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PIERLUIGI DONINI (1940) A cultura ocidental, o nosso

foi professor de História modo de nos relacionarmos


da Filosofia Antiga nas D O N I N I -F E R R A R I
O exercício da razão no
com o mundo e nós mesmos
Universidades de Trieste, afundam as raízes no coração
A
Turim e Milão. Dedicou-se do pensamento filosófico
obra fornece um panorama documen-
prevalentemente de Aristóteles, clássico: o de Heráclito e
da tradição aristotélica e do
platonismo imperial. Entre suas
obras, assinalam-se: La tragedia

tado e atualizado do pensamento fi-


losófico antigo, dos pré-socráticos ao
mundo clássico Parmênides, Sócrates e Platão,
Aristóteles e Epicuro, Sêneca e
Plotino. Este livro fornece um
e la vita. Saggi sulla poetica di neoplatonismo tardio. A apresentação dos prota-
Perfil de filosofia antiga guia anotado à filosofia antiga,
Aristotele (Alessandria 2004); gonistas e das principais escolas é desenvolvida à aos autores, movimentos,
La Metafisica di Aristotele textos que marcaram de
luz das mais recentes tendências da crítica histo-
o
(Roma 2007); Aristotle and maneira definitiva nossa
Determinism (Louvain 2010) riográfica. A leitura é recomendada seja aos estu- tradição cultural. Introduz
e Commentary and Tradition o leitor (tanto o estudante

O exercício da razão no mundo clássico


dantes universitários como aos apaixonados pelas
(Berlin-New York 2010). universitário como o amante da
origens do pensamento ocidental em geral. filosofia) para o conhecimento
FRANCO FERRARI (1964) é dos primeiros mil anos do
professor de História da pensamento ocidental. Esta
Filosofia Antiga na Università longa jornada, em busca dos
di Salerno. Dedica-se
prevalentemente a Platão e
PIERLUIGI DONINI diferentes modos pelos quais
se expressou a racionalidade
à recepção do platonismo FRANCO FERRARI dos antigos, é acompanhada
na Antiguidade. Traduziu pela convicção de que apenas
e comentou os diálogos o exercício da razão constitui a
Parmênides (Milano 2004) íntima natureza de ser humano.
e Teeteto (Milano 2011) de
Platão. É autor de Dio, idee
e materia: la struttura del
cosmo in Plutarco di Cheronea
(Napoli 1995); I miti di
Platone (Milano 2006) e
Socrate tra personaggio e mito
(Milano 2007). É atualmente
membro do Editorial Board da
International Plato Studies.
O exercício da razão
no mundo clássico
Perfil de filosofia antiga
Coleção

As origens do pensamento ocidental


Direção
Gabriele Cornelli
Conselho Editorial:
André Leonardo Chevitarese
Delfim Leão
Fernando Santoro

A coleção Archai é espelho do trabalho do grupo Archai: as origens do pen-


samento ocidental, agora promovido a Cátedra UNESCO Archai. Há qua-
se dez anos, desde 2001, o grupo Archai – desde 2011 Cátedra UNES-
CO Archai – promove investigações, organiza seminários e publicações
(entre eles a revista Archai) com o intuito de estabelecer uma metodologia de
trabalho e de constituir um espaço interdisciplinar de reflexão filosófica sobre
as origens do pensamento ocidental. A presente coleção – parte do selo editorial
Annablume Clássica – quer contribuir para a divulgação no Brasil de produções
editoriais que busquem compreender, a partir de uma perspectiva cultural mais
ampla, nossas origens. Nesse sentido, visando uma apreensão rigorosa do processo
de formação da filosofia, e, de modo mais amplo, do pensamento ocidental, as
obras que aqui são apresentadas procuram confrontar uma tradição excessiva-
mente presentista de contar a história do processo de formação da cultura oci-
dental. Notadamente daquela que pensa a filosofia como um saber “estanque”,
independente das condições de possibilidade históricas que permitiram a aparição
desse tipo de discurso. Enraizando o “nascimento da filosofia” na cultura antiga,
contrapondo-se às lições de uma historiografia filosófica racionalista que, ana-
cronicamente, projeta sobre o contexto grego valores e procedimentos de uma
razão instrumental estranha às múltiplas formas do logos antigo, a coleção Archai
pretende contribuir para o lançamento de um olhar novo sobre os primórdios do
pensamento ocidental, em busca de novos caminhos hermenêuticos de nossas
identidades intelectuais, éticas, artísticas e culturais.

Conheça os títulos desta coleção no final do livro.


O exercício da razão
no mundo clássico
Perfil de filosofia antiga

a
Pierluigi Donini
Franco Ferrari
TraDução De Maria Da graça goMes De Pina

C L Á S S I C A
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP
D685 Donini, Pierluigi; Ferrari, Franco.
O exercício da razão no mundo clássico: perfil de filosofia antiga. /
Pierluigi Donini e Franco Ferrari. Tradução de Maria da Graça Gomes
de Pina. – São Paulo: Annablume Clássica, 2012.
(Coleção Archai: as origens do pensamento ocidental).

504 p.; 14x21 cm

Título original: L’esercizio della ragione nel mondo classico – Profilo della
filosofia antica, Einaudi, Torino 2005

Apoio da Cátedra UNESCO Archai: as origens do pensamento ocidental –


Universidade de Brasília.

ISBN 978-85-64608-26-9

1. Os pré-socráticos. 2. A sofística, Sócrates e os Socráticos. 3. Platão.


4. Aristóteles. 5. A filosofia helenista. 6. A filosofia no mundo romano.
7. Plotino. 8. O neoplatonismo depois de Plotino. Série. I. Selo
Annablume Clássica. II. Pina, Maria da Graça Gomes de, Tradutora. III.
Donini, Pierluigi. IV. Ferrari, Franco.

CDU 101
CDD 100

Catalogação elaborada por Ruth Simão Paulino

O EXERCÍCIO DA RAZÃO NO MUNDO CLÁSSICO:


PERFIL DE FILOSOFIA ANTIGA

Projeto, Produção e Capa


Coletivo Gráfico Annablume

ANNABLUME CLÁSSICA
Conselho editorial
Gabriele Cornelli
Luiz Armando Bagolin
Mário Henrique D´Agostino
Mônica Lucas
Editor executivo
José Roberto Barreto Lins
A presente obra contou com o apoio da Cátedra UNESCO Archai:
as origens do pensamento ocidental - Universidade de Brasilia

1ª edição: agosto de 2012

© Einaudi
ANNABLUME editora . comunicação
Rua M.M.D.C., 217 . Butantã
05510-021 . São Paulo . SP . Brasil
Tel. e Fax. (5511) 3539-0226 – Televendas 3539-0225
www.annablume.com.br
SUMÁRIO

1. OS PRÉ-SOCRÁTICOS 11
1. OS PRÉ-SOCRÁTICOS E OS INÍCIOS DA FILOSOFIA:
QUESTÕES PRELIMINARES 11
2. O NATURALISMO JÓNICO 17
3. O PITAGORISMO: ALMA E NÚMERO 25
4. PARMÉNIDES E O ELEATISMO 31
5. O NATURALISMO PÓS-ELEÁTICO:
EMPÉDOCLES, ANAXÁGORAS, DEMÓCRITO 39
6. O CORPUS HIPOCRÁTICO
E O NASCIMENTO DAS TECHNAI 52

2. A SOFÍSTICA, SÓCRATES E OS SOCRÁTICOS 57


1. ATENAS: IMPERIALISMO,
DEMOCRACIA E SOFÍSTICA 57
2. A SOFÍSTICA: RELATIVISMO,
ANTIELEATISMO, RETÓRICA 61
3. A SOFÍSTICA: O ILUMINISMO GREGO 68
4. SÓCRATES: A FILOSOFIA EM AÇÃO 74
5. AS ESCOLAS SOCRÁTICAS MENORES 85
6. ANTÍSTENES E A TRADIÇÃO CÍNICA 87
7. OS CIRENAICOS 92
8. A «ESCOLA» DE MÉGARA 94
3. PLATÃO 97
1. VIDA E OBRA 97
2. O DIÁLOGO: ESCRITA E TEATRO DA FILOSOFIA 103
3. A POLÉMICA CONTRA A SOFÍSTICA
E A NATUREZA DAS VIRTUDES 111
4. O INDIVÍDUO E A COMUNIDADE 119
5. O SABER DO FILÓSOFO 134
6. A CONCEÇÃO DAS IDEIAS: TESES E PROBLEMAS 146
7. ONTOLOGIA E COSMOLOGIA 161
8. O MITO, A ALMA, A FILOSOFIA 173
9. ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA:
A HERANÇA DE PLATÃO NA ACADEMIA 183

4. ARISTÓTELES 189
1. VIDA E OBRA 189
2. OS FUNDAMENTOS ACADÉMICOS DA FILOSOFIA DE
ARISTÓTELES E A DOUTRINA DAS CATEGORIAS 194
3. LÓGICA E TEORIA DA CIÊNCIA 204
4. FÍSICA 217
5. OS VIVENTES E A ALMA 228
6. A METAFÍSICA 238
7. A ÉTICA 248
8. A POLÍTICA 262
9. RETÓRICA E POÉTICA 271
10. A ESCOLA PERIPATÉTICA 277

5. A FILOSOFIA HELENISTA 281


1. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA HELENISTA 281
2. EPICURO, VIDA E OBRA 287
3. OS CÂNONES DE EPICURO 289
4. A FÍSICA DE EPICURO 294
5. A ÉTICA DE EPICURO 299
6. O INDIVÍDUO NAS RELAÇÕES SOCIAIS 308
7. O ESTOICISMO: AS PERSONALIDADES 310
8. PARTIÇÕES E PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS
DA FILOSOFIA ESTOICA 313
9. A DIALÉTICA ESTOICA 315
10. A DIALÉTICA: A TEORIA
DO CONHECIMENTO 320
11. OS PRINCÍPIOS, OS ELEMENTOS,
O MUNDO FÍSICO 325
12. OS CICLOS CÓSMICOS, A DIVINDADE,
A PROVIDÊNCIA, O FADO 330
13. A ALMA 338
14. A ÉTICA ESTOICA: OS FUNDAMENTOS,
AS NOÇÕES DE BEM E DE FIM 340
15. A VIRTUDE E O SÁBIO 345
16. AS FUNÇÕES PRÓPRIAS E
O CAMINHO PARA A VIRTUDE 349
17. O VÍCIO E AS PAIXÕES 355
18. AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS E A POLÍTICA 358
19. PANÉCIO E POSSIDÓNIO 360
20. PIRRO E O CETICISMO 363
21. O CETICISMO NA ACADEMIA: ARCESILAU 367
22. CARNÉADES 372
23. O FIM DA ACADEMIA CÉTICA 377

6. A FILOSOFIA NO MUNDO ROMANO 381


1. ROMA E OS FILÓSOFOS 381
2. AS CARACTERÍSTICAS GERAIS DA FILOSOFIA:
O REGRESSO AOS ANTIGOS, O SISTEMA, A EXEGESE,
A COMUNHÃO DE LINGUAGEM E DE TEMAS 385
3. A VIRAGEM DA FILOSOFIA NO SÉCULO I A.C. 389
4. A DIFUSÃO DO MÉDIO-PLATONISMO ENTRE
OS SÉCULOS I E II 394
5. OS PRINCIPAIS FILÓSOFOS
MÉDIO-PLATÓNICOS 398
6. OS COMENTADORES DE ARISTÓTELES 404
7. O NEOPIRRONISMO E SEXTO EMPÍRICO 410
8. OS ESTOICOS ENTRE OS SÉCULOS I E II 416
9. LUCRÉCIO E O EPICURISMO 422
10. ALGUNS CIENTISTAS INFLUENCIADOS
PELA FILOSOFIA 424

7. PLOTINO 429
1. VIDA E OBRA 429
2. TRADIÇÃO E INOVAÇÃO 432
3. A REALIDADE E O SEU PRINCÍPIO 435
4. O INTELECTO, A ALMA, O MUNDO 443
5. O REGRESSO AO UNO 450

8. O NEOPLATONISMO DEPOIS DE PLOTINO 455


1. PORFÍRIO 455
2. JÂMBLICO 458
3. AS ESCOLAS NEOPLATÓNICAS ENTRE OS
SÉCULOS IV E VI 462
4. PROCLO 465

BIBLIOGRAFIA 475

ÍNDICE DOS NOMES 489


O EXERCÍCIO DA RAZÃO NO
MUNDO CLÁSSICO

A responsabilidade do livro na sua totalidade


é comum aos dois autores. Todavia, a redação dos
capítulos I-III (exceto os parágrafos 5-8 do capítulo 2)
e VII deve-se a Franco Ferrari; a dos capítulos IV-VI e
VIII, além dos parágrafos 5-8 do capítulo II, deve-se a
Pierluigi Donini.
1.

OS PRÉ-SOCRÁTICOS

1. OS PRÉ-SOCRÁTICOS E OS INÍCIOS DA
FILOSOFIA: QUESTÕES PRELIMINARES

C ada discurso relativo ao início de qualquer ar-


gumento se apresenta de forma problemática e
esta regra vale também para o começo da filosofia. Há
questões que deveríamos pôr-nos e tentar resolver, mas
cujo tratamento nos levaria inevitavelmente a transpor
os limites concedidos a uma exposição geral da filo-
sofia antiga. Referimo-nos a perguntas como as que
seguem: por que razão as histórias da filosofia (desde
a antiguidade) costumam começar pela apresentação
do pensamento de Tales e dos outros autores jónios?
Porque é que a reflexão destes últimos é considerada
«filosófica», e não se consideram tais as afirmações re-
lativas à natureza do ser humano e à estrutura do cos-
mos contidas nos poemas homéricos ou em Hesíodo,
ou ainda, as conceções que circulavam nas culturas do
vizinho Oriente, ou seja, Egito, Mesopotâmia e Índia?
As investigações levadas a cabo nas últimas décadas
demonstraram que a dívida do pensamento jónico
para com as culturas não-gregas foi provavelmente
mais significativa do que se defendeu no passado. E al-
guns aspetos das cosmologias jónicas parecem retomar
andamentos típicos das teogonias arcaicas, por exem-
plo, a de Hesíodo. É lícito, pois, perguntar-se sobre o
que faz com que, aos nossos olhos, sejam filosóficas as
reflexões de Tales, Anaximandro, Heraclito, etc., e não
as de Hesíodo ou as dos sapientes orientais.
A resposta mais simples – mas também a mais ver-
dadeira – é que só com as personagens que acabámos
de nomear nos encontramos face a indícios do que
para nós é considerado filosofia. Ela é certamente um
método de investigação, mas antes disso, é uma atitu-
de mental fundada no princípio de coerência, ou seja,
na capacidade de fornecer interpretações unitárias e
coerentes dos fenómenos. Quando se diz que a filoso-
fia se distingue das outras formas de saber pelo papel
que nela desempenha a razão, entende-se aludir preci-
samente ao esforço de dar uma explicação unitária, co-
erente e generalizadora aos fenómenos, uma explica-
ção de certa forma argumentada, numa palavra, uma
explicação racional. A palavra filosofia está destinada
a fazer a sua aparição mais tarde, provavelmente com
Pitágoras ou com Heraclito (mas ambas as hipóteses
parecem problemáticas), e só nos diálogos de Platão a
disciplina terá o seu verdadeiro assento de nascimento
(cf. cap. III, § 2); porém, no modo de pensar e no
estilo argumentativo dos Pré-socráticos podem-se já

12
intuir os indícios do aparecimento da racionalidade
filosófica.
Quem pretender ingressar no estudo dos pensado-
res que viveram antes de Platão (428-348), encontrar-
-se-á face a uma dificuldade preliminar que consiste
na ausência das suas obras. Nós não possuímos por
inteiro nenhum escrito de interesse filosófico-cien-
tífico anterior ao início do século IV a.C. (para os
escritos do corpus hipocrático, cf. abaixo, § 6). Das
obras compostas antes desta época, dispomos apenas
de informações que encontramos em autores poste-
riores, começando por Platão e Aristóteles. Trata-se
de informações de dois tipos: a) sumários gerais em
que um autor resume ou parafraseia o conteúdo do
escrito de um pensador anterior; b) autênticas citações
em que se transcreve à letra uma parte da obra que
é objeto de interesse. Graças aos cuidados do grande
filólogo alemão Hermann Diels todas as informações
relativas aos pensadores pré-socráticos foram recolhi-
das e divididas segundo os critérios acima indicados.
Assim, a cada autor corresponde uma série de textos,
divididos em exposições, ou seja, testemunhos, mar-
cadas com a letra A, e citações, definidas fragmentos,
marcadas com a letra B. A recolha de Diels, intitulada
Die Fragmente der Vorsokratiker (Os fragmentos dos Pré-
-socráticos), foi publicada pela primeira vez em 1903,
para ser sucessivamente enriquecida e melhorada por
Walter Kranz, discípulo e colaborador de Diels. Por
esta razão, ganhou-se o hábito de citar os textos rela-
tivos aos Pré-socráticos com a sigla DK (precisamente
Diels-Kranz) seguida da letra A ou B, que especifica se

13
se trata de um testemunho ou de um fragmento, e da
ordem numérica que um certo texto ocupa na recolha.
Contudo, o que se acabou de afirmar não deve
criar perigosas ilusões. A posse de testemunhos e de
fragmentos dos Pré-socráticos não pode substituir ab-
solutamente as obras deles. O testemunho, exatamen-
te pela sua natureza de exposição, resumo ou paráfra-
se, corre o risco de dizer mais sobre quem é autor dele
do que sobre quem é o seu objeto. O caso mais famoso
e estudado é certamente Aristóteles, que, quando ex-
põe o pensamento de um autor que lhe é anterior, faz
o resumo desse pensador mas servindo-se da sua lin-
guagem e das suas categorias mentais e filosóficas, com
a consequência que acaba por apresentar um quadro
teórico plausivelmente já bastante distante do autor
examinado. De resto, Aristóteles era um filósofo inte-
ressado no valor filosófico de uma certa tese e comple-
tamente indiferente a preocupações com a precisão e
o cuidado historiográficos. Até os fragmentos, que de-
veriam devolver os ipsissima verba do autor citado, de-
vem ser considerados com extrema prudência, porque
as supostas citações são extrapoladas de um contexto
para serem inseridas noutro, muitas vezes diferente em
medida considerável. Deste modo, eles correm o ris-
co de perder o seu significado originário e de assumir
um significado novo. Em suma, cada reconstrução do
pensamento dos Pré-socráticos apresenta um aspeto
conjetural que não pode ser eliminado e que seria de-
sonesto não ter em conta.
Dissemos que as informações relativas aos Pré-so-
cráticos nos foram fornecidas pelos autores sucessivos.

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No processo de recolha, consolidação e difusão das
opiniões destes pensadores, Aristóteles e a sua escola
desempenharam um papel decisivo. Na conceção epis-
temológica do grande filósofo a discussão das posições
dos pensadores anteriores representava o primeiro pas-
so para a aquisição da verdade acerca de cada assunto.
Por isso, ele realizou autênticas recolhas de opiniões
que deveriam constituir uma espécie de ‘depósito’ de
informações à qual ir beber cada vez que se revelasse
útil. Teofrasto, o maior discípulo de Aristóteles, com-
pôs uma obra em dezoito livros intitulada Opiniões
dos físicos, que deve ter estado na origem das recolhas
sucessivas de época helenista e pós-helenista. Portanto,
pode-se dizer que a tradição da doxografia (recolha das
opiniões: do grego graphe, isto é, escrita, e doxai, ou
seja, opiniões) relativa aos Pré-socráticos depende em
grande medida da obra de Teofrasto e deve ser enqua-
drada no âmbito das atividades da escola de Aristóte-
les. Mesmo o escrito comummente conhecido como
Placita philosophorum (Opiniões dos filósofos), organi-
zado por Écio (século I a.C.), dependia de Teofrasto,
com algumas passagens intermédias que nos são des-
conhecidas. Quer a recolha de Teofrasto (século IV)
quer a de Écio se perderam. Todavia, autores sucessi-
vos transcreveram trechos amplos do escrito de Écio,
que em boa parte foi reconstruído. Tudo isto significa
que o núcleo fundamental da tradição doxográfica re-
lativa aos Pré-socráticos remonta a mais de seiscentos
anos depois do período de composição dos seus escri-
tos. Este elemento ulterior apenas torna mais urgente
o convite a ser cautelosos que expressámos antes.

15
Por outro lado, nem sequer seria correto abando-
nar qualquer ambição de reconstituir, embora apenas
a grandes linhas, o pensamento filosófico anterior
à aparição de Sócrates e de Platão. Como se viu, os
documentos não faltam. O que é preciso é utilizá-los
com prudência, com a consciência de que a voz do co-
meço da filosofia nos chega enfraquecida aos ouvidos
e nem sempre é facilmente compreensível.

2. O NATURALISMO JÓNICO

Na Jónia, na costa da Ásia Menor (a hodierna Tur-


quia), em cidades colonizadas pelos Gregos a partir do
século VIII, desenvolveram-se as primeiras formas de
reflexão filosófico-científicas em língua grega. Em Mi-
leto, por volta da primeira metade do século VI, apare-
ceram figuras como Tales, Anaximandro e Anaxímenes
que, embora não tivessem formado uma verdadeira
escola, tiveram certamente relações de colaboração ou
pelo menos de conhecimento. De resto, mesmo na
peculiaridade das suas posições – nem sempre identi-
ficáveis com facilidade –, os três pensadores de Mileto
apresentam muitos traços em comum e parecem parti-
lhar quer os interesses, quer a atitude mental. Ao refe-
rir-se a estes primeiros pensadores, Aristóteles utilizará
a denominação de physikoi ou physiologoi, para indicar
o seu interesse geral pela physis, que deve ser entendi-
da no significado mais amplo possível de «natureza»
como âmbito relativo aos processos de nascimento,
geração e movimento das coisas (com efeito, o verbo

16
grego phyo alude à geração, ao crescimento e também
à produção). De facto, as informações que possuímos
sobre os physikoi de Mileto parecem dar-nos a ima-
gem de pensadores empenhados em explicar por que
as coisas são de um certo modo, ou seja, como e por
que nascem e se desenvolvem e de que modo se trans-
formam umas nas outras.
O âmbito das suas investigações é, como se dis-
se, a natureza. Eles interessaram-se pela formação do
mundo (cosmogonia), pela sua estrutura geral, mas
também pelos processos físicos e biológicos que nele
acontecem, e não deixaram de refletir sobre os pro-
blemas de ordem matemática, em especial geométri-
ca. Em geral, os «físicos» jónios empenharam-se em
fornecer normas explicativas comuns para todos estes
fenómenos, normas que fossem válidas também em
campos muito distantes uns dos outros. Para fazer
isso, recorreram muitas vezes ao princípio da analogia,
que consiste no alargamento de um critério explicati-
vo, que se reputa válido para um determinado âmbito,
indo além desse âmbito. A observação de que um pe-
daço de madeira flutua na água, por exemplo, induziu
Tales a afirmar que «a terra permanece no seu lugar
porque flutua» (DK 11 A 14), ou seja, a estender,
por analogia, ao plano cosmológico a validade de um
dado observado.
Um segundo elemento comum aos pensadores jó-
nios é claramente a tendência para retirar a mitologia
das cosmogonias e das cosmologias e para apresentar
essencialmente descrições do estado do cosmos sem
carateres antropológicos. Em Homero as várias di-

17
vindades olímpicas governavam as regiões cósmicas e
os elementos naturais (Zeus, o céu, Posídon, o mar).
Em Hesíodo a formação dos cosmos estava dividida e
era personificada pelo nascimento das figuras divinas.
Este tipo de estruturação desaparece com os fisiólo-
gos jónios, que realizam uma espécie de reducionismo
que tende a substituir por um único fator, geralmente
físico (água, ar, fogo), a multiplicidade das causas pos-
tuladas pelos poetas arcaicos.
Tem-se debatido muito sobre as razões que deter-
minaram no século VI a afirmação de um novo estilo
de pensamento típico da costa da Ásia Menor, sem
se ter chegado a uma resposta unanimemente aceite.
É provável que um certo impulso tivesse sido exerci-
do pela autonomia destas cidades e pelo espírito ge-
nericamente democrático que ali se respirava. Mas
igualmente importante deve ter sido a vizinhança a
outras civilizações, tais como a egípcia, a fenícia e a
mesopotâmica, que, embora de formas diferentes, ti-
nham elaborado núcleos de saber destinados a serem
recebidos e desenvolvidos pelos gregos (respetivamen-
te: a geometria, o alfabeto, a astronomia). Todavia, só
com os pensadores de Mileto, como se disse, parecem
emergir traços significativos daquela abordagem dos
problemas que nós estamos habituados a considerar
filosófico-científicos.
Tales (625-550 ca.) interessou-se por fenómenos
muito diversos e, por isso, foi considerado já na anti-
guidade o protótipo do sapiente universal (o seu nome
aparece também na lista dos famosos «sete sábios»).
Ocupou-se de geometria, astronomia, meteorologia,

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e em cada um destes campos adquiriu conhecimen-
tos de notável importância. É-lhe normalmente atri-
buída a formulação de algumas asserções geométricas
cuja validade deixa de ser limitada a casos individuais,
como acontecia na matemática egípcia: basta pensar
no princípio segundo o qual cada círculo é dividido
em duas partes iguais pelo seu diâmetro, ou na afirma-
ção de que num triângulo isósceles os ângulos da base
são iguais (é possível que ele tenha dado uma demons-
tração real destes teoremas); no campo astronómico,
Tales descobriu a natureza dos eclipses solares que são
causados pela interposição da lua entre o sol e a terra;
sabemos ainda que os seus conhecimentos meteoroló-
gicos lhe permitiram prever uma abundante colheita
de azeitonas, fazendo com que ganhasse a admiração e
o respeito dos seus concidadãos.
A sua fama está sobretudo ligada à tese, que lhe
atribuiu Aristóteles, segundo a qual a água seria o
princípio (arche) de todas as coisas. Não sabemos se
Tales utilizou efetivamente o vocábulo arche, que, em
todo o caso, pode significar, além de princípio, tam-
bém início. Contudo, é pouco provável que ele qui-
sesse defender, como parece sustentar Aristóteles, que
a água era a matéria de que são compostas todas as
coisas; é mais verosímil que Tales, ao partir da obser-
vação de que muitas vezes a vida está acompanhada
pela presença do elemento húmido, tenha chegado
a atribuir a este elemento, por conseguinte, à água,
uma espécie de primazia temporal e talvez também de
centralidade físico-biológica. De resto, a aplicação do
princípio da analogia permitiu-lhe, talvez, alargar ao

19
âmbito físico-cosmológico a validade das suas obser-
vações empíricas.
Anaximandro foi contemporâneo de Tales, embora
um pouco mais jovem do que ele, nasceu em 610 ca.
e morreu em 540 ca. Compôs uma obra cujo título
era Sobre a natureza (Peri physeos), consoante um uso
destinado a consolidar-se nas décadas seguintes. Re-
montam a ele as primeiras palavras da filosofia grega
que nos chegaram. Elas conservam os traços de um
pensamento arcaico e misterioso:

Princípio dos entes é o ilimitado... e aquilo


de que as coisas têm geração, precisamente aí
se dissolvem, segundo a necessidade; de fac-
to, elas fazem-se reciprocamente justiça pela
sua injustiça, segundo a ordem do tempo
(DK 12 B 1).

Anaximandro parece defender duas coisas: a) antes


das realidades individuais e depois delas há o ilimitado
ou indeterminado (apeiron), ou seja, um estado em
que nada está ainda (ou deixou de estar) qualificado
e individualizado; b) a assunção de uma determina-
ção é comparada a uma culpa moral, isto é, a uma
injustiça (adikia), que a ordem do tempo se encarrega
de punir. A transgressão parece consistir na pretensão
que as coisas têm de impor a sua individualidade e,
por conseguinte, o seu domínio. Através desta curio-
sa linguagem jurídico-moral, Anaximandro poderia
aludir ao processo de transformação dos elementos
naturais (ar, água, terra e fogo), em que ao predomí-

20
nio de um elemento se substitui o de outro e assim
por diante até ao infinito. É também possível que ele
quisesse aplicar categorias de ordem política, como a
da isonomia (distribuição équa das partes, isto é, de-
mocracia), a contextos de ordem físico-cosmológica: a
injustiça consiste no prevalecimento de um elemento
sobre outros, enquanto que a justiça comporta uma
espécie de equilíbrio ou igualdade entre eles (cf. abaixo,
§ 6). De Anaximandro vale a pena lembrar também a
formulação de algo semelhante ao princípio de razão
suficiente, implícito na tese que reconduz a estabili-
dade da terra a uma causa de caráter unicamente ge-
ométrico, ou seja, à ausência de razões pelas quais ela
deveria deslocar-se do centro para uma direção em vez
de para outra (DK 12 A 26). Neste caso a imobilidade
da terra é deduzida das propriedades geométricas do
espaço e, em particular, da ideia de um espaço isomor-
fo, caracterizado pelo princípio de igualdade. Por fim,
sabemos que a Anaximandro se deve a criação do pri-
meiro mapa geográfico, destinado a ser notavelmen-
te aperfeiçoado algumas décadas mais tarde pelo seu
concidadão Hecateu.
O terceiro «fisiólogo» jónio foi Anaxímenes, cuja
atividade deve ser colocada na segunda metade do sé-
culo VI. Também ele compôs um escrito intitulado
Sobre a natureza, em que tentava explicar uma série
de fenómenos naturais como os terramotos, o arco-
-íris, as nuvens, os movimentos dos astros. Contraria-
mente a Anaximandro, que atribuiu a qualificação de
arche ao indeterminado, Anaxímenes dirigiu-se a um
elemento físico determinado, mais precisamente ao

21
ar. De facto, este deve ter-lhe parecido a realidade a
partir da qual se mostrava mais fácil compreender os
processos físicos de transformação de num elemento
noutro. Ele recorreu às noções de condensação e de
rarefação para explicar concretamente como se rea-
lizam estes processos: «[o ar] rarefazendo-se torna-se
fogo, condensando-se vento, e depois nuvem, e, se se
condensar ainda mais, água, e depois terra, e depois
pedras, e destas ainda outras coisas» (DK 13 A 1). Ao
contrário dos seus predecessores, Anaxímenes parecer
ter-se posto o problema de dar conta da dinâmica dos
elementos físicos, ou seja, de explicar como um ele-
mento (ou uma qualidade) se transforma noutro.
Portanto, deve ter sido comum aos três pensadores
de Mileto a atribuição de uma característica divina à
sua arche e, por conseguinte, a todo o universo. Deste
modo, explica-se a célebre afirmação, atribuída a Ta-
les, segundo a qual «o cosmos está animado e cheio
de divindades» (DK 11 A 1). A ideia de que o mundo
é semelhante a um ser vivo, e que este está animado,
representa apenas a aplicação em larga escala do prin-
cípio da analogia de que se falou antes.
Na costa da Ásia Menor, em Éfeso, não distante
de Mileto, houve outro pensador que viveu e com-
pôs, cuja reflexão não pode, todavia, ser reconduzida
in toto ao modelo teorético que era válido para as três
figuras que acabámos de mencionar. Trata-se do mis-
terioso Heraclito (540-470 ca.), que já para os antigos
deve ter parecido uma figura de difícil colocação, pois
que mereceu o apelativo de «obscuro». Também ele
escreveu uma obra intitulada Sobre a Natureza, de que

22
nos chegaram mais de cem fragmentos. Na realidade,
trata-se de sentenças breves que têm um andamento
quase oracular e são dotadas de uma carga evocativa
extraordinária. O seu significado é muitas vezes mis-
terioso, não só por causa do estado de conservação em
que nos chegaram, como também quase certamente
em virtude de um desenho bem definido de Heracli-
to, que queria propor um saber tão distante do dos
homens que parecia praticamente inacessível. De fac-
to, o motivo central que percorre toda a obra consiste
na contraposição da ignorância da multidão à sapi-
ência do único e autêntico sábio; os homens, explica
Heraclito no início do seu escrito, insistem em agir
baseando-se em pontos de vista individuais, ligados às
suas experiências pessoais, sem escutar a voz do logos,
ou seja, da razão, que é um princípio universal e, por
conseguinte, comum a todos (DK 22 B 1-2): para o
sábio não existem tantos mundos separados, cada um
dotado de uma suposta consistência, mas existe uma
única realidade, idêntica para todos e apreensível pela
razão. Uma das palavras-chave da reflexão de Hera-
clito é precisamente logos, que indica quer a razão ou
inteligência, comum a todos os homens, por meio da
qual se pode apreender a realidade; quer a própria lei
das coisas, ou seja, o princípio profundo que governa
o mundo (DK 22 B 41 e 114); quer ainda a palavra
que exprime esta lei universal e que o ser humano deve
repetir. A atitude correta do sábio reside, então, na di-
mensão de saber escutar o chamamento do logos uni-
versal, como se realça num célebre fragmento: «dando
ouvidos não a mim, mas ao logos, é sábio convir que

23
todas as coisas são uma só» (DK 22 B 50). O conte-
údo deste saber misterioso e distante dos homens é
apresentado por Heraclito de forma concisa e propo-
sitadamente obscura. Ele diz que existe uma harmonia
profunda que se difunde por toda a realidade (DK 22
B 8 e 51). Antes de tudo, ela manifesta-se na união
dos contrários, ou seja, no princípio segundo o qual os
fenómenos do mundo são produzidos pela tensão en-
tre elementos contrários, cada um dos quais não pode
existir sem o outro: vida e morte, saúde e doença, par e
ímpar são faces de uma só medalha, aspetos de uma só
realidade. O último motivo é exprimido noutro famo-
so fragmento onde se diz que «o mesmo [é] o vivente
e o morto, o desperto e o adormecido, o jovem e o ve-
lho: de facto, estes, mudando, transformam-se naque-
les, e aqueles, mudando, transformam-se nestes» (DK
22 B 88). Com base no que se disse, Heraclito chega a
defender que a guerra (polemos) é «pai e rei de todas as
coisas», ou seja, princípio da realidade (DK 22 B 53),
dado que exprime plasticamente a lei geral (o logos) do
mundo. O elemento físico em que esta lei de união
dos contrários se manifesta de forma mais evidente é
indubitavelmente o fogo, que é comparado ao corpo
do logos incorpóreo. De facto, diz Heraclito: «este or-
denamento do mundo, o mesmo para todos, não foi
feito por um dos deuses nem por um dos homens, mas
sempre foi, é e será: fogo sempre vivo, que segundo
medida se acende e segundo medida se apaga» (DK 22
B 30). No plano estritamente físico, o fogo parece ter
tomado o lugar da água de Tales, do ilimitado de Ana-
ximandro e do ar de Anaxímenes, dado que ao fogo se

24
reconduz essencialmente o processo de transformação
dos elementos uns nos outros (DK 22 B 76).
O ensinamento de Heraclito, embora seja obscuro
e profundamente elitista, exerceu uma certa influência
no pensamento antigo, sofrendo, porém, um proces-
so inevitável de redução e talvez de simplificação. Nas
décadas seguintes, este transformou-se na teoria do
fluxo universal (expressada no célebre mote panta rei,
ou seja, «tudo flui») e na da consequente negação da
possibilidade de fixar conteúdos cognitivos estáveis e,
como tal, foi aceite por Platão (através do heraclitiano
Crátilo) e por Aristóteles.

3. O PITAGORISMO: ALMA E NÚMERO

Numa ilha não distante da costa jónica da Ásia Me-


nor nasceu uma das figuras mais populares e controver-
sas do pensamento antigo. Falamos de Pitágoras, que
nasceu em Samos em 572 e morreu em Metaponto na
Apúlia, pouco antes de 490. Sabemos que foi obriga-
do a emigrar, entre 540 e 535, para Ocidente, onde
encontrou refúgio em Crotona, devido à ocupação da
sua ilha por parte dos Persas. Ali fundou uma comu-
nidade de caráter político e religioso que ganhou logo
um prestígio notável entre as classes aristocráticas. Pro-
vavelmente não foi alheio ao conflito entre Crotona e
a democrática Síbaris que terminou com a derrota e a
destruição desta. Pitágoras e os seus seguidores foram
depois obrigados a deixar Crotona por causa de uma
revolta interna, não se sabe se genericamente antioligár-

25
quica ou se conduzida por grupos aristocráticos contra
os pitagóricos. Tratou-se da primeira diáspora pitagóri-
ca à qual devem ter-se seguido outras nas décadas su-
cessivas. Pitágoras encontrou refúgio em Locres, outra
cidade filoaristocrática, em seguida em Metaponto, na
Apúlia, onde morreu na primeira década do século V.
As dificuldades ligadas à quantidade (realmente
conspícua) e à atendibilidade (frequentemente duvi-
dosa) das notícias relativas a Pitágoras e à sua escola
deram lugar a uma autêntica «questão pitagórica». A
causa principal consiste no hábito (particularmen-
te difundido entre os autores antigos) de atribuir
a uma figura dotada de grande prestígio doutrinas
formuladas em épocas sucessivas, com o fim de as
nobilitar. No caso de Pitágoras, este hábito ganhou
proporções realmente impressionantes, de tal for-
ma que se atribuíram ao mestre de Samos conceções
datáveis de séculos após a sua morte. Nas últimas
décadas os estudiosos chegaram a circunscrever
de modo maciço a amplitude da contribuição
de Pitágoras para a constituição do pitagorismo,
demonstrando que só com as gerações sucessivas,
e em particular com Filolau de Crotona (470-
390 ca.), o pensamento pitagórico se transformou
num conjunto relativamente compacto de teorias
filosófico-científicas. A tendência que se está a impor
é a de considerar Pitágoras uma personagem dotada
de qualidades individuais extraordinárias, entre um
xamã e um oráculo, mais interessado em sugerir aos
seus adeptos uma série de práticas purificatórias e de
proibições alimentares finalizadas à delineação de um

26
modelo de vida (bios), do que em construir um siste-
ma conceptual consistente e articulado.
A sua proximidade aos grupos aristocráticos das
cidades por onde passou torna plausível a informação
que lhe atribui a composição dos ordenamentos le-
gislativos, embora não tenham sobrevivido traços evi-
dentes de uma atividade do género. Ele foi honrado
como uma espécie de divindade e o seu nascimento
foi muitas vezes comparado ao do deus Apolo. O mo-
tivo político e o religioso parecem ser os confins certos
dentro dos quais é lícito colocar a atividade de Pitá-
goras. Quase certamente pode-se-lhe atribuir a cren-
ça, adquirida (pela mediação do orfismo) das culturas
orientais (a egípcia ou mais plausivelmente a indiana),
na imortalidade da alma individual e na existência de
encarnações sucessivas. Trata-se da célebre conceção
da metempsicose, destinada a ter uma certa continui-
dade no pensamento filosófico sucessivo, a começar
por Platão. As nossas fontes chegam a defender que
Pitágoras tivesse conhecido todas as suas encarnações
e as (até à vigésima geração) dos que lhe dirigiam a
palavra. Parece também que estivesse convencido de
que a alma dos homens pudesse encarnar noutros se-
res vivos; a célebre proibição de alimentar-se de carne
deveria estar relacionada com esta convicção. É pro-
vável que para a formulação de uma distinção clara
entre alma e corpo, fundada em alicerces ontológicos,
seja necessário esperar por Platão, em particular pela
obra Fédon, um dos seus diálogos mais ‘pitagorizan-
tes’. Mas não se pode negar que tanto a conceção da
metempsicose, quanto a atenção para com as práticas

27
de purificação e de abstinência concorram para a de-
marcação de uma posição em que a alma ganha uma
certa autonomia relativamente ao corpo.
As nossas fontes parecem concordes em atribuir à
seita pitagórica a distinção entre dois níveis de adep-
tos: os acusmáticos e os matemáticos. À primeira cate-
goria pertenciam aqueles a quem era concedido ouvir
(akousma significa precisamente «o que se escuta») as
indicações genéricas do mestre e da escola, enquan-
to que os matemáticos eram os verdadeiros iniciados,
ou seja, os que eram admitidos ao conhecimento das
doutrinas secretas, aquelas propriamente de caráter
matemático. É provável que uma distinção deste tipo
tivesse um certo fundamento na vida da seita, embora
a sua importância talvez fosse exagerada pelas fontes
antigas. É difícil estabelecer se a descoberta dos nú-
meros irracionais (tais como √2) e das grandezas inco-
mensuráveis (como é, num quadrado, a diagonal em
relação ao lado), atribuída a Pitágoras pelos testemu-
nhos antigos (DK 14 6a), seja efetivamente da autoria
deste último ou dos pitagóricos sucessivos, embora
esta segunda hipótese deva ser preferida. Na verda-
de, de Pitágoras pode-se afirmar com certeza que foi
um indivíduo excecional, ou pelo menos visto assim
pelos seus seguidores: em poucas palavras um sábio à
maneira arcaica; que defendeu, de certa forma, a con-
ceção da imortalidade da alma e da metempsicose. E
também não se deve pôr em dúvida um seu interesse
pelos números e pelas propriedades de que estes são
dotados. Tudo o resto é altamente conjeturável e está
mais próximo da lenda do que da verdade histórica.

28
Com maior segurança atribui-se à geração suces-
siva de pitagóricos, ou seja, àqueles a quem Aristóte-
les, nas suas exposições doxográficas, chamou de os
«chamados pitagóricos», uma forte propensão para
as disciplinas matemáticas (geometria, astronomia e
harmonia). Os estudiosos estão mais orientados a de-
fender que as doutrinas expostas por Aristóteles sob
esta denominação são essencialmente reconduzíveis a
Filolau ou então à sua influência. A observação dos
fenómenos musicais, e em particular a constatação
de que as três consonâncias fundamentais são pro-
duzidas por relações numéricas precisas (logoi), teria
induzido estes pitagóricos a atribuir ao número uma
espécie de primazia em relação às outras coisas. Com
efeito, as consonâncias musicais de quarta, de quinta e
de oitava correspondem respetivamente às relações de
4/3, 3/2 e 2/1. Parece que os pitagóricos estenderam
a validade desta observação também além do âmbito
musical, para chegarem a afirmar a tese de que «tudo é
número». Quase certamente eles – e aqui a referência
a Filolau parece ser segura – acreditaram que podiam
atribuir ao céu, ou melhor, aos movimentos dos as-
tros, uma espécie de harmonia semelhante à musical.
O facto de os números que produzem as relações das
consonâncias musicais serem 1, 2, 3 e 4, cuja soma
equivale a 10, induziu-os a honrar esta série de qua-
tro números, chamada depois por eles de «tétrade»
(tetraktys), ou seja, conjunto de quatro. A importân-
cia da tétrade era tal que, segundo algumas fontes, os
pitagóricos juravam lealdade à seita em nome dela. A
maneira como a tétrade era representada

29
s
s s
s s s
s s s s

exprimia a convicção de que ela encerrava toda a rea-


lidade, cuja estrutura era perfeitamente representada
pela sequência ponto-linha-superfície-sólido. O lu-
gar primordial no qual a tétrade-década (1 + 2 + 3
+ 4 = 10) era tida junto dos pitagóricos é, por fim,
confirmada pela convicção, que Aristóteles lhes atri-
buiu, de que o número dos corpos celestes era 10,
tese a que se podia chegar somente pela hipótese da
existência (de todo privada de verificações observá-
veis) de uma antiterra, colocada entre um fogo cen-
tral e a terra (da periferia ao centro: Céu das estrelas
fixas, Saturno, Júpiter, Marte, Vénus, Mercúrio, Sol,
Lua, Terra, Antiterra, além do Fogo central). O mo-
vimento coordenado dos corpos celestes produzia
uma espécie de harmonia divina, ou seja, um autên-
tico som, que os ouvidos humanos não são capazes
de ouvir.
Outra conceção pitagórica destinada a exercer
uma influência notável no pensamento filosófico su-
cessivo foi a chamada teoria dos princípios. Segundo
Aristóteles, os pitagóricos teriam defendido que, dado
que as coisas são números ou de certa forma podem
ser reconduzíveis aos números, os princípios (archai)
destes últimos, ou seja, o limite (peras ou peperasme-
non) e o ilimitado (apeiron), ou então o uno e o múl-
tiplo, devem ser considerados o fundamento de toda

30
a realidade. Uma tese deste género influenciou de forma
extraordinária Platão (cf. cap. III, § 7) e sucessivamente
toda a tradição platónico-académica, que muitas vezes
foi confundida com a pitagórica. É provável que inicial-
mente os pitagóricos se tivessem limitado a defender que
as coisas podem ser reconduzidas a duas tipologias gerais,
precisamente as limitadas e as limitadas. Num segundo
momento, estas categorias ganharam a função de autên-
ticos princípios, de onde os números (cada um dos quais
representava uma multiplicidade limitada) e as coisas po-
diam derivar. Em todo o caso, no primeiro pitagorismo
o caráter numérico das coisas dependia da convicção de
que existia uma correspondência entre certos números e
determinadas entidades, razão pela qual, por exemplo, a
justiça correspondia ao número 4 ou ao 9, o casamento
ao número 5 (dado que era a soma, isto é, união, do pri-
meiro número par com o primeiro número ímpar), etc.
Além do mais, parece que era consolidado o hábito de
representar os números por meio de figuras geométricas
espaciais, de modo a dar a impressão de que estes núme-
ros fossem autênticas realidades. Como se vê, a famosa
«ciência pitagórica» era, pelo menos inicialmente, pouca
coisa, e só sucessivamente ganhou o aspeto sistemático
que hoje somos levados a atribuir-lhe.

4. PARMÉNIDES E O ELEATISMO

Com Parménides (Eleia, na Campânia: 515-445


ca., embora outra tradição faça remontar o seu nas-
cimento a 540) entra no palco do pensamento pré-

31
-socrático uma figura singular, destinada a exercer
uma influência enorme sobre a tradição filosófica su-
cessiva, embora de difícil colocação. Quer Platão quer
Aristóteles falam dele com uma mistura de deferência
e de distância, alternando a sua admiração por um
pensador dotado de profundidade excecional com a
perplexidade que se experimenta face a um tipo de es-
peculação sentida como excessiva, semelhante àquela
que se experimenta diante de uma criança extraordi-
nariamente dotada, mas de certa forma ingénua.
Segundo Platão, o verdadeiro fundador da «estir-
pe» eleática não foi Parménides, mas Xenófanes (570-
460 ca.), que emigrara, tal como Pitágoras, da Jónia
(nascera em Cólofon) para a Itália meridional e ali
permanecera itinerante por muitos anos. Participou
quase certamente na fundação de Eleia, onde talvez
tenha dado início à famosa escola. Escreveu também
uma obra de derisões, Escárnios, e uma composição
em versos intitulada Sobre a natureza. Bateu-se vee-
mentemente contra o antropomorfismo da religião
tradicional e tentou delinear uma imagem da divinda-
de fundada em princípios racionais. Portanto, acusou
Homero e Hesíodo de descreverem os deuses como se
fossem homens, com todos os defeitos destes. Num
dos Escárnios, Xenófanes afirma que «Homero e He-
síodo atribuíram aos deuses tudo o que nos homens é
objeto de desonra e de desaprovação: roubar, cometer
adultério, enganar-se reciprocamente» (DK 21 B 11).
Além disso, ridicularizou o hábito de representar os
deuses com feições humanas, observando a tal pro-
pósito que «se bois, cavalos e leões tivessem mãos e

32
pudessem desenhar com elas... os cavalos desenhariam
figuras de deuses semelhantes aos cavalos, e os bois
semelhantes aos bois» (DK 21 B 15).
Se a Xenófanes se pode atribuir a elaboração da
primeira teologia racional formulada pelo pensamen-
to grego, remonta a Parménides a exposição do pri-
meiro esboço de conceção propriamente filosófica.
Nos vinte fragmentos que nos chegaram do seu poema
Sobre a natureza, encontramos de facto indícios dos
motivos autenticamente filosóficos, que concernem ao
âmbito da ontologia, da lógica, da epistemologia e da
cosmologia. A obra foi escrita em hexâmetros homéri-
cos e apresenta já no célebre proémio um andamento
sapiencial e quase oracular, ligado de certa forma à re-
velação de verdades profundas e inacessíveis à grande
maioria dos homens. Quem fala é uma deusa, que ex-
põe ao poeta duas vias de investigação, a da verdade
(aletheia) «bem redonda» (ou seja, perfeitamente co-
erente e autossuficiente) e «inabalável» e a da opinião
(doxa), destituída de certeza, em que permanecem os
mortais. À primeira via dedicam-se os fragmentos 2-8,
enquanto que os restantes doze tratam das opiniões e
tentam dar explicações plausíveis e sensatas – funda-
das na sua maior parte em procedimentos semelhantes
aos dos jónicos – das aparências em que os homens se
encontram.
O princípio geral de onde parte todo o raciocínio
de Parménides é formulado no célebre fragmento 2
e estabelece que, enquanto que a primeira via afirma
que «é e não pode de modo nenhum não ser», a se-
gunda diz «que não é e é necessário que não seja». Tem

33
corrido muita tinta sobre o sentido destas misteriosas
palavras, sem que, de facto, se resolvam todas as di-
ficuldades, tanto que o intérprete contemporâneo já
deveria estar disposto a aceitar a insuperabilidade de
uma certa margem de indeterminação. Com efeito,
Parménides não esclarece quem é o sujeito das duas
proposições (o mundo, o próprio ser, o método, etc.),
nem qual é o sentido (existencial, predicativo, veritati-
vo) em que se utiliza o verbo ser. Se de um x qualquer
se diz simplesmente que é, com esta afirmação pode-
-se entender que x «existe», que «é algo de determina-
do» (ou seja, é um certo predicado), e também que
«é verdadeiro». As interpretações que se deram deste
fragmento e, por conseguinte, de todo o escrito par-
menidiano, dependem em grande medida do sentido
que se dá ao verbo ser presente nele.
Sem querermos demorar-nos em questões com-
plexas, porventura sobre as quais não se pode decidir,
pode-se observar que o raciocínio de Parménides parte
da formulação de algo semelhante a uma proibição, a
de pronunciar e compreender o não-ser, e daqui ele
deduz de maneira necessária uma série de consequên-
cias que dizem respeito à natureza da realidade e ao
conhecimento que dela se pode ter. No que concer-
ne ao primeiro aspeto, Parménides afirma que o ente
(to eon), ou seja, o ser, a realidade, é «ingénito, im-
perecível, inteiro, homogéneo, imóvel, sem fim, todo
compacto agora, uno e contínuo» (DK 28 B 8, 3-13).
A negação de cada uma destas características determi-
naria, de facto, a implícita admissão do não-ser: se o
ente fosse gerado, teria origem do não-ser, o qual de

34
certa forma seria reconhecido; assim, se estivesse em
movimento, seria caracterizado pela existência de fases
diferentes, cada uma das quais não seria a outra; da
mesma forma, se fosse múltiplo, teria no seu interior
uma pluralidade de elementos, cada um dos quais não
seria o outro. A rigidez da disjunção entre ser e não-ser
implica a atribuição de uma híper-compacidade lógica
e ontológica ao sujeito do discurso, de onde parece
estar excluída toda e qualquer forma de diferença.
Como se disse, não é claro qual é o sujeito acerca
do qual Parménides discorre e qual o significado des-
te monismo radical. Se se tratasse do cosmos, poder-
-se-ia pensar que Parménides defende uma espécie de
monismo cosmológico com base no qual a realidade,
além de todas as aparentes articulações, apresenta uma
unidade e uma compacidade de fundo, devolvida pela
imagem da esfera perfeita (DK 28 B 8, 44-49): o cos-
mos seria único e percorrido por um único princípio
constitutivo, precisamente o ser. Mas poder-se-ia en-
tender este monismo também em sentido predicativo,
e pôr a hipótese que Parménides não pense tanto na
existência de uma realidade única, quanto que cada
realidade apresenta uma configuração híper-unitária,
ou seja, que ela é um único género, isto é, homogénea
(mounogenes). Um monismo deste tipo é compatível
com a existência de uma pluralidade de coisas, mas é
incompatível com a atribuição de uma pluralidade de
predicados a cada uma dessas coisas. Por outras pa-
lavras, o monismo predicativo de Parménides afirma
que cada realidade, para ser verdadeiramente tal (ou
seja, uma verdadeira entidade, um verdadeiro ser),

35
deve ser apenas uma coisa, isto é, uma unidade pre-
dicativa que não admite outras características, a saber,
outros predicados, além da qualidade que a define de
maneira constitutiva.
No que diz respeito ao aspeto epistemológico, as
teses de Parménides parecem ser mais facilmente re-
construíveis. Essencialmente, ele foi um defensor de
uma perfeita transparência do ser em relação ao conhe-
cimento (um dos fragmentos mais célebres, o terceiro,
reza assim: «o mesmo é pensar e ser»), isto é, afirmou
que o pensamento do homem possui as faculdades
racionais e intelectivas capazes de lhe permitirem o
acesso à verdade. Trata-se, porém, de uma transparên-
cia de princípio, dado que a maior parte dos homens
permanece enlaçada no mundo das aparências e das
opiniões, sem conseguir usufruir da faculdade intelec-
tiva (noein) de que dispõe. Isto explica a grande aten-
ção que Parménides dedicou ao mundo das opiniões,
procurando, na segunda parte do seu poema, explicar
a sua origem e eventualmente buscando fornecer uma
justificação plausível para elas.
O maior dos discípulos de Parménides foi Zenão,
que nasceu em Eleia em 490 ca. (permanece uma in-
cógnita a data da sua morte). Segundo Platão, o con-
tributo de Zenão à filosofia eleática consiste numa
espécie de socorro (boetheia) às teses de Parménides,
realizado através da demonstração de que a negação
delas implicaria consequências ainda mais ridículas do
que aquelas às quais parecem dirigir-se as conceções
parmenidianas. Este tipo de procedimento valeu-lhe
o título de «inventor da dialética», que Aristóteles

36
explicitamente e Platão de forma implícita lhe atri-
buíram. O método dialético zenoniano consistia na
demonstração da verdade de uma certa tese por meio
da refutação da tese contraditória. Por exemplo, a de-
monstração da unidade do ser era realizada através da
refutação da hipótese segundo a qual existia a mul-
tiplicidade, ou seja, que os entes são muitos. Desta
hipótese de partida (que negava a tese que se preten-
dia demonstrar), Zenão deduzia consequências con-
traditórias (por exemplo, que as mesmas coisas apa-
reciam todas semelhantes, tomadas todas enquanto
«entes», e dissemelhantes, enquanto «muitas» e, por
isso, diversas umas das outras) que aconselhavam que
se abandonasse a hipótese de partida, demonstran-
do indiretamente a verdade da tese oposta, ou seja,
que o ser é um. Muito famosos na antiguidade (mas
ainda hoje o são) foram os argumentos contra a exis-
tência do movimento, ou seja, do devir. Zenão partia
da hipótese que o movimento existe e que, portanto,
Aquiles «pé veloz» alcançará a tartaruga. Mas o tempo
(T) que Aquiles leva a alcançar o lugar (S) em que se
encontra a tartaruga, já esta avançou para o lugar S1,
que Aquiles alcançará somente no T1, quando a tarta-
ruga se tiver deslocado para o S2, e assim por diante
até ao infinito. Trata-se de um autêntico paradoxo, ou
seja, de algo que se opõe à opinião comum (paradoxon
significa contra a opinião), com a qual parece inevi-
tável concordar baseando-se em considerações de na-
tureza estritamente lógica. Parece que Zenão compôs
um escrito que continha quarenta argumentos contra
a existência do movimento destinado a ter um sucesso

37
notável entre os autores antigos que o utilizaram com
certa frequência, permitindo-nos conservar alguns in-
dícios do pensamento deste fascinante precursor da
lógica e da física.
Se o eleatismo de Zenão apresenta um matiz lógi-
co-dialético, o de Melisso (nascido em Samos à volta
de 485), o último representante significativo desta cor-
rente, parece decididamente orientado para o sentido
cosmológico. Escreveu um tratado com o clássico tí-
tulo Sobre a Natureza ou sobre o ente de que possuímos
10 fragmentos. Num tratado pseudoaristotélico, cujo
título é Melisso, Xenófanes e Górgias, estão contidas in-
formações importantes sobre este autor. Em Melisso a
negação do não-ser leva à aceitação de uma totalidade
cosmológica ilimitada (apeiron) tanto espacial quanto
temporalmente, enquanto que em Parménides o ser
possuía a característica da finitude e da esfericidade.
O ente de Melisso, completamente idêntico ao uni-
verso físico, «sempre foi e sempre será, porque se fosse
gerado seria necessário que antes de ser gerado não
fosse nada, mas se antes não era nada, por nenhuma
razão nada se poderia ter gerado do nada» (DK 30 B 1).
Aqui é implícita a formulação do axioma segundo o
qual «nada deriva do nada» (nihil ex nihilo). O ser de
Melisso constitui uma entidade ilimitada, ou seja, sem
início nem fim e, enquanto ilimitada, é única, porque
«se existissem duas coisas, não poderiam ser ilimita-
das, pois limitar-se-iam reciprocamente» (DK 30 B 6).
O caráter cosmológico (existe uma só realidade/o
cosmos é uma única entidade) do monismo eleático
afirma-se de maneira definitiva precisamente graças a

38
esta curiosa personagem (também foi um prestigioso
general) e será apresentado deste modo em alguns dos
diálogos mais importantes de Platão.

5. O NATURALISMO PÓS-ELEÁTICO:
EMPÉDOCLES, ANAXÁGORAS, DEMÓCRITO

O eleatismo marcou uma autêntica viragem na in-


vestigação sobre a natureza. Apercebeu-se logo de que
o estudo da physis, da sua estrutura, dos processos que
ela sofre, já não poderia ser feito com o método dos
primeiros naturalistas da escola jónica. A força vincu-
ladora das proibições eleáticas relativas ao não-ser e à
geração impunha uma mudança radical de perspetiva
teórica, uma mudança que fosse capaz de defender
a pesquisa naturalista dos erros lógicos evidenciados
pelos eleatas, garantindo ao mesmo tempo direito de
cidadania às duas características constitutivas da natu-
reza: a multiplicidade e o movimento. Não é arriscado
ler o percurso do naturalismo pós-eleático como a ten-
tativa de conciliar as proibições parmenidianas com
a possibilidade de investigar efetivamente a physis. A
doutrina dos elementos de Empédocles, a conceção
das sementes de Anaxágoras e o atomismo de Leuci-
po e Demócrito respondem justamente à exigência de
englobar de certa forma a lógica eleática no seio do
naturalismo.
Empédocles de Agrigento (493-432), descendente
de uma família prestigiosa e influente, talvez tenha sido
o pensador pré-socrático mais fascinante. De facto, na
sua atividade intelectual confluem praticamente quase

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todos os temas da reflexão dos 100 anos anteriores,
e nela acham espaço elementos destinados a marcar
o pensamento filosófico nos séculos seguintes. Ele foi
um grande naturalista, herdeiro portanto da tradição
jónica; quase certamente esteve associado aos círculos
pitagóricos, recuperando do pitagorismo a conceção
da metempsicose; teve contactos com o eleatismo, do
qual herdou a exigência de submeter a pesquisa sobre
a natureza a vínculos lógico-epistemológicos precisos;
foi também médico e curandeiro e, como tal, partí-
cipe daquele processo de desenvolvimento de saberes
especializados destinado a tomar forma precisamente
naquelas décadas (§ 6); de certo modo foi também um
sofista e enquanto tal parece ter exercido um papel im-
portante no processo de transição da tirania à demo-
cracia realizado pela sua pátria. Portanto, uma figura
complexa, rica de tensões, como demonstra, de resto,
o facto que ainda hoje, entre os estudiosos, a figura de
Empédocles oscile constantemente entre a imagem de
um cientista e a de um mago e xamã.
Mesmo a escolha de escrever em versos, à maneira
de Parménides, uma obra intitulada Sobre a nature-
za testemunha a duplicidade de um pensador que se
apresenta simultaneamente como sapiente e como fi-
lósofo naturalista. O nosso conhecimento deste escri-
to, baseado na sobrevivência de cento e onze fragmen-
tos legados por autores posteriores, foi enriquecido
recentemente pela publicação de um papiro egípcio
encontrado na biblioteca de Estrasburgo na França
(por este motivo chamado de «Papiro de Estrasbur-
go»), que contém à volta de oitenta versos do poema

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empedocliano. Este achado extraordinário – que nos
põe face ao texto filosófico mais antigo, por tradição
direta – aperfeiçoou notavelmente também a nossa
noção dos versos já conhecidos e permite-nos hoje
compreender melhor o andamento do poema no seu
conjunto.
Empédocles aceita, como dissemos, os vínculos
eleáticos relativos à inadmissibilidade do não-ser e da
geração a partir do nada. Mas limita a sua extensão às
componentes elementares do universo, por ele chama-
das de «raízes» (riza). Trata-se do ar, da água, da terra
e do fogo, que com os nomes de elementos (stoicheia)
estão destinados a desempenhar um papel primordial
na história do naturalismo (não só antigo). Em Em-
pédocles os atributos de eternidade, imutabilidade,
indestrutibilidade e plenitude ontológica do ser eleá-
tico são transferidos para os quatro elementos e tanto
os processos naturais quanto as realidades físicas são
interpretados como o produto da mistura (mixis) e da
separação (diallaxis) destes elementos primordiais, os
quais, considerados em si mesmos, permanecem in-
destrutíveis. Empédocles escreve: «Não existe geração
de nenhuma das coisas mortais, nem fim algum por
morte funesta, existe somente mistura e separação do
que se misturou; mas estas coisas são chamadas pelos
homens com o nome de geração natural» (DK 31 B 8).
Por conseguinte, a geração e o não-ser que se mostra
inevitavelmente ligado a ela pertencem à dimensão
dos compostos, enquanto que as realidades funda-
mentais, ou seja, os quatro elementos, são eternos e
imodificáveis, precisamente como o ser eleático.

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Todavia, as quatro raízes não são suficientes para
explicar os processos naturais, ou seja, o devir. Em-
pédocles postula a ação de dois princípios, a Amizade
ou Atração (philia) e a Discórdia ou Repulsa (neikos),
que funcionam como «causas motoras» respetivamen-
te da união e da separação dos elementos. A presença
do princípio da Amizade determina a agregação dos
elementos e a formação das coisas, enquanto que o
domínio da Discórdia é causa dos processos de de-
composição e de desagregação. Segundo Empédocles,
estes dois princípios agem também no plano cósmico
determinando o processo cíclico de uma fase em que
os elementos são agregados de modo a formarem uma
unidade perfeita, a esfera (que só pode lembrar a es-
fera de Parménides), e de uma fase em que cada raiz é
isolada das outras. O período cósmico em que nos en-
contramos representa uma fase intermédia, em que o
princípio dominante é, porém, a Discórdia. Tudo isto
é exposto por Empédocles no clássico estilo oracular:
«Durante o reino da Discórdia cada coisa tem forma
distinta e está separada, enquanto que quando reina
Amizade unem-se e desejam-se umas às outras» (DK 31
B 21), e ainda: «Só estas [as quatro raízes] são as coi-
sas existentes; precipitando uma na outra, nascem os
homens e as outras estirpes de feras, ora reunidos por
obra da Amizade num só cosmos, ora separados cada
um para seu lado por causa do ódio que nasce da Dis-
córdia» (DK 31 B 26).
A teoria dos elementos explica, segundo Empédo-
cles, também os processos cognoscitivos com base no
célebre axioma pelo qual «o semelhante é conhecido

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pelo semelhante». De facto, também os nossos órgãos
sensoriais são compostos pelos elementos fundamen-
tais e o conhecimento dá-se quando a raiz que está em
nós encontra a raiz que se encontra fora de nós: «Com
a terra vemos a terra, com a água [vemos] a água, com
o ar [vemos] o ar celeste e com o fogo [vemos] o fogo
funesto, com a amizade [vemos] a Amizade e com a
discórdia [vemos] a Discórdia lutuosa» (DK 31 B 109).
A outra obra parcialmente conservada (temos à dis-
posição cerca de quarenta fragmentos) denuncia já no
título – Katharmoi, ou seja, Purificações – a intenção
que o autor devia ter. Nela Empédocles afirmava a sua
adesão à doutrina da metempsicose, isto é, do processo
cíclico de transmigração das almas (ou daimones) para
corpos vivos sempre diversos. O poeta anunciava tam-
bém que uma vez «fora rapaz, outra vez menina, arbus-
to, pássaro e peixe mudo do mar» (DK 31 B 117). A
retomada desta conceção, pitagórica mas já antes órfi-
ca ou até oriental, implica também para Empédocles
a proibição de contaminar-se por meio de delitos ou
sacrifícios (DK 31 B 115 e 137). Uma certa influên-
cia eleática, mais precisamente de Xenófanes, parece
ser identificável na recusa a conceber a divindade em
termos antropomórficos. Empédocles afirma com um
vigor não destituído de uma certa ironia que a «divin-
dade não se distingue decerto por uma cabeça humana
que sobressai dos membros, nem dois ramos sobres-
saem do dorso, nem os pés, nem os joelhos velozes,
nem os genitais peludos; mas só pela mente sagrada e
infalível, que com pensamentos rápidos abarca todo o
cosmos» (DK 31 B 134).

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Em Clazómenas, na costa da Jónia mas não distan-
te de Éfeso e de Mileto, nasceu por volta de 500 Ana-
xágoras, habitualmente considerado o primeiro filóso-
fo ativo em Atenas. Com efeito, passou cerca de vinte
anos em Atenas (a partir de 460), gravitando à volta do
círculo de Péricles, de quem foi uma espécie de conse-
lheiro espiritual. À sua ligação com Péricles Anaxágo-
ras deve quase certamente a acusação de impiedade e
o decreto de expulsão que se lhe seguiu. Morreu em
Lâmpsaco, no extremo norte da Jónia, em 428.
Também Anaxágoras se pôs o problema de conci-
liar a investigação naturalista com as férreas normas
lógicas formuladas pelos eleatas. Ele, tal como Em-
pédocles e Demócrito, também transferiu as caracte-
rísticas do ser parmenidiano para uma pluralidade de
elementos primários que chamou de sementes (sper-
mata). Ao contrário dos átomos democritianos, po-
rém, as sementes de que fala Anaxágoras são sempre
divisíveis, quer dizer, «não existe um mínimo, mas
sempre um mais pequeno» (DK 59 B 3).
A reflexão naturalista de Anaxágoras – interessou-
-se por astronomia, meteorologia, biologia, geometria
– parte do princípio de que nada nasce do nada (nihil
ex nihilo). De facto, ele explica que «nada nasce nem
perece, mas compõe-se e separa-se a partir de coisas
existentes; por isso, nascer deveria chamar-se propria-
mente compor-se e perecer separar-se» (DK 59 B 17).
Como se vê, estamos num contexto teórico não dis-
semelhante do que encontrámos em Empédocles. To-
davia, para Anaxágoras os quatro elementos não são
capazes de dar conta da variedade de chremata, ou

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seja, de realidades que compõem o universo. Aos seus
olhos, de facto, esta variedade é explicável só se se der
a hipótese que ela se acha já no estado originário do
mundo, ou seja, nas sementes, que estavam todas pre-
sentes numa espécie de magma primitivo de onde se
formaram todas as coisas. O escrito Sobre a natureza
abria-se, com efeito, com a célebre afirmação «todas
as coisas estavam juntas» (homou panta) (DK 59 B 1).
O processo de organização que deu origem à forma
que o mundo possui consiste na progressiva organi-
zação das sementes que se agregaram para formarem
os vários fenómenos. Contudo, acrescenta Anaxágo-
ras, não existe uma só realidade composta por um só
tipo de sementes, porque «tudo está em tudo», quer
dizer, cada coisa é composta por sementes de todas as
outras coisas, tendo, porém, em prevalência as semen-
tes que determinam de certa maneira a sua natureza.
Por exemplo, num bocado de pão ou num pedaço de
carne estão presentes, ainda que em forma mínima,
também as sementes de todas as outras coisas, em-
bora prevaleçam respetivamente as sementes do pão
e as da carne. Deste modo, Anaxágoras pensava que
podia fornecer uma explicação plausível do processo
de nutrição e de crescimento dos seres vivos. De fac-
to, a presença das sementes de todas as outras coisas
(por exemplo, ossos, sangue, pele, etc.) num peda-
ço de pão explica por que quando ingerimos aquele
alimento ele vai acrescer as partes do nosso corpo,
transformando-se em carne, pele, ossos. Na verdade,
todas estas coisas já estavam presentes no bocado de
alimento que comemos, porque «em todos os agre-

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gados há sementes de todas as coisas» (DK 59 B 4).
O facto que as coisas individualmente se mostrem
compostas de uma maioria de sementes semelhan-
tes, ou seja, da mesma espécie, induziu Aristóteles a
falar de «homeomerias», isto é, de partes semelhan-
tes (homoios = semelhante e meros = parte), termo
que teve um certo sucesso, embora nunca apareça
nos fragmentos de Anaxágoras.
A propósito do processo de formação dos corpos
a partir do magma originário em que todas as se-
mentes se achavam misturadas juntas, Anaxágoras
acrescenta uma postila teórica importante, destinada
a suscitar o interesse de Platão e de Aristóteles. Ele
afirma que o movimento cósmico de agregação de se-
mentes semelhantes que deu origem à formação das
substâncias corpóreas é o produto de um agente, que
se chama nous, ou seja, intelecto ou inteligência. Não
se trata, como por um instante pensou – iludindo-
-se – o Sócrates do Fédon platónico, de um princípio
racional capaz de agir com vista a um fim, isto é, o
bem, e sim de uma entidade muito subtil, que não
se mistura com as sementes das outras coisas, mas
provavelmente também ela material. Todavia, não
há dúvidas de que a conceção anaxagórica da inte-
ligência cósmica antecipa de certa forma a doutrina
platónica segundo a qual o mundo é fruto da ação de
um princípio racional. É provável que a exigência de
postular um intelecto cósmico se tenha manifestado
em Anaxágoras também pelo confronto com aquilo
que se pode observar no homem, pois neste os mo-
vimentos das partes (pernas, braços, etc.) eram guia-

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dos por um princípio irredutível a elas, a saber, pela
inteligência.
Por fim, a pertença ao círculo de Péricles poderia
explicar o papel desempenhado pelo agente cósmico.
Com efeito, este intelecto pode de certa forma ser
relacionado com a atividade dos artesãos (technitai),
referente social principal da política de Péricles. Neste
sentido, o ordenador cósmico reproduz em ampla es-
cala a atividade concreta (de fabricação, de forjamento
e, por conseguinte, de ordenamento) dos artesãos da
Atenas do século V.
A terceira grande tentativa de construir uma física
logicamente respeitosa das proibições eleáticas foi reali-
zada pela escola atomista, fundada por Leucipo (nasci-
do em Abdera ou em Mileto nos começos do século V)
e desenvolvida de forma completa pelo seu discípulo
Demócrito. Este último nasceu em Abdera, na costa
grega norte-oriental, por volta de 460 e viveu longos
anos, até às primeiras décadas do século IV. Foi sem
dúvida o mais prolífico dos pensadores pré-socráticos
(pode-se continuar a defini-lo pré-socrático, embora
tivesse nascido uns dez anos depois de Sócrates), como
demonstram os catálogos antigos das suas obras que
atestam cerca de cinquenta títulos.
A fama, já milenar, de Demócrito (e de Leucipo, ao
qual se deve provavelmente a redação da Grande cos-
mologia, normalmente atribuída ao seu discípulo pelos
antigos) está ligada à conceção atomista do mundo fí-
sico. Também para Demócrito o núcleo profundo da
realidade é ingénito e incorruptível, ou seja, subtrai-se
às leis do devir; deste modo, ele demonstra ter recebido

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o ensinamento parmenidiano relativo à impossibilidade
de que o ser se transforme, mude. Demócrito postula a
existência, argumentável racionalmente mas não teste-
munhada pelos sentidos, de entidades pequeníssimas e
indivisíveis, os átomos (a-tomos significa indivisível), que
representam os «tijolos» de que se constitui o universo.
Estes átomos não são todos iguais, senão não se explicaria
a diferença entre os fenómenos. Eles distinguem-se pelo
menos com base em três parâmetros, ou seja, a figura
(schema), a posição (thesis) e a ordem (taxis). Por figura
ou forma, A difere de N; por posição, N difere de Z, tra-
tando-se da mesma figura, virada em 90°; por fim, por
ordem, AN difere de NA. O uso das letras, atestado em
Aristóteles, para explicar a natureza das diferenças entre os
átomos depende em grande medida do facto que tanto as
primeiras quanto as segundas são consideradas autênticos
elementos primos (stoicheia) dos respetivos âmbitos. Na
verdade, segundo Demócrito, os átomos são infinitos em
grandeza e em número, e infinitas são também as combi-
nações que o seu encontro pode originar. Ao reunirem-se
dão origem às várias composições corpóreas, que depois
se desagregam deixando os átomos livres de formarem
outras agregações. Aquilo que normalmente se chama
«devir» é apenas o processo contínuo de agregação e desa-
gregação dos compostos atómicos. Segundo Demócrito,
a infinidade dos átomos e das possíveis combinações só
pode levar a afirmar a existência de mundos infinitos, tese,
esta, a que se oporão veementemente Platão e Aristóteles.
O movimento incessante dos átomos está destituído
de um plano pré-estabelecido, o que significa que não
está finalisticamente orientado. Trata-se de um movi-

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mento que dá origem a um universo que é juntamente
mecânico e necessário. Cada evento, ou seja, cada fac-
to e cada agregação atómica, possui causas mecânicas
que o determinam de maneira necessária. Parece que
os atomistas postularam um movimento originário de
caráter vorticoso ao qual atribuíam a causa das primei-
ras formas de agregação. Ao contrário de Epicuro (cap.
V, §§ 2-3), o grande continuador da tradição atomista,
parece que Demócrito não atribuiu peso aos átomos e,
por conseguinte, considerou o seu movimento uma
espécie de propriedade intrínseca. Segundo Demócri-
to, a condição necessária para que os átomos possam
mover-se e dar origem aos corpos físicos é representa-
da pela existência do vazio. Um universo cheio, intei-
ramente ocupado por átomos, não permitiria que eles
se deslocassem; por isso, é preciso postular o vazio,
que deve ser entendido como negação dos átomos e,
por conseguinte, negação do ser, ou seja, um não-ser.
Átomos (ser) e vazio (não-ser) representam portanto
os princípios explicativos do universo, dos corpos que
o ocupam e dos fenómenos que nele se movem. O
restante é apenas opinião subjetiva, ou seja, aparência
destituída de valor realmente cognoscitivo. Num
famoso fragmento Demócrito declara: «Convenção
[é] o doce, convenção o amargo, convenção o quente,
convenção o frio, convenção a cor; verdade os átomos
e o vazio» (DK 68 B 9). Os sentidos permitem ace-
der a um saber meramente doxástico que, no máximo,
pode aspirar à qualificação de convenção (nomos). Sob
o mundo visível existe um plano escondido e inaces-
sível aos sentidos, um plano em que reside a verdade.

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Diz Demócrito:

Há duas formas de conhecimento, um genu-


íno e outro obscuro; ao obscuro pertencem
todas estas coisas: vista, audição, olfato, pala-
dar e tato; a outra forma é genuína e os seus
objetos estão escondidos (DK 68 B 11).

Este esquema epistemológico antecipa a célebre


distinção entre qualidades primárias e qualidades se-
cundárias que seria afirmada no âmbito da filosofia
moderna durante o século XVII: as sensações perce-
tivas devolvem qualidades (cor, paladar, solidez, etc.)
que não pertencem intrinsecamente às coisas, que são
constituídas somente por átomos; as características ge-
ométricas deles e as diferentes configurações que origi-
nam determinam a posse de qualidades derivadas (por
exemplo, uma substância constituída por átomos re-
dondos e lisos poderá ter um sabor doce, uma formada
por átomos agudos terá um sabor acre, etc.). Portanto,
é importante (também pela importância que exercerá
na epistemologia epicurista) a tese segundo a qual dos
corpos se separam eflúvios de átomos subtilíssimos,
chamados eidola, ou seja, imagens, que viajam no ar e
tocam os órgãos sensoriais. O sucesso da perceção de-
pende da ausência de perturbações durante a travessia
que estas imagens atómicas da realidade fazem.
Uma parte considerável dos fragmentos que nos
ficaram de Demócrito contém doutrinas e senten-
ças de assunto ético. O objetivo a que o ser huma-
no deve mirar consiste na obtenção da tranquilidade

50
da alma (euthymia), isto é, uma espécie de controle e
medida das paixões (para Demócrito também a alma
é composta por átomos, mesmo que estes sejam sub-
tilíssimos). De facto, o thymos representa o elemento
instintivo da alma humana, e indicando a eu-thymia
como a virtude mais importante demonstra que para
Demócrito era fundamental adquirir um controlo que
tornasse este elemento psíquico moderado e «bom»
(precisamente eu-).
Um testemunho bastante longo de Diógenes Laér-
cio apresenta de forma condensada o núcleo do pen-
samento democritiano. Merece ser reproduzido, pelo
menos nos seus pontos salientes:

Princípios de todas coisas são os átomos e


o vazio, tudo o resto é opinião subjetiva; há
mundos infinitos que são gerados e corruptí-
veis; nada vem do não-ser, nada pode perecer
e dissolver-se no não-ser. Os átomos são infi-
nitos por tamanho e número, movem-se no
universo girando de forma vorticosa e des-
se modo geram todos os compostos, fogo,
água, ar, terra; pois também estas coisas são
compostas de certos específicos átomos, que,
pelo contrário, não se podem separar nem
alterar. [...] Nós vemos por meio das ima-
gens que penetram nos nossos olhos. Tudo
se produz consoante a necessidade, porque a
causa da formação de todas as coisas é aquele
movimento vorticoso que ele chama preci-
samente de necessidade. O fim supremo da
vida é a tranquilidade da alma (DK 68 A 1).

51
6. O CORPUS HIPOCRÁTICO E O
NASCIMENTO DAS TECHNAI

Na segunda parte do século V assiste-se à progres-


siva afirmação de alguns saberes especializados que ad-
quirem uma certa autonomia em relação ao naturalis-
mo tout court e à cultura sapiencial ainda largamente
presentes no pitagorismo, em Parménides, em Empé-
docles e também no atomismo de Demócrito. Figuras
como Policleto, Hipócrates de Quío e o grande Tucí-
dides marcam a autonomização e a fixação de discipli-
nas como, respetivamente, a escultura, a geometria e a
historiografia. A afirmação de cada um destes saberes
distingue-se quer pela circunscrição do objeto, ou seja,
pelo campo de estudo a que a disciplina se dirige, quer
pela definição dos procedimentos de que ela se serve
para adquirir e consolidar o conhecimento e o con-
trolo daquele determinado terreno. Costuma-se dar a
este fenómeno o nome de «nascimento das técnicas»
(technai), entendidas na aceção ampla de saberes dis-
ciplinares.
De entre as technai em vias de progressiva consoli-
dação, a medicina merece uma menção especial, pre-
cisamente porque a sua afirmação marca de maneira
emblemática o afastamento de uma disciplina especia-
lizada do naturalismo genérico das décadas anteriores.
Além do mais, os escritos da escola médica evidenciam
um grau de reflexão metodológica ausente noutros ca-
sos. No processo de definição da medicina como saber
especializado, a figura de Hipócrates (nasceu na ilha
de Cós por volta de 460 e morreu na Tessália em 370

52
ca.) desempenhou um papel central. Atribuíram-se-
-lhe em época helenista umas setenta obras de assunto
médico que acabaram por formar o chamado corpus
hippocraticum. Trata-se de textos diferentes por época
de composição, assunto, tipologia e finalidade. Entre
uma obra e outra não faltam contradições e incongru-
ências. A crítica moderna parece ter conseguido isolar
um grupo bastante consistente de tratados atribuíveis
diretamente a Hipócrates ou ao círculo dos seus discí-
pulos e colaboradores.
O primeiro elemento interessante vê-se pelo esfor-
ço de enquadrar historicamente a medicina, ou seja,
de considerá-la não um saber fixo e imutável, mas
uma disciplina que no tempo adquiriu uma bagagem
(aperfeiçoável, todavia) de conhecimentos (empíricos,
práticos e metodológicos) que formam o seu back-
ground. Outra tática importante realizada por Hipó-
crates reside na dessacralização de certas doenças, tais
como a epilepsia, cuja origem era tradicionalmente
atribuída à esfera divina (por isso era chamada de «mal
sagrado»). Deste modo, o médico hipocrático conse-
guia surripiar a cura do paciente epilético às práticas
mágico-religiosas a que antes ele estava confinado. Na
verdade, a naturalização da doença abria espaço para
uma investigação sem preconceitos acerca das causas
que a determinavam. Na conceção hipocrática da te-
chne médica a aitiologia, isto é, o estudo da causa (ai-
tia, prophasis) do surgimento de um estado patológico,
ocupa um lugar de destaque. Tornou-se fundamental
a relação que se estabelece entre anamnese, ou seja, a
reconstrução da história do paciente, a diagnose, isto é,

53
a identificação do tipo de patologia, e a prognose, quer
dizer, a previsão positiva ou negativa do decorrer da
doença. Nesse contexto, o método ‘semeiótico’, de que
se encontram vestígios também em Alcméon de Cro-
tona (nascido em 540 ca.) e em Anaxágoras, adquire
uma relevância excecional. O procedimento ‘semeióti-
co’ consiste na capacidade de inferir o ignoto a partir
do conhecido, ou seja, de conjeturar (tekmairesthai) a
presença de uma realidade, por exemplo, uma doença,
a partir do conhecimento de determinados elementos,
interpretados como sintomas visíveis da doença invi-
sível. Trata-se essencialmente da capacidade de trans-
formar o dado num «sinal» (semeion), ou seja, num
sintoma dotado de significado. Do ponto de vista me-
todológico, o procedimento conjetural substituía de
certa forma o estilo analógico que consistia, como vi-
mos, no alargamento da validade de um determinado
critério explicativo além do campo em que este parecia
funcionar imediatamente.
Dos escritos hipocráticos emerge uma imagem
bastante definida do corpo humano. Costumava-se
ver o corpo como um recipiente neutro onde se en-
contravam quatro fluidos ou humores fundamentais:
a bílis amarela, a bílis preta, o flegma, isto é, o catarro,
e o sangue. A medicina hipocrática parece ignorar os
aparelhos anatómicos, destinados a adquirir um papel
capital no campo da medicina helenista. Retomando
uma convicção já exprimida pelo médico ‘pitagorizan-
te’ Alcméon, o estado de saúde do organismo é co-
mummente considerado a condição de relação harmo-
niosa em que os humores se encontram, ou melhor,

54
uma relação de igualdade (isonomia). Pelo contrário, a
doença aparece quando se quebra este equilíbrio e um
fluido domina os outros. Num contexto de aitiologia
semelhante, a terapia toma unicamente a forma de um
regime de dieta que restabeleça o correto equilíbrio
dentro do organismo.
A medicina, com os procedimentos que a caracte-
rizam e os resultados que obtém, desempenhou quase
desde logo, sobretudo nos diálogos de Platão, o papel
de paradigma do saber técnico. Mas o seu destino fi-
losófico não se esgotou com Platão, visto que mais de
meio milénio depois de Hipócrates, com Galeno, ela
elevou-se a exemplo emblemático de uma racionali-
dade científica capaz de englobar em si pretensões de
discurso filosófico (cap. VI, § 10).

55
2.

A SOFÍSTICA, SÓCRATES E OS
SOCRÁTICOS

1. ATENAS: IMPERIALISMO,
DEMOCRACIA E SOFÍSTICA

P ara compreender o andamento que a reflexão


filosófica adquiriu no período que vai da se-
gunda metade do século V à primeira metade do
século IV – habitualmente considerado a idade
«clássica» da filosofia antiga – é indispensável re-
cordar os eventos históricos que constituíram o
seu pressuposto e o cenário de referência. Duran-
te o século V, sobretudo graças ao papel decisivo
desempenhado nas Guerras Persas (490-78), a ci-
dade de Atenas ganhou uma posição de relevo no
mundo grego e soube conquistar uma espécie de
hegemonia tanto política quanto económica sobre
muitas outras cidades e territórios. Foram dois os
elementos que caracterizaram esta fase da história
ateniense: o imperialismo e a democracia.
Na verdade, trata-se de motivos estritamente li-
gados, tanto que não deveria ser um risco defender
que a afirmação da democracia, com os «custos» no-
táveis que ela implicou, se tornou possível em medida
considerável graças à realização de uma política hege-
mónica e imperial. O evento inaugural do processo
de democratização de Atenas é normalmente atribu-
ído às reformas de Clístenes (508-7), que criou boa
parte dos institutos à volta dos quais se desenvolverá
a vida da cidade nas décadas seguintes. Em especial,
deve-se a Clístenes o alargamento dos direitos polí-
ticos a todos os cidadãos (como é óbvio, aos livres,
homens e de maioridade), a redução da influência do
Areópago (a assembleia dos anciãos aristocráticos) e a
introdução da Boule, um concelho de quinhentos ci-
dadãos (eleitos) ao qual se confiavam as decisões mais
importantes. No livro III das suas Histórias, Heródoto
descreve a democracia como aquele sistema em que a
multidão governa, os cargos (ou seja, as magistratu-
ras) são tirados à sorte; quem desempenha uma fun-
ção pública deve dar conta dela aos outros cidadãos e,
sobretudo, as decisões são tomadas em conjunto. O
princípio sobre o qual se baseia um sistema do género
é naturalmente o da igualdade dos direitos; de facto,
para Heródoto o termo isonomia (isto é, igualdade
de direitos) é sinónimo de democracia. Em Atenas, a
participação na vida política em todas as suas formas
previa também a possibilidade de receber um paga-
mento moderado obtido principalmente dos introitos
de uma política estrangeira agressiva e imperialista,
que visava canalizar uma parte conspícua das rique-

58
zas das cidades que tinham estipulado um acordo de
cooperação e defesa com Atenas. Dever-se-ia fazer um
discurso análogo também para as encenações teatrais,
cuja importância na vida da Atenas democrática foi
tal que induziu Platão a falar, no livro III das Leis, de
«teatrocracia», no duplo sentido de poder do público
sobre a atividade teatral e de poder educativo (perni-
cioso aos olhos de Platão) do teatro sobre os cidadãos.
Num regime democrático – mas, no caso da vida
política ateniense entre 460 e 430, seria mais correto
falar de «democracia pilotada», visto o tipo de gover-
no autocrático exercido por Péricles – a legitimação
do acesso ao poder deixa de ser garantida pela per-
tença a uma determinada estirpe (genos), de particular
autoridade ou influência, mas deve ser obtida através
do consenso dos outros cidadãos. Num quadro se-
melhante compreende-se muito bem a importância
ganha pelos que eram capazes de ensinar a arte de
discorrer nas assembleias (e nos tribunais) e de gerar
a persuasão (peitho) no auditório através da palavra.
Os Sofistas apresentaram-se como os únicos mestres
capazes de transmitir a «virtude política» (arete poli-
tike), ou seja, o conjunto das competências, antes de
tudo linguísticas, que tornariam um cidadão capaz de
participar na vida política e de governar. Trata-se, pelo
menos inicialmente, de intelectuais (sophistai signifi-
ca sapientes em máximo grau) de origem estrangeira,
que souberam reunir à sua volta os jovens mais ambi-
ciosos e abastados, os quais estavam dispostos a pagar
quantias avultadas de dinheiro para aprender a arte da
palavra e do comportamento nas discussões públicas.

59
O termo «sofista» não indica uma escola filosófica pre-
cisa, nem uma atividade institucionalmente definida:
os sofistas diferem entre si por orientações filosóficas
(por exemplo, professaram teses opostas acerca da re-
lação entre natureza e lei) e políticas (ao democrático
Protágoras aliaram-se figuras ultraoligárquicas como o
terrível Crítias, tio de Platão), mas também pelo tipo
de atividade desenvolvida (foram rapsodos, logógra-
fos, autênticos homens políticos). Eram profissionais
da cultura no sentido mais amplo do termo. Como
se disse, primeiro vieram de fora de Atenas (Górgias
e Protágoras), mas depois houve também sofistas que
nasceram ou viveram na sua maioria na capital da Áti-
ca (por exemplo, Crítias e Antifonte). As figuras mais
interessantes, além dos já citados Protágoras, Górgias,
Antifonte ou Crítias, foram Pródico de Céos, Hípias
de Élis, Trasímaco de Calcedónia, Cálicles (cuja exis-
tência histórica é por alguns considerada dúbia), Alci-
damante, o chamado Anónimo de Jâmblico e o autor
dos Discursos duplos (Dissoi logoi).
Uma opinião bastante consolidada atribui aos
Sofistas uma atividade cultural pujante, que consiste
na deslocação da investigação filosófica da natureza,
centro dos interesses da maior parte dos pré-socráticos
até agora estudados, para o homem. Trata-se de uma
imagem historiográfica não destituída de uma certa
validade, no sentido que em muitos sofistas o estu-
do do homem (das condições e dos modos de vida
em comunidade) ganhou uma relevância que não se
conhecia nos pensadores anteriores. Todavia, esta cor-
re o risco de negligenciar o facto que também entre

60
os Sofistas houve reflexões de uma certa consistência
relativas à realidade em geral e à natureza inclusive.
Na verdade, se tivéssemos de indicar alguns denomi-
nadores comuns aos Sofistas (ou pelo menos à maior
parte deles), provavelmente teríamos de assinalar o
tema da centralidade do homem, com as precauções
que acabámos de expor; junto desse tema deveríamos
mencionar a preferência por procedimentos de tipo
empírico e indutivo em detrimento de métodos de ca-
riz indutivo (com a exceção parcial de Górgias); por
fim, merece ser mencionado também a tendência para
colocar o fim da reflexão na utilidade prática em vez
de no conhecimento teorético.

2. A SOFÍSTICA: RELATIVISMO,
ANTIELEATISMO, RETÓRICA

Quanto às obras dos Sofistas, com a exceção dos


Dissoi logoi, o nosso acesso a elas também é limitado
unicamente a fontes indiretas, que muitas vezes nos
legam os documentos que nos interessam de modo
fragmentário e incompleto. Todavia, esta situação não
impede que obtenhamos um perfil bastante coerente
da reflexão dos pensadores em questão.
O mais famoso dos Sofistas foi indubitavelmente
Protágoras, que nasceu em Abdera (Trácia) por volta
de 485 e morreu em 420 ca. Passou alguns anos em
Atenas onde fez parte do círculo de Péricles. A sua
fama é também testemunhada pelo facto de ter redi-
gido a constituição da colónia pan-helénica de Túri
(444). Em seguida foi acusado de impiedade – quase

61
certamente por causa do seu livro Sobre os deuses – e
obrigado a deixar Atenas partindo para a Sicília.
O escrito mais importante de Protágoras tinha
por título Verdade (Aletheia) e começava com uma
das mais célebres afirmações de toda a filosofia anti-
ga. Escrevia, portanto, o sofista: «de todas as coisas
o homem é medida, das que são enquanto são e das
que não são enquanto não são» (DK 80 B 1). Pode-
-se dizer que não há uma palavra nesta sentença que
não tenha sido objeto de interpretações várias e até
opostas, todas de certo modo legítimas do ponto de
vista filológico e filosófico. Mesmo a tradução que
propomos aqui é uma das muitas possíveis. As «coi-
sas» (chremata) a que o texto alude poderiam ser enti-
dades individuais concretas, qualidades ou até valores.
O homem (anthropos) que deveria constituir a medida
delas foi entendido quer em sentido específico, quer
dizer, como «humanidade», quer individual, isto é,
como indivíduo, quer ainda como sujeito político, ou
seja, como membro de uma determinada comunida-
de (pensou-se também que com o vocábulo «homem»
Protágoras estivesse a pensar em todos os membros de
uma determinada comunidade). Naturalmente tam-
bém o ser e o não-ser da última parte da sentença se
prestam a interpretações diversas, tal como a partícula
hos (enquanto, que, dado que, etc.) que estabelece a
ligação entre as coisas que são (indivíduos, factos, atri-
butos) e o seu ser, e entre aquelas que não são e o seu
não-ser. Portanto, não surpreende que toda a sentença
já tivesse sido interpretada de maneiras diferentes na
antiguidade: por Platão como exemplo de relativismo

62
(cada aparência que se manifesta a um sujeito é
verdadeira para ele), por Sexto Empírico como caso
de subjetivismo universal (cada aparência é sempre
verdadeira), só para citar os dois intérpretes mais co-
nhecidos. Como se vê, os problemas implicados no
princípio do homo mensura são realmente formidáveis
e não parecem de facto resolvíveis de maneira
totalmente satisfatória. Todavia, pode-se tentar retirar
das palavras de Protágoras pelo menos uma tendência
teórica geral, se não se conseguir um significado
filosófico universalmente aceite, ou seja, Protágoras
parece negar a existência de uma verdade absoluta
e substitui-la por verdades parciais que se adaptam
cada uma aos sujeitos, que podem ser indivíduos,
mas também e sobretudo comunidades. Ele tem
consciência de que na arena dos eventos humanos não
se pode adquirir um conhecimento absoluto e certo e
que, por conseguinte, é preciso contentar-se com um
juízo sempre melhor, ou seja, mais conveniente e útil.
O mel pode parecer doce a um indivíduo saudável
e amargo a um indivíduo doente, mas é decerto
melhor a condição em que se encontra o indivíduo
saudável, independentemente da natureza ontológica
do mel. Neste sentido, a tarefa do sofista deveria ser
precisamente tornar todos indivíduos saudáveis, de
modo a dar-lhes a possibilidade de experimentar a
perceção (aisthesis) melhor (que não deve ser necessa-
riamente a mais verdadeira).
Se a virtude política se configura em Protágoras
como a capacidade de governar da melhor forma os
negócios privados e públicos – neste sentido ela é

63
uma espécie de prudência ou sensatez (euboulia) – o
sofista será o mestre capaz de realizar, através da arte
da palavra, aquela melhoria da condição em que se
encontram os homens em relação ao fim, que é essen-
cialmente o útil. A natureza da virtude política emerge
da forma mais clara das palavras que Platão atribui a
Protágoras no célebre mito contido no diálogo homó-
nimo. Segundo Protágoras a sociedade nasce quando
os homens se apercebem de que não podem enfren-
tar isoladamente as insídias da natureza e dos outros
animais. O medo impele-os pois a unirem-se. Mas
mesmo unidos, e em posse do saber técnico que lhes
foi doado por Prometeu, eles não são capazes de viver
juntos nem de governar-se, sem a intervenção ulterior
de Zeus, que lhes concede o dom da virtude política
sob forma de justiça (dike) e respeito recíproco (aidos).
Todos os homens – logo, todos os cidadãos – possuem
a virtude política e, por isso, todos estão legitimados,
em linha de máxima, a tomar parte da vida pública.
Aos olhos de Protágoras, todavia, a virtude política
que cada indivíduo possui representa apenas uma po-
tencialidade genérica, e será tarefa do sofista desenvol-
vê-la até ele alcançar uma verdadeira capacidade téc-
nica. Por essa razão, não nos parece um atrevimento
afirmar que no mito do Protágoras estão contidos os
pressupostos de uma teoria justificativa da democracia
entendida como igualdade, embora potencial, de to-
dos os cidadãos (cf. cap. III, § 3).
Protágoras compôs também um escrito intitula-
do Antilogias, onde demonstrava que para cada argu-
mento se podiam formular duas teses completamente

64
opostas. Por fim, deve também ter sido muito conhe-
cida a obra intitulada Sobre os deuses, que começava
com uma corajosa declaração de agnosticismo à qual
se deve provavelmente a ordem de expulsão de Ate-
nas que o sofista recebeu já próxima da sua velhice:
«sobre os deuses nada sei, nem se existem nem se não
existem, nem sequer de que natureza são, pois a tal
conhecimento se opõem muitas coisas: [em particular]
a obscuridade do assunto e a brevidade da vida» (DK
80 B 4).
O outro grande sofista foi Górgias que nasceu em Le-
ontinos (Sicília) pouco antes de 480 e, segundo a tradi-
ção, chegou a morrer com a idade de cento e nove anos.
Parece ser certa a sua passagem por Atenas em 427, onde
pediu apoio em nome da sua pátria na guerra Leontinos
travava contra Siracusa. A sua obra mais importante tinha
um título, Sobre o não ente ou sobre a natureza (Peri tou me
ontos e peri physeos), que manifestava de modo evidente a
sua intenção. Nela pretendia-se refutar as teses eleáticas
formuladas por Parménides e em particular por Melisso,
cujo escrito Sobre o ente ou sobre a natureza (cap. I, § 3)
deve ter representado o alvo polémico principal de Gór-
gias. A obra, transmitida de forma levemente diversa pelo
misterioso autor pseudo-aristotélico do escrito Melisso,
Xenófanes e Górgias e por Sexto Empírico no livro VII de
Contra os matemáticos, argumenta a favor de três teses: a)
nada existe; b) se existisse, seria incognoscível; c) se exis-
tisse e fosse cognoscível, seria incomunicável aos outros.
A primeira tese (nada existe ou nada é) é demons-
trada a partir da impossibilidade de atribuir qualquer
predicado a o que é; de facto, este não pode ser gerado

65
(teria de gerar-se de o que não é, o que é impossível)
nem ingénito (porque, não tendo princípio, seria infi-
nito e, por conseguinte, não poderia estar em lado ne-
nhum), nem unitário nem múltiplo, nem finito nem
infinito (como pensavam respetivamente Parménides
e Melisso), etc. Mas, mesmo admitindo que existis-
se algo, este seria incognoscível, porque, assim como
existem conteúdos mentais a que não corresponde um
objeto real (por exemplo, carroças que correm no mar)
– as representações mentais (ta phronoumena), diz
Górgias, não são entes (onta) –, também o que existe
realmente pode não ser representado pela nossa facul-
dade cognoscitiva. Por fim, se existisse efetivamente
algo e depois fosse cognoscível, seria incomunicável,
porque para comunicar nós servimo-nos de nomes,
que são essencialmente irredutíveis às coisas, isto é, ao
ser. Com efeito, Górgias declara explicitamente que o
que é não pode ser transformado em logos, ou seja, em
linguagem, por causa da separação que não se pode
eliminar que divide a ordem da realidade da ordem do
discurso sobre ela. Não é claro que força demonstrati-
va Górgias quisesse atribuir efetivamente a estes argu-
mentos, ou que género de filosofia (relativista, cética,
ou então niilista) pretendesse construir através deles,
mas é muito provável que ele os considerasse persua-
sivos pelo menos tanto quanto os argumentos opostos
dos eleatas, finalizados a demonstrar a necessidade do
ser, a sua absoluta cognoscibilidade e a ligação inque-
brável entre o ser e a linguagem. Utilizando procedi-
mentos de tipo dedutivo muito semelhantes àqueles
de que se tinha servido, por exemplo, Melisso, Gór-

66
gias propõe-se demonstrar a possibilidade de se chegar
a resultados completamente opostos, mas que sejam
todavia igualmente persuasivos.
De Górgias possuímos também a Apologia de Pala-
medes, um escrito em que o sofista defendia esta per-
sonagem, considerado pela tradição mitológica inimigo
de Ulisses, com a acusação de ter traído os Gregos; e
ainda o famoso Elogio de Helena, onde ele se propunha
encomiar a mulher de Menelau e sobretudo demonstrar
a inconsistência das acusações que lhe foram feitas por
ter causado a Guerra de Troia. O Sofista constrói a sua
argumentação em torno da noção de irresponsabilidade,
explicando que as causas do comportamento de Helena
devem ser procuradas no acaso (tyche), na vontade divi-
na, no decreto de necessidade (ananke), ou na violência
de quem a raptou, ou ainda na potência irresistível do
chamamento amoroso (produzido pelo deus Eros), ou,
por fim, nas capacidades persuasivas da palavra (logos),
a qual «é um grande dominador que com um corpo
pequeníssimo e invisibilíssimo sabe realizar coisas divi-
níssimas». Em todos os casos, Helena não é verdadeira-
mente condenável porque resulta não responsável pelo
seu comportamento e, por conseguinte, não pode ser
acusada de ter determinado a Guerra de Troia.
A menção à função exercida pela linguagem é da
máxima importância do ponto de vista filosófico. A
palavra é definida «grande dominador» (dynastes me-
gas) dado que possui a capacidade de sugestionar e
orientar a alma, perturbando-a e agitando-a, mas
também dando-lhe alegria e comovendo-a. A retóri-
ca, portanto, que é a arte das palavras por excelência,

67
possui, como tal, uma função decisiva na orientação
das almas e adquire uma relevância fundamental até
se tornar na técnica mais importante de entre aquelas
ensinadas por Górgias, o qual compôs também um
manual de técnica retórica intitulado Techne rhetorike.
De resto, uma estruturação deste tipo parece comple-
tamente consequente à terceira tese contida no escrito
Sobre o não ente: a separação criada entre ser e lingua-
gem tornava o estudo desta independente de qualquer
vínculo ontológico e epistemológico, fazendo dela
uma espécie de universo autónomo.

3. A SOFÍSTICA: O ILUMINISMO GREGO

A riqueza e a originalidade do pensamento sofís-


tico não se esgotam nas reflexões de Protágoras e de
Górgias, que foram indubitavelmente os máximos
representantes deste movimento, mas não os únicos.
De resto, como se disse, a sofística não foi uma verda-
deira escola filosófica nem sequer uma corrente uni-
tária, mas sim um movimento complexo no interior
do qual a existência de alguns denominadores comuns
foi acompanhada pela presença de soluções pessoais,
muitas vezes em contraste umas com as outras.
Um dos denominadores comuns é certamente a
consciência que quase todos os pensadores deste perí-
odo tiveram da relatividade das leis e até dos códigos
morais dos homens. Trata-se de uma consciência em
larga medida produzida pela entrada em contacto com
outros povos, consequência das Guerras persas e de-

68
pois da política expansionista que cidades como Ate-
nas exerceram nas décadas sucessivas. O âmbito em
que o sentido da relatividade das leis humanas encon-
tra uma saída teórica imediata é o da contraposição
entre lei (nomos) e natureza (physis). É um tema acer-
ca do qual tomaram posição quase todos os Sofistas.
Hípias, por exemplo, defensor de um ideal de saber
enciclopédico que não exclui o conhecimento das téc-
nicas de produção (tinha orgulho em fabricar para si
mesmo o vestuário e o calçado que usava), sustentava
que o sábio tinha parentesco natural com outro sábio
qualquer, independentemente das leis e das conven-
ções que faziam dele cidadão de uma certa comuni-
dade. Foi particularmente interessante a reflexão de
Antifonte, cujo escrito Sobre a verdade foi transcrito
de forma fragmentária no célebre Papiro de Oxirinco.
Para Antifonte os sistemas jurídicos representam o fru-
to de um acordo entre os homens, os quais, temendo
os efeitos que se produziriam no caso de um conflito
perene generalizado (uma espécie de bellum omnium
contra omnes hobbesiano), decidem estipular normas
finalizadas à autoconservação. Ao defender que a jus-
tiça é apenas o respeito pelos sistemas jurídicos codifi-
cados («a justiça consiste em não transgredir nenhuma
das leis do estado de que se é cidadão»), Antifonte faz-
se porta-voz de uma posição muito parecida com a
que costumamos indicar com a expressão «positivismo
jurídico» (Rechtspositivismus). Para o Sofista respeitar
as leis não constitui, todavia, a atitude que os seres
humanos estariam dispostos por natureza a ter. De
facto, a natureza – que contrasta radicalmente com

69
a lei – induz cada indivíduo a tentar obter o máximo
de utilidades (sympheron) para si, mesmo prejudican-
do os seus semelhantes. A conceção contratualista da
origem da lei (e da comunidade humana) que Platão
expõe no livro II da República parece um claro decal-
que da teoria de Antifonte: o princípio natural que
governa as ações dos homens é o da pleonexia, ou seja,
da submissão de outrem, e consiste na autoafirmação
danificando o próximo. A consciência que os seres
humanos têm de não poderem garantir a isenção dos
danos produzidos pela pleonexia de outrem indu-los a
estipularem um acordo de recíproca não beligerância
cujos sistemas normativos representam a codificação.
Os homens respeitam as leis só porque temem as con-
sequências produzidas pela eventual transgressão; to-
davia, se tivessem a certeza da impunidade, agiriam de
modo injusto dando liberdade ao instinto pleonectico
que constitui a sua autêntica natureza. O pacto social
é sentido como uma espécie de violência não natural à
qual fugimos assim que temos oportunidade. Por de-
trás da contraposição de Antifonte entre natureza e lei
entrevê-se a contraposição entre a verdade (aletheia)
da natureza e a opinião (doxa) das leis convencionais,
sentidas como «vínculos» (desma) necessários, mas em
si mesmos não apreciáveis de todo.
Da constatação de que os homens são levados a
violar as leis se tiverem a certeza da impunidade partiu
provavelmente Crítias, tio de Platão e líder do parti-
do ultraoligárquico filoespartano que governou Ate-
nas entre 404 e 403. Com efeito, ele observou que a
religião é apenas um instrumento utilizado pelos go-

70
vernantes para induzir os governados a respeitarem as
leis. Trata-se, na sua opinião, de um autêntico instru-
mentum regni inventado pelos homens para reforçar o
poder coercitivo das leis:

Dado que as leis não chegavam para manter


os homens longe de cometer violências... e
eles continuavam a cometê-las disfarçada-
mente, declaro que então pela primeira vez
um homem astuto e sábio de mente inven-
tou para os mortais o temor dos deuses,
de modo a gerar medo nos homens maus
mesmo que dissessem ou fizessem ou sim-
plesmente pensassem algo ocultamente. [...]
Portanto, penso que foi assim que alguém
originariamente persuadiu os homens a acre-
ditarem que existisse o divino (DK 88 B 25).

Também para o autor dos Dissoi logoi as normas ju-


rídicas se fundam em acordos que variam consoante os
lugares, como demonstra o facto que o que é proibido
numa cidade é aceite noutra. Em boa verdade, neste escri-
to não são só as leis a serem relativizadas, como também
os valores éticos. De facto, observa o autor,

se se mandasse que todos os homens reunissem


num só lugar todas as coisas que eles reputam
vergonhosas, e depois disso se dissesse a cada
um de tirar desse monte aquilo que conside-
rasse belo, não ficaria uma só coisa, pois todos
dividiriam entre si tudo (DK 90 B 2, 18).

71
O autor desta obra substitui o objetivismo ético
de matriz arcaica por um autêntico relativismo descri-
tivo que abarca todos os valores (bem/mal, belo/feio,
justo/injusto, verdadeiro/falso).
Se para Antifonte a observância das normas jurí-
dicas constitui uma espécie de dolorosa necessidade
produzida pela consciência da fraqueza individual e
pelo temor das consequências derivadas da sua trans-
gressão, para o misterioso Cálicles – acerca do qual
Platão se demora no Górgias – as regras da moral
convencional, muitas vezes codificadas nos sistemas
jurídicos, representam uma autêntica perversão fei-
ta contra o dado natural. Leis e convenções são es-
tratagemas hipócritas que os mais fracos orquestram
com o único objetivo de submeter os mais fortes, ou
seja, aqueles que por natureza são levados a perseguir
os seus interesses e se mostram realmente capazes
de atingir esse objetivo (Górgias, 483 E-484 B). Aos
olhos do Cálicles platónico o quadro correto prevê
o domínio natural dos mais fortes, isto é, dos que se
deixam guiar sem remorsos pelo seu instinto de auto-
afirmação e subjugação (a pleonexia) para com os mais
fracos; estes, todavia, impõem aos mais fortes um
pacto social que refreia a dinâmica natural e através
das leis estabelece uma repartição igualitária dos bens
e dos cargos. O célebre (e decerto fictício) diálogo en-
tre os Atenienses e os Melos, transcrito por Tucídides
no livro V da Guerra do Peloponeso, parece acenar a
um contexto teórico análogo: face ao protesto dos
habitantes da ilha de Melo, para quem a chantagem
imposta pelos Atenienses (aliarem-se a eles ou serem

72
aniquilados) era injusta, os Atenienses observam que
a justiça tem sentido só no caso em que a força seja
igual, de outro modo, as razões do mais forte estão
destinadas por natureza a prevalecerem sempre sobre
as do mais fraco.
Num quadro do género também encontra lugar
o pensamento de Trasímaco de Calcedónia, cujas po-
sições são apresentadas e dotadas de uma excecional
consistência filosófica por parte de Platão no livro I
da República (cf. cap. III, § 4). Por um lado, Trasíma-
co aceita a tese segundo a qual a justiça consiste na
observância das leis que uma comunidade estabelece
para si (Rechtspositivismus). Por outro lado, porém, ele
remonta ao primeiro ato constitutivo do sistema ju-
rídico, afirmando que justo é na realidade «o útil do
mais forte» (to sympheron tou kreittonos), o que equivale
a dizer que as leis em vigor num estado qualquer foram
promulgadas no interesse exclusivo dos mais fortes, ou
seja, dos mais ricos, ou dos mais poderosos ou até da
maioria. Se os mais fortes forem os aristocráticos, as
leis serão aristocráticas e a justiça consistirá no respeito
das normas estabelecidas para vantagem daquele grupo
social; discurso análogo vale, porém, no caso de um
sistema democrático, onde a maioria imporá leis para
sua exclusiva vantagem. Para Trasímaco, o positivismo
jurídico funda-se numa espécie de positivismo da força
(Machtspositivismus) que restabelece uma certa conti-
nuidade entre physis e nomos, quer dizer, entre o dado
natural e a construção normativa.
À margem da corrente de pensamento que
reconstruímos coloca-se um autor que partilha muitos

73
aspetos com os sofistas – primeiro de todos a orientação
prática e política da sua reflexão e as finalidades
educativas da sua atividade – mas que permanece alheio
às extravagâncias céticas e ao radicalismo teórico muitas
vezes presentes nos autores até aqui examinados. Trata-
se de Isócrates (436-338) que, por volta do ano 390,
deu vida a uma escola de retórica importante destinada
a desempenhar um papel relevante na cultura ateniense
das décadas seguintes, mesmo em concorrência com a
Academia fundada por Platão em 388-87. O programa
educativo de Isócrates encontra-se alicerçado na retórica,
em particular pensada como capacidade de adaptar o
estilo e o conteúdo do discurso a situações concretas.
A práxis torna-se o pano de fundo para o qual o retor
de Isócrates deve orientar sempre as suas escolhas. Na
ausência de um critério veritativo forte, o princípio do
consensus omnium ganha uma relevância capital, com
o consequente abandono de toda e qualquer pretensão
de cientificidade absoluta por parte de Isócrates e com
a substituição do saber (episteme) pela opinião (doxa),
sobretudo fundada na experiência (empeiria). Em tal
contexto, compreende-se também o timbre moderado
da reflexão política de Isócrates, distante anos-luz das
várias formas de radicalismo de muitos pensadores so-
fistas.

4. SÓCRATES: A FILOSOFIA EM AÇÃO

A figura de Sócrates apresenta já à primeira vis-


ta um elemento paradoxal: por um lado, ele parece

74
ser o filósofo antigo de certa forma «mais popular»,
porque a ele se ligam – até chegarem a considerá-lo
uma espécie de «Jesus filosófico» – um grande número
de pensadores muito distantes entre eles até de modo
considerável (platónicos, megáricos, cirenaicos, cíni-
cos, mas também estoicos e céticos e até médio-pla-
tónicos e neoplatónicos); por outro lado, representa
um autêntico mistério, não só porque não escreveu
nada, mas sobretudo porque o seu ensinamento deu
origem a escolas de pensamento tão diferentes entre
si que tornam quase impossível a identificação do nú-
cleo originário de onde partiram. Em suma, por detrás
de Sócrates parece realmente esconder-se um mito.
Além da influência que Sócrates teve em pensa-
dores sucessivos, os testemunhos que espelham de
maneira relativamente direta o seu ensinamento são
quatro: a) os diálogos de Platão, sobretudo os da ju-
ventude, definidos por esse motivo «socráticos»; b)
os escritos socráticos de Xenofonte, em especial os
Memoráveis; c) as Nuvens do comediógrafo Aristófa-
nes; d) as exposições doxográficas de Aristóteles, que,
embora não tenha conhecido diretamente Sócrates,
parece guardar uma imagem bastante definida da
sua filosofia. Destas quatro fontes emergem quadros
decididamente diferentes: para Aristófanes, Sócrates
foi um sofista, aliás o protótipo do sofista do século V;
para Platão, ele foi o antissofista por excelência, isto é,
o filósofo que dedicou toda a sua vida a mostrar a di-
ferença (moral e intelectual) entre filosofia e sofística;
para Xenofonte, Sócrates foi uma espécie de represen-
tante do bom senso e encarnou, de certa forma, a res-

75
peitabilidade (e a moral) do cidadão ateniense do seu
tempo; por fim, para Aristóteles, ele foi um filósofo da
ética ao qual se atribuem alguns teoremas bem defi-
nidos relativos sobretudo à relação entre virtude e co-
nhecimento. É provável que cada uma destas imagens
seja, embora na sua unilateralidade, verdadeira, no
sentido de que espelha motivos efetivamente presentes
no pensamento e no comportamento de Sócrates: de
certa forma, ele foi um «sofista» quer pela forte mar-
ca antropocêntrica da sua reflexão, quer pelo espírito
iluminista e racionalista do seu estilo de pensamento;
mas foi também um antissofista por recusar qualquer
forma de relativismo e por condenar a profissionaliza-
ção do ensino; foi também o representante de um cer-
to sentido de cidadania, como se parece poder deduzir
da sua forma de vida e do cumprimento consciencioso
dos cargos que lhe foram atribuídos, vistos na adesão
incondicionada às leis da cidade que emerge também
do Críton platónico; por fim, foi um pensador interes-
sado em especial pelos problemas éticos, relativamente
aos quais formulou algo de semelhante a autênticas
afirmações teóricas (muitas vezes apresentadas sob for-
ma de paradoxos).
Na verdade, cada uma das fontes mencionadas de-
volve algo do Sócrates histórico porque apresenta um
olhar possível e legítimo sobre a atividade desta figura
excecional. Por outro lado, a existência de imagens tão
diferentes justifica também a recusa a fornecer uma
reconstrução definitiva e perfeitamente fundada de
quem foi realmente Sócrates. Por isso, as considera-
ções que apresentaremos têm o objetivo de expor algu-

76
mas linhas de desenvolvimento da reflexão socrática,
dando especial atenção aos aspetos que parecem mais
relevantes do ponto de vista filosófico. Por uma série
de razões que não podemos elencar aqui, esta recons-
trução terá como ponto de referência principal a Apo-
logia de Sócrates de Platão, à qual serão gradualmente
unidos os outros testemunhos acima mencionados.
Sócrates nasceu em Atenas por volta de 470. Por
toda a sua vida não se afastou da cidade a não ser por
brevíssimos períodos; com ela manteve uma ligação
muito estreita, como demonstram o cumprimento
consciencioso dos cargos militares e civis que a cidade
o encarregou de desempenhar, a recusa a desrespeitar
as suas leis para fugir da prisão e a aceitação da con-
denação à morte. Durante o regime oligárquico dos
Trinta Tiranos (404) teve a coragem de opor-se à or-
dem de prender um seu adversário, mas isso de nada
lhe valeu, pois poucos anos depois, em pleno gover-
no democrático, não o salvou da acusação que Ânito
e Meleto lhe fizeram de introduzir novas divindades
(não reconhecendo as tradicionais) e de corromper os
jovens. Por essa razão, foi processado e condenado à
morte e, tendo recusado qualquer facilidade que a lei
ou a praxe de certo modo lhe teriam consentido ou
tolerado (por exemplo, o exílio), bebeu a cicuta pondo
fim em 399 a uma das existências mais memoráveis da
história do pensamento humano.
Na Apologia Sócrates reconhece que o ponto de
partida da sua investigação filosófica deve ser procu-
rado na incredulidade sentida perante a sentença do
oráculo délfico que o declarava o mais sábio dos ho-

77
mens. Dado que ele se professava ignorante, ou seja,
sem um saber definitivo e objetivo, tentou logo veri-
ficar (e eventualmente desmentir) a sentença divina.
Dirigiu-se primeiro aos políticos, apercebendo-se logo
que estes se reputavam sapientes, sem serem verdadei-
ramente tais, porque não possuíam um conhecimento
preciso acerca de o que é belo e bom. Em seguida, Só-
crates interrogou os poetas trágicos para avaliar o grau
de conhecimento que eles tinham das coisas sobre as
quais escreviam; também neste caso compreendeu
imediatamente que eles eram até menos adequados
de quaisquer outros para explicar o conteúdo das suas
obras, demonstrando assim que quem os guiava não
era a sabedoria (sophia) mas sim os dotes naturais (phy-
sis) e o entusiasmo (enthousiasmos). Por fim, dirigiu-
-se aos especialistas das artes manuais, quer dizer, aos
technitai, para se aperceber de que eles eram sapientes,
sim, apenas porque eram dotados de um saber objeti-
vo controlável e reproduzível, mas que perdiam qual-
quer direito a serem considerados tais no momento
em que pretendiam, de todo ilegitimamente, alargar o
campo de aplicação dos seus conhecimentos além dos
limites estabelecidos pelo objeto de que se ocupavam.
No término desta investigação, Sócrates foi obrigado
a reconhecer a validade do veredicto divino: ele é real-
mente o mais sábio dos homens, mas a sua sabedoria
consiste essencialmente em reconhecer a sua ignorân-
cia, ou seja, consiste no célebre «só sei que nada sei»,
pensado como ponto de partida de qualquer pesquisa
que queira apresentar-se autenticamente como filosó-
fica. O «só sei que nada sei» socrático configura-se,

78
portanto, como o pressuposto (livre de pressupostos)
de qualquer investigação cujo objetivo seja fundar de
modo totalmente racional um comportamento moral,
uma escolha ou uma decisão.
E neste terreno Sócrates só podia encontrar os So-
fistas, que afirmavam precisamente ensinar a técnica
de tomar decisões tanto de caráter individual quanto
de natureza pública, ou seja, política. Grande parte
dos diálogos «socráticos» de Platão dedica-se precisa-
mente aos esforços de Sócrates em distinguir-se dos
Sofistas, propondo um modelo de saber alternativo
em relação ao deles. Em particular, Sócrates empenha-
-se em demonstrar que os seus interlocutores – perso-
nagens como Hípias, Protágoras, Górgias, Cálicles e
Trasímaco – estão na posse de um saber meramente
aparente, do qual ele mostra a inconsistência, a auto-
contraditoriedade, a ausência de fundamentos sólidos.
Aqui encontram aplicação dois princípios essenciais
do método filosófico de Sócrates: a admissão (de certo
modo «irónica») da própria ignorância, que induz os
parceiros a fornecer soluções para as questões que se
vão enfrentando, e a célebre refutação (elenchos), quer
dizer, a tática que visa a demonstração da inconsistên-
cia destas respostas. Os temas debatidos nos encon-
tros entre Sócrates e os Sofistas – mas também entre
os homens políticos, generais, poetas, detentores de
uma técnica específica – são quase sempre de ordem
ético-moral: a virtude em geral no Protágoras e no
Ménon, a coragem (andreia) no Laques, a moderação
ou temperança (sophrosyne) no Cármides, a santidade
(hosiotes) no Êutifron, a justiça (dikaiousyne) no Gór-

79
gias e no Trasímaco (República I). Em todos estes ca-
sos, Sócrates demonstra que os seus interlocutores não
sabem verdadeiramente de que estão a falar e o que
pretendem ensinar. Com efeito, eles não são capazes
de oferecer uma definição destes conceitos, ou melhor,
só sabem apresentar pseudo-definições de todo inade-
quadas porque são incapazes de apreender o «que é» (ti
esti) da coisa, ou seja, a sua essência (ousia). Esta deve
possuir a característica da universalidade (to katholou,
mas Sócrates prefere falar de koinon, isto é, de «co-
mum»), ou seja, deve mostrar-se aplicável a todos os
casos individuais. Vice-versa, as várias definições pro-
postas pelos seus interlocutores, quando não são au-
tocontraditórias, são parciais e não generalizáveis: por
exemplo, definir a justiça como «a devolução do que
foi emprestado» (República, I), não tem em conta do
facto que quem emprestou armas pode entretanto ter
ensandecido e, por conseguinte, causar danos se en-
trasse novamente em posse delas. Se não se conhecer
exatamente o que é uma certa virtude, ou seja, se não
se for capaz de fornecer um discurso proposicional (lo-
gos) relativo a ela, não se pode estabelecer se uma ação
é ou não virtuosa, quer dizer, se satisfaz as condições
requeridas por aquela definição. Portanto, para Sócra-
tes o fundamento de cada comportamento moral resi-
de no conhecimento da virtude correspondente a esse
comportamento. Mas o filósofo vai mais além e chega
a defender que o conhecimento da virtude (logo do
bem) é por si só suficiente para se ser virtuoso e bom.
Trata-se da conhecida e controversa tese segundo a
qual «a virtude é conhecimento», uma tese que valeu

80
a Sócrates a acusação, que lhe moveu Aristóteles no
livro VII da Ética a Nicómaco, de ter ignorado o fenó-
meno da akrasia, ou seja, da incontinência ou fraqueza
da vontade, que faz com que, embora se conheça o
bem, muitas vezes os homens ajam de forma malvada
(ou então não virtuosa), segundo o mote latim: video
meliora, provoque, deteriora sequor.
A assimilação da virtude ao saber, que represen-
ta o núcleo do chamado «intelectualismo» socrático,
implica uma série de corolários que nos diálogos se
manifestam frequentemente sob forma de paradoxos.
Um dos mais conhecidos é o que diz que «ninguém faz
o mal voluntariamente», o qual, por sua vez, comporta
que o erro moral depende, em última análise, de um dé-
ficit cognoscitivo, com a consequência de que – e eis
outro paradoxo – é «preferível cometer o mal conhe-
cendo o bem do que fazer o bem sem ter consciên-
cia». Trata-se de teses efetivamente defendidas pelo
Sócrates dos diálogos de Platão, que remetem para a
convicção de que a força de atração exercida pelo bem
e pela virtude é tão forte que não é possível escapar-
-se-lhe. Por isso, se o homem faz o mal, fá-lo por ig-
norância do bem. Se um certo indivíduo sabe que x
é bom para ele, faz x; se, pelo contrário, ele faz y, é
porque pensa erroneamente que y é um bem para ele.
Ao escolher y em vez de x, ele reputa incorretamente
que y lhe proporcionará mais prazeres do que x. Deste
modo, um indivíduo do género será vítima de uma
espécie de confusão produzida na realidade pela sua
ignorância acerca do que para ele é verdadeiramente
um bem. Trata-se do erro típico em que cai, segundo

81
Sócrates, o hedonista, que pensa que para ele é bom
empanturrar-se de comida e não tem em conta (por
ignorância) os danos que um comportamento seme-
lhante está destinado a causar-lhe.
Tudo isto se liga a outra assunção fundamental da
ética socrática, na realidade comum a toda a ética an-
tiga: o chamado axioma eudaimonista, em virtude do
qual o fim dos comportamentos humanos consiste na
aquisição da felicidade (eudaimonia). Para Sócrates, a
felicidade está intimamente ligada à virtude, embora,
na realidade, talvez não se possa defender que seja de
todo idêntica a ela, como alguns intérpretes chegaram
a sustentar. Na verdade, entre virtude e felicidade não
deveria haver uma relação de identidade absoluta, e
sim de implicação, no sentido que sem virtude não
se pode ser feliz e a maldade gera apenas infelicidade,
mas que simultaneamente se dão as condições, em si
mesmas não-morais (como a saúde e a riqueza), que
podem contribuir para acrescer o sentido de felicidade
de um indivíduo já virtuoso (a ética socrática parece,
de facto, imune ao radicalismo da ética do primeiro
estoicismo). Poder-se-ia então dizer, usando as pala-
vras do grande estudioso de Sócrates, Gregory Vlas-
tos, que a felicidade é o único bem incondicionado
que nós, seres humanos, procuramos por si mesmo,
enquanto que a virtude representa o bem (não instru-
mental) necessário para a obtenção da felicidade.
Este discurso deve ser então colocado como pano
de fundo de outra tese central da filosofia socrática.
Retomando uma posição de provável matriz órfica
mas de reelaboração pitagórica segura (cap. I, § 4),

82
Sócrates defende que o único destinatário do discurso
filosófico, e ético em especial, é a alma (psyche). Isto
significa que as teses anteriormente mencionadas ga-
nham o seu significado preciso somente se forem re-
feridas à alma. A virtude e o bem são, pois, essencial-
mente virtude e bem da alma; mesmo a felicidade, em
direção à qual os seres humanos orientam os seus com-
portamentos, deve ser a felicidade da alma. De resto, a
eudaimonia socrática parece configurar-se exatamente
como a realização perfeita das potencialidades da alma
e, por conseguinte, como «virtudes da alma» (arete tes
psyches). Deste modo, explica-se também a célebre de-
finição socrática da filosofia em termos de epimeleia
tes psyches, ou seja, «cura da alma». Um diálogo como
o Fédon, que descreve as últimas horas de Sócrates,
está dividido pelos esforços do filósofo em convencer
os seus amigos e discípulos de que o que lhe está para
acontecer, na realidade não é um mal, porque concer-
ne só ao corpo e não atinge aquilo que ele possui de
mais próprio, isto é, a alma, destinada, enquanto ser
imortal (athanatos), a sobreviver ao corpo. De resto,
Sócrates parece de tal forma empenhado em reatua-
lizar o célebre mote délfico «conhece-te a ti mesmo»,
que nele se torna um convite a conhecer a própria
alma, que representa o verdadeiro eu do ser humano.
Ao tema da centralidade da alma liga-se também
o célebre e misterioso motivo do daimonion, que Só-
crates parece considerar uma espécie de voz interior
(talvez um precursor da moderna consciência) que
não o deixa fazer determinadas ações. Com o apelo
ao daimonion – que provavelmente lhe valeu a acusa-

83
ção de introduzir novas divindades –, Sócrates parece
ligar o âmbito da alma, de que o daimonion parece
representar uma espécie de parte ou instância divina, a
uma dimensão superior, antecipando as reflexões que
os filósofos neoplatónicos farão a esse propósito.
Viu-se que para Sócrates a virtude, pensada como
conhecimento e prática do bem, apresenta diferen-
tes aspetos: temperança, justiça, santidade, sapiência
e coragem. No Protágoras enfrenta-se diretamente a
questão da unidade ou multiplicidade deste conjun-
to de virtudes, visto que se pergunta se cada virtude
é uma entidade independente ou se é parte de uma
única determinação, ou ainda se as virtudes são nomes
diferentes de uma única coisa. A resposta socrática a
esta interrogação capital, embora não tenha sido ex-
pressamente formulada, emerge de modo bastante cla-
ro da discussão com Protágoras; a virtude consiste na
afirmação da unidade da virtude, unidade que todavia
deve ser entendida não no sentido que cada virtude
possui a mesma definição (com efeito, a definição de
coragem, por exemplo, é diferente da de justiça ou da
de santidade), mas no sentido pragmático com base
no qual quem possui uma virtude, possui logo todas,
porque as virtudes se implicam reciprocamente.
Durante estas reflexões dedicadas a Sócrates falou-
-se sempre de bem e de virtude, sem porém defini-los
com precisão. Na verdade, uma definição proposicio-
nal do bem (to agathon), cuja aquisição corresponde
à realização da virtude, parece faltar em Sócrates, que
prefere empenhar-se em refutar os pontos de vista dos
seus interlocutores em vez de defender uma tese de

84
forma assertória. Mas isto não significa que ele não
tenha uma opinião definida acerca da natureza do
bem. Numa célebre passagem da Apologia esta opi-
nião emerge de maneira bastante explícita quando o
filósofo afirma que «não há maior bem para um ho-
mem do que discorrer cada dia sobre a virtude e sobre
as outras coisas acerca das quais me ouvis discorrer,
examinando-me a mim mesmo e aos outros» (38 A).
Eis então o bem a que deve aspirar cada ser humano:
a procura racional das condições do agir moral; uma
pesquisa que ponha em jogo todos os pressupostos,
que nunca se contente com os resultados que dia após
dia obtém, implica já por si mesma a aquisição da vir-
tude e do bem, porque, como Sócrates declara ainda
na Apologia, «uma vida sem investigação, não é digna
de ser vivida».

5. AS ESCOLAS SOCRÁTICAS MENORES

A filosofia de Platão é certamente a mais importan-


te das filosofias filhas do ensinamento de Sócrates, mas
não a única. Convém lembrar também outros desen-
volvimentos do socratismo pelo que têm de relevan-
te em si e em vista da interpretação do mestre (a sua
pluralidade e também a forte diversificação diz algo da
extrema complexidade da figura socrática, que podia
inspirar doutrinas e comportamentos muito diferentes
entre si), mas também em vista de desenvolvimentos
futuros da história do pensamento, porque muitos te-
mas presentes nestes discípulos menores de Sócrates
influenciarão as escolas que se formarão na idade hele-

85
nista. Todavia, convém também alertar para o facto de
que o uso corrente de falar destes desenvolvimentos do
socratismo em termos de «escolas» pode ser enganador
e é justificado apenas pela sua comodidade expositiva,
porque a realidade é que nenhum dos discípulos de
Sócrates de que falaremos em seguida fundou algo se-
melhante a instituições como a Academia ou o Liceu,
ou deu origem a escolas caracterizadas por uma suces-
são de filósofos ou por uma sistematização qualquer
de doutrinas ou de ensinamentos.
Mesmo que tenham saídas diferentes as escolas so-
cráticas menores partilham todavia um traço funda-
mental em comum que revela a sua origem através do
pensamento e do exemplo de vida do mestre. Talvez o
aspeto geral pelo qual cada socrático se mostra tal seja
a convicção comum a todos da unidade originária da
virtude, a qual por sua vez, por um lado, remete para
a tese socrática da identidade de virtude e saber, por
outro lado, para a ideia de uma alma (sede da virtude)
concebida como centro autónomo e responsável de
autodeterminação, de escolhas de vida, de indepen-
dência face às mutáveis vicissitudes da sorte e da expe-
riência. Deste último ponto parece desenvolver-se de
maneira semelhante em todos os socráticos também
uma polémica – mais ou menos explícita consoante os
casos – contra a sociedade citadina, as suas instituições
e os seus costumes; claramente, nesta atitude comum
também deve ter pesado a recordação inolvidável do
processo e morte do mestre, tal como o ataque que,
em 393/2, o sofista Polícrates avançara contra Sócra-
tes, visto como inimigo das leis da cidade e corruptor

86
dos jovens, alguns dos quais ele teria educado para que
se tornassem inimigos da cidade (os exemplos óbvios
são Alcibíades e Crítias). O resultado desta atitude é
a incipiente delineação de um sábio, autossuficiente
porque dotado de uma capacidade de decisão e de jul-
gamento superior que lhe permite manter-se indepen-
dente dos lugares-comuns da moralidade e da cultura
citadinas; e é aqui que se torna evidente o relevo que
as escolas socráticas ganham em vista do desenvolvi-
mento sucessivo da filosofia. Elas são as primeiras pro-
motoras de um ideal ético (precisamente o do sábio)
que se imporá indistintamente em todas as escolas da
idade helenista.

6. ANTÍSTENES E A TRADIÇÃO CÍNICA

O mais importante e conhecido dos filósofos que


desenvolveram o ensinamento socrático segundo uma
interpretação pessoal foi Antístenes, provavelmente
um contemporâneo de Platão, mas que nasceu alguns
anos antes dele. A herança socrática é visível em parti-
cular na sua dialética, que indubitavelmente afunda as
raízes na pesquisa do mestre finalizada à determinação
de o «que é» de cada coisa. Todavia, nós sabemos tam-
bém com certeza, graças a Aristóteles, que Antístenes
e os seus seguidores professavam a impossibilidade de
alcançar uma definição. Se isto é verdade, a resposta à
pergunta socrática devia consistir, para Antístenes, na
declaração do nome «apropriado» para cada coisa, ou
seja, naquele que diz algo certo acerca daquela coisa.
Portanto, por um lado, Antístenes chegava à impossi-

87
bilidade da definição e, como consequência da inves-
tigação acerca do nome apropriado, à aceitação unica-
mente dos juízos de identidade (a coisa «homem» só
pode ser definida pelo seu nome «homem»). Contudo,
por outro lado, e sempre através da investigação dos
nomes, que sabemos ter sido considerada por ele «o
princípio da educação», isto é, da formação intelectu-
al, admitia a possibilidade de verificar as semelhanças
ou dissemelhanças entre as coisas; o estudo dos nomes
teria permitido que se verificassem todas as determi-
nações das afinidades de uma coisa com as outras e de
tal modo chegar-se-ia a afirmar não já «o que», mas
(como nos informa também Aristóteles) «como» era
uma certa coisa – por exemplo, dizendo que a prata é
semelhante ao estanho ou ao chumbo. A partir dessas
premissas, explica-se a célebre crítica de Antístenes às
ideias de Platão: «vejo um cavalo, mas não vejo a cava-
lidade». A inexistência dos universais lógicos na fun-
ção de predicados de uma definição acentuava ainda
mais nele a convicção da inexistência das ideias.
Como característica essencial da ética de Antís-
tenes (a parte mais conhecida do seu pensamento)
pode-se citar a proposição relativa ao sábio que lhe foi
atribuída, isto é, que ele não deveria viver segundo as
leis da cidade, mas segundo as da virtude: é logo evi-
dente a oposição com a qual o filósofo se apresenta em
relação às instituições e às normas vigentes (a crítica,
pelo menos implícita, a aspetos e leis da vida citadina,
mais especificamente a ateniense, transparece em ou-
tras declarações suas, por exemplo, que «é absurdo não
excluir os malvados da política», dita provavelmente

88
contra os demagogos; ou que «a vida em comunhão
de irmãos concordes é mais forte que qualquer mura-
lha»). Quanto à virtude, Antístenes afirmava também
que ela era suficiente por si só para atingir a felicida-
de, dado que não tem necessidade de nada a não ser
da «força» de Sócrates: por «força» parece entender-se
aquela força de ânimo que nasce «dos exercícios do
corpo e dos logoi (discursos) da alma». A referência aos
discursos não parece dever-se acentuar excessivamen-
te, se é verdade que Antístenes afirmava que «a virtude
compete aos factos e não tem necessidade de muitos
discursos nem de noções». O caminho para a virtude,
embora não esteja destituído do exercício da raciona-
lidade, passava sobretudo por uma exaltação da «fadi-
ga», o exercício mental, mas também físico de quem se
endurece contra os acidentes da vida e aprende a con-
tar unicamente consigo mesmo. O exemplo do sábio
era, por essa razão, Héracles e Antístenes inclinava-se
para um ideal de pauperismo não sem atitudes exibi-
cionistas (segundo um texto dos Memoráveis de Xeno-
fonte, Sócrates não deixou de o criticar, por exemplo,
a propósito da afetação com que o seu discípulo ia
mostrando os buracos do seu manto). A oposição às
normas concordadas levava Antístenes também a afir-
mar que a má-fama era um bem equivalente à fadiga:
evidentemente referindo-se à má-fama que tem na so-
ciedade quem se veste mal, não faz caso ao que come,
não respeita as boas maneiras e se mata a trabalhar, a
aplicação mental e o exercício ascético. Atribui-se-lhe
também a recusa nítida do prazer («mais gostaria de
ensandecer do que sentir prazer») – mas esta recusa,

89
que estaria muito distante do ensinamento de Só-
crates, na realidade devia estar temperada por outras
considerações, tal como a que refere um antologista
posterior que declara que «se devem procurar os pra-
zeres que vêm depois da fadiga, não os que vêm antes».
Isto significa que, segundo Antístenes, um pedaço de
pão devorado depois de um dia de intensos esforços
mentais e físicos daria certamente muito mais prazer.
A tradição antiga atribuiu a Antístenes a paterni-
dade da «escola cínica», mas hoje parece mais provável
que o primeiro cínico tenha sido, na realidade, Dióge-
nes de Sínope (ca. 410-325), razão pela qual existem
dúvidas de que ele efetivamente tenha encontrado
Antístenes. Em todo o caso, foi fortemente influen-
ciado por ele. Também o nome dos cínicos derivaria
da alcunha que Diógenes tinha, o «cão» (kyon em gre-
go), pelo seu estilo de vida e pelos típicos comporta-
mentos. Poder-se-ia dizer que as atitudes de desafio às
convenções comummente aceites que aparecem aqui
e ali em Antístenes se tornaram uma constante nos
comportamentos de Diógenes. Fazer em público as
necessidades fisiológicas que habitualmente se reser-
vam para a intimidade; violar as proibições alimenta-
res geralmente observadas (por exemplo, comer carne
crua); usar a mais grosseira franqueza da linguagem;
oscilar sempre entre o humor negro e a provocação;
passear coberto por um manto velho, com um cajado
e uma alforge que continha o mínimo indispensável
(segundo uma fonte antiga, nem sequer tinha a tigela
onde beber: por um certo tempo, Diógenes teria tido
consigo uma tigela, mas depois tê-la-ia deitado fora

90
quando viu um rapaz beber água da fonte na cova das
mãos): estes são os traços que caracterizam os hábitos
de vida e os comportamentos de Diógenes.
Podemos por isso perguntar-nos o que é que havia
de filosófico nestas atitudes; por detrás delas é provável
que algo de sólido realmente existisse, senão seria difí-
cil que Diógenes tivesse composto os muitos escritos
que a tradição lhe atribui (deles nada nos ficou), nem
o seu cinismo teria conseguido atacar e influenciar –
por mediação de Crates de Tebas – o fundador do es-
toicismo, Zenão, tal como muitos outros filósofos de
orientações diversas, onde é fácil encontrar ideias que
lembram Diógenes. Por detrás dos comportamentos e
da linguagem, inegavelmente um pouco teatrais, que
ele costumava ter e usar, deve ter existido a convicção da
vacuidade ou, pelo menos, da absoluta convenção das
normas aceites pela convivência comum dos cidadãos.
A esta convenção Diógenes contrapunha de bom grado
a naturalidade do comportamento animal (daqui, pro-
vavelmente lhe deriva o seu nome), mas não porque ele
recomendasse uma fuga para o embrutecimento ou para
a irracionalidade: dele se recorda, de facto, o mote que
para a vida basta simplesmente usar a razão, ou então
a corda para se enforcar. O que ele queria era chamar
a atenção para o facto de que as exigências da natureza
corpórea, que os homens partilham com os animais, são
mínimas, e que é questão sobretudo de exercício contí-
nuo saber induzir o físico e formar a mente de maneira
a que se garanta a plena autossuficiência que constitui a
premissa da virtude, da liberdade interior e, por conse-
guinte, da própria felicidade.

91
7. OS CIRENAICOS

Contemporâneo de Platão e originário de Cirene, na


África, Aristipo é considerado pela tradição antiga o fun-
dador da escola «cirenaica», cuja breve mas intensa exis-
tência, que durou até quase aos inícios do século III, está
provavelmente ligada sobretudo à atividade do seu neto,
que tinha o mesmo nome do avô e que foi também
chamado de «metrodidata» («educado pela mãe», isto
é, por Arete, filha e discípula do primeiro Aristipo). De
entre os discípulos diretos de Sócrates, Aristipo é o que
parece estar mais distante da filosofia do mestre pelo
tema central do seu pensamento, a defesa do prazer que
ele entendia como sendo o prazer momentâneo ligado
a um leve movimento dos sentidos. Por esta sua orien-
tação decididamente hedonista – segundo informações
de Xenofonte – já Sócrates o teria criticado objetando
que a vida de quem governa (o que pressupõe também
o domínio de si) é superior à de quem obedece. Aris-
tipo teria respondido que para si não buscava nem a
vida do governante, fatigante e incómoda, nem a do
súbdito, mas sim uma vida «livre», que segundo ele se
podia obter apenas se não se ligasse a nenhuma cidade,
vivendo em qualquer lugar como um estranho (pode-se
ver nesta afirmação um indício na direção do cosmo-
politismo) e procurando sempre a existência mais fácil
e imediatamente prazenteira. De facto, a tradição atri-
buiu-lhe a capacidade de obter o prazer usando sempre
no máximo as circunstâncias presentes e renunciando
ao perseguimento do gozo das coisas que não estavam
disponíveis no presente. Mais tarde os seus discípulos,

92
contemporâneos de Epicuro, começando pelo neto,
encontrar-se-iam em forte oposição ao pensamento
bastante mais refinado deste filósofo, que valorizava o
prazer estável mais do que o prazer em movimento, o
prazer da alma mais do que o físico e a ausência de dor
como o máximo do próprio prazer.
A alta valorização do prazer que caracteriza o pen-
samento de Aristipo não seria por si mesma de todo
alheia ao socratismo; de facto, Sócrates não recusava o
prazer como tal, aliás estava convencido de que uma
vida verdadeiramente boa e feliz só pudesse ser su-
mamente prazenteira; mas decerto não limitava o seu
conceito de prazer bom ao prazer físico e presente. O
aspeto mais claramente socrático que permanece em
Aristipo é a ideia de que também o prazer nunca deve
comportar a recusa do controle racional das situações
nem do autodomínio. Neste sentido, é típica a respos-
ta que ele deu a quem o criticava por estar sempre em
companhia de um certo tipo de mulher: «Sou eu que
possuo, não sou possuído».
Aos cirenaicos atribui-se também uma gnosiolo-
gia de orientação cética, fundada na convicção de que
tudo o que podemos perceber são apenas as nossas
afeções. Portanto, podemos dizer que «nos tornamos
brancos», ou «embranquecemos», mas não afirmar
que haja objetivamente diante de nós uma coisa que é
ela mesma branca e que seria ela a causa do nosso «em-
branquecimento». Logo, desde Aristipo o velho que os
cirenaicos desvalorizaram as ciências e em particular
a matemática, até porque nela, diziam, não há lugar
para a investigação do bem. Parece acertado ver nestas

93
convicções a propósito do conhecimento também o
fundamento teórico do hedonismo cirenaico: se tudo
o que podemos dizer como seguramente existente é
apenas o conteúdo das nossas experiências presentes,
então só as afeções momentâneas podem ser o guia
que nos diz o que para nós é positivo. E todos, no pre-
sente, mostram procurar o prazer como bem.

8. A «ESCOLA» DE MÉGARA

Sabemos muito pouco do pensamento de Euclides


de Mégara, a quem se deve provavelmente a fundação
de uma escola de filosofia («megárica») que chegou até
aos inícios da idade helenista. Euclides foi um discí-
pulo direto de Sócrates e também Platão privou com
ele por algum tempo depois do processo e morte do
mestre. O dado mais seguro que dele possuímos é a
proposição de que o bem é uno, embora seja chama-
do com muitos nomes (por vezes sabedoria, por vezes
inteligência, deus, etc.); esta convicção liga-se prova-
velmente à tese socrática da unidade das virtudes na
sabedoria. Mais do que conhecer o pensamento de
Euclides, o que conhecemos é o pensamento de al-
guns seguidores e discípulos seus, onde parece vingar
um forte interesse pela linguagem, pela dialética e pela
lógica. Atribui-se ao discípulo de Euclides, Eubúli-
des, uma série de problemas lógicos paradoxais, tais
como o argumento do «mentiroso» (se dizes que es-
tás a mentir, mentes ou dizes a verdade? qualquer que
seja a resposta dada, a conclusão é paradoxal) e, mais
importante ainda pela influência que teria tido nas

94
discussões entre estoicos e académicos, o argumento
do «sorites», cujo nome deriva de «porção» (soros): um
grão de trigo não é uma porção de trigo, nem sequer
dois ou três grãos; qual é o número obtido grão a grão
a que eu posso chamar de «porção»? Ou então o con-
trário, tendo um monte de grãos e tirando um à vez,
com que número de grãos direi que a porção deixou
de existir? Em ambos os casos é impossível qualificar
a «porção».
Outro filósofo megárico, mais ou menos contem-
porâneo de Aristóteles, Diodoro Crono, foi autor de
um célebre argumento chamado «o dominador» (aliás,
cuja reconstrução é duvidosa) do qual devia resultar
que possível é somente o que é, ou o que será – por ou-
tras palavras, que o possível coincide com o necessário.

95
3.

PLATÃO

1. VIDA E OBRA

P latão, cujo verdadeiro nome era Aristócles, deve a


alcunha pela qual é universalmente conhecido à
amplitude do estilo, ou então à corpulência (de fac-
to, a palavra grega platys significa «largo», «amplo»).
Nasceu em Atenas, em 428/7 de uma das famílias
mais prestigiadas e importantes da cidade, podendo
gabar-se de origens que remontavam, por parte do
pai, a Codros, último rei lendário de Atenas e, por
parte de mãe, a Sólon, o grande legislador do começo
do século VI. O tio Crítias, irmão da mãe Perictione,
foi um homem político importante e participou no
regime oligárquico dos Trinta Tiranos, que banhou
de sangue Atenas entre 404 e 403. Por estas poucas
informações pode-se compreender quanto o interes-
se pela vida política estivesse de certo modo escrito
no destino pessoal de Platão e como só um evento
chocante pudesse desviá-lo da participação ativa no
destino da cidade.
Este evento traumático foi a morte de Sócrates, o
seu mestre, considerado por Platão o melhor de to-
dos os homens. Como o autor da célebre Carta VII
– talvez, mas não necessariamente, Platão – explica, o
fracasso simultâneo do regime oligárquico, que levou
à violência e crueldade do regime dos Trinta Tiranos,
e do regime democrático, ao qual se deve a respon-
sabilidade do processo e da condenação à morte de
Sócrates, geraram nele a consciência da necessidade de
uma refundação radical da cidade. O resultado negati-
vo da experiência ateniense iniciada com a Guerra do
Peloponeso (429-404), por sua vez herdeira da longa
fase de «democracia guiada» por Péricles, levou-o a
distanciar-se da vida política da sua cidade, tentando
aprofundar as razões deste fracasso e procurando lan-
çar as bases teóricas para uma nova forma de convi-
vência civil.
A fundação da Academia, em torno de 388/7, pode
considerar-se o instrumento pelo qual Platão acredi-
tou poder dar início ao seu projeto de regeneração
ético-política de Atenas. Tratava-se de uma instituição
que compreendia edifícios situados nas vizinhanças de
um bosque dedicado a Academo (uma espécie de he-
rói local) e que devia unir em si as características da
fundação religioso-cultual, da organização filosófico-
-científica e da heteria política finalizada à formação
da classe dirigente, quer dizer, à educação dos céle-
bres filósofos-reis. Estas três características – mítico-
-religiosa, filosófico-científica, ético-política – nunca

98
deixaram de representar os pontos de referência do
pensamento platónico e continuaram a interagir, de
forma e modos sempre diferentes, ao longo de toda a
atividade do filósofo ateniense.
Com a morte de Sócrates, Platão, juntamente com
outros discípulos do mestre, deixou Atenas por alguns
anos, durante os quais passou por Mégara, pátria de
Euclides, e talvez também por Cirene, onde se encon-
trava o matemático Teodoro. É menos provável, ape-
sar das indicações das fontes antigas o afirmarem, que
tenha viajado até ao Egito. No anos noventa do século
IV Platão pode ter estado na Sicília, hóspede de algu-
mas comunidades pitagóricas da Magna Grécia, tais
como a de Arquitas em Tarento. No período imedia-
tamente seguinte (ou talvez imediatamente anterior)
à fundação da Academia, Platão realizou a primeira
viagem certa à Sicília, mais precisamente a Siracusa.
Ali governava o tirano Dionísio I, por quem Platão se
deixou convencer a visitar a importante cidade e en-
sinar as suas teorias filosófico-políticas. Todavia, o ti-
rano mostrou-se totalmente falho de paixão autêntica
pela filosofia; além do mais os excessos da vida de cor-
te desgostaram Platão a ponto de o fazer abandonar a
ilha para regressar a Atenas e dedicar-se inteiramente à
escola que tinha acabado de fundar. Com a morte de
Dionísio I, ao qual sucedeu o filho Dionísio II, Pla-
tão foi convencido por Díon, um discípulo seu ligado
à corte siracusana, a realizar uma segunda viagem à
Sicília, por volta de 367/6. Esta estadia também não
teve resultados frutuosos, aliás Platão viu-se apanhado
nas lutas internas dos círculos de poder da cidade, sem

99
conseguir realizar aquela conversão à filosofia na qual
depositara todas as suas esperanças de regeneração
da política. Só a intervenção do pitagórico Arquitas
lhe permitiu abandonar Siracusa e regressar a Atenas.
Poucos anos depois, porém – testemunho de quão im-
portante fosse o seu empenhamento em pôr concreta-
mente em ato na vida política os princípios políticos
formulados nas suas obras e no âmbito do ensinamen-
to académico –, Platão realizou, em 361, a terceira via-
gem a Siracusa, destinada também a revelar-se inútil.
Em torno a 357, Díon, com a ajuda de membros de
relevo da Academia, organizou uma expedição militar
à ilha e conseguiu efetivamente conquistar o poder a
Siracusa, mas demonstrou-se de todo inadequado para
o governo, acabando por ser vítima de uma conjura
organizada por Calipo, também ele discípulo de Pla-
tão na escola de Atenas.
O filósofo passou os últimos treze anos da sua vida
em Atenas, ocupado quer na direção da instituição
fundada por ele, quer na redação de algumas das suas
obras mais amplas por dimensão e mais complexas por
empenho filosófico. Morreu em 348/7, com oitenta
anos de idade.
O corpus dos escritos platónicos compreende trinta
e seis títulos: trinta e quatro diálogos, a Apologia de
Sócrates e treze Cartas, das quais doze são certamente
apócrifas e só uma, a famosa Carta VII é considerada
autêntica pelo menos por uma parte da crítica. Junto
destas obras há outras que já os antigos reputaram es-
púrias, como o Demódoco, o Sísifo e o Axíoco. As trinta
e seis obras consideradas autênticas pela tradição che-

100
garam-nos dispostas em nove tetralogias, isto é, em
grupos de quatro títulos. A sistematização definitiva
do ordenamento tetralógico remonta a Trasilo (séc. I
d.C.), astrónomo da corte do imperador Tibério, mas
é provável que, pelo menos de forma incoativa, o há-
bito de reunir vários diálogos, afins por conteúdo ou
forma, se possa retrodatar de alguns séculos, talvez até
às décadas sucessivas à morte de Platão. Dos trinta e
seis títulos que formam o corpus platonicum, alguns
são certamente apócrifos, como as já citadas Cartas
(com a possível exceção da VII) e o Epinómide, de au-
toria de Filipe de Opunto, secretário de Platão e astró-
nomo da Academia. No século XIX, a filologia híper-
-criticista anglo-saxónica chegou a pôr em dúvida a
autenticidade da maior parte dos diálogos. Durante
o século passado, pelo contrário, consolidou-se uma
atitude decididamente menos intransigente e hoje a
classificação de diálogo espúrio parece estar limitada
a cinco ou seis títulos, entre os quais se assinalam os
Amantes, o Teages, o Alcibíades II e o Minos, enquan-
to que o Hiparco e o Alcibíades I, além da Carta VII,
permanecem objeto de juízos contrastantes entre os
estudiosos.
Há um problema importante que cada leitor dos
diálogos deve de certa forma ter presente, isto é, a sua
datação. Trata-se de uma questão em torno da qual os
estudiosos discordam há mais de um século e que se
tem tentado resolver recorrendo a metodologias mui-
to diversas entre si. Ao tradicional critério de datação
centrado na figura de Sócrates, cuja predominância
em certos diálogos era garantia da redação do Platão

101
jovem e do conteúdo socrático dos mesmos (enquanto
que os diálogos tardios estariam marcados por uma re-
dução da presença de Sócrates e da sua herança), acres-
centou-se no final do século XIX o método estilomé-
trico, que pretende dispor em sequência os diálogos
com base na sua proximidade estilística às Leis que são
certamente a última obra de Platão. Nas últimas déca-
das parece ter-se consolidado uma classificação geral à
qual se chegou também através do uso contextual de
critérios de conteúdo, formais e estilístico-linguísticos.
Embora não forneça uma sequência certa dos diálo-
gos, esta parece todavia ser capaz de classificar os títu-
los por grupos, distribuindo-os ao longo do percurso
biográfico do seu autor. É provável que Platão tenha
começado a compor as suas obras depois da morte de
Sócrates, a partir da segunda metade dos anos noventa
do século IV. A este período remontam os diálogos
ditos «aporéticos» ou «socráticos», assim chamados
porque não parecem avançar soluções definitivas para
as questões que levantam e porque Sócrates desempe-
nha um papel central neles. Deveriam fazer parte deste
grupo o Laques, o Cármides, o Êutifron, o Lísis, o Íon,
o Trasímaco, isto é, o livro I da República, a Apologia,
o Críton e o Protágoras; à última parte deste período
deveriam pertencer os dois Hípias (maior e menor), o
Górgias, o Eutidemo e o Ménon. A fundação da Aca-
demia (388/7) marcou certamente uma passagem de-
cisiva na vida e na produção platónicas. A estes anos
pertencem os grandes diálogos do período central,
compostos entre 388 e 368. Junto da República (livros
II-X) temos o Fédon, o Crátilo, o Banquete e o Fedro; o

102
Teeteto e o Parménides assinalam a passagem do segun-
do ao terceiro grupo e foram compostos, pelo menos
no esboço originário, por volta dos anos sessenta. A
última fase da produção literária de Platão, sucessiva
ao regresso da terceira viagem à Sicília, é caracteriza-
da pela composição dos grandes diálogos dialéticos,
como o Sofista, o Político e o Filebo, pelo esboço do
Timeu e do Crítias e pela composição dos doze livros
das Leis, que devem ser consideradas, com base num
testemunho importante de Diógenes Laércio, a última
obra do filósofo, possivelmente até inacabada.
A validade desta classificação, que, como dissemos,
hoje é largamente aceite, deve ser unida à presunção,
também esta geralmente aceite, de que os diálogos fos-
sem objeto de contínua revisão e reorganização por
parte do seu autor. O conceito de «publicação» no
caso de uma obra antiga, sobretudo no dos diálogos
de Platão, é sem dúvida menos rígido do que no caso
de um livro moderno. Portanto, é provável que os es-
critos platónicos, assim que começaram a circular em
número exíguo de exemplares, regressassem às mãos
do seu autor para serem reelaborados e revistos, para
não dizer até reescritos.

2. O DIÁLOGO: ESCRITA E TEATRO DA FILOSOFIA

Não é um risco afirmar que com Platão a filoso-


fia entra definitivamente no seu terreno. Nas refle-
xões dos pensadores anteriores não faltavam, como
se viu, numerosos indicadores de relevância filosófica.
Mas só com Platão a apresentação dos problemas e as

103
modalidades de solução, tanto do ponto de vista da
linguagem quanto do do método, ganham os relevos
e o andamento do discurso propriamente filosófico.
Por outras palavras, só com Platão a filosofia encontra
o seu espaço, a sua linguagem, os seus métodos. Nos
diálogos platónicos constrói-se a imagem do «fazer»
filosófico visto como uma atividade diferente de ou-
tras formas de saber e de conhecimento. A filosofia
adquire no interior do corpus platónico as característi-
cas de uma modalidade específica de pensamento que
a acompanharão durante a sua milenária atividade,
justificando o célebre juízo de Alfred Whitehead, que
chegará a considerar a inteira história do pensamento
ocidental como uma série de notas a Platão.
O dado fundamental do qual deve partir toda a
reflexão em torno da filosofia platónica consiste na
consideração do género literário ao qual Platão con-
fiou a sua mensagem: ele escreveu, excetuando a Apo-
logia, só diálogos; ou seja, não são poemas sapienciais
(à maneira de Parménides) nem tratados (à maneira
de Anaxágoras e depois de Aristóteles). Trata-se evi-
dentemente de uma escolha motivada por razões bem
determinadas que investem o sentido mesmo da sua
ideia de filosofia. Mais do que uma vez, nos diálogos,
emerge de maneira nítida a contraposição entre apren-
dizagem filosófica e aquisição de formas de saber de
natureza técnica, como as artes práticas e até a retórica.
No livro VII da República, Platão defende que a trans-
missão do saber e a autêntica educação não são equi-
paráveis ao ato de dar a vista a um cego que nunca viu;
e no Banquete diz-se que o processo de aprendizagem

104
da filosofia nada tem em comum com o enchimento
de um vaso vazio através de um vaso cheio, algo que
acontece em muitas outras técnicas, entre as quais a
retórica. Nestes últimos casos a transmissão do saber
dá-se de maneira extrínseca e consiste na passagem do
mestre ao discípulo de uma série de informações e de
conhecimentos. Completamente diversa é a situação
do saber filosófico, que não é transmitido extrinseca-
mente, mas sim gerado na alma do discípulo por meio
de um processo complexo de interrogações levado a
cabo pelo mestre, quer dizer, pelo filósofo. Trata-se de
um percurso que começa com a escolha de uma alma
que seja verdadeiramente idónea ao discurso filosófi-
co; e continua com a introdução nela de raciocínios
que lhe são afins, quer dizer, que são adequados às suas
capacidades de compreensão; o fim de um processo
deste género consiste na conversão da alma (periagoge
tes psyches) à filosofia. Como se vê, o conhecimento
filosófico é concebido como um movimento do pen-
samento onde tanto o mestre, isto é, o filósofo, quanto
o discípulo desempenham um papel ativo. Com base
em considerações semelhantes compreende-se perfei-
tamente porque o diálogo constitui o instrumento li-
terário mais adequado para «encenar» este processo de
aprendizagem, que exige uma função ativa de ambas
as partes.
Nos escritos platónicos representa-se, de forma
mais ou menos mimética, o processo de iniciação à
filosofia das várias personagens que tomam parte no
diálogo. A situação mais comum, embora não a úni-
ca, vê Sócrates empenhado na refutação (elenchos) das

105
opiniões defendidas pelas figuras que se retêm peri-
tas num determinado campo, sem realmente o serem.
Com efeito, a purificação das falsas opiniões, e a con-
sequente assunção de uma certa consciência da pró-
pria ignorância, representam, aos olhos de Platão, um
primeiro passo para o conhecimento. Os protagonistas
dos diálogos são quase sempre personagens históricas,
falecidos umas décadas antes, cuja recordação devia
certamente suscitar o interesse do leitor. Trata-se de
sofistas, como Protágoras, Górgias ou Hípias, de gene-
rais e homens políticos, como Alcibíades e Hermócra-
tes, de pensadores do passado recente, como o grande
Parménides, de cientistas, como o matemático Teeteto
ou o médico Erixímaco e também um comediógrafo
popularíssimo, como Aristófanes. Ao apresentar figu-
ras facilmente reconhecíveis ao seu leitor, Platão quis
quase certamente produzir nele uma espécie de iden-
tificação com as diversas personagens que iam entran-
do em cena, com o objetivo de gerar também neles a
sensação de inadequação das suas opiniões e depois
aquele processo de iniciação à filosofia de que se falou.
Neste sentido, parece poder-se dizer que todo o corpus
dialógico não quer ser apenas a imagem de um percur-
so de aprendizagem para as figuras que o povoam, mas
pretende constituir ele mesmo, na sua totalidade, um
verdadeiro convite ao pensamento filosófico.
Relativamente ao que se disse até aqui, convém ter
em consideração dois elementos, de certo modo para-
doxais. O primeiro consiste na existência mesma de
um corpus escrito platónico; o segundo no facto de o
autor dos diálogos, isto é, Platão, nunca entrar dire-

106
tamente em cena, com a consequência de fazer surgir
o problema de saber quais as teorias, de entre aquelas
expostas nos seus escritos, que podemos efetivamente
atribuir-lhe. Falamos de duas questões intimamen-
te ligadas entre si, que convém enfrentar de maneira
contextual. O paradoxo da existência de um corpus de
obras escritas compostas por Platão depende da pre-
sença, dentro deste corpus, em alguns lugares cruciais,
de uma crítica acesa às capacidades comunicativas, pe-
dagógicas e cognoscitivas da escrita. De facto, Platão
parece acusar a escrita, quer dizer, a obra fixada em ca-
rateres escritos, de ser inadequada em relação à tarefa
de transmitir um saber vivo, capaz de certo modo de
gerar-se por si mesmo na alma do discípulo. O meio
escrito, por sua natureza, é de todo incapaz de criar
com o discente, isto é, com o leitor, uma relação viva
que se pode remodelar constantemente, algo que, pelo
contrário, o discurso oral é capaz de fazer. No Fedro,
Platão, por boca de Sócrates, acusa a palavra escrita de
se repetir indefinidamente, de dizer sempre a mesma
coisa, de não ser capaz de calibrar a mensagem (con-
teúdo e modalidades expressivas) às características do
auditório. Um texto escrito corre constantemente o
perigo de ser mal interpretado porque não pode so-
correr-se da presença do «pai», a saber, do autor. Além
disso, precisamente pela sua natureza a obra escrita
pode acabar por cair em mãos de indivíduos de todo
inadequados para a filosofia, com riscos incalculáveis
para o prestígio desta. Na Carta VII diz-se que a lin-
guagem – e junto à linguagem escrita dever-se-ia men-
cionar também a oral – é inadequada em relação ao

107
conhecimento dos princípios supremos da realidade,
que representam uma esfera próxima ao indizível.
A falta de confiança platónica na escrita deve ser
entendida também em relação à fase de passagem en-
tre cultura oral e cultura escrita que o mundo grego
viveu em finais do século V. Certamente o filósofo ma-
nifesta o seu apoio a um modo direto de transmissão
do saber, um modo fundado na relação insubstituível
entre mestre e discípulo. Neste sentido, os diálogos,
enquanto obras «escritas», podem ser investidos pela
crítica geral dirigida à escrita. Todavia, é igualmente
verdade que eles, muito mais do que um manual disci-
plinar ou do que um tratado, são capazes de produzir
de forma mimética a vivacidade do discurso oral e,
como se tentou explicar acima, podem gerar no leitor
algo de semelhante ao processo de conversão à filo-
sofia. A preferência de Platão pela oralidade dialética
induziu-o provavelmente a aprofundar determinadas
temáticas, dotadas de uma particular densidade teóri-
ca, durante as suas lições académicas. Explica-se assim
a presença de testemunhos na tradição antiga, come-
çando por Aristóteles, onde se atribuem a Platão po-
sições ou autênticas doutrinas que não se encontram
formuladas expressis verbis nos diálogos. Trata-se das
famosas «doutrinas não-escritas» (agrapha dogmata),
que consistem essencialmente numa teoria dos prin-
cípios (uno e díade indefinida) e numa conceção, aliás
bastante misteriosa, dos números ideais ou das ideias-
-números. Menções ou alusões a doutrinas semelhan-
tes encontram-se espalhadas pelos diálogos, sobretu-
do a partir da República; contudo estes indícios não

108
parecem ir na direção do sistema ontológico hierár-
quico-dedutivo que emerge de boa parte dos nossos
testemunhos. Na verdade, as doutrinas não-escritas,
cuja existência já não parece dúbia, deviam constituir
o desenvolvimento, mais ou menos experimental, de
posições efetivamente contidas nos diálogos, sem por
isso constituírem o núcleo de um saber exotérico e
inacessível. O lugar privilegiado onde é preciso pro-
curar a filosofia platónica permanece o diálogo escrito,
embora os testemunhos das doutrinas não-escritas, em
modo especial as de Aristóteles, devam ser tomadas
em devida consideração e possam enriquecer o nosso
conhecimento do pensamento de Platão.
O segundo paradoxo a que se fez referência acima
consiste na ausência de Platão nas suas obras. Dado
que nos diálogos estão expostas e argumentadas po-
sições muito diferentes entre si, parece inevitável per-
guntar-se quais são as conceções que correspondem ao
ponto de vista do autor. A resposta tradicional, que via
Sócrates como «porta-voz» da filosofia platónica, hoje
parece ter deixado de ser sustentável. À constatação
de que a presença (e a importância) de Sócrates, que
é máxima nos diálogos da juventude (não por acaso
definidos «socráticos»), se vai progressivamente esva-
necendo nas obras sucessivas, pelo menos a partir do
Parménides, até desaparecer de todo nas Leis, deve-se
acrescentar que as conceções atribuídas por Platão ao
seu mestre são muito diferentes de um diálogo para o
outro, para não dizer contraditórias. Todavia, não se
pode sequer defender que Platão tivesse dado a Sócra-
tes apenas as teses que este historicamente defendeu,

109
e confiado a outras personagens (por exemplo, Parméni-
des, o Estrangeiro de Eleia, ou Timeu) a tarefa de expor
as doutrinas que ele mesmo partilhava. Em boa verdade,
como as pesquisas levadas a cabo nestas últimas décadas
sugeriram, a filosofia de Platão não coincide com a de ne-
nhuma das personagens dos diálogos, mas emerge contex-
tualmente a partir do confronto entre elas. Naturalmente,
isto não significa que todas as personagens (e, por sua vez,
as teses por elas defendidas) devam ser postas ao mesmo
nível. A Sócrates – mas também ao Estrangeiro de Eleia, a
Timeu e talvez a qualquer outra personagem – Platão dá
uma certa supremacia, que é ao mesmo tempo teorética e
ética. Todavia, nenhum deles pode considerar-se in toto o
único porta-voz da filosofia platónica.
O que acabámos de dizer não deve dar a impressão de
que os diálogos platónicos contenham uma posição filo-
soficamente cética. Platão estava plenamente convencido
da existência da verdade e da possibilidade de acesso a ela
por parte do ser humano. O facto é que as teses filosóficas
de Platão, isto é, os conteúdos onde se manifesta a sua
verdade, são raramente formuladas de modo direto den-
tro dos diálogos, porém constituem muitas vezes o seu
pano de fundo teorético, por vezes mencionado de forma
mais ou menos explícita, mas quase nunca declarado as-
sertivamente. Nos próximos parágrafos tentaremos isolar,
naturalmente dentro dos limites do possível, os conteúdos
desta verdade, quer dizer, os núcleos conceptuais domi-
nantes da filosofia platónica.
Em relação a esta verdade o diálogo, que em Platão
é quer direto ou dramático (por exemplo, Protágoras,
Banquete, Fédon e República) quer narrado (p.e. Crá-

110
tilo, Sofista, Político, Filebo), tem uma função purificadora
(das falsas opiniões), protréptica (de conversão à filosofia)
e ‘hipomnemática’, isto é, de suporte à memória. Neste
sentido compreende-se também a declaração contida no
livro VII das Leis, em que o diálogo filosófico é expres-
samente considerado a «tragédia mais verdadeira», isto é,
a forma de comunicação literária (e mimética) capaz de
substituir, na cidade reformada e refundada, a representa-
ção trágica que representava a essência da «cidade doente»,
ou seja, a Atenas das últimas décadas do século V.

3. A POLÉMICA CONTRA A SOFÍSTICA E A


NATUREZA DAS VIRTUDES

A herança socrática, em torno da qual se organiza todo


o percurso intelectual de Platão, parece particularmente
significativa no campo da ética e da teoria moral. Os di-
álogos da juventude, definidos precisamente «socráticos»,
representam o documento que melhor exprime a natureza
e as características desta dívida, tanto que muitas vezes os
estudiosos se acharam em flagrante embaraço face ao pro-
blema de decidir se eles contêm o pensamento do mestre
ou o do grande discípulo.
Pode-se tranquilamente evitar dar uma resposta direta
a este quesito, basta que se seja capaz de indicar com preci-
são quais foram os motivos socráticos que Platão enxertou
na sua reflexão ético-moral. Deste modo, também se de-
veria ser capaz de apreender os elementos de originalidade
que marcaram a separação, pelo menos parcial, entre
Platão e o seu mestre.

111
O motivo à volta do qual Platão construiu toda a
imagem de Sócrates é indubitavelmente representado
pela polémica contra a sofística. No capítulo anterior
viu-se que os Sofistas souberam retalhar um papel de
primazia na cultura ateniense do século V, agitada por
uma crise profunda dos valores tradicionais. A moral
e a ética de derivação arcaica, que por séculos repre-
sentaram o sistema de valores privados e públicos do
mundo grego, conheceram um declínio aparentemen-
te irreversível, causado também pelo período das guer-
ras e dos contactos com as outras civilizações, por sua
vez portadoras de valores diversos e até alternativos.
Os sofistas, por um lado, chegaram a teorizar formas,
também radicais, de relativismo no plano ético e mo-
ral; por outro lado, forneceram os instrumentos, so-
bretudo de natureza retórico-linguística, aptos a gerir
e, dentro de certos limites, a superar esta crise. Eles
auto-propuseram-se como os únicos depositários da
«virtude política» (arete politike), isto é, do conjunto
dos conhecimentos que teriam permitido que os ho-
mens «falassem bem», que «transformassem o discurso
fraco em discurso forte», dominando assim as assem-
bleias e adquirindo o direito, através da persuasão, de
deter o poder (cf. cap. II, § 1).
À pretensão avançada por muitos sofistas de
ensinarem a arte política (techne politike) e, por con-
seguinte, de se proporem como mestres de virtude, o
Sócrates platónico contrapõe dois tipos de argumen-
tação. O primeiro parte da constatação de que os
Sofistas possuem apenas um saber aparente sobre as
coisas de que falam e pretendem ensinar. Pelo método

112
refutatório, Sócrates demonstra que eles, na verdade,
não conhecem a essência (ousia) das virtudes, porque
não são capazes de fornecer de cada uma delas uma
definição universalmente válida, isto é, dotada de uma
validade não limitada a contextos situacionais. Os diá-
logos socráticos, chamados também de «definitórios»
(porque versam sobre o problema da definição de um
conceito, quase sempre de natureza moral), encenam
as tentativas dos interlocutores de Sócrates de forne-
cerem descrições gerais de virtudes, como a piedade
religiosa (Êutifron), a justiça (República, I), a coragem
(Laques), a temperança (Cármides), ou seja, daquele
conjunto de valores à volta dos quais se organiza a au-
têntica virtude política. Sócrates refuta as várias res-
postas demonstrando a sua unilateralidade, a sua não
universalidade e, em alguns casos, também a sua falta
de consequência lógica.
O segundo tipo de argumentação é mais geral e
concerne à convicção, formulada por exemplo por
Protágoras, de que a virtude política está presente, em-
bora em forma incoativa, em todos os cidadãos. No
esplêndido mito que Platão atribui ao sofista no diá-
logo homónimo (cap. II, § 2), Protágoras chega a de-
fender que a virtude política, soma de justiça (dike) e
respeito recíproco (aidos), foi dada a todos os homens
por Zeus, quando notou que as capacidades técnicas
não eram suficientes para garantir a sobrevivência da
humanidade. Num contexto em que todos os homens
são naturalmente dotados de virtude política insere-
-se a tarefa do sofista, que consiste no enriquecimento
desta bagagem inicial, quer dizer, na transformação de

113
uma dotação natural genérica numa capacidade per-
feitamente realizada. A resposta platónica sobre este
ponto só podia ser radical. Ela prevê duas estratégias:
a disjunção de justiça (que pode pertencer distribu-
tivamente a todos os cidadãos) e virtude política, e a
atribuição desta, entendida socraticamente em termos
de saber, a um grupo limitado de indivíduos em posse
de qualidades intelectuais e morais absolutamente ex-
cecionais (cf. §§ 4-5).
O Sócrates dos diálogos platónicos não se cansa
de repetir que a arte política não pode ser confinada
à capacidade de gerir as diferentes situações concre-
tas com a ajuda da retórica (como reputava Isócrates),
mas deve orientar-se para um horizonte normativo
universal e, contextualmente, deve ser capaz de produ-
zir um saber controlável e de certo modo reproduzível.
O horizonte normativo é constituído, como se verá
mais à frente (§ 5), pelo mundo das ideias, paradig-
mas universais e invariantes da ação ético-moral. Pelo
contrário, o modelo do saber técnico, constantemente
presente no pano de fundo do confronto entre Sócra-
tes e os seus interlocutores, age com a convicção de
que a técnica política, isto é, a virtude humana por ex-
celência, deve exibir um método de certa forma con-
trolável e reproduzível. A este nível deve-se também a
polémica contra as pretensões cognoscitivas avançadas
pela retórica, de que se fala no Górgias. Para Platão a
retórica não é uma verdadeira techne, ou seja, um saber
objetivo e controlável, mas sim uma empeiria, quer di-
zer, uma prática ligada de certa forma à experiência.
O bem-estar que ela pode produzir na alma é só apa-

114
rente e exterior precisamente porque ela, ao contrário
da verdadeira arte política, não possui o background
cognoscitivo fundamental para merecer a qualificação
de techne.
Contudo, o modelo técnico não é de todo ade-
quado para descrever a natureza da virtude política.
Contrariamente a uma techne qualquer, que se pode
mostrar indiferente ao tipo de utilização que dela se
faz (o marujo experiente não só pode enganar-se pro-
positadamente na rota, como pode pôr-se ao serviço
de finalidades malvadas), a posse da virtude política
comporta necessariamente a referência à finalidade
ética do agir. Com a convicção de que quem está ver-
dadeiramente na posse da virtude política só pode agir
tendo em mira o bem, percebe-se um claro eco da tese
socrática segundo a qual quem conhece o bem tem de
realizá-lo e a ação má é apenas o fruto de um deficit
cognoscitivo.
A influência que o paradigma técnico exerce na
construção da ética platónica merece ser considerada
com maior atenção. Antes de tudo, deve observar-se
que também a arte política, conformemente ao mode-
lo técnico, prevê um polo subjetivo e um objetivo. O
polo subjetivo, quer dizer, o referente de cada discurso
acerca da virtude, é representado pela alma. Não se
trata, todavia, da alma unitária e inteiramente racional
descrita por Sócrates, mas de uma entidade articulada
e complexa, percorrida por tensões e conflitos (cf. § 4).
O conteúdo objetivo da técnica política deve ser pro-
curado, mais uma vez segundo o ensinamento socráti-
co, no conhecimento do bem e do mal. Porém, poder-

115
-se-ia também dizer, sempre com base no confronto
com uma techne, que a alma é para a arte política
aquilo que o corpo é para a medicina: o objeto sobre
o qual se deve produzir uma modificação positiva que
o transforme numa entidade boa, quer dizer, como se
verá a seguir, «justa» (§ 4). A analogia entre alma e
corpo permite que Platão, ainda no Górgias, lance o
ataque decisivo à retórica, que avançava pretensões de
ser o único saber utilizável em âmbito político. Se a
arte política é para a alma aquilo que a medicina é para
o corpo, isto é, uma técnica na posse de um conheci-
mento científico do seu objeto, a retórica representa
para a alma aquilo que a culinária é para o corpo, algo
semelhante à adulação (kolakeia), que cria um bem-
-estar aparente e exterior, na realidade, promotor de
danos incalculáveis: o retor não é um médico da alma,
mas um cozinheiro ou pasteleiro.
No Cármides – um diálogo que, como todos os
diálogos da juventude, apresenta um resultado formal-
mente aporético (isto é, sem uma conclusão) – pare-
cem delinear-se os contornos do que Platão entende
por virtude política. Sócrates e os seus interlocutores
propõem-se oferecer uma definição precisa do termo
sophrosyne, algo de muito semelhante à sabedoria prá-
tica; durante o diálogo dão-se três respostas principais:
a sophrosyne seria a) conhecimento de si; b) ciência de
si mesma e das outras ciências; c) conhecimento do
bem e do mal. Nenhuma destas três definições supe-
ra incólume o exame da refutação socrática. Todavia,
elas são retomadas e aprofundadas nos outros diálogos
platónicos e no conjunto parecem indicar os confins

116
conceptuais onde pode emergir uma compreensão
correta da natureza da virtude. Esta tem certamente a
ver com a alma, quer dizer, com o autoconhecimento,
segundo o mote délfico, amplamente reutilizado por
Sócrates. Além do mais, a virtude política relaciona-se
com as outras ciências por ser a suprema técnica de
uso, quer dizer, como um saber que é capaz de utilizar
corretamente as aquisições das outras técnicas que, de
certo modo, ela também deve conhecer (este é, por
exemplo, o significado da dialética no Político). Por
fim, na sabedoria prática revela-se implícita uma re-
ferência ao conhecimento do bem e do mal, pensados
como conteúdo objetivo em relação ao qual é preciso
determinar a direção do agir. Parece então que se pode
concluir que para Platão o terreno de ação, isto é, a
dimensão ética, se encontra na interseção entre alma
(conhecimento de si), utilidade (suprema técnica de
uso) e conhecimento do bem.
Até aqui a nossa reconstrução, largamente depen-
dente dos diálogos socráticos, ficou confinada aos as-
petos formais da reflexão platónica. Antes de enfrentar
mais de perto os conteúdos desta, é oportuno gastar
algumas palavras sobre o conceito à volta do qual gira
todo o pensamento ético-moral de Platão, isto é, sobre
a noção de virtude (arete). Contrariamente ao nosso
termo virtude, que está conotado essencialmente em
sentido moral, o vocábulo grego arete implica também
uma referência à dimensão prestativa, quer dizer, ao
tema da capacidade de agir e fazer algo. A arete de um
ente consiste na sua função, ou melhor, na capacidade
de realizar essa função do melhor modo. Se a virtu-

117
de de uma faca reside na capacidade de cortar, a da
alma deve ser buscada na sua capacidade de alcançar o
fim do ser humano, a saber, a felicidade (eudaimonia).
Logo, assim como uma faca é «boa» quando realiza
a sua virtude, do mesmo modo uma alma será «boa»
quando desempenhar inteiramente a sua função, per-
mitindo ao ser humano que seja verdadeiramente fe-
liz. Em mais do que uma vez Platão compara a condi-
ção da alma à do corpo, explicando que, assim como
o corpo realiza plenamente a sua função só quando é
saudável, também a alma o faz quando se encontra
numa situação de perfeita saúde, que corresponde à
justiça, isto é, ao equilíbrio harmonioso das suas par-
tes (cf. § 4).
Com a introdução do tema da justiça (dikaiosyne)
entrámos no coração da ética platónica. Todos os pro-
blemas deixados em aberto nos diálogos da juventude,
embora do ponto de vista da explicitação dos conteú-
dos, encontram na República, isto é, na obra especifi-
camente dedicada à questão da justiça, uma resposta
satisfatória, até porque esta é dotada de uma extraordi-
nária consistência teórica. Convém desde já observar
que assim que Platão orienta o tratamento do sentido
do agir individual em direção do tema da justiça – que
é tradicionalmente uma virtude de natureza política
–, ele se desmarca de certo modo da sistematização
teórica do seu mestre, acusando-o, mesmo que de for-
ma implícita, de ter uma atitude individualista (a ideia
do sábio isolado), destinada irremediavelmente ao fra-
casso. Aos olhos de Platão, ao contrário de aos olhos
de Sócrates, a felicidade individual, com tudo o que a

118
determina, revela-se estreitamente ligada, até chegar
a mostrar-se dependente, à dimensão comunitária,
isto é, à vida associada: a ética (a vida boa) realiza-se
somente pela política (pela vida junto com os outros
homens).

4. O INDIVÍDUO E A COMUNIDADE

Antes de apresentar amplamente a construção teó-


rica à qual confia a tarefa de ligar de maneira orgânica
e definitiva os temas e problemas que serviam de pano
de fundo aos diálogos socráticos (a alma, a virtude, o
bem, a felicidade, a justiça, a técnica política), Platão
tem de se confrontar com algumas respostas ao pro-
blema da justiça que se tinham delineado sobretudo
em ambiente sofístico. Duas delas, em particular, pa-
recem representar um desafio formidável à conceção
socrática, que Platão tinha herdado.
No livro I da República, um Sócrates em larga
medida ainda «socrático» revela-se em dificuldade
evidente face ao radicalismo teórico e verbal contido
no ataque que lhe faz o sofista Trasímaco. Este, após
ter descartado de maneira arrogante as teses relativas
à justiça que circulavam na cultura da época, chega a
definir a dikaiosyne como a utilidade do mais forte. A
operação teórica levada a cabo pelo sofista está articu-
lada de duas maneiras: a primeira consiste na equipa-
ração – de resto, partilhada por setores importantes da
cultura ateniense (por exemplo, pelo Sócrates do Crí-
ton) – entre justiça e legalidade-direito, isto é, respeito
pelas leis; a segunda, em reconduzir os sistemas jurí-

119
dicos à força como fonte de onde elas realmente vêm.
Deste modo, o positivismo jurídico, implícito na pri-
meira tese, desemboca num verdadeiro positivismo da
força ou do poder: a justiça equivale ao respeito pelas
leis que vão sendo dadas; estas, porém, são impostas
por quem detém o poder e a força, isto é, segundo os
casos, pelos mais ricos, os mais poderosos, ou simples-
mente pela maioria. Um governo oligárquico emanará
leis finalizadas à conservação do poder na oligarquia,
enquanto que um governo democrático fará o mes-
mo com o objetivo de conservar o domínio do povo.
O radicalismo teórico de Trasímaco parece realmente
desmascarar a natureza «ideológica» de cada sistema
jurídico em cuja origem se coloca, contudo, a força de
um grupo: a justiça, comparada com o respeito pelas
leis emanadas, representa o instrumento utilizado por
quem detém o poder com o escopo de conservar o
próprio domínio.
O segundo grande desafio que Platão se vê obri-
gado a enfrentar é lançado no livro II da República.
Ao retomar de forma radical posições teóricas efetiva-
mente difusas em ambiente sofístico, o filósofo apre-
senta um argumento articulado que visa demonstrar
que a injustiça traz mais vantagens do que a justiça
e até permite que se alcance a felicidade, quer neste
mundo quer no além. Quem age injustamente, tendo
o cuidado de esconder a sua injustiça por detrás de um
biombo de justiça aparente, adquirirá respeito, riqueza
e poder e, por conseguinte, a felicidade, que parece
estar ligada à posse destes bens. Além disso, a rique-
za obtida com uma vida injusta permitir-lhe-á fazer

120
belos sacrifícios aos deuses, garantindo assim também
a felicidade no além. Os homens, se pudessem fazer
isto sem sofrer consequências, agiriam de modo in-
justo, porque a tendência para a pleonexia representa
o seu instinto primário e contemporaneamente o ins-
trumento através do qual eles se impõem e obtêm a
felicidade. A consciência de não serem capazes de agir
com injustiça sem correrem o risco de a sofrerem na
pele, levou-os à decisão de estipular uma espécie de
pacto social que implica a renúncia por parte de todos
ao exercício da injustiça e a aceitação de um sistema
legislativo que regulamenta este acordo. A associação
entre homens é pois só uma resposta ao medo e a jus-
tiça que regula esta associação é apenas o mal menor:
uma espécie de via intermédia entre a autêntica fe-
licidade, produzida pela subjugação e pelo domínio
incontrolado do e sobre o próximo, e o medo de ser
vítima da felicidade alheia.
A resposta platónica a este duplo, formidável ata-
que revela-se extremamente articulada e desenrola-se
ao longo de todo o diálogo dedicado à justiça. Num
primeiro nível, Platão contesta a tese, talvez de matriz
influenciada por Cálicles, relativa à natureza e à ori-
gem da sociedade. A causa da formação desta não deve
ser procurada no medo, mas sim na necessidade, ou
melhor, na consciência adquirida pelos indivíduos de
não serem verdadeiramente autossuficientes. Formas
primordiais de organização humana nascem quando
os homens compreendem que a divisão do trabalho
lhes permitiria fazer frente às necessidades da vida de
maneira adequada. O que Platão oferece é essencial-

121
mente uma genealogia de caráter fenomenológico an-
tes ainda de ser histórico. O núcleo principal de cada
sociedade humana surge então quando os indivíduos
começam a dividir as tarefas fundamentais entre si, so-
bretudo devido aos seus dotes naturais. As primeiras
figuras sociais são o agricultor, o pedreiro, o operá-
rio têxtil, o sapateiro e, naturalmente, o comercian-
te a retalho. Segundo Platão, nesta forma primitiva
de organização humana encontra-se presente, ainda
que de forma incoativa, a própria essência da justi-
ça, que consiste na divisão natural do trabalho, isto é,
no preceito, explicitado só depois, de «ocupar-se dos
próprios afazeres» (oikeiopragia), quer dizer, de desem-
penhar a função para a qual se é naturalmente dotado.
Todavia, aos olhos de Platão esta forma primordial
de organização social contém só um pálido traço de
justiça, porque, como toda a formação de agregação
primitiva, não implica uma referência ao conheci-
mento e ao saber, que constituem, como o Político e
as Leis demonstrarão, a condição fundamental para o
instaurar-se da virtude. Após a cidade originária, sim-
ples e autossuficiente, segue-se na genealogia platónica
a cidade inchada de luxo, onde já não só se satisfazem
as necessidades primárias (comer, vestir-se, morar),
como também as supérfluas, com a consequência de
que se dá origem a toda uma série de figuras profis-
sionais ausentes da cidade primitiva: especialistas em
cosmética, artesãos de produtos de luxo, poetas, cozi-
nheiros e naturalmente médicos para curar as doenças
provocadas pelos novos excessos alimentares. Deste
modo, observa Platão, a cidade saudável é substituída

122
pela cidade doente, que se assemelha verdadeiramen-
te muito à Atenas democrática da segunda metade
do século V. O aparecimento de novas necessidades
determina a necessidade de expandir o território me-
tropolitano já insuficiente para satisfazer a cidade in-
chada de luxo. Eis porque surge um novo grupo de
profissionais, o dos guerreiros, a quem é confiado a
tarefa de alargar os territórios da cidade e de defender
os territórios conquistados dos interesses das cidades
vizinhas. A cidade doente, no cúmulo da sua degene-
ração, forneceu assim o instrumento através do qual
Platão pretende fundar a kallipolis, ou seja, a cidade
ideal onde, realizando-se a justiça, todos os indivíduos
podem aceder à felicidade.
O primeiro, decisivo passo na direção da constru-
ção da kallipolis consiste, segundo Platão, na educação
dos «guardiões» (phylakes), a nova casta militar que se
formou no processo de degeneração da cidade. Eles
devem ser submetidos a um rígido percurso formativo
centrado na ginástica e na música, do qual devem estar
ausentes a poesia épica e a trágica, objetos de uma cla-
morosa e célebre expulsão. A primeira é culpada, aos
olhos de Platão, de proporcionar uma imagem falsa e
deseducativa da divindade, a quem são atribuídos os
vícios típicos dos seres humanos (inveja, imoralidade);
à segunda, pelo contrário, é atribuída a responsabili-
dade de gerar no espectador, através do processo de
identificação com as personagens, uma verdadeira
cisão do eu, que corre o risco de ser dominado por
instâncias mais irracionais e incontroláveis. Na par-
te conclusiva da República a condenação da poesia

123
tradicional enriquecer-se-á de considerações de tipo
mais filosófico, primeira de todas a que identifica o
seu estatuto ontológico na natureza imitativa e, em
particular, na característica de ser «imitação de uma
imitação» (mimesis mimeseos), quer dizer, imitação da
realidade empírica que é, por sua vez, imitação da
verdadeira realidade, ou seja, do modelo inteligível
(cf. §§ 5-6).
O processo educativo tem também a função de
causar uma ulterior cisão dentro do grupo dos guar-
diões, fazendo emergir dois diferentes tipos de indiví-
duos, o dos verdadeiros militares (epikouroi) e o dos
«governantes» (archontes), isto é, os que se revelam
particularmente idóneos à função do comando. Ao
início, Platão atribui aos membros deste último grupo
a virtude genérica da euboulia, isto é, da capacidade
de tomar decisões sensatas de interesse coletivo. Só
depois, como veremos (§ 5), os que pertencem a este
grupo são caracterizados como possessores de um sa-
ber peculiar pois que está dirigido a objetos dotados de
um estatuto ontológico e epistemológico excecional.
Com o objetivo de esconjurar os perigos provo-
cados pela brama de riqueza, que poderia tocar os
detentores do poder político provocando danos in-
calculáveis a todo o corpo cívico, para os membros
do grupo dos governantes e dos militares, Platão es-
tabelece a proibição de possuir propriedades privadas.
Esta, sobretudo se ligada ao poder político, é conside-
rada de certo modo a causa principal dos males que
podem perturbar uma organização humana. Platão
está disposto a conceder a autorização de possuir bens

124
privados só ao terceiro grupo social, o dos produtores
(agricultores, artesãos, comerciantes), cuja riqueza será
retida em parte para a satisfação das necessidades da
classe militar e da política. Deste modo, quer dizer,
através de uma separação radical de poder e riqueza,
Platão crê ter neutralizado, pelo menos em parte, a
ofensiva de Trasímaco, que culmina na tese relativa
à união de justiça, poder e força (riqueza). O ataque
platónico à dimensão da propriedade privada não se
fica pela sua supressão. Mas estende-se até à abolição
dos vínculos familiares tradicionais, vistos como um
perigo constante e insidioso para o interesse geral. Go-
vernantes e militares terão em comum, além dos bens,
também as mulheres e os filhos. Aliás, estes deverão ser
retirados aos cuidados paternos assim que nascerem,
para que sejam educados em comunhão, conforme
um programa pedagógico bem definido. Também as
uniões sexuais finalizadas à procriação não poderão
acontecer com base em inclinações ou gostos pessoais,
mas deverão ser confiadas ao estado e a uma rígida
programação de natureza eugénica. A escassa consi-
deração pelas exigências individuais dos governantes
encontra expressão, por fim, na constrição mesma em
governar, quer dizer, na obrigação de assumir a tarefa
de liderar a cidade, renunciando, pelo menos por um
certo tempo, aos prazeres produzidos pelo estudo e
pela vida teorética.
Platão não esconde a natureza radical e até eversiva
de medidas deste tipo, que corriam o risco de minar
as modalidades consolidadas de convivência a partir
dos seus alicerces. Todavia, ele entreviu no individu-

125
alismo ínsito na dimensão privada (tanto a nível eco-
nómico quanto afetivo) um perigo potencialmente
mais devastador para uma convivência correta entre
os homens, e acabou por considerar o comunitarismo
económico-familiar uma solução absolutamente de-
sejável, embora não facilmente realizável. Esta tese é
confirmada pelo confronto com a última obra de Pla-
tão: as Leis. Aqui, o filósofo, apercebendo-se provavel-
mente de quão tenazes eram as resistências ao progra-
ma comunitário da República, introduziu na legislação
da cidade ideal o oikos, quer dizer, a casa, pensada quer
em sentido económico (propriedade de terreno), quer
afetivo (família tradicional). A propriedade privada,
legitimada e defendida pela nova legislação, foi contu-
do submetida a uma drástica limitação, confirmando
que o último Platão, ‘domesticado’ pela experiência
biográfica, não deixou de ver na dimensão privada o
obstáculo mais perigoso existente para a obtenção do
bem-estar e da felicidade coletiva.
A cidade ideal platónica apresenta portanto três
grupos, cada um dos quais se define com base numa
precisa função social e profissional, que corresponde a
um peculiar dote natural: a produção, a defesa (e o con-
trole interno) e o comando. O passo seguinte consiste
na descrição da natureza antropológica e psicológica
dos tipos humanos que surgiram do desenvolvimento
da sociedade e do processo educativo. No livro IV da
República, Platão pergunta-se se a alma individual –
que, não se esqueça, era o sujeito de todo o discurso
ético-moral – também apresentava as mesmas «partes»
ou «aspetos» que os do estado. A resposta, afirmativa

126
como é óbvio, proporciona a ocasião para expor uma
das doutrinas mais célebres e interessantes do filósofo
ateniense. A tese central de Platão é que a alma deve
ser considerada como uma espécie de microcosmo re-
lativamente à qual o estado constitui o macrocosmo.
O isomorfismo estrutural entre alma e cidade apresen-
ta todavia uma espécie de assimetria inegável, devida
à diferente natureza da tripartição, que é prescritiva
no caso da cidade e fenomenológico-descritiva no caso
da alma. A análise do tipo de atividade desta conduz
Platão à constatação de que ela mostra no seu interior,
junto da dimensão racional e calculadora, também um
elemento irracional (alogon). Ao afastar-se daquela tra-
dição pitagórica que se demonstrara o seu ponto mais
alto com a célebre contraposição alma-corpo formula-
da por Sócrates no Fédon, Platão introduz as instân-
cias da irracionalidade e, por conseguinte, também da
corporeidade, no seio da alma. Uma fenomenologia
da atividade psíquica mais precisa indu-lo a dividir o
elemento irracional em dois princípios irredutíveis um
ao outro: o primeiro, definido «volitivo», «colérico» ou
«impetuoso» (thymoeides) comanda o desejo de afir-
mação e reconhecimento social, e pode considerar-se
o herdeiro do thymos de tradição homérica; o segundo,
chamado «desiderativo» (epithymetikon), exprime as
instâncias propriamente corpóreas ligadas à satisfação
dos desejos alimentares e sexuais.
Deste modo, a alma apresenta três «partes» (mere)
ou «espécies» (eide), que na realidade constituem três
diferentes centros motivacionais, quer dizer, três diver-
sos tipos de finalidade do agir. Ao cumprir o princípio

127
do isomorfismo entre micro e macrocosmo, Platão de-
pois atribui a cada grupo social uma espécie de alma,
defendendo que a pertença de um indivíduo a uma
classe e não a outra depende inteiramente da parte que
na sua alma domina e exerce o controle sobre as ou-
tras. Assim, os membros do grupo dos governantes se-
rão os indivíduos em cuja alma o princípio racional e
calculador (logismos ou logistikon) é dominante; os que
pertencem à classe militar só poderão ser os cidadãos
em que o elemento irascível e impetuoso é dominan-
te, enquanto que a alma de todos os outros membros
do corpo social será essencialmente controlada pelo
princípio desiderativo. Este paralelismo entre alma e
cidade permite, por fim, atribuir a cada parte da alma
e, por conseguinte, a cada grupo social, uma virtude
bem específica: a sabedoria ou conhecimento (sophia)
será a virtude, isto é, a realização das potencialidades
naturais, da parte racional da alma, logo dos gover-
nantes; a coragem (andreia) será atribuída ao princípio
impulsivo e impetuoso e à classe militar; por fim, a
moderação ou temperança (sophrosyne), isto é, a capa-
cidade de controlar e travar os apetites desiderativos,
só poderá ser a virtude típica dos produtores.
Não se pode deixar de constatar, a propósito deste
mecanismo de atribuição das virtudes, que só as pri-
meiras duas, isto é, a sabedoria e a coragem, repre-
sentam a completa realização das potencialidades das
partes da alma que lhes correspondem, enquanto que
a terceira, a moderação, exprime uma atitude censória
que se cumpre na limitação dos impulsos negativos
que emanam do epithymetikon. Além do mais, a sabe-

128
doria e a coragem estão concentradas nos respetivos
grupos, enquanto que a temperança aparece de cer-
to modo difundida em todo o corpo social. De fac-
to – explica Platão –, uma cidade é sapiente só se os
membros da classe dos governantes também o forem;
é corajosa se os militares o forem; mas para ser tem-
perante, é preciso que todos os cidadãos sejam tempe-
rantes. Por essa razão, o modo pelo qual esta virtude
é possuída pelas três classes será diverso: a sophrosyne
dos governantes consiste na disponibilidade quer em
assumir o governo (aceitando a constrição), quer em
tomar decisões que sejam úteis não para si mesmos,
mas para todos os cidadãos; a dos militares consis-
te na aceitação das indicações que vão sendo dadas
pelos governantes; enquanto que para a classe dos
produtores a moderação se exprime na subordinação
aos outros dois grupos e no controle das paixões que
governam a sua alma.
A análise da natureza psíquica e social destas três
virtudes permite, por fim, definir também a justi-
ça, que era o objeto da investigação. Para Platão, ela
consiste numa certa harmonia das três partes da alma
e da cidade, ou melhor, numa correta relação entre
elas. Portanto, uma cidade será justa se nela se ins-
taurar uma relação harmoniosa entre os três grupos
sociais, isto é, será uma cidade em que o governo cabe
a quem é naturalmente idóneo a comandar e os res-
tantes grupos se dispõem a aceitar as diretivas. Uma
alma será justa se nela a função diretiva for usada pelo
princípio racional e os outros centros motivacionais
aceitarem o governo da razão. O que acabámos de

129
dizer permite-nos compreender a definição formal de
justiça, segundo a qual ela equivale ao «fazer aquilo
que lhe compete» (ta heautou prattein), isto é, cumprir
as atividades para as quais se é antropológica e psi-
quicamente aptos. A forma social da justiça consiste
portanto numa correta distribuição das tarefas dentro
da cidade: num governo orientado para o bem de to-
dos os cidadãos por parte dos governantes; em seguir
as indicações dos archontes por parte dos militares; por
fim, na aceitação do seu papel subordinado por parte
da classe dos produtores.
Do ponto de vista do indivíduo, isto é levemente
mais complicado. Platão tem clara consciência de que
só num número muito reduzido de homens a razão
exerce efetivamente o domínio sobre todas as outras
instâncias. Todavia, ele não pode circunscrever a posse
da justiça unicamente aos membros deste grupo limi-
tado, deixando o restante corpo social tomado pela
irracionalidade e a injustiça. A saída deste impasse é
radical, mas simultaneamente eficaz, pelo menos no
plano teórico: também os indivíduos cuja alma é do-
minada por instâncias irracionais (impulsivas e desi-
derativas) podem agir racionalmente, isto é, viver con-
formemente à justiça, se estiverem dispostos a aceitar
o governo do princípio racional que se encontra fora
deles, quer dizer, nos governantes. Só assim toda a ci-
dade será governada por um único princípio ao qual se
adequarão os comportamentos de todos os cidadãos:
governantes, militares e produtores.
O isomorfismo entre alma e cidade permite que
Platão, por um lado, politize os conflitos entre os di-

130
ferentes centros psíquicos e, por outro, faça psicologia
do confronto entre os principais grupos sociais. Em
ambos os casos o resultado positivo do jogo – com a
justiça como prémio – depende da capacidade da ra-
zão, e da sua instância social, de conquistar como alia-
do o princípio volitivo, representado na cidade pela
classe militar. O princípio psíquico racional e a casta
dos governantes poderão atuar a justiça, na alma e na
cidade respetivamente, se e somente se canalizarem
para vantagem própria os impulsos irracionais para o
reconhecimento social, por um lado, e se aliarem com
o grupo dos militares, por outro.
Já se observou que em certos ambientes sofísticos
se tornou moda a convicção de que o comportamen-
to virtuoso e, em especial o justo, se revelara na rea-
lidade gravoso para quem o praticava. Na conclusão
deste longo percurso que o levou à definição da jus-
tiça, Platão pode refutar esta tese perigosa. Se a jus-
tiça – afirma – é a relação harmoniosa entre as partes
da alma, esta pode ser comparada à saúde do corpo.
Uma alma «saudável» só pode ser feliz, enquanto que
uma alma «doente», como é aquela dominada pelos
instintos passionais, será uma alma infeliz, que parece
livre, mas na realidade não é, dado que é escrava do
elemento pior que nela se encontra. A justiça – e esta
é a conclusão laica do raciocínio de Platão – é preferí-
vel em si mesma, porque se for aplicada na alma e na
cidade, gera uma condição de bem-estar que equivale
à felicidade.
Segundo Platão, também a cidade ideal, se fosse
realmente realizada na história –, quer dizer, no tem-

131
po, se exporia ao inevitável processo de decadência que
atinge todas as realidades geradas. Na segunda parte
da República expõe-se este processo por meio de am-
plas pinceladas, que é interessante porque oferece uma
descrição das principais formas constitucionais des-
tinada a tornar-se clássica, graças à sua reapropriação
por parte de Aristóteles. A kallipolis, isto é, o gover-
no dos melhores em vista do bem-estar de todos, para
Platão corresponde à aristocracia. A impossibilidade
de conservar no tempo a perfeição do modelo ideal
determina o surgimento da timocracia, isto é, do go-
verno fundado na honra (time), que é a primeira forma
de degeneração constitucional. O elemento racional e
calculador é substituído pelo princípio impulsivo-vo-
litivo. À timocracia sucede-se a oligarquia, quer dizer,
o governo de poucos ricos; neste nível o elemento psí-
quico dominante é o do desejo, orientado quase exclu-
sivamente para a riqueza. A constituição seguinte é a
democracia, dominada, no plano psicológico, pela pre-
sença simultânea isonómica de todos os desejos. A úl-
tima forma constitucional, a mais distante da perfeição
da kallipolis, é representada pela tirania, enquanto que
o tipo humano mais distante do governante-filósofo de
Platão é certamente o tirano, cuja alma é dominada e
perturbada unicamente por um desejo, o sexual.
Tanto no Político quanto nas Leis, as duas obras
de teoria política sucessivas à República, Platão pare-
ce atenuar o radicalismo teórico contido no grande
diálogo sobre a justiça. Ele não cessa de considerar de-
sejáveis os procedimentos aí descritos, e não existem
razões válidas para defender que os considerasse so-

132
mente desejáveis, e não efetivamente possíveis (dyna-
ta), isto é, realizáveis. Todavia, a experiência, mesmo
biográfica – basta pensar nos fracassos em Siracusa –,
devem ter-lhe sugerido uma atitude teórica mais cau-
ta. No Político, a figura do artesão em posse da techne
politike parece apenas um herdeiro, embora bastante
direto, do filósofo-rei da República. Ele está certamen-
te na posse de conhecimentos que os outros homens
ignoram; mas a sua ação parece marcada pela exigên-
cia de realizar mediações, tanto que a técnica política é
comparada com a arte têxtil, que é precisamente uma
techne finalizada à criação de ligações e conexões. Na
presença do verdadeiro político, uma constituição es-
crita é inútil; mas Platão apercebe-se de quão remota
é a possibilidade de que existam homens desse género
e, por conseguinte, invoca o uso de leis escritas nas or-
ganizações estatais (por exemplo, monarquia e demo-
cracia) que se postulam como imitações (mimemata)
do estado perfeito. O recurso às leis escritas chega a
tornar-se hipertrófico nas Leis, onde um sistema nor-
mativo tão minucioso que se torna patológico toma
o lugar do projeto de aliança intrapsíquico (da razão
com o ímpeto colérico) formulado na República. A
kallipolis aqui exposta continua a ser considerada a
forma perfeita e suprema de organização e, todavia,
Platão considera-a mais idónea para uma comuni-
dade divina do que para uma associação humana. A
potencialidade explosiva do epithymetikon, a instância
psíquica desiderativa, que na República era mantida
sob controle pela aliança de razão e impetuosidade,
nas Leis não parece limitável a não ser por meio de

133
um sistema normativo e coercitivo rígido, finalizado
ao controlo dos prazeres e das dores, quer dizer, da
dimensão propriamente passional. No último diálogo
de Platão, o respeito pelas leis, que se obtém através
de um controlo minucioso da vida dos cidadãos,
substitui a educação e a persuasão. Contudo, convém
observar que da cidade das Leis não se encontra
ausente o princípio-guia da filosofia política de Platão,
isto é, a ideia de que a única forma de legitimação do
poder reside na posse de um saber superior e divino,
representado aqui pela teologia astral.

5. O SABER DO FILÓSOFO

Nas páginas anteriores foi-se mencionando uma


conceção que talvez represente a teoria platónica mais
célebre, não só no campo da reflexão política, mas em
absoluto. Falamos da tese que afirma que os males das
cidades só poderão cessar quando os filósofos estive-
rem no poder, ou então, os que governam se dedica-
rem à filosofia.
Como se viu o percurso educativo imaginado por
Platão levava a que se distinguissem duas subclasses
dentro do grupo dos guardiões, constituídas pela clas-
se dos governantes e pela dos militares. Em primeiro
lugar, o que caracterizava os governantes era a posse
de uma capacidade diretiva genérica finalizada ao in-
teresse de todos os cidadãos. Mas, aos olhos de Pla-
tão, tratava-se de um critério ainda demasiado fraco e
sobretudo não suficientemente definido do ponto de
vista epistemológico. Eis a exigência de delinear me-

134
lhor o perfil dos governantes. Neste contexto encontra
colocação a injunção que estabelece a necessidade que
os archontes sejam propriamente os filósofos. Trata-se
certamente de uma tese que devia aparecer radical ao
leitor da época e, em mais do que um aspeto, até bi-
zarra. Portanto, não é desacertado perguntar-se quem
eram os filósofos aos quais Platão pretendia confiar os
supremos cargos políticos.
O corpus platónico contém muitas definições de
filósofo, algumas das quais ficaram famosas. Para o
objetivo desta exposição podemos limitar-nos a ter
em conta duas que esclarecem melhor do que outras o
sentido da proposta platónica. Na conclusão do Fedro,
no âmbito de uma discussão dedicada à oportunidade
de escrever discursos, Platão explica que o filósofo se
distingue de outros intelectuais, como o logógrafo, o
orador, o autor de tragédias ou de discursos políticos,
porque, ao contrário destes, possui «coisas de maior
valor» (timiotera) em relação às que pôs no papel. En-
quanto que o saber do orador e do político tradicional
se exprime inteiramente nas obras que compõe, o fi-
lósofo é capaz de exibir conhecimentos ulteriores me-
diante os quais poderia socorrer (boethein) o seu dis-
curso, isto é, o conteúdo das conceções que expôs por
escrito. Como se vê, trata-se de uma descrição pura-
mente formal que deve ser unida à segunda definição
de que se falava, que deveria permitir a especificação
da natureza do saber filosófico, também do ponto de
vista do conteúdo. No livro V da República – mas de
forma mais explícita do que noutros diálogos – Pla-
tão esclarece que o filósofo é quem ama o espetáculo

135
da verdade, quer dizer, aquele que deseja e conhece o
mundo das ideias, identificado com a verdade. Mais
precisamente, ele acrescenta que o filósofo, ao contrá-
rio de todos os outros homens, é capaz de distinguir o
justo em si (auto to dikaion), o belo em si (auto to ka-
lon), isto é, as ideias de justo e belo, das coisas que par-
ticipam (ta metechonta) destas ideias. Enquanto que os
outros homens – e aqui a alusão deveria ser aos Sofis-
tas – se ficam pela consideração dos muitos espetácu-
los belos, das muitas atividades justas, etc., o filósofo
dirige o olhar para a única realidade verdadeiramente
bela e a única realidade absolutamente justa, quer di-
zer, a ideia ou forma (eidos) do belo e do justo. Isto não
significa que o filósofo platónico ignore as atividades
concretas, mas só que ele é capaz de distingui-las das
verdadeiras ideias. O conhecimento destas entidades,
unido à consciência da diferença entre elas e as respe-
tivas manifestações espácio-temporais, é a razão pela
qual os filósofos são os únicos indivíduos legitimados
a governar o estado. De facto, eles conhecem a defini-
ção formal da justiça e das outras virtudes e estão, por
conseguinte, na condição de poderem avaliar o grau
de aproximação que cada ação e medida pode exibir
para com esta noção paradigmática.
De facto, segundo Platão, as ideias são os modelos
aos quais é preciso conformar os comportamentos in-
dividuais e coletivos. Se os filósofos são os únicos indi-
víduos na posse de um conhecimento real das ideias,
eles são também os únicos homens legitimados a di-
rigir o estado, procurando introduzir nele a perfeição
paradigmática do mundo das ideias. De resto, o recur-

136
so a modelos eternos e universais aos quais conformar
o comportamento dos homens e do estado permite
que Platão supere o relativismo de valores propugnado
em larga medida pelos Sofistas, conseguindo ao mes-
mo tempo oferecer um critério de legitimação ao po-
der que deixa de ser fundado na tradição e na pertença
ao genos e passa a basear-se no conhecimento. A outra
tese fundamental sua é, com efeito, que só das ideias
se pode ter um conhecimento autêntico (episteme), en-
quanto que dos participantes particulares, isto é, da
multiplicidade dos fenómenos e dos comportamentos
empíricos que participam das ideias, só se pode ter
uma opinião (doxa), mais ou menos correta. A contra-
posição entre conhecimento e opinião, com a respeti-
va tese de que só as ideias são objeto de conhecimento
enquanto que os fenómenos particulares só podem ser
opinados mas não verdadeiramente conhecidos, é um
dos teoremas filosóficos mais famosos de Platão. Mais
adiante falaremos dele e das razões que determinaram
a sua formulação (§ 6). Por agora basta-nos ter escla-
recido que a atribuição do poder aos filósofos se baseia
na posse que eles têm de um saber dirigido a objetos
peculiares, ontologicamente diversos daqueles que os
homens manuseiam no seu dia a dia.
Para governar o estado com bases filosóficas não
é suficiente possuir um conhecimento exaustivo das
virtudes. Os filósofos também devem ser capazes de
orientar o conhecimento e a ação na direção do bem.
O bem ou bom (agathon), que Platão chama também
de «ideia do bem» (idea tou agathou), apresenta-se
como princípio supremo da teoria ético-política pla-

137
tónica porque só se se referir a ele se podem trans-
formar os outros conhecimentos, isto é, a justiça, a
sabedoria, a coragem e a temperança, em algo efetiva-
mente útil (ophelimon). Nesta perspetiva, o bom pare-
ce constituir uma espécie de horizonte de sentido que
torna o saber acerca da virtude «útil» para o indivíduo
e a comunidade. Para compreender o que afirmámos,
convém ter presente que o predicado «bom» implica
uma certa referência à dimensão prestativa: aplicado,
por exemplo, a uma faca, ele indica a capacidade que
a mesma tem de cumprir a sua função natural, que é
cortar. Defender, como faz Platão, que o bem torna
úteis as virtudes, poderia significar que ele as trans-
forma em algo de efetivamente aplicável, permitindo
de certo modo a passagem da teoria à práxis. Porém, é
preciso reconhecer que a argumentação do bem con-
tida nos livros centrais da República permanece uma
das secções mais obscuras de todo o corpus platónico.
As razões desta obscuridade poderiam ser também de
ordem objetiva e depender da natureza intrinsecamen-
te ambígua e indefinível de uma entidade do género.
Não se deve esquecer todavia que Platão parece, por
vezes, aludir a conceções que não são formuladas dire-
tamente no diálogo, mas que poderiam ser conhecidas
pelos seus leitores. Como veremos, o bem, além da sua
função de princípio ético da ação, desempenha tam-
bém o papel de causa epistémica do conhecimento e
até de princípio ontológico das ideias (§ 6). No plano
do conteúdo, o bem deveria ser analogicamente des-
critível como uma espécie de ponto de convergência
entre as noções de «ordem» (taxis), «medida» (metron)

138
e «unidade» (hen), sendo esta última também a sua
essência (ousia), segundo um testemunho importante,
embora ambíguo, de Aristóteles.
A partir do momento que as ideias, e entre elas a
ideia de bem, são realidades inteligíveis, o conheci-
mento que diz respeito a elas deveria ser de nature-
za intelectual. Este aspeto não deve induzir a que se
identifique o verdadeiro conhecimento filosófico, que
Platão chama de «dialética», com o tipo de conheci-
mento que podem exibir os matemáticos. Também
este é de caráter inteligível, porque os entes matemá-
ticos são inteligíveis. Todavia Platão tem o cuidado
de explicar que, enquanto que o saber matemático
mantém essencialmente uma veia hipotética, a dia-
lética possui uma natureza realmente científica por-
que é capaz de passar das hipóteses a um princípio
não-hipotético (ou anipotético), que deve identificar-
-se quase certamente com o bem. De facto, observa
Platão, os matemáticos e, em especial os geómetras,
constroem os seus edifícios demonstrativos partindo
de hipóteses (axiomas, postulados, definições, admis-
sões de existência) e deduzindo delas uma série de
consequências. Estas resultam ser naturalmente con-
formes às hipóteses dadas, mas precisamente por esta
razão dependem inteiramente, quanto a conteúdo de
verdade, de tais hipóteses. E o matemático não se pre-
ocupa com demonstrar a verdade das hipóteses de que
partem as suas demonstrações, tratando-as como se
fossem princípios. A consequência de tudo isto é que
a matemática não pode ser considerada uma verda-
deira ciência (episteme), mas um saber convencional

139
(homologia). Vice-versa, o dialético, isto é, o filósofo
autêntico, é capaz de dar conta (logon didonai) das hi-
póteses de que se serve porque se dirige para o elevado
– assim parece –, isto é, para uma hipótese mais geral,
até alcançar o famoso princípio não-hipotético. O seu
saber, portanto, contrariamente ao dos matemáticos,
é um saber autêntico e não simplesmente hipotético
e convencional.
Em boa verdade, esta não é a única diferença entre
filosofia e matemática. De facto, Platão acrescenta que
os matemáticos se servem constantemente de elemen-
tos construtivos nas suas demonstrações e não sabem
recusar a referência à dimensão visual. Pelo contrário,
o processo cognoscitivo da dialética cumpre-se no
mundo das ideias sem nunca sair dele. Por fim, a ra-
cionalidade matemática apresenta uma natureza me-
diada e discursiva e é definida por Platão com o ter-
mo dianoia (que significa precisamente pensamento
discursivo); a racionalidade dialética, pelo contrário,
é de caráter noético e por isso tem o nome de «inte-
leção» (noesis). Isto não significa que o conhecimento
filosófico se deva considerar intuitivo ou até místico,
porque, como veremos (§ 6), ele implica um aspeto
proposicional totalmente imprescindível.
A distinção epistemológica entre o saber filosófico
e o geométrico-matemático representa a parte conclu-
siva de uma discussão importante centrada na natureza
do conhecimento e dos seus objetos. Platão compara
o universo cognoscitivo todo com uma linha dividi-
da em quatro segmentos cada um dos quais ocupado
por uma única modalidade cognoscitiva e pelo âmbito

140
do objeto que lhe corresponde. A linha é inicialmente
dividida em duas secções principais, a inteligível (noe-
ton), ocupada pelos objetos noéticos, e a visível (hora-
ton), onde se encontram os fenómenos empíricos; dos
objetos colocados no segmento superior pode-se ter
conhecimento, enquanto que as realidades sensíveis e
percetíveis só podem ser opinadas. Em seguida, cada
segmento obtido da primeira divisão é, por sua vez,
subdividido em duas secções, dando assim origem à
quadripartição de que se falava. No segmento superior
da secção sensível encontram-se os entes empíricos
objeto de crença (pistis), enquanto que na extremida-
de inferior estão as suas cópias que, para Platão, são
conhecidas de forma doxástica por meio de uma espé-
cie de representação sensível (eikasia), próxima talvez
do tipo de conhecimento típico das artes imitativas.
Também a secção inteligível apresenta, analogamen-
te à sensível, uma divisão interna que dá origem a
duas distintas modalidades cognoscitivas, a inteleção
(noesis) e o pensamento discursivo (dianoia), referi-
das respetivamente às ideias e aos entes matemáticos.
Deste modo, o universo onto-epistémico imaginado
por Platão articula-se em quatro momentos, cada um
dos quais dotado de um aspeto epistémico e de um
ontológico. Em direção ascendente: a representação
sensível (orientada às cópias dos objetos empíricos);
a crença (dirigida às realidades espácio-temporais); o
pensamento discursivo (que tem os entes matemáticos
por objeto) e, por fim, a verdadeira inteleção dialética
(dirigida às ideias e à ideia do bem). O pressuposto
desta classificação reside no princípio, tipicamente

141
platónico, segundo o qual os carateres metodológicos
e epistemológicos de uma forma de conhecimento de-
pendem em última análise da natureza ontológica do
objeto ao qual o próprio conhecimento se dirige.
Vimos que Platão chama «dialética» (dialektike) à
forma suprema de conhecimento. Na verdade, o ter-
mo é um adjetivo, aplicado na maioria dos casos ao
vocábulo techne, isto é, arte, técnica, conhecimento.
O verbo dialegesthai, de onde deriva o adjetivo, sig-
nifica em seguida «discutir», «dialogar». Com efeito,
a dialética é primeiramente a capacidade de conduzir
uma discussão, ou seja, a capacidade de desviscerar
os pressupostos implícitos de uma determinada tese
ou asserção. Na descrição oferecida nos livros centrais
da República, esta ganha feições metodológicas mais
definidas, tornando-se a técnica capaz de «tirar as hi-
póteses», ou seja, de «dar razão» delas. Este processo
acontece concretamente no âmbito do diálogo entre
dois ou mais interlocutores, mesmo que esta situação
seja de certo modo atenuada pela natureza objetiva do
movimento do pensamento que das hipóteses eidéti-
cas alcança o princípio não-hipotético.
O empenhamento de Platão em distinguir o co-
nhecimento filosófico do matemático não deve, po-
rém, fazer esquecer que o estudo das disciplinas ma-
temáticas constituía aos seus olhos uma espécie de via
de acesso privilegiado para o autêntico conhecimento
dialético. Ao delinear o currículo dos filósofos, no livro
VII da República, Platão apercebe-se de que música e
ginástica não podem ser suficientes para fazer aparecer
de maneira completa as qualidades presentes na na-

142
tureza destes indivíduos. Por conseguinte, ele atribui
ao conjunto das disciplinas matemáticas a tarefa de
preparar adequadamente os futuros governantes para
que se sirvam do pensamento dialético, com o qual a
matemática partilha a característica da inteligibilidade
dos seus objetos e o seu estilo de racionalidade. A or-
dem com que estas disciplinas deveriam ser aprendidas
reproduzia quase certamente a que se usava na Acade-
mia, onde, ao contrário do que sucedia na escola de
Isócrates, o saber matemático era respeitado de forma
excecional (não se esqueça que, segundo uma informa-
ção talvez lendária, no frontão do edifício da Academia
estava inscrita uma espécie de proibição de ingresso a
quem não tivesse bases de geometria). Portanto, ao es-
tudo da aritmética devia seguir o da geometria; depois
vinha a estereometria (estudo das figuras a três dimen-
sões); depois dela procedia-se ao estudo da astronomia
(que se ocupava dos sólidos dotados de movimento); o
programa concluía-se com a harmónica, cuja natureza
matemática já tinha sido evidenciada pelos pitagóricos.
É preciso dizer que em Platão o estudo destas discipli-
nas mantinha uma estruturação fortemente antiempi-
rista, mesmo em consideração da função de introdução
à dialética que este era chamado a desempenhar.
O estudo aprofundado das ciências matemáticas,
com a visão sinóptica sobre a realidade que pode pro-
duzir, não representa todavia a única via de acesso ao
mundo das ideias. Em boa verdade, a mais conheci-
da das teses platónicas relativas ao conhecimento das
formas inteligíveis estabelece que a alma as atinja por
meio da reminiscência ou anamnese (anamnesis). Trata-

143
-se de uma conceção provavelmente de origem pitagó-
rica que Platão retoma em alguns dos seus diálogos,
embora com um grau de adesão talvez inferior ao que
comummente se pensa. As duas versões mais conheci-
das encontram-se no Fédon e no Ménon e, embora elas
não sejam completamente idênticas, parecem todavia
apresentar um quadro relativamente coerente, para não
dizer unitário. No Fédon a constatação de que os seres
humanos formulam juízos que pressupõem a utilização
de noções das quais não podem ter uma experiência
direta leva à conclusão que tais noções devem ser co-
nhecidas pela alma antes de ela se ter unido ao corpo,
isto é, numa vida anterior. As solicitações que lhe vêm
desta vida corpórea, em particular aquelas produzidas
pela experiência percetiva, induzem a alma a despertar
estes conhecimentos adormecidos e o saber que deles
deriva ganha as características de uma verdadeira recor-
dação, isto é, de uma reminiscência. Nós, homens – ex-
plica Platão – possuímos a noção da igualdade; todavia,
esta não pode ter-se gerado nas nossas almas por via
da experiência corpórea porque o mundo sensível não
oferece casos de igualdade perfeita. A alma conheceu
a igualdade (ou seja, o igual em si) na sua vida ante-
rior à encarnação no corpo e o contacto percetivo com
casos de realidade que «parecem» iguais, sem o serem
verdadeiramente, desperta nela aquele conhecimento
adormecido que já possui em forma completamente in-
consciente. O que é habitualmente chamado de apren-
dizagem (mathesis) é apenas uma recordação de um co-
nhecimento anterior que remonta ao período em que a
alma estava separada e era independente do corpo.

144
No Ménon a conceção da reminiscência é formula-
da no âmbito de um célebre experimento maiêutico.
Platão imagina que está a conduzir um indivíduo em
completo jejum de conhecimentos matemáticos à so-
lução do problema geométrico relativo à duplicação
da área de um quadrado dado. Solicitado e, dentro de
certos limites, orientado pelas perguntas de Sócrates,
esta personagem corrige os seus erros iniciais e che-
ga efetivamente à solução indicando na diagonal do
quadrado inicial o lado no qual construir o quadrado
duplo. Dado que ele está em jejum total de geometria
e que o seu interlocutor, isto é, Sócrates, não lhe trans-
mite novos conhecimentos mas se limita a impeli-lo a
procurar em si mesmo a solução do problema, é claro
que o conhecimento ao qual ele chega consiste mais
uma vez numa espécie de recordação de noções que
já possuía, mesmo que de modo inconsciente. Con-
trariamente ao Fédon, onde o estímulo ao recurso
anamnéstico era fornecido pela experiência, no Mé-
non o impulso que dá início e guia todo o processo da
reminiscência se deve à interrogação socrática, que se
transforma numa autêntica arte de chamar à memória
do discípulo conteúdos mentais que ele já possuía de
forma inconsciente (a célebre «maiêutica»).
Como base da conceção da anamnese encontra-se
uma tese fundamental, de que Platão não parece ofe-
recer uma demonstração real. Falamos, portanto, de
uma espécie de pressuposto indemonstrável, do qual
derivam, com efeito, muitas teses contidas nos diálo-
gos. A tese em questão refere-se à suposta afinidade
(syngeneia) ontológica entre alma e ideias. A alma do

145
homem, ou melhor, a sua parte racional e calculadora,
possui uma espécie de relação intrínseca e originária
com o mundo das ideias, que ela viu e conheceu na
sua existência pré-corpórea. Além da pintura mítica
de uma tese deste tipo, é claro que Platão pretende
afirmar com força a sua convicção nas possibilidades
que o ser humano (e as funções cognitivas que ele pos-
sui) tem de alcançar um conhecimento pleno do ser,
isto é, do mundo das ideias. As tensões que atravessam
cada processo cognoscitivo, a grande problematicida-
de que o invade, até a provisoriedade constitutiva de
cada aquisição humana, não justificam o abandonar-
-se ao ceticismo, precisamente porque a alma possui
uma comunhão originária com o ser, uma comunhão
que a filosofia pode e deve reconstituir.
Do ponto de vista mais geral, com a conceção da
reminiscência Platão atribui para si o objetivo de cha-
mar a atenção para a natureza ativa de cada processo
autenticamente cognoscitivo, quer dizer, de focalizar
a função coadjuvante que o sujeito deve exercer para
que a aprendizagem não seja um facto extrínseco mas,
segundo os ditames do magistério socrático, seja um
evento que se gera realmente na alma.

6. A CONCEÇÃO DAS IDEIAS:


TESES E PROBLEMAS

Durante esta exposição mencionou-se inúmeras


vezes uma conceção que parece desempenhar um pa-
pel transversal na filosofia platónica. Trata-se da teoria

146
das ideias e chegou o momento de falar mais apro-
fundadamente dela. Em boa verdade, nos diálogos
– com exceção parcial do Fédon e da primeira parte
do Parménides – não se encontram trechos que conte-
nham exposições verdadeiramente sistemáticas desta
doutrina. Contudo, as ideias são omnipresentes nas
obras de Platão e as afirmações que se referem a elas,
embora não tenham as características de uma doutri-
na sistemática e definitiva, apresentam a forma de um
conjunto consistente e até bastante coerente de teses
filosóficas. De resto, não poderia ser de outra forma,
dado que as ideias mostram ser o fundamento da ética
(enquanto normas absolutas), da epistemologia (en-
quanto objetos de conhecimento) e da ontologia (en-
quanto causas dos outros fenómenos).
Um dos argumentos mais importantes a favor da
necessidade de postular a existência de realidades do-
tadas das características das ideias parte da constatação
de que o conhecimento, para ser verdadeiramente tal
– isto é, objetivo e universal –, deve ter por objeto enti-
dades eternas, ingénitas, não sujeitas à mudança espá-
cio-temporal, numa palavra, «absolutas». A afirmação,
certamente verdadeira e universal (logo, «científica»),
que a soma dos ângulos de um triângulo equivale a
dois ângulos retos (180°) deve o seu valor de verdade
ao facto de referir-se não aos muitos triângulos empí-
ricos dos quais temos quotidiana experiência (aqueles
desenhados na areia ou numa folha de caderno), mas
a um triângulo perfeito, a ideia de triângulo, que re-
vela de modo absoluto a essência (ousia) do triângulo.
O argumento que parte da existência de proposições

147
científicas estabelece a necessidade de postular as ideias.
Analogamente, o uso unívoco do predicado «belo»
(aplicado a uma lei, a uma figura, ou a uma menina)
pressupõe a referência à ideia de belo, quer dizer, a uma
entidade que esgota em si mesma a posse da proprie-
dade descrita pelo predicado. Como resulta evidente
deste exemplo final, as ideias desempenham também
uma função semântica importante porque de um refe-
rente oferecem termos universais colocados em posição
de predicado: a atribuição de uma qualidade F a mais
do que um indivíduo torna-se possível pela admissão
de uma realidade, precisamente F-em si, que funciona
como referente semântico do predicado F, permitindo
o seu uso unívoco.
Um raciocínio como o que acabámos de descrever
pressupõe a aplicação daquele procedimento que Aris-
tóteles chamará ekthesis (termo traduzível por abstração,
exposição ou extrapolação). Se indivíduos possuem em
comum uma certa característica – digamos F –, isto é,
são aF, bF, cF, é preciso postular a existência de uma
realidade, chamada de «F-em si», que corresponde per-
feitamente ao significado do predicado F. Embora o
vocábulo ekthesis não apareça no corpus platónico (pelo
menos com o significado que lhe damos agora), o pro-
cedimento exposto desempenha um papel fundamental
na admissão das ideias. Platão exprime um princípio
análogo quando defende que a ideia se comporta como
uma unidade acima da multiplicidade (hen epi pollois)
em relação aos particulares que lhe correspondem.
Talvez não fosse inútil explicitar melhor a termi-
nologia com que Platão indica a natureza das ideias,

148
antes de aprofundar estas entidades e o sentido da
conceção que lhes diz respeito. Ele alterna, essencial-
mente sem distinções de significado, os vocábulos idea
e eidos, que contêm na sua raiz comum (* vid-) uma
referência à dimensão visual. No caso das ideias ou
formas, porém, trata-se de uma visibilidade de nature-
za inteligível e não sensível, pois elas constituem o as-
peto intrínseco das coisas, isto é, a sua essência (ousia)
ou natureza (physis). O que é verdadeiramente típico
do ser humano, por exemplo, manifesta-se de modo
perfeito na ideia de homem, que exprime a essência e
a natureza desta noção.
A conceção platónica das ideias pode ser apresen-
tada por uma série de teses que, embora não sejam
completamente homogéneas, acabam por formar uma
ossatura teórica bastante coerente e unitária. Do pon-
to de vista ontológico as ideias são a única realidade à
qual cabe a qualificação de «ser». De facto, enquanto
que os muitos particulares «são e simultaneamente
não são», as ideias «são de maneira plena e absoluta»
(pantelos). Uma tese deste tipo não significa que só
as ideias existem, enquanto que os particulares não
existem, mas que as ideias possuem uma modalidade
de existência diferente da das realidades sensíveis. Ao
afirmar, na conclusão do livro V da República, que só
a ideia é, enquanto que os muitos particulares «são
e não são», Platão pretende defender a tese de que a
ideia possui total e exclusivamente o predicado que lhe
é atribuído, enquanto que as coisas que dela partici-
pam não estão nessa condição. Por exemplo, dizer que
a ideia de belo é, enquanto que as muitas coisas belas

149
são e não são, significa afirmar que a ideia de belo é
a única realidade absolutamente bela, enquanto que
os fenómenos particulares podem possuir o predicado
da beleza, sem todavia se identificarem com este: são
e não são belos. Por outras palavras, a ideia é (identi-
tariamente) o que as outras coisas possuem de forma
derivada (isto é, participativa).
Do ponto de vista lógico-ontológico a peculiari-
dade das ideias reside na sua autonomia. Esta caracte-
rística é desenvolvida por Platão mediante a assunção
de que as ideias são entidades kath’hauta, isto é, em si
mesmas, enquanto que as coisas são o que são em vir-
tude da sua relação com as ideias. A mesma tese tam-
bém é formulada por Platão de maneira metafórica,
ao defender que as ideias estão «separadas» (choris) das
coisas que delas participam. Uma separação simétrica
entre estas e as ideias não parece poder ser postulada
porque só as ideias possuem uma forma de existên-
cia autónoma e independente, enquanto que os fenó-
menos particulares, não sendo «em si mesmos», não
podem revelar-se realmente «separados». Deste modo,
explica-se assim a afirmação contida no Timeu, onde
se diz que o que muda, ou seja, o conjunto das coisas
sensíveis submetidas ao devir, não pode estar separado
da sua causa, isto é, do mundo das ideias. Só estas
estão separadas, enquanto que os que participam das
ideias não podem estar, precisamente porque depen-
dem inteiramente delas. A não-consideração da carac-
terística assimétrica da noção de separação representa
uma das causas das aporias que podem dar origem a
uma interpretação errada dos fundamentos lógicos da

150
teoria das ideias, tal como a primeira parte do Parmé-
nides demonstra amplamente.
A relação de dependência dos fenómenos particu-
lares para com as ideias tem a sua formulação mais
famosa na tese de que os primeiros «participam» das
segundas. A participação (methexis) é uma metáfo-
ra que pretende exprimir mediante o recurso a uma
imagem sensível uma relação que é, na verdade, de
natureza metafísica. Quando se lê nos diálogos que as
muitas coisas belas participam do belo em si, isto é,
da forma do belo, não se deve entender que elas to-
mem materialmente parte na forma em questão. Uma
interpretação semelhante da noção de participação
leva a um dilema absolutamente sem solução, como
se deduz da primeira parte do Parménides. De facto,
se a participação for entendida em sentido material,
uma determinada forma F pode permitir que os in-
divíduos aF, bF, cF participem dela, ou na sua intei-
reza, ou nas partes em que ela se divide, participando
cada indivíduo de uma só parte. No primeiro caso,
a forma estaria inteiramente presente em indivíduos
que estão separados uns dos outros com o resultado
de ela também estar separada de si; no segundo, pelo
contrário, a ideia seria dividida em partes com o efeito
de ver irremediavelmente comprometida uma das suas
características fundamentais, ou seja, a indivisibilida-
de. Tornar espacial e física a relação participativa leva
portanto ao impasse de um dilema sem solução. Se,
pelo contrário, a participação for entendida por aquilo
que realmente é, ou seja, uma metáfora que exprime
de forma física uma relação metafísica, o seu significa-

151
do filosófico permanece efetivamente salvaguardado.
O significado consiste na tentativa de estabelecer uma
relação entre duas entidades, a ideia e o participante
específico, que são ontologicamente incomensuráveis
entre si. Quando Platão afirma, ainda no Parménides,
que a presença da ideia nos fenómenos particulares é
análoga à do dia nas coisas que ele engloba, ele indica
a saída do dilema de que se falou: o dia, tal como a
ideia, está presente simultaneamente em muitos luga-
res, embora permaneça indivisível e unitário. Entendi-
da neste sentido, isto é, como relação entre entidades
incomensuráveis, a participação permite pensar a ideia
como um princípio que está ao mesmo tempo pre-
sente na sua inteireza em muitas coisas espacialmente
separadas entre si, e que permanece indivisível em si
mesmo, tal como o dia. Por outras palavras, a ideia
platónica, tal como uma propriedade nossa, pode ser
«com-partilhada» sem ter de ser «partilhada».
A imagem da participação não é a única metáfo-
ra de que Platão se serve para explicar a relação entre
ideias e fenómenos particulares. Às vezes ele fala de
«imitação» (mimesis) e afirma que as coisas imitam
as ideias. Com isto quer defender que os fenómenos
particulares possuem de forma imperfeita e derivada a
qualidade que as ideias exprimem de maneira identi-
tária. A beleza de uma coisa qualquer bela só poderá
ser uma imitação, mais ou menos bem conseguida, da
beleza possuída pelo belo em si. Mas a função paradig-
mática exercida pelas formas determina o surgimento
de uma famosa dificuldade de que Platão demonstra
ter plena consciência. Se, como se viu no exemplo ci-

152
tado acima, a ideia de belo possui de forma perfeita e
prototípica a qualidade da beleza – só assim podendo
representar um paradigma para as outras coisas belas
–, então também ela deverá ser considerada uma coisa
bela inter alia; mas, segundo o princípio da ekthesis, da
existência de uma qualidade comum a mais do que um
indivíduo – no nosso caso, as muitas coisas belas e a
ideia de belo –, descende a necessidade de postular a
existência de uma segunda ideia de belo (isto é, de um
«terceiro belo») que possa explicar a posse dessa carac-
terística por mais do que um fenómeno particular; se
este terceiro belo também possui o predicado da beleza,
deverá entrar em cena um quarto belo e assim por dian-
te até ao infinito. Trata-se de um procedimento muito
semelhante, para não dizer idêntico, ao que se encontra
presente no célebre argumento do «terceiro homem»,
com o qual Aristóteles pensará ter refutado a teoria das
ideias. Com base neste argumento, considerado até o
mais conhecido da filosofia antiga, se se postular a exis-
tência de uma ideia de homem (um segundo homem)
para explicar a posse de uma característica comum (o
ser-homem) por parte de mais do que um indivíduo,
será necessário admitir uma segunda ideia de homem
(eis o terceiro homem) que dê conta do ser-homem da
primeira ideia de homem e do conjunto dos homens
empíricos. O argumento baseia-se na aceitação implíci-
ta de dois pontos: o da auto-predicação, que assere que
uma ideia possui a propriedade que transmite aos ou-
tros de forma causal; e o da não-identidade, que proíbe
que a causa de uma característica possuída por mais do
que um indivíduo seja idêntica a um desses indivíduos.

153
Em boa verdade, a formulação padrão da conceção
eidética fornece o instrumento conceptual capaz de pre-
servar a teoria da refutação do «terceiro homem». De
facto, o modo como a ideia de belo possui a proprieda-
de da beleza é logicamente diferente do modo como as
outras coisas belas a possuem: estas são belas «por parti-
cipação», enquanto que o belo em si é belo de maneira
identitária, no sentido que exprime perfeitamente o sig-
nificado do predicado «belo». Por outras palavras, nas
duas asserções «Helena é bela» e «o belo em si é belo»,
o «é» não possui o mesmo valor: ele é participativo, no
primeiro caso, e identitário, no segundo. Mas a tese
da não-identidade é aplicável só aos casos de relação
participativa, não àqueles em que o verbo ser ganha um
valor identitário ou quase-identitário. Por esta razão,
a ideia de belo pode ser também «bela», sem que isso
determine a exigência de postular uma segunda ideia de
belo. Deste modo, dever-se-ia parar o recuo ao infinito
originado pelo exemplo do «terceiro homem».
Existe também outra imagem de que Platão faz uso
para exprimir a relação entre as ideias e os fenómenos
particulares: trata-se da «comunhão» (koinonia) com
a qual se quer provavelmente aludir a uma espécie de
«presença» – naturalmente metafísica – das ideias nas
coisas. Em todo o caso, convém observar que o uso sis-
temático de metáforas constitui o indicativo mais evi-
dente da consciência que o filósofo tinha da natureza
problemática e ambígua da relação entre ideias e fenó-
menos particulares.
Em muitos pontos do corpus Platão defende que as
ideias são «causas» (aitiai) das outras coisas. Os estu-

154
diosos não parecem estar de acordo sobre o significado
desta tese. Segundo a interpretação clássica, ainda hoje
largamente difusa, a causalidade das ideias é de natu-
reza lógico-explicativa. As formas, estando separadas
das coisas sensíveis, não podem agir concretamente
nestas e determinar as suas características. Portanto,
a sua função causal é essencialmente de natureza ló-
gica, no sentido que a referência às ideias, exemplares
perfeitos de uma certa qualidade, permite ao sujeito
cognoscente reconhecer esta qualidade num indiví-
duo que a possui de maneira derivada e imperfeita.
As ideias seriam então causas enquanto princípios
lógicos de reconhecimento e parâmetros capazes de
tornar sensata a atribuição de um predicado a mais
do que um sujeito. Todavia, é possível – em certos as-
petos até provável – que Platão tenha levado em con-
sideração a possibilidade de atribuir às ideias um tipo
de causalidade mais forte relativamente à causalidade
lógico-explicativa. Dado que para ele a noção de cau-
sa (aition-aitia) revela estar estritamente ligada com
a, chegando até a sobrepor-se à, qualidade de agente,
nos últimos anos tem-se formado entre os estudiosos
a convicção de que a causalidade eidética é também
de natureza produtiva e deve ser relacionada com a
geração real de efeitos. Sobretudo no plano cosmo-
lógico, como demonstra o Timeu (cf. § 7), o mundo
das ideias parece exercer efetivamente uma ação, mais
ou menos direta, sobre a realidade espácio-temporal,
causando a posse de determinadas características nos
indivíduos que a povoam. É claro, contudo, que uma
interpretação deste género determina, por sua vez, uma

155
série de dificuldades de relevo, ligadas à atribuição de
um papel ativo e eficiente a entidades que deveriam re-
sultar absolutamente «separadas». A tal propósito, não
se deve esquecer que a noção de separação reveste um
significado lógico mais do que físico-espacial.
Uma das teses mais conhecidas relativas às ideias
concerne à sua natureza epistemológica, isto é, ao
modo como elas podem ser conhecidas. Para Platão,
as formas são inteligíveis, quer dizer, visíveis com o
olho da mente. Isto significa que a faculdade ou fun-
ção através da qual o ser humano chega ao seu co-
nhecimento reside na parte racional da alma e desem-
penha, consoante o caso, o papel de intelecto (nous),
de inteleção (noesis), de cálculo racional (logismos) ou
simplesmente de raciocínio (logos). Ainda hoje os estu-
diosos não parecem ter chegado a um acordo acerca da
natureza deste conhecimento intelectual, que alguns
consideram imediato e intuitivo, enquanto que outros
o definem discursivo e proposicional. De facto, nos
diálogos encontram-se afirmações que de certo modo
legitimam ambas as interpretações. Às vezes Platão pa-
rece comparar o conhecimento das ideias com uma
espécie de visão ou apreensão intelectual, comple-
tamente semelhante a uma visão ou a um contacto
sensível. Nestas passagens as ideias parecem ganhar as
características dos objetos que são «vistos» ou «toca-
dos» de maneira imediata e intuitiva pela alma. Em
outros casos, porém, Platão fala explicitamente do
conhecimento das ideias como se este fosse um pro-
cedimento de natureza discursiva que termina com a
definição proposicional da sua essência. No livro VII

156
da República, por exemplo, ele considera o dialético
aquele que é capaz de fornecer o logos tes ousias, isto
é, a definição essencial de cada coisa, quer dizer, de
cada ideia. Muitas vezes, sobretudo nos diálogos da
juventude, a investigação sobre «o que é» uma deter-
minada coisa é cadenciada pela sucessão de definições
que lhe dizem respeito. E nada induz a que se defenda
que para Platão conhecer o que é x não equivalha ao
fornecimento da definição de x, isto é, a uma proposi-
ção que descreva a natureza intrínseca de x.
Na verdade, a presença simultânea de perspetivas
tão diferentes acerca do modo como as ideias são co-
nhecidas explica-se tendo em conta a natureza ambí-
gua e, de certo modo, dupla destas entidades: por um
lado, elas são tratadas como indivíduos ontológicos
primos e absolutos, cognoscíveis por um ato de apre-
ensão imediata mas, por outro lado, têm as caracte-
rísticas universais dotadas de uma essência exprimível
por meio de uma proposição definitória. Se aos nossos
olhos pode parecer contraditório que uma mesma en-
tidade seja simultaneamente um indivíduo metafísico
(cognoscível intuitivamente) e uma característica uni-
versal (definível de forma proposicional), é provável
que aos olhos de Platão os dois aspetos pudessem coe-
xistir sem provocar problemas intoleráveis.
Resumindo o que foi dito até aqui, das ideias po-
de-se dizer que são entidades inteligíveis, unitárias,
indivisíveis, autoidênticas, perfeitas, eternas, logo in-
génitas e incorruptíveis, imóveis, sempre da mesma
maneira, ou seja, dotadas de uma condição inalterá-
vel; elas são pois as causas das coisas que delas partici-

157
pam, ou seja, dos chamados participantes, que devem
às ideias a posse de determinadas características e, em
geral, o serem assim; por fim, as ideias são realidades
universais (a justiça, a beleza), dado que se predicam
de muitos indivíduos, mas também indivíduos onto-
lógicos primos e absolutos (o justo em si, o belo em
si), pois realizam em si mesmos o significado do predi-
cado correspondente.
Este quadro relativo à versão padrão da teoria das
formas não se pode considerar completo sem se men-
cionar a ideia de bem (ou do bom). Em muitos diá-
logos, Platão parece tratar esta entidade como trata as
outras ideias, não lhe reconhecendo um estatuto espe-
cial. Na República, pelo contrário, ele atribui à ideia
do bem uma colocação excecional, acima das ideias
normais. O modo como Platão expõe as suas convic-
ções e, em especial, a escolha de recorrer a uma analo-
gia em vez de a uma exposição, é fonte de problemas
interpretativos notáveis que até aos dias de hoje não
têm uma solução definitiva. Segundo Platão, a ação
da ideia do bem no campo inteligível deve ser com-
parada à ação exercida pelo sol no mundo sensível. Se
este é causa da visibilidade dos objetos, dado que por
meio da luz os torna visíveis, permitindo aos olhos que
ativem a sua potencialidade visual, o bem é causa da
visibilidade inteligível das ideias, pois as torna cognos-
cíveis, consentindo que a inteleção (noesis) se exerça,
que é o inteligível análogo à vista. Neste sentido, o
bem é causa de conhecimento (episteme) e de verdade
(aletheia) e, precisamente enquanto causa, é superior
a ambas as noções. Ele fornece à alma e, em especial,

158
à sua função intelectual, a potencialidade (dynamis)
cognoscitiva, sem identificar-se com o intelecto, mas
sendo de certo modo superior a ele.
Além de ser causa epistémica (de conhecimento e
verdade), o bem é também causa ontológica visto que
dá às realidades inteligíveis, isto é, às outras ideias, o
ser substancial (ousia), quer dizer, o conjunto das ca-
racterísticas que qualificam as ideias enquanto ideias.
De facto, tal como o sol transmite às coisas geradas
o princípio da geração, também o bem dá às outras
ideias aquilo que as torna verdadeiramente ideias, ou
seja, as propriedades eidéticas que distinguem as for-
mas das outras coisas: imutabilidade, perfeição, abso-
luto, eternidade, autoidentidade, ausência de geração,
etc. Enquanto causa do ser das ideias, o bem é supe-
rior ao ser, ou melhor, à substância ou essência, como
se deduz da celebérrima fórmula segundo a qual ele
é epekeina tes ousias, isto é, «está além da essência»,
que transcende «por prestígio e potência». Sobre esta
expressão correram rios de tinta já no mundo antigo.
Plotino e os neoplatónicos, por exemplo, viram nela
uma referência direta à transcendência ontológica e
epistémica do princípio da realidade (cf. cap. VII, § 3 e
cap. VIII, §§ 2, 4). Ainda hoje os estudiosos discordam
quanto ao significado da expressão platónica, alguns
defendendo que ela estaria a aludir à transcendência
e à incognoscibilidade do bem, e outros que a inter-
pretação correta deveria ser buscada noutra direção,
na verdade menos empenhadora do ponto de vista fi-
losófico. De resto, as afirmações contidas nos livros
VI e VII da República oscilam entre a atribuição de

159
um estatuto hiperontológico ao bem, ou então hipe-
ressencial, e a sua colocação no âmbito do mundo das
ideias, expressão máxima e perfeita do ser e da cognos-
cibilidade (não esqueçamos que o bem é uma ideia,
embora sui generis). Na verdade, a causa destas oscila-
ções contínuas deve ser procurada na própria natureza
do bem, que é simultaneamente limite extremo do ser
inteligível e causa dele. Enquanto causa da ousia das
outras ideias, o bem é superior a esta ousia, mas, sem-
pre enquanto causa, ele deve possuir de certo modo a
qualidade que transmite às outras coisas. Tal como o
fogo é causa do calor das outras coisas, sendo ele tam-
bém quente (em forma prototípica), também o bem
é causa do ser das ideias, possuindo ele também de
forma absoluta o ser de que é causa. Tal como o fogo
é absolutamente a coisa mais quente de todas, sem ser
idêntico ao calor (a essência do fogo não é idêntica à
essência do calor), também o bem é o que possui o ser
(to on) em máximo grau, sem todavia se identificar
tout court com o ser em si.
Com a conceção do bem, a doutrina das ideias
atinge o limite extremo do inteligível. Nesta zona as
tensões e as ambiguidades teoréticas parecem vencer
a transparência que caracterizara o tratamento das
ideias. Trata-se provavelmente do resultado inevitável
de todas as tentativas de unificação num só objeto da
ética, da ontologia e da teoria do conhecimento. De
resto, nesta atitude unificante reside a essência mesma
do platonismo.

160
7. ONTOLOGIA E COSMOLOGIA

A partir de meados dos anos sessenta do século IV,


a reflexão platónica sobre a conceção das ideias parece
sofrer uma reviravolta parcial, orientando-se do inte-
resse inicial pela relação entre as formas inteligíveis e
os fenómenos particulares sensíveis para o exame das
relações internas do universo eidético. Isto não signifi-
ca – convém pontualizá-lo – que o tema da participa-
ção do sensível no inteligível desapareça do horizonte
filosófico de Platão (esse continua ainda muito pre-
sente na primeira parte do Parménides e no Timeu);
todavia, a leitura de diálogos como o Sofista, o Filebo
e, dentro de certos limites, também o Teeteto, parece
demonstrar que a questão da natureza lógica das ideias
– e do tipo de relação que liga cada uma delas às outras
– adquire uma importância sempre maior.
Na realidade, os primeiros indícios deste interes-
se pela natureza lógica das ideias encontram-se na
segunda parte do Parménides. Aqui Platão, por boca
do grande Eleata, expõe um jogo dialético audaz que
visa deduzir de algumas hipóteses de partida todas as
consequências possíveis. Este mecanismo dedutivo
complexo é, na verdade, um exercício, uma ginásti-
ca (gymnasia) preparatória para a verdadeira atividade
filosófica. Embora não seja consagrada inteiramente
às ideias, ela contém muitos tópicos que parecem an-
tecipar as reflexões sobre as ideias que Platão desen-
volverá nos diálogos seguintes, em especial no Filebo
e no Sofista. Com efeito, na segunda parte do Parmé-
nides assiste-se à contraposição entre dois modelos de

161
individualidade diferentes: por um lado, apresenta-se
um indivíduo «austero», completamente fechado em
si mesmo, sem nenhuma relação com o que está fora
de si; por outro lado, examinam-se as consequências
derivantes da admissão de um indivíduo «generoso»
que constrói a sua entidade ontológica por meio de
uma série de relações com entidades diversas dele.
Todo o exercício feito por Parménides tem por objeto
o «uno», que pode ser considerado «em relação a si
mesmo», ou seja, como uma entidade completamente
austera e isolada (o uno que é um); ou então, «em
relação a outra coisa», isto é, como uma entidade que
entra num sistema complexo de relações com outras
entidades (o um que é). No primeiro caso produz-se
uma espécie de anulamento da própria hipótese, por-
que deste uno não se pode dizer nada, dado que cada
atribuição implicaria uma relação com outrem e, por
conseguinte, a negação do isolamento admitido por
hipótese. Trata-se do uno que os neoplatónicos colo-
carão no topo do seu sistema metafísico. Vice-versa,
no segundo caso, o uno pode assumir todos os pre-
dicados possíveis e a tarefa do dialético será gerir esta
complexidade com atenção, evitando que se atribuam
predicados autocontraditórios ao uno. Se transferir-
mos estas considerações de ordem geral para o caso
das ideias, o ensinamento que deveríamos obter seria
a sugestão de considerar cada ideia não como uma re-
alidade isolada e austera, destituída de relações com
outras que não ela mesma, mas como uma entidade
complexa e articulada – neste caso, «múltipla» – inse-
rida numa trama espessa de relações com outras ideias.

162
No início do Filebo enfrenta-se de peito a ques-
tão central da ontologia do último Platão, ou seja, o
problema de saber que tipo de multiplicidade possa
ser atribuída às ideias. Nos diálogos do período cen-
tral as formas inteligíveis eram unidades absolutas e
perfeitas às quais se contrapunha a multiplicidade
dos fenómenos sensíveis: à ideia de homem, única e
separada, correspondiam os muitos homens empíri-
cos em que a ideia se manifestava. Também no File-
bo as ideias são vistas como «énades», isto é, unidades
colocadas acima da multiplicidade dos fenómenos
particulares que lhes correspondem. Todavia, neste
diálogo Platão pergunta-se se a tais unidades se
pode atribuir uma certa forma de multiplicidade. A
hipótese que cada ideia seja múltipla em virtude da
pluralidade dos fenómenos particulares em que se
manifesta é totalmente descartada. O facto que cada
ideia esteja «presente» numa multiplicidade de coisas
diversas e separadas entre si não implica, como vimos
(§ 6), multiplicação nem divisão da ideia: a ideia não
possui «partes que são instâncias», isto é, ela não é
pluralizável num número de partes que corresponde
às suas instâncias. Existe, todavia, outra noção de
multiplicidade, esta, sim, aplicável às ideias. Não se
trata da multiplicidade produzida pela pluralização
de cada forma nas suas instâncias, mas daquela que
origina a trama de relações intraeidéticas em que cada
forma está inserida. Platão está a aludir ao complica-
do sistema de organização por géneros e espécies que
determina a natureza de cada ideia. De facto, a parti-
cipação não se limita à relação das coisas sensíveis com

163
as ideias, mas toca também as relações intraeidéticas.
Cada ideia constrói a sua essência através de um siste-
ma de relações participativas com outras ideias. Deste
modo ela torna-se «múltipla», isto é, estruturada, sem
com isso perder a própria unidade. As partes de que
se compõe cada forma são assimiláveis a «proprieda-
des» porque definem a identidade ontológica daquela
forma, distinguindo-a de todas as outras. A ideia de
homem, por exemplo, é quer uma unidade ontológica
absoluta, quer um sistema complexo em que conver-
gem outras formas, como as de «animal», «bípede»,
«racional». Conhecer uma ideia equivale, como vimos,
a fornecer uma definição essencial dela que devolva
em forma proposicional a sua essência complexa.
É a doutrina que Platão apresenta no Filebo, sob
forma de um «dom divino» revelado por homens sá-
bios, a fundar ontologicamente a presença simultânea
de um aspeto unitário e de um aspeto múltiplo em
cada ideia. Falamos da célebre conceção segundo a
qual as énades, ou seja, as ideias, são constituídas por
unidade e multiplicidade (ek henos kai pollon) e têm
ínsitos em si mesmas o limite e o ilimitado (peras kai
apeiria). Cada ideia apresenta pois uma natureza du-
pla, sendo ao mesmo tempo uma e múltipla. A mul-
tiplicidade é dada pelo sistema de relações, também
genérico-específicas, que concorrem para determinar
o seu ser. A tarefa do dialético consiste então em es-
tabelecer exatamente o número de determinações que
entram na estrutura predicativa de cada ideia. A na-
tureza numérica das ideias, muitas vezes evocada nos
testemunhos antigos relativos à misteriosa teoria das

164
ideias-números, deveria ligar-se precisamente a este
espectro teórico.
O conteúdo das famosas «doutrinas não-escritas»
parece religar-se ao contexto teórico delineado na pri-
meira parte do Filebo e antecipado na segunda parte do
Parménides. Segundo Aristóteles, de facto, Platão teria
reconhecido a existência de dois princípios superiores
às ideias, quer dizer, o uno e a díade (indetermina-
da) do grande e do pequeno. Ao primeiro dever-se-ia
atribuir a natureza unitária e indivisível de cada ideia,
enquanto que a segunda seria causa da multiplicidade
predicativa que caracteriza cada ser, logo também as
ideias. De resto, as próprias doutrinas não-escritas alu-
dem de certo modo à natureza numérica de cada ideia,
que é produzida pela ação de determinação exercida
pelo uno para com o princípio de indeterminação da
díade. A essência de cada ideia deveria depender pre-
cisamente da fixação do indeterminado por obra do
uno, que engloba uma pluralidade de determinações
na unidade de cada forma inteligível.
A introdução de uma perspetiva relacional no seio
do mundo das ideias constitui o pano de fundo teó-
rico no qual deve ser colocada a grande discussão so-
bre o ser contida no Sofista: a célebre gigantomachia
peri tes ousias, ou seja, a «batalha sobre o ser». Cada
ideia – dissemos – apresenta também uma natureza
múltipla determinada pelo sistema de relações em que
se encontra inserida. Do ponto de vista platónico a
existência de relações intraeidéticas explica-se fazen-
do recurso mais uma vez à conceção da participação.
Também as ideias, não só os fenómenos particulares,

165
podem participar das ideias e a esta participação de-
vem a posse de determinadas características. A ideia
de homem, por exemplo, participa da ideia de vivente
e por isso se pode dizer que o homem é um vivente.
Na verdade, encontram-se alusões a este princípio da
participação recíproca entre certas ideias também em
diálogos da juventude, mas só no Sofista (com algu-
ma antecipação no Parménides) o tema adquire uma
relevância central. Neste diálogo Platão esforça-se por
demonstrar a existência de relações de compatibilida-
de e de inclusão, mas também de incompatibilidade e
de exclusão entre as ideias. Estas relações representam
o sistema das condições necessárias (mas não suficien-
tes) da verdade das relações entre as coisas. Que a ideia
de homem seja compatível com o predicado «estar
sentado» é condição necessária, mas não suficiente, da
verdade do enunciado «Teeteto está sentado», enquan-
to que a incompatibilidade entre a ideia de homem e
o voar é condição suficiente da falsidade do enunciado
«Teeteto voa».
Uma primeira, provisória análise das relações de
inclusão-exclusão entre as ideias permite que Platão
formule algumas reflexões de extraordinária relevân-
cia filosófica. Ele identifica algumas ideias, chamadas
«géneros», dotadas de extensão excecional, pois que
todas as outras parecem participar destas. O ser, por
exemplo, pertence a estas ideias gerais, porque cada
realidade – e, por conseguinte, cada ideia – participa
dele na medida em que ela é; junto do ser Platão men-
ciona o idêntico e o diverso, cuja fantástica extensão
é determinada pelo facto que cada realidade, além de

166
«ser» (e, por conseguinte, participar do ser), é idên-
tica a si mesma, e por isso participa do idêntico e é
diversa das outras, logo participa também do diverso.
Encontrando no diverso um dos géneros sumos, Pla-
tão é induzido a aprofundar, em polémica com Par-
ménides, as relações entre esta entidade e o não-ser.
Enquanto que Parménides tinha expulso o não-ser de
cada discurso acabando por privar de referente todas
as negações (mesmo aquelas de natureza predicativa
como «x não é y»), Platão reconduz o não-ser relativo,
quer dizer, aquele predicativo, ao diverso, explicando
que a negação implícita do não-ser não é absoluta, isto
é, não se estende a todas as formas de ser, mas é sim
relativa, dado que diz respeito a um ser determinado.
Cada ideia, enquanto for aquela determinada ideia,
não é todas as outras, e enquanto possuir de forma
participativa determinadas características, não é idênti-
ca àquelas características. A atribuição de uma dimen-
são relativa ao não-ser e a recondução à «diferença»
constituem os pontos cardeais do que o próprio Platão
define como sendo o «parricídio», a morte do seu pai
espiritual, o «venerando e terrível» Parménides.
Na teoria da mistura de géneros (koinonia ton ge-
non) está implícita outra tese fundamental à qual Pla-
tão chega mediante o confronto de duas posições irre-
dutíveis uma à outra. A primeira é a dos materialistas,
que dão dignidade ontológica somente ao que é cor-
póreo e percetível com os sentidos; a segunda é atri-
buída aos misteriosos «amigos das formas» e consiste
em dar o verdadeiro ser às ideias, inteligíveis, imóveis e
incorpóreas. O impasse teórico a que chega o confron-

167
to entre estas duas teses absolutamente inconciliáveis,
leva Platão a avançar uma nova definição de «ser» que
seja capaz de compreender quer os corpos dos mate-
rialistas quer as ideias dos amigos das formas. Sob esta
noção de ser está «tudo o que possui uma qualquer,
mesmo mínima, capacidade de agir e de padecer».
Atividade e passividade servem então para qualificar
as ideias, que uma interpretação ingénua, como a dos
amigos das formas, podia, pelo contrário, considerar
como sendo de todo imóveis e inativas. O «movimen-
to» (kinesis) das formas inteligíveis parece ocupar duas
posições diferentes: por um lado, as ideias, enquanto
são objeto de conhecimento intelectual e são conhe-
cidas pela alma, movem-se e padecem uma ação, ou
seja, a atividade da alma que no ato de conhecer as for-
mas as torna cognoscitivas, ao exercer uma ação sobre
elas; por outro lado, a dinâmica participativa que con-
cerne diretamente também às ideias, determina um
sistema de relações intraeidéticas em que cada forma,
entrando em relação com as outras, produz e padece
efeitos. Quando a ideia participa de outra ideia, entra
em contacto com esta e dispõe-se a padecer uma mu-
dança. Trata-se evidentemente de um movimento não
temporal, mas ainda assim de um movimento; disto
resulta que também o movimento deve ser considera-
do como um dos géneros do ser, juntando-se, mais o
sossego, aos três obtidos anteriormente, ou seja, o ser,
o idêntico e o diverso.
A atribuição de uma dinâmica intrínseca ao ser, e
também ao ser eidético, mostra ser o ponto de partida
da ontologia desenvolvida no Timeu, onde Platão se dá

168
como objetivo explicar em termos filosóficos a génese
e a natureza do cosmo físico. O protagonista da obra
é Timeu, uma das poucas figuras de fantasia presentes
nos diálogos (Platão parece descrevê-lo como pitagóri-
co). Ele afirma logo que o seu discurso, tal como qual-
quer exposição que se refira a uma realidade gerada,
não poderá pretender ser exato e preciso como um ra-
ciocínio científico, isto é, não poderá ser «verdadeiro»,
mas, no melhor dos casos, «verosímil», isto porque o
estatuto epistemológico dos discursos depende da na-
tureza ontológica do objeto ao qual se dirigem. Um
discurso verdadeiro, ou seja, certo, universal e estável,
será possível somente se o seu objeto for estável, isto
é, se for constituído pelo ser; pelo contrário, em torno
ao devir, ou seja, ao mundo sensível, poder-se-ão de-
duzir só discursos verosímeis, quer dizer, semelhantes
aos verdadeiros, mas sem a estabilidade destes. Todo o
tratamento da origem e da constituição do cosmo fí-
sico mostra estar sujeito ao vínculo epistemológico da
verosimilhança. Convém não esquecer que este víncu-
lo concerne às afirmações relativas ao mundo sensível
e não pode ser estendido também às que se referem
aos princípios metafísicos deste mundo, quer dizer, às
ideias, que também no Timeu desempenham um pa-
pel de primeiro plano.
O mundo, segundo Platão, é o produto da ação
combinada de duas causas, uma inteligente e racional,
a outra necessária e sem finalidade racional. A narra-
ção de Timeu consiste na descrição – dividida de for-
ma temporal – do processo atemporal de ordenamen-
to do indeterminado por parte do princípio racional,

169
ou melhor, para usar as palavras de Platão, da obra
de «persuasão» que a inteligência atua relativamente
à necessidade. Na realidade, inteligência (nous) e ne-
cessidade (ananke) ganham aspetos diversos durante o
diálogo (ideias e espaço, alma e corpo, etc.), segundo
os diferentes contextos, mas essencialmente permane-
cem as duas únicas causas às quais se confia a tarefa de
explicar o mundo sensível.
Durante esta exposição mencionou-se várias ve-
zes a função causal das ideias. A propósito do Sofis-
ta, observou-se que o mundo do ser, ou seja, o das
ideias, possui uma espécie de dinâmica intrínseca. No
Timeu esta tese parece encontrar uma síntese teórica
consistente. De facto, as ideias ganham diretamente
a função de causas ativas do mundo sensível, isto é,
de agentes produtores do devir. Como é sabido, na
narração de Timeu o papel de agente da geração do
mundo é atribuído a uma figura misteriosa e bizarra,
o demiurgo, o qual, por meio de um ato semicriativo,
daria vida ao cosmo, ordenando com base no mode-
lo das ideias o substrato indeterminado pré-existente.
Ainda hoje muitos intérpretes cometem o erro de
atribuir ao demiurgo uma autonomia ontológica ple-
na, dando-lhe a qualificação de princípio e pondo-o
ao lado das ideias e da causa necessária. Na verdade,
Platão deixa entender claramente que o demiurgo re-
presenta uma espécie de metáfora da ação causal das
ideias. Estas ganham as características de um «vivente
inteligível», isto é, de um princípio ativo que, além de
constituir o modelo inteligível do mundo, é a sua cau-
sa produtiva. O aspeto ativo da causalidade eidética é

170
metaforizado – ou dramatizado – através do recurso
a esta figura bizarra, muitas vezes considerada uma
espécie de princípio independente das ideias mas, na
realidade, completamente redutível a estas. De resto, a
função demiúrgico-produtiva das ideias é metaforiza-
da também ao recorrer-se a imagens diferentes, como
a da impressão deixada num bloco de cera. De facto,
os corpos sensíveis são concebidos como «impressões»
que as ideias deixam no substrato espácio-material,
quer dizer, numa entidade (expressão física da causa
necessária), que Platão chama de «espaço» (chora),
«recetáculo», «ama», assimilada também a um bloco
de bronze disponível a ganhar as formas mais diver-
sas. O uso sistemático de metáforas e analogias para
descrever o processo de geração ontológica dos corpos
físicos, isto é, a participação das coisas das ideias, teste-
munha quão consciente Platão estivesse da problema-
ticidade deste nó teórico, aparentemente sem solução
se se usarem só os meios do discurso assertivo.
No Timeu, um dos aspetos mais significativos da
reflexão matura de Platão acha expressão de forma
completa: a procura de entidades e estruturas que
sejam capazes de mediar a presença do inteligível no
sensível. A mais conhecida destas substâncias é prova-
velmente a alma do mundo, à qual se atribui a tarefa
de governar o cosmo sensível. Este, enquanto cópia do
um vivente inteligível, está também vivo, como de-
monstram, de resto, a animação e a motricidade que
o caracterizam. Porque cada ser vivo deve possuir uma
alma, de que dependem todos os seus processos ciné-
ticos (crescimento, movimento local, etc.); esta é pre-

171
cisamente a alma do todo (psyche tou pantos), ou seja,
a alma cósmica. Sendo formada quer pela substância
indivisível, isto é, pelas ideias, quer pela substância di-
visível em corpos, ela representa um princípio media-
no entre ser e devir e pode transmitir a racionalidade
e a ordem do primeiro para o mundo sensível. A pre-
sença da alma manifesta-se, por exemplo, na natureza
ordenada dos movimentos dos corpos celestes, que re-
presentam a expressão da racionalidade do cosmo que
melhor se aproxima da perfeição do mundo das ideias.
Uma função de mediação igualmente importante
como a da alma é exercida, sempre no Timeu, pelos
entes matemáticos e, em especial, pelos números e
pelas figuras geométricas. Para Platão, de facto, a rea-
lidade material é reconduzível a princípios de ordem
matemática através de um processo de resolução analí-
tica. Os elementos naturais da tradição empedocliana
– ar, água, terra e fogo – não só não representam as
«letras» de que são compostos os corpos, como não
podem sequer ser assimiladas às «sílabas». Na verdade,
cada um deles é divisível em poliedros regulares (o oc-
taedro para o ar, o icosaedro para a água, o tetraedro,
isto é, a pirâmide, para o fogo e o cubo para a terra),
por sua vez reduzíveis em dois triângulos retângulos
fundamentais, o escaleno e o isósceles. Este processo
de resolução permite reconduzir as propriedades físi-
cas dos corpos (mobilidade, peso, solidez) à estrutura
geométrica dos sólidos de que são compostos e simul-
taneamente fornece uma espécie de «lei de transforma-
ção dos elementos» porque explica como a passagem
de um elemento a outro seja possível pela existência

172
de componentes fundamentais comuns a todos (só a
terra é excluída destes processos de transformação).
A presença do inteligível no sensível acha expressão
na característica geométrico-matemática das compo-
nentes últimas dos corpos materiais. A génese onto-
lógica (não temporal) do mundo é concebida como
um incessante processo de racionalização e ordena-
mento do indeterminado aplicado pelas ideias através
das projeções espaciais, isto é, de figuras geométricas.
Quando Platão põe na boca de Timeu que o demiurgo
se serve de números e figuras para ordenar o substrato
segundo o modelo das ideias, ele exprime de forma
metafórica uma posição filosófica muito semelhante à
que acabámos de delinear.

8. O MITO, A ALMA, A FILOSOFIA

Se a alma do mundo e os entes matemáticos de-


sempenham a sua função mediadora no plano cósmi-
co, o instrumento de que Platão se serve para fazer
conexões, para sugerir analogias no âmbito do discur-
so filosófico, é o mito. O mythos é um conto, muitas
vezes de cunho platónico, em que uma determina-
da matéria, suscetível ou não de ser apresentada de
forma demonstrativa, é exposta como uma narração.
Frequentemente o leitor dos diálogos vê a sequência
argumentativa do discurso filosófico ser interrompida
– sequência que se desenvolve por teses, refutações e
demonstrações – por contos em que o conteúdo, em
vez de ser argumentado e demonstrado, é apresentado
de maneira assertiva ou simbólica. Em alguns casos

173
o mito limita-se a expor de forma narrativa aquilo
que o discurso racional demonstrou, sem acrescentar
modificações ao conteúdo. Noutros casos, pelo con-
trário, do mito parece emergir um excesso de con-
teúdo relativamente à modalidade comunicativa de
tipo demonstrativo e racional. Na verdade, é quase
impossível indicar com precisão qual é a natureza e
a função do mito platónico justamente porque elas
variam consoante os contextos discursivos em que o
conto está inserido.
Um exemplo de mito – mas seria mais apropriado
falar de alegoria – que não parece conter um verdadei-
ro surplus informativo em relação à secção argumen-
tativa que o precede é provavelmente o celebérrimo
conto da caverna exposto no livro VII da República.
A condição do homem relativamente ao conhecimen-
to da realidade é comparada com a de alguns prisio-
neiros agrilhoados numa caverna. Atrás deles há um
muro por detrás do qual outros homens passam tendo
nas mãos estatuetas que fazem aparecer por cima do
muro. Um fogo colocado atrás deles projeta no fundo
da caverna as sombras das estatuetas de maneira a que
os prisioneiros, com o olhar dirigido para o fundo da
caverna, sejam convencidos de que aquelas sombras
são a única e autêntica realidade. Se fossem libertados,
teriam dificuldade em convencer-se de que as sombras
eram reflexos de objetos (as estatuetas) dotados, de
certo modo, de uma maior consistência ontológica e
veritativa. Se depois lhes fosse permitido que saíssem
da caverna e admirassem as realidades que se encon-
tram no mundo e até que dirigissem o olhar para o sol,

174
provavelmente os seus olhos não conseguiriam supor-
tar a luminosidade. Portanto, é inevitável que, se um
destes prisioneiros libertados voltasse para a caverna
e contasse o que viu lá fora, seria tido como louco
e acabaria por ser isolado dos outros. A condição do
filósofo na cidade é parecida com a deste prisioneiro: a
visão que ele tem das ideias e da ideia do bem asseme-
lha-se muito à do prisioneiro libertado, enquanto que
o juízo que os outros homens têm dele lembra o dos
prisioneiros que ficaram agrilhoados. Como se vê, nes-
ta narração não se introduzem conceções verdadeira-
mente novas em relação ao resto do diálogo. Todavia,
o mito oferece um extraordinário olhar abrangente
da condição humana, tendo como objetivo sugerir de
maneira fortemente evocativa a necessidade de uma
radical reorientação da alma. Além do mais, com o
conto do regresso do prisioneiro libertado à caverna
alude-se, também aqui de forma metafórica, ao dever
que o filósofo tem de voltar para estar entre os homens
e para os guiar baseando-se em modelos ideais que ele
conheceu. Deste modo, a constrição a governar, apre-
sentada de forma impositiva nos livros anteriores, no
mito adquire as características de um dever moral ao
qual o filósofo não se pode realmente subtrair.
Um dos âmbitos em que o recurso ao mito é mais
frequente é certamente representado pelo tema do
destino ultramundano do homem e da sua alma. Um
caso emblemático encontra-se no livro X da Repúbli-
ca, onde Platão apresenta a tese da sobrevivência da
alma relativamente ao corpo, quer como argumento
filosófico quer através da narração de um mito que diz

175
respeito à visão ultraterrena. No plano argumentativo
a conceção da imortalidade da alma é demonstrada re-
correndo ao princípio segundo o qual cada coisa pos-
sui um mal que lhe é próprio e que pode determinar o
seu fim. No caso do corpo, por exemplo, o mal consis-
te na doença que pode levar à morte. Pelo contrário,
o mal próprio da alma é a injustiça, correspondente à
doença do corpo. Todavia, esta não implica a morte
da alma, logo, segundo Platão, a alma é imortal, dado
que não se deixa aniquilar nem pelo mal que lhe é pró-
prio. Depois de aceitar este resultado, Platão passa à
fase «mítica» da sua exposição, apresentando a história
da aventura ultramundana do soldado Er, que narra a
visão que teve durante os dias passados no além. As al-
mas, que tinham sobrevivido à morte dos seus corpos
e tinham gozado dos prémios ou sofrido as punições
pela vida passada, estavam juntas para escolher o tipo
de corpo, isto é, a forma de vida, em que se encarna-
riam na existência sucessiva. A escolha de uma vida
virtuosa (de um filósofo, mas também de um simples
cidadão) em detrimento de uma injusta (por exemplo,
de um tirano) dependia unicamente da alma, que se
considerava a única responsável pela virtude ou pelo
vício. Além do mais, a referência aos prémios e às pu-
nições que cabiam à alma no além tinha o objetivo de
reforçar a tese de que é preferível a vida justa à injusta.
Com efeito, a ética construída por Platão na República
é essencialmente uma ética laica, porque fornece um
critério intrínseco à escolha da justiça, que consiste na
felicidade que ela, como saúde da alma, traz consigo.
Todavia, o mito de Er, com a menção aos prémios e

176
às punições no além, dota esta ética de uma espécie
de suplemento persuasivo, que é também retórico e
religioso, capaz de, com mais força, exortar o homem
a ser justo.
O tema da imortalidade da alma regressa com uma
certa frequência nos diálogos platónicos. Em alguns
casos, afirma-se simplesmente a ideia de que a alma é
imortal, noutros casos argumenta-se por meio de au-
tênticas demonstrações. A obra onde o tema é muito
mais debatido é decerto o Fédon, considerado já na
antiguidade um diálogo peri psyches, isto é, «sobre a
alma». Nesta obra apresentam-se e discutem-se quatro
demonstrações da natureza imortal da alma. Nem to-
das podem gabar-se da mesma força persuasiva e, de
resto, o próprio Platão parece ter consciência do cará-
ter, de certo modo, provisório – em alguns aspetos ad
hominem – destes argumentos. O recurso à reminis-
cência (cf. § 5), por exemplo, poderia suportar a cren-
ça na pré-existência da alma relativamente ao corpo,
mas não a da sua sobrevivência. A melhor das provas
contidas no Fédon é aquela que obtém a imortalidade
de modo analítico a partir da natureza ontológica da
alma. O argumento parte da admissão da existência
das ideias: as coisas são o que são em virtude da relação
participativa que têm com as ideias. Algumas realida-
des possuem uma característica essencial sem a qual
não poderiam ser o que são: o fogo, por exemplo, é
sempre quente, enquanto que a neve é sempre fria.
O mesmo acontece com a alma, à qual a vida é essen-
cialmente conatural. Isto significa que ela «participa
da vida» e não pode admitir em si uma determinação

177
contrária à propriedade que de certo modo a define.
Portanto, a alma não pode acolher em si a ideia da
morte que é contrária à vida, com o risco de perder
a própria identidade ontológica. Trata-se indubitavel-
mente de um argumento fundado numa espécie de
tautologia (alma = vida e, por conseguinte, entidade
imortal) que parece citar, de certo modo, o famoso
argumento ontológico que os filósofos medievais uti-
lizariam para demonstrar a existência de Deus. De
facto, Platão obtém a imortalidade da alma a partir da
sua própria essência, ou melhor, da definição essencial
(logos tes ousias) como «princípio de vida».
Outra prova importante a favor da imortalidade
da alma parece ligar-se, mesmo que indiretamente,
ao que acabámos de dizer. No Fedro, Platão parte da
tese de que o que se move sempre é imortal. Porém, é
evidente que só o que se move a si mesmo, sem pre-
cisar de um princípio extrínseco, poderá realmente
mover-se sempre. Ora, uma entidade do género, ou
seja, automovente, deverá obrigatoriamente identifi-
car-se com a alma, dado que o corpo ou a matéria,
considerados em si mesmos, não têm em si o princí-
pio do movimento. Só os seres animados possuem este
princípio extrinsecamente, ou seja, os que são dotados
de alma. Visto que não é o corpo que os move, será
forçosamente a alma, que é um princípio eterno de
automovimento, logo, imortal.
É difícil estabelecer em que medida Platão
acreditasse realmente na força demonstrativa destes
argumentos. A impressão é que os considerava
mais persuasivos que demonstrativos. Ora, isto não

178
significa que ele de certo modo não acreditasse na tese
da imortalidade da alma, mas só que aos seus olhos
uma ideia semelhante pertencia mais ao domínio da
opinião, eventualmente fundada em bases conjeturais,
do que à verdadeira demonstração filosófica. A crença
na imortalidade da alma permanece, antes de tudo,
um suporte à ética, ou seja, um argumento ulterior a
favor da necessidade de viver segundo a virtude.
Apesar da estruturação aparentemente intelectua-
lista do seu pensamento, Platão demonstra ter cons-
ciência da natureza dupla, juntamente sensível e in-
telectual, do ser humano e esforça-se por apelar-se a
todos os elementos que possam orientar a alma para a
filosofia e para o bem. Na verdade, a natureza humana
é de certa forma «filosófica» porque possui intrinseca-
mente aquela tensão que é característica fundamental
da filosofia. Este aspeto emerge mais uma vez através
de uma narração de um mito, mais precisamente, o
do nascimento de Eros, comummente considerado o
deus do amor. Na verdade, explica Platão no Banque-
te, por boca da sacerdotisa Diotima, que Eros não é
um deus, mas um daimon, isto é, um ser mediano co-
locado entre os deuses e os homens. Esta natureza in-
termédia deriva-lhe da combinação das características
dos seus pais, isto é, o pai Poros (Expediente) e a mãe
Penia (Pobreza ou Privação). De Poros, Eros recebe o
desejo das coisas belas e boas além da capacidade de
as obter, enquanto que da mãe lhe deriva a total falta
delas. Eros, portanto, não é um deus, que possuindo
já a beleza não a deseja, mas um daimon, que em vir-
tude do seu estado de privação é movido para a busca

179
do belo, demonstrando possuir simultaneamente os
meios para atuar esta busca.
A colocação intermédia de Eros representa para Pla-
tão a metáfora mais extraordinária e fecunda da natu-
reza do filósofo, que manifesta uma essência constitu-
tivamente «erótica», pois está a meio caminho entre a
ignorância dos homens comuns e a perfeita sabedoria da
divindade. De resto, na palavra philo-sophos está contido
um claro indício da natureza intermédia e tensional des-
ta figura: ele deixou de ser o sábio (sophos) da tradição
arcaica que possui de maneira perfeita e completa o co-
nhecimento supremo, nem é um ignorante que não sabe
o que nem como deve procurar, para ser aquele que de-
seja e ama (philein) a sabedoria e tende incessantemente
para ela. Portanto, a philo-sophia é o procurar do homem
pela perfeição das ideias, emblematicamente represen-
tadas pela ideia do belo, mas ao mesmo tempo, ela é
também a tentativa de aplicar ao mundo os modelos
normativos conhecidos intelectualmente. Dir-se-ia que
a prática filosófica enquanto tal cumpre aquela função
mediadora entre sensível e inteligível, entre paixão e ra-
zão, frequentemente evocada nestas páginas.
Na ascensão erótica descrita por Platão no Banquete
estão condensadas estas teses de maneira plástica. A sacer-
dotisa Diotima expõe a Sócrates o percurso cognoscitivo
que da beleza dos corpos conduz à visão do belo em si
(a célebre scala amoris). Se Eros é amor da beleza, ele irá
dirigir-se primeiramente à beleza dos corpos e, em par-
ticular, à beleza que se manifesta num só corpo; depois
irá apercebendo-se de que a beleza dos corpos está sub-
metida a um só princípio, quer dizer, que ela é uma e

180
idêntica e então será induzido a abandonar o interesse
por um só corpo; a terceira fase é representada pela
certeza, finalmente adquirida, de que a beleza da alma
é superior à do corpo; aqui ele será capaz de apreciar
a beleza dos produtos da atividade da alma, isto é, os
discursos, as leis e as constituições; por fim, será capaz
de abandonar toda e qualquer manifestação extrínse-
ca da beleza, isto é, qualquer expressão exterior sua,
para dirigir-se ao que a beleza é em si mesma, quer
dizer, ao belo em si, à ideia de belo. No cimo do pro-
cesso ascensional a beleza deixará de ser considerada
em outra coisa (num belo corpo, numa bela constitui-
ção), mas sim em si mesma, na sua perfeição eidética.
No percurso ascensional de Eros estão condensados
os dois elementos constitutivos da filosofia platóni-
ca: a aspiração ao conhecimento eidético, que é difícil
mas adquirível, e a ambição de aplicar no tempo e no
espaço dos homens este conhecimento por meio de
leis e constituições fundadas no saber filosófico.
É indubitável que nesta descrição age uma
componente anti-intelectualista que não deve ser
desvalorizada. Platão serve-se do que é o mais material
dos estímulos, isto é, o erótico, para orientar a alma
para o conhecimento supremo. De resto, um percur-
so deste tipo torna-se possível pelo estatuto particular
que se atribui à beleza, que é simultaneamente uma
característica percetível da sensação e um atributo on-
tológico do mundo das ideias.
Intensifica-se o significado do apelo a todas as
componentes do homem, corpóreas e intelectuais, na
última fase do pensamento platónico, graças também

181
à elaboração de uma doutrina tendente ao reforço do
nexo entre corpo e alma. No Timeu assiste-se a uma
autêntica localização somática dos três princípios psí-
quicos da República, cada um dos quais é colocado
numa região corpórea bem definida. A função calcula-
dora e racional está situada na cabeça, sede do cérebro;
a pulsão volitiva e colérica está no tórax entre o pesco-
ço e o diafragma; enquanto que o desejo reside na zona
sob o diafragma, ocupada pelas vísceras e pelos órgãos
sexuais. A consolidação das relações entre alma e corpo
gera um duplo efeito: por um lado, produz uma soma-
tização das funções psíquicas que leva a uma espécie de
‘medicação’ da desordem moral; por outro lado, gera
uma clara psicologização do corpo e das suas partes
que torna legítima uma prática educativa na qual os
elementos somático e psíquico sejam igualmente tidos
em conta. Este talvez seja o efeito mais evidentemente
antissocrático da reflexão platónica, que cessa de ver no
corpo um obstáculo à aquisição da virtude.
A filosofia platónica nasce da consciência, produzi-
da pela argumentação racional, da existência de cisões
à primeira vista inconciliáveis: entre ser e devir, entre
verdade e aparência, entre inteligível e sensível, entre
alma e corpo, entre razão e perceção, entre demons-
tração e conto; mas ela articula-se através de um inces-
sante processo de mediação que se baseia na certeza de
que a verdade e o bem existem e são cognoscíveis pelo
ser humano, e simultaneamente na consciência de que
este conhecimento é difícil de alcançar e está sujeito a
ser sempre posto novamente em discussão.

182
9. ENTRE FILOSOFIA E CIÊNCIA: A HERANÇA DE
PLATÃO NA ACADEMIA

Após a morte de Platão a direção da Academia foi


assumida por Espeusipo (nascido em 408), sobrinho
e discípulo do mestre, que manteve o escolarcado até
à morte, em 339. Sucedeu-lhe Xenócrates de Calce-
dónia (nascido em 396) que chefiou a instituição até
314. O escolarcado de Pólemon (314-266) coincidiu
com um período de relativa decadência da Academia,
que parece ter perdido os interesses teorético-científi-
cos a favor dos éticos e morais. Uma exceção parcial
foi provavelmente Crantor de Sólio (330-270 ca.) ao
qual se deve a redação de obras de comentário (hy-
pomnemata) a algumas das passagens mais difíceis do
corpus platónico, dentre as quais merecem menção as
passagens matemáticas do Timeu. A direção da escola
por parte de de Pítane pôs fim a esta fase intermediá-
ria marcando o triunfal ingresso do ceticismo na Aca-
demia platónica, o movimento filosófico destinado a
influenciar a vida da escola nos dois séculos seguintes
(cap. V, § 21).
Já durante as últimas décadas da vida de Platão as
discussões lógico-filosóficas ligadas à redação dos gran-
des diálogos dialéticos (Parménides, Sofista e Filebo)
eram apoiadas por pesquisas de caráter propriamente
científico, que passavam da biologia à astronomia e à
geometria. Nestes dois últimos setores disciplinares o
contributo de Eudoxo de Cnido (391-38), que talvez
tenha assumido a direção da escola durante uma das
ausências de Platão, foi extraordinário. A ele se deve

183
a formulação do primeiro modelo astronómico com
bases matemáticas capaz de dar razão dos movimentos
planetários e, em particular, das anomalias que estes
apresentavam. Em relação ao princípio-guia da astro-
nomia platónica, que afirmava que os movimentos
dos astros (que se davam à volta do centro do universo
representado pela terra) deviam mostrar-se perfeita-
mente regulares e uniformes, a observação apresentava
anomalias consistentes, as mais significativas das quais
eram constituídas por acelerações e abrandamentos
e por movimentos de retrogradação dos planetas.
Eudoxo – segundo a tradição, a convite de Platão –
soube reintroduzir estas anomalias nos fundamentos
gerais da astronomia platónica, explicando que cada
movimento aparentemente irregular era na realidade
a composição de mais do que um movimento, cada
um dos quais continuava a apresentar as característi-
cas da regularidade e da uniformidade. Em particular,
ele excogitou um sistema de esferas homocêntricas ou
concêntricas, isto é, dotadas de um mesmo centro,
que podiam explicar individualmente o movimento
de cada planeta. Um sistema do género foi herdado
por Aristóteles que fez dele a base da astronomia filo-
sófica exposta no livro XII da Metafísica (cap. IV, § 4).
As esferas homocêntricas de Eudoxo não eram contu-
do capazes de explicar outra anomalia importante nos
movimentos dos astros, ou seja, o facto, amplamen-
te observado, de durante a revolução à volta da terra
alguns deles se aproximarem desta (tornando-se mais
luminosos), para depois de afastarem novamente. O
modelo dos epiciclos e dos deferentes, desenvolvido

184
em inícios da época helenista, soube resolver esta ano-
malia e por isso substituiu quase de imediato o sistema
de Eudoxo. A importância da astronomia em âmbito
académico é testemunhada também pelo Epinómide,
obra atribuída na antiguidade a Platão, mas de autoria
de Filipe de Opunto, secretário de Platão e talvez re-
dator do texto definitivo das Leis.
No campo da geometria o contributo de Eudoxo
não foi menos significativo. Ele organizou de forma
sistemática a teoria das proporções e excogitou o mé-
todo de exaustão, fundamental para o cálculo de com-
primentos, áreas e volumes de difícil determinação.
Deste modo, forneceu tijolos ulteriores para o gran-
dioso edifício da geometria que dali a algumas décadas
seria sistematizado na obra de Euclides.
A obra de Espeusipo foi caraterizada também por
um interesse notável pela matemática. Ele chegou a
considerar os entes matemáticos como a única reali-
dade inteligível existente, negando deste modo con-
sistência ontológica às ideias. Talvez induzido pelas
dificuldades, ou melhor, pelas supostas dificuldades,
a que a teoria das ideias parecia dar origem, Espeu-
sipo substituiu-as pelos entes matemáticos (números
e figuras) no cimo da escala ontológica, que lhe pa-
receram as únicas entidades capazes de garantir um
conhecimento certo e universal. A ordem ontológica de
Espeusipo apresentava uma marca hierárquica forte que,
segundo alguns estudiosos, antecipa em mais do que
um aspeto os sistemas neoplatónicos tardios (cap. VIII,
§ 2): debaixo das entidades matemáticas estava a alma
do mundo seguida, por sua vez, pelo cosmo sensível.

185
O facto de que cada nível ontológico admitisse prin-
cípios autónomos valeu a Espeusipo a acusação, por
parte de Aristóteles, de ter construído um mundo se-
melhante a uma «tragédia má», isto é, desconjuntado
e pouco unitário.
Se Espeusipo pode ser considerado o representante
do «bloco de esquerda» da Academia – pelos elemen-
tos de originalidade contidos na sua filosofia –, Xenó-
crates foi sem dúvida o campeão do «bloco de direita»,
em virtude da estruturação conservadora e tendencial-
mente unitária do seu pensamento. Enquanto que Es-
peusipo renunciou às ideias substituindo-as por entes
matemáticos, Xenócrates tentou salvaguardar a dou-
trina das ideias, mas, ao fazê-lo, traiu o seu espírito.
De facto, ele identificou números ideais com números
matemáticos, passando por cima das diferenças que
Platão, segundo Aristóteles, tinha reconhecido entre
aqueles dois âmbitos (os números eidéticos, ao contrá-
rio dos matemáticos, não seriam combináveis, isto é,
somáveis). A ele se deve também outra identificação,
aquela entre o uno das doutrinas não-escritas e o inte-
lecto demiúrgico de que se falou no Timeu. Os estu-
diosos têm-se cautamente orientado para a atribuição
a Xenócrates de uma formulação incoativa da célebre
doutrina das ideias (números) como «pensamentos de
Deus» destinada a impor-se entre os autores médio-
-platónicos (cap. VI, § 5). A Xenócrates também se
deve o primeiro passo naquele processo de redução
da extensão do mundo das ideias destinado a negar
existência eidética, não só às coisas destituídas de va-
lor e de mérito, como também às noções relativas, às

186
negações e às realidades artificiais. Do ponto de vista
filosófico geral, deve-se observar que a identificação de
ideias com números matemáticos continha in nuce a
convicção de que as relações ontológicas fossem em li-
nha de máxima quantificáveis e de que o conhecimen-
to filosófico, a dialética de Platão, fosse equiparável
a uma espécie de mathesis universalis. O unitarismo
de Xenócrates estava destinado a representar uma das
correntes dominantes do platonismo dos primeiros sé-
culos da era imperial.
Esta rapidíssima panorâmica do pensamento aca-
démico deveria demonstrar, por um lado, a sua enor-
me riqueza de conteúdos (científicos e filosóficos) e,
por outro lado, a grande abertura doutrinária, que
tornava possível não só uma franca discussão acerca
da conceção mais conhecida do mestre, como a recusa
da mesma.

187
4.

ARISTÓTELES

1. VIDA E OBRA

A ristóteles nasceu em 384, em Estagira, cidade no


norte da Grécia, oriundo de uma família de bom
nível social e cultural: parece certo que seu pai, Nicó-
maco, fosse o médico de corte dos soberanos macedó-
nios. Em 367 com dezassete anos, chegou a Atenas e
entrou para a escola de Platão; ficaria na Academia por
vinte anos, afastando-se somente com a morte de Pla-
tão, em 347. Naquele período desenvolveu também
uma atividade de ensino (temos notícia de pelo me-
nos um curso seu de retórica). Quando deixou Atenas,
transferiu-se para junto de Hermias, o senhor de Atar-
neu, uma cidade da Ásia Menor. Este tinha inclina-
ções para a filosofia e hospedou Aristóteles na cidade
de Asso. Aristóteles casou com a sua filha, Pítias. Em
345 foi para Mitilene, na ilha de Lesbos, e ali iniciou
a sua colaboração com aquele que seria o mais impor-
tante dos seus discípulos, Teofrasto. Alguns anos de-
pois foi convocado pelo rei Filipe de Macedónia para
que se ocupasse da educação do seu filho Alexandre.
Depois de passar algum tempo na sua cidade natal,
quando a Macedónia era senhora da Grécia, em 335,
regressou a Atenas e começou a ensinar num escolar-
cado da cidade, o Liceu (todavia, o nome da sua escola
destinado a ter mais fortuna foi Perípato, ou escola
peripatética: a partir do termo ‘passeio’, peripatos, que
se fazia na escola). Em Atenas Aristóteles não era um
cidadão, pois o seu estado era o dos estrangeiros resi-
dentes (os metecos). Devia parecer que estivesse muito
ligado à Macedónia, pois de facto o seu executor tes-
tamentário terá sido Antípatro, regente na vez de Ale-
xandre quando este iniciou a submissão do império
persa. Com a morte de Alexandre (323), em Atenas o
partido contrário à Macedónia prevaleceu e Aristóte-
les, sentindo-se ameaçado, refugiou-se em Cálcis, na
Eubeia, numa propriedade que tinha herdado da mãe.
Aí morreu quase de seguida, em 322, devido a uma
doença de estômago.
De Aristóteles hoje possuímos muitas obras, sobre-
tudo aquelas ligadas ao seu ensino, que não foram as
únicas que ele compôs nem aquelas que, na sua épo-
ca e alguns séculos mais tarde, eram as mais conhe-
cidas e celebradas. De facto, compôs também outras
obras dedicadas a um público mais vasto do que o dos
discípulos da escola, obras ditas exotéricas. O signifi-
cado deste termo até hoje não é claro, mas poderia
indicar precisamente que se destinavam a um público
externo ao círculo escolar. Escritas principalmente no

190
período de discipulado na Academia, em parte eram
redigidas na forma dialógica e testemunhos posterio-
res conservam alguns títulos e citações: por exemplo,
algumas deviam ser dedicadas à discussão dos maiores
problemas da filosofia platónica (Sobre o bem, Sobre as
ideias, Eudemo ou Sobre a alma) e o grande comentador
Alexandre de Afrodísias ainda as utilizava e guardou
delas algumas citações e um ou outro resumo. Outras,
pelo contrário, expunham o ponto de vista pessoal do
autor, como os três livros Sobre a filosofia. Aquela que
podemos reconstruir melhor hoje, sobretudo graças
ao facto de terem sido transcritos amplos trechos pelo
neoplatónico Jâmblico, é porém uma Exortação à filo-
sofia (Protréptico) escrita entre 353 e 351 e dirigida a
um príncipe de Chipre; pretendia expor um ideal que
devia ser comum aos filósofos da Academia, o de uma
vida dedicada à investigação filosófica que fosse capaz
de inspirar também à ação prática e pública.
Das obras exotéricas, totalmente perdidas para nós
(com a parcial e sempre discutível exceção do Protrép-
tico), os antigos admiravam também a beleza do estilo
e o valor literário: mas estes são dotes que são fáceis de
reconhecer nas obras que nós lemos, os escritos da es-
cola, ou acroamáticos, caracterizados pela grande con-
cisão, pela escrita breve e essencial que muitas vezes
confina com a obscuridade e por imensas desconexões
ou fraturas no tecido argumentativo. Estas peculiari-
dades explicam-se precisamente por se tratar de obras
que Aristóteles não tinha organizado para depois
serem publicadas. Na maioria dos casos eram notas
ou apontamentos das aulas destinados a serem inte-

191
grados ou desenvolvidos nas lições orais do filósofo e
submetidos a reformulação contínua por ocasião do
recomeço ou da repetição de um ciclo de lições sobre
o mesmo tema. Cada obra pode resultar da soma e da
estratificação de redações feitas em períodos diversos
da atividade do filósofo. A isto se acrescente que do
confronto com alguns catálogos antigos das obras aris-
totélicas que chegaram até nós, muito provavelmente
algumas delas foram reunidas por editores posteriores
que juntaram escritos de argumentos afins que Aris-
tóteles não tinha pensado como partes de uma obra
unitária; este é o caso da Metafísica, cuja estrutura atu-
al deve ser atribuída ao arranjo editorial de Andronico
de Rodes, que no século I a.C. produziu uma edição
memorável dos escritos do Liceu que foi gradualmen-
te encobrindo a fortuna das obras exotéricas, acaban-
do por facilitar o seu desaparecimento. Pode-se dizer,
com grande plausibilidade, que o Aristóteles que hoje
conhecemos e lemos é sobretudo o filósofo filtrado
pelo arranjo editorial de Andronico.
Na ordem tradicional as obras do Liceu são as
seguintes: começa-se a lista pelas que nós chama-
mos obras lógicas e que a antiguidade reuniu sob o
nome geral de Organon: Categorias, Sobre a expressão
(obra conhecida habitualmente pelo título latino De
interpretatione), Primeiros Analíticos (em dois livros),
Segundos Analíticos (dois livros), Tópicos (oito livros),
Refutações sofísticas. Em seguida temos as obras de físi-
ca: Física (oito livros), Sobre o céu (quatro livros), Sobre
a geração e a corrupção (dois livros), Meteorologia (qua-
tro livros); as de biologia, cujas premissas são as obras

192
psicológicas, o De anima (em três livros) e os Parva
naturalia («pequenos escritos naturais», uma recolha
de breves ensaios sobre: sensação e sensíveis, memória
e reminiscência, sono e vigília, sonhos, divinação no
sono, comprimento e brevidade da vida, juventude e
velhice, respiração). As obras biológicas incluem: as
Historiae animalium (investigações sobre os animais,
dez livros, mas os últimos dois de autenticidade duvi-
dosa), As partes dos animais (quatro livros), A geração
dos animais (cinco livros), a Locomoção dos animais e o
Movimento dos animais. Segue-se a Metafísica (catorze
livros); depois as obras éticas: Ética a Eudemo (oito
livros), Ética a Nicómaco (dez livros; a Grande ética,
ou Magna moralia, é atribuída a Aristóteles pela tra-
dição, mas na verdade é uma obra de pouco posterior
a ele). A Política (em oito livros) precede a Retórica
(três livros) e a Poética. Por fim, deve-se mencionar a
Constituição de Atenas, recuperada em finais do século
XIX num papiro egípcio e única sobrevivente de uma
enorme recolha de cento e cinquenta e oito constitui-
ções de cidades gregas que Aristóteles tinha organiza-
do juntamente com a sua escola.
Do elenco das obras que nos ficaram parece que
Aristóteles não só se ocupou de todas as áreas discipli-
nares e de todos os problemas que já tinham interes-
sado o seu mestre Platão, como revelou também uma
intensa atividade de investigador em campos que o
mestre tinha deixado de lado (basta pensar na biologia
e nas pesquisas histórico-arquivistas necessárias para a
recolha das constituições). O amor por um conheci-
mento que abrangesse o mais possível todas áreas do

193
real, sem desdenhar nenhum objeto que pertencesse a
este mundo em que o ser humano vive e age, é preci-
samente o primeiro dado que diferencia Aristóteles do
seu grande predecessor.

2. OS FUNDAMENTOS ACADÉMICOS DA
FILOSOFIA DE ARISTÓTELES E A DOUTRINA
DAS CATEGORIAS

Sob a influência de uma famosa reconstrução his-


toriográfica da formação e da evolução filosóficas de
Aristóteles devida a W. Jaeger, nas décadas centrais do
século XX em geral pensava-se que Aristóteles aceita-
ra as doutrinas platónicas principais – em particular
a das ideias – durante os vinte anos passados na Aca-
demia e que dessas doutrinas ele se separara gradu-
almente no período dedicado às viagens, para depois
chegar à formulação da sua filosofia mais madura nos
anos em que ensinou no Liceu, depois de 335. Hoje,
esta reconstrução tornou-se muito duvidosa e foi
abandonada pela maior parte dos estudiosos. Isso não
implica todavia que Aristóteles não possa ser definido
ainda hoje um filósofo académico, pelos vinte anos da
sua atividade ligados à escola de Platão: contudo, em
primeiro lugar, convém ter presente que não parece
que existisse de todo na Academia algum vínculo
de ortodoxia doutrinal, mas é provável que todos os
discípulos principais de Platão tivessem desenvolvido
teorias próprias – não só Aristóteles –, muitas vezes em
forte contraste com as do mestre. Em segundo lugar
(como consequência), Aristóteles foi «académico» tal

194
como todos os seus principais colegas, por exemplo,
Espeusipo e Xenócrates: quer dizer, cada um deles
tomava como ponto de partida para as suas reflexões
uma série de problemáticas comuns, muitas vezes liga-
das à discussão e à interpretação da filosofia do mestre,
mas depois desenvolvia o seu pensamento de maneira
pessoal, com métodos próprios e com resultados ori-
ginais, frequentemente chegando a resultados muito
distantes dos de Platão.
Este parece ser o caso particular de Aristóteles,
como mostra o exame da doutrina que parece ser a
mais fundamental, de entre todas as suas doutrinas,
utilizada ou pressuposta em cada um dos seus escritos,
incompatível com a teoria das ideias e já presente no
Eudemo, cuja datação por volta de 354 pode ser con-
siderada segura, isto é, de pleno período académico.
Trata-se da doutrina das categorias, que está exposta
na obra que tem o mesmo título, mas que é claramen-
te enunciada também nos Tópicos; ora, a redação de
ambas as obras, ou do núcleo mais consistente delas,
pode ser plausivelmente atribuído ao período acadé-
mico. O que é então a doutrina das categorias e como
é que Aristóteles chegou a ela?
«Categoria» é a palavra grega que na linguagem
filosófica passou a significar «predicado» e que, na
obra intitulada precisamente As categorias, indica «os
termos usados sem ligação», isto é, palavras considera-
das isoladamente e que não estão ligadas numa propo-
sição como «homem», «corre» ou «vence». O estudo
da linguagem e dos procedimentos argumentativos do
discurso foi certamente um dos fatores que originou

195
a doutrina das categorias e sabemos com certeza que
Aristóteles se dedicou a esse estudo muito precoce-
mente: um seu escrito (perdido) sobre a retórica é de
362 e já mencionámos as aulas dadas por Aristóteles
na Academia sobre esse tema; todavia esta é uma dis-
ciplina que pressupõe o estudo das palavras e que, do
ponto de vista da argumentação e dos seus instrumen-
tos lógicos, é afim à dialética, largamente praticada na
Academia e objeto precisamente dos Tópicos. Além
do mais, pode-se ter por certo que os académicos usa-
vam o método da divisão por géneros e espécies no
estudo das relações de inclusão e exclusão das ideias
que Platão tinha iniciado em diálogos como o Sofista
e o Político. Ora, este exercício difundido na Acade-
mia juntamente com a análise da estrutura da lingua-
gem e, em especial, da relação de predicação, devem
ter rapidamente convencido Aristóteles de que existe
um número limitado de modos, quatro na realidade,
em que um predicado pode pertencer a um sujeito: 1.
como sua definição, isto é, por exemplo, quando se diz
que «o homem é um animal racional». De facto, com
isto se afirma a essência da coisa definida; 2. como seu
género, dizendo, por exemplo, apenas que o «homem
é um animal»; 3. como sua propriedade, dizendo algo
que não pertence à essência da coisa definida, mas que
todavia se relaciona com ela em termos de predicação
convertível. Por exemplo, quando se diz que «o ho-
mem é gramaticista», isto é, capaz de ler e de escrever:
esta é uma propriedade só do homem, porque só ele
tem essas capacidades, mas não pertence à sua essên-
cia, pois nem sempre todos os homens são capazes de

196
ler e de escrever. Além disso, a relação de predicação
é convertível: se o homem é gramaticista, é também
verdade que tudo o que é gramaticista deve ser ho-
mem. Por fim, 4. como seu acidente; por exemplo,
quando se diz que «o homem é branco», porque não é
da essência do homem ser branco (há homens escuros)
e um homem branco pode também tornar-se escuro
(quando está bronzeado) e depois deixar de ser; nem
se poderia dizer, como no caso da propriedade, que
aquilo que é branco é homem.
Aprofundando ainda a análise e continuando a di-
visão dos géneros, Aristóteles chega à conclusão que
qualquer tipo de predicado, seja género, propriedade
ou acidente, deve necessariamente referir-se a um dos
dez casos gerais de predicação, não ulteriormente re-
dutíveis a outra coisa: trata-se precisamente das dez ca-
tegorias, que por vezes Aristóteles elenca também com
um número inferior, isto é, seis ou oito. Na lista mais
completa as categorias são as seguintes: substância,
quantidade, qualidade, relação, lugar, tempo, estar, ter,
agir, padecer. Estes são os predicados mais universais
que se podem encontrar para todos os indivíduos, as
espécies e os géneros que estão incluídos nos predica-
dos: por exemplo, de um determinado indivíduo, Só-
crates, posso dizer que é um «homem», ao afirmar qual
a espécie a que pertence; da espécie «homem» posso
dizer que está incluída no género «animal»; do animal
poderia finalmente dizer que é «uma substância», mas
não posso ir mais além puxando a substância para algo
ainda mais universal. Analogamente com qualquer ou-
tra categoria: esta caneta com que escrevo tem certas

197
características, por exemplo, é preta; do preto posso
dizer o seu género, que é uma cor, e da cor posso dizer
que é uma qualidade; mas não existe outro predicado
mais universal sob o qual subsumir a qualidade. Um
platónico – e podemos supor que algum colega acadé-
mico de Aristóteles o tenha realmente feito – poderia
todavia objetar, com base no Sofista, onde se mostra
que do género do ser participam todos os outros, que
há um género e um predicado mais universal também
para as categorias, ou seja, o ser: todas as categorias, a
substância como quantidade, a qualidade, a relação,
etc., dizem coisas ou estados de coisas que «são». Mas
Aristóteles tem uma resposta lógica para esta objeção:
o género, afirma, não se pode predicar das suas dife-
renças, enquanto que o «ser» se diz de todas as cate-
gorias. Por exemplo, isto quer dizer que, se uma dife-
rença no género «animal» é a racionalidade e outra o
ter pés (de facto, nem todos os animais são racionais e
nem todos têm pés), a racionalidade não é «animal»,
tampouco o é ter pés (a mesa e o tripé também têm
pés). Aristóteles conclui que o ser não pode constituir
um género, mas, ao dizer-se de todas as categorias,
«diz-se de muitas maneiras» irredutíveis a uma, tantas
quantas são justamente as categorias. Esta é uma tática
decididamente antiplatónica, que se torna ainda mais
explícita quando Aristóteles acrescenta (como fará em
alguns textos da Metafísica) que o que vale para o ser
vale também para o uno; também do uno um platóni-
co poderia pretender que representasse o género mais
universal sob o qual se ‘refugiam’ as categorias, dado
que cada coisa que é e cada categoria é precisamente

198
também «una». Mas o raciocínio que Aristóteles opõe
é exatamente o mesmo feito para o ser: se o uno fos-
se o género sumo, dizer que uma categoria qualquer
ou uma coisa qualquer é «una» equivaleria a não dizer
nada dela, porque cada categoria e cada coisa é e é una
e, no final, acabaria por ser idêntica a qualquer outra,
porque cada uma delas igualmente é e é una.
Mas a contraposição a Platão pode ser ulterior-
mente aprofundada. Como já se viu pelas exempli-
ficações dadas até agora, a doutrina aristotélica das
categorias nasce de considerações lógico-linguísticas,
mas também adquire imediatamente uma valência
ontológica, porque segundo Aristóteles a linguagem,
se usada corretamente para dizer a verdade, diz o ser.
Os predicados expressos nas categorias dizem também
coisas reais, factos ou estados de facto; dizem, por
exemplo, que Sócrates é um homem, a substância; que
é baixo de estatura, a quantidade; branco, a qualidade;
filho de Sofronisco, a relação; que está no Liceu (lu-
gar) e que está lá hoje (tempo); que está em pé (estar)
e que tem sandálias (ter); que corta (agir) ou é cor-
tado (padecer). Do ponto de vista lógico-linguístico
e supondo que as dez categorias ordenadas paralela-
mente em colunas têm cada uma o género supremo
no topo, ao qual estão submetidos os seus géneros e
espécies, então não é exatamente o mesmo tipo de re-
lação predicar de Sócrates que é um homem, ou que
é branco e baixo e está no Liceu; no primeiro caso
estamos dentro da mesma coluna de predicados (a ca-
tegoria da substância), nos outros passamos de uma
coluna para outra e dizemos algo que é acidental ao

199
sujeito (Sócrates poderia também ser negro e alto ou
estar na praça) usando predicados retirados de outras
categorias. O primeiro tipo de relação é uma predi-
cação forte e diz a essência do sujeito: na linguagem
técnica de Aristóteles, «algo é dito de outra coisa»; o
segundo tipo de relação é propriamente uma relação
de inerência em que «algo está noutra coisa». Mas do
ponto de vista ontológico é imediato observar que da
existência de substâncias como «Sócrates» depende a
existência das outras categorias em que se exprimem
as relações de inerência: em suma, a substância possui
uma prioridade ontológica sobre as outras categorias e
é o fundamento da existência de todas as coisas, factos
ou estados de facto que se tornam o seu «acidente».
Mas há outra distinção a ser feita, desta vez na co-
luna das substâncias. Ainda de um ponto de vista ló-
gico e linguístico, é fácil notar que os termos incluídos
nesta coluna não estão todos exatamente no mesmo
plano: a espécie «homem» e o género «animal» podem
funcionar quer como sujeito quer como predicado,
porque «Sócrates é homem» e «homem é animal», mas
também «animal» poderia por sua vez funcionar como
sujeito ao receber um predicado mais universal, por
exemplo, «vivente» e, em última instância, «substân-
cia»; enquanto que, pelo contrário, o indivíduo como
Sócrates não pode ser predicado de nada, mas pode
servir apenas como sujeito de predicados retirados da
coluna das substâncias ou de qualquer outra catego-
ria. O indivíduo que só pode ser sujeito da predicação
torna-se assim para Aristóteles a «substância primei-
ra», enquanto que as espécies e os géneros em que os

200
indivíduos estão incluídos e que podem servir como
sujeito e como predicado são «substâncias segundas»;
do ponto de vista ontológico, então, a substância
primeira torna-se o fundamento da existência também
das substâncias segundas: não haveria o homem se
não existissem indivíduos como Sócrates, Alcibíades,
Aristóteles, etc., não haveria o animal se não existissem
esses indivíduos humanos e, também, cavalos como
Varenne, Ribot, etc., cães, gatos, etc. Desde o início da
sua reflexão Aristóteles inverte a ontologia de Platão
com a sua distinção entre substâncias primeiras e
substâncias segundas e com a primazia reconhecida à
substância individual: se no pensamento do seu mestre
era o fenómeno particular que devia o ser ao universal
de que participava (a ideia), em Aristóteles, pelo
contrário, a existência dos universais está vinculada ao
facto de que haja indivíduos que os realizem. Por esta
razão, torna-se muito difícil pensar que Aristóteles, no
seu período académico, tenha aceitado e professado a
doutrina das ideias: ao escrever o Eudemo em torno a
354, ele mostrou possuir já a doutrina das categorias e
esta, como vimos, tem resultados incompatíveis com
a ontologia platónica. A doutrina das categorias inter-
vinha largamente na crítica das ideias que Aristóteles
tinha desenvolvido no escrito perdido Sobre as ideias,
de que temos informações bastante amplas graças ao
comentário à Metafísica de Alexandre de Afrodísias,
que conhecia bem aquela obra.
O problema fundamental das categorias e o uso
polémico que Aristóteles faz delas contra o platonis-
mo poderiam induzir-nos a pensar que tivesse havido

201
entre o discípulo e o mestre uma oposição radical em
todos os campos da filosofia. Mas seria uma conclu-
são excessiva; pelo contrário, é preciso reconhecer que
Aristóteles permaneceu de certo modo sempre um
platónico não só porque retirou quase sempre do pen-
samento e das obras do mestre, mesmo em idade avan-
çada, as ideias para as suas reflexões (isto tornar-se-á
visível ao longo da nossa exposição), como também
porque aceitou de Platão algumas exigências impor-
tantíssimas, embora as tenha desenvolvido de modo
pessoal e tenha encontrado soluções muito originais.
Esta relação complexa de tensão polémica entrelaçada
com a aceitação de algumas exigências de fundo do
platonismo vê-se claramente se seguirmos ao longo de
toda a sua obra o desenvolvimento de outro grande
problema, que também surgiu na idade académica a
partir da discussão das filosofias de Platão e dos seus
principais discípulos. É um problema de que falare-
mos agora.
Na exposição polémica da doutrina das ideias que
Aristóteles faz no primeiro livro da Metafísica, que te-
mos boas razões para defender que foi escrito ou no
período académico ou num momento em que o seu
autor se considerava ainda um membro da Academia,
a apresentação e a crítica da doutrina das ideias estão
entreligadas com as da doutrina platónica dos prin-
cípios. Aristóteles menciona também polemicamente
as consequências que «alguns» (evidentemente, alguns
dos filósofos ativos na Academia) pensavam retirar da
doutrina dos princípios; isto é, se existem princípios
supremos de onde podem ser deduzidas todas as reali-

202
dades, quer as ideias, quer os números, quer as coisas
sensíveis, então a ciência desses princípios torna-se de
certo modo uma ciência universal de todas as coisas
à qual qualquer conhecimento pode ser reconduzido.
Como se vê pela imediata reação de Aristóteles, ele era
completamente adverso a uma conceção do género, e
se há algo de característico nele e no trabalho científico
e filosófico de toda a sua vida, é precisamente a defesa
da autonomia e da independência das ciências indivi-
duais especializadas contra o platonismo – algo que
veremos estudando alguns escritos do Organon. Mas
na realidade a defesa das ciências especiais diz apenas
uma parte da posição pessoal de Aristóteles. De facto,
tal como Platão e os outros académicos, também ele
teve uma própria teoria geral dos princípios de todas
as coisas, que veremos (§ 4). Além disso, tal como Pla-
tão – não só com a teoria dos dois princípios opostos,
o Uno e a díade indefinida, mas também com a posi-
ção eminente atribuída à dialética na República – tam-
bém ele manteve sempre viva a exigência de encontrar
uma forma superior e universal de conhecimento que,
de certo modo, permitisse reunificar todo o saber de-
baixo dele. Esta exigência é afirmada desde o primeiro
livro da Metafísica, em que Aristóteles recusa a ciência
universal dos académicos. Naturalmente não foi fácil
para o filósofo encontrar uma solução que respondes-
se àquela tarefa, respeitando ao mesmo tempo quer a
autonomia das ciências especiais, quer aquelas regras
que ele mesmo tinha postulado para a constituição de
cada forma de saber que merecesse o nome de «ciên-
cia». A sua reflexão a propósito disso desenvolve-se em

203
muitos dos livros da Metafísica, de que falaremos em
seguida (§ 6). Por agora, trata-se apenas de esclarecer
preliminarmente o percurso realizado por Aristóteles
para estabelecer a natureza, as regras e os procedimen-
tos de cada ciência.

3. LÓGICA E TEORIA DA CIÊNCIA

A teoria aristotélica da ciência é exposta nos Segun-


dos Analíticos, que, como se disse, são a quarta obra
do conjunto de textos pertencentes ao Organon. Este
nome significa «instrumento» e foi dado ao conjun-
to dos escritos que estão incluídos na obra pensando
que a lógica e a teoria da ciência não são uma dis-
ciplina filosófica específica, dado que Aristóteles não
as engloba na sua classificação das ciências: elas são o
instrumento básico comum a cada discurso científico.
Quanto à classificação das ciências, esta encontra-se
exposta com clareza no livro VI da Metafísica, onde
Aristóteles distingue entre as ciências teoréticas, aque-
las que não têm outro fim a não ser o conhecimento
desinteressado; as ciências práticas, em que o conhe-
cimento requer como fim que seja traduzido na ação;
e as ciências poiéticas (ou «produtivas») em que o co-
nhecimento tem por finalidade a produção de uma
obra concreta. As ciências teoréticas são, por sua vez,
subdivididas em filosofia primeira – aquela que nós,
com um termo ainda desconhecido de Aristóteles,
chamamos de metafísica –, matemática e física. As
ciências práticas incluem a política e a ética; ciências
produtivas são, por exemplo, a poética e a retórica,

204
mas também a medicina, a arquitetura, a escultura,
etc. A ordem sistemática e tradicional das obras do
Organon é a que consideramos oportuno adotar na
exposição, porque tem uma sua justificação também
didática: de facto, vai do que é mais simples, a análise
dos termos individuais, objeto, como se viu, das Cate-
gorias, para o que é mais complicado: precisamente a
conexão de cada termo na proposição, de que se ocupa
o De interpretatione; a ligação de certos tipos de pro-
posição no raciocínio dedutivo, o silogismo, é objeto
dos Primeiros Analíticos; depois a demonstração, fun-
dada no silogismo, como característica distintiva da
ciência (nos Segundos Analíticos). As obras seguintes,
Tópicos e Refutações Sofísticas, tratam, pelo contrário,
da dialética, que é algo menos do que a ciência, mas
que pode ter, como veremos, uma função importante
sobretudo em relação à ciência.
Após termos falado das Categorias no parágrafo
anterior, vejamos agora o assunto do De interpreta-
tione. A obra abre-se estabelecendo a relação existente
entre linguagem, pensamento e realidade: as palavras
são símbolos das afeções da alma que, por sua vez, são
imagens das coisas reais. As afeções, e sobretudo as
coisas exteriores, são as mesmas para todos os seres hu-
manos, enquanto que as palavras são diversas conso-
ante as diferentes línguas; de facto, estas são de origem
convencional e em si não são verdadeiras nem falsas.
É aos discursos, isto é, às proposições (e não a todos),
que cabe o atributo de serem verdadeiros ou falsos;
tais são apenas os discursos que Aristóteles chama de
«apofânticos», isto é, declarativos ou enunciativos, os

205
que descrevem um estado de facto: por exemplo, «Só-
crates passeia», «o homem é músico». Mas também há
discursos não apofânticos, tais como as ordens ou as
preces («corre!») que por isso não são verdadeiros nem
falsos, cujo estudo, segundo Aristóteles, pertenceria à
retórica e à poética.
O discurso declarativo mais simples é aquele cons-
tituído pela ligação de um nome a um verbo, por
exemplo, «Sócrates passeia»; ou então, de um nome
como sujeito a outro como predicado ligados pela
cópula: por exemplo, «Sócrates é músico» (Aristóte-
les ainda não distingue o nome do adjetivo). Estas
proposições são verdadeiras quando ligam aquilo que
na realidade já está ligado, de modo que a proposi-
ção usada acima como primeiro exemplo é verdadeira
se Sócrates estiver efetivamente a passear; ou então,
quando disjungem mediante a negação aquilo que na
realidade está efetivamente disjunto: por exemplo, se-
ria verdadeiro dizer que «Sócrates não é negro», dado
que sabemos que ele era efetivamente branco. Nos ca-
sos opostos, as proposições são falsas: isto é, quando
unem aquilo que na realidade está disjunto, ou então,
mediante a negação, disjungem aquilo que está unido.
Afirmação e negação introduzem uma diferença de
qualidade nas proposições; mas não menos importan-
te para a análise de Aristóteles é a diferença que pode
existir entre elas segundo a quantidade, quer dizer, se
o predicado é dito de todos os sujeitos possíveis, de
alguns ou de um só. No primeiro caso, tem-se uma
proposição universal: por exemplo, dizendo que «to-
dos os homens são brancos», ou que «nenhum homem

206
é branco»; no segundo, a proposição é particular: «al-
guns homens são brancos», ou «alguns homens não
são brancos»; no terceiro caso, a proposição é singular:
«este homem aqui é branco». Além do mais, Aristóte-
les estabelece as relações existentes entre estes diversos
tipos de proposições relativamente à sua verdade ou
falsidade. As duas proposições universais, afirmativa
e negativa, poderiam ser ambas falsas (como são no
caso exemplificado), mas em todo o caso nunca pode-
rão ser ambas verdadeiras. Por exemplo, se disséssemos
que «todos os homens são mortais» e que «nenhum
homem é mortal», só uma destas proposições pode ser
verdadeira. A relação entre as duas proposições uni-
versais, afirmativa e negativa, é de contrariedade e as
proposições chamam-se contrárias. Entre um proposi-
ção universal afirmativa («todos os homens são bran-
cos») e a correspondente particular negativa («alguns
homens não são brancos»), tal como entre a negativa
universal («nenhum homem é branco») e a correspon-
dente particular afirmativa («alguns homens são bran-
cos») a relação é de contraditoriedade e só uma das
proposições contraditórias pode ser verdadeira; mas as
duas particulares, afirmativa e negativa, podem, pelo
contrário, ser ambas verdadeiras. A afirmação e a ne-
gação relativas a um sujeito singular são contraditórias
e uma delas necessariamente verdadeira e a outra falsa:
«Sócrates é branco», «Sócrates não é branco». Mas a
ciência aristotélica não se ocupa das proposições com
sujeito singular, sem valor geral.
Os modos de ligação das proposições declarativas
num raciocínio conclusivo são objeto dos Primeiros

207
Analíticos. Segundo a qualidade, afirmativa ou nega-
tiva, das proposições, e segundo a posição de três ter-
mos nas proposições constitutivas do raciocínio, Aris-
tóteles distingue três tipos fundamentais de raciocínio
conclusivo: este é portanto o significado do termo gre-
go syllogismos. Normalmente este consta de duas pro-
posições, as «premissas», que permitem deduzir neces-
sariamente uma terceira proposição, a conclusão, em
que dois termos, que apareciam nas premissas, como
sujeito e como predicado, se relacionam graças a um
terceiro termo, o «médio», que aparecia em ambas as
premissas, mas que deixa de ser expresso na conclusão.
Por exemplo:

TODOS OS HOMENS SÃO MORTAIS


TODOS OS GREGOS SÃO HOMENS
TODOS OS GREGOS SÃO MORTAIS

ou seja, esquematicamente,

CADA A É B
CADA C É A
CADA C É B

Neste exemplo, o termo médio «homens» permite


ligar os outros dois termos entre si (ditos «extremos»)
«gregos» e «mortais» e revela, além disso, a razão pela
qual os gregos são mortais: porque são homens. Isto
ilustra um caso do silogismo que Aristóteles chama de
primeira figura, em que o termo médio é sujeito na
primeira premissa (a «maior») e predicado na segunda

208
(a «menor»). Mas Aristóteles reconhece também ou-
tras duas figuras de silogismo, que se distinguem se-
gundo a posição e a função que o termo médio ganha
nas premissas: na segunda figura ele é predicado em
ambas as premissas, tal como no esquema

NENHUM N É M
CADA X É M
LOGO, NENHUM N É X

ou seja, por exemplo,

NENHUM HOMEM É IMORTAL


CADA DEUS É IMORTAL
NENHUM HOMEM É DEUS

Na terceira figura o termo médio, pelo contrário, é


sempre o sujeito das duas premissas:

CADA S É P
CADA S É R
LOGO, ALGUNS R SÃO P

ou seja, por exemplo,

CADA GREGO É BRANCO


CADA GREGO É HOMEM
ALGUNS HOMENS SÃO BRANCOS

O uso das letras do alfabeto como se fossem sím-


bolos substitutivos dos termos remonta a Aristóteles;

209
pelo contrário, convém notar que a formulação das
premissas e da conclusão normalmente é diferente em
Aristóteles: em vez de dizer, como a nós parece mais
simples, que «cada s é p», ele costuma dizer que «p
pertence a cada s», ou então que «p predica-se de cada
s». Para ele, apenas o silogismo da primeira figura é
perfeito, como se fosse um raciocínio por si mesmo
evidente; os silogismos das duas outras figuras podem
ser demonstrados válidos se forem conduzidos aos da
primeira figura, algo possível através de procedimentos
vários, por exemplo, «convertendo» uma premissa.
Vejamos, dado o exemplo da segunda figura acima e
tendo presente que uma proposição universal negativa
se converte noutra proposição universal negativa
trocando a posição do sujeito e do predicado (se
«nenhum n é m» é também evidentemente verdade
que «nenhum m é n»), o silogismo reformulado
desta forma com a premissa maior que agora afirma
que «nenhum m é n» passa para um caso da primeira
figura, cuja validade resulta imediatamente evidente.
Depois, segundo a quantidade e a qualidade dos
termos, quer sejam universais quer particulares e
afirmados ou negados, cada uma das três figuras admite
diversos modos que Aristóteles tem a preocupação de
examinar. Por fim, convém notar que, como resulta
também dos exemplos dados, nos Primeiros Analíticos
Aristóteles preocupa-se sobretudo com a validade for-
mal dos silogismos, não com a sua verdade: de facto,
esta depende da verdade das premissas, uma verdade
que cabe à ciência estabelecer, não à «analítica» – que
é o nome que o filósofo dá àquela disciplina que es-

210
tamos a ilustrar e que chamaremos de lógica formal.
Então, este problema remete-nos imediatamente para
os Segundos Analíticos e para a conceção que Aristóte-
les tem da ciência.
O silogismo que foi usado acima como ilustração
da primeira figura é também um silogismo científico,
isto é, uma autêntica «demonstração», porque as suas
premissas são verdadeiras, primeiras (isto é, universais)
e necessárias e também porque explicam a verdade da
conclusão dizendo qual a sua causa. Mas o que é que
garante a verdade das premissas? Poderia, natural-
mente, ser o facto de que as premissas foram obtidas
a partir da conclusão de demonstrações silogísticas
anteriores, mas este reenvio a outra demonstração, se-
gundo Aristóteles, não pode ir até ao infinito, nem
deve regressar circularmente a si mesmo. Portanto o
fundamento último de cada ciência, ou seja, de cada
demonstração, são as proposições não mais demons-
tráveis silogisticamente que Aristóteles chama «princí-
pios», distinguindo ainda neles os princípios comuns
a todas as ciências, ou mais do que uma ciência (os
axiomas), e os princípios próprios de cada uma.
Um princípio comum a mais do que uma ciência,
por exemplo, a todas as que têm a ver com a quantida-
de, é o que diz que, se se subtraírem iguais de iguais,
o resultado que fica é sempre de iguais. Mas segundo
Aristóteles também há dois princípios absolutamente
comuns a todas as ciências, que são o que foi poste-
riormente chamado o princípio de não-contradição –
segundo o qual é impossível afirmar e negar ao mesmo
tempo e sobre a mesma coisa algo acerca do mesmo

211
objeto –, e o que em seguida foi apelidado de princípio
do terceiro excluído – segundo o qual de um mesmo
objeto qualquer determinação se deve afirmar ou negar.
Estes princípios comuns não podem ser demonstrados;
podem todavia ser defendidos refutando dialeticamen-
te quem os contradiga, e a diferença fundamental en-
tre uma demonstração científica e uma argumentação
dialética é que na primeira as premissas são necessa-
riamente verdadeiras, enquanto que na segunda foram
simplesmente concordadas pelos interlocutores de uma
discussão e por isso representam apenas opiniões. Um
exemplo célebre de uma defesa semelhante é ofereci-
do pelo próprio Aristóteles no livro IV da Metafísica a
propósito do princípio de não-contradição: Aristóteles
defende-o mostrando que também quem quer criticá-
-lo, se aceitar discutir e atribuir um preciso significa-
do – e só aquele – às suas palavras, com isso mesmo
já estará a implicá-lo. Já daqui se vê que em socorro
da ciência pode vir a dialética, a propósito da qual –
além das outras funções e utilidades que Aristóteles lhe
atribui e de que falaremos – os Tópicos explicam pre-
cisamente que ela «mantém as vias que conduzem aos
princípios das ciências». Na demonstração, porém, os
princípios comuns não funcionam normalmente como
premissas, exceto num caso específico que diz respeito
ao princípio do terceiro excluído na demonstração por
absurdo; eles funcionam como regras metodológicas
de fundo que não se podem violar sem destruir com
isso a própria demonstração.
Pelo contrário, os princípios próprios a cada ciên-
cia são de dois tipos: por um lado, as hipóteses que

212
pressupõem a existência do objeto daquela ciência,
mas estas realmente não fazem parte da demonstração,
porque a ciência as subsume; por outro, as definições
que estabelecem a essência do objeto da ciência em
questão, objeto obviamente peculiar quanto ao géne-
ro em que cada ciência age. Nos Segundos Analíticos,
Aristóteles afirma antes de mais que as definições não
podem ser demonstradas por via silogística; facto que
faz regressar ao antigo problema dos princípios co-
muns, isto é, como garantir a verdade também destas
outras premissas fundamentais das ciências. Ora, na
obra que estamos a ilustrar, mas também em alguns
textos relevantes das Éticas, Aristóteles atribui o co-
nhecimento dos princípios a uma faculdade específica
a que ele chama nous (intelecto, inteligência), que tra-
balha por induções (isto é, partindo de dados particu-
lares até chegar a conclusões de caráter universal) em
continuidade com outras faculdades psíquicas e, em
última análise, com a sensação. De facto, o ser huma-
no, tal como outros animais, é dotado desta capacida-
de crítica: esta tem sempre por objeto um dado indi-
vidual. Além do mais, tal como nos outros animais,
no homem existe a capacidade ulterior de guardar a
recordação do objeto da sensação mesmo quando esse
objeto já não se encontra presente. Uma recordação
que se renova repetidamente a propósito do mesmo
objeto torna-se na experiência adquirida daquele dado
objeto; ora, nos animais dotados de inteligência, isto
é, no homem, a experiência de um certo objeto, ou de
muitos objetos da mesma espécie, induz a que se apre-
enda uma ou mais características universais e comuns

213
àqueles objetos: por exemplo, que é comum a muitos
homens serem bípedes e dotados de razão. Com base
na experiência a inteligência chega assim indutiva-
mente a apreender o universal e, com ele, a definição,
por exemplo, de que o homem é um animal bípede e
dotado de razão.
Todavia, nos Tópicos Aristóteles atribui a capacida-
de de conhecer os princípios – e, por conseguinte, de
estabelecer as definições – à dialética. Pode-se portanto
supor que ele considera a indução uma forma especí-
fica da dialética. Esta é definida nos Tópicos como um
método que nos torna capazes de argumentar acerca
de qualquer problema posto: não é pois uma ciência
porque não está vinculada a um género particular do
ser; não o é também porque – como já dissemos –
argumenta partindo de premissas que não são neces-
sariamente verdadeiras, mas têm apenas o caráter de
endoxa, isto é, refletem uma opinião (em grego, doxa)
de autoridade porque é aceite ou por todos, ou pela
maioria, ou pelos mais competentes e, entre estes úl-
timos, novamente, ou por todos, ou pela maioria, ou
pelos mais respeitados e famosos. Aplicar o método
dialético à busca das definições deveria significar que
um exame crítico dos endoxa a propósito de x e de y
poderá valer como uma prova suficiente da validade
(ou não validade) de x como definição de y. Postula-
das as definições dos objetos nestes moldes, as ciências
deduzirão de forma silogística as propriedades que
pertencem necessariamente ao objeto partindo da sua
definição. Dado que os princípios de onde cada ciên-
cia parte lhe são peculiarmente próprios, a demonstra-

214
ção nunca poderá superar os confins do seu género e
Aristóteles repete também nos Analíticos o aviso acerca
da impossibilidade de existência de uma ciência uni-
versal de todas as coisas. O resultado notável do seu
enorme esforço de teórico da ciência é ter garantido a
autonomia e a autossuficiência de cada ciência especial
contra toda e qualquer pretensão de as subordinar a
uma forma qualquer de saber que pressupusesse ser-
-lhes superior e totalmente abrangente: como decerto
Aristóteles devia pensar da dialética de Platão e em
geral das teorias académicas dos princípios.
Aqui, todavia, convém chamar a atenção para um
problema embaraçante. De facto, observa-se ime-
diatamente que nenhuma das ciências especiais que
Aristóteles praticou pessoalmente (a física, a política,
a poética, a filosofia primeira, a biologia) se apresenta
nas suas obras de maneira conforme à teoria geral dos
Segundos Analíticos, ou seja, não é exposta dedutiva-
mente, nem argumentada silogisticamente a partir de
princípios gerais. A explicação para esta singularida-
de que se tem gradualmente, mas sempre mais cla-
ramente, imposto entre os historiadores da filosofia e
os estudiosos é que a forma da ciência que Aristóteles
recomenda e defende nos Analíticos (a que hoje costu-
mamos definir um sistema axiomático) corresponde
apenas a um aspeto ou a um momento particular da
própria ciência, quer dizer, o momento da apresen-
tação de forma lógica e organizada dos resultados da
investigação, talvez preocupada também com finalida-
des didáticas. Mas estes resultados não se alcançaram
por cadeias de deduções em forma silogística: como

215
as obras mesmas de Aristóteles mostram, que quase
sempre começam com uma discussão das opiniões
dos precursores em cada campo de pesquisa, o ponto
de partida da investigação e da descoberta da verdade
encontra-se normalmente numa recolha preliminar
dos dados disponíveis (Aristóteles chama-os de phai-
nomena), que porém não são só os dados da experi-
ência e os factos observados, mas também (talvez até
sobretudo) as opiniões correntes acerca do problema
em questão, especialmente as dos competentes na ma-
téria. Regressa-se assim ao vasto campo das opiniões e
ao uso do método dialético, porque estas opiniões não
são, como é óbvio, simplesmente aceites por Aristóte-
les (de facto, normalmente as opiniões disponíveis são
contrastantes), mas são experimentadas e postas à pro-
va do ponto de vista da sua consistência lógica e, por
vezes, da sua concordância com os factos observados.
Deste exame dos dados e das opiniões, ou melhor, dos
dados que consistem em boa parte de opiniões, desde
que sejam submetidas ao crivo crítico da discussão,
pode-se chegar às conclusões de caráter universal que
consiste na peculiaridade do conhecimento científico.
De tudo o que se disse ressalta a importância e a
posição peculiar que a dialética tem na filosofia de
Aristóteles. Ela deixa de ser, como era em Platão, a
forma mais elevada do saber, aliás, não é de todo uma
ciência; mas, não estando ligada, como ao invés está
cada ciência especial, a uma área delimitada do ser,
é capaz de intervir em cada ciência como método de
descoberta de princípios e, eventualmente, da sua de-
fesa, além de como método de discussão e de exame

216
dos dados básicos da investigação. E dado que a dia-
lética se funda nas opiniões, para Aristóteles torna-se
também extremamente importante a recolha e a con-
servação das opiniões: isto explica o interesse que o
filósofo tinha pelos testemunhos escritos e pelos livros
que, parece, desde jovem recolheu e leu. A tradição
afirma que Platão deu ao seu discípulo a alcunha de
«leitor»: isto marca uma diferença capital entre os dois
e, provavelmente, também a não excessiva simpatia
com a qual o mestre devia considerar a atividade e os
métodos pessoais do seu discípulo.
Por fim, cabe ainda mencionar as Refutações sofísti-
cas, obra em que Aristóteles mostra sobretudo em que
falácias se fundem as refutações que os sofistas subme-
tem aos seus adversários durante as discussões. Trata-
-se grosso modo de ambiguidades linguísticas, possíveis
porque as palavras costumam ter mais do que um
significado. A tarefa da dialética é pois desvelar essas
ambiguidades; e a atenção de Aristóteles para com a
precisão da linguagem é, de resto, testemunhada pelas
inúmeras análises semânticas que se encontram nos
seus escritos.

4. FÍSICA

Muito cedo Aristóteles contrapôs na Física e no


livro XII da Metafísica uma conceção contrária às teo-
rias dos princípios enunciadas pelos académicos, uma
conceção segundo a qual há três princípios fundamen-
tais da realidade que são a matéria, a forma e a priva-
ção. Como se intui logo pela inclusão da matéria nesta

217
lista, trata-se de princípios destinados a explicar a realida-
de sensível e o fenómeno mais evidente e essencial desta,
isto é, o movimento, a mutação (kinesis), cuja existência
não tem, segundo Aristóteles, necessidade de ser demons-
trada, porque se impõe à experiência por si mesmo. O
mundo da mudança é portanto o que constitui o âmbi-
to da física aristotélica, a ciência da natureza (em grego a
physis). Mas esta consideração não implica que Aristóteles,
na sua oposição ao platonismo, tenha recusado admitir a
existência também de um plano não sensível da realidade:
ou melhor, como veremos, a própria teoria física delinea-
da por Aristóteles impõe a um certo momento a passagem
para outro tipo de realidade, não sensível e puramente in-
teligível. Na física, como em qualquer lugar da sua filo-
sofia, Aristóteles parte antes de tudo daquilo que ele cha-
ma de «primeiro para nós», o dado mais evidente e mais
facilmente acessível para nós, que se contrapõe ao que é
«primeiro por natureza», quer dizer ao que é maiormente
cognoscível por se encontrar situado num nível de maior
generalidade em relação ao dado sensível, do qual fornece
também a explicação; mas estas coisas primeiras por na-
tureza são também as mais afastadas da nossa experiência
e, por conseguinte, as menos fáceis de compreender. Ora,
o plano das realidades sensíveis e naturais submetidas à
kinesis é precisamente o que em relação a nós é primeiro e
em primeiro lugar pede para ser explicado. A este proble-
ma responde a tríade dos princípios já citada, totalmente
diferente das formulações platónicas e académicas.
A teoria aristotélica diferencia-se da de Platão e da
dos académicos noutro ponto importantíssimo: Aris-
tóteles não pretende de todo dizer que há uma única

218
matéria, uma única forma e uma única privação de
que derivariam todas as coisas. Ele diz que os três prin-
cípios são idênticos para todas as coisas só por analo-
gia: quer dizer que em cada fenómeno que muda se
podem conceptualmente distinguir sujeito, substrato,
matéria, capaz de receber sucessivamente duas condi-
ções contrárias, que são precisamente a ausência (pri-
vação) de uma certa determinação e a determinação
mesma, que será a forma. Admita-se, por exemplo,
como matéria um bloco de mármore: no seu estado
originário, antes da obra do escultor, é informe, isto
é, está numa condição de privação; a arte do escultor
confere ao mármore uma certa forma. Analogamente
um monte de tijolos é a matéria de uma casa, mas en-
quanto for um monte, é privação da forma da casa; a
construção da casa é a mudança que atribui ao monte
a sua forma. Os exemplos dados dizem também outra
coisa importante, isto é, que matéria, forma e priva-
ção antes ainda de serem coisas ou estados das coisas
são funções que podem ser sucessivamente usadas pela
mesma coisa ou por coisas diferentes. Por exemplo,
em relação à estátua o bloco de mármore é matéria
num estado de privação, mas aquele mármore é már-
more, já tem por sua vez uma forma, a do mármore e
não a da pedra magmática ou do tufo. Além do mais,
como é evidente, nem toda a matéria é capaz de rece-
ber uma forma qualquer: o bloco de mármore poderia
tornar-se uma estátua, mas não uma nau e a privação
é, numa dada matéria, sempre privação de uma certa
forma. Aristóteles exprime este conceito dizendo tam-
bém que a matéria está em potência relativamente a

219
uma certa forma, que é o seu ato: o mármore é a es-
tátua em potência, que será, quando for esculpida, o
ato daquele bloco de mármore. Por fim, esta conceção
pode ser resumida numa definição geral da mudança,
que – diz Aristóteles – é precisamente «o ato do que
está em potência enquanto tal».
Para explicar completamente a mudança, os três
princípios devem ser integrados na noção de agente
de que depende a realização da própria mudança; isto
é, trata-se daquilo que nós chamamos de causa motora
ou eficiente (por exemplo, para a estátua, o escultor).
Mas nos livros da Física e no primeiro livro da Me-
tafísica a teoria aristotélica obtém a sua formulação
mais completa segundo a famosa doutrina das qua-
tro causas: às causas material e formal (que coincidem
com dois dos três princípios já enumerados: a priva-
ção, enquanto ausência de determinação, não entra no
esquema das causas) e à causa eficiente acrescenta-se
portanto a causa final que diz o fim em vista do qual
se dá o processo de mutação. Esta causa coincide de
certa maneira com a formal, como se vê nas gerações
naturais, cujo fim da geração é colocado na realiza-
ção, por parte do indivíduo gerado, da forma da es-
pécie a que ele e os progenitores pertencem. Portanto,
a explicação completa de cada processo de mudança
deve dar sempre conta de todas as quatro espécies de
causalidade previstas pela teoria. No primeiro livro da
Metafísica Aristóteles submete a verificação esta teoria
mostrando que as quatro causas já estavam presentes
ou tinham sido vistas na tradição filosófica anterior
(as causas material e eficiente), ou intuídas mais ou

220
menos de maneira obscura (as causas formal e final).
Dentro do conceito geral de kinesis (a mudança)
Aristóteles introduz uma distinção de modos dife-
rentes e, muito tipicamente, serve-se do seu esquema
das categorias para este objetivo. Ou seja, ele observa
que pode haver uma mudança segundo a substância,
quando uma coisa, uma realidade que antes não exis-
tia, chega a ser: a mudança essencial é pois a geração
(ou o seu contrário, a corrupção) de uma substância,
por exemplo, o nascimento de um homem ou de um
animal (ou o seu desaparecimento). Mas também
pode acontecer uma mudança segundo a quantida-
de, que pode ser por crescimento ou por diminuição,
ou então por qualidade, que é a alteração: por exem-
plo, o fruto que ao amadurecer muda de cor; ou, por
fim, a mudança segundo o lugar, que é o verdadeiro
movimento, a deslocação local de um corpo. Aristó-
teles reconhece que há uma prioridade deste tipo de
movimento sobre todos os outros três, pois que em
cada um destes estaria implícito um movimento local
qualquer: isto torna-se particularmente evidente no
caso da mudança quantitativa – basta pensar na cria
de um animal ou num fruto que gradualmente cresce.
O conceito de lugar está pois necessariamente ligado
ao do movimento e Aristóteles define o lugar como
«o primeiro limite imóvel do contentor», porque cada
coisa está num lugar como se estivesse num recipiente
que a delimita – mas neste caso, contrariamente ao
dos recipientes feitos de alguns materiais, o recipiente,
o lugar, é imóvel, isto é, não pode ser deslocado tal
como se faz com um vaso ou com qualquer contentor

221
material. Por outro lado, o movimento não poderia,
segundo Aristóteles, dar-se no vazio: no vazio não ha-
veria diferença de velocidade entre corpos pesados e
leves como, pelo contrário (no parecer do filósofo), se
vê acontecer na realidade. Nem existe um vazio infini-
to além do universo – que segundo Aristóteles é finito
e não está num determinado lugar –, porque não há
nada além dele que o possa conter. Uma consequência
desta convicção é pois a negação da existência atual
do infinito: o infinito teria uma existência apenas po-
tencial, por exemplo, na série dos números, para um
dos quais será sempre possível, por muito grande que
seja, indicar um ainda maior; ou então, na infinita
divisibilidade das grandezas, que podem ser sempre
ulteriormente subdivididas sem se alcançar um limite
que possa ser ultrapassado, nem um estado em que a
grandeza resulte atualmente subdividida num número
infinito de partes. Por fim, ligada ao movimento acha-
-se a explicação aristotélica do tempo, que o filósofo
define como «o número do movimento segundo o
antes e o depois», isto é, a ordem que mede o movi-
mento. Sem isto, não haveria sequer o tempo, para o
qual a unidade de medida é fornecida pelo movimen-
to circular do céu.
Partindo da consideração de experiências tão fa-
miliares como o movimento e a passagem do tempo
somos levados ao estudo dos fenómenos celestes. An-
tes de mais, porém, convém ter presente que a física
aristotélica, embora confesse a existência de uma de-
pendência fundamental do mundo terrestre e dos seus
processos para com os fenómenos celestes, estabelece

222
uma nítida, aliás, uma radical distinção entre os dois
níveis do mundo sobretudo no plano físico. Desta dis-
tinção é preciso dar conta começando a tratar da física
propriamente terrestre.
Aristóteles repropõe a teoria empedocliana das
quatro raízes das coisas terrenas – fogo, ar, água e terra
– mas reformula-a e aprofunda-a considerando cada
um destes quatro elementos como o resultado de uma
união de um substrato comum a todos, a matéria-
-prima, e de um par de qualidades essenciais (quente,
frio, seco, húmido) que concorrem, nas suas diversas
combinações possíveis, para a constituição de um úni-
co elemento: assim, com a entrada de quente e seco
na matéria-prima se obtém o fogo, com o quente e o
húmido obtém-se o ar, com o frio e o húmido obtém-
-se a água, com o frio e o seco a terra – a presença
simultânea de duas qualidades opostas no substrato,
como o quente e o frio ou o seco e o húmido, ob-
viamente não seria possível. Convém, todavia, notar
que na natureza não é possível encontrar uma matéria
em que esteja totalmente ausente um par das qualida-
des fundamentais; a matéria-prima tem portanto uma
existência unicamente abstrata e teórica. Logo, não
é claro se Aristóteles considera o par das qualidades
constitutivas de cada elemento como a forma deste.
Trata-se de um passo que o aristotelismo mais tardio
haveria efetivamente de dar. Os quatro elementos es-
tão sujeitos a geração recíproca ou, mais precisamente,
a transformar-se um no outro: por exemplo, no ar que
se condensa, a qualidade do quente é substituída pela
do frio e tem-se assim a formação da água ou, pelo

223
contrário, a água que evapora perde o frio como qua-
lidade e, sendo substituído pelo quente, dá origem ao
elemento quente e húmido, a saber, o ar. Os elemen-
tos são naturalmente dotados de um movimento reti-
líneo, que é direto, segundo o seu peso respetivo, ou
para o alto e para a periferia do universo (no caso do ar
e sobretudo no do fogo), ou para baixo e para o centro
do universo (que coincide com o da terra: é o caso da
água e sobretudo da terra). Pode-se portanto imaginar
o mundo aristotélico como o que está em baixo, sendo
a lua o mais próximo dos corpos celestes relativamente
a nós: daí a denominação corrente de «mundo sublu-
nar» para esta porção do universo – universo consti-
tuído por quatro esferas ou zonas concêntricas devidas
à sobreposição tendencial dos quatro elementos um
em relação ao outro segundo o seu peso; teremos, por
conseguinte, a partir de baixo, terra, água, ar e fogo.
Mas, na realidade, entre as quatro zonas há uma co-
municação contínua e uma troca incessante que ex-
plica também os fenómenos meteorológicos devidos à
transformação dos elementos uns nos outros: pense-se
no exemplo já citado da evaporação da água e na con-
densação do ar húmido que cairá de novo sobre a terra
em forma de chuva.
Mas porque há esta transmutação cíclica e contí-
nua dos elementos e porque há no mundo posto sob a
lua outros fenómenos que se repetem incessantemente
em maneira cíclica, por exemplo, a sucessão constante
das estações e – ligada a esta – a sucessão das gerações
e das corrupções dos indivíduos nas espécies viventes?
Aristóteles faz este tipo de fenómenos depender do

224
movimento regular dos corpos celestes, em particular,
no que diz respeito ao ciclo dos elementos e o dos seres
vivos, fá-lo depender do movimento do sol durante
o círculo da eclíptica. Mas o movimento do sol está
por sua vez ligado a um mecanismo complexo que diz
respeito a todos os corpos visíveis da abóbada celeste
e os envolve. Antes de tudo, convém dizer que, mo-
vendo-se todos estes corpos por um movimento que
é unicamente circular, Aristóteles se vê obrigado a ad-
mitir que eles são constituídos por uma matéria dife-
rente da dos quatro elementos sublunares, que são do-
tados de um movimento retilíneo; a matéria especial
dos corpos celestes será o éter, ao qual naturalmente
cabe o movimento de trajetória circular. Mas simples
observações da abóbada celeste tinham há muito feito
notar aos astrónomos antigos que nem todos os cor-
pos celestes parecem exibir este movimento regular de
revolução à volta da terra pensada como centro está-
vel do universo: em particular, as irregularidades eram
evidentes para os sete planetas então conhecidos (além
da lua e do sol, considerados também como plane-
tas em movimento à volta da terra, Mercúrio, Vénus,
Marte, Júpiter e Saturno); e a Academia de Platão ti-
nha procurado resolver precisamente o problema da
irregularidade aparente dos movimentos planetários
reduzindo-a a uma composição de vários movimen-
tos circulares. Neste sentido os astrónomos ativos na
Academia, como Eudoxo e Calipo, tinham elaborado
uma explicação; Aristóteles aceitou os pressupostos
fundamentais deles desenvolvendo-os ulteriormen-
te e fazendo de um modelo matemático, como era

225
o dos astrónomos académicos, um mecanismo físico
complicado em que cada planeta se moveria segun-
do a trajetória que resultava do movimento circular
de uma pluralidade de esferas às quais o planeta esta-
va vinculado, tantas quantas podiam servir para dar
conta das aparentes irregularidades no movimento de
cada planeta. Na periferia extrema do sistema destas
esferas destinadas a causar e explicar os movimentos
planetários permanecia, como esfera mais externa, a
das estrelas fixas, cuja posição não parecia mudar na
abóbada celeste.
Para Aristóteles sobejava, todavia, um problema:
esclarecer porquê e como se move todo o sistema dos
céus. A sua solução, exposta no livro XII da Metafísica,
foi postular a existência de um primeiro motor imóvel
exterior à esfera das estrelas fixas, um motor que teria
fornecido o ponto de início lógico e ontológico dos
movimentos no universo, mas não o cronológico. De
facto, Aristóteles estava convencido da eternidade do
movimento e da existência mesma do universo. Nesta
tese, demonstrada no De caelo, é fácil ver uma opo-
sição polémica à cosmologia do Timeu interpretado
no sentido mais à letra: ou seja, atribuindo a Platão
a ideia de um início efetivo no tempo e de uma gera-
ção real do universo. Tendo de mover-se desde sem-
pre e para sempre, o motor só podia ser pensado por
Aristóteles como sendo algo perenemente em ato, ou
seja, destituído de toda e qualquer potencialidade, de
matéria: a saber, como uma substância absolutamente
imaterial e imóvel. Mas surgia o problema de explicar
como uma substância do género teria podido insuflar

226
movimento a um sistema físico, com o qual não podia
sequer existir um contacto material. A questão ainda
hoje se discute entre os estudiosos, mas parece que no
livro XII Aristóteles pensou resolver as dificuldades ao
afirmar que o motor imóvel move o primeiro céu (o
das estrelas fixas) «como objeto de amor», isto é, como
o objeto desejado atrai para si quem aspira a ele. O
motor imóvel tornar-se-ia assim a causa eficiente do
movimento sendo, na realidade, a causa final; movido
desta maneira, o primeiro céu, o mais exterior onde
estão colocadas as estrelas fixas, por sua vez transmi-
tiria o impulso de movimento às esferas celestes mais
internas, as que governam os movimentos planetários.
Nestes termos a teoria aristotélica teria uma con-
sistência lógica, mas no livro XII da Metafísica ela está
entrelaçada a uma série de outras considerações e afir-
mações que muito a complicam. Em primeiro lugar,
mostra-se complicada no plano propriamente físico.
Num capítulo sucessivo àquele em que se demonstra a
existência de um primeiro motor externo ao céu extre-
mo, Aristóteles afirma de facto a existência de outras
substâncias «do mesmo tipo» daquele motor, isto é, de
tantos outros motores imóveis quantas são as esferas
postuladas para explicar os movimentos planetários
(estas são, segundo dois métodos diferentes de cálculo
sugeridos pelo próprio Aristóteles, quarenta e sete ou
cinquenta e cinco). Portanto, haverá um motor imó-
vel para cada esfera. Mas da multiplicação dos motores
originam-se outras dificuldades de ontologia e de filo-
sofia teorética que infelizmente Aristóteles deixa sem
solução na Metafísica. De facto, ele tinha identificado

227
o motor imóvel do céu mais externo explicitamente
com «Deus» e tinha-lhe atribuído como essência e ati-
vidade sua própria, o pensamento: aliás, o «pensamen-
to de pensamento», porque Deus não poderia pensar
outra coisa a não ser em si mesmo, dado que qual-
quer outro objeto lhe é inferior e indigno. Sucessiva-
mente, com a introdução da pluralidade dos motores,
acabaria por postular a existência de uma pluralidade
de substâncias imateriais cada uma das quais deve ser
«do mesmo tipo» da primeira: isto é, uma substância
divina, puramente inteligível e intencionada a pen-
sar apenas em si mesma? Só em si mesma? Aristóteles
menciona a um certo momento a existência de uma
hierarquia entre os motores «segundo a ordem dos mo-
vimentos», mas não diz absolutamente nada de claro
acerca de eventuais relações destas substâncias entre si
e nada acerca de uma dependência de todas para com
o primeiro motor. O livro XII da Metafísica encerra-se
todavia com a afirmação vigorosa da existência de um
único princípio que governaria o universo.

5. OS VIVENTES E A ALMA

Fosse qual fosse realmente a intenção de Aristó-


teles a propósito da relação entre os motores celestes,
revela-se claro pela Metafísica e pela Física que o uni-
verso é, segundo ele, finalisticamente orientado para
o bem, todavia, sem que a (ou as) divindade(s) tenha
(ou tenham) projetado e desejado esta ordem, sem
nunca intervir(em) nela e sem que a ordem tenha um
início partindo de uma diversa situação primordial

228
qualquer: o universo é portanto eterno e eterna é tam-
bém a sua ordem garantida unicamente pela existên-
cia e pela atividade incessante do primeiro motor (ou
de todo o sistema dos motores celestes). Além de se
manifestar na regularidade dos fenómenos celestes e
físicos a ordem cósmica dá-se a conhecer também no
mundo dos seres vivos que, julgando pelo número e
pela relevância das obras que Aristóteles lhe dedicou,
parece ter obtido do filósofo o máximo da atenção
possível numa situação em que a ciência biológica se
servia de uma instrumentação absolutamente elemen-
tar. Aristóteles teve todavia o enorme mérito de recor-
rer, quando necessário, à dissecação anatómica e de
não desprezar a informação que sobre o mundo dos
viventes lhe podia advir também dos que, por ofício,
trabalhavam em íntimo contacto com ele: criadores
de gado, pescadores, pastores, caçadores. A sua biolo-
gia serviu-se dos materiais e das observações que lhe
foram fornecidos por estas fontes, uma biologia ins-
pirada, porém, como é óbvio, nos princípios gerais da
sua filosofia. O resultado foi uma conceção do mundo
dos seres vivos que permaneceu essencialmente firme,
nos seus alicerces, até aos começos da idade moderna.
Cada ser vivo é constituído por conjuntos orga-
nizados de partes, que Aristóteles distingue em dois
tipos. Da combinação dos elementos naturais em pro-
porções e em medidas diversas originam-se as partes
que Aristóteles chama homeomere, isto é, homogéneas:
as que podem ser ulteriormente divididas noutras par-
tes sempre semelhantes entre si e correspondem, mais
ou menos, aos nossos tecidos, como, por exemplo, os

229
ossos e a carne. Depois, há as partes não-homogéne-
as (anomeomere), que não se podem dividir como as
primeiras e, grosso modo, correspondem aos órgãos: o
coração, o fígado, os pulmões. A presença em maior
ou menor número destas partes não homogéneas de-
termina a maior ou menor complexidade do animal;
mas Aristóteles apercebe-se de que entre as várias
classes de seres vivos há também analogias de estru-
tura, razão pela qual, por exemplo, os pulmões dos
animais terrestres têm, relativamente à sua função, o
seu órgão análogo nas guelras dos peixes. Segundo a
estruturação teleológica de toda a filosofia aristotélica,
também na biologia é sobremaneira central o conceito
de função: não são os órgãos a provocarem o desen-
volvimento de certas funções, mas estes existem nos
animais para que eles possam realizar as funções que
lhes são próprias. Por isso não é verdade que o homem
é o mais inteligente de todos os animais porque tem
mãos, mas, pelo contrário, tem mãos porque é o mais
inteligente e é capaz de realizar atividades racional-
mente controladas como as técnicas. Relativamente
ao número dos órgãos e das atividades que eles estão
destinados a realizar se distinguem as diversas espécies
animais, cada uma das quais é imutável na sua estru-
tura e finalizada à própria e eterna conservação: deste
modo ele imita também, na medida do possível – isto
é, através do incessante suceder-se dos indivíduos ga-
rantido pelo ciclo das gerações –, a eternidade dos mo-
vimentos celestes e a existência divina. Na geração dos
indivíduos pode às vezes haver desvios da estrutura
típica da espécie; nascem então aqueles que Aristóte-

230
les chama de «monstros». Pelo contrário, quando a
reprodução animal decorre normalmente, através do
sémen o macho providencia o início do processo de
elaboração da matéria fornecida pela fêmea (segundo
Aristóteles trata-se do sangue menstrual): por outras
palavras, é o macho a imprimir e transmitir a forma
própria da espécie a que ele pertence na matéria pro-
veniente da fêmea.
Ora, nas espécies vivas a forma é precisamente a
alma, que é aquele princípio em virtude do qual a vida
está nos corpos. Por conseguinte, muitas vezes Aristó-
teles limita-se a definir a alma como a «forma do cor-
po»; mas no seu tratado de psicologia também propõe
dela uma definição mais articulada: dado que a for-
ma, quando está presente numa matéria, representa a
realização das potencialidades ínsitas nela, Aristóteles
afirma que a alma é «o ato de um corpo natural que
tem a vida em potência». E visto que somente os cor-
pos naturais dotados de órgãos (que em grego signifi-
ca «instrumentos») aptos a realizarem as funções vitais
têm vida em potência, ou seja, as plantas e os animais,
então a definição pode ser enunciada também de outra
forma, dizendo que a alma é «o ato de um corpo na-
tural orgânico». A alma é inseparável do corpo como
sua forma ou ato: a Aristóteles é completamente alheia
a conceção platónica que pode contrapor alma e cor-
po como realidades separáveis e, por vezes, conflituais
entre si; tal como lhe é alheia a crença na imortalidade
da alma humana – com uma possível e problemáti-
ca exceção de que falaremos em seguida. Contraria-
mente ainda a Platão, Aristóteles não defende que a

231
alma seja divisível em «partes»: embora por vezes faça
uso desta linguagem, habitual para quem provém da
Academia; em vez de partes da alma ele prefere falar
de dynameis, de faculdades ou funções psíquicas cuja
multiplicidade e diferenciação não minam todavia a
unidade da forma-alma, nem a sua relação com o cor-
po, de maneira que cada atividade psíquica está ligada
a algum processo ou atividade do organismo corpóreo
(contudo, mais uma vez com uma exceção possível –
embora sempre muito problemática – para uma certa
atividade do pensamento).
As faculdades da alma são, segundo Aristóteles,
essencialmente três: vegetativa, sensitiva e intelectiva.
Só no homem, porém, estas três faculdades se acham
todas juntas: de facto, há entre as faculdades uma re-
lação hierárquica pela qual a presença da faculdade su-
perior pressupõe sob ela a existência de todas as facul-
dades inferiores, mas não vice-versa. Assim, se no ser
humano a faculdade intelectiva pressupõe a existência
da sensitiva e da vegetativa, nos animais encontram-se
apenas a faculdade sensitiva e, por conseguinte, a ve-
getativa, enquanto que nas plantas existirá unicamen-
te a última, à qual Aristóteles atribui as três funções
da nutrição, do crescimento e da reprodução. Portan-
to, segundo Aristóteles, também os vegetais têm uma
alma e é fácil observar que a definição geral que ele
propôs (a alma como ato ou forma do corpo) se adap-
ta à descrição da condição tanto dos vegetais quanto
dos animais, e, enfim, à descrição do ser humano sem
privilegiar um destes três sujeitos, mas também sem
definir um dos três na sua especificidade. Por esta ra-

232
zão, no tratado sobre a alma Aristóteles põe depois o
exame analítico de cada faculdade psíquica depois da
definição geral.
Já se falou das três funções da faculdade vegetati-
va. A alma sensitiva, presente apenas nos animais e no
ser humano, realiza as suas funções mediante os cinco
sentidos e os respetivos órgãos, cada um dos quais tem
um objeto específico como sensível que lhe pertence: a
vista tem as cores, o ouvido tem os sons, o tato tem as
contrariedades tangíveis dos corpos (quente/frio, seco/
húmido, duro/mole, etc.), o olfato tem os cheiros e
o paladar tem os sabores que, porém, estão ligados a
qualidades igualmente tácteis. Cada um dos sentidos
perceciona as formas sensíveis que lhe cabem, sem a
matéria em que elas estão presentes e potencialmente
percetíveis; quando há perceção atual, quer o sentido,
que até àquele momento estava em potência, quer o
objeto sensível passam da potência ao ato e, segun-
do Aristóteles, de certa forma identificam-se: antes do
ato percetivo eram dissemelhantes, mas quando este
se realiza o sentido assimila-se ao objeto (isto é, tal-
vez se deva entender que este é plena e perfeitamente
qualificado). De tudo isto resulta evidente por que
razão Aristóteles pode também afirmar precisamente
que a perceção do sensível por parte de cada sentido
é infalível; onde pode nascer o erro é, pelo contrário,
na identificação, por exemplo, de algo branco (corre-
tamente percebido como cor e sensível próprio da vis-
ta) com um determinado indivíduo, por exemplo, o
filho de Diare. Todavia, há também sensíveis comuns
a mais do que um sentido: o movimento, a quietude,

233
o número, a figura e o tamanho dos objetos podem
ser percebidos por mais do que um sentido; mesmo
a perceção destes sensíveis comuns está sujeita a erro.
E dado que há sensíveis comuns a mais do que um
sentido, deve haver também uma capacidade unifica-
dora da perceção, um sentido comum da faculdade
percetiva que Aristóteles liga ao coração, de certa for-
ma o órgão central da perceção tal como da função
vegetativa e da vida psíquica: o Filósofo recusa então
as funções do cérebro que já haviam sido intuídas pela
tradição anterior; para ele o cérebro é apenas um órgão
de arrefecimento do calor vital.
Por último, devemos dizer que Aristóteles liga a
faculdade sensitiva a algumas funções que dela depen-
dem e que se configuram como uma espécie de sub-
-faculdade da sensação: a função apetitiva, a imagina-
tiva e a locomotiva. De facto, em qualquer ser onde
haja sensação há também a perceção do prazer e da
dor e, por conseguinte, há a tendência à obtenção de
um e à fuga do outro: logo, qualquer animal possui
também a faculdade apetitiva. Nem todos os animais,
pelo contrário, possuem a faculdade locomotiva (Aris-
tóteles sabia da existência de animais radicados no
fundo do mar): esta permite aos animais mais com-
plexos que busquem também à distância os objetos da
apetência, ou então que fujam dos perigos. Por fim,
em alguns animais mais completamente estruturados
existe também a faculdade imaginativa (phantasia),
que neles pode configurar a representação dos obje-
tos sensíveis desejáveis (por exemplo, a comida) mes-
mo na ausência do objeto e, por isso, pode funcionar

234
como causa eficiente do movimento local: Aristóteles
analisa minuciosamente este processo psicofisiológico
também no breve e relevante texto Sobre o movimento
dos animais.
No ser humano, porém, o objeto da phantasia,
como resíduo deixado pela perceção quando o sensí-
vel deixa de estar presente, tem outra função impor-
tantíssima. O depósito contínuo de imagens deixadas
pela perceção funda a pouco e pouco a memória, de
onde a racionalidade humana toma forma constituin-
do gradualmente os conceitos universais e as formas
inteligíveis: não só no De anima, como também nos
Analíticos e na Metafísica, Aristóteles expõe esta con-
ceção que implica uma teoria do conhecimento fun-
damentalmente sensista. Coerentemente com esta or-
denação, no De anima ele afirma também que a alma
humana nunca pensa sem ter presente uma imagem;
por conseguinte, parece que também a faculdade inte-
lectiva, a faculdade de pensar, é, em última instância,
dependente da sensação e está ligada à condição do or-
ganismo corpóreo e à sua forma, à alma precisamente,
cuja corruptibilidade Aristóteles declara indubitável e
explicitamente. Contudo, no De anima a questão da
faculdade intelectiva mostra-se complicada por razão
de outra linha interpretativa. Num texto muito bre-
ve e muito obscuro do livro III Aristóteles introduz
uma distinção entre os dois níveis do intelecto, um
dos quais ele chama de passivo ou potencial e este pa-
rece ter de ser identificado com o mesmo intelecto que
anteriormente ele definira como sendo semelhante a
uma tabuinha onde nada ainda fora escrito antes de

235
ele ter pensado; este intelecto passivo é em potência
todos os inteligíveis e Aristóteles diz claramente que
está destinado a perecer com o corpo e com as facul-
dades inferiores da alma. Poder-se-ia portanto pensar
que este intelecto é precisamente aquela faculdade in-
telectiva que está em continuidade com a imaginação,
a sensação e a memória e que as formas inteligíveis
se inscrevem nele no modo que já referimos. Todavia,
Aristóteles prevê também outro e superior nível do in-
telecto, ao qual atribui a faculdade de «fazer (poiein)
tudo» – e por esta razão ele será chamado, na tradição
posterior, de intelecto «ativo» ou «produtivo» (poieti-
kos): ele «faria tudo» tal como a luz atualiza as cores
que estão em potência nas coisas não iluminadas. De
acordo com esta analogia, que lembra bastante a ana-
logia platónica entre o sol e o bem inteligível, dir-se-ia
que Aristóteles quer indicar que o intelecto produtivo
leva da potência ao ato as formas inteligíveis e, por
conseguinte, de certa forma é a causa que confere ao
intelecto passivo a faculdade de as pensar.
Esta teoria é obviamente muito problemática e, de
facto, suscitou desde a antiguidade uma quantidade
enorme de discussões e de interpretações discordantes.
Por um lado, não é bem clara a relação entre os dois
intelectos: a função ‘atualizadora’ atribuída ao intelec-
to ativo não parece ser requerida pela teoria com base
sensista desenvolvida por Aristóteles noutras obras.
Por outro lado, mantém-se obscuro se se deve conside-
rar também o intelecto produtivo como uma faculda-
de da alma humana: de facto, dele Aristóteles diz que é
«separado, impassível e não misturado», que é «imortal

236
e eterno» e que, além do mais, é essencialmente ativida-
de, atividade incessante – com efeito, esclarece, não sig-
nifica que «às vezes pensa e às vezes não». Logo, pensa
incessantemente. É evidente que é muito difícil atribuir
propriedades semelhantes a uma faculdade da alma in-
dividual humana e, por isso, Alexandre de Afrodísias
identificou o intelecto produtivo com o Deus que se
pensa a si mesmo da Metafísica, e que se encontraria
«na alma» só no sentido que a alma humana (isto é, a
faculdade do intelecto passivo) é capaz de pensá-lo e
só quando o pensa se identificaria (transitoriamente: cf.
cap. VI, § 6) com ele. Aquilo em que pensava Aristóte-
les é impossível sabê-lo: a favor da interpretação de Ale-
xandre estão indubitavelmente os atributos que o livro
III do De anima atribui ao intelecto produtivo e que
acabámos de recordar. Além disso, pode-se acrescentar
que no De generatione animalium Aristóteles fala do in-
telecto humano como se fosse algo de divino que «che-
ga de fora» à alma; mas contra Alexandre pode-se dizer
que a existência de uma parte pensante (o intelecto) no
homem, que no seu texto também é definida como es-
tando «separada», é na Ética a Nicómaco o pressuposto
para a exaltação da vida teorética como supremo ideal
humano que torna o homem parente da divindade. Por
fim, estas oscilações dão a impressão de que, com uma
atitude bem compreensível num pensador de formação
académica e platónica, Aristóteles tivesse relutância em
encerrar completamente o pensamento numa faculda-
de ligada à estrutura corpórea do ser humano e aos pro-
cessos fisiológicos que acompanham, na sua opinião,
qualquer outra atividade psíquica.

237
6. A METAFÍSICA

Quer na psicologia, na cosmologia, ou na ética,


como veremos, a uma certa altura o procedimento de
Aristóteles passa os confins do nível das substâncias
sensíveis e mostra admitir a existência também de re-
alidades totalmente independentes de um substrato
material e, na sua essência, puramente inteligíveis. A
Metafísica, cujo nome parece acenar a algo que está
«além», ou «depois» (em grego, meta-) da natureza, de-
veria conter os esclarecimentos relativos a isso. Toda-
via, a obra tem apenas uma pequena parte dedicada ao
mundo das realidades não vinculadas à matéria; e mes-
mo acerca dessa parte, o que Aristóteles diz permanece
bastante problemático, como se viu a propósito dos
motores celestes do livro XII. Convém ter em con-
ta, porém, que a Metafísica não é uma obra unitária
pensada por Aristóteles com a forma com que nos
chegou, mas trata-se de uma recolha de catorze livros
escritos em tempos provavelmente muito distantes en-
tre si e na mente do autor não destinados (ou não to-
dos) a fazerem parte de uma só obra, mas sim unidos
depois por vários editores posteriores, talvez até pelo
discípulo direto de Aristóteles, Eudemo, mas muito
mais plausivelmente pelo tardio peripatético do sécu-
lo I a.C., Andronico de Rodes (nesse caso, também o
título deveria ser explicado simplesmente como uma
alusão à colocação da obra, prevista naquela edição,
«depois dos livros da Física»). Além disso, o exame das
doutrinas expostas na Metafísica mostra facilmente
que alguns problemas importantes levantados aí não

238
têm resposta. Contudo a obra possui uma certa unida-
de não artificial porque efetivamente a maior parte dos
seus livros se norteia pela solução de um problema de
fundo que não é diretamente o do ser suprassensível,
mas o da possibilidade de constituir uma ciência que,
distinguindo-se da física, tenha um objeto específico
em que achem lugar quer os aspetos não sensíveis,
isto é, as características formais das substâncias físicas,
quer as substâncias suprassensíveis pensadas como as
causas primeiras e os princípios das substâncias físicas.
Um procedimento do género deste problema é
bastante compreensível se se tiver presente a situa-
ção filosófica da Academia e a reação que esta devia
suscitar em Aristóteles – uma reação que já se men-
cionou brevemente no § 2. De facto, as doutrinas
académicas dos princípios supunham que, existindo
poucos princípios comuns a todas as realidades, sen-
síveis ou não, existisse também uma ciência suprema
(a dos princípios) capaz de deduzir dos princípios e
de explicar completamente toda a realidade, sensível e
suprassensível. Já se disse que Aristóteles recusava tal
procedimento, não admitindo a existência de nenhum
princípio comum para todas as coisas, de nenhum gé-
nero sumo como o ser ou o uno, e defendendo, pelo
contrário, a existência de muitas ciências especiais cuja
autonomia ele afirmava com tenacidade. Mas também
já se acenou que Aristóteles manteve bem firme a exi-
gência, platónica e académica, de uma ciência superior
que, tal como as doutrinas académicas dos princípios,
funcionasse como unificadora de todas as formas do
saber e fosse de certo modo ciência universal de todas

239
as coisas, mas que se dirigisse também a um objeto
eminentíssimo colocável num nível mais do que fí-
sico e divino do ser. Todavia, ele devia construir essa
ciência sem violar as regras da epistemologia, da teoria
lógica e gnosiológica que entretanto tinha dado, espe-
cialmente nos Analíticos. Não era decerto um proble-
ma de fácil solução e, muito significativamente, nos
livros da Metafísica, onde ele introduz a exigência de
atingir esta forma superior de ciência, quer dizer, em
especial nos livros I e III, denomina-a muitas vezes
sapiência (sophia) ou «ciência das causas primas», ou
ainda «ciência almejada». Antes de mais, a questão
era portanto a possibilidade mesma de constituir
corretamente uma tal ciência.
A resposta ao problema ganha forma no IV e no
VI livros da Metafísica. Uma ciência universal de to-
das as coisas pode ser construída como «ciência do ser
enquanto ser», entendendo porém o ser não como um
género, porque nasceriam as dificuldades já ilustradas
antes, no § 2, mas nem sequer como um conceito que
resulta de uma mera homonímia das coisas que são;
pelo contrário, Aristóteles faz notar que todas as coisas
que por um qualquer motivo se dizem que «são», em
qualquer um dos múltiplos modos e significados do ser
(as categorias, por exemplo), têm todavia um ponto de
convergência num significado focal e fundamental do
ser: a substância. De facto, todas as coisas que de certo
modo «são», aquelas de que se pode dizer que têm ser,
«são» precisamente ou enquanto atribuições ou deter-
minações da substância, ou então como corrupções ou
privações, ou ainda como negações da substância mes-

240
ma ou de alguma das suas determinações. A ciência do
ser enquanto ser pode portanto ser reconduzida a uma
ciência geral da substância e de todos os outros modos
do ser que se referem à substância e que dela dependem.
A constituição de uma ciência entendida nestes mol-
des não implica a supressão das ciências especiais, que
têm como objeto uma porção limitada de ser (o «géne-
ro próprio de cada uma»), nem a sua redução a meras
aplicações da ciência superior; para explicar este tópico
Aristóteles dá o exemplo da medicina, que, como ciên-
cia da saúde, se ocupa de todas as coisas «saudáveis», por
exemplo, dos medicamentos salutares, da forma física,
que é também algo salutar, dos alimentos saudáveis, da
saúde da estrutura do organismo. De todas estas coisas,
enquanto saudáveis e convergentes no conceito focal
da saúde, se ocupa a medicina; mas isso não comporta
uma anulação ou limitação das ciências especiais depu-
tadas a cada um dos objetos nomeados: existirão sempre
autónomas e senhoras dentro do seu género, a química
farmacêutica como ciência dos fármacos, a ginástica da
forma física, a dietética dos alimentos, a anatomia e a
fisiologia como ciências do organismo corpóreo. Exa-
tamente do mesmo modo poderá existir uma ciência
geral do ser enquanto ser, isto é, a ciência da substância
que representa o significado focal do ser; ela ocupar-se-
-á da substância e de todas as outras coisas que são se
tiverem algo a ver com a substância. Para esta ciência
Aristóteles usa finalmente no livro VI, de modo explíci-
to, o nome de «filosofia primeira» (este nome já se podia
ler em contraluz em algumas argumentações do livro
IV): é o nome mais preciso, na linguagem aristotélica,

241
para aquele saber que nós tradicionalmente chamamos
hoje de metafísica.
Porém, uma determinação do objeto da filosofia
primeira deste tipo, se por um lado responde bem à
exigência de universalidade que Aristóteles avançou
nos primeiros livros da obra para a «ciência almeja-
da», por outro, parece causar atrito na outra exigência
que se afirmava nos livros introdutivos, a de um obje-
to do saber que, além de ser universal, fosse também
supremamente eminente e parente do nível inteligí-
vel e divino do ser. Aristóteles tem alguns truques na
manga para esta dificuldade. Por um lado, serve-se do
princípio de que «em qualquer campo a ciência é pro-
priamente do que é primo»: um princípio que pode
ser exemplificado de modo convincente referindo-
-se ainda à prioridade da substância relativamente ao
seus atributos; por outro lado, dado que existe uma
multiplicidade de substâncias ordenadas de manei-
ra hierárquica (porque o livro IV indica claramente
a convicção de que além das substâncias sensíveis
existe uma substância não sensível, imaterial e imó-
vel), poder-se-á dizer que até a ciência da substância
se reconduz finalmente à ciência da substância que é
primeira na ordem hierárquica, quer dizer, à substân-
cia imóvel e imaterial. Por outras palavras, a ciência
universal do ser é primeiro identificada por Aristóteles
com a da substância, mas depois a ciência (universal)
da substância é, por sua vez, reconduzida à ciência da
substância prima: deste modo o objeto da filosofia pri-
ma, embora conserve a sua universalidade, conquista
também o mais elevado grau possível da eminência

242
(note-se, porém, que no contexto desta argumentação
Aristóteles fala da substância prima com um significado
totalmente diferente do das Categorias: este indica agora a
substância suprassensível, primeira na ordem hierárquica
das substâncias). No livro VI, por fim, Aristóteles é abso-
lutamente explícito ao identificar a substância prima com
a divina e, ao declarar que a filosofia prima é «universal
precisamente porque é prima», dá-lhe também – único
caso na Metafísica e em todo o corpus dos escritos da esco-
la – o nome de ciência teológica. É evidente que naquela
página ele pressupõe uma conceção do divino idêntica, ou
pelo menos muito semelhante, à do livro XII porque fala
das substâncias imóveis divinas como se fossem «causas
das divindades visíveis»: estas, segundo uma conceção co-
mum também a Platão e em geral aos Gregos, são como é
óbvio os corpos celestes; as suas causas, como substâncias
imóveis e divinas, serão portanto os motores dos movi-
mentos e das esferas celestes.
Poder-se-ia então defender que a Metafísica que nós
lemos e como a lemos, com aquele número e aquela certa
sucessão de livros, conclui de modo coerente a sua tarefa
e a sua investigação e assim o viu também a interpretação
tradicional da obra que remonta, em última análise, aos
comentadores de idade tardo-antiga e reconhece no livro
XII a «teologia» anunciada no livro VI. Mas, contra esta
leitura sistemática da Metafísica, deve-se contudo obser-
var que é muito dúbia a perspetiva em que esta coloca o
livro XII, que não se presta a ser lido como uma «teolo-
gia» nem a ser visto como uma ciência geral do ser. De
facto, se é verdade que ele fala de Deus como primeiro
motor e (implicitamente) dos outros motores celestes

243
como deuses, dando resposta, pelo menos por este as-
peto do problema, às menções feitas no livro VI acerca
das substâncias divinas, é todavia inegável que fala dele
sobretudo do ponto de vista da explicação do movi-
mento e que lhe falta precisamente aquilo que parecia
indispensável a uma ciência teológica, isto é, uma expli-
cação clara da natureza de todas as substâncias divinas e
das relações destas entre si. De facto, como se viu antes
(§ 4), Aristóteles limita-se a atribuir uma atividade de
autocontemplação ao primeiro motor e nada diz acerca
dos outros problemas. Segundo muitos intérpretes mo-
dernos, é provável que o livro XII fosse uma pesquisa
de Aristóteles completamente independente, escrita por
ele quando ainda não pensava numa ciência universal
do ser que pudesse inserir na teologia, talvez em idade
académica, ou pouco depois da sua separação da esco-
la de Platão. De resto, nos livros centrais da Metafísica
(VII, VIII e IX) Aristóteles expõe efetivamente uma te-
oria da substância que pode considerar-se um desenvol-
vimento da ciência do ser e da substância apresentada
nos livros IV e VI: mas nesses livros fala unicamente
das substâncias sensíveis e mostra mais do que uma vez
que não considera ainda resolvido o problema das subs-
tâncias não sensíveis, imateriais e imóveis. Portanto, o
tratamento das substâncias sensíveis naqueles livros era,
para ele, preliminar a uma investigação ulterior sobre
as substâncias imóveis que não se conservou ou, muito
provavelmente, não chegou a escrever.
O que nos ficou da ciência aristotélica do ser en-
quanto ser, isto é, da substância, é, por essa razão,
um exame difícil mas importantíssimo das substân-

244
cias sensíveis entregue aos livros centrais da Metafísica
que acabámos de lembrar. Aristóteles modifica a tese
central das Categorias nestes livros: perguntando-se o
que faz de uma coisa – por exemplo, de uma substân-
cia individual como este homem aqui – precisamente
aquela certa coisa que ela é, chega a reconhecer que
dentre todos os candidatos possíveis (que são o uni-
versal ou o género, a matéria, o sujeito que, por sua
vez, pode ser entendido como matéria ou forma, ou
como o conjunto destas duas – que era precisamente a
substância prima segundo as Categorias) apenas a for-
ma pode satisfazer adequadamente este requisito. De
facto, é em virtude da forma que cada substância que
seja por sua vez composta de matéria e forma, isto é,
sensível, é precisamente aquilo que é. A substância em
sentido primário torna-se nos livros VII-VIII a for-
ma imanente (eidos enon), aquela forma que funciona
como um princípio de organização estrutural da coisa
e que, se for expressada numa definição de essência,
explica-nos também o que é aquilo que é definido
dessa maneira. Por conseguinte, acontece muitas vezes
que nestes livros Aristóteles afirme que a substância de
um dado homem ou de um certo animal seja, na rea-
lidade, a sua forma, isto é, a sua alma. De facto, se, ao
definir Sócrates ou Cálias «homens», nos perguntamos
ainda porque cada um deles é um homem, devemos
responder fazendo recurso à sua forma, ou seja, à sua
alma que é, em cada um deles, uma alma racional.
Sócrates e Cálias são homens porque são dotados de
uma forma, esta é a alma racional, que os distingue
dos outros animais e, fazendo-os ser o que são, a forma

245
é maiormente substância do que o próprio composto
de forma e matéria; esta é, agora, a substância no sen-
tido primário.
Mas nesta argumentação de Aristóteles se aninham
muitos problemas e o principal deles talvez seja este:
que o livro VII chega a reconhecer que a forma é subs-
tância, excluindo ao mesmo tempo muito claramente
que possa ser substância um qualquer universal. Parece
então uma consequência conceber a forma como algo
de singular e individual, e precisamente o exemplo de
que Aristóteles se socorre algumas vezes, o da alma
como forma do homem ou do animal, parece confir-
mar esta ilação: a alma de Sócrates (que é também a
sua forma) não é a de Cálias, é distinta da de qualquer
outro homem e não pode decerto ser considerada um
universal. Além do mais, outra tese que Aristóteles de-
fende em Metafísica VII, que a forma não pode ser gera-
da levaria à mesma conclusão: Aristóteles não pretende
dizer que uma forma como a alma pré-existe ou sobre-
vive ao corpo, mas apenas que aquilo que se gera ou se
corrompe é o composto de alma e corpo e, portanto,
cada forma-alma existe ou não existe instantaneamente,
consoante se gere ou se dissolve o composto de forma
e matéria que é o animal. Todavia, a dificuldade nasce
do facto de a forma poder ser expressada, como essência
substancial, na definição e de Aristóteles reafirmar com
firmeza nestes livros a tese de origem platónica de que
pode haver conhecimento e definição apenas do univer-
sal. Pode-se indicar uma saída para a dificuldade suge-
rindo que Aristóteles tinha em mente uma duplicidade
de aspetos na forma: do ponto vista ontológico, ela se-

246
ria estritamente individual, porque a alma de Sócrates,
isto é, a sua forma, é somente sua e é bem distinta da de
qualquer outro homem; mas do ponto de vista lógico e
epistemológico, a alma de Sócrates e a de Cálias e a de
qualquer outro homem são estruturalmente idênticas,
porque são todas almas racionais e é este aspeto da for-
ma que pode reentrar numa definição de essência, que
terá validade universal e se poderá estender a todos os
homens.
Nos livros VIII e, sobretudo, IX da Metafísica Aris-
tóteles volta a considerar a substância e a forma também
como ato. Dado que o ser pode dar-se como potência e
como ato, o ato dá-se só quando uma coisa alcançou a
sua forma (a matéria, como é natural, representa sem-
pre o ser em potência). Mas, na realidade, o ato tem
prioridade sobre a potência, quer do ponto de vista ló-
gico quer do ponto de vista cronológico. Do ponto de
vista lógico, porque a potência pode ser definida só em
relação ao ato, de que é potência, embora o inverso não
ocorra; do ponto de vista cronológico, porque a pas-
sagem da potência a ato pressupõe a existência de um
agente que já possua a forma em ato. Isto torna-se evi-
dente nas gerações naturais, em que a matéria (o sangue
menstrual) é a criança em potência, mas tem de receber
o impulso da sua mudança (a passagem a ato) do proge-
nitor macho que já possui e realiza atualmente a forma
da espécie a que pertence. No caso da produção artifi-
cial, o ato antecede a potência porque, segundo Aristó-
teles, este pré-existe como «forma na alma»: no caso do
escultor será a forma da estátua, no do arquiteto será a
forma da casa.

247
7. A ÉTICA

Sob o nome de Aristóteles chegaram-nos da anti-


guidade bem três investigações sobre a ética com pla-
nos expositivos sempre muito parecidos, embora com
diferenças por vezes relevantes nos pormenores. Des-
tas três obras, a Grande ética (Magna Moralia) não é
autêntica e deve ter sido composta em época de pouco
posterior à morte de Aristóteles. Pelo contrário, são
autênticas a Ética a Eudemo, chamada assim por ter
sido editor da obra o discípulo de Aristóteles, Eude-
mo de Rodes; e a Ética a Nicómaco (provavelmente
publicada pelo filho de Aristóteles, Nicómaco), que é
geralmente considerada a expressão mais madura do
pensamento moral do filósofo e que tomaremos como
base para a nossa exposição.
Segundo a classificação aristotélica das ciências, a
ética é uma ciência prática porque não tem por objeti-
vo o mero conhecimento, mas visa também fazer com
que nos tornemos bons. Isto comporta algumas di-
ferenças e limitações em relação às ciências teoréticas
não tanto no método, quanto no estatuto ontológico
dos objetos tomados em consideração. De facto, o ob-
jeto da ética só em parte está no nível das «coisas que
geralmente são», isto é, as coisas de que se ocupam,
como vimos, por exemplo, a física e a biologia; pelo
contrário, a outra parte do objeto insere-se na área das
coisas que são absolutamente indeterminadas, aque-
las que Aristóteles chama de «indiferentemente pos-
síveis de uma maneira ou de outra». Assim, a Ética a
Nicómaco insiste muito na inevitável falta de exatidão

248
do seu exame, nas oscilações e até na precariedade das
conceções morais. Todavia, continuam a existir regula-
ridades e constantes também no campo da moral: por
exemplo, os feitios das pessoas tendem a distribuir-se
segundo certas tipologias e os comportamentos práti-
cos espelham geralmente os feitios. Uma ciência dos
carateres e dos costumes (que é precisamente o signi-
ficado etimológico da palavra «ética») pode portanto
constituir-se, exceto pelo facto de não ser possível dar
prescrições relativas às ações individuais que se devem
realizar praticamente. Também daqui descende a ca-
racterística muito mais descritiva que prescritiva das
Éticas aristotélicas que não estão cheias de regras e de
preceitos morais, mas limitam-se a descrever e a reco-
mendar certos comportamentos geralmente típicos de
pessoas consideradas moralmente exemplares.
Além do mais, não sendo totalmente diferente das
ciências da natureza, também a ética retira os seus
princípios fundamentais das opiniões comummente
difundidas, que o próprio Aristóteles põe dialetica-
mente em confronto, de maneira a fazer realçar quan-
ta bondade se pode encontrar nelas. Após terem sido
depuradas da sua obscuridade, contradições e con-
fusões, as opiniões que geralmente se partilham são,
pois, o verdadeiro fundamento da moral aristotélica.
Esta é, grosso modo, uma opinião partilhada por Platão
e pelos filósofos académicos que Aristóteles recorda no
preâmbulo da Ética a Nicómaco e que justifica a estru-
tura teleológica da sua moral: dado que «o bem foi
justamente declarado o fim para o qual tudo tende»,
então «cada arte e investigação e analogamente cada

249
ação e escolha visa um certo tipo de bem»; e, podendo
ser reconhecida uma hierarquia e uma sucessão orde-
nada nas finalidades (faz-se uma certa ação, ou uma
certa escolha, ou pratica-se uma certa arte também
como meio para fins ulteriores), em algum momento
a hierarquia dos fins terá, todavia, de pôr um ponto
final, para o qual todas as ações, escolhas e investiga-
ções terão de convergir para evitar que se continue até
ao infinito fazendo sempre uma certa coisa com vista
noutra: este fim último será então o bem supremo da
existência. Aristóteles considera este fim último o bem
que a arte política visa, porque mesmo a sua Ética, diz,
é de certa forma um tratado político. De facto, por
um lado, a política é uma ciência (prática) à qual todas
as outras obedecem e o seu fim, sendo o mais geral,
incluirá o de todas as outras capacidades técnicas ou
ciências práticas; por outro lado, o homem que Aris-
tóteles analisa e de quem descreve os comportamentos
corretos é sempre pensado por ele como o cidadão de
uma sociedade organizada, uma pessoa que vive entre
concidadãos em relação aos quais age e se comporta
de modo a permitir que se chame a sociedade boa ou
nociva. O agente moral da ética de Aristóteles é antes
de tudo e sempre um cidadão da polis e mesmo nesta
fundação política da moral pode ver-se uma herança
platónica persistente.
Até sobre o nome que se deve dar ao sumo bem
para o qual convergem todas as ações Aristóteles afir-
ma concordar com a opinião geralmente aceite: trata-
-se da felicidade. Mas ele abandona logo a opinião
de que o bem mais elevado possa identificar-se com

250
a ideia platónica do Bem, pois nota que o bem que
interessa a vida humana deve ser algo que possa ser
obtido pela ação. Todavia, ao precisar o conteúdo da
felicidade as opiniões dos homens dividem-se, embo-
ra se possam reunir segundo algumas soluções típicas,
que correspondem a outros tantos projetos funda-
mentais de vida: de facto, segundo algumas pessoas, a
felicidade seria garantida pelo prazer, segundo outras,
pela honra como prémio pelo sucesso e pelo poder po-
lítico, segundo poucas outras, pela vida especulativa
típica do filósofo. O modo correto para determinar
o conteúdo efetivo da felicidade seria ligá-lo à função
típica do homem, que não pode ser a puramente ve-
getativa, comum aos animais e às plantas, nem a sen-
sitiva, comum aos animais: estas funções levariam evi-
dentemente a privilegiar os prazeres mais baixos dos
sentidos. Logo, deve ser o exercício ativo (não a mera
posse) da faculdade propriamente humana da racio-
nalidade: uma atividade que seja exercida da maneira
mais perfeita possível, isto é, «segundo a virtude»: onde
por «virtude» se entende antes de tudo a excelência na
prestação própria daquilo que se diz virtude. A felici-
dade será pois uma atividade que consiste no exercí-
cio da alma racional segundo virtude; mas, acrescenta
logo Aristóteles no livro I da Ética a Nicómaco, «se
as virtudes forem mais do que uma, segundo a me-
lhor e a mais perfeita». No livro I o significado desta
limitação permanece um pouco obscuro; segundo a
explicação mais plausível, este deveria ser entendido à
luz dos desenvolvimentos da argumentação nos livros
seguintes. De facto, as virtudes (isto é, as excelências

251
de prestação que se referem direta ou indiretamente à
alma racional) são muito mais do que uma: antes de
mais, há algumas virtudes da alma racional em sentido
próprio, chamadas por Aristóteles de virtudes dianoéti-
cas (do grego dianoia, que significa pensamento), e há
também as virtudes da parte (ou faculdade) apetitiva
da alma (virtudes éticas) que não possui a razão, mas
é racional no sentido que pode escutar os ditames da
racionalidade. Ora, na maior parte dos livros da Ética a
Nicómaco, mas também em grande parte dos livros da
Ética a Eudemo que seguem o primeiro, Aristóteles exa-
mina as virtudes éticas tais como a coragem, a tempe-
rança, a liberalidade, a magnanimidade, a justiça; ou as
disposições e fenómenos da vida moral ligadas de certo
modo à virtude ética como a amizade. Trata-se sempre
de disposições da alma que se realizam ativamente só
nas relações interpessoais e no quadro da sociedade ci-
tadina. Mas o último livro (o x) da Ética a Nicómaco
parece reservar uma surpresa, porque Aristóteles reco-
menda como vida perfeitamente feliz a que consiste no
exercício da virtude mais elevada da parte propriamente
racional da alma, quer dizer, a virtude dianoética da sa-
piência, cuja única função é presidir à vida especulati-
va do cientista e do filósofo. Esta conclusão do livro X
pode explicar a razão da fórmula limitativa do livro I
(«se as virtudes forem mais do que uma...»); mas parece
ser incongruente com boa parte do assunto da Ética,
que se ocupa largamente, pelo contrário, das virtudes
éticas e da vida ativa na sociedade citadina.
Provavelmente seria errado falar de uma incongru-
ência nas conclusões de Aristóteles e dizer que no final

252
da obra ele desclassifica aquela vida segundo as virtu-
des éticas e práticas que tinha tão longa e minuciosa-
mente analisado nos livros anteriores. Ao privilegiar a
vida especulativa, Aristóteles está a ser completamente
coerente com as suas tendências pessoais, porque não
convém esquecer que ele era essencialmente um cien-
tista e um filósofo teorético e que, sendo um estrangei-
ro em Atenas, era excluído de uma participação direta
na vida política citadina; mas, após conceder esta pri-
mazia à vida do filósofo, ele acrescenta logo no livro X
que há também uma segunda forma de felicidade, que
consiste precisamente no exercício das virtudes éticas
e práticas e que, de resto, o sábio vive a sua vida espe-
culativa porque existe nele algo de divino (o intelecto:
veja-se o § 5 deste cap.), enquanto que, estando na
pele humana, escolhe viver também como fazem os ou-
tros homens exercendo as mesmas virtudes éticas e prá-
ticas típicas de um cidadão de bem. Por outros termos,
Aristóteles desenha coerentemente uma hierarquia dos
fins até ao vértice da sua conceção moral: ele pretende
dizer que quem for capaz de a ‘escalar’, alcançará o grau
mais elevado possível da felicidade dedicando-se à ati-
vidade filosófica, mas este grau inclui também o grau,
de pouco inferior, da felicidade acessível igualmente à
maioria dos homens que não são filósofos, ou seja, a
felicidade garantida pelo exercício das virtudes éticas e
pela atividade prática e política possível na sociedade
citadina. É verdade – e isso pode ser visto como uma
dificuldade ou um limite da moral aristotélica – que a
atividade especulativa do filósofo não parece ter con-
sequências na vida moral, na sua vida pessoal e na da

253
cidade. De facto, é possível ser moralmente bons sem
se ser filósofos e é absolutamente desnecessário ser-se
sapientes para se portar bem; tal como é verdade que o
que o sábio pensa e compreende não o faz ser melhor
de quanto não o fosse já. Nesta separação radical entre a
atividade filosófica e a vida moral há indubitavelmente
uma distância enorme entre Aristóteles e Platão.
Para completar a conceção aristotélica da feli-
cidade, é mister ainda acrescentar que ela de certo
modo dá satisfação também às opiniões comuns que
essencialmente recusa. É óbvio que a vida feliz des-
crita na Ética não é a dos gozos materiais ou físicos,
mas Aristóteles insiste que ela é igualmente uma vida
agradabilíssima porque contém em si o máximo das
satisfações possíveis. De facto, segundo Aristóteles,
não há um prazer maior do que o da especulação
filosófica, e até o exercício das virtudes práticas e
éticas é por si agradável para quem as possuir: aliás,
o sinal da aquisição real de uma disposição virtuosa
reside precisamente no prazer que se tem ao exercê-
-la. Com efeito, não seria de todo virtuoso – nota
perspicazmente Aristóteles – quem se portasse bem só
porque é obrigado pelas leis ou, em todo o caso, contra
a sua vontade. Por fim, é igualmente verdade que uma
vida que passou por graves desventuras, ou totalmente
destituída de recursos materiais, não poderia ser feliz:
a Ética a Nicómaco dá o exemplo das desventuras de
Príamo como as que poderiam destruir a felicidade até
do homem virtuoso; facto que é compreensível pois
Aristóteles fala da virtude e da felicidade dos cidadãos
da polis. Uma sociedade completamente arruinada,

254
ou a falta total de recursos, seriam decerto condições
que impediriam o exercício da virtude como Aristó-
teles o entende; mas o condicionamento da felicidade
e da virtude por parte dos recursos materiais e, por
conseguinte, por parte também dos casos da fortuna,
foi sempre um modo que as éticas que queriam ser
rigorosamente orientadas por uma só virtude usaram
para acusar Aristóteles, éticas tais como o estoicismo
e o platonismo que reapareceu depois da idade hele-
nista. Na verdade, Aristóteles diz na Ética a Nicómaco
que mesmo nas piores desventuras resplandece a no-
breza moral de quem as sabe enfrentar com grandeza
de alma; todavia, ele nega que a exibição da virtude
naquelas condições seja suficiente para garantir a fe-
licidade.
O tema da felicidade, que estrutura o plano argu-
mentativo e a exposição das Éticas, encontra-se assim
intimamente ligado ao da virtude que enche cinco li-
vros da Ética a Nicómaco e quatro da Ética a Eudemo. A
teoria geral da virtude ética é outra das coisas notáveis
da doutrina moral aristotélica. Segundo o Filósofo, a
virtude ética não é inata, como pretendia a orgulhosa
convicção da moral aristocrática tradicional, em certa
medida ainda influente em Platão; ela é antes fruto
da educação e dos hábitos assimilados desde a infân-
cia. Para Aristóteles, é a repetição habitual de atos su-
geridos (ou até impostos) pelos educadores a levar a
pouco e pouco à formação de uma disposição estável
do caráter que será precisamente a virtude. Aristóte-
les confiaria de bom grado a direção deste processo
de assimilação às instituições citadinas, mas, sabendo

255
perfeitamente que o cuidado público dos costumes na
realidade não é uma prática usada na maior parte das
cidades gregas, prefere contar com a instituição fami-
liar e com as capacidades educativas do pater familias
de um agregado familiar atento à correta formação dos
seus filhos: desta forma, recupera grande parte dos va-
lores tradicionais para as classes citadinas médio-altas.
As disposições estáveis organizadas mediante este pro-
cesso são as virtudes do caráter: «éticas», precisamen-
te, do nome grego para caráter «ethos», muito pouco
distante do nome para hábito (ethos com ĕ breve; no
outro caso com ē longo); elas são diferentes uma da
outra segundo o campo diverso de ação em que se re-
alizam, por exemplo, a coragem nas situações de peri-
go, a generosidade ao beneficiar os amigos e os conci-
dadãos, a temperança no uso equilibrado dos prazeres
da gula e do sexo. Como se depreende deste exemplo,
Aristóteles concebe cada virtude ética como algo que
está no meio, uma metade justa entre dois vícios opos-
tos, um por excesso e outro por defeito: por exemplo,
a temperança será a meio termo entre a dissolução do
devasso e do libertino e a insensibilidade total aos pra-
zeres da gula e da carne, uma insensibilidade que Aris-
tóteles não aprova. Esta tese foi, todavia, muitas vezes
acusada de ser banal ou até contraditória, porque faria
(diz-se) da virtude meramente a média ou a mistura
de dois vícios. Por exemplo, a coragem resultaria ser
apenas uma mistura de vileza e de temeridade. Além
do mais, a diferença entre virtude e vício reduzir-se-ia
puramente a avaliações de tipo quantitativo. Na verda-
de, Aristóteles é muito claro ao excluir que a virtude

256
possa ser tratada e calculada em termos quantitativos:
se doar um milhão pode parecer demasiado e um cên-
timo pouco, não se pode considerar virtude somente
doar quinhentos mil euros. A Ética esclarece bem que
o meio termo é sempre «relativo a nós», à situação sem-
pre particular em que cada agente se encontra, e cabe-
-lhe a tarefa de ir avaliando sem que haja regras fixas
e, muito menos, numericamente exprimíveis para se
proporem aos agentes. Por exemplo, a ação de passar
a atacar o inimigo em guerra, pode ser temerária ou
corajosa segundo as circunstâncias, tal como retirar-se
perante o inimigo pode ser ação vil ou sábia; a fórmula
do meio termo exprime então somente a exigência que
o homem dotado de virtude seja sempre capaz de ava-
liar equilibradamente as situações em que se encontra.
Por fim, diz Aristóteles, a virtude é «voluntária»
tanto quanto o vício e «depende de nós». Na discussão
desta tese ele enfrenta problemas delicados que dizem
respeito à autonomia das decisões e à responsabilidade
dos agentes: isto é, ele dá as premissas para muitos
futuros debates acerca do problema da determinação e
da liberdade humanas. Ora, que a virtude seja «volun-
tária» é uma tese certamente coerente com as premis-
sas da Ética a Nicómaco porque esta ética (mas tam-
bém a Ética a Eudemo) define voluntário tudo o que
não resulta da obrigação física exterior ao agente e que
é realizado, por assim dizer, «com os olhos abertos»,
isto é, com a consciência das circunstâncias externas
em que se desenrola a ação. Neste sentido, é perfeita-
mente voluntário até o ato que a criança realiza duran-
te o processo educativo, mesmo que lhe seja imposto

257
com a ameaça de uma punição, ou com a promessa de
um prémio, por parte dos educadores (aliás, Aristóte-
les chega a reconhecer como «voluntários» também os
comportamentos animais); dado que as disposições es-
táveis do caráter resultam precisamente daqueles atos
realizados de maneira voluntária, também essas foram
adquiridas voluntariamente. Todavia, Aristóteles reco-
nhece nas Éticas também um sentido forte da volunta-
riedade que deixa de ser aplicável aos comportamentos
infantis e animais: trata-se da escolha (ou «decisão»:
o termo grego é proairesis), típica apenas dos homens
adultos, em que se combina uma operação da racio-
nalidade (que Aristóteles descreve como a escolha dos
meios a usar com vista a um determinado fim) com a
vontade de traduzir em ato quanto da racionalidade
foi determinado. Ora, Aristóteles defende que é es-
sencial esta capacidade de escolher para que haja uma
virtude ética completamente formada; mas é evidente
que a virtude não é chamada de «voluntária» no senti-
do de ter sido construída mediante atos escolhidos ou
decididos pela proairesis: de facto, esta é uma função
que falta às crianças e aos jovens e que se forma ape-
nas na idade adulta. Por isso, a tese de que a virtude é
voluntária e depende de nós conserva em Aristóteles
uma certa ambiguidade.
Em todo o caso, a definição da virtude ética que
Aristóteles enuncia na Ética a Nicómaco diz que ela é
«uma disposição capaz de escolha, que consiste num
meio termo que é determinado pela razão e, precisa-
mente, por aquele que um sábio determinaria». Como
se vê, a virtude do caráter realizada não consiste unica-

258
mente na disposição estável adquirida pela educação.
Aristóteles insiste em precisar mais do que uma vez na
Ética que quem se limitasse a agir corretamente não
seria realmente virtuoso só porque outrem lhe sugeriu
que se comportasse assim: pelo contrário, deve inter-
vir um fator da racionalidade pessoal, o que permite
agir da mesma maneira que um sábio. A sabedoria
(phronesis) é porém uma virtude dianoética: e precisa-
mente por esta sua ligação necessária com as virtudes
éticas Aristóteles, após uma longa descrição analítica
das virtudes éticas (como a coragem, a temperança, a
liberalidade, a moderação, a justiça), tem de introduzir
no livro VI da Ética a Nicómaco o exame das virtudes
dianoéticas próprias da parte racional da alma. Estas
são principalmente duas, a sabedoria e a sapiência (so-
phia), às quais se dirigem todas as outras disposições da
racionalidade que se podem reconhecer. Estas diferem
essencialmente pelos diversos objetos que cada uma
toma em consideração; são, sim, ambas capacidades
racionais, virtudes da racionalidade que, porém, num
caso, se dirige (o da sapiência) ao puro e desinteressado
conhecimento das realidades que são objeto da ciência
teorética, no outro (o da sabedoria), ao conhecimento
e ao governo do mundo das ações humanas. Do ponto
de vista do seu valor, Aristóteles mostra não ter dúvidas
de que a sapiência é muito superior à sabedoria, porque
os objetos de que se ocupa a sapiência teorética, isto é,
a natureza e os princípios divinos e inteligíveis desta,
são muito mais superiores do que o valor das coisas hu-
manas. Mas a sapiência não agiria serena e livremente
se a sabedoria não pusesse ordem na alma e na vida do

259
filósofo ou do cientista que, como tal, não se ocupa
da vida prática. Mais uma vez, regressa portanto no
livro VI da Ética a Nicómaco a afirmação da separação
radical entre conhecimento teorético e vida (e conheci-
mento) prática. A sabedoria como capacidade de bem
deliberar acerca dos bens que podem ser obtidos com
a ação e, por conseguinte, em última análise, acerca da
obtenção da felicidade, é pois aquela forma da racio-
nalidade que intervém para completar a virtude ética
tornando-a perfeita. Aristóteles afirma com clareza que
é impossível ser moralmente virtuosos sem a sabedoria
e ser sábios sem ter também a virtude ética.
Mas como podemos tornar-nos sábios? A tese geral
de Aristóteles a propósito da formação das virtudes dia-
noéticas, apresentada no início do livro II, é que estas
se originam «na sua maior parte» no ensino; mas, en-
quanto que esta proposição não parece ter necessidade
de particulares especificações a propósito da sapiência,
quando se fala de sabedoria é, pelo contrário, oportu-
no evitar um mal-entendido: Aristóteles não pretende
dizer que pode tornar-se sábio somente quem assiste às
(suas) lições de filosofia moral. Mais realista e mais mo-
desto, aqui, do que outros filósofos, Aristóteles não quer
decerto excluir que alguém possa retirar benefício das
suas aulas sobre ética; basta que, precisa, chegue a elas
já estando previamente bem educado no caráter – caso
contrário, os «discursos» não teriam nenhum poder em
quem os escuta. O ensino de onde se pode originar a
sabedoria é sobretudo a experiência de vida, o privar
com aqueles homens ativos e estimados na sociedade
citadina, dos quais é oportuno observar os comporta-

260
mentos e escutar os juízos que exprimem e que refletem,
precisamente, uma experiência e um saber prático talvez
tradicionais e não demonstráveis, mas postos à prova no
quotidiano confronto com os concidadãos nas assem-
bleias, tribunais, nas relações políticas e sociais.
Não é por acaso que, quando tem de indicar um
critério e uma norma última sobre a qual orientar as
ações, Aristóteles, mesmo nas análises de cada virtude
ética, afirma muitas vezes que a norma é o phronimos,
o homem sábio: de certo modo, retoma a proposição
de Protágoras, salvo pelo facto de que na sua ética o
relativismo, latente na posição do sofista, é tempera-
do pela efetiva ancoragem do modelo proposto a uma
precisa (e restrita) classe social à qual pertencem os
homens que mereceriam aquele apelativo.
Entre os modernos a ética de Aristóteles é muitas
vezes exposta à acusação de pregar apenas a aceitação
e a transmissão de valores já socialmente reconheci-
dos e apreciados por um grupo limitado de cidadãos
abastados: e este limite é bem visível também na única
conceção da sabedoria, a que Aristóteles nega a possi-
bilidade de intervir na escolha dos fins, que são mera-
mente aceites com base nos valores partilhados. Com
efeito, a sua moral, sem alguma dúvida tendente a re-
comendar valores tradicionalmente próprios de classes
citadinas médio-altas da sociedade grega da época, é
na realidade apenas subtil e habilmente restauradora.
Não se deve esquecer que Aristóteles não descreve uni-
camente o que aconteceria na sociedade da polis; é-
-lhe perfeitamente claro que nas cidades gregas do seu
tempo em geral não se vivia assim como a sua Ética

261
recomenda. Ele tem então a capacidade e a habilidade
de apresentar como modo natural e normal da vida
do cidadão aquilo que é quase somente um ideal e um
auspício de uma classe de cidadãos educados, cultos e
abastados que entretanto muito perderam em influên-
cia e poder. Neste sentido, a Ética a Nicómaco é uma
representação maravilhosa, não tanto da vida, quanto
dos ideais e das esperanças das classes médio-altas da
Grécia do século IV.

8. A POLÍTICA

A íntima relação existente também em Aristóteles


(como em Platão) entre ética e política vê-se bem es-
pecialmente nos livros VII e VIII da Política, em que
Aristóteles inicia o desenho do ordenamento do esta-
do que seria, na sua opinião, o melhor e o mais aus-
picioso: um estado cuja tarefa fundamental é imedia-
tamente detetada por ele na educação dos cidadãos à
virtude. Por isso, Aristóteles fala bastante da oportuni-
dade de plasmar o caráter dos futuros cidadãos desde
a puerícia mediante a ginástica, a música e a formação
de bons hábitos, em tudo concordando largamente
com as considerações análogas que se encontram ex-
pressas na Ética. Todavia, este projeto educativo nunca
será completado na Política tal como esta nos chegou
e a ausência mais evidente reside no facto de faltar de
todo uma exposição da educação que podemos cha-
mar superior e que deveria vir depois das análises que
dizem respeito à formação dos carateres, dado o prin-
cípio declarado na Política (e comum à Ética) de que

262
é preciso educar os jovens primeiro no caráter e só de-
pois na inteligência. De resto, nunca foi completada
sequer – nem nos livros VII-VIII, nem noutros lugares
– a descrição do desejado estado melhor, e só graças a
menções esparsas nos livros da Política se percebe que
para Aristóteles a melhor constituição possível seria
uma forma de aristocracia em que o governo estaria
nas mãos de um grupo restrito de homens excelentes
pela sua virtude e pela devoção para com o bem co-
mum (permanecendo um caso limite, que Aristóteles
trata como irrealizável, a existência de um só homem
dotado de qualidades de tal forma superiores à norma
que se considerasse justo obedecer-lhe unicamente e
garantir-lhe plenos poderes no governo).
Esta incompletude do desenho do estado ideal é o
primeiro indício importante de que também a Política,
tal como a Metafísica, reúne escritos, ou grupos de es-
critos, compostos por Aristóteles em tempos diversos
e provavelmente muito distantes entre si, com inevitá-
veis desigualdades de estruturação e de pontos de vis-
ta. Segundo a maioria dos estudiosos modernos, os li-
vros VII e VIII deveriam ser os mais antigos da recolha
e, até pela aspiração em delinear um modelo exemplar
de organização política, seriam os mais próximos do
pensamento de Platão e da Academia, enquanto que
em épocas sucessivas o interesse de Aristóteles se teria
dirigido mais para o estudo das formas constitucionais
realmente existentes e para a análise da organização
política das cidades gregas da época. Os primeiros seis
livros do nosso tratado contêm, de facto, dois livros de
certo modo introdutivos e de caráter geral, em seguida

263
(nos livros III-VI) o estudo das constituições histori-
camente existentes, suas avaliações comparativas – dos
seus méritos e defeitos – e, além disso, descrições pers-
picazes dos métodos e das condições que poderiam
contribuir para a salvaguarda, ou ruína, de cada forma
constitucional. A presença, no livro II, de um resu-
mo crítico das teorias constitucionais anteriores, onde
Platão ocupa o lugar principal, além das constituições
que eram comummente consideradas exemplares para
o ‘publicismo’ grego e para as opiniões correntes (isto
é, as instituições políticas de Esparta, Creta, Cartago),
corresponde perfeitamente à tendência aristotélica de
fazer anteceder a sua pesquisa pessoal por uma expo-
sição crítica das opiniões comuns. Mas na Política II
este resumo crítico pressupõe um ponto de vista pes-
soal já bem constituído a propósito da natureza e das
origens da comunidade política, um ponto de vista
que pode ser encontrado exposto no livro I da obra.
Ali Aristóteles é muito claro ao afirmar a origem
natural e não contratual da associação política: o ho-
mem, diz, «é por natureza um animal político». É
igualmente claro ao identificar a forma completa de
tal associação na polis, a cidade-estado típica da gre-
cidade clássica; apesar de estar muito bem informado
da existência das grandes monarquias orientais, sobre-
tudo, da macedónia, evidentemente ele não considera
a supremacia que o reino macedónio tinha adquirido
sobre as cidades gregas na sua época um título de su-
perioridade formal em relação às instituições da cida-
de-estado. A comunidade política que ele estuda, ana-
lisa e (dentro dos limites já vistos) projeta permanece

264
sempre a da cidade, que de resto é também o quadro
social de referência da sua ética. Outras espécies ani-
mais, como por exemplo as abelhas e as formigas, são
naturalmente capazes de viver em grupos associados,
mas esta tendência instintiva a uma vida associada é
satisfeita de maneira bem diversa no homem, que tam-
bém é dotado de racionalidade e de linguagem e por
este motivo é capaz de desenvolver comportamentos
e (auspiciosamente) uma virtude política que diferen-
ciam a sua condição da de qualquer outro animal gre-
gário. Como forma completa de um processo natural
que leva os homens a agregarem-se, a cidade é por sua
vez apresentada por Aristóteles como o resultado da
reunião de grupos humanos, ou comunidades, mais
simples, que são a povoação e, antes dela, a família. À
povoação a Política não dedica muita atenção: trata-
-se simplesmente da etapa intermédia que o esquema
evolutivo típico do filósofo deve aceitar para explicar a
passagem da família à cidade; a família, pelo contrário,
é reconhecida e longamente analisada como a célula
fundamental e originária de cada associação política.
Fundada pelo instinto natural que leva um homem
e uma mulher a unirem-se com vista à reprodução da
espécie, a família é também a forma mais elementar de
organização económica, dado que se dedica igualmen-
te à satisfação das necessidades vitais (convém ter pre-
sente que o termo grego que traduzimos por «família»,
oikos, significa à letra «casa» e sobre ela se forma a pala-
vra «economia», que significa administração da casa).
Dela fazem parte, além do pai e da mãe, os filhos e os
escravos que Aristóteles considera instrumentos ani-

265
mados indispensáveis para o cumprimento das ativida-
des domésticas necessárias ao sustentamento da casa.
O pai de família goza da suprema autoridade sobre os
outros componentes da casa porque – sendo o único
macho adulto – seria o único a possuir completamen-
te o requisito formal distintamente próprio da espécie
humana, quer dizer, a capacidade racional deliberati-
va. De facto, os seus filhos não têm esta capacidade
até atingirem a idade adulta, enquanto que a mulher
possui a faculdade deliberativa, mas – diz Aristóteles –
nela esta capacidade é ineficaz e sem autoridade. Como
se vê, Aristóteles tende de maneira preconceituosa a
interpretar como um dado da natureza aquilo que é
simplesmente a condição feminina que se estabeleceu
na cultura e na organização social do seu tempo; e na
sua opinião a situação é exatamente a mesma quan-
to à questão da escravidão. Ele defende que falta aos
escravos a capacidade de deliberarem racionalmente,
tanto que para eles seria até mais útil a condição de
total dependência do senhor: portanto, existiriam in-
divíduos humanos, que se encontram sobretudo entre
os bárbaros, que a própria natureza predispôs para a
escravidão. Aristóteles sabe muito bem que esta ideia
pode ser facilmente contradita pela prática, difundida
nas cidades gregas, de reduzir em condições servis os
prisioneiros de guerra e parece admitir que neste caso
se possa falar de escravidão injusta. Mas, além da cons-
ciência e do problemático caso dos prisioneiros, toda a
sua conceção requer efetivamente a existência de uma
classe ampla de trabalhadores que sejam mantidos
numa condição de absoluta subordinação, para não

266
dizer até servil. Isto porque, fora do incompleto proje-
to de uma cidade bem ordenada, o cidadão exemplar
que ele tem sempre em mente é um individuo adulto
do sexo masculino, livre e mais ou menos abastado,
sem necessidade de trabalhar por ter disponibilida-
de de recursos e, por esse motivo, capaz de dedicar o
seu tempo às atividades políticas ou, eventualmente
ou em parte, também à filosofia. Aristóteles também
não é, em linha de máxima, hostil a uma economia
de trocas e aprecia a existência da moeda como meio
para obter os bens que a atividade económica familiar
não é capaz de produzir; mas condena firmemente,
porque acha não natural, a acumulação ilimitada de
moedas e o seu uso para produzir ulterior aquisição de
riqueza, uma prática que pode descambar também na
usura. Em suma, ele permanece ligado a um ideal de
origem arcaica e aristocrática, segundo o qual a única
atividade económica adequada ao homem livre seria a
da produção agrícola (obviamente não exercida dire-
tamente por ele, mas mediante a mão de obra servil).
Compreende-se facilmente de tudo isto que Aris-
tóteles era hostil aos projetos platónicos de reforma
da sociedade, sobretudo àqueles apresentados na Re-
pública: a abolição da família e da propriedade pri-
vada são medidas que ele não perdoa na sua crítica
ao mestre, fazendo notar também que aquilo que é
considerado comum a todos na realidade não é de
ninguém e que ninguém se dedicaria a isso com o
mesmo cuidado que teria com algo que lhe perten-
cesse. Nem sequer poderia recusar a instituição fa-
miliar, porque vê nela não só a célula originária da

267
atividade económica e da produção dos bens de con-
sumo, como também o lugar onde estão prefiguradas
as diversas tipologias de associação política e de exer-
cício do poder que se encontram de facto nas cida-
des; quer na Política, quer nas Éticas são numerosas
as passagens onde ele procura assimilar as relações de
autoridade e de subordinação existentes nas famílias
com as relações que se estabelecem nas cidades devidas
também às diferentes formas constitucionais por elas
adotadas: por exemplo, o pai de família exerce sobre os
escravos um poder tirânico, sobre os filhos um poder
régio, sobre a mulher um poder de tipo aristocrático,
porque corresponde à diferença de méritos e de valor
que existiria entre os cônjuges. Mas no exame e na
discussão das formas constitucionais Aristóteles ainda
se encontra singularmente próximo do seu mestre e
adota um esquema de classificação das constituições
que lembra de perto o do Político. De facto, ele reco-
nhece a existência de seis formas distintas em três pa-
res consoante o número dos detentores do poder, quer
dizer, segundo o caso de serem um, poucos ou muitos.
Cada par admitiria uma forma correta e uma degene-
rada de exercício do poder: portanto, se este é detido
por um só homem que o exerce no interesse comum,
tem-se a monarquia, cuja forma degenerada será a ti-
rania, onde quem detém o poder visa exclusivamente
o seu interesse pessoal. Se os detentores do poder são
poucos, a forma institucional em que eles governam
pelo bem comum é a aristocracia, aquela onde se visa o
próprio interesse é a oligarquia. Por fim, a democracia
é o governo da maioria que visa a própria vantagem,

268
enquanto que a forma correta em que muitos detêm
o poder não tem um nome próprio, apenas o nome
comum de politeia (constituição). Aristóteles bem vê,
todavia, que não é tanto o número dos detentores do
poder a marcar a diferença entre as várias formas insti-
tucionais, mas o fator económico: assim, na realidade,
a distinção entre democracia e oligarquia está no facto
de num caso ser a classe dos pobres a deter o poder,
noutro a dos ricos (além do mais, é verdade que nor-
malmente estes são poucos nas cidades, enquanto que
os pobres são muitos).
Todavia, assente que para Aristóteles o regime ins-
titucional mais auspicioso e em absoluto o melhor
seria o aristocrático, numa consideração realista do
estado de facto existente, a constituição que pode-
ria ser a mais comum e a mais adaptável ao maior
número de cidades é, pelo contrário, a politeia, que
o filósofo apresenta como uma forma mista de insti-
tuições retiradas em parte da aristocracia, em parte da
democracia. É típico das democracias, por exemplo,
que todos os cidadãos de pleno direito tenham aces-
so às assembleias e exerçam o poder judiciário; mas
é uma característica das aristocracias, pelo contrário,
que aos cargos de governo tenham acesso apenas os
cidadãos melhores (por educação e – inevitavelmente
– por censo). Mas também os que acedem aos cargos
devem mantê-los somente por um tempo limitado e
por rotação: o caráter típico do cidadão da politeia é
precisamente saber quando governar e quando obe-
decer. Uma dosagem equilibrada de institutos demo-
cráticos e aristocráticos seria portanto o que garante

269
também a maior estabilidade possível da constituição,
ainda mais se este equilíbrio institucional se regesse,
como base social, numa classe de cidadãos media-
mente abastados (os mesoi) alheios às reivindicações
económicas da democracia extrema e não invejosos,
dada a sua situação pessoal, da condição dos cidadãos
mais ricos. Em geral, estes mesoi seriam os pequenos
proprietários de terra, que não devem trabalhar pesso-
almente a sua terra, mas que são todavia obrigados a
interessar-se pelo governo da propriedade e não têm,
por conseguinte, nenhuma simpatia por um regime de
assembleias onde os cidadãos continuamente se reú-
nem para discutir e decidir sobre tudo.
Se se confrontarem as teorias de Aristóteles com
as de Platão, é sem dúvida evidente nelas uma indul-
gência muito maior para com a democracia, ainda que
pelas formas mais radicais desta Aristóteles manifeste
uma aversão não inferior à do seu mestre; ele chega
por vezes a reconhecer que a massa de cidadãos reu-
nidos em assembleia tem uma capacidade de julgar
até superior à dos poucos que são indubitavelmente
mais dotados do que a média: cada membro da massa
é claramente inferior a cada um dos poucos mais edu-
cados, mas é possível que todos juntos vejam melhor
do que cada uma daquelas pessoas que têm individu-
almente mais educação e mais virtudes. Exemplifican-
do, Aristóteles refere-se à capacidade de julgar que a
massa dos cidadãos exibe em ocasião das competições
dramáticas: portanto, recusa implicitamente as violen-
tas acusações que o seu mestre dirigira contra a «tea-
trocracia» ateniense.

270
9. RETÓRICA E POÉTICA

Das obras de Aristóteles chegaram-nos também


dois escritos dedicados ao estudo de disciplinas que na
classificação dos saberes típica do filósofo se configu-
ram como technai («artes», isto é, ciências produtivas):
trata-se da Retórica e da Poética. Ora, as technai estão,
segundo o que se diz na Ética, de certo modo, sempre
subordinadas à práxis e, em última análise, à capaci-
dade que comanda a práxis, ou seja, a política. Assim,
efetivamente, a inscrição da retórica – que é a capaci-
dade de produzir discursos persuasivos – na política
entendida em sentido lato de maneira a incluir tam-
bém o estudo dos carateres (isto é, a ética) é assinalada
de modo explícito por Aristóteles no primeiro livro da
Retórica e mostra-se plenamente justificada pelos con-
teúdos e pelas argumentações da obra. Para confirmar
esta asserção basta a classificação dos tipos de discurso
que Aristóteles adota, distinguindo-os em três géne-
ros: deliberativo, que inclui os discursos que se devem
apresentar nas assembleias e nos lugares institucional-
mente deputados à elaboração de decisões que dizem
respeito à vida pública e à atividade política da cidade;
judiciário, ligado à prática dos tribunais; epidíctico,
que diz respeito aos discursos de circunstância, geral-
mente destinados a elogiar as personagens eminentes e
factos notáveis da cidade – basta pensar em alguns dos
discursos de Isócrates. Os três géneros têm óbvias e
sólidas raízes na vida e na prática política das cidades.
Segundo Aristóteles o discurso que quer alcançar
a persuasão deve servir-se de pisteis, isto é, de «argu-

271
mentos convincentes» ou «meios de persuasão», que
se distinguem em técnicos e não técnicos. Os não téc-
nicos são, na realidade, alheios à arte oratória e são
dotadas de atos ou factos já dados e o orador deve
simplesmente saber fazer um uso proveitoso deles: os
testemunhos, as confissões, os documentos escritos
como os testamentos, os contratos, etc. Muito mais
importantes são, pelo contrário, os meios técnicos que
devem ser buscados pelo orador e podem ser objeto
de ensino por parte da retórica; dois dos três tipos de
discurso elencados por Aristóteles estão novamente re-
lacionados com os conteúdos da ética (ou «política») e
são a capacidade que o orador tem de exibir um caráter
que pareça digno de confiança e, ainda, a capacidade
de dispor o auditório para que acolha as emoções, ou
as paixões, que podem influir em sentido favorável no
juízo ou na decisão que o orador espera obter. Por es-
tes aspetos o parentesco da retórica com a ética e com
a política parece evidente, mas, na realidade, Aristóte-
les afirma que a retórica é, sim, um «ramo colateral»
da política e da ética, mas também, por outro lado, da
dialética. De facto, a seu ver, há uma terceira e impor-
tantíssima pistis, um terceiro meio de persuasão além
dos já descritos: trata-se da estrutura argumentativa do
discurso, que deve ser capaz de exibir uma estrutura
lógica que demonstre (ou melhor, pareça demons-
trar) a sua tese – e esta estrutura obtém-se utilizando
corretamente alguns instrumentos lógicos cujo uso
assemelha a retórica à dialética e, através desta, indire-
tamente também à demonstração típica das ciências.
Estes instrumentos são as premissas retóricas, os pi-

272
thana («coisas persuasivas») que reproduzem opiniões
partilhadas pelo círculo a que o orador se dirige e são,
por isso, análogos aos endoxa de que se serve a dialéti-
ca. Além do mais, são as formas argumentativas fun-
damentais do entimema e do exemplo. O primeiro é
uma dedução, uma espécie de silogismo em que uma
premissa permanece apenas implícita, enquanto que o
segundo Aristóteles aproxima-o mais à indução.
Assim, poderia parecer que Aristóteles realizou a
seu modo um programa afim ao que Platão queria
atribuir à retórica no Fedro: o de uma arte fundada
dialeticamente e dotada da capacidade de adaptar os
seus discursos à alma dos ouvintes. Mas, obviamente,
a dialética à qual se assemelha a retórica aristotélica é
‘desqualificada’ em relação às exigências platónicas e a
arte oratória não nutre nenhuma aspiração a tornar-se
filosofia, nem a alcançar ou demonstrar alguma verda-
de. O seu objetivo é puramente persuadir e Aristóteles
explica que a retórica cessaria de ser o que é se o orador
tivesse à disposição premissas tão precisas (isto é, sim-
ples e absolutamente verdadeiras) que a configurasse
como ciência do objeto sobre o qual se questiona. O
facto é que a retórica, tal como a dialética, não possui
nenhum «género» próprio sobre o qual debruçar-se
segundo as exigências colocadas pela epistemologia
dos Analíticos; mas, contrariamente à dialética, não
se propõe sequer agir criticamente sobre as opiniões
partilhadas com vista à fundação dos princípios das
ciências.
Relativamente mais difícil que no caso da Retórica
é, pelo contrário, precisar o quadro disciplinar em que

273
Aristóteles pretendia inscrever a Poética e a função que
ele atribuía à poesia; esta incerteza está provavelmente
ligada também à incompletude da obra, que nos che-
gou com um só livro onde se fala essencialmente da
tragédia, enquanto que pelas referências presentes no
texto é claro que Aristóteles tinha projetado também
um segundo livro, em que deveria falar pelo menos
da comédia: todavia, hoje não podemos afirmar nem
excluir que este segundo livro tenha sido efetivamen-
te escrito por ele. A consequência é que se pode ter
a impressão de que Aristóteles considerasse o estudo
das obras poéticas um exercício crítico autonomamen-
te fundado e finalizado somente a si mesmo; mas é
provável que esta impressão seja apenas uma espécie
de ilusão prospetiva devida à incompletude do pro-
jeto originário do filósofo. O estudo aprofundado do
único livro que nos chegou mostra efetivamente as
ligações que este tem com uma conceção formativa
e educativa da poesia que é também uma resposta for-
temente polémica a Platão e (embora apenas implici-
tamente) une a Poética aos livros da Ética e da Política
dedicados à educação.
Também para Aristóteles, tal como para o seu mes-
tre, a poesia e em geral a arte é mimesis, «imitação»:
sem todavia retirar as consequências negativas que são
explicitadas no livro X da República. Aliás, Aristóteles
afirma logo ao princípio do tratado que a imitação é
um facto natural e positivo nos homens, através do
qual, desde crianças, eles adquirem os primeiros en-
sinamentos. Segundo o Filósofo, também nas formas
mais complexas da imitação artística (a pintura, a po-

274
esia), que produzem no homem uma qualquer aqui-
sição de conhecimentos, permanece sempre implícito
um resultado cognitivo. Por isso, é indubitável que esta
aquisição se realiza também na forma mais completa
da imitação poética que, segundo Aristóteles, culmina
naturalmente, como fim último, na tragédia: o ensina-
mento que dela provém versa sobre o significado mais
profundo e universal da vida humana, porque, diz, a
tragédia é precisamente «imitação de ações e de vida».
Dado que é capaz de atingir o universal, a poesia, na
forma mais completa da tragédia, é pois «mais séria» e
mais próxima à filosofia da história, que o filósofo acha
estar vinculada a descrever pormenorizadamente tudo
o que os indivíduos fazem ou padecem. A tragédia vai
para lá deste aspeto pela sua capacidade de dizer o es-
sencial da vida humana ao construir com as suas per-
sonagens carateres típicos e, além disso, ao descartar o
acidental e as banalidades quotidianas para desenhar
uma sequência de ações sempre causalmente ligadas
entre si segundo necessidade ou verosimilhança.
Perante esta construção, o espectador (ou até o leitor:
de facto, Aristóteles chega a definir inessencial a
representação cénica) compreende o sentido da vida.
Dado o fim que cada personagem persegue e que é
sempre (como é lógico que diga o autor das Éticas) a
felicidade, e dado o caráter que move a própria perso-
nagem, quem vê ou lê a tragédia percebe porque tudo
acontece como acontece, quer para a ruína, quer para
a prosperidade da personagem.
Tal como qualquer disciplina filosófica, a tragé-
dia produz um conhecimento universal e, com ele,

275
também o prazer que está sempre ligado, segundo
Aristóteles, a cada aquisição de saber; mas, dado que
o conhecimento adquirido pela fruição da mimese
trágica diz respeito à ação, à vida prática e às rela-
ções interpessoais (em sentido lato, dizem respeito
à «política»), esse é acompanhado também por um
reequilíbrio das pulsões e das emoções que Aristó-
teles define uma vez, num trecho muito célebre e
infinitamente discutido pelos modernos, como o
«completamento da catarse» (isto é, da purificação)
das emoções, sobretudo as da piedade e as do medo
evocadas pela ação trágica onde se veem personagens
sem mérito que sofrem o infortúnio, como no Édipo
rei de Sófocles, ou chegando muito próximos à com-
pleta ruína, como acontece na Ifigénia em Táuride
de Eurípides (esta e o Édipo são as tragédias que,
na Política, Aristóteles mostra considerar exempla-
res, porque aprecia a grande compacidade da trama
e a ininterrupta sequência causal das ações). Assim,
a tragédia pode completar com a aquisição de co-
nhecimentos acerca do sentido da vida um itinerário
formativo e uma obra de moderação das paixões que,
como mostram a Política e a Ética, Aristóteles prefe-
riria que iniciassem desde as primeiras experiências e
com as práticas educativas da infância. Esta é pois a
resposta definitiva do Filósofo a Platão: a poesia, que
atinge o seu fim e forma perfeita na tragédia, ganha o
seu lugar porque tem uma função positiva na cidade
dos homens.

276
10. A ESCOLA PERIPATÉTICA

A escola de Aristóteles, que só a partir de 318 tal-


vez tenha tido uma forma e uma sede institucional
em Atenas sob a condução de Teofrasto, após a morte
do mestre parece ter-se orientado para um crescente
cuidado com as disciplinas científicas especiais não já
compensada, porém, pelo interesse que Aristóteles ti-
nha sempre conservado por uma unificação superior
do saber. O seu sucessor direto, Teofrasto (370 ca.-
286), oriundo de Éreso na ilha de Lesbos, foi autor de
numerosas obras (algumas das quais conservadas) que,
pelo menos pelos títulos que conhecemos, parecem
abranger todas as áreas disciplinares de que Aristóteles
também se ocupara: lógica, física, metafísica, psicolo-
gia, biologia, ética, política, além de investigações de
caráter histórico e erudito. Na verdade, o seu amplo
fragmento conhecido hoje pelo título (muito impró-
prio) de Metafísica tem pouco a ver com o homónimo
tratado de Aristóteles – o qual, de resto, com toda a
probabilidade não existia na forma atual no tempo de
Teofrasto. Este texto tem uma ligação clara somente
com o livro XII da Metafísica de Aristóteles, acerca do
qual questiona algumas das teses principais relativas
ao princípio do movimento e à relação entre o univer-
so físico e este princípio. O escrito avança pouco mais
ou menos com a enunciação de dificuldades que Teo-
frasto normalmente desenvolve contrapondo uma tese
a uma antítese, sem tomar posição de forma explícita
por uma ou por outra; todavia, a conexão das questões
prospetadas e o desenvolvimento das discussões dei-

277
xam entrever uma inclinação do autor para pensar o
movimento como um dado originário da natureza físi-
ca, que já não é preciso ser explicado mediante a hipó-
tese de um primeiro motor imóvel e de uma aspiração
dos céus a este motor. Não porque Teofrasto se tenha
recusado a considerar um nível puramente inteligível
das substâncias, que, de certo modo, para ele perma-
nece sempre o divino; mas simplesmente porque esta
substância divina deixaria de funcionar como motor
do universo físico. Analogamente, no seu texto Teo-
frasto exprime dúvidas sobre a extensão do finalismo
no universo e inclina-se mais para explicações de tipo
mecanicista dos fenómenos naturais. Portanto, nele
não há nenhum registo da problemática comparável à
dos livros aristotélicos sobre a substância e sobre o ser.
De Teofrasto possuímos duas grandes obras que fa-
zem dele o fundador da botânica: as Investigações sobre
as plantas e as Causas das plantas, obras nas quais ele
aplica corretamente os métodos da biologia aristoté-
lica, mostrando todavia uma certa cautela no uso das
explicações de tipo finalístico. Além disso, temos uma
série de pequenos tratados de assunto físico ou psico-
lógico, como Sobre os sentidos, Sobre as pedras, Sobre
os ventos, Sobre o fogo. Este último é provavelmente
o mais conhecido pela perspicácia com que o autor
analisa as razões pelas quais o fogo não deveria ser con-
siderado um elemento (de facto, está sempre ligado a
um substrato material de onde se alimenta): no seu
lugar, deveria estar a qualidade do calor como princí-
pio elementar e ativo, que se contrapõe aos outros três
elementos tradicionais todos concebidos como frios

278
e pesados e, ao concentrar-se de forma mais pura no
sol, seria capaz de funcionar diretamente como pai de
plantas e animais na terra.
Convém recordar de Teofrasto a sua grande ativi-
dade de investigador e de erudito, que deu origem,
entre outras coisas, a uma recolha de Opiniões dos fí-
sicos que deve ter influenciado de maneira profunda
toda a doxografia sucessiva (cf. cap. I, § 1); e a sua
obra de moralista, em parte ainda documentada pelo
pequeno tratado sobre os Carateres, uma descrição de
feitios humanos em geral mesquinhos sem serem real-
mente viciosos, realisticamente levada a cabo sem re-
correr às categorias éticas fundamentais de Aristóteles
(vício, virtude, meio termo). Vê-se então que na ética
Teofrasto acentuou a fundação naturalista da moral,
embora mantivesse a preferência aristotélica pela vida
especulativa, que nele tendia, ao que parece, a identi-
ficar-se puramente com a vida do douto mais do que
com a do filósofo. Por causa desta tese ele encontrou,
dentro da escola peripatética, a acesa oposição de Di-
cearco que defendia um ideal de vida ativa e politica-
mente engajada.
Não sabemos muito de outros peripatéticos que
foram discípulos diretos de Aristóteles. Para cada um
deles pode valer a indicação de se terem aplicado com
interesses de especialista a um determinado setor do
saber como, por exemplo, Eudemo que se dedicou
à história das disciplinas físicas (mas dele possuímos
também fragmentos bastante amplos de uma Física
que, porém, pode ser considerada uma espécie de pri-
meiro comentário ao tratado aristotélico homónimo),

279
Aristóxeno que se dedicou à música. Uma personalida-
de de maior relevo foi o sucessor de Teofrasto, Estratão
de Lâmpsaco (que morreu em 274), que trabalhou por
um certo período também em Alexandria e pode ter
transmitido aos doutos investigadores das instituições
alexandrinas algo sobre os métodos da escola peripa-
tética. Alcunhado pela tradição de «o físico», Estra-
tão foi além de Teofrasto, recusando absolutamente
a teoria aristotélica dos motores dos céus e aceitando
unicamente a natureza como princípio interno do
movimento. Admitiu também como princípios funda-
mentais apenas as qualidades opostas de quente e frio.

280
5.

A FILOSOFIA HELENISTA

1. INTRODUÇÃO À FILOSOFIA HELENISTA

Nas histórias gerais do mundo antigo costuma


designar-se com os termos «helenismo/helenístico» o
período que vai da morte de Alexandre de Macedó-
nia (323) até à conquista romana (em 31-30 a.C.) do
Egito, último sobrevivente dos reinos desagregados do
império macedónio depois da morte de Alexandre (os
outros reinos helenistas, a Síria, Pérgamo, até a Ma-
cedónia, já tinham caído sob o domínio de Roma).
Estes limites cronológicos efetivamente têm uma certa
validade também para o desenvolvimento da filosofia:
a morte de Aristóteles (322) coincide quase perfeita-
mente com a de Alexandre e nas últimas décadas do
século I a.C. uma série de eventos, na verdade não es-
clarecidos ainda de todo pelas investigações modernas,
porá gradualmente em primeiro plano as filosofias de
certo modo clássicas, as que descendem de Platão e de
Aristóteles, em detrimento das doutrinas que se afir-
maram no período helenista.
Uma reconstrução largamente difundida na histo-
riografia moderna vê como principal novidade e maior
diferença das filosofias helenistas em relação às do IV
século a prevalência do problema moral sobre qualquer
outra questão e a tendência generalizada entre os
pensadores da idade helenista a quererem resolver este
problema recomendando um ideal de tranquilidade
interior e de independência das imprevistas vicissitu-
des do mundo, sobretudo as históricas e políticas. A
própria reconstrução indica precisamente nestas vicis-
situdes – caracterizadas por uma grande instabilidade
política e social, por rápidas mudanças nas sortes dos
estados, dos reinos e dos indivíduos, pelo desapareci-
mento ou, pelo menos, erosão progressiva das auto-
nomias e das liberdades políticas das cidades-estado
gregas – a causa que teria determinado a orientação
geral de que falámos agora e que é comum a todas as
filosofias de idade helenista. Nesta explicação já quase
tradicional há indubitavelmente algo de verdade, que
pode ser facilmente confirmado pelas próprias fontes
antigas. Com efeito, Séneca recorda num dos seus diá-
logos (De constantia sapientis 4, 6-7) o caso do filósofo
megárico Estílpon, cuja cidade fora conquistada e sa-
queada pelo macedónio Demétrio Poliorcete, os bens
pessoais depredados, as filhas reduzidas em escravidão,
e que, ao ser interrogado por Demétrio «se perdera
alguma coisa», teria respondido que não perdera nada,
pois «tenho todas as minhas coisas comigo», aludindo
assim ao seu património de dotes interiores intacto e

282
inalienável. A situação em que Séneca retrata o filóso-
fo megárico é aquela tipicamente imaginada pelos his-
toriadores modernos, e a resposta de Estílpon é aquela
típica do sábio idealizado pelas filosofias helenistas.
Todavia, a explicação tradicional diz provavelmen-
te apenas uma parte da verdade. De facto, por um
lado, a perda da autonomia política não foi comple-
ta para as poleis, as antigas cidades-estado submetidas
pelo reino macedónio, e nem sequer o foi (pelo me-
nos inicialmente) quando o governo macedónio foi
substituído pelo romano: mesmo que se reduzisse aos
limites restritos de uma pequena política municipal,
as cidades conservaram a sua capacidade de iniciativa,
especialmente Atenas. Aliás, nasceram ligas regionais
de cidades que, na altura, souberam opor-se à Mace-
dónia e depois a Roma. Por outro lado, as filosofias
helenistas não podem ser subsumidas inteiramente
nas suas doutrinas morais: isto é plenamente eviden-
te quanto ao ceticismo académico, onde o interesse
principal (segundo os testemunhos que temos) se diri-
gia aos problemas do conhecimento e à dialética. Mas
é verdade também para o epicurismo e mais ainda
para o estoicismo – de facto, nestas duas filosofias a
doutrina moral está acompanhada e é sustentada por
uma teoria física solidamente estruturada e por uma
visão geral do mundo minuciosamente elaborada. No
estoicismo exprime-se um forte interesse claramente
especulativo na construção de uma teoria lógica assaz
inovadora em relação à de Aristóteles e de uma gnosio-
logia bem atenta às dificuldades e às objeções prospe-
tadas pelas escolas concorrentes. Estas considerações

283
estão, por conseguinte, na origem de uma explicação
mais recente, alternativa àquela tradicional, segundo
a qual as características mais relevantes das doutrinas
helenistas seriam essencialmente o fruto de desenvol-
vimentos internos à problemática filosófica, isto é, a
reflexão desenvolvida pelos filósofos epicuristas, es-
toicos e académicos sobre os problemas deixados em
herança por Platão e por Aristóteles e em alguns casos
até sobre obras dos dois grandes filósofos do século IV.
Talvez o único limite desta segunda explicação seja
constituído pela dificuldade de provar, caso por caso,
a ligação das doutrinas das escolas helenistas à proble-
mática das filosofias do século IV. Isto por causa do
quase total desaparecimento das obras dos pensadores
da escola epicurista e da estoica (os maiores mestres
da Academia cética não chegaram a escrever nada).
Mas aquilo que, através de citações fragmentárias e
testemunhos posteriores, sabemos do pensamento de
Epicuro e dos principais filósofos estoicos é suficiente
para nos deixar intuir que eles deviam ter bem pre-
sentes as doutrinas e, pelo menos às vezes, as próprias
obras de Platão e de Aristóteles.
Uma das características mais gerais da filosofia he-
lenista pode ser, contudo, bem explicada como uma
consequência da situação em que Aristóteles deixara
a filosofia: ou seja, queremos dizer a completa separa-
ção entre a reflexão das escolas filosóficas e a pesquisa
científica – uma separação bem mais evidente dado
que a ciência helenista, que teve importantíssimos de-
senvolvimentos pelo menos na matemática, na astro-
nomia e na medicina, teve uma sede privilegiada nas

284
instituições fundadas em Alexandria (a biblioteca e o
Museu) ao cuidado da dinastia reinante no Egito, a
dos Ptolomeus; as escolas filosóficas, pelo contrário,
permaneceram concentradas na tradicional sede ate-
niense. Aristóteles realçara e defendera fortemente a
autonomia das ciências especiais contra as pretensões
platónicas de unificação do saber sob a dialética, má-
xima expressão da atividade filosófica; como mostram
os livros agrupados na Metafísica, ele ainda não renun-
ciara, por sua vez, à busca de um saber unificado sob
a filosofia primeira, embora esta respeitasse a autono-
mia de cada ciência. Os filósofos da idade helenista
abandonaram completamente a tentativa da Metafí-
sica (da qual é provável que não tivessem sequer um
bom conhecimento; de resto, também é dúbio que a
obra existisse na época na sua forma atual), mas, pelo
contrário, aceitaram pacificamente os resultados a que
a investigação da escola aristotélica chegara: a especia-
lização de cada ciência e a separação destas da especu-
lação filosófica. E no entanto, foram precisamente os
pensadores pertencentes à escola aristotélica, como Es-
tratão de Lâmpsaco, ou por esta influenciados, como
Demétrio de Falera, a projetar e a organizar as insti-
tuições de pesquisa alexandrinas. Mas nunca nenhum
filósofo estoico, cético, ou epicurista mostrou um real
interesse pelas investigações dos cientistas contempo-
râneos e pelos resultados por eles alcançados: epicuris-
tas e céticos impugnaram a validade dos princípios da
geometria, o estoico Cleantes definiu ímpia a tese do
grande astrónomo Aristarco de Samos, segundo o qual
a terra girava à volta do sol, e Epicuro, como veremos,

285
propôs o método das explicações múltiplas para os fe-
nómenos físicos e celestes, o que implica a recusa em
aprofundar indefinidamente a pesquisa. Neste sentido
– mas apenas neste sentido – a filosofia helenista apa-
rece realmente empobrecida em relação às duas gran-
des filosofias do século IV.
Outra característica proeminente, por fim, dis-
tingue as filosofias que dominaram a idade helenista
das de Platão e de Aristóteles e é a sua estrutura forte-
mente sistemática. Epicurismo e estoicismo tendem,
de facto, a organizar-se como sistemas doutrinais for-
temente coerentes e fechados e, quando necessário,
comprimíveis em exposições como as que se escreviam
em manuais para serem facilmente memorizáveis. As
cartas de Epicuro que nos chegaram têm precisamente
essa forma e por vezes são comparadas pelos modernos
com uma espécie de catecismo; e se, pelo contrário,
dos estoicos antigos não nos chegou nenhum manual,
sabemos todavia que eles os escreveram (e, de resto,
temos alguns conservados, produzidos pelo estoicismo
de idade tardo-republicana e imperial) e sabemos tam-
bém com certeza que a perfeita coerência sistemática
das doutrinas e das partes da filosofia era precisamente
aquilo a que a escola mirava e de que mais se gaba-
va. Excetuando claramente o ceticismo académico, as
escolas helenistas parecem ter considerado tarefa sua
fornecer à humanidade certezas robustas em vez de
suscitar dúvidas ao repor em questionamento meto-
dicamente o que se podia considerar já adquirido. É
possível que os filósofos estoicos e epicuristas vissem
na dúvida uma fonte de insegurança e, por conseguin-

286
te, de turbamento para a alma; mas é certo que a con-
sideravam uma causa paralisante de incerteza para a
práxis, de tal forma que conduzia até à inação.

2. EPICURO, VIDA E OBRA

Epicuro nasceu na ilha de Samos em 341 de uma


família de colonos atenienses que se transferiu depois
para Cólofon, no continente asiático (hoje, a Tur-
quia). Ainda muito jovem, na ilha vizinha de Téos,
seguiu por algum tempo o ensinamento do demo-
critiano Nausífanes, que lhe terá apresentado os fun-
damentos da doutrina atomista, tendo sido depois
coberto de injúrias por Epicuro. Fundou então uma
primeira comunidade filosófica na ilha de Lesbos,
depois outra novamente no continente asiático, em
Lâmpsaco. Regressando finalmente a Atenas em 307-
6, adquiriu uma casa com jardim (kepos, que depois
deu o nome à escola epicurista), onde transcorreu uma
existência frugal e afastada, compondo as suas obras e
conversando com os amigos, entre os quais sobressaía
Metrodoro pelos seus dotes filosóficos; esses amigos
veneravam-no também como um mestre de vida (um
dos seus motes era «porta-te sempre como se Epicuro
te estivesse a ver»). Ao morrer, em 271, deixou a casa
e o jardim a Hermarco, novo chefe da escola. Depois
dele o epicurismo não parece ter sofrido grandes mu-
danças ou desenvolvimentos doutrinais. Todavia, me-
recem ser recordados no século I a.C. o poeta e filóso-
fo Filodemo de Gádaros, que incorporou na sua obra
Sobre os sinais também o ensinamento de Zenão de

287
Sídon, e sobretudo o poeta latino Lucrécio (de quem
voltaremos a falar no cap. VI, § 9) que no grandioso
poema De rerum natura (sobre a natureza das coisas)
nos deixou uma exposição abrangedora de grande par-
te da doutrina física do mestre. Por fim, no século II
d.C. encontramos a figura curiosa de um discípulo en-
tusiasta da escola que vivera num centro na hodierna
Turquia, Diógenes de Enoanda, o qual mandou ins-
crever num grande pórtico da sua cidade uma espécie
de compêndio das doutrinas epicuristas. Descoberta
em 1884, a grande inscrição de Diógenes constitui
uma integração relevante para o nosso conhecimento
das doutrinas da escola.
Muito pouco nos ficou das inúmeras obras com-
postas por Epicuro. Os documentos principais são
hoje três cartas dirigidas a amigos e guardadas no livro
X das Vidas dos filósofos de Diógenes Laércio; elas con-
têm exposições compendiosas das doutrinas do mestre
a propósito dos fundamentos da teoria atomista e da
física (a Heródoto), dos fenómenos celestes (a Pítocles)
e da moral (a Meneceu). Diógenes Laércio também
conservou uma recolha importante de quarenta Máxi-
mas capitais, e outra recolha de oitenta e uma máximas
está guardada num códex vaticano conhecido por Sen-
tenças vaticanas. Das outras obras, de que possuímos
apenas os fragmentos ou informações e testemunhos
posteriores, a mais importante devia ser a recolha dos
trinta e sete livros Sobre a natureza, onde, na realidade,
Epicuro se ocupava também de problemas concernen-
tes à teoria do conhecimento e à moral. Recuperámos
alguns fragmentos relevantes dos papiros que, na vila

288
da grande família romana dos Pisoni em Herculano,
sepultada pela lava do Vesúvio em 79 d.C., constituí-
am uma notável biblioteca de literatura epicurista. De
facto, foram encontrados, carbonizados e em condi-
ções mais ou menos fragmentárias, também rolos de
papiros que contêm escritos de Filodemo e de outros
autores epicuristas. Estes papiros de Herculano, ainda
hoje em fase de recuperação, de restauração e de in-
terpretação, poderiam reservar-nos outras aquisições
relevantes.
As obras de Epicuro conservadas integralmente, as
três cartas e as duas recolhas de máximas são muito
significativas do tipo de estrutura da escola. Por um
lado, testemunham bem o caráter tendencialmente
sistemático da filosofia epicurista, que pretende forne-
cer aos seus seguidores um património claro e seguro
de certezas concluídas; por outro lado, deixam entre-
ver também outro aspeto desta filosofia: as suas finali-
dades terapêuticas e até consoladoras. Ela pretende ser
apresentada em breves textos facilmente memorizáveis
(é o próprio Epicuro a recomendar este exercício nas
cartas), de maneira a poder ser recordada em qualquer
momento, a dar assistência e a ser um guia prático nas
mais variadas circunstâncias da vida quotidiana.

3. OS CÂNONES DE EPICURO

Epicuro não admitiu nenhum tipo de lógica ou de


dialética como partes distintas da filosofia, e dirigiu
palavras duras contra as subtilezas dos outros filósofos
nestes campos. Todavia, considerava indispensável ex-

289
plicar, por sua vez, a formação do conhecimento e os
seus procedimentos: uma problemática que ele reser-
vou aos «cânones» (do grego kanon, que é o fio de pru-
mo dos pedreiros que, em sentido metafórico, passou
a indicar qualquer critério de avaliação da verdade).
Esta parte da sua filosofia é conjuntamente uma teo-
ria do conhecimento, uma epistemologia e uma teoria
da linguagem. Ela é fortemente solidária com a teoria
atomista basilar para a física, de que passaremos a falar.
Segundo testemunhos atendíveis, Epicuro con-
siderou as sensações, as antecipações (prolepseis) e as
afeções como critérios de verdade. As afeções são o
fundamento da ética e serão examinadas nessa área:
de facto, não intervêm na gnosiologia nem na epis-
temologia. Como fundamento da gnosiologia e da
epistemologia encontram-se as sensações e as anteci-
pações. O primeiro alicerce de cada conhecimento é
dado pela sensação, que é sempre verdadeira: não no
sentido que contém em si inevitavelmente a garantia
da sua veracidade, mas sim porque a ela correspon-
de sempre efetivamente um estímulo exterior que é
reproduzido de maneira fiel. Porém, aquilo que é re-
produzido não é diretamente o objeto que origina a
sensação (a cor para a vista, o som para o ouvido, etc.;
só no que diz respeito ao tato a explicação epicurista
será um pouco mais complicada): é antes uma espécie
de película atómica subtil que, como um eflúvio, se
desloca continuamente do objeto percecionado para
o órgão sensorial levando consigo a forma visível ou
as características (sonoras, olfativas, etc.) do objeto.
Epicuro chama eidola (imagens) a estes eflúvios que

290
se separam dos objetos sensíveis. O que se perceciona
é sempre algo real e é percebido exatamente como é:
mas trata-se do eflúvio e não do objeto. Na viagem do
objeto ao órgão sensorial o eflúvio atómico pode so-
frer alterações ou transformações: por exemplo, a torre
com base quadrada vista de longe parecerá redonda.
Pois bem, a imagem que recebemos é efetivamente a
de uma torre redonda, porque na viagem os átomos
que compõem a imagem terão sofrido uma alteração;
por isso, o erro não reside nas nossas sensações, mas na
opinião que associamos à imagem acerca da torre dis-
tante. Todavia, surge o problema de indicar um modo
para discriminar as imagens que reproduzem fielmen-
te o objeto das que não o fazem. Uma característica
que as imagens fiéis do objeto devem ter é certamente
também para Epicuro, tal como para os estoicos, a evi-
dência: mas até esta, por sua vez, deve ser reconhecida
e avaliada na sua efetiva correspondência com o objeto
(miragens, sonhos, alucinações implicam imagens de
grande, mas falaz evidência).
Um controlo muito singelo da evidência e fideli-
dade das imagens pode, por vezes, ser feito colocando
simplesmente o órgão sensorial nas melhores condi-
ções de funcionamento: assim, ao aproximarmo-nos
da torre que à distância parecia redonda, nós vemos
que, pelo contrário, tem a base quadrada. Epicuro
pode então enunciar o princípio de que a imagem
confirmada pelo testemunho dos sentidos deve ser
verdadeira, e falsa a que não é confirmada ou a que
recebe o testemunho contrário dos sentidos. Repetir
a perceção dos mesmos objetos e memorizar sempre

291
estas imagens dotadas de evidência leva gradualmente
à formação das «antecipações» (prolepseis), conceções
mentais quer daquilo que segundo Aristóteles seriam
os universais (espécies ou géneros: por exemplo, o
cão, o homem, o animal), quer de objetos individuais
(por exemplo, Platão, Sócrates, o nosso cão distinto
do cão do vizinho, etc.). A posse de uma antecipa-
ção e o confronto imediato entre esta e uma imagem
aparentemente semelhante oferecida pela sensação são
outro método de controlo da correspondência efetiva
da imagem ao objeto. Sobre as antecipações funda-se
também a linguagem mediante a qual nós denomina-
mos as formas das coisas conhecidas por antecipação.
Mas nem tudo o que existe realmente pode ser per-
cebido pelas sensações e, em especial, não são perce-
bidos precisamente os constituintes fundamentais do
mundo físico, os átomos e o vazio. Todavia, segun-
do Epicuro, pode-se legitimamente induzir algo que
não é sensível do que é evidentemente atestado pelos
sentidos e, além do mais, também a falta de atestação
contrária por parte da sensação é considerada suficien-
te por ele para fundar a verdade de uma inferência
sobre aquelas coisas que não estão diretamente ao al-
cance dos sentidos. Logo, a existência do vazio pode
ser induzida, segundo Epicuro, da existência do mo-
vimento: este é efetivamente percebido pelos nossos
sentidos mas, segundo ele, isto não seria possível se
tudo estivesse cheio. Portanto, se existe movimento,
há também vazio. Quanto aos átomos, a sua existência
é postulada a partir de dois princípios que derivam da
tradição eleática e dos físicos influenciados por aque-

292
la: se nada pode nascer do nada nem nenhuma coisa
transformar-se em nada, princípios, por sua vez, con-
cordantes com a experiência que atesta o nascimento
dos fenómenos a partir de outros fenómenos e a su-
cessiva desagregação deles nas suas componentes, deve
portanto haver algo de corpóreo e indivisível («átomo»
significa, tal como para Demócrito, «aquilo que não é
suscetível de divisão»), mesmo que não seja percetível
diretamente, algo de onde os fenómenos se formem e
depois cessem de existir.
Além do mais, nem todas as imagens que se mo-
vem à nossa volta são percebidas pelos sentidos: há
algumas, constituídas também por átomos, particular-
mente subtis e rarefeitas, que por isso não são percetí-
veis pelos sentidos e chegam diretamente à mente do
ser humano – por exemplo, as imagens dos deuses,
cuja existência Epicuro admite com base no consenso
humano universal; mas também as imagens dos so-
nhos e das alucinações, ou as das pessoas já falecidas.
Em alguns destes casos, todavia, não é clara a expli-
cação que Epicuro podia dar para a correspondência
da imagem com o objeto real exterior. Por fim, pode
acontecer que no ambiente externo imagens diversas
confluam misturando-se e produzindo uma nova ima-
gem à qual não corresponde nenhum objeto real (por
exemplo, da imagem de um cavalo e da de um homem
pode criar-se a de um centauro).
O princípio que admite como verdadeiro o que
não recebe uma atestação contrária da experiência
sensível é a base de um método sui generis que Epicu-
ro aplica, por exemplo, na explicação dos fenómenos

293
celestes, a saber, o princípio das explicações múltiplas:
na carta a Pítocles (par. 94) as diversas figuras que a
lua ganha no seu ciclo mensal são explicadas indife-
rentemente ou pela sua rotação, ou por diversas con-
figurações que o ar que se encontra entre ela e nós
vai ganhando, ou pela interposição de outros corpos
celestes, ou «por qualquer outro modo» que nos obri-
ga a dar uma explicação às coisas que nos aparecem.
Epicuro não está interessado em escolher entre estas
diferentes explicações bastando que não sejam con-
traditas pela sensação, aliás, critica severamente quem
«se apaixona» por uma em particular; a serenidade e a
tranquilidade interior, para as quais tende toda a sua
filosofia, não têm necessidade de que se aprofundem
problemas deste tipo.

4. A FÍSICA DE EPICURO

Já se disse no parágrafo anterior que Epicuro postu-


lou os átomos e o vazio como princípios capitais para a
explicação do mundo físico. Mas o recurso a estes prin-
cípios fora-lhe sugerido por Demócrito e ao postulá-
-los Epicuro encontrava-se em grande contraste com
Aristóteles, que negara a existência do vazio e admitira
a potencial divisibilidade ao infinito de cada grandeza.
Toda, ou quase toda, a física epicurista pode ser vista
como a retomada ou modificação de ideias democritia-
nas, mas também como uma polémica de certo modo
implícita contra Aristóteles e às vezes contra Platão.
O universo de Epicuro, tal como acontecia com
Demócrito mas não com Aristóteles e Platão, cons-

294
tituído por átomos e vazio, é infinito e os átomos são
também infinitos em número. Estes diferem entre si
pelas formas, que são inumeráveis mas não infinitas,
pelo tamanho (que nunca chegará a ser percetível) e,
contrariamente a Demócrito, pelo peso. Uma novi-
dade relativa à teoria atomista é que, tendo tamanho,
os átomos de Epicuro, fisicamente indivisíveis, são
todavia conceptualmente analisáveis por um núme-
ro finito de partes mínimas (chamadas precisamente
«mínimos») presentes em quantidade maior ou menor
em cada átomo conforme o tamanho dele. Com a sua
teoria dos mínimos Epicuro estaria provavelmente a
responder aos paradoxos de Zenão de Eleia acerca da
impossibilidade do movimento e, ainda, às dificulda-
des levantadas por Aristóteles na Física a propósito da
impossibilidade de que um tamanho dotado de movi-
mento (neste caso, o átomo) resulte da composição de
constituintes destituídos de partes (no caso postulado
por Epicuro, estas seriam precisamente os mínimos).
O peso dos átomos é a origem do seu movimen-
to, mesmo que estes se movam no vazio infinito com
velocidade igual de cima para baixo: direções, po-
rém, que não se devem entender em sentido absolu-
to (como fazia Aristóteles), porque no vazio infinito
não há centro, nem cima nem baixo definidos; cima
e baixo são pensados em relação a um ponto onde se
imagina que esteja um observador que pode ter acima
da sua cabeça (noutro dos infinitos mundos admitidos
pela teoria) outro observador para quem o primeiro
estará «em baixo». Ora, se caíssem perpendicular-
mente os átomos nunca se encontrariam e, por con-

295
seguinte, não se formariam as suas agregações, isto é,
os mundos infinitos em número e os corpos contidos
neles: logo, é necessário admitir que, ao caírem, alguns
átomos, a certa altura, sofrem um desvio da trajetória
vertical que será mínimo, mas suficiente para produzir
o choque com outro átomo e o ricochete do primei-
ro átomo a uma velocidade constante, ou então a sua
agregação a um emaranhado pré-existente de átomos
que travará o ricochete. Deste segundo modo se cons-
tituem as agregações atómicas, isto é, os corpos. Esta
hipótese do desvio atómico não é diretamente do-
cumentada pelos fragmentos e pelos textos que nos
chegaram de Epicuro, mas é bem ilustrada pelo poeta
latino Lucrécio e, como tal, é conhecida pelo nome de
clinamen. Tendo sido muito criticada desde a antigui-
dade pelos adversários do epicurismo, que viam nela
a introdução arbitrária de um movimento sem causa,
hoje, pelo contrário, ela é defendida por alguns estu-
diosos como sendo uma primeira e distante intuição
do princípio de indeterminação.
É necessário acrescentar também que, se pudesse
ser atribuída a Epicuro, a hipótese do clinamen seria
um dos pontos principais em que a teoria atomista se
mostraria essencialmente fundadora também da teo-
ria moral. De facto, o pressuposto necessário da ética
epicurista é que haja nos agentes uma capacidade de
escolha livre, de orientação e de mudança dos próprios
comportamentos; além disso, é indubitável e ampla-
mente atestado pelos escritos e fragmentos que Epicu-
ro era muito contrário ao determinismo e à conceção
de um fado omnipotente – uma conceção que, pelo

296
que sabemos, ele atribuía aos «físicos», pretendendo
aludir muito provavelmente a Demócrito e aos seus
seguidores mais recentes e não aos estoicos. Todavia,
não são claras as bases da teoria física sobre as quais
se podia fundar a sua convicção acerca da liberdade
de arbítrio e das ações humanas e, sobretudo, no que
ainda hoje lemos dele nunca é explicitada uma cone-
xão da liberdade das escolhas e da vontade humana
com o desvio dos átomos. Esta conexão é, pelo con-
trário, precisamente estabelecida por Lucrécio no seu
poema e ainda hoje é objeto de controvérsia entre os
estudiosos se é possível estender a atribuição e, por
conseguinte, também a origem ao escolarca. Em todo
o caso, é pouco claro a quem se deve atribuir a origem,
tal como é pouco claro como o desvio dos átomos in-
tervém no funcionamento dos movimentos psíquicos
e da vontade; o clinamen pode, também, ser acusado
de substituir a casualidade (não a liberdade) pelo de-
terminismo que Epicuro criticava nos «físicos».
Como se disse, os átomos possuem tamanho, peso,
forma e movimento; mas não possuem as qualidades
secundárias tais como cor, sabor, etc., que Demócrito
interpretara como sendo os modos em que o ser hu-
mano coordena e representa para si as imagens prove-
nientes das sensações. Epicuro não aceita este ponto
da tese democritiana; a explicação que ele fornece na
carta a Heródoto (§§ 68 seg.s) é bastante obscura, mas
parece que podemos dizer que para ele as qualidades
são plenamente reais, embora não existam indepen-
dentemente dos agregados corpóreos nem constituam
partes adjuntivas deles, como se fossem a soma. Muito

297
simplesmente, sem elas o corpo não poderia ter a sua
natureza própria e permanente.
Por fim, a teoria atomista permite a Epicuro ex-
plicar de modo profundamente diferente do da tradi-
ção das filosofias do século IV factos e problemas que,
naquelas teorias, tinham sido interpretados com base
na assunção da existência de realidades imateriais. Em
primeiro lugar, a alma é vista quer como composto
corpóreo formado também por átomos particular-
mente subtis e leves, os que entrariam igualmente na
composição do fogo (e, por esse motivo, a alma dá
calor vital ao organismo), do vento (como princípio
do movimento no organismo), do ar (não movido:
como princípio da quietude) e, por fim, de um quarto
elemento sem nome, ao qual a sensação está especifi-
camente ligada.
Os deuses também são constituídos por átomos e,
como vimos, a sua existência é reconhecida com base
na fé do consenso universal da humanidade; mas neste
caso Epicuro não lhes pode atribuir a consistência dos
agregados corpóreos porque, mais cedo ou mais tarde,
estariam todos sujeitos à dissolução. Um testemunho
difícil de Cícero (De nat. deor., I, 49) parece atribuir-
-lhes apenas a consistência das películas atómicas dos
eidola, as imagens, cuja eterna persistência (requerida
também pelo consenso comum dos homens, que de
acordo defendem que os deuses são imortais) seria ga-
rantida por um contínuo afluxo de átomos que repõe
eternamente as perdas devidas à separação daquelou-
tras imagens divinas que, como se disse antes, chegam
até à mente dos homens. E ainda, o consenso universal

298
quer que os deuses sejam imortais, além de serem per-
feitamente beatos. Epicuro aceita esta conceção, mas
defende ser necessário que os deuses sejam totalmente
isentos da tarefa e, por conseguinte, das preocupações
com o governo do universo: desse modo, ele está a
polemizar duramente com o providencialismo dos es-
toicos, mas também de Platão (Timeu, Leis) e, talvez,
também com a ideia aristotélica de um princípio divi-
no motor do universo como sua causa eficiente e final.
Sem cuidarem de todo de nós e do mundo, os deuses
vivem felizes nos espaços entre os infinitos mundos
(os intermundia, segundo a tradição latina); o nosso
mundo não é teleologicamente orientado pelo divino
na direção do bem, como, pelo contrário, defendiam,
com graus diversos, Platão, Aristóteles e os estoicos.
Esta conceção peculiar dos deuses terá, como veremos,
reflexos importantes também na ética de Epicuro.

5. A ÉTICA DE EPICURO

Tal como aconteceu em todas as escolas filosóficas,


de Sócrates em diante, também para Epicuro a felici-
dade – que era o máximo dos bens – era o fim último
de cada ação humana. Muito diversamente dos filóso-
fos do século IV e dos seus contemporâneos estoicos,
ele identificava o máximo bem com o prazer. As razões
que ofereceu para esta identidade não são muitas, nem
muito complexas (mas, ao que parece, não pretendiam
ser tais): ele faz recurso a um dos seus critérios funda-
mentais de verdade, a afeção (pathos), que, ao servir de
norma, diz que o que é prazenteiro é um bem. Nou-

299
tros textos esta mesma função é atribuída à sensação
que é também um dos critérios: a identificação de bem
com prazer seria atestada pela sensação exatamente da
mesma forma que ela nos diz que a neve é branca, o
fogo é quente, o mel é doce. Por fim, uma confirmação
pode ser dada à afeção e à sensação pela observação do
comportamento do animal recém-nascido, que, segun-
do Epicuro (e, como veremos, bem diversamente dos
estoicos), se orienta logo para a receção do que é pra-
zenteiro e se afasta do que é doloroso.
Portanto, Epicuro era – e ainda hoje é – considerado
um hedonista por causa da sua identificação do prazer
com o bem, ou melhor, com o sumo bem. Esta afirma-
ção, que não deve ser entendida de maneira nenhuma
como uma acusação, é essencialmente correta; todavia
deveria ser explicada melhor e limitada por muitos es-
clarecimentos sobre a conceção que ele formulara de
prazer.
Em primeiro lugar, é certo que Epicuro afirma mais
do que uma vez que não pode sequer conceber o bem e
o prazer independentemente da experiência do gosto e
do ventre, mas também da experiência da música e da
visão da beleza, duas coisas que também estão ligadas
à experiência sensível, o que é completamente coeren-
te com a valorização da sensação como critério funda-
mental da verdade e, como se disse, também as afeções
de prazer e dor são enumeradas entre os critérios. Por
outro lado, também é certo que Epicuro reconhecia o
sumo bem e a felicidade não no cumprimento prazen-
teiro daquelas experiências dos sentidos, mas no estado
de aponia (ausência de dor física) e de ataraxia (ausência

300
de turbamento mental) que aparece depois do cumpri-
mento das mesmas. A ausência de dor e de turbamento,
identificada com a felicidade, era considerada por ele o
máximo dos prazeres não suscetível de aumento, mas
apenas de algumas variações. Eis pois a acusação, fre-
quente já na antiguidade e desde então sempre repetida,
de que ele estivesse a confundir sob o nome de prazer
duas coisas completamente diferentes: a satisfação dos
sentidos, que implicaria um estado inicialmente de pri-
vação, isto é, de dor, e a ausência de dor.
Na verdade, o crítico mais antigo de Epicuro que
conhecemos (Cícero, De fin., I, 37) deixa ver bem que
não havia nenhuma confusão no filósofo: nós sentimos
pena ou dor pela ausência do prazer e, quando esta
ausência é completamente removida, sentimos uma
alegria extrema, isto é, sentimos prazer (porque tudo
aquilo que causa alegria é prazer). Não só: é verdade
que o prazer é sempre, em última análise, reconduzível
aos sentidos, mas o sentido e a carne permanecem inti-
mamente vinculados ao gozo presente. Pelo contrário,
quando se alcança o estado de ausência de dor – que
por si mesmo é já extremamente agradável – a alma e a
mente podem gozar também da recordação dos praze-
res passados e da expectativa daqueles futuros. Por isso,
contra os cirenaicos, Epicuro pode afirmar também que
os prazeres da mente são melhores e mais seguros do
que os do corpo e podem até compensar, na recorda-
ção e na expectativa, os sofrimentos presentes. Assim,
no final da sua vida, atormentado por dores indizíveis
nos intestinos e na bexiga, Epicuro podia escrever a um
amigo e dizer-lhe que se encontrava num dia «felicíssi-

301
mo» da sua existência porque podia compensar as dores
que padecia com a recordação dos amigáveis discursos
tidos com ele. E os epicuristas puderam – tal como os
estoicos, embora com motivações diversíssimas – defen-
der que o sábio seria perfeitamente feliz mesmo se fosse
submetido a tortura.
Com a distinção entre o prazer que satisfaz uma
necessidade ou elimina uma pena e o prazer como au-
sência de dor (e, obviamente, também de turbamen-
to) parece não coincidir perfeitamente outra distinção
sobre a qual insistem algumas fontes antigas, mas da
qual não falam os textos de Epicuro que nos chega-
ram diretamente, aquela entre prazer «cinético» ou
«em movimento» e prazer «catastemático» (quer dizer,
estável). Na verdade, é uma distinção bastante obscura,
talvez derivada da Ética a Nicómaco de Aristóteles e pro-
vavelmente adotada sobretudo em oposição polémica
aos cirenaicos, que reconheciam apenas os prazeres que
para Epicuro estivessem «em movimento»; mas parece
poder-se dizer que, enquanto que os prazeres que eli-
minam uma necessidade ou satisfazem um desejo estão
certamente «em movimento», a ausência de dor não é
pura e simplesmente um prazer catastemático: de facto,
implica também uma alegria que deveria ser inserida
nos prazeres em movimento (é o que parece resultar de
um discutido texto de Diógenes Laércio). De maneira
que a condição feliz, a ausência de dor e de turbamento,
implicaria ambos os tipos de prazer.
Pelo que se disse até aqui, o hedonismo de Epicuro
não é facilmente assimilável a um ideal de gozos gros-
seiros. Mas são ainda necessárias qualificações ulterio-

302
res. Numa passagem muito clara da carta a Meneceu
(§§ 29-30) Epicuro explica porque nem todos os pra-
zeres devem ser buscados e porque, às vezes, é aceitável
padecer uma dor:

Dado que o prazer é o bem primeiro e co-


natural, por esta razão nós não escolhemos
qualquer prazer, mas há casos em que deixa-
mos de parte muitos prazeres quando a sua
consequência representa uma quantidade
maior de efeitos desagradáveis; e achamos
que muitas dores são melhores do que os
prazeres, quando sentimos um prazer maior
depois de ter suportado por muito tempo
dores... é preciso julgar todas estas coisas por
um cálculo comparativo e pela consideração
das vantagens e dos danos.

Aquilo que Epicuro sugere, de modo muito se-


melhante ao Sócrates platónico no Protágoras, é um
cálculo mental capaz de confrontar e medir em vista
do futuro as consequências de uma escolha imediata
a favor do prazer ou da dor: acontecerá muitas vezes
renunciarmos a um prazer, ou até aceitarmos sofrer no
presente esperando por um prazer maior no futuro.
Mas este cálculo utilitarista dos prazeres parece dever
ser fundamentalmente referido às afeções do corpo e
dos sentidos. Na verdade, porém, mesmo que seja re-
alizado com pleno sucesso, nem sequer ele seria sufi-
ciente para garantir a plena felicidade ao homem; esta,
segundo Epicuro, é ameaçada ainda mais gravemente
pelos turbamentos que são induzidos na alma por fal-

303
sas opiniões acerca dos deuses e da morte do que pelos
sofrimentos físicos: são estas as coisas que mais impe-
dem a obtenção da ataraxia. Na décima das Máximas
capitais Epicuro diz o seguinte:

Se o que dá prazer aos dissolutos dissipasse os


temores da mente a propósito dos fenóme-
nos celestes, da morte e da dor e, também,
ensinasse o limite dos desejos, nada teríamos
a dizer contra eles, pois estariam cobertos de
prazeres provenientes de todos os lados e não
sentiriam nenhuma dor (do corpo), ou pena
(da alma), que é precisamente o mal.

Os dissolutos, portanto, de quem Epicuro pre-


tende afastar-se, além de não saberem fazer o cálculo
correto dos prazeres e das dores que devem ser aceites
ou recusados, ignoram que nada de mal lhes poderia
advir do mundo celeste e estão cheios de supersticioso
temor dos deuses, que não devem ser temidos porque
não se importam minimente com o mundo e com os
homens. Temem a morte como o pior dos males pois
ignoram que ela é apenas a desagregação das compo-
nentes atómicas do corpo e da alma: de maneira que
Epicuro, pelo contrário, pode dizer que a morte não
deve ser temida porque quando estamos presentes a
morte não está presente, enquanto que quando a mor-
te está presente nós já não o estamos (mais). Quanto
à dor, Epicuro defende (mas é certamente uma das
suas máximas menos facilmente credíveis) que se ela
durar por muito tempo é facilmente suportável, e será

304
de breve duração se for realmente grave – isto é, le-
vará logo à morte, a qual, por sua vez, não é temível.
Estes três ensinamentos e mais um quarto, que afir-
ma que «é fácil procurar para si o bem», constituem o
célebre Tetrafármaco («medicina quádrupla») que por
si só teria podido garantir também aos mais simples
adeptos da escola a ataraxia e a felicidade. E assim
Epicuro podia também asserir com confiança que não
seriam os grande banquetes, nem os gozos da carne e
do sexo, a garantir a vida prazenteira, mas «o sóbrio
cálculo racional, capaz também de indagar as causas
de cada escolha e de cada renúncia e de expulsar as
falsas opiniões, das quais vem o máximo turbamento
que domina as almas» (A Meneceu, § 132).
O cálculo recomendado ao epicurista é também
facilitado por uma distinção dos desejos, que tor-
na possível aquele conhecimento do seu «limite» ao
qual alude a máxima já citada. De facto, os desejos
são classificados – não sem reminiscências de Platão e
de Aristóteles – como naturais e necessários, naturais
apenas e vazios. Um exemplo do primeiro tipo são os
desejos naturais e inevitáveis de comida, de bebida, de
abrigo; dado que dentro desta classe é evidente que
Epicuro distinguisse ulteriormente os desejos necessá-
rios para a vida (por exemplo, os três que recordámos),
os desejos necessários para eliminar o sofrimento do
corpo e os necessários para a felicidade, parece fácil
e lícito induzir que um desejo natural e necessário é
também o da ataraxia, que sabemos ser uma condição
da alma necessária para a felicidade. Natural, mas não
necessário, é cada desejo que pode ser satisfeito mes-

305
mo que apenas ocasionalmente, por exemplo, o desejo
de amor; são vazios, isto é, nem naturais nem neces-
sários, todos os outros, os que, se procurados, podem
degenerar na busca incessante e morbosa de uma ple-
nitude impossível de satisfazer: por exemplo, o desejo
de riqueza, de poder, de fama.
A regra do epicurista será portanto ater-se à sa-
tisfação apenas dos desejos naturais e necessários; na
prática, ele viverá (como vivia precisamente Epicuro)
de água e papa de milho, considerando uma verda-
deira gulodice o facto de ter de vez em quando um
pedaço de queijo. Eis porque o Tetrafármaco pode
falar de um fácil acesso ao bem: uma das Sentenças
vaticanas (a 33) explica também mais explicitamente
que «a voz da carne é não ter sede, nem ter fome, nem
frio. Quem tiver estas coisas e esperar tê-las ainda, es-
taria em competição com Zeus para ser o mais feliz».
Aqui é importante também a explicitação relativa à
expectativa do futuro: a satisfação presente concerne
apenas ao corpo, mas também a alma precisa de não
ser turbada pela preocupação do que será. O regime
de vida aconselhado aos epicuristas podia portanto sa-
tisfazer as exigências da mais rígida moralidade, quer
tradicional, quer filosófica; não sem razão encontrou
a admiração e o consenso de um homem de formação
filosófica estoica, mas inteligente e em nada sectário,
como foi Séneca.
Os adversários do epicurismo encontraram, pelo
contrário, sempre muito para objetar a propósito da
conceção da virtude própria da escola. É verdade que
o próprio Epicuro – quase como se retomasse a distin-

306
ção aristotélica entre a sabedoria prática (phronesis) e a
sapiência filosófica, mas invertendo muito polemica-
mente a ordem dos valores – escrevia na carta a Mene-
ceu (§ 132) que a sabedoria prática é «mais apreciável»
do que a filosofia, porque ela é a virtude que permite
aquele cálculo racional mesurado, aquela avaliação
comparativa dos desejos feita de escolhas e de recusas
em vista de um prazer futuro que permanece o obje-
tivo último do agente; de maneira que, concluía, teria
sido impossível viver de modo prazenteiro sem ter to-
das as virtudes (porque da sabedoria obtida originar-
-se-iam também todas as outras virtudes tradicionais,
coragem, temperança, etc.), mas, inversamente, teria
sido impossível também viver virtuosamente sem vi-
ver de modo prazenteiro. Mas, sendo o bem identifi-
cado com o prazer, mesmo que na forma da ausência
de dor e de turbamentos, estava-lhe barrada a possi-
bilidade de atribuir às virtudes outra função que não
fosse o papel instrumental em vista da obtenção do
prazer. Este papel parece ter sido reconhecido explici-
tamente por ele na obra Sobre o fim, onde afirma que
«é preciso honrar a honestidade e as virtudes e as coisas
de tal género se nos proporcionam prazer; se não nos
dão prazer, é preciso deixá-las de parte». Quanto ao
modo como concebia as virtudes tradicionais, é claro
que para ele a temperança devia tornar-se a capacidade
de respeitar perseverantemente as recusas identificadas
no cálculo dos prazeres e das dores, a coragem reduzia-
-se à capacidade de enfrentar a dor e os sofrimentos
sem ser turbado por eles – e assim por diante (da justi-
ça falaremos mais especificamente na secção seguinte).

307
6. O INDIVÍDUO NAS RELAÇÕES SOCIAIS

Um, aliás, «o melhor dos bens que a sapiência


produz para a beatitude de uma vida completa» é a
amizade, como afirma a XXVII das Máximas capitais.
Sendo um dos efeitos da sapiência e sendo finalizada à
felicidade, em última análise, também a amizade deve-
ria ser para o epicurista apenas um bem instrumental,
que tem a sua origem no interesse pessoal e na busca
de todos os meios que podem garantir ao indivíduo
a segurança material, tal como o prazer da alma. E
neste sentido se dirigem as declarações explícitas que
possuímos de Epicuro. Porém, isso não implica que
ele pessoalmente, ou depois dele a sua escola, não sou-
besse cultivar a amizade com uma intensa participação
afetiva, da qual fragmentos das suas cartas aos amigos,
o estilo de vida do Jardim fundado por ele e os círculos
de adeptos da escola que sabemos terem existido fora
de Atenas são excelentes testemunhas: uma vida que
buscava e praticava o prazer da devoção e da confiança
recíprocas, da presença tranquilizadora ou consolado-
ra dos amigos, da troca profícua de ideias nas conver-
sações que lembravam e comentavam as doutrinas do
mestre. O que parece difícil é separar este culto autên-
tico da amizade das suas raízes utilitaristas. Sabemos
todavia que, sendo obrigados pela virulência das críti-
cas das escolas adversárias, alguns epicuristas das gera-
ções posteriores ao fundador ampliaram a tese. Estes
sugeriram que a amizade se desenvolvia com o passar
do tempo e o aprofundar da relação, e assim cada um
teria finalmente aprendido a amar o amigo apenas por

308
ele mesmo e não por interesse, ou então supuseram
que, pelo menos entre os sábios, se estabelecia uma es-
pécie de contrato que vincularia cada uma das partes a
amarem o amigo não menos do que a si mesmos. Esta
última é certamente a solução que melhor se adaptaria
à estrutura geral da filosofia epicurista.
Uma espécie de contrato é, para Epicuro, a base
também da justiça e da convivência humana nas so-
ciedades organizadas. Mas a este propósito Epicuro
consegue unificar brilhantemente as duas teses que,
até ao tempo dos sofistas, tinham dividido a filosofia:
a da origem natural e a da origem convencional da
justiça e a origem contratual da sociedade. A um certo
momento do desenvolvimento humano a necessidade
natural de segurança, que havia já impelido os homens
primitivos a agruparem-se para resistir às feras ou aos
vizinhos hostis, induz os membros de um grupo a es-
tipular um acordo para que nenhum deles ofenda ou
prejudique os outros, tendo em troca a garantia de não
ser por sua vez ofendido. Deste modo se constituem
inicialmente as leis e a sociedade; mas para Epicu-
ro isso não comporta que as leis e a justiça possam
ou devam ser iguais em todo o lado, nem que sejam
ou devam ser imodificáveis: a sua justificação reside
unicamente na sua funcionalidade relativa ao objeti-
vo primário de garantir a segurança dos contraentes
(embora seja verdade que numa situação ideal em que
toda a humanidade se tornasse epicurista deixaria de
haver necessidade de emanar leis e de cercar as cidades
de muralhas, como assere, ou melhor, imagina Dióge-
nes de Enoanda).

309
Portanto, Epicuro está bem longe de condenar em
linha de máxima as sociedades existentes, a agregação
social dos homens, a própria atividade política que,
aliás, vê como condições naturais e basilares para a ob-
tenção da segurança material, por sua vez pressuposta
pela tranquilidade interior. Aquilo que ele condena
é antes a prática corrente da política pensada como
competição incansável em vista do poder, das honras,
da fama; e é, então, nesta perspetiva que deve ser en-
tendido também o seu célebre mote «vive sozinho»
(lathe biosas): como uma espécie de aviso para que
se afaste da vida habitual do político, que se acha no
limbo das expectativas incertas de poder, roído pela
ambição de fama, perseguido pelo desejo ilimitado de
sucesso e pelos ódios dos adversários. A prática corren-
te da política torna impossível a obtenção da ataraxia;
mas é decerto coisa positiva que existam sociedades,
cidades e reinos – e, por conseguinte, de formas diver-
sas, homens políticos.

7. O ESTOICISMO: AS PERSONALIDADES

Uma convenção historiográfica cómoda para fins


expositivos subdivide a história da escola estoica em
três períodos: o estoicismo antigo, fundado por Ze-
não até à chegada de Panécio que passou a dirigir a
escola; o médio estoicismo, entre Panécio (nascido em
180 a.C. ca.) e Possidónio (que morreu por volta de
50 a.C.); o estoicismo romano, caracterizado (entre os
séculos I e II d.C.) pelas figuras de Séneca, Epicteto

310
e Marco Aurélio. Só deste último período possuímos
documentos originais, constituídos pelas obras dos
filósofos que acabámos de citar. Dos pensadores dos
períodos anteriores possuímos apenas fragmentos, no-
tícias indiretas e testemunhos de caráter doxográfico
ou tipo manual, se excetuarmos um breve texto poéti-
co de Cleantes de Asso, segundo mestre do estoicismo
antigo, o Hino a Zeus. Apesar da situação não brilhan-
te da documentação disponível, o estoicismo é sufi-
cientemente conhecido nas linhas gerais fixadas pelos
mestres do período mais antigo e aparece-nos hoje não
só como a mais influente das escolas helenistas, mas
também como um dos momentos mais importantes
na história da filosofia ocidental.
Do fundador da escola, Zenão, conhecemos com
alguma certeza a data da morte (262 ou 261 a.C.) e
com certa verosimilhança a data de nascimento, que
deve ter sido em 333 em Cítio, cidade de fundação e
população fenícia na ilha de Chipre. As origens fami-
liares e étnicas de Zenão eram, portanto, não gregas,
mas completamente grega foi, pelo que sabemos, a
sua formação. Ao chegar a Atenas em 312/311, fre-
quentou sucessivamente diversos mestres, primeiro o
cínico Crates (e desta iniciação socrático-cínica à filo-
sofia restam vestígios nas notícias que temos de uma
República, escrita por Zenão, provavelmente em polé-
mica com a obra homónima de Platão e com alguns
conteúdos paradoxais ou escandalosos do livro), em
seguida os megáricos Estílpon e Diodoro Crono, com
os quais deve ter aprendido muito de dialética, e por
fim o académico Pólemon. Mas já em 301 Zenão era

311
capaz de expor um seu ponto de vista em conversações
e lições que começou a dar sob o Pórtico pintado (Stoa
poikile) de Atenas, do qual a escola que informalmente
se constituiu retiraria o nome de «estoica».
Entre os numerosos discípulos de Zenão, que
talvez tenha morrido por suicídio, emergiu Cleantes
como sucessor à chefia da escola, originário de Asso na
Tróade, onde provavelmente nascera em torno a 310.
A tradição biográfica diz que era oriundo de família
muito modesta e de grandes dificuldades que Cleantes
teve de superar, sustentando-se por largo tempo com
trabalhos manuais, para poder seguir os ensinamen-
tos do mestre. Ao suceder-lhe em 262/261, chefiou
a escola até à morte, deixando-se morrer pela falta de
vontade própria, em 230. Todavia, não deixava uma
escola em boas condições, sobretudo por não ter sabi-
do fazer frente aos ataques polémicos da Academia e
do seu mestre, o grande dialético Arcesilau.
A tarefa da defesa e da reconstrução das bases teóri-
cas do estoicismo foi assumida pelo sucessor de Clean-
tes, Crisipo, considerado na tradição como o segundo
fundador da escola, aquele sem o qual teria deixado de
existir uma Stoa. Nascido entre 281 e 277 em Solis na
Cilícia (portanto, igualmente de origem asiática), em
Atenas seguiu também as lições dos adversários acadé-
micos de Cleantes aperfeiçoando as suas já conhecidas
capacidades dialéticas. Escolarca desde 230, teria mor-
rido entre 208 e 204, após uma vida pobre de eventos
notáveis, mas intensíssima pela atividade de escrita:
atribuem-se-lhe mais de setecentos títulos de livros. A
sua influência sobre a tradição posterior da escola é

312
um facto certo, tanto que há razões para pensar que
os testemunhos mais tardios que falam genericamen-
te da doutrina dos estoicos refiram normalmente as
coisas como tinham sido estabelecidas por Crisipo. É
sobretudo a ele que se deve a forma sistemática que a
filosofia estoica ganhou, pensada e exposta como um
organismo compacto e concluído, onde todas as par-
tes estão relacionadas entre si de maneira intimamente
lógica de coerência perfeita.
Entre os seus discípulos, a quem tocou a tarefa de
medir-se com a temível capacidade dialética do aca-
démico Carnéades, merece ser recordado Diógenes de
Babilónia (ou de Selêucia), por sua vez mestre de outra
personagem notável, Antípatro de Tarso.

8. PARTIÇÕES E PRESSUPOSTOS FUNDAMENTAIS


DA FILOSOFIA ESTOICA

Os estoicos distinguiam três partes na filosofia:


lógica, física e ética, e dentro da lógica distinguiam
ulteriormente a dialética e a retórica (de que não fa-
laremos aqui). A dialética, definida ou como ciência
do discutir corretamente por perguntas e respostas, ou
mais em geral como a ciência do que é verdadeiro e do
que é falso, englobava argumentos verdadeiramente
de lógica, outros de filosofia da linguagem e também a
gramática e a linguística. Como se vê pela tripartição
fundamental, os estoicos não admitiam uma ciência
que correspondesse de alguma forma à filosofia pri-
meira (metafísica) de Aristóteles. E isto porque, de-
fendendo eles que só o corpóreo existia, não podiam

313
admitir nenhuma ciência de realidades para além das
físicas. Todavia, quer a sua dialética, quer a física im-
plicam algumas conceções ontológicas basilares que
devem ser tidas em consideração para compreender
certos pormenores das doutrinas lógicas e físicas.
Ao inspirarem-se talvez na posição dos materialis-
tas contra quem argumenta Platão no Sofista e, mais
coerentemente do que eles, ao aceitarem até ao fim
as consequências da tese de que existe só o que pode
produzir ou sofrer uma mudança, os estoicos reconhe-
ciam estas capacidades apenas aos corpos e por isso
só a eles atribuíam o ser e a existência (o verbo gre-
go einai tem também no estoicismo a dupla valência
habitual no pensamento grego). Todavia, junto das
coisas corpóreas reconheciam como «algo» de sub-
sistente também quatro incorpóreos: o lekton (à letra
«dizível», «o que é dito»; é muitas vezes traduzido pelos
modernos por «significado» – em seguida falaremos
mais detalhadamente dele), o vazio, o lugar, o tempo.
O «algo» (em grego ti, traduzido por Séneca com o
latino quid) tornava-se assim para eles o género supre-
mo, que englobava o ser (corpóreo) e o quase-ser dos
incorpóreos, aos quais cabia não já «serem», mas ape-
nas «subsistirem» quase de modo parasitário, depen-
dente e derivante do verdadeiro ser dos corpos. A área
da corporeidade era também quadripartida: corpóreo
podia ser um substrato, uma qualidade, uma disposi-
ção, ou uma disposição relativa. Por fim, a qualidade
era ulteriormente subdividida em qualidade própria,
ou comum:

314
As partições disciplinares de que se serve cada ex-
posição da filosofia estoica não devem fazer esquecer a
profunda unidade sistemática do conjunto. Ela deve-
-se fundamentalmente ao facto de o protagonista ser
sempre o mesmo, qualquer que seja a partição ou
ulterior subdivisão do sistema. Com efeito, é o logos
(princípio racional corpóreo também, como veremos)
que funda a verdade dos discursos de que se ocupa
a dialética e a realidade do mundo físico de que ele
é o fundamento constitutivo; e é sempre o logos que
inspira o comportamento moral do homem virtuoso,
que é tal precisamente porque é o correto intérprete da
racionalidade cósmica.
algo
incorpóreos corpos

lekton vazio lugar tempo

substrato qualidade disposição disposição relativa

qualidade comum qualidade própria

9. A DIALÉTICA ESTOICA

Um dos incorpóreos estoicos é pois o lekton que,


por comodidade expositiva, se pode traduzir pelo termo
moderno largamente em uso, «significado». Esta versão
pode de certa forma ser justificada recorrendo aos tex-
tos que atribuem aos estoicos a ideia de que as expres-
sões linguísticas implicam sempre a correlação de três

315
termos: o significante, quer dizer, as próprias palavras;
o lekton, que é a expressão linguística correspondente à
compreensão que nós temos das coisas ou dos factos; o
objeto ou o facto externo a nós ao qual se referem pre-
cisamente o significante e o lekton. Destes três termos
dois são corpóreos, o significante (porque as palavras
são ar posto em circulação pelos órgãos fonatórios) e
o objeto ou o facto externo; incorpóreo é o significa-
do. Um significado pode ser incompleto: por exemplo,
um verbo sem sujeito («anda»), ou então completo, ti-
picamente um verbo dotado do seu sujeito («Sócrates
anda»). Um significado completo pode aparecer em
proposições de tipo diverso: ordens, preces, exortações,
asserções; mas só destas últimas se pode dizer que são
verdadeiras ou falsas (como já estabelecera Aristóteles).
Segundo o tipo de sujeito que recebem, para os estoicos
as proposições assertivas podem ser definidas, quando o
sujeito é um indivíduo que pode ser diretamente indi-
cado como presente («este aqui anda»); ou indefinidas
(«alguém anda»); ou então médias («Sócrates anda»).
Pode espantar que este último tipo de proposições seja
considerado de certo modo menos definido do que o
primeiro: provavelmente a razão é que o primeiro tipo
corresponde exatamente àquela experiência sensível di-
reta e evidente que é o fundamento do conhecimento
(«a perceção apreensiva», de que falaremos em seguida).
De facto, eu posso dizer que Sócrates anda apenas por-
que o soube por outrem.
Merece ser notado que a análise das proposições
singulares, completas e incompletas, levou os estoicos
a desenvolverem também importantes observações e

316
teorias gramaticais. Uma proposição como «lamento»
não tem um sujeito claro e é também incompleta por-
que não diz o que lamento; considerações semelhan-
tes levaram os estoicos a reconhecer os vários casos da
declinação e a dar-lhes nomes de que ainda hoje nos
servimos (nominativo, acusativo, etc.).
Como se vê pelos exemplos que acabámos de dar,
as proposições de que se ocupa a dialética estoica têm
por sujeito coisas ou estados de facto singulares. Isto
é um efeito do privilégio concedido à corporeidade
como fundamento do ser: os universais aristotélicos,
as espécies e os géneros, não têm nenhum tipo de exis-
tência e de reconhecimento na filosofia estoica. Uma
consequência é que também as definições já não po-
dem assumir a forma típica que teriam para Aristóte-
les, por exemplo, dizendo que «o homem é um animal
racional mortal», mas devem ser formuladas de modo
a receber um sujeito singular: «se algo é um homem, é
um animal racional mortal».
Uma consequência ulterior será que as argumen-
tações e as demonstrações dos estoicos deixarão de
obedecer às regras e às exigências aristotélicas, que se
preocupam com as relações de inclusão ou de exclusão
recíproca de termos correspondentes a classes mais ou
menos universais como os géneros e as espécies, mas
ocupar-se-ão da conexão de factos, estados de coisas
ou objetos singulares (esta é uma das razões pelas quais
a lógica estoica pode parecer mais moderna e mais fe-
cunda do que a aristotélica). O exemplo apresentado
para a definição mostra uma das formas fundamentais
da argumentação demonstrativa estoica, a proposi-

317
ção condicional. Além deste tipo de proposição, no
estoicismo têm particular importância aquelas que
conjugam ou separam factos, estados de facto ou coi-
sas, e com base nestas distinções, os estoicos reconhe-
cem cinco formas silogísticas capitais, chamadas não
apodíticas (indemonstráveis), às quais todas as outras
formas de raciocínio podem ser reconduzidas e cuja
verdade não pode ser demonstrada, mas é por si mes-
ma evidente. Dois dos não apodíticos têm forma con-
dicional, um resulta da negação de uma conjugação de
proposições, dois são disjunções (convém ainda notar
que, tal como Aristóteles, os estoicos usam símbolos
na formulação dos seus silogismos, símbolos que, po-
rém, contrariamente a Aristóteles, não indicam classes
lógicas, mas proposições singulares; além do mais, não
são letras do alfabeto, mas numerais ordinais):

1. Se o primeiro, então o segundo; mas o pri-


meiro, logo o segundo.
(ex.: se é dia, há luz; mas é dia; logo há luz)
2. Se o primeiro, então o segundo; mas não
o segundo, logo não o primeiro.
(ex.: se é dia, há luz; mas não há luz; logo
não é dia)
3. Não: o primeiro e o segundo; mas o pri-
meiro; logo não o segundo.
(ex.: não: é dia e é noite; mas é dia; logo
não é noite)
4. Ou o primeiro, ou o segundo; mas o pri-
meiro; logo não o segundo.
(ex.: ou é dia, ou é noite; mas é dia; logo
não é noite)
5. Ou o primeiro ou o segundo; mas não o

318
segundo; então o primeiro.
(ex.: ou é dia ou é noite; mas não é noite;
logo é dia)

Para os estoicos, de todos estes esquemas de racio-


cínio, aquele que partia da proposição condicional
tinha uma importância específica, pois sobre ela se
fundava a demonstração precisando depois estabele-
cer as suas condições de verdade. Segundo uma fonte
atendível (Diog. Laert., VII, 73) o verdadeiro condi-
cional é aquele em que a proposição contraditória da
consequente é incompatível com a proposição antece-
dente: por exemplo, é verdade o silogismo que diz «se
é dia, há luz» porque a contraditória da consequente
«não há luz» é incompatível com a hipótese «é dia».
Mas seria falso o condicional que dissesse «se é dia,
Díon passeia» porque a proposição contraditória da
consequente («Díon não passeia») não é de todo in-
compatível com a hipótese.
Com base em que fundamentos posso dizer, en-
tão, que cada lekton completo (por exemplo, «é dia»,
«Díon passeia») de que me sirvo para compor os meus
raciocínios é verdade? Por outras palavras, o que ga-
rante que haja correspondência entre o significado das
minhas asserções e o estado de coisas a que se refere?
Os estoicos respondiam a esta pergunta com o que era
para eles o critério de verdade, a perceção cataléptica,
ou «apreensiva» (phantasia kataleptike), que era a base
de qualquer conhecimento. É precisamente desta que
convém agora tratar.

319
10. A DIALÉTICA: A TEORIA DO
CONHECIMENTO

Uma perceção (phantasia) chega à alma, ou mais


precisamente à parte que os estoicos chamavam de
«dirigente» (hegemonikon), vinda dos órgãos sensoriais,
em que os objetos ou os factos externos provocam uma
impressão que depois é transmitida à parte dirigente
(Crisipo teria substituído a impressão, postulada por
Zenão como sendo um autêntico sigilo na substância
também corpórea da alma, por alteração, explicando
que as representações produzem uma mudança quali-
tativa no tecido corpóreo da alma). Ora, segundo um
célebre exemplo seu, Zenão comparava a perceção que
se imprime na alma com a palma aberta da mão. De-
pois, contraindo um pouco os dedos, dizia que aqui-
lo era o acordo (synkatathesis) concedido à perceção: o
momento – ou a função – em que a alma reconhecia a
perceção como verdadeira, isto é, como corresponden-
te ao objeto externo e, por conseguinte, aceitável. Em
seguida fechava o punho e comparava esta ação com a
compreensão (katalepsis), como se estivesse a imitar o
ato de «agarrar» o objeto por parte da mente (este é, pre-
cisamente, o significado literal do termo grego, tradu-
zido por Cícero para o latim por comprehensio, de onde
a nossa «compreensão»). Por fim, apertando o punho
fechado com a outra mão, dizia que esta era a ciência,
um conhecimento fixo sem ser suscetível de ser agitado
por mais nada. Muitos são os problemas postos por esta
explicação do processo cognitivo.
Em primeiro lugar, pode-se discutir se os diversos
momentos distinguidos pelos gestos de Zenão confi-

320
guravam uma verdadeira escansão temporal de estádios
sucessivos do processo cognitivo, ou se simplesmente
pretendiam aludir a aspetos ou funções distintas dele.
É claro que a posição da ciência no final do exemplo
argumenta fortemente a favor da escansão cronológi-
ca, que parece mostrar-se igualmente evidente tam-
bém pela sucessão perceção-assentimento. Mas, em tal
caso, era fácil objetar a Zenão, como parece ter feito
de imediato o académico Arcesilau, que se estaria a
postular que a alma dava o seu acordo a algo que ain-
da não tinha sido compreendido. Mostra-se plausível
pelas nossas fontes que, passado algum tempo, Crisipo
se tenha defendido da objeção académica com a re-
comendação de que se prestasse todo o cuidado para
que o acordo acontecesse de forma simultânea à com-
preensão. Mas uma recomendação, por si mesma, não
diz ainda como se deveria proceder para que o acordo
não fosse apressado e não antecedesse a compreensão
(o resultado de um acordo apressado ou fraco seriam,
por exemplo, a opinião ou o erro, alheios à ciência
e, por conseguinte, ao modelo do sábio). No final, a
questão conflui na outra, que constituiu o maior obje-
to de controvérsia entre estoicos e académicos e, tam-
bém, um dos momentos mais elevados e interessantes
do debate entre as escolas helenistas: precisamente de
que modo é possível reconhecer que uma perceção
merece assentimento e, por conseguinte, se podem
verdadeiramente existir perceções apreensivas como
pretendiam os estoicos (isto é, aquelas que justamente
receberam o assentimento)?
Em segundo lugar, é evidente que, se for entendido
em sentido rigidamente cronológico, o exemplo dos

321
gestos de Zenão é muito incompleto. De facto, é óbvio
que da compreensão obtida de um objeto ou de um facto
uma primeira vez, não se passará direta e imediatamen-
te à «ciência». Na verdade, sabemos que Zenão e os seus
discípulos admitiam um procedimento de elaboração
dos conhecimentos complicado, que das perceções apre-
ensivas repetidas e guardadas na memória teria passado,
através da elaboração dos conceitos, à experiência e, por
fim, à ciência. Este desenvolvimento corresponde larga-
mente àquele já descrito por Aristóteles. Mas os estoicos
concederam maior atenção aos mecanismos de formação
dos conceitos admitindo que das noções que se forma-
vam com base nas repetidas compreensões guardadas na
memória se elaborariam ulteriores noções mediante me-
canismos mentais combinatórios como a semelhança (por
exemplo, a noção de Sócrates a partir do seu retrato), de
analogia (por acréscimo ou diminuição: por exemplo, res-
petivamente a noção de Ciclope e a de pigmeu), de trans-
posição (por exemplo, a noção de criaturas com um olho
no peito), de composição (o centauro) e de contrariedade
(a morte a partir da vida).
Em terceiro lugar, a distinção entre perceção apreensi-
va e ciência mostra o caráter, por assim dizer, intermédio
e ambíguo do conhecimento fornecido por tais represen-
tações: o mesmo caráter que é confirmado pela distinção
estoica entre verdade e verdadeiro. A perceção apreensiva
é, com efeito, ao alcance de qualquer homem normal e
normalmente dotado de sentidos eficientes e de inteligên-
cia, mesmo que este seja um sábio ou um estulto. Até os
estultos podem ter perceções apreensivas e, fundando-se
nelas, podem proferir proposições verdadeiras. Mas junto

322
destas proposições os estultos, como tais, inevitavelmente
pensam e proferem também proposições falsas, de modo
que a verdade é posse apenas do sábio, isto é, da sua ciên-
cia, constituída por um conjunto perfeitamente coerente
de todas as proposições verdadeiras que lhe são necessá-
rias (no sentido que veremos melhor ao falarmos da ética)
para ser precisamente um sábio.
Fica, todavia, ainda por enfrentar a questão de fundo:
existem realmente perceções apreensivas, e como pode-
riam ser reconhecidas como tais? Os académicos negaram
sempre que os estoicos tivessem encontrado uma respos-
ta convincente. Zenão definira a perceção compreensiva
como a que «provém de algo real e que é reproduzida e
impressa conformemente ao que é real, dado que não po-
deria provir do que não é realmente». Desde os tempos
de Arcesilau os académicos contestaram a última parte da
definição objetando os casos de (segundo eles) absoluta
indiscernibilidade das representações parecidas, como as
que poderiam provir de dois gémeos, ou de dois ovos:
como reconhecer com segurança um gémeo de outro, o
ovo posto por uma certa galinha de um posto por outra?
Levando o raciocínio ao limite extremo mediante o ar-
gumento do «sorites» (do qual já se falou e de que se vol-
tará a falar a propósito da Academia cética, depois, no §
22) eles mostraram que qualquer perceção podia ser vista
como uma de tantas possíveis numa série de casos mais ou
menos semelhantes, entre os quais seria depois impossível
indicar a característica que distinguia um caso do outro.
A resposta dos estoicos é de grande interesse. Tal-
vez eles nunca tivessem conseguido resolver o proble-
ma do «sorites» (as atestações a propósito são dececio-

323
nantes ou de dúbia interpretação); mas na sua ontologia
dispunham de uma categoria importante, isto é, a da
«qualidade própria», que constituía para eles o patrimó-
nio peculiar de cada indivíduo, isto porque em linha de
máxima um caso individual não podia deixar de ser di-
verso e, por conseguinte, distinto de outro caso. Certa-
mente os académicos não aceitariam esta categoria; mas
não podiam facilmente contestar que o exercício repe-
tido, o treino e a experiência permitissem reconhecer,
distinguindo-as entre si, também as perceções muito
parecidas: os familiares normalmente distinguem mui-
to bem os irmãos gémeos e os criadores de galinhas são
capazes de dizer de que galinha provém determinado
ovo. Os estoicos podiam assim asserir com uma certa
confiança que existem realmente perceções dotadas de
uma evidência e de uma clareza tais, que garantem de
si mesmas e da sua correspondência com o objeto ou
com os factos. Estavam também dispostos a admitir
– mas como casos excecionais – que pudessem dar-se
condições em que é impossível discernir a verdade e a
fiabilidade de uma perceção: então, dizíamos, o sábio (o
modelo dos comportamentos) manteria em suspensão
o seu assentimento (que é precisamente a atitude que
os académicos, pelo contrário, pretendiam generalizar).
É difícil não dar razão aos estoicos, se nos
limitarmos ao caso das perceções provenientes da
sensação (aliás, caso a que se referia sempre a discussão
com os académicos). Ora, que, na maioria dos casos,
as sensações das pessoas normais produzam imagens e
perceções fiáveis pode ser demonstrado com o simples
exemplo da circulação nas estradas: se ela é geralmente

324
possível sem que tudo se transforme de imediato
num emaranhado de veículos imóveis e gravemente
danificados, é evidente que isso acontece porque os
condutores têm perceções e imagens fiéis da situação
externa e dão delas interpretações que são corretas, pelo
menos em geral. Mas, junto das perceções fundadas na
experiência sensível direta, os estoicos (como é razoável
e inevitável) reconheciam também a existência de
perceções apreensivas de origem puramente mental:
por exemplo, as da verdade dos axiomas lógicos, ou
de uma teoria. No plano dos conhecimentos não di-
retamente referíveis à experiência sensível (um plano
no qual, porém, nem sequer os seus adversários pa-
recem ter insistido adequadamente), é menos fácil
dizer que eles tenham ido verdadeiramente ao âmago
da questão.

11. OS PRINCÍPIOS, OS ELEMENTOS,


O MUNDO FÍSICO

As relações dos antigos acerca da teoria física dos


estoicos normalmente insistem em atribuir a estes fi-
lósofos a convicção de que existem dois princípios de
todas as coisas, ambos corpóreos: um ativo, que é cha-
mado de Deus ou logos (razão), e um passivo, a matéria,
por si mesma totalmente informe e sem qualquer qua-
lidade. A corporeidade necessária de ambos os princí-
pios advém da tese, já lembrada, de que existe apenas
o que pode agir ou padecer e tal pode ser somente o
corpóreo. Estas teses diferenciam profundamente a te-
oria estoica dos princípios da dos antecedentes filosóficos

325
nos quais ela deve ter-se inspirado, a oposição aristotélica
de forma e matéria e a platónica de princípio divino (o de-
miurgo) que age sobre um recetáculo (que, desde a Acade-
mia antiga, foi identificado com a matéria de Aristóteles).
Depois é preciso acrescentar que os dois princípios dos
estoicos não existem em lado nenhum como entidades
em ato ou de facto separadas: são distinguíveis apenas de
forma conceptual e devem ser distinguidas se se quiser dar
conta das mudanças e dos movimentos que se observam
no mundo, mas neste, em qualquer lugar seu e sempre,
a única coisa que se encontrará são corpos constituídos
por um substrato material completamente embebido pelo
princípio ativo divino. Ou melhor, tal é, antes de tudo, o
mundo na sua totalidade: o que implica que, apesar da
distinção conceptual dos dois princípios, o estoicismo é
definível como uma filosofia monista, pois reconduz a
origem de todas as coisas a uma única realidade que é a
união inseparável de razão divina e matéria; e também
implica que o estoicismo possa ser considerado uma for-
ma de panteísmo, visto que o princípio ativo e divino é
omnipresente na totalidade e em qualquer porção da ma-
téria, tanto que pode ser chamado também de «natureza»
e pode ser identificado com esta como sendo a causa que
produz, alimenta e mantém unidas todas as coisas. Só te-
mos de acrescentar que os estoicos distinguiam ainda um
mundo corpóreo divino, mas finito, e um universo infi-
nito, porque admitiam a subsistência do vazio incorpóreo
além dos confins do mundo (veremos em breve a razão
física que justifica esta ideia).
A constituição do mundo físico explica-se todavia
pela interação de Deus e matéria apenas a um nível

326
de extrema generalidade. Os corpos que nós homens
conhecemos, entre os quais vivemos e agimos são
certamente constituídos, em última análise, por dois
princípios, mas de facto resultam da composição em
diversas proporções dos quatro elementos tradicio-
nais de Empédocles em diante: terra, água, ar e fogo.
Ora, como se dá a existência destes quatro elementos
a partir da antítese originária Deus/matéria é facto que
os estoicos explicam de maneira mais fantasiosa que
empiricamente verificável. Num momento inicial da
história do mundo só existiria um elemento, o ígneo,
que representa assim a forma primeira e absolutamen-
te originária em que se realiza a compenetração recí-
proca dos dois princípios (a influência de Heraclito é
palpável na escolha do fogo como elemento originá-
rio); a diminuição de intensidade do fogo, passando
por um estado aeriforme, daria origem a humidade
por condensação, de onde, mediante ulterior conden-
sação, se depositaria a terra, enquanto que outra parte
da humidade, a mais rarefeita, evaporaria tornando-se
ar e em seguida novamente fogo (esta é a relação de
Diógenes Laércio, VII, 142). Dos quatro elementos
formados desta maneira, dois são ativos – o fogo e o
ar – enquanto que os outros dois são passivos: assim
reproduz-se a oposição funcional existente entre os
princípios também a nível dos elementos. Dos ele-
mentos passivos penetrados pelos ativos de várias ma-
neiras e proporção originar-se-iam as misturas que são
a base da constituição dos corpos compostos, isto é,
em suma, dos corpos naturais orgânicos e inorgâni-
cos. Não convém esquecer que a partir de Crisipo, e

327
talvez por influência de ideias provenientes da medici-
na (ou também por influência da ideia aristotélica de
«pneuma inato» como primeiro instrumento corpóreo
da alma), em vez do fogo, primeira manifestação da
atividade do princípio divino sobre o princípio mate-
rial, aparece precisamente o pneuma (à letra «sopro»)
concebido como uma mistura de fogo com ar: facto
que expôs Crisipo e os seus sucessores a objeção, por
darem como princípio originário algo que não tinha
a simplicidade requerida por um verdadeiro princípio,
já que implicava componentes mais elementares.
A distinção entre os elementos ativos e os passivos
e a conceção de pneuma, pensado como uma mistura
dos dois elementos ativos e por esse motivo presentes
em qualquer objeto físico, permitiu aos estoicos expli-
car com simplicidade os estados diversos de agregação
da matéria, as qualidades e a coesão dos corpos. A co-
esão devia-se ao equilíbrio, o tonos (tensão), entre um
movimento centrípeto típico do ar e um movimento
dirigido para o exterior típico do fogo. Consoante a
maior ou menor presença de um ou do outro nos cor-
pos se podiam distinguir os estados físicos da hexis (à
letra «hábito», a «condição que se tem»), própria dos
objetos inanimados como, por exemplo, as pedras, e
devida, parece, a uma maior presença do ar; depois os
da physis (natureza), típica das plantas; por fim, os da
psyche, a alma, na qual seria maior a presença do fogo
(o que nos diz que o próprio mundo, constituído pelo
pneuma que penetra em toda a matéria passiva, era
pensado como um grande ser vivo e animado). Às cor-
rentes do pneuma que percorrem os corpos deviam-

328
-se também as qualidades físicas deles, também elas
corpóreas.
Há um pressuposto latente por detrás destas teo-
rias. Se dois princípios, ambos corpóreos como o logos
e a matéria, podem penetrar um no outro de maneira
a originar um só elemento simples como o fogo, e se
onde houver matéria no mundo físico estiver presente
também o pneuma, isso significa que os estoicos ad-
mitiam que podia existir uma mistura entre os corpos
tal que em cada um dos casos que mencionámos um
deles encheria completamente o outro. De facto, este é
precisamente o caso previsto por eles, que tem o nome
de «mistura total» (di’ holon krasis) e distinto do da
fusão ou, como talvez disséssemos nós, da combinação
(synkysis), exemplificado com as componentes de uma
droga ou de um fármaco, que dão origem a uma nova
substância em que as componentes originárias deixam
de poder ser recuperadas (na mistura total, pelo con-
trário, segundo os estoicos seria possível distinguir e
recuperar os diversos corpos componentes). Um ter-
ceiro caso de composição da matéria era diverso, mas
mais facilmente compreensível: o da simples justapo-
sição, por exemplo, grãos de trigo misturados com ou-
tros de cevada. Nem todos os exemplos que os estoicos
pensavam poder deduzir da experiência com o fim de
provar a possibilidade da mistura total são evidentes
ou realmente defendíveis; talvez o caso mais plausível
seja o do ferro incandescente, que se prestava a ser in-
terpretado como a completa penetração dele por parte
do fogo. Em todo o caso, a teoria da mistura expôs-se
à objeção académica e peripatética de quebrar uma lei

329
física ao admitir que dois corpos pudessem ocupar o
mesmo lugar. Pode-se responder, defendendo parcial-
mente os estoicos, não só com o exemplo que acabá-
mos de citar, mas também com a sugestão que decerto
a alma ocupa o mesmo lugar que o corpo: e se também
ela é corpórea (como para os estoicos era), pode provar
a validade da teoria.

12. OS CICLOS CÓSMICOS, A DIVINDADE,


A PROVIDÊNCIA, O FADO

Falou-se do estado originário do universo como


sendo aquele em que existe apenas o princípio físico
sob a forma do fogo (que, como «fogo artífice que pro-
cede metodicamente quanto à geração», deve ser dis-
tinguido do elemento fogo que no nosso mundo tem
também efeitos destrutivos). Mas os estoicos não pen-
savam de maneira nenhuma que este estado originário
tivesse acontecido uma só vez na história do mundo,
que, assim que se constituíra, estaria destinado a du-
rar eternamente. Segundo os estoicos, que retomam
uma conceção que tinha precedentes no pensamento
grego (pelo menos na sua forma mais clara em Empé-
docles), o mundo atravessa uma ‘vida’ cíclica que vai
de um início nos termos já descritos a um fim que se
dará com uma grande «conflagração» (ekpyrosis), um
incêndio enorme que levará todas as coisas ao estado
originário do fogo primigénio: em seguida, a ‘vida’ da
cosmogonia retomará o seu percurso num novo ciclo,
destinado a repetir (mais ou menos) exatamente todas
as etapas de cada ciclo já concluído, e os ciclos suce-

330
der-se-ão um após outro até ao infinito. Do ponto de
vista puramente físico, pode-se observar de imediato
que agora é clara a razão pela qual os estoicos postu-
lam a subsistência do vazio além do mundo: deve ha-
ver algo, o vazio incorpóreo, dentro do qual o mundo
possa expandir-se no momento da sua explosão final.
Pelo contrário, não é de todo clara a razão pela
qual o fim de um ciclo cósmico deva concluir-se com
uma conflagração. Dos escassos e breves fragmentos
disponíveis parece-nos que podemos concluir que o
raciocínio estoico era o seguinte: que o fogo tem uma
tendência natural para a expansão, mas que para o fa-
zer deve poder dispor de algo que o alimente, de um
combustível (até o sol, supunham, se alimentava das
exalações provenientes da terra), Quando o sol e os
astros tiverem consumido todo o material combustí-
vel à disposição no mundo, então tudo será fogo, ou
seja, ter-se-á dado a conflagração. A repetição sempre
idêntica dos ciclos pode depois ser explicada com a
tese, óbvia para o estoico, de que o fogo originário é
igualmente Deus, ao qual só se pode atribuir a pro-
dução do melhor dos mundos possíveis; se a um ciclo
faltasse algo relativamente a outro, isto implicaria que
um dos mundos não era o melhor possível. Todavia,
convém observar que alguns estoicos admitiram que
nem todos os particulares de um ciclo repetiam exa-
tamente todos os particulares dos ciclos precedentes:
teria existido em cada ciclo um Sócrates acusado por
Ânito e Meleto e condenado pelos atenienses, mas Só-
crates teria podido também renascer com algumas ca-
racterísticas físicas diferentes, por exemplo, sardas no

331
rosto. A repetição idêntica dos ciclos parece todavia ter
sido a convicção que prevaleceu na escola e também a
mais coerente.
Portanto, os estoicos admitiam a existência da di-
vindade e apresentavam algumas provas para a existên-
cia dos deuses, por exemplo, deduzindo-a da ordem do
universo, visível sobretudo nos movimentos dos cor-
pos celestes, ou repropondo o argumento que depois
foi chamado de e gradibus entium (em que, onde se
pode distinguir entre algo melhor e pior, como acon-
tece nas coisas existentes, deve existir também o ótimo
e este será Deus). E se, em rigor, exaltavam (chaman-
do-o de Zeus) o único deus artífice do mundo, como
acontece claramente com Cleantes, admitiam tam-
bém em certo sentido todo o panteão das divindades
tradicionais interpretando-as igualmente como outras
manifestações do único princípio divino: deste modo,
Zeus mostrava a sua característica divina por ser do-
ador da vida (em grego, zen), Hera seria o ar (aer),
Atena o éter (aither), isto é, o fogo na sua forma mais
pura do qual se constituem os astros, Hades, o deus
dos infernos, era o ar obscuro (aides, o invisível), etc.
A omnipresença do divino no mundo que resultava de
uma conceção semelhante era também acrescida pelo
facto de os estoicos explicarem o desenrolar de cada
ciclo cósmico como o desenvolvimento das «razões
seminais» das coisas (os logoi spermatikoi, princípios
geradores) originariamente contidas no fogo artífice
primigénio idêntico à mente de Zeus.
De tudo isto se deduzia que toda a história do
mundo fosse, desde o início, disposta da melhor ma-

332
neira pela inteligência divina: Zeus e o fogo originá-
rio eram portanto identificados com a própria provi-
dência e a ordem inflexível segundo a qual todos os
acontecimentos deviam suceder-se em cada ciclo era
coerentemente concebida como uma conexão causal
necessária, o fado, habitualmente definido pelos es-
toicos como «conexão inviolável das causas». Em boa
verdade, a série das identificações que resulta da con-
ceção que ilustrámos (razão, isto é, Deus, natureza,
providência, fado, necessidade) deve ter colocado pro-
blemas a alguns estoicos, se é verdade que Cleantes,
no seu hino, se esforçou por tirar do plano originário
divino o mal moral que as más pessoas faziam fora
dos desígnios de Zeus: mas ele acrescenta logo que até
estes malefícios são depois absorvidos num plano ra-
cional superior. Um testemunho muito tardio diz-nos
que, enquanto que Cleantes teria distinguido a provi-
dência do fado, Crisipo teria identificado plenamente
os dois. De resto, esta parece ter sido a convicção do-
minante na escola.
A divergência entre Cleantes e Crisipo que aca-
bámos de lembrar mostra que inevitavelmente devia
haver problemas. Mesmo Crisipo, a quem provavel-
mente se deve atribuir a mais completa e pensada ela-
boração da conceção determinista própria da escola,
devia enfrentar o problema da presença do mal no
mundo. Ao que parece, ele propôs um leque de expli-
cações bastante diversas, das quais as mais importantes
são a sugestão (de inspiração vagamente heraclitiana e
platónica em conjunto) de que os contrários não po-
deriam existir um sem o outro e que, por conseguinte,

333
a própria existência do bem, indubitável, requereria a
existência do mal (não haveria justiça sem injustiça,
sabedoria sem estultícia, etc.) e a sugestão de que aqui-
lo que nos parece serem maldades – ou até os sofri-
mentos que nos parece serem injustos –, pelo contrá-
rio, de um ponto de vista superior, o da racionalidade
cósmica, teriam uma função positiva. Com estas ideias
Crisipo podia dar conta do mal moral e, em parte, do
mal físico; no caso do mal físico recorria à hipótese de
que na ação providencial da natureza existiam efeitos
colaterais indesejados mas inevitáveis concomitantes
com os resultados positivos igualmente obtidos. Nem
faltavam outras tentativas de explicação para um pro-
blema que é espinhoso não só para o estoicismo, como
também para qualquer conceção filosófica ou religiosa
que assuma a existência de um plano providencial ou
de uma estrutura finalística da realidade.
Outro problema inevitável para uma conceção
rigorosamente determinista devia ser o do espaço
deixado à iniciativa e à liberdade do homem. A uma
objeção relativamente fácil, que dizia que seria inú-
til o homem ter qualquer iniciativa, porque, se, por
exemplo, ficasse doente, em todo o caso seria inútil
chamar o médico (porque seria fado que morresse – e
de nada lhe teria servido chamar o médico – ou que
se salvasse – e nesse caso ter-se-ia salvado sem a in-
tervenção do médico), Crisipo respondia segundo um
esquema de raciocínio que decerto já se podia atribuir
a Zenão: se é fado que eu me restabeleça é também
fado que consiga fazê-lo tendo consultado o médico e
tendo seguido as suas prescrições – tudo isto é igual-

334
mente «fado» em conjunto. Porém, precisamente com
este raciocínio a consulta do médico aparece mais uma
vez inserida na trama necessária das causas: que espaço
realmente ficaria à iniciativa autónoma do homem? A
esta nova objeção sabemos que Crisipo respondia com
uma comparação e com uma distinção das causas:
tal como um cilindro e um cone postos na borda de
um prato inclinado têm necessidade de um empurrão
para começar a rolar, mas depois de o ter recebido,
cada sólido se mexe no modo que lhe é exclusivamen-
te próprio (o cilindro rolará em linha reta até ao fim
do plano inclinado, o cone descreverá, pelo contrário,
arcos em círculo); da mesma forma o ser humano tem
necessidade de um estímulo exterior, de uma causa
antecedente que o faça agir, que é a perceção de um
objeto que se quer obter ou do qual se quer fugir; mas,
assim que recebe a perceção, cada agente responderá
ao estímulo no modo que lhe é tipicamente próprio
da sua natureza individual, que é a «causa perfeita e
principal» da resposta – em suma, será ele, e não sim-
plesmente o fado, a responder ao estímulo.
Podem dar-se duas leituras muito diferentes des-
ta argumentação. Uma primeira explicação funda-se
também sobre outra afirmação da fonte que refere o
raciocínio, Cícero, segundo o qual os estoicos reco-
nheciam que só na série das causas anteriores havia a
trama das causas do fado; a fonte atribui a Crisipo a
intenção de salvar a liberdade e a autonomia do agir
humano isentando-o da necessidade do fado, algo
possível pois se atribui ao homem – e não ao fado – a
causalidade «perfeita e principal» das ações. Mas uma

335
interpretação deste tipo implica que Crisipo teria obti-
do este resultado criando uma malha vistosa no tecido
da determinação racional de toda a realidade por parte
do princípio divino, ao qual se subtrairia todo o cam-
po das ações humanas. A outra explicação, que insiste
mais razoavelmente na comparação do cone com o ci-
lindro, faz notar que a resposta dos agentes humanos
ao estímulo fornecido pela causa anterior não é menos
obrigada do que a resposta de cada um dos sólidos ao
impulso do movimento proveniente do exterior: cada
agente responderá à perceção externa no modo que é
rigidamente conforme à sua natureza, o sábio diversa-
mente do estulto, mas cada um como sendo estulto da
sua própria estultícia que é individualmente diferente
da de outros estultos. Por outras palavras, as respostas
para um mesmo estímulo serão extremamente diferen-
ciadas segundo a natureza de cada sujeito; mas em todo
o caso teremos a resposta que para aquela natureza é
obrigatória. Será, contudo, uma resposta obrigatória
para aquele sujeito e não para um outro, ou em geral
devido ao fado. Todavia, cada resposta fará sempre par-
te da trama conjunta das causas sem sermos, com isso,
obrigados a acusar Cícero de ter interpretado mal Cri-
sipo. De facto, se nos perguntarmos por que razão uma
natureza individual responderá de maneira diversa de
outra, vemos facilmente que cada natureza individual,
mesmo que funcione concretamente como causa per-
feita e principal, pode, por sua vez, ser inserida na série
das causas anteriores. Com efeito, a natureza individu-
al, segundo a qual cada agente responde aos estímulos
externos, pode ser reconduzida, nas análises dos estoi-

336
cos, aos dotes inatos da alma e aos hábitos adquiridos
por meio da educação (ou por ausência dela), isto é,
a tantas outras causas anteriores. Por outras palavras,
a intenção de Crisipo seria não afirmar uma pretensa
«liberdade do homem» relativamente ao fado (uma
conceção de que não possuímos nenhum vestígio na
literatura antiga e que arruinaria a coerência da po-
sição estoica), mas manter um espaço e um sentido
autónomos nas ações humanas, ainda que dentro de
uma teoria rigorosamente determinista.
Pelo contrário, não se apresenta problemática a
conceção que os estoicos tiveram do caso e da fortuna.
A definição que os estoicos deram deles – em boa ver-
dade, já pré-existente ao estoicismo e conhecida por
Aristóteles –, como se fossem uma «causa obscura para
o raciocínio humano», implica que na realidade não
há nada de objetivamente casual: porque tudo o que
acontece tem causas precisas que o tornam necessário.
Todavia, a ignorância humana quanto a grande parte
dos nexos causais que entreligam a realidade, faz com
que nos sintamos autorizados a falar de eventos ca-
suais: tais nos parecem, precisamente, aqueles de que
não chegamos a conhecer as causas. Algo de análo-
go parece ter sido dito também acerca do conceito da
possibilidade (mas, na verdade, esta é menos clara e
muito discutida). De facto, a única interpretação do
possível que se mostra coerente com o determinis-
mo da conceção geral estoica é a que chamamos de
«epistémica»: possível parece-nos tudo aquilo do qual
não conhecemos as causas que o tornam necessário ou
que, pelo contrário, impedem a sua realização.

337
13. A ALMA

Nas páginas anteriores mencionámos várias vezes


as funções psíquicas como a perceção e o assentimen-
to. E como maneira de introduzir a exposição da ética,
é necessário explicitar qual era a conceção que os estoi-
cos tinham de alma.
Tal como aparece pela distinção nos graus de agre-
gação e de tensão do pneuma entre a «natureza» das
plantas e a alma dos animais, ao contrário de Aristó-
teles e até do Platão do Timeu, os estoicos não aceita-
vam a existência de uma alma nos vegetais. Contudo,
admitiam que existissem também nos seres dotados de
alma – os animais irracionais e os seres humanos – pro-
cessos de tipo puramente vegetativo, provavelmente
aqueles que são típicos do metabolismo. Distinguiam
na alma (dos animais e do homem) oito «partes»: os
cinco sentidos, a faculdade da geração, a da linguagem
(de que os animais também são dotados – e, por vezes,
de forma articulada) e, por fim e sobretudo, a parte
que eles chamavam de «dirigente» (hegemonikon), par-
te que nos seres humanos podia facilmente coincidir
com a mente (nous) ou com a racionalidade (logismos).
A relação das outras sete partes com a dirigente era
explicada com imagens que parecem querer acentuar
fortemente a unidade funcional da alma no seu con-
junto, além da distinção das partes: a alma era com-
parada com o polvo, onde a cabeça do molusco repre-
sentava o hegemonikon e os tentáculos as outras sete
partes; ou então era comparada com uma teia cuja ara-
nha se encontrava no centro (o hegemonikon), pronta

338
a apreender a presença de uma presa enredada entre
os seus fios através dos movimentos destes (as outras
partes). Fora da metáfora e do ponto de vista físico,
a alma era concebida como um núcleo pneumático
central, situado no coração, de onde partiam corren-
tes de pneuma que chegavam aos órgãos periféricos da
linguagem, da geração e dos diversos sentidos. Apesar
do erro cometido por desconhecer a função do cérebro
(conhecida por Platão e pela medicina contemporâ-
nea), a psicologia unitária dos estoicos representa um
progresso notável em relação à dispersão das funções
psíquicas admitida por Platão com a sua tripartição, e
também em relação a Aristóteles, do qual se deixa de
repropor a oposição obscura e problemática entre o
intelecto imortal e a alma como forma do corpo.
Na parte dirigente da alma humana os estoicos dis-
tinguiam ulteriormente quatro poderes ou faculdades
(dynameis): a perceção, o impulso, o assentimento e a
razão; esta, todavia, não podia ser realmente uma fa-
culdade distinta das outras três, e de certa forma coin-
cidia com elas ou englobava-as todas em si mesma,
como é evidente sobretudo no caso do assentimento,
que é uma função típica da racionalidade (de facto, é
a esta que cabe avaliar e aceitar como verdadeira uma
perceção; e o impulso acompanhado pelo assentimen-
to e que conduz à ação está, por sua vez, penetrado
profundamente de racionalidade). Menos claro é o
caso dos animais, que não certamente possuem a ra-
zão, mas a quem os estoicos atribuíam igualmente per-
ceção e impulso: não é seguro que lhes fosse atribuída
também uma forma qualquer de assentimento.

339
Constituída pelo pneuma na sua forma rarefeita e in-
candescente, a alma, segundo os estoicos, era corpórea e,
por conseguinte, mortal também; mas a dissolução não se
daria ao mesmo tempo para todas as almas humanas: em
função da sua maior tensão coesiva, as almas dos homens
virtuosos sobreviveriam até à conflagração, a dos estultos
dissolver-se-iam algum tempo depois da separação do
corpo (enquanto que as almas dos animais se dissolvem
imediatamente com a morte do organismo físico). Esta
conceção mostra bem uma das características peculiares
do estoicismo, quer dizer, a íntima implicação das doutri-
nas éticas, lógicas e físicas. A distinção entre estultos e sá-
bios tem, antes de mais, um valor moral e é precisamente
no âmbito da moral que falaremos dela mais pormenori-
zadamente; mas tem um sólido fundamento físico, como
se vê sobretudo pelas considerações tecidas a propósito da
sobrevivência das almas. De facto, se as almas dos virtu-
osos sobrevivem por mais tempo à separação do corpo, é
porque elas estão dotadas (graças à posse e ao exercício da
virtude) de uma maior tensão e coesão em relação às dos
estultos. Mas é também verdade, por fim, que esta maior
coesão corresponde a uma maior (aliás, a uma perfeita)
coerência lógica de todas as noções que fazem parte da
alma do sábio; com efeito, nos estultos há sempre confu-
são e incoerência lógica, em maior ou menor grau.

14. A ÉTICA ESTOICA: OS FUNDAMENTOS,


AS NOÇÕES DE BEM E DE FIM

A ética estoica pode ser vista como a expressão


mais completa e explícita de um naturalismo que era

340
latente há muito tempo na moral grega, dos Sofistas
a Aristóteles. Mas ela é também a expressão mais ri-
gorosa do racionalismo moral também ele profunda-
mente radicado na tradição filosófica que inicia com
Sócrates. Esta combinação de inspirações diversas não
deve parecer paradoxal: ela funcionou com o estoicis-
mo porque a sua ideia de natureza era perfeitamente
coincidente com a de razão – o princípio cósmico or-
ganizador do mundo físico e humano, como se viu,
era para os estoicos o conjunto das duas coisas.
De facto, a natureza dotou os animais e o homem
de uma função psíquica que se manifesta desde o início
da geração, isto é, o impulso (horme: como vimos antes,
é um dos poderes da parte dirigente da alma). Desde
então este impulso, nos animais e no homem, deteta
de imediato o seu objetivo, que é o da autoconservação
do ser animado na sua integridade física e psíquica.
Com esta afirmação os estoicos muito provavelmente
respondiam à pretensão de Epicuro de indicar o pra-
zer como objeto imediato de qualquer aspiração do ser
vivo; eles exprimiam a sua tese mediante um vocábulo
técnico que é muito difícil de reproduzir nas línguas
modernas, isto é, falavam de uma oikeiosis, ou então,
com a voz verbal da mesma raiz, de oikeiousthai, ter-
mos que se poderia tentar traduzir dizendo que a na-
tureza faz com que assim que vem à luz o ser animado
sente o impulso de «apropriar-se (de si mesmo) como
se fosse uma coisa desejada» (nas palavras gregas que
recordámos, que remontam à raiz do nome da casa, oi-
kos, o lar doméstico, são ínsitas a ideia de propriedade
e a de um laço afetivo com o objeto possuído).

341
Nos animais, esta primeira e original objetivação
do impulso nunca será superada; para o homem, pelo
contrário, a natureza previu um desenvolvimento físico
e psíquico que, com o passar dos anos (precisamente
entre o sétimo e o décimo quarto ano de vida), implica
a emergência da racionalidade, a função que o torna
absolutamente distinto em relação à animalidade. A
tendência originária de autoconservação torna-se assim,
pouco a pouco, um impulso para a salvaguarda do que
é especificamente humano: a função da razão. E visto
que a perfeição da racionalidade se faz pela realização
da virtude, eis que esta se torna o fim ao qual tendia
todo o desenvolvimento natural do indivíduo, torna-
-se o próprio bem e felicidade humanos. Obviamente,
chegar à ideia de que este é o bem humano não signifi-
ca realizá-lo (aliás, como veremos, segundo os estoicos,
pouquíssimos são capazes de alcançar a virtude); mas
implica todavia que naturalmente o homem normal,
usando o instrumento da racionalidade, chega a fazer
uma ideia de bem e de fim que deveria alcançar. Os
estoicos chegam por outra via ao mesmo resultado que
já fora enunciado por Sócrates e confirmado por Pla-
tão e Aristóteles: virtude, felicidade e bem coincidem.
Nos estoicos o primeiro passo a ser dado na estrada que
no final permite verificar esta equação – muito diversa-
mente do que acontece nos filósofos da tradição socrá-
tica anterior – parte de uma conceção da natureza e do
que é natural que não distingue de todo nem privilegia
o homem em relação a qualquer outro animal.
A definição do fim da vida humana que Zenão deu
encerra a conceção que resumimos numa fórmula efi-

342
caz: «viver coerentemente com a natureza». Na verda-
de, algumas fontes atribuíam esta formulação a Clean-
tes e asserem que Zenão se teria limitado a dizer «viver
coerentemente». Mas temos a certeza de que, mesmo
sendo verdade que esta, mais breve, era a definição de
Zenão, todavia o significado que ele devia atribuir-lhe
não podia ser diferente daquele que Cleantes teria de-
pois tornado explícito. A este se atém também funda-
mentalmente Crísipo, ao definir o fim como «viver se-
gundo a experiência (ou então, segundo outras fontes:
a ciência) das coisas que acontecem por natureza». Os
sucessores de Crísipo, pelo menos em aparência, ino-
varam profundamente: Diógenes de Babilónia disse
que o fim é «raciocinar bem quanto à escolha e recusa
das coisas segundo natureza»; Antípatro de Tarso usou
novas fórmulas, uma das quais dizia «fazer tudo o que
está em seu poder, constante e invariavelmente para
obter as principais coisas segundo natureza». Prova-
velmente cada um destes mestres não queria afastar-se
do espírito dos três primeiros escolarcas; mas deviam
também ter em conta as objeções de peso que contra
Zenão, Cleantes e Crisipo os académicos Arcesilau
(contra os primeiros dois) e Carnéades (contra o ter-
ceiro) tinham apresentado. O âmago destas objeções
era que, na sua explicação de fim, que partia do impul-
so originário de autoconservação, os estoicos criavam
uma fratura incoerente quanto ao primeiro estado, em
que o impulso, virado para a conservação física e psí-
quica do organismo, previa apenas a busca dos objetos
externos indispensáveis à existência (comida, bebida,
abrigo: são as coisas «segundo natureza» das fórmulas

343
de Diógenes e Antípatro), e o estado conclusivo, em
que as coisas segundo natureza estavam como que es-
quecidas e se falava apenas de razão e de virtude.
Pode-se discutir se as definições de Diógenes e de
Antípatro implicam realmente uma traição da tese es-
tabelecida pelos seus mestres; certo é que os dois es-
colarcas sucessivos não pretendiam abandonar o sen-
tido implícito da doutrina da oikeiosis que lhes fora
transmitida, quer dizer, a absoluta incomparabilidade
do valor da virtude com o dos objetos primeiros do
impulso e em geral com o valor daqueles recursos ma-
teriais que Aristóteles chamara «bens externos». Para
todos os estoicos permanece sempre firme a distinção
estabelecida por Zenão de que o único bem é a virtu-
de, o único mal é o vício e todas as outras coisas quer
sejam virtudes ou vícios são moralmente «indiferen-
tes»: tais, a saúde e a doença, a pobreza e a riqueza,
a beleza física e a fealdade, até a vida e a morte. Ob-
viamente estes objetos, apesar de não terem nenhum
valor moral, não eram todavia indiferentes do ponto
de vista da práxis: qualquer pessoa, no agir quotidia-
no, acha-se constantemente na situação de ter de es-
colher uns deles em detrimento de outros. Fazendo
referência ao impulso fundamental de conservação,
Zenão estabeleceu portanto uma distinção também
entre os indiferentes, isto é, ao definir como «prefe-
ríveis» aqueles para os quais se virava naturalmente o
impulso, «não preferíveis» aqueles dos quais o impulso
se afastaria, e ao admitir também razoavelmente que
existissem objetos que não fossem preferíveis ou prefe-
ríveis de todo, como ter na cabeça um número par ou

344
ímpar de cabelos. A sua distinção serviu de ponto de
fuga para aquela que foi a mais notável heresia mani-
festada no estoicismo antigo: indo de certo modo na
direção oposta à que depois seria tomada por Dióge-
nes e Antípatro, um dos discípulos diretos de Zenão,
Aríston de Quíos, rechaçou qualquer distinção entre
os indiferentes e colocou no mesmo plano de absoluta
indiscernibilidade as três classes que Zenão pretendera
identificar, acabando assim por recusar o próprio con-
ceito de ‘preferibilidade’.

15. A VIRTUDE E O SÁBIO

No estoicismo a distinção entre virtude e vício


configura-se como uma oposição não-mediável entre
o bem e o mal; o que não é virtude é sem sombra de
dúvidas vício e portanto não se pode falar de pessoas
mais ou menos virtuosas: mas, se não são virtuosas,
são indubitavelmente viciosas, se forem virtuosas,
serão também perfeitamente tais e no caso de existi-
rem muitas virtudes, elas tê-las-ão todas. De facto, a
doutrina geral da escola parece ter sido que todas as
virtudes tinham um fundamento comum que era, so-
craticamente, o saber. Este diferenciar-se-ia segundo
os seus campos de aplicação: seria sabedoria como ci-
ência do que se devia fazer, temperança como ciência
da regulação dos impulsos, coragem como ciência do
que é preciso enfrentar, justiça como ciência do que
cabe a cada um. Cada virtude, como ciência, apoiava-
-se num conjunto de teoremas (princípios teóricos e
doutrinais) tipicamente seus; mas cada virtude, para

345
ser tal, devia possuir, subordinadamente, também
os teoremas de todas as outras. Por isso, mantinha-
-se verdadeiro para os estoicos, tal como para Aris-
tóteles, que quem tinha a virtude da sabedoria tinha
também todas as outras. Mas a sabedoria estoica era
muito diversa pelos seus conteúdos da aristotélica: o
saber que dava substância à virtude dos estoicos era
decerto prático também, mas descendia de uma rigo-
rosa capacidade lógica e de um perfeito conhecimento
da estrutura geral da realidade – por outras palavras,
abandonara-se a distinção aristotélica entre sabedoria
prática e sapiência teórica. Como se vê, fundamental-
mente o estoicismo conservou o esquema das quatro
virtudes da República de Platão; mas sabemos que Cri-
sipo, com a sua típica inclinação para as classificações
lógicas, submeteu a cada uma das quatro principais
uma longa série de virtudes subordinadas.
Uma consequência aparentemente paradoxal da
oposição não-mediável virtude-vício é que (em certo
sentido) não há, segundo os estoicos, um progresso
para a virtude: quem se torna virtuoso (isto é, sábio,
pois este é o nome que tipicamente se dava a quem
possuía a virtude e, por conseguinte, todas as virtudes)
é tal instantaneamente: se até então era vicioso, a ma-
nifestação da virtude torna-o virtuoso imediatamen-
te. Podem-se compreender as razões deste paradoxo
refletindo sobre o aspeto lógico da virtude: dado que
ela pressupõe a posse coerente e completa de todos os
teoremas necessários à sabedoria, a ausência de um só
teorema compromete totalmente a coerência do con-
junto e faz da alma incoerente a alma de um vicioso.

346
Mas a manifestação daquele teorema que falta trans-
formará de uma só vez, com a instantaneidade e a ful-
guração de uma conclusão lógica alcançada, uma alma
incoerente (isto é, viciosa) numa alma coerente, ou
seja, virtuosa e sábia. E visto que a incoerência lógica
é sempre incoerência, seja um só ou muitos os erros e
as carências lógicas de que se sofre, pode-se compreen-
der também a motivação que justifica o outro célebre
paradoxo estoico, segundo o qual todos os erros e cul-
pas são equivalentes e todos os viciosos são igualmente
viciosos: estes são tais pois são todos incoerentes.
Com estas considerações muito se disse a propó-
sito da figura do sábio, o modelo em que se inspirava
quem vivia como estoico. Como intérprete perfeito da
racionalidade cósmica, o sábio faz bem tudo o que faz;
e pode fazê-lo bem porque em qualquer circunstância
sabe adequar infalivelmente a sua razão e as suas esco-
lhas àquilo que a razão universal requer dele. Significa
isto que o sábio estoico possui uma espécie de omnisci-
ência e, em especial, que é capaz de adivinhar o futuro
adequando-se assim à vontade divina? Absolutamente
não: os estoicos foram explícitos ao afirmarem que o
conhecimento da totalidade dos nexos causais que li-
gam o universo e a sua história pertence unicamente a
Deus. Portanto o sábio não é uma enciclopédia geral
das ciências, nem um adivinho infalível. Mas ele sabe
sempre tudo o que é necessário saber com o fim de
comportar-se retamente e de realizar assim uma plena
harmonia com a racionalidade cósmica: como isto é
possível explica-se perfeitamente por um texto de Cri-
sipo citado por Epicteto, onde se diz que «enquanto as

347
consequências lhe forem obscuras» (isto é, na condição
normal de qualquer homem, que não sabe adivinhar
as consequências futuras das suas escolhas) o sábio
«atém-se ao que é mais apto a dar-lhe as coisas segundo
natureza, porque assim quis deus que ele fosse». Quer
dizer: ignorando o que será, até o sábio, como todos
os homens, procura obter as vantagens da existência,
mas só o sábio o faz dessa forma, porque sabe bem
que o mecanismo do impulso de autoconservação foi
inserido nele pelo desígnio providencial da natureza
divina. Adequando-se a esse desígnio, ele adequa-se à
vontade de Zeus; mas, contínua Crisipo, «se soubesse
que agora lhe está destinado adoecer, mesmo a isso (à
doença) se dirigiria o seu impulso». Não sabendo qual
a vontade de Zeus, como qualquer outro homem, o
sábio escolherá o bem-estar em detrimento da miséria,
a saúde em detrimento da doença; contrariamente a
qualquer homem não sábio, porém, ele não desejará
obter vantagens (aos preferíveis) como se fossem ver-
dadeiros bens e não deplorará a sorte nem se sentirá
frustrado se o êxito das suas tentativas de obter uma
vantagem não for positivo. Aceitará sempre serena e
alegremente aquilo que o destino lhe tiver reservado,
mas nunca renunciará a realizar uma ação que corres-
ponda aos mecanismos do impulso: sem preocupar-se
com o resultado, que ele sabe não depender dele.
As considerações que acabámos de tecer a propó-
sito do sábio dizem uma coisa importante. O estoicis-
mo é certamente uma filosofia determinista, mas não é
uma forma refinada de fatalismo: nunca foi uma escola
de resignação ou de renúncia e nunca ensinou os seus

348
adeptos a recusa a combater pelas vantagens materiais.
Nos limites de uma competição honesta, o bom sábio
combate contra o resto da humanidade para obter as
vantagens materiais, às quais nunca atribui uma im-
portância superior ao esforço de racionalidade que ele
faz quando decide agir e como agir; é neste esforço,
não no seu resultado, que vê todo o significado moral
da sua ação.

16. AS FUNÇÕES PRÓPRIAS E O


CAMINHO PARA A VIRTUDE

A conceção do sábio põe-nos todavia face a outro


paradoxo: esta personagem admirável, norma e mo-
delo de qualquer comportamento moral, segundo os
estoicos, realmente nunca existiu, ou talvez, no máxi-
mo, como alguns deles admitiram, houve um ou dois
em toda a história da humanidade (os nomes que na
época se davam eram os de Héracles e de Sócrates, aos
quais os romanos acrescentariam o de Catão). Mes-
mo os mestres da escola, Zenão e Crisipo, recusaram
sempre ser chamados de sábios. O paradoxo pode ser
explicado ao refletirmos sobre o facto de os estoicos já
não disporem – contrariamente a Platão, que admitia
as ideias dos valores – de um conjunto de modelos ide-
ais que assumissem a função de norma dos comporta-
mentos. Portanto, deviam adotar uma solução seme-
lhante à de Aristóteles e indicar como limite regulativo
ou critério normativo do bem moral uma figura hu-
mana e os seus comportamentos; precisamente como
Aristóteles, recorreram ao sábio. Contrariamente a

349
Aristóteles, que encontrara o seu modelo ético (isto é,
o homem livre, educado e abastado) numa persona-
gem reconhecível da história contemporânea, embora
o tenha idealizado, os estoicos não se preocuparam
com um ancoradouro demasiado visível do seu mo-
delo com a existência histórica. E se, pelo contrário,
realçaram a dificílima possibilidade de realização, se
escavaram um abismo profundo entre a virtude (qua-
se irrealizável no mundo) e o vício, provavelmente é
porque de um ponto de vista educativo, defenderam
ser mais útil indicar aos homens um limite muito dis-
tante e exigente na convicção de que era moralmente
mais estimulante nunca acomodar-se com os resulta-
dos eventualmente obtidos na via do melhoramento
e, pelo contrário, pensar sempre que ainda não se ob-
teve nada e esforçar-se por aproximar-se do ideal. Em
suma, foi simplesmente questão de escolha de uma
estratégia pedagógica e protréptica muito diferente da
de Aristóteles.
A exaltação do sábio e a dicotomia radical, sem
mediações possíveis, entre virtude e vício, entre sábios
e estultos, mais do que serem, no estoicismo, um re-
trato realista da condição da humanidade, são partes
de um discurso de exortação à virtude que se apoia
também numa elevada retórica filosófica. Pelo contrá-
rio, quando querem falar realisticamente do que acon-
tece efetivamente, os estoicos admitem que há um
progresso para a virtude e admitem que se pode estar
mais ou menos distante dela mas que é melhor estar
o mais próximo possível dela. Os graus do progresso
(prokope) são os que se distinguem na teoria do ka-

350
thekon (no plural, kathekonta), outro dos termos técni-
cos introduzidos pelo estoicismo que é muito difícil de
traduzir. Cícero traduziu-o para o latim por officium,
que significa tarefa, função própria, por exemplo, a
de um juiz enquanto função especificamente diversa
da de um militar. Talvez do latim officium, mais do
que de uma reflexão cuidada acerca do conceito es-
toico, se tenha alongado depois à tradução de «dever»
em uso nas línguas modernas, versão todavia que leva
a desentendimentos. De facto, na filosofia moderna
o dever parece estar ligado a uma tradição de pensa-
mento (kantiana) que exclui explicitamente qualquer
fundação naturalista; mas os estoicos estruturavam a
sua conceção dos kathekonta precisamente sobre ela,
que atribuíam também aos animais e, segundo algu-
mas fontes, até às plantas. Tendo em conta tudo isto,
a versão que se adotará nestas páginas para kathekon é
«função própria» sobretudo se se tiver de designar o
conceito e, eventualmente, «ação própria» se nos esti-
vermos a referir a casos individuais de comportamento
conforme ao kathekon.
O kathekon era definido como uma «atividade
apropriada à constituição natural», ou então (se con-
siderado de um ponto de vista especificamente huma-
no), como «o que assim que é realizado, admite uma
justificação razoável». Do primeiro ponto de vista,
percebe-se que este se estendia também aos animais
e, dado que se encontrava radicado na constituição
natural, encontrava a sua realização precisamente no
comportamento que obedece ao impulso originário
de conservação: portanto, para um animal, procurar

351
comida para si e eventualmente para as suas crias, en-
contrar e defender a sua toca ou um território especí-
fico eram as funções próprias. Deste estado em diante
e seguindo o mesmo esquema já lembrado a propósito
do desenvolvimento da noção de virtude e de fim a
partir do impulso, para o ser humano os estoicos dese-
nhavam um desenvolvimento progressivo das funções
próprias que, ao implicar um enriquecimento sempre
maior da racionalidade e uma extensão sempre mais
ampla desta racionalidade aos comportamentos, cul-
minava na forma perfeita das funções apropriadas
chamada katorthoma (à letra, «ação bem conseguida»,
ação reta). Os graus do kathekon incluídos entre o pri-
meiro, comum aos animais, e o katorthoma, alcançado
apenas por quem fosse virtuoso, podiam ser dois (tal-
vez segundo Crisipo), ou três (para os seus discípulos
Diógenes e Antípatro); mas todos os graus anteriores
ao último (o das ações retas), inclusive também o pri-
meiro, eram chamados de funções ou ações apropria-
das «médias». A este propósito é muito importante
não deixar-se enganar por algumas expressões infeli-
zes de Cícero e não pensar, por isso, que estas funções
«médias» sejam intermediárias entre a virtude e o vício
e que passem a ocupar um espaço moralmente neutro,
mais ou menos coincidente com o dos indiferentes. As
funções próprias que não são ainda aquelas perfeitas
são decerto intermediárias num percurso de progresso
moral que tem como seu extremo culminante o kator-
thoma, apanágio exclusivo da virtude: mas ainda assim
fazem parte também do vício. O extremo oposto da
virtude, em relação ao qual as funções ditas «médias»

352
são precisamente «intermediárias», é aquele grau ínfimo
do vício que nem sequer é conforme ao impulso funda-
mental, isto é, que nem sequer é conforme ao grau mí-
nimo dos kathekonta: é justamente aquele que é «contra
as funções próprias» em geral.
Para esclarecer com um exemplo: se até os animais
se preocupam com encontrar alimento para as suas
crias, participando assim do primeiro grau das fun-
ções próprias, o homem ou a mulher que não cuidas-
se dos seus filhos estaria na extremidade dos vícios e,
fora até da escala dos kathekonta, encontrar-se-ia no
máximo grau de distância da virtude. Pelo contrário,
o homem ou a mulher que cumprisse pelo menos
aquela função mínima, mas nenhuma das outras na
escala dos kathekonta, seria decerto um vicioso, mas de
um vício que não seria o absoluto e o mais distante da
virtude; isto é, estaria no início do percurso das fun-
ções «médias», embora se encontrasse ainda no vício.
Também se deve ter em conta que a noção estoica das
funções próprias é ductilmente adaptável em relação
às circunstâncias: ter cuidado com a própria saúde é
normalmente uma função própria, mas podem dar-se
circunstâncias em que deixa de o ser. Nesta via, porém,
os estoicos podiam admitir a licitude de comporta-
mentos que normalmente considerariam desviantes e
criticáveis: por exemplo, em presença de irremediáveis
sofrimentos físicos ou de uma grave decadência men-
tal, podia tornar-se lícito (isto é, apropriado e racional-
mente justificável) até o suicídio.
De tudo isto se induz que existia para os estoicos
um método claríssimo de aproximação humana à vir-

353
tude, precisamente o da prática dos kathekonta melho-
rando de forma progressiva a racionalidade dos seus
comportamentos e estendendo-a a campos de aplicação
sempre mais vastos: por exemplo, passando da cura das
necessidades elementares dos filhos à cura dos interes-
ses materiais e da condição moral de outros familiares,
depois da dos amigos, em seguida da dos concidadãos,
por fim, da humanidade inteira (de facto, esta é uma
das raízes do cosmopolitismo estoico: o sentido de per-
tença a uma grande cidade cósmica, o mundo sentido
como a cidade comum dos homens e dos deuses com
base no dote comum da racionalidade).
A convicção de que a última passagem do percurso
para a virtude não consistirá num progresso de tipo
quantitativo, isto é, num acrescento de novas presta-
ções, é típica do estoicismo e decerto representa um
dos resultados mais refinados da sua ética. A melhoria
é, então, completa e apenas qualitativa, e o advento da
virtude nada muda do ponto de vista dos comporta-
mentos exteriores. Crisipo dizia que quem alcançou o
grau das funções próprias imediatamente antecedente
ao da virtude (isto é, do katorthoma, a função própria
perfeita) já faz tudo o que faria também o sábio, mas
encontra-se ainda no vício porque lhe faltam aquela
perfeita coerência lógica e aquela firmeza interior que
é típica da virtude e do sábio. A ética estoica culmi-
na, portanto, numa exaltação da intenção moral; o
que torna uma ação perfeitamente apropriada não é o
seu conteúdo material, nem a sua realização concreta,
mas sim a disposição da alma segundo a qual o agente
escolhe o seu comportamento. O sábio poderia, por

354
exemplo, querer salvar um homem que afoga ou que
corre o risco de morrer numa casa que arde, mas pode-
ria ser impedido pelas circunstâncias externas: porque
tem as mãos e as pernas atadas, ou porque os amigos
o impedem à força, ou porque o ingresso da casa está
impedido. Do ponto de vista estoico ele já agiu e agiu
bem quando se propôs agir.

17. O VÍCIO E AS PAIXÕES

Contudo, os estoicos também tinham de explicar


como era possível que na grande maioria dos casos os
homens não eram virtuosos e sábios, mas permane-
ciam no vício, mesmo que se encontrassem a maior ou
menor distância da virtude. Eles responderam a esta
questão com a teoria da diastrophe, a perversão mo-
ral. Na sua explicação esta configura-se precisamente
como uma perversão do impulso originário que nos
foi dado pela natureza e remonta a dois tipos de cau-
sa: por um lado, dizem, a «capacidade de persuasão
das perceções», por outro, a influência do ambiente
familiar e social já moralmente corrompido. Ambas as
causas agem inevitavelmente desde o nascimento: os
cuidados que a criança recebe desde o berço das aias,
dos pais, da família, habituam-na a considerar bom
tudo (e somente) o que é prazenteiro; com a raciona-
lidade ela será levada a formar um conceito de bem
idêntico ao de prazer, até porque a educação que rece-
ber na adolescência a fará exaltar os falsos bens como
a riqueza, o sucesso, o poder, a fama (os estoicos reto-
mam aqui a crítica de Platão aos poetas). Tornando-se

355
adulto, o homem terá um falso conceito de bem e o
seu impulso virar-se-á sobretudo para os objetos que
podem garantir-lhe o prazer.
Na análise estoica do mal moral há um interesse
peculiar pela paixão. Aqui não se pode deixar de falar
de Crisipo, porque estamos bem informados acerca
dele, enquanto que é relativamente pouco aquilo que
sabemos de Zenão. O caso das paixões podia apre-
sentar uma dificuldade especial para os estoicos, pois
eles não admitiam uma psicologia fundamentalmente
dualista como a de Platão e de Aristóteles, para quem
a paixão se configurava como resultado de uma in-
surgência da parte irracional da alma que impunha à
razão os seus objetivos. Os estoicos não tinham uma
parte irracional da alma a contrapor à racional; no
seu modelo unitário da psique a parte racional era
toda «dirigente», da qual distinguiam simplesmente
os sentidos e algumas outras faculdades periféricas
(como a linguagem e a geração) que não podiam ser
imputáveis como origem e sede da paixão. Crisipo
concebeu a paixão como um juízo incorreto formu-
lado pela própria racionalidade.
A doutrina de Crisipo foi imediatamente recebida
pelos adversários do estoicismo como uma absurdida-
de evidente, mas a sua análise das paixões como juí-
zos erroneamente formulados pela razão é interessante
também porque ajuda a perceber outros aspetos do
racionalismo estoico. Do ponto de vista de Crisipo,
uma paixão não era simplesmente a formulação de um
juízo incorreto sobre os bens e os males: seria apenas
um erro – por exemplo, em presença da morte de uma

356
pessoa querida pensar que o seu desaparecimento era
um mal (de facto, vida e morte são indiferentes). Para
que existisse também paixão – no caso exemplificado a
aflição ou o luto – segundo Crisipo, além do erro teó-
rico, era necessário que estivesse presente na razão do
aflito uma segunda proposição deste tipo, que (sendo a
morte um mal) «era, por isso, apropriado afligir-se por
aquele mal». Na análise do filósofo estoico a pessoa que
se abandonava a uma paixão errava quanto ao juízo ge-
ral acerca dos bens e dos males, mas errava uma segunda
vez ao considerar o abandonar-se à dor (no caso exami-
nado do luto, mas eram previstas outras três formas fun-
damentais da paixão: o prazer, o desejo e o temor) uma
função apropriada. Dada uma análise semelhante, em
que a paixão correspondia a um juízo expressado numa
estrutura linguística formada por duas proposições (tal
coisa é um bem ou um mal; portanto é apropriado
alegrar-se ou afligir-se por ela), Crisipo podia também
acusar de incoerência quem se abandonava à paixão:
por exemplo, mesmo admitindo que a morte seja um
mal, não é logicamente consequente ter de afligir-se; de
facto, as pessoas com dignidade e equilíbrio não fazem
isso, embora estejam convencidas de que a morte é um
mal. E podia continuar a definir a paixão em termos de
«irracionalidade» como tinham dito Platão e Aristóte-
les, exceto pelo facto de ele interpretar «irracionalidade»
como uma revolta da razão contra si mesma, uma re-
volta que se manifestava na incoerência lógica em que a
razão caía exclusivamente por sua culpa.
É igualmente claro que a imperturbabilidade que
os estoicos também atribuíam ao sábio, tal como

357
Epicuro, deve ser interpretada em termos daquela
«coerência» que eles davam à virtude e ao sábio: o
sábio será imperturbável (sem paixões) porque terá
eliminado da sua alma todos os juízos incorretos
acerca do bem e do mal, além dos comportamentos
que os seguem, pois estes serão incoerentes entre si.

18. AS RELAÇÕES INTERPESSOAIS E A POLÍTICA

Para os estoicos que fundaram a sua ética sobre o


conceito da oikeiosis e sobre o impulso de autocon-
servação não era nada fácil explicar como, destes fun-
damentos aparentemente egoístas, se poderiam desen-
volver as virtudes colaborativas que se agrupavam sob
o nome de justiça. Parece que a solução mais clara e
afortunada do problema se pode atribuir a Crisipo: a
origem da justiça dos comportamentos altruístas era
reconduzida ao impulso originário de autoconserva-
ção através da ideia de que desde o nascimento cada
ser humano mirava à conservação também das suas
partes que ainda não podia possuir em ato, mas que
seriam o resultado natural do seu desenvolvimento fí-
sico completo sucessivamente. Assim, tal como o im-
pulso podia concernir aos dentes, que como é óbvio
o recém-nascido ainda não possui, podia igualmente
dizer respeito aos filhos que nasceriam; ao recolherem
uma ideia esboçada por Aristóteles, os filhos eram vis-
tos como uma parte separada dos pais. O amor dos
pais pelos filhos tornava-se assim o fundamento na-
tural de cada comportamento altruísta. Uma fonte
mais tardia, da idade imperial romana, explicará que

358
o impulso da oikeiosis se alarga progressivamente até
abranger todo o ambiente familiar, depois os concida-
dãos, por fim, a humanidade. Deste modo os estoicos
podiam também aceitar e repropor o conceito aristo-
télico de homem como animal naturalmente indicado
para a agregação social; mas além disso, não parece
que nenhum estoico se tenha seriamente interessado
por estudar as diversas formas que as comunidades po-
líticas podiam assumir, nem por recomendar uma em
especial. A República de Zenão fora escrita ainda sob
influência do cinismo e, portanto, parece que se inte-
ressava mais pelo problema da formação e da prática
da virtude do que pelos temas que nós chamaríamos
de engenharia institucional. Não temos notícia de tra-
tados de filosofia política produzidos pelos estoicos.
Sabemos todavia que eles aconselhavam a participação
na vida política, mas já consideravam tal o simples to-
mar esposa, o procriar e educar os filhos corretamente
num ambiente social. Filósofos estoicos como alguns
dos primeiros discípulos de Zenão, em idade romana,
Séneca, funcionaram como conselheiros ou educado-
res de príncipes; facto que era certamente conforme às
preocupações pedagógicas da escola, mas não indica
absolutamente uma inclinação particular sua para a
forma institucional monárquica. De resto, é fácil ver
que uma certa insensibilidade para com o problema
das instituições estava de certo modo inscrita na pró-
pria estrutura da doutrina: se tudo o que é externo e
material é indiferente, será também indiferente o fac-
to de viver numa forma constitucional e não noutra,
num estado social e não noutro. Um escravo podia

359
tornar-se filósofo estoico, como aconteceu com Epic-
teto, e ter discípulos das classes mais elevadas; um es-
toico podia defender que os escravos partilham dos
mesmos dotes de origem divina que qualquer outro
homem, os da racionalidade: como disse Séneca. Mas
nem Séneca nem Epicteto, nem nenhum outro estoi-
co teria julgado digna de consideração uma proposta
de abolição da escravidão; tratava-se apenas de um in-
diferente.

19. PANÉCIO E POSSIDÓNIO

Discípulo de Diógenes e de Antípatro, Panécio de


Rodes nasceu em 185 ca. e morreu em 110. Com o
seu escolarcado, que começa em 129, a historiografia
moderna passa a indicar o início do chamado período
do médio estoicismo. Em boa verdade, tendo desapa-
recido completamente as obras do filósofo e em pre-
sença de não muitas notícias sobre o seu pensamento
e de um número ainda menor de citações textuais, não
é fácil dizer se ele inseriu na doutrina estoica inova-
ções que justificassem a ideia de que com ele começa
uma nova fase da escola. Segundo consta, ele pôs em
dúvida ou recusou a doutrina da conflagração e tal-
vez tenha aceitado a tese aristotélica da eternidade do
mundo; na psicologia, defendeu, talvez, uma doutrina
tendencialmente dualista ao contrapor a razão ao im-
pulso e ao atribuir à natureza (e não só a uma parte
da alma) a faculdade da geração: estes são quase todos
pontos doutrinais que concordarão com a admiração
que, diz-se, Panécio teria por Platão e por Aristóteles.

360
Mas quanto à parte da sua filosofia de que temos mais
informações, a ética, não há nenhuma transformação
profunda da doutrina tradicional. Parece certo que em
vez de insistir na figura do sábio, ele mostrou apreciação
por cada exemplo de virtude encontrado até no simples
cumprimento das funções próprias por parte de pessoas
comuns (grande parte do De officiis de Cícero inspira-se
na sua obra); e parece que insistiu muito também sobre
o enraizamento das virtudes nas qualidades pessoais de
cada homem, inclusive os dotes naturais e as inclinações
absolutamente peculiares do feitio individual. Mas nada
nos diz que Panécio tenha renegado a figura do sábio,
ou que tenha contraposto ou anteposto as funções pró-
prias à virtude. Portanto é possível que ele tenha sim-
plesmente escolhido uma estratégia pedagógica diversa
em relação à tradicional da Stoa, isto é, substituindo o
encorajamento e o elogio por cada resultado obtido de
progresso moral pela admoestação severa, que era típica
da escola, segundo a qual quem não se tornava sábio
permanecia sempre um estulto. Neste sentido pode-se
convir que ele amoleceu a rigidez da doutrina; mas fê-lo
sem verdadeiramente ceder em nenhum dos princípios
essenciais. É também possível que esta estratégia pro-
tréptica e educativa diferente lhe tenha sido sugerida
pela experiência que, sendo o primeiro entre os filósofos
gregos, ele teve do mundo romano em medida não só
episódica: permaneceu muito tempo e muitas vezes em
Roma, onde fez também parte do círculo de intelectu-
ais que se reuniam em torno de Cipião Emiliano.
Possidónio de Apameia (na Síria, 135-50 ca. a.C.)
foi discípulo de Panécio e criou uma escola própria em

361
Rodes, onde Cícero o ouviu. Possidónio é indubitavel-
mente uma figura insólita entre os estoicos pela vasti-
dão realmente enciclopédica dos interesses cultivados,
de modo tal que pode ser comparada com aquela típica
dos grandes peripatéticos como Aristóteles e Teofrasto.
De facto, ocupou-se de (e escreveu sobre) geografia, his-
tória, oceanografia, etnografia, física, astronomia, ma-
temática e geometria. Fora comparado com Aristóteles
já pelos antigos pela sua contínua busca das causas dos
fenómenos em todos os numerosos campos disciplina-
res aos quais se dedicara. Infelizmente, de tanta e tão
consistente atividade nos ficaram apenas testemunhos
indiretos (por vezes, objeto de controvérsias acesas en-
tre os intérpretes), tendo a sua obra desaparecido in-
teiramente. Dado que é bastante certo que ele tenha
insistido fortemente sobre um conceito que já estava
presente na Stoa, embora não na posição central que
Possidónio lhe tinha reservado (o da simpatia univer-
sal), é uma hipótese interpretativa plausível aquela que
propõe reconduzir os vastíssimos interesses científicos
do filósofo a este conceito-chave: como se a busca das
causas em todos os campos do cognoscível servisse, por
um lado, para unificar o saber, mas também, por outro,
para reconstruir e compreender a profunda unidade do
cosmo sempre estoicamente entendido.
A parte do pensamento filosófico de Possidónio que
melhor conhecemos é a sua teoria psicológica, graças ao
testemunho não de todo imparcial de Galeno. Se este
testemunho é correto, deve-se admitir que Possidónio
recusou o monismo psicológico da tradição ortodoxa
estoica e regressou de certo modo a Platão, ao admitir

362
uma tripartição da alma e uma oposição radical entre
racionalidade e forças psíquicas irracionais. Só assim,
na sua opinião, seria possível dar conta também da ori-
gem do vício, não com as influências externas admiti-
das pela teoria da diastrophe: o vício e o mal moral eram
oriundos do interior da alma porque cada uma das par-
tes dela era naturalmente impelida por uma específi-
ca oikeiosis, de maneira que as duas partes irracionais
teriam decerto sentido impulsos virados para o prazer
e teriam tentado prevalecer sobre a outra. Destas pre-
missas derivava também a oportunidade de reformular
o programa educativo estoico adotando, como Platão e
a tradição pitagórica, instrumentos aptos para trabalhar
também irracionalmente sobre as funções irracionais da
alma, por exemplo, a poesia e a música.
É fácil notar que aquelas que poderiam parecer
em Panécio, e ainda mais em Possidónio, inovações
em relação à doutrina constituída por Crisipo, têm
na realidade uma característica comum: não se trata
de descobertas de teorias novas e originais, mas de
casos de retorno ao antigo, a Platão ou a Aristóteles.
Há para isto uma explicação plausível, ou seja, que a
crítica académica a Zenão e a Crisipo fosse eficaz para
obrigar qualquer filósofo estoico a admitir a bondade
das razões usadas pelos adversários.

20. PIRRO E O CETICISMO

«Ceticismo» é um vocábulo que deriva da palavra


grega skepsis, que significa «pesquisa» e, num primei-
ro momento, parece que indicava em geral todos os

363
filósofos, pois todos andavam à procura da verdade. Só
relativamente tarde, por volta do começo da era cristã,
o termo se especializou e passou a indicar aqueles filó-
sofos que, na busca pela verdade, duvidavam de alguma
vez a terem encontrado, ou que fosse possível encontrá-
-la. Pirro de Élis, que viveu entre 365 e 275 ca., tornou-
-se tradicionalmente o primeiro dos «céticos» e é hoje
considerado também o mais antigo dos filósofos hele-
nistas. Ao falarmos do ceticismo grego, é preciso ter em
conta que ele está dividido desde o princípio em duas
correntes ou filões distintos e opostos: um inaugurado
por Pirro e outro que por muito tempo foi representado
pela escola que vinha de Platão, a Academia.
Pirro nunca fundou uma escola e não escreveu nada;
seguiu a expedição oriental de Alexandre de Macedó-
nia (334-23) e nessa ocasião teve modo de encontrar
os sábios indianos (gimnosofistas, os «sapientes nus»),
por quem sentiu interesse. Quando regressou à Grécia
juntou à sua volta um pequeno grupo de seguidores e
admiradores, que provavelmente lhe estimavam a capa-
cidade dialética e, mais ainda, o exemplo de vida. Entre
estes discípulos sobressaiu Tímon de Fliunte (320-230
ca.) que em diversas obras guardou memória do pensa-
mento do mestre, sobretudo nos Silloi (poesias satíricas
contra outros filósofos), o diálogo Píton e o poema Apa-
rências. Destes escritos, todos perdidos, temos alguns
vestígios graças a testemunhos posteriores; isto implica
que sobre Pirro dispomos apenas de informações de se-
gunda e terceira mão.
O testemunho fundamental pode deixar-nos na
dúvida acerca daquilo que pertence realmente a Pirro

364
e o que poderia pertencer a Tímon. O testemunho
diz que

o discípulo [de Pirro] Tímon afirma que


quem quer ser feliz deve mirar a estas três
coisas: em primeiro lugar, como são as coisas
por natureza; em segundo, qual deve ser a
nossa disposição para com elas; por fim, o
que obteremos se nos comportarmos assim.
Ele diz que Pirro mostra que as coisas são
igualmente sem diferenças, sem estabilida-
de, indiscriminadas, porque nem as nossas
sensações, nem as nossas opiniões são verda-
deiras ou falsas. Portanto, não lhes devemos
dar confiança, mas, pelo contrário, estar sem
opiniões, sem inclinações, sem turbamentos,
e sobre todas as coisas dizer «é não mais do
que não é», ou então «é e não é», ou ainda,
«nem é, nem não é». Aos que se encontrarem
nesta disposição Tímon diz que primeiro
sentirão a afasia, depois a imperturbabilida-
de... [testemunho n. 53 de Decleva Caizzi].

Pelo texto, dir-se-ia que para Pirro (e Tímon) o


fim ao qual mirar era, tal como para todos os filó-
sofos helenistas, a felicidade individual, que consiste
na imperturbabilidade obtida a partir do reconheci-
mento das coisas serem indiscrimináveis, por sua vez
fundado (segundo a interpretação mais provável) em
última análise sobre a crítica da sensação. Esta crítica
podia ter chegado a Pirro quer da tradição democri-
tiana, quer da socrática: resulta dos testemunhos que

365
ele tinha um certo conhecimento de ambas. Dado que
os instrumentos cognoscitivos à disposição do homem
eram inconclusivos, Pirro concentrava-se sobre a atitu-
de a assumir e, dir-se-ia, tinha em conta as precedentes
polémicas filosóficas assumindo a seu cargo precisa-
mente aqueles juízos que Aristóteles, no livro IV da
Metafísica, pensara denunciar como consequências
absurdas, mas inevitáveis para os seus adversários que
negavam validade ao princípio de não contradição: ou
seja, dizer de cada coisa que «é não mais do que é», e «é
e não é» e «nem é, nem não é». Esta era a sua «afasia» (à
letra, o «não falar»), a recusa em exprimir juízos sobre
a realidade; e daqui vinha enfim a imperturbabilidade
que ele visava.
Há testemunhos que afirmam que Pirro tinha re-
almente procurado com coerência, até ao paradoxo, a
realização do seu ideal: dado que não concedia nada
aos sentidos, dissemos, não se preocupava com nada
nem evitava nada, nem precipícios, nem cães, nem
carros; não se preocupava com ir socorrer um amigo
que caíra num pântano. Porém, como a mesma tradi-
ção antiga notou, ficou por perceber como Pirro, ao
comportar-se desta forma, poderia ter vivido até aos
noventa anos. Não é fácil responder: talvez os com-
portamentos paradoxais que lembrámos fossem ape-
nas manifestações ocasionais (e muito teatrais) de uma
coerência exibida sobretudo com fins pedagógicos e
polémicos; bastava que a Pirro ficasse a referência ao
uso e aos costumes como critério para discriminar os
comportamentos a serem adotados efetivamente na
vida. Outro dos seus discípulos, Ascânio de Abdera,

366
atribui-lhe, juntamente com a observação de sempre
que «cada coisa não é isto mais do que aquilo», tam-
bém a ideia de que «os homens agem em tudo por
convicção e por hábito».

21. O CETICISMO NA ACADEMIA: ARCESILAU

Pirro não fundou uma escola e a obra de Tímon não


conseguiu garantir ao pirronismo uma afirmação ime-
diata e estável. Mas durante o século III, com Arcesilau
(que viveu entre 315 e 240, e foi escolarca por volta de
265), algumas instâncias céticas penetraram na escola
de Platão, a Academia. Segundo um juízo transmiti-
do por Cícero nos Académicos, com Arcesilau iniciou
a Academia nova (mas outros autores antigos conside-
raram Arcesilau o iniciador de uma Academia média,
sendo Carnéades o promotor da nova Academia).
Desta mudança relevante introduzida na Acade-
mia, a historiografia moderna indicou em geral duas
causas: a influência do ceticismo de Pirro e o desenvol-
vimento de ideias já presentes na tradição socrática e
platónica. Na verdade, a segunda das causas, sobretu-
do, deve ter contribuído para o amadurecimento das
convicções de Arcesilau: mais do que ser verdadeira-
mente testemunhada pelas fontes antigas, a influência
de Pirro sugere-se apenas leve e polemicamente. Além
disso, não pode ser demonstrada com certeza e é to-
talmente ignorada pelo mais antigo representante da
tradição académica que conhecemos, Cícero (à ma-
neira de Sócrates, Arcesilau não escreveu nada), que
põe constantemente em evidência a dependência do

367
académico em relação a Sócrates e a Platão. Que Ar-
cesilau se apelasse a Platão, cujas obras sabemos que
tinha estudado diretamente, vê-se também pela acu-
sação que alguns adversários contemporâneos lhe fize-
ram, isto é, de nobilitar incorretamente a sua filosofia
com o nome de Platão e, ainda, com o de Sócrates, de
Parménides e de Heraclito (os quais, ao que parece,
Arcesilau devia considerar os mestres inspiradores de
Platão fundando-se no conhecimento que tinha dos
seus Diálogos).
Parece razoável pensar que na leitura da obra de
Platão Arcesilau se detivesse com particular interesse
nos aspetos dialéticos e aporéticos daquela filosofia,
na crítica dos sentidos e da opinião e, provavelmente,
ainda mais na apresentação da figura de Sócrates na-
queles diálogos (tais como o Êutifron, o Laques, o Lísis)
em que cada tentativa de definir um objeto qualquer
é refutada por Sócrates que, sem nunca ter afirmado
nada de seu, conclui finalmente com a declaração de
ignorância. Esta leitura particular de Platão terá sido
aceite por Arcesilau também pela necessidade de con-
tradizer os argumentos das escolas que no seu tempo
estavam ganhando os maiores consensos precisamente
ao ensinarem filosofias que presumiam atingir a certe-
za absoluta do conhecimento (justamente a escola es-
toica e a epicurista). Ao radicalizar a atitude socrática,
Arcesilau chegou a dizer que não sabia sequer aquela
única coisa que Sócrates tinha reservado para si mes-
mo (o saber que nada sabia).
Uma ilustração clara do método de Arcesilau (que
as fontes apresentam como capacidade de argumen-

368
tar os prós e os contra de cada tese, ou então como
o hábito de contestar sempre qualquer afirmação ar-
gumentando contra ela) pode ser obtida a partir da
mais extensa das argumentações que lhe foram atribu-
ídas pelas fontes (sobretudo por Sexto Empírico e por
Cícero), aquela contra o critério estoico da verdade.
Procedendo dialecticamente, Arcesilau aceita algumas
premissas que os adversários postularam: a distinção
entre sábios e estultos, sobretudo; depois admite com
Zenão que é indigno que o sábio tenha opiniões; e por
fim aceita a distinção entre dar e negar o assentimen-
to (mas recorde-se que, segundo os estoicos, o sábio
teria negado o assentimento exclusivamente naqueles
casos, excecionais segundo eles, em que a apreensão
não era possível). Destas premissas retira a conclusão,
desastrosa para os estoicos, que o sábio, por conse-
guinte, deverá sempre negar o assentimento (epechein)
e suspender sempre o juízo (epoche). A razão é que a
apreensão não pode ser, como pretendiam os estoicos,
um estado cognitivo intermédio entre a opinião (pró-
pria dos estoicos) e a ciência (propriedade exclusiva
do sábio), isto é, um estado comum a sábios e estul-
tos: de facto, diz Arcesilau, um estado cognitivo que
se dê num estulto será opinião, se se der, pelo con-
trário, num sábio será sem dúvida ciência. Portanto,
não poderia haver nada de comum entre os estados
cognitivos do sábio e os do estulto: no máximo, um
mero nome que, se se quiser, poderia ser apreensão.
Mas então a apreensão, reduzida a um nome vazio,
não pode ser o critério de verdade; nem, de resto, pode
existir uma perceção apreensiva porque nunca se dá

369
verdadeiramente segundo Arcesilau uma perceção tal
que não pudesse ser também falsa, sem que exista para
o homem alguma possibilidade de discernir uma da
outra (recorde-se o exemplo dos gémeos, que talvez
remonte precisamente a Arcesilau). Se, portanto, não
há nada que possa ser objeto de perceção, dever-se-
-á negar sempre o assentimento. De facto, assentir ao
que não é apreensível equivaleria a opinar e mesmo os
estoicos afirmam que não é digno do sábio opinar. Ne-
gar sempre o assentimento significa suspender sempre
o juízo. As mesmas premissas estoicas, corretamente
conectadas, levariam, segundo Arcesilau, à generaliza-
ção da epoche.
Não se deve crer que Arcesilau limitasse a sua bata-
lha contra as filosofias dogmáticas ao estoicismo, nem
só ao problema do conhecimento. A tradição posterior
deu particular relevo a este aspeto da sua atividade fi-
losófica, mas há claros indícios de polémicas levadas a
cabo também contra epicuristas e peripatéticos, como
também contra os fundamentos da física estoica e a
teoria da mistura total. A problemática discutida por
Arcesilau devia ter deveras toda a amplitude que se
pode esperar de quem era o chefe da escola de Platão.
Naturalmente ele teve que enfrentar a objeção de
que as suas teses acerca da impossibilidade de apreen-
der qualquer coisa, a inexistência de um critério de
verdade, a necessidade de suspender sempre o juízo
teriam tornado impossíveis a vida e a atividade prática,
que têm necessidade de um critério que as guie. A sua
resposta parece mais uma vez servir-se dialeticamente
das premissas dos adversários. De facto, eram os estoi-

370
cos a distinguir entre ações médias (os kathekonta) e
as retas (os katorthomata); para as primeiras eles indi-
cavam um critério inferior à certeza e à verdade, isto
é, o de poderem ser apenas razoavelmente justifica-
das. Arcesilau aceitou estas definições e acrescentou a
simples razoabilidade (o eulogon) como critério orien-
tador para a práxis, mantendo-o obviamente por sua
vez num plano absolutamente distinto do da verdade
inalcançável. O facto que não existisse, segundo ele,
um plano de certeza e de verdade permitia-lhe (ao que
parece) considerar as ações inspiradas na razoabilidade
sem dúvida como sendo retas (e não somente médias)
e tais que garantiam a felicidade. Talvez se refiram a
Arcesilau também algumas argumentações conserva-
das por Plutarco, segundo o qual, se mostra claramen-
te aos estoicos a inutilidade do assentimento em vista
da ação, para a qual seriam suficientes as perceções de
um objeto apropriado e o impulso que naturalmente
guiaria o homem para aquele objeto. Também aqui os
conceitos fundamentais se obtêm do estoicismo e este
corresponde ao método dialético de Arcesilau; não é
muito claro, porém, quão coerente com o do eulogon
é o argumento, nem se Arcesilau se preocupava (e
como) com a ligação dos dois raciocínios entre eles.
É inevitável perguntar-se, por fim (e de facto a
questão foi debatida de forma acesa pelos estoicos), se é
lícito atribuir um significado não meramente dialético,
mas também positivo e construtivo às argumentações
de Arcesilau. A dificuldade capital é não poder
explicar claramente como o escolarca académico
teria podido defender algumas teses como convicção

371
pessoal e própria sem contradizer a sua conclusão acerca
da necessidade de suspender sempre o assentimento e
a declaração de não saber sequer que não sabia. Pelo
contrário, não é decerto possível crer na notícia referida
por algumas fontes tardias, segundo as quais o ceticismo
de Arcesilau teria sido apenas o disfarce público e a
máscara de um filósofo dogmático, que na sua escola
teria professado diante dos discípulos mais preparados
uma doutrina esotérica platónica. De facto, pelo menos
isto é claríssimo, que toda a atividade filosófica de
Arcesilau pressupõe uma interpretação completamente
cética de Platão. Todavia, mesmo que fosse verdade que
é impossível encontrar em Arcesilau outra coisa que
não seja a refutação dialética dos seus adversários, isto
não deve induzir-nos a avaliar desfavoravelmente a sua
personalidade filosófica e os resultados que ele obteve.
Ao combater contra os estoicos e contra todas as outras
formas de dogmatismo, Arcesilau realizou uma obra de
valor filosófico primário, ensinando a manter na filosofia
uma função fundamental de aprofundamento crítico
dos problemas. Em particular, ao combater contra os
estoicos ele conseguiu focar algumas dificuldades das
teorias sensistas do conhecimento e promoveu assim
o repensamento de algumas partes do sistema estoico
realizado depois por Crisipo.

22. CARNÉADES

A discussão dos académicos com as filosofias ri-


vais e sobretudo com o estoicismo continuou no sé-
culo II com Carnéades, após uma série de escolarcas

372
de quem sabemos pouquíssimo. Também Carnéades
(215-130 ca.) nunca escreveu nada. As informações
que possuímos (principalmente de Cícero e de Sexto
Empírico) remontam sobretudo aos escritos do seu
discípulo Clitómaco. Ele foi o primeiro filósofo gre-
go a obter renome em Roma; em 156-5 foi enviado
de Atenas como embaixador a Roma, junto com os
chefes das outras duas escolas que não recusavam por
princípio os cargos públicos, o estoico Diógenes de
Babilónia e o peripatético Critolau. Em dois dias de
seguida Carnéades proferiu discursos sobre a justiça
contraditórios entre si, suscitou enorme interesse na
juventude e, pelo contrário, preocupações alarmantes
em Catão, que fez o possível para abreviar a estadia
romana dos três filósofos.
Os discursos romanos pró e contra a existência do
direito natural e da justiça, que deixaram vestígios de
si no De re publica de Cícero, são um indício da extra-
ordinária capacidade dialética de Carnéades, mas atra-
vés de todas as outras obras de Cícero conseguimos
ainda fazer uma ideia do enorme esforço crítico do fi-
lósofo, que submeteu a exame e atacou quase todos os
aspetos da doutrina estoica: a gnosiologia e a dialética
(Académicos), a cosmologia, a teologia, e a doutrina
da providência (De natura deorum), a divinação (De
divinatione), a ética (De finibus), a doutrina do desti-
no (De fato). O método dialético de Carnéades tinha
essencialmente duas formas: ou aceitava as premissas
postas pelos adversários e as desenvolvia levando-as a
conclusões contraditórias e mostrando a sua falta de
fundamento e a sua arbitrariedade; ou então (como

373
acontece sobretudo com a ética), em relação a um de-
terminado problema prospetava todas as soluções teo-
ricamente possíveis insistindo naquelas historicamente
enunciadas e pondo-as em contradição entre si – de
modo que mostrava a impossibilidade de aderir a uma
qualquer delas.
Têm particular importância, entre as suas polémi-
cas contra os estoicos melhor testemunhadas, aquela
contra a doutrina do fado, onde Carnéades defendia
vigorosamente a autonomia da vontade humana, e a
relativa ao problema do conhecimento, em que Car-
néades fazia amplo uso do argumento do «sorites». Ele
fez notar que, tal como é impossível indicar um critério
quantitativo preciso para definir o que é, ou não é, um
«montão», analogamente seria impossível indicar carac-
terísticas precisas que servem para diferenciar, na série
das perceções semelhantes (por exemplo, um homem
pode sempre parecer-se com outro, mais ou menos, até
ao limite da semelhança máxima dos gémeos), a pri-
meira perceção não apreensiva, à qual não se deveria
assentir, da perceção apreensiva que, pelo contrário,
segundo os estoicos, ainda mereceria o assentimento.
A cada perceção dita apreensiva seria possível agregar
outra não-apreensiva, de que seria impossível precisar a
diferença da primeira. A perceção apreensiva não pode
ser o critério da verdade; nem sequer pode sê-lo a razão,
que deriva das perceções e sobre elas se funda; e não po-
dem sê-lo, obviamente, os sentidos, que Carnéades cri-
ticava aprofundando argumentos para mostrar os seus
enganos (o remo dentro de água parece partido, as ima-
gens que aparecem nos sonhos). Não existindo nenhum

374
critério de verdade, também segundo Carnéades está-se
necessariamente reduzido à suspensão do assentimento.
Todavia, como Arcesilau, também Carnéades tinha
que dar conta da conduta de vida e da ação. A sua teo-
ria dos três critérios práticos respondia a este objetivo,
teoria largamente exposta por Sexto Empírico. Ele in-
dicava como critérios de atendibilidade sempre crescen-
te: 1. a perceção persuasiva (pithanon), 2. a persuasiva
e não contradita por outras, 3. aquela completamente
examinada. A perceção persuasiva serve como critério
prático geral e é aquela que parece verdadeira (não que
é) pois que é dotada de uma sua clareza distinta. Mas de
facto, notava com perspicácia Carnéades, as perceções
manifestam-se a nós sempre ligadas por uma cadeia:
nunca vemos, na estrada, só um homem, mas junto
com a perceção dele unem-se as de muitos pormenores
que lhe dizem respeito (a tez, o tamanho, a atitude, o
modo de andar, o modo de falar, a roupa) e ainda as de
muitas circunstâncias concomitantes (a luz, o terreno,
os amigos que o acompanham). Quando nenhuma das
perceções concomitantes parece contraditória e todas
concorrem para a confirmação da perceção do homem
que pensámos reconhecer, a força persuasiva da perce-
ção é maior. Torna-se por fim máxima se, permitindo-o
o tempo e as circunstâncias, tivermos possibilidade de
examinar de todos os lados a perceção e todas as que
vêm com ela, como deveria ser feito especialmente nos
casos em que está em jogo a felicidade.
Naturalmente, seria ingénuo pensar que Carnéades
propusse uma sua definição pessoal de felicidade: na
questão do sumo bem Cícero atribui-lhe pelo menos

375
duas teses diversas fazendo sempre notar que se tratava
de posições defendidas por Carnéades dialeticamente
com escopos polémicos; nos Académicos chega a acres-
centar que, a propósito deste problema, Clitómaco
confessava que nunca tinha conseguido perceber qual
era realmente a opinião do mestre.
A posição de Carnéades, sobretudo por causa da
sua teoria do pithanon, foi por vezes julgada uma via
intermédia entre o dogmatismo e o ceticismo radical
de Arcesilau, tanto que, aqui e ali, parece que Cícero
atribuísse ao filósofo uma firmeza menor do que a de
Arcesilau em defender a suspensão do assentimento.
Mas não é absolutamente verosímil que Carnéades
pretendesse atenuar a intransigência académica quan-
to à questão do assentimento. Como se disse, Arcesi-
lau provavelmente tinha argumentado que a perceção
e o impulso sozinhos chegavam para impelir à ação.
Era, porém, bastante fácil para os estoicos responder-
-lhe que, para que a ação pudesse ser considerada uma
expressão da responsabilidade moral do homem, era
preciso sobretudo que ela tivesse recebido a confirma-
ção do assentimento; Crisipo e Antípatro discutiram
muito sobre este ponto. Ora Carnéades, como se vê
em muitas passagens de Cícero, respondia-lhes recu-
sando falar de assentimento, mas não negando que
se pudesse «seguir» (sequi) ou «fazer uso de» (uti), ou
até «aprovar» (probare) uma perceção. Além do mais,
mostrava aos estoicos que havia uma confusão na sua
maneira de falar sobre o assentimento. Ou seja, fazia
notar, ao que parece, que é muito diferente «aceitar
fazer x» e «aceitar x como verdadeiro». Pode-se aceitar

376
fazer uma ação sem aceitar como verdadeiro que se
deveria fazê-la. Por exemplo, o homem que foge de
um lugar onde suspeita que há uma emboscada de ini-
migos não está automaticamente convencido de que
é verdade que há uma emboscada e que deve fugir.
Age com base numa perceção persuasiva, de suspeita e
de dúvida, não com base em verdade e assentimento.
Assim, para Carnéades era possível falar de decisões
tomadas sem fazer recurso ao assentimento e continu-
ar a defender com força a necessidade de o suspender
sempre pois este é aceitação da verdade.
Só aparentemente, portanto, Carnéades foi um
defensor da epoche menos intransigente do que Arcesi-
lau. Com ele a filosofia parece atribuir-se como tarefa
eminente a de refletir sobre as próprias doutrinas filo-
sóficas (Carnéades costumava dizer que se não tivesse
existido Crisipo ele também não teria existido) e só de
maneira mediata, através da discussão das doutrinas,
chegar aos problemas e às coisas. Na realidade muita
parte da filosofia posterior a este pensamento está em-
bebida deste modo de fazer filosofia, de maneira que
Carnéades assume a figura de precursor – sendo ainda
por cima, um que sempre manteve aceso o espírito
crítico, algo que nem sempre sucederá depois.

23. O FIM DA ACADEMIA CÉTICA

Entre os discípulos de Carnéades depois de Clitó-


maco, apareceu Fílon de Larissa, que se tornou esco-
larca por volta de 110 a.C. Em 88, quando Atenas se
revoltava contra Roma e passava para o lado de Mitri-

377
dates, Fílon fugiu para Roma, de onde não regressou.
Quando a 1 de março de 88 Sila se apoderou de novo
com as armas de Atenas, os edifícios e os bens da Aca-
demia (como de resto os da escola aristotélica) ficaram
irremediavelmente danificados; Fílon morreu alguns
anos depois em Roma e parece que nenhum escolarca
académico foi eleito depois dele. O principal discípulo
de Fílon, Antíoco, tinha enveredado por outros cami-
nhos (cf. infra cap. VI, § 3), que o afastavam sempre
mais do ceticismo. A Academia como instituição ter-
minara. Do pensamento de Arcesilau, de Carnéades
e de Fílon permaneceram vivas algumas ideias em
Roma, graças à obra de Cícero, que em algumas obras
se apresentou como seu defensor, além de divulgador.
Mais tarde, entre os séculos I e II da nossa era, tentou-
-se fazer uma reivindicação limitada da ortodoxia pla-
tónica e também dos céticos da Academia por parte
de alguns pensadores gregos, o principal dos quais foi
Plutarco (infra, cap. VI, § 5).
Os acidentes da história externa intervieram no
agravamento de uma situação já por si difícil para o
ceticismo académico no plano propriamente filosófi-
co. Sob os ataques das escolas rivais, Fílon tinha ate-
nuado o rigor das posições da escola quanto à disputa
sobre o critério: primeiro interpretou Carnéades no
sentido menos rigorista possível, admitindo, ao que
parece, que se podia conceder o assentimento em cer-
tos casos, mesmo tendo presente a provisoriedade e a
falibilidade deste. Em seguida, como refere Sexto Em-
pírico, tinha afirmado que «quanto ao critério estoico,
isto é, à perceção apreensiva, as coisas eram inapreen-

378
síveis, mas quanto à própria natureza, eram apreen-
síveis». Não é claro pelos testemunhos se a recusa do
critério estoico implicava para Fílon a inexistência de
outros critérios válidos, ou, pelo contrário, a admissão
de que um critério melhor podia ser encontrado. Inde-
pendentemente disso, a admissão da apreensibilidade
das coisas implica uma nítida separação das posições
até então defendidas pelos académicos. Todavia, não
sem coerência, Fílon estendia a aplicação do pithanon
de Carnéades de um uso de mero critério prático ao
campo dos conhecimentos teóricos; e sabemos que na
sua ética ele chegou a reconhecer a oportunidade de
uma teoria dos preceitos positiva.

379
6.

A FILOSOFIA NO MUNDO ROMANO

1. ROMA E OS FILÓSOFOS

T radicionalmente costuma-se considerar o ano de


155, o da embaixada dos três escolarcas atenienses
a Roma (cf. acima cap. V, § 22), como data de ingresso
da filosofia grega no mundo latino. Em boa verdade,
as relações com as cidades gregas da Itália meridional
já há muito tinham introduzido entre os romanos no-
ções próprias da filosofia: em obras de poetas como
Énio e Terêncio podem encontrar-se alusões a doutri-
nas de origem filosófica. De facto, temos notícias de
livros pitagóricos queimados em 181, de expulsão de
filósofos (na maioria epicuristas) em 161 e 154 (este
é um episódio que talvez possa ser antecipado a 173);
de resto, já a embaixada de 155 foi bruscamente inter-
rompida com o regresso dos três mestres a Atenas. To-
davia, todas estas notícias dizem-nos que juntamente
com o crescimento do interesse do público culto pela

381
filosofia havia também uma forte suspeita da classe di-
rigente romana em relação a ela. Podem compreender-
-se as razões da hostilidade, que só se atenuou muito
mais tarde nos detentores do poder, como veremos. A
filosofia com a qual os romanos entraram em contac-
to no século II a.C. era a das escolas helenistas, que
tinham deixado de construir as suas doutrinas (como
acontecera com as filosofias de Platão e de Aristóteles)
em torno de uma conceção do homem pensado antes
de mais como um cidadão ligado à comunidade cívica
por obrigações, e tinham passado a visar o ideal de li-
berdade interior que não era facilmente compreensível
para os romanos. Portanto, na classe dirigente romana
tradicionalista era inevitável a desconfiança para com a
filosofia e os filósofos, tanto mais se (como se vê pelo
testemunho de Cícero) quem teve maior sucesso ini-
cialmente foi a filosofia epicurista – justamente a que
recomendava que o homem se afastasse dos negócios e
afazeres políticos. Todavia, a repressão e a perseguição
só tiveram um sucesso efémero e, com o tempo, tor-
nou-se a pouco e pouco habitual e comummente aceite
que até os jovens de boa família adquirissem uma certa
educação filosófica de base, ou com viagens de instru-
ção à Grécia, ou porque em casa deles se hospedava
um filósofo grego (aliás, este tornou-se um costume
nas grandes famílias) como mestre e sobretudo como
conselheiro moral: Cícero, por exemplo, tomou lições
de Fílon de Larissa em Roma, de Antíoco em Atenas e
teve em sua casa um mestre de estoicismo, Diodoto, a
quem reconhece que deve todo o seu conhecimento da
dialética da escola.

382
Portanto, se no tempo de Cícero, um romano cul-
to, educado e também politicamente influente não
podia passar sem algumas noções de filosofia grega,
isto não significa contudo que a atividade filosófica
pudesse chegar a abranger todo o interesse de um cida-
dão da classe alta, nem que ela se tornasse a sua prin-
cipal ocupação. Mesmo Cícero se dedicou aos estudos
e à redação das suas obras filosóficas nos momentos
menos felizes da sua carreira política, isto é, quando as
lutas civis e o declínio do partido senatório o excluí-
ram realmente da participação no governo do estado.
Depois de Cícero, a maior personalidade filosófica do
mundo latino, Séneca, que também cultivara sempre
um interesse real pela filosofia, produziu o melhor das
suas obras somente quando se retirou dos negócios
públicos e abandonou o lugar de conselheiro do impe-
rador Nero. Portanto, a filosofia parece ter sido, para
estes dois grandes escritores latinos de assuntos filosó-
ficos, uma ocupação nobre que devia ser reservada aos
momentos de lazer, distantes da vida pública, e talvez
sobretudo, um refúgio e uma consolação das amargu-
ras e das derrotas que aquela vida lhes tinha reservado.
Mas no tempo de Séneca algo havia mudado na
relação entre a sociedade romana (então submetida ao
domínio de um príncipe) e a filosofia. Por um lado, o
desaparecimento de algumas das grandes escolas ate-
nienses (cf. cap. V, § 23) havia produzido uma espécie
de pulverização das sedes de ensino filosófico: em cada
cidade de boa tradição de cultura no mundo medi-
terrânico (portanto, sobretudo nas cidades da parte
oriental do império) podiam encontrar-se professores

383
particulares de filosofia que sobreviviam divulgando as
doutrinas da sua escola; por outro lado, a persistência
das principais grandes famílias romanas em ter junto
de si mestres domésticos de filosofia havia produzido
uma figura específica de filósofo, precisamente a de
um conselheiro espiritual e quase de confessor. Neste
papel vemos sobretudo os filósofos estoicos e o ideal de
liberdade interior e de autonomia que eles professavam
acabou por fazer aparecer o estoicismo como uma ide-
ologia de oposição ao poder imperial, especialmente na
segunda metade do século I d.C. e até ao fim da dinas-
tia dos Flávios, anos em que os nostálgicos da liberda-
de republicana e os opositores do principado perten-
centes à classe senatória eram tomados facilmente por
estoicos. O histórico Tácito documenta esta situação
e explica-se assim uma série de medidas restritivas con-
tra os filósofos emanadas pelos imperadores. Só com
o governo dos Antoninos se chegou a uma reconcilia-
ção com a filosofia e só então os imperadores romanos
perceberam que dela podia até advir-lhes um apoio,
dado que entre as principais escolas filosóficas havia
um acordo tácito em reconhecer a existência de uma
ordem hierárquica e providencial do mundo do qual o
imperador podia ser considerado a expressão suprema
e o garante terreno (algo explicitamente reconhecido
em alguns textos filosóficos da época); enquanto que a
única escola absolutamente alheia a uma conceção pro-
videncialista e finalística da realidade, o epicurismo, ao
continuar a professar o seu ideal de vida tranquilamen-
te afastada dos negócios não representou nenhuma
ameaça à ordem constituída.

384
Na época dos Antoninos, o século II, tornou-se
sempre mais habitual serem as comunidades citadinas
a estipendiar os mestres de filosofia; e mesmo o poder
imperial concedia de quando em vez isenções e be-
nefícios aos professores de filosofia. Por fim, em 176,
Marco Aurélio instituiu quatro cátedras de filosofia
a cargo do poder imperial na cidade de Atenas, uma
para cada uma das principais escolas (estoica, epicuris-
ta, platónica e aristotélica), celebrando assim a plena
reconciliação do poder de Roma com a filosofia grega
e reconstituindo de certa forma a situação das escolas
filosóficas que tinha existido em Atenas até à altura
do assédio e da conquista da cidade por parte de Sila.

2. AS CARACTERÍSTICAS GERAIS DA FILOSOFIA: O


REGRESSO AOS ANTIGOS, O SISTEMA,
A EXEGESE, A COMUNHÃO DE LINGUAGEM
E DE TEMAS

Em meados do século I, entre o fim da república ro-


mana e os exórdios do principado de Octaviano Augus-
to, vê-se sobretudo um movimento típico de regresso
aos antigos mestres e às tradições filosóficas que a he-
gemonia das escolas nascidas em época helenista tinha
passado para segundo plano ou até cancelado. De facto,
naqueles anos entram novamente em vigor movimentos
que se apelam a Pitágoras e a Pirro; sobretudo refloresce
de novo a tradição aristotélica e aparece uma forma de
platonismo que, em forte polémica com o ceticismo da
Academia nova, se propõe extrair dos Diálogos um con-
junto de doutrinas positivas. Durante os dois séculos

385
seguintes (I-II d.C.) estas escolas conseguirão anular a
influência do estoicismo e do epicurismo.
Há algumas características comuns a todas estas es-
colas e a principal é provavelmente a organização do
pensamento filosófico de forma sistemática, dogmática
e fechada que decerto fora alheia à ideia dos fundado-
res daquelas tradições, isto é, a Platão, Aristóteles, Pi-
tágoras; quanto ao neopirronismo a situação é, como
veremos, um pouco diferente, pois esta escola recusava-
-se por princípio a professar doutrinas positivas. Mas
a adoção da forma sistemática, isto é, a construção de
conjuntos coerentes e completos de doutrinas positivas
– de «dogmas»: por isso se fala correntemente de filoso-
fias dogmáticas – ao início foi imposta pela necessidade
de competir com as filosofias helenistas, sobretudo com
a estoica, para quem era um orgulho e um motivo de
sucesso ter podido construir um sistema logicamente
coerente de doutrinas que pareciam responder a todas
as perguntas que se podiam pôr acerca da lógica, da
física ou da ética, segundo as três partes da filosofia uni-
versalmente reconhecidas. Platónicos e aristotélicos, ou
até os pitagóricos, eram obrigados a enfrentar a filosofia
que até então era hegemónica, a saber, o estoicismo, e
entrar no seu terreno: tinham de procurar contrapor
respostas tão ou mais persuasivas para todas as questões
para as quais o estoicismo havia fornecido soluções de
peso e convincentes, e tinham de fazê-lo exibindo uma
coerência total de todas as suas teses que se mostrasse
não inferior às teses apresentadas pelos estoicos.
Naturalmente, retirar dos Diálogos de Platão, mas
também das obras da escola de Aristóteles ou dos do-

386
cumentos reconduzíveis ao pitagorismo, este tipo de
sistemas de doutrinas positivas não era nada fácil. An-
tes de mais, as obras dos mestres tinham necessidade,
portanto, de ser interpretadas à luz das exigências pos-
tas pela tarefa e pelas finalidades que os seus seguido-
res tardios se tinham dado. Isto explica por que razão
quer os platónicos quer os aristotélicos começassem
primeiro por ser exegetas das obras dos seus longín-
quos fundadores. A escrita de comentários, de ensaios
de interpretação, de manuais e de introduções gerais
tornou-se a base das filosofias que iam beber a Platão e
a Aristóteles e o fundamento do pensamento filosófico
na exegese textual é outra das características comuns
às duas escolas. Esta situação, de ter de encontrar na
interpretação textual dos mestres os fundamentos e
as razões da suas convicções, explica também porque,
ao contrário dos estoicos – que, como se disse, nesta
época se viraram sobretudo para a direção moral dos
seus seguidores –, os filósofos platónicos e aristotélicos
assumiam normalmente a figura de mestre da escola
que dá aulas explicando o texto dos seus clássicos e
que escreve em função deste objetivo de ensino.
Por fim, é preciso lembrar que o confronto contí-
nuo com a filosofia estoica, que há séculos era a que
dominava o palco e orientava o debate entre as esco-
las filosóficas, obrigou as suas rivais a adotar, de certa
forma, a sua linguagem e a enfrentar as problemáticas
típicas do estoicismo, como, por exemplo, as do silo-
gismo hipotético ou disjuntivo, a da possibilidade de
reconhecer a existência de perceções fiéis dos fenóme-
nos que fossem veiculadas pelos sentidos, a da autos-

387
suficiência da virtude com vista à felicidade. Termos
como «perceção apreensiva» ou «assentimento», o uso
das formas fundamentais do silogismo estoico, termos
como os que acabámos de recordar ou os de fado e
providência também foram adotados pelas escolas ri-
vais do estoicismo e criou-se uma certa comunhão de
linguagem entre as escolas filosóficas, além de um blo-
co de problemas e temas que geralmente se discutiam
em todas as escolas. Por um período bastante longo
(entre o século XIX e as primeiras sete ou oito décadas
do século XX) esta situação induziu a historiografia
europeia a definir toda a filosofia entre o século I a.C.
e o aparecimento do neoplatonismo pelo termo desva-
lorizador de «ecletismo»: vocábulo que deriva do gre-
go eklegein (que significa «escolher») e que de forma
algo arbitrária estendia a todas as escolas filosóficas da
época a atitude que era própria apenas de uma escola
obscura que realmente se autodefinia como «eclética»,
fundada por um certo Pótamon de Alexandria algures
entre os séculos I e II. Sobre ele a fonte diz-nos que
«fundara a escola eclética escolhendo as doutrinas de
cada uma das outras escolas» e o resultado final dá a
impressão de uma amálgama bastante superficial de
teorias de origem diversa. De modo bastante arbi-
trário a historiografia europeia quis juntar à atitude
de Pótamon a situação (que se criara e motivara de
forma bem diversa) das outras filosofias da época que
mostravam usar uma linguagem em parte comum e
discutiam problemas mais ou menos comuns tam-
bém; assim a historiografia europeia alargou a toda a
filosofia daqueles séculos o juízo negativo que parecia

388
inevitável atribuir a Pótamon: portanto, o ecletismo
passou a significar falta de originalidade especulativa,
impotência criativa, repetição de temas, inclinação
para a adoção acrítica de opiniões alheias, confusão de
ideias e de posições doutrinais.
Mais recentemente, todavia, nas últimas décadas
do século XX a historiografia reviu progressivamente
estes juízos e quase abandonou o uso da categoria de
ecletismo. Hoje tende-se a reconhecer um empenha-
mento sério de fidelidade à doutrina dos mestres fun-
dadores também por parte daqueles filósofos (platóni-
cos ou aristotélicos sobretudo, mas também estoicos)
que ainda assim mostram tomar em consideração as
doutrinas, os métodos e a linguagem das escolas ri-
vais. Aliás, torna-se até mais interessante descobrir o
esforço de cada um deles para salvar o essencial das
doutrinas legadas pela sua escola mesmo que essas se-
jam repensadas à luz da linguagem, dos métodos e da
problemática provenientes das escolas rivais.

3. A VIRAGEM DA FILOSOFIA NO SÉCULO I A.C.

Para construir a situação que descrevemos nos dois


parágrafos anteriores foram sobretudo importantes
alguns desenvolvimentos que se verificaram nas tradi-
ções filosóficas que se apoiavam em Platão e Aristóte-
les. Já se falou (cap. V, § 23) da crise final da Academia
nova e da dispersão dos seus membros após a revolta
de Atenas. Entre os discípulos do último escolarca
académico Fílon de Larissa sobressaía Antíoco de As-
calona, na Palestina, que conservou por muito tempo

389
posições céticas, acabando a pouco e pouco por desen-
volver uma insatisfação profunda por elas. O conflito
com Fílon, segundo informação de Cícero, explodiu
em público pouco depois de 87, quando para Alexan-
dria, onde Antíoco acompanhara o general romano
Lúculo, foram levados livros que Fílon compusera no
seu exílio romano. Estes livros indignaram Antíoco
que, por um lado, deixara de reconhecer neles as po-
sições tradicionais da Academia nova e, por outro, já
formulara uma sua posição muito mais decidida do
que a de Fílon, ao reconhecer a possibilidade de uma
interpretação positiva do platonismo.
Conhecemos as novas convicções de Antíoco so-
bretudo pelo relatório de Cícero, que teve oportuni-
dade de o ouvir com atenção em Atenas, em 78-77.
Agora ele defendia que Platão havia transmitido aos
seus discípulos uma «doutrina completíssima» em que
se reconheciam quer os antigos académicos, quer Aris-
tóteles (exceto pela recusa da teoria das ideias, recusa
que Antíoco deplorava) e dentro de certos limites até
Teofrasto; desta unidade doutrinal dos «antigos» o
estoicismo representava apenas uma «correção», mas
os estoicos também tinham introduzido novidades
sobretudo terminológicas, que porém tinham compli-
cado e confundido muito as coisas. Com base nestas
premissas Antíoco enunciava um sistema de doutrinas
que pretendia ser o dos seus «antigos» e que abrangia
plenamente as três partes tradicionais da filosofia: a
física, a ética e a lógica. Os históricos modernos por
muito tempo pensaram que o sistema de Antíoco e
dos seus «antigos» fosse, na verdade, simplesmente o

390
sistema estoico, aceitando os juízos que já os seus con-
temporâneos (Cícero) e os sucessivos filósofos platóni-
cos (Numénio) tinham formulado de forma polémica;
e indubitavelmente o âmago das teses de Antíoco que
Cícero apresenta nos Académicos ressente-se enorme-
mente da influência estoica. Todavia, convém ter em
consideração que, na teoria do conhecimento de An-
tíoco (claramente com fundamento sensista), também
a teoria de Aristóteles pode confluir para o estoicismo
e que Antíoco atribuía a Platão tudo aquilo que acha-
va aceitável em Aristóteles. Do conhecimento sensível
Antíoco devia elevar-se às ideias de qualquer maneira,
talvez através da mediação das formas imanentes de
Aristóteles, que ele provavelmente considerava objeto
da perceção apreensiva de que falavam os estoicos.
Quanto à ética, Antíoco estava muito mais próxi-
mo dos peripatéticos do que dos estoicos. Se, ao que
parece, a doutrina exposta por Cícero no livro V do De
finibus bonorum et malorum lhe pertence, todavia ele
partia da teoria da oikeiosis, que se tornara um bem co-
mum das escolas de filosofia, apesar de formular o seu
resultado em termos polémicos dirigidos especialmen-
te ao estoicismo: de facto, a finalidade de uma vida
segundo natureza seria «gozar dos primeiros dons da
natureza em união com a virtude». Desmentia assim o
dogma estoico da autossuficiência da virtude com vis-
ta à felicidade e aceitava como indispensáveis para ela
aqueles que, em termos especificamente aristotélicos,
seriam os bens do corpo. Em suma, parece que para
Antíoco em geral a filosofia de Aristóteles servia para
mediar entre Platão e o estoicismo.

391
Porém, se Antíoco hoje deixou de ser, em geral,
considerado uma autoridade que explicaria por si
mesma o renascimento platónico dos séculos seguin-
tes, a razão principal é o facto de nele faltar (pelo
que sabemos) uma metafísica clara e uma filosofia da
transcendência, além do reconhecimento da existên-
cia das ideias, cuja função é bastante obscura nele.
Metafísica e doutrina da transcendência caracterizam,
pelo contrário, o pouco que sabemos da filosofia de
Eudoro de Alexandria, ativo na segunda metade do
século I a.C., que em comum com Antíoco manifes-
tou decerto interesse por Aristóteles, de quem estudou
e conheceu pelo menos a Metafísica e as Categorias,
unindo a este interesse aquele pelo pitagorismo, que o
levou a enunciar como «platónica» e proveniente dos
pitagóricos uma teoria em que o primeiro Uno supre-
mamente transcendente teria dado origem a um par
de princípios-elementos opostos, o segundo Uno e a
Díade, retirados da tradição da Academia antiga e do
ensinamento oral de Platão, como refere Aristóteles.
Esta teoria pitagórica e platónica foi usada por Eu-
doro também para interpretar o Timeu, obra da qual
sabemos que se ocupou. Precisamente a Eudoro deve
remontar a nova orientação para a transcendência
também da ética platónica que, ao abandonar a es-
truturação naturalista herdada pelo helenismo e ainda
visível em Antíoco, se baseou na proposição do Teete-
to, segundo a qual é preciso «tornar-se semelhante ao
deus o máximo possível». Esta fórmula, que Eudoro
também defendeu ser comum a Platão e à tradição
proveniente de Pitágoras, impôs-se em todo o pla-

392
tonismo sucessivo, que depois de Eudoro se tornou
efetivamente uma filosofia orientada para a metafísica
e construída em torno à transcendência de um princí-
pio divino superior às próprias ideias.
As numerosas referências que neste parágrafo se
fizeram à filosofia de Aristóteles implicam que nos
protagonistas da ‘reviravolta’ platónica do século I es-
tivesse presente um bom conhecimento das suas obras
escolásticas. É um facto assente que renasceu por es-
tas obras, por muito tempo deixadas de lado na idade
helenista (mas não totalmente inacessíveis, como pre-
tendia uma lenda muito conhecida e referida por al-
gumas fontes antigas), um interesse muito forte desde
o início do século I a.C. e que este interesse produziu,
no final, uma edição conjunta delas devida ao filóso-
fo de Rodes, Andronico, provavelmente em meados
do século ou um pouco depois. O arranjo editorial
de Andronico consistia essencialmente na reunião de
grandes obras conjuntas dos escritos esparsos e das no-
tas das aulas de Aristóteles, ligadas por ele segundo o
critério da afinidade temática; assim deve ter nascido,
com toda a probabilidade, também a Metafísica (cf.
acima, cap. IV, § 6), que cedo se tornou o ponto car-
deal da reconstrução e da interpretação do (suposto)
sistema aristotélico. A edição de Andronico, acompa-
nhada por Tábuas, ou índices, e por outras obras de
paráfrases ou de comentários de alguns escritos (por
exemplo, as Categorias), facilitou muitíssimo a difusão
do conhecimento dos escritos escolásticos e, a pouco
e pouco, também o abandono da leitura e depois o
desaparecimento das obras exotéricas. A centralidade

393
que se atribuiu logo à Metafísica orientou também o
aristotelismo para uma filosofia da transcendência e
para a primazia da teologia, como se pode ver por um
dos primeiros intérpretes e expositores da filosofia de
Aristóteles de que temos notícia, Nicolau de Damas-
co, ativo alguns anos após a edição de Andronico.

4. A DIFUSÃO DO MÉDIO-PLATONISMO ENTRE


OS SÉCULOS I E II

Para a nova forma de platonismo que começou a ser


elaborada entre a filosofia de Antíoco e a de Eudoro, a
historiografia moderna adotou desde o início do século
XX o nome de médio-platonismo, útil pelo menos para
distinguir esta fase da história da tradição platónica da
outra sucessivamente inaugurada por Plotino, o neo-
platonismo. Mas o uso do nome não implica de todo a
tese de que tenha existido uma unidade doutrinal en-
tre os pensadores que hoje podem ser definidos como
médio-platónicos; todos tinham em comum qualquer
coisa, decerto: a conceção sistemática da filosofia, a
vontade de servir-se do texto dos Diálogos, alguns mé-
todos exegéticos fundamentais, uma orientação para a
transcendência e a primazia da teologia sobre as outras
disciplinas filosóficas. Mas os modos de entender Pla-
tão eram múltiplos e as contraposições entre as escolas
de interpretação eram também muito fortes.
É possível que o aparecimento da interpretação
de Andronico produzisse logo algum transtorno.
Embora não se trate de um verdadeiro filósofo, mas
de um bom divulgador de filosofia suficientemente

394
competente, no século I a.C. o caso do grande ora-
dor e homem político romano Cícero é significativo.
Como já se disse, ele teve a ocasião de escutar quer
Antíoco quer (antes dele) Fílon de Larissa e de ambos
ficou com impressões fortes e influências duradouras:
do mais velho dos dois mestres conservou uma incli-
nação de fundo para o ceticismo no que diz respeito
à possibilidade do conhecimento e à atendibilidade
dos sentidos (basta pensar nos livros dos Académicos),
do mais jovem a tendência para a reconciliação das
heranças das três principais filosofias, sobretudo em
matéria de doutrinas morais, onde ele parece oscilar
entre uma organização filosófica à maneira de Antíoco
e dos peripatéticos (De finibus bonorum et malorum)
e um preceituário inspirado no estoicismo (Tuscula-
ne), sobretudo na forma mais recente da doutrina de
Panécio (De officiis). Mas a grande importância de Cí-
cero como filósofo não reside decerto nas suas opções
doutrinais, um pouco incertas e, contudo, sempre cir-
cunscritas à tradição platónica e académica, nem em
contributos originais para a solução de alguns proble-
mas de relevo, mas reside no trabalho fundamental de
divulgação do pensamento grego, especialmente das
doutrinas das grandes escolas helenistas, para as quais
ele é uma fonte insubstituível, e na criação de uma
linguagem filosófica latina destinada a influir profun-
damente na história do pensamento ocidental. Os ju-
ízos que os históricos modernos deram da sua obra
filosófica, muitas vezes severos, não devem ocultar a
enorme dívida de reconhecimento que a filosofia e a
historiografia filosófica têm ainda para com ele.

395
À exceção de Plutarco (bem diversamente profundo
e motivado: cf. abaixo, § 5), Cícero é o último escritor
ligado à tradição platónica onde se manifesta uma he-
rança duradoura das posições da Academia nova. Nas
últimas décadas do século I a.C. e no início do século
seguinte vemos, pelo contrário, a difusão progressiva de
um platonismo dogmático mais próximo, poder-se-ia
dizer, do sistema de Eudoro do que do de Antíoco, dada
a sua forte tendência para a primazia da metafísica e a
sua orientação teológica, mas afim a ambas pela dispo-
nibilidade a acolher doutrinas aristotélicas. Alexandria
foi provavelmente um centro importante na elaboração
desta filosofia, a grande cidade da cultura do Oriente
onde Eudoro estivera ativo. É possível, embora não seja
seguro, que possamos fazer remontar a ambientes ale-
xandrinos influenciados por Eudoro a redação de um
conjunto de tratados pseudo-pitagóricos, atribuídos a
personagens reais daquela tradição filosófica, como, por
exemplo, Arquitas ou outros nomes de pura invenção.
Nesses tratados ilustra-se uma doutrina que pretende
ser pitagórica, mas é fundamentalmente platónica e rica
de alusões àquelas ideias do platonismo e da Academia
antiga que podiam parecer mais facilmente pitagóricos,
como a doutrina dos dois princípios opostos, o Uno e
a díade. Mas sobretudo em alguns escritos de caráter
moral aparecem doutrinas aristotélicas típicas como a
da mediação virtuosa, que serão recuperadas também
na ética de muitos médio-platónicos. A datação destes
escritos é todavia incerta e subsiste a possibilidade de
que eles tenham sido elaborados, pelo menos em parte,
numa época anterior a Eudoro.

396
Mas que nas primeiras décadas do século I d.C. já
existisse em Alexandria uma forte presença de um pla-
tonismo sistematicamente estruturado segundo linhas
comuns ao médio-platonismo que nós conhecemos é
garantido pela obra imponente do hebreu Fílon (de
Alexandria, precisamente) que viveu mais ou menos
de 25 a.C. a 40 depois de Cristo. Fílon pertence à
história do judaísmo helenizado, mas a sua obra,
constituída por uma rica série de comentários aos
livros do Antigo Testamento e, em particular, do Pen-
tateuco, é relevante também para a história da filosofia
antiga como testemunho da existência e da influência,
durante a vida do escritor, de muitas doutrinas típicas
do médio-platonismo de que ele muito se serviu para
a interpretação dos textos sagrados do seu povo (ne-
les usa o método alegórico de explicação, recorrendo
também a ideias de outras filosofias gregas como as de
Aristóteles, dos estoicos, dos pitagóricos). A absoluta
transcendência divina e a admissão de intermediários
entre deus e o mundo é um dos aspetos que aproxi-
mam Fílon do médio-platonismo, embora para ele os
intermediários sejam bastante diferentes dos que são
próprios desta filosofia (de facto, são o Logos, que po-
deria ser aproximado a um segundo deus médio-pla-
tónico, e as potências, dynameis divinas, que podem
ser comparadas à «potência», distinta da essência do
deus e que agem no mundo, assunto de que fala um
tratado De mundo falsamente atribuído a Aristóteles,
mas na realidade pertinente para esta fase da tradição
platónica). Além do mais, Fílon fala – como quase to-
dos os médio-platónicos – das ideias como se fossem

397
pensamentos de deus e, como alguns dos médio-pla-
tónicos, declara a inefabilidade do deus transcendente.
Por fim, em duas das Cartas a Lucílio de Séneca (a 58 e
a 65), escritas nos anos sessenta do século I, aparecem
igualmente as ideias vistas como pensamentos divinos
inseridas numa hierarquia do ser que cede o lugar,
por baixo das ideias, também às formas imanentes de
Aristóteles. Portanto, uma metafísica médio-platónica
estava já suficientemente estruturada em meados do
século I da nossa era e apresentava a inclusão caracte-
rística de doutrinas aristotélicas.

5. OS PRINCIPAIS FILÓSOFOS MÉDIO-


-PLATÓNICOS

A atitude que se deve tomar com as doutrinas de


Aristóteles representa precisamente uma das princi-
pais diferenças entre os médio-platónicos dos séculos
I e II d.C.: embora a maioria deles estivesse propensa
a aceitá-las (especialmente nos campos da lógica, da
teologia e da ética), não faltaram alguns adversários
obstinados do aristotelismo decididos a defender a pu-
reza da tradição platónica.
O maior documento do platonismo médio dispo-
nível contra Aristóteles é um manual de introdução à
filosofia de Platão intitulado Didaskalikos (isto é, «dis-
curso de ensino das doutrinas de Platão») que a tradi-
ção manuscrita imputou a um certo Alcínoo de quem
nada se sabe, mas por muito tempo foi atribuído con-
jecturalmente pelos históricos modernos a Albino,
que é lembrado pelos neoplatónicos como um mestre

398
importante da sua escola e que foi professor de Galeno
na primeira metade do século II. Hoje esta atribuição
foi quase universalmente abandonada e voltou-se à pa-
ternidade da tradição manuscrita; a pertença ao século
II de Alcínoo e do seu manual deveria ser garantida
pelas numerosas afinidades que a obra manifesta com
outro manual platónico que nos chegou, o manual em
língua latina Sobre Platão e a sua doutrina de Apuleio,
que viveu precisamente no século II, e com as doutri-
nas de pensadores que viveram também naquele sécu-
lo, tais como Numénio e Galeno. Alcínoo expõe a filo-
sofia de Platão servindo-se de esquemas e de partições
da matéria amplamente retiradas de Aristóteles e dele
recebe essencialmente a doutrina das formas imanen-
tes e a do silogismo, além da teoria das virtudes éticas,
mas segue mais fielmente o Timeu quanto à física e à
psicologia. Contudo, a parte mais interessante do seu
livro é decerto a que é dedicada à «teologia» (de facto,
Alcínoo aceita o termo aristotélico), em que o autor
expõe uma teoria que admite a existência de dois-três
graus do divino, pois existe como grau supremo do
ser um primeiro deus absolutamente transcendente e
que se dedica eternamente ao pensamento de si mes-
mo (aqui é evidente o empréstimo pedido a Aristó-
teles): o resultado desta autocontemplação divina são
as ideias, que deixam de ter uma existência exterior e
independente da mente divina, mas se encontram in-
cluídas nela como pensamentos seus. Sob o primeiro
deus, que Alcínoo declara por vezes ser inefável, mes-
mo que com algumas incoerências, encontra-se a alma
do mundo, que o primeiro deus não cria, dado que

399
ela existe eternamente e o primeiro deus se limita a
conduzi-la da potência ao ato despertando e ativando
nela o intelecto, ao qual caberá, como segundo deus, a
operação demiúrgica de pôr ordem no mundo; nesta
operação o intelecto demiúrgico orienta-se para o con-
junto das ideias (uma espécie de modelo) que conhece
ao olhar para o primeiro deus.
Esta estrutura doutrinal encontra-se também nos
fragmentos de Numénio de Apameia (século II), que
insiste muito polemicamente na identificação do de-
miurgo com o segundo intelecto divino e na existência
de todo inativa do primeiro, que ele chama também de
«rei» e vê sempre e apenas concentrado em si mesmo.
Todavia, não podemos dizer se a teoria da hierarquia
divina é de Numénio e se o manual de Alcínoo pressu-
põe o conhecimento do filósofo de Apameia: ignora-
mos a cronologia relativa aos dois. A interpretação que
Numénio apresentava do platonismo estava também
fundada numa reconstrução da história da escola que
era exposta numa obra intitulada Sobre a dissensão dos
académicos de Platão, de que possuímos fragmentos de
uma certa amplidão. Neste texto Numénio criticava os
académicos antigos e também Aristóteles pela sua in-
fidelidade ao mestre, mas atacava sobretudo Arcesilau
e os filósofos da Academia nova considerando-os trai-
dores da filosofia platónica, concordando pelo menos
num ponto com Antíoco (que era criticado também
por ter atribuído ao platonismo «milhares» de noções
que lhe eram alheias). Além disso, colocava explici-
tamente Platão na tradição pitagórica, da qual faria
parte também Sócrates, que Numénio considerava o

400
inspirador direto das doutrinas teológicas de Platão.
Mas parece que ele teria definido Platão como «um
Moisés que falava ático» e teria defendido a existência
de um acordo entre os ensinamentos de Pitágoras e
de Platão e os ritos e doutrinas dos «Brâmanes, He-
breus, Magos e Egípcios». A interpretação metafísica e
de tipo teológico do platonismo procurava um apoio
também nos cultos religiosos orientais, com um pro-
cedimento análogo ao de Plutarco no De Iside et Osi-
ride que testemunhava um interesse pela religião da
Índia que depois seria comum também a Plotino (de
resto, este foi acusado por certos seus detratores de ter
simplesmente plagiado a filosofia de Numénio).
Numénio foi muitas vezes considerado um neo-
platónico pelos modernos: na realidade, a demarcação
entre pitagorismo e platonismo não era muito níti-
da entre os séculos I e II. Notam-se afinidades com o
médio-platonismo, por exemplo, nas obras (Introdu-
ção à aritmética, Teologia da aritmética: século II) de
Nicómaco de Gérasa e nos fragmentos de Moderado
de Gades (após a primeira metade do século I), que
parece ter falado de uma hierarquia de três graus do
Uno onde até se poderia ver antecipada a tríade das
hipóstases de Plotino. E a inserção de Platão (além de
Sócrates e de Aristóteles) na tradição pitagórica en-
contra-se também no autor médio-platónico que me-
lhor conhecemos, ou seja, Plutarco de Queroneia (vi-
veu entre os anos 50 e 125), que é o célebre biógrafo
das Vidas paralelas, mas também um notável pensador
na tradição platónica, cuja obra filosófica foi inserida
na ampla recolha dos Moralia (cerca de setenta escri-

401
tos, intitulados desta maneira por neles prevalecerem as
obras de caráter moral). Mas a interpretação platónica de
Plutarco é verdadeiramente peculiar e, apesar de mostrar
muitos traços em comum com os autores favoráveis a
Aristóteles e com tendência para o pitagorismo, na rea-
lidade não pode ser comparada com nenhuma outra das
que conhecemos.
De facto, na época médio-platónica Plutarco foi o úni-
co defensor certo da tese de uma unidade fundamental da
tradição platónica de que teriam feito parte também os fi-
lósofos da Academia nova. Das doutrinas destes, Plutarco
aceitou e defendeu (especialmente na obra escrita contra o
epicurista Colotes) também a suspensão do assentimento,
que ele limitava unicamente aos dados da sensação e aos
conhecimentos fundados nela. Mas Plutarco não era um
cético e reconhecia também a existência de um nível me-
tafísico do ser (o do divino e do inteligível), que atribuía
explicitamente a Platão e a Sócrates, mas nunca à Aca-
demia nova, e que subtraía à suspensão do juízo; porém
recomendava «cautela» com este nível, uma cautela que se
defendesse das afirmações simplesmente dogmáticas e se
contentasse com manter-se ao nível da verosimilhança e
da plausibilidade, segundo a lição do Timeu. Nestes limi-
tes podia dar-se ao luxo de professar uma metafísica e uma
cosmologia de inspiração platónica. Ele interpreta muito
à letra o Timeu a propósito do ponto que maiormente
se discutia, o da geração do mundo e da alma, em que
Plutarco entende o texto no sentido de uma geração real
que aconteceu no tempo: porém, ele mesmo lembra que
a maioria dos platónicos era favorável a uma interpreta-
ção metafórica, segundo a qual Platão teria mencionado

402
um mundo «gerado» apenas com um objetivo didático
e para assinalar claramente a dependência do mundo da
causalidade superior do deus. De facto, em Alcínoo en-
contramos uma interpretação deste tipo. Mas Plutarco
não admite a existência de uma hierarquia de deuses e faz
do seu deus o responsável pela realização demiúrgica da
corporeidade, e faz dele também o pai da alma, que (na
sua parte superior e racional) deriva dele como parte sua.
No que diz respeito à génese da alma, todavia, até neste
ponto contradiz as posições mais comuns dos platónicos:
a geração de que fala o Timeu é também real e o demiurgo
não produz a alma, apenas insufla a racionalidade numa
alma pré-cósmica já existente, mas que antes da sua in-
tervenção era desordenada e fundamentalmente malvada.
Quanto às ideias, elas têm em Plutarco um espaço muito
reduzido e parecem servir apenas de paradigma utilizado
pelo deus na geração do mundo sensível. Além disso, pa-
rece de certa maneira compactá-las com o demiurgo, mas
sem adotar claramente a teoria geral dos médio-platónicos
que faz delas os pensamentos do deus. Por fim, no escri-
to Sobre virtude moral, fortemente polémico para com os
estoicos, professa a doutrina aristotélica da virtude moral
como mediação entre o excesso e o defeito, mas parece
apresentá-la, juntamente com o preceito da moderação
das paixões, como a doutrina comum a toda a tradição
platónico-pitagórica. E Plutarco dedicou à demolição
dos conceitos fundamentais do estoicismo diversas outras
obras em que ele retomava as críticas contra Zenão e Cri-
sipo já formuladas pelos filósofos da Academia nova.
Todos os platónicos até aqui nomeados devem algo,
ou muito, a Aristóteles, mesmo quando são polémicos em

403
relação a ele (que é o caso de Numénio). Mas houve tam-
bém os que afastavam totalmente a filosofia de Aristóteles
como se fosse de todo inconciliável com o platonismo.
Temos notícias de numerosos críticos das categorias aris-
totélicas (Lúcio, Nicóstrato, Severo), que provavelmente
influíram na atitude de Plotino; mas o mais conhecido
dos adversários de Aristóteles é Ático, que viveu na segun-
da metade do século II, autor de um tratado Contra os que
pretendem interpretar Platão por meio de Aristóteles, do qual
possuímos fragmentos bastante amplos e que se dirige so-
bretudo contra os platónicos abertos à filosofia aristoté-
lica. Ático critica os seus pontos fundamentais com tons
agressivos mais do que com verdadeira profundidade: a
conceção da felicidade (para a qual, segundo Ático, seria
suficiente apenas a virtude), a negação da providência e da
imortalidade da alma e também a das ideias, a física celes-
te, a distinção entre alma e intelecto, a tese da eternidade
do mundo. Mas pelo tom por vezes amargurado com o
qual se dirige aos seus colegas platónicos que se deixaram
influenciar pelo aristotelismo tem-se a impressão de que
Ático tinha perfeita noção de estar a defender uma posi-
ção minoritária e quase desesperada.

6. OS COMENTADORES DE ARISTÓTELES

Com Andronico a filosofia dos aristotélicos pas-


sou a ser feita sobretudo pelo comentário das obras
escolásticas do mestre e uma rica série de nomes de
comentadores entre os séculos I a.C. e II d.C. po-
deria ser compilada com base nas citações conserva-
das pelos comentadores sucessivos. Contudo sabe-se

404
muito pouco das opiniões pessoais destes autores e
o primeiro comentador de que se conservou pelo
menos uma parte da obra é Aspásio, que viveu na
primeira metade do século II. Dele temos partes de
um comentário sobre a Ética a Nicómaco que pare-
cem notáveis principalmente por revelarem uma cer-
ta afinidade com a interpretação médio-platónica e
‘pitagorizante’ da ética tal como a encontramos em
Plutarco (veja-se acima, § 5) e em alguns escritos
pseudo-pitagóricos. O mais conhecido e o maior dos
comentadores foi porém Alexandre de Afrodísias
(uma cidade costeira da Anatólia), que viveu pro-
vavelmente de meados do século II pelo menos até
aos primeiros anos do século III, dado que numa das
suas obras pessoais agradece aos imperadores roma-
nos Septímio Severo e Caracala (associado ao trono
do pai de 198 a 209) por ter sido nomeado profes-
sor de filosofia aristotélica para uma cátedra que era
plausivelmente a de Atenas.
Da sua vasta obra de interpretação, que se estendeu
a quase todo o corpus aristotélico, possuímos o comen-
tário aos primeiros cinco livros da Metafísica (o comen-
tário aos livros seguintes não é autêntico), o comentário
ao primeiro livro dos Primeiros Analíticos, os comentá-
rios ao De sensu, aos Tópicos e aos Meteorologica. Nestes
estudos, caracterizados por um profundo conhecimento
da obra e da filosofia de Aristóteles, Alexandre aperfei-
çoa o método do comentário sistemático interpretando
Aristóteles por meio de Aristóteles, quer dizer, ligando
a passagem que está a ser examinada com outras de ar-
gumento afim que se podem encontrar no corpus dos

405
escritos escolásticos de maneira a estabelecer uma co-
erência das conceções o máximo possível perfeita. De
todos estes comentários conservados sobressai um aos
primeiros livros da Metafísica, da qual Alexandre con-
segue propor uma interpretação sistemática e unificada
em que a metafísica pensada como ciência geral do ser e,
por conseguinte, da substância é logicamente compatí-
vel e se concilia com a ciência da substância mais nobre
e elevada, isto é, com a teologia, que se coloca portanto
no topo do saber como a primeira, mas também a mais
universal das ciências teoréticas.
Além dos comentários (e fundando-se no perfeito
conhecimento que pela sua composição tinha adquiri-
do do pensamento de Aristóteles), Alexandre escreveu
também obras pessoais, algumas das quais chegaram
até nós na redação original do autor, enquanto que
outras (como o tratado Sobre a providência) nos che-
garam traduzidas para o árabe. Destas obras as prin-
cipais são os três tratados Sobre a mistura, Sobre o fado
e Sobre a alma; mas também possuímos quatro livros
das Questões, que talvez contenham também materiais
provenientes da escola de Alexandre. Uma caracterís-
tica comum aos três tratados maiores é a forte tendên-
cia polémica contra o estoicismo, que domina intei-
ramente o escrito sobre a mistura, em que Alexandre
critica a teoria estoica da mistura total baseando-se na
física aristotélica, mas também sobre polémicas neoa-
cadémicas anteriores contra Crisipo; por isso, ele ten-
de a apresentar a tese estoica como se ela caísse no
paradoxo de admitir literalmente que um corpo pode
ocupar fisicamente o mesmo espaço que outro corpo.

406
O estoicismo é também um dos alvos, aliás o prin-
cipal, do tratado sobre o fado, que porém vai para lá
da polémica contra aquela escola e se apresenta mais
como uma reflexão geral sobre o determinismo, que
Alexandre se preocupa com distinguir bem da filosofia
de Aristóteles. O interesse maior da obra reside preci-
samente na grande consciência que o seu autor tem do
risco iminente que correm algumas teses aristotélicas,
especialmente na ética, de poderem ser entendidas ou
desenvolvidas em sentido determinista. São notáveis
a cautela e a perspicácia com as quais Alexandre trata
a doutrina aristotélica da voluntariedade e da respon-
sabilidade humana nas ações. Ele usa uma linguagem
fortemente polémica em relação aos assertores de uma
dependência do homem da suposta concatenação fatal
das causas, mas presta também muita atenção a não
se deixar levar por reivindicações incondicionadas
de liberdade para o ser humano, pois percebe muito
bem que a teoria aristotélica dos costumes morais
não permitiria afirmar, sem qualificações ulteriores,
que em cada circunstância e em cada momento o
homem é livre de fazer ou não qualquer ação, ou
então de fazer uma ação, e também a ação oposta; tal
como a conceção aristotélica do divino não permitiria
atribuir à divindade o conhecimento prévio de cada
ação particular que seria em seguida levada a cabo por
cada indivíduo. Todavia, nos limites impostos pela
filosofia do mestre, Alexandre consegue inserir uma
teoria «aristotélica» do fado em que este é visto antes
de tudo como a influência natural que os movimentos
dos corpos celestes têm sobre a geração e a corrupção

407
no mundo sublunar, tocando diretamente o ciclo
biológico das espécies. Porém o passo seguinte dado
por Alexandre causa uma certa dificuldade, porque
também o destino de cada indivíduo estaria inscrito
na sua constituição «natural» (convém lembrar que
Alexandre se apressa a distinguir esta natureza indi-
vidual da necessidade: quem deseja ardentemente os
prazeres, por exemplo, viverá em geral uma vida de
intemperante, mas há fatores diversos, como as curas e
as admoestações, que podem fazer mudar o seu com-
portamento).
O mais importante dos escritos pessoais de Ale-
xandre é dedicado à alma. Trata-se de uma exposição
abrangente da teoria psicológica de Aristóteles fundada
no comentário anteriormente composto para o De ani-
ma. Esta obra é causa também de interpretações muito
divergentes que se propuseram em idade moderna para
o pensamento de Alexandre. A definição que Alexandre
dá da alma como «a forma ou a potência resultante da
mistura qualificada dos corpos elementares» foi muitas
vezes interpretada como uma teoria materialista que fa-
ria nascer a alma da combinação da matéria constituti-
va do corpo; mas esta conceção (segundo informações
conservadas por Galeno) já estava presente na tradição
aristotélica desde Andronico e Alexandre defendia que
a devia obter de algumas passagens do primeiro livro
do tratado de Aristóteles. Por outro lado, ele esforçava-
-se também por acentuar o mais possível a imateriali-
dade da alma realçando que esta devia ser identificada
não diretamente pela mistura dos corpos elementares,
mas pela potência ou forma daí resultante. Pelo con-

408
trário, outros históricos modernos, dirigindo a atenção
sobretudo para a identificação proposta por Alexandre
do intelecto «produtivo» de que falava Aristóteles (cf.
acima, cap. IV, § 5) com o deus-motor imóvel da Me-
tafísica que, segundo Alexandre, se torna presente na
alma humana quando ela pensa nele, quiseram ver no
comentador um precursor da metafísica neoplatónica
e o defensor de uma espécie de união mística com o
princípio divino. Mas não há nada de místico na teoria
de Alexandre, que realça sobriamente a precariedade e
a transitoriedade daquela presença e constrói também
a sua doutrina do intelecto humano, declarado explici-
tamente como sendo todo mortal, sem nunca recorrer
à intervenção do intelecto divino. Alexandre distingue
três graus de intelecto: o intelecto «material» ou poten-
cial, que é a mera disposição a receber as formas que
nele se inscrevem como se fosse uma tábua origina-
riamente sem signos; o intelecto «como hábito», que
nasce das repetidas apreensões do universal mediante a
perceção, a experiência e o estudo; por fim, o intelecto
«em ato», que é capaz de pensar por si mesmo. A teoria
que acabámos de resumir mostra bem que Alexandre
concebe o intelecto humano como estando em perfeita
continuidade com as funções inferiores da alma e, em
última instância, com a perceção sensível. O acesso ao
conhecimento do divino é apenas um momento transi-
tório da vida de uma alma intelectiva embora esta seja
sempre inteiramente mortal. Alexandre eliminou toda a
ambiguidade da doutrina aristotélica do intelecto, sem
renunciar todavia a conceder ao ser humano uma rela-
ção qualquer com o nível do divino.

409
7. O NEOPIRRONISMO E SEXTO EMPÍRICO

É difícil separar a retomada do ceticismo pirrónico


no século I a.C. daquele movimento difuso de regres-
so aos antigos e à obra escrita dos fundadores (quando
esta existia) que se manifestou entre os seguidores da
escola de Platão e os da escola de Aristóteles. No caso
do pirronismo, conhecido provavelmente através da
obra de Tímon, quem primeiro se religou a Pirro foi
Enesidemo de Cnossos, de quem sabemos muito pou-
co, mas que teria dedicado a sua obra intitulada Ar-
gumentos pirrónicos a um político romano eminente,
Hélio Tuberão, que as fontes apresentam como sendo
pessoa inclinada para a filosofia da Academia nova e
(talvez) «condiscípulo» precisamente de Enesidemo.
Estas notícias parecem autorizar a reconstrução feita
por estes históricos que defendem que Enesidemo,
que antes fora um académico, se teria virado para o
pirronismo porque estava insatisfeito com os últimos
desenvolvimentos da filosofia neoacadémica, sobretu-
do de Fílon de Alexandria a Antíoco. De facto, pare-
ce que ele acusava os académicos de se terem tornado
«estoicos que combatiam contra outros estoicos», e
mesmo que ele não estivesse a aludir propriamente à
aceitação de doutrinas estoicas, aludia pelo menos ao
tipo de colocação do problema do conhecimento em
termos especificamente estoicos, como acontecia com
Fílon e em geral com os outros académicos.
De facto, é dúbia a interpretação da notícia que
faria de Enesidemo um condiscípulo dos académicos,
sendo possível que ele tivesse dado voz à sua insatis-

410
fação por aquela escola embora permanecesse de todo
alheio a ela. A verdade é que ele chegou a acusar os
académicos de professarem um dogmatismo negativo,
dado que declaravam a incompreensibilidade dos fe-
nómenos (pelo menos até ao último Fílon), enquanto
que, na sua opinião, o bom pirrónico não teria corrido
sequer o risco de fazer esta afirmação, que soa preci-
samente dogmática porque pretende definir os fenó-
menos, e ficar-se-ia prudentemente pelas afirmações
do mestre, dizendo, por exemplo, que os fenómenos
não são mais de uma maneira do que de outra, não
são apreensíveis por vezes de um modo e por vezes de
outro, ou para um num modo e para outro noutro.
Em suma, o ser humano nunca poderá dizer como são
as coisas, mas somente e sempre como lhe aparecem
e para Enesidemo é igualmente dúbio que haja um
modo de ser das coisas além da sua mera aparência.
Enesidemo chegava assim à conclusão de que o pir-
rónico deveria suspender sempre o juízo e confirmava
a sua posição formalizando em nove ou dez «tropos»,
isto é, modos, esquemas de raciocínio, os motivos
que impedem de pronunciar juízos definitivos acer-
ca das coisas. As fontes oscilam quanto à enumeração
e à apresentação de tais esquemas; uma reconstrução
plausível é que estes reconduziam a diversidade dos
modos em que os fenómenos aparecem aos diferentes
indivíduos, ou 1) às diferenças entre os animais (de fac-
to, os órgãos sensoriais são diversamente constituídos
nos animais e nos homens), ou então, 2) às diferenças
entre os homens, 3) aos usos e às tradições diversas, 4)
à fraqueza dos sentidos, 5) às circunstâncias exteriores

411
(distância, movimento dos fenómenos), 6) às diversas
condições em que o sujeito se pode encontrar (idade,
saúde, doença), 7) às condições do objeto, por exem-
plo, a mistura das coisas, dado que nada aparece aos
sentidos puramente por si mesmo, mas através do ar
ou da água, 8) à sua confusão, 9) à sua relatividade.
Fundando-se nestes tropos, Enesidemo procedia tam-
bém à crítica dos conceitos de signo e de causa, que
eram amplamente usados pelos filósofos dogmáticos.
Depois de Enesidemo o ceticismo pirrónico teve
adeptos bastante numerosos e influentes até inícios
do século III e encontrou algumas ligações com a me-
dicina empírica, por exemplo, em Menódoto (século
I d.C.). Antes de Sexto Empírico a personalidade de
maior relevo parece ter sido Agripa (segunda metade
do século I) a quem se atribuem cinco novos tropos
que ele teria unido aos de Enesidemo com a finalidade
de reforçar a conclusão da necessidade de suspender
sempre o juízo. Em primeiro lugar, estes cinco tro-
pos referem-se 1) à discrepância dos juízos (diaphonia)
que se encontra nos filósofos e nas pessoas comuns, a
propósito de qualquer objeto que se queira examinar;
2) ao retorno ao infinito ao qual se chegaria inevitavel-
mente tendo de fundar uma prova para qualquer as-
serção; 3) à relatividade, dado que cada objeto aparece
de uma certa maneira apenas em relação ao sujeito que
o avalia; 4) à característica hipotética da prova, quando
se pensa demonstrar algo pressupondo uma premissa
que porém não pode ser demonstrada; por fim, 5) à
circularidade das provas (diallelo) entre premissas e
conclusão. Qualquer demonstração que se tente dar de

412
qualquer asserção recairá sempre num ou noutro destes
casos (por vezes até em mais do que um), de tal modo
que a necessidade de suspender o juízo sobre tudo se
mostra definitivamente confirmada.
Sexto Empírico, que viveu provavelmente entre a se-
gunda metade do século II e inícios do século III, esteve
talvez ligado à escola de medicina empírica, como o seu
nome parece sugerir. Todavia, de uma passagem da sua
obra intui-se uma maior simpatia para com a escola de
medicina metódica (sobre as escolas de medicina, veja-
-se abaixo, § 10). Não é possível dizer nada de preci-
so acerca da sua vida e sobre a sede da sua atividade.
Dele possuímos as Hipotiposes pirrónicas e os onze livros
Contra os matemáticos (ou os professores) onde recolheu,
como numa autêntica enciclopédia, as argumentações
do ceticismo pirrónico contra os dogmáticos. Portanto,
trata-se também de uma fonte de extrema importância
para a reconstrução das filosofias dogmáticas das quais
não nos chegaram documentos diretos (o estoicismo
antigo e a filosofia académica, sobretudo); infelizmen-
te nem sempre é claro de que pensadores da tradição
pirrónica Sexto retira os argumentos que usa contra
os adversários. Todavia, como grande organizador das
opiniões da sua escola, Sexto é notável também como
mente filosófica, pelo menos no que diz respeito ao or-
denamento que dá ao seu material.
Antes de mais, no início das Hipotiposes pirróni-
cas, ele distingue cuidadosamente a tradição filosófica
em que se reconhece da das concorrentes que são as
dos dogmáticos (os que defendem que encontraram
a verdade, como Aristóteles, Epicuro e os estoicos) e,

413
sobretudo, as dos académicos, que Sexto Empírico ca-
racteriza várias vezes como os expoentes de um dog-
matismo negativo, pois eles chegam a negar a apreen-
sibilidade da verdade. Contudo, não é esta a posição
dos pirrónicos, que não defendem que encontraram
a verdade, nem pensam que podem declarar a sua ca-
racterística absolutamente incognoscível, mas, afirma
Sexto, «continuam a investigar». Já aqui se vê a for-
te preocupação que Sexto Empírico sente por poder
ser acusado de professar por sua vez um dogmatismo
negativo, que seria, por exemplo, o dos que pensam
poder afirmar que os fenómenos não são cognoscíveis
(para Sexto, trata-se dos académicos, dos quais, pelo
menos uma vez, ele excluiu Arcesilau, reconhecendo
que ele nunca professou uma certeza, nem sequer a de
não conhecer nada). Pela mesma preocupação, talvez,
ele fala muitas vezes do pirronismo não como se fosse
uma «escola» de pensamento (hairesis), mas simples-
mente como se fosse uma «orientação» (agoghé); e a
característica que atribui a esta orientação, a de con-
tinuar a investigar, impele-o também a usar os nomes
de «ceticismo» e «céticos» para a definir, dado que o
termo skepsis significa precisamente investigação. Po-
rém, a prossecução da investigação leva o cético sem-
pre ao mesmo resultado, ou seja, encontrar a propósi-
to de cada coisa, questão ou problema a equivalência
(isostheneia) das razões que se podem dar pró ou con-
tra, num sentido ou no sentido oposto; esta situação
de total indecisão a propósito dos fenómenos cria em
Sexto a necessidade de suspender sempre o juízo, sem
nunca abandonar a tentativa de aprofundar a investi-

414
gação. Intui-se que são precisamente as premissas do
seu exame a induzirem Sexto Empírico a iniciar aquele
trabalho de recolha de opiniões contrastantes (argu-
mentos e contra-argumentos) que caracteriza a sua
obra e a torna uma fonte de informação preciosa para
os modernos: a convicção da equivalência dos argu-
mentos usados pelos dogmáticos só se alcança depois
de se ter adquirido o máximo conhecimento destes.
Segundo Sexto, o cético pirrónico não se recusa de
todo a afirmar que as coisas lhe aparecem de uma certa
maneira; é assente que ele vive «sem opiniões» (adoxas-
tos), mas esta recusa em ter opiniões toca o plano do
ser das coisas, sobre as quais nada pode dizer, não o
plano do seu aparecer: «Não discutamos o fenómeno»,
diz Sexto Empírico, quer dizer, não se discuta o que
aparece aos sentidos ou ao intelecto, «mas o que é dito
sobre ele», que é precisamente o que se configura como
a opinião nos dogmáticos. Por isso o cético não negará
que o mel lhe parece doce; somente não afirmará que é
doce. Ao aceitar reconhecer que as coisas lhe parecem
de certa maneira, ele terá também a premissa adequada
para derrotar o argumento dos dogmáticos que decla-
ram que o ceticismo tornaria a vida impossível; e terá
também um bom critério prático, ou seja, o de ater-se
aos fenómenos, aos impulsos naturais que lhe dizem
que uma coisa deve ser procurada ou posta de parte,
além das tradições e costumes correntes. Por esta via o
cético alcançará também o fim que todas as escolas de
filosofia da época helenista tinham reconhecido e reco-
mendado: a imperturbabilidade. Mas poderá obtê-lo
sem o ter procurado, sem tê-lo proposto sequer como

415
tal: a imperturbabilidade será obtido quase natural-
mente, graças sobretudo ao recusar as opiniões de que
há coisas boas e coisas más, distinção na qual se ba-
seiam as paixões e os sofrimentos que, pelo contrário,
turbam os dogmáticos.

8. OS ESTOICOS ENTRE OS SÉCULOS I E II

Todos os maiores filósofos que foram passados


pelo crivo nos parágrafos anteriores, os platónicos
como Plutarco e Numénio, o aristotélico Alexandre,
o neopirrónico Sexto Empírico, combateram obsti-
nadamente contra o estoicismo corroendo a pouco e
pouco as suas bases teóricas e as suas doutrinas. O que
nos maravilha é que da parte estoica não tenha havi-
do nenhuma defesa entre os séculos I e II, nenhuma
resposta de nível teórico elevado, nenhuma tentativa
digna de nota para responder à polémica destrutiva
dos adversários. Os estoicos tinham as suas escolas e
nelas (temos um testemunho seguro pelo menos de
Epicteto) os mestres faziam as mesmas atividades dos
seus adversários: liam e comentavam os clássicos da
escola (sobretudo Crisipo) e faziam exercitar os seus
discípulos sobre os textos dos clássicos. Mas parece
que temos de admitir que nunca houve um comen-
tário estoico de alto nível e nenhuma elaboração te-
órica de alto perfil. De facto, os adversários platóni-
cos e aristotélicos combatem o estoicismo de Crisipo
ou dos seus sucessores e não mostram, a não ser em
casos raríssimos, tomar em consideração desenvolvi-
mentos teóricos que se devam a um contemporâneo

416
qualquer. Nem há nenhuma memória de uma pro-
dução exegética e teórica estoica comparável à dos
seus adversários. O facto é que, como já se observou,
a partir de finais da época republicana o estoicismo
empenhara-se mais na atividade de direção das cons-
ciências e na de guia moral: os autores dos séculos I e
II reconduzíveis ao estoicismo de quem possuímos as
obras, ou partes delas, são igualmente significativos
como testemunhas deste tipo de atividade filosófica,
mas (com a parcial exceção de Séneca) ao concen-
trarem-se apenas na problemática moral deixam de
lado todo e qualquer aprofundamento no campo da
física e da lógica e não acrescentam nada à estrutura
da doutrina que lhes foi legada.
O mais notável destes estoicos do primeiro perí-
odo imperial é sem sombra de dúvida o frígio Epic-
teto, que viveu mais ou menos nos mesmos anos que
Plutarco (50-125). De origem escrava, em seguida al-
forriado, foi discípulo de um estoico romano do qual
nos chegaram alguns textos breves de assunto moral,
Musónio Rufo, e foi expulso de Roma pelo imperador
Domício, procurando refúgio em Nicópolis, no Epi-
ro, onde criou a sua escola. Dele o histórico Arriano de
Nicomedia transcreveu as conversações que hoje têm
o nome precisamente de Diatribes de Epicteto. Arria-
no compilou também um Manual onde recolheu os
pensamentos mais importantes do mestre. Estes livros
são documentos preciosos para nos fazerem conhecer
o sentido da vida que um estoico da época podia ter,
a orgulhosa afirmação da autonomia de decisão e da
dignidade de ser racional face a cada caso da existência,

417
sobretudo às adversidades: a premissa desta atitude é a
distinção fundamental que Epicteto incessantemente
recorda, a distinção entre o que depende de nós – so-
mente as atividades da alma – e o que não depende
de nós, isto é, tudo o resto: a pessoa física e as suas
vicissitudes, os objetos materiais, os resultados das es-
colhas morais e das ações. Tudo isto depende da sorte,
que (conformemente ao ensino da escola) é o modo
como aparece aos homens a imperscrutável vontade
divina que se identifica com o entrelaçamento fatal
das coisas. Epicteto reivindica obstinadamente a pos-
sibilidade de o homem fazer frente a estas vicissitudes
de forma racional, graças a uma capacidade de escolha
e de orientação moral fundamental que ele denomina
proairesis, servindo-se e dando assim um sentido novo
a um termo que era típico da ética aristotélica. Não
se interessando absolutamente pelas doutrinas físicas
da escola, Epicteto tem todavia respeito pela lógica,
cujo exercício recomenda também como instrumento
destinado a garantir a firmeza do juízo moral.
Na segunda metade do século II encontramos
a recolha de reflexões (em língua grega) do impera-
dor Marco Aurélio (121-80), intitulada Pensamentos.
Pessoa de grande cultura e de elevado sentido moral,
Marco Aurélio parece estar pouco à-vontade no mun-
do, apesar do forte sentido de dever que nutre para
com as instituições e a humanidade. Reflete muitas
vezes sobre a fugacidade do tempo e a precariedade
da vida, sobre a dificuldade de estar com os homens,
sobre a sua inadequação não tanto de imperador ro-
mano, mas simplesmente de homem, de ser racional.

418
De certa maneira, para ele é um auxílio apelar-se a al-
gumas teses de fundo do estoicismo, sobretudo ao sen-
tido da unidade orgânica e da racionalidade conjunta
do todo, do qual o ser humano é apenas uma pequena
parte – uma parte que, porém, pode conciliar-se com
o todo ao utilizar da melhor forma a mente, ou inte-
ligência, o nous que, de maneira particular para um
estoico, Marco Aurélio, influenciado talvez por con-
ceções de origem platónica ou aristotélica, distingue
radicalmente das restantes partes da alma de natureza
corpórea (como pretendia a doutrina da escola).
Pelo contrário, é difícil colocar Séneca, autor anterior
a todos os que citámos até agora neste parágrafo e que nas-
ceu em torno a 4 d.C., unicamente nos limites da doutri-
na estoica. Destinado a uma carreira brilhante de orador e
de político que o levou a entrar em contacto com a corte,
foi exiliado pelo imperador Cláudio porque se suspeitava
que tivesse cometido adultério com uma dama da famí-
lia imperial, regressando a Roma passados oito anos (em
49) para se ocupar da educação do jovem Nero, a quem
acompanhou como conselheiro mesmo quando este su-
biu ao trono. Em 62, todavia, a morte de Sexto Afrânio
Burro abriu caminho às piores inclinações de Nero, enfra-
quecendo a posição de Séneca, que se retirou da corte para
se dedicar aos estudos e à filosofia. Mas passados alguns
anos (em 65) foi acusado de estar envolvido na conjura
dos Pisão contra o imperador e obrigado a suicidar-se.
Em aparência, na grande produção de Séneca pode-
mos distinguir as obras escritas antes da sua saída da corte
de Nero, em geral os Diálogos, das obras compostas depois
daquela data. Os diálogos recolhem obras que tratam de

419
um ponto de vista corretamente estoico temas geralmente
de caráter moral, como a tranquilidade de alma, a brevi-
dade da vida, a firmeza do sábio, a vida retirada, a ira, a
vida beata, mas também a providência. Mas o pensador
mostra nestas obras uma insólita independência de juízo
quando, por exemplo, aprecia a austeridade do compor-
tamento moral recomendada por Epicuro. Remontam
aos anos anteriores ao abandono da corte os livros Sobre a
clemência, em que se aconselha o jovem príncipe a exercer
esta virtude que é bem distinta da compaixão, estoica-
mente condenada por Séneca como sendo uma paixão da
alma irracional. A clemência também não é uma inclina-
ção para o perdão, mas uma atitude da racionalidade que
decide poupar o culpado sem renunciar à admoestação e
à correção.
Com estas obras Séneca poderia ser corretamente
unido aos outros moralistas estoicos de quem falámos
anteriormente; se no final se distingue deles, é sobretudo
graças às obras escritas após o abandono da corte impe-
rial. Na sua obra-prima daqueles anos, as Cartas a Lucílio,
encontram-se, na página escrita com estilo muito pessoal
e interessante, as máximas de guia e conforto moral que
suportavam a obra dos conselheiros domésticos e pessoais
tão difundidos na Roma daquele tempo. Mas leem-se
também textos em que Séneca reflete cuidadosamen-
te sobre teses e questões típicas da tradição escolástica
como, por exemplo, a relação entre a sabedoria e as artes
com referência a Possidónio; ou a utilidade do manual
de preceitos morais com referência a Cleantes. E, como
se disse, encontram-se sobretudo dois textos (as cartas
58 e 65) em que o autor dá conta de teorias correntes

420
no platonismo contemporâneo. O facto notável é que,
com base em noções platónicas que refere, Séneca che-
gue também (na carta 65) a esboçar a hipótese, para
não dizer o projeto, de uma vida dedicada preferivel-
mente à especulação teórica, que ocuparia assim um lu-
gar superior em relação ao empenhamento moral. Esta
é uma conceção alheia ao estoicismo, e Séneca parece
desenvolvê-la noutra obra daqueles anos, os sete livros
das Questões naturais ricos de boa informação científi-
ca e de algumas intuições geniais (percebe, por exem-
plo, que os cometas poderiam ter órbitas constantes
e próprias). Mas nestes livros declara também explici-
tamente a primazia da atividade teorética sobre a vida
moral. A conceção estoica parece então ser abalada nos
seus alicerces, tanto mais que o universo descrito nas
Questões naturais é, sim, intermitentemente um mundo
ainda ordenado, não por uma divindade imanente
que com ele se identifica (como pretendia a física da
escola estoica), mas, à maneira dos platónicos e dos
aristotélicos, por um deus que o transcende; enquanto
que noutros momentos, especialmente na descrição
do dilúvio universal, o mundo aparece, pelo contrário,
governado por uma natureza hostil e maléfica, que faz
pensar em Lucrécio e no epicurismo e não conserva em
si nenhum indício da providência divina. O encontro
de Séneca com o platonismo não foi o desembarque
definitivo numa filosofia diversa nem a adoção de um
modo alternativo de ver o mundo, mas serviu sobretudo
para corroer as certezas herdadas da formação estoica.
Portanto, não nos maravilha que em outras cartas
da recolha dirigidas a Lucílio, Séneca se abandone a

421
uma crítica irónica de algumas teses materialistas da
escola (por exemplo, a corporeidade das virtudes), tal
como de toda a lógica estoica, que lhe parece ser in-
capaz de confortar realmente o ser humano nos ma-
les da vida e sobretudo de ajudá-lo a enfrentar a mor-
te sem temor. Todavia, do estoicismo salva-se sempre
a moral que é necessária porque o mundo humano
parece agora estar inevitavelmente votado à desor-
dem e à irracionalidade – como Séneca o descreve de
modo eloquente noutra das obras escritas nos seus
últimos anos, o texto Sobre os benefícios. Mas no úl-
timo Séneca ela é uma moral já quase separada dos
laços que tinha com as outras partes da filosofia no
estoicismo antigo, uma moral em que ganham relevo
particular menções de tipo voluntarista e em que a
reivindicação da liberdade do homem e do filósofo
empreende uma via bem diferente da do bom estoico
Epicteto: de facto, ao Séneca velho a liberdade pare-
ce afirmar-se sobretudo na possibilidade deixada ao
homem de se revoltar contra as agressões da sorte,
contra as imposições de um poder injusto, contra a
decadência física e mental por meio do suicídio. O
encontro com outras filosofias, a reflexão sobre pos-
síveis alternativas às doutrinas estoicas parecem ter
produzido em Séneca sobretudo uma amarga dece-
ção com o racionalismo.

9. LUCRÉCIO E O EPICURISMO

Como já se disse (cf. acima, cap. V, § 2), o epicuris-


mo não sofreu mudanças doutrinais de grande relevo

422
depois do fundador da escola. Mas teve no século I a.C.
um expoente de grande vigor no poeta latino Lucrécio
(que Cícero conhecia e apreciava), a quem se deve um
poema Sobre a natureza em seis livros, que tratam su-
cessivamente as principais questões ligadas à física da es-
cola: os átomos e o vazio, o movimento e as agregações
dos átomos, a alma e a sua mortalidade, as sensações e
o conhecimento, a origem dos seres vivos e o desenvol-
vimento da civilização, e por fim, diversos fenómenos
naturais, como trovões, relâmpagos, chuva, terramotos,
doenças. Não é necessário deter-se nestes conteúdos,
que seriam uma inútil repetição das teses mais im-
portantes de Epicuro, e já se falou igualmente de uma
possível inovação feita, talvez por Lucrécio, a propósito
do desvio atómico (cap. V, § 4). Aqui convém pôr em
relevo o fervor moral com o qual Lucrécio divulga as
doutrinas do mestre e a eficácia da sua apresentação.
De facto, Epicuro aparece ao poeta seu discípulo como
aquele que triunfou sobre a superstição religiosa ligada
ao temor da morte: ele forneceu a explicação das causas
puramente naturais de tudo o que acontece no mundo
físico à humanidade, que antes dele estava subjugada
ao terror dos deuses e dos fenómenos naturais vistos
como efeito de potências superiores; e encontramos
no primeiro livro do poema a narração do sacrifício
de Ifigénia por parte do rei Agamémnon seu pai como
descrição sugestiva dos crimes a que pode levar a su-
perstição religiosa. No último livro, Lucrécio descreve
a peste de Atenas no final do século I para a justificar
segundo causas naturais e não divinas, mas sabe encon-
trar também versos carregados de piedade humana para

423
com os doentes – a mesma piedade que exprime noutro
texto para com os homens primitivos frequentemente
destinados a uma morte cruel, como sacrifício às feras.
Depois a sociedade civil cresceu no tempo e reduziu
os riscos e os sofrimentos da humanidade, aumentan-
do todavia as suas paixões e ânsias. O aparecimento de
Epicuro marca precisamente uma viravolta nesta his-
tória da civilidade humana, pois ensinou a limitar os
desejos àqueles desejos pelas coisas necessárias e naturais
e a vencer o medo graças à explicação racional dos acon-
tecimentos naturais.
Depois de Lucrécio o epicurismo continuou a di-
fundir-se sem produzir pensadores ou autores de relevo.
Mencionámos antes (cap. V, § 2) algumas personalida-
des igualmente interessantes.

10. ALGUNS CIENTISTAS INFLUENCIADOS


PELA FILOSOFIA

Na primeira idade imperial houve alguns notáveis


cientistas ativos que se interessaram pela filosofia, de tal
maneira que produziram resultados de relevo também
no campo desta disciplina. O primeiro nome a citar é
o do astrónomo Cláudio Ptolomeu, que fez pesquisas
em Alexandria na segunda metade do século II. A sua
obra de cientista, que abrangeu também a ótica e a
música, culmina na Coleção matemática (mais conhe-
cida com o título com o qual circulou entre os árabes,
Almagesto), em que o sistema geocêntrico, que põe a
terra no centro do universo esférico, acha a sua expres-
são mais completa ao recolher e aperfeiçoar a herança

424
da astronomia de idade helenista e, em particular, a
de Hiparco de Niceia (a quem se deve a hipótese dos
epiciclos, segundo a qual os planetas giravam cada um
à volta de um ponto que está em movimento circular,
por sua vez, em relação à terra. Mas assim Ptolomeu
negligenciava a intuição heliocêntrica de Aristarco de
Samos, que vivera no século III a.C., segundo o qual
era a terra a girar à volta do sol). Ptolomeu, que é au-
tor também de um tratado de astrologia (o Tetrabi-
blos), compôs um breve escrito Sobre o critério e sobre
o princípio em que toma posição sobre as principais
questões de gnosiologia que ocupavam e dividiam os
filósofos daquela época; ele indica na sensação e no
intelecto os fatores essenciais do processo cognoscitivo
e admite que com base neles o conhecimento se forma
essencialmente mediante um procedimento abstrativo
que tem as suas raízes filosóficas em Aristóteles e nos
estoicos. Mas os métodos segundo os quais se organiza
o discurso científico em Ptolomeu parecem modifi-
cados especialmente pelo platonismo; de facto, são a
divisão e a síntese.
Na época de que nos estamos a ocupar neste capí-
tulo, a medicina apresentava-se profundamente divi-
dida entre escolas contrastantes. Uma delas, que po-
demos fazer remontar a dois importantes médicos do
século III a.C., Herófilo e Erasístrato, que puderam
praticar largamente a anatomia em Alexandria, era a
dos «racionalistas», que atribuíam à medicina a tarefa
de elaborar, com base na observação também anató-
mica, teorias capazes de dar conta das estruturas não
reveladas à experiência direta. Precisamente a este re-

425
sultado da teoria, se opunham, pelo contrário, os mé-
dicos «empíricos», que podiam apelar-se ao ensino de
um discípulo de Herófilo, Filino de Cós, e aceitavam
como fundamento da arte apenas a experiência dire-
ta, completada pela memória de observações passadas,
mesmo de outros, e pela possibilidade de transição «do
semelhante para o semelhante» (por exemplo, aplicar
a uma doença semelhante a outra o mesmo remédio
usado para a primeira). Uma terceira escola médica
era a dos «metódicos», que se limitava ao estudo das
«generalidades manifestas» das doenças e admitia que
a preparação do médico se podia cumprir por meio de
um curso muito breve e sumário.
Nesta situação de aceso debate entre as escolas médi-
cas, a filosofia parece ter fornecido a Galeno, que nasceu
em Pérgamo em 129 e viveu até inícios do século III, a
chave para assumir uma posição equilibrada que tives-
se em consideração as exigências tanto dos empíricos
quanto dos racionalistas. Nalguns escritos de teor auto-
biográfico, Galeno testemunha-nos que teve uma pre-
paração verdadeiramente completa também em campo
filosófico, tendo escutado mestres de todas as principais
escolas, alguns ilustres, como o platónico Albino e um
discípulo do aristotélico Aspásio. O resultado destes es-
tudos foi a elaboração de uma teoria médica em que a
experiência e o exercício da racionalidade se integram o
máximo possível como fontes igualmente incontorná-
veis do conhecimento; para Galeno a experiência direta
chega também até à prática das dissecções e da anatomia,
a elaboração racional dos dados observados serve-se
dos métodos e dos procedimentos usados nas escolas

426
platónicas e aristotélicas da época, demonstração
silogística, definição, divisão, análise. Por toda a sua
vida Galeno foi sensível aos problemas de método e
compôs um grande tratado Sobre a demonstração que
não chegou até nós; mas daquilo que ainda podemos
ler dele e por notícias que ele mesmo nos dá sabemos
também da sua longa atividade de estudo e de comen-
tário às obras lógicas e gnosiológicas de Aristóteles e de
Teofrasto. Por este aspeto da sua produção, ele poderia
parecer estar mais próximo do aristotelismo do que de
qualquer outra escola filosófica, mas a sua conceção
geral do mundo e, em particular, do mundo dos seres
vivos, é, pelo contrário, mais afim à dos platónicos.
Apesar de algumas correções que aparecem nas obras
da velhice, caracterizadas por uma acentuação das exi-
gências de «cientificidade» (o termo é do próprio Ga-
leno), permaneceu sempre convicto da existência de
um demiurgo sapiente e providencial ao qual atribuía
a organização dos corpos dotados de vida e chegou a
definir o estudo das partes (órgãos e tecidos) como o
princípio de uma teologia verdadeira. Contra os es-
toicos, defendeu também afincadamente e, neste caso,
também contra Aristóteles, a tripartição platónica da
alma, que lhe parecia a única doutrina em perfeito
acordo com a hipocrática, e demonstrou de maneira
irrefutável a pertinência da parte principal da alma (a
racional) como tendo sede no cérebro e não no cora-
ção – atribuindo a parte desiderativa ao coração e a
passional ao fígado.
Em suma, Galeno reivindicou para o médico, de
maneira bastante coerente em relação à sua formação

427
pessoal, o pleno conhecimento das três partes da filo-
sofia: lógica, física e ética. Na última, num dos seus
escritos tardios (As faculdades da alma seguem os tem-
peramentos do corpo), chegou a atribuir ao médico – e
não ao filósofo ou ao político – até a função de educa-
dor e corretor dos costumes e dos caracteres. Ao com-
binar a tripartição platónica da alma com a recente
tradição aristotélica (cf. acima, § 6), ele interpretava
cada uma das partes da alma como o temperamen-
to do órgão em que residia; e reconhecia apenas ao
médico a capacidade de influir, sobretudo mediante
prescrições dietéticas e higiénicas, sobre este tempera-
mento e, por conseguinte, sobre os feitios e compor-
tamentos das pessoas. A antiga exigência platónica de
reeducar a humanidade na direção do bem encontrava
em Galeno a resposta mais singular (mas é notável que
no livro em que argumenta estas teses Galeno acredite
poder corroborá-las com citações platónicas e de cada
um dos outros clássicos, Hipócrates, obviamente, mas
também Aristóteles. O estilo do comentário e o olhar
dirigido ao passado, tão característicos da filosofia da
época, permanecem visíveis também numa obra por
outros aspetos igualmente polémica para com os filó-
sofos das escolas).

428
7.

PLOTINO

1. VIDA E OBRA

P lotino nasceu em Licópolis, no Egito, por volta de


205 d.C. Estamos informados da sua vida graças
ao discípulo e colaborador Porfírio (cap. VIII, § 1),
que fez preceder a edição da obra do mestre de uma
autêntica biografia, a célebre Vida de Plotino, que além
de conter informações importantes relativas às vicissi-
tudes e ao carácter do filósofo, contém também infor-
mações sobre o tipo de atividade que se desenvolvia
na sua escola.
Por Porfírio sabemos que Plotino começou a inte-
ressar-se por filosofia com vinte e oito anos de idade.
Para realizar a sua vocação, transferiu-se para Alexan-
dria onde frequentou as aulas de Amónio Sacas. Este
devia ser um platónico bastante importante, se é ver-
dade que da sua escola saíram, além do grande Ploti-
no, personagens como Herénio, Longino e Orígenes.

429
Amónio não escreveu nada, mas é provável que o seu
magistério tenha influenciado de maneira significati-
va e duradoura Plotino. Este frequentou a escola de
Amónio por cerca de dez anos (233-43), e depois deci-
diu acompanhar a expedição ao Oriente do imperador
Gordiano, com o objetivo de entrar em contacto com
a filosofia oriental, em especial a indiana e a persa. O
assassínio do imperador por mão dos seus soldados
determinou o fracasso da expedição e induziu Ploti-
no a procurar refúgio em Antioquia. Algum tempo
depois, por volta de 245, encontramo-lo em Roma,
onde fundou uma escola filosófica, destinada a ter um
sucesso notável sobretudo entre os membros da aristo-
cracia senatória. De facto, esta não recebia só filósofos
«profissionais», como Porfírio e Amélio, mas também
homens políticos, senadores, médicos e até artistas.
São ainda deste período os laços criados com o impe-
rador Galiano e a sua esposa Salonina. Plotino tentou
convencer o casal reinante a suportar a instituição de
uma autêntica «cidade platónica» na Campânia, uma
Platonópolis onde se aplicassem os princípios filosófi-
cos formulados por Platão. Segundo Porfírio o projeto
faliu por causa da inveja e do mau-humor que susci-
tou em alguns membros influentes da corte imperial.
É sempre Porfírio a informar-nos de que nos
primeiros anos de estadia e ensino em Roma, Plotino
não escrevera nada. Só a partir de 253 começou a fixar
por escrito as suas conceções: daquela data até 263, ano
de entrada de Porfírio na escola, escreveu vinte e um
tratados; entre 263 e 268, isto é, durante a estadia de
Porfírio, compôs vinte e quatro tratados; os restantes

430
nove escritos foram redigidos nos últimos anos de
vida, quando Porfírio havia abandonado Roma pela
Sicília. Plotino morreu na Campânia numa vila de um
seu discípulo, por volta de 270.
Na Vida de Plotino, Porfírio indica os critérios que
adotou para sistematizar os escritos do mestre e para a
preparação daquilo que devia ser uma espécie de «edi-
ção oficial» da obra do filósofo. Porfírio preparou-a
pouco antes de morrer, ou seja, no início do século
IV, cerca de trinta anos depois da morte de Plotino
e explica que tomou como modelo para o seu arran-
jo editorial a sistematização dos escritos aristotélicos
feita por Andronico de Rodes (cf. cap. IV, § 1 e cap.
VI, § 3). Portanto, reuniu os tratados de argumentos
afins, organizando-os um depois do outro e dotando-
-os de um título (geralmente ausente da composição
originária). Porém não renunciou à introdução de al-
guns elementos novos em relação ao arranjo de An-
dronico: o mais significativo deles foi provavelmente
representado pela divisão dos escritos com base numa
numerologia precisa, quase decerto de matriz ‘pitago-
rizante’. De facto, ordenou os escritos plotinianos em
seis grupos de nove tratados, honrando deste modo
os números 6 e 9, considerados sagrados pela cultura
pitagórica de que se impregnara. O resultado consiste
no ordenamento de cinquenta e quatro tratados em
seis grupos de nove (de onde o título de Enéadas, ou
seja, grupos de nove), afins por temáticas e conteúdo.
A I Enéada contém escritos de assunto ético; a II e a III
são formadas por tratados dedicados na sua maioria ao
mundo físico; a IV Enéada é inteiramente consagrada

431
à alma; a V ao intelecto e às ideias; por fim, a VI ao ser
e sobretudo ao Uno-Bem.
Em relação à redação originária de Plotino, o discí-
pulo-editor preocupou-se também com a correção de
alguns erros ortográficos e com a uniformização, pelo
menos em parte, do estilo da escrita. Plotino costu-
mava compor de uma penada os seus tratados sem se
preocupar com a forma literária e com a sua orgânica
argumentativa. Em boa verdade, as Enéadas, mesmo
depois dos cuidados de Porfírio, continuam a apresen-
tar um andamento pouco linear, mais parecido com a
transcrição de uma lição de seminário (com pergun-
tas, quer reais quer fictícias, e respostas) do que com
a redação de um verdadeiro tratado filosófico. Deste
ponto de vista, deve-se tomar em consideração a exis-
tência de uma espécie de paradoxo: um dos pensado-
res mais sistemáticos da história da filosofia exprimiu
as suas conceções pessoais através de textos poucos
sistemáticos que em alguns casos chegam a parecer até
uma rapsódia.

2. TRADIÇÃO E INOVAÇÃO

Plotino foi sem sombra de dúvida o maior filósofo


de tendência platónica do mundo antigo, e o único
autor capaz de competir por profundidade e influên-
cia com Platão e Aristóteles. Esta grandeza, à qual só
se pode acompanhar um alto grau de originalidade,
parece entrar clamorosamente em conflito com a con-
vicção, muitas vezes expressa por ele próprio, de não
se considerar um pensador inovador, mas um simples

432
exegeta de Platão. De facto, na sua opinião, a verdade
não deve ser «descoberta», mas simplesmente «redes-
coberta», pois já foi alcançada de maneira completa e
definitiva pelo grande Platão. O problema é que nos
seus diálogos Platão não formulou de modo explícito
algumas conceções fundamentais, sugerindo-as ape-
nas, muitas vezes de maneira indireta e misteriosa. Por
esta razão, Plotino aponta como tarefa do filósofo en-
contrar esta verdade, presente, mesmo que de forma
enigmática, nas obras de Platão. A propósito de uma
das doutrinas mais importantes (e características) do
seu sistema filosófico, ou seja, a célebre conceção das
três hipóstases (Uno, Intelecto e Alma), Plotino dizia
que

estes discursos não são novos, nem se fa-


zem só agora, mas foram feitos antigamen-
te, embora não de maneira explícita: e as
posições que agora se defendem são inter-
pretações destes discursos. É provado pelos
escritos de Platão que se trata de doutrinas
antigas (V, 1, 8).

Declarações como esta não conseguem, todavia,


eliminar a impressão de nos encontrarmos, ao ler as
Enéadas, face a doutrinas e posições filosóficas com-
pletamente diferentes daquelas efetivamente contidas
no corpus platónico. A obra de autêntica transfigura-
ção do material contido nos diálogos levada a cabo
por Plotino, em alguns casos torna a doutrina plató-
nica originária quase irreconhecível. Por outro lado,

433
Plotino nunca renunciou à fundação da sua convic-
ção filosófica pessoal sobre a exegese de uma ou mais
passagens platónicas. Na tensão entre uma fidelidade
programática à tradição – e em particular a Platão – e
uma inovação filosófica real – expressa muitas vezes
por meio de soluções teóricas originais e refinadas –
reside a grandeza de Plotino.
Em boa verdade, o sentido autêntico da filosofia
das Enéadas – com a união complexa entre originalida-
de e tradição de que acabámos de falar – deve ser com-
preendido à luz do projeto que abrange os cinquenta
e quatro tratados contidos nelas. Trata-se da grandiosa
tentativa de fornecer uma resposta filosófica, portanto
ancorada na grande tradição do pensamento clássi-
co (Platão, Aristóteles e os seus intérpretes, sobretu-
do Alexandre de Afrodísias e os médio-platónicos), a
perguntas e exigências que tinham passado a ser com-
pletamente diversas daquelas que se punham quando
nasceu este pensamento. A vida de Plotino atravessa
um momento de profunda crise (política, social, cul-
tural) – por certos aspetos, de «angústia» autêntica –,
um momento em que começavam a aviar-se conce-
ções irracionais, fundadas em religiões salvíficas e re-
veladas, de todo alheias à tradição pagã. A aceitação de
uma mensagem salvífica fundada numa verdade reve-
lada e, por conseguinte, essencialmente irreduzível à
razão (no cristianismo), e a própria negação do mun-
do, visto como uma criatura de um deus malvado (na
gnose), deviam parecer a Plotino respostas inaceitáveis
e perigosas. Ele procurou opor um sistema teórico po-
deroso a essas respostas, sistema firmemente ancorado

434
na tradição da racionalidade filosófica clássica. Mas
precisamente por isso, um sistema irremediavelmente
destinado a parecer «demasiado filosófico», tanto que
por vezes era comparado com uma espécie de «delírio
da razão».

3. A REALIDADE E O SEU PRINCÍPIO

No início do tratado VI, 9 (Sobre o Bem ou o Uno),


que é também o último na disposição sistemática de
Porfírio, Plotino pergunta-se retoricamente o que po-
deria existir, quer dizer, o que poderia ser qualificado
como coisa, se não houvesse o Uno. A resposta é ob-
viamente nada, porque, explica o filósofo,

privadas do Uno, as coisas não existiriam.


Não haveria um exército, se não fosse um,
nem um coro, ou um rebanho, se não fos-
sem um. Nem sequer uma casa ou um navio
existiriam se não tivessem o uno... nem exis-
tiriam as grandezas contínuas, se o uno não
estivesse presente (VI, 9, 1).

Deste modo prova-se o assunto principal do racio-


cínio plotiniano, ou seja, que «todos os seres são seres
por causa do Uno».
Plotino parece partir da constatação de que cada
coisa, para ser tal, ou seja, para ser uma coisa (deter-
minada e individual), de certa maneira tem de pos-
suir a unidade. Um exército, uma casa, um navio,
uma grandeza são, isto é, têm uma relação constitu-

435
tiva com o ser, pois participam de certa maneira da
unidade, que representa uma espécie de princípio de
identificação e determinação ontológica. Todavia, das
realidades mencionadas nenhuma é o Uno, mas todas
possuem a unidade de maneira derivada. A observação
fenomenológica do mundo material induz Plotino a
constatar que a este nível a presença da unidade é ver-
dadeiramente mínima e derivada de outra coisa. Com
efeito, os corpos físicos são essencialmente múltiplos,
pois são compostos, logo, divisíveis; a posse de uma
massa e a exigência da localização espacial determi-
nam a natureza divisível e múltipla da corporeidade.
Segundo Plotino, a unidade que de certa maneira é
possuída pelas realidades corpóreas deriva da Alma
(psyche), que representa neste sentido o princípio de
unidade do corpo físico. Todavia, acrescenta o filóso-
fo, o facto de a Alma «levar todas as coisas ao uno, de
as construir, plasmar e dar-lhes forma e ordem» não
deve induzir a pensar que ela se identifica com o prin-
cípio da realidade, ou seja, com o Uno (VI, 9, 1). De
facto, até a Alma retira a sua unidade de outra coisa,
porque é verdade que ela é unitária, mas não idênti-
ca em tudo ao Uno. Plotino não tem dificuldades em
demonstrar que a natureza da Alma apresenta em si
mesma os elementos da multiplicidade, como emer-
ge, por exemplo, da análise do pensamento discursivo
(dianoia), ou seja, do tipo de pensamento próprio da
alma. Este pensamento desenvolve-se por passagens,
ligações, quer dizer, através de uma sequência de atos
que testemunham a sua natureza de certa maneira
múltipla. Para exprimir sinteticamente a relação que

436
a Alma estabelece com a unidade, Plotino afirma que
ela é hen kai polla, ou seja, «una e múltipla».
Portanto a Alma retira a sua unidade de um princí-
pio superior. Este só pode ser o Intelecto (nous), ou seja,
a instância ontológica correspondente ao pensamento
intuitivo e noético. Trata-se do herdeiro direto do pri-
meiro motor imóvel, «pensamento do pensamento»,
de que Aristóteles falara no livro XII da Metafísica (cf.
cap. IV, § 4). Com efeito, o pensamento noético apre-
senta um grau de unidade muito maior em relação à
Alma. Como veremos, no ato de intuir, o Intelecto
é idêntico aos seus objetos, quer dizer, é «uno» com
eles (§ 4). Todavia, apesar de ser fortemente unitário,
o Intelecto também não pode ser identificado com o
princípio supremo da realidade, isto é, com a causa
primeira da unidade presente nos fenómenos. Ao po-
lemizar com Aristóteles e com a sua doutrina de Deus
como «pensamento de pensamento», Plotino observa
que o pensamento noético (noein), mesmo na forma
reflexiva do pensamento de si mesmo, comporta uma
certa e insuperável forma de multiplicidade, mais pre-
cisamente, de dualidade, entre pensante e pensado,
entre sujeito e objeto. É indubitavelmente verdade que
o Intelecto unifica esta dualidade no ato de inteleção
noética, mas é igualmente verdade que de certo modo
a pressupõe. Além do mais, o objeto supremo do pen-
samento noético deve corresponder – como Plotino
é levado inevitavelmente a defender baseando-se em
Platão – ao mundo inteligível, ou seja, ao universo
eidético, o qual apresenta uma componente de multi-
plicidade completamente insuperável, embora menos

437
forte do que em Platão (cf. abaixo, § 4). O Intelecto é
mais unitário do que a alma, e por isso é indicado pela
fórmula hen-polla, isto é, «uno-múltiplo», mas não é
ainda, pace Aristóteles, o princípio supremo do ser.
A Alma e o Intelecto de que falámos não são as
almas e os intelectos individuais, mas as instâncias me-
tafísicas correspondentes a estas funções cognitivas e
ordenadoras (eis porque se usa a letra maiúscula). Na
linguagem de Plotino o tema teórico que evocámos é
expressado pela afirmação de que o intelecto e a alma
constituem duas hipóstases, ou seja, duas entidades
dotadas de plena consistência ontológica. Trata-se dos
herdeiros, respetivamente, do primeiro motor imóvel
de Aristóteles e da alma do mundo de Platão. As almas
e os intelectos particulares são apenas instâncias, isto
é, manifestações particulares, da Alma e do Intelecto
universais, quer dizer, hipostáticos.
Acima da Alma e do Intelecto deve haver uma hi-
póstase superior, da qual o Intelecto, diretamente, e
a Alma, através do Intelecto, recebem a unidade de
que são dotados. Este princípio supremo só pode ser o
Uno absoluto, isto é, o Uno anterior a qualquer forma
de multiplicidade. Dado que o intelecto universal é
pensamento noético e que o seu objeto é constituído
pelo mundo das ideias, ou seja, pelo ser, Plotino che-
ga a considerar este Uno absoluto e simples (haplos)
como estando além do intelecto e do ser (epekeina nou
kai ousias). Ao fazer isto, declara estar a citar Platão e,
em especial, dois loci classici dos diálogos: as afirma-
ções relativas à ideia do bem contidas no livro VI da
República – onde se dizia um pouco misteriosamente

438
que o bem se encontra epekeina tes ousias (cap. III, §
6) – e a exposição da primeira hipótese do Parménides,
em que se demonstravam a indefinibilidade e a abso-
luta incognoscibilidade do uno tomado em si mesmo,
ou seja, sem relações com outros fenómenos que não
seja ele mesmo (cap. III, § 7). Precisamente como o
uno desta hipótese, também o Uno de Plotino está
totalmente privado de partes, não tem limites nem
figura, não está em nenhum lugar, não está em movi-
mento nem em quietude, não possui qualidades e não
é, ou seja, não participa do ser (VI, 7, 1).
Visto que está colocado além do ser, este Uno ar-
quétipo não possui características ônticas definidas,
ou seja, propriedades específicas (eidéticas) ou gené-
ricas (neste sentido não tem ousia, quer dizer, essên-
cia); visto que está além do pensamento, ele não pode
ser conhecido racionalmente. De resto, a ausência de
atributos torna impossível qualquer definição propo-
sicional (o célebre logos tes ousias platónico), isto é,
qualquer descrição predicativa baseada na atribuição
de uma característica f ou g. A inacessibilidade do
Uno por meio dos instrumentos tradicionais da lógi-
ca definitória e proposicional abre caminho para um
conhecimento de natureza apofática, isto é, negativa
(de facto, apophasis significa negação). Esta consiste
em subtrair ao Uno características que pertencem às
realidades derivadas, ou seja, à multiplicidade. Para
conseguir conhecer o Uno, é preciso tirar tudo o que
pertence essencialmente à multiplicidade, isto é, ao
não-Uno: aphele panta, «tira todas as coisas», é o que
Plotino nos convida a fazer numa das mais famosas

439
declarações das Enéadas. Normalmente considera-se
um tipo de procedimento como este uma forma de
«teologia negativa», pois resulta fundado na subtra-
ção programática e radical de todas as determinações
ontológicas. Este procedimento estava destinado a
ter um grande sucesso no âmbito da mística medie-
val e em algumas formas de radicalismo filosófico
moderno.
Contudo, convém observar que o procedimento
apofático não representa para o autor das Enéadas a
única via de acesso ao conhecimento do princípio.
Plotino não desiste completamente de caracterizar o
Uno de forma positiva, embora reconheça que se trata
de qualificações válidas em sentido analógico e não ab-
soluto, pois não existe predicado que possa pertencer
em sentido próprio ao Uno. E dado que também Pla-
tão, pelo menos segundo Plotino, admitira um prin-
cípio absoluto e transcendente, mais precisamente a
famosa ideia do bem, quando o nosso filósofo preten-
de caracterizar o Uno em sentido positivo, o termo a
que recorre muitas vezes é «bem» (agathon). Todavia,
deve-se precisar que a relação entre o Uno e o Bem
não pode ser expressada de forma proposicional com
uma definição de tipo «o Uno é o Bem», ou então «o
Uno é bom» (pois participa do Bem); pelo contrário,
trata-se de uma relação de identidade absoluta, ime-
diata e primitiva, que exprime uma compenetração
total entre os dois termos (Uno-Bem) e que perma-
nece intraduzível numa definição categorial. A bem
dizer, atribuir ao Uno uma espécie de identidade com
o Bem deve entender-se também e parte mundi, ou

440
seja, do ponto de vista do produto da ação causal do
Uno; este gera o universo inteiro, isto é, o Intelecto, a
Alma e o mundo físico, que para Plotino constituem
entidades positivas, quer dizer, ordenadas e racionais,
portanto «boas». O Uno é por isso Bem também por-
que gera um sistema ontológico ordenado e racional e,
por conseguinte, bom.
Além do termo Bem, Plotino refere-se ao Uno
também com fórmulas como deus, ou o Altíssimo, o
Inefável, o Transcendente, o absolutamente Simples,
o Primeiro, todas expressões que não indicam a es-
sência, de que, na verdade, o Uno está privado, mas
exprimem formas linguístico-cognoscitivas através das
quais nós nos relacionamos com ele. Na verdade, cada
apresentação do princípio supremo plotiniano deve
avaliar dois aspetos de certa maneira em contraste um
com o outro, mas ambos presentes: a) a transcendên-
cia absoluta do Uno e b) a sua função de princípio
causal da realidade; a presença simultânea de passa-
gens que realçam o primeiro aspeto e de afirmações
que se referem ao segundo não depende de uma su-
posta contraditoriedade do pensamento de Plotino,
mas da preocupação, que marcou toda a sua obra, de
salvaguardar a transcendência do Uno conciliando-a
com o atribuir-lhe um papel de fonte energética de
todo o ser.
Esta dupla exigência, não fácil de respeitar sob o
perfil teórico, atua-se frequentemente por meio do
recurso a metáforas, que aludem a contextos em que
o princípio gera causalmente, mas ao fazê-lo con-
serva a sua transcendência. Por isso, são metáforas

441
que descrevem a saída de si do princípio (causalida-
de geradora) e o seu contemporâneo permanecer em
si (transcendência absoluta). O Uno é comparado ao
sol que emana luz sem a perder, a uma raiz infinita-
mente profunda de onde se desenvolve a «árvore do
ser», a uma nascente inesgotável de onde sai eterna-
mente água, a uma substância aromática que emana
perfume sem o perder, a um ponto luminoso de onde
irradia uma luz poderosíssima. Mediante estas imagens
Plotino propõe-se aludir à potencialidade infinita que
caracteriza a geração ontológica realizada pelo Uno: o
princípio é dynamis panton, ou seja, «potência de todas
as coisas», pois gera o que é outro de si, sem que esta
geração comporte sequer uma mínima perda por parte
do gerador. A capacidade extraordinária de exprimir de
forma plástica e metafórica um nexo teórico tão com-
plexo dá origem a passagens aptas a sugestionar o leitor
de qualquer época. Escreve Plotino no grande tratado
Sobre a natureza, a contemplação e o Uno:

Imagina uma fonte que não tenha um prin-


cípio distinto de si mesma, que se dê in-
teiramente aos rios, sem ser esgotada por
eles mas permaneça tranquilamente em si
mesma [...] ou então a vida de uma árvore
gigantesca, que a percorre toda embora per-
maneça princípio e não se dispersa no todo,
estando como que refugiada na raiz; é este
princípio a dar à árvore toda a vida na sua
abundância, e ela mesma permanece, pois
não é múltipla, mas sim princípio de multi-
plicidade (III, 8, 10).

442
Posições como a que está implícita no texto que ci-
támos e em muitos outros relativos à natureza e à ação
do Uno testemunham de maneira inequivocável a dis-
tância que separa a metafísica de Plotino da tradição
da ontologia clássica. Muitas palavras são as que ain-
da se encontram nos textos de Platão e de Aristóteles
(ser, bem, uno, causa), até algumas metáforas, como
a do sol e da luz, apresentam paralelismos na tradição
platónica anterior. Trata-se, porém, de revestimentos
exteriores que cobrem um núcleo teórico – aquele se-
gundo o qual o princípio do ser é potencialidade infi-
nita – já alheio aos parâmetros da lógica e da ontologia
de Platão e Aristóteles.

4. O INTELECTO, A ALMA, O MUNDO

Do Uno deriva toda a realidade. Trata-se de uma


derivação que acontece por graus hipostáticos sucessi-
vos, partindo do Intelecto para passar à Alma e, atra-
vés dela, ao mundo físico (que, porém, não é uma au-
têntica hipóstase). A geração das hipóstases constitui
um evento lógico-ontológico e não temporal, porque
o Intelecto, a Alma e o mundo físico são, exatamente
como o Uno, eternos. Para nos referirmos a este pro-
cesso ainda hoje utilizamos o termo «emanação»; mas
é uma expressão imprecisa. Plotino fala de «procissão»
(proodos), isto é, de saída do princípio de si mesmo
e de geração contextual de o que é outro de si mes-
mo. Em todo o caso, fala-se de uma geração comple-
tamente diferente em relação à que se atribui ao Deus

443
hebraico-cristão, que criou o mundo voluntariamente
no tempo. A geração realizada pelo Uno de Plotino
é, pelo contrário, necessária, isto é, não voluntária, e
eterna, ou seja, lógica e não temporal. O processo in-
teiro é cadenciado pelo aumento progressivo da mul-
tiplicidade, de um estádio inicial do qual ela resulta
de todo ausente (o princípio) a um final em que se
manifesta em máximo grau (os corpos físicos).
A primeira fase do processo de derivação do ser a
partir do princípio consiste na geração do Intelecto.
Na verdade, segundo Plotino, a origem de cada hipós-
tase reproduz a estrutura do nascimento da hipóstase
anterior. Por esta razão, o ato de geração ontológica do
Intelecto pode ser considerado modelo de cada gera-
ção hipostática.
Viu-se que a natureza do Uno consiste numa es-
pécie de inesgotável potencialidade que é capaz de
gerar outro de si mesmo sem que isso comporte uma
diminuição. Para expressar esta condição Plotino fala
muitas vezes de superabundância e numa passagem fa-
mosa do tratado Sobre a génese e a ordem de o que vem
depois do Primeiro afirma que «o Uno, perfeito porque
não busca nada, não tem nada, nem tem necessidade
de nada, extravasou, de certa maneira, e a sua supera-
bundância criou outra coisa. O gerado virou-se depois
para o Uno e foi enchido por ele, e ao olhar para Ele
tornou-se Intelecto» (V, 2, 1). Do Uno, ou melhor, da
sua infinita potencialidade, separa-se uma substância
ilimitada, naturalmente inteligível, que Plotino cha-
ma umas vezes, com expressão aristotélica, de «matéria
inteligível» (noete hyle), outras vezes, com fórmula pla-

444
tónica, de «díade ilimitada». Esta substância ilimitada
vira-se para a fonte de que tem a sua origem, ou seja,
para o Uno, e no preciso momento em que se vira para
ele é de alguma maneira determinada, ganhando assim
uma forma e um conteúdo. Torna-se então uma díade
limitada, ou seja, uma dualidade de pensante e pensa-
do unidos no ato do pensamento noético (noesis). No
momento em que a potencialidade ilimitada que sai
do Uno se vira para a sua origem e faz dela o seu obje-
to, dá-se o ato da intuição noética e, por conseguinte,
o nascimento do nous, isto é, do Intelecto, identidade
absoluta de pensamento e ser, de sujeito pensante e
objeto pensado (cf. V, 1, 5; V, 4, 2; V, 5, 5).
Todavia, precisamente por causa desta sua dua-
lidade constitutiva, o nous demonstra-se incapaz de
contemplar o Uno na sua absoluta simplicidade, por
isso só pode dividi-lo e distribuí-lo na pluralidade das
ideias platónicas, que constituem precisamente os noe-
ta, os inteligíveis. O objeto do ato noético do Intelecto
supremo é representado pelo mundo das ideias, que
apresenta uma insuperável componente de multiplici-
dade. Convém ter presente que o grau de unidade que
caracteriza o cosmo eidético plotiniano é incompara-
velmente superior em relação ao exibido pelo mundo
das ideias de Platão. Para compreender a natureza da
conceção plotiniana do Intelecto é preciso considerar
as doutrinas que se encontram incorporadas nela. A
mais importante é provavelmente a de origem aristo-
télica (mas retomada e desenvolvida por Alexandre de
Afrodísias) segundo a qual no ato da contemplação
noética, ou seja, no ato da theoria, o nous é idêntico ao

445
seu objeto (V, 5, 1-2) e, por conseguinte, a si mesmo
(não esquecer que o Intelecto plotiniano é «pensamen-
to de pensamento»). Da aceitação desta norma Plotino
retira uma série de consequências fundamentais: dado
que o objeto da inteleção do nous é representado pelo
mundo das ideias, o Intelecto será também idêntico a
este mundo, isto é, ao ser. Por outro lado, com base no
mesmo princípio, cada um dos noeta será, vice-versa,
inteligência ou intelecto, quer dizer, um nous pensante
(V, 9, 8; VI, 7, 9); cada ideia contém em si mesma,
embora de forma implícita (isto é, em potência), todas
as outras ideias, ou seja, o mundo inteligível inteiro,
exatamente como cada teorema científico incorpo-
ra em si mesmo a ciência inteira, pois que de certa
maneira a pressupõe (V, 9, 8). Isso significa que cada
ato intelectivo virado para um determinado inteligível
comporta a identidade com a totalidade do mundo
eidético que aquele específico inteligível contém em
potência. Então, com base no princípio de identidade
sujeito-objeto no ato da contemplação noética, é pre-
ciso concluir, segundo Plotino, não só que cada ideia é
um intelecto pensante, mas também que ela é a totali-
dade do cosmo inteligível, transformado agora numa
comunidade vivente de intelectos pensantes.
Como se vê, o nível de unidade da hipóstase In-
telecto não é sequer comparável ao do velho mundo
das ideias. Em Plotino os inteligíveis podem exibir
uma completa inclusão recíproca, inimaginável não
só em Platão, como também na conceção das ideias
como pensamentos de Deus defendida por muitos
autores médio-platónicos (cap. VI, § 5). Trata-se de

446
um exemplo ulterior daquela capacidade, evocada
antes, de transformar o material oferecido pela tradi-
ção para construir horizontes teóricos completamen-
te originais.
A génese ontológica da terceira hipóstase, ou seja,
a Alma, apresenta afinidades notáveis com o nasci-
mento do intelecto a partir do Uno. Tal como deste
se irradia uma potencialidade ilimitada que se vira
para a sua origem para ser delimitada e enchida de
conteúdo, também do Intelecto se separa uma espécie
de surplus de vida intelectiva, que se dirige para a sua
fonte, mas não é capaz de contemplá-la como ela é,
ou seja, na forma da intuição total e compreensiva em
que cada coisa é todas as outras, e só pode traduzi-la
em forma discursiva, quer dizer, concebendo os inte-
ligíveis como estando separados uns dos outros. Tal
como a unidade do Intelecto não é senão uma cópia
da unidade absoluta do Uno, também a unidade da
Alma é cópia e imagem degradada da unidade pontual
do Intelecto. O ponto que merece ser realçado é que
para Plotino a constituição das hipóstases, e com ela a
de cada forma de produção, nasce de um ato de con-
templação (theoria): a contemplação precede e funda
a produção.
Quer na geração do Intelecto a partir do Uno quer
na da Alma a partir do Intelecto manifesta-se a lei ge-
ral da metafísica plotiniana. Esta permite compreen-
der a origem de cada hipóstase – e, por conseguinte,
da realidade – e o processo de regresso da alma à sua
fonte primária, isto é, ao Uno. Tal lei afirma que cada
realidade apresenta três aspetos ou momentos (obvia-

447
mente lógicos e não temporais): o primeiro momento
é representado pela «manência» (mone), ou seja, pela
permanência em si mesma da hipóstase; o segundo es-
tádio é o da «procissão» (proodos), isto é, da saída de
si do princípio gerador; por fim, o terceiro momento
corresponde à «conversão» (epistrophe), quer dizer, ao
regresso à fonte da qual ela se separara.
Entre as hipóstases inteligíveis a Alma é sem dú-
vida a mais complexa e articulada. Por um lado, con-
serva uma relação direta com o Intelecto, isto é, com
o mundo inteligível, mas por outro lado, está em
contacto com o mundo sensível. Ela conhece os in-
teligíveis mas, como se viu, fá-lo de maneira discur-
siva e dianoética, isto é, separando-os uns dos outros.
Contrariamente à vida do Intelecto que se exprime na
instantaneidade absoluta e pontual da eternidade, a
vida da Alma é cadenciada pela dimensão do tempo,
ou seja, pela sucessão de estados. O nascimento do
tempo representa um dos «eventos» mais significativos
do processo de caracterização da Alma: esta – explica
Plotino – estava insatisfeita com o estado em que se
encontrava, em contacto direto com o Intelecto; dese-
java autonomizar-se, tornar-se independente; por isso,
com um ato de verdadeira temeridade (tolme), «deci-
diu ir à procura de algo mais em relação ao seu estado
presente e pôs-se em movimento, e com ela moveu-se
o tempo... que é uma imagem móvel da eternidade»
(III, 7, 11). Enquanto imagem (eikon), isto é, cópia,
o tempo reproduz de forma degradada e imperfeita as
características do seu modelo, isto é, da eternidade:
a extensão temporal imita a pontualidade sem exten-

448
são da vida do Intelecto; a tendência temporal para
o infinito imita a infinidade realizada do Intelecto e,
por fim, a totalidade temporal, que é soma das partes,
imita a totalidade concentrada da eternidade extra-
temporal.
Para Plotino a Alma não é só um princípio intelec-
tivo, isto é, orientado para o conhecimento das ideias,
mas também «gerador», pois produz o mundo sensí-
vel, e «ordenador», pois ordena o produto da sua pró-
pria geração (IV, 8, 3). Como se vê, a função superior
da Alma está em contacto direto com o Intelecto, en-
quanto que a inferior constitui uma espécie de autên-
tico princípio cosmopoiético. Plotino refere-se a este
segundo aspeto chamando-o muitas vezes de logos, ou
seja, razão, e por vezes até physis, isto é, natureza, tanto
que não faltaram estudiosos que pensaram ver alusões
a uma quarta hipóstase, separada da Alma. Na verdade,
uma interpretação desse tipo interpreta erroneamente
o pensamento plotiniano, porque quer o logos quer a
physis não são princípios hipostáticos independentes,
mas funções que indicam a atividade da Alma, que
é essencialmente uma atividade contemplativa. A este
nível, trata-se de uma contemplação confusa e sempre
mais fraca, parecida com a que se apresenta nos
sonhos. O resultado desta contemplação é constituído
pelas «formas imanentes» (enyla eide) de memória aris-
totélica, que são portanto o último reflexo da presença
do Uno, isto é, o produto conclusivo do processo de
geração ontológica, a última instância inteligível antes
da matéria informe que, enquanto negação do Uno,
assume as características do não-ser. Este não é um

449
princípio metafísico autónomo, contraposto ao Uno
(como acontecia, por exemplo, em Plutarco com a
alma pré-cósmica maldosa), mas uma espécie de pon-
to limite não alcançado pelo Uno, uma zona de som-
bra não iluminada pela luz.

5. O REGRESSO AO UNO

A duplicidade que caracteriza a Alma-hipóstase


reverbera-se também na alma do mundo (que possui
um aspeto indivisível e outro divisível nos corpos) e
sobretudo nas almas individuais, que de algum modo
derivam da alma do mundo. Também a nossa alma
possui um aspeto que está diretamente em contacto
com o inteligível e um ligado tenazmente ao sensível,
ou seja, à corporeidade. O laço com o corpo, a exces-
siva cura que a alma manifesta para com as instâncias
da corporeidade, constituem para Plotino a expressão
mais evidente da queda e a fonte primeira do mal mo-
ral (III, 9, 3; V, 1, 1; IV, 8, 2).
Por outro lado, como se disse, há um elemento
da alma que permanece em contacto com o mundo
inteligível. Aliás, Plotino chega a defender que uma
parte da nossa alma nunca se separou realmente do
Intelecto. Trata-se da chamada «parte não precipitada»
da alma, à qual o nosso autor dedica algumas reflexões
de excecional profundidade teórica. Ele demonstra ter
perfeita consciência da originalidade, que poderíamos
dizer revolucionária, desta conceção que introduz com
palavras muito explícitas: «se se deve ter a coragem de
exprimir o próprio parecer ainda mais claramente,

450
contra a opinião dos outros, então nem a nossa alma
precipitou inteiramente, mas algo dela existe sempre
no inteligível» (IV, 4, 8). O facto é que nós não temos
consciência de estar em eterno contacto com o inteli-
gível, quer dizer, com o mundo das ideias. Esta é, com
efeito, uma experiência incônscia que acompanha a
vida da alma. Com a doutrina da alma não precipi-
tada Plotino parece ter descoberto algo de semelhante
ao «incônscio superior», um nível da vida psíquica que
não se coloca sob a consciência e a racionalidade dis-
cursiva, mas sobre ela: nem atividade psíquica racional
nem irracional, mas talvez hiper-racional.
A alma, como se disse, não está só em contacto
com o inteligível, mas também com o sensível. Segun-
do Plotino podemos também não ter perfeita consci-
ência dessa relação, embora ela exerça uma influência
contínua e nefasta sobre a nossa vida psíquica. Na ver-
dade, a dimensão da plena consciência diz respeito ao
nível intermédio da alma, quer dizer, ao estádio em
que se encontra o eu empírico, o homem intermédio,
que resulta caracterizado pela faculdade racional e
calculadora. Deste modo a psicologia plotiniana de-
semboca numa autêntica antropologia filosófica que
separa a vida psíquica em três centros distintos: o eu
autêntico, eternamente em contacto com o ser; o eu
intermédio, consciente e raciocinante; o eu sensível,
presa das paixões da corporeidade (V, 3, 3).
Como se vê, a alma (a hipostática e a individual) é
o verdadeiro centro da metafísica de Plotino, porque
de certa maneira nela encontram expressão todas as
instâncias da realidade. Trata-se de um «centro móvel»

451
capaz de percorrer, ou pelo menos de tocar, todos os
estádios do ser. Com efeito, o processo de geração on-
tológica que produziu a alma por meio do Intelecto,
pode ser feito ao contrário através desta, sobretudo se
considerarmos que se trata de uma descida dissemina-
da de traços da origem. Cada nível hipostático é, de
facto, cópia do que o gerou e a alma individual não
está separada de todo do Intelecto.
O indivíduo é, segundo Plotino, composto de
corpo e de alma. A parte inferior da alma é, como se
viu, solidária com as instâncias da corporeidade. Por
isso, o primeiro passo para o regresso da alma à fonte
do todo só pode consistir na disposição a moderar e
depois a suprimir as pulsões ligadas ao corpo. A este
nível situam-se as tradicionais virtudes éticas de Platão
e Aristóteles – moderação, justiça, coragem, etc. – que
em Plotino assumem o papel de «virtudes civis» (ou
políticas) capazes de levar à recusa da corporeidade e à
separação dela. Mas é apenas o início. As mesmas vir-
tudes regressam, agora «purificadas», à alma que deixa
de estar em contacto com o corpo. O seu significa-
do é, todavia, completamente transfigurado: elas não
moderam mais nada porque não há desejos e pulsões
para moderar (I, 2, 1-2). As noções de temperança,
justiça, etc., encontram-se também no Intelecto, não
mais como virtudes, mas como modelos, que estão
no Intelecto e quase se identificam com o Intelecto
(I, 2, 6-7). A transformação das virtudes de civis em
purificadas e, por fim, em modelos divide o caminho
de regresso da alma à origem do todo. Tornando-se
intelecto, a alma cessa de ser uma realidade individual

452
porque a nível do inteligível tudo está em tudo, e cada
coisa é também todas as outras. Na eternidade pontual
da vida noética, quando conhece o mundo das formas
e contemporaneamente conhece a si mesma, a alma
de certa maneira já saiu de si. Mas este movimento de
saída de si, de verdadeira ekstasis, ainda não alcançou
o seu auge a nível do Intelecto; ele deve dar um passo
ulterior além do Intelecto e do pensamento, um sal-
to que consiste na absoluta simplificação (haplosis) da
alma no Uno, isto é, na célebre henosis, na unificação
com a fonte do todo, num ato que se parece muitíssi-
mo com a verdadeira união mística.
Trata-se de uma experiência extraordinária, de
facto é alheia à linguagem e à comunicação filosófica.
Plotino, segundo Porfírio, tê-la-ia experimentado ape-
nas quatro vezes durante a sua vida. Se o ato conclusi-
vo parece realmente transcender as modalidades da te-
oria, o longo caminho que o prepara e que acompanha
a alma até ao limite extremo do ser pertence por intei-
ro ao âmbito da filosofia. Certamente, trata-se de uma
filosofia que se amputou de muitas partes do próprio
corpo: antes de tudo da política e em larga medida
também da ética; mas que da sua origem (platónica,
mas também aristotélica) conserva um tema central:
a confiança extrema na força da razão, uma confiança
que Plotino corre o risco de transformar, como se dis-
se, num autêntico delírio da razão.

453
8.

O NEOPLATONISMO DEPOIS DE
PLOTINO

1. PORFÍRIO

D epois de Plotino o platonismo nunca mais aban-


donou a estrada que o grande filósofo indicara
no século III, mas foi acentuando alguns aspetos que
já estavam presentes ou latentes no seu pensamento:
em primeiro lugar, a concentração nos problemas da
metafísica e do mundo transcendente e divino levou
sempre mais os neoplatónicos posteriores a configura-
rem a sua doutrina como uma filosofia religiosa. Em
segundo lugar, se já Plotino tinha tomado como ponto
de partida da sua reflexão a interpretação dos textos
clássicos da tradição platónica (e aristotélica), também
os seus seguidores foram quase todos comentadores de
textos platónicos e aristotélicos.
Discípulo e colaborador por seis anos (263-8) e
depois também editor das obras de Plotino, Porfírio
(nascido em Tiro por volta de 230, o seu verdadeiro
nome era Malco; morreu por volta de 305), antes do
encontro com Plotino, teve uma formação tipicamen-
te médio-platónica, que ao início fez com que lhe fosse
difícil compreender algumas novidades do pensamen-
to plotiniano: ele próprio diz que teve muitas dificul-
dades em entender e aceitar a teoria da interioridade
dos inteligíveis no intelecto (cf. acima, cap. VII, § 4).
Em alguns traços do seu pensamento mesmo posterior
ao encontro com Plotino parecem conservar-se alguns
indícios das suas convicções anteriores e da sua edu-
cação médio-platónica: por exemplo, a ideia de que o
supremo princípio não é superior ao ser, mas coincide
com ele, parece emergir aqui e ali juntamente com a
convicção que lhe foi transmitida por Plotino, a da
existência de um Uno superior ao ser. Todavia, a pri-
meira das duas teses aparece sobretudo num comen-
tário anónimo ao Parménides de Platão, cuja atribui-
ção a Porfírio não é de todo certa; e se esta atribuição
fosse exata, poder-se-ia pensar que a composição do
comentário remonta a um período anterior à sua esta-
dia na escola de Plotino. Contudo, às convicções con-
cebidas durante a formação médio-platónica deve-se
provavelmente unir aquela que distingue sobretudo
Porfírio do seu mestre, isto é, a ideia de que há uma
área importante de concordâncias entre as filosofias de
Platão e de Aristóteles: esta tese, expressada e defendi-
da longamente por Porfírio em obras que se perderam
(por exemplo, um grande tratado com vários livros
intitulado De que as doutrinas de Platão e de Aristóteles
são uma só), é todavia ainda documentável por alguns
escritos que se conservaram e eram dedicados à exege-

456
se das categorias. Em implícita polémica com Plotino,
que rechaçara as categorias aristotélicas considerando-
-as géneros do ser sensível, Porfírio recupera a doutri-
na aristotélica interpretando as categorias como sendo
referíveis antes de tudo às palavras e à linguagem, em-
bora depois estas sejam vistas como significativas das
coisas. Deste modo, através da recuperação dos seus
fundamentos linguísticos, Porfírio tornava utilizável
para os platónicos toda a lógica de Aristóteles, de ma-
neira que a sua atividade de comentador e divulgador
de textos aristotélicos ganha uma enorme importância
histórica. Todavia, ele não chegou a admitir uma ple-
na coincidência das duas filosofias, como o demonstra
o facto de – precisamente como Plotino – ter critica-
do também duramente a doutrina aristotélica da alma
como entelechia.
Talvez ainda mais do que um filósofo original, Por-
fírio foi um comentador de textos não só platónicos e
aristotélicos (mas esta parte da sua produção perdeu-se
quase inteiramente) e um grande erudito, interessado
também nas tradições culturais e religiosas dos povos
orientais. Estas inclinações podem explicar igualmen-
te a sua obra de moralista: dele restam-nos um tratado
Sobre a abstinência, em que defende o vegetarianismo,
e uma pequena obra de exortação moral à esposa (A
Marcela) com quem casou já em idade avançada, e a
quem recomenda que se atenha sempre aos preceitos
de uma filosofia que tenha por finalidade a união da
alma com o princípio divino. Esta finalidade é visível
também na hierarquia das virtudes que Porfírio ad-
mitiu, distinguindo por ordem ascendente as virtudes

457
civis ou políticas, fundadas ainda na moderação das
paixões, das catárticas, que visam a apatia, em segui-
da às virtudes teoréticas e, por fim, às paradigmáticas,
que são os modelos das virtudes situados no intelecto.
Quanto à religiosidade (como é indubitável), é man-
tida bastante coerentemente nos limites de um racio-
nalismo que o induz a suspeitar das práticas cultuais
que desemboquem na magia e na teurgia (termo que
significa «ação sobre os deuses» e alude a práticas ritu-
ais e cultuais que visam evocar as potências divinas)
– o que o porá em oposição a Jâmblico e o distingue
do neoplatonismo posterior. Esta atitude é também
a origem de uma acesa polémica sua com os cristãos;
chegaram-nos citações mais tardias acerca de um trata-
do precisamente com esse título. A polémica anticristã
não impedirá que o pensamento metafísico e teológi-
co de Porfírio influencie a teologia de alguns pensado-
res cristãos, sobretudo no ocidente latino.

2. JÂMBLICO

Jâmblico, originário de Cálcis na Síria, onde nas-


ceu entre 240 e 250 (morreria em torno a 325), foi
por pouco tempo e não já em idade jovem discípu-
lo de Porfírio em Roma, e depois criou a sua escola
provavelmente em Apameia, na sua terra natal. A sua
obra de filósofo e de comentador teve uma enorme
influência na tradição neoplatónica posterior, à qual
ele, mais ainda do que Porfírio e decerto muito mais
do que Plotino, ofereceu as bases de uma sólida estru-
tura sistemática. A ele remonta a organização de um

458
cânone de doze diálogos de Platão que, subdivididos
em dois ciclos, seria precedido, no seu ensino escolás-
tico, por um curso introdutório baseado nas obras de
Aristóteles: após o Alcibíades I, lido como introdução
geral a Platão, vinha o Górgias e o Fédon (diálogos éti-
cos), o Crátilo e o Teeteto (lógicos), o Sofista e o Político
(físicos), o Fedro e o Banquete (teológicos) e por fim o
Filebo como síntese conclusiva do primeiro ciclo. No
segundo ciclo estudar-se-iam os dois diálogos que de-
viam representar o aprofundamento e a coroação da
física (Timeu) e da teologia (Parménides). Foi também
Jâmblico a indicar aos comentadores sucessivos como
método fundamental para a compreensão de qualquer
diálogo platónico a determinação do skopos do diálo-
go, isto é, o objetivo que este visava e o seu núcleo es-
sencial de significado. Com estes princípios em men-
te, Jâmblico praticou a sua atividade de comentador,
estendendo-a também às obras de Aristóteles; Simplí-
cio fala ainda respeitosamente do seu comentário às
Categorias.
Uma intenção sistemática análoga pode ser en-
contrada na sua filosofia, em que a multiplicação
das hipóstases é característica eminente. Talvez com
o objetivo de facilitar o dinamismo da procissão e o
do regresso ao princípio (mas esquecendo-se da lição
de Plotino, que exorta a que se regresse ao princípio
e entrevê essa possibilidade precisamente porque «os
intermediários não são muitos»), Jâmblico defende
que está a facilitar estas operações ao multiplicar os
intermediários entre e dentro das diversas hipóstases:
assim distingue um «primeiro Uno», que é absoluta-

459
mente inefável, de um segundo («simplesmente uno»)
e de um terceiro («uno-ser»), que ele coloca no cimo
do inteligível, por sua vez, distinto na tríade Ser-Vida-
-Intelecto, com a qual sistematiza uma intuição que
Plotino tinha esboçado; e a série das hipóstases e das
tríades continua depois ulteriormente, da Alma até ao
recetáculo material retirado do Timeu. Aquilo que, de
novo, é histórica e filosoficamente importante é que
Jâmblico obtém esta sistematização integrando não só
a filosofia de Aristóteles na de Platão, como também,
por sua vez, esta na tradição pitagórica: dessa forma
Jâmblico desenvolve e fixa de maneira definitiva e sis-
temática uma convicção que, presente já em alguns
médio-platónicos, fora aceite também por Plotino e
Porfírio.
O projeto de unificação do saber, filosófico e não
filosófico, que Jâmblico tinha em mente foi inserido
numa Recolha das doutrinas pitagóricas em dez livros,
dos quais nos ficaram apenas os primeiros quatro e
fragmentos dos restantes. Os primeiros livros, os que
nos chegaram, partem de noções mais simples e aces-
síveis: por exemplo, o primeiro contém uma Vida
de Pitágoras e o segundo um Protréptico («exortação
à filosofia», largamente composta por trechos dos
diálogos platónicos e pela obra homónima de
Aristóteles). Mas desta enciclopédia do pensamento
platónico-pitagórico fazem fatalmente parte também
aquelas características que há muito tempo a tradição
e a lenda tinham ligado à figura de Pitágoras, e na
descrição da sua vida Jâmblico concede espaço
também aos prodígios e às visões, além das práticas ri-

460
tuais atribuídas tradicionalmente ao pitagorismo. Esta
atenção para com as práticas cultuais, os ritos e as ope-
rações da teurgia domina todo o tratado Sobre os mis-
térios egípcios, cuja paternidade não é absolutamente
segura (em última instância tal paternidade deve-se ao
testemunho de Proclo); mas mesmo que o escrito não
fosse de Jâmblico, deve ter saído da sua escola e refletir
o pensamento do mestre. A obra, autêntica ou não,
estava destinada a influenciar profundamente o rumo
das sucessivas escolas neoplatónicas, unindo (ou talvez
até antepondo) ao exercício da racionalidade filosófica
a fé em práticas religiosas, rituais e cultuais que muitas
vezes desembocavam simplesmente na magia. Devido
à importância e à influência desta estruturação, é con-
veniente transcrever aqui uma página do escrito Sobre
os mistérios, que formalmente se apresenta como a res-
posta polémica de um sacerdote egípcio, Abamón, a
um escrito em que Porfírio exprimia a sua reserva para
com as práticas teurgistas:

Admitindo que a ignorância e o engano são


culpa e impiedade, todavia eles não tornam
falso unicamente por essa razão aquilo que
se oferece aos deuses na maneira que lhes é
própria e as divinas cerimónias, e não o ato
do pensamento unem aos deuses os teurgos:
o que impediria a quem pratica a filosofia
teorética de obter a união teurgista com os
deuses? Mas a verdade não é esta: somente
o cumprimento das ações inefáveis realiza-
das de maneira digna dos deuses e acima de
qualquer inteleção, e a potência dos símbo-

461
los sem voz, compreensíveis apenas aos deu-
ses, provocam a união teurgista. Por isso,
nós não realizamos esses atos com o pensa-
mento: porque assim a sua eficácia será inte-
lectual e causada por nós; e nem uma coisa
é verdade nem a outra. De facto, sem que
intervenhamos com o nosso pensamento, os
símbolos realizam por si mesmos a sua obra
e a potência inefável dos deuses, a quem es-
tes símbolos pertencem, reconhece as suas
imagens por si mesma, não com o incentivo
do nosso pensamento (Sobre os mistérios
egípcios, II, 11, a partir da tradução italiana
de A. R. Sodano).

É precisamente esta visão do platonismo, já


tão distante da das suas origens, que influenciará
profundamente o imperador Juliano, grande
admirador de Jâmblico, de quem tinha conhecido
e escutado os discípulos, na sua tentativa de reagir
contra o cristianismo e de restaurar a religiosidade
pagã.

3. AS ESCOLAS NEOPLATÓNICAS ENTRE OS


SÉCULOS IV E VI

Jâmblico teve uma escola sua; depois dele alguns


discípulos continuaram a sua tradição de ensinamento
e o imperador Juliano esteve em contacto com expo-
entes desta escola siríaca. Mas uma tradição escolástica
platónica sobrevivia, talvez desde a época de Amónio

462
Sacas, no Egito em Alexandria, onde além da filosofia
de Platão se cultivou por muito tempo também o inte-
resse pelos estudos de matemática e de geometria: deles
realçam-se Téon, comentador de Euclides e de Ptolo-
meu, e a sua filha Hipácia, que teve interesses análogos e
foi massacrada por fanáticos cristãos em 415. Mais tar-
de, no século V e ainda no vi, trabalharam em Alexan-
dria numerosos filósofos que se distinguiram sobretudo
pela sua atividade de comentadores de escritos de Pla-
tão e de Aristóteles: entre eles Amónio, Olimpiodoro e
também alguns cristãos como João Filopono, notável
quer pelos seus comentários a Aristóteles (de quem re-
chaça criticamente algumas doutrinas físicas), quer pelo
tratado Sobre a eternidade do mundo, em que recusa a
doutrina da eternidade de origem aristotélica – que foi
aceite pela maior parte dos platónicos – e se pronuncia a
favor da doutrina cristã da criação. Por fim, em Atenas,
no começo do século V, Plutarco (oriundo precisamen-
te de Atenas) reconstituiu uma escola platónica em que
teve, nos seus últimos anos de ensino, o jovem Proclo
como seu aluno. Foi sucessor imediato de Plutarco em
432 mas mestre de Proclo foi também Siriano, que in-
sistiu particularmente na compatibilidade das filosofias
de Platão e de Aristóteles ao comentar alguns livros da
Metafísica e elaborou uma interpretação do Parménides
de Platão que não nos chegou diretamente, mas que
o seu afeiçoado discípulo Proclo considerou definitiva
tornando-a a base da sua filosofia (falaremos disso no
parágrafo seguinte). Com a morte de Siriano, em 437,
chefiaria a escola ateniense Proclo, de quem trataremos
separadamente.

463
Os sucessores imediatos de Proclo em Atenas não
tiveram grande relevo filosófico, mas a esta escola se
ligaram, no início do século VI, duas personalidades
importantes como Damáscio, último chefe da escola, e
Simplício, que estudara anteriormente em Alexandria.
Em 529 o imperador Justiniano emanava um édito
em que proibia aos pagãos e hereges que ensinassem,
decretando assim o fim da escola filosófica de Atenas;
Damáscio e Simplício, juntamente com outros cole-
gas neoplatónicos, permaneceram por alguns anos na
corte do rei persa Cosroes em Ctesifonte; mas talvez
(e a questão é controversa) tenham regressado a Atenas
em 533 após um acordo entre o imperador e Cosroes
e lá tenham retomado a sua atividade de escrita. Desta
atividade, Simplício legou-nos um testemunho amplo
com os seus comentários às obras de Aristóteles (Física,
De caelo, Categorias; o comentário ao De anima não é
autêntico), alguns dos mais notáveis que nos chegaram
da antiguidade e preciosos também pela riqueza de
informações que contêm, quer sobre os filósofos
mais antigos citados por Aristóteles, cujas obras nós
não possuímos, quer sobre a história da filosofia pós-
aristotélica (por exemplo, os estoicos), quer ainda sobre
a tradição precedente de exegese aristotélica.
Damáscio é muito conhecido pelo escrito Proble-
mas e soluções sobre os primeiros princípios, onde de certa
maneira retoma uma posição que já aparecera em Jâm-
blico, isto é, a admissão de uma realidade suprema ab-
solutamente transcendente e completamente inefável,
de tal forma que não podia ser definida ou pensada, da
mesma maneira que os outros neoplatónicos costuma-

464
vam fazê-lo, como Uno ou princípio, porque mesmo
estas determinações comportariam uma relação com as
outras coisas, com a multiplicidade ou com as coisas
de que ela seria o princípio. Deste modo, Damáscio
focaliza uma dificuldade inerente à maior parte das
doutrinas neoplatónicas e chega assim a «um silêncio
irremediável e à confissão de nada saber».

4. PROCLO

Talvez devido ao desaparecimento de grande parte


das obras de Siriano, o seu discípulo Proclo (412-85)
apresenta-se-nos como o expoente máximo da escola
neoplatónica de Atenas. As obras que nos chegaram
são numerosas, apesar da perda de muitas outras; de-
via escrever incansavelmente, se o seu discípulo Marino
lhe atribui a capacidade de compor não menos do que
setecentas linhas por dia. Os escritos mais importantes
de entre os que chegaram até aos nossos dias são a Teo-
logia platónica (incompleta ou inacabada), os Elementos
de teologia, três pequenas obras Sobre a providência, a
liberdade, o mal e alguns comentários não só a obras de
Platão (Alcibíades I, que Proclo considerava autêntico,
Parménides, Timeu, República, Crátilo), como também
ao primeiro livro dos Elementos de Euclides. Dele fica-
ram-nos os Hinos, expressão da religiosidade neoplató-
nica, e um extrato da Arte hierática dedicada às práticas
mágicas e teurgistas.
Na filosofia de Proclo a multiplicação das hipós-
tases e dos intermediários atingiu dimensões ainda
maiores do que as que tinha aceite Jâmblico, de si já

465
muito grandes: parece que para ele era uma necessi-
dade lógica e ontológica «eliminar os vazios» e «pôr
entre os termos extremos intermediários que garantis-
sem a sua relação recíproca» (Sobre a providência, 20).
A procissão das hipóstases configura-se então como
um enorme, mas articulado, sistema hierárquico de
realidades metafísicas. Quanto ao princípio supremo,
de certa forma Proclo regressa à tese de Plotino para
contrapô-la a Jâmblico, não fazendo derivar o Intelec-
to diretamente do Uno, mas sim colocando interme-
diários entre os dois, querendo salvaguardar a absoluta
simplicidade do princípio supremo, que não deve ter
determinações, pois nada pode participar dele e, por
conseguinte, não pode também pré-conter as causas
da sucessiva multiplicidade presente no mundo inte-
ligível. Esta tarefa da causalidade cabe, pelo contrário,
segundo Proclo, aos dois princípios funcionais (e de-
rivantes do Uno) do Limite e do Ilimitado e/ou (com
efeito, a coerência entre as duas posições continua
a ser problemática) às «Énades», que são a primeira
manifestação hipostática procedente do Uno. Como
o próprio nome grego diz, estas são unidades absolu-
tamente semelhantes ao Uno, mas representam a pri-
meira aparição da multiplicidade e da diversificação:
além do mais, são elas a conterem e a determinarem
causalmente as propriedades das diversas realidades
que participam delas. Proclo indica frequentemente o
nome de Siriano como sendo o verdadeiro autor des-
ta doutrina das Énades. Limite e Ilimitado deveriam
ser princípios superiores ainda às Énades, cada uma
das quais seria por isso uma mistura (em proporções

466
sempre diferentes) dos dois princípios imediatamente
inferiores ao Uno.
Limite, Ilimitado e Misto representam uma pri-
meira tríade sucessiva ao Uno e mostram-nos também
o cuidado minucioso com o qual Proclo excogitava
a escansão das realidades inteligíveis segundo a típica
estrutura triádica que pretendia «eliminar os vazios»
o máximo possível; esta escansão encontra-se tam-
bém a nível da segunda hipóstase, em cuja estrutura
ele distingue, até mais nitidamente do que os pen-
sadores anteriores, a tríade de Ser-Vida-Intelecto, o
que implica como consequência que Ser e Intelecto
não se identificam plenamente, mas que o primeiro é
visto como anterior ao segundo mesmo causalmente.
De facto, na procissão hipostática vale a lei de que o
âmbito de influência da causa superior é mais amplo
relativamente à inferior: se todos os seres (inclusive,
claramente, também a primeira Vida e o primeiro In-
telecto) tendem naturalmente para o Ser primeiro, só
os seres animados e, como é óbvio, o Intelecto tendem
para a primeira Vida, que deixa de ser a causa dos seres
inanimados como, por exemplo, as pedras; e, por fim,
só os seres vivos inteligentes tendem para o Intelecto
primeiro, que porém deixará de ser causa dos seres que
são animados, mas sem inteligência, e muito menos
ainda causa dos seres inanimados. Cada nível da pro-
cissão constituída desta forma prevê uma unidade ori-
ginária, que Proclo muitas vezes chama de «mónade»,
de onde causalmente se determina a multiplicidade
de seres que dela dependem. E, analogamente ao caso
da tríade Ser-Vida-Pensamento, também a hipóstase

467
sucessiva da Alma (convém lembrar que a propósito
das almas individuais Proclo se distanciou da tese de
Plotino e não quis admitir que existisse uma parte su-
perior que não desembocasse na geração) se estrutura
em escansões triádicas.
A lei geral que governa a procissão das hipóstases e
a sua escansão é igualmente em Proclo a que se vinha
desenhando desde Plotino, isto é, a distinção ternária
– atente-se, trata-se apenas de aspetos ontológicos e
não de momentos que se seguem cronologicamente
– entre «permanência» (mone), «procissão» (proodos) e
«conversão» (epistrophe):

Cada princípio causal que produz outra coi-


sa, produz o que vem depois dele e tudo o
que dele resulta permanecendo em si e por
si. De facto, se é verdade que imita o Uno
e este faz subsistir o que vem depois sem
mover-se, então cada produtor desempenha
a sua causalidade produtiva da mesma ma-
neira que o Uno (El. theol., 26).

Quer dizer, como tudo procede, em última instân-


cia, do Uno que porém permanece não diminuído em
si e imutado, da mesma forma age cada princípio cau-
sal sucessivo (que, como se viu a propósito da tríade
Ser, Vida, Intelecto, exerce a sua influência em esferas
sempre mais restritas segundo os graus descendentes da
procissão). O que procede da causa continua a ser «se-
melhante» a ela, embora lhe seja inferior por capacida-
de ou potência (El. theol., 7: «cada causa produtiva de

468
outra coisa é superior à natureza daquilo que produz»);
precisamente em virtude de tal semelhança o produto
«converte-se» naquilo que é a sua causa, o seu princípio
imediato e o seu imediato bem: o resultado geral desta
modalidade da procissão é que cada nível dela desen-
volve na diferenciação aquilo que o nível superior pré-
-continha de modo concentrado, de maneira a que se
possa falar de uma relação de inclusão recíproca entre
a causa e o seu efeito – de facto, o efeito contém em
si de maneira diferenciada aquilo que estava presente
de modo unitário na causa; mas por sua vez a causa,
como modelo, pré-continha em si, de forma não rea-
lizada, aquele efeito que seria dela como que uma có-
pia. Por fim, tudo isto explica como Proclo pode dizer
que «tudo está em tudo, mas em cada coisa segundo a
sua natureza»: os efeitos estão presentes e pré-contidos
nas causas «de forma paradigmática», as causas estão
presentes nas coisas que elas produzem de maneira
«icónica» (isto é, os produtos são ainda imagens das
causas). Compreende-se também como esta conceção
pode tornar-se a premissa para afirmar a possibilidade
do conhecimento por parte da alma individual: «Todas
as coisas estão também em nós da mesma forma que a
alma, por este motivo somos por natureza capazes de
conhecê-las todas, despertando as faculdades que estão
em nós e as imagens de todas as coisas» (Theol. plat., I,
3). O inefável Uno, graças ao indício que ficou dele em
nós, pode tornar-se acessível àquela faculdade psíquica
que Proclo chama de «flor» de toda a alma.
Ora, esta enorme articulação hierárquica do uni-
verso inteligível neoplatónico é também – ou melhor,

469
é sobretudo – uma teologia, mas uma teologia que
pretende ser «platónica». Das Énades para baixo, Pro-
clo identifica cada nível ontológico com as divindades
tradicionais do panteão grego e do Olimpo, de modo
que um dos máximos estudiosos modernos da sua fi-
losofia (E. R. Dodds) pôde dizer que com Proclo nos
encontramos face a uma das maiores ironias da histó-
ria do pensamento filosófico, dado que as mais antro-
pomorfas das divindades imaginadas pelo espírito hu-
mano, os deuses de Homero, terminam a sua carreira
numa espécie de museu das abstrações metafísicas. A
consequência é que o estudo e o conhecimento das re-
alidades metafísicas do platonismo são, por um lado,
uma autêntica «ciência teológica», mas tornam-se, por
outro lado, uma experiência religiosa que é celebrada
com os tons da iniciação místico-mistérica: no Parmé-
nides de Platão, diz Proclo,

todos os axiomas da ciência teológica mos-


tram-se perfeitamente evidentes e todos os
ordenamentos das realidades divinas são
apresentados como subsistindo em continui-
dade; e tudo isto é apenas geração celebrada,
por um hino, dos deuses e de tudo o que
parte da causa inefável e incognoscível de to-
das as coisas (Theol. plat., I, 7).

Como é evidente por esta citação, Proclo defende


que pode retirar toda a hierarquia divina e toda a es-
trutura do real do Parménides de Platão ou, mais preci-
samente, da segunda parte desse diálogo, que ele inter-

470
preta à luz de dois princípios exegéticos fundamentais,
em cuja enunciação reconhece a dívida que tem para
com o mestre Siriano: segundo o primeiro princípio,
admite que há na primeira hipótese do Parménides
tantas negações quantas afirmações há na segunda
hipótese; e segundo o outro princípio, admite que o
que é negado na primeira hipótese (o Uno-em-si) a
propósito da realidade suprema, o Uno, corresponde
precisamente ao que é afirmado na segunda hipótese
(o Uno-que-é) e que diz as características próprias e
essenciais das divindades que derivam do Uno. Segun-
do Proclo (e certamente também segundo Siriano), é
verdade que o Parménides não mostra o único modo
platónico de fazer teologia: junto deste distinguem-se
outros três modos, que são 1) inspirado diretamente
pela divindade (por exemplo, utilizado no Fedro), 2)
simbólico (por exemplo, no Banquete), 3) por imagens
(por exemplo, no Timeu). Para o desenvolvimento
destes três modos, Proclo reconhece ainda a valida-
de de tradições e fontes diversas do texto platónico,
encontrando o modo simbólico no orfismo, o modo
por imagens (matemáticas) no pitagorismo e sobretu-
do reconhecendo para o modo inspirado divinamente
a suprema autoridade dos Oráculos caldaicos, uma re-
colha que parece ser originária do século II e que até
então vinha influenciando o platonismo de maneira
sempre crescente. Em Proclo, a revelação diretamente
inspirada pela divindade pode parecer por vezes ante-
posta a qualquer outro modo do discurso teológico;
mas para ele é verdade que só no Parménides é possível
encontrar uma exposição sistemática e exaustiva de

471
todas as realidades divinas. Portanto, uma exegese cor-
reta do diálogo de Platão (à qual Proclo dedicou um
amplo comentário) permitirá delinear uma ciência te-
ológica autenticamente concebida segundo o modelo
matemático e geométrico dos Elementos de Euclides
(não por acaso, também eles objeto do labor exegéti-
co do filósofo), isto é, como um sistema axiomático-
-dedutivo de teoremas bem concatenados entre si. O
que é notável nas interpretações textuais de Proclo
e na reflexão que ele vai desenvolvendo com os seus
métodos exegéticos, paralelamente à sua aplicação na
prática interpretativa, é o facto de conceber o desen-
volvimento do pensamento – que nas suas explicações
vão concatenando demonstrações e argumentações ló-
gicas – como um análogo da procissão a nível ontoló-
gico, como se a exegese estivesse a reproduzir nos seus
procedimentos e nos seus sucessivos aprofundamen-
tos o decorrer do processo causal em que se diferencia
progressivamente a simplicidade concentrada de cada
causa inteligível.
Talvez se compreenda finalmente que em virtu-
de deste paralelismo entre as reflexões do exegeta e a
dinâmica da procissão do real, é possível para Proclo
assimilar às vezes a interpretação do texto platónico a
uma iniciação mistérica ou até ao êxtase místico. Mas
se já era difícil, para um moderno, aceitar uma inspi-
ração religiosa ou mística de sinceridade indubitável
e total juntamente com um racionalismo tão refina-
do como aquele exibido pelo neoplatónico que chega
à interpretação dos textos do «divino» Platão seguro
de tanto exercício lógico e dialético (porque a lógica

472
aristotélica continua a ser o primeiro fundamento da
sua preparação filosófica), é ainda mais árduo com-
preender a parte que Proclo reservou à teurgia na sua
vida pessoal e nas obras escritas. De facto, sabemos
que adquirira as virtudes teurgistas do ensinamento
de Siriano, que lhe transmitira os fundamentos das
doutrinas órficas e caldaicas; em seguida, que fora ple-
namente instruído nas práticas dos Caldeus pela filha
de Plutarco de Atenas, Asclepigénia, aprendendo dela
ritos de purificação, fórmulas mágicas e de prece, além
do uso de instrumentos mágicos diversos graças aos
quais teria sido até capaz de provocar a chuva num
momento de grave seca. Certamente tem-se aqui a
impressão de nos encontrarmos face a atalhos fáceis
e ilusórios para nos pormos em contacto com o divi-
no, ao qual sinceramente aspirava. Todavia, é possível
encontrar um fundamento racional também para este
género de práticas no princípio «tudo está em tudo» e
na consequente convicção de que existe uma simpatia
universal entre todas as coisas, materiais e não mate-
riais: se uma cadeia ininterrupta liga entre si todas as
realidades e se existe sempre um vestígio das realidades
superiores nas menos elevadas, então deve ser possí-
vel remontar às primeiras mesmo através de um uso
apropriado das outras inferiores, até à manipulação
adequada de objetos materiais. De resto, não devemos
esquecer que no sistema de Proclo as coisas materiais
têm também, bastante paradoxalmente, uma relação
com o princípio supremo e com os níveis mais altos
da realidade inteligível (as Énades divinas) que é mais
direta e menos mediata relativamente a realidades que

473
lhes são superiores e intermédias em relação às realida-
des mais divinas: disse-se, por exemplo, que as coisas
inanimadas dependem causalmente só do Ser, mas não
da Vida e do Intelecto. Neste sentido estas mostram-se
«mais próximas» do princípio e das Énades do que as
almas racionais.

474
BIBLIOGRAFIA

CAPÍTULO I

A. Edições e traduções: A edição standard dos teste-


munhos e fragmentos dos pré-socráticos é de Hermann
Diels, reeditada sucessivamente por Walter Kranz: H.
Diels - W. Kranz, Die Fragmente der Vorsokratikern, 3
vols., Berlin 1903 (1951-52); veja-se também J. Barnes,
Early Greek Philosophy, London 1987. No que diz res-
peito às recolhas de cada autor, as principais são: Eracli-
to, Testimonianze e imitazioni, a cura di R. Mondolfo e
L. Tarán, Firenze 1972; L. Tarán, Parmenides, Princeton
1965; A. H. Coxon, The Fragments of Parmenides, As-
sen 1986; J. Bollack, Empédocle, 4 voll., Paris 1965-69;
M. R. Wright, Empedocles: The Extant Fragments, Lon-
don-Indianapolis 1995; Atomisti antichi, Frammenti
e testimonianze, a cura di M. Andolfo, Milano 1999;
W. Leszl, I primi Atomisti, Firenze 2009; D. Sider, The
Fragments of Anaxagoras, Meisenheim am Glan 1981.
B. Estudos: Sobre os pré-socráticos em geral, pode-
-se ver: J. Barnes, The Presocratic Philosophers, London
1982; J. Warren, Presocratics, London 2007; A. A.
Long (ed.), The Cambridge Companion to Early Greek
Philosophy, Cambridge 1999; G. Casertano, I preso-
cratici, Roma 2009 (trad. portug. Os pré-socráticos,
São Paulo 2011). Para cada autor e movimentos os
principais contributos são: C. Kahn, Anaximander
and the Origins of Greek Cosmology, Indianapolis
1995; L. Gianvittorio, Il discorso di Eraclito, Zürich-
New York 2010; W. Burkert, Lore and Science in an-
cient Pythagoreanism, Cambridge Mass. 1972; B. Cen-
trone, Introduzione ai Pitagorici, Roma-Bari 1996; C.
Riedweg, Pythagoras. His Life, Teaching, and Influence,
Ithaca 2005; C. A. Huffman, Philolaus of Croton. Py-
thagorean and Presocratic, Cambridge 1993; A. P. D.
Mourelatos, The Route of Parmenides, New Haven
1970; G. Casertano, Parmenide. Il metodo, la scienza e
l’esperienza, Napoli 1987; P. Curd, The Legacy of Par-
menides. Eleatic Monism and Later Presocratic Thought,
Princeton 1998; D. O’Brien, Empedocles Cosmic
Cycle, Cambridge 1969; A. Martin - O. Primavesi,
L’Empédocle de Strasbourg, Berlin-New York 1998; M.
Schofield, An Essay on Anaxagoras, Cambridge 1980.

CAPÍTULO II

A. Edições e traduções: Os testemunhos e frag-


mentos dos Sofistas estão contidos na edição Diels-
-Kranz dos Pré-socráticos. Uma recolha unicamente
dedicada aos sofistas é a de R. K. Sprague, The Older

476
Sophists, Columbia 1972; veja-se também J.-F. Prade-
au (ed.), Les sophistes, 2 vols., Paris 2009. Todos os
testemunhos relativos a Sócrates, com a exclusão dos
diálogos platónicos, foram coligidos e comentados por
G. Giannantoni, Socratis et Socraticorum reliquiae, 4
vols., Napoli 1990.
B. Estudos: Em geral, sobre o movimento sofísti-
co, veja-se: F. Solmsen, Intellectual Experiments of the
Greek Enlightenment, Princeton 1975; G. B. Kerferd
(ed.), The Sophists and their Legacy, Wiesbaden 1981;
M. Untersteiner, I sofisti, Milano 1996; B. Cassin,
L’effet sophistique, Paris 1995; M. Bonazzi, I sofisti,
Roma 2010. Sobre cada autor, veja-se: E. Schiappa,
Protagoras and Logos: A Study in Greek Philosophy and
Rhetoric, Columbia 1991; G. Mazzara, Gorgia. La
retorica del verosimile, Sankt Augustin 1999. Sobre
Sócrates continua a ser fundamental o estudo de G.
Vlastos, Socrates: Ironist and Moral Philosopher, Cam-
bridge 1991; um bom quadro dos problemas relativos
ao pensamento de Sócrates em relação ao testemunho
platónico encontra-se em G. Giannantoni, Dialogo
socratico e nascita della dialettica nella filosofia di Plato-
ne, Napoli 2005; veja-se também G. Santas, Socrates.
Philosophy in Plato’s early Dialogues, Boston-London-
Melbourne 1979 e M. Montuori, Socrates. An Appro-
ach, Amsterdam 1988; são também úteis os ensaios
presentes nos volumes da série Socratica (2005 e 2008)
a cura di L. Rossetti e A. Stavru, Bari.

477
CAPÍTULO III

A. Edições e traduções: A edição crítica de referên-


cia dos diálogos de Platão é de J. Burnet, Platonis Ope-
ra, Oxford 1900-05; na mesma coleção, encontra-se
em fase de publicação uma nova edição completa de
que saíram até hoje dois volumes, o primeiro contém
as primeiras duas tetralogias, o segundo só a Repúbli-
ca. Edições importantes são as da “Belles Lettres” e da
“Loeb Classical Library” com traduções respetivamen-
te em francês e inglês. Estão disponíveis também nu-
merosas edições comentadas de cada diálogo. No que
diz respeito aos filósofos académicos as principais edi-
ções de referência são: L. Tarán, Speusippus of Athens.
A Critical Study with a Collection of the related Texts
and Commentary, Leiden 1981; Speusippo, Frammen-
ti, a cura di M. Isnardi Parente, Napoli 1980; Seno-
crate - Ermodoro, Frammenti, a cura di M. Isnardi
Parente, Napoli 1982.
B. Estudos: As obras dedicadas à filosofia platónica
no seu conjunto são inumeráveis. Podem-se indicar as
seguintes: R. Kraut (ed.), The Cambridge Companion
to Plato, Cambridge 1992; G. Fine (ed.), Plato, 2 voll.,
Oxford 1999; M. Vegetti, Quindici lezioni su Platone,
Torino 2003; F. Trabattoni, Platone, trad. portug. Pla-
tão, Brasília 2010. Sobre a forma dialógica, veja-se T. A.
Szlezák, Platone e la scrittura della filosofia, 1992 (trad.
portug. Platão e a escritura da filosofia, Ed. Loyola, 2009)
e C. Kahn, Plato and the Socratic Dialogue, Cambridge
1996. Estudos importantes dedicados a cada diálogo
são: C. C. W. Taylor, Plato, Protagoras, Oxford 1991;
C. Araújo, Da arte. Uma leitura do Górgias de Platão,
Belo Horizonte 2008; G. R. F. Ferrari (ed.), The Cam-
bridge Companion to Plato’s Republic, Cambridge 2007;
F. Ademollo, The Cratylus of Plato, Cambridge 2011;
C. J. Rowe, Plato: Symposium, Warminster 1998; F.
M. D. Cornford, Plato’s Cosmology, London 1937; M.
Burnyeat, The Theaetetus of Plato, London 1990; J.
Trindade Santos (ed.), Do Saber ao Conhecimento. Es-
tudos sobre o Teeteto, Lisboa 2005; D. Bostock, Plato’s
Phaedo, Oxford 1986; C. L. Griswold, Self-Knowledge
in Plato’s Phaedrus, London 1986; S. Scolnicov, Plato’s
Parmenides, Berkeley-Los Angeles-London 2003; L.
M. De Rijk, Plato’s Sophist. A philosophical Commenta-
ry, Amsterdam 1986; convém citar também os volumes
da série International Plato Studies que publicam as atas
dos congressos da International Plato Society, cada uma
das quais dedicada a um diálogo ou a grupos de diálo-
gos. Sobre a reflexão ética e política de Platão, vejam-se:
T. J. Andersson, Polis and Psyche, Göteborg 1971; M.
Nussbaum, The Fragility of Goodness, Cambridge 1986;
T. Irwin, Plato’s Ethics, Oxford 1995; M. Migliori - L.
M. Napolitano Valditara (eds.), Plato Ethicus. Philoso-
phy is Life, Sankt Augustin 2004; M. MacKenzie, Plato
on Punishment, Berkeley 1981. Sobre a lógica, a ontolo-
gia e a teoria das ideias: K. Sayre, Plato’s Late Ontology:
a Riddle Resolved, Princeton 1983; M. M. McCabe,
Plato’s Individuals, London 1994; V. Harte, Plato on
Parts on Wholes. The Metaphysics of Structure, Oxford
2002. Sobre a epistemologia veja-se N. P. White, Pla-
to on Knowledge and Reality, Indianapolis 1980 e D.
Scott, Recollection and Experience, Cambridge 1995.

479
CAPÍTULO IV

A. Edições e traduções: Quase todas as obras de


Aristóteles se encontram disponíveis em edição crítica
na coleção “Oxford Classical Texts”. Convém ter pre-
sente também as edições, com tradução respetivamen-
te em francês e inglês, da “Belles Lettres” e da “Loeb”.
As obras botânicas de Teofrasto estão editadas, com
tradução inglesa presente, na coleção da “Loeb Clas-
sical Library”. Os fragmentos dos peripatéticos (ex-
cluindo Teofrasto) foram coligidos por F. Wehrli, Die
Schule des Aristoteles, Basel-Stuttgart 1967-78.
B. Estudos: As mais importantes obras gerais so-
bre Aristóteles são: W. Jaeger, Aristoteles. Grundlegung
einer Geschichte seiner Entwicklung, Berlin 1923; I.
Düring, Aristoteles. Darstellung und Interpretation sei-
nes Denkens, Heidelberg 1966; E. Berti, La filosofia del
primo Aristotele, Milano 1997; Id., Aristotele. Dalla
dialettica alla filosofia prima. Con saggi integrativi, Mi-
lano 2004; Id. (ed.), Guida ad Aristotele, Roma-Bari
1997. Sobre a dialética e a lógica: T. Irwin, Aristotle’s
First Principles, Oxford 1988; E. Berti, (ed.), Aristotle
on Science, Padova 1981. Sobre a física e a cosmolo-
gia: W. Wieland, Die Aristotelische Physik, Göttingen
1970; D. Bostock, Space, Time, Matter and Form: Es-
says on Aristotle’s Physics, Oxford 2006. Sobre a filoso-
fia primeira: P. L. Donini, La Metafisica di Aristotele,
Introduzione alla lettura, Roma 2007; M. Narcy - A.
Tordesillas (eds.), La Métaphysique d’Aristote, perspe-
tives contemporaines, Paris 2005. Sobre a filosofia práti-
ca veja-se: C. Natali, La saggezza di Aristotele, Napoli

480
1989; P. Gottlieb, The Virtue of Aristotle’s Ethics, Cam-
bridge 2009; P. L. Donini, Aristotle and Determinism,
Louvain 2010; E. Berti, Il pensiero politico di Aristotele,
Roma-Bari 1997; G. Bien, Die Grundlegung der poli-
tischen Philosophie bei Aristoteles, Freiburg-München
1973. Sobre a poética e a retórica: C. Rapp, Aristoteles,
Rhetorik, I-II, Berlin 2002; S. Halliwell, Aristotle’s Po-
etics, London 1986; P. L. Donini, Aristotele, Poetica,
Torino 2008. Por fim, indicações interessantes podem
ser encontradas em G. R. Giardina, La chimica fisica
di Aristotele, Roma 2008; G. E. R. Lloyd - G. E. L.
Owen (eds.), Aristotle on Mind and the Senses, Cam-
bridge 1978 e M. R. Johnson, Aristotle on Teleology,
Oxford 2005.
Os estudos mais importantes sobre Teofrasto são:
W. W. Fortenbaugh (ed.), Theophrastus of Eresos.
Sources for his Life, Writings, Thought and Influence, 8
vols., Leiden 1992-2005; G. Reale, Teofrasto e la sua
aporetica metafisica, Brescia 1964; D. Gutas, Theo-
phrastus on First Principles (known as his Metaphysics),
Leiden 2010.

CAPÍTULO V

A. Edições e traduções: Para o conhecimento da fi-


losofia helenista são fundamentais as obras de Cícero,
Sexto Empírico e Diógenes Laércio, que estão edita-
das nas principais coleções (“OCT”, “Belles Lettres”
e “Loeb Classical Library”). Uma rica antologia de
textos gregos e latinos (com tradução inglesa e comen-
tário) encontra-se em D. Sedley - A. A. Long (eds.),

481
The Hellenistic Philosophers, Cambridge 1987. Os
restantes escritos de Epicuro e do epicurismo estão
inseridos em Epicurea, Hg. von H. Usener, Leipzig
1887; as obras de Epicuro foram publicadas em Epi-
curo, Opere, a cura di G. Arrighetti, Torino 1973.
Os fragmentos dos estoicos foram agrupados por
H. von Armin, Stoicorum Veterum Fragmenta, Lei-
pzig 1903-05; quanto a Panécio veja-se: Panezio di
Rodi, Testimonianze e frammenti, a cura di F. Ales-
se, Napoli 1997; quanto a Possidónio: Posidonius,
The Fragments, 3 voll., eds. L. Edelstein - I. G. Kidd,
Cambridge 1972-88. Os testemunhos relativos a Pir-
ro encontram-se em Pirrone, Testimonianze, a cura di
F. Decleva Caizzi, Napoli 1981.
B. Estudos: As obras de caráter geral sobre a fi-
losofia helenista são: A. A. Long, Hellenistic Philoso-
phy, Berkeley-Los Angeles 1986; C. Lévy, Les philoso-
phies hellénistiques, Paris 1997; K. Algra - J. Barnes
- J. Mansfeld - M. Schofield (eds.), The Cambridge
History of Hellenistic Philosophy, Cambridge 1999; J.
Annas, The Morality of Happiness, Oxford 1993. So-
bre Epicuro veja-se: D. J. Furley, Two Studies in Greek
Atomists, Princeton 1967; E. Asmis, Epicurus’ Scientific
Method, Ithaca-London 1984; A. Gigandet - P. M.
Morel (eds.), Lire Epicure et les épicuriens, Paris 2007;
D. Konstan, A Life Worthy of the Gods: the Material-
ist Psychology of Epicurus, Las Vegas 2008. Sobre o
estoicismo: M. Mignucci, Il significato della logica
stoica, Bologna 1965; M. Frede, Die Stoische Logik,
Göttingen 1974; C. Thom, Cleanthes’ Hymn to Zeus,
Tübingen 2006; A. M. Ioppolo, Aristone di Chio e

482
lo stoicismo antico, Napoli 1980; B. Inwood, Ethics
and human Action in Early Stoicism, Oxford 1985; T.
Brennan, The Stoic Life: Emotion, Duties and Fate, Ox-
ford 2005. Sobre o ceticismo veja-se: A. M. Ioppolo,
Opinione e scienza, Napoli 1986; M. L. Chiesara, Sto-
ria dello scetticismo greco, Torino 2003; C. Lévy, Les
scepticismes, Paris 2008; R. Bett (ed.), The Cambridge
Companion to Ancient Scepticism, Cambridge 2010 e
A. M. Ioppolo - D. Sedley (eds.), Pyrrhonists, Patri-
cians, Platonizers. Hellenistic Philosophy in the Period
155-86 BC, Napoli 2007.

CAPÍTULO VI

A. Existem edições críticas de praticamente to-


dos os autores de época imperial. Os Moralia de
Plutarco foram editados só em parte pela “Belles
Lettres” e editados pela “Loeb”. Ótimas edições da
“Belles Lettres” estão disponíveis para Ático (ed. E.
des Places, Paris 1973), Numénio (ed. E. des Places,
Paris 1977), Alcínoo, Didascalicus (Enseignement des
doctrines de Platon, ed. J. Whittaker, Paris 1990). As
obras filosóficas de Apuleio acham-se em Apulée,
Opuscules philosophiques, ed. J. Beaujeu, Paris 2002.
Uma recolha, com tradução italiana e comentário,
de alguns filósofos médio-platónicos do século II foi
feita por A. Gioé, Filosofi medioplatonici del II d.C.
(Gaio, Albino, Lucio, Nicostrato, Tauro, Severo, Arpo-
crazione), Napoli 2002. Os comentários antigos a
Aristóteles encontram-se nos volumes da série Com-
mentaria in Aristotelem Graeca, Berlin; há algum

483
tempo está no prelo, para a editora Druckworth
(London), a tradução inglesa destas obras. Os escri-
tos de Sexto Empírico estão disponíveis em edição
crítica e tradução inglesa na série “Loeb Classical
Library”. Nas principais coleções de textos clássicos
estão também disponíveis as edições das obras de
Cícero, Séneca e Lucrécio. O imenso legado de Ga-
leno está a ser editado no Corpus Medicorum Grae-
corum (Berlin).
B. Estudos: Um enquadramento muito útil acer-
ca da filosofia imperial foi realizado por P. L. Donini,
Le scuole l’anima l’impero: la filosofia antica da Antioco
a Plotino, Torino 1993. A obra de referência sobre o
médio-platonismo é J. Dillon, The Middle Platonists,
London 1996, e no que concerne ao aristotelismo, é
fundamental o estudo de P. Moraux, Der Aristotelis-
mus bei den Griechen, 2 vols., Berlin-New York 1973
e 1984. Três bons estudos críticos sobre a filosofia pla-
tónica nos primeiros séculos da era imperial são J. Op-
somer, In Search of the Truth. Academic Tendencies in
Middle Platonism, Bruxelles 1998, G. R. Boys-Stones,
Post-Hellenistic Philosophy, Oxford 2001 e G. Kara-
manolis, Plato and Aristotle in Agreement? Platonists on
Aristotle from Antiochus to Porphyry, Cambridge 2006.
Em geral, sobre o debate ético-psicológico é muito útil
o estudo de C. Gill, The Structured Self in Ellenistic and
Roman Thought, Oxford 2006. Sobre o pensamento
filosófico de Plutarco veja-se: D. Babut, Plutarque et
le stoïcisme, Paris 1969, F. Ferrari, Dio, idee e materia.
La struttura del cosmo in Plutarco di Cheronea, Napoli
1995 e L. van Hoof, Plutarch’s Practical Ethics, Oxford

484
2010. Sobre Alexandre veja-se M. Bonelli, Alessandro
di Afrodisia e la metafisica come scienza dimostrativa,
Napoli 2001, para Galeno é muito útil a recolha de J.
Hankinson (ed.), The Cambridge Companion to Ga-
len, Cambridge 2008.

CAPÍTULO VII

A. Edições e traduções: A edição standard das Enéa-


das é Plotinus, Opera, eds. P. Henry - H.R. Schwyzer,
3 vols., Oxford 1964-82; é muito boa também a edi-
ção, com tradução inglesa, de A. H. Armstrong, Ploti-
nus, Enneads, 7 vols., Cambridge Mass. 1966-88.
B. Estudos: As melhores introduções gerais ao pen-
samento de Plotino são: J. Rist, Plotinus. The Road to
Reality, Cambridge 1967; L. P. Gerson, Plotinus, Lon-
don-New York 1994; L. P. Gerson (ed.), The Cam-
bridge Companion to Plotinus, Cambridge 1996; R.
Chiaradonna, Plotino, Roma 2009. Dos estudos dedi-
cados à metafísica plotiniana merecem ser citados: A.
H. Armstrong, The Architecture of the Intelligible Uni-
verse in the Philosophy of Plotinus, Cambridge 1940;
J. Bussanich, The One and its Relation to Intellect in
Plotinus, Leiden 1988; J.-M. Narbonne, La métaphy-
sique de Plotin, Paris 1994; G. Aubry, Dieu sans puis-
sance. Dunamis et Energeia chez Aristote et chez Plotin,
Paris 2006; R. Chiaradonna (ed.), Studi sull’anima in
Plotino, Napoli 2005; P. Remes, Plotinus on Self. The
Philosophy of the We, Cambridge 2007. Sobre a ética
veja-se E. Eliasson, The Notion of That Which Depends
On Us in Plotinus, Uppsala 2005 e A. Schniewind,

485
L’étique du sage chez Plotin. Le paradigme du spoudaios,
Paris 2003.

CAPÍTULO VIII

A. Edições e traduções: A maior parte das muitas


obras de interesse filosófico de Porfírio encontram-se
disponíveis em edição crítica. Aqui vale a pena citar as
principais: Porphyrios, Gegen die Christen, ed. A. von
Harnack, Berlin 1916 (de que existe uma tradução
italiana realizada por G. Muscolino, Milano 2009);
Porphyre, De l’abstinence, éd. Bouffartige-Patillon,
Paris 1977; quer o Isagoge quer o Comentário às Ca-
tegorias foram editadas na série dos Commentaria in
Aristotelem Graeca; os fragmentos encontram-se em
Porphyrius, Fragmenta, ed. A. Smith, Stuttgart 1993;
merece ser citada a recente tradução italiana do De
philosophia ex oraculis haurienda, a cura di G. Mus-
colino e G. Girgenti, Milano 2011. As principais
obras de Jâmblico são: De Vita Pythagorica, ed. L.
Deubner, Leipzig 1937; Protrepticus, ed. H. Pistelli,
Leipzig 1888 (veja-se também a edição com tradução
francesa ao cuidado de E. des Places, Protreptique, Pa-
ris 1989); De communi mathematica scientia, ed. N.
Festa, Leipzig 1891; Theologumena arithmeticae, ed.
V. de Falco, Leipzig 1922, e o De mysteriis: Les Mys-
tères d’Egypte, éd. des Places, Paris 1966; vale a pena
citar também a recolha dos fragmentos das obras sobre
os diálogos platónicos: Iamblichus, In Platonis dialo-
gos commentariorum fragmenta, ed. J. Dillon, Leiden
1973; as principais obras de argumento matemático e

486
metafísico encontram-se agrupadas e traduzidas para
italiano em Giamblico, Summa Pitagorica, a cura di
F. Romano, Milano 2006. A produção de Proclo é
imensa, citamos algumas das suas obras de interesse fi-
losófico disponíveis em edição crítica: Commentarium
in Timaeum, ed. E. Diehl, 3 vols., Leipzig 1903-06
(existe uma tradução francesa em 5 volumes ao cuida-
do de J. Festugière, Paris 1966-68); Commentarium in
Parmenidem, ed. C. Steel, 3 vols., Oxford 2007 (en-
contra-se no prelo também a edição da Belles Lettres
ao cuidado de A. Segonds e C. Luna); E. R. Dodds,
The Elements of Theology, Oxford 1933; A. J. Festu-
gière, Proclus, Commentaire sur la République, 3 vols.,
Paris 1970; Proclus, Sur le Premier Alcibiade de Platon,
éd. A. P. Segonds, 2 vols., Paris 1985-86.
B. Estudos: O estudo de maior peso para o neopla-
tonismo pós-plotiniano é P. Hadot, Porphyre et Victo-
rinus, 2 vols., Paris 1968; muito importante também a
monografia de S. Gersh, From Iamblichus to Eriugena,
Leiden 1978; veja-se igualmente D. O’Meara, Pytha-
goras Revived. Mathematics and Philosophy in late An-
tiquity, Oxford 1989 e a recolha de R. Chiaradonna
- F. Trabattoni (eds.), Physics and Philosophy of Nature
in Greek Neoplatonism, Leiden 2009.
Sobre Porfírio as apresentações mais eficazes são:
A. Smith, Porphyry’s Place in the Neoplatonism. A Study
in Post-Plotinian Neoplatonism, The Hague 1974; G.
Girgenti, Introduzione a Porfirio, Roma-Bari 1997 e
sobretudo M. Zambon, Porphyre et le moyen-platonis-
me, Paris 2002. Sobre Jâmblico veja-se a recolha H.
J. Blumenthal - E. G. Clark (eds.), The Divine Iam-

487
blichus. Philosopher and Man of Gods, London 1993 e
J. Finamore, Iamblichus and the Theory of the Vehicle
of the Soul, Chico 1985; em geral, sobre o neopla-
tonismo tardio veja-se: C. Steel, The Changing Self.
A Study of the Soul in Later Neoplatonism: Iamblichus,
Damascius, Priscianus, Bruxelles 1978. Sobre Proclo a
exposição de maior peso é G. Reale, Introduzione a
Proclo, Roma-Bari 1989; veja-se igualmente a recolha
de A. Segonds - C. Steel (éd.), Proclus et la Théologie
Platonicienne, Leuven-Paris 2000; E. Gritti, Proclo.
Dialettica Anima Esegesi, Milano 2008; E. Kutash, Ten
Gifts of the Demiurge. Proclus on Plato’s Timaeus, Bris-
tol 2011 e M. Martijn, Proclus on Nature: Philosophy
of Nature and its Methods in Proclus’ Commentary on
Plato’s Timaeus, Leiden 2010.

488
ÍNDICE DE NOMES

Abamón, 461
Academo, 98
Agamémnon, 423
Agripa, 412
Albino, 398, 423, 483
Alcibíades, 87, 101, 106, 201, 459, 465, 503
Alcidamante, 60
Alcínoo, 398-400, 403, 483
Alcméon de Crotona, 54
Alexandre III, dito Magno, rei da Macedónia, 281, 364
Alexandre de Afrodísias, 190, 191, 201, 237, 405-409,
416, 434, 445, 485
Amélio, 430
Amónio Sacas, 429, 463
Anaxágoras, 5, 39, 44, 45, 46, 54, 104
Anaxímenes, 16, 21, 22, 24, 489
Andronico de Rodes, 192, 238, 393, 394, 404, 408, 431
Ânito, 77, 331
Anónimo de Jâmblico, 60
Antifonte, 60, 69, 70, 72
Antíoco de Ascalão, 382, 389, 390, 391,
Antípatro, diádoco de Macedónia, 344, 345, 352, 360,
376
Antípatro de Tarso, 313, 343
Antístenes, 6, 87, 88, 90
Antoninos, dinastia, 384, 385
Apolo, 27
Apuleio, 399, 483
Aquiles, 37
Arcesilau de Pítane, 7, 183, 312, 321, 323, 343, 367-372,
375-378, 400, 414
Arquitas, 99, 100, 396
Arete, 56, 63, 92, 112, 117
Aristarco de Samos, 285, 425
Aristipo de Cirene, 92-94
Aristófanes, 75, 106
Aríston de Quíos, 345
Aristóteles, 4, 6, 8, 13, 14, 15, 16, 19, 25, 29, 30, 32,
36, 46, 48, 75, 76, 81, 87, 88, 95, 104, 108, 109,
132, 139, 148, 153, 165, 184, 186, 189-239, 241-
246, 248-250, 252-256, 258-267, 269-277, 279,
281-286, 292, 294, 295, 299, 302, 326, 327, 338,
339, 341, 342, 344, 346, 349, 350, 356, 358, 360,
362, 363, 366, 382, 386, 387, 389-394, 397-402,
404-406, 408-410, 414, 425, 427, 428, 432, 434,
437, 438, 443, 452, 456, 457, 59, 460, 463, 464,
480, 483, 502
Aristóxeno, 280
Arriano de Nicomedia, 417

490
Ascânio de Abdera, 366
Asclepigénia, 473
Aspásio, 405, 426
Atena, 332
Ático, 404, 483
Augusto, Júlio César Octaviano, imperador romano, 385

Burro, Sexto Afrânio, 419

Cálias, 245-247
Cálicles, 72, 121
Calipo, 100, 225
Caracala, Marco Aurélio Severo Antonino, dito, 405
Carnéades, 313, 367, 372-378
Catão, Marco Pórcio, dito o Censor, 349, 373
Cícero, Marco Túlio, 298, 301, 320, 325, 336, 351,
352, 361, 362, 367, 369, 373
Cipião, Públio Cornélio, dito Emiliano, 361
Cláudio, Tibério, imperador romano, 419, 424
Cleantes de Asso, 285, 311, 312, 332, 333, 343, 421
Clístenes, 58
Clitómaco, 373, 376, 377
Codros, 97
Cosroes I, rei persa, 464
Crantor de Sólio, 181
Crates de Tebas, 91, 311
Crátilo, 25, 102, 111, 409, 465
Crisipo, 312, 320, 321, 327, 328, 333-337, 343, 346-
349, 352, 354, 356-358, 363, 372, 376, 403,
406, 416, 417
Critolau, 373
Crítias, 60, 70, 87, 97, 103

491
Damáscio, 464, 465
Demétrio de Falera, 285
Demétrio Poliorceta, 282
Demócrito, 39, 44, 47-52, 293-295, 297
Diare, 233
Dicearco, 279
Diels, Hermann, 13, 475, 476
Diodoro Crono, 95, 311
Diógenes de Babilónia, 313, 343, 373
Diógenes de Enoanda,
Diógenes de Sínope, 90
Diógenes Laércio, 51, 103, 288, 302, 327, 481
Díon, 99, 100, 319
Dionísio I, dito o Velho, tirano de Siracusa, 99
Dionísio II, dito o Jovem, tirano de Siracusa, 99
Diotima, 179, 180
Dodds, Eric Robertson, 470, 487
Domício, Tito Flávio, imperador romano, 417

Empédocles, 39, 40-44, 52, 327, 330


Enesidemo de Cnossos, 410-412
Énio, Quinto, 381
Epicuro, 7, 49, 93, 284-296, 299-306, 309, 310, 341,
358, 414, 420, 423, 424, 482
Epicteto, 3, 10, 347, 360, 416, 418, 422
Er, 176
Erasístrato, 425
Erixímaco, 106
Eros, 67, 179, 180, 181
Espeusipo, 183, 185, 186, 195
Estílpon, 282, 283, 311
Estrangeiro de Eleia, 110
Estratão de Lâmpsaco, 280, 285
Eubúlides, 95
Euclides de Mégara, 94
Eudemo de Rodes, 248
Eudoro de Alexandria, 392
Eudoxo de Cnido, 183
Eurípides, 276

Filino de Cós, 426


Filipe II, rei de Macedónia, 190
Filipe de Opunto, 101, 185
Filodemo de Gádaros, 287, 289
Filolau de Crotona, 26, 29
Fílon de Alexandria, 410
Fílon de Larissa, 377, 382, 389, 395
Flávios, dinastia, 384

Galeno, Cláudio, 55, 362, 399, 408, 427, 428, 484,


485
Galeno, Públio Licínio Inácio, imperador romano,
55, 362, 399, 408, 427, 428, 484, 485
Gordiano, imperador romano, 430
Górgias, 38, 60, 61, 65-68, 72, 79, 80, 102, 106, 114,
116, 459, 479

Hades, 332
Hecateu, 21
Helena, 67, 154, 494
Hélio Tuberão, 410
Hera, 332

493
Héracles, 89, 349
Heraclito, 12, 22-25, 327, 368
Herénio, 429
Hermias, 189
Hermócrates, 106
Heródoto, 58, 288, 297
Herófilo, 425, 426
Hesíodo, 11, 12, 18, 32
Hipácia, 463
Hiparco de Niceia, 101, 425
Hípias de Élis, 60, 69, 79, 102, 106
Hipócrates de Cós, 52, 53, 55, 428
Hipócrates de Quíos, 52, 53, 55, 428
Homero, 17, 32, 470, 502

Ifigénia, 276, 423


Isócrates, 74, 114, 143, 271
Jaeger, Werner, 194, 480
Jâmblico, 60, 191, 458, 59, 60, 61, 62, 64-66, 86, 87
João Filopono, 463
Juliano, Flávio Cláudio, dito, o Apóstata, 462
Justiniano I, imperador de Oriente, 464

Kranz, Walter, 13, 475, 476

Leucipo, 39, 47
Longino, 429
Lucílio, destinatário das cartas de Séneca, 394, 420,
422
Lúcio, 404
Lucrécio Caro, Tito, 288, 296, 297, 421-242, 484

494
Marco Aurélio Antonino, imperador romano, 311,
385, 418, 419
Marino, 465
Meleto, 77, 331
Melisso de Samos, 38, 65, 66, 67
Meneceu, 288, 303, 305, 307
Menelau, 67
Menódoto, 412
Metrodoro, 287
Mitridates VII, rei do Ponto, 378
Moderado de Gades, 401
Musónio Rufo, 417

Nausífanes, 287
Nero, Lúcio Domício, 383, 419. 420
Nicolau de Damasco, 394
Nicómaco, filho de Aristóteles, 81, 189, 193, 237,
248, 249, 251, 252, 254, 255, 257-260, 262,
302, 405
Nicómaco de Gérasa, 401
Nicóstrato, 404
Numénio de Apameia, 391, 399, 400, 401, 404, 416,
483

Olimpiodoro, 463
Orígenes, 429

Panécio de Rodes, 310, 360, 361, 363, 395, 482


Parménides, 31-36, 38, 40, 42, 52, 65, 66, 103, 104,
106, 110, 147, 151, 152, 161, 162. 165, 166, 167,
183, 368, 439, 456, 459, 463, 465, 470

495
Penia, 179
Péricles, 44, 47, 59, 61, 98
Perictione, 97
Pirro de Élis, 364
Pisão, família, 420
Pitágoras, 12, 25-28, 32, 385, 386, 392, 401, 460
Pítocles, 288, 294
Platão (Aristócles), 4, 12, 13, 16, 25, 27, 31, 32, 36, 37,
39, 46, 48, 55, 59, 60, 62, 64, 70, 72, 73, 74, 75,
77, 79, 81, 85, 87, 88, 92, 94, 97-104, 106, 107,
112-114, 116-120, 122, 123-132, 134, 135-148,
150, 152, 154, 156-158, 161, 163-173, 175, 176,
178-180, 183, 184, 186, 187, 189, 193, 194, 196,
199, 201, 202, 215-218, 225, 226, 231, 243, 244,
249, 254, 255, 262, 263, 264, 270, 273, 274, 276,
281, 284, 286, 292, 294, 299, 305, 311, 314, 338,
339, 342, 346, 349, 355-57, 360, 232, 363, 364,
367, 268, 370, 372, 382, 386, 387, 389-392, 394,
398, 400-402, 404, 410, 430, 432, 433, 434, 437,
438, 340, 343, 345, 346, 352, 356, 359, 360, 363,
365, 370, 372, 378, 379, 502, 503
Plotino, 159, 394, 401, 404, 429, 430-434, 436-444,
446, 448-450, 452, 453, 455-460, 466, 468, 484,
485
Plutarco de Atenas, 371, 378, 396,402, 403, 405,
416, 417, 450, 463, 573, 483,473,
Plutarco de Queroneia, 401, 373, 378, 402, 405, 416
417, 450, 463, 483, 484
Pólemon, 183, 311
Policleto, 52
Polícrates, 87

496
Porfírio (Malco), 8, 429-432, 435, 453, 455-458,
460, 461, 486, 487
Poros, 179
Posídon, 18
Possidónio de Apameia, 7, 310, 360-363, 421, 482
Pótamon de Alexandria, 388, 389
Príamo, 254
Proclo, 8, 463, 465-473, 488
Pródico de Céos, 60
Prometeu, 64
Protágoras, 60-64, 68-69, 84, 102, 106, 110, 113,
261, 303
Ptolomeu, dinastia, 285

Salonina, 430
Séneca, Lúcio Aneu, 306, 310, 360, 383, 398, 419-
422, 484
Sexto Empírico, 8, 63, 65, 369, 375, 378, 410, 412,
414, 416, 481, 484
Septímio Severo, Lúcio, imperador romano,
Severo, 405
Sila, Lúcio Cornélio, 378, 385
Simplício, 459, 464
Siriano, 463, 465, 466, 471, 73
Sócrates, 4, 5, 16, 46, 47, 57, 75-86, 89, 90, 92, 98,
101, 102, 105, 107, 109, 110, 112-119, 127,
145, 180, 197, 199-201, 206, 207, 245-247, 292,
299, 303, 316, 322, 331, 341, 349, 367, 368,
400, 402, 477
Sodano, Ângelo Rafael, 462
Sófocles, 276

497
Sofronisco, 199
Sólon, 97

Tácito, Cornélio, 384


Tales de Mileto,11, 12, 16, 18-20, 22, 24
Teeteto, 103, 106, 161, 166, 392, 459, 479
Teodoro, 99
Teofrasto, 15, 190, 277, 278, 280, 362, 390, 427,
480, 481
Téon, 463
Terêncio Afro, Públio, 381
Tibério, Júlio César Augusto, imperador romano, 101
Timeu, 103, 110, 155, 161, 168-172, 182, 183, 186,
226, 299, 338, 392, 399, 402, 459, 460, 465, 471
Tímon de Fliunte, 364, 365, 367, 410
Ptolomeu, Cláudio, 424, 425, 463
Trasilo, 101
Trasímaco de Calcedónia, 60, 73, 79, 80, 102, 119,
120, 125
Tucídides, 52, 72
Ulisses, 67

Vlastos, Gregory, 82, 477

Whitehead, Alfred, 104


Xenócrates de Calcedónia, 183, 186, 187, 195
Xenófanes, 32, 43, 65
Xenofonte, 75, 76, 89, 92, 503

Zenão de Eleia, 295


Zenão de Sídon, 288
Zeus, 18, 64, 113, 306, 311, 332, 333, 348, 482

498
TÍTULOS

Compêndio da arte militar


Vegécio
A beleza e o mármore: o tratado De Architectura de Vitrúvio e o Renascimento
Mário Henrique S. D’Agostino
Artquitetura do Oriente Médio ao Ocidente: a transferência de elementos arquite-
tônicos através do Mediterrâneo até Florença
Andrea Piccini
Retórica
Adma Muhana, Mayra Laudanna, Luiz Armando Bagolin (orgs.)

COLEÇÃO ARCHAI

As origens da alma: os gregos e o conceito de alma de Homero a Aristóteles


Thomas M. Robinson
Platão
Franco Trabattoni
Ensaios sobre o tempo na Filosofia Antiga
Fernando Rey Puente
Um paradigma no céu: Platão político, de Aristóteles ao século XX
Mario Vegetti
Platão e o orfismo: diálogos entre religião e filosofia
Alberto Bernabé
A potência da aparência: um estudo sobre o prazer e a sensação nos Diálogos
de Platão
Fernando Muniz
Platão: helenismo e diferença – raízes culturais e análise dos diálogos
Maria Teresa Nogueira Schiappa de Azevedo
O prazer, a morte e o amor nas doutrinas dos pré-socráticos
Giovanni Casertano
Platão
Michael Erler
O exercício da razão no mundo clássico – perfil de Filosofia Antiga
Pierluigi Donini e Franco Ferrari

CLASSICA DIGITALIA BRASIL

Banquete – Apologia de Sócrates


Xenofonte
Cidadania e Paideia na Grécia Antiga
Delfim Ferreira Leão, José Ribeiro Ferreira e Maria do Céu Fialho
O pitagorismo como categoria historiográfica
Gabriele Cornelli
Oração contra Leócrates
Licurgo
O Truculento
Plauto
Memoráveis
Xenofonte
Vidas Paralelas: Alcibíades e Coriolano
Plutarco
Obras Morais: o banquete dos sete sábios
Plutarco
Obras Morais: como distinguir um adulador de um amigo; Como retirar
benefícios dos inimigos; Acerca do número excessivo de amigos
Plutarco
Obras Morais: diálogo sobre o Amor; Relatos de amor
Plutarco
Plutarco e as artes: pinturas, cinemas e artes decorativas
Luísa de Nazaré Ferreira, Paulo Simões Rodrigues e Nuno Simões Rodrigues
REVISTA ARCHAI

Volumes I a IX, semestral, desde julho de 2008.

PORTVGALIAE MONVMENTA NEOLATINA

Missão dos embaixadores japoneses à curia romana, v. I


Duarte de Sande
Missão dos embaixadores japoneses à curia romana, v. II
Duarte de Sande
As antiguidades da Lusitânia
André de Resende
Opera Omnia, paráfrases a Job e à sabedoria de Salomão
Jerónimo Osório
Sedecias, teatro
Luís da Cruz
Metafísica
Luís António Verney
Obra literária, prosa latina, v. I
Jerónimo Cardoso
Obra literária, poesia latina, v. II
Jerónimo Cardoso
Correspondência latina
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