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Leszek Kdakowski
O Espírito Revolucionário
e
MarxismoOopia e Antiutopia
EditomUniversidaciedeBnisília
O ESPÍRITO REVOLUCIONÁRIO
e
MARXISMO: UTOPIA E ANTIUTOPIA
Leszek Kolakowski
O Espírito Revolucionário
e
MarxismoOopia e Aittiutopia
Pensamento
Político
Impresso no Brasil
Título original:
Der Revolutionare Geist
Copyright©1972 Leszek Kolakowski para o Espírito Revolucionário
Título original:
Níarxismus: Utopie und Anti-utopie
Copyright<S)1974 Leszek Kolakowski para Marxismo:
Utopia e Antiutopia
Capa:
Arnaldo Machado Camargo Filho
EQUIPE TÉCNICA
Editor
Lucio Reiner
Supervisor Gráfico
Elmano Rodrigues Pinheiro
Controladores de Texto
Patrícia Maria Silva de Assis, Thelma Rosane Pereira de Souza
ISBN 85-230-0007-0
Ficha Catalográfica
elaborada pela Biblioteca Central da Universidade de Brasília
330.85
t
t(Marxismo—utopia e antiutopia)
série
Sumário
O Espírito Revolucionário
I O Espírito Revolucionário 7
II A Esquerda Fracassada 17
III Filosofia marxista e realidade nacional 29
IV Os intelectuais contra o intelecto 43
V A ditadura da verdade: um círculo quadrado 59
Marxismo:Utopia e Antiutopia
Prefácio 75
I A Antiutopia utópica de Marx 77
II O marxismo de Marx, o marxismo de Engels 89
III O Marx de Althusser 105
IV O marxismo e o conceito de exploração 121
V Por que temos necessidade de dinheiro? 133
VI O socialismo burocrático pode ser reformado? 147
índex das fontes 165
. Posfácio de Jacques Dewitte 167
. Bibliografia 187
. Notas 189
Capítulo I
O ESPÍRITO REVOLUCIONÁRIO (1970)
homem aos poderes alienantes atinge seu ponto culminante que são preenchi
das as condições da Revolução Final, a Revolução pela qual a humanidade vai
libertar-se para sempre do domínio das potências estrangeiras. A descida aos
Infernos precede imediatamente o dia grandioso da Ressureição. A partir
desse momento, a oposição entre liberdade e necessidade perde todo o
sentido: na consciência do proletariado, convergem, pela primeira vez, a
atividade livre e a necessidade histórica. Graças a isso, o desabrochar
espontâneo da criação humana torna-se o único fim em si, todas as fontes dos
conflitos sociais esgotaram-se com a abolição da divisão de classe. O homem
volta para si mesmo, a existência empírica é colocada de acordo com a
essencialidade humana. A vocação final da humanidade foi cumprida, a
história no sentido que teve até então, isto é, o domínio dos poderes anônimos
sobre os indivíduos vivos, chegou ao fim.
< Essa idéia de uma libertação definitiva determina também, na filosofia da
história marxista, o sentido possível de todas as reformas, nos limites do
capitalismo. As leis econômicas do sistema capitalista não podem, de modo
algum, ser abolidas dentro desse sistema; seus efeitos podem ser parcial e
momentaneamente atenuados, mas nunca suprimidos; elas têm, como conse-
qüência inevitável, a polarização crescente das classes e o reforço da
exploração. Eis porque a classe operária não deve se iludir com o sucesso das
reformas. O único sentido da luta econômica e da atividade reformadora é
preparar a classe operária para a luta final; a luta pelas reformas deve ser,
portanto, subordinada à finalidade política, à Revolução, que será o instru
mento da libertação econômica.
O ponto central da doutrina de Marx é, precisamente, essa idéia, de que o
sentido de toda reforma e de toda luta econômica é relativo ao seu último fim.
Por essa razão, a oposição entre a corrente reformista da Segunda Internacio
nal e o marxismo aparece, efetivamente, como fundamental. Quando, nos
últimos anos de sua vida, ele concedeu um valor autônomo à atividade
reformadora (sem eliminar a perspectiva da Revolução), Engels mostrou-se
infiel ao espírito de Marx num ponto essencial. É assim que o espírito
revolucionário reina na doutrina de Marx: a salvação é total e definitiva ou
nula; não há meio termo: não se pode substituir a Revolução por uma
multiplicidade de reformas, nem concluí-la “parcialmente”: A Revolução não
vem de uma soma de reformas. O capitalismo não pode ser melhorado, mas
apenas reduzido. Na perspectiva do futuro, só conta a salvação global e final;
é unicamente em relação a esse fim que as ações parciais, dentro do
capitalismo, têm um sentido qualquer. A libertação não é gradual nem
divisível. A Revolução que virá deve ser global, o que significa que ela deve
abranger todos os domínios da vida social e transformá-los radicalmente, pois
na história anterior, todas as formas de progresso tecnológico e cultural
voltaram-se finalmente contra o homem.
crença no caráter global da Revolução tudo isso leva a uma pergunta: em que
sentido e em que medida haveria uma continuidade entre a futura humanida
de libertada e a atual dominada? Parece que o caráter radical e universal da
Revolução exige a interrupção e mesmo o rompimento violento da continui
dade da cultura. O pensamento de Marx é, entretanto, ambíguo e incoerente,
sobre esse ponto. Por outro lado, a lógica natural da doutrina parece ir no
sentido da idéia de uma descontinuidade da cultura. Se a filosofia, o direito e
a religião não possuem nenhuma história própria (como lemos na Ideologia
Alemã) e se sua história é somente a de relações de produção, se (como lemos
no Manifesto Comunista) todas as supostas idéias eternas só são eternas (isto é,
não ligadas a uma formação social), na medida em que todas as formações
sociais, tendo existido até agora, tiveram como caraterísticas comuns a miséria
e a exploração, então a conclusão se impõe: o sentido de toda criação cultural
do passado era inteiramente determinado pelos interesses das classes, cada
vez mais dominantes, pois, a totalidade dessa criação perderá logo seu significa
do, uma vez abolida a divisão de classe. Mas, por outro lado, Marx não
aceitava de forma alguma esta conclusão; ele insistia no fato de que o
socialismo apóia-se na totalidade das aquisições civilizadoras do capitalismo —
não somente no campo da tecnologia, mas em todos; ele chamava a atenção
sobre a continuidade do pensamento científico e se indagava sobre a explica
ção da imortalidade da arte grega e fez, por várias vezes, elogio às grandes
aquisições do capitalismo, em todos os campos; opunha claramente sua
própria doutrina e esta forma de comunismo utópico, que sonhava com a
salvação da humanidade pela volta a uma tecnologia primitiva e que desejava
enquadrar os homens na mediocridade uniformizada e rejeitava, em bloco,
todas as conquistas das épocas passadas.
Neste ponto, Bakunin e o anarquismo revolucionário do século XIX eram
mais lógicos para com eles mesmos. Bakunin não se contentava em ver na
Revolução o objetivo único ao qual era preciso subordinar a luta a ser
realizada, mas ele opunha seu próprio ideal da Revolução Social à idéia da
Revolução Política, pois uma revolução política, conservando o quadro institu
cional do Estado, só transformaria a forma de opressão sem aboli-la. Como
conseqüência, abominava as universidades que, para ele, só serviam para
aprofundar a desigualdade entre a intelligentsia e o povo não-instruído.
Contrariamente a Marx, Bakunin acreditava que eram as camadas mais
desfavorecidas, isto é, o lumpen-proletariado, a ralé do proletariado que
continha o maior potencial revolucionário.
Os líderes da Segunda Internacional (especialmente Lenin e Rosa
Luxemburg) herdaram de Marx a idéia da Revolução que, como transforma
ção global, confere o único sentido possível à luta econômica e às reformas
sociais dentro do capitalismo. Eles herdaram sua descrença no valor das
reformas e sua utopia da salvação total. Como se sabe, o conflito entre o
espírito escatológico e messiânico do marxismo e o socialismo reformista
prolongou-se até nossos dias. (Isto se manifesta, principalmente, nos esforços
O Espírito Revolucionário 13
jamais impossíveis, pois, não existe nenhuma lei natural que garanta o
progresso ininterrupto da humanidade. A idéia de que o mundo existente é.
tão corrompido que não se pode pensar em melhorá-lo eque, precisamente por
isso, o mundo que virá depois trará a plenitude da perfeição e a libertação
final, esta idéia é uma das mais monstruosas aberrações do espírito humano.
O bom senso diz, no entanto: quanto mais corrompido é o mundo existente,
mais longo, difícil e incerto é o caminho que conduz ao reino sonhado da
perfeição. Certamente, essa aberração não é uma invenção de nossos tempos;
mas é preciso reconhecer que, dentro do pensamento religioso que opõe a
força da graça sobrenatural à totalidade dos valores temporais, ela é muito
menos abominável do que nas doutrinas mundanas que nos garantem que
podemos assegurar nossa salvação, saltando, de uma vez, do abismo dos
infernos ao topo dos céus. Uma tal revolução jamais acontecerá.
Capítulo II
A ESQUERDA FRACASSADA (1970)
fato de que ele era, até agora, uma classe oprimida e explorada, pois, por esse
ângulo, não se distingue das classes exploradas, em outras épocas históricas.
Segundo Marx, a condição necessária, porém de modo algum suficiente, à
vitória do proletariado é que a burguesia perca a capacidade de dirigir para
ela mesma o progresso técnico.
Ao invés de todas as variantes sentimentais do socialismo, Marx jamais
acreditou que “a causa justa” deveria vencer “unicamente porque ela é a causa
justa”. Ao contrário: se basearmos só na força da justiça nossas esperanças em
uma sociedade justa, teríamos toda a experiência histórica contra nós. Não
existe também lei suprema em virtude da qual o conflito entre o proletariado
e a burguesia acabaria necessariamente em favor do proletariado; de fato, já
que o operário vende sua força de trabalho ao seu valor — como é o caso, de
um modo geral, na sociedade capitalista — a burguesia tem tanto direito,
quanto o operário de apropriar-se da mais-valia. Entre esses direitos, segundo
Marx, é a força que decide. Se o proletariado tornar-se um dia mais forte que
as classes exploradoras, não será porque a justiça está do seu lado. Mas
também não será graças à sua superioridade numérica ou a uma consciência
de classe mais forte. O proletariado ganhará porque sua libertação dará,
simultaneamente, livre curso às forças produtivas que, no sistema capitalista,
são condenadas, em última instância, à estagnação e ao declínio. E por esta
razão que Marx, não muito afastado de Engels nesse ponto, acreditava nos
privilégios históricos das civilizações mais desenvolvidas è assinalava o caráter
“historicamente progressista” do processo de colonização.
Nesse caso, pode-se considerar, do ponto de vista de Marx, todas as
oposições indicadas anteriormente (com exceção, é claro, das que ainda não
existiam no seu tempo) não como casos particulares de uma oposição
fundamental única, mas como funções desta — pelo menos no sentido de que
elas serão todas ultrapassadas de uma só vez, ao mesmo tempo que esta
oposição. Se o proletariado vitorioso “anula a si próprio, anulando seu
oposto”, ele eliminará do mesmo modo, pouco a pouco, as barreiras nacionais,
as diferenças no nível de civilização e todas as formas existentes de exploração
e de opressão.
Não existe critério mais geral que incluísse eles todos. Não existe nenhum
interesse superior, qualquer que seja, que poderia reunir em um movimento
único as reivindicações de todos aqueles que são vítimas da injustiça. Desde
então, não há, num futuro próximo, nenhuma possibilidade para que o sonho
da Grande Internacional torne-se diferente do que é, isto é, um sonho.
Imaginar que os operários ingleses, em greve, vão chegar um dia à conclusão
de que seus interesses são idênticos aos dos índios do Brasil que morrem de
fome é uma quimera pura e simples. Como fazer para demonstrar em que
essa identidade deveria consistir? Seria como se os guerrilheiros palestinos
fossem, daqui a pouco, tomar consciência de que deveriam protestar, ao lado
dos judeus americanos, contra o anti-semitismo, na União Soviética. Se a
esquerda não é capaz de formular uma idéia que seja para conferir uma
significação comum a todos os conflitos desse mundo, isso não se deve à sua
insuficiência intelectual. Antes pelo contrário seu fiasco intelectual provém do
fato de que uma tal significação comum não existe, mas que muitas pessoas
passam seu tempo procurando-lhe uma fórmula. O que só pode ser feito com
o auxílio de camuflagens transparentes, mentiras grosseiras e de uma dema
gogia aflitiva.
verdade que aqueles que são privados dele dificilmente podem sonhar com
outra coisa. Não se pode esperar dos trabalhadores famintos da índia que eles
tenham simpatia particular pela opressão dos intelectuais nos países comunis
tas. No mundo atual, os conflitos têm por origem circunstâncias tão diferentes
que não consigo ver como poderíamos remediá-las, recorrendo a uma cons
trução ideológica artificial.
A “Grande Internacional” nunca existiu. Antes da Primeira Guerra
Mundial, enquanto a política mundial estava quase inteiramente nas mãos de
um pequeno número de grandes potências industriais, ainda se podia
esperar, no mínimo, da classe operária internacional que ela encarnasse, sob
uma forma embrionária, uma tal Internacional — pelo menos se partíssemos
de uma hipótese que a seqüência dos acontecimentos deveria desmentir: seu
conflito com a burguesia passaria antes de todos os outros. Graças aos meios
de comunicação, em escala mundial, e à descolonização, todos os conflitos e
todas as reivindicações surgiram quase ao mesmo tempo. Mas querer atribuir-
lhes o mesmo sentido seria um empreendimento fadado ao fracasso. Se, hoje
em dia, enquanto a crença de Marx na função universalista da classe operária
se dissipou em grande parte, alguns estão em busca de uma outra força
histórica suscetível de retomar esse papel, o que nada mais é do que o sintoma
de uma nostalgia romântica.
E inútil mover céus e terra à procura de alguém que possa, eventualmen
te, tomar a seu encargo a Revolução, como se se tratasse de uma tarefa que
precisasse ser cumprida a qualquer preço, estando as massas prontas ou não
para executá-la, como se fosse o objetivo final e não um meio a serviço de um
fim. E se a classe operária não está disposta a fazer a Revolução — ou, segundo
o dogma marxista, a assumir uma função messiânica — também não é uma
razão suficiente para que ela negligencie a tarefa principal que lhe cabe (assim
como aos tecnocratas): velar pelas transformações sociais, tanto nos países
altamente desenvolvidos como nos socialistas. Isto não quer dizer que as
pessoas de esquerda deveriam tomar para si qualquer reivindicação de uma
parte qualquer da classe operária. Isto significa que toda idéia extraída da
tradição socialista e desenvolvida numa perspectiva socialista é absurda ou
reacionária, se os produtores imediatos — operários e técnicos — não se
empenharem em realizá-la.
Como atualmente tudo é dominado por conflitos entre grandes potências,
a maior parte das questões do momento nos parecem completamente falsas.
Cada conflito que surge é, de modo inevitável, integrado ao campo de força
na luta entre os impérios. E essa a razão pela qual é muito difícil a alguém, que
arrasta atrás de si o peso dos valores socialistas tradicionais, identificar-se com
um ou outro campo em muitos conflitos atuais, exceto nos casos em que sua
responsabilidade é imediata e não passa por uma instância qualquer interme
diária, construída teoricamente. Não creio, entretanto, que o conceito de
esquerda tenha perdido seu sentido. Gostaria somente de afirmar que não
pode existir programa político geral que conferiria um sentido comum a
28 Leszek Kolakowski
separatismo, sem jamais ser negado, foi necessariamente limitado por algu
mas explicações suplementares. Lenin declarou que o partido que lutasse, sem
compromisso, contra toda forma de opressão nacional devia exigir o direito
da autodeterminação, incitando, ao mesmo tempo, os povos, outrora oprimi
dos, a permanecerem dentro da comunidade socialista (não há contradição
nessa atitude, explicava Lenin, do mesmo modo que o partido pode manter o
direito ao divórcio sem com isso encorajar as pessoas a se divorciar). Mas a
Revolução, uma vez consumada, mostra rapidamente que o direito ao separa
tismo devia sofrer mais restrições ainda se não se quisesse condenar o poder
revolucionário à ruína. Praticamente nenhuma das principais promessas que
os líderes bolchevistas fizeram, com toda a sinceridade, antes da Revolução,
foi mantida, pois sua realização teria, de modo inevitável, conduzido o novo
sistema à destruição. Tal foi a sorte da palavra de ordem democrática, da idéia
de abolição do exército regular e finalmente da palavra de ordem “a terra
para os camponeses”. Assim também foi a sorte do direito à autodetermina
ção. Desde o começo, o poder revolucionário só poderia se manter com vida se
ele estivesse pronto a renegar, uma após outra, todas as idéias básicas, isto é,
renegar ele próprio. Seus líderes não tinham outra alternativa: podiam ou
salvar a idéia revolucionária e perder o poder, ou perder o espírito revolucio
nário, a fim de salvaguardar o corpo vazio da ditadura. O fundamento
ideológico dessa série de modificações, que acabaram por esvaziar totalmente
o programa inicial de sua substância, foi o princípio de que o novo Estado era
por definição o tesouro mais precioso do proletariado mundial, a primeira
cabeça da Revolução Universal. Sua sobrevivência passava, pois, antes de tudo
— mesmo antes dos interesses de sua população e antes do direito à autode
terminação das nacionalidades que o compunham. Esse direito conheceu uma
dupla restrição. Em primeiro lugar, foi estabelecido que, em caso de conflito
entre o direito à autodeterminação e o interesse geral da Revolução, era este
último que deveria prevalecer. Observou-se, pouco após a Revolução, que um
caso desse tipo podia efetivamente se apresentar: é o que se passava com todas
as nacionalidades mais desenvolvidas que faziam parte do antigo império.
Formulando esse princípio, Lenin não tinha considerado a significação social
de tais conflitos, mas somente sua causa mais evidente: os preconceitos anti-
russos, bem compreensíveis, dessas minorias após séculos de opressão. A
segunda restrição estava contida no programa pós-revolucionário do partido
que estabelecia que, quando se coloca a questão do separatismo, é o nível de
desenvolvimento histórico de uma nacionalidade que determina de maneira
decisiva quem exprime a vontade real da nação. A interpretação mais simples
desse princípio era, é claro, que a classe mais progressista de uma nação, isto é,
a classe operária, deve ter a última palavra; e como a classe operária exprime
sua vontade autêntica pela voz de seu partido e como o partido é um
organismo dirigente estabelecido de maneira centralista em nível do país
inteiro, pode-se compreender como a ideologia do partido pôde resguardar o
princípio da autodeterminação lançando, ao mesmo tempo — sem contradi
ção aparente — as bases da futura política chauvinista que ia fazer, afinal de
O Espírito Revolucionário 33
a luta pela soberania nacional, considerando-se que não se podia imaginar que
o socialismo se desenvolvesse numa sociedade que estava oprimida como
nação. Rosa Luxemburg atacava essa idéia por razões teóricas e táticas. Isto
não quer dizer que ela fosse indiferente à opressão nacional. Mas como a
revolução socialista quer destruir imediatamente todas as formas de opressão,
principalmente a opressão nacional, uma luta separada pela causa nacional só
pode dificultar o movimento proletário. Além do fato de que a independência
da Polônia é intrinsecamente impossível, em razão de tendências econômicas
irresistíveis (a dependência da indústria polonesa em relação ao mercado
russo) e de que nenhuma das classes fundamentais da sociedade polonesa está
realmente interessada na independência, os slogans nacionais são bastantes
perniciosos para o movimento operário porque abalam a solidariedade inter
nacional e mobilizam a energia dos trabalhadores para uma causa que é
supostamente o interesse geral da sociedade inteira, acima das divisões de
classes. Enquanto que, pelo contrário, para Rosa Luxemburg — e aí está o
ponto fundamental de sua análise teórica — não pode existir causa nacional
separada: o próprio conceito de interesse nacional é de origem burguesa. O
fato de que um tal conceito seja utilizado no movimento socialista atesta
somente que está contaminado pela ideologia burguesa. O que é, pelo menos,
surpreendente é que Rosa Luxemburg nega a própria existência de uma
entidade tal como a nação, sem para tanto negar o fato da opressão nacional.
Na sua opinião, não existe uma totalidade social tal como a nação, já que toda
nação é composta de classes hostis cujos interesses sobre todas as questões são
opostos e incompatíveis. Desde então, o conceito de interesse nacional é um
estratagema burguês, destinado a diminuir os antagonismos de classe, a
prejudicar a solidariedade internacional da classe operária e a submetê-la à
dominação ideológica dos exploradores. A opressão nacional é uma função do
domínio de classe e desaparecerá com esta. A Revolução Russa confirmou a
crítica que Rosa Luxemburg fez a Lenin: em vez de ganhar as minorias não-
russas para a causa revolucionária, o direito de autodeterminação voltou-se
contra a Revolução pelos poloneses, finlandeses, lituanos e transcaucasianos.
Os bolchevistas deveriam ter defendido a integridade do Novo Estado que
tinha começado a Revolução Mundial e reprimido, com mão de ferro, as
tendências separatistas; em lugar disso, ofereceram a cada nação o direito de
autodeterminação, como se a nação tomada globalmente tivesse menos direito
de decidir seu destino. Pode parecer incrível que, no mesmo texto sobre a
Revolução Russa, Rosa Luxemburg defenda contra Lenin o sistema democrá
tico de governo e exija a maior democracia possível na Rússia, engajando
Lenin a sufocar firmemente o movimento nacional separatista, sem observar
que essas duas exigências se contradizem. Mas essa contradição é mais do que
um simples engano. Ela tem raízes na dificuldade fundamental da teoria
marxista.
Na realidade, o conflito de Lenin e de Rosa Luxemburg sobre esse ponto
reflete o conflito entre a mentalidade doutrinária desta e o gênio prático
daquele. A posição de Lenin foi sancionada pelo sucesso, mas existem razões
O Espírito Revolucionário 37
eles não como representantes das forças sociais anônimas, mas apenas como
indivíduos. Certamente, a individualidade não perderá seu caráter social;
pelo contrário, ela perderá o sentimento ilusório de sua situação atomizada no
mundo humano, já que esse sentimento não era mais do que o resultado da
contingência da vida a qual, por sua vez, resultava da alienação universal da
sociedade. A origem e a significação sociais da vida individual serão percebi
das imediatamente por cada um e as qualidades e talentos pessoais surgirão e
se propagarão como forças sociais, sem entrar em conflito com as necessida
des gerais. Em outras palavras, uma interiorização. completa da sociedade no
espírito de cada indivíduo — o sonho de Rousseau, de Fichte, dos Românticos
se realizará, enfim, não por uma volta à sociedade pré-industrial, mas pelo
fato de que a sociedade industrial atingirá suas conseqüências finais. Portanto,
se é verdade que Marx (contrariamentè ao que lhe foi censurado) não
imaginava a sociedade futura como baseada na indiferenciação dos indivíduos
obedecendo ao mesmo padrão, ele acreditava numa sociedade inteiramente
homogeneizada e isto, de duas maneiras: todas as formas sociais podendo
engendrar um conflito desaparecerão e todas as formas mediatas serão
abolidas nas relações sociais.
O que é verdadeiro para as formações “racionais”, que produzem a
sociedade de classes, vale a fortiori para as entidades “irracionais” tais como, a
família, a tribo, a nação. A destruição dessas formas é uma tarefa que a
sociedade burguesa já está realizando com sucesso. Esta sociedade leva a
racionalidade da vida (a racionalidade do interesse, é claro) a seu ponto
culminante. Ela rompe e esmaga sem piedade todos os laços tradicionais,
todas as lealdades e comunidades que não podem dobrar-se ao objetivo
primeiro e único da produção capitalista: o crescimento do valor de troca. O
capital ignora a identidade nacional e não se preocupa com lealdades nacio
nais, mesmo se chega a utilizar as fronteiras nacionais para seus fins momen
tâneos. Tanto de um lado como de outro da ordem social capitalista — o
capital e a classe operária — a pátria é um valor perdido; todas as relações
sociais são racionalizadas e internacionalizadas e nada indica que as velhas
comunidades tribais e nacionais serão restauradas no futuro.
A esse respeito, a sociedade burguesa cosmopolita e racional abre cami
nho para a ordem socialista. O socialismo não herdará somente técnica e
ciência, habilidade e inventividade da sociedade capitalista. Ele herdará
algumas de suas aquisições negativas: de uma sociedade livre de seus laços
irracionais, livre do jugo da tradição, tomando sua inspiração e sua “poesia”
no futuro e não no passado. Devolvido a seu status de ser genérico, o indivíduo
do futuro manterá sua solidariedade natural com a espécie inteira não por
cálculo interessado, já que nenhum conflito de interesse poderá surgir, mas
por um sentimento espontâneo de identificação com a humanidade.
Nesse sentido, Marx descreve o destino da humanidade, de acordo com a
tradição racionalista, como um mundo onde nada mais existe do que os
40 Leszek Kolakowski
filosofia social marxista: na ótica desta última, a sociedade deve ser considera
da unicamente em termos de interesses de classes, sendo o próprio conceito
de interesse nacional proveniente do interesse particular da burguesia. Essa
posição era tão puramente marxista quanto politicamente estéril. O revisionis
mo de Lenin que integrou a realidade nacional à estratégia revolucionária foi,
em grande parte, coroado de sucesso, graças à sua ausência de espírito
doutrinário e graças ao fato de que Lenin não hesitava em reprovar Marx, se a
experiência mostrasse que essa reprovação era no interesse da Revolução.
Repetindo mais uma vez: a maneira pela qual se interpretará a ilusão
racionalista do marxismo e sua incapacidade de assimilar a realidade nacional,
dentro de seu quadro conceituai, depende de outras considerações ideológi
cas. Que a comunidade nacional não tenha lugar na filosofia marxista, pode-
se ver aí a fraqueza dessa filosofia ou então a sua força — isto dependendo dos
critérios que se utiliza para avaliar o “sucesso” da doutrina. E precisamente
graças a essa contestação teórica da realidade nacional que o marxismo pôde
tão bem ser explorado como arma ideológica do império russo. Ele forneceu a
este último instrumentos conceituais, permitindo-lhe prosseguir sua opressão
nacional e sua política chauvinista sem recorrer necessariamente à freaseolo-
gia nacionalista: bastava-lhe apoiar-se em vários conceitos marxistas interna-
cionalistas tradicionais. Afirmando-se que o Estado Socialista, por definição,
não pode exercer nenhuma opressão nacional (do mesmo modo que ele não
pode ser agressor, explorador etc.), conferia-se ao império uma legitimação
nova e bem superior à antiga, valendo para qualquer política, inclusive a
opressão nacional. Dessa maneira, o poder ideológico do marxismo forneceu
ao império em declínio um instrumento perfeito de legitimação e ele tomou
assim uma significação histórica inesperada (inútil dizer que isto não era o que
queriam Lenin ou outros líderes revolucionários, mas tornou-se uma verdade
banal, depois de Marx, que a significação histórica das ações humanas pode
não ter nada a ver com sua significação intencional). Não há nada de novo
nem de surpreendente no fato de que grandes potências subjuguem
pequenas nacionalidades e se sirvam do nacionalismo dos pequenos povos
para lutar contra seus grandes rivais. O que é novo é dar a esta política o nome
de dialética marxista ou internacionalismo proletário. Essa mudança de nome
não é, entretanto, sem significação. Que a utopia racionalista da humanidade
unificada tenha que ceder até aqui ao poder das grandes divisões nacionais,
isto testemunha sua fraqueza; mas que as forças nacionalistas tenham sido
obrigadas a dissimular-se atrás da máscara dessa utopia, isto prova que a
última está mais forte do que nunca. Talvez òs homens não sejam e nunca
serão capazes de viver sem ter o sentimento de pertencer a comunidades
“naturais” ou“irracionais” (no sentido de Max Weber); mas mesmo se fosse
assim, seria possível, ao mesmo tempo, que eles não pudessem viver sem a
utopia de uma fraternidade universal.
Capítulo IV
OS INTELECTUAIS CONTRA O INTELECTO (1972)
cética. Mas essa crítica está longe de ter tido sempre o mesmo caráter social. A
crítica da razão pode ser o meio de defesa de um establishment com pretensões
ideológicas que deve se premunir contra o ceticismo racionalista. Ela pode
também ser a arma das classes oprimidas e não-instruídas que não têm acesso
aos instrumentos da discussão racional. O rigor intelectual, a lógica e a
própria instrução, sendo o monopólio de camadas privilegiadas, aparecem
muitas vezes para essas classes como um estratagema diabólico e pérfido e elas
opõem então, à ordem social existente, sua própria pobreza espiritual como
um signo de superioridade.
Cada establishment se premune contra a crítica mas não se serve para isto
de ideologias antiintelectuais. Cada crítica do establishment é aquela de uma
certa tradição consagrada, mas não contesta a tradição do racionalismo
universalista. Na história do cristianismo, encontramos numerosos exemplos
de um anti-racionalismo agressivo que aparece, ora como um instrumento de
resistência conservadora do aparelho dirigente contra a crítica dos intelec
tuais, ora como uma arma das classes exploradas iletradas que atacam a
ordem santificada e sua superestrutura cultural e intelectual. O cristianismo é
definido opondo-se à cultura secular e racionalista como um movimento de
homens não-instruídos que santificavam sua própria ignorância, como um
signo de um saber mais alto e de u..ia origem divina. Mas, ao mesmo tempo,
ele se definiu pela oposição ao particularismo judeu como um movimento de
pretensão universalista. A primeira variante ideológica do cristianismo, tal
como foi expressa nas Epístolas de São Paulo, continha ataques violentos
contra a cultura intelectual pagã assim como a crença na unidade fundamen
tal da espécie de instrumento de reconciliação com essa cultura. Desse ponto
de vista, a história do cristianismo é cronicamente ambígua: ela está consciente
de marcar uma descontinuidade radical com a cultura anterior, conservando
a crença na unidade da natureza humana santificada em Deus, e essa crença
favorece a aceitação da razão como instrumento universal. É por isto que a
assimilação da cultura grega começou cedo e que a hostilidade demonstrada
em relação à razão, que partilhavam todos os escritores que representavam “o
lado plebeu” da tradição cristã, coexistia, quase desde o começo, com o esforço
de adaptâção daqueles que procuravam na cultura pagã uma preparação
natural para a revolução sobrenatural e que adaptavam as idéias cristãs às
necessidades e ao nível das classes privilegiadas instruídas. Essa ambigüidade
— a crença na descontinuidade fundamental da cultura humana, interrompi
da de maneira miraculosa pela Ressurreição de Cristo, combinada com a
crença na bondade interior da natureza humana, o que implica uma aceitação
parcial da cultura pagã — está profundamente enraizada no cristianismo e
toda a sua história o confirma. No momento em que aparece uma nova
cultura urbana — tendo como conseqüência inevitável a emancipação dos
intelectuais — o establishment cristão começa por defender sua superioridade
antiintelectual sobre a sabedoria secular, mas acaba por assimilar essa sabedo
ria com uma habilidade extraordinária, e faz disso o seu próprio instrumento.
Na controvérsia do século XI, entre dialéticos e antidialéticos, podemos
O Espírito Revolucionário 45
observar essa situação com uma nitidez sem equivalente no futuro. Peter
Damiani escreveu, no pequeno tratado De perfectione monachorum, que monges
que estudavam a ciência secular eram semelhantes àqueles que deixam uma
mulher honesta por uma prostituta, e no tratado De sanctasimplicitate scientiae
inflanti anteponenda, constatou que o diabo foi o primeiro professor de
gramática, uma vez que ensinou a nossos ancestrais a empregar a palavra
“Deus” no plural (eritis sicut Dei). Havia aí uma intuição muito justa: quatro
séculos mais tarde, foram os gramáticos que estiveram na vanguarda da crítica
contra a tradição por suas análises filológicas da Bíblia; desde Antônio de
Lebrixa e Erasmo até Spinoza e Richard Simon, o trabalho deles foi um dos
fatores mais poderosos da corrosão ideológica do cristianismo e isto indepen
dentemente da multiplicidade de seus motivos respectivos.
Este antiintelectualismo declarado que defendia a tradição contra a crítica
racional enfraqueceu-se consideravelmente quando o cristianismo conseguiu
absorver e assimiliar, à sua maneira, a herança filosófica da Antiguidade,
sobretudo os recursos da lógica, e forjar a partir dela suas próprias armas.
Quando o princípio tomista, enunciando que a verdade da fé é supra non
contra rationem, prevaleceu dentro da Igreja, e quando percebeu-se que o
rigor lógico podia prestar serviço à ortodoxia tão bem quanto a seus críticos, o
irracionalismo militante tornou-se seguidamente uma arma dos movimentos
religiosos plebeus contra a “razão” sem Deus, aliada aos privilégios sociais.
Numa situação em que a instrução era um privilégio e em que a filosofia e a
teologia eram utilizadas para defender os privilégios, é natural que os movi
mentos reformadores e revolucionários das classes oprimidas tenham tomado
a forma de um ataque contra a razão. Os intelectuais que exprimiram esse
antiintelectualismo não faziam, em geral, oposição da razão com o desatino.
Mas, antes a razão humana pervertida do que a fé viva dos regenerados.
Savonarola estava persuadido de que uma mulher do campo sabia mais sobre
isso do que Platão e Aristóteles, já que ela sabia o que era mais importante e o
que era inacessível à sabedoria humana: ela conhecia o Salvador. Para Lutero,
aquele que tenta aplicar a lógica humana à Santa Trindade deixará de
acreditar nisso. Peter Gonesius, um ideólogo do antitrinitarismo polonês, era
de opinião que todo aquele que se dedica à dialética não tem mais valor do que
um turco, etc.
Os ataques da Reforma contra o valor da razão ficaram, muitas vezes,
limitados; não visavam à atividade intelectual em geral, mas sim ao método
escolástico que tenta justificar a fé por meios racionais, isto é, o uso da razão
em questões religiosas. A crítica realizada contra o intelecto, que procura
penetrar nos segredos divinos e pensa poder realmente compreender ou
justificar a verdade da fé, provinha da desconfiança fundamental da
Reforma, em face da natureza humana e das capacidades naturais do homem.
Ela se prendia à idéia da Igreja Democrática, de uma Igreja liberada da
separação entre o clérigo instruído e a massa ignorante dos crentes, que têm
necessidade de um mediador humano em sua comunicação com Deus; em
46 Leszek Kolakowski
pagão não podia ter razão, simplesmente como pagão, e que essa afirmação
pode dispensar provas, assim como o diabo é um mentiroso por definição e
que desde então ele mente mesmo quando diz a verdade. Simplificando,
pode-se dizer que a própria idéia da validade limitada da razão e, em
particular, as regras que deviam subtrair às questões religiosas da competên
cia da razão analítica, tiveram origem na cultura burguesa dentro do cristia
nismo moderno enquanto que as correntes plebéias do cristianismo são mais
antiintelectuais no sentido verdadeiro: elas negam a continuidade cultural e
rejeitam qualquer critério — intelectual ou moral — que seria universalmente
válido e independente da oposição paganismo/cristianismo.
A questão de saber se existem critérios universalmente válidos para todas
as sociedades de todas as épocas, permitindo avaliar as produções intelectuais,
é, como se sabe, uma questão que não é inteiramente ultrapassada. Hugo
Grotius, um dos espíritos mais eminentes da cultura burguesa cristã, escreveu
que existia uma teologia cristã, mas não cirurgia, geometria ou mesmo ciência
política cristã; formulava então um problema que devia ressurgir em nosso
século sob uma forma quase idêntica. A oposição pagã, assim como as
oposições “judeu/ariano”, “burguês/proletário”, “branco/negro”, presumida
sua aplicação não só na totalidade da cultura, mas principalmente nos valores
intelectuais, servem para pôr em questão a continuidade cultural do homem e
a unidade da espécie humana; a crença segundo a qual essas oposições ou
oposições análogas seriam válidas por toda a parte (é claro que algumas entre
elas são válidas para certos domínios da cultura) é uma das maiores ameaças
que pesam sobre a humanidade.
Certamente, uma oposição desse tipo não está ausente das primeiras
formas do socialismo: é a oposição entre cultura burguesa e cultura proletária,
ou melhor, entre a cultura das classes exploradas e a dos exploradores.
Existe uma semelhança impressionante entre a estrutura mental que se
pode encontrar no movimento anarquista do século XIX, em particular em
Bakunin e nos bakunistas, e a que se conhece segundo os diversos movimentos
cristãos plebeus. O pensamento de Bakunin não era isento de contradições
sobre esse ponto. Entretanto, sua idéia de uma “revolta da vida contra a
ciência”, seus ataques contra a universidade como baluarte da elite, sua
esperança no lumpen-proletariado como ponta de lança da revolução, tudo
isso forma um todo coerente. O anarquista polonês Jan Waclaw Machajski
(que escreveu sobretudo em russo) era mais radical ainda que Bakunin.
Afirmava que a idéia marxista do socialismo era o produto dos interesses
particulares da intelligentsia que procura tomar o lugar das classes privilegia
das existentes e deixar intacto o sistema da desigualdade e da exploração. Eis
porque a sociedade igualitária deve, antes de tudo, despojar a intelligentsia de
seu capital; o conhecimento.
O conhecimento, pois, sendo reservado a uma maioria privilegiada, é uma
arma que lhe serve para defender seus próprios privilégios. Podem-se
O Espírito Revolucionário 49
humana deva capitular diante de certas questões que a humanidade não quer
entender e às quais ela também não pode esquivar-se; que seja impossível
legitimar, por meios racionais, certas esperanças que são necessárias ao
gênero humano: que esse determinismo universal seja uma ideologia como
outra qualquer — de todas essas observações pode-se deduzir um apelo à
ruptura da continuidade cultural. Sorel pode somente apresentar um
exemplo da aberração a que são propensos os intelectuais, uma vez que
conseguiram se persuadir de que a solidariedade com as classes oprimidas
exige que eles admirem e não corrijam o que foi o maior infortúnio dessas
classes: sua incapacidade de participar do desenvolvimento da cultura
espiritual.
livre que uma minoria podia gozar porque era recusado à maioria.
Este fato, tão evidente hoje, não o era antes da guerra. E por isso que
tantos intelectuais — especialmente durante os anos da grande depressão e da
O Espírito Revolucionário 53
Hoje, à luz das pesquisas etnológicas do século XX, temos toda razão de
supor que certos esquemas de pensamento fundamentais são invariáveis
56 Leszek Kolakowski
pensar que o que parece falso, do ponto de vista dos pretensos critérios
universais de pensamento, pode ser verdadeiro ou pode se revelar uma
verdade mais elevada, na perspectiva dos valores supremos. Grupos forte
mente militantes — quer sejam religiosos ou políticos, quer se trate de um
establishment ameaçado ou de um movimento revolucionário — manifestam
muitas vezes essa tendência a negar qualquer forma de universalidade. Mas,
se todos os grupos à procura de uma ideologia que mostre esse antiuniversa-
lismo encontram intelectuais prontos para responder a essa demanda, parece
que isso pode ser explicado, em parte, pela posição social particular dos
próprios intelectuais. Em outras palavras, pode-se adiantar a idéia de que os
intelectuais não são simplesmente levados a exprimir tendências antiintelec-
tuais que surjam em diferentes meios: sua própria situação produz essa
tendência. Precisamente porque um aspecto importante da função social dos
intelectuais consiste em aceitar, como normas obrigatórias, esquemas de
pensamento universalmente válidos, eles são incapazes de constituir um
grupo que dê a seus membros esse sentimento de engajamento total ou de
dependência que podem dar origem a numerosos grupos religiosos ou
políticos. Em resumo, o que se chama comumente “alienação” dos intelectuais,
seu sentimento — muitas vezes descrito — de “desraizamento”, de não-
dependência, pode produzir necessidades ideológicas que se manifestam pelo
fato de que eles aderem a tendências antiintelectuais, em movimentos existen
tes, e lhes dão expressão’
meio de libertação).
Os intelectuais não são, de modo algum, chamados a governar o mundo.
Sua função mais importante é preservar e transmitir o bem acumulado da
cultura espiritual da humanidade como bem comum. Em outros termos, seu
trabalho tem um sentido unicamente se supomos que, a despeito de todas as
lutas e de todos os conflitos, a espécie humana participa de uma estrutura
intelectual essencialmente idêntica, que todos os conflitos do mundo não
destróem a continuidade e a unidade do esforço intelectual humano. Essa
idéia da universalidade da razão implica no conceito de verdade, como diferen
te do de validade aplicado aos valores, às instituições, às mitologias, à moral.
Isso não quer dizer que não se possa recorrer a certos critérios normativos de
validade, utilizados em outros domínios (no do mito, entre outros), mas ela
impede que estes substituam o critério de verdade. Resumindo, ela deve
substituir o pensamento pelo engajamento. Violar essa interdição representa o
que se pode chamar, com justa razão, de traição dos intelectuais. A idéia de
que a humanidade deveria se “libertar” de sua herança intelectual, criar uma
nova ciência ou uma nova lógica, “qualitativamente diferente”, abre o cami
nho para um despotismo obscurantista.
Capítulo V
A DITADURA DA VERDADE: UM CÍRCULO QUADRADO
(1972)
confissões rivais não é mais verdadeiro do que o seu oposto, e uma vez que o
único sentido dos dogmas consiste em levar os homens a adotar uma certa
conduta, é preferível para os seres humanos acreditar, em matéria religiosa,
em qualquer dogma imposto por decreto de Estado, ou pelo menos professar
sua crença nesse dogma. Hobbes não afirmava que era o sistema de governo
mais perfeito que se pudesse imaginar; como a maior parte dos teóricos
políticos, depois de Maquiavel, ele não procurava saber qual era o sistema de
organização social mais perfeito, considerado um conjunto de valores
abstratos; ele se perguntava somente qual, entre as formas políticas possíveis,
levados em conta os limites impostos por traços constantes da natureza
humana e as pressões materiais, era a que poderia garantir aos homens o
máximo de segurança. Ele tinha consciência de que a segurança pode, em
certos casos, ir contra a liberdade; que, de uma maneira geral, todo modelo
concebível de liberdade deve considerar o fato de que os valores humanos
limitam-se mutuamente e que, muitas vezes, não podemos privilegiar alguns,
em detrimento de outros. Spinoza e Locke eram, do mesmo modo, conscien
tes desse problema que, desde o século XVII, tornou-se uma verdade banal
que só as utopias totalitárias deixam de levar em consideração.
Que tais incompatibilidades existam não significa evidentemente que seria
justamente a liberdade que deveríamos sacrificar, em proveito de outros
valores. Pelo contrário, pretendo demonstrar a idéia de que renunciar à
liberdade faz diminuir as chances da maior parte dos outros valores sobre os
quais estaremos de acordo, pelo menos in abstracto. O que, por outro lado, não
implica que a liberdade só seria um valor instrumental e não um valor em si,
independente dos outros.
enunciadas. Como é sabido, é uma das diferenças essenciais (sem ser a única, é
claro) entre o conhecimento da sociedade e o dos outros fenômenos. A partir
daí, se deixarmos de lado o fato de que todas as razões, defendendo a
tolerância, são mais fortes nas ciências humanas do que em qualquer outro
campo (por causa de seu grau menos elevado de validade científica), a idéia
que só existe uma verdade toma, neste domínio, uma significação suplemen
tar. Não se trata de um enunciado de fato, mas de uma demanda que faz com
que a sociedade possa ser concebida de acordo com um único sistema de
categorias, de valores e de conceitos impostos de cima como “o único verda
deiro”. Pode-se dizer a mesma coisa da teoria pela qual só existe “um único
bem” que não pode tolerar as opiniões que lhe trariam um prejuízo qualquer.
Aquele que pretende que só o que é “justo” pode ser tolerado pressupõe
evidentemente que ele saiba com toda certeza o que é justo (tanto no domínio
da verdade como no dos valores) e que seu saber não pode ser questionado
sem colocar em perigo a “verdade”. Ele atestará, sempre, é claro,que não
reclama nenhum privilégio para si próprio ou para suas opiniões pessoais e
seus valores privados, mas unicamente para a verdade em si e para os valores
reais e “objetivos”. Somente, como fará para convencer os outros de que ele
não exige privilégios para si próprio ou para seu grupo particular, mas para a
“verdade” e os valores “reais”? No domínio dos valores e do conhecimento da
sociedade, ser um valor ou ser verdadeiro não independe do fato de que
alguma coisa seja reconhecida como valor e como verdade. Eis porque é
impossível que todos os homens se enganem sobre questões relativas ao
conhecimento científico, mas é fundamentalmente impossível que todos os
homens se enganem sobre questões relativas aos valores, a menos que admi
tam que uma razão transcendental ou uma revelação divina são irremediáveis.
Se algo é reconhecido universalmente como um valor, /um valor de fato; não
dispomos de nenhum outro meio de avaliação. Se existem divergências
essenciais, entre as comunidades humanas, sobre o que é verdadeiramente
um valor e o que não o é, não há tribunal supremo que possa resolver essa
controvérsia; em particular, não há “evidência” não-histórica, intuição husser-
liana ou platônica da essência dos valores. Com exceção, talvez, de algumas
pequenas comunidades primitivas, todas as sociedades humanas vivem em
choque de interesses opostos, e também não se pode mais esperar que seja
possível uma sociedade sem conflitos em que todos os interesses seriam
conciliados e em que ninguém poderia contrariar ninguém. As sociedades
diferem consideravelmente entre elas quanto às formas pelas quais esses
conflitos se manifestam, são institucionalizados e resolvidos. Na« sociedades
totalitárias, os interesses opostos e os conflitos não podem apresentar-se sob
forma institucional e a doutrina obrigatória implica a ficção da “unidade”;
mas essas sociedades não são menos atormentadas do que as outras por
conflitos que adotam somente modos de expressão muito mais confusos e
deformados. Nessas sociedades, uma das tarefas maiores dos grupos dirigen
tes é impedir o autoconhecimento da sociedade, isto é, aumentar a taxa da
falsa consciência.
O Espírito Revolucionário 65
Mas há uma terceira razão, que resulta da diferença, que acaba de ser
mencionada, entre o conhecimento do meio ambiente natural e o auto-
conhecimento da sociedade, isto é, o conhecimento social e político. Nas
condições sociais em que existem interesses e opiniões opostos, a ditadura de
uma opinião particular impede automaticamente o conhecimento que a
sociedade possa ter dela mesma e isto pelo próprio fato de que ela é uma ditadura e
não simplesmente porque é uma opinião “falsa”. A sociedade chega ao conheci
mento dela própria, expressando opiniões e valores que revelam sua estrutura
de “sociedade de conflito”. Como a validade do autoconhecimento da socieda
de depende parcialmente do fato de que esse autoconhecimento é expressado
66 Leszek Kolakowski
mos seus inimigos. É por nos preocuparmos com a liberdade que procuramos libertar a
nação daqueles que jamais mereceram esta liberdade." Ou ainda: "A liberdade de
espírito e de vontade de uma nação deve ser mais apreciada do que a dos indíviduos, e o
interesse vital superior da comunidade inteira deve exercer uma tutela sobre os
interesses do indivíduo e lhe impor deveres."Todas essas citações são de discursos
de Adolfo Hitler. Eu não as apresento para afirmar demagogicamente que,
como um bom número de idéias análogas podem ser encontradas na fraseolo
gia dos comunistas e da Nova Esquerda, a ideologia deles seria idêntica à de
Hitler. Apresento-as somente para chamar a atenção sobre o fato de que os
slogans do gênero: "nada de liberdade para os inimigos da liberdade”, "a verdade
vem antes do direito de criticar", "o interesse geral deve vir antes do interesse dos
indivíduos”, são tão vazios de conteúdo que as tiranias mais desumanas e mais
funestas podem facilmente utilizá-los como instrumento ideológico, principal
mente se aqueles que recorrem a isso não estão em condições de citar
princípios verdadeiros, baseados em critérios universais de pensamento que
poderiam justificar as pretensões de sua ideologia ao monopólio.
Não discutirei as objeções contra o princípio da tolerância que são
simplesmente infantis ou mentirosas, como aquela de que a tolerância signifi
caria que renunciamos a combater as opiniões e os movimentos que não
aprovamos — já que é claro que ela não significa isso, e que não se pode dar
um único exemplo da idéia da tolerância assim concebida; ou aquela que diz
que a idéia de tolerância exclui, em todas as circunstâncias, o uso da violência,
inclusive a violência que responde à violência; ou que a idéia de tolerância nos
incita a renunciar a qualquer forma de luta para uma melhor sociedade etc.
Aqueles que recorrem a tais objeções não podem fazê-lo de boa-fé; eles
mentem para eles mesmos e para os outros, combatendo uma teoria que
jamais existiu.
Existe uma outra objeção comum que afirma em geral que a aplicação do
princípio de tolerância nunca provou que as sociedades sejam capazes, graças
a esse princípio, de acabar com seus problemas sociais maiores, de eliminar as
desigualdades, os conflitos e as injustiças; e que, em segundo lugar, a
experiência histórica mostra que a prática do pluralismo político não impede a
sociedade de tornar-se a presa das forças sociais mais obscuras que a condu
zem à tirania. Esses argumentos são tão divulgados que seria válido demorar
mos um pouco nesse assunto, mesmo que seu valor argumentativo seja nulo.
É certo que a prática da tolerância e do pluralismo não garantem em nada a
solução de todos os conflitos e de todos os infortúnios, o que significa
simplesmente que a tolerância não é um remédio universal nem automatica
mente eficaz para todos os males do mundo. Mas isto não constitui um
argumento contra a tolerância, a menos que se consiga provar que esses
problemas e esses conflitos sociais insolúveis podem ser ou são, de fato,
melhor resolvidos sob uma ditadura — isso ainda é mais importante porque,
para discutir essa questão, não estamos reduzidos a especulações vazias e
podemos dispor de uma rica experiência histórica que vá incontestavelmente
O Espírito Revolucionário 69
contra uma tal hipótese. Não existe nenhum problema social importante que
poderia ser resolvido de maneira eficaz sob uma tirania e que seria insolúvel,
sob uma democracia pluralista. Quanto à segunda objeção, ela parece negar-
se a si própria. Dizer que a democracia não proporciona nenhuma garantia
que assegure que não será transformada um dia em uma tirania é certamente
correto — uma vez que não existe nenhuma garantia infalível nas sociedades
desde que elas saíram da estagnação econômica. Mas utilizar isto como
argumento contra a democracia significa que, já que a democracia não nos dá
nenhuma segurança contra a tirania, a própria tirania talvez nos dê a
segurança que procuramos.
Os ensaios que estão reunidos aqui não necessitam, segundo creio, ne
nhum comentário particular, Se me perguntassem qual é a idéia fundamental
que lhes é comum, eu diria que todos eles estão dirigidos contra o pensamento
utópico, ainda que não do ponto de vista de um “realismo” político, nem em
nome de uma filosofia da história hegeliana, pseudo-hegeliana ou pós-
hegeliana.
Eu discordo de três traços típicos do pensamento utópico: da crença de
que o futuro, de alguma maneira misteriosa, já teria chegado e nós estaríamos
em condições de alcançá-lo (e não somente de prevê-lo de modo incerto).
Também discordo da idéia de que nós disporíamos de um método de
pensamento e de ação seguro, suscetível de conduzir-nos a uma sociedade
livre de defeitos, de conflitos e de insatisfações. Discordo enfim da crença de
que saberíamos o que o homem é “realmente”, em oposição ao que ele é
empiricamente e àquilo que acredita ser — e que saberíamos em que consiste
sua “verdadeira natureza” em oposição à sua natureza empírica contigente.
Cada um desses três componentes da fé utópica é utilizado para fornecer-
nos a justificativa e a desculpa de qualquer barbaria. Seu equivalente na vida
privada é a atitude daqueles que não pensam senão em adquirir de uma vez só
um capital que deverá assegurar-lhe a tranqüilidade e a ausência de preocu
pações pelo resto de seus dias.
Há também, no entanto, aqueles que devem preocupar-se a cada novo dia
com seus meios de subsistência. E eu creio que a sociedade humana, tomada
em um sentido global, não gòzará jamais da situação de um capitalista a quem
um capital adquirido assegurasse, de uma vez por todas, uma vida tranqüila
até a sua morte. Ao contrário ela estará sempre na condição daquele que
trabalha diariamente para garantir a sua sobrevivência até o dia seguinte.
Os utopistas — entre os quais os marxistas ortodoxos — são pessoas que
sonham em assegurar à humanidade a situação de um capitalista. Eles estão
persuadidos de que este estado é tão desejável que nenhum sacrifício (e, em
76 Leszek Kolakowski
Por mais sugestivas que sejam, essas analogias são enganadoras, na minha
opinião, isto porque deixam escapar uma diferença fundamental que consti
tui a originalidade específica do pensamento marxista. Esta diferença
modifica o significado de muitas idéias que, tomadas separadamente, apre
sentam uma similitude espantosa com o socialismo “utópico” e ela faz
aparecer igualmente no socialismo de Marx o vestígio inapagado da fenome-
nologia hegeliana.
Este núcleo fundamental que determina a orientação específica do
marxismo nos é revelado quando meditamos sobre a seguinte questão: o que é
falso na afirmação, outrora corrente entre os críticos de Marx, de que o
marxismo está de acordo com “os objetivos” dos utopistas sem estar de acordo
com “os meios” que eles propõem? Esta afirmação é efetivamente errônea,
não porque Marx se propusesse outros “objetivos” ou visasse aos mesmos
“meios”, mas porque tentamos com tal formulação introduzir uma idéia
tipicamente marxista em categorias conceituais que lhe são estranhas. Marx
não adotou nunca o ponto de vista normativo que lhe teria permitido fixar
primeiramente um “objetivo” desejável para depois refletir sobre os meios
Marxismo: Utopia e Antiutopia 79
radical na Rússia e isto bem antes de sua fase marxista. Já na época de Nicolau
I, Vissarion Bielinski tentou reconciliar-se com a realidade política da autocra
cia que ele odiava em nome da racionalidade do real, pretensamente funda
mentado no princípio hegeliano e condenando, a priori, toda subjetividade
moralizadora. Em nome dessa subjetividade moralizadora e em nome do
valor absoluto da pessoa é que ele se revoltou em seguida contra seu próprio
masoquismo histórico. Seus escritos ficaram nos anais do movimento radical
russo como o exemplo de um pensamento oscilante entre o fatalismo desespe
rado e a revolta moral, entre a racionalidade do procedimento indiferente de
Weltgeist e a irracionalidade do sujeito contingente, entre o objetivismo e o
sentimentalismo. A mesma oposição reaparecerá mais tarde nas controvérsias
entre a “sociologia subjetiva” de certos populistas e o determinismo dos
marxistas. Segundo os primeiros (Michailowski, sobretudo), o pensamento
social deve começar por levantar questões sob a forma axiológica: “o que é
desejável, bom e útil?” e não “o que é historicamente necessário?” visto que
não há nenhuma necessidade histórica absoluta e que os processos sociais
dependem das atividades dos homens, logo do que eles desejam, Não somente
uma sociologia sem juízo de valores é impossível, mas também é perigoso
acreditar nisso, uma vez que contentar-se com uma análise dos fatores
supostamente necessários para a evolução é voltar a propagar uma atitude de
capitulação frente ao que se acredita inevitável. Os marxistas ironizavam essa
maneira de pensar, qualificando-a de utopia romântica. Uma vez que a
oposição “necessidade/subjetividade” teve como campo de aplicação principal
o problema da necessidade do capitalismo na Rússia, necessidade que havia
sido admitida por todos os marxistas, a ortodoxia marxista nascente, durante
o tempo em que foi dominada na Rússia pelas discussões com o populismo,
podia assinalar, sem reservas, o ponto de vista estritamente determinista sem
considerar o risco possível de uma justificação de passividade que ela poderia
provocar. Este risco, porém, não tardou a aparecer nas polêmicas dos ortodo
xos com o marxismo legal. No primeiro texto publicado de Lenin (1895), em
que criticava tanto o populismo como a crítica do populismo feita por Struve,
percebe-se claramente que ele tenta estabelecer uma diferença entre a atitude
do “objetivismo”, concebida como a de um observador impassível, e o ponto
de vista de um militante que aceita a fé determinista sem, no entanto, fazer
dela o pretexto de uma apologia do futuro tal como ele é. Lenin assinala —
depois de Plékhanov — que “o determinismo não somente deixa de incluir o
fatalismo, mas cria, ao contrário, a base para uma atividade racional”; ele faz
sua a afirmação de Sombart de que “não há um grão de ética ao longo de todo
o marxismo”, e ele busca opor o “objetivista” ao “materialista”, o primeiro
contentando-se em constatar as necessidades inelutáveis e o segundo, arris
cando-se a cair numa apologia do estabelecido, assinalando os antagonismos
das classes e indicando entre elas aquela que encarna a necessidade de cada
período histórico. Lenin crê que “o materialismo pressupõe o espírito de
partido, obrigando a tomar aberta e diretamente posição a favor de um grupo
Marxismo: Utopia e Antiutopia 85
“marxismo e leninismo”: esta última sugeriria, com efeito, duas teorias dife
rentes em lugar de uma só, considerando as duas fases de sua evolução. O
marxismo-leninismo nada mais é do que a doutrina filosófica e política de
Stalin com a crestomatia das citações de Lenin, Engels e Marx (pela ordem de
freqüência que é também a ordem de importância que ele lhes atribuía).
uma realidade. O reformismo é, pois, possível para ele; o sentido das refor
mas não é somente preparar a revolução: elas têm o seu próprio valor na
medida em que permitem melhorar, desde já, a vida operária. Para Marx, esta
questão está decisivamente resolvida: a luta econômica da classe operária não
tem outro sentido que o de ser o treinamento para a luta política final (cujo
objetivo, aliás, é a emancipação econômica do proletariado). Dessa maneira, se
não é verdade que Engels tenha aceitado o reformismo como uma estratégia
irreversível imposta à social-democracia para sempre, é verdade que ele
admitiu a possibilidade da vitória do proletariado, através de meios não-
revolucionários.
O comunismo, aos olhos de Marx, é a reconciliação da essência do homem
com a sua existência empírica, é a volta do homem a si mesmo, à sua própria
humanitas, a superação da tensão entre o que é o homem verdadeiro e o que
ele é na contingência de sua vida atual. Um tal retorno não é compatível com a
perspectiva engeliana do progresso indefinido. Por isso, para Marx, no
comunismo, a história e a consciência da história são a mesma coisa, o homem é
livre porque ele se domina a si mesmo, porque seu pensamento e o curso da
história coincidem completamente. Esta idéia não tem, é verdade, um conteú
do empírico muito claro, ela não se reduz, como em Engels, à visão de uma
sociedade sem divisão de classes que vive dentro de uma economia planifica
da. A visão de Engels do comunismo futuro não vai além das profecias dos
utopistas (ainda que delas se distinga, é claro, pela sua maneira de conceber o
papel do proletariado): trata-se de uma comunidade que domina a sua
própria produção e torna impossível a anarquia econômica, as crises, a
acumulação de riquezas e a miséria dos dois pólos da sociedade; comunidade
de iguais, num sentido bem-determinado de igualdade: em relação à proprie
dade dos meios de produção. Esta perspectiva não é suficiente para Marx:
para ele o comunismo é a supressão total e definitiva da desumanização do
homem, a apropriação completa da natureza e das forças humanas pelos
indivíduos associados, a abolição da diferença entre o sujeito e o objeto. A
consciência da classe operária é o homem desumanizado, chegando à com
preensão plena desta desumanização e superando-a no próprio ato de cons
ciência. Tendo abolido a história como um processo anônimo que obedece a
leis “objetivadas”, o proletariado torna sem sentido a oposição do que é
necessário ao que é livre. É pela conscientização revolucionária do proletaria
do que o curso da história torna-se livremente determinado pela consciência,
sem perder, no entanto, seu caráter essencial em relação à história passada
que criou as condições prévias da emancipação futura. Enfim, a necessidade e
a liberdade perdem sua significação oposta, no momento em que o proletaria
do consciente de sua missão histórica entra em cena. Esta reconciliação da
liberdade e da necessidade; esta tentativa de evitar a opção: utopismo arbitrá
rio ou culto da necessidade histórica, não parece compatível com o determi
nismo naturalista de Engels, nem com a sua definição da liberdade (a
liberdade equivale ao grau de compreensão das leis essenciais da natureza,
tendo em vista sua exploração útil pelo homem).
96 Leszek Kolakowski
4
A ortodoxia marxista da Segunda Internacional assimila, em grande
parte, o marxismo evolucionista de Engels. Nesta filosofia, o advento do
socialismo era garantido pelas leis irresistíveis do progresso; o socialismo se
apresenta como uma necessidade histórica, mas as condições que o tornam
inevitável devem amadurecer primeiro. As contradições do capitalismo de
vem atingir um nível tal que possibilitarão a revolução socialista do ponto de
vista do proletariado (Kautsky) ou tornarão simplesmente impossível a exis
tência do capitalismo (Rosa Luxemburg). O conhecimento das leis essenciais
da história é o instrumento indispensável da ação revolucionária; a ciência da
vida social não é diferente, quanto ao seu método, de qualquer ciência
natural. O movimento socialista na sua estratégia e na sua tática tem um
caráter científico, como toda tecnologia: ele se apóia no saber científico das
leis existentes na natureza das coisas. Esta filosofia social corresponde (como
bem o demonstrou I. Fetscher em suas análises) às duplas exigências políticas
da social-democracia, sobretudo, a social-democracia alemã. O partido, revo
lucionário em seu programa teórico e reformista na prática, poderia justificar
sua atitude de expectativa e sua posição bem-estabelecida dentro do jogo
político do estado burguês, apelando para a teoria do amadurecimento
econômico; esta teoria permitiria adiar indefinidamente todo o esforço de
preparação da ação revolucionária, até o momento vagamente definido em
que as condições econômicas atingissem o nível exigido (o trabalho de Berns-
tein foi uma tentativa para adaptar a teoria da social-democracia à sua política
real). Por outro lado, a idéia do socialismo científico no sentido referido (a
análise científica das leis sociais, funcionando da mesma maneira que as leis da
natureza, impõe a técnica das ações sociais e permite prever o desenvolvimen
to futuro da sociedade) correspondia às necessidades do partido dos funcio
nários, no qual é o organismo, intelectualmente qualificado, que decide sobre
a tática e a impõe às massas operárias; o socialismo científico assim concebido
não era mais que a autojustificação ideológica do partido dos manipuladores.
Podemos, pois, resumir a filosofia da social-democracia reformista em três
pontos principais: 1) o evolucionismo materialista; 2) a idéia do socialismo
científico — logo, a idéia do partido que concentra em si a consciência do
proletariado e a atribui aos operários; 3) a idéia da revolução que segue o
amadurecimento do capitalismo.
5
Os dois primeiros pontos passaram, na sua integridade, para a teoria
leninista. Lenin aceitou sem reservas a doutrina de Kautsky, de que a
consciência revolucionária deve ser trazida de fora — pelos intelectuais
detentores do saber científico — ao movimento operário, já que este não está
em condições de erguer-se , por suas próprias forças, acima da consciência
econômica e da luta econômica. Lenin rejeitou, ao contrário (pelo menos a
Marxismo: Utopia e Antiutopia 97
6
É esta filosofia dos funcionários políticos que subentende também a
reflexão de Lukács na sua História e consciência de classe, apesar de sua posição
francamente antiengeliana nas questões epistemológicas. Para Lukács, na
verdade, o conhecimento da vida social, onde objeto e sujeito coincidem
parcialmente, tem um caráter diferente do conhecimento da natureza e não
poderia ser considerado, como o queria Engels, como um prolongamento
deste último. A dialética não é um método indiferente em relação ao seu
objeto e transferível não importa em que campo. Ela é a consciência da classe
operária que supera a sociedade de classe no processo revolucionário e que se
suprime dessa maneira a si mesma como classe (conseqüentemente a idéia da
dialética da natureza é absurda). Só a classe operária é capaz de apreender o
processo social na sua totalidade e de direcionar todos os seus detalhes para a
solução final das contradições sociais. No desenvolvimento desta consciência,
o sujeito e o objeto da história tendem à identidade; a necessidade histórica
coincide com a ação livre; os dilemas da fatalidade e da liberdade, dos fatos e
do dever, desaparecem. A autoconsciência do proletariado, a consciência da
vida social como uma totalidade histórica, o próprio processo de superação da
economia capitalista tornam-se uma só realidade. Para o proletariado, não
existe lei social que é preciso conhecer primeiro para depois aplicar na ação,
não existe também um objetivo arbitrariamente proposto para o qual seria
necessário procurar os meios apropriados. A necessidade histórica se realiza
através da práxis revolucionária e não se encontra em nenhuma parte fora
dessa práxis ou antes dela. Por conseguinte, a autoconsciência do proletariado
é diferente da consciência empiricamente atribuída aos operários. Ela toma
corpo na organização do partido revolucionário, mediador indispensável
entre os movimentos espontâneos parcelares dos operários e a totalidade do
vir-a-ser histórico. É graças a ele que o conhecimento do mundo e a sua
transformação se identificam na práxis política. Para Engels, ao contrário, a
idéia da práxis que confirma a validade das hipóteses deixa intacta a oposição
entre o sujeito e o objeto do conhecimento e eterniza, por assim dizer, o
caráter contemplativo do ato cognitivo. É querer submeter o saber histórico às
regras metodológicas das ciências.
Embora Lukács se oponha, sem equívoco, a toda teoria da consciência-
reflexo, a toda epistemologia que reduz o conhecimento à percepção particu
lar e passiva das coisas, ele quer escapar, ao mesmo tempo, do relativismó e do
subjetivismo genérico. A verdade não é relativa ao homem enquanto espécie,
nem enquanto indivíduo, nem mesmo enquanto classe. No conhecimento do
Marxismo: Utopia e Antiutopia 99
8
Acabo de descrever suscintamente as quatro versões da filosofia marxista
surgidas no século XX, antes do esmagamento de todo pensamento marxista
pelo stalinismo. Há outras ainda, mas só considerei aquelas que me pareceram
mais importantes no legado ainda vivo do mundo marxista. Vamos resumir as
oposições.
1) Sobre a questão das relações entre a história da natureza e a história
humana, a função do conhecimento e o sentido da práxis:
a) naturalismo evolucionista, a história humana como prolongamento da
história da natureza, o conhecimento como “reflexo” das coisas, a práxis
como método de verificação (Kautsky, Lenin);
b) separação do homem e da natureza, diferença essencial entre as ciências
e o conhecimento dos fenômenos sociais, sendo que este último tende
para a identidade sujeito-objeto (Lukács);
c) subjetivismo genérico, história da natureza em relação com a história
humana, a práxis coletiva como sistema final de referência para inter
pretar o valor do conhecimento (Gramsci).
2) Sobre a questão da consciência de classe do proletariado:
a) a consciência efetiva do proletariado como fator determinante da política
socialista; o socialismo como resposta à experiência vivida pelos operá
rios; o partido político como expressão e articulação dos desejos reais
(Gramsci);
102 Leszek Kolakowski
revolução teórica de Marx” (LC II, p. 161), “a prodigiosa riovidade” (LC II, p.
12) de sua descoberta ou a “revolução teórica total” que sua teoria realizou.
Marx, segundo Althusser, transformou o próprio objeto da economia política.
Xo capítulo dedicado a essa questão, Althusser critica a definição da economia
política dada pelo Dicionário de Lalande; ele sustenta que os economistas
burgueses reduziram os fenômenos econômicos às necessidades humanas e
assim produziram uma ideologia antropológica que era igualmente caracterís
tica dos primeiros escritos de Marx. Para Althusser, não são os seres humanos
o objeto da economia política. As relações de produção não são redutíveis a
relações intersubjetivas: ao contrário, são elas que definem as funções sociais
dos indivíduos. Não são também os seres humanos o sujeito dos processos
econômicos e sim a distinção dos papéis e das funções na produção (LC II,
cap. VII e VIII). (É isso talvez que relaciona Althusser ao estruturalismo, na
medida em que esta teoria, segundo uma fórmula freqüentemente citada e
não muito clara, enuncia que o sentido está nas relações, sendo os termos das
relações indiferentes ou “convencionais” do ponto de vista do sentido). Esta
explicação é surpreendente por duas razões. È sabido que em O Capital Marx
trata dos processos de produção “anônimos” e anuncia que considerará os
seres humanos como os portadores ou as encarnações de algumas tendências
econômicas que funcionem independentemente da vontade e das intenções
dos indivíduos. Não é uma regra que precede a análise do capitalismo, mas
simplesmente a repetição, sob outra forma, de uma idéia que aparece no
pensamento de Marx em várias oportunidades, a começar pelos Manuscritos de
1844'. na sociedade capitalista, os indivíduos humanos estão na realidade
diluídos nas leis anônimas do mercado, a sociedade lhes impõe um lugar
especial no processo de produção e priva-os de sua individualidade. Esse
processo escrito mais tarde no marxismo como uma forma de “reificação”,
representa simplesmente para Marx um fenômeno real da produção capitalis
ta e nesse aspecto a diretiva de O Capital reproduz de maneira exata a idéia
dos Manuscritos de 1844. Do mesmo modo, aparece em O Capital a idéia
original do socialismo como volta à individualidade de que os homens — tanto
operários como capitalistas — foram despojados, numa sociedade dominada
pelo valor de intercâmbio. Por esse motivo, em O Capital, Marx contrapõe a
propriedade individual socialista à propriedade privada capitalista (O Capital,
vol. I, cap. 24, §7). Por isso ele repete em diversas oportunidades suas
observações antigas sobre a desumanização do operário, transformado em
mercadoria; por isso ele se refere à alienação inevitável dos produtores em
relação ao seu produto. Logo, se a “prodigiosa novidade” de sua descoberta
está na idéia de que, na economia capitalista, os indivíduos humanos não
aparecem como indivíduos mas como as encarnações de categorias abstratas
— esta descoberta data de 1843. Se Althusser, porém, a considera como uma
regra universal que nos autorizaria a fazer abstração dos seres humanos
durante toda a pesquisa, então uma tal regra não existe na obra de Marx. Se ela
existisse, seria um simples testemunho de que Marx seria ainda mais depen
dente de Hegel do que geralmente se admite (enquanto Althusser procura
110 Leszek Kolakowski
mostrar que esssa dependência está totalmente ausente das obras “de maturi
dade” de Marx).
Essa crítica da economia política “antropológica” que reduz os processos
econômicos às necessidades humanas é um exemplo, entre mil , dessas
fórmulas vagas que Althusser emprega para levar à lona um adversário
inexistente. Se essa teoria significasse que o conhecimento de certas necessida
des universais seria um fundamento suficiente do qual se poderia deduzir as
leis econômicas para todas as épocas, ela seria de um absurdo espantoso. Só
que ninguém jamais sustentou isso. Se, por outro lado, ela significa que as
necessidades humanas são simplesmente a condição necessária de todo pro
cesso econômico, é uma verdade banal que Marx, diga-se de passagem, repete
em O Capital onde afirma que o valor do uso de todo produto é a condição
necessária (mas não suficiente) de seu valor de intercâmbio.
Althusser explica a “revolução científica” de uma outra maneira. Conside
rando o prefácio de Engels ao segundo volume de O Capital e algumas
observações do próprio Marx, ele procura demonstrar que ao elaborar o
conceito da mais-valia, que Ricardo conhecia somente sob formas particulares
sem tê-la generalizado em uma noção única, Marx fez uma descoberta
comparável a de Lavoisier ou a de Galileu. Poi , da mesma maneira que
Priestley descobriu o oxigênio, mas foi incapaz de conceituar essa descoberta
porque se achava prisioneiro da teoria do flogisto, a economia clássica
descobriu a mais-valia, mas carecia do conceito necessário para dar a essa
descoberta uma significação teórica e perceber a sua importância. Logo, Marx
representa para Smith e Ricardo o que Lavoisier representa para Priestley,
pois, efetuando a conceitualização generalizada de suas descobertas parciais,
ele revolucionou toda a ciência da economia política4.
conveniências sociais bem evidentes: uma certa parte da mais-valia deve ser
empregada para aumentar os estoques de produção já existentes, se quiser
mos que a produção material cresça; outra parte deve servir para pagar
aqueles trabalhos que, embora não criem valor, são socialmente indispensá
veis (como os trabalhos administrativos ou os serviços); uma terceira parte
deve assegurar a subsistência da camada não-produtiva da população (velhos,
crianças e inválidos); e uma última parte deve constituir reservas para o caso
de uma privação inesperada. Conseqüentemente, se o fato de que ò
trabalhador não recupera sob a forma de salário o equivalente total dos
valores de trabalho que ele criou, definisse por si só o fenômeno da
exploração, seria evidente que a exploração não poderia jamais ser abolida e
que a palavra de ordem “abolição da exploração” seria uma quimera.
Por outro lado, seria ainda mais difícil sustentar a idéia de que, nos países
socialistas, as diferenças de renda resultariam das diferenças do valor do
trabalho realizado pela comunidade. Até um certo ponto (somente até um
certo ponto) esse princípio é válido para os operários que trabalham num
mesmo setor de produção; mas ele vale também nas sociedades capitalistás
onde, no caso dos trabalhadores assalariados, o princípio “a cada um segundo
seus méritos” é mais respeitado que numa economia planificada socialista. Por
outro lado, quando se trata dos trabalhos que, segundo Marx, são improduti
vos, mas socialmente indispensáveis, não existe nenhuma regra que permita
avaliar sua utilidade social ou comparar seus resultados. Sob esse ponto de
vista os quadros superiores dos grandes trustes americanos bem como os
burocratas dos regimes socialistas podem pretender que suas rendas elevadas
sejam a retribuição dos trabalhos indispensáveis que realizam na produção.
Portanto, se em um sistema socialista, como diz Marx, o valor criado por um
operário e que não retorna sob a forma de salário retorna, pelo menos, à
Marxismo:Utopia e Antiutopia 125
dos Utopistas e para o próprio Locke, o Paraíso Perdido a que o homem podia
e devia retornar, se não quisesse perder sua humanidade. Esta idéia foi
retomada, sem grandes modificações, por Rousseau e pelos socialistas do
começo do século XIX, por Proudhon e sobretudo por Moses Hess, e enfim
por Marx. A filosofia de Marx sobre o dinheiro, constituída essencialmente
sob a influência de Hess, nada mais é que uma formulação mais precisa das
idéias diretrizes de praticamente todos os socialistas dos três séculos preceden
tes. Marx reinterpreta nessa perspectiva e de uma nova maneira, a distinção
herdada de Smith e de Ricardo, entre o valor do uso e o da troca das
mercadorias. O valor do uso, ou seja, a soma das propriedades físicas que
tornam as coisas úteis para nós, pertence à própria coisa, trate-se ou não de
uma mercadoria trocada no mercado. O valor da troca é uma característica
que não se assenta sobre a coisa em si mesma nem sobre suas propriedades
físicas, mas aparece como relação social durante a troca de mercadorias. O
valor da troca só se manifesta na confrontação de mercadorias, como relação
mensurável entre as diferentes quantidades de trabalho que foram necessá
rias para produzir as coisas.
Até mesmo pelo tom, essas frases poderiam sair da pena de Rousseau, de
Fourier ou de qualquer outro moralista do começo do Século XIX. No
entanto, contrariando esses autores e outros da mesma tendência, Marx
136 Leszek Kolakowski
que pode, pois, significar a “necessidade” em geral? Essa pergunta brota com
uma urgência especial em razão da opinião generalizada de que nossa
civilização seria um mundo de “necessidades artificiais”, criadas sob a podero
sa influência da publicidade e do esnobismo. Esta teoria das necessidades
artificiais é encontrada, pelo menos, em Rousseau. Ela também se encontra
em Marx; é particularmente popular, em nossos dias, independentemente ou
não dessa tradição. Marcuse a defende com paixão. Ora, ela é de estranha
ambivalência: é aceitável, em princípio, e, no entanto, é inadmissível como
regra prática. É aceitável nesse sentido elementar de que cada um de nós pode
citar inúmeros produtos dos quais poderíamos nos abster de produzir sem
dano para a humanidade e que, no entanto, são vendidos em função da
publicidade: qualquer catálogo de uma grande firma de venda por correspon
dência nos serve de prova irrefutável. Por outro lado, uma necessidade é um
fenômeno puramente subjetivo, o que significa que o fato de que uma
necessidade existe e a consciência dessa necessidade, são a mesma coisa. Se
temos o sentimento de “necessitar” de alguma coisa, ninguém nos convencerá
de que nossa necessidade não seja real, mas somente aparente. Podemos
afirmar que algumas necessidades são danosas àquele em que se manifestam
ou nocivas à sociedade, ou melhor, temos o direito de fazer qualquer coisa que
impeça sua satisfação. Não podemos, no entanto, afirmar por isso que não
sejam necessidades reais, e sim imaginárias. Um drogado, por exemplo,
precisa realmente da droga, esta não existe apenas na sua imaginação.
Podemos dizer que a satisfação de certas necessidades deve ser proibida, por
razões sociais (um sádico também “necessita” provocar o sofrimento). Não
podemos, porém, pretender dispor de critérios que permitam distinguir as
necessidades“naturais” das “artificiais” — salvo se consideramos como “natu
rais” somente as necessidades fisiológicas elementares, imprescindíveis à
subsistência: a necessidade de alimento, de proteção contra o meio ambiente,
de satisfação sexual. Nesse caso, a teoria das necessidades naturais levaria
inequivocamente a propor a volta à idade da pedra. De outra maneira, quem
deveria determinar, e segundo que critérios, quais as necessidades que devem
ser consideradas naturais e quais as artificiais? Quem, por exemplo, ousaria
afirmar que a necessidade de viajar está incluída entre as necessidades
“artificiais” e é despertada pela publicidade das companhias aéreas e dos
hotéis? Todas as necessidades estéticas não são artificiais já que se autonomi
zam ao longo da evolução histórica e querem ser satisfeitas por si próprias,
mesmo se, no começo, só fossem úteis à satisfação de outras necessidades e
não fossem indispensáveis à vida. Poderíamos igualmente afirmar que a
necessidade de liberdade é artificial, que ela é inoculada pela propaganda
política. O mesmo poderíamos dizer para a necessidade de uma vida privada.
Quem declara que certas necessidades são artificiais deve citar os critérios em
que se baseou para distingui-las das “verdadeiras” e para isso deve dispor de
uma teoria da natureza humana que enuncie aquilo a que o homem tem,
autenticamente, direito ou aquilo que é favorável a seu desenvolvimento. Ele
deve também enunciar que necessidades são imaginárias. Tal decisão só pode
Marxismo: Utopia e Antiutopia 139
desses desejos exclui o outro. Nosso desejo de uma sociedade perfeita, unido
à convicção de que dispomos dos meios para realizá-la, é perigoso e só pode
engendrar formas de vida anti-humanas e caricaturas do ideal perseguido.
Todas as tentativas para estabelecer o paraíso na terra levam antes a uma
forma de inferno. Assim, é mais válido reconhecer nossa imperfeição inelutá
vel, como ensinam a maioria das religiões tradicionais, e moderar nosso desejo
de aprimorar o mundo, conscientizando-nos de que o mundo não pode ser
aprimorado a ponto de atingir a perfeição. De outro lado, acreditar que
possamos vir um dia a satisfazer todas as nossas necessidades representa outra
ilusão que ameaça os próprios fundamentos de nossa existência. A satisfação
total significa a morte de toda atividade criadora; quando aspiramos à
satisfação total, aspiramos à morte de todas as fontes de energia criadora de
nossa espécie. Semelhante esforço, no entanto, é vão, pois nossas necessidades
podem multiplicar-se infinitamente e o dinheiro tem, na realidade, esse poder
mágico de aumentá-las além de qualquer limite. O resultado é que nossas
necessidades ultrapassam sempre a possibilidade de satisfazê-las. Nas socieda
des mais ricas e mais desenvolvidas, a distância que separa o conjunto das
necessidades das possibilidades de satisfazê-las não parece menor que nas
sociedades primitivas. Ao contrário, pode acontecer que um dia as sociedades
hiperdesenvolvidas transponham o umbral da insatisfação subjetiva e atinjam
uma dimensão em que a vida se tornará impossível. Deste ponto de vista, a
maioria dos valores religiosos tradicionais parece ser o instrumento mais
eficaz para canalizar a propensão mórbida às necessidades materiais e efetuar
uma mudança na hierarquia das necessidades. Eles nos ensinam que a
satisfação completa não é possível em nenhum domínio, mas que os valores
mais caros ao homem devem ser encontrados no caso em que os bens
humanos não sejam propriedade privada, isto é, quando “ter alguma coisa’’
não leva a excluir que os outros também possam tê-la. As religiões poderiam
nos habituar a renunciar sem dor à profusão e fazer-nos voltar para as
questões mais profundas de nossa existência. Essas observações parecem
ingênuas, mas diante de um mundo que poderia brevemente perecer, não
devemos evitar as perguntas e respostas ingênuas sobre os problemas que
poderiam decidir nossa própria vida. Não há valor de que dependa hoje nossa
sobrevivência que não possamos encontrar nas grandes religiões.
Como todas as invenções humanas, o dinheiro serviu também ao aniquila
mento do homem. Isso não significa que possamos dispensá-lo, como o
afirmam aqueles que acreditam num paraíso terrestre. Também não somos
obrigados a nos inclinar diante de seu poder com um sentimento de impotên
cia, como o querem os partidários do velho liberalismo. Ninguém nos obriga a
escolher entre a crença na possibilidade de uma sociedade perfeita e a atitude
igualmente perigosa de aceitar cegamente o funcionamento automático de
tudo o que nossa sociedade produzir. Podemos imaginar uma sociedade
humana que não seria perfeita mas apenas tolerável e que não seria somente
produzida por uma transformação institucional, mas exigiria uma mudança
de atitude espiritual — e isso é bem mais difícil e mais raro do que uma
146 Leszek Kolakowski
revolução política. Não afirmo que uma mudança desse tipo acontecerá,
necessariamente, nem que será ditada por quaisquer leis históricas; afirmo
que ela é possível, e que os outros meios de adaptar nossa ordem social a nosso
nível de desenvolvimento técnico fazem pairar sobre nós a ameaça de uma
escravidão totalitária.
Capítulo VI
O SOCIALISMO BUROCRÁTICO PODE SER REFORMADO?
(1971)
Teses sobre a esperança e o desespero
sões econômicas e a ameaça de uma expropriação parcial. Por esse fato, elas
seriam condenadas antecipadamente ao fracasso.
2) O sistema teria a tendência natural de diminuir constantemente a
função dos peritos, principalmente na política econômica, social e cultural.
Comissões de especialistas não seriam toleradas a não ser que elas renuncias
sem a qualquer tomada de decisão e ainda assim o seriam com uma extrema
reticência. Tanto quanto possível, seriam eliminadas ou substituídas por
órgãos simulados, compostos em função do critério da servidão política. Se
uma função efetiva real fosse dada aos especialistas nas tomadas de decisões, a
extensão do poder da classe dominante seria reduzida na mesma proporção.
A indolência, o desperdício das energias sociais e dos meios materiais, assim
como o poder dos ignaros seriam, por assim dizer, um elemento constitutivo
do mecanismo de dominação e não poderiam ser considerados como faltas
passageiras e reparáveis no futuro. Este mecanismo não toleraria que critérios
puramente “técnicos”, isto é, que não servissem à manutenção e à consolida
ção do poder existente, pudessem exercer uma influência sobre este poder.
3) A liberdade da informação, condição indispensável ao funcionamento
tanto da economia quanto do ensino ou da cultura, seria inconcebível sem
uma destruição de todo o mecanismo político: este, de fato, deveria obrigato
riamente sucumbir a curto prazo, a um afluxo não-controlado de informa
ções.
O projeto de uma informação em circuito fechado, acessível apenas aos
dirigentes e dosada segundo a posição de cada um na hierarquia política, seria
também irrealizável. Mesmo se, dessa vez, os dirigentes não quisessem mais
mentir para eles próprios e se esforçassem para obter uma informação não
falsificada, seria inevitável que eles fossem desinformados e que fossem
vítimas de suas próprias mentiras. Certamente já passaram os tempos em que
Stalin podia livrar-se de uma estatística, não muito agradável para seu gosto,
ao liquidar os estatísticos e informar-se sobre a vida nos kolkhozes*, vendo
filmes sobre eles. Que a desinformação mais grotesca tenha desaparecido, isto
não mudaria em nada o fato de que a desinformação dos dirigentes seria um
elemento constitutivo do sistema.
Isso resultaria, pelo menos de dois elementos.
Primeiramente, os fornecedores da informação em circuito fechado se
riam, na maior parte do tempo, aqueles mesmos que, nos escalões inferiores
do Qrganismo dirigente, tinham a responsabilidade das questões de que
teriam de prestar contas. A regra geral — e não a exceção — seria que uma
informação desagradável equivaleria a uma autodenúncia, o que normalmen
te não se pode esperar dos homens. A transmissão de informações lisonjeiras
seria recompensada enquanto a das informações desagradáveis seria sancio
nada. Esse sistema se estenderia naturalmente a todas as categorias de
exploração agrícola coletiva na URSS. N. T.
150 Leszek Kolakowski
que ele não pode transferir para nenhuma síntese e que contrariam inevita
velmente seu fechamento sobre si. Essas contradições não têm tendências a
diminuir, mas sim a aumentar.
Todos os mecanismos mencionados acima, e cuja própria existência
parece justificar a idéia de que o despotismo socialista não poderia ser
reformado, estão efetivamente funcionando nesse sistema. Pudemos observá-
los por várias vezes, e todos os que vivem aí os têm constantemente presentes.
Eles revelam qual é a tendência natural do sistema que, de maneira funda
mental, é dirigido contra a sociedade trabalhadora. Dessas observações resulta
que, se o mecanismo do poder burocrático funciona sem nenhuma resistência
da parte da sociedade, ele engendra infalivelmente todos os fenômenos
descritos antes, sob formas sempre mais intensivas e acaba por juntar-se ao
modelo ofwelliano. isto não implica que não possa existir nenhum contrapeso
a essas tendências. A resistência pode limitá-las e enfraquecê-las, o que não
conduziria a uma sociedade perfeita, mas a uma forma de organização
socialista, ao mesmo tempo viável e suportável.
O ponto de vista reformista seria absurdo se ele baseasse suas esperanças
na boa-vontade da classe exploradora, na filantropia do organismo político ou
ainda num funcionamento automático do sistema. Mas não é de modo algum
absurdo, se o concebemos como a idéia de uma resistência ativa que explora as
contradições imanentes do socialismo burocrático.
Todas as particularidades do socialismo burocrático que acabaram de ser
descritas indicam claramente que ele tem como tendências imanentes o
reforço contínuo do poder policial, a desintegração e a desmoralização da
sociedade, a fraqueza de rendimento da economia, estabelecida em sistema, e
a perpetuação de todas as características da existência social, tendências que
pesam cruelmente na vida da população ativa. Mas, sob este aspecto, acontecia
o mesmo com a economia capitalista a qual foi objeto de análise de Marx.
Todas as tendências dessa economia, no domínio da produção e da vida social,
Marx não as criou arbitrariamente pelo pensamento, mas deduziu-as de uma
observação rigorosa da sociedade. Ele tinha razões fundadas para supor que a
polarização crescente das classes, a pauperização absoluta do proletariado, a
baixa progressiva da taxa de lucro, a anarquia e as crises periódicas de
superprodução eram tendências inerentes ao capitalismo; para supor também
que todas as reformas realizadas no quadro desse sistema não podiam ser
duráveis porque essas leis fundamentais, provocadas pela “fome desenfreada
da mais-valia”, não podiam ser abolidas dentro do capitalismo; é por isso que
o sentido autêntico das reformas reside, para ele, em sua significação política,
no fato de que o proletariado exercita-se, no decorrer das lutas, e consolida
sua solidariedade de classe necessária para a luta final.
Marx conhecia evidentemente todas as contratendências que enfraque
cem as leis de acumulação capitalista da qual a mais importante — mas não a
única — é a resistência da classe operária. A força dessas tendências e
154 Leszek Kolakowski
3
Se reclamo da idéia “reformista” não é porque eu gostaria que se pudesse
definir o reformismo como um meio “legal”, em oposição aos meios “ilegais”.
Essa distinção é inaplicável quando não é o direito que decide o que é legal e
ilegal, mas sim a interpretação arbitrária de leis nebulosas, pela polícia e pelo
partido.
Num país em que os dirigentes podem prender e condenar, como bem
quiserem, cidadãos por guardar um livro proibido, por ter participado, em
círculo restrito, de uma conversa sobre questões políticas, por ter contado
piadas ou por ter expressado uma opinião dissidente numa carta particular, o
conceito da legalidade não tem mais nenhum sentido. O melhor método para
lutar contra a repressão de tais “crimes” é multiplicá-los em massa. Refiro-me
a uma orientação reformista, no sentido em qye creio na possibilidade de
pressões parciais e gradativas que podem ter uma ação, a longo prazo, na
perspectiva da libertação nacional e social. O socialismo despótico não pode
ser considerado como um sistema absolutamente rígido: tais sistemas não
existem.
Este sistema provou, no decorrer dos últimos anos, que era capaz de uma
certa maleabilidade num domínio fundamental: o da ideologia oficial. A
amplidão da dominação ideológica já reduziu-se consideravelmente: já chega
mos ao ponto em que os funcionários do partido não têm necessidade de
saber mais sobre medicina do que os professores de medicina, e sobre filologia
do que os filólogos. É claro, eles continuam a saber mais sobre literatura do
que os escritores. Mas, mesmo nesse domínio, houve algumas mudanças
irreversíveis na Polônia.
amanhã outro preço contra acusações soantes e pesadas. Aqueles que com
pram seus miseráveis privilégios, guardando silêncio sobre a infâmia, deverão
pagar amanhã esses mesmos privilégios tomando parte ativa na infâmia. Uma
das leis naturais do despotismo é a inflação moral que tem como conseqüência
a elevação, cada vez maior, dos preços, exigida pelos vendedores se a pressão
social não os obrigar a fazer reduções.
Não é talvez uma perspectiva agradável, mas ela também não é quimérica,
diferente das perspectivas que nos fazem esperar um milagre, ou o milagre de
uma ajuda exterior, ou o miraculoso conserto automático de um mecanismo
bloqueado e entregue à sua própria inércia. O importante é que os meios de
pressão contra o sistema estão aí, numa proximidade palpável quase à
disposição de cada um. Eles consistem em tirar as conseqüências dos imperati
vos morais mais elementares que nos proíbem de deixar passar baixezas em
silêncio, de fazer mesuras diante dos senhores e de mendigar esmolas humi
lhantes. É da nossa própria dignidade que retiramos o direito de pronunciar
em voz alta as palavras “liberdade”, “justiça” e “Polônia”.
índex das Fontes
O ESPÍRITO REVOLUCIONÁRIO
que abranja tudo e prescreva o que se faz em todas as situações. Há para ele,
como ser humano, uma tensão permanente entre o pensamento e a vida, que
procura reduzir a favor tanto de um puro pensamento teórico, separado de
qualquer raiz corporal e histórica, quanto da ilusão perigosa de uma vida
imediata em que seríamos enfim libertados do pensamento.
Seus primeiros textos, publicados entre 1949 e 1954, eram inspirados por
um marxismo totalmente ortodoxo. Tratava-se de trabalhos polêmicos de
crítica filosófica, dirigidos contra dois pontos principais: a Igreja Católica (e
sua filosofia, isto é, principalmente o realismo de São Tomás) e a filosofia
convencionalista de Adjukiewicz. À primeira ele faz críticas racionalistas
tradicionais: ela despoja o homem da confiança em sua própria razão, leva-o a
se submeter cegamente à Revelação e priva-o de sua capacidade de transfor-,
mar a ordem social. Ele critica a segunda de resultar, por seu relativismo
epistemológico, em um agnosticismo que pode tornar-se, sem dificuldade,
uma ideologia da resignação, uma “filosofia da não-intervenção’’ (esta crítica
se apóia no “Materialismo e empireocriticismo” de Lenin).
Poderíamos imaginar, como ocidentais ignorantes da Polônia, que lá se
era “naturalmente” marxista nos anos 50. Ora, esse não era o caso: o
marxismo, na Polônia, era apenas uma corrente de pensamento entre outras
tão ou mais importantes, em particular o empirismo lógico (do qual Kolakows-
ki recebeu a formação). Assim, o engajamento filosófico de Kolakowski ao
marxismo representava uma escolha, uma escolha de alguma coisa feita a partir
de outra coisa (isto implica que um pensador não se identifica jamais totalmente
com suas posições filosóficas particulares). É, pois, válido perguntar-se o que
ele buscava no marxismo, a que questões filosóficas fundamentais (formulá
veis em termos filosóficos gerais que não são simplesmente a linguagem de
uma escola) ele procurava responder. Em outras palavras: qual era sua
impulsão inicial? Procedendo-se desse modo, podemos discernir uma continui
dade na evolução de um pensador: a de uma mesma interrogação fundamen
tal, através de respostas múltiplas que lhe são dadas. Esta impulsão reside,
achamos, na questão da liberdade humana;8 Kolakowski considerava, nesta
época, o marxismo como uma filosofia da liberdade que visa realizar a
emancipação do homem contra todas as formas de opressão. Tentaremos
seguir o caminho dessa questão em seu pensamento ulterior.
A partir de 1955, a atividade filosófica de Kolakowski toma um outro
rumo: ela não é mais somente crítica filosófica, torna-se crítica política. Ela
combate o regime stalinista e sua ideologia. Continuando marxista, Kolakows
ki se dedica ao que ele chama de “a tradição das formas degeneradas do
pensamento marxista”, isto é, o marxismo como ideologia oficial na União
Soviética e nas democracias populares. Kolakowski torna-se um dos protago
nistas principais desse importante movimento anti-stalinista que foi chamado
de “movimento revisionista”. O filósofo soube encontrar o tom justo para
exprimir os sentimentos popularizados, porém reprimidos, de seus compa
triotas; ele soube colocar sua lucidez de pensamento e seus dons de expressão
a serviço de um estado de espírito que procurava se formular. O texto de uma
conferência de Kolakowski proferida em 1956, foi pregado à porta da
170 Jacques Dewitte
Não é porque ele não possa dizer nada: ele não sabe o que dizer. Logicamente
tudo é como convém: é claro que não pode ser de outro modo. (...) O
indivíduo humano se pergunta se, ao fazer oposição, ele não comete um erro.
A todo aparato da propaganda nada há a opor a não ser aspirações
irracionais. Ele não deveria ter vergonha disso?(...) Como se pode entender
que um bom comunista, de repente, estoure os miolos, sem um motivo
preciso, ou fuja para o estrangeiro? (...) O horror indefinível que toma conta
do homem, ameaçado de uma racionalização completa de seu ser, não pode
transmitir-se àqueles que não tenham de enfrentá-lo”.11
O trabalho filosófico de Kolakowski, nessa época, consistiu, precisamente,
em dar forma a essas aspirações irracionais de que fala Milosz, a essa
resistência que se envergonha porque está privada das palavras e dos concei
tos para se formular, que se sente totalmente impotente, não tanto diante da
força policial quanto diante da força lógica que parece tornar impensável
qualquer coisa diferente dela mesma. A filosofia da história marxista acha que
pode situar o lugar e a significação de cada ação particular na história
universal e avaliar seu grau de “progressividade”, o que dispensa, pois,
qualquer responsabilidade individual. Kolakowski lhe opõe uma filosofia por
assim dizer “rasteira” em que não dispomos de nenhuma “grande teoria” e
somos obrigados a escolher, não cegamente mas na incerteza e na precarieda
de, onde nossas escolhas não são mais escolhas estratégicas entre duas linhas
políticas, mas escolhas específicas daquilo que nos parece justo. Esse tipo de
escolha se faz em nome de princípios morais gerais (justiça, igualdade,
verdade) que, sendo universais, não nos dizem a todo instante o que convém
fazer; ele nos propõe certamente uma ética, mas uma ética sem código (é este o
título de um texto escrito por Kolakowski nessa época) e nos deixa agir nas
aproximações das escolhas cotidianas sem nos dar um critério de medida
infalível. Tais escolhas são evidentemente as únicas verdadeiras: se a escolha
não é um ato livre e contingente, se resulta de uma avaliação racional por uma
solução ótima ou seresulta do “entendimento da necessidade” (essa espécie de
mágica filosófica por meio da qual eu escolho “livremente” o que meu
entendimento sabe que é desejado pela necessidade racional), então não se
trata mais de uma escolha ou não é mais o sujeito real que escolhe, mas o
racional que o sujeito real imagina ser, e o problema se desloca na divisão
entre o indivíduo e a entidade racional à qual ele gostaria de ser reduzido
(esforço característico do espírito militante e particularmente visível nos
movimentos populistas e anarquistas russos do século XIX).
Kolakowski reintroduz, em seus edifícios racionais, os palácios de cristal
da filosofia da história marxista, a contingência e a liberdade humana, isto é, a
fonte viva de todas as ações humanas que é, ao mesmo tempo, fonte precária e
sujeita a erro. Ao reafirmar contra a história a responsabilidade dos indivíduos
diante de seus atos’,2 a obrigação de escolher, ele reintroduz o presente com
toda sua fragilidade nas construções intemporais onde o futuro já está
prescrito e tudo determinado. É evidente então que as construções racionais
172 Jacques Dewitte
dos olhos não tem nada a ver com o socialismo e o marxismo autênticos, é uma
traição a Marx, lançavam eles no rosto dos dirigentes. O marxismo era para
eles uma filosofia essencialmente humanista que desejava realizar a emancipa
ção do homem, liberá-lo de tudo e não submetê-lo a uma nova forma de
despotismo.
Eles criticavam a sociedade socialista como um todo: recusavam a interpre
tação oficial de suas taras como sendo o resultado de um certo número de
erros isolados (tais como o “culto da personalidade”), como tantos outros
obstáculos. Não se tratava, para eles, de um acidente ou de um conjunto de
acidentes mas de um conjunto coerente de variações em todos os domínios em
relação ao socialismo autêntico, isto é, de um sistema global político, social e
econômico. Daí a virulência de sua crítica e a dimensão de seu alcance, uma
vez que ela se estendia a uma “crítica da vida cotidiana”. Não era também um
acaso, se encontrávamos uma ideologia marxista bloqueada em dogmas numa
sociedade que se tornara despótica: a degenerescência política ia junto com a
ideológica, um laço de necessidade existia entre as duas e é por isso que eles
procuravam regenerar a ideologia, redescobrir o marxismo autêntico contra
sua interpretação falsificada pelos ideólogos oficiais, devolver a Marx sua
verdadeira figura que seria também sua figura humana. Havia da parte deles
uma confiança no saber contra a ignorância, a convicção que ler Marx (ou lê-
lo de “modo diferente”, ler, por exemplo, seus escritos de juventude), que
retornar às fontes autênticas do marxismo, seria fazer desmoronar a ideologia
oficial. Havia em sua atitude um arrebatamento e um entusiasmo juvenis,
uma revolta alegre dos filhos contra os maus pais em nome de um “bom pai”
cujas intenções tinham sido desnaturadas e das quais os revisionistas eram os
herdeiros autênticos.
Entretanto, sua crítica virulenta da sociedade stalinista tinha, por outro
lado, uma obstinação fundamental: negando de maneira provocante toda
pretensão do regime, que vem a ser a realização do marxismo e do socialismo,
eles sentiam-se impedidos ao mesmo tempo de se interrogar sobre o laço
possível entre a doutrina e sua realização; todas as aberrações do regime
stalinista eram consideradas de imediato como puramente exteriores à
doutrina invocada. Não se pensava, em um só momento, que alguns
elementos da doutrina de Marx pudessem engendrar certas monstruosidades
que Marx certamente não desejava. Se a realização da doutrina não
correspondia às intenções de seu autor era porque a tinham deformado e não
porque ela própria se prestasse a esse uso. De sorte que o ideal marxista
permanecia imune, escapando de qualquer desmentido real. Com efeito, se
colocarmos que o socialismo existente “nada tem a ver” com o ideal socialista
refuta-se, por antecipação, todos os ensinamentos da experiência empírica: se
a história nos ensina que todas as realizações da doutrina foram fracassos ou
aberrações, pode-se dizer que isso não tem importância real, que isso é apenas
um acidente e que a “verdadeira sociedade comunista” está ainda por chegar.
Tem-se, portanto, à disposição um poderoso instrumento de obstinação
174 Jacques Dewitte
mesmo”, de uma reapropriação final pelo homem do que se alienou dele: este
conceito implica, quer se queira ou não, a idéia de uma reconciliação do
homem com ele mesmo, de uma unidade da existência e da essência do
homem, um sonho que Kolakowski considera como utópico e perigoso, pois,
“este sonho pode ser realizado apenas sob a forma cruel do despotismo; e o
despotismo é uma dissimulação desesperada do paraíso.23
Segundo Kolakowski, duas correntes opostas atravessam toda a história
do cristianismo e do pensamento ocidental em seu conjunto: a corrente
“platônica” ou monista, que tende a negar a contingência e a faticidade
humanas, a diferença e os conflitos, que aspira a uma unidade última, e a
corrente “maniqueísta” ou dualista, que reconhece a existência de dois
princípios irredutíveis e ontologicamente essenciais tanto um como o outro: o
bem e o mal. A doutrina cristã afirma a existência do mal e do pecado original,
reconhece que o homem está dividido entre duas ordens de ser, mas existe
uma outra tendência dentro do cristianismo, a corrente platônica que tende a
negar que o mal e o pecado sejam essenciais (o próprio diabo poderia ser
salvo) e tende também a negar a diferença entre o sagrado e o profano,
afirmando que tudo o que existe faz parte do plano divino e tem um sentido
sagrado (daí, por exemplo, a filosofia de Teillard de Chardin).
Kolakowski inscreve-se na corrente maniqueísta. Ele acha hoje, que, sem
renunciar para isso a todo desejo de mudança e a toda luta, é preciso
reconhecer a imperfeição e o inacabamento fundamentais do homem, isto é,
um estado tal que o mal não poderá jamais ser eliminado totalmente. É
necessário que o homem aceite sua vida como uma derrota inevitável; negar
essa derrota é procurar realizar, com todas as forças e de maneira convulsiva,
a perfeição desejada e é instaurar de fato, um estado pior ainda que a
imperfeição existente. É por isso que Kolakowski denuncia, como uma aberra
ção perigosa, o “espírito revolucionário”, isto é, a idéia de que o mal daqui se
converterá em um bem, a corrupção do mundo existente sendo o caminho
que conduzirá ao mundo da perfeição, o que implica que devemos não
mudar, tanto quanto possível, o mundo existente para torná-lo mais suportá
vel, mas reforçar ainda mais sua corrupção, “exacerbar suas contradições”.
Poderíamos acreditar, à primeira vista, que o reconhecimento de um mal
ontologicamente irredutível significa desacreditar no mundo presente e que
essa atitude procede desse desgosto da vida terrestre que anima o cristianismo
e que toda a tradição humanista denunciou como obscurantista. Ora, parado
xalmente, é o contrário que é verdadeiro: na escatologia marxista, o otimismo,
a afirmação da contingência do mal, vai junto com a idéia que todo mal é um
bem escondido, já que ao acumular-se, o sofrimento e a alienação vão
necessariamente ocasionar a Revolução. O que é um mal, face ao mundo
presente, é um bem, face à Revolução e à sociedade futura. Esta escatologia
revolucionária conduz, sobre o plano prático, a uma rejeição do mundo
existente, “inessencial”, comparado ao mundo perfeito do futuro. Ela pode
Posfácio 183
Por outro lado, Kolakowski insiste sobre a significação atual dos valores
religiosos tradicionais, em particular cristãos, com a condição que se saiba
Publicado pela Editora Universidade de Brasília (N.E.)
Posfácio 185
Cronologia das datas de publicação dos livros de Kolakowski (para maior facilidade, todos os
títulos originais — poloneses, alemães ou ingleses — foram traduzidos):
Sobre Kolakowski:
— Gesine Schwan: Leszek Kolakowski — Eine Philosophie der Freiheit nach Marx— Kohlhammer
Stuttgart, 1971.
— A Leszek Kolakowski Reader— Triquaterly, Número 22, outono 1971.
— Henry Mottu: Aperçu bibliographique — Reviu de théologie et de philosophie, IV, 1973.
Notas
1. Esta atitude face à Polônia não aparece porém sem exceção nos trabalhos de Engels. A exceção
é fornecida por sua carta antipolonesa a Marx, de 23 de maio de 1851. — Entre os numerosos
textos referentes à Polônia, é o único que se encontra citado na antologia de S. Avineri Karl Marx
on Colonisaiion and Modemization, 1969.
2. Um dos maiores imperadores da índia Antiga (265-238 aC), o grande propagador do budismo.
Desgostoso por causa das guerras sangrentas que realizara, renunciou ao exercício do poder pela
violência e promulgou através de seu império editos de tolerância, gravados em pedra, que
representam uma aplicação da moral de Buda, na política, apelando para a superação das
particularidades em nome do princípio de ordem universal, o dharma.
3. É preciso acrescentar que Althusser emprega a palavra “prática” para designar indiferente
mente qualquer forma de atividade humana (“prática teórica”, “prática ideológica", “prática
produtiva", “prática política” etc.) sem explicar o que significa “prática" em geral: o que ele sugere
é que o termo signifique simplesmente tudo o que os homens fazem, não importa em que
domínio. Pode-se compreender seus esforços para explicar aos líderes do Partido Comunista
Francês que eles estão errados em querer obrigar seus ideólogos a participar da “prática política”,
isto é, a distribuir folhetos em vez de escrever, pois, diz ele, escrever obras teóricas é também uma
forma de “prática". Mas parece que se poderia explicar isso de outro modo, sem abstrair a
significação específica da palavra “prática”. A distinção marxista tradicional e a oposição da
"teoria" e da “prática" tornam-se claramente sem objeto, se “prática" significa apenas qualquer
forma de atividade. Não quero dizer que essa distinção não possa ser criticada; talvez ela se baseie
numa falsa concepção. Mas Althusser não procura nem mesmo mostrar que existe nela algo que
não está certo. Ele parece simplesmente ignorar a existência dessa distinção na tradição marxista.
4. Althusser, aparentemente, desejou ser para Marx o que Marx foi para Ricardo: ele procurou
formular as descobertas que Marx tinha feito sem formulá-las e das quais não percebia a
significação. Nós devemos, diz ele, “ouvir seu silêncio" e garante que ele o ouviu (LC II, p.33).
Inútil dizer que todos os comentadores de um autor procuram compreendê-lo melhor do que ele
próprio se compreendeu e que esse esforço não deve ser condenado se ele prova que é fecundo.
5. O método de Marx pode efetivamente ser comparado ao de Galileu num outro ponto de vista.
Galileu (é surpreendente nos Discursos Matemáticos) tomou consciência de que a física não pode
ser uma simples descrição de experiências realizadas, mas que ela requer uma certa situação
idealizada (modelos geométricos) impossível de reproduzir-se experimentalmente (por exemplo,
quando analisa as curvas balísticas sem considerar a resistência do ar ou quando analisa o
movimento do pêndulo sem considerar o atrito no ponto de suspensão). É unicamente graças a
esses modelos idealizados implicando certas condiçôes-limites que não podem acontecer que a
mecânica moderna pode aparecer. E Marx reproduz parcialmente esse modo de pensar quando
analisa certas situações imaginárias para introduzir somente mais tarde e pouco a pouco outros
190 Leszek Kolakowski
Notas do Posfácio
8. Sobre este ponto tomamos para nós a interpretação de Gesine Schwan, autora de um livro
interessante sobre Kolakowski, ao qual nossa apresentação deve muito: Leszek Kolakowski: Eine
Philosophie der Freiheit nach Marx, Kohlhammer Philosophica, Kohlhammer Stuttgart, 1971.
9. Este texto foi publicado no volume “Polônia-Hungria”, coleção "Documentos e textos escolhi
dos”, E.D.I., Paris, 1966.
10. François Fejtõ: Histoire des Démocraties Populaires, tomo 2, p. 89, Ed. do Seuil, 1969.
11. Czeslaw Milosz: La Pensée captive, Gallimard, 1953, pp. 287-291.
12. CF. o artigo “Responsabilité et Histoire”. Les Temps Modemes, junho-julho 1958.
13. O artigo de 1959“Le Prêtre et le Bouffon” contém este subtítulo significativo: “Réflexions sur
1’héritage théologique de la pensée contemporaine”.
14. A palavra “revisionismo” foi primeiramente um termo injurioso dirigido ao movimento pela
ortodoxia.
15. François Fejtõ, Histoire des Démocraties populaires, 2, op, cit. p.90.
O Espírito Revolucionário e Marxismo:Utopia e Antiutopia 191