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Saúde e Direitos: tensões de um SUS em

disputa, molecularidades1
Health and Rights: tensions of a disputing SUS,
molecularities

Emerson Merhy Resumo


Professor titular de Saúde Coletiva da Universidade Federal do
Rio de Janeiro/Macaé Sob o perspectivismo de que “qualquer vida vale a
Endereço: Rua Marques de Abrantes 16, Flamengo, CEP 22239-061, pena”, o texto produzido a partir de uma conferên-
Rio de Janeiro, RJ, Brasil. cia explora certos campos de tensões que operam
E-mail: emerson.merhy@gmail.com
no campo da saúde sob o olhar da relação saúde e
1 Texto baseado na Conferência “Saúde e Direitos: escolhas para direito. Apesar de reconhecer os elementos consti-
fazer o SUS” proferida no dia 23 de outubro de 2011, no XII Congres- tutivos molares desse campo, advoga a noção de que
so Paulista de Saúde Pública, promovido pela Associação Paulista os enfrentamentos vitais do modelo atual, no qual há
de Saúde Pública, em São Bernardo do Campo, SP. vidas que valem mais a pena que outras, deve se dar
ali na molecularidade do agir em saúde, na gestão e
no cuidado, trazendo o lugar da prática como chave
para a produção efetiva de novos modos de se pro-
duzir as vidas, nos quais as diferenças são riquezas,
e a vizinhança entre os distintos saberes é nuclear
para a construção de apostas. Nestas, a riqueza de
conexões existenciais é o melhor modo de se apostar
que a produção de vida expressa o mais fundamental
da construção do campo da saúde. Lançando mão
de autores da micropolítica e da esquizoanálise,
procura conduzir uma reflexão sobre as implicações
desse “olhar construtivo.
Palavras-chave: Política de saúde; Movimento sani-
tário; SUS; Micropolítica; Direito e saúde; Gestão e
Cuidado em saúde.

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Abstract Para o médico sanitarista Maurício Chakkour

According to the point of view that “every life is Para apresentar a minha reflexão sobre o tema
worth it”, this text, based on a conference made by “Saúde e Direito: escolhas para fazer o SUS”, optei
the author at the XII Congress of Public Health of por construir algumas imagens, expressivas do
São Paulo, discusses certain areas of tension that meu perspectivismo sobre as práticas de saúde, o
are operative in the field of health regarding the estado, o governo, entre outras dimensões; estas
relationship between health and rights. In spite of trazem para a cena o reconhecimento, que faço, de
recognizing the molar constitutive elements of this que o SUS se constitui em um campo de práticas
field, it defends the idea that the vital fights inside sociais, situado sob uma superfície de tensões que
the current model, in which there are lives that are o posiciona como lugar permanente de disputas,
more worth it than others, must happen inside the sociais e históricas.
molecularity of the work in health, inside the man- De certa maneira, falar sobre muitas das temáti-
agement and inside the care. It has to put the locus cas que podem atravessar o SUS é tentar dar visibili-
of practice as a key to the effective production of new dade às forças e tensão constitutivas que o operam
modes of producing lives, where the differences are (Merhy, 2002a), para tornar explícitos os territórios
wealth and the vicinity between distinct forms of de práticas que se disputa para sua conformação.
knowledge is nuclear to the making of bets. In these Com este objetivo, destaco algumas daquelas ten-
bets the richness of existential connections is the sões que considero centrais para o momento atual,
best way of betting that life production expresses em particular pela contribuição que possam dar no
the most fundamental aspect when building the field entendimento e aprofundamento do debate sobre
of health. Taking support from authors that discuss a relação entre saúde e direito, sempre olhados na
micro politics and schizoanalysis, the author tries perspectiva daquela ótica.
and conducts a reflection about the implications of Para dar substância vital a isso, trago de início a
this “constructive regard”. imagem do que chamo “SUS utopia”, porque me permi-
Keywords: Health Politics; Sanitary Movement; SUS; te colocar em evidência muitas das questões nucleares
Micro Politics; Health and Right; Management and que marcam nas minhas apostas o campo de disputa
Health Care. estruturante desse território de práticas sociais.
Em primeiro lugar, tento reconhecer que não é
pouco, em particular no nosso país, operar em um
território de disputa social – o campo da formação das
políticas sociais, em particular na saúde, no qual tem
que se enfrentar as várias apostas sociais sobre a pro-
dução do sentido das vidas, individuais e coletivas.
O uso daquela imagem traduz, para mim, a im-
portância do SUS como campo de práticas que opera
nesse processo de produção e como isso o implica
como lugar de enfrentamento daquela produção de
sentidos. Ainda mais considerando-se essa disputa
em um país muito específico como é o Brasil, que
não é um país qualquer diante dessa temática do
direito ou das conquistas sociais. Pois, nela há
uma longa construção, no qual esse processo de
produzir as desigualdades sociais ou da luta contra
as desigualdades sociais enfrenta exatamente essa
questão: que tipos de produção de vidas se quer.
Será que as vidas de todos e de qualquer um,
valem a pena? Ou nem tanto? (Merhy, 2002b; 2010).

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Essa é uma questão central, porque nesse país são equivalentes, não são igualmente fundamentais
se tem uma longa história na qual a construção e nem devem ser.
desse processo é a permanente afirmação de que Nesse sentido, colocar essa imagem analisadora
não valem, quer dizer, visitando à exaustão os 500 do “SUS utopia” tem o sentido de mostrar a disputa
anos de país mostra-se o quanto ele é centrado na central que certo modo de fazer o SUS deve carregar
noção de que a vida das pessoas deve ser qualita- dentro de si, com clareza suficiente que lhe abra a
tivamente diferente, sendo que umas devem valer possibilidade de que o SUS só se realiza na medida
mais que outras. que se governa pelo lema: a vida de qualquer um
Pode-se, por exemplo, lembrar-se do nosso pas- vale a pena. E, se a vida de qualquer um vale a pena,
sado colonial, do escravagista, mas pode-se também isso deve ter a força, tensa é verdade, de que ali no
focar no período republicano para elaborar sobre fazer do cotidiano do cuidado, não é só a vida de
isso, pois não é necessário ir tão longe. O período quem se considera como socialmente significante
republicano que se realiza durante esses últimos que deve ser valorada, mas de modo fundamental a
cento e poucos anos é um período muito explícito vida daquele morador de rua, daquele desinvestido
sobre essa questão, por reafirmar que de fato a vida socialmente – que muitos dizem já não servir para
de certos agrupamentos sempre valeu muito mais a mais nada, por ser improdutivo, não cidadão, que só
pena do que a vida de outros. Diria até mais, que a provoca inúteis gastos sociais sem trazer nenhum
construção dessas vidas que valem a pena sempre benefício para a coletividade (Merhy, 2012).
se deu em cima do consumo dessas vidas que são Ao não se dar visibilidade a tudo isso e ao não
consideradas como as que não valem tanto a pena. se explicitar de modo claro as tensões sobre isso,
Portanto, quando lanço essa imagem do “SUS inclusive produzindo novos espaços de conversas
utopia” digo que todo esse processo social brasi- nas organizações em torno dessas questões, os ti-
leiro - nesses últimos trinta anos ou algo próximo pos de apostas que constituem o SUS e seus vários
disso – que trabalha pela possibilidade de construir lugares éticos-políticos, compromete-se de maneira
uma nova lógica nas práticas de cuidado na saúde, nuclear a disputa mais vital da construção de uma
de fato tem que enfrentar essa lógica anterior na certa “alma” dos modos de cuidar (Testa, 1997).
sua constitutividade. E isso posiciona a todos desse A construção de certas lógicas de cuidado, certas
campo social diante da questão: quais são as apostas redes de cuidado, a atenção a certos coletivos sociais,
que devem ser enfrentadas, quando vários atores têm que partir em primeiro lugar dessa reflexão-
sociais vêm e advogam a noção de que “a saúde é aposta, desse perspectivismo, de que as vidas valem
um direito de todos”, de que a construção da saúde a pena, e mais que isso, de que qualquer forma de vida
como um direito de todos é “um dever do Estado”? vale a pena (Guattari, 2000). Essa imagem do “SUS
Quando advogam que deve se construir uma política utopia” seria forte e basal para o reconhecimento de
específica que siga os princípios da universalização, que este campo de práticas sociais é fundamental-
da equidade, da integralidade, e que para isso há mente um campo de disputas radicais que não são
que se produzir uma nova lógica nos arranjos ins- fáceis, inclusive porque trazem grandes implicações
titucionais, no campo da política governamental, não só para a luta em torno de um imaginário não
de cunho participativo e democrático, para operar consagrado, mas para as formas de concretizá-lo ali
essa política? no dia a dia das redes de serviços, com impacto sobre
Quando se anda nesses terrenos não há dúvida: os modos de produzir o cuidado em saúde como um
de que se deve travar muitas disputas, das quais todo, no plano individual e coletivo.
algumas bem radicais e nucleares, inclusive no sen- Essa é uma questão, no meu olhar, que ao mesmo
tido de estruturante ético-político do desenho de um tempo potencializa a possibilidade de compreender
devir social de certos desejos coletivos, utópicos; de as implicações que há quando se está nesse campo
que neste processo pode-se operar uma certa saída da política do Sistema Único de Saúde, e coloca o
da forte tradição que ordena a história brasileira, a quanto é necessária a capacidade coletiva de enfren-
de que as vidas das pessoas, a vida dos coletivos, não tar uma agenda tão complexa.

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As páginas de jornais, por si, mostram o tamanho Dentro dessa imagem, sobre esses encontros,
dessa briga ao revelarem a todo tempo como tem que acho que são da ordem, de fato, de bilhões, me
sido a conformação das políticas para certos agru- posiciono: o que ocorre neles de modo molecular
pamentos sociais, nas quais o processo da saúde (Guattari, 2012) a cada encontro? Como é atravessado
vem ocupando a centralidade e onde emergem de por aquele jogo, como nele se expressa a implicação
modo explícito as desigualdades no investimento da vida do outro, como circulam os poderes, entre
na vida do outro. Nesse sentido, procuro tornar aqui (Foucault, 1979)? De que modo se constrói a aposta
impossível pensar sobre o conjunto dessas questões na vida do outro? Vale a pena?
– como evidente que é impossível pensar sobre essa E aí há uma batalha central, uma tensão cons-
temática do direito – se não ficar clara a percepção titutiva da maior expressão. De que modo, no meu
de que não são simples questões conceituais, mas agir nesses encontros com os usuários e os meus
algo para ser vivido (Deleuze, 2012), porque entrar colegas de trabalho, como alguém que aposta no
numa aposta da “SUS utopia” é construir na ação SUS, dou substância para esse outro que ali está, em
práticas cotidianas que estabeleçam novos sentidos ato. Como o significo, de que maneira o trago para
enriquecedores dos viveres, como forma de produzir o meu campo de intervenção, como objeto ou como
a saúde. sujeito, faz toda a diferença.
Ali, na minha prática cotidiana de encontro com
****** os usuários ou com os membros da minha equipe, no
dia-a-dia da minha produção como sujeito da ação,
Abro, agora, uma segunda grande questão que con- tanto das minhas práticas de produção de cuidado,
sidero relevante e fundamental nessa discussão: as quanto dos modos como “governo” minhas relações
disputas que estão cravadas no território da saúde, na organização (Merhy, 2002a), se não conseguir
enquanto campo de produção do cuidado, na sua me acercar do outro qualquer, enquanto um outro
dimensão individual e coletiva. que é, sempre, sujeito do desejo, sujeito da vontade,
Como dizia antes, esse é um campo que permite de conhecimento relevante, produtor de modos de
perceber com clareza as implicações de uma aposta vida, de existências, significativas e centrais para
de que a vida de qualquer um vale a pena, não como visualizar modos de produção da saúde e de coletivos
algo para representar no pensamento, formular e atuantes (Merhy e col., 2011).
dizer, mas para ser vivida nos encontros com os Nesse encontro com alguém, posso valorá-lo de
outros, em particular no mundo do trabalho em uma maneira muito diferenciada, como enrique-
saúde. Algo pra ser vivido porque se apresenta ali cimento em mim pela sua diferença (Viveiros de
na cotidianidade dos encontros que constituem o Castro, 2010) ali em ato, ou agir de maneira comple-
Sistema Único de Saúde, como realidade efetiva, nas tamente oposta e inclusive me sentindo ameaçado
práticas das equipes e de seus profissionais. por aquela diferença, vinculando-me muito mais
Por ser tão substancial, há que se debruçar sobre com uma produção de morte do que de vida. Aqui,
essa questão com mais detalhe. Para isso, faço o morte no sentido de empobrecer as redes de cone-
convite de outra imagem: a que considera a visuali- xões existenciais que todos sempre estão inseridos,
zação dos encontros que são produzidos no campo como por exemplo, em um agir manicomial.
de práticas do SUS, que devem ser da ordem de Ao me encontrar com o outro em que me abro
milhões e milhões por ano. Penso também sobre os para a produção relacional que isso traz, se não me
vários modelos de organização de serviços e redes de posiciono para as trocas que isso pode produzir não
cuidado que aí são operados e o jogo entre as dimen- me disponho a ser afetado pelo outro pelas várias
sões públicas e privadas que os atravessam. Jogo que formas de conexões que ali estão sendo produzidas.
está colocando em cena todos que aí se encontram: Não me disponho a entendê-lo como alguém que é
trabalhadores, usuários e gestores – óbvio que há produtor em si de modos de vida e nem a me desar-
mais, mas nesse momento isso basta, pois volto ao mar do lugar do saber sobre o outro como objeto de
tema público e privado em outro momento. mim. Nesses modos de agir, nego em ação qualquer

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realização de um “SUS utopia”. Nessa imagem, destaco a presença do agir tor-
Para marcar como encaro isso, a imagem que turador tentando produzir no encontro a fala do
trago, que sei ser muito pesada, mas que já é parte torturado: não uma fala qualquer, mas que o tortu-
de reflexões minhas anteriores, é a imagem da “cons- rado fale aquilo que ele quer escutar. O torturador
trução do agir torturador nas práticas de saúde”. Vou chega a matar o outro por isso. Podemos imaginar
me explicar melhor, porque acho que é necessário que o torturador está supondo que o torturado vai
fazer isso, para não ser banal. poder revelar, com sua informação, algo que será
Por que uso esse tema do torturador? Porque ima- substancial para a sua ação vigilante e policialesca.
gino que há acontecimentos interessantes de serem Tortura-o para que produza a escuta que deseja e vai
observados, à semelhança do encontro entre um com isso até a exaustão, correndo o risco inclusive
trabalhador de saúde e um usuário. Esse encontro é de, com a produção da morte, perder a informação.
um encontro muito vivo, em ato, é um acontecimento Ora, essa dinâmica do trabalho vivo em ato do
em si. Por mais que o trabalhador tenha todo um torturador sobre o torturado. essa relação do tra-
arcabouço de conhecimento tecnológico (Mendes balho vivo do próprio torturado, do torturado com
Gonçalves, 1994), não consegue dar conta de tudo o torturador, é uma dinâmica interessante de se
que vai acontecer ali, no momento do encontro. Esse observar, pois me parece que também pode estar
encontro é produtor de sentido em si, para além do cravada no mundo da produção do cuidado. Por quê?
que já está previamente imaginado para ele (Merhy Porque ali, na cotidianidade, uma boa parte daqueles
e Onocko, 1997) (Ayres, 2001). bilhões de eventos, de encontros que a gente disse
Por mais que se tente enquadrar e conter tudo que o SUS proporciona, merecem ser olhados de um
que ali ocorre, há uma dinâmica intensiva do “traba- modo analítico, um pouco sobre esses ângulos que
lho vivo em ato” operando de todos os lados. Isso cria sugiro; ou seja, talvez seja interessante mirar nessa
uma imprevisibilidade que se realiza, por exemplo, implicação da ação, do quanto a vida do outro vale
no campo da produção do cuidado. Aí joga-se com a pena mesmo.
muitas possibilidades de produção. Por exemplo, Poder pensar sobre essa tensão do “agir tor-
pode-se operar na direção da capacidade de produzir turador” na produção do cuidado, dá a chance de
vínculos sem domínios entre os que estão nesse cam- visualizar de que maneira a organização das redes
po, capacidade de acolher as diferenças em ambos de cuidado, as práticas dos profissionais, os modelos
sentidos, de falar e de escutar entre iguais, e por aí de cuidado, muitas vezes, centram-se numa lógica
vai. Mas, e talvez por isso mesmo, no interior desses em que o saber do usuário só interessa se ele falar
encontros-acontecimentos pode-se ter a capacidade aquilo que se quer ouvir. Ou seja, há uma dinâmica
de se produzir exatamente o contrário: vinculo como nesse encontro, tecnológica porque cravada em
dominação, escutas e falas entre uns mais legítimos certa lógica clínica e epidemiológica, fincada nas
falantes que outros, entre outras. práticas de cuidado individual e coletiva, que de
Exatamente por isso pego emprestada a ima- certa maneira se assenta em uma grande tensão
gem do torturador. O torturador é um operador de quanto a esse agir, ali dentro, no ato, que pode ser
encontros-acontecimentos e não é necessário ter explorada para ser reafirmada ou vazada, na sua
sido torturado para dizer isso. Ao debruçar-se sobre polissemia. Não é?
as lógicas do “agir torturador”, vê-se que é um agir Vou usar um exemplo bem contemporâneo, que
que trabalha com o encontro. tem a ver com o tema do crack, para dimensionar
O que é um torturador e um torturado? Há muitas isso. Hoje, pode-se escutar no rádio ou na televisão
dinâmicas, nisso, que inclusive já foram objeto do propagandas “educativas” sobre a lógica de funcio-
olhar de muitos pensadores. Alfredo Naffah Neto namento do crack, na qual se diz: diga não ao crack.
(1985) produziu uma tese sobre o assunto. Não Essa frase é uma coisa interessante por conter uma
tenho essa pretensão, pois só vou construir certa ideia estruturante de que o sujeito desejante aí é o
imagem desse encontro e explorá-la para fins da crack, a pedrinha, e você, usuário, o seu objeto.
minha reflexão. Nessa propaganda não se permite a reflexão que

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possa sugerir: “por que alguém faz a escolha pelo ético-político como força que se inscreve no interior
uso do crack”, ou seja, porque que um individuo desses processos.
que usa o crack faz de modo desejante essa escolha? A partir do exemplo do crack é possível ir para
Na propaganda há uma inversão, da pedra do crack qualquer outro lugar no mundo do cuidado, como
como sujeito do desejo e do individuo como mero por exemplo a situação de usuários de serviços
objeto, carregando com isso uma outra questão tidos como diabéticos, hipertensos, tuberculosos,
por dentro dela, a de que o usuário de droga, como ver isso em repetição ou em vazamento, e olhá-los
efetivo sujeito desejante, não é dono de seu próprio sobre a intensa produção de fracassos terapêuticos,
desejo e portanto tem que ser tutelado por quem que se produz, quando se desapropria o outro do seu
sabe disso, por ele. próprio modo de viver, do seu mundo de desejos e
Reconhecer isso ou não, faz toda a diferença no subjetivante.
mundo do cuidado e nas ofertas que serão construí- Chamo a atenção de novo para que se perceba
das, inclusive na produção de sentidos para o agir ali no campo dessa segunda imagem de que modo é
no encontro com o usuário, que insisto não ser um reafirmado o campo da saúde em geral e do SUS em
dependente químico, mas usuário de droga. particular, como campo de disputa. Pode-se e deve-se
Se o meu “agir” na produção do cuidado já parte tomar essa disputa e colocar em análise o próprio
do princípio que estou diante de um objeto e não de “agir torturador”, de si, do seu coletivo de trabalho,
um sujeito desejante, implico, nas minhas constru- através das práticas individuais e coletivas que são
ções do cuidado individual e nas práticas coletivas construídas, ali, nos vários encontros do dia a dia
da saúde, em modos torturador de ser. Isso me au- no mundo do trabalho.
toriza dizer que o objeto, usuário de droga, não sabe O não reconhecimento e a não possibilidade do
o que quer e age maliciosamente, que quem sabe é o outro operar como sujeito do desejo efetivamente
profissional, é o serviço de saúde, que deve, portanto, nesses encontros, disputando com a gente as exis-
decidir. Com um agir torturador posso até produzir tências que quer viver, convive com a tensão de
uma fala, como: me interne. outras forças, também constitutivas desse processo,
Isso é um bom exemplo do que chamo de uma que podem fazer instituir outras conformações do
lógica de prática de cuidado vinculada ao que deno- encontro, nas quais pode-se se dispor a abertura
minei de “agir torturador”, inclusive pelo exercício para trocas e acontecimentos imprevisíveis, em
intensivo, em ato, do trabalho vivo, no qual eu des- acontecimento, através dos processos relacionais
conheço a capacidade de desejo e de fala do outro aí existentes, bem como das afecções que o outro
em torno dos muitos desenhos ético-estéticos como produz, enquanto enriquecimento dos modos de se
opções de existências, que possa produzir. Caminho, conectar a novas construções de redes existenciais
desse jeito, exatamente para outro lugar, no qual (Merhy, e col., 2011) coletivamente construídas.
posso produzir no outro o desejo de desejar aquilo Sempre no e com o outro.
que acho que ele tem que desejar. Pois é, vejam que Com isso, trago para o centro das ações ético-po-
uma simples propaganda, pode carregar tudo isso. líticas cada um que aí pode se encontrar, dispondo-se
Carrega tudo isso e com implicações seriíssimas ou não a essas trocas – ou a negá-las. E, nesse senti-
para aquela discussão sobre a temática do “SUS uto- do, é chave pensar sobre a potência que se inscreve
pia” no eixo saúde e direito. É no interior dos bilhões nesses agires para, a priori, se ver implicado de modo
de encontros sobre essa tensão que se pode resolver individual e coletivo nos encontros da produção do
por vários mecanismos a autorização mútua, ou não, cuidado, em uma aposta que define quais são as
de uma certa abertura para o encontro intercessor existências que devem ser vividas e quais as exis-
(Deleuze, 2010) que há aí, para poder operar com tências que devem ser detonadas. E, nesse momento,
o outro novas maneiras de produção de modos de no ato de cuidar incorporam-se de modo imediato as
viver. Há poder político instituído para isso, mas mesmas tensões do “SUS utopia”.
há também para fazer o contrário. Por isso, nessa Aí há um elemento também vital para se enten-
dimensão, como diz Guattari (1987), joga o lugar der outra dimensão da temática do direito, que é

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a de reconhecer o outro como sujeito produtor de Diria que isso é talvez um ponto muito marcante
direito e não simplesmente como cumpridor do no SUS de hoje, e que me posiciona em um lugar de
direito. Um direito não só como uma negatividade, avaliação sobre esse campo de política muito difícil
mas como uma possibilidade de produção de vida, de ser trabalhado, devido a minha implicação histó-
de existências, como sugere, em vários momentos, rica, junto com muitos, na luta pela construção desse
Marilena Chaui (2006). campo de práticas sociais. Não vou dizer que isso é
uma visão negativa, de perda, mas a considero, de
****** certo ponto de vista, como problematizadora. Ela
deva ser reconhecida como tal, até para que possa
Essas questões abrem, nas suas tensões constituti- se posicionar de forma resistente, no sentido de agir
vas, outro tipo de disputa relevante, que me leva a na produção anti-sua-destruição. Considero que essa
caminhar para uma terceira cena, que vou construir dimensão dos processos de privatização dos inters-
para trazer à tona as muitas situações que atraves- tícios do público anda em dobra com outra: o grande
sam e se expressam no campo das relações entre as crescimento dos interesses das instituições priva-
dimensões do público e do privado, que habitam o das, de vários tipos, que se vinculam à construção
campo da saúde como um todo e, em específico, esses do SUS, que denomina-se de campo complementar
territórios que venho tratando, como o da produção e suplementar.
do cuidado e das redes organizacionais que lhe dão Nesse tempo de Sistema Único de Saúde, essa
substrato. grande questão – a da privatização - vem adquirindo
Antes de tudo, esse tema do público e do privado um desenho que vale a pena ser expresso através de
me convida a pensar pelo menos dois grandes luga- alguns analisadores que podem alargar os modos de
res; estesdepois vão me puxar para o quarto grande olhá-la, compreendê-la e de resistir.
elemento que eu ainda vou querer tratar aqui. Um Reconheço que, no momento, não estou muito
destes lugares é quando se fala do público e privado otimista, mas, como disse, isso só desafia a postura
no campo institucional da propriedade dos bens, de se colocar a favor da construção de problemas
ou seja, da apropriação privada dos bens, como as a serem enfrentados e aí a questão passa a ser, de
instituições privadas e suas conformações; em novo, a de encarar e entrar nas disputas que devem
contraponto, temos a própria construção do governo ser travadas. Pois há muitas apostas sobre essa cons-
enquanto uma ordem pública, que, no entanto é atra- trução do público e privado no SUS; historicamente,
vessada também pelo público e o privado sob as for- aliás, esse é um dos bons marcadores das disputas
mas de apropriações que se produzem socialmente que o Movimento Sanitário brasileiro travou. E
dos arranjos institucionais e dos estabelecimentos estas – apostas e disputas – permitem posicionamen-
públicos (Serrano, 2012). tos implicados e sobreimplicados (Lourau, 2004),
Destes pontos de vista há algo que vale a pena importantes quanto aos modelos de construção do
observar, que anda por dentro do SUS, relevante na público e privado, no campo da saúde, sobre suas
conversa com o “SUS utopia”; Diz respeito exatamen- várias dimensões.
te a esses mecanismos de apropriação dos lugares Houve uma aposta no que deveria ser a cons-
públicos – e seus arranjos – sob a ótica privatizante, trução do público e do privado no campo das ins-
como se pode cercar em qualquer tipo de análise so- tituições, na organização do SUS, cujo surgimento
bre a produção do cuidado que esteja sendo operada vem de antes da construção constitucional dessa
em torno do interesses exclusivos de uns, e não de política:vem lá do movimento sanitário pré-SUS,
outros. Isto desenha uma dimensão de privatização que pensava as possibilidades organizacionais dos
do público que tem alto impacto sobre o sentido da primeiros arranjos institucionais que acabaram
produção da saúde, ocorrendo quando algumas vidas tendo alguma expressão, na própria constituição
valem mais a pena ou quando o interesse de grupo se brasileira em primeiro lugar, e depois nas lei da
impõe sobre o da multiplicidade de sentidos contidos saúde e regulamentação infraconstitucional.
nos coletivos. Essa aposta procurava construir, centralmente,

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um Sistema Único de Saúde que se organizasse de construção. Mesmo não tendo conseguido tudo
enquanto aparato público e que, ao se organizar en- que alguns desejavam – tornar tudo absolutamente
quanto aparato público, reconhecesse que o privado público – conseguiu-se em termos constitucionais o
tinha o seu lugar na oferta de serviços de saúde, sob reconhecimento legal de que o privado tinha relevân-
duas dimensões: uma, dos estabelecimentos que cia, e como tal deveria estar sob a ação estatal.
se posicionariam complementarmente à organiza- Esse processo, durante as décadas de constru-
ção do aparato público do SUS; outra, de um setor ção do SUS como máquina organizacional, desde a
privado que operasse em si, direto no mercado da Constituição de 1988, apontou para uma reversão
venda de planos de saúde, considerado suplementar. da aposta inicial no que se refere às lógicas que se
(Campos, 2006) transversalizam nos arcabouços público e privado
Quando se procura montar uma imagem desse do SUS. Aquelas apostas não se efetivaram.
processo, o Sistema Único de Saúde é visto como Talvez com certo sentido provocativo, apostando
aparato público e cerne do Sistema Nacional de que se pode colocar em reflexão crítica os coletivos
Saúde. É a base desse sistema sobre vários aspectos, sociais que apostam no SUS quanto à conformação e
tanto no sentido da organização geral da política os lugares do público e do privado na construção do
de saúde e, portanto (tomando o âmbito governa- sistema nacional de saúde, trago aqui como imagem
mental como campo de práticas de formulação), de que expressa um certo rosto do SUS:, que ele é, que
decisão nuclear sobre o sentido do campo, como de se tornou, de fato, complementar do setor privado
práticas regulatórias, avaliativas, de financiamento vendedor de procedimentos e, também, suplementar
e, inclusive, nucleares, na própria constitutividade às operadoras de planos de saúde.
das redes de cuidado. Nisso, os setores privados en- Do meu perspectivismo, esse reconhecimento
tram para complementar: como, quando o sistema é necessário, mesmo que seja difícil de ser assimi-
único não tem capacidade de oferta de certos tipos lado pelas nossas sobreimplicações com um SUS
de procedimentos, então vai-se ao “mercado de público e central. O “SUS-complementar” e o “SUS-
procedimentos” e se faz compras. O suplementar suplementar” precisam ser colocados em análise,
vem do reconhecimento de que há um setor privado pois são a própria evidência de como está complexa
com uma clientela de consumidores específica, a de a luta pelo “SUS-utopia”.
consumidores do produto “plano de saúde”, apesar Sei que esse desenho deve inquietar, mas como
de continuarem sendo também clientela-cidadão já havia afirmado antes, me inquietaria mais se
do SUS. não fosse certa forma de problematizar a disputa
Essa era a imagem, que se firmou após várias na qual se inserem todos que aí atuam. E se não
disputas no próprio interior do movimento sanitário servisse como parâmetro avaliativo-interrogador
e que se mostrou uma das viáveis no período ime- das propostas privatizantes que têm se realizado
diato, após a ditadura, do processo constitucional. nas experiências de muitos governos municipais,
Foi desenhada nas negociações do período consti- estaduais e federal, inclusive sob as mais distintas
tuinte, lá pelos anos 1980, lá pela VIII Conferência práticas de privatização dos arranjos institucionais
Nacional de Saúde, na qual houve confronto entre e das redes de cuidado.
posições distintas sobre a plena estatização ou não Isso pode apontar para a possibilidade de se
do campo da saúde. olhar o quanto o modo de organizar a capacidade de
De um modo ou de outro, essa imagem está mar- produção das redes de cuidado, através do Sistema
cada lá nos registros da constituinte, quando muitos Único de Saúde, tem sido governado por essa lógica,
militantes desse movimento iam ao Congresso Na- e o quanto essa lógica vem ordenando a sua estru-
cional discutir com os deputados e com os senadores turação. Inclusive, de que maneira isso contribui
para tentar mostrar porque era importante que o para uma real transferência do fundo público do
setor privado ficasse sob a nossa capacidade regu- SUS, para os setores privados que vêm efetivamente
latória, porque que era importante definir que o SUS governando a agenda SUS.
deveria ser público e o centro de todo esse processo Diria mais: que aquela imagem do suplementar

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como algo menor e secundário, como muitos do centrada numa lógica invertida, na qual a vida do
movimento sanitário sempre consideraram, está outro me interessa enquanto consumidor e substrato
de muito ultrapassada. Porque do ponto de vista da para o “lucro”?
capacidade de operar sobre uma população de ses- O desafio posto é o de como vazar isso na sua
senta milhões de brasileiros num total de duzentos, constitutividade, ali no agir micropolítico do traba-
isso até cria a ilusão de ser um setor secundário. lho vivo em ato, produtor de novas possibilidades de
Entretanto, do ponto de vista dos recursos, na mo- sentido, que não só o instituído.
bilização de fundos próprios, a situação é oposta: o Reconhecer essa tensão, sua constitutividade e
suplementar opera com muito mais que todo o SUS, esse desafio, pode projetar o olhar sobre a privati-
mobilizando perto de 55% de todos os recursos que zação na sua molecularidade, não só sob o olhar da
estão envolvidos com o campo da saúde. Além de natureza da propriedade, mas da construção dos
parasitar os outros 45%. (Bahia e Scheffer, 2010) espaços de ação nos quais se opera a produção do
O mais dramático desse processo todo é que, cuidado e da gestão, ali no encontro cotidiano dos
quando se aborda os vários grupos sociais para coletivos. Isto exige ficar atento ao que chamo de
procurar entender o que imaginam para si, enquanto privatização dos arranjos, como formas de suas apro-
acesso a redes de cuidado de saúde, há uma evidên- priações e ocupações, sobre interesses de alguns e
cia inquestionável da vontade de serem usuários- a exclusão do de outros que ali estão.
consumidores dos planos de saúde, e não usuários- Nessa molecularidade é que se inscreve o traba-
cidadãos do SUS. Isso é mais que dramático, no lho vivo em ato, tanto no cuidado quanto na gestão,
desejo o SUS-suplementar é uma representação comprometido com um “SUS-utopia”, que pode fazer
social consolidada, que dá sustentabilidade aos explodir os poderes constituídos pelas lógicas per-
processos de privatizações mais selvagens, apesar versas do mercado e da privatização.
de ser efeito dos mesmos. Para isso, não poderia deixar de apontar como os
Além disso, marca um campo de disputa que processos sociais, hoje em dia, de organização dos
já é resultado de perdas e, portanto, mais árduo campos profissionais, em particular os do campo da
ainda, pois pede novos coletivos sociais operando saúde, têm constituído um terreno fértil para criar
a construção de um SUS que tenha como seu desa- fragmentação e medo do diferente.
fio reafirmar a si mesmo como alternativa, como Diria que as profissões, em geral, seguem a
política pública, junto aos distintos grupos sociais, mesma lógica instituída e, portanto, tomar qualquer
procurando comprovar que as práticas de saúde fora uma delas, permite falar de todas. Como exem-
do mercado é que são as implicadas com a produção plo, olhando para a prática médica e a prática da
de mais vida qualificada. enfermagem, enquanto modos profissionais que
Não há como não tornar explícito o conjunto disputam de forma molecular as ações de saúde, ao
dessa problematização, pois só assim pode-se não trazerem para si, de maneira privada, os arranjos
lamentar mas resistir. Há que se debruçar sobre institucionais, pode-se verificar o significado das
essas dimensões do processo de privatização e potências cravadas no agir do trabalho vivo em ato,
criar uma pauta de enfrentamento, sem advogar para reafirmar lógicas profissionais centradas ou a
ingenuamente de que o que é estatal é público, por busca coletiva de outros sentidos e agregações entre
si. Isso exige novas possibilidades e necessidades de profissões (Ceccim e Cappozolo, 2004; Feuerwerker
se trazer para a cena um debate de novo tipo para a e Merhy, no prelo).
questão do estado, seus arranjos organizacionais e Há que se reconhecer, nesses últimos anos, que
a conformação das políticas sociais. essas profissões vêm agindo de um modo muito
Há uma conversa muito tensa nisso tudo, com o eficaz na capacidade micropolítica de operar nes-
“SUS utopia” e com o “agir anti-torturador”: de que se fronte, definindo modos de privatizações bem
maneira consigo operar o enfrentamento de que a criativas dos aparatos organizacionais, e que isso,
vida de qualquer um vale a pena, se estou ordenado junto com o setor privado do mercado da saúde, têm
numa materialidade de produção que é exatamente conseguido tomar para si o conjunto da própria

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agenda do SUS, numa somatória privatizante, do Nesse momento, interessa um debruçar sobre
micro para o macro, sob várias modalidades, com a disputa pela construção dos aparelhos governa-
isso direcionando os fundos públicos da saúde para mentais, tensamente conformados e em constante
a construção de mais mercado no campo. processo de mutações, para que se possa imaginar e
Nessa direção, insisto que se deve tomar o territó- agir, para operar com outras lógicas que não sejam
rio molecular como o fronte principal de disputa por as dos mecanismos de privatização, de um SUS para
novas lógicas de cuidado, por novos desenhos orga- uns e não para todos, podendo permeabilizá-los e
nizacionais e por novas conformações das equipes publicizá-los ao máximo.
de saúde. Insisto nisso, pois me parece vital. Muitas das experiências que são conhecidas,
Quer dizer, o ordenamento micropolítico, mole- através de relatos e textos, sobre o operar por den-
cular, nesses processos que tais profissões operam, tro as máquinas governamentais têm trazido uma
por exemplo,chega ao ponto de intervir no interior reflexão necessária sobre o fato de que a maior parte
dos modos de agir dentro dos processos de formação dos arranjos que pensamos para desterritorializar
dos trabalhadores, nas mais variadas frentes. Con- o domínio mais privado sobre as máquinas gover-
seguem colocar as escolas a serviço de si. Pode-se à namentais não funcionaram a contento. Ou seja,
exaustão mostrar, como exemplo, como as escolas arranjos como os do controle social, a relação com
médicas têm sido fabricadas de maneira molecular os movimentos sociais, a dinâmica de operar este
pela ação de certa prática da medicina, que se realiza encontro por dentro dos arranjos, não funcionaram
ali na cotidianeidade da formação, nos encontros um tão plenamente de modo mais permanente, como se
a um, mas não tenho a intenção de aprofundar essa imaginou.
tarefa, por ora. O que vale é o reconhecimento, para E o pior disso tudo é que assim como não há uma
visar a disputa e os tipos anti a serem produzidos, grande pauta de enfrentamento da privatização em
na resistência (Foucault, 2010). todas suas modalidades pelos vários coletivos que
Construir modos coletivos e solidários no inte- compõem o movimento sanitário, também não há
rior das equipes de saúde, ordenados pela aposta uma agenda governamental decisiva sobre isso,
na produção da vida do outro, antes de qualquer de uma maneira muito clara. Aliás, não vejo nem
território profissional a priori, é uma guerra das mesmo a busca de algum consenso em torno de um
mais saudáveis e produtora de outros sentidos, que diagnóstico de modo explícito, que possa orientar
invade com riqueza os modos privatizantes de se um campo de ação entre eles.
construir as ações profissionais solidárias às lógi- De novo, estamos diante de uma discussão que
cas do mercado e das apropriações corporativas dos sempre atravessou o SUS: o que significa tratar da
arranjos organizacionais. questão de uma reforma do Estado que possa trazer
a multidão, em sua multiplicidade, para dentro dos
****** vários arranjos institucionais, com a intenção de
vazar as práticas de governo. Isso pede a possibili-
Por esse caminho, passo para a última grande ques- dade de repensar a tensão muito fundamental entre
tão em torno da temática do SUS como campo de a produção de novos arranjos, que transversalizem
disputa de que trato nesse material. Essa refere-se os territórios governamentais, e suas apropriações
às disputas pela construção dos aparatos institu- privadas e públicas. Talvez uma das principais
cionais que podem operar os distintos processos pautas seja rever as teorias sobre o estado, que têm
necessários para dar conta dos campos de tensão – servido de base para pensar sobre essas questões e
base para as várias formas de disputa – e ao mesmo as alternativas que são imaginadas.
tempo lugar organizacional de produção do campo Não é mais possível ficar naqueles eixos ana-
de ação da política institucional, enquanto ação de líticos que se tinha, de sociedade politica versus
governo. E, em si, tenso, pois avançar em um proces- sociedade civil; aquilo não foi e não é suficiente,
so “SUS-utopia” pede arranjos não idênticos para os não tem mostrado potência para compreender to-
fazeres opostos. dos os âmbitos dos problemas que se apresentam,

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conforme apontado aqui. A imagem de que se deve gestão coletiva e da diferenciação na construção
fazer a sociedade civil crescer como forma de cons- dos vários projetos de uma política que aposta que
trução de uma sociedade mais inclusiva é devedora “a vida vale a pena, sob qualquer formato”, que suas
da perspectiva social democrática, que tem alguma diferenças enriquecem o campo de disputa.
validade em certas circunstâncias, como as situa- Como ampliar a compreensão sobre o que é
ções de regimes ditatoriais, mas que evidentemente governo, arranjo governamental, formulação e im-
não vem resolvendo a fundo aquelas questões de plementação de políticas, ao se partir da premissa
construção de um estado de nova ordem, como o que todos governam no interior das organizações?
estado-multidão. Ou mais, considerando que sobre o perspectivismo
Por outro lado, também não é possível ficar cen- do “SUS-utopia” só um estado tenso e em disputa o
trado na ideia de que fazer crescer o aparato estatal, tempo todo, operado ativamente no mundo da sua
em si, acaba por tornar certo campo de ação política própria gestão, é que funcionaria a favor da grande
mais público. Isso tudo sem pensar nos que ainda política, aquela que permite a disputa e a construção
acham que a lógica do estado mínimo seria mais de cada vez modos estéticos de viver mais ricos e
democratizante, mas isso já se sabe onde dá: em diferenciados, no interior dos vários coletivos em
um aumento importante da desigualdade social e ação.
política, no âmbito das sociedades capitalistas. Construir e viver na diferença de uma vida não
Na realidade, se está diante de uma disputa mais fascista (Rago, 2009) deveria ser a alma da existên-
sofisticada, que pode apontar que a luta pelos arran- cia do próprio estado enquanto arranjo institucio-
jos institucionais de tipos novos é coetânea com a nal a operar disputas e horizontes de convivências
luta contra a lógica da desigualdade capitalística, sociais. Para avançar um pouco mais nesse desafio,
sob todos seus muitos formatos. Ao mesmo tempo, que vejo também como um dos centrais no momento
obriga a ter que inventar novas lógicas de transver- atual, de grande burocratização e centralização das
salizações entre os vários arranjos institucionais, da máquinas aparelhos de estado, é que proponho a
ordem da multiplicidade dos coletivos existentes no reflexão adiante.
âmbito social como um todo, nas suas diferenças e O estado enquanto aparelho é uma evidência,
operados por distintas lógicas. As lógicas das práti- mas também é uma evidência como não aparelho,
cas das máquinas estatais, de um lado, e as lógicas pois é também e ao mesmo tempo uma roda e uma
das práticas das multidões, do outro. praça. Vou, através de um simples exemplo, explici-
Poder pensar a organização do estado na tensão tar isso e sua importância. E se assim o é, existe e
de explorar a multidão que aí há contida nele, é feito não existe ao mesmo tempo, no mesmo território e
por alguns autores de modos bem interessantes. no campo molecular do agir.
Imagino campo semelhante de preocupação, mesmo Quando se pede para um grupo de trabalhadores
que com formulações distintas, não opositoras, as para apresentarem a organização em que trabalham,
ofertas produzidas por Boaventura Souza Santos muitos sem pestanejar vão relatando o desenho do
(2007), que fala da ideia de um estado movimento organograma da mesma. Porém, ao se agregar a
social, e de um Toni Negri e Michael Hardt (2005) essa pergunta uma outra, sobre em quantos lugares
que vêm com o tema da multidão. Para tirar proveito eles encontraram outros trabalhadores e falaram do
disso, creio que se precisa agregar outros tipos de trabalho que faziam e até tomaram decisões novas
invenções. sobre, aqueles mesmos trabalhadores passam a
Não de hoje, me ocupo de algumas ideias como indicar a quantidade, quase infinita, de lugares que
a que expresso na pergunta: o estado existe ou não não pertencem aos arranjos do organograma e que
existe? E se o estado existisse e não existisse, ao serviram de ponto de encontros, de conversas, de
mesmo tempo? Como se poderia tentar compreender debates, de reflexões, de formulações, de decisões
isso, para vazá-lo na tensão público e privado que há e por aí vai. Por isso, quando depois se volta para a
nele, a todo tempo, e na direção da construção dos pergunta se sua organização está só no organogra-
seus arranjos institucionais, dos seus processos de ma, passam a dizer que ela é o organograma, mas

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também não é o organograma. CECCIM, R.; CAPOZZOLO, A. A. Educação dos
Desse modo, pode-se imaginar o que quiser para profissionais de saúde e afirmação da vida: a
se pensar onde é que está o estado e seus arranjos prática clínica como resistência e criação. In:
que o operam, como são construídas e efetivamente MARIN, J. J. N. et al. (Orgs.). Educação médica em
produzidas as formulações e implementações das transformação: instrumentos para a construção
políticas. Pode-se imaginar que o estado existe e de novas realidades. São Paulo: Hucitec, 2004. p.
também não existe. Que ele é em si multidão. Que 346-90.
é em si instituído e vazado. Que a micropolítica do CHAUI, M. Cidadania cultural - o direito a cultura.
trabalho vivo em ato dos coletivos vai produzindo São Paulo: Perseu Abramo, 2006.
mutações incontáveis no seu existir.
Pode-se imaginar o que se quiser sobre o que é DELEUZE, G. Conversações. Rio de Janeiro:
o público e o privado nisso tudo, e tentar imaginar Editora 34, 2010.
como conversar sobre quem governa, como governa DELEUZE, G. Abecedário. Disponível em: http://
e de que modo pode-se inventar arranjos favoráveis a www.dossie_deleuze.blogger.com.br. Acesso em: 8
todos esses encontros no território da micropolítica mar. 2012.
do fazer o estado-aparelho, enquanto um dobrar e
FEUERWERKER, L. C. M; MERHY, E. E. Educação
desdobrar em roda, em praça, ali no cotidiano das
permanente em saúde: educação, saúde, gestão
instituições.
e produção do cuidado. In: MANDARINO, A. C. S;
Dessa forma, ainda muito interrogativa e con-
GALLO, E.; GOMBERG, E. (Org.). Informar e educar
vocatória, gostaria pelo menos que se pudesse re-
em saúde: análises e experiências. Editora UFBA.
conhecer a dimensão da complexidade que é tratar
No prelo.
desse quarto elemento, que me parece também ser
fundamental, e que estaria hoje cravada na própria FOUCAULT, M. Microfísica do poder. Rio de
concepção da radicalidade necessária para se pen- Janeiro: Graal, 1979.
sar o que seria a construção de um campo social FOUCAULT, M. O governo de si e dos outros. São
de práticas, democrático. Inevitavelmente, o pers- Paulo: Martins Fontes, 2010.
pectivismo de um “SUS-utopia” tem que negociar
com isso e reconhecer que na molecularidade do se GUATTARI, F. As três ecologias. São Paulo:
fazer estado estão os pontos de furo dos modelos Papirus, 2000.
centralizadores e anti-vida que operam o campo das GUATTARI, F. Revoluções moleculares. Disponível
políticas governamentais, hoje. Se não se trouxer em: http://www.dossie_deleuze.blogger.com.br/.
essa agenda para si, neste momento crítico que se Acesso em: 8 mar. 2012.
vive, creio que se terá pouco a falar sobre essa rela-
HARDT, M. e NEGRI, T.. Multidão. Guerra e
ção saúde e direito, daqui a alguns anos, sob a ótica
democracia na era do império. Rio de Janeiro:
da constituição de 88. Record, 2005.
LOURAU, R. Analista institucional. São Paulo:
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Recebido em: 15/12/2011


Aprovado em: 17/02/2012

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