Quando estavam em viagem viram no caminho
uma mulher dentro de sete caixas com cinco cadeados, no meio do mar salgado,
em posse de um ¢ifr∑t. A despeito disso tudo, aquela mulher emergiu do mar,
abriu os cadeados, saiu das caixas e fez o que bem entendeu com ambos os
irmãos após ter aprontado uma artimanha contra o ¢ifr∑t que a forçara a morar
no fundo do mar; então, ambos retornaram aos seus reinos, o caçula para
Samarcanda e o rei mais velho para a China, onde criou uma lei para o
assassinato de moças: toda noite o seu vizir lhe trazia uma jovem com a qual o
rei dormia e pela manhã a entregava a esse vizir, ordenando-lhe que a matasse.
Tal situação perdurou por algum tempo, até que as pessoas se agitaram, as
criaturas foram mortas e os súditos gritaram contra esse terrível proceder ao qual
estavam expostos, temerosos de que a cólera de Deus altíssimo se tivesse abatido
sobre eles e que com isso ele os exterminasse; o rei permanecia nessa situação,
com a condenável resolução de matar as jovens e incorrer em interditos;[681] as
jovens pediram socorro a Deus altíssimo e se queixaram da iniquidade do rei e
da sua injustiça contra elas. O vizir tinha duas filhas, irmãs de pai e mãe; a mais
velha, que lera livros de sapiência e crônicas de convivas, era dotada de vasta
inteligência, brilhante saber e estupendo entendimento; tendo ouvido o que as
pessoas sofriam da parte daquele rei, e de outrem, contra os seus filhos, e
movida pela clemência e pelo desejo de preservá-los, rogou a Deus altíssimo que
favorecesse aquele rei fazendo-o abandonar tal heresia,[682] e Deus lhe atendeu
o rogo; nesse momento, ela consultou a irmã caçula dizendo: “Quero arquitetar
um plano para salvar os filhos dos súditos, e será o seguinte: irei até o rei, e
quando eu estiver com ele mandarei chamá-la; ao chegar, quando o rei tiver
satisfeito a sua necessidade, diga: ‘Minha irmã, conte-me uma de suas graciosas
histórias para com ela atravessarmos esta noite, antes do amanhecer, e assim nos
despedirmos’. Fale de maneira que o rei ouça”. A caçula disse: “Sim. Essa será
uma providência que impedirá o rei, nessa noite, da heresia que ele vem
cometendo, e você será a detentora da magnífica virtude e da excelsa
recompensa na outra vida, pois terá arriscado a vida: ou morre ou chega ao seu
objetivo”. Então a irmã mais velha assim procedeu, sendo ajudada pela sorte e
favorecida pelo êxito. Revelou o plano ao pai, o vizir, que a proibiu de executá-
lo, temendo que fosse morta; ela repetiu as palavras pela segunda e terceira vez,
ao passo que ele, sem aceitar, aplicou-lhe um paradigma para dissuadi-la, e então
ela lhe aplicou um paradigma no sentido contrário; a discussão e a aplicação de
paradigmas entre eles se prolongaram, até que o pai percebeu que não podia
fazê-la retroceder. A filha disse: “É absolutamente imperioso que eu me case
com esse rei, e talvez eu sirva como resgate para os filhos dos muçulmanos; ou
faço o rei voltar atrás nessa heresia, ou então morro”. Incapaz de impedi-la, o
vizir foi até o rei e o informou do assunto dizendo: “Tenho uma filha que quer se
entregar ao rei”. O rei perguntou: “Como você se permite isso, sabendo de
antemão que eu não passo com a jovem senão uma única noite e pela manhã a
mato, sendo você próprio, seguidas vezes, o encarregado da execução?”. O vizir
respondeu: “Saiba, ó rei, que eu lhe expus tudo isso, mas ela não aceitou senão a
sua companhia, optando por vir aqui e se apresentar a você; embora eu tenha lhe
exposto os dizeres dos sábios, ela me respondeu com coisas contrárias em
quantidade maior que as ditas por mim”. O rei disse: “Deixe-a vir aqui à noite, e
venha você pela manhã para levá-la e matá-la. Por Deus que, se não o fizer, eu
matarei a ambos”. O vizir obedeceu às palavras do rei e saiu dali. A filha mais
velha então chorou, e o pai lhe perguntou: “Por que o choro, se foi você mesma
que escolheu isto?”. Ela respondeu: “Não choro senão por saudades da minha
irmã caçula, pois desde que cresci estou com ela, e não nos separaremos senão
neste dia. Se o rei permitir que ela esteja lá presente para que eu a veja, lhe ouça
as palavras e me farte dela até o amanhecer, isso será uma generosidade e um
bem da parte dele”. O rei ordenou que a filha mais velha do vizir fosse trazida, e
ocorreu o que tinha de ocorrer entre ambos: ele a possuiu e, quando subiu à cama
para dormir, a caçula disse à mais velha: “Por Deus, minha irmã, se você não
estiver dormindo, conte-nos uma das suas graciosas historinhas para com elas
atravessarmos a noite, antes do amanhecer e da separação”. Ela respondeu:
“Com muito gosto e honra”, e começou a narrar para a caçula enquanto o rei
ouvia. Sua história era boa e saborosa, e quando chegou à metade raiou a aurora
e o rei, cujo coração ficara em suspensão pelo restante da história, deu-lhe um
prazo até a noite seguinte, quando então ela lhe contou uma história sobre coisas
insólitas de diferentes países e fatos espantosos relativos aos súditos,[683] e que
era mais espantosa e mais insólita que a da primeira noite; quando chegou à
metade da história, raiou a aurora, ela interrompeu o seu discurso autorizado e o
rei a deixou [viver] até a noite seguinte a fim de ouvir o restante da história e só
então matá-la. Isso foi o que sucedeu a ela. Já os moradores da cidade ficaram
contentes, auguraram o bem, rogaram pelas filhas do vizir e se admiraram com o
fato de, já passados três dias, o rei ainda não a ter matado; alegraram-se com a
desistência do rei, que não tolerava um único deslize das jovens da cidade.[684]
Na quarta noite, ela lhe contou uma história mais espantosa, e na quinta lhe
contou sobre as notícias dos reis, dos vizires e dos maiorais, permanecendo ao
seu lado naquela situação por dias e noites, enquanto o rei dizia: “Quando ouvir
o fim da história irei matá-la”. As pessoas foram ficando cada vez mais
espantadas e admiradas, e ouviu-se a respeito entre os moradores de terras e
países distantes, isto é, que o rei voltara atrás na lei que estabelecera e no que
praticava, bem como em sua heresia, e se alegraram com aquilo. Muita gente
tornou a ir morar na cidade após tê-la abandonado, e rogaram ainda mais a Deus
altíssimo para que o rei continuasse assim.
[Prosseguiu ahråzåd:] “E este é o final do que se contou para o meu amigo”.
O rei lhe disse: “¸ahråzåd, termine para a gente a história contada pelo seu
amigo. Ela se parece com a história de um rei que conheço, mas agora eu
gostaria de ouvir o que sucedeu aos moradores dessa cidade e o que disseram
eles a respeito do rei, a fim de que eu recue daquilo que fazia”.[685] Ela disse:
“Com muito gosto e honra”.
Saiba, ó rei venturoso, dono de certeira opinião, mérito louvável e ânimo
forte, que o povo, ao ouvir que o rei rechaçara o que antes fazia e recuara no que
cometia, ficou sumamente feliz e rogou por ele. Depois, as pessoas começaram a
conversar entre si sobre o motivo do assassinato das jovens. Os sábios disseram:
“Não são todos iguais,[686] pois nem mesmo os dedos da mão são iguais”.
Ao ouvir essa história, o rei ¸ahrabån despertou, refazendo-se da sua
embriaguez, e pensou: “Por Deus que essa é a minha história, e essa narrativa é
sobre mim. Eu estava vivendo na cólera e no sofrimento até que ela me fez
desistir disso e me levou à correção. Louvado seja o motivador de tudo, o
libertador dos pescoços”. Em seguida disse: “¸ahråzåd, você me despertou para
muita coisa e me alertou para a minha ignorância”. Ela lhe disse: “Ó senhor dos
reis, os sapientes já disseram que o reino é um edifício cujas bases são os
soldados,[687] devendo-se fortalecê-las, pois já se disse: ‘Quando a base se
enfraquece, o edifício soçobra’. O rei também deve inspecionar os seus soldados
e ser justo com os súditos, tal como o chacareiro inspeciona as suas árvores e
arranca as ervas sem utilidade. O rei deve observar a situação dos súditos, deles
afastando a injustiça. Já você, ó rei, deve ter um vizir íntegro e conhecedor das
questões das pessoas e dos súditos, pois Deus altíssimo mencionou tal
denominação na história de Mœsà, a paz esteja com ele, quando disse: ‘Dá-me
um vizir da minha família: Hårœn, meu irmão’.[688] Assim, se o vizir fosse
dispensável, Mœsà Bin ¢Umrån teria mais direito de fazer isso. É ao vizir que o
sultão revela as suas coisas íntimas e públicas. Saiba, ó rei, que o seu paradigma
com os súditos é como o do médico com o doente. Para ser vizir, a condição é a
veracidade nos dizeres, a lealdade em todas as circunstâncias, muita misericórdia
pelos seres humanos, e piedade. Já se disse, ó rei, que o bom exército é como o
perfumista: mesmo que o perfume fabricado não chegue até você, o seu
agradável aroma chegará, ao passo que o exército ruim é como o ferreiro:
mesmo que as fagulhas dele não o queimem, você lhe sentirá o odor
desagradável. É-lhe necessário tomar um vizir íntegro e bom conselheiro, como
também casar-se com uma mulher que lhe alteie a face, pois você precisa
corrigir isso a partir da correção da sua própria face; se você andar direito, o
vulgo andará direito, e se for corrupto, o vulgo será corrupto”. Ouvindo aquilo, o
rei desmaiou e dormiu, e ao despertar mandou que velas fossem acesas, sentou-
se no trono, acomodou ¸ahråzåd ao seu lado e sorriu para ela, que beijou o chão e
disse: “Rei do tempo, senhor desta era e de todas as eras, glorificado seja o
perdoador benfeitor que me guiou até você, com o seu mérito e a sua
benevolência, para que eu o deixasse sequioso pelos jardins do paraíso, pois isso
que você estava fazendo jamais havia sido feito por nenhum rei anterior.
Louvores a Deus que lhe deu a boa senda e o salvou do caminho da apostasia.
Quanto às mulheres, Deus altíssimo as citou: ‘Os crentes e as crentes, os devotos
e as devotas, os verazes e as verazes, os que guardam o seu órgão sexual’.[689]
Quanto a essa história que lhe sucedeu, ela também sucedeu a outros reis
anteriores, os quais foram traídos por suas mulheres, embora fossem mais
poderosos que você, possuindo reinos mais vastos e soldados em maior
quantidade. Se eu quisesse, ó rei, contar-lhe histórias sobre as astúcias das
mulheres, eu não as poderia terminar por toda a minha vida. Eu já lhe contara
antes, e na noite passada, histórias que eram todas sobre as astúcias e vilezas das
mulheres,[690] mas foi excessivo para mim. Se você quiser, ó rei, eu lhe contarei
coisas que se passaram com os reis antigos relativamente à traição das suas
mulheres e as desgraceiras que os atingiram da parte delas”. Ele disse: “E como
foi isso? Conte para nós!”. Ela respondeu: “Com muito gosto e honra”.[691]
ANEXO 4


um “ancestral” de aladim

Em suas anotações de cinco de maio de 1709, Galland registrou que o maronita
alepino Æannå Diyåb lhe havia contado “a história da lâmpada”. Mais de um
ano depois, em três de novembro de 1711, ele registrou que a partir daquele dia
começaria “a ler o conto árabe da Lâmpada que me foi escrito em árabe há
mais de um ano pelo maronita de Damasco [sic]”. A crítica hoje tende a duvidar
seriamente da existência desse jamais encontrado manuscrito — aliás, nem esse
nem nenhum outro da lavra de Æannå.[692] Isso não significa, no entanto, que
essa história, ou alguma outra com elementos bem assemelhados, não tenha
existido e circulado, oralmente ou por escrito, em terras árabes. A partir de
1999, o erudito arabista Joseph Sadan passou a publicar estudos discutindo a
questão, com base numa narrativa por ele localizada no manuscrito “arabe
3658”, da Biblioteca Nacional da França, cuja datação é incerta (o catálogo da
bnf refere o século xviii, mas Sadan aventa a hipótese de que seja anterior ao
século xvii). Tal história, apenas uma dentre as diversas contidas nesse
manuscrito repleto de vulgarismos e possivelmente copiado no Egito (malgrado
a presença de dialetalismos sírios), apresenta mais de um elemento similar à
história de Aladim, e sua elaboração primitiva, que faz referência a Sayfudd∑n
Tankiz, governador mameluco de Damasco entre 1312 a 1340, pode remontar
aos séculos xv ou xvi.[693] No original, como é praxe nos manuscritos árabes
antigos, a mancha textual forma um bloco contínuo, motivo pelo qual os
parágrafos são do tradutor.

O ALFAIATE ALEXANDRINO E A LÂMPADA MÁGICA[694]

Conta-se que vivia na cidade de Alexandria um alfaiate cujo trabalho lhe rendia,
diariamente, um dinar de ouro, e que herdara muito dinheiro do pai. Certa noite,
enquanto dormia, eis que uma voz lhe disse: “O seu dinheiro não deveria ser
seu!”,[695] e ele acordou aterrorizado e perturbado, indo abluir-se e rezar para
só então voltar a dormir, mas eis que a voz lhe falou novamente: “Não deveria
ser eu!”. Ele perguntou à voz: “Deveria ser de quem?”. Ela respondeu: “Pertence
a Mu¬ammad, cervejeiro de Damasco, na Síria, no bairro de Alfisqår”. Perplexo,
o alfaiate se levantou e não conseguiu mais conciliar o sono. Quando
amanheceu, dirigiu-se ao mercado de Saq†iyya,[696] onde viu um leão[697] oco
de cobre e o comprou; no leão, viu um parafuso giratório, soltou-o[698] e ele se
abriu; tornou a colocar o parafuso e ele se fechou. Ao notar-lhe tais
características, ajuntou todo o dinheiro que possuía, colocou-o no interior do
leão de cobre, trancou-o, selou-o com chumbo e o atirou ao mar salgado
dizendo: “Nem para mim nem para você”; retornou a seguir para casa, onde
afinal se arrependeu do que fizera e pensou: “E o que lhe garante que quem lhe
disse tais palavras é seu primo ou algum parente seu para assim privá-lo desse
dinheiro? Você bancou o imbecil atirando-o ao mar, não passando tal ação de
loucura sua”.
Em seguida, se absteve de comida e bebida, desanimou-se inteiramente de
trabalhar e disse: “Por Deus que é absolutamente imperioso viajar para a Síria a
fim de indagar a respeito do tal homem e vê-lo”; então, vendeu as roupas do
corpo e viajou até a Síria. Quando chegou ao mercado de Qubaybåt compraram
o seu burro, e ele entrou na cidade de Damasco, não cessando de indagar a
respeito do bairro de Alfisqår até chegar à entrada de Aljåbya, onde ele viu a
inconfundível loja do cervejeiro, a qual continha toda espécie de cobre cravejado
de ouro e prata, bem como instrumentos, aparelhos, criados e escravos; depois,
olhando para o centro da loja, eis que avistou, enfeitando o local em meio aos
equipamentos, o leão de cobre onde metera o dinheiro, atirando-o depois no mar
salgado: ficou estupefato, a mente atônita, e estacou perplexo. Tão logo o viu, o
dono da loja veio cumprimentá-lo e perguntar: “De onde você é?”. Ele
respondeu: “De Alexandria”. O cervejeiro perguntou: “Quando chegou?”. Ele
respondeu: “Agora mesmo”. Perguntou: “Nunca na vida tinha vindo à Síria?”.
Respondeu: “Não”. Perguntou: “Você conhece alguém neste país?”. Respondeu:
“Não”. Então o cervejeiro o convidou a entrar e o levou lá para dentro; o alfaiate
se viu numa loja bonita e bem mobiliada, na qual foi acomodado, e após alguns
momentos eis que se servia uma refeição com todas as espécies de alimento, da
qual ambos comeram até a saciedade. Em seguida o dono da loja disse ao
alexandrino: “Considere seu este lugar”, e jurou para que ele não fosse mais
embora; após ouvir o consolo amistoso de tais palavras, o alexandrino disse:
“Quero fazer uma pergunta”. O cervejeiro respondeu: “Faça”. Ele perguntou:
“Esse leão de cobre, de onde lhe chegou?”. Ele respondeu: “Do local onde ficam
os vendedores de ovas de peixe. Temos lá alguns amigos com quem fazemos
negócio, e eles contaram que um deles, enquanto pescava no mar salgado, atirou
a rede, puxou o leão de cobre e pensou: ‘Isto não serve senão para uma loja
bonita como a de Mu¬ammad, o cervejeiro’, e então o trouxe para mim”.
O alfaiate perguntou: “Porventura você o abriu?”. Ele respondeu: “Não”. O
alfaiate disse: “Traga-o aqui!”, e pronto o cervejeiro o trouxe. Ele arrancou o
lacre de chumbo e soltou o parafuso; quando a boca do leão se abriu, o alfaiate
disse: “Abra o seu regaço!”, e o leão se abriu, o ouro saindo de seu interior. Ao
ver isso, o cervejeiro perguntou: “Que história é essa?”. O alfaiate respondeu:
“Isso é sua propriedade e fortuna”. O cervejeiro disse: “Informe-me o motivo!”.
Após o alfaiate lhe contar a história inteira e completa, o cervejeiro disse: “Fique
com a metade e deixe a outra metade comigo”. O alfaiate respondeu: “Não
levarei nada, pois esse dinheiro não deveria ter sido meu, nada. Acaso existe
algo mais forte do que eu o haver atirado ao mar salgado e ele ter chegado a
você? Como poderia levar algo que lhe pertence legitimamente? Deus lhe
abençoe essa posse”. O cervejeiro disse: “Permaneça aqui conosco”. O alfaiate
ali permaneceu três dias, após os quais o seu peito se confrangeu e ele disse:
“Voltarei à minha terra”. Apesar do enfático pedido para que permanecesse ali,
ele se recusou, e então o cervejeiro lhe ofereceu dinheiro, mas o alfaiate
tampouco aceitou coisa alguma: ainda dispunha de cerca de duzentos dinares,
que constituíam o valor das coisas por ele vendidas. O cervejeiro lhe disse:
“Espere até que lhe providenciemos algumas provisões”, e lhe preparou cinco
galinhas assadas, recheando cada uma delas com cinco dinares; arranjou-lhe o
farnel, entregou-o a ele e se despediu. O alfaiate iniciou então a viagem de
Damasco em direção à sua terra, mas logo nos arredores da cidade avistou um
homem vendendo cerveja e foi até ele beber, após o que pensou: “A estrada está
cheia de provisões, há muitas aldeias pelo caminho e todas elas contêm o que
você precisa. Venda as provisões que estão consigo para esse cervejeiro”, e as
ofereceu a ele, que as comprou por dez dirhams. O vendedor de cerveja recolheu
as provisões e foi até o seu patrão,[699] a quem disse: “Patrão, hoje fiz uma boa
compra por dez dirhams. Se você me oferecer algum lucro, venderei para você”.
O patrão disse: “Deixe-me ver essa compra”, e ao lhe ser mostrada eis que se
tratava das provisões do alfaiate alexandrino! Ele as comprou do rapaz e, após
retirar o dinheiro que estava em seu bojo, entregou-as aos empregados e
escravos da loja, que as comeram. Louvado seja o repartidor das riquezas, o
generoso criador.
O alfaiate alexandrino disse de si para si: “Você veio para esta cidade e agora
está retornando ao seu país, mas aqui você ainda não viu senão a loja do seu
amigo cervejeiro. Você não viu a mesquita omíada, nem passeou por Båb
Albar∑d, nem apreciou Arrabwa, [a campina de] Aljabha e [o pomar de]
Almarja;[700] não contemplou nada disso! O que vai dizer às pessoas se o
indagarem a respeito? De fato, o melhor é retornar para ver tudo isso, e só então
retomar o caminho para o seu país”. Assim, ele atravessou o portão de Aljåbya,
contornou a mansão Assa¢åda,[701] avistou o Castelo e se pôs a contemplar
tudo, quando de repente, acompanhada de uma velha e uma criada, passou por
ele uma mulher que parecia o plenilúnio luminoso; ao vê-la, o alfaiate
alexandrino lançou-lhe um olhar que foi seguido por uma aflição, e, com o
coração já amarrado a ela, dirigiu-lhe a palavra, mas a moça não respondeu,
prosseguindo a caminhada enquanto ele ia atrás falando e se humilhando, sem
que ela se dignasse a responder, até que por fim entrou no banho público e se
lavou, saindo em seguida com o rosto descoberto, na suposição de que já não
restava ninguém no caminho. O alfaiate estava por ali sentado e, ao ver-lhe o
rosto, ficou ainda mais apaixonado e o seu coração se perdeu de amor; pôs-se a
lhe dirigir a palavra dizendo: “Minha senhora, que o seu banho tenha sido bom, e
mil vezes esteja você bem de saúde, e louçã!”, mas, como ela não lhe
respondesse, começou a falar cada vez mais até que disse: “Minha senhora, por
acaso sabe que tenho fogo no coração? Tenha pena de mim!”, e assim continuou
até se aproximarem da mansão Assa¢åda, quando então a velha se voltou para
ele e disse: “Parece que você é estrangeiro, meu filho!”. Ele respondeu: “Sou,
minha senhora”. Ela disse: “Vá-se embora. Você não sabe quem está seguindo
nem com quem está falando. Essa é a filha de Tankiz, governador da Síria. Nem
você é homem para ela, nem ela é mulher para você. Retome o seu caminho
antes que alguém o veja e você perca a vida”.
Então ele voltou, embriagado sem ter tomado vinho, e seu amor, paixão e
afeto só faziam aumentar. Caminhou até o sopé do Castelo e se sentou numa das
mesquitas, sem no entanto conciliar o sono ou sossegar. Quando Deus fez
amanhecer, saiu da mesquita, perplexo, ignorando como agir, e, sem comer nem
beber, pôs-se a zanzar de um mercado a outro, e de rua em rua, até chegar ao
mercado de AΩΩanj∑, onde avistou um alfaiate numa bela e grande loja, com
muitos artesãos e trabalhos, parando então para observá-los. O patrão lhe disse:
“Parece que você é alfaiate”, e ele respondeu: “Sim”. O patrão disse: “Venha
aqui trabalhar! É melhor que ficar desocupado”. Ele pensou:[702] “Vá distrair a
alma conversando com os artesãos”, e subiu.
Após lhe entregar um trabalho de costura, o patrão reparou-lhe nas mãos e
percebeu tratar-se de um bom artesão. Recolheu então aquele trabalho, [e lhe
entregou outro],[703] que era uma costura para a filha do governador da Síria, ao
preço de cem dinares a braça. E, por algo predestinado, nenhum dos artesãos que
trabalhavam para o alfaiate sabia passar sequer uma agulha naquele tipo de
costura. Mas o alexandrino o pegou e costurou sob as vistas do patrão, o qual,
constatando tratar-se de um hábil artesão, disse-lhe: “Você não é senão um
mestre!”, e prosseguiu: “Queremos oferecer um banquete pela chegada deste
rapaz até nós”. Como o mestre alfaiate era também diretor[704] do tesouro
público, fizeram-lhe um banquete que durou três dias, ao cabo dos quais o
mestre o dignificou e ordenou que dormisse em sua própria casa. O alexandrino
respondeu: “Não vou dormir senão na loja”, mas após algum tempo desgostou-o
dormir ali e ele disse: “Patrão, arranje-me outro lugar para dormir”. Um dos
artesãos lhe disse: “Temos uma casa com quarto”, e outro disse: “Temos um
quartinho”. O alexandrino disse: “Não quero senão um lugar só para mim”. Um
dos artesãos disse: “Por Deus, mestre, que temos uma casa com quintal
pertencente a fulano de tal. Não existe casa igual, mas ela tem um defeito
terrível: todo aquele que lá mora amanhece morto!”.[705] O alexandrino disse:
“Patrão, alugue para mim essa casa”. Ele perguntou: “Você tem juízo, meu
filho?”. O alexandrino disse: “E por acaso alguém morre antes da hora?”. O
patrão respondeu: “Não”. O alexandrino disse: “Portanto, alugue para mim essa
casa”. O patrão disse: “Então vamos lá vê-la”. Eles saíram, pegaram a chave da
casa com o proprietário, abriram-na, entraram e viram um belo quarto revestido
de mármores coloridos muito bem instalados, cravejados de ouro e lazurita, e
uma fonte de mármore com jatos d’água ao centro.
O alexandrino disse: “A Deus eu me confio”. O patrão disse: “Temo por
você”. O alexandrino disse: “Não vou morar senão aqui”, e pensou: “A morte é
mais fácil que a paixão por quem não sabe onde vivo, nem onde está o meu
dinheiro, nem em que desterro me encontro; assim eu descanso disso em que
estou”. Em seguida, foram até o proprietário da casa e lhe perguntaram: “Quanto
é o aluguel mensal?”. Ele respondeu: “Não receberei nada dele; alugue-a de
graça, mas haja o que houver não se exigirá nada de mim! Sejam testemunhas de
que eu recebi dele o aluguel de cinco anos”, e então os dois testemunharam.
Ele recebeu a casa e, amarrando o seu avental na cintura,[706] lavou-a, varreu
e limpou; lavou os ladrilhos, limpou-os e a incensou. O patrão lhe enviou
tapetes, esteiras, lençóis, tapetes de couro e almofadas, e ele a arrumou e pôs
cada coisa em seu lugar. Em seguida, ao ver uma lâmpada de cristal, pegou-a,
limpou-a do pó e poliu-a com cinzas e areia, verificando tratar-se de cristal
dourado que não tinha igual; depois, viu ao seu lado uma corrente e também a
poliu e limpou, verificando ser feita de ouro e prata, e nela pendurando a
lâmpada de cristal, que foi colocada no seu lugar, bem no centro do quarto; pôs-
lhe óleo — não sem antes ter-lhe providenciado água e mecha —, e pensou:
“Isso é melhor que um lampião[707] ou candelabro”. Fumegou o lugar com
incenso e sândalo e saiu para o trabalho, onde ficou até o anoitecer, jantando
com o patrão e pondo-se em seguida a conversar. Depois, pegou uma vela,
acendeu-a, comprou um pouco de doce, entrou na casa, acendeu a lâmpada e
espetou a vela no candelabro diante dela. Seu coração foi invadido pela ideia de
como ele iria morrer naquela casa, já que isso se daria de qualquer jeito. Esses
pensamentos foram passando por ele, de um lado devido ao desterro, de outro à
[falta de] dinheiro, e ele foi se sentindo pior especialmente por causa da mulher
que vira: a paixão se intensificou mais ainda e, colocando a cabeça entre os
joelhos, ele encostou as costas na parede, ouviu som de passos e viu o assoalho
de mármore no centro da casa se erguendo, e debaixo dele saindo um gênio cuja
cabeça tocava o teto e cujos pés ficavam na terra, numa aparência detestável.
Ao vê-lo, petrificou-se e, certo da morte, fez a profissão fé muçulmana[708] e
disse: “Louvores a Deus”. O gênio lhe disse: “Nada tema! Você não corre
perigo! Saiba que esta lâmpada é o meu sopro vital, fonte da minha vida,[709] e
foi feita por certo sábio. É por meio dela que sou conjurado,[710] e quem a suja
ou cospe nela eu mato. Todos quantos moraram aqui a conspurcaram, sujando-a
e cuspindo nela, e então eu lhes cortava o pescoço. Mas você não, você a lavou,
limpou e fez brilhar, e de mim não terá senão dignificação. Virei para lhe
satisfazer todas as necessidades, e enquanto você morar aqui nesta casa eu o
servirei. Acaso tem alguma necessidade para eu satisfazer?”. O alexandrino
perguntou: “E você faria o que eu pedir?”. O gênio respondeu: “Sim, peça o que
desejar, sem medo”. O alexandrino disse: “Traga para mim a filha de Tankiz, o
governador da Síria”. O gênio desapareceu por alguns instantes e rapidamente
retornou com a jovem, depositando-a diante dele enquanto ela dormia e
perguntando: “Porventura resta algum pedido?”. O alexandrino respondeu:
“Traga-nos o que comer e beber”, e o gênio lhe trouxe carne, pão, petiscos,
frutas, bebidas e tudo quanto ele pediu, perguntando em seguida: “Resta mais
alguma coisa?”. O alexandrino respondeu: “Não, retire-se na paz de Deus”. O
gênio disse: “Amanhã estarei aqui”, e se retirou. Em seguida, o jovem alfaiate
alexandrino acordou a jovem, que se levantou aterrorizada, amedrontada. Ele
disse: “Nada tema!”, e lhe tranquilizou o coração. A moça se sentou, ele lhe
ofereceu comida e bebida e ambos comeram, beberam, brincaram e se divertiram
até o amanhecer, quando então o mestre alfaiate e os artesãos vieram checar a
situação do seu companheiro, se ele havia morrido ou não; bateram à porta, ele
saiu, certificaram-se de que estava bem, felicitaram-no e lhe disseram: “Venha
conosco para o seu trabalho”, mas ele respondeu: “Hoje vou ficar no quarto
descansando”, e então o deixaram e foram cuidar dos seus afazeres.
Voltaram no dia seguinte, e o alexandrino lhes disse a mesma coisa do dia
anterior, sem que eles soubessem o gozo e o êxtase em que ele estava
mergulhado, nem que, ademais, o gênio estava a postos para servi-lo e lhe trazer
tudo quanto quisesse. Ficou naquela condição quinze dias, com a filha do
governador, comendo, bebendo, divertindo-se, brincando e folgando, ambos
ignorando o que ocorria no mundo, se acaso continuava próspero ou se se
arruinara. Então, o mestre alfaiate veio até ele e lhe disse: “Saia, meu filho, para
ver como Damasco se transtornou, com toda a sua gente em enormes
preocupações e aflições!”. O alexandrino perguntou: “E qual o motivo, mestre?”.
Ele respondeu: “A filha do governador da Síria desapareceu e agora o delegado
está dando uma batida pelas casas e demais lugares, e os soldados estão pelas
ruas procurando por ela, espalhados por todos os logradouros e estradas”. O
alexandrino disse: “Amanhã eu sairei”. À noite, quando o gênio veio e lhe
perguntou: “Você tem algum pedido?”, ele respondeu: “Devolva esta jovem ao
lugar dela”, e o gênio a enviou para casa. Pela manhã o alexandrino se dirigiu à
loja do mestre e lá cumprimentou os colegas, sentando-se para trabalhar por
cerca de uma hora, quando repentinamente se iniciaram as alvíssaras dizendo:
“A filha do governador da Síria já voltou!”. Perguntaram: “Onde ela foi vista?”.
Responderam: “Na cama dela”.
Então o pai foi ter com a jovem e lhe perguntou: “Onde você estava, minha
filha?”. Ela respondeu: “Só sei que eu dormia nesta minha cama e quando dei
por mim já estava numa bela casa junto com um rapaz”. O pai perguntou: “Você
conhece a casa?”. Ela respondeu: “Como é que eu poderia conhecê-la se eu nem
sei se fica na Síria ou em algum outro lugar?”. Ele disse: “Descreva-a”, e ela a
descreveu. Ele disse: “Tais características não pertencem senão às casas desta
cidade”, e perguntou: “O que vocês comiam?”, e quando ela o informou o que
comeram e beberam ele disse: “Essas comidas são desta cidade”, e perguntou:
“Você reconheceria esse homem?”; ela respondeu: “Como poderia não o
reconhecer se por meio mês fiquei com ele noite e dia?”. O pai perguntou: “Ele
se aproximou de você?”. Ela respondeu: “Papai, por que então eu teria ficado
com ele e por que então ele teria me levado para junto de si e me acontecido
tudo quanto aconteceu?”. O pai disse: “Não existe poderio nem força senão em
Deus altíssimo e poderoso!”. Em seguida, saiu dali e disse: “Quero dar uma festa
para os moradores da cidade em comemoração ao retorno da jovem.[711] Que
ninguém deixe de comparecer!”. Então foram reunidos os padeiros, os
cozinheiros e o povo e se fez na praça da cidade um enorme banquete. Todos os
moradores foram assim convocados: “Quem não comparecer ao banquete do
governador da Síria se tornará seu inimigo!”, e então as pessoas começaram a
chegar pouco a pouco. O governador instalou a filha num ponto de onde ela
podia ver todos quantos entravam e lhe disse: “Quando você vir o jovem em cuja
casa ficou jogue este lenço sobre ele”. Então ela se sentou, pondo-se a brindar
com todos quantos entravam. Cada grupo entrava em conjunto e era indagado:
“Está faltando alguém entre vocês?”; faziam-nos jurar que não estava faltando
ninguém. Até que chegou o grupo dos alfaiates, a quem se perguntou: “Está
faltando alguém entre vocês?”. Eles responderam: “Não”, e quando os fizeram
jurar disseram: “Não falta senão um estrangeiro que não está se sentindo bem”.
Disseram-lhes: “É absolutamente imperioso que ele compareça”, e então
mandaram chamá-lo e ele veio; quando chegou e atravessou o portão da praça, a
jovem o reconheceu e atirou sobre ele o lenço. O pai foi até ela e perguntou:
“Você o reconheceu?”. Ela respondeu: “É esse o homem”. O pai desceu e disse
ao secretário: “Vigie aquele homem e quando ele terminar de comer e quiser ir
embora não o deixe sair”. Em seguida, Tankiz cavalgou e retornou para a
mansão Assa¢åda, após ter determinado vigilância sobre o rapaz, a quem os
mamelucos enfim agarraram, levando-o para a residência do governador, o qual,
informado, disse: “Guardem-no até que eu o chame”.
Quando escureceu, após fazer a prece noturna, o governador disse aos
eunucos: “Tragam o homem!”, e ele foi trazido. Em seguida, chamou a filha e
lhe perguntou: “Minha senhora, olhe bem para este homem. Acaso foi mesmo
ele o seu amante ou não? Não lhe faça o sangue correr em vão!”. Ela respondeu:
“Como não o reconheceria, tendo sido ele meu companheiro por quinze dias?”.
Tankiz se voltou para o alexandrino e perguntou: “O que o levou a agir assim?
Não encontrou ninguém menor do que eu para brincar? Você me conhece ou
porventura nunca ouviu falar que eu sou Tankiz, temido pelos leões do deserto?
Você me desprezou e violou as minhas regras sem temer a minha força,
colocando a sua vida em risco!”. O alexandrino respondeu: “Meu amo, rei dos
líderes! Ouça a minha história, preste atenção às minhas palavras e depois faça o
que lhe parecer melhor!”, contando-lhe em seguida a sua história completa e
integral desde quando saíra de sua terra e o resto — “tudo isso, meu amo, se deu
por determinação de Deus altíssimo; se ele é que determinou essas coisas para
mim, como poderia eu evitá-las? Porém, o parecer do nosso amo é mais elevado,
e esta é a minha história. Você pode fazer o que quiser com o meu sangue, e que
Deus não o castigue por isso, pois o erro partiu de mim, sou eu o criminoso
contra a minha própria pessoa e para mim a morte é melhor que essa vida na
qual avultam aflições e preocupações, paixão e desterro”. Dito isso, calou-se.
Tankiz abaixou a cabeça por alguns momentos e logo se voltou para a filha
perguntando: “O que você me diz sobre este assunto?”. Ela respondeu: “O
assunto pertence a você; estamos ambos em suas mãos”. Voltando-se para o
alexandrino, Tankiz perguntou: “O que faço com você?”. Ele respondeu: “Da
minha parte, já declarei que você pode fazer o que quiser com o meu sangue. Se
eu não ficar com ela, para mim a morte será melhor que esta vida miserável”.
Tankiz disse: “Vou casá-lo com ela!”. O alexandrino disse: “Você é ainda mais
generoso que isso!” e, chorando, atirou-se aos seus pés para beijá-los. Ao ouvir
aquilo, Tankiz disse ao intendente: “Traga juiz e testemunhas”. [Assim que eles
chegaram,] escreveu o contrato de casamento, e logo os dispensou a todos,
solicitando em seguida a presença da mãe da jovem, a quem disse: “Eu o casei
com ela. Conduza-a para o marido agora mesmo”. A mulher disse: “Espere para
fazermos a festa de casamento!”. Tankiz disse: “A festa de casamento é
desnecessária. Vá providenciar um lugar para eles dormirem”, e imediatamente
esvaziaram um quarto para o casal, vestiram a moça e a conduziram ao
alexandrino naquela mesma noite.
Quando amanheceu Tankiz saiu em cavalgada, e ao voltar da expedição
sentou-se com os comandantes, juízes e líderes religiosos, aos quais perguntou:
“Sabem o que me aconteceu esta noite?”. Responderam: “Que tenha sido o bem,
ó rei dos líderes!”. Ele disse: “Estava eu sentado quando veio ter comigo o filho
do mestre que me criou,[712] e a quem devo muitíssimos favores. Sem saber
como receber-lhe o filho, casei-o com a minha filha e o nomeei grão-escriba do
meu divã. Portanto, quem gostar de mim que o trate bem”. Em seguida, mandou
chamar o alexandrino, nomeou-o para o cargo de grão-escriba do divã e lhe deu
pedras preciosas, camelos, dinheiro e outros regalos, e os comandantes, líderes
militares, juízes e demais figurões da Síria levaram-lhe presentes e joias. Ele se
tornou um dos maiores, mais ricos e mais venturosos comandantes, mantendo-se
com a esposa na melhor, mais bela e mais feliz das vidas, até que lhes adveio o
destruidor dos prazeres e dispersador das comunidades. E Deus conhece mais a
verdade. Louvores a Deus, o generoso doador.
POSFÁCIO
BREVE EXPLICAÇÃO SOBRE AS FONTES

À diferença do que inicialmente se anunciara, a presente coleção do Livro das
mil e uma noites terá quatro volumes e não cinco. Portanto, com este quarto
volume dá-se por concluído o trabalho de tradução de fontes manuscritas desta
obra, o que não significa que as suas possibilidades tenham sido esgotadas —
seria uma grande pretensão, para dizer o mínimo —, mas que muito
simplesmente, levando-se em consideração os propósitos inicialmente
colocados, os resultados alcançados já podem ser considerados suficientes.
Optou-se por dividir o volume em quatro blocos, em observância às fontes
utilizadas, sucedendo-os por quatro “anexos”, totalizando oito fontes que se
encontram discutidas adiante, uma por uma. Observe-se que os títulos que
encabeçam as histórias são da lavra do tradutor, pois os originais não os contêm.
Para a transcrição das palavras árabes, mantiveram-se os critérios adotados nos
outros três volumes da coleção. À descrição “ramo egípcio” constante da capa,
acrescentou-se o título das histórias de “¢Alå’udd∑n” e “¢Al∑ Båbå” porque
nenhuma das duas pode ser definitiva e exclusivamente agrupada dentro dessa
categoria, embora ambas dela derivem e sejam resultado da vivência dos seus
autores/copistas no Egito.

MANUSCRITOS & IMPRESSOS UTILIZADOS, E SUAS HISTÓRIAS

1) Noites 514-591
Jamais publicada em nenhuma edição impressa em árabe do Livro das mil e uma
noites, a história de “¢Alå’udd∑n e a lâmpada mágica” existe em somente duas
fontes manuscritas, além da tradução de Jean Antoine Galland (1646-1715), que
lhes é anterior. A primeira dessas fontes é o manuscrito “Arabe 3613”,
depositado na Biblioteca Nacional, em Paris, no qual essa história ocupa as
noites 492-596. Juntamente com o seu segundo volume, o “Arabe 3614”, esse
manuscrito constitui uma versão completa das Noites; seu copista, o padre sírio
Denis Chavis, na segunda metade do século xviii trabalhou e lecionou árabe na
biblioteca daquela cidade sob proteção do barão de Breteul. Tendo notado o
interesse do público em geral e dos estudiosos pelas Noites — cuja tradução,
feita por Galland e publicada entre 1704 e 1717, lograra enorme sucesso —,
Chavis certamente teve a atenção despertada para a raridade dos manuscritos
“completos” desse livro, isto é, cujo conteúdo correspondesse ao título, e logo
produziu e apresentou o “seu” manuscrito completo. Depois de tal façanha,
Chavis publicou em francês, em 1788/1789, uma “complementação” à tradução
das Noites, em parceria com o escritor Jacques Cazotte (1720-1792), cuja
participação nesse processo foi fundamental, porquanto o texto originariamente
traduzido por ele não passava de uma mixórdia quase incompreensível na qual se
embaralhavam o francês e o italiano. Com a eclosão da Revolução, Cazotte foi
preso e guilhotinado pelos jacobinos, enquanto Chavis parece ter sido expulso da
França juntamente com outros sacerdotes, na onda anticlerical que se seguiu ao
evento. E dessa personagem os registros históricos conhecidos não guardam
mais nenhuma notícia.
Desde o início, o manuscrito em árabe das Noites compilado por Chavis
suscitou desconfiança nos orientalistas, sobretudo pela vaguidade das suas
informações — ele declarou, por exemplo, ter “encontrado” as histórias, sem
referir maiores detalhes — e pelo caráter claudicante da sua escrita em árabe. No
caso da história de ¢Alå’udd∑n, em particular, nem sequer a grafia do nome lhe
parecia familiar: talvez enganado pela forma francesa, Aladdin, ele supôs que se
tratasse de outra espécie de combinação de palavras que não ¢alå’, “elevação”, e
d∑n, “fé”. Como quer que seja, após a sua partida da França o manuscrito
permaneceu depositado na Biblioteca Nacional, em meio a uma relativa
indiferença. Hoje, mercê das análises de Zotenberg e Mahdi, tende-se a crer que
Chavis copiou o “seu” manuscrito do manuscrito incompleto do século xv que
pertencera a Galland, o “Arabe 3609-3610-3611”, acrescentando em seguida
histórias provenientes de outros manuscritos sem ligação com as Noites, ou
então traduzindo as histórias ao árabe a partir da tradução francesa de Galland,
como foi o caso, segundo creem os críticos supracitados, de ¢Alå’udd∑n e Zayn
Alaßnåm, entre outras. Assim, sem tirar nem pôr, esse manuscrito de Chavis, o
“Arabe 3613-3614”, foi tachado como mera falsificação perpetrada por um
homem sequioso de glória e nomeada.
Foi pelas mãos de outro árabe, o também levantino M∑Δå’∑l Aßßabbå©
(1775-1816), cristão nascido na cidade palestina de Acre, que a versão árabe da
história de “¢Alå’udd∑n e a lâmpada mágica” recebeu um nível diferente de
tratamento por parte da crítica. Chegado à França na companhia das tropas
napoleônicas que retornavam da campanha do Egito, onde servira como
pressuroso secretário ao general francês René, Aßßabbå© logo entabulou
relações com Silvestre de Sacy, mestre dos arabistas franceses, e os seus
discípulos, passando então a trabalhar no setor de obras árabes da Biblioteca
Nacional, na época ainda chamada de “Biblioteca Real”. No início do século xix,
em algum momento das suas atividades, Aßßabbå© deu à publicidade um
manuscrito “completo” do Livro das mil e uma noites, hoje depositado sob a
rubrica “Arabe 4678-4679”, e conhecido como “manuscrito de Bagdá”. Tal
manuscrito, que alcançou grande fortuna entre os estudiosos do assunto, fora
fidedignamente copiado, conforme alegação do seu copista Aßßabbå©, de outro,
feito em Bagdá no ano de 1115 da Hégira, correspondente a 1703 d.C. E tão fiel
fora esse labor que até a marginália do “original” estava ali transcrita. Assim,
podem-se ler no manuscrito coisas como: “Eis a fala do meu senhor ¢Abdullåh
Alkœf∑, que disse: o contador deve rechear a noite das mil e uma noites que
estiver contando aos ouvintes, se conseguir ou lhe for possível, de tal modo que
a faça corresponder à noite inteira deles”; ou “Disse Abœ Al¬asan ¢Al∑ ˇåha: o
narrador deve narrar conforme os ouvintes; se forem do vulgo, que lhes dê as
notícias a respeito do vulgo constantes das mil noites, as quais se localizam no
seu início; e se os ouvintes forem governantes, ele deve contar-lhes histórias de
reis e combates entre cavaleiros, as quais se localizam no seu final”. Tamanha
fidelidade, aliada ao prestígio que Aßßabbå© desfrutava junto aos orientalistas e
eruditos da França e da Europa, tornou o manuscrito objeto de cobiça, tendo
passado pelas mãos de mais de um deles antes de ser definitivamente
incorporado ao acervo da Biblioteca Nacional, onde, conforme se disse, além da
catalogação oficial, “Arabe 4678-4679”, também ganhou o apelido de
“manuscrito de Bagdá”. Sua autenticidade jamais foi posta seriamente em xeque
até 1984, quando o estudioso e crítico Muhsin Mahdi, no volume de aparatos da
sua edição crítica do ramo sírio do Livro das mil e uma noites, afirmou
abertamente tratar-se de uma farsa fabricada com o propósito deliberado de rir
nas barbas dos orientalistas europeus e de lhes tomar dinheiro. Para chegar a
tanto, Mahdi declarou ter comparado meticulosamente a cópia de Aßßabbå©
com materiais por ele conhecidos e para ele disponíveis na biblioteca à época,
comparação essa que não deixou nenhuma sombra de dúvida quanto ao trabalho
de colagem e montagem habilmente desenvolvido por Aßßabbå©, cujo
manuscrito de Bagdá não passaria de uma lenda.
Feitas essas observações preliminares, impõe-se a indagação: sendo esse o
estado da questão, por que incluir neste volume a tradução da história de
¢Alå’udd∑n e a lâmpada mágica, que consta de manuscritos sobre cuja
legitimidade pairam tantas suspeitas? Duas ponderações levaram o tradutor a
fazê-lo. A primeira é que, a despeito das críticas e reparos, a conclusão não pode
ser tão categórica assim. Sim, o manuscrito de Chavis é claramente cheio de
problemas, e, sim, a história do manuscrito de Bagdá é bem intrigante. Porém,
por mais que se trate de uma farsa, as contundentes críticas do próprio Mahdi
contêm muito impressionismo, não apresentando provas acusatórias suficientes
na descrição que faz dos procedimentos adotados por Aßßabbå©, e limitando-se
a dizer coisas como “copiou o texto de tal lugar e lhe introduziu modificações
tais que impediram os estudiosos de perceber” etc. etc. Ou seja, faltam ao
trabalho de comparação do eminente professor de Harvard minúcias para
convencer. Não se pretende aqui “inocentar”, se cabe o termo, Chavis e
Aßßabbå©, mas conceder-lhes o benefício da dúvida. Ninguém pode garantir,
por exemplo, que não tenham conhecido previamente no Oriente, a partir de
fontes orais, algumas dessas histórias que traduziram do francês, ou adaptaram.
O fato é que, se em determinados pontos ambas as versões, especialmente a de
Chavis, parecem servis ao texto francês de Galland, em outros as diferenças
saltam aos olhos, de um modo que não torna implausível essa mescla entre o lido
e o ouvido, tão característica de certos momentos de constituição da obra. Dito
de outra maneira, é pueril ignorar as diferenças entre o “original” suposto de
Galland e os textos árabes de Chavis e Aßßabbå©, além de autoritária a
pretensão de atribuí-las apenas e tão somente à ignorância ou ao desejo de
trapacear e enganar. E a pretensão de Aßßabbå© de incluir elementos dialetais
egípcios e levantinos no texto mereceria estudos mais pormenorizados.
A segunda ponderação se vale das críticas do próprio Mahdi, segundo quem,
em dado momento da sua trajetória, o Livro das mil e uma noites já não pôde ser
dissociado dessas “espúrias” tentativas de complementação levadas a cabo na
Europa, e das quais Chavis e Aßßabbå© seriam exemplo cabal e modelo.
Deixando de lado o aspecto mais propriamente ético ou moral desse assunto, a
presente tradução cogitou que, colocadas as coisas nesses termos, tal trabalho de
complementação se reveste de uma amplitude que não só o legitima como o
torna parte fundamental dos esforços para a constituição do livro. A história de
¢Alå’udd∑n, que se tornou uma das mais conhecidas do livro, pareceu ser a mais
adequada para representar esse ramo “duvidoso” das Noites.
A tradução constante do presente volume, conforme se explica nas notas, foi
feita com base no texto impresso publicado no livro Allayål∑ Al¢arabiyya
Almuazawwara, “As noites árabes falsificadas”, de 2011, que por seu turno
reproduz ipsis litteris a mui fidedigna edição preparada pelo arabista franco-
polonês H. Zotenberg em 1888 e baseada no texto existente no manuscrito de
Aßßabbå©, apontando em nota algumas divergências e curiosidades verificáveis
no manuscrito de Chavis.[713]

2) Noites 624-729
Do manuscrito “Bodleian Oriental 554”, da Biblioteca Bodleiana, em Oxford,
foi traduzido o segundo bloco do presente volume, que contém dezesseis
narrativas, entre histórias e sub-histórias. Tal manuscrito, na verdade parte de um
conjunto de sete cadernos — “Bodleian Oriental 550-556” — que constituem a
mais antiga cópia “completa” das Noites, feita em 1764/1765 em Roseta, no
Egito, é um dos mais curiosos, se não o mais curioso dos manuscritos desse
livro. Algumas das suas histórias provavelmente remontam ao final do período
mameluco ou ao início do período otomano, isto é, à segunda metade do século
xv ou à primeira do xvi (veja a referência à fundição de canhões numa das
histórias), e a sua linguagem, embora seja egípcia na maior parte, contém
elementos de dialetos norte-africanos e levantinos. O primeiro e o segundo dos
cadernos do manuscrito, “Bodleian Oriental 550-551”, já haviam sido utilizados,
respectivamente, como auxiliares para a tradução do primeiro e do terceiro
volumes desta coleção, e como fonte direta para a tradução da história “O rei
Qamaruzzamån e os seus filhos Amjad e As¢ad”, no segundo volume. Como se
disse, a maior parte dos cadernos encontra-se em linguagem coloquial egípcia, e
sobretudo no final as suas histórias são marcadamente obscenas, quando não
pornográficas. Suas variações de caligrafia não permitem distinguir claramente
se foi compilado por um ou mais escribas, e talvez haja mão europeia no
processo de elaboração e produção. O primeiro proprietário do manuscrito, o
lascivo aventureiro inglês Edward Montagu, viveu no século xviii, entre outros
lugares do Oriente Médio e do Mediterrâneo, no Cairo, em Alexandria e no
Sinai, tendo se hospedado em Roseta na casa do mercador e orientalista francês
Jean Varsy, que pode ter participado, de alguma maneira, da sua elaboração
(veja, adiante, o tópico 5, sobre ¢Al∑ Båbå). Para a tradução, a escolha recaiu
sobre um conjunto de histórias representativo, tanto na linguagem como na
temática, das características desse manuscrito, cujos únicos tradutores até hoje,
ao que parece, foram Richard Burton (1821-1890), que no século xix lhe verteu
muitas das histórias — mas não todas — em suas “Noites suplementares”, e o
arabista tcheco Felix Tauer (1893-1981), que traduziu ao alemão todas as
histórias exclusivamente constantes desse manuscrito. Para a presente tradução
ao português, somente se encontraram fontes de comparação em árabe para “A
insônia do califa” e “Os amantes de Basra”, que constam, embora em formato
muito diverso, nas edições impressas da “vulgata” das Noites e no livro
“Histórias assombrosas e crônicas espantosas”, e para “Os amores de Hayfå e
Yœsuf”, história da qual existe uma edição litográfica publicada no Cairo em
1870. Para as demais histórias não se encontraram outras fontes, nem impressas
nem manuscritas, o que não significa que não existam, mas que, simplesmente,
ainda não estão disponíveis. Desnecessário observar que muitas dessas narrativas
são agressivas ou contêm inconveniências cuja exclusão, no entanto, seria
desonesta, tendo sido por isso vertidas com a maior fidelidade possível. O
tradutor, por exemplo, sentiu-se quase tentado a excluir a repugnante narrativa
“O bravo guerreiro e a sua mulher” (noites 717-721), mas, como esse
procedimento significaria uma autêntica mutilação, além do falseamento aí
implicado, ela foi mantida tal e qual, com todo o seu doentio moralismo.

3) Noites 740-774
Do já descrito manuscrito “Arabe 3612” da Biblioteca Nacional, Paris, copiado
no século xvii e generosamente utilizado nesta coleção, traduziu-se o conjunto
de máximas que constituem um tratado político nos moldes antigos na cultura
árabe. Ao primeiro contato com esse texto, que Zotenberg descreveu como um
“conjunto de máximas e apotegmas”, ficou clara a sua filiação ao gênero
chamado aladab assul†ån∑, “literatura sultanesca”, espécie de versão árabe do
“espelho de príncipes”, o que foi logo confirmado quando se identificou a sua
fonte: trata-se, sem mais, de cópia de trechos do livro “Ouro em lingotes no
aconselhamento aos reis”, do teólogo e pensador muçulmano Abœ Æåmid
Al©azål∑, o Algazel dos latinos, nascido em 1058 em ¿uråsån e morto na
mesma província em 1111. Escrito originariamente em persa para o sultão
seljuque Mu¬ammad Ibn Malikšåh (m. 1117), o livro foi traduzido ao árabe logo
após a morte de Algazel por um dos seus discípulos, e essa tradução pronto se
difundiu e ganhou destaque. O copista egípcio do “Arabe 3612” não introduziu o
livro inteiro no manuscrito, mas sim algumas de suas partes, sem se ater à
divisão em capítulos e subcapítulos, nem mencioná-la, e tampouco manter a
ordem usual, notando-se ampla liberdade na exposição, devida a não se sabe
quais fatores: confusão dos materiais à sua disposição, conveniência, decoro, ou,
enfim, qualquer outra coisa. Como o tom desse texto, pelas características do
gênero ao qual se filia, é mais formal que os outros, a tradução adotou a segunda
pessoa (tu, vós) em lugar do pronome de tratamento (você, vocês), ao contrário
do procedimento nos outros volumes e nas demais histórias do presente volume.
Como fonte de comparação utilizou-se uma edição crítica desse livro realizada
por Mu¬ammad Damaj e publicada no Líbano em 1987. Não se trata de um
trabalho irretorquível, antes pelo contrário, mas foi o único à mão. Também se
utilizou um texto, disponível na internet (e com todas as limitações comumente
apresentadas pelos textos disponibilizados na internet), correspondente à
“vulgata” dessa obra em árabe, além das fontes, diretas ou indiretas,
identificadas em outras obras, e que estão apontadas nas notas. Curiosamente,
algumas das variantes da presente versão das Noites seriam úteis para solucionar
problemas na fixação do texto original, motivo pelo qual neste bloco as notas
foram particularmente exaustivas. Conquanto não pareça pertinente encarar a
introdução desse texto nas Noites como paródia ou ironia, não parece de todo
despropositado pensar que, de algum modo, tal função já estava prevista pela
própria estrutura e dramatização das Noites: ou seja, o emprego do discurso
ficcional, mediado por voz narrativa feminina, como metáfora do
aconselhamento político, pode ter eventualmente aplainado o caminho para a
inserção operada por esse escriba. Tal apropriação não seria estranha à época,
conforme se evidencia num texto árabe do século xiii intitulado Asås Assiyåsa
wa flaΔ∑rat Almaråsa wa Naßå’i¬ Arriyåsa, “Fundamento da política, tesouro
da experiência e aconselhamento da liderança”, de Alqif†∑, letrado egípcio
morto em 1248. Nesse tratado, só recentemente descoberto e publicado, um
grupo de mulheres do harém adestra politicamente o seu rei e marido por meio
de histórias ficcionais cuja estrutura e função se assemelham a Kal∑la e Dimna e
O leão e o chacal Mergulhador, mas numa circunstância de enunciação mais
assemelhada ao Livro das mil e uma noites.

4) Noites 824-1001
O manuscrito “Arabe 3619”, também da Biblioteca Nacional, em Paris, remonta
ao século xvii, segundo avaliação de especialistas como Zotenberg e Heinz
Grotzfeld; por esse motivo, é o mais antigo manuscrito a conter um final para as
Noites. Desafortunadamente, dele somente restou a última parte, que cobre as
noites 824-1000. A data da elaboração das histórias nele constantes varia: muitas
remontam aos séculos viii e ix, encontrando-se em obras dessa época; outras,
como as dos capitães de polícia do sultão mameluco Baybars, devem remontar
ao século xiv ou xv. Mahdi jamais cita esse manuscrito em suas pesquisas, não
obstante ele seja a prova cabal de que, sim, antes da tradução de Galland,
publicada entre 1704 e 1717, já circulavam versões “completas” do Livro das mil
e uma noites. Ou não? Como lhe faltam os demais pedaços, isto é, o “prólogo-
moldura” e as noites 1 a 823, talvez não seja absurdo supor que esse manuscrito
jamais tenha existido “inteiro”, e que ao seu escriba ocorreu a caprichosa ideia
de produzir um final antes mesmo de dispor de um “meio”, o que parece ser
corroborado por um peculiar “buraco” na numeração das noites do “Arabe
3619”, que em dado momento pula de 909 diretamente para 1000. Seja como for,
trata-se de um manuscrito muitíssimo oportuno, conquanto ofereça alguma
resistência à leitura por causa da sua caligrafia pouco esmerada, a qual, aliás,
apresenta convergências com a do manuscrito “Arabe 3615”, de finais do xvii ou
inícios do xviii, e já descrito nos outros volumes desta coleção. Várias das
histórias do “Arabe 3619”, em especial as anedotas, derivam, indiretamente, de
textos clássicos árabes, conforme se aponta nas notas a esse bloco, cujas últimas
histórias, agrupadas sob a rubrica “O sultão mameluco Baybars e os seus
dezesseis capitães de polícia”, também fazem parte da edição impressa de
Breslau. Contudo, deve-se notar que, no geral, a versão do manuscrito é melhor
e visivelmente mais antiga que a da edição de Breslau. Boa parte dessas histórias
parece filiar-se ao gênero, deveras comum nas antigas letras árabes, denominado
“alívio após angústia”, e uma pesquisa mais cuidadosa a respeito poderia
encontrar-lhe as fontes, diretas ou indiretas, nas volumosas compilações do juiz
bagdali Almu¬assin AttanœΔ∑, morto em 994. O arabista alemão Heinz
Grotzfeld refere ainda a existência dessas histórias em outros dois manuscritos,
depositados um na Alemanha e outro na Turquia, aos quais infelizmente não foi
possível ter acesso. A tradução francesa de Joseph-Charles Mardrus (1848-
1949), cujos dezesseis tomos se publicaram de 1899 a 1904, traz entre as noites
934 e 957 a “História de Baybars e dos doze capitães de polícia”; entretanto,
com exceção da primeira, as demais histórias não têm a mais remota semelhança
com as do manuscrito e da edição de Breslau. Como é público e notório,
Mardrus alegou ter realizado a sua tradução a partir de algumas fontes impressas
e de um manuscrito de sua propriedade, do qual não se tem hoje nenhuma
notícia. Não obstante a sua vaga semelhança com os finais constantes das
vulgatas das Noites, representadas pelas edições de Bœlåq e Calcutá2, o final do
“Arabe 3619” é bem mais rico e pormenorizado que o daquelas duas, e não faz
nenhuma referência a filhos. Como uma das histórias desse manuscrito, “O rei
¸åΔ BaΔt e o seu vizir Rahwån”, já fora traduzida, a partir de outras fontes, no
terceiro volume desta coleção, julgou-se de bom alvitre omiti-la neste, até
porque a redação é praticamente a mesma, sem variantes de monta, alterando-se
apenas a numeração das noites.

5) ¢Al∑ Båbå e os quarenta ladrões
Descoberta que teria feito Richard Burton “se agitar na tumba”, a versão árabe
de “¢Al∑ Båbå e os quarenta ladrões”, publicada em 1910 pelo arabista Duncan
Macdonald, é bastante singular: precedida da história “Hårœn Arraš∑d e a filha
de Kisrà”, ela existe num solitário manuscrito, adquirido pela Biblioteca
Bodleiana em 1860, catalogado como “Bodleian Oriental 633”, no qual não se
faz nenhuma referência às Noites nem a ¸ahrazåd, e cujo copista é um certo
Yœ¬annå Bin Yœsuf Alwåris∑, que apesar do nome caracteristicamente cristão
usava vocabulário islâmico para se descrever. Já à época o texto árabe suscitou
viva controvérsia entre os arabistas, como seria de esperar, e decorridos três anos
da publicação o mesmo Macdonald anunciava ter igualmente desvendado o
aparente “enigma” em torno do nome do copista do manuscrito: tratava-se do
mercador e arabista francês Jean Varsy, sobre o qual existem raras informações.
Não se sabe quando nem onde nem sob quais circunstâncias teria sido feita a
cópia. A despeito das desconfianças iniciais sobre a autenticidade do texto, foi
somente em 1994 que se emitiu um juízo categórico a seu respeito. Muhsin
Mahdi, no ensaio “Retranslation: an arabic version of ‘Ali Baba’”, publicado no
volume de ensaios que sucedeu os dois volumes da sua edição crítica do ramo
sírio do Livro das mil e uma noites, não deixa margem à menor dúvida: essa
versão árabe não passa de uma tradução do francês. Rigoroso, Mahdi considerou
“ridículo” o texto árabe de ¢Al∑ Båbå, apontando-lhe vários “defeitos”, muitos
dos quais, porém, verificáveis em partes por ele consideradas “legítimas” das
Noites, como, por exemplo, a existência de trechos “desnecessários” ou
“redundantes”, ou mesmo erros de ortografia, palavras excessivamente eruditas,
incongruências e inverossimilhanças.
Saliente-se que esse texto de “¢Al∑ Båbå e os quarenta ladrões” foi publicado
em 1910 numa revista acadêmica europeia que não circulava nos países árabes,
circunstância essa que o manteve praticamente desconhecido do público leitor
dessa língua. Foi somente em 2011 que ele passou a circular numa edição
comercial entre os árabes, juntamente com o texto de “¢Alå’udd∑n e a lâmpada
mágica”. Como se tratava de uma virtual novidade na região, o livro recebeu
diversas resenhas na imprensa local (libanesa, egípcia, saudita, iraquiana…) e,
curiosamente, nenhuma delas mencionou esse suposto “ridículo” do texto. Em
que pese o paradoxo, dado o fato de que um foi escrito por um arabista e o outro
por um árabe, o texto de “¢Al∑ Båbå”, hoje, parece artisticamente superior ao de
“¢Alå’udd∑n”, pois utiliza melhor os recursos da língua, tem vocabulário mais
rico e lança mão do saj¢, prosa rimada, muito apreciado nos textos antigos.
E há outras questões. Embora líquido e certo que o copista seja Jean Varsy,
pairam dúvidas quanto a tudo o mais, inclusive pela escassez de informações a
respeito dessa personagem. Mahdi sugere que o texto foi escrito no século xix, e
que Varsy era discípulo do célebre arabista francês Silvestre de Sacy (1758-
1838). Mas existe aí uma inconsistência: o próprio Mahdi informa que, tendo
viajado a Roseta, o supracitado aventureiro inglês Edward Montagu (1713-1776)
hospedou-se na casa do mercador francês Jean Varsy em 1764, que já seria nessa
época, portanto, homem feito; suas relações com Montagu sugerem pertinência a
gerações próximas. Como poderia se tornar discípulo de um menino de seis
anos, idade de Sacy à época? Ademais, a maneira como o texto árabe de ¢Al∑
Båbå está escrito, a despeito dos erros que contém aqui e acolá, sugere um
excelente conhecimento da língua. E a escrita árabe de Varsy era muito bonita e
despachada, outra característica de quem conhece bem a língua: é impossível ter
boa caligrafia sem fluência, salvo se se tratar de persas ou de algum povo cuja
língua seja escrita com caracteres árabes. Não era o caso do francês Varsy. Entre
a atitude extrema de descartar o texto como “espúrio” ou o benefício da dúvida,
preferiu-se também aqui a segunda hipótese. E aduza-se o que já se aduziu na
explanação sobre o texto de ¢Alå’udd∑n: Jean Varsy viveu décadas no Oriente, e
lá pode ter tido contato, ainda que fortuito, com alguma versão oral dessa
história.[714]

6) Do “Diário” de Galland
Também em 1913, Macdonald editou, do diário de Jean Antoine Galland, um
resumo em francês da história de ¢Al∑ Båbå, que lhe teria sido contada pelo
famoso/obscuro maronita alepino Hanna Diab. Nesse resumo, visivelmente
anotado às pressas, se evidenciam os traços gerais da obra, e também que o
nome do herói era outro na (suposta) narrativa de Hanna. O mesmo texto,
juntamente com outros narrados por Hanna e registrados no diário de Galland,
foi publicado pelo pesquisador Mohamed Abdel-Halim em seu doutorado
defendido na França em 1964. A tradução aqui levada a cabo foi gentilmente
realizada e cedida pela pesquisadora Christiane Damien Codenhoto, que lhe
acrescentou esclarecedoras notas.

7) A noite perdida de Jorge Luis Borges
Enfim, a noite 602 de Borges existe, embora em árabe não seja esse o seu
número. Essa narrativa, espécie de coroamento da circularidade das Noites, foi
traduzida da edição impressa de Breslau, e entra neste volume a título de
curiosidade. As ilações que Borges faz do episódio, no qual ¸ahrazåd conta a
ahriyår “a sua própria história”, são belíssimas, mas o número da noite não é
invenção dele, o que por sua vez afasta outras ilações da crítica. Borges utilizou,
sem citar, a numeração meio aleatória empregada por Richard Burton na sua
tradução das “Noites suplementares”. A ausência de citação, ao que parece, não
decorre de nenhum plano premeditado para confundir a crítica e a posteridade,
ou se divertir à sua custa, devendo-se, mais prosaicamente, à erudição de Borges,
que o fez olvidar o fato de que muitos não se dariam conta de que ele citava a
tradução de Burton — e não poderia, com efeito, ser outra. O leitor não deixará
de notar que, de modo semelhante ao seu estudo sobre a metáfora, as ilações do
escritor argentino são mais ricas e estimulantes que os textos examinados.[715]

8) Um “ancestral” de Aladim
A primeira notícia a respeito de “O alfaiate de Alexandria e o governador
Tankiz”, narrativa constante do manuscrito “Arabe 3658” da Biblioteca Nacional
da França, foi dada pelo arabista israelo-iraquiano Joseph Sadan, que também
lhe editou o texto e o traduziu ao inglês.[716]
Embora a cópia do manuscrito tenha sido feita, visivelmente, no século xviii,
a elaboração da história deve remontar aos séculos xv ou xvi — na mais tardia
das hipóteses, a um período não muito posterior ao Otomano, que se inicia com a
derrota definitiva infligida pelos turcos aos mamelucos em 1518, nas
proximidades do Cairo. O dissídio de pelo menos dois séculos entre a
presumível elaboração original e a cópia pode explicar as várias obscuridades do
texto.
Trata-se de uma narrativa de cunho popular, com alguns elementos funcionais
também verificáveis na história de ¢Alå’udd∑n. “Dankiz”, que o texto cita como
governador da Síria, é na realidade corruptela de Tankiz, Sayfudd∑n Abœ Sa
¢∑d, que efetivamente governou em Damasco entre 1312 e 1340, nomeado pelo
sultão mameluco do Cairo, Annåßir Mu¬ammad Ibn Qalåwœn (m. 1341).
Apesar da segurança desfrutada pela população durante o seu governo, e das
inúmeras obras que lá realizou, alguns historiadores — como o egípcio Ibn ¸åkir
Alkatb∑ (m. 1363) e o sírio Ibn Aybak Aßßafad∑ (1297-1363, que presenciou os
eventos narrados) — afirmam tratar-se de um governante que, devido à sua
sawdå’ (melancolia), “sempre enxergava as coisas corrompidas, e por isso
ninguém lhe conseguia apontar o caminho da correção, tamanho era o medo que
despertava”. Após complôs, calúnias e traições de outros líderes políticos,
aliados a boatos de que pretendia se dirigir à terra dos tártaros, o sultão
mameluco mandou prendê-lo, e preso o conduziram a Alexandria, onde afinal
foi morto por estrangulamento após quarenta dias encarcerado, e se
expropriaram suas vastas riquezas. “O insólito”, comenta o historiador egípcio
Almaqr∑z∑ (1365-1442), “é que ele foi preso numa terça-feira, entrou no Egito
numa terça-feira, entrou em Alexandria numa terça-feira e foi morto numa terça-
feira”. Três anos depois, a instâncias da filha (ou de um líder militar), seu corpo
foi trasladado para Damasco.[717]
A presença do governador Tankiz como personagem — citado, conforme se
disse, como “Dankiz” — e a alusão a alguns fenômenos característicos do jogo
político mameluco — entre eles a reverência hierárquica pelo ustå∂, “mestre”,
designação dada ao mantenedor do escravo mameluco em sua infância —, bem
como a menção a localidades antigas de Damasco, sem maior detalhamento,
tudo isso colabora para situar a elaboração original da narrativa, se não
exatamente nas proximidades do período citado, numa época em que ele ainda
não fora envolto pela “lenda”, como é caso, por exemplo, de muitas histórias das
Noites envolvendo Bagdá e o califa Hårœn Arraš∑d, nas quais é visível o
distanciamento de vários séculos. Para além de sua maior ou menor antiguidade,
contudo, a história do alfaiate alexandrino interessa por conter alguns elementos
relevantes para a comparação com a de ¢Alå’udd∑n: com efeito, a relação de
dependência da criatura sobre-humana, o gênio, para com um recipiente
relativamente pequeno (em correlação com a ideia de um conteúdo maior que o
seu continente, como se vê na história do pescador e do gênio), o transporte de
amantes e a promoção de encontros entre eles por obra de gênios, a fulminante
paixão à primeira vista e o sucesso da relação de um homem de condição inferior
com uma mulher de condição superior (metáfora do desejo de ascensão social)
constituem elementos já verificados em outras narrativas das Noites; o que
faltava eram justamente dois outros elementos de vasta fortuna no imaginário
universal: primeiro, a aparição de uma criatura sobre-humana por efeito da
fricção de um objeto ligado à luz e, segundo, o fato de essa criatura sobre-
humana atender pressurosamente os pedidos de um ser de “estatuto” inferior.
[718] Ambos os elementos constam dessa narrativa, o que comprova, destarte, a
sua existência prévia no imaginário árabe. Não se trata aqui, esclareça-se, de
propor que o alfaiate alexandrino seja a semente da qual vicejou ¢Alå’udd∑n,
[719] e, por consequência, rastrear o penoso processo pelo qual, sucessivamente
e por obra da imaginação de copistas e contadores de história, esse alfaiate teria
se metamorfoseado num filho de alfaiate e sido transferido para a China, e a
lâmpada de uma casa em Damasco teria sido transformada numa lâmpada
escondida em montanhas recônditas daquele país etc. etc.; basta, por ora, apontar
tais similaridades. Note, ademais, que nas noites 236-244 do bem tardio
“manuscrito Reinhardt” das Mil e uma noites, copiado em 1831 (Biblioteca da
Universidade de Estrasburgo, 4278-4281), consta a história de ¢Al∑ Ibn
AlΔawåja, que tanto o especialista Aboubakr Chraibi como a The Arabian
Nights Encyclopedia consideram “uma variante do tema de Aladim”, e cujo
resumo é o seguinte: ¢Al∑ vive em sua casa com a mulher, Ward, e conhece um
feiticeiro magrebino que lhe pede para acompanhá-lo numa viagem e recuperar
um tesouro. ¢Al∑ mata o malicioso feiticeiro e se apossa dos objetos mágicos.
Depois de algumas aventuras ele retorna para a mulher e lhe constrói um palácio.
Quando o irmão do feiticeiro magrebino aparece para tomar vingança pela morte
do irmão, ele também é morto.[720]

* * *

Ao fim desta jornada, além dos agradecimentos já consignados nos outros
volumes, devo também agradecer, por esclarecimentos pontuais, envio de obras,
sugestões ou auxílio na revisão, a Abdullah Taj, Ali Hussein, Carolina Rubira,
Christiane Damien, John Milton, Kamil Jabir, Messiane Brito, Milena Cassucci,
Pedro Ivo Secco, Thaís de Godoy e Walter Carlos Costa. Estendo ainda os
agradecimentos ao cesima (Centro Simão Mathias), da puc/sp, onde gentilmente
se providenciou a digitalização do manuscrito “Arabe 3619”.

* * *

PRINCIPAIS REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS DO PRESENTE VOLUME
(COM EXCEÇÃO DAS FONTES DIRETAS):

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tesouro da experiência e aconselhamento da liderança]. Edição crítica de Jal∑l Al¢a†iyya. Beirute,
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s/ed., 1870.
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zotenberg, H. Histoire d’Alâ Al-Dîn ou La Lampe Mervilleuse. Texte Arabe Publié ave¢ Une Noti¢e sur
Quelques Manus¢rits des Mille et Une Nuits. Paris, Imprimerie Nationale, 1888.
[1] Veja o primeiro volume desta coleção, página 16.
[2] Em seu diário, o imperador demonstrava orgulho pelo fato de estar traduzindo as Noites diretamente do
original. À época a edição de Breslau se revestia de uma aura pioneira, desconhecendo-se então as
“traquinagens” do seu editor Habicht, que Pedro ii grafa como “Abicht”. Pode-se conferir uma amostra da
tradução imperial — cuja literalidade de neófito, embora em muitos pontos beire a ininteligibilidade, em
outros é curiosa como experimento formal involuntário — em: Souza, Rosane de. “Mil e uma noites.
Tradução direta do árabe, de D. Pedro ii”, in: Tiraz. São Paulo, fflch/usp, 2010, pp. 87-111. Em 1902,
Seybold dedicou a “Dom Pedro ii von Brasilien” a edição de uma narrativa árabe do século xvi, “Sœl e
umœl”, que fora incorporada a um solitário manuscrito acéfalo das Noites.
[3] Em seu diário, o imperador demonstrava orgulho pelo fato de estar traduzindo as Noites diretamente do
original. À época a edição de Breslau se revestia de uma aura pioneira, desconhecendo-se então as
“traquinagens” do seu editor Habicht, que Pedro ii grafa como “Abicht”. Pode-se conferir uma amostra da
tradução imperial — cuja literalidade de neófito, embora em muitos pontos beire a ininteligibilidade, em
outros é curiosa como experimento formal involuntário — em: Souza, Rosane de. “Mil e uma noites.
Tradução direta do árabe, de D. Pedro ii”, in: Tiraz. São Paulo, fflch/usp, 2010, pp. 87-111. Em 1902,
Seybold dedicou a “Dom Pedro ii von Brasilien” a edição de uma narrativa árabe do século xvi, “Sœl e
umœl”, que fora incorporada a um solitário manuscrito acéfalo das Noites.
[4] Traduzido do texto árabe constante em Allayål∑ Al¢arabiyya Almuzawwara, “As noites árabes
falsificadas” (org. de M. M. Aljårœš. Beirute/Bagdá, Aljamal, 2011), onde se reproduz o texto fixado por
Hermann Zotenberg (Histoire d’¢Alâ Al-Dîn ou La Lampe Marveilleuse. Texte arabe publié ave¢ une noti¢e
sur quelques manus¢rits Des Mille et Une Nuits. Paris, Imprimerie Nationale, 1888), o qual, por sua vez, se
baseia no manuscrito de Michel Sabbagh, do início do século xix, apontando nas notas muitas das variantes
do manuscrito do padre sírio Dionisius Chavis, do final do século xviii, no qual a história ocupa as noites
492-596 (veja o posfá¢io a este volume). Para a transcrição do nome, preferiu-se manter os critérios usados
ao longo desta tradução em vez de “Aladim”, que é a forma mais usual em português. Em árabe, o nome
dessa personagem significa “elevação da fé”. Além de “enfeitiçado”, a palavra mas¬œr, que adjetiva a
“lâmpada” (qind∑l), pode também significar “mágico”. Em ambos os manuscritos, a história vem após a de
“Zayn Alaßnåm”, que também consta da tradução de Galland. Veja, ainda, o “Anexo 4” e o “Posfácio”
deste volume.
[5] No texto de Galland, o alfaiate se chama Mustafa. Lembre-se que, na história do carregador e das três
jovens de Bagdá (volume i, pp. 110-205), embora as três jovens permaneçam inominadas no original árabe,
a tradução de Galland atribui nome a todas elas: Amina, Safia e Zobeida.
[6] Em inúmeros pontos do manuscrito de Sabbagh a grafia do nome da personagem principal está
incorreta. Já no manuscrito de Chavis a grafia está sempre incorreta, evidenciando-se que esse padre lhe
desconhecia a forma correta em árabe. O nome da personagem, observe-se, é composto de duas palavras, a
saber, ¢alå’, “elevação”, e add∑n, “a fé”, mas no manuscrito de Chavis o copista parece supor que o
primeiro nome é ¢Al∑, erro crasso.
[7] Optou-se por “magrebino” para traduzir ma©rib∑, palavra que, embora modernamente signifique
“marroquino”, servia para identificar qualquer pessoa oriunda do Norte da África, excetuado o Egito.
[8] “Feiticeiro” traduz så¬ir. Poderia também usar-se “mágico”, “bruxo”, “nigromante”, “xibungo”.
[9] Curiosamente, em vez da palavra firåsa, que seria normalmente usada nessa situação, o texto lança mão
de hay’a, “aparência”, “forma”, entre outros sentidos, e cujo uso nessa acepção é mais tardio.
[10] “Sobre a cabeça e os olhos” traduz ¢alà al¢ayn wa arra’s, sintagma utilizado para indicar que se
atenderá a um pedido com muito gosto.
[11] “Ouço e obedeço” traduz assam¢ wa a††å¢a, literalmente, “audição e obediência”. É fórmula bastante
usual em árabe antigo, e se repetirá amiúde no texto.
[12] Com base no texto de Galland e no manuscrito de Chavis, Zotenberg corrige esta passagem, em cujo
original se lê “todo o Ocidente”. Na grafia árabe, a diferença entre al©arb, “ocidente”, e al¢arab, “árabes”,
é de um único pingo.
[13] “Ocidente Interior” é referência à região conhecida como Magrebe.
[14] “Planei de alegria” traduz †irtu min alfara¬, literalmente, “voei de alegria”. Assim, sempre que, no
decorrer desta tradução, ocorrer “planar de felicidade” (ou alegria), entenda-se que no original, literalmente,
se diz “voar de felicidade” (ou alegria).
[15] “Preciso” traduz badd∑, “quero”, expressão quase que exclusiva dos dialetos sírios.
[16] “Traje ornamentado” traduz o dialetalismo badlat ¬awå’ij.
[17] No manuscrito de Chavis se acrescenta: “Embora eu saiba que ele não merece a sua generosidade. Mas
eu rogarei aos profetas e aos ancestrais pios (aßßåli¬∑n) que lhe prolonguem a vida”.
[18] Seguindo informação de Zotenberg, “fundido” traduz raml.
[19] “Sobrenaturais” traduz rœ¬åniyya, que, literalmente, significa“espirituais”.
[20] “Para aquele que está destinado a viver, não há quem o mate” traduz al¬ayy må lahu qåtil,
literalmente, “o vivo não tem matador”. Pressupõe--se aí a determinação divina.
[21] “Considere” traduz qul, “diga”.
[22] “Eis-me aqui às suas ordens” traduz labbayka, expressão árabe bem antiga, ainda hoje usada, para
indicar que se está inteiramente à disposição.
[23] “A céu aberto” traduz ¢alà wajh addunyå, literalmente, “sobre a face do mundo”.
[24] Em Chavis, “não é possível que Såtanåyl (Satanás?) tenha um único discípulo mais malvado do que
ele, amaldiçoe-o Deus em todos os livros, tal como amaldiçoou Azmœdyœs (Asmodeu?) e seus seguidores”.
Além da redação meio capenga, o trecho apresenta grafias pouco familiares mesmo para conhecedores do
árabe.
[25] “Bordados de algodão” traduz ©azlåt, algo como “coisas tecidas”.
[26] “Puro” traduz rå’iq, “límpido”, referência, decerto, ao antigo processo de coar o vinho.
[27] A redação original dessa frase apresenta problemas, como a existência de oração subordinada sem
principal etc, remediadas na tradução.
[28] “De boa qualidade” traduz na≈∑f, “limpo”. E note, adiante, que as travessas, antes descritas como
“ouro puro”, passam a ser de “prata”.
[29] “Que Deus lhe aumente as benesses” traduz ka¥¥ara Allåh Δayrahu, expressão comumente usada entre
os árabes (em dialetal levantino, kattir Δe¯rak, “que se aumentem as suas benesses”, com elipse da palavra
“Deus”), e que equivale a um “muito obrigado” mais intenso, simplesmente; aqui, portanto, uma boa
tradução seria “muitíssimo obrigada a ele” (ao escravo). Mas preferiu-se traduzi-la literalmente para
destacar a especificidade do seu recorte semântico.
[30] “Magnânimo” traduz ¬urr, literalmente, “livre”. Não se encontrou termo mais adequado, no caso.
“Nobre” talvez consistisse em boa alternativa.
[31]Badrulbudœr quer dizer “plenilúnio dos plenilúnios”. E “jovem dama” traduz sitt, termo também
empregado para “senhora”, “patroa” etc.
[32] “Conforme a tradição religiosa legítima” traduz bi-ssunna wa-l¬alål.
[33] “Sultão” traduz sul†ån. O texto varia o tratamento, empregando também malik, “rei”. A tradução
observou rigorosamente essa variação e a manteve.
[34] “Maltratada” e “humilhada” traduzem, respectivamente, m[u]¢azzara e m[u]bahdala, ambos termos
dialetais, o primeiro mais comum na região da Síria e o segundo bem disseminado por praticamente todos
os dialetos árabes, urbanos ou rurais. Daí uma dificuldade: as palavras usadas para traduzi-los pertencem ao
campo do português por assim dizer “culto”. Não se encontraram, porém, palavras que correspondessem,
nesse nível dialetal, às árabes. Os termos brasileiros em gíria e calão não corresponderiam ao original,
sendo ainda menos adequados que as opções aqui adotadas.
[35] “Salão de audiências” traduz d∑wån.
[36] “Espaço íntimo” traduz ¬aram, palavra cognata de ¬ar∑m, “harém”, que indica espaço estritamente
familiar, íntimo e privado.
[37] “Noiva” e “noivo” traduzem ¢arœs e ¢ar∑s, palavras que no decorrer do texto são indistintamente
utilizadas para “noiva/o” e “esposa/o”. A tradução se ateve sempre ao contexto, mas é apropriado lembrar a
peculiaridade do conceito de “noivado” na cultura árabe, na qual ele é o momento imediatamente anterior
ao casamento. Em árabe, um termo mais próximo do nosso contexto para “noivo/a” é Δa†∑b e Δa†∑ba,
“compromissado/a”.
[38] “Onde” traduz fe¯n, palavra do dialeto egípcio. Sobre essa questão, vejam--se as breves observações
do posfácio.
[39] “Pois já não tenho forças” traduz må l∑ qudra baqà, formulação cujo vestígio de dialeto egípcio está
na última palavra.
[40] “Causador de tudo” traduz ßå¬ib adda¢wa, literalmente, “o dono do [ou: quem fizera o] processo”.
[41] “Gente graúda” traduz akåbir alΔalq, algo como “os maiores dentre as criaturas”. No caso, a oposição
entre riqueza e pobreza é transparente.
[42] “Fique doce o seu coração e tranquilo o seu olho” traduz †ib qalban wa qir caynan, formulação
característica do árabe cujos semantemas a tradução procurou preservar. O sentido geral é bem evidente.
[43] Menção a Kisrà Anœ ¸irwån (531-579), o mais célebre e poderoso soberano da dinastia sassânida, que
governou a Pérsia de 226 a 651. Era referência constante de riqueza, autoridade e justiça.
[44] “Vinho” traduz qahwa, que hoje se emprega exclusivamente para “café”.
[45] “Exalçado seja quem modifica mas não se modifica”: sub¬åna alla∂∑ ©ayyar wa lå yata©ayyar,
locução corânica muito empregada em situações similares.
[46] “A fim de provocar o espanto do sultão” traduz likay ya¢jiz assul†ån f∑ takmilatihi, literalmente, “para
que o sultão fosse incapaz de concluí--lo”, formulação meio incompreensível nesse contexto, mas que se
tornará compreensível mais adiante.
[47] “Conduzissem” traduz yazuffœ, verbo que funde as ideias de “conduzir” e “casar”.
[48] Ritual antigo, no qual a noiva desfilava seguidamente, durante a cerimônia, com vários trajes
diferentes.
[49] “Harmonia” traduz alkayf, e “felicidade”, al¬a≈≈.
[50] “Alexandre Bicorne” é tradução literal de Iskandar ∂œ Alqarnayn, que é como se diz em árabe
Alexandre Magno, ou da Macedônia. Entre as hipóteses para tal denominação está a de que ele carregaria
em suas mãos dois cornos, simbolizando seu triunfo tanto no Ocidente como no Oriente.
[51] “Ficou a sós com a noiva e consumou o casamento” traduz daΔala ¢alà ¢arœsatihi, literalmente,
“entrou (ou penetrou) na sua noiva”.
[52] “Você merece todas as gentilezas” traduz o dialetalismo levantino tikram, usado para “obrigado” e
também para indicar que a pessoa merece o favor que lhe tenha sido eventualmente feito.
[53] “Bastardo” traduz bundœq, que, segundo Reinhardt Dozy, é dialetalismo sírio.
[54] “Geomancia” traduz ®arb arraml, antiga prática de adivinhação mediante o uso da areia e a
interpretação dos desenhos por ela formados.
[55] Aqui, “lâmpada” traduz manåra, palavra pertencente à mesma raiz de nœr, “luz”. A partir deste ponto,
seu uso se revezará com o termo qind∑l, que tem origem persa.
[56] Escrita desse modo, a passagem parece bem anacrônica.
[57] “Não ouvindo nada que lhe dê refresco” traduz wa må kåna yasma¢ minn∑ r∑q ¬ilœ, literalmente,
“não ouvia de mim [nenhuma] saliva doce”.
[58] “Velenho, um potente narcótico” traduz banj ¢a≈∑m. A erva banj, “velenho” ou “meimendro”, é hoje,
em árabe, sinônimo de anestésico, e palavra por todos conhecida. Já “de ação instantânea” traduz ibn
daq∑qatihi, literalmente, “filho do seu próprio minuto”.
[59] No manuscrito de Chavis, “ordenou que retalhassem o corpo e o dessem de comida para as aves”.
[60] “Lei” traduz šar∑¢a, “lei religiosa”.
[61] No manuscrito de Chavis se acrescenta: “e também no provérbio corrente ‘o cachorro gerou um filhote
que saiu pior do que o pai’”.
[62] “Viu a imagem de uma sepultura e constatou que o irmão estava morto” traduz fawajada aΔåhu f∑
bayt alqabr mayyit, literalmente, “verificou que seu irmão estava na casa do cemitério, morto”. Como as
cinzas haviam sido espalhadas ao vento, para a tradução presumiu-se, sem que a sintaxe assim o permitisse,
que ele vira, nas imagens formadas pela areia, uma sepultura.
[63] As referências ao “café”, qahwa, tanto a bebida como, em especial, o lugar, parecem bem anacrônicas.
[64] À falta de uma referência dicionarizada, preferiu-se transcrever essa palavra que, segundo Lane em sua
famosa obra sobre os egípcios, designa um jogo popular no Egito do século xix, jogado com um ou dois
tabuleiros de doze casas, setenta e duas pedras e de mais de uma maneira. Segundo Dozy, esse jogo já é
citado no Livro das ¢anções, de Abœ Alfaraj Alaßbahån∑, do século x d.C.
[65] Nome próprio feminino árabe que significa “desmamada”, prestigioso entre os muçulmanos por ter
sido o da filha do profeta. A forma mais usual em português é “Fátima”.
[66] “Uma taça” traduz ka’s qan∑z, sintagma cujo segundo termo não está dicionarizado.
[67] A tradução “mar” é fruto da suposição do tradutor de que se deve ler ba¬r, “mar”, em lugar de majr,
conforme está grafado, e que não faz sentido. Em letra árabe é fácil confundir as duas palavras.
[68] “Tranquilidade interior” traduz rå¬at sirr.
[69] Note-se que, nesta passagem, o feiticeiro e Badrulbudœr se dão o mesmo tratamento: sitt∑, palavra
aqui traduzida de maneira diversa, “minha senhora” e “minha jovem dama”.
[70] “Roque” traduz ruΔΔ, ave gigante da mitologia árabe presente em outras histórias deste livro, tal como
a do navegante Sindabåd, no terceiro volume desta coleção.
[71] “Suavizar a aflição” traduz ra††ab Δå†ir, literalmente, “refrescar (ou umedecer) a vontade”.
[72] Após a história de cAlå’udd∑n, ambos os manuscritos prosseguem com a história “O rei BaΔt Zåd e os
seus dez vizires”, já traduzida no terceiro volume da presente coleção (pp. 135-189).
[73] As histórias a seguir, até a noite 728, foram traduzidas do manuscrito “Bodleian Oriental 554”, da
Biblioteca Bodleiana, de 1764. De maneira semelhante ao falar árabe atual do Norte da África, as
personagens alternam o tratamento no plural e no singular, como, v.g., “nós queremos que você me conte”,
o que em português pode eventualmente soar confuso. Por isso, diante de qualquer possibilidade de
incompreensão, optou-se pelo singular.
[74] Quinto califa da dinastia abássida, largamente citado no Livro das mil e uma noites, governou entre
786-809. Masrœr era o seu escravo, ajudante de ordens e carrasco. Em mais de uma passagem desta
história, Hårœn Arraš∑d é tratado como “rei” ao invés de “califa”.
[75] “Sentindo o peito opresso” traduz, literalmente, ®åqa ßadruhu. É locução comum em árabe, e refere
uma espécie de angústia, inquietude. É como se se dissesse “sentindo angústia” ou “sentindo uma
inquietação angustiante”.
[76] “Conviva” traduz nad∑m, e, neste contexto específico, indica a pessoa que, graças a determinadas
qualidades, goza da preferência do poderoso e vive nas suas proximidades, quando não no interior do
próprio palácio do poder, o que o tornava candidato potencial a conselheiro ou vizir. Veja adiante.
[77] A fonte desta história é Al¬ikåyåt Al¢aj∑ba wa AlaΔbår Al©ar∑ba, “Histórias espantosas e crônicas
assombrosas”, coletânea de narrativas que remonta à primeira metade do século xiii. Ali, o enredo é bem
mais longo, o narrador, diferente, as poesias, mais longas e substanciosas, embora as circunstâncias sejam
basicamente as mesmas. Os trechos entre colchetes provêm do texto dessa coletânea. Também consta uma
história ligeiramente semelhante a esta na vulgata do Livro das mil e uma noites (noites 693 a 695 das
edições impressas de Bœlåq, 1835, e Calcutá2, 1839-1842).
[78] “Parasanga” traduz farsaΔ, medida de origem persa equivalente a três milhas.
[79] “Bistorta” (espécie de erva) traduz bustun, mas é quase certo que se trate de erro de cópia por sitr,
“cortina”, conforme se lê nas “Histórias espantosas”.
[80] Em árabe, a letra “n” tem o formato aproximado de um “u” sem serifas e com um pingo em cima.
[81] Não tem
[82] Não tem
[83] Nas demais versões, os detalhes desse contato são mais picantes.
[84] Esse verso certamente contém muitos erros de cópia.
[85] Essa praga — pois se trata de uma espécie de praga — não consta das “Histórias espantosas” e é bem
tênue na vulgata das Noites.
[86] O ancestral dos abássidas, ¢Abbås, era irmão de ¢Abdullåh, pai do profeta Mu¬ammad.
[87] Essa história não foi localizada em nenhuma outra fonte, de modo que todas as intervenções entre
colchetes são do próprio tradutor. É o mesmo caso das próximas deste manuscrito, com exceção de “Os
amores de Hayfå e Yœsuf” e “O sofrimento das dez criadas”.
[88] “Porta secreta”, båb assirr, é expressão característica da arquitetura egípcia na era dos mamelucos,
designando o local exclusivamente destinado à saída e entrada do sultão e dos seus serviçais.
[89] “Os pássaros bateram as asas” traduz literalmente taßåfaqat ala†yår, que pode tratar-se de alguma
metáfora.
[90] Forma árabe do nome hebraico que em português é “Jacó” ou “Jacob”. A referência ao evento bíblico,
recontado no Alcorão, é bem clara.
[91] Esses versos encontram-se tão estropiados no original que a tradução, quase um exercício de
adivinhação, foi feita apenas para não deixar o espaço em branco.
[92] Aqui ocorre uma palavra ilegível que se traduziu como “imediatamente” por suposição.
[93] No original, consta Δi†åb, “sermão”, “discurso”, mas trata--se de evidente grafia equivocada, ou
corruptela, por Δu†œb, “coisa grave”.
[94] Nesse trecho consta Δu∂ ¢alayhi [bi]ssiyåsa, que poderia traduzir-se como “trate-o politicamente”, mas
seria anacrônico.
[95] No original, consta “Ja¢far entrou em casa e o delegado se retirou”, o que não faz sentido, já que o
vizir é que se dirigira à delegacia. Esse trecho evidencia que, em seu presente formato, a história ainda não
fora retocada.
[96] Tradução literal de wa¢aytu li-nafs∑; corresponde, pouco mais ou menos, a “tomei juízo”.
[97] É bem possível que aqui falte uma palavra, embora o termo “camareira”, qahramåniyya, remeta a uma
função típica dos palácios do poder.
[98] O original joga com as rimas: Manjåb rima com a¬båb, “amores”, e kilåb, “cães”.
[99] “Tormento” traduz fitna, palavra cujo leque de significações é amplo, desde “encanto” até “sedição”,
“guerra civil”. A ideia é que se tratava de alguém cuja visão deixava os homens a ponto de fazer qualquer
coisa para ficar com ela.
[100] Estes versos, como muitos outros, contêm visíveis falhas que a tradução buscou remediar.
[101] Note que o primeiro traje não foi descrito.
[102] No manuscrito, “e o seu anelo não era senão o desejo por ela”, formulação que foi aqui considerada
erro de cópia.
[103] A tradução desses objetos não é inteiramente segura. Do primeiro, quanto à cor, existem referências
em documentos comerciais egípcios do século xix. Para o segundo, houve boa dose de inferência para
chegar ao adjetivo.
[104] “Neste nosso tempo”: o original traz “naquele tempo”, mais uma evidência de redação não revisada.
[105] No original, literalmente, “é como flecheiro sem arco”. Adaptado para ter rima, pois o trecho em
árabe é todo rimado: albaws min ©ayr daws mi¥l arråm∑ bi-©ayr qaws.
[106] Trigésimo sexto capítulo, ou sura, do Alcorão, constituído por 83 versículos.
[107] Lembre que, para o muçulmano, tocar o Alcorão ou recitá-lo exige pureza ritual.
[108] No original, mand∑l, “lenço”. Ou bem se trata de equívoco do copista, ou então falta algum trecho.
[109] Note que essa poesia amorosa, em princípio, parece deslocada, uma vez que o texto não faz referência
a nenhuma relação com vizinhos.
[110] Note que, páginas atrás, o narrador mencionou que a mãe e a irmã haviam mudado para longe, e, ao
que parece, nem sequer tinham informações sobre o casamento. Tal indecisão quanto ao papel dessas
personagens no enredo é mais uma prova de redação primitiva.
[111] Poesia bem semelhante, com variação em algumas palavras, já foi recitada na primeira noite, do
primeiro
volume desta coleção, e fragmentos dela surgiram nas noites 104, também do primeiro volume, e 207, do
segundo volume.
[112] “Garantia de integridade” traduz amån, palavra recorrente já explicada nos outros volumes desta
coleção.
[113] Trata-se de fala comum, praticamente um provérbio. No texto, entretanto, consta “se a mentira é um
argumento, a verdade salva melhor”, o que parece não fazer sentido.
[114] Desnecessário dizer que essas informações não encontram respaldo histórico. Na verdade, o que
consta de alguns registros é que o califa Hårœn Arraš∑d tinha uma irmã da qual sentia muitos ciúmes e não
lhe permitia que se casasse.
[115] Moeda cunhada na época do sultão mameluco Alašraf Sayf Add∑n Barsbåy, que governou o Egito de
1422 a 1437. Virou sinônimo de dinar. O manuscrito registra šar∑f∑, erro de cópia ou corruptela.
[116] Note que “dervixe” é vocábulo proveniente do persa, língua na qual significa “pobre”.
[117] A redação confusa não permite entender se o propósito é chegar antes dos outros ao local da fundição
ou sair antes que os fregueses cheguem à barbearia.
[118] “Algibeira” e “frasco” traduzem, respectivamente, a desconhecida palavra kilå¬, que não consta de
nenhum dicionário consultado, e bœßa, unidade de medida equivalente a “polegada”, o que não faz sentido.
Pode também ser má grafia ou corruptela de bœßla, “bússola”, o que talvez fizesse sentido, sobretudo
quando se lembra a associação, nas culturas medievais, desse objeto a práticas mágicas e alquímicas. E
“concha funda” traduz mal¢aqa hilåliyya, literalmente, “colher em forma de lua crescente”.
[119] Compare com “O estúpido curioso”, constante do terceiro volume desta coleção, páginas 250-251.
[120] Embora o manuscrito seja egípcio, aqui consta uma palavra reconhecidamente pertencente ao dialeto
árabe levantino: mušawwiba.
[121] Doce árabe de consistência fibrosa, bem conhecido no Brasil.
[122] “Manteiga derretida” traduz samn, produto então muito apreciado no Egito. Ainda hoje, entre o povo,
“manteiga derretida e mel” são considerados índices de prosperidade, e “entrar na manteiga e no mel” era
também índice de felicidade, como se depreende da ambígua fala final desta história.
[123] O “doceiro” também é chamado de zayyåt, “azeiteiro”, que em princípio é o mercador que
comercializa o azeite. Embora seja possível que as duas atividades se tenham associado em algum
momento, traduziu--se “azeiteiro” e “doceiro” para evitar confusões. A primeira referência ao vendedor de
kunåfa se encontra truncada, de modo que podem estar faltando alguns elementos da história no manuscrito.
[124] Ibråh∑m é a forma árabe do nome hebraico que em português é “Abraão” ou “Abrahão”. E Bin
Mulœk significa “filho de reis”. É possível que essa personagem seja eco de uma personagem histórica,
Abœ Is¬åq Ibråh∑m Almawß∑li (742-804), célebre cantor e instrumentista que foi conviva de três califas
abássidas e morreu durante o governo de Hårœn Arraš∑d. Mais adiante, na noite 705, ele será colocado no
governo de Alma’mœn (que somente se tornou califa em 813) e chamado de “Ibn Is¬åq”, o que torna mais
plausível a incidência de uma memória histórica esmaecida na elaboração do enredo.
[125] Utilizou-se para comparação a versão desta história que circulou numa edição litográfica no Egito em
1870, autonomamente e sob o seguinte título: “Esta é a história da rainha Hayfå, do seu amado e do que
entre ambos sucedeu: taças de vinho, brinquedos, diversões, deleites, espairecimentos, entrelaçamentos de
uma perna na outra, beijos e abraços. Trata-se de uma estória espantosa em seu gênero, e insólita. Completa
e integral”. Não é a mesma versão deste manuscrito das Noites, mas foi a única ao alcance para
comparação. A história também consta, resumida ao que parece, no chamado manuscrito “Reinhardt”, de
1831, nas noites 20 a 27. Hayfå, nome feminino árabe hoje muito comum, significa “esbelta”, “elegante”.
Sua correta transliteração exigiria Hayfå’, com apóstrofo no final, que para maior leveza foi omitido.
[126] Note-se o aparente despropósito da proliferação de narradores.
[127] Palavra de origem persa que significa, aproximadamente, “relativo ao amor”, marcava o feriado do
amor no outono. Em árabe moderno se usa para “festival”.
[128] “Geomantas” traduz mu¢abbir∑n, “intérpretes”, “aqueles que fazem [algo] falar”; já “astrólogos”
traduz muhandis∑n, “arquitetos”, visível erro de cópia; deve se tratar de munajjim∑n, conforme consta
adiante.
[129] “Satanás” traduz Ibl∑s.
[130] Na edição litográfica, o conselho de Satanás para que Mihrajån construa um palácio para a filha é
dado em forma de versos, e ao despertar ele ordena aos cristãos que reconstruam o mosteiro. A comparação
evidencia que a versão da qual o copista do manuscrito dispunha estava meio ilegível nesse ponto
[131] Embora seja visível que o efeito buscado pela descrição é o da simetria na construção e no uso do
espaço, ela certamente padece de muitos erros de cópia.
[132] Nesta noite e na seguinte, a retomada da narrativa é precedida do sintagma “disse o narrador”, e isso
evidencia que, em ambos os casos, talvez por comodismo do copista, a divisão em noites acompanhou essa
marcação, que sem dúvida constava do original de onde a história era copiada.
[133] “E feito tais gravuras” traduz, por suposição, algumas palavras incompreensíveis no original.
[134] Traduzido da edição litográfica, pois o manuscrito está incompreensível.
[135] “Alguém nobre” traduz kar∑m, que é o que consta da edição litográfica. O manuscrito traz bah∑m,
“quadrúpede”, o que não faz o menor sentido.
[136] Região que, grosso modo, corresponde ao atual Paquistão. Já Sahl, nome próprio bem disseminado,
significa “fácil”, “plano”.
[137] Na edição litográfica, “abraçou-a, atacou-a com a lança da sua cintura, extirpou-lhe a virgindade e
destruiu a porta da sua cidade”.
[138] Foi impossível descobrir o que poderia ser precisamente tal traje. Talvez se trate de erro de cópia, mas
sem dúvida indica algo luxuoso, como se evidencia na edição litográfica, que traz: “um traje opulento,
enfeitado com ouro brilhante”.
[139] Na edição litográfica, todo o episódio é entremeado de uma imensa profusão de cantorias e poesias
recitadas pelas criadas.
[140] “Nossa praça-forte” traduz mißrunå, que poderia também ser entendida como “nosso Egito”.
[141] Note que a cena do banquete, inexistente na edição litográfica, parece ter sido copiada, ou redigida,
duas vezes.
[142] Esse verso está truncado.
[143] Outro verso truncado. “Árvore” é tradução genérica para naqå, provável corruptela de naqåwà, árvore
presumivelmente bela de ramos secos e flores vermelhas com a qual se produz detergente.
[144] Aqui, o original faz referência explícita a Kisrà, rei sassânida da Pérsia, e a Annucmån, nome de mais
de um rei dos reinos árabes pré-islâmicos de Æ∑ra e ˝assån, ao norte da Península Arábica.
[145] Ambas as poesias são monorrimas, com “n”.
[146] A poesia está claramente truncada no manuscrito, e a tradução tentou remediar um pouco o problema
mediante o recurso à edição litográfica — até onde foi possível, naturalmente, uma vez que o andamento
dos eventos difere nas duas versões. Na edição litográfica, o último verso é: “buscador da generosidade, foi
dela que obtive um favor”. No manuscrito, parece — pois o verso também está truncado — que se procura
destacar o temor que se apossou do rapaz em relação às mulheres após ter deflorado uma das concubinas do
pai.
[147] Na edição litográfica a poesia é mais longa e pertinente ao contexto, com versos formulando hipóteses
a respeito do destino de Yœsuf.
[148] Note a incoerência: na linha anterior, ele executara a ordem de chicotear a criada, mas somente na
presente linha é que se recupera do desmaio. Na edição litográfica, a flecha disparada pelo primo cai aos
pés do próprio casal, com o que o leitor é poupado da cena da surra na criada.
[149] Verso quase incompreensível nas duas versões consultadas.
[150] Verso ininteligível.
[151] Esse nome quer dizer em árabe “lua crescente”.
[152] Nome que pode ter muitos sentidos: “esquadrão”, “treva”, “fonte”, “árvore frondosa” etc.
[153] Na edição litográfica, o nome da personagem é Ibn Manßœr.
[154] No manuscrito consta “demonstrando”, o que se trata de evidente equívoco.
[155] Nome que significa “o que se afirmou”.
[156] Curiosamente, na edição litográfica, que contém mais poesias e em vários pontos é mais prolixa nas
descrições, essa longa repetição de eventos previamente conhecidos pelo leitor não é feita, com o narrador
se limitando a comentar: “Hayfå lhe informou a sua história e tudo quanto ocorrera entre ela e Yœsuf, o
belo, do começo ao fim, e a repetição não trará nenhuma nova informação” (wa laysa bili¢åda ifåda). Note
que, antes, o texto falara em trinta gazelas.
[157] Verso ininteligível no manuscrito. Na edição litográfica, onde a poesia é bem mais longa, a tradução
é: “tem piedade do meu coração, ó meu desejo”.
[158] Assim no original. Linhas atrás, a personagem falara em “cavalo”, jawåd, e agora ela monta a
“camela”, nåqa. É o que também consta da edição litográfica.
[159] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição litográfica. Embora o critério aqui adotado seja o de
não “completar” as poesias do manuscrito, que são muito mais curtas e menos copiosas que as dessa edição
litográfica, o fato é que neste ponto específico os versos são necessários para a inteligibilidade da passagem.
[160] Novamente aparece a palavra naqå, já comentada na nota 140. Agora, preferiu-se traduzi-la por “bela
árvore”.
[161] Esse último verso é o mesmo no manuscrito e na edição litográfica. Possível jogo de palavras com
eventos narrados na Torá hebraica, em que, como se sabe, Ya¢qœb (Jacó) chora a perda de seu filho
favorito, Yœsuf (José), traído e vendido no Egito pelos irmãos. O eu lírico desta poesia se dirige ao amado
ora diretamente, em segunda pessoa (tu), ora o refere indiretamente, em terceira pessoa (ele).
[162] Na edição litográfica, “pois ela não o procura senão por paixão e desespero”.
[163] “Dois mil criados” foi traduzido da edição litográfica. No mesmo verso o manuscrito fala em mil
dinares e logo a seguir em dois mil, o que parece contraditório.
[164] Nome que significa “recreio do tempo”.
[165] Considerado o maior dos poetas árabes pré-islâmicos, estima-se que tenha morrido em 540.
[166] Antigo nome de Medina, na Península Arábica, cidade onde o profeta está enterrado.
[167] “De tempos antigos” traduz min ba¢® assalaf, literalmente, “de certo ancestral”.
[168] O nome quer dizer “rico de qualidades”. E, antes, “encarregado” foi traduzido da edição litográfica.
No manuscrito consta “comensal”, mas antes o texto informa que todos eles haviam sido dispensados.
[169] Aqui, provavelmente devido a um fenômeno simetricamente oposto ao “salto-bordão”, repetem-se no
manuscrito os versos antes recitados pelo rei Mihrajån. Como eles apresentam algumas variantes, é possível
que o defeito remonte ao próprio processo de elaboração da narrativa. A tradução seguiu a edição
litográfica.
[170] Essa parte em que se fala de juiz, testemunhas e casamento conforme “o livro” (o Alcorão) e “a
tradição religiosa”, sunna, não consta da edição litográfica, que nesse ponto deve estar mais correta.
[171] Malgrado aparentemente consista numa continuação da história anterior, essa parte pode ser
considerada efetivamente independente da outra, ou pelo menos um desdobramento dela. “Criadas” também
pode ser entendido como “escravas”, conquanto a diferença, nesse contexto, não seja muito visível, pois o
criado podia consistir igualmente numa espécie de escravo doméstico com habilidades específicas. Note
que, embora não exista nenhuma marcação sintática, a narração desta história “retorna” diretamente para
¸ahrazåd, que a situa no califado de Alma’mœn (786-833), cujo governo se iniciou em 813, quatro anos
após a morte do seu pai, Hårœn Arraš∑d. Em sua primeira parte, foi o conviva Ibråh∑m que a narrou para o
pai — com o devido distanciamento espacial e temporal produzido pelo cômico e aparentemente
despropositado acúmulo de narradores —, ao passo que nesta segunda parte o mesmo conviva participa
diretamente dos eventos, tornando-se, portanto, personagem. É essa inversão de papéis, de narrador a
narrado, que o discurso constitui como efeito da passagem do tempo. A notar, ainda, a quase total exclusão
de Hayfå da história.
[172] Palavra cuja raiz em árabe tem o sentido de “enganar”. Na edição litográfica, o homem se chama
AlΔaz∑¢.
[173] Na edição litográfica, consta “por terras do Norte”; no manuscrito, “Síria”. Para a tradução, supôs-se
que tanto šamål, “Norte”, como šåm, “Síria”, fossem má leitura de šarq, “Oriente”, “Leste”.
[174] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição litográfica. No manuscrito consta apenas: “Ao ouvir a
história, o comandante dos crentes passou a noite toda conversando sobre elas”.
[175] No manuscrito e na edição litográfica, em lugar de Assind, “Sind”, consta Aßß∑n, “China”, evidente
equívoco, que se repetirá sistematicamente.
[176] “Néctar delicioso”, ¬usn arra¬∑q, é o que consta da edição litográfica; no manuscrito está ¬usn alza
¢∑q, “bela gritaria”.
[177] Nome que significa “inovador”.
[178] “Brisa”.
[179] “Delícia”, “paraíso”, “bem-estar”. Hoje, é nome exclusivamente masculino.
[180] “Alegria”.
[181] Por evidente distração do copista, o manuscrito traz aqui o nome da criada anterior.
[182] “Flor do bairro”.
[183] Aqui, o nome da criada aparece mudado para Jawharat Al¬ay, “joia do bairro”, o que pode ser
indício de que a cópia da qual dispunha o escriba era uma espécie de rascunho da elaboração inicial.
[184] “Alento dos corações”.
[185] Note que a personagem histórica que inspirou essa era “Abœ Is¬åq”, e não “Ibn Is¬åq”.
[186] Poesia com alguns versos semelhantes, mas bem mais longa, já fora recitada na noite 692.
[187] Nos versos da edição litográfica, o tom dubitativo é bem mais evidente. A impressão é que a redação
do manuscrito fica indecisa entre o fato de Yœsuf saber ou não se se tratava de Ibråh∑m. No último verso,
as três letras citadas, além de fazer parte do nome Ibråh∑m, também formam a palavra r∑m, “gazela
branca”. Na edição litográfica, o verso cita todas as letras do nome.
[188] Forma árabe do nome que em português é “Moisés”.
[189] Referência ao profeta Mu¬ammad, que pertencia a esse clã e era órfão, como se sabe.
[190] Traduzido da edição litográfica. No manuscrito, consta que o rei deu o dinheiro ao próprio califa, o
que, nesse caso, não faz sentido. Na edição litográfica, aliás, todo o trecho é entremeado por grande
quantidade de poesias, que no caso servem tanto para justificar a fama de Ibråh∑m como para realçar a
destreza artística das criadas e a sua tristeza em razão da partida.
[191] Cidade da Pérsia Ocidental.
[192] Note — embora isso, efetivamente, careça de maior relevo — que, em tese, Yœsuf estava não no
Sind, terra do seu pai, mas na Índia, terra de Mihrajån, seu sogro, a quem ele derrotara em batalha. Mas isso
também pode ser efeito da passagem do tempo entre a primeira e a segunda parte da história.
[193] O texto passa a se referir ao personagem como “o comandante dos crentes”, mas trata-se de equívoco,
já que o diálogo, claramente, é entre o rei Yœsuf (que não é califa) e o seu vizir Mu¬ammad Ibn Ibråh∑m
(que não é o conviva Ibråh∑m).
[194] Para a presente história, como novamente não existe nenhuma outra fonte para comparação, todas as
correções se devem a suposições do tradutor.
[195] “Sinagoga” traduz kan∑sa, que em árabe também se emprega para “igreja”.
[196] É evidente que aqui existe um pequeno ardil sintático e semântico para ocultar a obviedade da
formulação.
[197] “Os famélicos” traduz, por suposição, addiyå¬, palavra que não consta em nenhum dicionário; supôs-
se que fosse erro de cópia, por aljiyå¢.
[198] No original, yå Δaråb bayt∑ wa dår∑, literalmente, “ai, destruição do meu lar e da minha casa!”,
lamúria muito comum em árabe.
[199] Dormir no telhado durante o verão é até hoje um hábito em regiões interioranas do Oriente Médio.
[200] Em vez de “China”, o texto traz “Sind”, óbvio equívoco.
[201] Como a partir desse ponto a judia desaparece da narrativa, parece que falta a parte relativa à função
que ela desempenharia na vida do rapaz, conforme se anuncia na tópica por ela antes formulada, “talvez a
minha ida com você lhe carreie alguma vantagem”.
[202] Carne de carneiro assada em espetos, típica do Oriente Médio. Adotou-se a grafia usual no português
brasileiro.
[203] Não foi possível descobrir o sentido dessa palavra em nenhum dicionário disponível.
[204] “Bravo guerreiro” traduz rajul šujå¢, “homem valente”. Pelo desenrolar da narrativa, parece claro
tratar-se de uma espécie de chefe de armas do rei.
[205] “Valentão” traduz o mesmo sintagma da história anterior, rajul šujå¢, mas se trata de outra coisa,
conforme se verá. De novo, aqui não existe indicação sintática de quem seria o narrador; supôs-se, para a
tradução, a retomada da voz narrativa direta por ¸ahrazåd.
[206] “Gemer” traduz o verbo tunåzi¢, “disputar”, aqui utilizado em outra acepção. Pode também significar
“debater-se”.
[207] Tradução, por suposição, do verbo ba¢baß, coloquialismo cujo sentido não está registrado em
nenhuma fonte disponível, mas que é claramente obsceno.
[208] Esta história apresenta a peculiaridade de usar, na sua primeira metade, a maioria das flexões verbais
no presente para indicar as ações das personagens (“então ele diz”, “ele passa a contar”, “a mulher
responde” etc.), o que lhe confere um tom mais cômico e dramático. Na medida do possível, a tradução
manteve esse recurso.
[209] Sintaticamente, não é claro quem chama o barbeiro. Ao tradutor, pareceu ser o moleiro.
[210] O verbo “agarrar” foi escolhido para traduzir o vulgarismo egípcio qallaš, cujo sentido exato hoje está
perdido, mas que o contexto deixa mais ou menos evidente.
[211] “Desonesta” e “honesta” traduzem, respectivamente, arbåb attuhma e ahl alkamål, “os mestres da
suspeita” e “a gente da perfeição”.
[212] O manuscrito prossegue, depois disso, até a milésima primeira noite, mas considerou-se suficiente,
para os propósitos da presente tradução, chegar até aqui (veja o “Posfácio” a este volume).
[213] As narrativas seguintes, até a noite 755, foram traduzidas do manuscrito Arabe 3612, da Biblioteca
Nacional da França, no qual ocupam toda a vigésima sexta parte, inteiramente composta por trechos do
tratado político Attibr Almasbœk f∑ Naß∑¬at Almulœk, “Ouro em lingotes no aconselhamento aos reis”, do
teólogo e letrado Algazel (m. 1111 d.C.). As notas apontam as diferenças entre o texto do presente
manuscrito e os da edição crítica do texto de Algazel e de uma “vulgata” egípcia, isto é, o texto tal e qual
circula comercialmente. Nesta tradução, tudo quanto se encontrar entre colchetes é acréscimo feito a partir
de uma das versões impressas, e rara vez por iniciativa do tradutor. Veja, a respeito, o “Posfácio” a este
volume. Na página de rosto do manuscrito, lê-se, na forma de pirâmide invertida característica do final dos
antigos manuscritos árabes: “Parte vigésima sexta da história excelsa das mil e uma noites, inteiras e
completas. E louvores a Deus. Acabou-se”.
[214] Segundo califa do islã (m. 644), companheiro do profeta, é sempre citado como exemplo de justiça.
[215] “Espião do comandante” traduz ¢awån∑, vocábulo tardio, o que torna impossível ter sido
efetivamente proferido na época de cUmar ou do profeta. Conforme se explica no “Dicionário de vocábulos
dos períodos ayubita, mameluco e otomano”, tratava-se de um grupo de pessoas “empregadas pelo
governante para auxiliá-lo delatando os súditos, como preâmbulo à expropriação de seus bens e sua
sujeição”.
[216] Personagem mítica, envolta em mistério, à qual, segundo os exegetas, se faz alusão na sura 18 do
Alcorão, num episódio com Mœsà. Alguns a identificam ao profeta Elias do Velho Testamento. É muito
importante para a tradição mística do islã, o sufismo.
[217] Forma árabe do nome que em português é “Gabriel”. E Dåwœd é “Davi”.
[218] Note que, no “original”, isto é, no texto de Algazel, essa admoestação é por ele dirigida ao sultão
seldjuque Mu¬ammad Ibn Malikšåh, ao passo que, nesta apropriação, a admoestação é feita por ¸ahrazåd e
se dirige ao rei ¸ahriyår.
[219] Filho do supracitado califa ¢Umar, narrador de tradições e companheiro do profeta e combatente pela
causa do islã. Morreu em 692.
[220] No original, qayßar, que é como os árabes se referiam a quaisquer líderes políticos de Roma e de
Bizâncio.
[221] Teólogo da sunna (tradição islâmica) e místico (ßuf∑) nascido em Bal∆, no ¿uråsån, Irã Oriental.
Muito célebre e acatado em seu tempo, formou discípulos. Morreu na batalha de Kawlån, em 194 H./809
d.C.
[222] No texto da edição crítica, a resposta é: “Sou ¸aq∑q, mas não asceta”. É possível que essa leitura seja
mais correta, mas a resposta do manuscrito parece mais aguda. As palavras “asceta”, zåhid, e “ascetismo”,
zuhd, não devem necessariamente evocar o anacoreta de cajado vivendo em algum retiro ou ermida,
podendo, mais comumente, indicar indiferença ou rigorosa austeridade em relação aos bens materiais; daí o
jogo com a palavra zåhid, “asceta” e “austero”. Nessa linha, conforme se verá adiante, um rei pode ser
constituído como asceta, ou ascético, pelo simples fato de fazer pouco da riqueza.
[223] Abœ Bakr (m. 634), ¢Umar e ¢U¥mån (m. 656) foram os três primeiros califas, isto é, sucessores do
profeta Mu¬ammad na condução da comunidade muçulmana. Seus apelidos — em árabe Aßßidd∑q,
Alfårœq e flœ Annœrayn — são autoevidentes. No caso do último, “as duas luzes” são exatamente as duas
características citadas a seguir, a saber, “recato”
e “generosidade”.
[224] Note como a referência ao quarto califa (m. 661) é mais frugal. Isso se deve ao fato de que o texto se
alinhava com a ortodoxia sunita, e qualquer laivo de preferência por ¢Al∑ em relação aos seus três
antecessores poderia ser interpretado como simpatia pelo xiismo.
[225] Essa última fala foi traduzida da versão constante na edição crítica, uma vez que no manuscrito se lê:
“O teu paradigma é como o do aguadeiro: se a fonte for pura, a sujeira do aguadeiro não te prejudicará”. É
visível, pois, que aí a passagem está truncada.
[226] Segundo califa da dinastia abássida, governou de 754 a 775. Caracterizado pela rudeza, foi o fundador
de Bagdá.
[227] Natural de Basra, era profundo conhecedor das tradições do islã e respeitado asceta. Morreu em 781.
[228] Natural de Medina (642-728), viveu a maior parte de sua vida em Basra. Letrado e erudito, é um dos
místicos mais importantes do islã, venerado pela tradição sufi.
[229] Em árabe, a forma desse nome varia: ¢„sà entre os muçulmanos e Yasœ¢ entre os cristãos.
[230] Na edição crítica, “o forte corajoso é quem derrota a si próprio, e não quem derrota outro homem”.
Parece mais amplo e sábio, mas a tradução preferiu manter a versão do manuscrito.
[231] Curiosamente, nem no manuscrito, nem na edição crítica, nem na vulgata egípcia consta o pedido que
o demônio faria a Mœsà.
[232] “Dotado de intelecto” traduz ¢åqil, palavra que, dependendo do contexto, pode também ser traduzida
como “ajuizado”. Seu cognato ¢aql, que aparece muito no texto, pode ser “intelecto”, “juízo” e também
“inteligência”.
[233] Nas outras versões, essa primeira frase é: “Estamos com fome”, provável fruto da confusão entre
jamma¢nå, “reuniu-nos”, e ju¢nå, “tivemos fome”. Na dúvida, a tradução manteve as duas.
[234] O leitor de literatura portuguesa não deixará de reconhecer aí a base do enredo do conto “O tesouro”,
de Eça de Queiroz, cuja ação se passa na “mata de Roquelanes”, onde o tesouro ainda se encontra.
[235] Em árabe, a palavra dunyå, “mundo”, é feminina, o que confere às ocorrências um tom de sedução.
[236] Nas demais versões, consta “seus inimigos” em lugar de “suas famílias”.
[237] Aqui, “Deus” é designado por um de seus noventa e nove epítetos, “verdade”. Mas o trecho ficaria
incompreensível assim traduzido, uma vez que, para a laicidade contemporânea, “Deus” e “verdade” são
concepções inteiramente desconectadas (ao contrário, por exemplo, de “onipotente”, “misericordioso” etc.).
Mais adiante, “indivíduo” traduz ša∆ß; na edição crítica, malak, “arcanjo”, e na vulgata, ©ulåm, “rapaz”,
“efebo”.
[238] No manuscrito, consta tasabbub, “motivação”, o que não faz sentido; na vulgata, tašt∑t, “dispersão”,
o que tampouco faz sentido. Para a tradução, supôs-se, devido à grande semelhança nas grafias, que fosse
tašabbu¥, “tenacidade”.
[239] Narrador de tradições dos primórdios do islã, e um de seus primeiros historiadores, comumente
refutado e acusado pela posterior tradição historiográfica de forjar mentiras e narrar invencionices. De
origem persa, nasceu e morreu no Iêmen, em 732. Nas versões impressas, acrescenta-se: “ele fazia parte dos
sábios judeus e se converteu ao islã”.
[240] “Seus comandantes” traduz uma palavra do manuscrito que foi lida como umaråhu, forma vulgar de
umarå’ihi, mas que à primeira vista deveria ser lida como imra’a, “uma mulher”. Contudo, apesar do
interesse que tal variante poderia suscitar nessas circunstâncias, trata-se de inegável erro de cópia: na
vulgata se diz “seus comandantes, secretários e notáveis de seu governo”, e, na edição crítica, “seus
comandantes e vizires”.
[241] “Eu recebi ordens para dar-te a opção”. No manuscrito, diz-se apenas: “eu recebi a ordem para isso”,
o que torna a afirmação dúbia: ordem para extinguir a vida ou ordem para dar a opção? Optou-se pelo que
consta em um dos manuscritos citados no rodapé da edição crítica, no qual a ambiguidade se desfaz.
[242] Pregador e narrador de tradições de origem persa, muito acusado em seu tempo de invencionices e
mentiras. Morreu no segundo século da Hégira, correspondente ao século viii. No manuscrito, por equívoco,
Arruqå¢∑.
[243] “Todo-poderoso” traduz jabbår, que é a mesma palavra usada nesta história para caracterizar o rei, e
que foi traduzida como “tirano”.
[244] “Seus familiares”: no manuscrito e nas demais versões consultadas consta ahl mamlakatihi, “o povo
de seu reino”. Porém, dada a descrição que se faz do rei, optou-se pelo que consta em um dos manuscritos
citados no rodapé da edição crítica, no qual se lê ahl baytihi, literalmente, “a gente da sua casa”, isto é,
“seus familiares”.
[245] Dåwœd, como já se viu, é a forma árabe do nome que em português é “Davi”, e Sulaymån é a de
“Salomão”.
[246] “O prazer da comida”: na edição crítica, “o prazer do mundo”.
[247] “Resignação” e “ascetismo” traduzem, respectivamente, qanå¢a e ßa¢laka (esta última significa mais
propriamente “errância”).
[248] Curiosamente, após essa fala, pulam-se alguns trechos do “original”: três curtas narrativas do gênero
“último suspiro”, correspondente ao memento mori latino. O acréscimo nesse caso se justifica porque o
discurso anuncia tais histórias, cuja falta se deve a erro de cópia.
[249] Uma das esposas do profeta Mu¬ammad, na verdade a principal delas, era filha de Abœ Bakr.
Conhecida como “a mãe dos crentes”, após a morte do marido envolveu-se em vários eventos políticos e
militares, dos quais o mais célebre foi a “Batalha do Camelo”, em 656, na qual tomou partido contra o então
califa ¢Al∑. Morreu em 678. Seu nome significa, em árabe, “a que vive”.
[250] Traduzido a partir da edição crítica.
[251] Existe algum equívoco no relato, uma vez que a primeira personagem citada foi um líder político e
militar morto em 869, ao passo que o segundo, acatado estudioso e erudito do islã, morreu em 1058.
[252] O manuscrito e as demais versões trazem “seu Deus”. Optou-se pelo que consta de um dos
manuscritos citados no rodapé da edição crítica.
[253] Por equívoco, a noite está numerada como 747.
[254] Na edição crítica, acrescenta-se: “É este o meu processo, e o pescador é o meu litigante”.
[255] “Conhecimento do que está oculto” traduz ¢ilm al©uyœb. No islã, essa característica divina é sempre
enfatizada.
[256] Na edição crítica se acrescenta: “mas não lhe pagou e o pai do garoto morreu”.
[257] Na edição crítica se acrescenta: “e na outra vida”.
[258] O trecho está confuso em todas as versões, embora o sentido geral permaneça claro. A tradução, neste
ponto, é fruto de uma leitura hiperinclusiva, isto é, com a reunião dos elementos constantes das três versões
consultadas.
[259] “Tal como sois são os vossos governantes” traduz kamå takœnœ yœlà ¢alaykum.
[260] “Proceder do rei” traduz fi¢l almalik; na edição crítica, consta ¢aql almalik, “intelecto (ou razão, ou
juízo) do rei”.
[261] Essa frase, annås bimulœkihim ašbah minhum bizamånihim, com sua estranheza, parece adaptação de
uma fala atribuída a ¢Al∑ Ibn Ab∑ ˇålib, o quarto califa muçulmano: annås bimulœkihim ašbah minhum
biåbå’ihim, “as pessoas são mais parecidas com os seus reis do que com os seus pais”. Traduziu-se da
edição crítica e da vulgata, pois a frase parece truncada no manuscrito: annås bimulœkihim ašbah biri
¢åyåtihim, algo como, “as pessoas são mais parecidas com os seus reis do que com os seus súditos”.
[262] “Seu proprietário”, mal∑kihim, é o que consta do manuscrito. Também poderia ser lido como
mulaykihim, “seu régulo”. Nas outras versões, consta mulœkihim, “seus reis”, que é certamente o que consta
do “original” de Algazel.
[263] Na edição crítica, “não concordes com os malvados”.
[264] “Empobrecerás”, tufqir, é o que consta da vulgata. No manuscrito e na edição crítica, tufarriq,
“dispersarás”.
[265] “O teu dinheiro”, måluka, é o que consta do manuscrito. Na edição crítica, mamlakatuka, e na
vulgata, mulkuka, ambas as palavras significando “o teu reino”.
[266] “Agregação do reino”, ijtimå¢ almamlaka, é o que consta do manuscrito e da vulgata; na edição
crítica, ijtimå¢ arra¢iyya, “agregação de súditos”. Mais adiante, em vez de “Hindustão”, a edição crítica
traz “Índia”.
[267] “Alcaparras” e, mais adiante, “alcaparreira” traduzem kabar, palavra de origem persa à qual o
dicionário de Dozy atribui, ainda, o sentido de “pepino da Índia”, o que não é o caso aqui. Seja como for,
parece evidente que se trata de uma planta negativamente constituída, cuja simples existência no país seria,
simultaneamente, índice de negligência administrativa e, por consequência, de ruína. Na verdade, embora a
alcaparra hoje seja produto de culinária sofisticada, a existência de alcaparreiras evidencia, na região
mediterrânea, descuido em relação ao solo agricultável.
[268] “E depois não alimentes a ambição” é o que consta do manuscrito. Nas versões impressas, “e só
depois disso alimenta a ambição”, o que parece mais coerente.
[269] Nas outras versões, “[…] pedia para ouvir as histórias deles e agia em conformidade com o modo de
proceder deles e suas tradições. Mas os reis deste nosso tempo é que deveriam agir assim”.
[270] “Vive longamente no mundo”: na edição crítica, “passa pelo mundo”.
[271] Nas demais versões, “passando por ele”.
[272] Nas demais versões acrescenta-se: “tal como consta na história”.
[273] Traduzido das versões impressas. No manuscrito consta uma palavra quase ilegível (ubwån?). Hazår
é palavra persa que significa “mil”.
[274] Na edição crítica, “Ya¢fœr, rei da Índia”.
[275] Essa fala do rei do Hindustão está truncada em todas as versões, das quais se fez uma “mescla” para a
tradução. No manuscrito, literalmente, “que Deus altíssimo afaste de nós o seu mal, que quando se
manifesta nos envergonha, e quando lembramos nos acabrunha e quando abandonamos nos arrependemos”.
Parece que nesta passagem o principal equívoco do escriba do manuscrito foi ter copiado šarrihi, “o seu
mal”, em vez de fikra, “um pensamento”.
[276] “Ó sultão do universo”, yå sul†ån al¢ålam: trata-se aqui de uma clara adaptação do copista para
manter a coerência da narrativa, pois nas outras versões consta yå sul†ån alislåm, “ó sultão do islã”, e,
como se sabe, o texto não constitui ¸ahriyår como muçulmano. Nas demais versões o trecho continua assim:
“Deves ouvir a fala daqueles reis, observar as suas obras, ler-lhes as histórias nos livros e o que neles se
alinhavou de elogios à sua justiça, equanimidade, boa conduta, bons relatos e a memória sobre eles
existente na língua das criaturas, até o dia do Juízo Final”.
[277] Jurisconsulto e intérprete do Alcorão, nasceu em Medina. Morreu em 753. No manuscrito, por
equívoco, “Yaz∑d”.
[278] No manuscrito, bad∑¢, “maravilhoso”, em vez de ba¢∑d, “distante”, claro erro de cópia.
[279] “Carne gorda”traduz dasm, “gordura”. No manuscrito, o trecho está truncado.
[280] “Todas as partes do seu rosto” traduz wajhihi wa ma¬åsinihi, o que normalmente se entenderia como
“seu rosto e sua formosura”. Porém, não é o caso. A segunda palavra tem vários sentidos, entre os quais “as
partes belas do corpo”. No contexto desta narrativa, e de outra mais adiante, o sentido só pode ser o de
alguma das partes do rosto (olhos, nariz, bochechas), muito embora tal uso não conste de nenhum
dicionário. Outra possibilidade é que a palavra, aqui, signifique o conjunto dos traços faciais, a feição.
[281] Trata-se aqui de outro califa chamado ¢Umar (681-720), o nono da dinastia omíada, também
conhecido por sua devoção e piedade. No manuscrito se pula o seguinte trecho: “Certo dia ele discursou e
disse: ‘Ó gente, a inspiração divina baixava na época do profeta de Deus, sejam as suas preces e saudações
sobre ele, e por meio dela ficávamos sabendo a exterioridade e a interioridade das pessoas, bem como o que
nelas era bom e o que era ruim. Mas agora, tendo-se interrompido a inspiração divina, nós só olhamos para
o que cada um exterioriza, pois Deus é que sabe mais o que lhe vai pelo interior. Eu e meus encarregados
temos o compromisso de nada tomar que não esteja no direito, nem nada conceder que não esteja no
direito’. Portanto, se quiseres saber que a justiça do sultão e sua piedade são o motivo da sua boa memória e
orgulho, vê as notícias sobre…”.
[282] Na edição crítica se acrescenta: “um criado que era encarregado do tesouro público e três filhas…”.
[283] “Malvestidas” traduz ¢aråyå, literalmente, “nuas”.
[284] O trecho entre colchetes foi traduzido da vulgata egípcia.
[285] Alcorão, 16, 90. A continuação do versículo é: “e a iniquidade; ele vos exorta, e quiçá reflitais”.
[286] Na edição crítica se acrescenta: “no dia do Juízo Final”.
[287] Merv, “pedra branca”, é a principal cidade da região de ¿uråsån. O líder citado foi um dos
governadores da dinastia samânida, que dominou aquela região de 874 a 999. Morreu em 908.
[288] O início da narrativa a seguir está drasticamente estropiado em todas as versões. Consultou-se
também uma versão dela constante num obscuro tratado político tardio, Addurra Al©arrå’ f∑ Naß∑¬at
Assalå†∑n wa Alqu®å, “Pérola encantadora no aconselhamento de sultões e juízes”, onde se encontra
igualmente ininteligível em seu início. A tradução procurou aproveitar todos os elementos que conferissem
alguma coerência à história.
[289] No manuscrito, por equívoco, “Ismå¢∑l Ašš∑bån∑”. Trata-se do mesmo personagem da narrativa
anterior.
[290] Aqui, novamente, “face” traduz ma¬åsinuhu, “as partes belas [do rosto]”, cuja tradução já se discutiu
na nota 277.
[291] Na edição crítica, “cem mil”; na vulgata, “mil”. Adiante, o acréscimo entre colchetes provém das
demais versões.
[292] Líder político da dinastia safárida, que dominou a região de Sijistån, no Oriente da Pérsia, na segunda
metade do século ix. Sua derrota pelos samânidas, em 903, e consequente morte nas mãos do califa
abássida, marcou o fim do poder daquela dinastia.
[293] A redação do texto é ambígua, somente se chegando a uma solução mediante consulta a obras
históricas. Conforme relato do historiador Ibn Ala¥∑r (1160-1234) em seu célebre e volumoso Kitåb
Alkåmil f∑ Attår∑∆, “O livro perfeito em história”, esses dois líderes políticos e militares se confrontaram
em disputa pelo controle da região de ¿uråsån, e ¢Amrœ saiu derrotado. Ismå¢∑l então lhe teria oferecido a
opção: ficar consigo em Samarcanda ou ser enviado a Bagdá. ¢Amrœ preferiu ser enviado a Bagdá, onde o
califa Almu¢ta®id (m. 902) o aprisionou imediatamente, e na prisão ele morreu. Assim, de certo modo ele
foi sim enviado a Bagdá como “mensageiro”, pois o envio se deu por opção dele próprio.
[294] As demais versões acrescentam: fazåla mulkuhum, “e então seu reinado se extinguiu”.
[295] “E esse é o nível mais baixo de qualidade” traduz wa hya darajat aljawd assuflà, o que possivelmente
contém algum equívoco. Na edição crítica consta a lição que parece ser a mais correta: “isso é injustiça, e o
seu nível, o inferior”.
[296] Letrado que gozava do favor de poderosos e tinha afeto pelos pobres, como afirma um historiador.
Morreu em 786.
[297] Terceiro califa da dinastia abássida, morreu em 785.
[298] Esse verso foi traduzido das versões impressas. A lição do manuscrito é meio incompreensível: “Veste
a roupa de quem conheces, pois com ela lograrás”.
[299] “Dezesseis” é o que consta de todas as versões, mas elas são vinte. A não ser que algumas delas
estejam agrupadas como uma única característica.
[300] No manuscrito, “demonstração de súditos”, o que não tem cabimento. Trata-se de confusão entre as
grafias assemelhadas de ri¢åya, “súditos”, e za¢åma, “liderança”.
[301] “Segredo” traduz sirr. Nas versões impressas, consta siyar, “condutas”, com o que a tradução ficaria:
“decorar as condutas dos reis”, o que parece mais provável. A grafia de ambas as palavras é bem
semelhante.
[302] Mítico vizir do rei persa Kisrà Anœ ¸irwån, seu nome, que significa “amorosíssimo”, é sempre
associado à sabedoria.
[303] Essa narrativa não consta da edição crítica. Na vulgata, a partir de “pois, se a política do sultão
for…”, a redação é mais clara. Eis a tradução: “Pois, quanto mais o sultão é injusto, mais o temem as gentes
das fronteiras, ainda que muitas sejam as suas benesses, as quais quando há medo não se aceitam, ao passo
que, mesmo sendo poucas, são aceitas quando existe segurança, tal como se relata na [seguinte] história”.
[304] Nas versões impressas, acrescenta-se aí: “e que com essa política seja justo”.
[305] “Gente vulgar” traduz ahl tafåha; na edição crítica, ahl safåha, “gente estulta”.
[306] Líder político e militar do período omíada, tem o nome sempre associado à extrema dureza do seu
governo e métodos. Morreu em 714.
[307] Morto em 673, foi importante líder político e militar do período omíada, e seu nome, literalmente,
significa “Ziyåd, filho do seu pai”, devido à obscuridade de suas origens; com o aparente desejo de
nobilitar-se, divulgou que seu pai seria o aristocrata Abœ Sufyån (m. 652), pai de Mu¢åwya (m. 680),
fundador da dinastia omíada. A história chegou a receber crédito, como se evidencia nesta crônica, mas
parece que a sua mãe, Sumayya, exercia o meretrício na cidade de A††å’if, na Península Arábica, donde o
apelido. “Jåhiliyya” é o nome que se dá ao período anterior ao surgimento do islã. Literalmente, significa
algo como “época da ignorância”, mas existem controvérsias quanto ao efetivo sentido da expressão.
[308] Nas versões impressas, “como se fossem eiras”.
[309] Nas versões impressas, a posição de “péssimas ações” e “péssima desobediência” está invertida.
[310] Rei da dinastia sassânida, também conhecido como Bahråm 5o, governou de 421 a 438. A dureza de
sua perseguição aos cristãos provocou a intervenção bizantina.
[311] Sexto califa da dinastia abássida, também amiúde citado no Livro das mil e uma noites, estimulou as
ciências e a filosofia. Governou de 786 a 833.
[312] Região do sul do Irã, próxima ao Golfo Arábico.
[313] As palavras em itálico estão em persa no original. Literalmente, a frase se estrutura por meio da
inversão, ou seja, “o melhor é o maior, e o maior não é o melhor”, o que em português é redação débil.
[314] Em árabe, a palavra taqallub, nome de ação do “ato de revirar-se”, é cognata de qalb, “coração”.
[315] Nas versões impressas não consta “durante a noite inteira”, o que é mais verossímil.
[316] A tradução do trecho entre colchetes é fruto da leitura combinada das versões impressas.
[317] Palavra persa composta de šåd, “feliz”, e båš, “que seja”. Seu sentido geral é “muito bem”. Corrigiu-
se a grafia da palavra, que contém equívocos em todas as versões.
[318] O longo trecho entre colchetes foi traduzido da edição crítica, que por sua vez o acrescenta, conforme
nota do organizador, de um manuscrito cujo texto neste ponto é similar ao do aqui empregado. Também
consta da vulgata.
[319] Nas versões impressas, a última coisa é: “incrementar a força do reino com a diminuição das ações
condenáveis”. A lição do manuscrito parece mais consistente.
[320] Todas as versões trazem “companheiros” em vez de “conselhos”, o que está obviamente errado
(devido, talvez, à semelhança de grafia entre as duas palavras).
[321] Não fica claro onde, precisamente, se encerra a fala de Al¬asan de Basra e onde ela é retomada pelo
narrador. Ante tal imprecisão sintática, supôs-se que o ponto foi este.
[322] Nas versões impressas, esse trecho se inicia com: “Conta-se a respeito daqueles a quem sucede a
provação de ter de ficar ao lado dos sultões”.
[323] Intérprete do Alcorão, fez escola e polemizou. Nasceu em Kufa e morreu em Basra no ano de 778.
[324] Nas versões impressas, “¸ahriyår”, o mesmo nome do rei para o qual ¸ahrazåd conta as histórias, e que
é a forma correta, já que os historiadores árabes fazem referência a esse rei e a essa filiação. Manteve--se a
forma do manuscrito pela possibilidade de que o nome ali tenha sido propositalmente alterado.
[325] Rei persa da dinastia sassânida, governou de 590 a 628. Tomou o poder com o auxílio dos bizantinos
e invadiu Jerusalém, mas, derrotado enfim pelo imperador bizantino Héracles, foi assassinado na cadeia.
[326] “Quem tem o juízo ruim e quem finge ter juízo” traduz qab∑¬ al¢aql e muta¢aqqil, grafia
evidentemente incorreta, por muta¢åqil. Nas versões impressas, consta qab∑¬ alfi¢l e ¢åqil, “malfeitor” e
“ajuizado”. Como se vê, a variante do manuscrito é muito mais condizente com o andamento da narrativa.
A palavra ¢aql, “juízo”, também poderia ser traduzida por — e no mais das vezes corresponde a —
“intelecto”.
[327] Antes dessa narrativa, as edições impressas trazem o seguinte trecho omitido no manuscrito: “Porém,
nestes tempos o sultão deve adotar a política mais perfeita e ter respeitabilidade para que cada pessoa cuide
de seus próprios misteres, e para que uns estejam a salvo dos outros. E nós agora divulgaremos uma notícia
a este respeito, a qual beneficiará o leitor e o ouvinte”.
[328] Entre essa fala e a próxima, que nas versões impressas é atribuída ao “sapiente Sócrates”, consta um
longo trecho atribuído a Platão: “Disse Platão: ‘O sultão vitorioso sobre o seu inimigo tem como
característica ser forte consigo mesmo, observador do silêncio, pensante com o intelecto em seus pareceres
e administrações, dotado de intelecto em seu reino, nobre para consigo mesmo, doce ao coração dos súditos,
hábil em todas as suas obras, conhecedor das leis de quem o antecedeu, especialista nas obras de quem o
antecedeu, firme em sua fé e arrojo’. Todo rei no qual se reunirem tais características será venerável aos
olhos do inimigo, e o caçador de defeitos nada encontrará para dizer a seu respeito. E, se o rei considerar
que o seu poder e força provêm de Deus altíssimo, mesmo que o seu inimigo seja forte, derrotá-lo-á e o
vencerá, tal como no dizer de Deus altíssimo: ‘Quantas vezes um pequeno grupo venceu um grupo
numeroso, com a permissão de Deus, e Deus está com quem tem paciência’ [Alcorão, 1, 249]. Disse o
sapiente Sócrates: ‘A característica do rei cujo reinado perdura é que, nele, a fé e o intelecto lhe estejam
vivos no coração, a fim de que ele seja amado no coração dos súditos’”.
[329] Em lugar de “e ter intelecto abundante, pois os defeitos são resultado da sua falta”, nas versões
impressas consta o seguinte: “Todo rei que não tem características como essas não será feliz em seu reino,
os motivos de sua aniquilação lhe chegarão céleres e seus parentes e comensais serão mortos por suas
próprias mãos, pois o assassinato se manifesta na falta de intelecto, tal como disse o poeta”. Essa redação
parece mais coerente com o que vem a seguir.
[330] Líder da tribo dos Banœ Tam∑m, na Península Arábica, de eloquência e generosidade proverbiais,
constantemente mencionadas nas obras de adab. Morreu em 691.
[331] Narrador de tradições do profeta e administrador da região da Caaba, em Meca. Morreu em 803. No
manuscrito, por equívoco, está grafado Alfa®l.
[332] “Senhor dos humanos” é um dos epítetos do profeta Mu¬ammad.
[333] Trata-se de um rei persa bem anterior à dinastia sassânida, que é a normalmente citada em obras deste
gênero. Na verdade, é um rei mítico a quem se dedica um trecho do Avesta, texto sagrado da religião
zoroástrica, e que o åh Nåmah, “Livro dos reis”, do poeta persa Firdœs∑ (932-1020), celebra como herói.
Essa história, com maior profusão de detalhes, consta do tratado político Siyåsat Nåma, “Livro da política”,
do vizir seldjuque Ni≈åm Almulk (1018-1092), escrito originariamente em persa. Nela, o rei é o sassânida
Bahråm G¯or, também conhecido como Bahråm v (m. 438), o que parece bem mais plausível.
[334] Locução persa, Råst Rawšan significa “o de correta conduta”.
[335] “Responsável pelo lugar” traduz ßå¬ib almaw®i¢, que era um cargo oficial do governo persa.
[336] O segundo provérbio foi traduzido da edição crítica. No manuscrito, “quem trai no parecer deve
perecer”.
[337] Nome de três reis persas da dinastia sassânida. Aqui a referência é ao primeiro, que fundou a dinastia
e governou entre 226 e 241. As máximas a ele atribuídas são constantemente referidas pelos autores árabes,
e seu “testamento”, citado logo adiante, foi reconstituído em 1968 pelo historiador palestino I¬sån ¢Abbås.
Em persa, literalmente, significa “a cólera do leão”, ou seja, “o campeão irascível”.
[338] O mais célebre dos reis do Estado Gaznévida, governou de 998 a 1030. Seus domínios abrangeram a
maior parte do Irã, do Afeganistão e da Transoxiana.
[339] Após essa fala, que tem passagem semelhante em Kal∑la e Dimna, as versões impressas trazem:
“Isso quer dizer que, se acaso o sultão tiver largueza de vistas e for atento às questões, pensar nas
consequências e os seus aproximados e principais do seu governo tiverem tais características, a situação do
seu reino ficará em ordem e os misteres do seu governo se manterão estáveis”.
[340] Trata-se do 28o rei da dinastia sassânida, morto em 591, após ter sido aprisionado e cegado por um
dos seus chefes militares. Fez guerra aos bizantinos. Em árabe, a forma do nome é Abraw∑z.
[341] “Todas as coisas são embelezadas pelos homens que…”. No manuscrito, “todas as coisas são
embelezadas pelas roupas, e todos os homens são embelezados pelo saber…”; na edição crítica, “todas as
coisas são embelezadas pelos homens, e todos os homens são embelezados pelo saber…”. Nada disso faz
sentido. A tradução só atinou com o melhor sentido do trecho por meio de um visível erro de revisão no
texto da vulgata.
[342] Nas versões impressas, al¢iffa, “a castidade”, em lugar de alfiqh, “a jurisprudência”.
[343] Fundador do Estado Safárida, sobre o qual já se falou, foi morto em 879 e substituído por seu irmão
¢Amrœ, também já citado aqui.
[344] O 15o dos califas da dinastia abássida, nascido em Samarra em 843, governou de 870 a 892, mas o
poder efetivo era exercido por seu irmão e líder militar Almuwaffaq ˇal¬a. Morreu envenenado.
[345] Nas versões impressas, “toda criatura” em lugar de “toda justiça”, o que parece mais correto.
[346] Brilhante líder político e militar da dinastia tahírida, que governou a região de ¿uråsån por cerca de
um século. Morreu em 844.
[347] Vizir e administrador do califa Alma’mœn, era conhecido como “o das duas lideranças”, no caso, a
política e a guerra. Zoroastrista, converteu--se ao islã pelas mãos do próprio califa, o qual, segundo algumas
fontes históricas, foi quem mandou matá-lo em 818.
[348] Trecho obscuro. Nas versões impressas a fala é mais simples: “pois o astro, na velocidade de sua
rotação, não para”. Possivelmente o texto se encontre truncado, e em sua forma completa deveria fazer
referência ao pedido de algum apaixonado.
[349] Morto em 750, esse califa, o último dos omíadas, foi derrubado por uma revolução chefiada pelos
abássidas, que tomaram o poder no mundo islâmico.
[350] Gramático sobre o qual as únicas referências são alguns comentários sobre a língua árabe. Era de
origem persa, provavelmente.
[351] Traduzido da edição crítica. O texto do manuscrito traz apenas quatro hemistíquios. Na edição crítica
também se acrescenta sobre os versos: “Ele os elaborou antes de morrer e ordenou que fossem inscritos em
sua tumba”.
[352] “Inimigos” é o que consta das versões impressas. No manuscrito, consta amr, “assunto” ou “ordem”,
o que não faz o menor sentido. Já o envio aos inimigos faz todo o sentido, pois se tratava das missões mais
importantes.
[353] “E se coloquem sob outra autoridade” traduz wa yantaqilœ ilà ©ayr wilåya. Não fica claro se se trata
de mudança física ou de atitude. Em seguida, o trecho entre colchetes, traduzido da edição crítica, dá ideia
de mudança física.
[354] Na edição crítica o trecho continua assim: “e o benefício disso será dos monopolistas do comércio
[∂aw∑ ali¬tikår], que ficam felizes com a elevação dos preços. Isso consistirá em desadorno para o sultão,
e se farão rogos contra ele. É por tal motivo que os reis antigos se precaviam muitíssimo contra isso,
socorrendo os súditos com o dinheiro do seu próprio tesouro e auxiliando-os com as suas riquezas e
reservas”.
[355] Essa narrativa consta do já citado Siyåsat Nåmah, “Livro da Política”.
[356] Conforme explica Mu¬ammad Altawanji em seu “Dicionário de termos persas arabizados”, trata-se
de feriados persas anteriores ao islã. Nayrœz, corruptela de Nœrœz, significa “dia novo” em pahlevi.
Comemora-se no primeiro dia do ano solar, quando o Sol entra na casa de Áries. Corresponde, entre os
egípcios, à festividade chamada amm Annas∑m. Já Mihrajån, que entrou no árabe com o sentido de
“festival”, significa “[dia] do amor”. Comemora-se durante seis dias no início do inverno.
[357] Nas versões impressas, “assegure-se dos argumentos” em lugar de “aprimore os argumentos”.
[358] O trecho iniciado com “quem tiver algum contencioso” é o que se pode depreender do texto do
manuscrito, corroborado, com variantes, pelas versões impressas. Mas é obscuro e não faz parte da versão
conhecida do “Livro da Política”.
[359] Nas versões impressas e no “Livro da política” consta que o rei se dirige aos notáveis e maiorais do
seu reino, e não ao público em geral. Parece mais coerente.
[360] Como se disse, foi nome de mais de um soberano sassânida. Aqui, com toda plausibilidade, a
referência é ao último deles, cujas tropas foram desbaratadas pelos árabes na batalha de Qådisiyya, em 635.
Foi assassinado em 642.
[361] Principal juiz de Bagdá sob três califas abássidas, consecutivamente: Almahd∑, Alhåd∑ e Hårœn
Arraš∑d, escreveu, a pedido deste último, seu célebre Kitåb Al∆aråj, “O livro do imposto”, que abrange
muito mais do que o título insinua, uma vez que trata da própria arte de governar. Morreu em 792.
[362] Membro da família barmécida, que forneceu vizires e conselheiros aos primeiros califas abássidas, foi
preceptor do califa Hårœn Arraš∑d, o qual mais tarde mandaria aprisionar e eliminar toda a família.
Conhecia as tradições do profeta e fazia interpretações de sonhos. Morreu na cadeia em 806.
[363] Poeta e cavaleiro pré-islâmico celebrizado por sua coragem e generosidade. Seus feitos estão envoltos
em lenda. Morreu em 605.
[364] Principal poeta pré-islâmico, morreu em 540.
[365] Tio paterno do profeta, não se converteu ao islã nem aceitou a missão do sobrinho. Morreu em 620.
[366] Alcorão, 3, 159.
[367] Alcorão, 20, 29-32.
[368] Nas versões impressas, “sugerir-lhe o que está pensando” em lugar de “segredar o que está
pensando”. No primeiro caso, o sujeito é o vizir e, no segundo, o rei.
[369] Nas versões impressas, em lugar de “não tratá-lo senão com punição”, consta “não se apressar em
puni-lo”, o que parece mais apropriado.
[370] No manuscrito, “sua opressão” em lugar de “sua sombra”. Traduziu--se das versões impressas.
[371] “Adornos do reino”, z∑nat almamlaka, é o que consta em todas as versões, mas deve ser erro de
revisão.
[372] “Faz a alegria do rei ao lhe reprimir os inimigos”: no manuscrito, “a alegria do rei está na queda dos
seus inimigos”; nas versões impressas, “e com ele se dá a alegria do rei e a repressão aos inimigos”. A
interpretação da tradução é mais adequada.
[373] Na edição crítica, “um padeiro experiente que, ao pegar alguma coisa, a prepara com sutileza”.
[374] “Bom conselheiro” traduz nåßi¬, que é o que consta da edição crítica. No manuscrito e na vulgata,
ßåli¬, “bom”.
[375] Não consta do manuscrito, por motivos ignorados, um longo trecho que antecede essas máximas,
atribuídas nas versões impressas a um sacerdote zoroastrista da época do rei sassânida Kisrà Anœ irwån.
[376] Alcorão, 13, 11. Modernamente, existe a tendência, reacionária e financiada pelo wahhabismo, de
interpretar esse belíssimo trecho sob um viés exclusivamente materialista.
[377] Alcorão, 20, 44.
[378] Na edição crítica se acrescenta: “e se acaso o sultão usar de palavras grosseiras, o vizir não lhe deve
guardar rancor, controlando as palavras em seu coração, pois o poder do rei lhe tira os freios da língua,
levando-o a falar o que bem entende”.
[379] Nas versões impressas, essa fala é atribuída a Kisrà Anœ ¸irwån.
[380] Nas versões impressas, consta “Aristóteles” em vez da antonomásia “adorno dos sapientes”.
[381] Na edição crítica se acrescenta: “pois o homem somente se torna homem aos quarenta anos, e de cada
cem homens somente um reúne condições de servir ao sultão”.
[382] Entre este parágrafo e o seguinte, a edição crítica contém dois longos trechos, um dos quais atribuído
ao “autor do livro”, no caso, Algazel.
[383] Alcorão, 12, 55.
[384] Primo do profeta, era autoridade em jurisprudência e legislação. Morreu em 687.
[385] Em grafia árabe, Bilyånus.
[386] Letrado, poeta e líder político abássida. Califa por um dia, foi morto por sufocação em 908. Entre
outros, é-lhe atribuído o Kitåb Albad∑¢, que trata da linguagem poética.
[387] “Álgebra” traduz istiqbål, “recepção”, que é o que consta de todas as versões. Como não há
cabimento no fato de ela estar no mesmo item do “cálculo”, supôs--se que, por um problema qualquer de
cópia, se deveria ler aljabr wa almuqåbala, “álgebra”. Outra possibilidade é que o segundo item, “a
extração das coisas”, faça na verdade parte do primeiro, ou seja, “localizar a água e saber extraí-la”, sem o
que tal conhecimento resultaria inútil. Nesse caso, poder--se-ia então considerar “saber recepcionar” um
item, separado do “cálculo”.
[388] Na edição crítica se acrescenta nesta passagem: “sabedor de como administrar o cálamo, afiná-lo e
elevá-lo, devendo demonstrar em sua ponta tudo quanto lhe anda pelo coração”, o que é incoerente.
[389] Antiga cidade do sul do Irã conquistada pelos árabes em 642.
[390] Letrado e gramático respeitado, foi vizir por dezoito anos dos soberanos buwayhidas, clã persa que
submeteu a região da Mesopotâmia de 932 a 1055, e em cuja corte acolheu poetas e letrados, embora pelo
menos um deles, o célebre Abœ Æayyån Attaw¬∑d∑, tenha escrito uma obra ridicularizando-o
virulentamente. Morreu em 995.
[391] Nas obras históricas, essa personagem é citada como alfaqui (o que não impede que, eventualmente,
tenha sido escriba). Morreu em 834.
[392] O início destes conselhos, igual em todas as versões, parece meio incompreensível. Normalmente, os
árabes usavam um pingo para representar o zero.
[393] Alcorão, 27, 29.
[394] Cavaleiro e guerreiro do período pré-islâmico, morreu em 612. Irmão da célebre poetisa elegíaca
Al∆anså’.
[395] Nas versões impressas se acrescenta: “e ele efetivamente se converteu ao islã; ao escrever a sua carta
a Kisrà Anœ ¸irwån, não a jogou na terra, e ele efetivamente não se converteu ao islã”.
[396] Na edição crítica: “pois a terra é bendita”.
[397] A recomendação aqui é para que se evite um problema comum em manuscritos, qual seja, a repetição
da mesma palavra em seguida. Na tradição filológica, tal erro se chama “ditografia”.
[398] Na edição crítica: “O melhor discurso é o curto, excelso, útil e não aborrecido”.
[399] Líder militar árabe dos primórdios do islã, derrotou os bizantinos e conquistou o Egito, onde fundou a
cidadela de Alfus†å†, núcleo do atual Cairo. Morreu em 664.
[400] Não se encontraram referências para essa personagem. O nome mais próximo foi A¬mad Ibn
Al∆aß∑b, vizir do 12o califa abássida Almusta¢∑n, que governou de 862 a 866. Antes, durante o governo
do califa Alwå¥iq (842-847), nono dos abássidas, seus bens teriam sido expropriados. Mas a referência é
problemática porque o nome citado no início da anedota, Abœ Addawåniq, significa “pai dos centavos” e
era, conforme se verá adiante, o apelido depreciativo do segundo califa da dinastia abássida, Abœ Ja¢far
Almanßœr (754--775), devido à sua avareza. É possível, contudo, que esse apelido tivesse sido dado,
circunstancialmente, a qualquer governante avarento.
[401] Aqui, a referência é à parte oriental da cidade de Bagdá.
[402] Nome de cinco reis persas da dinastia sassânida. Aqui, a referência é ao primeiro deles, neto do
fundador, Ardaš∑r. Governou de 272 a 273.
[403] Um dos mais notáveis funcionários do Estado Abássida, era escriba e poeta. Muito respeitado pelos
califas a quem serviu devido à sua generosidade proverbial, morreu em 814.
[404] “Desígnio” traduz himma, e “apetite insaciável”, nahma. Embora haja comparação entre os dois
elementos, por “pulo” de cópia o manuscrito não traz a palavra, que consta apenas das versões impressas.
[405] O trecho entre colchetes, traduzido das versões impressas, é necessário à lógica da narrativa.
[406] Filho de Alhåd∑, quarto califa abássida, foi contemporâneo de Hårœn Arraš∑d, a quem o pai tentou
convencer a abandonar a posição de herdeiro ao califado em seu favor.
[407] Filho de Hårœn Arraš∑d, foi califa por quase cinco anos, o sexto da dinastia abássida. Deposto por
uma sublevação chefiada por seu meio-irmão Alma’mœn, foi morto em 813.
[408] Na edição crítica, “não fosse ela o adorno da minha casa”, o que talvez seja mais adequado.
[409] Nas versões impressas se acrescenta: “devido à dignidade de sua alma e de seus desígnios”.
Curiosamente, essa personagem era célebre por sua pederastia, donde a possível ironia da observação.
[410] Nas versões impressas, são duas mil bolsas de moedas cujo valor corresponde a vinte milhões de
dirhams, o que talvez seja mais adequado ao decoro desse gênero de história, porquanto, entre gente graúda,
vinte mil dirhams não eram constituídos como fortuna naquela época.
[411] Esta narrativa também consta da obra Alfaraj ba¢da Aššidda, “Libertação após angústia”, do juiz
bagdali Almu¬assin Attanœ∆∑ (m. 994), sua provável origem. Embora vários detalhes do enredo sejam
diferentes, a tradução manteve o que consta do manuscrito e das versões impressas. Apenas se modificou o
nome do narrador, em consonância com o que consta da obra do juiz, de “Sålim” para “Sulaymån”, nome
correto, segundo as fontes, da personagem histórica. No manuscrito, consta Albåqil∑ em vez de Albåhil∑.
[412] Um dos principais líderes (798-845) do período abássida, serviu sucessivamente aos califas
Almahd∑, Alhåd∑ e Arraš∑d como chefe da polícia, e depois como governador e combatente. As fontes
históricas falam da forte rivalidade entre ele e o clã barmécida, que será objeto de uma narrativa logo
adiante.
[413] Em árabe, tais palavras normalmente têm efeito deceptivo. No relato do juiz Attanœ∆∑, eles se
comprometem diretamente a ajudar dizendo: “Prover-te-emos”.
[414] Na versão do juiz Attanœ∆∑, consta “camelos” em lugar de “jumentos”.
[415] Nas versões impressas, a carta a seguir fala no singular. No manuscrito, começa no plural e passa para
o singular. Como a personagem falara com dois irmãos, e na carta não há assinatura, a tradução manteve
tudo no plural. Na versão bem mais antiga do juiz Attanœ∆∑, a carta é descrita em discurso indireto, e não
reproduzida, com a atribuição das ações e iniciativas aos dois irmãos.
[416] Na versão do juiz Attanœ∆∑, os montantes são diversos: a dívida é de oitocentos mil dirhams, aos
quais, à vista das mesmas ponderações, o califa acrescenta outros oitocentos mil dirhams, e a estes, enfim,
os irmãos ajuntam mais dois milhões de dirhams.
[417] Esta narrativa também se encontra em outro tratado político, intitulado Siråj Almulœk, “O lampião
dos reis”, do letrado andaluz Abœ Bakr A††ur†œš∑ (1058-1162), “o tortosiano”. E sua origem é
vislumbrável na já citada obra “Libertação após angústia” ou na obra Albaßå’ir wa A∂∂a∆å’ir,
“Clarividências e tesouros”, do já citado Abœ Æayyån Attaw¬∑d∑, cujos enredos são muito mais longos e
complexos.
[418] Na versão de A††ur†œš∑, a narrativa continua assim: “Após alguns dias, o homem [que roubara a
taça] foi ter com Kisrà trajando uma bela túnica, a condição renovada. Kisrà lhe disse: ‘Isso provém
daquilo’, e o homem respondeu: ‘Sim’, e mais não disse”. Na edição crítica, ocorre a seguinte continuação:
“Onde estiver a generosidade e a elevação de desígnios também estarão a tranquilidade e o bem, mas quem
nega a benfeitoria e rechaça os favores não vale nada [lå aßla lahu], e quem não vale nada é incapaz de
encobrir uma falha”.
[419] A origem desta narrativa, também incorporada às edições de Bulåq e Calcutá2 do Livro das mil e uma
noites (noites 305-306), está na referida obra do juiz Attanœ∆∑, com maior riqueza de detalhes.
[420] Antigo serviçal dos abássidas, conta-se que ganhou de presente do califa Almanßœr o tapete de reza
que pertencera ao profeta.
[421] Escriba de Ya¬yà, muito estimado pela família barmécida, que nele confiava.
[422] “Dez milhões” é o que consta de todas as versões, excetuada a do manuscrito, que fala em “vinte
mihões”. Mas dez milhões, conforme se verá a seguir, é a quantia mais verossímil.
[423] Nas edições de Bulåq e Calcutá2, os versos falam em primeira pessoa: “Não foi por amor que os
meus pés acorreram até eles/ Mas sim porque eu temi o disparo das setas”.
[424] Trata-se da conhecida formulação muçulmana “em nome de Deus, misericordioso, misericordiador”.
[425] Esta crônica carece de maior fundamento histórico, pois o ódio entre ¢Abdullåh Bin Målik e a família
barmécida perdurou até a eliminação física desta última. Existe mesmo um relato de ¢Abdullåh em que se
evidencia a sua satisfação com a crucificação de um dos membros da família, Ja¢far, que lhe desejara,
tempos antes, o mesmo castigo. Esta narrativa consta igualmente das edições de Bulåq e Calcutá2, nas quais
ocupa as noites 306 e 307, e na de Breslau, na noite 566.
[426] Esta narrativa trata da rivalidade existente entre ambos os clãs, o omíada — que tomara, e na opinião
de muitos muçulmanos usurpara, o califado após a morte de ¢Al∑, o quarto califa, em 661, constituído por
árabes coraixitas que no início da pregação de Mu¬ammad o haviam hostilizado abertamente —, e o
hachemita, constituído pelos apoiadores de primeira hora do profeta.
[427] Filho mais velho do califa ¢Al∑ e de Få†ima, filha do profeta. Após a morte do pai, foi proclamado
califa, mas preferiu evitar combates e abriu mão do califado. Morreu em Medina em 670.
[428] Companheiro do profeta, membro de família tradicional em Meca, morreu em 656.
[429] Nascido em Medina e morto no Egito em 704, era membro da dinastia omíada, pai do califa ¢Umar
Ibn ¢Abul¢az∑z, várias vezes citado nesta obra.
[430] Na edição crítica acrescenta-se aqui: “E, em sentido oposto a esse, conta-se que o secretário Tåš era o
comandante supremo de ¿uråsån, e certo dia, passando pelas lojas de cambistas de Bu∆årà, ouviu um
homem chamando o seu criado pelo nome de Tåš. Ordenou então a extinção das lojas e a desapropriação
dos bens dos cambistas, dizendo: ‘O que pretendestes foi rebaixar o meu nome’. Vê, pois, a diferença entre
um homem nobre (¬urr) coraixita e um mameluco comprado com dinheiro”. Nas fontes históricas não
existem muitas informações sobre essa personagem, Tåš Faråš, serviçal de Ma¬mœd Bin Subuktåk∑n (970-
1030), membro da dinastia turca dos gaznévidas, a qual, a partir da sua base no Pendjab, dominou regiões
do Oriente, em particular da Pérsia, entre 926 e 1178.
[431] Nas versões impressas, Suqrå†, “Sócrates”, em lugar de Buqrå†, “Hipócrates”.
[432] Nas versões impressas, consta “Ibn Almuqaffa¢” (letrado de origem persa morto por volta de 754) em
lugar de “alguém”.
[433] No manuscrito, “não olhar senão para si mesma, para a língua”. Trata-se de erro evidente, fruto da
confusão entre as grafias de insån, “ser humano”, e lisån, “língua”.
[434] Formulação problemática, pois o que consta do manuscrito e da edição crítica é amr, palavra muleta
que apresenta uma infinidade de sentidos: “ordem”, “questão”, “decreto”, “assunto” etc. Talvez se trate de
“decreto divino”, ou mesmo “destino”, o que tornaria a formulação por demais óbvia. A tradução optou por
considerar que amr é má leitura de amal, “esperança”, e de ajal, “fim”. O trecho difere no manuscrito e na
edição crítica, e não consta da vulgata. Uma tradução possível para a formulação da edição crítica é:
“quando a coisa vem não há como fazê-la ir, e quando vai não há como fazê-la vir”.
[435] Profeta da Península Arábica citado no Alcorão como exemplo de sabedoria.
[436] Nas versões impressas se acrescenta: “E a quebra do vidro, quando está inteiriço, é mais fácil do que
consertá-lo quando quebrado”.
[437] No manuscrito, em lugar de “intelecto”, ¢aql, consta ¬aqd, “ódio”, “rancor”.
[438] “Mundanos” traduz a߬åb addunyå, literalmente, “amigos do mundo”, sintagma comumente usado
para caracterizar os aferrados à vida terrena.
[439] Possivelmente, essas duas últimas são consideradas como um único tópico.
[440] Nas versões impressas, “herança”, ir¥, em vez de adab, “decoro”, e “beleza”, jamål, em lugar de
i¬timål, “capacidade de suportar”.
[441] Em todas as versões consta danå’a, palavra que normalmente se traduz como “vileza”, “abjeção”.
Porém, como todas as características são positivas (seja o último item “decoro”, seja “herança”), supôs-se
que a palavra correta seria danåwa, “proximidade”, implicando a ideia de “capacidade de se aproximar”, e,
por extensão, “afabilidade”.
[442] Na edição crítica, “terra” em lugar de “bebida”.
[443] Em todas as versões constam cinco coisas em lugar de quatro.
[444] “Cerviz” traduz ∆arazat al¢unq, sintagma sobre cujo sentido não existe concordância.
[445] Trata-se do vizir Aßßå¬ib Ibn ¢Abbåd, já citado neste texto.
[446] “Santos” foi a discutível opção para traduzir abdål, literalmente “substitutos”, termo da mística
islâmica, o sufismo, usado para caracterizar as pessoas por meio das quais Deus mantém o equilíbrio no
mundo. Segundo o dicionário de Alfayrœ∂abåd∑ (1329-1414), tais pessoas são em número de setenta, e
cada vez que uma morre outra aparece.
[447] “Às vezes se acerta o alvo sem querer” é adaptação do conhecido provérbio árabe pré-islâmico rubba
ramyatin min ©ayr råmin, “às vezes acerta-se o alvo sem que haja atirador”.
[448] Nas versões impressas, “reis” em lugar de “escravo”, e “liderança” em lugar de “cuidados”.
[449] Alcunha — cujo sentido é “o das duas lideranças”, isto é, a política e a guerra — do letrado e político
de origem persa Alfa®l Bin Sahl, morto em 818, já citado na nota 344.
[450] Místico e conhecedor da tradição islâmica. Morreu em 851. Alaßamm significa “o surdo”, alcunha
que se deve ao fato de que, certa vez, ele fingiu não ter ouvido o flato de uma mulher que lhe fazia uma
pergunta, a fim de não constrangê-la.
[451] Trata-se, presumivelmente, de uma pergunta sobre como lidar com reis ou líderes políticos.
[452] A tradução se ateve ao que consta do manuscrito, malgrado seja possível intuir a existência de algum
erro de cópia, pois aqui o jogo de oposições efetuado pela comparação parece ser de outro nível. Mas, como
o trecho inexiste nas versões impressas, não houve remédio senão seguir o manuscrito. A suposição seria a
de que a palavra deve ser oposta a “vulgo”, ¢awåmm, provavelmente o seu antônimo, ∆awåßß, “nobres”.
Mais adiante, traduziu-se “recitadores de Alcorão”, qurrå’, com base nas versões impressas, pois o
manuscrito traz fuqarå’, “pobres”, o que, naquele ponto, não faz sentido.
[453] Beduíno e analfabeto, sua eloquência, não obstante, era proverbial. Foi protegido pelos omíadas.
Morreu em 703. No manuscrito, por erro de cópia, Ibn Qar∑n.
[454] Esse trecho apresenta visíveis problemas de concatenação que não são resolvidos em nenhuma das
versões. Na edição crítica, em lugar de “nem desesperado rico”, lê-se “nem arrogante desesperado”, e, no
lugar de “não encontrarás amigo para rei”, lê-se no manuscrito “não encontrarás amigo para pessoa
tediosa”, o que também é plausível.
[455] Guerreiro iemenita (m. 642) muito célebre pela coragem. Em 631, foi a Medina pessoalmente para
converter-se ao islã, do qual apostasiou depois da morte do profeta, no ano seguinte.
[456] Nas versões impressas, a fala é toda do sapiente, argumentando que o seu rosto se avermelhou uma
vez ao pedir emprestado, mas se amarelaria mil vezes ao ser cobrado. Ambas as variantes são cabíveis, mas
a das versões impressas é mais verossímil porque dificilmente em textos desse gênero um “sapiente”,
¬ak∑m, receberia sem reação uma resposta atravessada dessas.
[457] No manuscrito, “êxito”, tawf∑q, em lugar de “respeitabilidade”, tawq∑r.
[458] Nas versões impressas se acrescenta: “Ele disse: ‘E o que te impede dessa bem-aventurança e desse
consolo da alma?’”.
[459] Para a tradução dessa poesia, lançou-se mão de todas as versões disponíveis.
[460] “Tratou-o muito bem” traduz †ayyaba qalbahu, literalmente, “perfumou-lhe o coração”.
[461] Lembre-se que as taças passavam de mão em mão.
[462] Nesse ponto se encerra a vigésima sexta parte do manuscrito, com os seguintes dizeres: “Terminou-se
a vigésima sexta parte das mil e uma noites, completas e integrais. Louvores a Deus sempre. Acabou--se”.
Na folha seguinte, inicia-se a vigésima nona parte, contendo histórias do fabulário de origem sânscrita
Kal∑la e Dimna, adaptado ao árabe no século viii por Ibn Almuqaffa¢.
[463] Locução equivalente a “pai dos centavos”.
[464] O trecho entre colchetes foi traduzido da edição crítica. “Relatos históricos” traduz a∆bar, “crônicas”,
“notícias”, e “tradições do profeta” traduz a¬åd∑¥.
[465] Antes disso, o presente manuscrito — Arabe 3619 —, “a sexta parte das mil e uma noites”, se inicia
com o trecho final de uma fábula com um pássaro e uma doninha. Não se sabe se o início de tal história se
encontrava num dos volumes anteriores, todos extraviados, ou se o escriba a copiou de alguma fonte em que
já constava a falta. Deste ponto até a noite 1000, as histórias foram traduzidas desse manuscrito. Veja o
“Posfácio” a este volume.
[466] “Libidinagens e amassos” traduz bas† wa hiråš, palavras que aí se encontram em evidente uso
metafórico: a primeira significa, entre outras coisas, “alegria” e “regozijo”, ao passo que a segunda quer
dizer “tumulto”, “batalha” etc.
[467] “Gozo sexual” traduz la∂∂at alwißål, sintagma cuja última palavra significa “contato físico”, “relação
carnal”. E “contato corporal” traduz nayl alittißål. A tradução procurou manter a rima.
[468] “Ave de defunto”, tratamento antonomástico da coruja, traduz †ayrat alma’sœf.
[469] “Corda de junco” traduz ∆ulbœß ¬alfa, sintagma cujo sentido do primeiro termo (literalmente,
“palhaço”, “libertino” etc.) é problemático. Traduziu-se pelo contexto.
[470] Na verdade, Abœ Al¬ußayn é a denominação popular da raposa. Talvez exista algum erro na
transmissão da história, ou então, como se verá logo adiante, o caranguejo fosse considerado uma espécie
de raposa do mar.
[471] “Em nome de Deus” é tradução literal de bismillåh, mas nesse gênero de texto tal locução se utiliza
para exprimir concordância. E “pague” traduz azin, literalmente, “pese”, reminiscência de épocas em que,
de fato, empregavam--se lingotes de ouro e prata sem valor fixo, os quais nas operações de pagamento eram
efetivamente pesados. Embora a prática tenha acabado ou diminuído com a introdução de moedas com
valor fixo, a palavra permaneceu. E, antes, “eu fico devendo um favor às suas mãos” traduz yakœn laka
¢ind∑ alyad albay®å’, literalmente, “você terá comigo a mão branca”.
[472] Espécie de perdiz, essa ave era importante nos rituais das antigas religiões persas. O próprio termo
árabe para designá-la, durråj, provém do persa turråj. O texto parece tomar essa importância por assim
dizer sagrada como algo implícito, o que evidencia tratar-se, neste caso, de tradução do persa.
[473] “Reis de taifas” era a denominação árabe aos soberanos partas que dominaram a Pérsia desde o século
iii a.C. até o iii d.C. (quando foram substituídos pelos sassânidas), bem como, mais tarde e por analogia, aos
soberanos muçulmanos que governaram Alandalus a partir do século xi d.C. Aqui, trata-se de referência aos
partas.
[474] “Pega”, também conhecida como “gralha do campo”, traduz ¢aq¢aq, que também significa “ave de
mau agouro”. Entre os antigos persas, a crença no azar trazido por essa ave era tão intensa que se manteve
mesmo após a islamização, a tal ponto que existem decretos de jurisconsultos muçulmanos, como o de Abœ
Æan∑fa (699-767), condenando como infiel, por exemplo, a pessoa que desistia de sair quando ouvia o
canto da pega.
[475] “Prece noturna de Ramadã” traduz ßalåt attaråw∑¬, que no islã é a prece mais demorada.
[476] Sentença tradicionalmente pronunciada pelos muçulmanos em situações penosas.
[477] “Carneiro” traduz, por suposição, uma palavra ilegível no manuscrito.
[478] “Alívio após a angústia” traduz alfaraj ba¢da aššidda, que também consistia num gênero narrativo
entre os árabes.
[479] Alcorão, 54, 29. Referência ao abate, pelo mais vil dos membros da tribo pré-islâmica de fiamœd, de
uma camela interdita pelo profeta corânico Øåli¬
[480] Alcorão, 7, 155.
[481] Alcorão, 8, 25.
[482] Antes desta, pulou-se uma anedota cujos erros de cópia lhe impedem a compreensão. Contudo, ela se
repete de maneira mais clara logo adiante, e será traduzida.
[483] Na coletânea Na¥r Addarr, “Pérolas espalhadas”, de Manßœr Ibn Æusayn Alåb∑ (m. 1029), existe
uma versão mais clara dessa narrativa: “Certo avarento queixou-se da própria avareza a certo sapiente, que
lhe disse: ‘Você não é avarento, pois avarento é quem não dá nada do seu dinheiro; você tampouco é
medianamente generoso, pois medianamente generoso é quem dá um pouco do seu dinheiro, recusando-se a
dar a outra parte; você é, isto sim, extremamente generoso, pois quer dar todo o seu dinheiro’, querendo
dizer que o deixaria todo para os seus herdeiros”.
[484] Versos atribuídos a mais de um poeta, como Zuhayr Ibn Ab∑ Sulmà (530-627) e Abœ Alaswad
Addu’al∑ (605-688). Na supracitada coletânea de Alåb∑, a poesia é bem mais longa. No manuscrito, consta
um hemistíquio diferente: “Dá mais do que te pedem e os teus pedidos serão ainda mais atendidos”.
[485] Muzabbid Abœ Is¬åq (muitas vezes, e em várias obras, equivocamente grafado como Muzayyid ou
Maz∑d), personagem do século viii nascido em Medina. Encoberto pela lenda, a ele se atribuem inúmeras
características: alcoviteiro, pederasta, piadista, hipócrita, infiel, bufão, livre-pensador, sábio, avarento etc.
Como se notará, várias das anedotas a seu respeito se assemelham às que mais tarde seriam atribuídas à
personagem conhecida como Ju¬å, e também Naßrudd∑n. Para a tradução das anedotas sobre Muzabbid
contidas neste manuscrito, nas quais existem muitos erros de cópia, lançou-se mão da supracitada coletânea
de Alåb∑ e da obra de registros biográficos Fawåt Alwafåyåt, “Os lapsos do registro dos falecimentos”, de
Mu¬ammad Bin ¸åkir Alkatb∑ (1287-1363), que contém a maioria delas. A propósito, o título dessa obra
faz menção direta ao de outra, bem mais célebre, escrita cerca de um século antes, Wafåyåt Ala¢yån wa
Anbå’ Abnå’ Azzamån, “O registro do falecimento dos principais e notícias dos notáveis do tempo”, de Ibn
¿allikån (1211-1282).
[486] Locução cujo sentido literal é: “masturbei-me”.
[487] Essa resposta apresenta algumas variações nas compilações em que está inserida, tais como: “Você
chicoteou ¢Umayra e então ela me chicoteou” e “Veio o marido de ¢Umayra e me chicoteou”.
[488] Na única outra versão encontrada dessa anedota, na coletânea de Alåb∑, os termos são os mesmos. O
pressuposto do seu humor, parece, é o desprezo que Muzabbid demonstra por seus secretários, e a falta de
preocupação com o que porventura venham a aprender.
[489] O trecho entre colchetes foi traduzido da coletânea de Alåb∑, na qual se fala de “barba” em lugar de
“cabelo”.
[490] Alcorão, 95, 1. Na verdade, como se verá, esse capítulo, chamado justamente “Sura do figo”, se inicia
com “Pelo figo, pela oliva e pelo Monte Sinai”. É dessa omissão que se extrai o humor da anedota, que
consta do Kitåb Albu∆alå’, “Livro dos avaros”, não a célebre obra-prima de Aljå¬i≈ (775-868), da qual se
falará mais adiante, mas da homônima, bem mais modesta, do letrado Al∆a†∑b Alba©dåd∑ (m. 1071).
Nela, o protagonista não é Muzabbid, mas sim um beduíno, e as circunstâncias são ligeiramente diversas.
[491] “Gog e Magog”, Ya’jœj wa Ma’jœj, referência corânica (18, 94 e 21, 96) a tribos mongóis nômades
que viviam para além do Turquestão. Na cosmovisão islâmica, representam a corrupção, a desordem e o
desequilíbrio. Nas demais versões, em lugar de “bem apertado”, ¢alà ®ayq, consta ¢alà r∑q, “a seco”.
[492] Anedota também constante do fabulário político anônimo O leão e o ¢ha¢al Mergulhador, elaborado
entre os séculos xi e xiii, mas sem referência a Muzabbid e apresentada como diálogo entre um casal.
[493] Neste caso, ao contrário do que possa parecer, não existe erro de cópia nem falha de transmissão. Em
verdade, trata-se de uma narrativa que só pode ser considerada anedota num contexto patriarcal. Hoje, a
tendência é considerar, sem mais, que a personagem, simultaneamente, fala a verdade e faz uma denúncia, o
que pressupõe um mundo no qual a divisão entre os gêneros é vista como antagonismo, caso da sociedade
contemporânea, e não como complementaridade, caso da sociedade patriarcal, na qual essa narrativa é uma
anedota porque, em síntese, a personagem diz uma obviedade, donde, por consequência, o humor. A título
de comparação, esse humor é o mesmo que o da piada do homem que comprou um sorvete, colocou-o no
bolso e levou para o filho, mas quando chegou à sua casa o sorvete se havia derretido, o que o fez imaginar,
furioso, que algum ladrão, além de haver chupado o sorvete, lhe urinara no bolso. Ou seja, para além da
incapacidade do protagonista de enxergar o óbvio, o humor se extrai de sua irritação com o inelutável. Dá-
se o mesmo no caso da resposta da mulher de Muzabbid.
[494] Na versão de Alåb∑, a resposta é mais leve: “Além de não satisfazerem o meu pedido, espancaram-
me e xingaram você”. Numa versão constante da obra cômica Alajwiba Almuskita, “Respostas
emudecedoras”, de Ibråh∑m Ibn Ab∑ ¢Awn (m. 924), esse criado era “enviado às mulheres dissolutas para
que as trouxesse para ele”.
[495] Alcorão, 55, 33.
[496] “Chefe de polícia” traduz wål∑, que em outras circunstâncias também poderia ser “governador”.
[497] “Este putanheiro” traduz rafa¢a alqa¬ba, “ergueu a prostituta”. O verbo “erguer” era metáfora muito
comum para “possuir sexualmente”.
[498] Nas versões de Alåb∑ e Alkatb∑, a fala da personagem é mais leve.
[499] Trata-se de uma pergunta com implicações teológicas e políticas. Nas outras versões, em vez de
“companheiros do profeta”, pergunta-se especificamente sobre os dois primeiros califas, Abœ Bakr e
¢Umar. A questão era importante porque definia a posição do muçulmano em relação a ¢Al∑ e,
consequentemente, ao xiismo (no qual se considera que ele é que deveria ter sido o primeiro califa) e, logo,
à própria legitimidade do califado, omíada ou abássida, pois os xiitas consideravam ambas as dinastias
usurpadoras, reivindicando a autoridade sobre a comunidade muçulmana, como se disse, para os
descendentes do profeta, entre os quais estavam os filhos e netos de ¢Al∑.
[500] A redação desta anedota está bem confusa no manuscrito, no qual o seu texto parece ter se
contaminado com o de outra. Os trechos entre colchetes foram traduzidos da versão constante em Alkatb∑.
“Em palitinhos” traduz ¢alà al¢uwaydåt.
[501] “Nos dias da Peregrinação” traduz, muito livremente, yawm anna¬r e yawm ¢arafa, correspondentes
ao nono e ao décimo dia do mês islâmico da peregrinação, datas dedicadas à pureza, santificação, perdão
etc. Na segunda parte da formulação, parece que “pilar” e “casa” aludem a locais sagrados, conforme se
evidencia em outra versão desta anedota, constante do livro A∆låq Alwaz∑rayn, “O caráter dos dois
vizires”, do letrado bagdali Abœ Æayyån Attaw¬∑d∑ (m. 1010), no qual a pergunta é: “Entre a tumba e o
púlpito?”, isto é, conforme explicação do organizador do texto, a tumba e o púlpito do profeta. A
personagem, como já se disse, é de Medina, cidade onde Mu¬ammad está enterrado.
[502] Nas versões de Alkatb∑ e de Attaw¬∑d∑, a fala se encerra assim: “Por Deus que não construí esta
casa senão para putas e alcoviteiros, nem comprei sua madeira senão com o dinheiro ganho em jogos de
azar. Haveria melhor lugar para o adultério do que ela?”.
[503] Na versão de Alåb∑, a resposta é mais aguda: “E você está portando o instrumento do adultério”.
[504] Juramento muito comum em tempos antigos, ainda hoje usado, embora raramente.
[505] Na jurisprudência muçulmana, o testemunho do litigante em causas de terceiros não é aceito.
[506] Sikbåja é uma espécie de sopa de carne com vinagrete, menos perecível do que outros alimentos, o
que a fazia ser preferida pelos avarentos. Quanto ao outro alimento, cuja grafia está provavelmente errada
no manuscrito (ba©liyya), não foi possível descobrir do que se trata; talvez seja alguma outra espécie de
sopa.
[507] O trecho entre colchetes, exigido pela lógica da narrativa, é adição do tradutor, pois não se encontrou
nenhuma outra versão dessa história.
[508] Segundo os sunitas, para realizar as suas preces o muçulmano é obrigado a estar ritualmente limpo, ou
seja, antes da prece ele não pode ter praticado sexo nem satisfeito necessidades fisiológicas. É por isso, v. g.,
que qualquer cochilo antes da prece impõe ao muçulmano a realização de abluções, pois ele não tem como
saber se expeliu gases durante o sono.
[509] Referência ao famoso poeta satírico Baššår Bin Burd (714-784), de origem persa. Acusado de heresia
por passear embriagado pelas ruas de Basra recitando o Alcorão, recebeu setenta chicotadas e morreu.
[510] Aqui, procura-se remediar a evidente falta de um trecho, que provavelmente foi “pulado” devido à
resposta igual que o cego deu, “sim” em ambos os casos. Trata-se de um lapso comum em manuscritos,
chamado “salto bordão”.
[511] As duas personagens citadas nessa narrativa são históricas: ¿ålid Bin ¢Abdullåh Alqasr∑ (que o
manuscrito grafa equivocamente como Alqušayr∑) foi líder político e militar do período omíada, tendo
governado as cidades de Meca, Kufa e Basra; torturado e morto por volta de 743. E o cego Qutåda
Assaddœs∑, que viveu entre 680 e 735, foi uma das grandes autoridades em história árabe e genealogia.
[512] Estapear alguém no cangote é uma ação bem aviltante no âmbito da cultura árabe, indicando que a
vítima é sexualmente passiva.
[513] “A liberalidade está nos surdos” traduz a††iråš f∑ alkiråm, literalmente, “a surdez está nos
generosos” (ou “nobres”, ou “liberais”), o que, no presente contexto, não faz sentido, já que se fala de
características existentes nos portadores de defeitos físicos, tratando-se antes de erro por alteração de
ordem, problema assaz comum em manuscritos.
[514] “Honradez” traduz zakå (corruptela de zakåt), mas também pode ser possível erro de grafia por ∂akå,
corruptela de ∂akå’, “sagacidade”, “esperteza”. As grafias são bem semelhantes.
[515] Para traduzir “pilhéria” leu-se maz¬ onde o manuscrito registra harj, que neste caso seria “excitação”
ou mesmo “bufoneria”. Como no caso anterior, trata-se de grafias assemelhadas.
[516] “Coxos” foi a única alternativa viável para diyål, possível corruptela de d∑’ål, plural hipotético de
um também hipotético di’al, do verbo da’la, que tem como um dos seus sentidos “andar com dificuldade”.
[517] Para a tradução de “corcundas”, leu-se ¬idbån onde está escrito ¬œlån, “estrábicos”. “Vileza” traduz
¬aqåra. No manuscrito se lê claramente ¬akåra, palavra que, embora inexistente na linguagem culta,
poderia ser identificada como substantivo derivado, por analogia de paradigmas, do verbo ¬akara,
“maltratar”, “usurpar” etc. Preferiu--se, porém, essa leitura, bem mais verossímil, ainda que em árabe a
troca do fonema k por q não seja exatamente usual na escrita. No caso anterior, também a tradução de ka
¥åfa por “densidade” foi dificultosa, mas simplesmente não se vislumbrou nenhuma outra possibilidade a
cogitar.
[518] É bem possível que haja sérios erros de cópia nessas poesias.
[519] Trata-se, decerto, de referência a alguma personagem de feiura proverbial na época, mas a quem não
foi possível identificar.
[520] “Inspiração rápida” é a tradução não muito segura de ¢a†å’ mœjaz.
[521] Equivocadamente, o manuscrito registra Alaš¢a¥, sobrenome de mais de um líder político e militar
árabe. No presente caso, contudo, trata-se de Aš¢ab Bin Jubayr Almadan∑ (m. 771), artista (essa é a melhor
palavra) da cidade de Medina, na Península Arábica. Era cantor, foi companheiro de várias personalidades
importantes e o seu nome aparece amiúde associado, nas obras de adab, à narração de histórias,
especialmente as cômicas. Ele também ficou associado à ambição, e a locução “mais ambicioso que Aš¢ab”
se tornou proverbial.
[522] “Fazendo o primogênito dançar” traduz o incompreensível yaqußßu bikratan. Como esse sintagma
não faz o menor sentido, foi necessário decompô-lo para remontá-lo, e, após muito trabalho e ajuda de
colegas, chegou-se a essa possibilidade, qual seja, a de que a forma presumivelmente correta é yurqißu
bikrahu, pois os beduínos, e não só eles, têm esse hábito, que se encontra registrado em antigas poesias, de
manifestar o seu amor pelo primogênito fazendo-o dançar pelos braços. Outra possibilidade aventada foi
yafu®®u bakåratan, “rompendo uma virgindade”, “deflorando”, o que não seria tão estranho, não fosse a
presença do verbo “ver” no início da formulação.
[523] Há evidentes falhas de cópia nessa anedota e nas duas seguintes. Não foi possível averiguar a
identidade de Abœ ¢Amrœ.
[524] Alcorão, 76, 12.
[525] Filósofo da doutrina mu¢tazilita, muito afamado em sua época e fundador de uma escola de
pensamento. Morreu em 846. Como se verá em nota adiante, a versão dessa história no manuscrito é
ininteligível, e por isso preferiu-se traduzi-la da sua fonte indireta, que está na obra-prima Kitåb Albu∆alå’,
“Livro dos avaros”, de Abœ ¢U¥mån ¢Amrœ Bin Ba¬r Aljå¬i≈ (775-868), renomado autor, no mais lato
sentido do termo, das letras árabes.
[526] A avareza do povo de ¿uråsån era tópica nas antigas anedotas sobre avaros.
[527] Para se ter uma ideia do nível de distorção que essa história apresenta no manuscrito, eis a sua
tradução: “Disse Abœ Yaz∑d: ¸ujå¢ Abœ Is¬åq me disse: ‘Uma vez você me disse que preferia a carne sem
a fritar na gordura, e supus que fosse porque as frituras se queimam se forem ao fogo junto com a carne’”.
Como se vê, o trecho é praticamente ininteligível.
[528] Esta anedota também consta do “Livro dos avaros”, de Aljå¬i≈. Para as passagens incompreensíveis
do texto do manuscrito, optou-se por traduzir o que consta desse livro.
[529] No manuscrito, “nunca mais tive nem comi carne”, o que, conforme se verá, não tem cabimento. No
“Livro dos avaros”, essa afirmação é atribuída a certo Abœ Ya¢qœb A∂∂ahqån, sobre o qual não existem
informações.
[530] Trata-se de décima parte do dirham. Indica valor irrisório.
[531] Refere-se, basicamente, à pele que recobre o crânio dos animais, bem como, eventualmente, os
miolos etc. Era comida muito barata.
[532] Sobre o caldo de sikbåja, veja nota 503.
[533] No manuscrito, repete-se a afirmação do início da anedota, que aqui foi considerada erro de cópia ou
de transmissão, pois não produz sentido, cujo humor está na tentativa do narrador de fazer crer que comia
carne todos os dias pelo fato de que os ingredientes consumidos tinham sido cozinhados com ela, o que,
implicitamente, só reforça a sua avareza.
[534] Esta história também consta do “Livro dos avaros”, no qual é apresentada em primeira pessoa, isto é,
como narrativa de uma experiência do próprio Aljå¬i≈, e não do seu contemporâneo Alaßma¢∑ (740-828),
renomado compilador de poesias, gramático e estudioso da língua árabe. Os trechos entre colchetes foram
acrescentados e traduzidos a partir desse livro.
[535] Não se encontrou nenhuma referência histórica sobre essa personagem.
[536] “Tenho em casa um leite […] igual”; no manuscrito consta: “eu sofro com as pessoas”.
[537] No manuscrito, em vez de “sem que lhe tenhamos providenciado vinho nem mel”, consta: “sem que
você consiga estabilizar-se nem lavar-se”. Faz algum sentido, mas a versão do texto de Aljå¬i≈ é mais
coerente.
[538] Formulação equivalente ao popular “se ficar o bicho pega, se correr o bicho come”.
[539] Para o trecho “se você quiser […] bom sono”, o que consta do manuscrito é menos contundente: “Se
você quiser, coma; caso contrário, não coma, e espere um bom sono”.
[540] No “Livro dos avaros”, em lugar de “nunca ouvi algo”, consta “nunca ri tanto”, o que é mais
plausível.
[541] No “Livro dos avaros”, essa fala continua assim: “Se houvesse comigo quem compreendesse o quão
divertido era o que ele disse, eu teria rido muito mais, e talvez isso me matasse. Porém, o riso de quem ri
sozinho não se compara ao riso compartilhado com os amigos”.
[542] Essa narrativa também consta do “Livro dos avaros”, no qual o protagonista é Zubayda Bin Æumayd,
que viveu entre os séculos viii-ix, riquíssimo banqueiro da cidade de Basra, cuja fortuna na época era
estimada em cem mil dinares; tinha vários empregados e também traficava escravos. Os trechos entre
colchetes foram traduzidos desse livro para maior inteligibilidade da narrativa.
[543] No “Livro dos avaros”, consta †alåq, “divórcio”, em lugar de ßalåt, “prece”. Na dúvida, a tradução
manteve as duas.
[544] A última frase não consta do “Livro dos avaros”.
[545] Mais uma anedota que consta do “Livro dos avaros”, na qual o protagonista avarento é um certo Abœ
¢Abdirra¬mån A¥¥awr∑, somente citado nesta obra, da qual se depreende ter sido um homem abastado de
Basra, mercador e latifundiário. De novo, o procedimento foi adotar a versão do livro quando a do
manuscrito fosse ilegível ou ininteligível. No já citado “Livro dos avaros”, homônimo, de Al∆a†∑b
Alba©dåd∑ (m. 1071), existe uma anedota ligeiramente similar e bem mais curta, cujo protagonista é um
poeta muito célebre, Marwån Bin Ab∑ Æafßa (720-797).
[546] Nesse ponto, consta no livro um trecho omitido no manuscrito, no qual o protagonista recita uma
poesia e tece analogias linguísticas entre a cabeça e as metáforas sobre ela usadas — “o cabeça do grupo”
etc.
[547] A partir desse ponto, o manuscrito difere muito do livro, mas, como o seu texto é coerente e
inteligível, a tradução se ateve ao que consta do manuscrito.
[548] No livro, a conversa entre pai e filho é muito mais longa, ocupando várias páginas, e, na verdade, o
pai é o único a falar, impondo ao filho toda a sua avareza. O manuscrito opta por dar a palavra ao filho, a
fim de constituí-lo como mais avarento que o pai.
[549] Esta anedota consta, igualmente, do “Livro dos avaros”, onde a narrativa é atribuída a um tal
Almakk∑, “o mequense”, e o protagonista é um tal Al¢anbar∑, “o de ¢Anbar” (distrito do Iraque), dos
quais se sabe, tão somente, terem sido conhecidos do autor.
[550] O que está entre colchetes traduz, do livro, a palavra muzammila, que o copista do manuscrito não
soube ler. Era um recipiente especial, usado no Iraque, que conservava a água fresca durante os dias de
verão, quando a temperatura passa dos quarenta graus.
[551] No livro, após concluir a história, o narrador Almakk∑ explica o seguinte: “Assim, ele quis que a mãe
pagasse essência por essência, e propriedade por propriedade, a fim de que ela nada lucrasse, com exceção
da diferença entre as duas propriedades, que são o frescor e o calor; mas, quanto à quantidade de essências e
propriedades, elas eram iguais”.
[552] No “Livro dos avaros”, sua fonte, essa história se abre com “ouvimos há muito tempo”. Dirham,
como se sabe, é uma moeda de prata.
[553] No “Livro dos avaros”, a última frase faz parte do comentário do narrador a essa história: “E não me
agrada essa última frase, pois se trata de um exagero sem finalidade. Nós estamos contando o que as
pessoas faziam, e o que talvez exista hoje nelas, como argumento, ou como método. Embora esse gênero de
história não seja o que contamos, todas as histórias desse homem pertencem a ele”. O comentário parece
não fazer sentido, já que não se dá o nome do narrador dessa história, nem o do protagonista.
[554] Na supracitada compilação de Alåb∑ (nota 480), em meio a anedotas fortemente obscenas sobre o
tamanho das genitálias, consta um trecho quase igual, com a diferença de que o diálogo só chega aos oitenta
anos, cuja resposta é: “Você vai se dar mal se não se calar”; também ocorre inversão das respostas entre os
trinta e os quarenta anos, e, no de cinquenta, a resposta é: “serve para o casamento”. Como o humor do
original deriva, basicamente, das rimas da prosa (saj¢), aqui elas foram adotadas, com o máximo esforço
para minimizar perdas do sentido. Observe-se, apenas, que na primeira descrição, quanto ao homem de
vinte anos, a resposta é: “Murta e rosa silvestre” (r∑¬ån wa nisr∑n, rimando com ¢išr∑n, “vinte”), o que
em português não consiste exatamente numa descrição “máscula”, motivo pelo qual se adaptou o sentido,
opção essa reforçada pelo que consta em Alåb∑, r∑¬ån tašumm∑n, “é murta o que você vai cheirar”. No
geral, contudo, a literalidade foi bem respeitada.
[555] Nesse ponto, o manuscrito introduz a “História do rei ¸åd Ba∆t”, já traduzida no terceiro volume desta
coleção, noites 885-929, páginas 219-326, sob o título de “O rei ¸åh Ba∆t e o seu vizir Rahwån”. No
manuscrito, essa história ocupa as noites 837-892, as quais serão, portanto, puladas.
[556] Nesse ponto, a fala padrão é retomada: “Eu tive notícia, ó rei venturoso, exitoso e sensato, dono de
certeira opinião, forte disposição e louvável ação…”, o que não tem lógica, pois, ato contínuo, se introduz
uma fala do rei ¸åhriyår, cuja história não está sendo, por assim dizer, narrada por ¸ahrazåd — ao menos por
ora. De qualquer maneira, que fique registrado o (aparente) equívoco. Veja o “Anexo 3” deste volume, pp.
492-498.
[557] Não se encontrou registro disso entre as falas atribuídas a Mu¬ammad. Na edição de Breslau, a fala
misógina é bem mais enfática e longa.
[558] Essa história consta igualmente do décimo primeiro volume da edição de Breslau, na qual ocupa as
noites 930 a 940. Embora elas visivelmente provenham de fontes distintas, tamanha a diferença entre as
duas versões, o texto da versão de Breslau foi utilizado sem hesitações para completar falhas de
concatenação ou erros do manuscrito. As diferenças mais significativas entre as duas versões serão
apontadas nas notas ou, quando necessário, introduzidas no texto da tradução, entre colchetes.
[559] Considerado o mais célebre dos sultões mamelucos, governou o Egito de 1260 a 1277, após ter
assassinado o predecessor, Sayfudd∑n Qu†uz, oficial de origem turca que comandara a vitória sobre os
mongóis na célebre batalha de ¢Ayn Jålœt, em 1260. Sua popularidade parece ter sido grande, tanto que a
partir do século xiv, sob o seu nome, passou a circular uma espécie de novela de cavalaria que foi sendo
ampliada geração após geração. No manuscrito, o nome está errado: Ruknudd∑n Baybars Ibn Almalik åh
Djamak. O texto o trata, sistematicamente, como Almalik A≈≈åhir, sua alcunha (“o rei que aparece”), mas a
tradução, para simplificar, preferiu “o sultão Baybars”. Sayfudd∑n significa “espada da fé”, e Ruknudd∑n,
“esteio da fé”. Mais adiante, ¢Alamudd∑n significa “bandeira da fé”.
[560] “Origem estrangeira” traduz bilåd al¢ajam, que pode também significar “Pérsia”, mas não era o caso,
pois Baybars, que em persa e turco significa “pantera”, tinha origem circassiana. Na novela em seu nome,
atribui-se-lhe origem árabe.
[561] Nome próprio que significa “auxiliar da fé”. Por erro de cópia, no manuscrito consta mu߆aff∑n,
“enfileirados”, o que produziria um sintagma sem sentido, “capitão dos enfileirados”. Preferiu-se
transcrever o nome tal como consta da edição de Breslau, que acrescenta sobre esse capitão: “cujo coração
era muito ocupado pelo amor às mulheres”.
[562] O nome da personagem funciona como reforço da função de juiz, uma vez que significa “o de honesto
veredicto”.
[563] Tanto o “Castelo”, Qal¢a, como o “Portão de Zuwayla”, Båb Zuwayla, são ainda hoje localidades do
Cairo. O “Castelo” — denominação comum em várias cidades árabes — era onde se concentravam os
mamelucos.
[564] Era hábito que as pessoas, especialmente em caso de viagem, deixassem seus bens ou parte deles em
depósito com o juiz.
[565] “Existe algo que não bate nessa história” traduz o coloquialismo alkalimatayn må hya sawå, “são
duas palavras que não se equivalem”.
[566] Entre os muçulmanos, a declaração de divórcio somente era válida se pronunciada três vezes. E o
processo era utilizado numa espécie de jura, em que a pessoa dizia, se algo que ela estava querendo não
fosse feito, que iria separar-se. Também se emprega quase desprovido da sua semântica originária, como se
verá logo adiante, quando o capitão, que não era casado, faz a mesma declaração. Hoje não é incomum que
se diga, sobretudo em regiões interioranas, ¢alayya a††alåq, “eu me separo”, como uma espécie de “faço
questão” com maior ênfase.
[567] Que são, basicamente, quatro, a saber, ¬anbalyya, šåfi¢iyya, målikiyya e ¬an∑fiyya.
[568] Na edição de Breslau, “das regiões leste e oeste”, o que parece equivocado. E ali o nome do delegado
é Jamåludd∑n A†waš. Não há como conferir a exatidão, uma vez que se trata de personagens ficcionais.
Kamaludd∑n significa “perfeição da fé” e Jamallud∑n, “beleza da fé”.
[569] “Aposento feminino” traduz qå¢a niså’iyya, sintagma obscuro.
[570] “Zeladora” traduz rab¢iyya, que segundo Dozy é uma espécie de zeladora desses edifícios. É o que
consta na edição de Breslau. No manuscrito, certamente por erro de cópia devido à semelhança das grafias,
consta o nome próprio Rab∑¢a.
[571] No original, “lhes”, óbvio resquício de narrativa em terceira pessoa.
[572] Palavra que significa “murta”, planta aromática muito apreciada no Oriente Médio.
[573] No original, literalmente, “o que o destino fez dela?”.
[574] Na edição de Breslau, “cobri as minhas pudendas e nada mais”.
[575] Na edição de Breslau, a mulher e a sogra não o reconhecem por causa da sua aparência.
[576] Na edição de Breslau, essa história também é narrada pelo terceiro capitão.
[577] Hábito de verão ainda hoje comum no interior do mundo árabe.
[578] “Gênia” é o que consta da edição de Breslau. No manuscrito, por alguma confusão, está “humana”,
flagrante equívoco.
[579] No manuscrito e na edição de Breslau, nå’ib almas†aba, o que nada significa. Deve ser equívoco,
devido à semelhança de grafias, com nå≈ir ali߆abl, “inspetor de estábulo”, cargo oficial no período
mameluco, cujo responsável cuidava das montarias dos estábulos do sultão. Não era função desimportante.
[580] “Desembargadores” — palavra ora utilizada em acepção etimológica — traduz ¢udœl, “testemunhas
probas”, palavra que, neste contexto, parece indicar funcionários privilegiados do sistema de justiça, a quem
caberia a última palavra a respeito da legitimidade dos testemunhos nos processos.
[581] “Alegando […] dela”: o trecho foi traduzido mediante leitura combinada do manuscrito e da edição
de Breslau. “Advogado” traduz wak∑l, cujo sentido normalmente corresponde a “procurador”, mas neste
caso é o procurador junto ao tribunal; logo, “advogado” é a melhor tradução.
[582] Malgrado tenha sofrido variações ao longo da história, o valor do dinar, normalmente de ouro, era
muito maior que o do dirham, cujo valor era estabelecido pelo governo. Hoje, nos países árabes cuja moeda
é o dinar, a divisão é o dirham, numa relação semelhante à do real com o centavo.
[583]Am∑nudd∑n significa “fiel da fé”, ou seja, aquele que é fiel em sua fé.
[584] Embora nem o manuscrito nem a edição de Breslau explicitem a condição de subordinados desses
três, a distinção é necessária à lógica da narrativa, conforme se verá adiante. Para diferenciá-los, empregou-
se “desembargador-mor” e “desembargador/es”.
[585] O texto entre colchetes foi traduzido da edição de Breslau. No manuscrito consta apenas: “o sinal
combinado entre os desembargadores”, o que reforça a cumplicidade entre as personagens, mas é bem
menos claro.
[586] Embora o texto não seja claro a respeito, parece que quem se casou foi o subordinado. Na edição de
Breslau, cujo texto é ainda mais precário, tem-se a impressão de que quem se casou com a mulher foi o
próprio delegado.
[587] Na edição de Breslau, as ocorrências se passam com o próprio capitão, o que é estranho, pois em
nenhum momento se menciona que ele já fora mercador (compare adiante com o início da história do
décimo terceiro capitão). Parece mais verossímil supor que, em sua fonte, essa história era narrada em
primeira pessoa, e que no texto da edição de Breslau a adaptação formal não foi bem executada. Por outro
lado, isso pode também evidenciar que, nessa edição, a determinação era que todas as narrativas referissem
experiências pessoais, e não de terceiros. A partir daqui, a fonte da história talvez tenha sido algum conjunto
de narrativas de mercadores, conforme se pode depreender desta e da próxima história, pertencentes ao
gênero conhecido como alfaraj ba¢da aššidda, isto é, “o alívio após a angústia”.
[588] Na edição de Breslau, a velha está com uma criada grávida, e diz ao mercador que o pai seria o
delegado. No processo de cópia do texto, parece ter havido confusão entre o verbo ¬ammalat, “fazer
carregar”, e o substantivo ¬åmil, “grávida”, o que evidencia que o estado dos originais utilizados pelos
escribas era precário.
[589] É possível que o nome esteja incorreto. Na edição de Breslau, não se faz referência ao nome da
localidade, mas se fala em almudun, “cidades”, cuja grafia é semelhante a aldan.
[590] Aqui, “intelecto” traduz baß∑ra, palavra que normalmente se traduz como “perspicácia”. No presente
caso, porém, parece mais adequado supor que o texto compartilha a concepção antiga, muito difundida, do
menor intelecto feminino, pois é incoerente, tendo em vista o enredo da história, considerar que a velha
carecia de perspicácia.
[591] Compare essa história com a do décimo terceiro capitão, e note o artifício ali empregado para que a
primeira pessoa da narrativa seja o próprio capitão.
[592] “Calções” traduz tabåb∑n. Na edição de Breslau, consta que eles traziam na cintura sabåb∑† de
couro, palavra que, deduz Dozy, aí significa “cintos”. O estranho é que tal palavra provém do espanhol, e
significa “sapatos”. Talvez a analogia com o couro tenha provocado a transformação semântica verificável
nessa passagem, mas a tradução preferiu manter o que consta do manuscrito. A nudez total dos homens,
com o cinto, não se justifica, ao passo que os calções sim, uma vez que, de um lado, os homens precisavam
proteger as pudendas, e, de outro, eximiam-se de preocupações com a limpeza e a durabilidade dessa roupa
“de trabalho”.
[593] Neste ponto, a edição de Breslau apresenta uma variante significativa: “Agora já compartilhamos pão
e sal”. Entre os árabes, e no Oriente Médio de maneira geral, isso implica a existência de uma espécie de
cumplicidade entre os que se sentaram juntos à mesa.
[594] Provérbio.
[595] Na edição de Breslau, o narrador dessa história é um amigo do amigo do sétimo capitão, mas o
desenrolar da narrativa evidencia que se trata de equívoco.
[596] Na edição de Breslau, “esta é uma porta secreta. Portanto, não se assustem com a exígua quantidade
de pessoas”.
[597] No manuscrito, “eis que vi numa das paredes uma janela de vidro”. A variante da edição de Breslau é
claramente mais adequada.
[598] “Ela lhes ministrou um entorpecente” traduz ad©arat ¢alayhim dåtœra. A primeira palavra, embora
não dicionarizada, pode ter o sentido deduzido com base em seus cognatos. Já o substantivo dåtœra,
também não dicionarizado em árabe, provém do sânscrito, e nomeia uma espécie de planta venenosa. O
termo “datura” entrou na língua portuguesa desde pelo menos o século xvi.
[599] Note que a narrativa “pula” do ex-auxiliar dos ladrões para ¸ahrazåd sem passar pelas duas instâncias
mediadoras entre ambos: o sétimo capitão e o amigo do sétimo capitão.
[600] “Deus ajude” traduz yafta¬ Allåh, literalmente, “que Deus abra”. Usa-se para recusar um pedido.
[601] “Duas ajudantes” traduz kablyatayn, palavra no dual cujo sentido se desconhece. Na edição de
Breslau, ras∑la e mašya (ou mašiyya), que Dozy supõe terem o sentido de “criadas”, mas a primeira tinha,
conforme se vê em textos da época, o sentido de “acompanhante”, “a que vem depois”. É bem possível que
se trate das duas acompanhantes da cantora, uma instrumentista, ou substituta, e a outra dançarina.
[602] A partir dessa passagem, a narrativa passa para a primeira pessoa, isto é, passa a ser contada pela
própria cantora. Embora o efeito dessa modificação não deixe de ser interessante, registre-se que esse fato
gramatical evidencia ter sido o texto copiado de uma fonte na qual a narrativa era toda em primeira pessoa.
Na edição de Breslau, a narrativa também passa para a primeira pessoa, antes mesmo desse trecho.
[603] Nesse ponto, a redação do manuscrito é confusa. Usou-se a edição de Breslau.
[604] Na edição de Breslau, “os presentes se espantaram com a história”.
[605] Cidade situada na margem oriental do Nilo, no Alto Egito. Floresceu tanto sob os mamelucos que no
século xiv se tornou a segunda em importância no Egito. E nela, efetivamente, se cunhavam moedas, o que
pode ser um bom indício para a datação destas histórias. A decadência dessa cidade se iniciou no início do
século xv, devido a uma grande peste. A edição de Breslau é omissa quanto ao nome do lugar.
[606] Na edição de Breslau, “um poço” em vez de “um depósito de palha”.
[607] Tanto no manuscrito como na edição de Breslau, “com o propósito de escarnecer dos meus
companheiros”, o que não faz sentido, já que o propósito é, claramente, vingar-se do jardineiro.
[608] Líder político e militar da Síria durante o período das Cruzadas. Morreu em 1174, quase um século
antes da tomada do poder por Baybars, distância temporal essa evidenciada pela referência ao apelido “o
mártir”, que é obviamente póstumo. A menção foi omitida na edição de Breslau.
[609] Deu-se aqui o mesmo que em outras histórias: a narrativa passa da terceira para a primeira pessoa.
[610] Planalto situado ao sul de Damasco, ao qual os romanos davam o nome de “Orantis”; era considerado
lugar de gente simplória.
[611] Trata-se de um mercado da cidade. Há outros elementos incompreensíveis na formulação. A edição de
Breslau é omissa nesse trecho.
[612] Na edição de Breslau, “os presentes ficaram sumamente espantados com isso”.
[613] Tradução literal. Normalmente, essa frase tem sentido similar a “você é que sabe”.
[614] “Acorrentado por um policial” traduz bijinz∑r ma¢a jandår. Talvez seja outra coisa, mas não foi
possível encontrar nenhuma referência.
[615] O “intrujão”, †ufayl∑, é motivo recorrente nos antigos anedotários árabes, tendo sido elaboradas
obras a seu respeito. Veja, no primeiro volume desta coleção, as histórias do barbeiro e seus irmãos, pp.
311-364.
[616] Na edição de Breslau, são os presentes, indistintamente, que dizem isso.
[617] “Malandro” traduz šå†ir, “esperto”, “espertalhão”, “ladrão”.
[618] Na edição de Breslau, essa história é narrada diretamente por ¸ahrazåd a pedido do rei ¸åhriyår: “Dê-
nos mais de suas histórias, ¸ahrazåd”. No manuscrito, sintaticamente, a história é narrada pelo próprio sultão
Baybars. Pode ser entendida como formulação mental — o que é inusitado neste livro — ou então como
narrativa feita de moto próprio, para si mesmo, em voz baixa. Ou, então, pode-se pensar que se trata de
descuido do copista.
[619] Trecho entre colchetes traduzido da edição de Breslau. No manuscrito consta somente: “e o sultão lhe
deu boas-vindas”. O trecho seguinte da história não faz muito sentido em nenhuma das versões, de modo
que foi necessário fazer adaptações.
[620] Não há muito sentido no espanto do sultão com uma história que, aparentemente, ele mesmo contou,
mas é assim que os eventos estão organizados no manuscrito. Possivelmente existe erro de cópia.
[621] Na edição de Breslau, o narrador abre a história com: “Saibam que, entre os criminosos, existem
aqueles que são levados por Deus mediante um testemunho contra si”.
[622] Provérbio popular. Embora próximo, não corresponde exatamente a “muito riso, pouco siso”.
[623] Malgrado fundamentalmente o mesmo, o texto da edição de Breslau encontra--se bem mexido, com
introdução de elementos para tornar a história mais familiar, como, por exemplo, a afirmação do ladrão de
que isso ocorrera em sua juventude, o que não faz sentido, ou alguns versos antes da última fala: “Se não
fores prejudicado, não prejudiques/ e faze o bem, que Deus te recompensará igual/ pois tudo quanto te
sucede é predeterminado/ por Deus, mas a sua origem está nas tuas ações”. O fato é que a história tem
origem persa, o que se evidencia na mística em torno do francolim, elemento que lhe confere toda a sua
intermitente estranheza, pois os seus pressupostos estão alhures, em outra cultura
[624] Nesse ponto se encerram as histórias dos capitães na edição de Breslau. Essa narrativa mistura
elementos de religiões não monoteístas, como o caso do senhor do rio e do crocodilo vingador, com
vocabulário islâmico, como o agradecimento a “Deus altíssimo”. Onde se traduziu “rio” e “margens” o
texto traz palavras que hoje seriam traduzidas como “mar” e “litoral”. Na edição de Breslau, em vez de
sayyid alba¬r, “deus do rio”, lê-se assayyid al¬ajjåj, tentativa meio canhestra de transformá-lo num santo.
[625] Essa e a próxima narrativa não fazem parte do ciclo dos capitães de polícia na edição de Breslau, mas
se encontram em outro lugar, narradas ambas na milésima noite e diretamente por ¸ahrazåd. O leitor não
deixará de notar nesta primeira história incongruências espaço-temporais que aprofundam o anacronismo.
[626] É nesse ponto que se inicia a narrativa, diretamente por ¸ahrazåd, na edição de Breslau.
[627] Essa passagem não consta da edição de Breslau.
[628] Eis aqui mais uma incongruência do texto, dado que o califado nunca se localizou na China.
[629]Har∑sa pode designar um doce de semolina, cujo nome é o mesmo no Líbano e na Síria, mas que hoje
no Egito se chama basbœsa, ou então um cozido de trigo e carne, cujo nome se mantém hoje na culinária
armênia.
[630] Na edição de Breslau, o amigo se desculpa dizendo que também ele ficara retido na casa de amigos.
[631] O trecho entre colchetes, como sempre, é da edição de Breslau. O manuscrito fala o tempo todo em
“trinta e nove”, e não em “trinta e oito”, variação que dá margem a duas interpretações: ou a mulher que
propusera encontro ao herói fora poupada, justamente por não estar com ninguém, o que torna o número de
trinta e oito mais adequado; ou então a mulher que propusera encontro havia mentido, ou, ainda, arranjara
outro amante qualquer, o que tornaria o número trinta e nove mais adequado.
[632] Na realidade, esse discurso, como se evidencia na edição de Breslau, parece ser da própria ¸ahrazåd
para o rei ¸åhriyår, uma vez que os capitães de polícia ignoram a presença de Baybars no recinto. Mas vale
o escrito.
[633] Note novamente o anacronismo, já que a narração se dá no Egito na segunda metade do século xiii,
enquanto o califa Alma’mœn governou em Bagdá no século ix. Mas isso, repita-se, não tem importância
nenhuma.
[634] Oitavo califa da dinastia abássida, governou entre 833 e 842. Na edição de Breslau, fala-se somente
em “califa”, sem especificação.
[635] “Minha avó” traduz sayyidat∑, literalmente, “minha senhora”, que mais adiante passa a ser sitt∑,
“vovó” na linguagem coloquial.
[636] Por evidente distração do copista, a numeração “pula” de 909 para 1000.
[637] Neste manuscrito, o nome do rei vem sempre acompanhado do epíteto alakbar, “o mais velho”, que
não foi traduzido nesta passagem. Um pouco antes, “inteligência” traduz a palavra que foi lida como ∂ihn,
mas que também poderia ser lida como ∂ahan, “prudência”, “juízo”. E “despertar” traduz o verbo a¬®ar,
“trazer”.
[638] “Penitenciou-se” traduz tåba¢a, “prosseguiu”. Certamente, trata-se de erro de cópia, por tåba.
[639] O manuscrito grafa åhzanån.
[640] Na edição de Breslau, consta a palavra “flautas”, nåyåt, em vez de “intenções”, niyyåt, que foi a
leitura preferida para a tradução.
[641] Na edição de Breslau se acrescenta: “para que aquilo fosse um motivo para a pacificação entre o rei e
os súditos”.
[642] A edição de Breslau acrescenta: “pois foi a minha desgraça o motivo da descoberta da sua desgraça.
Durante estes três anos não me deleitei com mulher nenhuma, embora antes eu dormisse com alguma garota
do meu reino uma única noite e pela manhã mandasse matá-la. E agora eu desejo casar-me com Dunyåzåd,
a irmã da sua esposa”.
[643]Qayßar e Iskandar são as formas árabes de “César” e “Alexandre”, respectivamente.
[644] “Zimbro” traduz, literalmente, ¢ar¢ar. Trata--se de uma árvore cuja madeira é aromática. Mas pode
ser erro de cópia por marmar, “mármore”.
[645] Todo esse trecho entre colchetes falta no manuscrito devido a um “salto-bordão”, tendo sido traduzido
da edição de Breslau. No decorrer desta última parte, aliás, várias pequenas correções foram feitas com
apoio nessa edição.
[646] Na edição de Breslau, “uma garota instruída pela esperteza”.
[647] Além de muito diversas entre si, as versões dessa poesia são incompreensíveis tanto no manuscrito
como na edição de Breslau. Para a tradução, fez-se uma leitura combinada, com boa dose de interpretação.
Parece que o propósito dos versos é evidenciar a superioridade da beleza feminina sobre a masculina.
[648] Na edição de Breslau, consta que esse novo rei era “ajuizado, justo, sagaz, letrado e amante das
crônicas, especialmente as biografias dos reis e sultões; encontrando esta biografia espantosa, extasiante e
insólita em trinta volumes, leu o primeiro volume, depois o segundo, depois o terceiro, assim por diante, e
cada volume o agradava mais que o anterior, até que chegou ao final e se espantou com o que ouviu de
histórias, narrativas, anedotas, admoestações, vestígios e lembranças, e então ordenou às pessoas que as
escrevessem e divulgassem em todos os países e regiões; ela passou a ser muito citada, e a chamaram de
espantos e estranhezas das mil e uma noites, sendo isto que nos chegou a respeito deste livro, mas Deus
sabe mais”.
[649] “História” traduz s∑ra, vocábulo também empregado no sentido de “biografia”.
[650] Esse final é o mais antigo documentado das Noites — o manuscrito é do século xvii — e difere
substancialmente do final mais disseminado, constante das edições de Bœlåq e Calcutá2, que são do século
xix e cujos manuscritos remontam ao século xix ou, no máximo, ao final do século xviii, e nos quais se
destaca o fato de que a narradora mostra ao rei os três filhos que tivera durante essas mil e uma noites. Veja
o “Posfácio” a este volume.
[651] Para maiores informações a respeito do texto e das suas circunstâncias, veja o “Posfácio” a este
volume.
[652] Tradução literal de yå sumsum ifta¬ båbaka. Embora a frase consolidada em português seja “abre-te
sésamo”, neste caso a tradução preferiu a literalidade para lhe evidenciar o recorte semântico em árabe, em
que o “sésamo” é o elemento mágico evocado para agir sobre o que lhe pertence, ao passo que a frase em
português, e em francês, sugere que “sésamo” seria o nome do lugar, ou da porta. Mesmo na frase que se
popularizou em árabe por via das adaptações desta história ao público infantil, a frase é ifta¬ yå sumsum,
“abra, ó sésamo”, sem nada que corresponda ao pronome oblíquo reflexivo do português.
[653] Como curiosidade, registre-se que neste ponto ocorre uma construção estranha aos padrões
morfossintáticos do árabe, embora perfeitamente compreensível (∆awfan lå). Macdonald questiona se não
se trataria de influência do francês “de peur que… ne”.
[654] A variação “burro”, ¬imår, e “jumento”, ba©l, é do original.
[655] A interpretação dessa passagem causou alguma polêmica. Macdonald registrou, em obediência ao que
consta do manuscrito, istaf®à bihå, ao passo que Charles Torrey sugeriu istaq®à bihå. A primeira locução
pode ser entendida como “coabitou com ela”, e a segunda, como “trouxe-lhe o juiz”. Como ambas são
possíveis, “decida aí, leitor”, conforme se diz em árabe.
[656] “Desgraçado” traduz ma¬rœm, “quem foi privado de algo”, que é o que foi registrado por Macdonald
e consta do manuscrito, mas, segundo Torrey, teria ocorrido metátese durante a cópia e a leitura correta seria
mar¬œm, “falecido”. De fato, a palavra aí soa estranha.
[657] “Tinta branca” traduz isf∑dåj, que significa “alvaiade”, “pigmento branco constituído de carbonato de
chumbo, usado em pintura de exteriores” (Houaiss). Curiosamente, em português essa palavra provém do
árabe albayå®, “a brancura”, ao passo que em árabe a palavra provém do persa, e significa “branco do
chumbo”.
[658] “Fisiognomonia” traduz firåsa. A palavra está mal empregada nesse caso, já que a fisiognomonia
parte, primordialmente, dos traços da aparência humana. Uma palavra melhor talvez fosse qiyåfa, prática
correlata entre os antigos árabes, mas que se detém sobre os vestígios e traços encontrados na natureza.
[659] Na verdade, os odres a mais seriam três.
[660] Essa longa perífrase, como não terá passado despercebido, se refere a Deus.
[661] Estranhamente, aqui consta — talvez para o efeito da rima — a palavra a¬fåd, que significa “netos”
ou “descendentes”.
[662] “Argumentação […] correção”: aqui, buscou-se um dos efeitos estéticos desse texto, que é o saj¢, ou
“prosa rimada”, muito utilizado nos textos árabes antigos. Em português (como em árabe moderno) ele nem
sempre é agradável.
[663] Esses versos já haviam aparecido nas noites 54 (primeiro volume desta coleção) e 202 (segundo
volume desta coleção).
[664] Sobre esse escriba, veja o “Posfácio” a este volume, pp. 517-519.
[665] Tradução e notas de Christiane Damien Codenhoto, mestre em Língua, Literatura e Cultura Árabe
pela usp e doutoranda na mesma instituição, autora de Na senda das Noites (Cotia/São Paulo,
Ateliê/Fapesp, 2010).
[666] No original francês, “Les finesses de Morgiane ou les quarante voleurs exterminés par l’adresse d’une
esclave”. Em suas Mil e uma noites, Galland alterou esse título para “História de Ali Babá e os quarenta
ladrões exterminados por uma escrava” [“Histoire d’Ali Baba et de quarente voleurs exterminés par une es
¢lave”]. A narrativa, tal como aqui se apresenta, é um resumo de Galland elaborado a partir de uma história
contada oralmente, dentre várias outras, pelo já citado Æannå Diyåb, em maio de 1709. O orientalista, tão
logo lhe ouvia as histórias, registrava-as resumidamente no seu diário [journal], para, depois, conferir-lhes
caráter literário. Como se poderá constatar, o presente resumo traz a ideia geral ou os principais
acontecimentos da história, por vezes detalhando a ação, sobretudo no início, para em seguida deixar
registradas sugestões e frases com o fito de “puxar a memória”. Devido ao caráter informal do registro, o
texto contém palavras abreviadas, inclusive frases inacabadas. Para a presente tradução, utilizou-se o texto
fixado por Mohamed Abdel-Halim a partir do Journal de Galland ([manuscrito da Bibliothèque Nationale
f.fr. 19.277, p. 140], in Abdel-Halim, M. Antoine Galland, sa vie et son oeuvre. Paris, Nizet, 1964, pp. 454-
458); para fins de cotejo, utilizou-se ainda a pioneira publicação desse extrato por Duncan B. Macdonald,
The Journal of the Royal Asiati¢ So¢iety, 1913 (pp. 41-47).
[667] Frase incompleta. Nas Mil e uma noites de Galland, o trecho correspondente da “História de Ali Babá
e os quarenta ladrões exterminados por uma escrava” apresenta o que a personagem vê e sente ao entrar na
gruta: “A porta se abre, ele entra e logo ela se fecha. Examinando a gruta, ele fica extremamente admirado
de ver muito mais riquezas do que havia imaginado pela descrição de Ali Babá, e sua admiração aumenta à
medida que ele examina cada coisa em particular” (veja A. Galland [trad.], Les mille et une nuits. Paris,
Garnier, 1965, p. 247, v. 3 — tradução nossa).
[668] Trecho bastante lacunar. Na versão completa da história, o trecho está assim: “[…] como se tratava de
garantir a segurança de suas riquezas, decidiram dividir o cadáver de Cassim em quatro partes e colocá-las
perto da porta de entrada da gruta, duas de um lado, duas de outro, a fim de afugentar quem tivesse a
ousadia de realizar tentativa semelhante” (idem, p. 248, v. 3 — tradução nossa).
[669] Trata-se da escrava da cunhada. No conto completo, a personagem é apresentada pela seguinte
descrição: “[…] Morgiane era uma escrava habilidosa, competente e inventiva, capaz de obter êxito nas
situações mais difíceis; e Ali Babá a conhecia como tal” (idem, p. 250, v. 3 — tradução nossa).
[670] A passagem registra o verbo souvenir abreviado, conforme se segue: “Vous pouvez bien vous souv. du
¢hemin que vous avez fait […]”. Além do contexto, que nos permite inferir de que se trata do verbo
souvenir, há também a referência desta mesma passagem na história completa de “Ali Babá e os quarenta
ladrões exterminados por uma escrava”, que se apresenta nas Mil e uma noites, de Galland: “Au moins,
repartit le voleur, vous devez vous souvenir à peu près du ¢hemin qu’on vous a fait faire les yeux bandés
[…]” (idem, p. 256, v. 3).
[671] Aqui, da mesma forma, o verbo remplir está abreviado: “[…] pour allumer la lampe et elle en rem.
une ¢haudière […]”. No conto completo, Galland registra neste mesmo trecho o verbo emplir: “[…] elle
prend une grande ¢haudière, elle retourna à la ¢our ou elle l’emplit de l’huile du vase” (idem, p. 263, v. 3).
[672] Trecho lacunar. No conto completo, o capitão dos ladrões se salva pulando os muros que separam os
jardins das casas vizinhas: “Com desespero de ter falhado seu plano, ele atravessou pela porta do jardim de
Ali Babá, que dava para o pátio, e, de jardim em jardim, passando por cima dos muros, ele se salvou”
(idem, pp. 264-265, v. 3. — tradução nossa).
[673] O trecho está registrado da seguinte forma: “Morgiane prend un masque, la baïonnette, au ¢osté, dans
la dernière et se fait admirer”. Podemos depreender do contexto que a palavra dans é, na verdade, danse,
pois a preposição (dans) comprometeria o sentido da oração. No conto completo, é empregado o verbo
danser: “Après avoir dansé plusieurs danses ave¢ le même agrément et de la même for¢e, ella tira enfin le
poignard; et, en le tenant à la main, elle en dansa une danse laquelle elle se surpassa par les figures
différentes et par les éfforts merveilleux dont elle les accompagna […]” (idem, p. 274, v. 3).
[674] Trecho lacunar. A história completa nos permite depreender que se trata do matrimônio que oculta aos
olhos dos estranhos o verdadeiro motivo da união de seu filho com a escrava Morgiane: “Poucos dias
depois, Ali Babá celebrou as núpcias de seu filho e de Morgiane com grande solenidade […] e ele teve a
satisfação de ver que seus amigos e vizinhos, que ele convidara, sem ter conhecimento dos verdadeiros
motivos do casamento, mas que, de qualquer forma, não ignoravam as belas e boas qualidades de Morgiane,
louvaram-no vigorosamente por sua generosidade e por seu bom coração” (idem, p. 275, v. 3 — tradução
nossa).
[675] In: Otras inquisi¢iones. Obras completas (Buenos Aires, Emecé, 1990, v. ii, pp. 46-47). A primeira
edição desse livro é de 1952.
[676] “[…] não consegui encontrar essa 602a noite. Mas, mesmo que Borges a tivesse inventado, estaria
certo em inventá-la, porque ela representa o coroamento natural do en¢hâssement das histórias. […] o en
¢hâssement das Mil e uma noites determina, sim, uma estrutura perspéctica” (in: “Os níveis da realidade em
literatura”. Assunto en¢errado. Trad. Roberta Barni. São Paulo, Cia. das Letras, 2009, p. 381).
[677] Para mais detalhes, veja o “Posfácio” a este volume.
[678] Traduzido do 12o volume da edição de Breslau. O trecho se inicia após a “História dos sete vizires”,
que se encerra na milésima primeira noite.
[679] Assim no original, em lugar de ahriyår. Essa variação no nome das personagens do livro não era
incomum. Lembre-se de que se tratava de nomes estrangeiros, pouco empregados em árabe.
[680] “Vitória da integridade sobre a violência” traduz, com alguma liberdade, sabab assalåma ¢alà
alkaråha, formulação que, literalmente, pode ser entendida como “o caminho da integridade contra a
imposição”.
[681] “Incorrer em interditos” traduz sab∑ almu∆addaråt [si¢], o que não faz sentido. A segunda palavra
certamente está por almu¬a∂∂aråt, ou, mais possivelmente, por alma¬∂œråt.
[682] “Heresia” traduz bid¢a, palavra que também pode significar “inovação” (em matéria religiosa). É
termo de conotação pejorativa.
[683] Essa descrição não é compatível com nenhuma das versões do “prólogo--moldura”. Em princípio, a
impressão é a de que ocorre certa confusão entre “noite” e “história”. Tampouco terão passado
despercebidas outras discrepâncias.
[684] A redação desse trecho está confusa no original.
[685] Esse último trecho, “a fim de que eu recue daquilo que eu fazia” (li-arja¢ ¢ammå kuntu f∑hi) está
visivelmente errado, pois, nesse ponto, não faz o menor sentido que o rei fale dessa maneira. É possível que
a formulação correta seja: “que recuou naquilo que fazia” (alla∂∑ raja¢a ¢ammå kåna f∑hi).
[686] Como a passagem está no masculino, supôs-se que a fala dos sábios se refira aos reis. Contudo, a
formulação anterior cita “as jovens”, e, como o texto é mais coloquial que clássico, pode-se igualmente
supor que eles falam das jovens, uma vez que, no coloquial, tal troca do pronome feminino plural de
terceira pessoa pelo masculino não é incomum. Mas a lógica pende para o masculino.
[687] Aqui, “soldados” traduz jund, seguindo o sentido reconhecido e normalmente dado pelos dicionários,
embora não fosse incomum, especialmente no período mameluco, o seu uso na acepção de “súditos”, como
reflexo, talvez, da militarização das sociedades levantinas na época das Cruzadas, que transformou todos os
súditos em soldados potenciais devido à constante ameaça de agressão.
[688] Alcorão, 20, 29-30.
[689] Alcorão, 33, 35. A citação se encontra bem truncada. Ao lado de outros grupos cuja citação é elidida
(muçulmanos, perseverantes etc., sempre em duplas, isto é, masculino e feminino), o mais curioso é o corte
do gênero feminino no último termo, “as que guardam o seu órgão sexual”. A todos esses se garante que
Deus lhes preparou “perdão e magnífica recompensa”.
[690] Aqui, a narradora se refere à “História dos sete vizires”. Nesse ponto, a redação é confusa.
[691] A partir daí, ¸ahråzåd começa a narrar a história da concubina do califa, que já foi traduzida neste
volume a partir do manuscrito “Arabe 3619”, no qual é a segunda das histórias narradas pelo décimo sexto
capitão de polícia (noites 908-909).
[692] Por volta dessa época, nunca é demais lembrar, Galland estava em conflito com os editores da sua
tradução e com outros letrados franceses, como Pétis de La Croix, que queriam se apropriar do (lucrativo)
trabalho que ele iniciara, sob o pretexto da legitimidade das fontes. Nessa linha, pode-se pensar que o
próprio Æannå Diyåb — “Hanna, ou seja, Jean Baptiste, de sobrenome Diab”, conforme anota Galland,
mencionando-o às vezes, mais intimamente, como “Jean Dippi” — pode não passar de uma invenção de
Galland com o propósito de conferir maior legitimidade às fontes da sua tradução, pois ninguém mais refere
ter conhecido o tal Æannå, seja no Ocidente, seja no Oriente, e toda informação “factual” a seu respeito
provém de Galland. Assim, embora o tradutor francês alegue ter sido apresentado a Æannå em 1709 por seu
amigo diplomata Paul Lucas, recém-chegado do Oriente, donde o teria trazido pessoalmente, o estranho é
que o mesmo Paul Lucas não cita esse maronita alepino em nenhum dos seus três relatos de viagens ao
Levante. Nas anotações de Galland, o “alepino” é uma soma de verossímeis: “além de sua língua, que é o
árabe, ele fala turco, provençal e francês muito passavelmente”. Em 25 de março de 1709, Æannå lhe
narrou “contos árabes muito belos, e me prometeu pô-los por escrito”; em 25 de outubro, as anotações de
Galland botam Æannå em Marselha, a fim de retornar ao Levante, para finalmente, em nove de novembro,
fazerem-nos trocar correspondência com o abade De Camps, que o encarregava de comprar algumas
medalhas na região; nas anotações de três de novembro de 1711, como se viu acima, Galland o transforma
em damasceno, e, em 24 de agosto de 1711, Galland afirma ter percorrido “uma parte dos contos árabes que
o maronita Hannah me contou, e que eu pus por escrito resumidamente, a fim de ver quais eu reunirei para
deles fazer o décimo primeiro volume das Mil e Uma Noites”. As anotações, tanto as supostamente devidas
diretamente a Æannå como as alegadamente derivadas de sua narrativa oral, constituiriam, sem dúvida,
valioso material probatório da “legitimidade” das fontes de Galland em eventuais disputas jurídicas. As
informações foram colhidas em Mohamed Abdel-Halim, cit., passim.
[693] Para maiores informações, veja adiante, no item 8 do “Posfácio”, as observações relativas a este
anexo.
[694] No original, o título é “O alfaiate alexandrino e Dankiz [Tankiz]”. No título dado pelo tradutor
destacaram--se os elementos mais importantes do texto. Sobre “Tankiz”, veja o “Posfácio”.
[695] “Não deveria ser seu” traduz må laka f∑hi naß∑b, que literalmente seria algo como “não é a sua
fortuna”.
[696] “Bairro de Alfisqår” traduz Æårat Alfisqår; “cervejeiro” traduz alfuqqå¢∑, ou seja, vendedor de
alfuqqå¢, “bebida embriagante feita de cevada, assim chamada pela espuma e bolhas que lhe ficam na
borda”, conforme definição dos dicionários de termos do período mameluco e otomano; em árabe clássico,
seu sentido seria algo equivalente a “orchata”, suco em cuja composição pode eventualmente incluir-se a
cevada. “Mercado de Saq†iyya” traduz Bas†åt Assaq†iyya, locução na qual a primeira palavra significa
“coisas estendidas”, o que provavelmente indica algum local onde as mercadorias se vendiam expostas no
chão, sobre algum pano — uma espécie de “mercado das pulgas”.
[697] “Leão” traduz sab¢, que mais comumente significa “fera”, “animal de presa”; “lobo” também é um
sentido possível.
[698] Aqui, o verbo traduzido como “soltou-o” é farakahu, literalmente “esfregou-o”, o que levou Joseph
Sadan a aproximar a atmosfera desta história à de Aladim.
[699] “Patrão” traduz mu¢allim, literalmente “mestre”, “professor”, “aquele que ensina”. Trata-se, é óbvio,
do cervejeiro que ficara com o leão de cobre.
[700] Trata-se, como parece evidente, de localidades e bairros damascenos, mas num período em que, para
Sadan, “esses bairros não estavam ainda conectados à cidade”.
[701] “Mansão da Felicidade”, local onde vivia o governador.
[702] Aqui, o verbo está em primeira pessoa, mas preferiu-se manter a coerência do discurso, pois não
existe nenhuma circunstância sintática que possa justificar essa mudança de terceira para primeira pessoa.
[703] Os colchetes preenchem um claro “salto bordão” no original.
[704] “Mestre” e “diretor” traduzem a mesma palavra, mu¢allim, já explicada.
[705] “Amanhece morto” traduz yußbi¬ maytan, literalmente “torna-se morto”, isto é, “acaba morrendo”. A
dificuldade de compreensão dessa e de outras passagens reside na hesitação entre os registros coloquial e
clássico.
[706] “Amarrando o seu avental na cintura” traduz ta¬azzam bi-¬izåmihi.
[707] “Lâmpada” traduz qind∑l, e “lampião”, siråj. São palavras praticamente sinônimas, e a diferença, no
caso, certamente remete aos usos diversos no próprio texto, uma vez que, pendurada, a “lâmpada” passa a
funcionar como uma espécie de lustre fixo, e no alto, ao contrário do “lampião”, móvel e mais baixo.
[708] “Fez a profissão de fé muçulmana” traduz tašahhada, que significa “pronunciou a Ωahåda”, ou seja,
disse: “Não existe divindade senão Deus, e Mu¬ammad é o seu enviado”. Antes, “gênio” traduzira ¢ifr∑t.
[709] Passagem obscura no original.
[710] “É por meio dela que sou conjurado” traduz marßœd¢alayya.
[711] “Em comemoração ao retorno da jovem” traduz ¬alåwat assitt, que, conforme observa Sadan, pode
também indicar o nome de algum doce.
[712] Segundo Sadan, essa referência ao ustå∂, “mestre” (num sentido mais amplo que a já usada mu¢allim)
indica uma prática corrente entre os mamelucos, qual seja: eles eram em geral comprados ainda jovens por
líderes mamelucos importantes que os criavam e adestravam em suas tropas; conforme ia ganhando
destaque no cumprimento das suas missões, o mameluco galgava posições na hierarquia do governo e do
poder. Por outro lado, a locução “escriba mor do divã” traduz daw∑dår, que, de acordo com os dicionários
consultados, é vocábulo do período otomano. Para aprofundar os aspectos relativos à historicidade do texto,
é muito proveitosa a consulta ao erudito estudo de Joseph Sadan: “Background, date and meaning of the
story of the alexandrian lover and the magic lamp. A little-known story of Ottoman times, with a partial
resemblance to the story of Aladdin”, in: Quaderni di Studi Arabi, Istituto per l’Oriente C. A. Nallino, vol.
19, 2001, pp.173-192.
[713] Para outras informações relevantes a respeito de possíveis origens da história, veja, adiante, no item 8,
as observações ao “Anexo 4”, bem como os percucientes estudos de Joseph Sadan: “Background, date and
meaning of the story of the alexandrian lover…”, cit., e “L’Orient pitoresque et Aladin retrouvé”, in:
Mendelsohn, D. (ed.), Emergen¢es de fran¢ophonies. Limoges, Presses Universitaires, 2001, 173-192;
sobre as apropriações dessa narrativa nas culturas europeias, veja Margaret Sironval: “Écritures
européennes du conte d’Aladin et de la lampe merveilleuse”, in: Féeries, nO 2, 2004-2005, pp. 245--256;
para uma defesa, aliás bem débil, das origens europeias, veja Anja Hänsch, “A structuralist argument for the
european origin of ¢Alå’ ad-D∑n wa-l-Qind∑l al-Mas¬œr”, in: Arabi¢ and Middle Eastern Literatures, 1/2,
1998, pp. 169-177. Em certo sentido, o primeiro texto de Joseph Sadan aqui citado é uma contestação das
ideias reducionistas de Anja Hänsch.
[714] Concretamente, sabe--se que foi ele um dos copistas, em 1807, dos dois volumes de uma gramática
do árabe ditada por de Sacy. Isso, porém, a par de outras eventuais colaborações, não o torna
automaticamente seu “discípulo”; pelo contrário, talvez se tratasse do tipo convencional de conhecedor
“prático” do idioma árabe, quase um “nativo”, no que pode ter sido de grande valia para de Sacy. E o fato
de a gramática ter sido copiada por ele não consiste, necessariamente, num sinal de subserviência
intelectual, e sim que, talvez, ele dominasse o árabe melhor que de Sacy.
[715] A edição de Breslau (doze volumes, 1825-1843), como já se afirmou nos demais volumes desta
coleção, é normalmente considerada “espúria” pela crítica, pois seu primeiro editor, Maximilien Habicht
(1775-1839), forjou, ou mandou forjar, os manuscritos que publicava. Contudo, ignora-se em quais
condições foi efetuado o acréscimo dessa história, se por iniciativa do copista judeu tunisiano Murda∆åy
Ibn Annajår, que trabalhava para Habicht, se por sugestão do próprio Habicht, se por iniciativa de algum
orientalista ou, ainda de Heinrich Leberecht Fleischer (1801-1888), professor de árabe em Leipzig, que se
incumbiu da edição após a morte de Habicht. Tendo em vista tal obscuridade, bem como a atenção que
despertou na crítica após a interpretação de Borges, optou-se por incluir na presente tradução, a título de
curiosidade, essa “narrativa circular”, a qual, de resto, também consta do chamado “manuscrito Reinhardt”
das Noites, depositado na Biblioteca da Universidade de Estrasburgo e copiado no Egito em 1831.
[716] “¢Awdat ¢Alå’udd∑n wa Mißbå¬ihi ilà Ju∂œrihimå” (O retorno de ¢Alå’udd∑n e sua lâmpada às
suas raízes), in: Alkarmil, Haifa, 1999, no 20, 1999, pp. 149-188; cf. também os estudos supracitados de J.
Sadan. A tradução ao inglês está em “Background, Date and Meaning…”, cit., pp. 184-192.
[717] Consultaram-se: Øalå¬udd∑n Ibn Aybak Aßßafad∑, Tu¬fat ∂aw∑ Alalbåb, “A joia dos dotados de
inteligência”, edição crítica de I¬sån Bint Sa¢∑d ¿ulœß∑ e Zuhayr Æam∑dån, Beirute, Øådir, 1999, pp.
515-526; Mu¬ammad Bin ¸åkir Alkatb∑, Fawåt Alwafayåt, “O que escapou ao livro de registro dos
passamentos”, cit., v. i, pp. 251-258, e Almaqr∑z∑, Almawå¢i≈ wa Ali¢tibår, “Recomendações e
considerações”, edição crítica de Ayman Fu’åd Sayyid, Londres, Alfurqån, 2002, v. iii, pp. 179-180.
[718] Se bem que, como não deixará de notar o leitor, essa submissão é muito mais acentuada na história de
¢Alå’udd∑n, onde a obediência do gênio se presta, de modo exclusivo, ao eventual possuidor da lâmpada,
sem nenhuma consideração de outra ordem, enquanto na história do alfaiate alexandrino o gênio se oferece
para atender um pedido graças a um favor, mesmo involuntário, feito a ele. Esse dado do enredo aproxima a
história do alfaiate às Noites, cujas relações intrapersonagens, é fácil ver, baseiam-se num intenso processo
de trocas. Sadan afirma que “o autor ou narrador que nos deixou a versão escrita do alexandrino não
menciona a esfregação [da lâmpada], e sim a limpeza e o acendimento do fogo da lâmpada de cristal.
Podemos escolher entre duas possibilidades: a primeira, que a história de ¢Alå’udd∑n não constitua senão
uma racionalização, é verdade que em linguagem lendária, posterior à integração dos ‘objetos mágicos’ na
história do alfaiate alexandrino; e a segunda, que esta história tenha sido redigida numa época anterior ao
emprego literário de objetos mágicos, e que ela continue marcada pelos símbolos da luz e do fogo e pelo
sentimento do sagrado” (apud “L’orient pittoresque…”, cit., pp. 182-183).
[719] O próprio Sadan afirma que ¢Alå’udd∑n não se trata de um “descendente” do alfaiate alexandrino,
mas sim que ambos “pertencem, de perto ou de longe, à mesma ‘família’”. Cf. “L’orient pittoresque…”,
cit., p. 183.
[720] Como não foi possível ter acesso a esse manuscrito, o texto se traduziu do resumo constante de
Marzolph, Ulrich, e van Leeuwen, Richard (org.). The Arabian Nights En¢y¢lopedia. Santa Barbara, abc-
Clio, 2004, v. i, p. 96. Cf. também Chraibi, Aboubakr. Contes Nouveaux des 1001 Nuits. Étude du Manus
¢rit Reinhardt. Paris, Maisonneuve, 1996. Os elementos que aproximam essa história da de ¢Alå’udd∑n são
diferentes dos do alfaiate alexandrino, haja vista a ausência, fundamental, do objeto mágico. Conforme
explica Chraibi, Reinhardt era o vice-cônsul alemão no Egito para quem o manuscrito foi copiado.

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