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no mundo pelo seu tamanho, população e riqueza: ser uma das grandes Transformar o Brasil em potência global implica percorrer em pouco
potências globais. tempo um caminho duplo. Em termos internos, propiciar altas taxas de
Com a chegada do PT e de Lula ao governo, foi ativado o Núcleo de crescimento econômico, superar a pobreza extrema e a desigualdade que
Assuntos Estratégicos da Presidência da República (NAE) na órbita da Se- são um empecilho para o desenvolvimento, investir em infraestrutura,
cretaria de Comunicação do Governo e de Gestão Estratégica. Na fase ini- educação, pesquisa em ciência e tecnologia, propiciar uma reestruturação
cial, o ministro foi Luiz Gushiken e o coordenador Glauco Arbix, estavam que projete as grandes empresas brasileiras como competidoras com as
à frente do principal centro de pesquisa (Ipea); o secretário executivo era grandes multinacionais, além de dispor de Forças Armadas capazes de dar
o coronel aposentado Oswaldo Oliva Neto. A secretaria não foi mais uma segurança a um país que será o quinto mais importante do mundonofinal
dentro do governo, como mostrou sua evolução posterior transformando- dessa década. No cenário internacional, implica dotar-se de um conjunto
se em ministério, ou seja, na Secretaria de Assuntos Estratégicos (SAE) em de alianças, na região sul-americana primeiro, com outros países do Sul e
2008,dirigida por alguns dos mais notáveis intelectuais do país, como Ro- também com os do Norte; assegurar uma presença marcante nos fóruns
berto Mangabeira Unger e Samuel Pinheiro Guimarães. A criação do NAE internacionais, desenvolver um papel relevante no intercâmbio e no co-
sob a direção Gushiken não foi uma decisão improvisada, como se conclui mércio mundial, e ganharlegitimidade em todos os terrenos. Para atingir
a partir da breve, mas transcendente gestão que colocou o planejamento objetivos tão ambiciosos, faz-se necessário sem dúvida um pensamento
brasileiro em um novo patamar. estratégico.
Já na metade de 2004, apenas um ano depois de estabelecido, o NAE
publicava seu primeiro caderno, que avançava no primeiro esboço de pla-
nejamento estratégico de longa duração: Projeto Brasil 3 Tempos.” Foi a Uma história de planos e de planejamento
primeira definição da nova força política que tinha chegado ao governo de
mostrar que não só procurava ocupar o Palácio do Planalto, mas mudar Antes mesmo do governo desenvolvimentista de Juscelino Kubitschek
a história do Brasil. A partir desse momento, o NAE (depois ministério) (1956-1960), o país já tinha experimentado a necessidade de pôr em mar-
converteu-se numa fábrica de ideias, propostas e iniciativas que foram se- cha o planejamento de despesas e investimentos, planos centrados na
guidas de ações que começaram a dar forma aoprojeto de país que vinha área da economia, para promover o crescimento sustentado. A criação da
sendo desenhado. Alguns dos projetos mais notáveis impulsionados por Companhia Siderúrgica Nacional sob o Estado Novo de Getúlio Vargas,
essa equipe são: a Estratégia Nacional de Defesa, que está inspirando a em 1941, com uma grande fundição em Volta Redonda, produzindo aço
reorganização e rearmamento das Forças Armadas com missões precisas, desde 1946, formou parte do empenho na industrialização do país que os
além da consolidação de uma indústria de defesa tecnologicamente autô- primeiros planos de desenvolvimento tinham comoalvo central. Mas foi o
noma. O Projeto Brasil 3 Tempos: 2007, 2015, 2022, é o plano diretriz que Plano de Metas do governo Kubitschek que marcou um ponto de inflexão,
situa o país no caminhopara se converter em potência global. Além dessas já que concentrou a capacidade do Estado em estimular setores inteiros da
propostas, pode ser somada umainfinidade de análises estratégicas, desde economia com o apoio do BNDE (Banco Nacional de Desenvolvimento
a nano e a biotecnologia até os biocombustíveis e a mudança climática, que Econômico) e do Conselho de Desenvolvimento da Presidência.
contribuem de forma notável a nutrir as equipes de governo de argumen- A ênfase foi colocada nas grandes obras de infraestrutura e na indús-
tos para a tomada de decisões de grande audácia. tria de base. O Plano compreendeu 30 metas organizadas por setores. Ao
desenvolvimento do setor energético destinou-se 44% dos investimentos
totais em obras para a produção de energia elétrica, nuclear e para produ-
ção e refinação de petróleo. O setor de transportes ficou com 30% dos in-
2 Núcleo de Assuntos Estratégicos, “Projeto Brasil 3 Tempos”, Cadernos NAE, n. 1, Presi-
dência da República, julho de 2004, Brasília. vestimentos, concentrados em rodovias, ferrovias e portos, enquanto 20%
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foram destinados às indústrias de base, sobretudo siderurgia, alumínio, frustraram os objetivos desenvolvimentistas”.º Com a perspectiva que o
metais não ferrosos, cimento, celulose e papel. O crescimento teve uma tempo oferece, o NAE estima que além da estabilidade política, os planos
média de 7% anual entre 1957 e 1962, superando com acréscimo a média de desenvolvimento devem contemplar não só planejamento econômico,
de 5,2% dos períodos anteriores, com um pico de quase 11% em 1958, ano mas “macro-setorial”, ou seja, devem considerar todas as variáveis, tanto
em que a indústria cresceu 17%. nacionais quanto internacionais.
O Plano conseguiu acelerar o crescimento industrial, mas não se pro- Nesse sentido, outros analistas enfatizam o papel dos Estados Unidose
punha um desenvolvimento global do país e deixou como herança não do capital internacional como fator desestabilizador do desenvolvimento
desejada um impulso inflacionário pela forte emissão monetária para fi- nacional. Moniz Bandeira lembra que Kubitschek denunciou em 1959 “o
nanciar as obras (entre as quais se destacou a construção de Brasília), o FMI e os inimigos do Brasil independente de tentar forçar uma capitu-
que obrigou a adotar um programa de estabilização monetária em 1958: lação nacional, a fim de que a indústria caísse nas mãos estrangeiras”?
Um dos problemas que teve que enfrentar foi a oposição do governo dos Merece destaque queesse tipo de denúncias encontrou ouvidos receptivos
Estados Unidos, gerando problemas de financiamento externo.” A admi- tanto no Clube Militar quanto na poderosa organização industrial paulista
nistração do presidente Dwight Eisenhower não respondeu ao chamado (Fiesp). Na opinião de Moniz Bandeira, no começo da década de 1960 a
do Plano de Metas para impulsionar o desenvolvimento industrial (que “crise de domínio de classe” que se traduziu numa crescente instabilidade
buscava promover, em cinco anos de governo, 50 anos de progresso): a política favoreceu as tensões que se conjugaram no “impasse entre as cres-
Ford e a General Motorsrejeitaram a instalação de fábricas no Brasil. Em- centes necessidades do desenvolvimento brasileiro e os interesses domi-
bora Washington concedesse um empréstimo para ampliar a siderúrgica nantes dos Estados Unidos”.* A ingerência de Washington incluiu uma
de Volta Redonda, o incipiente programa nuclear do governo Kubitschek “invasão silenciosa” de todo tipo de assessores, militares e civis, elevando
provocou um forte enfrentamento entre ambos ospaíses. a cifra de entrada de cidadãos estadunidenses no Brasil a quase cinco mil
O Plano Trienal de Desenvolvimento Econômico e Social elaborado em 1962,traduzida no apoio a grupos paramilitares quea direita formava
por Celso Furtado em apoio à gestão do governo de João Goulart (1963- nessa época.”
1964) foi o seguinte. Em 1962, durante a gestão de Furtado foi criado o O regime militar de 1964 iniciou com um Plano de Ação Econômica
Ministério de Planejamento, Orçamento e Gestão, ocupado por Roberto para atacar as causas estruturais da inflação, além das monetárias. Con-
Campos durante a primeira etapa da ditadura militar. O Plano Trienal foi seguiu reduzir a inflação de 91% em 1964 a 22% em 1968, redução menor
negativamente impactado pela conjuntura política de grandes turbulên- que a prevista, além de relançar o crescimento com taxas de quase 10% no
cias sociais e uma elevada inflação que atingiu 91% em 1964, ano do golpe final da década, com um forte impulso da indústria que chegou a crescer
de Estado. Aparece aqui umalimitação quando projetos e planos de mais em torno de 15% anualmente.” Com certeza, durante o regime militar
fôlego foram postos em prática: sem um clima de estabilidade social, po- (1964-1985) o planejamento deu um salto qualitativo. Apesar do discur-
lítica e econômica, os melhores programas não podem ser aplicados. Por so anticomunista e contrário à intervenção do Estado na economia, todo
essa razão, o Núcleo de Assuntos Estratégicos conclui que a economia foi o período militar caracterizou-se por um forte intervencionismo estatal
vítima da política, já que “o processo inflacionário e as crises políticas (...)
é Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE,n. 1, op.cit., p. 88. Alberto Moniz Ban-
deira, Presencia de Estados Unidos en Brasil, op. cit, p. 453.
7 Alberto Moniz Bandeira, Presencia de Estados Unidos en Brasil, op.cit., p. 453.
* Ibid., p. 87. * Ibid., p. 499.
* Alberto Moniz Bandeira, Presencia de Estados Unidos en Brasil. Buenos Aires: Corregi- ? Mais detalhes sobre a participação dos Estados Unidos no golpe de 1964 em Moniz Ban-
dor, 2010. p. 430. deira, op.cit., p. 501-533.
“Ibid.,p.43l ess. "º Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE,n. 1, op. cit., p. 92.

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que incluiu um sensível aumento dos impostos. “O modelo nunca foi um em março de 1967, destacou as ideias-força que inspiraram sua gestão à
protótipo de livre iniciativa”, apontou o NAE, já que recuperoua tradição frente do planejamento:
intervencionista que se delineia desde o período de Getúlio Vargas, com
grandes investimentos em infraestrutura.” Buscou-se formular una estratégia de desenvolvimento a longo prazo, para
Nasua avaliação do planejamento durante o regime militar, o NAE va- escapar do hábito constante da improvisação imediatista, que sacrifica o
loriza, além dos sucessos em matéria econômica, a capacidade de ter efeti- futuro ao presente, por não compreender o passado (...) O plano não é
vado uma reforma do Estado nas áreas de planejamento e de impostos que um episódio, é um processo. Não é um decálogo, é um roteiro; não é uma
permitiram preparar as bases do crescimento, enquanto a aliança entre mordaça, mas umainspiração: não é um exercício matemático, mas uma
militares, tecnocratas e diplomáticos deixou “marcas no funcionamento aventura calculada. Planificar é disciplinar prioridades e prioridadesigni-
posterior do Estado brasileiro, em especial no plano de carga fiscal e nas fica postergar umacoisa em favor de outra.!s
responsabilidades indutoras, reguladoras e promotoras do desenvolvi-
mento”? Entre essas reformas de caráter estratégico que influenciam e O IPEA conta com um Conselho de Orientação integrado por 20 perso-
se mantém até o dia de hoje, destaca a criação em 1964 do Ipea (Instituto nalidades, que resumem a história recente do país e que por sua diversida-
de Pesquisa Econômica Aplicada),cuja missão é brindar suporte técnico de encarnam o projeto de nação que defende o Estado. Ao lado do econo-
e institucional à formulação de políticas públicas e programas de desen- mista do PT Márcio Pochman, presidente do IPEA,figurava a prestigiosa
volvimento. É umainstituição importante e de grandesolidez, que desde economista Maria da Conceição Tavares, também petista, Antonio Delfim
2007 está integrada ao Ministério de Assuntos Estratégicos da Presidência, Neto, o mais prestigioso economista do regime militar, o engenheiro Eli-
o principal centro brasileiro de pesquisa. ézer Batista da Silva, ex-presidente da mineradora estatal Vale do Rio Doce,
Mediante um conjunto de reformas administrativas, na qual o Decre- Rubens Ricupero, ministro da Fazenda em 1994 quando o Plano Realfoi
to-lei 200 de 1967 foi uma das peças-chave, procedeu-se a consolidação implantado, o ensaísta Cândido Mendes de Almeida e Carlos Lessa, ex-
de uma nova forma de gestão pública que atribuiu às instituições de pla- diretor do BNDESdurante o primeiro governo Lula, entre outros. Quero
nejamento “uma grande parte da responsabilidade na condução de for- destacar que a integração do grupo assessor encarnaas continuidades do
ma relativamente autônoma, tendo como objetivo o aprofundamento do processo de planejamento no Brasil ao longo de quase meio século. A frase
processo de industrialização”.” O Ipea elaborou o Plano Decenal de De- de Camposcitada acima pode ser sustentada pelos atuais altos cargos que
senvolvimento Econômico e Social para o período 1967-1976 a pedido do conduzem o destino do país.
ministro de Planejamento Roberto Campos, que teve uma trajetória tão Em 1972, iniciou-se o I Plano Nacional de Desenvolvimento que priori-
notável quanto curiosa: sob o governo de Vargas, foi um dos criadores do zou os grandesprojetos de integração nacional em transportes e telecomu-
BNDE (sem o S de “social” naquele momento) e presidente da instituição nicações, assim como os corredores de exportação. Em 1974,o II Planofoi
entre 1958 e 1959; com Kubitschek, teve uma importante participação no dedicado à expansão das indústrias de base como siderurgia e petroquí-
Plano de Metas e depois foi ministro do governo militar, convertendo-se mica, procurando a autonomia nacional em insumos básicos. Esses dois
em um dos artífices do planejamento. Liberal primeiro e neoliberal de- planos são hoje valorizados como “o ponto alto do planejamento governa-
pois, foi também um firme desenvolvimentista. Ao despedir-se do cargo mental no Brasil”, sendo mais extenso e intensivo que em qualquer outro
período histórico.'* Os próprios hierarcas do regime militar consideravam
U Ibid,, p. 93.
2 Ibid., p. 94.
? Criada como Oficina de Pesquisa, seu nome foi modificado em 1967 para o atual Ipea. 15 Ibid., p. 96-97.
“ Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE,n. 1, op.cit., p. 95. is Tbid., p. 103.
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as empresas estatais comoparte do arsenal das políticas do governo,o que do no Cenário Diadorim, que buscou refletir “os desejos dominantes” na
décadas mais tarde foi reativado pelo governo Lula. Entre as realizações sociedade brasileira sobre o futuro.'º
desse período, destacam-se a hidroelétrica de Itaipu, a rodovia Transama-
zônica, a ponte Rio-Niterói, a primeira central nuclear e um conjunto de
obras de infraestrutura, construção naval, extração de minerais e comu- Brasil em 3 Tempos: o país do Centenário
nicações.
Ao apresentar o primeiro Caderno do NAE,em julho de 2004, o ministro
O segundoPlano de Desenvolvimento, que se estendeu de 1974 a 1979,
Luiz Gushiken estabeleceu que o objetivo da equipe nesse momento era
“traçou o perfil do Brasil como uma grande potência emergente”, con-
“articular a inteligência nacional para o tratamento de temas estratégicos
vertendo-se na oitava economia do mundo.”Isso foi possível devido ao
desenvolvendo atividades de informação, prospecção, análise e simulação”
tipo de industrialização planejada, que deixou deser focalizada nos bens
com o objetivo de desenvolver um projeto de nação.” O primeiro objetivo
de consumopara realizar fortes investimentos em bensde capital, insu-
traçado pelo Núcleo foi desenhar o Projeto Brasil 3 Tempos com planos de
mos básicos como metais não ferrosos, minerais, agroquímicos e celulo-
18 anos, até 2022, com estágios intermediários em 2007 e 2015. Propunha-
se, além de infraestrutura energética. Porém, o segundo shock petroleiro se explicitamente superar a cilada do curto prazo e planejar o futuro do
de 1979 e a crise da dívida em 1982 geraram turbulências econômicas país para no mínimo duas décadas.
e políticas na etapa final da ditadura, com o crescimento de um vasto A criação do NAE foi uma das primeiras decisões tomadas pelo go-
movimento democrático; o conceito de planejamento começou a decair verno Lula pouco depois de assumir a presidência. O primeiro secretário
abrindo um longo período de estancamentoe inflação até o Plano Real, executivo foi Oswaldo Oliva Neto, irmão do senador Aloízio Mercadante,
de 1994. Umavez freado o “milagre econômico”, abriu-se uma etapa na quem teve um papel relevante no impulso inicial do Núcleo nas primeiras
qual apenas foram colocados em andamento planos de estabilização de e decisivas formulações. Mais à frente, veremos que depois de deixar o
caráter conjuntural e defensivo, com o qual o conceito de planejamento NAEpassou a ocupar outros cargos não menos importantes embora mais
estratégico foi deixado de lado. discretos. O Projeto Brasil 3 Tempos, a primeira publicação do NAE, “ma-
Para finalizar esta breve história dos planos de desenvolvimento,é inte- terializa as concepções de um planejamento nacional a longo prazo”, como
ressante constatar a visão dos membros do NAE sob o governo Lula sobre apontou Oliva Neto.?! Em 2005, o NAE passou a integrar-se diretamente à
o Plano Real posto em marcha por Fernando Henrique Cardoso, o maior Presidência da República, e em 2008 foi criada a nova Secretaria de Assun-
inimigo político do PT. Reconhecem que “pela primeira vez em muitos tos Estratégicos (SAE).O Ipea passou a vincular-se à SAE, processo que
anos, atacou-se previamente as causas da inflação, principalmente o déficit institucionalizou o planejamento estratégico em todas as áreas do governo.
público, no lugar de tentar através dos mecanismos conhecidos (controle Fruto de um importante trabalho de pesquisa e consulta, em 2008 foi
dos preços e dos salários) simplesmente minimizar seus efeitos”.'º Segun- aprovado o Programa Nacional de Atividades Espaciais e o Plano Amazô-
nia Sustentável, articulando a estratégia para o desenvolvimento sustentá-
do o NAE, isso permitiu não só a estabilidade econômica, mas também
“um retorno ao planejamento governamental”. Em 1998, o Ministério de
Assuntos Estratégicos da Presidência elaborouo projeto Brasil 2020, que se “Cenário Diadorim. Esboço de um Cenário Desejável para o Brasil. Projeto Brasil 2020”,
limitava a desenhar cenários exploratórios para o futuro do país, plasma- Revista Parcerias Estratégicas, Brasília, Secretaria de Assuntos Estratégicos, n. 6, março
de 1999,p. 35.
2 Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE,n. 1, op. cit. p. 5.
2 Núcleo de Assuntos Estratégicos, “Agenda para o futuro do Brasil”, Caderno NAE, n.8,
7 Ibid., p. 104. Brasília, maio de 2007,p. 5.
18 Tbid., p.112 2 Leis 11.204,de 5 de dezembro de 2005, e 11.754, de 23 de julho de 2008, respectivamente.
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vel da região, decisiva para o futuro do país. Nesse mesmo ano foi publica- com a percepção do futuro da sociedade sobre as principais pautas estra-
da a Estratégia Nacional de Defesa, que definiu uma completa reorganiza- tégicas nacionais”?
ção das Forças Armadase as prioridades dos investimentos em setores que Nesse processo,ocorrido nos anos 2005 e 2006, surgiram as 50 princi-
são considerados estratégicos (nuclear, espacial, tecnologia de informação pais pautas estratégicas de longo prazo que, se forem concretizadas colo-
e comunicação), e foram realizados ciclos de planejamento estratégico cariam o Brasil entre as nações desenvolvidas. Na percepção da sociedade,
com o Ipea. Em 2009, começou a elaboração do projeto Brasil 2022. em ordem de importância, aparecem os seguintes objetivos: qualidade do
Para elaborar o primeiro projeto (Brasil 3 Tempos) e lançar o processo ensino, educação básica, violência e criminalidade, desigualdade social e
de gestão estratégica a longo prazo, abriu-se uma instância no governo nível de emprego.” Além dos projetos já apontados, entre 2004 e 2007, o
que levou à criação de um “Conselho de Ministros” encarregado de co- NAEelaborou doze cadernos sobre as mais diversas pautas (desde nano-
ordenar o projeto, comandado pelo NAE, que incluiu os ministros da tecnologia até mudança climática) e desenvolveu ciclos de planejamento
Casa Civil (José Dirceu), Secretaria-Geral da Presidência (Luiz Soares estratégico com Ipea entre 2008 e 2010.” O projeto Brasil 2022 foi apre-
Dulci), de Desenvolvimento Econômico e Social (Tarso Genro), de Co- sentado em dezembro de 2010 por Pinheiro Guimarães. Na apresentação
municação do Governo e Gestão Estratégica (Luiz Gushiken), todos eles do documento, o ministro de Assuntos Estratégicosjustificou a necessida-
vinculados à Presidência, e o ministro de Planejamento, Orçamento e de do planejamento a longo prazo:
Gestão (Guido Mantega). Esse verdadeiro “gabinete estratégico” estava
integrado por militantes do PT e por pessoas de confiança do presidente A tarefa de planejamento é de extraordinária importância para os países
Lula, além de ser coordenado também por Oliva Neto. Veremos que, re- subdesenvolvidos como o Brasil, ao contrário do que acontece nos países
centemente, quando os projetos foram definidos com precisão, abriu- se altamente desenvolvidos. Nos países capitalistas altamente desenvolvidos,
à participação de pessoas que não pertencem ao círculo íntimo da máxi- a maturidade da infraestruturafísica e social e a convicção de queas forças
madireção do PT. do mercado orientariam da melhor forma possível os investimentos pro-
O NAEcria grupos de trabalho, realiza muitas mesas redondas e en- dutivos e as relações do país com o exterior, fazem parecer pouco impor-
contros, além de publicar cadernos e diversos projetos que balizam os ob- tante a atividade de planejamento. Essa afirmação deve ser matizada, pois
jetivos traçados entre os mais diversos setores. Com grande pragmatismo, esses países desenvolvidos planejam de forma muito atenta e persistente as
o NAE concluiu depois de cuidadosas análises que os planos anteriores atividades do Estado em duas áreas decisivas: defesa e alta tecnologia não
fracassaram por causa do seu conceito estático de projeto e no seu lugar são deixadas jamais ao mercadoe ao seu sistema de preços.”
priorizam o conceito de processo e substituem o conceito de “planejamen-
to” pelo de “gestão”, que lhes permite introduzir correções durante a im- Nesse texto se sustenta a ideia de que o crescimento da China se deve
plementação dos objetivos traçados.? O NAEdividiu a realidadebrasileira ao planejamento do Estado e à regulação das empresas privadas tanto em
em várias dimensões para que especialistas fizessem estudos que foram
depois modelados pelo Núcleo baseados em amplias consultas à sociedade,
de modo tal que se combinassem os conhecimentos de especialistas com a 2% Ibid.
“vontade popular”.No total, participaram ao redor de 500 pesquisadores % Tbid., p.16.
” Os Cadernos do NAE até 2010 foram dedicados a: biotecnologia, mudança climática,
e 50 mil pessoas que geraram um milhão e meio de dados “relacionados reformapolítica, cenários prospectivos, futuro do Brasil, inclusão digital, matriz de com-
bustíveis, modelo macroeconômico e nanotecnologia. Quanto aos ciclos de palestras, as
principais foram: desenvolvimento social, política exterior, cultura, educação, segurança,
institucional, minas e energia, ciência e tecnologia, saúde, desenvolvimento agrário, es-
? Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE, n. 1, op.cit. p. 42 e 51. porte, portos, planejamento, segurança social, igualdaderacial e comunicação social.
*” Núcleo de Assuntos Estratégicos, Cadernos NAE, n. 8, op.cit., p. 55. ?* Secretaria de Assuntos Estratégicos, Brasil 2022, Brasília, 2010, p.5.
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termos de localização geográfica quanto de compromissos de transferên- Propõem umaestratégia inspirada no que vem fazendo a China: permitir
cia de tecnologia e de nacionalização dos investimentos e das exportações. o acesso ao seu mercado e aos seus recursos naturais sob condição de que
Além disso, explica que o projeto abrange três gestões de governo, por isso seja desenvolvida a indústria em solo brasileiro e que haja transferência de
não apresenta programas de governo nem metas financeiras. Para a elabo- tecnologia. Em paralelo, como o sistema econômico global estará cada vez
ração de Brasil 2022 se formaram 37 gruposde trabalho, um para cada mi- mais dominado por umas poucas empresas dos países centrais, o Brasil deve
nistério, integrados por técnicos do SAE, do Ipea, da Casa Civil e de cada estimular as empresas nacionais para impedir que o país se transforme em
ministério. O texto tem quatro partes: O Mundo em 2022, América do Sul “uma mera plataforma de produção e exportação de megaempresas multi-
em 2022, Brasil em 2022 e Metas do Centenário. Os dois primeiros tradu- nacionais, cujas sedes encontram-se em países altamente desenvolvidos”.*
zem o olhar dosestrategistas do Brasil sobre a realidade global e regional. Em suma, aposta em competir no mesmo terreno e com as mesmasar-
Entre os múltiplos desafios colocados para 2022, o mais importante é a mas. O principal objetivo é evitar a incorporação subordinada a algum dos
crescente concentração de poder nos países centrais. O texto sustenta que a blocos mundiais, para o qual é preciso liderar um bloco sul-americano que
diferença de poder militar entre os Estados Unidose o resto do mundo vai possa garantir o fortalecimento do capital e a mão-de-obra nacionais. Na
continuar e será “um fato estratégico fundamental” que vai se ampliar pela análise de Brasil 2022, a região sul-americana deve transitar pelo caminho
própria evolução da tecnologia militar.” A tendência global, na opinião do arquipélago das nações subdesenvolvidas à conformação de um bloco
da SAE, expressa uma aceleração do desenvolvimento científico e tecno- capaz de influir no mundo, apoiado em suas enormes riquezas naturais:
lógico que modificará as relações de poder com uma forte concorrência minerais, fontes de energia,terras cultiváveis, água e biodiversidade. Mas a
entre megaempresas e Estados, com um grande impacto da informática região é muito heterogênea, com alto grau de concentração de riqueza, in-
e da nanotecnologia, que continuarão transformando os processosfísicos dústria escassamente desenvolvida, exceto Argentina e Brasil, exportações
produtivos com uma crescente oligopolização dos mercados. A biotecno- concentradas em matérias-primas e nos últimos anos ameaçada pela avas-
logia e a engenharia genética têm grande impacto na competitividade da saladora concorrência da China, que afeta a integração comercial regional.
agricultura, além de consequências para a saúde humana. Por outro lado, os acordos de livre comércio que assinaram os Estados
No terreno militar, os armamentos serão cada vez mais letais, auto- Unidos com Chile, com o Peru e com a Colômbia logo depois do fracasso da
matizados, miniaturizados e com controle remoto, o que vai aumentar a Alca, procuram “tornar impossível a formação de uma união aduaneira na
diferença de poder entre os Estados Unidos e os países da periferia. Tudo América do Sul”.Para continuar com a integração regional e aprofundá-la,
indica que a concentração de poderseja a principal tendência, o que “deve o Brasil deve ajudar na superação das enormes assimetrias entre os doze pa-
constituir a principal preocupação da estratégia brasileira na esfera inter- íses sul-americanos, contribuindo para o desenvolvimento dos mais atrasa-
nacional e doméstica.?º Apenas um exemplo: os Estados Unidos investem dos. Com certeza, sobre essa questão sobram declarações e faltam políticas
400 bilhões de dólares em pesquisa e registram 45 mil patentes por ano, concretas, mas é uma mudança com relação ao discurso anterior. Como
enquanto o Brasil investe somente 15 bilhões e registra 480 patentes. Por aponta Brasil 2022, as assimetrias entre os países da região têm algumas
isso, o projeto Brasil 2022 defende que o país deve agir sobre as principais características estruturais que não serão fáceis de modificar. Na década de
tendências internacionais “para impedir a cristalização dos privilégios das 1960, todos os países da região tinham uma pauta exportadora muito con-
grandes potências, que travam nosso desenvolvimento”! Nesse sentido, centrada em poucos produtos, a tal ponto que apenas três produtos primá-
os brasileiros veem a perspectiva imediata como pouco auspiciosa. rios concentravam 70% das exportações. Em 2010, isso mudou, ainda que
» Ibid.,p. 15.
%Tbid., p. 18-19. 2 Ibid.,p. 26.
3 Ibid.,p. 16. * Ibid., p. 40.
eSs
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de modo parcial e desigual. Os três principais produtos de exportação do Mercosul deixará de ser apenas umaunião adua
neira para se converter na
Brasil somam 20% das suas exportações totais. No caso do país que vem união econômica dos países que o integram.
O Brasil será um país “plena-
atrás quanto à qualidade das exportações, os três primeiros produtos re- mente soberano, com os meios necessários para
garantir a segurança das
presentam 40%. O que contribui para que o comércio do Brasil com seus suas fronteiras terrestres, seus mares, seu espaço aéreo
e suainfraestrutura
sócios regionais seja muito desequilibrado e, sobretudo, que as empresas crítica contra as ameaças transnacionais,
capaz de dissuadir qualquer Es-
sejam muito desiguais; as grandes empresasbrasileiras, que se expandiram tado que tentar limitar nossa autodeterminação
, nossa segurança econô-
primeiro na região e depois para o resto do mundo, estão tendo crescente mica, nosso desenvolvimento”.3
importância nas economias de cada um dos países sul-americanos. Conse- Em matéria de política exterior, os document
os anexos de Brasil 2022
quentemente, há uma preocupação com uma eventual hegemonia brasileira. enfatizam que em poucos anos se deram passos
gigantes na suainserção in-
Os encarregados do planejamento estratégico em Brasília acreditam ternacional. Em 2003, o Brasil impulsionou a criaç
ão do G-20e organizou a
que o país tem uma responsabilidade especial para começar a reverter essa reunião de cúpula Índia-Brasil-África do Sul(Ibas). Em 2004,
teve um papel
situação. Sustentam que a América do Sul vive umasituação semelhante ativo nacriação da Minustah (Missão de Estabiliza
ção de Nações Unidas em
aquela que atravessou a Europa após a Segunda Guerra Mundial, o que Haiti), foi o país responsável pelo comando militar, bem
comonacriação do
levara os Estados Unidosa ativar o Plano Marshall para promover o desen- G-4 junto com a Índia, a Alemanha e o Japão
para a reforma do Conselho
volvimento e evitar que a região caísse nas mãos do comunismo soviético. de Segurança das Nações Unidas. Em 2005,foi reali
zada a primeira cúpula
Por isso, o Brasil deverá “abrir seus mercados sem exigir reciprocidade e América do Sul-Países Árabes. Em 2006, foi criado
o Fundo de Convergên-
financiar a construção da infraestrutura desses países e sua intra-relação cia Estrutural do Mercosul para apoiar o desenvolvime
nto dos países me-
continental”, para o qual deve ampliar o mecanismo do Fundo para a Con- nores, como o Paraguai e o Uruguai, concretizado em
um fundo de trans-
vergência Estrutural do Mercosul.** Se o país mais importante de América ferências monetárias feitas pelo Brasil e pela Argentina.
Nesse ano também
do Sul deixasse a região nas mãos dasestratégias de investimento do mer- ocorreu a primeira cúpula América do Sul-África
. Em 2007, foi assinada a
cado e das multinacionais, as tensões e os ressentimentos aumentariam, criação do Banco do Sule a aliança estratégica Brasi
l-União Europeia. Em
podendo também afetar o desenvolvimento do Brasil, conclui o projeto 2008, foi aprovadoo tratado constitutivo da
Unasul. Já em 2009, assinaram-
estratégico do governo. Por último,a estratégia propõe a expansão para se acordos comerciais com a Índia, institucionaliz
ou-se a aliança Bric (Brasil,
a África Ocidental, onde Brasil terá que enfrentar a forte concorrência Rússia, Índia e China), conseguiu-se que a OEA suspendess
e os efeitos da
com os interesses comerciais, financeiros e estratégicos chineses. Existe resolução de 1962 que excluía o governo cubano, além
do Brasil concretizar
a disposição de compartilhar o Atlântico Sul de forma pacífica com seus a aliança estratégica com a França, que supõe amplos
acordos de cooperação
vizinhos; para o Brasil, este oceano tem uma importância estratégica para militar. Em 2010, ocorreu também a primeira cúpula da
América Latina e do
garantir sua segurança. Caribe sem a presença dos Estados Unidos, dando espaç
o para a criação da
Comunidade de Estados Latino-americanos e do Cari
be (Celac). O forte im-
pulso à política Sul-Sul permitiu que entre 2003 e 2008 o comé
rcio do Brasil
As Metas do Centenário com o Mercosul crescesse 222%, com a África 316%, com
a Ásia (Asean)
329% e com ospaíses árabes 370%.O que a diplomacia do Brasi
l ainda não
Osplanejadores estratégicos brasileiros vislumbram que ao redor de 2022 conseguiu foi a ansiada cadeira permanente no Conselho de
Segurança das
a Unasul será o centro de um pólo sul-americano com projeção global. O
*Ibid,.p. 58
*º Secretaria de Assuntos Estratégi cos, Brasil 2022, “Relações Exteriore s. Importância es-
* Ibid.p.53 tratégica”, em <http://www.sae.gov.br/brasil2022/?p=52>. (Consulta
, 10/01/2012.)
98 BRASIL POTÊNCIA À construção de umaestratégia * . 99
Nações Unidas. A criação da Unasul e do Conselho de Defesa Sul-americano A Unasul substituiu a OEA. Quando da ofensiva da ultradireita boli-
(CDS) teve um papel relevante na região, e demonstra comoa estratégia vai viana contra o governo de Evo Morales, em agosto e setembro de 2008, e
sendo construída passo a passo, aproveitando as novas oportunidades que quando darebelião policial no Equador no dia 30 de setembro de 2010, que
facilitam a crescente debilidade (relativa) dos Estados Unidos. A rejeição à pôde se transformar em golpe de Estado, a nova aliança regional foi deci-
proposta da Área de Livre Comercio das Américas (Alca), eixo da política siva, ocupou o centro do cenário político e alinhou todos os governos em
regional da administração de George W. Bush, teria sido impossível sem o defesa da democracia. A OEA, outrora poderoso instrumento diplomático
conjunto de mudanças que provocaram os movimentos sociais que deslegi- subordinado à Casa Branca, deixou de ocupar aquele lugar preponderante
timaram o Consenso de Washington e depois concretizaram os governos que teve durante tantas décadas.
progressistas e de esquerda no poder desde 1999. A Cúpula das Américas de É evidente que o papel do Brasil, e muito particularmente da chance-
Mar del Plata, em novembro de 2005, sepultou a proposta integracionista de laria de Itamaraty, foi decisivo para promover essa virada. A integração
Washington mas, no mesmoato, abriu as portas à ampliação do Mercosul a política chegou a um ponto alto jamais visto, embora faltem avanços im-
toda a região sul-americana, em particular à Venezuela. A postura do Brasil, portantes no terreno econômico, onde as complementaridades devem ser
acompanhadopela Argentina,foi chave pela firmeza e pela solidez dos argu- construídas com generosidade e com uma visão de longo prazo. Mas isso
mentos. Houve um antes e um depois dessa reunião presidencial. começou recentemente. Os megaprojetos de infraestrutura contempladas
A criação da União de Nações Sul-americanas (Unasul) não teria sido na lirsa estão estreitamente vinculados ao projeto de integração econômi-
possível sem esse passo prévio. Em dezembro de 2004, os presidentes da ca e política, ainda que tenha sido proposto quase dez anos antes. O se-
região assinaram a Declaração de Cusco, que conformou a Comunidade guinte passo podeser a implementação de uma moeda única para a região,
das Nações Sul-americanas. Depois de sucessivos encontros, em abril de o queabriria as portas para sua desvinculação da economia do dólar.
2007 adotou o nome de Unasul. Mas o processo continua se aprofundando. A criação do CDSé outra decisão de caráter estratégico impulsionada
Devido ao ataque aéreo da Colômbia contra o acampamento de Raúl Reyes pelo Brasil. O órgão foi proposto pelo presidente Lula e criado em dezem-
(membro do Secretariado das Farc), em território equatoriano no dia 1º de bro de 2008, mas pode considerar-se o dia 10 de março de 2008, data da
março de 2008, que ameaçou deflagrar um sério conflito na região andina, primeira reunião, como sua verdadeira data de nascimento. Sua criação
a Unasul decidiu criar o CDSpara coordenar as Forças Armadas da região. está relacionada com a crise regional entre a Colômbia, a Venezuela e o
Embora o tratado constitutivo tenha sido assinado em maio de 2008 em Equador por causa do mencionado ataque contra o acampamento de Raúl
Brasília, efetivou-se juridicamente apenas em 11 de março de 2011, depois Reyes. A Declaração de Santiago de Chile, de março de 2009,estabeleceu
de cumprir o requisito de que pelo menos os podereslegislativos de nove a cooperação em matéria de defesa, a superação das assimetrias no gasto
dos doze países membros tivessem subscrito esse convênio. Como projeto militar e dos conflitos mediante o diálogo e a coordenação da segurança
regional, a Unasul tem como objetivo construir, de forma participativa e externa das nações. Não é uma aliança militar, mas é um primeiro passo
concertada, um espaço de integração e de união no âmbito cultural, social, de coordenação em uma matéria tão complexa e sensível como a defesa.
econômico e político entre seus integrantes, utilizando o diálogo político, A reunião dos ministros da Defesa, ou seja, do Conselho de Defensa
as políticas sociais, a educação, a energia, a infraestrutura,as finanças e o da Unasul, realizada em Lima em 11 de novembro, estabeleceu 26 ações
meio ambiente, entre outros, para eliminar a desigualdade socioeconômica, no marco do Plano de Ação 2012 para a integração em termos de defesa, a
conseguir a inclusão social, a participação cidadã e fortalecer a democracia.” criação de uma zona de paz na região sul-americana além de uma agência
espacial. Os projetos serão executados em dois ou três anos. À Argentina
ficou encarregada de pôr em marcha a fabricação de um avião de treina-
” “Tratado Constitutivo da União de Nações Sul-americanas”, em: <http://www.comuni- mento para a formaçãodepilotos, de cujo processo participarão o Equador,
dadandina.org/unasur/tratado.constitutivo.htm>. a Venezuela, o Peru e o Brasil. Cada país vai fabricar partes que depois
100 BRASIL POTÊNCIA A construção de uma estratégia * . 101
serão montadas em um lugar a determinar. O Brasil, por sua vez, ficou à Essa projeção global de Brasil, que é uma das prioridades da estratégia
frente do projeto do avião não tripulado para a vigilância de fronteiras. de longo prazo do país, teve seu auge quando conseguiu um acordo com a
De alguma forma, o caminho que começaram a percorrer os países sul Turquia e o Irã, no dia 16 de maio de 2010, para resolver uma crise provo-
-americanos em matéria de defesa é o mesmo que já transitam o Brasil e a cada pela negativa dos Estados Unidosa aceitar que o Irã produza urânio
Argentina. Em 5 de setembro de 2011, os ministros da Defesa de ambos os enriquecido. Trata-se de um acordo para intercambiar urânio com a Tur-
países, Arturo Puricelli e Celso Amorim, reuniram-se para dar continui- quia, de modo a não fazê-lo com o Irã, que lhe permitiu evitar novas san-
dade ao acordo entre as presidentas Dilma Rousseff e Cristina Fernández ções internacionais.” Esses tipos de ações geraram enfrentamentos dire-
do dia 29 de julho de 2011, que reafirma “a importância da relação estraté- tos e públicos do Brasil com Washington, mas lhe permitiram ganhar um
gica em matéria de defesa entre a Argentina e o Brasil”. A Declaração Con- lugar nos fóruns mundiais que tomam decisões nos mais vários assuntos.
junta que assinaram os ministros estabelece a criação de um Mecanismo Ademais, Brasília definiu intensificar a cooperação Sul-Sul e multiplicar
de Diálogo Político Estratégico a nível vice-ministerial para aprofundar por dez os recursos destinados à cooperação técnica prestada por Brasília
a cooperação militar. A segunda seção define áreas de “Cooperação em aos países em desenvolvimento,” o que deverá colocar a diplomacia do
tecnologia e produção para a defesa” com vários objetivos: a produção do Itamaraty em boas condições para tomar iniciativas com os países do Sul.
veículo “Gaúcho”, o desenvolvimento de blindados, a cooperação das in- Em seguida,a lista dos principais objetivos das Metas do Centenário,
dústrias naval e aeroespacial, incluindo o cargueiro brasileiro KC-390 e em ou seja, até 2022, agrupadas em quatro áreas em que aparecem com certo
matéria de informática e ciber-defesa.*º detalhe os objetivos de política interior:
Um dos aspectos onde a cooperação bilateral mais avançou foi na fa-
bricação do cargueiro militar KC-390, desenhado pela empresa aeronáuti- Economia
ca Embraer, do Brasil, que contará com peças fabricadas em Córdoba, na + Crescer 7% por ano.
Argentina e com um investimento conjunto de um bilhão de dólares. Essa + Aumentar a taxa de investimentos a 25% do PIB.
cooperação pode estender-se ao blindado brasileiro “Guarani” e ao veículo + Reduzir a dívida pública a 25% do PIB (43% em 2010).
leve “Gaúcho”.*º É verdade que as mudanças na região poderiam ser mais + Atingir a inclusão digital de 100% da população adulta.
ambiciosas se as propostas de integração energética tivessem avançado se- + Duplicar a produção e as exportações agropecuárias.
riamente, como o Gasoduto do Sul, do qual nunca voltou a se falar, e se + Aumentar a produtividade agropecuária em 50%.
fossem concretizados os acordos que deram vida ao Banco do Sul para + Triplicar o investimento em pesquisa agropecuária.
construir uma nova arquitetura financeira. Nesse sentido, as aspirações + Dobrar a produção de alimentos.
do eixo conformado pela Aliança Bolivariana para os Povos da Nuestra + Multiplicar por cinco a agricultura sustentável.
América (Alba) ainda estão muito longe de ser aceitas pelo conglomerado + Duplicar o consumo per capita de peixe e a pesca em 50%.
de países que conformam a Unasul. + Quintuplicar as exportações e sextuplicar as de média e alta tecnologia.
+ Levar o investimento privado em pesquisa e desenvolvimento a 1% do
PIB.
+ Levar o gasto total em pesquisa e desenvolvimento a 2,5% do PIB.
* “Unasul foca suas políticas de Defesa em proposta de fabricação de aviões”, EFE, Lima,
11 de novembro de 2011, em <http://www.abc.es/agencias/noticia.asp?noticia=997234>. + Ter 450 mil pesquisadores e 5% da produção científica mundial.
(Consultado em 11/01/2012.)
39 “Declaração conjunta de Puricelli e Amorim”, Ministério de Defesa da República
Argentina, 5 de setembro de 2011, em <http://www.mindef.gov.ar/prensa/comunicados.
php2notId=1969>. (Consultado 11/01/2012.) “ El Mundo, Madri, 17 de maio de 2010.
““Brasile Argentina discutem produção de blindados leves”, Valor, 6 de setembro de 2011. *? Secretaria de Assuntos Estratégicos, Brasil 2022, op.cit.
102 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestretégia . 103
+ Triplicar o número de engenheiros. No processo de converter-se em potência global, o Brasil vai dando al-
+ Dominaras tecnologias microeletrônicas e de produção de fármacos. guns passos que mostram que está percorrendo o caminho quese propôs.
+ Decuplicar o número de patentes. Em termos econômicos, em 2011 se tornou o sexto PIB do mundo e con-
+ Assegurar independência na produção de combustível nuclear. tinuará dando passos à frente de potências como a França. Durante os
+ Dominaras tecnologias de fabricação de satélites e de veículos lançado- oito anos do governo Lula, cerca de 30 milhões de brasileiros deixaram
res. a pobreza e passaram a engrossar as classes médias. Foram produzidos
avanços sociais em educação e saúde, ainda insuficientes. Desenhou-se um
Sociedade conjunto de estratégias setoriais, entre elas a Estratégia Nacional de Defesa.
+ Erradicar a extrema pobreza e o trabalho infantil. Conta com algumas das principais empresas multinacionais do mundo e
+ Chegar a 10 milhões de universitários. conseguiu a autonomia energética. Talvez um sinal do novo estatuto do
+ Incluir o Brasil entre as dez maiores potências olímpicas. Brasil no mundo seja o fato de ter sido eleito para organizar a Copa de
+ Atingir autonomia na produção de insumosestratégicos. Mundo de Futebol de 2014 e a cidade do Rio de Janeiro ter sido designada
+ Duplicar o gasto público em saúde. para abrigar os Jogos Olímpicos de 2016.
+ Universalizar a seguridade social.
+ Atingir a igualdade salarial entre negros e brancos.
Quem é quem no planejamento estratégico
Infraestrutura
+ Levar a 50% a participação de energia renovável na matriz energética. Algumas personalidades tiveram um papel destacado no atual planejamen-
+ Elevar a 60% a utilização do potencial hidráulico (de 29% em 2007). to estratégico do Brasil. Conhecer a trajetória e as análises de algumas delas
+ Dobrar o uso per capita de energia. pode contribuir para se ter uma ideia mais exata sobre como foram se cons-
+ Instalar quatro novas usinas nucleares. truindo os projetos a longo prazo. Uma parte delas, talvez os que tenham
+ Aumentar o conhecimento geológico do território amazônico de 30% a uma trajetória mais destacada, não provém do PT, mas de outras forças
100%. políticas ou são funcionários públicos de carreira. De qualquer forma,o go-
+ Reduzir em 40% o uso de combustíveis fósseis. verno de Lula teve a virtude de atraí-los e de trabalhar com eles durante um
+ Ampliar a capacidade portuária a 1,7 bilhões de toneladas. período de incubação no qual se colocaram as bases de uma nova estratégia.
+ Assegurar o acesso à banda larga de 100 Mbps a todos osbrasileiros. Samuel Pinheiro Guimarães é diplomático de carreira, ocupou a Se-
+ Ter em órbita dois satélites geoestacionários. cretaria-Geral do Ministério de Relações Exteriores (Itamaraty), foi mi-
nistro de Assuntos Estratégicos e, quando Lula deixou o governo, conver-
Estado teu-se no representante-geral do Mercosul. Foi professor da Universidade
+ Decuplicar os recursos do Fundo de Convergência Estrutural do Mer- de Brasília, nomeado em 2006 “intelectual do ano” pela União Brasileira
cosul. de Escritores e publicou 18 livros, entre eles: Quinhentos anos de periferia,
+ Decuplicar a cooperação técnica e financeira com a África. em 1999, e Desafios brasileiros na era dos gigantes, em 2006. Neste livro,
+ Consolidar a Unasul. desenvolve sua visão estratégica sobre o papel do Brasil que orientou seu
+ Consolidar a articulação política com os países em desenvolvimento. trabalho quando se desempenhou na SAE.
+ Lançar ao mar o submarino nuclear. Com efeito, Samuel Pinheiro é um dos mais importantes intelectuais
+ Lançar o primeiro satélite construído no Brasil. do Brasil e da América Latina. É graduado em economia pela Boston Uni-
versity e em direito pela Universidade Federal de Rio de Janeiro. É membro
104 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestratégia 105
do Centro de Estudos Estratégicos da Escola Superior de Guerra. Teve um das importações de armamento. Essas vulnerabilidades foram se aprofun-
papel relevante no projeto Brasil 2022 e na formulação da Estratégia Na- dando até 2002, fim do governo Fernando Henrique Cardoso, mas outras
cional de Defesa. Durante a ditadura militar, foi demitido da direção da são ainda questões problemáticas pela escassez de recursos orçamentários.
Superintendência de Desenvolvimento do Nordeste (Sudene) por se opor à O terceiro desafio é o mais importante, e consiste na realização, por
interferência da Usaid no governo do marechal Humberto Castelo Branco parte da sociedade brasileira, do “seu potencial econômico, político e mi-
(1964-1967). Durante o governo do general João Figueiredo (1979-1985), litar”, porque o Brasil não é um pequeno Estado, e sim um dos maiores do
teve que abandonar a Embrafilme pelo escândalo que provocou o filme mundo, acompanhado de perto só pela China e pelos Estados Unidos no
Brasil pra frente, que criticava a ditadura. Durante o governo de Collor que se refere a população,território e produto interno bruto. Para desen-
de Melo, afastou-se do país, exercendo suas funções durante cinco anos volver esse potencial, aposta em um crescimento do mercado interno e na
na França,e, sob o mandato de Fernando Henrique Cardoso (1995-2002), produtividade da população que lhe permitam uma forte “acumulação de
criticou abertamente a entrada na Alca, motivo pelo qual foi afastado do capital per capita” e um potente desenvolvimento tecnológico.” Paralela-
cargo de diretor do Instituto de Investigações em Relações Internacionais mente, o Brasil tem fronteiras com dez países, o que é um fator importante
“para permitir ao Estado brasileiro desenvolver uma estratégia política e
«
do Itamaraty.Pela sua trajetória e por suas posições políticas, é um na-
cionalista de esquerda, mas não é membro de nenhum partido político. econômica que possibilite a articulação de um bloco regional sul-america-
Durante a primeira fase do governo Lula, ocupou o segundo posto da no de grande capacidade de projeção de poder, sempre que estiver articula-
chancelaria junto a Celso Amorim. Nesse período, o Brasil começou sua do em termos não hegemônicos, com mecanismos compensatórios e com
projeção internacional, tendo um papel decisivo na Cúpula da OMC em a redução efetiva das disparidades”.
Cancún em 2003, com a criação do “Grupo G-20”, liderado pelo Brasil, Para poder cumprir com os três desafios, deve se superar o Consenso
pela China, pela Índia e pela África do Sul. Seus adversários qualificam-no de Washington, ou seja, deve existir um Estado forte, uma economia re-
de antinorte-americano, mas é um firme defensor do Brasil. gulada que não seja susceptível às forças do mercado e um planejamento
Em Desafios brasileiros na era dos gigantes, estabelece que o seu país estratégico. Pinheiro Guimarães está consciente do fato de que a ascensão
tem três grandes desafios pela frente. O primeiro é a eliminação gradual, do Brasil ao patamar de potência modificará a relação de força em ter-
mas firme, das desigualdades internas, que em sua opinião se resumem na mos continentais e mundiais e que o principal adversário são os Estados
concentração da renda e da riqueza, na privação e na alienação cultural, Unidos, para os quais “América Latina, ao contrário do quese diz, é a re-
no acesso à tecnologia, na discriminação racial e de gênero e na influên- gião mais importante”.*” Masas razões de fundo pelas quais devedar esse
cia do poder econômico sobre as decisões políticas.*” O segundo desafio passo são de caráter interno, e nesse ponto a sua análise ancora-se num
são as vulnerabilidades externas crônicas, que são econômicas, políticas, nacionalismo que subordina o conflito social à realização dos objetivos da
tecnológicas, militares e ideológicas. Acredita que enquanto as fraquezas grande potência:
econômicas têm sido amplamente debatidas, a questão tecnológica, que
leva o país a depender de tecnologia importada, costuma ficar em segundo Esta ascensão brasileira à condição de grande potência não deve ser consi-
plano. A debilidade militar agrava-se, porque o Brasil assinou o tratado derada uma utopia, mas um objetivo nacional necessário, porque sua não
de não proliferação nuclear e pela redução dos gastos militares na década
de 1990, no contexto do modelo neoliberal, bem como pela dependência
15 Ibid., p. 263.
4º Tbid., sublinhados no original.
º Revista Caros Amigos, São Paulo, n. 51, junho de 2001. 4 Samuel Pinheiro Guimarães. Quinhentos anos de periferia. Rio de Janeiro: Contraponto,
“ Samuel Pinheiro Guimarães. Desafios brasileiros na era dos gigantes. Rio de Janeiro: 1999. p. 99. Samuel Pinheiro Guimarães, Desafios brasileiros na era dos gigantes, op. cit.,
Contraponto, 2006. p. 259. p. 265-266.
106 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestratégia . 107
realização corresponderia ao fracasso em enfrentar aqueles desafios com e, sobretudo, as tentativas de Washington e das direitas continentais por
os quais o Brasil se defronta e, por tanto, aceleraria o ingresso da socie- desestabilizar os governos argentinos que possam se orientar na mesma
dade e do Estado brasileiros em um período de enormeinstabilidade (e direção que o Brasil, ou seja, que priorizam a unidade regional.
de eventuais conflitos internos), de fragilização democrática, de crescente Esse bloco regional deve enfrentar três grandes desafios a curto prazo:
ingerência externanasociedade brasileira que poderiam, em caso extremo, resistir à absorção econômica do bloco norte-americano por intermédio
levar a tensões pela fragmentação territorial e política do Brasil.º* da Alca, os TLCs e a dolarização gradual; evitar e enfrentar uma possível
intervenção militar na Colômbia que poderia se estenderà região amazô-
Depois de estabelecer essa importante diretriz, avança passo a passo nica; e recuperar o controle das suas políticas econômicas sob a influência
no desenho de objetivos primeiro regionais e depois mais amplos. As re- do FMI e da OMC.” Esse diagnóstico foi escrito em 2006. Em 2011, quan-
lações com a Argentina e com os Estados Unidos são chaves. Em primeiro do foi escrito este livro, boa parte dos desafios expostos haviam sido supe-
lugar, estabelece que o Brasil não tem razão nenhumapara se submeter rados ou estavam em fase de superação, o que mostra a decisão da política
à hegemonia estadunidense, país que na sua opinião desconfia das solu- exterior brasileira de converter seus objetivos em realidade.
ções multilaterais para os problemas globais, desenvolvendo umapolítica Os outros desafios da política exterior do Brasil, segundo Pinheiro Gui-
que antepõea afirmação dos seus interesses por cima inclusive do direito marães, desdobram-se do estabelecido até aqui: dotar as forças armadas de
internacional. Essa atitude é denominada um “arrogante unilateralismo capacidade dissuasiva, articular a defesa militar e política das fronteiras e
intervencionista”, que não duvida em apelar à força armada.” em especial da Amazônia, acessar tecnologia de ponta sem aceitar limita-
Com relação aos países periféricos, acredita que os Estados Unidos ções assimétricas e desiguais, preservar a autonomia política, econômica
abandonaram a cooperação para a modernização dos estados da periferia e militar do Brasil. Depois o resto. Com um bloco regional unido, com
para aplicar uma política de controle, propiciando seu desarmamento e um Mercosul consolidado e um país em crescimento e com capacidade
a adoção de uma “democracia liberal, midiática e assistencialista.”? O de se defender, priorizam-se as relações Sul-Sul, com a Índia, a China, a
Brasil encontra-se rodeado por um espectro de bases militares estaduni- Rússia, a África do Sul, a Turquia e o Irã, entre os de maior destaque. Essas
denses que realizam operações conjuntas com países da região, embora relações podem, inclusive, contribuir para a superação de desafios como
considere que a estratégia de Washington consiste na regionalização do a vulnerabilidade militar, por meio de compras de armas da Rússia e da
Plano Colômbia. China, por exemplo.
Para reverter essa situação, o Brasil deve encarar a construção da união É umaestratégia em círculos concêntricos que se expandem de modo
política sul-americana para promover “a firme e serena repulsão de políti- simultâneo, onde o avanço em um aspecto reforça os outros,e vice-versa.
cas que submetem à região aos interesses estratégicos dos Estados Unidos A experiência de outros países que pretenderam realizar seu potencial (ou
que devem constituir o eixo de nossa estratégia”.* Para atingir esse obje- ascender ao patamar de potência) indica que devem enfrentar enormes
tivo, é essencial a cooperação entre a Argentina e o Brasil, países-chave na dificuldades e assumir o risco de serem agredidos pelos Estados Unidos.
região que devem construir uma visão comum do mundo. Se este for o Samuel Pinheiro lembra no seu livro que em 1995 difundiu-se a notícia das
primeiro e fundamental passo, a partir de então podem se compreender novas reservas descobertas que convertiam o Iraque num produtor de pe-
um conjunto de questões relativas à atitude de Brasília com Buenos Aires tróleo capaz de substituir a Arábia Saudita, somado ao fato de que o regime
de Saddam Hussein tinha abandonado o padrão dólar em favor do euro,
18 Samuel Pinheiro Guimarães, Desafios brasileiros na era dos gigantes, op.cit., p. 265-266.
Ҽ Ibid., p. 268.
5 Tbid., p. 270.
5! Tbid., p. 276. » Ibid., p. 424-425.
108 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestratégia . 109
como chave para compreender a invasão desse país.” Esse é justamente o vistos no Tratado de Não Proliferação (TNP),já que permitiria que fossem
caminho do Brasil: desenvolver todo seu potencial nacional, o que para controladas as instalações onde se enriquece urânio e se constrói um sub-
um país do seu tamanho implica inevitavelmente um enfrentamento com marino nuclear. Sustenta que são instrumentos disfarçados para revisar o
os poderes globais hegemônicos. TNP, o quelimitaria o direito do Brasil para desenvolver sua tecnologia
Devemosagregar aos elementos anteriores que as principais tendências nuclear. Conclui: “O Brasil conquistou o domínio da tecnologia de todo o
atuais estão na direção de uma maior concentração de poder (e poder tec- ciclo de enriquecimento de urânio e tem importantes reservas de urânio.
nológico e militar) no centro do sistema e de uma crescenteinstabilidade Só três países, o Brasil, os Estados Unidos e a Rússia, tem tal situação pri-
e fragilização dasperiferias. Perante essa realidade, acredita que “não haja vilegiada”.*º Isso foi escrito enquanto se desempenhava como ministro de
solução individual para nenhum país da América do Sul”.O interes- Assuntos Estratégicos.
sante dessa análise é que não se ancora em questões ideológicas nem pre- No tocante à unidade regional, defende um megaprojeto de apoio aos
conceitos, mas chega à conclusão lógica de uma visão de mundoa partir países da América do Sul, como manifestado em seu artigo “América do
dos interesses de um grande país da periferia. Um dos objetivos traçados Sul em 2022”,que depois seria publicado na íntegra comoparte do pro-
naquele momento cumpriu-se apenas dois anos depois com a formulação jeto Brasil 2022. A proposta do Brasil lançar um Plano Marshall em apoio
de umaestratégia de defesa para o Brasil e, de alguma forma, para toda aos países menores da região é uma mostra de audácia intelectual e política
a região. Samuel Pinheiro se insere numa longa tradição nacionalista em e de determinação estratégica. Aposta em desenvolver esforços ao longo
que se destacam os presidentes Getúlio Vargas e Juscelino Kubitschek, o de várias décadas nas quais o Brasil seja capaz de articular programas de
economista Celso Furtadoe, na sua opinião, o general Ernesto Geisel, pre- desenvolvimento econômico para “estimular e financiar a transformação
sidente entre 1974 e 1979. Como podese ver, defende uma genealogia que econômica dos países menores”.Os dois caminhos vislumbrados são a
atravessa democracia, ditaduras civis e militares e profissionais, já que é abertura do mercado brasileiro às exportações dos seus vizinhos, superan-
uma corrente com umalonga e densa história no Brasil. do travas como vem fazendo com a Argentina, além de financiar a cons-
Mais recentemente, Samuel Pinheiro manifestou sua postura sobre trução de obras de infraestrutura, comoa Iirsa, que na realidade benefi-
duas pautas candentes: a energia nuclear e os caminhos para promover a ciam as grandes construtorasbrasileiras e aceleram o comércio em direção
integração regional. Num artigo intitulado “Mudança climática e energia ao Pacífico, no qual está muito interessada a burguesia paulista. Uma parte
nuclear”; aponta que 81% das reservas conhecidas de urânio estão con- substancial dos projetosestratégicos que estão transitando no Brasil tem a
centradas em seis países, entre eles Brasil, que tem a sexta maior reserva marca dessa personalidade intelectual e política.
tendo explorado somente 20% do território, pudendo chegara sero tercei- Roberto Mangabeira Unger foi o primeiro ministro de Assuntos Es-
ro. Só cinco empresas produzem 71% do urânio do mundo e somente oito tratégicos, em 2007, nomeado por Lula para estrear a nova secretaria, ape-
países possuem o conhecimento tecnológico do ciclo completo de enrique- sar de haver declarado dois anosantes que seu governo era “o mais corrup-
cimento de urânio e a capacidade industrial para produzir todasas etapas to da nossa história”? o que revela que o governo colocou seus objetivos
do ciclo. O Brasil é um deles. de planejamento estratégico acima de desavenças políticas. É professor de
Porisso, estima que o Brasil não deve assinar o Protocolo Adicional aos
Acordos de Salvaguarda com a Agência de Energia Atômica (AIEA), pre-
5%Tbid.
” Samuel Pinheiro Guimarães, “A América do Sul em 2022”, Carta Maior, 26 de julho
de 2010, em: <http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materia
S Ibid., p. 306. id=16822>. (Consulta 10/06/2011.)
“ Ibid., p. 320. 58 Ibid.
º Samuel Pinheiro Guimarães, “Mudança declimae energia nuclear”, Valor, 11 de junho * Roberto Mangabeira Unger, “Pór fim ao governo Lula”, Folha de São Paulo, 15 de no-
de 2010, em: <http://www.sae.gov.br/site/?p=3663>. (Consulta 20/06/2010.) vembro de 2005,p.2.
110 BRASIL POTÊNCIA “Aconstrução de uma estratégia
me
direito na Universidade de Harvard desde os 25 anos, sendo o professor uma intervenção político-eleitoral no panorama político brasileiro. Man-
mais jovem nahistória dainstituição, onde foi nomeado professorvitalício gabeira Unger desenvolve umateoria social que tem sido definida como
e é membro da Academia Americana de Artes e Ciências. Se considerar- “o mais ambicioso projeto socioteórico do final do século XX”e como
mos que Samuel Pinheiro é o pensador da projeção geopolítica brasileira, um projeto que “com o olhar na reconstrução social, não tem comparação
Mangabeira Unger já foi reconhecido e resenhado por vários destacados contemporânea”.
intelectuais do mundo. Teve forte influência no desenvolvimento do pen- Sua vasta obra contém uma recusa ao marxismo determinista, embora
samento jurídico estadunidense, a tal ponto que Richard Rorty assegura sem dúvida seja influenciado por Marx, além de uma crítica simultânea
que contribuiu para “modificar o currículo das escolas de direito e a au- ao liberalismo. Segundo Cui Zhiyuan, um dosintelectuais mais destaca-
toimagem de nossos advogados”.º Sua obra é considerada um dos aportes dos da “nova esquerda” chinesa (que se opõe às reformascapitalistas), que
mais vastos e ambiciosos para a reorganização da sociedade.*! seleciona e prefacia a edição brasileira do seu livro Política, Unger conse-
No Brasil, no final da ditadura militar, foi membro do Movimento De- gue demonstrar que as teorias assentadas na análise das “estruturas pro-
mocrático Brasileiro, e junto com Ulysses Guimarães construiu o Partido fundas”, de cunho determinista, encontram-se num avançado estado de
do Movimento Democrático Brasileiro (PMDB), sendo um dos redatores descomposição.º Nesse sentido, sua teoria social implica uma dupla rejei-
do manifesto de fundação. Trabalhou junto com Leonel Brizola no PDT. ção: “em primeiro lugar, ao marxismo, posto que faz eco de umavisão do
Naseleições de 1998 e 2002, colaborou com a candidatura de Ciro Gomes passado definida por um número limitado de modos de produção, conce-
(PPS). É neto de Otavio Mangabeira, um dos mais importantes políticos bidos como ordensintegradas, susceptíveis de reproduzir-se em diferentes
da direita nordestina, fundador da União Democrática Nacional, que foi épocas ou ambientes”, e, em segundolugar, “ao positivismo sociológico ou
governador da Bahia e chanceler sob a presidência de Washington Luís historiográfico, já que tende a negar a existência de totalidades sociais ou
(1926-1930). Mais recentemente, Mangabeira foi membro fundadore vice descontinuidades qualitativas”.
-presidente do Partido Republicano, integrado pelo ex-vice-presidente do Cunha o conceito de “contexto formador” no lugar do “modo de pro-
país José Alencar. dução” de Marx, por considerá-lo excessivamente determinista, posto que
Embora pouco conhecido fora do Brasil e dos Estados Unidos, sua es- mais aberto a revisões e contestações. A “capacidade negativa” indica a
tatura intelectual é notável. Seus livros mais importantes publicados no vontade humana de transcender os contextos formadores mediante sua
Brasil, ainda que originalmente publicados em inglês, são Necessidadesfal- negação, em pensamento ou em ação. Potencializar a “capacidade negati-
sas (2005), Política (2001), A Segunda via (2001), Paixão: um ensaio sobre a va” implica criar contextos institucionais mais susceptíveis a sua própria
personalidade (1998) e A alternativa transformadora (1996).ºJunto a Ciro revisão e transformação, “diminuindo assim a lacuna entre estrutura e
Gomes escreveu O próximo passo: uma alternativa prática para o Brasil, rotina, revolução e reforma gradual, movimento social e institucionaliza-
ção”.8” Por isso, valoriza a capacidade negativa como um fim em si mesmo,
9 Richard Rorty, “Unger, Castoriadis and the romance of a national future”, em Robin
W. Lovin e Michael J. Perry (ed.). Critique and Construction: A Symposium on Roberto $ Geoffrey Hawthorn, “Practical Reason an Social Democracy: Reflections on Unger's
Unger's Politics. New York: Cambridge University Press, 1987. p. 30. Passion and Politics”, op.cit., p. 90.
“4 Além do texto de Rorty, pode-se consultar Perry Anderson, “Roberto Unger y las polí- “ Perry Anderson, “Roberto Unger y las políticas de transferencia de poder”, op. cit., p.
ticas de transferencia de poder”, em Campos de batalla. Bogotá: Tercer Mundo Editores, 228.
1995. p. 209-236; Geoffrey Hawthorn, “Practical Reason an Social Democracy: Reflections & Cui Zhiyuan, “Prefácio” a Política. La teoría contra el destino. São Paulo: Boitempo, 2001.
on Unger's Passion and Politics”, em Robin W. Lovin e Michael J. Perry (ed), op. cit., p. p. 11-22.
90-14. % Perry Anderson, “Roberto Unger y las políticas de transferencia de poder”, op.cit., p.
2 A editora Boitempo (São Paulo) publicou até agora sete livros de Mangabeira Unger, 212.
<www.boitempo.com>. 7 Cui Zhiyuan, “Prefacio” a Política. La teoría contra el destino, op.cit., p. 14.
112 BRASIL POTÊNCIA À construção de uma estratégia . 113
como uma dimensão da liberdade humanapara perseguir novos objetivos. criado pelo governo nacional para proceder a um controle social da acu-
“Retirar os desentrincheiramentos” dos contextos formadores é o modo de mulação econômica; vários fundos de investimentoscriados pelo governo
avançar na emancipação individual e no progresso material. e pelo fundo central de capital para ser aplicado em bases competitivas;
Assim como repudia o “fetichismo estrutural”, impugna também o “fe- e, finalmente, agrupamentos primários de capital que serão os grupos de
tichismo institucional” que nega ou limita a possibilidade de mudar os con- trabalhadores, técnicos e empreendedores.”?
textos formadores e se restringe a jogar de acordo com as regras e limites Essa “propriedade desagregada”, junto com organizações da socieda-
que impõe o contexto social. Considera que as instituições não são neutras de civil, promoveria uma democracia descentralizada e uma “democra-
e se opõe a conceitos abstratos como democracia representativa, economia cia com autonomia”, capazes de transformar a sociedade atual. Para Cui
de mercado ou sociedade civil livre. Em seu lugar, propõe um “experi- Zhiyuan, na proposta de Mangabeira Unger há uma espécie de síntese da
mentalismo democrático” que rompa com o constitucionalismo do século tradição Proudhon-Lasalle-Marx e das tradições radical-democráticae li-
XVIII que combina aspectos plebiscitários com canais amplos e diversos de beral.? Para Perry Anderson, seu ponto fraco é que não aparece a catego-
representação política da sociedade.Nesse sentido, considera que a força ria de adversário ou inimigo,o que o aproximada tradição utópica. Porém,
que movea história é “a disposição positiva dos seres humanos a transcen- diz, “diferentemente de todos os demais projetos atualmente disponíveis,
der os contextos herdados, o desenvolvimento como dépassement”.º este sonho parece sadio e eficaz”.
Resgata a pequena empresa cooperativa a partir de um ângulo original: Essa notável personalidade intelectual foi nomeada por Lula como seu
seus desenhos flexíveis de organização do trabalho “foram tão progres- primeiro ministro de Assuntos Estratégicos. Esteve apenas dois anos no
sistas do ponto de vista técnico e, porisso, tão viáveis do ponto de vista cargo, de junho de 2007 a junho de 2009, mas desenvolveu algumas das
econômico como as enormes corporações e a indústria de produção mas- mais notáveis iniciativas dos oito anos do governo Lula. A Estratégia Na-
siva”,”º Seu objetivo é resgatar este tipo de empreendimentos,para o que é cional de Defesa queleva sua assinatura é sem dúvida uma peça que marca
necessário não só o apoio do Estado, mas, sobretudo, um novo regime de umavirada na história recente do Brasil; devido a sua importância, merece
direitos de propriedade: “Um dos temas mais fascinantes na discussão de ser estudada em detalhe. Além disso, desenhou os primeiros passos de
Unger das novas formas de economia de mercado é a relação que faz entre iniciativas regionais para a Amazônia, para o Nordeste e para o Centro-O-
esses problemas institucionais e as práticas avançadas recentes da atual este, iniciativas setoriais na relação trabalho-capital, educação, agricultura,
produção de vanguarda”.” uma agenda nacional de gestão pública, de superação do apartheid na saú-
A proposta programática, sua “teoria social construtiva”, tem aspec- de e sobre políticas sociais.”
tos originais como a sua proposta de desagregar a propriedade privada, Em sua Carta programática a Lula, sustenta que a base social do projeto
ou seja, um desmembramento do direito de propriedade tradicional para para um novo modelo de desenvolvimento é o desejo da maior parte do
ser atribuído a diversos titulares. Não acredita numa supressão da pro- povo brasileiro de seguir o caminho da “segunda classe média: mestiça,
priedade privada pela estatal ou por cooperativas de trabalhadores, por- vinda de baixo e composta por milhões de brasileiros que lutam para abrir
que manteriam seu caráter de propriedade unitária. Em seu lugar, propõe pequenos negócios, que estudam de noite e inauguram no país uma cultu-
uma estrutura de propriedade em três níveis: um fundo central de capital
2 Ibid,p. 19.
7” Ibid., p. 20.
$& Tbid., p. 16. ” Perry Anderson, “Roberto Unger y las políticas de transferencia de poder”, op.cit., p. 236.
S Perry Anderson, “Roberto Ungery las políticas de transferencia de poder”, op. cit., p. 216, ?º Todasestas iniciativas fazem parte da carta de Mangabeira Unger ao presidente Lula na
em francês no original. qual pede sua exoneração como ministro. Ver “Carta programática ao Presidente (digita-
7 Ibid., p. 221. da)”, 29 de junho de 2009, em: <http://www.law.harvard.edu/faculty/unger/portuguese/
7! Cui Zhiyuan, “Prefacio” a Política. La teoria contra el destino, op. cit., p. 17. propostas.php>.

114 BRASIL POTÊNCIA À construção de umaestratégia . 15
ra de autoajuda e de iniciativa”.”º Diferentemente da revolução de Getúlio grandes eixos: a defesa, a Amazônia, a ampliação digital e a ampliação
Vargas, que realizou a aliança do Estado com os setores organizados da so- das oportunidades econômicas. Não há desenvolvimento sem estratégia
ciedade e da economia (empresários e sindicatos), a revolução em marcha de defesa, disse ao propor umareorganização das forças armadas para um
no Brasil consiste em que o Estado faça uso dos seus recursos para seguir novo desdobramento no território, potencializar a indústria de defesa e a
o exemplo “desta vanguarda de trabalhadores emergentes”, que comanda qualificação pessoal. Congratulou-se de que hoje no Brasil exista um deba-
o imaginário popular. Também esboça algumas das ideias e propostas que te aberto sobre a questão da defesa.
vem formulando há algum tempo: Sobre a Amazônia, um terço do território, apontou que não pode ser
preservada como uma área sem atividade econômica, mas também não
Não atingiremos esse objetivo sem fazer o que raramente fizemos em deve ser desflorestada para abri-la à pecuária e à soja. Aposta em “um pro-
nossa história nacional: inovar as instituições. Não é suficiente regular a jeto nacional de regionalização econômica e ecológica, com estratégias
economia de mercado. Não é suficiente, através de políticas sociais, con- econômicas diferenciadas para as diferentes regiões”, o que implica “en-
trabalançar as desigualdades geradas pelo mercado. É preciso reorganizar frentar problemas totalmente novos no mundo”.ºº Manter a população
o mercado institucionalmente para torná-lo socialmente inclusivo e am- dispersa na Amazônia com alta qualidade de vida e elevado nível educati-
pliador de oportunidades. É apenas uma das muitas aplicações da recons- vo é um dos maiores desafios.
trução institucional da qual carecemos. Sem ela, obras físicas, por mais À inclusão digital passa por construir uma infovia nacional, estimular a
justificadas que sejam, ficarão longe de resolver os problemas brasileiros produção de conteúdos nacionais e “um regime de governança de Internet,
ou sequer de atingir os objetivos a que elas mesmasestão destinadas.” no Brasil e no mundo, que assegure a gestão comunitária da Internet pela
sociedade civil mundial não controlada nem pelos estados nacionais nem
Umadas passagens mais interessantes é aquela que propõe redesenhar pelos interesses das empresas”.*! Para avançar nessa direção, aposta em
as relações trabalho-capital, que não têm se modificado desde o período de utilizar os recursos do Estado em apoio da maioria não organizada dos
Getúlio Vargas. Afirma que o país enfrenta a ameaça de “ficar espremido trabalhadores, dos quais 62% são informais. É consciente que as desigual-
numa prensa entre os países de alta produtividade e os países de trabalho dades não se modificam com políticas sociais, mas mediante mudanças
barato” e que por interesse nacional deve-se escapar dessa prensa pelo alto no modelo, e que a principal política social é a capacitação e educação
(valorização do trabalho e da produtividade), e não por baixo (trabalho dos brasileiros. Sobre o que denomina “democratização da economia de
precarizado). “Não temos futuro como uma China com menos gente”. mercado”, foi mais explícito que na carta a Lula: trata-se de reorganizar o
Logo apresenta medidas para resolver o problema da informalidade e da mercado, de reconstruir as instituições. Mas isso não vai acontecer como
participação dos trabalhadores nos ganhos das empresas, algo queestá na “uma dádiva de uma tecnocracia iluminada e uma população passiva”, e
Constituição mas ainda não tem sido transformado em lei. sim como consequência da “pressão popular”.º?
Quanto ao seu pensamento estratégico, tem alguns pontos em comum Finalmente, apontou que um grande obstáculo para seguir em frente
com Samuel Pinheiro: “Nosso país está predestinado a se engrandecer como país é que osbrasileiros ainda não se sentem grandes, não imaginam
sem imperar”,? No VII Encontro de Estudos Estratégicos, propôs quatro um destino de grande potência e seguem prisioneiros de umavisão fatalis-
* Ibid., p. 2. “Anais VII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos”, Brasília, Presidência da República,
7 Ibid.,p. 2. 6a 8 de novembro de 2007, v. 2, 2008, p. 467.
* Ibid., p. 7. 80 Tbid., p. 472.
? Roberto Mangabeira Unger, “Uma visão de longo prazo para o Brasil”, palestra no VII si Ibid., p. 473.
Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, em Gabinete de Segurança Institucional, “2 Ibid., p. 477.
x”.
116 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestratégia 17
ta. Afirma repetidamente a ideia de “se engrandecer sem imperar”. Acre- sidente para o projeto de inclusão digital em escolas públicas e depois em
dita que o mundoestá prisioneiro dafalta de alternativas por causa de um assessor de planejamento estratégico na empresa Penta Prospectiva Estra-
empobrecimento programático das democracias. O Brasil precisa é dis- tégica, da qual foi também diretor.
cutir alternativas e lançar-se a mudar o mundo como fizeram no seu mo- Em 2006, quando ainda era membro do NAE, propôsa criação de uma
mento outros países. “Essas nações que se tornaram poderosas no mundo “Otan sul-americana”, com a convicção de que no futuro haverá guerras
e que nós nos acostumamosa imitar se forjaram entre crises econômicas e na região pelo acesso à água.Na opinião de Oliva Neto, os objetivos da
guerras”.O Brasil deve aprender a mudar sem guerra nem ruínas, o que coordenação militar regional seriam três: defender os recursos naturais,
requer um novo vocabulário, e, sobretudo, assumir coletivamente queesse dissuadir uma intervenção extracontinental no Cone Sul e distender as
é um dos problemas centrais do país. relações entre os países sul-americanos. Disse que o projeto enquadra-se
O coronel retirado Oswaldo Oliva Neto foi o primeiro secretário-geral no programa Brasil 3 Tempos, e destacou que “quando os problemas de
do Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE), em 2003, e se converteu em falta de energia, água e matérias primas se tornarem mais agudos fora da
chefe do organismo em 2007, quando Luis Gushiken saiu do gabinete. É América do Sul esta situação começar a gerar estresse internacional, (ou-
irmão do histórico dirigente do PT Aloízio Mercadante, filho do influente tros países) poderiam dirigir seus olhos à nossa região”.º” O militar disse
general Oswaldo Muniz Oliva, que foi comandante da Escola Superior de que o projeto deveria ficar pronto em 2007, e pelo que parece ficou. Porém,
Guerra na década de 1980 e se retirou em 1990 para converter-se em con- em 2008 e depois do bombardeio da Colômbia contra o acampamento do
sultor na área de planejamento estratégico, ramo em que havia se especiali- dirigente das Farc Raúl Reyes no Equador, o Brasil viu a oportunidade
zado no Exército.” Oliva Neto tem pós-doutorado em Política, Estratégia e para colocá-lo em andamento. É evidente que os planejadoresestratégicos
Alta Administração na Escola do Estado-Maior do Exército, fez vários cur- do Brasil adiantaram-se aos acontecimentos planejando objetivos regio-
sos de especialização na Fundação Getúlio Vargas, é autor da metodologia nais a médio e longo prazo, e quando encontram as oportunidades dão o
com que o NAE realizou o planejamento estratégico a longo prazo e da passo necessário para tornar os planos realidade. E isso acontece em todas
monografia “Penta — Prospectiva Estratégica e Interação Conjugada (uma as áreas, ainda que a defesa talvez seja o aspecto mais visível.
metodologia de gestão estratégica)”.Durante o primeiro governo Lula, Em 2006, Oliva Neto concedeu uma longa entrevista sobre as questões
entre 2003 e 2006,realizou um conjunto de tarefas que colocaram as bases energéticas, uma das pautas prioritárias do NAE. Destacou que em apenas
dos planos estratégicos em várias áreas. Em 2004, passou de assistente do 20 anos terá sido estabelecida uma nova matriz energética, mais limpa que
comandante do Exército a secretário executivo do NAE. Em 2006, conver- a atual. Isso indica, em sua opinião, que o país tem muito pouco tempo
teu-se em ministro do NAE, organismo que coordenou o projeto estratégi- para implementar novas fontes, porque uma vez que se tenha assentado o
co Brasil 3 Tempose as análises estratégicas do NAE sobre biocombustíveis, novo modelo que substitua o petróleo,já terá passado a janela de oportu-
mudança climática, nanotecnologia, reforma política, demografia, matriz nidades para o Brasil. O objetivo é aproveitar que o Brasil tem uma impor-
de combustíveis, modelo macroeconômico e inclusão digital. No segundo tante vantagem comparativa para a produção de etanol; o NAE realizou
governo Lula, de 2007 a 2010, converteu-se primeiro em assessor do pre- junto com algumas firmas um estudo que lhe permitiu concluir que há
90 milhões de hectares disponíveis para cultivar cana de açúcar, e esta é
“ Ibid., p. 487.
“ Revista Isto é, “O general de Mercadante”, 20 de janeiro de 2003, em: <http://www.terra.
com.br/istoegente/181/reportagens/oswaldomuniz.htm>. (Consulta 27/03/2011.)
* Apresentada no ano 2001 como conclusão do curso “Política, Estratégia e Alta Ad- 8º “Brasília propone una Otan sudamericana”, Agencia Periodística del Mercosur, 16 de
ministração”, em Revista Eletrônica Brasiliano & Associados, n. 28, São Paulo, Brasilia- novembro de 2006 em: <http://lists.econ.utah.edu/pipermail/reconquista-popular/2006-
no & Associados, março 2007, em: <http://www.brasiliano.com.br/revistas.anteriores. November/044587.html>. (Consulta 31/03/2011.)
php?PHPSESSID=68e832a68fa6162c568elb8a4b09d4de>. (Consulta 31/03/2011.) ” Ibid.
da
118 BRASIL POTÊNCIA A construção de uma estratégia . 119
a grande oportunidade para liderar uma mudança na matriz energética. dados desse momento em diante foram desenhados com extrema cautela
Também falou sobre a nanotecnologia, pauta abordada num rigoroso es- por Oliva Neto e uma pequena equipe de pessoas vinculadas à presidência.
tudo do NAE que monitorou 150 mil frentes de investigação no mundo O acordo para a fabricação dos helicópteros supunhacriar um marco
para orientar empresários e cientistas especializados na matéria. Se não para que a empresa Eads,”º a maior fabricante europeia de armamento
trabalharem seriamente,diz Oliva Neto, daqui a dez anos podem ficar fora bélico, encontrasse uma contraparte brasileira capaz de assumir o desafio,
do mercado industrial, o que seria muito grave para um país que pretende de modoa nãoter que estabelecer relações com uma multidão de empresas
ser potência global. de médio porte que dominavam a indústria militar brasileira. O governo
Nacitada entrevista, uma das raras que deu o coronel aposentado, enfa- decidiu reviver uma velha empresa que teve um papel pioneiro na fabri-
tiza que há países, como a Coreia do Sul, que tem se especializado em mi- cação e exportação de armas. A Engesa (Engenheiros Especializados SA)
croeletrônica, e que isso implica uma grande vulnerabilidade,já que está foi criada em 1963 e teve um papel destacado nas décadas de 1970 e 1980,
se produzindo um salto da micro à nanoeletrônica, que deixará seu parque fabricando caminhões e blindados que foram exportados para 18 países,
industrial fora da concorrência em apenas cinco ou dez anos. O Brasil deve entre eles os tanques Cascavel e Urutu. Porém, a firma faliu em 1993.
aprender com esses processos, decidindo-se a dar um salto em tecnologia A criação da Engesaer (a nova Engesa) é fruto não só dos acordos com
e investigação. “Estamos criando uma massacrítica de pesquisadores, pro- a França, mas do silencioso e paciente trabalho de Oliva Neto pelo menos
fessores e especialistas que o Brasil nunca teve”, disse, em referência à for- desde 2008, um ano antes de concretizados os acordos. A nova empresa é
mação da mesma quantidade de especialistas que a Alemanhae a França.” a que recebe e processa a tecnologia transferida por Eads. Os helicópteros
No governo Dilma,a carteira de Ciência e Tecnologia é ocupada justamen- EC-725 são produzidos na fábrica de Helibras no Brasil, única fabrican-
te pelo irmão de Oliva Neto, Aloízio Mercadante Oliva. te de helicópteros na América Latina, com 70% pertencente à Eurocop-
Em 7 de setembro de 2009, abriu-se uma nova e decisiva oportunida- ter, principal fabricante de helicópteros civis do mundo, vinculada à Eads.
de para os planejadores estratégicos do PT, ao assinar um acordo entre o No caso de Engesaer, os europeus terão somente 20% das ações, ficando o
Brasil e a França para a compra de 51 helicópteros de transporte militar resto reservado para investidores nacionais privados, para fundos de pen-
EC-725, quatro submarinos convencionais e um nuclear. Ao mesmo tem- sões e para o governo federal, que vai controlar a empresa.” Segundo a
po, anunciou-se a compra de 36 caças Rafale, embora esta parte da opera- publicação, todo o processo foi desenvolvido no mais absoluto sigilo por
ção tenha sido congelada sob o governo Dilma. Todos os acordos supõem Oliva Neto. Engesaer aproveitará a capacidade instalada de outras cinco
transferência de tecnologia e a construção da maior parte desses aparatos empresas: Imbra Aerospace, Mectron, Akaer, Atmos e Gigacom. Oliva
no Brasil, o que contribuirá a um potente renascimento de uma indústria Neto desempenha-se como articulador a partir de uma plataforma muito
militar vinculada ao Estado, assim como propõe a Estratégia Nacional de particular, a empresa em queseu pai foi diretor, Penta Prospectivo Estraté-
Defesa. Nessa nova conjuntura, que promete a criação de um complexo gica, dedicada ao assessoramento em matéria de segurança e defesa.
militar-industrial brasileiro, o coronel Oliva Neto se converteu numa fi- Em maio de 2010, deu-se um segundo passo decisivo com a assinatura
gura-chave. Sendo uma pessoa de máxima confiança do governo Lula e de uma aliança entre Odebrecht e Eads Defence & Security. Ou seja, entre
também do atual governo Dilma, reúne a dupla condição de planejador
estratégico e de executor das estratégias desenhadas. Alguns dos passos
*º Siglas de European Aeronautic Defence and Space Company (Eads), corporação euro-
peia criada em 2000 pela fusão da Aeroespacial Matra da França e da Casa da Espanha
e Daimler-Chrysler da Alemanha. Fabrica os aviões comerciais Airbus, aviões militares,
* “Diferencial do Brasil está no agronegócio”, em Carta Maior, 3 de julho de 2006, em: mísseis e foguetes espaciais.
<http://www.cartamaior.com.br/templates/materiaMostrar.cfm?materiaid=11588>. 21 “A volta da Engesa: O Brasil que produz armas de guerra”, Revista Isto é, 19 de agosto
(Consulta 31/03/2011.) de 2009, em: <http://www.istoe.com.br/reportagens/16703A+VOLTA+DA+ENGESA.>.
* Ibid. (Consultado 21/03/2011.)
120 BRASIL POTÊNCIA A construção de umaestratégia. . 121
um líder mundial no setor aeroespacial e armamentista e a construtora convertido numa relação de confiança mútua. Em 2008, a Odebrecht já
brasileira que aparece entre as 20 maiores do mundo. O comunicado da tinha sido eleita pelo governo, sem licitação, para ser a encarregada junto
Odebrecht é muito claro: “A aliança tem como objetivo converter-se num com a francesa DCSN para a montagem de quatro submarinos convencio-
sócio competente e de completa confiança das forças armadas, de orga- nais e de um nuclear, projeto estimado em 10 bilhões de dólares, que inclui
nizações governamentais e de empresas locais”.º? Eads faturou 60 bilhões a construção de um estaleiro numa base naval para a Marinha.” Oliva
de dólares em 2009 fabricando aviões civis e militares, mísseis, sensores e Neto encarnaa aliança entre o Estado comandado pelo PT e os grandes
uma ampla gama de material militar. A Odebrecht faturou 25 bilhões de empresáriosindustriais brasileiros, da qual participam quadros militares e
dólares em construção pesada, infraestrutura, energia, petróleo e petro- civis dedicadosa planificar o caminho do Brasil em direção ao seu destino
química; é uma multinacional brasileira forjada por um grupo familiar de grande potência. :
que emprega quase 90 mil pessoas. Na nova empresa, Odebrecht-Eads De- Poderiam ser mencionados, certamente, outros importantes planeja-
fesa SA, com sede em São Paulo, Oliva Neto se converteu em Diretor de dores e gestores estratégicos. Aloízio Mercadante é um deles, fundador
Desenvolvimento de Negócios. do PT, homem-chave no Senado durante os dois governos Lula, ministro
Três meses depois, em setembro de 2010, Odebrecht deu outro passo de Ciência, Tecnologia e Inovação e depois ministro da Educação sob o
importante com a criação de Copa Gestão em Defesa, como forma de par- governo Dilma. Celso Amorim é outra peça central dos governos do PT.
ticipar nos milionários programas de modernização das forças armadas. Como chanceler de Lula, teve um papel destacadíssimo em todosos fóruns
A nova empresa tem dois sócios minoritários, Atech, uma empresa de tec- mundiais, nas principais crises da região e foi mencionado comoo “melhor
nologia criada para o Sistema de Vigilância da Amazônia (Sivam) e Penta, chanceler do mundo” pela revista Foreign Policy.* Com Dilma, passou a
de Oliva Neto.? Odebrecht continuou avançando e deu um terceiro passo ocupar o Ministério da Defesa num momento estratégico para concretizar
que a coloca como a empresa melhor situada no crescente e suculento ne- o rearmamento das forças armadas.
gócio da modernização das forças armadas. No começo de 2011, assumiu
o controle da Mectron, o maior fabricante brasileiro de mísseis e uma das
maiores firmas do setor defesa.”* O BNDEStinha 27% do capital total da
Mectron, e a Odebrecht passou a controlar mais da metade do capital da
empresa, colocando-se num lugar destacado no momento em que está se
produzindo uma remodelação estratégica do setor.
A Odebrecht mantém uma longa relação com o Partido dos Trabalha-
dores e com Lula, pelo menos desde 1992, tendo feito importantes con-
tribuições econômicas para suas campanhaseleitorais, ao ponto deter se
92 « Eads Defence & Security e Organização Odebrecht unem forças no Brasil para esta-
belecer uma parceria de longo prazo”, em <http://www.odebrecht.com.br/sala-imprensa/
press-releases?id=14268>. (Consultado 21/03/2011.)
* “Odebrecht cria empresa de gestão na área de Defesa”, 17 de setembro de 2010 em:
<http://economia.ig.com.br/empresas/industria/odebrecht+cria+empresa+de+gestao+-
na+area+de+defesa/n1237778550208.html>. (Consulta 31/03/2011.)
** “Odebrecht adquire controle da fabricante de mísseis Mectron”, Folha de São Paulo, 25 ºs “Odebrecht cria empresa de gestão na área de Defesa”, op. cit.
de março de 2011, em: <http://wwwl.folha.uol.com.br/mercado/893738-odebrecht-adqui- % Foreign Policy, 7 de outubro de 2009, em: <http://rothkopf.foreignpolicy.com/
re-controle-da-fabricante-de-misseis-mectron.shtml>. (Consulta 2/04/2011.) posts/2009/10/07/theworldsbestforeignminister>. (Consultado 10/01/2012.)
CAPÍTULO 4
Da estratégia de resistência à
estratégia de defesa nacional
Se quisermos ser um grande país, se quisermos ser capazes de
nos defender e não nos deixar intimidar, precisamos nos armar,
e para armar-se, é preciso uma indústria de defesa baseada em
nossas capacidades.
ROBERTO MANGABEIRA UNGER
Nofinal do ano de 2004, o Estado-Maior do Exército Brasileiro enviou
quatro oficiais superiores ao Vietnã para o estudo aprofundado das téc-
nicas de guerrilha, com as quais as forças armadas derrotaram os Estados
Unidos três décadas atrás. O relato da missão ficou por vários dias na pá-
gina do Exército (<www.exercito.gov.br.>.), destacando que “a visita teve por
objetivo realizar contatos com as forças armadas daquele país para viabili-
zar, em futuro próximo, intercâmbio sobreas estratégias de resistência nos
vários níveis estratégico, tático e operacional”.!
A missão foi coordenada pelo tenente-coronel Moraes José Carvalho
Lopese pelo capitão Paulo de Tarso Bezerra Almeida, ambos do Centro de
Instrução de Guerra na Selva, o major Cláudio Ricardo Hehl, da Escola de
Aperfeiçoamento de Oficiais, e o coronel Luiz Alberto Alves, do Comando
de Operações Terrestres. Na mesma página, o general Claudio Barbosa
Figueiredo, chefe do Comando Militar da Amazônia, apresentou detalhes
da missão, que visitou as cidades de Hanoi, Ho Chi Minh (ex Saigón), e
a província de Cu Chi, onde ainda se conservam 250 quilômetros de tú-
neis construídos durante a guerra. Segundo ele, a Estratégia de Resistência
! Diário da Manhã, Goiânia, 10 de fevereiro de 2003. Disponível em: <http://www-achano-
ticias.com.br/noticia.kmf?noticia=2809013>. (Consulta 03/04/2011.)
192
124 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 125
“não difere muito da guerra de guerrilhas e é um recurso que o Exército Manaus. Em 1991, o comandante da Amazônia, general Antenor de San-
não hesitaria em adotar em um possível confronto com um país ou gru- ta Cruz Abreu, disse perante a Comissão de Defesa Nacional da Câmara
pos de países com potencial econômico e bélico superior ao do Brasil”, e, dos Deputados que converteria a floresta em um Vietnã, caso ocorresse
acrescentou, “se deverá contar com a própria floresta tropical comoaliada uma invasão; nesse ano se debateu o tema na Escola de Comando e Estado
no combate ao inimigo”? -Maior do Exército, que buscava planejar uma estratégia capaz de transfor-
O general Claudio Barbosa Figueiredo não é precisamente um homem maras forças armadas em forças guerrilheiras em caso de invasão.
de esquerda. Durante o regime militar foi ajudante do marechal presidente Em 1990, o ex-comandante da Amazônia, general Luís Gonzaga Lessa,
Arthur da Costa Silva (entre 1968 e 1969). Assumiu o comando da Ama- declarou que com o fim da Guerra Fria, os Estados Unidos se transfor-
zônia com a chegada de Lula ao governo, em fevereiro de 2003. Em seu dis- maram no único poder hegemônico, e que, ao anunciar sua vocação de
curso oficial, perante uma comissão parlamentar destacou: “Precisamos “polícia do mundo”, a questão havia se convertido em “uma preocupação
de uma estratégia que custe caro a qualquer sociedade que tente invadir de todos nós”.º Nesses primeiros anos, a ideia de que uma potência tec-
a Amazônia”, para evitar qualquer ameaça contra esta região de vital im- nologicamente superior poderia invadir parte da Amazônia, para apro-
portância.* Enfatizou ainda: “Desenvolvemos no Brasil umaestratégia de priar-se de reservas naturais de metais estratégicos (como o nióbio, usa-
resistência que transformaa floresta em aliada, inimiga de nosso inimigo”. do na indústria aeronáutica), além da água, levou o Comando Militar da
Salientou que essa estratégia será usada contra forças de maior porte, “dos Amazônia a realizar treinamentos com foco na guerra de guerrilhas e, em
países centrais”, aquelas que o Brasil não poderia enfrentar ante uma guer- 2001, apontar a necessidade de participação da população na Estratégia de
ra convencional. Resistência.”
O general se referia a uma estratégia concebida a tempo pelas forças João Roberto Martins Filho, presidente da Associação Brasileira de Es-
armadas, segundo ele desde 1998, preocupada com as incertezas do cená- tudos de Defesa, aponta que em meados da década de 1990 a Estratégia de
rio geopolítico mundial (após a queda do socialismo soviético) e, sobretu- Resistência já estava consolidada, sendo revitalizada, posteriormente no
do para resistir à imposição da hegemonia dos Estados Unidos, que havia final da década, quando se aprovou o Plano Colômbia, considerado pelos
fixado seus interesses nos recursos naturais da Amazônia, inclusive com militares brasileiros uma ameaça à Amazônia.* Esse tema é central por-
a construção de um cinturão de bases militares no entorno da região. que mostra comoas forças armadas têm sido capazes de definir suas pró-
A Estratégia de Resistência começou a ser formulada ainda nos primei- prias prioridades mesmo em momentos em que os governos neoliberais
ros anos da década de 1990, por parte de oficiais que tinham participa- debilitaram o aparato estatal e reduziram os recursos/investimentos para
do do combate à guerrilha do Araguaia na segunda metade dos anos de a defesa. A reprodução do espírito nacionalista nas forças armadas nunca
1970 e treinados no Centro de Instrução de Guerra na Selva, com sede em deixou de existir, seja no regime militar, ou mesmo sob o Consenso de Wa-
shington, processo que possibilitou aos militares manter sua autonomia de
pensamento,inclusive quando não contavam com o apoio político.
? Mario Augusto Jakobskind, “Aprendiendo de Vietnam”, em Brecha, Montevideo, 18 de
fevereiro
de 2005 e Observatório da Imprensa, 25 de janeiro de 2005. Disponível em: <http://www. 5 João Roberto Martins Filho, “As Forças Armadas Brasileiras no pós Guerra Fria”. Forta-
observatoriodaimprensa.com.br/artigos.asp?cod=313JDB003>. (Consulta 03/04/2011.) leza, Revista Tensões Mundiais, v. 3, 2006, p.78-89.
* Câmara dos Deputados, Departamento de Taquigrafia, “Depoimento do Comandante S Luiz Alberto Moniz Bandeira, As relações perigosas: Brasil-Estados Unidos (De Collor a
Militar da Amazônia General Cláudio Barbosa de Figueiredo”, Comissão de Relações Ex- Lula, 1990-2004). Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. p. 271.
teriores e Defesa Nacional, Brasília, 2 de outubro de 2003, p:3L. 7 Ibid., p. 272-274.
* Paulo Roberto Corrêa Assis, “Estratégia da resistência na defesa da Amazônia”, Núcleo * João Roberto Martins Filho, “As Forças Armadas brasileiras e o Plano Colômbia”, em
de Estudos Estratégicos Mathias de Alburquerque (Neema), Amazônia II, Rio de Janeiro, Celso Castro (coord.) Amazônia e Defesa Nacional. Rio de Janeiro: Fundação Getúlio Var-
Tauari, 2003. gas, 2006.p. 13-30.
126 BRASIL POTÊNCIA
4 Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 127
Segundo o historiador e especialista em relações exteriores Luiz Alber- e o Plano Calha Norte para evitar que guerrilheiros e narcotraficantes cru-
to Moniz Bandeira, as forças armadas sempre desconfiaram das intenções zem a fronteira.”
dos Estados Unidos, especialmente a partir da intensificação da presença Os militares brasileiros se sentiam cercados por bases estadunidenses,
militar na Colômbia, Equadore Peru, sob o pretexto de combate ao tráfico e nesse período reafirmaram a vontade de fortalecer sua autonomia. Uma
de drogas e a guerrilha. A presença militar estadunidense na região tem ampla reportagem divulgada pelo jornal Zero Hora, de Porto Alegre, de
crescido e se diversificado desde a desativação da base Howard no Panamá, março de 2001 ilustra bem a posição das forças armadas. A matéria trazia
em 1999. O Comando Sul dos EUA tinha no início da década de 2000 a a ideia de que os Estados Unidos estavam cercando o Brasil: “Os Estados
responsabilidade sobre as bases de Guantánamo (Cuba), Fort Buchanan Unidos montaram em território sul-americano e ilhas próximas, nos dois
e Roosevelt Roads (Porto Rico), Soto Cano (Honduras) e Comalapa (El últimos anos, um “cordão sanitário” com 20 bases militares, divididas entre
Salvador), e as bases aéreas recentemente criadas em Manta (Equador), bases aéreas e estações de radar”. Segundo a reportagem, não há rela-
Rainha Beatriz (Aruba) e Hato Rey (Curaçao). Além disso, coordena uma ção de cooperação entre as forças armadas do Brasil e Estados Unidos,já
rede de 17 radares terrestres: três no Peru, quatro na Colômbiae o restante que o Brasil não permite bases estadunidenses em território nacional, não
mantém sob sigilo militar em países andinos e do Caribe.” A Colômbia, participa de missões conjuntas com os Estados Unidos e quase não recebe
em particular, se converteu em meados da década de 2000 no quarto maior fundos para combater o narcotráfico.
beneficiário da ajuda militar dos Estados Unidos no mundo,atrás apenas Já Fernando Sampaio, reitor da Escola Superior de Geopolítica e Estra-
de Israel, Egito e Iraque; e a embaixada em Bogotá é a segunda maior do tégia, dedicada ao estudo de questões militares, resume em poucas pala-
mundo depois do Iraque. vras a visão que predomina no Brasil a respeito do Plano Colômbia e da
Foi na década de 1990 que se aprofundaram as divergências entre os implantação das ações do Pentágono na região: “É umadisputa por hege-
militares e os governos neoliberais a respeito do desmantelamento da in- monia regional. O Brasil não quer ser mais um satélite desta constelação
dústria bélica brasileira, que nas décadas de 1970 e 1980 chegou a produzir bélica patrocinada pelos americanos”.
cerca de 70% dos equipamentos utilizados pelas forças armadas, impor- A crescente aproximação entre Argentina e Brasil registrada na déca-
tando carros de combate (que antes eram exportados) até pólvora, capace- da de 1980, que culminou na criação do Mercosul em 1990, contribuiu
tes e bazucas. Aparentemente, a imposição dessas políticas desde Washin- para mudara tradicional hipótese de guerra das forças armadas, que des-
gton aumentou o sentimento nacionalista entre os oficiais “onde a grande de a independência do Brasil esteve focalizada em um provável conflito
maioria responsabilizava as pressões dos Estados Unidos e das políticas militar com a Argentina. Como veremos a seguir, essa hipótese manti-
neoliberais impostos pelo FMI e Banco Mundial”.!º nha as prioridades do período colonial, atualizadas pela ditadura militar
O Brasil se opôs fortemente ao Plano Colômbia. Durante a IV Confe- depois de 1964, mas as mudanças geopolíticas globais, sobretudo a queda
rência dos ministros de Defesa das Américas, celebrada em Manaus em do socialismo real e a conformação de um mundo unipolar e a conver-
outubro de 2000,o então presidente Fernando Henrique Cardoso refutou a
possibilidade de incorporar o Exército brasileiro no combate aotráfico de
drogas,tal como propunha presidente Clinton. Aliás, em resposta ao Pla- “ “Os militares, o governo neoliberal e o pé americano na Amazônia”, em revista Repor-
no Colômbia, o Brasil pôs em marcha o Plano Cobra(iniciais de Colômbia tagem, 18 de outubro de 2000. Disponível em: <http://www.oficinainforma.com.br/inclu-
des/imprimirpv.php?id=493>.
e Brasil) para evitar que a guerra naquele país atinja a Amazônia brasileira, (Consulta 30/04/2011.)
2 Humberto Trezzi, “EUA já têm 20 guarnições na América do Sul”, Zero Hora, Porto
Alegre, 25 de março de 2001. Disponivel em: <www.oocities.org/toamazon/toaguarnicao.
? Juan Gabriel Tokatlian, “La proyección militar de Estados Unidos en la región”, Le Mon- html>. (Consulta 02/01/2011.)
de Diplomatique, Buenos Aires, dezembro de 2004. 33 Raúl Zibechi, “El nuevo militarismo en América del Sur”, Programa de las Américas,
“ Luiz Alberto Moniz Bandeira, op. cit. p. 276. maio de 2005, Disponivel em: <http://alainet.org/active/8346e=es>.
128 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia dedefesa nacional
129
são da Argentina em aliado estratégico com a integração do Mercosul, Em suasprimeiras páginas, a END repetiu alguns dos principais temas
contribuíram para descartar essa antiga percepção acerca do “maior ini- que nortearam os grandes estrategistas brasileiros: “O Brasil irá ascender
migo” do Brasil. É possível que o descobrimento de vastas reservas de ao primeiro plano no mundo sem exercer hegemonia ou dominação”, e
petróleo na “camada do pré-sal” no litoral, a chamada “Amazônia Azul”, defende a tese de que o “Brasil se engrandecerá sem imperar”.!! Logo em
possa ter jogado um papel importante na redefinição das prioridades de seguida vincula a defesa ao desenvolvimento, de modoa criar uma relação
defesa nacional. de imanência: é o desenvolvimento do Brasil que necessita ser defendido,e
A hipótese que guia este trabalho é que com a chegada de Lula ao Pa- são as forças armadas as que oferecem uma proteção ao desenvolvimento.
lácio do Planalto, as forças armadas voltaram a ocupar um lugar de des- A defesa é, conforme a END,a capacidade de dizer “não”, se necessário.
taque no projeto que converteu o Brasil em uma potência global. Ou, se Considera que a estratégia de defesa é inseparável da estratégia de desen-
preferirem, há umaconfluência entre o projeto regional e global defendido volvimento nacional.
pelo governo do PT e as velhas aspirações nacionalistas das forças arma- O tema da independência do país também ganhou destaque na END,e
das, o que permitiu construir uma sólida aliança que vai muito mais além se assenta em três pilares: a mobilização dos recursos físicos, econômicos
da conjuntura política, para se transformar em projeto de longo prazo. A e humanos, a capacitação tecnológica e a democratização das oportunida-
formulação da Estratégia de Defesa Nacional, em 2008, foi um momento des educativas e econômicas, porque o “O Brasil não será independente en-
decisivo que mostra como existia uma convergência de influências entre a quanto faltar para parcela de seu povo condições para aprender, trabalhar e
nova administração e uma parte dos militares nacionalistas. produzir”.A END estabelece 23 diretrizes quesintetizam os princípios
e objetivos para tornar efetiva a estratégia de defesa. O ponto de partida
da END seguea lógica da difusão da capacidade de combate, mas enfatiza
A Estratégia Nacional de Defesa que a tecnologia, mesmo que avançada, não é alternativa ao combate sem
um instrumento de combate. Sendo o Brasil um país de extensasfronteiras
Em 6 de setembro de 2007, o presidente Lula emitiu um decreto criando um terrestres e marítimas, a “mobilidade estratégica” é atributo fundamental,
comitê interministerial para elaborar uma Estrategia Nacional de Defesa o que pressupõe uma capacidade de monitorar e controlar fronteiras.
(END), presidida pelo ministro da Defesa, Nelson Jobim, coordenada pelo Faz-se necessário unificar as operações das três forças para assumir
ministro de Assuntos Estratégicos, Roberto Mangabeira Unger, e integra- esta tarefa, haja vista que nenhuma força em separado poderia garantir a
da pelos ministérios do Planejamento, Orçamento e Gestão, da Fazenda e proteção de um país tão extenso. Essa articulação se define em três setores
da Ciência e Tecnologia, contando ainda com o apoio de comandantes das estratégicos: o espacial, o cibernético e o nuclear. Sobre este último, que
forças armadas. Durante um ano, o comitê consultou especialistas em de- por sua importância trataremos em separado, estabelece-se a necessida-
fesa, tanto civis como militares. Em 17 de dezembro de 2008, os ministros de de dominar toda a produção nuclear, com independência tecnológica e
Jobim e Unger apresentaram um documento de 58 páginas ao presidente, garantir as condições de construção de submarinos à propulsão nuclear. '5
na certeza que, pela primeira vez, o Brasil estava diante de uma estratégia Umadas diretrizes mais importantes, já implementada,é a necessidade
de defesa de longo prazo. de reposicionar os efetivos das três forças, o que mostra as escolhasestra-
Três prioridades estruturavam o documento: a reorganização das for- tégicas do Brasil:
ças armadas, a redefinição do papel do ministério da Defesa e a reestrutu-
ração da indústria militar, sobretudo para que as forças armadas pudessem
se apoiar em tecnologias de domínio nacional, abrindo uma nova relação
“ Ministério de Defesa, “Estratégia Nacional de Defesa”, Brasilia, 2008, p.1.
com a sociedade, essencialmente para se converter num novo espaço repu-
15 Tbid., p. 2.
blicano que refletisse sua integração com o país. ' Tbid., p. 5.
”.
130 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional
131
As principias unidades do Exército estacionam no Sudeste e no Sul do Bra- mobilidade em qualquer operação. Em terceiro, cada comba
tente deve es-
sil. A esquadra da Marinha concentra-se na cidade do Rio de Janeiro. As tar treinado para “atenuar as formas rígidas e tradicionais
de comando e
instalações tecnológicas da Força Aérea estão quase todas localizadas em controle, em prol da flexibilidade, da audácia e da surpr
esa no campo de
São José dos Campos, em São Paulo. As preocupações mais agudas de de- batalha”,
fesa estão, porém, no Nort, no Oeste e no Atlântico Sul.” Além disso, o soldado poderá assumir os objetivos da missã
o na ausên-
cia de ordens específicas, orientar-se em meio às incertezas
do combate e
Essa realidade se mantém intocada desde os tempos da Colônia, quan- tomar iniciativa em situações de mudança. Desse modo
se poderá “dimi-
do os conflitos entre portugueses e espanhóis tinham por efeito uma pro- nuir o contraste entre as forças convencion
ais e não convencionais, não
funda desconfiança entreaselites e os povos do Brasil e da Argentina. Esse em relação aos armamentos que cada um podecarrega
r, mas sim em rela-
processo forçou os Estados Unidos a uma aproximação maior com Bag ção ao radicalismo com que ambas praticam o conceito de
flexibilidade”2!
gentinos, pois entendiam que a cooperação entre os países sul-america- Para que essas qualidades do militar brasileiro pudessem
ser exercidas foi
nos poderia criar um centro de poder na América do Sul, afetando sua necessário identificar as peculiaridades geográficas do país,
inclusive as
influência política, econômica e militar.' Daí as razões, por exemplo, das mais extremas. De fato,a estratégia para defendera Amazô
nia, segundo a
mudanças construídas na década de 1990, com o Mercosul. Porém, a END END,é o aprofundamento da Estratégia de Resistência em torno
das novas
leva em prática a ideia de que a Amazônia deve ser defendida de potências realidades, tomando comoponto de partida a nova estratégia de
defesa do
extracontinentais, assim como o petróleo na plataforma continental. país e de suas riquezas.
Comoparte do processo de redistribuição de forças, a Marinha deverá À integração da América do Sul ocupa um lugar destacado
na Estra-
se implantar nas bacias dos rios Amazonas e do Paraguai-Paraná, o Exér- tégia de Defesa Nacional. Antecipa-se, inclusive, a proposta de criaçã
o de
cito posicionará seu efetivo estratégico no centro do país, possibilitando um Conselho de Defesa Sul-americano,e se define que ante uma event
u-
maior mobilidade por todo o território nacional, e nas fronteiras deverá al degeneração dasituação internacional o Brasil deve proteger tanto seu
ser aumentada a presença e a densidade das três forças. Uma seção do do- território como suas rotas de comércio marítimo e plataforma
s petrolí-
cumento está exclusivamente dedicada à região amazônica, definida como feras. Aparecem nessa questão duas situações novas. Uma delas deriva
região prioritária do país, haja vista a pressão das potências do Norte para do descobrimento de amplas reservas de petróleo nolitoral atlântico que
exercer tutela internacional sobre as riquezas. O lema, essencialmente co- asseguram a independência energética do país, porém as forças armad as
nhecido, enfatiza: “Quem cuida da Amazônia brasileira, a serviço da hu- brasileiras ainda não dispõem de uma frota de submarinos para efetua
r
manidade e de si mesmos, é o Brasil”.!º esse monitoramento. A segunda, é queas rotas de comércio exteri
or se es-
Com relação à defesa da Amazônia, não se menciona explicitamente tendem para além das fronteiras, chegando aos portos no oceano Pacífico.
a Estratégia de Resistência, porém a descrição que se realiza a desenvol- Isso quer dizer que os corredores logísticos que compõem a Iirsa tamb
ém
ve e a aprofunda. Aprofunda-se, nesta descrição, três objetivos quanto ao deverão ser protegidos pelas forças armadas, nessa integração region
al de
modo de operar o efetivo militar. O primeiro é a capacidade e as técnicas caráter estratégico. Ainda nessa questão, é preciso incluir também as fon-
de organização e trabalho em rede, não somente com combatentes de sua tes de energia regionais, em particular as grandes usinas hidrelétrica
s.
própria força, mas também com integrantes de outras. Em segundo lugar, Um capítulo especial foi dedicado à indústria militar, já que a END de-
se propõe desenvolver a capacidade dos combatentes de “radicalizar” sua fine como objetivo a conquista da autonomia na produção de tecnologias
“ Ibid., p. 6.
“ Samuel Pinheiro Guimarães, Desafios brasileiros na era dos gigantes, op.cit., p. 353. 2Ibid., p. 8.
” Ministério de Defesa, “Estratégia Nacional de Defesa”, op.cit., p. 7. 2 Ibid.
sd
132 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 133
essenciais para a defesa. A indústria deve contar com incentivos tributá- regimes de posse. O Exército deve assumir os imperativos da guerraassi-
rios e medidas de proteção de modo que o Estado reserve sua capacidade métrica,? porque pode ter que enfrentar inimigos mais poderosos. Para
de regular um setor que considera estratégico. Busca-se, assim assegurar isso é necessário conjugar ação convencional com não convencional, o que
quea indústria militar alcance o maior nível tecnológico possível e ao mes- converteria a guerra assimétrica em “guerra de resistência nacional”?!
mo tempo não fique essa política submetida à lógica do mercado, como A Força Aérea, em particular, tem um desafio a curto prazo que consis-
ocorreu no passado. te em substituir, no período 2015-2025,a atual frota de aviões de combate,
Por um lado, busca-se eliminar progressivamente a compra de produ- evitando qualquer possibilidade de enfraquecimento da defesa. É consi-
tos importados, e, por outro, é necessário desenvolver um complexo mili- derada, entre as três forças, a mais afetada pelo atraso tecnológico. Além
tar-universitário-industrial que tenha produção em escala e seja capaz de disso, deve contar com meios para transportar, em poucas horas, uma bri-
abastecer a região. gada dereserva estratégica do centro do país a qualquer parte do território
A cada arma se propôs objetivos precisos. A Marinha deve negar o uso nacional. A previsão é que as unidades de transporte possam ser fixadas
dos mares a qualquer potência hostil, defender as plataformas petrolíferas no centro do país, próximo das reservas militares estratégicas e das forças
e fortalecer a construção de uma força naval com envergadura submarina, terrestres. Nesse setor se deve também conquistar independência, para po-
que inclui submarinos convencionais e nucleares. O ponto é que, para o der potencializar o complexo tecnológico científico de São José dos Cam-
Brasil ser capaz de construí-los, é necessário criar uma base de submarinos pos (Estado de São Paulo). Assume-se que a concentração nessa cidade
e, ao mesmo tempo, estabelecer uma segundabase naval de usos múltiplos, oferece vulnerabilidade estratégica ao principal polo de desenvolvimento
como aquela existente no Rio de Janeiro com 30 navios, o mais próximo da indústria aeronáutica, ao que se torna imperativa “a progressiva descon-
possível da foz do rio Amazonas. centração geográfica de algumas de suas partes mais sensíveis”.>
O Exército deve trabalhar o fator surpresa, assim como sua capacida- A atual vulnerabilidade da Força Aérea requer decisões rápidas e de
de de concentração e desconcentração (táticas de natureza guerrilheira), e longo prazo. Para encaminhá-las propõem-se dois caminhos possíveis. O
deve proceder a uma completa reconstrução com base em módulos de bri- primeiro seria uma parceira para projetar e fabricar no Brasil um caça de
gada, que serão a unidade básica de combate terrestre, além de estabelecer quinta geração, que já existe no mercado internacional. A segunda possi-
Forças de Ação Rápida Estratégica. Cada brigada é um módulo de comba- bilidade seria comprar caças de quinta geração em uma negociação que
te independente com aproximadamente três mil combatentes. Toda força contemple a transferência integral e completa de tecnologia, incluindo o
deve ter um caráter de vanguarda: “A transformação de todo o Exército código fonte. A compra seria um primeiro passo para a fabricação dos ca-
em vanguarda, com base no módulo de brigada, terá prioridade sobre as ças no país a partir de empresas brasileiras orientadas pelo Estado, que
estratégias de presença”.2 A proposta é que essa força seja capaz de cons- assumiria em pouco tempo todo o processo de fabricação. Esta segunda
truir uma potente defesa antiaérea, que domine a fabricação de veículos solução propunha de imediato um acordo entre Brasil e França para a
lançadores desatélites, além se assegurar os segredos da guerra cibernética. compra e fabricação de submarinos e helicópteros de transporte militar, e
No entanto, a defesa não aparece como um objetivo em si mesmo: não se a aquisição de 36 caças Rafale que seriam construídos no Brasil a partir da
compreendea defesa da região amazônica somente como uma questão das sexta unidade. No entanto, havia outras possibilidades, que chegaram a se
forças armadas, mas sim pela inter-relação com o desenvolvimento susten- postergar na última parte do acordo.
tável. Defender a Amazônia, conforme a END,passa por resolver o proble-
ma daterra, tanto os conflitos pela terra, como a insegurança jurídica dos
2” E quando há uma grande desproporção das forças militares envolvidas no conflito ar-
mado, obrigando-asa utilizar meios de combate pensadosfora da tradição militar.
“ Ibid., p. 18.
2 Ibid., p. 16. º Ibid., p. 22.
134 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 135
Muitas das propostas já haviam sido postas em marcha com grande ên- aeronáutica mundial, e a Avibras, fabricante de sistemas de defesa aérea e
fase logo que aprovada a END, o que mostra a vontade de mudança estra- mísseis.
tégica e que os projetos não se tornem meras declarações. Destacarei três O estaleiro de Itaguaí, em fase de construção, será responsável pela fa-
situações para ilustrá-lo. Em abril de 2010, o diário Zero Hora afirmava bricação do primeiro dos quatro submarinos convencionais, até 2015, cuja
que os quartéis brasileiros estavam em ebulição, já que “está em marcha a primeira parte já foi construída na França. Desta forma,o estaleiro lançará
maior modificação no tabuleiro de tropas realizadas no país desde que os um submarinho a cada dois anos, e em 2023 terá concluído o submarino
militares assumiram o poder no Brasil em 1964”.Porém, aponta o jornal, nuclear graças à transferência de tecnologia prevista no acordo. A empresa
não setrata de ideologia, mas sim de geopolítica: brigadas de infantaria se Nuclep, braço industrial do complexo nuclear brasileiro, é a encarregada
movimentam do Litoral até o Planalto Central e Amazônia. de fabricar os cascos dos navios. O estaleiro se somará a uma base de sub-
Desde então, criaram-se 28 novos postos de fronteira na Amazônia marinos, ambos construídos pela Odebrecht, em um complexo na baía de
frente aos 21 existentes, somado ao movimento de blindados do Rio Gran- Sepetiba que terá pelo menos 27 edifícios. A longo prazo, até 2047, o esta-
de do Sul e Paraná para a região. Para esse objetivo, só o Exército prevê leiro construirá pelo menos vinte submarinos convencionais, os cinco atu-
investir quase 90 milhões de dólares até 2030. Quando da finalização do ais serão modernizados e mais quinze novos serão construídos, inclusive
processo de relocalização e reestruturação, o Exército acrescentaria 59 mil nucleares, formando a maior frota do Atlântico Sul.”
novos combatentes aos 210 mil existentes em 2010, e o aparelho de guerra A terceira situação diz respeito à fabricação de helicópteros. O acordo
seria mais ágil com a incorporação de blindados de última geração. Esse firmado com a França estabelece a compra de 51 helicópteros de transpor-
processo é parte da Estratégia Braço Forte, que inclui os programas Ama- te militar EC-725,que serão fabricados pela Helibras, filial da Eurocopter,
zônia Protegida e Sentinela da Pátria. Para se ter uma ideia da preferência a principal fábrica de helicópteros do mundo, com 53% do mercadocivil. A
pela defesa da Amazônia, do total de novosefetivos, 40% seriam instalados Helibras se instalou em Itajubá (Minas Gerais) em 1978 com participação
na região, quase duplicando o efetivo para 49 mil militares. majoritária da Eurocopter e minoritária do Estado brasileiro. Em 33 anos,
A segunda situação se refere aos submarinos. Logo após as negociações fabricou uns 500 helicópteros, sobretudo de transporte civil, mas o acordo
com a França em 2009, a Marinha criou o Programa de Desenvolvimento para a construção dos EC-725 prevê um salto qualitativo para uma empre-
de Submarinos (Prosub), cujo marco se inicia em 2010, com a construção sa que se coloca entre as quatro maiores do mundojunto a Sikorsky e Bell
de um enorme estaleiro em Itaguaí, Estado do Rio de Janeiro, onde serão dos, Estados Unidos, e Agusta, da Itália.”
construídos quatro submarinos convencionais e o primeiro submarino Os três primeiros EC-725 foram entregues em dezembro de 2010 para
nuclear. Trata-se de um dos projetos mais ambiciosos, sendo a Marinha a equiparas forças armadas.” A partir do décimo quinto, previsto para 2013,
principal responsável em vigiar e defender as reservas petrolíferas da ca- a Helibras estará em condições de controlar toda a produção no Brasil.”
mada do pré-sal, para a qual os submarinos terão um papel decisivo. O
estaleiro pertencerá à Marinha, mas nos próximos vinte anos será cedido 27 «
Brasil planeja frota nuclear”, O Estado de São Paulo, 21 de novembro de 2010, Dis-
em concessão à Odebrecht, que tem 49% da francesa DCNS que conta com ponível em: <http:// www.estadao.com.br/noticias/impresso,brasil-planeja-frota-nucle-
50%. O 1% restante pertence à Marinha, que terá a capacidade de vetar ar,643152,0.htm>. (Consulta 02/01/2011.)
decisões estratégicas da sociedade entre ambas empresas, bem como em * “Produção de helicópteros coloca Brasil entre gigantes mundiais”, em Defesanet, 13 de
abril de 2011, Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/aviacao/noticia/596/Produ-
outras empresas estratégicas no Brasil: a Embraer, terceira maior empresa cao-de-helicopteros-coloca-Brasil-entre-gigantes-mundiais>. (Consulta 19/04/2011.)
2? Trata-se de um helicóptero de grande autonomia, rápido e potente, capaz de transportar
29 soldados, equipamentos e dois pilotos.
260
Novacartada do Exército brasileiro”, Zero Hora, Porto Alegre, 18 de abril de 2010, Dis- * “Brasil ganha espaço nos planos da Eurocopter”, Valor, 12 de abril de 2011, Disponí-
ponível em: <http://planobrasil.com/2010/04/18/nova-cartada-do-exercito-brasileiro>. vel em: <http://www. investe.sp.gov.br/noticias/lenoticia.php?id=14881>. (Consulta
(Consulta: 02/01/2011.) 02/01/2011.)
136 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional
137
Dos dois projetos firmados com a França, é o que está mais avançado. A militar. Em julho de 2010 foi realizada a manobra Atlântico II, da qual
transferência de tecnologia pela Eurocopter irá também permitir a fabri- participaram as três armas e 10 mil militares. Entre 19 e 30 dejulhoas tro-
cação de aeronaves para controlar e proteger as reservas petrolíferas ma- pas embarcaram nos Estadosde Rio deJaneiro, Espírito Santo e São Paulo,
rítimas. O projeto prevê que os EC-725 atinjam 50% de conteúdo nacional além dos arquipélagos de Fernando de Noronha, São Pedro e São Paulo, e
em 2020, quando a empresa terá capacidade de projetar, desenvolvere pro- simularam a defesa da infraestrutura petroleira e portuária, assim como
duzir helicópteros no Brasil. Todo esse processo prevê a participação de as tropas terrestres na proteção das usinas nucleares. Somente a Marinha
empresas locais junto da Eurocopter, definindo aquilo que o presidente da usou 30 navios. Chamou a atenção uma operação que simulou a recupe-
empresa, Lutz Bertling, chamou de “processo de nacionalização dos heli- ração da Plataforma P-43 da Petrobras, na bacia de Campos, por parte do
cópteros”, que não se restringirá ao modelo EC-725.º Grupo Especial da Marinha.
Esses três exemplos são apenas o começo das transformações que estão Foi a primeira operação militar destinada a defender as jazidas pe-
sendointroduzidaspela Estratégia de Defesa Nacional. Em agosto de 2010, o trolíferas recém-descobertas. O contra-almirante Paulo Ricardo Médici,
Senado aprovou a reestruturação das Forças Armadas,unificando astrês ar- subchefe do Comando de Operações Navais da Marinha, disse à agenda
mas por intermédio de um Estado-Maior Conjunto, em estreita relação com Reuters que para defender as futuras plataformas serão necessários novas
o ministro da Defesa.” Com essa decisão, fortalece-se a direção unificada do estratégias, e quando o Brasil dispuser de seu submarino nuclear, “ne-
Comando Maiore intensifica a centralização e coordenação das forças. nhum país do mundoterá a coragem e condiçõesde se aproximar da nossa
A nova Estratégia de Defesa mostrou sua força em duas ocasiões bem costa”.” Com base nos argumentos dos militares sobre as necessidades
diferentes: a realização da Operação Atlântico II no litoral marítimo, em materiais para defender os 8.500 quilômetros de costa, no domínio da
julho de 2010, antes da Cúpula da Otan em Lisboa, em novembro do mesmo Amazônia Azul, o portal especializado Defesabr.com fez um cálculo hipo-
ano. Um doseixos de defesa passa pelo Atlântico, já que o Brasil é um país tético das necessidades da Marinha: 140 navios de patrulha, 42 escoltas, 28
com um extensolitoral. O conceito de “Amazônia Azul” pretende dar conta submarinhos convencionais e 14 nucleares. Parece exagerado, mas não
dessa realidade. Os espaços marítimos brasileiros, até as 200 milhas náuticas, está muito distante dos planosreais do país.
correspondem a 3,5 milhões de quilômetros quadrados, chamados de Zona A Cúpula de Lisboa da Otan, realizada entre 19 e 20 de novembro de
Econômica Exclusiva. Porém, o Brasil está pleiteando, na Convenção de Li- 2010, supôs o reconhecimento que a aliança militar nascida em 1949 para
mites da Plataforma Continental da Convenção das Nações Unidas sobre o a defesa do espaço euro-atlântico havia se convertido em força de inter-
Direito ao Mar, a extensão desses limites para 350 milhas náuticas, alegando venção global. “Os cidadãos de nossospaíses confiam na Otan para defen-
as peculiaridades de sua plataforma continental. Se assim for definido, os der naçõesaliadas, mobilizar forças militares robustas, quando necessário
espaços marítimos brasileiros chagarão a 4,5 milhões de quilômetros qua- para a nossa segurança, para a promoção da segurança comum entre os
drados, uma superfície maior do que a “Amazônia Verde”. nossosaliados ao redor do globo”.”
Defender essa enorme superfície de recursos, como o petróleo, que
assegura a autossuficiência energética, implica uma enorme mobilização
* Marinha em Revista, Marinhade Brasil, dezembro de 2010, p. 6-10.
* “Militares expandem simulação de ataque ao pré-sal”, em O Globo, 13 de julho de 2010.
Disponível em: <http://oglobo.globo.com/pais/mat/2010/07/13/militares-expandem-si-
* Tbid. mulacao-de-ataque-aopre-sal-917139348.asp>. (Consulta 28/04/2011.)
* “Senado aprova reestruturação das Forças Armadas”, O Estado de São Paulo, 4 de agos- * Disponível em: <http://www.defesabr.com/blog/index.php/14/07/2010/militares-ex-
to de 2010. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacional,senado-aprova pandem-simulacao-deataque-ao-pre-sal>. (Consulta 28/04/2011.)
-reestruturacao-dasforcas-armadas,590449,0.html>. (Consulta 02/01/2011.) ” “Strategic Concept. For the Defence and Security of The Membersof the North Atlan-
* Este é o argumento da Marinha do Brasil. Disponível em: <https://www.mar.mil.br/ tic Treaty. Organisation”. Disponível em: <www-nato.int/lisbon2010/strategic-concept-
menuv/amazoniaazul/amazoniaazul.htm>. (Consulta 28/02/2011.) 2010-eng.pdf>. (Consulta 28/04/2011.)
=”
138 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional “439
A expansão das atribuições militares da Otanfoi interpretada como am- te mundoe, de modo particular, de “cortar a linha” que separa o Atlântico
bição de perpetuar o arsenal nucleare de se converter em polícia do mundo, Norte do Sul.Rebateu a ideia do Pentágono de “soberanias compartilha-
acoplando-se ao desenho militar do Pentágono, da GuerraInfinita à Guerra das” na região: Qual é a soberania que os Estados Unidos querem com-
de Espectro Total.O Brasil respondeu prontamente, ante uma nova reafir- partilhar, a deles ou a nossa? E ainda disse, “Não seremos parceiros dos
mação militarista dos Estados Unidos, que pode afetar novamente a região Estados Unidos para que eles mantenham seu papel em todo o mundo”,
comoantes o fez a reativação da IV Frota, a implantação de bases militares afirmando que “a política internacional não pode ser definida a partir da
na Colômbia e no Panamá, mas também pela ocupação militar no Haiti sob perspectiva que convenha aos Estados Unidos”.“? Rejeitou conversar sobre
o pretexto do terremoto (12 de janeiro de 2010), e pelo golpe de Estado em o Atlântico Sul com um país que nem sequer aceita a soberania marítima
Honduras (28 de junho de 2009), entre as mais evidentes. brasileira de 350 milhas, reconhecida pelas Nações Unidas. Jobim defen-
Em 10 de setembro, o ministro da Defesa participou da Conferência In- deu que o Brasil e os demais países sul-americanos “construam um apara-
ternacional “O futuro da comunidade transatlântica”, realizada em Lisboa
cc
to de dissuasório para enfrentar as ameaças extra-regionais”, que é um dos
pelo Instituto de Defesa Nacional. Nelson Jobim mostrou sua preocupa- eixos da Estratégia de Defesa Nacional, capaz de enfrentar qualquer tipo
ção pela possibilidade de a Otan retomar incursões militares no Atlântico de desafio, diplomático ou militar, convencional ou não.
Sul, o que define como “área geoestratégica de interesse vital do Brasil”.”?
O ministro foi claro ao afirmar a necessidade de separar as questões do Mapa 1. Amazônia Azul
Atlântico Norte das do Sul, que merecem “respostas diferenciadas, cada
vez mais eficientese legítimas, tanto ou mais eficientes e legítimas quanto
menos envolvam organizações ou Estados estranhos à região”.
Assegurou que as razões pelas quais se criou a Otan deixaram deexistir”,

já que desapareceu a ameaça da União Soviética. Ele acusou a Otan de se
tornar “instrumento para avanço dos interesses de seu membroprincipal, os
Estados Unidos” e criticou de modo frontal “a extrema dependência euro-
peia das capacidades militares norte-americanas no âmbito da Otan”, o que
o impede a Europa de se “constituir em um ator geopolítico à altura de seu
peso econômico”.*
Em 3 de novembro, na abertura da VII Conferência de Segurança In-
= Zona Econômica
ternacional, no Forte de Copacabana (Rio de Janeiro), patrocinada pela Exclusiva (ZEE)
Fundação Konrad Adenuer da Alemanha, Jobim voltou ao mesmoassunto.
Enfatizou que o Brasil e a América do Sul não podem aceitar que os Esta- EE Plataforma continental
(além das 200 milhas)
dos Unidos e a Otan “se coloquem” nodireito de intervir em qualquer par-
Fonte: Poder Naval Online. <www.naval.com.br>
3 Pepe Escobar, “Bienvenidos a OTANstán”, em Rebelión, 21 de novembro de 2010. Dispo-
nível em: <http://www.rebelion.org/noticia.php?id=117083>. (Consulta 02/01/2011.) 1 “Ministro da Defesa ataca estratégia militar de EUA e Otan para o Atlântico Sul”, Fo-
* “JOBIM - O Futuro da Comunidade Transatlântica”, em http://www.defesanet.com. lha de São Paulo, 4 de novembro de 2010. Disponível em: <http://wwwl.folha.uol.com.br/
br/defesa/noticia/3381/JOBIM---O-Futuro-da-Comunidade-Transatlantica (Consulta mundo/825261-ministro-dadefesa-ataca-estrategia-militar-de-eua-e-otan-para-o-atlan-
12/01/2013). tico-sul.shtml>. (Consulta 28/04/2011.)
10 Tbid. 2 Ibid.
140 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 141
%
Em 21 de novembro, um dia após a Conferência da Otan em Lisboa, o setor de Ciência e Tecnologia, cujo secretário será nomeado diretamente
Estado de São Paulo publicou a notícia de que a Marinha do Brasil tinha pelo presidente da República.
um plano até 2047 (data similar do “conceito estratégico” da Otan) para Sob o governo Lula, o gasto militar cresceu como não havia crescido
dotar-se de umafrota de seis submarinos nucleares e vinte convencionais. desde o período militar: cerca de 45%.“ Seguindo asorientações da END,o
Foi a primeira vez que essa notícia ganhou destaque, o que mostra que a país fortaleceuas três armas, voltou a construir tanquese blindados como
militarização passa por uma potente indústria nacional de defesa. nas décadas de 1970 e 1980, quando a Engesa produziu e exportou os mo-
delos Cascavel e Urutu; a Força Aérea deve comprar os 36 caças de quinta
geração (uma operação que chega aos 10 bilhões de dólares), para começar
Um novo complexo industrial-militar a recuperar o tempo perdido ainda nesta década. A Marinha deverá adqui-
rir pelo menos62 navios de patrulha, 18 fragatas com armamento pesado,
A END defineclaramente a necessidade de o Brasil construir um “comple- um navio de logística, dois porta-aviões e os já mencionados submarinos.
xo militar-universitário-empresarial” capaz de atuar na fronteira de tecno- Nototal estão previstos investimentos em armamentos em torno de 260
logias, que terá, quase sempre, com duplafinalidade, militare civil.“ A esta bilhões de dólares em vinte anos, quase 10% do PIB anual.
definição geral se somam outras que apontam para um desenvolvimento É interessante observar como as autoridades brasileiras compreendem
tecnológico independente do país, com o objetivo de que a indústria de de- o papel estratégico dos investimentos militares no cenário mundial. O mi-
fesa realize “pesquisa de vanguardasirva à produção de vanguarda”, o que nistro da Defesa considera que a modernização das forças armadas está
passa pela instituição de um regime legal, regulatório e tributário espe- estritamenteligada ao papel que jogará o país nas próximas décadas, pas-
cial.“ Para isso as empresas podem ser eximidas de concorrer em licitações, sando de uma potência regional para uma grande potência global. “Pode-
e se buscará dar continuidade nas compras estatais, evitando um colapso, ríamos ter uma articulação mais intensa, não somente em torno da Amé-
como ocorreu no final da década de 1980, quando as transformações no rica do Sul, mas também da África ocidental e naqueles pontos do globo
cenário internacional levaram o setor a ruínas, ao caírem bruscamente onde osinteresses brasileiros estiverem em jogo”, disse Jobim ao defender
suas exportações.“ a aprovação do projeto de lei que garante a perpertuidade dos investimen-
A END estabelece também que em relação ao complexo industrial-mi- tos militares, algo similar ao que acontece no Chile, onde uma parte das
litar o Estado terá “poderes especiais sobre as empresas privadas, além das exportações de cobre se integra ao erário militar, quando no Brasil poderia
fronteiras da autoridade reguladora global”, como as ações especiais ou existir o mesmo com relação ao petróleo da camada do pré-sal.
“ações de ouro” (golden share), capazes de bloquear decisões que se con- A experiência histórica recente pesa como uma ameaça entre os mili-
sideram estratégicas.” Também sinaliza que o Brasil não se limitará a ser tares e todos os setores vinculados ao complexo industrial-militar. A in-
cliente na compra de armas, mas sim um sócio ou aliado dos países que dústria militar chegou a exportar 1,6 bilhão de dólares entre 1974 e 1983,
lhe vendam, para fortalecer sua capacidadede fabricar armas com base na porém no período de 1994-2003 caiu para 287 milhões de dólares.” Nos
transferência de tecnologia. A END decidiu criar uma Secretaria de Pro- chamados anos de ouro da indústria militar, as exportações estavam con-
dutos de Defesa no Ministério da Defesa, que será de responsabilidade do
*º “Lula amplia 45% gasto com defesa em 5 anos”, O Estado de São Paulo, 25 de abril de
2010, Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,lula-amplia-45-gas-
43 « Brasil planeja frota nuclear”, O Estado de São Paulo, op. cit. to-com-defesa-em-5-anos,542748,0.htm>. (Consulta 02/01/2011.)
“ Ministério de Defesa, “Estratégia Nacional de Defesa”, op.cit.; p. 28. *º “Brasil deve fazer investimento militar para ter voz”, Folha de São Paulo, 8 de abril de 2011.
8 Ibid., p.26. * Rodrigo Fracalossi de Moraes, “Ascensão e queda das exportações brasileiras de equipa-
“* Renato Dagnino, A indústria de defesa no governo Lula. São Paulo: Expressão Popular, 2010. mentos militares”, Boletim de Economia e Política Internacional, Brasília, Ipea, n. 3, julho
“ Ministério de Defesa, “Estratégia Nacional de Defesa”, op. cit., p. 27. de 2010,p. 60.
142 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência estratégia de defesa nacional 143
$
centradas no Iraque e na Líbia: aviões Tucano fabricados pela Embraer, Uma matéria da revista Vejaaponta que as Forças Aéreas contam com
tanques Cascavel e Urutu fabricados pela Engesae sistemas de defesa aérea 110 caças militares, sendo que 90% deles foram fabricados nas décadas de
da Avibras.”! Quando do término da guerra do Iraque, instaurou-se um 1970 e 1980, e em boa medida com vida útil já ultrapassada. Outros paí-
colapso nas vendas por parte do Iraque, e, assim, a indústria entrou em ses da região contam com frotas militares muito mais modernas: a Vene-
uma profundacrise, da qual jamais se recuperou.” zuela adquiriu 24 Sukhoi30, avião de combate russo considerado um dos
Entre as décadas de 1990 e 2000, houve anos onde não se registraram mais modernos do mundo, e o Chile conta com 28 caças F-16 estaduni-
exportações de armas. A contradição é muito grande: um país situado en- denses, avião preferido dos israelenses. O programa de compra de caças
tre as dez maiores potências industriais do mundo (sendo a sexta em 2011) de última geração, denominado FX-2, se arrasta desde 1998. A situação é
está classificado em 37º na lista de exportadores e em 26º lugar na de im- grave, porque na década de 1970 os caças podiam detectaralvos no solo a
portações.? 20 quilômetros de distância, enquanto que os atuais o fazem a 170 quiló-
Essa enorme defasagem explica a necessidade de priorizar o crescimen- metros doalvo. E a Força Aérea Brasileira é responsável pela proteção de
to econômico, que em 2020 poderá colocar o Brasil entre os cinco maiores um território de dimensões continentais. Sob o governo Lula, chegou-se a
PIBs do mundo, e consequentemente pôr em prática uma verdadeira in- propor que os novos aviões fossem comprados da França, e não dos Esta-
dústria de defesa. Para romperessa inércia é preciso muita vontade política. dos Unidos, posto que os franceses se comprometeram a transferir o có-
O governo Lula começou a traçar esse caminho pouco depois de assumir a digo fonte das aeronaves, o coração digital dos programas que controlam
presidência. Em 2003, cumprindo uma promessa de campanha, o governo os aviões e suas armas. Mas as negociações se limitaram por problemas
convocou um Ciclo de Debates sobre Assuntos de Defesa e Segurança, que orçamentários (cada Rafale custa 80 milhões de dólares), já que a oferta
se estendeu até julho de 2004, com a participação de civis e militares. O re- sueca do Gripen era mais barata, inclusive possibilitando um desenvol-
sultado foi uma publicação do Ministério da Defesa, em quatro volumes,* vimento conjunto, por ser um avião que ainda não se produz em série, e
que identificou sobretudo problemas na execução do orçamento: 82% do provavelmente por diferenças de caráter geopolítico com a França, após a
orçamento se destina ao pagamento de salários, e somente 3,5% a inves- aproximação do Brasil com o Irã (2010) e sua posição diante das revoltas
timentos.” No contraponto, os Estados Unidos destinam apenas 35% do árabes (2011). O fato é que quando se conseguir desbloquear a compra dos
orçamento para os salários e mais de 20% em investimentos. caças com transferência de tecnologia, o país dará um importantesalto na
Desde a finalização do ciclo de debates até a aprovação da Estratégia de ampliação de seu complexo industrial-militar.
Defesa Nacional se passaram quatro anos. Os acordos com a França, em "ComaaprovaçãodaEND oBrasilestará prestesa ser odécimo primei-
dezembro de 2009, proporcionaram um arranque da indústria de defesa -ro país a fabricar caças de quinta geração, ser um dos grandes fabricantes
brasileira, tanto no montante de recursos receitas (8 bilhões de dólares) “dehelicópteros e ingressará no seleto grupo de quinze países que produ-
como nas perspectivas que se abriram. Durante muitos anos os problemas - zem submarinos nucleares. Tudo isso passa por uma nova e revitalizada
econômicos e políticos impediram o país de manter os investimentos a “ indústria militar.
longo prazo. O que aconteceu com as Forças Aéreas foi sintomático. O complexo militar-industrial está passando por mudanças profundas
em muito pouco tempo: novas empresas estrangeiras se instalam no Brasil;
as empresas brasileiras mais importantes abriram um setor de defesa vi-
sando a novos investimentos na modernização de seus armamentos; gru-
Ibid., p. 64.
2 Renato Dagnino, A Indústria de Defesa no Governo Lula, op. cit.
“ Tbid., p. 80-81.
“ Ibid., p.18. 56 « O fim de uma batalha aérea”, Veja, 9 de setembro de 2009. Disponível em: <http://veja.
5 Ibid., p.51-52. abril.com.br/090909/fim-batalha-aerea-p-100.shtml>. (Consulta 19/04/2011.)
144 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégiade defesa nacional 145
.
pos nacionais compram pequenas e médias empresas vinculadas ao pólo de patrulha para a proteção das reservas petrolíferas, desde o seu estaleiro e
tecnológico de São José dos Campos. Enfim, o setor de defesa está muito porto em construção, e que seria um negócio tão importante como a cons-
mais aparelhado desde que se aprovou a END em dezembro de 2008 e trução de submarinos, já que incluem mais de 60 navios.”
sobretudo desde o acordo firmado com a França um ano depois. Contu- Já a Embraer, terceira maior fabricante de aviões do mundo, criou no fi-
do, esses acordos, ainda que importantes, são apenas o começo. Veremos nal de 2010 a Embraer Defesa e Segurança para reforçarseu compromisso
adiante o que está ocorrendoa partir desses acontecimentos. “com o Estado brasileiro em assegurar a capacitação e a autonomia tecno-
Ao nível das empresas, registram-se fortes movimentos da Odebrecht e lógica que o país necessita”, reforçandoos objetivos da Estratégia de Defesa
da Embraer no setor de armas, já que ambas decidiram investir no setor de Nacional.“ A empresa projeta não somentea reestruturação das forças ar-
defesa. Comorelatado no capítulo anterior, a Odebrecht chegou a firmar madas brasileiras, mas também projetar-se no mundo,já sendo provedora
um acordo estratégico com a europeia Eads, em maio de 2010, para fa- de mais de 30forças aéreas.
bricação de submarinos, além de ter o coronel aposentado Oswaldo Oliva Em março de 2011, a Embraer comprou a empresa Orbisat, o que repre-
Neto na diretoria de Desenvolvimento de Negócios, um dos principais se- senta um passo estratégico para aumentar sua participação no sistema de
tores da multinacional. Em 2011, anunciou a criação da Odebrecht Defesa defesa, já que a “Orbisat possui uma tecnologia que nem todos os países
e Tecnologia, inaugurando sua participação na área de defesa. Um ano an- do mundo dominam”, segundo o presidente do setor de defesa da Embraer,
tes, em 2010, criou a Copa Gestão em Defesa S.A, uma associação com as Luiz Calos Aguiar.“ A Orbisat foi criada em 1998, conta com a participa-
empresas do setor Atech e Penta.” A aliança é extremamente importante: ção acionária do BNDES,e tem desenvolvido tecnologia de última geração
a Odebrecht é um dostrês maiores grupos empresariais do Brasil, e a Eads para controle remoto e radares de vigilância aérea, marítima e terrestre.
é a segunda maior corporação do mundo, no campo da defesa. Segundo comunicado da Embraer anunciando a compra do setor de rada-
Um passo importante foi dado pela Odebrecht em março de 2011, ao ad- res, a Orbisat desenvolveu em conjunto com o Exército o radar Saber M60,
quirir o controle da Mectron, fabricante de mísseis e produtos dealta tecno- que será a base do Sistema de Vigilância de Fronteiras (SisFron), podendo
logia para o mercado aeroespacial. Desde 1991, a Mectron produz radares realizar o monitoramento remoto dosolo por debaixo da copa das árvores
«
que agora estão sendoutilizados na modernização de caças, de mísseis ar-ar “com a maior precisão do mundo”, utilizando-o para o mapeamento carto-
de curta distância, mísseis antitanque e mísseis de quarta geração. O negó- gráfico da região amazônica.
cio foi acompanhado de perto pelo governo Lula, já que apoia a reestrutura- Pouco depois a Embraer comprou 50% da Atech, empresa que deuori-
ção do setore incentiva a criação de grupos de empresas de defesa capazes de gem aoSistema de Vigilância da Amazônia (Sivam),e que oferece sistemas
fazerem investimentos de risco para o desenvolvimento de produtos de inte- para controle de tráfego aéreo.? A Embraer está em plena disputa econô-
resse das forças armadas. Um dos diretores da Odebrecht, Roberto Simões, mica para centralizar boa parte do segmento de defesa nacional, o que
disse que “nosso objetivo é fortalecer a empresa e transformá-la em base supõe uma forte competição com a Odebrecht. A aeronáutica está inves-
de exportação de produtos e serviços impulsionando a indústria nacional, tindo em pesquisa e desenvolvimento de produtos, e é a única candidata
conforme um dos princípios da Estratégia de Defesa Nacional”.Alguns es-
timam inclusive que a Odebrecht poderá coordenar a construção de navios
* Portal IG, 17 de setembro de 2010, op. cit.
“ Embraer S.A., 9 de dezembro de 2010. Disponível em: <http://www.embraer.com/pt-BR/
ImprensaEventos/Press-releases/noticias/Paginas/EMBRAER-CRIA-UNIDADE-EM-
*”Portal IG, 17 de setembro de 2010, em: <http://economia.ig.com.br/empresas/industria/ PRESARIAL-DEDICADA-AOMERCADO-DE .aspx>. (Consulta 22/04/2011.)
odebrecht+ criatempresa+de+gestao+na+area+de+defesa/n1237778550208.html>. (Con- º Embraer S.A., 15 de março de 2011. Disponível em: <http://www.embraer.com/pt-BR/Im-
sulta 22/04/2011.) prensaEventos/Press-releases/noticias/Paginas/ORBISAT.aspx>. (Consulta 22/04/2011.)
** “Odebrecht adquire controle da fabricante de mísseis Mectron”, Folha de São Paulo, 26 “º “Embraer compra 50% da Atech, empresa de tecnologia de defesa”, Folha de São Paulo,
de março de 2011. 12 de abril de 2011.
146 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 147
a fabricar o caça brasileiro, seja o modelo francês Rafale, o sueco Gripen
ou qualquer outro de escolha das autoridades. Para isso, está bem avança-
do o projeto de construir um cargueiro militar de transporte batizado de
KC-390, que competirá com o mítico Hércules C-130, da estadunidense
Lockheed Martin, que ocupa o mercado desde a década de 1950.
O cargueiro da Embraer tem várias vantagens sobre o Hércules: maior
velocidade, menor preço, maior capacidade de carga e possibilidade de
abastecer aviões em vôo.“ O acordo firmado pela Força Aérea com a Em-
braer em abril de 2010 planeja construir 180 aviões a partir de 2015. So-
mente a Força Aérea encomendou 28 unidades, mas estima que serão ne-
cessários entre 60 e 80 aeronaves; conta com 60 intenções de compra de
oito países e a associação de duas empresas em sua construção aeronáutica,
a checa Aero Vodochody e a Fábrica Argentina de Aviões, estimando, com
isso, conquistar pelo menos 30% do mercado mundial do setor.“
Helicóptero EC-725, fabricado pela Helibras.
A italiana IVECO (do grupo FIAT, que fabrica caminhões no Brasil)
começou a produção de 2.044 blindados de transporte anfíbio para o Exér-
cito. Trata-se do modelo Guarani que será fabricado entre 2012 e 2030, na
fábrica da empresa em Sete Lagoas, Minas Gerais, desenhado conjunta-
mente pela empresa e pelo Departamento de Ciência e Tecnologia do Exér-
cito. O veículo foi projetado para substituir os velhos Urutu da Engesa;
pesa 18 toneladas, pode transportar 11 soldados e tem cerca de 60% de
tecnologia nacional.
A Avibras Aeroespacial é outra empresa brasileira em plena expansão.
Cargueiro militar KC-390 (Embraer). Fabrica desde antenas de telecomunicações, foguetes-sonda até mísseis
guiados por fibra ótica e foguetes de defesa antiaérea. A empresa passou
por momentosdifíceis, e no inicio de 2011 estava em negociação com o go-
verno para analisar seu futuro. “Estamos estudando várias possibilidades,
$ “O cargueiro militar tático”, em: <http://www.defesabr.com/Fab/fabembraerkc-390.
inclusive o controle das vendas, em parceira com o governo, para assegu-
htm>. (Consulta 23/04/2011.); revista Exame, 22 de abril de 2010. O KC-390 voa a 800
quilômetros por hora (o Hércules voa a 610), tem um custo de 50 milhões (frente aos 80
rar a identidade nacional da empresa”, disse o presidente da companhia
milhões) e transporta 23,6 toneladas, frente a 20 do Hércules.
“4 “Volta às armas. Reaparelhamento das Forças Armadas”, revista Isto é, 21 de abril de
2011, e Defesanet, 14 de abril de 2011, em: <http://www.defesanet.com.br/laad2011/no- & “Exército Brasileiro e Iveco assinam contrato de produção da viatura blindada de trans-
ticia/611/EMBRAER-Defesa-e-Seguranca-e-FAdeA-Assinam-Contrato-de-Parceria-para porte de pessoal”, Iveco. Disponível em: <http://web.iveco.com/brasil/sala-de-imprensa/
-o-Programa-KC-390>. (Consulta 23/04/2011.) Release/Pages/01 Exercito-Brasileiroelveco.aspx.>. (Consulta 23/04/2011.)
148 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 149
.
Sami Hassuani.“ A expectativa é que o governo participe da reestrutura- da indústria com os programas previstos na END. “Até aqui as empresas
ção da dívida, com o controle de 15 a 20% das ações. O Programa Astros estavam melhorando e discutindo os processos de transferência de tecno-
2020 prevê,inclusive, que a Avibras desenvolva lançadores de foguetes de logias e pleiteando a remoção dos obstáculos que sempre dificultaram o
artilharia para o Exército, uma opção apoiada com entusiasmo pelo Sindi- crescimento da produção nacional?”
cato Metalúrgico de São José dos Campos para evitar que a empresa envie Todo esse processo deve somar-se ao Programa Espacial da END, que
trabalhadores ao seguro desemprego.” inclui o desenvolvimento e lançamento de um satélite geoestacionário para
Na expansão das empresas brasileiras e internacionais está previsto a meteorologia e comunicação e satélite para monitoramento ambiental.
instalação de novas empresas no país, como a alemã KMW (Krauss-Maffei Também se propõe o desenvolvimento de veículos lançadores de satélite e
Wegman), fabricante de blindados, que se instalará em Santa Maria, Rio sistemas para garantir o acesso ao espaço, além do fomento à capacidade
Grande do Sul. A primeira fase da KMW será dedicada à manutenção de da indústria para o cumprimento destes objetivos.”
250 blindados Leopard comprados na Alemanha, porém a empresa nego-
cia com o Exército a possibilidade de desenvolvimento de novo blindado
que também poderia ser exportado para toda a região. O comandante da Por detrás da arma nuclear
32 Divisão do Exército, Sergio Westphalen Etchegoyen, explicou que desde
quefoi aprovada a END já não se compra armas sem a aquisição de pacote A END estabelece que o Brasil deve continuar dominando todo o ciclo
tecnológico, como ocorrera com os Leopard: “O que se comprou foi um nuclear, completar o mapeamento, prospecção e exploração das reservas
carro de combate junto da tecnologia que nos permite continuar desenvol- de urânio em todo o país, e não aderir ao Protocolo Adicional do Tratado
vendo ao lado da KMW. Assim foi a compra dos helicópteros franceses”. de Não Proliferação de Armas Nucleares, que obriga os países a abrirem
Segundo Nelson Diiring, editor do portal Defesanet, a instalação da KMW suas instalações à inspeção da AIEA (Organização Internacional de Ener-
no Brasil terá um grande impacto tecnológico,e será capaz de desenvolver gia Atômica). Em 2004, a AIEA solicitou investigação na base nuclear de
uma nova geração de carros de combate em uma década, podendo se tor- Resende, por suspeita de enriquecimento de urânio acima do necessário.
nar uma “Embraer terrestre”. As autoridades brasileiras nunca permitiram o acesso dos inspetores, nem
Nos próximos anos haverá muitas outras mudanças. A Marinha está em Resende, nem nas instalações onde se fabrica o submarino nuclear. Em
negociando com a Alemanha, Coreia do Sul, Espanha, França, Itália e setembro de 2009, circulou a versão de que o Brasil domina os conheci-
Inglaterra a fabricação de onze navios no Brasil. A inglesa BAE System mentos e a tecnologia necessários para produzir uma arma atômica.” Ne-
firmou um contrato em abril de 2011 visando modernizar uma parte dos nhuma fonte oficial desmentiu o fato.
574 blindados M-113 do Exército.” A Federação das Indústrias do Estado Nãoé a primeira vez que se difundem hipóteses sobre o suposto envol-
de São Paulo (Fiesp) afirmou que em 2014 terá início o verdadeiro enlace vimento do Brasil na produção de armas nucleares. O país tem uma larga
história nuclear, que remonta à década de 1930, quando a Universidade de
São Paulo realizou as primeiras investigações nucleares e se localizaram
% “Em recuperação, Avibras poderá ser vendida ou ter a União como sócia”, Valor, 19
de abril de 2011, Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/defesa/noticia/657/
Em-recuperacao--Avibras-poderaser-vendida-ou-ter-a-Uniao-como-socia>. (Consulta 71 «
Indústria de Defesa: Novos tempos”, em Revista da Indústria, n. 163, Defesanet, 2 de
02/01/2011.) setembro de 2010. Disponível em: <http://www.defesanet.com.br/comdef/RI163.htm>.
” Ibid. (Consulta 24/04/2011.)
“SA promissora KMW”, Defesanet, 18 de abril de 2011. Disponível em:<http://www.defe- ?2 Ministério de Defesa, “Estratégia Nacional de Defesa”, op. cit., p. 49.
sanet.com.br/laad2011/ noticia/631/A-Promisora-KMW>. (Consulta 24/04/2011.) ? “Avanza el proyecto nuclear de Brasil”, La Nación, Buenos Aires, 9 de setembro de 2009.
º Tbid. Disponível em: <http://www.lanacion.com.ar/1172321-avanza-el-proyecto-nuclear-de
? Valor, 18 de abril de 2011. -brasil>. (Consulta 24/04/2011.)
150 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 151
-
as primeiras reserva de urânio.” Em 1945, um acordo com os Estados via exportado no ano anterior.” O cerco foi fechando sobre Vargas e seu
Unidos conferiu exclusividade nas exportações de minerais radioativos, e, incipiente programa nuclear. Na Europa, os negociadores brasileiros com
em 1946, o Plano Baruch pretendia internacionalizar as reservas de mine- a Alemanha eram seguidos pelos serviços secretos britânicos e estaduni-
rais radioativos para “corrigir as injustiças da natureza”. Os sucessivos denses em julho de 1954. Em agosto, Vargas suicidou-se, o que leva alguns
conflitos entre Estados Unidos e Brasil na década de 1950 decorrem das especialistas a afirmar que sua morte esteve diretamente ligada à pressão
posições tomadas pelo governo de Getúlio Vargas, que impulsionou um política acumulada em torno da questão nuclear.
desenvolvimento autônomo na área nuclear, sem ingerências externas. Em Em 1956, o presidente Kubitschek cancelou o acordo de exportação de
1951, o governo de Vargas soube por informação de diplomatas estaduni- minerais radioativos com os Estados Unidos, criou a Comissão Nacional
denses que o Brasil teria “grandes quantidades” de minerais estratégicos de Energia Nucleare as centrífugas chegaram ao Brasil, mesmo com a ten-
como o urânio.” tativa de embargo feita por Washington.” O Estado-Maior das forças ar-
Vargas havia optado por vender os minerais aos Estados Unidos em tro- madas se pronunciou contra os acordos de exportação alegando que não
ca de Washington comprar produtos manufaturados no Brasil. Em 1952, havia sido consultado pelo governo João Café Filho, que sucedeu Vargas.
habilitou-se a exportação de monazita e óxido de tório, porém se exigiu em Entretanto, as exportações de minerais radioativos continuaram. A des-
troca assistência técnica e materiais necessários para que o Brasil pudesse crição de Moniz Bandeira, com base em revistas da época, retrata um pa-
implantar reatores de produção de energia nuclear. Logo o Brasil chegou norama sombrio: “Misteriosos navios, dos quais desembarcavam homens
à conclusão que os Estados Unidos jamais facilitariam esse passo, e assim loiros, tocaram em portos nolitoral próximo do sul da Bahia e norte do
optou por procurar a Alemanha. A Marinha conseguiu começar, então, em Espírito Santo, contrabandeando o mineral?.8º
janeiro de 1953, a instalação de três ultracentrífugas para uma usina de en- Durante o regime militar as desavenças com Washington se mantive-
riquecimento de urânio no Brasil. Juscelino Kubitschek, governador de Mi- ram e até se aprofundaram. Em 1967, o general Costae Silva anunciou uma
nas Gerais e logo depois presidente do país, foi um dos encarregados de ini- política nuclear independente, e em 1968 as potencias nucleares assinaram
ciar o projeto em sigilo absoluto junto a um pequeno grupo de almirantes.” o Tratado de Não Proliferação (T'NP), determinando que todo urânio e
O governo dos Estados Unidos acabou descobrindo que o Brasil estava qualquer material nuclear estariam sob controle. Porém, o Brasil decidiu
enriquecendo urânio, e a pressão sobre o governo Vargas sefez tão forte a não aderir ao TNP. Em 1975, sob forte ideologia nacionalista, o regime
ponto de forçá-lo a desistir novamente e aceitar a exportação de minerais militar firmou um Acordo de Cooperação com a Alemanha que previa
estratégicos. Mais grave ainda foi a manipulação dos preços do café, prin- a construção de oito reatores nucleares para energia elétrica. Segundo o
cipal produto de exportação do Brasil, do qual os Estados Unidos era seu físico brasileiro José Goldemberg, o acordo cobria todas as etapas da tec-
principal comprador. Sabendo que o Brasil dependia do café, reduzir as nologia nuclear e, com base nas atas do Conselho de Segurança Nacional
importações colocava o país diante de um eminente déficit comercial. E de 1975,garantia fins pacíficos ao projeto, “porém se mantinha em aberto a
assim foi feito. Em agosto de 1954, o Brasil exportou aos Estados Unidos opção militar”.'! Os Estados Unidos vetaram o acordo, e dasoito centrais
apenas 145 mil sacas de café, um drástico contraste às 860 mil que ha- nucleares somente uma pode ser construída. A crise da dívida na década
” PedroSilva Barros e Antonio Philipe de Moura Pereira, “O Programa Nuclear Brasilei-
ro”, Boletim de Economia e Política Internacional, n. 3, Brasília, Ipea, julho de 2010,p. 71. *Ibid., p. 412.
? Odair Dias Gonçalves, “O Programa Nuclear Brasileiro: Passado, Presente e Futuro”, ? Odair Dias Gonçalves, “O Programa Nuclear Brasileiro”, op. cit., p. 87.
em Anais VII Encontro Nacional de Estudos Estratégicos, Brasília, Gabinete de Segurança * Luiz Alberto Moniz Bandeira, As relações perigosas, op. cit., p. 431
Institucional, v. 3, 2008, p. 85. s! “O Brasil quer a bomba atômica”, entrevista com José Goldemberg, em revista Época,
6 Luiz Alberto Moniz Bandeira, Presencia de Estados Unidos en Brasil, op. cit., p. 386. 25 de junho de 2010. Disponível em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epoca/0,,E-
” Ibid., p. 408-409. M1150601-15518,00.html>. (Consulta 26/04/2011.)
152 BRASIL POTÊNCIA Daestratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 53
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de 1980 impossibilitou arrecadar fundos suficientes ao desenvolvimento Em 2003, após a chegadade Lula à presidência, o Ministério de Ciência e
do programa nuclear. Tecnologia adotou a área nuclear “comoprioritária e estratégica”, e a faz “de
Contudo, o acordo com a Alemanha permitiu que os técnicos brasilei- uma maneira coerente e consequente”, na opinião de Odair Dias Gonçalves,
ros treinados no Centro de Investigação Nuclear de Karlsruhe e nas plan- presidente da Comissão Nacional de Energia Nuclear (Cnem).” Em 2004,
tas da Siemenstransferissem tecnologia de centrifugação ao Brasil, por não logo depois de umavisita à China, Lula pediu que a comissão formulasse
estar sob as salvaguardas da AIEA.Em 1979,o Brasil iniciou o Programa uma proposta nuclear. Em 2007, o Ministério de Minas e Energia recomen-
Autônomo de Desenvolvimento de Tecnologias Nucleares, impulsionado dou a construção de quatro a oito usinas nucleares até 2030, e a CNEM
pelas forças armadas, que gerou a tecnologia necessária para a construção autorizou a construção de AngraIII (Angra II havia começado a funcionar
de centrífugas desenvolvidas pela Marinha, e em 1958 foi construído a pri- em 2002) e iniciou os estudos para construir uma quarta usina.**
meira central nuclear, Angra 1.º Em 1987, o presidente José Sarney anun- O Brasil rechaça a possibilidade de adesão ao Protocolo Adicional
ciou oficialmente que o Brasil estava conseguindo o domínio completo da da TNP, o que permitiria aos inspetores da AIEA inspecionar sem avi-
tecnologia de enriquecimento de urânio por meio das centrífugas.* so prévio aquelas instalações que consideram importantes. Os estados
Em represália, o Brasil foi colocado na “lista negra”, que o impedia de nucleares (Estados Unidos, Rússia, China, França e Inglaterra) não têm
importar materiais que pudessem ser usados na área nuclear, como os su- avançado no que preconiza o artigo VI da TNP, quetrata do desarme e
percomputadores, cuja importação fracassou. Em junho de 1991, o Brasil da eliminação dos arsenais nucleares. O Brasil, nessa questão, não tem
encontrou a solução para contornar o T'NP, fazendo um acordo com a Ar- nenhuma necessidade de fazer concessões, e não tem nem mesmo von-
gentina para o uso pacífico da energia nuclear, criando a Agência Brasilei- tade política de fazê-las. E o presidente da CNEM menos vontade ainda.
ro-Argentina de Contabilidade e Controle de Materiais Nucleares (Abacc). Crê que o Brasil possui a segunda ou até a primeira reserva mineral de
O acordo foi exitoso e contou com o apoio da AIEA, que assinou, mais urânio do mundo,e que é um dos três países que dominam todo o ciclo
tarde, um Acordo Quadripartite com a Argentina, o Brasile a Abacc.* do combustível, sendo capaz de enriquecer urânio a 20% para fabricar o
Porém, em 1997, o presidente Fernando Henrique Cardoso assinou o reator do submarino nuclear. É, portanto, “um dostrês países que têm a
TNP. Os analistas brasileiros ainda não explicaram as razões dessa par- tecnologia e o urânio”.*”
ceria, pois deixou de lado uma política que havia se mantido inalterada O Brasil está disposto a elevar a participação da energia nuclear na ma-
durante 29 anos, além de ter destravado a pressão internacional por in- triz energética nacional em até 5,7%, o que praticamente supõe duplicar
termédio do acordo com a Argentina. O argumento de Cardoso era que a o percentual e multiplicar por quatro em valores absolutos. Busca tam-
falta de acordo com o TNP estava se convertendo em um obstáculo para o bém a autossuficiência nuclear no ano de 2014, quando passará a realizar
desenvolvimento tecnológico do Brasil, haja vista que aceitar a hegemonia o processo de enriquecimento no país, já que atualmente uma parte é feita
estadunidense poderia permitir ao país “ganhar em projeção internacional no exterior. Duas das etapas de todo o ciclo ainda são feitas no Canadá e
e participação em mecanismos de decisão”, sobretudo pela possibilidade na Europa: o urânio é extraído na mina de Catieté, no Estado da Bahia,
de se integrar ao Conselho de Segurança das Nações Unidas”. sendo purificado e separado até ser concentrado sob a forma de um sal de
cor amarela conhecido como yellowcake. Logo após esta primeira etapa, O
material é enviado ao Canadá, onde se torna hexafluoreto de urânio, que
* Luiz Alberto Moniz Bandeira, As relações perigosas, op. cit., p. 144. é gasoso. A terceira etapa se realiza na Europa, onde o urânio enriquecido
* Odair Dias Gonçalves, “O Programa Nuclear Brasileiro”, op.cit., p. 88.
“ Luiz Alberto Moniz Bandeira, As relações perigosas, op. cit., p. 144.
* Odair Dias Gonçalves, “O Programa Nuclear Brasileiro”, op.cit., p. 89. 87 Odair Dias Gonçalves, “O Programa Nuclear Brasileiro”, op. cit., p. 89.
8 Discurso de Fernando Henrique Cardoso ao celebrar acordo com o TNP, 20 de junho de 88 Tbid,p.90.
1997, citado por Moniz Bandeira, As relações perigosas, op.cit., p. 148. 8º Tbid,p. 93.
154 BRASIL POTÊNCIA Da estratégia de resistência à estratégia de defesa nacional 155
.
é convertido em pequenas pastilhas sólidas para serem usadas como com- francesa Areva, que é a maior produtora de urânio enriquecido do mundo,
bustíveis nas usinas de Angra. além de ser sócia na construção de Angra III. A aliança com esses dois
À mina de Catieté, que pode extrair até 1.200 toneladas de urânio ao países foi embasada nos estudos realizados pelo IPEA, publicados no final
ano (embora até 2009 produzisse apenas 400), se somará a mina de Santa do governo Lula, que permitiram unir as grandes reservas de urânio do
Quitéria, no Ceará, com capacidade de produzir 1.100 toneladas anuais, a Brasil com o domínio chinês e francês da tecnologia de enriquecimento.”
partir de 2012, quando entrará em funcionamento. Deste modo, a produ- A partir dessa conjuntura, pode-se formular a seguinte questão: o Bra-
ção será multiplicada porcinco ouseis vezes, já que a partir de 2015, com sil está construindo uma bomba atômica? O vice-presidente José Alencar
o funcionamento da usina AngraIII, o Brasil terá como meta inaugurar foi muito claro durante uma conversa descontraída com jornalistas em
uma usina nuclear a cada quatro anos.” seu gabinete em Brasília, em setembro de 2009. “A arma nuclearutilizada
Para poder construir o submarino nuclear o Brasil ainda precisa reali- como instrumento de dissuasão é de grande importância para um país que
zar todo o processo de enriquecimento de urânio no país. A Fábrica Na- tem 15 mil quilômetros de fronteira no oeste e um mar territorial, e agora
cional de Combustíveis Nucleares, em Resende, Estado do Rio de Janeiro, o mardo pré sal de quatro milhões de quilômetros quadrados”. Ele citou o
tem dois conjuntos de centrífugas conhecidas como cascatas para enri- caso do Paquistão, que apesar de ser um país pequeno é respeitado e inte-
quecer urânio, e uma terceira teria entrado em funcionamento em janeiro gra diversas organizações internacionais: “Eles sentam à mesa porque têm
de 2010.2 Todas foram construídas pela Marinha, a única que domina armas nucleares”. E concluiu pedindo um aumento no orçamento militar
o ciclo completo, apesar de a Comissão Nacional de Energia Nuclear ter de 3 a 5% do PIB.
estreitado relações com o Ministério de Ciência e Tecnologia, comanda- Não se sabe ao certo se o Brasil está construindo armas atômicas.
do no governo Dilma Rousseff por Aloízio Mercadante, irmão do coronel Porém, se sabe, com certeza, que tem a capacidade para fazê-las. Hans
Oliva Neto. Obviamente, tudo que é relacionado com o enriquecimento de Rúhle, ex-diretor de planejamento do Ministério da Defesa alemão entre
urânio é assunto secreto. 1982 e 1988, publicou um artigo no diário Der Spiegel em que afirma
No complexo militar de Aramar, em São Paulo, o Laboratório de Gera- que a construção do submarino nuclear “poderia ser uma fachada para
ção Nucleoelétrica está construindo o primeiro reator nuclear totalmente um programa de armas nucleares”, e que “em 1990 os militares brasilei-
nacional, já que os de Angra I e II foram feitos nos Estados Unidos e na ros estavam prontos para construir uma bomba”. Assegura que após
Alemanha. O reator estará concluído em 2014,e está destinado a equipar o regime militar os governos democráticos abandonaram os programas
o primeiro submarino nucleardo país, que entrará em operação em 2020.º nucleares secretos, porém “poucos meses depois de assumir como pre-
Porém,o Brasil estabeleceu umaaliançaestratégica com a Chinae a França. sidente, em 2003, Lula retomou oficialmente o desenvolvimento de um
O país acordou em exportar urânio enriquecido para abastecer 30 novas submarino nuclear”.”
usinas nucleares chinesas em construção e também para a multinacional
“ “Brasil negocia venda de urânio enriquecido”, O Estado de São Paulo, 7 de fevereiro de
90,
Brasil quer auto suficiência na produção de urânio até 2014”, 26 de novembro de 2009, 2011. Disponível em: <http://economia.estadao.com.br/noticias/economia%20brasil,bra-
em Defensanet, Disponível em: <http://pbrasil.wordpress.com/2009/11/26/brasil-quer sil-negocia-venda-de-ranioenriquecido,53914,0.htm>. (Consulta 02/01/2011.)
-autosuficiencia-na-producao-de-uranio-ate-2014/>. (Consulta 27/04/2011.) º5 “Tosé Alencar defende que Brasil tenha bomba atômica”, O Estado de São Paulo, 24 de se-
*“ Tbid. tembro de 2009. Disponível em: <http://www.estadao.com.br/noticias/nacionaljose-alen-
“2 Tbid. car-defende-quebrasil-tenha-bomba-atomica,440556,0.htm>. (Consulta 26/04/2011.)
*” “Reator de submarino nuclear fica pronto em 2014 e será modelo para usinas”, Agencia % “Is Brazil Developing the Bomb?”, Hans Rúhle, Der Spiegel, 5 julho 2010. Disponível
Brasil, 23 de maio de 2010, Portalnaval. Disponível em: <http://www.portalnaval.com.br/ em: <http://www. spiegel.de/international/world/0,1518,693336,00.html>. (Consulta
noticia/30289/reator-desubmarino-nuclear-fica-pronto-em-2014-e-sera-modelo-para-u- 26/04/2011.)
sinas>. (Consulta 27/04/2011.) ” Ibid.
156 BRASIL POTÊNCIA
Riúhle não está dizendo que o Brasil vai construir uma arma atômica, CAPÍTULO 5
mas deixa a entender que pode fazê-la quando quiser, e afirma queo pro-
grama brasileiro está mais adiantado que o do próprio Irã. Entrevistado À reorganização do capitalismo brasileiro
por Deutsche Welle, recordou que os laboratórios de Los Alamos e Liver-
more, ambos nos Estados Unidos, asseguraram que “o Brasil, se desejar,
pode construir armas nucleares em três anos”.
Essa parece ser a questão. O Brasil pode, a qualquer momento, ter ar-
mas nucleares. Se já as tem, ou não, é uma decisão puramente política,li-
gada aos custos e benefícios de torná-la pública.
O Estado é como a central de inteligência de todo este processo,
na medida em que orienta o movimento de expansão da
ordem burguesa e de concentração e verticalização do capital,
de racionalização do sistema produtivo e se empenha em
maximizar todas as possibilidades de expansão interna e
externa.
Luiz WERNECK VIANNA
As impressionantes alavancas que representam o BNDESe os fundos de
pensão estão sendoutilizadas para reorientar o capitalismo brasileiro em
função dos interesses estratégicos da elite no poder. Na primeira década
do século os investimentos do BNDES cresceram fabulosos 470%; este
disparo em plena crise mundial evidencia bem porque o Brasil tenha se
fortalecido em plena crise. Em 2010, alcançaram 100 bilhões de dólares,
ao redor de 7% do PIB.! A indústria e a infraestrutura são os setores que
apresentaram os maiores investimentos.
Durante a presente crise sistêmica que, tudo indica, está redesenhan-
do por um longo tempo a correlação de forças no globo, o BNDES se
converteu no maior banco de fomento do mundo. Para que se tenha uma
ideia: no ano fiscal 2009-2010 o Banco Intera cano de Desenvolvi-
mento (BID) aprovou empréstimos em(é4B países, num total de 15,5 bi-
lhões de dólares; o Banco Mundial desembolsou no mesmo biênio 40,3
bilhões de dólares, menos da metade que o BNDES.? Osativos do banco
98P ai quai e : ; e
Brasil pode estar construindo bomba atômica, conjectura pesquisador alemão”, entre- ! “Empréstimos do BNDES crescem 23% em 2010 e chegam a R$ 168 bi”, Folha de São
vista a Hans Rúhle, Deutsche Welle, Brasilia, 11 de maio de 2011. Disponível em: <http:// Paulo, 24 dejaneiro de 2011.
www.dw-world.de/dw/ article/0,,5564374,00.html>. (Consulta 27/04/2011.) ? Ibid.
167

158 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro ' 159
-
brasileiro só podem ser comparados com seus pares chineses, e estão ções transnacionais, que dominariam todos os setores da atividade econô-
bastante acima do banco de desenvolvimento alemão, um dos mais po- mica. Nesse circuito de hipermonopolização do capital, os países que não
derosos do mundo. Somente o BNDESé responsável por 70% dos finan- tiverem grandes grupos econômicos e não forem capazes de fazer parte
ciamentos de longo prazo no Brasil, e é possível sentir sua influência em desses 500 grupos, de certa maneira, estarão de fora, alijados da compe-
todos os setores do país. tição de tal forma que passariam a ter um papel passivo e subordinado
As decisões tomadas pelo banco transcendem as empresas e têm a ao circuito de decisões desses 500 grupos. Então, a opção brasileira é se
capacidade de modificar todo um setor produtivo, ao promover fusões aproximar da concentração desses gigantes para, de certa maneira, fazer
e a criação de gigantescas empresas monopólicas ou oligopólicas. Du- parte desse circuito de poucas, mas grandes empresas (...) Nós estamos
ea mais sramem ma PE meme
rante a segunda presidência de Getúlio Vargas (1951-1954), o BNDESfoi avançando numa fase em que não são mais os países que têm empresas,
fundamental para a industrialização, e, na década de 1970, para a cons- mas empresas que têm países diante da dimensão das corporações com
trução de infraestrutura, sob o comando da ditadura militar, apoiando um faturamento, em grande parte das vezes, superior ao PIB dos países
o processo de “substituição de importações”. Sob o governo neoliberal nacionais. Então, não há outra alternativa, no meu modo de ver, que não
de Cardoso, na década de 1990, financiou as privatizações e a desregula- seja a construção desses grupos.
mentação, ou seja, colaborou para que 30% do PIB fosse mobilizado para
o surgimento de uma nova burguesia.” Sob o governo Lula, o BNDES istasbrasileiros nãoocultam quese inspiram na experiên-
mudou sua orientação. oassi isto
Trata-se de intervenções que permitem, por meio de somas milionárias,

mémem
gerar uma autêntica reorganização do capitalismo brasileiro, evitar que-
bras e impedir que grandes empresas sejam compradas por multinacionais e que «o papeliiéreorganizarestesgruposeconômicosparaque y
estrangeiras. Não obstante, os passos do BNDES são parte do plano do possamcompetircomessanovac econômicamundial?
Estado brasileiro elaborado durante o governo Lula. O economista Marcio Os dois governos de Lula, em particular o segundo (2007-2010), de-
Pochmann, membro do PT, foi diretor do Instituto de Investigações Eco- monstraram uma dupla função do Estado: como financiador de grandes
nômicas Aplicadas (Ipea), e sustenta que desde a crise da dívida externa empresas para fortalecer grupos econômicos e como investidor para gran-
da década de 1980, o Brasil atravessa a terceira tentativa de reestruturação des obras de infraestrutura, com o que se denomina Programa de Acelera-
capitalista, que agora consiste em criar grandes grupos econômicos com ção a Crescimento (PAC). Naopiniãodealgunsintelectuaisdeesquerda,
presença do capital privado, do Estado e dos fundos de pensão de empresas ocai hidopelogovernoLulapromove a concentração ecentra-
estatais. Descreve o mundo e a opção feita pelo Brasil de Lula com uma lizaçãodocapital, que favoreceasgrandes empresase debilita omundo do
franqueza que merece atenção: 1 lho. Veremos primeiro como opera o Estado com as grandes empre-
sas por meio de alguns exemplos notáveis, para logo nos determos ao papel
O que estamos observando nessas duas últimas décadas de predomínio que está desempenhando na construção de infraestrutura.
da globalização, sobretudo financeira, e de desregulamentação do próprio
Estado, é a constituição de grandes corporações transnacionais. Falava-se,
antes da crise de 2008, da emergência de pelo menos 500 grandes corpora-
4 Marcio Pochman, “Estado brasileiro é ativo e criativo”, entrevista de Patricia Fachin,
* Francisco de Oliveira, em “A reorganização do capitalismo brasileiro”, IHU Online, 1 Revista IHU, n. 322, São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 22 de março
de novembro de 2009, em: <http://www.ihu.unisinos.br/noticias/27407-conjuntura-da- de 2010, p. 16.
semana-especial-a-reorganizacao-do-capitalismo-brasileiro>. (Consulta 12/02/2011.) 5 Tbid.
160 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 161
A reorganização em marcha tria e Comércio do primeiro governo Lula. O governo não só apoiou a fusão
como firmou um acordo com a China para abrir pela primeira vez este
Uma das principais características do capitalismo brasileiro nos últimos enorme mercado às exportações das empresasbrasileiras de alimentação.
anos consiste na escolha por parte do Estado de “campeões nacionais”, ou
seja, grandes grupos privados para fazê-los competitivos no mundo. Não - A fusão dosfrigoríficos JBS Friboi e Bertin em setembro de 2009.
se trata do apoio a gestão empresarial, mas de um Estado convertido em O BNDES gastou cerca de 4,7 bilhões de dólares em ambosfrigoríficos.
ator de fusões e megaoperaçõese, portanto, em sócioativo da maioria das JBSé a primeira empresa de carnes do mundo,e vem experimentando um
empresas do país. Veremos alguns exemplos. vigoroso crescimento nos últimos anos, duplicando a capacidade de pro-
dução desde 2006, quando se implantou na Argentina. Em 2007, comprou
- A fusão da Sadia e da Perdigão em maio de 2009 permitiu a criação da a estadunidense Swift Foods graças a uma capitalização do BNDES, com
Brasil Foods, a maior exportadora de carnes do mundo. Ambas já eram o qual adquiriu 14% do JBS para poderter acesso ao mercado norte-ame-
grandes empresas com negócios em vários países. Sadia era um grande ricano. Em 2008, o BNDES também apoiou a Bertin (com 35 mil empre-
conglomerado de 19 empresas, sendo a maior processadora no Brasil de gados, 38 unidades produtivas, exportadora de carnes, laticínios e couros),
aves, carnes industrializadas, suínos e bovinos, com 55 mil empregados. adquirindo 27% da empresa. Com este investimento na empresa fusionada
Mas a crise de 2008 e a especulação com derivativos financeiros mediante o BNDEStem uma participação de 22,4%.º
uma aposta na baixa do dólar provocaram as primeiras perdas em 64 anos Hoje, o Grupo JBSestá presente em 110 países, tem 125 mil empregados
de história, chegando à beira da quebra. e 21 filiais, e capacidade de abater 51 mil bovinos diariamente. Uma vez
A Perdigão possuía 42 unidades industriais e era menor que a Sadia, comprada a Bertin, adquiriu os 64% de Pilgrim's Pride, a segunda pro-
mas não se arriscou no mercado financeiro. A fusão criou a décima em- cessadora de carne de ave dos Estados Unidos.'º “Vamos localizar grupos
presa de alimentos das Américas, a segunda empresa alimentícia do Brasil, que podem ser fortalecidos para competir internacionalmente”, disse o
atrás de JBS Friboi, e a terceira maior exportadora, atrás da Petrobras e ministro de desenvolvimento Miguel Jorge, quando o governo apoiou por
Vale. Controla quase 25% do mercado mundial de aves, superando inclu- intermédio do BNDES a compra de Swift por JBS.”
sive empresas dos Estados Unidos, com fábricas em países europeus e 57%
do mercado brasileiro de carnes processadas. A empresa resultante da fu- - A fusão da Aracruz e da Votorantim Celulose e Papel (VCP), em setembro
são é uma das maiores empregadoras do país, com 120 mil trabalhadores, e de 2009, que criou Fibria, a maior empresa mundial de fibra curta e a quar-
suas vendas somam 15 bilhões de dólares anuais. O maior acionista indivi- ta de celulose. As duas empresas tiveram perdas com derivativos, tal como
dual do Brasil Foods é o fundo de pensão PREVI (do Banco do Brasil), com a Sadia, e estavam em 2008 em difícil posição. Durante a crise apareceu a
umaparticipação de 13,6% na empresa, consolidando seus investimentos sueco-finlandesa Stora Enso com a intenção de comprar algumas delas, ou
prévios que já tinham na Perdigão e na Sadia.” O BNDES desembolsou 235 as duas. No total o BNDESinvestiu um bilhão e quatrocentos milhões de
milhões de dólares, ficando com 3% das ações. dólares, o que lhe permite ficar com 26% da nova empresa.”
Nafusão atuou com um papel relevante Luiz Fernando Furlan, ex-presi-
dente da Sadia, atual co-presidente do Brasil Foods e ex-ministro da Indús-
º “BS e Bertín anuncian formação de gigante de carne bovina”, Valor, 16 de setembro de
2009.
1º Ver página da empresa: <www.jbs.com.br>.
* Revista Exame, 12 de maio de 2009. " “Política industrial quer incentivar formação de multinacionais brasileiras”, Folha de
7 “Relatório Anual 2009”, Previ, p. 16, em: <www.previ.com.br>. (Consulta 19/12/2010.) São Paulo, 26 de junho de 2007.
*“En 18 meses BNDESgasta R$ 5 bi paracriar gigantes”, Folha de Sao Paulo, 4 de outubro 2 “Grupo Votorantim compra a Aracruz com ajuda do BNDES”, Folha de São Paulo, 21
de 2009. de janeiro de 2009.

e
162 BRASIL POTÊNCIA
, À reorganização do capitalismo brasileiro 163

O acordo estipula que até 2014 o banco terá direito a veto em decisões Oi conservou 10%. O setor público ficou com aproximadamente 50% do
importantes. “A fusão realiza um sonho de muito tempo, que era que o restante: BNDES com 16,8%, Previ com 12, 9% e os fundos Petros y Funcef
Brasil tenha um global playerforte, de capital nacional, nessa área onde a com 10% cada um.'!é
competitividade é imbatível”, comentou um dos negociadores da fusão. Em todo caso, os acordos firmadosestipulam que para certas decisões
a nova empresa deve contar com votos especiais que vão de 66 a 84% do
- A compra da Brasil Telecom por Oi, criando uma grande telefônica “nacio- capital votante, o que assegura ao Estado um papel decisivo no futuro da
nal”. Em abril de 2008, o BNDESliberou grandes quantias para que a Oi empresa.
pudesse comprar a Brasil Telecom. As privatizações do governo neoliberal
de Cardoso tiveram na telefonia um capítulo especial. Em 1998, decidiu- - O apoio do Estado à Braskem para convertê-la em uma das dez maiores
se dividir a estatal e monopólica Telebras em doze companhias, sendo a petroquímicas do mundo. Neste caso o Estado atuou por meio da Pe-
maior delas a Telemar, que operava em dezesseis estados com diferentes trobras, facilitando o crescimento da Braskem, do grupo Odebrecht. A
nomes. Em 2001, as empresas que a integravam se unificaram, criando empresa nasceu em 2001, quando a construtora Odebrecht se uniu ao
uma empresa única, e em 2002 a nova companhia cria a Oi, seu braço de grupo Mariano para comprar a Copene (Companhia Petroquímica do
telefonia móvel. Em 2007, toda a empresa é batizada com o nomede Oi, na Nordeste). Em novembro de 2007, a Braskem fez um acordo com a Pe-
qual o BNDES chegoua ter 25% do capital. trobras para integrar os ativos de várias empresas nas quais a petrolei-
A Brasil Telecom foi outra das grandes empresas surgidas da priva- ra tinha forte participação, como a Companhia Petroquímica do Sul, a
tização da Telebras que foi comprada pelo banco brasileiro de investi- Ipiranga Química, a Ipiranga Petroquímica, a Petroquímica Paulínia e
mentos Opportunity e pela Telecom Italia. A nova empresa, produto da a Petroquímica Triunfo. Na mudança a Petrobras passou a ter 25% do
compra da Brasil Telecom pela Oi, é líder na América Latina em telefonia capital da Braskem.”
fixa, com 22 milhões de conexões, e encerrou 2011 com 45 milhões de A essa altura a Braskem já era a terceira petroquímica das Américas,
clientes em telefonia móvel, sendo a quarta do Brasil, com 19% de um atrás somente da Exxon e Dow Chemical, e se situava entre as onze maio-
mercado que cresce quase 20% anualmente.Ainda — e isto tem sido res do mundo. Em 2010, a Braskem compra a Quattor, controlada pela Pe-
decisivo na hora do envolvimento do BNDESe dos fundos de pensão em trobras e pela Unipar, com o objetivo de ingressar ao mercado internacio-
uma operação milionária — se criou uma empresa totalmente brasileira, nal e, mais concretamente, nos Estados Unidos.
presente em todo o país e com capacidade de expandir-se dentro e fora Desse modo se formou uma “superpetroquímica”, que se converteu na
de fronteiras. De algum modo, esse processo reverte a internacionaliza- primeira do continente americano e na oitava do mundo. O setor passou
ção produzida nas privatizações e permite ao Estado voltar a influir em a ser dominado por apenas duas empresas: Petrobras e Braskem, ambas
um setor estratégico. No total o BNDES investiu 2,5 bilhões de dólares com forte presença estatal. Pouco depois Braskem seguiu crescendo, com a
para a compra da Brasil Telecom, que tem um valor de mercado de 7,65 compra da estadunidense Sunoco e um centro de tecnologia em Pittsbur-
bilhões de dólares.!: gh, Pensilvânia.
As ações da Oi ficaram distribuídas da seguinte maneira: Andrade Gu- As ações da Braskem, no final de 2011, continuavam sendo controladas
tierrez e La Fonte com 20% cada uma, enquanto o fundo de pensões da pela Odebrecht, com 38% do capital, mas a Petrobras já detinha 31%, ao
8 Ibid. i9 “Novatele terá forte presenta do governo”, Folha de São Paulo, 20 de julho de 2008 e
“ Agência Nacional de Telecomunicações, 16 de janeiro de 2012, em: <http://www.anatel. “Relatório 2008”, Previ, em: <www.previ.com.br>.
gov.br/Portal/exibirPortalInternet.do>. (Consulta, 02/02/2012.) ” Braskem, <www.braskem.com.br>, e “A reorganização do capitalismo brasileiro”, Revista
“ “Supertele ganha corpo com financiamento do BNDES”, Valor, 8 de fevereiro de 2008. IHU, n. 322, São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 22 de março de 2010.
164 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 165
-
que se deve somar a presença minoritária dos fundos de pensão Previ e fundas (offshore), porque o país não tem grandes jazidas em seu território
Petros.'! Consultado, o presidente da Sindipolo (Sindicato dos trabalha- continental. Recentemente, em 2006, com a inauguração da plataforma
dores das Indústrias Petroquímicas de Triunfo), destaca que o governo foi P-50, a maior do país, o Brasil consegue a plena autossuficiência petrolei-
“limpando o terreno” para que a Braskem fosse ficando com 80% do setor ra, com 70% da produção em águas profundas e ultraprofundas, em cuja
petroquímico. “A posição oficial do governo é que estão reestruturando o prospecção e exportação a Petrobras se especializou, convertendo-se na
setor para garantir maior competitividade. Para nós, há alguma relação vanguarda mundial pelas inovações tecnológicas realizadas.” Em 2007,
obscura com o grupo Odebrecht”, já que “as decisões não saem da Petro- pôde refinar 1 milhão e 900 mil barris diários de petróleo, o que fez com
bras, mas sim do governo Federal”. Mais uma vez, a influência ou aliança que o país deixasse de importar nafta e outros derivados refinados, e no
entre governo-Estado e empresas privadas de caráter multinacional é um final de 2010 já era capaz de extrair uma média de 2,6 milhões de barris
fato incontestável. Em paralelo, consegue-se um altíssimo nível de concen- diários, incluindo os campos no exterior.”
tração: Odebrecht e Petrobras conseguem controlar 100% da petroquímica Nolitoral dos Estados de Santa Catarina e Espírito Santo, em 2006
no Brasil. e 2007, a Petrobras anunciou o descobrimento de enormes reservas de
petróleo de qualidade média e alta debaixo de dois mil metros de água
e até profundidades de oito mil metros debaixo de uma densa camada
Petrobras, a joia da coroa de sal de dois a quatro quilômetros de espessura (a qual se denomina
pré-sal). Os campos de Tupi, Iara e Parque das Baleias elevaram as re-
A capitalização da petroleira realizada em setembro de 2010 foi uma das servas do Brasil de 14 a 33 bilhões de barris, mas outras fontes estimam
operações mais exitosas do governo Lula. Neste capítulo pretendo refletir que suas reservas possam elevar-se até 70 bilhões de barris.? Somente
como o governo trabalhou para recuperar uma boa parte do controle os campos de Tupi e Iracema, batizados como Lula e Cernambi, alojam
sobre a Petrobras, que havia sido parcialmente transferido durante os 8 bilhões de barris, sendo a maior reserva encontrada no mundo desde
governos neoliberais da década de 1990. A empresa foi criada em 1953 2000.As reservas do pré-sal se encontram em uma larga faixa mari-
por Getúlio Vargas como monopólio estatal para exportação de petróleo, tima de quase mil quilômetros, entre as bacias de Santos e de Campos,
e sob a ditadura militar também voltou-se para o comércio internacional mais ou menos desde a cidade de Florianópolis (Santa Catariana) até
de óleo cru.” Vitória (Espírito Santo).
Até final da década de 1970, a produção brasileira era somente de 200
mil barris de petróleo diários, mas o consumo superava um milhão de
barris. A Petrobras trabalhou buscando petróleo em águas oceânicas pro-
* Ibid.; Braskem, em: <http://www.braskem-ri.com.br/show.aspx?idCanal=OxIsNDdQ/
sz37EhqiG8SFA>. (Consulta 02/0272012.)
2 “As relações obscuras entre o polo petroquímico gaúcho, a Braskem e o governo fede-
ral. Entrevista especial com Carlos Eitor Rodrigues Machado”, IHU Online, 11 de maio
de 2009, em: <http://www.ihu.unisinos.br/entrevistas/22099-as-relacoes-obscuras-entre 2 Ibid., p. 124.
-o-polo-petroquimicogaucho-a-braskem-e-o-governo-federal-entrevista-especial-com- 2 “Petrobras batiza Tupi de Lula”, Folha de São Paulo, 29 de dezembro de 2010.
carlos-eitor-rodrigues-machado>. (Consulta 15/05/2011.) 2? “Entenda o que é a camada pré-sal”, Folha de São Paulo, 31 de agosto de 2008; “A ex-
? Efraín León Hernández, “Energia Amazónica. La frontera energética amazónica en el ploração do pré-sal e o futuro brasileiro”, Jornal da Universidade, Porto Alegre, n. 113,
tablero geopolítico latinomamericano”, Tese de Doctorado, Posgrado de Estudios Latino- Universidade Federal de Rio Grande do Sul, novembro de 2008.
americanos, Universidad Nacional Autónoma de México, 2007, p. 123. “ Ibid.; “Petrobras batiza Tupi de Lula”, Folha de São Paulo, 29 de dezembro de 2010.
166 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 167
Mapa 2. Bacias petrolíferas de Santos e Campos Mapa 3. Campo de Tupi
AOCALIZACIÓN o
NUEVAS RESERVAS DE PETRÓLEO r
Os descobrimentos na camadapré-sal, especialmente o campo de Tupi/
Lula, marcam um antes e um depois na história da companhia,já que o va-
Os analistas do Ipea estimam que a « província pré-sal”, que coloca o lor da empresase triplicou.?* Com a exploraçãodestas fabulosas reservas, O
Brasil entre os dez países de maior reserva mundial de petróleo, “fortale- Brasil se converterá em um dosprincipais produtores de petróleo do mun-
cerá a inserção internacional autônoma”» do país e representa uma nova re- do. Como se pode imaginar, tem sido produzido um forte debate sobre os
alidade estratégica para o desenvolvimento do país.” O país produzirá em caminhos mais adequados de explorar essas riquezas. Interessante desta-
2020 cerca de 5 milhões de barris diários, e, ainda considerando o aumen- car comose posicionou o governo. O ponto departida é que a privatização
to da demandainterna, terá um excedente de 2 milhões de barris diários. parcial da Petrobras debilita o papel do Estado na exploração petroleira.
O Brasil passou em poucosanos de importador a exportador depetróleo, o No ano 2000 o governo brasileiro controlava 60,9% das ações; outubro de
que modifica seu lugar no mundo. É a única potência emergente que conta 2005 o Estado brasileiro detinha somente 39,9% das ações e, pela primei-
com um potente parque industrial e com excedentes energéticos. ra vez, os acionistas estrangeiros, com 40,1%, detinham mais ações que
os acionistas privados nacionais (20,0%).” Para reverter esta situação, e
2 “Petrobras já planeja novo gasoduto e dez plataformas no pré-sal”, Valor, 27 de dezem-
bro de 2010, em: <http://www-valor.com.br/arquivo/695277/petrobras-ja-planeja-novo-
gasoduto-e-dezplataformas-no-pre-sal>(Consulta 11/02/2011.)
2 Carlos Walter Porto-Gonçalves e Luis Enrique Ribeiro, “A luta pela reapropriação social
2 Pedro Silva Barroso e Luiz Fernando Sanná Pinto, “O Brasil do pré-sal e a Organização dos recursos naturais na América Latina: o caso da Petrobras no Ecuador”, Rede Brasilei-
dos Países Exportadores de Petróleo (Opep), Boletim de Economiae Política Internacio- ra de Justiça Ambiental, 2006, em: <http://www.justicaambiental.org.br/.justicaambien-
nal, n. 4, Brasília, Ipea, out.-dez. de 2010, p. 11. tal/pagina.php?id=1773>. (Consulta 10/02/2011.)
a
168 BRASIL POTÊNCIA l A reorganização do capitalismo brasileiro = 169
-
conseguir fundos para a expansão da Petrobras, que necessita de grandes dunidense Exxon.” Contudo, o mais importante é que o Estado brasileiro
quantias de investimentos para extrair o petróleo do pré-sal, o governo aumentou sua participação na empresa, superando os 50%. Antes da capi-
Lula decidiu promovera capitalização. talização, o Estado detinha 40% das ações. Com a capitalização, o Estado
A necessidade de conseguir novos fundos e ampliar a participação do passou aos 48% (Estado mais BNDESPar), ao qual devem somar-se os 3,2%
Estadonapetrobras deriva da
la magnitude dos
e ita traçados.( do Previ, o que o permite controlar de forma direta ou indireta mais de 50%
do capital total.”?
go que Rennes empresa petroleira do
mundoé capaz de fazer.” É previsto que entre 60 e 80% dos investimentos
devam ter um conteúdo nacional, ou seja, devem ser providos pela indús- REBEREomo resultado, o Estado do Brasil está cevestenido a perda ded
tria brasileira. Com esse volume de investimentos e a reserva do fundo controle da empresa estatal de petróleo, uma vez que considera uma peça
marinho, o Brasil pode chegar em 2020 entre os cinco primeiros produ- estratégica para os objetivos traçados para o país.
tores de petróleo do mundo. Já antes da capitalização, no final de 2009, a Os investimentos que a Petrobras está planificando parecem de ficção
Petrobras era a quarta petroleira do mundo, atrás somente de Petro China, científica. Por um lado, está o desafio tecnológico que supõe extrair petró-
Exxon e BHP.”? Essa permanente ascensão da empresa petroleira explica o leo no meio do mar a tanta profundidade e debaixo deleitos rochosose de
notável êxito da capitalização. sal. Já foi instalada uma plataforma na área, mas estima-se serem constru-
A cessão do petróleo do campo Tupi à Petrobras foi parte da capi- ídas mais dez até 2016, além de um gasoduto de quase 400 quilômetros até
talização que não se concretizou em aporte de dinheiro, mas sim em a costa do Estado do Rio de Janeiro, que inclui a capacidade de armazenar
um aumento das ações em poder do Estado. Ou seja, o governo incre- em alto mar grandes quantidades de petróleo. A exploração do campo ma-
mentou sua participação na Petrobras cedendo os 6 bilhões de barris de rítimo estará apoiada em quatro bases aéreas nos Estados de São Paulo e
Tupi à empresa. Masos investidores privados não quiseram ver liquidada Rio de Janeiro. O mais notável, todavia, é que se está analisando a criação
sua participação na empresa, e os que pega que investir nela é um de “plataformas hub”, algo que os engenheiros da Petrobras definem como
“terminal no mar”, a partir das quais serão conectadas dezenas de plata-
formas.? No total se estima que haverá 50 plataformas na camada pré-sal,
com dois mil poços perfurados.
a am Telegraph and| Telephone em1987, que foi de 36,8 bilhões de está
Panaalivianos.cusiosmd-Retrorasesternoaertaçã ode“cidades
dólares.” submersas” a an
Com esses aportes, o valor de mercado da Petrobras subiu a 283 bilhões iniiolided
onde se possii i
de dólares, colocando-se como a segunda do mundo, apenas atrás da esta- usinascogiiaspessicesiasocicaciasola? “Nosso ob-
jeto daqui a dez anosé não necessitar de plataformas”, disse Carlos Tadeo
Fraga, gerente executivo do Centro de Investigações da Petrobras.” Trata-se
* “La estrategia de Petrobras para convertirse en la mayor empresa de A. Latina”, 25 de
julho de 2010, em: <http://www.americaeconomia.com/negocios-industrias/la-estrate-
gia-de-petrobraspara-convertirse-en-la-mayor-empresa-de-america-latin>. (Consulta 3 O Globo, 24 de setembro de 2009, em: <http://oglobo.globo.com/economia/com-ca-
18/02/2011.) pitalizacaopetrobras-vira-segunda-maior-petrolifera-do-mundo-2947426>. (Consulta,
? “Petrobras é a quarta maior empresa de energia do mundo”, Folha de São Paulo, 27 de 02/02/2012.)
janeiro de 2009. 2 “Entendaa capitalização da Petrobras”, Folha de São Paulo, 1 de setembro de 2010; “Go-
* “Oferta da Petrobras soma R$ 120,360 bilhões, a maior da história”, O Globo, 23 de verno eleva fatia na Petrobras para 48%”, Reuters, São Paulo, 24 de setembro de 2010.
setembro de 2010, em: <http://oglobo.globo.com/economia/oferta-da-petrobras-soma- 3 Valor, 27 de dezembro de 2010, op.cit.
120360-bilhoesmaior-da-historia-2947969>. (Consulta 18/02/2011.) ” “Petrobras terá operação submersa no pré-sal”, Valor, 28 de dezembro de 2010, em:
170 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 17
.
de instalar no fundo do maras plantas de processamento,sistemas de com- etanol no parque de veículos frente à crise do petróleo de 1973, logo agra-
pressão, de separação de petróleo, água, gás e areia e os módulos para gerar vada em 1979, com fortes aumentos no preço dos hidrocarbonetos. O pro-
energia para fazer funcionar os complexos. Hoje tudo isto está instalado na grama buscava diminuir a dependência, já que nesse momento o país im-
superfície nas plataformas flutuantes. A ideia é que sejam controladas de portava a maior parte do petróleo que consumia, justo quando se disparou
uma base terrestre de onde se possa observar toda a operação em telas. a crise da dívida na década de 1980. Em um primeiro momento,entre 1976
Noprimeiro trimestre de 2011 começou a funcionar um separador sub- e 1986, a produção de etanol foi triplicada, mas na década neoliberal se
marino de água e petróleo no campo Marlim, na bacia de Campos, pri- produziu um abandono dos programas, em parte devido à baixa do preço
meiro passo para instalação de uma base processadora no fundo do mar. internacional do petróleo,a tal ponto que durante o governo de Fernando
A exploração dejazidas longínquas em um ambiente mais hostil requer a Collor o programa quase desapareceu.
redução de custos de operação e permite à Petrobras dar um salto tecnoló- Na década de 1990, houve um desabastecimento, e os usuários deixa-
gico. Na medida em que haverão mil poços, no que já se denomina “polo” ram de comprar automóveis que funcionavam com etanol, e se instalou
Tupi/Lula, uma verdadeira “província petrolífera”, não se poderá seguir uma grande desconfiança sobre os biocombustíveis. No ano 2000, as coi-
operando comoaté agora, já que se requer grande quantidade de embar- sas mudaram, já que começou a aumentar o preço do petróleo, o quele-
cações para transportar pessoas, comida, combustíveis e equipamentos. Se vou os consumidores das periferias, em particular em São Paulo, a mesclar
conseguirem instalar equipamentos submarinos completos monitorados a álcool hidratado com gasolina no próprio tanque do automóvel. “Diante a
distância, a quantidade de pessoal nas plataformas poderá ser diminuída difusão desta prática, as fábricas de automóveis se inspiraram e desenvol-
drasticamente, que, agora, oscila entre 120 e 200 pessoas em cada uma. Se veram o motor flexfuel, lançado pelo presidente Lula em março de 2003.
forem instaladas 50 plataformas, se trataria de abastecer 10 mil trabalha- Naprática isto foi fundamental para reestabelecer a confiança no álcool
dores, além de todo o equipamento que teriam quetransportar. como combustível”.*”
O outro objetivo é produzir com menos poços. Atualmente um úni- A produção de cana cresceu de 120 milhões de toneladas em 1975 a 320
co poço pode produzir 40 mil barris diários, o que antes produzia toda milhões de toneladas em 2009.A produção de etanol foi duplicada ao
uma plataforma.” Saindo vitoriosa nesse conjunto de desafios, a empresa longo da década de 2000.” Em 2008, o Brasil foi o primeiro país do mun-
brasileira terá dado um salto gigante, e se colocará no primeiro lugar no do a usar mais etanol do que gasolina para alimentar a frota de automó-
competitivo mundo da produção do petróleo. Sem embargo,a Petrobras veis.*º A produção mundial de etanol se multiplicou por quatro entre 2000
está jogando um papel importante também na produçãode etanol, no qual e 2008, segundo a FAO, em grande medida por ser uma energia renovável
o governo busca reverter o rápido processo de estrangeirização registrado e contribuir para redução do aquecimento global. Nos próximos dez anos
nos últimos anos. a produção mundial de etanol voltará a duplicar-se.
No Brasil há quase sete milhões de hectares cultivados com cana de
açúcar, a metade dedicada à produção de açúcar e a outra metade ao eta-
A Petrobras diante da estrangeirização do etanol nol, representando um quarto da produção agrícola do país. Os avanços
O etanol foi introduzido na matriz energética brasileira em 1975, com a
* Giorgio Romano Schutte e Pedro Silva Barros, “A geopolítica do etanol”, Boletim de
criação do Programa Nacional de Álcool, para substituir o petróleo pelo Economia e Política Internacional, n. 1, Brasília, Ipea, janeiro 2010, p. 34.
” Ibid., p.35.
* União da Indústria de Cana-de-Açúcar (Unica), em: <http://www.unica.com.br/dados-
Cotacao/estatística>.
<http://valor-online.jusbrasil.com.br/politica>. * Giorgio Romano Schutte e Pedro Silva Barros, “A geopolítica do etanol”, op. cit., p. 35.
* Tbid. 1 Tbid., p. 35.
172 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 173
realizados no melhoramento genético da cana, na criação de centenas de meiro de caráter setorial, em que participaram 20 especialistas.” Pouco
variedades, na melhora dos cultivos e da cadeia industrial permitiram um depois os investigadores do Ipea, que assessora a Secretaria de Assuntos
assombroso crescimento de produtividade: entre 1975 e 2000 a produção Estratégicos, mostraram a apreensão oficial com a crescente estrangeiriza-
passou de 2.024 litros de etanol por hectare para 5.500 litros.'! No final ção do setor e advertiram que o crescimento vertiginoso do investimento
da década a produtividade seguiu crescendo,até situar-se a cerca de 7 mil estrangeiro direto na indústria do etanol estava produzindo “um significa-
litros por hectare frente a somente 3.800 do milho nos Estados Unidos, seu tivo processo de concentração e desnacionalização (...) sem contrapartida
principal concorrente.” da expansão das empresas nacionais no exterior”.Ainda que considerem
O preço do etanol da cana é muito mais baixo que o do milho (30% me- que oprocessotemaspectosinteressantes porque pode contribuir para
nos), tem maior eficiência energética (a relação entre a energia gasta para coi etanol mercadoriamundial, acreditam que a penetração
produzir e a energia obtida é de 8 a 10 vezes para a cana e 1,4 para o milho) do capital estrangeiro deve ser controlada, porque podeafetar a “soberania
e reduz mais que o dobro dosgases de efeito estufa.* nacional na exploração do recurso”.'º
O Brasil é o primeiro produtor mundial de etanol, impulsionado por Na década de 2000,a estrutura dos investimentos estrangeiros no Bra-
seu potente mercado interno,e junto com os Estados Unidos controla dois sil se modificou, e o investimento estrangeiro se fixou sobretudo na agri-
terços da produção mundial. As exportações se multiplicaram por vinte.” cultura e na indústria.”” Tanto os investimentos que se voltam ao agro
Construíram-se 77 usinas de etanol em 2012, com um investimento de como à indústria buscam sustentar-se na produção de commodities, com
2,5 bilhões de dólares. Boa parte desses capitais vem dos Estados Unidos. especial destaque a petróleo, gás natural, biocombustíveis e minério de
“Até o ano passado, 3,4% do setor estava desnacionalizado. Em dez anos ferro. O Ipea conclui que na indústria sucroalcooleira “o aumento da pre-
a metade já não será mais brasileira”, assinala Maurilio Biagi, que ven- sença estrangeira tem provocado transformações relevantes na estrutura
deu uma das maiores usinas de etanol, Cevasa, para a multinacional do produtiva, com implicações tanto para o mercado doméstico como para
agrobusiness Cargill em 2006.ºº Uma parte desses investimentos provi- estratégias políticas mais amplas na indústria do etanol”.
nha das grandes multinacionais, já que todas as empresas que produzem A tentação do capitalismo internacional pelo etanol se explica tanto pelo
transgênicos — Syngenta, Monsanto, Dupont, Dow, Bayeer, Basf — têm in- crescimento do mercado interno comointernacional. No primeiro o Brasil
vestimentos na produção de biocombustíveis como o etanol e o biodiesel.“ já conta com 25% de sua frotaflexfuel, mas se estima que em 2015 esta cifra
Algumas dessas empresas estão se posicionando no Brasil, para aumentar a suba até 65%, — e o Brasil é hoje o quarto produtor e vendedor de veículos
produtividade dos cultivos com sementes geneticamente modificadas para no mundo. E quanto ao mercado internacional, o interesse se explica não só
a produção de etanol. pelo crescimento da demanda, mas, sobretudo, pela enorme ganância pro-
A importância que o Brasil concede aos biocombustíveis é refletida nos vocada pela maior produtividade do etanol produzido de cana. Aí reside a
estudos realizados pelo Núcleo de Assuntos Estratégicos (NAE). O cader- preocupação oficial de que a desnacionalização caminha junto com a con-
no dedicado aos biocombustíveis foi o segundo a ser publicado e o pri- centração do setor em detrimento do empresariado brasileiro:
| e
Biocombustíveis”, Cadernos NAE, n. 2, Brasília, Núcleo de Assuntos Estratégicos da “7 “Biocombustíveis”, Cadernos NAE,n. 2, Brasília, Núcleo de Assuntos Estratégicos da
Presidência da República, outubro de 2004, p. 131. Presidência da República, outubro de 2004.
” Revista Época, 13 de junho de 2008, em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epo- *8 Keiti da Roicha Gomes, “Presença estrangeira na produção de commodities: o caso da
ca/0,EMI5865-15273.html>. (Consulta 15/02/2011.) indústria de etanol no Brasil”, Boletim de Economía e Política Internacional, n. 4, Brasilia,
9 Tbid. Ipea, out.-dez. de 2010, p. 27.
4 <http://www.unica.com.br/dadosCotacao/estatistica>. (Consulta 15/01/2011.) º Tbid.
5 O Estado de São Paulo, suplementoagrícola, fevereiro de 2007. % Tbid., p. 19.
+ Silvia Ribeiro, “Biocombustibles y transgênicos”, La Jornada, 26 de novembro de 2006. 5 Ibid., p. 20.

BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 475
174
A entrada de companhias internacionais não é acompanhada por igual Bioenergia. Desse modo, duas grandes multinacionais petrolíferas ingressa-
capacidade das empresas nacionais em avançar no exterior. Ao contrá- ram na área do etanol, “um setor tradicionalmente verde e amarelo”.>
rio, este movimento levanta barreiras à estratégia do governo brasileiro de A Petrobras fez umaoferta à ETH, a segunda empresa do setor, para ad-
levar para o exterior as tecnologias e os equipamentos desenvolvidos no quirir 40% por dois milhões de dólares até 2012, quando o grupo deve mo-
mercado doméstico, de modo a estimular tanto a inserção internacional vimentar nove novas usinas, e comprou 46% da Açúcar Guarani, a quarta
das empresas brasileiras como a produção deetanol pelo setor privado em maior processadora de cana de açúcar do país. Não são poucos os que
outros países.? pensam que a Petrobras está chegando tarde para competir no setor e ne-
cessita fazer fortes investimentos, se pretende reverter o crescente domínio
Tratava-se de uma indústria muito dispersa na mão de centenas de fa- de capitais estrangeiros.
mílias. A concentração tem sido muito rápida: entre 2000 e 2009 se produ-
ziram 99 fusões e aquisições nessa indústria, ao ponto que a participação
dos cinco maiores grupos no setor cresceu de 12% a 21,5%. Nesse proces-
O investimento em infraestrutura e energia
so começaram a medir forças grupos como Bunge, Cargill e Adecoagro,
Em 28 de janeiro de 2007, quatro semanas depois de iniciar seu segundo
de George Soros, além da gigante Cosan, que controla quase 10% do setor.
mandato, Lula lançou o Programa de Aceleração do Crescimento (PAC),
A indústria de açúcar e álcool conta com cerca de 400 usinas comandadas
um programa de investimentos para quatro anos num total de 295 bilhões
por 200 grupos. Em 2008, por exemplo, das 14 fusões e compras no setor,
de dólares, nesse momento 23% do PIB. Os principais investimentos se
oito envolviam capital estrangeiro, e em 2009 se sucedeu algo similar,a tal planificaram na área de infraestrutura, com a expectativa de que cada real
ponto que das cinco maiores usinas de etanol duas estão vinculadas ao ca- investido pelo setor público induza o investimento de um real e meio do
pital internacional, das quais resulta a formação de complexas alianças, o setor privado.”
ingresso de fundos de investimento e acordosestratégicos que dão ao setor O maior investimento correspondeua geração e transmissão de energia
um perfil emaranhado e pouco transparente. elétrica e a projetos de habitação. O resto foi dedicado a biocombustíveis,
Para conter a “invasão estrangeira”, o governo Lula legou à Petrobras um saneamento básico, ao projeto Luz para Todos, à construção de rodovias,
papel dinâmico, com o objetivo de criar uma grande empresa nacional, com ferrovias, portos, aeroportos e hidrovias. Para se ter uma ideia da mag-
umalógica operativa similar a que se realiza em outros setores. Alguns esti- nitude dos investimentos, são previstos em quatro anos a construção ou
mam quea luz vermelha acendeu-se quandonoinício de 2010 a Shell e Cosan recuperação de 45 mil quilômetros de rodovias, 2,5 mil quilômetros de
chegaram a um acordo de 12 bilhões de dólares, que, na prática, as converteu ferrovias, ampliação de 12 aeroportos e 20 portos, nova geração de 12 mil
na empresa líder mundial no setor de etanol, enquanto British Petroleum se MW de energia elétrica e 14 mil quilômetros de linhas de transmissão,
uniu aos grupos brasileiros Moema e Santelisa Vale para formar a Tropical quatro novasrefinarias petroquímicas, 4,5 mil quilômetros de gasodutos,
46 usinas de biodiesel e 77 de etanol, 4 milhões de habitações e saneamento
para 22 milhões de famílias.”
2 Ibid,p. 21.
5 “Grandes grupos ocupam o espaço de famílias tradicionais nas usinas”, O Estado de
São Paulo, 1 de novembro de 2009, em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,- 5s “Petrobras planeja conter 'estrangeiros'no álcool”, Folha de São Paulo, 11 de dezembro
grandes-gruposocupam-o-espaco-de-familias-tradicionais-nas-usinas,459503,0.htm>. de 2010.
(Consulta 19/02/2011.) 5 Tbid.
“4 Keiti da Roicha Gomes, “Presença estrangeira na produção de commodities: o caso da 57 Para mais detalhes,ver páginaoficial do PAC: <http://www.brasil.gov.br/pac/>.
indústria de etanol no Brasil”, op.cit., p. 24-25. 58 <http://www.brasil.gov.br/pac/>.
176 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 177

Em 2010, foi lançado o PAC 2, com critérios muito similares, mas com dial. A maior diferença com a matriz dos demais grandes consumidores
três vezes mais recursos: 933 bilhões de dólares, 43% do PIB para quatro é o crescente papel da cana de açúcar, do etanol e dos biocombustíveis,
anos. Ampliam-se as obras de infraestrutura urbana para os setores popu- que envolvem 20% da oferta total, e o forte peso da hidroeletricidade, que
lares, com o objetivo de universalizar o acesso à eletricidade e à água potá- oscila em torno de 15%, frente aos 2% no mundo.“º Já vimos a importân-
vel e a construção de dois milhões de habitações, a maior parte destinada cia crescente que tem o álcool de cana como combustível nos transportes.
às famílias de baixa renda. Ainda que a maior parte dos programas tenha A energia que se produz a partir dos derivados de cana vem crescendo,e
umaforte vocação social, dois terços dos investimentos estão direcionados deslocou a hidroeletricidade para se converter na segunda fonte de ener-
à geração de energia. gia do país.*!
Quadro 3. Investimentos do PAC 2 em milhões de dólares Quadro 4. Matriz energética no mundoe no Brasil (% da oferta de energia porfontes)
Eixos 2011-2014 Após 2014 Total Fonte Mundo Brasil
Cidade Melhor 33,0 = 39,5 Petróleo 34 37,9
“ComunidadeCidadania 13,5 = 13,5 Carvão mineral 26,0 87 =
Minha Casa, Minha Vida 162,6 - 162,6 Gás Natural 20,9 41
Água e luz para todos 18,0 E 18,0 Nuclear 59 1,4
Transportes 61,4 er 64,1 Hidrelétrica Ze 15;2
Energia 271,5 368,7 640,2 Cana, lenha e outros renováveis 9,8 28,2
Total 561,6 371,3 939,9 Outros 0,7 3,9
Total 100 100
Fonte: PAC 2, p. 32.
*2007
**2009
Os investimentos destinados à energia têm sua parte mais importante Fonte: Balanço energético nacional.
em petróleo e gás natural, que são basicamente os investimentos da Petro-
bras. O segundo lugar destacado em importância é, mais uma vez, a gera-
ção de energia elétrica. O Brasil tinha uma potência instalada de geração O PAC prevê a construção de 54 usinas hidroelétricas.” A capacidade
elétrica de 106 mil MW em 2009,que inclui a geração hidráulica, térmica, instalada podecrescer sobretudo na bacia amazônica,já que outras bacias,
eólica e nuclear. A geração hidráulica era, neste ano, de 75 mil MW, mas o comoas dos rios Paraná e São Francisco, estão próximasdeseu limite. Isso
potencial de seusrios para produzir eletricidade é de 260 mil MW, o maior supõe que a maior parte das futuras represas serão construídas na região
do mundo.” mais sensível do ponto de vista ambiental e social.
A matriz energética brasileira é uma das mais “limpas” do planeta.
São renováveis 47,3% da oferta de energia, frente aos 12% da média mun-
sº Empresa de Pesquisa Energética, Balanço Energético Nacional 2010, Rio de Janeiro, 2010,
p.17 e 169.
” Agência Nacional de Energia Eléctrica (Aneel), Atlas de energia elétrica do Brasil, Bra- S! Tbid., p. 17.
sília, 2008, p. 57. “2 PAC 2, Relatório,p. 76, em: <http://www.brasil.gov.br/pac/pac-2>. (Consulta 19/01/2011.)
o
178 BRASIL POTÊNCIA À reorganização do capitalismo brasileiro de= 179
A represa de Belo Monte,no rio Xingu, que forma parte do PAC,será a pintados para guerrae teve grande repercussão, porque a foto da índia Tuí-
terceira maior do mundo depois da chinesa Três Gargantas e da brasileiro ra, que colocou um facão no rosto de José Antonio Munis Lopes, presiden-
-paraguaia Itaipu. Belo Monte se converteu em um símbolo das conseguên- te da Eletronorte, deu a volta ao mundo, convertendo-se em um símbolo
cias que podem vir atreladas à elevação do Brasil à categoria de potência de resistência à represa. Pouco depois o projeto foi arquivado.“
global, por suas consequências sociais e ambientais, o que gerou o surgi-
mento de um movimento social contra a represa. O projeto tem mais de 30
anos, foi emblema da ditadura militar, arquivado pelo protesto social e ago- Mapa 4. Projeto Belo Monte
ra recuperado sob o governo Lula, porque o Brasil necessita de energia para
crescer. E a hidroeletricidade é, segundo seus defensores, energia limpa,
renovável, da qual necessita o mundo para combater o aquecimento global.
O certo é que Belo Monte é um dos projetos mais controversos das últi-
mas décadas. Está situado na Volta Grande sobreo rio Xingu, afluente do
Amazonas, e propõe desviar o curso do rio, além de abri-lo à navegação
fluvial para agilizar o trânsito das mercadorias do agronegócio em Mato
Grosso e Pará. À potência da usina será de 11.200 MW, vai intervir num
trecho de 100 quilômetros do rio e formará um lago de 516 quilômetros
quadrados. Poderá abastecer uma população de 26 milhões de habitantese
terá um custo de 11 bilhões de dólares, ainda que os críticos estimem que o
custo final possa se duplicar.” Como se pode observar no mapa, um muro
corta o rio, de onde saem canais que desviam o curso, formando um lago
onde estarão as turbinas. Umaseção do rio de uns cem quilômetros terá
seu leito muito reduzido, sendo regulado a partir da represa.
A história da resistência à represa tem mais de três décadas, e tem sido
liderada pelo bispo do Xingu, Erwin Krâutler, que vive há 40 anos na re-
gião situada no Estado do Pará. Em 1975,a estatal Eletronorte contratou
o Consórcio Nacional de Engenheiros Consultores pra realizar um estudo
da viabilidade da usina, concluído em 1979 e batizado de Kararaô, nome Ao final dos anos 1990, o projeto ressurge, mas modifica seu nome ori-
de guerra do povo kayapó, ainda que os povos da região nunca tenham ginal para Belo Monte, provavelmente para apagar a história da resistência
sido consultados. Em fevereiro de 1989, foi realizado em Altamira o I En- indígena. Na campanhaeleitoral de 2002, Lula manifestou-se claramente
contro das Nações Indígenas do Xingu.“* O evento congregou 600 índios contra Belo Monte, mas pouco depois começou a defender a obra, até in-
cluí-la como uma das prioridades do PAC.“ A “monstruosidade” que de-
nuncia o bispo tem um lado social: a expulsão de cerca de 50 mil pessoas
63 «
Entenda a polêmica envolvendo a usina de Belo Monte”, O Globo, 19 de abril de 2010,
em: <http://oglobo.globo.com/politica/entenda-polemica-envolvendo-usina-de-belo-
monte-3020673>. (Consulta 25/03/2011.) º& “Belo Monte: uma monstruosidade apocalíptica”, entrevista de Erwin Krâáutler, em Re-
“ Altamira é um município de 160 mil quilômetros quadrados, a superfície aproximada vista IHU,n. 337, São Leopoldo, 2 de agosto de 2010. Todos os dados sobre a resistência a
do Uruguai, tem 110 mil habitantes e está localizado a 800 quilômetros de Belém, capital Belo Monte provém desta fonte.
do Pará. SS Tbid.
180 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro “481
entre índios e camponeses, a inundação permanente de parte da cidade Nos meses seguintes, informou-se para fins de leilão público que os
de Altamira e 19 aldeias, afetando nove povos indígenas, e a modificação fundos de pensão das estatais (Previ, Petros e Funcef) ingressariam no
radical da vida da região pela diminuição do leito em 80% ao longo de consórcio ganhador com aproximadamente 10% do capital cada um,
100 quilômetros. Dezenas de organizações sociais, eclesiais e ONGs têm com o que a participação do Estado seguiu crescendo.” Na construção
se pronunciado contra Belo Monte, e entregaram mais de 600 mil assina- da megaobraestarão as três principais construtoras do país, Odebrecht,
turas contra a represa.” A Ordem dos Advogados do Brasil pediu em 1 de Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, mas nenhumadelas assumirá os
fevereiro de 2010 a paralização das obras,já que contam apenas com uma riscos de um empreendimento faraônico que consideram “economica-
licença parcial emitida pelo Ibama (Instituto Brasileiro de Meio Ambiente mente inviável”? Ainda que finalmente se construa Belo Monte e co-
e Recursos Naturais Renováveis), sendo que a obra foi também duramente mece a funcionar em 2015, como está previsto, a polêmica continuará
criticada por um “Grupo de Especialistas”. por um longo tempo. As megarepresas sobre o rio Madeira, próximas
Por outro lado, a represa apresenta alguns problemas técnicos e eco- da fronteira com a Bolívia, as que serão construídas em Inambari, Peru,
nômicos. O curso do rio Xingu é muito irregular, aumenta no inverno até ou o Complexo de Tapajós, cinco represas no Pará que produzirão qua-
transbordar e diminui muito no verão até quase desaparecer, por tal ra-
se tanto como Belo Monte, uns 10.600 MW,são a ponta do iceberg que
zão a oferta média de energia será apenas de 40% da capacidade instalada,
modificará para sempre a região amazônica. Não apenas serão afetados
sendo “uma das piores relações potencia/energia, seguramente, do sistema
os povos indígenas dessa região, como também camponeses de todo o
elétrico brasileiro”.” Isto afetaria a rentabilidade dos investimentos, o que
Brasil, e ainda índios e camponeses de países vizinhos, em particular
dificultou a formação de consórcios para realizar o leilão público.
Bolívia e Peru.
O leilão finalmente se realizou em 20 de abril de 2010, e apresentou vá-
O presidente da Eletrobras, José da Costa Carvalho Neto, anunciou o
rias idas e vindas. Das três empresas que realizaram os estudos de impacto
investimento de 123 bilhões de dólares junto ao setor privado nesta década
ambiental, ou seja, as que mais conhecem o projeto, duas se retiraram (as
para intervir em hidroelétricas, com o objetivo de internacionalizar a esta-
construtoras Odebrecht e Camargo Corrêa). A terceira, Andrade Gutier-
tal, que se converterá na “Petrobras dosetor elétrico”, com investimentos
rez, apresentou uma proposta destinada ao fracasso. Os retornos dos negó-
em Argentina, Colômbia, Peru e Venezuela.” As cifras que opera a Eletro-
cios seriam muito baixos e os riscos demasiado elevados, motivo que levou
bras em seusinvestimentos superam o PIB conjunto de Uruguai, Bolívia e
o governo a pressionar um grupo de empresas a se apresentar formando
Paraguai. Somente no Peru estima-se serem construídas 20 hidroelétricas,
o consórcio Norte Energia. Trata-se de nove empresas, das quais oito tem
uma participação individual pequena, enquanto a estatal Companhia Hi- que somariam 20 mil MW, duas vezes Belo Monte.
droelétrica do São Francisco, que pertence ao grupo Eletrobras, tem uma
participação decisiva com 49,98%.”
7 IHU Online, 11 de fevereiro de 2011, em: <http://www.ihu.unisinos.br/index.php>.
(Consulta 12/02/2011.) 7 “Fundos de pensãoestatais terão 10% da usina de Belo Monte”, O Estado de São Paulo,
“ Jornal do Brasil, 7 de fevereiro de 2011; “Nota pública do painel de especialistas sobre 15 de maio de 2010, em: <http://wwwestadao.com.br/noticias/impresso,fundos-de-pen-
a UHE Belo Monte”, Amazônia, 4 de fevereiro de 2011, em Rio Vivos, em: <http://www. sao-estataisterao-10-da-usina-de-belo-nte,552018,0.htm>. (Consulta 02/03/2011.)
riosvivos.org.br/canal.php?c=526&mat=17044>. (Consulta 11/02/2011.) 72 “Odebrecht, Camargo e Andrade vão construir usina de Belo Monte”, O Estado de São
º “Usina hidrelétrica de Belo Monte testa projeto energético de Lula”, em Folha de São Paulo, 15 de agosto de 2010, em: <http://www.estadao.com.br/noticias/impresso,odebre-
Paulo, 18 de abril de 2010. cht-camargo-eandrade-vao-construir-usina-de-belo-monte,595196,0.htm>. (Consulta
7 “Belo Monte o leilão que não Houve”, Folha de São Paulo, 23 de abril de 2010; “Um 15/02/2011.)
parecer oficial contra Belo Monte”, O Globo, 23 de abril de 2010; “Aneel confirma dois 7 “Amazônia é prioridade de expansão de fontes energéticas, diz Eletrobras”, Folha de São
consórcios na disputa por Belo Monte”, Valor, 16 de abril de 2010. Paulo, 10 de fevereiro de 2011.
183
182 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro
l, seguindo o mes-
Estado e capital glomerados diversificados com a mão de apoio estata
o XX. O jornalista
mo processo do capital mundial no começo do sécul
ando Henrique Cardoso
Em 5 de agosto de 2010, em plena campanhaeleitoral para eleição do suces- Vinicius Torres Freire acerta aosintetizar: “Fern
ra eloquentes. Em
sor de Lula, os cinco principais jornais do país publicaram um manifesto privatiza, Lula conglomera”.”* Os dados são sobremanei
empresasbrasileiras. Em
em defesa do BNDES diante da enxurrada de críticas que vinha recebendo 1996, o BNDEStinha participação em 30 grandes
53 empresas, e em 2009
“Em defesa de investimentos”, assim se intitula o texto, assinado por di 2003, o primeiro ano do Lula,já era acionista de
, Previ e Funcef,
associações empresariais da grande indústria que em conjunto faturavam chegou a 90. Se a isto se soma a presença dos fundos Petros
fundos de pensão
21% do PIB, e empregavam 2,5 milhões de trabalhadores.” o Estado está presente em 119 empresas em 2009.” Os
ganharam poder
Este ano as críticas ao BNDES chegaram das mais diferentes frentes: das grandes empresas estatais foram o grupo que mais
elas algumas gigantes,
desde o setor financeiro até os movimentos sociais, desde a direita até a entre 1996 e 2009. Previ controla 78 empresas, entre
decisivo em 18 e
esquerda. Para os bancos, é terrível que o Estado tenha capitalizado o BN- como a Vale; a Petros controla 31, a Funcef tem um papel
DES e que o banco use este dinheiro para emprestar a uma taxa mais baixa a Funcesp em 14.º%º
estatais não começou
do que se paga. Ou seja, o Tesouro Nacional capta dinheiro a uma taxa de O entrelaçamento de empresas privadase atores
s aspectos, seus
10,75% (taxa Selic), e o BNDES empresta às empresas a uma taxa de 6%.” com o governo Lula. Como se sucedeu em tantos outro
que, segundo o estu-
Daí os industriais dizerem que se tratava de uma campanha de desprestí- oito anos de governo aprofundaram um processo
ões sob a gestão de
gio do BNDESapoiada por bancos privados. do de Sérgio Lazzarini, começou durante as privatizaç
sas estatais, mas
Para outros, os empréstimos do BNDES têm um efeito concentrador Cardoso. Entre 1990 e 2002 foram privatizadas 165 empre
pelo qual o governo
da riqueza e facilitador da criação de monopólios, já que 57% favoreceram a partir de 2004 se inaugura um processo “jnverso”,
se produzem asso-
somente doze empresas, duas delas estatais (Petrobras e Eletrobras) e o recupera o controle de muitas delas e nesse processo
is, que permitem ao
resto privadas, onde se destacam três construtoras “amigas” do governo: ciações com o BNDESe os fundos de pensão estata
s empresas privadas.”
asbraali Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez. Na lista aparecem tam- Estado se posicionar como sócio decisivo em muita
rcios mistos com
bém outras multinacionais verde-amarelas, como a Vale, a Votorantim e Durante o leilão de privatização foram criados consó
governo de Cardoso,
JBS.”* Na mesma direção tem se afirmado que um banco estatal como o participação deestatais, impulsionadasinclusive pelo
icamente o processo”
BNDESdeveria financiar a inovação e as pequenas e médias empresas, já como forma de atenuar as críticas e “viabilizar polit
ex-Vale do Rio
que financiar grandes grupos “é transferir dinheiro do trabalhador para das privatizações.” Podemos voltar ao exemplo da Vale,
pela esquerda e por
alguns poucos acionistas, sendo concentrador de renda em um país muito Doce, empresa estatal cuja privatização foi contestada
realizada no Brasil, e foi
desigual?” movimentos sociais. Foi a maior privatização já
ar S.A., que con-
Chama atenção o fato de que empresas que eram familiares tenham possível graças ao aval do BNDESe a formação da Valep
l com direito de
se tornado grandes empresas por setores e tenham se convertido em con- trola o Conselho de Administração com 53% do capita
o fundos de pensão,
voto. A Valepar está dominada, por sua vez, por quatr
do Grupo Bradesco, com
aê fas us
liderados por Previ (com 49% das ações), seguido
Manifesto de empresários defende BNDES, mas especialistas criticam política de fo-
a Ó a 6 de e de 2010, em: <http://oglobo.globo.com/economia/mani-
-de-eml58presarios-defende-bndes-mas-especialistas-criticam-politica-
to-2969438>. (Consulta 15/02/2011.) RR 7 Folha de São Paulo, 2 de fevereiro de 2010.
: Elsevier, 2011.
?Ibid. 7 Sérgio Lazzarini. Capitalismo de laços. Rio de Janeiro
7º “Doze grup
na grupos ficam com om 579
57% de repasses do BNDES”,
E Folha de São
ã Paulo, 8 de agosto 8º O Globo, 5 de dezembro de 2010.
s Sérgio Lazzarini, Capitalismo de laços, op.cit., p. 10.
” Joaquin Eloi Cirne de Toledo, em O Globo, 6 de agosto de 2010. $ Ibid., p. 11.
A reorganização do capitalismo brasileiro &,185
184 BRASIL POTÊNCIA
17%, a multinacional japonesa Mitsui, com 15%, e o BNDES, com 9,5% das Mesmo não sendo acionistas majoritários em cada empresa individual, a
ações. Desse modo, mediante os fundos de pensões e do BNDES, a Vale centralidade dos fundos simplesmente criou oportunidades múltiplas de
“privatizada” está controlada pelo Estado, ou, mais precisamente, por essa coligação e negociação entre sócios das varias empresas onde estavam pre-
nova camada de gestores de fundos de pensão entrelaçados com grandes sentes.*
empresas brasileiras e o BNDES. Isto marca uma primeira e decisiva dife-
rença com outros processos de privatizações. Naturalmente, os investimentos que realizaram os fundos e o BNDES
A segunda é a modalidade dos leilões. Enquanto em outros países do impulsionam a concentração de capitais, porque estão focados em grupos
Norte a tendência foi a pulverização das ações em múltiplos pequenosin- econômicos grandes quelideram seus setores com o objetivo de conseguir
vestidores, no Brasil a venda do controle das empresas foi feita em bloco. certo controle, parcial ou às vezes quase completo, da cadeia de produção
“O consórcio vencedor, suportado por um acordo de acionistas definindo global de alguns produtos. Com base no trabalho do sociólogo Gary Gere-
os direitos e responsabilidades das partes, assumia o controle da nova em- ff, o economista brasileiro Mansueto Almeida explica que uma empresae
presa privatizada”, modalidade que permitiu a estes “blocos de controle” se um país se beneficiam do comércio internacional dependendo do seu grau
estabelecerem com 83% do valor total das privatizações.” O interessante é de inserção na cadeia global de produção. Em sua opinião, a criação de
que este duplo processo se deu sob o governo neoliberal de Cardoso, com- empresas gigantes só beneficia essas empresas, mas não necessariamente O
pelido sem dúvida por razões políticas e sociais. país ou quem coloca suas economias em fundosde pensão.*º
Desse modo, confirmou-se uma “coligação de apoio” integrada por Nessesentido, são discutíveis as opções de fundos de pensão. Em 2010,
grupos econômicos locais, novos investidores como os fundos de pensão Petros decidiu ingressar no bloco de controle do Itaú-Unibanco, o maior
de empresas estatais e os recursos públicos, o que veio a recompensar o do Brasil e um dos dez mais importantes do mundo. Petros investiu um
escasso apoio que recebeu o processo de privatização das elites e da clas- bilhão e meio de dólares na construtora Camargo Corrêa e obteve 11% do
se política.! Mas surge um terceiro aspecto que recém se evidencia sob capital com direito a voto e um assento no Conselho de Administração
o governo Lula e se trata do crescimento exponencial do papel conjunto do megabanco.” Semelhante poder tem levantado uma série de críticas
do BNDES-fundos de pensão: enquanto as empresas privadas, nacionais proveniente dos mais diversossetores.
e estrangeiras, mantiveram um papel similar ao que vinham jogando an- Em julho de 2007, foi criada a “Plataforma BNDES”, integrada por mais
tes, a combinação citada se converte no nó-chave da economia brasileira de trinta organizações sociais e ONGs.“ Seu objetivo é democratizar o
junto a um punhado de empresas privadas, entre as quais se destacam as principal instrumento público para o desenvolvimento do país, repolitizar
construtoras Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez, os grupos a economia e submeter ao controle público os investimentos do BNDES.
financeiros Itaú e Unibanco e o grupo Votorantim: Em 9 de julho de 2007, entregaram um documento ao presidente do banco,
Estando disseminados em diversas empresas e, ao mesmo tempo,ativos
nas estruturas de controle, os fundos tornaram-se em pivôs nas mais di- Tbid., p. 38.
setores”,
versas aglomerações locais corporativas. Associando-se aos fundos em ss Mansueto Almeida, “A concentração do investimento e da produção em poucos
9
entrevista, Revista IHU, n. 338, São Leopoldo, Universidade do Vale do Rio dos Sinos,
determinado contexto societário, tornou-se possível confrontar outros de agosto de 2010, p. 5-8.
São Paulo,
acionistas, cooptar aliados ou aumentar a voz nas decisões da empresa. 87 “Fundo de pensãoda Petrobrasvira sócio da controladora do Itaú”, Folha de
26 de novembro de 2010.
ss Entre os coletivos mais conhecidos que integram a “Plataforma BNDES”estão: Attac
Brasil, Central Única dos Trabalhadores, Comissão Pastoral da Terra, Conselho Indige-
* Ibid., p. 32. nista Misionero, Movimento de Atingidos por Barragens (MAB), Movimento de Traba-
“4 Ibid., p. 33. lhadores Rurais Sem Terra e Movimento Nacional de Direitos Humanos.
186 BRASIL POTÊNCIA A reorganização do capitalismo brasileiro 187
Luciano Coutinho,no qual defendem a transparência e que os investimen- Critica-se o BNDES não só por financiar empresas brasileiras, mas
tos objetivem superar as desigualdades e se comprometam com o meio também as de capital estrangeiro. Muitas das empresas que se consideram
ambiente. Num diálogo com as autoridades do banco estabeleceram cinco como “brasileiras”, diz esta crítica, são na realidade empresas incubadas
áreas prioritárias de trabalho: etanol, hidroelétrica, papel e celulose, infra-
pelo capital estrangeiro internacional que “se valem da estrutura institu-
estrutura social (saneamento) e integração regional.*”
cional oferecida pelo país para expandir e monopolizar faixas determina-
Em novembro de 2009, foi realizado o I Encontro Sul Americano de das de cadeias produtivas transnacionais”.Defato, os critérios do banco
Populações Impactadas por Projetos Financiados pelo BNDES, no Rio de
na hora de selecionar empresas para associar-se levam a priorização da-
Janeiro, com a participação de delegados do Brasil, Bolívia e Equador. A
quelas que já tem um lugar hegemônico em certos segmentos, que já cone
“Carta dos Atingidos pelo BNDES” aponta suas críticas aos monocultivos
seguiram o investment grade, desconsiderando as normativas ambientais
de cana de açúcare eucaliptos, a produção insustentável de carne, a explo-
e sociais.
ração de minerais, as fábricas de celulose, as usinas de produção de agroe- As grandes obras da Copa do Mundoe dos Jogos Olímpicos estenderam
nergia e hidroeletricidade, assim como as grandes obras de infraestrutura
e aprofundaram a participação estatal, ou seja, do pequeno núcleo de ges-
como portos, gasodutos, minerodutos, ferrovias e estradas.” A “Platafor-
tores dos fundos de pensão e do BNDES, onde se deixa sentir a influência
ma BNDES” recorda que os fundos da instituição provêm do tesouro Na-
do movimento sindical. Mais além das críticas à reestruturação do capi-
cional e do Fundo de Amparo ao Trabalhador, mas servem para aumentar
talismo que tem promovido o governo Lula, será necessária uma reflexão
os ganhos de um reduzido grupo de grandes empresas, e que a integração
mais profunda acerca de qual tipo de capitalismo é o que está promoven-
regional que o banco promove se baseia em umaforte concentração de ca-
do a ascensão do Brasil ao exclusivo clube das cinco principais potências
pital e no controle do uso deterritórios habitados por povos para produzir
mundiais, atrás somente da China, Estados Unidos, Índia e Japão. Ainda
mercadorias para exportação.
falta um levantamento que nos leve a aprofundar algumas estratégias se-
Membros da Rede Brasil sobre Instituições Financeiras Multilaterais
toriais, como a de defesa, o caráter das multinacionais brasileiras e o tipo
vêm também ampliando suas críticas ao BNDES, enfatizando o papel que
de integração regional que se está promovendo, para compreenderse es-
tinha em tempos anteriores no momento de consolidar o modelo de subs-
tamos diante de um caso típico de “imperialismo” ou diante da ascensão
tituição de importações e, logo, o processo de privatizações. A partir de
de uma grande potência diferente das que protagonizaram as metrópoles
2003, quando Lula ascende ao governo, o banco trabalha para produzir
ocidentais.
um “reposicionamento vantajoso na divisão internacional do trabalho”, o
qual se alcançaria por meio da concentração e centralização dos capitais
no Brasil capazes de impulsionar as “habilidades e especializações” neces-
sárias para conseguir esse objetivo.”
EVEr <http://wwwplataformabndes.org.br/index.php/quem-somos>. (Consulta
19/02/2010.)
*Ӽ Documento completo em: <http://www.plat aformabndes.org.br/index .php/pt/ anali-
ses-dodesenvolvimento/45-principal/499-carta-dos-atingidos-pelo-bndes>.
(Consulta
19/02/2010.)
*” Luis Fernando Novoa, “O Brasil e seu “desbord amento”: o papel central do BNDESn a
expansãodas empresas transnacionais brasileira s na América do Sul”, em Instituto Rosa
Luxemburg Stiftung, Empresas transnacionais brasileiras na América Latina,
São Paulo,
Expressão Popular, 2009, p. 190.
* Ibid., p. 191.
CAPÍTULO 6
As multinacionais brasileiras
na América Latina
O Brasil vive uma profunda mudança de sua inserção na
economia e na política globais. Nunca antes na história deste
país se produziu, exportou e investiu tanto, em especial fora
das fronteiras — desenvolvendo as empresas transnacionais
de origem brasileira. Nunca antes a política externa brasileira
foi tão independente - com base na exploração dos recursos
econômicos da América Latina e na disputa de mercados e
de espaços de investimento em África. Nunca antes o Brasil
foi tão engajado — ao ponto de grandes capitalistas apoiarem
políticas compensatórias “de esquerda”. Na verdade — e é o que
queremos investigar com esta série de artigos - nunca antes o
Brasil foi tão imperialista.
JoÃo BERNARDO
“As coisas acontecem, não existe programação na vida, não há um roteiro”,
diz um homem de mais de 70 anos enquanto passeia pela célebre Feira
Anuga, na Alemanha. Ele começou a trabalhar aos 15 anos e só pode es-
tudar até a quarta série; quando terminouo serviço militar se dedicou ao
trabalho com gado para ganhar a vida, vendendo a açougues da pequena
cidade de Anápolis, com cerca de 50 mil habitantes, no Estado de Goi-
ás. Quandoo presidente Juscelino Kubitschek chamouos brasileiros para
construir Brasília, entusiasmou-se porque “o governo deu quatro anosli-
vres de isenção de impostos para quem quisesse trabalhar ali”, e decidiu
instalar um matadouro na futura capital que matava 25 vacas por dia e
vendia para trabalhadores da construção civil. O negócio começoua cres-
cer ao mesmo ritmo da cidade. Meio século depois, em 2007, quando ele
comprouo frigorífico estadunidense Swift por 1,4 milhão de dólares, o ne-
189
190 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 191
gócio da família tornou-se a multinacional do Zé Mineiro, usandoa sigla mais velho, começou a trabalhar aos 14 anos no abatedouro de Anápolis.
JBS, referindo-se ao nome verdadeiro de seu dono: José Batista Sobrinho.' Ele trabalhava de dia e estudava à noite, e não terminou o segundo grau do
Em sua viagem à Alemanha concedeu a primeira entrevista de sua vida. ensino médio porque foi para o Distrito Federal vender carne. Joesley, o
O fundadordo frigorífico Friboi, controlado pela JBS,relembrou sua traje- mais jovem, aos 17 anos começou a administrar o frigorífico da família em
tória: em 1953 ele abriu um açougue em Anápolis, em 1957 se instalou em Luziânia,interior de Goiás. Ele deixou o ensino médio escolar, pois conse-
Brasília, em 1962 alugou um matadouro em Luziânia e em 1969 comprou guiu aumentar o abatimento de 80 para 300 cabeças, o que lhe converteu
o Matadouro Industrial de Formosa, ano em que surge o nome da empre- em um dos mais populares da família.
sa, Friboi. Trata-se de uma empresa familiar em que trabalham seusseis O caso da JBS Friboi não é exceção entre as multinacionais brasileiras.
filhos (três homens e três mulheres), que abandonaram os estudos para se Pode-se dizer que há duas genealogias: as grandes empresas estatais que
dedicar todo o seu tempo aos negócios da família. “Nosso conhecimento foram privatizadas, no todo ou em parte, durante o governo de Fernando
não é acadêmico, aprendemos com a vida”, disse Wesley à revista Forbes, Henrique Cardoso, como a Petrobras, a Vale do Rio Doce, a Embraer — a
interessada em conheceros segredos da maior empresa de carne bovina do quarta petroleira, a segunda mineradorae a terceira empresa aeronáutica
mundo e o segundo em carne de frango.” do mundo, respectivamente —, nas quais o Estado mantém umaforte pre-
Nadécada de 1990 a família queria expandir-se dentro do Brasil, e pou- sença por meio do BNDESe dos fundos de pensão. A segunda genealogia
co depois apostaram na região sul-americana. A primeira grande aquisi- está relacionada às empresas familiares do tipo da que fundou Zé Minei-
ção foi a Anglo, em 1995, logo depois a área de bovinos da Sadia, nos anos ro: Norberto Odebrecht, Camargo Corrêa, Gerdau, Andrade Gutierrez,
seguintes compraram osfrigoríficos Mouran, Araputanga, Frigovira e fez Votorantim, e muitos outros. Mas estas empresas de origem familiar tam-
umaaliança com a Bertin, outro gigante brasileiro da carne, que culminou bém vão compartilhando o controle de suas companhias com o Estado.
com a fusão. Em 2005, compraram a Swift ArmourS.A., a maior produto- Depois de crescer vertiginosamente, e endividar-se graças ao apoio do
ra e exportadora de carne bovina da Argentina. Em 2007, chegou ao ponto BNDES, a multinacional JBS Friboi deixou de ter a família Batista como
de ficar com a Swift dos Estados Unidos, que passava por dificuldades eco- principal acionista. Em 2011, esse lugar passou a ser ocupado pelo BNDES,
nômicas, como quase todas as outras empresas que compraram. Para isso, com 35% do capital total, enquanto a família que fundou a empresa ficou
aliaram-se com o BNDES, que em 2007 fez seu primeiro investimento na com 24,2%.º
JBS e passou a controlar os 20,6% da empresa. Ambas as genealogias empresariais têm várias questões em comum.
Em 2011, JBS possuía 18 abatedouros no Brasil, seis na Argentina, oito São empresas de caráter familiar e local-regional em seus inícios que se
nos Estados Unidos e quatro na Austrália. Nos Estados Unidos, o maior expandem de modo exponencial durante o governo Kubitschek, seja pelos
mercado de carne bovina do mundo,a JBSé responsável por 22% da oferta. grandes investimentos estatais em obras de infraestrutura ou pela amplia-
Em 2010, faturou 35 bilhões de dólares. Apesar destes dados espetaculares, ção do mercado interno. Nas décadas seguintes se convertem em impor-
os filhos do Zé Mineiro seguiram o mesmo comportamento do pai:José, o tantes empresas nacionais e durante a globalização começam sua marcha
internacional. Em geral se expandem primeiro na América do Sul, que é a
| « 2.»
Zé Mineiro, o patriarca da JBS, mantém os pés no chão”, Aída do Amaral Rocha, em
Valor, 8 de novembro de 2007, em: <http://www.sysrastro.com.br/sysrastro/detnoticia.
phpênotcodigo=6329&PHPSESSID=7c4e84b678c10368f2607b9d94e3ce31>. (Consulta * Valor, 25 de novembro de 2005.
2/01/2012.) * Revista Época, 5 de dezembro de 2009, em: <http://revistaepoca.globo.com/Revista/Epo-
2 “JBS: TheStory Behind The World's Biggest Meat Producer”, Karen Blanfeld, em Forbes, ca/1,EM1108857-15228,00.html>.
21 de abril de 2011, em: <http://blogs.forbes.com/Kkerenblankfeld/2011/04/21/jbs-the-sto- * “BNDESterá 35% da JBS após trocar debêntures”, Valor, 19 de maio de 2011, em: <http://
ry-behind-the-worlds-biggest-meat-producer>. (Consulta 15/05/2011.) www-fazenda.gov.br/resenhaeletronica/MostraMateria.asptcod=722581>. (Consulta
* Ibid 2/01/2012.)
192 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 1493
base de apoio mais importante, em seguida, para o resto do mundo, com O caso mais notável de internacionalização está relacionado às empre-
um papel em destaque para a África. sas de construção, que geralmente ocupam lugares de destaque no ranking.
Todasas três nasceram em 1940 como empresaslocais ou regionais sempre
ligados a uma família. Camargo Corrêa foi fundada em 1939 por Sebas-
À internacionalização das empresas brasileiras tiãão Camargo, em uma pequena cidade no interior de São Paulo. Filho
de fazendeiros, percorreu um caminho semelhante ao de Zé Mineiro: só
As grandes empresas seguiram um itinerário comum, com pequenasdife- estudou até a terceira série e aos 17 anos começou a trabalhar na constru-
renças. As que estão vinculadas à exploração de recursos naturais, a Petro- ção; seu pequeno negócio se expandiu durante o crescimento do país e a
bras e a Vale, saíram para o exterior buscando novas jazidas. As grandes construção de Brasília, até participar nas obras de Itaipu, de várias hidro-
construtoras aproveitaram a experiência adquirida no país para estender elétricas e da ponte Rio-Niterói.
suas redes de negócios na região e no mundo. As indústrias manufaturei-
ras, por sua vez, foram ultrapassando as fronteiras do Brasil recentemente,
na década 1990. A história dessas multinacionais remonta ao período pos- Quadro5. Internacionalização das multinacionais brasileiras (20 primeiras empre-
terior à revolução de 1930, liderada por Getúlio Vargas. sas em 2011)
Até então o Brasil era um país agrícola exportador de café. As primeiras
indústrias foram criadas, como em outros países da região, no início do Empresa Setor Empregosno exterior (%) Receitas no exterior (%)
século XX por imigrantes europeuse alguns proprietários de terras. Com Jbs-Friboi Alimentos 61,7 TTA
o enfraquecimento das oligarquias agropecuárias, o Estado potencializou Gerdau Metalurgia 45,3 52,0
o nascimento de grandes empresas ligadas à exploração dos recursos na- Odebrecht Construção 45,0 59,8
turais: a Companhia Siderúrgica Nacional (fundada em 1941), a Vale do Metalfrio Eletrônica 47,4 40,0
Rio Doce (1942) e a Petrobras (1953). Todas três são filhas do Estado Novo, Ibope Serviços 59,2 29,7
embora a Petrobrás só tenha sido fundada após seu término. Andrade Gutierrez Construção 44,7 33,9
Depois da crise mundial de 1929, desenvolveu-se o processo de substi- Coteminas Mineração 21,9 88,5
tuição de importações, que resultou no crescimento da indústria. Na década Vale Mineração 20,8 56,6
de 1970, começaram as exportações de têxteis e calçados. Em paralelo, o Marfrig Alimentos 37,2 39,0
Brasil se converteu em um forte receptor de investimentos estrangeiros dos Ambev Alimentos 28,5 32,0
Estados Unidos e Europa, que dedicaram às indústrias de bens de consumo Stefanini Informação 37,0 35;/
duráveis (automóveis e eletrodomésticos), nas mãos de empresas como Ford, SABÓ Veículos 35,7 43,2
GM,Volkswagen, Whirlpool, Scania, Volvo e Mercedes Benz, dentre as mais Marcopolo Veículos 26,0 29,8
proeminentes. Com o regime militar, cresceram as empresas de construção Weg Mecânica 16,0 39,2
nacionais (Odebrecht, Camargo Corrêa e Andrade Gutierrez), foi criada em Embraer Veículos 5,0 34,9
1969 a empresa aeronáutica Embraer e a indústria petroquímica, baseada Magnesita Alimentos 17,0 29,2
numaaliança entre o Estado e os capitais privados e estrangeiros.” Artecola Química 20,6 17,7
Camargo Corrêa Grupo ec. 17,0 17,3
Votorantim Grupo ec. 11,6 21,1
7 Afonso Fleury, Maria Tereza Leme Fleury e Germano Glufke, “El camino se haceal 6,5
Remi Mecânica 13,1
andar: La trayectoria de las multinacionales brasilehas”, em Universia Business Review,
primeiro trimestre de 2010. Fonte: Valor, “Multinacionais brasileiras”, Setembro 2011, p.30.
194 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 195
Hoje a família Camargo possui uma das maiores fortunas do país, e a na Mauritânia entre 1975 e 1979, quando ainda não havia multinacionais
empresa se diversificou em construção, cimento, calçados, têxteis, siderur- brasileiras.2 Em 1979, a Odebrecht realizou obras no Chile e no Peru, e a
gia e energia, formando um grupo econômico que opera em mais de 20 Camargo Corrêa constrói a usina hidrelétrica de Guri, na Venezuela. Em
países.º 1983, Andrade Gutierrez faz seu primeiro trabalho no exterior ao construir
Norberto Odebrecht foi criada em Salvador em 1944 por uma família umaestrada no Congo, e a Queiroz Galvão começa sua marcha internacio-
de descendentes de alemães que vieram para Santa Catarina em meados do nal com uma represa no Uruguai.
século XIX. Tornou-se a maior empresa de construção do país, e controla As grandes construtoras brasileiras começaram sua movimentação in-
a Braskem, maior empresa petroquímica da América Latina, que exporta ternacional na América do Sul por conta da proximidade geográfica e as
para 20 países. Andrade Gutierrez foi criada em 1948 por duas famílias, afinidades culturais, e, em segundo lugar, para África e Portugal. Mui-
e se tornou uma dos maiores conglomerados de infraestrutura do país, tas outras seguiram o mesmo caminho. Atualmente existem 885 empre-
atuando em vários setores, desde a construção até as telecomunicações, sas brasileiras que investem em 52 países, o que está indicando que não o
e está presente em 30 países.” As outras grandes empresas de construção fazem apenas as grandes, mas também médias.” Segundo algumas pes-
nasceram no mesmo período no Nordeste: Queiroz Galvão em 1953, em quisas, a preferência das multinacionais brasileiras por América do Sul
Pernambuco, fundada por três irmãos, e OAS em 1976, em Salvador.'º e África também estaria vinculada ao fato de que estas regiões “não têm
Até 1960, sob o mandato de Kubitschek, haviam sido construídos 20 empresas poderosaso suficiente para fazer frente às grandes brasileiras”.
mil quilômetros de rodovias e quase mil de ferrovias, mas as obras que Nafase final da ditadura militar, com o qual as construtoras tinham
mais deixaram ganhospara as construtoras foram as represashidrelétricas excelentes relações, houve uma redução significativa das grandes obras, o
e as obras encomendadas pela Petrobras, em particular refinarias e pla- que coincidiu com um período de aguda crise econômica. A saída ao ex-
taformas . A criação do Banco Nacional de Habitação (BNH) durante o terior e a diversificação foram as formas que encontraram as construtoras
regime militar foi importante para o crescimento das construtoras, que se para enfrentar o novo cenário. As empresas perderam o seu caráter ori-
beneficiaram ainda com todo um conjunto de obras como a rodovia Tran- ginal de construtoras, convertendo-se em “conglomerados monopolistas
samazônica, as grandes barragens, como Itaipu, TucuruíI e II, e milhares com uma variada carteira de investimentos, dentre os quais o de constru-
de quilômetros de estradas. O “Milagre Econômico” da ditadura teve um ção de obras de infraestrutura se tornou minoritária”. A Odebrecht, por
efeito colateral sobre a ampliação de um punhado de empresas familiares exemplo, comprou uma empresa muito maior, a petroquímica Braskem.
que foram responsáveis pelas grandes obras. A construção foi nesses anos Em 2006, quase 70% do faturamento da Odebrecht proveio da petroquími-
um dos três setores com maior crescimento,junto dos bens de produçãoe ca, frente a apenas 30% das áreas de construção e engenharia.
o setor financeiro. Algo similar ocorre com as outras construtoras. Andrade Gutierrez tem
No final da década de 1970, as grandes construtoras começaram sua investido nas empresas de telecomunicação Oie Brasil Telecom, um setor
concentração monopolista e a expansão fora das fronteiras. Entre 1969 e que responde por 60% das vendas da empresa. Camargo Corrêa, a mais
1973, Mendes Júnior construiu uma hidrelétrica na Bolívia e uma rodovia diversificada de todas, comprou as marcas de calçados Topper e Havaia-
* Ver site oficial da empresa: <www.camargocorrea.com.br>. 2 Ibid., p. 108.
* <www.andradegutierrez.com.br>. 13 “Multinacionais brasileiras. A rota dos investimentos brasileiros no exterior”, KPMG,
“ Pedro Henrique Pedreira Campos, “As origens da internacionalização das empresas de 2008, em: <www.kpmg.com.br>.
engenharia brasileiras”, em Empresas transnacionais brasileiras na América Latina: um 4 Pedro Henrique Pedreira Campos, “As origens da internacionalização das empresas de
debate necessário. São Paulo: Expressão Popular, 2009. p. 105. engenharia brasileiras”, op. cit., p. 109.
“ Ibid. 15 Ibid., p. I11-112
196 BRASIL POTÊNCIA
=”. As multinacionais brasileiras na América Latina 497
nas, além da Levi's, da Lee e da Santista Têxtil, ingressou na agropecuária, A tendência de investir primeiro em países vizinhos parece ser o ca-
nos negócios imobiliários, construção naval, cimento, e comprou a Loma minho natural de todos os processos de internacionalização. A presença
Negra e Alpargatas na Argentina, investiu na siderúrgica Usiminas e no média das principais multinacionais brasileiras de 53% na América La-
Banco Itaú. Em 2003,a área de construção foi de pouco mais de 20% de tina é avaliado por um estudo da Fundação Dom Cabral comotípica dos
toda a empresa.!é estágios iniciais de internacionalização, porque a proximidade geográfica
influencia na “redução dos custos do processo de expansão”, o que seria
confirmado pelo fato de as empresas que estão nos estágios iniciais de in-
Quadro 6. Localização das subsidiárias das multinacionais brasileiras (20 primeiras ternacionalização “aumentam sua concentração na América Latina”.” Du-
em 2009) rante a crise, esta tendência foi reforçada ainda mais: entre 2008 e 2009 as
empresas brasileiras retiraram seus investimentos dos países desenvolvi-
Empresa Total países A. Latina A. Norte Europa África Ásia Oceania dos, 47% na América do Norte e 18% na Europa, mas aumentaram 36% na
Vale 33 15% 6% 15% 21% 36% 6% Ásia, 126% na África e 15% na América Latina.'º
Petrobras 26 38% 8% 12% 19% 19% 4% O processo de internacionalização tem sido gradual. As empresas ge-
Banco do Brasil 23 43% 4% 30% 4% 17% 0 ralmente começam atendendo o mercado interno e apenas em determina-
Votorantin 21 19% 10% 29% 24% 14% 5% do estágio tornam-se exportadoras. Mais adiante, uma vez que abriram
WEG | 20 25% 0 45% 0 25% 0 mercadose os consolidaram, passam a ter um agente no país para onde
BrasilFfoods | 20 25% 0 40% 0 30% 0 exportam, num processo que pode levar a instalação de uma fábrica de
Odebrecht 17 47% 6% 12% 24% 12% 0 produção. As pesquisas mostram que as empresasbrasileiras que investem
Stefanini 1 16 50% 13% 25% 6% 6% 0 no exterior têm uma longa tradição como exportadoras, mas também um
Camargo Corrêa 14 1% 7% 7% 14% 0 0 alto coeficiente das vendas externas nas vendas totais.” Em uma primeira
Gerdau 14 1% 14% 7% 0 7% 0 fase os investimentos se realizam como apoio à comercialização por meio
Ibope 14 93% 7% 0 0 0 0 de escritórios de representação, centros dedistribuição e assistência técni-
Marfrig 12 33% 8% 42% 8% 8% 0 ca. Finalmente, a conquista do mercado externo obriga muitas empresasa
Randon 10 30% 10% 10% 30% 20% 0 passar dos investimentos comerciais para os produtivos.
TOTVS 10 80% 0 10% 10% 0 0 A desregulamentação econômica que promoveu O Consenso de Wa-
Eletrobras 10 100% 0 0 0 0 0 shington, que resultou em umaentrada maciça de capital estrangeiro na
Tigre 9 89% 11% 0 0 0 0 região e no Brasil, foi uma das forças motrizes para a internacionalização
Localiza 9 100% 0 0 0 0 0 de grandes empresas brasileiras em busca de melhorar a sua competitivi-
Natura 9 78% 11% 11% 0 0 0 dade. O perfil das 500 maiores empresas da América Latina mudouentre
JBS 7 43% 14% 14% 0 14% 14% 1991 e 2001: a representação das multinacionais estrangeiras passou de
Indice de
Regionalização 52,95% 9,18% 16,89% 543% 14,66% 0,89%
*Sobre 38 empresas
Fonte: Ranking das Transnacionais Brasileiras, FDC, op.cit., p. 10. 7 Fundação Dom Cabral, “Ranking das Transnacionais Brasileiras 2010”, em: <www.fdc.
org.br/pt/Documents/ranking.transnacionais 2010.pdf>. (Consulta 20/05/2011.)
“ Tbid., p. 12.
'º Roberto Iglesias, “Os interesses empresariais brasileiros na América do Sul: investimen-
'Tbid., p. 112-113. tos diretos no exterior”, Brasília, CNI, 2007, p. 35.
198 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 199
27% para 39%.” De acordo com o estudo da Cepal, “a crescente compe- Bahia, em dezembro de 2008, onde se apresentava como “a construtora
tição pôs pressão sobre os grupos nacionais, que tradicionalmente forne- da integração regional”.Na verdade, a construtora acabara de entrar em
ciam produtos e serviços para seus mercados locais”, e os impulsionou a conflito com o governo equatoriano, em virtude da construção de uma
buscar mercados externos.” barragem,e apelou tanto ao governo Lula quanto à aliança com os gover-
A criação do Mercosul foi, nesse sentido, uma forma de abrir o mercado nos progressistas da região para obter respaldo.
regional para as empresas poderem enfrentar a concorrência em melhores
condições e, por sua vez, de protegê-las frente à pressão cada vez maior
das grandes multinacionais. No entanto,o fato de ser competitiva também Os investimentos estrangeiros no Brasil
internacionalmente foi a chave para manter uma forte presença no mer-
cado interno,já que a crescente interdependência dos mercados mundiais Existe um consenso de que os investimentos brasileiros no exterior são ain-
terminarou afetando a todososatores de todosos países.? da muito pequenos em relação ao PIB e podem crescersignificativamente
Entre 1995 e 2004 as empresasbrasileiras realizaram fora das fronteiras nos próximosanos. O Brasil foi e ainda é um dos grandes destinatários de
90 fusões e aquisições, com a seguinte distribuição geográfica: 29 em países IED (Investimento Estrangeiro Direto), mas na década de 1990 tornou-se
desenvolvidos e 61 países em desenvolvimento, das quais 32 estavam na Ar- um exportador de capitais (investimento brasileiro direto, ou IBD). Em
gentina, quatro na Colômbia, Peru e Venezuelae três na Bolívia.” Entre 2002 algunsanos, o investimento brasileiro superou o investimento estrangeiro
e 2004, dos vinte projetos mais importantes de empresas brasileiras para a no Brasil, no marco de uma profunda reacomodação mundial dos fluxos
instalação de novas fábricas no exterior, quatorze se localizavam na Amé- de capital, como consequência dascrises das economias centrais e da cres-
rica do Sul, uma na América Central, três em Portugal, uma no Irã e outra cente desarticulação geopolítica. Uma breve visão retrospectiva permite
na Noruega.” Este conjunto de dados confirma a opção das multinacionais observaras tendências subjacentes. Para fazer isso veremostrês séries his-
brasileiras pela região, onde estão construindo o grosso das obras da Iirsa tóricas vinculadas à evolução do investimento estrangeiro.
(Iniciativa de Integração da Infraestrutura Regional Sul Americana). A primeirareflete a evolução do IDE global. Até o triênio 1978-1980, 97%
A expansão para a região tem sido marcada por conflitos entre empresas dos investimentos estrangeiros diretos eram realizados pelas economias
e governos, muitas vezes por não cumprimento que tem causado situações desenvolvidas e apenas 3% pelas economias em desenvolvimento. Isto quer
ríspidas e conflitos diplomáticos. Noentanto, algumas multinacionais vêm dizer que o grosso dos capitais investidos no mundo vem dos países mais
tentandose colocar como representantes do Brasil no exterior em sintonia desenvolvidos. Mas, na primeira década do século XXI, as economias em
com a política oficial do governo, o que faz com que os interesses empre- desenvolvimento e emergentes mostraram capacidade de atrair mais e mais
sariais se confundam com os interesses nacionais. Odebrecht desenvolveu capitais. Em 2005, essas economiasjá atraíam 12% dos fluxos globais de ca-
uma ampla publicidade para o encontro latino-americano realizado na pital, e em 2009 passaram a 21%. Um giro maior ocorreu em 2010, quando
as economias emergentes e em desenvolvimento atraíram mais capitais que
os desenvolvidos: 53,1% frente a 46,9%. “Pela primeira vez desde o início da
”Javier Santiso, “La emergencia de las multilatinas”, em Revista da Cepal, Santiago, n. 95, série histórica da UNCTAD, em 1970, os países desenvolvidos receberam
menos da metade dos fluxos globais da IED”.» A série histórica mostra a
agosto de 2008.
2 Tbid., p. 20.
2 Ana Claudia Alem e Carlos Eduardo Cavalcanti, “O BNDES e o apoio à internacionali-
zação das empresas brasileiras: algumas reflexões”, em Revista do BNDES, Brasília,n. 24,
dezembro de 2005. 2 “Pivô de crise, Odebrecht saúda cúpula e pede integração”, Folha de São Paulo, 15 de
? Márcia Tavares, “Investimento brasileiro no exterior: panorama e considerações sobre dezembro de 2008. o
políticas públicas”, Santiago, Nações Unidas/Cepal, novembro de 2006, p. 16. 26 “Boletim SOBEET”, Sociedade Brasileira de Estudos de Empresas Transnacionais e da
“ Ibid., p. 17. Globalização Econômica, São Paulo, n. 77, 26 de janeiro de 2011.
”.
As multinacionais brasileiras na América Latina 201
BRASIL POTÊNCIA
200
As tendências mudaram em meados da década de 1990. O Brasil passou
profunda reorganização espacial do sistema capitalista, que vinha se insinu-
a captar a metade do investimento estrangeiro direto na América do Sul,
ando mas tornou-se ainda mais pronunciada apósa crise financeira de 2008.
A segundasérie se refere à evolução do IDE recebido pelo Brasil e pela muito acima dos demais países.”
As estimativas para 2011 antecipam uma nova onda de investimentos
região. A série histórica disponível desde 1950 indica que o Brasil foi o país
estrangeiros no Brasil, com um crescimento de 35% em relação ao ano an-
que mais captou investimentos no decênio de 1970-1980, aproximadamen-
terior.ºO Brasil se converteu no quinto destino do investimento mundial,
te a metade de todasas entradas totais da America Latina.” Em seguida, os
investimentos no Brasil diminuíram, tendo sido deslocados para a Argen- muito perto da China. Masa tabela também mostra a evolução dos outros
tina e para o México como destino principal do capital transnacional em países na cartografia do capital. Como o Brasil cresce exponencialmente,a
busca de investimento. No quinquênio 1990-1994, o Brasil atraiu apenas
Argentina passa a um lugar secundário atrás do Chile, mas também atrás
do Peru, enquanto a Colômbia se converte na estrela dos investimentos,
19% dos investimentos da região sul-americana, enquanto Argentina, que
já vivia o período mais intenso de privatização das empresas estatais, e O
dobrando o total recebido pela Argentina em 2011.México tende a re-
México receberam três vezes mais investimentos queo Brasil.”
troceder, em grande parte, por sua dependência do mercado dos Estados
Unidos, o epicentro dacrise de 2008. A Venezuela é o país de que 0 capital
tende a fugir.
Quadro 7. O investimento estrangeiro direto na América do Sul e México (2000-
. A terceira série de dados se concentra sobre os Investimentos Brasi-
2010 em milhares de milhões de dólares) leiros Diretos (BID), que estão experimentando um avanço importante
como reflexo da maturidade das grandes empresas multinacionais e do
2010 am| apoio que recebem do Estado por intermédio do BNDES. Embora as em-
País roga| tosa Otis 2006| 2007 2008 2009 o
presas tenham cerca de 150 bilhões de dólares investidos no exterior,
américa doSul 8.941 47.195 37.969 43.410 71.227 91.329 54,550 85:14 121.318 Brasil tem um dosíndices mais baixos de investimento direto exterior do
Brasil 1708 21755 19197 18.822 34585 45.058 25.949 48.462 66.700 mundo, abaixo inclusive dos países em desenvolvimento e de outros da
Argentina 2971 [10.742 4206 5597 6473 9.726 4017 64198 6.300 região sul-americana. Os países desenvolvidos investem no exterior cerca
Chile 1219 5058 5012 7.208 12.534 15.150 12.874 15.095 17.600 de 2% do PIB. Na América Latina, nos últimos anos,o investimento direto
Colômbia 818 2505 3.683 6.656 9.049 10.596 7.137 6.760 14.400 no exterior do Chile foi de 5% do PIB, Colômbia de 1,3% e México de 0,9%,
Perú 785 2022 1.604 3.467 5491 6924 5576 7.328 7.900 enquanto o do Brasil está abaixo de 0,5%.”
Venezuela 836 3416 2546 -508 1.008 349 |-3.105 |-1404 sia Aoexplicar o baixo volumede investimentos geralmente se argumenta
México 5.480 11.265 22.722 19.779 29.714 25.864 15.206 17.726 17.900 a falta de uma política de crédito para financiar as operações no exterior,
* Médias anuais **Preliminar.
o alto custo de capital, redução da capacidade para investir por conta de
Fontes: Ziga Vodusek, “Inversión extranjera directa en América Latina”, op. cit., p. 21; Cepal,
“La umalonga história de protecionismoe a falta de preparo dos empresários
Invest-
inversión extranjera directa en América latina y el Caribe”, 2010, op.cit., p. 45; UNCTAD,“
ment Trend Monitor”, n. 8, Nações Unidas, Nova York, 24 de janeiro de 2012.
2 Cepal, “La inversión extranjera directa en América Latina y el Caribe”, Nova York, Na-
ções Unidas, 2010,p. 45.
“Investment
30 “Boletim SOBEET”, N. 79, São Paulo, 26 de abril de 2011 e UNCTAD,
7 Gustavo Bittencourt e Rosario Domingo, “Inversión extranjera directa en América La-
Cuaderno Trend Monitor”, N. 8, Nações Unidas, Nova York , 24 de janeiro de 2012.
tina: tendencias y determinantes”, Montevideo, Facultad de Ciencias Sociales,
3 UNCTAD, “Investment Trend Monitor”, op. cit., p. 6.
de Trabajo, n. 6, 1996, p. 60. La inversión
32 Márcia Tavares, “Investimento brasileiro no exterior”, op. cit., p. 12; Cepal,
28 Ziga Vodusek, Inversión extranjera directa en América Latina. El papel de los inversores
extranjera directa en América Latina y el Caribe. Nova York, Nações Unidas, 2009, p. 69.
europeos, Washington, Banco Interamericano de Desarrollo, 2002, p. 21.
202 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina fis 203
por sua mentalidade de curto prazo.” A década de 1990 não teria sido fa- sileiros no Exterior (CBE) se realiza desde 2001, e permite visualizar as
vorável para a expansão das multinacionais brasileiras, em grande parte mudanças na última década:o investimento estrangeiro se multiplicou por
por dificuldades internas. Em 2003, havia apenas três empresas brasileiras quatro em menos de uma década, acumulando 165 bilhões dólares.” O
entre as 50 maiores transnacionais não financeiras de países em desenvol- mais significativo é que cresceu durante as crises, quando os capitais do
vimento (Petrobras, Vale e Gerdau).*! No entanto, nos últimos anos esta mundose retraíram buscando refúgios especulativos.
situação tende a mudar. Brasil está adotando uma política de Estado para fomentar os investi-
Na verdade, os investimentos brasileiros no exterior deram um impor- mentosno estrangeiro, embora o processo ainda tenha uma escassa consis-
tante salto adiante na primeira década do século XXI, a tal ponto que em tência. Um estudo sobre os investimentos externos do Brasil detecta preci-
2006 superou os investimentos estrangeiros no Brasil.Nesse ano o país samente esta lacuna: “Não é possível identificar-se com clareza uma visão
foi o décimo segundo investidor do mundo, à frente da Rússia e da China, estratégica do setor público brasileiro com relação a esses investimentos e
e de vários países desenvolvidos, sendo o segundo maior investidor entre ao papel que podem desempenhar no desenvolvimento econômico dopaís,
os países em desenvolvimento. O quadro 8 resume os acontecimentos da e também não há um conjunto bem definido de políticas voltadas para o
última década na região, na qual despontam os países andinos como po- apoio e a promoção dos investimentos”.”
tenciais exportadores de capital. Umavisão mais detida observa que desde 2003 o BNDES, um dos prin-
- cipais instrumentosde política econômica,resgata o conceito de “inserção
competitiva”, que busca um reposicionamento vantajoso do Brasil na di-
Quadro 8. Investimento direto no exterior de países da América Latina (2001-2010 visão internacional do trabalho, que se traduz em concentração e centra-
em milhões de dólares) lização de capitais para competir fora das fronteiras.” Durante o governo
Lula, o BNDES decidiu impulsionar grandes empresas sediadas no Brasil,
País 2001 2002 2003 2004 2005 2006 2007 2008 2009 2010 ainda quesejam filiais de multinacionais de outrospaíses, e apoiar as suas
Argentina 161 /-627 TIA 676 1.311 [2439 1.504 1.391 710 946 principais iniciativas. Para o então presidente do BNDES,Luciano Couti-
Brasil 2.258 2.482 249 9.807 2.517 |28.202 7.067 20.457 -10.084 |11.500 nho,o “critério objetivo” para receber apoio do bancosão “os resultadose
Chile 1.610 343 1.606 1.563 2183 2171 2.573 8.040 8.061 8.744 os números das empresas”.”
Colômbia 16 857 938 142 4662 1.098 913 2254 3.088 6.504 Estudos do BNDES confirmam que os encarregados de apoiar as em-
México 4404 891 1.253 4.432 6.474 5.758 8.256 1.157 7.019 12.694 presasbrasileiras entenderam que “sem empresas competitivas internacio-
Fonte: Cepal, “La inversión extranjera directa en América Latina y el Caribe”, 2009, p. 85; 2010, p.75. nalmente, um país não pode melhorar sua performance”.“ O banco de fo-
mento analisa que, já em 1990, as 420 maiores empresas do mundo foram
A série indica que o Brasil e o Chile são os países que acompanharam
de modo consistente a expansão do investimento direto no mundo. Em 35 “Capitais Brasileiros no Exterior. 2011”, em http://www4.bcb.gov.br/rex/cbe/port/cbe.
ambos se concentram dois terços da TED sul-americana. O Brasil tem uma asp (Consulta 14/01/2012).
enorme quantidade de capital no exterior, que se aproxima a 10% do PIB Fernando Ribeiro e Raquel Casado Lima, “Investimentos brasileiros na América do Sul:
desempenho, estratégias e políticas”, Rio de Janeiro, Funcex, julho de 2008, p. 36.
e não deixa de crescer, apesar da crise mundial. A pesquisa Capitais Bra-
38 Luis Fernando Novoa, “O Brasil e seu desdobramentó: o papel do BNDESna expansão
das empresas transnacionais brasileiras na América do Sul”, em Instituto Rosa Luxem-
burg Stiftung, Empresas transnacionais brasileiras na América do Sul, op. cit., p. 189.
% Ibid., p. 13. 3 Luciano Coutinho entrevista a Agência Brasil, 29 de abril de 2008, citado por Luis Fer-
*“ Ibid.,p. 19. nando Novoa,op. cit. p. 193.
* KPMG, “Multiancionais brasileiras”, op. cit. 10 Ana Claudia Alem e Carlos Eduardo Cavalcanti, Revista do BNDES, op.cit., p. 56.
204 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 4205
responsáveis pela metade do comércio internacional, e que as multinacio- doméstico”.'* Os bens de consumoduráveis e o bens de capital são a espi-
nais foram a principal fonte privada de investigação e desenvolvimento nha dorsal dessa estratégia.
dominando as transações em tecnologia. Por isso, consideram quea inter- “Aespecialização consiste na construção de competitividade em áreas
nacionalização tem vários efeitos positivos: acesso a recursos e mercados, de densidade tecnológica, é a terceira estratégia do BNDES, apoiada em
facilita a reestruturação das empresas e as exportações geram divisas em segmentos como tecnologia da informação, o complexo industrial de saú-
moeda forte que permitem importar para sustentar o crescimento. de e indústria de bens de capital. A quarta estratégia consiste na diferencia-
Em 2002, mesmo antes da vitória de Lula, foi criado no BNDES um j al ; marcas
brasileiras para serem posicionadas
Grupo de Trabalho para estudar linhas de crédito para investimentos no entre as cinco principais de cada setor, estabelecidas na produção de bens
exterior. A evolução dos investimentos desde 2000 na América do Sul semiduráveis ou não duráveis. Finalmente, a quinta estratégia consiste na
mostra que o Brasil se tornou o nexo intermediário da região com o mer- ampliação do acesso ao consumo de massa, como os serviços de banda
cado mundial, pelas vantagens comparativas que apresentava seu grande larga, bens de consumoe habitação.
mercado e a abundância de recursos naturais. Paralelamente, definem-se quatro “metas macro” de longo prazo. Num
Enquanto as economias de seus vizinhos seguiam restritas à produção lugar destacado aparece a Internacionalização do Brasil, com base no cres-
agrícola e mineral, ou submetidos a processos de desindustrialização, o cimento das exportações e do investimento direto no exterior para insta-
Brasil conseguiu atualizar seu parque industrial mediante operaçõesintra- lação de representações comerciais ou plantas produtivas. O que distingue
empresas que o mantiveram em condições de produzir e exportar manufa- o Brasil do resto dos países sul-americanos é que o Estado tem se proposto
turas com valor agregado e custos competitivos. Logo, ao sobreviver à crise a apoiar com intensidade as grandes empresas para que se voltem para o
econômica mundial, a contração dos mercados dos países desenvolvidos e exterior. Desse modo dispõe de uma linha de apoio à indústria que liberou
a adoção de novas barreiras protecionistas, a absorção dos mercadosresi- 210 bilhões de reais entre 2008 e 2010 para atingir o objetivo de construir
duais em países da América Latina tornaram-se cruciais para os capitais uma taxa de formação bruta de capital de 21% do PIB em 2010.:º Além
estabelecidos no Brasil.'? disso, abriu linhas de crédito para inovação (Inovação de Capital e Inova-
O BNDESpublicou seus cinco objetivos estratégicos para o desenvol- ção Tecnológica) e por meio de uma vigorosa expansão dos investimentos
vimento produtivo e das crapresas; primeiro é fazer doBrasilumlíder públicos em ciência e tecnologia.
mundial, para o que é necessário “posicionar sistemas produtivos ou em- O Brasil pretende usar o seu poder produtivo, diplomacia e política
presas brasileiras entre os cinco principais players mundiais em sua ativi- para promovera integração produtiva da América Latina e do Caribe, com
dade” em áreas como mineração, siderurgia, aeronáutica e o complexo do base no Mercosul. Para isso, visa aumentar a articulação de cadeias pro-
etanol. Osegundo objetivoé a conquista de mercados, que consiste em dutivas e aumentar o comércio intrarregional para ampliar a escala e a
posicionar certas empresas como as principais exportadores mundiais em produtividade da indústria nacional. “Neste contexto,a integração das in-
seu campo, “combinando umaparticipação significativa nos fluxos de co- fra-estruturas logísticas e energéticas na América do Sul mostra-se como
mércio internacional com a preservação da posição relevante no mercado grande desafio e oportunidade”, assinala o BNDES em referência à IIRSA.”
Algo semelhante acontece com a África, continente com o qual se propõe o
aumento do comércio e a presença de grandes empresas brasileiras.
“ Ibid., p. 54.
?2 Luis Fernando Novoa, “O Brasil es seu “desdobramento”. o papel do BNDES na expan- “ Ibid.
são das empresas transnacioanis brasilerias na América do Sul”, op cit. p. 197. 5 Ibid.
“3 BNDES,“Política de desenvolvimento produtivo. Inovare investir para sustentar o cres- 16 Ibid., p. 24.
cimento”, BNDES, maio de 2008. “ Ibid., p. 28.
As multinacionais brasileiras na América Latina 207
206 BRASIL POTÊNCIA
Em 2003, o BNDES modificou seusestatutos para poder apoiar a imple- sidente da Petrobras. Pelo governo participam Antonio Palocci,” ministro
mentação de empresasbrasileiras no exterior. A primeira grande operação da Casa Civil, Guido Mantega, ministro da Fazenda, a ministra do Plane-
jamento, Miriam Belchior, e do Desenvolvimento, Indústria e Comércio
foi a de apoiar a compra de 85% da Swift Armour, a principal empresa de
carnes da Argentina, por parte da Friboi.' O apoio para esta camada de Exterior, Fernando Pimentel.
investimentos na região vai de mãos dadas com o papel estratégico que Gerdau ganhou um gabinete ligado ao de Dilma Rousseff, a quem a
o Brasil quer desempenhar no mundo, com base em sua hegemonia na presidenta considera “o ministro de seus sonhos”, segundo seus colabo-
América do Sul. Para construí-la, o aumento das exportações de bens e de radores.? Sua posição não é remunerada, porque se trata de um serviço
capital é um passo fundamental. público relevante. Entre os objetivos da câmara figuram aumentar a com-
Osresultadossão evidentes. Brasilterceiroranking petitividade, reduzir a burocracia estatal e estimular as exportações. Em
das cem maiores empresasdos países emergentes, atrás da China e da Ífn- seu programa semanal de rádio, “Café com a Presidenta”, Dilma disse que
dia, com 14 empresas como Petrobras, Vale,as siderúrgicas e empresas de a câmara “vai encontrar meios para reduzir a burocracia que as empresas
construção, alguns das quais já duplicaram seu faturamento por conta de enfrentam no comércio com outros países” e que “o governo e as empresas
seus negócios na região. Essas empresas são algo emblemático do Brasil vão pensarjuntosa criação de boas práticas administração”. º
Potência. A expansão dessas multinacionais verde-amarelas tem impacta- Gerdau foi um dos primeiros grandes empresários a apoiar publicamen-
do fortemente seus vizinhos: 20% do investimento estrangeiro na Bolívia te Lula em sua campanhaeleitoral de 2002, a tal ponto que apareceu na
derivam da Petrobras, 80% da soja produzida no Paraguai é de proprieda- propagandaeleitoral. Dilma queria nomeá-lo para a Secretaria de Assuntos
de de fazendeirosbrasileiros, na Argentina, 24% das compras de empresas Estratégicos ou para o Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comér-
entre 2003 e 2004 foram feitas por capitais brasileiros.” cio, proposta que o empresário rejeitou. Durante o governo Lula, Gerdau
aderiu ao Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social do Governo
Federal, e antes integrou o Conselho de Administração da Petrobras e do
Empresários verde-amarelos Instituto Brasileiro de Siderurgia, além de figurar em outras instituições
estatais e empresariais como o programa de Qualidade e Produtividade do
Em 11 de maio de 2011, quarta-feira, a presidente Dilma Rousseff instalou governo do Rio Grande do Sul. Nuncahavia tido um cargo tão alto.
a Câmara de Gestão de Políticas de Desempenho e Competitividade. O O Grupo Gerdau não é somente umadas principais multinacionais do
órgão é composto por quatro representantes da “sociedade civil”, “com re- país, mas encarna um tipo de empresa familiar tipicamente brasileira. Jor-
conhecida experiência e liderança nasáreas de gestão e competitividade”, ge Gerdau é o bisneto de João Gerdau, fundador da empresa, que emigrou
segunda anunciou a Presidência.” Trata-se dos empresários Jorge Gerdau da Alemanha em 1869, instalando-se em uma pequena cidade no interior
Johannpeter, que preside o Conselho de Administração do Grupo Gerdau, do Rio Grande do Sul, Agudo, onde viviam apenas cinco mil pessoas. Du-
Abílio Diniz, proprietário do Grupo Pão de Açúcar, Antonio Maciel Neto, rante anos se dedicou ao comércio, e em 1901, instalado em Porto Alegre,
presidente da Suzano Papel e Celulose, e Henri Philippe Reichstul, ex-pre- comprou uma fábrica de pregos, que cresceu rapidamente. No entanto,
si Antonio Palocci teve que renunciar a seu cargo em 7 de junho de 2011 por denúncias
de enriquecimentoilícito. Foi substituído pela senadora Gleisi Hoffmann, membro do PT. k
18 Ana Saggioro García, “Empresas transnacionais: dupla frente de luta”, Instituto Rosa
Luxemburg Sitftung, Empresas transnacionais brasileiras, op.cit., p. 14. 2 “Dilma corteja empresário Jorge Gerdau para seu governo”, Folha de São Paulo, 30 de
“ Ibid., p. 13. novembro de 2010.
50 (O Estado de São Paulo, 11 de maio de 2011, em: <http://economia.estadao.com.br/no- » Agência Brasil, 16 de maio de 2011, em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/noti-
ticias/Economia+Brasil,dilma-instala-hoje-camara-de-politica-de-gestao,not. 66426.
cia/2011-05-16/dilma-camara-de-politicas-de-gestao-vai-aumentar-competitividade-e
htm>. (Consulta 29/05/2011.) -reduzir-burocracia>. (Consulta 29/05/2011.)
208 BRASIL POTÊNCIA e As multinacionais brasileiras na América Latina +209
apenas em 1933 construiu uma segundafábrica de pregos em Passo Fundo, É interessante constatar que apesar de ter se tornado uma grande mul-
administrada por Hugo Gerdau, filho de João. tinacional, a décima terceira siderúrgica mundial, com uma capacidade
Nofinal da década de 1940, assumiu a empresa seu genro, Curt Johan- instalada de 26 milhões de toneladas de aço, a direção do Grupo Gerdau
npeter, casado com umafilha de Hugo Gerdau, e comprou a Siderúrgica permanece puramente familiar. O Conselho é composto por nove mem-
Riograndense, ingressando num novo ramo promissor por conta da ex- bros: quatro irmãos Johannpeter nos cargos de presidentes (Jorge) e três
pansão industrial que vivia o país. Jorge Gerdau Johannpeter nasceu em vice-presidentes, e dois filhos que compõem a maioria da organização que
1936, é um dos quatro filhos de Curt. Aos 14 anos, Jorge começou a traba- dirige o grupo. Entre os não familiares incluem dois economistas: Affonso
lhar na fábrica de pregos durante as férias escolares. Na parte da manhã Celso Pastore, que foi presidente do Banco Central de 1983 a 1985; An-
trabalhava na fábrica com os funcionários, à tarde no escritório adminis- dré Pinheiro de Lara Resende, que também foi diretor do Banco Central
trativo e à noite estudava contabilidade. Em 1957, fez um curso como um e encarregado de negociar a dívida externa no período do Plano Real de
aspirante a oficial da reserva do Exército na arma de Cavalaria, e em 1961 Fernando Henrique Cardoso, que o levou para à presidência do BNDES
estudou Direito na Universidade Federal do Rio Grande do Sul. em 1998, posição que teve que abandonar por alegações de corrupção no
Na década de 1960, começou a expansão acelerada da empresa em que processo deprivatização da Telebras.
Jorge Gerdau exerceu um papel decisivo. Adquiriu a Fábrica de Arames São Gerdau ascendeu de uma pequena empresa local para o posto de grande
Judas, em São Paulo, a Siderúrgica Açonorte, em Pernambuco,e, em 1972, multinacional aliando-se ao poder político em suas diversas formas, mas
a Companhia Siderúrgica da Guanabara,todos elas fora do Rio Grande do sempre conservando um perfil familiar e brasileiro, da qual nuncase afas-
Sul, já que a família decidiu que para seguir crescendo deveriam ir além tou. De fato não é o único caso. Uma parte substancial do empresariado
do estado. Em 1986, Jorge assume a presidência do Conselho de Adminis- percorreu o mesmo caminho: as construtoras que, como vimos, nasceram
tração. Em 2010, o grupo operava em mais de cem países, contava com 48 em regiões onde se construíram grandes obras de infraestrutura, expan-
unidades siderúrgicas, 21 unidades de transformação, 80 unidades comer- diram-se na escala nacional e internacional pelas mãos do poder político.
ciais, quatro linhas extração de minério de ferro, dois terminais portuários A questão não é menor, pois essas empresas se beneficiam dos contratos
privativos e tinha relações com empresas que totalizavam doze unidades de obras do Estado,tanto por meio do PAC (Programa de Aceleração do
siderúrgicas e dezenas de outras unidades de processamento e comércio. Crescimento) como por obras municipais e dos estados. Em segundo lugar,
Um total de 337 unidades industriais em 14 países, com um valor de mer- comoficou demonstrado na rebelião dos trabalhadores da barragem de Ji-
cado de 22 bilhões de dólares. rau, construída pela Camargo Corrêa, muitas vezes essas obras apresentam
A Gerdau é uma das empresas mais internacionalizadas do Brasil. Sua graves irregularidades e são reiteradamente denunciadas junto à Justiça.”
expansão internacional começou em 1980, com a compra de uma pe- O discurso dos empresários defende as doações como parte de “uma
visão republicana”, como disse a nota enviada pela Odebrecht, já que fa-

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quena empresa no Uruguai, e, em seguida, com a aquisição de usinas no
Canadá, no Chile e na Argentina, mas a iniciativa mais abrangente foi a vorecem “a democracia e o desenvolvimento econômico e social do país,
aquisição de 75% da Ameristeel, segunda maior produtora de barras de respeitando os limites e condições impostas pela legislação”. Nesse ponto
aço dos Estados Unidos. Isso lhe permitiu triplicar a produção fora do todas as empresas mostram um respeito pela a legislação vigente, mesmo
Brasil e ingressar com força no mercado estadunidense. Em 2001, reali- que em suas obras aconteça o contrário. Pior ainda: falam de democracia,
zou aquisições na Colômbia e na Europa, com 40% da espanhola Sidenor, quando cresceram sob amparo do regime militar.
por exemplo. Sua gama de aquisições continuou no Peru, nos Estados
Unidos, onde assumiu a Chaparral Steel, uma das maiores produtoras de
4 Raúl Zibechi, “La rebelión obrera de Jirau”, La Jornada, 8 de abril de 2011; “Rebelión en
perfis estruturais, e começou a atuar no México, na República Domini- La Amazonia brasileia”, Programa das Américas, 12 de abril de 2011.
cana e na Venezuela. 5 O Estado de São Paulo, 14 de novembro de 2010.
210 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 211
A trajetória da família que controla o Grupo Votorantim, incluindo A primeira dificuldade da CBA foi a compra de equipamentos para a
José Ermírio de Moraese seu filho Antônio, o homem mais rico do Brasil, fábrica por conta do boicote das multinacionais do Norte.” Conseguiu
mostra a estreita relação entre grupos empresariais e o Estado. O avôe fun- trazê-los da Itália por meio de dois engenheiros. Mas a empresa Light, ca-
dador da empresa da família, Antônio Pereira Inácio, emigrou de Portugal nadense como a Alcan, tinha o monopólio da energia elétrica, e pôs obstá-
para o Brasil em 1886 e aprendeu o ofício de sapateiro em São Paulo. Em culos para abastecer a indústria de Moraes deeletricidade necessária para
1918, ele comprou uma empresa detecidos queestava em crise no bairro de produzir alumínio.
Sorocaba. Foi o início de uma escalada impressionante. Seu neto acumu- Superou a dificuldade construindo sua própria geradora de energia,
lou uma fortuna de 10 bilhões de dólares, sendo a riqueza número 77 do a tal ponto que em 1984 a Votorantim tornou-se o maior produtor pri-
mundo. Por sua vez, o Grupo Votorantim está entre os cinco principais vado de eletricidade do Brasil. O empresário insistiu na transferência de
grupos econômicos do país, atua com cimento, química, alumínio, papel tecnologia para encontrar a sua independência do empresariado inter-
e celulose, energia elétrica e siderurgia. Em 2005, ganhou o prêmio como nacional. Talvez por isso o homem mais rico do Brasil era politicamente
a melhor empresa familiar do mundo pelo instituto suíço IMD Business ativo, mas ao lado da esquerda. Participou primeiro da câmara empresa-
School.” rial de São Paulo, e, em seguida,filiou-se ao PDT (Partido Democrático
José Ermírio de Moraes casou-se com a filha de Antonio Pereira depois Trabalhista), sendo eleito senador por Pernambuco em 1962. Em 1964,
de estudar engenharia nos Estados Unidos, e tornou-se o administrador foi ministro da Agricultura do governo de João Goulart, e teve relações
da empresa, que se tornou o poderoso Grupo Votorantim. A empresa cres- conturbadas com o regime militar instalado em 1964, embora a empresa
ceu como outros grupos familiares, aproveitando as oportunidades gera- continuasse a crescer.
das pela crise de 1929, que desencadeou um processo de substituição de Muitos grandes empresários brasileiros tiveram trajetórias semelhan-
importações, e dando alguns saltos ousados. A biografia de José Ermírio tes, ainda que o caso de José Ermírio de Moraes seja excepcional justa-
tem algumas peculiaridades. Em 1955, começou a operar a Companhia mente por suas incursões na política partidária. A família de Abilio Diniz,
Brasileira de Alumínio (CBA), que foi a primeira indústria desse setor a por exemplo, o oitavo homem mais rico do país e membro da Câmara de
atuar no Brasil. Foi o resultado de um duro trabalho iniciado em 1940, Gestão de Políticas, Desempenho e Competitividade com Jorge Gerdau,
quando ele decidiu produzir alumínio no Brasil em um período de forte começou em 1948 em uma loja de doces de seu pai, que cresceu até se
crescimento industrial. tornar o maior varejista e supermercadista do país. Tanto o Pão de Açúcar
Noventa por cento do projeto foi financiado pela Votorantim, que desde como as Casas Bahia, cuja fusão criou a maior rede de varejo nacional,
O início teve o controle acionário da empresaliderada por Antônio Ermí- começaram no mesmo período (1948 e 1952, respectivamente) como em-
rio. Logo apareceram enormesdificuldades com empresas multinacionais, presas de pequeno porte. As grandes empresas do Brasil começaram como
o que o forçou a adiar o projeto. A estadunidense Alcoa e a canadense empresas pequenase locais que se ampliaram primeiro na escala nacional
Alcan monopolizavam as vendas de alumínio, e não permitiriam que se e logo depois para o mundo.
formasse uma empresa nacional fora de seu controle. Ambos faziam parte A multinacional Odebrecht é um caso destacado de empresa familiar
do cartel das “seis irmãs” do alumínio, formado em 1901, que controlavam de sucesso. Os primeiros membros da família chegaram ao Brasil em 1856,
jazidas de bauxita, a produção e o comércio de um produto que é conside- em uma onda de imigração alemã. O engenheiro Norberto Odebrecht as-
rado estratégico na indústria.
58 Este relato que se encontra em Historianet, “Nacionalismo e imperialismo”, em: <http://
* <www.riquissimos.com.br/2008/10/>. (Consulta 12/06/2011.)
www.historianet.com.br/conteudo/default.aspx?codigo=717>. (Consulta 12/06/2011.)
57
<http://www.imd.org/about/pressroompressreleases/Brazilian-Company-Votorantim
1
Também em Minha Carta, “Ermírio e as seis irmãs”, na coleção “Retratos do Brasil”, Edi-
-Honoured-as-Top-Family-Business-in-the-World.cfm>. (Consulta 12/06/2011.)
tora Política, 1985, p. 83-84. (N.T.)
212 BRASIL POTÊNCIA As multinacionais brasileiras na América Latina 213
sumiu a companhia de seu pai e fundou uma construtora em 1944, na através de redes informatizadas”.? O crescimento internacional da empresa
Bahia, cujo crescimento foi facilitado pela escassez de materiais impor- foi potencializado pelo esforço em inovação, criação e codificação de co-
tados, devido à Segunda Guerra Mundial. Quase quatro décadas depois, nhecimento, uma cultura organizacional que permite obter melhor pro-
Emilio sucedeu seu pai, e em 2008, o neto do fundador, Marcelo, de apenas veito de seus funcionários que é articulada por meio do Departamento de
40 anos, foi eleito presidente da Odebrecht, que se tornou uma das princi- Conhecimento e Informação para Apoio ao Desenvolvimento de Negócios.
pais multinacionais brasileiras. O atual presidente do Grupo Odebrecht, o terceiro membro da dinastia
Comotodasas grandes empresas, a Odebrecht cresceu em três momen- da família à frente da empresa, reconheceu a dívida da empresa com o
tos decisivos para o país: o boom industrial da década de 1950, o milagre legado estratégico da Escola Superior de Guerra em declarações ao jornal
econômico do regime militar nas décadas de 1960 e 1970,e o atual período, da Associaç ão dos Graduados da ESG: “Ad eus c s daDou-
em que o Brasil se lança comoa potência global. Nos três momentos, foi anejamento do Estado da ESG buindoefetivamente
o L
Estado que impulsionou obrasde infraestrutura que levaram a Odebrecht
a colocar-se como a principal empresa de construção brasileira e a primei-
ra empresa mundial em construção de obrashidrelétricas. Em 2010, tinha
130 mil funcionários em todo o mundoe receitas de 32 bilhões de dólares.*
A empresa expandiue se ramificou, convertendo-se em um grupo eco-
nômico. Só em Angola tem 40 mil empregados.Em 1979, a construt
ora
ingressou no ramo petroquímico com a Braskem, uma das maiores em-
presas petroquímicas do mundo, com 31 fábricas no Brasil e nos Estados
Unidos e com um centro de pesquisa em Pittsburgh, Pensilvânia. Embora
as obras de infraestrutura sigam sendoseu forte, em 2007 expandiu para a
área de biocombustíveis com a ETH Bioenergia, onde a Odebrec
ht investiu
3 bilhões de dólares a fim de processar 45 milhões de toneladas de
cana
em 2015 e liderar o setor.Uma das inovações em que está trabalhando a
ETH iniciar a produção deplásticos a partir do etanol, em vezde petróleo
.
Uma das peculiaridades da multinacional é a aplicação da Tecnologia
Empresarial Odebrecht (TEO), criada pelo fundador, que consiste
em fo-
mentar o empreendedorismo interno, a delegação de poderes a seus sócios
e a disseminação de conhecimento na rede empresarial. De seus trabalha
-
dores exige que se comportem como empresários-sócios, e não
como fun-
cionários. A Odebrecht criou fórunspara a divulgação de conheci
mento
gerado na empresa mediante as Comunidades de Conheci
mento, defini-
das como “ambientes virtuais para compartilhamento de conhecimento,
2 Moacir de Miranda Oliveira Júnior, “Transferência de conhecimento e o papel das sub-
sidiárias em corporações multinacionais brasileiras”, em Alfonso Fleury e Maria Tereza
* Dados em: <http://www.odebrecht.com.br>. Leme Fleury (orgs.). Internacionalização e os países emergentes. São Paulo: Atlas, 2007. p.
“º “Marcelo Odebrecht”, Revista Isto é, 10 de dezembro de 2008, em: 227.
<http://www.istoedi-
nheiro.com.br/noticias/2547MARCELO+ODEBRECHTS. (Consult º Adesg, Revista da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra, Ed. Especial,
a 07/02/2012.)
“ Tbid. 2011, p. 20.

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