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pérola

na areia
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EDITOR RESPONSÁVEL
Claudio Rodrigues
COEDITOR
Thiago Rodrigues
ADAPTAÇÃO CAPA
Chayanne Maiara
DIAGRAMAÇÃO
Larissa Almeida
REVISÃO DE DIAGRAMAÇÃO
Hellen Arantes
TRADUÇÃO
Mitsue Siqueira
PREPARAÇÃO DE TEXTO
Paula Maricato
REVISÃO DE ESTILO
Christiano Titoneli Gabriela Amaral
REVISÃO DE PROVAS
Amanda Porto
Edição publicada sob permissão contratual com
Moody Publishers, 820 N. LaSalle Blvd., Chicago, IL 60610 with the title Pearl in the Sand,
copyright ©2010 by Tessa Afshar.
Translated by permission. All Rights Reserved.
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AFSHAR, Tessa.
Pérola na Areia A História de Raabe. Rio de Janeiro: BV Books, 2013..
ISBN 978-85-8158-028-1987
1ª edição Junho | 2013
Impressão e Acabamento Promove
Categoria Ficção
Impresso no Brasil | Printed in Brazil
À Emi,
Minha irmã, minha amiga e minha grande alegria
Sumário
Observações da Autora 7
Capítulo Um 10
Capítulo Dois 25
Capítulo Três 36
Capítulo Quatro 49
Capítulo Cinco 59
Capítulo Seis 70
Capítulo Sete 82
Capítulo Oito 95
Capítulo Nove 108
Capítulo Dez 118
CapítuloOnze 129
Capítulo Doze 140
Capítulo Treze 152
Capítulo Catorze 162
Capítulo Quinze 172
Capítulo Dezesseis 182
Capítulo Dezessete 192
Capítulo Dezoito 205
Capítulo Dezenove 219
Capítulo Vinte 227
Capítulo Vinte e Um 238
Capítulo Vinte e Dois 251
Capítulo Vinte e Três 261
Capítulo Vinte e Quatro 271
Capítulo Vinte e Cinco 281
Capítulo Vinte e Seis 292
Epílogo 305
Agradecimentos 307
Perguntas para Reflexão 309
Observações
da Autora

O título deste romance e o uso de pérolas na história são resultado


da licença poética. Embora os egípcios usassem madrepérola
dentre suas joias naquela época, não houve evidências
arqueológicas referentes ao uso propriamente dito das pérolas até
os séculos mais recentes. No entanto, Madrepérola na Areia não
teria o efeito proposto.
As Escrituras nos dizem que Raabe era uma prostituta (meretriz
era o eufemismo usado para essa palavra), e a Bíblia hebraica
usava duas palavras diferentes para descrever a prostituição: a
primeira, kedeshah, se refere ao templo das prostitutas; a segunda,
zonah, se refere aos tipos mais comuns de prostituta.
Independentemente de a profissão de Raabe ser mencionada ou
não, a palavra zonah é usada. Nossa história gira em torno dessa
distinção.
Muitas referências feitas a Raabe, tanto no Antigo quanto no Novo
Testamento, incluem o termo zonah (Raabe, a zonah), uma
indicação de que o povo de Israel nunca esqueceu totalmente do
passado dessa mulher. Embora a maioria das descrições
associadas a ela tenha tendências positivas, este relato mostra que
Raabe talvez tenha tido uma recepção um tanto quanto ambígua em
seu novo lar. Por um lado, ela foi bem-vinda e admirada; por outro,
seu passado ainda repercutia no presente.
O nome de Salmom aparece escrito de várias maneiras diferentes
no original hebraico, como Salmon, Shalmon e Salmone. Na maioria
das versões bíblicas de nossa língua, traduziu-se como Salmom, o
que felizmente acabou por não coincidir o nome do nosso herói com
o nome de peixe.
Sempre que possível, este livro recorre a fontes bíblicas e
arqueológicas. A situação no capítulo dezessete, que compara a
experiência de Raabe em Jericó à situação de Israel no Egito
durante a primeira Páscoa, foi inspirada em um capítulo do livro
Reading The Women of the Bible, de Tivka Frymer—Kensky (Nova
York: Schocken Books, 2002, pp. 297-300). No entanto, este livro é
por essência um romance — um registro ficcional de uma mulher
que teve grande importância histórica tanto para os judeus quanto
para os cristãos. A Bíblia hebraica revela que, após a destruição de
Jericó, Raabe foi viver permanentemente em Israel, mas não há
maiores detalhes sobre sua vida (Josué 6:25). Para os cristãos, o
destino de Raabe é revelado em um fragmento de um dos
versículos de Mateus, em que se descreve a genealogia de Jesus.
Estas palavras simples nos mostram seu destino maravilhoso: “E
Salmom gerou, de Raabe, a Boaz” (Mateus 1:5). Ou seja, Salmom e
Raabe se casaram e tiveram um filho.
A Bíblia nos dá uma visão geral do passado de Salmom por meio
de diversas genealogias (1 Crônicas 2:11; Rute 4:20-21).
Certamente, ele veio de uma família bastante distinta de Judá; seu
pai, Naassom, era o líder do povo de Judá e a irmã de seu pai era
casada com Arão (Números 2:3-4). Nada se sabe sobre as
realizações e feitos de Salmom, mas ainda assim o versículo de
Mateus é impressionante. Como seria possível um homem que é
praticamente um aristocrata judeu, importante o suficiente para ter
seu nome registrado nas Escrituras, casar-se com uma mulher
cananeia que ganhava a vida entretendo homens? Grande parte
desta obra aborda esse questionamento, e obviamente esse
aspecto do romance é puramente ficcional. Sabemos apenas que
Salmom casou-se com Raabe, teve um filho com ela e o próprio
Jesus enumera a prostituta cananeia como uma de Suas ancestrais.
No entanto, a Bíblia não nos revela de que maneira esse casamento
aconteceu ou quais obstáculos a relação enfrentou.
Ler um romance não é a melhor maneira de estudar as Escrituras,
para isso temos a Bíblia. De forma alguma, esta história tem a
intenção de substituir o poder transformador que o leitor encontrará
nas Escrituras. Para uma melhor descrição bíblica de Raabe, leia
Josué 1-10, Mateus 1:1-7 e o livro de Rute.
Capítulo
Um

A inda não havia amanhecido quando Raabe acordou com uma


cotovelada insistente. “Deixe de ser preguiçosa, garota. Seu pai
e seus irmãos já estão quase prontos para ir”. Depois disso, sua
mãe lhe deu mais uma cotovelada.
Raabe suspirou e decidiu levantar. Com os olhos turvos e com o
corpo pesado, ela se esforçou para ficar em pé. Há dois meses
Raabe executava tarefas de homem, acordando antes do dia
amanhecer e trabalhando duro na terra, com pouca comida, pouca
água e sem o descanso necessário para renovar as energias. Mas
era inútil, até uma menina de apenas 15 anos conseguia ver isso.
As terras não haviam produzido nada, a não ser poeira, e assim
como o restante de Canaã, Jericó estava sob o domínio de uma
grande seca.
Embora soubesse que seus esforços seriam desperdiçados, todos
os dias ela dava o melhor de si ultrapassando os limites da
tolerância, porque, enquanto houvesse trabalho, seu pai tinha
esperanças. Tão desesperada, Raabe não conseguia nem pensar.
“Rápido, menina!”, sua mãe a apressava.
Porém, Raabe já tinha arrumado sua cama, estava quase
terminando de se vestir e acabando de fazer tudo em silêncio, com
calma. Ela não se apressaria nem que o exército do rei estivesse à
sua porta.
Seu pai apareceu triste, mastigando um pedaço de pão
envelhecido, com o rosto pálido e cansado brilhando por causa do
suor. Raabe vestiu seu cinturão com um movimento rápido e pegou
um pedaço endurecido de bolo de cevada que serviria como café da
manhã e parte do almoço. Ao dar um abraço apertado no pai, ela
disse: “Bom dia, papai”.
Ele se esquivou de seu abraço e disse: “Deixe-me respirar,
Raabe”. Voltando-se para sua esposa, ele afirmou: “Tomei uma
decisão. Se eu vir que não há nada a ser colhido hoje, desisto”.
Raabe suspirou espantada enquanto sua mãe deixava escapar
um lamento inquieto: “Inri, não! O que será de nós?”
Seu pai encolheu os ombros e saiu. Aparentemente, suas
esperanças haviam findado. Ele admitiu a derrota. Em meio à
escuridão, Raabe o seguiu sabendo que aquele dia não seria
diferente dos outros, mas, só de pensar na desgraça de seu pai,
sentiu-se mal.
Seus irmãos, Joa e Karem, esperavam do lado de fora. Karem
mastigava um bolo de uvas, privilégio que a mãe preservava para o
filho mais velho. A esposa de seu irmão, Zoarah, se aproximou
falando baixo por causa de Raabe. Apesar da preocupação, Raabe
mostrou um sorriso enquanto seu irmão, casado há um ano, dava as
mãos à esposa. Os dois se casaram por amor, o que não era
comum em Canaã. Mesmo implicando, sempre que havia chance,
com seu irmão mais velho, o coração de Raabe batia mais forte ao
pensar em uma união como aquela. Às vezes, em meio à escuridão,
enquanto toda sua família dormia, ela sonhava em ter um marido
que a amasse tanto quanto seu irmão amava Sarah. Porém, nos
últimos dias, seus pensamentos estavam tão consumidos pela
preocupação que não lhe restava mais tempo para sonhar
acordada.
Esperando no limite mais afastado do pequeno terreno da família,
Joa, o filho mais novo, de 14 anos, olhava para o nada. Raabe não
o ouviu proferir mais do que três palavras durante tantos dias; era
como se a seca tivesse acabado também com sua fala. Ela
percebeu que o irmão estava com uma olheira muito forte e com o
corpo debilitado, apesar da alta estatura. Provavelmente, ele tinha
saído de casa sem comer nada. Raabe pegou o pão que estava
guardado em seu cinturão, dividiu-o em duas partes e levou para
Joa. O que não era o bastante nem mesmo para ela, imagine tendo
de dividir para dois.
“Coma isso, rapaz!”
Joa ignorou a irmã e ela perguntou: “Você quer que eu te perturbe
até chegarmos à lavoura, ou não?”
Ele olhou irritado para ela, mas estendeu a mão. Ela continuou por
perto para certificar-se de que ele tinha comido, e em seguida foi
atrás do pai.
À medida que eles andavam em direção aos portões da cidade, os
passos assumiam um ritmo mais acelerado. Raabe notou que até
mesmo Karem, que costumava não se preocupar, parecia bastante
angustiado. Finalmente, ele quebrou o silêncio que pairava sobre
eles. “Pai, fui até Hebrom, na venda que o senhor falou, mas ele se
recusou a vender óleo ou cevada por aquele preço. Ou ele dobrou
os preços desde a última vez que o senhor comprou, ou o senhor se
enganou em relação ao valor.”
“Então mande Raabe ir até lá. Foi ela quem negociou da última
vez.”
“Raabe. Tinha que ser”, Karem afirmou com um ar de bondade
reluzindo de seus olhos. “Apenas um olhar para esse rostinho lindo
que todas as possibilidades de lucros e quantias desaparecem de
Hebrom.”
“Não é bem assim!”, Raabe retrucou muito irritada. “Não tem nada
a ver com o meu rosto; eu apenas sou melhor nas negociações do
que você, só isso.”
“E você chama isso de negociação? Dar piscadinhas com os olhos
não me parece negociação.”
“Eu vou é dar vassouradas se você não tomar cuidado com o que
fala.”
“Chega!”, ordenou o pai deles. “Assim vocês me deixam com dor
de cabeça.”
“Perdão, papai”, disse Raabe corrigindo-se imediatamente. Seu
pai não precisava de mais problemas e ela deveria aprender a
controlar seus impulsos. Ele já estava com tantas preocupações
pesando sobre os ombros que ela queria ser um conforto, não um
fardo a mais.
Raabe não conseguia o consolar em palavras. Em vez disso,
seguindo seus instintos, ela estendeu a mão à procura da mão do
pai e a segurou. Por um instante, ele pareceu não perceber sua
presença. Em seguida, virando-se para ela e meio disperso, ele
percebeu a proximidade. Raabe lhe ofereceu um sorriso
reconfortante, mas ele afastou a mão.
“Você já está muito grande para andar de mãos dadas.”
Ela ficou envergonhada e escondeu a mão por entre as roupas.
Diminuindo o ritmo de seus passos, Raabe ficou para trás andando
sozinha e seguindo as pegadas dos três homens.
Na lavoura, os quatro examinaram cada parte da plantação
buscando por sinais de vida. Salvo alguns besouros com cascas
grossas, eles não encontraram nada. Quase ao meio-dia, Raabe
estava abatida demais para continuar e se sentou enquanto eles
concluíam cuidadosamente a inspeção. Quando eles voltaram, seu
pai murmurou em voz baixa: “O que nós vamos fazer? O que vamos
fazer?”
Raabe desviou o olhar. “Vamos para casa, papai.”
Em casa, ela abriu a velha cortina que servia como porta principal
e entrou, mas sua mãe a escorraçou gesticulando: “Dê um pouco de
privacidade a mim e ao seu pai”.
Raabe consentiu com a cabeça e saiu. Em seguida, se recostou
na parede repleta de lodo em meio às grandes sombras. Ela só
queria achar uma forma de ajudar a família, mas nem mesmo seus
irmãos conseguiram arrumar trabalho na cidade. A cidade de Jericó,
que já estava abarrotada de lavradores desesperados em busca de
trabalho, não os animava muito. De que jeito ela, uma simples
menina, poderia ser útil? O som de seu nome ecoando pela janela
resgatou sua mente distraída.
“Deveríamos tê-la oferecido como esposa de Ian no ano passado
em vez de esperar uma oferta melhor”, disse a mãe.
“Como iríamos saber que enfrentaríamos uma seca que nos
levaria à falência? De qualquer modo, o dote que ele nos ofereceu
não daria para nos sustentar nem por dois meses.”
“Mas seria melhor do que nada. Fale com ele, Inri.”
“Mulher, ele não a quer mais. Eu já perguntei, e ele está na
mesma situação que a nossa.”
Raabe prendeu a respiração tentando não perder detalhe algum
da conversa. Em circunstâncias normais, a vontade de escutar a
conversa alheia jamais passaria por sua cabeça, mas algo na voz
de seu pai a fez especular. Raabe se arrastou como uma lagartixa
pela parede e continuou ouvindo.
“Inri, se fizermos isso não teremos como voltar atrás.”
“O que mais podemos fazer? Diga.” Um silêncio intenso se juntou
à ira de seu pai. Quando ele falou novamente, a voz dele estava
mais calma e aparentemente cansada. “Não há outro jeito. Ela é a
nossa única esperança.”
Raabe sentiu um enjoo no estômago. Em que seu pai estaria
pensando? As vozes ficaram muito baixas para ouvir. Frustrada, ela
foi andando até o fim das terras de sua família. Em uma estrebaria
quase destruída, dois cabritos definhados roíam um arbusto
ressequido no qual não havia mais nada a não ser madeira. Com os
homens e Raabe trabalhando na lavoura todos os dias, ninguém
teve tempo de cuidar da estrebaria. O cheiro pútrido agredia seus
sentidos — um pano de fundo perfeito para suas emoções mais
intensas, ela pensou. Seus pais se referiram a ela como a única
forma de salvar a família, mas eles não falavam sobre casamento.
De que outra maneira uma menina de quinze anos conseguiria
ganhar dinheiro? Com a respiração rápida, Raabe levou as mãos ao
rosto. Papai nunca me obrigaria a fazer isso. Nunca. Ele preferiria
morrer. Tudo não passava de um malentendido. Mas o enjoo no
estômago se intensificava cada vez mais.
,.
“Sua mãe e eu estávamos pensando em seu futuro, Raabe”, disse
o pai no dia seguinte enquanto Raabe se levantava. “Filha, você
pode ajudar sua família inteira, mesmo que seja difícil para você. Eu
sinto muito—”. Ele parou de falar de repente como se não soubesse
mais como prosseguir.
Ele não precisou falar mais nada. O terror a apavorou de tal
maneira que ela não conseguia respirar. Com grande espanto,
Raabe se deu conta de que seus piores medos haviam se tornado
realidade. O pesadelo que ela havia interpretado como um mal
entendido na noite anterior era verdade. O pai realmente queria
vendê-la como prostituta. Ele queria sacrificar o futuro, o bem-estar
e a vida dela.
“Muitas moças precisam fazer isso — algumas mais novas do que
você”, disse ele.
Raabe olhou apavorada para o pai; ela queria gritar. Raabe queria
agarrá-lo e implorar. Pense em outro jeito, papai. Por favor, por
favor! Não me obrigue a fazer isso. Eu pensei que fosse sua
garotinha preciosa! Eu pensei que o senhor me amava! Mas ela
sabia que seria em vão. Seu pai já tinha tomado a decisão e não se
abalaria com suas súplicas. Assim, ela engoliu cada palavra, assim
como os argumentos e esperanças. Você nunca mais será o meu
pai, ela pensou. Desde quando aprendeu a falar, ela já chamava seu
pai de papai com uma ternura infantil, que demonstrava sua afeição
pelo homem mais importante do que qualquer outro no mundo. Mas
aquela ternura infantil havia se acabado para sempre. A dor dessa
constatação era quase pior do que ter de vender seu corpo em troca
de dinheiro.
Como se estivesse ouvindo algumas palavras não ditas, ele
perguntou novamente: “Que outra escolha eu tenho?” Raabe se
virou para que não precisasse olhar para o pai. O homem que ela
amava mais do que qualquer outro, em quem confiava e quem tanto
estimava estava disposto a sacrificá-la para o bem de toda a família.
Esse não era um acontecimento inusitado em Canaã. Muitos pais
jogavam suas filhas na prostituição para sobreviver. Mas, mesmo
assim, ainda que a escolha de seu pai não fosse nada fora do
comum, Raabe não se conformou. Havia nada mais sujo e baixo
para ela do que viver como prostituta.
Seu pai estava respirando rápida e intensamente. “No templo você
vai ter reconhecimento. Você será bem tratada.”
Raabe se esforçou para falar, como se alguém a estivesse
enforcando. “Não. Eu não vou para o templo.”
“Você vai me obedecer!”, seu pai gritou. Em seguida, mexendo
com a cabeça, ele abrandou a voz. “Precisamos de dinheiro, filha.
Senão, morreremos de fome, inclusive você.”
Raabe segurou o grito contendo-se para parecer tranquila. “Não
estou me recusando a obedecer ao senhor, meu pai. Apenas estou
dizendo que não irei a templo algum. Se temos de fazer isso, não
vamos incluir os deuses nessa história.”
“Seja sensata, Raabe. Lá, você terá proteção e respeito.” “Você
chama o que eles fazem de proteção? Eu não quero o
respeito que as mulheres conseguem no templo.” Ela se virou e
olhou para ele diretamente nos olhos, mas ele desviou. Ele sabia
sobre o que Raabe estava falando. No ano anterior, a irmã mais
velha de Raabe, Izzie, ofereceu o primeiro filho ao deus Moloque. O
bebê era uma grande alegria, e desde o momento em que sua irmã
disse que estava grávida, Raabe sentiu que tinha uma ligação
especial com ele. Ela o segurou minutos depois de seu nascimento,
revestindo-o e embalando-o, admirando sua boquinha perfeita que
abria e fechava como se estivesse mandando beijos para ela. O
amor por ele a invadiu desde aquele momento de pureza. Mas sua
irmã preferiu a estabilidade financeira, pois estava cansada da
pobreza. Então, ela e seu marido Gerazim concordaram em oferecer
o filho a Moloque para o próprio bem do menino.
Eles não deram a mínima atenção quando Raabe implorou que
eles mudassem de ideia. Os dois estavam decididos. “Nós teremos
outro filho”, disseram eles. “Ele será tão lindo quanto esse e terá
tudo o que quiser, o que é melhor do que ser criado na pobreza e
passar necessidade.”
Raabe foi ao templo com eles no dia do sacrifício na esperança de
fazê-los mudar de ideia. Mas nada do que ela disse convenceu o
casal.
Seu sobrinho não foi o único bebê sacrificado naquele dia. Havia
pelo menos uns doze. O lugar estava cheio de pessoas que
assistiam aos sacrifícios, e algumas encorajavam os sacerdotes,
que ficavam diante de fogueiras enormes cobertos do pescoço até
os tornozelos, a oferecer sacrifício. Raabe se apavorou com o que
viu e ficou pensando em como seria a natureza de um deus que
prometia uma vida boa às custas da morte de um bebê indefeso.
Que tipo de felicidade alguém poderia comprar por esse preço? Ela
manteve o filho de sua irmã nos braços até quando pôde,
murmurando palavras de conforto enquanto observava aquele
pequeno corpo. Ele exalava o cheiro do leite e do pão de mel mais
doces. Raabe o apertou contra o peito pela última vez enquanto lhe
dava beijos de despedida. O bebê gritou quando mãos brutas o
arrancaram do colo de Raabe, mas aquilo não foi nada em
comparação ao seu último grito à medida que o sacerdote se
aproximava da fogueira ardente...
Raabe deu um passo incerto na direção de Gerazim, mas viu que
Izzie já estava em seus braços.
Naquele dia, Raabe prometeu que jamais se curvaria diante de
tais deuses. Ela os odiava. Apesar de todos encantos fulgentes, ela
tinha visto quem eles realmente eram: consumidores da
humanidade.
As terras de Izzie e Gerazim estavam tão devastadas quanto as
de Inri, e eles fizeram tanto em favor das bênçãos de Moloque. Ela
nunca recorreria a ele. Não, o templo não era lugar para ela.
“Raabe”, seu pai argumentou enquanto mordia uma das unhas já
roídas, “pense em como será a sua vida fora do templo. Você é
jovem, não entende”.
Não se tratava de não ter medo. A vida das prostitutas fora dos
templos era difícil, arriscada e vergonhosa. Mas ela sentia menos
medo de ter aquela vida do que de servir aos deuses de Canaã.
“Pai, por favor. Não sei se consigo aguentar a vida no templo.”
Esperava-se que as filhas obedecessem aos seus pais sem hesitar,
e as objeções e os argumentos de Raabe poderiam ser
considerados desobediência. Seu pai poderia levá-la à força para
qualquer templo e vendê-la sem que ela tivesse chance de se
defender. Ela imaginou que seu pai nunca se rebaixaria a tal
comportamento, mas depois se lembrou da noite anterior em que
também achava que ele nunca exigiria que ela se prostituísse.
Raabe perdeu o chão, e nada mais lhe parecia seguro.
Karem, que chegou no meio da conversa entre os dois, afirmou de
repente: “Pai, o senhor não pode fazer isso com essa menina. A
vida dela será destruída!”
Inri deu um golpe no ar com um gesto impaciente. “E por acaso
você descobriu alguma outra maneira de mantermos nossa família
durante o inverno? Você arrumou algum trabalho? Ou conseguiu
herdar dinheiro de algum tio que nós não conhecemos?”
“Não, mas eu ainda não tentei tudo. Há outros trabalhos, outras
possibilidades.” O coração de Raabe bateu mais forte com
esperança por causa do apoio de seu irmão, mas a esperança logo
se acabou com a resposta do pai.
“Quando você se der conta de que não tem mais nada, sua linda
esposa e seu filho que ainda nem nasceu morrerão de fome. Raabe
é a única certeza de que sobreviveremos. Esse é o único jeito”,
repetiu ele com uma convicção absurda.
Karem abaixou a cabeça e não falou mais nada.
Raabe caiu no chão sem conseguir conter as lágrimas. Inri foi para
o outro lado da casa e sentou-se em um canto olhando para o nada.
A discussão findou à medida que suas palavras não ditas os
separavam. Em meio àquele silêncio, Raabe sentiu que uma parede
havia se erguido entre ela e o pai, e que a parede era tão inabalável
quanto os muros da cidade.
Aconteceu que os dois estavam sentindo muita vergonha; Inri,
porque tinha fracassado como pai — como protetor — e ela, por
causa do que estava prestes a se tornar. Raabe ficou paralisada
pela traição do pai, e um sentimento de solidão mais sombrio do que
tudo que ela conhecia fora aprisionado em seu coração como um
corpo na sepultura.
Depois de tudo, Inri não poderia recusar o único pedido de sua
filha. Porém, o fato de Raabe não querer entrar no templo deixou
seus pais em uma situação ainda mais difícil. De que maneira eles
arrumariam clientes para ela? As coisas no templo eram simples e
diretas, mas ninguém sabia como proceder de acordo com o desejo
de Raabe.
“Tem uma mulher que mora perto de nós; ela treinava as mulheres
do templo”, sua mãe sugeriu. “Agora ela ajuda mulheres que
trabalham em outros lugares.”
“Eu sei quem é ela”, Inri murmurou. “Ela me parece rigorosa.” “Eu
também a conheço.” Raabe uma vez viu a mulher agredindo uma
das moças até sair sangue da orelha dela. “Talvez essa não seja a
melhor ideia.”
“Você nunca aceita as minhas sugestões”, respondeu a mãe com
a voz trêmula de censura. “Você tem ideia de como isso dói em
mim? Você sabe como é difícil para um coração de mãe ter que
suportar a dor de um filho?”
“Não, eu provavelmente não sei”, Raabe afirmou com palavras
fortes como pedra. Ela achou melhor engolir quaisquer referências
óbvias à sua própria dor. Dizê-las apenas faria sua mãe ter outro
ataque de culpa e sofrimento, e Raabe não estava disposta a
consolá-la enquanto sofria por causa de seus próprios sonhos
destruídos.
“Por que eu precisaria dar metade dos meus lucros a uma mulher
que me bateria? Se a intenção é me fazer ganhar o suficiente para
manter a família, não podemos ter uma parceira desonesta.”
“Raabe, nós não sabemos como... como fazer isso”, disse o pai
batendo os dedos na mesa.
Raabe sentiu o gosto amargo da raiva na garganta. Ignorando-o,
ela falou: “Vamos até Zedeque, o ourives. Ele saberá o que fazer”.
De vez em quando, seu pai fazia alguns favores a Zedeque. Ele era
um homem rico, ourives do rei, e tinha boas relações na aristocracia
de Jericó. Durante os últimos seis meses, por todas as vezes que
Zedeque viu Raabe, ele olhava para ela com um desejo tão intenso
que não lhe restava dúvida. Ela sabia que ele não a queria como
esposa, pois se quisesse, já teria pedido ao seu pai. Contudo,
Raabe sabia que ele pagaria bem pelos seus serviços, e ela queria
fazê-lo pagar um bom preço. Já que era preciso passar por essa
situação horrível, ela queria conquistar um pouco mais do que o
alimento que garantiria a sobrevivência de sua família durante a
seca. Raabe se libertaria do pai; ela ainda o amava e sua dedicação
pela família continuava a mesma, mas estava determinada a nunca
mais depender da proteção dele.
“O que Zedeque tem a ver com isso?”, perguntou a mãe.
Inri não respondeu. Ele fechou os olhos, esfregou as mãos na
cabeça e disse: “Nada não”.
Raabe saiu em silêncio para chorar sozinha.
,.
“Quanto será necessário para nos alimentar por um ano?”, Raabe
perguntou ao pai enquanto seguiam para o comércio de Zedeque.
Suas pernas tremiam mais e mais a cada passo, porém ela se
recusava a submeter-se ao medo que a desolava em seu íntimo.
“Por quê?”
“Peça a quantia necessária para isso e mais um cordão, brincos e
braceletes de ouro para mim.”
“Garota, você é bonita, mas não é tão bonita. Nenhum homem em
sã consciência pagaria tanto por uma noite, ainda mais para você.”
Seria ela atraente o bastante para convencer Zedeque a lhe dar
uma boa quantia? Raabe sabia que já atraía os olhares dos homens
nos últimos dois anos, quando seu corpo tomou forma e seu cabelo
perdeu a placidez adolescente ganhando cachos firmes castanho-
avermelhados. O que ela faria por Zedeque? “Não apenas uma
noite”, ela respondeu distraída. “Três meses. Ele me terá enquanto
ainda sou jovem e pura... antes de mais ninguém...”.
Sua voz sumiu. Ela mal conseguia pensar em passar por aquilo de
noite em noite, com homens diferentes entrando e saindo de sua
vida. Talvez ter um cliente com alguma estabilidade a faria tolerar a
situação por mais tempo.
“Eu vou pedir, mas não espere que ele aceite.”
“É um bom negócio. Ele aceitará. Mas olha, três meses e nem
mais um dia.” Seu pai olhou como nunca havia olhado para ela
antes; talvez ele não a conhecesse. Nem mesmo ela conhecia a si
mesma.
Zedeque era um homem gordo e dentuço. Ele se vestia muito
bem, ornado com ouro da cabeça aos pés, com enfeites em sua
barba e guizos delicados nos sapatos de tecido. Quando ele viu
Raabe e o pai entrando no comércio, foi direto ao encontro deles
atropelando alguns clientes. “Bom dia, Inri!”, disse ele olhando
fixamente para Raabe.
Pelas pupilas escuras de Zedeque, ela conseguia ver o reflexo do
próprio rosto — seu nariz pequeno, seus lábios arredondados e
seus olhos grandes, inchados por causa das lágrimas. Raabe havia
lavado os cabelos para aquela visita; seus cachos escapavam por
debaixo do véu, as mechas castanhas em forma de espiral davam
forma ao seu rosto e caíam em cascata sobre as costas. Ao se
lembrar do motivo que a fez lavar os cabelos, ela demonstrou
vergonha e desespero — e pensou no olhar de Zedeque.
Seu pai pigarreou. “Podemos falar com você, meu senhor?
Em particular?”
Zedeque barganhou o quanto pôde, mas Inri, pensando em si
mesmo, não cedeu. Zedeque olhou para Raabe, passou os dedos
nos lábios e fez uma última tentativa. Quando Inri a negou
gesticulando com a cabeça, Zedeque virou as costas e saiu. Raabe
segurou a mão do pai e se levantou para ir embora; o pai lançou-lhe
um olhar desesperado, mas ela continuou irredutível e ele cedeu.
Zedeque, vendo a determinação dos dois, voltou e aceitou a oferta.
Raabe percebeu que seu pai parecia espantado, mas assumiu uma
feição branda, disfarçando a própria surpresa. Assim como seu pai,
ela mal podia acreditar que Zedeque estava disposto a pagar tanto
por ela.
Pelos três meses seguintes, Zedeque foi seu mestre. Ele gostava
de ver que ela não sabia nada, e gostou de vê-la chorando durante
a primeira semana. Depois, ele também gostou de consolá-la e não
foi cruel. Ele nunca bateu ou abusou de Raabe. E se algo lhe
despertou repugnância ou nojo, tanto dela mesma quanto dele, ela
jamais o deixou perceber.
Quando os três meses se passaram, Zedeque entregou uma
sacola cheia de ouro a Raabe. Além da sacola, ele deu algumas
tornozeleiras conforme ela havia pedido. Ao conferir a quantia,
Raabe percebeu que ele havia lhe entregado dinheiro a mais e
voltou para prestar contas. “Meu senhor”, ela disse, “o senhor me
deu dinheiro a mais.”
“Minha querida Raabe está recusando dinheiro?” “Eu não
trapaceio meus clientes.”
“Clientes?” Ele revirou os olhos. “Você só teve um, e não está me
trapaceando, menina. Eu estou dando a você.”
Raabe se curvou agradecendo e segurou a sacola de dinheiro
com firmeza, quase desejando que Zedeque pedisse para ela ficar
por mais tempo. Ele estava certo; ela não tinha conhecido homem
algum além dele. Raabe não gostava do contato com ele, mas ela
preferia estar apenas com um homem a ser um brinquedinho de
muitos outros. No entanto, Zedeque não mostrou interesse em
continuar com ela. Certamente ele já estava satisfeito.
Ela voltou para casa e entregou a sacola de ouro ao pai. “Zedeque
mandou o pagamento pelos três meses.”
Seu pai olhou fixamente para dentro da sacola e exclamou: “É
muito! Nunca pensei que ele pagaria tanto!”
“E não vai haver mais outra. Zedeque já está satisfeito. Ele não
me quer mais.” Raabe tentou repelir as lágrimas.
“E o que você esperava?” Inri olhou de relance para ela antes de
fixar o olhar novamente na sacola. “Foi muito bom ele ter ficado todo
esse tempo com você, Raabe. Ele é um cidadão do mundo e está
acostumado com o melhor.”
Como se ela não fosse boa o bastante. Raabe se deixou cair em
uma almofada, e as palavras de seu pai a fizeram ver uma verdade
que ela não ousava admitir para si mesma. Depois que um homem
a conhecesse daquela forma, ele a rejeitaria. De qualquer maneira,
ela seria indesejável ou não seria o bastante. Seu pai sabia disso;
Zedeque sabia disso, e agora ela também sabia. De repente, ela se
sentiu gélida. Raabe apoiou a cabeça nos joelhos, envolveu as
pernas com os braços e começou a tremer. Seu pai foi até seus
irmãos e sua mãe mostrar a sacola de ouro. Se não fosse pelo trigo
e pelo óleo que Zedeque deu, a família já teria morrido de fome.
Aquela quantia de ouro era o bastante para o ano inteiro e para
comprar sementes para a colheita do ano seguinte.
Através da velha cortina que separava os cômodos, Raabe ouviu
a voz abafada dos pais enquanto conversavam. “Inri, o que vai ser
dela agora?”, perguntou a mãe com uma voz aguda. “Você
consegue convencer Zedeque a ficar com ela?”
“E como eu poderia fazer isso? Ele já está cheio dela, é isso.” “E o
que devemos fazer? Ninguém vai querer se casar com ela agora.”
“Você sabia a resposta para isso desde o primeiro dia, mulher. Ela
terá de tirar proveito disso, assim como todos nós. Sua beleza será
útil a ela; ainda deve haver outros homens interessados. Bem, pelo
menos por um tempo.”
Raabe se retraiu ainda mais e engoliu um gemido. Sem pensar,
ela pegou uma parte do grande tecido de seda do vestido em cada
uma das mãos, amaciando-o como uma criança assustada faria
com o cobertor. Ela se sentia apavorada pelo medo à medida que
pensava no futuro — e em todos os Zedeques que entrariam e
sairiam de sua vida e de sua cama.
Ela lamentou pelos sonhos que jamais se realizariam e pelo
destino que ela jamais teria. Raabe lamentou pelas escolhas que
não fez e, por fim, cansada de tanto chorar, ela fechou os olhos e se
deitou no chão frio. Em meio ao desespero, um pensamento lhe
ocorreu. Ainda lhe restava uma escolha; embora estivesse sujeita a
vender seu corpo por dinheiro, ela poderia escolher seus amantes.
Escolheria cada homem de acordo com sua vontade própria. Raabe
tinha sido rejeitada por Zedeque, e aquilo foi muito difícil de engolir.
Pelo menos aquela amargura ela evitaria. Ela seria dona do seu
próprio coração, sem deixar que ninguém entrasse, e expulsaria
cada homem antes mesmo de ele se dar conta de que ela não
merecia ser amada, como fez Zedeque.
,.
Durante os meses em que Raabe esteve sob os cuidados de
Zedeque, ela teve contato com outros homens importantes que ele
conhecia. Muitos deles deixaram claro que, quando Zedeque
terminasse, eles ficariam felizes em tê-la.
Raabe escolheu cuidadosamente, e um homem de cada vez. Ela
restringia suas escolhas: tinha poucos clientes, mas muito
generosos. Seu critério incomum aumentou sua popularidade entre
os homens das classes altas, e cada um deles gostaria de ser
escolhido. Raabe tornou-se a competição que eles desejavam
ganhar.
“Raabe, você é a mulher mais bonita de Jericó”, muitos homens
afirmavam. “Nem mesmo o rei tem uma mulher no palácio que se
compare a você”, sussurravam eles em seu ouvido.
Em poucos dias, essas palavras colocaram sorrisos em seu rosto,
mesmo que aquela alegria fosse superficial e passageira. Em seu
interior, ela sabia que todos aqueles homens que a consideravam
incomparável se cansariam dela depois de três meses, jogando-a
fora como se faz com os ossos depois do banquete.
Às vezes, depois de estar com um homem, Raabe pegava a
esteira e a sacudia sem parar. Havia dias em que ela dava beijos de
despedida no cliente, sorria como se ele fosse o homem mais
importante do mundo, fechava a porta e vomitava. Ela odiava o que
fazia, mas não parava. Ela achava que não havia alternativa. O que
mais ela poderia fazer depois de ter se prostituído? Sua vida se
restringira a esse destino.
Quando Raabe alcançou os dezessete anos, tinha uma quantia
em prata suficiente para comprar uma estalagem próxima aos
muros da cidade, e sair de casa foi mais fácil do que ela imaginava.
Dois anos de noites em claro e de dias constrangedores fizeram-na
se afastar da família. O seu corpo a levava para onde seu coração
já estava há muito tempo. Mas isso não queria dizer que ela não
amasse mais a família como antes. Muitas vezes, em sua
estalagem, ela sentia falta deles; porém, descobriu que estar com
sua família apenas a fazia sentir-se mais solitária. Então, cada vez
mais ela dedicou o tempo às necessidades de sua estalagem.
A maioria das donas de estalagem em Canaã também eram
prostitutas, e isso era tão comum que os dois quase significavam a
mesma coisa. Todavia, Raabe pensava em sua profissão
separadamente. Nem todos que entravam eram recebidos em sua
cama. Ela fazia questão de que sua estalagem fosse reconhecida
como um lugar de elegância e conforto. Decorando-a com
tapeçarias e com carpetes valiosos, ela recusou-se a aderir à
ornamentação pomposa das outras estalagens. A localização
ajudava: os muros ainda eram uma parte exclusiva de Jericó e,
apesar do tamanho pequeno das residências e estabelecimentos
construídos naquela região, eles eram algumas das propriedades
mais cobiçadas de Jericó. Quando Raabe fez vinte e seis anos, sua
estalagem era tão popular quanto ela, apesar de não ser tão
acessível quanto seu corpo. Foi essa exclusividade que fez a
entrada em sua estalagem ser tão requisitada.
Capítulo
Dois

N a primeira vez que Raabe ouviu falar de Israel, ela estava


trabalhando. Escondida sob um lençol de linho, observava com
os olhos entreabertos enquanto Joabe, seu cliente, andava
angustiado. Sua sobrancelha era tão castanha que a fazia lembrar a
casca de uma noz. Raabe percebeu que ele estava agitado, mas
esperou até que ele estivesse pronto para falar. Os homens
admiravam as mulheres que se calavam nas horas certas. Quando
finalmente se cansou de andar como um leão enjaulado, ele
começou a falar.
“Raabe, os hebreus derrotaram o rei Siom e seus filhos ontem à
noite. O rei dos amorreus foi destituído por um bando de nômades.
Agora toda Canaã corre perigo.”
“Do que você está falando?”, perguntou ela, enrolando-se no
lençol e sentando-se. “Siom não pode ter sido derrotado.” Siom, um
dos maiores reis do leste do rio Jordão, dominava o reino como uma
águia. Ela ouvia muitos homens o chamando de indestrutível e que
seu reino estaria seguro para sempre.
“Ele foi destruído, já disse, pelos hebreus. O líder deles, um velho
chamado Moisés, enviou uma mensagem ao rei pedindo para viajar
por suas terras em paz. Siom não apenas negou, como também
preparou seu exército para atacá-los em Jaza. Talvez ele tivesse
pensado que seria uma vitória fácil. Mas não demorou muito para
que os hebreus virassem o jogo”. Joabe parou de falar e ficou
olhando para o nada, como se lhe faltassem palavras. “Eles são
bravos; estavam sem nenhum armamento. Então, quando o exército
de Siom começou a correr...”.
Raabe se esticou. “O exército de Siom correu?”
“É o que eu estou dizendo. Eles foram massacrados, e aqueles
que não morreram de imediato correram. Mas os hebreus sem
armadura correram mais rápido e os capturaram. Eles mataram
alguns homens com fundas. Quem conseguirá dormir
tranquilamente depois disso?”
Raabe ficou de queixo caído com aquelas palavras. Para ela,
assim como para todos que ouviram falar sobre aquele
acontecimento, os hebreus eram um povo desconhecido.
Impossível! “Quem são esses hebreus? Nunca ouvi falar deles.
Como eles demonstraram tanto poder?” Os ouvidos de Raabe não
estavam acreditando no que ela dizia.
“Isso é o mais impressionante. Eles não são ninguém. São um
bando de escravos fugitivos.” Joabe foi caindo até o chão e recostou
a cabeça na parede. “Quarenta anos atrás, eles fugiram do Egito e,
até então, vagavam pelo deserto. Eles não têm cidades, nem muros,
nem terras para plantar ou arar, nem vinhas para colher. Todo
mundo os ignorou.”
“O que você está dizendo não faz sentido. Como um exército de
escravos conseguiria fugir do Egito? Como se o faraó permitisse.
Isso é apenas um boato.” Ela olhou para ele e controlou o medo.
Cruzando os braços, Raabe se recostou em um travesseiro.
Joabe levantou os braços irritado. “Raabe, você é jovem demais
para entender. Houve uma grande rebelião de escravos no Egito,
liderada por Moisés. Ele afirmava que seu deus queria que o faraó
libertasse os hebreus. Faraó recusou-se a princípio, mas tantas
pragas recaíram sobre os egípcios pelas mãos do deus hebreu que
faraó teve de libertá-los. O Egito estava arruinado. Depois, no último
segundo, ele mudou de ideia. Enquanto os hebreus partiam, o faraó
preparou o exército e os perseguiu.”
“Não me diga que os escravos destruíram as carruagens de faraó
com suas fundas?”, Raabe sorriu forçadamente.
Joabe suspirou. “Não foi tão simples. A rota de fuga os levou em
direção ao mar, um verdadeiro beco sem saída. O exército
invencível de faraó perseguiu os hebreus, mas, diante deles, havia
uma quantidade de água impossível de atravessar. Eles estariam
condenados, mas o deus deles abriu o mar.”
Raabe levantou uma das sobrancelhas: “Ah, sei!”
“Ele abriu o mar, é verdade! Ele o dividiu exatamente ao meio.
Eles caminharam por entre as águas até o outro lado na terra seca
com a água contida à sua volta. Em seguida, quando faraó e seu
exército tentaram segui-los, as ondas os envolveram por cima. Cada
um deles foi derrotado.”
Enquanto Joabe repetia a história, Raabe se lembrou de ter
ouvido algo sobre a morte misteriosa de um dos faraós e de seu
exército. Foi quando os pais dela ainda eram jovens, e o Egito ainda
não tinha se reerguido totalmente depois daquela derrota. Que tipo
de deus ostentaria tanto poder? Se tudo aquilo fosse mesmo
verdade, quem poderia se impor contra tal deus? Ela começou a
entender o motivo de tanto medo por parte de Joabe.
Curvando-se, ela pegou um tecido bordado que estava no chão e
o colocou sobre a própria cabeça. “Quer ficar aqui hoje à noite?
Posso fazer um jantar se você quiser.” Era melhor ela se concentrar
em tarefas menores do que nos feitos dos reis e dos deuses. O que
ela, uma simples dona de estalagem, tinha a ver com
acontecimentos tão grandiosos?
Mas ela não conseguia tirar aquela história de Joabe da cabeça.
Na manhã seguinte, os soldados nos portões da cidade confirmaram
o que ele dissera, ou pelo menos a parte sobre a derrota de Siom.
Hesbom estava sob o domínio dos judeus. Certamente, aquilo já era
assustador o bastante, sem falar nos mistérios.
,.
Juntamente com todos em Canaã, Raabe logo ouviu mais notícias
perturbadoras sobre os hebreus. Nos meses seguintes à derrota de
Siom, eles haviam ganhado outras batalhas surpreendentes. Eles
sitiaram e dominaram as cidades fortificadas de Nofá, Medeba e
Dibom, matando todos os habitantes. A cada derrota, Canaã ficava
mais e mais aterrorizada. Os rumores corriam, e os hebreus eram
imbatíveis. Eles eram incontáveis, e suas armas eram feitas de um
metal que ninguém conseguia destruir. Eles tinham cavalos
arrebatadores e cresciam mais do que tudo a cada vitória.
Raabe não acreditava naqueles relatos exagerados sobre o povo
hebreu. Ela se lembrou das palavras de Joabe enquanto ele falava
sobre a derrota de Siom. Eles não eram ninguém. Não tinham um
arsenal sofisticado nem armamentos, muito menos terras e
riquezas. Aquela era a real faceta do povo hebreu, ela acreditava. E,
ainda assim, eles estavam exterminando uma cidade após a outra,
um exército após o outro. O que estaria por trás daquele povo?
Até mesmo Jericó, a grande Jericó com seus muros antigos e seu
exército bem treinado, estava receosa. Canaã ostentava muitas
muralhas, mas nenhuma delas se comparava à morada de Raabe.
Os muros de Jericó eram assombrosos. Eles eram tão espessos
que as pessoas construíam casas e estabelecimentos neles. Na
terra de Canaã, quando as pessoas queriam dizer que alguém era
forte, elas faziam comparações com os muros de Jericó. Mas até
mesmo o povo de Jericó estava temeroso com as conquistas
impressionantes dos hebreus a leste do rio Jordão.
A quantidade de sacrifícios aumentava à medida que as pessoas
buscavam proteção contra a ameaça daquele novo inimigo terrível.
Raabe sentia de longe o cheiro da carne queimada nos templos e
nos altares, a ponto de o rei mandar seus soldados manterem a
ordem. Havia rumores de que as prostitutas no templo trabalhavam
dia e noite, e Raabe sentia pena delas. Ela esperava que elas
ficassem cansadas o bastante para pensar e sentir alguma coisa.
A idolatria desesperadora do povo não atraía Raabe. Quanto mais
ela via aquele tipo de fé em prática, mais ela a abominava. Nem
mesmo o medo e o desespero a fariam se entregar a Baal, Moloque
ou Asera.
Sua vida seguiu normalmente apesar da agitação nas ruas. Ela
deixou Joabe, e, por um bom tempo, sua estalagem e sua cama
permaneceram vazias. Poucas pessoas viajaram durante aqueles
dias, com medo dos assaltos dos forasteiros. Raabe tinha uma
quantia suficiente de ouro, e a falta temporária de trabalho não a
preocupava. As terras de seu pai receberam uma ajuda extra, ela foi
passar alguns dias na lavoura trabalhando duro como lavradora.
Sua pele escureceu e suas unhas ficaram feias. Isso não é para
mim, ela pensou enquanto observava suas mãos ásperas depois de
uma tarde de trabalho debaixo do sol. Perceber aquilo a fez sorrir.
Embora tivesse desejado muito fazer aquela escolha aos quinze
anos, ela sabia que não merecia viver daquele tipo de trabalho. A
vida dos lavradores era curta e dura, e ela não tinha força suficiente.
Certa noite, ela recebeu um convite para um banquete, enviado
por um primo distante do rei. Com o passar dos anos, Raabe tinha
se tornado uma convidada especial nas festas dadas por homens
influentes que queriam um bom divertimento longe das esposas. Ela
foi ao banquete sabendo que não poderia mais continuar ausente
para que não fosse esquecida nesses meios sociais tão
importantes.
Raabe escolheu um vestido de seda cor de creme com detalhes
bordados em prata. Por suas roupas, ninguém nunca diria que ela
era prostituta. Ela se vestia como qualquer outra mulher elegante de
Canaã, tendendo mais à simplicidade do que à exuberância. Ela
achava que as curvas do corpo de uma mulher, quando mostradas
com certa modéstia, chamavam muito mais atenção que as vestes
ultrajantes. Diferentemente da moda na época, que ditava que as
mulheres deveriam puxar mechas finas dos cabelos adornando-as
na testa, Raabe preferia deixar os cabelos soltos até as costas. Ela
usou brincos grandes e colocou enfeites no braço. Ela não queria
ficar muito tempo, mas queria deixar boa impressão.
“Raabe!”, exclamou o anfitrião quando ele a viu entrar, surgiu um
belo sorriso de seu longo rosto.
Ela tirou as mãos da cintura e fez uma reverência gentil. “Meu
mestre.”
“Eu queria mesmo te ver aqui.”
Ela sorriu ao olhar para os olhos dele. “Sua casa está linda esta
noite, meu senhor.”
“Agora que você chegou, certamente ela ficou linda.”
Raabe sorriu. “Eis o perigoso charme real.” Ela sabia que qualquer
primo do rei gostava de ser tratado como realeza. A mão da realeza
estava descendo demais pelas costas de Raabe e ela desviou
rapidamente, esbarrando em um corpo forte. Virando-se, ela
exclamou. “Perdão.”
Ela conhecia aquele homem de vista; ele servia como general do
exército — ele era um dos melhores militares de Jericó. Como era
mesmo o nome dele? Debir, lembrou ela.
“Manobras evasivas”, disse ele com uma cara séria. “Eu entendo.”
Algumas formas sinuosas surgiram ao redor de seus olhos. Raabe
ficou sem ação e virou a cabeça desviando o olhar, e o anfitrião já
tinha ido receber outra pessoa.
“Um esbarrão amistoso”, ela respondeu. Ele sorriu. “Eu me chamo
Debir.”
“Eu sei. Sua presença já diz tudo, meu senhor. Eu me chamo
Raabe.”
“Sim. A sua presença também faz o mesmo.”
Ela inclinou a cabeça. “Suponho que tenha ouvido falar de mim
nas conversas com alguns de seus amigos.”
“Ah! Não sou chegado a essas conversas tolas.”
“Nem eu. Prefiro conversas inteligentes, mas isso não é muito
comum na minha profissão.”
“Na minha também não.” Os dois riram. Naquela noite, um
entendimento mútuo misturado com respeito se deu entre os dois.
Dentro das primeiras horas em que eles se conheceram, Raabe
decidiu aceitar Debir como amante.
Ele ficou muito feliz em ser o companheiro dela. Raabe sabia que
ele ficaria com ela não por luxúria ou por algum motivo afetivo, mas
simplesmente por estar livre de responsabilidades durante algumas
horas. Até mesmo um homem firme como Debir precisava ficar em
algum lugar onde não fosse continuamente atormentado para ter de
tomar decisões e fazer julgamentos importantes. Por onde quer que
Debir andasse, ele carregava nos ombros o peso das expectativas.
Suas três esposas e seus muitos filhos dependiam dele tanto quanto
as tropas do exército real. Debir ficou com Raabe simplesmente
para relaxar.
Diferentemente dos outros homens, Debir gostava da sagacidade
de Raabe e de conversar com ela. Assim, por muitas vezes, ele
falava sobre assuntos políticos, algo que a maioria dos homens de
Jericó pensava estar acima da compreensão feminina; apesar disso,
ele nunca compartilhou segredos de Estado. Ele era um soldado
dedicado demais para isso. Mas conversava com ela sobre as
guerras que aconteciam nos arredores e sobre as mudanças que
estavam ocorrendo em Canaã.
“Parece que os hebreus sitiaram Ogue”, disse ele para ela em
uma noite, com os traços do rosto brandos e curiosamente sem
expressão, como se tivesse acabado de proclamar a notícia mais
arrasadora que Canaã ouvira em cem anos.
Raabe murmurou. Ogue, o rei de Basã, era conhecido por ser um
gigante tanto na estatura quanto na habilidade. Sua cama de ferro
era considerada uma das maravilhas do mundo, de tão comprida e
grande que era. Nenhum cananeu conseguia imaginar alguém que
tivesse coragem suficiente para lutar contra Basã. “Agora, com
certeza eles serão destruídos”, afirmou ela.
Debir levantou uma sobrancelha, mas não disse nada. “Você não
acha?”
“Digamos que eu não queira tirar conclusões precipitadas.” “Você
não acha que Ogue pode derrotá-los? Você acha que eles podem
invadir a cidade de Edrei?”
“Edrei é uma questão diferente. A cidade é protegida por um
desfiladeiro de um lado e uma montanha de outro. Ela é localizada
bem no meio desses dois. Estrategicamente falando, Edrei é
impenetrável. Não vejo como Moisés e seus guerreiros feiticeiros
conseguiriam entrar.”
“E não é lá que Ogue está?”
“Por enquanto, sim. Ele se estabeleceu lá, e tudo o que tem a
fazer é sentar e esperar os hebreus saírem. Será um cerco longo e
cansativo. Os hebreus não podem fazer nada, a não ser esperar.
Eles precisarão de comida, bebida e plantação para os animais.
Com o tempo, eles terão de desistir e se entregar.”
Raabe franziu as sobrancelhas. “Eu achei que você estivesse com
medo de Ogue perder, mas agora você está me dizendo que ele
sequer vai precisar lutar.”
Debir foi até a janela, olhou para as plantas e para os montes que
levavam ao Jordão. Nenhum sorriso surgiu em seu rosto até quando
ele se voltou para encará-la. “É muito pior para o orgulho de um rei
quando ele precisa se esconder em vez de lutar. Talvez ele não
perca, mas também não vença. Ogue é um guerreiro e seu orgulho
é grande como suas pernas. Será preciso uma boa dose de
consciência para mantê-lo protegido em Edrei.”
“E você acha que ele tem mais orgulho do que consciência.”
“Vamos apenas esperar para ver.”
,.
Ogue preferiu lutar. Como o rei era tolo, ele preparou o exército
inteiro para ir de encontro aos hebreus na batalha. Um único
soldado sobrevivente contou a história para um comerciante que
passava para ir a Jericó. A cidade de Edrei fora atacada por um
enxame de vespões. O local estava cheio deles; os insetos levaram
os cavalos à loucura, e não havia como escapar. Seus ferrões eram
tão cruéis que mataram dos mais jovens aos mais velhos. Cada um
de seus guerreiros gemeu de dor e foi assolado pela vergonha.
Ogue não pôde aguentar. Ser aprisionado no próprio reino por um
inimigo inferior era muito ruim, mas a indignação de ser picado por
vespões era demais para ele. Ele não era um escravo para se
acovardar em suas terras fugindo de um bando de inúteis! Assim,
ele decidiu reunir os filhos e o exército para lutar contra os hebreus.
Mas os hebreus exterminaram cada um deles e dominaram as
terras.
“Agora, não vai demorar muito para que Moisés comece a olhar
para Jericó”, disse Debir depois de contar a história da derrota de
Basã a Raabe. Ele estava deitado de costas, olhando para o teto.
“Somos a primeira maior cidade a leste do Jordão, e se ele entende
alguma coisa de guerra, fará de nós seu próximo alvo.”
A boca de Raabe ficou seca depois de ouvir aquelas palavras.
“Bem, então não abra os portões nem saia para enfrentá-los se eles
vierem. Estaremos protegidos entre nossos muros.”
Com os dedos polegar e indicador, Debir espantou uma mosca
que estava perto dele, mas foi tão agressivo que a mosca morreu.
Voltando-se para Raabe, ele disse: “Você sabe que eles
atravessaram o mar Vermelho enquanto fugiam de faraó. O mar se
rompeu e caiu sobre o exército do Egito”.
Raabe se deixou cair em uma almofada de plumas e se recostou
em uma peça escarlate de tapeçaria. “Não me diga que você
acredita nessa loucura?”
Debir olhou para ela de forma enfática. “Eu acredito, e tenho
acreditado por quase quarenta anos desde a primeira vez que ouvi
falar nisso. O deus deles está muito além da nossa compreensão.”
O sorriso de Raabe estava cheio de sarcasmo. “Outro deus
sanguinário. Maravilha! É tudo que Canaã precisa.”
Ele mexeu a cabeça e seus olhos brilhavam encantados. “Você
tem ideias muito estranhas, Raabe. Agradeça pelos deuses não
terem acabado com você.”
“Eu os deixo sossegados e eles retribuem o favor. Por que você
acredita nessas loucuras de mares que se partem e de faraó se
afogando, Debir? Espalhar boatos não tem muito a ver com você.”
“Não são boatos.”
“Você viu com seus próprios olhos?”
Debir passou a mão pelos cabelos. “Mas eu vi pelos olhos de
quem viu em primeira mão: um dos hebreus”.
Raabe apromou-se. “Você conhece um deles?”
“Quarenta anos atrás eu conheci.” Debir se levantou da esteira e
foi sentar-se perto dela. “Cruzei com ele antes do meu treinamento
militar. Se não fosse tão jovem, eu teria visto que ele era um espião.
Naquela época, acreditei que ele fosse comerciante, conforme havia
falado. Ele me viu nos portões e me deu um salário por tê-lo
ajudado a conhecer a cidade durante uma semana.”
Seus olhos se arregalaram. “Por que, então, eles não nos
atacaram naquela época? Para que esperar por quarenta anos e só
então começar a atacar?”
“Não sei. Talvez esse Moisés estivesse se preparando durante
esses anos. Afinal, ele era o líder naquela época também.”
“Talvez ele morra antes de enfrentar Jericó.”
“Mas eu tenho a sensação de que nem isso os impediria. O
hebreu sobre o qual eu falei com você me disse que o verdadeiro
líder é o deus deles. Foi ele quem enviou Moisés para ir ao Egito a
fim de libertar seu povo da escravidão. Ele disse a Moisés que havia
visto a aflição e a miséria de seu povo e que estava preocupado
com o sofrimento deles. Ele queria libertá-los do jugo de faraó.”
Raabe franziu as sobrancelhas, pensativa. Palavras como
preocupado não faziam parte do vocabulário dos deuses. Mesmo
assim, se Debir estivesse certo, haveria então um deus que sentia
compaixão do sofrimento humano, e pensar na compaixão vinda de
um deus trouxe uma sensação diferente ao seu coração. Um desejo
intenso a arrebatou e quase a fez chorar; era o desejo de ter alguém
que se preocupasse com seu sofrimento e se importasse o bastante
para resgatá-la.
Sem dó nem piedade, ela repreendeu aquele desejo pérfido.
“Bem, ele não tinha tanta compaixão pelos egípcios, já que afogou
vários deles. Ele se importa apenas com os hebreus? Ele não
pensou nas mães e esposas que sofriam no Egito?”
Debir pegou um dos cachos pesados de seus cabelos e o puxou
levemente. “Eu não teria compaixão alguma dos egípcios se eles
tivessem tratado o meu povo como tratavam os hebreus. Por incrível
que pareça, o deus dos hebreus deu muitas oportunidades para que
o faraó libertasse seu povo sem que houvesse mortes. Ele dava um
aviso após o outro, mas o orgulho foi maior. O Egito não se curvou à
sua vontade; se não tivessem perseguido o povo hebreu, ninguém
teria se afogado.”
Raabe soltou das mãos de Debir o cacho de seus cabelos. “O que
mais esse homem falou para você sobre o deus deles?”
Debir deu de ombros. “Ele é um tanto peculiar. Não permite que
estátuas dele sejam construídas, as pessoas não podem vê-lo ou
tocá-lo; ele diz ser o Único e Verdadeiro Deus, por todos os lugares
e acima de tudo. Seria hilário, se não fosse o poder que ele parece
ter.”
“Um deus que não se pode ver? Qual seria o objetivo? Como se
pode acreditar em algo que os sentidos demonstram não estar
presentes?”
“Eu não sei, mas o espião hebreu me disse que isso não é
impedimento. Ele disse que há outras maneiras de sentir a presença
de deus sem ser as imagens.”
Raabe se apoiou com os cotovelos e olhou fixamente para Debir.
“Como, por exemplo?”
“Eu não sou um seguidor, Raabe. Não sei muita coisa sobre o
assunto. Só o que posso dizer é que ele é bastante verdadeiro. Por
exemplo — essa você vai achar interessante —, ele proíbe a
prostituição como parte da adoração. Um dos lugares onde levei o
hebreu foi o templo. Ele cobriu os olhos quando viu as prostitutas
com os adoradores e me disse que, segundo a lei dos hebreus, elas
deveriam ser apedrejadas.”
“Apedrejadas?”
“Você seria uma hebreia muito má, não é, Raabe? Ou seria uma
hebreia morta.”
Ela engoliu em seco. Havia uma jarra com vinho por perto e ela
colocou um pouco em um cálice que ela mesma tinha ornado em
prata, esquecendo-se de oferecer a Debir. O vinho desceu como
poeira.
Capítulo Três

N inguém conhecia como Raabe o poder destrutivo de sua


profissão. Ninguém sabia melhor do que ela o que
aconteciacom a alma de alguém quando entregasse seu corpo sem
nenhum envolvimento emocional, sem compromisso algum e sem
esperanças no futuro. Nenhum prazer poderia preencher o abismo
da solidão que não parava de crescer a cada dia. Havia dias em que
ela gostaria de estrangular os homens que a tocavam sem nenhum
sentimento, e havia dias em que ela achava que sua morte não
seria um destino tão ruim assim. Na verdade, ela já se sentia
parcialmente morta, e parecia que o deus hebreu concordava com
ela. Ele era um deus de compaixão, mas, para Raabe, ele só tinha
pedras. “Continue”, ela disse a Debir cheia de medo e fascinação ao
mesmo tempo.
Debir inclinou-se até ela, tirou o cálice de sua mão e tomou em um
só gole o restante da bebida. “Aparentemente, o deus hebreu tem
um coração tão piedoso quanto o de uma mulher. Naquele dia, os
sacerdotes do templo estavam sacrificando muitas crianças.
Você acredita que o espião chorou ao ver? Nunca me esquecerei
de suas lágrimas. Ele era um homem grande, com boa estrutura e
bastante musculoso — de forma alguma ele parecia frágil, exceto
pelas lágrimas que rolavam pelo seu rosto. Como era jovem, eu o
considerei um fraco, que chorava como um garoto despreparado
diante do sacrifício.
“Ele perguntou se eu não sentia aversão. ‘Claro que não’, eu
respondi. Ele me disse que seu deus jamais permitiria tal atitude, e
depois disse: ‘Seus corações são muito endurecidos, Debir. Seu
povo se edificou muito além da redenção, e nem mesmo o Senhor
consegue resgatá-los. E Ele é o Senhor dos céus e da Terra’.”
Raabe se voltou para Debir segurando a respiração. Um deus que
dava valor à vida? Um deus que se importava com bebês
desconhecidos? Um deus que viu a injustiça de Canaã e a declarou
muito além da redenção? Mais uma vez ela sentiu aquele desejo,
agora ainda mais forte. Mas a ironia daquele desejo também não a
abandonava: a ironia lamentável de uma prostituta de Jericó que
desejava conhecer o deus hebreu.
“Então você acha que o deus deles está sistematicamente nos
purificando por consequência de seu julgamento?”, ela perguntou.
Debir encolheu os ombros. “Eu não sou sacerdote. Como soldado,
posso dizer que eles estão vencendo batalhas que não deveriam
vencer. O deus deles me deixa perplexo, pois parece ter mais poder
do que qualquer outro. Poder e compaixão. Nunca vi nada parecido
e, se você quer saber a verdade, não me importo em enfrentar isso
agora. Só espero que o deus hebreu esteja satisfeito com as terras
do oeste do Jordão. Deixe-os se estabelecerem por lá, e talvez
possamos negociar com eles.”
“Mas, para você, isso não vai acontecer.”
Debir inclinou-se e encheu novamente o cálice de prata. “Se eu
fosse o general deles, eu não o faria. Cercados por midianitas,
edomitas, amorreus e egípcios, como eles se protegeriam? Seria
preciso dormir com um dos olhos abertos para o resto da vida por
muitas gerações. Se o deus deles deseja dar descanso ao povo,
ignorar-nos não seria uma boa tática.”
“Você está com medo dele — desse deus?”, ela deixou a pergunta
escapar.
O fato de ela ter feito essa pergunta poderia ser considerado um
insulto a qualquer homem, mas Debir não deu tanta importância à
inconveniência de suas palavras. Ele se levantou de repente e
começou a andar de um lado para o outro naquele lugar apertado.
“O Senhor, é assim que eles o chamam”, ele falou ajoelhando-se
bem perto de Raabe. Ela sentia o calor de sua respiração embebida
no vinho à medida que ele falava. “Todos estão com medo. Até
mesmo os quartéis foram tomados pelo medo. Se Ogue e Siom não
conseguiram conter o Senhor, como nós poderemos? Ele não está
interessado em termos e compromissos. Ele é como o fogo que se
consome. Você perguntou se eu estou com medo. Raabe, eu nunca
soube o que era medo... até agora.”
“Você acha que nós vamos morrer.” Não era uma pergunta. Ela
conseguia ver a convicção estampada em cada traço do rosto de
Debir. O Senhor. Finalmente ela havia encontrado um deus de poder
e compaixão, mas ele era seu inimigo.
“Sim, eu acho. Mas acredito que ainda levará algumas semanas.
O rio está do nosso lado, pois está em período de cheia. Não se
pode atravessar nenhum exército por enquanto, mas quando secar,
eles chegarão.”
“Como eles vão passar pelos nossos muros? Ninguém jamais
conseguiu fazê-lo por séculos, desde que foram construídos, por
causa de sua altura e largura.”
“Você está certa. Nenhum exército pode passar por essas
paredes. Mas não se trata de um exército; trata-se de um deus.
Nenhum muro pode conter sua vontade.” Debir abaixou a cabeça
enquanto dizia isso, e Raabe percebeu algo que nunca tinha visto
em seu rosto: desespero. Ele não tinha mais esperança. Naquele
momento, ela se convenceu da ruína de Jericó.
Depois que Debir foi embora, Raabe encheu-se com um desejo
repentino de estar do lado de fora, distante da repressão de seu lar.
Suas sandálias faziam barulho pelas escadas à medida que ela,
aliviada, saía para ver o dia claro. Respirando fundo, ela começou a
andar como se seus pés tivessem vontade própria.
Não muito distante da estalagem, ela desceu uma rua estreita e se
deparou com um grupo de crianças brincando. O barulho delas
brincando a fez distrair-se de seus pensamentos, e ela os observava
com um sorriso. Mas seu sorriso desapareceu quando descobriu a
natureza da brincadeira: eles tinham cercado um mendigo e
estavam arremessando pedras e falando palavras grosseiras para
ele. O velho se encolheu em um canto, e suas mãos trêmulas
cobriam o rosto.
Quando uma pedra mais afiada cortou a testa do homem, o
sangue começou a escorrer pela pele enrugada e pingou em um de
seus olhos.
Uma menina apontou um dedo para o mendigo e gritou: “Vejam
como a barba branca dele treme — ele está chorando! Atirem mais
pedras!”
“Chorar não é nada”, um garoto ria. “Acho que ele molhou as
calças!”
“É isso aí!”, muitos espectadores diziam e os animavam com
risadas.
“Deixem-no em paz!”, gritou Raabe.
O garoto, prestes a pegar outra pedra, parou imediatamente e
olhou para Raabe, toda vestida de roupas finas. “Senhora, ele é
apenas um mendigo, a senhora não vê?”
“Eu já disse, deixem-no em paz.”
Todos olhavam para ela naquele momento. “O que você quer?
Ele é só um mendigo. Ele fede!”
Raabe ficou imóvel. Era comum o povo tratar os moribundos pior
do que cachorros sem dono. Provavelmente ela mesma passou por
ali por muitos dias sem nem ao menos vê-lo. Com certeza não o
maltrataria, mas também não pensaria na condição em que ele se
encontrava.
Raabe examinou os pequenos rostos diante dela. Nenhum deles
parecia demonstrar remorso, culpa ou arrependimento. Eram
apenas crianças, mas, desde já, tinham aprendido a maltratar os
mais fracos e a odiar os indefesos.
“Saiam já daqui”, ela ordenou. Eles lhe obedeceram em parte
porque era adulta, mas também porque suas roupas eram mais
finas do que as deles. O povo de Jericó sabia respeitar as pessoas
que tinham mais dinheiro.
Ela se ajoelhou diante do homem. “O senhor está muito ferido?”
Ele se encolheu e não disse nada. Ela viu que o corte era
superficial, e seria mais um machucado em seu corpo, além das
cicatrizes que ele fizera ao longo da vida. Ao mexer em sua bolsa de
linho, Raabe pegou algumas moedas de prata que provavelmente o
homem jamais teria recebido em um só lugar. Colocando as moedas
nas mãos do homem, ela disse: “Vá e procure um lugar seguro para
se lavar e descansar. E tente comer algo fresco”. Sua boca se abriu
e ela viu que os dentes estavam apodrecidos. A visão estranha
daquela boca sem dentes, abatida e fedorenta, fez seu coração se
encher de piedade em vez de nojo.
Ele envolveu as moedas com seus dedos trêmulos. Levantando as
mãos, ele gritou: “Malditas crianças! Que muitas maldições recaiam
sobre elas!”
“Shhhhh”, Raabe sussurrou. Sem entender o que estava fazendo,
Raabe abraçou o homem como as mães fazem com os filhos
queridos. De repente, ele começou a chorar, irrompendo em soluços
que pareciam não ter fim.
Com muita angústia, ela se deu conta de que eles não eram muito
diferentes. Ela também tinha feridas horríveis, mas as suas eram
interiores. Ela também estava abandonada e também fora rejeitada.
Sua vida havia sido desperdiçada. Não, ela não sentia nojo dele;
sentia apenas compaixão e compartilhava da sua dor.
Quando ele se acalmou, ela se levantou. “Senhora”, ele
murmurou. “Ninguém me segurava assim desde que eu era
menino.”
Raabe sorriu e fez um gesto com a cabeça. Cansada devido ao
acontecido, ela se afastou e começou a correr de volta para casa.
,.
Raabe contou aquela história a Debir quando ele foi visitá-la no
dia seguinte. Ele deu de ombros, desmerecendo o assunto. “Ele é
um mendigo, Raabe. Não sei o que tanto te incomoda.”
Raabe o analisou em silêncio. Debir era o amigo mais próximo
que ela mantinha desde a infância. Ela gostava de sua sinceridade e
inteligência, mas tinha de admitir que ele era duro. Impenetrável.
“Você acha que o deus dos hebreus se importa com os mendigos?”,
perguntou ela tentando incitar algum sentimento nele.
“Como eu vou saber? Eu sou hebreu? Ele se importa com bebês e
escravos; talvez ele se importe com mendigos também.”
Raabe afastou-se com tristeza. “E mesmo assim ele quer nos
destruir.”
“Sim.”
Ela se sentiu dividida entre o medo e o desejo. Medo de um deus
que desprezava seu povo e desejo de conhecer um deus que fazia
dos indefesos vitoriosos. O medo era maior. Sem pensar, Raabe
buscou pela mão de Debir e agarrou-se à sua pele grossa até sua
mão ficar firme. “Debir, vamos fugir. Vamos sair de Jericó.”
“Não há saída. Você não entende? O Senhor demarcou toda essa
terra para o povo dele.”
“Bem, vamos para outro lugar. Vamos...”
“Raabe, pare. Eu não vou fugir. Por que eu deveria me ajoelhar a
essa gentalha errante e seu deus piedoso? Sou um guerreiro de
Jericó, senhor de Canaã. Não trairei minha posição ou meu povo.”
Ele livrou sua mão da dela e se afastou.
Raabe abriu a boca para tentar convencê-lo, mas a fechou
novamente. Debir não sentia aquele desejo intenso de conhecer o
novo deus como Raabe. Ele tinha medo do poder desse deus, e
o medo não era nada comparado ao orgulho. De que modo ela
poderia contra-argumentar o orgulho de Debir se o medo que ele
sentia do deus hebreu parecia fazê-lo mudar de ideia?
Uma tristeza muito forte a dominou enquanto ela observava as
costas tensas de Debir. Seus dias juntos estavam chegando ao fim,
ela sabia. Ele era um homem que não acreditava no futuro, um
homem preparado para morrer. Homens condenados à morte
voltavam para suas famílias e, de repente, as coisas que eles
consideravam irritantes e enfadonhas pareciam preciosas e
valorosas. As prostitutas não atendiam mais às suas necessidades.
Raabe se aproximou e esperou que ele a reconhecesse com um
olhar. Ela acariciou com suas mãos macias o rosto dele. “Espero
que tenhas vida longa, meu senhor.”
“Você está se despedindo?” “É melhor assim.”
Ele afirmou com a cabeça em um movimento disciplinado. “Que o
deus dos hebreus seja bom para você, pois os nossos deuses nos
abandonaram.”
“Eu os abandonei primeiro, portanto, seu abandono não
representa tanto para mim.”
Ele quase sorriu. “Mandarei um penhor. Não se preocupe fazendo
economias. Gaste o quanto antes.”
,.
Nos dias que se seguiram, Raabe passou muitas horas pensando
no futuro. Ela pensava sobre as ruínas de Jericó e as paixões
infundadas de seus conterrâneos, que levavam apenas à destruição
e à infelicidade, e começou a pensar nos hebreus e em seus
costumes estranhos. Muito estranhos, se comparado aos deuses de
seu povo. Raabe não conseguia tirá-lo da cabeça. Haveria mesmo
um deus que governasse sobre todas as coisas? Seria mesmo real
esse deus dos hebreus que libertava alguns e condenava outros por
alguma razão incompreensível? Ele fazia mesmo os escravos serem
vencedores?
Depois de três dias pensando nessas questões e sem ter contato
com mais ninguém, ela sentiu que precisava se divertir e decidiu
procurar a família.
“Os meus olhos estão me enganando ou a minha filha mais nova
me honrou com uma visita?”
O sorriso de Raabe desapareceu. Sua mãe a olhou da cabeça aos
pés e lhe deu um beijo no rosto. “Izzie e Gerazim também estão
aqui. A família toda está reunida.”
Por um momento, Raabe sentiu uma forte dor. Se não tivesse
aparecido, eles a teriam convidado também? E por que
convidariam? Ela havia ignorado tantos convites deles no passado.
Embora frequentemente mandasse presentes, era raro visitá-los.
“Ficarei feliz em rever todos”, ela falou honestamente.
“É mesmo a minha irmãzinha?”, gritou Izzie e correu até Raabe
para abraçá-la. “Encantadora como sempre. Entre para não sujar
suas roupas delicadas. Estou preparando a comida e precisarei de
ajuda.” Ela chegou mais perto para que apenas Raabe pudesse
ouvi-la. “Mamãe está me deixando louca.”
Raabe riu, sentindo-se mais à vontade. Cozinhar com Izzie seria
muito bom.
“Mãe, agora que Raabe está aqui, a senhora pode descansar”,
anunciou Izzie. “Por que não vai se divertir com seu neto?”
“O quê? E deixar vocês duas prepararem tudo? Pode apostar que
não.”
Izzie resmungou em voz baixa. “Perdoe-me, mas cuido sozinha da
minha casa há tempo suficiente para preparar o jantar da minha
família. E Raabe é dona de uma estalagem reconhecida.”
“Obrigada por me lembrar, como se eu pudesse esquecer disso”,
disse a mãe das duas com os lábios se esbranquiçando.
Agora Raabe se lembrou do motivo pelo qual raramente visitava a
família. Izzie lhe deu um toque. “Ignore-a. Venha comigo.” Para o
alívio de Raabe, sua mãe não as seguiu, e ela passou duas horas
ajudando a preparar algumas iguarias para o jantar da família.
Depois de um tempo sua cunhada se juntou a elas e Raabe viu que
estava rindo de histórias bobas. Ela sentia saudades da família,
apesar dos comentários incômodos e das expectativas
estressantes. Ela sentia falta deles e nem sabia disso.
Com o passar dos dias, ela percebeu que estava passando cada
vez mais tempo com eles. Com as mulheres, ela limpava o jardim, ia
buscar água, fazia queijo e iogurte com leite de cabra, trocava
coisas no bazar e desfiava lã. Naquele período, a época de colher o
linho e a cevada havia chegado, e então Raabe se juntou à família
mais pelo desejo de estar com eles que pelos ganhos financeiros. O
“penhor” de Debir era uma sacola cheia de ouro, quantidade
suficiente para mantê-la por um ano. Isso se vivesse por mais um
ano, o que ela duvidava.
Raabe não acreditava mais que teria um futuro. Ainda assim, ela
machucava as mãos puxando o linho da raiz para proteger os talos
frágeis que um dia se tornariam panos. Mas quem viveria para
prepará-los? Quem colocaria os fios em um tear para trançá-los? E
quem os tingiria, coseria e usaria? Mesmo assim, ela puxava um
após o outro até que o solo diante dela estivesse limpo e sua pilha
estivesse bem cheia.
Sua família não estava imune à ameaça que se espalhava em
Jericó à medida que as notícias contínuas sobre as vitórias dos
hebreus chegavam aos portões. Assim, colher os levava a pensar
no futuro, mesmo que não fosse muito promissor. O inimigo se
aproximava.
Na noite em que todos acabaram a colheita, restava pouco da
jovialidade usual do último dia de trabalho. Raabe levou sua parte
dos talos de linho para casa e os arrumou no telhado para que
secassem. Ela estava exausta de tanto trabalhar. Cansada demais
até mesmo para limpar o suor da pele, ela se recostou na parede e
apoiou a cabeça nos joelhos.
Ela estava mal, tanto na carne quanto no coração. Uma sensação
avassaladora de isolamento a invadiu, apesar do tempo que passou
com a família durante aqueles dias e mesmo por terem a tratado
muito bem, era como se ela não pertencesse a ninguém. Raabe
queria dormir para aliviar a dor do pensamento e do sentimento,
mas o sono não vinha.
Ela fora capturada na solidão de seu peito, e nenhuma companhia
parecia acabar com esse vazio; capturada em seu próprio corpo, no
corpo de uma prostituta maculada por vários homens; capturada em
Jericó, que temia um inimigo cujas investidas não seriam contidas
pelos muros de pedra e concreto; capturada em Canaã, que fora
marcada pela destruição de um deus que afirmava ter o domínio do
mundo inteiro. Ela estava presa.
Haveria alguém que pudesse libertá-la de tantas amarras? Seus
pensamentos mais uma vez se voltaram para o deus dos hebreus.
Se ele fosse realmente o único deus acima de tudo, como os
hebreus diziam, logo todos que viviam na Terra pertenciam a ele de
alguma forma. Se ele fosse o único deus verdadeiro — mesmo que
aquela fosse uma crença remota — mas se ele fosse de verdade,
será que nem mesmo a Raabe prostituta, ou a Raabe cananeia, ou
a Raabe comum poderia clamar por ele?
Raabe se sentou com uma postura ereta. O que ela perderia com
isso?
“Deus dos hebreus”, ela começou a se questionar antes de calar-
se. Ela não fazia ideia de como falar com um deus depois de tantos
anos afastada. “Deus dos hebreus”, recomeçou ela determinada.
“Ouvi falar sobre teu poder. Teu povo diz que tu és o único deus
verdadeiro nos céus e na Terra, e diz que tu ouves os clamores e
tens piedade do sofrimento deles.
“Se isso não se tratar de histórias loucas de homens
desesperados e se tu fores verdadeiramente quem eles afirmam
que sejas, eu gostaria que tu te revelasses para mim. Gostaria que
tu me desses vida.”
,.
Os raios de sol fracos do amanhecer a acordaram de um sono
profundo. Ela ainda estava na parede em que havia se recostado na
noite anterior. Há meses ela não dormia tão bem, e as palavras de
sua oração ao deus dos hebreus de repente surgiram em sua
mente. Um deus invisível, sem forma nem imagem. Um deus que
ninguém poderia tocar; o deus de seus inimigos. E, ainda assim,
naquela manhã Raabe teve uma sensação de paz que ia além de
tudo que ela conhecera em tantos anos. Essa sensação seria um
feito do deus invisível? Ou ela estava ficando louca? Sua mãe ficaria
entristecida ou alegre por saber daquela loucura? O que seria pior
— ter uma filha prostituta ou uma filha louca?
Ela se levantou murmurando. Sua serva ainda demoraria a
chegar, mas Raabe mal podia esperar para se lavar. Ela estava com
cheiro de suor e terra seca. Ela cheirava a trabalho honesto.
Enchendo uma bacia grande com água morna, Raabe colocou
algumas gotas de água de rosa e óleo, e começou remover aquela
sujeira da pele. A paz permanecia, e se aquilo fosse loucura, ela a
aceitaria de braços abertos. Se fosse um feito do deus hebreu,
então ele era mesmo tudo o que seu povo proclamava. Se esse
deus era um inimigo, ela estava do lado errado da guerra.
Ao olhar para o lado de fora da janela, Raabe viu um céu azul sem
nuvens e decidiu sair para caminhar. Ela escolheu um caminho largo
delimitado por pequenos sicômoros que levavam ao comércio local.
De repente, o mau cheiro de carne carbonizada e o som dos
tambores invadiram seus sentidos. Ao olhar para cima, ela observou
os arredores e viu que estava perto do templo de Baal. A menos de
dez passos dela havia uma prostituta tropeçando no próprio vestido
que não mais parecia novo, enquanto estava à espera de alguém.
Os olhos das duas se encontraram. Ela era filha de alguém, Raabe
pensou. Era irmã de alguém. Mas sua vida fora sacrificada, dada em
troca de uma promessa de prosperidade.
Abundância, fertilidade, saúde — os cananeus sacrificavam seus
filhos em troca de ganhos maiores e de satisfações de todos os
tipos. Depois do dinheiro, eles desejavam a luxúria de corpo e alma.
Ao satisfazer um desejo deles, o povo esperava que os deuses
também satisfizessem todos os seus desejos. A estabilidade
financeira e os prazeres do sexo eram mais importantes do que a
vida em Jericó.
Passaram-se anos desde que Raabe havia se afastado dos
deuses de seu povo. Naquele momento ela viu que não se afastou
apenas dos deuses, mas também de seu povo. Eles escolheram
aqueles padrões; eles escolheram aquele estilo de vida e o
respeitavam. Canaã tinha se transformado na cova do mundo, e
Jericó era cova de Canaã.
Seria esse o motivo pelo qual o deus dos hebreus tentava acabar
com eles? Haveria esperança para aquele povo? Haveria redenção?
A resposta brotou dentro de Raabe como uma náusea que ela não
conseguia conter. Eles tinham ido longe demais e ainda eram
arrogantes. Rebeldes. Os fracos, os indefesos, os bebês anônimos,
os mendigos adoentados e as jovens forçadas a trabalhar nos
templos — como aquela moça que olhava para ela com um olhar
vago — nenhum deles tinha refúgio, justiça ou esperança de
salvação. Todos eles pereciam ou sofriam uma morte lenta causada
pela agonia da amargura que não parava de crescer e se
recusavam a perdoar, à medida que os mais poderosos exploravam,
saqueavam, usavam e violavam conforme seu prazer. Aquele era
seu lar, e aquela era sua herança.
Perturbada, Raabe voltou para a casa de sua família. No pequeno
jardim, ela viu Joa cuidando das verduras.
“Raabe!”, chamou ele e se levantou.
“Eu queria comprar alguma coisa no mercado para comermos,
mas me perdi antes de chegar.”
“Toda Jericó se perdeu. Venha pegar as verduras comigo.” Raabe
se ajoelhou na terra sem tomar cuidado para não sujar suas roupas
finas. “Joa, você acha que o deus dos hebreus é real?”
“Talvez você deva perguntar isso a Ogue e a Siom. Ah, espere, eu
me lembrei agora. Eles estão mortos.”
“Ou talvez eu devesse perguntar aos próprios hebreus. Ah,
espere! Eu me lembrei. Eles estão vivos, apesar dos anos vagando
pelo deserto, da perseguição do exército do faraó e do ataque dos
maiores reis de Canaã.”
“Antes você duvidava dele, e agora você o defende. Você precisa
se decidir, minha irmã.”
Raabe não mostrou se importar muito. “Eu sei que não gosto dos
nossos deuses, e também não sou muito chegada ao nosso povo.”
“Raabe!”
“Pense bem, Joa. Onde está a bondade de Jericó? Onde está a
compaixão?”
Joa franziu suas sobrancelhas escuras. “Nós não somos
diferentes de ninguém. Todos são iguais.”
“Ninguém é igual a ninguém. Os hebreus não vivem de acordo
com os nossos padrões.”
“Os hebreus!” Joa pronunciou essas palavras com tanta violência
que Raabe mudou de assunto. No entanto, seu humor permaneceu
sombrio e, mesmo estando com ele por tão pouco tempo, ela ficou
inquieta mais uma vez e foi para casa.
Uma vez dentro de casa, ela viu que não poderia nem se sentar
nem comer. Passando de cômodo em cômodo, ela subiu a pequena
escada que levava ao telhado, onde os talos de linho secavam.
Colocando-os nos embrulhos, ela olhou fixamente ao longe, para
além das terras de Jericó. Em algum lugar além do horizonte, os
hebreus se preparavam para a guerra.
“Eu vejo o mesmo que tu vês quando olhas para Canaã?”, ela
perguntou ao seu inimigo invisível. “Eu vi nosso povo por meio dos
teus olhos hoje?” Raabe deixou escapar um suspiro. “Deus dos
hebreus, conheço-te pouco e nada sei sobre os teus pensamentos.
Mas se tu és um deus compadecido, certamente o meu povo não te
agrada. Peço-te perdão.”
O dia ficou mais quente. Raabe pegou o véu transparente da
cabeça e o retirou com um gesto brusco. Uma brisa suave aliviou o
peso de seus cabelos em seu pescoço e ela levantou o rosto para
receber aquela carícia. A paz que a invadira pela manhã — uma paz
que não tinha motivo ou explicação — voltou ao seu peito e lhe
concedeu uma força renovada.
“Deus dos hebreus, és tu?” Uma certeza inexplicável encheu sua
alma — a convicção de que aquele deus real e verdadeiro estava
presente naquele momento. “Tu és real”, afirmou Raabe respirando
fundo.
A paz se aprofundou, aumentando e a envolvendo como um
nevoeiro. “Eu creio em ti. Tu és o Deus dos céus e da Terra. Posso
até estar louca, mas creio em ti.”
Raabe se deitou sobre os talhos de linho e ergueu os braços. “Eu
creio!”, gritou.
O som de sua voz a despertou para algo. Pela primeira vez há
anos, ela se sentiu amparada por algo seguro, algo bom. Aquele
pensamento a fez erguer-se. “Assim como o meu povo, sou uma
mulher de impiedade.” Em pensamentos, ela viu sua cama e
lembrou-se do que ela representava. Cada parte de si recordavase
de suas iniquidades, de suas dissimulações, de suas mentiras e de
sua luxúria. Ela sempre culpava os outros pela vida que teve: a
traição de seu pai, o interesse de sua mãe, as necessidades de sua
família, a perfídia dos homens, a infidelidade dos deuses.
Ela errou muitas vezes, não restava dúvida. Mas ela também fez
suas escolhas. Será que Deus não prestaria conta disso tudo?
“Perdoe-me ”, sussurrou ela. “Perdoe-me por tudo. Prometo que
abandonarei essa vida. Até o fim dos meus dias, abandonarei essa
vida.”
Capítulo
Quatro

S almom!”, gritava uma voz familiar com uma insistência


perturbadora.
Salmom agachou-se por detrás de uma pedra. Ele detestava ter
de abrir mão de seus momentos raros de privacidade, um luxo difícil
de se ter quando se viaja com um grande número de pessoas. Seu
amigo, Hanani, gritou novamente. “Já é hora de parar de se
esconder, grande comandante. Josué tem assuntos a tratar com os
líderes das tribos.”
Aquilo chamou a atenção de Salmom. Com um suspiro, ele
esticou suas longas pernas e levantou-se. “Pare de perturbar os
ouvidos das ovelhas. Estou aqui. O que Josué quer?”
“Eu tenho cara de ser um de seus mensageiros?”, perguntou
Hanani, mexendo na barba e bocejando. “Ele apenas pediu para
encontrar você; ele quer se reunir com os líderes das tribos, então,
chega de se esconder como se fosse uma noiva tímida na noite do
casamento.”
Salmom sorriu. Quanto mais perto Israel chegava da Terra
Prometida, maior ficava sua lista de responsabilidades. Por ser líder,
ele agia como mentor, mediador, guerreiro, administrador das
decisões, coordenador, organizador, mandante e pastor de
rebanhos. Seu pai, Naassom, tinha assumido tantas
responsabilidades importantes como líder de Judá que, sob seus
cuidados, Salmom se acostumou com os fardos de seus deveres
desde jovem.
“Obrigado pelo elogio, Hanani”, disse ele para o amigo e voltou
para o acampamento. Salmom sabia que Josué não costumava
reunir os líderes sem motivo. Por ser um homem ativo, ele usava o
tempo com cuidado e parcimônia.
Ao chegar, Salmom já encontrou os homens reunidos em volta de
Josué e sentou-se em um lugar onde melhor pudesse ouvir. A figura
forte de Josué permanecia ereta em uma encosta inclinada. Seus
cabelos de tons claros e escuros se agitavam na brisa calorosa, e
nada mais nele parecia se mexer. “Tenho notícias de Moisés”,
começou Josué, mas sua voz estremeceu e ele parou.
Dois dias atrás, Moisés reunira o povo de Israel. “Estou
envelhecendo e não consigo mais os liderar”, anunciou ele. A
multidão se opôs com desalento, pois Moisés ainda mostrava o
vigor de um homem importante, apesar de sua idade avançada.
Seus olhos tinham a visão de um jovem forte que caminhava com
movimentos nítidos da juventude.
Para impedir os murmúrios do povo, Moisés apenas levantou a
mão pedindo silêncio. Ele já estava acostumado com as objeções, e
a insistência do povo não o influenciava mais. “O Senhor me
informou que não devo atravessar o rio Jordão com vocês. Ele
escolheu Josué para ser seu líder, portanto, eu o nomeio e o
abençoo.
“É hora de deixar o medo para trás para que seu destino não lhes
seja roubado. Vocês não precisam de confiança em si mesmos ou
em seu próprio poder. Fortaleçam-se no Senhor, e quando um
desastre se aproximar, não desanimem. Deus nunca os
abandonará.” Quando Moisés terminou de transmitir a mensagem,
ele subiu ao monte Nebo. Passaram-se dois dias, e naquele
momento Josué teve notícias recentes sobre ele. Os líderes
reunidos mantiveram o silêncio e mal respiravam.
“Antes de partir, Moisés impôs as mãos sobre mim e me abençoou
mais uma vez”, explicou Josué. Salmom ficou olhando o gogó de
Josué subindo e descendo enquanto falava. “Moisés me disse que
não voltaria do monte Nebo. Como sempre, ele estava certo. O
Senhor me informou que Seu servo Moisés está morto.”
Alguns homens resmungaram; outros ficaram atordoados. Seria
mesmo verdade? Moisés estaria morto? Eles se lembraram de que
nenhuma geração de Moisés entraria na Terra Prometida, exceto
Josué e Calebe, como o próprio Moisés já havia dito.
Salmom olhou fixamente para Josué sem acreditar. Ele notou o
brilho das lágrimas em seus olhos castanhos e, de repente, teve a
certeza de que jamais viria Moisés novamente. Durante toda a vida
de Salmom, Moisés esteve por perto como uma luz guiando o povo.
Certamente, eles jamais veriam outro homem de tanta fé, e
certamente Israel havia perdido seu maior líder. Salmom pôs as
mãos na túnica e a rasgou. Os homens que estavam à sua volta o
olharam admirados, como se sua atitude tivesse confirmado que a
morte de Moisés era verdade.
Josué fez um gesto com a cabeça e rasgou a própria túnica.
“Amanhã”, disse ele, “Israel lamentará formalmente por Moisés.
Teremos trinta dias para derramar nossas lágrimas e nos enlutar.
Depois, devemos continuar. O Senhor está prestes a nos dar esta
terra. Digam às tribos e preparem-nas para o luto. Preparem-nas
para a obediência.” Levantando seus braços, ele continuou:
“Preparem-nas para a vitória!”
Salmom se levantou com o restante dos líderes e voltou para a
tenda, arrastando-se a cada passo; o luto lhe era bastante
conhecido, pois Salmom já havia perdido o pai, a mãe e sua jovem
esposa. As lágrimas cairiam, ele sabia. Ainda assim, a felicidade
estava por perto. Finalmente, depois de uma vida inteira vagando de
vale a vale, montanha a planície, de caminhos arenosos a campos
de pedra, ele estava perto de casa. Salmom olhou à sua volta e
entrou no acampamento onde era a única vida que ele conhecera.
Tendas grandes e pequenas ocupavam cada pedaço da terra.
Estábulos improvisados resguardavam os animais — ovelhas em
alguns, cabras em outros, poucos bois e vacas por aqui e por ali. O
cheiro e a poeira enchiam o ar. Como seria viver em uma casa, ter
um celeiro e terras? Salmom estava prestes a descobrir. Ter um lar
significava mais batalhas e tribulações, mas também representava
uma esperança renovada no futuro.
Enquanto ele seguia até a tenda, Micael, Setur e Jedaías
cruzaram seu caminho. Bom. Eles eram homens influentes que o
ajudariam a espalhar a notícia.
“É mesmo verdade, meu senhor? Moisés está mesmo morto?”,
perguntou Micael. Ele era um homem robusto alguns anos mais
velho que Salmom, e havia algo em sua postura firme que era digno
da confiança e do apreço de seu líder.
Salmom fez que sim com um gesto. “Sim, infelizmente é verdade.
Foi a maior perda que já tivemos, mas mesmo assim Josué nos
assegurou de que continuaremos marchando até as terras a oeste
do Jordão dentro de um mês.”
“Senhor, tenha misericórdia!”, clamou Setur. “Estamos
despreparados! Como poderemos vencer alguma batalha sem
Moisés?”
Salmom voltou-se para Setur, pensativo. “Estamos mesmo
despreparados? Acho que Deus pode cumprir Suas promessas
mesmo sem Moisés.”
Setur fez um gesto agressivo no ar. “Deus usou Moisés para nos
libertar da escravidão no Egito, para nos manter vivos pelo deserto e
para nos levar à vitória em todas as batalhas que já travamos.”
Salmom cruzou os braços. “E agora Ele usará Josué. Ou você tem
planos melhores? Você recomendaria que voltássemos para a
escravidão no Egito?”
“Estou apenas dizendo que...”
“Então pare de falar. Você está tomado pelo pânico. Nossa fé
nunca esteve em Moisés ou em nenhum outro homem, porque ela
está no Senhor Deus. Cada um de nós é substituível, até mesmo
Moisés.”
“Josué tem algum plano?”, perguntou Micael.
“Ainda é cedo. Você conhece Josué; ele fala mais com Deus do
que conosco, e no tempo certo ele terá um plano. Ainda temos um
mês inteiro para lamentar por Moisés.” Enquanto Salmom se virava,
seus olhos estavam fixos em Jedaías e ele se foi. O homem estava
se segurando ao máximo para não chorar, e Salmom repreendeu a
si mesmo por ter sido tão tolo. Como ele poderia se esquecer da
forte afeição que Jedaías sentia por Moisés? Havia um laço especial
entre os dois homens, e Jedaías considerava Moisés um herói. Ele
o amava.
Salmom estendeu a mão e segurou o ombro de Jedaías.
“Desculpe! Sei o que Moisés representava para você, e sei o quanto
você era importante para ele.”
Os lábios de Jedaías estremeceram como os de uma criança, e
lágrimas grossas rolaram pelo seu rosto desaparecendo em sua
barba. “Eu nem ao menos tive a chance de me despedir.”
“Sinto muito, Jedaías”, repetiu Salmom, triste pelo amigo. Ele já
conhecia o suficiente aquela situação e não queria parecer
insensível. Entretanto, as perdas deveriam ser superadas, e não há
atalhos para que isso aconteça. “Bom, o luto formal por ele
começará amanhã. Se quiser fazer algo especial, visite a família
dele.”
Jedaías concordou. Salmom sabia que fazer algo prático seria um
escape para o sofrimento. Jedaías partiu para a tenda de Moisés.
“Então, em breve, estaremos no campo de batalha”, disse Micael
em meio ao silêncio que seguiu a partida.
“De fato. Deus nos deu a terra.”
Setur comentou: “você parece bastante confiante na vitória”. “Eu
estou, Setur. Minha confiança está em Deus. Você sabe como a fé
dos nossos pais os abandonou e sabe também que, mesmo com
Moisés, eles se recusaram a lutar pelo medo da perda. Mas eu não
pretendo cometer esse erro, pois Deus está dando outra chance à
nossa geração. Não estou disposto a perder minha oportunidade
assim como meu pai perdeu a dele.”
Setur nervosamente umedeceu os lábios ressequidos. “Eu
também não quero perder minha oportunidade.”
Salmom lhe deu um tapinha nas costas. “Bom homem. Confie em
Deus. Mas se não conseguir confiar nele, apenas obedeçaLhe.”
Durante as vinte e quatro horas que sobrevieram aquele
momento, Salmom dedicou suas energias convocando os homens e
mulheres mais influentes, explicando a eles a história de Moisés e
instruindo-os a fazer conforme Josué dissera. A vida sem Moisés
parecia impossível, mas talvez o Senhor quisesse fazê-los entender
que a carne e o sangue não os levariam ao destino final. Apenas o
Espírito do Senhor poderia fazê-lo.
Salmom entendeu que, se as pessoas saíssem da segurança de
sua fé, o povo se daria conta de como as batalhas são uma
incumbência dúbia. O povo de Israel nada sabia sobre os soldados
e as cidades muradas de Canaã. Tudo o que eles tinham era Deus
e, somado à fé, isso parecia mais do que o suficiente.
,.
Depois dos trinta dias de luto, Josué reuniu novamente os líderes
das tribos. Já era noite, os líderes se agruparam sob a grande tenda
de Josué. As pernas grandes e fortes de Salmom estavam
espremidas entre Calebe e Elidade, um dos líderes da tribo de
Benjamim. Ele conseguia sentir as velhas vestes deles roçando em
sua panturrilha, e uma satisfação curiosa o dominou — a satisfação
de estar rodeado por seus irmãos, apesar do cotovelo deles
esbarrarem em sua costela e das pernas deles estarem dobradas
de uma forma estranha. A companhia dos irmãos o reconfortava, e
uma sensação de segurança invadiu seu corpo.
Naquele espaço apertado, a voz de Josué ecoou como o som
sibilante de uma flecha lançada. “Precisamos preparar o povo para
atravessar o rio Jordão.”
Elidade pigarreou. “Mas, Josué, o rio Jordão está em período de
cheia e inacessível. Não seria melhor esperar mais alguns meses?
Já se passaram quase quarenta anos, o que são mais dois ou três
meses?” Salmom se virou com espanto a fim de olhar para ele. Para
sua surpresa, ele viu que muitos outros líderes concordavam.
Josué o encarou com seriedade. “Foi o Senhor quem falou isso,
Elidade?”
Elidade se remexeu na esteira. “Bem, não. Estou apenas
avisando, só isso.”
“Deixe-me dizer uma coisa a todos vocês. O conhecimento
humano não nos fará vencer essas batalhas. Apenas Deus o fará,
assim como fazia desde o dia em que Moisés nos libertou da
escravidão no Egito. Nós não fomos chamados para ser homens de
guerra do jeito que as outras nações conhecem, mas sim para ser
um povo de fé. Nosso escudo é a Lei de Deus, e nossa espada é a
Sua Palavra. Ele é o nosso lugar forte, e somente Ele nos
concederá a vitória. Se não for assim, podemos cavar nossas
próprias sepulturas agora mesmo.”
O silêncio recaiu sobre os homens. Como era fácil esquecerse de
que eles não poderiam viver como as outras nações. Como era fácil
se resvalar para o orgulho e a razão humana, que não deixam
espaço para os caminhos de Deus. Finalmente, Elidade quebrou o
silêncio mais uma vez. “Se o Senhor nos levar às águas turbulentas
do Jordão, nós seguiremos em frente, Josué. Nós seguiremos a
Deus em qualquer lugar.” Salmom sentiu que seus músculos
contraídos relaxaram.
“Bom.” O sorriso de Josué revelou a brancura de seus dentes
perfeitos. “Agora ouçam. Todos vocês voltem ao acampamento e
mandem as pessoas prepararem os alimentos. Avisem que
atravessaremos o Jordão antes do fim da semana.
“E tem mais uma coisa. Estou pensando em mandar dois homens
espionarem a oeste do rio para nós. Precisamos principalmente de
informações sobre Jericó, mas sem extravagâncias. Vão, avaliem a
situação e voltem. Eu gostaria de saber que tipo de recepção nos
espera.”
Salmom se levantou com um salto. “Escolha a mim, meu senhor.”
“Não, Salmom, preciso de você aqui. Mas traga seu amigo
Hanani. Eu escolherei ele e Ezra.”
Disfarçando sua decepção, Salmom baixou a cabeça em
obediência, pois há muito aprendera a controlar os impulsos. Ele
sorriu ao pensar no entusiasmo de Ezra e Hanani por terem sido
escolhidos por Josué para uma missão tão importante.
,.
A correnteza fazia as ondas ficarem intransponíveis. Hanani e
Ezra precisaram fazer a travessia da forma mais difícil —
enfrentando juntos a força da água para bloqueá-la com seus
corpos protegendo um ao outro; um permanecendo firme de costas
para a correnteza, suportando a força das águas, enquanto o outro
seguia em frente. Com uma determinação absoluta, eles se
colocavam contra a força incansável da água, que batia com
torrentes violentas que revelavam redemoinhos à medida que seus
pés lentamente davam direção a cada passo. Exaustos, os dois
finalmente conseguiram chegar à outra margem agarrando-se aos
galhos que se arrastavam pelas águas. Por muito pouco eles não se
afogaram.
Depois de recuperar o fôlego, Hanani lançou um olhar agoniado
para Ezra. Não havia como o povo de Israel atravessar aquele rio.
“Vamos direto para Jericó”, sugeriu Hanani. “Foi primordialmente
para isso que Josué nos mandou vir, e nosso tempo é curto.”
“Essa também será a parte mais difícil de nossa missão, Hanani.
Passar pelos portões da cidade sem sermos presos não será tão
fácil quanto recolher maná.”
Hanani mexeu na barba escura. “Isso é inevitável. Apenas
mantenha sua cabeça abaixada e não fique igual a uma mosca
morta quando chegarmos lá. Entraremos durante a hora de mais
agitação da tarde e espero que não notem nossa entrada.”
“Eu não olharei se você não falar como uma garotinha. Seu
sotaque vai nos revelar antes mesmo de você acabar sua primeira
frase.”
Hanani se voltou para o amigo com um olhar zombador. “Pelo
menos eu sei falar. E você? ‘Olá, Mi-mi—miriã’. Tão profundo. Tão
charmoso. Tenho certeza de que Miriã correu para casa e implorou
que seu irmão lhe permitisse casar-se com você depois dessa
conversa.”
“Ah, cale a boca.”
Hanani estava pensativo, não tinha cabeça para provocações.
Suas brincadeiras indiferentes eram apenas uma tentativa de aliviar
o peso da ansiedade que recaía sobre sua mente, e ele desconfiava
que Ezra estivesse com as mesmas sensações.
O dia ficou extremamente quente e suas roupas ensopadas
secaram de imediato. Depois, os dois homens tiraram as vestes
mais pesadas e decidiram viajar com as roupas mais simples. O
caminho para Jericó estava coberto por pequenas pedras, o que era
melhor para os pés. Hanani, cujos pés ficaram resistentes depois de
anos de jornada, mal sentiu as deformidades do chão na
caminhada.
Apesar de ainda distante, os muros de pedra de Jericó
apareceram. Conforme os dois se aproximavam, viram que grupos
de soldados marchavam dois a dois nos parapeitos dos muros,
permitindo a passagem de grupos vindos da direção oposta sem
nenhuma dificuldade.
“Bela construção”, disse Hanani. “Mas qual será a espessura
daquelas pedras?”
Ezra nem chegou a responder. Eles já tinham discutido o plano.
Eles caminhariam em meio à multidão, manteriam os ouvidos bem
atentos e andariam até o cair da noite sem falar com ninguém.
Hanani sabia que a verdadeira missão deles era ouvir. Qual seria a
reação dos habitantes de Jericó em relação às vitórias de Israel, a
leste de suas terras? Eles estavam cientes dos acontecimentos dos
últimos meses? Eles estavam se preparando para a batalha?
O plano dos dois deu errado desde o princípio. Os guardas nos
portões estavam revistando todos, e cada inspeção parecia mais
longa e mais minuciosa, o que representava um problema para
entrar sem serem notados pelos espiões. Ao se aproximarem, um
dos soldados bloqueou a passagem de Hanani enquanto o outro
apontou o dedo contra o peito de Ezra. “O que vocês fazem aqui?”,
perguntou ele.
“Somos mercadores”, respondeu Ezra. “De onde vocês vieram?”
“Na maior parte do tempo, de Midiã. Mas também viajamos pelos
arredores.”
O guarda franziu as sobrancelhas. “Vocês falam estranho.”
Hanani olhou em volta desesperado. Não tinha como lutar nem
escapar, pois os guardas tomavam quase toda a entrada dos
portões. A ousadia era a única esperança deles. “Estamos falando
engraçado por causa da poeira das estradas, amigo. Minha sede
está me matando. E ele”, Hanani apontou para Ezra, “está com
tanta fome que comeria um camelo inteiro. Deixe-nos passar, amigo.
Trouxemos dinheiro para gastar em Jericó.”
“Sim, deixe-os entrar, amigo”, pediu uma inesperada voz feminina.
Uma mulher com vestes de seda azul-clara recostou-se no muro em
frente a eles. Seus cabelos castanhos caíam pela cintura como
pequenas argolas reluzentes, levemente cobertos pelo véu que
flutuava no vento. Seus olhos grandes de cor de mel eram
emoldurados por cílios curvados, e o nariz pequeno apontava como
uma seta para os lábios carnudos, muito avermelhados pela
bondade da natureza. A seda azul de seu vestido aderia-se com
sedução à sua figura curvilínea, deixando pouco à imaginação.
Hanani engoliu em seco. Dona de estalagem, dissera ela. Tudo
relacionado a ela lhe era proibido. Ele ficou nervoso e desviou o
olhar.
Felizmente, o guarda parecia tão distraído quanto Hanani.
Perdendo o interesse no interrogatório, ele encarou a mulher.
“Raabe! Os negócios não devem estar tão ruins a ponto de você
receber homens usando essas roupas em sua estalagem.”
“Claro que os negócios vão mal, graças a você e aos seus
soldados que assustam meus clientes. Agora deixe esses belos
mercadores entrarem em minha estalagem para que eles possam
gastar muitas moedas de prata com os bons vinhos de Jericó.”
O guarda pensou. “E o que eu ganho com isso?”
“Eu lhe darei um jarro da minha água de cevada hoje à noite, mas
só se você parar de importunar meus clientes.”
“Dê logo a água de cevada”, bajulou Hanani.
Hanani olhou para a mulher. Ela os encarou com os olhos
apertados e, em seguida, saiu, desaparecendo em uma escada
esculpida por dentro do muro. Ele tinha certeza de que ela acabara
de salvar a vida desses dois homens.
“Vocês dois, continuem aí. Se ela voltar, vocês entram. Sabe, acho
que ela está desperdiçando força e energia, pois não acredito que
haja tanta prata no bolso de vocês.”
Mesmo estando em um canto, a presença dos dois atraiu muitos
olhares curiosos e hostis. Salvos por uma dona de estalagem
— uma zonah! No final das contas, talvez a morte sob tortura não
fosse um destino tão cruel assim. Ele não conseguia se imaginar
explicando essa sequência de acontecimentos a Josué.
Finalmente, a mulher chamada Raabe voltou. Ela passeou sem
pressa até Hamish, fazendo gracejos com os lábios a cada passo
que dava. Hanani apreciou aqueles passos ondulantes, pois cada
homem que antes olhava fixamente para ele e para Ezra agora se
focava em Raabe. “Aqui está sua bebida, jovem soldado. Agora,
entregue-me os meus clientes e vá incomodar outra pessoa.”
Hamish pegou o jarro de suas mãos e riu. “Ei, companheiros,
vejam o que eu ganhei. Água de cevada feita pelas mãos delicadas
de Raabe, e nenhum de vocês vai beber sequer uma gota.”
Hanani e Ezra entraram no mesmo momento, seguindo Raabe
muito aliviados enquanto ela os levava para sua estalagem nos
muros de Jericó.
Capítulo
Cinco

N inguém ficaria mais surpreso do que Raabe por encontrar dois


espiões hebreus a dez cúbitos de sua estalagem. Ela sabia que
eles eram hebreus desde a primeira vez que os viu. Além do
sotaque diferente, havia algo no comportamento deles. Eles
pareciam fortes e tinham a postura de soldados, e não de
mercadores. Certamente os dois levantaram suspeitas dos guardas,
e se ela não tivesse interferido, eles teriam sido presos. A cidade de
Jericó havia sido dominada pelo medo dos hebreus desde a queda
de Ogue, e cada pessoa estranha que se aproximava dos portões
era inspecionada com muito cuidado e pouca sutileza.
Em seu lugar, qualquer outro cidadão de Jericó também
desconfiaria e insistiria para que eles fossem revistados, mas Raabe
entrou em pânico ao pensar nos dois em perigo. Ela não aguentaria
saber que alguém do povo do Senhor havia sido destruído, e viu
que precisava ajudar. Ao se aproximar, ela não tinha plano ou
estratagema algum; Raabe sabia apenas que precisava desviar a
atenção dos soldados. Portanto, ela improvisou.
Depois daquele momento, havia dois hebreus andando atrás dela
como filhotes de leão seguindo a mãe. Quem a mataria primeiro?
Os hebreus ou os soldados de Jericó? Definitivamente, ela perdera
a cabeça. Não restava dúvida. Mas mesmo pensando nisso, ela se
perguntou se o deus dos hebreus a aprovaria.
Calando-se por um momento enquanto eles passavam pela
soleira de sua estalagem, Raabe puxou o véu para frente e disse:
“Por favor, sentem-se, meus senhores. Vocês devem estar
cansados devido à longa jornada. Gostariam de algo para se
refrescar?”
Os homens, depois de entrarem pela porta, firmaram seus
movimentos como se preferissem não tocar em nada. O homem
mais baixo, com a barba tremendo, negou com a cabeça. “Não,
obrigado. Nós trouxemos comida.”
Raabe fez um gesto apontando-lhes a mesa e colocou taças de
vinho diante deles. O mais nervoso puxou do bolso algo embalado
em um pano fino. Ele estava tão tenso que esbarrou em uma das
taças de vinho, e Raabe teve de buscar um pano para limpar a
sujeira. À medida que ela se movia, os olhos deles se desviavam de
um lado para o outro, nunca se fixando no rosto ou no corpo dela,
mas sempre buscando qualquer outro ponto para olhar que não
fosse ela.
Ela se lembrou de que Debir tinha falado que as prostitutas eram
condenadas à morte por aquele povo. Seria ela repugnante para
eles? Ela encolheu as sobrancelhas ao pensar naquilo. Em seguida,
ela decidiu seguir em frente e conquistar a confiança deles. Seria
muito difícil? Metade dos homens de Jericó comia na palma da sua
mão, e provavelmente os hebreus não seriam diferentes. “Quais são
os seus nomes?”, perguntou ela.
“Eu sou Ezra e este é Hanani”, respondeu o mais alto. Ele tinha
uma pele bastante clara, em contraste com seus cabelos escuros, e
se não fosse pelo nariz torto, ele seria muito bonito para o padrão. O
que se chamava Hanani olhou para ele, considerando inapropriada
aquela informação.
“Nós só estamos aqui para... para... para procurar algum lugar
para ficar. Nós não queremos nenhum... nenhum... bem, quero
dizer, nós só queremos um lugar para descansar e seguiremos em
frente”, disse Hanani.
Raabe se levantou e deu um passo atrás. Ela sentiu a própria voz
gélida enquanto dizia: “Vocês são apenas convidados em minha
estalagem”. Em seguida, para sua surpresa, ela se viu dizendo:
“Chega de ser o que eu era”.
Nesse momento, os três se entreolharam. Finalmente, Raabe
disse: “Descansem tranquilos. Vocês têm uma amiga, embora eu
deva lhes avisar que vocês ainda não estão a salvo”.
“O que você quer dizer?”, perguntou Hanani, levantando a perna
com um impulso repentino que derrubou a taça de vinho novamente,
mas que daquela vez pelo menos estava vazia.
Ela se curvou e pegou a taça. “Quero dizer que sei que vocês são
hebreus, e todos os soldados lá fora chegarão à mesma conclusão
se pensarem nas evidências.”
“De onde você tirou essa ideia?”, perguntou Hanani olhando para
a porta.
“Não saiam agora. Seria um grande erro. Vocês ficarão mais
protegidos aqui comigo do que lá fora com os soldados. Não
perceberam como eles suspeitaram enquanto vocês tentavam entrar
nos portões? Seu sotaque nos é estranho, e vocês têm o corpo e a
postura de soldados. Além disso, Jericó está em alerta máximo por
causa das muitas batalhas que vocês conquistaram a leste do
Jordão. Se eu não os tivesse distraído, vocês estariam sob chicote e
lança agora.”
Ezra pigarreou como se aquela última palavra tivesse perfurado
sua garganta. “Por que nós deveríamos acreditar em você?”,
perguntou ele.
Raabe olhou pela janela em direção ao portão. “Porque, se eu não
estiver enganada, aquele mensageiro entregará uma mensagem
aos homens do rei agora mesmo. Logo eles virão atrás de vocês.”
Hanani foi para mais perto dela escondendo-se pela parede para
ser visto. Pela sua expressão, Raabe viu que ele havia reconhecido
o mensageiro que ela mencionou, e Hanani viu um grupo de
soldados erguendo os olhos, em direção à estalagem. Um deles
disse algo e deu uma pancada no chão. “Precisamos sair daqui”,
disse ele a Ezra.
“Como?”, perguntou ela. “Se descerem essas escadas, vocês
serão pegos.” Raabe cobriu o rosto com as mãos por um momento.
Não acredito que estou fazendo isso. “Ouçam, tenho uma ideia
melhor. Vou esconder vocês.”
“Por que você faria isso?”, perguntou Ezra com a voz cheia de
suspeita.
“Bem, com certeza não é por causa de suas barbas bonitas.”
Raabe comprimiu os lábios em uma tentativa de refrear a ira que a
desconfiança de Ezra e Hanani lhe provocara. Ela pensou e viu que
não poderia culpá-los pelo ceticismo; nem mesmo ela entendia a
própria atitude.
Por que ela estava arriscando a vida para ajudar aqueles hebreus
ingratos? Por causa do deus deles. Ela queria estar com ele. No
fundo Raabe acreditava que o Senhor destruiria Jericó, e ela não
queria ver a si mesma e sua família em meio à ruina. Eu quero
ajudar vocês porque acredito em seu deus como nunca acreditei em
nenhum outro. Eu quero ajudar vocês porque prefiro seguir o
Senhor a seguir os caminhos de Jericó.
“Eu não quero me opor ao seu deus; agora, vocês querem ou não
viver? Se quiserem, me escutem.”
O fato de ela ter mencionado Deus pareceu diminuir a agitação
deles. “Tudo bem”, murmurou Ezra ainda pensando na resposta de
Raabe.
Ela fez um gesto para o alçapão que levava ao telhado. “Coloquei
alguns talos de linho para secar lá em cima. Vão até a escada do
quarto atrás de vocês e se escondam debaixo do linho. Já está
escurecendo e, se vocês tomarem cuidado, ninguém os verá no
escuro.”
Sua estalagem fora construída no alto; o telhado projetava uma
passagem estreita com o muro, pairando sobre a lateral da cidade.
Três vezes ao dia, os guardas marchavam pelo telhado de sua casa.
Raabe sabia que o próximo grupo não chegaria até a manhã
seguinte, o que faria daquele lugar um esconderijo seguro pelas
próximas horas. Raabe subiu a escada atrás dos dois e os viu
escondidos debaixo do linho.
“É um longo caminho”, sussurrou Hanani enquanto olhava ao
redor, com a voz ainda um pouco trêmula.
Raabe se lembrou da sensação de enjoo quando subiu até o
telhado pela primeira vez. “Há espaço suficiente”, assegurou ela.
Outros perigos pareciam muito maiores do que a altura. “Entendam
uma coisa”, avisou ela. “Minha vida corre tanto perigo quanto a de
vocês, pois agora eu traí meu povo.”
Enquanto voltava para onde eles estavam antes, Raabe ouviu o
som de um espirro sufocado. Nem mesmo a porta do alçapão
abafou o barulho. Ela fechou os olhos com força e se encolheu. Não
há problema algumas pessoas terem reações adversas quando
próximas a linho seco, mas naquela noite um simples espirro
poderia levá-la à morte.
Depois disso, o outro som que ela ouviu foi o de pés pelos
degraus. Raabe gelou. A escada! Agarrando-a, ela puxou a escada
e levou para o quarto. Pesava mais do que ela imaginava. Em geral,
ou seu servo a trazia ou ela a arrastava pelo chão. Mas ela não
ousou fazer nada que pudesse levantar suspeitas, como arrastar
móveis pesados, enquanto os soldados se aproximavam. Gotas de
suor se acumulavam em sua testa à medida que ela dava um
pequeno passo após o outro com a escada içada em seus braços
doloridos. Um dos pés encostou no degrau mais baixo, ela acabou
tropeçando. A escada quase escapou das mãos, e os passos se
aproximavam. Ofegante, ela deu alguns passos de dança e
recuperou o equilíbrio.
Os passos chegaram à porta exatamente quando ela encostou a
escada na parede, onde cortinas azuis de linho a esconderiam.
Raabe mal teve tempo para respirar antes de ouvir as batidas na
porta. Ela se virou e viu, para seu horror, que um dos hebreus havia
deixado as vestes mais pesadas nas almofadas. Um som de
espanto escapou de sua boca e, ao lado das vestes, os restos da
refeição estavam à vista. Raabe escondeu tudo debaixo dos lençóis
da cama e colocou a coberta bordada por cima de tudo, esperando
que os soldados não reparassem naquele amontoado estranho. Por
precaução, ela tirou dois travesseiros do chão e os colocou na
cama, mas outra sequência de batidas impacientes na porta a
fizeram dar um salto.
“Esperem, homens! Estou indo”, ela gritou e abriu a porta. Dois
homens com o uniforme de soldados do rei estavam do lado de fora.
“Os guardas do rei! Não me digam que ele deseja a minha
companhia?”
Seus lábios se contraíram antes de uma sombra de seriedade
recair sobre os rostos dos soldados outra vez. Um deles tinha olhos
grandes como os de sapo, junto com sobrancelhas espessas.
Aqueles olhos mostravam-se atentos sob as pálpebras enquanto o
homem respondia: “Não. A majestade está muito bem, obrigado,
Raabe. Estamos aqui por causa de seus convidados”. Ele esticou o
pescoço e olhou para a estalagem por cima de Raabe. Engrossando
a voz, ele exigiu: “Traga os dois homens que entraram na sua
estalagem. Eles são espiões e estão envolvidos em uma missão
contra o nosso povo”.
Raabe arfou. “Espiões! Eu poderia ter sido assassinada em minha
cama!”
O homem dos olhos esbugalhados se mexeu impacientemente.
“Sim, sim, traga-os até aqui, mulher.”
“Mas eu não faço mágica. Como poderei trazê-los se eles não
estão aqui?”, remungou ela.
“Está dizendo que eles não entraram aqui com você?”
“É claro que não. Eles entraram, tudo bem. Mas como eu ia saber
que eles eram espiões? Pensei que fossem como qualquer outro
peregrino, e não é culpa minha se foram embora.”
“Eles foram embora? Quando? Para onde foram?”
“Foram ao anoitecer, logo na hora de fechar os portões da cidade.
Eles quase não ficaram aqui, e quase não deram dinheiro. Não sei
para onde foram, mas se forem atrás, talvez ainda consigam pegá-
los. Não saíram há muito tempo.”
Os dois soldados a deixaram de lado e entraram para observar ao
redor. Sem aviso, um deles foi até a cama e a chutou. Raabe quase
desmaiou. Se ele encontrasse as vestes do hebreu, com certeza ela
seria presa. A bota por pouco não encostou na pilha de coisas antes
de ele se afastar, e Raabe quase caiu de tanto alívio. Eles entraram
no outro cômodo, olharam pela janela e, sem encontrar nada,
saíram sem pedir desculpas.
Um pelotão dos guardas armados do rei aguardava os dois
soldados no fim da escada. Ela os viu abrir os portões e sair em
busca dos dois espiões na estrada que levava até o rio Jordão.
Assim que os perseguidores saíram, o portão foi fechado
novamente.
Raabe encostou-se na parede com uma respiração irregular e
ofegante. Colocando a mão trêmula na cabeça, ela começou a rir.
Raabe havia conseguido; ela conseguiu salvar os hebreus e, ainda
por cima, a si própria. Raabe tinha traído sua nação, seu povo e seu
antigo estilo de vida. O tamanho de sua decisão a atingiu como um
grande peso, pois ela traíra os conterrâneos para salvar os hebreus.
Não. Não pelos hebreus, mas sim pelo Senhor.
Com cuidado, pois os joelhos ainda tremiam, ela foi até os
convidados que ainda estavam debaixo do linho. De volta ao recinto,
eles se lavaram e cuidaram de suas necessidades imediatas. Raabe
sabia que seria preciso levá-los para cima novamente caso os
guardas do rei decidissem voltar. Todavia, impulsivamente ela
perguntou: “Vocês vão me falar sobre o Senhor?”
Ezra, que estava sentado mais perto dela, lançou-lhe um olhar
surpreso. “O que você quer dizer com isso?”
“Quero saber algo sobre o Senhor. Seu deus. Vocês vão me falar
sobre ele?”
“O que você gostaria de saber?” “Tudo.”
Hanani demonstrou surpresa e, em seguida, riu por um momento
antes de a cotovelada de Ezra tirar seu fôlego. Para a alegria de
Raabe, nenhum dos dois se recusou a fazê-lo. Durante uma hora
inteira, eles a presentearam com histórias sobre o Senhor, sobre
como Ele protegeu Israel com Seu poder e compaixão durante a
longa jornada no deserto e sobre o fato de Ele ser o único e
verdadeiro Deus. Em cada palavra, Raabe sentia mais e mais
apreço por aquele deus — o Deus — cuja face nunca lhe seria
revelada.
Finalmente, um pouco arrependida, Raabe disse: “Prendi vocês
aqui por muito tempo. Vocês precisam se esconder no telhado mais
uma vez, pois os guardas do rei podem voltar”.
Hanani e Ezra subiram a escada bem cansados, dessa vez com
os pés arrastando até os talos de linho. Raabe subiu com eles e
ficou lá em cima por alguns minutos para vê-los se ajeitar. O cheiro
de linho seco tomou conta de suas narinas, um cheiro prazeroso de
planta.
“Vocês têm que ir bem cedo, antes do amanhecer”, ela explicou
em voz baixa para que mais ninguém a ouvisse. “Os guardas
caminham pelo perímetro do muro assim que o sol nasce, e eles
podem descobrir que vocês ainda não foram embora.”
Hanani mostrou que ouviu. “Nós ouvimos você falar com os
guardas do rei. Por que você, uma... uma mulher de Jericó,
protegeu homens de Israel?”
Ela estava ajoelhada no parapeito enquanto eles permaneciam
escondidos debaixo dos talos de linho. Se qualquer pessoa olhasse
para cima, veria apenas Raabe. O dia escurecera e Raabe sentiu o
anoitecer envolvê-la como um cobertor macio. As estrelas reluziam
em meio à escuridão do céu como pontos de esperança, e ela
pensou na pergunta de Hanani. Por que ela ajudou o inimigo? Por
que ela fez de seu nome um objeto de maldição de todos os
cananeus pelo resto das gerações futuras? Porque, apesar de tudo,
era a coisa certa a fazer.
“Estou ajudando vocês porque sei que o Senhor lhes deu esta
terra. O medo sufoca o meu povo, e ouvimos que o Senhor abriu as
águas do mar para que vocês saíssem do Egito. Nós soubemos do
que vocês fizeram com dois reis amorreus, Siom e Ogue. Quando
ouvimos falar dessas conquistas, perdemos a coragem. Mas eu sei
que o Senhor, seu deus, é Deus nos céus acima de toda a terra. Sei
que é Ele quem luta as suas batalhas e quem as conquista para
vocês. Foi por isso que eu os salvei.”
Ela só não falou sobre querer muito pertencer a Ele por medo de
parecer ridícula. Raabe estava convencida de que eles a ultrajariam,
e de que o próprio Senhor a rejeitaria. Então, em vez disso, ela se
sentou para fazer um acordo com Ele por intermédio de Seus
homens. “Hanani e Ezra, mostrei bondade para com vocês. Salvei
suas vidas. Portanto, agora, como vocês retribuirão minha
bondade? Vocês juram que pouparão a mim e minha família quando
invadirem Jericó?”
Hanani mexeu em um dos talos de linho até que somente seu
rosto ficasse visível. Em meio à escuridão, Raabe conseguiu ver o
branco de seus olhos. “Você não tem dúvida de que Deus
concederá a vitória a Israel, não é?”
Raabe fez que não com a cabeça.
“Você tem muita fé. Nunca pensei que encontraria alguém assim
fora de Israel.”
As palavras dele levaram lágrimas aos seus olhos, mas ela se
virou para que ele não visse o brilho delas contra a luz das estrelas.
Aquelas palavras expressavam aprovação de um homem que, há
pouco tempo, a considerava digna apenas de desprezo. E ela havia
conquistado aquela aprovação não por meio da manipulação
feminina, mas por sua fé. No entanto, seria aquela aprovação tão
boa para uma mulher morta?
“Então, vocês vão salvar nossas vidas? Vocês pouparão meus
pais, meus irmãos, minhas irmãs e os filhos deles?”
Hanani estendeu a mão e tocou a orla de suas vestes. “Nossas
vidas em troca das suas”, prometeu ele com uma firmeza nas
palavras que a convenceu. “Raabe, se você não contar o que
fizemos a ninguém, trataremos você com bondade quando o Senhor
nos conceder a vitória.”
Ela engoliu em seco. Seria mesmo real? Ela teria, de fato, feito um
acordo pela vida dela e de seus familiares? “Que o Senhor os
abençoe”, sussurrou ela.
“E a você também”, falou Hanani com um sorriso. “Se não fosse
por você, estaríamos envoltos em mortalhas em vez de talos de
linho.”
“Tentem dormir um pouco. Logo virei buscá-los, e vocês ainda têm
uma jornada pela frente.” Assim como eu.
Raabe permaneceu vigilante a noite inteira. Ela continuava
pensando no acordo que tinha feito com o Senhor por intermédio de
Seus homens, e que Ele aceitara. Ela fez algo para Ele, e agora Ele
faria algo por ela.
Sem perder tempo, ela se levantou e foi até o telhado depois do
anoitecer para esconder os homens. Eles dormiam como bebês, e
lhe ocorreu que eles tinham mais coragem do que habilidades para
espionagem. Certamente, um dos dois deveria ficar acordado para
vigiar. O Deus dele os protegera mesmo assim, e Raabe ficou
imaginando se já estaria sob aquela proteção. De volta para dentro
da casa, ela mostrou-lhes a janela. “Vocês têm que descer pela
parede. Os guardas estão muito perto daqui, e se forem pela escada
eles acharão vocês.
“Noite passada, vi os soldados seguindo em direção ao rio Jordão.
Vocês devem ir em direção àquelas montanhas, a norte, para terem
certeza de que não os pegarão. Escondam-se lá por três dias, pois
os vigias nunca ficam mais do que isso. Depois, sigam viagem.”
“Eu andei pensando”, disse Hanani. “Não se pode dar ordens a
um exército no meio da batalha. É preciso marcar sua localização
de alguma forma para que as forças amigas a reconheçam e a
poupem.” Ele olhou em volta por um momento até seus olhos se
fixarem em uma corda grossa de cor escarlate que compunha uma
tapeçaria. “Você deve amarrar esta corda do lado de fora da janela.
Além disso, traga toda sua família para sua casa. Não podemos
garantir a vida de ninguém fora dessa estalagem. O sangue de cada
um recairá sobre a própria cabeça, mas nós nos
responsabilizaremos pela segurança de todos os que
permanecerem aqui dentro. No entanto, Raabe, se você nos trair,
nosso juramento não mais existirá.”
“Eu prometo, não serei desleal nem a vocês nem ao seu Deus.”
“Você é uma mulher extraordinária”, exclamou Hanani, e Ezra
concordou com um gesto.
“E vocês dois despertaram isso em mim”, respondeu ela com um
sorriso alegre.
“Temos que correr antes do sol raiar”, interviu Ezra. É muito alto
para sua escada. Você tem alguma corda grossa, Raabe, ou espera
que nós voemos?”
“O Senhor abriu o mar para vocês. Certamente, Ele pode lhes
prover um par de asas, não é?”
“Sim, mas enquanto esperamos elas crescerem, talvez fosse bom
se você arrumasse uma corda”, resmungou Hanani.
“Vocês deveriam ter uma corda, amigos hebreus.” Raabe revolveu
uma caixa até achar uma corda, e Hanani, sem perder tempo,
amarrou-a na cintura com um nó seguro. Ezra se apoiou pelo lado
de fora do muro fazendo o máximo de esforço enquanto aguentava
o peso do corpo de seu amigo. Os pés de Hanani finalmente
tocaram o solo fora dos muros de Jericó.
Ezra amarrou uma das pontas da corda na cintura e a outra em
um gancho na parede, onde Raabe costumava pendurar uma
candeia. Seu rosto estava mais firme do que a corda quando ele a
entregou para Raabe. “Você acha que aguenta o meu peso? Talvez
o gancho consiga suportar meu peso se você perder a força, mas, a
essa altura, suspeito que devo bater no chão de qualquer jeito.”
A boca de Raabe ficou seca. “Não vou deixar isso acontecer.
Mas... não force o peso enquanto desce, e não pare para admirar a
paisagem ou algo assim. Desça o mais rápido que puder.”
“Não se preocupe, eu já vi o bastante de Jericó. Mas voltarei para
buscar você e sua família no dia da batalha. Agora, segure essa
corda com firmeza; minha vida está em suas mãos.” Ezra deu um
último sorriso motivador a Raabe e pendurou-se do lado de fora da
janela. Ele permaneceu pendurado pelos dedos por um breve
momento enquanto Raabe apoiava os pés em um canto da parede e
enrolava várias vezes a corda em volta do braço. Em seguida, ele
soltou. Raabe deu um grito abafado à medida que era puxada por
uma força arrebatadora. Seu corpo escorregou pelo chão movido
pelo peso oscilante de Ezra, e ela o imaginou caindo no chão.
Segurando com toda a força, ela pôs os pés contra a porta e se
segurou.
“Ah, Deus; ah, Deus; ah, Deus, ajude-me!”, pedia ela sufocada.
Em seguida, Raabe recuperou o equilíbrio, respirou fundo e liberou
a tensão pouco a pouco. Ezra tentava ajudar, quando possível,
agarrando-se com uma das mãos ou dos pés nas rachaduras entre
as pedras, mas havia poucas, e assim Raabe teve de suportar seu
peso na maior parte da descida. Ela nunca tinha carregado tanto
peso, e aquele tinha quase o dobro do peso dela. Colocando mais
firmeza nos pés, ela segurou a corda até as mãos sangrarem, os
braços ficaram feridos devido à fricção que ela tanto tentou
controlar. Raabe ignorou o sangue, ignorou as feridas e continuou.
Ezra já tinha passado da metade do caminho quando a corda se
soltou do braço de Raabe, arrancando uma boa parte de sua pele.
Ele caiu a uma grande velocidade e Raabe não tinha fôlego nem ao
menos para exclamar. Usando toda a força, ela se agarrou à corda e
segurou. Ezra estava pendurado a uma pequena altura e, em
seguida, tocou lentamente ao chão. Aquela fora a parte mais
tranquila de toda a descida.
Logo que Ezra se soltou do nó da corda, os dois correram em
direção às montanhas. Na escuridão da madrugada, Raabe os
perdeu de vista antes mesmo de piscar os olhos. Com a vivacidade
despertada pelo perigo, ela puxou a corda e a guardou o mais
rápido que pôde a fim de precaver-se, caso os soldados quisessem
revistar sua casa novamente. Depois, ela guardou a escada e, por
fim, cuidou de seus braços e de suas mãos, que estavam cheios de
sangue. Pelo menos os dois se lembraram de levar todos os
pertences daquela vez, graças a Deus.
O que lhe restava fazer naquele momento era convencer sua
família de Jericó de que estavam a salvo nas mãos do Senhor, e
não nas mãos dos seus deuses. Bastava convencê-los a entregar
suas vidas às promessas de seu inimigo mais temido.
Capítulo
Seis

“ V ocê está maluca?”, exclamou seu irmão Joa. “Você perdeu o


juízo?”, gritou Karem, seu outro irmão.
Raabe ia abrir a boca, mas Joa tinha mais a dizer. Ela apreciou a
interrupção, pois não se sentia apta a defender-se muito bem.
“Se descobrirem que você abrigou espiões hebreus, eles vão te
matar, e vão nos matar por termos a infelicidade de ser da sua
família.”
Um momento em silêncio seguiu o comentário de Joa, e Raabe
engoliu em seco. Embora ela não pudesse culpá-los por estarem
desconfiados, era ruim ser humilhada e rejeitada.
“E como eles descobririam?”, Raabe perguntou esforçando-se
para manter a voz firme. “Pensem, o que vocês têm a perder? Se
não disserem nada, ninguém em Jericó saberá. Mas se os hebreus
chegarem e destruírem nossos muros, conforme eles já fizeram em
todas as outras cidades, nossas vidas serão poupadas.
“Na semana que vem, vocês e suas famílias irão passar alguns
dias comigo. Vocês podem trabalhar, como de costume, mas não
muito longe. Se o exército for visto, um alarme ecoará e vocês terão
tempo para voltar com segurança. Se eles não vierem, vocês
poderão voltar para suas casas sem prejuízo algum. Apenas
pensem no que pode acontecer se eles chegarem e derrotarem
nosso exército quando vocês não estiverem comigo, pensem no que
vocês perderiam. Há semanas quase não falam de outra coisa a
não ser o medo dos hebreus, mas agora vocês não precisam ter
medo. Aconteça o que acontecer, nossas vidas serão poupadas.”
“Como você pode acreditar neles? Você está confiando na palavra
de pagãos sem lei! O que há de bom nisso?”, rebateu Joa.
“O Deus deles leva os juramentos a sério, e eles Lhe obedecem
sem questionar. Novamente, eu lhes proponho: o que vocês vão
perder se aceitarem minha sugestão?”
No fim das contas, todos decidiram ficar com Raabe por algumas
semanas. Eles passaram os sete dias seguintes comprando
suprimentos, assim como toda a Jericó, por medo de um possível
cerco iminente. Com isso, havia filas imensas, preços altíssimos e
esperas frustrantes e, por vezes, inúteis. Pelo menos eles estavam
em um dos poucos lugares de Canaã que não precisava se
preocupar com água; a cidade ostentava várias fontes naturais que
ficavam cada vez mais abundantes depois do período de seca.
Todos estavam muito preocupados com o possível cerco longo e
entediante, mas Raabe estava preparada para um período curto e
conclusivo. Ela comprou poucos mantimentos, pois sabia que se os
hebreus vencessem, ela conseguiria levar apenas o que fosse
possível carregar nas costas. Raabe não sabia como Israel
cumpriria aquela façanha; sabia apenas que eles derrubariam os
muros da cidade. Os hebreus venceriam.
,.
Hanani e Ezra ficaram nas montanhas durante três dias, conforme
Raabe havia aconselhado. Hanani economizou na comida para ter a
certeza de que aquela quantidade seria suficiente no caminho de
volta. Um pequeno riacho provia água para beber e, à medida que
os dias ficavam mais quentes, a falta de cobertores não
representava problema para os dois. Eles faziam turnos de
vigilância durante a noite, atentando-se às evidências de um
possível ataque. Mas Raabe provou ser confiável mais uma vez, e
nenhum inimigo se aproximou.
Na manhã do quarto dia, eles saíram das montanhas e seguiram
em direção ao acampamento de Israel. Eles levaram quase o dia
inteiro para chegar ao Jordão, e, quando chegaram, Hanani olhou
para as águas turbulentas. O rio se agitava e se movia em um ritmo
acelerado e maligno, como se risse da tentativa de atravessá-lo. A
correnteza estava ainda mais forte do que antes.
Ezra entrou na água sem hesitar, e Hanani, sem querer ficar para
trás, respirou fundo e seguiu o exemplo. Ele sentiu a força desde o
primeiro passo, mas se deu conta de que, se não continuasse
andando, as águas o matariam. Ele continuou em frente, mal
conseguindo enxergar com os olhos cheios de água. Quando olhou
em direção à margem, ele viu que Ezra estava quase se deixando
levar pela correnteza. Ezra estava com grandes problemas. Ele
estava mais perto da terra, mas também estava sendo levado por
um forte redemoinho que o puxava para baixo.
Hanani suspirou. Ele tinha de descobrir um jeito de salvar Ezra. Ao
olhar para o alto, viu um galho cumprido que pendia sobre as águas.
Fazendo uma oração incoerente, ele foi até o galho sabendo que
este deveria, de qualquer jeito, ser firme. Hanani intentava usá-lo
como uma corda para se segurar enquanto tirava o amigo do rio.
Mantendo um dos olhos no galho e o outro em Ezra, ele forçou o
corpo ao máximo. Não! Logo que pegou o galho, ele viu Ezra
afundar. Agarrando-se ao galho, se deixou levar pela correnteza até
onde vira Ezra pela última vez. Onde você está, meu amigo? Volte
para onde eu possa te ver! De repente, a cabeça de Ezra apareceu.
“Ezra!”, gritou ele, estendendo a mão. Ezra parecia um pouco
sonolento e desorientado. Hanani agarrou os cabelos do
companheiro e os puxou com toda força.
“Aaai!” Ezra se recuperou o suficiente para perceber o que estava
acontecendo e agarrou-se no braço de Hanani. Ali eles
permaneceram até recuperarem o fôlego, depois seguiram até a
margem. Tropeçando, os dois homens ofegavam e balbuciavam
dando graças pelo ar que enchia seus pulmões. Depois de alguns
minutos, Hanani se levantou e ajudou Ezra a se levantar.
“Obrigado”, agradeceu Ezra e, em seguida, vomitou muito. Hanani
fez caretas e se virou para dar um pouco de privacidade ao amigo.
“Tudo bem agora?”, perguntou ele quando Ezra se esticou. “Sim.
Obrigado por ter salvado a minha vida.”
Hanani levantou uma das mãos. “O rio Jordão não é nada se
comparado à ira da sua irmã se eu levasse o seu cadáver para
casa.”
Os lábios azulados de Ezra formaram um sorriso e ele se levantou
gemendo. “Ir para casa parece uma boa ideia — vamos. Já chega
de espionagem.”
,.
Hanani ficou feliz ao ver sobre a terra árida as tendas de seu
povo. Como ele suspeitava, a notícia sobre a chegada dos dois
rapidamente se espalhou, e Josué foi recebê-los pessoalmente.
Ele fez a recepção dos dois e logo chegou ao ponto. “Venham,
venham! O tempo é curto. Fico feliz com seu retorno bem-
-sucedido, homens. Agora vocês precisam me dizer o que
encontraram. Vejo vocês em minha tenda.” Com isso, ele se
afastou.
Hanani, dolorido porque quase se afogara e por causa da longa
jornada, tentou acompanhar o mais velho sem se cansar. Pelo canto
de seus olhos, ele viu uma figura familiar.
“Hanani e Ezra!”, chamou Salmom correndo em direção a eles.
“Shalom! Como vocês estão ótimos”, disse ele com um sorriso
apontando para as vestes manchadas e para o cabelo emaranhado
de Hanani, que há algum tempo não sabia o que era um pente. “É
bom ter vocês de volta.”
“Sim, sim. É bom”, interrompeu Josué. “Mas podemos comemorar
depois. Esses filhos de Judá nos devem informações. Salmom, você
pode vir conosco, já que Hanani está sob sua liderança e que, além
disso, vocês são amigos”, falou ele sem diminuir o ritmo.
Salmom os acompanhou andando junto com eles. Hanani, que
conhecia Salmom desde muito pequeno, reparou nos músculos
tensos do amigo e sabia que aquele era um sinal claro de
nervosismo. Salmom estava morrendo de curiosidade. Hanani olhou
para ele e sorriu, tentando, apesar do cansaço, demonstrar alegria.
As notícias são boas, meu amigo, disse ele sem palavras. Essa
missão não será como a que aconteceu uma geração atrás.
Salmom relaxou os músculos. As palavras não se faziam tão
necessárias entre amigos de longa data que já haviam enfrentado
guerras e estabelecido a paz.
Josué entrou na tenda e a fechou. A noite caía e o ar esfriava,
mas ainda estava muito quente na tenda. Mesmo assim, Hanani não
se incomodou. Assim como outros israelitas, ele estava acostumado
com o clima instável e as inconveniências da vida nômade. Josué
deu uma volta até que toda a tenda estivesse fechada, para manter
privacidade total. “Bem, falem. O que vocês descobriram?”
Hanani fixou o olhar por alguns segundos em algumas almofadas
e ficou pensando se seria grosseiro sentar-se antes de falar.
Suspirando, decidiu não pedir nada e mudou o foco de seu olhar em
uma tentativa de aliviar a pressão de suas pernas doloridas. Talvez,
depois de dar as boas notícias, Josué o deixasse sentar. “O Senhor
definitivamente entregou a terra em nossas mãos”, começou ele.
“O povo de Jericó e o restante de Canaã falam sobre nós com
medo”, continuou Ezra. “Eles já esperam a derrota e estão
apavorados por causa do nosso povo.”
“Ah! Essas notícias encorajarão e fortalecerão nossos homens.
Agora, falem desde o começo. Vocês ficaram longe por alguns dias.
Onde ficaram?”, incitou Josué.
Nada de almofadas, pelo que ele pôde perceber. Os ombros de
Hanani caíram. “Nós nos escondemos nas montanhas durante os
últimos três dias porque o rei de Jericó mandou alguns soldados nos
procurarem.” Pensando no restante da experiência, Hanani passou
a mão pela barba. “Passamos a primeira noite em Jericó.”
“Verdade? Em que lugar de Jericó vocês ficaram?” “Em uma
estalagem”, respondeu Ezra.
“Uma estalagem?”, falou Josué levantando a cabeça, e o pescoço
de Salmom deu um giro tão rápido que Hanani achou incrível ele
ainda continuar preso ao corpo. “Você quer dizer, na casa de uma
zonah?”
“Não foi bem assim, Josué. Raabe nos ajudou. Ela salvou nossas
vidas”, Hanani falou em voz baixa.
Salmom revirou os olhos. “Era justamente o que precisávamos.
Juntar-nos a prostitutas cananeias que salvarão nossas vidas.”
“Não foi assim que aconteceu”, repetiu Hanani .
“Então, continue falando. E você ainda a chama pelo nome, como
se fossem conhecidos.” A forma irônica com a qual Salmom falava
não afetou Hanani.
Bastante sem graça e engolindo em seco, começou a explicar
com palavras cada vez mais trêmulas. “Os guardas nos viram na
hora em que entrávamos nos portões. Eles levantam suspeitas dos
estrangeiros por causa das nossas vitórias, e qualquer um que se
pareça, mesmo que remotamente, com um israelita chama atenção;
além disso, nossos sotaques nos entregaram. Em seguida, quando
as coisas começaram a ficar perigosas, Raabe apareceu. Ela disse
aos guardas que éramos convidados de sua estalagem e deu água
de cevada a eles. Depois, ela nos escondeu debaixo dos talos de
linho que secavam no telhado, quando os soldados do rei foram nos
procurar. Acreditem, ela salvou nossas vidas e arriscou a dela.”
“Por que uma mulher de Jericó teria tal atitude? Por que ela trairia
seu povo para salvar dois estrangeiros como quaisquer outros?”,
perguntou Salmom.
Hanani olhou surpreso para os amigos. Seu rosto bonito, com um
queixo quadrado e um nariz fino demais para um soldado, se
modificou sob suspeita. Seus olhos pareciam tensos e acusadores.
Hanani projetou seu queixo. “O quê?”
“Sem querer ofender, mas vocês tinham pouco dinheiro e muito
menos sofisticação para atrair uma mulher como essa.”
“Quietos, todos!”, interrompeu Josué. “Você disse que essa mulher
salvou suas vidas. Ela lhes disse por quê?”
“Josué, ela fez isso por causa do Senhor. Raabe tem mais fé em
Deus do que nossos pais e falava mais como uma de nós do que
como uma deles. Pergunte a Ezra.”
Ezra concordou com a cabeça, que balançava como uma maçã
suspensa por um galho fino em um dia de ventos fortes. “Ela disse
que o Senhor é Deus acima dos céus e da Terra.”
“Isso parece... extraordinário.”
“Foi exatamente o que pensamos, Josué. Nenhum de nós queria
nada com ela, mas pelo jeito que ela falava do Senhor e como
salvou nossas vidas, a nós, quero dizer, era o que parecia certo,
você não acha, Ezra?”
“O que parecia certo?”, perguntou Josué com uma sobrancelha
levantada.
“Bem, nós fizemos uma promessa a ela”, gaguejou Hanani. “Ela
arriscou a vida para nos salvar. Primeiro, ela nos levou para sua
estalagem. Após nos esconder, mentiu para os soldados. Ela até
ajudou Ezra a descer pela janela com uma corda. Ela é delicada
também”. Ao ver o olhar de Salmom, ele se apressou: “O peso de
Ezra deve tê-la feito sentir muitas dores”. Ezra concordou mais uma
vez, e não se ofendeu. “E, antes de irmos, ela pediu que nos
escondêssemos nas montanhas por três dias, para que os guardas
do rei não nos encontrassem. Então, na verdade, ela salvou nossas
vidas quatro vezes.”
“Entendi. Vocês falaram sobre uma promessa. Podemos saber
qual é?”
Hanani se aproximou falando ao pé do ouvido de Josué. “Nós
prometemos poupar a vida dela e de seus familiares se ela nos
ajudasse. Ela sabe que nós vamos derrotar Jericó, e acredita que
Deus já nos concedeu a vitória. Então, ela pediu misericórdia
antes mesmo de a batalha começar. Esse tipo de fé deve ser
recompensada, não acha? O próprio Deus não a recompensaria?”
Salmom, que permanecera em silêncio na maior parte do tempo
durante o monólogo, berrou: “Vocês estão tentando nos
impressionar?”
“Isso não é brincadeira”, afirmou Josué com um mero sussurro.
Salmom olhou pasmo para Josué. O homem mais velho apenas
mexeu a cabeça, como se tivesse uma informação que só ele
conhecia. “Acredito que vocês fizeram um bom trabalho.”
“Josué, eles prometeram a uma prostituta que não tocaríamos
nem nela nem em sua família, mesmo quando Deus nos ordenou
destruir Jericó por inteiro?”
“Mas você não entende que só a mão do Senhor poderia tê-los
levado à casa dessa mulher? Se ela não os tivesse visto, eles
estariam mortos. Em toda Jericó, haveria mais alguém que ajudasse
nossos homens? Alguém que reconhecesse o Senhor? Os outros
podem até temê-lo agora, enquanto sua fama se espalha, mas
alguém O serviria? E como, naquele exato momento, aquela mulher
percebeu a presença de Hanani e Ezra? É a mão do Senhor, e de
mais ninguém, Salmom. Talvez esse tenha sido o Seu plano desde
o início.” Pensou Josué por um momento. “Nós cumpriremos essa
promessa.”
,.
Salmom estava chocado e teve dificuldades para entender a
história que os espiões contaram. Suas emoções sofreram altos e
baixos, como as costas de um camelo. À primeira vista, ele se
encheu de alegria pelo retorno do amigo; depois, ficou consternado
quando ouviu que ele tinha passado a noite com uma zonah. Aquela
era uma séria transgressão da Lei. Depois, ele sentiu alívio ao saber
que nenhum dos dois havia tocado nela. Naquele momento, eles
estavam exaltando-a como uma figura heroica de fé e garantindo a
ela o perdão das ordens de destruição enviadas por Deus.
Ele fingiu que entendeu o pensamento de Josué. Ainda assim,
poupar a vida da zonah cananeia parecia ridicularizar a misericórdia
de Deus ao extremo. Deus permitiria que uma nação inteira fosse
destruída, mas pouparia a vida de uma pessoa tão indigna? Salmom
nunca desobedeceria a Josué, mas isso não significava que ele teria
de concordar com o líder.
Pela manhã, os homens do acampamento já sabiam da notícia de
que eles deveriam se preparar para partir. Naquele mesmo dia,
fizeram os primeiros passos de sua jornada a Jericó. Durante a
noite, acamparam nas margens do rio Jordão. Por dois dias, Josué
e os líderes das tribos jejuaram e oraram para buscar a vontade de
Deus. No terceiro dia, eles tinham a certeza de que Deus lhes
concederia um milagre. Não se falou nada para o povo sobre o que
aconteceria ou que eles atravessariam o Jordão; eles sabiam
apenas que deveriam seguir a Arca da Aliança, caixa sagrada que
guardava as pedras originais com os Dez Mandamentos. Josué não
queria que a dúvida abalasse as pessoas enquanto elas esperavam
durante aquelas horas finais. Por isso, ele escolheu preservá-las até
os últimos minutos possíveis dos detalhes mais estarrecedores do
dia que chegaria.
Na manhã seguinte, o entusiasmo percorreu o acampamento
como feixes silenciosos de luz. Josué reuniu os membros das tribos
e falou para esperarem muitas maravilhas: “A Arca da Aliança do
Senhor seguirá à frente de vocês no Jordão. Assim que os
sacerdotes que a carregarem colocarem os pés no rio, as águas
serão divididas”.
Um murmúrio coletivo surgiu em meio às pessoas. Salmom, que
estava perto de Hanani e Ezra, viu seus rostos empalidecerem. Ele
tinha ouvido a história dos dois atravessando o rio e sabia que eles
não estavam nada entusiasmados para entrar novamente nas águas
furiosas. Ele colocou a mão nas costas de cada um deles para
motivá-los.
“Deus tem um plano diferente guardado para vocês agora, meus
amigos. Suas vestes não irão nem ao menos molhar. Esqueçam a
ideia de nadar. Dessa vez, vocês vão caminhar.”
Os dois olharam para ele com um misto de dúvida e admiração.
Salmom riu. “Sejam fortes, amigos corajosos. Vocês estão prestes a
testemunhar um milagre, assim como nossos pais na fuga do Egito.
Deus parece ter um propósito particular por ter escolhido esse
período improvável para nossa travessia. Ele quer nos mostrar Seu
poder e glória”. Mas Salmom não disse acreditar que Deus queria
que aquela geração mais nova tivesse uma experiência em especial
para os preparar para as tribulações da conquista. Ele abriria as
águas para abrir também os corações daquele povo e deixar espaço
suficiente para Si mesmo.
Hanani torceu o nariz. “Seria mais fácil se as demonstrações de
Deus e de Sua grandeza não envolvessem tanto risco às nossas
vidas. Quero dizer, andar por entre as águas de um rio turbulento
não é um comportamento muito normal, não é?”
Salmom fez um gesto com a boca para prender o riso. “Suponho
que nós não conseguiríamos verdadeiramente aprender a confiar
em Deus sem pagar um preço. Quando virmos essas águas se
partirem, ficaremos com vontade de andar em meio a elas.”
Salmom segurou o ombro de Hanani tentando dar-lhe confiança.
Em seguida, se afastou para assumir a posição de líder de seu povo
à medida que todos esperavam por sua volta. Seus olhos se
encheram de lágrimas enquanto ele sentia o grau de dependência
que tinha em Deus. Nos dias normais, ele se ocupava com a tarefa
de pastorear pessoas, era fácil encher a cabeça com autoconfiança.
De repente, sua vontade assumia o controle e ele começava a
depender de si mesmo, muito mais que de Deus. Suas habilidades,
sua força humana e sua força de espírito o levavam a enfrentar
muitas tarefas complicadas. Mas, naquele dia, a impossibilidade de
ter essa atitude o impactou. Despido de todas as ilusões de poder,
Salmom, em seu interior, transbordou com uma nova sensação de
liberdade por compreender que apenas Deus pode ser a fonte de
suas forças, e isto aliviou seu fardo de falsas responsabilidades.
Como se estivessem esperando Salmom chegar depois do
momento de autolibertação, os sacerdotes entraram no rio com a
Arca. Naquele mesmo instante, as águas do rio acima pararam de
fluir. Elas formaram um monte a uma grande distância, em uma
cidade chamada Adão, quando o fluxo das águas que seguiam para
o mar Salgado foi completamente interrompido. O leito do rio diante
deles se transformara em uma estrada enorme. Era imenso o
caminho pelo qual as pessoas atravessavam em grandes fileiras,
enquanto os sacerdotes permaneciam em solo seco no meio do
Jordão. Toda a nação de Israel caminhou para o lado oeste do rio
em direção à Terra Prometida sustentando-se no milagre de Deus.
Eles ficaram por tempo suficiente para juntar vinte pedras pesadas
no meio do rio Jordão, almejando edificar um monumento como um
sinal para as gerações futuras.
Para Salmom, foi maravilhoso ver o rio Jordão voltando a fluir
normalmente depois que os sacerdotes pisaram nas margens do
lado oeste. Ninguém mais poderia suspeitar e achar que era
coincidência depois daquilo. Mais ninguém poderia duvidar da
intenção e do poder do Senhor.
Naquela noite, Israel acampou na terra que seria seu novo lar.
Tratava-se da fase de “primeiras vezes”, refletiu Salmom: a primeira
vez que os filhos de Israel seriam circuncidados; a primeira vez que
eles celebrariam a Páscoa nas margens ocidentais, relembrando da
libertação do Egito, da escravidão e da morte; a primeira vez que
colheriam os frutos de plantações de suas próprias terras. Mas
também era um momento de “últimas vezes”: a última vez que eles
comeriam maná, o alimento milagroso que os sustentou por quase
quarenta anos; a última vez que eles vagariam pelo deserto como
nômades. Salmom se deu conta de que, muito em breve, eles
aprenderiam a arar e a plantar, assim como o restante do mundo. A
guerra era a única coisa que os separava de uma vida normal e
estável. Ele sentiu enjoo só de pensar sobre esse assunto. Salmom
ainda tinha semanas para pensar sobre esse assunto, juntamente
com os outros homens também nascidos no deserto enquanto eles
recuperavam suas forças depois de serem circuncidados com facas
de pedra. Não poderia haver batalhas em Jericó até que eles
recuperassem as forças. Deus, que estava com tanta pressa para
fazê-los atravessar, estava satisfeito por deixá-los esperando
daquele lado do rio.
,.
Josué não conseguiu dormir. Os guerreiros de Israel tinham quase
recuperado as forças e estavam prontos para lutar. Ele sabia que o
destino de Israel dependia daquela próxima batalha, e as
estratégias estavam sob sua responsabilidade. Como ele precisava
do Senhor para encorajá-lo, a força de Deus seria indispensável
para tomar decisões.
Com movimentos flexíveis para um homem de sua idade, Josué
levantou-se da esteira e vestiu um manto grosso. Saindo da tenda,
ele caminhou até sair do acampamento de Israel. O sol já invadia o
céu quando Josué chegou próximo a Jericó. Ele estava perto o
bastante para ver os muros, ou seja, ele viu que não faria diferença
nem mesmo se Israel tivesse como subir por escadas ou usar
aríetes, pois a cidade era inacessível. Ele virou os olhos para o chão
e tentou vencer sua batalha interior contra o desânimo.
Ao erguer os olhos, Josué teve um susto. A poucos passos diante
dele, havia um homem com uma espada nas mãos. O homem era
alto, forte e, pelo visto, nascido e criado para ser guerreiro. Sua
espada era diferente; ela brilhava como a luz da lua, ornada com
joias em sua base e com uma ponta afiada como nunca se viu.
Parte de Josué queria correr na direção oposta, mas ele também
era um guerreiro corajoso e forte. Quem era aquele homem e o que
ele estava fazendo ali? Josué manteve-se firme e deu um passo à
frente.
“Você está conosco ou com nossos inimigos?”, perguntou Josué
enquanto seus olhos analisavam a expressão do homem.
Mais de perto, Josué pôde ver que o rosto do homem estava
estampado com uma paz incomum. Era impossível estipular sua
idade, pois não havia rugas, marcas ou cicatrizes. Ainda assim,
seus olhos eram cheios de sabedoria. Josué não conseguiu desviar
o olhar daquele homem que nem piscava.
“Com nenhum dos dois”, respondeu ele.
Josué levantou uma sobrancelha. Nem amigo nem inimigo? Quem
ele era, então? As palavras seguintes do homem apagaram todos
os pensamentos de Josué.
“Sou o comandante do exército do Senhor, e venho como tal.”
Josué pôs o rosto ao chão em reverência, pois aquele não era um
homem qualquer. Aquele pensamento o impressionou tanto que ele
mal podia se mexer. Assim como Abraão, ele fora honrado com uma
visita celestial. “Que mensagem meu Senhor tem para Seu servo?”,
perguntou ele.
“Tire as sandálias dos pés, pois o lugar em que você está é terra
santa.”
Josué obedeceu na hora. Ao seu redor, estabeleceu-se o silêncio.
Depois de algum tempo, Josué se arriscou a olhar para cima apenas
para ver se o comandante do exército do Senhor havia
desaparecido com tanto esplendor como quando apareceu.
Lentamente, Josué se ajoelhou. O que aquilo representava? Se
Deus havia enviado o comandante de Seu exército, por que ele não
disse que estava do lado de Israel?
Depois, Josué pensou que Deus não estava do lado de Israel; Ele
fez com que Israel ficasse do Seu lado. Josué não clamava a Deus
por si mesmo ou pelos seus próprios interesses, como as pessoas
ao redor costumavam fazer com seus ídolos. Em vez disso, o
Senhor clamava por Josué e pelo povo escolhido para Si mesmo.
Depois que Josué finalmente se levantou, outro pensamento lhe
sobreveio. Ele não era o comandante do exército de Israel, e não
lhe cabia a maior responsabilidade daquela empreitada impossível.
Deus enviou o comandante de Seus exércitos para que eles
enfrentassem aquela batalha. De repente os muros de Jericó não
pareciam mais tão inacessíveis. Não com o exército do Senhor
lutando contra eles.
Capítulo
Sete

J ericó esperava alarmada como um porco pressentindo o próprio


abate. Espiões levaram notícias terríveis sobre o Jordão, que se
abrira, e sobre a travessia dos hebreus pelo leito do rio, feita como
se eles caminhassem por um campo. Eles disseram que seus
inimigos eram mais numerosos do que formigas, e o rei mandou que
os portões da cidade fossem fechados. Ninguém entrava e ninguém
saía. Raabe se perguntava quais eram as intenções do rei. Se o rio
não pôde impedi-los, como pedras empilhadas o fariam?
Mas os hebreus não atacaram imediatamente. Depois de
atravessarem o rio em período de cheia em vez de esperar que as
águas se acalmassem, como qualquer nação normal faria, naquele
momento eles não pareciam ter pressa para atacar. Eles
descansaram, jejuaram e ficaram à toa. Raabe e o restante do povo
de Jericó ficaram confusos por causa daquele comportamento. A
espera os desgastava.
Quando os hebreus decidiram seguir adiante, como se finalmente
estivessem certos de atacar Jericó, algo muito frustrante aconteceu
em sua abordagem. Primeiramente, os guardas armados se
aproximaram e, em seguida, vieram o que parecia ser sacerdotes
carregando trombetas feitas de chifres de carneiros e uma caixa
ornada, que carregavam com um cuidado primoroso. Apresentando
a retaguarda, veio a força principal dos guerreiros. Suas trombetas
faziam um som assustador a cada hora enquanto andavam em volta
de Jericó em uma marcha sem fim. Ao vê-los, os vigias que ficavam
sobre os muros começaram a atirar flechas. Raabe, que estava
vigilante na janela, prendeu a respiração. As flechas caíram a
poucos cúbitos dos hebreus, como se eles tivessem calculado a
medida exata dos arcos de Jericó. Eles apenas marchavam, um
passo após o outro, um cúbito após o outro. O povo de Jericó nunca
tinha visto nada parecido. O que eles estavam fazendo? Exibindo
sua força? O que aquilo faria contra os muros de pedra?
No primeiro dia, eles marcharam em volta da cidade e foram
embora. No segundo dia, voltaram mais cedo para que os bebês
despertassem de seu sono com o barulho das trombetas, fazendo o
choro deles se juntar ao estrondo. A família de Raabe foi para a
casa dela e não saiu mais depois daquele dia. Eles falavam pouco
e, como o restante de Jericó, observavam e esperavam sentindo-se
desprotegidos e angustiados.
Raabe aprendeu a falar com o Senhor no silêncio de seu coração,
pois sua estalagem minúscula estava cheia de gente, o que não lhe
dava privacidade. Ela não sabia se Ele conseguia entender seus
pensamentos, e esperava que, se Ele pudesse, não considerasse
suas palavras desrespeitosas ou inadequadas. Mesmo assim, ela
achava que conversar com o Senhor acalmava seus medos, e havia
muito a se temer, pois o exército dos hebreus sempre estava por
perto de Jericó.
No terceiro dia, os soldados do muro começaram a criticar o
exército que marchava, mas os hebreus não reagiram. Nenhum
deles falava. Apenas olhando fixamente para a frente, eles
marchavam e ignoravam os soldados. De qualquer maneira, eles
não conseguiam ouvir devido ao barulho que faziam com suas
trombetas.
Eles voltaram no quarto e no quinto dia. Os ânimos se exaltavam
e a tensão recaía sobre a cidade. Como se o fato de travar uma
guerra usurpadora em seus portões não fosse violenta o bastante,
os homens começaram a brigar por tolices e as mulheres gritavam
com antigas amigas em tons de provocação. Pela janela, Raabe
conseguia ouvir as conversas entre os soldados enquanto eles
falavam sobre os assuntos do Estado em Jericó. Ela ouviu dizer que
os sacrifícios no templo aumentavam ainda mais. Ninguém estava
desperdiçando o sangue dos carneiros nem dos touros, pois ter
animais era uma comodidade durante um cerco. Eles estavam
sacrificando humanos, mais do que nunca, e estavam facilitando o
trabalho dos hebreus, pensou Raabe.
Muitas pessoas se esconderam em suas cabanas chorando com
as mãos nos ouvidos. Outras permaneciam ofendendo sobre os
muros, competindo para ver quem insultava mais. Aquelas pessoas
eram criativas e entretinham a si mesmas; nenhuma delas parecia
perturbar-se com exército inimigo.
No sétimo dia, os hebreus mudaram sua tática. Chegando ainda
mais cedo do que nos outros dias, eles não foram embora depois de
uma só marcha. Eles continuaram andando, duas, três, quatro,
cinco vezes tocando a toda hora suas trombetas apavorantes. Até
mesmo os que antes insultavam foram silenciados e tomados pelo
medo. Raabe ficou olhando pela janela durante o dia tentando
identificar Hanani e Ezra, mas eles estavam longe demais para ela
ter certeza. Ela permaneceu com a corda escarlate nas mãos para
certificar-se de que ela não sumiria. Ela ficou pendurada do lado de
fora de sua parte do muro como um fio de esperança. Naquela
corda escarlate estavam seu futuro, sua vida e a vida de seus
familiares. Seu futuro dependia de uma corda. Não, ela lembrou a si
mesma. Meu futuro depende de Deus.
Depois de sete voltas quase intermináveis ao redor da cidade, o
som das trombetas ficou ainda mais alto, quase insuportável. Em
seguida, como se fossem um só, o povo deu um grito que fez Raabe
se arrepiar. A força daquelas vozes fez o chão tremer, e ela colocou
as mãos sobre os ouvidos tentando abafar o barulho.
Todavia, mesmo com suas mãos pressionando a cabeça, ela
ouviu que o barulho aumentava e sentiu o chão literalmente tremer.
Raabe foi olhar pela janela e viu que, à sua direita e à sua esquerda,
os muros impenetráveis de Jericó estavam, de fato, ruindo! Eles
estavam esmorecendo e caindo em volta de todos. Sem nem ao
menos uma flecha lançada, sem fogo e sem aríetes, com nada
mais, nada menos do que um grito, o Senhor arruinara a fortaleza
de Jericó. A cidade fora derrotada.
Os olhos de Raabe se encheram de lágrimas, e ela ficou
paralisada por causa do choque daquela cena. À medida que a
poeira densa das pedras e do cimento começou a baixar, Raabe
conseguiu ver a dimensão do perigo. Com exceção da sua parte do
muro, que por um milagre permanecera intacta, até onde seus olhos
podiam ver, toda a estrutura defensiva da cidade estava em ruínas.
Em algumas partes, barreiras pequenas, menores do que a altura
até os joelhos de Raabe, ainda permaneceram; em outras partes,
nem isso restou. Para seu desespero, ela ainda viu pernas e braços
esmagados pelas pedras enormes, e sabia que o extermínio da
guerra havia começado. Por algum tempo, as palavras não saíram
de sua boca. Depois, ela se deu conta de que precisava alertar aos
seus parentes, que estavam uns agarrados aos outros em um outro
cômodo longe da janela, com medo do que havia destruído sua
cidade natal.
“Arrumem suas coisas”, ordenou Raabe com uma voz trêmula
saindo de seu transe. “Preparem-se. Os muros ruíram e logo eles
virão até nós.”
“Os muros ruíram? Foi esse o barulho que ouvimos? Mas não
pode ser!” A voz de Joa assumiu um tom irreconhecível. “Deixe-me
ver.”
Raabe se afastou para que ele visse. Ele sentiu um impacto no
peito e um som escapou de seus lábios. “Não... não! Como isso
aconteceu? Eles nem entraram na área de disparo. Isso foi mágica
— algum tipo de encanto poderoso?”
“Não.” Raabe se lembrou de que Ezra falara que o Senhor não
gostava de magia, feiticeiros e adivinhadores. “É o poder de Deus.”
Karem se aproximou de Joa. “Veja!”, apontou ele. “O restante do
muro desabou, mas essa parte onde estamos ficou intacta. Se aqui
tivesse desabado, estaríamos mortos como aquelas pobres
pessoas. Parece que esse Deus poupou nossas vidas.”
Vivendo o pior dia da história de seu povo, Raabe se viu sorrindo.
Não era Hanani, nem Ezra, nem Josué, nem o exército de Israel,
nem a força da promessa, mas o próprio Deus escolhera poupar sua
vida. Eles foram salvos por Suas mãos.
Com mais confiança, ela disse: “Venham todos. Vocês precisam
se preparar. Não podemos demorar depois que eles vierem atrás de
nós. Peguem o que conseguirem carregar, como eu falei com vocês.
Deixem tudo o que não for essencial para trás”.
As crianças choravam, assim como as irmãs e cunhadas de
Raabe. Seus pais também choravam, e seus irmãos vertiam
lágrimas silenciosas enquanto arrumavam as coisas. Todo o estilo
de vida deles fora arruinado. Deus os havia resgatado, mas eles
ainda estavam muito confusos e decepcionados para mostrar
gratidão.
Todos ouviam o exército dos hebreus entrando em Jericó, e o som
da luta ressoava. Pessoas correndo, gritos, choros, brigas,
confrontos com metal. Depois, Raabe ouviu passos de alguém
subindo suas escadas, e por um momento seu corpo paralisou. E se
eles não mantivessem a promessa? E se eles a traíssem? Depois,
ela se lembrou das palavras de Hanani e sabia que ele seria fiel.
A porta se abriu, e lá estava o próprio Hanani, seguido por Ezra.
Eles estavam sujos e com um sorriso de orelha a orelha. Vê-los deu
uma força súbita a Raabe, e ela correu em direção aos dois rindo e
chorando ao mesmo tempo. “Vocês vieram. Vocês vieram por nós.”
“Não era a nossa promessa? Josué, nosso líder, nos mandou tirar
vocês de Jericó. Nós te levaremos para um lugar próximo ao
acampamento de Israel. Certifique-se de levar tudo o que precisa. A
cidade será totalmente destruída, pois recebemos a ordem de não
deixar nada de pé.” Educadamente, os dois ignoraram os lamentos
e as lágrimas dos membros da família de Raabe, e um momento
estranho tomou conta do lugar, como se o inimigo lutasse para ser
amigo.
Foi mais fácil para Raabe, que teve mais tempo para se adaptar.
Ela já tinha fé no poder do Senhor e na verdade de quem Ele era.
“Obrigada!”, murmurou sem conseguir pensar em mais nada. Com
um impulso, ela pegou a corda escarlate e a pôs em sua sacola. Ela
sempre a guardaria para se lembrar da bondade do Senhor para
com ela, e a corda seria uma lembrança de que Ele escolhera salvar
sua vida.
As escadas de sua estalagem estavam mais firmes do que nunca,
imunes à destruição que reinava em todo lugar. Hanani foi à frente,
e depois Raabe e sua família, com Ezra na retaguarda. Logo que
eles saíram, o mau cheiro atingiu Raabe. O cheiro de madeira e
carne queimadas, de sangue, de dardos e de cinzas causou-lhe um
impacto tão forte que sua garganta ardeu. Ela não pôde cobrir o
nariz porque suas mãos estavam cheias de coisas. Raabe começou
a respirar pela boca tentando ao máximo não enjoar. Logo que eles
saíram da escada, Hanani parou, e Raabe, curvada pelo peso de
duas grandes sacolas, esbarrou nele.
“Oh! Perdão.”
Hanani mexeu a cabeça. “Não olhe para baixo”, disse ele. Depois,
virando-se ele falou para todos: “Não olhem para baixo e fechem os
olhos das crianças”.
Raabe sentiu o sangue sair de seu rosto. Hanani começou a andar
novamente, e ela o seguiu com a boca seca. Na soleira da porta que
havia no fim da escada, havia um corpo caído, sangrento e sem
vida. Para seguir em frente, Raabe teve de dar um passo mais largo
sobre o tronco. Ela tentou não olhar, mas mesmo assim viu que
aquele pescoço tinha um fim, e que aquele corpo um dia teve uma
cabeça. Raabe virou o rosto e viu a cabeça não muito longe dali,
perto de uma roseira, com os olhos arregalados mais por surpresa
do que por agonia. Ela reconheceu aquele rosto: era Hamish, o
guarda do portão. Uma grande mosca saiu de sua boca sem vida, e
Raabe fechou os lábios para não vomitar.
Ela se forçou a andar para frente, focando o olhar nas costas de
Hanani, ignorando tudo, menos os retalhos na costura sob o qual os
músculos se contraíam e relaxavam a cada passo. Por viverem
dentro de muros, o extermínio pelo qual eles passaram foi limitado.
Era um terror mais do que suficiente para o resto da vida. Sempre
que Raabe ouvia as palavras guerra ou batalha depois daquele dia,
sua mente recordava aquelas imagens.
Perto de onde o grande portão da cidade costumava ficar, Hanani
parou novamente e se virou. “Preciso avisar a Josué que nós te
encontramos. Não saiam daí. Ezra, eu já voltarei”, gritou ele para ter
a certeza de que tinha sido ouvido em meio ao estrondo. Ezra fez
um sinal com a mão para indicar que ouvira.
Raabe apoiou as sacolas no chão e cobriu seu nariz e sua boca
com as mãos trêmulas. Os sons que a rodeavam eram
aterrorizantes, e sem dúvida eram os sons da destruição e da
aniquilação.
Saído de lugar nenhum, segundo Raabe, um guerreiro alto foi
depressa até o grupo que esperava. Ele fez um movimento
repentino em direção a ela, erguendo sua espada manchada de
vermelho. Raabe arfou e levantou as mãos em um gesto
inconsciente de rendição. Ezra parou de proteger a retaguarda e
gritou: “Salmom, pare! Eles estão conosco!”
O homem curvou o rosto em direção a ela e, por um momento
passageiro, Raabe sentiu que seu olhar se prendeu ao dele. Seus
olhos grandes, quase negros, pareciam desafiá-la enquanto a
analisavam. Apesar de ser bonito, com uma boca bem desenhada e
um nariz cinzelado, uma austeridade obscura marcava cada traço,
fazendo-o parecer não muito acolhedor. Ele era bonito, mas frio.
“É melhor você sair daqui com eles antes que alguém os corte em
pedaços”, ordenou ele.
Naquele momento, Hanani estava correndo em direção a eles e
chegou a ouvir algumas palavras. “Nós iremos imediatamente,
Salmom. Eu estava apenas falando com Josué.”
Raabe teve a impressão de uma ira antes do homem se virar e
gritar algo para um grupo de soldados que correram para obedecer
às suas ordens. Apenas depois que ele virou as costas, ela voltou a
respirar outra vez. Com alívio, ela retomou sua caminhada
interrompida atrás de Hanani, passo a passo, enquanto ele os tirava
das ruínas de sua nação.
Eles caminharam por uma hora em um silêncio ininterrupto, até
que Raabe finalmente conseguiu falar. “Vocês lutarão contra outras
cidades?”
“Sim”, respondeu Hanani.
Ela fez um gesto com a cabeça. Era óbvio que o Senhor não
estava satisfeito apenas com Jericó. Debir já havia lhe dito isso
antes, e pensar nele trouxe lágrimas aos seus olhos. Ela sabia qual
foi seu destino – o destino que ele escolhera. Ela lamentou por sua
morte, pois Debir tinha sido seu amigo.
Raabe não conseguiu dizer mais nada. A jornada foi cansativa e,
embora Hanani e Ezra tivessem ajudado a eles a carregar suas
sacolas, ainda havia muito peso. As crianças menores tiveram que
ser carregadas na maior parte do caminho, e Raabe tentava ignorar
a pontada de dor que sentia, dando o seu melhor sob os raios
abrasadores do sol. O suor fez marcas desiguais em sua pele, pois
ela estava coberta pela poeira densa das construções decaídas de
Jericó. Sua família a seguia com tropeços, sustentando-se mais no
sofrimento e na perda do que no peso dos bens materiais. Raabe se
perguntou se eles realmente acreditaram que Deus derrotaria
Jericó.
Logo após o meio-dia, eles chegaram a uma colina pequena
cercada por palmas e acácias. “Vamos deixar vocês por aqui agora”,
avisou Hanani. “Josué pediu que levássemos notícias preliminares
da guerra ao acampamento de Israel. No caminho de volta à cidade,
vamos parar aqui novamente para trazer-lhes água. Não há poço
por perto.”
Raabe fez uma reverência a eles. “Vocês salvaram nossas vidas.”
“Assim como você salvou as nossas”, replicou Ezra com um gesto.
,.
Eles estavam felizes por ter sombra. Ninguém estava comfome, e
as crianças, exaustas pela caminhada esgotante, dormiram sem
problemas. Izzie ajudou Raabe a espalhar alguns cobertores para
criar um ambiente mais confortável, e elas também amarraram a
corda escarlate entre duas tamareiras, pendurando um cobertor, a
fim de criar um espaço que garantiria um pouco de privacidade. Dos
muros de Jericó para um cobertor. Eles haviam perdido, de fato.
Os adultos sentaram-se perto uns dos outros tentando prover
algum tipo de segurança pela proximidade. Raabe continuou
pensando na resposta de Hanani à sua pergunta – que Israel
continuaria guerreando contra Canaã. Eles abandonariam Raabe e
sua família? À mercê de outros deuses e dos povos cananeus? À
mercê de outro ataque indefensável de Israel? Teria ela arriscado
sua vida apenas para ser abandonada? Ela se deu conta de que
queria muito mais que aquele descanso temporário. Raabe queria
uma segurança duradoura, e queria uma nação para honrar. Ela
queria o Senhor.
Em um impulso, Raabe deixou escapar: “Quero pedir a Hanani e
Ezra para intercederem por nós com Josué. Talvez eles nos deixem
viver com eles”.
Um silêncio impactante foi ao encontro de seu anúncio. Depois,
Joa foi em direção a ela. “O seu cérebro assou no sol, mulher? Os
hebreus estão assassinando o nosso povo enquanto conversamos.
Você quer viver com eles? Como você acha que eles vão nos
tratar?”
“Está fora de cogitação”, apoiou o irmão mais velho. “Ficaremos
aqui por respeito até eles voltarem. Depois, vamos para o ocidente.
Canaã tem outras cidades, e viveremos longe daqui.”
“E o que vocês vão comer?”, perguntou ela. “Suas terras
pertencem aos hebreus agora, caso você tenha esquecido a batalha
que aconteceu. Como vocês vão se sustentar?”
“Do mesmo jeito que faríamos se estivéssemos com esses
forasteiros, Raabe. Nós trabalharemos”, respondeu Karem.
“Como operários? Por quanto tempo antes de vocês morrerem de
fome? Sobreviver já era complicado quando vocês eram donos de
suas próprias terras.”
“Você acha que esse povo nos presenteará com uma parte da
terra?”, perguntou Joa em tom sarcástico. Virando-se, ele golpeou o
tronco de árvore mais próximo com os punhos cerrados. Houve um
estalo nauseante e Raabe retraiu-se, esperando que ele não tivesse
quebrado os dedos. Ele levou as articulações à boca e saiu. Ela viu
que eles estavam machucados e com a pele desgastada, mas não
pareciam ter feridas mais profundas do que aquelas. Seus ombros
relaxaram com alívio.
“Eles vivem de maneira diferente da nossa”, disse ela depois de
alguns instantes. “Nenhum deles passa fome. O Senhor lhes provê
tudo.”
“O Senhor! O Senhor! Estou cansado de ouvir esse nome”, Joa
gritou. “Eu quero me afastar dele – ir para o mais longe possível.”
Ela se aproximou dele. “Joa.” Mas não conseguia pensar em nada
para dizer que o reconfortasse. Então, em vez disso, ela lhe deu um
abraço forte. Ele começou a chorar. “Isso é um pesadelo”, repetia
ele várias vezes.
O pai e a mãe de Raabe sentaram-se perto dele, aparentemente
indefesos e quase chorando também. A irmã e as cunhadas
estavam ocupadas tentando fazer uma fogueira para preparar algum
alimento, perdendo, então, a maior parte da conversa. Atraídas pela
tristeza de Joa, elas também se aproximaram.
“O que está acontecendo?”, perguntou Izzie.
“Raabe quer que nós fiquemos com os hebreus”, respondeu sua
mãe.
“Eles nos aceitariam?”
“Izzie! Não fale como se você quisesse ir”, argumentou
Gerazim.“Bom, para onde mais nós iremos?”
“Exatamente, vocês não podem ir muito longe em Canaã para
fugir dos hebreus. Mais cedo ou mais tarde, eles chegarão – nessa
geração ou na dos nossos filhos. Você ainda não entendeu isso?
Eles querem a terra inteira, e nossa única salvação é estar com
eles. Como um deles”, afirmou Raabe.
“Eles nos escravizariam?”, perguntou Izzie.
“É claro que não... eu não acho.” Droga! Eles não escravizariam,
não é? Se quisessem escravos, eles já os teriam levado como
prisioneiros. “Acho que, se estivermos dispostos a adorar apenas o
Senhor e a abrir mão dos outros deuses, talvez eles nos deixem
viver com eles — como pessoas livres.”
Izzie levantou a sobrancelha. “Abrir mão dos nossos deuses?
Estou disposta a fazer isso a cada minuto do dia.”
Seu marido a encarou como se ela tivesse acabado de anunciar
que assumiria a profissão que Raabe teve um dia. “Izzie, o que você
está dizendo?”
Ela se virou para ele com uma veemência que silenciou a todos,
antes mesmo de falar. “Eu entreguei meu filho a Moloque. Meu filho!
E o que eu ganhei com isso? Além de dor e arrependimento, o que
mais eu ganhei com esse sacrifício? Tantos anos, e eu fiquei estéril.
Sem bênçãos, sem riquezas. Eu tenho visto mais poder no deus dos
hebreus nos últimos sete dias do que vi em nossas divindades a
vida inteira. Desejo boas coisas a eles. Vivas ao Senhor. Raabe, eu
estou com você.” Ela deu uma mordidinha nos lábios e depois, com
uma voz mais baixa, perguntou: “Você acha que eles vão aceitar
alguém que sacrificou seu filho a Moloque?”
“Sim, já que aceitaram uma ex-prostituta.”
Karem levou a mão aos cabelos. “Raabe, você tem certeza de que
eles também atacarão outras terras de Canaã?”
“Sim.”
“Até agora você não esteve errada. Se não fosse por você, irmã,
estaríamos mortos e não restaria nenhum de nós. Ninguém aqui
teve o bom senso de te agradecer; nós lhe devemos nossas vidas, e
eu, pelo menos, não estou disposto a viver outra batalha daquelas.
Estou disposto a me juntar aos hebreus se eles nos tiverem como
iguais, e não como escravos. Minha família e eu te apoiaremos.”
Izzie olhou para Gerazim. Ele mexeu a cabeça em um gesto fraco
de aprovação, com uma aparência doentia. Raabe não poderia
culpá-lo. Era como decidir mudar o rumo de suas espécies. O que
eles sabiam sobre a vida dos hebreus? Ela surgiu diante deles como
uma noite sombria e interminável.
Os pais de Raabe estavam quietos, olhando para todos,
começando por Joa, apesar de ele não ter falado mais nada naquele
dia. Ele apenas olhava na direção de onde era Jericó, por vezes
com os lábios trêmulos. Sua esposa sentou-se com ele, e seus
filhos, ainda sonolentos, se aproximaram. Entretanto, nem mesmo a
aproximação deles o distraiu. Durante a noite inteira, ele ficou
sentado sob aquela árvore. Se ele dormiu, Raabe não viu. Quando
ela acordou, ele estava no mesmo lugar com um temperamento
mais sombrio do que antes.
“Joa”, sussurrou ela e se abaixou na frente dele. “O que foi? O que
tanto te consome?”
“Eles são o inimigo. Sinto como se você tivesse passado para o
lado inimigo.”
“Você quer levar sua família para onde em Canaã? Você pode ir
se quiser, meu irmão. Eles nos deram nossas vidas e não nos
impuseram condições.”
“Se eu for, perderei o restante de vocês. Já não perdemos o
bastante?”
Ela concordou com a cabeça. Mais do que o bastante. “Aquele
acampamento hebreu é a única chance de viver que teremos no
final das contas. Você pode aprender a viver com o inimigo e fazê-lo
ser seu amigo, ou pode ir para onde você quer e acabar com o
futuro de seus filhos. Essas são as suas únicas escolhas.”
“Raabe, por que você quer servir ao deus deles?”
Como poderia expressar com palavras algo que ela mesma mal
entendia? “Porque Ele é verdadeiro.” Houve uma resposta, mas
totalmente deficiente. Porém, Joa pareceu entender. Ele engoliu em
seco, depois concordou.
“Eu irei para onde você for”, disse ele, mas com um tom derrotado,
e não esperançoso.
Depois daquilo, os pais de Raabe se juntaram a eles, como ela já
sabia que fariam. A família inteira foi unânime, mesmo que por
razões muito diferentes. Para Raabe, os hebreus representavam a
esperança. Eles eram a resposta para um desejo que ela mal
compreendia. Sua irmã aceitou porque não tinha nada a perder, e
seu marido a apoiou, como sempre fazia. Karem, o irmão mais velho
de Raabe, aceitou porque viu a situação de forma prática, e fez o
compromisso, moral e pragmático, necessário a fim de garantir que
sua família sobreviveria. Joa aceitou por desespero. Sejam quais
fossem seus motivos, Raabe convenceu a família a se juntar aos
hebreus. Mas como ela convenceria os hebreus a aceitá-los?
,.
Quando Hanani e Ezra voltaram, ela teve uma conversa particular
com os dois e não perdeu tempo. “Nós podemos nos unir a Israel?
Ouvi dizer que há alguns estrangeiros com vocês. Então vocês
também podem nos aceitar, não é? Vocês nos deixariam viver com
seu povo?” Suas palavras pegaram os dois de surpresa.
Sob suas sobrancelhas escuras e curvilíneas, Hanani olhou para
ela e logo afastou o olhar. “Isso não cabe a nós, mas
conversaremos com Josué quando discutirmos os assuntos sobre
Jericó e quando ele tiver mais tempo para lidar com outros
assuntos.”
“Lembre a Josué... lembre a ele que eu parei de viver como uma
zonah pela causa do Senhor. Nunca mais voltarei a ter aquela vida.”
Hanani pensou naquilo por um momento. “Você realmente parou
por causa do Senhor?”
Raabe respondeu que sim. “Há meses.”
“Nosso povo apedrejou uma mulher por causa de tal pecado. Ela
se tornou impura aos olhos de Deus, mas é bom que você tenha
parado. Diremos isso a Josué, Raabe, mas não podemos prometer
nada.”
“Eu entendo. Obrigada.”
“Josué acredita que o próprio Senhor enviou você a Ezra e a mim.
Talvez isso o comova.”
Ela sorriu. “Bem, o Senhor não salvaria a mim e a minha família
apenas para nos perder em outra cidade de Canaã. Qual seria o
objetivo? Ele deve ter nos poupado por algum propósito.”
Hanani concordou com a cabeça. “Você nunca duvida de nossas
vitórias?”
“É claro que não. Como o Senhor perderia?”
“Acho que Israel sempre se lembrará de você pela sua fé, Raabe.”
Afirmou Ezra.
Seu coração se encheu de alegria. Seria possível ela ser
lembrada por algo que não fosse sua antiga profissão?
Capítulo
Oito

S almom se ajoelhou em um monte carbonizado de alvenaria, e a


pequena espada que ele empunhara por longas horas bateu
com força em seu lado. Ele engoliu, e sua garganta ardia muito. O
cheiro da morte o cercava, e ele lutou bravamente contra um ímpeto
de vomitar a pouca comida que havia em seu estômago. Muitas
moscas voavam em volta dele, atraídas pelo cheiro do sangue que
secava em suas roupas. Ele as deixou, pois estava muito cansado
para espantá-las. De longe, ele percebeu que um homem se
aproximava por trás. Josué. Salmom queria que ele fosse embora e
o deixasse sozinho para que pudesse ter alguma paz com seus
conflitos interiores. Mas Josué continuou seguindo, e seus passos
não mudaram de direção. Ele subiu no monte em que Salmom
estava e ficou diante dele por um momento. Um braço forte,
queimado pelo sol, envolveu os ombros tensos de Salmom como
umcobertor.
Por um momento Salmom evitou aquele conforto, aprofundando-
se mais e mais dentro de si mesmo. Depois, abaixando a cabeça,
ele liberou a tensão. “Nunca me acostumei com essas matanças”,
sussurrou ele com voz fraca. Salmom passou a mão trêmula pelo
rosto, deixando listras de cinzas na bochecha.
“Deus também não Se agrada com isso, meu filho”, disse Josué.
“Você sabe que Ele odeia a injustiça da mesma forma que as mães
odeiam as doenças que acometem seus filhos. Como nos dias de
Noé, os filhos de Adão podem acumular tanta corrupção que seu ser
torna-se perigoso para tudo que vive. Então, a sacralidade de Deus
se levanta. Mas eu acredito que, assim como o dilúvio de Noé, essa
parte de nossa história restringe-se a uma fase. Essa é apenas uma
pequena parte da história que precisa terminar. Deus tem outros
planos para o nosso povo, e prometeu a Abraão que todas as
nações do mundo seriam abençoadas por meio dele. Por meio de
nós. Esse é o nosso maior destino.”
Salmom murmurou. “Eu gostaria que essa fase de bênçãos não
demorasse a chegar. Essa é uma tarefa da qual mal posso esperar
para me ver livre. Dias assim são angustiantes. Suponho que eu
possa parecer ingrato diante de tudo que o Senhor já fez por nós.”
“Você parece exausto.” Josué se levantou e avaliou a devastação
à sua volta. “Logo voltaremos ao acampamento. O solo desta cidade
é amaldiçoado, e não passaremos nem sequer uma noite aqui.”
Salmom percebeu que alguém estava correndo em direção a eles.
Hanani.
“Meu senhor, procurei por você em todo lugar.” Ele ofegou quando
chegou até eles, falando primeiramente com Josué, como deveria
ser. Sem saber da onda de emoções que Salmom acabara de
enfrentar, ele sorriu. “Que bom que você está a salvo”, disse ele ao
amigo antes de se voltar para Josué. “Agora que você já acabou de
tratar sobre a cidade, pode me dar alguns minutos?”
“Sim, grande espião. Como foram as coisas com Raabe e a
família dela? Vocês os salvaram?”
“Sim, nós salvamos. Na verdade, era sobre isso que eu gostaria
de conversar, meu senhor. Ela pediu permissão para viver em Israel.
Ela e sua família.”
Salmom bufou, mas Josué o ignorou. “Ela quer isso agora?
Mulher singular essa sua zonah.”
Hanani ruborizou. “Ela definitivamente não é minha, e acho que
não é mais uma zonah. Ela pediu para lhe dizer que desistiu
daquela vida. Pela causa do Senhor.”
Josué passou a mão calejada pela barba. Suas narinas se
encheram com uma respiração profunda. “Estou convencido de que
ela nos foi enviada por Deus. Apesar de conhecer muito pouco
sobre o Senhor, ela O busca. Desde que nossa peregrinação
começou, nunca vi estrangeiros tão dignos de valor. Se ela e sua
família abrirem mão de seus deuses e aceitarem viver sob nossas
leis, acredito que devo permitir que se juntem a nós.”
Salmom, que havia guardado seus comentários para si, explodiu.
“Você não pode estar dizendo isso!”
“Não posso? E por que eu não poderia?”
Alterado demais para considerar a luz perigosa nos olhos de
Josué, Salmom disse: “caso você tenha esquecido, acabamos de
matar todo o povo. Você acha que, depois disso, eles irão conviver
pacificamente conosco? Teremos que dormir com um dos olhos
abertos por causa do medo de ser apunhalados durante a noite pela
vingança dos fugitivos de Jericó”.
Josué fez que sim com a cabeça. “Seria uma preocupação
plausível, se essa mulher não tivesse ajudado a destruir o próprio
povo quando abrigou nossos espiões. E sua família também ajudou
quando consentiu em não falar nada. Se eles estivessem tão
preocupados com Jericó, teriam tentado salvá-la enquanto ainda
tinham poder. Eles serão bastante inofensivos conosco. Sentirão
pesar, eu ouso dizer, mas não vingança.”
“E Raabe?”
Josué fez um gesto com a cabeça parecendo não entender a
pergunta.
“O que tem ela?”
“Ela é uma zonah, independentemente do que diga sobre ter
desistido disso. Ela é impura.”
Josué levantou uma das mãos, com a palma para cima. “Acho que
seria melhor se déssemos algumas voltas juntos.” Aquela era a voz
de líder de Josué, o que não gerou discordâncias. Salmom
obedeceu com passos pesados.
Josué não disse nada até eles entrarem em um pequeno bosque,
onde um dia foram os muros de Jericó. Salmom parecia
incomodado com aquele silêncio e pensava no quanto teria
desagradado o homem mais velho. Josué fez uma parada abrupta e
se virou para encará-lo. “Que coração orgulhoso você anda
abrigando, meu jovem.”
Pasmos, os olhos de Salmom se arregalaram. “Meu senhor?”
Aquelas palavras respeitosas quase o sufocaram quando saíram.
“Tudo isso é desagradável, eu sei, mas preciso falar com você
sem rodeios. Salmom, o juízo que você faz desta mulher é errado.
Entenda, eu não te culpo. Entendo a origem de suas opiniões e sei
como você as formou. Isso é uma parcela da criação dos seus, mas
sua geração tem uma grande lição para aprender. A falta de fé e a
desobediência dos seus pais e avós mudaram suas vidas. Em vez
de nascer e crescer em sua própria casa, você enfrentou as
dificuldades de uma existência instável, sem nunca ter conhecido a
rotina de uma vida normal. Até então, a única segurança que lhe
resta é o Senhor, e isso fez você se apegar a Deus diferentemente
dos seus pais. Talvez a geração dos seus filhos também não herde
sua decisão, e talvez seja por isso que Deus permitiu que, antes de
tudo, vocês peregrinassem.
“Mas em toda força há certa fragilidade, e a sua está sendo
exposta agora, Salmom. Você está julgando na tentativa de aplicar a
justiça.”
“Eu estou apenas mostrando os fatos.”
“Ah, sim. Ela é impura. Cheia de pecado. Tal conceito é mesmo
incomum para a nação de Israel. Pois nosso maior líder, Moisés,
nunca matou um homem dominado pela ira. E nosso sumo
sacerdote, Arão, nunca adorou a um ídolo de ouro. Nosso ancestral
imaculado, Judá, certamente não ignorou os direitos das viúvas de
seus filhos. E Deus não impediu que ele encontrasse uma mulher
que pensou ser prostituta e se deitasse com ela em sua tenda. Que
tormento terrível Raabe seria para a nossa pura e imaculada Israel.”
Salmom rangeu os dentes. “Você está comparando uma mulher
adúltera a Moisés?”
“De certa forma, sim. Acho que você também se esqueceu, meu
jovem amigo, que o sangue de cordeiros sem mácula também é
derramado para redimir nossos pecados.” Salmom ficou vermelho,
mas Josué continuou. “Você se lembra de quando falei sobre o meu
encontro com o comandante dos exércitos do Senhor? Naquele dia,
ele me disse que não estava do nosso lado nem do lado inimigo.
Isso me deu um vislumbre do coração do Senhor. Ele está do lado
de todos que estiverem do Seu lado, e Raabe está do lado dele.
Mas seu orgulho não te deixa ver isso.
O orgulho é o veneno da justiça. Por fora, você pode até parecer
mais justo que uma mulher com tal passado, mas Deus nos vê por
dentro. Você tem se ocupado tanto tentando cumprir os
Mandamentos e tentando fazer tudo certo por fora que acabou
esquecendo do seu interior que o Senhor sempre está sondando. E,
assim, você perdeu o senso de justiça. Você está confundindo
condenação com bom juízo.
Agora, darei a você uma nova missão para te ajudar com seu
problema. Colocarei Raabe e sua família sob o estandarte da tribo
de Judá. Ou seja, estou colocando-a sob seu comando.”
“Mas...”
“Pare. Não diga outras palavras que não ‘Sim, meu senhor’.
Espero que você trate essas pessoas com respeito. Ajude-as a se
assentar e ensine-as a viver do nosso modo. Eu me fiz entender?”
“Sim, meu senhor.” Os lábios de Salmom mal se moveram
enquanto falava. Ele se sentiu gélido por dentro, e Josué nunca o
reprimira tanto. O homem que mais admirava achava que ele era
hipócrita, orgulhoso e que não tinha senso de justiça. Por causa de
uma zonah cananeia. Ele lutou para ganhar o respeito de Josué, e a
opinião de seu líder significava muito para ele. Mas aquela crítica o
destruiu, e suas palavras serpenteavam em seu coração como um
veneno de amargura.
O ressentimento em relação a Raabe e sua família o invadiu. Suas
objeções para com ela eram uma questão de princípios; ele não
tinha problemas pessoais com ela. Mas, depois dessa conversa com
Josué, uma aversão estranha a ela surgiu em seu coração. Ele deu
meia volta e foi novamente até o monte onde estava, em Jericó.
Com determinação nos olhos, ele foi procurar Hanani. Josué lhe
dera uma missão e ele estava disposto a desempenhá-
-la com obediência. Além disso, Salmom também intentava fazer
aquela cananeia revelar sua verdadeira natureza.
Ele encontrou Hanani fazendo uma refeição com bolos de tâmara
e grãos tostados. Para Salmom, Hanani já estava maculado pela
companhia. Afinal de contas ele estava andando com Raabe. Sem
cumprimentos e sem o entusiasmo rotineiro, Salmom falou: “Para
onde você levou aquela mulher? Josué a colocou juntamente com a
família sob minha liderança.”
Hanani engoliu a grande quantidade de bolo que estava em sua
boca. “Você quer dizer, Raabe? Eles estão a mais ou menos uma
hora do acampamento. Podemos parar lá na volta, se você quiser.”
“Não. Já será noite quando chegarmos lá. Deixe-os passarem a
noite onde estão. Trataremos disso amanhã.”
“Hum, você não me parece muito feliz com isso.”
“Eu? Infeliz? Estou regozijando de tanta alegria. Era tudo o que eu
queria para a minha tribo – uma adúltera cananeia e sua família
moralmente destituída. Isso deve trazer paz e tranquilidade para o
meu povo.”
“Salmom, eu não acho que...”
“Está certo. Você não acha”, disse ele e foi embora.
Salmom passou as duas horas depois daquele momento
avaliando as pessoas sob seu controle, vendo quem estava ferido,
ouvindo as histórias da batalha e certificando-se de que a devida
assistência estava sendo dada a quem precisava de ajuda. Jogando
seus sentimentos arrebatadores em algum lugar escondido de sua
mente, ele deixou seu entusiasmo natural recair sobre aqueles
homens, elogiando-os por seus atos valorosos e parabenizando por
suas experiências. Ele teve uma pequena reunião com os líderes
que foram falar com ele antes de permitir-se voltar para o
acampamento.
Quando ele voltou, a lua já estava no céu há horas. Ainda fora do
acampamento de Israel, ele tirou as roupas e lavou o sangue e o
suor da batalha, até estar devidamente limpo. Depois disso, ele se
arrastou até o acampamento exausto e acabado. O que deveria ter
sido um dia de alegrias tinha gosto de amargura em sua boca.
Sabendo que os mensageiros já haviam cumprido a tarefa de levar
notícias às mães e esposas do acampamento, ele entrou na tenda.
Sua irmã mais nova, Miriã, cujo nome lhe foi dado por causa da
irmã mais afamada de Moisés, quase o levou ao chão com a força
de seu corpo quando foi de encontro a ele com um abraço forte.
“Opa!”, resmungou ele, tentando segurar o fôlego. “Se os soldados
de Jericó lutassem com a força desse abraço, talvez não tivéssemos
vencido.”
Ela beijou seu braço. “Estou tão feliz por você estar bem.”
Salmom deu batidinhas na cabeça dela, esquecendo-se de que
agora ela era uma mulher feita, e não mais uma criança. “São, salvo
e morto de cansaço.”
“Vá logo se deitar, então. Amanhã você me conta sobre a batalha
e sobre a ruína dos muros. Ezra descreveu a cena, mas ele teve
que ser breve. Aposto que sua versão será mais empolgante.”
“Garota sanguinária. Vá antes que você me faça ter pesadelos.”
Salmom andou cansado até suas almofadas, alongando seus
músculos doloridos e tentando esticar-se. Ele não orou nem mesmo
louvou a Deus pela intervenção milagrosa ou por seu retorno
seguro. Salmom falou para si mesmo que estava muito cansado;
entretanto, no fundo ele sabia que o cansaço não era o motivo que o
afastara de Deus, mas sim a raiva. Ele ficou com raiva pela decisão
injusta de Josué e pelo fardo que Raabe seria. Mas, acima de tudo,
ele ficou com mais raiva da possibilidade de Josué ter razão.
,.
O dia amanheceu iluminado, mas não muito prazeroso para
Salmom. Miriã entrou com um café da manhã e um sorriso alegre.
Todos em Israel sorriam, e aquela felicidade o irritava. Eles não
tiveram de fazer nada desagradável que afetasse o gosto da vitória
em seus lábios. Eles não precisavam lidar com uma zonah
cananeia.
De qualquer maneira, o que ele faria com aqueles estrangeiros?
Salmom não podia simplesmente aparecer no acampamento com
eles nas costas. Havia centenas de regras e leis que eles,
inconscientemente, quebrariam naquele primeiro momento. Ele
decidiu deixá-los onde estavam até que recebessem algumas
instruções básicas.
“O que há de errado com você, meu irmão? Por que estava
magoado ontem?”, perguntou Miriã franzindo a testa para Salmom.
Ele se sentou na esteira e arrumou os travesseiros em suas
costas, amaciando-os. “Não, eu não estava magoado.”
“Então, por que você está agindo como um camelo com dor de
dente?”
Ele passou as mãos pelos cabelos escuros, fazendo-os ficarem
arrepiados. Aquilo não ajudou muito, já que ele estava lutando
contra o sono. “É complicado.”
Miriã deu um suspiro. “Bem, ande logo e vista-se. Vou com você
para ajudar.”
“Ajudar em quê? Do que você está falando?”
“Da sua complicação. Acredito que o nome dela seja Raabe, e ela
ainda vem com alguns parentes.”
Salmom quase se engasgou com a surpresa. “Como você sabe
sobre Raabe?”
“Acalme-se, senão você vai pegar a febre do deserto por
esquentar-se tanto. Josué falou comigo hoje, ainda cedo, e me
pediu para te ajudar.”
“Você? Para quê? Ele mandou um pedaço de gente me espionar –
minha própria irmã, só me faltava essa!” Ele lançou um olhar para
ela que praticamente gritava “traidor”.
Franzindo a testa, Miriã fez um gesto de desprezo com sua mão.
“Mas é claro que não. Ele me pediu para te ajudar com as mulheres.
Não vai ser fácil ensinar nossas leis a elas, e irei ajudá-las a se
adequar e a se adaptar.”
“Ah!”
“Desculpas aceitas. Meu único irmão está grosseiro logo no dia da
grande vitória de Israel. ‘Por quê?’, surge a pergunta.”
Salmom encolheu os ombros. “Não concordo com Josué em
relação a isso. Acho que é um grande erro trazer essas pessoas
para o nosso acampamento. Se Deus nos mandou poupá-los, que
seja. Eu gostaria de derramar menos sangue do que tenho
derramado. Mas eles precisam mesmo se juntar a nós?”
“Ela me parece uma mulher de fé e muito corajosa. O que você
tem contra ela?”
“Ela é uma zonah, Miriã. Pare e pense nisso, não sei se é sensato
desperdiçarmos tanto tempo com ela. Fale para Josué mandar a
irmã e veja se ele vai querer ajudá-los.”
“Hanani e Ezra passaram uma noite inteira com ela. Sozinhos. E
nenhum deles se corrompeu. Eu ouso dizer que resistirei a
quaisquer influências execráveis que ela tenha. Além do mais,
Josué me pediu isso pessoalmente e eu não irei decepcioná-lo.”
“Bem, Josué deveria ter antes pedido minha permissão.” “Acerte-
se com ele se você quiser. Agora, quando nós iremos visitá-los?”
Salmom lamentou. Ele não podia lutar contra Josué e sua irmã,
pois os dois eram duas pessoas pelas quais tinha muito carinho. E,
na verdade, ele não estava preocupado com Miriã. Ela saberia lidar
com até dez prostitutas cananeias sem se deixar corromper. Ele
apenas estava tentando encontrar desculpas para frustrar o plano
de Josué. Com ressentimento, pôs um manto sobre a cabeça ao
mesmo tempo em que esticava os pés em suas sandálias já gastas
com uma energia proveniente da irritação.
“Agora, nós iremos até eles. Vamos procurar Hanani para que ele
nos mostre o caminho. Ezra também sabe onde é, procure por ele
também. Vamos perguntar ao primeiro que aparecer pela frente.”
Eles encontraram Ezra não muito longe de sua tenda,
cantarolando uma melodia alegre enquanto carregava água.
“Ezra!”, chamou Salmom.
“Bom dia, Salmom.” Seu sorriso se abriu ainda mais, quase a
ponto de dividir seu rosto ao meio quando ele viu quem o
acompanhava. “Bom dia, Miriã.”
“Olá, Ezra. Meu irmão e eu precisamos de sua ajuda.” “Qualquer
coisa. Qualquer coisa que você...”
“Sim, sim”, interrompeu Salmom. “Precisamos ir até onde Raabe
está. Você nos leva?”
“Claro que sim. Nós os deixamos em um oásis não muito longe
daqui.” Ele olhou em volta à procura de um lugar para deixar seu
jarro de água, mas depois mudou de ideia e o apoiou novamente
nos ombros. “Eu levarei. Eles precisam de água fresca.”
Salmom fez um som demonstrando desconforto.
Ezra e Miriã conversaram na maior parte do caminho, ou pelo
menos Miriã falava e Ezra a ouvia com entusiasmo. Salmom ignorou
os dois e passou a se perguntar por quanto tempo ele precisaria
ficar com aqueles sobreviventes de Jericó antes de eles serem
forçados a mostrar o verdadeiro caráter.
Um pequeno acampamento apareceu às vistas. Sob a sombra de
grandes palmeiras, algumas crianças brincavam e uma mulher as
olhava. Três mulheres preparavam algum tipo de refeição na
fogueira enquanto um homem recolhia lenha, o outro dormia e
outros dois estavam envolvidos em uma conversa. O cenário
parecia familiar. Inocente. Nitidamente inofensivo. Salmom se deu
conta de que aquela família havia perdido tudo e a todos que
conheciam. Eles deveriam estar arrasados, e Salmom engoliu a
culpa em seco. Em sua concepção, eles haviam se tornado seres
abstratos, indiferentes, sem coração, mas a cena que ele vira ao
chegar tirou aquela venda de seus olhos.
Quando eles se aproximaram, a família de Raabe notou sua
presença e todos interromperam as atividades. Até mesmo o
homem que dormia acordou, e as crianças se aquietaram. Quando
eles chegaram mais perto, uma mulher se aproximou. Ela estava
usando uma toga modesta de alta qualidade, e seus cabelos
estavam cobertos pelas dobras de um tecido preto de linho. Com os
olhos grandes e arregalados, ela o observou discretamente. Suas
pupilas se dilataram ao reconhecê-lo antes mesmo de ela piscar. Ele
também não tinha esquecido do rosto dela, nem mesmo depois do
rápido encontro entre os dois em meio à cidade em chamas. A pele
de Raabe era tão clara que os raios do sol pareciam atravessá-la, e
suas cores incomuns – olhos cor de ouro e os cabelos castanhos
escapando de seu véu – realçavam a feminilidade exótica que
estampava cada traço dela. Salmom deu um chute em si mesmo
mentalmente. Ele estava mesmo admirado uma cananeia? Ao
contrário de Miriã, era ele quem estava precisando de proteção.
Ela se virou para Ezra e inclinou-se mostrando respeito, como era
de costume entre os cananeus. “Bem-vindo, Ezra.”
“Bom dia, Raabe. Eu trouxe um pouco de água.”
Raabe! Aquela era Raabe? Como alguém poderia dizer que uma
mulher como aquela era prostituta? Onde estavam seus véus
transparentes, vestidos justos e as pinturas no rosto? Onde estava
sua expressão bronzeada e sensualidade?
Ezra interrompeu os pensamentos deslumbrados de Salmom com
uma apresentação. “Raabe, este é Salmom, filho de Naassom, um
dos líderes da tribo de Judá, e esta é Miriã, sua irmã. Salmom, esta
é Raabe, que salvou a mim e a Hanani da morte certa.”
Raabe fez mais uma reverência, mais longa desta vez por respeito
à posição de Salmom. “Sua presença muito nos honra, meu senhor.”
Depois de apresentar os membros de sua família, ela perguntou:
“Vocês gostariam de comer conosco? Temos pão fresco e bolo de
uvas.”
Salmom, irritado por ter de passar metade do dia com pessoas em
quem ele mal confiava, e ainda mais irritado pelo fato de ter se
impressionado com a aparência e com as maneiras de Raabe, fez
um gesto com o lábio. “Não. Viemos até aqui para dizer que Josué
decidiu deixar sua família ir morar no acampamento de Israel. Com
algumas condições.”
Antes mesmo de ele abrir a boca para falar as condições, Raabe o
espantou ao prostrar-se até o chão. “Obrigada, meu senhor. Muito
obrigada. Que Deus os abençoe.” Seus olhos grandes continham
muitas lágrimas.
“Levante-se, mulher”, ordenou ele. “Não posso falar com você de
rosto no chão.” Miriã pigarreou, mas Salmom a ignorou. Na verdade,
ele não queria ser tão ríspido, mas as lágrimas e a humildade
incômoda de Raabe o comoveram muito. Perturbado por sua reação
espontânea de compaixão, ele ficou pensando. Aquela mulher
causaria estragos se entrasse em Judá. Conscientemente ou não,
ela despertaria confusões e corrupção. Salmom endureceu o
coração compassivo e firmou o olhar.
O rosto de Raabe empalideceu e ela levantou apressadamente.
“Perdão.”
Salmom mexeu no nariz desejando que alguém apagasse aquele
olhar magoado do rosto da mulher. “Olha, eu disse que há
condições, e elas existem mesmo. Você deve desistir de todos os
seus ídolos e falsos deuses. Entendeu? Todos. O Senhor é um
Deus ciumento, e Ele não tolerará idolatria. Qualquer um de vocês
que quiser viver em Israel deve dedicar a vida ao Senhor e viver sob
nossas leis. Josué os colocou sob meus cuidados na tribo de Judá,
e agora eu sou responsável por ensinar tudo o que vocês precisam
saber. Então, quando estiverem preparados, podem ir para o
acampamento. Antes disso, ficarão aqui.”
O irmão mais velho de Raabe deu um passo à frente, curvando-se
com timidez. “Meu senhor, como aprenderemos essas leis? E como
aprenderemos sobre o Senhor?”
“Minha irmã, Miriã, ajudará as mulheres, e mandarei algum
homem que possa vir ensinar-lhes algo todos os dias.
“Agora vocês têm que me dizer, cada um: estão todos dispostos a
abandonar seus ídolos e a adorar apenas ao Senhor? Entendam
isso de uma vez: o castigo para a idolatria pode ser até mesmo a
morte.”
O mesmo irmão respondeu: “Raabe já havia nos explicado que
devemos nos afastar dos deuses com os quais nos acostuma-mos.
Todos nós escolhemos fazer isso, pois o Senhor é poderoso e está
muito acima de todos os outros. Mas temo que sejamos muito
ignorantes”.
Pelo menos eles sabiam e reconheciam sua ignorância, e Salmom
admitiu que a humildade poderia abrir caminho para um
aprendizado bem-sucedido. Antes que ele pudesse responder, o
irmão mais novo deu um passo à frente; havia algo indistinto e
taciturno em sua atitude. Aquele estava lutando contra sua decisão,
adivinhou Salmom. Ele se concentrou no irmão mais novo,
avaliando sua atitude e tentando ler sua expressão. Seria ódio?
Vingança? Violência? Ele ficou tenso e inconscientemente assumiu
uma posição de batalha.
“Nós seremos escravos dos hebreus se formos viver com vocês?”
Sua voz era instável, apesar da tentativa óbvia de parecer calmo.
Salmom acabou detectando medo e desconfiança, mas não
violência. Ele relaxou os músculos tensos, pois viu que o assunto
era razoável.
“Não, vocês não serão nossos escravos. Sua irmã comprou suas
vidas e sua liberdade ao salvar nossos espiões antes de a guerra
ser travada. Vocês podem se juntar a nós como pessoas livres. No
entanto, vocês não precisam ficar conosco, se não quiserem. Vocês
não nos devem nada, pois o preço pelas suas vidas foi justo.”
“E como nós vamos viver? Nós tínhamos um pequeno lote de
terras antes... em Jericó, quero dizer. Nos sustentávamos como
lavradores, mas como alimentaremos nossas famílias depois de nos
unirmos a vocês?”
Salmom encolheu os ombros. “Vocês, homens mais novos, irão
para o campo de batalha com o restante dos homens. Assim, terão
direito à parte da terra, como os outros. As mulheres e crianças
ficam no nosso acampamento e ajudam na manutenção diária.”
Muitos deles imediatamente se espantaram. “Batalha?”, perguntou
um deles assustado.
Ora, o que eles esperavam – que sua origem cananeia os
isentasse das tarefas desagradáveis? O que eles achavam de se
unir a uma outra nação significava?
“Se vocês vão se unir a nós, esperamos que vivam como nós.”
Raabe, que tinha se movimentado para ficar atrás de seus irmãos,
deu um passo à frente mais uma vez. Sua voz era tão suave
que Salmom ficava tenso ao ouvi-la, e ele notou que ela evitava
seu olhar. “Meu senhor, meus irmãos e meu pai nunca foram
treinados para guerrear. Eles são lavradores muito hábeis, e eu ouvi
dizer que alguns de vocês logo viverão nas terras que um dia foram
de Ogue e Siom. Vocês não precisarão de alguém que as cultive?
Por terem peregrinado por tantos anos, talvez cuidar da terra seja
uma tarefa muito desafiadora para vocês. Se o senhor precisa dos
seus homens na maior parte do tempo, o trabalho pesado de cuidar
das terras recairá sobre as mulheres, que não têm experiência.
Vocês teriam muitos prejuízos nesse processo de aprendizagem.
Meus irmãos e meu pai poderiam ser muito úteis ensinando ao seu
povo a cuidar da terra. Eles já conhecem o solo dessa área – as
colheitas que crescem bem e aquelas que perecem, além de
saberem o que aduba a terra e o que a drena. Não seria mais
vantajoso para Israel usar esse tipo de conhecimento que eles têm
do que desperdiçar a vida em batalhas para as quais eles não foram
treinados?”
Salmom lançou um olhar penetrante para Raabe. Em poucos
instantes, ela havia oferecido sua família como instrumento para
uma produtividade indispensável para Israel, além de ter
apresentado uma razão notável para que eles não lutassem. E mais
uma vez, ela recorreu a nenhum tipo de truque feminino para fazê-
lo, o que Salmom teria renunciado com certo prazer. Ele ficou
impressionado ao ver que ela ruborizava quando ele a olhava. Ela
abaixava os olhos, o que o fazia parecer ainda mais rude. Nunca
uma mulher o deixara tão perplexo ou atraído. Aquele pensamento
quase o fez suspirar. Ele queria correr o mais rápido possível na
direção contrária, até onde suas pernas o levassem.
Capítulo
Nove

R aabe analisou Salmom sorrateiramente. Ele parecia tenso, com


as mãos fechadas ao lado do corpo, rangendo os dentes e
inspecionando Raabe e sua família como um pastor vigia um bando
de lobos. Ele fez questão de não esconder a insatisfação em meio a
eles, e as únicas coisas mais frias do que seus modos eram suas
palavras. Por um lado, ele dera a melhor notícia que Raabe ouviu na
vida; por outro lado, ele a censurava como se apenas seu olhar
ofendesse seus sentidos.
Quando Salmom anunciou que seria o líder deles, o coração de
Raabe quase saiu pela boca. Havia uma força em Salmom que ela
achava intimidadora. Com os anos de peregrinação no deserto, sua
grande estrutura era composta de músculos, e as batalhas recentes
o fizeram ficar ainda mais forte. Mas, para Raabe, a imponência não
estava na força física ou mesmo na beleza poderosa. Havia algo
penetrante em seu olhar, como se ele pegasse uma adaga e
cortasse o seu ser sem piedade. A julgar pelos traços de sua boca,
nada que ele encontrava em Raabe o agradava. Embora ela
tentasse esconder isso dentro de suas roupas discretas, Salmom a
fazia se sentir como uma criança maleducada.
Depois de ter sido repreendida com tanta hostilidade, Raabe
manteve a boca fechada e falou o mínimo possível, até que ele
jogou a última bomba: seus irmãos teriam de ir para a guerra
juntamente com os outros homens de Israel.
Ela ficou horas pensando naquela possibilidade. O que Israel
poderia esperar deles? De que outra maneira eles poderiam provar
suas boas intenções e fidelidade? Ela nunca compartilhou essas
suspeitas com sua família; em vez disso, Raabe pensou muito para
buscar uma solução. Então, enquanto todos foram pegos de
surpresa pelas palavras de Salmom, ela se prontificou a dar uma
sugestão. Por dentro, ela estava tomada pelo medo. Se as vidas de
seus irmãos não estivessem em jogo, ela nunca mais abriria a boca
na frente daquele homem.
Raabe não teve a ousadia de olhar para os olhos dele, mas não
resistiu e o fez disfarçadamente por sob seus cílios para tentar ter
uma ideia de sua reação. Seu rosto era indecifrável como a esfinge;
seus olhos se fixaram nela enquanto ela terminava de falar, e Raabe
sentiu que havia ruborizado. Raabe mordeu os lábios querendo
brigar consigo mesma por ter voltado a ser uma adolescente
envergonhada.
Salmom cruzou os braços e deu um passo para trás. “E você
pensou nisso agora, suponho.”
Raabe havia prometido a si mesma que manteria um bom
relacionamento desde o começo com aquele povo, se eles a
aceitassem. Ela sabia que o Senhor gostaria que ela dissesse a
verdade, mas fazê-lo naquele momento era como esculpir sua
própria língua e entregá-la de presente. Ela temia que aquele líder
hebreu soberbo achasse que ela era uma estrategista por ter
preparado aquele discurso inteligente. Raabe estava certa de que,
se dissesse a verdade sobre o que já imaginara e pensara, ele
pensaria o pior dela, que queria tão desesperadamente deixar uma
boa impressão para ser aceita e bem recebida. Ó Senhor, ajuda-me
a honrar-Te.
Raabe respirou fundo. “Não. Eu pensei sobre isso durante a
noite.”
Ela notou seu suspiro penetrante. Ele levantou uma de suas
sobrancelhas escuras depois de um momento. “Quem te disse que
os homens teriam que ir para a guerra?”
“Ninguém me disse. Eu suspeitava. O senhor não poderia esperar
menos de nós como seu povo. Até mais, se houver algo. Os recém-
chegados devem provar sua lealdade.”
Salmom descruzou os braços. “Sua sugestão tem... mérito.”
Pareceu que ele havia inventado a própria admissão. “Pensarei no
assunto”, disse ele depois de um momento de silêncio.
“Enquanto isso, nenhum de vocês pode entrar no acampamento
sem antes ter aprendido os princípios básicos da Lei. Ezra, já que
está aqui, você poderia começar com os princípios. Miriã, depois
que Ezra acabar os Dez Mandamentos, você pode instruir as
mulheres enquanto Ezra continua ensinando aos homens alguns
preceitos mais particulares do Senhor. Vocês podem voltar juntos ao
acampamento à noite.
“Certifiquem-se de conversar com eles no nosso dialeto. Apesar
de nossas línguas terem a mesma origem, as diferenças entre os
dialetos podem dificultar a comunicação deles quando todos
chegarem ao acampamento de Israel. Não podemos continuar
falando com eles em seu dialeto, pois poucos vão fazer o mesmo
quando eles se unirem ao nosso povo.”
Ele se virou para Raabe por um momento e ela achou que ele
fosse falar mais. No entanto, ele mudou de ideia e se voltou para
Karem, o irmão mais velho. “Suas provisões vão durar até quando?”
“Temos comida para uma semana – ou até mais, se pouparmos.
Precisamos de mais água.”
“Mandarei água todos os dias e comida quando vocês precisarem.
Vi que vocês não têm tendas.”
“Não conseguimos carregar nada muito grande durante a fuga. De
qualquer forma, estamos bem. As noites estão brandas e temos
cobertores.”
“As noites estão brandas agora. Mas quando chegar o inverno,
precisarão de um refúgio apropriado. Vocês têm ouro ou prata
suficientes para comprar uma tenda ou duas? Depois que vocês
forem para o nosso acampamento, verão que vão precisar.”
Karem franziu a testa pensando. “Verei que teremos de juntar
nossos recursos.”
Salmom se virou para ir embora, pensou e, em seguida, se voltou
mais uma vez. “Por favor, entendam. Essa decisão que estão
tomando é muito importante. Vocês escolheram mudar
completamente seu estilo de vida. Completamente. Pensem bem
antes de se comprometerem com isso.” Depois, ele partiu sem dar a
chance de eles se curvarem ou reverenciarem em respeito.
Raabe se sentou na areia, se dando conta de que, pela primeira
vez, suas pernas estavam vacilantes. Ela apoiou a cabeça nos
joelhos e tentou não chorar. O que era aquele desejo de fazer parte
de Israel? Que desejo era aquele que a consumia com uma paixão
incomum, diferente de qualquer outra que ela conhecia? Sua família
ainda desejava Jericó e ainda lamentava pela vida que tinha, mas
tudo era diferente para Raabe. Exceto pelos pensamentos tristes
por seu amigo Debir, Raabe nunca achou que tivesse perdido nada.
Ela estava completamente voltada para Israel.
Todavia, o aviso de Salmom foi justo. O que ela sabia sobre a vida
em Israel? Ainda assim, mesmo com todas as consequências
medonhas, ela se viu mais determinada do que nunca a se tornar
uma verdadeira adoradora do Senhor Deus.
O toque macio da mão de alguém a assustou.
“Desculpe”, disse Miriã com um sorriso. “Não quis te assustar.”
“Meus pensamentos me atormentavam, e a interrupção foi
bem-vinda.”
“Não se preocupe com Salmom. Às vezes meu irmão não conhece
a própria força, mas ele tem um bom coração. Ele se acertará com a
sua família. Além do mais, o próprio Josué já decretou que vocês
podem se unir a nós.”
“Você acha mesmo que eu posso aprender e me adaptar ao seu
povo?” Raabe perguntou sem conseguir disfarçar o tremor na voz.
Ela não falou exatamente o que estava pensando – ela não disse
“uma zonah como eu”, mas não era impossível deduzir isso.
“Claro que você pode. Qualquer um pode ver que você já ama o
Senhor. Você é corajosa, cumpre com a palavra e se importa com a
família, e meu povo admira essas qualidades. Talvez não seja tão
fácil à primeira vista, pois nem todos são bondosos com
estrangeiros. Mas o pior vai passar com o tempo se você persistir.”
Raabe quase quebrou o decoro e abraçou Miriã por sua gentileza,
mas um pensamento de última hora a fez achar que talvez aquele
comportamento fosse inaceitável em Israel, o que a fez conter o
impulso. Em vez disso, ela apenas sorriu estranhamente.
Durante o dia, Ezra e Miriã falaram sobre o Senhor e sobre as leis
que regiam Israel para todos. Raabe ouvia com atenção e guardava
cada informação nova em sua memória, a fim de refletir depois.
“Então, quem é o rei de vocês?” perguntou Joa no meio da
explicação sobre as lideranças.
“O Senhor é nosso Rei”, respondeu Ezra. “Sim, sim. Mas quem é
o seu rei na Terra?” “Nós não temos nenhum rei na Terra.”
“Então, quem é o príncipe de vocês? Seria Josué? Ou Salmom?”
Ezra mexeu a cabeça. “Não temos reis nem príncipes. O Senhor
ungiu Josué para liderar Israel. Há doze tribos, e cada uma tem o
próprio líder. O líder da tribo de Judá é Calebe, que tem a mesma
idade que Josué e é um homem de coração decidido. Dentro de
cada tribo, temos líderes e governantes do povo. Temos os chefes
dos mil, e um deles é Salmom, e, abaixo deles, os chefes dos cem.
Depois, temos os chefes das famílias. Levamos nossos conflitos a
juízo. Não precisamos de reis, que podem virar tiranos, nem
príncipes, que podem se tornar cruéis e vaidosos.”
Inri mexeu a cabeça. “Nunca ouvi falar de nada parecido.”
“Costuma dar certo. Nosso respeito uns pelos outros se origina da
nossa confiança no Senhor. Josué mostrou-se um homem poderoso
muitas vezes até agora, mas o verdadeiro motivo pelo qual nós o
seguimos é o fato de sabermos que o Senhor o escolheu e o
capacitou.”
Izzie chegou mais perto. “Então, se vocês viajam por quase
quarenta anos pelo deserto, vocês não têm casas, nem comércios,
nem templos, nem estradas, nem muros. Como vocês lidam com
isso?”
Miriã não chegou a dar um sorriso, mas Raabe notou que uma
pequena covinha se formara ao lado de sua boca. “Nós temos um
santuário para o Senhor – um tabernáculo. De qualquer forma, você
está certa; não é um templo como aqueles com os quais vocês
estão acostumados, embora seja muito maior do que parece. Nele,
há cortinas costuradas em linho azul, púrpura e escarlate com
desenhos de querubins e muitos adornos de ouro e prata
maravilhosamente moldados. Ainda assim, é o próprio Deus que faz
do tabernáculo um lugar agradável de se estar, pois a manifestação
da presença do Senhor é mais maravilhosa do que o maior dos
templos feitos pelas mãos do homem.” O coração de Raabe
estremeceu com aquelas palavras. Pensar em um dia entrar no
tabernáculo do Senhor, vivenciando Sua glória e sendo tocada pela
Sua presença a fez ficar atemorizada e cheia de encanto.
“Moramos em tendas em vez de casas”, continuou Miriã. “Algumas
são muito grandes e confortáveis. Tudo tem que ser móvel, e por
isso temos poucos utensílios grandes, além das coisas que foram
consagradas para uso do Senhor. Não temos comércio; os homens
e as mulheres fazem trocas entre si.”
Os olhos de Izzie brilharam. “Eu sei tecer muito bem.”
Miriã curvou-se um pouco mais perto e tocou o manto de Izzie.
“Este é lindo. Foi você quem fez?”
Ela fez que sim com a cabeça. “Levou metade de um ano. Eu fiz
esses detalhes da bainha diretamente no tecido. Não foi pintado.”
“Quanta delicadeza e suavidade você teve para fazê-lo! Com qual
material você o teceu?”
Raabe percebeu que as bochechas de sua irmã ficaram rosadas
de prazer. “Teci com lã e linho.”
Um olhar estranho tomou o rosto de Miriã. Ela mordeu a ponta do
polegar e olhou para Ezra, que estava ocupado conversando com
Inri. Raabe sabia que algo incomodava Miriã, embora ela não
entendesse o que era. Sua irmã parecia ter acabado com aquela
tensão inicial enquanto falava com alegria de suas virtudes e de
como sabia usar vários tipos de tecidos juntos. A cada minuto, Miriã
parecia ficar cada vez mais consternada.
Finalmente, durante uma pausa silenciosa, Raabe perguntou:
“Miriã, posso falar com você em particular por um momento?”
Ela respondeu que sim com a cabeça e seguiu Raabe até um
canto do acampamento, onde as duas ficaram sob a sombra
escassa de uma palmeira. “Miriã, você pode me dizer o que há de
errado? Tenho certeza de que algo está incomodando você.”
Ela lamentou. “Pobre da sua irmã. Não tive coragem de contar a
ela.”
“Contar o que a ela?”
“O manto. Ela não poderá usá-lo depois que se juntar a nós. Não
podemos usar nada que tenha sido tecido com lã e linho juntos, e
ela terá que abrir mão de tudo que foi feito com tecidos diferentes.
Um trabalho tão lindo... oh, Raabe, coitada da sua irmã.”
Raabe abriu e fechou a boca. Izzie precisava fazer aquilo. Ela
trabalhou por muitas horas naquele manto; ele era diferente das
outras peças, e ela havia resgatado o melhor das ruínas de Jericó.
“Eu sinto muito”, disse Miriã.
Raabe mordeu os lábios e pensou por um momento. “É o jeito.”
Voltando para onde todos estavam, Raabe decidiu abordar logo o
problema. “Izzie, querida, acho que tenho más notícias”, ela
começou a falar preparando seu interior para uma possível explosão
emocional. “Na verdade, isso serve para todos nós. Não poderemos
usar roupas tecidas com lã e linho juntos. Podemos apenas usar as
peças que sejam feitas de um ou de outro.”
“O quê?” O som da voz de sua irmã atraiu todos os olhares para
ela. “Do que você está falando?”
Miriã deu um passo à frente. “Eu sinto muito. Seu manto é lindo, e
tenho certeza de que todas as mulheres de Israel o admirariam
tanto quanto eu. No entanto, como vocês viram, não podemos usar
roupas tecidas com linho e lã.”
“Em nome de todos deuses, por que não? Isso é absurdo!”
Ezra empalideceu com aquela exclamação, e Raabe viu que sua
expressão estava confusa e aflita. Ela supôs que ele estivesse
tentando imaginar por que uma mulher que perdera quase tudo e se
mantivera com uma certa serenidade perderia a compostura por
causa de uma simples roupa.
Em meio a um silêncio estarrecedor, Ezra disse: “Perdoe-me, eu
peço. Entendo que seja muito difícil para você, mas, por favor, é
preciso compreender que, se quiserem viver conosco, vocês não
vão usar o nome de outros deuses em suas expressões, mesmo
com raiva ou desconforto. Se você tivesse usado o nome do Senhor
em vão, poderia ser muito pior, como eu expliquei pela manhã”.
Izzie olhou para Ezra como se tivesse crescido nele uma cauda de
jumento. “Nós só estávamos falando sobre o meu manto”, afirmou
ela com uma voz mais fria do que o gelo.
“Sim, mas...” Miriã colocou a mão no ombro de Ezra e, com isso, o
silenciou. Raabe começou a respirar fundo para tentar se acalmar.
Será que eles contariam aquilo para Salmom? Será que eles
chegariam à conclusão de que sua família não tinha jeito e os
proibiriam de se unir a Israel? A experiência provara ser mais
complicada do que ela esperava.
Miriã foi até Izzie e segurou sua mão. “Sei que isso parece
irracional para você, Izzie, e eu sentiria o mesmo se estivesse no
seu lugar. Todavia, há um princípio por trás disso. Deixe-me explicá-
lo para você, porque ele se aplicará a quase tudo na vida conosco.
O Senhor chamou Seu povo para viver separado dele. Devemos
pertencer a Ele e seguir apenas Seus caminhos e planos, e não
devemos ser como as outras pessoas. Ele sabe como a mente
humana é facilmente influenciável, e seria muito fácil para nós
começar a acreditar em crenças cananeias. Por isso, o Senhor
determinou algumas dessas regras aparentes para nos ajudar a
lembrar de que pertencemos a Ele, e a nenhum outro, e de que
devemos ser diferentes do mundo à nossa volta ao pensar e em
nossa forma de agir.
“Algumas pessoas dizem também que essa proibição da mistura
de tecidos é uma lembrança simbólica de que não podemos nos
misturar com pessoas de outra fé. Eu não entendo esses mistérios;
o que sei é que prefiro obedecer ao Senhor sem entender, pois
meus conhecimentos são limitados.
“Talvez chegue um dia em que o povo de Deus não precisará mais
dessas lembranças. Talvez algum dia Ele escreva Sua Lei em
nossos corações para que possamos deixar de viver com essas
regras severas. Porém, até esse dia chegar, devemos permanecer
em Sua vontade.
“É um sacrifício que decidimos fazer por Ele. Sabemos que Deus
não está sendo cruel ao nos guiar nesses pequenos detalhes da
vida. Ele tem sido um pai protetor que deseja manter fora de
problemas Seus filhos que se desviam do caminho facilmente. São
nesses pequenos atos diários de obediência que aprendemos os
maiores princípios de uma vida justa.
“O Senhor sabe o quanto lhe custará se desvencilhar deste manto,
Izzie. Mas você O alegrará se fizer isso.”
Raabe foi até a irmã e lhe deu um abraço envolvente. “Faça pelo
Senhor, e não por causa das regras nem por causa de Israel. Se
fizer isso por Ele, você se alegrará. Mas se fizer pelas regras, você
se ressentirá.”
Miriã olhou para Raabe com admiração. “É isso mesmo.” Raabe
sentiu a raiva e a atitude defensiva saírem de sua irmã.
Izzie pensou por alguns minutos enquanto os outros esperavam.
Se os homens fossem cavalos, ela teria certeza de que eles já
estariam batendo com força no chão com a ferradura — nenhum
deles tinha paciência para aguentar a tensão.
O cobertor que eles haviam pendurado na corda escarlate na noite
anterior ainda estava pendurado entre duas árvores, como se fosse
uma repartição na qual eles poderiam ter um pouco de privacidade.
Izzie foi para trás do cobertor. Quando saiu de lá alguns minutos
depois, ela estava vestida com uma roupa simples de linho,
carregando no braço o manto que gerou aquela conversa. Izzie foi
até a fogueira, que ainda estava acesa após a refeição, e, depois de
um pequeno momento de hesitação, jogou a peça adornada nas
chamas. Todos olharam impressionados. Raabe viu sua mãe se
levantar e procurar por entre as roupas. Ela separou algumas e
também as jogou na fogueira. Um por um, todos eles foram até seus
pertences escassos e queimaram todas as peças de roupas feitas
com tecidos diferentes.
Raabe achou que seria mais prático guardar tudo aquilo e vender
em alguma cidade de Canaã. No entanto, aqueles sacrifícios os
fizeram sentir uma alegria que eles não sentiam desde a derrota
para Israel. Foi quase como se eles sentissem o prazer que o
Senhor sentiu com suas escolhas.
Quando estava na hora de Ezra e Miriã partirem, Raabe os
acompanhou até uma pequena parte do caminho, como mandava a
educação. Miriã diminuiu o ritmo dos passos até que eles ficassem
para trás, e no retiro daquela caminhada, ela se voltou para Raabe.
“Como você sabia que sua irmã deveria abrir mão do manto pelo
Senhor, e não pelas pessoas? Eu conheço o Senhor desde que
nasci e comecei agora a entender essa lição.”
“Eu devo muito a você, Miriã. Não mereço crédito algum.” Raabe
parou de repente e estendeu a mão, segurando os dedos da jovem
diante de si. Ela hesitou, engolindo em seco algumas vezes antes
que conseguisse fazer qualquer outro movimento. “Quando
vivíamos em Jericó — minha família e eu — nós fizemos coisas
horríveis. Você sabe que eu era uma zonah. Meu pai me pediu para
fazer isso quando eu tinha quinze anos, e eu decidi não parar
quando eu poderia ter parado. Eu tive alguns poucos amantes, o
que não é muito para a profissão, mas é o bastante para Israel e
para o Senhor, Izzie entregou o filho como sacrifício a Moloque, e
nossos pecados não acabam por aí. Você precisa ficar ciente
dessas coisas, Miriã. Diga isso ao seu irmão e a Josué. Eles devem
saber disso tudo. Não se pode esconder nada de Deus, então, seria
inútil se nos juntássemos a vocês sob falsos pretextos. Eu ficaria
desolada se vocês nos rejeitassem, mas também não ficaria feliz se
nos aceitassem sem saber realmente quem somos.”
Raabe respirou fundo e ficou imóvel. Pronto, ela havia contado.
Ela confessou. Raabe manteve os olhos abaixados, tentando
desesperadamente não ver a irritação que com certeza se refletiria
no rosto de Miriã. Naquele momento, ela já poderia desistir de
Raabe e retirar todos os elogios generosos que havia feito. O
silêncio tomou o lugar e depois, para sua surpresa, Raabe se viu
envolvida por um abraço que quase a fez cair no chão.
“Eu sinto muito. Sinto muito por tudo que você passou.” “O quê?”
“A sua vida parece ter sido tão difícil; você carregou tantos fardos.
Você acha que eu te rejeitaria enquanto Deus te aceita? Se Ele
enterrou seu passado, eu também o farei.”
“E seu irmão? E Josué?”, perguntou Raabe com voz enfraquecida.
“Josué fará o que o Senhor o mandar fazer, e Salmom fará o que
Josué lhe mandar fazer, mesmo que ele reclame. Amadureça sua
decisão, Raabe. Descanse na aceitação de Deus. Salmom se
acostumará.”
Raabe pensou enquanto voltava para o acampamento que o
problema era não ter certeza se Deus a aceitara. Iludir-se
acreditando que Deus a aceitara era uma coisa muito diferente de
conquistar verdadeiramente Sua aprovação. Enquanto isso, ainda
havia Salmom, que definitivamente não gostava dela.
Capítulo
Dez

A irmã de Salmom preparou sopa de lentilha para a janta. As


lentilhas eram esmagadas nos dentes de Salmom, pois não
estavam muito cozidas. O pão, cru por dentro, grudou no céu de sua
boca. Miriã colocou outra porção de sopa na tigela ainda cheia, mas
ela estava tão pensativa que nem notou que parte da sopa escorreu
pelos lados e caiu em uma das mãos de Salmom.
Ele suspirou. Sua irmã daquele jeito era sinal de problema, e
provavelmente com ele. “Miriã, o que houve com você?”, perguntou
ele.
“Hum?” Miriã piscou os olhos e se levantou do assento no chão
para lavar os utensílios da janta, mas esquecera distraidamente que
tinha acabado de encher a tigela dele minutos antes. Salmom
estava aliviado. Com isso, pelo menos ele não precisaria mais fingir
que estava comendo.
“Fale o que se passa na sua cabeça, menina. Diga-me o que te
perturba. E você poderia trazer um pano para mim? Se continuar
insistindo em me sujar de sopa, o mínimo que você poderá fazer é
me limpar.”
“Ah, sim claro!”, ela respondeu entregando um grande pedaço de
pano a ele. Era o melhor cinturão de Salmom. Ele pegou o cinturão
com a mão que estava limpa, pegou um pouco de água e saiu para
lavar a mão, a roupa, e também para pensar. Ele passou a mão
molhada pelos cabelos e depois entrou novamente.
“Agora, minha irmã, me diga o que te incomoda.” “Você notou?
Como é observador.”
“Miriã!”
“Já que você insiste.”
Ela se deixou cair em uma almofada perto de onde ele estava.
“Andei conversando com Raabe.”
“Eu já devia saber”, vociferou Salmom. Salmom bateu em um
tapete que estava perto dele e se levantou. “Já com problemas no
primeiro dia.”
“Eu gosto dela, Salmom. Gosto muito dela, e se deixar de ser tão
cabeça dura, você também vai gostar.”
“Tudo bem. Então, qual é o problema?”
“Ela conversou comigo sobre seu passado e confessou a mim
alguns de seus pecados e de sua família, porque não quer esconder
nada de você nem de Josué. Raabe quer muito se juntar a nós, mas
não quer fazer isso sob falsos pretextos. Ela quer que vocês
aceitem sua presença absolutamente cientes de quem eles são e do
que fizeram. Achei sua atitude admirável, e nem todo mundo seria
tão franco quanto ela diante de dadas circunstâncias. Ela está
determinada a fazer tudo certo, e prefere abrir mão do sonho pelo
bem de sua integridade, se for necessário.”
Salmom deu um suspiro resignado e se recostou nas almofadas.
“Então, me fale sobre o passado dela.”
Em frases sucintas, Miriã explicou ao irmão tudo o que Raabe
havia revelado. Salmom mexia a cabeça em um conflito entre a
irritação e a admiração. “Como vou fazer essas pessoas se
adaptarem a nós, Miriã? Sacrificar crianças? Obrigar a filha a virar
prostituta? Adultério? Josué determinou que eu faça algo
impossível, então deixe-o resolver. Converse com ele.”
“Eu já conversei.”
“É claro”, murmurou Salmom, inclinando-se. “Que tolice a minha!,
esqueci que ultimamente você virou a melhor amiga do líder de
Israel. E o que ele falou, me diga, por favor.”
“Ele disse o seguinte: ‘Você pensou que, quando aceitei a ideia de
ter cananeus aqui, eu achava que eles seriam puros como os filhos
de Levi?’”
“Pelo menos ele não se surpreendeu, embora eu não consiga
entender como ele consegue aceitar esse monte de pecados.”
“Ele acredita que o passado já passou e é um domínio de Deus.
Ele também disse assim: ‘Nosso trabalho é resgatar o presente a
partir dessa carcaça apodrecida’. Ele disse que admira Raabe por
ela ser comprometida com a verdade.”
“Como ele é um líder virtuoso”, debochou Salmom. “Eis o seu
trabalho, minha irmã. E o meu é cavar a sepultura, eu suponho, para
nos livrar dessa carcaça apodrecida.”
,.
Na manhã seguinte, um Salmom rancoroso voltou ao
acampamento de Raabe, e Miriã o acompanhava lado a lado com
passos alegres. Ele chegou quando a família estava reunida
fazendo um levantamento das finanças. Ajoelhando-se perto de
Karem, ele perguntou: “Vocês têm o suficiente para as tendas?”
“Depende de quanto cada uma custa.” Ele passou o valor total da
quantia para Salmom.
“Vocês têm o bastante para uma tenda grande. Ficará apertada
para catorze pessoas, mas acho que conseguirão se adaptar.
Depois, lhes restará um bom valor para investir em algumas cabras
e talvez em um bezerro.” Ele lançou um olhar para Izzie. “E algumas
ovelhas. Assim, vocês terão leite, manteiga, queijo e iogurte, e
também terão lã. Se trabalharem bastante na terra, lá pelo ano que
vem, terão condições de comprar outra tenda.”
Raabe girou de onde estava a fim de olhar para ele. “Trabalhar na
terra, meu senhor? Isso quer dizer que o senhor decidiu que meus
irmãos e meu pai podem cultivar a terra em vez de ir para a guerra?”
“Eu sabia que isso não passaria por você”, disse ele lentamente.
“Sim, eu decidi que nós nos beneficiaremos da experiência deles.
Mas, é claro, desde que vocês obedeçam à Lei.” Raabe olhou para
baixo para que ele não pudesse ler sua expressão. Salmom
percebeu que aquela era uma tendência habitual nela, o que ele
achava frustrante. Ele mexeu a boca e se voltou para Izzie. “Miriã
me contou o que aconteceu ontem. O que você fez foi corajoso.
Muito bem.” Izzie ruborizou com alegria.
Miriã se levantou e foi até Izzie levando uma peça de roupa. “É
para você”, disse ela enquanto entregava a roupa para Izzie. “Eu
mesma teci no ano passado. Não é nada se comparado ao seu
trabalho refinado. Eu gostaria que você me ensinasse a tecer como
você. Em Israel não temos nada tão requintado quanto o que você
faz.”
“Para mim?”, Izzie mostrou-se surpresa.
Miriã riu. “Bem, não ficaria tão bom nos seus irmãos. A cintura
deles é muito grande.” Salmom sorriu secretamente.
,.
Duas semanas depois, Salmom voltou mais uma vez ao
acampamento de Jericó. Ele tentou se concentrar no que Joa falava
sobre os sacrifícios, mas, em vez disso, viu que seus olhos
rondavam na direção de Raabe. Ela estava com uma de suas
sobrinhas no colo enquanto tentava ensinar à mais velha a fiar. Ele
notou que, perto das crianças, ela abandonava seu olhar
resguardado e que sua boca se amaciava com muitos sorrisos. Ela
era linda, Salmom teve de admitir. À primeira vista, ele achava
aquela amabilidade muito irritante, pois o fazia lembrar-se muito
bem de sua antiga profissão. Mas ele percebeu que não havia nada
de prostituta naquela mulher. Seu comportamento era reservado,
beirando a timidez. Suas atitudes, embora francas, se encaixariam
entre qualquer moça israelita pela modéstia. Algumas vezes ele
quase esquecia do passado dela e se via obrigado a puxar aquela
informação da memória. Não era exatamente aquele detalhe que
surpreenderia um homem.
Ele desviou os olhos e direcionou a atenção novamente para o
círculo de homens à sua volta. Joa perdera seu jeito assombrado
com o passar dos últimos dias e parecia ter assumido um interesse
verdadeiro pelos preceitos do Senhor. Aliás, todos pareciam fazê-lo.
“Salmom, meu senhor?”
“Hum?”
“Por que o Senhor pede ofertas pelos pecados não intencionais?
Quero dizer, como pode ser pecado se a pessoa nem sabe que está
fazendo a coisa errada?”
“Esteja você fazendo o mal com ou sem intenção, isso terá
consequências. Vamos dizer que eu quebre a sua perna de
propósito porque não gosto de você. Minha raiva e minha falta de
autocontrole te fizeram sentir muita dor. Agora, suponhamos que eu
quebre sua perna acidentalmente. Seu osso vai doer menos porque
foi um acidente? Você vai ficar melhor porque eu não tinha a
intenção de te machucar? O mesmo acontece com o pecado.
Reconhecendo ou não que o que você está fazendo é pecado, há
algum prejuízo. Há consequências, e a sacralidade do Senhor
requer justiça em relação a essas consequências. É necessário
cobri-las. Mas, ao mesmo tempo, Ele é misericordioso para com os
nossos erros. Então, o próprio Deus nos dá a chance de cobrir
nossos pecados pelo sacrifício.” Salmom mudou de posição para
ficar mais confortável e, enquanto se mexia, ele viu que Raabe
havia deixado as sobrinhas para ajudar a cunhada, mas ela estava
se aproximando para ouvir a conversa deles. Salmom percebeu com
o passar dos dias que qualquer assunto relacionado a Deus atraía a
total atenção dela.
Notando que desviara a atenção de Salmom, Raabe pigarreou.
“Então Deus perdoa aqueles que pecam sem intenção de pecar?”
Salmom se virou em direção a ela. “Com o devido sacrifício, sim.”
Ela manteve os olhos baixos, escondendo sua expressão de
Salmom, que fechou a mão ao lado do corpo. Ele achava que
estava começando a odiar o jeito com o qual os olhos dela se
desviavam dele, como se estivessem com medo. Mesmo com todas
as suas objeções em relação a ela, ele não a tratara mal durante as
últimas semanas. Ele a teria insultado? Ou humilhado? Por que ela
sorria para Ezra, Hanani, Miriã e para qualquer outra criatura da
Terra, mas para ele apenas reservava o distanciamento? Ele teve
vontade de colocar a mão no queixo de Raabe e virar o rosto para
ele. Pelo contrário, ele apertou a mão que estava fechada.
“E os estrangeiros que vivem entre vocês?”, perguntou ela com
voz suave e tranquila.
“O que tem eles?”, resmungou Salmom. Ele não havia prestado
atenção naquela pergunta. Em vez disso, seu pensamento ainda
estava lutando contra o afastamento. O ressentimento surgiu dentro
dele, irracional e cruel, enchendo sua voz com um tom mais
grosseiro do que ele gostaria.
Ela percebeu aquele tom de voz e entendeu mal. De branca, sua
pele ficou rosa, e Salmom percebeu tarde demais que ela estava
apavorada. “Perdão, meu senhor. Eu não quis interromper sua fala”,
disse ela, levantando-se para sair de perto. Antes mesmo de pensar,
Salmom estendeu a mão e agarrou o pulso de Raabe, puxando-a
para baixo.
“Fique. Você não está interrompendo.” Por um momento, ela
tentou afastar a mão, mas ele foi mais rápido e a segurou com
firmeza. Forçando sua voz para parecer gentil, Salmom pediu: “Faça
sua pergunta novamente”.
Ela ficou paralisada. Salmom se deu conta de que ainda estava
segurando o pulso dela e logo soltou. Com um movimento natural,
ele recuou aumentando a distância entre eles.
“Eu... eu só estava perguntando se os estrangeiros que vivem com
vocês também podem ser perdoados se apresentarem suas
ofertas.”
Não se tratava de um ritual. Aquela pergunta não tinha nada a ver
com sua adaptação em Israel, nem a ajudaria a evitar erros
dispendiosos. Não era uma pergunta relacionada à prática exterior.
Ela buscava mesmo agradar ao Senhor e encontrar o perdão e a
redenção.
Deus daria esses presentes a uma mulher como ela? Ele saberia
a resposta? O eco de um ensinamento distante surgiu nova mente
em sua cabeça. O que Moisés falou sobre os estrangeiros?
“Moisés uma vez disse enquanto falava sobre o Senhor: ‘Vocês e
os estrangeiros são os mesmos diante do Senhor: as mesmas leis e
regulamentos se aplicarão tanto a vocês quanto aos estrangeiros
que viverem convosco’. Ele falou isso sobre oferecer sacrifícios.”
“Ele disse que os estrangeiros são os mesmos que vocês diante
do Senhor?” Em sua avidez, Raabe esqueceu-se de desviar-se dos
olhos de Salmom. Aquela cortina fora retirada de seu rosto e ela
olhou para ele sem aquele cuidado de sempre. Salmom respirou
fundo; ele percebeu, talvez mais do que a própria Raabe, que
aquela pergunta tinha a ver com o coração dela. Raabe se abriu e
se revelou ao perguntar aquilo. Por trás daquela pergunta, havia a
oferta frágil de si mesma e sua vontade de pertencer ao Senhor e a
Israel, mesmo sabendo que correria o risco de ser rejeitada e
expulsa.
Salmom perdeu tanto tempo se preocupando com a lealdade dela,
pensando nos perigos da idolatria cananeia e imaginando quais
seriam suas intenções. Como um cachorro furioso, ele estava
latindo para a pessoa errada! Na verdade, tudo que Raabe queria
era pertencer ao Senhor. Ela tinha sede e fome de Deus; seus
preceitos lhe eram suficientes, e ela não estava buscando
conhecimento. Ela queria aceitação. Ela queria o próprio Senhor.
Poderia alguém como ela pertencer ao Senhor? Deus a aceitaria,
a receberia e cobriria seus pecados? Era ela a estrangeira em quem
Ele pensava quando falou aquelas palavras por meio de Moisés?
Salmom não queria dar garantias falsas ou fazer promessas vazias
a ela. Em silêncio, ele pediu para Deus direcionar sua resposta.
“Moisés disse essas palavras, sim”, começou ele. “Ele estava
falando sobre sacrifícios e disse que os estrangeiros que viverem
conosco devem seguir as mesmas regras. Eles devem oferecer os
mesmos sacrifícios.” Ele parou e pensou mais um pouco por alguns
minutos antes de continuar. “Vocês devem se lembrar de que, para
Israel, os sacrifícios não são rituais. Eles se valem de coisas reais.
Os sacrifícios são tanto o reconhecimento de que estamos errados
quanto o preço do nosso perdão. Portanto, se Deus pede para
algum estrangeiro oferecer-Lhe um sacrifício, Ele não está pedindo
o cumprimento de uma lei ritualística. Deus não pediria um sacrifício
se não estivesse disposto a derramar Seu perdão e a conceder Sua
aceitação em troca.” Salmom parou por mais um momento e fitou a
areia que revolvia. “É estranho; eu nunca havia pensado nisso
antes.”
Raabe olhou como se estivesse cheia de perguntas para fazer.
Salmom viu que o desejo pelas respostas se confundia com algo
mais, algo mais simples. Seria medo? Ela engoliu em seco e não
disse nada, recostando-se novamente onde estava. A frustração e o
alívio brigavam dentro dele. Com uma força que mal compreendia,
ele queria destruir aquela barreira e sentir mais uma vez a entrega e
a confiança de Raabe. Mesmo assim, ele sabia que algumas
perguntas que ela estava querendo fazer o deixariam confuso. O
Senhor me perdoará pela minha vida de adultério? Deus perdoará o
meu pai por ele ter me obrigado a virar prostituta? Ele perdoará
minha irmã e o marido dela por terem sacrificado seu filho a
Moloque? Nós poderemos recomeçar, teremos uma nova vida?
Salmom coçou a nuca com a mão calejada por usar a espada
tantas vezes. Qual seria a resposta para aqueles enigmas? Havia
imposições para todos que pecaram, e sérias consequências para
cada um deles. Deus os perdoaria? Ele daria uma segunda chance
àquela família?
Miriã escolheu aquele momento incômodo para se aproximar e se
juntar a ele. Ela ficara falando com a mãe de Raabe durante aquela
hora, e Salmom notou que havia manchas escuras ao redor dos
olhos da irmã. Ela levantara cedo, antes dele, naquela manhã, e já
tinha cozinhado e cuidado dos doentes muitas horas antes de ir com
ele visitar Raabe e a família. A exaustão estava estampada em seu
rosto. Salmom pensou, sentindo-se um tanto culpado, que deveria
ter percebido aquilo antes. Erguendo-se com um movimento fluido,
ele a fez levantar.
“Vamos. É hora de voltar para casa.” Ele se virou para os homens
antes de partir. “Amanhã irei falar com Josué sobre a chegada de
vocês no nosso acampamento. Acho que todos já estão prontos.”
Depois, conduzindo sua irmã à frente, ele a empurrou com
delicadeza antes que as expressões de alegria e gratidão da família
começassem a irritá-lo.
A caminhada de volta para casa começou silenciosa.
Aparentemente Miriã estava cansada demais para falar, e Salmom
ainda estava especulando sobre as possíveis perguntas de Raabe.
“Ela ama o Senhor, não ama?”, perguntou Miriã em meio ao
silêncio. “Quero dizer, ela tem um desejo verdadeiro que fica cada
vez maior e mais intenso. Não se vê esse tipo de fé toda hora.”
“Hum?”
“Raabe. Eu ouvi uma parte da sua conversa com ela.” “Hum.”
“Meu simpático irmão. Estou falando sério, Salmom. Você se
lembra daquele dia em que eles queimaram as roupas? Eu não te
contei o que Raabe falou para Izzie naquele dia. Quando eu
expliquei para Izzie que ela não poderia ficar com o manto no nosso
acampamento, Raabe disse que Izzie deveria abrir mão do manto
apenas por causa do Senhor. ‘Não faça pelas regras ou por causa
de Israel’, disse ela. ‘Se fizer por Ele, você se alegrará. Se fizer
pelas regras, você acabará se ressentindo’. A sabedoria de Raabe
me impressionou. Mesmo sem entender ao certo os mandamentos
básicos, ela já sabe a diferença entre atuação e adoração. Raabe
entendeu que fazer uma oferta sincera para o Senhor traz alegria,
enquanto fazer algo para corresponder às expectativas humanas só
pode acabar em sofrimento.”
“Ela é... uma mulher diferente.”
“É isso que faz você ir tantas vezes ao acampamento?” “O quê?”
“É isso mesmo, Salmom. Você poderia ter mandado qualquer
outro para fazer isso. Qualquer um de seus homens poderia ensinar
tudo a eles. Mesmo assim, com muita frequência, você escolheu
fazer isso por si só. Duas semanas atrás, você estava arrancando
os cabelos com tanta irritação porque Josué os colocou sob seu
comando. Agora, você mal consegue ficar longe deles.”
“Eu queria sondar o caráter deles pessoalmente”, protestou
Salmom.
Miriã torceu o nariz, mas mostrou sabedoria suficiente para ficar
calada. Salmom mexeu a boca com irritação. As palavras dela
estavam certas até demais, e ele já tinha perdido a conta de
quantas vezes brigara consigo mesmo falando coisas como a que
Miriã tinha acabado de falar. Todas as manhãs, ele falava para si
mesmo que tinha coisas melhores para fazer na vida, e repetia isso
enquanto seus pés o levavam involuntariamente para o
acampamento de Raabe. Ele se convenceu de que aquelas visitas
estavam relacionadas com os vários problemas da união entre uma
família inimiga e Israel. As possíveis armadilhas do plano
desatinado de Josué deixariam qualquer jovem de cabelos brancos.
A possibilidade de haver ressentimento, ódio, idolatria pérfida,
imoralidade, discórdia e uma gama de outras mazelas pairava sobre
aquela família de Jericó como uma nuvem negra. Salmom estava
quase se convencendo de que os visitava somente para assegurar
que nenhum daqueles perigos se tornaria real.
O único problema nessa convicção sensata tinha um nome.
Raabe. Ele a afastava muitas vezes do pensamento por segurança,
mas seus olhos se fixavam nela independentemente de sua
vontade. Embora a atração física pela cananeia o atormentasse,
isso não era nada se comparado à sua crescente fascinação por ela
como pessoa. Salmom havia descoberto que Raabe tinha uma
mente brilhante. Inteligente e habilidosa, inúmeras vezes ela parecia
estar muito à frente de todos os membros da família. Ela entendia
as ramificações de cada decisão com uma exatidão que ele não
podia deixar de admirar. Mas, acima de tudo, a fé de Raabe atraía
Salmom. Ela despertara um desejo muito antigo da parte dele.
Salmom se casou ainda muito jovem. Ele conhecia sua Anna
desde a infância e, embora ela tenha sido escolhida pelos seus pais,
ele se dispôs a casar-se com prazer. Nos primeiros anos de
casamento, ele descobrira como era a bondade de uma esposa leal,
e soube como era ter a companhia de uma mulher paciente e
atenciosa. Mas, no fundo de seu coração, ele queria mais. Anna
acreditava no Senhor e seguia Seus preceitos, mas não era
fervorosa. Ela não conversava sobre Ele com o marido e não
parecia feliz com nenhum novo passo na jornada da fé. Quando ele
tentava tocar no assunto, ela evitava. Salmom gostaria de poder
tratar sobre os mistérios de Deus com sua esposa e de compartilhar
com ela aquele desejo precioso e sagrado de sua alma. Seu
casamento, mesmo sendo agradável e afetuoso, carecia do fogo
daquela grande paixão.
Apesar do fato de Anna ter falecido há muitos anos, Salmom
nunca se casou novamente porque ele se lembrava daquela
esterilidade e a temia. Ele queria mais do que tinha com Anna, mas
se sentia desleal apenas ao pensar nisso, como se estivesse
acusando Anna de ter uma fé morna. Que culpa ela teria, afinal?
Em Raabe, Salmom teve um vislumbre de uma mente apaixonada
e inteligente, e da fome pelo Senhor que ele tanto desejava. Mas,
apesar dos seus muitos dons, ela era totalmente inadequada. Suas
origens, isso sem falar no passado maculado, faziam dela uma
mulher imprópria para qualquer homem hebreu, ainda mais para um
líder de Israel – o filho de Naassom, antigo líder da tribo de Judá.
Não mesmo! Eles eram simplesmente incompatíveis.
Mas, mesmo assim, ela o atraía...
Salmom havia pensado em todos os possíveis riscos que Israel
correria por causa de Raabe e de sua família. No entanto, aquela
possibilidade nunca lhe ocorrera: a ironia de que ele mesmo seria o
alvo de uma atração tão inconveniente. Salmom decidiu com
firmeza que se afastaria deles no dia seguinte. Se Miriã estava
começando a notar o que acontecia em seu coração, era porque já
estava mais do que na hora de colocar um ponto final naquela
história. Ele chutou uma pedra enquanto caminhava com Miriã, mas
sem querer seu gesto fez surgir uma chuva de areia. Os ventos
fizeram a areia voar na boca de Miriã, que estava levemente aberta,
entrando também no nariz.
“Ecaaaa!”, exclamou ela cuspindo os grânulos. “O que você está
fazendo? Travando uma guerra contra a areia?”
“Perdão.” Ele não estava em guerra contra a areia. Ele guerreava
consigo mesmo.
,.
“Josué, acho que Raabe e sua família estão prontos para viver
conosco no acampamento.” Salmom sentou-se sozinho com Josué
em um pequeno monte. A grama crescia firme em volta deles no
solo rochoso e se ondulavam por causa dos ventos.
Josué deu um leve sorriso e rapidamente o tirou do rosto antes de
se virar para seu pupilo. Mas ele não o fez rápido o bastante, e
Salmom viu. “Estou feliz por saber disso. Então, você não tem mais
objeções?”
Salmom mexeu os lábios. “Eu não diria tanto. Apenas estou
satisfeito por ver que a fé deles é verdadeira e por saber que eles
querem o bem-estar de Israel.”
Josué suspirou. “Isso é muito generoso da sua parte. A fé da
mulher já é conhecida pela metade do acampamento. Na verdade,
eu gostaria de conhecê-la. Por que você não a traz até mim
amanhã?”
“Vou pedir para Hanani fazer isso.”
“Não, não. Traga você. Eu gostaria que você também estivesse
presente.”
Salmom quase não pôde evitar e revirou os olhos. “Claro, Josué”,
disse ele com um sorriso sem graça.
Capítulo
Onze

M ais uma vez, na manhã seguinte, Salmom caminhava pelo


trajeto já conhecido até o acampamento de Jericó. Pelo menos
daquela vez era por causa de Josué. Uma vez lá, ele evitou ao
máximo encontrar-se com Raabe falando primeiramente com seus
irmãos e seu pai.
“Vocês podem arrumar suas coisas e ir conosco para o
acampamento de Israel essa tarde. Sei onde há uma tenda que
pode suprir suas necessidades, e a prepararei para quando vocês
chegarem. Depois do almoço, mandarei alguns dos meus homens
virem para ajudar a carregar suas coisas.”
Ele fez gestos com a cabeça enquanto os homens agradeciam, e
a efusão daquele entusiasmo peculiar o fazia sentir-se
desconfortável. Um sentimento muito parecido com culpa o
dominou, e ocorreu a ele que, devido ao seu comportamento para
com o povo de origem daquela gente, ele merecia mais seu
ressentimento que sua gratidão. Com o passar do tempo, ele
aprendeu a tratá-los com respeito, e a cada dia ele abandonava
ainda mais sua posição defensiva. Mesmo assim, Salmom não dava
sinais de acolhimento nem de amizade.
Ele afastou aquele pensamento e, sem conseguir mais evitar sua
verdadeira tarefa, se virou para procurar por Raabe. Ela estava do
outro lado do acampamento, ajoelhada perto da fogueira. Ele foi
lentamente em direção a ela, temendo aproximar-se e desejando
sua aproximação. Aquele paradoxo de emoções fez seu coração
bater mais forte.
Assim que se aproximou dela, ele ficou de pé ao lado dela. Os
olhos de Raabe se arregalaram com aquela surpresa, e houve uma
sombra de medo, ele imaginava, antes de ela desviar o olhar.
“Raabe”, disse ele fazendo um gesto.
“Bom dia, meu senhor.”
Sem cumprimentá-la, ele falou: “Josué quer conhecê-la”. “A mim?”
“Sim, você, Raabe.” Ela não se moveu. “Agora, se você puder.”
“Agora?”
“Se você vai ficar repetindo tudo que eu digo, essa conversa vai
demorar mais do que eu imaginava.”
“Mas por que ele quer me conhecer? Eu fiz algo errado?”
Salmom se agachou apoiando-se nos calcanhares até que seu
rosto ficasse na mesma altura que o dela. Ele a analisou por um
momento, prestando muita atenção à reação dela. Seus lábios
tremiam e ela os mordeu para fazê-los parar. Raabe apertou os
dedos até eles ficarem brancos, e o medo dominou seus olhos cor
de mel. Salmom teve vontade de envolvê-la no conforto de seus
braços até que todo aquele medo se dissipasse. Para impedir a si
mesmo de fazer essa tolice impensada, ele pôs as mãos em direção
às costas. “Olha, ele quer te conhecer, e é só isso; talvez ele queira
te agradecer. Não há nada com o que se preocupar. Na verdade, eu
pedi para sua família se mudar para o acampamento hoje à tarde.
Permanentemente. Alguns dos meus homens virão até aqui buscá-
los.”
“Hoje à tarde?” Ela colocou a mão na boca por um momento. “Eu
sei, eu sei. Estou repetindo suas palavras. Mas é que parece um
sonho. Nós vamos mesmo para Israel?”
“Hoje mesmo.”
Ela riu, fazendo um som agudo cheio de alívio e alegria. Salmom,
que há apenas duas semanas lutou com unhas e dentes para
mantê-la fora de Israel, estava sorrindo ali, ao lado dela, desejando
causar-lhe alegria por mais vezes.
“Se vou conhecer Josué, é melhor eu me trocar. Também preciso
de uma sacola, já que vamos nos mudar.”
“Deixe suas coisas com sua família. Com certeza eles podem
cuidar disso na sua ausência.” Ele olhou para ela com olhos
velados. “Você pode se trocar, se quiser”, afirmou Salmom, “mas já
está bom desse jeito”.
Raabe passou a mão trêmula pelo seu vestido de linho. “É melhor
vestir algo mais adequado. Não vou demorar”, disse ela e se
levantou. Raabe estava ajoelhada por algum tempo e, quando
levantou, sentiu-se tonta por um momento, cambaleando um pouco.
Salmom estendeu a mão e seu reflexo preparado funcionou antes
que a razão o contivesse. Por um momento de tensão, enquanto
eles se tocavam e estavam quase inclinados um em direção ao
outro, Salmom segurou o braço de Raabe. Sua pele parecia macia,
atraente. Com espontaneidade, ele sentiu um golpe irresistível do
desejo com aquele simples toque. Ele sentiu raiva de suas reações
àquela mulher e, irracionalmente, também contra ela, por esta ser a
causa de tanta revolta emocional. Ele se afastou dela enquanto a
soltava e deu um passo atrás por precaução. Sua pele ficou da cor
de uma romã. “Eu... eu não vou demorar”, repetiu ela e correu.
“Você não vai demorar o bastante”, resmungou Salmom com voz
baixa depois que Raabe já não podia mais escutá-lo. Ele passou a
palma da mão pela túnica como se estivesse tentando apagar
aquele toque de sua memória. Era culpa de Josué. Ele deixaria
Raabe na porta do grande líder de Israel, e faria questão de cumprir
o que lhe fora pedido. Josué que lidasse com ela. Ele arrumaria uma
grande tenda para a família e procuraria uma que fosse o mais
longe possível da sua na tribo de Judá. Se tomasse cuidado, talvez
ele a visse apenas uma vez por mês. Aquele era um grande plano.
,.
Raabe achou que, mesmo com a segurança de Salmom, o manto
que ela vestia estava amarrotado e um pouco sujo. A falta de água
no minúsculo acampamento mostrava que a preciosa provisão que
eles receberam de Israel era usada apenas para beber, fazer
comida e para as necessidades mais básicas. Lavar roupa era um
luxo que eles não tinham há muitos dias. Mas, mesmo assim, Raabe
teve a preocupação de guardar um manto limpo para quando
chegasse o dia de eles irem a Israel.
Durante as últimas semanas em Jericó, antes de o exército de
Israel se instalar no lado de fora dos muros, Raabe decidiu vender
grande parte de seus mantos, véus e sarongues finos de seda. Na
noite em que prometeu a Deus que mudaria de vida, tudo aquilo se
tornou inútil para ela. No lugar deles, ela comprou alguns tecidos
resistentes e neutros, com os quais fez alguns mantos de boa
qualidade, mas com formas simples. Baseando-se pelas vestes de
Miriã, Raabe estava feliz por ter se precavido. Se Miriã fosse como
as outras mulheres de Israel, as novas peças de roupa de Raabe
seriam consideradas luxuosas, mas aceitáveis.
Ela se lavou com alegria, usando um pano e uma vasilha de água
morna antes de colocar sua roupa limpa de linho. Seus cabelos
pendiam em uma trança até as costas, e ela não teve tempo de
mexer nele. Vasculhando uma sacola, encontrou um pequeno pote
de água de rosas e a passou nos cabelos. Na mesma hora, ela se
arrependeu. Josué se lembraria de seu passado ao sentir aquele
cheiro? Usar perfume seria considerado um tipo imoral de luxúria
entre as mulheres de Israel? Com uma velocidade frenética, passou
o pano umedecido em seu couro cabeludo até machucar.
Descartando o pano, ela pegou uma faixa longa e a jogou sobre a
cabeça. Raabe sabia que um possível atraso deixaria Salmom com
um humor péssimo. Um humor pior que de costume, pensou ela.
Ele parecia não ter muita paciência. Quando ela se sentiu tonta,
ele a afastou como se ela fosse a personificação do pecado, ou
como se ela fosse uma ofensa a ele e aos céus. Raabe suspirou
odiando aquele desespero por conquistar a aprovação dele — e
odiando a maneira fácil com a qual ele a afetava com suas menores
atitudes.
Ele mal olhou em sua direção quando ela saiu por trás da cortina
provisória. Sem dar uma palavra, Salmom começou a andar e
Raabe precisou dar o seu melhor para segui-lo. As pernas dele
eram muito mais compridas do que as dela, e Raabe teve de correr
a fim de acompanhá-lo. Se ele percebeu a situação dela, pareceu
não se importar.
“Daqui até Israel é longe?”, ela se aventurou a perguntar. “Não.”
Mais alguns minutos se passaram. Sob o sol do meio-dia, ela
estava bufando como uma chaminé, mas ainda assim a agitação de
sua mente era, de longe, seu maior desconforto. “Você conhece
bem o Josué?”, perguntou ela. A cada passo, ela ficava mais
apavorada com o fato de que conheceria o líder de Israel. E se ele
não gostasse dela? E se, depois de conhecê-la, ele mudasse de
ideia e não os deixasse ficar?
Salmom reduziu o ritmo dos passos. “Eu o conheço desde que
nasci.”
“Ele é... um homem bom?”
“Ele é o melhor de todos.” Ele olhou para Raabe por um instante,
mas depois desviou o olhar. “Por que você está com medo?”
Ela encolheu os ombros envergonhada demais para falar sobre
suas dúvidas interiores. Para Raabe, ela mesma parecia uma
criança que precisava de afirmação.
“Por quê?”, ele perguntou. “Diga.”
Em momentos como aquele, era fácil entender o motivo pelo qual
ele liderava tantos homens. A força da personalidade de Salmom
poderia ser tão persuasiva quanto uma carruagem passando por
cima do corpo, pensou Raabe. Ela, pelo menos, não conseguia
encontrar os recursos necessários para resistir a ele. “Talvez Josué
mude de ideia depois que me conhecer”, disse ela com instabilidade
na voz.
“E por que ele faria isso?”
Ela sentiu que estava quase chorando. Quanto mais perto eles
chegavam de Israel, mais certa ela ficava de que Josué não gostaria
dela. Seus passos começaram a ficar pesados até que ela parou de
andar. “Talvez isso seja um erro.”
Salmom parou alguns cúbitos à frente dela. Ele hesitou, com um
dos pés para a frente e o outro se enterrando na areia, como se ele
não conseguisse decidir se a abandonaria ou se voltaria. Ele deu
um suspiro abafado e se virou. “Vamos! Não é um erro.”
Ela se negou com a cabeça. “Josué não entende a corrupção das
nossas vidas, pois, se realmente entendesse, ele jamais permitiria
que nos uníssemos a vocês.”
“Ele entende melhor do que você imagina, Raabe. Ele ainda quer
aceitá-los.”
Ela se sentou na areia e enterrou a cabeça entre os braços. Para
sua vergonha, ela não conseguiu controlar as lágrimas. Logo diante
de Salmom e de tantas outras pessoas. Ela sentiu a respiração dele
em sua cabeça antes de ver que ele se ajoelhara ao lado dela.
“Calma, está tudo bem”, sussurrou ele. Pela primeira vez, ela
percebeu nenhum tom de ironia ou irritação em sua voz. De forma
estranha, a simpatia dele só a fez chorar ainda mais. Ele levantou a
mão dela com gentileza e a envolveu com a sua. Aquele toque foi
puro, seguro. Aquele gesto a chocou. Há quanto tempo nenhum
homem a tocara com tanta pureza? Na segurança de sua presença,
o fardo das últimas semanas saía dela por meio de uma torrente de
lágrimas silenciosas. Em todo o povo de Israel, a última pessoa que
ela escolheria para confortá-la seria Salmom. Mas ela não podia
verter aquelas lágrimas na frente de sua família porque eles
encontravam nela a força e o apoio. Eles precisavam do suporte
dela; ela tinha de ser uma âncora para eles naquele momento de
incertezas.
“Perdoe-me”, disse ela com esforço depois de verter o que parecia
ser a última lágrima de seus olhos. “Não sei por que sou tão
emotiva.”
Ele soltou a mão dela e se sentou. “Você tem sido corajosa por
muito tempo, mas sua força tem limites; é só isso. Mas você não
precisa ter medo de Josué. Venha! Vamos e veja com seus próprios
olhos.”
Raabe fez que sim com a cabeça e se levantou. A areia cobriu
suas novas vestes e as lágrimas mancharam seu rosto.
“Você está horrível”, afirmou Salmom com um sorriso gentil, sem
demonstrar ironia.
“Eu sei.” Ela limpou o rosto com o lenço que estava na cabeça e
tentou ao máximo tirar a areia de suas roupas. Salmom esperou
sem reclamar. Ele nem mesmo bateu o pé ou mexeu os dedos
expressando impaciência. Depois que os dois voltaram a caminhar,
ele andou mais devagar e dava passos mais curtos.
,.
Josué recebeu Raabe em sua tenda com um sorriso enorme que
não a acalmou. O coração dela batia no peito com uma força tão
incomum que ela achou que todos pudessem ouvi-lo. Raabe o
cortejou com cuidado, fazendo as mesmas reverências que faria a
um rei. Discretamente, ela analisou Josué tentando descobrir como
ele era. Josué era admirável, embora não fosse nada bonito. Seu
nariz pontudo, seus lábios carnudos e seus olhos grandes
testemunhavam um caráter decidido que não tolerava muito os
opositores. Aquele não era o tipo de homem para se ter como
inimigo, como ela já havia descoberto. Mas ela suspeitava que sua
amizade era tão amável quanto sua inimizade era cruel.
“Esperei ansiosamente para te conhecer, Raabe”, disse ele. Mas
antes mesmo que ele pudesse falar mais, um jovem entrou de
repente na tenda; ele estava coberto de poeira com suas roupas
retorcidas e desgrenhadas. Desconcertada, Raabe chegou para o
lado. Aquele acontecimento seria normal, aquele acesso rude ao
líder de Israel? O invasor parecia estar sem fôlego, como se tivesse
corrido uma distância considerável, e suas frases saíam confusas
de acordo com sua respiração irregular.
“Josué! Ó Josué.”
“Elão? Quais são as notícias de Ai?”
“Fomos derrotados, Josué! Fomos derrotados pelos homens de Ai!
Eles nos perseguiram da cidade até as pedreiras e nos
encurralaram. Trinta e seis dos nossos homens foram
assassinados.”
Um silêncio pesado invadiu a tenda de Josué. Raabe conhecia Ai;
era uma nação insignificante cujo rei dominava mais ou menos doze
mil pessoas. Como seria possível os homens que conquistaram
Ogue e Jericó serem derrotados por Ai? Aquilo não fazia sentido.
Salmom e Josué ficaram rodeando o homem chamado Elão. O
silêncio opressivo havia se transformado em uma torrente de
perguntas que apenas guerreiros entenderiam. Josué deveria ter se
esquecido da presença de Raabe, porque seus olhos se
arregalaram quando ele a viu tensa e desconfortável no canto. “Saia
daqui, Salmom”, ordenou ele. “Mas volte imediatamente. Traga os
presbíteros a mim. Vamos nos apresentar diante do Senhor e pedir
Seu direcionamento.”
Salmom estava pálido. Ele agarrou o braço de Raabe e correu
para fora da tenda. “Preciso encontrar Miriã”, disse ele.
Ela tropeçou ao lado dele, atingida pela urgência que o dominara.
Aquela notícia era horrenda. Salmom parou de repente enquanto
Raabe, tomada por aquela pressa, continuou andando. Ela quase
machucou o braço com isso. Fazendo uma cara estranha, passou a
mão pela pele avermelhada do braço. Mesmo com aquela
preocupação perturbadora em sua cabeça, ele notou o gesto dela e
perguntou. “Eu machuquei você?”
“Não foi nada.”
“Desculpe.” Ele passou as duas mãos pelos cabelos escuros,
fazendo-os ficarem ondulados, como se estivessem ao vento.
“Raabe, preciso te pedir uma coisa. Você tem que me prometer que
não vai falar sobre o que ouviu com ninguém, nem mesmo com
Miriã.”
“Mas é claro que não. Eu faria o povo perder a confiança ou se
desviar do caminho certo se eles soubessem dessa notícia.”
“Exatamente, isso mesmo”, ele parecia aliviado. “Então, posso
confiar que você guardará para si as notícias que ouviu de Ai, não
posso?”
“Sim, Salmom.”
“Isso é bom.” Ele olhou nos olhos dela por um momento. Apesar
da tensão e da preocupação estampadas em seus traços, algo
parecido com aprovação se refletia no rosto dele. “Agora, eu vou
encontrar Miriã e deixar você com ela. Não sei se vou demorar, mas
não terei tempo para pensar na compra da tenda de sua família
hoje.”
“Não se preocupe conosco. Dormir algumas noites a mais sob as
estrelas não nos fará mal algum. Miriã pode nos mostrar onde
devemos ficar acampados essa noite?”
“Sim, ela pode. Peça para ela chamar Ezra para ajudar. Ele tem
uma boa visão sobre esses assuntos mais práticos e, além do mais,
gosta da sua família.”
Ele começou a andar com passos desenfreados novamente, e
Raabe teve de correr mais uma vez para acompanhá-lo. Andar pelo
meio das tendas de Israel com aqueles passos arriscados não era
uma tarefa das mais fáceis. O horizonte estava salpicado de tendas,
as pessoas andando de um lado para o outro, as crianças
brincando, as fogueiras em chamas e o gado preso em pastagens
improvisadas. Nascida na cidade e acostumada com as ruas e
becos, ela estava praticamente perdida em meio àquela
organização, mas Salmom passava pelos obstáculos com uma
familiaridade muito grande. Ele vivera em acampamentos como
esses desde que nasceu, lembrou-se ela.
Eles andaram naquele ritmo por mais ou menos dez minutos,
quando, de repente, ele parou diante de uma tenda espaçosa cor de
açafrão. A forma decisiva com a qual ele entrou na tenda sugeriu
que era ali que Salmom morava.
“Miriã?”
Dentro da tenda, vários tecidos de linho estrategicamente
pendurados dividiam a área em “quartos” privados. Miriã saiu de um
daqueles. “O que vocês dois estão fazendo aqui?”
“Miriã, Josué precisa tratar de assuntos urgentes comigo. Raabe
explicará o que ela precisa. Eu tenho que ir.” Ele saiu antes mesmo
que Miriã pudesse fazer sua primeira pergunta.
“O que o fez ficar agitado assim?” “Ah, você sabe. Assuntos de
Josué.”
Miriã riu. “Você não está aqui nem há duas horas e já está falando
como ele. Você já bebeu ou comeu alguma coisa? Claro que não.
Como se esse meu irmão pensaria em algo tão simples como um
copo de água enquanto as tribos precisam de sua atenção. Venha
até aqui e sente-se. Você parece cansada.”
Raabe se sentou perto de uma pilha de travesseiros de plumas,
agradecendo por sentir aquela suavidade. Um suspiro cheio de
felicidade escapou de seus lábios. Depois de duas semanas vivendo
em isolamento, aquela tenda simples parecia ser uma casa para ela.
“Quantas almofadas”, disse ela em voz baixa.
“Você deve estar dolorida por ter dormido no chão apenas com um
cobertor.”
“Eu agradeço por estar viva. Não tenho do que reclamar.” “Nada
nos faz ser mais gratos do que perder tudo. Conheço
um pouco essa sensação também.” Miriã deu um sorriso triste.
“Nós nascemos em meio à perda, toda a minha geração. Isso nos
fez ser gratos por qualquer coisa simples.”
Raabe pensou, não pela primeira vez, que Miriã era uma mulher
extraordinária. “Todas as mulheres de Israel são tão sábias quanto
você?”, perguntou ela em um impulso.
“Ó céus, não. Sou uma joia inestimável.”
As duas riram juntas. “Então, que assuntos urgentes de Josué
meu irmão está correndo tanto para tratar? Pelo seu rosto, ele
parecia estar um pouco aflito.”
Raabe sentiu-se um tanto culpada quando se deu conta de que
tinha esquecido a grande tribulação de Israel com seus trinta e seis
homens mortos enquanto ela se divertia entre travesseiros de
plumas e com a inteligência de uma jovem. “Acho que é uma
espécie de reunião. De qualquer maneira, acredito que Salmom
ficará ocupado pelo restante do dia. Ele pediu para você e Ezra
ajudarem minha família a encontrar um lugar para acampar aqui por
pelo menos hoje à noite. Ele não terá tempo para pensar na compra
de nossa tenda.”
“Isso não é do feitio de Salmom. O que será que está
acontecendo?”
Raabe encolheu os ombros. “Ele nos dirá quando for a hora de
sabermos. Mas, enquanto isso, eu gostaria de beber a água que
você me prometeu. Se devo correr atrás de outro companheiro de
pernas compridas novamente, preciso de algo para molhar minha
garganta.”
Miriã sorriu enquanto levantava, tirava a tampa de um grande
cântaro de argila e colocava, com uma concha, a água em um copo
para Raabe. “Ezra tem pernas longas. Mais uma vez, você sabe
disso muito bem, pois teve que aguentar o peso dele enquanto ele
descia o muro inteiro de Jericó. Quando Ezra nos falou sobre isso
pela primeira vez, algumas pessoas fizeram piadas sobre o suposto
tamanho da mulher cananeia. Espere até eles te verem
pessoalmente. A propósito, como você conseguiu fazer isso? Ele
deve ter quase o dobro do seu tamanho.”
“Eu acho que Deus me deu forças. De qualquer forma, eu não
tinha outra escolha. Se o tivesse deixado cair, ele quebraria o
pescoço.”
“O que teria sido uma pena. Ele tem um pescoço tão bonito.”
Raabe percebeu que ela ruborizou, mas achou melhor não
comentar. Miriã mudou de assunto rapidamente. “Quando a sua
família vai chegar?”
“Salmom falou algo sobre hoje à tarde. Ele pediu que dois de seus
homens fossem até lá buscá-los. Acho que não vai demorar muito.
Quando eu os deixei, já estavam arrumando tudo.”
“Isso nos dá mais tempo para prepararmos algumas coisas.
Vamos encontrar Ezra e colocá-lo para trabalhar.”
Miriã e Raabe encontraram Ezra e eles passaram algumas horas
escolhendo um local adequado na tribo de Judá para que a família
de Raabe se acomodasse. Ezra disse que, quando comprassem as
tendas, eles poderiam montá-la no mesmo lugar. Enquanto não
havia uma, ele as ajudou a fazer uma fogueira, levou água e
amarrou cordas entre algumas palmeiras, que, se cobertas com
lençóis, originariam espaços mais reservados. Eles estavam perto
de algumas outras tendas, e Miriã apresentou Raabe às mulheres
que cuidavam de cada uma. Raabe percebeu que as mulheres com
as quais se encontrou lhe pareceram muito reservadas. Ela não
recebeu sorriso algum e ninguém parecia estar disposto a fazer
amizade. Mesmo que nenhuma delas tenha sido grosseira, elas
também não abraçaram a nova companheira. Por dentro, Raabe
estava muito apreensiva.
“Não se preocupe, Raabe”, sussurrou Miriã depois de elas saírem
da última tenda. “Elas ouviram falar muito bem a seu respeito. Josué
disse que você é uma mulher de fé quando conversou com o povo
sobre a derrota de Jericó. Com o tempo, todos se acostumarão e te
aceitarão, assim como Josué o fez.”
Raabe deu o que parecia ser um sorriso e engoliu uma sensação
nauseante. Se ela fizera nenhuma amizade com mulheres quando
vivia entre o próprio povo durante os últimos dez anos, como faria
isso entre as mulheres de Israel? Como poderia conquistar a
aceitação de alguém?
Capítulo
Doze

A família de Raabe chegou antes de o sol se pôr. Ela explicou que


Salmom estava envolvido em um assunto muito importante. “Eu
estava lá quando Josué determinou uma missão a ele. Salmom não
terá tempo para comprar nossa tenda por alguns dias. Ele se
preocupou por não ter cumprido a promessa que nos fez, mas eu
lhe assegurei que nós vamos nos adaptar enquanto isso.”
“Se uma situação urgente impediu que Salmom comprasse nossa
tenda, não temos que nos preocupar. Ele merece a nossa
confiança”, afirmou Joa com um gesto. Raabe analisou seu irmão
mais novo e percebeu que houve uma inversão. Durante as duas
últimas semanas, Joa precisou muitas vezes de segurança; mas sua
reação diante daquele assunto provou que uma mudança profunda
acontecera em seu coração.
Logo depois, Hanani apareceu mostrando sua jovialidade tranquila
de sempre. Cercada pelos cuidados de Ezra, Hanani e Miriã, Raabe
quase acreditou que os outros israelitas a aceitariam com o passar
do tempo. Juntos, eles passaram algumas horas arrumando seus
pertences e se acostumando com o novo lar. O som das risadas
encheu aquele acampamento modesto à medida que eles
esvaziavam as bolsas, pensavam em como arrumariam a tenda e
onde os animais ficariam.
Ezra mostrou a configuração estrutural de Israel para eles, e
Raabe percebeu que não se tratava de um labirinto confuso. Tudo
era feito de acordo com códigos muito precisos.
“No meio do acampamento, ficam o tabernáculo e o pátio”,
explicou ele. “As doze tribos de Israel ficarão ao redor dessa
estrutura central, cada uma seguindo uma determinada ordem.”
“Eu estava pensando nisso hoje enquanto andava”, observou
Raabe. “Como essa divisão acontece?”
“Você notaria se estivesse mais atenta”, interrompeu Miriã. “Uma
cerca branca feita de cortinas de linho penduradas em alguns
pilares por cerca de toda a estrutura. A cerca existe para assegurar
que ninguém toque acidentalmente no tabernáculo ou nos objetos
sagrados do pátio.”
“É muito longe daqui?”
“Fica a mais ou menos uns quinze minutos de caminhada a
oeste”, respondeu Ezra. “Judá é a maior tribo de Israel, com mais de
setenta mil homens. Por isso, nosso terreno de acampamento é
enorme. Issacar é nosso vizinho a norte, e Zebulom acampa ao sul.”
A família de Raabe começou a fazer perguntas sobre as outras
tribos, e todos ficaram fascinados com suas histórias. Raabe ouviu
parcialmente, pois voltou a pensar no que acontecera em Ai, e sua
cabeça lutava contra as possíveis consequências dessa derrota. Por
que o Senhor permitiria que Seu povo fosse destruído? Com o
acontecido, eles ficariam vulneráveis a outros ataques de Canaã. Ao
mostrar aquele primeiro sinal de fraqueza, eles se revelaram
destrutíveis.
Mais tarde, durante aquela noite, à medida que o som do
acampamento enorme que os cercava silenciava-se, a noite foi
interrompida repentinamente pelo som de uma trombeta. Raabe
quase caiu com aquele barulho inesperado. Hanani olhou para Ezra
com um rosto confuso.
“Esse é o sinal para nos reunirmos. Devemos logo ir até Josué.”
Joa deu um passo à frente. “Nós também?”
“Sim, todos. Toda Israel deve estar presente, e agora vocês são
parte de nós.”
Os lábios de Joa se abriram em um sorriso. “Isso costuma
acontecer?”, perguntou ele. “Essas reuniões tão tarde durante a
noite?”
Ezra franziu a testa. “Não, nem sempre. É melhor irmos até lá
para ver o que aconteceu.”
Quando eles chegaram, milhares de pessoas já estavam reunidas.
Josué ficou em um monte para que todos pudessem ouvi-lo. Mas
isso não bastava para que todos ouvissem, Deus havia abençoado
Israel com uma população numerosa. Para assegurar que todos o
escutariam, havia homens posicionados em lugares estratégicos
para repetir as palavras proferidas por Josué. Ninguém ficaria sem
ouvir o que ele tinha a dizer.
O povo já estava acostumando com reuniões públicas, embora
raramente acontecessem à noite. Ninguém se empurrava nem se
acotovelava. Todos apresentavam um autocontrole admirável, e
pareciam atentos aqueles que estavam à sua volta.
Raabe e sua família ficaram perto o suficiente para ouvir a voz de
Josué e, depois de esperarem por alguns minutos para que todos se
sentassem, ele começou a falar. “Tenho notícias muito sérias. Vocês
sabem que nós enviamos apenas uma parte de nossos homens
para derrotar Ai porque aquela nação é insignificante. Porém, hoje,
pela manhã, as notícias sobre a batalha chegaram ao nosso
acampamento; fomos derrotados.” A reação foi imediata. O medo
tomou conta das pessoas e um grande lamento irrompeu. Aquele
povo havia lutado batalhas demais para entender as consequências
de tal perda. Antes que o terror se instalasse em seus corações,
Josué levantou as mãos.
“Ouçam o que vou dizer, pois tenho mais notícias. Assim que
soube desse acontecimento, os presbíteros e eu nos curvamos
diante do Senhor e, desde então, buscamos conhecer a Sua
vontade; e Ele a revelou a nós.” O acampamento inteiro prendeu a
respiração enquanto Josué fez uma pausa e olhou para além de
todos. “O Senhor me disse: Levante-se! Por que estás prostrado
assim sobre o seu rosto? Israel pecou. A razão pela qual não
pudemos conquistar a vitória é que um de nós roubou o que
pertence ao Senhor e mentiu sobre o assunto. Quando entramos em
Jericó, nos foi dito que tudo deveria ser destruído, exceto os itens
que deveriam ser oferecidos ao Senhor, mas alguém infringiu esta
ordem. Alguém roubou o que pertence a Deus por direito. Amanhã,
o Senhor nos mostrará quem foi. Estou muito triste pelas mortes,
pois as consequências dessa desobediência foram grandes.
Perdemos trinta e seis dos nossos melhores guerreiros, vidas que
poderiam ter sido preservadas se não tivéssemos traído a vontade
de Deus. Certamente, amanhã mais vidas serão perdidas, pois nós
não temos sacrifícios sagrados o bastante para cobrir esse pecado
tão grave. Mais sangue será derramado, e fui invadido pela dor
devido a essas perdas desnecessárias.
“Voltem para suas tendas hoje à noite e santifiquem-se em
preparação para amanhã. Pela manhã, vocês apresentarão suas
tribos, uma a uma, até que Deus aponte o culpado. Só então o
Senhor nos dará mais forças para conquistarmos nossos inimigos
outra vez.”
Em um primeiro momento, o silêncio dominou as pessoas
enquanto elas seguiam para as tendas. Mas, com o tempo, o
silêncio foi se transformando em sussurros de milhares de línguas.
As pessoas se perguntavam quem teria feito aquilo. De qual tribo
seria? De qual clã? Todos asseguravam uns aos outros que
certamente não tinham culpa.
Joa disse: “Não é de se admirar que Salmom não tivesse tempo
para comprar nossa tenda. Ele deve ter se envolvido com isso pela
maior parte do dia”.
Enquanto Raabe e sua família voltavam para o acampamento,
eles perceberam que os olhares de seus vizinhos eram menos
amigáveis do que antes. Ela supôs que seria natural o fato de os
israelitas chegarem a conclusões rápidas e desconfiar do povo de
Jericó. Eles tiveram a oportunidade e motivo para isso. Mas, mesmo
assim, aquela era uma situação difícil de engolir. Aquelas acusações
subentendidas a magoavam. Era a primeira noite de Raabe e ela já
fora rotulada como ladra.
Senhor, Tu sabes que somos inocentes. Fizemos o melhor
possível para honrar-Te, mas ainda não é o bastante. Algum dia
agradaremos a esse povo? Poderemos nos justificar diante de seus
olhos?
Como um vento sussurrante, um pensamento chegou à sua mente
perturbada. Vocês precisam apenas agradar a Mim e estarei
satisfeito. Deixem sua justificação em Minhas mãos. Eu chamei
vocês e serei fiel. Uma paz inexplicável e maravilhosa caiu sobre
ela. Deus os defenderia, ela não precisava se preocupar. Ela não
precisava apontar a hipocrisia e a maldade de seus vizinhos para
sentir-se melhor. Ela não precisaria humilhá-los a fim de parecer
maior do que eles. Deus cuidaria de tudo e Ele era fiel. Raabe sorriu
enquanto se acomodava na proteção da paz que Ele havia
derramado sobre ela. Levantando a cabeça, ela olhou para cima,
com os olhos brilhando, em uma alegria que nem mesmo a
precariedade da situação pôde roubar, e viu que estava olhando
direto para os olhos de Salmom. Os traços do rosto dele suavizaram
quando seu olhar se encontrou com o dela, e ele se agachou diante
de Raabe.
“Eu estava preocupado com você.” Sua voz estava rouca e baixa.
“Comigo?”
“Com todos vocês, quero dizer. Eu presumo que seus vizinhos não
estão sendo tão acolhedores, não é?”
Ela sorriu. “Não posso negar isso. Se olhares matassem, você
estaria cavando sepulturas agora.”
“Isso vai se resolver amanhã. Eu sei que vocês não fariam nada
desse tipo. Eles se envergonharão de si mesmos amanhã, no cair
da noite.”
Salmom acreditava que eles eram inocentes. Não era preciso
explicações nem argumentos; ele acreditava. Uma sensação de
acolhimento encheu o coração de Raabe. Ela sabia que algo
congelado estava começando a derreter. Sua boca parecia seca e
ela engoliu convulsivamente. “Tudo bem”, disse ela, embora sua
frase tenha saído em um sussurro. “Deus me concedeu Sua paz.”
“Vi isso quando você me olhou. É mais do que paz; Ele te
concedeu a alegria.”
Raabe respondeu com a cabeça. “Foi uma sensação mais do que
maravilhosa. Ele me protegeu de tal forma que o peso dos meus
medos, a raiva e a necessidade de vingança pareceram evaporar.
Eu preciso apenas agradá-Lo. Não é maravilhoso?”
“Ele falou com você?”
“De certa forma, sim. Não foi em voz alta, nem sequer audível. Foi
como um sussurro em meu interior.”
Os olhos de Salmom se arregalaram. “Talvez Seu Espírito tenha
sido derramado por um instante.”
“Isso é comum?”
Salmom mexeu a cabeça. “Você foi mais abençoada do que
imagina.”
Raabe não conseguiu evitar e riu como uma boba. “Nesse exato
momento, eu me sinto mais abençoada do que imagino. É
maravilhoso.”
Ele se levantou com um movimento elegante. “É melhor eu voltar.
Você não parece precisar da minha ajuda.”
“O que vai acontecer amanhã?”
Salmom perdeu a expressão do rosto. “O que for necessário.”
Raabe não dormiu aquela noite. Envolta na proteção das palavras
confortantes de Deus, ela internalizou ainda mais a sensação de
Sua presença. A satisfação a envolvia. De vez em quando, o rosto
de Salmom aparecia em sua mente enquanto ele sussurrava: “Eu
estava preocupado com você”.
,.
Na manhã seguinte, o sol logo apareceu, como se estivesse
impaciente para acabar com a angústia daquele julgamento. Pouco
tempo depois, Raabe viu que Hanani se aproximava do
acampamento improvisado.
“Salmom mandou que eu viesse buscá-los. Ele imaginou que
talvez, por serem novos aqui, vocês se sentiriam um pouco
confusos com o dia de hoje”, disse ele com uma expressão gentil.
Seu comportamento carecia da animação usual. O peso da notícia
da noite passada certamente recaíra sobre ele como uma grande
pedra, e o coração de Raabe se entristeceu com isso.
“Eu estava mesmo pensativo”, afirmou Inri. “Eu estava preocupado
pensando no que deveríamos fazer.”
“Devemos nos reunir em famílias, e cada família fica com o seu
clã. Os clãs se reúnem nas tribos. Então, vocês devem ficar na tribo
de Judá, cujo líder é Calebe. Josué chamará primeiramente os
líderes de todas as tribos para ver em qual tribo está o culpado.”
“Nós seguiremos Salmom?”
“Sim, fiquem perto de mim e da minha família. Nós somos do
mesmo clã.”
Mais uma vez, Raabe se impressionou com a ordem
extraordinária com a qual Israel se reunia em torno de Josué.
Depois de fazer algumas orações e de proferir algumas palavras de
consagração, Josué chamou os doze líderes das tribos. Eles se
enfileiraram solenemente diante de Josué, um após o outro. Cada
um deles dava um passo à frente até que fosse liberado por um
aceno de Josué. Em seguida, Calebe se aproximou com uma
postura extremamente reta e com um rosto horrível. Josué olhou
para aquele velho amigo e companheiro por alguns momentos.
“Judá”, disse ele com uma voz que parecia envelhecida. “Deus me
mostrou que o culpado está na tribo de Judá.”
Vozes altas se levantaram em meio à multidão. Raabe percebeu
que as famílias mais próximas a ela e à sua família lançaram-lhes
olhares mortais. “Cachorros imundos”, gritou uma voz em meio a
eles. Saindo não se sabe de onde, uma pequena pedra surgiu pelo
ar. Antes que Raabe pudesse reagir, a pedra acertou seu rosto e
caiu no chão. Instintivamente, ela levou a mão à ferida e se
espantou ao ver que havia sangue em seus dedos. Pelo canto dos
olhos, ela viu que Hanani correu em direção a ela. Ele a protegeu
colocando-se na frente e gritou algo que ela não conseguiu
entender, mas a fúria vingativa das pessoas não foi apaziguada.
Raabe se deu conta, em um rompante de descrença, que muitas
pessoas ao seu redor se curvavam para pegar mais perdas.
“Parem!”, o grito de Salmom invadiu a confusão de pessoas em
volta deles. “O que vocês acham que estão fazendo?” Ele parou
perto de Raabe e seu rosto estava coberto por uma expressão
descrente. Aquele era o povo de Salmom, pensou ela. Ele
provavelmente conhecia a todos pelo nome. “Vocês ficaram
loucos?”, gritou ele novamente.
“Salmom, foram eles”, afirmou um homem ainda com uma pedra
na mão. “Josué disse que o culpado é da tribo de Judá, você ouviu,
e esses cananeus foram os que chegaram por último em nossa
tribo. Você sabe que foram eles!”
“Eu sei apenas uma coisa, Jaquim. Cabe a Deus determinar quem
foi o culpado. Agora, a menos que Ele tenha revelado algo para
você que ainda não foi revelado a Josué, é melhor você largar esta
pedra. Todos vocês!”
Salmom encarou a todos com uma ferocidade não muito comum.
Por alguns segundos, nada aconteceu. Salmom deu um passo à
frente. Um simples passo, Raabe pensou, mas que, mesmo assim,
carregava uma intimidação tão poderosa que fez Jaquim largar a
pedra, deixando-a cair no chão. Os outros que os cercavam fizeram
o mesmo.
Salmom se voltou para a família de Raabe. “Venham comigo.
Vocês devem ficar perto de mim até que o verdadeiro culpado seja
revelado. Até isso acontecer, vocês não ficarão seguros.” Mesmo
com o momento de choque e de dor que tragara Raabe, ela
observou que o rosto de Salmom estava alterado enquanto ele
controlava a própria raiva. Conforme andava, ele a conduzia de
forma que ela estivesse protegida entre ele e seu irmão Joa.
“Você se machucou?”, perguntou ele sem olhar para ela. “Não foi
nada.” Com algum esforço, ela tentou manter a voz firme.
Salmom bufou com força, mas não disse nada. Quando eles
chegaram onde sua família estava, Salmom se virou para Raabe.
“Deixe-me ver”, disse ele.
“Não foi nada. Foi apenas um corte pequeno”, disse ela, tentando
desesperadamente desviar a atenção de si mesma. A vergonha por
aquele julgamento em público a fez sentir-se muito enjoada.
“Deixe-me ver”, Salmom falou cada palavra por entre os dentes.
Raabe achou que ele estava com muita raiva pelos problemas que
ela o causou. Salmom fora contra a entrada deles em Israel desde o
primeiro instante, dizendo que eles despertariam sentimentos ruins
por causa do mau comportamento. Raabe supunha que aquilo
estava mesmo acontecendo, apesar de não ter sido culpa dela nem
de seus familiares.
Sentindo-se tensa por causa da vergonha, pelo orgulho ferido e
pela injustiça do ressentimento de Salmom, ela pensou em ir
embora. Ficar seria uma infantilidade, além de também ser perigoso.
Conformada, ela virou o rosto para ele, que examinou a ferida com
cuidado. Seu toque foi gentil e suave como uma pluma. Mesmo
assim, ela recuava por causa da dor.
“Eu sinto muito”, disse Salmom com uma voz contida enquanto
tirava a mão do rosto dela. “Já parou de sangrar, mas o machucado
está sujo. Quando chegarmos na tenda, Miriã vai passar um pouco
de unguento para que não infeccione.”
“Você me chamou?”, perguntou Miriã enquanto se juntava a eles.
Só então, ela viu a cena diante de si – o rosto inchado de Raabe, as
feições tensas da família dela e a ira parcialmente contida de
Salmom. “O que aconteceu?”, perguntou ela.
“Alguém acertou uma pedra em Raabe quando Josué anunciou
que o ladrão é da tribo de Judá”, explicou Salmom. “Todos pegaram
pedras para atirar na família inteira, imagine só.”
“Não foi nossa culpa”, exclamou Raabe sem conseguir se conter.
Ela se sentia mal só de pensar que Salmom estava ressentido,
achando-a culpada.
“O que você quer dizer com isso?”, Salmom se virou para ela com
os olhos arregalados em espanto. “Quem disse que foi culpa de
vocês?”
“Você! Você estava com raiva!”
“É claro que estou com raiva! Meu povo cometeu um erro terrível,
e eles poderiam ter te machucado seriamente se eu não tivesse
impedido. Minha vontade é chutar alguns deles agora mesmo!” Ele
parou de falar e, em seguida, perguntou com uma voz mais baixa:
“Por que você pensou que eu estava com raiva de você?”
Raabe afastou o rosto. “Porque você não teria esse problema se
eu não estivesse aqui.”
Salmom passou a mão no rosto dela. “Não sou irracional a ponto
de ficar contra você em um momento como esse. Você foi a maior
prejudicada, e acha que eu seria louco de te culpar por isso?”,
perguntou ele apontando para bochecha dela inchada.
O alívio tomou conta de Raabe. Sua irmã Izzie foi até ela e a
abraçou. Raabe se agarrou a ela por um momento, tentando evitar o
olhar firme de Salmom, que a observava com uma atenção focada.
Ao pensar em outras coisas menores, Raabe sabia que os
diferentes clãs de Israel ainda estavam se apresentando a Josué e
sendo liberados, um após o outro. Logo, chegou a vez dos zeraítas.
Com um braço levantado, Josué os deteve. Raabe sabia que aquele
gesto, mesmo que ainda não identificasse o ladrão, isentaria a si
mesma e toda sua família de qualquer transgressão. Eles não
tinham ligação alguma com os zeraítas. Depois daquilo, as coisas
aconteceram mais rapidamente. As famílias pertencentes ao clã dos
zeraítas se aproximaram e a família de Zabdi foi detida. Por fim, o
filho de Zabdi, Acã, foi acusado.
Acã confessou sua culpa logo que começaram a fazer-lhe as
perguntas, pois sabia que negar seria inútil. Vertendo muitas
lágrimas, Acã revelou: “É verdade. Eu pequei contra o Senhor”.
Enterrados na tenda, encontraram seus tesouros proibidos: ouro,
prata e um lindo manto da Babilônia.
Josué colocou a mão no ombro de Acã. “Filho, valeu a pena sujar
seu coração por esses tesouros inúteis? Veja quantos problemas
desnecessários você ocasionou para si mesmo e para todos que te
amam”, disse ele, sentando-se em seguida com a cabeça apoiada
nas mãos. Após alguns minutos de silêncio, ele levantou a cabeça
dizendo: “Toda sua vida também será desperdiçada porque você
mentiu e desobedeceu ao Senhor; e continuaria mentindo se isso
não fosse descoberto. Você vendeu sua vida por um valor muito
baixo”.
Raabe, confusa pelas palavras de Josué, olhou para Salmom,
sabendo que ele compreenderia o julgamento implícito de Josué.
Salmom levantou a cabeça e olhou para o céu distraidamente.
“Miriã?”
“Sim?”
“Miriã, você sabe o que vai acontecer?”
Miriã afirmou com um gesto e com uma expressão terrível. “Os
filhos e filhas dele deveriam saber, pois os itens roubados estavam
justamente enterrados em sua tenda, mas, mesmo assim, ninguém
disse nada. Sem dúvida, eles também vão pagar.”
“Oh, Salmom!”
“Você não precisa ficar. Por que não vai para a tenda? Raabe,
você pode ir com Miriã. Deixe-a cuidar do seu ferimento. Está
inchando e vai ficar dolorido. Talvez sua família queira se juntar a
vocês duas.”
Raabe mordeu os lábios. “O que vai acontecer agora?” “A
sentença de morte. Por apedrejamento.”
“Oh!” Ela colocou a mão na bochecha inchada, e já podia dizer
que sabia o que era aquilo por experiência própria. “Em Canaã, os
ladrões também são condenados à morte.”
“Geralmente os ladrões que vivem entre nós não são punidos com
a morte, mas Acã teve a maldade de roubar o que era de Deus. Isso
não mostra apenas uma ganância exorbitante, mas também o total
desprezo pelo Senhor. Ou ele achou que poderia escapar disso
impunemente? De qualquer forma, é por isso que o castigo será tão
severo. Este não foi um roubo qualquer.” Ele se virou para olhar
para os cidadãos de Jericó por um momento. “Que primeiro dia
agitado para vocês. Por favor, sintam-se livres para ir. Vocês podem
esperar na minha tenda. Ficarei mais satisfeito assim do que os
vendo aqui fora nesse sol.”
O alívio mais uma vez invadiu Raabe com a ideia de ir embora.
Ela estava começando a tremer como consequência do ataque
horrível contra sua vida. Seu rosto doía sem parar, e se não fosse
pelo abraço reconfortante de Izzie, ela já teria desmaiado de
fraqueza. O ar mais fresco da tenda de Salmom, com todas aquelas
almofadas e com seu ambiente sereno, parecia um oásis. Com a
maior parte de Israel fora do acampamento, haveria uma paz e uma
tranquilidade inigualáveis. “Obrigada. Eu gostaria de ir.” Ela olhou
para os membros de sua família para ver o que queriam. Unânimes,
as mulheres se reuniram e decidiram voltar, enquanto os homens
preferiram ver o destino de Acã juntamente com Salmom.
Miriã, que parecia aliviada por não ter de presenciar o destino de
Acã, guiou as mulheres pelos caminhos do confuso labirinto que era
o acampamento de Israel. Elas andaram em silêncio, cada uma
refletindo. Chegando na tenda, Miriã cuidou do corte de Raabe,
limpando-o de forma delicada antes de passar o unguento que ela
mesma fizera. “Por muito pouco não precisou dar ponto. Do jeito
que está, a marca vai desaparecer com o tempo”, disse ela. “Eu te
darei um pouco deste unguento para você passar todos os dias
durante a próxima semana. Você viu qual daqueles infelizes fez isso
com você?”
“Não. Tudo aconteceu muito rápido.”
Naquela hora, todas as mulheres estavam completamente
exaustas, e Miriã sugeriu que elas ficassem para fazer uma refeição.
As cunhadas e a mãe de Raabe não aceitaram, dizendo que
precisavam voltar para o acampamento para ficar com a sobrinha
mais velha de Raabe, que estava cuidando das crianças mais novas
durante a manhã. Mas Raabe e Izzie ficaram com Miriã e, depois de
comerem bolos de cevada e uma sopa de legumes, ajudaram a
arrumar tudo.
“Raabe, você ainda está sentindo dor? Você parece aflita”,
perguntou Miriã enquanto elas colocavam a louça em um cesto
coberto.
“Não. Não sinto mais dor. Obrigada pelo seu remédio milagroso.
Acho que estou ansiosa. Você acha que, agora que fomos
declarados inocentes, nossos vizinhos irão se acalmar e parar de
desconfiar de nós?”
“Eu espero que sim. Certamente eles sentirão remorso pelo
comportamento desta manhã. Gostaria que nós orássemos juntas
pela sua preocupação?”
Raabe nunca tinha orado em voz alta com ninguém, e a ideia de
começar com alguém experiente como Miriã era um tanto
desafiadora. Ela tinha medo de parecer boba ou ignorante. Por outro
lado, poder orar com uma amiga era uma alegria que ela não estava
disposta a desperdiçar. “Eu não sei como devo orar. Talvez eu
pareça estranha”, admitiu ela.
“Eu não sei se Deus se atenta às estranhezas, mas duvido que
Ele tenha os mesmos padrões que nós. Salmom uma vez me disse
que o Senhor falava com Moisés cara a cara, assim como um
homem conversa com o amigo. Então, eu oro como me foi
ensinado: eu falo as palavras abençoadoras que meus pais me
ensinaram, mas eu também oro com o coração, como se estivesse
falando com um amigo. Eu memorizei algumas orações dos grandes
líderes do nosso povo — as palavras que Moisés falou para o
Senhor ou a canção de Miriã. Posso até te ensinar isso. Porém,
acho que o mais importante é saber que Deus nos ouve. Seu
coração se alegra quando nos voltamos para Ele com sinceridade,
sem artificialidades.”
Raabe desejou sentir aquele tipo de intimidade que as palavras de
Miriã evocavam, e Izzie também queria aprender as orações. Então,
as três se posicionaram respeitosamente e Miriã começou a dar as
bênçãos tradicionais: Bendito és Tu, Ó Senhor, nosso Deus, Rei da
eternidade. Ela colocou também algumas palavras de Moisés em
suas orações: Mostra-me o Teu caminho para que eu possa
conhecer-Te e permanecer em Teu favor. Raabe notou que Miriã
começou a fazer as próprias orações; suas palavras nasciam
humildes e sinceras, frases verdadeiras que surgiam sem timidez.
Ela se sentiu encorajada a orar da mesma forma, relembrando
algumas frases da Lei e algumas bênçãos que aprendeu no tempo
em que estava fora do acampamento de Israel. Izzie logo se juntou
a elas. As três deixaram de notar a passagem do tempo à medida
que entravam em uma atmosfera agradável que parecia mais real
do que qualquer outra em que elas normalmente viviam.
Quando terminaram, Miriã pegou uma harpa já desgastada e
ensinou-lhes algumas canções de Moisés e Miriã. Raabe nunca
tinha se sentido tão perto de Deus, ou nunca tinha vivido uma
amizade tão verdadeira.
Capítulo
Treze

S almom entrou em sua tenda seguido por Josué, que estava


pálido e aparentemente exausto. Eles ouviram as mulheres
cantando antes de seus olhos as virem. Os dois deixaram os
sapatos fora da tenda e entraram sem fazer som algum. Elas
continuaram cantando, sem perceber que tinham plateia. No mesmo
instante, o olhar de Salmom logo procurou por Raabe. Ele observou
seu rosto abaixado querendo certificar-se de que ela estava bem.
Junto ao seu nariz fino, um corte feio e parcialmente fechado
rasgava sua pele branca. Ele se lembrou do momento em que viu a
pedra voar, sabendo que ela iria ao encontro do alvo sem que ele
pudesse fazer nada. Ele correu, afastou as pessoas do caminho,
ciente de que seria tarde demais para protegê-la daquele míssil. Ele
ainda se agitava quando pensava nisso, e o que mais o incomodava
era o fato de ter sido tão afetado por tal acontecimento.
No ambiente silencioso da tenda, a tensão começou a abandoná-
lo e Salmom reconheceu a canção familiar entoada pelas mulheres,
esquecendo-se por um momento do ataque à Raabe, e até mesmo
da própria Raabe. Como se tivessem feito um acordo implícito,
nenhum dos dois homens falou. Ambos permaneceram em silêncio,
envolvidos pela sacralidade simples do que testemunhavam.
Mas, pouco tempo depois, os dois não conseguiram mais resistir e
uniram suas vozes graves à voz das mulheres.
Em Teu amor inabalável Tu guiarás
O povo que redimiste.
A canção alegre foi interrompida. As mulheres passaram a
reclamar; os homens começaram a pedir perdão.
“Perdoem-nos, minhas filhas, por termos interrompido”, disse
Josué acabando com a confusão. “Entrar aqui foi como sair de uma
tempestade de areia e chegar a um jardim tranquilo. Salmom e eu
agradecemos pela sua linda canção. Ela revigorou meu coração, e
eu precisava mesmo disso.” Afirmou Salmom fazendo um gesto com
a cabeça.
“Meu senhor”, a irmã dele o cumprimentou, prostrando-se diante
de Josué. “O senhor honra a mim e ao meu irmão visitando nossa
tenda. Permita-me trazer algo para que o senhor possa comer.”
Josué esticou o braço graciosamente para levantar Miriã.
Para irritação de Salmom, Raabe se levantou. “Izzie e eu
voltaremos para o nosso acampamento. Perdoem nossa
intromissão.”
Josué fez um gesto com a mão. “De maneira nenhuma. Foi por
causa de você que eu vim até aqui.”
“De mim?”
“Tome cuidado, Josué”, interrompeu Salmom. “Ela tem mania de
repetir tudo o que a outra pessoa fala quando está nervosa.”
“E por que ela está nervosa? Venha, filha, sente-se perto de mim.”
Salmom mexeu a boca quando viu Raabe engolir em seco. Com
passos hesitantes, ela foi até o patriarca antes de se ajoelhar ao
lado dele. Ele percebeu que as mãos dela estavam escondidas em
uma dobra do vestido, para que ninguém visse que elas estavam
tremendo. Salmom franziu as sobrancelhas, sem entender
apreensão extrema dela diante de Josué. Ou talvez dele mesmo.
Era como se ela sempre esperasse que eles a humilhassem ou
expulsassem. Por que aquela mulher não entendia de uma vez por
todas que ela já estava salva?
,.
Raabe tentou aquietar as batidas aceleradas de seu coração. Não
fazia sentido um homem da estatura de Josué perturbar-se por
causa dela.
“Salmom me contou o que aconteceu na manhã de hoje.” Josué
começou a falar. “Então, eu quis ver com meus próprios olhos se
você está melhor.”
“O senhor não deveria ter se preocupado, meu senhor. Como vê,
estou bem.”
“O que eu vejo é a marca da insolência do meu povo em seu lindo
rosto”, afirmou Josué como se o ar de sua respiração estivesse
pesado. “Este foi o dia mais abominável de todos. Acã está morto e
enterrado no vale, e o povo já chama o lugar de Vale de Acor devido
aos problemas que enfrentamos com tudo isso. Fico furioso ao
pensar que meu povo ainda nos gerou mais problemas ao tentar
apedrejar você. Por favor, Raabe, perdoe-nos por esta atitude
preconceituosa e arrogante.”
Raabe mexeu a cabeça. “A desconfiança deles é compreensível.”
Horrível, mas compreensível. “Espero que, com o passar do tempo,
eles passem a acreditar em nós.”
“Farei o que estiver ao meu alcance por vocês. Posso prometer
que mais ninguém levantará a mão contra você e sua família
novamente. Talvez eles permaneçam frios e distantes por algum
tempo, mas você deve abster-se disso até que passem a te
conhecer melhor. Não dê espaço para o desânimo.”
“Obrigada, meu senhor, pela sua ajuda.”
“Não precisa me agradecer.” Ele deu um sorriso enorme. “Esse é
apenas um direito seu. Você é uma das nossas agora,
independentemente de como os filhos de Israel te tratarem.”
Raabe olhou para baixo. Aquelas eram palavras muito gentis, e
estavam dentre as mais gentis que ela ouvira em toda sua vida.
Palavras de aceitação. Palavras de justificação. Josué estava a
tratando como se realmente tivesse aceitado sua presença. Ele até
se importava com seu bem-estar. Parecia impossível que um
homem como ele – que ocupava uma posição tão elevada e com
uma santidade também elevada – se disporia a prover suas
necessidades. E lá estava ele, exausto pela noite sem dormir e
assolado por um pesadelo na manhã seguinte, claramente para
tranquilizá-la.
Talvez tenha sido por isso que ela não aceitou muito bem aquelas
palavras. Raabe as ouviu e as entendeu. Mas no íntimo de seu ser,
ela sabia que a decepção de Josué para com ela seria uma questão
de tempo. Assim como todo mundo, ele viraria as costas quando
realmente a conhecesse. Ela mordeu os lábios e franziu as
sobrancelhas. Raabe sabia que sentiria mais amargura pela rejeição
de Josué do que alegria por sua aceitação naquele momento. A
rejeição seria mais real, verdadeira. Seus elogios pareciam vazios –
irreais.
Josué, interpretando erradamente sua expressão, chamou
Salmom e disse: “Ela está exausta. Salmom, vá com Raabe e a irmã
dela até o acampamento deles e verifique o comportamento dos
vizinhos. Depois que jantar, vá até minha tenda e eu direi aos
líderes o que devemos fazer em relação a Ai”.
Eles se levantaram respeitosamente enquanto Josué se preparava
para partir, mas ele não quis que ninguém o levasse até o lado de
fora. A tenda pareceu encolher em sua ausência, e Salmom se
voltou para Raabe perguntando: “Você gostaria de descansar um
pouco antes de partirmos?”
“Não, estou bem. E não é necessário que você nos acompanhe.
Izzie e eu podemos nos cuidar sozinhas.”
“Podem mesmo?” Sem pensar, Salmom passou o dedo pelo rosto
dela, evitando passar em cima da ferida pálida que marcou sua pele
suave. Raabe estremeceu com aquele toque, e Salmom tirou o
dedo, fechando-o na mão. “Vou com vocês”, disse ele, cerrando os
dentes e fazendo Raabe perceber que o tinha irritado novamente. O
que ela teria feito dessa vez?
Izzie, feliz e sem notar aquela mistura densa e lamentável de
emoções, deu um sorriso alegre. “Vocês foram bons conosco, e nos
alegraremos com sua companhia.”
O meio sorriso de Salmom estava cheio de ironia, como se fosse
dado para Raabe. “Tenho certeza de que é um sentimento mútuo.”
Miriã empacotou alguns alimentos, bem como uma grande bola de
queijo fresco e alguns pães, que ela insistiu para que Izzie e Raabe
levassem. “Vocês tiveram um dia difícil. Alguns mimos alegrarão
vocês.” Raabe estava cansada demais para negar, e Izzie estava
alegre demais para pensar em fazê-lo.
Logo quando elas estavam indo embora, Miriã correu para dentro
da tenda e saiu com uma almofada de plumas. “Leve isso, Raabe.
Você precisará de algo mais macio do que um cobertor na areia
para apoiar o rosto essa noite.”
“Oh, não, isso eu não posso aceitar. Já comi sua comida no
almoço e bebi de sua água. Estou levando o seu queijo e aceitei seu
pão e suas provisões. Não posso aceitar mais nada.”
“Ah, por favor, leve essa almofada! Você não vai dormir na areia
essa noite e ponto final”, Salmom interferiu expressando seu
aborrecimento em cada sílaba.
“Mas...”
“Nem mais uma palavra. Nem um suspiro. Nem um ai. Chega de
objeções. Entendido?”
“Salmom!”, Miriã parecia chocada.
“Isso também vale para você, minha irmã. Faremos uma
caminhada tranquila e pacífica. Mais tarde, chamarei a atenção
daqueles vizinhos, para, enfim, eu fazer minha caminhada tranquila
e pacífica de volta.”
,.
No dia seguinte, Raabe acordou agarrada à almofada de Miriã,
cambaleante por causa de sonhos perturbadores. Seus sobrinhos,
já muito bem acordados, gritavam pelo acampamento brincando de
esconde-esconde. Ela se sentou e percebeu que seu rosto doía, sua
cabeça palpitava e seu corpo sentia as consequências de dormir por
tanto tempo em um local tão inadequado. Ela queria ficar sozinha e
quieta. Em vez disso, um menino de quatro anos, uma menina de
cinco e o primo deles, de oito, se jogaram em cima dela, insistindo
para que a tia Raabe os escondesse embaixo do cobertor. Ela os
puxou para perto dela e os colocou sob o cobertor. Eles riam com
uma alegria contagiante, mexendo-se sem parar até se
transformarem em um emaranhado de braços e pernas.
“Não se mexa tanto, senão os outros encontrarão vocês”, avisou
ela aos sobrinhos. Na tentativa de se esconder melhor, um deles
levantou um dos cotovelos e acertou o rosto de Raabe, muito perto
da bochecha machucada.
“Aaai!” Sua cabeça latejava de tanta dor, e ela tirou o cobertor
para se levantar. Raabe piscou algumas vezes para melhorar a
visão e notou que Salmom estava diante dela, e seu rosto estava
ofuscado pelo sol. Ela se deu conta de que o sol já estava bem alto,
e já era tarde.
“Pensei que você já teria levantado a essa hora”, comentou ele.
“Hum.”
“Você não é de falar muito de manhã?”
“Não.” Seus sobrinhos e sobrinhas começaram a se remexer
impacientes. Primeiro um, depois o outro e em seguida o último saiu
debaixo do cobertor e correu.
Os olhos de Salmom os seguiram com ternura. Mudando o foco
para Raabe, ele disse: “Você sempre leva tantas pessoas para
dormir com você?”
Chocada, ela olhou para ele com os olhos arregalados. De
repente, ele ficou parado com o rosto congelado e a pele com uma
cor avermelhada. Raabe percebeu que ele havia cometido uma
gafe. Salmom falou sem pensar. Aquelas mesmas palavras, se
faladas com sarcasmo ou com um propósito determinado, a teriam
reduzido a quase nada. No entanto, naquela circunstância, elas
deveriam soar engraçadas. Raabe colocou as mãos na boca, mas o
riso escapou pelos cantos. “Obrigada”, disse ela.
“Pelo quê?” Salmom olhou como se ela tivesse entendido errado.
“Por um instante você esqueceu o meu passado. Você nunca teria
dito isso se lembrasse.”
Ele franziu as sobrancelhas e recuou. “Já providenciei sua tenda e
vim avisar isso. Ela já está lá, alguns de meus homens me ajudaram
a levá-la. Eles vão ficar para te mostrar onde vocês se alojarão. Seu
pai e seus irmãos não estão aqui, por isso eu vim te avisar.”
Para Salmom, ela estava gaguejando, e não abafando o riso. Uma
onda de desolação a dominou enquanto ela se sentou, vendo que
era o objeto para o qual Salmom evitava olhar. Ele pode até ter tido
um lapso de memória em relação ao passado dela, mas claramente
foi um erro que ele preferia não repetir. Ela ainda era Raabe, a
prostituta cananeia que Josué colocou sob sua responsabilidade, e
ele ainda era um dos maiores líderes de Israel, guerreiro de honra e
influência. A lacuna entre eles nunca seria preenchida. Mas Raabe
não conseguia entender o porquê de acontecimentos tão banais a
magoarem tanto. Ela percebeu mais uma vez que sua cabeça
estava doendo e colocou a mão nas têmporas.
Ela ficara deitada por muito tempo. Com um movimento estranho,
Raabe se levantou, e foi dormir com as mesmas roupas do dia
anterior, pois estava cansada demais para trocá-las. Naquele
momento, ela estava de pé, decentemente vestida do pescoço aos
pés, embora tivesse acabado de acordar e suas roupas estivessem
amarrotadas. Com a mão suada, ela tentou esticar o tecido – o que
não ajudou muito. Por estar olhando para os dedos dos pés,
Salmom não poderia se sentir ofendido pela aparência de Raabe.
Ele teve problemas consideráveis para colocá-los em sua tenda
em meio a um momento agitado e angustiante. E, em vez de Raabe
se concentrar no que Salmom não podia dar a ela — respeito,
admiração, aceitação verdadeira —, ela se concentrava no que ele
oferecia. Ele era um homem generoso, prestativo, justo e protetor
daquele grupo, mesmo que aquele não fosse seu grupo favorito.
“Obrigada pelos problemas que você enfrentou por nós”, disse ela.
Salmom acenou com a cabeça, deu meia volta e foi embora.
Ela nunca tinha visto ninguém andar tão rápido.
Suspirando, ela se virou e viu os dois homens que o ajudaram de
pé no meio do acampamento. Eles estavam distraídos conver-sando
e perceberam sua presença. Ela olhou para a tenda com
curiosidade. Gigantesca, a tenda espalhada pelo chão não permitia
que ninguém avistasse onde era seu começo ou seu fim. Ela era
feita de algum tipo de couro cru, forte o bastante para aguentar as
chuvas e o calor do sol. Enorme e densa, provavelmente foi preciso
que todos os três homens a carregassem. Nem com muita
imaginação, ela poderia ser considerada elegante. Mas seria mais
confortável do que dormir ao relento.
Raabe foi até os dois homens e se apresentou.
“Nós já te conhecemos”, disse o mais magro. Os dois eram muito
mais jovens do que ela imaginava; tinham aproximadamente
dezessete ou dezoito anos.
O segundo, com o corpo mais definido e com a barba começando
a crescer, perguntou: é verdade que você aguentou sozinha o peso
de Ezra para ele descer pelos muros de Jericó? Isso eu queria ver.
Diga-me como você fez essa façanha. Vamos. Há uma pedra
grande perto daqui e você pode fazer o mesmo que fez com ele.”
Raabe levantou as mãos. “Tem coisas que só acontecem uma
vez.”
“Você não vai me mostrar sua força?”
“Não, a menos que o Senhor me conceda novamente.” “Aaah”,
disse o mais magro como se fosse o grande sábio de
Jerusalém.
“Vocês provaram que têm muito mais força para suprir minha
fraqueza ao carregarem essa tenda”, afirmou ela.
“Bom, Salmom nos ajudou um pouquinho”, um deles respondeu
com um murmúrio.
“Então, qual é o nome de vocês? Os dois já sabem o meu.” “Sou
Abel”, respondeu o mais magro. “E esse é o meu primo,
Adão.”
“Como você fez?”
“Como você fez aquilo?”, perguntou Adão, confuso. Abel lhe deu
uma cotovelada.
“Ela está cumprimentando você, gênio.”
Embora suas línguas tivessem a mesma origem e Raabe
estivesse se acostumando bem a cada dia com os dialetos de Israel,
ainda havia diferenças nos sotaques e expressões, o que tornava a
comunicação mais interessante. Os hábitos também, embora
houvesse pontos comuns em alguns momentos, geravam situações
desafiadoras. Na maioria das vezes, os cidadãos de Jericó levavam
a vida com maior formalidade do que os Israelitas. Outras vezes, no
entanto, eles percebiam que os cananeus tinham modos mais
permissivos do que os de Israel. Certa vez, quando Hanani e Miriã
estavam no acampamento, o irmão de Raabe, Joa, liberou gases
intestinais que causaram um barulho considerável. Para o povo de
Jericó, aquele era um jeito aceitável de aliviar as tensões do corpo.
Mas Raabe percebeu que os hebreus cobriram suas bocas com as
mãos e ficaram vermelhos.
“Fiz algo engraçado?”, repreendeu Joa, como sempre sensível.
Em resposta, Hanani mexeu a cabeça ficando ainda mais vermelho
do que antes.
“Foi esse barulhinho?”, adivinhou Raabe. “Os hebreus não fazem
isso em público?”
“Isso o quê?”, Hanani perguntou surpreso. “Você chama isso de
barulhinho?” Ele olhou para Miriã e os dois se agacharam rindo.
O pobre Joa se ergueu com indignação e vergonha. “Isso é
perfeitamente aceitável de onde eu vim.”
“Ah, disso eu não tenho dúvidas”, disse Miriã. “É que nós... nunca
ouvimos...”
“O quê? Vocês estão me dizendo que nunca ouviram esse barulho
antes? É sério? As crianças de Israel devem fazer isso às vezes”,
irritou-se Joa.
Miriã enterrou o rosto nas mãos, e seu corpo inteiro se mexia.
Hanani se pronunciou: “Sim, sim, é claro que nós fazemos, embora
façamos em circunstâncias mais reservadas. Acontece que nunca
ouvimos isso perto de ninguém antes”.
Alguém pigarreou, interrompendo os pensamentos de Raabe. Ela
olhou para os jovens ajudantes que haviam levado a nova casa nas
costas e deu um sorriso enorme para eles. “Sim, eu quis
cumprimentar você. Então, Salmom disse que vocês nos ajudariam
a montar nossa tenda. Vocês sabem fazer isso?” Ela teve sabedoria
suficiente para não deixar escapar que eles pareciam muito novos
até mesmo para amarrar as sandálias.
“Sim. Nós as montamos e desmontamos milhares de vezes.” Adão
olhou em volta. “É melhor vocês colocarem a entrada de sua tenda
na direção norte nessa época do ano. Ficará mais fresco.”
Abel mudava de posição a toda hora. “Onde estão os homens
daqui? Montar uma tenda requer músculos.”
“Eu não sei. Deixe-me descobrir.” Raabe viu que Izzie estava
fazendo um mingau atrás dela e foi até a irmã. “Izzie, onde estão os
homens?”
Izzie mexeu mais uma vez o pote antes de se levantar e se firmar.
“Eles saíram logo cedo com Ezra. Ele queria mostrar algumas terras
e pedir o conselho deles. Josué mal pode esperar para trabalhar na
terra.”
“Bem, nossa tenda já chegou e precisamos deles para montá-la.
Salmom mandou dois de seus companheiros para ajudar.”
Izzie mordeu a boca pensativa. “Acho que eles não vão voltar
agora.”
As duas irmãs foram até os rapazes e Raabe apresentou Izzie.
“Como vão vocês?”, perguntou Izzie.
Adão sorriu para Abel. “Estamos bem, é um prazer conhecê-la.”
“Meus irmãos foram com Ezra avaliar algumas terras. Não sei se
eles voltarão agora”, explicou Raabe.
Abel passou a mão pelo queixo liso. “Ainda temos que pegar as
varas, os ganchos e as argolas, e já que está perto do meio-dia, nós
vamos almoçar antes de voltarmos. Talvez até lá eles já tenham
voltado.”
“Ah, por favor, almocem conosco. Nós ficaríamos honrados se
vocês ficassem”, ofereceu Raabe.
Adão coçou a cabeça. “Hum, almoçar? É, acho que tudo bem.”
Abel fez um aceno em sinal de desaprovação com a cabeça. Raabe
estava tão feliz por retribuir um pouco de todos os favores que eles
estavam recebendo que nem percebeu aquelas reações
controversas.
Ela os fez sentar em um cobertor que havia colocado sob a
sombra de uma das tendas vizinhas. Enquanto eles descansavam,
as duas irmãs agiram depressa para fazer um almoço generoso.
Raabe colocou algumas especiarias que havia trazido de Jericó
para usar no mingau e Izzie derreteu parte do queijo de Miriã em
cima do pão antes de servi-lo. Um dia antes, Raabe tinha usado os
ingredientes da família para fazer bolo de uvas, e ela sabia que
aquele bolo não quebrava nenhuma das regras rigorosas de Israel,
que Miriã havia ensinado passo a passo na semana anterior. Elas
colocaram a comida diante de seus convidados e se juntaram a eles
para fazer a refeição. Depois de algumas mordidas hesitantes, Adão
e Abel começaram a atacar a comida.
“Isso é delicioso!” Abel falou com a boca cheia de mingau e pão
com queijo. Para um homem magro, ele até que comia muitíssimo
bem. “Eu comeria um barril inteiro disso. O que você colocou aqui?”
Izzie e Raabe sorriram uma para a outra. “Apenas especiarias. Um
pouco de canela e mel nos bolos, com os pedaços cortados bem
pequenos. Esse é o segredo”, respondeu Raabe.
“Vocês de Jericó cozinham muito bem mesmo”, disse Adão
também com a boca cheia. Raabe se lembrou de que a geração
dele havia crescido alimentando-se de uma comida misteriosa
chamada maná. Por mais que se parecessem bastante, eles não
tinham se acostumado com o uso de especiarias ou com a arte de
misturar ingredientes diferentes. Com alegria, ela percebeu que
havia algumas coisas que conseguia fazer melhor do que as
mulheres de Israel.
Capítulo
Catorze

O s irmãos e o pai de Raabe ainda não haviam chegado quando


Abel e Adão voltaram ao trabalho, lidando com o esforço de
carregar vários pedaços grandes de madeira, usados como vigas.
Eles decidiram que daria para começar o trabalho sozinhos e
mandaram Raabe e Izzie se afastarem. Suspeitando que o trabalho
fosse durar até a noite, Raabe chamou sua cunhada para que ela
fizesse um jantar para aqueles dois novos companheiros.
Joa, Karem e Inri apareceram no acampamento na hora, e, se
estavam cansados, se esqueceram disso assim que viram a tenda.
Lá pelo fim da tarde, a tenda deles estava perfeitamente erguida,
assemelhando-se a muitas outras ao redor. A família inteira insistiu
para que Abel e Adão ficassem para jantar, e eles aceitaram mais
rápido do que para a primeira refeição.
Todos comeram do lado de fora, aproveitando a brisa refrescante
enquanto admiravam o novo lar. Em alguns momentos durante o
jantar, Raabe notou que algumas mulheres rondavam seu
acampamento, e um cordeiro de cor branca e pelos enrolados
cambaleava entre elas. Raabe entendeu que talvez elas estivessem
aborrecidas com o som da conversa e se levantou pedindo
desculpas pelo excesso de barulho que estavam fazendo.
Uma delas se aproximou. “Você deve ser a Raabe. Ezra falou
muito de você. Sou a irmã dele, Abigail, e esta é Lia, cunhada de
Hanani.”
“Sejam bem-vindas. Estou feliz por conhecê-las.” Raabe fez uma
pequena reverência diante delas. “Por favor, entrem e se juntem a
nós. Estamos fazendo uma refeição.”
“Não, não, obrigada. Nós viemos apenas para trazer isto.” Abigail
colocou uma pequena correia esfarrapada no pescoço do cordeiro.
“É um presente de nossas famílias por você ter salvado a vida dos
nossos irmãos. Nós deveríamos ter vindo antes. Perdoe-nos pela
negligência do nosso atraso.” Depois de falar, ela olhou para baixo.
“Um presente? Para mim? Mas não precisava. Eles salvaram
nossas vidas assim como eu salvei a deles, e é uma alegria imensa
para nós ter seus irmãos como amigos. Na verdade, eles nos
ajudaram sem cessar. Se tivessem mesmo uma dívida, que não é o
caso, eles já teriam pagado há muito tempo. E em dobro.”
Abigail negou com a cabeça e entregou o cordeiro. “Esses
homens são tudo para nós, e lamentaríamos até o fim dos nossos
dias se algo tivesse acontecido com eles. Somos nós quem estamos
em dívida com você. ‘Raabe salvou nossas vidas mais de uma vez’,
disseram eles. ‘Ela tem mais fé que nossos pais e mães’, declaram
eles para qualquer um que quisesse ouvir. Eles te elogiam em todo
lugar. Você foi boa com eles, Raabe, e você tem que nos deixar
retribuir.”
Raabe hesitou, odiando a ideia de aceitar um presente por algo
que ela achava que não merecia. Mas, mesmo assim, ela não
queria ofender a ninguém da família de Ezra e Hanani. Raabe
decidiu que seria melhor ser humilde e aceitar do que correr o risco
de fazer uma desfeita àquelas mulheres. “Muito obrigada, vocês
duas. Apreciamos o nosso primeiro cordeiro em nosso lar dentre o
povo de Israel.”
Tanto Abigail quanto Lia sorriram na mesma hora. Instintivamente,
Raabe segurou a mão de Lia e a aproximou de si. “Juntem-se a nós
para jantar!”
“Venha, Abi. É a melhor comida que já provamos”, afirmou Adão,
perto da fogueira. Abigail franziu as sobrancelhas por um instante.
“Adão Ben Hosea, é você que está aí com essa boca cheia?”
“Estou aqui como você também deveria estar se fosse esperta,
menina. Venha e sente-se. Você nunca provou nada igual.”
Abigail cobriu a boca com a palma da mão e olhou para Raabe
com olhos arregalados.
Raabe levantou as mãos fazendo um gesto de apaziguamento. “A
comida foi preparada de acordo com as leis de Israel. A irmã de
Salmom, Miriã, nos ensinou.”
“Ah!”
“Junte-se a nós, por favor. Comam um pouco.”
Lia foi primeiro, evitando o olhar acusador de Abigail. Ela se
sentou perto de Abel, que prontamente mergulhou o pão em um dos
potes e deu a ela. Abigail, que parecia um pouco mais velha do que
os outros, encolheu os ombros e se juntou às pessoas. Raabe
amarrou o cordeiro a uma das vigas da tenda, afagou a cabeça dele
e foi se juntar aos seus convidados. Ela sentiu que Abigail havia se
reunido aos outros apenas para dar-lhes atenção. No entanto, com
o passar do tempo, ela percebeu que Abigail abandonou sua
posição defensiva até ficar conversando e rindo livremente, como as
outras pessoas, mergulhando o pão dentro dos potes sem parar.
Raabe observou a cena diante de seus olhos e ficou
impressionada pelo caráter milagroso dela. Em apenas um dia,
Deus concedera a eles um novo lar e novos amigos. A esperança
encheu seu peito, como uma folha da primavera, esbanjando vida.
Ela riu por causa de algo que Karem falou, mesmo sem ouvir as
palavras. Raabe se deu conta de que estava feliz. Desde quando
ela não sentia uma alegria despreocupada, livre dos sentimentos de
culpa ou medo?
“Você parece bem melhor do que estava hoje de manhã”, disse
uma voz em seu ouvido.
Ela deu um pulo e virou a cabeça, ficando a uma curta distância
do rosto de Salmom. Por um instante, olhou para os olhos dele sem
conseguir se mexer. Ela falou rapidamente. “Você me assustou.”
“Assustei?”
“Estamos todos jantando. Temos convidados e tudo mais.
Quer comer conosco? Temos bastante comida.”
Salmom desviou o olhar e observou a reunião. “Não. Obrigado.
Tenho pouco tempo. Só vim me despedir. As meninas também
devem voltar para suas tendas. Hanani e Ezra vão conosco
amanhã.”
“Despedir? Para onde vocês vão?” Mas Raabe já sabia a
resposta.
“Para Ai. Temos que terminar o que começamos. Alguns homens
irão hoje à noite, e o restante irá antes de o sol nascer.”
Por um instante, o sentimento frágil de felicidade desaparecera.
Pensar em Salmom indo para a batalha, enfrentando flechas,
espadas, adagas e homens violentos a fez sentir-se infeliz. A
imagem do corpo de Hamish sem cabeça na frente de sua antiga
estalagem surgiu diante de seus olhos. Raabe tinha pesadelos com
aquela cena, e ainda conseguia sentir o cheiro forte de sangue,
vendo aquela mosca saindo daquela boca pavorosamente aberta.
Poderia aquilo acontecer com Salmom? O pensamento de nunca
mais ver Salmom fez nascer uma sensação de ferida em seu
estômago, uma ferida que se recusava a sarar. Ela não se sentiu tão
chocada porque ele estava indo para a guerra, porém, aquele fato
lhe parecia muito ruim.
Ela se virou e levantou, com muito medo de Salmom ver em sua
expressão algo que revelasse o seu temor crescente. Mas,
enquanto Raabe se levantava, ele pegou a mão dela e a puxou
novamente para baixo.
Seus olhos escuros se refletiram nos dela. “O quê? Não vai se
despedir? E eu andei tudo isso.”
Raabe engoliu em seco. Ela temia falar alguma coisa e acabar
irrompendo em lágrimas, ou temia falar palavras que revelassem o
estado de seu coração. Ela olhou para ele tão calada quanto seu
ovo cordeiro, sem conseguir desviar o olhar. “Até logo”, disse ela.
Foi a única coisa que conseguiu dizer antes de livrar sua mão da
dele e de entrar correndo na nova tenda de sua família.
,.
Enquanto Salmom se despedia, ressentido por sua própria
necessidade de procurar pela mulher cananeia antes de ir para a
batalha, ele estava ciente de que trinta mil dos melhores guerreiros
de Israel estavam dando início a uma grande emboscada em Ai.
Sob a escuridão da noite, eles abriram sulcos em uma montanha
alta, longe do alcance dos vigias de Ai e de Betel, mas perto o
bastante para observar as duas cidades. Ali, eles se esconderiam
em silêncio e sem serem vistos, esperando por longas horas até que
a batalha começasse.
Com o raiar da primeira luz, Josué mandou um segundo exército,
muito menor do que o primeiro, para Ai. Era deste que Salmom fazia
parte, e havia nada de diferente em relação à sua marcha. Os
homens se aproximaram da cidade e se instalaram a norte de Ai,
sob a luz do sol. Diferentemente dos homens da missão de
emboscada, que cobriram os pés em lonas apertadas para abafar o
som da marcha, Salmom e seus guerreiros usavam sandálias com
sola de madeira. Em meio à sujeira da região rural, os pés
marchando pareciam batidas bem ritmadas em um tambor. O
coração de Salmom batia naquele ritmo enquanto ele se sentia
parte de tudo aquilo – uma pequena engrenagem de um grande
aríete. Ele estava pronto. Ele estava preparado para mostrar o que o
Senhor podia fazer aos homens de Ai. Como um muro móvel, o
pequeno exército marchava atrás de Josué, até que chegaram em
um vale estreito ao norte da cidade. Eles acamparam no topo da
montanha, em um vale entre Israel e Ai.
Quando o sol começou a surgir, Josué foi até o vale para ver
plenamente os vigias nos muros da cidade. Ele estava bem diante
de seus narizes e fez uma saudação amigável para os guardas.
Eles o ouviram rir enquanto suas flechas caíam a poucos cúbitos de
seu corpo. Salmom deu um sorriso enquanto Josué corria para o
topo do vale para se juntar aos seus guerreiros. Eles teriam que
correr mais rápido que Josué na manhã em que a verdadeira
batalha começasse.
Algumas árvores de folhas verde-claras salpicavam o topo da
montanha, e Salmom procurou uma delas para se apoiar. Em algum
lugar fora do alcance tanto de Israel quanto de Ai, ele sabia que
muitos dos seus amigos se escondiam pela segunda noite,
aguardando apenas o sinal de Josué. Salmom estava nervoso
demais para conseguir dormir, assim como ficava nas noites que
antecipavam a maioria das batalhas que ele enfrentava.
Ele pensou em Miriã e em seu grande abraço de despedida, e seu
coração se acalmou ao relembrá-la. Ele queria dar uma vida segura
para sua irmã, e às vezes sentia uma frustração irritante por ter de
se adequar ao tempo de Deus. Às vezes, ele queria que Deus
acelerasse e os estabelecesse logo em um lugar seguro. Pensar
naquilo o fez ficar vermelho, e ele agradeceu pela escuridão cobrir
seu rosto. Por debaixo da fé e da obediência, ainda havia um
abismo inexplorado de obstinação. Ele queria ser seu próprio
mestre, e queria curvar-se a Deus conforme sua própria vontade. A
acusação de Josué, quando este o chamou de hipócrita, seria tão
surpreendente assim?
Aquele pensamento trouxe Raabe à sua cabeça. Ou melhor, a
levou novamente a ser o centro de suas atenções. Ele mal tinha
pensado em coisas, desde sua despedida, que não tivessem a ver
com a consciência de que ela ocupava seus pensamentos. Depois
que Josué o convocou para a batalha, Salmom sentiu uma
necessidade gritante de procurá-la para gravar o rosto dela na
memória e para se despedir, quem sabe, pela última vez. Ele sabia
que a guerra poderia significar morte, e essa era uma realidade que
ele encarava antes de todas as batalhas. Até mesmo os maiores
vencedores algumas vezes fracassam na luta; era possível vencer,
mas isso não significava sair ileso. Havia a possibilidade da morte,
mas não era isso que o atormentava, e sim o pensamento de partir
sem antes ver Raabe.
Ele falou para si mesmo que não havia motivos para procurar
Raabe. Ela era nada para ele, e nunca poderia ser mais do que isso.
Mesmo assim, Salmom sentiu que, se não fosse vê-la ou se não
ouvisse sua voz, ele morreria. Portanto, ele deu um passo depois do
outro, contra sua vontade, até o acampamento dela e a encontrou
rindo com amigos, como se ela pertencesse a Israel desde o dia em
que nasceu.
Ele engoliu em seco ao se lembrar dos olhos dela quando ouviu
que ele iria para a guerra. Os lindos olhos cor de ouro se encheram
de terror, e uma proteção possessiva o dominou. Estava longe de
ser indiferente em relação a ele, e aquele pensamento era como
uma fonte de satisfação para ele. No entanto, aquela satisfação
apenas o incomodou ainda mais, e ele se repreendeu em voz baixa.
Ai era um inimigo mais fácil de se lidar do que seu próprio coração.
,.
Antes de o sol aparecer, o pequeno exército com Josué já estava
preparando sua formação. Com uma altivez quase lânguida, eles
foram até uma faixa de terra com vista para Arabá. A localização
mostrou que havia um ponto negativo para Israel. Eles estavam
expostos por todos os lados, e os guerreiros de Ai teriam vantagem.
Salmom sabia que eles pareceriam fracassados para um povo que
já os tinha derrotado; seria presa fácil, e era justamente isso que
Josué queria que eles pensassem.
O rei de Ai agiu como esperado. Com o nascer dos primeiros raios
solares, ainda fracos, ele e seus homens saíram da cidade cheios
de confiança e proferindo ameaças enquanto gritavam insultos para
o pequeno exército que estava diante deles.
Vocês voltaram porque querem mais? Vocês querem mais
cadáveres em sua coleção?
Nossos pombos lutam mais do que seus melhores guerreiros.
Vocês querem que nossas garotinhas ensinem algumas lições?
Não faltaram insultos naquela manhã. Salmom não se permitiu
mudar de expressão e permaneceu inflexível a cada palavra. Não
havia lugar para o orgulho naquele plano, e, dentro de poucos
instantes, ele e seus companheiros mostrariam quem realmente
eram os fracassados. Os guerreiros de Ai continuaram se
aproximando. Porém, antes de a primeira fileira do exército de Ai
alcançar a linha defensiva de Israel, Josué deu um grito para recuar.
Os guerreiros de Israel se viraram e correram em direção ao
deserto, afastando-se da cidade. Para o inimigo, eles pareciam
fugitivos muito covardes.
Um grande som surgiu do exército de Ai. Alguns riam e outros
faziam algazarras, girando as espadas e clavas para o alto. Salmom
estava ciente de que o recuo imediato de Israel encheu o inimigo de
orgulho. Tudo nele desejava parar, dar meia-volta e tratar aquele
adversário insignificante com a coragem que irrompia nele. Mas, em
vez disso, ele forçou seus pés a continuarem correndo ainda mais
rápido, poupando seu tempo. A poeira se levantou das milhares de
sandálias que pisavam naquele terreno arenoso. Salmom sentia a
areia todas as vezes que inspirava, com um gosto que ressecava a
garganta e ameaçava sufocá-lo. Ele engolia, forçando-se a respirar
pelo nariz com determinado ritmo, mantendo a boca fechada.
Olhando rapidamente por cima do ombro, ele viu com satisfação
que todos os vigias dos muros deixaram seus postos e foram atrás
deles. Não havia dúvidas de que nenhum soldado permanecera em
Ai ou em Betel. Todos haviam se juntado àquela perseguição,
confiantes na vitória.
De repente, Josué parou e deu meia-volta. Ele segurava uma
espada em uma das mãos e um dardo na outra. Salmom viu Josué
levantar a mão com o dardo em direção a Ai, e, assim que ele fez
isso, os homens que esperavam para a emboscada saíram de seus
esconderijos e invadiram a cidade.
Sem perceber o desastre que invadia a cidade, os homens de Ai
alcançaram o exército menor de Josué e se engajaram na luta com
eles. Manejando as espadas com entusiasmo, eles foram de
encontro ao que acreditavam ser um inimigo fracassado e covarde.
Salmom, que sempre ficava na linha de frente, se viu enfrentando
dois homens de uma só vez. O primeiro tinha ombros largos e
muitos músculos. Ele levantou um sabre, cortando o ar com um faro
que Salmom não pôde deixar de admirar. O outro estava armado
com uma faca que manejava com facilidade, jogando-a de mão em
mão com movimentos precisos. Salmom levantou uma sobrancelha,
pois viu que aqueles dois não eram apenas fazendeiros se
aventurando na guerra diante de uma emergência. Eles eram
treinados e experientes, além de parecerem querer as vísceras de
Salmom no café da manhã.
“Cavalheiros, um de cada vez, certo?”
O homem com a faca a jogou para o alto e a viu girar. “E quem
será?”, gritou ele, pegando a faca com habilidade e apontando-a
diretamente para o peito de Salmom. Desviando com um movimento
rápido, Salmom evitou a mira da faca e deu uma cotovelada nas
costas largas do outro oponente. O impacto dos ossos abalou o
homem maior, e ele cambaleou com dois passos estranhos —
dando tempo suficiente para Salmom passar a espada em seu
braço forte. A lâmina fez um corte profundo, passando pelos
músculos e pelos tendões, chegando ao osso. O sangue espirrou
em seu peito e o homem gritava com angústia e raiva, mas sem
soltar seu sabre. Demonstrando um autocontrole considerável, ele
pegou o sabre com a outra mão e o apontou para o diafragma de
Salmom com uma precisão perigosa. Salmom mal conseguiu ver o
arco de metal quando este fora apontado em sua direção. Ele
recuou, pegando sua espada para interceptar aquele golpe
poderoso. Por mais que aquele movimento minimizasse a força
mortal do golpe, Salmom não conseguiu escapar totalmente e o
sabre cortou seu abdome, fazendo surgir uma fina linha de sangue.
Salmom ignorou aquela dor sabendo que o corte era superficial.
Com sua visão periférica, ele percebeu que o homem da faca estava
pegando um outro tipo de arma no cinturão. “Estou tão ansioso
quanto você para acabar logo com essa luta”, gritou Salmom em
meio ao barulho, “mas eu acho justo te avisar que sua cidade está
sendo incendiada”.
O homem com a faca olhou por cima dos ombros e, emseguida,
virou-se completamente para ver a densa coluna de fumaça negra.
Mas o outro oponente de Salmom recusou-se a fazer o mesmo.
“Cale essa boca, hebreu idiota! Tente usar suas artimanhas para
enganar a morte, pois eu vou acabar com cada um dos seus ossos
de galinha”, rosnou ele. Levantando o sabre, ele foi até Salmom em
um bote. Suas habilidades eram impressionantes, pois, mesmo
ferido, a força por trás de cada investida era irredutível. E ele
também era melhor do que Salmom, embora fosse mais lento, ao
manejar a espada. Enquanto explorava o lado ferido do homem,
Salmom se esquivava pela direita tentando evitar uma investida
mortal e, imediatamente, foi para a esquerda. O sabre o seguiu,
como ele esperava, e Salmom voltou a desviar-se pelo lado direito,
atingindo diretamente o corpo do inimigo. Levou apenas um
milésimo de segundo para que o homem apontasse novamente a
espada para Salmom, mas seu movimento revelou uma região
indefensável do lado esquerdo de seu corpo, e Salmom cravou a
espada exatamente lá.
Os olhos do homem se arregalaram com o choque. Um som
curioso surgiu de sua garganta, e o sangue saiu de sua boca
escorrendo pela barba escura.
Enquanto o homem se encolhia, Salmom retirou uma adaga do
cinturão. “Já que você não vai precisar disso, acho que vou pegar.”
Salmom limpou a espada suja de sangue na túnica do homem e
procurou ao redor pela faca. Ele viu que o homem tinha corrido em
direção a Ai quando a fumaça começou a subir, mas naquele
momento ele o viu ao longe, parado olhando em direção à cidade.
Ele ainda está com muita raiva, pensou Salmom. Ele sabia que
poderia pegar a adaga e matar o homem com um movimento rápido,
mas a ideia de cravar uma adaga pelas costas de alguém não lhe
pareceu muito agradável. Em combate, ninguém desconsideraria
aquela possibilidade. Mas, mesmo assim, ele não conseguia aceitar
muito bem a ideia e, de alguma forma, Salmom achava que aquilo
era inferior a ele.
Com certa distância, ele viu a maior parte do exército de Israel sair
de Ai e correr em direção à batalha. Ele sabia que o homem da faca
seria morto com o restante de seus companheiros pelas duas forças
de Israel, sem chances de escapar. Encolhendo os ombros, ele
voltou para o conflito que fora travado mais perto dele.
Com o passar das horas, a batalha ficou mais intensa enquanto as
duas partes do exército de Israel se aproximavam, rendendo os
homens de Betel e Ai. Seus inimigos agora lutavam contra o
desespero do medo, e não mais pelo orgulho da vitória. Eles lutaram
com uma ferocidade temerária que exigia toda repulsão de Israel.
Salmom se viu lutando com um homem selvagem que segurava
um machado, usando-o também como clava. Salmom fez de tudo
para manter o equilíbrio, e saltava em volta dele com destreza.
Próximo a ele, Hanani estava enfrentando um homem resistente que
manejava duas espadas com uma grande agilidade. Salmom notou
que Hanani permanecia na defensiva durante a luta com seu
oponente, tentando desviar-se das investidas implacáveis do
inimigo.
Ele viu que precisava ajudar Hanani rapidamente, mas o monstro
que enfrentava exigia sua total atenção. Ele se abaixou para
escapar de um golpe e passou a espada pelas pernas do homem,
tentando acabar com ele por baixo. O homem pulou a uma altura de
um cúbito, desviando-se com facilidade da espada de Salmom, que
olhou para ele boquiaberto antes de sair do movimento que ele fez
com o machado, que acabaria por acertar sua cabeça.
Salmom deu alguns passos atrás, aproximando-se de Hanani.
“Aguenta aí. Logo eu vou te ajudar”, gritou ele. Salmom percebeu
que Hanani não tinha mais forças nem para acenar.
O oponente de Salmom fez uma investida com o machado, e ele
desviou para evitar ser estripado. Ao fazer isso, ele viu que o
homem da faca, que o atacara anteriormente, estava a cinco cúbitos
de distância com uma faca dentre seus dedos habilidosos. Seu olhar
estava focado em Hanani.
Capítulo
Quinze

N ão!”, gritou Salmom. Ele olhou ao redor com o desespero


estampado em seus movimentos e viu que não havia mais
ninguém que pudesse ajudar, a não ser ele mesmo. A culpa era
dele. O orgulho o levou a ignorar um inimigo perigoso, e agora seu
amigo pagaria o preço. “Não”, disse ele novamente, mas na
segunda vez em um sussurro. Salmom levantou a espada,
deixando-se completamente exposto ao ataque do machado de seu
inimigo. O homem foi até ele sem hesitar. Antes do impacto,
Salmom conseguiu girar, e o machado não o acertou por um fio. Ele
conseguiu pegar a espada e a cravou por trás, em um ângulo
impossível que seu adversário pudesse se desvencilhar. A arma
caiu fazendo um barulho nauseante, e com um gemido ele foi
derrotado.
Salmom não perdeu tempo recuperando a espada. Pelo contrário,
ele pegou a faca que havia colocado anteriormente no cinturão.
Quase em câmera lenta, ele viu o homem com a faca em punho,
apontando e lançando-a. Naquele mesmo instante,
Salmom viu que o oponente de Hanani havia bloqueado sua
espada com a dele e estava prestes a empunhar aquela segunda
arma contra o estômago de Hanani. Seria um golpe fatal.
Salmom prendeu a respiração. Dois oponentes — dois ataques
mortais apontados para Hanani. O homem que estava com duas
espadas nas mãos se aproximou com um corte muito profundo na
garganta. Salmom mirou devidamente e lançou. A adaga foi parar
no pescoço do soldado resistente, que caiu espalhando sangue pelo
chão. No mesmo movimento, Salmom jogou o peso de seu corpo
por sobre o de Hanani, fazendo-o cair, mas aquele movimento fez
Salmom ficar no mesmo lugar em que Hanani estava, exatamente
na mira da faca que fora lançada. Não havia tempo para escapar.
Com uma força que fez Salmom cair de joelhos, a faca perfurou o
cinturão, as vestes e ficou cravada em seu estômago. O impacto foi
profundo e veio seguido pelo adormecimento.
Hanani foi até o lado do companheiro mais pálido do que as
sandálias nas quais estava ajoelhado. “Não, não, não! Ó Senhor. Ó
Senhor, nos ajude!”, clamou ele.
O corpo inteiro de Salmom começou a tremer com tanta violência
que ele quase caiu para trás. Hanani o segurou justo na hora da
queda, para evitar que ele batesse com a cabeça no chão e ficasse
com mais uma ferida além das que já tinha. Ele deitou o amigo com
cuidado, e Salmom se levantou agarrando as vestes de Hanani.
“Tire essa coisa de mim”, disse ele com esforço.
Hanani olhou para ele com os olhos arregalados e cheios de
lágrimas, e mexeu a cabeça.
“Tire. Rápido.”
Hanani olhou para o céu por um momento, depois envolveu o
cabo da adaga com suas mãos e a puxou rapidamente com força. A
dor foi maior do que qualquer outra coisa que Salmom já sentira, e
ele gritou em agonia, sem conseguir silenciar o som animalesco que
saía de sua garganta. Ele ainda estava consciente, respirava com
muita dificuldade e, mesmo acometido pelo tormento, estava lúcido.
“Agora, vá pegá-lo”, sussurrou ele com a voz trêmula. “Antes que
ele machuque mais alguém. Use a adaga.”
Hanani afirmou com a cabeça, segurando a adaga que gotejava o
sangue do amigo. Apesar do acometimento da dor, Salmom
levantou a cabeça e viu que Hanani precisava enxugar as lágrimas
para enxergar. O homem que lançara a faca estava tentando se
afastar deles, mas o lugar estava cheio de homens lutando e sendo
derrubados, o que diminuía seu ritmo. Hanani mirou com cuidado e
lançou a adaga, que o acertou enquanto ele corria.
Por um instante, Salmom perdeu a consciência e deixou a cabeça
dar um baque no chão. Ele voltou a si nos braços de Hanani,
sentindo-se enjoado e fraco. “Ah, Salmom”, lamentou Hanani.
“Vai ficar tudo bem.”
“Foi por minha culpa. Perdoe-me. Era para ser eu.”
Salmom queria sacudir a cabeça, mas não tinha forças. Ele olhou
para baixo e viu a abundância de sangue que escorria das roupas e
molhava o chão. Aquilo lhe pareceu mortal. Ele engoliu em seco e
fechou os olhos. Senhor, tem misericórdia de mim. Ele se esforçou
para abrir os olhos novamente e tentou se focar em Hanani. “A
culpa não é sua. Eu tive a oportunidade de matá-lo antes e não
matei.” Salmom levantou a cabeça a fim de olhar para a barriga, que
sangrava. O esforço fez com que gotas de suor saíssem da testa.
“Não pareço nada bem, Hanani. Se eu não aguentar, cuide da
minha irmã e certifique-se de que ela estará sempre bem.”
“Você vai cuidar da sua irmã. Não ouse se distrair com
pensamentos de morte. Fique vivo, Salmom Ben Nahshon, ou então
eu vou acabar com você.”
Salmom deu um sorriso trêmulo. “Vá terminar esta batalha,
Hanani. Eu ficarei bem aqui.” Ele viu Hanani hesitando, agoniado
por ter de deixá-lo ali.
Hanani fez um movimento com a cabeça. Desamarrando sua
faixa, ele a colocou debaixo da cabeça de Salmom antes de sair.
Salmom olhou para o céu e viu que era um dia lindo. Nuvens
brancas salpicavam o horizonte e uma brisa roçava nas árvores,
agitando-as de um lado a outro como se fossem realezas.
Há muito tempo ele não admirava a beleza daqueles arredores.
Senhor, é hoje o dia da minha morte? Eu entrego a minha vida em
Tuas mãos. Ele prendeu a respiração por causa de um golpe
pungente de dor e, por alguns minutos, ficou quase inconsciente.
Quando a dor diminuiu, ele orou mais uma vez. Por favor, cuide de
minha irmã. Não deixe que nenhum mal aconteça a ela na minha
ausência.
Um outro rosto, bem diferente do de Miriã, veio à cabeça. Com
olhos grandes e lábios grossos, era um rosto majestoso, cheio de
ternura em um momento e medo no outro. Um rosto delicado. Ele
respirou com dificuldade. Senhor, cuide da Raabe. Uma sensação
de arrependimento o acometeu com uma força mais intensa do que
a da adaga que havia atingido seu estômago. Arrependimento pelo
que nunca aconteceu. Ele gemeu. Era a ferida que estava fazendo-o
ter pensamentos loucos. Que ironia o fato de seus últimos
pensamentos serem sobre a mulher cananeia... não. Ele não podia
dizer isso. Ele nem podia pensar nela. Independentemente do que
ela tenha sido, Raabe era diferente agora. Seu passado não deveria
ser parâmetro para ela. Se ele tivesse mesmo que pensar nela
durante as últimas horas de vida, ele não a diminuiria ou desonraria.
Senhor, ela é uma mulher de fé. Cuide dela.
“Por onde você andou e o que houve?” Uma voz familiar
interrompeu seus pensamentos.
“Josué?”
“Por quem mais você esperava — pelo rei de Ai? Deixa eu dar
uma olhada em você, Salmom.”
“Eu não estou bem. Por favor, prometa que você vai cuidar da
minha irmã.”
“Deixe-me dar uma olhada antes de você ficar me pedindo
coisas.” Josué tentou ser cuidadoso com as mãos enquanto
examinava a ferida, mas mesmo assim Salmom achou que morreria
de dor. Um gemido escapou de sua boca e Josué parou de mexer.
“Não vou mentir para você, filho. Essa ferida é grave, e talvez seja
mortal.”
“Eu te falei”, afirmou Salmom com um suspiro fraco, desfrutando a
sensação de Josué ter concordado com ele por uma vez. A
escuridão o dominou e ele parou de resistir. Valia tudo para não
sentir mais dor. A última imagem que ele viu foi a de Josué orando
com a cabeça abaixada.
,.
Raabe se sentou no chão da tenda com Miriã para fazer ataduras.
Desde que o exército de Israel partira para Ai, ela cultivou o hábito
de visitar Miriã por longas horas do dia. A jovem, que já estava
acostumada com a difícil tarefa de aguardar a volta da guerra,
ensinou como Raabe poderia usar o tempo preparando-se para
receber os feridos. Logo do lado de fora do acampamento de Israel,
uma nova tenda havia sido montada para acomodar os jovens que
voltassem feridos da guerra. Raabe nunca duvidou da vitória de
Israel, e uma convicção do triunfo deles embasava todos os seus
pensamentos. Mas ela se arrepiava ao pensar que todas as
batalhas triunfantes também se mostravam fatais aos vitoriosos.
Aquele pensamento a paralisou com um medo que ela tentou
esconder de sua amiga. Raabe estava feliz por elas orarem juntas
frequentemente, e elas pediam pela proteção dos guerreiros de
Israel, pediam para Deus sustentá-los e também para que Salmom
voltasse seguro. As orações preservavam a sanidade dela.
Naquele momento, enquanto enrolava os curativos já lavados,
Raabe pensava em quantos homens ficariam feridos na batalha de
Ai, e em que tipo de cuidados eles receberiam depois que
voltassem. “Há médicos em Israel ou são as mulheres que cuidam
dos doentes?”, perguntou ela a Miriã.
“Temos vários médicos habilidosos. Zufe Ben Yudah é o mais
conhecido. Na verdade, ele partiu juntamente com os exércitos de
Josué há três dias, mas não como soldado, e sim como médico,
para tratar dos homens feridos o mais rápido possível. A rapidez
salva vidas. Ele ensinou a algumas mulheres, como eu, a se
preparar para cuidar dos feridos.”
“Como ele aprendeu o que sabe? Vocês peregrinaram por quase
quarenta anos no deserto. Como ele foi treinado?”
Miriã pegou um vaso de alabastro e começou a enchê-lo com mel.
“Nossos pais foram escravos no Egito, onde reside o grande
conhecimento da medicina. O pai de Zufe trabalhava desde
pequeno com um grande médico, que gostava dele e ensinou-lhe
algumas coisas. Os médicos egípcios guardam seus segredos a
sete chaves, mas, mesmo assim, aquele confiava em seu escravo.
Quando saímos do Egito, Judá levou seus conhecimentos consigo e
ensinou tudo o que sabia ao filho, Zufe.”
Antes que Raabe pudesse responder, a aba da tenda se abriu
bruscamente e Hanani entrou, esquecendo-se até mesmo de antes
anunciar sua presença às mulheres que lá estavam.
Raabe e Miriã se agitaram. Miriã falou com esforço: “Salmom?”
“Ele foi ferido e chama por você.”
“É grave?”
Os olhos de Hanani se encheram de lágrimas e ele olhou para
baixo. Miriã deixou um lamento escapar e caiu nos braços de
Raabe, que sentiu como se o lugar estivesse girando, mas forçou-se
a segurar Miriã, acalmando-a naquele primeiro momento de pânico.
Ela tentou esconder a própria reação esmagadora por trás de uma
máscara de condolência. Salmom, não!
Miriã se afastou dela e passou a mão trêmula pela testa.
“Desculpe-me, eu não quis ser tão covarde. Raabe você pode vir
comigo? Você pode me ajudar a cuidar dele.”
Raabe suspirou aliviada. Ela não teria suportado ficar longe dele
em um momento como aquele. Pelo menos, ela ficaria ao seu lado.
“Mas é claro”, respondeu ela .
Miriã apertou a mão dela. “Obrigada.” Que ironia, pensou Raabe.
O favor foi totalmente estendido a mim! Se ao menos Miriã
soubesse. Elas pegaram dois cestos e os encheram com os
alimentos que haviam preparado durante os últimos três dias.
Enquanto elas saíam da tenda, uma mulher gorda entrou
apressadamente.
“Miriã, eu acabei de ouvir as notícias! Graças a Deus nós
vencemos a batalha e esse sacrifício não foi em vão. Irei com você
e te ajudarei a cuidar dele. Fiquei sabendo que as feridas de guerra
são as que mais doem.”
“Diná!”, exclamou Miriã com os olhos arregalados.
“Venha, venha! O que você está esperando? O tempo é curto.
Provavelmente ele está morrendo enquanto falamos”, dizia a mulher
chamada Diná, gesticulando com os braços para cima e para baixo,
como um ganso agitado. Raabe cerrava os dentes à medida que as
palavras da mulher penetravam na confusão que se instalara em
sua mente. Aquelas palavras não eram tão reconfortantes.
“Hum, Diná, obrigada pela ajuda, mas, na verdade, eu pedi para
Raabe ir comigo”, Miriã falou já saindo da tenda.
“Quem?”
“Raabe. Desculpe-me se eu ainda não apresentei vocês. Como
você disse, o tempo é curto.”
“Você não pode estar falando sério! Você não pode levar esta
mulher para cuidar de Salmom em um momento como esse. Isso
é... vergonhoso! Além disso, eu sou prima dele e deveria estar ao
lado de Salmom.”
“Mas eu sou a irmã, sou eu quem decide quem vai estar ao lado
dele. E eu escolhi Raabe. Tenha um bom dia, Diná.” Segurando com
firmeza a mão de Raabe, Miriã a puxou para frente e seguiu Hanani
correndo.
,.
Zufe se esticou depois de examinar Salmom. “É uma ferida
hepática. A faca perfurou o fígado, quase o cortando em duas
partes”, disse ele olhando para Miriã por cima do ombro. “A perda
excessiva de sangue o fez ficar muito fraco, e ele está inconsciente
há horas.”
“Mas ele está vivo?”, perguntou Miriã com os lábios brancos. “Eu
não sei se é porque ele é teimoso ou por causa das orações de
Josué. Mas sim, ele está vivo.”
Raabe não conseguia tirar os olhos de Salmom. A pele dele
estava muito amarelada e fria por causa da hemorragia. Ele
permaneceu imóvel na esteira, laranja como uma abóbora e com
uma respiração tão fraca que Raabe mal conseguia ver seu peito nu
movimentando-se. Ataduras cobriam seu abdome; elas deviam estar
limpas, pois, dos lados, pareciam brancas e claras. Porém, em volta
da ferida, elas estavam cobertas pela cor escarlate do sangue. Ó
Senhor, não o leve. Não o leve. Não o leve. Aquela frase não saía
de sua cabeça. Ela ouvia as conversas ao seu redor, os gemidos de
outros homens feridos na tenda, as risadas discretas e aliviadas dos
que estavam feridos sem gravidade, as expressões reconfortantes
dos membros da família; Raabe ouviu tudo isso e compreendeu,
mas mesmo assim continuava pensando na frase. Não o leve. Não.
“Há cura para ele, Zufe?” A pergunta de Miriã fez os pensamentos
de Raabe se concentrarem penetrantemente.
Zufe fez um gesto com o rosto parecendo pensativo. “É provável
que não, mas não impossível. O fígado é um órgão que se
regenera. Se Salmom tiver um bom acompanhamento para prevenir
a infecção, ele terá chances de sobreviver.”
“Como?”
“Ele precisa de muitos cuidados dia e noite. As ataduras precisam
ser trocadas quatro vezes ao dia e duas à noite, pelo menos. Use
mel, muito mel. Eu suturei o corte e tomei cuidado para que os nós
ficassem virados para cima, para que a ferida não abra quando você
mudar as ataduras, mas tenha muito cuidado mesmo assim. Passe
óleo de oliva na linha para mantê-la macia. Seria bom se tivéssemos
vinho e incenso. Isso faria muito bem a ele.”
Raabe interviu. “Eu tenho os dois”, sussurrou ela. Zufe olhou para
ela. “E você é?”
“Esta é a Raabe”, informou Miriã.
“Ah, sim, de Jericó. Já ouvi falar. Você disse que tem vinho?” “E
incenso. Ficarei feliz em ajudar com o que tenho.”
Zufe fez um gesto de aprovação. “Bom. Isso vai ajudar bastante.
Mais tarde, eu mostrarei como vocês devem usar o vinho para
limpar a ferida antes de colocar as ataduras com mel.
Outra coisa importante para a qual devemos dar atenção é a
perda de sangue. Precisamos fazê-lo engolir algum líquido
constantemente. Pelo fato de o fígado ter sido prejudicado, não
podemos dar comidas gordurosas. Nada. Deem água de cevada
adoçada com mel ou um pouco de sopa, bem salgada. Tirem a
gordura de tudo antes de alimentá-lo. Enquanto ele estiver
inconsciente, vocês precisarão mexer o corpo dele sozinhas.
Conseguem fazer isso?”
As duas mulheres disseram que sim com a cabeça, pois estavam
assustadas demais para falar. Raabe correu até a tenda para pegar
o vinho e algumas especiarias. Apressadamente, com frases curtas,
ela explicou o acontecido à família enquanto colocava tudo em um
pacote. Depois de alguns instantes, ela achou o que estava
procurando: roupas, potes e ânfora estavam espalhados por todos
os cantos.
“Vá, vá”, exortou Izzie. “Eu arrumo isso.”
Raabe aceitou e saiu. Ela chegou na tenda dos feridos sem fôlego
e cheia de preocupação. Entregando o pacote a Zufe, ela se sentou
ao lado de Miriã, que permaneceu atenta ao lado da esteira de
Salmom.
Zufe bebericou uma pequena quantidade do vinho e o conteve na
boca antes de engolir. “Bom. E vi que o incenso é puro. Isso vai ser
muito útil. Agora, vou lhes ensinar a mudar as ataduras.”
Ele desamarrou as ataduras de Salmom e as retirou com muito
cuidado. Em alguns pontos, o sangue pisado estava agarrado à
sutura e ao pano. Nesses casos, ele desgrudava com movimentos
delicados, assegurando-se de que as extremidades da ferida
permaneceriam fechadas. A ferida estava coberta por uma densa
camada de mel. Zufe ergueu os olhos por um momento para se
certificar de que as duas mulheres estavam olhando. “O mel tira o
veneno da ferida e ajuda a curar infecções. Por isso é tão
importante trocar as ataduras com frequência.”
Em um vaso de madeira, ele misturou uma quantidade modesta
de incenso ao vinho e, mergulhando uma roupa limpa à mistura, ele
começou a limpar o mel da ferida. Enquanto ele removia grande
parte daquela pasta, Raabe viu que o pus amarelado saía de dentro
da parte vermelha, na ferida inflamada.
Zufe limpou aquilo com muito cuidado, mergulhando toda hora a
roupa na mistura de vinho. A mistura dos cheiros de sangue pisado
e sangue fresco, pus, vinho e das especiarias foi o bastante para
fazer Raabe se sentir enjoada, e ela quase não conseguiu conter
seus impulsos. Ela mal podia acreditar que aquele era Salmom, e
não podia acreditar que o homem saudável que apenas com um
olhar silenciava a multidão revoltosa estava deitado naquele
momento cheirando à supuração e decadência.
Miriã esticou uma das mãos e segurou os dedos de Raabe de
forma esmagadora. Sentindo a pressão, apesar da dor, Raabe
também segurou firme aquela mão macia. Juntas, elas observavam
o médico preparar uma nova atadura, coberta por uma fina camada
de mel selvagem, antes de colocá-la novamente em volta de
Salmom. O cuidado do médico não fez o paciente mover nenhum
músculo. Ele permaneceu imóvel e pálido, contido pela angústia da
inconsciência. Raabe pensou que era uma bênção o fato de ele não
ter consciência da própria agonia.
Zufe limpou as mãos ao mergulhá-las no resto da mistura de
vinho. “Certifiquem-se de limpar as mãos antes e depois de mexer
na ferida, assim como eu estou fazendo. Peguem o máximo de mel
que conseguirem. Por ele ser quem é, não tenho dúvida de que
cada família sob seu comando oferecerá provisões. Se sobreviver a
isso, terá de enfrentar uma jornada longa e árdua. E você também,
Miriã, enquanto cuidar dele. E entendam que não é uma questão de
dias, mas sim de semanas.”
Miriã afirmou com a cabeça. “Isso não importa. Eu cuidarei dele.”
“Você precisará de ajuda. Sua melhor amiga, Elizabete, não está
esperando um bebê? Ela e a mãe não poderão te ajudar, pois o
nascimento da criança está próximo.”
“Eu ajudo”, ofereceu Raabe. Ela ruborizou ao perceber que havia
se precipitado. “Quero dizer, se você quiser, Miriã. Eu já até aprendi
a trocar as ataduras.”
“Obrigada, Raabe. É claro que vou aceitar a sua ajuda.”
Capítulo
Dezesseis

S almom se sentiu sufocado. Mãos o puxavam para baixo e ele


tentava se soltar. Salivando, conseguiu abrir os olhos.
Primeiramente, a visão estava embaçada e turva. À medida que
clareava, ele viu o rosto de uma mulher diante dele. Raabe? Ele
piscou mais vezes e se deu conta de que sua cabeça estava no colo
dela. Onde ele estava?
“O quê?”, resmungou ele. Sua garganta parecia arranhada e ele
se esforçou para continuar acordado com uma tenacidade intensa.
“O que você está tentando fazer, me matar?”, perguntou ele
enquanto um outro dedo curioso o cutucou.
“Graças a Deus! Você está acordado! Você sabe quem eu sou?” A
voz parecia mais alta e mais aguda do que se lembrara. Ele levou a
mão fraca e trêmula até a têmpora enquanto a memória voltava.
“Você está pior do que eu imaginava se não conseguir se lembrar do
meu nome.”
Ela deu uma risada e, sutilmente, colocou a cabeça dele de volta
na esteira. Salmom teve uma sensação de perda enquanto ela se
afastava. “Eu vou chamar Miriã. Ela vai ficar tão aliviada.”
Ele viu a irmã se esticando em uma esteira perto da dele. Seu
rosto, tranquilo em descanso, parecia exausto. “Deixe-a dormir. Ela
está cuidando de mim há muito tempo?”
“Oito dias e noites. Eu a convenci a tirar um cochilo agora há
pouco. Raramente ela sai do seu lado para tirar pequenos cochilos.
É a primeira vez que você está acordado e é capaz de formular
frases. Todos estão muito preocupados com você.”
Salmom franziu a testa. Ele não se lembrava de ter acordado
antes daquele momento, e uma lembrança mais urgente tomou
conta de sua cabeça. “E a batalha?”
“Vitória esmagadora de Israel.”
Salmom fechou os olhos aliviado. Ele fora ferido pouco antes do
final da guerra ser definido. Ele abriu os olhos novamente e os fixou
em Raabe, perguntando-se o que ela estaria fazendo ali. Se não
estivesse enganado, e ele achava que não estaria, ele estava na
tenda dos feridos. O que fez a mais nova integrante da tribo ir para
um lugar como aquele?
“É melhor você terminar de tomar a sopa antes de eu trocar suas
roupas. Era por isso que você estava se sentindo sufocado. Eu
estava tentando te alimentar.”
“Você vai trocar minhas roupas?”
“A menos que você prefira que eu acorde Miriã para fazer isso.”
“É claro que não. Quero dizer, onde está Zufe? Por que ele não
pode fazer isso?”
Raabe se ajoelhou perto da cabeça dele para que ele pudesse vê-
la sem mexer muito o pescoço. Ela parecia pálida. “Porque suas
roupas precisam ser trocadas muitas vezes por dia, dia e noite, e
Zufe tem outros pacientes. Ele ensinou a Miriã e a mim, e até então
temos cuidado muito bem de você.”
“Miriã e você? Você tem cuidado de mim?”
Raabe encolheu os ombros e se virou para pegar uma vasilha.
“Você precisa beber isso, perdeu muito sangue, e precisamos
recuperar sua força para combater a infecção. Você teve febre por
muitos dias.”
Era natural que Miriã pedisse ajuda a Raabe. Salmom sabia que
sua irmã tinha muito afeto por ela, mas, com tantas outras mulheres
que eles conheciam, ela precisava escolher logo aquela? Pensar em
estar indefeso perto de Raabe fez Salmom tremer. Ao mesmo
tempo, ele admitiu que estava relutante em deixá-la partir. Ele não
queria que ela fosse embora. Salmom engoliu seu orgulho da
melhor maneira possível. “Não está velha, está?”
Ela sorriu. “Não, é sopa fresca. As mulheres de Judá brigaram
pelo privilégio de fazer sopa para você todos os dias. Esta foi feita
pela esposa de Micael, mãe de Judite, que fez essa refeição com as
próprias mãos perfumadas hoje de manhã.”
“Então me dê a vasilha.” “Eu não acho que...” “Dê a mim!”
“Eu sinto muito, mas não. Você ainda não pode segurá-la.
Você está muito fraco por causa da ferida.”
Salmom quase gritou mandando-a sair. Ele precisava de uma
mulher para lhe dizer que estava tão fraco quanto um recém-
nascido? Ele engoliu seu mau humor e se lembrou que sua irmã
estava exausta. Acordá-la com gritos não seria a melhor maneira de
agradecer pelos cuidados incessantes. Ele cravou em Raabe um
olhar penetrante como uma faca, prometendo que aquilo teria volta.
Ela empalideceu devido ao desprazer dele, mas se aproximou
mesmo assim e gentilmente levantou a cabeça dele, apoiando-a em
seu colo. A boca de Salmom estava seca e ele havia esquecido das
reclamações. Ela levou a vasilha até seus lábios e ele bebeu a
sopa, enquanto alguns pequenos pedaços acumulavam no lado da
boca. Ele não sentia gosto de nada. Enfurecido pelo fato de estar
debilitado e confuso por causa da aproximação estranha de Raabe
contra suas costas nuas, ele engolia a sopa ressentindo-se por sua
posição ridícula a cada gole. Ela limpou a boca e o queixo dele
como se faz com uma criança pequena, e depois o colocou deitado
na esteira novamente.
“Agora, seus curativos. Você está sentindo dor?” Sua voz parecia
rouca, e Salmom olhou para ela com um olhar desafiador. Aquela
proximidade aparentemente também afetava a ela, e ele fez um
gesto de satisfação com os olhos. Salmom esqueceu de responder,
e ela o deixou pensando enquanto pegava as coisas que iria usar.
Embora os movimentos de Raabe fossem os mais suaves
possíveis, na hora em que as ataduras antigas foram retiradas,
Salmom sentiu que o suor escorria pelo rosto. Ele levou a mão até a
testa, quando notou a cor de sua pele. “Por tudo que há de mais
sagrado, a luz está estranha nessa tenda. Você não acha que estou
com uma cor estranha?”
“É o seu fígado. Foi onde a faca perfurou. Zufe nos disse que o
fígado pode se regenerar. No entanto, vai levar algum tempo, e até
lá você ficará com essa cor amarelada. Mas, nesse momento,
precisamos nos preocupar com a infecção. Por isso trocamos as
ataduras e limpamos a ferida tantas vezes por dia. O mel tira o
veneno.”
“Onde você conseguiu tanto mel?”
“Acredito que todas as abelhas daqui até o Egito desmaiam
quando veem alguma mulher da tribo de Judá. Sua popularidade
impressionou até mesmo Josué, que ora por você duas vezes por
dia. Ele disse que, em vez disso, deveria orar pelas mulheres de
Israel.” Raabe falava em um tom suave, e os lábios se atenuavam
enquanto ela falava. Ela está com ciúmes, pensou ele, tentando não
sorrir. Salmom viu que estava sendo paparicado.
,.
Raabe acordou com o som de Miriã e Salmom conversando em
voz baixa. Depois de ter ficado sem dormir na noite anterior, ela se
entregou ao sono, totalmente exausta. Raabe ainda se sentia
cansada e não havia conseguido reunir forças para se mexer, nem
teve coragem de interromper aquele momento particular entre os
irmãos. Bem, não era tão particular assim, pois ela conseguia ouvir
cada palavra.
“Só vocês duas cuidam de mim? Vocês não podem achar outra
pessoa para ajudar?”, perguntou Salmom.
“Por favor. Há praticamente filas de candidatas fora da tenda, e
você sabe quem é a primeira? Diná.”
“Que os céus me defendam. Você a mandou embora, não
mandou?”
“Na verdade eu disse que, assim que acordasse, você iria se
casar com ela. Diná vem aqui de hora em hora para ver se você já
abriu os olhos.”
“Você não fez isso!” A voz de Salmom tinha um tom de verdadeiro
terror.
“É claro que eu não fiz.” Houve um momento de silêncio, e quando
Miriã voltou a falar, a voz dela parecia embargada pelo choro. “Eu
pensei que te perderia. Raabe estava comigo quando Hanani nos
deu a notícia, e percebi que, mesmo a conhecendo há pouco tempo,
ela tem me reconfortado bastante desde a sua partida. Zufe nos
ensinou a cuidar de você e ela aprendeu tudo como se fosse aluna
dele desde criança. Eu não sei o que seria de mim sem ela,
Salmom. Ela tem sido fiel como uma irmã, e quando minha cabeça
ficava confusa de tanta preocupação, ela me lembrava do que
deveria ser feito e me ajudava a fazê-lo. Eu até poderia pedir para
outras pessoas se juntarem a nós, mas quis ter privacidade
enquanto esperava pelo pior. Você se incomoda? Mas eu posso
pedir para ela ir embora, se sua presença te chateia tanto.”
Raabe prendeu a respiração. Oh, por que Raabe não os deixou
ver que estava acordada um pouco antes? Ela teria sido poupada
dessa rejeição difícil de suportar.
A resposta de Salmom surgiu de forma lenta. “Eu me incomodo
por estar doente, e não importa quem cuida de mim. Você não
precisa pedir para ela ir embora, e estou feliz por ela ser uma boa
amiga. E, assim como você, acho que prefiro o menor número de
pessoas reclamando comigo em um momento como este.”
“Bom. Agora, beba um pouco desta água de cevada. Zufe nos
disse que devemos te alimentar sempre que possível.”
“Eu posso me alimentar sozinho. Vocês duas vão me levar à
loucura se não me deixarem comer e me limpar, e fazer sei lá mais
o que vocês andam fazendo. Não aguento mais. E outra, traga
algum homem para me visitar antes que eu enlouqueça. Enquanto
estiverem aqui, eles podem me ajudar com minhas necessidades
pessoais de agora em diante. Não quero mulher alguma por perto
enquanto isso.”
Raabe achou que já havia esperado demais e mexeu na esteira,
fazendo barulho suficiente para avisar a Miriã e a Salmom que já
estava acordada. Ela se sentiu uma impostora. “Bom dia”, sussurrou
Raabe e saiu da tenda o mais rápido que pôde. As estrelas ainda
estavam no céu. Ela havia dormido por tanto tempo. Quando saiu da
tenda rapidamente, quase tropeçou em alguém que dormia: Hanani.
O chute acidental nas costas o fez acordar em um instante.
Hanani logo se levantou. “O quê? Aconteceu alguma coisa?”
Ela se abaixou ao lado dele. “Não, não, Hanani. Salmom está
acordado e quer ver os amigos. Ele ficaria feliz com uma visita sua.
Mas é melhor ser breve. Talvez Salmom não queira admitir, mas
precisa descansar.”
Hanani se levantou tão depressa que os pés se enrolaram no
cinturão. Raabe pôs a mão para firmá-lo pelo ombro. “Depois, vá
para casa descansar um pouco. Você está aqui desde quando veio
nos dar a notícia e nem foi para a tenda se trocar depois da guerra.”
Hanani mexeu a cabeça. “Por minha culpa, ele está aí”, disse ele.
Sua voz estava trêmula no momento em que ele empurrava a aba
da tenda para entrar. Os olhos de Raabe o seguiram por um
instante, e depois, suspirando, ela se virou. Raabe ouviu a história
da ferida de Salmom por Josué. Várias pessoas tentaram convencer
Hanani de que ele não tinha culpa, e dentre elas estavam Josué e
Ezra, mas o jovem não os ouvia. Ele ficou fazendo vigília do lado de
fora da tenda dos feridos, se privando até mesmo de comer. Raabe
mexeu a cabeça e andou para um pouco mais longe, até chegar a
um riacho. Ajoelhando-se, ela se lavou até onde o recato permitia
em um lugar público. No calor da noite, a água fria refrescava e
acalmava. Raabe não teve mais tempo para pensar desde que
começou a cuidar de Salmom. Agora que o perigo da morte parecia
ter passado, uma torrente repentina de lágrimas a dominou. Ela
liberou a tensão em soluços silenciosos. Ele não morreria. Ele não
morreria. Ela tentou evitar pensar no motivo pelo qual a vida e o
bem-estar daquele homem tinham tanto valor para ela. O alívio
invadiu seu ser e a acalmou.
Quando Raabe voltou para a tenda, tanto Salmom quanto Hanani
estavam dormindo, ressonando com suspiros leves e tranquilos.
Miriã sorriu. “Tenho certeza de que o pior já passou”, disse ela.
“Sim, eu também. A febre baixou e Zufe deve chegar logo para
confirmar nossas esperanças; está quase amanhecendo.”
“O desafio agora é forçar meu irmão a descansar. Ele é
extremamente teimoso, e eu não tenho coragem de lhe dizer por
quanto tempo a recuperação se estenderá. Salmom vai ficar louco
quando perceber que, na semana que vem, será o único aqui.” Miriã
riu pensando na situação. “Você já viu que ele faz da nossa vida um
caos com tantas reclamações, não viu?” Em seguida, ela irrompeu
em lágrimas e seu corpo inteiro tremeu.
Raabe, que havia desabado minutos antes, envolveu a amiga em
um abraço apertado. “Ele é uma criança grande!” Miriã retomou o
fôlego quando parou de chorar, e Raabe a soltou, dando um passo
atrás. Ela não podia fazer nada a não ser concordar plenamente.
Ela recolhera ataduras usadas e louças sujas para lavar. Zufe
entrou quando Raabe saiu, e ela fez uma pequena reverência a ele.
Hábitos enraizados, pensou ela, acabam se afirmando de alguma
forma. Apesar de se sentir mais à vontade em meio aos israelitas,
ela manteve um pouco de formalidade em seu comportamento. Zufe
lhe respondeu com um sorriso e mexeu a cabeça agradecendo
antes de entrar para visitar os pacientes.
Raabe demorou com a tarefa a fim de dar mais tempo para Miriã
ficar a sós com o médico. Na verdade, ela precisava de um tempo
para ficar sozinha. Durante nove anos, Raabe tivera uma vida
bastante solitária e desfrutava de muitos momentos de privacidade.
Porém, nas últimas sete semanas, ela havia quase se esquecido do
significado da palavra, pois havia pessoas em todos os lugares.
Raabe mal tinha tempo para ficar sozinha com seus pensamentos, e
uma grande exaustão tomou conta dela. Quando foi a última vez
que dormira durante a noite?
Ela estendeu as ataduras limpas em alguns galhos para que
secassem, e depois entrou novamente na tenda. Zufe já tinha
examinado Salmom e saído. Miriã estava ajoelhada perto dele, com
o rosto relaxado de uma forma que Raabe não via há dias. Ela deu
um longo suspiro de alívio. “Boas notícias?”, perguntou enquanto se
ajeitava perto da amiga.
Miriã fez que sim com a cabeça. “A infecção parece ter diminuído,
mas ainda precisamos ficar atentas. As infecções podem sempre
acontecer, disse ele, enquanto a ferida estiver aberta. Mas, por
enquanto, o perigo maior já passou. Temos que mantê-lo sossegado
e bem alimentado. Ele pode receber visitas agora, graças a Deus.
Isso vai fazê-lo se distrair. Ele ainda não pode se levantar ou andar.
Pelo menos não dentro de uma semana. Zufe disse que a
recuperação de Salmom foi um milagre, e que agora há uma grande
chance de ele ficar completamente curado e de retomar sua vida
normal.”
Raabe fechou os olhos por um instante. As duas sofriam, sem
ousar falar uma para a outra sobre a possibilidade de Salmom não
recuperar nunca mais a saúde e o vigor. Seria uma grande perda
para tal homem, e talvez fosse insuportável. Abrindo os olhos, ela
sorriu para Miriã. “Que notícias maravilhosas! Acho que devemos
comemorar. Você vai tomar um café da manhã adequado preparado
por mim e depois vai dormir por muitas horas, antes que também
fique doente. Não quero cuidar de mais um.”
“Mas e você? Você está tão exausta quanto eu.”
“Eu durmo quando você acordar. Agora, vejamos o que as boas
moças de Judá trouxeram para comermos.” Raabe viu que havia
farinha e óleo de oliva, e fez pães frescos, servindo-os com queijo,
nozes e alguns bolos. As duas comeram até satisfazerem seus
apetites e voltaram com as notícias encorajadoras de Zufe.
Hanani dormiu na esteira ao lado de Salmom, e elas não tiveram
coragem de acordá-lo, então Raabe separou um espaço para Miriã
dormir, na parte de trás da tenda. Ela conseguiu encontrar um
travesseiro novo e um lençol dentre as muitas coisas que as
pessoas no acampamento levavam para elas. De uma das sacolas,
levada por Izzie no dia anterior, ela tirou um frasco de água de
rosas. Com um sorriso, derramou algumas gotas no travesseiro a
fim de que Miriã ficasse em meio à beleza por algumas horas em
vez de sentir cheiro de doença. Por estar muito cansado física e
emocionalmente, Miriã aceitou a proposta de dormir sem se impor,
enquanto Raabe ficaria acordada, e caiu no sono antes mesmo de a
cabeça se recostar no travesseiro.
Raabe voltou para ficar com Salmom. Ela torceu o nariz quando
um cheiro estranho a acometeu. Realmente ela precisava insistir
para que Hanani fosse se lavar e se santificar assim que acordasse.
Como se estivesse ouvindo, ele abriu os olhos e se esticou. “Como
Salmom está?”, sussurrou Hanani.
“Muito bem. Zufe disse a Miriã que ele vai se recuperar e correr
por aí como nunca antes. Precisamos continuar cuidando dele como
temos feito, e nem tão cedo podemos deixar que ele se levante.”
Um sorriso surgiu lentamente no rosto de Hanani. “Não se
preocupe. Eu mesmo posso amarrá-lo.”
“Mas antes de chegar mais perto dele, você deveria pensar em se
lavar, se puder. Vestir roupas limpas também vai melhorar sua
aparência. Com isso, você faz bem até mesmo para o doente.”
Hanani coçou o peito. “Eu esqueci porque não quis sair do lado
dele, mas você está certa. É melhor eu me lavar. Voltarei logo.”
“Bom. Traga Ezra e alguns dos amigos menos desordeiros dele.
Agora ele pode receber visitas, mas peça para eles se
comportarem. Salmom ainda está muito doente, embora não aceite
isso.”
Hanani olhou para si mesmo, ou pelo menos para a versão suja
de si mesmo, enquanto saía da tenda mais animado. Curvando-se
sobre Salmom, Raabe mudou o lençol sobre o qual ele estava
deitado e verificou suas roupas. Era hora de trocá-las. Ela pegou o
que precisava e começou a remover as ataduras. O sangramento
havia parado e, embora ainda supurada, a infecção havia diminuído
consideravelmente. Raabe não se sentia mais enjoada ao ver ou ao
sentir o cheiro daquilo; ela se acostumara com a rotina de limpar,
purificar, lavar, passar óleo e bálsamo e fazer curativos no ferimento,
como se aquilo fosse uma parte comum do seu dia. Algumas vezes
ela visitava os outros homens que estavam na tenda e, juntamente
com Miriã, ajudava os familiares a cuidar deles. Raabe passou a
gostar da sensação de ser útil ao tratar dos doentes.
Salmom dormia enquanto ela preparava tudo, fazendo um novo
emplastro de mel e, com movimentos experientes, passando-o nele.
Ela decidiu limpar a pele dele a fim de remover os últimos vestígios
de febre e, mergulhando uma roupa limpa em uma mistura de água
gelada e vinho, Raabe começou a limpar seu abdome com
movimentos muito suaves, para não acordá-lo. Ela limpou os pés,
as mãos e a testa por último, que, segundo aprendera com Zufe,
absorve o calor mais rapidamente do que qualquer outra parte do
corpo.
Depois que terminou, Raabe enxaguou as mãos na água e no
vinho, e inclinou-se por um momento. Ela havia separado os panos
sujos e tentou motivar a si mesma a ir lavá-los, mas não conseguiu
reunir forças para isso. Sua cabeça abaixou enquanto lembrava da
próxima tarefa — esquentar sopa para Salmom e tentar alimentá-lo
sem mexer muito ou acordá-lo — uma tarefa impossível.
Um toque macio em sua mão a fez erguer os olhos. Os olhos de
Salmom penetraram seu olhar. “Você parece acabada”, disse ele
com a voz pesada pela sonolência.
Ela mexeu a cabeça e sorriu. “Fico feliz por você estar acordado.
Eu já estava pensando em como dar a sopa sem te acordar
novamente.”
“Obrigado por tudo que você tem feito.”
O olhar penetrante a fez pensar em si mesma. Raabe se deu
conta de que, há dias, não havia tido a chance de trocar de roupa.
Ela estava toda amarrotada e despenteada, pouco atraente sob um
olhar mais atencioso.
“Foi bom quando você se juntou a Israel”, disse ele em meio ao
silêncio.
“O quê?”, perguntou ela com o queixo quase caindo. Raabe
esqueceu de pensar sobre a aparência para prestar atenção no que
ele dizia. Ela não podia estar ouvindo bem. Aquelas palavras não
poderiam ser de Salmom. “O quê?”, perguntou ela mais uma vez.
Sua boca se amaciou, fazendo surgir um sorriso relaxado. “Vi que
você desistiu de repetir o que eu falo. Agora você repete suas
próprias palavras.”
Capítulo
Dezessete

D epois de dezoito dias difíceis de inatividade, Salmom se


levantou da esteira por tempo suficiente para dar alguns
passos cambaleantes em volta da tenda. As pernas tremiam
enquanto ele se movia, mas suportavam seu peso, e por isso ele
agradecia a Deus. Muitos amigos tentaram animá-lo depois que
Zufe permitiu que ele recebesse visitas, mas, pelo fato de sua força
não estar com o mesmo vigor de antes, ele dormia no meio das
conversas, como uma senhora idosa. Zufe avisou que demoraria
semanas até ele se sentir como antes. Josué zombava da
impaciência de Salmom e disse que ele deveria agradecer por estar
vivo e por Deus ter restaurado sua saúde. Ele sabia que isso era
verdade, ainda que não ajudasse a diminuir a impaciência que o
atormentava quando ele tinha de depender de ajuda sempre que
comia, se sentava ou fazia as necessidades.
Além da enfermidade horrível, a dor o acometia a toda hora. Por
dentro do corpo, os cortes na pele, nos músculos e nos órgãos vitais
doíam com uma intensidade que o fazia prender a respiração à
medida que se movia.
Raabe e Miriã sorriam quando ele reclamava delas, mas não se
ofendiam. Salmom estava agradecido pelos cuidados incessantes.
Elas sabiam lidar com o mau humor dele, e isso ajudava deixá-lo
mais calmo. As duas não queriam fazê-lo se sentir culpado por
nada. Com Miriã, com quem ele convivera desde a infância, Salmom
sentia um nível de conforto estabelecido pela longa familiaridade.
Por outro lado, sua intimidade forçada com Raabe fez surgir um
conforto parecido. Ele gostava de tê-la por perto, pois ela não era
intrometida ou desajeitada e exigente. Raabe o acalmava sem ter a
intenção de fazer isso, e ele gostava de conversar com ela. Muitas
vezes, Salmom se surpreendia com suas percepções. Na noite
anterior, por exemplo, ela contou para ele como viveu a Páscoa
durante o cerco a Jericó, e ele perguntou o que ela queria dizer com
aquilo.
“Hanani e Ezra me disseram que, no Egito, o faraó não queria
deixar o povo partir”, explicou ela. “Por isso, o Senhor fez recair
praga após praga sobre o povo do Egito e, por fim, a morte veio
sobre todos os primogênitos da Terra. Eles me disseram que,
naquele dia, o povo de Israel recebeu instruções para ficar em casa
com as portas fechadas e com a marca do sangue de um cordeiro
por cima e pelos lados da porta. Quando o Senhor enviou o
destruidor para que este fosse até a terra devastar os egípcios, ele
passou direto pelas casas de Israel por causa daquele sinal.
Minha família e eu estávamos em Jericó quando Deus fez recair a
destruição e a morte por sobre nossa nação, e nós também fomos
instruídos a ficar em casa. Nós não fizemos sacrifício algum nem
pertencíamos a Israel, mas Deus escolheu uma corda escarlate, da
cor do sangue, para ficar pendurada na minha porta como um sinal
que nos preservaria da morte. Trancada em minha casa e rodeada
pela morte, embora sendo poupada dela, eu senti um pouco do que
os pais e mães de Israel devem ter sentido — que somente Deus
segurava as vidas na palma de Sua mão.
Salmom ficava maravilhado com o entendimento intuitivo que
Raabe tinha sobre os caminhos de Deus. Suas conversas muitas
vezes revigoravam a monotonia que o circundava, e ele também
gostava da habilidade de Raabe ficar quieta e ouvir. Embora
soubesse que era uma decisão egoísta, Salmom não quis insistir
que as duas chamassem outras mulheres para ajudar com os
cuidados. Ele preferia poucas companhias e se mostrava relutante
ao expor suas fraquezas para qualquer pessoa que pudesse irritá-lo
depois com tagarelices desnecessárias.
Seu mundo, geralmente muito amplo e abrangente, havia se
reduzido ao espaço de uma tenda. Quando deu os primeiros passos
para fora da tenda e viu o sol, no vigésimo dia do confinamento, ele
quase chorou de alívio. Seus amigos fizeram uma cadeira especial,
confortável, porém firme, na qual ele se sentava e se levantava com
mais facilidade. Aconchegado nela, recebia suas visitas.
Apesar das muitas pessoas que o rodeavam e exigiam a atenção
dele, Salmom se deu conta de que não via Raabe há horas. Ele
pediu que Miriã lhe trouxesse água e perguntou no ouvido dela:
“Onde está Raabe?”
Ela se esticou e cruzou os braços. “Com esse monte de
admiradoras, você não pode perder uma?”
Salmom franziu as sobrancelhas. “Onde ela está?”, insistiu ele
sentindo um enjoo no estômago. A ausência dela o desgastava mais
do que gostaria de admitir.
“Na tenda das mulheres.”
“Ah! Ela vai demorar muito?”, perguntou ele, incomodado com a
decepção de sua ausência.
Miriã revirou os olhos. “Vai demorar o quanto for preciso.” Ela
brincou mexendo na unha. “Não se preocupe. Abigail está chegando
para me ajudar. Ela pode fazer isso agora que suas necessidades
são mais simples.”
Salmom virou a cabeça agoniado. O que tinha a ver Abigail com
seus cuidados? Ele queria Raabe, e engoliu em seco aquele
pensamento. Ele sentia falta dela e a queria de volta. Com uma cara
feia, se jogou na cadeira e ignorou aquele assunto que dizia respeito
diretamente a ele. O único benefício de ficar doente era que as
pessoas fingiam não notar que ele estava sendo grosseiro. À noite,
Josué ia visitá-lo, conforme havia feito durante toda a recuperação
de Salmom — uma honra e tanto, se considerarmos a lista de
responsabilidades intermináveis de Josué. Ele sempre dava um jeito
de aparecer depois que as outras visitas já tinham ido embora, e a
tenda dos feridos, vazia de todos os pacientes, exceto Salmom,
ficava reduzida a quatro ou cinco pessoas. Josué havia estabelecido
uma rotina de momentos particulares com Salmom, seguidos por
orações. Muitas vezes, Josué chamava Miriã e Raabe para se juntar
a ele nas orações.
Salmom estava coberto na esteira quando Josué chegou. O dia lá
fora o havia cansado mais do que ele imaginava, e Salmom se
deitou sobre a roupa de cama feita de plumas, sentindo-se inerte e
inútil.
“Ouvi dizer que metade de Israel veio te visitar hoje”, comentou
Josué enquanto se ajeitava no chão, perto de Salmom. “Pelo
menos, eu os fiz beijar meu anel e se curvar a mim
respeitosamente.”
Josué ignorou e olhou em volta. “Vamos orar. Onde está Raabe?”
“Na tenda das mulheres.” Salmom não conseguiu ocultar o
ressentimento em seu tom de voz.
“Ela não fez isso por mal”, disse Josué com um tom de brincadeira
em sua voz. “São os planos de Deus.”
“Eu falei alguma coisa?”, repreendeu Salmom. “Não sou tão
egoísta assim.”
“Tem certeza?”, perguntou Josué e gargalhou. “Que bom que
alguém aqui está se divertindo.”
“E o que você vai fazer quanto a isso?”, perguntou Josué com
uma seriedade repentina e sem o sorriso no rosto, parecendo ter
algum intento.
Salmom escolheu se fazer de desentendido. “Fazer o que sobre o
quê? Como você disse, são os planos de Deus”, afirmou ele.
Josué lançou um olhar austero a Salmom. “Sobre os seus
sentimentos por Raabe. Eles também fazem parte dos planos de
Deus?”, perguntou ele.
Salmom virou a cabeça. Ele pensou na ideia de desmentir a
alegação de Josué, mas concluiu que seria perda de tempo. Josué
não era um homem que desistia ou mudava de ideia com facilidade,
e Salmom tinha duas opções: recusar-se a falar sobre o assunto ou
desabafar com o homem que respeitava acima de qualquer outro.
Ele respirou fundo e disse: “Não sei o que fazer”.
“Você a ama?”
Salmom fugia daquela pergunta como as ovelhas fogem dos leões
da montanha. Mas, mesmo assim, elas sempre eram apanhadas no
final. Poderia ele amar uma prostituta de Canaã? Poderia isso poluir
a descendência de Judá? E, ainda assim, a mulher que ele passara
a conhecer, a amiga fiel que colocava os outros antes de si mesma,
falava a verdade e mostrava bondade mesmo sob pressão e
provocações, a mulher cuja ternura salvara sua vida não se parecia
em nada com a zonah que ele imaginava. Seu pensamento ficou
turvo quando ele opôs essas questões — quem Raabe era e o que
Raabe havia feito.
Ele mexeu a cabeça. “Eu não sei, Josué. Estou confuso.”
“A confusão não faz parte dos planos de Deus. Você deve olhar
para o seu coração e encontrar a razão disso. Deixe-me dizer uma
coisa. Se achar que a ama, eu te apoiarei caso queira a escolher
como esposa. Eu a admiro, Salmom, e, como eu disse desde o
começo, o próprio Deus a trouxe até nós. Portanto, você tem a
minha bênção. Mas apenas se amá-la de verdade. Vocês dois não
merecem menos do que isso.”
Salmom olhou para Josué sem acreditar. O líder de Israel acabara
mesmo de lhe dar permissão para casar-se com uma mulher
cananeia que ganhara a vida entretendo homens na cama?
,.
Uma semana depois, Raabe voltou à tenda dos feridos usando um
vestido azul-claro de linho com uma expressão fechada. Ela evitou o
olhar de Salmom quando passou pela fila de amigos reunidos do
lado de fora da tenda e entrou diretamente para procurar por Miriã.
Salmom precisou lutar contra o impulso de levantar-se e segui-la.
Por que ela não o cumprimentara? Por que ela parecia tão distante?
Depois do que pareceu ser um momento interminável, Salmom deu
uma desculpa, levantou-se da cadeira e saiu da tenda. Raabe já
estava ajudando Miriã ao ouvir as notícias sobre a semana anterior.
Salmom ficou tonto e seus passos pareciam os de um homem velho
que sofria com hérnia.
Ele ficou diante de Raabe enquanto ela estava ajoelhada no chão
pegando ataduras limpas. Seu coração bateu mais forte ao vê-la.
“Bem-vinda”, disse ele.
“Obrigada.” Ela ergueu os olhos e os abaixou novamente. “Você
parece melhor. Menos amarelado.”
“Você parece pálida. Não gostou da tenda das mulheres? Ouvi
dizer que é um bom lugar para se passar a semana.”
Ela ruborizou. A princípio, ele achou que a tivesse envergonhado.
As cananeias não falavam sobre essas coisas abertamente?
Depois, uma nova suspeita o fez franzir a testa. “Elas maltrataram
você? Alguém te ofendeu?”
Raabe mexeu a mão no ar. “Não foi nada.”
Salmom deixou escapar um suspiro irritado. “Como nada? O que
aconteceu? Diga.”
“Por favor, Salmom, esqueça. Eu não quero falar sobre isso.” Sua
voz estava mais baixa e parecia vulnerável. Salmom queria explodir
de irritação. Ele não poderia forçá-la a falar e nem poderia obrigar
as mulheres de Israel a respeitar a mulher que mostrou lealdade
total à sua nação. Ele também não podia forçar seu corpo ferido a
curvar-se para consolá-la. Com um resmungo abafado, ele se virou
e foi até o outro lado da tenda.
Miriã foi até ele e colocou a mão no braço de Salmom para
acalmá-lo. “Isso é ridículo”, reclamou ele em voz baixa.
“Talvez isso seja, em parte, culpa minha. Abi me disse que
algumas mulheres se sentiram rejeitadas porque eu escolhi apenas
Raabe para me ajudar a cuidar de você. Elas não ficarão contra mim
ou contra você, é claro. Mas elas a estão culpando por se intrometer
em nossas vidas e duvidam de sua sinceridade.” “E ela precisa
sofrer por causa de sua bondade para conosco?” “Salmom, você
não pode fazer nada em relação a isso, senão vai apenas piorar as
coisas. Você precisa acreditar que Deus irá defendê-la.”
Salmom cruzou os braços e levantou o queixo. “Você quer que eu
me sente sem fazer nada enquanto as mulheres de Israel
atormentam Raabe porque ela foi bondosa comigo?”
“Eu quero que você confie em Deus. Entregue nas mãos dele.”
Salmom fez um som irritado em sua garganta e saiu.
,.
Raabe andou sem destino, afastando-se muito mais da tenda dos
feridos do que gostaria. Ela queria apenas ficar fora por alguns
momentos tranquilos e ao ar livre. Miriã, Salmom e até mesmo
Abigail haviam evitado de todas as formas falar sobre os sete dias
na tenda das mulheres, fazendo isso tão bem que a deixavam muito
distraída. Eles a tratavam como se qualquer palavra errada fosse
fazê-la desmoronar, e ela queria esquecer os sete dias horríveis que
passara naquela tenda idiota. Raabe queria fingir que ninguém lhe
havia desprezado ou escarnecido. Ela queria seguir em frente e não
precisava de nenhum tratamento especial nem da piedade alheia.
Aquele pensamento a irritou e seus pés ficaram mais velozes.
Naquele momento, o som do choro de uma criança a fez parar de
repente. Ela olhou à sua volta e viu que se afastou muito do
acampamento, e já estava no deserto. Teria ela ouvido bem? O que
uma criança estaria fazendo ali, no meio do nada? Deve ter sido um
animal. Ela se esticou. Uma sensação desconfortável tomou conta
de sua pele e ela se virou para voltar. Raabe ouviu o choro
novamente. Ela não estava enganada; era uma criança. Uma
criança assustada. Raabe seguiu em direção ao som.
“Tem alguém aí?”
Um gemido cortou o ar fazendo suas costas se arrepiarem. Era o
som do medo e Raabe começou a correr com um pânico
aterrorizante que lhe dava mais velocidade. “Eu estou indo, aguente
firme. Estou chegando.” Onde estava a criança? E o que a
assustava tanto?
Ela quase passou direto por uma pedreira quando um ponto
colorido no topo chamou sua atenção. Voltando, ela começou a
subir. No meio da subida, Raabe viu a cabeça da criança — uma
garotinha com grandes cachos estava imprensada em uma fenda
das pedras. Pelas roupas, era possível saber que a criança era
israelita. De onde Raabe estava, ela só conseguia ver as costas da
menina, que não parecia ter mais do que três ou quatro anos.
“Não tenha medo, querida. Estou aqui agora.” A menina não se
moveu nem mexeu a cabeça para ver de quem era aquela voz.
Raabe achou aquilo estranho, pois uma criança assustada
certamente responderia quando um adulto se aproximasse. O que a
mantinha grudada naquele ponto, imóvel e com as costas rígidas?
Mais um passo, pensou Raabe, e eu consigo alcançá-la. Raabe
colocou o pé em um ponto firme, se esticou para a frente e gelou.
Muito perto da menina, havia uma cobra venenosa, típica do
deserto, cujo veneno poderia matar em menos de uma hora.
Raabe engoliu em seco com o coração na boca. Ela não tinha
nenhuma arma adequada, mas, mesmo se tivesse, ficaria
paralisada pelo medo. Cobras a apavoravam. Ela fechou os olhos
ciente de que tinha pouco tempo. “Deus Todo-poderoso. Tu fizeste
esta cobra. Faça-a ir embora.” Ela olhou discretamente e percebeu
que a víbora permaneceu parada no mesmo lugar, com a língua
entrando e saindo da boca. Sua pele era da mesma cor que a areia,
e ela não era muito grande nem espessa, mas tinha veneno
suficiente para derrubar um homem adulto e seu camelo. Ah, por
que Tu não a fazes ir embora? Ouça o meu clamor, por favor! Eu
não posso fazer isso.
A cobra se moveu aproximando-se.
Raabe murmurou. “Tu queres que eu mate esta coisa, Senhor?”,
sussurrou ela. “Então, mostre-me como. Ajude-nos!” Pelo canto dos
olhos, ela viu uma pedra lisa, oval e pesada, que estava perto de
sua mão. Com cuidado, ela tirou a mão do apoio e pegou a pedra,
mantendo os olhos o tempo todo na cobra, que a ignorou e
permaneceu rígida e alerta em frente à menina.
“Querida, você vai ficar bem”, disse Raabe. “Eu vou me livrar
dessa cobra e depois desceremos daqui juntas para encontrar sua
mãe. Tudo bem?” A criança mexeu a cabeça com um movimento
cuidadoso e olhou para Raabe. Os olhos castanhos estavam
arregalados por causa do medo, e ela ficou bastante tranquila diante
da criança. Raabe fez um gesto para ela com a cabeça, tentando
sorrir com a pedra na mão. Ela relaxou pensativa, e sabia que tinha
apenas uma chance. Apenas uma.
Senhor, sei que tenho uma mira horrível, mas, por favor, melhore-
a. Mova a minha mão e mova esta pedra. Salve esta garotinha do
mal. Ela tirou o suor dos olhos, mordeu os lábios e mirou o alvo.
Raabe lançou a pedra, que deu um baque forte na cabeça da cobra.
Por uma fração de segundo, a cobra permaneceu parada, mexendo-
se depois. Ela ainda estava viva! Ferida, sangrando, furiosa e viva.
Raabe gritou na mesma hora em que envolveu a menina em seus
braços e a puxou para cima. A cobra se virou para onde a menina
estava com a boca aberta, escarlate e venenosa. Os dentes
atingiram o sapato da menina com uma força incrível, mas o sapato
estava vazio. Ele havia caído quando Raabe puxou a criança. A
cobra, desorientada por causa do ferimento, desperdiçou o tempo
mordendo o sapato vazio até que seus sentidos detectaram a
menina suspensa pelas mãos de Raabe. Ela desistiu do sapato de
lona e atacou novamente, mas dessa vez o pé da criança. Raabe se
apoiou apressadamente apenas com uma das mãos do outro lado
da pedra, segurando a menina com o outro braço. Por pouco, os
dentes não acertaram o pé da criança, e Raabe desceu com mais
pressa do que cuidado, arranhando o corpo e os dedos.
Ela continuou correndo depois que chegou no chão, a menininha
se agarrava a ela com a força de um adulto. As pernas de Raabe se
moviam mesmo quando seus pulmões pareciam explodir de dor. Ela
sabia que a cobra havia ficado para trás, mas ainda assim um medo
irracional resvalava por todo lugar, caçando-a, pronto para picá-la a
cada passo, a fez continuar em frente. Finalmente ela parou, sem
fôlego e fazendo quase o dobro do esforço para absorver o ar em
sua boca seca. Raabe colocou a garotinha no chão depois de
verificar que não havia cobra alguma enrolada por perto.
“Você está bem?”, perguntou ela tentando parecer calma.
A garotinha fez que sim com a cabeça e irrompeu em um choro
lamurioso e barulhento. Raabe a abraçou: “Eu sei, eu sei, foi tudo
muito assustador. Você teve muita coragem. Qual é o seu nome? O
meu é Raabe. E o seu?”
“A... A... Ana.”
“Ana, vou contar para todo mundo que você foi muito corajosa.
Mas, antes, vou te levar até os meus amigos Miriã e Salmom. Eles
irão me ajudar a encontrar seus pais. O que você estava fazendo
naquelas pedras no meio do nada, Ana? Você se perdeu?”
A pequena menina franziu os lábios e afirmou com a cabeça. “Eu
saí sozinha. Isso foi errado, não foi?”
Raabe sorriu. “Um pouquinho.”
A areia estava muito quente para o pé descalço de Ana, então ela
teve de ser carregada pelo restante do caminho. Pegando a menina
no colo mais uma vez, Raabe a levantou carregando a menina em
um dos braços. “Seus pais devem estar muito preocupados. Vamos
encontrá-los.”
Raabe levou Ana para a tenda dos feridos na esperança de que
Salmom ou Miriã pudesse encontrar os pais dela. Como sempre,
Salmom tinha muitas visitas. As conversas pararam de repente
quando Raabe se aproximou com Ana no colo. Ela se deu conta de
que não estava muito apresentável; suas roupas estavam
desgrenhadas, as mãos arranhadas e sangrando, e ela ainda
segurava uma menina da Judeia que usava apenas um sapato.
Salmom se levantou da cadeira com um movimento impensado.
“O que aconteceu?”
Raabe resmungou. “Ana estava perdida e eu a encontrei enquanto
fui dar uma volta.”
“Raabe me salvou da cobra”, afirmou Ana agitando-se para sair
dos braços da mulher que a salvara.
“Salvou de quê?”
“Uma cobra horrível ficou na minha frente durante muito tempo,
até que Raabe chegou e acertou uma pedra nela. Depois, nós
corremos muito. A Raabe corre bem rápido.”
Salmom se virou para Raabe. “Que tipo de cobra? Você salvou a
vida desta criança?”
Todos os olhos se viraram para Raabe, e ela ruborizou com
aquela atenção. “Os pais dela devem estar preocupados. Talvez
devêssemos procurá-los.”
Um jovem se manifestou. “Eu conheço a família dela. Vou buscá-
los agora mesmo.”
Miriã levou água para as duas e deu um pedaço de bolo para a
menina. Ao ver as palmas das mãos da amiga machucadas, ela foi
cuidar das feridas. Raabe, exausta por causa da provação física e
emocional, preferia desaparecer dentro da tenda, mas todos
insistiram para ouvir toda a história daquela aventura. A fim de
apaziguar o oceano de curiosidade, ela resumiu os acontecimentos,
pontuados pelas explicações mais detalhadas e animadas de Ana.
A uma certa distância, o som do choro de uma mulher interrompeu
a conversa. Aparecendo em meio à cena, uma mulher que chorava
e seu companheiro pálido, que estava de braço dado com ela,
correram por entre a multidão. “Minha Ana!”, a mulher chorava.
“Onde está a minha filha?”
Ana largou o bolo e foi correndo para os braços da mãe. O pai, a
mãe e a filha se uniram tornando-se apenas um, e as lágrimas e
risadas se misturavam. Raabe recuou endurecida, como se
conhecesse a mulher. Então, aquela era a mãe de Ana. Elisabete
fora uma das que mais atormentaram Raabe na tenda das
mulheres, e Raabe começou a se afastar conforme era possível.
Para ela, aquela não seria uma reunião agradável, mas sim algo a
ser evitado a qualquer custo. Logo antes de ela conseguir
desaparecer por dentro da tenda, alguém contou para os pais da
criança uma versão resumida das aventuras de Ana. “Raabe salvou
sua Ana”, disse um dos amigos de Salmom. “Ela está logo ali, e,
sem ela, sua filha teria morrido.”
Elisabete se virou como se estivesse sonhando. Uma gama de
expressões surgiu em sua face: espanto; incredulidade; orgulho
ferido. Raabe se enrijeceu e tentou impor aos seus traços uma
máscara de suavidade.
“Você salvou a vida de Ana?” Um tom de acusação salpicava as
palavras de Elisabete. Sem dúvida, ela havia entendido que Raabe
inventara a história.
Ana, sem saber de nada sobre aquela torrente implícita de
emoções, respondeu: “Sim, mamãe, ela me salvou. Ela jogou uma
pedra naquela cobra feiosa. Eu fiquei muito assustada, mas Raabe
me encontrou. Olha, eu perdi meu sapato.”
Elisabete baixou os olhos para ver a filha. Por mais que pudesse
duvidar da história de Raabe, ela não poderia negar o testemunho
da própria filha. Depois de um momento estranho de silêncio, ela
disse: “Obrigada”. Seu rosto estava inflexível.
“Espere um pouco”, disse Miriã dando um passo à frente. “Eu
posso saber se você esteve na tenda das mulheres com Raabe
semana passada?” Raabe se virou desconcertada a fim de olhar
para a amiga. Miriã deveria ter desconfiado do motivo por trás da
frieza de Elisabete.
“O que tem isso?”, perguntou Elisabete com um tom grosseiro.
“Parece coincidência, você não acha? Deus deve tê-la colocado em
seu caminho sabendo que ela salvaria a vida de sua filha. Tenho
certeza de que você fez amizade com ela lá. Afinal de contas, o
Senhor ordenou: os estrangeiros que viverem com vocês devem ser
tratados como um dos seus. Amem a ele como amam a si mesmos,
pois vocês eram estrangeiros no Egito. Talvez Deus estivesse
retribuindo sua bondade para com Raabe ao usá-la para salvar
Ana.”
Raabe mordeu os lábios para tentar não sorrir e percebeu que
novas lágrimas corriam pelo rosto de Elisabete. Sem mais palavras,
ela apertou Ana contra o peito e foi embora.
“Tchau, Raabe!”, despediu-se Ana. “Venha brincar comigo.”
,.
Pela manhã Raabe acordou dolorida e arranhada por causa de
suas aventuras da tarde anterior, e viu que havia muitas mulheres
visitando a tenda dos feridos com presentes nas mãos. Aquilo não
era muito comum de se ver. Pelo fato de Miriã não poder deixar
Salmom para fazer as tarefas diárias e de seus servos estarem
sempre ocupados cuidando dos assuntos da família, muitos amigos
e conhecidos levavam comida e outras provisões todas as manhãs,
mas aqueles presentes não eram para Salmom nem para Miriã. Eles
eram para Raabe. Sonolenta, ela ficou confusa enquanto uma
mulher após a outra lhe dava oficialmente as boasvindas a Israel.
No início da tarde, pilhas de presentes a cercavam: amêndoas,
bolos de mel, lãs, corantes naturais, óleo de oliva, um pente
adornado. E as mulheres não paravam de chegar.
Salmom se sentou perto dela quando as visitas diminuíram. “Você
tem mais convidados do que eu hoje.”
Ela mexeu a cabeça. “Eu não entendo. O que aconteceu?
Semana passada essas mulheres não podiam nem ficar ao meu
lado. Agora, elas estão me enchendo de presentes.”
Ele pegou a mão dela e a coloca sobre a dele. A palma estava
esfolada e machucada em algumas partes, e ele passou o polegar
levemente pela superfície. Um arrepio correu pelas costas de Raabe
e ela puxou a mão. Salmom se recostou com uma expressão
enigmática. “Você salvou a vida de Ana e elas sabem que você não
ganharia nada com isso. Eu suponho que, finalmente, elas
reconheceram que te julgaram mal.”
Raabe pensou nos acontecimentos estranhos que levaram àquela
mudança de situação. “Mal posso acreditar que vou dizer isso, mas
tenho que agradecer àquela cobra. Deus não respondeu
exatamente às minhas orações, mas Ele certamente me concedeu
algo bom pela presença daquela cobra.”
“O que você quer dizer?”
“Quer saber a verdade? Ontem eu estava muito decepcionada
com Deus. Eu queria que Ele fizesse a cobra ir embora; foi para isso
que eu orei, e sei que Ele poderia ter feito isso facilmente. Ele
poderia ter feito aquela criatura se virar e fazer uma visitinha aos
parentes no Egito ou qualquer outra coisa. Mas, em vez disso, ela
ficou parada lá como se fosse uma parte daquela pedra, recusando-
se a e mexer, apesar das minhas orações e dos meus pedidos. Por
que o Senhor não responderia ao meu clamor? Ele conhece as
minhas limitações. Qual seria o objetivo de me fazer enfrentar uma
cobra venenosa?
“Mas foi ela que aproximou a mim as mulheres de Israel. Por eu
ter lutado para salvar a vida daquela criança, as mães de Judá
agora pensam coisas boas a meu respeito. Deus poupou a vida de
Ana e a minha, mas fez isso de uma forma que me ajudou mais do
que eu imaginava se tivesse feito as coisas de acordo com a minha
vontade. Naquele momento, eu só pensava na segurança de Ana.
Deus tinha um plano maior, um plano no qual eu jamais teria
pensado.”
Salmom se inclinou para frente até seu rosto ficar próximo ao de
Raabe. Ela respirou fundo, incomodada por aquela aproximação.
Seus olhos, grandes e castanhos, tinham pequenas manchas
escuras. Ela sentiu como se seu coração pudesse ser capturado por
aqueles olhos, dominado como um cavalo selvagem nas mãos de
um treinador experiente. Ele sorriu de leve, como se estivesse lendo
seus pensamentos, e Raabe se virou. Salmom levou os dedos até o
rosto dela e habilmente o virou em sua direção. “Não vire o rosto. Eu
quero te contar uma coisa.”
“Meu senhor?”, resmungou ela.
“Eu gosto do seu jeito de ver Deus em tudo. É uma qualidade rara
e eu gosto de verdade... disso.”
Capítulo Dezoito

S em sono, Salmom se recostou na pilha de almofadas em suas


costas. Era madrugada e ele estava deitado na própria esteira,
um luxo que ele desfrutava depois de duas semanas em casa.
Josué se recusou a permitir que ele voltasse a fazer as tarefas mais
pesadas, incitado pelas precauções cautelosas de Zufe. Assim,
Salmom evitava o treinamento militar e as longas viagens. Mas em
todos os outros aspectos, sua vida tinha voltado ao normal, e, para
seu desespero, ele parecia insatisfeito com uma rotina que parecia
completamente satisfatória no passado. Um desejo irritante parecia
roer seus ossos, e uma sombra de insatisfação oacompanhava em
cada passo. Nada o satisfazia.
Ele bateu em um travesseiro no qual estava encostado, tentando
ficar mais confortável. O luxo de ficar sem dor, de ter saúde e de
estar livre da tenda dos feridos deveria ser o bastante para lhe
proporcionar noites tranquilas de sono e dias cheios de gratidão.
Mas, em vez disso, ele ficava cada vez mais inquieto com o passar
do tempo. Seus múltiplos pensamentos o faziam andar em círculos
sem solução.
Todos aqueles pensamentos e aquelas voltas que tiravam seu
sono tinham como foco o mesmo assunto: seus sentimentos por
Raabe. Ele passara mais de um mês na companhia dela, e havia se
acostumado com sua presença, seus cuidados pacientes, suas
deduções inteligentes, seu humor, sua ternura e sua fé, resistente
como ferro. Salmom cobriu os olhos com a mão. Desde que voltou
para casa, ele a evitava. Salmom mandou seu servo com uma
pequena fortuna em ovelhas como um presente de agradecimento
pela ajuda dela. Porém, educadamente, ela ficou com apenas uma e
devolveu as outras. Aquela, disse ela, seria oferecida a Deus como
agradecimento pela segurança de Salmom. Ele ficou envergonhado
demais para insistir que ela ficasse com o presente, e sabia que
seria uma ofensa fazê-lo, pois seria como se quisesse quitar suas
dívidas com Raabe, ou como se quisesse pagar tudo sem retribuir
com nenhuma emoção e amizade. Portanto, Salmom manteve suas
ovelhas para si. Ele ainda não tinha visto Raabe, ou ouvido seu
sotaque nem sentido o toque de seus dedos longos por catorze
dias. E o que lhe tirava o sono não era o fato de estar em dívida
com Raabe, mas sim... amá-la.
Pronto! Ele falou e admitiu para si mesmo, confessando no mais
profundo de sua mente confusa. Ele a amava, a desejava e sentia
falta dela. Além disso, aquela separação o estava deixando louco. Ó
Deus, o que eu devo fazer?
Se ela fosse um outro tipo de mulher, uma filha de Israel, pura,
imaculada, não contaminada, ele teria se alegrado por ter aqueles
sentimentos. Mas ele começou a temer nunca se sentir daquele jeito
por uma mulher — que ele não fora feito para aquilo. Salmom queria
desesperadamente viver aquela paixão arrebatadora, e se
apaixonar era um de seus maiores desejos pessoais. Naquele
momento, seu desejo havia se tornado realidade, mas ele não
poderia estar pior. Como ele se sentiria por ter como esposa uma
prostituta cananeia? Como seus filhos viveriam em Israel com uma
herança como aquela? O que seria de sua linhagem? Deus não a
desprezaria? Ele não a diminuiria? Ele não a destruiria com o
passar do tempo?
Mais um soco em outro travesseiro desconfortável fez as plumas
se acumularem em um canto amontoado.
E, mesmo com tudo aquilo, Josué disse que aprovaria seu
casamento com Raabe. Josué permitiria o que Deus não permite?
Era mesmo problema de Deus ou era de Salmom? O ciúme, o
orgulho extraordinário, a vaidade, seriam esses os verdadeiros
monstros que davam origem aos conflitos? Salmom gostaria apenas
de uma esposa que todos aprovassem — uma mulher admirável
que despertaria a inveja dos amigos e o desejo dos inimigos?
Estaria ele, de alguma forma, com medo de ser reduzido pelo
passado dela?
Um movimento forte deslocou as almofadas em seu abdome e
Salmom as empurrou para se levantar. Na escuridão intensa de uma
noite sem luar, ele foi até a entrada da tenda e tentou acalmar a
cabeça ao respirar ar fresco.
O orgulho e o passado de Raabe eram obstáculos intransponíveis.
O passado dela não poderia ser desfeito em um passe de mágica, e
seu orgulho parecia ser tão imutável quanto aquele passado. Ele era
o filho de Naassom, líder do povo de Judá que governava setenta
mil pessoas! A irmã de seu pai se casara com Arão, o irmão do
próprio Moisés. Salmom era primo de algumas das pessoas mais
importantes de Israel. Como ele poderia se prender a uma prostituta
cananeia?
Então, qual seria sua escolha? Tirá-la do coração e seguir em
frente. Ele poderia fazer isso? A lembrança daquele rosto amável
tomou conta da mente dele. Raabe era tão bonita para ele; o jeito
que ela se mexia, seu sorriso, o jeito de baixar os olhos quando
queria esconder segredos. Ele adorava ficar com ela, e sua
companhia era agradável para ele. Ele adorava sua vivacidade pelo
Senhor. Uma vez, Josué disse que ela era muito dedicada a Deus;
sua paixão pelo Senhor era como a dele, e talvez ainda fosse maior
em alguns sentidos. Poderia ele desistir de tudo aquilo por causa de
seu orgulho?
Confuso, ele se afastou esquecendo-se de que estava usando
apenas uma tanga. As cabras em uma pastagem próxima olharam
maleficamente para aquela forma nua que perturbara seu sono e se
viraram sem interesse, e seu desdém fez Salmom sorrir. Ele desejou
ter o mesmo desdém por seus próprios conflitos.
Poderia ele desistir de Raabe? Vê-la casar-se com outro homem,
ser carinhosa com ele, cuidar dele, sorrir para ele, dar filhos a ele?
Esses pensamentos o fizeram sentir uma raiva tão forte que ele
ofegou. Aquela era uma informação nova para ele: o fato de ele ter
rejeitado Raabe não significava que outros homens o fariam. Ela era
um prêmio, e ele sabia disso. Poderia ele desistir dela? Não. Não.
Não. Seu coração e sua mente gritaram juntos. Ao menos nesse
momento eles se uniram.
Deus tinha um plano maior, um plano no qual eu jamais teria
pensado, disse ele. Aquele amor, assim como a cobra que Raabe
enfrentou, representaria um plano maior de Deus? Mesmo antes de
Salmom reconhecer que seu sentimento por Raabe era amor, ele
orou para que Deus os retirasse do seu ser; ele orou com o mesmo
fervor que Raabe deve ter orado para Deus retirar a cobra. Deus
aparentemente não atendeu às orações de Salmom, assim como o
fez com as orações de Raabe. Talvez Ele tivesse um propósito.
Senhor, diga-me o que fazer! Conceda-me paz. Não posso mais
aguentar isso. Ele voltou para dentro e se deitou na cama. Eu farei o
que Tu me disseres. Apenas diga-me. Por favor.
,.
Dividir uma tenda com treze pessoas estava ficando cada vez
mais complicado. Depois de anos de independência, Raabe achava
difícil viver sem privacidade. Algumas vezes, a total falta de
tranquilidade, alternada às expectativas frustradas, ameaçava
sufocá-la.
No entanto, havia um ponto positivo nas exigências de seu novo
estilo de vida: ela não se focava tanto na dor que remoía sua alma.
Enquanto aprendia as leis de Israel com Salmom sob a sombra das
palmeiras e cuidava dos ferimentos dele, Raabe se apaixonou
perdidamente. Ela não conseguia dizer o momento exato que isso
havia acontecido nem conseguia determinar como cometera um erro
tão grande de forma precipitada. Ao sair da tenda dos feridos em
direção à sua casa, Raabe sentiu-se incompleta, percebeu que
havia deixado um pouco de si com Salmom.
Por sua vez, Salmom parecia ter deixado claro quais eram seus
sentimentos. Ele não tinha ido vê-la nem ao menos por uma vez
depois que os sacerdotes o declararam puro e o mandaram para
casa. Ele enviou um rebanho de ovelhas a Raabe para expressar
sua gratidão, mas evitava a companhia dela agora que estava
recuperado e podia escolher quem mais o agradava como amigo.
Sua rejeição doía mais do que saber que ele nunca poderia amá-la.
Na tenda dos feridos, eles pelo menos eram amigos; lá ele parecia
ter gostado da presença e da companhia dela. Mas, com a liberdade
de um mundo que se abria diante dele, Salmom a descartara assim
como fizera com suas ataduras maculadas.
Raabe saiu discretamente da tenda de sua família e seguiu por
entre o labirinto de tendas em direção ao deserto. Ainda estava
muito cedo e sua família estava dormindo, o que significava que ela
poderia sair sem ter de dar explicações. Raabe seguiu o caminho
com atenção, fazendo menos barulho possível à medida que
andava pelo acampamento enorme de Judá, indo em direção a
Zebulom. Com exceção de algumas cabras e pessoas que se
levantavam cedo, nada se agitava. Finalmente, Raabe chegou até o
limite do acampamento de Israel e encontrou o caminho sinuoso
que procurava. Ela descobrira que aquele caminho levava a um
oásis que, para sua surpresa, felizmente estava muitas vezes vazio.
Em meio à sua vida tumultuada por pessoas, o isolamento daquele
lugar representava um refúgio que Raabe buscava frequentemente.
Lá, ela podia pensar em Salmom e em suas emoções
complicadas. Como ela se permitira ser tão vulnerável àquele
homem? Como ele conseguira ultrapassar as barreiras do seu
coração e permanecer lá dentro, como se tudo pertencesse a ele?
Raabe havia passado sua vida adulta mantendo os homens a uma
distância segura, e talvez tenha flertado afastando-se de forma
bastante calculada. Pode ser que ela tenha selecionado suas
companhias entre uns poucos e até mesmo, algumas vezes,
oferecido sua amizade. Ela entretinha os homens com o corpo, mas
sempre guardara o coração. Raabe nunca desistira de seu
verdadeiro ser, até conhecer Salmom.
Aquele ladrão! Sem esforços, sem intenções, ele levou o que não
queria, e nem ao menos poderia devolver.
O que ela deveria fazer? De que maneira sobreviveria àquele
amor impossível? De todos os homens da Terra, por que ela se
apaixonara pelo homem que mais a desprezava? Ó Deus, cura-me
deste amor, eu Te imploro! Poupa-me de mais esta dor.
Raabe fez a última curva do caminho e, com passos lentos, foi até
uma palmeira fina. Ela parou de andar. Um homem descansava
encostado no tronco da palmeira, de costas para ela; ele deve ter
ouvido sua aproximação, pois se levantou abruptamente e virou-se.
“Salmom!” Raabe quase se engasgou ao falar o nome. O objeto
de seus pensamentos incômodos estava diante dela, extremamente
bonito em sua túnica branca impecável.
“Raabe?”
“Por favor, perdoe-me. Não percebi que tinha alguém aqui. Com
licença.” Ela deu meia-volta com vontade de correr para a direção
oposta. Raabe esperava que Salmom não pensasse que ela o
estava seguindo.
A mão dele a envolveu pela cintura, e Salmom a puxou para perto
de si. “Espere”, sussurrou ele por entre os cabelos cobertos pelo
véu. “Espere.”
Raabe ficou paralisada. O que ele estava fazendo segurando-a
daquele jeito? Seu coração batia tão forte que ela estava certa de
que Salmom sentiria. Ela permaneceu imóvel por aquele toque, sem
conseguir se virar. Salmom colocou as mãos nos ombros dela e a
forçou a ficar cara a cara com ele. “Eu estava orando exatamente
por você quando apareceu”, disse ele.
Os olhos de Raabe se arregalaram. “Por mim?”
Ele deu um sorriso e se afastou dela. “Sim, isso mesmo. Você
sabia que eu estava aqui?”
Ela negou, movimentando a cabeça com tanta veemência que
deixou o véu cair. “Não, eu juro. Eu não queria te incomodar.” Ele
estava orando por ela? Provavelmente ele estaria pensando na
dívida de gratidão que tinha com ela, por Raabe ter cuidado dele. Se
ele falasse sobre isso, ela se irritaria. O que ela fez foi por amizade,
ela o fez sem esperar nada em troca. A insistência de Salmom em
recompensá-la a insultava.
“Venha e sente-se comigo. Quero conversar com você.” Ele puxou
sua mão e ela tropeçou, querendo desesperadamente estar perto
dele e do outro lado do planeta ao mesmo tempo. Ficar com
Salmom era tão sacrificante quanto ficar longe dele.
O que ele teria a lhe dizer? Provavelmente, nada que ela gostaria
de ouvir. Raabe se sentou perto dele, encolhendo-se com os joelhos
no peito e com os braços envolvendo seu corpo até parecer ter dado
um nó muito apertado.
Salmom se recostou na árvore em silêncio. Por muitas vezes, ele
abria a boca para falar algo, mas depois a fechava, como se não
tivesse encontrado as palavras certas. Raabe o analisava sem
conseguir entender seu humor.
“Eu estava tomando uma decisão quando você chegou”, Salmom
finalmente falou. Sua voz ficou embargada. “Raabe, eu gostaria de
que você olhasse para mim enquanto falo com você.”
Raabe ergueu os olhos e um medo repentino fez sua boca ficar
seca. Que decisão ele teria que tomar em relação a ela? Salmom
estava falando como líder de Judá? Ela estaria ultrapassando algum
limite desconhecido? Teria ela desobedecido alguma lei, ofendido ao
próximo, cometido um erro mortal, fracassado ao agradar a Deus?
O que ela havia feito de errado?
Salmom franziu a testa. “E seria útil se você não ficasse me
olhando com essa cara assustada.”
“Eu sinto... muito.” Raabe vacilava ao escolher suas palavras.
Salmom fez uma cara feia. “Este foi um começo embaraçoso.
Ainda estou tentando entender o fato de você estar andando por
aqui.”
“É verdade, eu não sabia que você estava aqui. Nem sonhando eu
ousaria te interromper se...”
Ele se inclinou para frente e colocou o dedo sobre a boca de
Raabe, literalmente interrompendo suas palavras. Ele deixou seu
dedo descansar sobre os lábios dela por um instante e depois o
tirou, afastando sua mão de forma relutante. “Por que toda vez você
interpreta como se eu achasse que você fez algo de errado? Eu não
acho isso. Acho que você chegou na hora certa e estou feliz por te
ver. Isso só confirma a minha decisão.”
“Confirma?” Que decisão?
“Tenho pensado muito em você desde que voltei para minha
tenda.”
Raabe olhou fixamente para Salmom. “É mesmo?” Apesar de ter
se esforçado ao máximo, um tom de sarcasmo infectava suas
palavras. Irritada, ela fechou a mão.
Salmom lentamente sorriu em resposta àquilo. “Eu senti
saudades.”
“Então, por que nunca mais foi me visitar? Se quisesse, você
poderia ter ido com Miriã. Em vez disso, você me evitou e mandou
algumas ovelhas.”
“Eu te evitei porque precisava de tempo para entender meus
sentimentos. Ver você apenas me confundiria ainda mais.”
Raabe ficou em silêncio por um momento. “Você sente algo por
mim?”
“Certamente você já deve ter notado, assim como eu notei que
você não é indiferente em relação a mim.”
Ela recuou. “O quê?”
“Olhe-me nos olhos e diga que você não me ama.” Raabe
percebeu a satisfação presumida que coloria seus olhos escuros.
Ela se levantou com um giro na intenção de ir embora, e a
vergonha a congelou. Uma coisa era lutar contra sentimentos não
correspondidos por um homem, e outra era ter esses sentimentos
revelados, denominados e atirados em seu rosto. Salmom se
levantou ao mesmo tempo e bloqueou o caminho.
“Você vai me ouvir?” Ele agarrou o braço dela e a puxou para mais
perto.
“Eu já ouvi o bastante. Deixe-me ir! Tenho certeza de que você
não trataria uma moça da Judeia dessa maneira.”
“Não, eu não o faria. Mas eu também não pediria para nenhuma
moça da Judeia se casar comigo.”
“O quê?”
“É isso que estou tentando te dizer. Vim até aqui esta manhã para
pensar e decidir o que fazer em relação a você. Talvez eu esteja
sendo presunçoso, mas, quando orei, eu senti a aprovação de
Deus. E, pela primeira vez depois de dias, a confusão que me afligia
se transformou em uma paz inabalável. Eu já tinha tomado a
decisão de ir falar com seu pai quando você chegou, quase
desmaiei quando te vi. Muitas vezes eu venho até aqui de manhã
cedo, e nunca te vi antes. Mas, justo no dia em que eu decidi fazer
das nossas vidas uma só, você apareceu. Ver você naquele
momento foi como ter uma confirmação.”
A cabeça de Raabe começou a girar, e ela começou a digerir a
declaração de Salmom — o significado, as implicações, as
consequências. Ele estava mudando todo o futuro dela com aquelas
palavras; o impossível tinha acontecido. Salmom se apaixonara por
ela. Mesmo sabendo de seu passado, ele a desejava. Como uma
pessoa paralisada antes da morte, o entorpecimento aconteceu aos
poucos. Seu coração não conseguia acreditar.
“Você quer mesmo se casar comigo?”
O som alto da risada forte de Salmom encheu os ouvidos dela. Em
vez de responder, ele inclinou sua cabeça e a beijou. Para Raabe,
cuja boca estava selada com a lembrança dos beijos de muitos
homens, aquele carinho foi como um choque. Aquele simples beijo e
o toque doce e possessivo da carne de Salmom contra a dela fez
parecer como se fosse a primeira vez para Raabe. Pela primeira
vez, ela beijava um homem que amava, e foi a primeira vez também
que houve afeição, desejo e comprometimento mútuos. Ela sentiu
como se aquele fosse seu primeiro beijo, e nenhuma outra
experiência se comparava àquela. A sensação de ser aceita a
envolvia e a consumia. Salmom levantou a cabeça dela e ela
suspirou. Raabe estava pasma e desorientada. Ele a observou em
silêncio com seus olhos perceptivos um pouco fechados. “Você
sempre me surpreende”, disse ele dando um passo atrás.
Tantas perguntas surgiram na cabeça de Raabe que ela não sabia
o que falar. Você me ama de verdade? Você acredita que Deus
aprova esse tipo de união? Qual será a reação de Israel a esta
notícia? Você esquecerá o meu passado? “Josué”, lembrou-se ela
de repente. “O que ele vai achar?”
“Josué me disse que aprovaria antes mesmo de eu saber ao certo
o que sentia por você.”
Raabe se sentiu aturdida. Ela esperava objeções sensatas, para
não dizer que esperava uma hostilidade sincera. Apesar de sua
afinidade com ela, ter um dos maiores líderes unidos pelo
matrimônio com uma ex-zonah seria um precedente desastroso,
além de ser também um exemplo repugnante. Como ela conquistou
a aprovação de Josué? “Não sei o que dizer.”
Salmom envolveu a cintura dela com o braço. “Diga que aceita se
casar comigo.”
Envergonhada e surpresa, ela respondeu: “Eu aceito me casar
com você.”
Salmom fez um gesto de satisfação e deu outro beijo nela, um
beijo intenso e breve que selava sua alegria diante do corpo trêmulo
de Raabe. Quando ele se inclinou para trás, ela se apoiou nos
braços dele e riu.
“Raabe, tenho que pedir uma coisa.” “Sim?”
“Eu não quero esperar muito. Somos uma nação em guerra, e
certamente haverá outras batalhas. Em Ai, me dei conta de que não
sou invencível; eu não quero desperdiçar minha vida esperando.”
Raabe levantou a cabeça. “Estou confusa com esse pedido. Acho
que você precisa de um tempo para pensar melhor.” Ela sentiu a
pontada de um sorriso por dentro de sua boca. Pensar que um
homem como aquele tinha escolhido unir sua vida à dela era quase
inacreditável.
“Você está assustada com o meu pedido?”, perguntou ele. “Talvez
eu tivesse que segurar minha língua e ter ido antes falar com seu
pai, como deve ser. Mas ver você me fez confirmar minha decisão e
eu acabei revelando os meus sentimentos.”
“Você não revelou os seus sentimentos. Você revelou os meus,
obrigada.”
Salmom deu uma gargalhada e a puxou para perto de si.
“Desculpe. O que mais eu fiz de errado?”
“Agora mesmo, está sugerindo um futuro incerto. Você deveria
saber que eu não gosto muito da hipótese de ficar viúva antes de
me casar. Então, tome isso como um aviso, Salmom Ben Nahshon.
Nem pense em morrer.”
“Farei o meu melhor para isso.” “Vejo que sim, meu senhor.”
“Você não vai virar uma esposa mandona, vai?” “Eu te chamei de
meu senhor, não foi?”
,.
Raabe passou o restante do dia em choque. Em momentos
repentinos de descrença, ela se perguntava se não teria sonhado
com o pedido de Salmom. Depois, ela se lembrava de seus beijos e
nunca teria imaginado aquele sentimento. Raabe sabia que Salmom
conversaria com seu pai naquela noite para acertar o casamento e o
noivado. Depois disso, a notícia seria oficializada, e todos saberiam
que Raabe, a cananeia, se casaria com o líder da tribo de Judá.
Ninguém sabia daquele segredo, e sua família a olhava
estranhamente, como se ela estivesse andando atordoada por
causa de alguma ferida na cabeça; Raabe não ouvia os comentários
nem respondia quando eles a chamavam.
“Você está doente, Raabe?”, perguntou Izzie no início da tarde.
“Obrigada.” Através de uma nuvem opaca, Raabe se deu conta,
depois de dar sua resposta, que aquelas palavras não
correspondiam em nada com a pergunta de Izzie. Como já era
esperado, Izzie, confusa, olhou espantada para a irmã.
Espanto, Raabeentendia. Àmedidaqueopedidodecasamento que
Salmom lhe fez se assentou, como a areia fina após uma
cavalgada, Raabe se perguntou como pôde estar tão enganada
quanto aos sentimentos dele. Como ela não percebia sua afeição?
Nunca lhe ocorrera que aquele homem tinha sentimentos tão
intensos por ela. Uma ou duas vezes ela até se perguntou se ele a
desejava. Mas aquele pensamento não lhe deu satisfação, pois ela
conhecia seu senso rigoroso de honra e o ressentimento que ele
sentiria de si mesmo e dela por essa paixão indesejada e
inconveniente. Mas amor? Onde aquilo estava escondido?
Raabe sabia que, no caso de Salmom, deveria preservar o
relacionamento com ele. Diante do passado puro e imaculado dele,
ela se lembrava de seus pecados mais intensamente. Nem com
muita imaginação ela conseguia entender que um homem como ele
poderia amar uma mulher do estilo dela. Raabe achava que não
estava à altura de Salmom.
Ela apenas conseguiria ter segurança depois que eles se
casassem. Certamente, quando aquele amor fosse expresso
publicamente e quando fosse firmado o compromisso, ela
entenderia que era, na verdade, alguém a ser amada por ele? Eles
fariam um ao outro felizes no casamento, acabando com as
inseguranças do presente e do passado?
,.
A luz da lua iluminou o caminho de Salmom quando ele foi visitar
o futuro sogro. Com ele estava Miriã, com um sorriso de orelha a
orelha, e a sobrinha mais velha de sua mãe, Ester, que parecia
pálida e abalada. Dentre os parentes de seu pai, todos haviam
inventado desculpas para não acompanhá-lo. Josué seguia perto de
Salmom e falava sobre os detalhes do noivado. Ele não apenas
reafirmou que abençoaria Salmom e sua escolha, mas também se
ofereceu para assumir o lugar de pai do noivo. Sua presença aliviou
a dor que Salmom sentia por não ter parente algum por parte de
Naassom.
Inri os viu primeiro, logo que eles chegaram ao acampamento.
Pela sua expressão centrada, Salmom deduziu que Raabe não
havia falado nada para preparar sua família para o pedido. Uma
sensação de alegria o dominou; aquilo seria interessante. A família,
atraída pela imponência de seus convidados inesperados, se reuniu
em torno deles e se curvou respeitosamente. Salmom esticou o
pescoço para procurar Raabe e sentiu-se decepcionado quando viu
que ela não estava lá.
Com seu ar peculiar de autoridade, Josué pediu para ficar a sós
com Inri e sua esposa. Na tenda simples da família, os judeus foram
tratados com muita hospitalidade. Josué, bebendo um gole de água
de cevada, disse: “Inri, estamos aqui por um motivo. Estou aqui esta
noite como pai de Salmom, e nós viemos para pedir a mão de sua
filha.”
Inri olhou como se fosse desmaiar. “Mão, meu senhor? Como em
casamento? É esse tipo de mão?”
“Exatamente.”
“Mas seu servo tem apenas uma filha solteira – Raabe.” “Trata-se
dela.”
Inri ficou chocado enquanto desviava o olhar para sua esposa.
“Meu senhor Salmom quer se casar com Raabe?”
“Foi isso mesmo que eu disse. Então, se o senhor aceitar,
gostaríamos de discutir o acordo de noivado.”
O consentimento deslumbrado de Inri, à primeira vista, deixou
Salmom maravilhado. Mas a vivacidade com a qual ele concordava
com cada palavra de Josué e a vontade de satisfazer todos os
desejos de Salmom logo o irritaram. O homem praticamente
entregou sua filha de graça. Ele nem ao menos negociou o dote,
esquecendo-se do quanto aquela atitude a ofenderia. Ele não pediu
para Salmom tomar conta de sua filha, como um pai protetor faria,
nem nunca insistiu para ver a filha ser bem tratada. Era como se ele
não acreditasse que ninguém mais teria interesse em Raabe. Inri
não reconhecia o valor da própria carne e de seu sangue? Por que
ele não a defendia? Salmom mentalmente começou a se afastar
daquela conversa na tentativa de acalmar sua ira crescente.
Quando Josué terminou de falar sobre os últimos detalhes do
acordo, o noivo mal sabia o que estava sendo acordado.
Era chegada a hora de procurar Raabe, e Miriã se ofereceu para
fazê-lo. Salmom parecia ansioso; pensar em ver Raabe o afastava
daquela afronta. Quando ela entrou, ele quase ficou sem ar. Ela
estava usando um manto simples cor de creme. Em sua cintura fina,
Raabe havia amarrado uma faixa que sobressaía as curvas
sinuosas de sua silhueta. Ele se levantou, como mandava o
costume, pegou na mão dela e a levou para sentar-se perto dele.
Embora seu rosto parecesse tranquilo, seus dedos estavam
trêmulos e frios como o gelo.
“Raabe.” Ele a esperou levantar a cabeça. “Seu pai aceitou o meu
pedido de casamento. Você também aceita?” Obviamente, aquilo
era apenas uma formalidade. Raabe já tinha aceitado algumas
horas antes, e ele sabia que ela manteria sua palavra.
“Aceito.” A voz dela estava suave e resoluta. O coração de
Salmom bateu mais forte.
“Seu pai e Josué estabeleceram um acordo de noivado. Eis o
dote.” Ele colocou a mão cheia de moedas de ouro sobre as dela, e
com um gesto instintivo, ela as segurou antes que caíssem no chão.
Na verdade, aquele ouro pertencia ao pai dela enquanto ele vivesse,
mas Salmom queria que ela soubesse, de forma concreta, que, para
ele, seu valor era imenso.
“Tenho outro presente. Este pertenceu à minha mãe.” Salmom
colocou os brincos delicados de ouro, lazulita e pérola por sobre o
monte de moedas. “Quando saímos do Egito, os egípcios nos deram
algumas peças de ouro e prata, e nós demos a maior parte para uso
no tabernáculo. Mas muitas pessoas ainda guardaram algumas
peças como recordação daquela fase de nossa história. Eu me
lembro da minha mãe usando esses brincos, e eu ficaria feliz de vê-
los em você.”
Com um impulso quase descuidado, Raabe deixou cair as moedas
de ouro que Salmom havia colocado em suas mãos e examinou os
brincos cuidadosamente. “Você está me dando as joias da sua
mãe?”
“Elas ficarão lindas em você.”
Raabe afagou as frágeis contas de ouro e lazulita que pendiam da
peça maior, e seus dedos permaneceram por sobre a pérola que
havia no centro de cada brinco. Salmom viu que ela estava feliz. Se
comparados ao valor das moedas, os brincos não eram nada. Mas,
mesmo assim, eles eram mais importantes para ela. Você está me
dando as joias da sua mãe?, perguntou ela. Raabe se comoveu com
o valor sentimental do presente, e ela o valorizou tanto porque eles
iam além do valor material.
Salmom se viu olhando para ela com uma alegria evidente. Seu
interesse era visível, e houve alguns sorrisos reprimidos e olhares
expressivos direcionados a ele.
Salmom pigarreou e se levantou. “Está ficando tarde.” Ele estava
feliz por ter determinado um tempo curto de noivado. Seriam três
meses torturantes. Voltando-se para Raabe, ele fez a promessa
tradicional. “Prepararei um lugar para você e voltarei novamente
para te ver.”
Capítulo
Dezenove

M iriã, Izzie e Abigail acompanharam Raabe até seu banho


mikvah na manhã do dia de seu casamento. O rio Jordão
estava tranquilo e, mesmo com a água gelada, dispunha de vários
pontos seguros para se banhar. As mulheres foram até um local
reservado e arrumaram suas coisas na beira do rio.
Logo que Raabe entrou na água, seus dentes começaram a bater.
Ela respirou fundo antes de mergulhar para molhar a cabeça, e tinha
certeza de que seus lábios estavam azuis quando ela saiu. “Aqui
está um gelo!”
Izzie sentou-se na margem do rio com os pés na água. “Não se
preocupe. Seu noivo te esquentará hoje à noite.” Todas elas riram,
exceto Raabe, que lançou um olhar repreensivo para a irmã. Havia
ninguém com quem ela poderia compartilhar a sensação de
nervosismo por causa do que aconteceria mais tarde. Quem
compreenderia o fato de uma zonah cananeia estar nervosa na
noite do casamento? Nem mesmo ela conseguia entender direito a
si mesma. Ela sabia apenas que as piadas bobas de Izzie
despertavam um medo grande demais.
As mulheres não ficaram por muito tempo no ritual de imersão do
mikvah, pois a água estava muito fria. Logo depois de terem se
lavado e proferido as palavras de bênção, elas saíram da água e
vestiram roupas limpas. Depois, todas acompanharam Raabe até a
tenda de seus pais a fim de prepará-la para o banquete de
casamento.
Para o casamento, Raabe decidiu pegar emprestado com Izzie um
manto tecido com linho de cor azul-clara. Já em sua tenda, Izzie
pegou a roupa e Raabe se surpreendeu. Em algum momento,
durante as últimas semanas, Izzie secretamente bordou na bainha e
na gola algumas pequenas flores brancas.
“É para ficar com você”, disse Izzie com um sorriso amável. Miriã,
que aparentemente fizera parte da conspiração, presenteou Raabe
com um cinto feito de flores prateadas.
“Eu preparei este cinto para você usar no dia do casamento desde
quando Salmom me disse que se casaria com você. Quando Izzie o
viu, ela pensou em decorar o vestido de casamento para que tudo
combinasse.”
Apesar de viver anos vestindo roupas de seda ornadas e coisas
de ouro, Raabe nunca se sentira tão bem vestida. Abraçando Miriã e
Izzie, ela sussurrou: “Eu não poderia ter roupas mais lindas. Nunca
esquecerei da generosidade de vocês”.
“Fizemos isso porque te amamos”, disse Miriã. “Sabe, é uma pena
esconder tanta beleza sob esse badecken. Mas, em Israel, as
noivas precisam se cobrir com um véu opaco.”
“Ele vai ser bem-vindo. Pensar em centenas de pessoas olhando
para mim durante horas me faz querer sair correndo. Mas, antes de
vocês colocarem em mim, preciso de mais uma coisa.” Raabe
pegou os brincos que Salmom lhe deu e os colocou. Mexendo a
cabeça para fazê-los tremular, ela disse: “Agora estou pronta”.
,.
Inri, Joa, Karem e Gerazim carregaram as vigas do dossel de
Raabe enquanto ela seguia em direção à tenda de Salmom. Hanani
e Ezra, que foram buscá-la com gritos de “eis que chega a noiva”,
seguiam à frente. No meio do caminho, Salmom os encontrou e
entrou no dossel com Raabe.
Ele apertou a mão dela. Raabe, que ficava mais nervosa a cada
passo, deixou sua mão entre a dele, mas não a apertou.
“Eu poderia dizer que você está linda, mas não consigo ver nada.
Estou surpreso por você não ter tropeçado e caído. Como
conseguiu andar com isso no rosto?”
Raabe percebeu que Salmom estava fazendo o melhor que podia
para distraí-la e acalmá-la, mas ele não estava conseguindo. Sua
aproximação a deixou ainda mais nervosa, mas ela não queria que
ele notasse sua tensão. Mais do que qualquer outro na Terra, ela
amava aquele homem e queria fazê-lo feliz. Raabe se esforçou para
parecer normal quando respondia. “Fui seguindo o cheiro do óleo
perfumado de Hanani. Acho que ele usou todo o óleo que tinha para
o nosso casamento.”
Salmom apertou a mão dela novamente. “Você consegue ver
aquelas luzes brilhando à frente?”
“Sim.”
“É um caminho enfileirado com tochas dos dois lados. No fim do
caminho, Josué e Calebe estão nos esperando para derramar sobre
nós as bênçãos do casamento.”
“Bom.”
“Então, eu tirarei seu véu.” “Perfeito.”
“Você não está muito falante esta noite. Estou começando a achar
que seu pai está me trapaceando, assim como Labão fez com Jacó.
Não é a Izzie que está aí embaixo, é?”
“Não. Gerazim não gostou muito dessa ideia. Certamente, você
vai se casar com a Raabe.”
“É ela que eu quero.”
O suor cobria a testa de Raabe por debaixo do véu, e ela estava
ainda mais nervosa. O que eu estou fazendo? Isso é loucura. Nunca
vai dar certo. Seria tarde demais para sair correndo? Ela pensou no
impacto que aquilo teria para Salmom, o homem que ela amava
com todas as suas forças. Como ela poderia humilhá-lo daquela
maneira? Mas se depois de casados, ela o decepcionasse?
Seus pensamentos estavam tão confusos que ela mal notou que
já havia chegado até Josué e Calebe. Os convidados do casamento
encheram todo o lugar. Josué começou a proferir as sete bênçãos e
Calebe o seguiu. Raabe ouvia dispersamente algumas partes. Para
honrar, amar e manter a verdade... Eu abençoo a união... Que eles
sejam felizes...
Uma tonteira começou a invadir os sentidos de Raabe. Acabado o
momento das bênçãos, ela foi conduzida três vezes em um círculo
em volta de Salmom. Raabe se moveu desviando sua atenção do
que acontecia, de Salmom e de si mesma. O pânico a cobria como
um óleo congelado. Depois, ela parou e Salmom levantou o
badecken opaco, jogando-o no chão. Ela piscou para Salmom e ele
se inclinou para beijá-la; foi um beijo puro e cheio de promessas.
Um leve tremor de segurança a invadiu e, inclinandose para ele,
Raabe falou para si mesma que tudo ficaria bem.
As pessoas se alegraram e se amontoaram parabenizando os
noivos. Salmom, talvez por ter sentido o corpo estremecido de
Raabe, a colocou em seus braços e lhe deu um abraço revigorante.
“Vamos começar o banquete. Depois, podemos fugir e ficar a sós
por alguns minutos. Tenho que te contar uma coisa.”
Raabe apenas seguiu Salmom. Ela colocava os pés onde ele
colocava os dele, sorria quando ele sorria e levantava seu cálice
quando ele levantava o dele. Depois, Salmom a tirou do meio da
multidão e, de alguma forma, conseguiu levá-la a um lugar mais
isolado.
Sem delongas, ele perguntou a ela: “O que houve? Você está
tremendo. O que há de errado?”
Raabe não sabia o que dizer, pois nem mesmo ela conseguia
entender o motivo de suas reações. “Acho que tenho medo de você
ficar decepcionado e se arrepender de tudo isso”, confessou ela.
Salmom lhe deu um abraço forte. “Isso não vai acontecer.” Ele se
afastou ainda com as mãos nos braços dela, fazendo uma ponte
entre os dois. “Raabe, eu deveria ter falado isso antes, mas estive
tão ocupado durante esses três meses, e nós mal conseguimos ficar
sozinhos. Eu quero que você saiba uma coisa. Seu passado está
morto para mim, e está morto para nós. Nunca mais fale sobre ele.
Nunca toque nesse assunto. Eu não quero mais me lembrar dele.
Eu te conheço pelo que você é agora, e aquela outra Raabe não
existe. Nós construiremos nossa vida hoje e enterraremos o
passado.”
A boca de Raabe ficou com um gosto estranho. Ela sabia que o
objetivo daquele discurso era fazê-la se sentir melhor e mais aceita.
Seu marido estava tentando fazê-la se sentir segura, mas suas
palavras tiveram o efeito contrário. De que jeito ela poderia enterrar
seu passado? De que forma ela o isentaria de suas lembranças? E
se ela dissesse ou fizesse algo que, sem intenção, despertasse as
memórias daqueles tempos? Em vez de fazê-la sentir-se firme e
estável, as palavras de Salmom lhe imputaram uma angústia
profunda.
Sem saber que suas palavras fizeram Raabe ficar ainda mais
deprimida, Salmom a envolveu em um abraço acolhedor. “Temos
que voltar para o banquete, senão as pessoas irão embora.
Teremos sete dias ininterruptos de festa de casamento, e, se não
voltarmos logo para lá, seremos alvo de todas as piadas e
obscenidades em Judá por um mês.”
Raabe respondeu com a cabeça sem conseguir falar.
Para a noiva, o banquete de casamento parecia um pesadelo.
Mais do que tudo, ela queria ir para um lugar tranquilo e pensar nas
consequências da declaração de Salmom. Mas não havia como
fazer aquilo na noite mais importante de todas. Todos os seus
sorrisos eram falsos e todas as suas palavras eram proferidas
distraidamente. Ela agia sem sentir, e a única coisa que conseguia
era ter medo — medo de não corresponder às expectativas e
desejos do marido. Medo de, no fim, ser descartada pela única
pessoa que lhe dera aceitação e uma nova esperança no futuro.
Por pior que fosse o banquete, ir para o dossel foi péssimo. Lá,
seu casamento seria consumado. Lá, ela seria praticamente uma
prisioneira durante sete dias e noites com seu marido. Lá, ela teria
de deixar seu passado de fora, impedindo-o de deitar-se em sua
cama. Como faria aquilo?
A tenda de Salmom fora preparada para ser o quarto do casal.
Miriã decorou tudo cuidadosamente antes de sair para ficar durante
dois meses na tenda de sua amiga Elisabete. Como Raabe
desejava desesperadamente a presença de sua cunhada! Mas
apenas o noivo e a noiva podiam entrar no quarto.
Finalmente sozinhos, Salmom segurou o rosto dela e juntou seus
lábios aos de Raabe, beijando-a com uma paixão que ele guardara
nos meses anteriores. “Minha linda Raabe”, sussurrava ele. Das
outras vezes, ela se derretia em seus braços e seus beijos eram a
experiência física mais maravilhosa que ela vivera. Mas, naquela
noite, as palavras dele ecoavam em sua cabeça, palavras que ela já
conhecia. Nunca mais fale sobre aquele assunto, disse Salmom
sobre o passado dela. Bem, se ela retribuísse apaixonadamente
seus beijos, isso não o faria se lembrar? Se ela correspondesse de
alguma forma, ele não se perguntaria de que jeito ela aprendera?
Raabe havia cultivado um pensamento de que ela não o merecia,
desde os primeiros dias de sua união. Na verdade, ele se daria
conta de suas imperfeições e ficaria decepcionado e desiludido. As
palavras dele naquela noite confirmavam todas essas suspeitas. Na
intimidade daquela cama, ele veria as faces refletidas de seus
pecados do passado, e Salmom a odiaria por isso.
A cada novo pensamento, Raabe ficava ainda mais paralisada
pelo medo. Ela estava petrificada em seus braços e Salmom se
sentiu confuso com aquela frieza. No primeiro momento, ele
entendeu aquilo como nervosismo normal do casamento e falou
palavras reconfortantes. Ele a deitou em uma colcha coberta com
pétalas brancas e rosas, e a beijou muitas vezes. Raabe ficava cada
vez mais paralisada a cada toque, e quanto mais ele tentava fazê-la
reagir, mais ela se fechava.
Finalmente, Salmom se afastou. “O que há de errado?” Sua voz
não parecia aborrecida, mas confusa e preocupada.
A doçura dele passou por sua pele. Talvez ela não estivesse
conseguindo retribuir seu amor de forma apaixonada, mas ficar
deitada ali como um cadáver também não o agradaria. O que ela
deveria fazer? Raabe não conseguia explicar seus sentimentos,
pelo menos não sem levar seu passado para a cama com eles.
“Estou apenas um pouco apreensiva. Não pare.”
Salmom não se mexeu. Ela foi até ele e o puxou em sua direção.
Forçando seu corpo a ser o mais maleável possível diante daquela
tensão incômoda, ela fez o melhor que pôde para mostrar a Salmom
que queria. De certa forma, ela queria. Raabe queria dar a ele tudo
o que pedisse, mas estava ligada demais às feridas e aos medos
para receber qualquer coisa dele. As amarras de sua escravidão e a
incompreensão dele estavam ligadas com tanta força que a
consumação do casamento seria uma decepção para os dois. Por
fim, Raabe se lamentou silenciosamente por ter de dormir perto de
seu marido que ainda estava acordado.
,.
Os sete piores dias de sua vida estavam quase chegando ao fim.
A mulher que ele amava havia se fechado em uma concha, trancada
e distante. Depois de várias tentativas desastrosas, ele decidiu parar
de tocá-la. Ela virava uma pedra de gelo em seus braços. Na
primeira vez que ele a beijou, ela se derreteu como se quisesse,
mais do que tudo, ser parte da vida dele. Posteriormente, ela o
olhava tão maravilhada que fazia o coração dele bater mais forte.
Parecia que ela nunca tinha sido beijada antes, e era como se ele
fosse o único homem da Terra.
Agora, quando ele a beijava, ela ficava paralisada. Em um
primeiro momento, ele imaginou, com uma incerteza angustiante,
que talvez ele não fosse tão competente quanto os homens
cananeus com os quais ela havia se deitado. Ele teria algum
problema? Pelos anos que fora casado com Ana, ele sabia que
provavelmente o problema não era aquele, mas, de qualquer
maneira, Salmom se sentiu incitado a perguntar. O olhar apavorado
de Raabe, cheio de uma consternação aterrorizante, tinha pelo
menos de dar fim àquele dilema pessoal.
Então, ele a pressionou para que ela falasse e explicasse o que
estava acontecendo, mas ela ficou muda. Suas respostas eram
monossilábicas e parecia não haver entusiasmo. Sua Raabe
inteligente e viva havia se reduzido a uma sombra de si mesma. O
silêncio ficara pior do que sua falta de reação física, e ela estava
afastando Salmom de seu coração. Ele sentiu sua frustração virar
raiva; sua raiva virou ressentimento, e este foi a gota d’água. Uma a
cada duas palavras que ele dizia era sarcástica, e Salmom sentiu
vergonha de si mesmo por tratar sua esposa daquela forma. A
vergonha apenas o fazia sentir-se ainda mais ressentido. Mas era
ele o ofendido, não era? Por que deveria se sentir mal, então?
Salmom orou e sabia que Raabe também orava. Mas eles faziam
isso separadamente, sem nunca ter compartilhado suas
experiências um com o outro. As orações dele não lhe traziam
alívio; ele sabia que seu casamento não fora um erro, mas, mesmo
assim, estava sendo um desastre. Toda vez que orava, Salmom
reforçava a ideia de que o casamento fazia parte dos planos de
Deus, e estava satisfeito por pelo menos Deus estar feliz. Mas
Salmom não sentia felicidade.
Sua esposa passou pelo espaço que seria a sala, onde ele estava
descansando. Nos últimos dias, Raabe o evitava o máximo possível,
saindo de qualquer lugar em que ele entrasse com uma rapidez que
seria engraçada, se não fosse tão decepcionante.
Ela havia deixado os cabelos soltos até as costas, e seus cachos
ficavam avermelhados perto das chamas da fogueira. Quantas
vezes ele se imaginava passando seus dedos por aqueles cabelos.
Por que ele não podia?, a pergunta surgiu de repente. Ela era sua
esposa. Salmom não compreendia o que a mantinha tão afastada,
mas ele não se renderia mais àquela situação.
Ele foi andando até ela, que logo ficou paralisada por causa da
aproximação. Ao ver um vislumbre de pânico no rosto de Raabe,
algo fez seu coração se acalmar. Pegando o queixo dela com a
mão, ele levantou o rosto da esposa e o virou para ele. “Você me
ama. Por que está fugindo de mim?”
Ela mexeu a cabeça, mas ele a puxou para si. “Você me ama.
Diga.”
“Eu te amo”, disse ela obedientemente com o corpo tremendo.
“Não assim. Diga como se isso significasse algo para você. Diga
assim”, disse ele cobrindo os lábios dela com os seus, beijando-a
com a força de uma paixão reprimida há muito tempo. Foi um beijo
demorado que ficou mais intenso e selvagem e, para sua alegria,
ele sentiu que ela ficava cada vez mais maleável em seu abraço.
“Raabe”, sussurrou ele mergulhando os dedos pelos cabelos
perfumados dela. “Raabe, minha mulher.”
Depois de alguns minutos, ele percebeu que ela havia ficado
gélida e paralisada novamente. Ele suspirou com frustração e se
afastou. “Fale! Fale o que te incomoda. Pare de lutar contra mim!”
Ela mexeu a cabeça novamente com o rosto pálido. Salmom a
empurrou para longe dele e saiu decepcionado. Ele se casou com
uma mulher e estava separado dela por um muro. Tentar conquistá-
la era como correr a toda velocidade e bater no concreto. Depois de
sete dias, ele já estava com feridas suficientes para a vida inteira.
Capítulo
Vinte

O rosto de Salmom escondia sua confusão interior. Depois que a


semana do casamento havia terminado, pelo menos ele poderia
se envolver nas atividades diárias do trabalho. Nos últimos dez dias,
ele havia saído de sua tenda antes do amanhecer e voltado depois
que já estava escuro. Raabe parecia ficar pior a cada dia, mais
distante e mais fechada. Do seu jeito, ela também tentava buscar
conforto no trabalho. Ela cozinhava e preparava refeições
elaboradas que ele mal se preocupava em provar. Lavava suas
roupas e as consertava, tecia lã e até cuidava dos animais, uma
tarefa que o pastor e o servo que ele contratou eram capazes de
fazer. Mas, diferentemente dele, ela não estava apenas tentando se
ocupar com o trabalho. Salmom percebeu com uma amargura que
mal conseguia esconder que ela estava tentando apaziguar a
situação. Como se o trabalho duro compensasse o fato de ela ter se
afastado dele. Raabe achava que poderia conquistar sua aprovação
daquele jeito?
Salmom fez questão de evitar Josué durante aqueles dias,
preocupado por achar que ele poderia notar que algo de errado
estava acontecendo. Mas seus esforços foram em vão certa noite,
enquanto ele voltava para sua tenda. Josué, que aparentemente
havia saído de repente, foi andando ao lado de Salmom.
“E como está o recém-casado?”
“Bem, obrigado”, mentiu Salmom com uma voz agradável. “Então,
por que eu fiquei sabendo que você mal fica em sua tenda? Sai
antes de o sol nascer e só chega depois que ele já se
foi. Por acaso é desse jeito que um homem recém-casado deve se
comportar?”
Salmom fez uma cara de desagrado. “Se você não se importar, é
problema meu a hora que eu saio ou que eu chego.”
“Eu não me incomodo, tudo bem.” Josué envolveu o braço forte de
Salmom com sua mão sem manchas de idade. “Sabe, há um oásis
não muito longe do nosso acampamento. Estou precisando tomar
um ar. Você me acompanha, meu amigo?”
Salmom não seria enganado pelas palavras amigáveis ou pelo
jeito acolhedor de Josué. Ele estava com um péssimo humor e não
diria nada. Sem proferir palavra alguma, ele seguiu Josué. Era como
se, por consentimento mútuo, eles não estivessem falando sobre o
casamento de Salmom no primeiro momento. Eles falaram sobre as
doze tribos, sobre questões de estabelecimento, agricultura, política,
sobre as possíveis guerras que surgiriam, até que chegaram ao
oásis de Josué. Ironicamente, era o lugar onde Salmom havia
pedido Raabe em casamento. Ele engoliu sua amargura e sentou-se
recostado ao tronco onde havia orado pelo seu futuro.
Josué sentou-se confortavelmente de pernas cruzadas à frente
dele. “Eu gostaria que você falasse comigo. Vejo que está sofrendo.”
“Há determinadas coisas que um homem não pode compartilhar.
Nem mesmo com você, Josué.”
“Sem dúvida, você está certo. Mas tem certeza de que esta é uma
delas? Ou é o seu orgulho que te impede de conversar comigo?”
Salmom apoiou a cabeça contra o tronco descascado da palmeira.
“Eu não sei. Não sei de mais nada.”
Josué estendeu a mão e a colocou no ombro de Salmom. “Filho,
converse comigo.”
Inesperadamente, os olhos de Salmom se encheram de lágrimas
— lágrimas de frustração, raiva, desilusão e mágoa. Ele não
conseguiu resistir àquela proposta de conforto e sabedoria. Salmom
tinha pouquíssima esperança de que Josué mudaria alguma coisa,
mas, mesmo assim, pensar em libertar a si mesmo para alguém
confiável mostrou ser tentador; então, ele começou a falar, com
frases vagas e algumas vezes confusas, mostrando para Josué
como estava sendo a sua vida de casado.
Quando terminou, Josué passou a mão na barba. “Deixe-me ver
se eu entendi. No dia do seu casamento, você falou que Raabe
nunca mais deveria falar sobre o passado e nunca tocar nesse
assunto, porque você queria esquecê-lo, certo?”
“Sim. Agora você é testemunha de que eu fiz de tudo que pude
para conquistá-la e fazê-la se sentir amada.”
Josué cobriu a boca com a mão.
“O quê?” perguntou Salmom incomodado. “Não jogue a culpa
disso em mim.”
“Não é uma questão de culpa. É uma questão de entendimento.
Sua esposa precisa saber que você aceita o passado dela, e não
que você quer fingir que ele não existiu.”
“Não vejo diferença alguma nisso.”
“Mas há uma diferença enorme. Filho, uma mulher precisa se
sentir segura. Ela precisa saber que seu marido aceita tudo em sua
vida e que, ainda assim, a ama. Ela precisa ser totalmente
conhecida, inclusive pelas falhas de seu passado, pelos defeitos de
seu caráter e, ainda assim, ser amada; esta é a Terra Prometida do
coração de uma mulher. É aí que ela encontra descanso.”
“E?”
“Quando você diz à sua esposa que quer evitar qualquer menção
ao passado dela, você não está dizendo implicitamente que este é
um defeito dela que você não consegue suportar? Que esta é uma
parte dela que, para você, é inaceitável? Que você não consegue
lidar com isso? Que você não consegue encarar os erros dela e,
ainda assim, amá-la? Você não está dizendo que a única maneira
possível de amá-la é fingindo que parte da vida dela nunca existiu?
Parece-me que, na melhor das hipóteses, o que você deu a ela foi
um amor condicional. O que ela precisa é que você a aceite e a ame
do jeito que ela é. Não estou te dizendo para concordar com seus
erros, mas ela já sabe muito bem que errou e não precisa de mais
ninguém a lembrando disso. Eu quero dizer que você deve olhar
para sua esposa com afeição e aceitação, e não para as atitudes
dela. Ela precisa ouvir isso de você, e ouvir sempre até que o
coração dela acredite nisso. No entanto, você fez Raabe acreditar
que ela não pode se sentir segura a respeito do seu amor. É claro
que ela não se sente bem o bastante com você, isso sem contar os
julgamentos do seu coração. Você ainda fica surpreso pela forma
que sua esposa está se comportando?
E existe ainda uma questão muito prática. Quando você diz a uma
mulher que nunca mais quer se lembrar de seu passado, isso a
coloca em um dilema arrasador. Eu me arrisco a dizer que ela fica
paralisada em seus braços porque sente medo de fazer algo que te
faça lembrar de que um dia ela já teve outros amantes antes de
você, e que, com isso, você a descarte ou pare de amá-la. Você
impôs limites ao amor, e ela está tentando respeitar esses limites.”
Algo revoltante e complicado surgiu nos pensamentos de Salmom.
Com um ressentimento amargurado, ele quis refutar as acusações
de Josué e defender-se. Salmom manteve sua boca fechada
usando todo o seu autocontrole e, muitas vezes, engoliu a cólera
que despertava o desejo impetuoso de se vingar. Josué era sábio
demais para interrompê-lo e esperou Salmom se acalmar o bastante
para pensar em suas palavras. Elas seriam justas? Essa pergunta
se tornou maior do que sua necessidade inicial de vingança. Josué
estaria certo?
Quanto mais Salmom pensava, mais ele sentia como se algo
tivesse lhe golpeado e tirado o ar de seus pulmões. Salmom
começou a se sentir acusado pelas incriminações de Josué. Ele
jamais suportaria o passado de sua esposa. Não honestamente.
Salmom resmungou: “Enganei a mim mesmo ao acreditar que eu
aceitaria a vida de Raabe em Jericó. Agora eu entendo que enterrei
o passado, mas que nunca o aceitei. Josué, o que eu preciso fazer?
Como vou mudar meu coração? Como vou dar o tipo de segurança
que você diz que ela precisa se eu não a tenho em mim? Temer os
limites do meu coração é um direito dela. Eles estão lá. Eu odeio o
que ela faz. Eu fico arrasado só de lembrar, e não faço ideia de
como devo mudar a mim mesmo”.
“Isso é porque o que você quer não pode ser feito. Pelo menos
não por você. Mas para Deus, tudo é possível. Agora que entendeu
de verdade o seu coração e aceitou a responsabilidade pelas suas
próprias falhas, Ele pode fazer o que deve. Ele pode transformar
você.”
“Eu fiquei tão irritado e ressentido com ela, e, na verdade, eu sou
o culpado. Eu não tratei Raabe do jeito que ela merece porque meu
amor tem muitas condições e limitações.”
Josué levantou uma das mãos. “Mas espere. Não foi só você.
Raabe também tem sua parcela de culpa. Ninguém pode vir me
dizer que uma menina obrigada a fazer o que ela fez aos quinze
anos pelo próprio pai não tem cicatrizes na alma. Eu já te disse uma
vez, é isso que ela sente com você: que não é boa o bastante. Mas
para um casamento funcionar bem, o marido e a mulher precisam
reconhecer seu valor para Deus. Mas essa velha mágoa em Raabe
pode acabar. Pode até parecer improvável agora, mas Deus pode te
usar, Salmom, como uma influência benéfica na vida dela, mas isso
se você estiver disposto.”
Pensaremserusadocomoinfluênciabenéficapararestauração da
vida de sua esposa fez o coração de Salmom bater mais forte. Ele
queria isso mais do que tudo. As imagens de ela trocando suas
ataduras, limpando as feridas com paciência e purificando a
putrefação de seu corpo surgiram em sua mente. Ele conseguiria
fazer isso por ela? Ele conseguiria ajudá-la a restaurar seu coração
machucado? Mas Deus teria de agir naquele coração endurecido
antes, ensinando-lhe a amar de verdade e libertando-o de suas
amarras antes que pudesse usá-lo para ajudar Raabe.
“Tenho medo de decepcioná-la”, confessou ele.
“Pois tenha. Não espere que você ou ela sejam perfeitos, Salmom.
Os dois cometerão erros nesta jornada. O fato de passar por
obstáculos em alguns momentos não significa que o casamento de
vocês não dará certo. O que determinará o curso da sua união são
as reações diante dessas falhas. Agora, o que você acha de
orarmos e pedirmos a ajuda de Deus?”
Depois de orar por Salmom, Josué o deixou sozinho para pensar.
Já estava muito escuro e Salmom mal conseguia ver a palma das
mãos e a árvore definhada que estava diante dele. Uma fraqueza
permeou seus membros e ele não conseguia se levantar. Na
verdade, Salmom ainda não estava preparado para encarar Raabe.
Por força ou instinto, ele entendeu que apenas Deus poderia ajudá-
lo naquela batalha. Salmom sabia que, sem orações constantes, ele
ficaria desestimulado e distorceria as coisas. Quando ele começou a
orar, a imagem de Jericó surgiu em sua mente. Os muros de Jericó
— enormes, aterrorizantes, antigos
— invadiram seu pensamento com uma clareza incomum. Esta é
Raabe, pensou ele. Ela está presa entre muitos muros — o muro do
medo, da rejeição, da solidão, da indignidade.
Mas Deus derrubou os muros de Jericó porque Israel deveria
obedecer ao Senhor, e não ao próprio entendimento: ele deveria
obedecer a Deus. O Senhor derrubou os muros de Jericó porque
Israel persistiu: ele persistiria com sua esposa. Deus derrubou os
muros de Jericó porque Ele queria conceder aquelas terras a Israel:
Deus queria conceder Raabe a Salmom. Ele acreditava em sua
convicção sincera. A liberdade de Raabe fazia parte da vontade de
Deus, e aquela vontade os levava a conquistar as vitórias. Assim
como ele fora um guerreiro de Deus contra os muros de Jericó, ele
também seria um guerreiro de Deus contra os muros que prendiam
sua amada esposa. Ele demonstraria a mesma obediência,
paciência e persistência, a mesma vontade irredutível de conquistar
sua esposa, assim como mostrou na batalha contra as cidades de
Canaã. O soldado que havia nele sorria.
Na calada da noite, Salmom lutou contra os próprios julgamentos
em relação a Raabe. Certa vez, ele sentiu raiva de Inri por este não
reconhecer o valor da filha. Mas, naquele momento, percebeu que
ele mesmo deixou de valorizar sua esposa e de reconhecer o valor
dela por completo. Ele fez de Raabe duas mulheres: uma amável e
querida, e outra manchada pelo pecado e inaceitável. Ela ficou
chocada com aquela divisão sem saber como distinguir as duas
metades diante dele. Pelo fato de, em seu interior, estar tão
envergonhada e diminuída pelo seu passado, Raabe não tinha
forças para ir de encontro às recriminações implícitas de Salmom.
Ela as considerava justas e guardava para si mesma. Ela acreditava
que elas eram a verdadeira representação de si mesma.
Salmom queria amá-la da maneira certa. Ele queria conquistá-la e
fazê-la sentir-se segura. Ele queria remover os limites de seu amor
até que Raabe sentisse que pertencia a ele e que estaria segura
com ele. Por horas, ele orou para que Deus lhe ensinasse a amar
Raabe daquela forma. Salmom se arrependeu e confessou. Ele orou
até cansar. Depois de algumas horas, dormiu sob a sombra da
árvore na qual Deus lhe falou certa vez que ele poderia casar-se
com Raabe. Quando o sol brilhou alto no céu azul-claro, Salmom
voltou para casa. Pela primeira vez depois de dias, a alegria o
acompanhava a cada passo. Ele andou como um guerreiro cujo
objetivo é conquistar um território inestimável.
,.
Raabe deu um salto quando Salmom entrou na tenda deles. Já
era manhã. Ele não tinha chegado em casa durante a noite e ela
ficara pensando sem conseguir dormir com o passar das horas,
apavorada por achar que ele a havia abandonado. Discretamente,
ela observava o rosto bonito do marido. Ele lhe parecia
impenetrável. Independentemente do humor dele, ela não conseguia
decifrá-lo pela sua expressão. Raabe ficou paralisada ao vê-lo sem
saber a que atribuir a ausência na noite anterior. No entanto, antes
mesmo que ela falasse algo, ele foi diretamente em sua direção.
Salmom ficou muito perto, mas não chegou a tocá-la. Raabe
achou aquela aproximação muito imponente, e algo em si mesma
queria desesperadamente recuar e dar mais espaço entre eles. Ela
resistiu ao impulso sabendo que aquilo o deixaria irritado.
O silêncio dele a obrigou a falar. “Você... você comeu alguma
coisa? Você quer comer algo? Eu acabei de assar alguns pães.
Também tem truta defumada e queijo de cabra.”
“Deve estar uma delícia.”
Aliviada, ela se virou para ir buscar a comida. Ele a agarrou pelo
pulso e a aproximou de si. “Você pode preparar para nós dois?
Pensei que pudéssemos sair do acampamento e passar a tarde a
sós.”
“A sós?”
Seu sorriso se estendeu pelo rosto. Foi o primeiro sorriso que ele
dava em dias, e o coração de Raabe bateu mais forte ao ver aquilo.
“Então, essa é a ideia. Você, eu e a comida. Podemos ir até depois
da tenda dos feridos. Você costumava andar por ali, se lembra?”
“Si-si-sim.” O que era aquilo? Um pedido de paz? Encorajada,
Raabe retribuiu com um pequeno sorriso. Mas a semente de
esperança pareceu ter vida curta. Por quanto tempo aquela
aprovação duraria? Por quanto tempo antes de ela destruir tudo
com uma palavra ou uma atitude errada?
“Você gostaria de ajuda com a comida?”
“Não precisa, eu posso preparar. Obrigada.” Raabe se movia
lentamente enquanto recolhia um pacote, colocando nele pão de
cevada fresco, peixe, queijo e um pote com água. Ela não queria ir,
pois sabia que aquilo acabaria em decepção. Ela notou que sua
resistência não passou despercebida por ele; Salmom estava
bastante observador. Mas, mesmo assim, ele não pareceu
perturbado ou irritado. Sentou-se em um tapete assobiando com um
som baixo enquanto trocava as sandálias. Quando não pôde mais
adiar, ela foi até ele e levou o pacote.
“O almoço está pronto.” Raabe tentou fazer sua voz parecer
despreocupada.
“Ah, mas isso não vai dar certo.” “O quê?”, perguntou ela.
“Suas sandálias. São delicadas demais para uma caminhada fora
do acampamento. Acabarão estragando esses detalhes mais
frágeis. Venha aqui.”
Raabe o seguiu com o coração batendo mais forte. Ele fez um
gesto para que ela se sentasse mais perto, e ela obedeceu. Salmom
trouxe as sandálias de caminhada de Raabe e ela estendeu a mão
para pegá-las.
“Deixe que eu cuido disso.” Ele se ajoelhou diante dela e pegou
seu pé. Gentilmente, ele desamarrou as sandálias.
A garganta de Raabe secou e ela tentou livrar seu pé. “Meus pés
estão sujos.”
Ele segurou o calcanhar dela com firmeza, sem soltá-lo, enquanto
ela relutava. Vendo a determinação nos olhos do marido, ela ficou
parada. Ele deu um sorriso cheio de aprovação, tirou suas sandálias
e, limpando seus pés com um pano umedecido, colocou suas
sandálias mais resistentes.
“Não doeu tanto assim, doeu?” Por um momento, ele lavou as
mãos em um cântaro antes de se levantar. “Bem, minha esposa,
você vem ou vai ficar aí grudada no tapete pelo resto do dia?”
Raabe esqueceu que estava sentada, e uma espécie de confusão
invadira sua cabeça. Ele fez mesmo o trabalho dos escravos —
lavou os pés dela e colocou cuidadosamente suas sandálias? O que
ele seria capaz de fazer, seu marido que representava um mistério
para ela? O que ele estava fazendo em casa bem no meio do dia,
agindo como se não houvesse nada de errado entre eles? Onde ele
passara a noite anterior? Por que ele queria sair com ela? Pelo seu
jeito obstinado, ela suspeitava que não descobriria resposta alguma
até que ele estivesse preparado para falar. Raabe se levantou e seu
coração quase saiu pela boca quando Salmom segurou sua mão,
entrelaçando seus dedos com os dela. Ele reduziu o ritmo dos
passos imediatamente. “Desculpe-me. Eu sempre faço isso com
você. Força do hábito, eu acho. Miriã reclama que eu ando muito
rápido.”
Ele reduziu o ritmo e começou a andar em uma velocidade que
fosse melhor para Raabe. Enquanto caminhavam, ele entreteu a
esposa falando sobre seu trabalho e expondo os desafios das
instalações e da agricultura que aguardavam sua comunidade em
um futuro bem próximo. Ele a agradava o tempo inteiro e pedia a
opinião dela pensando em suas respostas com um interesse muito
sério. Quando eles saíram do perímetro de Israel, Raabe estava
mais calma.
Salmom escolheu um caminho que levava a um pequeno córrego
que fluía do Jordão. “Vamos para o outro lado. Há algumas acácias
bonitas, se me lembro bem.”
Raabe deu um passo à frente a fim de afundar o pé na água. De
repente, Salmom a segurou pela cintura e a levantou em seus
braços. “Você não precisa se molhar”, disse ele sorrindo.
Automaticamente, ela se sentiu tensa. Estar tão próxima dele era
uma tortura, e o rosto bonito de Salmom se abrandou. “Fique calma.
Eu não vou te machucar, Raabe.” Em sua voz, baixa e tranquila, não
havia ironia. O alívio tomou conta dela, alívio por saber que suas
reações estúpidas e incontroláveis não o afastavam, como
geralmente acontecia. Raabe não resistiu, mas também não podia
esperar de si mesma que colocasse os braços em volta do pescoço
dele.
Do outro lado do riacho, Salmom a colocou no chão deixando o
corpo dela escorregar pelo dele lentamente. O rosto de Raabe ficou
vermelho, mas, se Salmom notou algo, ele não chegou a comentar.
“O que você acha daqui? Podemos nos sentar naquela pedra sob a
acácia enquanto comemos.”
Raabe respondeu com a cabeça. Ela aceitaria se sentar até
mesmo em um monte de esterco se ele a tivesse levado, de tão
atordoada que estava por causa da atitude dele. Salmom entregou o
pão e o peixe a ela, mas Raabe sabia que não conseguiria comer.
Ela começou a sentir enjoo só de pensar na comida.
“Você precisa comer, está perdendo muito peso.”
Raabe não percebia a preocupação de suas palavras e apenas se
concentrava nas críticas implícitas. Ele achava que ela estava
ficando feia? Ele achava que ela estaria perdendo a vaidade? Ela
enfiou um pedaço de pão na boca e o engoliu com determinação.
Raabe se engasgou e tossiu algumas vezes.
“Beba isso”, disse ele entregando um copo cheio da água do
riacho. Ela bebeu um gole, depois outro, até parar de tossir. “Seria
bom se você mastigasse antes de engolir. Sabe mastigar? É quando
você leva os dentes para cima e para baixo por entre a comida.”
Raabe sorriu apesar de estar se sentindo uma tola diante daquele
homem. “Deve ser falta de prática. De qualquer maneira, você
perdeu peso. É bom ver você comer.”
Ele ficou mais cuidadoso e reflexivo com as palavras dela. “Não
tem sido muito fácil para nenhum de nós.”
“Não.”
“Raabe, eu te trouxe aqui porque queria conversar sobre nós. A
tenda nos traz muitas memórias complicadas. Para que ficássemos
mais à vontade, eu quis que viéssemos a um lugar onde
pudéssemos conversar abertamente.”
Ela sentiu náuseas ao pensar que teria mais uma conversa com
Salmom. Agora, ele a pressionaria para dar respostas que ela não
podia dar. “Ah, nós realmente precisamos fazer isso, Salmom?
Estamos passando um dia tão adorável. Não vamos acabar com
ele.” Ela se levantou e virou as costas para o marido. Tudo nela
queria correr — daquele lugar e daquele homem a sondando com
perguntas.
Por trás dela, Salmom falou aparentemente calmo e tranquilo.
“Não podemos fugir disso. Devemos encarar juntos. Eu não te culpo
por você se sentir assim. Eu cometi muitos erros, Raabe, e peço o
seu perdão.”
O coração de Raabe ficou apertado. Uma certeza dolorosa a
aterrorizou. Ele queria se livrar dela — se divorciar dela. Era por isso
que ele estava pedindo perdão. Foi esse o erro ao qual ele estava
se referindo. Não é de se espantar que ele tenha dormido fora e
chegado à tenda de bom humor. Ele já estava decidido. E quem
poderia culpá-lo? Toda Israel suspiraria aliviada. Ó Deus, eu não
posso suportar. Não posso.
“Por favor, não, Salmom”, pediu ela com o coração na mão.
De imediato, ele estava ao lado dela. “Não o que, Raabe? O que
é?”
Ela quase implorou para que ele não a abandonasse. Mas ela
teve uma vida cheia de súplicas e sabia que elas eram inúteis. Por
que se humilhar ainda mais naquele momento? Pelo menos uma
coisa que ela poderia tentar salvar eram os vestígios de seu orgulho
ferido. Raabe abaixou a cabeça derrotada buscando a Deus no
silêncio de seus pensamentos. Concede-me a coragem para deixá-
lo partir. “Você tem razão”, disse ela com voz arrasada. “É melhor
nos separarmos.”
Capítulo
Vinte e Um

O silêncio que foi ao encontro de sua frase chocante guardava um


trovão nefasto. Raabe ficou surpresa ao ver a expressão de
desespero no rosto de Salmom. Ele ficou pálido, e uma fina camada
de suor surgiu em sua testa. “Por que você está falando em
separação? Eu nunca falei nada sobre isso.”
“Mas é nisso que você esta pensando. Tudo bem. Eu não te culpo.
Eu acho que não existe outra solução.”
“Eu nunca pensei nisso. Nunca pensei nessa hipótese e nunca
vou pensar.”
Ele nunca havia pensado nisso? Raabe se deu conta com um
certo espanto maravilhado de que havia o magoado com sua
suposição. Ele estava chateado por saber que ela queria terminar o
casamento. E por que ela pensara nessa hipótese tão cruel? Fora
em nome de seu orgulho. Raabe reagiu como sempre reagia às más
surpresas da vida. Ela escondeu seus verdadeiros sentimentos por
trás de uma falsa força e, com isso, magoou o homem que deveria
amar e proteger. Para se livrar, ela o magoou.
“Eu... eu não quis dizer isso”, murmurou ela com a voz rouca de
tanto arrependimento. “Eu pensei que você queria; foi por isso que
eu disse.”
Salmom respirou fundo. Ela viu o peito dele se enchendo de ar e
crescendo, contendo-o como uma bolha prestes a estourar e,
depois, expirando; além do ar, ela pôde sentir a tensão
abandonando alguns de seus traços. “Venha comigo. Venha e
sente-se ao meu lado.”
Enquanto ela o seguia, Raabe começou a entender que ele não
queria a separação. Salmom não queria abandoná-la. Ela foi
tomada pelo alívio a ponto de lhe inebriar os sentidos. Raabe o
amava tanto que pensar em perdê-lo era pior do que a morte.
“Raabe”, Salmom começou a falar quando eles se sentaram cara
a cara. “O que te fez pensar que eu queria me separar de você?”
“É que as coisas estão muito difíceis entre nós.”
“Sim, e parte disso é minha culpa. Mas não é porque o nosso
relacionamento está difícil agora que eu irei terminar. O que eu
desejo é melhorar e viver o casamento que Deus quer que nós
vivamos.
Alguns dos nossos problemas aconteceram por minha causa. Eu
errei com você, Raabe. Eu não tive a intenção, mas isso não muda
as consequências. Eu estabeleci um limite para você e sinto muito
por isso. Eu nunca deveria ter falado que queria me esquecer do
seu passado, foi uma bobagem. Agora eu entendo que te coloquei
em uma situação impossível. O que eu quero é recomeçar.”
Raabe escondeu seus pensamentos. O que ele falou no dia do
casamento foi um vislumbre de seus verdadeiros sentimentos. Com
aquelas palavras, ele mostrou que não poderia suportar os pecados
dela ou os pecados cometidos contra ela. Aquelas palavras
representavam os verdadeiros sentimentos de Salmom. “Eu gostaria
que isso fosse possível”, disse ela sem pensar direito. “Mas não vejo
saída. Você não pode mudar seu coração nem pode mudar seus
sentimentos apenas porque quer. O meu passado não será
apagado. Como eu gostaria que fosse! Mas ele sempre estará entre
nós.” Dizer isso em voz alta fez Raabe se sentir mais sem
esperanças do que nunca.
Salmom se inclinou em direção a ela. “Quem disse que meu
coração não pode ser mudado? Deus não mudou o seu? Eu não
posso mudar a mim mesmo, é verdade. Mas Deus pode me
transformar assim como Ele transformou você.”
“Eu sou a mesma de sempre. Como fui transformada?”
“Sua vida está sendo vivida de forma diferente, e isso mostra a
mudança da sua alma. Você não vê que seu desejo intenso por
Deus mostra o quanto Ele te transformou de dentro para fora?
Confie em Deus se você não pode confiar em si mesma.
Certamente, você não acredita no meu amor — eu sei disso. Você
acha que ele fracassará, e que chegará ao fim a decepcionando
assim como seu pai fez com você.”
Nunca ocorrera a Raabe que a falha de seu pai se refletiria na
relação com seu marido. Ela seria mesmo, como fora insinuado,
incapaz de confiar em Salmom porque, quando confiou em seu pai,
ela aprendeu que nenhum amor dura para sempre? Ela estaria
castigando o próprio marido pelos pecados de seu pai? Raabe
apoiou a cabeça entre as mãos e suspirou.
Salmom estendeu a mão e mexeu no queixo dela. “Vai ser preciso
mais do que palavras, eu sei. Você é minha Jericó, terei que ser
muito persistente para te conquistar.”
“De que você me chamou?”, ela se desviou dele. “É um nome
especial para você.”
“Eu não quero ser chamada assim”, ela reclamou com frieza e se
sentiu ofendida pela comparação a uma cidade tão decrépita.
“Você não quer saber o porquê de eu te chamar assim antes de
me proibir?”
“Não! Sim.”
“Foi uma imagem que Deus me mostrou. Talvez você não saiba
disso, mas, para Israel, conquistar Jericó era praticamente
impossível. Os muros eram muito altos.” Ele mexeu a cabeça.
“Como subiríamos? Como os derrubaríamos? Por fim, Deus fez
tudo. Nossa missão era marchar dia após dia, ignorando os
sentimentos de desânimo e persistindo ao fazer o que Ele nos
mandou fazer. Aqueles muros vieram abaixo não por causa da
nossa força, mas sim por causa da força de Deus.
“Você é a cidade dentre os muros, Raabe. Devido ao meu
preconceito e amor limitado, não tive recursos para te conquistar de
imediato. Mas Deus está trabalhando em nós dois. Ele está me
transformando à medida que busca transformar você.”
“Então, você se vê como o homem que Deus escolheu para
derrubar minhas defesas. É isso?”
“Se eu permitir que Ele faça. E se você permitir que eu faça.”
“Parece doloroso demais. Você esqueceu de que eu estava lá
quando os muros de Jericó foram destruídos. Você quer que eu
passe por isso?”
“Se isso significa que você será restaurada, sim.”
Raabe se inclinou para trás com o coração batendo forte. Ela se
encolheu levando os joelhos ao peito e os apertou com os braços.
“O que você quer fazer?”
Salmom olhou para ela de forma decidida, a perfurando com a
precisão de uma das facas de Zufe. “O que for preciso.”
O medo tomou conta de Raabe e ela sentiu que estava ficando
pálida. “Não sei se posso fazer isso, Salmom.”
“Você não precisa fazer nada além de aprender a confiar em mim.
Aquele que abriu as águas do rio Jordão tem poder suficiente para
restaurar nosso casamento. Eu não pretendo desistir, e com o
tempo você vai aprender a acreditar nisso.”
Havia uma determinação que o cobria como se fosse uma
segunda pele. A força de Salmom acabou com a dúvida de Raabe e
ela teve a sensação de que sua vida mudaria para sempre.
Salmom se levantou e estendeu a mão para ela. Raabe a segurou
sem hesitar. Ele a levantou em um movimento rápido, o que a fez
perder o equilíbrio e se apoiar no peito dele. Seus braços a
envolveram por um momento maravilhoso, segurando-a, e, em
seguida, logo que ela conseguiu recuperar o equilíbrio, Salmom a
soltou. A distância fora um alívio para ela, que precisava de um
espaço entre eles para se sentir segura. Embora ciente das
emoções dela, Salmom não insistiu em carregá-la para atravessar o
riacho daquela segunda vez. Abstendo-se de comentários, ele a
deixou entrar na água e molhar os pés.
Raabe pensou aliviada que, por enquanto, estava acabado, e que
aquela ideia de ele destruir suas defesas estaria aquietada pelo
menos pelo restante do dia. Ela achou que havia interpretado mal
seu humor tranquilo.
“Meses atrás, quando vocês estavam querendo se unir a nós,
Miriã me falou sobre o seu pai. Foi ele quem pediu para você virar
uma zonah, se não me engano, quando você tinha quinze anos, não
é?”
Raabe se endureceu perto dele com o coração quase saindo pela
boca. Por que ele estava falando sobre aquilo? “Sim.”
“Você quer me contar como foi?”
Como marido, ele tinha todo o direito de perguntar o que quisesse
a ela. O que haveria de mal em contar a ele? De qualquer maneira,
ele já sabia o pior. Não foi ela quem insistiu em revelar os fatos de
sua vida antes de se unir a Israel? Ela não arriscou seu futuro em
nome da honestidade? Então, o que a impediria naquele momento?
Com Miriã, Raabe dizia apenas o que queria. Ela permanecia no
controle, falando a verdade, mas dosando-a. Os fatos sobre os
quais ela falava não revelavam seu conflito interior nem sua
vergonha. Aquilo seria difícil demais. Raabe sentia como se tivesse
magoando a si mesma ao ter de dizer tudo. Mas Salmom queria
saber; entender o que se passava na alma dela.
Raabe pensou na decisão de seu pai naquele dia fatídico, a
decisão que mudara o rumo de seu futuro. Ela ainda tremia ao se
lembrar. Seu próprio pai a considerava descartável. Com uma
clareza inesperada, Raabe percebeu que tinha aprendido a
concordar com ele. Sua mente o acusava por ter pecado contra ela
e o responsabilizava por uma violência que ela jamais cometeria
para com um filho. No entanto, no fundo, ela se deu conta de que
acreditou na conclusão de seu pai. Ela era descartável. Ela merecia
ser descartada, e temia que Salmom percebesse isso ao ouvir sua
história. Se seu próprio pai não teve consideração por ela, por que
Salmom, depois de ouvir tudo, acharia que sua esposa era digna de
valor?
Enquanto eles andavam pelo deserto em direção ao
acampamento de Israel, ela sentiu o calor do corpo dele e o seu
braço tocando levemente no dela, sentindo a dependência
incontestável de sua força. Salmom esperava pelas respostas com
uma paciência incomum.
Ele queria que ela confiasse nele. Mesmo depois de confessar
que seu amor era limitado e que talvez não conseguisse entender a
destruição de sua vida no passado, ele queria ter a confiança dela.
Não, ele não. Deus. Ele queria acreditar que Deus estava
trabalhando nele e nela.
Era uma questão de fé, então? No passado, ela arriscou sua vida
em nome da fé. Raabe havia se convencido totalmente de que o
Senhor derrubaria os muros de Jericó e faria o povo de Israel
conquistar seus inimigos. Ela não poderia deixar de acreditar que
aquele Deus era grande o bastante para conquistar o seu coração e
o de Salmom.
As escolhas, então, eram as seguintes: confiar em Deus ou confiar
no medo monstruoso do coração dela. E Salmom tinha de fazer a
mesma escolha. Era preciso que os dois se dedicassem para que o
casamento desse certo. Raabe não poderia controlar as escolhas de
Salmom, mas poderia controlar as próprias.
Ela parou no meio do caminho. “Eu vou te contar, Salmom. Vou
falar sobre o que você quiser saber em relação ao meu pai.”
Os olhos de Salmom se encheram de ternura. Ele a levou para
uma pedra e os dois se sentaram sob o sol da tarde, pois não havia
árvores por perto. Com frases quebradas, lentamente Raabe foi
contando sua história. Ela evitou olhar para os olhos do marido com
medo de ver frieza ou distanciamento. Ela falou sobre o pai e sobre
as circunstâncias que influenciaram em sua decisão decepcionante.
Ela não falou muito sobre Zedeque, o homem que contratara seus
serviços quando ela estava apenas com quinze anos; ela sabia que
ele teria seu dia de prestação de contas. Salmom não deixaria
aquele assunto passar despercebido, imaginou ela. No entanto,
naquele momento, ela só tinha forças suficientes para falar sobre a
escolha de seu pai e de seu papel nos acontecimentos que se
seguiram.
Salmom ouviu sem interromper, exceto quando fazia algumas
exclamações. Quando Raabe revelou que se recusara a trabalhar
no templo, embora aquilo pudesse facilitar muito sua vida, ele
afirmou: “E mesmo assim você resistiu à idolatria. Não é de se
admirar que Deus tenha separado você para Ele”.
Era a primeira vez que Raabe contava sua história para alguém.
Era purificante falar sobre o assunto, mas outras emoções
maculavam o alívio. Exaustão. Vergonha. Culpa. Ela se sentiu
exposta e vulnerável. Mantendo o corpo rígido, Raabe se afastou de
Salmom. Separar-se dele por escolha própria não doeria tanto
quanto ser rejeitada.
“Pare com isso”, vociferou ele. “Pare de se afastar de mim.”
Salmom a abraçou. “Fique comigo.”
Raabe se recostou em seu peito com o coração batendo mais
forte. Salmom não havia se ofendido. Embora soubesse que ela
havia se entregado à proposta do pai sem nem ao menos implorar
para que ele mudasse de ideia, ele não a julgou. Ela ajudara seus
pais para que eles pudessem ficar com os maiores benefícios
financeiros. Salmom sabia disso e, ainda assim, a abraçava com
seus braços macios cheios de ternura.
Com um movimento acanhado, Raabe tomou a atitude mais
corajosa de toda sua vida. Ela estendeu sua mão para pegar a mão
do marido. Isso lhe custou mais coragem do que quando ela
escondeu os espiões de Israel, protegendo-os dos soldados do rei.
Foi preciso cada milímetro de sua força interior para fazer aquele
movimento em vez de esperar que Salmom o fizesse.
Ele agarrou os dedos de Raabe com uma força que quase
esmagou suas mãos. “Minha esposa corajosa”, sussurrou ele e a
beijou. Salmom a beijou sem soltar sua mão trêmula, até que ela se
entregasse a ele.
,.
Era sábado e Israel descansava. Ninguém cozinhava. Ninguém
trabalhava. Raabe aprendera a adorar o sábado, apesar de, nos
primeiros dias depois de ter saído de Jericó, ficar um dia inteiro sem
fazer nada com tantas tarefas pendentes parecesse mais frustrante
do que reconfortante. Com o tempo, ela entendeu que o sábado era
uma expressão do carinho de Deus para com ela. Depois disso,
descansava com prazer independentemente das coisas importantes
que ela teria de ignorar.
Então, ela se sentou sob o sol fraco do outono com as pernas
esticadas e começou a recitar tranquilamente o Shemá enquanto
cobria os olhos com a mão direita: Ouve, ó Israel, o Eterno é nosso
Deus, o Eterno é Um.
A terra se mexeu levemente. Por baixo de sua mão, Raabe abriu
os olhos. Aquilo era estranho; nunca acontecera das outras vezes
que havia recitado o Shemá. Distraída, ela começou mais uma vez.
Ouve, ó Israel...
A terra se mexeu novamente, mas dessa vez com mais força. O
grito de Salmom enquanto ele saía correndo da tenda fez Raabe se
esticar. “É um terremoto!”
A terra voltou a tremer, e daquela vez tremeu sem dúvida alguma.
O terror dominou seus sentidos; distraidamente, ela percebeu que
as ovelhas estavam se perdendo, saindo dos estábulos pela força
dos tremores. Os gritos ficaram mais fortes ao redor deles.
Salmom se atirou ao lado de Raabe e a abraçou. “Está tudo bem.
Está tudo bem.”
Protegida entre os braços do marido, ela começou a sentir que o
medo a deixava. Raabe sabia que Salmom não tinha poder algum
de controlar a terra e não poderia fazê-la parar de tremer. No
entanto, sua presença a fez sentir-se protegida. Ela se agarrou a ele
com força por algum tempo.
“Acho que acabou”, disse Salmom se afastando um pouco. “Você
está bem?”
“Sim. E você?” Salmom respondeu distraidamente que sim com a
cabeça enquanto observava os arredores. “Não parece ter causado
muitos prejuízos. Foi um pequeno terremoto.”
Uma das ovelhas perdidas cheirou o ombro de Raabe. Ela riu, e o
alívio fez sua voz ficar mais relaxada. “Ela quer voltar para casa.”
Salmom sorriu e acariciou a ovelha. “Vai ser uma tarefa difícil
agora. Felizmente, as ovelhas conhecem a voz de seus pastores.
Mas hoje ainda é sábado. Elas vão ficar soltas, isso não vai lhes
fazer mal. Cuidaremos delas depois que o sol se pôr.”
“Alguém deveria ter avisado à terra que hoje é sábado”, disse
Raabe ironizando, indignada pela interrupção repentina de suas
orações do dia de descanso. “Ela acha que pode fazer essa
barulheira no Dia do Senhor.”
Salmom sorriu levemente. Ele abraçou Raabe mais uma vez e
uma sensação de paz a invadiu. O próprio Salmom era uma força
muito parecida com um terremoto, abalando seu mundo. Ainda
assim, ninguém a fazia sentir-se tão protegida quanto seu marido.
,.
Pouco tempo depois, a paz no lar de Salmom Ben Nahshon teve
um fim. Ele havia tido muitos dias difíceis no trabalho ao lidar com
uma disputa entre dois homens teimosos que ameaçavam a
tranquilidade na tribo de Judá. Suas horas estavam sendo longas e
cheias de conversas penosas que faziam seu corpo se arrepiar da
cabeça aos pés. Salmom detestava aquele lado de seu trabalho
como chefe dos mil homens. Ser mediador o desgastava e quase
acabava com sua paciência. Sem se dar conta, ele levou uma parte
de sua frustração para casa; aquilo não saía de sua cabeça. As
muitas horas de trabalho interferiam em seu momento de oração, e
por estar desgastado física e emocionalmente, Salmom estava
propenso a brigar com sua esposa em um momento em que
estivesse desprevenido.
No meio da noite, um grito o acordou. Devido aos instintos de
guerreiro, ele se levantou com uma precaução instantânea. Salmom
percebeu que o grito era de Raabe, que estava tendo um pesadelo.
A princípio, ele mexeu gentilmente na esposa, e depois com mais
força quando viu que ela não acordava. “Raabe! Raabe!”, chamou
ele com uma expressão de preocupação. Ela acordou com um
soluço, e Salmom se inclinou para pegar uma candeia que estava
perto. Raabe tremia e estava coberta por uma camada de suor. Ele
tocou na testa dela e percebeu que sua pele estava muito gelada.
Seus olhos, enormes e vagos, olhavam para o nada.
“Foi um pesadelo”, disse ele abraçando-a gentilmente.
Preocupado, ele notou que ela estava fria como gelo. Puxando uma
ponta do cobertor para aquecê-la, ele a envolveu tentando dar uma
sensação de segurança ao seu corpo, que ainda tremia.
Ela concordou com a cabeça. Ele a abraçou envolvendo-a como
se ela fosse uma criança. “Foi sobre o quê, você pode me contar?”
Raabe se endureceu e se afastou. “Não foi nada. Costumo ter
muitos pesadelos.”
“Fale sobre este.” “É melhor não.”
Salmom deixou escapar um suspiro de irritação. Eles estavam
vivendo uma trégua depois da conversa no deserto algumas
semanas antes. Ele não a pressionou a contar mais detalhes sobre
seu passado. Porém, apesar da recente relação amistosa entre os
dois, Salmom esperava mais confiança da parte dela. O que ele
teria de fazer para conquistá-la?
“Quem estava no pesadelo?”, insistiu ele.
Raabe mexeu nos lábios. Salmom percebeu que sua pele estava
seca. “Zedeque.”
Ele reconheceu imediatamente o nome. “O ourives. Aquele para
quem seu pai te vendeu.”
“Por um tempo.”
“Ele abusou de você?” Por mais que tentasse, ele não conseguia
transmitir tranquilidade na voz. Havia algo a mais em cada palavra.
“É por isso que você tem pesadelos com ele?”
“Não. Ele... foi bastante gentil.”
“Entendo. E é por isso que você acordou gritando no meio da
noite.”
“Acordei gritando porque eu não o queria! Eu não o queria, mas fiz
o que ele pediu. Exatamente tudo que ele pediu, você entende?
Recompensei todas as moedas que ele pagou. Não me recusei a
fazer nada.” Ela tirou o cobertor, mexendo-se com agitação, e não
mais com medo.
Salmom sentiu seu corpo gelar. Tarde demais, ele se deu conta de
que não estava pronto para aquilo. Ele não estava preparado para
amar a esposa em troca de suas escolhas brutais. Imaginar que ela
obedeceu sem resistir o deixava louco. Ela aceitara a situação.
Salmom tentava sentir compaixão por ela, mas o melhor que podia
fazer era silenciar as palavras acusadoras que ameaçavam sair de
seus lábios.
“E depois, quando os três meses se passaram, ele me descartou
sem olhar para trás.” Ela cobriu o rosto com as mãos e começou a
chorar. “Ele não me quis mais.”
O coração de Salmom bateu tão forte que ele mal conseguia ouvir
a própria voz. “Você o amava? É isso que está me dizendo?”
Ela levantou a cabeça com o rosto gélido e manchado pelas
lágrimas. “Amar? Ele me dava nojo.”
“Eu pensei”, disse ele com a voz fria como o gelo, “Eu pensei que
se livrar de um homem como esse seria um alívio, e não motivo
para chorar. Eu não te entendo, Raabe.”
Ela se jogou na cama como se as pernas não aguentassem mais
sustentar o corpo. “Eu não o amava, mas era melhor ter ficado com
um homem só do que ficar com vários. No fim das contas, acho que
eu não era boa o bastante para ele. Zedeque estava satisfeito
depois de três meses comigo.”
A cabeça de Salmom ficou extremamente confusa. Pensar em
outro homem tocando em sua mulher enquanto ela não se
manifestava o deixou enjoado, e pensar que ela estava agoniada
por causa daquela rejeição o irritou. Raabe deveria ter pensado em
maneiras de fazer Zedeque desistir dela, e não ficar tão deprimida
devido ao fim da relação. Salmom sabia que deveria confortá-la
naquele momento, mas não conseguiu. Sem falar nada, ele pegou
um manto para vestir mais tarde e saiu. Apesar de ter ficado
arrasado com o choro de Raabe, ele continuou seguindo em frente.
Ao chegar à estrebaria das cabras, ele se sentou no chão
apoiando-se na cerca. O cheiro forte de estrume quase invadiu seus
sentidos. Salmom sentia mal-estar devido à confusão que o abatia
como uma tempestade de vento. Fechando sua mão cheia de calos,
ele socou o chão uma, duas, três vezes, até que a dor o trouxe à
realidade, fazendo-o parar.
Ele se encolheu levando os joelhos à barriga e apoiou neles sua
cabeça. Por poucos minutos, continuou sentindo raiva de Zedeque,
de Inri, de Raabe e da vida. De Deus. Por que Tu fizeste isso
comigo? Por que Tu a deixaste viver daquela maneira? Por que Tu a
trouxeste para minha vida?
O silêncio foi ao encontro de sua fúria. Salmom engoliu em seco
tentando evitar que as lágrimas corressem. Pouco a pouco, ele foi
parando de sentir o calor da ira. Salmom parou de reclamar e
começou a falar. Depois, a ouvir. Quando começou a orar, seu
coração mudou e ficou mais tranquilo. Salmom percebeu que,
sempre que lutava aquela batalha, ganhava mais uma parte da
terra. Ele nunca voltava para onde estava antes. As coisas pareciam
acontecer com ele como da primeira vez — as mesmas acusações,
o mesmo amor condicional. Mas quando ele os superava, como
naquele momento — sendo guiado por Deus e com Ele — Salmom
sabia que seus sentimentos passavam por uma mudança
verdadeira. Uma mudança permanente. Depois de algum tempo, ele
voltou para a tenda e para sua esposa, que continuava chorando no
chão, perto do cobertor amarrotado.
Seu coração ficou apertado ao vê-la. Houve tantas ocasiões nas
quais ela deve ter chorado — chorado muito. A guerra, a destruição
de sua terra, a mesquinhez dos novos vizinhos, seu amor secreto
por ele. Ainda assim, ela foi comedida em relação às suas lágrimas.
Naquela noite, ela chorava como se não fosse mais parar.
Ele se ajoelhou perto dela e disse: “Perdoe-me, Raabe”.
Ela mexeu a cabeça e chorou ainda mais, e ele sentiu como se
seu choro o despedaçasse por dentro. “Você não vai me perdoar?”
“Não. Quero dizer, sim. Não há nada para perdoar.”
“Mas é claro que há. Não te apoiei como deveria, mas agora eu
estou aqui. Não sou como Zedeque, viu? Estou de volta para ficar
com você.”
Ela mexeu a cabeça novamente sem dizer nada.
“Raabe, para mim é difícil ouvir você falar sobre outros homens,
não posso negar isso. E esta noite foi ainda mais difícil, pois estou
exausto e porque não orei. Isso não é desculpa — é mais uma
explicação. Fiquei com raiva quando eu não deveria ter ficado, e o
pior é que provavelmente farei isso outras vezes. Mas, minha
querida, eu voltei. Estou aqui e quero você. Eu te quero para
sempre, e não sou Zedeque.”
“Por favor, Salmom, podemos esquecer isso? Vamos voltar a
dormir.”
A expressão amedrontada no rosto de Raabe mostrou a Salmom
que ele teria de encerrar o assunto aquela noite. Ela estava muito
frágil para entender o que ele dizia e para internalizar a verdade em
suas palavras. Ele se afastou sentindo-se um pouco perdido. No dia
seguinte, ele conquistaria aquele terreno e mais. Josué havia
avisado que ele fracassaria com Raabe, e que ela também o faria
com ele. A vitória, lembrou-se Salmom, não tinha muito a ver com a
perfeição entre os dois. Em vez disso, a vitória surgiria de suas
reações diante das derrotas.
“Tudo bem. Conversamos em outro momento. Venha para a
cama.” Ele queria, com um desejo ardente, pegá-la no colo e levá-
-la para a cama, que agora estava fria. Mas sentiu que, no estado
em que ela se encontrava, nenhuma forma de intimidade a faria
sentir-se menos perturbada.
Com movimentos estranhos, ela voltou para a cama. Contendo-se,
ele teve um autocontrole imenso para não ajudá-la a levantar-se ou
segurá-la. Ele se deitou perto dela tomando cuidado para evitar o
contato físico, e não tinha intimidades com Raabe desde suas
tentativas frustrantes e estranhas nos primeiros dias de casados. A
história que Raabe havia lhe contado sobre seu pai o convencera de
que ele precisava merecer a confiança dela antes de sua cama de
casal virar um lugar mais acolhedor aos dois. Portanto, ele conteve
seus desejos. Ainda assim, Salmom deu algumas investidas para
ensinar à esposa a gostar de seu toque. Suas carícias ocasionais
não a faziam mais ficar paralisada, e ele já sentia o corpo dela reagir
quando ele beijava seus lábios. Naquela noite, ele havia perdido
uma parte da terra. A perda o desgastava, pois ele sabia que era
por sua culpa. Salmom jurou com determinação que recuperaria o
que perdera.
Ele levou um tempo considerável para dormir. Quando acordou,
era tarde. Seu café da manhã já havia sido recolhido e sua esposa
tinha saído.
Capítulo
Vinte e Dois

R aabe precisou de todo o seu autocontrole para manterse


parada quando se deitou ao lado de Salmom. Ela não
conseguiu descansar e se sentiu apavorada pelos acontecimentos
da noite anterior. Era suficientemente humilhante acordar gritando
como uma louca, e seu marido deve ter pensado que estava sendo
atacado por cananeus na cama antes de perceber que era apenas
sua esposa travando uma luta difícil contra seus pesadelos. Como
pensar não era o bastante, ela falou sobre suas desgraças.
Pobre Salmom. Até quando um homem honrado aguentaria? Ele
não expressou sua ira, mas ela sentiu que sua raiva crescente o
acompanhava. Ele havia saído de perto dela e estava chateado.
Raabe sabia que ele voltara sentindo-se culpado e mal por tê-la
deixado chorando. Sua determinação bem-intencionada de ficar
com ela fez com que ele voltasse, mas ele vira um vislumbre de seu
verdadeiro coração, e nenhuma boa intenção poderia servir como
desculpa para isso. Em um momento de fraqueza, ela revelou sua
verdadeira natureza para ele. Salmom foi confrontado com a terrível
verdade de que sua esposa era uma prostituta tanto no corpo
quanto na alma. Não era bom ficar com ela. E, naquele momento,
ele percebeu isso; apenas o arrependimento o mantinha ao lado
dela, dormindo até a madrugada.
Raabe começou a orar com um desespero silencioso, dizendo
palavras que ela já sabia bem. Bendito és Tu, nosso Deus. Mas ela
não conseguiu se concentrar nas bênçãos comuns; os lamentos em
seu interior precisavam ser expressos do seu modo. Senhor, minha
esperança acabou — acabou. Sou uma decepção e estou distante
do meu marido, do meu futuro e do Teu amor. Mas Tu podes
restaurar a minha vida. Tira-me desta sepultura de desespero:
conceda-me uma vida e uma esperança novas, eu peço.
Suspirando, ela se levantou sem fazer barulho para preparar o
café da manhã de Salmom, e depois saiu da tenda com os pés
descalços, carregando as sandálias nas mãos para ter a certeza de
que não o acordaria.
Felizmente, ela havia combinado com antecedência de encontrar-
se com Miriã, o que lhe deu a desculpa perfeita para evitar falar com
seu marido novamente. Antes de sair, ela deixou um recado com o
servo sonolento que alimentava as cabras, para que dissesse a
Salmom o que ela iria fazer. Como uma covarde, Raabe escapou
antes que Salmom tivesse a chance de começar uma nova
discussão. Ela não queria vê-lo e, durante aquele dia, ela teria um
refúgio. Depois, precisaria voltar para ele e suportar o fardo de seu
desprezo velado.
Duas vezes por semana, sem falta, Miriã preparava comida,
remédios e ataduras para sair do acampamento de Israel e ir até a
tenda dos doentes. Ela ajudava qualquer um que estivesse por lá, e
muitas vezes nunca os tinha visto antes. Os membros da família,
exaustos pelos intermináveis cuidados, aceitavam a colaboração de
Miriã com alívio. Zufe e outros médicos respeitavam as habilidades
da jovem e confiavam alguns casos complicados a ela.
Durante seus longos dias cuidando de Salmom, Raabe também se
sentiu atraída pela tarefa de cuidar dos doentes. Ela descobrira que
tinha talento, e saber que poderia ser útil para outro ser humano a
maravilhou. Saber daquilo ajudava a superar qualquer repugnância
à doença, e então ela pediu para se juntar a Miriã em suas visitas
semanais aos doentes, e aquele seria seu primeiro desafio.
Miriã foi correndo ao encontro dela logo que a viu e deu um
abraço que faria qualquer um se sentir bem-vindo. “Eu senti tanto a
sua falta.”
Raabe sorriu, separando em um canto de sua cabeça os
pensamentos relacionados ao marido, desejando livrar-se deles o
quanto antes. “Mas nós nos vimos anteontem.”
“Tempo demais. Você tem ideia do quanto eu sempre quis ter uma
irmã?”
Raabe gostava muito de quando Miriã se referia a ela como irmã e
de quando ela mostrava preferir sua companhia em vez das outras
mulheres. “Bem, minha irmã, você está pronta para curar algumas
pessoas doentes?”
“Curar, é isso mesmo? Você estabeleceu grandes objetivos para o
primeiro dia.”
“Acho que você consegue fazer isso.”
Miriã revirou os olhos. “Até o fim do dia, eu vou é te dar um
remédio para diminuir essa sua alta expectativa.”
A disposição da tenda dos doentes intrigou Raabe logo que ela
entrou. Feita de pele de animal tingida com um tom escuro de cinza,
a tenda era uma das maiores que ela já tinha visto. Por meio de
aberturas nas paredes da tenda, o ar fresco circulava pelo espaço.
Cada abertura tinha uma aba que poderia ser fechada quando
estivesse frio ou a temperaturas severas. Fileiras de esteiras bem
cuidadas se alinhavam ao chão de forma ordenada, separadas em
alas por cortinas feitas de pelo de cabra. Os pacientes ficavam em
alas específicas de acordo com sua doença. Naquela tenda, havia
uma sofisticação que fazia a tenda dos feridos parecer minúscula.
Surpreendentemente, poucas esteiras estavam ocupadas, dado o
tamanho da população de Israel. Algumas pessoas inválidas
gemiam de dor, e seus lamentos já estavam fracos. Outras se
sentiam bem o bastante para carregar seu fardo em silêncio. Ainda
havia outras que dormiam, refugiando-se na inconsciência. O
coração de Raabe amoleceu ao ver o sofrimento deles.
Um cheiro estranho invadiu a tenda — um misto de incenso que
constantemente era queimado como higienizador combinado a um
mau cheiro de suor, urina e comida estragada. Apenas aquele
cheiro acabaria com as esperanças de qualquer um. Ao lado da
maioria dos pacientes, os membros da família se agachavam com
olhos cheios de preocupação e falta de sono.
Miriã, já acostumada com a aparência e os sons da tenda, parecia
imune a tudo.
Raabe sentiu que a vontade de cuidar deles não a havia
abandonado. Com passos rápidos e intuitivos, ela aprendia a fazer
novas coisas a toda hora. Ela percebeu que Miriã era bem recebida
em todos os lugares que ia, mesmo quando estava com estranhos.
Em meio aos doentes ela havia conquistado uma reputação, e os
pacientes que já estavam lá há mais tempo a recomendavam aos
recém-chegados. “Miriã, de Judá, é a melhor pessoa para cuidar
dos doentes. Será abençoado se ela cuidar de você.”
O respeito de Raabe pela jovem que ela chamava de irmã crescia
à medida que ela observava suas ações cuidadosas. Miriã não tinha
de estar lá, mas ela escolheu ajudar os mais necessitados daquela
sociedade. Não havia culpa por trás de sua bondade. Raabe
desejou ter pelo menos a metade daquela bondade e ternura, assim
como sua nova irmã.
No caminho de volta ao acampamento, já à tarde, Raabe falou
sobre sua admiração tentando expressar o grande respeito que
sentia pela grande mulher que Miriã era.
“Acho que você está enganada”, respondeu ela rindo daqueles
elogios. “Você fala como se, de alguma forma, eu não estivesse
vivendo o destino de Adão e Eva, e tivesse chegado a este mundo
quase perfeita. Mas isso é uma grande mentira. Minhas falhas
encheriam um templo.”
“Ah, por favor! Que falhas?”
Miriã parou de andar. “Você está falando sério?”
“Claro que sim. Você é pura e boa, e não é orgulhosa. Você nunca
me julgou, mesmo sabendo tudo sobre mim. Além disso, é
engraçada, bonita, bondosa, receptiva. O que mais você quer?
Todos gostam de você, e você tem um monte de admiradores.”
“Eu gosto muito disso. Na verdade, inconscientemente eu muitas
vezes me preocupo com o que os outros pensam de mim. E isso,
minha irmã, é uma forma de orgulho que Deus desaprova. Eu
deveria me empenhar para agradar a Deus e gastar menos tempo e
esforço tentando conquistar os elogios daqueles que estão à minha
volta. O Senhor tem uma ou duas objeções quanto a ficar em
segundo lugar.
Você disse que eu não te julgo. Como posso fazê-lo se estou
condenada à minha própria idolatria? Raabe, você não sabe que,
quando Deus pede o sangue nos sacrifícios para cobrir as
impurezas e a rebelião do povo de Israel, Ele está pensando em
mim e em você também? São os padrões de Deus que regem o
meu coração, e não uma ilusão de justiça inventada por mim para
fazer o que faço. E, diante desses padrões, eu falho todos os dias.”
Raabe demonstrou incompreensão em seu rosto. “Você está
exagerando. O que foi que você fez de tão errado assim? Por outro
lado, a minha vida... você não pode se comparar a mim.”
“E não estou comparando. Eu me comparo ao padrão sagrado
que Deus estabeleceu para nós. O seu problema é que você se
compara a mim, e, com isso, acha que é uma fracassada. Mas o
seu padrão está distorcido. De certa forma, cada um de nós está
decadente diante de Deus, e a maravilha está nas distâncias que
Ele percorre para salvar todos nós de nossa decadência.”
As duas caminharam em silêncio pelo restante do caminho, cada
uma envolvida em seus pensamentos. Para Raabe, a confissão de
sua cunhada a respeito de seus defeitos e pecados serviu como
uma revelação. Ela nunca adivinharia que Miriã tinha aquelas
sensações, justo ela, que parecia ser a personificação da confiança.
Ainda mais curiosa era a percepção que Miriã tinha de Deus. Um
Deus que estava tão insatisfeito com Miriã quanto com Raabe. Um
Deus que exigia prestação de contas de toda a nação de Israel e
julgava cada um dos pecadores, provendo uma forma de acabar
com aquele pecado. A ideia de que, diante desse Deus, era igual a
Miriã a confundiu.
Já na metade do acampamento de Judá, Raabe se despediu de
sua cunhada. Em um impulso, ela decidiu visitar a família, que não
via há muitos dias. Sabendo que aquilo seria a desculpa perfeita
para adiar o momento em que ela ficaria a sós com seu marido, ela
seguiu para a tenda de sua família com mais vontade que o normal.
Quando terminou de cumprimentar a todos, Izzie a chamou para um
lugar mais reservado.
“Venha até aqui, tenho uma novidade”, os olhos de Izzie brilharam
quando ela agarrou a mão de Raabe e começou a puxá-la de um
jeito estranho em meio à confusão de tendas em volta delas. Raabe
lançou um olhar desejoso para a tenda dos pais. Ela havia passado
a manhã trabalhando e, por quase quarenta minutos, andando pelo
deserto. A possibilidade de outra caminhada cansativa pelos becos
de Judá a fez se sentir pesada.
“Izzie, estou cansada.”
“E rabugenta”, afirmou Izzie com uma motivação espantosa. “Para
onde você está me levando?”
“Para lugar nenhum. Quero apenas um pouco de privacidade.”
“Em Israel?”
“Você venceu. Tudo bem. Eu falo aqui mesmo.” Ela parou e
segurou as duas mãos de Raabe. “Vou ter um bebê!”
Raabe ficou de queixo caído. Depois de tantos anos de
esterilidade, todos concluíram que Izzie não teria mais filhos. Ela
reagiu com alegria. “Verdade? Isso é maravilhoso!”
Izzie deu pulos. “Estou tão feliz! Foi uma bênção do Senhor. Ele
abençoou a mim e a Gerazim. Raabe, meu coração quase saiu pela
boca, estou muito feliz.”
Raabe abraçou a irmã e deu pequenos giros dançando. Sua
cabeça deu voltas com a alegria da surpresa. Izzie começou a andar
novamente segurando uma das mãos de Raabe, que esqueceu do
cansaço e da sede. A alegria a dominou. Enquanto as duas
caminhavam saltando pelos becos estreitos, Izzie falava sobre os
acontecimentos que a levaram a engravidar, e a história estarreceu
Raabe.
“Antes do seu casamento, Gerazim e eu decidimos levar um
cordeiro ao Tabernáculo e oferecer ao Senhor, como oferta devido
ao pecado do nosso filho... nosso maior pecado. Eu estava
desesperada para pedir Seu perdão, embora não acreditasse muito
que Ele me perdoaria.”
Ela colocou a mão no peito como se ele latejasse por dentro. “Meu
filho. Meu querido filho. Quando penso no que fiz, mal consigo
suportar. Quem me dera eu tivesse ouvido você. Sempre carregarei
a dor daquela perda.”
A mão que estava no peito descansou em seu lado e o rosto
assumiu uma expressão visionária. “Gerazim e eu fomos ao
Tabernáculo com um cordeiro imaculado, o melhor que tínhamos, e
o entregamos ao sacerdote. Minhas pernas tremiam de tanta
apreensão, e eu imaginei que o sacerdote cuspiria no meu rosto e
me expulsaria quando comecei a confessar o que fiz. Ele não fez
isso, embora seus olhos se arregalassem um pouco. Quando
acabou com os ritos, ele me abençoou e foi como se cada palavra
dele fosse uma pedra abrasadora que eu engolia. Eu chorei e me
senti como se estivesse queimando. Mas aquela sensação estranha
passou dando lugar a uma tranquilidade que nunca havia sentido
antes. Minha mente, meu coração, meu ser e meu corpo estavam
em paz. Não sei por quanto tempo fiquei nesse estado de calma.
Enquanto eu sentia tudo isso, uma convicção invadiu minha alma
— a convicção de que Deus havia perdoado a mim e a Gerazim.
Não consigo explicar, sei que não mereço. Mas foi assim que
aconteceu.
“Eu pensei que havia acabado, e para mim teria sido o bastante.
Experimentar o perdão pela primeira vez desde o dia que ofereci
meu filho como sacrifício foi maravilhoso demais. Ainda assim, o
Senhor tinha mais para me dar.
“Eu concebi naquela mesma noite. Esperei desde então para me
certificar de que não contaria a ninguém. Gerazim ficou sabendo
desde o início, claro, mas você é a primeira a saber, sem contar com
ele.”
Raabe e Izzie passaram um tempo depois se alegrando pelo
bebê, planejando o nascimento dele e pensando em nomes. Muitas
vezes, uma delas dava gritos de alegria e envolvia a outra em um
abraço apertado.
O sol já havia desaparecido do céu quando Raabe se despediu de
Izzie e do restante da família, depois que elas voltaram. Ela teve um
dia cheio e confuso. Seu corpo pedia desesperadamente por
descanso, mas sua mente gritava. Ela não estava pronta para ver
Salmom. Raabe não queria encarar os seus grandes olhos e ver
condenação neles, e também não queria olhar seus lábios grossos
pressionados, contendo com esforço as palavras. Então, em vez de
voltar, ela se sentou atrás da tenda e pensou.
De certa forma, os acontecimentos daquele dia haviam
embaralhado muitas suposições em sua cabeça. Ela descobriu que
Deus exigia que uma pessoa aparentemente perfeita como Miriã
prestasse contas por pecados que, para Ele, eram mais graves do
que pareciam para Raabe, enquanto, ao mesmo tempo, Ele
perdoava e abençoava pessoas arruinadas pelos piores tipos de
atitude, como Izzie.
Raabe suspirou, confusa tanto quanto estava no começo. Ela se
deu conta disso quando viu que a lua já estava no céu e de que ela
não poderia mais fugir. Pela hora, já deveria ter preparado o jantar
do marido. Com passos lentos e pesados, ela entrou.
Raabe encontrou Salmom andando de um lado para o outro na
frente da tenda, e ele parou quando a viu. “Por onde você andou?”,
perguntou ele.
“Eu pedi para o servo avisar a você...”
Ele apertou os dentes até seus ossos quase se deslocarem. “Isso
foi horas atrás. Miriã já estava de volta desde antes do jantar. Eu fui
lá ver.” Pelo jeito instável que ele cuspia cada frase, estava claro
que a raiva o segurava com garras fortes.
Raabe, precavendo-se, deu um passo atrás. “Fui visitar minha
família.”
“Você poderia ter pedido para alguém me avisar.” Ele se
aproximou até ficar cara a cara com ela. Ela recuou um pouco para
observá-lo e percebeu que ele estava tremendo de fúria.
“De... desculpe-me”, disse ela sem muita convicção e sem se dar
conta do motivo pelo qual ele estava tão pálido. Seria porque ela
não havia preparado seu jantar? A falta de uma refeição poderia
irritar um homem daquela maneira?
“Desculpe-me?”, gritou ele. Em seguida, fechando a boca
abruptamente, ele a agarrou pelo braço e a levou para dentro da
tenda. Duas ou três candeias iluminavam o ambiente, e a luz era
suficiente para ela ver sua expressão. Com os olhos apertados, as
narinas abertas e os lábios pressionados, ele ficou diante dela com
as veias do pescoço salientes. Raabe engoliu em seco. Em vez de
soltá-la, ele a abraçou com um movimento firme. “Você sabe como
eu fiquei desde que o sol se pôs sem saber onde você estava?”
“Você estava preocupado?” Era esse o motivo de tanta raiva?
Aquela era uma nova revelação. Seus anos vivendo
independentemente a ensinaram a ser dona de seu próprio tempo, e
nem mesmo os meses vivendo com sua família no acampamento de
Israel a prepararam para aquilo. Lá, se pudesse fugir das muitas
exigências de seus passos, o tempo era seu. Ela não dava
explicações de onde iria ou de quando chegaria. Até onde ela sabia,
ninguém se preocupava por ela ter saído por uma ou duas horas a
mais.
“O que você esperava? Você desapareceu sem dar uma palavra.
O que acha que eu pensei? Depois da noite passada, eu...” Ele
parou no meio da frase e deu um pequeno passo atrás, o que fez
surgir um espaço entre eles.
Sua referência à noite anterior fez Raabe ranger os dentes.
Depois, ela percebeu que era uma referência de preocupação, e
não de acusação. Ele estava preocupado com o bem-estar dela
depois daquela noite difícil. “Você estava preocupado comigo?”,
repetiu ela maravilhada. Algo relacionado com aquilo, com o fato de
que ele ficara preocupado por causa dela, fez soltar o nó de sua
garganta. “Peço perdão”, disse ela com a voz macia, desta vez
medindo as palavras.
Salmom a empurrou para longe dele e virou as costas. “Deixe isso
pra lá. Acabou.”
“Mas...”
“Deixe isso pra lá, já disse. Eu vou dormir.” Para a surpresa de
Raabe, ele pegou uma manta, um colchão e saiu de perto dela.
Abrindo a cortina, foi até o espaço que eles reservavam para os
convidados. Boquiaberta, Raabe o seguiu. Ele fez sua cama
improvisada com alguns movimentos bruscos e rastejou por debaixo
das cobertas. Exceto pela noite em que não voltara, Salmom nunca
dormiu separado dela desde o casamento. Nem mesmo depois das
piores brigas entre os dois.
“Salmom!”
“Raabe, você precisa do seu próprio espaço. Eu entendo.
Agora você já tem um. Vá até lá e divirta-se.” “Mas me deixe
explicar.”
Ele fez um sinal com a mão. “Mulher, eu passei o dia inteiro
tomando decisões depois de ouvir as explicações dos outros. Estou
cansado de explicações.”
Raabe deu meia-volta e o deixou. Ela sentiu raiva enquanto
voltava para a cama. Seu afastamento irracional e estranho a
deixaram com tanta raiva que, por um momento, ela esqueceu de se
preocupar com a rejeição. O que o incomodava tanto? Ele perdeu a
noção? Por que ele oscilava entre ira, preocupação e arrogância?
Foi porque ela chegara algumas horas depois?
Você desapareceu sem dar uma palavra. Sua ausência
preocupava o marido. E, durante as horas de espera, ele deve ter
ficado ainda mais ressentido por causa da irresponsabilidade dela,
desviando-se do medo que o pior acontecesse para a raiva de seu
sumiço. Mas insistir em dormir sozinho beirava a infantilidade. Como
um homem que aguentou o pior que ela poderia lhe falar se sentiria
provocado a tal ponto por causa de um pequeno incidente?
Raabe se revirou na cama. Você precisa do seu próprio espaço,
disse ele com a voz calma demais. Ele achou que ela estava o
evitando? Na verdade, ela estava. No entanto, ela não estava
evitando o homem, sua companhia, sua presença ou sua parceria.
Ela amava tudo isso. Raabe estava evitando a decepção, e evitando
o arrependimento de ele ter se casado com uma mulher que não era
boa o bastante. Será que ele não entendia isso? Teria ele alguma
vez a compreendido mal? Ele saiu daquela maneira arrogante
porque se sentiu magoado e desprezado? Por ela?
Capítulo Vinte e Três

S acudir-se na cama não adiantou, e se revirar também não


melhorou a situação. A raiva de Raabe há muito tempo
desaparecera. Em vez disso, ela lutava contra a ideia estranha de
que seu marido confiante estaria pensando na falsa concepção
deque ela o havia desprezado.
Certa vez, ele a acusara de esperar que o amor dos dois
fracassasse. Bem, talvez isso tenha acontecido um pouco na noite
anterior. Ele a deixara sozinha com suas lágrimas demonstrando
frieza enquanto saía. Salmom poderia ter ficado ao lado dela. Em
vez disso, preferiu saiu.
E quando ela se afastou de casa por todas aquelas horas, será
que pensou que ela o estaria acusando como marido? Será que ele
achou que ela se afastara de casa porque ele falhou com ela? Que
ela o evitou porque estava decepcionada com ele?
Salmom, seu marido feroz que lutou contra o inimigo com uma
coragem lendária, que liderava mil todos os dias em tempos de
guerra e de paz, cuja confiança parecia inabalável, estava naquele
momento dormindo em outro lugar não pelo fato de não desejar sua
esposa, e sim porque achava que ela não o queria. Raabe se
sentou. Se estivesse certa, ela estaria dormindo na cama errada. E
se estivesse enganada, ela estaria prestes a sofrer outra
humilhação.
Levantando-se, Raabe ajeitou as vestes e tirou os cabelos dos
ombros. Quase sem fazer barulho com os pés descalços, ela foi até
o outro lado da tenda e abriu a cortina. Na escuridão, conseguiu
definir as formas de Salmom, com as costas viradas para ela. Antes
que as dúvidas diminuíssem sua coragem, ela seguiu em frente,
levantou as cobertas e deitou-se por debaixo delas. Salmom
permaneceu inerte, e seu corpo subia e descia com a respiração,
assim como antes.
“O que você está fazendo?”, resmungou Salmom assim que
Raabe relaxou.
Ela deu um pulo com tanto susto que seus dentes bateram. “Do-
do-do-dormindo na minha cama.”
“Essa não é a sua cama”, disse ele ainda de costas para ela.
“Minha cama é a mesma do meu marido.” Mordendo os lábios,
Raabe forçou-se a levantar a mão. Isso parecia fazê-la pertencer
a alguém. Ela quis mexer a mão e levá-la ao ombro de Salmom.
“Meu lugar é com você, Salmom. Eu não quero que você se vá.”
Ele suspirou. Poucos minutos depois, ele se virou e seu rosto
estava tão perto de Raabe que ela sentia a respiração mover seus
cabelos. “Fique, se quiser. Mas não por obrigação.”
“Eu queria ficar com você”, confessou tentando incutir em sua voz
o amor e o desejo, que se tornaram seus companheiros constantes.
Em meio à escuridão intensa, Raabe sentiu a mão dele tocando a
cintura dela. Com movimentos constantes dos dedos, ele a levou
para seus braços e a segurou. Pela primeira vez depois de tantas
horas acordada, Raabe sentiu os músculos relaxarem. As coisas
que não foram faladas entre eles e que ainda estavam sem solução
permaneciam silenciosas e ignoradas naquele momento. Raabe
estava feliz por estar com Salmom, envolvida em seu abraço.
Ela sentiu que ele estava tão acordado quanto ela. “Minha irmã vai
ter um bebê”, disse ela compartilhando a notícia preciosa com ele.
Ele apoiou a cabeça na mão. “Estou feliz por ela. Izzie ficou estéril
por muitos anos, não ficou?”
Raabe contou a história de Izzie e compartilhou tudo com ele.
“Salmom, por que você acha que Deus a abençoou? Ele parece agir
de acordo com Sua justiça divina enquanto eu esperava
misericórdia e parece derramar misericórdia enquanto eu esperava
que Ele aplicasse Sua justiça.”
Salmom levou um dos dedos ao rosto dela. Aquele toque simples
a fez tremer e notar que ele deu um sorriso fraco antes de mexer em
seu rosto. “Acredito que nossos pecados pervertem nossas
expectativas.”
“Não entendo.”
“Quero dizer que, se os feitos de Deus parecem seguir em um
caminho que não faz sentido para nós, isso mostra que nossa
percepção está errada. Nossas expectativas subitamente são
distorcidas. Desejamos as coisas que nos machucam e fugimos das
que nos curam. Achamos que Deus é mau e que o mal é bom. Deus
trabalha corretamente, mas, para nós, isso é confuso ou, às vezes,
parece errado.”
Raabe pensou na resposta de Salmom. “Você... você acha que a
minha percepção sobre o passado também está distorcida?”
Salmom ficou em silêncio por um momento tentando escolher as
palavras. “Acho que ela é um misto de verdade e mentira, o que a
faz ser bastante convincente e, no entanto, muito perigosa. Mas é
provável que, se você acredita ser merecedora de condenação,
talvez o Senhor queira conceder a misericórdia.”
Raabe ficou em silêncio. Como sua vida mudaria se ela pudesse,
no mais secreto de seu coração, acreditar na promessa que
habitava nas palavras de Salmom? Como mulher, esposa, amante,
filha, amiga — será que ela se tornaria uma criatura diferente da que
era naquele momento se depositasse sua fé na bondade
misericordiosa de Deus? Se ela realmente acreditasse que Ele a
perdoaria, a aceitaria e a faria ser uma das Suas filhas — sua vida
seria transformada?
O cansaço começou a tomar o corpo de Raabe e o sono enuviou
seus pensamentos. Em um plano mais superficial de sua mente
sonolenta, Raabe sabia que Salmom a abraçava e que Deus
também o fazia tão seguramente quanto naquele momento. Em
seguida, ela caiu em um sono profundo e ininterrupto.
,.
Raabe tinha começado a fazer uma túnica de lã para Salmom no
dia após o noivado. Ela queria presenteá-lo com algo especial que
demonstrasse o quanto ela o estimava, mas tinha poucos recursos.
A maior parte das coisas que tinha quando saiu de Jericó foi dada à
sua família para a compra da tenda e do rebanho. O que ela poderia
dar a um homem que parecia gostar das coisas simples?
Depois, ela notou que Salmom tinha poucas roupas, e que a maior
parte delas estava velha e gasta. Ele merecia roupas melhores! Ela
pensou em homens inferiores que havia conhecido, homens sem a
integridade de caráter que ela tanto admirava no marido, cujo
mundo era cheio de riquezas esbanjadoras. Ela estava determinada
a fazer algo requintado para ele, algo que demonstrasse o grande
valor dele aos seus olhos. Raabe estava determinada a dar o
presente a ele antes do inverno, mas infelizmente ela não era muito
boa em tecer.
No entanto, Izzie era. A irmã era mais habilidosa, Raabe pensou
com um sorriso, enquanto observava os dedos da irmã sobrevoarem
uma parte do tecido particularmente difícil. Ela pediu para Izzie
ajudá-la enquanto Salmom estava ocupado resolvendo os assuntos
de Judá.
“Oh.” Izzie ofegou de repente e parou de fazer o trabalho.
Raabe se virou para ela preocupada. “Você está se sentindo
bem?”
“Vai passar. Ou talvez não. Com licença.” Ela correu até um jarro
na entrada da tenda e inclinou a cabeça fazendo esforço para
vomitar. Depois de alguns momentos desagradáveis, ela se sentou
novamente. Em silêncio, Raabe levou para ela um copo de água
fresca e um pano.
“Passa tão rapidamente quanto chega. Eu me sinto perfeitamente
bem agora.”
“Isso sempre acontece?”
Izzie fez um gesto despreocupado com a mão. “Nem sempre. Eu
passaria o dia inteiro vomitando por esta criança. Vale cada
segundo de desconforto.”
Logo depois disso, um menino bateu em uma das vigas externas
da tenda pedindo permissão para entrar.
“Entre”, respondeu Raabe.
O menino educadamente tirou as sandálias antes de entrar na
tenda. “Mestre Salmom me enviou. Ele acha que vai chegar muito
tarde hoje e pediu para a senhora jantar sem ele.”
Depois de dar um bolo de uvas ao menino por seu trabalho,
Raabe se sentou perto da irmã. “Esse homem trabalha mais do que
qualquer um. Já é a terceira noite que ele não janta.”
“Talvez ele não goste da sua comida. Eu posso te ensinar algumas
coisas se você quiser.”
“Muito convencida. Carrega uma criança no ventre e de repente
acha que sabe tudo. Meu marido gosta muito da minha comida e eu
agradeço. Ele tem muito trabalho, esse é o problema.”
Izzie ficou séria de repente. “Você está preocupada com ele?”
Raabe encolheu os ombros. “Desde que ele esteja comigo, estou
satisfeita. Ele trabalha muito, mas há muito a ser feito. Ouvi dizer
que Gerazim e meus irmãos também ficaram fora o dia inteiro.”
“Sim, eles também. Bem, pelo menos você vai ter algumas horas
a mais para fazer a túnica. Mais uma semana assim e você
termina.”
Tarde da noite e apenas com a luz de uma fogueira simples e de
uma pequena candeia, Raabe se concentrava na túnica de Salmom,
finalmente escondendo-a quando ouviu seus passos do lado de fora
da tenda. Ela mal podia esperar pra ver a reação dele quando
ganhasse o presente.
,.
A compilação de muitas noites longas finalmente fez Raabe
acordar algumas horas mais tarde na manhã seguinte. Pelos seus
olhos turvos, ela viu Salmom sentado em algumas almofadas de
plumas, distraidamente comendo bolo de uvas. Ele notou que ela
estava acordada e foi andando lentamente até ela.
“Dormiu bem?”
Ela se levantou apoiando-se em um dos cotovelos. “Sim,
obrigada.” Ocorreu a ela que a presença dele aquela hora na tenda
não era usual. Geralmente ele saía muito mais cedo. “Você não vai
trabalhar?”
“Não agora.” Ele estava diante dela, e Raabe levantou a cabeça
para diminuir a grande diferença de altura dos dois. Notando seu
desconforto, ele se abaixou na cama com seu quadril perto da perna
dela. A aproximação inesperada a confundiu tanto que ela demorou
a entender as palavras dele.
“Raabe, já se passou uma semana inteira e não resolvemos
nossas diferenças. É tempo suficiente. Se não solucionarmos esse
problema, será pior.”
Raabe omitiu um lamento. Será que ele não viu que ela mal abrira
os olhos? Ele não era um homem, mas sim um lobo que investia a
cada oportunidade. “Posso me lavar antes?”, perguntou ela com um
tom de rancor na voz.
Se Salmom notou aquele tom, ele não se deixou abalar. “Claro.”
Ela demorou o mesmo tempo de sempre para se levantar. Ele a
observou com olhos frios enquanto ela perambulava até a cortina.
“Se você não estiver pronta quando eu acabar de comer este bolo,
vou te buscar”, ele falou lentamente.
Raabe deu meia-volta. A expressão implacável de Salmom
mostrou que ele realmente o faria. Com movimentos deliberados,
ele pegou um grande pedaço do bolo e colocou na boca. Ela se
virou e saiu correndo. Aquele homem enlouquecedor não podia
deixar nada passar em branco? Por que ficar se desgastando em
um assunto insolúvel logo pela manhã?
Ela se lavou rapidamente e colocou um vestido de lã. Pentear os
cabelos exigiria tempo e paciência, e ela estava sem os dois. Raabe
afastou seus cachos avermelhados dos ombros na intenção de
prendê-los com um cordão quando Salmom apareceu e tirou o
cordão de seus dedos frágeis. “Acabei de comer o bolo. Aí está
você.”
Rangendo os dentes, ela se virou para encará-lo. “Sobre o que
vamos falar?”
“Zedeque.”
Ela fez um gesto com a mão golpeando o ar. “Nós já falamos
sobre isso.”
“Nós começamos a falar, mas não terminamos. Eu queria te dizer
no que andei pensando, mas não vou fazer isso aqui, parado como
uma estátua.” Sem esperar para ver se ela o seguia, Salmom entrou
novamente na tenda, que estava arrumada com almofadas
confortáveis e tapetes coloridos. Raabe o seguiu ressentindo-se a
cada passo. Quando ele se sentou em uma almofada, ela decidiu
ficar em um tapete. Quando ele esticou as pernas, ela quis encolher
as suas. Quando ele se inclinou para frente, ela se inclinou para
trás.
Salmom ignorou seus atos revoltosos com a mesma firmeza que
teria com uma criança. “Vamos conversar sobre o seu pesadelo.”
Raabe, que não esperava aquela atitude autoritária com tanta
insistência, se levantou. Salmom se levantou na frente dela com um
movimento rápido que a surpreendeu. “Sente-se.” Ele se plantou
diante dela como uma parede de músculos e ossos que se recusava
a mover-se. Ela perdeu as energias sentindo-se indefesa e sentou-
se novamente.
“Assim é melhor.” “Talvez para você.”
“Verdade. Agora fale sobre o pesadelo. As pessoas têm pesadelos
porque temem algo. Do que você tem medo?”
“De pessoas intrometidas.”
Ele a ignorou novamente. Resistir fisicamente não adiantava.
Sarcasmo não adiantava. O que faria aquele homem desistir de
perseguir seu objetivo? O que o faria entender que ele estava
desperdiçando seus esforços e causando muita dor a ela com tudo
aquilo?
“Você disse aquela noite que teve pesadelos porque cedeu a
todas as exigências de Zedeque. Você se rendeu aos desejos dele.
O que você disse, embora eu estivesse muito fechado aquela hora
para entender, era que você estava envergonhada por ter
correspondido. A culpa e a vergonha devem ter te consumido ano
após ano, aumentando cada vez mais a cada ato consentido de
adultério.”
A náusea foi aumentando e obstruiu a respiração de Raabe, e
grandes gotas de suor surgiram em sua testa. “Não quero falar
sobre isso”, disse ela rudemente sem conseguir dominar o pânico
que a controlava.
Salmom se inclinou para frente. “Mas você vai falar.” Havia um
copo d’água perto de sua mão e ele o levou até Raabe. “Beba.” Ela
se negou com a cabeça. “Não me diga não”, ordenou ele. “Beba.”
Ela bebeu, sentindo-se fraca demais para negar.
“Está melhor?”, perguntou ele enquanto ela dava o último gole.
“Não”, respondeu ela, mesmo que a água tivesse ajudado a
acalmar seu estômago.
“Que pena”, murmurou ele. Seus olhos estavam obstinados e
brandos. Raabe viu que ele continuaria, e ele continuou. “Eu acho a
culpa um tanto estranha. Às vezes ela é real — a expressão de algo
errado que deve ser apaziguado ou perdoado. Porém, algumas
vezes nos sentimos culpados por algum defeito que não foi nosso,
não foi de fato um pecado. O tipo certo de culpa, aquele que é
plantado em nós pelo Espírito de Deus, nos leva ao arrependimento.
Ele nos leva à mudança e ao perdão de Deus. Ele leva à paz,
Raabe. Mas quando você se sente cada vez mais encurralada pela
vergonha e se vê sem saída, sem acesso algum ao perdão e ao
arrependimento, você está fechando a porta para Deus e para Sua
restauração. Poucas coisas são mais destruidoras do que a
vergonha implacável.
Seu problema é que, por dentro, você se sente confusa com a
vergonha e a culpa, e, com isso, você não consegue estabelecer a
diferença entre elas.”
Raabe respirou. “Não há nada de errado com a minha vergonha.”
“Não? Então vamos falar sobre Zedeque. Ele se aproveitou da sua
pobreza e da sua necessidade. Se fosse um homem honrado, ele
teria ajudado você sem exigir aquele preço egoísta. Em vez disso,
ele te usou. Você tinha quinze anos! Ficou presa entre um pai cuja
fraqueza superou o amor e um homem cuja luxúria superou a
integridade.”
Raabe se encolheu. “Eu deveria ter resistido a ele. Você mesmo
disse isso aquela noite.”
Salmom deu um suspiro como se um gigante tivesse pisado em
seu peito. “Ah, Raabe, nem sempre se pode levar em consideração
as palavras de um marido chateado. Esqueça a minha raiva por um
momento. Vamos encarar a situação pelo ponto de vista de Deus.
Idealmente, isso se aplicaria se você já fosse uma mulher e se
tivesse como se impor àquele erro. Sim, você está certa. Você não
deveria ter cedido. Mas você era jovem e indefesa. Você aprendeu a
obedecer a seu pai e sua mãe, e foi marcada pela necessidade
medonha da sua família. E, então, você usou sua inteligência para
trabalhar com as normas que lhe foram determinadas. O pecado
que você cometeu é nada se comparado aos pecados que foram
cometidos contra você.”
Raabe queria acreditar nas palavras de Salmom, assim como
queria acreditar que ele também acreditava nelas. Sua cabeça
começou a aceitar melhor a lógica de seu argumento. No entanto,
seu coração não se rendia. Ele insistia em prender-se à vergonha.
Raabe não conseguia se livrar da vergonha apesar daqueles
argumentos bem-elaborados. “Você esqueceu que eu continuei
vivendo dessa forma mesmo depois de Zedeque. Mesmo depois
que cresci e fiquei independente.” Cada palavra, conforme saía de
sua boca, tinha um gosto amargo. Por que ela estava falando tudo
aquilo para Salmom? Ela estaria tentando fazê-lo odiá-la ou deixá-
la?
“Eu disse que você precisa determinar quando sua culpa é real e
quando ela é imaginária. Miriã me contou sua história, e sempre me
impressionei com o fato de uma zonah ter pouquíssimos amantes.
Você não poderia ter mais se quisesse?”
Raabe evitou olhar para ele. “Claro”, disse ela irritada por ter de
discutir esse assunto com o marido.
“Sempre pensei muito sobre isso, Raabe. Você é tão linda;
certamente, muitos homens se matariam para ficar com você, não
é?”
Algo muito parecido com orgulho a acometeu. Sua popularidade
fora uma das poucas coisas na vida que lhe dera uma sensação de
bem-estar, embora ela fosse passageira. Ali, com seu marido,
aquela popularidade não tinha tanto valor; pelo menos não com
tantos pecados pendurados como roupa suja diante dele. “Os
homens me desejavam”, disse ela.
“E você os negava. Por quê? Você não seria mais rica se
tivesse...” Salmom parou de falar, buscou as palavras certas e, em
seguida, continuou. “Se você tivesse um número maior de
companheiros?”
“Por favor! Podemos parar com isso?” “Ainda não. Responda a
minha pergunta.”
Ela olhou para ele inconscientemente suplicando. Ele mostrou
convicção no olhar. “Responda”, insistiu ele recusando-se a ceder.
Ela levantou as mãos. “Ah, por que você simplesmente não
esquece isso?”
“Responda a minha pergunta. Quanto mais rápido você responder,
mais rápido isso vai acabar.”
Ela resmungou. “Porque eu queria ter o menor número possível de
companheiros.”
“Por quê?”
“Eu me sentia desamparada — presa em uma vida que eu sabia
que não tinha como mudar. Então, tentei limitar o sofrimento. Tentei
limitar minha própria transgressão.”
Salmom se inclinou e encostou em seu ombro, com os dedos
descendo pelo braço dela antes de retirar sua mão. “Acho que o
Senhor não se esquece de tais escolhas. Ele se lembra dos
corações que tentam a todo custo evitar o pecado. Você iludiu a si
mesma achando que era indefesa — e que não podia parar. É disso
que você deve se arrepender. Você também deve se arrepender dos
atos de adultério aos quais essa situação te levou. Mas é preciso
abrir mão da culpa que se impõe sobre você como um juiz corrupto,
que sempre acusa e condena. Ao aceitar essas condenações falsas,
você está as consentindo. O mesmo aconteceu quando eu ajudei os
homens de Ai a atacarem a mim mesmo enquanto não os
enfrentava. Você precisa começar a lutar contra essa condenação
antes de consenti-la.”
“Eu não sei como. Além do mais, já me arrependi no Senhor e
nada mudou.”
“Isso é porque você não entende Sua misericórdia. Você não
acredita, e consequentemente não poderá receber Seu perdão.
Você acha que Ele concederia a você a mesma misericórdia que
concedeu a Izzie?”
Não. Ela olhou desamparadamente para o rosto tranquilo de
Salmom.
Ele suspirou. “Prometa que você vai pensar no que eu disse.”
Raabe deu um grande sorriso. “Agora você quer meus
pensamentos também.”
Ele passou a mão pelos cabelos dela e a puxou para si. Sua boca
foi ao encontro da dela com um toque que não tinha escapatória.
Perto dos lábios dela, ele disse: “Quero você toda pra mim”.
Capítulo
Vinte e Quatro

E le era tão irritante. Sempre tocando em assuntos que ela


preferia ignorar. Ainda assim, Salmom provava sua firmeza de
várias maneiras todos os dias. Até mesmo suas perguntas mais
pungentes demonstravam seu interesse por ela. Perturbações à
parte, o coração de Raabe o amava mais ainda a cada hora. Ela
queria o inundar com alguma demonstração tangível de afeição,
mas não conseguia pensar em nada que o agradasse. Um dia,
ocorreu a ela o fato de ele não ter tido muitas oportunidades de ficar
com os velhos amigos depois do casamento. Quando era solteiro,
ele podia se divertir mais casualmente, e Raabe achou que um
jantar modesto com os amigos mais próximos poderia agradá-lo.
Assim que teve a ideia, ela decidiu pô-la em prática na mesma noite.
Raabe sabia que Salmom não gostaria que ela fizesse tudo sem
avisar antes, e então ela foi procurá-lo.
Ele ainda estava envolvido no caso difícil entre duas famílias
importantes que viviam uma perto da outra, o que agravava o
problema, mas isso a ajudou a encontrá-lo com rapidez. Raabe o
encontrou sentado do lado de fora de uma tenda marrom luxuosa
com os líderes das duas famílias ao seu lado. Um dos homens
falava tão rápido que pequenas gotas de cuspe saíam de sua boca,
repousando em sua barba e nas vestes de Salmom. De vez em
quando, ele gesticulava fazendo movimentos súbitos com suas
mãos rubras, falando sobre uma coisa e outra. Salmom permanecia
calado com uma expressão vazia. Raabe conhecia muito bem
aquela expressão, e significava que ele não estava satisfeito. Ela
lamentou pelo homem que cuspia e viu que talvez aquela não seria
uma boa hora para incomodar o marido com algo sem importância
como um jantar. Ela poderia esperar por uma outra noite. Engolindo
sua decepção, ela se virou.
“Raabe!”
Tarde demais. Ele a vira. Ela se sentiu ridícula naquele momento
por ter interrompido uma discussão tão importante para fazer um
pedido banal. Ele foi até ela com uma expressão preocupada.
“Aconteceu alguma coisa?”
“Não, nada. Desculpe por interromper. Eu ia apenas fazer uma
pergunta boba.”
“Sua interrupção foi bem-vinda, acredite. Faça sua pergunta.” “Eu
pensei que, se você aceitar, poderíamos convidar alguns poucos
amigos para jantar. Sua irmã e Ezra, Hanani e Abigail, minha irmã e
o marido dela.”
“É uma ótima ideia. Eu adoraria.”
“Posso usar uma porção a mais dos grãos para o jantar?”
Sua expressão voltou a ficar consternada. “Você não precisa
perguntar. Os grãos são seus. Faça como quiser, Raabe.” Seu tom
rude soou como irritação.
“A maioria dos homens fica irritado quando as esposas não pedem
permissão para usar seus bens.”
Salmom se curvou para a frente e levou seus lábios até a orelha
dela. “Eu não sou como a maioria dos maridos. Você ainda não
percebeu isso?” E ele saiu antes que ela pudesse responder que
havia percebido. E, ah, como ela havia percebido.
,.
Os convidados chegaram antes do anfitrião, que estava atrasado
para o próprio jantar. Quando finalmente apareceu, seu rosto estava
muito tenso e seus passos acelerados. Mas, em poucos minutos
com seus amigos de confiança e com sua família, ele começou a
sorrir e seu corpo relaxou. A alegria invadiu Raabe quando ela
percebeu a mudança. Cada momento de preparação do jantar valeu
a pena pelo bem que fez a ele.
O jantar, por unanimidade, foi considerado um sucesso. Era fácil
agradar os homens israelitas, pois na maior parte de suas vidas eles
faziam jantares simples e baratos. E as mulheres queriam aprender
a fazer tudo. Já era tarde quando todos foram embora, e Raabe e
Salmom foram até o lado de fora para acompanhar seus convidados
até uma parte do caminho, como era de costume. Arrumar tudo
exigiu tempo de Raabe, visto que ela já havia dispensado o servo
para que ele fosse dormir. Ele já tinha ido buscar água fresca, então
ela conseguiu lavar a louça com certa facilidade no escuro, usando
areia para limpá-la.
Quando ela finalmente se ajeitou e foi para a cama, Raabe viu que
seu marido já dormia. Silenciosamente, para não acordá-lo, ela se
moveu para perto dele. A última imagem que veio à sua cabeça
antes de fechar os olhos foi a do rosto risonho de Salmom diante
das respostas espirituosas de Hanani. Ela conseguiu fazer algo que
deixasse seu marido feliz.
,.
Raabe procurou novamente pela esteira, pelos lençóis, pelo chão
da tenda e pelas dobras de seu vestido. Nada. Ela mexeu seu véu
listrado com um vigor impaciente. Ainda assim, nada. Não havia
nem sinal. Ela foi para cama, esqueceu de tirar os brincos e, quando
acordou, estava apenas com um deles. Onde o outro poderia estar?
Travesseiros remexidos, cortinas reviradas, tapetes do chão
verificados por seus dedos que investigavam. Ele não estava em
lugar algum. Raabe se deixou cair no chão com o rosto nas mãos.
Ela não poderia acreditar que havia perdido os brincos que foram da
mãe de Salmom. De tudo o que possuía, aqueles brincos eram o
que havia de mais importante para ela. Absolutamente importantes.
Salmom voltou e viu a tenda revirada. Sua esposa estava olhando
para o nada e seu vestido estava torto, além da sujeira escura que
parecia ter enferrujado seu rosto. Ela estava sem véu e os cabelos
caíam em cachos embaraçados pelas costas. Havia um brinco em
sua orelha com uma pérola dançando em meio à lazulita. Salmom
entrou na tenda e ela não lhe deu atenção. Ele se aproximou e ela
continuou olhando para o nada.
“Aconteceu alguma coisa?”
Ela virou a cabeça. “O quê? Não te ouvi.” “Eu percebi. O que
aconteceu?”
“Ah, Salmom, perdi meu brinco”, lamentou-se ela. “Esqueci de tirá-
los antes de dormir noite passada, e quando acordei eu só estava
com um deles na orelha. Já procurei por todos os cantos em vão.
Não consigo encontrá-lo!”
“Eu sinto muito.”
Ela fez um som engraçado com a garganta e levantou as mãos
em desespero. Ele sentiu que a angústia dela era sincera. “Eles não
tinham tanto valor assim, Raabe.”
“Tinham para mim!” “Eu te ajudo a procurar.”
“Eu procurei por horas e nada. Ele evaporou.” “Por onde você
procurou?”
“Eu virei essa tenda de cabeça para baixo. Até mexi nas cinzas da
fogueira.”
Aquilo explicou a bagunça e a sujeira. Ele se agachou na frente
dela. “E lá fora? Nós fomos levar nossos convidados e depois você
lavou a louça no escuro. Talvez tenha deixado cair antes mesmo de
ir para a cama.”
“Oh.” Fagulhas de esperança. “Eu não tinha pensado nisso.”
“Vamos lá procurar.”
“Não, não. Eu procuro depois. Você trabalhou o dia inteiro e deve
estar cansado. Venha jantar e eu procuro depois que você terminar.”
Era verdade, os brincos tinham valor sentimental para ele. Eles
eram de sua mãe, e ele ainda se lembrava dela andando com eles
dançando e encostando em seu rosto. Mas o sentimento era
superficial. Na verdade, ele preferiria se sentar, beber um copo de
água de cevada e comer a comida de sua esposa. No entanto, o
desânimo no rosto dela acabou com aqueles planos. Ele se
engasgaria com a comida se a deixasse esperar na dor cruciante de
sua angústia. “Vamos procurar agora”, disse ele e a levantou. Seu
consentimento sem resistência e a expressão de alívio em seu rosto
confirmaram que ele havia tomado a decisão certa.
Salmom decidiu que a melhor estratégia seria fazer uma varredura
sistemática da área. Primeiramente, eles passariam lentamente
pelos lugares em que haviam estado na noite anterior. O dia foi seco
e com areia suficiente para cobrir algo pequeno como um brinco.
Portanto, a varredura teria de ser metódica e, para o estômago
vazio de Salmom, agonizantemente demorada. Todavia, a busca
cautelosa dos dois não teve resultados. Salmom sabia que, depois
de uma noite ventosa, nem mesmo cada minuto de busca valeria a
recompensa pela qual eles procuravam, mas ele guardou os
pensamentos para si mesmo, pois não via razão para desencorajar
Raabe antes que isso fosse necessário.
Eles voltaram para os arredores da tenda, concentrando-se no
lugar onde Raabe havia lavado a louça. Ajoelhando-se com a
cabeça perto do chão, eles varriam a areia. Salmom tentou se
lembrar da direção dos ventos naquela manhã e ampliou a direção
de sua busca. Ele notou que Raabe havia se sentado novamente na
areia, sem esperanças e com uma expressão de abatimento. Não
desista. Pelo menos não por enquanto. Ele continuou procurando
com uma sensação insistente de que precisava continuar.
Em seguida, seu dedo indicador tocou em algo sólido e gelado.
Ele agarrou o objeto e rapidamente tirou a areia. Ali estava! O
tesouro de Raabe — esquecido, abandonado, perdido no chão.
Pelas pegadas na areia, mais de um par de sandálias havia pisado
na joia delicada de ouro e pérola. Ele a observou com uma nova
percepção.
Raabe, que estava olhando seus movimentos com um interesse
inconstante, se deu conta de que a busca de Salmom dera
resultados. Ela suspirou e se levantou rapidamente, indo até ele
com uma pressa que derrubou um jarro.
“Você achou!”, gritou ela. “Uhum.”
Ela se jogou no chão, ao lado dele, e estendeu a mão para pegar
o brinco, mas ele a afastou. “Deixe-o”, ordenou ele.
“O que você quer dizer com isso?”
“Quero dizer que não vai mais servir. Ficou na areia por uma noite
e um dia. Está vendo as marcas? Pisaram nele várias vezes. Está
destruído.”
“Não, não está! Eu não vejo nada de errado. Talvez ele precise ser
lavado com cuidado, mas ficará como novo logo que eu fizer alguns
ajustes.”
“As pessoas pisaram nele, eu já disse. Não vale mais nada agora.”
“Mas é claro que não. As joias não perdem seu valor só porque
estão sujas. Ainda é uma pérola, mesmo que tenham pisado nela. O
que há de errado com você? Por que você está falando isso?
Devolva o meu brinco!”
“Não até que você entenda.”
“O quê?” A irritação de Raabe intensificava o tom de sua voz
enquanto ela estendia a mão para pegar o brinco.
Salmom o manteve longe dela. “Você é como este brinco.” “Você
ficou muito tempo no sol. Vamos tomar um pouco de vinho.”
“Eu não preciso de vinho. Preciso que você entenda. Raabe, você
parece valorizar esse brinco acima de tudo. Você aprecia seu valor
inerente do ouro e da pérola, mas, além desses dois, o brinco tem
um significado maior. Ele tem grande valor para você.
“E é por isso que você é como este brinco. Você não entende que
Deus olha para você assim como você olha para essa joia delicada?
Só que Ele o faz com mais ternura e alegria. Você se lembra da
história da criação? Ela nos diz que Sua mão nos formou — formou
você — à Sua própria imagem. Aquele que criou você à Sua
imagem e que te disse muito bom deve achar que você tem um
valor profundo. Para Ele, você é como esta joia.
“Você me disse que, apesar do fato de este brinco ter sido
perdido, abandonado na areia e pisoteado, ele ainda é muito
importante e continua sendo uma joia valiosa. Você também disse
que, por mais que as pessoas tenham pisado, ele não teve seu valor
diminuído por isso.
“Você não vê que o mesmo é válido para você, Raabe? Você pode
até ter sido descartada pelo seu pai ou por Zedeque, mas isso não
roubou seu verdadeiro valor. Você pode até ter sido pisoteada por
muitos outros, mas nada muda quem você é: uma filha de Deus,
feita à Sua imagem.”
“Eu só queria o meu brinco”, disse Raabe com uma voz estridente
e empalideceu. “Por que você tinha que falar em Zedeque?”
Salmom sentiu a angústia dela, mas continuou sem dó nem
piedade para restaurar a vida de Raabe. “Porque eu quero que você
se liberte dele. As atitudes de Zedeque fizeram você ser esse
brinco. Em vez de ser apreciada e valorizada, você foi jogada na
areia, e quando fez isso, ele te deixou lá. Mas ele não se cansou
porque você é fatigante, Raabe. Ele não te abandonou porque você
não é boa o bastante. Ele te abandonou por causa de seu próprio
pecado. Não foi nenhuma falha sua que o fez te abandonar; foi uma
falha dele. O mesmo se aplica ao seu pai. Os dois deixaram de
reconhecer o tesouro que há em você quando não a valorizaram.
Assim como jogar ouro na areia e sair andando, a perda foi deles.
“Raabe, olhe para este brinco. Ele está arruinado ou não tem mais
valor porque estava na areia? Diga-me que ele não tem mais
conserto. Diga-me que você não o quer mais.”
Ele a observou e continuou falando. “Deus também não pode dizer
essas coisas sobre você. Você é o ouro precioso e a pérola
insubstituível dele, e você nunca perdeu seu valor interior.”
Seus olhos cor de mel se encheram de lágrimas. Raabe estendeu
a mão em direção à joia, mas não para agarrá-la ou tomá-la para si,
e sim para tocá-la com uma veneração que fez Salmom prender o
fôlego. “Eu sou este brinco?”, murmurou ela com a voz fraca.
Ele respondeu com a cabeça. Com um espanto lastimoso, ela
levou o brinco para perto de si e olhou fixamente para o objeto
cintilante na palma de sua mão. Havia poucos danos estruturais na
joia. Como havia falado, ela precisava lavá-lo e fazer alguns ajustes
nos arames delicados que entortaram sob o peso de pés
desatentos. Mas o brinco tinha o mesmo valor de sempre. O ouro
ainda era ouro, e a pérola continuava sólida e luxuosa. Raabe
fechou a mão com o brinco dentro e a levou até o peito.
Algo nela se rompeu — Salmom pode perceber sua desolação.
Um som forte escapou de seus lábios, como um gemido sofredor de
uma criança ferida e confusa. Seu coração quase se despedaçou ao
ouvir aquele som devido à dor resguardada nele contida. Salmom a
envolveu em seus braços fortes e protetores, e o corpo dela tremia.
“Calma, querida, calma”, sussurrava ele. Salmom sabia que
aquela dor contida precisava ser liberada, e ele não queria
interromper aquele momento antes da hora certa. Ainda assim, ele
queria que ela sentisse o conforto à medida que ela libertava seu
sofrimento maior. Ocorreu a Salmom que ele nunca mais a julgaria
depois daquilo, após testemunhar uma criança sofrida que
finalmente conseguira enxergar um vislumbre de sua verdadeira
imagem aos olhos de Deus. Ele nunca mais pensaria no passado
dela como algo que manchasse sua linhagem pura. Ele nunca mais
a condenaria por ter estado com muitos outros homens antes. Deus
usou aquele brinco como lição para ela e para ele também. Ele
precisava passar por aquilo tanto quanto ela. Raabe era uma joia de
valor inestimável para ele, e nada nunca mais poderia diminuir seu
valor diante de seus olhos.
Seu tremor convulsivo foi cessando aos poucos e o gemido
intenso se transformou em lágrimas. Salmom a abraçava forte
enquanto beijava sua cabeça e acariciava seus cabelos. Todos os
instintos de proteção foram despertos nele por ela, e uma ternura
muito forte brotou em Salmom. “Eu te amo”, sussurrou ele quase
sem perceber que tinha falado aquelas palavras. Elas saíram de sua
boca em um ímpeto natural de emoção que ele não pôde conter.
Ela se agarrou a ele com os braços por trás de seu pescoço e de
suas costas, pressionando seu corpo contra o dele de uma forma
despretensiosa que o enterneceu por dentro. Salmom nunca se
sentira tão inteiramente próximo a outro ser humano na vida. Na
curva de seu pescoço, ela sussurrou algo que ele não entendeu a
princípio, mas depois se deu conta de que ela estava dizendo que o
amava, o amava muito, mais e mais. Salmom achou que fosse
explodir de tanta alegria que havia em seu interior.
Levou tempo para ele perceber que havia alguém de pé diante
deles, pigarreando com aparente abandono. Com um movimento
lento, Salmom levantou a cabeça ainda abraçado com sua esposa.
Somente quando tentou se focar no rosto de Ezra, viu o quanto sua
visão estava turva e percebeu que seus cílios estavam grudados
pelas lágrimas.
“Ezra?”, resmungou ele irritado por ter aquele momento
interrompido, querendo que o mundo inteiro desaparecesse e o
deixasse a sós com a esposa.
“Eu sinto muito por interromper”, disse Ezra evitando o contato
visual. “Josué me mandou buscar os líderes de Judá. Eu vim mais
cedo e saí, mas agora precisei te chamar, pois só falta você.”
“Josué precisa de mim agora? O que houve?”
“Uma delegação de homens chegou em jumentos algumas horas
atrás. Eles querem fazer um tratado conosco e Josué pediu para os
líderes se reunirem e o aconselharem.”
“Uma delegação! Bem, Josué pode tomar essa decisão sem mim.
Não posso deixar minha esposa agora.”
Ao pé do ouvido, as palavras de Raabe soavam de forma gentil.
“Vá, meu amor. Você não pode deixar Josué esperando. Estou
bem.”
Salmom negou com a cabeça. “Eu não vou te deixar, a menos que
seja extremamente necessário. Ezra, diga a Josué que minha
esposa precisa de mim, por favor. Se for urgente, eu vou. Mas se
ele puder decidir sem mim, prefiro ficar com Raabe. Descubra mais
detalhes sobre essa história e volte para me contar.”
“Você não precisava ter ficado comigo”, disse Raabe quando Ezra
saiu. “Eu entendo que você tem responsabilidades importantes.
Israel precisa de você.” O rosto dela estava manchado de lágrimas,
e seus olhos encantadores ficaram vermelhos e inchados. Raabe
nunca estivera tão bonita para ele. Salmom ainda a abraçava, sem
conseguir soltá-la. A ideia de fazer surgir qualquer espaço entre eles
parecia insuportável.
“Eu irei se for preciso. Nesse momento, não quero estar em
nenhum outro lugar, a não ser aqui.”
“Talvez devêssemos entrar.”
De repente, Salmom percebeu que estava abraçado com sua
esposa fora da tenda, à plena visão de qualquer vizinho que
aparecesse perambulando. A noite já tinha caído, o que tornava
tudo mais discreto, mas ele preferia ter um pouco mais de
privacidade. Mudando de posição, ele pegou Raabe nos braços e
entrou na tenda. Ela o segurou pelo pescoço com a cabeça
recostada em seu peito. Em seus dedos longos, na mão fechada,
ela agarrava o brinco. Salmom sorriu ao vê-lo — ao vê-la.
Depois que entraram, Salmom se sentou em um tapete, apoiando-
se em um pilar e ainda com Raabe nos braços.
“Deixe-me pegar um pouco de comida e bebida”, sussurrou ela.
Ele quase mexeu a cabeça para negar seu pedido quando lhe
surgiu a ideia de que ela deveria estar esgotada de tanto chorar
devido à tensão emocional de tudo que havia acontecido. Algo para
comer e beber a faria sentir-se bem. “Eu pego para nós”, disse ele.
Ela lançou-lhe um olhar consternado. “Esse é o meu trabalho.
Você trabalhou demais e pode ser que Josué lhe chame novamente.
Pelo menos isso eu posso fazer para você.”
“Qualquer outro dia — todo dia — pelo resto das nossas vidas, se
você quiser. Mas, hoje, me deixe tomar conta de você.” Para sua
alegria, ela concordou, embora ele pudesse afirmar que aceitar os
cuidados dele daquela maneira fosse difícil para ela. Salmom queria
que Raabe entendesse que ela não era um fardo para ele, e que
cuidar dela não a faria menos importante em seu ponto de vista.
Anos. Vou precisar de anos para fazê-la entender isso. Ele pegou
algumas sobras do bolo da noite anterior, queijo e pão. Ela fazia a
melhor água de cevada que ele já bebera, e logo Salmom aprendeu
onde ela guardava. Levando tudo dentro do vaso de barro, Salmom
deixou tudo perto deles juntamente com os copos mais fundos que
ele conseguiu achar.
Antes de comer, ele orou a Deus, como sempre. Mas daquela vez
ele demorou mais louvando a Deus por Suas provisões, pela
orientação e por Sua misericórdia. Ele louvou a Deus por sua
esposa, por seu casamento, pelo futuro dos dois e pelos planos que
Deus tinha para eles, independentemente de quais fossem. Depois,
ele louvou ao Senhor por Ele ter aberto os olhos de Raabe para a
verdade. A alegria e a esperança fluíam à medida que ele falava
com o Senhor, pois ele sabia que tudo aquilo fora feito por Deus.
Somente Ele poderia usar um brinco perdido como instrumento de
cura.
Capítulo
Vinte e Cinco

S almom ficou aliviado quando Ezra voltou dizendo que Josué


havia desculpado sua ausência e não havia exigido que ele
fosse até lá. Ele viu Raabe oferecer ao convidado uma almofada
fofa e água de cevada. Salmom franziu a testa; ele queria que ela
descansasse aquela noite e não se incomodasse com nenhum
afazer. Ele fez uma cara feia para Ezra quando Raabe lhe ofereceu
comida e relaxou depois que ele recusou a oferta.
“Os homens vieram de uma terra distante”, Ezra falou depois de
tomar um gole da bebida. “Quando Josué perguntou por que eles
vieram até nós, eles disseram que a fama do Senhor havia se
espalhado por muitos lugares. Eles sabiam que nós tínhamos
derrotado Ogue e Siom, e ouviram falar sobre o milagre de nossa
saída do Egito. Então, os líderes de sua nação os mandaram até
aqui para fazer um tratado de paz conosco.”
“Como saberemos que eles são o que dizem ser?”, perguntou
Salmom. “Como saberemos que eles não vivem perto? Não
podemos fazer um tratado de paz com nações vizinhas.”
“Josué disse o mesmo. Mas os líderes de Israel inspecionaram as
provisões dele. O pão estava mofado, o odre estava rachado e as
roupas e sandálias estavam desgastadas pela longa jornada.”
“Entendo. Suponho que iremos orar e buscar a vontade de Deus
antes de responder, certo?”
“Bem... na verdade, não. Os líderes acharam essas evidências
boas o bastante para tomar uma decisão. Eles deram a palavra e
fizeram um trato com aquele povo.”
“Sem consultar o Senhor!”
Ezra levantou uma das mãos em um gesto de rendição. “Sou
apenas o mensageiro. Tudo que sei é que os outros líderes ficaram
convencidos com os argumentos da delegação.”
Salmom respirou fundo. “Perdão. Se quisesse opinar, eu deveria
ter ido encontrar a delegação.” Ele se virou para Raabe. “E eu não
me arrependo de não ter ido.”
“Falando em ir”, disse Ezra enquanto se levantava, “é hora de eu ir
para minha tenda.”
Salmom e Raabe se levantaram com ele. “Obrigado por me trazer
as notícias, Ezra.” Eles andaram até uma parte do caminho e depois
voltaram para a tenda.
A partida de Ezra fez Salmom se lembrar de que estava tarde e
que ele estava cansado. “Vamos dormir”, disse ele para Raabe
observando-a pelas suas pálpebras. Por mais que tentasse, ele não
conseguiu manter a voz tranquila. Ela estava rouca pela emoção.
Pensar em Raabe e em cama ao mesmo tempo mexia tanto consigo
mesmo que ele quase não podia respirar.
Entretanto, ele precisava deixar seus anseios de lado. Ela não
estava pronta. O fato de ela ter dado um passo considerável não
significava que ele deveria insistir muito. Uma sensação de perda
— e até mesmo de raiva — pelo que fora roubado deles dois o
dominou, mas Salmom tomou a decisão de não se deixar abalar
pelo desânimo. Seu trabalho era retomar o território que havia sido
roubado, exigir da destruição do passado cada partícula da alma, do
coração e do corpo de Raabe. Certo dia, com um parente chamado
José, Salmom falou sobre tudo e todos que magoaram sua esposa
e, consequentemente, a si mesmo: “Você achou que fosse por mal,
mas Deus o fez por bem”. Assim como a cobra que ameaçou Raabe
e como o brinco perdido, Deus tinha poder de usar o pior para fazer
o bem. No entanto, nesse meio tempo... nesse meio tempo, Ele
tinha de se conter e esperar.
A noite havia ficado estranhamente quente e Raabe foi se deitar
com ele enrolada em um lençol fino. Parte dele queria a abraçar e
experimentar aquela sensação incomparável de proximidade. Mas a
outra parte se lamentava com frustração por não poder abraçá-la, a
não ser que fosse rapidamente. Mas Raabe tirou a decisão das
mãos dele quando se aconchegou contra seu corpo com um
movimento tímido de braços e pernas. Ele sabia o quanto aquela
demonstração de afeição lhe custava, e sabia que ela temia demais
a rejeição para procurá-lo primeiro. Por nada no mundo ele se
afastaria dela naquele momento. Mexendo seu corpo, ele a abraçou
e a puxou para perto de si. O cheiro de seus cabelos, perfumados
com rosas e com algum outro elemento indefinível que lhe era
peculiar, tomou conta de sua mente. Sem ter controle sobre a
própria vontade, ele passou os dedos pelos cabelos dela e inclinou
a cabeça para beijá-la. Não foi um beijo de conforto, de contato
gentil ou de pertencimento. Foi um beijo de paixão, desejo e querer.
Ele se consumia pelo desejo de tê-la, e aquele beijo transmitiu essa
mensagem à medida que ele sorvia tudo que a esposa tinha a
oferecer. Mais do que qualquer coisa, ele queria que ela sentisse o
mesmo por ele, desejando-o como ele a desejava.
Raabe estava entregue em seus braços. Rendida. Tudo o que
havia nela se encaixava perfeitamente nele. Foi preciso uma oração,
um clamor silencioso e desesperado ao Senhor, para que Ele o
parasse. Ó Deus, concede-me a força para esperar, clamou ele em
uma angústia silenciosa antes de se afastar.
Levou um tempo para ele acalmar a respiração ofegante. “É um
prenúncio do que está por vir”, disse ele com um sorriso desigual.
Ela olhou para Salmom com os olhos arregalados. “Você... você
sabe mesmo fazer isso muito bem”, disse ela sem fôlego.
Ele percebeu que ela fora profundamente afetada pelo toque dele
e que sentira o que ele queria. A impaciência dele foi aquietada
diante da sabedoria. Incapaz de conter o sorriso, ele sussurrou:
“Você pode apostar”, Salmom a beijou novamente, da segunda vez
contendo sua necessidade e saboreando a alegria do despertar
maravilhoso da esposa. A satisfação de seu corpo teve de esperar,
mas sua alma estava muito alegre.
“Eu esqueci de te dizer!”, disse Raabe de repente sentando-se. “O
quê? O que você esqueceu?”
“Meu pai vai dar um banquete para Izzie e Gerazim amanhã à
noite. Temos que ir à tenda deles depois do pôr do sol.”
“Ah. Acho que é muito tarde. Imagino que você queira ir antes
para ajudá-los a preparar tudo, não é?”
“Se estiver bom para você.”
“Claro que sim. Encontrarei você lá o mais cedo que puder.”
Salmom achava difícil visitar os parentes de sua esposa.
Ele teve dificuldades para deixar de sentir raiva dos parentes
de Raabe. Pelo fato de saber melhor do que ninguém o preço que
Raabe pagou pelas escolhas do pai dela, Salmom achava torturante
reunir-se a eles e fingir que tudo estava bem. Algumas vezes, ele
tinha vontade de gritar para o homem e a mulher que venderam a
filha em troca de ouro, e queria perguntar se eles tinham ideia do
quanto suas barrigas cheias haviam custado a ela. Mas anos como
líder o fizeram controlar seu temperamento. Porém, a frustração não
seria suprimida. Salmom se irritou com a necessidade de ficar
calado, apesar de saber que daquela forma seria melhor para a
esposa.
Concentrando tudo aquilo em um suspiro, ele puxou Raabe para si
e se ajeitou para dormir. Ele não morreria por causa de uma noite de
sentimentos reprimidos.
,.
Raabe passou metade da noite pensando na descoberta
inconcebível de que Deus realmente a valorizava. Nem mesmo o
curso de sua vida inteira foi o bastante para apagar aquele momento
de compreensão de sua mente. Foi como se uma flecha de amor
perfurasse sua alma cercada por muros, e ela sentiu pela primeira
vez que era amada além da razão, e muito mais estimada do que
merecia. Ter um vislumbre do coração de Deus abriu uma porta para
a compreensão de que até mesmo um homem como Salmom
poderia amar uma mulher do jeito dela. Raabe estava sendo amada
por um homem como ele. Há anos ela não tinha mais aquele tipo de
esperança. Ela merecia ser amada.
Nesses momentos de revelação confusa e de sentir-se imersa em
amor e aceitação, ela ouviu o sussurro que indubitavelmente era do
Espírito de Deus em sua alma: “Tu és meu presente para Salmom.
Tu és o tesouro que eu quis que ele tivesse”. Embora ele, sem
dúvida, fosse um presente para ela, Raabe percebeu que Deus o
abençoou quando a deu de presente a ele, pois, para Deus, ela —
Raabe — era um tesouro.
E, então, quando Salmom a abraçou com aquela ternura
indescritível e sussurrou que a amava... ela acreditou. Pela primeira
vez, ela acreditou nele de todo o coração. Ela se sentiu segura no
amor do marido.
Raabe estava madura o suficiente para entender que teria de dar
mais passos em sua jornada rumo à plenitude. Ela sabia que outras
circunstâncias poderiam abalar sua segurança ou diminuir sua
confiança. Mas depois de passar pelos vales mais sombrios, ela
compreendeu naquele momento que Deus a faria enfrentar outras
batalhas. Ele destruiria outras mentiras que permaneciam em sua
alma e, pouco a pouco, a libertaria.
Em Jericó, quando depositou sua fé em Deus pela primeira vez,
ela sabia que Ele era poderoso e grandioso. Porém, na noite
anterior, ela havia experimentado Sua bondade. Raabe aprendera a
depositar sua fé na misericórdia dele, pois Deus concedia Seu amor
ao indigno e valorizava grandemente Seus filhos que não mereciam.
Izzie aprendeu essa lição com sua gravidez. Ela apreciaria o
senso de gratidão e de maravilha de Raabe como ninguém, e o
pensamento de passar a manhã com a irmã fez Raabe apressar as
tarefas matinais com um sorriso no rosto. Nem mesmo a tarefa
complicada de preparar um grande banquete sob as ordens de sua
mãe suprimiu sua alegria. Aquele seria um dia de comemoração
— por Izzie e Gerazim e, no mais secreto de seu ser, por ela e
Salmom.
O sol parecia se mover com uma lentidão perversa aquele dia.
Nem mesmo a companhia preciosa de Izzie desviava a atenção de
Raabe para sua impaciência para estar logo com o marido. Ela
sentia falta dele. Depois da aproximação maravilhosa da noite
anterior, sua ausência deixou um grande vazio. Raabe falou para si
mesma que estava se comportando como uma jovem virgem,
sentindo tanta falta de um homem que ela vira pela manhã, mas
isso entrou por um ouvido e saiu pelo outro. Ela não se importava se
estava ou não agindo com o desejo impetuoso de uma jovem.
Raabe queria estar com seu marido, e naquela noite ele estava
demorando mais do que em todas as outras.
Os arredores da tenda da família estavam cheios de convidados
logo no fim da tarde, mostrando que estavam bem à vontade
enquanto ajudavam as tribos de Israel com os desafios da terra. Um
cordeiro temperado e assado deixava um cheiro de dar água na
boca pelo ar. Raabe andava distribuindo pães de forma frescos, que
serviriam como pratos quando o cordeiro fosse servido. Ela sentiu o
estômago roncar e se lembrou de que não tinha comido nada desde
cedo, quando havia tomado café da manhã com Salmom. Raabe
esticava o pescoço em vários lugares para tentar vê-lo quando ele
chegasse.
Joa começou a cortar o cordeiro e Raabe circulou pela festa com
uma espécie de bandeja com muitos pedaços de carne. Um homem
que lhe parecia vagamente familiar a chamou enquanto ela andava
em direção a ele.
“Que tal você me dar um pouco de atenção”, disse ele com a voz
anasalada e com os lábios umedecidos por entre a vasta barba.
Ela se virou com um sorriso espontâneo nos lábios e esticando a
bandeja. Para sua surpresa, ela viu que o homem a encarava com
uma ousadia imprópria, e seus olhos passeavam abertamente pelas
curvas de seu corpo. Seu vestido azul de lã estava recatado,
apropriado para uma mãe de família de Israel. Nada em seu
comportamento ou em sua aparência a tornava uma pessoa
indesejável. Nada, exceto o fato de ela ter sido de Jericó. Raabe
ruborizou sentindo a antiga vergonha a invadir por dentro. Depois,
as palavras de Salmom vieram à sua cabeça: você é o ouro
precioso e a pérola insubstituível dele.
Ele não a cobiçava por causa de alguma falha dela. Era ele quem
estava em pecado. Com uma frieza calculada, ela afastou a bandeja
e se virou para o homem, sem nem lhe dar resposta. Para sua
surpresa, ele a agarrou pelo pulso quase deixando o cordeiro cair.
“Eu disse que era para você me dar um pouco de atenção”, disse
ele lentamente.
“Se você quer mesmo atenção, ficarei feliz em te ajudar”, disse
uma voz afiada por trás de Raabe. Salmom. “Você se importa de
soltar minha esposa? Ou quer que eu te ajude a fazer isso?” Seu
sorriso refletia exatamente o significado de suas palavras.
O homem soltou o pulso de Raabe como se ele estivesse ardendo
em chamas.
“Eu só queria um pedaço de cordeiro”, explicou ele fracassando
ao tentar parecer inocente, apesar de seu esforço significativo.
“Acho que você já pegou bastante. Não acha?”
“Sim, claro”, disse o homem que ainda nem havia experimentado
a carne.
“Então, não há necessidade de você pegar mais, não é?” “Não,
acho que não.” Ele olhou para a bandeja tomando
cuidado para não olhar para Raabe e, em seguida, saiu.
“Que homem grosseiro”, disse Raabe. “Eu o teria colocado no
lugar que ele merece se você não o tivesse feito.”
“Eu sei que você teria, mas eu tive o prazer de fazê-lo. Você se
importa?”
“Não. Para dizer a verdade, eu gostei.”
Salmom sorriu ao olhar para os olhos dela. “Preciso me acostumar
a botar alguns dos seus admiradores para correr. Isso vai me ser útil
como marido de uma mulher linda.”
O coração de Raabe bateu mais forte. Salmom conseguiu elogiá-
la depois de uma situação estranha e desagradável. Para ele, ela
não merecia o tratamento desrespeitoso daquele homem. Embora
ela mesma já tivesse chegado à mesma conclusão e tivesse
renunciado a vergonha que permanecia diante de seus
pensamentos, a defesa de Salmom confirmou aquela verdade. Ele
achava que seu valor tinha chamado a atenção do homem, e não
sua impureza. Essa confirmação adicional reforçou a confiança
recente e frágil de Raabe, fazendo-a dar um sorriso surpreso. “Sim,
vai mesmo ser útil”, brincou ela.
Antes de Salmom responder, Inri foi até eles com a testa suando.
“Boa noite, Salmom. Raabe, você quer dançar?”
Raabe quase se engasgou na própria saliva. “Dançar? Acho que
não, pai.”
Inri ignorou aquela resposta enfática e se virou para o genro.
“Salmom, você já viu sua esposa dançar?”
“Não.”
“Pois então, deveria. Ela era famosa por suas danças em Jericó.
Poucas se comparavam a ela.”
“Pai!” Sua voz estava com um tom irritado. A afirmação de seu pai
era verdadeira; Raabe dançava muito bem, e suas danças exibiam
mais emoção do que sensualidade, e mais fluidez cativante do que
meros rodopios. Raabe não precisou se dar ao trabalho de fazer as
danças provocantes, comuns entre as mulheres da vida em Jericó.
Ela nunca precisou. Seu estilo de dança, embora decoroso, atraía
muitos admiradores de ambos os sexos. Por isso, sua hesitação ao
dançar não era baseada apenas no medo de ofender, mas também
no desejo de evitar chamar atenção. Ela queria discrição e
tranquilidade. Raabe queria se misturar, e não exibir seu talento
diante de estranhos. “Eu não vou dançar”, insistiu ela.
“Eu gostaria de te ver dançar”, afirmou Salmom com uma voz
suave.
Raabe ficou de queixo caído. Ela mal pôde acreditar. Seu pai e
Salmom haviam concordado! A sua vaidade feminina a fez ter
vontade de satisfazer a curiosidade de Salmom. Ser o objeto de sua
admiração lhe proveu uma tentação que ela mal podia resistir. “Eu
dançarei... mas só para você”, ela falou olhando diretamente em
seus olhos. Ele prendeu a respiração e sua pele ficou levemente
corada.
“Ah!”, exclamou Inri e saiu de perto dos dois.
Raabe riu. “É melhor eu servir logo esse cordeiro antes que
esfrie.”
“Cordeiro? E a minha dança?” “Espere o momento certo.”
“Meus cabelos estão ficando brancos de tanto esperar.” “Talvez
assim alguém te leve mais a sério”, Raabe exclamou sem a menor
simpatia enquanto se afastava. Os convidados pediam a comida
deliciosa e a bandeja rapidamente esvaziou. Salmom chamou
Raabe antes que sua família lhe desse outra tarefa.
“Venha e fique comigo por um instante”, insistiu ele levando-a para
um canto mais vazio. Ele procurou um lugar desocupado para
Raabe se sentar e agachou-se perto dela. “Você reparou no orgulho
estampado no rosto do seu pai enquanto ele se gabava da sua
dança?”
Raabe lançou um olhar duvidoso para o marido. “Não.”
“Ele se animou enquanto falava. Seu pai gosta muito mesmo de
você.”
Ela refletiu em silêncio com aquelas palavras. “De certo modo,
isso só faz as coisas piorarem.”
“O que você quer dizer?”
“Ele me amava e eu confiei nele do fundo do meu coração.
Acreditei em tudo que ele falava sobre mim, nas coisas boas e ruins,
nas certas e nas erradas, e também acreditei na mensagem
implícita em suas ações. Até hoje, eu luto contra a ideia de que ele
estava certo a meu respeito. Suas palavras pareciam mais
verdadeiras do que as minhas. Se ele fosse um homem ruim, eu até
ignoraria suas afirmações e aprenderia a não dar atenção às suas
opiniões. Mas, eu acreditei nele a vida inteira. Se não fosse pelo
Senhor e pelo teu amor, eu não teria conseguido escapar das falsas
convicções que ele involuntariamente conferiu a mim.”
“Eu não tinha pensado nisso. Admito que eu mesmo tenho lutado
contra a raiva que sinto por ele. Uma grande parte de nossas vidas
foi impactada pelas ações de Inri, e tenho dificuldades de esquecer
meu ressentimento.”
Raabe fez um gesto com a cabeça, entendendo o que ele sentia.
“É esse o problema das más escolhas. Elas invadem a vida de
outras pessoas. Aqui está você, um homem de Israel impactado por
uma decisão que meu pai tomou onze anos atrás em Jericó. Minha
consolação é que o Senhor pode redimir nossas falhas.”
“Fico feliz em te ouvir dizer isso, Raabe. Você acha que Izzie e
Gerazim se sentiriam ofendidos se fôssemos embora? Tenho algo
para compartilhar com você.”
Raabe sentiu uma pontada de preocupação. “É alguma notícia
ruim?”
O rosto de Salmom ficou indecifrável. “Não necessariamente.
É apenas particular.”
Raabe sentiu um enjoo diante daquela resposta evasiva. Seja lá
qual fosse o assunto que ele quisesse compartilhar com ela, parecia
ser sério. Ser casada com um líder de Israel também tinha seus
desafios dolorosos. “Eu vou falar com a Izzie. Ela entenderá.”
,.
Salmom segurou as mãos dela enquanto eles voltavam. Ela
percebeu que ele queria chegar à tenda antes de falar e, embora a
ansiedade a dominasse por dentro, ela respeitou o desejo dele.
Pressionando seus lábios fechados, ela apenas segurou em sua
mão. Raabe não conseguiu esperar quando eles chegaram. Antes
mesmo que Salmom pudesse acender uma candeia, ela se voltou
para ele.
“Diga.”
Ele acendeu a candeia e se sentou. “Estou inquieto em relação
aos visitantes que fizeram um tratado de paz conosco ontem. Quero
segui-los e descobrir se eles falaram a verdade.”
“Aqueles do pão mofado e das sandálias desgastadas?”
“Sim. Algo na história deles me perturba. É por precaução, nada
mais. Quero segui-los por dois dias para confirmar essa história.”
Raabe pensou nas implicações daquela incumbência. Missões de
espionagem para israelitas não eram muito seguras pelos arredores
de Canaã. Cada passo dado em direção a territórios ainda não
conquistados de Canaã trazia consigo uma vastidão de ameaças.
Se os visitantes fossem mesmo o que diziam ser, a parte mais
perigosa seria a viagem. Se não fossem, eles provavelmente não
encarariam a descoberta com generosidade.
Raabe se casara com um soldado, e os soldados andam em
perigo. Como esposa, sua responsabilidade era fazer o trabalho do
marido ser o mais fácil possível. Acrescentar suas preocupações ao
fardo dele não o ajudaria em nada. Ela mostrou uma aceitação
tranquila. “Você vai sozinho?”
“Ezra e Hanani se ofereceram para me acompanhar.”
Raabe deu um sorriso assombrado. “Eles têm muita experiência
como espiões.”
A risada de Salmom pareceu forçada. “Três é um bom número.
Podemos andar rapidamente e nos esconder com facilidade, se for
preciso. Estamos há um dia inteiro atrasados, então, nós já vamos.”
“O que você está pensando em fazer quando encontrá-los?” “Vou
voltar e contar a Josué. Nós não podemos atacá-los porque
firmamos um tratado de paz com eles, e o tratado ainda está em
vigor. Mas temos que saber a verdade.”
“Eu posso preparar comida para vocês três? Quantos dias você
acha que tudo isso vai durar?”
“Hanani e Ezra vão levar a própria comida. Quatro dias é o
bastante. Vou te mostrar como se prepara um pacote leve. Nossa
maior preocupação é a rapidez, e por isso não podemos nos abater
com o peso.”
Raabe fez um gesto com a cabeça e, em um impulso, deu um
abraço apertado em Salmom. “Sentirei saudades.”
Ele envolveu o rosto dela com as mãos. “Sabe, você é
maravilhosa. Para ser honesto, eu tinha medo de dizer isso. Odeio
pensar em lágrimas ou em inquietação. Isso acontece com alguns
amigos meus sempre que eles partem. Eu deveria saber esperar
essa reação de você.
Por outro lado, nenhum homem quer deixar uma esposa que não
parece se importar ou que fica indiferente. De certa maneira, você
expressou a medida certa de ternura e compostura. Obrigado por
isso. Faz a minha partida ser mais fácil.”
Capítulo
Vinte e Seis

R aabe se preparou para dormir envolta em um clima de


preocupação. Salmom partiria pela manhã em uma missão
perigosa que poderia levá-lo à morte. Talvez ela nunca mais o veria,
nunca mais o abraçaria e nunca mais ouviria sua linda voz falando
com ela. Raabe não poderia aguentar aquele pensamento por muito
tempo, e ficar separada de Salmom durante poucas horas do dia
parecia arrebatador. A ideia de separar-se do marido durante dias
parecia insuportável.
Raabe foi para a cama e se deitou ao lado dele. Embora parado, a
rigidez de seu corpo não deixava o sono chegar. Certa vez ele disse
a ela que não conseguia dormir nas noites antes das missões.
Eles ficaram deitados um ao lado do outro por alguns momentos,
e nenhum dos dois falava ou se mexia. Com um movimento
repentino, Salmom virou para o lado e envolveu Raabe em seus
braços. “Raabe”, sussurrou ele e a beijou. Aquele beijo foi longo, e
Salmom o prolongou com uma paciência e ternura sinceras até que
ela se agarrou a ele. Com um movimento deliberado, Raabe mexeu
o corpo até que estivesse quase inteiramente por debaixo do
marido. As mãos dele tocaram as dela e sua respiração ficava cada
vez mais irregular à medida que ele beijava a curva do pescoço da
esposa.
Raabe foi pega por um desejo irresistível, totalmente novo em sua
vida, e por um terror que já lhe era bastante conhecido. Os velhos
medos invadiram sua mente; medo de que, nos braços dele e na
cama dele, ela se tornasse a Raabe de Jericó. Uma parte dela
sentia que se decepcionaria se ele parasse de fazer suas carícias
delicadas, e a outra parte temia que ela arruinasse tudo se ele
continuasse.
Sentindo a sua hesitação, ele se afastou com a respiração
irregular e apoiou-se em um dos cotovelos. “Desculpe-me. Você não
está pronta.”
Raabe envolveu o lindo rosto de Salmom em suas mãos. “Não é
isso. Você me dá mais prazer do que eu jamais achei que pudesse
sentir.”
Ele se inclinou para a frente e a beijou na boca. Sua voz estava
rouca quando ele levantou a cabeça novamente. “Diga-me qual é a
sua dificuldade. Ajude-me a entender.”
Raabe quase chorou. “É tão difícil falar sobre isso.”
“Eu imagino, mas estou pedindo para você encarar essa dor.
Confie em mim.”
“Você vai me proteger?” Sua voz parecia frágil e infantil.
Inesperadamente, ele a envolveu em seus braços. “Você está
segura comigo. Apenas fale.” Salmom analisou o rosto da esposa à
luz fraca da candeia com um olhar determinado. Ela reconheceu
aquele olhar, aquele que dissecava seu interior e lia sua mente nos
lugares mais escondidos onde ninguém imaginaria que se poderia
chegar. Ela se entregou àquele olhar mostrando-se disposta a
revelar tudo a ele.
Sua respiração, enquanto ela puxava o ar para seus pulmões
abrasadores, estava agitada. No dia seguinte, seu marido partiria
em uma missão que atentava contra sua vida, e ela queria que ele
partisse sem que parede alguma os separasse. Para isso, Raabe se
arriscaria a tudo, inclusive à sua rejeição. “Salmom, você foi o único
homem que amei.” Ela fez um gesto com a mão, que caiu por sobre
a cama. “Antes de você, tudo em mim era fingimento. Fingimento,
atuação, trabalho. Se havia algum prazer, ele era pouco e vinha
acompanhado pela vergonha. Sempre que você me tocava, eu
ficava apavorada com a possibilidade de minha velha personalidade
escapar e de você saber quem eu era. Não sei como devo ser e agir
com você aqui nesta cama. Não sei ser esposa.”
“Então, deixe-me ser um marido para você”, ele a acalmou.
“Deixe-me assumir o controle. Você não precisa fingir aqui. Você
não tem que atuar ou fazer nada disso, a menos que haja algo além
de amor ou do seu desejo. Não quero nada de você, salvo o que me
seja dado livremente.
O meu toque é uma expressão exterior de um amor que toma
conta de cada parte do meu ser. Eu quero me ligar a você, e meu
corpo reflete os desejos da minha alma. Não tenho interesse algum
em usá-la para satisfazer minha luxúria, não quero te usar para
nada. O que eu desejo é ter uma intimidade que envolva todos os
aspectos do nosso ser, juntos. Deixe-me tocar você assim, e toque-
me da mesma forma. Não tenho expectativas em relação a você,
meu amor. Não há motivo para atuar. Apenas me ame, e eu sentirei
seu amor e ficarei satisfeito.”
Raabe ficou em silêncio enquanto procurava entender suas
palavras. Com mais coragem do que confiança, ela levantou a mão
e a colocou no peito dele. “Quero tentar do seu jeito”, afirmou ela
com a voz rouca.
O olhar determinado de Salmom enquanto ele olhava para ela
estava inabalável. “Há apenas uma condição. No momento em que
você rememorar as velhas lembranças e quando a sua mente
transformar meu toque em vergonha, quero que me impeça. Por
mais difícil que isso seja para mim, seria muito pior saber no fim das
contas que fiz você se sentir confusa ou humilhada. O pensamento
de te machucar, de qualquer maneira que seja, me dá dor de
cabeça. Você entendeu? Promete que vai fazer isso?”
“Prometo”, sussurrou ela. Raabe sabia que não seria fácil manter
aquela promessa. Impedi-lo porque ela não se sentia bem parecia o
comportamento mais egoísta que se poderia imaginar. Será mesmo
que ele não se ressentiria ou a ultrajaria por ela ter tantas
necessidades e exigências? Mas, mesmo assim, ela acreditou
quando ele disse que se sentiria pior se ela não as expressasse.
Raabe precisava acreditar que Salmom suportaria o peso de sua
fragilidade e que ele não desistiria dela.
Como se estivesse quase lendo seus pensamentos, ele sussurrou
novamente: “Confie em mim”, depois a beijou passando as mãos
pelos cabelos dela e levantou seu rosto para beijá-la mais
intensamente.
“Você gosta disso?”, perguntou ele a forçando a responder
quando ela preferia ficar calada. “E disso?”, insistiu ele até que ela
aprendesse a ser verdadeira em relação ao que sentia. “Quero
saber do que você gosta. Diga-me”, Salmom pediu. “Você quer
assim? Ou eu devo parar?”
“Não!”, disse Raabe fazendo Salmom rir, com um som
absolutamente masculino que a fez arrepiar-se.
Naquela noite, Raabe descobriu o que era ser pura na cama com
o marido. Ela aprendeu que havia nada de impuro, pecaminoso ou
desonesto sobre ser tocada e possuída por um homem que Deus
havia escolhido para ela. Raabe começou a compreender que
Salmom não se importava em se prejudicar pelo bem dela. Ele
gostaria apenas do que ela pudesse gostar, e não guardava
rancores em relação às diferenças entre os dois. Quanto mais
liberdade ele dava a ela, maior era sua capacidade de sentir prazer
em seus braços. Naquela noite, Raabe deixou Jericó e seus
grandes muros para trás.
,.
Amanhecera muito rapidamente. A despedida de Salmom foi difícil
e Raabe pôde ver que parte de si já estava na missão. Ela deu um
abraço repentino nele tentando memorizar o contorno de seus lábios
contra os dela, a forma de seus braços envolvendo suas costas e a
sensação de sua barba e seu peito que parecia envolvê-la
totalmente. Depois, ela o deixou partir, sentindo sua impaciência
para começar a jornada. Raabe foi com ele até a tenda de Calebe,
onde Ezra, Hanani e Miriã já o esperavam. Josué havia conseguido
três jumentos para dar aos homens, e estes já estavam apostos
pacientemente mastigando forragem. Na frente das outras pessoas,
a despedida dos dois foi mais formal e contida. Mas, obviamente,
Salmom, sem sentir-se envergonhado, a abraçou e a apertou com
uma possessividade apaixonada. “Eu voltarei para te amar mais”,
sussurrou ele no ouvido dela e se foi.
Para alegria de Raabe, Miriã voltou para a tenda à noite e ela
ajudou a cunhada a colocar suas roupas de volta em uma arca
esculpida de acácia. Para os padrões de Jericó, seus pertences
seriamconsideradosescassos, emboraatendessemàsnecessidades
das mulheres de Israel. Não obstante, Raabe prometeu a si mesma
que faria um novo vestido para Miriã assim que terminasse a túnica
que estava fazendo para Salmom.
Teria sido insuportável, Raabe pensou, ter de aguentar sozinha as
horas agonizantes da ausência do marido. Mas, em vez disso, ela
se viu alegrando-se com a companhia de Miriã. Elas já tinham
aprendido a conviver desde os dias que passaram juntas na tenda
dos feridos. Nenhuma das duas se incomodava ou se sentia
invadida pela outra. Elas eram boas parceiras. Miriã era uma pessoa
fácil para se conviver e Raabe era organizada, mas não a ponto de
ser autoritária. Elas oravam muitas vezes juntas. Em momentos
como aqueles, Raabe se sentia mais perto de Deus e impulsionada
pela esperança diante da preocupação constante com o bem-estar
de Salmom.
No segundo dia depois da volta de Miriã, as duas se levantaram
logo que amanheceu e foram até a tenda dos doentes com as
ataduras que haviam preparado no dia anterior. Raabe sabia que
aquela distração era bem-vinda.
Para sua surpresa, a maior distração veio de uma fonte
absolutamente inesperada: Miriã. De repente, ela começou uma
discussão intensa com a esposa de um dos pacientes. Raabe achou
compreensível a raiva de sua cunhada, já que a esposa de um
paciente chamado Benjamim, que sofria de uma doença terrível,
reclamava de tudo e testava sua paciência angelical.
Zufe havia determinado que Benjamim ficaria sob os cuidados de
Miriã, esperando que seu cuidado meticuloso pudesse melhorar o
estado do homem. Raabe estava cuidando de um menino que
dormia perto de Benjamim, quando sua esposa, que havia saído
para descansar, voltou para a tenda e viu Miriã cuidando do marido.
“O que você está fazendo?”, gritou ela.
Com sua tranquilidade peculiar, Miriã respondeu: “Sou Miriã, de
Judá, e ajudo os doentes. Zufe pediu que eu cuidasse do seu
marido”.
A mulher mordeu os lábios. “Aquele criado incompetente?
Como se eu fosse atender ao que ele diz.”
Miriã se enrijeceu. “Você gostaria que eu parasse de cuidar do seu
marido?”
“Cuidar? Você chama isso que faz com as pessoas de cuidar? Eu
já devia ter imaginado, você fez mais mal do que bem a ele. Tire
suas mãos do meu marido.”
Miriã fez um gesto com a boca e se levantou. “Como quiser.” Sua
paciência, que já estava se esgotando, acabou completamente
quando ela viu a mulher dar alimentos sólidos a Benjamim, que
foram expressamente proibidos por Zufe.
“Pare de dar isso a ele! Você vai fazê-lo piorar.”
“E quem você pensa que é para me dizer como devo alimentar
meu marido?”
“Você não está lhe fazendo bem ao dar essa comida. Seu marido
precisa de líquidos leves.”
“Você não vê como ele está magro? E ainda acha que eu devo
deixá-lo faminto enquanto está emagrecendo tanto? Vá cuidar da
sua vida, sua meretriz da Judeia. Eu sei o que é melhor para meu
marido.”
Miriã ficou bem próxima à mulher. “Se ele morrer, será culpa sua.
Nunca vi uma mulher tão grosseira, egoísta e ignorante em toda
Israel.”
Raabe se levantou certa de que, se ninguém interferisse, as
coisas ficariam piores. Felizmente, Zufe percebeu o mesmo e
chegou à mesma conclusão. Ele foi até as duas mulheres e,
segurando Miriã pelo braço, a afastou. “Ela não entende, filha.
Esqueça”, disse ele.
No caminho de volta à tenda, Miriã permaneceu em silêncio
caminhando distraída e com uma expressão preocupada. Quando
ela abriu a boca, as duas já estavam nas terras de Judá. “Bem, pelo
menos agora eu fiz você esquecer a ideia de que eu sou perfeita.”
“O que você disse que ela não merecia?”, Raabe perguntou. “A
maioria das pessoas teria reagido muito antes.”
“Não estou dizendo que ela estava certa. O problema foi a
minhareação. Elaestavaangustiada, Raabe, echeiadepreocupação
com o marido. Eu poderia ter sido mais compreensiva.”
Raabe franziu a testa. “Miriã, eu estava lá e, acredite, você não
estava errada.”
“Eu sei disso. Mas ela deve responder a Deus por seus erros, e
não a mim. Eu deveria ter reagido com misericórdia. É por isso que
Deus me concede um sacrifício sempre que faço más escolhas, não
é? Então, Ele estende misericórdia a mim. Eu não deveria tratar os
outros da mesma forma? Mesmo assim, estou lutando para perdoá-
la, Raabe. Eu não quero isso. Estou assumindo as minhas dores, o
que me ajuda a me concentrar nos erros dela, e não nos meus.”
Raabe estava quieta. As palavras de Miriã despertaram uma velha
agonia para ela. Raabe tinha os próprios conflitos contra o perdão e
a misericórdia, lutas mais profundas do que a situação atual de
Miriã. Ela nunca perdoou o pai. Não verdadeiramente. Ela o ajudara
financeiramente e preservara sua vida durante a queda de Jericó,
mas durante todos aqueles anos ela ainda guardava rancor, sem
esquecer-se do mal que ele havia feito. Raabe tinha quinze anos na
última vez em que o chamou de papai.
Sua cunhada estava lutando por dentro porque queria estender
aos outros o perdão que recebia de Deus. Mesmo que ela ainda não
conseguisse concretizar esse desejo em relação à esposa de
Benjamim, pelo menos ela estava lutando para fazê-lo. Deveria
Raabe fazer o mesmo pelo pai? Naquele momento, foi a vez de
Raabe ficar em silêncio. Perdoar parecia demais.
Naquela noite, depois que elas acabaram de jantar, Raabe
compartilhou alguns daqueles pensamentos com Miriã. O tipo de
abertura vulnerável exigida para tal conversa representava um
território novo para Raabe. A abertura e a vulnerabilidade em sua
relação com Salmom tinham começado a influenciar também suas
relações com as outras pessoas. Em vez de guardar seus segredos
no peito por medo de ser rejeitada, ela os compartilhava com
sinceridade. Sentindo-se segura no amor de Miriã, ela conseguiria
ser honesta em relação a seus defeitos. Aquela vulnerabilidade era
recompensada com uma experiência íntima de pertencimento. Ela
se sentia verdadeiramente ligada a Miriã, e quanto mais
compartilhava, menos sentia-se sozinha.
Miriã estava pensativa quando Raabe terminou de falar. “Acho que
você está certa em acreditar que precisa perdoá-lo, mas talvez isso
não seja muito fácil. Alguma vez ele já pediu seu perdão?”
“Não.”
“Talvez ele nem se dê conta de que precisa disso. Possivelmente,
ele arrumou sozinho uma desculpa para sua atitude. Isso significa
que você deve aprender a perdoar um homem impenitente. Raabe,
não é uma das coisas mais fáceis de se fazer, mas é a coisa certa.”
“Hum. Só em pensar nisso sinto indigestão.”
“Vamos pedir ajuda a Deus. Se Ele quiser isso, Ele dará força a
você. Eu estou lutando muito para perdoar a esposa de Benjamim,
então posso imaginar como isso deve ser difícil para você.”
Depois de orar, Raabe saiu da tenda para lavar louça e viu um
homem caminhando em direção à sua morada. A forma familiar, o
jeito agradável de andar, as pernas compridas e os ombros largos a
fizeram arfar. “Salmom!” Ela largou a louça fazendo barulho e correu
em direção a ele. Salmom ficou extremamente feliz quando a
segurou em seus braços ansiosos.
“Que recepção para dois dias de ausência. Como seria se eu
ficasse fora por duas semanas?”
“Não me faça descobrir, seu bobo.”
Ele a beijou intensamente. “Achei que eu estivesse sonhando”,
disse ele, “mas eu não estava.”
Raabe se agarrou a Salmom, que ainda não queria soltá-la.
“Venha falar com Miriã. Ela voltou para a tenda e ficará muito feliz
em te ver.”
Ele sorriu. “Não consigo andar com você me segurando assim.”
Raabe deu um tapinha no braço dele. “Mas é claro que você
consegue.”
“Você está certa”, ele declarou e a pegou no colo, fazendo-a dar
um grito de alegria. Miriã fez o mesmo de tanta alegria ao ver o
corpo atlético do irmão voltando são e salvo de sua missão.
Depois de um jantar com peixe defumado e bolo de uvas, Salmom
contou as novidades. “Como eu suspeitava, os homens com os
quais Israel firmou um tratado de paz vivem muito perto daqui. Eles
vieram de Gibeom e de várias outras cidades interligadas.”
“Gibeom? Mas é a maior cidade!”, disse Raabe em um
sobressalto.
“Uma das cidades mais ricas, e muito maior do que Ai.” Salmom
suspirou. “Tenho mais notícias alarmantes. Descobri que Adoni-
Zedeque, rei de Jerusalém, está tentando reunir os reis de Hebrom,
Jarmute, Laquis e Eglom para formar um exército enorme.”
“O que você vai fazer?”
“Para começar, Josué enviou alguns líderes de volta aos
gibeonitas a fim de entender o motivo por trás de sua farsa. De
qualquer maneira, já que demos nossa palavra, não podemos lutar
contra eles. Mas Josué tem um plano. Ele pretende usá-los como
lenhadores e carregadores de água para Israel. A partir de agora,
eles serão reduzidos a escravos. Esse é o castigo por eles nos
terem enganado.”
“E quanto ao exército que Adoni-Zedeque está reunindo?”,
perguntou Miriã.
Salmom olhou para baixo. “Grandes exércitos significam apenas
uma coisa.”
Ninguém disse uma palavra, mas os três sabiam. Guerra.
,.
Como previsto, os cinco reis amorreus elaboraram sua armadilha.
Em vez de atacar Israel diretamente, eles atacaram Gibeom e
outras províncias que firmaram o tratado de paz com Israel. Raabe
soube, logo que ouviu a notícia, que seu marido iria para a guerra.
Israel não ficaria de braços cruzados e permitiria que um aliado
fosse destruído por seus vizinhos. As feridas de Salmom na batalha
de Ai já haviam sido curadas há muito tempo e ele havia recuperado
seu vigor. Nada o faria ficar em casa com ela.
Josué decidiu conduzir o exército tarde da noite, marchando a
noite inteira de Gilgal a fim de pegar Adoni-Zedeque de surpresa.
Naquela noite, enquanto Raabe não conseguia dormir em sua
esteira solitária, sabendo que Salmom talvez estivesse marchando
em direção à sua destruição, ela lutou contra um terror que nunca
havia sentido. Seu coração não poderia suportar a possibilidade de
perder seu marido, e ela sentia como se sua pele não a pudesse
conter, como se ela quisesse sair do corpo e deixá-lo para trás,
deixando também a intensidade da agitação que a dominava. Seu
coração batia tão forte que ela achou que ele fosse sair pela boca.
Raabe tentou, mas não havia motivo para tal pânico. Ele não lhe
trazia conforto, mas sim uma fúria sem motivo.
De repente, em meio à sua experiência quase insuportável, ela
ouviu um sussurro, uma pequena frase: Minha filha. Ela reconheceu
aquela voz, aquela combinação de força imensa e amor incomum.
Minha filha. O ataque de pânico teve um fim abrupto. Ela não estava
sozinha. Pouco a pouco, ela se conscientizou da verdade. Israel não
batalhava conforme as outras nações. O Senhor era seu Guerreiro,
e Ele andava à frente de Seu povo. Ele abria as portas milagrosas
para a vitória. Ela se lembrou de que Deus havia falado com Josué
antes de ele partir para a longa jornada, dizendo que o exército de
Adoni-Zedeque não seria capaz de resistir ao poder de Israel.
E o mais importante: ela se lembrou que Salmom pertencia muito
mais a Deus do que a ela. O Senhor o protegeria, e também
protegeria a ela. Seu destino, seu bem-estar e seu futuro não
estavam nas mãos de Salmom; eles estavam nas mãos de Deus.
Independentemente do que acontecesse a Salmom durante aquele
conflito — e durante todos os outros que viriam — Raabe precisava
confiar seu destino Àquele que já lhe havia concebido muitas coisas.
Ela precisava se lembrar de que Salmom não era seu Senhor, mas
sim seu marido.
Ela não conseguiu se livrar inteiramente da sensação de
ansiedade ao pensar no homem que amava, mas o medo não a
consumiu mais. No mais íntimo de seu ser, Deus havia ficado maior
do que o medo.
Na manhã seguinte, Raabe foi visitar a família levando consigo
alguns pedaços de bolo de figo que havia preparado no dia anterior.
Seu pai adorava aquela receita. Ela o encontrou na tenda da família,
mexendo em uma candeia que estava com problema. Uma
lembrança surgiu em sua mente quando ela o viu levantar-se e
esticar os braços para relaxar os músculos contraídos. Era a
lembrança dele a segurando quando ela estava com três anos de
idade, girando-a no ar e dizendo: minha filha. Eram as mesmas
palavras que Deus havia falado em suas horas de pânico. Ocorreu a
Raabe que o Senhor queria que ela entendesse algo. Deus havia
preenchido a lacuna deixada por seu pai. Ele havia a amado e
protegido quando seu pai não o fez, e Ele queria que ela se
lembrasse que, independentemente de sua falha gravíssima, seu
pai também a amava.
Naquele momento, a ideia de perdoá-lo e de abandonar a
amargura de sua traição não se tornou apenas possível, mas
também irreprimível. Ela teria outros dias para sentir novamente seu
conflito interior, para lidar com ele novamente e para deixar o
ressentimento para trás. No entanto, naquele momento, ela estava
pronta para dar aquele passo com uma paz verdadeira. Raabe
pensou em como transmitir aquela mudança extraordinária ao
coração de seu pai. Se ela dissesse que o perdoava, ele poderia
ficar ofendido em vez de confortado. Se, como sugeriu Miriã, ele
tivesse justificado suas atitudes, o perdão de Raabe o faria apenas
ficar na defensiva, pois soaria como uma acusação. Cada ato de
perdão, em sua natureza, soava como transgressão. Seu pai se
sentiria julgado em vez de aliviado com suas palavras. Mas, mesmo
assim, Raabe não poderia deixar de dizer que qualquer
impedimento que houvesse entre os dois havia sido destruído
aquele dia.
Com passos leves, Raabe foi até ele e ofereceu o bolo. “Para
você, papai.” Fazia onze anos que ele não a ouvia o chamar
daquela maneira.
Ele arregalou os olhos e, por um momento incerto, levantou-se e
olhou para ela. Seus olhos se encheram de lágrimas e ele ignorou o
bolo. “Você me chamou de quê?”, ele perguntou com a voz trêmula.
“Papai.”
Ele estendeu a mão, também trêmula, até a cabeça de Raabe e
fez um carinho. “Minha filha”, disse ele com a voz embargada. Em
seguida, se virou e saiu. Raabe deixou o bolo em uma bandeja e
enxugou as lágrimas enquanto esticava o corpo.
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Naquele dia, um acontecimento assombroso abalou a nação de
Israel. O sol parou exatamente no meio do céu e permaneceu no
mesmo lugar por muitas horas. Durante um dia inteiro. As pessoas
ficaram maravilhadas, e saíam de suas tendas a todo tempo como
se estivessem checando se não estariam sonhando ou tendo
alucinações. Ninguém nunca tinha ouvido falar sobre nada como
aquilo.
Por fim, quando todos já haviam perdido a noção do tempo, um
mensageiro trouxe notícias sobre o exército. Josué orou para que o
sol permanecesse parado por sobre Gibeom para que ele pudesse
terminar a batalha e destruir o inimigo. Para a surpresa de todos, o
sol lhe obedeceu, pois Deus havia honrado o pedido improvável de
Josué. Raabe duvidou que o mundo visse algo igual novamente.
E, ainda assim, qual seria o maior milagre? Raabe se perguntava.
Não haver pôr do sol durante um dia ou uma mulher perdoar o
pecado mais grave que seu pai cometera contra ela?
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Salmom voltou da batalha exausto, mas ileso. Raabe sentiu muita
alegria apenas por vê-lo. Orgulhosamente, ela mostrou a túnica que
havia feito para ele, dando um fim às horas agonizantes de sua
ausência. Ele a vestiu imediatamente e afirmou que aquela era a
melhor túnica de Israel, fazendo Miriã rir e Raabe ruborizar. Ela e
Miriã comemoraram a volta de Salmom com um banquete. Depois
da vitória incomparável de Israel, todos estavam dispostos a
celebrar com muitas festas. Depois que os convidados finalmente se
foram, Raabe dançou para Salmom pela primeira vez.
Sua dança durou muito pouco tempo. Antes mesmo que tivesse a
chance de mostrar a ele um de seus movimentos mais elaborados,
ela se viu totalmente envolvida em seus braços.
“Eu não terminei”, brincou ela. “Nem eu”, afirmou ele.
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Depois, enquanto eles se aconchegavam confortavelmente nos
braços um do outro, Raabe pensou em voz alta: “Eu acho que Ezra
é um bom homem. Você não acha, meu senhor?”
As pálpebras de Salmom, já meio fechadas devido ao sono que se
aproximava, se abriram de repente. “O quê?”
“Eu estou falando do Ezra. É um homem admirável.”
“Temos mesmo que falar sobre as grandes qualidades de outro
homem em nossa cama?”
“Miriã ficaria mais feliz em conversar sobre isso.”
Salmom tirou o lençol do peito e se sentou. “Miriã? O que Miriã
tem a ver com isso?”
“Bom, eu acho que ela concorda com o fato de Ezra ter qualidades
admiráveis.”
“Miriã é apenas uma criança”, rebateu Salmom.
Raabe riu. “Pode até ser, mas a maioria das mulheres da idade
dela já estão tendo o primeiro filho.”
Salmom franziu a testa. “É, tudo bem, admito que ela cresceu um
pouco nos últimos meses.”
Raabe cobriu a boca com a mão e olhou para baixo. Salmom
cruzou os braços. “De qualquer maneira, o que isso tem a ver?”
“Ezra parece gostar bastante dela.”
“Você acha que eu não percebi que esse rapaz vive a seguindo
com o olhar há mais ou menos um ano?”
“Não se trata de um rapaz, querido. Metade das mulheres de Judá
gostariam de tê-lo como parte da família, e Miriã também gosta
dele.”
“Ela disse isso?” “Talvez ela tenha dito.”
Salmom agarrou um travesseiro e lançou um olhar penetrante
para Raabe. “Então, por que o rapaz... está bem, o homem... não
toma uma providência? Por que a minha esposa tem que falar sobre
isso na paz da minha cama?”
“Com a cara que você faz sempre que ele se aproxima de Miriã?
Ezra não pode esperar uma recepção calorosa com seu olhar
vigiando cada passo dele. E seu único pecado é amar sua irmã.”
Salmom levantou as mãos. “Fique tranquila, mulher. Faça como
quiser, então. Ezra é um homem admirável e vou parar de fazer cara
feia para ele. Algo mais?”
“Você é a representação da generosidade, meu senhor.”
Salmom se inclinou e beijou sua esposa. “Dou graças por você
estar do lado de Israel”, disse ele. Depois, ele a beijou novamente
antes mesmo que ela pudesse responder.
Epílogo

O bebê gritava a plenos pulmões. Salmom o pegou no colo e


tentou acalmá-lo. “Acalme-se, meu filho, senão sua mãe vai
te chamar de guloso.”
“Ele é guloso”, disse Raabe abrindo um dos olhos. “Ele acabou de
mamar.” Ela levantou os braços e Salmom colocou o filho deles no
colo dela.
“Shhhh, querido. A mamãe está aqui e vai tomar conta de você.”
O bebê começou a mamar fazendo barulho.
Salmom riu. “Ele definitivamente não puxou a você.” Como se
tivesse percebido a deixa, a criança expeliu alguns gases fazendo
um ruído estranho que fez seus pais sorrirem. “Bem, talvez ele
tenha puxado ao seu irmão.”
“Ah, isso não foi nada. Deixe-o em paz.”
“Não tenho problemas com isso. Mas talvez a futura esposa dele
tenha algumas objeções.”
“Eu fico imaginando quem será ela.” Refletiu Raabe.
Salmom se inclinou até ele e o beijou na bochecha. “Filho, o que
quer que você faça, espere pela mulher certa. Mesmo que você já
esteja velho quando ela aparecer, não tenha pressa. Espere
pacientemente.”
“Hummm. E trate sua esposa bem desde o primeiro momento em
que olhá-la. Não faça como certas pessoas que prefiro não dizer o
nome.”
“Eu não sei de quem sua mãe está falando.”
“Ah, Salmom, eu oro para que ele seja tão feliz quanto nós somos.
Eu oro para que Deus o abençoe com uma boa esposa que lhe dê
alegria — e um filho para dar continuidade à sua linhagem.”
“E à sua”, sussurrou ele inclinando-se para beijá-la. Esticando-se
novamente, Salmom foi até a aba aberta da tenda, por onde os raios
de sol transpassavam. “Eu fico imaginando as próximas pessoas de
nossa linhagem, Raabe. Eu me pergunto que tipo de homem ou
mulher nascerá por meio de nós, e que tipo de vida eles terão.”
“Eu me pergunto como Deus os usará.” “Sim, Ele usará a maior
parte deles.”
“Bem, pequeno Boaz, já falamos muito na sua cabeça, né?” O
bebê arrotou e Salmom e Raabe começaram a rir.
Agradecimentos

Gostaria de agradecer profundamente a Wendy Lawton, da


agência literária Books and Such, que profissionalmente
me abrigou sob suas asas e mudou minha vida. Não há palavras
que expressem minha gratidão a Paul Santhouse, da Moody
Publishers, que acreditou neste livro e o defendeu tão fielmente. Eu
também gostaria de agradecer a Duane Sherman e à equipe tão
dedicada da Moody, cujo encorajamento incrível e trabalho árduo
fizeram de cada momento do processo de publicação uma alegria.
Escrever é um processo solitário, mas até mesmo os escritores
mais contidos precisam da companhia de alguns amigos especiais.
Para aqueles que me acompanharam durante esta jornada, leram
meus rascunhos, me amaram e oraram por mim a cada etapa:
Karen Connors, Janice Johnson, Cheryl Mallon, Tegan Willard, Kathi
Smith, Linda Stricland e Emi Trowbridge, meus agradecimentos
especiais. E Millie Tolley, por suas orações e por seus olhos tão
atentos, sou muito grata. Obrigada também a Lieslie Goetler que,
em meio aos horários loucos de sua residência, arrumou tempo para
me dar informações médicas, e a Persh Parker, que me mostrou
como atravessar um rio caudaloso.
Agradeço especialmente à minha melhor amiga, Rebecca Rhee,
que levou até mim uma árvore de Natal enquanto eu não tinha
tempo e que fez sopa nas minhas noites longas e frias. Rebecca e
Beth, sua amizade ao longo dos anos tem sido uma das maiores
bênçãos da minha vida. O que seria de mim sem vocês?
Muito, muito obrigada ao meu pai e à minha mãe pela liberdade
generosa que eles me deram a vida inteira, incluindo quando me
deixavam ler à mesa de refeições quando eu era criança e quando
me permitiram amar a Jesus livremente depois que cresci.
Agradeço também às muitas mulheres que serviram de inspiração
para esta história, com suas batalhas valorosas contra os
sofrimentos da vida — sofrimentos que levam à condenação e
vergonha: vocês são mulheres virtuosas (Rute 3:11).
Perguntas para
Reflexão

1. No capítulo um, vemos tanto sutil quanto evidentemente que a


família de Raabe deixa de amá-la e protegê-la. Descreva algumas
dessas situações.
2. Que tipo de feridas emocionais Raabe sustenta em consequência
disso?
3. Em sua vida, sua família deixou de alguma forma de amá-lo e
protegê-lo?
4. Como você sente que essas situações o afetaram?
5. No capítulo dois, Raabe faz amizade com Debir. Em sua opinião,
quais são os defeitos dele como amigo?
6. Descreva as qualidades que você gostaria de encontrar em um
amigo ideal. Quantas dessas qualidades você tem?
7;. No capítulo três, vemos que Raabe se interessa pelo Senhor.
Quais qualidades de Deus a atraíram?
8. Use três palavras para descrever Deus à sua maneira.
9. O que fez Raabe se dispor a arriscar a vida para salvar os
espiões judeus?
10. No capítulo seis, quais lições podemos tirar do encontro de
Josué com o comandante do exército do Senhor?
11. No capítulo oito, Josué afirma que Salmom está sendo crítico
demais em sua tentativa de ser justo. Qual é o significado disso
para você?
12. Você vê atitudes muito críticas em si mesmo?
13. No capítulo dezessete, Raabe vê um lado positivo no caso da
cobra. Qual seria o lado positivo?
14. Existiu alguma cobra em sua vida pela qual você aprendeu a ver
sob um prisma positivo? Explique.
15. No capítulo vinte e um, Salmom diz que Raabe é sua Jericó. O
que ele quis dizer com isso?
16. As cidades da Antiguidade geralmente eram cercadas por muros
que mantinham os opositores do lado de fora, permitindo apenas a
entrada dos que eram bons. Mas o coração de Raabe tinha muros
que funcionavam na direção oposta: eles permitiam que as coisas
ruins entrassem (por exemplo: o orgulho, o pensamento de que
ela não era digna de valor, o medo), e deixavam o amor e a
intimidade do lado de fora. De que maneiras os muros do seu
coração funcionam de forma contrária, assim como acontecia com
Raabe?
17. No capítulo vinte e três, Salmom tenta explicar as diferenças
entre a vergonha e a verdadeira culpa. Explique essa distinção
com suas palavras.
18. No capítulo vinte e quatro, Raabe e Salmom compreendem o
verdadeiro valor de Raabe com a lição do brinco de pérola. Qual a
lição de valor próprio temos na história? De que forma você vê
isso em sua vida?
19. Como você acha que Deus o vê?
20. No capítulo vinte e seis, Raabe aprende o que é a pureza na
cama de seu marido. O que isso significa para você?
21. Raabe finalmente perdoa seu pai. O que você acha que a
ajudou a fazer isso?
22. Ainda há lugares onde não há perdão em seu coração? O que
pode ajudá-lo a superar esses sentimentos?
23. De que maneiras você se acha semelhante a Raabe?
24 Quais das qualidades de Deus discutidas na história tocaram seu
coração? Por quê?
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