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Bioética COMUNICAÇÃO/COMMUNICATION

Bioética, saúde pública


e controle social

Bioethics, public health and social control

RESUMO Christian de Paul de


As questões que angustiam o ser humano são o sentido da vida, a busca da verdade e Barchifontaine*
a busca da felicidade. Enfrentar estes questionamentos, pensá-los criticamente, postular
alternativas requer um entrelaçamento das áreas de conhecimento e exige um diálogo
entre o social, o econômico e o político. Para o autor, esse diálogo poderá se realizar
através da bioética como instância de diálogo, enfatizando a responsabilidade social pelo
exercício da cidadania e enfatizando também o controle social via nossa atuação nos
conselhos de saúde, nas comissões de bioética e nos comitês de ética em pesquisa. De
fato, a bioética é mais que debater, é fazer coisas junto uns com os outros, porque é
tendo a responsabilidade de agir, de justificar as escolhas feitas ou não, de dar razões da
ação e de arcar com as conseqüências que se aprende a viver junto, que se constrói
comunidade, que se pratica solidariedade, que se exercita tolerância.

DESCRITORES
Bioética; Saúde Pública; Cidadania

ABSTRACT
The questions that distress human being are the meaning of life, the search for the truth * Enfermeiro. Mestre em
and the search of happiness. Confronting these questions, thinking critically about them, Administração Hospitalar e da
to propose alternatives requires an integration of knowledge areas and demands a dia- Saúde. Docente no Mestrado em
logue involving social, economic and political elements. For the author, this dialogue will Bioética do Centro Universitário
be fulfilled through bioethics a as dialogue occasion, emphasizing the social responsibility São Camilo. Membro da Comissão
for the exercise of citizenship and also emphasizing the social control by means of our Nacional de Ética em Pesquisa
attention to health councils, bioethical commissions and the committees of ethics in (CONEP). Membro do Comitê de
research. Bioethics is no doubt, more than a debate, to make things together, because it Ética em Pesquisa e pesquisador
is having the responsibility to act, to justify the choices done, to give reasons fore actions
do Núcleo de Bioética do Centro
and being responsible by the consequences that we learn to live together, that we
Universitário São Camilo. Membro
construct community and exercises solidarity and tolerance.
da Sociedade Brasileira de
Bioética. Reitor do Centro
KEYWORDS Universitário São Camilo, São
Bioethics; Public Health; Citizenship Paulo, Brasil.

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SAÚDE — SAÚDE PÚBLICA rio. O Estado tem por finalidade promover o
bem comum, respeitando os direitos e deveres
O que entendemos por saúde, saúde públi- de cada cidadão e da sociedade civil. O bem-
ca e saúde coletiva? comum é o conjunto de condições materiais,
Para a Organização Mundial da Saúde institucionais, culturais e morais necessárias para
(OMS), “a saúde é o completo bem-estar físico, garantir a todos a possibilidade concreta de atin-
psíquico, social e espiritual, e não somente a gir níveis de vida compatíveis com a dignidade
ausência de doenças ou enfermidades”. da pessoa humana. A sociedade civil deve vigiar
Na realidade brasileira, bem como na da para que o Estado cumpra seu dever de atender
América Latina em geral, esta definição é muito às necessidades básicas da população. O mer-
vaga, estando fora da nossa realidade. Assim, cado é anterior à sociedade moderna; ele está
por ocasião da 8ª Conferência Nacional de Saú- associado à formação das cidades, cujo acesso a
de, em 1986, a saúde foi definida como “a resul- suprimentos dependia de relações comerciais
tante das condições de alimentação, habitação, para obter produtos externos, notadamente com
educação, renda, meio ambiente, trabalho, trans- os camponeses. A sociedade de mercado surge
porte, lazer, liberdade, acesso e posse da terra e no Ocidente a partir do século XVI. Agora, a
acesso aos serviços de saúde”. produção não é mais regida pelas necessidades
A saúde pública é a ciência e a arte de humanas, mas pelas necessidades do mercado.
prevenir as enfermidades, melhorar a qualida- Hoje, o mercado está dando origem a uma for-
de e a esperança de vida, e contribuir para o ma moderna de religião, a religião da mercado-
bem-estar físico, mental, social e ecológico da ria, gerando uma grande idolatria. Precisamos
sociedade. Isto se alcança mediante um esforço resgatar o mercado como realidade humana. As
concentrado da comunidade, que permita o sa- relações de mercado são relações sociais que
neamento e a preservação do meio ambiente regem a produção, a distribuição e o consumo
assim como o controle das enfermidades. O que de bens e serviços. Como são relações sociais,
demanda serviço de atenção à saúde para diag- o social, e não o individual, deveria ocupar a
nóstico e tratamento precoces das enfermida- centralidade do mercado. Portanto, o mercado
des e conhecimento dos princípios de higiene, tem por finalidade atender às metas sociais, às
que possibilite a todas as pessoas participarem necessidades básicas. Infelizmente, pela lei da
no melhoramento da saúde individual e coleti- oferta e da procura, o mercado produz somente
va. (OMS) o que se vai comprar (bens supérfluos) e preo-
cupa-se somente com as pessoas que têm di-
Pode-se definir também a saúde pública nheiro para fazê-lo, isso em função da ideologia
como políticas públicas utilizadas para obten- vigente.
ção da saúde coletiva, que no caso constitui-se Todo compromisso na área da saúde, em
em amplo trabalho interdisciplinar, cujo alvo é a nossa realidade, é desafiado a favorecer o pro-
saúde da coletividade. cesso de conquista da cidadania. A realização
pessoal e comunitária de cada pessoa é sempre
CIDADANIA considerada um valor acima do Estado e do
mercado. A inversão dessa lógica implica en-
É impossível falar de cidadania sem refe- contrar um mercado ou um Estado com caráter
rência à sociedade civil, ao mercado e ao Esta- autoritário coercitivo e absoluto. No centro de
do. O Estado é a resultante da correlação das todo processo político deve estar o cidadão, que
forças políticas, econômicas, sociais e culturais; é uma pessoa revestida de plenos direitos civis,
é o conjunto de organizações e leis que regula- políticos e sociais, e que tem a obrigação de
mentam e permitem a vida de um país por meio trabalhar pela proteção vigilante do Estado no
de três poderes: legislativo, executivo e judiciá- usufruto dos direitos.

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Aprofundando-nos na questão dos direitos, – Entende a autonomia de cada ser humano,
podemos afirmar a existência dos seguintes: mas também entende que as vidas indivi-
a) Direitos sociais: São aqueles que o Estado duais estão interligadas e inseridas em um
tem por função e obrigação assegurar a todo contexto social de relacionamentos. Como
cidadão: moradia, saúde, educação, lazer, conseqüência, tem-se a obrigação de agir
trabalho, cultura, segurança… de forma responsável para consigo próprio
b) Direitos civis: São os que dizem respeito à e para com os outros seres humanos, bus-
pessoa, como a liberdade de reunião, de cando manter esta conexão de interdepen-
expressão, de escolha profissional, de pen- dência, de modo que ninguém seja exclu-
samento, de locomoção… ído ou deixado sozinho.
c) Direitos políticos: São os que visam à liber- Isto exige:
dade de associação sindical, religiosa, par- – Um esforço enorme do diálogo inclusivo,
tidária, de escolha de governantes, de par- pois estamos em uma época marcada pela
ticipação no poder público e na determina- superespecialização, e, muitas vezes, por um
ção da política do Estado. individualismo exacerbado, “conquista” da
Assim, o direito à vida, e conseqüentemente modernidade.
à saúde, é o bem maior de qualquer cidadão e, – Um pluralismo religioso, político e moral,
como tal, deve se sobrepor às disposições po- um ideal de sociabilidade, um progresso
líticas e ideológicas e merecer atenção priorizada. descobrimento e afirmação dos direitos hu-
Mas como conseguir? Entre outras coisas, manos.
pela vivência da bioética e da prática do contro- – Lidar com o pluralismo, apontar para um
le social. novo tipo de comunidade; o consenso so-
cial não exclui a diferença e nem mesmo o
BIOÉTICA conflito, ao contrário, clama por uma nova
consciência de solidariedade e tolerância.
Bioética, ética da vida, é um espaço de A bioética é mais que debater, é fazer coi-
diálogo transprofissional, transdisciplinar e trans- sas junto uns com os outros porque é tendo a
cultural na área da saúde e da vida, um grito responsabilidade de agir, de justificar as esco-
pelo resgate da dignidade da pessoa humana, lhas feitas ou não, de dar razões da ação e de
dando ênfase à qualidade de vida e à proteção arcar com as conseqüências que se aprende a
da vida humana e de seu ambiente. Não é ética viver junto, que se constrói comunidade, que se
“pré-fabricada”, mas um processo. pratica solidariedade, que se exercita tolerância.
Somos humanos chamados a altos vôos. Foi A tarefa cotidiana do cultivo da tolerância
com esta preocupação que a bioética foi pro- inclui uma atitude proativa de procura do pon-
posta: questionar o progresso e para onde o to ideal de encontro com o outro nos momen-
avanço materialista da ciência e tecnologia est tos de discordâncias e enfrentamentos. A tole-
levando a cultura ocidental, que tipo de futuro rância é uma conquista no caminho em direção
estamos construindo e se temos algumas opções. à solidariedade, este laço recíproco que une
Desde o início, Potter usa a palavra “ponte” pessoas como co-responsáveis pelo bem umas
— bioética ponte — ponte entre ciência biológi- das outras.
ca e ética, mas como um meio para um fim, ponte
para o futuro — disciplina que guiaria a huma- A PRÁTICA DO CONTROLE SOCIAL
nidade como uma ponte para o futuro.
Assim, o objetivo da bioética é ajudar a Controle social é aqui entendido como o
humanidade a orientar-se em direção a uma controle sobre o Estado pelo conjunto da socie-
participação racional, mas cautelosa, no proces- dade organizada em todos os segmentos sociais.
so da evolução biológica e cultural. Evidentemente, esse controle deve visar o bene-
A ética que está proposta na bioética é glo- fício do conjunto da sociedade e deve ser per-
bal, prospectiva, abrangente e contextualizada: manente. Por isso, quanto mais os segmentos
– Combina humildade (posso estar errado), da sociedade se mobilizarem e se organizarem,
responsabilidade e uma competência inter- maior será a pressão e o resultado para que seja
disciplinar, intercultural e que potencializa efetivado o Estado democrático.
o senso de humanidade. Controle social é o efeito da ação da socie-
– Busca resgatar a dignidade e a cidadania dade sobre o Estado em relação aos serviços
de cada pessoa. públicos. Na área da saúde, fortalece o exercício

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da cidadania na busca pelo direito à atenção ple- tantes dos usuários, e na outra metade, além do
na à saúde, e tem como base os objetivos do SUS. governo, entidades representantes dos
O cidadão deve ser um agente de transfor- prestadores de serviços e dos profissionais da
mação na sociedade no resgate da dignidade da saúde. O grande objetivo: assegurar a constru-
pessoa e da qualidade de vida. É tendo a res- ção de um modelo assistencial baseado nos di-
ponsabilidade de agir, de dar razões da ação e reitos de cidadania de toda a população, interse-
de arcar com as conseqüências que se aprende torial, em defesa da vida e da saúde, e com aces-
a viver junto; assim, gostaria de refletir sobre a so universal e eqüitativo a todos os níveis da
participação pública na tomada de decisões: atenção integral à saúde, da coletividade, dos
grupos populacionais expostos a riscos específi-
Exercício da cidadania cos e de cada indivíduo. Tudo isso efetivado por
um modelo de gestão descentralizado e partici-
Gostaria de lembrar a distinção que o bioe- pativo. Sem a clareza do que significa este obje-
ticista italiano Giovani Berlinguer faz entre bioé- tivo e o conseqüente compromisso, o controle
tica de fronteira — aquela que trata das novas social através dos Conselhos de Saúde fica ex-
tecnologias biomédicas aplicadas sobretudo à posto a pressões estreitas de tendências e gru-
fase nascente e à fase terminal da vida — e pos, da sociedade e do Governo, desviando-se
bioética cotidiana — aquela voltada para a exi- da totalidade da sociedade e da cidadania.
gência de humanizar a medicina, articulando
fenômenos complexos, como a evolução cientí- Comissões de Bioética
fica da medicina, a socialização da assistência
sanitária, a crescente medicalização da vida, in- As Comissões de Bioética são formadas por
clusive a alocação de recursos para a saúde. A diversos profissionais ligados ao hospital ou à
bioética cotidiana nos faz entrar no concreto do comunidade, tais como o diretor administrativo,
exercício da cidadania. A cidadania é compreen- o diretor clínico, a diretora de enfermagem, um
dida como o exercício da plenitude dos direitos, representante da psicologia, do serviço social,
como garantia da existência física e cultural e da nutrição, um jurista, um representante de
reconhecimento como ator social. Lembrando culto. Basicamente, são enfatizadas as três fun-
mais uma vez que a realização pessoal e comu- ções: educativa, consultiva e normativa. Trata-se
nitária de cada pessoa é sempre considerada um da educação do hospital e da comunidade nos
valor acima do Estado e do mercado. A inversão grandes temas da bioética, da análise e discus-
desta lógica implica encontrar um mercado ou são dos casos clínicos para esclarecer seus pro-
um estado com caráter autoritário, coercitivo e blemas éticos, e da elaboração de normas éticas,
absoluto. Assim, precisamos de instâncias repre- bem como da implementação das já existentes.
sentativas que defendam direitos e deveres na Função educativa: os componentes da co-
tomada de decisões frente à alocação e gestão missão devem passar por uma etapa de
de recursos em saúde. autoformação prévia. A tarefa educativa no hos-
pital consta de conferências, jornadas, cursos,
Conselhos de Saúde (municipais, seminários etc. Por último, a Comissão de Bioé-
estaduais e nacional) tica projeta-se na comunidade atingindo os pa-
cientes, familiares, centros comunitários, para
É conquista das mobilizações sociais e de- estudar e refletir sobre os temas mais importan-
mocráticas dos anos 1980, que foram consolida- tes da bioética. Entre as questões que dizem
dos na Constituição Federal de 1988 e nas Leis respeito ao início da vida, temos: contracepção,
8.080/90 e 8.142/90. Ao integrar os Conselhos de esterilização, exame pré-natal, aborto, concep-
Saúde na estrutura legal do Poder Executivo, esta ção medicamente assistida (inseminação artifi-
conquista acrescenta uma trincheira decisiva para cial, fecundação “in vitro”), doação de sêmen,
o controle social, que é um enclave do controle óvulo, embrião, mãe de aluguel… Entre as ques-
social dentro do Estado: os Conselhos de Saúde tões relacionadas com o fim da vida, temos: a
municipais, estaduais e nacional. Estes órgãos do morte e o morrer, paciente terminal, eutanásia,
Poder Executivo possuem uma composição e distanásia, suicídio, transplantes… Enfim, as
papel de características inusitadas e diferencia- questões que se situam numa área intermediá-
das: sua composição é tão heterogênea e plural ria: códigos de ética das diversas profissões, ex-
quanto a própria sociedade — é constituída por perimentação em seres humanos, direito à saú-
conselheiros: metade é das entidades represen- de, pena de morte, fome…

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Função consultiva: a comissão começa com CONCLUINDO
uma revisão retrospectiva dos casos já resolvi-
Frente à contemporaneidade, os desafios
dos para adquirir habilidade em identificar os
bioéticos passam pela nossa atuação, como ci-
problemas, cursos de ação e justificação ética
dadãos, procurando ser agentes de transforma-
das alternativas. Logo decide que caso receberá
ção na sociedade, pelo exercício da cidadania,
para consulta: todos os serviços, ou da terapia
pela convivência com o diferente e pela vivên-
intensiva ou serviço de pesquisa... Nos distintos
cia da tolerância e da solidariedade.
casos, a comissão deve estabelecer se suas con-
A revolução francesa deixou para o mundo
clusões serão em forma de exposição de vanta-
três palavras célebres: liberdade, igualdade e
gens e desvantagens das alternativas, sugestões
fraternidade. O século XIX exaltou a liberdade;
de ação ou recomendações.
o século XX, a igualdade. Será que o século XXI
Função normativa: a comissão, em primei- priorizará a fraternidade, a solidariedade? Eis a
ro lugar, deve fazer com que sejam respeitadas, nossa esperança!
no hospital ou instituição de saúde, as normas
éticas de aceitação mundial no campo da saúde:
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
Declaração da Associação Médica Mundial, De-
claração Universal dos Direitos Humanos e ou- BARCHIFONTAINE, C. de P. de. Saúde e cida-
tros documentos de grande relevância. Em se- dania. Amparo: Santuário; São Paulo: Centro
guida, se dedicará à elaboração de normas éti- Universitário São Camilo, 2003.
cas de procedimento. A comissão define o tema
que será objeto de normatização ética, recopila BARCHIFONTAINE, C. de P. de. Bioética e iní-
informações já existentes, consulta os profissio- cio da vida: alguns desafios. São Paulo: Idéias
nais do hospital ou da instituição de saúde so- e Letras; Centro Universitário São Camilo, 2004.
bre a factibilidade das normas, avalia a lingua- PESSINI, L.; BARCHIFONTAINE, C. de P. de.
gem dessas normas e revisa legalmente o texto Problemas atuais de bioética. 7.ed. São Pau-
para aprovação. lo: Loyola; Centro Universitário São Camilo, 2005.

Recebido em 1 de fevereiro de 2006


Aprovado em 21 de fevereiro de 2006

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