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Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023.

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Estudos de Política Externa


O Brasil e a América do Sul
Organizadoras
Miriam Gomes Saraiva
Lorena Granja Hernández

LEMOS MÍDIA
Editora
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
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ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA:


O BRASIL E AMÉRICA DO SUL

Organizadoras
Miriam Gomes Saraiva
Lorena Granja Hernández

LEMOS MÍDIA
Editora

Belo Horizonte
2023
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LEMOS MÍDIA
Belo Horizonte - MG

Todos os direitos reservados.


É permitida a reprodução parcial ou total desta obra desde que citada a fonte e que não seja para
venda ou qualquer fim comercial.

CONSELHO EDITORIAL
Bárbara Gonçalves Mendes (UFMG)
Lucas Faial Soneghet (UFF)
Denise Lopes Salles (UCP)
Marco Aurélio Máximo Prado (UFMG)
Fernanda Nanci Gonçalves (Unilasalle-RJ)
Patricia Nasser de Carvalho (UFMG)
Guilherme Moreira Dias (ECEME)
Rafael Pinheiro de Araújo (UERJ)
Júlia Silva Vidal (UnB)
Rafaela Vasconcelos Freitas (UFRGS)
Leticia Simões (Unilasalle-RJ)

ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E AMÉRICA DO SUL

Organizadoras: Miriam Gomes Saraiva e Lorena Granja Hernández

Diagramação: Gustavo do Amaral Loureiro


Capa: Antônio Augusto Lemos Rausch

Apoio institucional: Laboratório de estudos sobre Regionalismo e Política Externa, Programa de


Pós-graduação em Relações Internacionais, Universidade do Estado de Rio de Janeiro. (LeRPE-
PPGRI-UERJ)

Apoio financeiro: Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq) e


Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de Rio de Janeiro Carlos Chagas Filho (FAPERJ).

1ª edição – 2023
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Estudos de política externa [livro eletrônico] : o


Brasil e América do Sul / organizadoras Miriam
Gomes Saraiva, Lorena Granja Hernández. --
1. ed. -- Belo Horizonte, MG : Lemos Mídia, 2023.
PDF

Vários autores.
Bibliografia.
ISBN 978-65-84991-06-4

1. América do Sul - Política econômica


2. Brasil - Aspectos políticos 3. Brasil - Relações
internacionais 4. Globalização - América do Sul
5. Integração econômica internacional 6. Política
econômica 7. Política externa I. Saraiva, Miriam
Gomes. II. Hernández, Lorena Granja.

CDD-320.98
23-143924 -327.81
Índices para catálogo sistemático:

1. América do Sul : Ciência política 320.98


2. Brasil : Política externa 327.81

Henrique Ribeiro Soares - Bibliotecário - CRB-8/9314


SUMÁRIO
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Lista de Ilustrações

Lista de Abreviações e Siglas

Prefácio

Agradecimentos

Apresentação

Capítulo 1: As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979-1985)


Ana Paula Marino de Sant’Anna Reis

Capítulo 2: Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada: analisando o papel da


transição de regime para as políticas externas em direitos humanos dos governos de Raúl
Alfonsín (1983-1989) e José Sarney (1985-1990)
Guilherme Antunes Ramos

Capítulo 3: Integração Sul-Americana e Congresso Nacional: Uma Análise de Conteúdo dos


Discursos Parlamentares Brasileiros Sobre a Criação do Mercosul
Guilherme Fenício Alves Macedo, Alexandre César Cunha Leite e Anna Beatriz Leite Henriques

Capítulo 4: O governo Fernando Henrique Cardoso e as origens da América do Sul


Leandro Gavião

Capítulo 5: Populismo, discurso e política externa: uma análise do caso brasileiro durante a
gestão Bolsonaro-Araújo
Lucca Giannini Palermo Moreno Belfi e Beatriz Bandeira de Mello

Capítulo 6: Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira: o negacionismo climático na


política externa do governo Bolsonaro
Nathan Morais Pinto da Silva

Capítulo 7: A reforma institucional do Mercosul (2015-2022): eficiência ou desmonte?


Lorena Granja Hernández

Capítulo 8: O Vivir Bien enquanto plataforma política do governo MAS na agenda externa
de meio ambiente
Ana Lúcia de Lacerda Gonçalves
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Capítulo 9: O lugar da integração regional para o chavismo: operacionalização das ideias de
Simón Bolívar
Stéphanie Braun Clemente

Sobre os autores
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LISTA DE ILUSTRAÇÕES
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Tabela 2.1 — Comparativa das políticas externas de Argentina e Brasil durante o primeiro governo
civil pós-ditadura

Quadro 3.1 — Desenho de pesquisa

Quadro 3.2 — Categorias da atividade parlamentar acerca do Tratado de Assunção (1991)

Quadro 3.3 — Preferência dos Parlamentares dos Países do Mercosul pelo Tipo de Integração a ser
adotada

Gráfico 3.1 — Atribuições positivas e negativas nos discursos parlamentares por número de
referenciação

Gráfico 3.2 — Hierarquia de codificação das atribuições negativas por número de referências

Gráfico 3.3 — Hierarquia de codificação das atribuições positivas por número de referências

Gráfico 3.4 — Hierarquia de codificação de temas abordados nos discursos parlamentares

Gráfico 3.5 — Total de declarações dos parlamentares por Unidade Federativa

Gráfico 3.6 — Total de declarações dos parlamentares por legendas partidárias

Figura 3.1/3.2 — Nuvens de palavras derivadas nas codificações de atribuições negativa (esquerda)
e positiva (direita)

Figura 3.3 — Unidades Federativas em cluster por similaridade de codificação

Mapa 4.1 — Os dez eixos de integração da América do Sul

Tabela 4.1 — Comércio brasileiro com a América do Sul: de Collor a Cardoso

Tabela 4.2 — Comércio bilateral do Brasil com a Argentina: da crise de 1999 até 2002

Gráfico 7.1 — Construção de capacidades institucionais no MERCOSUL

Gráfico 7.2 — Orçamentos aprovados pelo CMC entre 2015-2022

Gráfico 8.1 — Principais termos utilizados por Evo Morales nas COPs durante seus mandatos

Gráfico 8.2 — Codificação do discurso de Luis Arce na COP26


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LISTA DE ABREVIAÇÕES E SIGLAS


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AGNU – Assembleia Geral das Nações Unidas


ALACIP – Associação Latino-Americana de Ciência Política
ALADI – Associação Latino-Americana de Integração
ALALC – Associação Latino-Americana de Livre Comércio
ALBA – Alianza Bolivariana de Nuestra América
ALBA/TCP - Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América - Tratado de Comercio de los
Pueblos
ALCA – Área de Livre Comércio das Américas
ALCSA – Área de Livre Comércio Sul-Americana
AL – América Latina
APE – Análise de Política Externa
BCB – Banco Central do Brasil
BID – Banco Interamericano de Desenvolvimento
BIRD — Banco Internacional para Reconstrução e Desenvolvimento
BNDES – Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social
BREXIT – acrônimo para British Exit
BRICS – Brasil, Rússia, Índia, China e South Africa
CAF – Corporação Andina de Fomento
CAN – Comunidade Andina
CAPES – Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior
CCJC — Comissão de Constituição, Justiça E Cidadania
CEI – Competitive Enterprise Institute
CEIC — Comissão Especial de Indústria e Comércio
CELAC – Comunidade dos Estados Latino-americanos e Caribenhos
CEPAL – Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe
CIDOB – Confederación de Pueblos Indígenas del Oriente Boliviano
CMC – Conselho Mercado Comum
CMPMC – Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e os Direitos da Mãe Terra
CNMCIOB-BS – Confederación Nacional de Mujeres Campesinas Indígenas Originárias de Bolivia –
Bartolina Sisa
CNPq – Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico
CONAMAQ – Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu
COP – Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas
COSIPLAN – Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da UNASUL
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CPAC – Conservative Political Action Conference
CRE – Comissão de Relações Exteriores
CSCIB – Confederación Sindical de Comunidades Interculturales de Bolivia
CSUTCB – Confederación Sindical Única dos Trabajadores Campesinos de Bolivia
ESPM – Escola Superior de Propaganda e Marketing
EUA – Estados Unidos
FAPERJ – Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de Janeiro
FED – Federal Reserve
FMI – Fundo Monetário Internacional
FOCEM – Fundo de Convergência Estrutural do Mercosul
FONPLATA – o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata
FUNAG – Fundação Alexandre de Gusmão
GATT – Acordo Geral de Tarifas e Comércio
GCC – Global Climate Coalition
GMC – Grupo Mercado Comum
IESP – Instituto de Estudos Sociais e Políticos
IFIs – International Financial Institutions
II PND – II Plano Nacional de Desenvolvimento
IIRSA – Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana
IPPDDHHM – Instituto de Políticas Públicas de Direitos Humanos do Mercosul
ISM – Instituto Social do Mercosul
LeRPE – Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa
MAS – Movimiento ao Socialismo
MCE – Mercado Comum Europeu
MDB – Movimento Democrático Brasileiro
MERCONORTE – Mercado Comum do Norte
MERCOSUL – Mercado Comum do Sul
MMA – Ministério do Meio Ambiente
MNR – Movimento Nacionalista Revolucionário
MPL – Movimento Passe Livre
MRE – Ministério das Relações Exteriores
NAFTA – Tratado de Livre Comércio da América do Norte
OCDE – Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico
OEA – Organização dos Estados Americanos
OMS – Organização Mundial da Saúde
ONGs – Organizações Não-Governamentais
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ONU – Organização das Nações Unidas
PARLASUL – Parlamento do Mercosul
PDC – Partido Democrata-Cristão
PDS – Partido Democrático Social
PDT – Partido Democrático Trabalhista
PE – Política Externa
PEB – Política Externa Brasileira
PEC – Política Externa Comparada
PFL – Partido Frente Liberal
PIB – Produto Interno Bruto
PMDB – Partido do Movimento Democrático Brasileiro
PPGRI – Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais
PPT – Presidência Pro Témpore
PRN – Partido da Reconstrução Nacional
PROSUL – Fórum para o Progresso e Desenvolvimento da América do Sul
PSDB – Partido Social-Democrata Brasileiro
PT – Partido dos Trabalhadores
PTB – Partido Trabalhista Brasileiro
PUC/SP – Pontifícia Universidade Católica de São Paulo
RI – Relações Internacionais
SEPLAN – Secretaria de Planejamento da Presidência da República
SM – Secretaria do MERCOSUL
ST – Secretaria do Tribunal Permanente de Revisão
TIPNIS – Território Indígena Parque Nacional Isiboro Sécure
TLC – Tratado de Livre Comércio
TNP – Tratado de Não Proliferação Nuclear
UEPB – Universidade Estadual da Paraíba
UERJ – Universidade do Estado do Rio de Janeiro
UFPE – Universidade Federal de Pernambuco
UNASUL – União de Nações Sul-Americanas
UNB – Universidade de Brasília
UNILA - Universidade Federal da Integração Latino-Americana.
UNIRIO – Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro
UNP – Universidade Potiguar
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PREFÁCIO

Sempre foi e sempre será fundamental pensar no Brasil e sua relação com a América do Sul,
a região da qual faz parte, e que tem influência direta na história e nas relações internacionais
do país. Esse livro direciona-se a essa conexão, com o foco na área de Política Externa. Mas, em
termos gerais, como o Brasil se coloca frente à região?
No período após as independências dos países sul-americanos, se por um lado o império
brasileiro buscava se aproximar de monarquias europeias, apresentando-se como Estado moderno,
por outro lado, interagia em suas fronteiras do Cone Sul através do apoio militar a líderes políticos
mais próximos ao Brasil. O Brasil imperial e monárquico diferenciava-se das repúblicas vizinhas
fragmentadas, como uma nação que se via como singular rodeada por rivais. Conexões políticas
com grupos aliados das Províncias Argentinas e do Uruguai foram uma marca da primeira metade
do século. O Brasil tinha o benefício de se consolidar como Estado nacional mais cedo que os
vizinhos. A sua participação na Guerra do Paraguai, em aliança com Argentina e Uruguai, trouxe
um novo cenário. Apesar de consolidar a posição do exército brasileiro como fator de influência,
a política externa brasileira foi marcada por iniciativas de projeção internacional do país e pela
construção progressiva de um país sem mais guerras. As relações com a República Argentina foram
sendo estruturadas nos padrões da cordialidade oficial.
Durante o período imperial o contato brasileiro com os países ao norte e a oeste foi reduzido.
O bolivarismo, que propunha a formação de uma confederação interamericana de Estados, foi
um fenômeno importante dos países nessa região, mas que não teve impacto relevante no Brasil,
cujo Estado não fez parte da iniciativa e nem esteve presente em seus congressos.
A mudança no perfil político brasileiro teve impactos sobre a política externa do país; ao
decretar a República, o Brasil passou a identificar-se como parte da América Latina e buscar
estreitar relações com as demais repúblicas do continente, enquanto a proximidade com a Europa
foi substituída pelo americanismo. Os países vizinhos ganharam destaque, mas nos marcos de
um projeto maior, que incluía às três Américas. As questões ainda pendentes de fronteiras foram
resolvidas, e o Acre foi adicionado ao território brasileiro através de negociações, tirando o tema
da agenda da política externa.
Durante a República Velha, o Brasil priorizava a manutenção das boas relações com os
Estados Unidos e descartava um pensamento alternativo ao americanismo. O Barão do Rio Branco
via os objetivos de política externa como expressão de “interesses nacionais”, entendidos, dentre
outros, como a supremacia brasileira na América do Sul e a ampliação do prestígio internacional
do país. A América do Sul compunha o panamericanismo, no qual o Brasil buscava uma posição
de destaque.
A década de 1930 foi marcada internacionalmente pela competição entre o liberalismo e
o nazismo — que buscavam estender e/ou consolidar suas respectivas áreas de influência na
América do Sul —, que acabaria por proporcionar maior autonomia para os países da região.
A crise da Grande Depressão afetou conjuntamente os países sul-americanos. No Brasil, o
novo equilíbrio de forças políticas que apoiou Getúlio Vargas, possibilitou a implementação da
industrialização por substituição de importações, suplantando o caráter estrito de país agrário-
exportador. A trajetória das reuniões interamericanas nos anos de 1930 até a Segunda Guerra
Mundial foi um espaço importante de interação diplomática entre os países sul-americanos.
Em 1933, foi assinado o Tratado Antibélico de Não-Agressão e de Conciliação, junto com a
Argentina, o Uruguai, o Paraguai e o México, confirmando o caráter pacifista da região. O Brasil
foi o único país a enviar soldados para a Segunda Guerra Mundial, embora a maioria deles tenha
feito declaração de guerra.
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Em um cenário de Guerra Fria, para a América do Sul, foram reforçados os vínculos dos
países ao princípio da solidariedade continental, momento este em que foi assinado o Tratado
de Assistência Recíproca e criada a Organização dos Estados Americanos. Em contraste,
o comportamento dos Estados Unidos com América Latina no campo econômico foi de
distanciamento. Enquanto se criava uma identidade importante em torno da CEPAL, os países
começaram a enxergar-se coletivamente como parte da periferia do capitalismo internacional e,
com maior ou menor intensidade, buscaram seguir os preceitos do desenvolvimentismo. Porém,
o Brasil, como exceção, insistia em seguir o panamericanismo e relutava em adotar qualquer
iniciativa que pudesse dividir o hemisfério.
O desenvolvimentismo de Juscelino Kubistchek, apesar de seu caráter nacional, abriu as
portas para construir uma complementariedade parcial entre o Brasil e os países vizinhos. Os
debates sobre política externa tiveram lugar, contrapondo a visão do panamericanismo à visão
neutralista, vinculada à ascensão do Terceiro Mundo. Nos anos 1960, esta visão se consolidou no
Brasil como paradigma globalista, enquanto na América Latina era criada a Associação Latino-
Americana de Livre Comércio. Embora tenha tido muitas limitações, foi a primeira iniciativa
relevante por fora do arco do panamericanismo.
A Política Externa Independente propôs uma aproximação do Brasil com os países
vizinhos. Apesar de tratar-se de uma política em que a questão Norte/Sul tinha mais peso e a
aproximação com países do Sul era bem vista, esta não se traduziu em uma iniciativa regional
formal. O interesse brasileiro foi o desenvolvimento econômico, nacional e autônomo, baseado
no desenvolvimentismo, em que a América do Sul tinha um papel instrumental.
O golpe de estado de 1964 e a instauração de um governo militar levou ao afastamento
da região, deslocando o foco das relações do Brasil com os vizinhos para as relações bilaterais.
A América do Sul envolvia interesses muito variados no espectro de atores brasileiros,
incluindo os militares, que temiam a expansão do modelo cubano no continente. A articulação
das forças armadas brasileiras com contrapartes vizinhas toma corpo anos depois. Nos anos
1970 o crescimento acelerado da indústria brasileira teve impacto na região, implicando em
um processo de incorporação do arco das relações externas do país como complementos do
desenvolvimento nacional. A preferência clara por relações bilaterais com os vizinhos foi a
tônica da centralidade que o Brasil buscava na região. A ALALC foi imobilizada por divergências
internas e empacou quando chegou a vez de reduzir tarifas de produtos industrializados. Em
1966, Brasil e Paraguai davam o primeiro passo para a construção da Usina de Itaipu. Em
1973, foi assinado o Tratado de Itaipu criando a usina. As divergências entre Brasil e Argentina
cresceram.
A ideia de Brasil Potência instalou-se no imaginário dos governantes brasileiros: a Argentina
não se colocava mais como rival à altura, o governo brasileiro apoiou um golpe de estado na
Bolívia, além de assinar diversos acordos envolvendo o fornecimento do gás natural boliviano, e
também apoiou o golpe militar no Chile. De forma complementar, participou de uma iniciativa
regional na área de segurança com vistas a perseguir opositores: a Operação Condor.
A política externa do governo de Ernesto Geisel significou uma mudança de prioridades e
ações concretas e apresentou-se como política “sem fronteiras ideológicas”. O Brasil reconheceu
o governo socialista de Angola e estabeleceu relações com a República Popular da China. Para
a América do Sul, porém, o conteúdo ideológico foi mantido articulado com o pensamento
geopolítico que, não fosse o único, teve um peso grande no comportamento para a região.
No Pragmatismo Responsável, o caminho do desenvolvimento foi buscado sobretudo em
Prefácio

relações com países de outros continentes. O Acordo Nuclear com a Alemanha contribuiu para o
desenvolvimento da amizade entre Brasil e Argentina, uma vez que a Argentina sofreu as mesmas
pressões por parte dos Estados Unidos por também ter um projeto nuclear autônomo. No final
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de seu governo, Ernesto Geisel abria uma nova frente de cooperação com países vizinhos: foi
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

assinado o Tratado de Cooperação Amazônica, que marcou uma orientação da política externa
brasileira também para os países ao norte e oeste.
A política externa de João Figueiredo representou uma virada para a América Latina em
termos gerais, e, em particular, para o Cone Sul. Se, por um lado, manteve linhas do Pragmatismo
Responsável, por outro lado, o projeto de Brasil potência emergente não teve continuidade. A
conjuntura internacional e o contexto interno no Brasil incentivaram o abandono do projeto, e
optou-se pelo aprofundamento do universalismo, sobretudo em direção à América Latina. Com
exceção do caso de Cuba, a visão geopolítica e ideológica para a região perdeu espaços no
processo de formulação da política externa e o reforço da dimensão regional colocou-se como
fundamental para a inserção internacional do país. A ideia de latino-americanização da política
externa brasileira ganhou espaços, articulando-se à visão instrumental da importância dos países
vizinhos para o desenvolvimento brasileiro.
Os mecanismos multilaterais regionais passaram a ocupar no arco da política externa um
lugar como canais de atuação. Foi criada a ALADI, com vistas a incentivar o comércio e com
um perfil adaptado às necessidades sub-regionais. A identificação com os países vizinhos no
problema da dívida externa foi uma área de aproximação com o continente: o Brasil participou
do Consenso de Cartagena, defendendo um enfoque político para a dívida. O modelo de
crescimento brasileiro não livrou o país da crise da dívida externa ou do seu retrocesso na
década, mas criou um grau de complexidade da economia muito alto, e um parque industrial
amplo, uma estrutura produtiva diversificada que facilitaria a perspectiva de interação comercial
com os países vizinhos.
A ascensão de um novo governo civil no Brasil teve impactos relativos na política externa,
embora as razões de mudança já viessem sendo gestadas. Frente à América Latina, a diplomacia
brasileira buscou assumir compromissos que não haviam podido ser assumidos durante o
governo militar: foram reatadas as relações com Cuba, o Brasil entrou formalmente para o Grupo
de Apoio a Contadora e foram assinadas as convenções internacionais de direitos humanos. A
formação do Grupo do Rio, em 1986, foi um passo importante, e um ganho significativo para a
dimensão regional.
Mas o grande passo da diplomacia brasileira foi a articulação de um processo de
integração com a Argentina. Durante os governos de José Sarney e Raúl Alfonsín, os dois países
mantiveram perfis próximos em torno de um padrão autônomo de política externa, enfrentando
temas comuns e com afinidades na percepção do contexto internacional. Na política doméstica,
a consolidação democrática teve um papel fundamental no processo, na qual a integração
serviria como fortalecedor da democracia e garantidora das novas instituições democráticas
nos dois países. Em relação à economia brasileira, os problemas decorrentes da dívida externa
aproximaram ambos os países e a integração começou a caminhar.
A década de 1990 foi um momento marcado pela conformação de uma nova ordem
internacional que apontava para a necessidade de todas as sociedades partilharem de normas
comuns do pluralismo democrático como forma legítima de organização. Na economia, o
paradigma neoliberal tornou-se marco de referência, enquanto, simultaneamente, no Brasil, era
eleito o primeiro presidente através do voto direto após a ditadura militar. Os dois fenômenos
contribuíram para o processo de integração com a região. A América do Sul vivenciava os
problemas decorrentes da crise da dívida externa e dificuldades de inserção na economia
internacional, todavia, experimentava regionalmente pontos de convergência através das
transições para a democracia e dos projetos de ajuste econômico comprometidos com a
abertura das economias nacionais. O novo modelo de integração do regionalismo aberto
foi visto pelos sul-americanos como forma de aumentar a capacidade de enfrentar desafios

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e pressões resultantes da economia globalizada. Tiveram lugar iniciativas de integração de
caráter sub-regional.
O mandato de Collor de Mello foi curto e marcado pela crise que levou ao seu
impeachment, mas, ao longo do período, o governo brasileiro buscou seguir um processo de
abertura da economia com vistas ao crescimento da produção articulado com os mercados
externos. E, à medida em que a agenda de política externa se tornou objeto de interesse de
diferentes setores da sociedade, o monopólio do Itamaraty e a ideia de “interesses nacionais”
perdiam força. Junto com a abertura econômica, que resultou de forma clara em perdedores
e ganhadores, a consolidação democrática fomentou preferências sobre temas da agenda
internacional na sociedade civil.
Durante o mandato de Collor foi assinado o Tratado de Assunção, criando o MERCOSUL.
Marcado por preceitos do regionalismo aberto, o bloco orientou-se inicialmente para a dimensão
comercial. Enquanto isso, na dimensão política, o MERCOSUL foi percebido como instrumento
de reforço da capacidade negociadora brasileira, proporcionando-lhe mais peso na arena
internacional. O processo de integração trouxe novo cenário para a região, sobretudo no Cone
Sul. O governo de Itamar Franco buscou ampliar o bloco formando uma área de livre comércio
na América do Sul. Entretanto, o projeto não prosperou, mas ficaram plantadas as raízes de uma
América do Sul separada do restante da América Latina.
Com a eleição de Fernando Henrique Cardoso à presidência, ascende também no
Itamaraty a corrente institucionalista, que sugeria a construção de uma liderança brasileira
moderada na América do Sul com base na estabilidade democrática e no desenvolvimento de
infraestrutura. A estratégia regional ganhou força e se entrelaçou com a estratégia de projeção
global, configuração em que os países da América do Sul seriam parceiros necessários para o
fortalecimento da atuação brasileira nas instituições multilaterais, assim como receptores da
expansão do desenvolvimento brasileiro. Com base nos valores ocidentais, a diplomacia buscou
construir sua liderança na área a partir de um equilíbrio entre a integração no MERCOSUL, a
segurança regional vinculada à estabilidade democrática, e o desenvolvimento da infraestrutura
regional. Em 1999, o MERCOSUL viveu grave crise em função da desvalorização da moeda
brasileira e o comércio, base de equilíbrio do bloco, que entrou em rota de incertezas. Ademais,
as negociações para a formação da Área de Livre Comércio Americana (ALCA) mostravam seus
limites, somando-se à existência de forte interesse do governo de Cardoso em aumentar o
comércio com os países vizinhos (mercados de industrializados brasileiros), mas que enfrentava
o desafio da falta de infraestrutura regional.
Cardoso convocou então uma reunião de todos os presidentes da região em Brasília,
recuperando a ideia de América do Sul levantada alguns anos antes. Os destaques da cúpula
foram a integração econômica e de infraestrutura, junto com a defesa dos regimes democráticos.
Foi criada a Iniciativa para Integração da Infraestrutura Regional Sul-Americana, assim como
lançado o processo de formação da comunidade sul-americana de nações. O chanceler Celso
Lafer refletiu a posição de Cardoso na época ao dizer: “América do Sul é a nossa circunstância”.
Diz-se que quem indica o líder são os liderados. Mas, mesmo excluindo-se o termo do
discurso diplomático, o esforço de construção de uma liderança na América do Sul foi um
traço importante da política externa de Lula da Silva. A eleição de Lula trouxe novo perfil
para a política externa brasileira com base em ações proativas com vistas a modificar as
instituições multilaterais e com táticas de persuasão em favor dos países do Sul global. Junto
à ascensão do Brasil na arena global, a liderança regional na América do Sul tornou-se a outra
Prefácio

prioridade, com perfis complementares. A aproximação com os países vizinhos foi percebida
como instrumento para a realização do desenvolvimento brasileiro e para a formação de
um bloco capaz de exercer maior influência internacional. A diplomacia brasileira priorizou
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a construção de um ordenamento da América do Sul onde o Brasil teria um papel decisivo
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no processo de integração e regionalização. Essa liderança, portanto, apontou basicamente


para a cooperação, a governança regional e a regionalização. O Brasil foi gradativamente
atuando como paymaster, assumindo parcialmente os custos da cooperação regional, e
introduzindo uma rede de cooperação com países vizinhos nos campos de assistência técnica
e financiamento de obras de infraestrutura com recursos do BNDES.
Esse comportamento para a América do Sul recebeu apoio de diferentes grupos. Além
de estar vinculada fortemente aos desenvolvimentistas, que viam na infraestrutura regional um
elemento importante para o desenvolvimento brasileiro, foi incentivada pelos autonomistas do
Itamaraty (que viam a região como um potencial bloco de poder); por geopolíticos nacionalistas
que tiveram assento nesse governo; e uma comunidade epistêmica pró-integração que incluía
atores políticos do Partido dos Trabalhadores (PT) e acadêmicos que defendiam a integração
regional. A vontade política do presidente Lula articulou essas visões.
Com Dilma Rousseff, porém, apesar das semelhanças à política externa de Lula, a política
externa para América do Sul não teve continuidade. O país esteve sobre o impacto de uma
crise econômica internacional e, no âmbito doméstico, crises econômica e política, articuladas
a problemas de gestão. Progressivamente, outras agências foram se tornando responsáveis por
temas técnicos da política externa econômica, assim como a assessoria da presidência ocupou-
se das crises políticas na América do Sul. O Itamaraty, como defensor de uma política externa
focada no aumento da participação do Brasil na política global, foi perdendo espaços e a
relação entre a presidente e o ministério se deteriorou no decorrer do mandato. O Brasil perdeu
ativismo na esfera regional e seus movimentos assumiram caráter reativo. No segundo mandato,
a politização da política externa e dos processos judiciais contra dirigentes de grandes empresas
de infraestrutura — que haviam sido um instrumento importante de atuação brasileira na região
— tiveram consequências. Lideranças da oposição acusaram a política externa de Rousseff de
“ideológica” ou “partidarizada” e apontaram a América do Sul como uma das principais áreas
de desacertos por parte do governo. Com a crise, que concentrou cada vez mais a atenção do
governo e de atores políticos, os pilares do posicionamento frente à região foram abandonados.
A mudança para a presidência de Michel Temer teve reflexos no comportamento para a região.
As críticas à política de Rousseff buscaram satisfazer a dimensão doméstica e a principal área
da política externa que experimentou uma mudança foi a América do Sul. Essa mudança
afastou o Brasil de países vizinhos e do regionalismo sul-americano. A Venezuela foi suspensa
do MERCOSUL por ruptura na ordem democrática, o governo brasileiro contribuiu para a
formação e integrou o Grupo de Lima, o avanço dos governos conservadores no continente
travou o funcionamento da UNASUL, e a instituição foi progressivamente abandonando suas
atividades, culminando, em 2018, no seu abandono pelo Brasil e mais cinco países, suspendendo
sua participação e sua contribuição na organização. Na prática, o regionalismo dos anos 2000 foi
desfeito. Os investimentos brasileiros na região foram drasticamente reduzidos, tendo impactos
no longo prazo. Em relação ao MERCOSUL, as negociações para assinatura do acordo comercial
com a União Europeia avançaram e o foco do bloco orientou-se para temas comerciais,
abandonando a dimensão político-social. Frente à Argentina, a alternativa liberal no campo
econômico dos dois governos facilitou uma relação cordial.
A ascensão de novas ideias e a fragmentação do policymaking da política externa entre
grupos de apoio ao presidente que ocorreu no início da presidência de Jair Bolsonaro tiveram
impactos diretos na política externa brasileira. O antiglobalismo e anticlimatismo, somados ao
anticomunismo e ao conservadorismo na dimensão das ideias, e a perda de centralidade do
Itamaraty, levaram a sua reformulação. Nesse universo fragmentado, não havia atores interessados
na América do Sul. Apenas os mais próximos ao presidente, afeitos ao anticomunismo, focaram

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nos ataques à Venezuela e em uma tímida aproximação com Chile e Colômbia, em função de
seus governantes.
O governo de Bolsonaro encontrou na região um novo ciclo político favorável à
implementação de suas ideias, mas isso não levou a um envolvimento com a governança
regional — ao contrário, as organizações regionais foram desprezadas pelo governo brasileiro.
O presidente brasileiro apoiou a criação do PROSUL, projeto chileno-colombiano para substituir
a UNASUL e, ainda em 2019, seu governo denunciou o tratado da organização. Por outro lado,
o PROSUL nunca chegou a ocupar um papel relevante para o governo brasileiro: Bolsonaro
demonstrou preferência por aliar-se a governos, não a Estados e rompeu com a tradição da
diplomacia brasileira de não comentar assuntos internos a outras nações. Com alguma frequência,
o presidente discursa para as redes sociais sem compromisso com seu cargo, e, muitas vezes,
com comentários agressivos. Frente a campanhas presidenciais em outros países, Bolsonaro
fez críticas antecipadas a Alberto Fernández, Pedro Castillo e Gabriel Boric. Ainda, estabeleceu
um comportamento pouco harmônico com os vizinhos da Floresta Amazônica e o comércio
com a região, que vinha sofrendo uma progressiva redução, teve uma queda significativa.
Em relação ao MERCOSUL, foi assinado o acordo comercial do bloco com a União Europeia,
mas que não viria a ser validado em função de problemas políticos vinculados à destruição da
Amazônia. E, em relação à Argentina, desde a ascensão de Fernández. As relações atingiram um
distanciamento que não ocorria desde os anos 1980. A parceria estratégica que tanto contribuiu
para a estabilidade regional foi rompida.
Assim, a interação do Brasil com a América do Sul passou por diversas etapas, com
variações, mas a ambiguidade na identificação com a região esteve sempre presente. A criação
do MERCOSUL, a ascensão do conceito América do Sul e a construção da governança regional
junto da regionalização do período de Lula incentivaram diversas obras acadêmicas que viam
a identificação do Brasil com seus vizinhos como um estágio alcançado, sem possibilidade de
retrocesso. Mas não. Do declínio à perda de relevância da região na política externa de Bolsonaro
mostra que a identidade regional do Brasil segue ambígua; mobiliza sentimentos, variedade de
interesses, percepções descasadas, identidades/divergências políticas e contatos intersocietais.
A interação do Brasil com os vizinhos fica então sensível a mudanças e refém de ideologias e
preferências do universo da política.
A política externa brasileira e a interação entre o Brasil e a região serão objeto dessa
coletânea.

Miriam Gomes Saraiva


Prefácio
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AGRADECIMENTOS

Agradecemos à Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio de


Janeiro (FAPERJ) e ao Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq)
que, por diferentes caminhos, deram apoio financeiro à criação e trajetória do Laboratório de
Estudos sobre Regionalismo e Política Externa (LeRPE). Sem esse apoio, o LeRPE não teria existido
ou, ao menos, não teria sobrevivido aos obstáculos criados pela pandemia.
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APRESENTAÇÃO

Os estudos de Política Externa têm crescido no Brasil, incorporando tanto novos atores
e novas agendas, ganhando densidade analítica, como a dimensão teórica da Análise da
Política Externa. Dentro do arco de temas estudados, a política externa brasileira tem destaque,
sobretudo em se tratando da agenda multilateral. Por outro lado, as políticas externas de países
sul-americanos são pouco conhecidas, o que deixa uma lacuna uma vez que a América do Sul é
nossa circunstância (como disse Celso Lafer) e do continente somos parte.
O LeRPE (Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa), vinculado ao
Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, articula e apoia pesquisas sobre a política externa brasileira com foco na América do Sul,
as políticas externas sul-americanas, e as diversas iniciativas de regionalismo sul-americano que,
em sua maioria, incluem o Brasil. Aglutina pesquisadores da Universidade do Estado do Rio de
Janeiro, mas também de outras instituições que trabalham com o tema.
Com vistas a contribuir para o desenvolvimento dos estudos sobre as políticas externas
brasileira e de outros países sul-americanos, este livro busca mapear algumas dimensões das
políticas externas do Brasil e de parceiros da América do Sul, desde a década de 1980 até os dias
de hoje, a partir de capítulos representativos da comunidade do LeRPE, incluindo pesquisadores
sêniores e júniores.
A coletânea é regida por algumas indagações: Como é possível entender os tantos
meandros da política externa na região sul-americana? A política exterior brasileira dialoga
com políticas exteriores de países vizinhos? Que se pode esperar da inserção internacional
do Brasil no decorrer desde os anos 1980 até a atualidade? A política externa brasileira viveu
múltiplas etapas, assim como teve paradigmas diferentes, mas, a partir da democratização
e consequente instauração do regime democrático que tiveram lugar no período inicial da
globalização na arena internacional, a complexidade e a presença de mudanças passaram a ser
elementos frequentes.
A primeira parte temática concentra-se na política externa brasileira. Em termos históricos,
a coletânea se detém às décadas de 1980 e 1990, período da construção da parceria estratégica
entre Argentina e Brasil, enfocando dois temas que marcam a aproximação posterior entre
Brasil e Argentina nos marcos do MERCOSUL. Primeiramente, em “As Relações Econômicas
Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)”, Ana Paula Reis trata da política econômica
do presidente João Figueiredo. A autora examina como o governo lidou com os problemas
econômicos que o Brasil enfrentou após o segundo choque do petróleo, de 1979. Ela analisa
a incorporação de novos atores na formulação e nas negociações de política externa com
participação, junto do Itamaraty, do Ministério da Fazenda, da Secretaria de Planejamento da
Presidência da República e do Banco Central do Brasil. O capítulo apresenta os acontecimentos
em ordem cronológica, para demonstrar os avanços nas negociações da dívida, apresentando
quem são os atores envolvidos e suas ações em busca da solução da crise econômica
enfrentada.
Em “Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada: analisando o papel da transição
de regime para as políticas externas em direitos humanos dos governos de Raúl Alfonsín
(1983–1989) e José Sarney (1985–1990)”, Guilherme Ramos faz uma comparação entre um
tema fundamental para a reinserção dos dois países no cenário internacional e renovação das
respectivas credenciais: a política externa de direitos humanos. O capítulo analisa as implicações
das mudanças dadas pela transição de regime político nas políticas externas de Argentina e Brasil
no período imediatamente subsequente à retomada do poder pelos civis após as ditaduras mais
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recentes que acometeram ambos os países. Através do recurso ao método comparado, o autor
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

busca responder, por intermédio da comparação entre as políticas externas em questão com o
foco no papel conferido aos direitos humanos, à seguinte questão: de que maneira a transição
para a democracia impactou as políticas externas de Argentina e Brasil?
Guilherme Macedo, Alexandre Leite e Beatriz Henriques analisam, em “Integração Sul-
Americana e Congresso Nacional: Uma Análise de Conteúdo dos Discursos Parlamentares
Brasileiros Sobre a Criação do Mercosul”, o apoio discursivo dos parlamentares brasileiros a
respeito da criação do MEROCSUL a partir da assinatura do Tratado de Assunção (1991) até
a aprovação do texto final pelo Congresso Nacional. Utilizando a análise de conteúdo, e por
meio do software NVivo 12, os autores avaliaram um total de 45 discursos, entre monólogos e
diálogos, de 33 parlamentares, contidos em 37 documentos do Diário do Congresso Nacional.
Os resultados demonstram que, a nível discursivo, embora as atribuições dos parlamentares
se caracterizem como majoritariamente positivas, não houve um consenso automático do
Congresso Nacional diante da criação do bloco.
Caminhando para o final da década e início do século XXI, Leandro Gavião, em “O governo
de Fernando Henrique Cardoso e as origens da América do Sul” examina como o continente sul-
americano entrou no foco da política externa brasileira em lugar do conceito de América Latina.
Identificar a América do Sul como a primeira referência externa para o Brasil foi uma inflexão
que marca a política externa brasileira até a atualidade. Para tanto, analisa a Reunião de Brasília
de 2000 em seus detalhes a partir sobretudo do Comunicado de Brasília. Como pano de fundo,
Leandro Gavião reflete sobre a relação entre o fenômeno e a construção de uma identidade
supranacional na região.
Dentro do tema da política externa brasileira, mas trazendo o olhar para a atualidade, dois
capítulos tratam da política externa do governo de Jair Bolsonaro. “Populismo, discurso e política
externa: uma análise do caso brasileiro durante a gestão Bolsonaro-Araújo” examina um tema
muito relevante na atualidade que é a relação entre populismo e política externa, uma vez que
a figura do presidente é associada frequentemente à emergência de um populismo de extrema-
direita. Nele, Beatriz Bandeira de Mello e Lucca Giannini Belfi partem de um debate sobre a
relação entre pós-estruturalismo e política externa, mediada pelos escritos de Ernesto Laclau
sobre o Populismo e sua Teoria do Discurso, para identificar como a política externa de Jair
Bolsonaro, especificamente durante a gestão do Ministro de Relações Exteriores Ernesto Araújo,
responde a este fenômeno político, tendo como fundamento os discursos realizados por ambos
os representantes e as categorias por eles mobilizadas com destaque para o “antiglobalismo”.
Em “Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira: o negacionismo climático na política
externa do governo Bolsonaro”, Nathan Morais analisa o fenômeno do negacionismo climático
e a sua adesão por parte dos formuladores da política externa brasileira durante o governo
de Jair Bolsonaro e, principalmente durante as gestões de Ernesto Araújo e Ricardo Salles nos
Ministérios das Relações Exteriores e do Meio Ambiente entre 2019 e 2021. A partir da análise
das ações e discursos dos atores da política externa brasileira para esta temática, o autor busca
identificar as inflexões na diplomacia brasileira no tema das mudanças climáticas em relação
aos governos anteriores, dando atenção ao papel das ideias e a sua penetração no processo
decisório diante da questão. Verifica-se que se desenrolou um processo de ideologização da
questão, em detrimento do pragmatismo que antes predominava. A atuação brasileira diante
da agenda climática passou a ser guiada por visões de mundo e princípios dos tomadores de
decisão, em vez de crenças causais.
A segunda parte temática, fundamental para completar o livro, diz respeito à América do
Sul, desde sua dimensão do regionalismo até casos de políticas externas de países vizinhos. Sobre
o regionalismo, em “A reforma institucional do Mercosul (2015–2022): eficiência ou desmonte?”,

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Lorena Granja dedica a atenção ao MERCOSUL situando as reformas institucionais ocorridas no
bloco desde 2015. O capítulo mostra como a dimensão ideológica tem se mostrado relevante
para a construção de governança regional ao longo do tempo; nesse sentido, a construção
e desmonte de capacidades institucionais dentro do MERCOSUL respondem aos padrões
de convergência e divergência ideológica entre os governos dos Estados Partes. No período
estudado pela autora, entre os anos de 2015 e 2022, é evidenciado um processo de desmonte
institucional dentro do bloco que atinge as capacidades construídas durante o período anterior
de convergência ideológica (2003–2013).
Sobre as políticas externas sul-americanas, o primeiro caso de estudo que recebe atenção
é a Bolívia, durante o governo de Evo Morales. Em “O Vivir Bien enquanto plataforma política
do governo MAS na agenda externa de meio ambiente”, Ana Lúcia de Lacerda examina a pauta
política de Morales durante seus governos com base na sabedoria ancestral aimará, o Vivir Bien.
No capítulo, Ana de Lacerda mostra como a agenda de meio ambiente foi marcada pelo Vivir Bien
através de iniciativas com vistas a internacionalizar os princípios estabelecidos pelos direitos da
Mãe Terra. Assim, busca compreender a incidência da cosmovisão originária na política externa
de meio ambiente partindo da composição ideacional do Movimiento Al Socialismo (MAS),
durante os dois primeiros governos de Morales. Enquadrando-se nos estudos que investigam
como as ideias se vinculam à política externa, o capítulo argumenta que a cosmovisão originária
está intrinsecamente ligada à episteme do MAS.
Em “O lugar da integração regional para o chavismo: operacionalização das ideias de Simón
Bolívar”, Stephanie Clemente examina o papel da integração regional na política externa de Hugo
Chávez. Especificamente, a autora busca identificar traços das ideias de Simon Bolívar — na
versão bolivariana — na política externa da Venezuela durante os governos de Hugo Chávez que
levaram o país a se comportar como líder regional na América do Sul e no Caribe. Para tanto, a
autora utiliza lentes teóricas da Análise de Política Externa que abordam os efeitos causais que
as ideias ocasionam na conformação de políticas externas e o impacto delas na consecução de
papéis, com destaque para o uso da Role Theory.
Para o êxito dessa coletânea, nos marcos do LeRPE, tiveram lugar contribuições às diferentes
pesquisas, sugestões e críticas. Entre todos — e sendo difícil listá-los sem arriscar que alguém
não seja mencionado — chamamos a atenção para a equipe do LeRPE como um todo e para
aqueles que, de uma forma ou de outra, contribuíram para os avanços de seus trabalhos. Este
livro visa trazer para o debate, dentro e fora da comunidade acadêmica, fenômenos importantes
da política externa brasileira e sua interação com o continente sul-americano.

Miriam Gomes Saraiva


Lorena Granja Hernández
Apresentação
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CAPÍTULO 1

AS RELAÇÕES ECONÔMICAS INTERNACIONAIS DO GOVERNO


FIGUEIREDO (1979–1985)1

Ana Paula Marino de Sant’Anna Reis

Este capítulo tem como objetivo analisar a literatura sobre as Relações Econômicas
Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985), levando em consideração o grave cenário de
crise econômica e de aumento de sua dívida externa. O país encontrava-se no último governo da
Ditadura Militar, começando um processo de abertura política. A literatura sobre o tema aponta
que este era um momento de incorporação de novos atores na política externa, principalmente
na área econômica, com participação do Itamaraty, do Ministério da Fazenda, da Secretaria de
Planejamento da Presidência da República (SEPLAN)2 e do Banco Central do Brasil (BCB).
O capítulo apresenta os acontecimentos em ordem cronológica para demonstrar os
avanços nas negociações da dívida. Aplica-se a teoria sobre unidades de decisão de Hermann
et al. (1989), compreendendo que a política externa é formulada, principalmente, em questões
econômicas, por múltiplos atores autônomos neste período. Apresenta-se quem são esses atores,
os momentos em que eles estiveram presentes no governo e suas ações em busca da solução da
crise econômica enfrentada.

O início do Governo Figueiredo e a crise do petróleo de 1979

O governo de João Batista Figueiredo teve início em 15 de março de 1979, logo após a
deflagração da Revolução Iraniana de fevereiro, que gerou uma diminuição da produção mundial
de petróleo com consequente alta de preços. A economia mundial passou a ter uma queda em
seu ritmo de crescimento, afetando as exportações dos países em desenvolvimento, que foram
perdendo mercados. A liquidez internacional passou a ser escassa, o que fez com que países
em desenvolvimento não conseguissem financiar suas contas e equilibrar seus balanços de
pagamento (FERREIRA, 2021, p. 336-337; SILVA, 2021, p. 83-85).
Ainda em 1979, em 4 de maio, Margareth Thatcher foi eleita primeira-ministra do Reino
Unido com um discurso voltado à redução da intervenção estatal na economia como forma de
combater a crise econômica britânica. No ano seguinte, em 3 de novembro, Ronald Reagan é
eleito presidente dos Estados Unidos (EUA), afirmando em seu discurso de posse, em 1981, que:
“o governo não é a solução para os nossos problemas, o governo é o nosso problema” (BRASIL,
2022a, sp.).
A eleição desses dois políticos foi um marco importante para a construção de união
entre duas das grandes economias do mundo, EUA e Reino Unido, com políticas em prol de
uma reversão do keynesianismo, aplicado desde o pós-II Guerra Mundial em ambos os países,
assim como em outros países desenvolvidos. A ação contra os problemas econômicos agravados
pela segunda crise do petróleo foi posta em prática com a implementação de desestatização,

1 Agradeço ao apoio da FAPERJ para essa pesquisa.


2 A Secretaria de Planejamento (SEPLAN) nesse momento da história do Brasil tem bastante relevância na definição
das diretrizes econômicas do país, pois desde o Decreto 83.323 de abril de 1979, o Conselho Monetário Nacional
passou a ser presidido pelo ministro que estava comandando a SEPLAN (Ferreira, 2021, p. 338).
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privatizações e desregulamentação, o que se convencionou chamar de agenda neoliberal
(ALMEIDA, 2020, p. 305). Com isso, além do aumento de preços do principal combustível do
desenvolvimento econômico da época, os EUA, sob a presidência de Ronald Reagan, aumentaram
a taxa de juros, provocando uma forte recessão nos países desenvolvidos, com reflexos graves
em todo o mundo.
Os países dependentes da importação de petróleo, como era o caso do Brasil, passaram
a ter uma inflação acelerada combinada com um crescimento lento. Um dos fatores que
contribuíram para isso foi a forma como os países desenvolvidos lidaram com o segundo choque
do petróleo: a recessão enfrentada por estes países também pode ser explicada pelas políticas
macroeconômicas que foram adotadas. No primeiro choque, esses países optaram por políticas
expansionistas, tanto em questões monetárias quanto em questões fiscais. Já neste segundo
choque, no entanto, a política monetária e a política fiscal adotadas foram contracionistas, com
foco em conter a inflação.
Essas medidas, concentradas exclusivamente na contenção inflacionária, geraram tanto
problemas em relação a emprego e produção nos países desenvolvidos, quanto refletiram
os mesmos problemas — inflação, desemprego e diminuição da produção — nos países
em desenvolvimento (KRUGMAN; OBSTFELD, 2001, p. 594-595). O Brasil, como país em
desenvolvimento e importador de petróleo, que já vivia um cenário de inflação alta no governo

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


anterior de 40,8% em 1978, passou a ter uma inflação de 77,25% no ano seguinte (FERREIRA,
2021, p. 337).
Logo em seu discurso de posse, o presidente Figueiredo fez alusão à necessidade de
equilibrar as contas internacionais do país, relembrando que parte do desenvolvimento que o
país conseguiu nos anos anteriores tinha relação direta com a obtenção de poupança externa,
mas que pretendia que o país conseguisse sozinho custear seu desenvolvimento (FERREIRA,
2021, p. 337). Este discurso tem um lado apelativo de convencer a população de que era
possível permanecer se desenvolvendo e, ainda, que este desenvolvimento traria a solução dos
problemas econômicos enfrentados, mas também é um reflexo da compreensão institucional de
que o apoio externo para a solução desses problemas seria muito difícil.
Visentini (2004, p. 277) afirma que a crise da dívida externa que o Brasil enfrentava durante
o governo Figueiredo fez com que a agenda internacional brasileira ficasse repleta de temas
econômicos. As relações entre os ministérios ligados à economia, para ele, englobaram também
o Ministério da Agricultura, o Ministério do Interior e o Ministério das Relações Exteriores (MRE),
que já estavam interligados desde o início da década de 1970. O papel do MRE, para Visentini,
era bastante relevante no longo prazo, assim como na resolução de problemas imediatos, como
instrumento para salvaguardar o projeto nacional.
De acordo com Almeida (2020, p. 306), a definição de política externa foi feita com bastante
autonomia pelo Itamaraty, já que o presidente, diferente de seu predecessor, não tinha interesse
em definir a dinâmica deste setor e não tinha proximidade com o Ministro das Relações Exteriores,
Ramiro Saraiva Guerreiro, em contraste à relação do presidente Ernesto Geisel e seu Ministro das
Relações Exteriores, Azeredo da Silveira. O pesquisador ainda afirma que foi nesse momento
que o MRE passou a ampliar sua área de economia internacional, agregando aos setores que já
trabalhavam com negociações comerciais multilaterais temas de finanças e de investimentos.
Camargo e Ocampo (1988, p. 125) afirmam que a política externa conduzida pelo ministro
Saraiva Guerreiro era uma mudança de estilo em relação à política externa anterior, de Azeredo
da Silveira. Era, nesse momento, “uma diplomacia menos secreta e com diálogo mais aberto
com o Congresso Nacional”. Como resultado, ocorreram mudanças de reforço ou afrouxamento
em alguns posicionamentos externos, além de uma “acentuação dos aspectos econômico-
financeiros nas negociações internacionais, obrigatoriamente dirigidas para os países do Norte”.
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Política Externa de múltiplos atores autônomos
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Visentini (2004, p. 283) afirma que a abertura para a democracia que o país vivia “ampliava
o número de atores domésticos capazes de influir na formulação da política externa”. Esta visão
de Visentini segue a mesma lógica de Pinheiro (2000, p. 451 e 456) ao pensar a formulação de
política externa neste momento. A autora compreende que a política externa desse período não
é formulada por um Estado como ator unitário e monolítico em busca do “interesse nacional”,
mas formulada por múltiplos atores autônomos, ou seja, por um conjunto de indivíduos ou
grupos com existência razoavelmente autônoma e que não conseguem separadamente tomar
decisões sem o apoio dos demais.
Pinheiro (2000) segue a teoria de Hermann et al. (1989, p. 309-311) para dividir às unidades
de decisão em três tipos: “líder predominante”, “único grupo” e “múltiplos atores autônomos”.
Para os autores, compreender como as decisões são tomadas pode ser uma fonte importante
de informação que nos faça entender mais o comportamento em política externa dos Estados. A
aplicação da ideia de unidade de decisão pode ser por cada tipo de problema enfrentado pelo
governo, ou seja, se é uma discussão econômica a decisão é tomada de uma forma, podendo
ser por múltiplos atores autônomos, entretanto, se for uma discussão militar, a decisão pode
ser tomada por um único grupo. É possível, ainda, compreender as temáticas de política externa
como um todo e perceber uma tendência em direção a um tipo específico de unidade de decisão
na maior parte delas.
Além dessas divisões em unidades de decisão, Hermann et al. (1989, p. 312) explicam que,
para cada tipo, há uma peça-chave de informação que o analista de política externa precisa
compreender com o objetivo de identificar se a natureza da decisão de política externa vem
especificamente da unidade de decisão, mantendo o foco exclusivo nela, ou se deve olhar
para fora da unidade de decisão e compreender outros fatores que a influenciam. Os autores
chamam isso de “variáveis de controle chave”3 porque elas determinam quanto outros elementos
podem entrar no cálculo da decisão para cada uma das unidades. No caso dos múltiplos atores
autônomos, temos como variável de controle as relações entre os grupos e as possibilidades são
duas: (a) soma zero ou (b) não soma zero.
Na lógica de soma zero, cada um dos atores segue uma ideia de diminuição/destruição do
outro, buscando beneficiar-se em detrimento do outro, a relação é permeada de impasses4, de
dificuldades para prosseguir, só sendo resolvidos quando algo externo com poder o bastante
intervém na situação e força um acordo entre os grupos. Por existir múltiplos grupos autônomos,
um grupo pode dificultar as iniciativas de outro grupo formalmente, através do poder de veto
em uma reunião, ou de maneira informal, ameaçando o fim da coalizão formada para decidir,
tomar totalmente o poder de decisão para si ou dificultando o acesso aos recursos necessários
(HERMANN et al., 1989, p. 316-318).
Para que uma política externa seja organizada por múltiplos atores autônomos e tenha
coerência, os atores devem conseguir estabelecer acordos entre si. Muitas vezes, esses atores
não conseguem elaborar tais acordos, chegando a um impasse. Os impasses fazem parte da
própria dinâmica das relações, já que eles demonstram que nenhum grupo sozinho consegue
resolver a situação, ou seja, precisa haver uma negociação para a tomada de decisão. Isto
também demonstra que, nessa unidade de decisão, um ou mais grupos sempre poderão exercer
seu poder de bloquear as iniciativas dos outros. No caso da soma zero, como relatado acima, a
relação é permeada de diversos impasses (HERMANN et al., 1989, p. 317).

3 Key control variables.


4 Deadlocks.

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Vale ressaltar que, mesmo em situações em que os múltiplos atores autônomos estejam em
impasses, com alguns grupos bloqueados, isso não quer dizer que estão estagnados e nada mais
em política externa terá andamento, ou que estes grupos bloqueados não possuem espaço para
serem ativos. E, ainda, é possível que eles tenham visões comuns em alguns temas, que façam
com que acordos sejam feitos em relação a estes pontos. Há também, contudo, a possibilidade
de um dos grupos ameaçar o uso da força, obrigando todos a concordar por meio de coerção,
ou realizar um golpe e tomar o poder, mudando a natureza da unidade de decisão (HERMANN
et al, 1989, p. 323-324).
Enquanto isso, na não soma zero, que poderíamos chamar também de jogo win-win, há
regras institucionalizadas que incentivam os atores a cooperar, barganhar e interagir para resolver
eventuais problemas e questões. Aqueles que estiverem na posição de desfavorável perante às
regras irão barganhar, aqueles que estão em posição e favorecimento perante as regras irão
cooperar. Essas “regras do jogo” podem não ser explícitas, mas acordadas informalmente entre
os atores. A própria coexistência entre eles, dando legitimidade uns aos outros para discutir a
temática que estiver em questão, é uma demonstração de uma regra informal do relacionamento
recíproco (HERMANN et al., 1989, p. 318 e 331).
Essa forma de unidade de decisão, com múltiplos atores autônomos, é comum em
democracias presidencialistas, nas quais o processo decisório envolve muitos grupos, mesmo

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


com um Executivo forte, e em países do Terceiro Mundo, que costumam ser fragmentados
internamente e continuamente ameaçados por intervenção militar – são coalizões, nesse caso,
mais instáveis (Hermann et al, 1989, p. 316 e 317).
Para Pinheiro (2000, p. 451 e 456), esses múltiplos atores ativos na política externa entre
1979 e 1985 são o Presidente da República, João Batista Figueiredo, o Ministério das Relações
Exteriores, representado pelo ministro Saraiva Guerreiro, os militares e as agências econômicas.
No caso das agências econômicas, podemos analisar como Cervo e Bueno (2015), sendo um
grupo dividido entre os economistas da Fazenda, da SEPLAN e do BCB, que mudaram durante o
período analisado.
Este capítulo analisa a política externa com foco em uma temática específica, a econômica.
Assim, compreende-se que os múltiplos atores autônomos na temática econômica são o
Presidente da República Figueiredo, o Ministro Saraiva Guerreiro, o Ministro da SEPLAN, o
Ministro da Fazenda e o Presidente do Banco Central. Quanto a esses três atores, representantes
das agências econômicas, vale destacar que eles mudaram com o decorrer do governo.
A SEPLAN foi comandada inicialmente por Mário Henrique Simonsen, do início do governo
até agosto de 1979, quando passou a ser comandada por Antônio Delfim Netto. No Ministério
da Fazenda estava Karlos Heinz Rischbieter no início do governo, substituído no início de 1980
por Ernane Galvêas, que estava na presidência do BCB desde agosto de 1979 (antes dele quem
presidiu o BCB foi Carlos Brandão, de março de 1979 até agosto de 1979). Com a saída de
Galvêas do BCB, Carlos Geraldo Langoni assumiu a presidência até setembro de 1983, sendo
substituído por Affonso Celso Pastore, que ficou até o final do governo Figueiredo.
Temos, portanto, grupos de agentes econômicos diferentes durante o governo de
Figueiredo, sendo o primeiro composto por Simonsen (SEPLAN), Rischbieter (Fazenda) e
Brandão (BCB). Em agosto de 1979 começam as mudanças, sendo o segundo grupo Delfim Netto
(SEPLAN), Rischbieter/Galvêas (Fazenda), Galvêas/Langoni (BCB), sendo que a primeira equipe
econômica que renegocia a dívida a partir de 1982 é Delfim Netto (SEPLAN), Galvêas (Fazenda)
e Langoni (BC). A partir de setembro de 1983, o grupo se modifica mais uma vez, passando a ser
Delfim Netto (SEPLAN), Galvêas (Fazenda) e Pastore (BC).
Vale ressaltar a importância da participação de empresas brasileiras, públicas, privadas e de
capital misto de diversos ramos, incluindo a indústria brasileira de defesa, na influência sobre as
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ações externas ligadas ao comércio, e que influenciam as questões econômicas e financeiras do
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

país (SILVA, 2021, p. 15). Essas empresas brasileiras, contudo, não são consideradas como atores
que organizam a política externa quanto à temática econômica e sim atores internos brasileiros
que participam da dinâmica econômica do país e que seus interesses podem ser considerados
pelos múltiplos atores autônomos quando forem decidir algo nesta temática.
Em relação ao Governo Figueiredo, Pinheiro (2000, p. 467-468) afirma que este foi um
período com uma política externa com dubiedade, produto de divergências entre diversos
decisores e “da ausência de um elemento que funcionasse como fiel da balança”. A autora
comenta que, em relação às questões econômicas, há uma “gradual perda do prestígio do
Itamaraty”, principalmente no pós-1982. Como a pauta econômica passa a ser de extrema
importância com o agravamento da crise, o Itamaraty, além de não conseguir se inserir no
espaço de solução do problema, também passa a ter dificuldades de formulação da política
externa como um todo. A autora salienta, contudo, que o Itamaraty, com sua grande capacidade
de adaptação, consegue inserir-se em questões comerciais.
No que diz respeito à análise sobre esta ser uma situação de relação de soma zero entre
os múltiplos atores autônomos ou de não soma zero, Pinheiro (2000, p. 468) compreende
que se faz necessário um estudo mais detalhado da questão, para compreender se havia
aceitação da existência legítima entre os grupos, ou seja, não soma zero, ou se havia uma
situação de disputa e choque entre os atores, em uma situação soma zero. Destaca-se que na
análise que a autora faz sobre a política externa ter pontos de dubiedade há uma tendência a
compreender que sua interpretação pode ser mais para a possibilidade de soma zero do que
de não soma zero.
Sonia Camargo (1988 apud Visentini, 2004, p.227) afirma que Figueiredo ampliou
dentro do Executivo a presença institucional do MRE como reflexo do aumento da atividade
externa do país. A autora concorda com Almeida (2020), afirmando que os funcionários do
Itamaraty passaram a lidar mais com questões econômicas e financeiras, e adiciona que isto
se intensificou após a declaração de moratória do México em 1982 e o agravamento da
situação econômica do Brasil. Só que ela faz um adendo, informando que, de 1982 até 1984,
os ministros da área econômica “disputaram o monopólio das negociações”. O Itamaraty
queria politizar as questões econômicas e as ações dos outros ministérios dificultaram essa
intenção do MRE.
Cabe salientar também que Camargo e Ocampo (1988, p.125-126) comentam que Saraiva
Guerreiro se posicionou em relação à importância política da solução dos problemas econômicos5,
além de colocar o MRE como aquele que poderia centralizar as negociações econômicas do
Brasil no sistema internacional, enfatizando a unidade e a globalidade que a ação externa
brasileira poderia ter se acontecesse desta maneira. No entanto, as intenções não se refletiram
em práticas, já que organismos militares e de informação, assim como as agências econômicas,
aumentaram suas influências e ações internacionais, dividindo tarefas com o MRE. Podemos
dizer, portanto, que Camargo e Ocampo concordam com Pinheiro (2000), compreendendo que
era uma situação permeada por múltiplos atores autônomos.
Cervo e Bueno (2015, p. 466), por sua vez, tem posição bastante crítica quanto à atuação
do MRE nas questões econômicas e financeiras, compreendendo que, apesar da dívida ser o
grande problema enfrentado no período, o Itamaraty não pôde fazer parte do processo para

5 Visentini (2004, p.350) comenta que apesar desse enfoque político da crise da dívida feito por Saraiva Guerreiro
nas reuniões de ministros de relações exteriores do continente sobre o problema comum da dívida externa, o
Brasil não concordou com a ideia da Argentina, Venezuela e Equador de constituir um “clube dos devedores”, ou
seja, não queria negociar em conjunto, compreendendo que cada país deveria solucionar seu problema da dívida
individualmente, ressaltando que era um problema político.

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a busca de seu equacionamento ou rolagem. Os autores afirmam que a negociação foi feita
somente pelos economistas dos ministérios “da Fazenda, do Planejamento e do Banco Central, à
revelia da sociedade e de outros órgãos que a representavam”.
Por sua vez, Camargo e Ocampo (1988, p. 126) afirmam o contrário: com o decorrer do
governo Figueiredo, o processo foi se modificando e o MRE passou a ter um papel relevante nas
discussões com os EUA, buscando apoio deste país nas negociações brasileiras com o Fundo
Monetário Internacional (FMI), diferente do início do governo, quando os ministros Delfim
Netto (SEPLAN) e Ernane Galvêas (Fazenda) encontravam-se nesse espaço de negociação, mas
passaram a atuar como assessores de Saraiva Guerreiro.

Os entendimentos com algumas nações desenvolvidas, principalmente


com os Estados Unidos, visando seu apoio à ida do Brasil ao Fundo
Monetário Internacional, foram transferidos para o Itamaraty, em
substituição aos ministros do Planejamento, Delfim Netto, e da Fazenda,
Ernane Galvêas, que passaram a assessorar o chanceler Saraiva Guerreiro
(CAMARGO; OCAMPO, 1988, p. 126).

É necessário retomar, ainda, a atuação do Itamaraty em questões comerciais. Em julho


de 1980, em discurso na Federação Brasileira dos Bancos, o ministro das Relações Exteriores

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


Saraiva Guerreiro afirmou que a cooperação Sul-Sul, que o país se engajou no momento, tinha
como objetivo “reforçar o poder de barganha brasileiro em negociações econômicas globais (...)
[em] dimensão concreta”. Neste momento, o comércio com Oriente Médio e com a Ásia estava
crescendo e sendo lucrativo (VISENTINI, 2004, p. 282). A melhoria das exportações pode trazer
reflexos nas transações correntes do país, atenuando os desequilíbrios que a dívida proporciona.
O incentivo da venda de armas para países centro-americanos, conduzida pelos militares
com apoio do Itamaraty, é parte importante do esforço para aumentar as exportações e a conta
de transações correntes do país, melhorando o Balanço de Pagamentos (PINHEIRO, 2000, p. 467).
Visentini (2004, p. 397), ao fazer uma lista cronológica de fatos relevantes da política externa
brasileira, relembra que em maio de 1984, o Brasil entregou parte da compra de aeronaves que
Honduras fez, quatro aviões T-27 Tucano, estruturados para combater guerrilhas.
Mas não era só o Itamaraty que agia em questões comerciais — em agosto de 1981, o
ministro Delfim Netto fez uma viagem para a União Soviética, na qual conseguiu assinar uma
série de acordos comerciais e de cooperação (VISENTINI, 2004, p. 391). Todos os atores estavam
engajados em diversas frentes, em busca da solução da crise enfrentada.
A balança comercial brasileira já estava diversificada geograficamente quando o governo
Figueiredo teve início, com os países em desenvolvimento representando 42% dos destinos
das exportações de manufaturados produzidos no Brasil (CRAVO, 2016, p. 108 apud ALMEIDA,
2020, p.305). As ações do Itamaraty de aproximação com os países em desenvolvimento — e
nisso podemos incluir países árabes e países da África Negra — era uma “avaliação da realidade
concreta”, baseada no nosso comércio com esses países (CAMARGO; OCAMPO, 1988, p. 127).
Em um contexto de protecionismo em ascensão nos países desenvolvidos afetados pela
crise, que escolheram como solução esse caminho, com uma pauta de exportação já consolidada
para os países em desenvolvimento e uma política externa com certa autonomia, faz sentido que
a escolha de Saraiva Guerreiro e dos demais diplomatas brasileiros seja de fortalecer discursos
Sul-Sul em âmbito multilateral, em busca da manutenção e ampliação de seu grupo de parceiros
comerciais como solução para a crise econômica enfrentada.
O Brasil precisava afirmar que possuía uma dupla identidade como forma de abrir portas,
de conseguir estar “nos dois mundos”: era um país ocidental e era um país terceiro-mundista.
O discurso brasileiro de potência não estava mais em pauta, naquele momento o discurso era
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construído com atenção na renegociação da dívida, na ampliação das exportações e apresentação
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

de um novo Brasil, com mudanças internas relevantes caminhando para a democracia. O Brasil
também queria demonstrar nos posicionamentos externos que os países do Sul e os países do
Norte estavam interligados no sistema econômico internacional, o que gerava uma relação de
interdependência, mas também de grande desequilíbrio e desigualdade, e que havia necessidade
de mudança desse cenário (CAMARGO; OCAMPO, 1988, p. 127).
O governo brasileiro, com o intuito de garantir a sua competitividade nas exportações,
iniciou em 1979 uma série de maxidesvalorizações cambiais do Cruzeiro. A primeira foi feita
no final de 1979, que não teve um efeito inicial esperado, já que as exportações foram de
US$15.244 milhões e as importações de US$18.084 milhões, resultando em saldo negativo de
US$2.839 milhões. No ano seguinte o país permanece com saldo negativo similar, dessa vez de
US$2.823 milhões, pois apesar da alta significativa nas exportações (foram US$20.132 milhões),
as importações também aumentaram (US$22.955 milhões) (BRASIL, 2022a, sp.).
A partir de 1981, o Brasil consegue reverter o saldo da balança comercial, e tem superávit
de US$1.202 milhões, revertendo a situação complicada dos anos anteriores (Brasil, 2022b, sp.).
Só que a escalada das taxas de juros internacionais em 1981 fez com que fosse adicionada à
dívida externa mais US$3 bilhões, o que absorvia cerca de 40% dessa receita de exportações
(CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 266).
Deve-se salientar, contudo, que também foi no ano de 1981 que aconteceu o primeiro
declínio do Produto Interno Bruto (PIB) real brasileiro pós-II Guerra Mundial, como resultado
das políticas restritivas que o governo implementava desde outubro de 1980, com uma
modificação na política salarial que resultou em queda acentuada do salário real para as faixas
de renda mais altas. Além disso, o governo limitou o crescimento nominal dos investimentos
das empresas estatais, centralizou pelo Tesouro a administração dos recursos orçamentários
dos órgãos da administração direta e passou a controlar semanalmente o saldo das contas
dos diferentes órgãos governamentais. Outro ponto relevante foi o aumento dos impostos
sobre operações financeiras nas operações de câmbio para importação em conjunto com
o retorno do incentivo fiscal do crédito-prêmio para a exportação de manufaturados (tinha
sido extinto em dezembro de 1979) (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 264-265). Tais
ações do governo mantinham foco na contenção da demanda interna em conjunto com a
expansão das exportações. Só que essas políticas acabaram tendo efeito nulo sobre a inflação,
reforçando a ideia de que tinha um forte componente inercial (CARNEIRO NETTO; MODIANO,
2020, p. 266).
Buscando melhorar a situação econômica do país, o ministro do Planejamento, Delfim
Netto, fez uma viagem ao Japão, Alemanha e EUA, em dezembro de 1981, viagem na qual
conseguiu obter alguns empréstimos e o compromisso da participação japonesa no projeto
de minas de ferro em Carajás. Em conjunto, o governo restringiu importações por meio de
normas internas da Cacex (Carteira de Comércio Exterior do Banco do Brasil), atingindo o
setor privado, e determinou corte nas importações das empresas estatais (VISENTINI, 2004, p.
352).

A virada no ano de 1982

O ano de 1982 é um ponto chave para esta reflexão sobre as relações econômicas do
Brasil nesse período. Foi o ano de ápice da guerra comercial entre Brasil e EUA, momento
em que ocorreram a Guerra das Malvinas, o retorno das eleições gerais brasileiras e o início
das negociações com o FMI. Muitos desses acontecimentos estão interligados e afetaram o
andamento dos demais.

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As dificuldades enfrentadas pelo Brasil em embates comerciais e financeiros com os EUA
antecediam o ano de 1982, mas viram seu ápice nesse período. Em divergências de posições
diplomáticas ou financeiras, como foi o caso das discussões sobre as Malvinas, o governo
Reagan reagia com ameaças de cortes a créditos no Banco Mundial e no Banco Interamericano
de Desenvolvimento, ou de retirar o Brasil do Sistema Geral de Preferências do GATT. Os EUA,
que mantinham uma política comercial flexível e pragmática, não concordavam com as ações
brasileiras, de protecionismo às indústrias nascentes e ao mercado interno em conjunto com
subsídios aos exportadores de manufaturados, e, portanto, reduziram suas cotas de importação
de açúcar brasileiro pela metade por não. A justificativa brasileira para tais comportamentos
estava no esforço contínuo em melhorar seus resultados comerciais, produzindo os maiores
superávits possíveis (VISENTINI, 2004, p. 285-286).
Ao decorrer do ano em questão, os EUA perderam algumas disputas externas comerciais
com o Brasil e passaram a concordar com a assinatura de novos acordos. Essas medidas
estadunidenses de apaziguamento das relações têm como fundo uma preocupação de que a
situação econômica do Brasil piorasse e que o país se tornasse um novo México, um devedor
insolvente. Tais ações são chamadas por Visentini como uma troca de um “diálogo de surdos”
para “negociações mais específicas e construtivas”. E uma das causas também é o decorrer da
Guerra das Malvinas (VISENTINI, 2004, p. 287).

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


As negociações com o FMI começaram ainda em 1982, mas a primeira carta de intenções
só foi enviada em janeiro de 1983 (VISENTINI, 2004, p.394), seguida por mais seis cartas durante
o governo Figueiredo, com o decorrer dos anos de crise da dívida. Como o país passava por
enorme dificuldade de resolver o aumento constante de sua dívida externa, o FMI propunha um
maior rigor à Política Monetária (HERMANN, 2021, p. 90).
No trecho de Hermann (2021, p. 90) a seguir, podemos compreender melhor os efeitos da
alta dos juros internacionais nas despesas com rendas e nas reservas internacionais do Brasil.

A recessão, aliada aos efeitos estruturais do II PND, promoveu a reversão


dos déficits que caracterizaram a balança comercial durante a década de
1970 – como já observado, a balança torna-se superavitária a partir de
1981. Contudo, isso não amenizou a perda de reservas internacionais pelo
país porque, em 1981, embaladas pela alta dos juros internacionais, as
despesas com rendas deram um salto de US$10,3 bilhões (ante RS$7,0
bilhões no ano anterior) e outro em 1982, para US$13,5 bilhões. Além
disso, diante dos riscos então atribuídos a países altamente endividados,
como o Brasil, especialmente depois da moratória do México (setembro
de 1982), os juros altos no mercado interno não foram capazes de atrair
capital suficiente para cobrir as novas despesas. Assim, as reservas
internacionais chegaram a US$4,0 bilhões em 1982 (equivalentes a 2,5
meses de importação) e teriam sido ainda menores se o país não tivesse,
ao fim desse ano, recorrido a um empréstimo do FMI (Fundo Monetário
Internacional), que injetou US$4,2 bilhões na conta capital (HERMANN,
2021, p. 90).

Cabe ressaltar que Hermann (2021) deixa claro que, desde 1981, com o aumento dos
juros internacionais, a situação estava ficando cada vez mais complexa, com as despesas anuais
de rendas alcançando em US$10,3 bilhões e, no ano seguinte, se elevando a US$13,5 bilhões.
Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 264-267) chamam o ano de 1981 como o de “Recessão sem
Fundo”, uma recessão enfrentada sem nenhum apoio, e explicam que o país não recorreu ao
FMI neste momento por temor de que fosse necessário implementar mudanças econômicas
drásticas para obter o apoio externo e perder sua liberdade em políticas monetárias e fiscais.
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Levando em consideração que este era um governo que se apresentava como transição para
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

uma democracia plena, havia nos militares certo receio de buscar socorro do FMI e o governo
ser visto como frágil.
A moratória mexicana ocorreu entre agosto e setembro de 1982, e, ainda em setembro,
a equipe econômica brasileira foi a Toronto (Canadá) para iniciar a negociação com a diretoria
do FMI e com bancos privados, buscando uma maior disponibilidade de recursos para
o país, só que isso não ocorreu. As eleições gerais para governadores dos estados e para
os representantes no novo Congresso e do Colégio Eleitoral estavam marcadas para 15 de
novembro e o discurso do governo federal para os eleitores era de que não havia necessidade
de auxílio do FMI. Dessa forma, o governo Federal buscou acalmar os eleitores, para que
conseguissem a maioria no Congresso e no Colégio Eleitoral, que em breve escolheriam o
próximo Presidente da República em eleição indireta, e o comando dos estados. O governo
somente fez anúncio oficial de que enviaria ao FMI um projeto de ajuste externo cinco dias
depois das eleições, em 20 de novembro. Todavia, o adiamento do anúncio e a aparência
de instabilidade causada pela falta de informação compartilhada com a população resultou
no partido do governo não alcançando a vitória eleitoral que almejava (CARNEIRO NETTO;
MODIANO, 2020, p. 267-269).
De acordo com Almeida (2007, p. 77), o problema da dívida enfrentado pelos países em
desenvolvimento tem relação direta com o erro cometido pelos bancos privados ao conceder
empréstimos sobre empréstimos aos governos desses países, supondo que Estados soberanos
não iriam à bancarrota e não declarariam moratória, o que o autor chama de “suposição
absurdamente anti-histórica”. Ainda que cogitassem a possibilidade de uma moratória, havia
a expectativa de que os EUA ou o FMI iriam garantir esses empréstimos, ou ao menos os juros
referentes a eles. O problema é que o FMI “estava apenas equipado para tratar de desequilíbrios
temporários de balanço de pagamentos, não para administrar um processo prolongado de
renegociação de dívidas soberanas e comerciais”.
Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 268) afirmam que o FMI inicialmente fez uma
operação de emergência com o objetivo de evitar que o Brasil suspendesse unilateralmente os
pagamentos de divisas estrangeiras, no mesmo molde que havia sido feito com o México. Os
autores explicam que:

(...) Fundos de emergência para o resto de 1982 materializaram-se na


forma de empréstimos de US$1,5 bilhão do governo americano, de
US$500 milhões do Banco de Compensações Internacionais (BIS), e algo
em torno de US$2,3 bilhões em recursos de curto prazo de grandes
credores privados, com o entendimento de que para o ano seguinte o
fluxo máximo de financiamentos disponíveis ao Brasil seria de US$10,6
bilhões dos bancos privados, incluindo o refinanciamento, e US$2
bilhões das instituições multilaterais (CARNEIRO NETTO; MODIANO,
2020, p. 268).

Em relação às exportações, o Brasil, em 1982, exportou US$3 bilhões a menos do que no


ano anterior. Essa circunstância tem relação com a recessão mundial e os comportamentos
defensivos das economias centrais, mas também com questões internas, como o declínio da
capacidade brasileira de importar (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 267).
Em uma reunião realizada em 20 de dezembro de 1982, em Nova Iorque, Delfim Netto
(SEPLAN), Ernane Galvêas (Fazenda) e Carlos Geraldo Langoni (presidente do BCB) se reuniram
com 125 bancos credores para solicitar comprometimento com o Programa de Financiamento do
Brasil para 1983, que foi enviado para essas empresas no dia seguinte contendo quatro projetos:

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um de novos empréstimos em moeda, outro de planejamento de amortização da dívida em
1983, um terceiro de linhas de crédito de curto prazo relacionadas ao comércio e um quarto de
linhas de crédito para bancos brasileiros no exterior (CERQUEIRA, 2003, p. 26).

De 1983 até 1985 e o fim do governo

O governo brasileiro enviou a primeira carta de intenções ao FMI em 6 de janeiro de


1983. A partir daquele momento e até o final do governo, outras seis cartas foram enviadas.
As cartas de intenções explicitavam uma série de metas e normas que o governo brasileiro se
comprometeria a seguir para que o FMI auxiliasse o país e, assim, conseguisse melhorar sua
credibilidade externa.

Foram enviadas, até o final do governo Figueiredo, outras seis cartas de


intenções ao FMI na seguinte ordem cronológica: 6 de janeiro de 1983, 24
de fevereiro de 1983, 15 de setembro de 1983, 14 de novembro de 1983,
15 de março de 1984, 28 de setembro de 1984 e 20 de dezembro de 1984
(SALOMÃO, 2016, p. 16).

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


Por meio dessas cartas, o Brasil buscava recursos do FMI na modalidade de crédito
ampliado6 por um período de três anos e, em troca, o país iria fazer um ajuste estrutural, com
redução dos investimentos públicos, aceleração de minidesvalorizações cambiais e correção de
preços. O objetivo era aumentar as exportações, contudo, o cenário era altamente desfavorável,
já que, em 1981, as exportações brasileiras diminuíram não por problemas internos de produção,
mas por falta de mercado externo (VISENTINI, 2004, p. 353).
Com o decorrer do tempo, as metas e normas da primeira carta passavam a ser impossíveis,
e o governo enviava outra carta de intenções, o que foi se repetindo de forma sucessiva. O
contínuo envio de cartas

(...) ilustra as dificuldades envolvidas em adaptar o receituário da


instituição a uma economia em desenvolvimento, altamente indexada,
na qual o setor público, não somente era responsável por algo entre
30% e 50% do investimento global, como também intermediava grande
parte do investimento privado através da administração de importantes
fundos compulsórios de poupança (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020,
p. 270).

Em janeiro e fevereiro daquele ano, a economia brasileira já dava alertas de que não seria
possível colocar em prática as intenções da primeira carta. A balança comercial brasileira não
demonstrava uma reversão razoável, com melhoria de exportação e diminuição de importações.
Em 21 de fevereiro de 1983, quando o FMI ainda estava examinando a primeira carta, o governo
brasileiro desvalorizou o cruzeiro de forma drástica, contrariando a afirmação anterior de que a
realizaria de forma gradual (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 270).
Como dito anteriormente, o país já tinha feito maxidesvalorizações desde 1979, e a política
permaneceu, como é possível observar a seguir:

6 Extended facility.
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A taxa de câmbio oficial, que era de 179,4 em 1982, passou para 576,2 em
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1983, 1845,4 em 1984 e 6205,0 em 1985. (...) Essas maxidesvalorizações na


taxa de câmbio provocaram aumentos consideráveis na importação de bens
intermediários e de capital implicando em aumentos de preços na economia,
com a inflação brasileira atingindo patamares elevadíssimos (FERREIRA, 2021,
p. 347).

Essas maxidesvalorizações foram feitas com o objetivo de desacelerar sua demanda


interna e, assim, diminuir as importações, para, em conjunto, aumentar suas exportações. Deve-se
lembrar, contudo, dos problemas econômicos enfrentados nos outros países, principalmente das
ações dos países centrais, que aumentaram seu protecionismo e desaceleraram suas economias.
Não havia um mercado tão receptivo, ainda que o preço dos produtos exportados pelo Brasil
estivesse mais baixo. Assim, o objetivo do governo de ter um superávit na balança comercial não
foi alcançado (FERREIRA, 2021, p. 347-348).
Ainda em fevereiro de 1983, no dia 24, o governo brasileiro enviou a segunda carta ao
FMI. Nesta carta, as metas foram adaptadas e foi adicionado um pacote de crédito para estímulo
às exportações e de facilitação da substituição de importações (CARNEIRO NETTO; MODIANO,
2020, p. 270).
A partir do ano de 1983, a dívida externa brasileira bruta em dólares apresentou uma
quebra de tendência. A dívida estava crescendo rapidamente e, com a ação externa, o ritmo de
crescimento diminuiu. É importante perceber que ela não estagnou, mas desacelerou. Em 1983
a dívida cresceu 9%, chegando a US$93,7 bilhões, para no ano seguinte manter o ritmo de 9%,
chegando a US$ 102,12 bilhões, enquanto no último ano do governo, 1985, a dívida cresceu 3%,
chegando a US$102,17 bilhões (FERREIRA, 2021, p. 347).
Boa parte das metas em relação às contas externas de 1983 foram cumpridas graças
à recessão interna que o governo colocou em prática, que gerou a queda do salário real e a
desvalorização cambial, em conjunto com o início da recuperação econômica dos EUA, que gerou
uma queda na taxa de juros e que foi uma recuperação ainda mais forte em 1984, e as quedas do
preço internacional do petróleo (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 271).
Em relação aos EUA, com o decorrer da recuperação de sua economia, o Brasil conseguiu,
também, melhorar sua balança comercial. Foi principalmente a partir de 1984 que a economia
dos EUA ficou bastante aquecida, buscando produtos no mundo todo, e o Brasil estava pronto
para oferecê-los. O aumento da receptividade de produtos brasileiros na pauta de importação
estadunidense tornou possível que o país aumentasse suas reservas internacionais (FERREIRA,
2021, p. 348).
Um fator bastante relevante quanto à dívida externa brasileira a partir de 1983 foi
a diminuição da dívida privada e o aumento da dívida pública. O Estado brasileiro passou a
aumentar cada vez mais sua participação na composição da dívida externa porque estatizou as
dívidas privadas. O BCB passou a receber depósitos de dívidas externas privadas e, com isso, se
tornou responsável por elas. Muitos devedores privados não conseguiam obter recursos externos
para rolarem as suas dívidas pela falta de liquidez internacional, aumento da taxa de juros e medo
dos grandes bancos de fornecer empréstimos para países devedores. Essa ação do governo foi
uma forma de conseguir controlar essa dívida e buscar uma solução para arcar com ela (FERREIRA,
2021, p. 347-348).

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Parte significativa da melhora nas transações correntes do Brasil a partir de 1983 ocorreu
em decorrência dos fatores externos já mencionados, como o aquecimento da economia
estadunidense, mas também como reflexo do II Plano Nacional de Desenvolvimento (PND). As
importações caíram durante todo o governo e parte dessa queda possuía relação com o sucesso
da política de substituições de importações, assim como o aumento de exportações estava
relacionado com as medidas tomadas pelo governo no incentivo às indústrias exportadoras no II
PND (FERREIRA, 2021, p. 350-351).
O FMI chegou a fechar um acordo com o Brasil em 1983 que incluía a aprovação formal de
um programa de estabilização, apoiado na necessidade de o Brasil reduzir seus déficits nominais.
O Brasil não cumpriu com o acordo devido a sua inflação acelerada, o que fez com que o FMI
suspendesse o envio de US$2 bilhões. O país e o FMI voltaram a negociar, tentando adaptar às
imposições do órgão com as complexidades do setor público financeiro brasileiro. A inflação era
o grande problema da operação, já que pesava muito no cálculo do FMI ao avaliar a situação
fiscal do país (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 272).
A terceira carta de intenções brasileira foi enviada em setembro, e tinha por base um
decreto-lei de desindexação salarial que não passou pelo Congresso, o que tornou necessário o

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


envio de uma quarta carta de intenções ainda em 1983, no mês de novembro. Pensando ainda
como solucionar as questões fiscais, a quarta carta apresenta um novo critério de análise, o
resultado operacional do setor público, possibilitando a melhor compreensão das duas fontes de
necessidade de financiamento, que eram o excesso de despesas sobre receitas e o aumento na
dívida decorrente de indexação. O Brasil passou a fazer cortes grandes nas despesas de capital
das empresas estatais, o que ajudou a melhorar o desequilíbrio das finanças públicas (CARNEIRO
NETTO; MODIANO, 2020, p. 272-273).
Essa alteração nos índices apresentados, através da criação de novos mecanismos de
cálculo, foi a estratégia encontrada pelo Brasil para não seguir completamente o que o FMI
propunha. demonstrando, ainda, a complexidade da formação da dívida brasileira e como
quaisquer ações de alteração na política monetária ou fiscal poderiam afetar diversos agentes
econômicos e a população geral.
O Brasil precisou negociar com o Clube de Paris, uma instituição informal que reúne o grupo
de países credores. O ministro da Fazenda, Ernane Galvêas, representou o governo brasileiro
em reunião ocorrida em 23 de novembro de 1983, na qual foi assinado um acordo global para
reescalonar a dívida. Foi decidido que o Brasil deveria firmar acordos bilaterais com as agências
que participaram da negociação até o fim do primeiro semestre de 1984. O Brasil não cumpriu
esse prazo (CERQUEIRA, 2003, p. 99-100).
Apesar da pressão do FMI durante a negociação da dívida, com o passar do tempo, a
percepção de que o Brasil não poderia se tornar um novo México contribuiu para que as regras
de ajuste se tornassem menos rigorosas. O FMI emitiu dois waivers, dispensas de cumprimento
de exigências contratuais em empréstimos internacionais durante o ano de 1983 e, no início de
1984, em fevereiro, outro waiver foi emitido pelo FMI a pedido do Brasil. Com isso, foi necessário
que o país repensasse suas intenções e fizesse a quinta carta, que foi enviada em 15 de março de
1984 (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 273 e 275).
Esta quinta carta foi a que vigorou por mais tempo, seis meses, e foi aceita mais facilmente
pelo FMI. Nela era apresentada uma expectativa ousada de diminuição da inflação pela metade
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em comparação ao ano anterior, o que não ocorreu e culminou no envio de uma sexta carta em
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

28 de setembro de 1984 (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 275). Ernane Galvêas, ministro da
Fazenda, foi quem negociou com o FMI, em setembro de 1984, as novas metas a serem cumpridas e
que fundamentaram posteriormente essa sexta carta. O ministro “projetou uma inflação de 194% até
o mês de dezembro, além de um PIB de 380 bilhões de dólares”. Pouco tempo depois, em dezembro
deste ano, Delfim Netto fechou outro acordo com o FMI — que, apesar de seu caráter sigiloso,
foi divulgado pela imprensa — com alteração das metas do governo sobre salto operacional e o
compromisso da redução de subsídios. No mês seguinte, janeiro de 1985, Afonso Celso Pastore, o
presidente do BCB, foi quem renegociou a dívida externa com o FMI (VISENTINI, 2004, p. 353).
Alguns fatores contribuíram para a melhora econômica do país em 1984. A produção brasileira
de petróleo aumentou e o preço internacional do produto diminuiu, reduzindo de forma substancial
a importação deste produto. A indústria de transformação brasileira teve um impulso inicial e no
segundo semestre assistiu um aumento da demanda de seus produtos, em decorrência da melhora
da renda rural e da renda da classe média urbana. Essas retomadas de produção atingiram outros
setores industriais, com efeito em cadeia, e têm relação com a melhoria da produção agrícola, que
havia passado por problemas no ano anterior, resultando em um aumento real do PIB do país em
5,4% em 1984 (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 275-276).
A situação da inflação permaneceu grave em 1984, mas demonstrou certa estabilidade:
em 1983, tinha acumulado variação de 211%, e, em 1984, de 223,8%. Isto foi possível, de acordo
com Carneiro Netto e Modiano (2020, p. 277), pois houve ação direta do governo no controle
de preços e baixo nível de atividade econômica, o que não seria suficiente para baixar a inflação
graças ao efeito inercial que ocorria naquele momento. Com o decorrer do ano, já nos meses
finais, a inflação começou a apresentar sinais de aceleração:

No último trimestre do ano, a inflação apresentava nítidos sinais de


aceleração devido a vários fatores. Em primeiro lugar, porque circulavam
estimativas pessimistas quanto às safras de alimentos para o ano seguinte.
Em segundo lugar, porque a maior demanda facilitava a remarcação dos
bens duráveis de consumo, permitindo a recuperação das margens de lucro
nos setores mais duramente atingidos pela recessão. Finalmente, temos
efeitos sobre os custos industriais dos reajustes salariais maiores e mais
frequentes (CARNEIRO NETTO; MODIANO, 2020, p. 278).

Com o fim do governo de Figueiredo e da Ditadura Militar no horizonte, os tomadores de


decisão resolveram fazer duas medidas importantes para entendermos como o país iniciou sua
trajetória democrática em 1985 em termos econômicos. A inflação permanecia acelerada, mas o
governo optou por adiar o reajuste de alguns preços-chave da economia, o que fez com que o
indicador permanecesse artificialmente baixo durante os últimos meses do governo Figueiredo,
sobrecarregando a inflação de março, após a transição para a Nova República. Além disso, a
sétima carta de intenções brasileira foi enviada em janeiro de 1985, faltando poucos meses para
o fim do governo, e continuou a ser negociada até março de 1985, em razão da resistência do
FMI em ceder aos argumentos brasileiros, influenciada pelo descumprimento anterior em relação
às determinações da sexta carta, o que, naquele momento, foi bastante cômodo para o governo,
que já estava saindo e não precisaria se comprometer a nenhuma responsabilidade (CARNEIRO
NETTO; MODIANO, 2020, p. 278-279).

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Considerações Finais

A política externa do Governo Figueiredo na temática econômica foi bastante complexa,


com diversas fases e atores envolvidos, configurando-se como uma política externa formulada
por múltiplos atores autônomos. Podemos compreender que os autores da área de política
externa, como Visentini (2004), Pinheiro (2000), Camargo e Ocampo (1988) e Cervo e Bueno
(2015) concordam com esta afirmação, apesar de compreenderem a influência de um desses
atores, Saraiva Guerreiro representante do Ministério das Relações Exteriores), de forma variada.
Os autores da área econômica dão ênfase para ações dos agentes econômicos, principalmente
Cerqueira. Ferreira, Carneiro Netto e Modiano e Hermann não deixam claro quem faz parte da
equipe negociadora, trazendo pouca informação para definição dessa questão.
De fato, o peso dos agentes econômicos, como bem apresentado por Cerqueira (2003) e
Visentini (2004), comandando reuniões com o FMI e com o Clube de Paris, deve ser salientado
e levado em consideração. Como os agentes econômicos eram aqueles que de fato poderiam
mudar as políticas macroeconômicas do país, eles poderiam se comprometer externamente com
cartas de intenção e acordos, pois tinham a posição necessária para agir nesta área.
A visão de Camargo e Ocampo (1988) de que, em certo momento, a temática econômica
passou para o comando do Itamaraty vai contra as informações expostas por Visentini (2004),

As Relações Econômicas Internacionais do Governo Figueiredo (1979–1985)


Cervo e Bueno (2015) e Cerqueira (2003). Se as reuniões são comandadas por outros agentes,
não faz sentido que se afirme que o Itamaraty teve o controle da questão.
As diversas cartas enviadas ao FMI, o não cumprimento do acordo com o Clube de Paris
e a dificuldade de implementação de diretrizes internas dão indícios de que a relação entre os
múltiplos atores autônomos era de soma zero. As equipes econômicas mudaram algumas vezes
durante o governo, muitos autores de política externa afirmam a dificuldade de inserção do
Itamaraty nas questões econômicas e as reuniões mudavam de comando algumas vezes. Todas
essas informações indicam que havia disputas internas que geraram alterações no grupo de
atores e possíveis impasses.

Referências
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CAPÍTULO 2

ARGENTINA E BRASIL EM UMA PERSPECTIVA COMPARADA:


ANALISANDO O PAPEL DA TRANSIÇÃO DE REGIME PARA AS
POLÍTICAS EXTERNAS DOS GOVERNOS DE RAÚL ALFONSÍN
(1983–1989) E JOSÉ SARNEY (1985–1990)

Guilherme Antunes Ramos

Introdução

Argentina e Brasil são dois países independentes localizados na América do Sul. Ambos
foram antigas colônias de Estados ibéricos e são considerados países em desenvolvimento.
Possuem, desde logo, diversas similitudes. Contudo, diferenciam-se em vários aspectos. A
primeira foi uma antiga colônia da Espanha, ao passo que o Brasil foi colonizado por Portugal.
À independência argentina seguiu-se de imediato o estabelecimento de uma República; o Brasil
independente organizar-se-ia inicialmente a partir de um Império. Esses são apenas alguns
exemplos retidos a partir de um rápido exercício comparativo.
A comparação entre Argentina e Brasil decerto possibilita a identificação de inúmeras
similitudes e diferenças entre esses países que, a sua vez, permitem a aferição de graus
diferenciados de interveniência de variáveis em alguma medida compartilhadas para geração
de resultados substancialmente diversos. A título exemplificativo, a já referida colonização,
partilhada por ambos, produziu, em um primeiro momento, sistemas políticos diferentes. Por
intermédio da comparação, é possível articular um elemento comum às particularidades de
ambos para se chegar a uma explicação satisfatória aos desenlaces diferentes malgrado o ponto
de partida comum.
Admitindo o valor da comparação para o entendimento das vicissitudes que ora aproximam
os países, ora os distanciam, o presente capítulo objetiva testar a hipótese de que, apesar de
ambos, Brasil e Argentina, atravessarem processos de transição democrática em um mesmo
período histórico, a variável regime político aportou mudanças consideravelmente diversas para
a política externa de ambos os países no plano mais imediato, aqui representado pelo primeiro
governo civil pós-ditadura em cada um deles. A política externa do governo brasileiro de José
Sarney (1985–1990) será comparada com a política externa de Raúl Alfonsín (1983–1989) com
o objetivo de avaliar a importância da variável regime político para o delineamento da política
externa de ambos os países na sua redemocratização, comparações pontuais com diretrizes
e manifestações das políticas externas pregressas, postas em práticas pelo regime ditatorial,
também serão empreendidas. A pergunta que se buscará responder é a seguinte: de que
maneira a transição para a democracia impactou as políticas externas de Argentina e Brasil? A
democracia (regime político) cumprirá a função de variável independente (causa); já a política
externa assumirá a condição de variável dependente (decisão, resultado ou comportamento que
se busca explicar), em observância às caracterizações citadas abaixo:

In foreign policy analysis, causes are called independent variables. The effect (or
the set of options considered, the decision, the behavior, or the outcome) that we
seek to explain is call the dependent variable. The effect, or dependent variable,
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would not have occurred if the independent variables had not been present. In
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

addition, the dependent variable would have taken a different shape if different
independent variables had been present or if the independent variables had
been of different relative strength (BREUNING, 2007, p. 18).

Se considerada a definição mais elementar de política externa, a qual se apresenta como a


totalidade de políticas direcionadas para o exterior e das interações de um país com o ambiente
externo (Breuning, 2007, p. 5), sobreleva-se a dificuldade de se comparar objetos bastante amplos
como políticas externas. Para se contornar essa dificuldade, julgou-se oportuno seccionar a
política externa em alguma de suas dimensões comparáveis , mormente: 1) paradigma dominante
de política externa; 2) estruturação do processo decisório; 3) relações com a América Latina; 4)
delineamento das relações bilaterais Brasil-Argentina; 5) papel conferido aos direitos humanos,
issue area1 Dessa maneira, atende-se recomendação de Sartori, para quem: “Las comparaciones
que sensatamente nos interesan se llevan a cabo entre entidades que poseen atributos em parte
compartidos (similares) y en parte no compartidos (y declarados no comparables)” (1994, p. 35).
Com efeito, as políticas externas de Argentina e Brasil possuem diversos atributos que são
comparáveis, e outros que não são. A escolha ou seccionamento em dimensões busca tornar a
comparação possível. Ademais, o foco em uma única variável (regime político) atende a uma das
recomendações de Lijphart para se contornar o que o autor considera como um limite crônico
do método comparado, qual seja, a existência de muitas variáveis e poucos casos (1971, p. 685).
Ainda em relação ao método de pesquisa, destaca-se que a comparação será subsidiada por
análises e informações retidas de fontes secundárias.
O capítulo se inicia com uma breve recapitulação de ordem teórico-metodológica que
incluirá breves digressões sobre o entendimento do que conforma a política externa e sobre
o emprego do método comparado em seu estudo. Seguindo-se a essa seção preambular
será enfim desenvolvida a comparação pretendida. Ao final, as inferências alcançadas serão
sintetizadas em uma tabela-resumo de autoria própria.

Comparação e política externa: aportes teórico-metodológicos

Parte-se do entendimento basilar de que a política externa, na condição de processo


político que busca traduzir necessidades internas em possibilidades externas (LAFER, 2009, p.
16), reflete uma permanente interlocução entre ambiente doméstico e ambiente externo. Sendo
assim, a política externa seria um processo eminentemente político, pois envolve diálogos,
idiossincrasias e a busca por consensos, que emana de um continuado entrelaço de fatores
de ordem doméstica e interna. As particularidades do ambiente doméstico, nesse sentido,
repercutem sobre a definição dos interesses, estratégias e ações externas a serem perseguidas
pelos países, ainda que tais particularidades precisem ser ponderadas à luz de contingências
e circunstâncias externas (HILL, 2003, p. 248). Mais enfaticamente, admite-se que o regime
político em específico exerce forte influência sobre a política externa de um país, tanto em sua
formatação (agentes responsáveis por sua formulação, por exemplo), quanto em seu conteúdo
(ao permitir que diferentes atores sociais e políticos contribuam para a problematização do
conteúdo da política externa). Disso decorre que mudanças de regime deflagram significativas
mudanças expressas em termos de política externa.
Acerca do entrelaçamento entre política externa e comparação, cumpre enfatizar que a
aplicação do método comparado em estudos de política externa remonta em ampla medida

1 Escolhida devido à sua própria natureza envolver, mais provavelmente, uma inflexão de política em virtude da
transição de um regime ditatorial, violador de direitos, a um regime democrático, formalmente garantidor de direitos.

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à consolidação da Política Externa Comparada (PEC). Surgida durante a segunda metade do
século XX, a PEC está originalmente associada “com a emergência de um projeto científico, sob
liderança de James Rosenau, na década de 1960, cujo objetivo era construir uma teoria geral
de política externa, que fosse multinível e sujeita a rigorosos testes empíricos e que permitisse
comparar os Estados (HUDSON, 2007, apud GONÇALVES; PINHEIRO, 2020, p. 193). A Política
Externa Comparada partilhava com a Análise de Política Externa (APE), sub-área de estudo em
Relações Internacionais em cuja égide se originou, a percepção de que o entendimento da
política externa demandava uma compreensão holística e que integrasse diferentes níveis de
análise — individual, estatal e internacional. A valorização do método comparado, contudo, seria
o seu traço mais distintivo.
O advento da Política Externa Comparada mantém estreito vínculo com a Política
Comparada, um campo da Ciência Política surgido nos Estados Unidos no século XIX (MUNCK,
2007, p. 32). Em um esforço de distanciamento da Ciência Política em relação à História, a
Academia estadunidense rechaçou a incorporação de meta-teorias ou teorias de amplo alcance
na Ciência Política em favor de estudos mais parcimoniosos acerca de governos e instituições
políticas formais. Nesse contexto, favoreciam-se os estudos de caso e os estudos comparados
que se centravam em um número reduzido de casos em comparação (Small-N cases) (idem,
p. 40). A Ciência Política norte-americana, portanto, lançaria as bases da Política Comparada, a
qual teria subsequentemente notória influência sobre as Relações Internacionais, de modo geral,
e sobre estudos de política externa, de maneira mais direcionada. A incorporação do método
comparado como ferramenta para se construir um conhecimento solidificado sobre política
externa seria a principal delas.
É importante destacar que a Política Externa Comparada possui um caráter normativo que
lhe é indelével. Com efeito, o recurso ao método comparado atendia ao objetivo de constituir
um corpo de conhecimentos solidificado que transcendesse análises conjunturais e/ou ad hoc
e lograsse antecipar as ações externas dos Estados. Ambicionava-se ampliar o rol de países
em comparação a fim de que, progressivamente, se fosse constituindo uma ampla base de
dados sobre política externa que permitisse às lideranças mundiais anteverem determinados

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


comportamentos hostis que conduzissem à instabilidade internacional. A construção de tal
base de dados demandaria o emprego de outros métodos de pesquisa que não o comparado,
a exemplo do método experimental. Em última instância, visava-se reunir uma ampla gama
de informações que subsidiassem a criação de uma teoria geral de política externa, o mais
ambicioso dos objetivos de entusiastas da Política Externa Comparada (GONÇALVES; PINHEIRO,
2020, p. 199). Originalmente, portanto, a proposta-mor da Política Externa Comparada seria
produzir conhecimentos generalizáveis por intermédio da comparação entre países. Esses
conhecimentos, por fim, seriam mobilizados para fins de instrução de políticas, sobrelevando-se,
então, o denominado elemento de prescrição referido em Smith, 19892.
Conquanto o presente estudo não se proponha a estabelecer uma ampla base de dados a
subsidiar análises vindouras sobre o comportamento externo de Argentina e Brasil, afastando-
se do intento inicial da PEC, entende-se que estão aqui pressupostas algumas das inovações
introduzidas por intermédio desse projeto. Compreende-se que a comparação de apenas dois
casos – Small-N, possibilita o aprofundamento do estudo da política externa de ambos os
países com o fito de identificar o papel atribuído à transição de regime para a deflagração
de mudanças em termos de política externa. Não se aspira a uma generalização, senão a uma
análise que, embora incipiente, se preste ao papel de estudo ilustrativo que possibilite matizar

2 A prescrição associa-se ao caráter normativo da política externa comparada: o intento de melhorar as políticas
externas postas em prática pelos Estados-Nacionais tendo por base os conhecimentos aferidos pela via da
comparação (SMITH, 1989, p. 204).
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a importância da variável regime político para a definição da política externa e, ainda, fomentar
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

pesquisas vindouras sobre o impacto de tal variável para a região da América do Sul, inclusive
potenciais estudos comparativos com aumento do número de casos (N) e alargamento do
escopo temporal. Nesse sentido, embora aparentemente modesto em seu intento, o estudo
aqui empreendido traduz grandes potenciais de pesquisa.
Feitas essas breves considerações de ordem teórica/metodológica, convém finalmente
proceder à comparação em si. Em um primeiro momento, serão feitas comparações pontuais
entre as ditaduras de ambos os países, com foco na condução do processo de transição política.
Considera-se oportuna essa comparação pois a comparação das políticas externas alude a
especificidades de cada uma das ditaduras e dos processos de transição que se sucederam a elas.
Em sequência, então, serão comparadas as políticas externas com base nos atributos destacados.

As ditaduras de Argentina e Brasil e as subsequentes transições de regime: entre interseções


e distanciamentos

Tanto a Argentina quanto o Brasil experimentaram momentos de ruptura democrática e,


portanto, de mudança de regime, em diversos momentos de sua história, o foco desta análise é
a que ocorreu na segunda metade do século XX. No caso brasileiro, a mudança se deu no ano
de 1964, ocasião em que um golpe militar destituiu a presidência civil de João Goulart, sendo
instituída então no país uma ditadura que perdurou até o ano de 1985. No caso Argentino,
semelhante golpe de Estado dar-se-ia no ano de 1976, e o país persistiu sob a égide de uma
ditadura militar até o ano de 1983.
As ditaduras ocorridas na região do Cone Sul, de uma maneira geral, partilham de inúmeras
semelhanças. A começar pelo momento histórico em que ocorreram. Conjunturalmente, o
mundo atravessava a chamada Guerra Fria, persistindo uma divisão ideológica de natureza
Leste-Oeste que antagoniza o bloco capitalista, liderado pelos Estados Unidos, do homólogo
socialista, capitaneado pela União Soviética. A divisão ideológica do mundo igualmente se
manifestou no continente sul-americano, apresentando como um de seus desmembramentos
a ruptura da democracia por meio de golpes militares, com apoio dos Estados Unidos, sob
o argumento de contenção à alegada subversão comunista. Sendo assim, Argentina e Brasil
atravessaram momentos de ditaduras militares em um mesmo período histórico. Não obstante,
apresentaram particularidades entre si. Para os propósitos do presente trabalho, focalizar-se-á
em uma diferença fundamental, a saber, a condução do processo de transição política.
A ditadura argentina, se comparada à homóloga brasileira, foi substancialmente mais
violenta. Tal violência pode ser inferida a partir de indicadores, tais quais o número de mortos,
estimado em 30 mil. Essa cifra, se comparada às 434 pessoas mortas durante a ditadura brasileira
(FONSECA, 2017, p. 12), evidencia a percepção de maior violência atribuída à ditadura argentina.
A violência do regime, aliada à sua deslegitimidade perante setores da opinião pública, a uma
situação econômica adversa e à derrota na Guerra das Malvinas, conduziu, na Argentina, a
um processo de “transição por colapso” (NEVES; LIEBEL, 2015, p. 74). A ditadura encerrou-se
sem efetiva participação dos militares no processo de negociação da transição, já que eles se
encontravam deslegitimados, tanto internamente quanto externamente, por uma conjunção de
fatores que levou a uma transição abrupta para a democracia.
Já a transição, no caso brasileiro, operacionalizou-se a partir de um processo iniciado ainda na
década de 1970, com a participação das Forças Armadas. A estratégia da abertura “lenta, gradual
e segura” (FRANÇA, 2011, p. 169) tornaria a mudança de regime no país um projeto controlado
e negociado, com vital participação dos militares. Sendo assim, a diferença fundamental entre as
transições de regime na Argentina e no Brasil alude à capacidade das Forças Armadas em controlar

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politicamente a transição de regime. De um lado, tem-se uma transição intempestiva, na qual os
militares, desprestigiados, tiveram poucas condições de interveniência; do outro, uma transição
planejada com ao menos uma década de antecedência por Forças Armadas que, à diferença de
seus pares argentinos, não se encontrava em semelhante situação de desprestígio e lograram
influir sobremaneira na condução do processo de transição, inclusive impondo condições para a
transição como a realização de pleitos indiretos na primeira eleição presidencial pós-ditadura e a
vedação a quaisquer mecanismos de punição ou justiça transicional.
Conquanto comentários pontuais sejam efetuados em relação às ditaduras argentina e
brasileira em momentos posteriores, considerou-se oportuno proceder a essa ambientação
elementar prévia justamente para enfatizar que a maneira como cada uma das ditaduras findou
decerto reverberou no processo de transição. E, em igual medida, repercutirá sobre as políticas
externas de cada um desses países após a mudança de regime. Afinal, cada país terá necessidades
diferenciadas a traduzir pela via da política externa, uma vez que o ponto de partida de cada
democracia será consideravelmente diverso: a Argentina, isolada e derrotada na Guerra das
Malvinas, necessitará perseguir novas credenciais de inserção internacional a fim de romper o
isolamento e aproximar-se do concerto de nações ocidentais; já a democracia brasileira começará
de um ponto de partida comparativamente mais confortável, e a política externa do Brasil
democrático apoiar-se-á em uma função que assume contornos mais continuístas, prestando-se
ao papel de perpetuar e incrementar um modelo de inserção internacional já iniciado em períodos
anteriores. A seção a seguir tratará em pormenores da comparação entre Argentina e Brasil.

A política externa argentina e brasileira pós-redemocratização em perspectiva comparada:


os governos de Raúl Alfonsín (1983–1989) e José Sarney (1985–1990)

1) Quanto ao paradigma dominante de política externa


Considera-se como um paradigma de política externa uma constelação de ideias, princípios
e valores que norteiam a inserção internacional de um determinado país. A concepção de
paradigma de política externa alude tanto a uma lente interpretativa da realidade, servindo ao

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


propósito de traduzir e dar um sentido ao sistema internacional, quanto adquire, também, um
papel prospectivo, traduzindo linhas de ação a serem adotadas de modo a dar um direcionamento
à política externa de um país. Essa definição, que combina cognição, interpretação e ação, é
amplamente inspirada em Cervo (2003) para quem:

Em primeiro plano, por trás de um paradigma, verificamos a existência de idéia


de nação que um povo – ao menos seus dirigentes – faz de si mesmo, a visão
que projeta do mundo e o modo como percebe a relação entre esses dois
elementos. [...] O paradigma comporta uma cosmovisão, a imagem que uma
determinada formulação conceitual projeta dos outros povos, nações ou do
mundo todo.
Em segundo plano, o paradigma comporta percepções de interesse. A leitura
que os dirigentes fazem dos interesses nacionais – sociais, políticos, de
segurança, econômicos, culturais – modifica-se com a mudança do paradigma.
Em terceiro plano, o paradigma envolve a elaboração política. Nesse sentido,
condiciona tendências de médio ou longo prazos, como também explica
suas rupturas. Ou seja, envolve o modo de relacionar o interno ao externo e a
manipulação da informação para estabelecer o cálculo estratégico e a decisão
(2003, p. 7).

De modo sintético, portanto, pode-se dizer que um paradigma de política externa se


caracteriza como uma concepção ou visão de mundo que resulta na priorização de agendas
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e interesses internacionais e codifica a atuação externa de um país consoante prioridades
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

previamente definidas pelos policymakers, os tomadores de decisão. Pensado nesses termos, o


paradigma seria, dentre os elementos associados à capacidade de agência humana para formular
e implementar a política externa, um dos mais fundamentais componentes de estruturação da
política externa de um determinado país. Mudanças paradigmáticas, assim sendo, tenderiam a
alterar profundamente o posicionamento internacional de um país.
É possível inferir que a transição democrática aportou uma mudança paradigmática para
a política externa da Argentina. Embora a literatura comumente aponte o caráter errático da
política externa do país durante a ditadura militar (1976- 1983), é possível depreender alguns
elementos da política externa desse período que caracterizam o paradigma dominante. São
eles: 1) adscrição à divisão ideológica característica da Guerra Fria; 2) manutenção de relações
puramente mercantilistas/comerciais com os países da América Latina, acrescida de uma posição
intervencionista na região para coibir o avanço de ideologias consideradas subversivas; 3)
posição de baixo perfil em órgãos multilaterais nos quais havia intensa participação dos países
em desenvolvimento; 4) pragmatismo em matéria econômica e comercial. (RUSSELL; HIRST,
1987, p. 443). Esses atributos manifestam que a constelação de ideias que orientava a política
externa do país naquele momento, portanto, o paradigma dominante de política externa, estava
fundamentalmente ancorada em uma dimensão ideológica que aludia ao conflito Leste-Oeste e
ao papel internacional que era concebido à Argentina naquele cenário.
Com o advento da democracia, se notará uma evidente inflexão do paradigma de política
externa na Argentina. O primeiro governo civil pós-ditadura, personificado por Raúl Alfonsín,
propugnará por um modelo de inserção internacional orientado pelo paradigma ocidentalista.
Tal paradigma se assenta na visão de que a Argentina “por historia, cultura, sistema de valores
y lazos de todo orden pertenece al mundo occidental, pero en el marco de la guerra fría no se
alínea con ninguno de los bloques para mantener cierto espacio de autonomía” (JIMÉNEZ,
2010, p. 114). O ocidentalismo implica o reconhecimento de uma certa identidade argentina
ocidental (expressa em termos culturais mais amplos), mas também se constitui em uma forma
de enunciar ao sistema internacional que a Argentina valorizava as instituições democráticas,
o pluralismo político, a liberdade econômica, a justiça social e o respeito aos direitos humanos
(RUSSELL; HIRST, 1987, p. 447). Trata-se, portanto, de uma nova forma de se enxergar o sistema
internacional a partir da redefinição da identidade do povo e do Estado argentino, distanciando
o país da forma como se havia posicionado internacionalmente durante o interstício ditatorial, e
do alinhamento automático a um dos blocos ideológicos durante a Guerra Fria.
É importante recordar que a ditadura argentina , conforme já referido, resultou em um
evidente isolamento internacional do país. Diversos fatores colaboraram para esse isolamento,
destacando-se, dentre eles, o caráter violento do regime, exemplificado no extermínio de
milhares de pessoas no âmbito da “guerra sucia” (FRANÇA, 2011, p. 178), e a Guerra das
Malvinas, que conduziria ao também aludido final abrupto do regime (idem, p. 175). O
ponto de partida do governo Alfonsín, por assim dizer, era a de uma Argentina enfraquecida
e isolada no sistema internacional, cujas credenciais de inserção internacional haviam sido
minadas pela atuação errática do país tanto no âmbito interno quanto no âmbito externo.
Diante do imperativo de rompimento do isolamento internacional, o caráter ocidental do
novo paradigma de política externa almejava sinalizar para o sistema internacional que uma
nova Argentina emergia: tratava-se de um país que havia legado a violência, o despotismo e a
violação de direitos humanos ao passado e celebrava os valores ocidentais, neles incluídos os
valores republicanos, democráticos e liberais. Era preciso recuperar o prestígio e a confiança
internacional se a Argentina desejava lograr alcançar os novos objetivos que elencava para a
sua política externa, os quais incluíam:

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1) que la política exterior tenga como meta fundamental incrementar la
independencia política y económica del país (obtener grados crecientes
de autonomía); 2) la búsqueda permanente de la paz y el resguardo de
los derechos humanos fundamentales; 3) el impulso a la integración
latinoamericana para fortalecer la capacidad regional, política y económica
del país (JIMÉNEZ, 2010, p. 115).

Infere-se que o novo paradigma de política externa da Argentina, para além de enfatizar
a filiação do país ao Ocidente, também adquiria contornos autonomistas. Isso se torna claro na
análise da autora Anabella Busso, que resume a política externa de Alfonsín da seguinte forma:

Alfonsín planteó una política exterior que pretendía lograr la reinserción


internacional de la Argentina como un país occidental y no alineado, presupuesto
este último que implicaba una acción externa de perfil autonómico (2014, p. 16).

É importante enfatizar essa recuperação do caráter autonomista pois ela explicará, em ampla
medida, as inflexões de política externa em algumas das esferas das quais se discorre a seguir.
Conclui-se, portanto, que a transição para a democracia mudou o paradigma de política
externa na Argentina. Tendo por base uma literatura que enfatiza a filiação ao mundo ocidental e
a celebração de valores associados ao ocidentalismo, optou-se por caracterizar esse paradigma
como ocidentalista. É importante destacar que há, contudo, diferentes denominações. Russell
e Toklatian (2003), por exemplo, cunham o termo “globalista”. Trata-se de um paradigma que
traduz, grosso modo, uma tentativa de diversificação dos vínculos internacionais do país e a
defesa do multilateralismo. Contudo, acredita-se que o termo “paradigma ocidentalista” traduz
melhor as inflexões advindas da transição para a democracia, uma vez que tal conceituação
alude a uma identificação cultural e à mobilização dos valores ocidentais quando da deflagração
de novas estratégias de inserção internacional da Argentina, ao passo que a mera caracterização
como “globalista” secundariza ou omite a importância de valores como democracia, direitos
humanos e liberdades para a definição e priorização de novas agendas internacionais, que se

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


tornam particularmente relevantes em um estudo que se propõe a avaliar a importância da
transição para a democracia sobre a política externa.
No que tange ao caso brasileiro, retém-se que a redemocratização do país não alterou
profundamente o paradigma dominante de política externa brasileira. Isso decorre do fato
de a transição para a democracia acarretar na continuidade de um projeto de política externa
implementado desde a década de 1970. Esse paradigma de política externa estava fortemente
alicerçado em uma leitura realista das relações internacionais (Spektor, 2004, p. 195) e tinha,
como seu elemento mais característico, a tônica do pragmatismo (idem, p. 195). Em linhas
gerais, o pragmatismo se insurgia contra o elemento ideológico fortemente balizador da política
externa brasileira durante os primeiros governos militares e prescrevia a diversificação de
parcerias internacionais como elemento garantidor de maior autonomia do Brasil no cenário
internacional. Conforme resumem Russell e Hirst:

La política exterior brasileña iniciada em 1974 comprendía tres líneas de acción


fundamentales: 1) la redefinición de las relaciones con Estados Unidos; 2) la
búsqueda de una neutralidad ideológica; 3) la aproximación con el Tercer
Mundo (1987, p. 464).

Esse paradigma dominante de política externa tinha, para além do pragmatismo como um de
seus elementos mais fundamentais, o universalismo/ecumenismo, traduzido como a diversificação
de relacionamentos internacionais do Brasil. O universalismo correspondia a uma leitura do sistema
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internacional segundo a qual o país, para adquirir maior autonomia e capacidade de agência
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

externa, necessitaria incrementar e diversificar os seus vínculos com outros países, inclusive com
os antes rechaçados por razões ideológicas. Combinados, os traços pragmáticos e ideológicos
do paradigma dominante da política externa brasileira, que atravessou o período ditatorial e o
democrático, resultaram na aproximação do Brasil com países centrais, em desenvolvimento, com
o entorno da América do Sul e América Latina, com a periferia do sistema internacional e ainda
com países associados ao bloco socialista, a exemplo de China e Angola.
A perpetuação das diretrizes básicas da política externa brasileira, malgrado a transição
de regime político, pode ser resumidamente atribuída a dois fatores: 1) o relativo consenso em
relação a essa proposta de política externa nos meios econômicos, políticos e militares (RUSSELL;
HIRST, 1987, p. 465); a solidez do Ministério das Relações Exteriores (MRE) como instituição
profissional (idem, p. 469) e burocracia especializada. Destarte, conforme aponta Amado Cervo,
“A transição do regime militar para o civil, em 1985, afetou superficialmente a política exterior
e o modelo de inserção internacional” (2008, p. 50), o que o conduz a denominar o período
de “transição sem mudança” (idem, p. 50). Não houve alterações profundas em termos de
paradigma dominante de política externa: a leitura do sistema internacional continuava a ser
a mesma, e a prescrição em termos de ação, ancoradas no pragmatismo e no universalismo,
mantiveram-se a despeito da transição de regime.

2) Quanto à estruturação do processo decisório em política externa


Cumpre destacar, inicialmente, que tanto a Argentina quanto o Brasil são tradicionalmente
percebidos como países em que o processo decisório em política externa está fortemente
concentrado no Poder Executivo, com relativa baixa participação dos demais poderes e mesmo
da sociedade civil, ao menos até o período temporal que concentra a análise do presente
capítulo. Mais notadamente, é atribuída uma força burocrática considerável ao Ministério das
Relações Exteriores, o que conferiria maior tendência de continuidade à política externa brasileira,
ao passo que o equivalente argentino, o Ministerio de Relaciones Exteriores y Culto, seria mais
suscetível à interferência política. Esse panorama geral sobre o processo decisório em política
externa em ambos os países é descrito abaixo:

No que se refere ao processo de tomada de decisões em política externa,


historicamente o Brasil se diferenciou do país vizinho por possuir uma
organização diplomática forte à qual cabia, mesmo durante a ditadura
militar de vinte e um anos, a prerrogativa de formular e realizar a política
externa, fator que é sempre associado à maior continuidade na trajetória
internacional desse Estado, quando confrontado o caso da Argentina,
onde as oscilações históricas constantes são também associadas, na
literatura pesquisada, à influência política sofrida pela chancelaria, da
parte do chefe do Poder Executivo. Nos dois casos, porém, predomina o
Executivo – via presidência ou via chancelaria, conforme o caso – diante
dos seus parlamentos e dos partidos políticos, sem falar do alijamento
quase completo da sociedade, mesmo quando se tratam de seus setores
mais organizados politicamente, como os setores empresariais e sindicais
(FRANÇA, 2011, p. 171-172).

A partir do trecho supracitado, inferem-se duas grandes informações relevantes sobre o


processo de tomada de decisões em matéria de política externa no Brasil: 1) a concentração usual
no Poder Executivo, com interferência relativamente baixa de atores governamentais de outros
poderes e de atores não-governamentais; 2) a força burocrática conferida ao Ministério das
Relações Exteriores brasileiro, constituído por servidores públicos dotados de estabilidade, o que

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tenderia a explicar traços de continuidade na política externa brasileira, ao passo que o congênere
argentino seria mais suscetível a interferências de ordem política. De fato, conforme resume
Russell (1990, apud Arbilla, 2000, p. 348), o Ministerio de las Relaciones Exteriores y Culto possui
uma cúpula integrada essencialmente por funcionários de origem política, e não por servidores de
carreira, o que aumenta a probabilidade de mudanças substanciais quando da troca de governo.
No caso da Argentina, a transição para a democracia trouxe inovações para o processo
decisório em política externa. Enquanto Conquanto o Poder Executivo tenha se mantido como
ator central, perde-se o monopólio das juntas militares. A chancelaria recupera o papel de ator
central no processo de elaboração e execução da política externa (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 455),
do qual havia sido destituído durante a ditadura. O núcleo decisório mais fundamental passou a
incluir o presidente Alfonsín, o ministro das relações exteriores, Dante Caputo, e, sobretudo após
o chamado “giro realista” ocorrido em 1985, quando há maior entrelaçamento entre agendas de
política externa e agendas econômicas, também o ministro da economia, Juan Vital Sourrouille
(idem, p. 455). A restauração democrática, contudo, não se traduziu em maior participação
do Congresso no processo de formulação de política externa (idem, p. 457). Quanto às Forças
Armadas, elas perderam influência em um primeiro momento, devido a circunstâncias derivadas
da própria transição de regime em si, com perda relativa de prestígio e poder político dos
militares. Não obstante, passam progressivamente a conquistar espaço de atuação em temas de
seu interesse. A título exemplificativo, pode-se citar a participação da Força Aérea argentina na
negociação de convênios firmados com a Itália visando a cooperação na indústria aeronáutica,
civil e militar (idem, p. 458).
Uma inovação digna de menção aportada pela democratização no que tange ao processo
decisório de política externa na Argentina é a participação do setor privado, mormente o
empresariado. Com efeito, a nova política externa implementada por Alfonsín privilegiou
a participação de setores do empresariado em missões diplomáticas e viagens presidenciais.
Como resultado, diversos acordos bilaterais foram firmados por intermédio da participação
ativa de setores privados (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 456). Decerto, a transição para a democracia

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


acarretaria em maior participação de atores advindos da sociedade civil tanto para a elaboração
de agendas externas quanto para a concretização de acordos econômicos. Essa tendência,
inicialmente manifesta na presença mais contumaz de grupos empresariais, se intensificou em
governos subsequentes, confirmando a importância fundamental da democracia para tornar os
processos políticos como as decisões em política externa menos insulares.
Já em relação ao caso do Brasil, a transição para a democracia manteve o processo decisório
fortemente concentrado no Executivo Federal. Diferentemente do caso argentino, em que a
chancelaria foi secundarizada durante a ditadura, o Ministério das Relações Exteriores permaneceu
como ator interveniente durante todo o período militar. Também diferentemente do caso argentino, o
Ministério das Relações Exteriores brasileiro é composto majoritariamente por diplomatas de carreira,
cuja presença no órgão transcende alternâncias de governo e mesmo de regime. Ainda que o ministro
das relações exteriores em si seja uma indicação do chefe do Executivo, o que se verifica, no Brasil,
é um elevado nível de tecnocratização em se tratando da nomeação de chanceleres. Com efeito, a
maior parte dos ocupantes do cargo de ministro de relações exteriores no Brasil advém do próprio
MRE, tendência que se manteve mesmo durante a ditadura militar (AMORIM NETO, 2012, p. 124).
Contudo, o presidente Sarney optou pela escolha de chanceleres não- especialistas. As
escolhas, refletidas na opção por Olavo Setúbal (1985–1986) e Abreu Sodré (1986-–1990),
manifestaram a nomeação de ministros que não faziam parte do MRE. Em comparação ao período
anterior à ditadura, o MRE perde influência relativa sobre o processo decisório em política externa.
Entretanto, a manutenção de diplomatas em postos-chave, a exemplo do embaixador Paulo Tarso
na Secretaria Geral do Ministério e do embaixador Rubens Ricúpero como assessor especial da
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presidência para assuntos internacionais, asseguraram a tendência de continuidade das diretrizes
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

mais fundamentais da política externa brasileira. (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 470).


Apesar de o poder decisório permanecer fortemente concentrado no Executivo, o que se observa,
com a transição para a democracia, é a maior diversificação dos atores partícipes do processo de
tomada de decisões em política externa relacionados ao Poder Executivo. Órgãos como o Ministério
da Fazenda, de Ciência e Tecnologia e das Comunicações passaram a ter participação maior sobretudo
em temas de alcance internacional que mobilizaram sua expertise e seus interesses setoriais. As
Forças Armadas, de semelhante maneira, também participaram do processo de tomada de decisões,
sobretudo em questões referentes à segurança e tecnologia. O Parlamento, contudo, permanece
desinteressado em relação à política externa. Haveria a percepção por parte dos parlamentares de
que “a política externa não dá voto” (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 473). Também a exemplo da Argentina,
o setor empresariado, em articulação com agências governamentais, incrementou a sua participação
no processo de formulação de política externa após a redemocratização (idem, p. 490), adquirindo
cada vez mais a condição de importante stakeholder da política externa brasileira sobretudo em
questões relacionadas a comércio e desenvolvimento.

3) Quanto às relações com a América Latina


A mudança de regime político acarretará, para a Argentina, uma alteração considerável no
que tange ao papel atribuído pelo país à América Latina. Conforme referido anteriormente, as
relações entre a Argentina e os países latino-americanos durante o período da ditadura adquiriram
contornos comerciais. Outrossim, a Argentina empreendeu ações de caráter intervencionista na
região, evidenciados, por exemplo, nas incursões sobre a Bolívia, em julho de 1980, e na América
Central (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 454). Esse padrão de relacionamentos estava ainda fortemente
balizado pela ótica da divisão ideológica que estruturava a atuação externa do país durante o
regime militar. Com a redemocratização, contudo, novas prioridades emergiram. E, com isso, a
política externa da Argentina para a América Latina se altera substancialmente.
A reorientação da política externa argentina durante o governo Alfonsín se manifestou,
dentre outros, em uma aproximação com a América Latina. Conforme resumem Russell e Hirst:
“El reacercamiento a América Latina muestra por un lado, una ruptura importante respecto de las
políticas seguidas por el gobierno militar en el área, y por otro, un rechazo expreso a las remanidas
propuestas de salvación individual mediante el desarrollo de distintas formas de alineamiento”
(1987, p. 453). Prosseguem os autores em sua análise afirmando que, com a democratização,
os objetivos da política externa argentina para a região da América Latina alteraram-se
estruturalmente, adquirindo os seguintes contornos:

Con el advenimiento de la democracia, la política exterior hacia la región


se ordenó en torno a los siguientes objetivos: impulsar la integración latino-
americana, revigorizar las instituciones regionales, fortalecer la paz y desalentar
todo tipo de carrera armamentista en el área, oponerse a toda doctrina que
subordine los intereses de América Latina a los objetivos estratégicos del
conflicto entre las superpotencias, concertar políticas a fin de “regionalizar
los problemas y sus soluciones” y fortalecer las formas representativas en el
continente (RUSSELL; HIRST, 1987, p. 454).

Exemplos da nova linha de atuação argentina na região, consoante os objetivos definidos


pelo governo de Alfonsín, incluem: a proposição de uma política integracionista favorecendo a
cooperação regional nos marcos da ALADI (Associação Latino-Americana de Integração); a tentativa
de concerto de ações entre países da região visando à negociação da dívida externa por meio do
endosso ao Consenso de Cartagena; a criação do Grupo de Apoio a Contadora, empreendimento

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multilateral que reunia Argentina, Brasil, Peru e Uruguai em um esforço de proteção contra
eventuais ações intervencionistas dos Estados Unidos na América Latina; e o restabelecimento da
paz com o Chile mediante a assinatura de um Tratado de Paz e Amizade (ZURITA, 2010, p . 5-6).
Essas ações evidenciam o quanto a Argentina logrou transcender a visão meramente mercantilista
para a região, além de abandonar a postura intervencionista manifesta pelo país em incursões
promovidas durante a ditadura. A América Latina passava a despontar como eixo prioritário para o
país não só em termos comerciais, mas no âmbito da cooperação internacional tomada em termos
mais amplos e do concerto de posições em órgãos multilaterais para defesa de temas comuns.
Em se tratando das relações entre o Brasil e a América Latina, a transição para a democracia
não engendrou mudanças mais disruptivas. A região já figurava como área estratégica consoante
o paradigma do Pragmatismo Responsável e Ecumênico que pautava a inserção internacional do
Brasil desde a década de 1970, e o país já havia logrado incrementar as ações cooperativas na região,
tanto no âmbito multilateral quanto no âmbito bilateral, além de fomentar o comércio internacional
com países da região (Cervo e Bueno, 2011, p. 482). Com efeito, o universalismo característico do
paradigma dominante da política externa brasileira, o qual logrou subsistir à transição de regime,
já havia resultado em uma aproximação com a América Latina e com o Caribe. Com a ascensão
do primeiro governo civil pós-ditadura, considera-se que não houve uma reformulação da política
externa para a região, senão mudanças comparativamente menos significativas se relacionadas às
mudanças que ocorreram no caso argentino. A primeira delas é de caráter tático: ao assumir, José
Sarney, ao invés de lançar um projeto de política externa de caráter global, optou por adotar uma
estratégia de “passo a passo”, priorizando, em um primeiro momento, as relações com os países
da América Latina (e, dentre eles, mais particularmente com a Argentina) (RUSSELL; HIRST, 1987,
p. 478); a segunda já envolve repercussões mais consideráveis sobre a agenda de cooperação
internacional na região, uma vez que alude ao incremento na participação de novos temas de
cooperação, sobretudo com a incorporação da agenda da segurança coletiva e com a superação
dos litígios e das desconfianças em relação à Argentina e demais países do Cone Sul. Decerto,
avalia-se que uma das mais significativas repercussões da democratização do país para a sua
política externa em relação aos países latino-americanos se refere à distensão e restabelecimento

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


de laços de cooperação com a Argentina. Sobre as relações bilaterais, se discorre a seguir.

4) Quanto ao delineamento das relações bilaterais Brasil-Argentina


A transição para a democracia foi fundamental para que as relações entre Argentina e
Brasil adquirissem novos contornos. Tradicionalmente, as relações bilaterais entre esses dois
países assentavam-se na desconfiança mútua e na percepção de uma competição inexorável
acerca de diversos itens da agenda sul-americana. Com a tomada do poder pelos militares
e o recrudescimento de uma retórica securitizadora, as relações entre os países viam-se
condicionadas por elementos conjunturais que dificultavam a distensão e o fomento de relações
mais profundamente cooperativas, ainda que episódios de cooperação bilateral tenham sido
observados no período3, o que conduz alguns autores a identificar, ainda quando se encontravam
sob controle militar, a genesis da aproximação bilateral e da superação de desconfianças.
Malgrado a identificação de episódios que evidenciam uma aproximação entre os dois países ao
final de suas respectivas ditaduras, considera-se que a democracia foi fundamental para a solidificação
de um novo padrão de relacionamentos entre Argentina e Brasil. Conforme afirmam Russell e Hirst:

3 Wilton Barbosa e Isaque Portilho, por exemplo, destacam como episódios que evidenciaram uma cooperação entre
Argentina e Brasil ainda durante a vigência dos governos militares: a Guerra das Malvinas, imbróglio no qual o Brasil,
apesar de manter-se formalmente neutro, proveu ajuda material, inclusive militar, à Argentina; a assinatura de um acordo
de cooperação e aplicação da energia nuclear para fins pacíficos, em 1980; e a assinatura do Acordo Tripartido sobre
Corpus e Itaipu, em 1979, a respeito da produção de energia hidrelétrica (BARBOSA; PORTILHO, 2016, p. 120-121).
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Es indubitable que la simultaneidad de la transición a la democracia en
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

ambos países ha posibilitado el inicio de un proceso de reformulación


profunda de las relaciones bilaterales en términos cooperativos. Es claro
también que la continuidad democrática en Argentina y Brasil constituye un
requisito para avanzar progresivamente en el camino trazado y superar en
forma definitiva los nacionalismos decimonónicos, las viejas rivalidades y las
tentaciones hegemónicas (1987, p. 462).

Assim sendo, a democracia teria sido determinante para alterar a substância da política
externa argentina para o Brasil, e vice-versa. A variável regime político, desse modo, atendeu ao
propósito de não apenas tornar as relações bilaterais um ponto prioritário de política externa
no âmbito de um redirecionamento estratégico, conforme definido nas políticas externas de
Alfonsín e Sarney, como também criou as condições que possibilitaram a sustentação desse
novo padrão de relacionamento bilateral. Atributos básicos da democracia, mormente a
publicidade de informações, a prestação de contas (accountability) e a criação de mecanismos de
controle intra e entre os Poderes, facilitam a superação das desconfianças e aumentam o poder
preditivo do comportamento externo de um país. Desse modo, avalia-se que a transição para a
democracia foi essencial para que Argentina e Brasil pudessem edificar suas relações em novas
bases, as quais se sustentariam na década seguinte e se aprofundariam inclusive na forma de
uma integração regional mais ampla. Esse aspecto decerto evidencia uma das mais veementes
contribuições da variável regime político para a definição da política externa. Afinal, como resume
o autor Christopher Hill, a natureza do regime influencia na disposição de países em trabalharem
juntos (2003, p. 239). Sendo assim, a reconquista da democracia teria sido fundamental para
o restabelecimento das relações bilaterais em termos mais cooperativos e amistosos, abrindo
possibilidades futuras de cooperação bilateral e mesmo multilateral, a exemplo do Mercosul,
projeto de integração regional cuja existência decerto demandou a aproximação entre Argentina
e Brasil ocorrida na década de 1980.
Do ponto de vista argentino, as relações com o Brasil objetivavam, essencialmente:
consolidar o processo democrático em ambos os países; modificar qualitativamente as relações
bilaterais político-estratégicas e comerciais; fortalecer e ampliar as condições favoráveis ao
projeto de modernização do país; e concertar posições em defesa de interesses comuns, tanto
de ordem política quanto econômica (Russell e Hirst, 1987, p. 461). Já para o Brasil, conforme
referido anteriormente, a América Latina despontava como região prioritária no âmbito da tática
do “passo a passo”, ocupando a relação bilateral com a Argentina uma posição de destaque.
Conforme resume Alessandro Candeas:

Com a redemocratização do Brasil, em 1985, registram-se avanços históricos


na relação com a Argentina, lançando os fundamentos de uma ‘cultura de
amizade e integração’ e elevando ainda mais o patamar da relação bilateral,
mais uma vez de forma irreversível (2005, p. 26).

Exemplos de empreendimentos conjuntos que confirmam esses “avanços históricos” nas


relações bilaterais incluem: o encontro entre os presidentes Alfonsín e Sarney em Foz do Iguaçu;
a proposta de criação de uma comissão parlamentar binacional permanente (RUSSELL; HIRST,
1987, p. 475); a assinatura do Tratado de Integração, Cooperação e Desenvolvimento, em 1989,
no qual se estabelece um prazo de dez anos para o estabelecimento de um espaço econômico
comum; e a construção de confiança mútua na área nuclear a partir da assinatura de protocolos
de cooperação e da troca de visitas presidenciais aos centros atômicos dos dois países em 1987
e 1988 (CANDEAS, 2005, p. 26).

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5) Quanto ao papel conferido aos direitos humanos.
Finalmente, cumpre discorrer sobre o papel dos direitos humanos na política externa de
Argentina e Brasil pós-redemocratização. A escolha desta issue area, conforme argumentado
anteriormente, justifica-se à medida que a democracia pressupõe o acesso a um conjunto
elementar de direitos. Sendo assim, seria natural supor que a posição de ambos os países
frente aos direitos humanos se alteraria diante da transição de um regime ditatorial, violador
de direitos, a um regime democrático, o qual consagra o acesso a direitos. Prenuncia-se que,
embora se identifique que os dois países apresentaram notórias inflexões em se tratando do
papel conferido aos direitos humanos em suas respectivas políticas externas, considera-se que
o horizonte temporal teria sido o elemento mais distintivo: enquanto a Argentina despendeu
esforços consideráveis para inserir o país nos principais regimes internacionais e hemisféricos de
direitos humanos ainda durante o primeiro governo civil pós-ditadura, no caso brasileiro essa
inserção demoraria ainda alguns anos, o que demonstra que, para o caso argentino, tornava-se
mais premente inserir o país nas tratativas internacionais de direitos humanos.
A questão dos direitos humanos, com efeito, foi um dos elementos que mais colaboram
para o isolamento internacional da Argentina durante a vigência do período ditatorial. As
maciças violações de direitos humanos promovidas pelos militares argentinos ensejaram
reações de toda a comunidade internacional, principalmente nos Estados Unidos presidido por
Jimmy Carter (1977–1981) e na Europa. Quando da ascensão do governo civil conduzido por
Alfonsín, tornava-se imperioso refundar as credenciais internacionais da Argentina consoante o
novo paradigma de política externa dominante. Esse novo paradigma, conforme se introduziu
anteriormente, se pautava em uma adesão cultural ao Ocidente e na defesa de princípios
republicanos, democráticos e liberais, em frontal contraste com o posicionamento que havia
erodido as credenciais externas da Argentina e resultado em seu isolamento internacional.
Dentre esses princípios, figuravam os direitos humanos, os quais, desde a década de 1970,
adquiriam cada vez mais relevância para a comunidade internacional.
Em um contexto em que o país almejava uma nova inserção internacional, a adesão aos regimes

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


internacionais de direitos humanos servia ao propósito de enunciar ao mundo que a Argentina de
fato havia renovado as suas credenciais de inserção internacional. Tratava-se de uma estratégia que,
externamente, conferia maior previsibilidade ao posicionamento externo da Argentina e confirmava
que o país estava de fato comprometido com a manutenção da democracia e do respeito ao mais
básico conjunto de direitos. Diante das especificidades da ditadura argentina, manifesta sobretudo a
partir do elevado nível de violência que lhe valeu má reputação internacional, tornava-se forçoso que
o primeiro governo civil já se ocupasse de emitir à comunidade internacional os primeiros sinais de
que o histórico de violações de direitos humanos não se repetiria na Argentina democrática. Assim
sendo, a Argentina, já durante o governo Alfonsín, se encarregará de promover a adesão a notórios
regimes internacionais de proteção aos direitos humanos.
A título exemplificativo, pode-se citar as ratificações do Pacto Internacional de Direitos Civis e
Políticos e do Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, ambas em 1986 (UNITED
NATIONS, 2021, sp.). Em conjunto, esses dois pactos são considerados inauguradores de uma nova
fase do direito internacional dos direitos humanos, uma vez que são vinculantes e protegem um
rol bastante amplo de direitos, o que confere à sua ratificação uma importância significativa. O país
ainda celebrou a assinatura e ratificação de outros tratados mais tópicos, referentes ao combate a
determinados crimes que foram recorrentes durante a ditadura, a exemplo da Convenção contra a
tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes (idem, 2021). Além disso,
foi durante o governo Alfonsín que a Argentina se inseriu no Sistema Interamericano de Direitos
Humanos. A Convenção Americana de Direitos Humanos foi ratificada pela Argentina em 1984
e, nesse mesmo ano, o país reconheceu a competência contenciosa da Corte Interamericana de
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Direitos Humanos (SILVA, 2018, p. 35). Por intermédio da adesão a esses regimes internacionais/
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

hemisféricos, a Argentina renovou as suas credenciais de inserção internacional, comprovando tanto


para o mundo quanto para o ambiente doméstico que o compromisso com a proteção dos direitos
humanos era um item prioritário do governo democrático.
Por sua vez, no caso do Brasil, a agenda de direitos humanos não cumpriu um papel tão
central quanto na Argentina. Embora a confirmação de violações de direitos humanos ocorridas
durante a ditadura tenha ensejado reações públicas, inclusive internacionalmente, e contribuído
para a iniciação de uma estratégia de abertura política gradual ainda na década de 1970 (FRANÇA,
2011, p. 193), o fato de a ditadura brasileira, em comparação com a homóloga argentina, ter sido
percebida como menos violenta reduziu a força das pressões internacionais sobre o país. Ademais,
particularidades do regime brasileiro, como a manutenção de eleições para cargos legislativos,
dotavam aà ditadura brasileira de maior legitimidade internacional em comparação à argentina.
O fato é que as especificidades da ditadura brasileira, aliadas ao próprio perfilhamento da política
externa do país, com maiores traços de continuidade, impedram que o Brasil findasse o período
ditatorial em semelhantes condições de isolamento internacional, à diferença da Argentina.
Nesse contexto, a importância dos direitos humanos para a política externa do país era
sensivelmente diversa. Se a Argentina precisava refundar as bases de sua inserção internacional e
reiterar seus compromissos com a democracia, inclusive para fins de pacificação interna4, o Brasil
se encontrava em uma posição comparativamente confortável. No caso brasileiro, a pauta dos
direitos humanos não emergiu como item prioritário, ao menos não durante o primeiro governo
civil após 21 anos de governo militar. Embora Sarney tenha anunciado à Assembleia Geral da
ONU ainda em 1985 que o Brasil aderiria ao Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos, ao
Pacto Internacional de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e à Convenção contra a Tortura
(MILANI, 2011, p. 44), somente a última seria assinada e ratificada ainda durante o governo
Sarney. Os pactos somente seriam assinados e ratificados no ano de 1992 (UNITED NATIONS,
2021, sp.), durante a presidência de Fernando Collor de Mello. A Convenção Americana de
Direitos Humanos só seria ratificada em 1992, e somente em 1998 o país aceitaria se submeter à
jurisdição da Corte Interamericana de Direitos Humanos (SILVA, 2018, p. 35).
Em comparação ao Brasil, a transição para a democracia aportou, no plano imediato,
maiores inovações em termos de direitos humanos para a Argentina, ao menos quando pensado
em termos de adesão a regimes internacionais de direitos humanos. No caso brasileiro, embora
o tema tenha despontado em termos retóricos5, seria somente na década seguinte ao primeiro
governo civil pós-ditadura que o Brasil aderiu aos principais regimes internacionais de direitos
humanos. O fato de o Brasil ter findado o regime ditatorial em uma posição internacional mais
favorável se comparado à Argentina teria tornado, para o país, menos urgente a mudança de
política externa em relação aos direitos humanos. No âmbito interno, isso se revelou através
da resistência a ditos empreendimentos por parte de setores domésticos que reivindicavam a
soberania nacional para afastar o país do sistema internacional de proteção aos direitos humanos
(ENGSTROM, 2011, p. 7). Somente na década de 1990, consoante novas estratégias de inserção
internacional, é que o Brasil passaria a endossar os principais regimes protetivos dos direitos
humanos, tanto no âmbito hemisférico quanto no âmbito internacional. No campo dos direitos
humanos, a inovação retórica não se traduziu em maiores avanços no campo da práxis política,

4 Diferentemente do caso brasileiro, as relações cívico-militares na Argentina permaneceram tensas após a redemocratização,
estando o espectro de um eventual golpe militar a fragilizar a democracia. As forças militares ameaçaram o governo de
Alfonsín inclusive através de incursões armadas, a exemplo de amotinamentos (FRANÇA, 2011, p. 228).
5 Para Sarney, a adesão do Brasil a tratados internacionais de direitos humanos se constituía uma “muestra importante
hacia el exterior de los cambios internos puestos en marcha en Brasil, por medio de los cuales el país se esfuerza para
reorganizar su marco social, económico y político y así inaugurar una nueva fase de su historia” (ENGSTROM, 2015, p.
6-7).

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ao menos no prazo imediato. Isso se torna evidente não apenas quando considerado o retardo
na assinatura/ratificação de tratados internacionais, mas também se vislumbrado o fato de que:

el gobierno de Sarney siguió siendo abstencionista en los foros internacionales


de derechos humanos, incluyendo la Comisión de Derechos Humanos de la
ONU y continuó oponiéndose a las críticas sobre el desempeño de otros países
en materia de derechos humanos (ENGSTROM, 2011, p. 7).

Sendo assim, a timidez brasileira em se tratando de uma reorientação mais enfática


de política externa para os direitos humanos alude não apenas ao adiamento da assinatura/
ratificação de compromissos internacionais nessa matéria, mas também à manutenção de um
baixo perfil em fóruns internacionais de direitos humanos.
A tabela que segue sintetiza a comparação entre a política externa Argentina e a política
externa brasileira, tal como promovida nas páginas anteriores:

Tabela 2.1 – Comparativa das políticas externas de Argentina e Brasil durante o primeiro
governo civil pós-ditadura
Paradigma
País Estruturação do processo decisório Relações com a América Latina
dominante de PE
Ocidentalismo Concentrado no presidente, chanceler, A integração seletiva com países em
(filiação cultural ao ministro da economia e círculo restrito desenvolvimento, sobretudo com a
Ocidente); de autoridades ligadas ao Executivo; América Latina, desponta como um dos
eixos centrais da política externa pós-
Busca pela Fragilidade burocrática do
transição;
autonomia (fim Ministerio de las Relaciones
do alinhamento Exteriores y Culto (cúpula é Perspectiva para a AL: defender a
Argentina
automático); constituída por indicações políticas); democracia e fomentar a integração;
(1983–1989)

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


Celebração Participação restrita da sociedade civil Incorporação de agendas relacionadas
de valores (empresariado começa a participar de às hierarquias globais / denúncia de
democráticos, missões internacionais a convite de assimetrias / valorização da cooperação
republicanos e Alfonsín); Sul-Sul;
liberais.
Parlamento segue desinteressado em Busca por soluções concertadas,
temas de política externa. sobretudo no plano regional.
Universalismo Concentrado no presidente e Histórico de universalismo e relações
/ Pragmatismo chanceler, MRE como burocracia ecumênicas (ressalvas - antagonismos
(continuidade de forte (embora tenha perdido / rivalidades / desconfianças no Cone
um projeto de participação relativa); Sul durante a prevalência dos regimes
política externa ditatoriais);
Abertura para participação de
constituído em
outros atores: Ministérios, Forças América Latina já era uma região
Brasil 1974);
Armadas, Grupos não-estatais estratégica para comércio e
(1985–1990)
“Transição sem (empresariado); Baixo nível de cooperação internacional em termos
mudança” participação do Parlamento. mais amplos;

Sarney elege a estratégia do “passo a


passo”, privilegiando relações com a
América Latina (e, em especial, com a
Argentina).
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Relações bilaterais Papel conferido aos Direitos Principais impactos da transição
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

País
Brasil-Argentina Humanos democrática
Superação de Direitos humanos adquirem Democracia como vetor de (re)
desconfianças e do centralidade; inserção internacional; Mudam-se
paradigma geopolítico/ substancialmente os atores e as
Tratados de proteção aos
securitizador abrem diretrizes-mor da política externa;
direitos humanos são firmados
espaço para o
Argentina (tanto no âmbito hemisférico Tendência geral em relação à política
reestabelecimento de
quanto no âmbito internacional); externa da ditadura: ruptura.
(1983–1989) relações em novas bases;
Estratégia de romper isolamento
Iniciativas conjuntas são
internacional pós- ditadura
promovidas, como a
assinatura de acordos de
cooperação.
Relação com a Argentina Inovações ocorrem mais No plano mais imediato, a transição
é privilegiada dentro da no campo retórico que para a democracia não acarretou
égide da estratégia do prático; adesão aos principais maiores aportes em relação aos
“passo a passo”; regimes protetivos de direitos princípios orientadores da Política
humanos (internacionais e Externa, embora tenha induzido
Brasil Importantes iniciativas de
hemisféricos) se daria na notórias inflexões em alguns aspectos
(1985–1990) aproximação e geração década de 1990; (ex. relações com a Argentina);
de confiabilidade são
Tendência geral em relação à política
empreendidas, incluindo Oposição interna (posição
externa da ditadura: continuidade.
em áreas-chave como soberanista)'
cooperação energética e
nuclear.

Fonte: Elaboração própria.

Análises preliminares e considerações finais

A comparação empreendida, ilustrada de forma resumida na tabela anterior, evidencia que


a transição para a democracia se traduziu em maiores inovações no campo da política externa
para a Argentina. Mudaram-se os atores-chave responsáveis por sua formulação, alteraram-
se os eixos estratégicos de inserção internacional do país, e reconfigurou-se a substância do
paradigma dominante de política externa. No caso do Brasil, as diretrizes-mores da política
externa e o comportamento externo brasileiro tenderam à continuidade a despeito da transição
de regime político. Ao menos, se considerado o horizonte temporal mais imediato ao qual
esteve restrito o presente trabalho. A despeito da tendência geral de continuidade em relação
ao projeto de política externa concebido durante a década de 1970, desponta como uma
inovação a redefinição das relações bilaterais com a Argentina, a qual, conforme se argumentou,
é amplamente creditada à democracia que se instalou em ambos os países.
É importante destacar que as conclusões auferidas são ainda preliminares. Com efeito, a
restrição do horizonte temporal ao primeiro governo civil pós-ditadura limita sobremaneira a
verificação do impacto real da transição política para a política externa de ambos os países.
Conjectura-se que mudanças mais substanciais, intimamente associadas ao câmbio de regime
político, ainda se fariam por observar. Pode-se citar, a título exemplificativo, a maior interferência
da sociedade civil e de outros atores governamentais, como o Poder Legislativo, na definição de
itens e pautas de política externa, estando neles incluídos tópicos como direitos humanos e meio

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ambiente. Essa abertura à participação de novos atores associa-se umbilicalmente à abertura
política, e seria intensificada em governos vindouros, como o caso da presidência de Néstor
Kirchner (2003–2007), na Argentina, e Lula da Silva (2003-2010), no Brasil. A democratização, em
um horizonte temporal mais amplo, decerto diversificou os atores e agendas da política externa
em ambos os países, inferência essa que não se tornou possível aferir mediante a comparação
promovida no presente estudo devido ao recorte temporal.
Não obstante, acredita-se que o trabalho logrou comprovar a hipótese de que a transição
para a democracia impactou diferentemente a política externa de ambos os países, aportando
mudanças mais profundas, no caso argentino, e mudanças menos abruptas, no caso brasileiro. A
comparação entre os países logrou evidenciar disparidades entre ambos que ajudam a explicar
os impactos diferenciados da transição de regime, mormente: 1) a força burocrática conferida
ao Ministério das Relações Exteriores brasileiro e seu elevado nível de profissionalização, o
que explica, em ampla medida, os traços de continuidade da política externa brasileira até o
momento em análise; 2) especificidades dos regimes ditatoriais de cada país, os quais tenderam
ora ao isolamento internacional, como no caso argentino, ora a uma relativa salvaguarda do
prestígio internacional, como no caso brasileiro, possibilitada ainda pela consagração de uma
política externa que, longe de ser puramente militar, espalhava um consenso das elites políticas
vigentes e mantinha-se fiel aos alicerces históricos da política externa brasileira, conferindo maior
previsibilidade ao comportamento externo do país. Como variável independente, a transição
para a democracia explica, no prazo imediato, apenas parcialmente as mudanças ocorridas na
política externa de ambos os países. Parte da explicação emana de condições prévias, a exemplo
da força burocrática do MRE e dos contornos assumidos pelo regime ditatorial.
Ainda assim, considera-se que a comparação efetuada, embora limitada, contribui não
só para enfatizar a virtude do método comparado em estudos de política externa, como lança
importantes bases para se gerar uma análise de política externa que transcenda o campo
histórico-descritivo e logre apontar similitudes e diferenças entre ambos os países, além de
perseguir uma possível explicação a elas. A remissão ao histórico de emprego do método

Argentina e Brasil em uma perspectiva comparada


comparado e à consolidação da Política Externa Comparada não é, portanto, fortuito. O esforço
aqui empreendido pode, futuramente, ensejar estudos mais abrangentes sobre o impacto da
democratização nas políticas externas da América do Sul, seja através do alargamento do número
de casos comparáveis (N), seja pela ampliação do horizonte temporal. Decerto, considera-se
que o objetivo de evidenciar nexos causais, tal como propugnado em estudos comparados de
política externa, foi satisfatoriamente alcançado, restando ainda caminhos de pesquisa altamente
frutíferos a serem futuramente recuperados.

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CAPÍTULO 3

INTEGRAÇÃO ECONÔMICA REGIONAL E O CONGRESSO NACIONAL: UMA


ANÁLISE DE CONTEÚDO DOS DISCURSOS PARLAMENTARES BRASILEIROS
NO PROCESSO DE APROVAÇÃO DO TRATADO DE ASSUNÇÃO (1991)

Guilherme Fenício Alves Macedo


Alexandre César Cunha Leite
Anna Beatriz Leite Henriques

Introdução

Ao longo dos anos, e apesar das transformações no ordenamento jurídico nacional, o


Legislativo brasileiro esteve restrito à figura do Poder Executivo em sua atribuição de negociador
externo, restando-lhe a estrita competência de análise e aprovação dos acordos internacionais
celebrados pelos tomadores de decisão (OLIVEIRA; ONUKI, 2007). No entanto, no decorrer das
últimas três décadas, a atividade legislativa em temas de política externa tem sido um fenômeno
recorrentemente observado (MILNER, 1999), haja vista a multiplicação de tratados e seus
respectivos efeitos no plano doméstico (LIMA; SANTOS, 2001). Deste modo, dado o maior grau
de sensibilidade às demandas das distintas instâncias da sociedade civil, sobretudo em processos
de integração econômica, os assuntos econômico-comerciais tornaram-se questões cada vez
mais mencionadas nas intervenções e posicionamentos da atividade parlamentar brasileira
(ALEXANDRE, 2006; MATTOS; MARIANO, 2017). Por sua vez, possibilitou-se uma conjuntura em
que se reconhecia a importância das expectativas de legitimidade às iniciativas do executivo
brasileiro no entorno regional.
A tradicional separação das agendas interna e internacional, reivindicada tanto por
acadêmicos quanto por estadistas (WALTZ, 1979), passou por um processo de desacomodação
em termos de limites que conferiam essa estrutura heterogênea ao longo da passagem
paradigmática do desenvolvimentismo para o recorte neoliberal da política externa brasileira
(CERVO, 1997; NEVES, 2003). Isto deve-se ao fato de que, progressivamente, notava-se a
incorporação de assuntos externos no cotidiano das comunidades políticas nacionais, a
exemplo das crises do choque de petróleo ao longo da década de 70 (LIMA; SANTOS, 2001).
Desta forma, tendo em vista o modo em que a política externa passou a ser gradativamente
percebida como uma política pública em suas particularidades, coube ao legislativo brasileiro
o desafio de desempenhar ações e posicionamentos com efeitos restritos nos processos de
formulação, implementação, consolidação e avaliação de decisões de política externa ao ritmo
de pressões internas.
A análise da atividade parlamentar brasileira diante da criação do MERCOSUL se situa nos
estudos de avaliação de política externa, bem como no nível de análise doméstica em processos
de regionalismo (HILL, 2003). Neste sentido, o exercício da atividade parlamentar pode ser
considerado um indicador do grau de coesão e consistência entre os atores governamentais,
ou mesmo de accountability em assuntos de política externa (MILNER, 1999; MARTIN, 2015),
permitindo, assim, a observação dos cursos de preferências e interesses dos parlamentares que
perpetram em seus instrumentos institucionais e declarações; neste caso, aqueles referentes ao
processo de integração econômica regional no Cone Sul.
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Assim, o objetivo deste capítulo baseia-se na ideia de observar o possível apoio ou
relutância nos discursos dos parlamentares brasileiros acerca do processo de criação do
MERCOSUL. Logo, dado o exposto acerca das considerações teóricas, realiza-se um estudo de
caso único exploratório, utilizando como principais ferramentas metodológicas a Revisão de
Literatura e Análise de Conteúdo (AC).
Considerando os discursos do legislativo brasileiro como manifestações das idiossincrasias
da atividade parlamentar sobre a criação do MERCOSUL após a assinatura do Tratado de
Assunção até a sua aprovação, a análise de conteúdo provém o reforço indutivo à unidade
de investigação. Assim, este capítulo apresenta, inicialmente a estrutura de investigação,
que elucida as definições, elementos e procedimentos de pesquisa. À continuação, descreve
as transformações da agenda de integração econômica regional na política externa brasileira
de modo a contextualizar os precedentes para o estabelecimento do Tratado de Assunção.
Em seguida, trata-se do arcabouço teórico que fundamenta a hipótese a ser testada no caso
analisado, isto é, a ideia de que os apontamentos post facto dos parlamentares brasileiros sobre
a criação do MERCOSUL se localizam no recorte de tendência de abdicação1 do Congresso
Nacional diante de temas e assuntos de política externa econômica; sobretudo no que se refere
aos assuntos de política comercial. Por fim, é desenvolvido o processo de interpretação dos
dados concernentes à codificação dos discursos dos parlamentares brasileiros.

Metodologia

Este capítulo tem por estratégia de pesquisa o estudo de caso para avaliação teórica,
adotando como ferramentas metodológicas a análise de conteúdo, sob a técnica de categorização
temática, e a revisão de literatura. Em seu quadro metodológico, Bardin (2011) define três macro
etapas que integram a análise de conteúdo. A primeira condiz ao processo de pré-análise, que

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


equivale à estruturação dos materiais, ou seja, a seleção dos documentos e a definição dos
objetivos. Já a segunda etapa consiste na exploração do material, com a categorização temática
dos documentos. E, por fim, o tratamento dos resultados mediante o processo de dedução
lógica, isto é, a análise e interpretação dos dados (SILVA; GRANJA HERNÁNDEZ, 2020).
Assim sendo, o quadro a seguir apresenta o formato de análise aplicado:

Quadro 3.1 – Desenho de Pesquisa

Discursos dos parlamentares brasileiros


Documentos no Diário do Congresso Nacional
(1991)

Ferramentas Metodológicas Análise de Conteúdo (Bardin, 2011)

Revisão de Literatura; Elaboração de


árvore e nuvem de etiquetas; Análise
Procedimentos de Pesquisa
de gráficos e clusters; Arranjo do grau
de frequência.

Fonte Primária Brasil (1991)

Fonte: Elaboração própria com base em Alves, Figueiredo Filho e Henrique (2015).

1 A hipótese de abdicação é definida como sendo aquele perfil comportamental do Poder Legislativo marcado
pelo desinteresse ou incapacidade em decisões de política externa (MILNER, 1997). Assim, a presente análise não se
propõe a investigar os cursos de ação do Congresso Nacional a nível discursivo, restringindo-se a observação dos
demais cursos de ação no nível extradiscursivo.
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a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
A análise das declarações selecionadas deu-se por via da identificação das expressões
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

que apresentavam uma posição favorável ou de contestação sobre a criação do MERCOSUL. Na


seleção dos referidos fragmentos foram levados em consideração os parágrafos que mencionam
os assuntos relacionados à formação do bloco. No decorrer da codificação, essas menções
excederam a simples inclusão do termo “MERCOSUL”, considerando outros termos igualmente
fundamentais, bem como termos vinculados a questões associadas ao sentido amplo da questão
em discussão, como os de integração latino-americana, integração sul-americana, comércio
exterior, inserção internacional, entre outros.
Mediante as contribuições de Bardin (2011), a análise transversal é empregada de modo
a explorar, a partir do sistema de codificação binomial, os posicionamentos dos parlamentares
brasileiros nas diferentes instâncias do Congresso Nacional ao longo do processo de aprovação
da criação do MERCOSUL. Deste modo, têm-se como critérios de classificação e codificação dos
45 pronunciamentos parlamentares: 1) as atribuições, positivas ou negativas, dos parlamentares
quanto à assinatura do Tratado de Assunção; 2) os assuntos pautados nas declarações.
Desta maneira, esses termos-chave foram utilizados para a criação de categorias e, por
vezes, subcategorias temáticas, sendo a sua presença reconhecida como emblemática da
percepção daqueles parlamentares que discursaram sobre o dado tema. Conforme o assunto
do inteiro teor, os fragmentos textuais analisados passaram a ser agrupados em determinadas
categorias, considerando, assim, que algumas referências podem ser incluídas em diversas
categorias e subcategorias à medida que pudessem abordar mais de um tema. Assim, foram
utilizadas como categorias as classes gramaticais de verbo e substantivo presentes nos escritos
de Milner (1999) sobre perfis dos atores domésticos em política comercial, bem como nos
conceitos de Cervo (2008) sobre inserção internacional brasileira.
A partir destes procedimentos, foi possível identificar os tópicos dentro da temática
de criação do MERCOSUL, assim como a frequência de aparição dos códigos associados às
categorias definidas mediante a dimensão binomial de atribuições positivas e negativas.
Ademais, as características dos parlamentares, isto é, partidos políticos e unidade federativa,
também foram codificadas no sentido de verificar qualitativamente sua associação ao grau de
predominância das atribuições designadas conforme o quadro a seguir:

Quadro 3.2 – Categorias da atividade parlamentar acerca do Tratado de Assunção (1991)


Dimensão Descrição Subcategorias Exemplos
O enquadramento Aumento da Concorrência; “O principal concorrente
da criação Condições Assimétricas de brasileiro, que é produto
do Mercosul Produção; argentino, atinge a mesma
enquanto produtividade alcançada em Santa
Custos e exigências técnicas;
fenômeno Catarina, maior produtor nacional,
que dispõe de Desestímulo produtivo; com custos significativamente
efeitos adversos Modernização adversa; menores: na Argentina os custos
Negativa ou nocivos aos Obstáculo a estabilidade de produção estão em torno de
atores domésticos inflacionária; US$ 4 e US$ 5,5 mil por hectare e
e/ou a diplomacia no Brasil, US$ 7 mil por hectare.
Ostracismo econômico e
brasileira. Apenas como exemplo, um
social;
trator de médio porte no Brasil
Redução de investimentos. está custando cerca de US$ 22
mil. Na Argentina e Uruguai,
aproximadamente US$ 12 mil.”

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O enquadramento Acesso a mercados; “No campo econômico, podemos
da criação do Aprimoramento da ampliar nosso comércio com os
Mercosul como Competitividade; países vizinhos, em particular
uma política na área de energia, incluindo
Aumento de investimentos;
benéfica aos o petróleo, o gás natural, a
atores domésticos Autonomia relacional; biomassa e outras formas de
e/ou a diplomacia Autossuficiência energética; energia capazes de assegurar a
brasileira. Combate a inflação; produção energética na região
do Cone Sul.
Coordenação políticas
microeconômicas;
Desenvolvimento
infraestrutural;
Desenvolvimento tecnológico;
Eliminação de barreiras
Positiva
comerciais;
Estreitamento de Laços no
Cone Sul;
Identidade Comum;
Inserção internacional do Brasil;
Liberalização da matriz
econômica;
Livre circulação de fatores;

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


Produtividade dinâmica;
Redução dos Custos de
produção;
Superação de assimetrias;
Aumento do Turismo.
Fonte: Elaboração própria com base em Alves, Figueiredo Filho e Henrique (2015).

Conforme o quadro apresentado, a utilização da ferramenta NVivo 12 se deu por meio da


seleção de enunciados dos discursos parlamentares, organizando-os em unidades e associando-
os simultaneamente a uma das duas dimensões acima apresentadas. Além da bidimensionalidade
dos enunciados — desconsiderando, portanto, os enunciados que se referiam a informações
técnicas do bloco —, foram considerados também o partido do parlamentar e as unidades
federativas representadas. Neste sentido, a codificação binária pôde prover uma correlação
entre posicionamento a respeito da criação do bloco e os espectros político-partidário e
regional dos deputados e senadores que se pronunciaram a respeito da assinatura do Tratado
de Assunção. Ademais, é necessário ressaltar que a codificação dos discursos não foi realizada
mediante o recurso de triagem ou busca isolada de palavras para identificar quais discursos
parlamentares abordaram a questão da criação do MERCOSUL. Isto porque os pronunciamentos
analisados já foram prontamente selecionados por meio do sistema de busca avançada do
portal do Congresso Nacional, o qual possibilitou a listagem e seleção de discursos oficiais
dos parlamentares brasileiros arguidos na Câmara e no Senado sobre o assunto abordado no
referido recorte temporal analisado.
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A trajetória da integração econômica regional na política externa brasileira (1960 –1991)
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

A tarefa de evidenciar o conjunto de razões pelas quais a criação do MERCOSUL se tornou


um outcome da diplomacia brasileira pressupõe compreender os fenômenos e atores situados
em níveis de análise distintos, que se fizeram presentes na transformação paradigmática na
política externa brasileira (CERVO, 2003). Neste sentido, quanto às transições no pensamento
econômico, Oliveira (2003) discorre que, no imediato pós-Segunda Guerra, o alastramento da
globalização econômica esteve correlato à estratégia das grandes potências para a contenção
econômica e política dos países periféricos, sobretudo na América Latina, especificamente
aqueles que compunham a região do Cone Sul (SPEKTOR, 2014; CERVO, 2007). Dentre o conjunto
complexo de medidas, a implementação desta estratégia se deu por meio de restrições a políticas
econômicas e sociais pautadas no aspecto desenvolvimentista, sobretudo via a implementação
do modelo de substituição de importações (HIRST; PINHEIRO, 1995; CERVO, 2003).
Do ponto de vista de assimetrias econômicas entre os Estados em sua totalidade, a
conjuntura da ordem econômica internacional ao longo da Guerra Fria se caracterizou por uma
série de choques externos entre as economias nacionais (KEOHANE; MILNER, 1996; BARBIERO;
CHALOULT, 2001). Dentre os principais choques, podem ser considerados aqueles referentes
à demanda internacional, a condição das taxas de juros, da possibilidade de oferta de capital
(CERVO, 1997) e, como resultado, na situação dos termos vigentes de trocas, configurando uma
conjuntura de esgotamento da estratégia de desenvolvimento nacional pautada no modelo de
substituição de importações (OLIVEIRA, 2003). Deste modo, no caso da demanda, as razões para
tal estiveram associadas ao momento crítico em que os países membros da Organização para
Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) enfrentaram, sobretudo nas searas fiscal, de
produção industrial e de governabilidade econômica (LIMA; CHEIBUB, 1994).
Adjunto ao papel do Sistema de Reservas Federal dos Estados Unidos (FED) na adoção
de medidas contracionistas de políticas monetárias e cambial na passagem para os anos 80,
verificou-se o gradual declínio abrupto da demanda internacional e, consequentemente, uma
queda constante na atividade exportadora dos países do Cone Sul (MARTINS, 1993; OLIVEIRA,
2003). Logo, medidas como a elevação das taxas de juros internacionais sobre valores de dívidas
externas proporcionam uma evasão colossal do volume de capital de países do Sul Global. No
caso dos Estados da região do Cone Sul, estes apresentavam uma dependência cada vez mais
inviável de suas respectivas balanças de pagamento (MEDEIROS, 1998). Diante disso, Medeiros
(1998) assevera que, de maneira amplamente disseminada, as economias dessa região voltaram-
se à adoção de políticas macroeconômicas que pudessem induzir notavelmente o aumento de
exportações, sendo, dentre todas, a desvalorização cambial a política mais destacada.
No entanto, mesmo recorrendo a essa estratégia, a situação das economias do Cone Sul
não pôde se desvencilhar da tendência rumo à atomização de suas dívidas externas (RICUPERO,
2017; CERVO, 2003). Isto porque, a partir do incremento aplicado às taxas de juros, o montante
destinado ao pagamento dos países credores acabava por impossibilitar a reestruturação das
contas externas e, consequentemente, impossibilitava a promoção de grandes iniciativas para o
desenvolvimento econômico doméstico e elevação do bem-estar nacional (LIMA; CHEIBUB, 1994;
SPEKTOR, 2014). Ao mesmo passo, a questão inflacionária tornou-se também uma realidade
constante no cotidiano da população sul-americana (OLIVEIRA, 2003).
Paralelamente a isto, o desenvolvimento da então Comunidade Europeia no recorte
1970–1980 lançou luz à percepção dos demais Estados sobre as possibilidades de lidar com
questões basilares e transversais por via da iniciativa coletiva da integração econômica regional
(MALAMUD, 2003; FLORÊNCIO, 2015). Segundo Barbosa (1992), esta tônica discursiva conota a
reformulação da concepção da integração na América Latina, simbolizada pela reconstituição

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da Associação Latino-Americana de Livre-Comércio (ALALC) 2, instituída pelo Tratado de
Montevidéu de 1960, na Associação Latino-Americana de Integração (ALADI), através do Tratado
de Montevidéu de 1980.
Neste sentido, as distintas expressões do fenômeno do regionalismo, a noção de formação
de grandes mercados a nível de comércio intrarregional logo perpetrou as inclinações de atores
políticos. Com efeito, a partir da década de 80, os processos de integração regional passaram a
ser observados como uma alternativa para os governos nacionais diante dos efeitos decorrentes
do processo de globalização, sendo, portanto, uma alternativa que permitiria aos países um
conjunto de possibilidades de melhor adequação ao próprio fenômeno de dinamismo da
economia internacional (MARIANO; OLIVEIRA, 1999; MALAMUD, 2003).
Diante das discussões sobre adaptações na política comercial dos Estados do Cone Sul,
tomando como paralelo o desafio do Brasil na defesa dos interesses do Sul Global nas negociações
do Acordo Geral sobre Tarifas e Comércio (GATT), o Tratado de Montevidéu pressupunha o
objetivo de estabelecer um sistema de incentivo e assistência às economias subdesenvolvidos.
Mediante a isto, notava-se a prática dos princípios de ausência de reciprocidade e cooperação
entre a comunidade de Estados latino-americanos, prevendo a abertura de mercados para
produtos industriais dos Estados com desenvolvimento relativamente reduzido, assim como a
remoção imediata dos obstáculos alfandegários e não-tarifários (COMBA; VILELA, 2010).
Souza e Castillo (2016) argumentam que a proposta do Tratado de Montevidéu (1980)
significou a recusa indireta do predominante modelo econômico neoliberal, promovendo
sobretudo a garantia de um sistema de livre comércio em linhas multilaterais, sem ao menos
considerar a assimetria do grau de desenvolvimento social e econômico entre os países membros.
Logo, ao longo do período desenvolvimentista da política externa brasileira, o principal objetivo
de articulação e integração das indústrias nacionais não esteve representado na elaboração dos
acordos de Montevidéu de 1960 e 1980, contudo a integração produtiva permeou contextos

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


distintos de diferentes formas no decorrer das diversas fases em que o processo de integração
econômica da América Latina percorreu desde os anos 60 (SOUZA; CASTILHO, 2016).
Adjunto a isto, ao fim da década de 80, outro elemento que pode ser evidenciado é a adoção
de medidas de ajustamento estrutural das prerrogativas das Instituições Financeiras Internacionais
(IFI) para a concessão de recursos a serem destinados a superação da crise de dívidas externas
dos países latino-americanos (BABB, 2013). Logo, verificam-se modificações profundas na política
comercial do Brasil paralelamente a este contexto de implementação de medidas que incluíam
desde a disciplina fiscal e até a liberalização das taxas de juros, comércio e investimentos
estrangeiros diretos (FLORÊNCIO, 2015; RODRIK, 1996). Desta maneira, é preciso considerar que
mesmo diante do cenário de desequilíbrios macroeconômicos, sobretudo a questão inflacionária
durante os Governos Sarney, Itamar Franco e Collor, a “redução unilateral das tarifas de importação
teve influência decisiva na gênese e na conformação do MERCOSUL”, uma vez que, “em 1987, a
tarifa média brasileira era 57,5%, em 1990, 30,5%” (FLORÊNCIO, 2015, p. 8).
No entanto, o colapso da dinâmica bipolar conferiu um papel mais relevante aos atores
transnacionais e domésticos no processo de globalização econômica (BRUNELLE; BEBLOCK,
1996). Neste sentido, simultaneamente ao processo de redemocratização nacional, a diplomacia
brasileira esteve a par do processo de estreitamento dos mercados, ora pois o fato de que os
parâmetros da nova ordem internacional econômica seriam cunhados não mais em termos
de progresso econômico e social, e sim em termos de intensa competitividade internacional

2 Segundo Comba e Vilella (1984, p. 34-35), o objetivo inicial da ALADI consistiu em “constituir uma zona de livre
comércio mais facilmente inserível num contexto de tendência universal como o concebido pelo GATT, especialmente
no seu espírito originário, onde as formas regionais de liberalização eram toleradas como etapas intermediárias para
alcançar a liberdade generalizada das trocas”.
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(BARBIERO; CHALOULT, 2001). Deste modo, a dada conjuntura traduziu-se naquilo que Harvey
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

(1996) denominou por “acumulação flexível”, isto é, a ascensão de setores produtivos inéditos,
a readaptação do sistema financeiro internacional e do regime multilateral do comércio,
juntamente a “flexibilidade dos processos e dos mercados de trabalho, bem como dos produtos
e padrões de consumo” (BARBIERO; CHALOULT, 2001, p. 33).
De fato, a nova ordem internacional foi marcada por um conjunto de inclinações dos Estados
para a formação de novos arranjos de integração econômica regional que não se limitam mais
somente ao incremento do intercâmbio comercial (MARTIN, 2015; KEOHANE; MILNER; 1996).
Em virtude disso, observa-se que os parâmetros de um novo projeto de integração econômica
regional passariam a abarcar a totalidade das atividades vinculadas aos setores produtivos,
essencialmente à condição dos setores industriais mediante a seara de novas possibilidades de
aprimoramento das estruturas produtivas e acesso a novos mercados (HARVEY, 1996).
Ainda no âmbito da transição paradigmática da PEB, Hirst e Pinheiro (1995) argumentam
que, embora o Governo Collor de Mello possa ser considerado um breve plano de voo, é possível
notar um conjunto de transformações nas diretrizes das políticas domésticas, essencialmente no
que se refere ao modelo de inserção internacional (AZAMBUJA, 1991). Haja visto simultaneamente
a consolidação da redemocratização, a nova etapa da política externa brasileira foi caracterizada
pela ruptura de um consenso em consolidação desde meados da década de 70 que se dispunha
sob uma sólida estrutura burocrática, bem como no apoio eminente das elites econômicas e
políticas nacionais (Azambuja, 1991; Lima e Santos, 2001). Desta maneira, a partir da ótica do
conceito de autonomia, a partir do Governo Sarney, nota-se na agenda de integração econômica
regional a transformação da estratégia de inserção autonomista via distanciamento da política
externa (PRADO; MIYAMOTO, 2010).
Segundo Vigevani e Cepaluni (2011), os primeiros momentos da autonomia via aproximação
se mostraram incipientes quando comparados aos governos posteriores ainda durante a década
de 90. Logo, de acordo com Hirst e Pinheiro (1995), essas considerações apontam para uma
inserção internacional orientada em superar grandes desafios simultaneamente: 1) plano externo,
a tentativa falha de reverter a deterioração da condição do Brasil perante as grandes potências,
principalmente em termos de participar efetivamente da formação das regras do jogo na
formação da nova ordem internacional; 2) no plano doméstico, “as negociações da dívida externa,
pelas resistências domésticas – em especial no âmbito parlamentar – de apoiar as políticas de
liberalização e desestatização propostas pelo Executivo” (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 8).
No entanto, quanto à agenda de integração econômica regional, Azambuja (1991)
desenvolve que, diferentemente do período antecessor, a política externa no Governo
Collor esteve empenhada nas negociações juntamente com Argentina, Uruguai e Paraguai,
e posteriormente, a assinatura do Tratado fundador do MERCOSUL, em 1991. Isto porque os
interesses que fundamentaram a criação do bloco não foram apenas um útil instrumento que
permitiu acelerar o processo de liberalização da economia brasileira, mas também adquiriram
uma dimensão estratégica mais ampla (CERVO, 2007; FLORÊNCIO, 2015). Por conseguinte,
para o Itamaraty, a parceria sub-regional na seara económico-comercial assumiu um papel
crucial, permitindo conferir à diplomacia brasileira um impulso via o regionalismo, objetivando
assim estabelecer regras e mecanismos de controle à globalização mesmo que às custas de
desfalecimento de uma prerrogativas tradicional: “a submissão de decisões sobre políticas
macroeconômicas nacionais a um compromisso negociado entre as partes que compõem a
unidade regional” (HIRST; PINHEIRO, 1995, p. 14).
Além disso, no que se refere à convergência de interesses, dentre os elementos narrativos
presentes na trajetória do regionalismo no Cone Sul, Candeas (2010, p. 08) define que “o
conjunto de iniciativas para busca de cooperação intervalares a momentos de rivalidade

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podem ser observadas um conjunto de marcos do século XX na construção da aproximação
da diplomacia brasileira com Buenos Aires”. Isto é, mesmo em momentos particulares da
história em que se observa a predominância desconfiança e rivalidade entre as duas potências
regionais, sobretudo na chamada “diplomacia da obstrução” e durante os anos de chumbo
(FAUSTO; DEVOTO, 2004; CERVO, 2003).
Partindo desta perspectiva, a evolução da temática da integração econômica regional
na história da política externa brasileira também pode ser constatada como intrinsecamente
associada aos movimentos pontuais da cooperação argentino-brasileira em múltiplas áreas das
relações internacionais (CANDEAS, 2010). Dentre os principais feitos situados cronologicamente,
vê-se o Tratado de Livre Comércio Brasil-Argentina (1941), o Tratado da Bacia do Prata (1969),
Acordo Tripartite Brasil, Argentina e Paraguai de Itaipu e Corpus (1979) e o Tratado de Integração,
Cooperação e Desenvolvimento (1988).
Candeas (2010) argumenta que, a partir da década de 70, os acordos internacionais
celebrados entre Brasil-Argentina passaram a ter maior importância no que se refere à
consolidação de um eixo dinâmico na região, a qual se fundamentou por vias do salto qualitativo
da cooperação durante os governos Alfonsín e Sarney, tornando-se cada vez mais confluentes
ao final da década de 80, mediante o giro neoliberal. Logo, nota-se que a convergência de
interesses entre os Governos Collor e Menem, foi fundamental para a intensificação das políticas
de liberalização comercial. A integração bilateral, idealizada nos mandatos de Sarney e Alfonsín
enquanto projeto de estruturação de estruturas produtivas para a construção de vastas empresas
regionais, foi reduzida a um projeto orientado para a abertura comercial (CANDEAS, 2010)3.
Ao considerar a perspectiva de desindustrialização, é possível observar que a dinâmica
exógena de intensificação dos fluxos internacionais de bens, serviços e capitais corroborou para
o remodelamento das preferências dos agentes socioeconômicos, que permeiam e se fazem
representados na esfera de instituições democráticas em que são geradas as decisões nacionais

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


da agenda comercial (FLORÊNCIO, 2015; KEOHANE; MILNER, 1996). Este contexto alia-se ao
fato de que tais decisões estão associadas à crescente sensibilidade das economias frente às
variações e choques no comércio internacional, ocasionando implicações relativas aos preços
dos produtos nacionais (MARTIN, 2015).
Em relação às adaptações da política externa brasileira contemporânea, a mudança
do Estado-desenvolvimentista para o paradigma do Estado-liberal consumou “a transição
paradigmática das políticas exteriores, quer em sua formulação nacional, quer na dos blocos
regionais que o processo de interação criava” (CERVO, 2007, p. 217). Neste sentido, após os
processos de transição dual dada redemocratização e ascendente liberalização comercial durante
os governos Sarney, a construção da política externa brasileira na guinada liberal-modernizadora
do governo Collor caracterizou-se pela abertura abrupta do mercado doméstico ao comércio
internacional (RICUPERO, 2017).
Assim, “a promoção do desenvolvimento interno era confiada ao estrangeiro que,
mediante a transferência de tecnologias e de recursos, elevaria a competitividade do sistema
produtivo nacional ao tempo em que o desnacionalizava” (CERVO, 1997, p. 16). Deste modo, com
a assinatura do Tratado de Assunção em 26 de março de 1991, a criação do MERCOSUL “surgiu
como um projeto econômico-comercial e político-estratégico: ampliar e consolidar a influência
regional e internacional do Brasil, por meio do intercâmbio comercial e da concertação político-
estratégica no nível regional” (FLORÊNCIO, 2015, p. 2125).

3 Logo, “a integração ganhava a simpatia dos setores que nela viam uma forma de vencer os protecionismos no interior
dos dois países, fortalecendo políticas de abertura e desregulamentação da economia e do comércio. A integração
regional era vista como uma ‘globalização em miniatura’, que combinava impulsos de liberalização comercial com
estímulos à política industrial, exercendo um ‘papel didático’ sobre a economia” (CANDEAS, 2010, p. 221).
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Logo, com vistas aos elementos predecessores ao recorte analisado, isto é, a aprovação
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

congressual do Tratado de Assunção (1991), objetiva-se na seção subsequente analisar o modo


como o legislativo brasileiro se dispôs durante a etapa de negociações do MERCOSUL.

Transição sob o signo neoliberal: o Congresso Nacional e a integração econômica regional

De modo a categorizar as fases da participação do Congresso Nacional na agenda de


política externa econômica, Lima e Santos (2001) asseveram que a atividade legislativa no
período desenvolvimentista da política externa brasileira (1930–1985) se divide em duas fases,
tendo como marco referencial a instauração do regime militar, em 1964. Desta forma, baseado
na concepção do papel das instituições domésticas no processo decisório (MILNER, 1997), o
recorte temporal que antecedeu este marco corresponde à denominada fase de delegação 4,
uma vez notada a tendência do congresso nacional de legitimação voluntária e convicta das
decisões do Poder Executivo em política de comércio exterior (LIMA; SANTOS, 2001).
Dado o alto grau de sensibilidade dos atores parlamentares ao contexto de proteção e
fomento a industrialização nacional (OLIVEIRA; ONUKI, 2007; MARTIN, 2015), a convergência
de interesses entre os atores governamentais durante este período evidenciou a atuação do
Executivo no controle seletivo de importações e na defesa de reformas do comércio global
nos fóruns internacionais (LIMA; SANTOS, 2001). Por conseguinte, em razão da inoperância
das instituições democráticas durante os governos militares no pós-1964, Lima e Santos (2001)
denominam esta fase pela tendência de “delegação outorgada”, visto que a total autonomia do
Executivo esteve ligada ao fim da democracia representativa, tão paralelamente à consolidação
do insulamento burocrático e centralização decisória para a defesa dos interesses comerciais
de modo a atuar em prol dos interesses dominantes para a concessão de linhas de crédito para
compra de produtos nacionais (LIMA; SANTOS, 2001).
Oliveira e Onuki (2007) consideram que, ao longo do período desenvolvimentista, a condição
do Congresso Nacional frente à atuação diplomática brasileira em prol da reivindicação do
tratamento privilegiado nos órgãos multilaterais perpassou pelas fases de entusiasmo, ceticismo
até a descrença da efetividade da guinada multilateral. Estas, segundo Cervo (1997), estiveram
atreladas aos interesses dos países do centro global à operacionalização do Acordo Geral de
Tarifas e Comércio (GATT), do Fundo Monetário Internacional (FMI) e do Banco Internacional
para Reconstrução e Desenvolvimento (Bird).
Apesar da continuidade da centralização do Poder Executivo em política externa após a
redemocratização, conforme previsto no escopo constitucional de 1988, não obstante, Alexandre
(2006) defende que a atuação do Poder Legislativo5 em temas de política externa permanece
condicionada à antiga competência de aprovação ex-post de acordos internacionais, fazendo-se
observante naquilo que condiz a reserva pontuais referentes a atos de mero cunho regulatório

4 De acordo com Milner (1997), o conceito de delegação em termos de negociação externa pode ser definido
como comportamento ou tendência de complementaridade de interesses, apoio ou posição favorável entre
os atores e/ou instituições no âmbito governamental para a celebração e consolidação de acordos no âmbito
internacional. No caso do Brasil, a estrutura constitucional das relações internacionais e o sistema político
brasileiro condiz ao poder executivo a competência de agente negociador no âmbito externo, enquanto a função
do congresso referentes aos atos celebrados pelo executivo no internacional se restringe a competência post
facto, isto é, a aprovação dos tratados e acordos internacionais no processo de ratificação destes compromissos
(MATTOS; MARIANNO, 2017).
5 Alexandre (2006), ainda, discorre acerca de um outro mecanismo de participação institucional do Legislativo: “a
edição de leis contendo modificações ou inovações na ordem jurídica interna previstas nos atos internacionais.
Este item, porém, merece ser relativizado na medida em que o atual regime confere ao presidente da República
significativo poder de agenda, ao reunir em suas mãos poderes de decreto e de urgência” (ALEXANDRE, 2006,
p. 60).

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ou de rotina diplomática. Além disso, somam-se ao conjunto de mecanismos de participação
institucional do Congresso o poder de fiscalização através de suas comissões, isto é, a realização
de audiências públicas; a solicitação de requerimentos de informações oficiais; a convocação
de ministros de Estado; a aprovação do Senado sobre chefes de missões diplomáticas e a
autorização de declarações de guerra e permissões para entrada e/ou permanência de forças
estrangeiras em território nacional (ALEXANDRE, 2006).
Decerto, durante os anos que precederam o recorte neoliberal da política externa
brasileira, a apreensão de parte expressiva dos parlamentares em relação à integração
hemisférica esteve associada à percepção desta como um instrumento da política externa
de Washington (OLIVEIRA, 2003). Neste sentido, verifica-se que a denominada tendência
de abdicação do Congresso Nacional em política externa econômica está intrinsecamente
relacionada ao movimento inicial de separação das políticas industrial e comercial diante da
crescente competitividade internacional (OLIVEIRA; ONUKI, 2007). Considera-se ainda que
além destes fatores, a nova tendência do Legislativo esteve associada à resistência de parcela
considerável de atores domésticos diante da tônica de reformas estruturais, as quais se
fundamentavam sob princípios neoliberais no escopo vertical de negociações, contrapondo-
se ao requisito de adesão voluntária das economias latino-americanas ao livre comércio em
prol da concessão de investimentos e recursos financeiros e a amortização da dívida externa
(OLIVEIRA; ONUKI, 2007).
Verifica-se ainda que um dos principais receios dos parlamentares dos Estados latino-
americanos quanto à integração hemisférica consistia principalmente no fato de que um acordo
posterior com os Estados Unidos, somada à evolução generalizada do resultado, pudesse resultar
em diferenças significativas segundo as condições relativas do mercado norte-americano e suas
distintas estratégias para cada parceiro comercial (NEVES, 2003). Em resumo, argumenta-se que
os diferentes acordos de livre comércio entre os Estados Unidos e cada país latino-americano

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


individualmente poderia conferir aos Estados Unidos preferências no país e grandes vantagens
competitivas sobre outros países da região. Por esta razão, Lima e Cheibub (1994) argumentam
que, para as elites nacionais, a alternativa dos países da América Latina de criar uniões aduaneiras
em vez de uma área de livre comércio hemisférica era por vezes mais vantajosa e cabível às
predileções nacionais inerentes ao dilema de desenvolvimento.
Nos anos que se seguiram ao processo de redemocratização, a participação legislativa
começou a abordar temas muito diversos ligados à esfera externa em virtude do momento de
intensificação das relações internacionais conjugado com o advento de novos atores (PRADO;
MIYAMOTO, 2010; MATTOS; MARIANO, 2017). Como resultado, o volume de tratados assinados
aumentou exponencialmente com a inclusão de novos temas além dos clássicos acordos sobre
alianças, conflitos, paz e fronteiras, abrangendo assim temas além do uso pacífico da energia
nuclear para aspectos relacionados à proteção de investimentos, instrumentos de política
comercial e propriedade intelectual (MEDEIROS, 1998; MATTOS; MARIANO, 2017).
No âmbito econômico-comercial, além das negociações no GATT e das pressões
exercidas pelas instituições financeiras internacionais para a implementação de reformas
econômicas, as negociações para a criação do MERCOSUL significaram uma experiência
crucial para a atividade parlamentar na agenda da integração econômica regional (NEVES,
2013). Logo, ao longo das negociações sobre a integração econômica regional no Cone Sul,
o Congresso Nacional dispôs de diferentes avaliações sobre os efeitos que a criação do bloco
poderia acarretar à economia nacional, bem como ao modelo de inserção internacional do
Brasil a ser adotado mediante a conjuntura transformação da ordem internacional (OLIVEIRA,
2003). Vê-se a partir desta narrativa, os diferentes posicionamentos dos parlamentares
conforme a tabela a seguir:
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Quadro 3.3 – Preferência dos Parlamentares dos Países do Mercosul pelo Tipo de Integração
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

a ser adotada (%)

Fórmula da Integração Argentinos Brasileiros Paraguaios Uruguaios


Proximidade Geográfica 7 12 7 29
Com a América Latina 25 34 60 44
Com os Estados Unidos 4 0 7 8
Com o restante do Mundo 48 23 26 16
Sem Resposta 16 31 0 3
Fonte: Elaboração própria com base nos dados de Sáez (2000) e Oliveira (2003).

Dentro desta perspectiva, mesmo diante do simbolismo atrelado às negociações políticas e


econômicas na criação inédita de uma autonomia relacional no Cone Sul (SPEKTOR, 2014), Oliveira
(2003) defende que a trajetória de participação dos parlamentares no processo de negociação do
MERCOSUL pode ser caracterizada pela baixa participação institucionalizada em função da estrutura
do processo de negociação, o que porventura acaba por enfatizar uma conjuntura entre os atores
governamentais de baixa a legitimidade na formação do bloco. Ao contrário dessa perspectiva,
Neves (2013) argumenta que, apesar de ser recorrentemente observada de modo sublime, a
participação dos parlamentares nas negociações do MERCOSUL se deu de maneira eficiente. Neste
ínterim, o autor argumenta que “o comportamento do Poder Legislativo no processo decisório da
política externa de cooperação Regional é função da convergência ou da divergência de interesse
entre os poderes legislativo e executivo” (NEVES, 2013, p. 105).
A partir desta trajetória, a seção seguinte tratará por explorar os posicionamentos dos
atores parlamentares no processo de aprovação do Tratado constituinte do MERCOSUL, no
sentido de evidenciar as preferências, percepções e atribuições do Congresso Nacional no
processo de integração econômica regional no Cone Sul.

Discursos post facto dos parlamentares brasileiros relativos à criação do MERCOSUL

Após a assinatura do Tratado de Assunção, o inteiro teor do acordo, juntamente com a


carta de exposições de motivos do chanceler Francisco Rezek, foi enviado pelo Poder Executivo
ao Legislativo como mensagem de número 137, em 14 de abril de 1991. Neste sentido, após a
leitura em plenária, a proposição sujeita à apreciação do Congresso Nacional foi despachada
pela mesa diretora da Câmara dos Deputados para as Comissões de Relações Exteriores (CRE),
Comissão Especial de Indústria e Comércio (CEIC) e Comissão de Cidadania, Constituição e
Justiça (CCJC).
Do período que compreende a sua leitura inicial no plenário da Câmara, em 15 de abril
de 1991, até a aprovação da redação final na plenária do Senado, em 20 de novembro de 1991,
as discussões, declarações e instrumentos institucionais referentes ao Tratado constituinte do
MERCOSUL se dispuseram de uma gama complexa de assuntos inerentes ao escopo da política
externa econômica do Brasil. Estes, por sua vez, compreenderam desde os efeitos econômicos,
sociais e políticos da formação do bloco até os resultados que este poderia desencadear sobre
a inserção internacional brasileira extra e intrarregional. Desta maneira, a presente seção tratará
de analisar as percepções dos parlamentares brasileiros no recorte temporal supracitado sob
o objetivo de evidenciar as idiossincrasias presentes nos comportamentos institucionais que
integram atividade legislativa na agenda de política externa.

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Neste sentido, o gráfico a seguir apresenta a distribuição do número de referências entre
os discursos dos parlamentares brasileiros sobre a criação do MERCOSUL:

Gráfico 3.1 – Atribuições positivas e negativas nos discursos parlamentares por número
total de referências de codificação

Avaliação
Positiva 71

Avaliação
Negativa 27

0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12, com base nos dados do Diário do Congresso
Nacional (1991).

Decerto, no cerne dos 45 discursos proferidas no Câmara e no Senado, diferente do


que comumente assumido, a formação do Tratado de Assunção não simbolizou um consenso
imediato, uma vez que dos 98 declarações dos parlamentares brasileiros, 27 asseveraram os
efeitos adversos e nocivos da integração econômica regional no Cone Sul, enquanto 71 das
declarações dos parlamentares frisaram os benefícios que os efeitos da criação do MERCOSUL

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


poderia prover para o Brasil tanto na esfera econômica de vantagens para os atores domésticos
quanto na seara da inserção internacional brasileira.
O Gráfico 3.2 apresenta a hierarquia entre os assuntos associados aos efeitos negativos da
formação do MERCOSUL:

Gráfico 3.2 – Hierarquia de codificação das atribuições negativas por percentual de


referências de codificação
Aumento da
concorrência 42,50%
Condições desleais
de produção 17,50%
Custos e exigên- 15,00%
cias técnicas
Desestímulo 12,50%
produtivo
Êxodo rural 5,00%
Instabilidade 2,50%
inflacionária
Ostracismo eco-
nômico e social 2,50%
Redução de 2,50%
investimentos
0 5 10 15 20 25 30 35 40 45 50

Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados
do Diário do Congresso Nacional (1991).
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Conforme apresentado no gráfico acima, pode ser observada a percepção da ameaça da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

concorrência desleal como predominante fator negativo na proposta de criação do MERCOSUL.


Nesta percepção, a integração econômica regional desencadearia efeitos adversos principalmente
aos setores agrícola e pecuário na região sul, justamente por razões que envolvem desde a
tributação, políticas de insumo e fatores naturais que condicionam um grau mais elevado
competitividade as commodities da Argentina e Uruguai, o que levaria a feitos como declínio na
produtividade aliado ao êxodo rural nas regiões mais próximas a tríplice fronteira. Neste sentido,
a criação do MERCOSUL foi vista como uma preocupação latente na condição dos produtores
agropecuaristas que a abertura comercial passaria a requerer da ação governamental a
implementação de uma série de políticas. Dentre estas destacam-se a garantia de financiamento
à produção agrícola e políticas para a difusão técnica e tecnológica de modo que o nível de
produtividade agrícola pudesse ser alcançado ao ritmo da produtividade argentina.
Diferentemente do setor industrial, os setores agrícola e pecuário dependiam de um
tratamento especial, uma vez considerados por parte dos parlamentares como setores
descapitalizados e sujeitos às intempéries e imprevisões, tais como clima e pestes. Além disso,
para os produtores do sul, o MERCOSUL desencadearia um grande impacto para a produção
local em virtude do conjunto de vantagens, desde fatores naturais até políticas agrícolas, que
conferiam à produção argentina e uruguaia uma competitividade evidentemente assimétrica,
principalmente no que se refere à produção de grãos, frutas, produtos lácteos e vinhos6.
Ademais, nota-se também a atribuição do parlamentar da região norte contrária à
formação do MERCOSUL, isto porque a criação do bloco se caracterizava enquanto nociva
para o polo industrial do norte do país7. Logo, concebe-se mediante a percepção deste que
a abertura econômica propicia um movimento ao acesso de produtos industrializados dos
países vizinhos no Cone Sul cujos em alguns determinados setores, como o de produção de
eletrônicos, mostravam-se mais competitivos em comparação à tardia industrialização na região
norte do país. Baseado nesta visão, destaca-se a ideia de que a integração econômica regional
a ser adotada pela política externa brasileira deveria estar direcionada à sub-região da bacia
amazônica por meio da criação do MERCONORTE, haja visto que a liberalização comercial entre
os Estados com menor grau de desenvolvimento industrial daquela região ofereceria melhores
condições para o movimento de industrialização do polo de Manaus.
Acrescente-se, ainda, que, para os parlamentares das legendas partidárias associadas
à causa trabalhista, a criação do MERCOSUL foi recorrentemente percebida como um projeto
aliado ao imperialismo norte-americano em virtude da não-restrição de multinacionais nos
países do Cone Sul. Desta maneira, pôde-se conferir a tônica de que a frente sindical e trabalhista
brasileira deveria empenhar-se na luta contra a consolidação do bloco8.
Por outro lado, é necessário considerar a leitura do senador Eduardo Suplicy (PT -SP), em
que, diferentemente de outros processos de integração regional, a formação do Mercado Comum
do Sul ainda não se mostrava próxima à concepção da integração para aqueles que trabalham
e geram riqueza. Neste ínterim, seria necessário que os interesses das firmas instaladas no Brasil
não fossem sobrepostos às grandes corporações. Além disso, seria necessário prover a defesa
da condição dos trabalhadores em detrimento da predominante lógica neoclássica do presente
bloco econômico em formação, simbolizando assim a intenção de reformular ou minimizar os
efeitos adversos da integração econômica regional via a mobilização organizada das classes
trabalhadoras e do papel dos sindicatos.

6 Nesta via de percepção, encontram-se declarações dos deputados, Adylson Motta (PDS-RS), Dejandir Dalpasquale
(PMDB-SC), Dércio Knop (PDT-SC), Luiz Carlos Hauly (PMDB-PR), Paulo Duarte (PFL-SC).
7 Neste ponto destacam-se os pronunciamentos do senador José Dutra (PMDB-AM).
8 A exemplo dos posicionamentos do deputado Chico Vigilante (PT-DF)

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Ademais, é possível notar que embora pouco associada à visão negativa acerca da criação
do MERCOSUL, concebeu-se a ideia entre os atores parlamentares que a liberalização comercial
no Cone Sul representaria um obstáculo para a implementação das medidas de estabilização
inflacionária, bem como também para políticas de captação de investimentos internacionais
e inserção econômica do Brasil, tendo em vista que a decisão de criação do MERCOSUL
representaria uma estratégia alternativa de adesão condicionada das recomendações das
instituições financeiras internacionais sobre reformas estruturais.
Já a respeito das atribuições positivas, o gráfico 3 apresenta a hierarquia dos fundamentos
presentes nos discursos dos parlamentares brasileiros ao longo do processo de criação do MERCOSUL:

Gráfico 3.3 – Hierarquia de codificação das atribuições positivas percentual de referências
Inserção interna-
cional do Brasil 18,60%
Estreitamento de
laços no Cone Sul 10,80%
Aumento de 6,90%
investimentos
Desenvolvimento 6,90%
tecnológico
Identidade comum 5,90%
Produtividade 5,90%
dinâmica
Combate à inflação 4,90%
Eliminação de
barreiras comerciais 4,90%
Fim de hostilidades 4,90%
na região
Liberalização da 4,90%

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


matriz econômica
Livre-circulação 4,90%
de fatores
Acesso a mercados 3,90%
Coordenação regional de 3,90%
políticas macroeconômicas
Redução de custos 3,90%
de produção
Superação de assimetrias 2,90%
Desenvolvimento
infraestrutural 2,90%
Aprimoramento 1,00%
de competitividade
Aumento do turismo 1,00%
Autossuficiência
energética 1,00%

0 5 10 15 20

Fonte: Elaboração própria com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).

Considerando tais informações, a percepção positiva por parte dos parlamentares brasileiros
esteve majoritariamente associada à visão do MERCOSUL como instrumento crucial para a inserção
internacional brasileira, no sentido que reforça o seu papel na liderança regional e permite um peso
de barganha maior num escopo de negociações mais amplo9. Deste modo, a integração foi vista
como um processo que unificaria e aproxima os Estados do Cone Sul num sentido mais estrito de
coletividade, considerando-a, pois, a via compulsória aliada à conquista da estabilidade econômica

9 Neste ínterim discursivo, destacam-se as declarações do senador Fernando Henrique Cardoso (PSDB-SP)
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e do desenvolvimento socioeconômico pelos países da região. Esses aspectos também estiveram
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

associados à percepção de saudosismo da integração latino-americana, ou seja, do MERCOSUL


enquanto reafirmação do princípio constitucional de fomento à integração latino-americana pela
política externa brasileira. Logo, a criação do MERCOSUL simbolizaria o rompimento do isolamento
do Brasil na região, que através do estreitamento dos laços econômicas-comerciais, promoveria
melhores condições de acesso a bens e serviços às populações dos Estados Cone Sulinos10.
A visão positiva de criação do bloco esteve associada à percepção dos parlamentares
sobre a relação entre democracia e integração econômica regional. Isto pôde ser traduzido no
imaginário em que os integrantes do bloco, fundamentados no Estado de Direito, prezariam,
através do MERCOSUL, pela garantia da estabilidade e do crescimento econômico, sobretudo
o caso do Paraguai. Estes aspectos também se relacionaram à ênfase dos parlamentares
favoráveis à criação do bloco ao anseio de instâncias da sociedade civil em prol dos benefícios
da liberalização comercial. Isto é, a ideia de que o Tratado fundador do MERCOSUL figurava
o processo em que a aproximação do Brasil aos vizinhos do Cone Sul é correlata à trajetória
conjunta de aprimoramento das instituições democráticas, correlacionando assim a assinatura
do Tratado de Assunção ao processo de fortalecimento das democracias na América do Sul.
Já a questão do desenvolvimento tecnológica esteve sujeita a visão positiva de que, numa
conjuntura em que as condições de financiamento da balança de pagamentos dos países
subdesenvolvidos se acirram gradativamente, a integração seria uma estratégia em que os
países do Cone Sul poderiam conceber maiores possibilidades de transferência tecnológica
vertical 11. Além disso, a atribuição positiva dos parlamentares destacou o fato de que a
estabilidade econômica e medidas estruturais se aplicariam e se ajustariam de modo a fomentar
a integração. No sentido de que, ao ser iniciada de fato, os impactos negativamente irrisórios
da liberalização econômica não poderiam alterar ou reverter a tendência da integração e os
inúmeros benefícios, tais como o aumento do turismo, do comércio intrarregional, aumento da
captação de investimentos, aumento da produtividade, desenvolvimento tecnológico.
A percepção favorável ao MERCOSUL também vislumbrou a formação do Tratado como
um potencial instrumento de capitalização de investimentos por meio da iniciativa para as
Américas através do Rose Garden Agreement, dos EUA. Neste sentido, esta leitura esteve a
par das possibilidades de investimento dos EUA para os países-membros na conformação de
requisitos fundamentais para o MERCOSUL. Consequentemente, pode-se observar a expectativa
de evolução das negociações para a formação do Tratado de Livre Comércio MERCOSUL-EUA.
Um outro aspecto a ser levado em consideração é a visão da criação do MERCOSUL como
um marco positivo para a integração na região por vezes orientada nos resultados dos outros
processos de integração paralelos àquele período, sobretudo os exemplos do Acordo de Livre-
Comércio da América do Norte (NAFTA), da liberalização comercial entre as economias do sudeste
asiático e o Mercado Comum Europeu (MCE). Somando-se a isto, é possível observar que a visão
positiva da criação do MERCOSUL esteve ligada à narrativa deste como um estágio evolutivo da
ALADI e da ALALC em razão de seu caráter pragmático e temporalmente coordenado de etapas
para sua consolidação. Considerando, portanto, que o processo de consolidação do bloco
aumentaria a possibilidade de captação de recursos financeiros internacionais e, principalmente,
o acesso a mercados internacionais dos países do centro capitalista global.
Ademais, dentro deste nicho idiossincrático, o MERCOSUL representaria uma oportunidade
para o estreitamento de laços e superação do histórico de contingentes no entorno sub-regional,
orientando-se à inserção do bloco no sistema econômico internacional em transformação. Assim, no

10 Destacam-se nesta perspectiva os parlamentares Oswaldo Stecca (PSDB-SP), Divaldo Suruagy (PFL-AL) e Paes
Landim (PFL-PI).
11 Tomando como exemplo as declarações do senador Dirceu Carneiro (PSDB/SC).

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sentido da estratégia de autonomia relacional, destaca-se o fato do MERCOSUL ser um instrumento
de contraposição à ampliação comercial dos EUA e dos tigres asiáticos. Neste sentido, a formação do
MERCOSUL na integração sul-americana poderia ser considerada um artifício orientado à superação
das assimetrias nas relações norte-sul e, simultaneamente a isto, um estágio perpendicular da
integração latino-americana caracterizada pelo bom relacionamento político entre as instâncias
parlamentares nacionais e ascensão de uma identidade comum entre os países do Cone Sul.
O gráfico a seguir apresenta a comparação total entre as atribuições negativas e positivas
dos parlamentares brasileiros por estado e partido político, respectivamente:

Gráfico 3.4 – Total de declarações dos parlamentares por Unidade Federativa (UF)
20

15

10

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


AL AM CE DF GO MA MG PE PR RR RS SC SE SP
Av. positiva 2 1 4 1 1 5 8 13 0 3 14 4 1 13

Av. negativa 0 1 0 5 1 0 1 0 5 1 3 14 0 1

Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).

Gráfico 3.5 – Total de declarações dos parlamentares por legendas partidárias

Positiva Negativa 0 5 10 15 20

0 1 PDC

7 0 PDS

0 1 PDT

18 4 PFL

25 13 PMDB

1 0 PRN

8 1 PSDB

5 6 PT

2 0 PTB

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Com base nas informações acima apresentadas, a percepção negativa acerca da criação do
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Mercosul se fez presente nos discursos de dois perfis de parlamentares brasileiros. O primeiro
perfil se refere ao grupo de parlamentares vinculados a partidos próximos à questão dos direitos
trabalhistas e à causa sindical (PDT e PT), nos estados que concentram uma parcela expressiva
de trabalhadores urbanos, sobretudo do estado de São Paulo e do Distrito Federal. Já o segundo
perfil diz respeito aos parlamentares associados à defesa da produção agropecuária nos estados
da região sul. A respeito desta categoria, destaca-se a indicação intitulado “posicionamento dos
parlamentares da região sul frente às negociações agrícolas do MERCOSUL”, a qual requereu
condições preliminares ao Poder Executivo:

Visando a evitar graves prejuízos na área agrícola da região Sul do País, com
sérios reflexos sobre a estabilidade econômica e social de nossa região,
solicitamos que o Subgrupo B do Mercosul, antes de suas negociações
com os demais países participantes, discutam com os setores produtivos
interessados, evitando assim desajustes que toda a integração em maior ou
menor escala possa provocar (CONGRESSO NACIONAL, 1991, p. 8017).

Neste sentido, as figuras a seguir esboçam a frequência de aparição no corpus dos


pronunciamentos dos parlamentares parlamentares brasileiros a respeito da formação do bloco:

Figuras 3.1 e 3.2 – Nuvens de palavras derivadas nas codificações de atribuições negativa
(esquerda) e positiva (direita)

Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso
Nacional (1991).

Ao considerar os referidos aspectos, é possível identificar que as declarações parlamentares


de atribuição negativa sobre o MERCOSUL estiveram predominantemente associadas à
perspectiva protecionista com vistas a defesa de áreas sensíveis da economia brasileira. Esta
leitura pôde ser desenvolvida em virtude dos efeitos adversos que a integração econômica
regional poderia desencadear para os setores por vezes desprovidos de políticas de incentivo à
produtividade pelos governos locais, como os setores agrícola e pecuária.
Além disso, a visão negativa da parcela de parlamentares no processo de aprovação
do Tratado de Assunção (1991) também se caracterizou pela preocupação com a condição
dos trabalhadores brasileiros, haja vista a percepção de que o crescente movimento de

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desindustrialização e de liberalização da matriz econômica poderia intensificar ainda mais
vulnerabilidade socioeconômica da classe trabalhadora. Ademais, o elemento regionalista
esteve também presente na interpretação dos parlamentares que concebiam com preocupação
a formação do bloco econômico, dado que a abertura comercial significava uma ameaça para a
condição dos produtos industriais da Zona Franca de Manaus, quanto para os produtos de baixo
valor agregado do empresariado agropecuário sulista. Desta forma, a figura a seguir apresenta
a análise cluster do grau de similaridade das palavras codificadas sob a perspectiva binomial de
atribuições positivas e negativas relativas à formação do MERCOSUL.

Figura 3.3 – Unidades Federativas em cluster por similaridade de codificação


MA
AL

DF
GO
SE
PE

RR

MG

SP

PR

Integração econômica regional e o Congresso Nacional


ES

RS
CE

PI

AM

SC
Fonte: Elaboração própria através do software NVivo 12 com base nos dados do Diário do Congresso Nacional (1991).

Diferentemente desta perspectiva, os parlamentares que atribuíram positivamente


o processo de criação do MERCOSUL se fundamentaram na visão deste como um estágio
avançado da trajetória da integração latino-americana na agenda da política externa brasileira.
Assim, a fundação do bloco foi vista como um advento capaz de realizar anseios antigos, tais
como o acesso a novos mercados consumidores, a ampliação do bem-estar nacional via o
acesso de produtos importados, a livre mobilidade de bens, serviços e fatores de produção,
e a coordenação de políticas setoriais na indústria, comércio e agricultura. Neste ínterim, a
ampliação das relações econômico-comerciais do Brasil estaria correlacionada a uma nova
etapa em sua inserção internacional sob a concepção de que, diferentemente dos principais
processos de integração econômica regional, o MERCOSUL emergia a partir da condição de
economias fragilizadas em busca de um novo espaço na ordem econômica internacional em
transformação.
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Considerações finais
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Decerto, é possível observar que a assinatura do Tratado de Assunção (1991) se insere


dentro da narrativa de “latino-americanização” da política externa brasileira, evidenciando assim
o estágio de criação de uma identidade coletiva no escopo sul-americano que foi impulsionado
pelo anseio de superação de problemas econômicos comuns aos países cones sulinos, assim
como pela busca de um novo modelo de inserção na nova ordem econômica internacional.
Desta forma, a instrumentalização da integração econômica regional na agenda da política
externa brasileira no pós-redemocratização esteve próxima a um movimento de pluralização do
processo decisório. No caso do Poder Legislativo, mesmo que limitado ao papel a posteriori na
aprovação dos acordos celebrados pelo Poder Executivo, os primeiros anos após a constituição
cidadã foram caracterizados por uma conjuntura de multiplicidade de perfis comportamentais
em relação aos cursos de ação e decisões conferidas pelos negociadores externos.
Neste sentido, com vistas aos resultados obtidos, os discursos dos parlamentares
brasileiros nas instâncias do Congresso Nacional após assinatura do Tratado de Assunção se
diferem da leitura lançada por Neves (2013, p. 106) de que havia, de modo definitivo e coeso,
um “consenso entre os dois poderes”, onde “o aparente distanciamento (ou pouca participação
institucionalizada) dos parlamentares das negociações do bloco econômico era, portanto,
consequência natural dessa convergência”. Neste sentido, desconsiderando a questão da
eficiência ou não da participação do legislativo a nível extra-discursivo e condicionando-a
como variável de dependente distinta da analisada, verifica-se que a atividade legislativa a nível
de discursos e pronunciamentos nas instâncias do Congresso Nacional não se deu de forma
consensual conforme prescrito na literatura.
Consequentemente, a participação institucionalizada a nível de declarações de expoentes
político-partidários e regionais, a exemplo da frente de parlamentares do sul acerca das
negociações agrícolas no MERCOSUL, atestam que o particular caso da criação do bloco não se
insere no recorte comportamental abdicatório do congresso nacional em política de comércio
exterior. Evidentemente, é possível ainda observar que a questão das idiossincrasias Congresso
Nacional no contexto da integração econômica sul-americana, embora simplificada ao escopo
analítico de codificação por atribuição binária, reflete também a complexidade das características
dos atores parlamentares como um sujeito heterogêneo e descentralizado, haja visto que a
discordância sobre efeitos pontuais da formação do bloco, como a vulneração da luta sindical e a
concorrência no setor agrícola, não significaram automaticamente na invalidação de fenômenos
considerados positivos, tais como a ampliação das exportações de manufaturas brasileiras e o
acesso a novos mercados fornecedores de insumos para produção industrial.
Por fim, o capítulo reitera a importância de se investigar os posicionamentos e
particularidades do Congresso Nacional em assuntos de política externa. Dado que, conforme
apresentado, a condição post facto do Poder Legislativo brasileiro acaba por suscitar leituras
estigmatizadas e incapazes de findar comprovações acerca da totalidade das relações entre os
atores governamentais em torno dos processos de formulação, implementação e avaliação das
decisões em política externa.

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CAPÍTULO 4

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA


AMÉRICA DO SUL

Leandro Gavião

O MERCOSUL para nós é um destino, enquanto que a ALCA é apenas uma


opção, à qual vamos aderir apenas em condições favoráveis.
— Fernando Henrique Cardoso (2001)

É esta ideia-força que está na base de uma importante iniciativa diplomática do


presidente Fernando Henrique Cardoso. Refiro-me à inédita e inovadora Reunião
de Presidentes da América do Sul, realizada em Brasília nos dias 30 de agosto e 1º
de setembro de 2000. O objetivo da reunião foi o de aprofundar a cooperação já
existente em nosso espaço comum, convertendo tal espaço num projeto.
— Celso Lafer (2004)

Introdução

A ideia de América do Sul e a restrição geográfica do conceito de vizinhança remontam à


chancelaria do Barão do Rio Branco. Contudo, sua operacionalização institucional — no sentido
de resultar em iniciativas concretas de integração regional — teria que esperar até a década de
1990. Nesse contexto, foi fundamental o esforço bilateral entre Brasília e Buenos Aires (CERVO,
2008, p. 212), cujo resultado prático é o MERCOSUL, um dos embriões dessa narrativa identitária
de apelo sul-americano. Essa nova identidade resulta dos esforços brasileiros para criar iniciativas
regionais de integração e cooperação, uma vez que a ideia mais abrangente da integração latino-
americana se encontrava, naquele momento, em compasso de espera.
Desde a redemocratização, sucessivos governos investiram na transformação da América do
Sul em um espaço privilegiado para os esforços de integração, cooperação e desenvolvimento.
Entretanto, a primeira menção a uma identidade comum sul-americana só ocorreu a partir do
Comunicado de Brasília, documento gerado após a I Reunião de Presidentes da América do Sul1,
encontro que acabou se tornando uma espécie de marco fundador da região2.
Em termos de identidade comum entre Estados, o capítulo tem como referência os principais
condicionantes do processo de surgimento e consolidação das denominadas identidades
supranacionais, a saber: “(i) situação geográfica; (ii) alteridade; (iii) legado histórico-cultural; (iv)
posição dos Estados no sistema internacional; (v) paridade institucional doméstica; e (vi) perspectiva
coletiva de ganhos” (GAVIÃO, 2015, p.108).
Sendo assim, este capítulo analisa a trajetória da ideia de América do Sul a partir das
iniciativas colocadas em prática durante a era Fernando Henrique Cardoso, momento em que
a região ganhou maior relevância em termos diplomáticos e, parafraseando o Ministro das
Relações Exteriores Celso Lafer3, o que era apenas um espaço foi convertido em um projeto.

1 Dessa reunião participaram todos os doze países sul-americanos independentes, a saber: Argentina, Bolívia, Brasil,
Chile, Colômbia, Equador, Guiana, Paraguai, Peru, Suriname, Uruguai e Venezuela.
2 A I Reunião logra êxito em parte substancial das diretrizes propostas, mormente no que tange à preocupação com
o início da integração física e com a necessidade de tornar os encontros de Chefes de Estado um recurso regular nas
relações sul-americanas.
3 Lafer ocupou a chancelaria entre 2001 e 2002.
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A política externa de Fernando Henrique Cardoso e as bases da identidade sul-americana
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Segundo Vigevani, Oliveira e Cintra (2003, p. 32), a era Cardoso baliza a consolidação de
um novo paradigma da política externa brasileira: a autonomia pela participação4. Rompendo
em definitivo com a lógica de atuação pautada na autonomia pela distância5, o novo governo
percebeu que as circunstâncias apresentadas pela nova ordem mundial pós-bipolar impeliam o
país a redefinir sua inserção internacional, abandonando posicionamentos alicerçados na ideia
equivocada de autossuficiência.
A autonomia pela participação conciliava a adesão às normas e aos regimes internacionais com
a preservação de espaços de soberania. No âmbito regional, manteve-se a lógica de evitar a partilha
de soberania em arranjos de integração, o que poderia constranger sua liberdade de projeção
no tabuleiro externo. Tal opção revelou seus resultados tanto no entorno sul-americano como no
MERCOSUL, provavelmente a organização mais sensível aos efeitos dessa lógica de atuação.
O chanceler Luiz Felipe Lampreia — que denominou o mesmo paradigma de autonomia
pela integração - ao comentar sobre a concepção de uma hipotética autoridade supranacional
no âmbito do MERCOSUL, ponderou que “o Brasil não tem razão nenhuma para abrir mão da
sua soberania” (LAMPREIA, 1999, p. 304). Para além das especificidades do novo paradigma, essa
posição apenas ratificou a histórica resistência aos arranjos cujos objetivos indicassem algum
grau de supranacionalidade. O enraizamento do princípio da autonomia evidencia-se, dessa
forma, nas preferências delineadas pela estrutura dos projetos de matiz intergovernamental dos
quais o Brasil participava. Não causa espanto que esse perfil seja ainda mais evidente quando se
toca no tema da integração regional (VIGEVANI et al., 2008, p. 16).
Em face das dificuldades para realizar o aprofundamento institucional do MERCOSUL
— haja vista que a desvalorização abrupta do real, em 1999, provocou impactos severos na
economia argentina, que por sua vez retaliou o Brasil com tarifas alfandegárias —, o governo
Cardoso acelerou outras iniciativas regionais, dessa vez com o conjunto da vizinhança sul-
americana, destacando-se a I Reunião de Presidentes da América do Sul (SARAIVA, 2014, p. 65).
Com efeito, houve uma mudança de rumos em direção a uma opção de natureza quantitativa
– o regionalismo ampliado – em detrimento da aplicação de capital político em um MERCOSUL
que se encontrava em plena crise (MELLO, 2000, p. 17-18).
Entretanto, a aproximação com os países vizinhos esbarrou numa série de dificuldades.
Além do exíguo crescimento econômico da América do Sul durante a década de 1990, somava-se
a instabilidade política de alguns países, mormente o Paraguai6 e alguns países da Comunidade
Andina (CAN) – não obstante as energias canalizadas para criação de altas instituições formais
nos marcos do bloco7. Na avaliação de Andrés Malamud, a CAN
Apesar de funcionar como uma área de livre comércio desde 1993 - primeiro
entre Bolívia, Colômbia, Equador e Venezuela e, mais tarde, também

4 Seguindo uma lente interpretativa distinta, Amado Luiz Cervo afirma que a era Cardoso “oferece, com efeito, o
espetáculo da dança dos paradigmas: o desenvolvimentista que ele se compraz em ferir gravemente sem matar,
o normal [neoliberal] que emerge de forma prevalecente e o logístico que ensaia como outra via. (...) A ideologia
subjacente ao paradigma do Estado logístico associa um elemento externo, o liberalismo, a outro interno, o
desenvolvimentismo” (CERVO, 2008, pp. 82-85).
5 Para maiores informações sobre o conceito de autonomia na política externa brasileira, ver Vigevani e Cepaluni (2009).
6 No início de 1998, pairava um clima de crise institucional no Paraguai, com graves suspeitas de uma possível
anulação das eleições presidenciais agendadas para maio daquele ano. Um golpe de Estado poderia colocar em
xeque a credibilidade do Mercosul e acarretar a expulsão daquele país do bloco. Nesse contexto, o papel do eixo
Brasília-Buenos Aires foi essencial para evitar a quebra da legalidade democrática (ALMEIDA, 2009, p. 40).
7 “Atualmente, o princípio legal de efeito direto e a supremacia do direito comunitário, fazem da Comunidade
Andina a segunda região do mundo no que tange ao seu nível formal de institucionalização, somente atrás da União
Europeia” (MALAMUD, 2010, p. 12).

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com Peru - e de ter uma tarifa externa comum desde fevereiro de 1995, a
característica da região não tem sido o desenvolvimento, mas a revolta
social, a instabilidade política e o fracasso econômico. (...) os países andinos
não lograram consolidar uma zona de paz, estabilidade e crescimento
(MALAMUD, 2010, p. 12).

Em 1995, motivados por disputas fronteiriças, Equador e Peru deram início a um conflito
armado (MALAMUD, 2012, p. 12). Menos de um mês após o início das hostilidades, o Brasil
assumiu o papel de mediador e iniciaram-se as conversações de paz. Fernando Henrique Cardoso
engajou-se pessoalmente na busca de um desenlace para o cenário de guerra provocado pelos
dois países sul-americanos. Consolidado o cessar-fogo sem a necessidade de uma solução
extrarregional através da OEA, Cardoso pôde celebrar o episódio como uma “vitória para o
continente”8. O Chefe do Estado-Maior Conjunto dos Estados Unidos, general John Shalikashvili,
referendou o “papel de liderança”9 do Brasil frente ao episódio10. Emblemático, o Acordo Global
Definitivo da Paz foi assinado três anos depois, em Brasília, resultando no Tratado de Comércio e
Navegação e no Acordo Amplo de Integração Fronteiriça.
Sem a conversão da América do Sul em uma zona democrática, estável e de paz, seria
impossível fomentar a abertura de novos canais regionais de diálogo e impulsionar os anseios
integracionistas presentes na agenda brasileira. Em 1998, a proposta da ALCSA, que não havia

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


avançado no governo de Itamar Franco, foi simbolicamente redesenhada com a assinatura
de um acordo-quadro destinado a estabelecer preferências tarifárias entre o MERCOSUL e a
Comunidade Andina (BECARD, 2009, p. 100).
Em 2000, sob os auspícios do então presidente Fernando Henrique Cardoso e seu chanceler
Luiz Felipe Lampreia, convocou-se em Brasília a I Reunião de Presidentes da América do Sul,
na qual seus respectivos chefes de Estado debateram temas então considerados de primeira
importância para garantir o desenvolvimento e a segurança na região. É crucial ressaltar o
caráter pioneiro da proposta, haja vista que até aquele momento, todas as cúpulas americanas
convergiam para um perfil ora pan-americanista, ora latino-americanista. Daí o ineditismo da
proposta de Cardoso e Lampreia, que também começava a acenar para uma nova proposta de
identidade supranacional. Todos os doze chefes de Estado compareceram à reunião11.
Sem propostas precisas para a criação de instituições formais, o encontro possuía uma
estrutura mais flexível, centrando-se nas possibilidades de cooperação regional a partir de
reuniões regulares sujeitas a um determinado conjunto de regras e ao estabelecimento de um
padrão de valores institucionais a serem seguidos pelos Estados sul-americanos.
O Comunicado de Brasília, texto derivado do intercâmbio de ideias registradas ao longo
daquele encontro de presidentes, é a fonte primária por excelência para entender o lugar da
América do Sul na diplomacia brasileira durante o segundo governo de Fernando Henrique
Cardoso. Foi a primeira vez que a identidade sul-americana apareceu em um documento oficial
reconhecido pelos doze países da região. Analisando-se a forma como o documento foi redigido,
nota-se como o fomento de uma identidade supranacional aparecia como uma necessidade, para
além da cooperação multissetorial. A identidade sul-americana deveria operar como mecanismo

8 Cf. Fernando Henrique Cardoso celebra vitória para o continente. O Globo, Rio de Janeiro, 18 fev. 1995. O Mundo, p.22.
9 Leadership role, no original.
10 Cf. Brasil-Estados Unidos. Visita do General Shalikashvili. Entrevista com o Senhor Presidente da República. 11
mar. 1995, n. 391.
11 Além do anfitrião Fernando Henrique Cardoso, participaram os presidentes da Argentina, Fernando De la Rúa; da
Bolívia, Hugo Bánzer Suárez; do Chile, Ricardo Lagos Escobar; da Colômbia, Andrés Pastrana Arango; do Equador,
Gustavo Noboa; da Guiana, Bharrat Jagdeo; do Paraguai, Luís Ángel González Macchi; do Peru, Alberto Fujimori; do
Suriname, Runaldo Ronald Venetiaan; do Uruguai, Jorge Batlle Ibáñez; e da Venezuela, Hugo Chávez Frías.
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de articulação e aproximação entre os países sul-americanos, mas também como instrumento
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

na relação com terceiros Estados e organizações internacionais. O mais interessante é que a


identidade sul-americana deveria interagir com o impulso integracionista, que é justificado a
partir de quatro elementos fundamentais para a composição de uma identidade supranacional:
a proximidade geográfica, a afinidade de valores sócio-políticos, o legado histórico-cultural
comum e a expectativa de ganhos coletivos.

Sua realização resultou da convicção de que a contiguidade geográfica e


a comunidade de valores levam à necessidade de uma agenda comum de
oportunidades e desafios específicos (...)
A consolidação e a instrumentação da identidade sul-americana contribuirão,
assim, para o fortalecimento de outros organismos, mecanismos ou
processos regionais, com abrangência geográfica mais ampla, de que fazem
parte países da América do Sul. (...) A identidade sul-americana, que se
consolida em países que dividem uma mesma vizinhança imediata, reforça
e complementa os laços bilaterais e multilaterais com as outras nações da
América Latina e Caribe, do continente e do mundo. (...)
Os Chefes de Estado observaram que o impulso da integração
transfronteiriça se fortalece porque decorre, entre outros fatores, da
proximidade geográfica, da identidade cultural e da consolidação de
valores comuns. As fronteiras sul-americanas devem deixar de constituir
um elemento de isolamento e separação para tornar-se um elo de ligação
para a circulação de bens e pessoas, conformando-se assim um espaço
privilegiado de cooperação (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

O Preâmbulo do texto também faz referência aos compromissos comuns considerados


irrenunciáveis: “democracia, paz, cooperação solidária, integração e desenvolvimento econômico
e social compartilhado” (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

Comunidade de Valores: Estabilidade, Segurança, Democracia e Direitos Humanos



O compartilhamento de valores despontou como um dos elementos que formam a
base da identidade supranacional sul-americana. Com efeito, a manutenção de um ambiente
harmônico na região recebeu ênfase considerável nos parágrafos iniciais do Comunicado de
Brasília. A proximidade cronológica com os eventos de hostilidade entre o Equador e o Peru
contribuiu para realçar o tema da segurança, tendo em vista que o episódio de suplantação das
disputas entre os dois países é citado, no 4º parágrafo do texto, como exemplo do espírito de
entendimento presente nas relações entre os Estados sul-americanos.

A paz e o ambiente de amizade e cooperação entre os doze países sul-


americanos são características que distinguem favoravelmente a região
no plano internacional. A superação definitiva de diferendos territoriais, a
exemplo do acordo de 1998 entre o Equador e o Peru, constitui demonstração
recente do espírito que prevalece na América do Sul, que tem feito e
fará dessa parte do mundo uma área de paz e cooperação, sem conflitos
territoriais (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

No mesmo sentido, busca-se consolidar aquilo que Karl Deutsch (1978) chamou de
“comunidade psicológica não belicista”, ao apresentar a América do Sul como uma zona de
paz onde predomina o diálogo e a concórdia, distinguindo-se sobremaneira de outras regiões
onde a “paz e o ambiente de amizade e cooperação” não existem na mesma proporção. Criou-

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se assim um ambiente que praticamente eliminou dos cálculos estratégicos a possibilidade de
conflitos interestatais.
Os instrumentos classificados como necessários para criação de uma Zona de Paz Sul-
Americana são quatro: (i) a integração; (ii) a solução pacífica e negociada de controvérsias; (iii)
a observância às normas pertinentes do Direito Internacional; (iv) o desarmamento e a não
proliferação de armas de destruição em massa. Alguns dos itens elencados acima coincidem
com princípios constitucionais brasileiros, como a renúncia às armas nucleares. Na dimensão
sul-americana, a defesa da não proliferação desponta como uma espécie de ratificação coletiva
do TNP, uma vez que, na ocasião do encontro, não havia nenhum país da região não signatário
do tratado e, portanto, disposto a investir em armamentos nucleares para incrementar seus
indicadores de hard power.
O compromisso com a democracia representativa também apresenta-se como um
requisito indispensável para a consolidação da paz regional e para a continuidade da integração.
De acordo com o 20º parágrafo do documento, a definição de democracia é alicerçada nos
seguintes componentes: “processos eleitorais livres, periódicos, transparentes, justos e
pluralistas, baseados no sufrágio secreto e universal” (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).
Após um período marcado pela superação de regimes autocráticos, as instituições democráticas
dos Estados sul-americanos foram alçadas à condição de fundamento de legitimidade dos
sistemas políticos. Nos parágrafos 20 e 21, a democracia é apresentada como o instrumento

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


basilar para a manutenção de relações interestatais saudáveis e estáveis, bem como a antessala
do desenvolvimento econômico-social.

20. A consolidação da democracia e da paz em toda a região está na raiz


da aproximação histórica entre os países da América do Sul (...). O amplo
intercâmbio de ideias registrado durante a Reunião de Brasília fortaleceu
o compromisso comum, irrenunciável, com a democracia, a paz e a
integração.
21. A democracia representativa é o fundamento de legitimidade dos
sistemas políticos e a condição indispensável para a paz, estabilidade e
desenvolvimento da região (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

O texto enfatiza que a ruptura da ordem democrática é uma ameaça ao ambiente


harmônico sul-americano. Para evitar retrocessos quanto a isso, é reafirmada a importância do
Protocolo de Ushuaia (1998) e do Compromisso Andino de Paz, Segurança e Cooperação12 como
garantias adicionais para a estabilidade político-institucional na América do Sul. Estados que
porventura viessem a violar as instituições democráticas seriam penalizados com a suspensão
das futuras reuniões de cúpula sul-americanas.

22. Os Chefes de Estado coincidiram em que a democracia na América do


Sul deve ser reforçada com a permanente promoção e defesa do estado de
direito (...)
23. Os Chefes de Estado sublinharam a importância do “compromisso
democrático” do Mercosul, Bolívia, e Chile, formalizado pelo Protocolo de
Ushuaia, de julho de 1998, e do Protocolo Adicional ao Acordo de Cartagena
sobre o “Compromisso da Comunidade Andina com a Democracia”. (...) a
manutenção do estado de direito e o pleno respeito ao regime democrático
em cada um dos doze países da região constituem um objetivo e um
compromisso comuns, tornando-se doravante condição para a participação
em futuros encontros sul-americanos (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000,

12 Contido na Declaração de Galápagos.


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ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Para além de uma concepção mais técnica, a democracia também deveria ser compreendida
em seu sentido expandido. Nesse sentido, o conceito de democracia, tal como verificado no
documento, faz menção não somente às instituições e às práticas que sustentam as garantias
do pleno exercício dos direitos políticos, mas sustenta igualmente a isonomia, o respeito aos
direitos civis e a defesa dos direitos humanos, bem como o combate às desigualdades sociais e
o enfrentamento às mazelas socioeconômicas estruturais dos países da região.

O papel da IIRSA na superação dos desafios geográficos

Reconhecendo que integração regional e desenvolvimento da infraestrutura física são duas


linhas de ação que se complementam, o Comunicado de Brasília havia anexado o Plano de Ação
para a Integração da Infraestrutura Regional na América do Sul.
O plano supracitado foi idealizado pelo governo de Fernando Henrique Cardoso. Sendo
assim, foram tomadas as precauções necessárias para que esse documento de apoio fosse
elaborado pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID) — com contribuições da
Corporação Andina de Fomento (CAF) — e apresentado antes da realização do encontro, de
modo a não ser recebido como uma imposição brasileira (QUINTANAR; LÓPEZ, 2003, p. 213). Em
seu 36º parágrafo, o Comunicado de Brasília já apresentava as justificativas para o projeto:

Os Chefes de Estado observaram que o impulso da integração


transfronteiriça se fortalece porque decorre, entre outros fatores, da
proximidade geográfica, da identidade cultural e da consolidação de
valores comuns. As fronteiras sul-americanas devem deixar de constituir
um elemento de isolamento e separação para tornar-se um elo de ligação
para a circulação de bens e pessoas, conformando-se assim um espaço
privilegiado de cooperação (COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

Na Declaração Final da reunião, os presidentes acordaram impulsionar o Plano de Ação,


endossado por meio de acordo durante a Reunião Ministerial de Montevidéu, em dezembro
daquele ano, quando passou a se chamar Iniciativa para a Integração da Infraestrutura
Regional Sul-Americana (IIRSA). Com um horizonte de dez anos, o texto apresentava propostas
e sugestões para ampliar e modernizar a infraestrutura regional, com ênfase nas áreas de
energia, transportes e comunicações.
A IIRSA representou o primeiro grande esforço prático para a superação das deficiências
no plano da infraestrutura e dos enormes desafios geográficos do subcontinente, equacionando
os meios para efetivar a construção de um espaço sul-americano verdadeiramente integrado e
otimizar a competitividade e o processo logístico geral. Conforme argumenta Celso Lafer:

[E]stes projetos de infraestrutura de integração são um inequívoco exemplo


do processo de transformação de fronteiras-separação em fronteiras-
cooperação, e poderão ter um efeito multiplicador sobre o desenvolvimento
e ampliar a integração econômica da região (LAFER, 2004, p. 57).

A IIRSA organizou a América do Sul em dez eixos de integração que englobam o conjunto
do subcontinente, cada qual classificado de acordo com as capacidades de exportação de cada
área. Estruturados a partir de redes de comércio e visando a apoiar o desenvolvimento das
cadeias produtivas, em alguns casos essas faixas multinacionais criavam interseções entre dois
ou mais eixos, conforme é possível identificar no Mapa 4.1, a seguir.

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Mapa 4.1 – Os dez eixos de integração da IIRSA

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


Fonte: Rodrigues (2012).

Em vigência até o presente, a IIRSA forneceu um modelo inovador no que tange à


edificação de uma visão compartilhada de infraestrutura. Ademais, a proposta estava alicerçada
numa arquitetura institucional flexível e nos esforços sinérgicos de três setores-chave:
comunicação, transportes e energia. Reuniam-se no Comitê de Coordenação Técnica: o BID, a
CAF e o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA). Esta tríplice
parceria de instituições financeiras forneceu parte do capital necessário para levar adiante
as orientações iniciais pretendidas pela IIRSA (RODRIGUES, 2012, p. 5). Além das instituições
financeiras multilaterais — que deveriam realizar empréstimos de longo prazo e com taxas de
juros vantajosas —, o Comunicado de Brasília defendia a participação dos governos e do setor
privado em um sistema de financiamento compartilhado.
Em termos geográficos, a América do Sul encontra-se bifurcada nas vertentes oceânicas do
Atlântico e do Pacífico, cortada em boa parte de sua faixa latitudinal pela cordilheira dos Andes,
com as densas florestas da Amazônia ocupando grande área em sua faixa setentrional e a Patagônia
com seus desertos de gelo no extremo Sul. Desde as primeiras propostas pan-americanas de Simón
Bolívar, essa configuração espacial-geológica sempre se colocou como um desafio, agindo como
uma espécie de força natural que, somada ao histórico de rivalidade colonial ibérica e a um comércio
exterior desde os tempos coloniais direcionado para os mercados centrais, impeliu os seus países
a se manterem relativamente desconectados entre si. Como diria José Ferreira Simões (2011), os
Estados permaneceram “de costas” uns para os outros. Ao enfrentar essa realidade e estimular a
integração transfronteiriça, a IIRSA figurou como o primeiro projeto relevante na busca da superação
de uma dificuldade perene da região. Tal como escrito no Comunicado de Brasília, a “integração e
desenvolvimento da infraestrutura física são duas linhas de ação que se complementam”13.

13 Cf. Parágrafo 37 do Comunicado de Brasília (2000).


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De acordo com Silvia Quintanar e Rodolfo López, os princípios norteadores de uma visão
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

estratégica da América do Sul, tal como estabelecidos na IIRSA, podem ser definidos da seguinte
maneira:

a) Coordenação público-privada: os desafios do desenvolvimento da região


englobam a necessidade de coordenação e liderança compartilhada entre os
governos (em seus distintos níveis) e o setor empresarial privado, dividindo
riscos e benefícios.
b) Regionalismo aberto e convergência normativa: a América do Sul é
concebida como um espaço geoeconômico plenamente integrado, para
o qual é preciso reduzir ao mínimo as barreiras internas ao comércio e os
gargalos na infraestrutura e nos sistemas de regulação e operacionalização.
c) Eixos de integração e desenvolvimento: o espaço sul-americano é
organizado em faixas multinacionais que concentram fluxos de comércio
atuais e potenciais, nas quais se busca estabelecer um padrão mínimo de
infraestrutura de transportes, energia e comunicações, a fim de promover
o desenvolvimento de negócios e apoiar cadeias produtivas com grandes
economias de escala ao longo desses eixos, seja para o consumo interno da
região, seja para a exportação aos mercados globais.
d) Sustentabilidade econômica, social e ambiental: o processo de
integração econômica do espaço sul-americano deve ter por objetivo um
desenvolvimento de qualidade superior, o que significa que os projetos
eleitos devem ser condicionados não somente pela eficiência econômica
e a competitividade nos processos produtivos, como também pela
sustentabilidade social e ambiental.
e) Aumento do valor agregado da produção: as economias devem orientar-se
para a conformação de cadeias produtivas em setores de alta competitividade
global, com base na geração de valor agregado nos recursos naturais.
f) Tecnologias de informação: o uso intensivo das mais modernas tecnologias
de informática e comunicações é parte integral das condições para um
desenvolvimento viável no âmbito da economia globalizada. Nesse sentido,
assegurar o acesso da população à Internet constitui-se em um elemento básico
para hierarquizar a qualidade dos recursos humanos e facilitar sua inserção nos
mercados de trabalho do futuro (QUINTANAR; LÓPEZ, 2003, p. 214).

Contudo, é importante lembrar que a IIRSA foi concebida sob os auspícios do regionalismo
aberto, em um período em que praticamente todos os governos sul-americanos flertavam
em alguma medida com os pontos defendidos pelo Consenso de Washington. Sendo assim,
reconhecia-se a necessidade de um novo ordenamento territorial que permitisse aos Estados
da região fazer uso de corredores de exportação, de modo a ampliar sua competitividade ao
reduzir o custo logístico, incrementando seus fluxos para o mercado global, valendo-se de suas
vantagens comparativas.
Esse modelo foi criticado por diversos autores alinhados com uma visão mais intervencionista,
dentre os quais Darc Costa e Raphael Padula. Na visão de seus críticos, a IIRSA nada mais fez do
que reproduzir o padrão histórico regional, acentuando a lógica “colonial” de convergência das
economias sul-americanas “para fora”, dependente da demanda dos países centrais e articulada
na especialização comercial baseada em commodities (PADULA, 2011, p. 175). De fato, nota-se
que todos os eixos de integração desembocam nos dois oceanos, deixando subentendida a visão
puramente geoeconômica da região, não obstante a retórica oficial.
Uma mudança relevante dos princípios orientadores do planejamento da infraestrutura
do subcontinente ocorreu somente na presidência de Lula da Silva, nos marcos da III Reunião
de Presidentes da América do Sul, em 2004, e, posteriormente, após a incorporação da IIRSA

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ao Conselho Sul-Americano de Infraestrutura e Planejamento da UNASUL (COSIPLAN). Até
então, os governos eximiam-se de intervir diretamente na elaboração e execução das obras de
integração da infraestrutura física, deixando o protagonismo nas mãos de bancos multilaterais.
Mesmo com essas mudanças, continuou-se a reconhecer a expertise da I’IRSA, razão pela qual
os governos buscaram operar de forma coordenada com a organização e aproveitando sua
arquitetura institucional. Inclusive, a relevância da IIRSA foi citada justamente na Declaração de
Cusco, documento firmado após o fim do encontro de presidentes de 2004, no Peru.

[As Repúblicas sul-americanas] Reafirmam seu pleno respaldo à Iniciativa


para a Integração da Infra-estrutura Regional Sul-Americana (IIRSA) e aos
avanços registrados nessa iniciativa, em especial no que se refere à “Agenda
de Implementação Consensuada 2005-2010” e à lista de projetos da IIRSA.
(DECLARAÇÃO DE CUSCO, 2004, sp.).

Na esfera comercial, as trocas com os países da região assinalaram um movimento


ascendente praticamente contínuo até fins da década de 1990. Uma fase de desaceleração
pode ser identificada em 1998 - justificada pelo contexto internacional de crise -, até sofrer uma
redução vertiginosa em 2002, resultado, este, em grande medida associado à desvalorização do
real em 1999 e à crise argentina de 2001, conforme a tabela a seguir.

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


Tabela 4.1 – Comércio brasileiro com a América do Sul: de Collor a Cardoso

Ano Exportações Part. na exp. Importações Saldo Volume total

1990 US$2,710 bi 8,63% US$3,384 bi US$-0,673 bi US$6,094 bi

1991 US$4,204 bi 13,30% US$3,465 bi US$0,739 bi US$7,669 bi

1992 US$6,499 bi 18,16% US$3,372 bi US$3,126 bi US$9,871 bi

1993 US$8,162 bi 21,17% US$4,486 bi US$3,676 bi US$12,648 bi

1994 US$8,720 bi 20,03% US$6,023 bi US$2,697 bi US$14,743 bi

1995 US$9,513 bi 20,46% US$9,181 bi US$0,331 bi US$18,695 bi

1996 US$10,277 bi 21,52% US$10,696 bi US$-0,419 bi US$20,973 bi

1997 US$12,799 bi 24,16% US$11,849 bi US$0,949 bi US$24,649 bi

1998 US$12,344 bi 24,14% US$11,367 bi US$0,977 bi US$23,712 bi

1999 US$9,440 bi 19,66% US$8,837 bi US$0,603 bi US$18,278 bi

2000 US$11,122 bi 20,18% US$10,877 bi US$0,245 bi US$22,000 bi

2001 US$10,284 bi 17,64% US$9,293 bi US$0,990 bi US$19,577 bi

2002 US$7,493 bi 12,40% US$7,630 bi US$-0,136 bi US$15,124 bi

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (2012).

Nos anos de 1997 e 1998, a América do Sul chegou a representar quase 1/4 do fluxo
total de exportações do Brasil. Em 1999, este índice oscilou negativamente. No ano seguinte,
nos marcos da Reunião de Presidentes da América do Sul, houve uma tímida recuperação dos
números referentes tanto ao volume total como ao percentual de participação nas exportações.
Em 2001 e 2002, ambos os índices mantiveram uma tendência geral de arrefecimento.
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No último ano do governo Cardoso, a participação da América do Sul nas exportações
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

brasileiras declinou para 12,4%, o patamar mais baixo desde 1990. Essa conjuntura acompanha
as circunstâncias vivenciadas pelo Mercosul no mesmo período. As razões são evidentes, uma
vez que os dois maiores países da região vivenciaram um cenário de crise entre os anos de 1999
e 2001, levando algum tempo para reorganizar a economia14 (cf. Tabela 3).

Tabela 4.2 – Comércio bilateral do Brasil com a Argentina: da crise de 1999 até 2002

Ano Exportações Part. na exp. Importações Saldo Volume total

1999 US$5,364 bi 11,17% US$5,812 bi US$-0,448 bi US$11,176 bi

2000 US$6,237 bi 11,32% US$6,843 bi US$-0,605 bi US$13,080 bi

2001 US$5,009 bi 8,60% US$6,206 bi US$-1,196 bi US$11,216 bi

2002 US$2,346 bi 3,88% US$4,743 bi US$-2,397 bi US$7,090 bi

Fonte: Ministério do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior (2012).

A despeito do decréscimo da corrente de comércio com a vizinhança na virada do século


XX para o XXI, o Brasil buscou erigir uma percepção estratégica da América do Sul no contexto
interamericano. Conforme analisado, isso se dava a partir de quatro eixos: (i) apresentando
garantias para a manutenção das instituições fundamentais do Estado de direito e da
democracia; (ii) acelerando a formação de uma área de livre comércio intrazona; (iii) elaborando
um plano viável de integração na área da infraestrutura física - sem o qual os problemas que
prejudicaram iniciativas pretéritas continuariam a atuar como uma força adversa à integração -;
(iv) estimulando a construção de uma identidade supranacional sul-americana.

A Integração Sul-Americana e seus Diálogos com Outras Regiões

É interessante notar que o Comunicado de Brasília não apresenta a articulação sul-


americana como um fim em si, mas como uma fase preliminar que antecede a integração latino-
americana e caribenha, conforme aponta o 8º parágrafo, ao assinalar essa integração ampliada
como “meta de política externa que está incorporada à própria identidade nacional dos países
da região”15. Ao articular a proposta sul-americana com aquelas de viés latino-americano16,
nota-se uma coexistência de identidades supranacionais que faz sentido principalmente para
o Brasil, haja vista que a Constituição Federal de 1988 afirma em seu Artigo 4º, Parágrafo
único, que

A República Federativa do Brasil buscará a integração econômica, política,


social e cultural dos povos da América Latina, visando à formação de uma
comunidade latino-americana de nações.

14 No caso da Argentina, a crise econômica veio acompanhada de uma grave crise política. O país teve cinco
presidentes em apenas doze dias.
15 Cf. Parágrafo 8 do Comunicado de Brasília (2000). Essa frase sobre a importância da integração latino-americana
faz, decerto, menção à incorporação desse tema às Constituições dos Estados da região.
16 “(...) em particular o Mercosul, seus processos de associação com a Bolívia e o Chile, a Comunidade Andina, a
Corporação Andina de Fomento, o Fundo Latino-Americano de Reservas, bem como a ALADI, o Tratado do Bacia do
Prata, o Tratado de Cooperação Amazônica, o Grupo dos Três, o Mercado Comum Centro-Americano e a Caricom,
entre outros, têm sido os elementos mais dinâmicos da integração latino-americana e caribenha. Articular a América
do Sul significa, portanto, fortalecer a América Latina e o Caribe”. Cf. Parágrafo 9 do Comunicado de Brasília (2000).

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É interessante notar que o parágrafo 9 também sugere a conformação de uma área de
livre comércio das Américas, que teria como esteio a consolidação dos processos sub-regionais
precedentes, o que indica a sobrevivência retórica de um pan-americanismo.
Sendo assim, o Comunicado de Brasília indica que a ação conjunta dos países sul-
americanos teria por finalidade servir de plataforma para ampliar as chances de auferir vantagens
nas futuras negociações envolvendo a ALCA, levando em consideração a capacidade do Brasil
para influenciar a definição da agenda regional (FONSECA, 1999, p. 38). A formação de um polo
de posições coordenadas seria determinante para assegurar ao Brasil uma margem de atuação
mais confortável, favorecendo-o tanto na dimensão regional como em suas pretensões como
global player. Por outro lado, os demais países sul-americanos – sobretudo os mais vulneráveis –
poderiam, durante os diálogos em torno da ALCA, obter concessões setoriais, visando a minorar
as assimetrias nos níveis de desenvolvimento de suas economias.
Embora o documento reconhecesse, em seus parágrafos 9, 30, 33 e 34, que a formação
do espaço econômico ampliado sul-americano teria por base o regionalismo aberto e auxiliaria
futuras articulações extrarregionais – dentre as quais uma área de livre comércio hemisférica,
“que a região deseja ver levada a bom termo”17 – o Brasil pretendia impedir seus vizinhos de
firmar tratados bilaterais de comércio com Washington ou adesões individuais ao NAFTA.
Ainda que em doses homeopáticas, essa aproximação poderia resultar em uma composição
fragmentária da ALCA, provocando desvio de comércio e estreitamento do espaço de manobra

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


da diplomacia brasileira, mais interessada em obter contrapartidas em troca do ingresso
conjunto da América do Sul na ALCA18. Ao mesmo tempo em que procrastinavam a respeito da
liberalização continental – a conclusão das negociações estava prevista para o ano de 2005 – o
Brasil empregava todos os seus esforços diplomáticos para tornar-se o centro de gravitação da
América do Sul, posicionando-se como país anfitrião do encontro de presidentes. O chanceler
Luiz Felipe Lampreia dizia que o Brasil provaria que não convidou os países sul-americanos
para “um jogo anti-Estados Unidos e anti-ALCA (...). Mas também não pode ser para que nos
tornemos subxerifes dos Estados Unidos” (SOLIANI; NOGUEIRA, 2000).
O êxito de tais intentos é relativo. De um lado, os esforços não puderam evitar a continuação
das negociações envolvendo acordos bilaterais de livre comércio entre os Estados Unidos e o
Chile, o Peru e a Colômbia, que passaram a vigorar em 2004, 2009 e 2012, respectivamente19.
Por outro lado, a gestão de Cardoso conseguiu gerar uma ideia de comunidade sul-americana.
A Reunião de Brasília consistiu na realização de um feito inédito, não apenas por ter congregado
os presidentes de todos os países independentes da região, mas por apresentar a América do
Sul como algo além de uma expressão geográfica, ressaltando a existência de uma comunidade
de Estados permeada por instituições, valores e interesses comuns.
O Comunicado de Brasília apresentava um projeto regional sul-americano acompanhado
de uma identidade supranacional correspondente, que passou a existir em paralelo à ideia de
América Latina. Essa matriz identitária foi confirmada com a Declaração de Cusco, em 2004,
que ratificou os argumentos presentes no Comunicado de Brasília, acrescentando ainda a
importância do passado histórico comum e, novamente, destacando a relevância da identidade
sul-americana. Segue abaixo trecho do Preâmbulo do documento:

Os Presidentes dos países da América do Sul, reunidos na cidade de Cusco,


por ocasião da celebração das façanhas libertadoras de Junín e Ayacucho

17 Cf. Parágrafo 30 do Comunicado de Brasília (2000).


18 Sobretudo no tocante a temas sensíveis envolvendo compras governamentais, propriedade intelectual e subsídios
agrícolas.
19 Disponível em: https://ustr.gov/trade-agreements/free-trade-agreements. Acesso em 19 out. 2017.
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e da convocação do Congresso Anfictiônico do Panamá, seguindo o
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

exemplo do Libertador Simón Bolívar, do Grande Marechal de Ayacucho,


Antonio José de Sucre, do Libertador José de San Martín, de nossos povos
e heróis independentistas que construíram, sem fronteiras, a grande Pátria
Americana e interpretando as aspirações e anseios de seus povos a favor da
integração, unidade e construção de um futuro comum, decidimos formar a
Comunidade Sul-Americana de Nações.
I. A Comunidade Sul-Americana de Nações se forma, tomando em conta:
A história compartilhada e solidária de nossas nações, que desde as
façanhas da independência têm enfrentado desafios internos e externos
comuns, demonstra que nossos países possuem potencialidades ainda não
aproveitadas tanto para utilizar melhor suas aptidões regionais quanto para
fortalecer as capacidades de negociação e projeção internacionais;
O pensamento político e filosófico nascido de sua tradição, que,
reconhecendo a primazia do ser humano, de sua dignidade e direitos, a
pluralidade de povos e culturas, consolidou uma identidade sul-americana
compartilhada e valores comuns, tais como: a democracia, a solidariedade,
os direitos humanos, a liberdade, a justiça social, o respeito à integridade
territorial e à diversidade, a não-discriminação e a afirmação de sua
autonomia, a igualdade soberana dos Estados e a solução pacífica de
controvérsias (DECLARAÇÃO DE CUSCO, 2004, sp.).

Ainda que o MERCOSUL expusesse nítidos sinais de estagnação e, com a ascensão de


Fernando De la Rua, tenha até mesmo dado um passo para trás, por conta das orientações
comerciais que perfuravam a tarifa externa comum, estreitaram-se os vínculos de natureza
política entre Brasil, Argentina e Uruguai, resultando inclusive em posições comuns nos marcos
da OEA (SARAIVA, 2012, p. 114-115). Os laços entre Brasília e Buenos Aires também foram
reforçados e a relação Brasil-Argentina passou a ser comparada com aquela estabelecida por
França e Alemanha, na União Europeia (ALMEIDA, 2009, p. 38).
A referência à identidade sul-americana, a primeira em um documento oficial, revela
outro elemento inédito derivado da Reunião de Presidentes de 2000. Este fato é bastante
significativo, sobretudo ao observar o que se esperava da instrumentalização daquela identidade
supranacional.

A consolidação e a instrumentação da identidade sul-americana contribuirão,


assim, para o fortalecimento de outros organismos, mecanismos ou processos
regionais, com abrangência geográfica mais ampla, de que fazem parte países
da América do Sul. Essa visão se aplica, no plano político, especialmente,
ao Grupo do Rio – para o qual convergem as iniciativas de aproximação
entre países da América Latina e do Caribe –, à Organização dos Estados
Americanos, às Cúpulas de Chefes de Estado e de Governo das Américas,
ou à Conferência Ibero-Americana, entre outros foros. Também se aplica,
no plano econômico-comercial, à ALADI, ao SELA ou às negociações para a
conformação de uma área de livre comércio das Américas. A identidade sul-
americana, que se consolida em países que dividem uma mesma vizinhança
imediata, reforça e complementa os laços bilaterais e multilaterais com
as outras nações da América Latina e Caribe, do continente e do mundo
(COMUNICADO DE BRASÍLIA, 2000, sp.).

Conclui-se que a identidade supranacional sul-americana é descrita como uma ferramenta


útil para a atuação conjunta em outros arranjos ou processos regionais, incluindo organismos de
natureza econômico-comercial.

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Um balanço do significado de América do Sul durante a Era Cardoso

A visão do governo de Fernando Henrique Cardoso sobre a América do Sul não pode
ser desvinculada do contexto internacional. Durante seu primeiro mandato, predominava uma
maior inclinação ao liberalismo, fenômeno característico dos primeiros anos que acompanharam
o mundo pós-bipolar. Sendo assim, a integração sul-americana manteve a vocação comercialista
própria do regionalismo aberto. As palavras do chanceler Luiz Felipe Lampreia, segundo o qual
o MERCOSUL não deveria ser “um fim em si mesmo, mas um instrumento para se conseguir
uma participação mais ampla no mercado global” (LAMPREIA apud SARAIVA, 2012, p. 95) é um
indicativo bastante eloquente sobre a interpretação da função primordial da América do Sul na
agenda brasileira.
Coincidência ou não, a posição do governo mudou após Celso Lafer substituir Lampreia como
chanceler20. Em março de 2001, o presidente Fernando Henrique Cardoso criticou o protecionismo
dos países ricos e proclamou a célebre frase: “O MERCOSUL para nós é um destino, enquanto que a
ALCA é apenas uma opção, à qual vamos aderir apenas em condições favoráveis”21. De acordo com
Amado Luiz Cervo, esse deslocamento de posição pode ser relacionado com a chamada “dança
dos paradigmas” do governo Cardoso, que em seu segundo mandato já começava a apresentar
maior ceticismo quanto aos efeitos da globalização (CERVO, 2008, p. 82-85). Na mesma ocasião,
Cardoso também criticou as regras da Organização Mundial do Comércio, que na sua visão

O GOVERNO FERNANDO HENRIQUE CARDOSO E AS ORIGENS DA AMÉRICA DO SUL


beneficiam os países desenvolvidos em detrimento dos mais pobres.
Examinando as ideias debatidas na Reunião de Presidentes da América do Sul, nota-se
que os resultados mais relevantes são justamente aqueles relacionados aos anseios econômicos
mais urgentes — a estabilização macroeconômica e o incremento da corrente de comércio
intrarregional — e, na dimensão política, o reforço da retórica pró-democracia e da necessidade
de manter um ambiente harmônico e pacífico. Independente dos efeitos relativamente limitados
das demais metas propostas pelo Comunicado de Brasília, é fundamental perceber que se
renovaram as expectativas sobre a construção de um espaço sul-americano integrado, sendo a
IIRSA o seu maior legado prático.
Da mesma maneira que Flávia de Campos Mello identifica no MERCOSUL uma espécie de
instrumento indutor do Brasil para uma inserção mais competitiva no plano mundial (MELLO, 2000,
p. 11), Letícia Pinheiro afirma que, apesar do fortalecimento da dimensão sul-americana, a lógica
de atuação brasileira estruturou-se majoritariamente numa política bifurcada. Nessa dicotomia, o
entorno global caracterizava-se como espaço para ganhos absolutos e o entorno regional para
ganhos relativos (PINHEIRO, 2004, p. 63). Na perspectiva de Miriam Saraiva, os interesses do Brasil
transbordavam para além da região, instrumentalizando as novas parcerias de modo a galvanizar
um perfil de global player. Cioso da imagem brasileira no cenário mundial e da fidelidade aos
regimes internacionais, o Brasil empenhou-se na busca pelo consenso sul-americano no que tange
à manutenção da democracia, destacada como valor universal a ser resguardado (SARAIVA, 2012a,
p. 113). Segundo Amado Cervo, predominou nos círculos governamentais a crença de que a nova
configuração global baseada na negociação multilateral promoveria “regras justas, transparentes
e respeitadas por todos” (CERVO, 2008, p. 54), havendo uma mudança quanto à interpretação da
realidade internacional durante o segundo mandato de Cardoso. De acordo com Paulo Fagundes
Vizentini, é nesse momento que o conceito de globalização assimétrica marca o reposicionamento
do país, com a adoção de uma postura mais branda no tocante ao “discurso neoliberal” (VIZENTINI,
2008, p. 98). Neste jogo de ressignificações, os regionalismos que perpassam a América Latina

20 Celso Lafer tomou posse como Ministro das Relações Exteriores em 29 de janeiro de 2001, permanecendo no
cargo até o fim do mandato de Fernando Henrique Cardoso.
21 Cf. Para FHC, Alca é ‘apenas opção’. Mercosul é destino. Folha de Londrina, 13 mar. 2001.
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ganharam progressivamente uma conotação defensiva em relação aos efeitos deletérios
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

provocados pelas assimetrias da globalização.


A despeito do uso de lentes interpretativas distintas, Amado Luiz Cervo, Letícia Pinheiro
e Miriam Saraiva convergem ao concluírem que, na percepção dos homens de Estado da
época, os regionalismos inseridos na grande área latino-americana imprimiam uma espécie
de resseguro face aos possíveis danos econômicos – financeiros, comerciais e produtivos –,
oriundos de um processo de globalização marcado “pelo curso desenfreado do liberalismo
mundial” (CERVO, 2008, p. 23).
Em termos prático-funcionais, pode-se considerar a Reunião de Presidentes da América
do Sul como a pedra fundamental daquilo que meia década depois se tornaria a Comunidade
Sul-Americana de Nações. De fato, até 2013, o site da UNASUL disponibilizou uma cronologia
onde o nome do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso — e não o de Luiz Inácio Lula da
Silva — era utilizado como marco referencial do início da proposta de união sul-americana. No
mesmo sentido, durante o seminário “A América do Sul e a integração regional”, promovido pela
Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG) na cidade do Rio de Janeiro, em 2011, o público ouvinte
recebeu duas coletâneas de textos encadernados, todos relacionados ao tema do encontro. Um
dos volumes reunia justamente os quatro documentos considerados essenciais para compreender
o papel da América do Sul, a saber: o Tratado de Assunção (1991), o Acordo de Cartagena (1969), o
Comunicado de Brasília (2000) e o Tratado Constitutivo da UNASUL (2008).
Contudo, o ponto central para esta pesquisa é que o Comunicado de Brasília inaugura
a identidade supranacional sul-americana, inscrevendo-a pela primeira vez na história das
relações internacionais em um documento oficial. Doravante, este elemento identitário passou
a ser percebido como um atributo capaz de funcionar como um instrumento favorável à própria
integração da região, além de operar em suas relações com Estados extra-regionais ou com
outros organismos.
O somatório dos fatores supramencionados abriu espaço para que segmentos da
diplomacia e da intelligentsia brasileiras observassem o entorno sul-americano como uma
unidade desvinculada da macrorregião latino-americana, conceito que via sua operacionalidade
entrar em franco declínio. Em 1993, Celso Lafer afirmou que a América Latina constituía “a
nossa circunstância” (LAFER apud MELLO, 2000, p. 11). Onze anos depois, na obra “A Identidade
Internacional do Brasil”, Lafer renova o significado daquela região, ao defender um “novo
enfoque para o conceito de América Latina” (LAFER, 2004, p. 55) em virtude da reconfiguração
hemisférica de meados da década de 1990, cujo marco é a adesão do México ao NAFTA. Ademais,
Lafer começava a destacar alguns dos argumentos que ganharam força durante o governo
Lula, como o fato de a “América do Sul constituir uma unidade física contígua, propiciadora
de oportunidades de cooperação econômica.” (LAFER, 2004, p. 54) e, em comparação com a
América Central e o México — definidos como excessivamente dependentes dos Estados Unidos
—, “A América do Sul, em contraste, tem relações regionais e internacionais mais diversificadas,
tanto no plano econômico quanto no político” (LAFER, 2004, p. 55).
Durante a era Cardoso, protelou-se ao máximo as negociações da ALCA, ao passo que
o MERCOSUL passava por uma relativa estagnação após 1999 e o México era cooptado por
Washington. Foi no xadrez internacional montado pela combinação desses fatores que se
formaram as circunstâncias que condicionaram o redirecionamento do olhar brasileiro para o
conjunto da América do Sul (BECARD, 2009, p. 102-105), onde se esperava obter ganhos relativos
para melhor enfrentar as assimetrias da globalização.
Sendo assim, pode-se resumir o significado da integração entre Estados sul-americanos
colocada em prática no segundo governo Cardoso a partir de três objetivos: (i) assegurar a paz
regional, a perpetuação dos regimes democráticos e a não proliferação nuclear, mantendo-se

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em sintonia com a arquitetura de valores da nova ordem mundial pós-bipolar; (ii) negociar, via
coordenação conjunta da América do Sul, acordos mais vantajosos para o Brasil em uma futura
área de livre comércio das Américas; e (iii) elevar, por meio da integração física e da desgravação
tarifária, o fluxo de comércio com os demais Estados da vizinhança, além de realizar uma inserção
mais competitiva na economia mundial.

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CAPÍTULO 5

POPULISMO, DISCURSO E POLÍTICA EXTERNA: UMA ANÁLISE DO CASO


BRASILEIRO DURANTE A GESTÃO BOLSONARO-ARAÚJO

Lucca Giannini Palermo Moreno Belfi


Beatriz Bandeira de Mello

Introdução

No decorrer do século XXI, o conceito de “Populismo” se mostrou peça importante


para o quebra-cabeças do sistema internacional gerando um grande volume de estudos
sobre governos e líderes populistas. No entanto, a influência do Populismo sobre o processo
decisório em política externa ainda é uma área em franca expansão. No atual momento da
política global, onde há um levante de movimentos extremistas — principalmente relacionados
a extrema-direita e teorias conspiratórias, como nos Estados Unidos e em alguns países da
Europa, como a Itália (BROWN, 2018; 2019; CEPÊDA, 2018; ABRAHAMSEN, 2020; EATWELL;
GOODWIN, 2020) — questões migratórias, religiosas, identitárias, culturais e territoriais são
cada vez mais abordadas e discutidas. Como resultado, conceitos que são velhos conhecidos da
história política mundial ganham novamente um papel principal no desenrolar da atualidade.
Não por acaso, o veículo midiático The Washington Post considerou o ano de 2016 como “o
ano do Populismo” indicando a tendência política da segunda década do século XXI. Isso se
deve, em parte, à ocorrência de fenômenos como o Brexit e a chegada de Donald Trump à
Casa Branca (CHRYSSOGELOS, 2017). Com isso, o Populismo volta a ser carta marcada nos
acontecimentos políticos dos últimos dez anos.
No entanto, surge a questão: por que as pautas mencionadas anteriormente são cada vez
mais abordadas e discutidas por diversos setores da sociedade? Wendy Brown (2018) nos oferece
algumas pistas. Segundo ela, o interesse crescente nestas pautas está relacionado com a reação
da classe média branca contra um suposto “destronamento” socioeconômico, causado pela
política econômica neoliberal, que estaria desenfreado por todo “Ocidente”. A autora analisa
que os trabalhadores brancos e de classe média vêm enfrentando um declínio de alguns direitos
básicos como bons salários, habitação, escolas e certos privilégios antes garantidos pelo status
social de sua classe. A percepção desta “perda”, portanto, comprometeria sua visão de futuro.
Segundo a autora, essa reação leva a uma insatisfação política dessa classe contra o que ela
intitula “usurpadores imaginários e obscuros” que surgem como espantalhos, na forma de um
combate quixotesco contra o comunismo, por exemplo, e contra as “elites cosmopolitas” vistas
como responsáveis por abrir demasiadamente a Nação ao mundo fazendo com que os ditos
privilégios acabassem (BROWN, 2018).
São as políticas neoliberais e o avanço da globalização, dentro de um contexto de crise
da própria lógica neoliberal (HARVEY, 2005; 2007; ROBINSON, 2005) que produzem este
cenário de ressentimento dentro de uma parte específica da sociedade e, no contexto geral,
dentro dos Estados. Este cenário, conforme veremos nos argumentos de Ernesto Laclau (2005), é
amplamente favorável para o surgimento de uma figura que discursivamente tome para si essas
demandas ressentidas e, com isso, chegue ao poder. Logo, seguindo a argumentação de Brown
(2018), assumimos a premissa de que as “crises da democracia liberal”, a virada autoritária e o
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populismo de extrema-direita são sintomas da crise da estrutura neoliberal e da globalização
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

(BROWN, 2018; 2019; MENDONÇA, 2019; 2020).


Partindo para o objeto deste capítulo, um bom ponto de partida para entender o caso brasileiro
são as manifestações de 2013. Aqui, o argumento principal é que o Populismo de extrema-direita
influenciou a formulação da política externa do governo de Jair Bolsonaro, principalmente no
período em que Ernesto Araújo foi o Ministro das Relações Exteriores (2019–2021). Esse argumento
é sustentado pela premissa de que o crescimento do Populismo de extrema-direita no Brasil vem
se formulando desde o início da década de 2010 (SCHERER-WARREN, 2014; LEE; FRANCISCO,
2017; CODATO, BERLATTO; BOLOGNESI, 2018) tendo como marco inicial as Jornadas de Junho de
2013 e seus desdobramentos até a eleição de Jair Bolsonaro em 2018.
Consideramos que as manifestações ocorridas em 2013 — organizadas pelo Movimento
Passe Livre (MPL)1 e que posteriormente ganharam espaço em todo o Brasil — serviram como
base para a atual polarização do espectro político brasileiro (SCHERER-WARREN, 2014). O
aumento das tarifas, somado à insatisfação e em certos níveis, decepção de setores da população
brasileira com a administração de Dilma Rousseff — que depois se estenderam a todos os
governos petistas —, serviram como uma incubadora para o surgimento de movimentos
políticos que demandavam pautas diversas. Desde então, o clima político brasileiro tornou-
se mais hostil e polarizado, fato que gerou fortes sentimentos na população, dividindo-a em
grupos motivados, sobretudo, pelo antipetismo existente.
Outros fatores também contribuíram para o acirramento desta polarização: os
desdobramentos da Operação Lava-Jato (2014), que contribuíram para a criminalização da
atividade política, a quebra da indústria nacional e para intensificação da agenda anticorrupção,
a crise econômica deflagrada no Brasil a partir de 2014 e os efeitos do processo de impeachment
de Dilma Rousseff em 2016, que culminaram com seu afastamento e substituição pelo então vice-
presidente, Michel Temer. Desde então, abriu-se espaço para o fortalecimento do papel político
e da atuação das Forças Armadas, inclusive com o incremento da nomeação de militares para
cargos públicos2, o aumento da influência de setores religiosos sobre o governo, representados
especialmente pelos evangélicos, o acirramento da investida do agronegócio sobre a atividade
econômica nacional e a defesa de uma agenda pautada em valores conservadores e reacionários.
A lógica é a de que o cenário exposto, seguindo os argumentos de Brown (2018), fez com
que o Brasil recebesse a influência de ideais populistas de extrema-direita. O argumento em
questão não sustenta, porém, que a polarização, o antipetismo e o Populismo se instalaram no
país nesse período, visto que a insatisfação política presente no cenário brasileiro vinha sendo
alimentada há mais tempo. A ideia é que os eventos de 2013 reaqueceram um ressentimento
de certas alas da sociedade brasileira e esse sentimento, como sustenta Wendy Brown (2018),
alimentou ideais extremistas. De modo complementar, de acordo com Laclau (2005), esses ideais
representam demandas não atendidas de parte da sociedade brasileira.
Isto posto, consideramos que o desencadear das manifestações de 2013 ocasionou
a consolidação de um pensamento extremista de direita no Brasil e que esse movimento
preparou o terreno perfeito para que uma figura populista tomasse essas demandas para si
como pautas de sua campanha, mobilizando significantes vazios e construindo antagonismos
no intuito de transformar essas pautas em “interesses nacionais” para benefício próprio. Diante
do exposto, a figura de Jair Bolsonaro emerge nas eleições de 2018 mobilizando um discurso

1 O estopim destas manifestações foram as reivindicações pela diminuição das tarifas dos transportes públicos em
São Paulo, que subiram de R$ 3,80 para R$ 4.
2 Durante o governo de Michel Temer, por exemplo, o recriado Gabinete de Segurança Institucional (GSI) teve
à frente o general do Exército Sérgio Etchegoyen. No Ministério da Defesa, o general Joaquim Silva e Luna foi o
primeiro militar a ocupar o cargo desde sua criação em 1998.

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anticorrupção, contra o establishment político, baseado no antipetismo e no apelo à moralidade
cristã — pautas que adquiriram um novo fôlego após 2013 — com um viés extremamente
autoritário e antipopular (PEREIRA DA SILVA, 2018). Cabe ressaltar que as eleições de 2018 foram
agitadas e permeadas de acusações de fraudes, na qual também consta um atentado contra
um presidenciável e enormes volumes de notícias falsas circulando nas redes sociais. Desde
a campanha presidencial, Bolsonaro propôs estabelecer uma ruptura em termos de política
doméstica e internacional. Por isso, logo após vencer o pleito, uma das áreas que recebeu maior
atenção do novo presidente foi a política externa.
Para além de estabelecer uma posição antagônica a de seus antecessores imediatos — Lula
da Silva, Dilma Rousseff e Michel Temer — Bolsonaro tratou de contrariar algumas das diretrizes
contidas no histórico diplomático brasileiro3. Ainda durante a campanha, Bolsonaro já dava indícios
da tônica de sua política externa, apresentando uma clara preferência por relações com os Estados
Unidos de Donald Trump, declarações contrárias à Venezuela, Cuba e China, além de uma simpatia
pessoal por personagens de uma extrema-direita populista em ascensão no cenário internacional,
como Matteo Salvini na Itália (VELASCO, 2018). Um dos personagens mais importantes do governo
Bolsonaro nesse sentido foi o Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo — nome indicado
pelo então guru dos bolsonaristas e autoproclamado filósofo, Olavo de Carvalho4.
O objetivo deste capítulo é identificar como a política externa de Jair Bolsonaro,
especificamente durante a gestão do Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, foi
influenciada pelo Populismo, a partir dos discursos realizados por ambos os representantes e as
categorias por eles mobilizadas tais como “antiglobalismo”. Para alcançar o objetivo proposto,
partimos de um debate conceitual-teórico sobre os termos Populismo e política externa. Depois,
discutimos as contribuições do pós-estruturalismo, através dos argumentos apresentados por
autores referência na área, como Ernesto Laclau e Chantal Mouffe. Com isso, pretendemos
investigar variáveis importantes que o fenômeno nos proporciona, como o status de lógica
política que ele carrega e o papel do discurso nesse tabuleiro.
Com isso, analisamos as formas pelas quais o Populismo influencia a tomada de decisão
na política externa brasileira. Através de uma revisão bibliográfica, será realizada uma análise
exploratória com coleta bibliográfica e documental de fontes primárias e secundárias as quais
incluem, matérias de jornais, livros e artigos acadêmicos de autores ligados à Teoria do Discurso,
Análise de Política Externa e Populismo. Para confirmar os argumentos, será feita uma análise
qualitativa e comparativa dos argumentos levantados pelos autores referência, observando o

Populismo, discurso e política externa


Populismo sob uma ótica de atuação na política externa, procurando mostrar como ele exerce
influência sobre ela. A próxima seção introduz o debate sobre as definições de política externa e
populismo, além de expor as principais contribuições da Teoria do Discurso de Laclau e Mouffe.

Política externa, populismo e discurso

Um dos grandes debates na área de política externa gira em torno do questionamento


se ela é uma política de Estado – que deve se preocupar com questões relativas à soberania,
interesses nacionais e território – ou se é uma política pública – focada nos interesses, visões
particulares e na visão de mundo de atores domésticos (MILANI, 2015, p. 60). Para Milani, a
política externa é uma política de Estado e uma política pública, pois ela está posicionada na
intersecção entre as arenas doméstica e internacional. Mas, o que de fato define política externa?

3 Cervo (2008) definirá o histórico da diplomacia brasileira como: “cooperativa e não-confrontacionista, universalista,
pacifista, zelosa pela soberania em razão do papel indutor do Estado e da necessidade de planejar o desenvolvimento”
(p. 34).
4 Olavo de Carvalho faleceu em janeiro de 2022.
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Primordialmente, a política externa pode ser compreendida como um programa orientado
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

à resolução de problemas ou objetivos que impliquem ação a atores externos, ou seja, atores
que estão fora da jurisdição dos formuladores de políticas ou seus representantes (HERMANN,
1990, p. 5). E, ainda, como a aglutinação dos interesses e ideias dos representantes de um Estado
sobre sua inserção no sistema internacional (PINHEIRO, 2004, p.5) ou o conjunto de intenções
e ações de certo ator direcionadas ao mundo exterior (VERBEEK; ZASLOVE, 2017). Na maioria
das vezes, o ator em questão é o Estado, mas muitos autores admitem o protagonismo de
outros atores em questões de política externa, como os presidentes (PINHEIRO, 2004, VERBEEK;
ZASLOVE, 2017).
Podemos observar, diante desta brevíssima exposição, que apesar de uma certa
consonância de definições, não existe uma posição uníssona sobre quais atores formulam a
política externa. De todo modo, esta pesquisa entenderá que política externa é um conjunto
de ações de um determinado ator — podendo ou não ser o Estado — que busca resolver
problemas e perseguir objetivos externos. Tais problemas e objetivos externos podem estar
relacionados tanto com interesses nacionais quanto com interesses particulares de atores
domésticos, sendo esta a característica sui generis da política externa (MILANI, 2015). Nesse
sentido, tomando os argumentos de Carlsnaes (2013) como referência, daremos o enfoque
necessário para o comportamento decisório humano, com base no argumento de Valerie
Hudson de que a Análise de Política Externa (APE) é centrada no processo de tomada de
decisões (HUDSON, 2007, p. 165, apud CARLSNAES, 2013, p. 304). Este argumento será
retomado mais adiante, quando analisarmos o papel crucial desempenhado pelos discursos
na relação entre Populismo e política externa.
Quanto ao Populismo, apesar de estar presente na política global há muitos anos, o
fenômeno adquiriu renovada importância na segunda década do século XXI a partir de dois
eventos que impactaram fortemente sua compreensão na política global: o Brexit em 2015 e
a eleição de Donald Trump como presidente dos Estados Unidos em 2016. Autores como
Chryssogelos (2017) e Stengel, MacDonald e Nabers (2019) procuram mostrar que o fenômeno
não se restringe à política doméstica e buscam dimensionar a influência do Populismo na
política global. Stengel, MacDonald e Nabers (2019) argumentam que aspectos internacionais
e transnacionais do Populismo ainda são pouco explorados nas pesquisas da área de Relações
Internacionais e que apenas recentemente, com a já citada ascensão de Donald Trump à
presidência dos Estados Unidos, a disciplina deu a devida atenção ao Populismo para além do
âmbito interno.
No entanto, falar sobre Populismo requer cautela quanto a definição e utilização
do conceito. No decorrer da história política de nosso mundo, personagens e governos
populistas tiveram papéis importantes no desenrolar de acontecimentos cruciais para o
Sistema Internacional. Na América do Sul, por exemplo, o termo populismo foi utilizado
para cunhar governos nacionais-populares das décadas de 1930 e 19505, em países como
Brasil, Argentina e México. Estes governos tinham em comum um caráter nacionalista,
expansionista, ligados ao desenvolvimento industrial, à busca pela ampliação de direitos
sociais e políticos atrelados a um forte corporativismo estatal e aos movimentos sindicais. Na
região, especificamente, o fenômeno foi uma resposta à crise do sistema liberal após 1929.
É notável que o debate sobre a conceitualização de Populismo a fronte nuances distintas,
pois sua definição engloba governos de diferentes matizes ideológicas. Por este motivo,
a definição do conceito muitas vezes é movida por paixões, causando certa deturpação e
banalização de seu uso.

5 Existem variações sobre a delimitação temporal do fenômeno. No Brasil, o primeiro governo de Getúlio Vargas é
comumente caracterizado como populista, o mesmo ocorre com Juan Domingo Perón na Argentina.

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No intuito de não tornar nossos argumentos vazios, utilizaremos o trabalho de Ernesto
Laclau como referência teórica para o conceito de Populismo e sua Teoria do Discurso,
elaborada em conjunto com Chantal Mouffe. Para Laclau, o Populismo é uma lógica política.
Ou seja, o fenômeno populista é uma lógica baseada no antagonismo entre o “povo” e seu
“inimigo” — que pode variar de acordo com o contexto de cada particularidade. A partir disso,
David Howarth (2005) elenca quatro características do Populismo: o apelo ao “povo” como
sujeito de interpelação; a construção de uma fronteira entre os “de baixo” e o establishment
e a tentativa de constituição de um universal, ou seja, uma construção geral da categoria
povo, não somente como os pobres, mas de uma forma mais generalizada, como a ideia de
“Nação”.
Mendonça (2014) e Cassimiro (2021) argumentam que a construção da argumentação
laclauniana a respeito do fenômeno é entendida como uma categoria ontológica. Ao se
considerar esta perspectiva, o Populismo é compreendido a partir de sua raison d’être. Assim,
Laclau desvinculará as argumentações formuladas a partir de categorias ônticas6 que pretendem
compreender as particularidades desta lógica política (MENDONÇA, 2014). Destarte, Laclau
sustenta que:

[...] o conceito de populismo que estou propondo é estritamente formal,


já que todas as suas características definidoras estão relacionadas
exclusivamente a um modo de articulação específico — a prevalência da
lógica equivalencial sobre a lógica diferencial — independentemente dos
conteúdos reais que se articulam. Este é o motivo pelo qual [...] afirmei que
o “populismo” é uma categoria ontológica e não ôntica (LACLAU, 2005, p.
44 apud MENDONÇA, 2014, p. 58).

Como pontuado anteriormente, a questão da “negatividade antagônica” é crucial para a


constituição da lógica populista. A Teoria do Discurso elaborada por Laclau e Mouffe (2015) 7
faz parte deste esforço analítico. Nela, os autores definem o conceito de Antagonismo como
o processo pelo qual o social — entendido como o reino das diferenças discursivas — se
homogeneíza, transformando-se em uma cadeia de equivalências8 diante de um “outro” — que
nesse caso é considerado “inimigo” (MARCHART, 2008).
Outra característica que é de extrema importância para a concepção laclauniana é que “o
campo popular constitui o seu próprio processo de representação (MENDONÇA, 2014, p. 59). Ou
Populismo, discurso e política externa
seja, quando demandas articuladas em um determinado cenário, que é precário e contingente,
passam a representar uma cadeia de equivalências elas se configuram, portanto, numa tarefa
hegemônica. Isto posto, quanto mais abrangentes forem as cadeias equivalenciais, mais frágeis
serão os sentidos que as “demandas particulares” irão assumir nesta representação.

6 Mouffe ao tratar da diferença entre os conceitos de política e do político, argumenta que a primeira está relacionada
ao nível ôntico e o segundo se enquadra em uma dimensão ontológica. Portanto: “isto significa que o ôntico tem
a ver com as muitas práticas da política convencional, enquanto que o ontológico refere-se à própria forma como
a sociedade é constituída” (MOUFFE, 2005, p. 8-9 apud MENDONÇA, 2009). Essa lógica tem origem nos ideais
formulados pelo heideggerianismo, seria uma oposição à ideia de ontologia. Enquanto o primeiro se relaciona ao
ente, o segundo se refere a natureza, a essência.
7 Tem como referência a obra Hegemonia e Estratégia Socialista (2015).
8 Para entendermos este conceito, precisamos compreender as lógicas da equivalência e da diferença. Para isto,
consideremos: “[...] a lógica da equivalência é a lógica da simplificação do espaço político, enquanto a lógica da
diferença é a lógica da sua expansão e aumento de complexidade. [...] a lógica da diferença tende a expandir o
polo sintagmático da linguagem, o número de posições que podem entrar em uma relação de combinação e assim
de continuidade um com o outro; enquanto a lógica da equivalência expande o polo paradigmático- ou seja, os
elementos que podem ser substituídos por outro- reduzindo assim o número de posições possíveis de serem
combinadas (LACLAU; MOUFFE, 2001, p. 130 apud SANTOS, 2018, p. 53).
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Nesse caso, a Hegemonia — outro componente central na Teoria do Discurso de Laclau e
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Mouffe — é percebida como um “esforço para construir discursivamente, fora de um terreno


de diferenças, o ‘bloco histórico 9 de uma formação hegemônica específica” (MARCHART,
2008). Destarte, “um discurso hegemônico é essencialmente um discurso sistematizador,
aglutinador. É, enfim, um discurso de unidade: unidade de diferenças” (MENDONÇA;
RODRIGUES;, 2008).
Mendonça (2014, p. 59) ressalta, desse modo, que “a construção de uma subjetividade
popular é possível somente sobre a base da produção discursiva de significantes
tendencialmente vazios10” (LACLAU, 2005, p. 40). Esses significantes vazios vão homogeneizar
um determinado espaço social — que é por si só heterogêneo — articulando demandas
insatisfeitas — que não têm qualquer relação entre si. Dessa maneira, “em sua expressão
mais extrema, este processo chega a um ponto em que a função homogeneizante é levada
a efeito por um nome próprio: o nome do líder” (LACLAU, 2005, p. 40 apud MENDONÇA, p.
59). Para o propósito definido neste capítulo, qual seja, analisar a influência do Populismo
sobre a política externa de Jair Bolsonaro, como identificar o modo como esses sentidos são
produzidos e articulados?
Como visto anteriormente, o discurso assume um papel central na definição laclauniana
de Populismo. Isso se deve, em grande parte, à influência da corrente pós-estruturalista sobre
o trabalho do autor. Ele atribui relevância ao discurso por entender que (re)produz relações de
poder. Neste processo, a intencionalidade do sujeito é subtraída da produção de sentido, ou
seja, o sentido independe da vontade do sujeito, pois ele já foi pré-estabelecido socialmente
(BURITY, 2008, p. 556-570). Assim, através dos processos de desconstrução é possível identificar
as oposições linguísticas que fundamentam as relações de poder bem como os termos que são
discursivamente privilegiados em detrimento de outros (DEBRIX, 2003).
Marchart (2008) sustenta que a estratégia de Laclau e Mouffe foi desconstrutivista em
diversos pontos. Para os autores, o social é atrelado à discursividade e a identidade é percebida
como o resultado de uma articulação discursiva (MARCHART, 2008). Laclau resgata a ideia de
que o processo de significação é crucial — para não se dizer inseparável — para o entendimento
e constituição dos fenômenos sociais. Seguindo essa lógica, Burity (2008, p. 620) argumenta
que é impraticável uma apreensão da realidade que não pressuponha “constitutivamente uma
passagem pelo discurso, pelo sentido, pela inserção de fatos físicos, humanos ou naturais, em
sistemas de significação”, onde esses fatos seriam hierarquizados e articulados – até mesmo
entrando em disputas - com outros, para que haja uma certa “estabilização do ser dos objetos
que descrevem e situam no mundo”.

9 Entende-se aqui este conceito a partir do livro “Dicionário Gramsciano”, organizado por Guido Liguori e Pasquale
Voza (2017): “Mas, não por acaso, é num parágrafo dedicado à ‘validade’, à realidade, à determinação histórica
das ideologias (não redutíveis a meras ‘aparências’), ou seja, num parágrafo dedicado a um ponto fundamental e
inovador de seu marxismo, que G. fornece a definição talvez mais clara da noção de bloco histórico: nele “as forças
materiais são o conteúdo e as ideologias são a forma, distinção entre forma e conteúdo puramente didática, já que
as forças materiais não seriam historicamente concebíveis sem forma, e as ideologias seriam fantasias individuais
sem as forças materiais”. Substancialmente, por meio do conceito de bloco histórico em conexão com o de ideologia,
G. renova criticamente a concepção marxiana corrente da relação estrutura-superestrutura, na qual a segunda servia
de mero ‘reflexo’ especular da primeira” (p. 119).
10 “Estes, por definição, permitem uma multiplicidade de articulações com significados sem que nenhum deles se
estabilize como sentido unívoco. Os significantes vazios tornam-se não apenas loci de atos de identificação, mas
também objeto de luta com vistas ao seu “preenchimento” por sentidos particulares [...] Por exemplo, mesa, table
(francês/inglês — pronunciadas diferentemente), tavola (italiano) ou tafel (alemão) são palavras que traduzem em
diferentes idiomas exatamente a mesma coisa, por meio de diferentes significantes. Por outro lado, o mesmo termo
pode estar associado a significados diferentes, como peça de mobiliário (onde se dispõem alimentos, ou onde se
pode jogar), um grupo de palestrantes num evento, ou um lugar para uma tórrida relação sexual” (BURITY, 2008, p.
725, 729, 733).

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Por conseguinte, podemos compreender a constituição dos fenômenos sociais, a
partir dessa lógica, através da articulação de elementos11 diferentes. Neste caso, se configura
um adversário em relação ao qual se traça uma fronteira que cria duas grandes formas de
identificação, um “nós” e um “eles”. Daí a ideia de que é necessário que uma particularidade
esvazie o sentido das demandas propostas para que outras demandas – de origens distintas – se
incorporem a ela. É o que Laclau entenderá por “universalização do particular”, ou seja, quando
uma demanda “demonstra interpelar um conjunto de outras demandas, de tal maneira, que
elas se reconheçam como parte daquela” (BURITY, 2008, p. 756). Desta maneira, a Hegemonia
se instalará ao passo que uma demanda particular assume a representação de um conjunto de
outras demandas alheias a ela e passa falar em nome desse agrupamento12.
Em síntese, as contribuições de Laclau e Mouffe em sua Teoria do Discurso nos oferecem um
arcabouço teórico que serve ao objetivo principal deste artigo — identificar como o Populismo
influenciou a política externa de Jair Bolsonaro no Brasil. Entendendo que o discurso produz a
realidade social a partir de uma estrutura de significados que se organiza a partir de uma cadeia
de equivalências orientada pela concepção de um “inimigo” veremos como isso é articulado nos
discursos bolsonaristas. Esta estrutura, estabelecida a partir do Antagonismo e da Hegemonia,
independente da vontade do sujeito e nos permite analisar como o discurso de Bolsonaro e,
de modo complementar, do seu Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, incorporam a
lógica política do Populismo à política externa brasileira.

Populismo e a política externa brasileira de Jair Bolsonaro

Antes de ser eleito em 2018 e assumir a Presidência da República, Jair Bolsonaro já dava
indícios sobre o tom que adotaria em sua administração. Como Deputado Federal, cargo que
ocupou por mais de 20 anos, Bolsonaro manifestou-se publicamente a favor da ditadura militar,
contra os direitos humanos e declarou ser “preconceituoso com muito orgulho”. Em 2014, ele se
tornou o deputado mais votado na disputa pela Câmara13 e desde então procurou consolidar-
se como uma força de oposição ao Partido dos Trabalhadores (PT) aproveitando o declínio e
a falta de representatividade dos partidos tradicionais de direita, como o MDB (Movimento
Democrático Brasileiro) e o PSDB (Partido da Social Democracia Brasileira) (SANTOS; TANSCHEIT,
2019 apud BANDEIRA DE MELLO, 2022). Seu discurso durante a votação pelo impeachment da
ex-presidenta Dilma Rousseff sintetiza o conjunto de seus posicionamentos:

Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca Populismo, discurso e política externa
teve. Contra o comunismo, pela nossa liberdade, contra o Foro de São Paulo,
pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma
Rousseff, pelo Exército de Caxias, pelas nossas Forças Armadas, por um Brasil
acima de tudo e por Deus acima de todos, o meu voto é sim (BRASIL, 2017
apud XAVIER, 2022)

Como pontuamos no início deste capítulo, o antipetismo — impulsionado pelos


desdobramentos das Jornadas de Junho de 2013 e da Operação Lava-Jato — fez crescer na
população um ressentimento em relação às pautas representadas pelo PT, como a ampliação

11 Segundo Santos (2018, p. 43), “Estes se constituem em signos que ainda não possuem um significado fixo, signos
com significados múltiplos e potenciais”.
12 Burity (2008, p.767), vai argumentar que “O sujeito da hegemonia não é necessariamente uma classe social,
não precisa ser, e mesmo que algumas das posições de identificação no interior desse movimento mais amplo se
identifiquem como classe(s), este movimento não necessariamente mudará a natureza desse fenômeno”.
13 Mais informações em: https://www.bbc.com/portuguese/brasil-42231485
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de direitos sociais, mas não somente. O rechaço à corrupção, a influência da bancada BBB14,
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

as críticas ao establishment político e à mídia tradicional hegemônica e a consolidação de um


movimento reacionário também explicam este fenômeno. Não por acaso, Bolsonaro tornou-se
um candidato competitivo para as eleições de 2018 mobilizando estas pautas através das redes
sociais, distribuindo fake news, e durante a campanha eleitoral sob o lema “Brasil acima de tudo,
Deus acima de todos”.
Para os efeitos de nossa análise, podemos considerar que estes são os primeiros
elementos discursivos que articulados produzem o arcabouço ideológico do bolsonarismo e sua
manifestação enquanto um fenômeno populista – tanto em política interna, quanto externa. O
PT, de modo particular, é a primeira ameaça identificada por Bolsonaro e, consequentemente, por
seus aliados, e percebido como algo que deve ser combatido e, se possível, exterminado – isso
fica evidente quando o presidenciável, por exemplo, assume que deseja “fuzilar a petralhada”15.
Adotando este ponto de partida, observamos que o cerne do discurso de Bolsonaro é construído,
como pressupõe a lógica populista, sobre a divisão antagônica entre o “verdadeiro povo” e o
seu inimigo.
Em primeiro lugar, o “povo brasileiro” é definido pelo presidente por meio de valores
cristãos e conservadores que aparecem associados a termos como “patriotas/compatriotas”,
“nação”, “pátria”, “cristãos”, “família” e “cidadão de bem”. De modo complementar, valores como
“liberdade” e “ordem” também se fazem presentes (BOLSONARO, 2019a). O que caracteriza esse
grupo é sua identificação em torno de valores cristãos e o rechaço às ameaças que atentam
contra a família, a ordem e a liberdade. No plano econômico, esse grupo é identificado com o
liberalismo que tem como fundamentos a desregulamentação, a privatização e a diminuição do
papel do Estado – sinalizadas em termos como “reformas” e “flexibilização”. Na concepção de
Bolsonaro, esta seria a verdadeira “nação brasileira”, a qual ele representa.
Por outro lado, quem são seus inimigos? Posicionados no extremo oposto ao “povo”,
os “inimigos da pátria” aparecem associados a termos como “corrupção”, “criminalidade”,
“irresponsabilidade econômica” e “submissão ideológica” (BOLSONARO, 2019a). A ideologia,
neste caso, é comumente identificada como a “ideologia de gênero”, mas também aparece
nos discursos presidenciais representada pelo “comunismo”, pelo “socialismo”, pelo “petismo”
e pelo “bolivarianismo” – este último, em particular, quando o presidente aborda assuntos
internacionais (BOLSONARO, 2019b, 2020, 2021). No trecho a seguir, parte do discurso de posse
de Bolsonaro, realizado em janeiro de 2019, a oposição entre os grupos fica evidente:

(...) quando os inimigos da pátria, da ordem e da liberdade tentaram pôr fim


à minha vida, milhões de brasileiros foram às ruas. Uma campanha eleitoral
transformou-se em um movimento cívico, cobriu-se de verde e amarelo,
tornou-se espontânea, forte e indestrutível, e nos trouxe até aqui. Nada
aconteceria sem o esforço e o engajamento de cada um dos brasileiros
que tomaram as ruas para preservar a nossa liberdade e a democracia
(BOLSONARO, 2019a).

Em relação à política externa, a estratégia foi similar. Todos os personagens, líderes,


países e regiões associados à diplomacia exercida pelo Partido dos Trabalhadores, em primeiro
plano, principalmente a Venezuela, no bojo dos países classificados como “bolivarianos”, foram

14 O termo é um acrônimo para Boi, Bala e Bíblia — que indicam o crescimento da bancada parlamentar associada
ao agronegócio, ao setor armamentista e aos religiosos — principalmente evangélicos — no Congresso Nacional.
15 Em evento de campanha, realizado em setembro de 2018 no Acre, Bolsonaro falou ‘Vamos fuzilar a petralhada
aqui do Acre, hein?’”. Disponível em: https://exame.com/brasil/vamos-fuzilar-a-petralhada-diz-bolsonaro-em-
campanha-no-acre/.

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automaticamente posicionados como “inimigos” e identificados como “ameaças” à soberania
nacional e aos interesses brasileiros. Uma vez que a lógica populista é fundamentada na criação
da oposição entre o “povo” e seu inimigo, como já mencionado, a incorporação disto na política
externa passa pelo descrédito de todas as relações bilaterais e multilaterais estabelecidas com
estes atores nos anos anteriores – principalmente em anulação a tudo que fora praticado no
exercício de uma política externa “altiva e ativa” característica aos governos de Luiz Inácio Lula
da Silva 16.
Tendo este cenário como pano de fundo, a escolha dos Ministros associados ao novo
governo buscou contribuir para a implementação desta lógica. No Ministério do Meio Ambiente,
Ricardo Salles atendeu às necessidades do agronegócio; no reestruturado Ministério da Mulher,
Família e Direitos Humanos, a pastora evangélica Damares Alves seguiu a cartilha conservadora,
no Ministério da Economia, Paulo Guedes propôs a liberalização do comércio e no Ministério
de Relações Exteriores, a escolha de Ernesto Araújo serviu para dar forma ao antiglobalismo,
ao negacionismo climático e ao combate contra o “marxismo cultural” no plano internacional
(BANDEIRA DE MELLO, 2022).
De carreira diplomática discreta, Ernesto Araújo atuou como subchefe do gabinete de
Mauro Vieira, durante o governo de Dilma Rousseff (2015) e posteriormente como chefe do
Departamento dos Estados Unidos, Canadá e Assuntos Internacionais. Porém, foi devido ao seu
apoio incondicional aos Estados Unidos e principalmente à figura de Donald Trump, associado às
críticas direcionadas ao PT e sua aversão ao “marxismo cultural” que o tornaram compatível com
a nova proposta de atuação do Itamaraty (BANDEIRA DE MELLO, 2022). Bolsonaro, juntamente
com Ernesto Araújo, ambos influenciados por Olavo de Carvalho, basearam sua política externa
na lógica do antiglobalismo que, segundo Magalhães e Thomaz (2021), seria o aspecto central
do que eles chamam de “Diplomacia do Mito Conspiratório”. Isto fica evidente, por exemplo, no
artigo publicado em 2017, intitulado “Trump e o Ocidente”, no qual Ernesto Araújo versa sobre
uma suposta decadência moral do Ocidente associada a uma “perda de identidade” e a uma
“perda de espírito” que, segundo ele, teriam sido provocados pelo desaparecimento dos “laços
de cultura, fé e tradição” (ARAÚJO, 2017).
A ascensão deste “nacionalismo religioso”, conforme aponta Casarões (2021), imprime à
política externa a mesma dicotomia observada nos discursos domésticos de Bolsonaro pautada
pela existência de um inimigo externo, “antiocidental”, que busca destruir a “verdadeira”
identidade do Brasil – caracterizada pelo presidente e seu Ministro de Relações Exteriores como
cristã e ocidental. Não por acaso, durante pronunciamento na Assembleia Geral das Nações Populismo, discurso e política externa
Unidas, em 2019, Bolsonaro apontou que o Brasil vinha sofrendo “ataques ininterruptos aos
valores familiares e religiosos” que formariam a “tradição” do país (Bolsonaro, 2019b). Na mesma
oportunidade, Bolsonaro identificou as Organizações Não-Governamentais (ONGs), a ONU e a
mídia internacional como ameaças à soberania nacional (BOLSONARO, 2019b).
Ao assumir a narrativa de que implementaria uma política externa livre de ideologia, não
substituindo uma ideologia por outra, mas sim combatendo a vigente, o chamado Globalismo17,

16 A referência a uma política externa “altiva e ativa” remete aos governos de Luiz Inácio Lula da Silva e a figura de
seu Ministro de Relações Exteriores, Celso Amorim. Em linhas gerais, a diplomacia lulista buscou diversificar e ampliar
as parcerias internacionais do Brasil, apostando na defesa de princípios como o universalismo, o multilateralismo, o
pacifismo, a não-intervenção em assuntos externos e a integração latino-americana.
17 Ernesto Araújo vai entender o Globalismo como: os padrões liberais antinacionais e anti-tradicionais na vida social
e o mercado globalizado sem fronteiras na vida econômica; além disso, esse movimento anti-globalista acredita que
o Globalismo corrói as democracias, visto que ele implicaria mover processos decisórios nacionais para instituições
internacionais menos transparentes, que seriam governadas por burocratas expatriados. Portanto, o argumento seria
que o Brasil teria o dever de combater a ideologia globalista, que seria guiada pela tríade: marxismo cultural, Anti-
Humanismo e Anti-Cristianismo (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021).
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tanto Jair Bolsonaro quanto Ernesto Araújo, na verdade, acabaram por esvaziar a tradição da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

política externa incorporando suas visões de mundo à atuação internacional do Brasil. No fim, na
busca pela “desideologização” das relações exteriores, presidente e Ministro conferiram nuances
ainda mais ideológicas — à extrema-direita do espectro político — à política externa brasileira
(PEB). Isto fica evidente na construção da imagem do inimigo quixotesco Marxismo Cultural18,
que serviu como justificativa bolsonarista para as críticas tecidas à atuação de organizações
internacionais como as Nações Unidas e a Organização Mundial da Saúde (OMS) no ápice da
pandemia da COVID-19 .
Durante sua gestão à frente do MRE, Araújo seguiu a onda dos movimentos de extrema-
direita mundial e tratou a Geopolítica e o Desenvolvimento como secundários, colocando a
centralidade na Metapolítica. Esta seria definida no artigo “Trump e o Ocidente como: “o conjunto
de ideias, cultura, filosofia, história e símbolos que atuam tanto no nível racional quanto no
emocional da consciência” (ARAÚJO, 2017). Ernesto Araújo entranhou a ideia de Metapolítica
na PEB, complementando-a com outro termo, a Teopolítica, que teria o papel de agenciar o
Brasil na busca de um destino cultural-espiritual no mundo. Nesta missão, na visão do Ministro,
Bolsonaro foi apresentado como um “guerreiro da cultura” e o “libertador do Brasil”, ou seja,
um personagem capaz de realizar uma transformação duradoura ao espalhar ideias e valores
culturais por toda a sociedade (ARAÚJO, 2020).
A mistura de elementos religiosos e ideológicos nesses discursos é um ponto que deve ser
reforçado. Como já mencionado, a ideia de Globalismo articulada nesse momento da política
externa tem suas raízes nos escritos de Olavo de Carvalho. Para o então guru bolsonarista, o
principal ator que coordena o Globalismo é uma elite global, formada por grupos que participam
das Reuniões de Bilderberg19, que teriam o poder de influenciar as decisões dos Estados. Isso
torna evidente o caráter conspiracionista em que essas narrativas são sustentadas, embora
Araújo afirmasse que a “Nova Política Externa” do Brasil seria pragmática20.
Como podemos observar, isso não se sustentou ao longo do tempo. O pragmatismo
defendido por Araújo se resume, de fato e, em uma oposição ao multiculturalismo e às fronteiras
abertas e procura fortalecer e ampliar um discurso judaico-cristão na PEB (MAGALHÃES; THOMAZ,
2021). Assim sendo, para sustentar essa posição, o Brasil retrocedeu em acordos internacionais,
sendo retirado do Pacto Global de Migração das Nações Unidas, e passou a adotar posições
conservadoras contra a “ideologia de gênero” e a favor da liberdade religiosa no Oriente
Médio, principalmente na Síria, no Iraque e no Líbano (SANTOS ; LEÃO, 2020; BANDEIRA DE
MELLO, 2022). Em 2020, nas Nações Unidas, o presidente brasileiro fez um apelo à comunidade
internacional pelo “combate à cristofobia” e reforçou o estreitamento dos laços de amizade com
Israel, os Emirados Árabes e o Bahrein, além de saudar o Plano de Paz e Prosperidade21 lançado
por Donald Trump relacionado aos conflitos entre Israel e Palestina (BOLSONARO, 2020).

18 Segundo Silva, Sugamosto e Irigaray (2021), o conceito surge no ambiente intelectual do neoconservadorismo
estadunidense e apesar de ter uma certa nebulosidade com relação a sua definição, os autores vão entender o conceito
como “um conglomerado heterogêneo de várias tendências ditas progressistas diferentes: pós-estruturalismo,
feminismo liberal, movimentos pela liberação sexual e desconstrutivismo, por exemplo. Eles as apresentam de
maneira caricatural, vulgarizada, propagandista e, importante, situadas dentro do campo do marxismo” (p. 182).
19 De acordo com Olavo de Carvalho, ele seria uma espécie de “clube secreto” da elite global que promoveria
reuniões anuais para decidir o futuro do mundo. Mais informações disponíveis em: www.bbc.com/portuguese/
internacional-48440059.
20 Cf. www.bbc.com/portuguese/internacional-48440059.
21 O Plano, lançado em junho de 2019 durante a administração do republicano Donald Trump, foi alinhado aos
interesses israelenses na região, como o reconhecimento de Jerusalém como capital indivisível de Israel, criando
uma série de empecilhos para a criação do Estado Palestino. Mais informações em: https://brasil.elpais.com/
internacional/2020-01-29/trump-apresenta-plano-de-paz-que-respalda-os-interesses-chave-de-israel.html.

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Nesse sentido, ao invés da política externa brasileira trabalhar a favor da construção de
consenso, durante a gestão de Ernesto Araújo — e muito influenciada por Jair Bolsonaro e
sua área ideológica de interesses — o Brasil desempenhou um papel secundário, preferindo
aderir à visão de mundo dos EUA de Donald Trump22. Assim, as relações com os BRICS e com
os países da América Latina23, bem como o multilateralismo e as organizações internacionais
foram negligenciadas. Pesam também, neste período, as declarações vexatórias de membros do
governo Bolsonaro, como o ex-Ministro da Educação, Abraham Weintraub e o deputado federal
Eduardo Bolsonaro24, contra o governo chinês durante a pandemia da COVID-19 que buscaram
associar o país asiático a uma ameaça global — em consonância com o antiglobalismo e ao
anticomunismo da gestão brasileira.
Esse posicionamento também se manifesta na clara rejeição que Ernesto Araújo e,
principalmente, Jair Bolsonaro têm ao multilateralismo e à integração regional. Também em
seu discurso de posse, Ernesto Araújo argumentou que os conceitos de multilateralismo,
intergovernamentalismo, governança global e valores universais apenas esconderiam aos blocos
regionais e disfarçariam a pressão da ONU por supranacionalismo e governo25. Dessa forma, a
natureza intergovernamental da UNASUL e do MERCOSUL que baseiam seus procedimentos
decisórios no consenso, seriam contrários ao que Ernesto Araújo e o antiglobalismo acreditam.
Não à toa, Bolsonaro foi um ator ativo para a inviabilização da UNASUL, retirando o Brasil do
organismo em abril de 2019 e apoiando a criação do PROSUL (Foro para o Progresso da América
do Sul), além de defender a participação do país na Aliança do Pacífico. Cabe ressaltar que tanto
a UNASUL quanto o MERCOSUL foram inseridos na lógica da “ideologização” com viés negativo
da política externa praticada, segundo os bolsonaristas, pelos governos petistas.
Constantemente, entre 2019 e 2021, a ideia antiglobalista fez com que Jair Bolsonaro e seu
Ministro de Relações Exteriores, adotassem uma postura pró-Ocidente, concedendo interesses
nacionais para agradar a Donald Trump — que supostamente deveria ser agradado, pois estaria
travando uma guerra cultural contra o globalismo. Portanto, seria dessa lógica antiglobalista
que o Populismo, enquanto ontologia da política e inserido numa análise pós-estruturalista
laclauniana do discurso, se manifesta no processo de tomada de decisão da política externa
brasileira desse período. Nota-se que toda estrutura discursiva do bolsonarismo é fundamentada
na existência de um inimigo que deve ser combatido.
Portanto, o antiglobalismo foi componente fundamental para o exercício da Diplomacia do
Mito Conspiratório26 o que gerou demasiada incerteza sobre o papel do Brasil nas instituições
Populismo, discurso e política externa
22 O discurso de Ernesto Araújo, ratificado fortemente por Jair Bolsonaro e seus tomadores de decisão, é envolto
por um fascínio gigantesco na figura de Donald Trump. Araújo acredita, inclusive, que Trump propõe ao Brasil uma
reconexão com sua “herança mítica de seu passado ocidental” (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021).
23 Com exceção dos que possuíam afinidade ideológica ao presidente, como a Colômbia de Iván Duque, o Chile de
Sebastián Piñera e a Argentina de Maurício Macri.
24 Por meio das redes sociais, o deputado federal e filho do presidente, Eduardo Bolsonaro, responsabilizou a China pela
propagação do vírus COVID-19. No tweet, publicado em março de 2020, Eduardo escreveu: “Quem assistiu Chernobyl
vai entender o que ocorreu. Substitua a usina nuclear pelo coronavírus e a ditadura soviética pela chinesa. [...] +1 vez
uma ditadura preferiu esconder algo grave a expor tendo desgaste, mas que salvaria inúmeras vidas. [...] A culpa é da
China e liberdade seria a solução”. Disponível em: https://g1.globo.com/jornal-nacional/noticia/2020/03/19/eduardo-
bolsonaro-culpa-china-por-coronavirus-e-gera-crise-diplomatica.ghtml. Acesso em 10 ago. 2022.
25 Inaugural speech as Brazil’s Minister of Foreign Relations, 2 jan. 2019. Disponível em: https://www.funag.gov.br/
chdd/index.php/ministros-de-estado-das-relacoes-exteriores?id=317.
26 Diplomacia do Mito Conspiratório seria a forma pela qual o governo de Jair Bolsonaro administra as suas relações
exteriores. Cria-se uma narrativa messiânica ao redor da figura do presidente da República e isso é estendido aos
assuntos externos, onde especificidades míticas e conspiratórias são abordadas durante o processo de formulação
da política externa, distinguindo-se legado histórico da Diplomacia brasileira, calcado no profissionalismo e
pragmatismo, para dar lugar a uma política conspiratória e subserviente.
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sul-americanas e globais (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021). Os antiglobalistas, aqui representados
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

pelo Ministro de Relações Exteriores, Ernesto Araújo, alimentam um ressentimento contra


democracias que apoiam o multilateralismo e o regionalismo, visto que eles consideram as
instituições internacionais locais em que o Marxismo Cultural é difundido e isso resultaria no
desaparecimento dos Estados-nação e o levante do Socialismo sustentado por um governo
mundial (MAGALHÃES; THOMAZ, 2021). Sendo assim, na mesma linha, Guimarães e Silva (2021)
argumentam que a força motriz da política externa do governo Bolsonaro, sustentada pelo
Populismo de extrema-direita, foi baseada em três frentes: o próprio antiglobalismo, um forte
nacionalismo com argumentos pró-soberania e uma narrativa anti-inimigos27.
Durante o período analisado, Jair Bolsonaro e, principalmente, Ernesto Araújo, criaram
significantes vazios — no âmbito discursivo da política externa brasileira — calcados na lógica
do antiglobalismo, criando uma cadeia de equivalência das diferenças que vão desde a suposta
vigência de um “Marxismo Cultural” nas instituições internacionais até a mudança do padrão
de votação na ONU — servindo aos interesses de atores cristãos — para antagonizar o Brasil
e seu “verdadeiro povo” contra as elites internacionais que anseiam, dentro desta perspectiva,
pela criação de um governo socialista global.
Em suma, a lógica aplicada foi a seguinte: aproveitando-se da angústia de certa parte
da população brasileira, tomada por um sentimento de frustração e decepção em relação aos
governos petistas, Jair Bolsonaro — e seu círculo próximo composto pelos filhos, Eduardo e
Carlos, Ministros e apoiadores, como Olavo de Carvalho — começaram uma mobilização
discursiva ao redor de pautas e narrativas muito comuns aos atuais movimentos de extrema-
direita que ascendem no cenário internacional. Essas pautas giram em torno da valorização da
moralidade cristã, do negacionismo climático, racismo, xenofobia e ataques aos direitos das
mulheres, principalmente. No âmbito doméstico, o inimigo foi representado pela esquerda
brasileira e, sobretudo, pela imagem do Partido dos Trabalhadores.
Essa mesma lógica foi transposta ao cenário internacional, onde o inimigo assumiu a forma
da “elite internacional”, os ditos “globalistas” que, na visão dos bolsonaristas, buscam acabar
com os Estados-nação e com a soberania dos países na intenção de implementar o “Marxismo
Cultural” nas instituições internacionais e nos assuntos domésticos. Assim, o maior alvo deste
apelo discursivo, na região, foi a Venezuela, mas em outros momentos a China assumiu esse
papel de grande ameaça à soberania brasileira – como no decorrer da pandemia de COVID-19
e nos debates sobre a implementação da tecnologia 5G. Compete dizer que no tratamento
dispensado aos biomas brasileiros, Amazônia e Pantanal, as ONGs, a mídia e alguns países
europeus (implicitamente Alemanha e a França) também foram acusados de promover uma
“campanha de difamação do Brasil” no exterior (BOLSONARO, 2020).
Dessa forma, através do significante vazio antiglobalismo, a gestão Bolsonaro criou uma
cadeia de equivalência das diferenças muito sólida. Isto é, conseguiu criar equivalências em
pautas como Marxismo Cultural, questões da bancada religiosa do Congresso Nacional — como
a possível mudança da embaixada em Israel —, interesses do agronegócio (SARAIVA; SILVA,
2019), as narrativas da atual extrema-direita e um forte antipetismo que, mesmo atrelado ao
âmbito doméstico, transborda para assuntos internacionais — principalmente nas relações com
os países vizinhos ao Brasil, vide Venezuela e Cuba, por exemplo. Como sustentamos desde o

27 Os autores utilizam de uma abordagem baseada na role theory em busca de demonstrar como a política externa
de Jair Bolsonaro muda de comportamento dependendo do ator com o qual está se relacionando. Quando a relação
envolve Estados liderados por figuras ideologicamente compactuantes com o Populismo de extrema-direita, Jair
Bolsonaro tende a manter um discurso mais fervoroso – os autores vão chamar esse posicionamento de ‘thick
conservative identity’. Em contrapartida, quando Bolsonaro se relaciona com países ideologicamente rivais, a
tendência é manter um discurso de certa forma mais moderado, onde a efervescência da narrativa populista de
extrema-direita se torna mais sutil, sendo uma ‘thin conservative identity’.

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início do capítulo, todas foram costuradas através da narrativa antiglobalista. Destarte, todos
esses elementos são articulados dentro de uma lógica antagonística, não por uma afinidade
positiva, mas sim negativa.
Dito isto, é preciso levar em consideração que, assim como Hermann e Hermann (1989)
e Pinheiro (2000) apontam, as unidades últimas de decisão podem ser variadas. Não cabe
aqui aprofundar este debate, mas baseado nas ideias de Saraiva e Silva (2018) e nas análises
de Magalhães e Thomaz (2021) e Guimarães e Silva (2021), consideramos que as unidades de
decisão do processo de tomada de decisão da política externa brasileira durante a gestão de
Jair Bolsonaro se refletem nos Múltiplos Atores Autônomos (HERMANN; HERMANN, 1989). Por
isso, mesmo que esses atores estejam articulados dentro de uma hegemonia discursiva que
antagoniza a política externa brasileira ao redor do significante vazio antiglobalismo, eles não
concordam em todas as suas pautas.
Isto posto, deve-se ressaltar que existe uma grande diferença entre influenciar o processo
de tomada de decisão e influenciar a decisão final (PINHEIRO, 2000; MILANI; PINHEIRO; LIMA,
2017). Mesmo que a tomada de decisão final não seja condizente com uma postura populista,
isso não significa que o processo de tomada de decisão não tenha sido influenciado por
personagens e ideias populistas. Se levarmos em consideração que a política externa é em parte
uma política pública (MILANI, 2015) chegaremos à conclusão de que o Estado não é detentor
exclusivo do processo decisório. Dependendo do cenário em que um determinado governo se
encontra, o Estado terá maior ou menor influência na tomada de decisão — apesar de ter a
última palavra.
Isso explicaria, juntamente com a ideia dos papéis apresentada por Guimarães e Silva
(2021) e com as disputas entre as alas ideológica e pragmática do governo representadas por
Saraiva e Silva (2019), o motivo pelo qual diversas empreitadas populistas, calcadas nos ideais
de extrema-direita e promovidas por Jair Bolsonaro e seus formuladores de política externa,
não lograram êxito e resultados imediatos. Apesar de influenciar o processo de formulação de
política externa, o discurso populista não consegue furar a barreira da tomada de decisão final,
visto que atores com outras intenções estão em jogo. Mesmo que articulados dentro de uma
mesma lógica antagonística, equivalenciando suas diferenças ao redor do significante vazio
antiglobalismo, esses atores permanecem fiéis aos seus interesses.

Conclusões
Populismo, discurso e política externa
Na introdução deste capítulo apresentamos algumas das motivações pelas quais o discurso
populista ganhou muita força na última década. Eventos como o Brexit e a eleição de Donald
Trump nos Estados Unidos somados à incipiente crise do sistema neoliberal, que tem gerado
um forte ressentimento na sociedade, principalmente na classe média branca cristã, explicam
o alcance internacional do fenômeno. No Brasil, as Jornadas de Junho de 2013 e os resultados
da Operação Lava-Jato contribuíram para a escalada do conservadorismo e do populismo de
extrema-direita. Este movimento culminou com a eleição do então deputado e ex-militar Jair
Bolsonaro em 2018 que ao lado de nomes como Olavo de Carvalho e do agora ex-Ministro de
Relações Exteriores, Ernesto Araújo, buscou “desideologizar” a Política Externa Brasileira para
torná-la condizente com os “verdadeiros” valores do Brasil: Deus, família e liberdade.
Para mostrar como a lógica populista foi incorporada ao modo de conduzir e implementar
a Política Externa Brasileira, o capítulo utilizou como base o conceito de Populismo e a Teoria do
Discurso de Ernesto Laclau, formulada em parceria com Chantal Mouffe. Os aportes teóricos nos
permitiram identificar como os processos de antagonização, baseados na constante oposição
entre o “povo” e seu “inimigo” — seja na figura do Partido dos Trabalhadores (PT), seja na
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imagem de organizações internacionais ou países como a Venezuela — e de equivalência das
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diferenças — sobretudo em torno do “Marxismo Cultural” — foram articulados ao redor do


significante vazio antiglobalismo.
Destarte, também pontuamos a importância de entender política externa como um tipo de
política pública, uma vez que ela se torna uma questão democrática e sujeita às interpelações
da opinião pública. Afeitos ao objetivo central deste capítulo, identificar como o Populismo
influenciou a política externa de Jair Bolsonaro, mostramos a diferença entre o processo de
tomada de decisão e as decisões finais que revelaram que nem sempre os influenciadores do
processo vão lograr êxito na decisão final. Este é um fator importante para entender o motivo
pelo qual, apesar da política externa de Ernesto Araújo e Jair Bolsonaro trazer para o debate a
narrativa populista em torno do antiglobalismo, no fim das contas tal narrativa não impactou em
todas as ações de política externa do governo.
Por fim, concluímos que mesmo com uma aparente hegemonia, baseado na criação de
antagonismos e cadeias de equivalência, por meio da construção de inimigos e da articulação
do significante vazio antiglobalismo, o Populismo exerce apenas uma forte influência discursiva
no processo de formulação da Política Externa Brasileira. Mesmo que pertencentes a uma cadeia
de equivalência e articulados dentro de uma lógica antagonística comum, os atores vinculados
à política externa, por serem Múltiplos Atores Autônomos, não concordam em todas as pautas
produzindo divergências e conflitos internos no governo.

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Populismo, discurso e política externa


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CAPÍTULO 6

OS MERCADORES DA DÚVIDA E A DIPLOMACIA BRASILEIRA: O


NEGACIONISMO CLIMÁTICO NA POLÍTICA EXTERNA BRASILEIRA DO
GOVERNO BOLSONARO

Nathan Morais Pinto da Silva

Introdução

A ascensão de Jair Bolsonaro à Presidência do Brasil em 2019 trouxe profundas mudanças


em diversos setores da administração pública brasileira, como a reformulação, e até mesmo a
extinção, de várias pastas e cargos. Dois setores em que essas mudanças ocorreram em grande
intensidade foram a política externa e as políticas ambientais e climáticas do país, e, em especial,
na interseção entre estas duas temáticas, onde pode ser identificada uma radical quebra na
continuidade observada ao longo dos governos anteriores.
As mudanças no Ministério das Relações Exteriores (MRE, ou Itamaraty) e no Ministério do
Meio Ambiente (MMA) são simbolizadas pelas personalidades daqueles que passaram a ocupar
estas duas pastas. Ernesto Araújo, um diplomata de experiência e prestígio relativamente limitados
que vinha demonstrando opiniões alinhadas ao conservadorismo, assumiu a chancelaria brasileira e
esteve à frente de mudanças significativas na diplomacia brasileira, conforme analisado no capítulo
de Lucca Belfi e Beatriz Bandeira de Mello, neste volume. Por sua vez, o MMA ficou a cargo de
Ricardo Salles, um advogado e administrador que dispunha de ligações íntimas com setores do
agronegócio e think tanks conservadores, como o Movimento Endireita Brasil, do qual foi fundador.
As nomeações de Ernesto Araújo e Ricardo Salles são sintomáticas da adoção de um
critério de afinidade ideológica por parte do presidente Bolsonaro no processo de nomeação
de indivíduos para ministérios e outros cargos públicos, em detrimento da expertise técnica,
acadêmica e científica — ainda que este argumento também tenha sido utilizado por momentos,
principalmente quando em consonância com os interesses do governo. Após assumirem seus
postos, estes dois ministros promoveram drásticas alterações de curso na trajetória brasileira de
suas respectivas arenas de políticas públicas.
Estas mudanças foram evidenciadas não apenas na prática, onde podem ser identificadas
diversas ações de protelação e obstrução das agendas ambientais e climáticas tanto no plano
doméstico quanto no internacional, mas também no campo do discurso. Desde os primeiros
meses do governo Bolsonaro, ambas as pastas passaram a minimizar a relevância destas questões,
e, em algumas oportunidades, estes atores tornaram públicos sentimentos de desprezo, ceticismo
e negação em relação às mudanças climáticas produzidas pela ação humana e até mesmo ao
multilateralismo como um todo.
Isto ocorreu em meio a um contexto de fortalecimento do negacionismo climático como
prática política e estratégia retórica em várias partes do mundo, e em especial nos Estados
Unidos da América, onde o então presidente Donald Trump (diante do qual a diplomacia
brasileira liderada por Araújo adotou uma postura de alinhamento em muitos momentos) foi um
dos principais propagadores desse sentimento de negação.
Este capítulo tem como objetivo analisar a incidência da adesão ao negacionismo climático
por parte dos formuladores da diplomacia brasileira como uma fonte conceitual da política
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externa do país durante o governo de Jair Bolsonaro — mais precisamente, entre 2019 e 2021,
período correspondente às gestões de Ernesto Araújo e Ricardo Salles nos Ministérios das
Relações Exteriores e do Meio Ambiente, respectivamente.
A análise aqui disposta se propõe a servir como ponto de partida para a construção de
uma agenda de pesquisa que busca articular o estudo do fenômeno do negacionismo climático
no âmbito global e na área da Análise de Política Externa, sobretudo a partir do Brasil, onde os
resultados práticos desse processo já podem ser observados e analisados. Parte-se, então, de
algumas hipóteses. A primeira é de que as mudanças na política externa brasileira para assuntos
climáticos no governo Bolsonaro são guiadas pelos líderes, se dando principalmente a partir das
ideias e visões dos principais tomadores de decisão, como o próprio presidente Bolsonaro, o
chanceler Araújo e os membros da chamada “ala ideológica” do governo.
Neste sentido, aponta-se para um maior grau de ideologização da diplomacia brasileira
em relação ao tema, no sentido de que ela se guiou muito mais por princípios e ideias pré-
estabelecidas do que por interesses pragmáticos. A outra hipótese trabalhada é a de que as
motivações para a ação internacional brasileira nesse tema mudaram pois houve uma mudança
no papel das ideias no processo decisório. Historicamente, a visão da diplomacia brasileira sobre
as mudanças climáticas se pautou em crenças causais, baseadas no consenso científico sobre o
assunto.
No governo Bolsonaro, essa visão teria sido substituída pela perspectiva pessoal dos
tomadores de decisão de que a agenda climática (e o multilateralismo como um todo, em um
sentido mais amplo) deveria ser ressignificada ou mesmo descartada por conta de motivações e
interesses políticos e econômicos diversos. A partir disto, verifica-se que é possível observar um
processo de institucionalização das ideias referentes ao negacionismo climático nas instâncias
formuladoras da política externa brasileira, evidenciada em ações como a participação de
diplomatas brasileiras em conferências sobre o tema no exterior, entre outras.
Este capítulo está dividido em três seções, para além desta introdução e das considerações
finais. Na primeira seção, tem lugar uma breve discussão conceitual sobre o papel e os efeitos

Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira


das ideias no processo de tomada de decisão em política externa. Na seção seguinte, ocorre
uma exposição sobre o negacionismo climático, suas origens e suas formas de manifestação,
além de uma contextualização sobre a sua adesão no Brasil. Na terceira e última seção, ocorre a
análise empírica das ações e discursos da política externa brasileira para assuntos climáticos ao
longo do governo Bolsonaro, onde será relatado o processo de redefinição da agenda climática
na diplomacia brasileira durante o período.

As ideias como fontes e variáveis de mudança em política externa: discussão conceitual

Ao longo das últimas décadas, autores das Relações Internacionais vêm buscando cada vez
mais “abrir a caixa-preta” dos Estados e incorporar variáveis que vão além do nível sistêmico de
análise em seus estudos. Parte importante deste esforço é a incorporação das ideias como fatores
explicativos do comportamento dos Estados, a partir principalmente (mas não apenas) do trabalho
de autores filiados à tradição do construtivismo social dentro da disciplina. As análises pertencentes
a esta corrente teórica partem não de elementos materiais, mas sim ideológicos e/ou identitários.
Dentro da sub-área da Análise de Política Externa, é cada vez mais comum o estudo das
variáveis localizadas no nível de análise do indivíduo, como as características pessoais e traços
de personalidade dos tomadores de decisão, além das suas percepções, visões de mundo,
emoções, entre outros. Tais abordagens, que buscam incorporar fatores cognitivos à análise da
política externa dos países, possuem grande influência de outras áreas do conhecimento, como
a psicologia social, a sociologia e a antropologia.
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Um exemplo dessas abordagens é o referencial analítico proposto por Goldstein e Keohane
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

(1993) que busca analisar o papel das ideias e a sua incorporação no processo decisório da
política externa. Os autores classificam as ideias que incidem neste processo em três tipos:
visões de mundo, crenças baseadas em princípios e crenças causais; e identificam três situações
distintas nas quais as ideias têm um efeito no processo de tomada de decisão.
As visões de mundo são aquelas ideias ligadas às concepções que os indivíduos têm sobre
sua própria identidade, evocando emoções e sentimentos de lealdade. As crenças baseadas em
princípios, por sua vez, são aquelas de caráter normativo, que especificam critérios morais sobre
o que é certo ou errado, ou justo ou injusto. Muitas vezes, estas são justificadas pelas próprias
visões de mundo que os tomadores de decisão detêm. Já as crenças causais são aquelas ligadas
a relações de causa e efeito, derivadas de consenso obtido por elites dos mais diversos tipos,
incluindo elites políticas e comunidades científicas (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993).
Os autores também indicam três tipos de situações em que as ideias impactam a
formulação da política externa. Elas podem agir como “mapas do caminho” que aumentam a
clareza dos atores sobre seus objetivos em situações de incerteza, como “pontos focais” quando
existem problemas de coordenação e em situações estratégicas como crises, e podem ser
institucionalizadas a ponto de se consolidar dentro do desenho institucional de organizações
envolvidas no processo decisório (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993).
A depender do grau de permeabilidade do processo decisório em relação ao ingresso das
ideias, as políticas externas podem ter maior ou menor influência de componentes ideacionais,
podendo ser classificadas como mais pragmáticas ou mais ideológicas. Uma política externa
pragmática prioriza a ação visando ganhos tangíveis em detrimento da doutrina e da experiência
em oposição a princípios fixos, considerando as consequências práticas dessas ações e pautada em
planejamento de médio a longo prazo e políticas de Estado. Por outro lado, uma política externa
ideológica enfatiza ideias doutrinárias e posições pré-concebidas, tendo a compatibilidade com
princípios estabelecidos como principal critério de definição e sendo caracterizada por planejamento
de curto prazo e visões pessoais de líderes ou personalidades específicas (GARDINI, 2011).
É importante ressaltar que toda política externa possui pelo menos alguns elementos tanto
de pragmatismo quanto de ideologia, não sendo possível adotar apenas uma caracterização. A
investigação das interações, combinações e contradições entre esses dois conceitos é inerente à
análise de qualquer política externa.
As ideias e componentes ideológicos dos tomadores de decisão também podem
ser elementos catalisadores de mudança em política externa. Ao realizar um estudo sobre
redirecionamentos em política externa, Hermann (1990) caracteriza as mudanças guiadas pelo
líder (leader driven changes) como uma das possíveis fontes de mudança. Estas ocorrem quando
um líder — na maioria das vezes, mas não exclusivamente, o chefe de Estado — impõe sua
própria visão sobre um determinado assunto, o que causa o redirecionamento no curso de ação
posto em prática. Este tipo de mudança ocorre quando o líder em questão possui a autoridade
efetiva para a condução da política externa, ou seja, quando este dispõe dos recursos para impor
a mudança de curso (HERMANN, 1990).
Considerando que o negacionismo climático pode ser observado como um conjunto
de ideias e visões de mundo (ainda que não necessariamente homogêneo) sobre uma questão
em particular que possui uma dimensão internacional definida (a governança climática em
âmbito multilateral), considera-se que a literatura sobre o papel das ideias no processo decisório
em política externa pode auxiliar a pensar como esse movimento tem influenciado a política
externa brasileira desde a posse de Jair Bolsonaro e a consequente reorientação da inserção
internacional do país. Antes de proceder a esta análise, é necessária uma breve contextualização
histórica sobre o lugar deste tema na diplomacia brasileira.

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O negacionismo climático e sua adesão no Brasil

Em decorrência tanto dos seus atributos naturais e geográficos quanto das suas ações
no plano internacional, o Brasil adquiriu ao longo dos anos o status de um país relevante no
âmbito das negociações climáticas e na questão ambiental como um todo. O país tem sido
caracterizado como uma grande potência climática ao lado de atores como Índia, Japão e Coreia
do Sul, e apenas um degrau abaixo de superpotências como Estados Unidos, China e União
Europeia. Ou seja, isto quer dizer que o país não está em posição que atribui capacidade de veto
em acordos, mas ainda pode acelerar ou obstruir determinados processos de acordo com seu
interesse, assim tendo à disposição poder tanto para “construir” quanto para “destruir” a agenda
climática global (VIOLA; FRANCHINI, 2011; HOCHSTETLER; INOUE, 2019).
Ao longo das últimas décadas, o Brasil tem se colocado como protagonista na temática
ambiental no âmbito global, tendo sediado conferências como a ECO-92 (ou Rio-92), em 1992,
e a Rio+20, em 2012, e participado ativamente de negociações de acordos climáticos, com
destaque para o Acordo de Paris, celebrado em 2015 e ratificado pelo Brasil no ano seguinte. A
eleição de Jair Bolsonaro em 2018, contudo, se provaria como um obstáculo de difícil superação
para a continuidade das políticas climáticas brasileiras, incluindo a própria adesão ao Acordo. O
novo governo promoveu uma transformação radical na definição do lugar da agenda climática
na vida política nacional. Este contexto será abordado mais adiante, não sem antes apresentar
um dos fenômenos que impulsionou esse movimento: a construção do negacionismo climático
e a sua penetração no Brasil.
Ao longo das últimas décadas, com o desenvolvimento de estudos sobre as mudanças
do clima e métodos como a modelagem climática e, principalmente, após a criação do Painel
Intergovernamental sobre as Mudanças Climáticas das Nações Unidas (IPCC, na sigla em inglês)
em 1988, foi se consolidando um virtual consenso científico acerca das mudanças climáticas.
Parte desse consenso é o reconhecimento do seu componente antropogênico, no sentido de
que é a ação humana sobre o planeta a sua principal causa. Este consenso foi ganhando força ao

Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira


longo dos anos: enquanto em 2001, 90% dos cientistas acreditavam que o aquecimento global
resultava principalmente da ação humana, em 2007 estes já eram entre 95 e 99% (WEART, 2011).
A construção do consenso científico em torno do aquecimento global e das mudanças
climáticas não se desenrolou livre de críticas. Uma delas é a de que esse processo se deu por
meio de termos científicos demasiadamente técnicos e reducionistas que dificultam o seu
entendimento por parte do grande público, fazendo com que o assunto se limite ao interesse
de cientistas e apenas alguns formuladores de políticas. Existe, portanto, uma separação entre a
dimensão científica do problema e o seu caráter político e econômico.
Além disso, a formulação dessa questão como um problema global fez com que os efeitos
desiguais das mudanças climáticas fossem colocados em segundo plano, negligenciando as
diferenças entre as complicações deste processo em diferentes partes do mundo (DEMERITT, 2001).
Contudo, os que realizam estas críticas não hesitam em reconhecer a existência e a legitimidade
do problema das mudanças climáticas, e trabalham ativamente em busca de soluções.
Por outro lado, como é comum em qualquer tipo de desenvolvimento científico, surgiram
manifestações de ceticismo em relação às mudanças climáticas. Além disso, começaram a
ganhar espaço vozes dissonantes que criticavam a ideia do consenso em torno da questão,
apesar da quase unanimidade sobre o tema em publicações acadêmicas revisadas por pares
(WEART, 2011). Em alguns casos, estes indivíduos não se limitaram a questionar as teses sobre as
mudanças climáticas e passaram a negá-las de forma incisiva, por uma série de razões que serão
discutidas ao longo desta seção. Pode-se dizer, então, que o ceticismo diante da questão passou
por um processo de transformação e se materializou em negacionismo.
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Neste sentido, pode ser considerada a existência de um contínuo entre ceticismo e
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negacionismo, com os céticos se mostrando abertos a evidências e os negacionistas adotando


uma postura de total negação em relação ao assunto. Ao propor uma tipologia para a classificação
dos cientistas envolvidos com a questão do clima em relação às suas posturas, Lahsen (2013)
observa a existência de três tipos: os cientistas do mainstream preocupados com a questão,
que reconhecem as teorias das mudanças climáticas e/ou o seu componente antropogênico; os
cientistas do mainstream céticos, que as questionam com moderação; e os cientistas contrários,
que as negam categoricamente.
Os cientistas contrários, diferentemente dos dois primeiros grupos, não publicam em
periódicos revisados por pares e muitas vezes são ligados a instituições conservadoras. Muitas
vezes, os cientistas classificados como contrários se apresentam como céticos, de modo a
suavizar a percepção negativa por parte do público em relação ao negacionismo. Apesar do uso
desse termo, estes não são propriamente céticos, mas sim estão em negação total e descartam
qualquer tipo de evidência contrária aos seus argumentos (DUNLAP, 2013).
É importante salientar que a negação das mudanças climáticas pode se manifestar de
diversas formas. Em um estudo quantitativo sobre as técnicas utilizadas por atores propagadores
do negacionismo climático, McKie (2018) identificou cinco tipos de técnicas empregadas pelos
membros do que a autora chama de “contra-movimento das mudanças climáticas”.
Estes tipos são: a negação da responsabilidade, no sentido de que as mudanças climáticas
estão acontecendo, mas os humanos não são os responsáveis por elas; a negação do prejuízo,
pautada no argumento de que a ação humana não causa danos significativos e pode até mesmo
causar benefícios; a negação da vítima, representada pela rejeição da existência e da legitimidade
das vítimas das mudanças climáticas; a condenação do condenador, que consiste na negação da
credibilidade dos cientistas, meios de comunicação, políticos e ativistas ambientais envolvidos
na questão; e, por fim, o apelo a maiores autoridades, baseado na crença de que a prevenção
das mudanças climáticas é uma preocupação menor quando comparada com outros problemas,
como o desenvolvimento econômico (MCKIE, 2018).
O negacionismo climático e suas diversas manifestações têm sido divulgados através de
campanhas de desinformação lideradas pelos cientistas contrários e diversos outros atores,
como institutos conservadores e corporações que possuem interesse em desacelerar as medidas
de prevenção e mitigação das mudanças climáticas de modo a manter suas atividades poluentes
e, consequentemente, preservar o modelo de negócios business as usual, como as indústrias
intensivas em combustíveis fósseis (DUNLAP, 2013). Estes atores aproveitam das complexidades
e incertezas em torno da produção científica acerca do tema para fomentar sentimentos de
dúvida no grande público que, por uma série de razões, não possui conhecimento de causa
sobre o assunto.
Destaca-se, nesse sentido, o livro escrito por Naomi Oreskes e Erik Conway (2010) sobre
o desenvolvimento histórico desse processo de fabricação de incertezas por parte de cientistas
ligados a determinados setores econômicos, como a indústria do tabaco, e como esse processo
foi instrumentalizado na propagação do negacionismo das mudanças climáticas. Os autores
caracterizam estes atores como “mercadores da dúvida”, no sentido de que estes indivíduos
tratam esses sentimentos de dúvida e incerteza transmitidos ao público como um serviço
oferecido àqueles que desejam combater os esforços das comunidades científica e política
envolvidas na questão (ORESKES e CONWAY, 2010). Essa estratégia não consiste em negar as
mudanças climáticas em si, mas em negar o consenso científico em torno delas. Portanto, o
objetivo não é refutar o consenso, e sim provar que não há um consenso.
Para além dos cientistas, diversos atores inseridos na sociedade civil agem como
propagadores do negacionismo climático. Diversas instituições e think tanks identificados

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como conservadores e libertários atuando principalmente na América do Norte e na Europa,
como a Heritage Foundation, o Cato Institute e o Heartland Institute nos Estados Unidos e o
Liberales-Institut na Alemanha, entre outros, têm difundido a prática do negacionismo climático
em seus vários formatos através de publicações e livros (quase sempre publicados por editoras
desconhecidas e não revisados por pares), além de postagens em blogs e conferências (BUSCH;
JUDICK, 2021; DUNLAP; JACQUES, 2013).
A ação organizada desses atores atribui um componente político ao negacionismo e o
introduz efetivamente no debate público, fazendo com que a questão tenha sido apresentada
cada vez mais como uma disputa legítima entre dois grupos de cientistas “equivalentes”, mesmo
que utilizando técnicas e recursos completamente distintos (WEART, 2011). Nesse sentido, os
meios de comunicação têm se preocupado cada vez mais em “ouvir os dois lados da história”,
dando visibilidade e atribuindo legitimidade aos argumentos negacionistas.
Não menos relevantes que os atores políticos são os grupos de interesse econômicos
que financiam e participam diretamente do movimento de negação das mudanças climáticas.
Destaca-se, nesse sentido, a ação da Global Climate Coalition (GCC), organização que congregava
diversas corporações de vários países (e, principalmente, dos Estados Unidos) e participava
como parte interessada em negociações da governança climática. A GCC foi dissolvida em 2002,
e desde então, corporações interessadas em financiar os movimentos negacionistas têm se
organizado em torno de instituições e think tanks como aquelas já mencionadas, além de novas
organizações como a Cooler Heads Coalition, financiada e operada pelo Competitive Enterprise
Institute (CEI) (DUNLAP; JACQUES, 2013).
Nesse sentido, principalmente nos países da América do Norte e Europa, é cada vez mais
comum a formação de redes compostas por empresas — como aquelas ligadas aos setores
intensivos de carbono, que são as maiores interessadas na obstrução da prevenção das mudanças
climáticas — e organizações da sociedade civil com o objetivo de defender os seus interesses
através da difusão de práticas de negação em variadas formas. Esse movimento é ilustrado pelo
estudo quantitativo de Carroll e seus colegas sobre as redes corporativas de propagação do

Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira


negacionismo climático construídas na província de Alberta, no Canadá, onde se formou uma
estrutura de negacionismo “soft”, que reconhece a mudança climática enquanto protege os
interesses dessas companhias (CARROLL et al., 2018).
No Brasil, os negacionistas climáticos começaram a ganhar espaço na mídia e na vida
política do país a partir do fim da década de 2000, à medida que a agenda climática avançava
nas políticas doméstica e externa. Desde então, os “mercadores da dúvida” brasileiros têm posto
em prática as estratégias de questionamento e descrédito do consenso científico em matéria de
mudanças climáticas, amparados no apoio de setores como o agronegócio e a bancada ruralista
no Congresso Nacional (MIGUEL, 2020).
A ligação entre os ruralistas e o negacionismo climático se mostrou presente nas discussões
em torno da reformulação do Código Florestal Brasileiro em 2009, quando estes convidaram o
meteorologista Luiz Carlos Molion, um dos principais céticos climáticos do Brasil, a participar de
uma audiência pública sobre o assunto na Câmara dos Deputados (MIGUEL, 2020). Com o apoio
econômico e político de empresários do agronegócio e políticos ligados ao setor, Molion tem papel
de liderança em iniciativas de divulgação das teses negacionistas sobre o aquecimento global e o
desmatamento e as suas relações com as atividades produtivas rurais (MELLO; PRADO, 2018).
Os negacionistas brasileiros também têm se beneficiado da atenção que recebem de
veículos de imprensa, cada vez mais preocupados em “ouvir os dois lados”. Em maio de 2012,
às vésperas da Rio+20 e da conclusão das discussões sobre o Código Florestal, o climatologista
Ricardo Felício foi entrevistado no Programa do Jô, na Rede Globo de Televisão. Na ocasião,
Felício desmentiu o aquecimento global e o efeito estufa e se referiu aos cientistas que neles
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acreditam como “aquecimentistas” (FELÍCIO, 2012) . Ainda neste contexto, Luiz Carlos Molion
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

foi entrevistado pela Folha de São Paulo, onde criticou a atuação da ONU e do IPCC e usou
a expressão “terrorismo climático” para caracterizar os cientistas que acreditam nas mudanças
climáticas antropogênicas (RIGHETTI, 2012).
Um dos principais argumentos dos negacionistas e céticos climáticos brasileiros é o de
que a agenda multilateral da governança climática atenta contra a soberania nacional do país e
limita as suas possibilidades de desenvolvimento econômico. Os que partem por esta linha de
argumentação falam em um “colonialismo ambiental” praticado por países mais desenvolvidos.
Essa crítica é compartilhada inclusive por alguns setores da esquerda, que muitas vezes associam
as organizações internacionais e os ativistas ambientais a um projeto imperialista norte-
americano, afirmando que a ação destes atores em relação ao assunto vai além das questões
ecológicas e científicas (MIGUEL, 2020).
Com a ascensão de Jair Bolsonaro à presidência da República, as conexões políticas entre
os negacionistas e os atores políticos se tornaram mais evidentes. Nas eleições de 2018, Ricardo
Felício embarcou na onda do bolsonarismo e se candidatou a deputado federal pelo PSL de São
Paulo, recebendo mais de 11 mil votos após uma campanha alinhada às pautas defendidas pelo
então presidenciável.
Após a posse de Bolsonaro e a nomeação de Ricardo Salles para o MMA, um grupo
de cientistas liderado por Felício e Molion escreveu uma carta a Salles e a diversos outros
membros do governo — entre eles o vice-presidente Hamilton Mourão e o chanceler Ernesto
Araújo — denunciando cientistas e organizações ambientais e divulgando teses negacionistas,
apresentando propostas alinhadas a elas (NOTÍCIAS AGRÍCOLAS, 2019).
Na próxima seção, observa-se em que sentido e intensidade os discursos de ceticismo e
negacionismo climático pautaram a política externa brasileira ao longo dos primeiros dois anos
do governo Bolsonaro. Antes disso, é importante lembrar que Ernesto Araújo deixou a chancelaria
em março de 2021, sendo substituído por Carlos França. Devido ao caráter recente da transição
no ministério, as ações realizadas sob a gestão do novo ministro não serão analisadas a fundo.

Uma política externa climatocética? O governo Bolsonaro e a redefinição da agenda


climática brasileira

As nomeações de Ernesto Araújo e Ricardo Salles para os Ministérios das Relações


Exteriores e do Meio Ambiente, respectivamente, representam uma ruptura drástica na trajetória
de construção da política externa brasileira para questões ambientais aludida no início da
segunda seção deste artigo. No caso da pasta do meio ambiente, a gestão de Salles representa
um processo de descontinuidade em relação aos governos anteriores, marcando um período de
“desmantelamento institucional” e “bullying administrativo” (GAETANI; TEIXEIRA, 2021) em meio
ao qual ocorreu a destruição de mecanismos de governança baseados na participação social em
funcionamento no país há mais de três décadas.
Na política externa, a chancelaria de Araújo representa uma das mais bruscas quebras
de continuidade da história diplomática do país. O novo ministro, à primeira vista um nome
relativamente desconhecido que nunca havia chefiado uma embaixada ou ocupado um posto
relevante na estrutura diplomática brasileira, esteve no centro de mudanças significativas na
condução da atuação internacional do país, contribuindo para a implementação de uma
agressiva agenda conservadora no Itamaraty.
Desde antes da eleição de Bolsonaro, Araújo falava na necessidade da implementação
de uma “metapolítica externa” brasileira, pautada no combate ao “globalismo” e na defesa
dos valores cristãos e ocidentais (SARAIVA; SILVA, 2019). Um exemplo deste movimento é o

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aparelhamento da Fundação Alexandre de Gusmão (FUNAG), fundação de pesquisa vinculada
ao Itamaraty, que passou a promover encontros e palestras de teor conspiratório e alinhados a
temas conservadores, inclusive sobre a questão climática (DUCHIADE, 2020).
No plano das ações práticas, são três as principais fontes da política externa brasileira
sob Araújo: o sentimento de rejeição aos governos do Partido dos Trabalhadores (PT), que se
estende à política externa; as crenças da comunidade evangélica brasileira, intimamente ligada
a Israel e alvo de promessas de campanha de Bolsonaro, como a transferência da embaixada
brasileira no país de Tel Aviv para Jerusalém; e o “anti-globalismo”, materializado em uma
rejeição de tom conspiratório às Nações Unidas e a outras organizações internacionais, que
agiriam de modo a limitar a soberania e a liberdade das nações e dos povos, incluindo o Brasil
(CASARÕES; FLEMES, 2019).
Nesse sentido, o que inicialmente foi entendido como um novo movimento de alinhamento
aos Estados Unidos — algo recorrente na história da política externa brasileira — mostrou
ser um alinhamento direto ao governo de Donald Trump. A diplomacia brasileira começou a
replicar muitos dos comportamentos em política externa norte-americanos, como a narrativa de
enfrentamento aos regimes internacionais, incluindo aqui as questões climáticas, e a hostilidade
a determinados grupos percebidos como “inimigos”, como a China, políticos de esquerda e
imigrantes (GUIMARÃES; DUTRA, 2021).
Contudo, a implementação dessa agenda na política externa brasileira não tem se dado sem
resistência dentro dos próprios setores que compõem o governo. É possível identificar uma forte
tensão entre duas alas dentro da estrutura decisória do governo Bolsonaro: uma ala ideológica e
uma ala pragmática. A ala ideológica é composta pelos “olavistas” — aqueles influenciados pelo
auto-proclamado filósofo Olavo de Carvalho, principal ideólogo do governo — como o próprio
Araújo, o assessor para assuntos internacionais da Presidência, Filipe G. Martins, e o deputado
federal por São Paulo, presidente da Comissão de Relações Exteriores da Câmara e, não menos
importante, terceiro dos quatro filhos homens do presidente, Eduardo Bolsonaro.
Por sua vez, a ala pragmática é composta por aqueles que se opõem à agenda

Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira


ideológica, como os militares — como o vice-presidente, o general Hamilton Mourão — e
grupos econômicos ligados ao agronegócio (SARAIVA; SILVA, 2019). Durante toda a gestão de
Araújo, os interesses das duas alas se chocaram em diferentes ocasiões. No caso da questão
referente às mudanças climáticas, a ala ideológica se mostrou mais atuante, mas acabou tendo
seu projeto derrotado após a substituição de Araújo na chancelaria, como será discutido mais
adiante.
A questão climática foi um dos pontos em que o componente anti-globalista da chancelaria
de Ernesto Araújo se mostrou mais contundente. Em várias de suas falas, Araújo fazia referência
ao “climatismo”, termo que ele utiliza com frequência para caracterizar uma “ideologia da
mudança do clima”. Para o então chanceler, líderes políticos de vários países fazem uso de
um discurso alarmista sobre mudanças climáticas para atingir objetivos políticos, como limitar
a soberania do Brasil (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019b). A retórica negacionista e a hostilidade
diante das instituições e atores que tratam do tema ambiental contribuíram para um inédito
isolamento do país na questão, tornando-o irreconhecível na arena da governança climática
global (GAETANI; TEIXEIRA, 2021).
O desprezo pela agenda climática no projeto bolsonarista é aparente desde a campanha
pela presidência. Desde antes do pleito, Bolsonaro vinha ameaçando deixar o Acordo de Paris
se eleito, a exemplo de Trump, que o fez em 2017. Tal ameaça, condizente com o repúdio ao
multilateralismo, era pautada no argumento da defesa da soberania nacional (CHAGAS-BASTOS;
FRANZONI, 2019). Antes mesmo da posse de Bolsonaro, o Brasil desistiu de sediar a COP 25,
conferência onde foram discutidos os meios de implementação do Acordo, que acabou sendo
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realizada em Madri, na Espanha, em dezembro de 2019. A desistência, justificada por cortes
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

orçamentários, pode ter sido influenciada pelo governo eleito (AMARAL, 2018).
O caráter negacionista da política externa climática do governo Bolsonaro é ainda mais
evidente quando se observam os discursos e atos públicos dos líderes. Um caso emblemático
é a fala de Ernesto Araújo em uma reunião com diplomatas, quando o então chanceler negou
os efeitos do aquecimento global ao contar uma anedota em tom irônico: “Não acredito em
aquecimento global. Vejam que fui a Roma em maio e estava tendo uma onda de frio enorme.
Isso mostra como as teorias do aquecimento global estão erradas. Isso a mídia não noticia”
(ARAÚJO apud AMADO, 2019, sp.). A fala de Araújo, sintomática do desprezo da agenda
climática, causou constrangimento entre os diplomatas presentes.
Durante a chancelaria de Araújo, as suas conexões internacionais com atores promotores do
negacionismo climático foram expostas. Ao longo da gestão do chanceler, a diplomacia brasileira
participou ativamente de encontros organizados por alguns dos think tanks conservadores
norte-americanos mencionados na terceira seção deste artigo. Em julho de 2019, um diplomata
brasileiro participou da Conferência Internacional sobre Mudança do Clima promovida pelo The
Heartland Institute, nos Estados Unidos, onde também estavam presentes cientistas céticos e
contrários à mudança do clima (FOLHA DE SÃO PAULO, 2019a).
Em setembro do mesmo ano, em meio a uma viagem ao país, Araújo discursou em um
evento da Heritage Foundation, think tank aliado ao governo Trump. Na ocasião, o então
chanceler afirmou que a discussão sobre mudanças climáticas era um pretexto para ditaduras,
e usou termos como “hipnose coletiva” e “apocalipse zumbi” ao se referir ao tema (FOLHA DE
SÃO PAULO, 2019b). Além disso, Araújo pôs em dúvida o caráter antropogênico das mudanças
climáticas. “Então, existe mudança do clima? Sim, certamente, sempre existiu. Ela é causada pelo
homem? Muitos dizem que sim, mas não sabemos ao certo” (ARAÚJO apud FUNAG, 2019, p. 8),
questionou o ministro.
No mês seguinte, Araújo discursou na edição brasileira do congresso da Conservative Political
Action Conference (CPAC), realizada em São Paulo. No discurso, Araújo atribuiu caráter ideológico
à produção científica sobre mudanças climáticas: “O climatismo está para a mudança climática
como o globalismo está para a globalização. A mudança climática deveria ser estudada de maneira
serena, racional, mas também foi capturada por uma ideologia” (ARAÚJO apud ZANINI; MELLO,
2019, sp.). Além disso, o então chanceler criticou o Acordo de Paris, afirmando que o Brasil estava
sendo “vilipendiado” pelas contribuições nacionais acordadas, negou as previsões de aumento da
temperatura média global realizadas por cientistas e ironizou a jovem ativista Greta Thunberg.
Contudo, pelo menos no que diz respeito às ações práticas, a violenta retórica na temática do
clima começou a trazer custos para a política externa brasileira. A política climática do país passou
a ser alvo de tensões entre as alas ideológica e pragmática do governo e a estratégia negacionista
começou a se esvaziar aos poucos. Ainda nos primeiros instantes do seu mandato, às vésperas da
sua ida para o Fórum Econômico Mundial em 2019, Bolsonaro desistiu da ideia de deixar o Acordo
de Paris (CASARÕES; FLEMES, 2019). Ainda que a decisão não tenha gerado efeitos positivos visíveis
no que tange ao cumprimento dos pontos do Acordo, o recuo desta promessa de campanha
ilustra as limitações da estratégia negacionista dentro do horizonte da diplomacia brasileira.
É relevante também destacar, nesse sentido, a deterioração das relações do Brasil com
alguns países — como a França e a Alemanha — que atribuem grande valor à causa ambiental
nas suas prioridades de política externa. Um exemplo disso é o condicionamento da validação
final do acordo entre Mercosul e União Europeia a uma série de medidas ambientais tomadas
pelo Brasil, além da própria adesão brasileira ao Acordo de Paris, após a pressão de líderes
europeus como o presidente francês Emmanuel Macron e a chanceler alemã Angela Merkel
(CHAGAS-BASTOS; FRANZONI, 2019).

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À medida que a imagem do Brasil — e especialmente, das figuras de Bolsonaro e de Araújo
— como pária ambiental e climático global se consolidava, os membros de alguns setores ditos
pragmáticos do governo, como o agronegócio, viam seus interesses econômicos postos em
risco e começaram a se opor às ações dos atores da ala ideológica, eventualmente passando
a desempenhar um papel dominante em relação à questão (SARAIVA; SILVA, 2019). A partir do
segundo ano de mandato de Bolsonaro, os discursos negacionistas foram se tornando menos
recorrentes, apontando para um esvaziamento gradual desta estratégia.
Ainda que seja relativamente cedo para se afirmar com clareza, acontecimentos como a
posse de Joe Biden nos Estados Unidos — o que efetivamente encerrou a relação de sintonia
entre governos que guiava as relações entre o Brasil de Bolsonaro e o país sob o governo de
Trump, enfraquecendo o alinhamento na questão climática — e a substituição de Ernesto Araújo
por Carlos França na chancelaria brasileira apontaram para uma potencial reversão da política
externa brasileira diante das questões ambientais e climáticas.
Dois eventos no mês de abril de 2021 simbolizaram esse possível redirecionamento: o
discurso de posse do novo chanceler, onde figuravam temas como energias renováveis e o
cumprimento das metas do Acordo de Paris (FUNAG, 2021); e a participação de Bolsonaro na
Cúpula do Clima organizada pelo governo Biden, onde o presidente apresentou um discurso que,
ainda que repleto de incoerências e imprecisões, não apresentava uma retórica negacionista ou
cética aparente (AGÊNCIA BRASIL, 2021). Contudo, devido à natureza imprevisível e inconstante
dos processos de tomada de decisão em política externa do governo Bolsonaro, é necessário ter
cautela ao analisar e qualificar esse processo de mudança.

Considerações finais

Este artigo buscou analisar a incidência do negacionismo climático como uma fonte da
política externa brasileira durante o governo Bolsonaro, a partir das conexões entre as estratégias
de negação das mudanças climáticas e as ideias de alguns dos atores inseridos no processo

Os mercadores da dúvida e a diplomacia brasileira


decisório, com destaque para o ex-chanceler Ernesto Araújo. Identificou-se que, em um primeiro
momento, o negacionismo climático foi um pilar da política externa brasileira em relação à
questão, marcando uma descontinuidade em relação à posição histórica do Brasil diante do
tema, até que os interesses de outros atores amenizaram o seu impacto e impulsionaram um
afastamento da retórica negacionista em direção a um maior pragmatismo.
Observou-se que o negacionismo climático se manifesta nas suas mais diversas formas
nas falas e ações da política externa do governo Bolsonaro. É possível identificar instâncias da
estratégia de condenação do condenador, nos ataques a outros atores – políticos e acadêmicos
– envolvidos nas discussões sobre as mudanças climáticas, além da imprensa (como mostra a fala
“isso a mídia não noticia” de Araújo); da negação de responsabilidade, no ato de se colocar em
dúvida o caráter antropogênico das mudanças climáticas (quando Araújo diz que “não sabemos
ao certo” se o homem causa essas mudanças); e do apelo a maiores autoridades, por meio do
recorrente argumento de que a defesa da soberania nacional brasileira e o desenvolvimento de
determinados setores econômicos são motivos de maior preocupação para a sociedade do que
as mudanças climáticas.
Verificou-se que após a ascensão de Bolsonaro, pela primeira vez desde que a questão
foi consolidada como uma prioridade da política externa brasileira, o tema das mudanças
climáticas passou por um processo de ideologização. A ação internacional do Brasil em relação
ao tema passou a ser guiada por posições pré-concebidas pelos formuladores de política
externa — como o “antiglobalismo” e a defesa de uma ideia de um Brasil pertencente a uma
suposta civilização ocidental — e não mais por cálculos pragmáticos, como acontecia em
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governos anteriores. Estas mudanças foram impostas pelas visões sobre o assunto por parte
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dos líderes (o presidente Bolsonaro e o chanceler Araújo), que dispunham dos recursos e da
autoridade para implementá-las.
Ainda nesse sentido, comprovou-se uma mudança no papel que as ideias desempenharam
dentro do processo de formulação da política externa diante do assunto. Antes de Bolsonaro,
a política externa ambiental e climática brasileira se guiava por um sistema de crenças causais,
com base em uma histórica parceria entre diplomacia e ciência.
Com a mudança de governo e da gestão no Itamaraty, a diplomacia climática brasileira
passou a se guiar pelas visões de mundo e princípios dos tomadores de decisão, com destaque
para a adesão ao antiglobalismo e às teses do ideólogo Olavo de Carvalho, entre outros. Exemplos
dessa mudança são a institucionalização do negacionismo dentro dos núcleos formuladores da
política externa, evidenciados por ações como o aparelhamento da FUNAG e a participação de
diplomatas brasileiros em conferências organizadas por instituições conservadoras.
O presente capítulo se coloca como uma primeira tentativa de organização de uma agenda
de pesquisa que busca compreender os efeitos do movimento do negacionismo climático e suas
manifestações na política externa dos países, especialmente a partir do caso brasileiro. Como
possibilidades de expansão desta agenda, considera-se fundamental a compreensão do processo
de estabelecimento das conexões entre os atores propagadores do negacionismo em âmbito
global — como as redes de cientistas e industriais contrários e os think tanks conservadores
internacionais — e as instâncias formuladoras de política externa.
No caso brasileiro em específico, é imprescindível a análise das condições que permitem
a penetração dessas ideias no processo decisório em política externa, bem como das forças
contrárias que limitam sua efetividade e levam os resultados do processo em direção ao
pragmatismo, a partir da noção de que a política externa é uma política pública e, por isso, sua
formulação resulta da incidência de diversos setores da sociedade nela interessados.

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CAPÍTULO 7

A REFORMA INSTITUCIONAL DO MERCOSUL (2015–2022): EFICIÊNCIA OU


DESMONTE?1

Lorena Granja Hernández

Introdução

Nos últimos anos temos assistido a uma crise do regionalismo na América do Sul que
tem sido analisada por várias pesquisas sobre o assunto (BRICEÑO-RUIZ, 2018, 2021; MIJARES;
NOLTE, 2018; SANAHUJA, 2019; NOLTE; WEIFFEN, 2020; DE ARAUJO; NEVES, 2021; GONZÁLEZ
et al., 2021; SARAIVA; GRANJA, 2022). Muitas análises consideram que o momento atual é
crítico para a construção da governança regional e colocam a ênfase na divergência política e
nos diferentes arranjos institucionais criados ou desmontados para dar conta de tal situação
(BARROS; GONÇALVES, 2019; SARAIVA; GRANJA, 2019; GRANJA; MESQUITA, 2020; ALVAREZ,
2021a; MARIANO; BRESSAN; LUCIANO, 2021). No entanto, há analistas que consideram que a
crise é uma constante na construção do regionalismo, havendo historicamente períodos de maior
compromisso, onde a construção de governança regional se dá com afinco, considerados como
períodos de alta politização; e períodos onde há menos construção (o inclusive desmonte) da
governança regional, considerados períodos de despolitização (DABÈNE, 2012; VAN KLAVEREN,
2018; ALVAREZ, 2021b).
Exemplos como o desmonte institucional da UNASUL, o esvaziamento da ALBA, ou a não
concretização da CELAC como mecanismo de diálogo político regional que concentre a América
Latina e o Caribe, e, finalmente, a criação contestatária do PROSUL puseram de manifesto que
não há uma única forma em que o regionalismo pode se ser construído, assim como também não
há um único projeto de região em disputa na América do Sul (BRICEÑO-RUIZ, 2017; MOLANO
CRUZ; BRICEÑO-RUIZ, 2021). Mas recentemente, especialistas começaram a afirmar que, inclusive,
estamos assistindo a um processo de desintegração regional na América Latina (BARRETO;
MALAMUD, 2020; MARIANO; NEVES, 2021). De modo geral, os diagnósticos são bastante
consensuais ao considerar o regionalismo sul-americano como em estado crítico, sobre tudo
— e aí diferem os analistas — desde a ruptura da convergência ideológica intergovernamental
em algumas das instituições de construção de governança regional que costumavam agrupar
países mais ou menos convergentes entre as ideologias de seus governos: o MERCOSUL durante
os governos progressistas, e Aliança do Pacífico, que desde o seu começo (2011) se perfilou com
um viés comercialista centralizado na troca com países do outro lado do Pacífico.
No âmbito do MERCOSUL, a crise se manifesta com certa antecedência: já desde o juízo
político de Fernando Lugo no Paraguai em 2012, e a consequente crise política que se dá com
o ingresso da Venezuela em 2013, anos depois afastada, podemos pensar que o bloco enfrenta
dificuldades de índole política que vem in crescendo (VÁZQUEZ, 2017; GRANJA, 2020; GRANJA;
MESQUITA, 2020). Em 2015, a eleição de Maurício Macri na Argentina acabou com a relativa
convergência ideológica entre os governos da Argentina e Brasil, que tinha impulsionado o
MERCOSUL na década anterior. Embora tais dificuldades sejam visíveis durante toda a existência

1 Essa pesquisa contou com apoio da FAPERJ.


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do bloco, nos últimos anos elas têm se multiplicado. A mudança do governo brasileiro em 2018
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

tira a região do foco da política externa brasileira; e com a assunção do governo de Alberto
Fernández, se termina de concretizar a divergência ideológica entre ambos os governos. Em
2020, com a assunção de Lacalle Pou em Uruguai, começa também um período de tensão entre
ambos rioplatenses ocasionado pela divergência ideológica. Dessa forma, o MERCOSUL se vê
fragmentado, e sem capacidade de ação no âmbito político.
O objetivo do presente capítulo é avaliar esse último período do MERCOSUL desde a
dimensão empírica. A partir da análise de conteúdo das decisões tomadas pelo Conselho
Mercado Comum (CMC) entre 2015 e 2022, pretende-se identificar as principais características
que têm sido impostas ao bloco perante a crise de convergência ideológica intergovernamental.
O período de análise contemplado pela pesquisa se inicia em 2015 por ser o momento em
que ocorre uma mudança clara no signo ideológico do governo argentino e na política
defendida para o MERCOSUL por tal país. A dupla argentino-brasileira tem sido fundamental
para estruturar as bases e o acionar do bloco, e, por tais motivos, o relacionamento bilateral
entre ambos os países tem se constituído como motor (ou freio) do MERCOSUL durante toda
sua trajetória. Mesmo que o governo de Dilma Rousseff já tivesse mudado o rumo da política
externa em relação aos governos petistas anteriores, a maior mudança na política brasileira
para o MERCOSUL ocorreu após o impeachment (golpe), durante o governo Temer é deixada
de lado a prioridade do contexto sul-americano de vez, e isto se agudiza com o descaso para
a região ao longo do governo Bolsonaro. No que diz respeito aos sócios menores, há relativa
proximidade ideológica em torno do livre comércio e busca de novos mercados entre os
governos de Benítez (Paraguai) e Lacalle Pou (Uruguai), mas ela não se concretiza em agendas
que possam sustentar o acionar do bloco durante suas respectivas presidências pro tempore
(PPTs) além do funcionamento corriqueiro do MERCOSUL. Pelo contrário, o governo do
Uruguai, uma vez mais, ameaça com a assinatura de um Tratado de Livre Comércio (TLC) com
um país extra-bloco (China) e com adherir ao Tratado Integral e Progressista de Associação
Transpacífico, ferindo a decisão nº 32 do ano 2000 que nega tal possibilidade sem consultas
aos demais sócios 2.
Como hipótese, o capítulo aqui disposto sugere que a divergência ideológica
intergovernamental tem prejudicado diretamente as capacidades do MERCOSUL de atuar com
agência intra e extrarregionalmente, promovendo um processo de desmonte institucional das
capacidades criadas no período anterior. Entre tais capacidades, contam como possíveis freios
à vontade política de desmonte: a resiliência institucional; a burocratização; e a especialização
do MERCOSUL, que atuariam como mecanismos geradores de consensos e lock in institucional.
De qualquer forma, os efeitos do desmonte institucional se fazem notar num retrocesso da
governança regional do MERCOSUL.
Para avaliar as implicações de tal hipótese, uma análise de conteúdo detalhada das
decisões do CMC categorizadas por assuntos tratados para o período 2015-2022 é feita a partir
da construção de uma base de dados. Ao mesmo tempo, se recorre a dados do período anterior
(2003–2013) com fins comparativos e de evidência. A principal variável traçada na trajetória

2 Não seria a primeira vez que similares ações do governo uruguaio acontecem, embora em diferentes contextos:
em 2006 o então governo de esquerda uruguaio negociou a assinatura de um TLC com os Estados Unidos, herdado
do governo anterior de Batlle, que finalmente não se concretizou. Naquele momento, tanto os sócios maiores do
MERCOSUL quanto boa parte da Frente Ampla, partido do governo uruguaio, se opuseram. Atualmente, o governo
de Lacalle Pou está em tratativas para assinar um TLC com China que tem sido objeto de críticas por parte do
governo argentino, e de ressalvas, pelo governo brasileiro. Na viagem do atual canciller uruguaio Bustillo à Nova
Zelândia, formalizou a solicitude de adesão individual ao Tratado Integral e Progressista de Associação Transpacífico
desconhecendo a advertência feita pelos três sócios do MERCOSUL através dos coordenadores nacionais do Grupo
Mercado Comum em 30 de novembro de 2022.

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em ambos os períodos, é a institucionalização do Mercosul, a partir do registro da geração
ou desmonte institucional. Nesse sentido, o capítulo analisa a conjuntura atual do MERCOSUL
comparativamente ao período imediatamente anterior. Focaliza nos cortes orçamentários
propostos dentro do bloco como evidências das tentativas de debilitar às capacidades
institucionais construídas previamente; assim como nas propostas de reforma institucional
feitas no Conselho, para pensar nas categorias da análise de conteúdo. Durante a pesquisa
se trabalhou com uma base de dados criada no software Nvivo para analisar os documentos
oficiais do MERCOSUL classificando os assuntos tratados por linhas, de acordo com os critérios
de especificidade do assunto e objetivos propostos (de cada decisão)3. Em total foram analisados
191 documentos, sendo todas as decisões tomadas no MERCOSUL durante o período 2015–
2022. A análise de conteúdo é uma ferramenta de pesquisa que utiliza métodos qualitativos
(interpretativos do conteúdo do texto) para medir frequências, ocorrências e co-ocorrências dos
temas (SILVA; GRANJA, 2020).
Na primeira seção é traçada a trajetória da construção institucional implementada no
período de 2003 a 2013, onde houve convergência ideológica intergovernamental e, para
isso, são utilizados dados da base criada no software. Além disso, empiricamente aparece o
desmonte institucional que está acontecendo no período atual, representado especialmente
através da análise de conteúdo das decisões que estabelecem como objetivo uma “reforma
institucional” do bloco. Na segunda parte, se traça o vínculo entre a criação e o desmonte
institucional vivenciado respectivamente em ambos os períodos classificados, junto com os
diferentes momentos de con(di)vergência ideológica intergovernamental intra-MERCOSUL
com o intuito de comprovar a hipótese e as implicações derivadas dela. Finalmente, se esboçam
algumas considerações que servem de base para pensar a governança regional desde o estudo
de caso do MERCOSUL.

Construção e desmonte das capacidades institucionais do MERCOSUL

Na trajetória do MERCOSUL destaca-se a existência de um crescente processo de

A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


fortalecimento institucional que se manifesta em ações concretas como as negociações (mais ou
menos técnicas) especializadas em assuntos que contam com a participação de múltiplos atores
com incentivos reais para participar da construção da agenda regional. Nesse contexto, a criação
de grupos de trabalho ad hoc e de Reuniões Especializadas e Ministeriais durante a trajetória
do bloco tem se manifestado em aumento das capacidades de gestão da agenda a nível
regional (GRANJA, 2018). Além disso, o MERCOSUL tem criado instituições com competências,
regulamentos, orçamentos e burocracias próprias dentro do seu seio que representam maior
compromisso com a criação e fortalecimento institucional - exemplos disso são o Fundo de
Convergência Estrutural do MERCOSUL (FOCEM), a própria Secretaria do MERCOSUL (SM), o
Instituto Social do MERCOSUL (ISM), entre outros (GRANJA, 2017). Tal processo de criação e
fortalecimento institucional esteve presente durante toda a existência do bloco, mas foi mais
forte quando houve convergência ideológica intergovernamental em torno do projeto de
MERCOSUL almejado pelos países membros.
Assim, vemos que na década de 1990 (apenas no primeiro lustro da sua criação em
1991) a assinatura do Protocolo de Ouro Preto (1994) articula a institucionalidade gerada no
Tratado de Assunção e lhe dá sua base jurídica. Dentre as ações com vistas a gerar estrutura
institucional e dotar de capacidade de coordenação e de interação de agendas desse período,
encontra-se a criação de Reuniões Ministeriais especializadas classificadas por assuntos.

3 A fonte dos documentos oficiais do Mercosul é sua página oficial: www.mercosur.int.


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As primeiras que criaram foram a Reunião de Ministros de Economia e Bancos Centrais, em
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

dezembro de 1991, junto com as Reuniões de Ministros de Educação, de Justiça (ou similares)
e do Trabalho4. Como vemos, os assuntos que interessavam aos membros do bloco discutir
conjuntamente, eram os da agenda econômico-comercial. Nesse período, de fato, havia uma
convergência intergovernamental em torno ao projeto do MERCOSUL como estratégia de
inserção internacional e ainda estava muito vigente a agenda marcada no Tratado de Assunção.
Nesse ano também foram criadas as reuniões especializadas que atuariam conjuntamente com
o Grupo Mercado Comum (GMC) e seus subgrupos de trabalho.
Outra leva de reuniões ministeriais teve lugar dentro da institucionalidade do MERCOSUL,
em 2000, quando foram criadas as reuniões de Ministros de Minas e Energia e a de Ministros
e Autoridades de Desenvolvimento Social5. Esse processo de criação de reuniões ministeriais
se aprofunda nos anos seguintes (2003–2015)6. Nesse período também foram criadas reuniões
especializadas sem rango ministerial, mas integradas por atores governamentais e da sociedade
civil organizada, ampliando a participação na tomada de decisões no bloco a mais atores não
tradicionalmente considerados. Nesse sentido, as reuniões mantiveram sua capacidade de
geração, interação e coordenação de agendas comuns e representaram também o momento
denominado de “MERCOSUL ampliado”; não somente porque se amplia a participação no
bloco, mas também porque ficam mais abrangentes os assuntos tratados conjuntamente e
a coordenação de agendas começa a gerar seus resultados. Entre as reuniões especializadas
criadas nesse período encontramos a Reunião Especializada de Organismos Governamentais
de Controle Interno; a Reunião Especializada de Entidades Governamentais para Nacionais
Residentes no Exterior; a Reunião Especializada em Assistência Humanitária. Todas elas tiveram
competência de coordenação do Foro de Consulta e Concertação Política do MERCOSUL,
organismo criado em 1998 como órgão auxiliar ao CMC e que canaliza as informações de todas
as reuniões especializadas diretamente a ele7.
No que diz respeito às instituições e organismos criados dentro da estrutura organizacional
do MERCOSUL, elas também seguem o mesmo padrão e reforçam sua institucionalidade uma
vez que têm capacidades de agência nas áreas de sua competência, quando não, cargos e
orçamentos próprios. Tais organismos são destacados neste capítulo posto que tem sido objeto
do desmonte institucional no período 2015–2022 aqui argumentado8.

4 Decisões do CMC/1991 nº 6, 7, 8 e 16 respectivamente. No ano seguinte, foi criada a reunião de Ministros de


Agricultura CMC/1992 nº11.
5 Decisão CMC/2000 nº60 e Decisão CMC/2000 nº 61.
6 Foram criadas: a reunião de Ministros de Meio Ambiente (Dec. CMC nº19/2003), de Altas Autoridades de Direitos
Humanos (Dec. CMC nº 40/2004), a de Ministros e Altas Autoridades de Ciência e Tecnologia (Dec. CMC nº 05/2005),
a de Ministérios Públicos (Dec. CMC nº 10/2005), de Ministros de Deportes (Dec. CMC nº 12/2012), a Reunião de
Autoridades de Segurança e Informação (Dec. CMC nº 17/2014), a Reunião de Autoridades sobre Povos Indígenas
do MERCOSUL (Dec. CMC nº 14/2014), a Reunião de Ministros e Altas Autoridades de Gestão Integral de Riscos de
Sinistros (Dec. CMC nº 47/2015) e a Reunião de Ministros e Altas Autoridades sobre os Direitos dos Afrodescendentes
(Dec. CMC nº 09/2015).
7 Dentre as instituições similares e que coordenam e integram agendas nas suas respectivas áreas se encontram:
O Foro Consultivo de Municípios, Estados e Departamentos (criado em 2004); o Instituto MERCOSUL de Formação
(criado em 2007) o Foro Empresarial do MERCOSUL (em 2012).
8 A criação de organismos do bloco foi elaborada em outra contribuição (GRANJA, 2017), aos fins de adicionar
elementos a esta análise se listam a continuação os órgãos e instituições referidas e o ano em que foram criadas:
Comissão de Representantes Permanentes do MERCOSUL, criada em 2003; o Centro MERCOSUL de Promoção
do Estado de Direito; o FOCEM em 2004; Protocolo Constitutivo do PARLASUL, em 2005; o Instituto Social do
MERCOSUL e o Observatório da Democracia do MERCOSUL, ambos criados em 2007; o Fundo de Agricultura Familiar
do MERCOSUL e o Fundo MERCOSUL de Apoio a Médias e Pequenas Empresas em 2008; Instituto de Políticas
Públicas de Direitos Humanos em 2009; Fundo de Promoção de Cooperativas do MERCOSUL em 2012.

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Os grupos de trabalho ad hoc, por sua vez, também foram criados em períodos de relativa
convergência ideológica, embora a sua capacidade na implementação das agendas coordenadas
conjuntamente seja reduzida pelo seu caráter temporal. Em algumas ocasiões o próprio grupo
propõe a criação de uma reunião especializada no assunto e se transladam as demandas à nova
instância regional. Nesse sentido, se constroem práticas de lock in institucional (nem sempre aliadas
da construção de governança regional), são geradas capacidades para controlar tais agendas
desde instâncias mais formais e com capacidade de ação. Além de possibilitar maior quantidade
de consensos — compromissos críveis, nos termos de Moravcsik (1998); alguns deles derivados
em acordos que se assemelham a estratégias de política pública regional (GRANJA, 2017).
No gráfico a continuação se resume a trajetória da construção de capacidades institucionais
no MERCOSUL para o período 1991–2015, que se materializa na criação institucional de: reuniões
ministeriais, reuniões especializadas organizadas por assuntos, e na criação de instituições e órgãos
(ou cargos) dentro da estrutura do bloco, assim como na de grupos ad hoc até aqui relatada.

Gráfico 7.1 – Construção de capacidades institucionais no MERCOSUL (1991-2015)

1991

1992

1994

1999

Reunião de Ministros 2000


e autoridades
governamentais 2001
Reunião Especializada
Instituição / órgão 2002
/ cargo
2003
Grupo ad hoc

A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


2004

2005

2006

2007

2008

2009
2010

2011

2012

2014
2015

1 2 3 4 5 6

Fonte: Elaboração própria a partir de dados extraídos de www.mercosur.int.


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Ainda na esteira da construção de capacidades institucionais, durante a trajetória
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do MERCOSUL é notória a quantidade de decisões tomadas pelo CMC que tem por objeto
principal a gestão interna do bloco, sua administração ou fortalecimento institucional;
quando não sua regulamentação ou destino orçamental. Nesse sentido, do total de decisões
tomadas pelo CMC entre 1991 e 2022 (1046 documentos), 37,8% representam ações com
tais objetivos. De qualquer forma, é evidente que nos períodos de convergência ideológica
intergovernamental houve maior concentração de tais medidas; no período da convergência
ideológica progressista (2003–2013) tais estratégias foram as protagonistas, às quais se
adiciona a construção de agendas de implementação e planos de execução conjuntos. Tais
planos representam desenho e execução de políticas públicas regionais.
Em resumo, identificamos dois tipos de estratégias para a construção de capacidades
institucionais dentro do MERCOSUL. Em primeiro lugar, a própria criação de instituições e
órgãos que colocam de manifesto a vontade política de gerar agendas comuns nesses
assuntos. Além disso, tem a capacidade de manter ao longo do tempo o status quo das
decisões tomadas nos momentos de alta convergência intergovernamental, gerando um lock
in institucional, nos momentos de baixa ou nula convergência.
A segunda estratégia, o fortalecimento institucional a partir da criação de instituições
que suplantam as competências de outras, como o caso do PARLASUL com a Comissão de
Representantes Permanentes; ou os casos de criação de grupos ad hoc que, posteriormente,
derivam seus trabalhos na criação de um organismo permanente. Tal estratégia pode ser
avaliada como criação de capacidades de resiliência institucional a partir da geração de
incentivos à formulação de políticas comuns nas áreas de competência exclusiva, que,
posteriormente, se evidenciam nas agendas dos organismos criados. Finalmente, a criação de
reuniões ministeriais teve como estratégia assegurar a aplicação interna e o consenso político
em torno das agendas negociadas regionalmente.
Dados os avanços na quantidade de assuntos tratados pelo MERCOSUL, assim como
na institucionalidade criada para a gestão de tal agenda e seu fortalecimento a partir da
qualificação de pessoal, gestão de fundos (embora pouco significativos) e planejamento de
ações conjuntas, é possível pensar que foram criadas capacidades institucionais (pelo menos
intencionalidade houve) com vistas a construir governança regional.
Como dito anteriormente, no período 2015–2022 se evidenciam intenções contrárias a
tal propósito. No ano de 2015 foi o último onde se criaram e fortaleceram órgãos dentro do
MERCOSUL. A partir daí, e mais fortemente evidenciado desde 2017, houve um processo de
desmonte institucional do bloco9. Foi possível identificar a intencionalidade para tal desmonte
institucional e foram codificadas na base de dados algumas das estratégias de ação. Entre
elas encontram-se a supressão de instituições, os recortes orçamentários e a modificação dos
regulamentos internos.
Um dos casos mais emblemáticos é o do Instituto de Políticas Públicas de Direitos
Humanos do MERCOSUL (IPPDDHH), criado em 2009, e regulamentado em 2015 (Dec.
CMC nº 55/2015) quando se criaram cargos técnicos e executivos dentro de sua estrutura
organizacional. O IPPDDHH tem um Conselho de Representantes governamentais dos Estados
parte, assim como um Secretário Executivo e vários Departamentos (Relações Institucionais,
Pesquisa e Gestão da Informação, Assistência Técnica, Comunicação e Cultura e Administração
e Recursos Humanos). Tal estrutura foi modificada em 2021 uma vez que:

9 Quando se derroga a decisão que criou o cargo de Alto Representante Geral do MERCOSUL com a justificação
de uma “racionalização da estrutura institucional e da utilização dos recursos humanos e financeiros”, além da
“adequação às necessidades concretas de cada etapa do processo de integração” (Dec. CMC nº06/2017).

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resulta conveniente efetuar modificações no que tange à organização e
funcionamento do IPPDDHH e do ISM a fim de fortalecer sua participação
no marco da estrutura institucional do MERCOSUL, assim como adequar
seus programas e ações à agenda e prioridades do bloco e, desse modo,
maximizar o aproveitamento das capacidades técnicas de ambos os
institutos (Dec. CMC nº 5/2021, sp.)10.

Tal decisão reformou a estrutura de ambos os institutos de acordo com o Comunicado


Conjunto dos Presidentes do MERCOSUL de julho de 2020, na qual se encomendava avançar
com a implementação do Plano de Ação da revisão da estrutura institucional do MERCOSUL e
sua governança. Tal plano foi encomendado em 2019 (Dec. CMC nº 9/2019), mas o regulamento
das mudanças institucionais do bloco começou a ser implementado já desde 2018, com a
decisão que estabelece prazos para a apresentação dos programas bianuais e suas modalidades
de ação aos grupos de trabalho e órgãos dependentes do GMC, assim como também para as
reuniões especializadas (Dec. CMC nº08/2018).
Assim, a intencionalidade de reformar a estrutura institucional do MERCOSUL fica
explícita na exposição de motivos da decisão que reforma o caráter das reuniões ministeriais
e especializadas, assim como os subgrupos de trabalho do GMC. A reforma institucional do
MERCOSUL se executaria em etapas, como exposto a continuação:

[Considerando] que numa primeira etapa se acordaram certos critérios


para ajustar a estrutura institucional, eliminando órgãos que tenham
cumprido seu mandado ou objeto e unificando outros que apresentam
superposições nas suas competências e/ou agendas temáticas, a modo
de avançar para uma racionalização desta estrutura que dê ao MERCOSUL
maior coesão e agilidade no seu funcionamento.
Que numa segunda etapa se deverá trabalhar numa readequação
de caráter mais integral da arquitetura institucional do MERCOSUL,

A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


identificando os diferentes aspectos estruturais e do funcionamento
que poderiam ser melhorados para alcançar mais rapidamente os
objetivos definidos no Tratado de Assunção e demais textos fundacionais,
assim como para lograr um uso mais eficiente dos recursos humanos e
financeiros destinados à órgão do MERCOSUL com orçamento próprio
(Dec. CMC nº9/2019, sp.).

Os membros do CMC deixaram claro o “consenso existente entre os sócios do bloco” da


importância de “melhorar diferentes aspectos da estrutura e funcionamento” do MERCOSUL; a
“necessidade de que ... [se] conte com um organograma conciso e racional”; da conveniência de
“criar critérios para que... [este] não se ramifique excessivamente, o que gera fragmentação e
cria obstáculos ao seguimento dos trabalhos” por parte dos órgãos decisórios (Dec. nº 19/2019,
sp.). Também decidiram criar um Plano de Ação11 para tal fim a ser executado no biênio 2020–
2021; além de reestruturar vários órgãos, entre eles, o Foro Consultivo de Municípios, Estados
e Departamentos e a Reunião Especializada em Comunicação Social, que deixam de ser órgãos

10 Todas as citações diretas aos documentos oficiais do MERCOSUL foram traduzidas livremente do espanhol pela
autora.
11 Os Planos de Ação têm sido uns dos mais importantes instrumentos de atuação conjunta do MERCOSUL na sua
trajetória, e representam uma das modalidades para o estabelecimento de políticas públicas regionais (GRANJA,
2017).
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permanentes. Tal decisão também elimina automaticamente as instâncias que estiverem inativas
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por mais de dois anos, sejam permanentes ou ad hoc.


O plano de ação 2020–2021 concretiza o desmonte institucional que se vem perfilando desde
2015. A decisão mais importante foi a de reestruturar os órgãos do MERCOSUL com orçamento
próprio com o objetivo declarado de “maximizar a sua eficiência levando em consideração a
capacidade contributiva dos Estados parte”; assim como “maximizar a eficiência no uso dos
recursos humanos e financeiros disponíveis, racionalizando suas estruturas administrativas e
concentrando esforços nos trabalhos substantivos” (Dec. CMC nº 1/2021, sp.). Desse modo, se
eliminaram cargos vacantes e se reduziu ao mínimo a estrutura de funcionamento do IPPDDHH
e do ISM12; assim como à da SM proibindo o ingresso de novos funcionários. Este processo de
desmonte institucional está ainda em curso, o prazo estabelecido pelo CMC para sua conclusão
é dezembro de 2022.
No que corresponde à estratégia de recortes orçamentários para o desmonte institucional,
ela é identificada desde 2015, mas é em 2019 que se concretiza a maior mudança nesse aspecto,
quando o CMC cria o Orçamento MERCOSUL (Dec. CMC nº 7/2019), unificando os orçamentos
específicos das três instituições anteriormente citadas (IPPDDHH13, ISM e SM) e o da Secretaria
do Tribunal Permanente de Revisão (ST). A modificação impõe restrições à independência de
ação das instituições afetadas, que já não decidem sobre os destinos dos fundos excedentes.
Além disso, se cria um mecanismo de controle que sujeita a criação institucional ao impacto
orçamentário previsto para o MERCOSUL, e deixa tais decisões em mãos do GMC. Ficaram
expressamente excluídos de tal unificação orçamentária o PARLASUL e o FOCEM, que serão
examinados adiante.
A decisão do CMC nº 23 de 2019 estabelece um contrato de administração fiduciária entre
o MERCOSUL e o Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata (FONPLATA) com
o objetivo de administrar os recursos financeiros do FOCEM em termos fiduciários14. Nesse
sentido, o FONPLATA tem a capacidade de administrar e assegurar a liquidez do FOCEM segundo
seus critérios. Embora essa iniciativa tenha restringido a capacidade de tomada de decisão das
autoridades do FOCEM, o seu orçamento tem sido sucessivamente aprovado pelo CMC (como
mostra o Gráfico 7.2). O FOCEM foi a única institucionalidade do MERCOSUL que sofreu um
processo de desmonte mais gradual, a administração dos fundos passa a ser responsabilidade
do FONPLATA, mas ainda retém capacidade de controle na execução dos planos, embora tenham
sido cancelados e rescindidos muitos projetos durante o período.
No gráfico à continuação são apresentadas a quantidade de decisões tomadas pelo CMC
que dizem respeito à aprovação orçamentária das instituições do MERCOSUL (sem prejuízo das
modificações introduzidas pela criação do Orçamento Mercosul comentadas anteriormente).
Vemos que, como vislumbrado na análise do IPPDDHH, essa instituição (e, em menor medida, o
ISM) foi a mais afetada pelo desmonte institucional acontecido no período. Todos os orçamentos
aprovados foram exíguos.

12 Uma nova reestruturação de ambas as instituições foi executada pela Dec. CMC nº 5/2021.
13 Neste caso se evidencia uma contradição nas decisões tomadas pelo CMC no período, posto que recetemente
(2017) tinha sido aprovado um projeto no âmbito do FOCEM de “fortalecimento das capacidades institucionais para
a gestão das políticas públicas em Direitos Humanos do MERCOSUL” que destinava fundos específicos ao órgão
(Dec. CMC nº 07/2017).
14 Antigo Fundo Financeiro para o Desenvolvimento da Bacia do Prata, criado em 1971 com sede na Bolívia, foi
reestruturado como Banco de Desenvolvimento entre 2010 e 2018.

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Gráfico 7.2 – Orçamentos aprovados pelo CMC (2015–2022)
Orçamentos Órgãos - Codificação por Item

Número de referências de codificação 7

FOCEM Parlasul ISM IPPDDHHM

Fonte: Elaboração própria com auxílio do software Nvivo e dados de www.mercosur.int.

Os documentos codificados não somente demonstram que houve um consenso com a


intencionalidade de desmonte; mas sua execução o evidencia, concretamente. Interpretar tais
dados com base nas conceptualizações descritas no começo do capítulo é ao que se destina a
próxima seção, que tenta resumir as diferentes implicações que os períodos de convergência
ou divergência entre os governos do MERCOSUL tem lhe imposto à construção de capacidades
institucionais para a governança regional.

Con(di)vergência ideológica intergovernamental e construção de governança regional

A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


Umas das evidências que se extraem da análise de conteúdo documental feita na seção
anterior é que, nos períodos de convergência ideológica intergovernamental (seja à direita ou
à esquerda — com maior ênfase), se criam as condições para alcançar consensos amplos sobre
os rumos e objetivos do projeto de MERCOSUL que se pretende. Nesses períodos, se abrem
possibilidades de construir governança regional a partir da criação e fortalecimento institucional;
e, como visto, no período 2015–2022 há uma perspectiva de desmonte de tais estruturas.
A convergência intergovernamental e, especialmente, a criação e fortalecimento
institucionais tem efeitos de longa duração na trajetória do bloco. Assim, em períodos de
baixa convergência, a governança do MERCOSUL e a continuação dos processos regionais
desenvolvidos se veem influenciadas pelas capacidades institucionais construídas previamente,
quando houve (maior) construção institucional. Períodos quando há divergências ideológicas
(mais ou menos profundas, nos últimos anos, extremas) podem trazer desmonte institucional
e desintegração (quebras na governança regional). Aqui é entendida a desintegração como
a desconstrução de agendas previamente integradas: a integração é um aspecto relacional
da governança regional; que, por sua vez, é composta pela regionalidade, pela convergência
ideológica intergovernamental e por essa dimensão relacional de construção de governança
que interage, coopera, coordena ou integra agendas em variados assuntos (SARAIVA; GRANJA,
2021). O desmonte institucional é uma evidência da desintegração de agendas no âmbito do
MERCOSUL.
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A dimensão ideológica, por sua vez, tem implicações diretas na construção da governança
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

regional. Como evidenciado na seção anterior, a construção de capacidades institucionais


no MERCOSUL é uma característica de sua trajetória que se vê diretamente influenciada por
períodos de con(di)vergência ideológica intergovernamental.
Na década de 1990, a convergência ideológica neoliberal dos governos da região permitiu
a construção institucional que deu gênese ao MERCOSUL. Tais capacidades institucionais foram
importantes para o relançamento do MERCOSUL que aconteceu no ano 2000, quando havia
certa convergência ideológica entre os governos de Fernando Henrique Cardoso e De la Rua.
Tal reformulação se assemelha à reformulação evidenciada em tempos recentes; no entanto,
e contrariamente a esta, não incentiva um processo de desmonte institucional como o atual.
Pelo contrário, a reformulação do MERCOSUL dos anos 2000 renovou os laços de compromissos
assumidos no Tratado de Assunção (Dec. CMC nº26/2000) e fortaleceu a institucionalidade da
SM (Dec. CMC nº 24/2000).
A convergência ideológica iniciada em 2003 com os governos progressistas de Argentina e
Brasil, consolidada nos anos seguintes nos demais países membros (Uruguai, 2005 ; Paraguai,
2008) começa a se desestabilizar em 2013 e acaba por finalizar em 2015. Nesse período a
construção de capacidades institucionais e o fortalecimento institucional alcançaram seu pico
mais alto e, por conseguinte, ajudaram na construção das agendas integradas que dariam
capacidade de governança regional a partir da geração de políticas públicas regionais. Esse
processo, apesar de estar sendo resiliente em algumas de suas práticas, não conseguiu reverter
a desintegração de agendas que provocou o programa de desmonte institucional implantado
desde 2015 e que foi acelerado nos últimos anos. A ênfase recai diretamente na justificativa da
eficiência, burocratização excessiva e concretização dos objetivos do Tratado de Assunção como
incentivos dos governos do bloco a repensar o funcionamento do MERCOSUL.
A ideia de que o MERCOSUL é ineficiente tem longa duração também nas análises que
se fazem sobre ele desde perspectivas acadêmicas e autocríticas. Mas tal ineficiência não se
comprova nas análises empíricas que consideram o funcionamento do MERCOSUL integralmente.
Dessa forma, o capítulo contribui a pensar no bloco desde as evidências para fundamentar seu
processo de tomada de decisões.
Sem dúvidas, a dimensão ideológica teve muito a ver com a facilidade com que o
processo de desmonte alcançou os consensos necessários e suficientes para acontecer
entre 2015 e 2019 (entre os governos de Argentina e Brasil). Na virada ideológica para a
esquerda argentina de 2020, Uruguai também se alinha à direita, mas não é o sócio mais
importante. Além de haver muitas diferenças entre as direitas do Brasil, Paraguai e Uruguai
hoje no governo, a convergência ideológica cai completamente com a assunção de Alberto
Fernández na Argentina. Justamente, a ênfase que houve a partir de 2017 deixa entrever
que a convergência entre os principais sócios, Argentina e Brasil é a mais importante para a
estruturação da governança regional do MERCOSUL. E tal importância se potencializa quando
consolidada entre todos os membros do bloco.
A construção de capacidades institucionais no MERCOSUL responde à dimensão da
regionalidade na sua vertente do regionalismo para entender à construção de governança
regional (SARAIVA; GRANJA, 2021)15. Nesse sentido, as diferentes formas em que o regionalismo
tem ensaiado processos de construção de governança têm tido diferentes marcos institucionais.
A construção de capacidades institucionais tem se dado em todos os regionalismos da
América Latina, embora com diferentes ênfases. O MERCOSUL se caracteriza por ser de alta

15 Entendendo que tal dimensão tem duas vertentes, a dimensão da regionalidade (SÖDERBAUM, 2015) e a do
regionalismo (SARAIVA; GRANJA, 2019).

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institucionalização16. Nesse sentido, a construção de capacidades institucionais tem demonstrado
ser uma das estratégias mais importantes na construção do regionalismo aberto e do pós-liberal
ou pós-hegemônico. Períodos que coincidem com os analisados por este capítulo, onde se
mostram evidências de que a governança regional alcançou resultados importantes na dimensão
relacional a partir da construção de tais capacidades institucionais.
As capacidades, ao longo do tempo, também demonstram serem importantes agentes
estabilizadores em momentos de divergência ideológica intergovernamental. Nesse sentido, a
resiliência e a especialização das burocracias têm agido para a mudança ou manutenção do
status quo durante os diferentes períodos de con(di)vergência ideológica intergovernamental.
A resiliência das instituições do MERCOSUL também se evidencia na análise do desmonte
institucional. Embora haja incentivos políticos para a desconstrução das agendas, nas reuniões
especializadas há atores com incentivos criticamente opostos que devem ensaiar estratégias de
resistência. Esses atores da sociedade civil organizada estariam representando a dimensão da
regionalidade criada na construção da governança regional do MERCOSUL. Ainda restam para
se ver evidências mais contundentes do acionar dos atores em tais instâncias (sobretudo nas
reuniões especializadas) que fogem ao escopo deste capítulo.
Além disso, o processo de construção de capacidades institucionais anterior permitiu a
criação de burocracias especializadas dentro do MERCOSUL, com capacidade de agência na
construção de agendas e de planos de ação para a instrumentação de políticas públicas regionais.
Isso se evidencia particularmente no FOCEM, mas também nas demais instituições e órgãos
com orçamento próprio criadas no período 2003-2013. Mais evidências sobre o assunto devem
aparecer a partir de expirado o prazo dado pelo CMC à instauração da reforma institucional do
MERCOSUL, dezembro de 2022.

Conclusões

No decorrer do capítulo, demonstra-se que a construção de capacidades institucionais e a


convergência ideológica intergovernamental influenciam a governança regional. Ambas as variáveis

A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


se mostram importantes para pensarmos em como tem sido construída a governança regional sul-
americana em sua trajetória. No MERCOSUL, quando combinadas ambas, tem se dado impactos
no decorrer do tempo, gerando períodos de alta construção de governança regional. Nos estudos
de caso como o atual, podem se extrair conclusões interessantes sobre tal trajetória regional.
O capítulo evidenciou empiricamente através da análise de conteúdo das decisões do
MERCOSUL a construção de institucionalidade que houve durante períodos de convergência
ideológica, o tipo de instituições criadas, e para quais projetos de MERCOSUL. Foram identificadas
as estratégias para a construção e desmonte de capacidades institucionais utilizadas no bloco
durante seus mais de 30 anos de existência. Caberia pensar se os períodos de desmonte como
o aqui estudado, podem trazer mudanças significativas no decorrer do tempo que imponham
ao MERCOSUL reformas ou reconfigurações institucionais críticas (como pode ser a saída de um
dos membros fundacionais).

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16 Isto contraria a ideia eurocêntrica de que o MERCOSUL não tem uma institucionalidade apropriada pelo fato de
não ter delegação ou partilha de soberania como na União Europeia.
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A reforma institucional do Mercosul (2015–2022)


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CAPÍTULO 8

VIVIR BIEN ENQUANTO PLATAFORMA POLÍTICA DO GOVERNO MAS NA


AGENDA EXTERNA DE MEIO AMBIENTE BOLIVIANA1

Ana Lúcia de Lacerda Gonçalves

Introdução

A estrutura política boliviana sofreu mudanças significativas nessas duas últimas décadas. A
constituição do Estado Plurinacional e a chegada do Movimiento al Socialismo (MAS) ao governo
foram decisivas para inclusão da cosmovisão indígena ao aparato estatal. Em muitos momentos,
sobretudo no primeiro governo Evo Morales, houve tentativas de golpes por parte da elite de
Santa Cruz. No entanto, em seu segundo mandato, por meio de um projeto mais conciliatório,
a administração Morales obteve estabilidade política. Todavia, em 2019, após um conturbado
processo eleitoral, Evo Morales sofreu um golpe de estado, orquestrado sobretudo pela elite
santacruceña.
É possível identificar dois macroprojetos2 políticos na Bolívia. O primeiro fundado nas raízes
coloniais, que reivindica valores ocidentais e políticas vinculadas aos Estados centrais. Analisando,
como exemplo, o governo de Janine Añez é possível se verificar o apelo que ela faz à relação
com os Estados Unidos e aos valores cristãos em seus discursos (CHAVES, 2020). Por outro lado,
existe o projeto, por hora majoritário, que resultou na constituição do Estado Plurinacional e na
ascensão do MAS, cuja raiz está no indianismo. Este capítulo não visa discutir a origem desses
macroprojetos e suas divergências, mas visa compreender as bases do MAS e sua ideologia
política (ARCE, 2021).
Ao analisar a política externa do governo de Evo Morales se observa que os princípios da
filosofia indígena do Vivir Bien eram o alicerce ideológico. Mais especificamente, a agenda externa
de meio ambiente possui grande vinculação com o Vivir Bien, ao passo que a atuação boliviana
no sistema internacional se configurou na defesa da Mãe Terra. Aqui se buscará compreender a
incidência da cosmovisão originária na política externa de meio ambiente partindo da composição
ideacional do Movimiento al Socialismo, durante os mandatos de Evo Morales e Luis Arce.
Trazendo a conjuntura boliviana da última década e analisando como o MAS vem se
sustentando no poder, argumenta-se que a cosmovisão originária está intrinsecamente ligada
à episteme do MAS, assim, sua confluência na política externa se baseia na própria existência
do partido enquanto força política, uma vez que a construção de seu poder está vinculada aos
instrumentos simbólicos que esta episteme oferece ao MAS e às suas lideranças. O argumento
se sustenta nas movimentações políticas vinculadas às alas que têm no indianismo alicerce, força
política que deu legitimidade para o MAS chegar à presidência em 2006 e em 2020.
Ao postular essas afirmações, a pesquisa se baseia na área de Análise de Política Externa
(APE), enquadrando-se nos estudos que exploram como as ideias se vinculam à política externa.
Investigar a atuação externa de um Estado perpassa por compreender a relação das variáveis

1 Essa pesquisa foi feita com o apoio da CAPES através das bolsas de mestrado e, depois, doutorado.
2 Coloco como macroprojetos porque existem grupos políticos distintos, que divergem e convergem a depender da
temática, possuindo diferentes planos políticos.
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domésticas com o processo decisório. Os estudos de APE estabelecem uma ênfase mais forte no
poder de agência dos Estados e, portanto, desde o início reconheceria a centralidade dos fatores
subjetivos na formação e interpretação de eventos, atores e escolhas de política externa (ALDEN;
ARAN, 2012).
A pesquisa utiliza o método de análise de conteúdo. A análise de conteúdo é uma
metodologia que pode ser eficaz para verificar hipóteses e teorias através da sistematização dos
conceitos em categorias de análise e redução dos dados examinados. A categorização é definida
pelos critérios da pesquisa que são baseados em uma abordagem teórica e estão inseridos em
contextos determinados. A hipótese está alicerçada em uma causalidade específica entre as
variáveis, e a aplicação dessa metodologia esclarece como ocorre essa relação na empiria e, assim,
possibilita validar ou refutar a suposição prevista. Para tanto, foi realizada uma sistematização dos
conceitos principais que movem o discurso de Evo Morales: justiça social, direitos da Mãe Terra,
plurinacionalidade, democracia, Vivir Bien, anti-imperialismo, anticolonialismo, anticapitalismo.
A finalidade é compreender como os termos da cosmovisão indígena foram mobilizados nos
discursos internacionais de Evo Morales e Luis Arce no que tange a agenda de meio ambiente.
A estrutura do capítulo parte da investigação da origem ideológica do MAS e da relação do
movimento indígena com o partido, com base em bibliografia secundária e notícias sobre a atual
conjuntura política boliviana. Em sequência, faz-se a análise de conteúdo utilizando os discursos
dos dois presidentes nas Conferências das Nações Unidas sobre as Mudanças Climáticas (COP),
encontrados nos acervos do governo, ou vídeos em sites de notícias, realizando a codificação
por meio da sistematização conceitual citada. Por fim, se concentra na discussão teórica aplicada
ao resultado da análise de conteúdo para que o argumento seja verificado.

Composição ideológica do Movimiento al Socialismo

Vivir Bien na agenda externa de meio ambiente boliviana


Para compreender a incidência da cosmovisão indígena na política externa dos governos
MAS é preciso entender a composição ideológica do partido. O Movimiento al Socialismo foi
resultado de um processo iniciado nos movimentos campesino-originários bolivianos. Por isso,
nesta seção será analisada a raiz ideológica do partido, que se encontra no katarismo3 e no
indianismo, e sua conformação atual, buscando apreender as tensões existentes em seu interior.
A partir da década de 1960 ocorreram discussões no interior das organizações políticas
relacionadas às estratégias e caminhos que os movimentos campesino-originários iriam trilhar.
Os grupos tinham opiniões distintas e a partir do desacordo o movimento indianista se dividiu,
fundando o katarismo como corrente ideológica. Enquanto a defesa indianista se limitava
à luta étnica, embasada na impossibilidade de se construir um Estado indígena mediante a
conciliação com a luta de classes, o katarismo apoiava a articulação entre as demandas de
classe e de etnia, buscando a junção entre a autodeterminação indígena e os problemas
camponeses. Portanto, a ideologia katarista é uma dissidência do indianismo, e a distinção
está na reivindicação da luta sindical sob a justificativa de que a opressão étnica materializa a
opressão de classe (CUNHA FILHO, 2018). O katarismo tem forte influência no MAS, sendo a
matriz idealizadora do Estado Plurinacional.
O MAS, desde sua fundação, transita entre ser um movimento amplo das organizações
sociais e ser um partido, servindo como instrumento político para os movimentos de base. Sven
Harten (2007) expõe que o partido se origina do movimento social e, por isso, seus recursos e
militância estavam nas entidades de base, sobretudo de raiz indígena-campesina. As principais
organizações indígena-campesinas nacionais, identificadas no Pacto de Unidad, possuem

3 O katarismo se desenvolveu na década de 60 como resultado da exclusão dos povos indígenas das cidades devido
políticas do Movimento Nacionalista Revolucionário (MNR).
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importante relação com o partido4 e graus variados de aproximação entre a luta sindical e étnica.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

O Pacto de Unidad5 é composto pelas seguintes entidades: Confederación Sindical Única dos
Trabajadores Campesinos de Bolivia (CSUTCB), Confederación Nacional de Mujeres Campesinas
Indígenas Originárias de Bolivia – Bartolina Sisa (CNMCIOB-BS), a Confederación Sindical de
Comunidades Interculturales de Bolivia (CSCIB), a Confederación de Pueblos Indígenas del
Oriente Boliviano (CIDOB) e o Consejo Nacional de Ayllus y Markas del Qullasuyu (CONAMAQ).
Todas elas apoiaram o MAS na eleição de 2005; contudo, a relação de cada uma com o governo
se modificou ao longo da administração de Morales, e o motivo está na identidade que cada
uma delas têm.
Embora existam distinções6 relacionadas à origem e propósito da luta, a CSUTCB, a CSCIB
e a CNMCIOB-BS possuem raízes identitárias semelhantes. Essas organizações reivindicam a
identidade indígena, mas possuem forte vínculo com a luta sindical, uma vez que são oriundas do
movimento operário cuja base ideológica está na esquerda marxista. Já a CIDOB e a CONAMAQ
são entidades onde o sindicalismo não aparece como nas outras, o compartilhamento da cultura,
da ancestralidade e do território são essenciais para a formação de sua identidade, tendo sua
origem fortemente ligada ao indianismo (LINERA; LEÓN; MONJE, 2010).
O caso TIPNIS foi a evidência das contradições do governo Morales, deixando visível as
divergências que existiam na base social do MAS. O Território Indígena Parque Nacional Isiboro
Sécure (TIPNIS) se localiza nas terras baixas bolivianas, local onde a CIDOB e a CSCIB possuem
influência. Em 2011, o governo, unilateralmente, decidiu construir uma estrada cortando o
TIPINIS. Considerando a decisão arbitrária, as organizações que compõem a CIDOB realizaram
uma marcha rumo à sede do governo em protesto. Todavia, as mobilizações indígenas foram
violentamente reprimidas, passando a ter maior apoio e visibilidade nacional. A CONAMAQ
se insere nas manifestações, mas a CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS se posicionam contra a
CIDOB e em favor do governo.
Por um lado, a CIDOB e a CONAMAQ argumentavam que a construção da estrada no TIPNIS
feriria a autonomia indígena garantida constitucionalmente pelo Estado Plurinacional, expondo
que essa decisão estimularia o avanço da ocupação e devastação do TIPNIS pelo agronegócio.
Por outro, a CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS alegam que a estrada seria fundamental para
o desenvolvimento boliviano, ao passo que facilitaria o escoamento da produção. A defesa
por parte dessas organizações teria relevância econômica particular, pois sua justificativa tinha
como alicerce o interesse em expandir a produção de coca no território boliviano (Duval, 2014;
Cusicanqui, 2014). Essas divergências se tornaram desavenças a partir do momento que o
governo Evo Morales — aliado à CSCIB, a CSUTCB e a CNMCIOB-BS — passou a se dirigir a
CIDOB e a CONAMAQ como “desertoras”, “traidoras do desenvolvimento” e “selvagens” (ZEHURI,
2013; CUSICANQUI, 2014). Essa retórica, alega Silvia Cusicanqui (2014), expressa o “giro colonial”
do governo do MAS.
A identidade das entidades explica o modo como elas enxergam sua relação com o
território. A CSUTCB, a CNMCIOB-BS e a CSCIB compreendem que o território pode ser utilizado
para a reprodução material, por mais que possua relação com o sagrado (Pachamama), a

4 Algumas como a CSUTCB e a CNMCIOB-BS são organizações fundadoras do MAS.


5 Articulação do movimento campesino-originário resultado de “um longo processo de encontros setoriais a nível
de comunidades, instâncias regionais e nacionais para refletir sobre as problemáticas, o reconhecimento e exercício
de seus direitos, a visualização e identificação dos pontos comuns e de consciência de suas agendas e de desafios
para conquistar reivindicações comuns” (PACTO DE UNIDAD, 2010, p. 14, tradução nossa).
6 A CNMCIOB-BS tem a mesma origem sindical que a CSUTCB. mas suas demandas se derivam da desigualdade
de gênero. Já a CSCIB é uma organização das terras baixas, oriunda da população beneficiada pelas políticas de
reforma agrária do MNR, cujas reivindicações iniciais centravam na melhoria do território (saneamento, acesso à
água, pavimentação etc.). (GONÇALVES, 2022).

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manutenção da vida também perpassaria pela qualidade de vida das populações ali encontradas.
Já a CONAMAQ e a CIDOB entendem que a terra e a reprodução da vida estão intrinsecamente
ligadas à ancestralidade, sendo o território representante da sacralidade da Pachamama porque
ele seria a conexão com os antepassados e com as gerações futuras (VALIŠKOVÁ; SPRINGEROVÁ,
2019; GONÇALVES, 2022).
Essas diferenças são essenciais para compreender a maneira que o MAS é composto. É
possível identificar grupos que se aproximam mais da luta sindical do que da étnica e outros
que, ao contrário, têm maior conformidade com a étnica e o ambientalismo. Ao trazer essa
constatação para a atualidade, a rejeição a Morales em 2019 tem alicerce na maneira que ele
tratou às nações indígenas, sobretudo às das terras baixas, e, atualmente, a escolha do ex-
chanceler David Choquehuanca para vice-presidência se insere neste contexto. Choquehuanca
tem importante entrada nos movimentos sociais devido sua posição de defesa dos direitos
originários nos governos do ex-presidente (OPERA MUNDI, 2022). Mesmo que o ex-chanceler
fosse o candidato aclamado pelas organizações campesina-originárias, Luis Arce, intelectual
de classe média, foi escolhido como cabeça de chapa devido a posição de Morales dentro do
partido, atual presidente do MAS.
O politólogo Franklin Pareja expõe a existência de três poderes, cada um representado
por uma dessas lideranças: Morales representaria a postura ideológica sindicalista, sustentando
os conceitos como o anti-imperialismo e o antineoliberalismo; Arce possui forte sintonia com
Morales, permanecendo como um político de baixo perfil, mas corresponderia a seguridade
econômica, já que foi ministro da economia no período do crescimento boliviano; por fim,
Choquehuanca foi fundamental porque teria uma relação estreita com os setores populares,
sendo o representante da identidade indígena (ROMANO, 2022). Segundo jornais bolivianos
(PAREDES, 2022; EL DIÁRIO, 2022), atualmente, o partido tem sido alvo de disputas internas entre
os apoiadores de Morales e os de Choquehuanca. Os congressos do MAS têm terminado em

Vivir Bien na agenda externa de meio ambiente boliviana


brigas e conflitos entre os dois lados, principalmente porque parte do partido quer a ascensão
de novas lideranças, e o ex-chanceler é colocado como o favorito.
Apresentar todos esses fatos têm o intuito de corroborar o argumento: a cosmovisão
originária está intrinsecamente ligada à episteme do MAS, assim, sua confluência na política externa
se alicerça na própria existência do partido enquanto força política, uma vez que a construção de
seu poder está vinculada aos instrumentos simbólicos que esta episteme oferece ao MAS e às suas
lideranças. A crise de 2019 foi oriunda de um sério desgaste com a base indígena. Tanto a inserção
de Choquehuanca na vice-presidência, quanto a disputa entre seus apoiadores e os de Morales,
apontam para um cenário de centralidade dos movimentos indígenas, de suas demandas e de sua
episteme. O ex-chanceler é tido como líder originário, e por isso o preferido entre os opositores
de Morales no interior do MAS. Dessa forma, não é possível desvincular o MAS da cosmovisão
indígena porque ela é a força e a impulsão política do partido.

A cosmovisão originária na política externa de meio ambiente

Partindo para a política externa, a agenda de meio ambiente ocupou espaço importante
na atuação externa boliviana, sendo os temas discutidos alicerçados na cosmovisão indígena.
Desde seu primeiro ano de governo, Morales pleiteou as bases filosóficas do Vivir Bien para
definir um modelo econômico alternativo. Em seu segundo discurso, na Assembleia das Nações
Unidas de 2007, já aponta a vanguarda indígena na defesa da natureza e da vida e a relevância
dos conhecimentos ancestrais para a discussão sobre mudança climática (Morales, 2007). Em
2008 lança “Os dez mandamentos para salvar o planeta, a humanidade e a vida”, onde contrasta
a Cultura da Vida, ligada às tradições originárias e sua relação com a Madre Tierra, e a Cultura
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da Morte, vinculada às relações capitalistas baseadas na desigualdade e no desmatamento
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

(Morales, 2008). Embora em 2009, na COP15, a Bolívia já inicie sua atuação em defesa dos
Direitos da Mãe Terra, é a partir de 2010 que há a intensificação desta pauta, devido à aprovação
da Lei de Direitos da Mãe Terra e a Conferência Mundial dos Povos sobre Mudança Climática e
os Direitos da Mãe Terra (CMPMC) (GONÇALVES, 2022).
As propostas bolivianas centram-se em torno das decisões obtidas na CMPMC, conferência
sugerida pelo governo Morales em 2010, que tinha grande participação dos movimentos sociais
e que se repetiu com o passar dos anos. A deliberação da Bolívia a partir de então é de que a
Mudança Climática não poderia ser discutida rasamente como um problema de elevação de
temperatura, o documento expõe a necessidade de questionar as causas, que são intrínsecas ao
sistema capitalista. Nesse sentido, foi proposto aos países centrais: 1) redução das emissões de
gases poluentes; 2) que assumam os custos da transferência de tecnologia aos países periféricos;
3) que respondam pelas migrações climáticas, eliminando as restrições ligadas ao assunto; 4)
que assumam a dívida das mudanças climáticas nos países periféricos propondo os meios de
prevenir, minimizar e atender os danos que sucedem das emissões de poluentes excessivas; 5)
que não defendam a mercantilização das florestas; 6) a constituição de um Tribunal Internacional
de Justiça Climática; 7) que não sejam a favor da criação de novos mercados de carbono; 8) e
que adotem, no âmbito das Nações Unidas, a Declaração Universal da Mãe Terra (CONFERENCIA
MUNDIAL DE LOS PUEBLOS SOBRE EL CAMBIO CLIMÁTICO Y LOS DERECHOS DE LA MADRE
TIERRA, 2010).
Os discursos dos presidentes a partir de então passaram a mover esses pontos e a
propor políticas vinculando a filosofia do Vivir Bien à promoção da justiça social. Para melhor
compreensão dessa afirmação, abaixo está o gráfico que aponta os principais conceitos utilizados
por Evo Morales em seu discurso:

Gráfico 8.1 – Principais termos utilizados por Evo Morales nas COPs durante seus mandatos

Anti-imperialismo

4%
Vivir Bien Justiça
Social
22% 33%

Democracia 6%

16% 12%
Direitos da
4% 3% Mãe Terra
Anticapitalismo
Anticolonialismo
Plurinacionalidade
Fonte: Elaborado pela autora a partir dos discursos do presidente Evo Morales.

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Foram analisados os discursos do presidente Evo Morales realizados na Cúpula de
Mudança Climática de 2010 a 2019, com exceção da COP19 (2013) e a COP22 (2016).
Foram selecionados os conceitos chaves da política externa boliviana: anticapitalismo,
anti-imperialismo, anticolonialismo, plurinacionalidade, Vivir Bien, Direitos da Mãe Terra e
democracia. Em todos os discursos esses termos se encontraram presentes, contudo, alguns
possuíam mais menções que outros. Como se observa no gráfico, o termo que mais aparece é
o de justiça social. Foram incluídas nesta codificação as vezes que Morales expôs a necessidade
de restabelecer o equilíbrio mediante a justiça econômica, social e ambiental. Segundo o ex-
presidente, os maiores responsáveis pela crise climática são os países desenvolvidos, já que
foram esses que promoveram a industrialização por meio da exploração dos países do Sul. Por
isso, esses Estados deveriam assumir a dívida climática e, por intermédio do mecanismo de
mitigação e adaptação e o mecanismo de perdas e danos, atenuar os efeitos da crise climática
nos países periféricos.
Em sequência, o conceito que mais aparece é o de Vivir Bien. O conceito da filosofia
aimará Vivir Bien parte de uma ontologia distinta das embasadas no ocidente. A separação
existente nas perspectivas ocidentais entre o mundo natural e o social traz uma visão utilitarista
da natureza, em que os seres não humanos serviriam às vontades da humanidade e ao seu
ímpeto pelo progresso e desenvolvimento. O Vivir Bien parte da unidade entre os seres da
terra, em que as relações são constituídas baseadas na manutenção do equilíbrio da natureza
(MAMANI, 2010).
Nessa perspectiva, Evo Morales utiliza o Vivir Bien para contrapor a cosmovisão indígena
à ocidental capitalista. Segundo o ex-presidente, o Vivir Bien seria a base para estruturar um
outro modelo econômico, embasado nos direitos da Mãe Terra e no equilíbrio com a natureza.
Diferentemente do sistema capitalista vigente, que devido ao seu ímpeto egoísta e consumista
utilizaria os componentes da terra como recursos mercantis. Igualmente, a menção dos direitos

Vivir Bien na agenda externa de meio ambiente boliviana


da Mãe Terra é feita ao propor uma legislação internacional, institucionalizada mediante a criação
de um Tribunal de Justiça Climática, visando dar a todos os seres da Pachamama direito à vida e
ao Vivir Bien.
Plurinacionalidade e democracia são termos que foram utilizados em conjunto, na maioria
das vezes. Morales fez poucas referências diretas à plurinacionalidade, mas sempre argumentava
a necessidade de ação conjunta dos povos do mundo, não dos Estados Nacionais, sugerindo
a integração dos povos em defesa da Mãe Terra. É dentro desse contexto que o conceito de
democracia aparece, apontando para o imperativo de construir um marco normativo que
ofereça qualidade de vida para toda a população, por meio do acesso aos serviços básicos e
oportunidade de viver em um planeta sem riscos climáticos.
Por fim, Evo Morales também utiliza com frequência os conceitos de anti-imperialismo,
anticolonialismo e anticapitalismo. O que mais aparece é o de anticapitalismo, já que a todo
momento o ex-presidente faz o contraste entre o Vivir Bien e o capitalismo (vivir mejor). O
ex-presidente argumenta que os Estados centrais, principalmente, não encaram as causas da
crise climática e sim os efeitos, isso ocorreria porque a causa está no sistema capitalista e na
forma como o capital se reproduz – mediante o consumismo exacerbado e a subjugação dos
recursos aos interesses privados. Morales faz algumas menções ao anti-imperialismo e ao
anticolonialismo, sobretudo porque essa retórica legitima a argumentação boliviana sobre o
dever dos países centrais em assumir a dívida climática.
Todavia, ao trazer a Economia Verde, o ex-presidente aponta que esta seria a mais nova
face do colonialismo: por um lado um colonialismo da natureza, ao mercantilizar as fontes
naturais da vida, e, por outro, um colonialismo do Sul, porque seriam os países periféricos
que carregam com as consequências da industrialização do Norte. Ele critica os defensores
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da Economia Verde por estes quererem criar mecanismos de intromissão para monetizar os
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

recursos naturais, sob uma retórica ambientalista de punição de uso e uma prática imperialista
de tomar os recursos dos países periféricos. O ex-presidente argumenta que isto nada mais
seria se não a mercantilização da biodiversidade, a vida se tornaria um negócio e não um
direito, e por isso a sociedade deveria aprender com os povos indígenas a viver em harmonia
com a natureza.
Como forma de verificar a continuidade da política externa de meio ambiente de Evo
Morales pelo governo de Luis Arce, também foi feita uma codificação do primeiro discurso do
atual presidente à COP 26, em 2021.

Gráfico 8.2 – Codificação do discurso de Luis Arce na COP26


6

0
Vivir Bien Justiça Social Acordo de Paris Anticolonialismo Anticapitalismo

Fonte: Elaborado pela autora a partir do discurso de Luis Arce na COP26.

Como mostra o gráfico, observa-se que os termos que aparecem no discurso de Luis Arce
são, respectivamente: Vivir Bien, justiça social, Acordo de Paris, anticolonialismo e anticapitalismo.
A base do discurso do presidente boliviano é o Vivir Bien, expondo que a filosofia andina seria
a saída para o “capitalismo verde”, fazendo menção à Economia Verde. Assim como Morales,
Arce aponta que “los países desarrollados están promoviendo un nuevo proceso de recolonización
mundial que lo podemos denominar como el ‘nuevo colonialismo del carbono” (ARCE, 2021). Ele
explana que os países centrais não estariam cumprindo o Acordo de Paris, recaindo para os
países periféricos à dívida climática. O presidente argumenta que as ações para solucionar os
problemas com o clima perpassam por reconfigurar o sistema econômico, apresentando o Vivir
Bien como a única maneira de superação visto que a cosmovisão indígena compreenderia a
importância da Mãe Terra e de seus direitos.
Assim, a política externa de meio ambiente boliviana traz ao debate de clima a cosmovisão
indígena e, de certa maneira, se comporta como defensora da Mãe Terra, sempre propondo
atribuir direitos a ela. Evo Morales reivindica a identidade indígena, mas é nítida a contradição
de seus governos, uma vez que o extrativismo e a política desenvolvimentista se contrastavam
com a defesa da Mãe Terra, assumida no sistema internacional. Luis Arce, como dito antes,

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pertence à classe média e não reivindica a identidade indígena, mas é possível reconhecer a
continuidade da política externa de meio ambiente boliviana e sua defesa em instituir direitos
à Mãe Terra.

Ideias na Política Externa

Como visto, o MAS, assim como todo o seu projeto político, embasou a política externa
nos princípios do Vivir Bien. Tal constatação nos insere na afirmação de que a maneira como o
Estado age no sistema internacional está vinculada à política do governo que está conduzindo
o processo decisório. Por isso, postula-se que entender a atuação de um país perpassa por
compreender a dinâmica governista, sendo a base ideológica, para esse artigo, fundamental
para explicar os princípios e crenças em que as políticas estão embasadas.
Os estudos no campo de APE sobre a influência das ideias na política externa possuem
variada abordagem. O trabalho de Harold e Margaret Sprout (1957) inaugurou a investigação da
relação entre a análise cognitiva e a política externa, estabelecendo a distinção entre “ambiente
operacional”7 e o “ambiente psicológico”.8 A partir de então muitos outros estudos vincularam
a variável psicológica/cognitiva no processo decisório (BRECHER et al., 1872; FRANKEL, 1968;
BOLDING, 1961; HERZ, 1994). Outro grupo de estudos abrangem à institucionalização das ideias
e os resultados que se conferem, aqui encontra-se o trabalho de Judith Goldstein e Robert
Keohane (1993). A presente pesquisa se integra às análises que decorrem sobre a relação entre
as ideias e a elite política, cujo argumento principal é que a política externa reflete as ideias da
política interna porque elas constituem a disputa doméstica a priori.
Parte-se da premissa de que política externa é uma política pública e, portanto, tem sua
formulação e implementação inserida no dinamismo dos governos (MILANI; PINHEIRO, 2013;
LIMA, 2000). Em perspectiva semelhante, as duas primeiras premissas de Moravcsik (2003)

Vivir Bien na agenda externa de meio ambiente boliviana


apontam para uma relação intrínseca entre Estado-sociedade no processo decisório. O autor
expõe que os indivíduos e grupos distintos definem seus interesses em sua realidade social e a
partir da disputa institucional influiriam na política externa. Por sua vez, os Estados representam
um subconjunto da sociedade doméstica, cuja administração está sujeita a captura e recaptura
por parte dos atores sociais. As pressões sociais transmitidas por instituições e práticas
representativas estabelecem as “preferências9 do Estado”, as quais seriam definidas pelos grupos
que ganharam a disputa pelo aparelho estatal.
Em uma perspectiva semelhante, Pinar Ipek (2015) expõe que a convergência de crenças
e causas se estabelece em uma relação dialética entre as estruturas domésticas e os interesses
materiais. A estrutura doméstica seria a variável interveniente ao passo que os formuladores
de política enquadram os interesses materiais de acordo com as crenças estipuladas. As
crenças seriam articuladas por uma elite de política externa que combinaforças ideacionais em
mecanismos causais:

Em outras palavras, a elite política define o propósito social, avalia o ambiente


estrutural e enquadra os interesses materiais de acordo com princípios
normativos, que por sua vez convergem com crenças causais para identificar
oportunidades e prescrever instrumentos de política (IPEK, 2015, p. 179).

7 O “ambiente operacional” seriam os fatores internos e externos que compõem o processo decisório, aos quais são
percebidos e considerados na formulação da política.
8 O “ambiente psicológico” seria as imagens e as ideias que se tem sobre o “ambiente operacional”.
9 “Preferências” do Estado se diferenciam de “estratégias nacionais”, “táticas” e “políticas”. Moravcsik (2003) explica
que as “preferências” seriam entendidas como as posições transitórias de barganhas s, exigências de negociações
ou objetivos cotidianos de política externa.
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Pinar Ipek (2015) argumenta que existe um ambiente político favorável, particularmente
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

um governo majoritário, que facilitaria as nomeações de política externa para cargos-chave, de


modo que uma janela de oportunidade seja fornecida para o empreendedorismo político. O
autor não entra na discussão sobre como seria esse empreendedorismo, ou porque ele seria
relevante para as elites políticas internas. Nessa perspectiva, aqui se articula o trabalho de Pierre
Bourdieu (1989) e de Albert Yee (2011).
Pierre Bourdieu (1989) expõe que o poder tem várias expressões, mas a mais invisível
delas, a qual pode ser exercida “com a cumplicidade daqueles que não querem saber que
lhes estão sendo sujeitos ou mesmo que o exercem”, é a simbólica (BOURDIEU, 1989, p.
8). O poder simbólico seria um poder de construção da realidade, que tende a estabelecer
uma ordem, uma concepção homogênea do tempo e do espaço que tornaria possível a
concordância da população à ordem imposta. Os símbolos seriam instrumentos por excelência
da integração social, eles tornariam possível um consenso acerca do mundo social ao qual
contribui fundamentalmente para a reprodução da ordem social, “a integração da lógica é
condição da integração moral” (Bourdieu, 1989, p. 10). “É enquanto instrumentos estruturados
e estruturantes de comunicação e conhecimento que os sistemas simbólicos cumprem a sua
função política de instrumentos de imposição ou legitimação da dominação” (BOURDIEU,
1998, p. 11).
Assim sendo, a elite política utiliza os instrumentos simbólicos para manutenção de seu
poder, unindo diretamente as ideias aos discursos preteridos. Nesse sentido, Albert Yee (2011)
argumenta que as ideias produzem efeitos políticos mediante o discurso elaborado. O autor
apresenta cinco grupos de investigação que explicam como as redes de ideias e os sistemas de
crenças afetam à política mediante a linguagem. O que interessa para esse trabalho é o vínculo
entre a linguagem simbólica e seu significado. Segundo o autor, as linguagens e os discursos
afetariam a política ao auxiliar os tomadores de decisão com significados para as suas situações
políticas, permitindo que ideias de bases epistêmicas específicas gerem conceitos e associações
significativas para quem recebe a mensagem.
Voltando ao argumento, a cosmovisão originária está intrinsecamente ligada à episteme
do MAS, assim sua confluência na política do governo é imediata. A força política do MAS
está vinculada aos instrumentos simbólicos que o conhecimento indígena oferece, e,
portanto, sua sobrevivência enquanto movimento político depende do grau de importância
que o governo dá às causas originárias. As ideias, oriundas do Vivir Bien, possuem uma
concepção da realidade que são distantes daquelas prescritas pelos outros partidos
bolivianos, e, por isso, o MAS e suas lideranças se fortalecem enquanto grupo social por
trazerem simbologias originárias para seu discurso e política. Sendo a política externa uma
política pública, formulada por uma elite política vinculada ao MAS, a confluência ocorre de
maneira imediata.
De maneira a corroborar argumentos desse tipo, o trabalho de Goldstein e Keohane
(1993) faz importante contribuição vinculando ideias e interesses, explanando que as crenças
conduzem à constituição dos interesses e sua maximização. Assim, as ideias servem para guiar
comportamentos sob condições de incertezas mediante a estipulação de padrões causais ou
compelindo motivações éticas/morais para a ação.
Logo, a política externa dos governos do MAS destoam dos anteriores e o motivo para tal
é a base epistêmica, que possui uma ontologia que parte do campesino-originário. As crenças se
fundem na visão de mundo da cosmovisão indígena, a qual possui outros interesses e objetivos
a serem adquiridos no sistema internacional. Nesse sentido, os roadmaps se caracterizam por
buscas de estratégias alternativas das que estão postas pelos países centrais, porque as crenças,
em sua natureza, são diferentes e, portanto, os interesses também.

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Conclusão

O objetivo do capítulo foi compreender a incidência da cosmovisão originária na política


externa de meio ambiente partindo da composição ideacional do Movimiento al Socialismo,
durante os governos de Evo Morales e Luis Arce. A primeira seção do artigo discorreu sobre a
composição ideacional do MAS, mostrando como se define a ideologia katarista e a indianista.
Mesmo que o Movimiento al Socialismo tenha surgido das organizações kataristas, é possível
identificar divergências internas, sobretudo no que tange a dicotomia desenvolvimento e
preservação do território. O golpe a Morales mostrou que a base de apoio do ex-presidente
havia diminuído, principalmente em virtude da cisão do Pacto de Unidad, com a saída da CIDOB
e da CONAMAQ depois do ocorrido em TIPNIS. Todavia, após o golpe há a refundação do Pacto
de Unidad e o retorno das organizações citadas, sobretudo porque na Bolívia o projeto indígena-
originário continua forte.
A vinculação da política externa à política pública demonstra que a agenda externa
é formulada a partir das disputas internas. O governo do MAS possui forte apelo às bases
campesinas-originárias, porque depende delas para sua sobrevivência enquanto força política
majoritária. Assim sendo, os apelos pela defesa da Mãe Terra que Morales e Arce alicerçam
em seus discursos legitimam as discussões de justiça social que buscam uma refundação do
modelo econômico. A episteme indígena, baseada no equilíbrio com a natureza e a defesa
da Pachamama, se internacionaliza tornando-se uma pauta global, que possui uma visão de
mundo específica e que traça estratégias políticas, roadmaps, distintas das existentes no sistema
internacional. Contudo, é importante afirmar que essas raízes são locais e é nessa localidade que
o MAS, mobilizando instrumentos simbólicos mediante discursos e fundamentos ideológicos,
reforça seu poder enquanto partido majoritário.

Vivir Bien na agenda externa de meio ambiente boliviana


A conjuntura atual demonstra a importância do movimento indígena para a política
boliviana. As contradições do governo Morales levaram à crise que o mesmo enfrenta no interior
do partido, trazendo David Choquehuanca como substituto ao poder. O ex-chanceler representa
a base dos movimentos sociais, sobretudo a base originária, e essa constatação induz a afirmar
que os próximos passos bolivianos, sejam eles externos ou internos, não poderão ser distantes
das demandas originárias porque não existiria o MAS sem o apoio do movimento originário.

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CAPÍTULO 9

A INFLUÊNCIA DAS IDEIAS DE SIMÓN BOLÍVAR NA INTEGRAÇÃO


REGIONAL DA VENEZUELA CHAVISTA1

Stephanie Braun Clemente

As ideias ajudam a ordenar o mundo. Ao ordenar o mundo, as ideias podem


moldar agendas, que podem moldar profundamente os resultados (políticos).
— Judith Goldstein e Robert Keohane, em Ideas and Foreign Policy: an
analytical framework (1993).

Introdução

O presente capítulo traz uma análise acerca da política externa venezuelana nos anos em
que Hugo Chávez esteve à frente do poder executivo do país, focando, especificamente, na
desfechada para seu entorno regional: América Latina, América do Sul e Caribe. Argumentamos
que o país ocupou lugar de relevância na região, sendo um dos polos de liderança regional em
tal período. A literatura sobre integração regional classifica o regionalismo da época como “pós-
liberal” (VEIGA; RIOS, 2007, p. 21) ou “pós-hegemônico” (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012, p. 39). O
regionalismo aberto, cujo foco era restrito ao âmbito comercial, perde graus de relevância e a
implementação de pautas sociais e políticas passa a ser perseguida pelos governos de cunho mais
progressista que ascendem na região no momento da onda rosa (SILVA, 2018). No entanto, tais
governos não eram homogêneos em suas crenças e ideias, de forma que é preciso se aprofundar
em um dos casos mais emblemáticos desse período: o da Venezuela.
Todavia, não há estudos que busquem estudar o papel que um conjunto de ideias específico
possui na conformação das atitudes da política externa chavista para a região. Por conta disso,
essa pesquisa busca suprir a lacuna encontrada, ao empregar bases teóricas da Análise de
Política Externa (APE), que estudam como as ideias influenciam a política externa, aliada da Role
Theory, para o estudo de caso do papel de líder regional desempenhado pela Venezuela chavista.
Argumentamos que as ideias, dadas a partir da interpretação que Hugo Chávez deu ao ideário
de Bolívar, impactaram sobremaneira a Política Externa (PE) adotada pelo país nos anos 2000,
especificamente em sua atuação para a região. Visto isto, a problemática que trazemos aqui se
orienta pela seguinte pergunta: como Hugo Chávez instrumentalizou as ideias de Simón Bolívar
no desempenho do papel de “líder regional” da Venezuela nos anos 2000?
Justifica-se sua importância pelo fato de que estudos acerca da relação entre as ideias,
convicções e crenças dos policymakers venezuelanos são escassos, de forma que se torna
importante buscar esclarecer como Chávez reinterpretou e atualizou as ideias de um importante
personagem latino-americano — e venezuelano —, Simón Bolívar, e como estas impactaram
nas decisões e ações de política externa do Estado. A justificativa social da pesquisa gira em
torno de que é preciso desmistificar ideias que o senso comum prega para versar acerca do
bolivarianismo. Há a tendência de estereotipá-lo de maneira negativa como atrelado a preceitos
de uma extrema esquerda, ao comunismo, a regimes adeptos do chavismo (MOTA; MARCELINO,

1 A pesquisa que deu origem a esse capítulo recebeu apoio da CAPES.


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2017) e a uma forma de autoritarismo. Tais estereótipos não consideram as especificidades dessa
ideologia e sem compreender pelo que Bolívar lutou e em que medida Chávez empregou as
ideias do libertador e as instrumentalizou em seu projeto político.
Partindo disto, o objetivo principal do estudo consiste em averiguar o impacto que a
ideologia bolivariana possuiu no desempenho do papel de líder regional da Venezuela chavista.
Além deste, os objetivos secundários abrangem apresentar as lentes teóricas de APE que
trabalham a perspectiva do impacto das ideias em PE, bem como a Role Theory e analisar as
principais instâncias de integração regional que a Venezuela participou nos governos de Hugo
Chávez, aferindo o impacto das ideias do bolivarianismo para sua criação ou adesão, as quais são
identificadas como: a Aliança Bolivariana para os povos de Nossa América (ALBA); PetroAmérica;
Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos (CELAC); a União de Nações Sul-
Americanas (UNASUL) e o Mercado Comum do Sul (MERCOSUL). Metodologicamente, foi

A influência das ideias de Simón Bolívar na integração regional da Venezuela chavista


realizada uma revisão de literatura mas, também, contou com fontes primárias, como documentos
oficiais da República Bolivariana da Venezuela, bem como discursos de Hugo Chávez.
Para tanto, o capítulo está organizado em quatro seções, além da introdução e das
considerações finais. A primeira seção apresenta o debate teórico no qual a argumentação
será pautada. Ela expõe a base teórica que versa sobre a importância das ideias e crenças na
formulação de políticas externas, e demonstra como a Role Theory contribui para a análise.
A segunda seção realiza um panorama histórico de quem foi Simón Bolívar e suas bases
de pensamento e luta, para, assim, exibir ao leitor como Chávez realizou uma releitura de
Bolívar e empregou-a em seu projeto político, que teve diversos desdobramentos, dentre os
quais, o desempenho do papel de líder regional é avaliado. A terceira seção examina como
a Venezuela chavista buscou e promoveu a integração regional. Por fim, a quarta seção traz
exemplos de importantes iniciativas de regionalismos e a influência do bolivarianismo através
da presença da Venezuela nelas, demonstrando como isso impactou no desempenho do seu
papel de líder regional.

Análise de Política Externa: como as ideias se articulam para a execução de um role

As contribuições psicológicas para o campo de estudo das Relações Internacionais (RI)2


têm sido fundamentais para o desenvolvimento de uma base teórica que discorre sobre como
as ideias e ideologias impactam no resultado das políticas, com foco para as políticas externas. O
viés cognitivo das crenças e imagens criadas pelos formuladores de políticas, a partir do sistema
de ideias, se mostra determinante para a política, apontando que as análises baseadas apenas na
racionalidade não conseguiam compreender a amplitude do processo decisório de PE. De fato,
todos os policy makers possuem conjuntos de ideias e acabam, portanto, sendo condicionados
por elas nas ações externas desprendidas pelo Estado (ROSATI, 1995).
E ainda, “muitas vezes é impossível explicar decisões e políticas cruciais sem referência
às crenças dos tomadores de decisão sobre o mundo e suas imagens do outro” (JERVIS,
1976, p. 28, tradução nossa)”. Sendo assim, considerar o psycho-millieu (SPROUT; SPROUT,
1956), ou ambiente psicológico, dos policymakers é fundamental para compreender seus
desígnios, bem como as decisões que tomam, pois é preciso considerar como o ambiente
internacional é percebido e interpretado por esses atores (GONÇALVES; PINHEIRO, 2020).
Judith Goldstein e Robert Keohane (1993) esclarecem ainda mais a relação entre as ideias e
a conformação de políticas:

2 Dentro da APE, as análises cognitivas recaem sobre as crenças, percepções, imagens e processamento de informações
e a influência desses aspectos com a política. Por sua vez, a psicologia considera estudos de personalidade, que
envolvem emoções, ego e motivações (GONÇALVES; PINHEIRO, 2020).
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As ideias influenciam a política quando as crenças de princípio ou causais que
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

elas incorporam fornecem roteiros que aumentam a clareza dos atores sobre
os objetivos ou relações meio-fins; quando afetam os resultados de situações
estratégicas nas quais não há equilíbrio único e quando são incorporadas às
instituições políticas (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993, p. 3).

Entretanto, há debates acerca de como as crenças funcionam dentro desse ambiente de


tomada de decisões políticas. Por um lado, autores da vertente da “consistência cognitiva”
afirmam que indivíduos conferem sentido para o mundo por meio de suas crenças-chave e
acabam por buscar manter a consistência dentro de seu sistema de crenças, com a finalidade
de que haja coerência nele. De tal forma, informações e ideias incompatíveis com tais crenças,
principalmente com as crenças centrais, são desconsideradas. Por outro lado, a “teoria da
cognição social” e a “teoria do esquema” acreditam que as estruturas de cognição que se dão
dentro das mentes dos indivíduos são, na verdade, complexas e até mesmo confusas. Para eles,
as crenças não conseguem ser coerentes e interconectadas, pois existem contrassensos entre
elas que devem ser tomados em consideração (ROSATI, 1995).
No entanto, a teoria cognitiva parte da premissa de que são as crenças centrais as mais
relevantes para melhor apreensão do processo de percepção e cognição (ROSATI, 1995). E, por
conta disso, a análise de como as ideias bolivarianas impactaram os policymakers na formulação e
execução de políticas externas é relevante, por ser o bolivarianismo o sistema de crenças centrais
dos governos de Hugo Chávez, que, inclusive, após ser eleito, nomeou o país como República
Bolivariana da Venezuela3. Tais crenças centrais — que serão explicadas na próxima seção do
capítulo — impactam todo o conjunto de políticas externas do país, bem como no desempenho
de roles que o governo chavista passa a assumir, dentre eles, o papel de líder regional.
O conceito de role ou, traduzido para o português, papel, é empregado em distintas áreas
do saber, como na psicologia, filosofia, antropologia, sociologia e, também, nas RI. O papel é um
conceito normativo, que se refere ao comportamento e não a uma posição, já que um ator pode
desempenhar algum papel, mas não pode ocupar um papel. Assim, os papéis trazem consigo
determinados comportamentos que são esperados e/ou apropriados para sua consecução, de
forma que as funções do papel são compostas por todas as normas que se julga serem aplicáveis
a ele (HOLSTI, 1970). Sekhri (2009) afirma que o uso da noção de papéis no campo das RI alude à
uma descrição de tais relações como um espetáculo teatral, em que cada unidade internacional
é entendida como um ator a desempenhar um ou diversos papéis no sistema.
Ademais, é importante ter em mente que os papéis demandam expectativas dos atores
sociais, já que estão relacionados com as interpretações do consecutor do papel, bem como
do observador. Nesse sentido, a Role Theory “enfatiza a interação entre a prescrição do papel
do alter e o desempenho do papel do ocupante da posição (ego)” (HOLSTI, 1970, p. 239,
tradução nossa). Em consonância, Wehner (2015) define os papéis como constituídos de forma
interacional, demonstrando que as identidades dos atores são produtos de um processo
social e desencadeiam reações em seus receptores. Nesse sentido, argumentamos, portanto,
que tais identidades se originam de determinado conjunto de ideias. As ideias influenciam os
tomadores de decisão a desempenharem os roles, ideias essas que podem refletir ou reforçar
anseios domésticos e externos, como também podem não refletir as mesmas crenças que seus
receptores possuem, de forma que os papéis assumidos podem ser contestados por pares
nacionais e internacionais.

3 Foi realizado um referendo constituinte em 15 de dezembro de 1999, no qual foi aprovada a Constituição da
República Bolivariana da Venezuela (VENEZUELA, 1998). É com a nova Constituição que o nome do país é alterado e
passa a fazer referência à figura de Simón Bolívar.

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Cada papel pré-dispõe o Estado a agir de determinada maneira, condicionando e limitando
o comportamento e os tomadores de decisão devem ter isso em consideração (Role Perscription).
Por sua vez, as concepções nacionais de papéis incluem as acepções dos formuladores de
políticas – que abarca seu sistema de crenças-, os compromissos, regras e ações que estes
considerem propícias para o Estado (Role Perception), além das funções que o país deve exercer
continuamente no sistema internacional ou regional (HOLSTI, 1970). E ainda, como os Estados
possuem variados conjuntos de relações no mundo, acabam por assumir diferentes papéis
em tais conjuntos. Em alguns casos, pode ser que sejam incompatíveis entre si (Role Conflict),
porém, a verificação cuidadosa demonstra que os governos adotam orientações diferentes para
dessemelhantes conjuntos de relações.
A adequação da Role Theory para o estudo do internacional, se deu pela ênfase nas
“concepções de papel nacional” (THIES, 2014, p. 1, tradução nossa). Essas representam as

A influência das ideias de Simón Bolívar na integração regional da Venezuela chavista


orientações do Estado para o ambiente externo, bem como os compromissos, tarefas e funções
que estabelece dentro de vários conjuntos diferentes de relacionamentos internacionais (HOLSTI,
1970). Nesse sentido, as ações e decisões dos governos podem ser mais bem explicadas por
referência às concepções dos próprios formuladores de políticas acerca do papel que deve ser
adotado por seu país, bem como, do papel que o ambiente social permite que seja implementado
(HOLSTI, 1970).
De tal forma, essa ótica também foge do foco de abordagens racionalistas, dando enfoque
para a realidade social e para como os formuladores de políticas/líder do Estado percebem a
unidade estatal, se posicionam e interagem no sistema internacional. Ademais, essa teoria dá
enfoque para os fatores externos e internos, afinal, para definir quais ações tomar dentro do
sistema, é necessário olhar para o nível doméstico. Por tais razões, elucida-se a relevância teórica
da Role Conception aplicada dentro da disciplina de Análise de Política Externa (APE).

O bolivarianismo como conjunto de ideias para o desempenho de roles em política externa

É mandatório compreender, em linhas gerais, a origem dos ideais que compreendem a


ideologia política do bolivarianismo. Simón Bolívar, também conhecido como “o libertador”, foi
um personagem de grande importância para o processo de emancipação das Américas frente a
metrópole espanhola. Ele lutou ativamente ao longo desse processo e auxiliou na libertação da
exploração econômica da Espanha de uma área que corresponde a praticamente toda a América
Andina, compreendendo os territórios que hoje seriam a Venezuela, Colômbia, Panamá, Equador,
Bolívia e partes do Peru (GAVIÃO, 2018).
De tal forma, o combate ao imperialismo europeu era uma das bases da luta de Bolívar,
que enxergava que o povo americano ocupava um lugar nulo e injustiçado para a sociedade
espanhola, sendo reconhecidos como nada além de servos para o trabalho e, quando
muito, como consumidores (BOLÍVAR, 2009). O combatente enxergava a importância da
autonomia do povo americano e propunha um caminho revolucionário para o cenário pós-
independência. O conceito de “centralismo” era ponto central nesse processo, em que se
propunha a formação de uma grande nação, provida de autonomia, nas Américas — também
conhecida como Pátria Grande —. A ideia era condenar ameaças e ingerências externas à
região4, conquistar a coordenação conjunta de seus processos domésticos e desenvolver um
sentimento nacional nos povos. Ademais, em seus discursos, Bolívar defendia a liberdade e a
igualdade (MATOS, 2021).

4 A ideia era que somente por meio da união dos Estados latino-americanos seria possível garantir a independência
nacional frente a ingerências de grandes potências, dentre as quais já figurava os Estados Unidos (BOLÍVAR MEZA,
1994).
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É imprescindível afirmar que há duas formas de se fazer referência ao legado do libertador.
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

A primeira consolida-se pela admiração e exaltação de seu pensamento e sua figura, ao passo
que a segunda consiste no reexame histórico de seu projeto de emancipação, com a finalidade
de atualizá-lo. É nesse segundo grupo que se encontra o conceito de bolivarianismo empregado
pela Venezuela chavista (SEABEA, 2010). Nesse tipo específico do bolivarianismo, que consiste
em uma atualização da esquerda do conceito, busca se fundamentar pelo:

[...] resgate e na continuidade do projeto de emancipação venezuelano das


oligarquias político-econômicas que reproduzem a estrutura dependente,
contra a subordinação do país à influência de agentes do imperialismo
e a distribuição radical do poder político. Refere-se assim às condições de
realização da segunda emancipação (SEABRA, 2010, p. 212).

Ademais, é preciso ter em mente que o culto à figura de Bolívar é uma histórica peculiaridade
da Venezuela, já que este foi um personagem distintivo para a nação e sua emancipação (GOTT,
2004). A releitura do bolivarianismo na qual se inspira a abordagem empregada por Chávez foi
desfechada no seio das Forças Armadas do país na década de 1970 (SEABRA, 2010). Contudo,
o enfoque chavista dado ao culto à figura de Bolívar diferencia-se das abordagens empregadas
em outras ocasiões. Com Chávez, as ideias de Bolívar foram institucionalizadas através da
Constituição de 1999 e em outras iniciativas domésticas e internacionais5, de forma que o
libertador e a República se amalgamaram e o bolivarianismo assumiu a incumbência de ser um
emblema moral do processo político do Estado (ARCE; SILVA, 2015).
Nesse sentido, o resgate do bolivarianismo engendrado no chavismo assentou-se no
carisma de Chávez (ARCE; SILVA, 2015) e consiste na leitura de que a Revolução Bolivariana
deveria libertar à Venezuela, o povo venezuelano, bem como os outros Estados do continente,
do jugo do imperialismo dos Estados Unidos (EUA). Além do mais, outro desígnio importante
consistia no estabelecimento de projetos de integração na região, visto que em sua condução
externa, a integração regional é uma pauta relevante, na qual foram empenhados tempo e
recursos consideráveis da chamada diplomacia bolivariana (CLEMENTE, 2022). Na releitura
desfechada pelo líder venezuelano, também é central a busca pela conformação de um mundo
multipolar, em contraste ao que seria o mundo unipolar, no qual os EUA possuem o status de
hegemón, como pode ser destacado do discurso abaixo:

É necessário lutar contra um mundo unipolar e a favor de uma nova ordem


internacional, de que se vem falando há décadas, mas que ficou apenas
no discurso. Uma política internacional justa, democrática e equilibrada é
indispensável. Mas para conquistá-la é preciso contribuir para a criação
desse mundo multipolar. Esse é um objetivo estratégico essencial (CHÁVEZ
FRÍAS, 2001).

Visto isso, é crucial retomar a discussão dos autores Goldstein e Keohane (1993), na
qual argumentam que o impacto das ideias na política alcança impacto prolongado quando
de sua agregação no desenho organizacional, já que assim “sua influência se refletirá nos
incentivos daqueles que estão na organização e daqueles cujos interesses são atendidos por
ela” (GOLDSTEIN; KEOHANE, 1993, p. 20). E a administração chavista, ao aprovar a Constituição
Bolivariana de 1999 — e outras leis ao longo de seus mandatos —, além de conformar-se com

5 Exemplos nesse sentido são: a Alianza Bolivariana para los Pueblos de Nuestra América-Tratado de Comercio de los
Pueblos (ALBA-TCP), a Coordinadora Continental Bolivariana, o Bloque Regional del Poder Popular.

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o aparato organizacional composto, principalmente depois de 20026, por funcionários que
apoiavam tal projeto político, enraizou ainda mais as ideias e crenças bolivarianas no projeto
político do Estado e em suas ações de PE (CLEMENTE, 2022), como pode ser focalizado pela
passagem abaixo:

[...] atores domésticos auxiliavam na condução da PE, que não era apenas
administrada pelo presidente, ainda que sua figura predominasse no processo
de tomada de decisões. Acreditava-se que o projeto político bolivariano
era de interesse geral da sociedade venezuelana, de forma que os atores
domésticos apontados se apresentavam como outros precursores deste e
Chávez, o grande líder do processo revolucionário (CLEMENTE, 2022, p. 159).

A Venezuela chavista em sua busca por alcançar a integração regional

A influência das ideias de Simón Bolívar na integração regional da Venezuela chavista


A integração regional pode ser compreendida pela literatura como o processo no qual
os Estados se amalgamam, fusionando e até mesmo se emaranhando, de maneira voluntária
com seus vizinhos. Nesse processo, têm de renunciar a partes de sua soberania, ao passo
que conquistam novas técnicas para a resolução de conflitos em conjunto (HAAS, 1971;
MALAMUD, 2012). Ou seja, um processo de integração denota a existência de coesão em termos
multidimensionais — e não apenas na agenda comercial — em uma determinada área geográfica
(SARAIVA; GRANJA HERNÁNDEZ, 2021) e ainda, o regionalismo faz alusão à:

[...] instauração deliberada e paulatina de regimes políticos específicos,


regionalismos, que dada a sua multidimensionalidade não podem ser
tratados como meras opções políticas de tipo prescritiva ou normativa, mas
pela ideia de construção de regimes ou de governança (SARAIVA; GRANJA
HERNÁNDEZ, 2021, p. 70).

O debate teórico acerca dos conceitos que envolvem os processos de integração regional
é rico. A classificação do tipo de regionalismo que foi implementado nos anos que coincidiram
com o chavismo no poder recebe diversas nomenclaturas, como “pós-liberal” (VEIGA; RÍOS,
2007, p. 21) ou “pós-hegemônico” (RIGGIROZZI; TUSSIE, 2012, p. 39). Entendemos que sua
alocação dentro da catalogação de pós-hegemônico seja a mais adequada para versar sobre
a inserção regional venezuelana, já que representa, dentre outros aspectos, a luta contra o
imperialismo do Estado hegemônico, os Estados Unidos, o que é um preceito do receituário
ideológico bolivariano. Assim sendo, dentro desse tipo de regionalismo, Chávez impulsionou a
criação da ALBA, um modelo de integração que, além de lutar contra a implementação da Área
de Livre-Comércio das Américas (ALCA) e da interferência dos EUA nas Américas, se colocava
contra o viés apenas econômico e neoliberal, relegado ao regionalismo aberto e lutava contra
a pobreza e exclusão social em âmbito hemisférico (MOLANO-CRUZ; BRICEÑO-RUIZ, 2021).
Ademais, buscou participar de mecanismos criados em tal momento, como a CELAC e a UNASUL,
e desfechou esforços para aderir ao MERCOSUL.
Para além da busca pela consolidação de um polo integrador e de união na região, é
preciso frisar que a política externa chavista buscou a diversificação de parcerias (não apenas
no âmbito regional, mas, também, internacional). Esse empenho é explicado pelo fato de o

6 Momento em que grupos de oposição organizaram-se na tentativa de dar um golpe de Estado no então governo.
Hugo Chávez afastou-se da capital por um período aproximado de 48 horas até que conseguiu retomar o Palácio
de Miraflores sem que sua vida corresse perigo. Após a ocorrência de tal fato, uma série de alterações foram
implementadas no aparato governamental, dentre as quais constam mudanças de funcionários e aprofundamento
da retórica pautada na releitura do bolivarianismo (CLEMENTE, 2022).
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novo governo querer romper com o status quo operante nos anos que o precederam, no qual
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

a Venezuela operava como aliada dos EUA; e ainda, para buscar por novas alianças comerciais
no sistema internacional, de maneira a reduzir a dependência econômica que a Venezuela,
historicamente, possuía frente à Washington (VALENTE, 2013) e manter as divisas oriundas da
exportação petroleira estáveis (CLEMENTE, 2022)7. Ademais, essa diversificação encontra-se
dentro do quadro de ações empreendidas na busca pela ordem multipolar, em que privilegiaram
“[...] as relações com os países latino-americanos e caribenhos e redefinindo o modelo de
segurança hemisférica” (VENEZUELA, 2001, p. 142).

Relevantes projetos de integração regional para a diplomacia bolivariana

Como apontado acima, a ALBA era pautada por princípios bolivarianos, sendo a maior
plataforma venezuelana lançada em sua busca por maior preponderância regional e tentativa
de limitar a influência negativa dos EUA na região. Para além do exposto, convém salientar que
dentro da ALBA foi lançada a iniciativa PetroAmerica8, instituição responsável pela integração
energética na região (CÍCERO, 2016). Por meio dela, eram concretizadas vendas de petróleo
por valores abaixo do mercado, além de conferir melhores condições de financiamento aos
integrantes da iniciativa. Havia a noção de que era preciso que o uso dos recursos petrolíferos da
Venezuela fosse mais justo e democrático e auxiliasse no desenvolvimento dos povos da Nuestra
América (CLEMENTE, 2022). Assim, a busca pela integração energética, a atuação de forma
autônoma frente ao hegemón e a afirmação da liderança venezuelana na região (BUSTAMANTE;
GIACALONE, 2021) foram plataformas visadas por meio do discurso que fomentava a ALBA e a
PetroAmerica, iniciativas em que o peso do ideário bolivariano era ímpar.
Visto isto, é preciso apontar que a pauta de integração da América Latina, América do
Sul e Caribe desfechada pela política externa chavista não era composta apenas por ideais
de solidariedade. A ideologia bolivariana e sua busca pela união e amparo entre os países da
região pesava nas decisões de política externa. Porém, um ponto ainda mais importante para
a diplomacia bolivariana era o confronto ao imperialismo e hegemonia dos EUA9. Sendo assim,
a conquista de aliados regionais representava caminhos para a redução da interdependência
assimétrica que possuía frente ao mercado estadunidense e de acrescer o poder de barganha
venezuelano frente a tal ator (CLEMENTE, 2022).
Outra frente de atuação determinante da diplomacia bolivariana consistiu na busca por
integrar não apenas a América Latina e América do Sul, como também o Caribe. A Venezuela é
um país que se identifica como caribenho (SCHENEGOSKI; ALBUQUERQUE, 2014), o que ressalta
porque a Comunidade de Estados Latino-Americanos e Caribenhos é uma frente de atuação
importante. No entanto, dentro de tal mecanismo regional, a ideologia bolivariana não imperava
como na ALBA, ou seja, não havia unidade de princípios entre seus membros. Porém, encontrava
espaço para coexistir com outras ideias e interesses, afinal, era importante para Chávez ocupar

7 O petróleo configura peça fundamental para compreender as ações dos governos de Chávez. Sem os recursos
financeiros que tal pauta exportadora conferia ao Estado, não seria possível desenvolver e manter projetos de
assistência interna e externa, como as Misiones e à ajuda promovida para o desenvolvimento de países aliados
(CLEMENTE, 2022).
8 Posteriormente, a iniciativa foi desmembrada em outras três: a PetroSur, a PetroAndina e a PetroCaribe, visto que
se tornou complicado que as negociações se concretizassem em torno de apenas uma grande empresa regional
(CÍCERO, 2016).
9 Tal postura de confronto esteve presente em várias áreas do relacionamento bilateral e se acentuou após o ano
de 2002 – em que Chávez sofre uma tentativa de golpe por parte de grupos opositores, que contaram com auxílio
dos EUA – apesar das trocas comerciais, especialmente as petroleiras, terem sido mantidas por motivos pragmáticos
(CLEMENTE, 2022).

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esse espaço de relevância em sua atuação externa. Ademais, a CELAC, possibilitava e facilitava
o diálogo com terceiros atores, como a União Europeia e com outros organismos internacionais
(SERBIN, 2014). Essa visão de valorizar a integração dos países latino-americanos e caribenhos já
estava presente desde o primeiro plano de desenvolvimento oficial do governo, elaborado em
2001:

[...] Por isso, a coesão dos países latino-americanos e caribenhos, mediante
a consolidação e implementação de sua identidade comum, se converterá
no mecanismo ideal para ampliar as oportunidades de crescimento e
desenvolvimento da região e melhorar de forma sustentada e equitativa seus
níveis de bem-estar social (PNDESN, 2001, p. 156, tradução nossa).

A influência das ideias de Simón Bolívar na integração regional da Venezuela chavista


Por sua vez, a União de Nações Sul-Americanas, conjeturou o anseio de países da região que
desejavam a criação de um organismo autônomo, formado apenas por países sul-americanos
(OLIVEIRA, 2011) em sua busca por suplantar os problemas com os quais se deparavam em
termos políticos e de segurança no continente. (SILVA; ARCE, 2014). A Venezuela foi um ator
que atuou de maneira ativa em sua criação, sendo enfática ao ressaltar a importância de que
outras temáticas fossem abordadas dentro da instituição, para além de pautas comerciais. Era
relevante para o Estado participar da concertação em torno das pautas de infraestrutura, energia
e segurança na região. As aspirações venezuelanas encontraram contestações, por exemplo, por
parte do Brasil em termos da integração energética — âmbito em que os ideais da Venezuela
foram melhor perseguidos por meio da ALBA. A nação venezuelana buscou usar a UNASUL
como plataforma ideológica em torno da formação do buscado eixo anti-estadunidense, mas
não logrou o êxito esperado (BUSTAMANTE; GIACALONE, 2021).
Por fim, no seio do Mercado Comum do Sul, o Estado venezuelano buscou por seu ingresso
no mecanismo, com aspirações de reformá-lo desde adentro (BUSTAMANTE; GIACALONE, 2021).
O intuito de sua adesão era que aspectos político-sociais prevalecessem aos econômicos —
que sempre foram o foco da organização —, buscando, assim, uma revisão nos termos que
ecoavam para a Venezuela. A conformação de um novo MERCOSUL também era anelada por
outros membros do bloco, países que estavam sendo governados pela esquerda no momento.
Para Briceño-Ruiz (2021), a conformação do novo MERCOSUL representou a visão crítica que
os novos partidos governantes possuíam do modelo anterior, o neoliberal. O trecho abaixo
demonstra a importância estratégica do ingresso no MERCOSUL para o Estado venezuelano, em
que sua reforma representaria um êxito para a diplomacia bolivariana:

Para a América Latina e Caribe, são propostas a consecução dos seguintes


objetivos: i. Participar da construção do novo Mercosul para a formação
da Comunidade Sul-americana de Nações, a partir da avaliação, revisão e
reorientação dos conteúdos da integração [...] (VENEZUELA, 2007, p. 48).

Sendo assim, para a Venezuela, a entrada em tal mecanismo refletia, simbolicamente,


a perspectiva de que os princípios bolivarianos fossem fincados em um dos processos de
integração mais antigos da América do Sul (FERREIRA, 2016), e ecoassem junto dos outros
governos da onda rosa10. Entretanto, desafios foram apresentados no decorrer desse processo11
e, por mais que nem todos os objetivos do país tenham sido logrados, mudanças foram feitas

10 Momento em que governantes com condução política mais voltada para projetos de esquerda (também
considerados progressistas) ascenderam na região da América Latina.
11 Como a demora na ratificação da entrada do país pelos congressos do Brasil e do Paraguai e a conciliação dos
objetivos da PE chavista com a política e o regulamento do Mercosul (BRICEÑO-RUIZ, 2010).
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— alterações estas que também agradavam os outros atores participantes — e a entrada da
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

Venezuela no MERCOSUL a auxiliou, também, em seu propósito de avançar na construção de


maior unidade na região e de um mundo multipolar (FERREIRA, 2016).
Recapitulando, o momento da entrada em vigor do regionalismo pós-hegemônico coincide
com a ascensão de governos de esquerda na América Latina. Porém, isso não significa que havia
homogeneidade nos modelos e práticas de cooperação e integração seguidos em toda a região,
apesar de estes não se limitarem à integração pela liberalização do comércio (MOLANO-CRUZ;
BRICEÑO-RUIZ, 2021). Ou seja, ainda dentro do cenário da marea rosa, Chávez não logrou apoio
uníssono para a promoção dos ideais de Bolívar e na busca por unir toda a região em uma
Pátria Grande. E, a Venezuela, pragmaticamente, buscou aderir algumas das iniciativas que não
seguiam o bolivarianismo como princípio ideológico, por enxergá-las como passos no caminho
rumo à sua maior influência na região.
Outrossim, argumenta-se que, dentre as teorias expostas na primeira seção do capítulo, as
que mais fazem sentido para explicar o caso específico de como as ideias bolivarianas operam
no sistema de crenças dos governos de Hugo Chávez, são as teorias da cognição social e a
do esquema (ROSATI, 1995). Afinal, por mais que houvesse uma cartilha — que compreendia
tanto ideias da Constituição quanto aquelas presentes nos discursos do presidente e outros
atores — acerca dos preceitos bolivarianos que deveriam ser seguidos, nem todas as crenças
que desencadearam em ações externas eram, em sua totalidade, completamente coerentes
com os ideais bolivarianos de Chávez. Um exemplo consiste na adesão ao MERCOSUL, em que
as crenças bolivarianas não foram, ao todo, compreendidas. Porém, ainda assim, a busca por
participar desse esquema regional fazia sentido dentro da busca por um mundo multipolar e por
ter maior preponderância regionalmente, ainda que a ideia de unidade regional não se tenha
alçado em tal instância.
Sendo assim, a Venezuela, ao longo dos governos de Chávez, se conformou como um dos
polos de liderança regional. Sua maior participação e presença em mecanismos de integração
consolidados, bem como a criação de novos, nos quais exercia influência, a configuravam
como um Estado líder. Fazia parte de sua atitude diplomática conceder auxílios financeiros para
Estados parceiros, o que impulsionou ainda mais seu caminho rumo à liderança regional. Até
mesmo com a adesão ao MERCOSUL e participação em outros fóruns que não eram dotados
da ideologia bolivariana — ainda que em um momento de inter-presidencialismo e afinidades
ideológicas entre os presidentes (NOLTE; WEIFFEN, 2021) — como a CELAC e a UNASUL, agiu
em prol do desempenho do role de líder regional, afinal a unidade regional era um dos pontos
importantes da Revolução Bolivariana (THIES, 2014). Os vizinhos regionais se beneficiaram
da diplomacia do petróleo da Venezuela e, até certo ponto, os estados latino-americanos
responderam positivamente ao papel de liderança regional da Venezuela (THIES, 2014).
Argumentamos que esse papel era carregado dos ideais de Bolívar em sua essência, já
que os líderes entendiam que era preciso ter preponderância e influência na região para, assim,
buscar conformar a união dos Estados em uma Pátria Grande. Ainda que tal objetivo não tenha
sido logrado, também era importante para a Venezuela se colocar como um polo relevante,
capaz de angariar aliados e constituir alternativas à hegemonia dos EUA, na luta por um mundo
multipolar. E, justamente por defender um mundo multipolar, fazia sentido para a Venezuela
conviver com a presença de outros detentores do título de líder regional, como o Brasil.
Entretanto, conferi-lo ao Brasil não excluía a possibilidade de que também pudesse exercer o
mesmo papel (WEHNER, 2015).
O role de líder regional possuía intrínseca ligação com outros papéis desempenhados pela
administração chavista, como o de desenvolvedor externo, o de aliado fiel e o de libertador
externo. As atividades que compreendem os roles de desenvolvedor acabam por apoiar o papel

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de líder regional, já que para performá-lo, teve que ser aceito pelo público de Estados latino-
americanos, principalmente por parceiros específicos na região. Por meio dele, Chávez intervinha
para ajudar os estados latino-americanos financeiramente quando surgia a oportunidade, como
através da PetroCaribe (Thies, 2014). O role de aliado fiel pautou-se pela visão de que os EUA
não eram capazes de desempenhar seu papel de hegemonia regional de forma convincente,
o que levou o os Estados latino-americanos a buscar liderança em outro polo, um papel que
Chávez teve o prazer de tentar ocupar — e conseguiu com Cuba, Bolívia, Equador e Nicarágua
(THIES, 2014). Por fim, o papel de libertador externo encontrava-se com os ideais de buscar
libertar a América do Sul do domínio econômico e cultural dos Estados Unidos, de forma que
acabava, por sua vez, por reforçar o role de líder regional (THIES, 2014).
Em relação à questão sobre de onde provém as concepções de papel (THIES, 2014)
dos formuladores, identificou-se que Chávez era o principal formulador e implementador

A influência das ideias de Simón Bolívar na integração regional da Venezuela chavista


de tais papéis (CLEMENTE, 2022), sendo seus objetivos revolucionários as principais fontes
de tais concepções; em segundo lugar, essas concepções foram arquitetadas, então, sob as
circunstâncias da Revolução Bolivariana e da retórica do regime chavista em nome do povo. O
impacto de tais ideias nas decisões e ações externas é demonstrado por meio do papel de líder
regional, bem como dos papéis que se relacionam com ele. Por fim, tem-se que as estratégias
e as ações do país convergiam entre si, como com o uso da retórica agressiva frente aos EUA
(reforçando o anti-imperialismo) e no uso de ajuda externa ao desenvolvimento para angariar
o apoio de Estados receptores e buscar constituir unidade regional, pautada na influência
venezuelana (SEKHRI, 2009).

Considerações finais

Na releitura do bolivarianismo realizada por Chávez, era importante que alguns objetivos
fossem perseguidos, como o declarado caráter anti-imperialista e anti-estadunidense, as
contestações frente a dependência externa do país e da região, bem como a busca pela
conformação de uma Pátria Grande, que consistia em uma unidade latino-americana, sul-
americana e caribenha. Ao focar a análise para a pauta da integração regional, foi demonstrado
como as crenças bolivarianas pautaram a atuação venezuelana com mais intensidade nas
iniciativas criadas pelo país, a ALBA e a PetroAmerica (que se inserem no que se pode chamar
de Eixo Bolívar) do que naquelas que já existiam e o Estado buscou aderir. A preponderância e o
papel de destaque que a política externa venezuelana possuía no Eixo Bolívar foi essencial para a
consolidação do papel de líder regional.
A procura por ocupar espaços regionais consolidados é entendida, então, como estratégia
da diplomacia bolivariana, ainda que neles não encontrasse voz para o emprego da ideologia
em sua totalidade. Esses mecanismos se distanciavam das crenças principais do governo, mas
era determinante para a Venezuela integrar tais instâncias porque o país possuía a aspiração de
ser um líder regional, além destas serem vistas como oportunidades para projetar os princípios
integrativos da Revolução Bolivariana. Os elementos que guiaram a política externa venezuelana
foram agregados na ALBA, moldados na UNASUL e geraram demanda político-social no
MERCOSUL.
Assim, os resultados encontrados auxiliaram na consecução dos objetivos de pesquisa, já
que demonstram que a ideologia bolivariana possuiu impacto relevante nas ideias e crenças
dos tomadores de decisão, de forma que as ações de política externa voltadas para a integração
regional foram pautadas, em grande medida, pelos princípios acima elencados. Ademais, a
apresentação das lentes teóricas de APE que trabalham a perspectiva do impacto das ideias em
PE e a Role Theory tornaram possível compreender como a relação entre o aparato ideológico
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bolivariano e as ações da política externa venezuelana era intrínseca. Por fim, foram analisadas
ESTUDOS DE POLÍTICA EXTERNA: O BRASIL E A AMÉRICA DO SUL

as principais instâncias de integração regional em que a Venezuela participou nos governos de


Hugo Chávez, nas quais o impacto das ideias do bolivarianismo esteve presente de maneira mais
latente naquelas que foram criações da Venezuela do que nas que o país buscou aderir.
Tendo visto isto, as principais contribuições foram as de demonstrar como se constituíam
os ideais e aspirações de Simón Bolívar, dentro de sua perspectiva tempo-espaço específica,
e mostrar como Hugo Chávez promoveu uma releitura destas, de forma a adaptá-las para
seu contexto político no século XXI. Como a figura de Bolívar já era vista com bons olhos pela
sociedade venezuelana, tal emprego foi bem recebido pelos eleitores chavistas. Ademais, após
tal análise, evidencia-se a necessidade de que mais pesquisas no sentido de desmistificar o
estereótipo negativo existente em torno do conceito de bolivarianismo sejam realizadas. Afinal,
como demonstrado, os princípios que guiavam Chávez — ao menos em termos da integração
regional — eram ligados ao anti-imperialismo, na busca por conter a expansão do poder
hegemônico dos EUA; na busca pela consolidação de um mundo multipolar e pela unificação
da região em uma Pátria Grande. Ou seja, não reforçam a noção que o senso comum possui de
que o bolivarianismo é relacionado com a extrema esquerda, ao comunismo e a uma forma de
autoritarismo.
Por fim, trabalhos futuros podem vir a analisar como determinados Estados enxergavam o
papel de líder regional da Venezuela, se o viam de maneira mais positiva, negativa ou indiferente.
Acredita-se que seja interessante aferir e comparar em que pontos Estados aliados e Estados
contrários à ideologia configuraram formas de apoiar e ressaltar a liderança regional do país
ou se promoviam constrangimentos à posição de liderança venezuelana. Assim, focar nas Role
Expectations dos atores sociais configura um importante e atrativo ponto a ser pesquisado e
aprofundado, o que auxiliará nos estudos sobre a Role Theory implementada para a Venezuela.

Referências
ARCE, A. M; SILVA, M. A. Política Externa e Integração Regional: a Diplomacia Venezuelana entre
a ALBA e a UNASUL. Revista Sul-Americana de Ciência Política, v. 1, n. 3, 2014, p. 98-109.
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de Jamaica”. In: VILA, Manuel Pérez (Ed.). Doctrina del libertador. Caracas: Fundación Biblioteca
Ayacucho, 3ª ed., 2009, p. 66-87.
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utopía de la construcción de una Patria Grande. Revista Mexicana de Ciencias Políticas y Sociales,
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Mercosur. In: MOLANO-CRUZ, Giovanni; BRICEÑO-RUIZ, José (Ed.) El regionalismo en América
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SOBRE OS AUTORES
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.

— Alexandre César Cunha Leite é doutor em Ciências Sociais/Relações Internacionais pela


Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Fez pós-doutorado em Ciência Política na
Universidade Federal de Pernambuco. É professor do Programa de Pós-Graduação em Relações
Internacionais da Universidade Estadual da Paraíba.
http://lattes.cnpq.br/7812468603653799

— Anna Beatriz Leite Henriques é mestre em Relações Internacionais pela Universidade Estadual
da Paraíba (PPGRI/UEPB) e doutoranda em Ciência Política pela Universidade Federal de
Pernambuco. Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba. É b
Bacharel em Relações Internacionais pela Universidade Estadual da Paraíba.
http://lattes.cnpq.br/6080420441737521

— Ana Lúcia de Lacerda Gonçalves é mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e bolsista pela Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). É pesquisadora do Laboratório de
Pesquisa sobre Regionalismo e Política Externa (LeRPE), do PPGRI/UERJ. É bacharel em Relações
Internacionais pela Universidade Católica de Petrópolis.
http://lattes.cnpq.br/2013146886547401

— Ana Paula Marino de Sant’Anna Reis é mestranda do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. É bolsista da Fundação
Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do RJ (FAPERJ). É integrante do Laboratório
de Estudos sobre Regionalismos e Política Externa. É bacharel em Relações Internacionais pela
Escola Superior de Propaganda e Marketing (ESPM Rio) e bacharel em História pela Universidade
do Estado do Rio de Janeiro (UERJ).
http://lattes.cnpq.br/3194203197736779

— Beatriz Bandeira de Mello é mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Ciência Política


pela UNIRIO e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da
Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participa da equipe do Laboratório de Estudos sobre
Regionalismo e Política Externa do PPGRI/UERJ e do Grupo de Relações Internacionais e Sul
Global (GRISUL/UNIRIO). É bacharel em Ciência Política pela UNIRIO.
http://lattes.cnpq.br/9636235769254179

— Guilherme Antunes Ramos é mestre e doutorando do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participa da equipe do
Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa, do PPGRI/UERJ. ´\E bacharel em
Relações Internacionais pela Universidade Federal do Rio de Janeiro.
http://lattes.cnpq.br/5877310137873743

— Guilherme Fenício Alves Macedo é mestrando em Relações Internacionais pela Universidade


Estadual da Paraíba (PPGRI/UEPB) e pós-graduando em Relações Internacionais Contemporâneas
pela Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA). Participa da equipe do
Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa (LeRPE) do PPGRI/UERJ. É Bacharel
em Relações Internacionais pela Universidade Potiguar (UNP).
 http://lattes.cnpq.br/3707231631146196
Lemos Mídia © Arquivo cedido à reprodução por Marcela Britto, marcelanuno99@gmail.com, no dia 6 de abril de 2023. É expressamente proibida
a distribuição ou reprodução deste material para fins comerciais.
— Lorena Granja Hernández é mestre e doutora pelo Programa de Ciência Política do IESP/
UERJ e bolsista do Programa de Pós-Doutorado nota 10 da FAPERJ junto ao Programa de Pós-
Graduação em Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro onde
desempenha atividades acadêmicas. Auxilia na coordenação do Laboratório de Estudos sobre
Regionalismo e Política Externa. É graduada em Ciência Política pela Faculdade de Ciências
Sociais da Universidade da República (Uruguai, 2008), também possui graduação em Relações
Internacionais pela Faculdade de Direito da mesma instituição, 2008.
http://lattes.cnpq.br/3819739425775859

— Leandro Gavião é Mestre em Relações Internacionais e Doutor em História Política pela


Universidade do Estado do Rio de Janeiro, contando com estágio doutoral na Université
Sorbonne Nouvelle (Paris-3). É professor assistente na Universidade Católica de Petrópolis e
professor na pós-graduação da Escola do Legislativo do Estado do Rio de Janeiro (ELERJ). É
pesquisador do Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa.
http://lattes.cnpq.br/2102129458976796

— Lucca Giannini Palermo Moreno Belfi é mestrando do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Participa das equipes do
Laboratório de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa do PPGRI/UERJ e do Núcleo de
Estudos Internacionais Brasil-Argentina. É bacharel em Relações Internacionais pela Universidade
Veiga de Almeida.
 http://lattes.cnpq.br/2570918442376394

— Miriam Gomes Saraiva é mestre em Relações Internacionais pela Pontifícia Universidade


Católica do Rio de Janeiro e doutora em Ciência Política pela Universidad Complutense de
Madrid. Fez pós-doutorado no Instituto Universitário Europeu/Florença. É Professora Titular
da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Coordena o Laboratório de Estudos sobre
Regionalismo e Política Externa. É bolsista de produtividade do CNPq.
http://lattes.cnpq.br/7583146431148717

— Nathan Morais Pinto da Silva é mestre e doutorando do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro, pesquisador do Laboratório
de Estudos sobre Política Externa e Regionalismo da Universidade do Estado do Rio de Janeiro
(LeRPE-UERJ) e bolsista da Fundação Carlos Chagas Filho de Amparo à Pesquisa do Estado do
Rio de Janeiro (FAPERJ).
http://lattes.cnpq.br/6249966554123727

— Stephanie Braun Clemente é mestre e doutoranda do Programa de Pós-Graduação em


Relações Internacionais da Universidade do Estado do Rio de Janeiro e é bolsista da Coordenação
de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior (CAPES). Participa da equipe do Laboratório
de Estudos sobre Regionalismo e Política Externa do PPGRI/UERJ. Bacharel em Relações
Internacionais pela Universidade Católica de Petrópolis.
http://lattes.cnpq.br/8399297087812948

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