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projetos de letramento:

debates & aplicações


PROJETOS DE LETRAMENTO:
debates & aplicações

Cândida Martins Pinto


Evanir Piccolo Carvalho
Silvania Faccin Colaço
Organizadoras

1ª edição

são vicente do sul – rio grande do sul


– campus são vicente do sul
instituto federal farroupilha
2012
instituto federal farroupilha
campus são vicente do sul – rs

Luiz Fernando Rosa da Costa


Diretor Geral

Luis Aquiles Martins Medeiros


Diretor de Ensino

João Flávio Cogo Carvalho


Diretor de Produção e Extensão

Deivid Dutra de Oliveira


Diretor de Administração e Planejamento

Gustavo Pinto da Silva


Diretor de Extensão

livro organizado pelo núcleo de estudos


linguísticos e literários – nell

São de responsabilidade exclusiva dos autores a precisão e


validez dos dados e informações, assim como as opiniões
expressadas nos artigos, não manifestando necessaria-
mente o ponto de vista do Instituto Federal Farroupilha –
Campus São Vicente do Sul.
conselho editorial

Cristina Bandeira Townsend


IFFarroupilha – Reitoria

Jossemar de Matos Theisen


UFPel

Letícia Domanski
IFFarroupilha – Santa Rosa

Luis Fernando Lazzarin


UFSM

Maria Rosângela Silveira Ramos


IFFarroupilha – São Vicente do Sul

Rafaela Vendruscolo
IFFarroupilha – São Vicente do Sul

Rosângela Segala de Souza


IFFarroupilha – São Vicente do Sil

Sandra Maria do Nascimento de Oliveira


IFFarroupilha – Júlio de Castilhos
© Cândida Martins Pinto, Evanir Piccolo Carvalho e Silvania
Faccin Colaço.

Capa e diagramação: Marcelo Kunde

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quer meio, sem a permissão prévia dos autores.
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à Publicação de Livros, oriundos de iniciativas de ensino, pesquisa e
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E-mail: gabinete@svs.iffarroupilha.edu.br

P964
Projetos de letramento: debates e aplicações / Cândida Martins Pinto,
Evanir Piccolo Carvalho, Silvania Faccin Colaço (orgs.) – São Vicente do Sul:
Instituto Federal Farroupilha, 2012.
xxxp. : il.

Inclui bibliografia ao final de cada seção.


ISBN E-Book 978-85-63319-08-1

1. Letramento. 2. Leitura e escrita

CDD 418.4

Ficha catalográfica elaborada pela bibliotecária Raquel Fontoura Prietsch CRB-10/1803.


sumário

apresentação..............................................................................08
As organizadoras

pa r t e i – d e b at e s

letramentos na contemporaneidade: perspectivas teóricas......16


Raquel Bevilaqua
Silvania Faccin Colaço

letramentos e leitura nas perspectivas autônoma e ideológica.....33


Silvania Faccin Colaço

reflexões sobre leitura em língua estrangeira........................57


Graciele Turchetti de Oliveira Denardi
Lucas Martins Flores
Cândida Martins Pinto

mídia e educação: o uso das novas tecnologias em sala de aula.....75


Sabrine Denardi de Menezes da Silva

para problematizar metanarrativas : lei 11.645/08 e identidades


indígenas ..............................................................................86
Letícia Mossate Jobim
Daniela Farias Garcia de Borba
Luís Fernando Lazzarin

os processos de letramento em língua portuguesa:um estudo


dos sentidos no proeja.........................................................105
Evanir Piccolo Carvalho

pa r t e i i – aplicações

curso técnico integrado e as práticas de letrameto: experiência


que gera aprendizado..........................................................136
Cândida Martins Pinto

o modelo interativo na leitura instrumental em língua


estrangeira ......................................................................157
Cárla Callegaro Corrêa Kader
práticas de letramento no proeja: buscando no passado uma

identidade cidadã...............................................................171
Silvania Faccin Colaço

o jornal na sala de aula: projeto de letramento para o ensino da

leitura e escrita.................................................................185
Cândida Martins Pinto

análise de atividades didáticas com vistas à identificação de instâncias

de letramento científico......................................................198
Janete Teresinha Arnt

pa r t e i i i – c a d e r n o d e at i v i d a d e s

atividades de leitura e escrita: projetos de letramento .............229


As organizadoras

1 as redes sociais e você!......................................................233


Andressa Trindade Berlato

2 projeto: café literário......................................................234


Diana Prestes Budó Dutra

3 o gênero notícia e seus aspectos discursivos.........................236


Erilaine Perez da Silveira

4 a linguagem jornalística e as diversas mídias........................238


Lígia Gonçalves de Oliveira

5 o desenho animado: brincando e aprendendo.........................242


Lucas Martins Flores

6 estratégias de leitura para o estudo da crônica....................246


Mary Teresinha Sagrilo

7 a linguagem virtual: privada ou pública?..............................251


Sabrine Denardi de Menezes

8 a realidade do país por meio da charge.................................257


Sandra Izabel Gomes

9 o anúncio publicitário: linguagem verbal e não-verbal...........260


Viviane Berguemaier

sobre as organizadodas......................................................263
a p r e s e n ta ç ã o

A implementação das reformas apresentadas pela nova Lei


de Diretrizes e Bases (BRASIL, 1996) promoveu, em muitos
momentos, debates intensos e estudos sobre a formação de
professores no Brasil. Tais debates ganharam espaço amplo não
apenas em âmbito educacional, mas também na mídia, princi-
palmente quando se discutem os resultados negativos das ava-
liações do sistema educativo em âmbito nacional, tais como a
Prova Brasil, o SAEB, o ENEM e também a qualidade do ensino
brasileiro em perspectiva internacional, como o PISA.
Além disso, há pesquisas que mostram o professor como
a figura sobre a qual recai a responsabilidade do sucesso
ou do fracasso escolar. Em relação à leitura e à escrita, for-
mou-se uma representação distorcida de que os professores
de língua materna são os responsáveis pelo desempenho
textual dos alunos, no entanto é preciso considerar que a
aprendizagem da língua materna se dá por amplos processos
de letramentos e que é um compromisso a ser assumido por
todas as áreas (SCHAFFER, 2008) em âmbito escolar.
A língua se constitui nas práticas sociais, com a interferên-
cia dos diversos saberes que tecem o conhecimento linguístico
composto por tudo aquilo que circula nos contextos sociais e
nas diversas áreas no meio escolar. No exercício da docência,
o professor de linguagens tem ao seu alcance o livro didático.
Sabemos que o ensino e a aprendizagem de línguas recebem,
de uma maneira ou de outra, as influências do livro didático,
o qual tem como principal objetivo subsidiar o trabalho peda-

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projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

gógico dos professores, no entanto, às vezes, é utilizado como


base dos conhecimentos e de métodos de ensino e atua como
forma de evidenciar valores ideológicos e culturais. Dados do
Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação de 2011
mostram os investimentos do governo federal no Programa
Nacional do Livro Didático: R$1,3 bilhão na compra, avalia-
ção e distribuição de livros didáticos, destinados ao ensino
médio e fundamental, totalizando 163 milhões de livros para
atender a 37.422.460 alunos, inclusive na modalidade Edu-
cação de Jovens e Adultos (BRASIL, 2012).
Nesse sentido, esta obra pretende estabelecer diálogos com
o livro didático e oportunizar reflexões sobre a prática pedagó-
gica para que, posteriormente, o professor produza seu pró-
prio material de leitura e de escrita para os alunos. Assim, não
pensamos que o professor deva estar submetido ao livro didá-
tico, mas sim que este constitua um apoio às aulas de línguas.
Ensinar e aprender a língua, na perspectiva dos letramen-
tos, traz a concepção de que ler e escrever envolvem o fazer
(BARTLETT, 2007), promovendo diálogos com ideias, con-
cepções e informações de diversas esferas (ANTUNES, 2009).
Portanto, esta obra visa a contribuir para que o professor de
línguas, em formação ou em atuação nos espaços escolares,
amplie seus conceitos sobre o processo de ensino-aquisição
da leitura e da escrita e, a partir disso, ressignifique suas práti-
cas e projetos de ensino de modo a ultrapassar as fronteiras da
teoria, para aplicar seus conhecimentos linguísticos e discur-
sivos no seu próprio material didático, tomando como ponto
de partida as práticas sociais de uso da leitura e da escrita.
Para contribuir com essas discussões, a obra enfoca
aspectos teóricos e práticos embasados nos Novos Estu-
dos do Letramento (KLEIMAN, 2007; ROJO, 2009; STREET,
2003 e HEATH, 1982), por meio dos quais se assume a con-
cepção de que o trabalho com a linguagem ocorre numa

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projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

relação muito estreita com as práticas sociais por meio da


leitura e da escrita de diferentes gêneros discursivos sig-
nificativos para o contexto em que os sujeitos se inserem.
Nesse sentido, entendemos não ser suficiente o ensino de
estruturas gramaticais isoladas e da estrutura do gênero tal
como muitas vezes é feita. É necessário trabalhar a compre-
ensão do funcionamento do gênero na sociedade e na sua
relação com os sujeitos situados em uma determinada cul-
tura (BAZERMAN, 2005), analisando as relações de poder
presentes nas práticas sociais das instituições (STREET,
2003). Isso constitui os letrametnos do sujeito, que são
plurais, diversos e múltiplos, porque representam um fazer
relacionado à leitura e à escrita que deriva das suas neces-
sidades no cotidiano.
Assim, este livro resulta do Projeto de Extensão “Boas
práticas docentes na elaboração de material didático para o
ensino da leitura”, realizado pelo Núcleo de Estudos Linguís-
ticos e Literários (NELL), do Instituto Federal Farroupilha,
campus São Vicente do Sul. O curso caracterizou-se como
formação continuada para professores de Educação Básica da
rede pública da região de abrangência do campus. O intuito
do curso foi realizar algumas reflexões sobre o ensino de
língua materna e estrangeira, em que ocorreram discussões
acerca de práticas de letramento, gêneros discursivos, leitura
e escrita, educação indígena e novas tecnologias na educação.
Essas discussões geraram ainda mais investigações sobre o
ensino de línguas, resultando nos artigos que se apresentam a
seguir, buscando apresentar debates e aplicações sobre proje-
tos de letramento. Os artigos iniciais apresentam abordagens
teóricas sobre letramentos e questões afins, o que constitui os
“debates”, falando sobre leitura e escrita em diferentes contex-
tos da sociedade atual, e os artigos finais mostram alguns pro-
jetos de letramento na prática, constituindo as “aplicações”.

10
projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

Abrimos o livro com o texto “Letramentos na contempora-


neidade: perspectivas teóricas”, voltado para os letramentos e
a pós-modernidade, tecendo relações entre a escola e a socie-
dade em que ela se insere e buscando focalizar as práticas de
letramento necessárias para que a escola se aproxime mais das
novas demandas da contemporaneidade. O segundo texto
“Letramento e leitura nas perspectivas autônoma e ideológica”
analisa as estratégias individuais de leitura e as práticas sociais
de letramento, estabelecendo um vínculo entre as duas pers-
pectivas. Na sequência, o texto “Reflexões sobre leitura em
língua estrangeira” reflete sobre as sugestões dos documentos
oficiais do país para o ensino de leitura em língua estrangeira
no Ensino Médio, relacionando com pesquisas na área. O
texto “Mídia e educação: o uso das novas tecnologias em sala
de aula” enfoca algumas formas de aproximação do mundo
tecnológico com a escola, considerando-se que a tecnologia
também exige letramentos próprios dessa realidade, exigindo
novas abordagens no ensino. A seguir, o artigo “Para proble-
matizar metanarrativas: lei 11.645/08 e identidades indíge-
nas” traz como foco uma abordagem sobre a cultura indígena
em sala de aula, um ponto que desafia a construção dos cur-
rículos em função da legislação atual, estabelecendo um diá-
logo acerca das possibilidades de problematizar e questionar
as metanarrativas que produzem uma identidade idealizada
do índio. Fechamos essa parte com o texto “Os processos de
letramento em língua portuguesa: um estudo dos sentidos no
PROEJA”, que apresenta uma fundamentação bakhtiniana de
linguagem para enfatizar a perspectiva dialógica dos discur-
sos sobre os processos de letramento, com uma pesquisa a
partir de narrativas de estudantes de PROEJA.
Na parte final da obra, apresentamos artigos referentes a
projetos práticos de letramento, ou seja, aplicações da teoria.
Segundo Lilis (2003), existem muitos estudos teóricos sobre

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projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

o tema, carecendo de propostas práticas. Assim, apresenta-


mos o texto “Curso técnico integrado e as práticas de letra-
mento: experiência que gera aprendizado”, que descreve e
comenta uma prática de letramento ocorrida em um curso
Técnico em Agropecuária, na disciplina de Língua Portuguesa,
desenvolvido conjuntamente com um professor da área agrí-
cola. Posteriormente, apresentamos mais uma proposta no
texto “O modelo interativo na leitura instrumental em língua
estrangeira”, que analisa como a estratégia de leitura intera-
tiva está inserida em uma seção de um Caderno Didático de
Língua Inglesa Instrumental, criado por professoras de um
Colégio Federal do interior do Estado do Rio Grande do Sul.
Posteriormente, o texto “Práticas de letramento no PROEJA:
buscando no passado uma identidade cidadã”, em que é rela-
tada uma experiência centrada em histórias de vida de alunos
de PROEJA, numa perspectiva de prática social, com base na
Pedagogia dos Multiletramentos. O texto “O jornal na sala de
aula: projeto de letramento para o ensino de leitura e escrita”
apresenta uma experiência de prática de letramento ocorrida
em um Curso Técnico em Secretariado, nas aulas de Língua
Portuguesa, em que foi desenvolvido um trabalho com leitura,
interpretação e produção de um conjunto de gêneros textuais
de acordo com o sistema de atividades do contexto profis-
sional, que compuseram um jornal do Curso. A seguir, apre-
sentamos o texto “Análise de atividades didáticas com vistas
à identificação de instâncias de letramento científico”, que
faz um mapeamento das práticas de letramento científico de
materiais didáticos, assim como a reelaboração de atividades
didáticas, verificando possibilidades de utilização do gênero
notícia de produção científica como modo de inserção do
aluno em práticas científicas, oferecendo subsídios para a ela-
boração de material didático para fins de leitura instrumental.
E, por fim, o texto “Atividades de leitura e escrita: projetos de

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projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

letramento”, que compila atividades elaboradas no Curso de


Formação Continuada que originou este livro.
Acreditamos, assim, que esta obra pode contribuir
para promover reflexões e ressignificar práticas relati-
vas ao processo ensino-aquisição da leitura e da escrita
em uma perspectiva sociocultural. Além disso, privilegia-
se, nos exemplos de material didático que compõem a obra,
o letramento crítico, que objetiva a apropriação dos gêneros
pelos alunos de modo que esse conhecimento possibilite
uma efetiva inserção em práticas sociais fazendo usos da
leitura e da escrita de forma consciente e adequada a cada
contexto, possibilitando-lhes agir no mundo ou fazer uso
de determinadas práticas que lhes convêm em termos de
necessidades comunicativas.

As organizadoras
São Vicente do Sul, abril de 2012.

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projetos de letramento : debates & aplicações
apresentação

referências

ANTUNES, I. Língua, texto e ensino: outra escola possível. São Paulo: Parábola, 2009.

BARTLETT, L. To seem and to feel: situated identities and literacy practices. Tea-
chers College Record. Columbia University, v. 109, n. 1, p. 51-69, January 2007.

BAZERMAN, C. Gêneros textuais, tipificação e interação. Organização de Ângela


Paiva Dionísio e Judith Chambliss Hoffnagel. São Paulo: Cortez, 2005.

BRASIL. Lei nº 9.394/1996. Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Dispo-


nível em: http://www.portal.mec.gov.br/seed/arquivos/pdf. Acesso em: 22mar2012.

BRASIL. Livro Didático. Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação. Dispo-


nível em: http://www.fnde.gov.br/index.php/programas-livro-didatico. Acesso
em: 21mar2012.

HEATH, S. Protean shapes in literacy events: ever-shifting oral and literate tradi-
tions. In: TANNEN, D. (Ed.). Spoken and written language: exploring orality
and literacy. Norwood, N.J.: Ablex, 1982, p. 91-117.

KLEIMAN, A. Letramento e suas implicações para o ensino de língua materna.


Signo. Santa Cruz do Sul, v. 32, n. 53, p. 1-125, 2007.

LILLIS, Theresa. Student writing as 'Academic Literacies': drawing on Bakhtin to move


from critique to design. Language and Education. Vol. 17, Nº 3, p.192-207, 2003.

OLIVEIRA, M. S. Gêneros textuais e letramento. RBLA, Belo Horizonte, v. 10, n. 2,


p. 325-345, 2010.

ROJO, R. Letramentos múltiplos, escola e inclusão social. São Paulo: Parábola


Editora, 2009.

SCHAFFER, Neiva Otero (org.). Ler e escrever: compromisso de todas as áreas.


Porto Alegre: UFRGS, 2008.

STREET, B. V. What's 'new' in New Literacies Studies? Critical Approaches to Lite-


racy in Theory and Practice. Current issues in comparative education. Vol.
5(2). Columbia Teachers College, Columbia University, p. 77-91, 2003.

14
I
d e b at e s
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

letramentos na contemporaneidade:

p e r s p e c t i va s t e ó r i c a s

Raquel Bevilaqua
Silvania Faccin Colaço

1 introdução

A contemporaneidade, ou a pós-modernidade, ou ainda


a modernidade líquida, como se queira, tem infligido sua
marca de forma indelével nas relações sociais, econômicas,
culturais, epistemológicas e, consequentemente, nas práticas
escolares. Nós, sujeitos-cidadãos dessa sociedade, somos in-
terpelados a construir sentidos a partir de uma multiplicida-
de de símbolos, sinais gráficos, imagens, sons, texturas que
nos rodeiam cotidianamente. Na rua, precisamos interpretar
sinais luminosos para atravessá-la de maneira segura, encon-
trarmos uma vaga de estacionamento, tomarmos um ônibus;
no mercado, diante de uma infinidade de produtos, somos
chamados a avaliar seu prazo de validade, suas vantagens e
desvantagens nutricionais baseados em informações da ciên-
cia e da área da saúde que lemos nos jornais, revistas, internet
ou por meio de programas de televisão; em casa, escrevemos
bilhetes, consultamos nossa agenda telefônica, agendamos
consulta médica, ligamos a TV e observamos uma infindá-

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

vel lista de produtos e serviços que nos são oferecidos e que


prometem aliviar nossas tensões e serem exatamente aquilo
de que precisamos para sermos mais felizes, mais completos,
mais modernos, mais bonitos, mais aceitos; temos acesso às
informações em tempo real e vemos diminuírem as frontei-
ras que separam cidades, países, continentes; acessamos a
Internet e conversamos com o filho, sobrinho, amigo, clien-
te, aluno, por meio de emoticons que se propõem a sinteti-
zar nossas emoções; estabelecemos relações com pessoas de
outros países e continentes, que talvez nunca encontremos
pessoalmente, por meio das redes sociais; assinamos abaixo-
assinados contra a proposta de aumento salarial de políti-
cos via e-mail ou contra a proposta de lei antipirataria na
Internet, a qual busca restringir o direito de informação e
expressão; vemos governos ditatoriais de décadas serem
derrubados pela força de relações que se estabelecem entre
sujeitos-cidadãos nas redes interplanetárias. Enfim, somos
atravessados, diariamente, por uma multiplicidade de sis-
temas semióticos que perpassam a construção de sentidos,
desestabilizando-os, abrindo espaço para novos gestos de in-
terpretações, para novas possibilidades de escolhas.
Nessa comunidade em que vivemos, a linguagem desem-
penha um papel fundamental e constitutivo. Sabemos que
nossas práticas discursivas não são neutras, mas, antes, são
povoadas de escolhas ideológicas, políticas, pelas quais per-
passam relações de poder que constituem nossa sociedade.
Nessa ótica, partilhamos da opinião de Moita-Lopes (2006)
no sentido de encararmos o estudo e o ensino da lingua-
gem de modo ‘indisciplinar’, ou seja, estabelecendo rela-
ções dialógicas com outros campos epistemológicos, como
o das ciências sociais e políticas, da psicologia, da história,
que se imbricam para que práticas de letramentos escolares
abandonem velhas concepções de ensino e embarquem na

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

aventura do possível, do porvir, práticas essas baseadas em


escolhas éticas para o mundo que desejamos melhor.
Diante dessas considerações, no presente texto, temos por
objetivo tecer relações entre a escola e a sociedade em que ela
se insere, buscando focalizar as práticas de letramento que
são necessárias para que a escola possa lidar, de maneira mais
significativa, com as novas demandas da contemporaneidade.
Para este fim, nosso texto está dividido em três momentos:
primeiramente, buscaremos abordar algumas questões refe-
rentes à pós-modernidade e seus efeitos sobre a instituição
escolar e suas práticas de ensino da linguagem; em seguida,
trataremos de pesquisas que se debruçam sobre práticas de
letramento; por fim, apresentaremos algumas considerações
que relacionam a contemporaneidade e os letramentos.

2 pós-modernidade e escola: desafios

É preciso reconhecer que, em nosso país, o ensino público


só alcançou a quase universalização do ensino fundamental
há bem pouco tempo. No entanto, a máxima ‘quantidade
não significa qualidade’ é evidente quando observamos os
números referentes ao IDEB (Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica) e a distante posição que nosso país ocupa
em avaliações internacionais. Já em termos de ensino médio
e educação superior, ainda há muito que melhorar, embora
reconheçamos importantes avanços nas políticas educacio-
nais nos últimos anos, como a ampliação da rede federal
de ensino profissionalizante e do ensino superior. Todavia,
acreditamos que a ampliação da oferta de vagas nas diferen-
tes modalidades de ensino deva vir acompanhada de quali-
ficação e valorização do corpo docente. A formação conti-
nuada é uma condição sine qua non para que a escola e suas

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

práticas ganhem maior significância e importância na vida


de milhões de jovens. Atualmente, com a concorrência da
internet e dos meios de comunicação de massa que, de certa
forma, facilitam o acesso ao conhecimento, a escola tem en-
frentado muitos desafios em relação ao seu papel formador.
O período em que vivemos, denominados por alguns teóri-
cos como pós-modernidade (HARVEY, 2010; SOUSA SANTOS,
2010) ou modernidade líquida (BAUMAN, 2007) apresenta
múltiplas e simultâneas possibilidades de acessar diferentes
(e dinâmicas) formas de conhecimento que não passam, ne-
cessariamente, pela escola. Nessas condições, a escola pre-
cisa considerar essas questões a fim de redefinir sua agenda
educacional para propor práticas de aprendizagem pertinen-
tes e necessárias para a contemporaneidade.
Para podermos compreender o momento atual e seus
desafios impostos à escola, é necessário abordarmos, ainda
que brevemente, alguns autores e suas considerações sobre a
pós-modernidade.
A racionalidade iluminista, que deu origem ao modernis-
mo (HARVEY, 2010), esteve fundada sobre a égide da estrutu-
ração, da coerência e da objetividade. Havia a crença de que
o desenvolvimento de uma ciência objetiva e racional, que
dominaria a natureza, levaria a uma “liberdade da escassez,
da necessidade e da arbitrariedade das calamidades naturais”
(HARVEY, 2010, p. 23). Além disso, acreditava-se que “o de-
senvolvimento de formas racionais de organização social e
de modos racionais de pensamento prometia a libertação das
irracionalidades do mito, da religião, da superstição, libera-
ção do uso arbitrário do poder, bem como do lado sombrio
da nossa própria natureza humana” (idem, ibidem). No en-
tanto, Max Weber, cujo argumento fulcral é resumido por
Bernstein (1985, p. 5 apud HARVEY, 2010, p. 25), assevera
que o legado do Iluminismo foi o triunfo da racionalidade de

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

cunho ‘proposital-instrumental’. Tal racionalidade, segundo


Bernstein, não leva à realização da liberdade universal, “mas
à criação de uma ‘jaula de ferro’ da racionalidade burocrática
da qual não há como escapar” (idem, ibidem).
A esse projeto racional, de natureza estática, com bases
sólidas construídas na historicidade e que tentou encapsular
e dominar a multiplicidade do homem e da natureza, res-
ponde aquilo que se tem dominado de pós-modernidade, ou
de modernidade líquida. Diferentemente do modernismo, o
pós-modernismo contrapõe-se à racionalidade, constituin-
do-se no entremeio razão × não-razão, estático × dinâmico.
É um momento que vivifica um presente que, a priori, não
possui relações com o passado histórico. A experiência do
sujeito pós-moderno fica reduzida a “uma série de presentes
puros e não relacionados no tempo” (harvey, 2010, p. 57) e
a imagem, a aparência, o espetáculo podem ser experimenta-
dos com uma profunda e momentânea intensidade.
A fim de melhor representar a ótica pós-moderna, Harvey
(2010, p. 48) esquematiza as diferenças entre modernismo
e pós-modernismo. Enquanto para o primeiro período pre-
dominavam, entre outras características, o domínio/logos,
a criação/síntese, a hierarquia, a raiz/profundidade, a cen-
tração, no pós-modernismo, predominam, paralelamente,
a exaustão/silêncio, a descriação/desconstrução/antítese, a
anarquia, o rizoma/superfície, a dispersão. Assim, compre-
endemos que à racionalidade e à homogeneização de sujeitos,
espaços e práticas respondem a irracionalidade, a multipli-
cidade e uma espécie de mosaico constituído por inúme-
ros e múltiplos fragmentos da história e da vida social que,
longe de seguir uma linearidade, superpõem-se de maneira
desconexa. No âmbito literário, por exemplo, dispensa-se a
aura modernista do artista como produtor, que cede lugar ao
“franco confisco, citação, retirada, acumulação e repetição de

20
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

imagens já existentes” (CRIMP apud HARVEY, 2010, p. 58),


fator de preocupação à escola.
A tudo isso, soma-se a questão da intensa mercantiliza-
ção e fomento ao consumismo, responsáveis pela constante e
cada vez mais rápida substituição de um produto por outro e
seu inevitável descarte em um planeta de recursos finitos, mas
que tem sido tratado como uma fonte de infinitos recursos.
Baumam (2007), em sua definição de vida líquida, afirma que
esta é “uma vida de consumo” (idem, p. 16) e os cidadãos
de direito, da modernidade, são reduzidos a consumidores
na pós-modernidade, necessitando estar sempre atualizados
com tudo. Para o teórico (2007), cidadãos consumidores são,
concomitantemente, objetos de consumo, e as relações entre
consumidores e consumidos são sempre efêmeras, diluindo-
-se com muita facilidade. Harvey (2010, p. 58) chega ao pon-
to de afirmar que, no pós-modernismo, há pouco esforço para
sustentar a continuidade de valores, crenças ou descrenças.
Entretanto, há teóricos (USHER & EDWARDS, 1996) que
veem a pós-modernidade como um período de possibilida-
des, de reflexão, de abertura para o novo. Essa consideração
sobre o pós-modernismo defende que este é um período que
se contrapõe a verdades absolutas e universais, à homogenei-
zação de sujeitos e de suas identidades (inconstantes, flui-
das, transitórias), à totalização de conhecimentos. De fato,
Usher e Edwards (1996, p. 16) afirmam que é um tempo de
“celebração e tolerância do pluralismo e da diferença”. Para
os autores (idem), diferentemente do que Harvey assevera,
não há um cortejo da irracionalidade, da descontinuidade
de crenças e valores, mas sim uma abertura ao diálogo, um
reconhecimento da multiplicidade da natureza humana e de
suas múltiplas manifestações identitárias.
Nessa perspectiva, Hall (2011) apresenta três concepções
de identidade: a do sujeito do Iluminismo, que é visto como

21
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

centrado no eu, unificado, imutável; a do sujeito sociológico,


fragmentado, variável, provisório, formado na essência com
outras pessoas, numa concepção interativa entre o eu e a socie-
dade; e o sujeito pós-moderno, decorrente dessa transforma-
ção, sem identidade fixa, performando identidades diferentes
de acordo com cada situação. Essa transitoriedade identitária
do sujeito pós-moderno aponta para a necessidade de revisão
do papel da escola na sociedade contemporânea.
Bem antes de defendermos esse ou aquele ponto de vista
sobre o pós-modernismo, preferimos registrar que, como em
qualquer período histórico, há desafios e há contribuições
para a compreensão da natureza humana e, consequente-
mente, da vida social. Não compartilhamos de uma visão di-
cotômica sobre o assunto, pois acreditamos que sua comple-
xidade impeça toda e qualquer tentativa de reducionismos.
Diante de todas as questões colocadas acima, é necessá-
rio repensar o papel da escola. Qual sua função entre tan-
tas transformações e transitoriedades? Como a escola deve
preparar-se para lidar com os desafios da pós-modernidade?
Mais especificamente, o que o letramento de crianças e jo-
vens deve considerar para que possam ler, interpretar e
posicionar-se em uma sociedade cujas profundas e rápidas
transformações provocam intensas e profundas desestabiliza-
ções (sociais, identitárias, econômicas)? A fim de abordarmos
essas questões, é necessário que observemos a qualidade do
letramento nas escolas na atualidade.

3 letramentos: reflexões sobre


r e s u lta d o s e p r o c e s s o s

No Brasil, o nível de letramento de nossos educandos tem


sido alarmante. É o que dizem avaliações nacionais e inter-

22
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

nacionais que têm medido esse nível desde o início da última


década. A fim de entendermos melhor a situação de letra-
mento de nossos jovens, teceremos algumas considerações
sobre essas avaliações.
Em termos nacionais, possuímos um índice de avaliação
da educação básica, o Ideb, indicador do Plano de Desenvol-
vimento da Educação (PDE), lançado pelo Governo Federal,
na década passada, com o objetivo de melhorar a educação
oferecida a crianças, jovens e adultos. O Ideb, criado em 2007
com o objetivo de ser o “termômetro” que mede a qualida-
de da educação básica oferecida em todas as escolas da rede
pública do país (BRASIL, 2009, p.4), conta com uma escala
de zero a dez, que indica o índice de cada escola, município,
região, estado ou país. O cálculo é feito com base em dois
indicadores: o fluxo escolar dos alunos pelas séries sem repetir,
o que é medido pelo Educacenso; e as avaliações Prova Brasil
e SAEB, que avaliam competências construídas e habilidades
desenvolvidas e detecta dificuldades de aprendizagem na área
de Língua Portuguesa, com o foco na leitura apenas; e Mate-
mática, com o foco na resolução de problemas significativos.
Ambas as avaliações são aplicadas a cada dois anos.
A Prova Brasil é um recurso do Ideb, é um teste de larga es-
cala com questões calibradas, aplicado no período de dois anos,
que mede só o desempenho dos alunos de duas séries do ensi-
no fundamental (4ª e 8ª séries ou 5° e 9° anos) e em duas disci-
plinas apenas: Língua Portuguesa e Matemática (BRASIL, 2009).
Já a avaliação do Ensino Médio, de acordo com informações do
Inep, é realizada pelo SAEB – Sistema Nacional de Avaliação da
Educação Básica. Diferentemente da Prova Brasil, o SAEB avalia
não apenas o Ensino Fundamental, mas também alunos da 3ª
série do Ensino Médio. Além disso, diferentemente da Prova
Brasil, o SAEB também se aplica a escolas privadas e a escolas
das zonas rurais; entretanto, sua avaliação é amostral, enquanto

23
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

que a Prova Brasil é universal em turmas de mais de 20 alunos.


Os resultados do Ideb, disponíveis no sítio do Inep, quan-
do das aplicações da Prova Brasil e do SAEB, desde 2005 até
sua última edição, em 2009, apontam para uma ligeira me-
lhora das condições e nível de aprendizagem na educação bá-
sica, superando, inclusive, as metas traçadas pelo PDE para os
anos de 2007 e 2009. No entanto, tais números estão muito
aquém daqueles apresentados por países mais desenvolvidos
e com índice educacional superior ao nosso.
É importante que observemos que tanto a Prova Brasil quanto
o SAEB aproximam-se mais de uma concepção discursiva de lei-
tura, uma vez que apresentam descritores ou habilidades e com-
petências que se relacionam não apenas ao conteúdo linguístico
em si, mas também a sua condição de produção. Por exemplo,
tanto nos tópicos e Descritores da Prova Brasil, como do SAEB,
encontramos o Tópico III, “Relações entre os textos”, que apresen-
tam o mesmo descritor “Reconhecer diferentes formas de tratar
uma informação na comparação de textos que tratam do mesmo
tema, em função das condições em que ele foi produzido e da-
quelas em que será recebido” (informação disponível no sítio do
Inep)1. Dessa forma, podemos concluir que o nível de letramento
avaliado por esses dois instrumentos pode ser situado na esfera
de letramentos dominantes (nos termos de Rojo, 2009), isto é,
eles demandam do aluno o conhecimento de textos e gêneros
canônicos, próprios da prática escolar. Para Oliveira (2010), essas
avaliações podem ser consideradas na orientação do letramento
cultural, ou seja, a seleção dos conhecimentos e habilidades que
serão avaliados baseia-se em currículo generalizante, de cunho
canônico, em que as práticas de letramento locais (muitas vezes
considerados invisíveis) não têm espaço, ou gozam de uma con-
cepção ‘romântica’ (OLIVEIRA, 2010, p. 334). Tal constatação nos

1. Disponível em <http://www.inep.gov.br/basica/saeb/matrizes/topicos_
3serie_port.htm>.

24
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

faz recordar o projeto modernista da educação, cujos espaços de


aprendizagem ficam reduzidos, homogeneizados, estabilizados.
Em âmbito internacional, o desempenho de nossos alunos
nas avaliações do letramento em matemática, leitura e ciên-
cias, medido pelo PISA (Programa Internacional de Avaliação
de Estudantes – 2009), tem deixado muito a desejar, confor-
me o relatório da última avaliação do programa, realizada em
2009. O PISA é um programa internacional de avaliação com-
parada, cuja principal finalidade é produzir indicadores so-
bre a efetividade dos sistemas educacionais, avaliando alunos
com a faixa etária média de 15 anos, idade em que se pressu-
põe o término da escolaridade básica obrigatória na maioria
dos países. O programa teve início em 2000 e suas avalia-
ções ocorrem a cada 3 anos. Segundo o relatório do PISA de
2010, ocupamos a 53ª posição, entre os 65 países avaliados
em 2009. É verdade que houve um crescimento do nosso país
em relação a anos anteriores; no entanto, ainda é consenso de
que há muito o que fazer em relação a esse desempenho.
O PISA é organizado e coordenado, em termos internacio-
nais, pela Organização para a Cooperação e Desenvolvimento
Econômico (OCDE), um consórcio entre 34 países, com sede
na França, e cujos objetivos declarados são a melhoria eco-
nômica e social de seus cidadãos. No Brasil, o Inep é o res-
ponsável pelas ações do PISA. Seus objetivos são o de avaliar
os letramentos em Leitura, Matemática e Ciência. O termo
‘letramento’ é utilizado pelo PISA para fazer referência à am-
plitude dos conhecimentos, habilidades e competências que
estão sendo avaliados2. De acordo com Rojo (2009, p. 31),
o PISA tem uma concepção cognitiva da leitura, enfocando
suas atividades na extração de informação retiradas de tex-
tos pertencentes a diferentes gêneros textuais. Citando Jurado

2 Disponível em <http://www.pisa.oecd.org/pages/0,2987,en_32252351_
32235731_1_1_1_1_1,00.html>. Acesso em 26 de jan. 2011.

25
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

(2002), Rojo (2009, p. 31) postula que são “três capacidades


básicas – localização, identificação e recuperação de infor-
mação, interpretação e reflexão” que foram selecionadas pelo
sistema de avaliação do PISA. Essas capacidades básicas estão
subdividas em 5 níveis. A partir do nível 4, interpretação, é exi-
gida do aluno a capacidade de realizar uma leitura mais crítica.
As conclusões do relatório do PISA de 2010 apontam que
ainda apresentamos índices bastante baixos na solução de pro-
blemas, na leitura e interpretação de diferentes gêneros textuais
e na identificação, elaboração e avaliação de conceitos e soluções
que se apliquem à intervenção do homem no mundo natural.
No entanto, cabe questionar: o que esses relatórios e es-
sas avaliações nos dizem sobre as práticas de letramento em
nossas escolas? De que forma podem nos auxiliar a entender a
qualidade dos letramentos desenvolvidos na educação básica?
Levando em consideração os dados referentes ao relatório do
PISA de 2010 e ao Ideb divulgado em 2009, observamos quão
crítica ainda é a questão das práticas de letramento nas escolas
do Brasil. Além disso, cabe pensar que letramentos estão sendo
desenvolvidos na escola e se eles são de fato significativos dian-
te das novas demandas do mundo contemporâneo, isto é, se
eles são constituídos pelo pluralismo, pela dinamicidade e pela
relação solidária necessária entre diferentes sujeitos.
No entanto, neste texto, não discorreremos diretamente
sobre as causas do problema de letramento na educação bá-
sica, mas, antes, pretendemos trazer as considerações dessas
avaliações de forma a apontar para a necessidade de novas
perspectivas para os letramentos na contemporaneidade.

26
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

4 n o v o pa r a d i g m a s o c i a l – n o va s
p r át i c a s d e l e t r a m e n t o s

Para definirmos o conceito atual de letramento, torna-se neces-


sário que façamos uma retrospectiva do uso do termo em nosso
país. Na década de 1980, o conceito de letramento designava
o domínio de habilidades de leitura e escrita (SOARES, 2004).
Inicialmente, os estudos eram voltados apenas para essas habi-
lidades, em que o indivíduo seria o objeto da investigação. No
Brasil, o termo letramento surgiu com Mary Kato (1990), que
apresenta a ideia de sujeito letrado para responder às demandas
sociais. Inicialmente, foi confundido com alfabetização, mas, aos
poucos, desfaz-se essa confusão, passando a designar a lingua-
gem em uso nas práticas sociais. O termo retorna em obras de
Kleiman (1995) e Soares (1998), contribuindo ainda mais para
as reflexões acerca da temática na área de Linguística Aplicada.
Soares (2006) postula que um sujeito letrado não só sabe
ler e escrever, mas sabe usar socialmente a leitura e a escrita.
A autora destaca as práticas sociais, em que o letramento é o
uso da leitura e da escrita, em contextos específicos relacio-
nados às necessidades e valores.
Com o avanço das pesquisas, os estudiosos enfatizam a
necessidade de se considerar o ambiente social em que o su-
jeito está interagindo, ou seja, suas práticas de leitura e es-
crita, voltadas às necessidades de uso social. O sujeito passa
a ser visto como membro de uma coletividade, e o conceito
de letramento adquire a concepção de conjunto de práticas
sociais (STREET, 2003). Dessa forma, Street considera os di-
ferentes letramentos – letramentos no plural.
A teoria que embasa os estudos sobre letramentos, atual-
mente, é chamada de Novos Estudos do Letramento (STREET,
1995), que se constituem em estudos críticos acerca do letra-
mento, no sentido de dar maior ênfase aos aspectos ideoló-

27
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

gicos da prática social. Street (1995) considera o letramento


sob dois enfoques: o autônomo e o ideológico, sendo que o
primeiro refere-se, basicamente, às habilidades individuais
do sujeito, e o último, às práticas que envolvem leitura e es-
crita em geral. Embora a ênfase recaia no processo ideológico,
não exclui o autônomo. Ambos constituem os modos pelos
quais as pessoas usam a leitura e a escrita.
As práticas de letramento são as formas culturais gerais
de utilização da linguagem escrita a que as pessoas recor-
rem em suas vidas, constituindo-se no que as pessoas fazem
com o letramento (BARTON; HAMILTON, 2000). Para Street
(1993, p. 12), as práticas de letramento não são observá-
veis concretamente, pois “envolvem valores, atitudes, senti-
mentos e relações sociais”. Já os eventos de letramento são
episódios observáveis que se formam e se constituem pelas
práticas de letramento (STREET, 1988). Nesses eventos, o
texto escrito passa a fazer parte da interação do sujeito com
o contexto comunicativo. Conforme Gee (1999), o sentido
do texto é regulado pelo contexto em que está inserido.
Lea e Street (2006), com base na perspectiva de leitura e
escrita como práticas sociais, apresentam uma abordagem em
contextos acadêmicos/escolares sob três modelos: o modelo de
habilidades, o modelo de socialização acadêmica e o modelo de
letramento acadêmico. O estudo das habilidades baseia-se nas
características formais da linguagem, em que os alunos apren-
dem habilidades individuais e cognitivas e as transferem a outros
contextos de letramento, nas atividades de leitura e escrita. A so-
cialização acadêmica preocupa-se com a aculturação dos alunos
em discursos e gêneros temáticos, relativamente estáveis, com
a capacidade de reproduzir as aprendizagens das regras básicas
desses discursos/gêneros em outros contextos de uso. O mode-
lo de letramento acadêmico preocupa-se em estabelecer sentido,
identidade, poder e autoridade, colocando em primeiro plano a

28
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

natureza institucional. Esse último modelo visa aos usos efetivos


do letramento, que são complexos, dinâmicos e situados, envol-
vendo os processos sociais.
Para Barton e Hamilton (2000), o letramento é entendido
como um conjunto de práticas sociais, que são inferidas dos
eventos, sendo que estes são mediados pelos textos escritos.
Assim, as práticas de letramento oferecem uma conceituação
da “ligação entre as atividades de leitura e escrita e a estru-
tura social” (idem, p. 08), sendo moldadas pelas instituições
sociais e relações de poder, de onde surgem letramentos mais
dominantes e influentes que outros.
Abordam-se os letramentos como múltiplos (STREET,
1995), pois preveem a relação do aluno com a leitura e a es-
crita pelas crenças, os valores e a ideologia da cultura dos
grupos sociais, fazendo com que relacione os sentidos sociais
das disciplinas e dos conteúdos, de acordo com as práticas
sociocomunicativas a que esteja exposto. Na escola, o aluno
precisa ser visto como sujeito da linguagem, que traz a sua
história. Ao valorizar as práticas de leitura e escrita do aluno
(OLIVEIRA, 2009), os professores podem colaborar para que
ele se torne produtor de seus próprios Discursos.
Essas considerações sobre letramentos nos fazem concluir,
parafraseando Moita-Lopes3, que saber ler, no mundo de hoje,
significa compreender que textos não têm significado em si,
mas que somos nós que construímos seus significados base-
ados no que somos, no que queremos fazer com os textos na
vida social, nos nossos desejos, ideologias e valores. Dessa for-
ma, na contemporaneidade, urge a necessidade de pensarmos
a linguagem para esse novo mundo instável, movediço, escor-
regadio. Os letramentos para esse novo mundo são muito dife-
rentes dos letramentos entendidos como um feixe de estratégias

3. Palestra sobre letramentos na Universidade Federal de Santa Maria, em


novembro de 2010.

29
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

cognitivas e decodificativas; os novos letramentos estabelecem


outras relações entre a letra e o significado social, e essas rela-
ções são muito mais relevantes do que se considerava outrora.

5 contemporaneidade e letramentos –
relações necessárias

Se, conforme apontamos, por um lado, a pós-modernidade


apresenta-se imbuída de incertezas, transitoriedades, dester-
ritorializações, por outro, essas mesmas características apon-
tam para uma escola pautada não em um projeto (totalizante,
a-histórico e universal), mas um espaço da heterogeneidade,
do pluralismo, das possibilidades de porvir, um espaço para
a transformação (USHER & EDWARDS, 1996, p. 211).
Os novos estudos dos letramentos são constituídos nessa
ótica, isto é, na contramão da racionalidade, da homogeneiza-
ção das práticas de acesso ao conhecimento e da produção de
significados a partir da letra. Os novos estudos de letramento
propõem uma nova agenda para a escola, agenda esta que
deve considerar também letramentos de comunidades discur-
sivas diferentes (GEE, 1992 apud HAMILTON, 2002) e que não
têm usufruído de participação significativa nas escolas. Isto
significa, explica Hamilton (idem), que é necessário que a es-
cola passe a considerar não apenas letramentos dominantes,
mas também os vernaculares que, na definição da autora, não
são forjados e regulados por instituições sociais, mas que se
originam na vida cotidiana de diferentes sujeitos.
O papel da escola seria, conforme explica Rojo (2009, p.
115), o de promover o diálogo entre os textos, discursos, enun-
ciados de diversas culturas locais (vernaculares) com as cultu-
ras valorizadas (institucionais) de forma a promover “coliga-
ções contra-hegemônicas” (idem, ibidem) e formar um cidadão

30
flexível, tolerante, crítico, conhecedor de seus direitos e deveres
e, principalmente, cujas escolhas pessoais e profissionais este-
jam baseadas na ética e no bem-estar humano. Em suma, como
diz Rojo (2009, p. 115), a escola deve pautar suas práticas para
transformar “patrimônios em fratrimônios”.
Compartilhamos a ideia de que tal papel talvez fosse impos-
sível de ser atribuído em uma época de racionalismos e homoge-
neizações, de projeção de um plano racional sobre o tecido social,
que é naturalmente heterogêneo e híbrido. A pós-modernidade e
suas múltiplas facetas trazem a oportunidade de repensarmos a
escola a partir de um novo paradigma, mais fluido e incerto, tal-
vez, mais plural e democrático, com certeza.
Os textos que constituem esta obra são exercícios de refle-
xão e de esforço teórico-práticos entre educadores de escolas
públicas e têm a finalidade de promover um repensar crítico
sobre as práticas escolares e as práticas sociais. Nos próximos
textos, a reflexão sobre letramentos e os desafios da escola pú-
blica será mais amplamente explorada.

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32
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

letramentos e leitura nas

p e r s p e c t i va s a u t ô n o m a e i d e o l ó g i c a

Silvania Faccin Colaço

1 abrindo a discussão

A leitura tem recebido atenção especial dos estudiosos, pois


sabe-se que, através dela, o ser humano pode adquirir cul-
tura, atualizar-se, conhecer a história da humanidade, viajar
por diferentes mundos, por outras épocas, conhecer melhor
a si e aos outros. Dessa forma, a aprendizagem da leitura é
fundamental para a integração do indivíduo nas práticas so-
ciais de letramento em sociedade.
O ensino, em todos os níveis, precisa olhar para as ati-
vidades realizadas pelos sujeitos tanto dentro como fora da
escola, a fim de possibilitar-lhes melhores usos da linguagem,
pelos textos orais e escritos que circulam em seu cotidiano.
Disso emerge a preocupação com o ensino da leitura: como
melhorar o desempenho dos alunos diante das diversas situa-
ções comunicativas de que participam em suas ações diárias?
Os esforços despendidos nas pesquisas e experimentos têm
contribuído muito para tentar solucionar ou amenizar esse pro-
blema, mas não chegaram, ainda, a resultados efetivos, sendo,
pois, necessário que se continue investindo na busca de soluções

33
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

através de pesquisas. Justifica-se, assim, a discussão que este ar-


tigo propõe, em relação à leitura como atividade cognitiva/indi-
vidual e, ao mesmo tempo, atividade social/coletiva, em que o
sujeito precisa se tornar “letrado” e não só alfabetizado, para agir
socialmente. Assim, um vínculo pode ser estabelecido, discutindo
algumas práticas autônomas de letramento, no uso de estratégias
cognitivas e metacognitivas de leitura e outras práticas ideológicas
de letramento (Street, 1995), voltadas às práticas sociais.
Este estudo, inserido na Linguística Aplicada, tem como
objetivo, portanto, analisar as estratégias individuais de leitu-
ra e as práticas sociais de letramento. As estratégias são aqui
conceituadas como procedimentos usados pelo leitor para
avaliar sua própria compreensão e como recursos que ele tem
à disposição para tentar resolver os problemas que surgem
durante a leitura. Para tanto, recorre-se ao enfoque utilizado
por Wenden (1987), Rubin (1987), O’Malley (1988), Garner
(1987), Goodman (1991), Leffa (1996) e Kleiman (2008). Já
as práticas sociais de letramento, ancoradas nos Novos Estu-
dos do Letramento (STREET, 1995; LEA; STREET, 2006; GEE,
1999; ROJO, 2009), referem-se às formas culturais gerais de
utilização da leitura e escrita pelas pessoas.
Na parte inicial do texto, é apresentado o modelo autôno-
mo de letramento, proposto por Street (1995), com uma con-
ceituação geral e com a teoria sobre as estratégias de leitura.
Em seguida, apresenta-se o modelo ideológico dos letramentos
(STREET, 1995), num panorama geral, apresentando as práticas
escolares e não-escolares de letramento e as implicações disso
para o professor. Espera-se que as discussões apresentadas nes-
te texto tragam alguma perspectiva para a elaboração didática,
propondo um caminho pedagógico viável no ensino de leitura
em sala de aula, pois todo estudo metodológico encontra sua
grandeza no momento em que se constata sua aplicabilidade e
contribui para o enriquecimento das práticas educacionais.

34
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

2 concepção autônoma de letramentos

Street (1995) considera o letramento sob dois enfoques: o au-


tônomo e o ideológico, sendo que o primeiro refere-se, basica-
mente, às habilidades individuais do sujeito, e o último às prá-
ticas sociais que envolvem leitura e escrita em geral. No mode-
lo autônomo, estão incluídas as atividades de processamento
da leitura, tanto as que ocorrem de forma consciente como as
inconscientes na construção de sentido do texto. Assim, faz-se
necessário, inicialmente, enfocar a leitura como processamen-
to individual, para depois compreendê-la nas práticas sociais.

2.1 Leitura como processamento interativo


de construção de sentido

A leitura é abordada, neste texto, como u processo interativo


de construção de sentido, isto é, como um processamento
que se dá a partir das pistas que o autor deixa no texto e que
o leitor deve seguir, estabelecendo uma relação entre as infor-
mações explícitas no texto e o seu conhecimento prévio. Essa
busca de significado envolve várias habilidades capazes de
possibilitar o posicionamento crítico do leitor frente ao texto
e frente ao mundo, ressignificando-os. E é neste ponto que
o sujeito se depara com as práticas sociais de seu contexto e
precisa demonstrar seus letramentos em relação aos textos
que circulam em sociedade.
Entre as diferentes abordagens das teorias de leitura, des-
taca-se a concepção voltada para a interação social do sujeito.
Primeiramente, na interação entre o leitor e o texto e, pos-
teriormente, na interação com a sociedade. Neste capítulo,
destaca-se a relação de encontro leitor/texto, em que a leitura
implica uma correspondência entre o conhecimento que é

35
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

adquirido ao longo da vida e os dados fornecidos pelo texto.


Para Leffa (1996, p.22), “leitor e texto podem ser representa-
dos como duas engrenagens. Quanto melhor o encaixe entre
um e outro, melhor a compreensão do texto”.
Kleiman (1989) defende a leitura como um processo intera-
tivo, considerando que a compreensão do texto ocorre median-
te a interação de diferentes níveis: o conhecimento linguístico, que
é implícito, abrangendo desde o conhecimento do vocabulário
até o conhecimento do uso da língua; o conhecimento textual,
que diz respeito ao conjunto de noções e conceitos sobre o
texto; e o conhecimento de mundo, que se refere às experiências
vividas pelo indivíduo.
O texto é, assim, o ponto de interação em que as expecta-
tivas do leitor se encontram com as especificações do escritor
(SMITH, 1989). De acordo com os princípios defendidos pelo
autor, destaca-se que existe um conhecimento da língua e
do assunto do texto (informação visual) e um conhecimento
prévio, que está fora do texto (informação não-visual), carac-
terizando, assim, o processo interativo entre o que o leitor já
sabe e o que ele retira dos dados explícitos do texto. Para Le-
ffa (1999), essa é uma abordagem conciliadora, que pretende
“não apenas conciliar o texto com o leitor, mas descrever a
leitura como um processo interativo/transacional, com ênfa-
se na relação com o outro” (LEFFA, 1999, p. 13).
A partir dos argumentos aqui apresentados, não há dúvidas
de que a leitura constitui-se num processo de interação, em que
o leitor utiliza diversos processos cognitivos e estratégias que lhe
possibilitam uma melhor compreensão do texto, como detalha-
do no capítulo a seguir.

36
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

2.2 Estratégias metacognitivas como


facilitadoras da leitura

O processamento da leitura envolve a cognição e a metacog-


nição, sendo que os processos cognitivos são inconscientes e
ocorrem sem a intenção de um agente, enquanto as atividades
metacognitivas são conscientes e pressupõem a intenção e a
ação de um agente, constituindo-se em estratégias para resol-
ver uma situação-problema.
A diferença entre cognição e metacognição é muito tênue.
Mas, para Solé (1998), pode-se facilitar essa distinção de uma
maneira simples: se o leitor está compreendendo, não percebe
que está usando processos cognitivos de leitura de forma au-
tomática, porém no momento em que se depara com alguma
dificuldade específica – seja uma palavra desconhecida ou uma
frase incompreensível – esse estado automático dá lugar a um
estado consciente, e o leitor precisa parar a leitura e dar aten-
ção ao problema surgido, tendo que realizar alguma ação para
resolvê-lo. Nesse momento, o leitor está, de forma planejada e
intencional, consciente de seus procedimentos a fim de resgatar
o sentido que foi perdido, evidenciando, assim, a metacognição.
O termo estratégia pode ser definido de várias maneiras.
Na Linguística Aplicada, estratégias de leitura são “operações
regulares para abordar o texto” (KLEIMAN, 1998, p.49). A
autora afirma que o processamento de leitura exige estraté-
gias flexíveis e que cabe ao professor proporcionar contextos,
numa situação comunicativa, a que o leitor possa recorrer
para fazer uso dessas estratégias.
Para os objetivos deste trabalho, com base em publica-
ções de Wenden (1987), o termo “estratégia” refere-se aos
comportamentos adotados pelos leitores para realizar as ta-
refas de aprendizagem, bem como ao conhecimento que eles
possuem sobre os procedimentos que usam para realizá-las.

37
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Assim concebidas, as estratégias podem ser inferidas a partir


do comportamento verbal e não-verbal do leitor, isto é, a
partir do tipo de respostas que dá a perguntas sobre o texto,
a partir dos resumos que faz, de suas paráfrases e da maneira
como ele manipula o texto: se sublinha, se apenas folheia, se
passa os olhos rapidamente, se relê, etc. Embora considere-se
a importância dos processos cognitivos na leitura, este texto
apresenta um esboço das estratégias metacognitivas, pois es-
sas é que podem ser ensinadas na escola e, ao serem incor-
poradas pelo leitor, acabam melhorando a cognição.
As estratégias metacognitivas se referem a atividades plane-
jadas, reflexivas e intencionais de processar o sentido do texto.
Leffa (1996) afirma que a capacidade que o leitor possui de
refletir sobre suas ações ajuda-o a desenvolver estratégias ade-
quadas de leitura. Essas estratégias envolvem mais do que a
consciência da tarefa a ser executada, pois envolvem também a
consciência da própria consciência, de modo que se constitui
em tudo que nós sabemos “como” fazer. A metacognição envol-
ve, portanto, a habilidade para monitorar a própria compreen-
são e tomar as medidas adequadas quando a compreensão falha
como, por exemplo, quando o leitor percebe que não está en-
tendendo um trecho e retoma-o para entender melhor o texto.
Em vista disso, o leitor aprende a conhecer o próprio conheci-
mento e a planejar a sua atuação, controlando-a e regulando-a.
Segundo Wenden (1987), as estratégias metacognitivas são
usadas para supervisionar, regular e dirigir por conta própria o
aprendizado. Conforme a autora, o aluno percebe suas necessi-
dades. Portanto, trata-se de operações que podem ser aprendi-
das, como acontece com outras tarefas. Na leitura, as estratégias
metacognitivas são operações realizadas com algum objetivo,
sobre o qual se tem controle, no sentido de ser capaz de explicar
a ação, mostrando ao leitor como entender seus processos cog-
nitivos e como agir sobre eles.

38
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Cabe destacar que vários autores apresentam taxionomias


diferentes, mas, neste estudo, partiu-se do esquema proposto
por O’Malley et al (1988), do qual foram feitas adaptações,
destacando-se algumas estratégias de leitura mais recorrentes
em língua materna.

2.2.1 Organizadores antecipatórios

Essa estratégia consiste em fazer uma previsão geral e abran-


gente dos conceitos ou princípios que serão desenvolvidos. Os
organizadores antecipatórios, como título, subtítulo, partes em
negrito, imagens, gráficos, esquemas têm a função de estabele-
cer pontes conceituais entre o que o leitor já conhece e o que
não conhece, mas deseja compreender e, assim, fazer previsões
sobre qual será o assunto do texto.
Essa estratégia engloba duas habilidades propostas por
Goodman (1991): a predição, isto é, a capacidade que o leitor
tem de antecipar o assunto do texto e a iniciação ou reconheci-
mento da tarefa, que ocorre quando o leitor percebe o material
linguístico e decide ler com uma determinada intenção.
Para Smith (1989), as expectativas do leitor são definidas a
partir de seus objetivos. Os leitores não iniciam a leitura com
suas mentes vazias, sem qualquer finalidade anterior e sem
qualquer expectativa do que poderão encontrar no texto. Pelo
contrário, buscam o sentido fazendo adivinhações dentro da
faixa mais provável de alternativas. O autor relaciona a ha-
bilidade da previsão com a compreensão, justificando que a
previsão significa fazer perguntas e a compreensão, ser capaz
de responder a algumas dessas perguntas. Um bom exemplo
de previsão é a leitura de romances policiais, em que se vai
formando uma ideia de quem será o assassino. Segundo Leffa
(1999), quanto mais o leitor avança num texto, mais eficiente-
mente ele poderá prever o que vem a seguir, e quanto maior for

39
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

sua experiência geral de leitura maior será sua capacidade de


prever o assunto de um texto.
O título e a imagem constituem-se em importantes organiza-
dores antecipatórios. Para Marcuschi (1985), esses elementos
têm o poder de avançar comunicativamente fatores cognitivos
sob a forma de expectativas, podendo, muitas vezes, decidir a
orientação da leitura. Essa indução do conteúdo esquemático do
texto a ser lido colabora para criar expectativas no leitor, que
serão confirmadas ou não em sua leitura.
Para explicar a previsão, Goodman (1982) apresenta o seu
modelo psicolinguístico de leitura, no qual o leitor processa a
informação por tentativas, ou seja, criando uma série de hipó-
teses ou predições de acordo com seus conhecimentos prévios.
Dessa forma, pode-se dizer que o leitor é visto como um sujei-
to ativo no processo de leitura, pois empreende um processo
de construção baseado na formulação e comprovação de uma
série de hipóteses. Entretanto, na formulação de hipóteses,
não há abertura total, porque elas devem ser verificadas me-
diante a depreensão de aspectos formais, assim como não há
apenas uma leitura, porque cada sujeito impõe a sua estrutura
de conhecimento ao texto (KLEIMAN, 1996, p. 39).

2.2.2 Atenção dirigida

A atenção dirigida consiste em decidir-se antecipadamente a


prestar atenção em determinadas tarefas de aprendizagem e ig-
norar as não relevantes. Nesse sentido, Brown (1980) destaca a
atividade de distribuir a atenção de modo a se concentrar nos
segmentos mais importantes, de acordo com o objetivo, poden-
do variar de um leitor para outro e de uma leitura para outra.
Essa atividade consciente é denominada por Kleiman
(1989) de formulação de objetivo. A autora considera-a uma
estratégia metacognitiva porque controla e regula o próprio

40
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

conhecimento. Smith (1989) afirma que as pessoas leem por


uma determinada razão: encontrar um número telefônico ou
saborear um romance. Dessa forma, a compreensão que o lei-
tor traz para a leitura é manifestada através de suas próprias
intenções. Para a Psicolinguística, o leitor sempre lê com
alguma intenção e, para atender a essa intenção, realiza a
pré-leitura, na qual há uma busca pelos organizadores anteci-
patórios como título, capítulo, seção de um jornal ou revista,
a fim de chegar à leitura que se quer (SCLIAR-CABRAL, 1999).
Os objetivos da leitura são determinados, até certo ponto,
pelo gênero discursivo, pois o objetivo geral de ler uma no-
tícia de jornal é diferente daquele de ler um artigo científico.
No jornal, o leitor faz uso de mecanismos para a compreensão
rápida de informação visual, dando uma passada de olhos,
scanning ou avistada, a fim de localizar manchetes de seu in-
teresse, para, só depois, ler detalhadamente uma notícia. Por
outro lado, se o leitor está em dúvida sobre o seu interesse na
manchete, ele utiliza uma pré-leitura seletiva, a que se chama
de skimming ou desnatamento (KLEIMAN, 1989), que consis-
te em ler seletivamente os primeiros ou os últimos períodos
de parágrafos, as tabelas ou qualquer outro item, para obter
uma ideia geral. Já na leitura de artigo científico, o leitor deve
realizar um processo mais atento, no sentido de reter as infor-
mações relevantes, relacionando-as aos enfoques secundários.
Na determinação dos objetivos para a leitura, Solé (1998)
apresenta alguns exemplos, tais como: ler para obter uma
informação precisa (listas telefônicas, dicionários, enciclopé-
dias...); ler para seguir instruções (receitas culinárias, instru-
ções de um jogo, regras de uso de um aparelho...): ler para
obter uma informação de caráter geral ou específico (notícias
de jornal, pesquisas bibliográficas...); ler para aprender (tex-
tos de áreas específicas utilizados na escola); ler para revisar
um escrito próprio (revisão da redação de sala de aula, de

41
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

uma carta pessoal...); ler por prazer (poemas, romances...); ler


para comunicar um texto a um auditório (discursos, trabalhos
realizados...); ou ler, simplesmente, para praticar a leitura oral.
De acordo com a autora, para cada gênero discursivo, existem
procedimentos estratégicos específicos que devem ser utili-
zados a fim de que a compreensão se efetive mais facilmente.
Assim, pode-se dizer que a leitura é seletiva, isto é, nor-
malmente, o leitor presta mais atenção àquilo que é relevante
aos seus objetivos. Relaciona, assim, a leitura a uma atividade
consciente de selecionar as informações mais relevantes num
texto. Goodman (1991) fala em amostragem e seleção, em que
o leitor seleciona somente as informações mais produtivas para
a formação do sentido de acordo com os esquemas ativados.
Podem ser citadas outras atividades metacognitivas que
irão dirigir a leitura: sublinhar as ideias principais; substituir
a palavra não entendida por um sinônimo ou saltar sobre as
palavras desconhecidas, fazendo conclusões pessoais; voltar
atrás para palavras já lidas, cujo significado só foi esclarecido
mais adiante, entre outras.

2.2.3 Autoavaliação

A autoavaliação consiste em controlar os resultados da pró-


pria aprendizagem frente a uma medida interna de correção.
Kleiman (1996) aborda que o leitor realiza esforços cons-
cientes para resolver equívocos ou inconsistências detec-
tadas só após ele ter processado, na fase automática, uma
interpretação que subsequentemente é inconsistente com o
material em processamento. Para Goodman (1991), o leitor
utiliza a correção para recobrar o significado que não foi
confirmado. Esse autor apresenta, ainda, como estratégias
metacognitivas de autoavaliação, a capacidade que o leitor
possui de avaliar a qualidade de compreensão que está sen-

42
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

do obtida na leitura e a de determinar se os objetivos de uma


determinada leitura estão sendo alcançados.
O movimento dos olhos reflete a estratégia de autoavaliação,
no sentido de que os olhos se movimentam muito mais rapi-
damente do que a voz consegue pronunciar, sendo, então, o
cérebro que controla o processo de leitura, em que há um mo-
vimento progressivo e outro regressivo. Há mais movimentos
regressivos quando o texto que está sendo lido é mais comple-
xo. Isso indica que o leitor vai controlando seu próprio proces-
so de compreensão, relendo quando não entende.
Como decorrência da atividade de predizer e testar, surge o
confronto, pelo qual o leitor estará exercendo controle conscien-
te sobre o próprio processo de compreensão: ele estará revisan-
do, autoindagando-se, corrigindo, de forma não-automática,
utilizando estratégias de avaliação para atingir o objetivo de ve-
rificação de hipótese. No caso de uma hipótese falhar, é preciso
selecionar e testar outra. Isso faz com que o leitor realize várias
experiências. Cabe ainda destacar que os leitores não só com-
preendem, mas também sabem que não estão compreendendo
e, portanto, podem realizar ações que lhes permitam preencher
uma possível lacuna de compreensão (solé, 1998).

2.3 Os três momentos da leitura

As estratégias a serem ensinadas na escola devem permitir que


o aluno aprenda a planejar a tarefa de leitura, a fim de que
ele decida pelo procedimento adequado em função dos ob-
jetivos perseguidos. Essas estratégias precisam ser ensinadas
em todas as etapas da leitura, com a participação ativa do
aluno e do professor. Ressalte-se, também, que não é possível
estabelecer limites claros com o que acontece antes, durante e
após a leitura, mesmo assim, pode-se orientar o professor so-

43
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

bre as ações que auxiliam o seu aluno nesses três momentos:


a pré-leitura, a leitura e a pós-leitura. Para isso, é preciso
considerar que, apesar de a leitura ser um processo único,
existem diferentes maneiras de ler, isto é, diferentes caminhos
para alcançar o objetivo pretendido. Nesse sentido, o profes-
sor deve intervir no processo em função de resultados pre-
tendidos, sem ignorar, porém, a evolução da leitura, ou seja,
deve ensinar como o aluno deve atuar nesse processo para
apreender e construir sentidos.

2.3.1 Pré-leitura

Algumas ações devem ser feitas antes mesmo de iniciar a leitura,


como uma preparação para ler o texto. É preciso estabelecer
objetivos claros, isto é, o leitor deve determinar a forma se si-
tua frente ao texto e controla a compreensão; planejar a leitura,
no sentido de estipular as estratégias que serão usadas para ler
de forma eficiente; explorar os organizadores antecipatórios,
para que os alunos façam previsões a partir do título, subtítulo,
imagens, autor, seção e veículo de publicação, suporte texual,
etc; Para implementá-los, antes de mais nada, o professor deve
orientar o aluno a ativar os conhecimentos prévios que pos-
sui sobre o assunto do texto. Por exemplo, pode dar alguma
explicação geral sobre o que será lido, para que o aluno possa
construir um esquema ou plano de leitura que o oriente sobre
o que tem de fazer, considerando, porém, o que ele sabe ou não
sobre o que vai ler. O professor pode, também, ajudar o aluno
a prestar atenção a determinados aspectos do texto, tanto em
nível textual (relativo aos diferentes tipos de texto), quanto em
nível linguístico (função de determinadas expressões). Além
disso, pode incentivar os alunos a comentarem o que sabem
sobre o tema, conduzindo o debate. No entanto, é imprescindí-
vel que o professor respeite e considere a história de leitura de

44
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

seus alunos, estando alerta para os fatores cognitivos que pro-


vocam a realização de leituras diferenciadas, em decorrência do
percurso de vida já realizado por eles até o momento da leitura.

2.3.2 Leitura

É fundamental que o professor analise com o aluno como ele


compreende, incentivando-o a verbalizar as suas estratégias no
momento da leitura. Assim, ele reconstruirá um modelo, que
se consolidará progressivamente, quando passará a utilizá-lo
de maneira autônoma. As estratégias que são apropriadas para
esse momento da leitura são as referentes à atenção seletiva, ao
automonitoramento e à autoavaliação. Ressalte-se que, nesse
momento, o leitor proficiente não só compreende, mas também
sabe quando não compreende, realizando ações que lhe permi-
tam atingir a compreensão. Em síntese, o leitor deve ser ativo no
processo, construindo a interpretação à medida que vai lendo.

2.3.3 Pós-leitura

Assim como há procedimentos para antes e durante a leitura,


também existem os que podem ser usados após a leitura. Entre
estes, cabe destacar a identificação das ideias principais, a ela-
boração de resumos, esquemas e a autoavaliação. É o momento
em que alguns alunos percebem melhor suas falhas, podem ain-
da corrigi-las e efetivam ligações de partes do texto com o todo.
Nessa etapa, não basta apenas responder a uma lista de questões
sobre o assunto do texto, mas é necessário, também, identificar
e avaliar as ações que foram eficazes na leitura, ações que pode-
riam ter auxiliado a compreensão em determinados momentos,
mas que não foram usadas, procurando-se verificar por que não
o foram. É quando ocorre a aprendizagem, são feitas as relações
com outros saberes e ocorre a transformação do sujeito.

45
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

3 concepção ideológica de
letramentos

Os pesquisadores dos novos estudos dos letramentos con-


sideram que é necessário mais que habilidades para resolver
alguns dos problemas que os estudantes enfrentam nas ati-
vidades de leitura e escrita. Street (1995) enfatiza o proces-
so ideológico de letramento, que propõe uma prática social
implícita nos princípios socialmente construídos, pois os
modos pelos quais as pessoas usam a leitura e a escrita são
atrelados a concepções de conhecimento, identidade e mo-
dos de ser e estar, nas práticas sociais ou contextos particula-
res. Assim, o letramento dos sujeitos será dependente desses
contextos, em que as relações de poder desempenham papel
predominante. Salienta-se que o modelo ideológico envolve
o autônomo, mas é mais abrangente que este, pois as práti-
cas de letramento são determinadas por características sócio-
históricas, dependentes do período e do local em que ocorrem.
As formas de falar, ouvir, ler, escrever, agir, interagir, acre-
ditar, valorizar e sentir são reveladas pelos Discursos, com D
maiúsculo e no plural, que são as formas de ser no mundo,
produto social e histórico, constituindo a linguagem (FISCHER,
2007; GEE, 1999). Os sujeitos podem ou não se sentir inseri-
dos em práticas de letramento, dependerá de suas experiências
anteriores, por isso torna-se fundamental sua imersão em con-
textos específicos de uso da linguagem.
Guedes-Pinto (2010) apresenta uma visão dialógica de letra-
mento, pois considera as atividades de leitura e escrita em relação
aos outros sujeitos. Para a autora, os estudos do letramento to-
mam a língua como prática social, cujos usos estão relacionados
ao contexto imediato, com destaque para aspectos sociais das
práticas de letramento e correlação das forças simbólicas em jogo,
correspondendo ao modelo ideológico de Street (1995).

46
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Destaca-se que os modos de ler e de escrever variam segundo


diferentes instituições, considerando-se a tendência à contextu-
alização das atividades, estratégias, saberes, segundo a situação
específica, num tempo e espaços concretos. Isso significa que,
mesmo dominando a escrita, o sujeito pode deparar-se com si-
tuações em que é incapaz de compreender ou de produzir um
texto. Por isso se considera que as práticas de uso da escrita são
práticas situadas (KLEIMAN, 2005).
Dessa forma, os letramentos são entendidos como plurais,
múltiplos, ocorrendo em todos os contextos, tanto escolares
como não-escolares, conforme apresentado a seguir.

3.1 Os múltiplos letramentos

Street (1995) apresenta os letramentos numa concepção de que


são múltiplos e sujeitos às relações de poder, em que as pessoas
realizam novos letramentos a todo momento, variando de uma
comunidade para outra, de acordo com as condições sociocul-
turais. Quanto mais o sujeito assume papéis distintos, melhor
para desenvolver os seus “kits de identidade” (GEE, 1999). Isso
quer dizer que uma pessoa cumpre diferentes funções na so-
ciedade e, em cada uma, tem determinados usos da linguagem,
constituindo-se nos seus letramentos múltiplos: numa deter-
minada situação de interação comunicativa, pode estar desem-
penhando o papel de pai, por exemplo; já em outra, exerce o
papel de professor, entre tantas atividades exercidas em comu-
nidade. Ao contemplar práticas textuais em contextos variados,
Street (2006) procura demonstrar a variedade e complexidade
dos letramentos, pois o modelo ideológico considera as rela-
ções de poder e de ideologia desses diferentes contextos.
Bakhtin (2000) propõe o conceito de esfera de atividade

47
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

ou de circulação de discursos, que seria o domínio de produ-


ção discursiva ou atividade humana em que os gêneros dis-
cursivos circulam – familiar, profissional, escolar, acadêmica,
jornalística, religiosa, artística, publicitária, etc. – em dife-
rentes posições sociais, em que os sujeitos atuam tanto como
receptores como produtores de discursos. Para o autor, “cada
esfera de utilização da língua elabora seus tipos relativamen-
te estáveis de enunciados, sendo isso que denominamos gê-
neros do discurso” (BAKHTIN, 2000, p. 279). Essas esferas de
atividade / circulação de discursos interpenetram-se na vida
das pessoas, para organizar a vida cotidiana (ROJO, 2009).
Da mesma forma, encontra-se a noção de gênero apresenta-
da por Kress (1999, p. 22), em que “gênero é um termo útil para
entender o que os textos fazem e como eles fazem”, numa con-
cepção de que os textos têm uma função na sociedade, represen-
tando relações de poder. Segundo o autor, em qualquer socieda-
de, há situações recorrentes, em que um número de pessoas in-
terage para realizar suas ações, e a linguagem acompanha essas
ações através dos gêneros. Ao mesmo tempo em que os gêneros
são naturais, eles também exigem conhecimentos específicos de
seus usos, o que pode fazer com que uma pessoa que esteja
fora de determinada cultura encontre conflitos ao entender ou
produzir um gênero. Nessa concepção é importante considerar
os interlocutores, as finalidades e a situação da produção textual.
Bartlett (2007) apresenta a concepção de múltiplos letramen-
tos como o uso de leitura e escrita em inúmeros contextos. Entre
esses contextos, destacam-se cada vez mais, os usos linguísticos
sob formas multimodais, muito comuns na tecnologia presen-
te nas práticas discursivas do mundo moderno. Lemke (2010)
pondera que todo letramento é multimidiático, porque o sujeito
nunca pode construir significado com a língua de forma isola-
da. É preciso considerar que os letramentos são sempre sociais.
Assim, os letramentos constituem-se em gêneros e devem ser

48
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

definidos com respeito aos sistemas sígnicos empregados, às tec-


nologias e materiais usados e aos diversos contextos sociais de
produção, circulação e recepção de um gênero particular.
As práticas de leitura e escrita são delimitadas por configu-
rações singulares, dependentes de histórias de vida, das práticas
e atividades de que os sujeitos tomam parte em seu cotidiano,
circunscritas aos grupos sociais a que pertencem e à atividade
a que se dedicam, bem como ao contexto sócio-histórico que
emoldura sua existência (VÓVIO; SOUZA, 2005). Essa aborda-
gem sociocultural enfatiza o reconhecimento dos letramentos em
comunidades de práticas, com papéis diversificados de acordo
com os contextos, sujeitos e objetivos que os guiam nesses even-
tos culturais, dando forma a comportamentos, significados, valo-
res e atitudes, concretizados e assumidos nos usos da leitura e da
escrita, de acordo com as relações de poder existentes.

3.3 Os letramentos escolares / não-escolares

Embora se considerem os letramentos de forma ampla, eles


passam também por práticas educacionais e formais. Hamilton
(2000) apresenta a noção de letramentos dominantes, relacio-
nados às práticas de organizações formais, como as da esco-
la, fazendo parte dos discursos especializados da comunidade
educacional, padronizados e definidos de acordo com os efei-
tos formais da instituição ou com as disciplinas acadêmicas.
Nesse tipo de letramento, os professores controlam o acesso ao
conhecimento, de acordo com as situações contextuais e obje-
tivos educacionais. Deve-se considerar que as práticas escolares
são muitas, sendo que às vezes a aprendizagem é separada do
uso, distribuída em especialidades. As formas pelas quais os
professores e os seus alunos interagem já se constituem em uma
prática social (STREET, 1995), em que há relações de poder.

49
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Considera-se que não é possível separar o sujeito do contex-


to e dos recursos envolvidos na sua aprendizagem. É importan-
te salientar que, se alguns letramentos são legitimados por ins-
tituições, implica que outros são desvalorizados. Para Hamil-
ton (2000), é preciso observar as relações sociais do letramento
em escolas, universidades, salas de aula e outros ambientes de
aprendizagem e as dimensões de poder dessas relações.
Pode-se falar, portanto, em letramento acadêmico ou escolar,
em que a leitura e a escrita são práticas múltiplas e diversificadas,
pois envolvem disciplinas que trazem características e discursos
próprios, bem como relações de poder no contexto institucional e
as identidades dos sujeitos envolvidos nessas práticas. Destaca-se
a ideia de letramentos – no plural (STREET, 1995), isto é, o uso
das linguagens de acordo com esse domínio discursivo e com os
papéis assumidos por professores e alunos em suas relações com
o conhecimento. Lea; Street (2006) consideram a perspectiva de
letramentos acadêmicos, em que a leitura e escrita são práticas
sociais, que variam de acordo com contexto, cultura e gênero,
sendo vistas como práticas associadas a diferentes comunidades.
Ler e escrever, de acordo com Street (2009), é, em qualquer
contexto, também uma questão de poder e autoridade. E isso se
evidencia nos contextos acadêmicos, em que os estudantes vão
construindo seus saberes relativos às relações de poder, sendo
que o letramento crítico vem conceder poder aos sujeitos (GEE,
1999), pois são estes que realizam a metalinguagem acerca dos
discursos e do modo como esses discursos constituem os su-
jeitos em sociedade. A metalinguagem pode proporcionar que
os alunos falem de suas práticas, analisando seus eventos de le-
tramento, a fim de poderem realizar escolhas nesses contextos,
para a construção de suas próprias práticas letradas, de forma
crítica, autônoma, consciente e reflexiva (FISCHER, 2008).
Essa abordagem de letramento acadêmico/escolar, à luz dos
Novos Estudos do Letramento, entende os múltiplos letramen-

50
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

tos da instância escolar como práticas sociais, de acordo com


as áreas do conhecimento e os gêneros discursivos em que se
inscrevem (OLIVEIRA, 2009). Esse enfoque prevê a relação do
aluno com a leitura e a escrita pelas crenças, os valores e a ideo-
logia da cultura dos grupos sociais, fazendo com que relacione
os sentidos sociais das disciplinas e dos conteúdos, de acordo
com as práticas sociocomunicativas a que esteja exposto.
Além disso, interessam as práticas não-escolares de letramen-
to, pois os sujeitos estão constantemente expostos a diversas si-
tuações de uso da leitura e da escrita na sua interação social, em
que precisam usar textos de gêneros variados e entender os tex-
tos que circulam socialmente, nos contextos em que convivem.
Os letramentos referem-se aos usos da linguagem, ao dis-
curso, aos modos de organizar a realidade. Escrita e fala se
complementam, são coadjuvantes na complexa encenação de
eventos nas instituições, constituindo-se em práticas híbridas
(KLEIMAN, 2005) na família, na igreja, no trabalho, na socie-
dade. Uma importante contribuição dos estudos do letramento
para a reflexão sobre o ensino da língua na escola é a ampliação
do universo textual, com a inclusão de novos gêneros, novas
práticas sociais de instituições que, até pouco tempo, não ha-
viam chegado aos bancos escolares. Quando se amplia a noção
da escrita, é possível entender melhor o seu impacto social. As
mudanças e transformações decorrentes das novas tecnologias
trazem uma nova forma de conceber o trabalho escolar e suas
relações com a vida social.
Tendo como pano de fundo as exigências de saberes cada
vez mais complexos e diversificados sobre o funcionamento
da língua oral e escrita, das linguagens verbal e não-verbal,
dos textos multimodais cada vez mais numerosos e comple-
xos na prática social pós-moderna, perfila-se o trabalho do
professor para ajudar seus alunos a construir histórias de
leitura significativas e valiosas.

51
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Kleiman (2005) apresenta algumas atitudes que o profes-


sor deve ter para trabalhar com práticas sociais não-escolares.
A autora defende que o professor precisa ter conhecimentos
necessários para agir como um verdadeiro agente social – um
agente de letramentos – gestor de recursos e saberes, desco-
brindo qual o valor da leitura e da escrita na vida do aluno.
Dessa forma, poderá criar novas e relevantes funções para a
inserção plena dos alunos e seu grupo social no mundo da
escrita. Conhecendo bem os recursos do grupo, poderá mo-
bilizar os alunos para aquilo que é relevante de ser aprendido
para inserir-se na sociedade letrada e ampliando os horizontes
da ação do grupo, ao envolvê-lo em práticas de letramento,
estará propondo uma atividade colaborativa, em que todos
têm algo com que contribuir e todos têm algo a aprender.
O professor, como agente de letramento, é um promotor das
capacidades e recursos de seus alunos e de suas redes comuni-
cativas, para que participem das práticas de uso da escrita situ-
adas nas diversas instituições. Ao se considerar a prática social
como um dos elementos estruturadores do trabalho escolar, o
ensino da leitura e da produção textual pode ser ampliado com
vistas a incluir as leituras da paisagem urbana, com passeios
por diversos “mundos de letramento”, para o aluno experimen-
tar as diferentes formas de agir, vivenciando as práticas sociais.

4 e s ta b e l e c e n d o o v í n c u l o

Os textos que circulam na sociedade letrada são os mais va-


riados, por isso, são diferentes quanto à estrutura, aos obje-
tivos, às expectativas e, consequentemente, quanto às estra-
tégias de leitura e às práticas sociais em que estão inseridos.
Cabe ao professor, pois, preparar o aluno para tornar-se apto
a entendê-los de forma independente.

52
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Os processos de leitura constituem uma atividade de in-


teração que requer o uso de estratégias metacognitivas e o
envolvimento em práticas sociais amplas, com a circulação
de variados gêneros, tanto da esfera escolar como de outras
esferas da sociedade. Se, ao ler um texto, o aluno estiver in-
teragindo numa prática social real, ele terá objetivos para sua
leitura, realizando uma atividade dirigida, assim como pode-
rá se autoavaliar constantemente na sua compreensão. O uso
dessas estratégias pode passar despercebido pelos professo-
res em sala de aula. Além de mantenham um olhar atento
sobre o que seus alunos compreendem precisam também ob-
servar as técnicas que seus alunos adotam para compreender.
Dessa forma, apresenta-se a ideia de trabalhar com as prá-
ticas sociais e os gêneros que nelas circulam, a fim de que os
alunos estejam engajados em atividades significativas de leitura,
para que sejam trabalhados os seus letramentos. Mas convém
destacar que letramento não é uma metodologia de ensino,
porque não se ensinam os letramentos, ensinam-se as práticas
de leitura e escrita que se realizam nas diversas esferas sociais,
pelos gêneros do discurso. Interessa que o aluno aprenda a agir
nas diferentes situações sociocomunicativas, não só sabendo
ler, mas interagindo com seu meio, isto é, sabendo como ler e
produzir os gêneros que realizam essas práticas.
Assim, acredita-se que é possível um vínculo das duas con-
cepções de letramento propostas por Street. O modelo ideo-
lógico de letramento é mais abrangente que o autônomo, mas
não o desconsidera, pois ambos são de importância no trabalho
com a leitura. O professor precisa se preocupar tanto com o
desenvolvimento de habilidades que deem competência de lei-
tura aos seus alunos, como com o uso da leitura nas práticas so-
ciais, ideológicas, com valores socioculturais em que os sujeitos
interagem e dos quais devem realizar uma compreensão crítica,
a fim de estarem incluídos nos diferentes contextos sociais.

53
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

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56
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

reflexões sobre leitura

em língua estrangeira

Graciele Turchetti de Oliveira Denardi


Lucas Martins Flores
Cândida Martins Pinto

1 introdução

Nos últimos anos, o governo tem apresentado um esforço no


sentido de reformular as políticas de ensino no país. A Lei
de Diretrizes e Bases da Educação Nacional nº 9.394/96 veio
reforçar a importância do ensino de línguas estrangeiras no
Ensino Fundamental (EF) e Médio (EM), reconhecendo o
papel que elas representam para a formação do aluno. Nesse
sentido, desde 1996, na parte diversificada do currículo, é
obrigatório, a partir da quinta série, o ensino de pelo menos
uma língua estrangeira moderna, cuja escolha ficará a cargo
da comunidade escolar, dentro das possibilidades da insti-
tuição (BRASIL, 1996, p. 10).
Em 1997, o Ministério da Educação publicou os Parâme-
tros Curriculares Nacionais (PCNs) para o EF e dedicou um
volume para cada uma das disciplinas do currículo. Em 1999,
foram publicados os PCNs+ para o EM. Nesses documentos,

57
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

os componentes curriculares ensinados no EM foram dividi-


dos em três grandes áreas: Ciências da Natureza, Matemática
e suas Tecnologias; Ciências Humanas e suas Tecnologias; e
Linguagens, Códigos e suas Tecnologias (nos quais estão in-
cluídos os parâmetros para o ensino de língua estrangeira).
Em 2006, o Ministério da Educação publicou as Orienta-
ções Curriculares Nacionais (OCNs) para o EM com o intuito
de retomar a discussão dos PCNs, não só no sentido de apro-
fundar a compreensão sobre pontos que “mereciam esclare-
cimentos”, como também de apontar e desenvolver indicati-
vos que pudessem oferecer alternativas didático-pedagógicas
para a organização do planejamento, a fim de atender às ne-
cessidades e às expectativas das escolas e dos professores na
estruturação do currículo para o EM (BRASIL, 2006, p. 8).
Esse documento segue a mesma estrutura dos PCNs, em três
volumes, conforme mencionado acima.
Os documentos oficiais citados apontam a leitura como
principal habilidade a ser desenvolvida no ensino de Língua
Estrangeira (LE) no Ensino Médio (BRASIL, 2006, p. 87).
Neste artigo, pretendemos refletir as sugestões dos PCNs
(Parâmetros Curriculares Nacionais), PCNs+ (Parâmetros Cur-
riculares Nacionais para o Ensino Médio) e OCNs (Orientações
Curriculares Nacionais) para o ensino de leitura em LE ao En-
sino Médio. Realizou-se o trabalho em duas fases: 1) leitura
dos documentos oficiais, buscando sugestões para trabalho
com leitura em LE e 2) levantamento da pesquisa sobre o
tema, buscando definições de leitura.
A presente reflexão parte do pressuposto de que a prática
pedagógica, principalmente seleção/elaboração do material
pelo professor, é consequência da teoria que ele tem de lingua-
gem. Pretende-se aqui, dessa forma, discutir a teoria abordada
nos documentos oficiais, bem como abordar outros autores
que trabalham com leitura (MOTTA-ROTH, 2007, WALLACE,

58
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

1992, TOMITCH, 2000). Acredita-se que este trabalho pode


trazer subsídios ao professor na elaboração de planos de aulas
para o ensino de leitura em LE que melhor atendam às neces-
sidades do contexto pedagógico em que atua.

2 os documentos oficiais e o ensino de le

Os PCNs direcionados à língua estrangeira, além de levantar


uma reflexão sobre o contexto desse estudo no país, retomam
uma valorização perdida, como disciplina importante seme-
lhante a qualquer outra, do ponto de vista da formação do alu-
no. Nesse sentido, o documento enfatiza que é preciso pensar
no processo ensino-aprendizagem das línguas estrangeiras em
termos de competências abrangentes e não estáticas, uma vez
que uma língua é o veículo, por excelência, de comunicação do
povo. Por meio de sua expressão, esse povo transmite sua cul-
tura, suas tradições e seus conhecimentos (BRASIL, 2000, p. 11).
A leitura recebe ênfase pelo documento como uma dessas
competências, pois ela pode ser ensinada levando-a em con-
sideração como uma “visão sociointeracional da aprendiza-
gem”, isto é, “enxerga a cognição como sendo construída por
procedimentos interacionais de natureza social” (BORGES,
2003, p. 14). O trabalho com a leitura, dentro dessa perspec-
tiva sociointerativa, é justificável pelo fato de que:
Embora seja certo que os objetivos práticos – entender, falar, ler
e escrever – a que a legislação e especialistas fazem referência
são importantes, quer nos parecer que o caráter formativo in-
trínseco à aprendizagem de Línguas estrangeiras não pode ser
ignorado. Torna-se, pois, fundamental, conferir ao ensino esco-
lar de Línguas Estrangeiras um caráter que, além de capacitar o
aluno a compreender e a produzir enunciados corretos no novo
idioma, propicie ao aprendiz a possibilidade de atingir um nível
de competência linguística capaz de permitir-lhe acesso a infor-

59
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

mações de vários tipos, ao mesmo tempo em que contribua para


a sua formação geral enquanto cidadão (BRASIL, 2000, p. 26).

Foi constatado que o contexto para o ensino de línguas


está voltado para a leitura, pois para o aluno, cidadão bra-
sileiro, é mais fácil precisar ler alguma literatura técnica ou
de lazer nessa língua do que falar. Os vestibulares e “outros
exames formais”, como admissão de cursos de pós-gradua-
ção, requerem o domínio da habilidade de leitura. Portanto,
“a leitura atende, por um lado, às necessidades da educação
formal, e, por outro, é a habilidade que o aluno pode usar em
seu contexto social imediato” (MIRANDA, 2005, p. 32).
Os PCNs+ (2002, p. 103), através de orientações práticas,
sugerem como podem ser as aulas de língua estrangeira, e o
professor precisa, segundo esse documento, ter clareza quanto
ao fato de que o objetivo final do Ensino Médio não é o ensi-
no da gramática, mas o domínio da estrutura linguística, que
“envolve o conhecimento gramatical como suporte estratégico
para a leitura e interpretação e produção de textos” (Id.; Ibid).
Esse trabalho de leitura e interpretação, conforme os
PCNs+, pode acontecer através da análise de Gêneros Textuais,
entendendo o conceito de “gênero”, de acordo com Motta-Ro-
th (2002, p. 79), como “formas estáveis de uso da linguagem
que estão intimamente associadas com formas particulares de
atividade humana”. Sobre isso, os PCN+ destacam que:
A análise de textos de diferentes gêneros (slogans, quadrinhos,
poemas, notícias de jornal, anúncios publicitários, textos de
manuais de instrução, entre outros), vazados em língua estran-
geira, permite a consolidação do conceito e o reconhecimento
de que um texto só se configura como tal a partir da articu-
lação de determinados elementos, de uma intencionalidade,
explícita ou não, e de um contexto moldado por variáveis so-
cioculturais (BRASIL, 2002, p. 97).

60
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

De acordo com Marcuschi (2005, p. 23), Gênero Textual são


“textos materializados” que encontramos em nossa vida diária e
que apresentam “características sociocomunicativas definidas
por conteúdos, propriedades funcionais, estilo e composição
característica”. Se os tipos são poucos, os gêneros são inúmeros.
Outro documento lançado (2006) pelo MEC foram as
OCNs (Orientações Curriculares Nacionais para o Ensino Mé-
dio) com o intuito de retomar a reflexão sobre a função edu-
cacional do ensino de Línguas Estrangeiras no ensino médio
e ressaltar a importância dessas; reafirmar a relevância da no-
ção de cidadania e discutir a prática dessa noção no ensino
de Línguas Estrangeiras (BRASIL, 2006, p. 87).
Novamente a leitura está no centro das atenções das OCNs
(2006, p. 93), visto que ela deve “desenvolver/voltar-se para
a habilidade de construção de sentidos, inclusive a partir de
informações que não constam no texto”, demonstrando ca-
racterísticas da leitura crítica, pois procura desenvolver um
leitor que entende que aquilo que lê é uma representação
textual, como aquele que, diante do que lê, assume uma po-
sição (BRASIL, 2006, p. 98).
Outro ponto apontado pelas OCNs está direcionado ao
processamento de leitura, caracterizado pela leitura intera-
tiva, em que leitor e texto assumem um papel de igualdade:
(...) não há a necessidade de ler a página em sua totalidade,
mas sim de optar caminhos ou trajetórias diferentes de leitura.
O conceito de leitura, portanto, passa a ser primordialmente
o exercício de uma opção de trajetória pela página e a subse-
quente aquisição seletiva de informações parciais presentes
em diversos locais na mesma página. Dessa maneira não há
necessidade de ler tudo na página, ou de ler a página num
único sentido (de cima para baixo ou da esquerda para a
direita) (BRASIL, 2006, p. 105).

61
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Moita Lopes (1996, p. 148), ao definir o processamen-


to interativo de leitura, sugere que o “significado não está
nem no texto, nem na mente do leitor; o significado torna-se
possível através do processo de interação entre o leitor e o
escritor, através do texto”.
Todos os documentos mencionados trazem um único ob-
jetivo: refletir sobre a situação do ensino de língua estran-
geira, no entanto, nada além de reflexões é oportunizado ao
professor. Portanto, os documentos oficiais mencionados até
aqui possuem pontos em comum no que se referem à valo-
rização do ato de ler e à leitura contextualizada no ensino
da língua estrangeira. É possível afirmar que, entre os docu-
mentos oficiais citados, as OCNs estão inseridas na perspec-
tiva crítica da leitura em LE, pois consideram interação entre
leitor – texto – autor no seu contexto social. Uma vez que
a visão crítica é a indicada pelos documentos, precisamos
conhecer o conceito de leitura crítica para entender as su-
gestões dadas às práticas de ensino de Línguas Estrangeiras
sugeridas nas OCNs (BRASIL, 2006).

3 princípios básicos sobre leitura crítica

Por muito tempo, o ensino de línguas esteve voltado para


as quatro habilidades ler, escrever, ouvir e falar em que seu
principal foco era o conhecimento de estruturas gramaticais
e lexicais da língua, focado em um ensino linguístico ou ins-
trumental, desconsiderando outros objetivos, como educa-
cionais e os culturais. No caso do estudo de uma língua es-
trangeira, percebe-se que é impossível concentrar esforços no
conteúdo, uma vez que “não podemos aprender uma língua
isolados de seus valores sociais, culturais, políticos e ideoló-
gicos” (BRASIL, 2006, p. 90).

62
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

As OCNs trazem sugestões para tornar a disciplina de lín-


gua estrangeira grande contribuidora para a formação de in-
divíduos como parte de suas preocupações sociais. De acor-
do com o referido documento:
as propostas epistemológicas (de produção do conhecimento)
que se delineiam de maneira mais compatível com as necessi-
dades da sociedade atual apontam para um trabalho educacio-
nal em que as disciplinas do currículo se tornam meios. Com
essas disciplinas, busca-se a formação de indivíduos, o que
inclui o desenvolvimento de consciência social, criatividade,
mente aberta para conhecimentos novos, enfim, uma reforma
na maneira de pensar e ver o mundo (BRASIL, 2006, p. 90).

Assim, o valor educacional da aprendizagem de uma língua


estrangeira busca capacitar o aluno a usar determinada língua
para fins comunicativos. Além disso, segundo as OCNs o exer-
cício da leitura deve voltar-se para a habilidade de construção
de sentidos, inclusive a partir de informações que não constam
no texto. Esse tipo de reflexão proporciona ao aluno refletir
sobre o seu lugar na sociedade, se está incluído ou excluído do
processo social e cultural. Nesse sentido, leitura contempla pe-
dagogicamente suas várias modalidades: a visual (mídia, cine-
ma), a informática (digital), a multicultural e a crítica (presente
em todas as modalidades). Como podemos perceber, o ensino
da leitura está intimamente ligado a modos culturais de usar a
linguagem. A escolha de textos de leitura, por exemplo, devem
partir de temas do interesse do aluno e que possibilitem uma
reflexão sobre o seu meio social. O professor estaria, assim,
trabalhando na perspectiva da leitura crítica.
Kleiman (2001, p. 10) considera a leitura como uma “prá-
tica social que remete a outros textos e outras leituras”, o que
possibilita aos leitores colocar em ação o sistema de crenças,
valores e atitudes que refletem o grupo social em que o indi-
víduo foi criado. O trabalho com a leitura em sala de aula, por

63
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

muito tempo esteve focado na codificação e decodificação


de letras e palavras, tanto professores como alunos estavam
arraigados a valores extremamente textuais, não permitindo
o avanço da leitura em seu aspecto psicológico, político, so-
cial, linguístico. Freire (2003 p.21) já dizia que “a leitura de
mundo antecede a leitura da palavra”, isto é, tão importante
quanto entender o significado do que se lê é deixar-se levar
através da leitura para o mundo em que se vive buscando
sentido naquilo que se está fazendo. Kleiman (2008, p. 16)
afirma que “ninguém gosta daquilo que é difícil demais, nem
aquilo do qual não consegue extrair sentido”.
A abordagem sobre leitura está relacionada a todo e qual-
quer interação comunicativa em que o indivíduo deve atuar
de diferentes formas para expressar seu pensamento, viven-
ciar e relacionar suas necessidades no contexto social. Leitura
pode significar diversas coisas em diferentes contextos, como
identificar, decodificar, entender, interpretar, relacionar o co-
nhecimento proposto com o conhecimento de mundo do lei-
tor. Para Wallace (1992, p. 3), identificar é a “habilidade física”
de ver as palavras. Decodificar é a habilidade de relacionar
símbolos escritos a sons, por isso, decodificar e entender es-
tão juntos. É preciso decodificar e entender o que está sendo
lido, para que haja leitura como interpretação, sendo assim,
interpretar significa “reagir ao texto escrito como um pedaço
da comunicação”, a fim de que a leitura se torne efetiva, isto é,
a partir do objetivo traçado ao ler o texto, obter uma resposta
“flexível e apropriada” (Ibid., p. 3) ao material de leitura.
Assim, Cervetti, Pardales e Damico (2001) citam Bond e
Wagner (1966, p. 283) para definir leitura crítica como:
o processo de avaliar a autenticidade e validade do material e
de formular uma opinião sobre ele. É essencial para qualquer
pessoa, ao lidar com questões controversas, ser capaz de ler cri-
ticamente... [o leitor] deve entender os significados implícitos

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

tão bem quanto os declarados. Ele deve avaliar a fonte a partir


da qual ele está lendo. Ele deve diferenciar os fatos importantes
dos não importantes. Ele deve ser capaz de detectar tratamen-
tos deformados pelo preconceito. Ele deve manter em mente
os preceitos e intenções do autor e julgar se, ao extrair suas
conclusões, o autor considerou todos os fatos apresentados.

A leitura pode ser definida como um processo de represen-


tação. Segundo Leffa (1996, p.10) “como esse processo envolve
o sentido da visão, ler é, na sua essência, olhar para uma coisa
e ver outra”. O processo de decodificação é essencial na leitura,
porém, em nenhum momento modifica a visão de mundo do
leitor, pois o conhecimento prévio associado à intencionalidade
do autor perpetuam o sucesso da leitura. A escola tem a função
de ensinar, e do professor, mediador do conhecimento, espera-
-se que seja capaz de oportunizar aos alunos caminhos para
que eles busquem o conhecimento através da leitura de forma
consciente, possibilitando a esses educandos atuarem de ma-
neira crítica em seu espaço social. A vida ultrapassa os limites
do âmbito escolar e, na grande maioria das vezes, os aconteci-
mentos fora da instituição educacional são muito mais moti-
vadores, pois a linguagem da escola nem sempre é a do aluno,
fato que pode ser repensado pelos profissionais da educação.
A leitura crítica implica a leitura dos contextos a partir
dos quais o dado texto foi produzido (BRAHIM, 2007, p. 17).
Motta-Roth (2007, p. 4) explica que um escritor gaúcho es-
creve e lê conforme as suas marcas socioculturais, pobre, rico,
homem, mulher.
O professor com pensamento crítico, de acordo com a
referida autora, deve fazer com que o aluno reflita sobre:
• sua própria condição humana, social, econômica: reflexões
sobre personalidade, desejos, experiências na leitura;
• o papel mediador da linguagem na vida social: quais são
os objetivos e necessidades de ler esse ou aquele texto.

65
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Para que o professor consiga atingir tais reflexões em sala


de aula, Wallace (1992, p. 123), citando Kress (1985), apre-
senta quatro perguntas que são fundamentais para os está-
gios da leitura crítica:
1. Por que se escreve sobre esse tópico?;
2. Como se escreve sobre esse tópico?;
3. De que outras maneiras se pode escrever sobre esse tópico?;
4. Quem é o leitor modelo para o texto?

Esses questionamentos contribuem para a formação crí-


tica do pensamento do aluno em relação ao texto, visto que
possibilitam ao leitor colocar-se no lugar do escritor, tanto
no aspecto físico do texto, como socialmente. Wallace (1992,
p. 50) aponta que:
Se olharmos para a escrita e leitura como processos sociais,
muitos fatores contribuem para a construção de significa-
do em textos escritos. Exemplos incluem as regras sociais
e experiências do escritor e leitor e seus respectivos propó-
sitos, e também o contexto em que um texto é produzido
e interpretado.

O modelo interativo situa a leitura como um ato comuni-


cativo, em que leitores e escritores estão posicionados social,
política, cultural e historicamente ao agirem na construção do
significado (MOITA LOPES, 1996, p. 142). O contexto social
é importante para a compreensão de textos, pois, de acordo
com Wallace (1992, p. 86), “o leitor em língua estrangeira,
precisa acessar ao conteúdo como também ao contexto”. A
orientação do contexto e conteúdo pelos professores é uma
“maneira de facilitar a interação do leitor com um texto”. Para
que isso aconteça, Wallace (1992) e Motta-Roth (2007, p. 4)
sugerem que a aula de leitura crítica se estruture tradicional-
mente em três momentos: pré-leitura, leitura e pós-leitura.

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Pré-leitura é definida por Motta-Roth (2007, p. 4) “por


ações como o ativamento de conhecimento prévio, a cons-
trução de mapas semânticos”. Wallace (1992, p. 86) indica
que essas atividades de pré-leitura podem preparar os alunos
para características linguísticas do texto, para dificuldades
culturais ou “conceituais” e construir visões e conhecimentos
existentes nos leitores. Além disso, a referida autora observa
que as estratégias de leitura usadas nesse momento depen-
derão do gênero textual e também do objetivo da leitura do
autor. Erten e Karakas (2007, p. 117) observam que:
O uso das atividades de pré-leitura tem sido enfatizado para
fornecer antecipação e ativar o esquema do leitor, o que moti-
vará os leitores a se engajarem em uma leitura mais significativa,
a fim de completar a atividade, com menos esforço, uma vez
que eles ganharam confiança. No estágio de pré-leitura, por
meio da discussão dos títulos, subtítulos, fotografias, identifi-
cação da estrutura do texto, previsão, e assim por diante, am-
bos os esquema de forma e conteúdo podem ser ativados.

“A leitura se caracteriza por ações como a identificação de pa-


lavras-chave no texto, o estabelecimento de redes lexicais e da
organização semântica do texto” (MOTTA-ROTH, 2007, p. 4).
O objetivo das atividades de leitura, nessa segunda fase, con-
siste em encorajar os alunos a tornarem-se flexíveis, ativos
e reflexivos (WALLACE, 1992, p. 93). “Algumas atividades
comuns na leitura usadas para prover interação na leitura
incluem skimming, scanning1, predição, atividades de múltipla
escolha, perguntas de conteúdo” (WALLACE, 1992, p. 94) e
(ERTEN e KARAKAS, 2007, p. 118).
O último estágio é a pós-leitura, que “consiste na análi-
se da relação do texto com suas condições de produção e

1. Skimming é o ato de ler o texto como um todo de forma exploratória, sem se


ater aos detalhes. Scanning é a estratégia utilizada para obter informações
específicas no texto como, por exemplo, a busca de uma palavra.

67
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

leitura” (MOTTA-ROTH, 2007, p. 4). Wallace (1992, p. 101)


sugere que as atividades de pós-leitura devem ser motivadas,
assim como a pré-leitura e leitura, pelo gênero e contexto do
aprendiz, ao propósito do leitor. Nesse sentido, segundo Er-
ten e Karakas (2007), essas atividades servem para checar a
compreensão do leitor e, assim, conduzi-lo para uma análise
mais profunda do texto.
Outro aspecto relevante são as condições de leitura ofere-
cidas para os alunos: o ambiente deve ser preparado para o
trabalho e os textos terão que ir além do material oferecido
em sala de aula (livros didáticos), como aqueles que circulam
no contexto extraescolar (jornais, revistas, enciclopédias, fil-
mes, dicionários, propagandas), entre outros gêneros textuais
presentes no cotidiano do educando. Assim, entende-se que
todos os textos, quando usados adequadamente, podem favo-
recer o trabalho de compreensão e produção do aluno. Con-
forme afirma Matêncio (1994, p. 102), “pode-se dizer que as
dificuldades centrais dos alunos estão em como fazer interagir
o trabalho mecânico de escrever, seu conhecimento sobre o
que vai escrever, o planejamento e a organização do texto”.
Acredita-se que a tarefa de selecionar materiais para a lei-
tura é uma das mais difíceis para o professor, visto que o edu-
cador, ao escolher um texto, precisa levar em consideração os
interesses e necessidades dos educandos. Soligo (1999, p.58)
afirma que “os alunos devem ver na leitura algo interessante
e desafiador, uma conquista capaz de dar autonomia e inde-
pendência e devem estar confiantes, condição para enfrentar
o desafio de aprender fazendo”. A organização e condução
do trabalho de leitura dentro e fora da escola, a desmotivação
do professor no momento de eleger os textos e até mesmo a
presença de educadores não-leitores é um dos fatores que
impossibilitam o sucesso da leitura pelos alunos. Sendo as-
sim, a citação de Kleiman (2008, p. 15) “para formar leitores,

68
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

devemos ter paixão pela leitura” centra-se como o primeiro


passo que deve ser dado pelo educador responsável na con-
dução da leitura dentro e fora da sala de aula

4 p r o p o s ta d e at i v i d a d e pa r a e n s i n o
da leitura

O trabalho pedagógico com enfoque na leitura exige tanto


do professor como do aluno uma concepção que entende
a leitura e a escrita relacionadas às práticas sociais. Com o
intuito de engajar o educando em uma atividade crítica de
linguagem, deve-se levá-lo a pensar por si próprio, exploran-
do significados a partir de situações relevantes, observando e
questionando as relações de poder, as representações presen-
tes nos discursos e as implicações que isto pode trazer para o
indivíduo em sua vida ou em sua comunidade. A partir dessa
concepção, apresentam-se algumas propostas de atividades
que envolvem a leitura e escrita em seu âmbito social.
Primeiramente, o professor precisa ter objetivos claros e
motivação para a efetivação do trabalho. O trabalho inicial
resume-se na sondagem por parte do educador sobre a rea-
lidade social dos alunos. Posteriormente, cabe ao professor
buscar e selecionar o material a ser trabalhado no grupo,
sempre priorizando as necessidades e interesses dos educan-
dos. Faz-se necessário ressaltar que as contribuições trazidas
do meio social dos estudantes devem ser sempre valoriza-
das e aproveitadas nas aulas. Após a seleção e escolha do
material, sugere-se a organização de questionamentos para
a pré-leitura, a qual deve ser pensada cuidadosamente pelo
orientador, pois este é o momento em que o professor, como
mediador, proporcionará aos alunos o primeiro contato com
o propósito do trabalho. O objetivo da pré-leitura, além de

69
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

situar o grupo em relação ao assunto, é motivar, proporcio-


nar aos educandos uma reflexão crítica sobre o tema aborda-
do (com ênfase em temas relacionados à sua realidade social,
para associar a escola ao mundo real).
Em outro momento, será trabalhado o gênero textual esco-
lhido, priorizando sempre uma leitura atenta do título, forma,
cores, movimentos, grafia e imagens (quando houver). Este é
outro ponto significativo dentro da leitura, pois, é preciso es-
clarecer ao educando que ler não se resume a decodificação
de palavras, mas a uma leitura do todo para que seja possível
uma relação do que lhes é proposto com o conhecimento de
mundo que ele traz para a sala de aula. Posteriormente, após
uma profunda reflexão das questões propostas, visando sempre
que o aluno reconheça, relacione e situe sua leitura às questões
sociais e de poder presentes na sociedade. Cabe, então, ao pro-
fessor propor a concretização do trabalho através da produção,
permitindo ao educando a explanação dos resultados e acei-
tando as diferentes interpretações. A seguir, apresenta-se uma
possível sugestão para ser aplicada em sala de aula.

Objetivos específicos:

• Despertar o senso crítico do aluno através da leitura, re-


fletindo sobre as questões sociais que envolvem o texto;
• Proporcionar ao educando o contato com o gênero
textual “campanha publicitária”, permitindo ao grupo
reconhecer, situar e explanar sobre este gênero tão pre-
sente no meio social em que se encontram;
• Levar o aluno a ser capaz de produzir textos, com uma
visão clara sobre os problemas sociais.

Conteúdo: recursos de linguagem, persuasão e produção


textual.

70
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Recursos: Revistas e jornais para coleta de anúncios pu-


blicitários, Cartolinas, Tintas, Lápis de cor, cola.

Desenvolvimento dos procedimentos metodológicos:

Inicialmente, perguntar aos alunos quais anúncios publicitá-


rios que eles lembram.
1. Você costuma ler diferentes textos com frequência
dentro e fora da sala de aula? Quais?
2. Você sabe o que é um anúncio publicitário? O que visa
este tipo de gênero textual?
3. Que tipo de anúncios publicitários você vê no seu
dia-a-dia?

Essa é a fase de pré-leitura, pois tenta situar o grupo, atra-


vés de explicações, sobre o que é um anúncio publicitário,
características, função, organização. O professor pode, en-
tão, solicitar que levantem hipóteses para explicar por que os
anúncios citados e lembrados pelos alunos ficaram guarda-
dos na memória e outros não.
A seguir, parte-se para a leitura dos textos propriamente
dita e análise crítica (está é a fase de leitura). Pode-se apre-
sentar em slides ilustrações com alguns anúncios de produtos
na língua em estudo e mediar o trabalho de leitura das ima-
gens, formas, cores, movimentos, padrões, letras, etc. Nesse
momento, intermédia-se com os educandos uma discussão
sobre o conteúdo presente nos anúncios relacionando com
situações vivenciadas no âmbito social. Após a apresentação
de cada anúncio, trabalha-se com os recursos presentes nos
mesmos, usando questionamentos e discutindo oralmente.
Nessa fase, inclusive, podem ser realizadas atividades de in-
terpretação do texto analisado, bem como enfatizar algum
aspecto gramatical indispensável ao entendimento do texto.

71
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Finalmente a fase de pós-leitura com ênfase na produção


textual. Propor que os alunos, individualmente ou em gru-
pos, usem a criatividade e criticidade na produção de um
anúncio publicitário. Então, pode-se solicitar que os educan-
dos apresentem aos colegas a sua produção, justificando a
criação do gênero proposto. Os trabalhos podem ser expos-
tos na sala, na escola ou publicados em jornais escolares ou
materiais organizados pelo grupo.

5 conclusão

Os documentos oficiais sugerem que as aulas de línguas es-


trangeiras devem prever a leitura como principal habilida-
de a ser desenvolvida no Ensino Médio. De acordo com as
OCNs (BRASIL, 2006, p. 98), os alunos devem compreender
como as pessoas utilizam a leitura (e para quê) em sua vida
cotidiana; que a leitura tem a ver com a distribuição de co-
nhecimento e poder numa sociedade; que tipo de desenvol-
vimento de leitura resulta no desenvolvimento de um leitor.
A pesquisa de Tomitch (2000) revelou que os tipos de
exercícios de leitura mais apresentados pelos livros didáticos
são questões de compreensão, exercícios de múltipla escolha
e afirmações de verdadeira ou falsa, esquecendo-se do aspecto
social de cada texto. No entanto, grande maioria deles possui
diversidade de gêneros textuais que podem ser utilizados para
o ensino de leitura em LE. O professor pode elaborar ativida-
des de pré-leitura, leitura e pós-leitura, baseando-se na pers-
pectiva crítica de leitura, integrando leitura e práticas sociais.
Fica expressa a pretensão de que com esse trabalho te-
nha-se conseguido salientar a importância de um ensino de
leitura em língua estrangeira dando ênfase à leitura crítica.
Confirma-se a ideia de Wallace (1992), quando afirma que

72
atividades de leitura crítica em aulas de leitura em LE de-
penderão das características de cada grupo de alunos. Diante
disso, faz-se necessário a presença de professores engajados
na proposta pedagógica com enfoque na leitura no âmbito
social, valorizando as contribuições dos educandos, res-
peitando suas crenças, origens e conhecimento de mundo.
Acredita-se que esse é o primeiro passo para que se tenham
estudantes críticos e ativos em diversas práticas sociais.
Nessa perspectiva, faz sentido pensar no ensino tornando
o discurso como prática social, trabalhando a língua não ape-
nas como uma forma para compreensão e comunicação, mas
dentro de uma análise crítica reconhecendo as intenções do
autor e respeitando as interpretações do leitor/escritor. Dessa
forma, entende-se que a prática social compreende um pro-
cesso de ação-reflexão-ação sobre o mundo.

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74
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

mídia e educação:

o u s o d a s n o va s t e c n o l o g i a s

em sala de aula

Sabrine Denardi de Menezes da Silva

1 introdução

Fazemos parte de uma sociedade globalizada, onde existe um


grande fluxo de informações, disponíveis em diversos meios
de comunicação, o que por um lado facilita bastante nossas
vidas e por outro exige que nos tornemos mais críticos em
relação ao conteúdo que absorvemos diariamente.
No que diz respeito à prática educacional, é importante
olharmos para as novas tecnologias como aliadas no proces-
so de ensino-aprendizagem, diversificando a metodologia de
ensino e assim, tornando as atividades mais atraentes para os
alunos, dando oportunidade de expressão e participação aos
mesmos. De várias formas, a mídia sempre esteve presente
no contexto educacional, porém diversas vezes houve resis-
tência em relação à sua aplicação na escola.
A era digital pode possibilitar ao docente o estabelecimen-
to de uma rede de comunicação e informação entre a escola
e o cotidiano em que os indivíduos estão inseridos, fazendo
com que eles possam associar a teoria com as suas vivências

75
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

do cotidiano, estabelecendo relações, fazendo comparações


a fim de aumentar seu interesse e despertar sua criticidade.
É importante que possamos refletir sobre o papel das mí-
dias dentro da escola, bem como qual a postura que o profes-
sor pode adotar frente a todas as mudanças e melhorias que
elas podem proporcionar dentro do processo de ensino. Toda
mudança no início gera uma certa desconfiança, até sua total
implantação. No que tange ao uso de mídias diversas em sala
de aula, é fundamental que o professor procure se adequar à
nova realidade, tentando buscar formas de inserir sua prática
educativa no contexto atual, o qual está se transformando mui-
to rapidamente e requer novas metodologias, bem como novas
linguagens adaptadas para cada situação e contexto de uso.
As pessoas, hoje em dia, têm o acesso ao mundo e às mais
diversas informações de maneira muito ágil e fácil, o que
difunde em maior escala o conhecimento, dando acesso à
maioria das pessoas a ele, em tempo real.
Este artigo pretende apresentar alguns aspectos em relação ao
que é possível ser feito para aproximar a sala de aula à realidade
do mundo tecnológico em que os estudantes estão inseridos.

2 a escola e as tecnologias

Segundo Dorigoni e Silva (2007), no que se refere à área educa-


cional, a mídia esteve sempre presente na educação formal, po-
rém diversas vezes sofreu certa resistência em relação a sua apli-
cação na escola. O impacto social causado pela chegada da tec-
nologia de informação e comunicação (TIC), nos últimos anos,
ocasionou intensas transformações em todas as esferas sociais.
A escola começou pouco a pouco a fazer parte da era digi-
tal, com a implantação de laboratórios de informática e, logo
em seguida, o acesso à internet, o que acarretou diversas mu-

76
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

danças no contexto educacional. Frente a essa nova situação,


cabe ao educador se questionar sobre até que ponto deve
incorporar as novas tecnologias em sua prática pedagógica e
de que maneira torná-las aliadas no dia a dia em sala de aula.
O avanço da tecnologia provocou uma revolução em todos
os setores da sociedade, modificando as formas de trabalho, agi-
lizando processos que antes eram mais lentos e de difícil acesso
à população, e, na educação, isso não é diferente. O computa-
dor está presente nas casas de grande parte dos estudantes, bem
como o acesso à internet está sendo mais facilitado. Muitos estu-
dantes não sabem utilizar os livros para fazer pesquisas, pois já
nasceram na era da informática e dependem muito dela.
Tendo em vista que, para o processo de aprendizagem se
efetivar é necessário que haja motivação e interação entre
professor e aluno, faz-se necessário que o docente se insira
no contexto da era digital, buscando novas formas de expor
seus conteúdos, analisando o que é realmente importante en-
sinar para a nova geração.
Hoje não há mais espaço para aulas meramente expositi-
vas, em que o professor é o centro do processo, o “dono” do
saber de forma incontestável. Há um fluxo intenso de novas
informações circulando diariamente em uma velocidade in-
crível, e os alunos tem acesso a elas. Sendo assim, torna-se
necessário que haja um diálogo maior em sala de aula, uma
efetiva interação, onde professor e aluno aprendam juntos.
Para Moran (2004), o professor precisa aprender a gerenciar
diversos espaços e integrá-los de maneira equilibrada e inova-
dora. Um desses espaços é uma nova sala de aula equipada e
com atividades diversificadas, juntamente com as visitas ao la-
boratório de informática para o desenvolvimento de atividades
de pesquisa, que complementem o trabalho em sala de aula.
Para que o professor se utilize das novas mídias disponíveis,
é necessário que ele busque conhecer as mesmas e procure a

77
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

melhor maneira de utilizá-las em suas aulas, a fim de diminuir


a distância entre os conteúdos das aulas e a vida dos aprendizes.
O autor também afirma que a maior reclamação dos alu-
nos é a forma como os professores ministram suas aulas, fa-
lando por horas, expondo o conteúdo, com pouca possibi-
lidade de participação dos discentes, não ocorrendo assim
uma interação professor–aluno.
Se um dos objetivos do ensino é formar cidadãos críti-
cos, capazes de interagir nas mais diversas práticas sociais,
não se pode negar que o uso das mídias pode se tornar
nosso aliado no processo de ensino, pois, através da forma
dinâmica que as informações se apresentam na rede – tex-
tos são complementados por imagens, sons, vídeos – novas
informações surgem a todo momento em uma velocidade
nunca antes vista, livros estão se tornando digitais, distân-
cias estão sendo encurtadas pelo espaço virtual. O aluno
participa dessa interação em seu cotidiano, como ignorar
que tudo isso tem um papel importante e deixar do lado de
fora da escola todas essas mudanças?
Porto (2006) aponta que as tecnologias disponibilizam
ao usuário um vasto conjunto de informações, conhecimen-
tos e linguagens em tempo real, proporcionando a cada um
envolver-se com a tecnologia de acordo com seu modo de
ver a realidade e, através dessa interação, criar ou recriar seus
conceitos a respeito de determinados temas, tornando, assim,
o aprendizado individualizado de acordo com suas necessi-
dades. Para o professor, realizar um atendimento individua-
lizado em um grupo grande e diversificado, dentro de uma
sala de aula é tarefa difícil, para não dizer impossível.
A autora também comenta que as tecnologias permitem aos
usuários uma grande interação e participação, o que os coloca
no papel de sujeito de suas ações. Ela cita como exemplo um
menino que tem dificuldades em relação a questões de inter-

78
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

pretação de textos, mas tem grande facilidade para jogar um


jogo de videogame em japonês, pois este lhe permite fazer inte-
ragir com os personagens e o torna sujeito da situação.
No contexto dos jogos, existe a possibilidade de o jovem
criar, experimentar, interagir e perceber o que pode dar certo
e o que não irá funcionar. Já na escola, muitas vezes não lhe
são proporcionadas tais oportunidades, tendo em vista que
os professores precisam cumprir os conteúdos ditados pelo
currículo, o que distancia cada vez mais o cotidiano escolar
da vida dos estudantes, pois as práticas educativas não estão
contextualizadas com o universo deles.
“Colocamos tecnologias na universidade e nas escolas,
mas, em geral, para continuar fazendo o de sempre – o pro-
fessor falando e o aluno ouvindo – com um verniz de moder-
nidade”, afirma Moran (2004). Ele comenta que o professor
apenas utiliza a tecnologia como se fosse uma “embalagem”
para ilustrar sua aula, mas a essência meramente expositiva
continua a mesma, não ocorrendo uma participação dos alu-
nos, não modificando o processo de ensino.
O autor ainda argumenta que, atualmente, com a facilidade
de acesso à internet e a evolução tecnológica, existem diversas
formas de se realizar a aprendizagem, mas a escola continua
sendo o centro principal do processo ensino-aprendizagem.
Os desafios dessa nova realidade também são muitos, a
tarefa do professor não se restringe mais apenas ao espaço
físico da sala de aula, agora é preciso gerenciar atividades
a distância, orientações de projetos, através de plataformas
virtuais, programas de mensagens instantâneas, redes sociais,
um mundo completamente novo para muitos docentes.
Uma sala de aula preparada para receber tecnologias é fun-
damental para servir de apoio ao professor no desenvolvimen-
to de suas aulas. Computador, projetor multimídia e acesso à
internet são recursos necessários para oferecer ao professor

79
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

suporte de pesquisa, tendo em vista que, para que haja edu-


cação de qualidade, uma boa infraestrutura é fundamental.
O professor, tendo acesso a essa infraestrutura na escola,
poderá fazer uso de jornais online, blogs, bem como sites espe-
cializados no assunto que será abordado em aula. Pode ser soli-
citado que os alunos façam pesquisas online sobre o tema, para
que depois haja uma troca de experiências, de saberes em aula.
É importante que o docente saiba usar a tecnologia para
educar, ensine seus alunos a ler e escrever através dela, tor-
nando-os críticos frente à gama de informações que encontram,
fazendo com que eles saibam filtrar aquilo que lhes será útil.

3 tecnologia e o ensino de língua


p o rt u g u e s a

Na era tecnológica em que vivemos, há informações demais,


com múltiplas fontes e diversas visões diferentes sobre um
mesmo assunto. Os mais diversos meios de tecnologia de
informação e comunicação estão ao alcance de alunos e pro-
fessores, o que tem causado grande impacto em sala de aula.
Esta mudança pode ser observada em todas as áreas do
conhecimento, o que torna necessário que o professor re-
pense suas metodologias, definindo o que vale a pena ensi-
nar, o que será útil para a vida futura dos alunos, já que eles
se tornaram mais críticos e questionam o professor quanto
à aplicabilidade de certos conteúdos no futuro. É funda-
mental que o professor repense todo o processo de ensino,
aprenda com seus alunos, pense mais neles quando realizar
seu planejamento, adequando-se à nova realidade.
A internet traz inúmeras possibilidades de proporcionar-
mos aos alunos aulas diversificadas, mais próximas da rea-
lidade deles, mas, para que isso aconteça, é essencial que o

80
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

professor busque aprender a utilizar a tecnologia, sem medo


de aprender com seus alunos.
Coscarelli (1999) sugere que um requisito básico para
o professor se inserir na era digital é que a noção de uma
aula de Língua Portuguesa deve mudar. A aula tradicional
não existe mais, de acordo com a autora, ao invés de estu-
dar a língua, os alunos irão aprender através dela, pois o
português será usado como instrumento para aprender as
outras disciplinas, tendo em vista que é através da leitura
e interpretação de textos que se dá o processo de ensino/
aprendizagem das outras áreas do conhecimento. Sendo
assim, a autora acredita que a interdisciplinaridade estará
mais presente na escola, tendo como consequência que o
aluno precisa aprender a produzir sentido através de suas
leituras, levando em conta os recursos linguísticos do texto
e suas inter-relações.
A partir dessa perspectiva, muitos professores podem se
questionar sobre qual o papel da gramática nessa nova visão
de ensino de Língua Portuguesa. Há certo tempo, a gramática
deixou (ou deveria deixar de ser) o centro da aula de portu-
guês, mas esse “não ser o centro” não significa que a gramática
se torna inútil, pelo contrário, o professor deve mostrar aos
alunos que a gramática servirá como fonte de pesquisa sem-
pre que houver dúvidas quanto ao uso da norma padrão.
Por isso, Coscarelli (1999) coloca que os objetivos das
aulas de Língua Portuguesa seriam que os alunos:
1. conheçam as diferenças entre linguagem oral e escrita;
2. saibam reconhecer e utilizar as variações linguísticas,
adequando-as a diferentes situações de uso;
3. consigam ler, interpretar e produzir os mais diversos
gêneros textuais, incluindo os digitais;
4. saibam produzir textos adequados ao objetivo e aos
interlocutores aos quais se destinam;

81
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

5. ao invés de decorar regras, informações, saibam pes-


quisar e utilizar as informações de que precisam.

Em síntese, o ponto de partida da aula de português passa


a ser a competência linguística dos alunos, com foco nas ha-
bilidades de leitura e interpretação de textos dos mais diver-
sos gêneros. Nessa perspectiva, o computador pode ser usado
como ferramenta para que os alunos exercitem a capacidade
de selecionar informações através de suas pesquisas feitas na
internet. O uso de gêneros digitais em sala de aula, se bem
planejado, certamente resultará em uma melhoria significativa
na qualidade dos resultados da produção de textos dos alunos.
Outra alternativa interessante são as inúmeras redes eletrô-
nicas de comunicação, as quais estão estabelecendo novas for-
mas de interação e troca de ideias grupais, em que a distância
física não é problema, tendo em vista que há possibilidade de
interação com os mais diversos grupos de pessoas, de qual-
quer parte do mundo. Além disso, podemos citar, como van-
tagem, que estas redes possuem um grande volume de arma-
zenamento de dados, que podem ser acessados em tempo real.
A escola pode ser o meio de inserção para a inclusão digital de
classes sociais desprovidas de acesso aos recursos tecnológicos,
principalmente os oriundos das escolas públicas, que são em
sua maioria excluídos da sociedade da informação. Sendo assim,
como cita Bezerra (2011), tendo em vista que grande parte dos
alunos não tem condições de adquirir seu próprio computador,
a escola seria o espaço mais apropriado para que ocorra a in-
clusão, não apenas através da compra de computadores, mas
também com a formação teórica e prática dos novos usuários.

82
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

4 considerações finais

Segundo Porto (2006), o trabalho com as tecnologias de in-


formação e comunicação supõe uma mudança na ordem do
processo educativo, no qual o professor decide arbitraria-
mente o que ensinar. Segundo essa visão, a decisão resulta da
interação entre professores e alunos e deles com a tecnologia,
ocasionando assim um processo significativo e relevante para
os alunos. Assim, as necessidades do aluno são o centro do
processo, não apenas o desenvolvimento dos conteúdos.
Existem inúmeras vantagens de se trabalhar com tecnologia
em sala de aula, dentre algumas podemos citar: interação, au-
tonomia e motivação. Uma aula meramente expositiva, baseada
sempre no livro didático com o professor falando e os alunos
apenas ouvindo sem poder interagir, não cabe mais no mundo
de hoje, com a geração que temos em sala de aula, em que os alu-
nos já nasceram em meio a uma grande diversidade tecnológica.
Uma questão importante para que a tecnologia seja bem
utilizada e possa contribuir com o trabalho docente é que o
professor busque sempre conhecer as tecnologias, saiba que
ferramentas podem auxiliá-lo em sua prática diária, não te-
nha medo do novo.
Citando a internet como exemplo de tecnologia que está
mais amplamente difundida nas escolas, podemos colocar como
ponto positivo que os alunos e professores têm possibilidade de
contrastar ideias, conceitos, verificar diferentes opiniões sobre o
mesmo assunto, gerando uma interação em sala de aula.
Usar a internet a favor da educação representa um cami-
nho privilegiado na formação das novas gerações, pois ela
está diminuindo distâncias, superando desafios, interligando
as pessoas de diferentes lugares do mundo de maneira rápi-
da e prática, cada vez com mais recursos a nossa disposição,
oferecendo tanto a nós professores, quanto aos alunos, ter

83
contato com diferentes linguagens, o que irá contribuir com
a formação linguística dos mesmos.
Para muitos docentes, essas questões ainda são um de-
safio, há bastante resistência e muitas vezes despreparo por
parte dos mesmos. Sendo assim, a formação do professor iria
muito além de formação técnica sobre computadores, seria
necessário que houvesse condições para o docente construir
conhecimento sobre noções de ensino, aprendizagem e co-
nhecimento, para então entender como e por que integrar o
computador a sua prática pedagógica.
O processo de aprendizagem com o auxílio de ferramen-
tas tecnológicas levaria o aluno a utilizar estratégias como:
formulação de hipóteses, tomada de decisões, enfim, o aluno,
juntamente com o professor, irá construir seu conhecimento.
Com relação ao avanço tecnológico, a escola ainda cami-
nha de forma muito lenta se comparada a outros setores so-
ciais. O que poderia ser feito é que os alunos realizassem suas
tarefas em suas residências, e o professor passaria a ser um
mediador do conhecimento. Os resultados desse trabalho se-
riam documentos eletrônicos que poderiam ser compartilha-
dos na rede para consulta de outras comunidades.
Com a assustadora velocidade que o conhecimento vem se
propagando através da internet, é impossível que professor ou
aluno dominem tudo. Assim, o trabalho em equipe, com base
na internet, torna-se fundamental no sentido de preparar os
alunos para selecionarem informações com credibilidade, tor-
narem-se críticos em relação às informações que encontram na
internet e não acreditarem em tudo o que leem. Além disso, é
importante que o professor explore o potencial comunicativo
de seus alunos, pedindo para que expliquem com suas palavras
um determinado assunto que pesquisaram, por exemplo.

84
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

referências
BEZERRA, Lebiam Tamar Silva, AQUINO, Mirian de Albuquerque. Ensinar e
aprender na cibercultura. Revista Famecos mídia, cultura e tecnologia.
Porto Alegre, v. 18, n. 3, setembro/dezembro 2011.
COSCARELLI, Carla Viana. A nova aula de português: o computador na sala
de aula. Presença Pedagógica. Belo Horizonte, mar./abr., 1999.
DORIGONI, Gilza Maria Leite, SILVA, João Carlos da. 2007.Mídia e Edu-
cação: o uso das novas tecnologias no espaço escolar. Disponível em
URL:<http://www.diaadiaeducacao.pr.gov.br/portals/pde/arquivos/1170-2.
pdf> Acesso em: 27 de fevereiro de 2012.
MORAN, José Manuel. Os novos espaços de atuação do educador com as
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nal de Didática e Prática de Ensino, in ROMANOWSKI, Joana Paulin et al
(Orgs). Conhecimento local e conhecimento universal: Diversidade, mídias
e tecnologias na educação.Curitiba: PR, 2004. Disponível em URL: <http://
www.eca.usp.br/prof/moran/espacos.htm> Acesso em 04 de março de 2012
PORTO, Tania Maria Esperon. As tecnologias de comunicação e informação
na escola: relações possíveis... relações construídas. Revista Brasileira de
Educação, v.11, n. 31, jan./abr. 2006. Disponível em URL: <http://www.scie-
lo.br/pdf/rbedu/v11n31/a05v11n31.pdf>. Acesso em 01 de março de 2012.

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

pa r a p r o b l e m at i z a r m e ta n a r r at i va s :

lei 11.645/08 e identidades indígenas

Letícia Mossate Jobim


Daniela Farias Garcia de Borba
Luís Fernando Lazzarin

1 introdução

Este artigo é resultado de algumas reflexões e discussões geradas


durante o desenvolvimento de um projeto de extensão intitula-
do “Boas práticas docentes na elaboração de material didático para o
ensino de leitura” realizado pelo Núcleo de Estudos Linguísticos e
Literários (NELL), do Instituto Federal Farroupilha, campus São
Vicente do Sul. O projeto propôs um curso de formação conti-
nuada para professores da região, especialistas da área das Letras.
Dentre as diversas temáticas que envolvem essa questão tão cara
à escola, que é a leitura, surgiu como proposta dos professores
inscritos no curso, uma abordagem sobre a cultura indígena e
afro-brasileira em sala de aula, um ponto ainda inflamado dos
currículos na atualidade em função da Lei 11 645/081.

1. Esta lei tem a seguinte redação: “Art. 26-A. Nos estabelecimentos de ensi-
no fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigató-
rio o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”.

86
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Considerando que a leitura não acontece num espaço de-


terminado e circunscrito e não se restringe apenas a livros,
podendo ser realizada e significada em diferentes espaços e
através de diferentes ‘textos’, tais como imagens, sons, pesso-
as, mídia, entre outros, elaboramos uma proposta de estudo
que foi desenvolvida com o grupo de professores inscritos
no referido curso. Esta proposta teve como objetivo, esta-
belecer um diálogo acerca da referida lei e das possibilidades
de problematizar e questionar as metanarrativas que pro-
duzem uma identidade idealizada do índio2. Sabemos que
ainda hoje persistem muitos estereótipos a respeito do ‘ser
índio’, que o caracterizam ora como o ‘protetor da natureza’ e
que vive em plena harmonia com ela, ora como o ‘selvagem’,
ora como o ‘latifundiário’, como o ‘exótico’, o ‘curandeiro’,
o ‘não-‘civilizado’. Mas, quando nos deparamos com algum
indígena que não se encaixa em nenhuma destas representa-
ções, dizemos que este não é um índio ‘verdadeiro’.
Para alicerçar essa discussão, recorremos a pesquisas que
já apontam para a relevância e atualidade da temática. A par-
tir de pesquisas realizadas por Oliveira (2008) em livros e
revistas brasileiras que circularam a partir dos anos 80 até
o presente momento, a autora busca entender como certos
artefatos constroem as identidades de índios e índias. Obser-
va que sua imagem ainda está muito atrelada a “pureza” e à
“convivência harmoniosa” deles com o ambiente. Em algumas
revistas analisadas, um dos diversos discursos circulantes é o
dos índios latifundiários, identificando-os como sujeitos am-
plamente favorecidos, detentores de um território potencial-
mente rico em recursos naturais e minerais. De forma indire-
ta, é mostrado como um desperdiçador e como alguém que
contribui para a situação de injustiça social que a nação vive.

2. Como se esse pudesse ser tomado em sentido singular, masculino e único.

87
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

De acordo com Garcia Canclini (2008, p.309), “a globali-


zação, a reorganização dos cenários culturais e os cruzamen-
tos constantes das culturas e identidades exigem que inves-
tiguemos de outro modo as ordens que sistematizam as rela-
ções materiais e simbólicas entre os grupos”. Nesse sentido,
compreendemos que, para falar sobre ‘indígenas’ na escola
ou em qualquer outra instância pedagógica, é preciso que
consideremos que as culturas e as identidades não são fixas,
estando sempre em movimento e fluxo contínuo. Daí que
não é possível falarmos em ‘identidade indígena’, singular e
fixa, produzidas e mantidas pelas metanarrativas, mas sim
em produção de identidades indígenas múltiplas e híbridas
num espaço de negociação permanente.
Com o intuito de pensar sobre estas multiplicidades e
atualizar as possibilidades de leitura do cotidiano que nos
circunda, oferecemos aos professores participantes do curso
diferentes e possíveis leituras da temática indígena. Realiza-
mos a análise de diversos artefatos culturais (mídia, artes vi-
suais, músicas, imagens, livros didáticos), aqui tomados como
o resultado de um processo de construção social. Partimos
do entendimento que estes artefatos podem ser considerados
‘dispositivos pedagógicos’ que ensinam a olhar, a ler e a dizer
como somos e como são os outros. A partir das representa-
ções indígenas presentes nestes artefatos, problematizaram-se
e articularam-se conceitos sobre cultura e identidade.
Para dar conta de tal leitura, recorremos à perspectiva
teórica dos Estudos Culturais (EC). Na introdução ao livro
‘O que é afinal, Estudos Culturais?’, Silva (2002) aponta
que esse campo de estudos permite-nos tomar como objeto
“qualquer artefato que possa ser considerado cultural, sem
fazer distinção entre ‘alta’ e ‘baixa’ cultura: das exposições de
museu, passando pela literatura e pelo cinema e chegando

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

aos programas de televisão e à publicidade”. Nessa perspec-


tiva, a cultura é concebida como campo de luta em torno
da significação social, ou seja, “um campo de produção de
significados no qual os diferentes grupos sociais situados em
posições diferentes de poder, lutam pela imposição de seus
significados à sociedade mais ampla” (SILVA, 2002). Orienta-
dos por essa ótica, podemos afirmar que “todo conhecimento,
na medida em que se constitui num sistema de significação, é
cultural” (SILVA, 2009, p.135). Questionamos, então, a iden-
tidade idealizada do ‘índio’ como uma dentre outras iden-
tidades possíveis e significadas no interior de suas culturas.
Para tratar de identidades indígenas é necessário que
contestemos metanarrativas que, segundo Silva (1994,
p.256-257), servem para que certos grupos sociais impo-
nham seus significados e visões particulares, impedem a dis-
cussão aberta ao suprimirem perspectivas que lhes opõem e
dão conta de oferecer explicações para os multifacetados e
complexos processos sociais e identitários. Partimos, então,
desse ponto para desenvolver a proposta de estudos. No final
do texto, para somar e corroborar a relevância e atualidade
da discussão proposta ao evento do NELL, trazemos também
um relato de uma experiência apresentado por estudantes
do Instituto Federal Farroupilha durante um Seminário de
Educação Indígena, realizado num outro momento. Esse re-
lato reforça a urgência de se questionar metanarrativas que
produzem as identidades indígenas em tempos atuais.

2 c o n t e s ta n d o m e ta n a r r at i va s

Essa proposta de estudo foi desenvolvida no dia 30 de ju-


nho de 2011, em forma de debate, com duração de 2 horas,

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

contando com a participação de 18 professores especialistas


da área das letras, todos do município de São Francisco de
Assis – RS. Ação que fez parte, como já referido, do projeto
de extensão intitulado “Boas práticas docentes na elaboração de
material didático para o ensino de leitura” realizado pelo Nú-
cleo de Estudos Linguísticos e Literários (NELL), do Instituto
Federal Farroupilha, campus São Vicente do Sul.
No início da conversa, para estabelecermos os conceitos
que carregamos sobre a identidade indígena, seus modos de
ser e estar em nosso cotidiano, apresentamos o texto da Lei
11.645/08 e perguntamos como que cada um desenharia um
índio: a maioria confirmou que o desenhariam com uma tan-
ga, com arco e flecha, na mata, com pinturas pelo corpo, com
um cocar na cabeça, na oca, enfim, a carta de Caminha. Ou
seja, os (pré) conceitos postos na mesa. Com essa imagem na
mente, mostramos o vídeo da Xuxa, com a música Brincar de
índio, retirada do youtube3. Pensando no desenho, pergunta-
mos se havia semelhança entre essas imagens de índio que
descreveram e a que aparece no vídeo. Semelhança que não
puderam negar. Em seguida, ainda recorrendo à imagem do
índio em músicas, escutamos Baila Comigo da cantora Rita
Lee, também retirada do youtube4. Com isso, pode-se verifi-
car que a descrição do índio trazida nessa música também é
semelhante à representação que tínhamos ao projetarmos um
desenho imaginário e ao que vimos no vídeo infantil citado
(um índio ‘autêntico’, com cocar e flecha em meio à mata).
Nesse contexto proposto, problematizamos o quanto os vá-
rios artefatos culturais (ou dispositivos pedagógicos) que nos
circundam, tais como imagens, vídeos, músicas e diversos
discursos contribuem para legitimar uma imagem do índio

3. http://www.youtube.com/watch?v=2v5n7Q8oK0Q
4. http://www.youtube.com/watch?v=ag2Rz8lQvmo

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

ainda com referenciais dos séculos XV e XVI.


Descrevendo o que todos estes índios representados ti-
nham em comum, passamos a questionar a arbitrariedade na
determinação de uma essência da identidade indígena: ela
corresponde ao índio que vive na cidade, vendendo artesana-
to, ou que fica com seus filhos nas calçadas pedindo esmola?
O índio que anda de carro, assiste à televisão, que tem orkut
e msn, que fala no celular, que tem bigode... Quem é esse
índio? É índio de verdade ou já não é mais índio? Perdeu
sua essência? Está em extinção? Ao lançarmos estes questio-
namentos, assistimos ao documentário “Índios, quem são eles?”
da série Índios do Brasil5 (partes 1, 2 e 3).
Esse documentário ilustra um tempo de inúmeras trans-
formações do pensar e do viver da descendência indígena,
apresentando as articulações que costumamos estabelecer
com os índios e seus ‘lugares’. Segundo Bonin (2010), quan-
do os índios estão incorporados à natureza, aos espaços exó-
ticos, misteriosos ou folclóricos são desejáveis e precisam
ser ‘preservados e respeitados’. Fora desta condição, ou seja,
num contexto urbano, quando reivindicam seus direitos,
pleiteiam recursos públicos destinados à saúde, disputam
vagas no ensino superior e à educação, são vistos como em-
pecilhos, como ‘mercadorias desprovidas de atração’.
Em contrapartida, os próprios índios afirmam no docu-
mentário que esses lugares e representações que elegemos
para eles não cabem mais nesta realidade e não traduzem a
sua identidade. Isto mostra que para o estudo das culturas é
preciso que haja um movimento das margens para o centro,
de forma a desnaturalizar e desconsiderar a existência de um
único ponto central de referência para seu entendimento.

5. http://www.youtube.com/watch?v=VOLy04zEeK8

91
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

3 c o n c e p ç ã o d e c u lt u r a

Nesse ponto do encontro com o grupo, com essa quebra da


imagem romantizada do índio, essa ruptura do único, pudemos
por em jogo a relativização do conceito de cultura que deixa de
ser compreendida como o conjunto daquilo que foi produzido
de melhor – seja em termos artísticos, filosóficos, científicos,
literários. Problematizá-la não ia além da tentativa de identificar
os marcadores culturais que definiam e demarcavam em cada
grupo a “verdadeira”, a alta cultura. Para Veiga-Neto (2003),
este entendimento fez com que a cultura se tornasse um ele-
mento de diferenciação assimétrica justificando desta forma, a
dominação e a exploração, pois era entendida como única e
universal, sendo a Educação o caminho para atingi-la.
Tomamos aqui o conceito proposto por Hall (1997), ou
seja, cultura é o “sistema de significados que os seres huma-
nos utilizam para definir o que significam as coisas e para
codificar, organizar e regular sua conduta uns em relação aos
outros” (HALL, 1997, p.1). Falamos então em ‘culturas’. A
cultura passa a ser entendida como um conjunto de siste-
mas de significações que a linguagem e a representação pro-
duzem. Grupos em diferentes posições de poder disputam
pela imposição de seus significados e representações através
dos discursos circulantes no circuito da cultura: noticiário
de televisão, imagens, livro didáticos, músicas, etc. Estes cir-
cuitos culturais são considerados artefatos produtivos, pois
inventam sentidos que circulam e operam nas arenas cultu-
rais onde o significado é negociado e as hierarquias são es-
tabelecidas. Nesse sentido, também é relevante falarmos em
‘culturas dos povos indígenas’ e não só em ‘cultura do índio’.
Para dar continuidade à discussão, analisamos duas
imagens extraídas da internet: uma delas (Fig.1) retirada

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

do site da FUNAI6, noticiando índios isolados que foram


encontrados na fronteira do Brasil com o Peru em 2008. A
outra imagem foi de uma aldeia urbana em Curitiba7 (Fig.
2), criada para abrigar 35 famílias originárias do Paraná e
de Santa Catarina das etnias guarani, kaingang e xeta, que
viviam na periferia de Curitiba.
Na análise da primeira imagem, pudemos perceber que a
mídia reforça a ideia do lugar do índio e a ideia de que ainda
há índios originais, cuja essência ainda está pura (e que temos
o que comemorar no dia do índio quando colocamos cocar na ca-
beça das crianças e as munimos de arco e flecha8). Já a segunda,
não está correspondendo ao conceito que temos do lugar do
índio: casas de alvenaria, luz, conforto, organização, privaci-
dade, tecnologia, etc.

Figura 1: FUNAI fotografa índios isolados na fronteira do Brasil com o Peru


Fonte: http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/1_semestre_2008/maio/ima-
gens/indios_isolados003.jpg

6. http://www.funai.gov.br/ultimas/noticias/1_semestre_2008/maio/
un2008_012.html
7. http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/foto/0,,16087763-FMMP,00.jpg
8. Comentário dos professores.

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Figura 2: Aldeia indígena urbana tem 35 casas dispostas em volta de uma


praça (Foto: Divulgação/Prefeitura de Curitiba)
Fonte: http://g1.globo.com/Noticias/Brasil/foto/0,,16087763-FMMP,00.jpg

4 i m a g e n s d e a rt e

Após essa discussão, passamos para a observação dos dese-


nhos e pinturas de Debret9 e Rugendas10, artistas que retra-
taram em suas obras aspectos da natureza, do homem e da
sociedade brasileira no início do século XIX. Nos seus de-
senhos, enfatizam o que consideram os diferentes momen-
tos da marcha da civilização no Brasil: os indígenas e suas
relações com o homem branco, as atividades econômicas e
a presença marcante da mão de obra escrava e, por fim, as
instituições políticas e religiosas.
Ao mesmo tempo em que as observávamos, fomos con-
traponto as imagens desses artistas com outras de índios na
contemporaneidade: utilizando computadores, filmadoras,

9. Jean-Baptiste Debret (1768 – 1848). Artista francês que esteve no Brasil, no sé-
culo XIX, a serviço da Corte Portuguesa, integrando a Missão Artística Francesa.
10. Johann Moritz Rugendas (1802 – 1858). Artista alemão contratado como
desenhista da expedição científica do barão de Langsdorff, chegou ao
Brasil em 1821. Pintou e anotou aspectos de regiões brasileiras, suas paisa-
gens, costumes, tipos, indígenas.

94
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

índias vestidas com saias jogando futebol, entre outras. O ob-


jetivo era questionar algumas posturas naturalizantes sobre
estes. Verificamos que as características que representaram os
índios nos desenhos destes artistas, entre os anos de 1700 e
1800, ainda hoje são reproduzidas pelos diferentes circuitos
culturais, favorecendo a reprodução de ideias equivocadas
sobre estes, até mesmo no nosso desenho inicial.
Araújo (2010) destaca cinco ideias equivocadas sobre os
índios: a primeira delas é a do índio genérico, ou seja, pensar
que eles constituem um bloco único, com a mesma cultura,
compartilhando as mesmas crenças, a mesma língua. Hoje
vivem no Brasil mais de 220 etnias, falando 188 línguas di-
ferentes. Cada um desses povos têm sua forma de expressão,
sua religião, sua arte, sua ciência, sua dinâmica histórica pró-
pria, que são diferentes de um povo para outro.
Um segundo equívoco, é considerar as culturas indígenas
como atrasadas e primitivas, pois os povos indígenas produ-
zem saberes, ciências, arte refinada, literatura, poesia, música,
religião. Outro erro é considerar a cultura dos índios como
culturas congeladas. Muitas vezes se tem internalizada uma
imagem estereotipada do índio. Na cabeça de muitos, o “ín-
dio autêntico” é o índio de papel da carta de Caminha e não
aquele de carne e osso que convive conosco, e que está hoje
em nosso meio. O quarto equívoco é acreditar que os índios
fazem parte do passado. A ideia de que, ao assimilarem obje-
tos e costumes da nossa cultura, mudaram completamente e
já não são mais índios, reforça a convicção de que eles estão
se acabando. Apesar do extermínio de milhões de índios a
partir da chegada de Cabral, as mais de duzentas etnias que
sobreviveram passaram a crescer a uma taxa muito superior
a média nacional. Por último, um quinto equívoco seria a
ideia de que o brasileiro não é índio, ou seja, não considerar
a existência do índio na constituição da nossa identidade.

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Ainda segundo Araújo (2010), há 500 anos não existia no


planeta terra um povo com o nome de povo brasileiro. Esse povo
é novo e foi formado nos últimos cinco séculos, com a contribui-
ção, entre outras, de 3 grandes matrizes: a europeia (portugueses,
mas também espanhóis, italianos, alemães, poloneses, etc), a ma-
triz indígena e a africana. Como os europeus dominaram política
e militarmente os demais povos, a tendência do brasileiro, hoje,
é de se identificar apenas com o vencedor, ou seja, a matriz euro-
peia, ignorando as culturas africanas e indígenas.
Apresentamos algumas imagens dos artistas Debret e Ru-
gendas representando os indígenas a partir da apreciação das
imagens acima, discutimos a questão da territorialidade, da
disputa, dos limites da tolerância, entre outros. Conforme
coloca Bonin (2010):
ordenando o mundo, nomeando os outros, estruturando
hierarquias, construindo noções de espaço e tempo, opondo
um “dentro” e um “fora”, vamos produzindo certa ordem e
sentimo-nos um pouco mais confortáveis diante daquilo que
consideramos impróprio ou estranho. Índios na cidade, reivin-
dicando terras(..). O fato de vermos hoje estes sujeitos circulan-
do, morando, comercializando nas áreas urbanas, lembra-nos
de que nenhuma ordem é absoluta, tudo está inevitavelmente,
em disputa e em movimento. (BONIN, 2010, p.79)

Entende-se, desta forma, que devido às transformações


que vem ocorrendo num ritmo acelerado nas sociedades
contemporâneas, não é mais possível identificar de forma
clara, objetiva e estável as culturas e identidades, localizá-las
e representá-las com contornos e significações definidas. É
quase impossível servir-se de um mesmo conjunto de repre-
sentações que até então serviam de referência para explicar e
entender a realidade, o outro ou a nós mesmos. A incerteza
em caracterizar quem é ‘este ou aquele’ vem trazendo pro-
blemas novos, complexos e desconcertantes, tanto para as

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

escolas, como para o indivíduo e as coletividades. É impor-


tante estar atentos para a produção de novos sentidos e carto-
grafias que irrompem na atualidade, questionando conceitos,
categorias, territórios, bem como as próprias subjetividades,
colocando em prática o exercício do pensar.

5 d e b at e f i n a l

Atentos à produção de sentidos em que estamos imersos, al-


guns professores expressaram suas opiniões e percepções e
a discussão evoluiu para a questão racial e homofóbica. A
seguir, relatamos alguns desses comentários.
Uma professora que declarou sua descendência indígena
colocou que considerava a relevância de problematizar e des-
construir estas representações e estereótipos que foram cons-
truídos e ainda estão muito presentes. Mas que acreditava ser
necessário buscar suas raízes, até porque ela nunca soube nada
sobre sua história e, quando perguntava a seus pais, eles disfar-
çavam, trocavam de assunto e não falavam. Achava que era pelo
próprio preconceito que existia e a vergonha que tinham de se
expor. Mas, apesar disso, percebemos que, embora tenha pre-
senciado na sua própria família o preconceito, essa professora
posicionou-se contra as cotas, dizendo que estamos pagando
uma dívida que não é nossa, e que, se os negros lutam por igual-
dade, devem concorrer da mesma forma, pois têm as mesmas
capacidades. Ela argumentou com um exemplo de seu filho,
que fez o vestibular e foi muito bem, mas perdeu a vaga para
outro estudante declarado negro e que tinha ido muito pior.
Percebe-se que mesmo que a professora seja de origem
indígena e considere importante rever o lugar dos índios na
discussão de direitos sociais, ora seus sentimentos se mistu-
ram, ora se contradizem, deixando vir à tona a questão da

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

territorialidade e dos limites ‘concedidos’ ao ‘outro’. No mo-


mento que um indivíduo (neste caso o negro) sai do espaço
que lhe é demarcado, que ultrapassa a fronteira e invade o
que é o do ‘outro’, que passa a disputar uma vaga que não é
sua, o limite da tolerância acaba.
Segundo Bonin (2010, p. 80), “ao estabelecermos quem
somos, quem são nossos iguais e quem são os diferentes, gra-
famos nosso lugar e o dos outros em nossos mapas”. Mapas
que dão a localização exata de nossas certezas, as quais nos
faltam quando os lugares de diferentes sujeitos não estão de-
marcados, não nos passam as coordenadas para encontrá-los,
significá-los e traduzi-los. Sujeitos de linguagem que somos
precisamos de uma definição e de referenciais; precisamos
de coordenadas e mapas perfeitos, mesmo que imaginários,
assim como os ‘autênticos’ e ‘naturais’ indígenas.
Outra professora relatou que sua irmã, ao ir para o Ama-
zonas, esperava encontrar índios nus, pintados, usando cocar,
etc. Mas, ao chegar, percebeu que eles só caracterizavam-se
durante as feiras para vender seus artesanatos ou quando re-
cebiam turistas em suas aldeias. Após isso, eram “normais”,
usavam roupas, iam para lan house, assistiam à TV, etc. A
partir desse relato, discutimos sobre a utilização da cultura
como “espetacularização” das identidades culturais suposta-
mente essenciais e a conveniência dessa identidade cultural
para a circulação de bens materiais e roteiros turísticos.
Conforme Yúdice (2004), a cultura vem sendo invoca-
da para resolver problemas que antes eram de domínio da
economia e da política. Acredita-se que o investimento em
cultura fortalecerá a fibra da sociedade civil, servindo de hos-
pedeiro ideal para o desenvolvimento político e econômico.
Desta forma, ela vem sendo transformada em recurso. Isto
faz com que as representações e reivindicações de diferença
cultural sejam convenientes, na condição que elas multipli-

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

quem as mercadorias contribuindo para a melhoria sociopo-


lítica e econômica da sociedade.

6 pa r a a m p l i a r o s l u g a r e s d e d i s c u s s ã o

Consideramos relevante para exemplificar a importância e


atualidade de nossa discussão, a experiência em um outro
momento, durante participação em um Seminário Estadual
de Educação Indígena dos Institutos Federais do Rio Grande
do Sul, realizado no mês de novembro de 2011, na cidade de
Santa Maria/RS. Nessa oportunidade, um grupo de estudan-
tes relatou um trabalho desenvolvido em sala de aula. Este
trabalho consistiu em algumas visitas a uma aldeia indígena,
nas quais fizeram observações, tiraram fotos e fizeram en-
trevistas com os indígenas. As alunas expuseram seu roteiro
de observação e para uma entrevista semiestruturada com os
moradores da aldeia: do que se alimentavam, como se ves-
tiam, como dormiam, etc. Na sequência, relataram algumas
de suas observações:
“ Logo que chegamos vimos que havia uma fogueira e ficamos
com um pouco de medo...”
“Percebemos que eles comiam a mesma comida que nós....que
vestiam roupas ‘normais’...assim como nós...”
“...tinha umas índias jovens que também gostavam das músicas
do Luan Santana...”

Percebemos nesse ponto a resistência frente ao que não cor-


responde a uma metanarrativa aceita como natural ao lugar do
‘outro’, a qual diz quem é o ‘outro’ e qual lugar deve ocupar.
Após estes relatos observou-se o quanto as alunas ficaram per-
turbadas com a ‘normalidade’ encontrada na aldeia. Oliveira
(2008) trata dessa desacomodação como também produtoras

99
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

de identidades, as quais também são constituídas “a partir de


um ’estado de choque’, quando meu olhar normal é surpreen-
dido pelo corpo do ‘outro diferente’. É então que o “outro” que
surpreende e choca “precisa” ser nomeado, descrito, caracte-
rizado e aprisionado nesta imagem” (p.28). Assim, produz-se
uma ordem hierárquica que diferencia e distribui os sujeitos
em categorias distintas: normais e anormais, incluídos e exclu-
ídos, homem e mulher, etc. E é desta forma, também, diferen-
ciando a nossa cultura da dos outros, estabelecendo e marcan-
do diferenças, que se fabricam e se produzem as identidades.
Conforme Woodward (2006), a marcação das diferenças é o
componente chave em qualquer sistema de classificação.
Também a forma como as alunas tentaram traduzir seus
hábitos e costumes, formas de se vestir, habitar, se alimentar
como algo ‘normal’, deram visibilidade às relações de poder
que produzem e posicionam os indígenas. A maneira como
narraram suas observações, denominando e descrevendo-os
a partir de certos atributos e de determinadas maneiras,
pressupõe uma superioridade cultural em relação ao ‘outro’,
evidenciando o quanto se produzem categorias hierárquicas
distintas para os ‘não índios’.
Por fim, as estudantes enfatizaram em suas observações a
situação precária que viviam estes índios, o que foi mostrado
através dos registros fotográficos realizados por elas. Logo após
houve a manifestação de uma professora indígena presente,
que se posicionou fazendo um alerta sobre a necessidade de
desconstruir os estereótipos sobre o índio da ‘idade da pedra’,
que este não existe mais, pois, se o índio não acompanhar o
desenvolvimento, ele acaba. Disse ainda que os professores de-
vem ter o cuidado para não substituir a imagem deste índio (da
idade da pedra), pela imagem do índio ‘miserável’, como vem
sendo propagado. Finalizou sua fala dizendo: “­— Se precisarem
de alguma ajuda mande um email, não faça fumaça.”

100
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Esse relato exemplifica o processo dinâmico e complexo


das identidades que, segundo Hall (1996), não deve ser en-
tendida como a essência de um sujeito, como algo que ligue
o sujeito a si mesmo, mas como um conceito estratégico e
posicional, e que está em constante negociação.
Para ilustrar esta negociação é interessante observarmos
também, a forma como a educação escolar, bem como a lín-
gua portuguesa é vista hoje pelos indígenas, pois sabemos
através da história, que estas foram impostas e levadas à força
para dentro das tribos. Segundo reportagem da revista POLI11,
os movimentos indígenas não deixam de defender o apren-
dizado da língua materna, mas consideram essencial a lín-
gua portuguesa como segunda língua. O motivo para Torres
(2011), ao reproduzir a fala de Gersem Baniwa12, é para que
os índios garantam seus direitos, participando da construção
de políticas públicas e negociando conflitos:
queremos ensinar a língua do branco para dialogar, reivindicar
e assegurar nossos direitos junto aos dirigentes, sem interme-
diários que traduzam e decidam por nós. O domínio da língua
portuguesa é fundamental para manter uma relação direta com
os governos. Neste sentido, a escola é um instrumento de au-
tonomia, de emancipação. E, para isso, também é preciso ter
acesso ao conhecimento científico que a escola tradicional traz”.
(TORRES, 2011, p.14)

Evidencia-se nesta fala, a forma como acontecem as di-


nâmicas das relações de poder, pois aquilo que um dia foi
considerado instrumento de dominação e manipulação para
os povos indígenas, vem sendo reapropriado, transformado

11. In: TORRES, Raquel. Escola: autonomia e emancipação. Revista POLI:


Povos indígenas, saúde e educação. P. 12-17. Ano III. Nº 18- jul-ago,
2011. Bimestral.
Povos indígenas, saúde e educação: Ano III, nº18 jul./ago.2011.
12. Coordenador- geral da educação escolar indígena da Secretaria de Educa-
ção Continuada, Alfabetização, Diversidade e Inclusão (Secadi) do MEC.

101
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

e reinventado a seu favor. Verificamos, desta forma, o quanto


o poder deve ser considerado produtivo, e não somente re-
pressivo ou destrutivo. Conforme afirma Veiga- Neto (2004,
p.63), “ele inventa estratégias que o potencializam, ele engen-
dra saberes que o justificam e encobrem; ele nos desobriga da
violência e, assim, ele economiza os custos da dominação”.

7 conclusão

Ao promovermos o debate sobre as implicações da Lei


11.645/08, buscamos alavancar a discussão sobre pontos
conceituais em torno da cultura e da identidade cultural,
através de alguns artefatos de arte e midiáticos. Problemati-
zamos algumas questões importantes que devem ser levadas
em conta quando falamos em culturas indígenas: as reorga-
nizações dos cenários culturais e os cruzamentos constantes
das identidades que exigem outros modos de conceber as
culturas; a reelaboração de significados subsistentes de algu-
mas tradições que formam nossa rede de sentidos, entenden-
do, a partir das assimetrias e dinâmicas existentes nas cultu-
ras, que nenhuma ordem é absoluta; a compreensão de que
tanto as culturas quanto as identidades estão constantemente
em disputa, em negociação de significados e em movimento,
devido às tensões existentes entre desterritorialização e relo-
calizações das velhas e novas produções simbólicas.
Ao trazer o relato de estudantes no Seminário de Edu-
cação Indígena, nossa intenção foi defender esse espaço de
negociação entre a escola, as culturas e as subjetividades
envolvidas (professores e alunos) entendendo que quem
tem o poder de narrar pode determinar que posição o ou-
tro ocupa, embora essa relação não seja determinística mas
relativa e circunstancial.

102
Com esses espaços de discussão, percebemos o quanto es-
tamos atrelados a quadros de referências que instituem lugares
para “nós” e os “outros”, e quando esses lugares sociais que
pareciam naturais e incontestáveis se dissolvem, provocam-nos
estranhamento, desconforto, instabilidade e resistência.

referências
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tro olhar. Olinda, PE: Vídeo nas Aldeias, 2010.
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103
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

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104
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

os processos de

l e t r a m e n t o e m l í n g u a p o rt u g u e s a :

um estudo dos sentidos no proeja

Evanir Piccolo Carvalho

1 introdução

A educação profissional técnica na modalidade de educação


de jovens e adultos (PROEJA) busca a formação de sujeitos e,
numa perspectiva sociocultural, objetiva integrar e valorizar
saberes da população trabalhadora, promover a atualização
e contribuir para a formação profissional. Segundo o Docu-
mento Base PROEJA (BRASIL, 2007), constitui também uma
alternativa para possibilitar a inclusão social de jovens e adul-
tos como uma prioridade no sistema educacional brasileiro.
Os sujeitos do PROEJA caracterizam-se por retornarem
à escola, após um período considerável de afastamento e
trazem saberes advindos de experiências pessoais e profis-
sionais, mas o tempo é outro: o tempo das transformações,
da velocidade, do descartável, de tensões e contradições e
das tecnologias. É fundamental, portanto, garantir a esses su-
jeitos a identidade social e política, oferecer possibilidades

105
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

de atuar sobre a realidade e participar da história em que a


linguagem ocupa um papel importante, visto que os conheci-
mentos linguísticos e discursivos possibilitam a participação
dos sujeitos nas práticas sociais.
Os sujeitos de PROEJA contribuem com conhecimentos tra-
zidos das experiências, ressignificam seus saberes e, também,
promovem mudanças na escola, como espaço de saber. Em
vista disso, ensinar e aprender a Língua Portuguesa volta-se
para a valorização da especificidades dos sujeitos, seus saberes,
suas linguagens e das práticas sociais de uso da língua.
Ao contrário da perspectiva tradicional, as práticas linguís-
ticas destinadas ao PROEJA surgem da valorização dos conhe-
cimentos e aspirações desses sujeitos e visam à participação
ativa nas aprendizagens. Além disso, consideram-se as práti-
cas discursivas em contextos sociais determinados como base
para a integração de saberes curriculares aos dos educandos,
a fim de estabelecer significação entre as práticas escolares e
o mundo do aluno (KLEIMAN, 2010). No caso do PROEJA, a
formação profissional, as experiências de vida de alunos tra-
balhadores constituem a contextualização de saberes e, em
muitos casos, a razão maior do retorno ao meio escolar.
Justifica-se a importância de realizar esta investigação uma
vez que as probabilidades de êxito, na aprendizagem do adul-
to, podem ser maiores em virtude das amplas experiências
desses sujeitos em situações cotidianas e profissionais. Podem
ainda desenvolver diferentes habilidades e reflexões mais pro-
fundas sobre o conhecimento e sobre os processos de apren-
dizagem pelos quais passaram, constituindo a base para novas
aprendizagens e para ressignificar saberes no contexto escolar.
Nesta investigação, procura-se levantar, a partir dos olha-
res e dos discursos dos sujeitos de PROEJA, aspectos singula-
res e importantes para o grupo sobre os processos de constru-
ção dos letramentos em Língua Portuguesa, sobre os modos

106
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

e processos que utilizam para se apropriarem dos recursos da


leitura e da escrita. Parte-se do pressuposto de que o PROEJA
constroem seus conhecimentos de forma diferenciada e esta-
belecem mudanças, no meio escolar, em relação à percepção
das formas como o educando aprende. Essas mudanças pro-
movem ressignificação de práticas que se voltam ao grupo de
trabalhadores, inseridos em cursos técnicos, e que visam à
profissionalização e à formação para o exercício da cidadania.
Nesse contexto, os processos de letramentos em Língua
Portuguesa direcionam-se a uma perspectiva sociocultural do
trabalho com a linguagem. Ao se inserirem em um curso téc-
nico integrado, os sujeitos PROEJA inscrevem-se, também,
em novas manifestações de letramentos (CORREA, 2010) que
inclui considerar a existência de outras linguagens, outros sa-
beres, um processo que conduz à inserção em outra cultura.
Para Kleiman (2010), é um processo de aculturação e forma-
ção de novas identidades por meio da escrita e, no caso em
estudo, via atualização tecnológica por meio do curso técnico.
O trabalho linguístico, na perspectiva dos letramentos,
para Kleiman (2010) consiste em contribuir para que o aluno
aprofunde os conhecimentos já construídos sobre o funcio-
namento da escrita, considerando os elementos envolvidos
na produção de enunciados, tais como: situação sócio-his-
tórica e cultural, os objetivos, exigências sociais e os inter-
locutores. Essas interações são estabelecidas pela linguagem,
numa perspectiva enunciativa e dialógica (BAKHTIN, 2000,
2002) e, por essa razão, revela, os aspectos sociais e as espe-
cificidades do grupo, de sua linguagem e do contexto social.
Para as análises do tema, apresenta-se o estudo em cinco
partes. A primeira apresenta as ideias centrais da investiga-
ção. A segunda traz os aspectos teóricos que fundamentam a
concepção bakhtiniana de linguagem (bakhtin, 2000, 2002)
e Sobral (2009), enfatizando a perspectiva dialógica dos dis-

107
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

cursos sobre os processos de letramentos. A terceira apresenta


a descrição dos procedimentos metodológicos e dos sujeitos
participantes da pesquisa. A quarta parte contém as análises
com Bakhtin (2000, 2002), Bohn (2003), Street (2006), Klei-
man, (2010), Ribeiro (2005), Dionísio (2007), Sobral (2009)
e contém a categorização das marcas linguísticas e represen-
tações dos sujeitos sobre os processos de letramentos em lín-
gua materna enunciados numa narrativa escrita e entrevistas
e individuais (BAUER; GASKELL, 2002) as quais compõem o
corpus deste trabalho. Na parte final, estão as considerações,
bem como as sínteses das análises das entrevistas e as possí-
veis implicações pedagógicas para os envolvidos na constru-
ção do saber linguístico de alunos do PROEJA.

2 algumas concepções: linguagem,


l e i t u r a e e s c r i ta

Os sujeitos interagem por meio da linguagem constituída


por enunciados os quais integram e, ao mesmo tempo, reve-
lam aspectos dos componentes histórico-sociais e culturais
(bakhtin, 2002). Por essa razão, os enunciados não podem
ser compreendidos fora do contexto social. Isso implica con-
siderar que os processos de leitura e de escrita, como cons-
truções sociais, devem considerar a materialidade da lingua-
gem traduzida em gêneros do discurso e, por essa razão não
podem ser compreendidos fora do contexto social, e que po-
dem situar os discursos e recuperar a situação de produção e
interpretação (ROJO, 2010).
Para Bakhtin (2002), cada gênero constitui-se pelo siste-
ma da língua, mas também pelo enunciado que é individual e
está relacionado com aspectos histórico-sociais. Dessa forma,
o enunciado carrega consigo marcas das identidades dos su-

108
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

jeitos e sentidos construídos historicamente. Assim, ao anali-


sarmos os enunciados dos sujeitos de PROEJA, por exemplo,
trazemos os sentidos sobre a leitura e a escrita, construída
pelos sujeitos nos contextos sociais.
A linguagem não é imutável, constrói-se na ação por pro-
cessos interativos. Por isso para Bakhtin (2002), a língua não
pode ser percebida apenas como um conjunto de signos e suas
regras de combinação. O significado é uma possibilidade entre
outras tantas determinadas pelos contextos reais de uso por
sujeitos, social e historicamente localizados. Os usos produ-
zem sentidos que diferenciam a língua de seu modelo teórico.
Os enunciados dizem, efetivamente, isto é, estabele-
cem relações dialógicas com outros enunciados (BAKHTIN/
VOLOCHINOV, 2002). Constituem respostas a outros enun-
ciados, a partir das avaliações que o sujeito faz dos diálogos es-
tabelecidos com outros, das referências axiológicas construídas
no processo histórico-social. Assim, por meio de seus valores,
os sujeitos avaliam suas propostas e esse processo corresponde
ao que Bakhtin (2002) chamou de terceiro do diálogo.
A linguagem materializa-se, mas por meio de gêneros
orais e escritos, que encontram sentido e constroem signi-
ficados na interação social com os interlocutores. Isso quer
dizer que as produções linguísticas isoladas, descontextuali-
zadas, nada significam. Para Rojo (2010), a importância da
contextualização dos enunciados reside em poder situar os
discursos e recuperar a situação de produção e interpretação.
Ao produzir textos, os sujeitos não os criam aleatoriamente,
mas sob as implicações envolvidas, como o contexto, os in-
terlocutores, os objetivos e as formas de publicação.
As diversidades apresentadas pelo mundo contemporâ-
neo ampliam e propõem a circulação de novos textos, con-
sequentemente, intensificam-se as práticas que envolvem a
leitura e a escrita. Essa realidade impõe aos sujeitos a eleva-

109
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

ção dos níveis de letramentos, a apropriação dos conheci-


mentos para lidar com os gêneros diferenciados que circulam
socialmente. Nesse sentido, também se impõem à escola a
ampliação e democratização de práticas, conforme as exigên-
cias desses múltiplos contextos sociais.
Por outro lado, a leitura e a escrita são processos que ca-
minham, concomitantemente, no meio escolar onde a alfabe-
tização é um componente importante da escolarização inicial,
pois conduz à aquisição da tecnologia da escrita, porém, se-
gundo Soares (2009), não precede nem é pré-requisito para
o letramento. Kleiman (2010), concordando com essa pers-
pectiva, afirma os letramentos se opõem à visão funcional e
instrumental da escrita, centrada em capacidades individu-
ais. Ao contrário, a perspectiva sociocultural dos letramen-
tos pressupõe uma experiência social, a interação com ou-
tros sujeitos, a apropriação da leitura e da escrita, ou seja, ao
uso competente da linguagem qualquer que seja a forma de
enunciação (BAKHTIN, 2002).
As práticas com a linguagem, na perspectiva sociocultural
dos letramentos, estão intrinsecamente ligadas às histórias de
vida dos sujeitos. Conforme Vóvio (2005), as configurações
dessas práticas dependem dos papéis desempenhados pelos
sujeitos, objetivos de uso da linguagem e suas formas de in-
teração nos contextos sociais.
Em relação ao grupo de PROEJA, busca-se estudar como
ocorrem os processos de letramentos para os sujeitos, uma
vez que estão e estiveram inseridos, em amplos processos de
letramentos que se revelam, em muitos casos, processos difí-
ceis, desenvolvidos pela escola e pelas experiências extraesco-
lares, e todas trazem contribuições e desafios para os sujeitos.
Assim, para abarcar a complexidade e amplitude dos pro-
cessos, há que se considerar que os letramentos não se res-
tringem às práticas escolares, mas tudo aquilo que envolve

110
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

os contextos sociais atuais e pregressos dos sujeitos. Consti-


tuem os diversos saberes, advindos desses vários contextos
que se fundem em práticas de letramento.
Para Vóvio (2010), a escrita e a leitura que, na visão tra-
dicional, significam progresso social e desenvolvimento cog-
nitivo pela aquisição de conhecimentos. adaptados às neces-
sidades da sociedade moderna. A escrita é entendida pela
cultura dominante como normalização, um ato que se realiza
de modo invariável para os sujeitos e independente do con-
texto social. Essa forma não estimula a reflexão e conduz à
passividade. Também são ideias correntes a falta e a precarie-
dade de leitura por parte dos alunos e a “leitura mitificada e
redentora”, capaz de resolver as questões de aprendizagem
da língua (VÓVIO, 2010, p.407). Esse contexto acaba por
justificar processos de dominação e assimilação de culturas.
Em oposição, a essa postura, os estudos sob o enfoque so-
ciocultural dos letramentos destacam o caráter transformador
das práticas de escrita. Escrever e também ler e não ocorrem
individualmente pelo domínio do código, mas pelo envolvi-
mento dos sujeitos em práticas diversificadas, situadas em con-
textos específicos e, profundamente, ligadas à vida dos sujeitos
que atuam em eventos mediados pela escrita, descobrindo os
vários aspectos envolvidos nesse processo, como interlocutores,
situação, adequação da linguagem a cada contexto, etc.
Constitui objetivo da escola desenvolver processos de lei-
tura e escrita, de modo que os sujeitos se constituam como
sujeitos letrados. Para a consecução desse objetivo é necessário
mais que decodificar signos, é preciso compreender a funcio-
nalidade da escrita, para promover letramentos e possibilitar
a participação dos sujeitos de forma significativa na sociedade.
Dados do Indicador de Alfabetismo Funcional 2009
(INAF) revelam que a escola brasileira, trabalha lentamen-
te na superação dos problemas relativos à promoção dos le-

111
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

tramentos. Conforme Rojo (2009), esse quadro se explica,


porque a escola inverte o foco de seu trabalho, ao enfatizar
o ensino de padrões linguísticos em vez do uso, da interpre-
tação crítica e o protagonismo.
A concepção tradicional de ensino de língua revela-se insu-
ficiente para considerar aspectos importantes envolvidos nos
processos de leitura e escrita. A ineficácia dos resultados dessa
concepção revela-se pelo número de não-alfabetizados e de sujei-
tos que não fazem o uso da leitura e da escrita em situações con-
textuais. Além disso, muitas vezes, concepções mais tradicionais
de ensino conduzem à reprovação, sendo um dos pontos deter-
minantes da evasão escolar e do baixo nível letramento no Brasil.
O ensino da leitura e da escrita, com vistas à autonomia
dos sujeitos, na sociedade contemporânea, tem como base o
estímulo ao protagonismo, ao domínio de práticas sociais de
uso da língua, em diferentes gêneros do discurso, em cada
esfera de atividade (Bakhtin, 2000).
As práticas de letramento têm como suporte as produções
linguísticas dessas esferas sociais, produtoras de um inesgotável
repertório de gêneros, estilos, conteúdos, composição, funções
discursivo-ideológicas e concepções de autor e destinatário.
Nas esferas, as práticas sociais e, entre elas as escolares, são per-
passadas pelas questões ideológicas e disputas de poder. Para
que os sujeitos possam apropriar-se da teia de relações que
constitui o uso da língua e perceberem, também, as relações
de poder e questões ideológicas envolvidas, o trabalho com a
língua parte da realidade que emerge das práticas sociais.
Assim, as propostas de trabalho para o grupo de PROEJA
com o objetivo de ampliar os letramentos envolvem refle-
xão, o protagonismo e inserção efetiva em práticas situadas
(BARTLETT, 2007), cuja base está nas necessidades reais dos
sujeitos. No caso dos sujeitos do PROEJA, a práticas sociais
a serem consideradas têm relação com atuação profissional

112
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

dos grupos e aquelas ligadas ao curso técnico. Essas estariam


relacionadas ao contexto imediato, constituiriam os vínculos
para o ensino da língua inserido em práticas sociais.
O processo de leitura, nessa visão, não se restringe à deco-
dificação, à abstração de informações contidas em um texto,
consiste em formar leitores críticos, capazes de compreen-
der as entrelinhas, ir além dos sentidos superficiais. Escrever,
também, não é apenas grafar, mas produzir significados, a
partir de efetivas inserções na atividade da escrita, confor-
me as necessidades, circunstâncias e objetivos exigidos pelos
contextos sociais dos sujeitos. Ler e escrever, na perspectiva
sociocultural dos letramentos, é estabelecer diálogos entre o
individual e o sociocultural pela materialidade discursiva a
qual evidencia singularidades dos sujeitos e a complexidade
da linguagem (BAKHTIN, 2000).
Formar sujeitos leitores e escritores é um dos desafios
colocados à escola na atualidade, porque nas práticas há
ainda uso da memorização, da reprodução de conhecimen-
tos e do texto como suporte das práticas com a linguagem.
Há, portanto, confusão na abordagem, e a escola usa o texto
como suporte para o ensino da gramática. Esse processo
produz o que Bohn (2003, p.50) chamou de aprisionamen-
to da palavra e “talvez esteja relacionado às abordagens de
ensinar, baseadas na interdição em vez da utilização de me-
todologias que privilegiam a dialogia, a interlocução, a ex-
pressão da subjetividade (...)”.
O trabalho, visando ao desenvolvimento da leitura e da
escrita, na abordagem sociocultural dos letramentos, volta-se
para as potencialidades dos sujeitos; não mais para a ausên-
cia como em outras perspectivas de ensino de língua, esti-
mula a participação pelo resgate do que é pertinente para os
sujeitos. Esse modelo rompe com modelos distanciados das
relações contextuais (LOPES, 2010).

113
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Para Bartlett (2007), a concepção sociocultural dos letra-


mentos parte da ideia de que letrar exige o fazer. Isso indica o
envolvimento contínuo dos sujeitos em processos de leitura
e escrita, compreensão dos sentidos das produções, e isso
exige tomada de decisões e posicionamentos de um sujeito
autônomo, para gerar condições para o acesso e apropriação
dos saberes relacionados à língua.
Nesse contexto, as práticas sociais mobilizam as atividades,
promovem uma aproximação entre escola e vida, já que mobi-
lizam eventos de leitura e de escrita, em contextos imediatos
(BARTLETT, 2007). Essa aproximação com as práticas sociais
traz significados importantes para os sujeitos, especialmente,
os da modalidade PROEJA, porque a inserção em práticas le-
tradas dá a eles oportunidades reais de uso da linguagem. Con-
sequentemente, as práticas geram um sentimento de pertença
pela apropriação de recursos discursivos e usos linguísticos,
como enfatiza Ribeiro (2005) em estudos sobre letramentos de
jovens de periferia urbana, em espaços não-escolares.
Tápias-Oliveira (2007) afirma que os letramentos estão re-
lacionados com identidade, por promoverem ressignificação
dos fatos, auxiliarem na forma de o sujeito elaborar repre-
sentações de si e do mundo, portanto, gera transformações.
Concordando com essa posição Bartlett (2007), expõe que
tornar letrado é, também, construir um processo identitário
que vai desde a representação de parecer ao sentir-se letrado
por meio do engajamento com elementos culturais.
Assim, um trabalho com a linguagem que considere a plu-
ralidade das práticas culturais socialmente representativas
(DIONÍSIO, 2007), em meio escolar, promove identificações e
envolve os alunos na construção de sentidos. Essa prática con-
duz ao desenvolvimento não apenas de habilidades linguísti-
cas, mas a compreensão de como essas práticas linguísticas
inserem-se, no mundo, para que os sujeitos possam participar

114
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

dele criticamente e engajar-se em atividades de uso da lingua-


gem, conforme as exigências do contexto sócio-histórico.
Esse processo não é construído pelo sujeito, indi-
vidualmente, mas na interação entre ele e o mundo
(VYGOTSKY, 2001). A apreensão desse mundo e as ações so-
bre ele ocorrem pela mediação do discurso, pela formação
de ideias e pensamentos. Para Vygotsky (2001), há uma rela-
ção muito estreita entre pensamento e linguagem, pois é, por
meio dela, que se desenvolve o pensamento e passa a ocorrer
a mediação sujeitos e as interações entre os sujeitos. Daí a
importância atribuída à linguagem, pois ela desencadeia o
desenvolvimento cognitivo e social.
A aprendizagem, nesse contexto, tem natureza sociointe-
racional; exige, portanto, a participação de outros sujeitos. É
um processo gradual e contínuo em que os sujeitos se apro-
priam dos conhecimentos pela ação entre pares que atuam,
na Zona de Desenvolvimento Proximal (doravante ZDP) de
que fala Vygotsky (2008).
A ZDP representa a distância entre o nível de desenvolvi-
mento real, conhecimentos já construídos por ação individual,
e o nível de desenvolvimento potencial, quando há a resolução de
um problema sob a orientação de um sujeito mais experiente.
Esse espaço de aprendizagem é mediado pela linguagem. Esse
desenvolvimento ocorre em processo contínuo, conforme as
experiências do sujeito e as relações dialéticas estabelecidas,
é constante e gera aprendizagens sempre mais elaboradas,
tendo em vista que as potencialidades humanas são infinitas.
Esse contexto remete à realidade dos sujeitos de PROEJA
os quais contam com os saberes trazidos da experiência para
compor seus processos de aprendizagens. Esses processos de
construção dos conhecimentos estão, intimamente, relacio-
nados às práticas sociais que são fundamentais para estabele-
cer associações com as práticas situadas de letramento.

115
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Usar a língua com propriedade e autonomia conduz a um


processo que consiste em o sujeito apreender os aspectos en-
volvidos no uso da língua como produtora de sentido. Exige
conhecer as diferentes opções, a escolha da melhor forma de
expressar-se, considerando o contexto, os contratos sociais evi-
dentes ou implícitos, os interlocutores e recursos expressivos
da linguagem, de acordo com os contextos sociais e as tecno-
logias, envolvida nos processos de comunicação oral e escrita.
Os estudos dos letramentos não se limitam apenas à aqui-
sição de habilidades; referem-se também à apropriação da
leitura e da escrita para serem utilizadas em práticas sociais
específicas, conforme Street (2003). Além disso, essa con-
cepção impõe o reconhecimento de múltiplos letramentos,
que variam de acordo com as esferas, o tempo e o espaço,
bem como as estruturas de poder.

3 metodologia

A pesquisa está ancorada no enfoque qualitativo de investiga-


ção e busca investigar como alunos de um curso técnico da
modalidade PROEJA, do Instituto Federal Farroupilha – Cam-
pus de São Vicente do Sul, Rio Grande do Sul, constroem o
conhecimento em Língua Portuguesa, especialmente, em lei-
tura e escrita, visto que compreender como aprendem e o que
aprendem é fundamental para a promoção dos letramentos
desses sujeitos, para que ampliem “a competência enunciativa
para participar da vida profissional” (BOHN1, 2011), na socie-
dade que produz desafios e transforma-se continuamente.
A abordagem qualitativa de investigação define a metodo-
logia de pesquisa cujos dados originam-se de dez textos escri-

1. BOHN, H. Comunicação pessoal em 30 de dezembro de 2011.

116
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

tos a partir de tópicos-guias e de cinco entrevistas individuais


gravadas com sujeitos voluntários (BAUER; GASKELL, 2002).
Esses dados constituem o corpus da investigação e fornecem
subsídios para o estudo dos processos utilizados pelos sujeitos,
na construção de seus letramentos. Para tanto, participaram da
pesquisa dez sujeitos de uma turma de um curso técnico, na
modalidade PROEJA, identificados aqui com nomes fictícios.
Os métodos utilizados dão maior profundidade aos dados
e possibilitam o cruzamento de informações e a análise mais
abrangente, pois as entrevistas representam diálogos entre o
individual e o sociocultural e, pela materialidade discursiva,
fazem emergir aspectos dos processos de construção dos co-
nhecimentos linguísticos realizados pelos sujeitos em suas
histórias de vida, suas singularidades e a complexidade desses
processos (BAKHTIN, 2000). Além disso, é pelos dados que
se analisam e interpretam os discursos proferidos pelo grupo.
As representações, as análises sobre os processos de letra-
mentos em LP e sobre as práticas sob o olhar dos sujeitos do
PROEJA, possibilitam fazer reflexões teórico-metodológicas,
a partir das marcas linguísticas. Essas permitem discutir as
concepções que subjazem as noções de leitura e escrita, as
relações com as situações vividas pelos sujeitos em diversos
contextos. Além disso, pela linguagem revelam-se partes sig-
nificativas dos processos de letramentos construídos pelos
sujeitos nos percursos escolares, em experiências extraesco-
lares e na atuação profissional.
A pesquisa tem como base teórica relacionada à lingua-
gem e ao discurso autores como Bakhtin (2000, 2002), So-
bral (2009), Bohn (2003), Freire (2011) e busca a identifi-
cação de representações e conceitos que norteiam a constru-
ção dos conhecimentos relacionados à LP para os alunos de
PROEJA. Em relação à teoria sociocultural dos letramentos, a
investigação apoia-se em Kleiman (2010, 2008, 2005), Rojo

117
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

(2010), Soares (2009), Street (2006,1995). A partir dos da-


dos, realiza-se a descrição, análise e interpretação das entre-
vistas narrativas (SOBRAL, 2009). A interpretação realiza-se
a partir das marcas linguísticas e representações dos sujeitos
sobre o próprio processo de aprendizagem da língua a partir
dos saberes trazidos das experiências.

4 os processos de letramento do
proeja e os sentidos

As informações expressas nas narrativas representam diálogos


entre o individual e o sociocultural e materialidade discursi-
va faz emergir alguns aspectos dos processos de letramentos
realizados pelos sujeitos durante as trajetórias de vida nos
contextos sociais. Esses processos traduzem as singulari-
dades e as identidades desses sujeitos e também os modos
como se constituíram em seus letramentos (BAKHTIN, 2000).
Além disso, sujeito, linguagem e conhecimento interligam-se
e, por meio da própria linguagem, revelam-se interpretações sub-
jetivas das relações dos sujeitos com os contextos sociais. Nesse
contexto, a linguagem compõe as identidades dos sujeitos, visto
que os traços discursivos os singularizam e constituem marcas de
pertencimento a determinados grupos sociais (BAUMAN, 2005).
O texto organiza-se, a partir deste ponto, na categorização
das marcas do processo de letramento dos sujeitos, abordan-
do as significações da leitura e escrita, dificuldades, as me-
diações, a profissionalização. Para isso utiliza-se a proposta
metodológica de Sobral (2009). Inicialmente, propõem-se as
análises e interpretações dos significados, conforme Bakhtin
(2000, 2002), Bohn (2003), Sobral (2009) e Hall (2011).

118
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

4.1 Os sentidos da leitura

Ler é um processo complexo em que estão envolvidos vá-


rios procedimentos e capacidades estudadas durante longos
períodos até culminar na perspectiva sociocultural dos letra-
mentos (ROJO, 2009). Envolve, portanto, a mobilização de
capacidades perceptuais e motoras e, também, as capacida-
des cognitivas e linguístico-discursivas relacionadas à situa-
ção e finalidades da leitura.
A decodificação é um processo básico e envolve o domí-
nio e a compreensão dos sistemas de convenção gráfica e suas
relações entre letras e fonemas, decodificação de palavras e
textos escritos, de modo a desenvolver a fluência e rapidez
da leitura. Mais complexa é a compreensão que envolve a
ativação de conhecimentos prévios do mundo do leitor, an-
tecipação ou predição de conteúdos ou propriedades, verifi-
cação de hipóteses, localização e comparação de informações,
elaboração de generalizações e produção de inferências.
Os letramentos integram os processos anteriormente
mencionados, mas vai além das habilidades individuais,
envolve ação, fazer, integrar-se em práticas sociais de leitu-
ra e escrita inseridas nos contextos sociais diversos (ROJO,
2009). Devido a essa indissociação do contexto social, Street
(1995) destaca o enfoque ideológico de letramento, relacio-
nado com as estruturas culturais e de poder da sociedade.
Essa versão aproxima-se da versão forte de letramento des-
crita por Soares (2009) e das ideias de Freire (2011) sobre
alfabetização e leitura que buscam desenvolver a criticidade
e a autonomia dos sujeitos.
Conforme Rojo (2009) a escola não acompanhou a evolu-
ção dos estudos dos processos de leitura e ainda realiza prá-
ticas tradicionais. As representações de leitura e escrita des-
critas pelos sujeitos revelam um pouco do universo escolar.

119
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

O estudo das narrativas dos sujeitos do PROEJA aponta


para representações positivas da leitura e dos primeiros anos
de escolarização, como enfatiza Ana: “Lembro como se fosse
hoje o dia em que comecei a ler, cheguei em casa e fui ler para a
minha mãe, daí em diante tudo que enxergava queria ler”.
A leitura, no trecho acima, apresenta-se como prática so-
cial significativa para o sujeito, porque constitui parte de sua
memória ressignificada (BRAGA, 2000), por ter promovido a
inserção na cultura letrada. Isso também é reiterado no trecho:
“Mas o que sei é que saber ler conhecer as palavras é um bem “rico” e
precioso independente se ocorre alguns erros de português” (Sandra).
A leitura como “bem rico e precioso” revela a importância na
vida desse sujeito, representando como compreende o conhe-
cimento construído, a partir de um ponto de vista particular.
Neste contexto, a linguagem, não apenas relata, mas constitui
os fatos, ela traz as significações axiológicas à superfície pelo
discurso do sujeito (BAKHTIN, 2000). Assim, ler e escrever
são valores socialmente construídos pelo sujeito, e a lingua-
gem atua, nesse contexto, como forma de garantir a memória
de um fato social, o processo de letramento (GOULART, 2006).
As representações de leitura são positivas, mas a escola,
neste depoimento, aparece como instituição que impõe a
prática; não mobiliza ações:
Aprendi a gostar de leitura quando me preparei para o exame de
admissão ginasial. Foi nesta época que comecei a despertar a gostar
de ler e escrever, e sempre fiz grandes investimentos em livros. Mas
mesmo assim ainda me perco nos objetos direto e indireto... (Paula)

A palavra “Despertar” é significativa no contexto, deriva


de uma vontade do próprio sujeito o qual diz ter aprendido a
gostar pela prática espontânea da leitura. No entanto a escola,
em sentido contrário, exige conhecimentos dissociados do
contexto “objetos direto e indireto”, afastando-se das práticas

120
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

linguísticas fortemente vinculadas às situações de uso e aos


contextos reais (Freire, 2011).
Rita, em seu depoimento, expõe o aspecto lúdico e envol-
vente da leitura: “acho que é tão bom ler [...] quando a gente des-
cobre é outro mundo te dá, sei lá... tu viaja sem sair do lugar [...] A
partir dos 19 anos, mais ou menos, foi que comecei a me interessar
pela leitura”. Em outro trecho, revela: “Não gostava muito de
português. Objeto direto, indireto... só consegui entender um pou-
co [...]”. Isso nos mostra a dissociação existente entre leitura,
escrita e aspectos formais no ensino da Língua Portuguesa.
No entanto, algumas significações sobre a leitura apare-
cem ligadas a uma certa dificuldade que, também, servem
como desafio, como se observa no trecho:
No colégio quanto maior a dificuldade, mais fascínio me trazia por
conseguir fazer ou escrever as sílabas ou palavras complexas [...] no
fim das questões eu terminava por desvendar e pronunciar corre-
tamente o que me dava uma imensa sensação de satisfação por ter
superado “aquela” palavra (Vera).

A dificuldade é apontada pelo sujeito como elemento que,


ao mesmo tempo, gera desconforto e mobiliza o comple-
xo processo de aprendizagem para, no final das atividades,
“desvendar” um processo que parecia estar sendo construído
por meio da realização das atividades. Aqui se pode analisar
o processo de leitura e da escrita, indicando envolvimento
do sujeito na ação de conhecer a mecânica da escrita (Rojo,
2009) a qual envolve despertar a consciência fonológica, isto
é conhecer as relações entre fonemas e grafemas, a descober-
ta dos significados do letramento, conforme enfatiza depoi-
mento de Vera: “[...] eu não sei; mas as palavras para mim são
o que de bom ... e valioso bem que possuímos [...]”.
O trecho: “Meus pais são semianalfabetos e sei como sempre
foi difícil para eles, se virar nesse mundo assim, por isso me sinto

121
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

privilegiada por saber ler e escrever mesmo com algumas dificul-


dades” (Sandra) evidencia dois aspectos: um ligado à leitura
“como um privilégio” e outro a “dificuldade” enfrentada nas
práticas escolares. Em relação às dificuldades.
Ao enfatizar o “privilégio” obtido, pode-se dizer que ele
traduz uma situação social desvantajosa e ausência de garan-
tias de direito ao letramento. A linguagem, nessa situação,
mostra-se como portadora dos significados de mudanças so-
ciais por que passam os sujeitos (Bakhtin, 2002). Assim, a
palavra “privilégio remete a algo que está situado no exterior,
a situação social que desfavorecia os letramentos.
A leitura surge também por iniciativa do sujeito, normal-
mente, ocorre como forma de lazer e iniciativa do próprio
sujeito, não objetiva, nesse contexto, aprofundar conheci-
mentos. Essa leitura tem pouca relação com a escola, é expe-
riência extraescolar especialmente, nos níveis mais elevados
da escolarização, quando os discursos destacam, predomi-
nantemente, as referências às atividades gramaticais.
Em “Hoje em dia gosto muito de ler, às vezes fico prestando aten-
ção de como as pessoas falam” (Rita), há uma síntese de parte do
processo utilizado pelo sujeito para construir o conhecimen-
to linguístico pela interação com outros sujeitos e pela relação
dialógica que estabelece entre o que já conhece e as formas de
enunciar produzidas pelo outro (Bakhtin, 2002), evidencia-
das em “fico prestando atenção de como as pessoas falam”.
As práticas de leitura, em meio escolar, quando mencio-
nadas afastam-se daquilo que condiz com a perspectiva so-
ciocultural dos letramentos, como no trecho: “A professora
que gostava de pedir para a turma que lesse um livro e depois
contasse na aula [...] eu odiava aquilo, não que eu não gostasse
de ler, mas sou tímido [...] (Jorge)”.
Esse enunciado evidencia a prática da leitura de texto li-
terário, pelo que se conhece das práticas propostas no con-

122
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

texto escolar, “contar o livro” remete à atividade de exposição


oral, um resumo da obra. Isso constitui uma inadequação, na
percepção do sujeito, por não considerar sua característica.
Além disso, essa prática não parece tão significativa ao ponto
de promover o envolvimento do sujeito, resultando na rejei-
ção do sujeito àquela proposta.
Rita revela uma dificuldade de outra ordem, ligada à in-
terpretação de texto corrente nas aulas de Língua Portugue-
sa: “[...] minha dificuldade antes era a interpretação de texto, as
respostas que eu dava lá, quando eu era jovem, nunca batia com
o que o professor queria, mas agora sei lá eu tenho uma interpre-
tação diferente, agora eu leio, antes eu não lia” (Rita).
O sujeito revela um descompasso entre o que o professor
“desejava” e a interpretação que conseguia. Implicitamente,
assume a dificuldade como sua e a solução encontrada pelo
próprio sujeito é a prática mais intensa da leitura. Isso se
evidencia pelo contraponto de sentidos: “antes era” e “agora”.
A leitura é mostrada, nesse trecho, como redentora, isto é,
somente pelo uso desse recurso os problemas do sujeito com
a linguagem seriam eliminados.
Em relação à leitura, há uma representação positiva em “a
partir dos 19 anos, mais ou menos, foi que comecei a me interessar
pela leitura. Lia e viajava com as leituras” (Rita). A atividade de lei-
tura realizada pelo sujeito relaciona-se à fruição, ao divertimento;
não objetiva, portanto, o aprofundamento de estudo ou a busca
de um saber específico pela leitura formativa (KLEIMAN, 2008).
A leitura e a escrita são apresentadas por Pedro como prá-
ticas sociais situadas, no trecho: “[…] uma professora da 4ª
série chamada [...], lembro-me que nós escrevíamos carta para
ela e enviava pelos correios [...] era uma forma que ela achou de
nós aprendermos ainda mais a ler e escrever”.
A prática de leitura e escrita descrita tem como foco tem o
contexto social com o qual o sujeito estabelece relações naturais,

123
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

constitui um exemplo de prática social estruturante do currícu-


lo escolar, orientadora do planejamento das aulas (KLEIMAN,
2010). Isso constitui uma exceção, no meio escolar onde há
dificuldade em programar práticas socioculturais de linguagem,
devido à concepções tradicionais que permeiam o ensino e tra-
tam a língua como um conhecimento a ser estudado de modo
dissociado da significação e do uso nos contextos sociais.
O estímulo ao protagonismo dos sujeitos e sua inserção
em práticas socioculturais promovem a representação positi-
va da leitura e induz à ação, ao fazer (BARTLETT, 2007). Tal
perspectiva evidencia-se no depoimento de Ana: ”Participava
de várias coisas, peças de teatrais, inclusive na 3º série participei
de um concurso a onde escrevi uma redação e na qual tirei a 1º
lugar para mim e meus pais foi um orgulho”.
Essa participação significativa no evento de letramento,
como se percebe, trouxe para o sujeito um sentido de pertenci-
mento ao mundo letrado, isto é, a participação em eventos de
letramento constrói significações psicológicas, sociolinguísticas
e culturais para os sujeitos envolvidos. Essas são determinantes
nas relações que eles estabelecem com a língua e a escola.
O enunciado em que Jorge expõe: “gostava de brincar que
sabia ler, ficava imaginando de como as figuras de gibi representa-
vam as letras”. Ele descreve como se deu o início do processo
de letramento. O sujeito ao “brincar que sabia ler”, segundo
Bartlett (2007), simula parecer letrado, ao imaginar os signi-
ficados para cada cena de artefato cultural denominado gibi.
Isso significa conhecer a função do objeto cultural e com-
preender o sentido de um texto ou de qualquer outro produ-
to cultural escrito, numa determinada situação.

124
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

4.2 Os sentidos da escrita

A memória dos primeiros processos de escrita evidencia de-


talhes de uma fase que é relatada como algo positivo e emo-
cionante, como relata Jorge: “Lembro-me até hoje a emoção de
formar a primeira palavra, a primeira frase”.
As narrativas relatam detalhes do processo de alfabeti-
zação que ocorreu, em curso regular, portanto na infância
e, sendo assim, evidenciam as metodologias e processos de
ensino da época. O início do processo de letramento dos su-
jeitos se dá forma descontextualizada, em processo linear e
gradual, como o descrito por Rojo (2009, p. 76):
envolvia discriminação perceptual, memória dos grafemas e
outras percepções dos sons da fala. Uma vez construídas essas
associações, uma vez alfabetizado, o indivíduo poderia chegar
da letra à sílaba e à palavra, e delas, à frase, ao período, ao pa-
rágrafo e ao texto”.

Essa visão associacionista de alfabetização é evidenciada


nos depoimentos de Jorge e Paula, respectivamente: “[...]
ensinavam sempre associando as palavras a alguma coisa, por
exemplo, b de bola, c de casa, d de dado […] e “Que bom quando
aprendi as vogais, a soletração de cada uma delas – depois a jun-
ção do a+o = ao”...]. evidencia-se,
A memória registra um dos métodos adotados pela ins-
tituição escolar e utilizados pelo sujeito para incorporar a
forma da linguagem. Esse método, segundo Rojo (2009),
consiste em associar um desenho a um som, após o aluno
ter desenvolvido as habilidade de visual, auditiva e motora.
Isso se estende ao níveis mais avançados onde há a reite-
ração da preocupação com a forma, a codificação Nos enun-
ciados de dois sujeitos: “sempre tive dificuldade entre o S e Z
confundo os dois [...] verbos, ah nunca entendi muito bem os pre-

125
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

téritos perfeitos e etc.” (Sandra) e “E o que eu nunca vou esquecer


mesmo é que antes de P e B se usa M” (Camila).
Embora a forma seja relevante na constituição dos letra-
mentos, ela não representa preocupação maior no uso de
uma língua. Assim, uma possível explicação para a ênfase
dada à grafia esteja na valorização excessiva atribuída pela
escola aos aspectos normativos, no ensino da Língua Portu-
guesa, em detrimento da construção dos sentidos nos textos
orais e escritos produzidos pelos sujeitos.
A produção textual raramente é mencionada e, quando
descrita, vincula-se à esfera escolar como “redação”, ativida-
de de escrita desvinculada dos contextos sociais, da noção
de gêneros discursivos e de interlocutores reais. Essa produ-
ção é direcionada ao professor e o objetivo, nesse contexto,
tradicionalmente, é avaliar o desempenho do aluno, em as-
pectos superficiais do texto.
A competência da escrita resulta do aprimoramento de
um processo interativo, significativo na atuação social dos
sujeitos, vai além das propostas de redação em meio escolar
(ANTUNES, 2009). Na perspectiva sociocultural, escrever é
inserir-se num contexto de atuação social e usar a linguagem
sob a forma de gêneros discursivos. Dessa forma, ao utili-
zarem a escrita, os sujeitos são levados a perceber situações
reais, como as variações, os estilos e os recursos linguísticos
próprios de cada gênero são usados nos diferentes contextos
de cada esfera social (FISHER, 2010).

4.3 As dificuldades

As dificuldades, recorrentes nos discursos, são tanto de or-


dem escolar quanto pessoal como evidenciam os discursos:

126
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

“mesmo com algumas dificuldades” (Sandra),


“Aprender era difícil e muito traumatizante, exigia romper o medo
e querer muito entender o novo conhecimento do tal alfabetizado
(...) Era difícil acompanhar o novo tempo; entender os costumes da
cidade e das outras pessoas[...]”(Joana).
Ainda tenho dificuldade em escrever relatório sobre certos assuntos (Rita).
Depois de dezessete anos retornei ao Proeja, enfrentei bastante difi-
culdade no início” [...] (Ana).
Era a hora de voltar para a cidade para começar tudo de novo, era
“traumatizante” (Joana)

Há reiteração de palavras nos enunciados: “dificuldade,


difícil” e “novo”, todas se ligam ao processo de aprender e
a situações cotidianas situadas, no passado e relacionam-se,
também, a algo novo, evidenciando que uma das dificulda-
des reside, justamente, na mudança, na apresentação de um
elemento desconhecido, uma influência do contexto social
sobre o sujeito. Esses enunciados refletem a individualidade
dos sujeitos, constituem parte de suas histórias de vida, des-
velam outras significações que se relacionam aos sentidos das
construções, na vida pessoal desses sujeitos (BAKHTIN, 2000).
A dificuldade recorrente nos discursos é reforçada por es-
colhas lexicais que a intensificam esse sentido sob a forma
de “trauma”, “novo” e “medo”. Esses sentidos relacionados às
dificuldades com a língua e com o processo escolar, embora
sejam construções individuais dos sujeitos de PROEJA, tra-
duzem aspectos das significações coletivas sobre o contexto
social em que os sujeitos estão inseridos (BOURDIEU, 2002).
O trabalho priorizando os sistemas da língua acaba por
gerar uma representação negativa da disciplina de Língua
Portuguesa, como se percebe pela reiteração de enunciados
que mencionam conteúdos gramaticais, práticas tradicionais
de linguagem, orientadoras das atividades didáticas. A repre-
sentação também é negativa e é traduzida em vários trechos
como: “Não gostava muito de português. Objeto direto, indireto...

127
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

só consegui entender um pouco agora que retornei aos estudos.


Pronomes, pontuação, não foi difícil, gostava [...] Lembrei-me que
detestava interpretação [...] (Rita).

4.4 As mediações

Uma categoria importante surgida, nas entrevistas, remete à


aprendizagem na interação, relacionada com a intervenção
de outro sujeito (VYGOTSKY, 2001). A colaboração de um
sujeito mais experiente que realiza a mediação entre o conhe-
cimento já construído e os novos é um elemento mobilizador
da aprendizagem da língua, como se percebe nos trechos:
Ela era mais velha que eu, tinha 13 anos, e gostava de ler para mim,
e sempre que podia ela gostava de me mostrar as letras. Eu também
gostava de brincar que sabia ler, ficava imaginando de como as figu-
ras de gibi representavam as letras (Jorge).
Minha mãe me ajudou muito na alfabetização sempre exigindo mui-
to que as letras fossem todas iguais. (Rita)

Os exemplos são significativos por evidenciarem intera-


ção, relações dialógicas entre os sujeitos (BAKHTIN, 2000)
nas quais a linguagem atua como mediadora de significações,
configurada como um sistema simbólico e fator mobilizador
e motivador da aprendizagem (VYGOTSKY, 2008).
Os sujeitos, para Vygotsky (2008), não têm acesso direto
aos objetos, necessitam da mediação dos sistemas simbólicos
e de outros sujeitos para a construção dos conhecimentos. No
exemplo citado, o sujeito mais experiente intervém como agen-
te mediador e transformador, levando o sujeito a progredir das
intervenções em que a linguagem representa um instrumento
histórico-social comum que possibilita a interação e a mediação.

128
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

5 considerações finais

A necessidade de se conhecerem melhor os processos que os


sujeitos de PROEJA realizam na construção dos conhecimen-
tos em Língua Portuguesa, justifica-se pelo papel constitutivo
da linguagem na vida de todos os sujeitos e pelo fato de esse
conhecimento trazer contribuições importantes na geração
de subsídios para investigações que envolvem a linguagem,
numa perspectiva sociocultural.
Além disso, estudar os discursos dos sujeitos PROEJA
conduz a algumas reflexões importantes sobre como mobili-
zam recursos nas práticas cotidianas e escolares e como cons-
troem seus letramentos, a partir dos olhares e discursos dos
próprios sujeitos que expõem suas singularidades as quais,
ao mesmo tempo os identifica, enquanto grupo e também os
diferencia dos demais (HALL, 2011). Apreender as trajetórias
de letramento realizadas pelos sujeitos, em contextos sociais
diferenciados, traz contribuições para se alterarem aborda-
gens e metodologias, em meio escolar, a fim de transformar
as práticas rotineiras com a linguagem em sala de aula, em
processos reais de letramento.
Essas narrativas relatam o início dos processos de letramen-
to e, posteriormente, passam a narrar fatos sobre as práticas uti-
lizadas, em sala de aula e em outros contextos. Elas evidenciam,
também, sentidos que ajudam a compreender melhor o proces-
so de aprendizagem da leitura e da escrita, mostram a necessi-
dade de ruptura com práticas tradicionais, para dinamizar os
processos de ensino e permitir que a perspectiva sociocultural
dos letramentos conduza os trabalhos com a linguagem.
Na descrição dos processos percorridos nos letramentos
dos sujeitos de PROEJA, aparecem a leitura, a observação
das produções orais de outros sujeitos e a aplicação das cons-

129
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

truções linguísticas novas em situações de uso, sendo pouco


mencionada a escrita nos processos finais da construção dos
saberes linguísticos.
A leitura é apontada como prática importante e aparece vin-
culada ao objeto cultural livro e ao gênero literário. Este é espe-
cialmente referido, possivelmente, por uma influência de ênfases
dadas pela escola que privilegia, no contexto descrito, a lingua-
gem literária e a variante padrão como modelos a serem seguidos.
A leitura como prática prazerosa está mais ligada a esses
textos literários, realizada em contexto extraescolar, motivada
mais por interesse dos próprios sujeitos, do que como prática
proposta em Língua Portuguesa. Quando vinculada à escola,
a leitura não traduz o interesse dos sujeitos envolvidos, ao
contrário, representa atividade que gera ansiedade, descon-
forto: “(...) gostava de pedir para a turma que lesse um livro e de-
pois contasse na aula, simplesmente eu odiava aquilo (...)” (Jorge).
Outra estratégia utilizada pelos sujeitos e compõe os pro-
cessos de letramentos é ouvir interlocutores, realizar uma escu-
ta ativa do outro para, posteriormente, incorporar ao próprio
discurso formas de dizer de outro sujeito. Para Bakhtin (2002,
p.146) isso representa uma “apreensão ativa, apreciativa da
enunciação” de outro com o qual os sujeitos estabelecem rela-
ções dialógicas e passam a utilizar, após análise da pertinência
das manifestações linguísticas naquela comunidade.
A dificuldade é um sentido expresso por todos os sujeitos
e aparece relacionado a todo o contexto o qual envolve a re-
organização da vida cotidiana, a retomada aos estudos, às di-
ficuldades com a língua e a inserção em curso técnico, como
evidencia o enunciado: “(...) não conseguia jamais entender
que, na verdade, o computador não é inteligente. Inteligen-
tes somos nós [...]” (Vera).
Quando relacionada à Língua Portuguesa a dificuldade
evidencia-se na relação estabelecida pelos sujeitos com prá-

130
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

ticas propostas envolvendo o sistema da língua. Essas se li-


gam a formas de ensinar descontextualizadas e voltadas aos
conceitos gramaticais, com que os sujeitos estabelecem uma
relação negativa e geradora de desconforto.
A escrita é um processo representado como descoberta, é
algo que provoca entusiasmo no início do processo de esco-
larização. Quando referida ao final da escolarização, a escrita
é pouco mencionada pelos sujeitos, evidenciando que essa
prática parece não ter sido muito significativa e nem ter con-
tribuído significativamente para a competência linguística dos
sujeitos. É importante destacar também que a escrita, nesse
contexto, relaciona-se à redação escolar, não constituindo um
gênero discursivo real. Desse modo, pouco revela da hetero-
geneidade que constitui os processos de escrita nos diversos
espaços sociais e pouco contribui para compor as diferentes
formas de manifestação dos letramentos (CORRÊA, 2010).
Uma hipótese que se levanta para isso é a desvinculação do
ensino da língua Portuguesa das práticas sociais, consistindo em
estudo da forma, de conteúdos gramaticais. Esse enfoque não
considera os recursos linguísticos importantes na construção dos
gêneros discursivos, a heterogeneidade de saberes e interesses
dos alunos, mas direciona o foco para práticas hegemônicas.
Esse contexto gera representações que vinculam a Língua
Portuguesa à significação como disciplina de difícil aprendi-
zagem. Além disso, gera identidades associadas à dificuldade
em aprender a usar a linguagem de modo adequado, nos di-
versos contextos sociais que, segundo Fernando, exige pro-
var: “[...] às vezes, até pra nós mesmos que a gente pode chegar
onde imagina... com grandes dificuldades [...]”.
Em vista disso, percebe-se a necessidade de mudanças, a res-
significação de práticas que favoreçam alunos trabalhadores inse-
ridos, nos cursos técnicos da modalidade PROEJA, em busca da
profissionalização e de formação para o exercício da cidadania.

131
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

Além disso, conhecer as trajetórias desses sujeitos pode


trazer contribuições com tanto para facilitar o acesso quan-
to para assegurar sua permanência na escola e, no dizer de
Kleiman, (2010, p.376), saber mais sobre os sujeitos leva a
“entender o papel da coletividade, da resistência, da subver-
são nos letramentos”.
Com base nessas evidências, percebe-se que o trabalho lin-
guístico com alunos trabalhadores exige a revisão de práticas
de modo a desconstruir imagens negativas relativas à leitura e
à escrita, para ressignificá-las sob as orientações da perspecti-
va sociocultural dos letramentos, e isso constitui algumas das
implicações pedagógicas e reflexões para todos os envolvidos
na construção do saber linguístico dos alunos de PROEJA.

referências
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Janeiro: Bertrand Brasil, 2002.
BOHN, H.; SOUZA, Osmar de (Orgs). Escrita e cidadania. 1ed. Florianópolis,
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132
projetos de letramento : debates & aplicações
parte i – debates

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134
II
aplicações
curso técnico integrado e as

p r át i c a s d e l e t r a m e t o :

experiência que gera aprendizado

Cândida Martins Pinto

1 considerações iniciais

Trabalhar com Língua Portuguesa, em diversos cursos e níveis


de ensino, é inserir os estudantes em práticas sociais, no intuito
de fazê-los refletir sobre as condições de produção e sobre os
modos de circulação de textos (sempre multissemióticos) em
diferentes esferas de atividade (BUNZEN, 2010). Quando se tra-
ta de ensinar leitura, oralidade e escrita para estudantes de ensi-
no médio integrado a um curso profissionalizante, a disciplina
passa a ser significativa ao integrar as necessidades de ler, falar e
escrever com a realidade sociocultural acadêmica e profissional,
facilitando, assim, o processo de aprendizagem. Julga-se, dessa
forma, estar corroborando para a construção de sujeitos letra-
dos capazes de participar de práticas sociais, que possibilitem o
deslocamento do sujeito-aluno para profissional.
Este artigo descreve e comenta uma prática de letramento
ocorrida durante o segundo semestre de 2011, junto ao cur-
so Técnico em Agropecuária Integrado, do Instituto Federal
Farroupilha – Campus São Vicente do Sul, ao longo das aulas

136
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

da disciplina de Língua Portuguesa. Trata-se de um projeto


de ensino, pesquisa e extensão desenvolvido conjuntamente
com um professor da área agrícola, que ministra a discipli-
na de sociologia e extensão rural para o curso referido. O
projeto, intitulado “Análise do perfil do consumidor de hor-
tifrutigranjeiros no município de Cacequi – RS”, teve como
objetivo conhecer, estudar e analisar o perfil do consumidor
de alimentos hortifrutigranjeiros no município, a fim de con-
tribuir com possíveis melhorias para a feira do produtor rural
e, assim, aumentar o número de clientes. Dessa forma, com
a orientação dos professores, os estudantes envolveram-se
desde a construção dos instrumentos para coletas dos dados
até a divulgação dos resultados em eventos científicos e no
retorno aos produtores rurais.
Busca-se, portanto, com este texto, analisar as evidências
de uma aprendizagem significativa, no que se refere à orali-
dade e escrita, quando estudantes vivenciam a realidade do
Técnico em Agropecuária, apropriando-se de dois gêneros
discursivos pertencentes aos letramentos da esfera profissio-
nal e acadêmica, a saber: relatório e comunicação oral.
Para tanto, inicialmente, apresenta-se o conceito de letra-
mento assumido e a filiação teórica que embasou o desenvol-
vimento das aulas de Língua Portuguesa; posteriormente, o
enfoque metodológico. Por fim, a análise com base em dados
coletados em fase final do projeto, seguida de uma reflexão
interpretativa, que busca discutir a expressão “prática trans-
formadora”, que resume o projeto desenvolvido.

2 l e t r a m e n t o s e p r át i c a e s c o l a r

Os Novos Estudos do Letramento, defendidos por Street (2003),


argumentam sobre uma concepção sócio-histórica do letramen-

137
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

to, visão que se opõe a uma concepção instrumental dos usos da


escrita. Refere-se também à apropriação da leitura e da escrita
para serem utilizadas em práticas sociais específicas. Além disso,
essa concepção de ‘novo’ impõe o reconhecimento de múltiplos
letramentos ou multiletramentos, variando de acordo com o
tempo e o espaço, bem como as dimensões de poder conferidas
por esses processos de leitura e escrita (Idem, 2003).
Conforme destaca Oliveira (2010), essa valorização dos
usos da leitura e da escrita como práticas por oposição à com-
preensão do letramento visto como um modelo autônomo e
homogeneizante deu lugar à compreensão de um novo concei-
to, de natureza plural – letramentos (ou letramentos múltiplos).
Para Soares (2002), letramento não são as próprias práticas
de leitura e escrita, e/ou os eventos relacionados com o uso e
função dessas práticas, ou ainda o impacto ou as consequên-
cias da escrita sobre a sociedade, mas, para além de tudo isso,
letramentos (no plural) é o estado ou condição de quem exerce
as práticas sociais de leitura e escrita, de quem participa de
eventos em que a escrita é parte integrante da interação entre
pessoas e do processo de interpretação dessa interação.
Paralelamente aos Novos Estudos do Letramento, o New
London Group (1996) propôs um projeto pedagógico de
multiletramentos, termo justificado, principalmente, por
dois argumentos centrais: multiplicidade dos canais de
comunicação e mídia e aumento da diversidade cultural e
linguística. Para Fischer (2007), citando Dionísio (2006),
o conjunto desses argumentos autoriza a aproximação de
letramentos a esta noção de multiletramentos, na medida
em que cada tipo de letramento contempla “a existência
de uma multiplicidade de sistemas semióticos com suas
próprias convenções em que as estruturas e padrões lin-
guísticos são uma entre as múltiplas dimensões de sentido”
(FISHER, 2007, p. 58 apud DIONÍSIO, 2006).

138
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Essas mudanças do contexto global e o constante aumento


da multimodalidade em diversos gêneros discursivos têm trazi-
do importantes consequências para a educação, as quais devem
ser consideradas quando da pesquisa das práticas de letramen-
tos necessárias para que o sujeito participe de práticas sociais
de maneira crítica. Nesse cenário, a Pedagogia dos Multiletra-
mentos sugere princípios pedagógicos que envolvem quatro
componentes relacionados: prática situada, instrução explícita,
enquadramento crítico e prática transformadora, os quais sin-
tetizam o conjunto das relações apropriadas de aprendizagem.
Prática situada envolve a construção da experiência dos
estudantes, valorizando a imersão e o envolvimento dos mes-
mos em práticas significativas de letramento. A instrução explí-
cita, realizada pelo professor ou um par mais capaz, guia estu-
dantes para o uso de uma metalinguagem explícita de reflexão
que faça referência à forma, conteúdo e função dos discursos
da prática. Enquadramento crítico encoraja estudantes a inter-
pretarem contextos sociais e auxilia a situarem seus domínios
ou competências crescentes na prática. Prática transformadora
ocorre quando estudantes transformam significados existen-
tes em novos significados (New London Group, 1996).
Esse enfoque pedagógico traz à luz outro conceito impor-
tante que está de acordo com a teoria sociocultural do ensino: o
trabalho com gêneros discursivos, já que a filiação a uma pers-
pectiva escolar de letramento foca em atividades vinculadas a
práticas em que a leitura e a escrita (manifestados por meio dos
gêneros) são ferramentas para agir socialmente. Dessa forma,
Kleiman (2010) discute que, se a prática social é estruturante,
a pergunta que deveria orientar o planejamento das atividades
didáticas seria: “de ordem sócio-histórica e cultura: quais os
textos significativos para o aluno e sua comunidade?”. É com
base nessa pergunta que o currículo, visando à apropriação dos
gêneros, seria cumprido a contento (KLEIMAN, 2010).

139
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Assim, ao organizar programas de ensino, o professor


pode considerar quais gêneros de que esferas (e com que
práticas letradas, capacidades de leitura e produção agrega-
das) devem/podem ser selecionados para abordagem e estu-
do (ROJO, 2009). Dessa forma, por meio dos gêneros, é que a
escola torna possíveis as práticas de letramento, decorrentes
de um interesse real na vida dos alunos, já que se trabalha
leitura e escrita como práticas discursivas, com múltiplas
funções e inseparáveis dos contextos em que se desenvolvem
(KLEIMAN, 2007). Uma observação muito consciente e rele-
vante para essa situação de ensino-aprendizagem é trazida
pela mesma autora (Idem, 2010):
[...] a sala de aula funciona como uma comunidade de apren-
dizagem em que todos ensinam e todos aprendem, conci-
liando interesses, conhecimentos e sentimentos. O ensinar e
o aprender nos projetos de letramento se efetivam por meio
do trabalho com os gêneros, entendidos como instrumentos
mediadores da ação humana no mundo – em termos didáti-
cos, o eixo organizador das atividades com a linguagem.

Como já mencionado anteriormente, propostas de um en-


sino que trabalhe na perspectiva de práticas situadas, atentan-
do para os diversos papéis assumidos pelos sujeitos em dis-
tintas situações comunicativas; com a orientação de “agentes
de letramentos” (professores ou um par mais capaz) que, me-
diando a construção do conhecimento, saibam instruir expli-
citamente quando necessário; auxiliam estudantes a criarem
um senso crítico para distanciarem-se pessoal e teoricamente
do que aprenderam e, assim, inovarem. Dessa forma, esta-
rão preparados para se adequarem a práticas transformadoras,
pois o aprendido deverá ser reestruturado para ‘encaixar-se’
em novas situações, novos contextos.
Nessa perspectiva, acredita-se que é papel da escola aju-
dar os estudantes a desenvolverem capacidades de falar, ne-

140
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

gociar e escrever e serem capazes de participar criticamente


do mundo do trabalho com as condições necessárias (NEW
LONDO GROUP, 1996).

3 enfoque metodológico

3.1 O contexto da experiência

O projeto, que culminou nesta pesquisa, foi desenvolvido no


Instituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Farroupi-
lha (IFFarroupilha), que é uma instituição de educação supe-
rior, básica e profissional, pluricurricular e multicampi, espe-
cializada na oferta de educação profissional e tecnológica nas
diferentes modalidades de ensino, com base na conjugação de
conhecimentos técnicos e tecnológicos com sua prática peda-
gógica. Um dos campi pertencente à instituição situa-se em
São Vicente do Sul, município localizado na Depressão Central
do RS, que faz limite com diversos municípios, dentre eles
Cacequi. O campus São Vicente do Sul iniciou suas atividades
educacionais em 1954, sob a denominação de Escola de Ini-
ciação Agrícola. Por esse motivo, consolidou-se como uma ins-
tituição de ensino agrícola, embora atualmente existam cursos
técnicos e de tecnologia na área e Gestão e Informática.
Na modalidade integrada ao Ensino Médio, o curso Téc-
nico em Agropecuária oportuniza estudantes a formarem-se
no Ensino Médio concomitantemente a um curso técnico
profissionalizante, o que habilita o profissional a desenvolver
ações relacionadas à análise das características econômicas,
sociais e ambientais; planejar, executar, acompanhar e fisca-
lizar todas as fases dos projetos agropecuários. Dessa forma,
a matriz curricular do curso, organizada em 3 anos letivos

141
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

além do estágio de 360 horas, está estruturada contendo to-


das as disciplinas obrigatórias do Ensino Médio juntamente
com disciplinas da área técnica.

3.2 Os estudantes

A turma do 3º ano do Curso Técnico em Agropecuária de 2011


do IFFarroupilha era composta por 16 alunos: 4 meninas e 12
meninos, de 16 a 18 anos. Os estudantes, na sua maioria, bus-
caram o curso profissionalizante da área agrícola por perten-
cerem a famílias cuja renda provinha do meio rural. Devido a
esse fator, o grande interesse da turma era pelas disciplinas da
parte técnica, já que estas, na visão dos alunos, eram mais sig-
nificativas para suas vidas profissionais. Dessa forma, a turma
era considerada, pelos professores que ministravam disciplinas
específicas do Ensino Médio, uma turma “problema”, por ter
dificuldades de assimilar conteúdos e pela falta de motivação
aos estudos para essas disciplinas. Essa incapacidade de par-
ticipar de práticas letradas condizentes com o Ensino Médio
foi constatada pela presente autora (e também professora da
turma) quando do início do ano letivo. Após diversas tentativas
para integrar a Língua Portuguesa no contexto profissional dos
estudantes e, assim, minimizar a dicotomia que se apresentava,
foi desenvolvido um projeto, descrito na sequência deste texto,
desenvolvido durante o 2º semestre letivo.

3.3 Os professores

A professora de Língua Portuguesa (LP), também autora des-


te artigo e pesquisadora, atua como docente no IFFarroupilha
desde 2008, trabalhando com cursos de nível técnico, princi-

142
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

palmente com estudantes do 3º ano, e de tecnologia. Em 2011,


ministrou a disciplina de Língua Portuguesa para a referida
turma, desenvolvendo o projeto que culminou nesta pesquisa.
O professor de Sociologia e Extensão Rural (SER) também
atua como docente desde 2008, ministrando aulas para cur-
sos técnicos e de tecnologias voltados à área agrícola. Como a
disciplina Sociologia e Extensão Rural para o Curso Técnico
em Agropecuária é ofertada no 1º ano do curso, o professor
atuou como colaborador do projeto e orientador dos alunos.

3.4 O projeto

O projeto intitulado “Análise do perfil do consumidor de horti-


frutigranjeiros no município de Cacequi – RS” teve como obje-
tivo conhecer, estudar e analisar o perfil do consumidor de ali-
mentos hortifrutigranjeiros no município, a fim de contribuir
com possíveis melhorias para a feira do produtor rural e, assim,
aumentar o número de clientes. A ideia para o projeto surgiu
dos próprios produtores rurais do município, quando estes so-
licitaram ao IFFarroupilha – Campus São Vicente do Sul ajuda
para potencializar as vendas e os lucros da feira do produtor
rural. Dessa forma, foi por intermédio do professor de Socio-
logia e Extensão Rural que a turma foi convidada a realizar um
diagnóstico do perfil do consumidor. A organização do projeto
foi feita durante as aulas de Língua Portuguesa, que contribuiu
para a apropriação de diversos gêneros discursivos.
O projeto foi desenvolvido em três fases: preparação, exe-
cução e divulgação dos resultados. Primeiramente, na fase de
preparação, os alunos assistiram a um vídeo – “O veneno está
na sua mesa” – sobre o alto índice de agrotóxicos em alimen-
tos hortifruti. Após, foi realizado um debate em sala de aula,
com o intuito de refletir sobre a importância da qualidade dos

143
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

alimentos e o papel do Técnico em Agropecuária como agente


de divulgação dessa qualidade à comunidade em geral. Ain-
da na fase de preparação, foi realizada pela professora de LP
uma exposição oral sobre o que é pesquisa, métodos utiliza-
dos para coleta dos dados, análises quali e quantitativa, para
iniciar os estudantes nesse meio acadêmico e orientá-los para
a construção dos instrumentos de coleta de dados. Para essa
construção, a turma foi dividida em três grupos, que produ-
ziram três distintos questionários a serem aplicados aos con-
sumidores na rua, a fim de observar os condicionantes para
escolha dos alimentos e os fatores que motivam essa escolha,
a preocupação com a qualidade e a origem dos alimentos; aos
consumidores na feira do produtor rural, com o intuito de
verificar o perfil do consumidor, os fatores que motivam sua
visita à feira e o consumo, a percepção sobre o preparo dos
produtores para a comercialização, o atendimento que rece-
bem e a periodicidade das feiras; e aos próprios agricultores,
buscando identificar suas preocupações em relação à qualida-
de, à estrutura de produção e às práticas utilizadas.
A fase de execução do projeto foi a aplicação dos questio-
nários no município de Cacequi e, posteriormente, em sala de
aula, a análise dos dados para a construção de um relatório,
contendo, assim, um diagnóstico do perfil do consumidor e
sugestões de possíveis melhorias da feira do produtor rural.
Por fim, a divulgação dos resultados foi realizada, primei-
ramente, em três eventos científicos: I Mostra de Extensão do
Campus São Vicente do Sul; I Mostra de Educação Profissio-
nal e Tecnológica do IFFarroupilha, ocorrida em Santa Rosa;
Jornada de Iniciação Científica da Educação Profissional e
Tecnológica da Região Sul, realizada em Blumenau – SC. Para
esses eventos, a turma escolheu dois colegas para serem os
representantes. Eles apresentaram o projeto em forma de co-
municação oral, com auxílio de multimídia e apresentação

144
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

em Power Point, e pôster. Todos os materiais foram elabo-


rados em conjunto pela turma. Em um segundo e último
momento do projeto, a turma reuniu-se com os produtores
rurais e o Secretário de Agricultura de Cacequi para apresen-
tar o diagnóstico realizado e apontar sugestões para melhoria
da feira. Um relatório de cada análise foi entregue para a
Secretaria do município.

3.5 Caracterização da pesquisa

Esta pesquisa adota a abordagem qualitativa como natureza


metodológica do trabalho, já que essa abordagem implica, nas
palavras de Denzin e Lincoln (2006), uma ênfase sobre as qua-
lidades das entidades e sobre os processos e os significados, res-
saltando a natureza socialmente construída e o que é estudado,
e as limitações situacionais que influenciam a investigação.
Mais especificamente, ganha destaque, na presente pro-
posta, a pesquisa social etnográfica, que requer uma atitude de
desligamento em relação à sociedade que permite ao pesqui-
sador observar a conduta do eu e dos outros, entender os me-
canismos dos processos sociais e compreender e explicar por
que os atores e os processos são como são (VIDICH, LYMAN,
2006). Optou-se, portanto, em proceder com estudo de caso
etnográfico de dois alunos-sujeitos, aqui denominados fic-
ticiamente de Pedro e Ana, por entender que um processo
longitudinal de investigação, viabilizado pela observação par-
ticipante da pesquisadora, direcionou a coleta e a análise dos
dados. A escolha por esses dois alunos justifica-se pelo fato de
eles terem participado dos eventos, estando, assim, envolvi-
dos mais diretamente em todas as fases do projeto.
Os dados foram analisados de acordo com a Pedagogia
dos Multiletramentos e seus quatro princípios pedagógicos:

145
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

prática situada, instrução explícita, enquadramento crítico e


prática transformadora.

3.6 Os dados

Os dados coletados para esta pesquisa foram notas de campo,


com anotações das impressões da pesquisadora-participante
de todas as aulas desenvolvidas e todas as fases do projeto; os
relatórios produzidos pelos dois alunos-sujeitos e depoimen-
tos por escrito desses alunos, contendo suas impressões e
opiniões sobre o projeto. Além disso, artefato cultural como
fotos foram coletados durante as três fases.

4 p r át i c a s t r a n s f o r m a d o r a s :
v i v e n c i a r pa r a s e r

A análise dos dados mostrou uma significativa mudança de


postura e comportamento dos estudantes, o que se atesta pelo
fato de que necessitaram assumir um papel, não mais de alunos,
mas de extensionistas rurais, indicando sugestões de melhorias
na feira do produtor rural de Cacequi – RS. Para New London
Group (2000, apud FISCHER, 2007), o essencial nas práticas
educacionais é dar condições aos alunos para se engajarem na
negociação de múltiplos discursos e sentidos, para desenvolve-
rem multicapacidades e flexibilidade ao estabelecerem relações
com as novas demandas de uso das linguagens sociais.

Nota de campo (18/08/2011)

Quando a professora de LP expos o projeto em sala de aula, a


primeira reação foi de surpresa por parte dos alunos, já que

146
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

poucas vezes tiveram a oportunidade de realizar um trabalho


como profissionais. Além disso, o sentimento que se perce-
beu na turma foi de ansiedade pelo trabalho que envolveria
dedicação e um resultado real.
O comentário de Pedro, ao final do projeto, atesta o fato
de que práticas situadas, com a imersão de estudantes em
contextos reais, para além de simulações desses contextos
em sala de aula, os alunos desempenham diferentes papéis.
Ora são alunos em sala de aula, aprendendo o que é pesquisa
e como desenvolver instrumentos de coleta de dados. Ora
são profissionais que buscam informações na comunidade
Cacequiense com o intuito de trazer uma análise da feira do
produtor rural. E em outro momento ainda, assumem o pa-
pel de orientadores dos produtores rurais, fazendo sugestões
e indicando novos caminhos para aperfeiçoar as vendas.

Pedro: “Profissionalmente, tivemos enfim a oportunidade de
trabalhar como extensionistas [...] foi um ótimo teste para
avaliarmos na prática uma relação direta com os produtores
rurais”. (grifo do autor)

Essa mudança de comportamento, percebida pelos dis-


cursos dos alunos nos depoimentos e no diálogo durante as
aulas, é atestada pela metodologia de ensino aplicada. O en-
tendimento do trabalho do extensionista rural foi demons-
trado e explicado pelo professor da área primeiramente com
um debate sobre o uso de agrotóxicos em frutas e verduras
e os prejuízos à saúde e o grande mercado consumidor de
produtos orgânicos. Uma pedagogia centrada no diálogo, em
que as experiências dos alunos eram levadas em conta, já que
se tratavam de filhos de agricultores, foram levadas em consi-
deração sempre quando a polêmica do uso de agrotóxico nas
lavouras se instaurava em sala de aula.

147
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Nota de campo (18/08/2011)

O debate em sala de aula sobre o vídeo “O veneno está em


sua mesa’ instaurou uma grande polêmica: usar agrotóxico e
salvar a produção, tendo consequências na saúde do consu-
midor ou não usar agrotóxicos e arcar com as despesas que a
produção poderá vir a ter com insetos e pragas? A conclusão
do grupo para esse impasse foi: utilizar o mínimo possível e
cumprir com o período de carência.
O professor de SER, ao dialogar com os estudantes, procu-
rou não impor sua opinião e sim mediar o conhecimento no
intuito de fazê-los entender que a opinião de um técnico em
agropecuária perante os agricultores é muito importante e que
seu poder de influência é muito grande. Para a Pedagogia dos
Multiletramentos, orientar os alunos, servindo de mediadores,
em contextos reais de aprendizagem, ajuda-os na sua segurança
e na tomada de decisões. No processo de ensino-aprendizagem,
o professor, agindo como um mediador do conhecimento, é
peça fundamental para que o esforço combinado leve a um re-
sultado bem-sucedido (VYGOSTKY, 1991)
O efeito de unir prática situada e instrução implícita
também foi demonstrado pelos alunos quando da produção
dos diversos gêneros trabalhados nas aulas de LP: questio-
nários para ser aplicado junto à comunidade de Cacequi;
resumo para participação em eventos; gráficos com a siste-
matização quantitativa dos dados; organização de um Power
Point com as análises encontradas; elaboração de um banner
para participação em um evento; relatório final com a des-
crição, análise e sugestões para melhoria da feira. O projeto,
dessa forma, também viabilizou um trabalho com gêneros
digitais, levando em consideração que, equipamentos in-
formáticos e as novas tecnologias de comunicação fazem
parte da revolução tecnológica que está remodelando prá-

148
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ticas sociais, tornando-se fundamental para as relações na


sociedade contemporânea (SNYDER, 2001).

Ana: “a integração das disciplinas de português e extensão


rural foi de extrema importância para o trabalho. Como
precisamos fazer resumos, elaborar questionários, organizar
resultados, apresentar o projeto em eventos, a Língua Portu-
guesa estruturou todos os dados, a extensão rural por sua vez
fez com que os alunos fossem até o local da pesquisa para ver
e conversar com os produtores”.

Foi ao longo do segundo semestre de 2011 que a turma


envolveu-se na produção de diversos textos, oriundos das
práticas sociais que estavam vivenciando. Isso facilitou a assi-
milação e a apropriação desses gêneros. Sem a prática situada,
ensinar, por exemplo, tema, forma de composição e estilo do
gênero relatório, seria tarefa árdua, já que, segundo Bahktin
(2003), o gênero é estável devido aos seus traços que o iden-
tificam como tal, mas também mutável, pois está em cons-
tante transformação e se altera a cada vez que é empregado.
Buscou-se, portanto, nas aulas de LP, trabalhar o gênero
relatório, inserido em uma esfera de atividade: comunidade
de produtores rurais de Cacequi. Dessa forma, foram leva-
dos em consideração no momento da escritura do texto três
principais aspectos: (1) os produtores do texto, assumindo o
papel de técnicos em agropecuária que indicam caminhos e
sugestões; (2) os receptores do texto, no caso os produtores
rurais, que aguardavam os resultados da pesquisa; (3) a lin-
guagem empregada no texto – formal, mas com cuidado para
não haver emprego excessivo de vocabulário técnico.
Além disso, o gênero relatório foi o escolhido também por
fazer parte da futura rotina de estágios nos quais os estu-
dantes estariam envolvidos nos próximos semestres do curso.

149
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Enfatiza-se que o trabalho com o gênero relatório foi intro-


duzido a partir de leituras de outros relatórios, no intuito de
considerá-los, segundo afirma Street (2010, p.550):
estudos de caso para as diferentes formas com que os autores
da área podem escrever um texto acadêmico (não encarados
como “modelos” prescritos do que deve ser feito ou até mesmo
como exemplos de “boas práticas”, mas simplesmente como
um indicativo do tipo de produção que pode ser encontrada
nesta área de estudo).

O estudo e a produção dos relatórios contabilizaram seis


aulas de Língua Portuguesa (12 períodos), o que caracteri-
zou o trabalho de escrita como um processo de assimilação
do gênero. Nos relatórios de Pedro e Ana analisados, ficou
muito marcada a questão da autoria e do papel que estes alu-
nos assumiram perante o projeto, com a utilização de verbos
conjugados na primeira pessoa do plural.

Pedro: Introdução – “Ao sermos solicitados pelos produtores


da Feira do Produtor de Cacequi, iniciamos um projeto com a
finalidade de analisar o perfil do consumidor de hortifrutigran-
jeiros do município para posteriormente podermos traçar estra-
tégias para os produtores terem maiores rendas produzindo os
produtos mais procurados pelo mercado consumidor”.

Ana: Conclusão – “Podemos observar que a feira do produ-


tor do município possui vários problemas que devem ser so-
lucionados a partir da análise dessa pesquisa visando trazer
melhorias ao local e ao atendimento aos clientes.”

Percebe-se que o fato dos estudantes sentirem-se realmente


realizando um trabalho de extensionistas rurais configurou a
eles uma dimensão de poder, pois, assumindo esse papel, pu-

150
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

deram refletir sobre as condições de trabalho dos produtores.


Fischer (2010), citando Gee (2001), argumenta que o caráter
social, situado e histórico do letramento, indica ao sujeito sua
condição ou posição de insider em práticas sociais, que pos-
sibilitam a ela assumir papéis sociais diversos nas interações.
Ficou registrado, portanto, nos relatórios analisados, as
seguintes sugestões de melhoria da feira do produtor:

Pedro: “20,8% [dos entrevistados] veem que existem opor-


tunidades de melhorias para o local da feira, tais como insta-
lação de abrigo contra frio, vento, chuva e barulho dos trens
que cruzam na linha férrea que se localiza ao lado. [...] Em
relação às vestimentas dos agricultores, 96% consideram
adequadas. A única sugestão é que os produtores poderiam
utilizar luvas para manusear os produtos vendidos no local.”

Ana: “Há sugestões que devem ser feitas aos feirantes como,
por exemplo, realizar a feira em mais de um dia na semana,
com um horário prolongado e também haver maior diversi-
dade de produtos.”

Outro aspecto importante para o aprendizado dos estu-


dantes foi a prática oral vivenciada por Ana e Pedro em três
eventos científicos e, ao final, na conversa com os produtores
rurais. Percebeu-se, nos depoimentos, que a oralidade, vista
inicialmente como um ponto negativo do projeto, ganhou
espaço significativo nessa prática de letramento.

Nota de campo (26/09/2011)

Houve muita resistência dos alunos em aceitarem que o pro-


jeto fosse apresentado em forma de pôster e comunicação
oral nos três eventos programados. A turma indicou dois co-

151
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

legas para realizar tal atividade, porém a ideia inicial era que
todos os colegas participassem dessa atividade.

Ana: “O projeto foi importante pois aprendi muito, em re-


lação ao relatório de estágio que simulamos a partir dele, a
apresentação em eventos, ganhando mais confiança e contro-
le para falar em público”.

Pedro: “Na parte da língua portuguesa, o fato de interagir du-


rante os eventos com pessoas das mais variadas regiões e áreas
e até na própria feira conversando com os consumidores foi
uma experiência muito enriquecedora pelo fato de sairmos do
conforto de apresentarmos trabalhos em aula” (grifo do autor).

A atividade de expressão oral foi evidencia em sala de


aula e treinada, no sentido de fazer com que os alunos com-
preendam que um texto oral também possui tema, forma de
composição e estilo, bem como um interlocutor. Por isso,
trabalhou-se nas aulas de LP qual a linguagem mais adequa-
da para apresentação do projeto em eventos e exposição dos
resultados para os agricultores, levando em consideração
o público. Dessa forma, foi durante a devolutiva do proje-
to para os produtores que se percebeu como os estudantes
estavam adequando uma linguagem técnica ao vocabulário
simples dos interlocutores. Também foi nessa devolutiva que
os alunos perceberam quais seriam as reais sugestões para
melhoria da feira e expuseram-nas.

Nota de campo (29/11/2011)

Pedro e Ana, ao apresentarem os resultados encontrados na aná-


lise do perfil do consumidor de hortifruti, fizeram sugestões aos
produtores que não constavam no relatório: fazer maior uso de

152
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

propagandas da feira para (1) atingir um público consumidor


específico: mulheres, donas de casa de 41 a 60 anos, já que são
estas que realizam as compras para casa; (2) e apostar nos produ-
tos orgânicos, o que são, seus benefícios e onde são encontrados.
Os estudantes, ao perceberem com maior clareza as reais
contribuições que a pesquisa mostrava, demonstraram ter visão
crítica perante a realidade vivenciada e autonomia para inserir
no diálogo suas próprias percepções. Além do mais, perceberam
o poder de influência de um técnico em agropecuária, já os pro-
dutores afirmaram que iriam acatar todas as sugestões da turma.

Pedro: “Pudemos notar a relevância de um projeto tão simples


que pode mudar a rotina e a renda de pequenas famílias rurais”.

Para New London Group (1996), trabalhar em sala de aula


orientado pela Pedagogia dos Multiletramentos, é auxiliar os
alunos a se assumirem produtores de conhecimento e não so-
mente consumidores. É posicionar-se criticamente em dife-
rentes práticas situadas, transferindo sentidos de um contex-
to ao outro, assumindo diversos papéis, como alunos, como
pesquisadores ou como profissionais.

5 considerações finais

Antes da execução do projeto, os professores envolvidos re-


fletiram que talvez a turma escolhida não fosse se engajar
na atividade, já que demonstrava, em atitudes e comporta-
mentos em sala de aula, desmotivação e falta de dedicação
para com os estudos. Durante o desenvolvimento, o que se
observou foi uma turma interessada por haver uma mudan-
ça de cenário: antes o contexto de sala de aula, com o de-
senvolvimento da disciplina de Língua Portuguesa de forma

153
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

mais tradicional; depois um contexto real em que estudantes


tiverem que vivenciar e agir como extensionistas rurais, colo-
cando em prática os conhecimentos adquiridos nas discipli-
nas técnicas do curso aliados à produção de diversos gêneros
discursivos de forma contextualizada. A ativa intervenção na
feira do produtor rural de Cacequi possibilitou que os alunos
fossem transformados em profissionais, evidenciando, assim,
que práticas transformadoras ocorreram.
Conforme preconizam Frigotto, Ciavatta e Ramos (2005),
as propostas pedagógicas que permitem a integração de dis-
ciplinas auxiliam no sentido de relacionar o âmbito escolar
à prática social concreta. Nesse sentido, trabalhar em sala de
aula de forma integrada, como aconteceu entre as discipli-
nas de LP e SER, incorpora essas análises e busca definir as
finalidades da educação escolar por referência às necessida-
des da formação humana. Essa metodologia utilizada buscou
conduzir à preparação de um sujeito ativo, reflexivo, criativo
e solidário por meio da integração entre trabalho e ensino,
pelo encadeamento de atividades de aprendizagem que sur-
giram de situações geradas no exercício profissional.
Por essa razão, o ensino e a aprendizagem da LP deram-se
por meio de textos orais e escritos (neste texto, ênfase no re-
latório e na comunicação oral), com interlocutores situados
no mundo social com seus valores, projetos, histórias e de-
sejos, construindo, assim, seus significados para agir na vida
social (ROJO, 2009). Já a disciplina de SER buscou trabalhar
com a análise, interpretação e escrita de fatos sociais.
Essa experiência pedagógica demonstrou, portanto, que
uma aprendizagem efetiva requer prática e mediação ocorrendo
simultaneamente, como argumenta o New London Group (1996).
Aliado a isso, a experiência demonstrou que o trabalho integra-
do também auxilia estudantes a transformarem significados
existentes em novos significados: a prática transformadora.

154
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

referências
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155
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

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156
o m o d e l o i n t e r at i v o n a l e i t u r a

i n s t r u m e n ta l e m l í n g u a e s t r a n g e i r a

Cárla Callegaro Corrêa Kader

1 introdução

Este artigo objetiva analisar como a estratégia de leitura inte-


rativa está inserida em uma seção de um Caderno Didático
de Língua Inglesa Instrumental, criado por professoras de um
Colégio Federal do interior do Estado do Rio Grande do Sul.
A análise se limita a abordar as seções que trabalham com
a leitura, procurando identificar a estratégia de leitura intera-
tiva, com ênfase no principal objetivo da leitura instrumental,
a saber: o uso da linguagem em um contexto específico.
Priorizamos, neste contexto, a dimensão social da leitura e
o processo de letramento (cf. SOARES, 2006, p. 72), ou seja, o
que as pessoas fazem com as habilidades de leitura e de escrita,
em um contexto específico, buscando relacionar as necessida-
des, valores e práticas sociais do aprendiz de língua inglesa (LI).
Subjacente a esse conceito, trazemos a crença de que o
uso das habilidades de leitura e escrita em língua estrangeira
(LE), para a participação e funcionamento do aprendiz na so-
ciedade e para o sucesso pessoal, corrobora com o seu desen-

157
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

volvimento cognitivo, mobilidade social, progresso profissio-


nal e para a sua cidadania, de forma geral (SOARES, 2006).
Somamos a essa perspectiva, a amplitude do termo letra-
mento, como o uso e prática social de linguagem, envolven-
do a escrita, recobrindo contextos sociais diversos (família,
escola, trabalho, mídia etc.), envolvendo aspectos sociológi-
cos, antropológicos e socioculturais (ROJO, 2009).
Discutiremos, nas seções que seguem, sobre a estratégia de
leitura interativa e o ensino de Língua Inglesa Instrumental.

2 u m a p r o p o s ta d e l e i t u r a i n t e r at i va

Um dos cuidados que o professor deve ter ao elaborar o ma-


terial didático em leitura interativa é observar os conheci-
mentos prévios ou de mundo que o sujeito-leitor possui.
O conceito de leitura adotado neste trabalho considera-a
como um processo cognitivo responsável pela compreensão.
Em outras palavras, adotamos a perspectiva de que é a intera-
ção entre aquilo que o leitor já tem armazenado na memória
e as informações que o texto traz que o permitem fazer a
construção do significado do texto.
Compreender um texto é construir sentidos e esse proces-
so pressupõe ativação de diversos processos mentais.
Conforme Kato (1995, p.72), “o texto deve ser um con-
junto de pegadas a serem utilizadas para recapitular as es-
tratégias do autor e através delas chegar aos seus objetivos”.
Entre as inúmeras informações disponíveis no texto, o leitor
seleciona aquelas que julga mais relevantes para atingir sua
compreensão. Essas informações ativam, na memória do lei-
tor, seus conhecimentos sobre o assunto, permitindo a cons-
trução do sentido a partir da integração entre o novo e o
velho. A leitura não é, portanto, um processo que extrai o

158
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

sentido final do texto, mas a gama de interpretações possí-


veis a partir das construções do leitor.
Nesse sentido, o processamento da leitura pode se dar de
forma ascendente (bottom-up), descendente (top-down) ou in-
terativa. As variáveis que determinam qual processo deve ser
usado são os objetivos da leitura, os conhecimentos prévios
do conteúdo e das condições de produção do texto, o gênero
textual e o estilo cognitivo do leitor.
No processo ascendente, o leitor parte do material escrito e, a
partir das pistas linguísticas, vai construindo o sentido do texto.
O processamento bottom-up de leitura faz uso linear das informa-
ções visuais linguísticas e constrói o significado por meio da aná-
lise e síntese do significado das partes. Neste modelo, cabe ao lei-
tor decodificar o que está no texto, limitando-se à microestrutura
do texto, sem preocupação com o seu contexto (BOEFF, 2010).
Já no processamento descendente, o leitor faz uso de seus
conhecimentos armazenados na memória que são ativados
por meio de pistas linguísticas deixadas pelo autor. Conforme
Goodman (1998), neste modelo o enfoque está no leitor, que
não processa toda a informação trazida pelo texto, pois isto
sobrecarregaria a memória operacional, mas utiliza pistas tex-
tuais e cria hipóteses sobre o tema que poderão estar corretas
ou não e que poderão ser reformuladas no decorrer da leitura.
Segundo essa concepção, o leitor é o responsável pela
construção do sentido daquilo que lê. Dessa forma, um
mesmo texto varia de visões dependendo do leitor. As ex-
periências prévias de que ele dispõe serão as responsáveis
pela compreensão do que se lê. Podemos dizer que o texto
apresentará lacunas a serem preenchidas pelo leitor com o
seu conhecimento de mundo. Para essa concepção, saber ler
significa também saber ler o mundo, dando sentido a ele.
Ler, nesse sentido, não significa que haverá apreensão da
mensagem na íntegra. O professor de LE incentivará a adi-

159
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

vinhação de palavras a partir do contexto. Orientará o leitor


a não parar a leitura quando se deparar com uma palavra
desconhecida. Pelo contrário, orientará a busca do signifi-
cado pelo conhecimento do todo, pois quando o leitor lê,
segundo a hipótese descendente, no modelo psicolinguístico
(cf. Kleiman, 1996), o ato não ocorre de forma linear da mes-
ma forma que na hipótese ascendente. O significado não é
construído palavra por palavra. O que o leitor faz é levantar
hipóteses acerca daquilo que está sendo lido; hipóteses essas
que, posteriormente, serão confirmadas ou rejeitadas.
Quando a atenção se volta não só para o texto ou para o
leitor, mas para ambos, entra-se no modelo de leitura deno-
minado interativo. Nessa abordagem, o leitor que se vê diante
de um texto observa os elementos que o compõem e percebe
que tais elementos geram nele expectativas a respeito do que
será lido. O texto desperta o levantamento de hipóteses sobre
determinados itens e o sujeito constrói o sentido do que leu.
Então, aquele que lê faz uso de seus conhecimentos, ide-
ologias, pontos de vista. Assim, a leitura se processa a partir
das informações presentes no texto e dos conhecimentos do
leitor de forma recíproca até que seja construído o sentido do
que se lê. As propostas interacionais de leitura consideram-na
como uma atividade construtiva.
Kintsch (1978, p. 66) afirma que as bases textuais, e por-
tanto, o significado, são resultado de processos psicológicos,
pois quando um texto é lido, as “únicas coisas fora da mente
do leitor são as formas gráficas numa página; as palavras que
são comunicadas através destes objetos visuais, as frases e
sentenças e o significado, são o resultado de processos psico-
lógicos hierárquicos na mente do leitor”.
A interação ocorre através de um interrelacionamento de
diversos níveis de conhecimento pertencentes ao sujeito lei-
tor que são utilizados durante a leitura. Nos modelos intera-

160
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

tivos, ambos os tipos de processamento, top down e bottom up,


são utilizados e estão interligados no processo de acesso ao
sentido. Assim, “os esquemas do leitor são vistos como in-
formando, na direção descendente, a informação oriunda
do texto que está sendo processada de maneira ascendente”
(Moita Lopes, 1996b: 139).
Segundo Adam e Collins (1979, p. 5), os processamentos
top down e bottom up deveriam ocorrer em todos os níveis de
análise simultaneamente. Os dados necessários para usar es-
quemas de conhecimentos são acessíveis através de um pro-
cessamento bottom up; já o processamento top down facilita
sua compreensão quando eles são antecipados ou quando
eles são consistentes com a rede conceitual do leitor.
O processamento bottom up assegura que o leitor será sen-
sível a informação nova ou inconsistente com suas hipóteses
preditivas sobre o conteúdo do texto. O processamento top
down ajuda o leitor a resolver ambiguidades ou a selecionar,
entre várias, possíveis interpretações dos dados.
As estratégias cognitivistas de leitura condenam a leitura
tida apenas como decodificadora e propõem modelos intera-
cionais, nos quais o autor e o leitor devem construir juntos
o sentido do texto.
Os textos usados na aula de LE são, naturalmente, mar-
cados ideologicamente e essas marcas ideológicas não de-
vem ser disfarçadas pelo professor, escondidas ou ignoradas
em nome da imparcialidade. O professor terá que assumir
a presença delas e apresentá-las ao aluno, demonstrando
o funcionamento ideológico dos vários tipos de discurso,
sensibilizando o aluno para a força ilocutória presente em
cada texto, tornando-o consciente de que a linguagem é
uma forma de agir, de influenciar, de intervir no comporta-
mento alheio, de modo que é por meio dela que as pessoas
atuam umas sobre as outras.

161
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Segundo Brággio (1992, p. 69), a atividade com a leitura


deve ser vista dentro de uma matriz pessoal, social, históri-
ca e cultural, pois não é apenas o que o leitor traz para a o
processo de leitura que gera a contextualização para o ato
de simbolização, mas também as circunstâncias socialmente
moldadas e o propósito da leitura.
Conforme o já exposto, pressupõe-se que para ler é pre-
ciso acionar as habilidades de decodificação e encaminhar
ao texto os objetivos, ideias e experiências de mundo do lei-
tor, considerando que, para que se faça uma leitura eficien-
te, é necessário o envolvimento do leitor em um processo
de previsões e inferências que se apoiam nas informações
proporcionadas pelo texto e no seu background enquanto ser
historicamente situado.
Também se supõe que o leitor seja um processador ativo do
texto, e que a leitura se constitua em um processo constante
de emissão e verificação de hipóteses que geram a construção
da compreensão do texto e do controle de tal compreensão.

3 a l e i t u r a i n s t r u m e n ta l e m l í n g u a
estrangeira (le)

O termo inglês instrumental é parte de um movimento maior


na área de ensino de estrangeira, denominado língua para fins
específicos (Language for Specific Purposes – LSP), no qual se
insere o ensino de qualquer língua estrangeira com foco nas
necessidades específicas do aprendiz, objetivando o uso da lín-
gua-alvo para desempenho de tarefas comunicativas, sejam elas
de produção ou compreensão oral ou escrita naquela língua.
Howatt (1984) assinala os anos 60 como o período em
que o ensino instrumental começou a tomar corpo como ati-
vidade vital na área de ensino de inglês como segunda língua

162
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

e/ou como língua estrangeira, culminando, inclusive, com a


publicação dos primeiros livros de inglês instrumental.
Com o advento dessa tendência, inúmeros cursos instru-
mentais espalharam-se pelo mundo, principalmente a partir
de projetos financiados por órgãos como o Conselho Britâni-
co ou outros órgãos ligados aos governos de países de língua
inglesa. No Brasil, as necessidades dos alunos do programa
de mestrado em Linguística Aplicada ao Ensino de Línguas
da PUC-SP, advindos de diversas partes do país, levou a en-
tão coordenadora do programa, no final dos anos 70, ao de-
senvolvimento de um projeto em âmbito nacional, o Projeto
Ensino de Inglês Instrumental em Universidades Brasileiras,
que culminou, mais tarde, na criação do Centro de Pesquisas,
Recursos e Informação em Leitura (CEPRIL) e a publicação
do periódico The ESPecialist (CELANI et al., 1978), além da
constante pesquisa dos mais diversos aspectos teóricos e prá-
ticos relacionados ao assunto, a saber, produção de materiais,
apoio à professores, congressos e ensino, não só de inglês,
mas também de francês e português instrumentais.
Kennedy & Bolitho (1984) teorizam os principais desenvol-
vimentos do ensino de inglês instrumental, focando em dois
pontos principais: o caminho em direção ao foco no aprendiz e
a mudança de visão de linguagem, não apenas como um con-
junto de regras gramaticais, mas como um conjunto de funções,
derivando-se daí a definição de inglês instrumental.
Destaca-se aqui que o ensino de inglês instrumental deve ser
visto como uma abordagem e não como um produto, ou seja, ao
definirmos, através de análise de necessidades, devemos pensar
para que exatamente o aprendiz necessita do inglês e trabalhar-
mos de acordo com essas necessidades, seguindo o princípio
básico do inglês instrumental; devemos ter em mente a simples
pergunta: “Por que esse aprendiz precisa aprender uma língua
estrangeira?” (HUTCHINSON & WATERS, 1987, p. 19).

163
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Para Dudley-Evans & St John (1996), o ensino de In-


glês Instrumental deve refletir o fato de que a metodologia
instrumental difere da metodologia utilizada no ensino de
inglês para fins gerais, uma vez que, numa situação envol-
vendo o ensino instrumental, o professor passa a ser mais
um consultor, ao passo que o aluno mantém o seu status de
especialista em sua área de atuação. Podemos inferir aqui
que, para esses autores, portanto, a diferença reside princi-
palmente na interação aluno-professor, pois o professor, em
função do conhecimento técnico do aluno, passará a desem-
penhar a função de consultor linguístico.
Verificamos, com base nas definições apresentadas, que
podemos definir três traços distintivos para o ensino de in-
glês instrumental:
a. a análise de necessidades;
b. os objetivos claramente definidos;
c. o conteúdo específico.

Tais traços foram observados na produção do material di-


dático que será analisado e apresentado na próxima seção.

4 conteúdo e método

Nossa proposta se restringe a análise do modelo interativo


nas questões de interpretação de uma unidade de um Cader-
no Didático, produzido por duas professoras de LE (espa-
nhol e inglês), de um Colégio Agrícola Federal do interior do
Estado do Rio Grande do Sul.
Delimitamos nossa análise à unidade destinada aos
aprendizes de Língua Inglesa, especificamente utilizando a
proposta instrumental para alunos do ensino médio integra-
do de agropecuária.

164
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Esses alunos, adolescentes de 15 a 17 anos de idade, são


provenientes de diferentes regiões do Brasil e, na sua maioria,
são alunos internos do Colégio Agrícola.
Buscou-se, dessa forma, analisar a unidade referente à te-
mática das drogas, antes da introdução de temas relaciona-
dos à prática da agricultura, uma vez que é um tema comum
e um problema mundial, principalmente para adolescentes.

5 a n á l i s e e d i s c u s s ã o d o s r e s u lta d o s

5.1 Atividade de pré-leitura

Cada unidade do Caderno didático apresentava um nome. O


nome da unidade analisada é Family Talk. Como atividade
de pré-leitura, a professora de LI propôs a relação do nome
da unidade com o texto 1, intitulado DRUG ENDANGERED
CHILDREN (DEC).
De acordo com o modelo interativo, essa proposta con-
templa a relação de significados presentes nos dois textos e,
consequentemente, exige do leitor a utilização do seu conhe-
cimento prévio sobre o assunto.

exercícios
1. Qual é a relação entre o título desta unidade e a informação
apresentada no depoimento intitulado Drug endangered
children? Formule suas hipóteses, leia os textos e verifique
se elas são confirmadas.

Ainda na atividade de pré-leitura, temos a segunda ques-


tão que busca relacionar o tema proposto com a realidade na
qual o leitor está inserido. Essa estratégia contempla o que os

165
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

autores afirmam sobre as experiências prévias de que o leitor


dispõe e que são responsáveis pela compreensão do que se lê.
O texto, dessa forma, apresenta lacunas a serem preenchi-
das pelo leitor com o seu conhecimento de mundo.

2. Há um programa de prevenção semelhante em seu país?

5.2 Atividade de leitura

Nesta seção, trataremos das questões de leitura do texto 2, um


anúncio publicitário, dirigido aos pais, advertindo-os a conver-
sarem com seus filhos sobre o real problema do uso das drogas.
Nelas, encontramos os seguintes questionamentos (per-
tencentes a compreensão geral).

1. Que tipo de texto você acabou de ler? Uma reportagem, um


anúncio publicitário ou uma notícia de jornal?
2. Como você explica o título In your kid´s eyes, you still have
all the answers.?
3. O que o autor propõe ao público leitor?
4. A quem, especificamente, este texto é dirigido?

Como podemos perceber, temos aí o exemplo do modelo in-


terativo, pois as questões possibilitam que o leitor acione o seu
conhecimento de mundo e o relacione com o sentido do texto.
Observamos que a autora das questões busca um diálogo com o
leitor que o conduz a aprofundar-se na temática da unidade.
Na sequência, encontramos atividades voltadas ao estudo
do vocabulário e dos enunciados presentes nos textos 1 e 2.
Essas atividades mesclam os dois modelos bottom up e top down,
uma vez que exigem tanto o conhecimento linguístico (no nível
dos sinais gráficos) quanto do significado desses elementos.

166
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Encontre, nos textos Drug endangered children e In your kid´s


eyes have all the answers, as palavras ou frases que correspon-
dem às palavras, frases e definições a seguir:
1. Cause of danger, something or someone that is likely to
cause harmor danger
2. To deliberatelyuse something such as power or authority,
for thewrong purpose
3. Damage, injury, or trouble caused by someone´s action or
by an event
4. To not look after someone or something properly
5. To give someone something and receive another thing back

Já nas atividades de compreensão detalhada, a autora


propõe a verificação das afirmações sobre o texto. Se as afir-
mações são verdadeiras ou falsas, de acordo com as ideias
apresentadas no contexto lido. Mais uma vez, encontra-
mos a aplicação do modelo interativo, pois nessa atividade
o sentido é acionado a partir do reconhecimento do leitor
frente à leitura estabelecida.

true or false?
Leia as afirmações abaixo e assinale as que não estiverem de
acordo com o texto, corrigindo-as.
1. A drug endangered child is a person, under the age of 17,
who lives in or is exposed to a healthy environment.
2. The child that is at risk cannot experience physical, sexual,
or emotional abuse.
3. In exchange for drugs or in exchange for money, the child
can have bad and dangerous experiences.
4. Both texts agree with the idea that teenagers and their par-
ents should talk to avoid the use of illicit things.
5. The ad about warning parents against talking to their kids
offer a free guide preventing underage drinking.

167
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

5.3 Atividade de pós-leitura

Na atividade de pós-leitura, encontramos a proposta de produ-


ção textual. Essa proposta corrobora com o que apresentamos
na introdução deste texto, a saber: o letramento. Aqui a autora
busca trabalhar com as habilidades de leitura e de escrita, em
um contexto específico, buscando relacionar as necessidades,
valores e práticas sociais do aprendiz de língua inglesa (LI).

talk it over
Discuta e pesquise com seus colegas e professores os possí-
veis modos de prevenção contra as drogas e bebidas, envol-
vendo o público jovem. Produza um cartaz, em inglês, com
informações sobre os perigos no uso de drogas e bebidas
alcoólicas, apresentando as instituições, grupos de proteção
e ONGs que trabalhem em prol dessa problemática. Veja al-
guns cartazes referentes às campanhas internacionais de pre-
venção contra as drogas e bebidas alcoólicas.

6 conclusão

Nossa proposta confirmou, conforme a perspectiva desta


pesquisa, que, para ler, é preciso manejar com destreza as
habilidades de decodificação e encaminhar ao texto os obje-
tivos, ideias e experiências de mundo do leitor.
Consideramos que, para que se faça uma leitura eficiente,
é necessário envolvimento em um processo de previsões e
inferências que se apoiam nas informações proporcionadas
pelo texto e na bagagem do leitor.
Também supomos que o leitor seja um processador ativo do
texto, e que a leitura se constitua em um movimento frequente

168
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

de emissão e verificação de hipóteses que geram a construção


da compreensão e de seu controle num contexto situado.
Quanto à análise realizada neste texto, verificou-se que a
autora, das atividades em LI Instrumental, aplicou o modelo
interativo em sua proposta de leitura, observando aspectos
importantes referentes ao letramento em LE, tais como o uso
e a prática social de linguagem, envolvendo a escrita, reco-
brindo contextos sociais diversos (família, escola, trabalho,
mídia etc.), envolvendo aspectos sociológicos, antropológi-
cos e socioculturais (ROJO, 2009).
Finalizamos este texto, reforçando o papel social da escola
e do professor no âmbito da leitura e em todos os espaços
que ela permite a ascensão da cidadania, enfatizando que os
processos cognitivos envolvidos durante a leitura são de na-
tureza distinta, mas atuam de forma interativa e simultânea
na construção do significado do texto.

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projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

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170
p r át i c a s d e l e t r a m e n t o n o p r o e j a :

b u s c a n d o n o pa s s a d o u m a

identidade cidadã

Silvania Faccin Colaço

1 a c o n t e x t u a l i z a ç ã o d a p r át i c a

O curso do PROEJA (Programa de Integração da Educação


Profissional ao Ensino Médio na Modalidade de Educação
de Jovens e Adultos) do Campus de São Vicente do Sul, do
Instituto Federal Farroupilha, busca melhorar as condições
de inserção social, econômica, política e cultural dos jovens
e adultos da região, considerando que uma educação contex-
tualizada e emancipatória contribui para o desenvolvimento
local e regional de modo sustentável. O curso Técnico em In-
formática, modalidade de PROEJA, possibilita, também, me-
lhoria na qualificação de pessoas na região do Vale do Jaguari,
em consonância com a realidade econômica e social. Como
docente de Língua Portuguesa no curso descrito, apresento,
neste artigo, uma prática desenvolvida no ano de 2010, em
que o foco da disciplina é a leitura e produção textual.
O currículo do Curso inclui conteúdos integrados ao En-
sino Técnico, com vistas a desenvolver competências relati-
vas ao profissional na área de Informática – Linguagem de

171
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Programação1. Assim, foram desenvolvidas atividades cen-


tradas nos gêneros discursivos (BAKHTIN, 2000), inseridos
em práticas de letramento (STREET, 1995), que possibilitam
trabalhar leitura e escrita de forma contextualizada, em situ-
ações reais de uso. Acredita-se que, dessa forma, as aprendi-
zagens se tornem mais significativas e efetivas.
Entre as práticas desenvolvidas durante o período letivo,
nas aulas de Língua Portuguesa, foram realizadas diversas ativi-
dades integradoras, buscando-se o desenvolvimento de habili-
dades de leitura e produção textual. Neste artigo, especialmen-
te, relata-se a experiência centrada nas histórias de vida de 15
sujeitos, participantes das aulas, em que foi construída a prática
social de reconstrução de sua história, para entender o passa-
do, valorizar o presente e projetar o futuro. Foram trabalhados
diversos gêneros discursivos que possibilitaram a realização da
prática, como relato, entrevista, resumo, esquema, entre outros.
Frente ao exposto, faz-se necessário aprofundar, no pró-
ximo capítulo, os conceitos já mencionados sobre gênero e
letramentos. A seguir, expõem-se a perspectiva metodológica
e a contextualização da experiência. Por fim, apresentam-se
os resultados obtidos e as aprendizagens mais significativas
dos estudantes envolvidos nessa prática de letramento.

2 o embasamento teórico

2.1 As práticas de letramento

O aporte teórico deste estudo baseia-se nos Novos Estudos


de Letramento (STREET, 1995), que consideram o letramen-

1. Conforme PPC do Curso Técnico em Informática – PROEJA, 2008

172
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

to crítico, no sentido de dar ênfase aos aspectos ideológicos


da prática social. Essa visão ideológica de Street leva aos le-
tramentos, no plural, como letramentos múltiplos a que o su-
jeito está exposto no seu contexto social. O termo tornou-se
plural para rejeitar uma noção unitária de letramento que
estava se tornando quase um sentido universal do termo.
As práticas de letramento, para Street (1995), são os episó-
dios observáveis que se formam e se constituem pelas práticas
sociais. Nesses eventos, o texto escrito passa a fazer parte da
interação do sujeito com o contexto comunicativo. Conforme
Gee (1999), o sentido do texto é regulado pelo contexto em
que está inserido. Assim, segundo Fischer (2007), baseada
em Gee (1999), as formas de falar, ouvir, ler, escrever, agir, in-
teragir, acreditar, valorizar e sentir são reveladas pelos Discur-
sos, com D maiúsculo e no plural, que são as formas de ser no
mundo, produto social e histórico, constituindo a linguagem.
Não é possível separar o sujeito do contexto e dos recur-
sos envolvidos na sua aprendizagem. Como este estudo está
situado em contexto escolar, leitura e escrita, nesse contex-
to, constituem os letramentos básicos de textos escolares e
não-escolares, isto é, os que ocorrem tanto dentro como fora
da escola, na vida social. Para Bartlett (2007), letramento é
algo que alguém ativamente faz, evitando a noção de estar
letrado, pois é uma realização contínua, parecendo (relação
interpessoal) e sentindo-se letrado (relação intrapessoal).
Lea e Street (2006) abordam que a leitura e a escrita, em
contextos acadêmicos, podem ser conceituadas através do uso
de três perspectivas ou modelos: (a) um estudo do modelo de
competências, (b) um modelo de socialização acadêmica e (c)
um modelo de letramento acadêmico. O primeiro é mais cogni-
tivo e formal, o segundo é voltado para a reprodução de gêne-
ros e discursos em outros contextos e o terceiro é centrado nas
relações de sentido e poder que ocorrem nas instituições. Acre-

173
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

dita-se que um estudo voltado apenas para as habilidades deixa


de trabalhar questões situacionais importantes para a transfe-
rência de aprendizagens; também o estudo centrado apenas
na socialização de gêneros discursivos deixa de contemplar as
práticas sociais. Assim, é preciso que se considere a perspectiva
de letramentos acadêmicos, que é a mais abrangente.
Na sociedade multissemiótica em que vivemos, os letra-
mentos também são múltiplos. O Grupo da Nova Londres
(NEW LONDON GROUP, 1996) propõe que os novos letra-
mentos da mídia e da internet constituem os multiletramen-
tos, que trazem uma diversidade e pluralidade cultural e se-
miótica. Há uma proliferação das maneiras multimodais de
produzir significado, em que as palavras escritas dialogam
com o visual, o sonoro e o espacial, com a saliência da diver-
sidade cultural-linguística, como diversidade local e conexão
global. O grupo traz os estudos para o ensino, na chamada
Pedagogia dos Multiletramentos, em que as diferenças cultu-
rais, sociais ou de contextos de domínios específicos signifi-
cam que não basta mais para as atividades de letramento na
escola focar nas regras da língua padrão, das formas canôni-
cas do gênero, etc., no ensino de língua materna.
A Pedagogia do New London Group envolve quatro princí-
pios pedagógicos: práticas situadas, instrução explícita, enqua-
dramento crítico e prática transformadora: (a) as práticas situa-
das advêm da construção de experiência de vida do estudante,
da construção de sentidos situados em contextos reais, com
a imersão dos alunos em práticas de Letramento; (b) a instru-
ção explícita guia o estudante pelo uso de uma metalinguagem
explícita da prática de letramento, incluindo apoio e estímu-
lo constantes aos estudantes, com esforços colaborativos; (c)
o enquadramento crítico encoraja os alunos a interpretarem o
contexto social e os propósitos dos sentidos da prática de letra-
mento; e (d) a prática transformadora ocorre quando os alunos

174
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

transformam sentidos existentes em novos sentidos, assumin-


do-se como produtores de sentido, com autoria própria.
Nesses letramentos múltiplos, os gêneros discursivos circu-
lam dentro de cada esfera ou campo (BAKHTIN, 2000), em que
os textos multissemióticos cada vez mais ocorrem em espaços
diversos. Portanto, pode-se afirmar que as práticas de letramen-
to ou letramentos múltiplos abrangem os gêneros discursivos.

2.2 Os gêneros discursivos nas práticas de


letramento

O ensino de Língua Portuguesa na escola, atualmente, prio-


riza o trabalho com a leitura e escrita, a partir de textos orais
e escritos reais, do cotidiano do aluno, as quais se manifes-
tam em forma de gêneros discursivos, conforme previsto nos
documentos oficiais, como os PCNs e as Diretrizes Curri-
culares Nacionais. Nesse contexto, é preciso destacar que a
língua envolve sujeitos, história, situação, sociedade, práticas
sociais. Se a língua fosse ensinada em si mesma, seria fácil,
porém ela é um conjunto de práticas sociocomunicativas.
É necessário que se verifique o que a escola pode oferecer
ao aluno em termos de ensino de língua. Precisa-se considerar
que a aula de língua materna é um trabalho com o funciona-
mento da língua na sociedade, na ação social, que leve o aluno
a ser um cidadão, isto é, que ele se torne letrado nas situações
de uso da linguagem e, assim, promova-se a inclusão social.
A língua é interação, num processo dialógico (BAKHTIN,
2000), realizado pelos gêneros discursivos, que ocorrem na
relação com os contextos. A escola não precisa ensinar gêne-
ros, mas na perspectiva dos gêneros. Usa-se aqui o termo “gê-
neros discursivos”, na perscpeciva de Bakhtin (2000), que de-
fine gênero não só pela língua, mas de acordo com seu papel

175
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

na sociedade, isto é, com sua função discursiva no funciona-


mento da sociedade. Como organizações sociocomunicativas,
os gêneros são peças de organização social e podem variar de
uma cultura para outra. Assim, é preciso analisar a cultura em
que o texto é produzido, isto é, a relação nas práticas sociais,
pois o que define um gênero é a situação social de uso.
O ensino de língua é um tipo de ação que transcende o
meramente interno ao sistema da língua, indo além da ati-
vidade comunicativa e informacional, e isto é uma possibi-
lidade para o ensino situado em contextos reais da vida co-
tidiana. Optou-se por uma teoria discursiva, que coloca o
gênero no seguinte panorama: práticas sociais de linguagem,
práticas de letramento, práticas que se dão de forma situada,
em situação de comunicação. Um elemento organizador de
análise disso é a esfera comunicativa ou esfera de produção,
de circulação, considerada como tempo e lugar histórico, na
relação de seus participantes, em diferentes modalidades se-
mióticas e em diferentes mídias. Verifica-se, então, uma rela-
ção do gênero como organizador social, mas dependente das
práticas sociais e das diferenças culturais. Portanto, o ensino
de língua é uma ação que transcende o meramente interno ao
sistema e vai além da atividade comunicativa e informacional,
num ensino situado em contextos reais da vida cotidiana.
Bakhtin (2000) considera que existe um número infinito
de gêneros discursivos, de acordo com as práticas sociais das
diversas esferas da atividade humana: crônicas, contos, cartas,
receitas, diálogos, convites, etc. Afirma, ainda, que esses gê-
neros vão se modificando de acordo com as necessidades de
uso. Bakhtin (2000) faz distinção dos gêneros primários (sim-
ples) e secundários (complexos), relacionando-os às práticas
comunicativas menos ou mais formais respectivamente. Isto é,
textos como o romance, o teatro, o discurso científico, o dis-
curso ideológico são mais complexos e ocorrem mais na forma

176
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

escrita, enquanto os textos simples, como cartas, receitas, etc


ocorrem em práticas mais usuais ou até mesmo podem estar
inseridos nos textos complexos, pois um gênero pode envol-
ver vários na sua constituição, evidenciando a ‘transmutação’
(BAKHTIN, 2000, p. 281). Acredita-se que tanto uns como ou-
tros precisem de atenção na escola, tendo em vista que fazem
parte dos letramentos dos sujeitos nas práticas sociais.
O autor considera que “a língua penetra na vida através
dos enunciados concretos que a realizam, e é também atra-
vés dos enunciados concretos que a vida penetra na língua”
(BAKHTIN, 2000, p.282), numa concepção interativa e socio-
comunicativa da vida social. De acordo com a ideia de que
gênero é uma peça da sociedade, o que define um gênero é
sua situação social de uso, ou seja, sua função. Segundo o
Kress, “os fatores sociais fornecem as categorias que produ-
zem as formas linguísticas” (KRESS, 1999, p. 31), sendo que,
no trabalho com a linguagem, a matriz social dá sentido à
estrutura da língua. O autor ainda enfatiza que certos gêne-
ros não irão acontecer em certos tipos de discurso, pois os
gêneros são relacionados com os modos de fala e escrita.
Todo texto, como uma unidade de análise, tem, além do
produtor, um destinatário, um contexto de produção, por-
tanto uma origem social. No estudo de gêneros, pode-se ver
quais os atores que participam, em que circunstâncias, quem
está autorizado a produzi-los, como se organiza a sociedade
e em que suportes estes gêneros se realizam. As diversas for-
mas típicas de dirigir-se a alguém e as diversas concepções do
destinatário são as particularidades constitutivas que deter-
minam a diversidade dos gêneros do discurso. Na concepção
de gênero proposta por Kress (1999), vê-se que a linguagem
reflete e constrói certas relações de poder e autoridade, in-
teressando quem tem o poder de iniciar ou de completar o
enunciado e como as relações de poder são realizadas linguis-

177
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ticamente. Assim, ele vê na aprendizagem a partir dos gêneros


um dispositivo para analisar a sociedade, na sua pluralidade.
Bazerman (2005) apresenta uma noção abrangente de gê-
nero discursivo, pois ultrapassa os aspectos formais da recor-
rência textual e invoca o contexto dos usos reais da língua,
preocupando-se com o estudo da circulação dos discursos.
O autor apresenta uma visão de gênero no seu conjunto de
produção e recepção e não somente no seu aspecto individu-
al. Mais importantes do que as características textuais fixas
de cada gênero, são os usos e os papéis dos indivíduos que se
utilizam dos gêneros textuais para sua interação social.
Ao enfocar gênero, é preciso deixar claro que os textos
são produzidos para cumprir com alguma função social, se-
guindo as convenções de uma determinada cultura, como
produto das relações entre os interlocutores, com formas e
estruturas da língua envolvidas na produção do gênero, bem
como as relações de poder que entram na produção e na ma-
nutenção da forma genérica. Dessa forma, os gêneros discur-
sivos podem ser considerados como uma categoria cultural,
uma forma de ação social, presente nas práticas sociais.

3 o r e l at o d a e x p e r i ê n c i a

De acordo com o Projeto Pedagógico do Curso de Informáti-


ca, modalidade PROEJA, em nível médio, a disciplina de Lín-
gua Portuguesa trabalha os conteúdos voltados para o exer-
cício da cidadania e para o melhor desempenho profissional,
nas atividades de leitura e escrita.
Buscou-se, portanto, uma proposta de trabalho que pos-
sibilitasse aprendizagens significativas nas aulas de Língua
Portuguesa, com vistas a melhorar os letramentos dos sujeitos,
para exercerem suas práticas escolares e não-escolares de leitu-

178
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ra e escrita. Para tal, trabalhar com os letramentos críticos per-


mite a inserção dos alunos em suas práticas letradas, de forma
que se sintam mais seguros e incluídos na sociedade. Sabe-se
que os sujeitos que procuram cursos na modalidade de Edu-
cação de Jovens e Adultos, geralmente, buscam sua reinserção
na sociedade letrada, pois muitos estavam afastados da escola
há anos. E aqueles que buscam, além disso, uma forma de pro-
fissionalização, mais ainda lutam por um espaço de dignidade
no trabalho e inclusão nas práticas sociais dominantes. A partir
daí, o professor de língua materna precisa trazer para a sala de
aula gêneros discursivos variados, tanto os ditos gêneros do
domínio escolar, como os da profissão almejada e, ainda, os
das práticas sociais em geral. De acordo com os papéis sociais
que realiza, o sujeito usará gêneros específicos conforme o do-
mínio discursivo e a intenção a ser cumprida.
Usando a perspectiva dos Novos Estudos do Letramento
(STREET, 1995), esta proposta didática apresenta um relato de
experiência que buscou, por meio de práticas de letramento,
uma aprendizagem significativa e envolvente, que despertasse
o interesse dos alunos para a leitura e produção de textos de
gêneros variados, indo além de conteúdos gramaticais, am-
pliando as práticas de uso de leitura e escrita para o discurso
e as funções sociais dos textos inseridos nessas práticas.
Inicialmente, foi lançado um desafio para os estudantes,
que deveriam pesquisar e contar a sua história de vida, com
o objetivo de valorizar o passado, sua história, sua identidade
e suas raízes; entender o presente em que estão inseridos e
projetar o futuro a partir das ações que estão realizando hoje.
Busca-se, assim, inserir os alunos nas práticas situadas, a par-
tir da construção de suas experiências de vida, em contextos
reais. Os alunos ficaram motivados a buscar dados sobre sua
vida, a entrevistar pessoas da família, a realizarem práticas de
letramento em contextos situados e, a partir disso, montar o

179
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

material, que deveria envolver também seus conhecimentos


das disciplinas do curso de informática.
O segundo passo foi decidir quais gêneros textuais cum-
pririam a função de resgatar sua história de vida. Foi deci-
dido que precisariam usar diversos gêneros orais, escritos e
virtuais: entrevistas, fotografias, cartas, relatos, mapas, canti-
gas, receitas, orações, documentos pessoais, resumos, esque-
mas, depoimentos, telefonemas, e-mails, entre outros. Assim,
as aulas seguintes foram pautadas nesses gêneros, em que
se trabalharam seus usos, função discursiva e características
mais ou menos recorrentes (BAKHTIN, 2000).
É preciso destacar que os gêneros não foram trabalhados
apenas para uma socialização e conhecimento dos mesmos,
mas muito além disso, como eles eram usados para cumprir a
prática social de contar histórias de vida. Foi realizada a leitura
de textos dos gêneros citados acima, em aula, e, na sequência,
os alunos produziram os seus próprios textos e trouxeram para
a sala de aula a fim de aprimorá-los. Os conteúdos textuais,
discursivos e linguísticos iam sendo trabalhados à medida que
surgiam as necessidades, como: vocabulário, marcas da narra-
ção, uso de tempos verbais, pessoas do discurso, adequação
da linguagem, expressões avaliativas, marcas de coesão textual,
clareza e coerência na explanação das ideias, pontuação, etc.
A instrução explícita da professora foi orientar os alunos pelo
uso de uma metalinguagem explícita da prática de letramen-
to, com apoio e estímulo constantes. Desse modo, os conteú-
dos emergiam dos textos e eram trabalhados de forma natural,
cumprindo com os interesses dos alunos. A atividade de leitura,
construção e reescritura textual era permanente, considerando
sempre as ideologias e relações de poder existentes nas práti-
cas sociais, destacando as funções dos gêneros nessas práticas:
quem escreveu, para quem foi escrito, em que situação, qual o
veículo de publicação, a época, o contexto, etc.

180
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

A partir dessa pesquisa, os alunos partiram para o terceiro


passo do trabalho, que foi montar um texto contando a sua
história, usando imagens e músicas para ilustrá-lo. O texto
foi construído e reconstruído em aula, a partir das orienta-
ções da professora, constituindo-se na instrução explícita, in-
dispensável nesta etapa do trabalho. Após, os alunos intera-
giram com a turma de informática do Ensino Médio, para
aprimorar conhecimentos e trocar experiências, constituindo
uma prática colaborativa. Com isso, eles descobriram mais
recursos que poderiam usar nos materiais que estavam mon-
tando no computador. O enquadramento crítico encorajou-os
a interpretarem o contexto social e os propósitos dos senti-
dos da prática de letramento em que estavam inseridos.
Como resultado e último momento do trabalho, os textos
foram apresentados num seminário, em aula, sob a forma de
vídeos ou power point. Verificou-se que os alunos consegui-
ram cumprir com os objetivos do projeto, usando seus mul-
tiletramentos. Percebeu-se o envolvimento de todos, mesmo
dos que, no início, mostraram-se um pouco relutantes. E o
que mais impressionou foi a satisfação e o orgulho de apre-
sentar a sua história aos colegas, bem como o entusiasmo de
conhecer um pouco mais os colegas da turma, com quem
conviviam há quase dois anos e de quem pouco sabiam. Eles
assumiram a autoria de seus textos, numa prática transforma-
dora, em que se viram como produtores de sentido. As iden-
tidades foram valorizadas, e muitos relataram que o curso do
PROEJA estava lhes dando a possibilidade de se sentirem le-
trados (BARTLETT, 2007) e de projetarem um futuro melhor
para si, tanto no aspecto pessoal como no profissional.

181
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

4 as aprendizagens que ficaram

Torna-se imprescindível relatar que são muitas as aprendiza-


gens que advêm dessa proposta prática. Entre elas, destaca-se a
importância de trabalhar os letramentos que emergem da cul-
tura, do contexto e das relações sociais em uso. Quando os alu-
nos foram solicitados a buscarem a sua história, esses aspectos
afloraram e serviram de ponto de partida para as aprendizagens.
Verificou-se a importância de a escola trabalhar com dife-
rentes textos, tanto os ditos escolares, como os que não têm
tradição escolar, mas que fazem parte da vida cotidiana dos
alunos. Dessa forma, abordaram-se diferentes linguagens,
transformando seu papel de simples reprodutora de infor-
mações para uma escola construtora de saberes. Essa forma
de trabalho possibilita os letramentos múltiplos do sujeito
para agir nas práticas sociais.
Os alunos foram adquirindo autonomia no uso de alguns
gêneros em que apresentavam, inicialmente, maior dificulda-
de, como se verificou na produção de relatos e resumos. Na
medida em que recebiam orientações da professora e refa-
ziam seus textos, demonstravam estar mais seguros na escola
e realizados como pessoa. Segundo Street (2009), ler e escre-
ver são relações de poder e autoridade. Os alunos do PROE-
JA puderam “se sentir” na condição de produtores de textos,
ou seja, produtores de seus próprios discursos (OLIVEIRA,
2009). Isso deu a eles autoria e possibilitou-lhes a fixação da
identidade de sujeitos letrados.
São muitos os meios de produzir textos, mas convém des-
tacar que não basta mais trabalhar apenas o letramento da
letra, o escrito, o impresso, mas as representações multimo-
dais, as mídias digitais, não simplesmente como um suporte,
mas como uma ferramenta de produção. O ensino do manejo
dos programas de produção de vídeo, de áudio, de escrita

182
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

e de produções digitais constitui um avanço recente e mais


significativo na sociedade multissemiótica.
Por fim, destaca-se que trabalhar numa perspectiva de letra-
mento acadêmico (LEA; STREET, 2006), com gêneros que circu-
lam dentro de projetos de prática situada, constitui-se numa pro-
posta de encaminhamento didático, como solução para muitos
conflitos do ensino atual, principalmente, de língua materna. E
essa prática pode estender-se a todas as áreas do conhecimento,
todas as disciplinas, facilitando, inclusive a interdisciplinarida-
de na escola. Essas aprendizagens, a partir de práticas de letra-
mento, mostraram que a identidade cidadã precisa ser reforçada
numa comunidade de educação de jovens e adultos, pois ao se
reconhecerem como sujeitos letrados, atingem maior segurança
para sua inclusão no trabalho e na sociedade.

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Carvalho. Disponível em: <http://www.ceale.fae.ufmg.br> ISSN 1981-6847

184
o jornal na sala de aula:

p r o j e t o d e l e t r a m e n t o pa r a o

e n s i n o d a l e i t u r a e e s c r i ta 1

Cândida Martins Pinto

1 o pa n o r a m a d a e x p e r i ê n c i a

Tendo em vista o trabalho pedagógico que desenvolvo como


docente de Língua Portuguesa em cursos profissionalizantes,
procuro descrever neste texto uma experiência de prática de
letramento ocorrida no primeiro semestre de 2011, junto ao
curso Técnico em Secretariado, do Instituto Federal Farrou-
pilha – Campus São Vicente do Sul.
Durante as aulas da disciplina de Língua Portuguesa, bus-
cou-se desenvolver um trabalho pautado na concepção de
sistemas de gêneros de Bazerman (2005), na definição de gê-
neros textuais de Dolz e Scheneuwly (2004), bem como nos
Novos Estudos do Letramento (ROJO, 2009; STREET, 2003 e
HEATH, 1982). Essas vertentes teóricas foram selecionadas já
que se assume o pressuposto que ensinar línguas é trabalhar

1. Artigo originalmente apresentado no XIII Simpósio Nacional de Letras e


Linguística e III Seminário Internacional de Letras e Linguística, ocorrido
em novembro de 2011, na Universidade Federal de Uberlândia – MG.

185
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

com práticas sociais por meio da escrita de diferentes gêne-


ros textuais significativos para o contexto em que se insere
essa prática. Nesse sentido, opta-se por não se ensinar gênero
como tal e sim se trabalhar com a compreensão de seu fun-
cionamento na sociedade e na sua relação com os indivíduos
situados em uma determinada cultura (BAZERMAN, 2005).
Dessa forma, o programa de ensino da disciplina buscou
trabalhar com leitura, interpretação e produção de um con-
junto de gêneros textuais compatíveis com o sistema de ativi-
dades do contexto profissional do futuro Técnico em Secreta-
riado, a saber; notícia, reportagem, resenha, entrevista, artigo
de opinião e editorial. Os gêneros foram publicados em um
jornal do Curso intitulado Jornal do Secretariado: Secretarian-
do e Informando, e houve uma cerimônia de divulgação para
a comunidade escolar dessa atividade prática.
Frente ao exposto, faz-se necessário aprofundar, no pró-
ximo capítulo, os conceitos já mencionados sobre gênero e
letramentos. A seguir, expõem-se a perspectiva metodológica
e a contextualização da experiência. Por fim, apresentam-se
os resultados obtidos – motivações e aprendizagens – com os
estudantes envolvidos nessa prática de letramento.

2 letramentos e gêneros textuais

Para os Novos Estudos do Letramento (STREET, 2003), o


conceito de letramento surge como forma de explicar o im-
pacto da escrita em todas as esferas de atividades. Por ter
uma concepção social da escrita, todo letramento está sem-
pre situado em práticas sociais específicas, inseparáveis dos
contextos em que se desenvolvem. Essa visão, conforme ar-
gumenta Fischer (2007, p. 24), é posta em contraste a uma
concepção de cunho tradicional que considera a prática da

186
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

leitura e escrita apenas como uma “habilidade técnica, neu-


tra, imutável e/ou universal situada no interior dos indivídu-
os”. Além disso, essa concepção de ‘novo’ impõe o reconhe-
cimento de múltiplos letramentos, já que os usos da leitura e
escrita variam em diferentes domínios (escola, casa, trabalho,
instituições religiosas), em diferentes linguagens, situações,
tempo e contextos. Outros autores, como os filiados ao New
London Group (1996), preferem o termo ‘multiletramentos’, o
qual é usado para indicar que leitura e escrita, além da lin-
guagem verbal, estão cercadas por recursos semióticos que
envolvem o visual, o auditivo, o espacial.
A partir desse conceito de letramentos múltiplos, que
exigem diferentes práticas de letramentos e atendem a dife-
rentes funções e propósitos (OLIVEIRA, 2010), parte-se para
duas importantes distinções propostas por Street (2003) e
Barton e Hamilton (2000): (1) modelos de letramento autô-
nomo e ideológico e (2) práticas de letramento e evento de
letramento, as quais passam-se a descrever.
De acordo com Street (2003), o letramento autônomo
corresponde à visão dominante na escola tradicional de que
as práticas letradas são descoladas dos usos e das relações de
poder na sociedade. Já o letramento ideológico diz respeito à
visão de próprio autor de que essas práticas são heterogêneas
e valoradas diferentemente de meio para meio, de modo que
cabe à escola evidenciar e tirar proveito da natureza dessas
práticas para levar os alunos a uma atitude crítica e a uma
ação protagonista (de intervenção no meio).
Segundo Barton e Hamilton (2000, p. 7), enquanto o
evento de letramento identifica a ocorrência de uma situação
social na qual a escrita assume um papel central, a prática de
letramento, que diz respeito aos “modos culturais de utiliza-
ção da escrita”, corresponde às relações sociais que se estabe-
lecem em torno dos usos escritos. Os eventos de letramento

187
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

têm base na prática de letramento que, sendo um nível mais


abstrato, somente pode ser vista por meio desses eventos.
Compartilha-se com a ideia de Kleiman (2007, p. 4), quan-
do a autora assinala que é na escola, agência de letramento por
excelência da sociedade, que devem ser criados espaços para ex-
perimentar formas de participação nas práticas sociais letradas.
Ao organizar programas de ensino, o professor pode con-
siderar quais gêneros de que esferas (e com que práticas le-
tradas, capacidades de leitura e produção agregadas) devem/
podem ser selecionados para abordagem e estudo (ROJO,
2009). Dessa forma, por meio dos gêneros, é que a escola
torna possível as práticas de letramento.
Em consonância com Bakhtin (1997), quando ele afirma
que os gêneros textuais são “tipos relativamente estáveis de
enunciados”, que se caracterizam por ter um conteúdo temá-
tico, um estilo e uma construção composicional, define-se
gênero, segundo os preceitos de Bazerman (2005), como par-
te constitutiva de como os seres humanos dão forma às ativi-
dades sociais. Para o autor (idem), gêneros são fenômenos de
reconhecimento psicossocial que são parte de processos de
atividades socialmente organizadas e emergem nos processos
sociais em que pessoas tentam compreender umas às outras
suficientemente bem para coordenar atividades e comparti-
lhar significados com vistas a seus propósitos práticos
Os conceitos propostos por Bazerman podem ser exem-
plificados tomando como base as situações cotidianas em
que estamos envolvidos. Por exemplo, quando estamos em
um jogo de futebol e reconhecemos que uma multidão está
entoando uma canção para o time, ao nos unirmos à torci-
da, estaremos sendo atraídos para o espetáculo e emoções
de um evento atlético comunitário (BAZERMAN, ibid.). O
fato de muitas pessoas cantarem a mesma canção (gênero
textual) denota que estão compartilhando o mesmo signi-

188
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ficado, em um determinado contexto e com um propósito


único – incentivar o time.
Nessa perspectiva, os gêneros constituem práticas de
linguagem, ou melhor, meios para agir nas situações de lin-
guagem. São utilizados para tornar possível a comunicação e
funcionam como intermediários entre o enunciador e o des-
tinatário (DOLZ e SCHNEUWLY, 2004). Essa concepção está
de acordo com os estudos de letramento, pois, com o auxílio
dos gêneros, trabalha-se leitura e escrita como práticas dis-
cursivas, com múltiplas funções e inseparáveis dos contextos
em que se desenvolvem (KLEIMAN, 2007).
Desse ponto de vista, os gêneros podem ser considerados
instrumentos, no sentido vygotskiano do termo, que fundam
a possibilidade de comunicação (e de aprendizagem). Sch-
neuwly (2004, p. 23) explica essa tese levando em considera-
ção que, na perspectiva do interacionismo social, a atividade
é necessariamente concebida como tripolar: “a ação é media-
da por objetivos específicos, socialmente elaborados, frutos
das experiências das gerações precedentes, através dos quais
se transmitem e se alargam as experiências possíveis”. Os ins-
trumentos na atividade, dessa forma, encontram-se entre o
indivíduo que age e o objeto sobre o qual ou a situação na
qual ele age. Para Schneuwly (Ibid., p. 26):
Há visivelmente um sujeito, o locutor-enunciador, que age dis-
cursivamente (falar/escrever), numa situação definida por uma
série de parâmetros, com a ajuda de um instrumento que aqui
é um gênero, um instrumento semiótico complexo, isto é, uma
forma de linguagem prescritiva, que permite, a um só tempo, a
produção e a compreensão de textos.

Se os gêneros constituem a referência essencial para abor-


dar as infinitas práticas de linguagens, é justo considerá-lo
não apenas como instrumento, mas como um megainstru-

189
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

mento, haja vista a integração de um grande conjunto de


instrumentos em um todo único – que fazem a mediação
da atividade da linguagem comunicativa. Schneuwly (2004)
compara o gênero como um megainstrumento em que se
constitui uma fábrica: conjunto articulado de instrumentos
de produção que contribuem para a produção de objetos de
certo tipo. Ele está inserido em um sistema complexo que
contribuem para a sobrevivência de uma sociedade.
Em adição à ideia de gênero como megainstrumento para
a realização de práticas sociais, Bazerman (2005) argumenta
que, para caracterizar como os gêneros se configuram e se
enquadram em organizações, papéis e atividades, são pro-
postos três conceitos: conjunto de gêneros, sistema de gê-
neros e sistema de atividade. Para o autor (Ibid., p. 32-33),
um conjunto de gêneros seria a coleção de tipos de textos
que uma pessoa produz ao exercer determinado papel: um
professor circula com notas, caderno de chamadas, anota-
ções de aula, provas, entre muitos outros. Um sistema de
gêneros significa os diversos conjuntos de gêneros utilizados
por pessoas que trabalham juntas de uma forma organizada:
alunos teriam um conjunto de gêneros diferente – anotações
pessoais, questionamentos, rascunhos, agenda escolar, semi-
nários. Esse sistema de gêneros é também parte do sistema de
atividades da sala de aula. Dessa forma, no próximo capítulo,
discutir-se-á como os gêneros textuais organizaram uma prá-
tica de letramento no Curso Técnico em Secretariado.

3 p e r s p e c t i va m e t o d o l ó g i c a e
contextualização da experiência

Pensar as metodologias de ensino-aprendizagem de Língua


Portuguesa implica considerar, de partida, como está organi-

190
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

zado o contexto no qual a disciplina está inserida. Isso signifi-


ca que o professor deve atentar, quando de seu planejamento
didático, o curso e sua organização curricular – em especial
para este artigo o Curso Técnico em Secretariado do Instituto
Federal Farroupilha – Campus São Vicente do Sul, turma 9.
De acordo com o Projeto Pedagógico Curricular (2008), o
Curso Técnico em Secretariado oportuniza o desenvolvimento
de conhecimentos e habilidades para atuar com dinamismo e
responsabilidade na área secretarial, gerenciando as situações
de conflitos, de maneira compreensível. O projeto prevê sua
realização em dois semestres letivos, o que se justifica pela ex-
trema necessidade de profissionalização em um menor tempo
possível, devido à escassez de profissionais formados para atua-
rem na área de gestão administrativa e empresarial. Além disso,
prevê uma estreita sintonia entre teoria e prática, proporcio-
nando ao mesmo tempo a interdisciplinariedade, o que permite
a vivência de futuras situações surgidas na organização onde irá
desempenhar suas atividades, com maior segurança.
Para possibilitar a inserção de profissionais capacitados no
mundo do trabalho, o curso oferece, no primeiro semestre
letivo, a disciplina de Língua Portuguesa, com uma carga ho-
rária de 80 horas, que tem por objetivo trabalhar com leitura,
interpretação e produção textual, priorizando um ensino críti-
co. Oliveira (2010) reitera sobre a importância de se trabalhar
o letramento crítico em sala de aula: abordagem que não está
centrada unicamente na forma do gênero textual trabalhado,
mas que está ampliada para o âmbito discursivo, relacionan-
do o texto com seu espaço histórico e também ideológico.
Diante disso, pensa-se que trabalhar com letramento crí-
tico é, sem dúvida, inserir na sala de aula gêneros textuais
dependentes do sistema de atividade no qual as pessoas estão
inseridas. Em outros termos, depende dos papéis que as pes-
soas exercem e do que elas necessitam fazer por meio desses

191
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

textos em determinadas situações. É isso que irá determinar


que gêneros escolher e usar em certas situações comunicati-
vas para atingir determinados propósitos (BAZERMAN, 2005).
Dessa forma, optou-se, na experiência ora descrita, em se
trabalhar de acordo com os Novos Estudos do Letramento
(ROJO, 2009; STREET, 2003 e HEATH, 1982) que salientam
a importância de se verificar quais os textos mais relevantes
para o aluno e sua comunidade, em detrimento de um currí-
culo estruturado apenas por conteúdos linguísticos.
Os gêneros textuais que organizaram o currículo se-
mestral da disciplina foram: notícia, reportagem, resenha,
entrevista, editorial e artigo de opinião. A escolha desses
textos deu-se por dois principais motivos. Em primeiro
lugar, a área de atuação do profissional de secretariado.
Poderá atuar na sistematização das rotinas de trabalho,
atendimento a clientes internos e externos, assessoria nos
processos de gestão em empresas públicas, privadas e em
economia mista, ONGs, sindicatos e associações (escolas,
casas comerciais, hospitais, indústrias, bancos, cooperati-
vas e outros). Nesses contextos, o profissional muitas vezes
deparar-se-á com textos jornalísticos para fazer a divulga-
ção da empresa, informar clientes sobre novidades, dar pa-
recer sobre determinadas situações, conversar e entrevistar
possíveis candidatos a emprego e/ou clientes, entre muitas
outras situações. Em segundo lugar, a disciplina de Reda-
ção Oficial, ofertada no segundo semestre do curso. Essa
disciplina prevê um trabalho com textos oficiais: ofício,
memorando, requerimento, circular, ata, que também são
compatíveis com o mundo do trabalho da(o) secretária(o).
Partindo do pressuposto enfatizado por Dolz, Noverraz
e Schneuwly (2004) que é possível ensinar a escrever textos,
optou-se pelo procedimento “sequência didática”. Para os
autores (idem, p. 82), “sequência didática’ é um conjunto de

192
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

atividades escolares organizadas, de maneira sistemática, em


torno de um gênero textual oral ou escrito. São quatro com-
ponentes (idem, ibidem):
Parte-se da apresentação da situação, na qual é descrita de manei-
ra detalhada a tarefa de escrita que os alunos irão realizar. Nessa
etapa, a primeira produção é já realizada e permite ao professor
avaliar as capacidades já adquiridas e ajustar as atividades e os
exercícios previstos na sequência às possibilidades e dificul-
dades reais da turma. Além disso, ela define o significado de
uma sequência para o aluno, isto é, as capacidades que deve
desenvolver para melhor dominar o gênero de texto em ques-
tão. Os módulos, constituídos por várias atividades ou exercícios,
dão-lhe os instrumentos necessários para esse domínio, pois os
problemas colocados pelo gênero são trabalhados de maneira
sistemática a aprofundada. No momento da produção final, o
aluno pode por em prática os conhecimentos adquiridos e, com
o professor, medir os progressos alcançados. A produção final
serve, também, para uma avaliação de tipo somativo, que inci-
dirá sobre os aspectos trabalhados durante a sequência.

Porém, antes da execução desses quatro momentos da


produção textual, trabalhou-se com leitura e discussão do
gênero a ser trabalhado na aula. Dessa forma, o texto era en-
tregue para cada aluno para que ele realizasse uma pré-leitura
dos elementos verbais e não-verbais. Após, a leitura do texto
propriamente dita era feita ora coletiva ora individualmente,
seguida de exercícios de interpretação, vocabulário, marcas
linguísticas, operadores argumentativos, índices avaliativos e
o que mais o gênero textual suscitava a trabalhar. Com essa
metodologia, buscou-se um ensino em espiral de complexi-
dade, levando em consideração as relações de poder implí-
citas e as ideologias do autor e do veículo de comunicação
onde o texto foi publicado.
Todos os assuntos dos textos estudados e produzidos di-
ziam respeito à área secretarial. Com a notícia, desenvolveu-se

193
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

o assunto de uma confraternização realizada entre as duas tur-


mas do curso. O artigo de opinião enfatizou a mulher no mer-
cado de trabalho. A resenha foi sobre o filme “O Diabo Veste
Prada”, que retrata a rotina de uma secretária. A entrevista con-
tou com depoimentos de egressos sobre o curso, a profissão, o
estágio curricular. A reportagem retratou a história da profissão
secretarial desde a época dos escribas e, por fim, o editorial
apresentou o Jornal onde os textos foram publicados.
O Jornal do Secretariado: Secretariando e Informando foi or-
ganizado e desenvolvido pelas alunas da turma 9 juntamente
com o professor de Informática do curso. Os textos destaques
foram publicados nesse jornal, enquanto que os demais foram
publicados no Blog da turma, produzido especialmente para
esse fim. Além da integração da disciplina de Língua Portu-
guesa com Informática, o projeto contou com auxílio da dis-
ciplina de Técnicas e Práticas em Secretariado, especialmente
com o conteúdo ‘organização de eventos’, já que houve uma
cerimônia de lançamento do Jornal para a comunidade esco-
lar. Essa prática social possibilitou a concretização do projeto.
No próximo capítulo, abordar-se-ão as motivações e as
aprendizagens obtidas com o projeto descrito.

4 m o t i va ç õ e s e a p r e n d i z a g e n s d a
experiência

O Jornal do Secretariado: Secretariando e Informando, produzi-


do ao longo do primeiro semestre de 2011, junto à disciplina
de Língua Portuguesa, teve um duplo papel pedagógico. Pri-
meiramente, deu voz e autoria aos alunos, já que os textos
produzidos não foram direcionados somente à professora,
como aquela que dá nota pelo trabalho realizado, mas sim a
toda uma comunidade escolar que pode ler os textos publi-

194
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

cados (não só no Jornal como também no Blog). Em segun-


do lugar, o Jornal serviu como um instrumento pedagógico,
no sentido vygotskiano do temo, já que foi pensado para a
aprendizagem da leitura e escrita. Assim, o projeto do jornal,
com a culminância em um evento de divulgação, tornou-se
um catalisador de práticas de letramento (BONINI, 2011).
Além desse duplo papel, é importante ressaltar o trabalho
integrado, realizando entre as disciplinas de Língua Portu-
guesa, Práticas e Técnicas em Secretariado e Informática. A
Informática possibilitou que os textos fossem digitados, dia-
gramados, formatados e organizados para impressão. Já Prá-
ticas e Técnicas em Secretariado auxiliou na organização do
cerimonial e protocolo do evento de divulgação do jornal.
Trabalhar as disciplinas e os conteúdos de forma integrada,
segundo Santomé (1998, p. 117), favorece o desenvolvimen-
to do pensamento crítico dos alunos, sua socialização e com-
preensão das relações entre os distintos saberes e a sociedade.
Ajuda-os a refletir e criticar os valores e interesses promovi-
dos e favorecidos por um determinado conhecimento.
Em relação ao desenvolvimento da disciplina, ficou cla-
ro que a produção textual tornou-se uma prática letrada
e, portanto, concreta e motivadora, quando os estudantes
perceberam que por meio dos gêneros podem interagir e se
comunicar em práticas sociais condizentes com seu futuro
profissional. Compreendeu-se que trabalhar leitura e escrita
como práticas discursivas com múltiplas funções é trabalhar
inseparavelmente dos contextos em que se desenvolvem.
O letramento crítico, segundo Oliveira (2010), tem por
objetivo fazer com que o aluno se aproprie de gêneros que
lhe sejam úteis para agir no mundo ou para fazer uso de
determinadas práticas que lhe convém em termos de ne-
cessidades comunicativas. Percebeu-se, na turma envolvida,
que essa prática de letramento favoreceu o senso crítico e a

195
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

vontade de participar e se engajar no projeto, funcionando


também como um recurso que eleva a autoestima do aluno,
já que, com o sucesso do evento de divulgação, a turma rece-
beu elogios de toda comunidade escolar.
Resta dizer que trabalhar em sala de aula na perspectiva
dos novos estudos do letramento é muito válido, pois possi-
bilitam, conforme resume Oliveira (2010), abordar os gêne-
ros não como um fim, mas como um meio, isto é, correspon-
de a ensinar com os gêneros e não sobre os gêneros.

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197
a n á l i s e d e at i v i d a d e s d i d át i c a s c o m

v i s ta s à i d e n t i f i c a ç ã o d e i n s tâ n c i a s

de letramento científico1

Janete Teresinha Arnt

1 introdução

Alunos do ensino médio técnico ou ingressantes em cursos de


graduação e tecnólogos encontram muita dificuldade ao serem
requisitados a participar das práticas sociais que envolvem o
discurso científico. Essas práticas envolvem apropriar-se do
conhecimento a partir de gêneros acadêmicos, tais como, re-
sumo acadêmico, artigo acadêmico, projeto de pesquisa, re-
senha, dissertação, etc. Essa dificuldade se constitui tanto em
entender a natureza da prática científica em termos da lingua-
gem da ciência (BAZERMAN, 1998; JORDAN, 1997) quanto
em entender as relações entre a ciência e a sociedade, ou seja,
entender que a ciência é “um sistema social essencialmente
relacionado ao desenvolvimento do conhecimento” (SANTOS,
2007, p. 476) com vistas a melhorar as condições de vida da
população (MOTTA-ROTH, 2009, p. 2).

1. Artigo resultante da dissertação de mestrado da autora, sob orientação da


Profª. Drª. Désirée Motta-Roth.

198
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Tal dificuldade é identificada nas disciplinas de Inglês Ins-


trumental (ofertadas pelos cursos de Técnico em Informática
e por alguns cursos de tecnólogos do IFFarroupilha), quando
os alunos precisam estudar uma língua estrangeira como re-
quisito para participar das práticas da comunidade científica.
Em estágio inicial essa necessidade é de leitura de textos em
língua inglesa (JORDAN, 1997, p. 50) para familiarizar-se com
a produção de conhecimento da área em que estão se inserindo,
uma vez que grande parte das publicações científicas de maior
reconhecimento é em língua inglesa (SWALES, 1990, p. 96).
Por isso, ao se matricularem em tais disciplinas, os alunos
passam por uma transição do estudo da linguagem do dia-a-dia
para o estudo da linguagem científica. Portanto, tais disciplinas
e cursos têm dentre suas funções dar início ao processo de le-
tramento científico dos alunos, aqui entendido como o desen-
volvimento de competências de reflexão acerca dos processos
envolvidos na produção, distribuição e consumo da ciência.
A partir de pesquisas do projeto PQ/CNPQ “Análise
crítica de gêneros de artigos de popularização da ciência”
(MOTTA-ROTH, 2007), do qual este trabalho é parte, parto
do pressuposto de que a notícia de popularização da ciên-
cia (doravante PC) pode ser vista como gênero de entrada
ao estudo de gêneros acadêmicos. Em outras palavras, pres-
supõe-se que a notícia de PC é um gênero adequado para
iniciar o processo de transição entre o estudo da linguagem
do dia-a-dia (que constitui gêneros dos quais os alunos parti-
cipam com maior frequência na escola, tais como os gêneros
apresentados nos livros propostos pelo Programa Nacional
do Livro Didático (PNLD) para o Ensino Médio: anúncio
publicitário, coluna de aconselhamento, instruções de jogo,
horóscopo, letras de música), e o estudo da linguagem cien-
tífica (que constitui os gêneros com os quais se depararão na
academia, tais como os mencionados anteriormente).

199
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Portanto, em pesquisas recentes (MOTTA-ROTH, 2009; MOT-


TA-ROTH; LOVATO, 2009; NASCIMENTO, 2011; MARCUZZO,
2011; PARKINSON; ADENDORFF, 2004, p. 380), a notícia de PC
vem sendo vista como um gênero pertinente ao estágio inicial de
letramento científico, no que diz respeito ao processo de pesqui-
sa e ao entendimento das relações entre ciência e sociedade.
Além dessas potenciais vantagens do trabalho com a no-
tícia de PC no ensino de línguas, ao fazer um levantamento
de livros didáticos que se propõem ao ensino de inglês ins-
trumental2, observei que tais materiais frequentemente apre-
sentam esse gênero em sua composição, chegando a 60% dos
textos em um dos exemplares mapeados.
A partir dos estudos acerca do gênero notícia de PC men-
cionados acima (organização retórica, elementos recursivos,
configuração contextual, etc.) e da hipótese de que esse gê-
nero possa ser utilizado para promover a iniciação ao letra-
mento científico, procuro, neste estudo, investigar como os
resultados de pesquisas sobre letramento científico são apro-
priados na prática de ensino, especificamente no livro didá-
tico. Isso é feito ao analisar atividades didáticas formuladas a
partir de textos do gênero notícia de PC em livros didáticos
de leitura em língua inglesa frequentemente utilizados no IFF.
Para essa investigação, instâncias de letramento científico são
identificadas nas atividades didáticas quando estas levam o aluno

2. Tais como:
1. ARAÚJO, A. D.; SAMPAIO, S. (Org.). Inglês instrumental - caminhos
para leitura. 01. ed. Teresina: Alínea Publicações Editora, 2002.
2. DIAS, R. Reading critically in english - inglês instrumental. Belo
Horizonte: UFMG, 1996.
3. GALLO, L. R. Inglês instrumental para informática – módulo 1. São
Paulo: Ícone, 2008.
4. SOUZA, A.D.F; ABSY, C; COSTA, G.C. da; MELLO, L.F. de. Leitura
em língua inglesa – uma abordagem instrumental. São Paulo: DISAL
Editora, 2005.
5. HENDGES, G.; UBERTI, S.; ARNT, J., OTARAN, M. Leitura 1. Univer-
sidade Federal de Santa Maria.

200
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

a ler (produzir sentido) textos como produtos da ciência (em ter-


mos de procedimentos, produtores e usuários) (MOTTA-ROTH,
2011), identificar as visões de mundo constituídas na linguagem
desses textos de forma a instigar atitudes investigativas e o enten-
dimento das relações entre ciência e sociedade.
Os resultados dessa análise demonstraram que falta a es-
ses materiais a exploração do potencial do gênero notícia de
PC para dar início ao processo de letramento científico. Por
isso, sugestões de re-elaboração das atividades didáticas são
apresentadas com vistas a tentar materializar uma aborda-
gem de leitura como letramento crítico e de linguagem como
gênero discursivo que promova o letramento científico.
Mais especificamente, os objetivos do presente trabalho são:
1) investigar em que medida o gênero notícia de PC está sendo
utilizado para iniciar o letramento científico dos alunos a partir
da perspectiva de letramento científico; 2) re-elaborar as ativi-
dades didáticas a fim de incorporar os conceitos de linguagem
como gênero, letramento crítico e letramento científico.
O mapeamento das práticas de letramento científico des-
ses materiais didáticos, assim como a re-elaboração das ati-
vidades didáticas, permitirá verificar possibilidades de utili-
zação do gênero notícia de PC como modo de inserção do
aluno em práticas científicas como, por exemplo, conhecer
os produtos da ciência e se posicionar em relação a eles, e,
portanto, deverá oferecer subsídios para a elaboração de ma-
terial didático para fins de leitura instrumental.

2 letramento científico

Os estudos sobre o letramento são, de certa forma, uma nova


perspectiva para o ensino de leitura, conforme apontado pe-
las Orientações Curriculares Nacionais (BRASIL, 2006):

201
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

No que se refere à leitura, reafirmamos a necessidade dos


trabalhos dessa prática de linguagem, mas indicamos algu-
mas mudanças de natureza teórica que influirão na prática
desse desenvolvimento. Trata-se da adoção das teorias de le-
tramentos e multiletramentos (...). Essas teorias funcionam
como base educacional e epistemológica. Ou seja, poderão
contribuir para ampliar a visão de mundo dos alunos, para
trabalhar o senso de cidadania, para desenvolver a capacida-
de crítica, para construir conhecimento em uma concepção
epistemológica contemporânea. Referimo-nos à concepção
epistemológica que defende que o conhecimento não deve ser
apreendido de maneira fragmentada ou compartimentada –
por separação e redução (MORIN, 2000). Reportamo-nos a
uma concepção que defende que o conhecimento deve ser
integrador, reconhecendo as linguagens e os fenômenos mul-
tidimensionais; ser compreendido das partes para o todo e
do todo para as partes; reconhecer a realidade como con-
flituosa, antagônica, ambígua, o que requer a habilidade de
construir e reconstruir sentidos; reconhecer a diversidade e
reinterpretar a unicidade (p. 112-113).

Primeiramente traçarei uma linha evolutiva das visões de


letramento, para me colocar como adepta de uma visão de
letramento como “práticas sociais de leitura e escrita”. No en-
sino de língua estrangeira, este conceito é fundamental, pois
considera que o aluno não somente leia textos e o mundo,
mas também se aproprie das práticas de leitura e escrita para
atingir seus objetivos de vida e transformar sua realidade.
Os anos 70 são apontados por diferentes autores (ULHOA;
GONTIJO; MOURA, 2008; SOARES, 2009; MACEDO, 2005;
STREET, 1984; PARKINSON, 2000) como linha divisória en-
tre uma visão de letramento como “codificação e decodi-
ficação de símbolos organizados em qualquer sistema que
representa, de forma permanente e precisa, a linguagem oral”
(MACEDO, 2005, p. 32) e uma visão de letramento como
práticas de leitura e escrita “socialmente construídas” (idem:

202
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ibidem). Esses dois modelos foram denominados respectiva-


mente de autônomo e ideológico por Street (1984).
No modelo autônomo, o letramento é visto como uma
“tecnologia do intelecto”, tal visão enfoca a “dimensão indivi-
dual do fenômeno” (SOARES, 2009, p. 67) de leitura e de es-
crita, o qual aconteceria de forma descontextualizada. O que
Street (1984, p. 29) critica nessa visão é que ela não conside-
ra que essa tecnologia é carregada ideologicamente, ou seja,
tal modelo ignora que qualquer versão de prática de letra-
mento é construída a partir de condições sociais específicas
e em relação a estruturas econômicas e políticas específicas.
Por outro lado, na visão ideológica, letramento é visto
como um fenômeno social. O modelo ideológico de letra-
mento foi proposto por Street (1984) a partir de estudos que
tentam teorizar e entender letramento em termos de práticas
sociais concretas e de ideologias nas quais os diferentes letra-
mentos estão inseridos (p. 95). A partir desses estudos, Street
(1984) descreve letramento como processo social no qual tec-
nologias específicas construídas socialmente são usadas em
enquadres institucionais específicos, com propósitos sociais
específicos (p. 97). Neste trabalho, adotarei a visão ideológica
de letramento por conceber letramento como prática social.
Parkinson (2000, p. 371) propõe um histórico do con-
ceito de letramento que passa pela definição tradicional de
letramento como leitura e escrita e depois pelo conceito
de letramento como prática comunicativa associada a usos
específicos tanto da forma escrita quanto oral, portanto, o
conceito de letramento é estendido para incluir a fala. Por
último, Parkinson (2000) afirma que todos esses concei-
tos foram revisitados e expandidos por Street (1984) para
incluir comportamentos e conceituações relacionados aos
usos da leitura e da escrita. Ao revisitar tais teorias, Parkin-
son (2000) propõe que letramento seja visto como uma

203
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

qualidade múltipla e não única e acredita que cada cultura


precisa de letramentos diferentes.
No Brasil, a discussão acerca de letramento inicia com as
discussões de Freire, na década de 80 ao afirmar que “a lei-
tura do mundo precede a leitura da palavra” (1989, p.11).
Freire instiga a consideração da relação entre texto e contex-
to, afirmando que não é possível conceber um sem o outro.
Essa discussão se intensifica na década de 90 com auto-
res como Kleiman (1995), Soares (1998, 2006, 2009), Rojo
(1998), e com a inclusão de tal conceito no discurso oficial
por meio dos Parâmetros Curriculares Nacionais (BRASIL,
1997), os quais definem letramento como:
produto da participação em práticas sociais que usam a escrita
como sistema simbólico e tecnologia. São práticas discursivas
que precisam da escrita para torná-las significativas, ainda que
às vezes não envolvam as atividades específicas de ler ou es-
crever. Dessa concepção decorre o entendimento de que, nas
sociedades urbanas modernas, não existe grau zero de letra-
mento, pois nelas é impossível não participar, de alguma forma,
de algumas dessas práticas (p. 21).

Na mesma perspectiva, Soares (2009) define a prática social


do letramento como “estado ou condição de quem não apenas
sabe ler e escrever, mas cultiva e exerce as práticas sociais que
usam a escrita” (p. 47). Essa concepção enfatiza a ideia de que
para que alguém seja letrado, precisa participar das “diferentes
práticas sociais que envolvem a leitura e a escrita na língua ma-
terna e na [língua estrangeira]” (SCHLATTER, 2009, p.11).
Expandindo o conceito de leitura crítica, Cervetti, Pardal-
les e Damico (2001) propõem o conceito de letramento crí-
tico. Essa visão aponta a leitura como um processo de cons-
trução de sentido, como forma de conhecer o mundo e como
meio de transformação social. Nessa concepção, os objetivos
instrucionais do ensino devem ir além do desenvolvimento

204
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

das habilidades de interpretação e compreensão de forma a


atingir o desenvolvimento da consciência crítica do aluno
que passa de leitor do mundo para ator no mundo.
Em resumo, pode-se dizer que a proposta de letramento
“busca recobrir os usos e práticas sociais de linguagem que en-
volvem a escrita de uma ou de outra maneira” (ROJO, 2009, p.
98). Identificando esse conceito como uma visão de enfoque
ideológico, vê-se que, na concepção de letramento como prá-
tica social, os eventos de letramento estão indissoluvelmente
ligados às estruturas culturais e de poder da sociedade. Tal con-
cepção também reconhece a variedade de práticas culturais as-
sociadas à leitura e à escrita em contextos específicos e para ob-
jetivos específicos (ROJO, 2009, p. 99; KLEIMAN, 1995, p. 19).
Como se pode observar, é difícil atribuir uma qualidade úni-
ca ao termo letramento, alguns autores o consideram uma ha-
bilidade, ou um estado ou condição, ou um produto, ou uma
prática. Por isso, nesse trabalho adotarei o termo práticas ou
eventos de letramento, para referir-nos a “ocasiões em que a
linguagem escrita é integral à natureza das interações dos parti-
cipantes e seus processos e estratégias interpretativos” (HEATH,
2001, p. 319, tradução nossa3). Nesse sentido, cada cultura e,
mais especificamente, cada comunidade tem regras para intera-
gir socialmente e para compartilhar conhecimento em eventos
de letramento, portanto, exige diferentes práticas de letramento.
Além disso, adotarei também a visão ampliada de letra-
mento “para o campo da imagem, da música, das outras
semioses que não somente a escrita” (ROJO, 2009, p. 107),
assim, passando a concebê-lo como multiletramento ou le-
tramentos múltiplos.

3 No original: “occasions in which written language is integral to the nature


of participants’ interactions and their interpretive processes and strategies”
(HEATH, 2001, p. 319).

205
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

A partir da perspectiva de letramento como “prática[s]


socia[is] que muda[m] de acordo com o contexto” (MACEDO,
2005, p. 34), temos diferentes manifestações das práticas de
letramento na sociedade: digital/eletrônico, escolar, científi-
co, midiático, literário, jurídico, infantil, visual, multimodal,
entre outros. Neste trabalho, enfoco o letramento científico,
Os resultados das práticas científicas, para serem re-
conhecidos como ciência, são mediados pela linguagem
(MOTTA-ROTH, 2011). Isso acontece, por exemplo, em gê-
neros como artigos de pesquisa, livros, resumos, resenhas,
notícias de PC, bulas, tabela de informação nutricional, livro
didático, etc. Nesse sentido, Motta-Roth (2011, p. 20) argu-
menta que “qualquer educação científica depende da educa-
ção lingüística, componente principal na tarefa de educar a
população para viver os tempos atuais”.
Esses textos podem produzir conhecimentos, atitudes e
capacidades nos seus leitores, pois além de levar as pessoas
a conhecer os produtos da ciência, podem induzir a atitudes
que mudam a vida das pessoas e guiam suas escolhas, promo-
vendo “o real engajamento da população no debate em tor-
no da ciência na sociedade contemporânea” (MOTTA-ROTH,
2011, p. 9). Na nossa concepção, o letramento científico pas-
sa por essas práticas. Para demonstrar como as práticas de
letramento são dependentes da cultura e do tempo, Parkin-
son (2000, p. 372) exemplifica que, no tempo de Newton,
letramento científico incluía competência em Latim.
Na universidade e em instituições de ensino técnico e tec-
nológico, a necessidade de letramento científico é de que o
aluno se aproprie dos textos produzidos pela ciência para se
inserir na comunidade científica. Nesse contexto, proponho
que se utilize o termo letramento científico acadêmico, pois
ali, é necessário aprender a produzir conhecimento e a “falar
ciência” (LEMKE, 1990, p. 1), ou seja,

206
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

observar, descrever, comparar, classificar, analisar, discutir, hi-


potetizar, teorizar, questionar, desafiar, argumentar, elaborar
experimentos, seguir procedimentos, julgar, avaliar, decidir,
concluir, generalizar, reportar... na e através da linguagem da
ciência4 (tradução nossa).

Nesse sentido, uma das primeiras necessidades para


aprender a fazer ciência é aprender seus modos especializa-
dos de usar a linguagem (LEMKE, 1990, p. 21). Portanto, é
fundamental que o aluno, para passar a fazer parte da comu-
nidade científica, passe a utilizar de forma eficiente a lingua-
gem dessa comunidade, pois é ela que
dá forma às nossas ideias, provê os meios para a construção de
conhecimento e explicações científicas, nos capacita a comu-
nicar os propósitos, procedimentos, resultados, conclusões e
implicações de nossas pesquisas, e nos permite relacionar nos-
so trabalho com o conhecimento e entendimento já existentes
(HODSON, 2009, p. 3, tradução nossa).

Além disso, aprender a se comunicar na linguagem da ci-


ência é agir como membro da comunidade das pessoas que
fazem ciência, ou seja, engajar-se nas práticas de letramento
nas quais as pessoas que fazem ciência se engajam. Nessa
perspectiva, percebe-se que a relação com o conhecimento
científico muda em nível técnico e universitário, vai muito
além da utilização de produtos da ciência e do entendimento
de seus processos, ou seja, o aluno passa de consumidor a
produtor de ciência e, consequentemente, de leitor a escritor.

4. No original “Talking science means observing, describing, comparing, clas-


sifying, analyzing, discussing, hypothesizing, theorizing, questioning, chal-
lenging, arguing, designing experiments, following procedures, judging,
evaluating, deciding, concluding, generalizing, reporting... in and through
the language of science” (LEMKE, 1990, p.1)

207
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Porém, em nível inicial, o aluno precisa aprender a ler textos


acadêmicos para posteriormente passar a escrever tais textos.
Na nossa perspectiva de práticas de letramento científico,
a inserção desse aluno nas práticas da comunidade científica,
prevê que o aluno letrado cientificamente “desenvolve com-
petências e habilidades para questionar e se posicionar frente
a práticas científicas” (MOTTA ROTH; LOVATO, 2009, p. 235).
Esse aluno, portanto, não só aprende a produzir ciência, mas
também a “avaliar a qualidade da informação científica na
base de suas fontes e os métodos usados para gerá-la (...),
usar e avaliar argumentos baseados em evidência e de aplicar
conclusões de tais argumentos apropriadamente” (NATIONAL
COMMITTEE..., 1996, p. 22, tradução nossa). Nesse nível, o
letramento científico passa pelo “conhecimento dos produtos
da ciência e da tecnologia, dos sistemas simbólicos que as
expressam e constroem, dos seus procedimentos, produtores
e usuários” (MOTTA-ROTH, 2011, p.9).
Neste trabalho, por se tratar da análise de atividades de
livros de inglês instrumental e por entender que as discipli-
nas de Inglês instrumental têm como objetivo que os alunos
aprendam a se posicionar como membros da comunidade
científica, principalmente pela leitura e produção de artigos
de pesquisa, tomarei esse gênero como o principal resultado
das práticas científicas e analisarei a linguagem empregada
para reportar pesquisas. Além disso, Swales (1990, p. 177)
argumenta que esse gênero possui uma relação dinâmica com
todos os outros gêneros do processo de pesquisa (resumos,
teses, dissertações, livros e monografias, apresentações, etc.).

208
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

3 metodologia

Para a seleção do corpus da presente pesquisa, foi realizada


uma análise piloto em quatro livros didáticos5 de leitura ins-
trumental. A análise piloto teve o objetivo de identificar que
livros ofereciam atividades formuladas a partir de textos que
instanciam o gênero notícia de PC. A classificação desses tex-
tos como instâncias do gênero notícia de PC teve por base
a identificação da organização retórica dos textos, conforme
movimentos e passos encontrados por Motta-Roth (2009)6.
A partir desse critério, permaneceram no corpus dois livros,
nomeados aqui em livro A (LA) e livro B (LB).
Uma vez selecionados os livros, uma triagem foi realiza-
da para selecionar uma unidade de cada livro. O critério de
seleção das unidades consiste na utilização de instâncias do
gênero notícia de PC exclusivamente.
Os procedimentos e categorias de análise são:
a. leitura e classificação das atividades didáticas em ativi-
dades de pré-leitura, leitura e pós-leitura;
b. investigação das questões relativas à descoberta
científica quanto à pertinência na promoção do le-
tramento científico;

Para identificar em que medida as atividades didáticas pro-


movem o letramento científico, foi investigada a presença (ou
não) de dimensões do letramento científico (MOTTA-ROTH,
2011, p. 21), a saber:

5. Os títulos e autores dos livros didáticos analisados não serão identificados,


pois minha análise está preocupada em avaliar o seu conteúdo, sem interes-
se em desmerecer ou creditar alguma editora ou autor.
6. Os movimentos e passos da organização retórica do gênero notícia de PC,
identificados por Motta-Roth (2009) e considerados nesta análise, estão
descritos no Quadro 1, na seção 2.4.3.

209
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

1. o conhecimento dos produtos da ciência e da tecnologia, dos


sistemas simbólicos que as expressam e constroem, dos seus
procedimentos, produtores e usuários (DURANT, 2005);
2. a atitude diante da experiência material ou mental, a abertura
para mudança de opinião com base em novas evidências, a
investigação sem preconceito, a elaboração de um concei-
to de relações de causa e consequência, o costume de base-
ar julgamentos em fatos e a habilidade de distinguir entre
teoria e fato (MILLER, 1983, p. 31);
3. a compreensão e a produção de textos e discursos que pro-
jetam opiniões sobre ciência e tecnologia, pautadas pelo en-
tendimento das relações entre ciência e tecnologia e o mun-
do em que se vive (SANTOS, 2007).

Em seguida, procedi à elaboração de atividades de


pré-leitura, leitura e pós-leitura. Ao apresentar sugestões de
atividades, trabalharei com três referências, uma é a minha
experiência como professora de inglês instrumental na uni-
versidade; e outra, as experiências pedagógicas das propostas
no âmbito do LABLER, duas especificamente: 1) Hendges et
al. (2009) e, 2) Motta-Roth et al. (2009). Esses trabalhos se-
rão adaptados para os fins deste estudo.

4 r e s u lta d o s

Na apresentação do livro didático LA está especificado que


esse livro é “destinado a alunos universitários, que precisam
ler e entender textos em inglês, exigidos em suas respec-
tivas áreas de estudo”. Similarmente, o livro LB se propõe
a “atender às especificidades [da] comunidade acadêmica
[pós-graduandos]”. Portanto, é possível dizer que esses livros
têm por objetivo iniciar o aluno na leitura de textos cientí-
ficos em inglês como língua estrangeira. Isso está abarcado,

210
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

em parte, pelos gêneros recobertos por esses livros, tais como


notícias de PC e reportagens.
Uma das dimensões de letramento científico adotada neste
trabalho prevê o “conhecimento dos produtos da ciência (...),
dos seus procedimentos, produtores e usuários” (MOTTA-ROTH,
2011). Nessa dimensão, os livros didáticos promovem tal letra-
mento, pois apresentam produtos e produtores da ciência para
o conhecimento dos alunos. No caso desses livros, isso é feito
ao explorarem o gênero notícia de PC, o qual é um produto da
ciência que inclui informações a respeito dos autores da pes-
quisa (produtores), procedimentos e resultados.
Ao longo das atividades didáticas analisadas, há uma ten-
tativa de levar o aluno a focar nesse produto da ciência nos
termos descritos acima (pesquisadores envolvidos, resultados,
etc.). Porém, as atividades não exploram as outras dimensões
do letramento científico propostas por Motta-Roth (2011).
A seguir, descrevo as instâncias (ou a ausência delas) de
letramento científico na ordem dos momentos de leitura, ou
seja, na pré-leitura, na leitura e na pós-leitura.

4.1 Na pré-leitura

As atividades identificadas com essa fase de leitura apenas reque-


rem que o aluno tente inferir o assunto do texto, sem invocar os
aspectos científicos da notícia de PC, restringindo-se a relacionar
o título, a ilustração e a legenda com o possível assunto do texto.
Por essa razão, nesta seção, ofereço, alternativamente, algu-
mas atividades que tentam adotar, no momento da pré-leitura,
a abordagem de letramento crítico e as concepções de lingua-
gem, ciência e letramento científico. Essa proposta é baseada
no conhecimento acumulado na minha experiência com o en-

211
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

sino de língua inglesa para universitários e no conhecimento


acumulado por pesquisas de material didático no âmbito do
LABLER, os quais serão adaptados para os fins deste estudo.
Primeiramente é interessante trazer para a sala de aula a
configuração original impressa ou digital dos textos a serem
trabalhados para que observem os títulos em destaque e as
seções que subdividem o site. As perguntas para guiar essa
atividade são apresentadas no Exemplo 1.

exemplo 1
Atividades de pré-leitura que ensejam levar o aluno a re-
fletir sobre seu conceito de ciência.

1. Observe o site da revista New Scientist e discuta com seus


colegas as questões abaixo:
a. Quais as áreas do conhecimento recobertas nas seções do site?
b. Em qual delas a sua área de estudo se insere ou quais delas
lhe interessam? E a de seus colegas?
c. Quais áreas não estão incluídas nessas seções?
d. Sobre que temas são os títulos dos textos visíveis nessas
janelas? Há algum predomínio de temas mais recorrentes?
e. Que tipos de texto (gêneros discursivos) esses sites publi-
cam, por exemplo, receitas, letras de músicas, artigos cien-
tíficos, notícias de PC, reportagens, etc.?

Focalizar uma análise do contexto de produção da notícia


pode levar os alunos a preverem gêneros e temas usualmente
abordados nessas revistas, de forma a ativar seu esquema for-
mal e de conteúdo (CARRELL; EISTHERHOLD, 1983). Porém,
mais do que isso, nessa atividade, inicia-se a desnaturaliza-
ção sobre o que é reconhecido como ciência e o que está

212
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

excluído dessa visão (áreas das ciências humanas e sociais,


por exemplo). Dessa forma, o aluno pode questionar o que é
reconhecido como ciência pela população em geral e de que
forma a mídia contribui para manter determinada visão do
que seja ciência ao publicar somente textos das áreas de co-
nhecimento de maior prestígio social como saúde, biologia,
tecnologia, física, etc. Essa questão levaria à promoção do
letramento científico na dimensão do “entendimento das re-
lações entre ciência e tecnologia e o mundo em que se vive”,
pois, questionaria o aluno quanto à influência da mídia no
reconhecimento sobre o que conta como ciência.
Após essa questão geral sobre a fonte do texto a ser tra-
balhado, sugiro que se adentre o contexto de produção mais
específico das notícias do livro (data de publicação, autores,
etc.). Nesse, sentido, os três textos da unidade do livro LA e o
texto do livro LB apresentam fonte (LA: revista New Scientist;
LB: revista Discover), data de publicação (LA: 19 June 1999,
17 July 1993, 20 November 1999, respectivamente na ordem
em que são trabalhados nos exercícios; LB: April 1999). Além
disso, o livro LA cita os jornalistas autores das notícias (Fred
Pearce, Paul Simons, Michelle Knott). Infelizmente, esses
textos não são apresentados no livro conforme retirados da
internet, se recuperassem a configuração originalmente apre-
sentada na internet teríamos acesso a outras informações do
contexto de publicação, como a visualização de outros textos
que essa mídia explora, que tipos de propagandas aparecem
no site, em que seções o site está dividido, etc.
Além disso, não tive acesso a eles (por meio dos Periódicos
CAPES) devido ao período de publicação já remoto. A apresen-
tação do texto em seu contexto de publicação é importante para
que se possa desenvolver atividades como as do Exemplo 2.
Nessa atividade, também se questiona quem é o autor da
notícia. Aqui é possível pedir que o aluno procure outros

213
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

nomes no texto da notícia, para que comece a diferenciar os


participantes do gênero, por exemplo, jornalista, pesquisa-
dor, pesquisador colega, governo, público, para que, mais
tarde, reflita sobre os diferentes papéis de cada participante
em relação à pesquisa.

exemplo 2
Atividades de pré-leitura que levam o aluno a focalizar o
contexto de produção da notícia de PC

2. Examine a configuração visual da página da Internet quanto


aos diferentes blocos de informações que a constituem (na
parte superior, na parte central, à esquerda, à direita). Tente
identificar as seguintes informações nos elementos periféricos
do texto (banners, slogans, hiperlinks, contraste de cores):
a. Onde o texto que você tem
em mãos foi publicado? (nome
do jornal/da revista, seção)
b. O que você sabe sobre essa
fonte? Sobre o que ela publica
(fofoca, famosos, ciência, desco-
bertas, tecnologias, etc)?
c. Em que data o texto foi publi-
cado? É um texto recente?

d. Por quem o texto foi escrito?


(nome de pessoa ou instituição)

Adaptado de Motta-Roth et al. (2009)

Nesse sentido, desde a fase da pré-leitura já é possível pro-


por que o aluno inicie uma reflexão acerca da natureza da ciên-
cia e da diferença entre o mundo da vida e o mundo da ciência.
Essa questão aborda o letramento científico na dimensão do

214
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

“conhecimento [...] dos sistemas simbólicos que as expressam


(ciência e tecnologia) e constroem [e] dos seus [...] produtores”
(MOTTA-ROTH, 2011, p. 21). Isso acontece na medida em que
o aluno reflete acerca da mídia na qual a ciência é veiculada e
acerca dos autores e instituições que produzem ciência.
Além disso, pode-se solicitar que o aluno proponha um
campo semântico a partir da palavra chave encontrada na
legenda da notícia de PC e que, lendo pequenas unidades
do texto, identifique se as palavras propostas no seu campo
semântico podem ser consideradas palavras-chave do texto
que o aluno está lendo, conforme Exemplo 3.

exemplo 3
Atividade de pré-leitura que procura acionar o esquema
de conteúdos do aluno

3.
a) Observe o texto não-verbal e as palavras conhecidas da le-
genda e proponha uma possibilidade de campo semântico
recoberto pelo texto.
b) Leia a primeira oração de cada parágrafo para identificar se
sua proposta contempla palavras recorrentes (freqüentes)
ao longo do texto, e que, portanto, podem ser consideradas
palavras-chave desse texto.

As atividades de pré-leitura apresentadas nessa seção aten-


tam para o acionamento de esquemas mentais dos alunos
(CARRELL; EISTHERHOLD, 1983), a análise da configuração
visual (imagens, layout), contexto de produção (autores) e de
publicação dos textos (sites). Por meio dessas atividades, espe-
ra-se que o aluno ative seu conhecimento acumulado acerca
da prática social a ser aprofundada nas atividades de leitura.

215
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

4.2 Na leitura

Nesse momento das atividades didáticas de leitura dos livros


analisados, encontrei instâncias de letramento científico. As
atividades mencionam aspectos da pesquisa popularizada ao
requererem que o aluno retire do texto informações como
nome e universidade dos autores do estudo reportado na
notícia de PC, local de publicação do artigo original, justi-
ficativa, metodologia e resultados do estudo reportado, ou
seja, informações acerca da prática social que é produzir ci-
ência (um sujeito que tem um papel social, que opera dentro
de uma instituição social, que desempenha tarefas dentro de
uma atividade social; delimitação de um problema a ser estu-
dado, delimitação uma metodologia). Em outras palavras, o
foco está em como a linguagem representa essa prática social.
Portanto, essas atividades requerem que o aluno colete ele-
mentos da lexicogramática que são essencialmente da transi-
tividade (participantes, processos e circunstâncias do estudo
reportado), como ilustram as perguntas do Exemplo 4.
Como indicado no enunciado da questão, as informações
requisitadas devem ser encontradas no texto utilizando a estra-
tégia de scanning. Portanto, espera-se que sejam rapidamente
identificadas. As duas primeiras questões abordam a produção
do conhecimento sobre o objeto de estudo (assunto da pesqui-
sa popularizada), o qual é detalhado nas duas últimas questões.

Exemplo 4
Atividade de leitura que leva o aluno a focar na prática
social de produção de ciência reportada na notícia de PC
(autor da pesquisa, local de publicação do artigo original,
resultados estudo reportado) – LA

216
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

VII – Realize as seguintes atividades com base no texto Once burnt.


c. Fazendo uso da estratégia Scanning, responda às perguntas:
- Quem conduziu o estudo sobre os incêndios na Amazônia?
- Onde suas descobertas foram publicadas?
- Qual o período de tempo necessário para um incêndio voltar?
- Onde ocorrem destruições semelhantes às existentes na
Amazônia?

Essa atividade pode ser considerada como promotora de


um grau inicial de letramento científico, pois chama a aten-
ção do aluno para o conhecimento de um produto da ciência
e de seus produtores. Porém, essa não é uma visada crítica de
letramento, pois não incentiva que o aluno se aproprie des-
se conhecimento para promover mudança social (CERVETTI;
PARDALES; DAMICO, 2001).
Continuando a análise das unidades didáticas, encontrei
também uma atividade (Exemplo 5) que direciona o aluno
para a perspectiva social da pesquisa reportada, podendo
incentivá-lo a ter uma atitude consciente com relação ao pro-
blema estudado na pesquisa reportada (queimadas).

exemplo 5
Atividade de leitura que procura direcionar o aluno para a
perspectiva social do estudo reportado na notícia de PC – LA

VIII – Consultando o dicionário, quando necessário, releia o


texto Once burnt para responder às perguntas:

a. Qual a preocupação de pesquisadores brasileiros e de Mas-


sachussetts sobre o ciclo de incêndios na região amazônica?
b. O que Cochrane afirma sobre a primeira queimada de uma
região e por que ocorrem outras no mesmo local?

217
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Nesse exemplo, é requerido que o aluno identifique as


causas e consequências de um problema social que afeta
o país do aluno (queimadas). Além disso, pede que o alu-
no identifique a solução para esse problema. Dessa forma,
a atividade didática procura promover o entendimento de
relações de causa e conseqüência do problema, bem como
conscientizar o aluno das possíveis soluções para o problema
(mudanças no uso da terra e nas práticas de queimadas).
Como acréscimo para alargar a visada de letramento cien-
tífico, essas atividades poderiam explorar a representação feita
na notícia de PC do autor do estudo (Cochrane) apresentado
como uma autoridade capaz de dizer a causa de um problema
ecológico (queimadas) e de dar sugestões para a melhoria da
vida em sociedade (“para evitar futuras destruições”).
Já o livro LB, remete à descoberta científica da pesquisa na
atividade didática do Exemplo 6:

exemplo 6
Atividade de leitura que procura explorar o conhecimen-
to científico a notícia de PC – LB

3. Compreensão detalhada. Leia o texto novamente e responda:


a. Que justificativa o texto dá para experiências com animais?
b. Segundo West, qual é a natureza do problema da obesidade?
c. Que fator adicional pode ser decisivo no desenvolvimento
da obesidade?

Em princípio, a atividade 3A parece remeter o aluno a


uma questão social polêmica que é o uso de animais para
experiências. Porém, ao ler o texto, percebe-se que a per-
gunta apenas requer que ele responda a forma como esses
animais podem ajudar, ou seja, podem ajudar a entender

218
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

porque algumas pessoas podem comer mais do que outras


e nunca ganhar peso.
Também nessa atividade, poder-se-ia explorar a perspectiva
social da pesquisa quanto ao tema “obesidade”. Porém, as ques-
tões apenas requerem uma identificação de informações no tex-
to, sem procurar promover o letramento científico em termos
de que representação da realidade essas informações trazem.
A atividade didática do Exemplo 7 ilustra uma possibi-
lidade de atividade que leva o aluno a estabelecer compa-
rações entre dois textos que tratam sobre o mesmo assunto
(repelentes naturais), mas que foram publicados em épocas
diferentes, o primeiro em 1993 e o segundo em 1999.

Exemplo 7
Atividade de leitura que procura promover uma visão de ci-
ência como conjunto de teorias passíveis de mudança – LA

XIV – Leia o texto Mean and minty e estabeleça comparações


entre o seu assunto e o assunto abordado no texto Could mari-
golds slay killer mosquitoes?

Ao trazer dois textos que reportam pesquisas sobre o mes-


mo tópico, esse livro parece estar preocupado em promover
a “abertura para mudança de opinião com base em novas evi-
dências” (MOTTA-ROTH, 2011), ao demonstrar que a ciência
está sempre em busca de novas evidências.
Essas são as atividades de leitura classificadas como instân-
cias de letramento científico. De acordo com nossa proposta,
faltariam algumas atividades, as quais são apresentadas a seguir.
O conteúdo ideacional das notícias de PC guarda seme-
lhanças com aquele do artigo científico, pois ambos repor-
tam uma pesquisa científica, apontando a justificativa para o

219
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

estudo, o objetivo da pesquisa, a metodologia empregada e


os resultados encontrados, bem como as implicações de tais
resultados para a sociedade.
Nesse sentido, observa-se que a maioria das atividades
didáticas de leitura analisadas, de alguma forma, exploram
alguma prática social relevante à pesquisa reportada, pois,
quando se faz ciência, se explicam resultados, se faz referên-
cia a conhecimento prévio e se apresentam conclusões da
pesquisa. O que poderia ser feito de maneira mais direta é
tratar tais aspectos (conhecimento prévio, resultados, con-
clusões) conscientizando o aluno acerca da linguagem cientí-
fica, apontando as diferenças entre a notícia de PC e o artigo
científico, etc. Outras atividades poderiam também questio-
nar o aluno quanto aos métodos utilizados, a validade dos
resultados obtidos (modalização), a relação da notícia com o
artigo científico, etc. Como forma de acréscimo às atividades
de leitura analisadas, proponho a atividade do Exemplo 8.

exemplo 8
Atividade de leitura que busca levar o aluno a focalizar o
conteúdo ideacional da notícia de PC

220
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

4. Uma pesquisa científica basicamente envolve um problema


e alguns procedimentos para estudá-lo. Em geral, os pesqui-
sadores tentam entender melhor ou solucionar esse problema
e, para isso, 1) tentam obter/confirmar/refutar resultados que
avancem o conhecimento sobre o problema, por meio de 2)
procedimentos controlados, envolvendo seres vivos ou ob-
jetos. Essas informações comumente aparecem no início das
notícias de popularização da ciência.

4.1 Leia os primeiros parágrafos do texto e tente responder as


perguntas abaixo:
a. Qual foi o principal resultado obtido na pesquisa?
b. Quantos sujeitos participaram da pesquisa?
c. Por quanto tempo os pesquisadores acompanharam os par-
ticipantes da pesquisa?
d. Que dados foram usados? Como foi feita a análise desses
dados (equipamentos)?
e. A que correspondem as expressões “3 mililitres per square
metre”e “85 per cent”?
f. O que os resultados da pesquisa sugerem?

4.2 Assim, a primeira parte do texto geralmente introduz os


RESULTADOS e a METODOLOGIA do estudo. Tente identi-
ficar os excertos abaixo com (R) ou (M), conforme eles sinali-
zem RESULTADOS ou METODOLOGIA.

( ) Researchers in India have found that ... (linhas 4 e 5)


( ) A team led by Musharrah Ansari (...) extracted the oil... (l. 7-11)
( ) The researchers tested... (l. 12)
( ) Volunteers doused in pepperm int oil... (l. 26 e 27)
( ) The protection offered varied slightly between the different
mosquito species (l. 29 e l. 30)

Adaptado de Motta-Roth et al. (2009).

Na sequência dessa atividade, proponho que se peça ao


aluno para estabelecer uma comparação desse texto com o

221
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

resumo do artigo científico original, de forma que o aluno


possa comparar as diferenças e semelhanças em termos de
escolhas na linguagem e as conseqüências dessas escolhas na
representação de ciência. O mesmo exercício pode ser feito,
com alguma adaptação, conforme Exemplo 9.

exemplo 9
Atividade de leitura que enseja levar o aluno a comparar
o conteúdo ideacional da notícia de PC e do artigo acadê-
mico a partir da leitura do abstract

5.1 Tente identificar no resumo do artigo acadêmico, as mesmas


informações da questão 5:
a. Qual foi o principal resultado obtido na pesquisa?
b. Quantos sujeitos participaram da pesquisa?
c. Por quanto tempo os pesquisadores acompanharam os parti-
cipantes da pesquisa?
d. Que dados foram usados? Como foi feita a análise desses da-
dos (equipamentos)?
e. Como as expressões numéricas do exercício 10.1/e são apre-
sentadas no resumo?
f. O que os resultados da pesquisa sugerem?
5.2 Tente identificar os excertos abaixo com (R) ou (M), confor-
me eles sinalizem RESULTADOS ou METODOLOGIA.
( ) Oil of Mentha piperita L. (Peppermint oil) (…) was evalu-
ated for larvicidal activity
( ) Cx. quinquefasciatus was most susceptible
( ) The oil showed strong repellent action

5.3 Que diferenças em termos vocabulário você pode perceber


entre o resumo e a notícia de PC?

222
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

4.3 Na pós-leitura

Além das instâncias de letramento científico encontradas nas


atividades de leitura analisadas, também encontrei exemplares
de atividades que ensejam o letramento científico em algumas
atividades da Seção de pós-leitura do livro LA, mais especifica-
mente na seção “Critical reading”, na atividade do Exemplo 10.

Exemplo 10
Atividade de pós-leitura que procura engajar o aluno na dis-
cussão sobre a pesquisa reportada na notícia de PC – LA

XV – CRITICAL READING

Façam uma reflexão sobre o que vocês leram e, em seguida,


discutam:
a) Qual a sua opinião sobre o ciclo de incêndios que ocorre na
região amazônica?
b) Que soluções você apontaria para resolver esse problema?
c) Você considera corretas a constante preocupação e interven-
ção mundial na Amazônia?
d) Você acredita que os inseticidas naturais são realmente me-
lhores que os sintéticos?

Ao demandar que o aluno expresse sua opinião a res-


peito do assunto do texto e avalie um problema social, o
exercício associa a pesquisa científica à vida cotidiana do
aluno e o posiciona como alguém que poderia propor ou-
tras soluções para o problema.
Essa atividade explora a terceira dimensão de letramento
científico apontada por Motta-Roth (2011), a saber, “a compre-
ensão e a produção de textos e discursos que projetam opiniões
sobre ciência e tecnologia, pautadas pelo entendimento das rela-

223
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

ções entre ciência e tecnologia e o mundo em que se vive”. Isso


acontece uma vez que o aluno precisa expressar sua opinião com
relação às pesquisas reportadas nas notícias de PC a partir do en-
tendimento que dos textos lidos e de como ele entende que essas
pesquisas estão relacionadas com a vida em sociedade.

5 considerações finais

A partir da discussão acima, proponho que a inserção dos


alunos dos cursos técnicos e tecnólogos às práticas de
letramento científico inicie por questionar as visões de
ciência adotadas por eles. Isso pode ser feito ao se ques-
tionar em que medida diferentes áreas do conhecimento
produzem ciência, de forma a desafiar visões estritas de
ciência, e expandir a visão dos alunos para ciência como
“conhecimento de qualquer objeto ou fenômeno por inter-
médio da observação, identificação, descrição, investiga-
ção ordenada e explicação do fenômeno com base em um
paradigma vigente” (MOTTA-ROTH, 2009). Nesse exercí-
cio, os alunos podem discutir sobre quais os possíveis
procedimentos empregados em um estudo nessas áreas,
quais os produtos da ciência e em que medida eles têm
acesso ao conhecimento produzido em determinada área.
Nesse momento, é possível solicitar que os alunos tentem
encontrar notícias de PC em áreas específicas. Dessa for-
ma, os alunos iniciam uma reflexão sobre a valorização da
mídia de algumas áreas do conhecimento.
Além disso, a partir das notícias encontradas, os alunos po-
dem verificar se há intertextualidade no texto e, se houver, iden-
tificar quem tem voz nesses textos, o que levaria à discussão
apontada por Marcuzzo (2011) de que o público em geral não
é chamado a dar sua opinião em assuntos relacionados à ciência.

224
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

Na aula de inglês instrumental, acredito que nossa contri-


buição, como professores, pode se dar no sentido de desen-
volver no aluno a capacidade de ler criticamente uma notícia
de PC em comparação com um artigo científico, de forma a
identificar a visão de ciência subjacente à notícia. Mais espe-
cificamente, acredito que possamos contribuir no desenvol-
vimento da linguagem científica do aluno em língua inglesa
ao propor atividades como as sugeridas acima.
Em termos de inglês para um público de curso técnico ou
tecnólogo, atualmente, as atividades analisadas estão inadequadas
a esse público por serem pouco específicas quanto à necessidade
imediata dos alunos desse nível de ler textos científicos, ou seja,
as atividades precisam ser reformuladas para explorarem o caráter
científico do gênero utilizado. Além disso, como a ciência é um
“corpo de conhecimento historicamente em expansão” (Chalmers,
1993), é necessário que os textos sejam atuais e com temas rele-
vantes. Nesse sentido observa-se a importância de se realizar uma
análise crítica de gênero ao elaborar um curso ou material de in-
glês instrumental ou apropriar-se de pesquisas existentes.
Em síntese, os resultados demonstram que quanto à apro-
priação das pesquisas sobre o gênero notícia de PC, encontrei
que não houve uma preocupação em estudar a sua organização
retórica e aspectos contextuais. Essa abordagem tem como con-
sequência que o letramento científico é apenas timidamente pro-
movido, uma vez que a linguagem, do ponto de vista de lingua-
gem como gênero, não é explorada em toda sua potencialidade.
Os aspectos apontados acima são, do nosso ponto de vis-
ta, essenciais para uma visada de ensino de leitura e de lin-
guagem com base em gêneros. Por isso, tentei re-elaborar as
atividades analisadas de forma a utilizar as pesquisas prévias
e aplicá-las para fins da promoção de letramento científico.

225
projetos de letramento : debates & aplicações
parte ii – aplicações

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227
III
c a d e r n o d e at i v i d a d e s
at i v i d a d e s d e l e i t u r a e e s c r i ta :

projetos de letramento

Na formação permanente dos professores, o momento funda-


mental é o da reflexão crítica sobre a prática. É pensando criti-
camente a prática de hoje ou de ontem que se pode melhorar a
próxima prática (FREIRE, 1996).

As palavras do mestre Paulo Freire e seus ensinamentos com


a Pedagogia da Autonomia nos remetem a reflexões sempre
presentes em roda de professores: como transpor para a práti-
ca o discurso teórico que embasa o ensino de línguas? Como
produzir material didático diante da complexidade dos fatos
envolvidos com a linguagem em sala de aula, levando em con-
sideração a sociedade global e pós-moderna em que vivemos?
Como ajudar os estudantes a desenvolverem um olhar crítico
perante textos que circulam em diversas esferas de atividades?
Essas e outras tantas indagações levaram o Núcleo de Estudos
Linguísticos e Literários (NELL) do Instituto Federal Farroupilha –
Campus São Vicente do Sul a propor um projeto de extensão, cujo
objetivo central era oportunizar momentos de reflexão capazes de
articular a formação inicial e continuada de professores de Lín-
guas a fim de rediscutir aspectos importantes para a produção de
material didático voltados à leitura. O projeto foi executado em
2011 e contou com a participação de 50 professores, que pude-
ram discutir teorias e aperfeiçoar seus conceitos sobre o processo
de letramento da leitura e escrita. Além disso, o curso promoveu
debates para que os professores, conscientes das diversas práticas

229
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

de letramento que os sujeitos se engajam na comunicação diá-


ria, produzam seu material didático levando em consideração a
prática social, os gêneros discursivos, os distintos papéis que se
assume e as relações de poder existentes nas esferas de atividades.
Portanto, o material didático que compõe o caderno de
atividades presente nesta obra foi produzido durante o curso.
Dentre os participantes, 9 professores, que atuam na educação
básica dos municípios da região de São Vicente do Sul, aceita-
ram o desafio para esta publicação. As teorias que embasaram
a produção do material didático já foram contextualizadas nos
capítulos prévios; porém, cabe ainda uma maior explanação
sobre letramento e gêneros discursivos, já que as atividades pri-
vilegiaram o texto para o ensino da leitura e escrita.
Os estudos do letramento têm como objeto de conhecimento
os aspectos e os impactos sociais do uso da leitura e escrita (KLEI-
MAN, 2007). Dessa forma, apropriando-se de textos – gêneros
discursivos – o sujeito insere-se em práticas de letramento das
quais antes nunca participou. Esse modo de agir em situações
novas, para Kleiman (2007), é o que dá rumo à aprendizagem es-
colar, pois é na escola, agência de letramento por excelência, que
o professor, ao fazer uso de diversos gêneros, cria espaços para
experimentar formas de participação nas práticas sociais letradas.
Nessa perspectiva em que o contexto é inseparável das prá-
ticas letradas, o conteúdo deixa de ser o elemento estruturante
do currículo, e a pergunta que orienta o planejamento das ati-
vidades didáticas é: “quais os textos significativos para o alu-
no e sua comunidade?” (Id, Ibid). Nesse sentido, para Bunzen
(2010, p. 99), “discutir os significados do letramento escolar
é refletir sobre as condições de produção e sobre os modos
de circulação de textos (sempre multissemióticos) no cotidiano
da escola”: produção de poesias para participação de um café
literário; estudo de gêneros jornalísticos para produção de um
Jornal Escolar; análise de charges a fim de entender os aspectos

230
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

sociais do país; leitura da parte verbal e não-verbal de anúncio


publicitário com o intuito de verificar a visão crítica dos estu-
dantes sobre esse texto da mídia, por exemplo.
Ao assumir tal posição, passa-se a compreender a escola como
uma esfera de comunicação humana que possibilita a produção,
a utilização e a recepção de determinados gêneros discursivos
nas variadas atividades de linguagem que se dão em espaços e
tempos sócio-históricos (BUNZEN, 2010). Cabe, ainda, ressaltar
o caráter plural das práticas letradas, já que hoje o texto não se
constitui apenas de linguagem verbal, mas também de imagem,
som, áudio – as múltiplas linguagens. Dar atenção na sala de
aula para os multiletramentos, portanto, torna-se necessário para
interagir nessa nossa sociedade multicultural, já que é papel da
escola trabalhar com demandas comunicativas atuais.
Passa-se a considerar, enfim, que uma das intenções para
o trabalho com gêneros em sala de aula é possibilitar que os
estudantes se apropriem dos textos para agir na sociedade, de
acordo com o contexto e o papel que estão assumindo. Nesse
sentido, tem-se, então, um projeto de letramento, que, viabili-
zado por meio de gêneros, permite que os planos de atividades
visem ao letramento dos estudantes. Já a dinâmica da aula é
determinada pelo desenvolvimento do projeto, que pode assu-
mir novos ritmos e caminhos a todo o momento, segundo os
interesses do aluno e da comunidade escolar (OLIVEIRA, 2010).
Desejamos que o material didático presente no caderno
de atividades não seja um modelo pronto e acabado, mas sim
uma inspiração para que outros professores também produ-
zam seus próprios materiais com vistas ao letramento, por-
que entendemos que programas de letramento, nesse sentido,
assumem um caráter transformador.

As organizadoras.
São Vicente do Sul, abril de 2012.

231
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

referências
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OLIVEIRA, M. S. Gêneros textuais e letramento. RBLA, Belo Horizonte, v. 10,
n. 2, p. 325-345, 2010.

232
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

1 as redes sociais e você!

Andressa Trindade Berlato

Público-alvo: Estudantes do Ensino Fundamental


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivos: Promover uma leitura crítica da rede social Orkut,
com o intuito de verificar a linguagem utilizada.

pré-leitura
• Você costuma acessar as redes sociais?
• Quais são elas?
• Qual você interage mais? Por quê?
• Qual o tipo de linguagem que você utiliza?
• Você possui orkut? Qual seria a finalidade?

leitura
• Pesquisar na internet perfis de orkut.
• Escolha um perfil masculino e um feminino.

pós-leitura
• Analisar o tipo de linguagem utilizada em ambos os sexos.
• Os perfis são criativos?
• A linguagem utilizada é culta ou informal?
• A escrita utilizada é abreviada. Por quê?
• Qual é o objetivo de usar esse tipo de linguagem?
• Existe alguma diferença na escrita masculina da feminina?
• O que as pessoas expõem de si nesses perfis?
• A linguagem com termos abreviados pode ser utilizada
em outras ocasiões? Quais?

233
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

2 projeto: café literário

Diana Prestes Budó Dutra

Público-alvo: Estudantes do Ensino Fundamental


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivos: Incentivar o gosto pela leitura a partir da análise de
poesias de Salvador Fernanado Lamberty; Promover um café
literário para expor trabalhos desenvolvidos pelos estudantes.

1º momento
• Apresentação do Projeto aos alunos incentivando a
participação de cada um.
• Pesquisa sobre a vida e obra do autor.
• Apresentação de livros de poesias do autor.
• Seleção de poesias escolhidas pelos alunos.

2º momento
• Organizar roda de leitura para que os alunos expres-
sem os sentimentos que aparecem no texto durante a
leitura, como medo, alegria, espanto, tristeza e humor.
• Conversar com a turma sobre alguns aspectos impor-
tantes do poema: características (rima, versos e estrofes)
• Analisar as poesias.
• Realizar a produção de poesias (Tema Salvador Ferran-
do Lamberty)

3º momento
• Organização de um mural com as poesias produzidas
pelos alunos.
• Escolher uma poesia para ser declamada durante o
café literário.

234
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

• Dramatização da poesia "Ladrão de Felicidade" Salva-


dor Ferrando Lamberty.

4º momento
• Confeccionar trabalhos artesanais a partir das análises
das poesias.
• Confeccionar convite para o autor e a comunidade es-
colar para o café literário.
• Organizar a realização do café literário.

5º momento
• Realização do café literário.
• Com apresentações dos alunos
• Exposição dos trabalhos realizados.
• Conversa com o autor.

235
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

3 o gênero notícia e seus aspectos


discursivos

Erilaine Perez da Silveira

Público-alvo: alunos do Ensino Médio


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivos:  distinguir diferentes enfoques na apresentação
de notícias; identificar os aspectos discursivos relativos ao
gênero notícia, como público-alvo, veículo de publicação,
tipo de suporte e função do gênero.

pré-leitura
1. Questionar os alunos sobre o que é “memória”. As-
sociar a esse questionamento as palavras “lembrança”
e “esquecimento”. Perguntar para eles, se conhecem o
ditado “Quem conta um conto aumenta um ponto” e
se sabem o motivo dessa afirmação.
2. Explicar que quando uma história é contada e recon-
tada, há uma tendência de que algumas partes sejam
esquecidas, outras ressaltadas. Tudo dependerá de
quem conta, das suas experiências pessoais: se gostar
do mesmo doce de que fala a narrativa, irá ressaltar a
cena em que ele aparece, por exemplo.
3. Falar que existem certas palavras utilizadas no texto
que deixam claras as intenções de quem escreveu.

leitura
1. No jornal da semana, será escolhida uma notícia para
ser lida com atenção.
2. A mesma notícia será pesquisada na internet.

236
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

3. Depois disso, os alunos confrontarão o material en-


contrado pelos grupos para analisar se esse fato, em-
bora seja o mesmo, foi enfocado de maneira igual por
todos os jornais e sites em que figurou.
4. Encontradas as diferenças, eles serão questionados
sobre quais sejam e o motivo pelo qual elas aconte-
ceram: em que suporte o fato foi publicado, quem é
o público-alvo desse jornal/site e que intenção há por
trás do enfoque abordado.
 
pós-leitura
1. Diante das conclusões obtidas, os alunos irão procurar
no mesmo jornal e nos sites da internet imagens que
lembrem momentos da sua vida. Irão construir com
elas uma notícia que fale de um evento que foi impor-
tante em sua vida. Poderão ainda utilizar excertos de
textos ou citações de frases que estejam relacionadas.
2. Após, os alunos irão socializar seus textos com os co-
legas, atentando para os pontos que foram ressalta-
dos pelos colegas. Destacar que esses pontos levarão
ao conhecimento do que era mais importante revelar/
mostrar para quem escreveu a notícia. Os alunos farão
comentários sobre isso após o término das leituras.

237
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

4 a linguagem jornalística e as
diversas mídias

Lígia Gonçalves de Oliveira

Público-alvo: Estudantes do Ensino Fundamental


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivos: Desenvolver a capacidade de entendimento da
linguagem jornalística, principalmente do gênero notícia, em
diversos meios de comunicação: rádio, televisão, jornal im-
presso e internet.

pré-leitura
Para refletir e discutir:
1. Você tem um clube do coração? Assistir aos jogos de
futebol pela TV ajudou-o a escolher seu time?
2. Além da ausência de imagens, quais as principais dife-
renças entre o rádio e a TV?
3. Em que momentos você ouve rádio? E em quais assiste
à televisão?
4. Com que frequência você lê jornais ou revistas? Que
assunto mais lhe chama a atenção?
5. Você tem celular? Como usá-lo na sala de aula positi-
vamente?
6. Seu acesso à internet é diário? Com que objetivo?

Atividades: Comparando Notícias


Objetivo: Observar notícias veiculadas por diferentes
meios de comunicação e anotar suas diferenças.

238
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

1 Grupos

• Dividam-se em grupos de 4 alunos.


• Escolham um dia específico. Cada grupo selecionará
um assunto noticiado nesse dia.
• O mesmo assunto será pesquisado nos seguintes meios
de comunicação pelos integrantes do grupo:
a. Rádio (ao menos duas emissoras);
b. TV (ao menos duas emissoras);
c. Jornal impresso (ao menos dois jornais);
d. Internet (ao menos dois sites de notícias).

• Cada componente do grupo fica responsável pela pes-


quisa em um dos meios de comunicação.
• Aqueles que escolherem jornal e internet podem trazer
o texto impresso ou copiado para o grupo analisar.
• Os que optarem pelo rádio e pela TV precisarão gravar
a notícia para depois transcrevê-la. Caso não seja pos-
sível gravá-las, façam anotações detalhadas do que foi
visto e ouvido.

2 Escutando, lendo e assistindo notícias

• Antes de começar a coleta de dados, lembrem-se de


que o grupo todo deve coletar material sobre o mesmo
assunto. Conversem entre vocês para trocar informa-
ções e decidir onde pesquisar.
• Durante a coleta, devem prestar atenção a:

239
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

a. No rádio:
• Como a notícia é introduzida;
• Qual é a primeira chamada para ela;
• Se há comentários a respeito dela feitos poste-
riormente;

b. Na TV:
• Como a notícia é apresentada na introdução do
telejornal, com qual frase;
• Como ela é desenvolvida posteriormente;
• Que imagens a acompanham.

c. No jornal impresso:
• Como a notícia é apresentada na primeira página;
• Que outros textos, imagens e recursos gráficos
acompanham a notícia.

d. Na internet:
• Que elementos acompanham a notícia (imagens,
gráficos, links, vídeos).
• Todos devem notar qual o destaque que a notí-
cia escolhida teve em relação às outras do dia.

3 Comparando

• Reunido o grupo com o material impresso e anotações


recolhidas, comparem:
• Quais veículos conseguiram ser mais exatos em re-
lação às notícias?
• Quais conseguiram aprofundar mais o assunto e
trouxeram mais detalhes?
• Quais deram mais destaque para a notícia?

240
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

• Formulem hipóteses com base no resultado: se


houve diferenças entre as notícias, elas terão ocor-
rido por qual razão?

4 Avaliando

a. Como se deu o trabalho em grupo? Todos colaboraram?


b. O grupo conseguiu se organizar para que a mesma no-
tícia fosse coletada por todos?
c. Foi difícil a coleta de dados para a pesquisa? Qual foi
a maior dificuldade nessa fase?
d. Quais foram as hipóteses levantadas pelo grupo para
as diferenças entre as notícias?
e. Os grupos chegaram a conclusões semelhantes ou
muito diferentes?

241
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

5 o desenho animado: brincando e


aprendendo

Lucas Martins Flores

Público-alvo: Estudantes do Ensino fundamental – 5ª série


(6º ano)
Disciplina: Língua Inglesa
Objetivos: Desenvolver a capacidade de entendimento de
desenhos animados em Língua Inglesa, através da leitura de
imagens; Refletir sobre as formas de comemoração de ani-
versários em diferentes países, principalmente, os 15 anos;
Oportunizar o aprendizado dos meses do ano, números or-
dinais e o pronome interrogativo “how much” e como dizer
datas em inglês, partindo do Aniversário da Baleia.

contextualização – pre-reading
1. Você costuma assistir a desenhos animados?
2. Qual é o seu desenho preferido?
3. Com que frequência você assiste a ele?
4. Você assiste ao desenho quando está sozinho?
5. Quem é o principal público desse desenho? Idade?
6. Esse desenho discute algo, reflete sobre algum tema
da sociedade?
7. Há algum episódio que tenha marcado a sua vida?
Qual? Conte a seus colegas.
8. Vocês conhecem o “Sponge Bob” (Bob Esponja)?
9. Conte algum episódio.
10. Vocês assistem a desenhos em Língua Portuguesa ou
Inglesa?

242
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

desenho – reading
Você vai assistir a um episódio do Sponge Bob em Inglês, sem
legenda. Você deve prestar atenção nas imagens, nos gestos,
nas músicas, etc. Tente entender o assunto do episódio.

Após assistirem, o professor faz as seguintes questões:


— How old are you?
— When is your birthday?
— How do your celebrate my birthday?
— I celebrate my birthday:
( ) going to the mall
( ) going to the movies
( ) with a big party
( ) in a bowling party
( ) with friends
( ) with my family
( ) others ____________

— What kind of presents do you like?


( ) games
( ) clothes
( ) shoes
( ) flowers
( ) chocolate
( ) others ____________
Agora, vocês deverão assistir o desenho novamente e ten-
tar responder as seguintes perguntas:

movie activity – post reading


How old is the whale Pearl?
( ) 15 ( ) 16
( ) 13 ( ) 17

243
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

What special day is tomorrow?


( ) It´s Pearl’s birthday
( ) It’s Pearl’s band festival
( ) It’s Pearl’s ballet presentation

Sponge Bob will be a detective. What does Mr. Krab give


to Sponge Bob?
( ) money ( ) presents
( ) a list ( ) a credit card

Name three presents Sponge Bob buys to Pearl!

Match the presents and the prices


Sunglasses $ 39,99
Shoes $ 149,99
Dress $ 300,99

Does Pearl like the party?

Does Pearl like the presents?

Feita a correção das atividades, discute-se sobre a festa


de aniversário dos 16 anos da baleia e sobre os 15 anos aqui
no Brasil, suas características, seus detalhes, diferenças e
semelhanças. Surge o assunto dos presentes, preços, o que
proporciona refletir sobre o consumismo dos adolescentes,
atualmente, influenciados pelas mídias. Questiona-se assim:
— Is it necessary so many presents?
— In your opinion, are the presents cheap or expensive?
— Is it important to receive expensive presents?

244
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

grammar talk
Finalmente, apresenta-se aspectos gramaticais da Língua In-
glesa como:
How old are you? I AM . . . . . (correto) / I HAVE …. (er-
rado);
When is your birthday? It’s IN November/ It’s ON No-
vember 17th;
Meses do ano;
Número Ordinais;
How much: (Quanto custa os presentes mencionados pe-
los alunos).

245
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

6 e s t r at é g i a s d e l e i t u r a pa r a o
estudo da crônica

Mary Teresinha Sagrilo

Público-alvo: Estudantes do Ensino Médio


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivo: Analisar o gênero crônica a fim de entender suas
características e estrutura; Viabilizar a construção de um mu-
ral na escola.

1 Estratégias para a pré-leitura: (de forma oral)

— Falar sobre o autor, buscando nos conhecimentos prévios


dos alunos: quem é David Coimbra?
— O que ele costuma escrever?
— Para que serve uma crônica?
— Para que jornal ou revista ele costuma escrever? Como
você sabe disso?
— Em qual caderno desse jornal aparecem suas crônicas e
por quê?
— Quais as principais características das crônicas de David
Coimbra?

2 Estratégias para durante a leitura:

De posse da crônica e de forma oral, realizar algumas pergun-


tas, considerando o que se vê:
— Observe o título: dá ideia do que vai ser falado no texto?
— Relacionando o título com a imagem, uma coisa tem a ver
com a outra? Em que aspectos? Por quê?

246
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

— Qual a relação da imagem da bola ao lado da figura da mulher?


— Bola tem relação com “umbigo alto”?
— Será que bola, mulher, umbigo e página de esporte combi-
nam? Justifique sua resposta:

Vamos ao texto, agora, utilizando certos recursos gráficos


para realizar algumas tarefas:
— Com um marcador de texto colorido, leia a crônica e des-
taque palavras ou expressões que remetem ao texto (de uma
cor) e outras que fazem alusão à imagem (com outra cor);
— Com o lápis de escrever, circule os nomes de pessoas que
aparecem no texto;
— Há uma frase que encerra a ideia principal da crônica. En-
contre-a e destaque da melhor forma que você quiser;
— Pode-se perceber que a abordagem dos temas que inspi-
raram o escritor seguem uma ordem. Demarque os trechos
(início e fim) onde se encontram esses temas.

3 Estratégias para pós-leitura: (de forma escrita)

— Que assuntos atuais o escritor David Coimbra abordou


nesta crônica?
— Fica clara a relação do título com o contexto da crônica?
Justifique sua resposta:
— Que outro título você usaria para o texto e por quê?
— Com que finalidade David Coimbra escreveu essa crônica?
— A linguagem usada pelo escritor é acessível a todas as pes-
soas de qualquer faixa etária e gostos? Por quê?
— Aponte algumas evoluções que você já presenciou na vida. Faça
um breve comentário para ser discutido depois com a turma:
— Há palavras no texto que você desconhece? Quais? Verifi-
que com os colegas e descubra os significados:

247
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

— Você circulou o nome de algumas pessoas no texto. Quem


são elas e por que o autor as citou?
— Qual a mudança que mais surpreendeu o autor? Justifique
sua resposta copiando uma expressão do texto:
— Que importância o autor estabeleceu para a necessidade
do ventil na bola?
— David Coimbra mostra, nesta crônica, certa preocupação
com o desemprego. Você concorda com ele e por quê?
— Explique a frase que encerra a ideia principal do texto:
— Estabeleça uma relação do título e a frase final da crônica,
explicando o sentido real de uma das perguntas do autor: “
Como as mulheres levantam seus umbigos”?:
— Na verdade, o cronista David Coimbra é mesmo uma pes-
soa desatualizada como ele se descreve? Como você compro-
va sua resposta?
— Opine sobre as metáforas usadas por David Coimbra na
construção dessa crônica:
— Há um célebre pensamento que diz: “ Todo escritor é como
um construtor”. Tendo como apoio a leitura que você fez, a
habilidade do escritor da crônica e a sua capacidade de escre-
ver, explique esse pensamento:

montagem de um mural literário na escola:


Buscar outras crônicas de David Coimbra com recortes em
jornais ou na internet (em seu blog) e, juntamente com a res-
posta dada à pergunta anterior, montar um mural no corredor
da escola para dividir com outros estudantes o que sua turma
descobriu sobre escrever crônica. Quem sabe você se anime e
também escreva uma para compartilhar com os colegas?

248
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

túnel do tempo : umbigos altos


David Coimbra
12 de junho de 2011

O mundo muda muito rápido. De um dia para outro, todo um


estilo de vida se torna ultrapassado. Vi com meus olhos o fale-
cimento da máquina de escrever, da fita cassete, do videocassete,
das calças abotoadas no estômago. As mulheres de seios peque-
nos, onde elas estão? Batendo à máquina? Ouvindo um som na
fita cassete? Nunca tive nada contra mulheres de seios pequenos,
desde que viessem acompanhados por pernas longas. Só que elas
mudaram. Agora todas as mulheres têm peitos de bola de futsal e
umbigos altos. Peitões eu sei como elas conseguiram: há exercícios
especiais para desenvolver seios, sabia? E, se a ginástica localizada
não funcionar, elas apelam para o silicone. Bom. Mas como os
umbigos foram içados? Observe: antes os umbigos eram lá embai-
xo, no extremo sul da barriga, nas fímbrias do púbis. Agora estão
um palmo para cima, no meio do estômago. Como as mulheres
levantaram seus umbigos? Ainda descubro isso.
Eu tinha uma coleção de discos e um dia me disseram que era
ridículo ter disco, que eu tinha que comprar CD. Comprei
CDs e aí me disseram que não se compra mais CD. Então não
compro mais disco, nem CD, nem nada. Não ouço música.
Meu celular está sempre atrasado. O Potter, o celular dele chu-
leia e dá nó em gravata. O meu mal e mal fala.
Uma vez eu tinha uma TV com seletor de canais. Virei motivo de
piada. Comprei uma de plasma e outro dia alguém se espantou:
— Tu não tens agá dê???
Maldição.
Já decidi que não compro mais nenhuma dessas tecnologias
que mudam de seis em seis meses. Só vou comprar quando
lançarem o último. Só gasto meu dinheiro com o último mo-
delo desses troços.

249
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

Tudo se transforma, já dizia Lavoisier. Só que se transforma


rápido demais. O Orkut já está ultrapassado. Justo agora que
eu ia entrar no Orkut. É por isso que não tenho tuíter. Meu
tuíter é fake. É muito fino ter um fake, embora ninguém mais
diga que algo é fino.
Agora tem o seguinte: poucas mudanças me surpreenderam tan-
to quanto a extinção do ventil. Um dia, estava jogando bola, fui
chutar uma falta e lembrei do Flávio Minuano. O Flávio Minua-
no não errava falta. O segredo dele era recuar um passo e meio,
nada mais nada menos do que um passo e meio da bola. Depois
ele punha o pé esquerdo ao lado dela. Com cuidado, com cri-
tério. E, aí sim, chutava. Mas tinha de chutar no lado do ventil,
exatamente no lado do ventil. A bola subia por cima da barreira,
fazia uma curva e entrava no ângulo. Sempre entrava.
O Flávio Minuano chutava de efeito. O Jair Rosa Pinto chuta-
va forte. Mas também batia no ventil. Outro mestre, o maior
deles, Roberto Rivellino: no ventil.
Então fui chutar no ventil. Peguei a bola, procurei o ventil
e. . . com um milhão de pulmões assopradores, onde está o
ventil??? Não havia ventil. As bolas não têm mais ventil! Como
eles enchem as bolas? Elas não esvaziam mais? Daqui a 1. 500
anos todas as bolas produzidas nesse tempo todo continuarão
cheias? O que é feito das fábricas de bombas de encher bola?
Quantas pessoas não foram desempregadas só porque alguém
tirou o ventil das bolas. . . O mundo novo é assustador.
Fonte: Zero Hora Online

250
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

7 a l i n g u a g e m v i r t u a l : p r i va d a o u
pública?

Sabrine Denardi de Menezes

Público-alvo: Estudantes 3º ano do Ensino Médio


Disciplina: Língua Inglesa
Objetivo: Levar os alunos a refletirem sobre as informações
que costumam postar na internet e suas consequências, ten-
do em vista que uma vez publicada na web, a informação não
será mais privada.

Reading and comprehension activities:

pre-reading
1. O que a imagem no início do texto está sugerindo?
2. Sobre o que você acha que é o assunto principal do texto?
3. O que a palavra Reputation representa no título junta-
mente com a imagem?
4. Como você gerencia suas informações em sites de re-
lacionamento na internet? Que 5) informações você
costuma postar?
5. Você conhece realmente as pessoas que mantêm conta-
to nas redes sociais?
6. Você se encontraria com alguém que conheceu na internet?

reading and comprehension


1. Você acha que a imagem contribui para a compreensão
do assunto do texto antes da leitura?
2. Qual o objetivo principal do texto?
3. Esse texto foi extraído de um site que fala sobre saúde,
qual a relação deste tema com o assunto tratado no texto?

251
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

4. Pelas informações fornecidas pelo título, imagem, lo-


cal de publicação, podemos identificar o gênero do
texto. A qual gênero pertence esse texto?Quais são as
suas características?
5. Qual o público alvo deste texto?Como você chegou a
essa conclusão?
6. Você costuma ler textos na internet?Sobre quais assun-
tos principalmente?
7. O texto apresenta dicas de segurança na internet. Você
adota alguma delas? Você considera que são importantes?
8. Você já vivenciou ou conhece alguém que já passou
por situações constrangedoras na internet?
9. Qual a posição defendida no texto sobre o assunto?
Que evidências comprovam esse posicionamento?
10. Você concorda com os argumentos do autor? Por que?
11. Você se identifica com as situações expostas no texto?
12. Qual a relação entre o tema tratado neste texto e
Bullying?
13. Faça uma lista das palavras que você desconhece para
montar um vocabulário.
14. Após a leitura do texto, você continua com a mesma
opinião que tinha antes? O que mudou?
15. Você teve muitas dificuldades na leitura do texto ou
conseguiu compreendê-lo facilmente?

post-reading
A partir do tema exposto no texto (segurança na internet),
produza um artigo digital sobre o tema ou temas relaciona-
dos como: cyberbullying, crimes na internet, privacidade nas
redes sociais.
Seu texto será publicado no blog da turma, que será cria-
do em conjunto pelos colegas.

252
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

Além dos textos produzidos, a turma poderá postar variadas


informações no site, bem como trabalhos de outras disciplinas,
calendário de provas, de aniversários dos colegas, informações
sobre vestibulares, enfim diversos temas de interesse geral.

Ashley is a high-school junior in Illinois. She and her friends


use MySpace to communicate, but she's very careful about the
information, pictures, and comments she sends and posts –
even though her profile is set to private. She knows that no-
thing is ever really private online.
"I know teens who have gotten kicked off their sports teams
because of pictures and inappropriate material they have on
their profiles," she says.
Her advice is simple: "Be smart about what you put on the
Internet, because you never know who is looking at what you
have on there."
From the first time you log on to a social networking site like
Facebook or MySpace, pick a screen name for instant mes-
saging (IM), or post to a blog on your favorite band, you're
creating an online identity.
Your online identity may be different from your real-world
identity – the way your friends, parents, and teachers think
of you – and some parts of it may be entirely made up. May-
be you're a little shy in real life, but online you're a jokester
and your avatar is a famous comedian. Maybe your classmates
think of you as a soccer star, but online you indulge your pas-
sion for chess and environmentalism.

253
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

Playing around and trying on different characteristics are part


of the fun of an online life. You can change your look or the
way you act and present yourself to others, and you can learn
more about things that interest you. And, just as in real life,
you can take steps to help make sure you stay in control.

things to consider

Here are some things to consider to safeguard your online


identity and reputation:
Remember that nothing is temporary online. The virtual
world is full of opportunities to interact and share with people
around the world. It's also a place where nothing is temporary
and there are no "take-backs." A lot of what you do and say
online can be retrieved online even if you delete it — and it's a
breeze for others to copy, save, and forward your information.
Mark your profiles as private. Anyone who accesses your
profile on a social networking site can copy or screen-capture
information and photos that you may not want the world to
see. Don't rely on the site's default settings. Read each site's
instructions or guidelines to make sure you're doing everything
you can to keep your material private.
Safeguard your passwords and
change them frequently. If someo-
ne logs on to a site and pretends to
be you, they can trash your identity.
Pick passwords that no one will
guess (don't use your favorite band
or your dog's birthday; try thinking
of two utterly random nouns and
mixing in a random number), and
change them often. Never share
them with anyone other than your parents or a trusted adult.
Not even your best friend, boyfriend, or girlfriend should
know your private passwords!

254
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

Don't post inappropriate or sexually provocative pictures


or comments. Things that seem funny or cool to you right
now might not seem so cool years from now — or when a
teacher, admissions officer, or potential employer sees them. A
good rule of thumb is: if you'd feel weird if your grandmother,
coach, or best friend's parents saw it, it's probably not a good
thing to post. Even if it's on a private page, it could be hacked
or copied and forwarded.
Don't respond to inappropriate requests. Research shows
that a high percentage of teens receive inappropriate messa-
ges and solicitations when they're online. These can be sca-
ry, strange, and even embarrassing. If you feel harassed by a
stranger or a friend online, tell an adult you trust immediately.
It is never a good idea to respond. Responding is only likely to
make things worse, and might result in you saying something
you wish you hadn't.
You can report inappropriate behavior or concerns at www.cy-
bertipline.org [please note: By clicking on this link, you will be
leaving our website].
Take a breather to avoid "flaming." File this one under
"nothing's temporary online": If you get the urge to fire off
an angry IM or comment on a message board or blog, it's a
good idea to wait a few minutes, calm down, and remember
that the comments may stay up (with your screen name ri-
ght there) long after you've regained your temper and maybe
changed your mind.
You might feel anonymous or disguised in chat rooms, social
networks, or other sites — and this could lead to mean, in-
sulting, or abusive comments toward someone else, or sharing
pictures and comments you may later regret. We've all heard
of cyberbullying, but most people think online bullying is so-
mething people do intentionally. But sharing stuff or dropping
random comments when we're not face to face with someone
can hurt just as much, if not more. And it can damage how

255
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

others see you if they find out. A good rule to remember: if


you wouldn't say it, show it, or do it in person, you probably
don't want to online.
Learn about copyrights. It's a good idea to learn about co-
pyright laws and make sure you don't post, share, or distribu-
te copyrighted images, songs, or files. Sure, you want to share
them, but you don't want to accidentally do anything illegal
that can come back to haunt you later.
Check yourself. Chances are, you've already checked your
"digital footprint" – nearly half of all online users do. Try ty-
ping your screen name or email address into a search engine
and see what comes up. That's one way to get a sense of what
others see as your online identity.
Take it offline. In general, if you have questions about the
trail you're leaving online, don't be afraid to ask a trusted adult.
Sure, you might know more about the online world than a lot
of adults do, but they have life experience that can help.
Your online identity and reputation are shaped in much the
same way as your real-life identity, except that when you're
online you don't always get a chance to explain your tone or
what you mean. Thinking before you post and following the
same rules for responsible behavior online as you do offline
can help you avoid leaving an online identity trail you regret.

Reviewed by: Steven Dowshen, MD


Date reviewed: May 2010

Fonte: http://kidshealth.org/teen/school_jobs/bullying/online_id.html

256
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

8 a realidade do país por meio da charge

Sandra Izabel Gomes

Público-alvo: Estudantes da 8ª série (9º ano) do Ensino Médio


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivo: Possibilitar aos estudantes uma leitura crítica da
realidade social do país por meio de uma charge.

1 leitura da realidade social


Debater os seguintes tópicos:
a. A que se refere o texto?
b. O que significa mensalão?
c. O que estava acontecendo no país, nessa época?
d. Quem são os personagens envolvidos na história?
e. Qual a relação entre mensalão e mesada?

2 leitura do texto (Roteiro para análise)


a. Como é apresentado esse texto?
b. O que mais chama a atenção?
c. A atitude da mulher condiz com a sua foto? Por quê?
d. Qual a relação entre a imagem, as falas e as palavras
em destaque?
e. A que se refere o título do texto em “a dama de ferro”?
f. Na verdade, o que é o mensalão?

3 marcas linguísticas
a. Quais as características visuais do texto?
b. Identifique o veículo de comunicação, a época e a se-
ção, onde o texto foi exposto.
c. Qual o significado do nome da seção “avenida brasil”
e da forma como ele está apresentado?
d. Qual o significado do semáforo?

257
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

e. Que expressões indicam os sentimentos e desejos dos


personagens?
f. Como o governo é visto por quem se expressa através
do texto?
g. Que expressões comprovam sua resposta?
h. Como o governo é visto por quem lê esse texto? Por quê?
i. Em que época esse fato aconteceu? Como você comprova?
j. Qual o nível social das pessoas que leem a revista “isto é”?
k. Por que foi usada ênfase em algumas palavras, por
exemplo: “mensalão! é pra já!”

A que gênero pertence este texto? Outros textos desse mes-


mo gênero apresentam características similares? Que intenção
as charges provocam? Que efeitos elas geram nos leitores?

4 produção de texto
Reunir outros textos com as mesmas características e sugerir
aos alunos que criem um texto coletivo, em pequenos gru-
pos, considerando a situação do Brasil, hoje. Por exemplo:
Na política, na economia, na educação, no clima, etc.

258
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

Fonte: ISTO É /1863-29/6/2005

259
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

9 o a n ú n c i o p u b l i c i tá r i o :
linguagem verbal e não-verbal

Viviane Berguemaier

Público-alvo: Estudantes do Ensino Médio


Disciplina: Língua Portuguesa
Objetivo: Trabalhar com leitura da parte verbal e não-verbal
de um anúncio publicitário, no sentido de verificar a visão
crítica dos estudantes sobre esse texto da mídia.

1. antes da leitura:
— O que é um anúncio publicitário?
— Onde podemos encontrá-lo?
— Qual seu objetivo?
— Que características possui esse tipo de texto?

2. durante a leitura
Macroanálise
— O que você observa?
— Qual o assunto principal?
— Quais os temas abordados?
— Que recursos foram utilizados em relação às imagens
apresentadas?
— Que relação podemos estabelecer entre o produto anuncia-
do e a placa de sinalização?
— Um anúncio publicitário pode transmitir informações.
Que ideias estão contidas no anúncio?

Microanálise
— Questões de interpretação do cartaz.

260
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

1. Como a maioria das propagandas, também esse anún-


cio apresenta o texto verbal relacionado à imagem?
a. Explique o que costumam simbolizar placas amare-
las semelhantes às que aparecem no anúncio.
b. Observe, no anúncio, onde os produtos oferecidos
foram colocados. O que o anunciante parece sugerir?

2. A linguagem persuasiva do anúncio visa influenciar o


comportamento do público consumidor.
a. Nesse caso, qual é o público-alvo a quem se destina
, em especial, esse anúncio? Por quê?
b. Um dos recursos do texto persuasivo, como o
anúncio, é o emprego do verbo no imperativo.
Identifique trechos do anúncio em que esse recurso
foi empregado.

3. Observe a pontuação das frases escritas na placa.


“Use saia.
Saia de dia,
Saia de noite,
Saia de si. ”

a. O que tornou criativa a linguagem nesse texto?


b. A segunda e a terceira frases podem ser interpretadas
com sentidos diferentes? Esclareça sua resposta.
c. Em que frase a palavra saia é somente um substantivo?
Por quê?
d. Se estas palavras fossem separadas por vírgula, use,
saia, a frase continuaria a ter o mesmo sentido? Escla-
reça sua resposta.
e. Na última frase, “Saia de si”, a que classe gramatical per-
tence a palavra saia? Por quê? Que sentido ela expressa?

261
projetos de letramento : debates & aplicações
parte iii – caderno de atividades

3. pós-leitura
— Você acha que o publicitário deste anúncio utilizou bons
recursos para vender o produto anunciado?
— Por que você acha que o anúncio mostra o corpo de uma
mulher e não de um homem?
— O publicitário está querendo atingir um público específi-
co? Por quê?
— O que a mídia tenta incutir no pensamento das pessoas
com esse tipo de anúncio?

Fonte: SARMENTO, L. L. ; TUFANO, D. Português: Literatura, gramática e


produção textual. São Paulo: Moderna, 2004, p. 270.

262
sobre as organizadoras

Cândida Martins Pinto

Possui graduação em Letras Inglês/Português e respectivas


Literaturas pela Universidade Federal de Santa Maria (2005)
e Mestrado em Estudos Linguísticos pela mesma instituição
(2008). Em 2008, também se especializou em Metodologias
de Ensino de Línguas pela Universidade Franciscana de Santa
Maria. Atualmente, é professora de Língua Portuguesa no Ins-
tituto Federal Farroupilha – Campus São Vicente do Sul e
Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Cató-
lica de Pelotas. Seu foco de interesse está voltado para estudos
sobre letramentos, gêneros, leitura e produção textual.

Evanir Piccolo Carvalho

Possui graduação em Letras, Licenciatura Plena Inglês/Portu-


guês pela Universidade Federal de Santa Maria, Especialista em
Metodologia de Ensino e Mestrado em Educação pela mesma
universidade. Atualmente, é Doutoranda em Letras pela Uni-
versidade Católica de Pelotas, RS. É professora efetiva do Ins-
tituto Federal Farroupilha – Campus São Vicente do Sul, da
área de letras, Língua Portuguesa e Língua Inglesa, atuando no
ensino médio, superiores de tecnologia, licenciaturas e cursos
técnicos sequenciais, integrados e na modalidade PROEJA.

263
Silvania Faccin Colaço

Possui mestrado em Letras pela PUC, RS (2000), área de


concentração em Linguística Aplicada. Atualmente, cursa o
doutorado na UCPEL, RS (início em 2011), na área de Lin-
guística Aplicada. É professora efetiva do Instituto Federal
Farroupilha, campus São Vicente do Sul. Tem experiência
na área de Letras, com ênfase em Linguística, atuando prin-
cipalmente nos seguintes temas: letramentos, leitura, gênero
textual, produção Textual, texto e linguagem.

264
Este livro foi composto em Berkeley Oldstyle por Marcelo Kunde
em Maio de 2012.
marcelokunde@gmail.com

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