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VALE DO

JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho

Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho
Rio Jequitinhonha
Foto: Lori Figueiró
Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira

VALE DO JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS - UFMG


PRÓ-REITORIA DE EXTENSÃO | PROEX-UFMG
PROGRAMA POLO DE INTEGRAÇÃO DA UFMG NO VALE DO JEQUITINHONHA
BELO HORIZONTE, 2013
O Vale do Rio Jequitinhonha
Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG)

Reitor: Clélio Campolina Diniz


Vice-Reitora: Rocksane de Carvalho Norton
Pró-Reitora de Extensão: Efigênia Ferreira e Ferreira
Pró-Reitora Adjunta de Extensão: Maria das Dores Pimentel Nogueira

Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do Jequitinhonha


Coordenadora: Maria das Dores Pimentel Nogueira

Projeto Visões do Vale


Coordenador: João Valdir Alves de Souza

©2013
Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG

Vale do Jequitinhonha : ocupação e trabalho / Organização [de] Maria


das Dores Pimentel Nogueira. – Belo Horizonte : UFMG/PROEX,
2013.
144 p. : il., foto. ; 23 cm.

1. Trabalho – Aspectos sociais - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E


BA]. 2. Trabalhadoras - Jequitinhonha, Rio, Vale [MG E BA]. 3.
Ocupações. I. Nogueira, Maria das Dores Pimentel. II. Universidade
Federal de Minas Gerais, Pró-Reitoria de Extensão.
CDD 306.098151

Produção editorial: Roseli Raquel de Aguiar


Assistente de produção: Dulcinéa Teixeira Magalhães
Revisão e normalização de texto: Lílian de Oliveira
Projeto gráfico: Andrea Estanislau
Diagramação: Andrea Estanislau / Mateus Sá
Foto da capa e abertura: Lori Figueiró
Legenda da capa: José Caldas dos Santos, Jenipapo de Minas
Produção executiva: Gaia Cultural [Cultura e Meio ambiente]
SUMÁRIO

11 Apresentação
Roberto Nascimento Rodrigues

17 Lições do Vale: narrativa de uma pesquisadora


Maria Aparecida de Moraes Silva

37 Mulher e trabalho na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha


Flávia Maria Galizoni
Eduardo Magalhães Ribeiro

51 O processo de mecanização da agroindústria canavieira: histórico,


motivações e impactos sobre os trabalhadores temporários
Juliana Biondi Guanais

71 Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida


dos trabalhadores e trabalhadoras
Cândida da Costa

97 Construção de metodologias participativas com populações quilombolas:


formação política e geração de trabalho e renda – dilemas e perspectivas
Carlos Roberto Horta

113 A dimensão formativa do trabalho


João Valdir Alves de Souza

135 Práticas inovadoras de ocupação e trabalho


137 Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes:
boas práticas de organização de mulheres
139 Ocupação, trabalho e renda:
a experiência do Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV)
APRESENTAÇÃO

Roberto Nascimento Rodrigues

Ocupação e trabalho são temas recorrentes quando se fala sobre o


Vale do Jequitinhonha. Não sem razão. Embora sejam temas convergen-
tes, podem servir para bem marcar a diversidade que constitui um dos
traços característicos dessa que é uma das regiões de maior destaque
nos cenários mineiro e nacional, seja por sua pujança cultural ou por
sua carência social. De um lado, o Vale do Jequitinhonha destaca-se por
uma produção artesanal única e reveladora da aura singela de um povo
que parece insistir em querer nos ensinar lições de vida em comunidade
cooperativa. De outro, a região é conhecidamente desprovida da geração
de oportunidades de ocupação e trabalho para parcela expressiva de sua
população, que se vê impelida a movimentos migratórios, ora sazonais,
ora em busca aparentemente definitiva de oportunidades de obtenção de
melhores ou mais adequadas condições de vida.
Rica em diagnósticos socioeconômicos que apontam para possíveis
causas da incapacidade recorrente de geração de ocupação, trabalho e
renda, mas carente de propostas que levem a alternativas de crescimen-
to econômico capazes de promover condições de desenvolvimento social
para sua população. Carente no que diz respeito à oferta de infraestru-
tura indutora de bem-estar socioeconômico, mas rica em lições de vida
de “uma gente que ri quando deve chorar, e não vive, apenas aguenta”.
Assim pode ser tentada uma descrição do Vale do Jequitinhonha. Não
bem assim, quando esses diagnósticos são baseados no que diz a popu-
lação do Vale sobre seus potenciais, sobre a vocação econômica da região
e sobre o que poderia ser feito para integrar esses dois ingredientes em
uma receita que traga como resultado inserção produtiva e social capaz
de lhes propiciar, simplesmente, desenvolvimento, se for esta a denomi-
nação correta para uma vida alegre e feliz, sem abandonar sua terra e
sem abrir mão de seus valores culturais.
Ao indagar sobre qual era a linha ou tônica geral de Vale do Jequiti-
nhonha: Ocupação e Trabalho, recebi como resposta que, ao ler o sumá-
rio, ou os textos, teria uma noção dos assuntos e abrangência dos au-
tores convidados para produzir esta coletânea. Ledo engano. Até porque
a pergunta foi feita após a leitura de sumário e textos. Quando se trata

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do Vale do Jequitinhonha, nada é tão simples assim. De fato, trata-se de
mais uma produção do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do
Jequitinhonha, coordenado por Maria das Dores Pimentel Nogueira, que
se insere numa linha a um só tempo tênue e instigante da diversidade
característica do Vale. Mas, desta feita, a coordenação de Marizinha re-
mete o leitor a uma viagem que vai além do horizonte circunscrito ao Vale
do Jequitinhonha, ao agregar textos que abordam temáticas universais
sobre ocupação e trabalho.
Tarefa tão difícil que a coordenadora brinda o leitor, logo de início,
com um relato apaixonante e revelador daquilo que de mais puro pare-
ce povoar corações e mentes da população do Jequitinhonha, que Maria
Aparecida de Moraes Silva tão singelamente denominou “Lições do Vale:
narrativa de uma pesquisadora”. Maria Aparecida diz ter aprendido lições
a partir dos depoimentos que coletou de mulheres residentes no Vale do
Jequitinhonha, sobre suas experiências enquanto migrantes sazonais em
busca de ocupação e trabalho nas atividades de colheita de cana no inte-
rior de São Paulo, para depois voltarem à região em condições de propiciar
o sustento de seus familiares. Ao destacar o universo do trabalho femini-
no em um ambiente marcadamente povoado por homens, com o intuito
de seguir os passos das mulheres “na busca do farol luminoso da justiça
social”, a autora descreve as lições que com elas aprendeu sobre questões
como o uso do tempo e relações de gênero, que lhes levaram a conjugar,
com maior frequência, verbos como dividir, somar e multiplicar.
Em seguida, Flávia Maria Galizoni e Eduardo Magalhães Ribeiro
também abordam o trabalho feminino, mas sob a ótica de mulheres que
exercem atividades produtivas na agricultura, no próprio Vale do Jequi-
tinhonha. O objetivo dos autores é analisar a representação do trabalho
da mulher para os membros da família em uma situação de forte migra-
ção sazonal masculina. A junção do foco desses dois primeiros artigos
parece apontar para o fato de que, a despeito da sobrerrepresentação
de estudos versando sobre o trabalho masculino, a inserção das mulhe-
res do Vale do Jequitinhonha em atividades produtivas, dentro ou fora
da região, constitui elemento importante, e constante, na formação da
renda familiar. A esse respeito, Flávia e Eduardo enfatizam que “o total
de trabalho de uma família é, quase sempre, a soma de várias jornadas:
masculina, feminina, infantil e de idosos”.
O texto de Juliana Biondi Guanais oferece ao leitor a oportunidade
de discutir a questão da migração sazonal de trabalhadores do Vale do

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Jequitinhonha em meio ao processo de mecanização das lavouras de
cana-de-açúcar, iniciado em meados dos anos 1980. A autora destaca
que tal reestruturação produtiva produziu modificações importantes na
atuação desses trabalhadores, uma vez que lhes impôs maior volume
de trabalho em regiões de mais difícil acesso, resultando em redução da
produtividade e, consequentemente, diminuição da renda. O resultado
geral, segundo a autora, é um processo de redução das oportunidades de
trabalho braçal, gradualmente substituído pela introdução de máquinas
colheitadeiras, aliado à absorção de trabalhadores mais qualificados, ge-
ralmente mais jovens, capazes de manusear máquinas e equipamentos.
Nos três artigos subsequentes, a abordagem deixa de considerar
especificamente a situação vivenciada no Vale do Jequitinhonha, embora
possa se enquadrar para uma análise circunscrita à região.
O tema central do estudo desenvolvido por Cândida da Costa em
“Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida dos traba-
lhadores e trabalhadoras” é uma discussão que pode ser remetida para
exemplificar o caso de outros universos de investigação, além do Vale
do Jequitinhonha. A partir da ideia do trabalho como direito humano, a
autora discorre sobre concepções teóricas que remetem a um conceito
particular de trabalho escravo ou forçado, abrangendo situações em que
o trabalhador “é ludibriado por falsas promessas de ótimas condições de
trabalho e salário». Antes de focalizar denúncias de casos específicos e
não totalmente documentados, a autora considera que o trabalho escravo
é um tipo de trabalho forçado, definido como obrigatório, compelido ou
subjugado, concluindo que “todo trabalho escravo é forçado, mas nem
todo trabalho forçado é escravo”.
Na sequência, Carlos Roberto Horta apresenta uma proposta de me-
todologias participativas com populações quilombolas, com ênfase na for-
mação política e geração de trabalho e renda, tendo como referência os
trabalhos desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho
Humano da UFMG (NESTH/UFMG), apoiados nos princípios da pesquisa-
-ação-participativa. Na visão do autor, essa abordagem propicia um forta-
lecimento político das comunidades, permitindo vencer barreiras como a
descontinuidade de ações, reforçadas por questões culturais. As sete estra-
tégias propostas incluem entrevista qualitativa embasada na tradição oral;
questionário qualitativo dirigido a lideranças locais; questionário dirigido
ao grupo familiar; entrevista qualitativa para identificar as representações
que se organizam em torno da comunidade quilombola; encontro local com

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diferentes atores locais; estímulo às potencialidades e à organização de
subjetividade social; e encontro quilombola na sede municipal.
Já a dimensão formativa do trabalho, que constitui o tema central
do artigo de João Valdir Alves de Souza, tem como objetivos “explorar o
conceito de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, es-
colarização, instrução e ensino”, além de “fazer uma defesa da formação
pelo trabalho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil”. Nada
mais instigante e polêmico para fechar o conjunto de artigos que pode-
riam constituir um núcleo universal deste Vale do Jequitinhonha: Ocu-
pação e Trabalho. Logo na introdução do seu artigo, João Valdir adverte
que, “se tomarmos o trabalho como a ação humana sobre a natureza
para, sob determinadas relações sociais, produzir as condições da exis-
tência, é preciso distinguir os diferentes tipos de trabalho e destinar às
crianças apenas aquela porção do trabalho adequada a elas. E é preci-
so dizer com clareza que a campanha deve ser contra a exploração do
trabalho, sobretudo da exploração do trabalho infantil, e não contra o
trabalho, porque ele é constitutivo do humano”. Mais adequado, então,
é recomendar ao leitor uma leitura atenta, cuidadosa e sempre contex-
tualizada, mesmo quando o autor dedica parte da atenção ao que Marx
“certamente escreveria” sobre o assunto, em defesa do trabalho infantil,
mas contra a exploração do trabalho infantil.
Na retomada do foco para as especificidades do Vale do Jequitinho-
nha, os dois textos finais apresentam relatos de práticas inovadoras de
ocupação e trabalho na região. O primeiro deles descreve a trajetória de
criação e consolidação da Associação das Mulheres de Ponto dos Volan-
tes, que se dedicam a atividades de costura, além do desenvolvimento
de projetos sociais. A conclusão é que “o mundo está nas mãos de quem
tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um ‘tostão’ para
casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos
nossa independência”. O segundo destaca a atuação do Centro de Agri-
cultura Alternativa Vicente Nica (CAV), com base em uma metodologia
que deriva do cruzamento entre conhecimento científico e conhecimento
prático. Conclui-se que na aplicação dessa metodologia “cabe ao técni-
co(a) ouvir o(a) agricultor(a) e propor ações que tenham como referência
o potencial e a capacidade dos(as) próprios(as) agricultores(as) em suas
propriedades”. Nesse sentido, “a parceria com as universidades tem sido
muito interessante, pois, somando-se o conhecimento dos acadêmicos
com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um produto da
melhor qualidade”.

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Tem sido sempre assim: ao aliar o conhecimento acadêmico àquele
da população da região, o Programa Polo de Integração da UFMG no Vale
do Jequitinhonha invariavelmente desenvolve um produto da melhor
qualidade. É o caso deste Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho,
que apresenta uma coletânea de artigos capaz de propiciar ao leitor emo-
ção, conhecimento e inquietação em doses suficientes para convidá-lo a
juntar-se à equipe nesse processo de construção coletiva de um presente
melhor não apenas para a geração atual, mas também para a geração
futura da população que compõe o Vale do Jequitinhonha.

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Bordados da Associação Antônio Maria das Graças, Jenipapo de Minas.
Fotos: Lorí Figueiró

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Lições do Vale:
narrativa de uma pesquisadora
Maria Aparecida de Moraes Silva

Vou lhe falar. Lhe falo do Sertão. Do que, não sei.


Um grande sertão. Não, sei. Ninguém ainda não sabe. Só umas
raríssimas pessoas. E só essas poucas veredas, veredazinhas.
O que muito lhe agradeço é sua fineza de atenção.
Lhe falo deste Sertão que está dentro da gente.
Guimarães Rosa. Grande sertão: veredas.

Dedico este texto a duas pessoas queridas:


ao poeta, Rubinho do Vale, e à pró-reitora da UFMG,
carinhosamente chamada Marizinha, com as quais aprendi a
maior de todas as lições: a emoção fecunda a razão.

Em 1985 estabeleci o primeiro contato com os camponeses do Vale


do Jequitinhonha, ocasião em que realizava uma pesquisa com trabalha-
dores rurais na região de Ribeirão Preto/SP. Era um domingo do mês de
junho. Fazia muito frio. Após entrevistar alguns trabalhadores de uma
grande fazenda, produtora de café, obtive a informação da existência de
um barracão com mineiros, situado do outro lado de um córrego, em
cujas cercanias se localizava o haras do fazendeiro com cavalos premia-
dos em concursos nacionais e internacionais.
Até então, eu desconhecia a presença daqueles trabalhadores. A bi-
bliografia pertinente ao tema tampouco fazia referência a eles. Em minhas
pesquisas anteriores, encontrei muitos “boias-frias” ou “paus de araras”,
residentes nas cidades-dormitórios e provenientes da área rural do es-
tado de São Paulo, os quais vivenciavam o processo recente de expulsão
do campo pela política da modernização posta em prática nos anos da
ditadura militar. Para os viajantes das estradas paulistas, a imagem dos
homens e das mulheres sendo transportados em carrocerias de caminhões
ou trabalhando nos infinitos canaviais, laranjais e cafezais fazia parte da
paisagem, sendo percebida como natural. Ainda que a imprensa veiculasse
notícias sobre os inúmeros acidentes ocorridos em razão dessa forma de

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transporte, aquele não era um problema social e político relevante naquele
momento para o status quo.
Ao chegar ao barracão, deparei com muitas mulheres, homens e
crianças que estavam do lado de fora, aquecendo-se ao sol em razão do
frio intenso. De início, houve um constrangimento de ambas as partes.
Afinal, éramos estranhos entre nós mesmos. De meu lado, houve um
espanto e incredulidade diante do que via; do lado daquelas pessoas,
pairava no ar o questionamento acerca de minha presença, inicialmente,
pensada como se fosse alguém pertencente à fazenda. Passados aqueles
momentos de estranhamento mútuo e dúvidas, iniciamos a conversa.
Perguntei-lhes sobre as razões de estarem ali, de onde provinham, o que
faziam em suas terras e assim por diante. Paulatinamente, o estranha-
mento foi se dissipando e fui percebendo com maior nitidez a realida-
de daquelas vidas diante de mim. Não gravei nenhuma conversa. Ouvi
muitos relatos sobre o trabalho e, sobretudo, o sofrimento, por estarem
longe de suas terras. Contudo, o registro em meu caderno de campo foi
insuficiente para dar conta do indizível, do silêncio, das falas entrecor-
tadas por soluços, dos olhares dirigidos a lugar nenhum, da miséria dos
corpos, do encolhimento, da dor sentida pelos doentes e, mais ainda, da
saudade da “terra da gente”, “do lugar da gente”. A impressão registrada
era a de pessoas “exiladas”, fora de seus rincões, arrancadas de suas
raízes. Soltas, sem lugar de pertencimento.
O barracão enfeixava um quadro de miséria humana. Sua arqui-
tetura refletia o retrato da dominação, exploração, contrastante com a
arquitetura do haras, do outro lado do córrego, com seus belíssimos ca-
valos aureolados em vários concursos. Nos cinco “quartos”, divididos por
plásticos pretos, as sessenta pessoas ali estavam acomodadas, indepen-
dentemente do sexo, idade, estado civil e grau de parentesco. O critério da
divisão era tão somente o quantitativo. Os fogões a lenha – em número de
oito – situavam-se em frente aos “quartos”, imprimindo ao ambiente, em
virtude da fumaça, um aspecto lúgubre. Não havia água encanada nem
energia elétrica. A higiene corporal era feita no córrego, apesar do frio.
Duas frases ouvidas foram registradas em meu caderno de campo,
inúmeras vezes: “aqui não é o lugar da gente”; “aqui não é a terra da gen-
te”. Ao sair do barracão, no final daquela manhã domingueira, fui acome-
tida de muitas emoções; revolta diante da injustiça social experimentada
por aquelas pessoas; impotência diante do fato presenciado. A partir de
então, formulei um projeto de pesquisa para conhecer “a terra daquela
gente” e entender por que estavam na “terra que não era daquela gente”.

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Assim, cheguei ao Vale em 1988.1 De lá para cá, foram muitas andan-
ças. Palestras, textos escritos publicados em revistas e livros; muitas apre-
sentações em congressos nacionais e internacionais. Levei para incontáveis
cantos do país e de lugares estrangeiros as imagens e narrativas de homens,
mulheres e crianças da “terra da gente”;2 iniciei uma colaboração frutífera,
que já dura mais de 20 anos, com a Pastoral do Migrante; conheci inúmeros
pesquisadores que se debruçaram sobre a temática das migrações e das
sociedades camponesas. E mais ainda. Aprendi várias lições transmitidas
por camponesas, que, embora sendo ágrafas, tinham um conhecimento
ímpar advindo de suas experiências moldadas pela vida. Lições aprendidas
e, a partir de então, transmitidas a inúmeras gerações de estudantes. Lições
guardadas em minha memória como verdadeiros tesouros. Sobre algumas
delas, discorrerei, em seguida, sob a forma de narrativa.

Primeira lição:
Mulher é como engenho, roda sem parar

Ao sair do barracão, tinha a certeza de que não estava deixando para


trás aquela gente, porém, aquela realidade, doravante, faria parte de mi-
nhas preocupações de pesquisa, não somente enquanto objeto de estudo,
como também enquanto práxis, entendida, como ação, visando à transfor-
mação e ao compromisso ético com os sujeitos pesquisados. A execução
do projeto de pesquisa, além das técnicas usuais de investigação, deveria
navegar em outras águas. Tornava-se importante recorrer à antropologia,
à etnografia, a fim de captar o visível e o invisível, o dizível e o indizível, os
objetos e também a compreensão das subjetividades. Era necessário com-
preender outra economia política: a da saudade.
Um dos instrumentos da metodologia da pesquisa era um questioná-
rio, visando captar o quantitativo referente aos dados da produção agrícola
e também do uso do tempo, segundo os sexos. O objetivo era, mormente,
verificar o uso do tempo por homens e mulheres nas distintas unidades de
produção doméstica. Aos poucos, esse questionário foi se mostrando inca-
paz de dar conta de toda a diversidade do real. Em todo caso, como inves-
tigadora ciosa do emprego da metodologia científica, continuei aplicando-o
em diversas unidades de produção, até que cheguei à roça de dona Maria,

1 -   A pesquisa foi financiada pela FUNDUNESP e CNPq.


2 -   Entre as publicações, ressalto: SILVA, 1996; 1999; 2013.

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que estava colhendo algumas espigas de milho seco. Vestia uma saia es-
cura e possuía os cabelos protegidos por um lenço branco, amarrado à
moda das demais camponesas do Vale. Após ouvir-me atentamente, iniciei
o preenchimento do questionário, cujas perguntas iniciais versavam sobre o
uso do tempo com horários bem definidos, segundo as distintas atividades.
O objetivo da noção do uso do tempo era voltado para a compreensão do
cotidiano laboral feminino, bem como a precisão da dupla jornada. De qual-
quer forma, o modelo tinha como base a vida das mulheres trabalhadoras
urbanas e também a divisão do tempo produtivo (fora da casa) e reprodutivo
(na casa). Assim, numa das colunas havia o registro de todos os horários da
jornada de trabalho, desde o momento do despertar até o deitar. Na outra
coluna, eram discriminadas as atividades, segundo os respectivos horários.
À medida que ia respondendo às perguntas, notei que minha depoen-
te não sabia me dizer com precisão a atividade que ela desenvolvia às seis
horas ou às seis e trinta minutos. Insistia em me dizer que fazia tudo ao
mesmo tempo: coava o café, cuidava das crianças e também das galinhas;
varria o terreiro e limpava a casa. Lavava a roupa; preparava o almoço e
depois ia para a roça com o sol a prumo. Guiava-se pelo sol. Não sabia ler
nem escrever. Não possuía relógio. Seu tempo era o tempo cíclico, e não
o linear da sociedade urbana e orientada por práticas capitalistas e do
assalariamento dos trabalhadores. Após alguns minutos de desconforto em
relação às perguntas, ela me disse:

Uai, quem trabalha na roça não tem essas coisas de tempo


dividido, não. Faz aqui, faz ali. Mulher é como engenho, não
para de rodar.

Até aquele momento, não havia lhe dito nada sobre tempo dividido,
noção cara aos estudos dessa temática. Ela, por si mesma, com sua arguta
inteligência, havia chegado a essa conclusão. Com essa lição aprendi que
o modelo de questionário que tinha em mãos não era o mais adequado
para aquela realidade. Assim, deixei-o de lado e aprofundei a entrevista
com dona Maria. Aprendi o significado do “rodar sem parar como enge-
nho”: metáfora da jornada justaposta, do tempo não dividido, não recortado,
e das múltiplas atividades desenvolvidas ao mesmo tempo, sem a cisão do
espaço produtivo (roça) e do espaço reprodutivo (casa). Casa e roça, além
do quintal, formavam a simbiose espacial por onde ela “rodava sem parar”.
E mais ainda. A disposição das tarefas seguia o movimento da terra ao
redor do sol, de forma bastante precisa. O seu tempo não era o tempo

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cronológico do relógio, definido segundo as horas e os minutos, porém o da
manhã, do meio-dia, da tarde e o da noite.
Fui descobrindo pelo relato de minha depoente que, enquanto havia
uma jornada justaposta para as mulheres, elas rodavam sem parar, havia
uma jornada única para os homens; a divisão sexual do trabalho existia ape-
nas em relação aos homens, que concentravam suas atividades no trabalho
agrícola, e não para as mulheres. A pré-concepção da divisão sexual, no
nível do discurso, em que as mulheres só trabalhavam na roça como ajuda
ao trabalho do homem e por precisão, refletia as representações sociais ali
existentes. Outros depoimentos foram revelando ainda que as mulheres par-
ticipavam de todas as tarefas do processo de trabalho agrícola, ou seja, pre-
paravam a terra, plantavam, carpiam e colhiam. Não havia, para os diferentes
produtos, uma divisão, às vezes, concebida como natural, em que os homens
preparam a terra, as mulheres semeiam e “ajudam” na carpa e colheita.
Essas informações tornaram visível e real a participação das mulhe-
res em todas as fases do processo produtivo agrícola, desmistificando as
concepções de que o trabalho da roça é pesado e, portanto, é um traba-
lho dos homens e que as mulheres só trabalham quando há precisão.
Por outro lado, a real participação das mulheres no trabalho não lhes
conferia o mesmo estatuto que os homens. Ou seja, mesmo exercendo
o mesmo trabalho, elas não eram consideradas iguais aos homens.
Trabalho idêntico não significa igualdade social (no sentido dos gêne-
ros) entre homens e mulheres. O trabalho não é causa da diferenciação
entre homens e mulheres. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe
preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não apenas
a esfera do trabalho. Pude, então, perceber que, além dos atributos de
desqualificação de “ajuda”, “precisão” ao trabalho da mulher, presentes
no interior da unidade doméstica, a troca de dias, relação costumeira en-
tre as diferentes unidades domésticas, refletia igualmente os caracteres
diferenciadores entre homens e mulheres. Havia, na verdade, uma univer-
salização dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações
de gênero não são relações que dizem respeito apenas à esfera doméstica,
privada. E mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como
falsa consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras
ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as esferas e
são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de que refletem
o real e também o determinam.
Havia, além de uma divisão sexual rígida no tocante à troca de dias,
uma sobrevalorização do trabalho do homem em relação ao trabalho da

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mulher. Segundo os costumes vigentes, até então, um dia do trabalho do
homem equivalia a dois dias de trabalho da mulher. Portanto, o trabalho
da mulher “valia” a metade do trabalho do homem. Em algumas comuni-
dades, sequer os homens aceitavam trocar dias com as mulheres.
Enfim, a conversa com dona Maria foi puxando o fio das relações de
gênero ali existentes e muitas outras Marias me forneceram outras tantas
informações sobre o mundo do trabalho feminino no Vale, acentuando
e apontando as discriminações, bem como desmistificando o trabalho
feminino como leve ou meramente ajuda.

Segunda lição:
Não olhe para a colcha. Olhe para mim

Continuando minhas andanças pelas grotas e veredas do Vale, depa-


rei com as artesãs da comunidade de Roça Grande. Colchas, almofadas,
toalhas tecidas com fios de algodão coloridos eram produzidas por mulheres
jovens, inseridas no projeto da então Codevale (Comissão para do Desen-
volvimento do Vale do Jequitinhonha), que foi extinta e substituída pelo
Inde (Instituto de Desenvolvimento do Norte e Nordeste de Minas Gerais).
Depois de apreciar o artesanato e entrevistar algumas tecelãs, che-
guei à casa de dona Antônia, primeira tecelã de Roça Grande, que havia
aprendido o ofício da tecelagem com sua avó. Descreveu-me em detalhes
todos os passos de sua produção, desde o plantio do algodão até a pre-
paração das tintas feitas com raízes e folhas de árvores das chapadas.
Fazia questão de diferenciar seu trabalho daquelas outras tecelãs. Estas
utilizavam tintas químicas e ela, as tintas extraídas naturalmente das
plantas. Seu saber era advindo da experiência de sua avó. Logo, era um
trabalho distinto, qualitativamente. Possuía a marca da primeira tecelã
de Roça Grande. Tal como Walter Benjamin se referiu à marca do oleiro
no vaso ao se reportar à narrativa, advinda da vida, da experiência do
narrador, dona Antônia manifestava a singularidade de seu trabalho, fru-
to do saber narrativo – entendido não apenas como palavras transmitidas
por sua avó, como também pelo ensinamento de um ofício, executado
pelas mãos e pela alma.
No final da entrevista, manifestei meu interesse em comprar uma
das colchas feitas por ela. Ao verificar que eu contemplava o produto,
ressaltando sua beleza, ela me disse:

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Eu acho mais bonito a senhora olhar pra mim, me dar valor,
do que dar valor pra colcha. Por que o valor está na cabeça [...].

Inicialmente não havia compreendido o significado tão profundo de


suas palavras. Confesso que fiquei constrangida diante dela. Paulatina-
mente, enquanto investigadora e estudiosa de Marx, vieram-me à mente
os ensinamentos desse pensador sobre o valor das mercadorias – valor de
uso e valor de troca. Na realidade, acabara de aprender, concretamente,
o significado desses dois conceitos. A colcha não era um simples valor de
troca, imbuída do fetichismo da mercadoria capitalista, porém valor de
uso, que trazia a marca das mãos da primeira tecelã de Roça Grande, dona
Antônia. Ao advertir-me que o valor da colcha estava nela – artesã –, e não
na colcha propriamente dita, ela mostrou-me que a mercadoria, valor de
uso, fruto de um trabalho concreto, dela, dona Antônia, primeira artesã
de Roça Grande, não representa nada sem ela, não possui valor. Aqui, o
valor da coisa só existe na cabeça do indivíduo, da possuidora da merca-
doria. O valor da colcha ao existir somente na cabeça significa que ele é
representado. Não existe a coisa em si. Não há aqui o fetiche da mercadoria
que assume o lugar das pessoas. Não se trata de uma relação entre coisas,
mas entre pessoas. O que existe é uma personalização das pessoas, e não
das coisas, como no caso do fetichismo da mercadoria sob o capitalismo.
A coisa só tem valor porque a pessoa o possui. É a pessoa que transmite o
valor à coisa. Ao dizer que, se o valor da pessoa acabar, ele não mais será
encontrado, induz à primazia, mais uma vez, da pessoa sobre a coisa. Ela,
ao reclamar o valor para si, na verdade, interioriza o valor da coisa como se
fosse dela mesma. Identifica-se com a coisa, seu produto, seu valor. Trans-
mite à coisa sua representação, seu pensamento, seus símbolos, sua alma,
sua vida, enfim. Mauss ([s./d.], p. 67), referindo-se ao sistema de trocas
entre os indígenas maori, afirmou: “(a) ligação pelas coisas é uma ligação
de almas, porque a própria coisa tem uma alma, é alma. Donde se segue
que apresentar qualquer coisa a alguém é apresentar qualquer coisa de si”.
A diferença entre seu trabalho e o das “meninas de Roça Grande” era
assentada na concepção do valor. Para ela, as “meninas” produziam valores
de troca, pois elas pensavam no dinheiro, contrariamente a ela, que se con-
fundia com o próprio objeto. Sua identidade era transmitida à colcha, e não
o contrário. Ela se encaixava na definição marxiana do ser genérico, segun-
do o qual sujeito e objeto formam uma simbiose, não havendo a objetivação
do sujeito nem a relação de estranhamento entre o sujeito e o objeto.

23
Terceira lição:
Não moro sozinha. Moro com Deus

Encontrei dona Maria sozinha em sua casa. Após apresentar-me e


explicar-lhe as razões de estar ali, iniciei a conversa interessada em saber
se além dela alguém mais residia na casa. Ao ser inquirida se morava sozi-
nha, ela respondeu-me: “não”. Em seguida, após lhe perguntar com quem
vivia, ela me disse: “moro com Deus”.
A história de vida de dona Maria trouxe à tona novos elementos à
compreensão das questões de gênero e das relações patriarcais daquela
comunidade camponesa. Ainda em idade tenra, foi doada pelos pais a uma
família de fazendeiro da região. Foi inserida como empregada doméstica e ao
completar 13 anos, quando “ficou mocinha”, tornou-se amante do marido
da sua patroa. Ali viveu durante mais de 20 anos e teve vários filhos com
ele. Uma história de bigamia. Contou-me do tratamento hostil, da discrimi-
nação de seus filhos e das várias cenas de violência perpetradas por aquele
homem. Quando ele faleceu, foi expulsa da casa pela esposa e seus filhos
“foram embora”. Nada sabia sobre eles. Assim, vivia sozinha naquela casa
de adobe feita por ela mesma, sem aposentadoria e vivendo da caridade dos
vizinhos, pois, já idosa, não possuía mais forças para trabalhar.
As histórias de bigamia se repetiram em outras entrevistas. A ex-
periência de dona Maria não era única naquele ambiente social. O apego
religioso era uma forma de sobreviver a uma realidade dura imposta por
uma estrutura que havia lhe impresso um destino social do qual protago-
nizou como vítima.
Ainda me lembro de sua figura frágil, sentada frente ao fogão, cujo
fogo estava apagado, pois em sua casa não havia nenhum vestígio de ali-
mentos. À medida que tecia sua narrativa, dirigia-me um olhar triste e, com
muita frequência, cruzava as mãos sobre o tórax, num gesto de “aperto do
coração”. A comovente história de vida daquela mulher transportou-me
para outras épocas da sociedade patriarcal brasileira, para as relações da
casa grande e senzala. No entanto, a escravidão havia terminado há mais de
um século, mas suas raízes ainda não tinham sido totalmente eliminadas.
Estavam ali bem fincadas à minha frente.
Assim que dela me despedi, lançou-me um olhar triste, mas ao mes-
mo tempo questionador. Era como se ela me perguntasse sobre o que faria
após ouvir sua história. Até que ponto seu passado poderia ser resgatado?
Naquele momento, veio-me à lembrança uma passagem de W. Benjamin,
no seu belíssimo ensaio sobre conceito da história:

24
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para
saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam
nem como vazio nem como homogêneo [...]. Sabe-se que era
proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá
e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos,
a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam
os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o fu-
turo se converteu para os judeus num tempo homogêneo e
vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual
podia penetrar o Messias, (BENJAMIN, 1987, p. 232).

Mergulhei numa atmosfera mística, tal como o filósofo judeu no


excerto acima. Somente pessoas vivenciando situações-limite, tal como
ele, em 1940, durante a Segunda Guerra Mundial, quando sentia o
aproximar-se da morte, em virtude da perseguição nazista. Do mesmo
modo, senti que dona Maria sempre vivera numa situação-limite, numa
corda bamba, entre a vida e a morte social. Por isso, a crença na pre-
sença divina era a forma pela qual mantinha o equilíbrio nessa traves-
sia de um “viver perigoso”, nas palavras de Riobaldo, personagem do
Grande sertão: veredas.

Quarta lição:
A divisão da comida

Na sequência das entrevistas, dirigi-me, juntamente com meus dois


auxiliares de pesquisa, à casa de dona Francisca. Também estava só.
Aliás, a presença de mulheres sozinhas era uma constante, dado o fato de
que a maioria dos homens já havia migrado para São Paulo (corte da cana,
colheita do café) ou outros estados. As mulheres dali eram conhecidas
como “viúvas de maridos vivos”. Era por volta de meio-dia. Logo depois
da apresentação, antes mesmo de iniciar a entrevista, ela me perguntou:
vocês já almoçaram? Diante da resposta (impensável) negativa, ela me
disse: vou lhes preparar algo para comer. Não reparem: só tenho man-
dioca no quintal. Ainda que quase lhe implorasse para não se incomodar,
pois voltaríamos à cidade em seguida e lá almoçaríamos, ela preparou a
mandioca para comermos.
Os ensinamentos advindos de várias pesquisas com camponeses,
sejam da sociologia ou da antropologia, revelam que a solidariedade

25
prevalecente nesse meio social é recortada pela solidariedade mecânica,
ao contrário daquela das sociedades complexas, onde predomina a soli-
dariedade orgânica. Essa lição, aprendi assim que iniciei meus estudos
de Ciências Sociais, ao tomar contato com a sociologia de Durkheim. Mas
não apenas isso. A comida preparada, resultante desse gesto de solida-
riedade a pessoas desconhecidas, num contexto de quase ausência abso-
luta de alimentos, revelou os sentimentos estruturantes da psicogênese
daquela mulher frutos do meio social ao qual pertencia. Solidariedade,
cooperação – palavras em desuso nas sociedades pós-modernas, domi-
nadas pelo egocentrismo e individualismo extremados – faziam parte das
práticas individuais e sociais e também da estruturação da personalidade
dos camponeses. Ali não vi nenhuma criança abandonada. Ainda que as
“fraquezas da terra e da gente” fossem reais e duras, o pouco ou o quase
nada era dividido, compartilhado.
Dona Francisca jamais soubera o que seu gesto provocou em mim.
A partir dele, passei a pertencer àquela “comunidade de destino”, segundo
as palavras de Ecléa Bosi. Ou seja, passei a enxergar o invisível, o não
dito, o escondido, sob o manto da migração. Em vez de ver somente o
trabalho, via os trabalhadores e trabalhadoras; em vez de refletir sobre a
migração e suas diferentes teorias, tentei compreender os migrantes em
suas buscas e esperanças. Tornei-me parceira de suas lutas por direi-
tos mínimos, como carteira assinada, transporte e moradia adequados,
salários melhores, e, mais ainda, por serem reconhecidos como traba-
lhadores, e não como “gente de fora”, como mercadoria barata, facilmen-
te descartada e substituível. Tornei-me uma pesquisadora interessada
não apenas na colheita de dados para futuras publicações, porém uma
pesquisadora imbuída da práxis, e do pensamento crítico que procura-
vam ir além dos muros do gueto universitário, buscando compreender
o mundo, mas também transformá-lo. Tentativa de pôr em prática uma
das teses centrais de Marx, na sua crítica ao pensamento dos filósofos
neo-hegelianos de seu tempo.
Doravante, além da parceria com a Pastoral dos Migrantes, já men-
cionada, participei de inúmeros eventos acadêmicos e não acadêmicos
sobre migrações e também de vários embates travados contra a superex-
ploração dos trabalhadores, mormente aqueles referentes às Audiências
Públicas, ocorridas em razão das mortes por exaustão no eito dos cana-
viais paulistas. Nesses encontros, novas parcerias foram se constituindo,
inter allia, com a Promotoria Pública de Campinas (PRT15) do estado de
São Paulo (SILVA, 2006).

26
Agnes Heller afirmava que o acaso tem uma grande importância
para a história. Defendia a tese de que os acontecimentos históricos não
seguem uma linha reta. Os casuais, os que não são previstos também
são importantes para mudar o curso da história. O almoço na casa de
dona Francisca teve esse papel para a história de minha vida enquanto
pesquisadora e também em minhas práticas cotidianas. Dividir, somar,
multiplicar foram verbos mais conjugados por mim, a partir de então.

Quinta lição:
As Andorinhas. Nem cá. Nem lá

Dona Eletriz. Ela foi a responsável pelo título do audiovisual,


As Andorinhas. Nem cá. Nem lá, produzido por esta pesquisa.3 As narra-
doras anteriores não eram migrantes. Dona Eletriz, sim. Por isso, tomo a
liberdade de reproduzir alguns trechos de sua narrativa, já publicados em
outra ocasião (SILVA; MELO, 2009), a fim de dar ao leitor a dimensão da
história de vida dessa mulher camponesa, migrante e cortadora de cana
em várias usinas de São Paulo.
Dona Eletriz nasceu no povoado de Cantagalo; trabalhou durante
14 anos nas usinas São Martinho, Santa Adélia, Balbo, Santa Eliza, São
Geraldo etc., em quase todas, segundo suas palavras. Em cada usina “tira-
va uma safra”. A última foi na Usina Santa Eliza. Quando criança migrou,
juntamente com a família, para Londrina (PR), onde o pai trabalhava na
fazenda Paracatu como parceiro nas lavouras de café. Após três anos nessa
fazenda, a família retornou para o Vale do Jequitinhonha. Continuaram
trabalhando “nas terras dos outros”. A impossibilidade de lograr o mínimo
para a sobrevivência fez com que a família migrasse definitivamente para
Barrinha, cidade-dormitório da região de Ribeirão Preto (SP).
Ela não acompanhou a família, pois resolvera casar-se com apenas
14 anos de idade. Continuou trabalhando no “terreno” do sogro. Depois de
seis anos de casada, foi abandonada pelo marido. O motivo, segundo ela,
deveu-se a uma longa doença causada por muita “fraqueza”. Ficou durante
nove meses internada num hospital em Teófilo Otoni (MG), em virtude de

3 -  As Andorinhas. Nem cá. Nem lá. Inicialmente, foi produzido um audiovisual, utilizando a tecnologia
do momento, sob a forma de slides, revelados em projetores. Em seguida, foi transformado em vídeo
(VHS) e atualmente foi reproduzido em DVD. Com o passar dos anos, esse material, que reúne mais
de 200 imagens, coletadas no Vale do Jequitinhonha e nos canaviais e cafezais de São Paulo, foi sendo
reproduzido segundo o avanço das técnicas visuais (SILVA, 2007).

27
problemas de “cabeça”, “de incosto”. “Eles me tiraram pra fora porque eu
tinha este ‘incosto’. Meu marido, com isto, desgostou e arrumou outra e foi
embora pra São Paulo.”
Após deixar o hospital, foi morar no “terreno” do sogro, onde seguiu
trabalhando para sustentar os filhos e ele próprio, já que se achava doente
e impossibilitado para o trabalho. Descreveu esse tempo como sendo mar-
cado por muitas dificuldades, em virtude de a terra ser fraca e, portanto,
incapaz de garantir as mínimas condições de reprodutividade do trabalho.
A fraqueza da terra se aliava a sua própria fraqueza, constituindo uma
simbiose de despossessão e miséria.

Tinha dia que eu amanhecia assim [...]. Não tinha nada pra
dar para os meus filhos. Eles saíam pelos vizinhos, chega-
vam com um punhadinho de coisas. Outros davam um prato
de comida pra eles comerem. Muitas vezes, pra não morrer
de fome, eu saía pedindo. Eu pedia mandioca, ralava, pra
poder fazer um mingau pra dar para os meus filhos come-
rem. Lá na roça, pegava folha de batata e dava pra eles.

Mediante tal situação, ela se “destinou mesmo a sair pra fora”. Foi,
portanto, o quadro de extrema miséria que a forçou ao destino da saída.
Apesar da saúde debilitada, de “possuir um corpo fraco” (doente), ela era o
único membro da família que poderia vender a força de trabalho nas usi-
nas. Para não deixar os filhos morrerem de fome, migrou durante 14 anos,
“de lá para cá, de cá para lá, igualzinho a uma andorinha que parte em
busca de pão para meus filhos”. Tirava os seis meses na safra e, na parada
(entressafra), voltava para casa.
Inquirida a respeito de não levar os filhos consigo, ela disse: “A senho-
ra sabe o que é? Porque meu sogro não dava os meus filhos para mim [...].
Ele falava assim: você pode ir, eu olho os filhos para você. Eu não fico sem
os seus filhos”. Essa parte do seu discurso revela aspectos importantes das
relações de gênero. Pode-se inferir, por um lado, que a impedindo de levar
os filhos, o sogro estava, na verdade, forçando-a a não deixá-lo só para
morrer de fome, já que estava velho, incapaz de migrar e doente. Ficando
com os filhos dela, ele garantiria sua sobrevivência com o dinheiro enviado
por ela durante a safra e com o próprio trabalho dela no período da “pa-
rada”, mediante as funções assumidas na roça de subsistência. Ademais,
é possível perceber que as razões da migração não podem ser adstritas às
condições objetivas (SILVA, 2005). Uma teia de relações criadas e recriadas

28
no cotidiano vai se consolidando, a partir da organização social de gênero
existente, que ratifica o poder masculino na pessoa do sogro, em virtude da
ausência do marido. É essa organização de gênero que define o seu destino.
Na realidade, para ela, teria sido mais fácil mudar-se definitivamente para
a região de Ribeirão Preto, uma vez que seus pais ali residiam. A guarda
forçada dos filhos remete aos valores presentes nas relações semióticas
entre os gêneros masculino e feminino.
Desta sorte, ser mãe não possui o mesmo significado de ser pai. Neste
caso, o pai abandonou os filhos, indo viver com outra mulher em São Paulo,
eximindo-se de qualquer função em relação à paternagem. Ao contrário, ela
assumiu a maternagem, apesar das condições impostas pelo sogro. Amor,
proteção e cuidado são elementos definidores do eu feminino, diferente-
mente do eu masculino, cujos referenciais são centrados num “ideal abs-
trato de perfeição”. O eu feminino está sempre referido ao ato de “cuidar de
outrem” (GILLIGAN, 1991). Ao representar-se como andorinha, que parte
para sustentar os filhos, enfeixa-se numa alegoria cujos elementos semi-
óticos são pautados não pelo biológico, mas pelo social. Ou seja, o ato de
criar, de cuidar dos filhos, de alimentar, é um ato social decorrente da
organização social de gênero, e não da fisiologia feminina.
Imbuída dessa representação, “destinou-se a sair” e foi forçada a vol-
tar sempre porque o sogro “não deu os filhos para ela”. O que houve foi
uma situação de apropriação dos seus filhos, única forma de garantir a sua
volta, e, ao mesmo tempo, garantir a sua própria sobrevivência. É no jogo
dessas relações que se entendem os diferentes papéis dos sujeitos desse
drama. Trata-se de papéis marcados por experiências diferenciadas. Expe-
riências definidas por um complexo de efeitos, hábitos, disposições, asso-
ciações e percepções significativas resultantes de uma interação semiótica
entre o eu e o mundo exterior (LAURETIS, 1987). Impregnada dessa experi-
ência de mulher e mãe, forçada a migrar, a deixar os filhos, o resultado foi
um sentimento de desmembramento.

Ah! O duro era separar de meus filhos. Eu sentia, eu sentia


[...]. Quando eu saía, que eu pegava a bolsa, os meus filhos
iam para o mato pra não ver eu sair. Aquilo para mim era uma
coisa muito triste na minha vida. Mas, eu pensava, eu tinha
que ir, meu Deus. Porque, senão, o que é que eu posso arru-
mar para os meus filhos? Eu ia assim, sempre com outra cole-
ga, com um parente meu, com um tio, tia, uma prima. Isto foi
umas três vezes. Depois eu aprendi a estrada e fui com Deus.

29
O (re)membramento só se tornava possível durante a “parada”, quando
regressava. Assim, viveu durante todo esse tempo presa pela rede do (des)
membramento-(re)membramento/safra-parada. Em cada um desses ciclos,
perdia, paulatinamente, o pouco que ainda restava de sua força de traba-
lho, até não possuir mais condições para migrar. “Quando eu chego aqui,
ninguém me conhece. Eu chego no couro e osso. Agora eu não aguento
mais. Meus nervos estão tudo esgotados. Não tenho mais forças.” As metá-
foras couro e osso representam não apenas o emagrecimento causado pelo
trabalho duro no corte da cana, como também o consumo do próprio corpo,
através de um processo definido pela superexploração da força de trabalho.
Perda das energias é o que restou para um corpo com nervos esgotados e
reduzido a couro e osso. Corpo diminuído. Corpo encolhido.
Todavia, foi graças a esse encolhimento, a essa morte paulatina
do corpo, que ela garantiu a vida dos filhos e do sogro. Para ela, se não
fosse São Paulo, seus filhos teriam morrido de fome. São Paulo configura-
-se como o lugar de trabalho, salário, portanto, o único meio de garantir
a sobrevivência. É um lugar supervalorizado, estando abaixo apenas de
Deus. No mundo dos homens, São Paulo não aparece como o lugar da
superexploração de sua força de trabalho, de sua redução a couro e osso.
Ao contrário. É para lá que Deus a destinou. São Paulo foi uma espécie
de travessia para chegar à outra margem do rio. Afirma no final do seu
depoimento que espera ter sorte no outro mundo, está esperando chegar o
outro mundo para Deus recebê-la, já que neste mundo ela somente sofreu
como Jesus. Como Ele, ela também carregou sua cruz.
O depoimento de dona Eletriz revela a antevisão de um destino social
de classe/gênero/etnia, em que, num primeiro momento, a ação do sujeito
é inoperante no sentido de conseguir alguma transformação. Porém, ela,
apesar de abandonada pelo marido, por ter “incosto”, ser “refém” do sogro,
portadora de “fraqueza”, logrou durante 14 anos sustentar seus filhos, além
do sogro, partindo e chegando, voando como uma andorinha, de lá para cá
e de cá para lá. A experiência, segundo Thompson (1981), é aquilo que cada
um traz, é, portanto, algo forjado durante a vida.

Os homens e mulheres também retornam como sujeitos,


dentro deste termo – não como sujeitos autônomos, “indi-
víduos livres”, mas como pessoas que experimentam suas
situações e relações produtivas determinadas como necessi-
dades e interesses e como antagonismos, e em seguida “tra-
tam” essa experiência em sua consciência e sua cultura [...]

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das mais complexas maneiras [...] e, em seguida (muitas ve-
zes, mas nem sempre, através das estruturas de classe re-
sultantes), agem, por sua vez, sobre a situação determinada
(THOMPSON, 1981, p.182).

Com dona Eletriz, que em 1988 possuía apenas 37 anos de idade


e estava consumida pelo trabalho nos canaviais paulistas, reduzida a
“couro e osso”, aprendi a lição do “viver perigoso”, segundo a expressão
de Riobaldo retratada no Grande sertão: veredas. Viver era sair do Vale,
ir para São Paulo e reduzir-se a “couro e osso”, a ficar com os “nervos
esgotados”. Só assim, lograria dar a vida aos seus filhos. Foi essa a forma
que encontrou para agir sobre as estruturas determinantes. Para ela, viver
nada mais foi do que a travessia do ir e vir em busca do mito do eterno
retorno à “terra da gente”.
A história de dona Eletriz, além de outras, me auxiliou a redefinir o
processo migratório. Até então, muitas leituras revelavam que a migração
para o corte de cana era masculina, havendo um recorte de gênero bastante
claro. Os homens partiam e as mulheres ficavam na unidade doméstica,
cuidando da roça e da casa. A migração de mulheres era ocultada pelas
análises dos pesquisadores. Ainda mais, considerando que ela era “fraca”
para um trabalho tão penoso. Seguramente, ela e tantas outras nunca
foram contabilizadas pelas estatísticas oficiais. Ademais, nunca apareceram
nos registros das empresas para as quais trabalharam, pois nunca foram
registradas. Para essas empresas, elas nunca existiram.
Hoje, passados 25 anos, deixo registrado um fragmento de sua histó-
ria, de sua labuta e teimosia para viver tão perigosamente.
Aprendi muitas outras lições com as camponesas do Vale. Essas que
aqui foram relatadas imprimiram marcas muito profundas em mim como
pesquisadora e como pessoa compromissada com a justiça social e os direi-
tos humanos. Oxalá, elas soubessem o quanto foram lembradas por mim.
O quanto delas falei, o quanto elas me inspiraram e, sobretudo, o quanto
suas experiências foram transmitidas ao longo desses últimos 25 anos du-
rante minhas tantas andanças. Experiências que equivalem a tesouros na
expressão de W. Benjamin (1987).
O ato de narrar revela a tecelagem da experiência, tal como numa ofi-
cina. Oficina é o lugar de transformação, lugar onde se pratica o ofício, isto
é, uma ocupação permanente de ordem intelectual ou não a qual envolve
certos deveres ou encargos ou um pendor natural. O sociólogo norte-ame-
ricano W. Mills, na década de 1950, reportava-se à ciência social como um

31
ofício, como algo que faz parte da vida, e não simplesmente como tarefa a
ser cumprida em virtude das exigências das instituições e agências finan-
ciadoras de pesquisa por meio de relatórios e publicações. Mills se referia
ao cientista social como artesão intelectual.
O ofício do artesão pressupõe a imersão na totalidade do processo de
trabalho. Concepção, escolha do material a ser trabalhado, das ferramentas
são indícios necessários do savoir faire, isto é, do métier do artesão, cujo
produto é pautado pela marca de seu criador e definido por sua qualidade.
Não se trata, portanto, de um trabalho alienado, fragmentado, medido pelo
quantitativo e pelas marcas da impessoalidade e generalidade. Nesse sen-
tido, há uma verdadeira fusão entre vida pessoal e intelectual, quando se
trata do ofício, particularmente do artesanato científico.
Tal como as artesãs da vida do Vale do Jequitinhonha, meu intento
nesta narrativa foi o de seguir seus passos na busca do farol luminoso da
justiça social.

Referências

BENJAMIN, W. O narrador. In: BENJAMIN, W. Magia e técnica. Arte e


política. Obras escolhidas. São Paulo: Brasiliense, 1987. v. 1, p. 197-221.

GILLIGAN, C. Uma voz diferente. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos,


1991.

LAURETIS, T. Tecnologies of gender. Bloomington: Indiana University


Press, 1987.

MAUSS, M. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, [s./d.].

SILVA, M. A. M. O rosto feminino da migração sazonal. Travessia, CEM,


ano IX, n. 26, p. 7-10, set./dez. 1996.

SILVA, M. A. M. Errantes do fim do século. São Paulo: Edunesp, 1999.

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32
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D. P.; MEDEIROS, L. S. (Org.). Mulheres camponesas: trabalho produtivo
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SILVA, M. A. M.; MENEZES, M. A. Migrações rurais no Brasil: velhas e no-


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SILVA, M. A. M.; MELO, B. M. Partir e ficar. Dois mundos unidos pela traje-
tória dos migrantes. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (RE-
MHU), ano XVII, n. 33, p. 129-153, jul./dez. 2009. Disponível em: <http://
redecemis.phlnet.com.br>. Acesso em: 6 abr. 2013.

THOMPSON, E. P. A miséria da teoria. Rio de Janeiro: Zahar, 1981.

Maria Aparecida de Moraes Silva é professora livre-docente pela


Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho (Unesp).
Atualmente, é professora visitante do Programa de Pós-graduação
em Sociologia da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar). É
pesquisadora do CNPq. Publicou vários livros e artigos relacionados ao
tema do trabalho rural, sob as óticas de gênero, classe e raça/etnia,
além da migração.

33
Mãe e filho na produção de garapa - Minas Novas (MG), 1989
Foto: Alain Brugier

Camponesa e oleira - Minas Novas (MG), 1989


Foto: Alain Brugier
Mulher na feira - Minas Novas (MG), 1989
Foto: Alain Brugier
Maria Eliete Rodrigues Gomes - Tamanduá, Jenipapo de Minas.
Foto: Lori Figueiró
Mulher e trabalho
na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha1
Flávia Maria Galizoni
Eduardo Magalhães Ribeiro

A mulher desde há muito trabalha na agricultura, entretanto, sua


identidade quase sempre foi definida por suas atividades na esfera do-
méstica e estas, parte das vezes, não foram consideradas trabalho. Essa
situação resultou em certa invisibilidade do trabalho feminino, no não
reconhecimento pleno da trabalhadora rural, dificultando o seu acesso
aos direitos previstos em lei e às políticas de desenvolvimento.
O objetivo deste artigo é analisar a importância da participação
feminina nas atividades produtivas em uma região de predominância de
unidades familiares – o Alto Jequitinhonha, no Nordeste de Minas Gerais
– e analisar a representação do trabalho da mulher para os membros da
família em uma situação de forte migração sazonal masculina.
É fruto de pesquisas de campo realizadas por um período que se es-
tendeu entre 2000 e 2007. Na primeira etapa, foram realizados contatos
e entrevistas com os Sindicatos de Trabalhadores Rurais dos municípios,
entidades civis, religiosas, associações e movimentos sociais da região.
Nessa fase foram levantados, definidos e confirmados os locais do estudo
de campo. A segunda etapa compreendeu uma etnografia propriamente
dita. Foi realizada buscando uma observação participante 2 com esta-
da prolongada em três comunidades, escolhidas mediante os seguintes
critérios: distribuição nas calhas do Jequitinhonha e seus principais
afluentes, período histórico de ocupação, diversidade ambiental, densi-
dade demográfica, migrações e disponibilidade de terras.
O artigo é composto por três partes: a primeira faz uma breve revi-
são bibliográfica sobre o trabalho feminino no rural; a segunda discorre
sobre o sistema de lavoura das famílias agricultoras no Alto Jequitinho-
nha; e a última analisa o trabalho feminino e seus espaços na agricul-
tura familiar dessa região.

1 -   Uma primeira versão deste artigo foi publicada nos Anais da Sociedade Brasileira de Economia,
Administração e Sociologia Rural, 2004.
2 -   Sobre método de observação participante, consultar Malinowski (1978).

37
Agricultura familiar e o espaço do trabalho feminino

Um dos poucos traços de consenso na definição teórica da agricul-


tura familiar é o uso muito próprio que ela faz da mão de obra familiar e a
sua flexibilidade ao combiná-la com recursos ao seu dispor (LAMARCHE,
1993; PLOEG, 2008). O total de trabalho de uma família é, quase sem-
pre, a soma de várias jornadas: masculina, feminina, infantil e de idosos.
Desta forma, não é explicativo, do ponto de vista da organização do traba-
lho, centrar a questão somente na figura masculina; é necessário entender
a combinação de jornadas de trabalho de todos os membros da família
para poder avaliar o produto final.
Outro aspecto que especifica a agricultura familiar é que a família é ao
mesmo tempo unidade de produção e consumo (CHAYANOV, 1974); e este
fato é importante para podermos entender o significado do trabalho femini-
no na família de agricultores. Heredia (1979), pesquisando agricultores da
Zona da Mata pernambucana, observou que todos os membros da família
desenvolviam alguma espécie de atividade agrícola, porém os agriculto-
res quase sempre afirmavam que mulheres e crianças não trabalhavam.
Debruçando-se sobre essa aparente contradição, a autora se deparou então
com a necessidade de definir a própria concepção de trabalho; percebeu
que não são todas as atividades que eram qualificadas pelas famílias como
trabalho: somente aquelas desenvolvidas no roçado recebiam essa qualifi-
cação. O roçado, espaço de domínio masculino, era o local da produção de
bens essenciais para o consumo familiar; a casa, espaço de domínio feminino,
era o local onde era organizada a distribuição dos produtos do roçado para
uso da família; apesar do reconhecimento do esforço físico necessário para
desempenhá-las, as atividades domésticas não eram consideradas trabalho.
Isso porque, na concepção dos agricultores, elas só eram possíveis por
causa do trabalho anterior no roçado. O consumo era assim subordinado à
produção. Em consequência dessa hierarquia, considerava-se trabalho as
atividades desenvolvidas na esfera produtiva, já as múltiplas tarefas desen-
volvidas no espaço do consumo da família não eram consideradas trabalho.
Heredia (1979) concluiu então que a oposição simbólica que havia
entre roçado e casa era que definia o que era considerado trabalho, e não
trabalho delimitando os espaços e papéis masculinos e femininos; mesmo
quando as mulheres desempenhavam atividades produtivas no roçado, seu
trabalho era avaliado como “ajuda” ao trabalho do homem.
Garcia Jr. (1993) apontou que a tarefa de plantar desempenhada
pelas mulheres no roçado era considerada trabalho se comparada com

38
suas atividades domésticas, porém, se comparado com as atividades mas-
culinas no roçado, plantar não era considerado trabalho. Neste sentido, a
qualificação do trabalho feminino era relacional, recebendo, muitas vezes,
uma dupla avaliação.
O significado de “ajuda” para o trabalho feminino também foi en-
contrado por Paulilo (1987) em comunidades rurais do Brejo Paraibano.
Em estudo sobre trabalho e relação de gênero na agricultura nessa região,
revelou que o trabalho era qualificado e remunerado a partir de quem o
desempenhava: “leve” se fossem mulheres ou crianças, “pesado” se fossem
homens. E essa qualificação pouco se relacionava com as características da
atividade desenvolvida, uma podia ser tão árdua e cansativa quanto a outra.
A diferença se expressava muito mais no campo da representação simbólica
do que no esforço desprendido e na tarefa desenvolvida.
Ribeiro (1993), pesquisando famílias agricultoras na Zona da Mata
mineira, também chegou a uma conclusão parecida; de acordo com ele, os
homens construíam uma parte de seu poder no trabalho. As tarefas mas-
culinas possuíam maior continuidade, podiam ser expressas num produto
final – construir uma cerca ou roçar um pasto, por exemplo –, e quase
sempre apresentavam equivalente monetário; já as atividades designadas
como femininas eram compostas de uma série de tarefas descontínuas:
fazer comida, limpar a casa, cuidar das criações pequenas, lavar roupa etc.
gastavam uma grande quantidade de esforços esparramados, que tinham
pouco equivalente em dinheiro.
Woortmann (1992) chamou a atenção para um fato importante
nos estudos sobre trabalho feminino na agricultura, indicando que, tal-
vez, houvesse um problema na formulação de questões de pesquisa: o(a)
pesquisador(a) reproduzia um “discurso público” do grupo pesquisado que
privilegiava o domínio masculino, deixando à margem o “discurso privado”
em que o domínio masculino interagia com o domínio feminino, estabele-
cendo relações de gênero e, às vezes, complementaridade entre os gêneros.3
Essa hierarquia simbólica na construção de gênero e na represen-
tação do trabalho feminino e masculino no mundo do trabalho rural se
expressou também nas construções de dados sobre esse universo. Aguiar
(1984) indicou a dificuldade estatística de captar a participação do traba-
lho feminino na agricultura. Segundo a autora, havia um vácuo de teo-
rias que concebessem o trabalho feminino realizado no espaço doméstico

3 -   A autora afirma que: “O próprio discurso acadêmico, pois, relega ao silêncio o ponto de vista femi-
nino, mesmo quando as atividades das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo com
um todo” (WOORTMANN, 1992, p. 42).

39
como atividade produtiva. O conceito de chefe de domicílio escondia e
diluía as atividades femininas.
Os vários autores supracitados indicaram que divisão social e sexual
do trabalho está na raiz dos processos de diferenciação de gênero nas famí-
lias de agricultores. Assim, cabe entender as relações de trabalho tanto no
que diz respeito ao espaço interno da família – para dessa forma compre-
ender o papel da mulher e o do homem – quanto compreender o significado
que mulheres, homens e a sociedade envolvente atribuem ao que é trabalho
e a relação de poder que constroem a partir dessa definição.

Lavoura e trabalho no Alto Jequitinhonha

A calha alta do rio Jequitinhonha4 está localizada no Nordeste de


Minas Gerais. É uma região marcada pela unidade familiar na agricul-
tura – aproximadamente 80% dos estabelecimentos rurais –, sistema de
lavoura de pousio, forte migração sazonal, por uma produção de alimentos
centrada no autoconsumo e em circuitos curtos de comercialização dos
produtos agrícolas. Os terrenos familiares são pequenos, indicando uma
intensa partilha entre herdeiros.
O Alto Jequitinhonha tem um relevo muito específico, composto por
duas gradações: grotas e chapadas. As grotas são vales de áreas úmidas
propícias para a lavoura, onde historicamente as famílias de lavradores se
assentaram. Chapadas são planaltos pouco férteis, com escassas fontes
de água, e quase sempre receberam apropriação comunitária por famílias
e comunidades que elaboraram formas muito refinadas de gestão de seus
recursos da natureza. Apesar de, nas últimas décadas, esse processo de
organização ter sido fortemente abalado pelo processo de expropriação da
terra conduzido por empresas e governos, a combinação entre chapada
e grota é um referencial importante para compreender como famílias de
lavradores construíram suas unidades produtivas.5
O clima é caracterizado por duas estações muito marcadas designadas
pelas famílias de agricultores de seca – o período da estiagem – e águas, que
é a época das chuvas. Cada uma dessas épocas está vinculada a atividades

4 -   A área designada neste artigo por Alto Jequitinhonha corresponde à parte do Vale acima da foz
do rio Araçuaí e do rio Itacambiruçu, refere-se mais precisamente aos municípios de Turmalina,
Chapada do Norte, Berilo, Minas Novas, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Botumirim,
Cristália e Grão Mogol.
5 -   Sobre a tomada de terras no Alto Jequitinhonha ver Calixto (2006) e Ribeiro e Galizoni (2007).

40
produtivas muito específicas, grosso modo: lavoura nas águas e beneficiamen-
to da produção na seca. Nas águas a lavoura é voltada mais para as culturas
anuais: milho, feijão, mandioca, cana e o andu. Quando termina o tratamen-
to desses plantios – entre os meses de março e abril –, as famílias passam
a investir mais na produção de horta e no beneficiamento de produtos da
indústria doméstica rural, como rapadura, farinhas de milho e de mandioca.
Na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha o sujeito é quase sem-
pre coletivo: a família, no interior da qual cada membro responde por
uma tarefa. Ao final, o conjunto de produtos e serviços é o resultado da
soma do esforço combinado que envolveu jornadas de homens, mulheres,
crianças e idosos.6
Para compreender a participação do trabalho feminino na lavoura da fa-
mília foi preciso compreender os trabalhos necessários para formar as roças.7
Nas etapas das lavouras o trabalho feminino estava distribuído ge-
ralmente da seguinte forma:

• derrubada e roça: era um serviço masculino, que a mulher fazia


com restrições se fosse viúva, separada, sozinha ou se não tives-
se filhos adultos;
• queimada: colocar fogo é uma tarefa masculina, mas que a mulher
também podia desempenhar; já as queimadas da palhada (restos
da roça do ano anterior), a mulher podia fazer sem problema, sen-
do inclusive uma tarefa dividida com os homens;
• destoca: podia ser realizada pela mulher, mas normalmente essa
atividade é classificada como masculina;
• plantio: tarefa masculina e feminina, trabalho realizado em conjunto;
• capina: eram feitas duas capinas, ambas realizadas em conjunto
por homens e mulheres;
• colheita: tarefa feminina.

Pôde-se observar que as mulheres participavam ativamente do tra-


balho na lavoura e detinham grande conhecimento sobre as práticas pro-
dutivas. A forte migração sazonal masculina existente na região interferia

6 -   Sobre a dinâmica familiar camponesa e suas especificidade, há uma longa e diversa bibliografia.
Ver principalmente: Chayanov (1974), Kautsky (1972), Garcia Jr., Heredia, Van der Ploeg (2008); sobre
este tema no Jequitinhonha, consultar Ribeiro e Galizoni (2000), Noronha (2003); Galizoni (2007) e
Ribeiro (2007).
7 -   O trabalho feminino no Alto Jequitinhonha aparece em uma perspectiva distinta da encontrada em
boa parte da literatura sobre campesinato. Moura (1978), Woortmann (1995), Garcia Jr. (1983) e Seyfert
(1985) encontraram realidades diferentes.

41
nas tarefas de derrubar, roçar e colocar fogo; as mulheres arrumavam
camarada (diarista) para realizar esses trabalhos quando os homens
migravam, ou então elas mesmas faziam o serviço. Boa parte das vezes,
a concretização dessas tarefas ocorria com a combinação dessas duas
opções, porque não era sempre que a família tinha recurso para pagar
camarada, assim a mulher assumia a direção e efetivação desse traba-
lho. Também a colheita tornou-se uma atividade quase que exclusiva-
mente feminina, porque muitas vezes efetuada no período em que parte
dos homens viaja para o trabalho temporário em outras regiões de Minas
Gerais e do país.
As mulheres casadas e com filhos praticamente não migravam e as-
sumiam maiores responsabilidades no cuidado da lavoura, das criações
e na manutenção da família. Uma questão que se colocou era se a valori-
zação do trabalho feminino e sua atuação em áreas consideradas de pre-
ponderância masculina representavam alterações nas relações de poder
entre homens e mulheres.
Analisando a migração temporária de trabalhadores do Jequitinhonha,
Martins (1986) afirma que ela só era possível com o sobretrabalho de mu-
lheres e crianças que permanecem na terra realizando as atividades neces-
sárias para manutenção da lavoura familiar. Eigenheer (1980) apontou que,
em determinadas situações, quando havia redefinições das relações locais
de trabalho, também podiam ocorrer redefinições da divisão de trabalho no
interior da família e no significado do papel social entre homens e mulheres.

A dubiedade do trabalho feminino

A rotina de trabalho das mulheres lavradoras no Alto Jequitinhonha


era uma “lida sem fim”. Começava diariamente bem cedinho, entre quatro
e meia e cinco horas da manhã, buscando água para o consumo diário da
família, percorrendo, muitas vezes, uma grande distância para se abastecer;
segundo as lavradoras: “Água buscada não há o tanto que chegue”. Depois
vinham os outros afazeres: fazer café, arrumar a casa, molhar a horta, lavar
roupa, cuidar das criações pequenas, lavar as louças, fazer o almoço e levá-
-lo para o marido e filhos que saíram cedo para o trabalho da roça. Levava
o almoço e ficava para trabalhar a tarde toda na lavoura, enfrentando o
mesmo serviço que os homens. Era também a mulher quem buscava lenha
para abastecer a família durante a semana.

42
É importante observar que, quando havia filhas adultas, algumas au-
xiliavam a mãe e outras trabalhavam junto com o pai e os irmãos na lavou-
ra. Este foi o caso de Eva, lavradora do município de Turmalina. Quando
solteira, ela trabalhava direto com o pai na lavoura, e sua irmã auxiliava a
mãe nos afazeres em casa. Eva afirmou que cuidar somente da lavoura é um
serviço melhor, porque era um serviço só, concentrado, com começo, meio
e fim, do qual se via o resultado final materializado; enquanto o trabalho na
casa era “um tanto de serviços picados”, descontínuos: serviços miúdos que,
somados, representam uma gama imensa de atividades.
O relato de Josina, a seguir, também é esclarecedor do espaço concre-
to do trabalho da mulher na jornada da família:

Quando eu estava com a idade de dez anos, o meu pai


morreu, nós ficamos. Eu era mais sofredora, porque tinha
que ajudar minha mãe a trabalhar para criar os outros me-
nininhos que ficaram. Eu não era a mais velha, a que era
mais velha do que eu ficava dentro de casa e eu trabalhava
mais minha mãe. Era tanto, que minha mãe me levava para
trabalhar junto com ela para os outros; chegava lá, se fosse
bastante camarada na roça, eu não aguentava trabalhar no
meio deles, eles me punham para carregar água, e eu car-
regava água; quando chegava com a vasilha de água era
a continha deles beber e eu voltava de novo, para buscar
mais. Quando eu fui apanhando idade, ficando mocinha,
eu sabia fazer todo serviço, eu sabia carpir, sabia plantar,
sabia qualquer serviço... Roçava, apanhava coivara, depois
que queimava, qualquer serviço que me pusessem: tocar
roda para fazer farinha, mexer com gado... Minha vida é
uma lida sem fim, eu sempre trabalhei. (Josina, lavradora,
município de Cristália)

Na região pesquisada, quando alguém, homem ou mulher, queria


elogiar o ânimo de trabalhar de alguma mulher, afirmava: “Fulana é mui-
to boa de serviço, roça igual homem”. Seu João, lavrador do município de
Minas Novas, ao se referir ao tanto que sua mulher trabalhava, revelou:
“Ai de mim se não fosse ela, sou fraco, não tenho dinheiro para pagar cama-
rada”. Havia o reconhecimento do trabalho feminino, ou seja, o trabalho
da mulher na roça era aceito como trabalho; mas como ele era avaliado

43
pelos homens? Pela afirmação citada, percebe-se que como auxiliar ao do
homem, substituindo o camarada, ou em casos extremos igualando-se
aos homens, mas não como um trabalho independente. E as mulheres?
Como avaliam seus esforços na lavoura? Elas construíam uma identidade
mais positiva de seu trabalho na esfera familiar, mas muitas vezes encon-
traram dificuldades de afirmá-la externamente, como em casos de apo-
sentadoria rural. Muitas lavradoras, ao encaminharem seus processos de
aposentadoria, declaravam como profissão “doméstica”, e por isso tiveram
dificuldades de acesso ao benefício, o que demandou várias campanhas
dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região para esclarecimento e
sensibilização das mulheres sobre seus direitos.
Havia uma avaliação contraditória do trabalho feminino na lavoura do
Alto Jequitinhonha. Por um lado era valorizado tanto na perspectiva dos
homens quanto das mulheres, considerado importante. Os homens afirma-
vam que preferiam se casar na região porque mulheres de outros lugares
não se adaptariam ao ritmo de trabalho de lá. Segundo um lavrador do
município de Chapada do Norte:

As mulheres daqui fazem de tudo um pouco, não mexem só


com uma coisa: mexem com criação, fazem cerca se precisar,
buscam água, areiam panela... O homem sai para trabalhar
e a mulher sabe fazer os serviços.

Era comum as mulheres afirmarem, na presença de seus mari-


dos, que “no serviço da lavoura nenhum homem me deixa para trás”; e os
homens confirmavam que o serviço da mulher é muito mais fatigante:
“quando pesa pro homem, pra mulher é muito mais pesado”. Porque, além
das atividades domésticas, a mulher trabalhava muito na roça, partici-
pando praticamente de todas as etapas. Por outro lado, isso representava
uma sobrecarga de atividades para elas, que tinham de realizar tarefas
domésticas e tarefas na lavoura; neste sentido, as mulheres unificavam
em si mesmas a dicotomia casa e roça.
Não se percebeu explicitamente a clássica divisão e oposição entre
trabalho masculino e feminino no que diz respeito ao trabalho na lavoura
e até mesmo com o gado. Inclusive, atividades consideradas em outras
regiões do estado de Minas Gerais como estritamente masculinas eram
realizadas por mulheres no Alto Jequitinhonha: lidar com o gado, cam-
pear, roçar o mato e até mesmo fazer cerca. Em quase todos os relatos o

44
trabalho na roça parece indistinto entre homens e mulheres, com exceção
da destoca, no trabalho com foice e, em alguns casos, no colocar fogo.
Mas, mesmo esses serviços, quando era preciso, a mulher fazia – “a minha
filha também destoca” foi uma afirmação feita por vários lavradores.
O reconhecimento do trabalho feminino na lavoura não implicava
mudanças significativas nas relações entre homens e mulheres. Isso por-
que, simbolicamente e na prática, o trabalho masculino gerava produtos e
bens trocáveis e socializáveis, e o trabalho feminino, por ser fragmentado
e descontínuo – e por isso mesmo mais intenso –, gerava menos produ-
tos por unidade trabalhada (RIBEIRO, 1993). A qualificação do trabalho
feminino ou masculino não se fazia pelo tanto de esforço desprendido,
e sim pelo produto final. A identidade feminina ou masculina não era
construída somente pelo tipo de trabalho realizado, muitas vezes os traba-
lhos eram qualificados posteriormente, se fossem realizados por homens
ou mulheres, como indicou Paulilo (1987). Dessa forma, o trabalho femi-
nino na lavoura era reconhecido e considerado importante, mas, quando
confrontado com o trabalho temporário masculino realizado nas regiões
canavieiras do interior paulista, era considerado mais “leve”, porque reali-
zado em condições melhores que este. Dessa forma, havia uma redefinição
do trabalho feminino na unidade familiar, mas também havia uma res-
significação do trabalho masculino que enfrentava a dureza de trabalhar
fora, sem o conforto da família.
Apesar de as mulheres trabalharem na lavoura familiar, os agricul-
tores afirmavam que o “sustento vem de São Paulo”, ou seja, do trabalho
masculino realizado em outras regiões. Nesse sentido, o trabalho na lavoura
se tornava simbolicamente acessório na manutenção da família, assim como
o trabalho das mulheres. Apesar das reorganizações na divisão de traba-
lho familiar, o trabalho masculino era considerado preponderante. Quando
o homem não migrava ou, no correr do ciclo familiar, deixava de migrar,
seu trabalho era reavaliado na composição do trabalho familiar e, muitas
vezes, nessas situações, os trabalhos masculino e feminino eram significa-
dos como complementares, mas coordenados pelo homem.
A avaliação do trabalho feminino pelos membros da família lavra-
dora, no Alto Jequitinhonha, contava com uma dubiedade muito grande.
Como a mulher participava tanto das atividades domésticas quanto das
atividades produtivas na roça, sua jornada de trabalho combinava essas
duas esferas. O trabalho feminino continha aspectos contraditórios por-
que em parte era representado como cativo e em parte como espaço de

45
afirmação da identidade feminina. Cativo porque era sempre um trabalho
subordinado à família e ao marido. E família, nesse contexto, significava
um trabalhador coletivo. Por mais que a mulher trabalhasse, realizava
suas atividades num espaço simbólico e cultural marcado, onde seu papel
também era demarcado. Bison (1995), analisando mulheres migrantes do
Jequitinhonha em São Paulo, demonstrou claramente a força das relações
culturais: apesar de associarem o Jequitinhonha a trabalho intenso e
subordinação irrestrita à família, essas mulheres dificilmente rompiam
com seu lugar de origem, enviando mensalmente parte significativa de
seus salários, e quase sempre acalentavam a vontade de retornar.
O trabalho na lavoura representava a afirmação de uma identidade
positiva para as mulheres, abrindo um leque de atuação e participa-
ção públicas para elas: elas também trabalhavam e por isso podiam se
apropriar de alguns direitos construídos nessa sociedade por meio do
trabalho. Por exemplo, o acesso à terra. No Alto Jequitinhonha, posse
e domínio eram legitimados principalmente pelo trabalho que a família
realizava na terra. Como o direito sobre a terra era construído por meio
do trabalho, a mulher tinha possibilidade de ter acesso à terra porque
depositava trabalho sobre ela, realizando praticamente os mesmos servi-
ços que os homens. Mas, se a mulher no Alto Jequitinhonha tinha pos-
sibilidade de acesso à terra, este não era sem conflito. E a mulher, em
casos de demanda, levava desvantagens; a não ser quando era casada,
ou se, viúva ou solteira, tivesse filhos maiores que garantissem concre-
tamente o espaço de trabalho.
As mulheres lavradoras do Alto Jequitinhonha criaram, além de uma
trajetória constante de trabalho, possibilidades de organização. No período
pesquisado, boa parte dos sindicalizados em dia nos Sindicatos de Traba-
lhadores Rurais dessa região eram mulheres; a presença delas em asso-
ciações e outras organizações voltadas para a saúde, água e educação era
preponderante, inclusive ocupando cargos diretivos, antes mesmo que as
cotas femininas se tornassem praxe. Eram as mulheres que, permanecendo
na terra, reafirmavam as urdiduras familiares e mantinham canais impor-
tantes de organização comunitária.
O trabalho feminino na agricultura camponesa do Alto Jequitinhonha
estava envolvido em uma trama social complexa: impossível de ser abor-
dado por um só ângulo, impossível de ser analisado em separado, sem
compreender as relações familiares de produção. As lavradoras são sujeitos
singulares, que trazem em suas vidas e corpos a marca do trabalho.

46
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ANTROPOLÓGICO/91. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1993.

Flávia Maria Galizoni é antropóloga, doutora em Ciências Sociais,


professora adjunta do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG, pesqui-
sadora do Núcleo de Pesquisa e Apoio à Agricultura Familiar.

Eduardo Magalhães Ribeiro é economista, doutor em História, profes-


sor associado do Instituto de Ciências Agrárias da UFMG; pesquisador
CNPq, bolsista Fapemig, pesquisador do Núcleo de Pesquisa e Apoio à
Agricultura Familiar.

49
Antônio Raimundo Costa - Jenipapo de Minas (MG)
Foto: Lorí Figueiró
O processo de mecanização da agroindústria canavieira:
histórico, motivações e impactos sobre os
trabalhadores temporários
Juliana Biondi Guanais

O presente trabalho tem dois objetivos principais: analisar o


processo de migração temporária para as usinas de açúcar e álcool
por parte de trabalhadores rurais advindos, sobretudo, do Vale do
Jequitinhonha (Norte de Minas Gerais) e dos estados do Nordeste do
país; e analisar o “atual” processo de mecanização das lavouras de cana-
-de-açúcar, que pode ser visto como um dos resultados do processo de
reestruturação produtiva pelo qual passa o setor sucroalcooleiro desde
meados da década de 1980.

Alguns aspectos das migrações temporárias:


em busca do assalariamento na agroindústria canavieira

Antes de dar início à análise, faz-se importante abordar – ainda que de


maneira breve e sintética – quem são essas pessoas que buscam trabalho
nas usinas de cana-de-açúcar, de onde partem, para onde vão e os motivos
que impulsionam esses deslocamentos.
Em geral, os cortadores de cana são migrantes de outras regiões do país
– principalmente do Nordeste e do Norte de Minas Gerais – que vão trabalhar
para as usinas de açúcar e álcool localizadas, sobretudo, no interior do
estado de São Paulo.1 Na grande maioria dos casos, esses trabalhadores são
do sexo masculino e jovens, e acabam por se deslocar quase todos os anos
a partir do mês de março (ou abril, dependendo da data do início da safra)
para as cidades onde trabalharão. Os migrantes permanecem, em média,
de oito a dez meses nessas localidades, residindo nos alojamentos coletivos
das usinas, em pensões das “cidades-dormitórios”, ou em casas alugadas.
Eles retornam para sua terra natal somente no fim de novembro ou
dezembro, após o término da safra.2

1 -  É importante assinalar que, com a atual expansão dessas usinas, estas vêm se alocando em outras
regiões, que não aquelas tradicionalmente utilizadas, como Mato Grosso, Rio de Janeiro, Goiás e Sul de
Minas Gerais, o que acaba por alterar a cartografia dos movimentos migratórios.
2 -  A temática da migração foi bastante trabalhada em SILVA (1999) e MENEZES (2002).

51
Geralmente, essa força de trabalho é recrutada pelos “gatos”, os
responsáveis pela contratação dos trabalhadores em suas próprias regiões
de origem. Encontrando-se destituídos de meios reais de sobrevivência
em sua terra natal, e muitas vezes sem qualquer tipo de alternativa, os
trabalhadores veem-se obrigados a aceitar o trabalho no corte da cana
nas diferentes usinas do país por ser essa uma atividade que acaba por
assegurar sua renda e, consequentemente, a sobrevivência de si e de
suas famílias.
Em seus estudos sobre as migrações do campo para a cidade, Eunice
Durham (1984; 2004) pondera que tais deslocamentos não decorrem, em
geral, de uma situação anormal de fome ou miséria; ao contrário, para a
autora a migração aparece como uma resposta a condições normais de
existência. “O trabalhador abandona a zona rural quando percebe que
‘não pode melhorar de vida’, isto é, que a sua miséria é uma condição
permanente. Isto não quer dizer que calamidades naturais ou acidentes
não sejam fatores que precipitem a emigração” (DURHAM, 2004, p. 170).
Ou seja, na opinião da autora, na maioria das vezes, a migração é
impulsionada por uma situação desfavorável, que é vista como permanente
pelos próprios trabalhadores. Nas palavras da autora,

Os migrantes explicam sempre a migração como uma


tentativa de “melhorar de vida” [...] Limitam-se em geral
a dizer que migraram porque “a vida lá era difícil”, “não
tinha emprego”, “pagavam pouco” [...] a emigração é
provocada por tensões que se manifestam no campo
econômico e se traduzem em salários baixos, rendimento
insuficiente da produção agrícola e falta de emprego
remunerado como alternativa [...] O trabalhador abandona
a zona rural ou os pequenos centros urbanos quando
percebe que “não pode melhorar de vida”, isto é, que sua
miséria é uma condição permanente [...] A esses aspectos
negativos se opõe a expectativa positiva das possibilidades
que a vida urbana na agricultura “do sul” poderá propiciar
(DURHAM, 2004, p. 188).

A realidade específica dos trabalhadores rurais que buscam o


assalariamento temporário nas usinas de açúcar e álcool também pode ser
lida à luz das reflexões de Durham. Da mesma forma que os trabalhadores
entrevistados pela autora nas décadas de 1960 e 1970, a maior parte dos

52
cortadores de cana dos dias de hoje também deixou sua região de origem em
busca de emprego, emprego esse que muito dificilmente é encontrado em sua
terra natal. Sem trabalho e sem remuneração, muitos trabalhadores buscam
serviço em outras regiões do país, e o trabalho no corte de cana aparece como
uma das alternativas. Assim, diante da necessidade de viver da venda de sua
força de trabalho, os trabalhadores rurais buscam o “mundo do emprego”,
que não está em seu universo local, mas em outra região. A alternativa para
tais pessoas é migrar, é “ir para o Sul” (GARCIA Jr., 1989, p. 202).3
Em seu estudo, Garcia Jr. (1989) demonstrou que o assalariamento
temporário nos centros urbanos (em geral no Sudeste do país) é visto
pelos próprios trabalhadores rurais como uma estratégia de reprodução
de sua condição camponesa. “Ir para o Sul”, como dizem os trabalhadores,
tornou-se uma possibilidade para eles desde o final dos anos 1940, uma
vez que o deslocamento dos homens da unidade doméstica permitia
reequilibrar o orçamento familiar em ano de “inverno ruim” (variações
adversas no clima e na produtividade do ciclo agrícola) ou quando
houvesse necessidade maior de dinheiro. “O trabalho remunerado, no Sul,
dos homens da unidade doméstica permitia obter a renda necessária para
fornecer a feira4 dos membros da unidade doméstica que permaneciam no
Norte” (GARCIA Jr., 1989, p. 151).
Além de significar uma remuneração regular que não depende das
flutuações do ciclo agrícola, para esses homens, o emprego no “Sul”
representa uma renda monetária superior aos rendimentos obtidos na
agricultura do “Norte” e, por isso, é muito valorizado. Assim, tanto para

3 -   É importante dizer que há todo um debate em torno dos sentidos e dos significados da
migração, o qual infelizmente não poderá ser aqui reproduzido em função dos limites do presente
artigo. Entretanto, faz-se necessário pelo menos delinear alguns aspectos deste debate. Para
alguns pesquisadores (LOPES, 1971; SINGER, 1973; DURHAM, 1984), as migrações se resumem
à transferência de força de trabalho entre as regiões menos desenvolvidas – expulsoras – e as mais
desenvolvidas, onde atuam fatores de atração; ou entre setores arcaicos e modernos, de forma que
os agentes sociais aparecem como seres passivos de um processo determinado exteriormente pela
estrutura social, ou pelo processo de acumulação capitalista. Já para outros pesquisadores (GARCIA
Jr., 1989; MENEZES, 1985; 2002), as migrações não podem ser vistas somente como resultado
da inviabilidade das condições de existência dos camponeses, já que são parte integrante de suas
próprias práticas de reprodução. De acordo com essa segunda interpretação, os migrantes não são
agentes passivos dos fatores de “expulsão” ou “atração”, mas participam ativamente de um processo,
que não é exatamente o processo migratório, mas sim o de reprodução de suas condições de vida.
“Os migrantes rurais nordestinos não foram apenas reflexo de forças econômicas determinadas
externamente, embora estivessem imersos nelas. Eles também foram agentes do seu próprio
movimento e dessa forma, através de estratégias diversas, contribuíram na moldagem do processo
migratório” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 5).
4 -   De acordo com o autor, as feiras são o espaço onde os indivíduos negociam e adquirem produtos
para o consumo da unidade doméstica a que pertencem. O consumo doméstico semanal está, portanto,
materializado nas feiras. Sobre a importância das feiras para a reprodução dos trabalhadores rurais
nordestinos, ver GARCIA (1984).

53
quem pensa em ficar no “Norte” como para quem pensa em mudar-se de
forma definitiva para o “Sul”, o assalariamento temporário no Sudeste
apresenta-se como uma fase necessária do ciclo de vida (GARCIA Jr., 1989).
Contudo, a despeito de ser vista pelos trabalhadores como uma
das únicas alternativas de sobrevivência, a migração não deixa de estar
associada a uma expectativa positiva relacionada com a possibilidade de
mudança de vida. A migração traz para os agentes sociais envolvidos com
ela a chance de “melhorar de vida”, de “viver com mais conforto”, e de
“ganhar mais”. Nas palavras de Silva e Menezes (2006),

A migração, enquanto processo, responde às necessidades


materiais de sobrevivência (comida, roupa, remédios)
e também às necessidades de manter vivas as ilusões
(de melhoria, de ascensão social, de projetos de vida).
A compreensão dessa dialética afasta os dualismos e
as excludências, no sentido de que o real, o palpável, é
verdadeiro; e o irreal, o invisível, é falso. As representações
sociais (símbolos, imaginário) são elementos do real,
portanto necessários. A ilusão é necessária e ela se apoia
sobre uma base social (SILVA; MENEZES, 2006, p. 5-6).

Assim, premidos pela necessidade de sobreviver, mas sempre


acompanhados de sonhos e expectativas, todos os anos, milhares de
homens migram com destino às cidades em que irão trabalhar como
cortadores de cana. É importante ressaltar aqui que raramente esses
trabalhadores abandonam suas terras com intenção inicial de nunca mais
regressar.5 Na maioria das vezes, esses homens migram com o objetivo
de formar um pecúlio, isto é, uma reserva a ser aplicada em seu local de
origem quando voltarem. O envio de dinheiro à família que não migrou
também é outra importante motivação da migração temporária.6
Isso faz sentido se lembrarmos que em geral não é a família inteira
que migra, mas somente parte dela. Como mencionado anteriormente,
normalmente são os homens que se deslocam, ficando as mulheres, as

5 -   “O migrante não abandona a origem para se integrar no destino, ao contrário, a migração representa
um ponto de contato permanente entre um e outro local” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 6).
6 -   De acordo com Durham (1984, p. 210-211), “A migração e o projeto de ascensão social que a motiva
são, portanto, empreendimentos familiais [...] A possibilidade de ascensão de um membro da família
representa uma melhoria no nível de vida de todos, na medida em que se conserva a unidade do grupo
doméstico”.

54
crianças e os idosos nas comunidades de origem. A opção pela migração
de poucos membros do grupo familiar se dá pelas dificuldades e pelos
custos de transporte, moradia e manutenção nas regiões de destino, que
implicam altíssimos gastos para os trabalhadores. O mais comum é que
o marido migre primeiro, deixando a família com os demais parentes. Em
alguns casos, só depois de obter uma colocação relativamente estável e
minimamente rendosa é que aquele que migrou tem a oportunidade de
buscar o restante da família para residir consigo (DURHAM, 1984; 2004;
GARCIA Jr., 1989).7
No entanto, tanto na movimentação de indivíduos quanto de
famílias, a direção do deslocamento depende, em grande medida, da
tradição migratória do grupo de relações primárias original (DURHAM,
1984; 2004; MENEZES, 2002). Em geral, as pessoas migram para as
localidades onde tenham conterrâneos, amigos ou parentes, ou para
locais que lhes foram indicados por outros. De acordo com Durham
(1984), mesmo as migrações que implicam mudanças radicais de estilos
de vida “são efetuadas dentro de um universo de referência organizado
nos moldes da comunidade rural. Vai-se para onde está a família do
irmão do pai, os antigos vizinhos, os amigos de infância” (DURHAM,
1984, p. 135).
E a migração para o trabalho no corte da cana não é diferente. Em
muitos casos, aqueles que já atuaram alguma vez como cortadores de cana
indicam aos amigos as usinas em que trabalharam,8 os turmeiros que
os recrutaram, os locais de saída dos ônibus,9 etc. Formam-se redes de
informações e de solidariedade entre os migrantes, o que permite não só
a comunicação e a troca de informações entre eles, mas também o auxílio
mútuo (MENEZES, 2002; NOGUEIRA, 2010).

7 -   Neste ponto, é importante mencionar que, no caso específico dos cortadores de cana, a migração da
família inteira é muito difícil de ocorrer. Isso porque aqueles homens que vão trabalhar como cortadores
de cana para as usinas e que levam suas esposas para residir consigo durante o período da safra são
obrigados a alugar casas nas cidades de destino, já que são impossibilitados de residir nos alojamentos
cedidos pelas usinas pelo fato de estarem acompanhados. Isso faz com que fique ainda mais caro se
manter nas cidades de destino, uma vez que não somente o aluguel, mas todos os gastos se multiplicam
pelo número de familiares que residem juntos.
8 -   A esse respeito, escreveu Durham: “É frequente o fato de possuir parentes no local que determina
a escolha do destino. O migrante que abandona a zona rural [...] é levado a escolher baseado mais
na proximidade das relações sociais do que na proximidade física ou compatibilidade das atividades
econômicas que espera exercer. Quando o trabalhador rural se desloca à procura de emprego, segue
as rotas que foram seguidas por parentes e amigos antes dele” (DURHAM, 1984, p. 137).
9 -   Os “locais de saída dos ônibus” são os lugares nas comunidades de origem em que os
trabalhadores que migrarão para o corte da cana se reúnem para partir em direção às cidades em
que vão trabalhar.

55
O processo de mecanização da agroindústria canavieira:
um breve histórico

Até aqui foi apresentado de forma breve como se dá o processo de


migração temporária dos trabalhadores rurais – principalmente oriundos
do Norte de Minas Gerais e dos estados do Nordeste –, que todos os anos
deixam seus locais de origem em busca de trabalho assalariado nas
usinas de açúcar e álcool localizadas em outras regiões. Como é sabido, a
lavoura de cana-de-açúcar é uma das culturas agrícolas que mais emprega
trabalhadores no Brasil. Entretanto, de alguns anos para cá essa realidade
vem se alterando significativamente. Sobretudo a partir de meados dos anos
2000, muitas usinas diminuíram significativamente o número de cortadores
de cana contratados em função da mecanização das atividades. Mas
quando exatamente se deu o início de tal mecanização? Quais as razões
que justificam esse processo? Quais são as consequências e os impactos
gerados sobre os trabalhadores? Essas e outras são algumas das questões
que serão abordadas nesta segunda parte do presente artigo.
Ao longo de seu desenvolvimento no Brasil, a agroindústria canavieira
passou por vários processos de reestruturação que atingiram, sobretudo,
as plantas industriais e os equipamentos (IANNI, 1984). Deve-se ressaltar
que o processo de reestruturação produtiva no setor sucroalcooleiro
foi amparado pelo Estado brasileiro por intermédio de subsídios e
de créditos oferecidos aos usineiros, os quais tiveram suas dívidas
reescalonadas. É importante mencionar ainda que, fora das empresas, a
reestruturação sucroalcooleira se evidencia no movimento de fechamento
de unidades produtivas, reconcentração de capitais e diversificação dos
investimentos. Já no interior das frentes e ambientes de trabalho, ela se
expressa na modernização tecno-organizacional com a intensificação do
uso da informática, da automação industrial e da mecanização agrícola,
na flexibilização da produção agrícola e industrial, na terceirização de
determinadas atividades e fases do ciclo produtivo, no rigor do controle de
qualidade e no redirecionamento das políticas de recursos humanos.
Assentada basicamente na introdução de inovações na base técnica,
desde então, a reestruturação tem buscado tornar os empresários cada
vez mais aptos para enfrentar as novas regras de produção e de circulação
impostas, principalmente, pelo mercado internacional, as quais estão
centradas no incremento da produtividade, na melhoria da qualidade dos
produtos e na redução dos custos de produção.

56
Pensando em atender as exigências atuais de produtividade e
qualidade impostas pelo mercado, as empresas redefinem as suas
estratégias administrativas, isto é, investem seus esforços em duas
direções na gestão dos recursos humanos: de um lado, racionalizam o
uso de recursos introduzindo modificações nos processos de trabalho,
valendo-se, principalmente, de inovações tecnológicas poupadoras de força
de trabalho – a mecanização das atividades agrícolas e automatização
do controle dos processos em geral; de outro lado, procuram formar
um contingente de trabalhadores fixos, disciplinados, tecnicamente
qualificados e, sobretudo, “envolvidos” com a produção sucroalcooleira.
No caso específico do setor sucroalcooleiro nacional, as primeiras
atividades a se tornarem mecanizadas foram as de preparo do solo e o
plantio. Nestas, os efeitos da mecanização foram principalmente reduzir
o tempo de realização das atividades e o número de trabalhadores e
aumentar significativamente a intensidade do trabalho.10 A mecanização
do plantio fez com que tal atividade – no passado desempenhada por
homens auxiliados por animais – passasse a ser realizada a partir de uma
combinação entre força de trabalho humano e máquinas.
Em momento posterior – meados da década de 1960 – veio a
mecanização da colheita da cana, atividade que compreende três fases
interdependentes: o corte, o carregamento e o transporte da cana cortada
até a usina. Deve-se destacar que a mecanização da colheita se deu
lentamente e por partes, já que primeiramente ocorreu a mecanização do
carregamento e do transporte da cana colhida e só posteriormente se deu
a mecanização do corte, etapa central da colheita.
É importante dizer que o processo de mecanização do corte da
cana ocorreu por último em função das inúmeras limitações técnicas
apresentadas pelas máquinas colheitadeiras da época. Como sabemos,
desde sua introdução no Brasil (e até os dias de hoje), existem
limites técnicos intransponíveis para a mecanização do corte, tais
como a declividade e as falhas dos terrenos. Além disso, não se pode
esquecer também que a colheita mecanizada pressupunha uma série
de modificações por parte das usinas que iam desde o plantio até o
recebimento da cana, modificações essas que, para serem postas em

10 -   Nas palavras de Alves (1991, p. 60), “As inovações mecânicas [...] afetam fortemente a redução do
tempo de trabalho, dado que elas agem tanto no sentido da redução do tempo de trabalho, quanto no
aumento da intensidade do trabalho. Quando as inovações mecânicas são aplicadas no plantio e na
colheita, elas reduzem o tempo de produção, porque abreviam o tempo em que o produto seria plantado
ou seria colhido unicamente com a força de trabalho”.

57
prática, exigiam vultosos investimentos que não eram acessíveis a todas
as empresas naquela época.
De acordo com Alves (1991), as primeiras máquinas colheitadeiras
introduzidas no Brasil datam do final da década de 1960. Entretanto,
a despeito de já apresentarem um rendimento superior ao obtido por
intermédio do corte manual da cana, essas máquinas ficavam restritas a
um número reduzido de produtores, os quais naquela época as utilizavam
somente no início da safra como forma de rebaixar os salários dos
cortadores de cana, bem como ameaçá-los e pressioná-los. Essas primeiras
máquinas ficaram conhecidas como “máquinas de vitrines” (GRAZIANO DA
SILVA, 1980), já que entravam em operação somente no início da safra e
em seguida eram substituídas pelos homens e postas “de volta na vitrine”.
As razões para esse primeiro estímulo à mecanização do corte da cana
são explicadas por Alves (1991). De acordo com ele,

Nesta etapa, início da década de 1970, o incentivo à


mecanização do corte se devia a perspectivas pessimistas
quanto à existência, no estado de São Paulo, de um
contingente de trabalhadores assalariados temporários,
capaz de dar conta do corte sem pressionar os salários
para cima. Nesta etapa, tanto o IEA quanto a Coopersucar
emitiam relatórios dando conta da possibilidade de falta
de braços a uma lavoura que crescia a elevadas taxas
de crescimento. Porém, o processo de modernização
da agricultura, no Brasil, e a dinâmica populacional se
encarregaram de resolver o problema, pondo à disposição do
setor um enorme contingente de trabalhadores, nas cidades
dormitórios da região. O qual é anualmente acrescido de um
elevado número de trabalhadores vindos de várias partes do
país, principalmente do Vale do Jequitinhonha, que afluem à
região e pressionam os salários para baixo. Isto significa que
o incentivo à mecanização pela falta de braços para o corte,
com a consequente tendência à elevação dos salários, já não
se verifica (ALVES, 1991, p. 80-81).

Se a suposta “falta de braços” para a lavoura não consistiu em


um problema real de fato, por que as usinas resolveram introduzir a
mecanização na colheita da cana?

58
Num primeiro momento, a partir de 1975, a mecanização da colheita
– incluindo-se aí, como já foi dito, a mecanização do corte – acabou sendo
impulsionada graças ao apoio de programas governamentais, tais como o
Proálcool, os quais incentivaram a expansão e o crescimento das lavouras
de cana. Em outras palavras, para que fosse possível expandir e aumentar
a produtividade dos canaviais era necessário introduzir as máquinas.
Não é difícil de imaginar que a introdução do corte mecânico gerou como
uma das consequências a substituição dos trabalhadores assalariados
pelas máquinas. Essas teriam de ser mais lucrativas, isto é, teriam de
compensar os gastos que até então os usineiros despediam com os salários
dos cortadores de cana.
Foi nesse contexto que surgiram novos fabricantes de máquinas
colheitadeiras que passaram a produzir variedades mais modernas, as
quais, por sua vez, elevaram ainda mais a performance das máquinas e
ampliaram as diferenças de custo do corte mecânico em relação ao ma-
nual11 (ALVES, 1991).
A melhoria da performance do maquinário não se deveu somente aos
avanços técnicos das máquinas, mas também à incorporação, por parte
das usinas, de toda uma infraestrutura de apoio à mecanização do cor-
te da cana. Sem essa infraestrutura – que envolveu novos equipamen-
tos e homens – não teria sido possível aumentar de forma tão significa-
tiva a produtividade das máquinas. Alves (1991) cita exemplos numéri-
cos: “Em 1980, verificou-se que o rendimento médio de uma colhedeira
de cana atinge 200 toneladas por dia em 10 horas de trabalho, substi-
tuindo aproximadamente 30 homens/dia,12 com produção superior a
6 toneladas/dia” (ALVES, 1991, p. 82).
Mas é preciso deixar claro que a mecanização da colheita não se deveu
somente aos incentivos de programas governamentais. Em sua tese de
doutorado, Francisco Alves (1991) deixou explícito que

11 -   “Essas novas máquinas colheitadeiras de cana permitiram elevar a produtividade das máquinas
de 20 toneladas por hora em 1976 para 41 toneladas por hora em 1980 e 60 toneladas em 1987. Ao
mesmo tempo, a diferença de custo do corte mecânico, em relação ao manual, se elevou de 7,2% em
1976, observado por GRAZIANO DA SILVA, para 50%, em um caso observado em 1987...” (ALVES,
1991, p. 82).
12 -   Nos dias de hoje, devido aos contínuos aprimoramentos técnicos direcionados à produção das
máquinas empregadas nos canaviais, estima-se que uma colheitadeira seja capaz de substituir o trabalho
de 90 cortadores de cana. Além de apresentarem índices de produtividade mais elevados dos que os
dos seres humanos, atualmente as máquinas oferecem a vantagem para os empregadores de poderem
trabalhar ininterruptamente, isto é, ao longo de 24 horas, fato que por si só faz com que a quantidade de
cana colhida supere em muito a que é colhida no decorrer da jornada dos trabalhadores rurais.

59
Através de entrevistas, realizadas com uma série de
usineiros da região de Ribeirão Preto, ficou claro que a
decisão de mecanizar o corte da cana não foi tomada
unicamente com base na viabilidade econômica da
mecanização, frente ao corte manual, numa comparação
entre custos de operação da máquina [...] versus
custo da mão de obra dos cortadores de cana. O que
foi revelado [...] é que a mecanização do corte foi
incentivada, a partir de 1984, devido às greves anuais
dos trabalhadores assalariados rurais da região, que,
ao paralisarem o corte, paralisavam também as usinas.
Nestas condições, a mecanização do corte de cana era,
segundo os usineiros, a forma de adquirirem maior poder
de barganha para negociar a pauta de reivindicações dos
trabalhadores, sem as unidades de produção paralisadas
(ALVES, 1991, p. 84).

Essa revelação por parte dos usineiros de que a mecanização do


corte da cana também foi determinada em função do ciclo de greves dos
trabalhadores rurais ao longo da década de 1980 pôde ser confirmada,
uma vez que os modelos de máquinas introduzidos na época – modelos
esses que permitiram baixar os custos do corte mecânico em relação
ao manual – já estavam disponíveis ao setor desde o final da década de
1970. Isto é, as máquinas já existiam, porém ainda não eram empregadas
de forma significativa no campo até o momento em que as greves dos
trabalhadores se tornaram uma ameaça frequente e constante.
Se para os usineiros a mecanização do corte da cana representou
crescimento da produtividade de suas lavouras, aumento de seu poder
de barganha e uma das formas para pressionar e conter os cortadores de
cana; para os trabalhadores ela não trouxe consequências tão favoráveis.
Entre os muitos impactos sobre a força de trabalho, podemos destacar
a redução do contingente de trabalhadores empregados durante a safra,
a diminuição do poder de pressão dos cortadores de cana, a redução
dos salários e o avanço no processo de subordinação real do trabalho ao
capital (ALVES, 1991).
Além de a mecanização reduzir o número de trabalhadores
empregados no corte, ela reduz ainda o nível salarial médio. Isso porque
é de praxe entre as usinas deixar as piores áreas de cana – isto é, as que

60
têm canas menos eretas, terrenos mais íngremes, com mais declividade
e acidentes – para os assalariados rurais cortarem, o que acaba fazendo
com que eles tenham sua produtividade diária diminuída. 13 Como
recebem por produção, ou seja, têm seu salário atrelado à quantidade de
cana que conseguem cortar, quanto menor for sua produtividade, menor
também serão os salários recebidos. Em contrapartida, os melhores
talhões são deixados para as máquinas.
Em sua tese de doutorado, Alves (1991) assim resume os impactos
mais imediatos gerados a partir da introdução do corte mecanizado:

A introdução das inovações mecânicas na lavoura


canavieira teve quatro tipos de repercussões imediatas e
mutuamente relacionadas: o primeiro foi o de redução do
tempo de realização de determinadas tarefas; o segundo
foi o da redução da mão de obra empregada para a
realização dessas tarefas executadas pelas máquinas; o
terceiro foi o de reduzir a necessidade de mão de obra
residente na propriedade; o quarto sentido foi o de
introduzir uma mudança qualitativa na demanda de
trabalhadores, ao utilizar trabalhadores com maior grau
de especialização (tratoristas, motoristas e operadores de
máquinas agrícolas) e trabalhadores sem especialização
(ALVES, 1991, p. 73).

O processo de mecanização da colheita não estagnou por aí.


Diferentemente do que ocorria no final do século XX – momento em
que, como se viu, as máquinas ainda estavam começando a entrar
em cena –, atualmente, sobretudo a partir de meados dos anos 2000,
percebemos que elas têm ocupado cada vez mais espaço nos canaviais.
Nos dias de hoje, a mecanização, além de continuar sendo justificada
pela necessidade de aumentar os níveis de produtividade agrícola das
lavouras e servir como forma para diminuir o poder de pressão dos
cortadores de cana, pode ser explicada por outras razões.
Como temos acompanhado, a preocupação em produzir “energia
limpa”, sustentável e não prejudicial ao meio ambiente está cada vez

13 -   Nunca é demais lembrar que, com a mecanização, sobram aos cortadores de cana somente as
áreas impróprias ao corte mecânico, que são as piores, o que acaba reduzindo a quantidade de cana
para cortar por dia.

61
mais presente no discurso dos usineiros. Nesse novo contexto, a busca
por uma imagem “ecologicamente correta” por parte das empresas ganha
ainda mais sentido. Nas palavras de Menezes et al. (2011),

Nessa busca, as empresas canavieiras têm se engajado


em duas estratégias principais e inter-relacionadas: o
fim da queima da cana e do corte manual. Com o fim
da queima da cana, busca-se resolver a degradação
ambiental causada pelas atividades do setor, que polui
não apenas o ar, mas, também, o discurso do etanol
enquanto combustível limpo. Com o fim do corte manual
de cana, objetiva-se acabar ou, ao menos, amenizar a
degradação do trabalhador e evitar casos extremos
como doenças que inutilizam o trabalhador ou chegam
a causar-lhe a morte. As duas estratégias deverão ser
realizadas via mecanização da colheita da cana-de-açúcar
(MENEZES et al., 2011, p. 63-64).

Como sabemos, para que os cortadores de cana possam atingir


índices mais elevados de produtividade e para que possam executar seu
trabalho sem tantos riscos, 14 na maioria das vezes as usinas queimam
grande parte de seus canaviais – antes de iniciar o corte – visando à
eliminação da palha da cana. Nem é preciso dizer que as queimadas dos
canaviais trazem inúmeros malefícios e perigos não somente ao meio
ambiente, mas também aos seres humanos.15 Algumas pesquisas atuais
(SILVA, 2006; MENEZES et al., 2011) têm tentando demonstrar que todo
o processo de queimada da cana acarreta a liberação de fuligem e de
vários gases extremamente tóxicos e prejudiciais à saúde daqueles que
vivem no entorno dos canaviais. Nas palavras de Maria Aparecida de
Moraes Silva (2006),

14 -   Isso porque, quando cortam “cana crua” – isto é, aquela cana que não foi queimada, e que por
isso mantém todas as suas folhas e a palha – não são raras as ocasiões em que os trabalhadores se
deparam no meio dos canaviais com cobras, ratos, escorpiões, insetos e outros tipos de animais que
podem vir a machucá-los. Diferentemente do que ocorre quando trabalham cortando cana queimada,
já que o fogo afugenta tais animais para fora dos canaviais, diminuindo, assim, o risco de acidentes
no decorrer da jornada de trabalho.
15 -   “Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha
da cana libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar, e, consequentemente, da
saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo, também, danos ao solo, às
plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população” (MENEZES et al., 2011, p. 64).

62
Segundo recente reportagem, os focos de queimada
aumentam em mais de 1000% durante a safra na
região de Ribeirão Preto. Este fato provoca vários
danos à saúde das pessoas da cidade, sem contar que
há o crescimento de até 50% no número de pacientes
com problemas respiratórios [...] Os gases expelidos
pela fuligem da cana queimada são: o carbônico,
os nitrosos (sobretudo o monóxido e o dióxido de
nitrogênio) e os sulforosos (como o monóxido e o
dióxido de enxofre). Alguns desses gases vão para a
atmosfera e podem reagir com a água, gerando ácidos
nitrosos e sulforosos, que, com grande acumulação,
podem gerar chuva ácida, prejudicial ao meio ambiente
(SILVA, 2006, p. 112).

Só para se ter um exemplo, nos períodos de queima da cana os


atendimentos médicos e as internações nos postos de saúde das
cidades rodeadas por canaviais sobem muito quando comparados aos
atendimentos e às internações que ocorrem nos períodos em que não há
queimadas. Cortadores de cana, crianças e idosos são os mais afetados
pelos efeitos nocivos das queimadas.
Assim, tendo como justificativa principal a tentativa de combater
tais problemas sociais e ambientais, em 2007 foi firmado no estado
de São Paulo o Protocolo Agroambiental, acordo estabelecido entre
a Secretaria Estadual do Meio Ambiente, a Secretaria Estadual de
Agricultura e Abastecimento e a União da Indústria de Cana de Açúcar
(UNICA), o qual contou com forte apoio de várias organizações da
sociedade civil favoráveis ao fim das queimadas. Isto porque tal acordo
visa ao fim das queimadas nos canaviais até 2014 nas áreas passíveis
de mecanização e até 2017 nas áreas não mecanizáveis. Não fica
difícil perceber que nesse contexto ganha mais força o discurso pró-
-mecanização da colheita de cana, já que, para o corte mecanizado, não
é necessário que os canaviais sejam previamente queimados. De acordo
com Baccarin e Gebara (2010),

Particularmente, há um interesse adicional na subs-


tituição da colheita manual, que é precedida da quei-
mada do canavial, pela colheita mecânica de cana sem

63
queimar, que é, justamente, a pretensão de se reforçar,
especialmente no mercado internacional, a imagem po-
sitiva do etanol como combustível renovável e menos
poluidor do que os derivados do petróleo (BACCARIN;
GEBARA, 2010, p. 23).

Mas quais são os principais impactos e consequências da


mecanização do setor sucroalcooleiro? Como dito acima, um dos
maiores resultados da mecanização é o desemprego cada dia maior
de uma parcela significativa de cortadores de cana, os quais estão
gradativamente perdendo seus postos de trabalho nas usinas em função
da introdução das máquinas colheitadeiras no campo.
Esse desemprego acaba, por sua vez, servindo também para alterar
o perfil do quadro de trabalhadores das usinas: com a introdução
das máquinas, mandam-se embora aqueles trabalhadores menos
especializados e pouquíssimos qualificados (os cortadores de cana) e
abrem-se vagas para empregar um número maior de trabalhadores mais
qualificados.16 É importante lembrar que alguns desses “mais qualificados”
já foram no passado cortadores de cana, mas tiveram a oportunidade
de se qualificar e assim deixar o podão para se tornarem operadores
de máquinas, motoristas, tratoristas, etc., postos que exigem mais
especialização e maior nível de instrução por parte de quem os ocupe.
Entretanto, não podemos deixar de dizer que as chances de
“qualificação” e de “reciclagem” dessa força de trabalho descartada pela
introdução das máquinas não são acessíveis a todos. A despeito de já
existirem algumas iniciativas no estado de São Paulo voltadas para a
“qualificação” de cortadores de cana – tais como os cursos de tratoristas
e operadores de máquinas que são oferecidos em vários municípios
de destino dos trabalhadores por iniciativa de sindicatos, usinas e do
Serviço Nacional de Aprendizagem Rural (SENAR) –, são poucos os
trabalhadores que têm a oportunidade de fazer parte delas.

16 -   Mas não podemos deixar de perceber que o número de desempregados em razão das máquinas
supera em muito o número de contratados para assumir os postos mais qualificados, uma vez que uma
máquina colheitadeira substitui em média 90 cortadores de cana e exige somente uma para dirigi-la e
operá-la. Nas palavras de Ramos (2008, p. 323), “Os empregos diretos, mantidos e/ou gerados por essa
ocupação qualificada na lavoura, mais os que estão sendo criados pela constituição de novas usinas
e destilarias, dificilmente serão suficientes para compensar a menor utilização de trabalho na lavoura
canavieira em decorrência daquela mecanização, mesmo em face dos ritmos estimados de crescimento
das produções envolvidas (cana, açúcar e álcool)”.

64
Isso porque muitos desses cursos – além de exigirem certo nível
de escolaridade muitas vezes inacessível à maioria dos trabalhadores
rurais – são realizados durante o horário de trabalho dos cortadores de
cana. Ou seja, para que possam frequentá-los, é preciso abrir mão de
seu trabalho nas usinas, fato impensável para os assalariados rurais,
que têm em seu emprego uma das únicas possibilidades de assegurar a
sua sobrevivência e a de sua família.
Mesmo no caso dos cursos de formação que são realizados no
período noturno, após a jornada de trabalho, a participação dos
cortadores de cana é pouquíssimo significativa, já que a enorme maioria
não tem ânimo nem condições físicas para fazer parte de qualquer
atividade formativa após um dia exaustivo de trabalho.

Considerações finais

Mas e os trabalhadores que são mandados embora, o que fazem?


Como ficarão e para onde irão sem o emprego nas usinas? Essas são
perguntas difíceis de responder, já que tal temática é recente e as
hipóteses apontadas pela literatura especializada ainda são bastante
inconclusas e controversas. A despeito desta dificuldade anunciada,
arrisco neste trabalho responder as questões acima colocadas sugerindo
algumas possíveis hipóteses elaboradas com base em leituras e
observações de campo.
1) Os trabalhadores desempregados pela mecanização da colheita
da cana passam a buscar emprego em outras usinas nas quais a
mecanização ainda não ocorreu de forma tão significativa – sobretudo
nas unidades empresariais de menor porte, que têm um capital de giro
menor e que, portanto, não podem comprar um número expressivo de
máquinas para mecanizar a totalidade de sua produção agrícola, ou
naquelas usinas localizadas em regiões onde a declividade dos terrenos
não permite a mecanização total da colheita da cana. Esse fato ajuda a
alterar de forma significativa a cartografia migratória, uma vez que os
trabalhadores passam muitas vezes a se deslocar em busca de empregos
em usinas de outras regiões que não as tradicionalmente procuradas.
2) Alguns daqueles que tiveram seus empregos perdidos pela
mecanização passam a buscar serviço em outras culturas agrícolas
sazonais, tais como as lavouras de café, laranja, tomate, cebola, batata,

65
etc., que muitas vezes se localizam na mesma cidade ou na mesma
região em que ficam as usinas de açúcar e álcool;
3) Uma parcela bastante significativa e cada dia maior de
trabalhadores desempregados em função da mecanização da colheita da
cana está buscando emprego em outros setores da economia, sobretudo
na construção civil. Como sabemos, tal setor está em plena expansão no
atual contexto em função das obras ligadas à Copa do Mundo de 2014, às
Olimpíadas de 2016 e ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento,
do governo federal), fato que fez com que se espalhassem pelo país
afora inúmeros canteiros de obras. Por terem pouca ou quase nenhuma
especialização e baixíssimo nível de escolaridade, muitos ex-cortadores de
cana veem na construção civil uma nova chance de emprego. Importante
ressaltar aqui que, da mesma forma que nas usinas de açúcar e álcool,
os empregos conseguidos na construção civil também são altamente
precários, desqualificados e insalubres, vide os inúmeros acidentes de
trabalho ocorridos nos canteiros de obras recentemente e as denúncias
feitas pelos próprios trabalhadores e por suas entidades de representação
acerca de suas condições de trabalho, moradia e de alimentação.
4) Por fim, uma parte pouco significativa e bastante minoritária
daqueles que perderam seus postos de trabalho para as máquinas busca
obter maior qualificação com vistas a conseguir concorrer às poucas
vagas criadas a partir da mecanização do setor sucroalcooleiro. Como
se viu, nesse contexto, uma pequena fração de ex-cortadores de cana –
em geral os mais jovens – procura os chamados “cursos de reciclagem”,
criados com o intuito de qualificar essa força de trabalho para ocupar os
novos postos criados.

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66
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Juliana Biondi Guanais é doutoranda do Programa de Pós-graduação


em Sociologia do Instituto de Filosofia e Ciências Humanas (IFCH)
da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do
Centro de Estudos Rurais do IFCH (Ceres), bolsista de doutorado
da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fa-
pesp) e autora da dissertação No eito da cana, a quadra é fechada:
estratégias de dominação e resistência entre patrões e cortadores de
cana em Cosmópolis/SP.

69
Acervo Cândida da Costa

70
Trabalho escravo contemporâneo:
grilhões modernos na vida dos
trabalhadores e trabalhadoras
Cândida da Costa

Introdução

A primeira questão que poderia ser colocada em cena ao se dar desta-


que ao trabalho escravo é justamente indagar: por que um tema do passado
se torna um tema contemporâneo?
Há uma dimensão empírica a nos desafiar enquanto sociedade e en-
quanto humanidade: a questão não só tende a perseverar, como não cessa de
se sofisticar. Servidão por dívida, tráfico da pessoa humana, trabalho forçado,
degradante, simulacro de inexistência de vínculos trabalhistas dentro de ca-
deias produtivas – novas formas são inventadas para retrair e negar os direi-
tos e a liberdade de trabalhadoras(es) e aumentar os lucros dos capitalistas.
Persiste uma percepção sobre o mundo que ainda interdita a constru-
ção de uma cultura de direitos humanos, de respeito à dignidade da pessoa
humana, manifesta na continuidade de uma cultura escravagista, uma
mentalidade de negação e desrespeito aos direitos trabalhistas que colabora
para a prática e a manutenção do trabalho escravo no Brasil.
No Brasil? Espraiemos nosso olhar. O fenômeno é mundial e assola
os trabalhadores de formas variadas, através de muitos simulacros e ilu-
sionismos que vão tomando forma no mundo do trabalho. Termos como
indocumentados, imigrantes ilegais, exploração sexual internacional fa-
zem parte de um novo repertório discursivo que muito tem a nos dizer.
Atrás deles está o drama de milhões de trabalhadoras(es) escravizadas(os)
e humilhadas(os). Neste artigo, tratarei do assunto apresentando ele-
mentos teóricos que nos permitem, tanto quanto possível, compreendê-
-lo em sua complexidade e percebê-lo em suas manifestações concretas,
em nosso país e no mundo.
Adoto também a ideia do trabalho como um direito humano, pois
esta permite resgatar como os direitos dos trabalhadores emergiram e se
firmaram sempre que, nos processos de lutas sociais, os trabalhadores e
trabalhadoras – as pessoas que vivem do trabalho – reivindicaram uma vida
com dignidade, enquanto condição intrínseca de sua humanidade.

71
Nesse aspecto, não há de se perder de vista que muitas das grandes
revoluções, com especial atenção para o mundo moderno, foram motivadas
pelas relações de trabalho, em confronto com o capital. E colocar em xeque
a infinitude da exploração dos capitalistas e a resistência da classe traba-
lhadora na busca por melhoria de suas condições de vida.

Conceito de trabalho escravo ou forçado

Trabalho forçado tem uma dupla dimensão – é expressão jurídica e fenô-


meno econômico. A sua exata definição foi enunciada na primeira convenção
da Organização Internacional do Trabalho (OIT) acerca da matéria, a Convenção
29, de 1930, no art. 2: a expressão “trabalho forçado” ou “compulsório” signifi-
cará todo trabalho ou serviço exigido de um indivíduo sob a ameaça de alguma
punição e para o qual o dito indivíduo não se apresentou voluntariamente.
Conforme o Relatório da OIT “Não ao Trabalho Forçado” (2001, p.10):

[...] no final do século XIX, a escravidão e o comércio de


escravos estavam proibidos em todo o mundo. A década de
1920 assistiu à adoção da Convenção da Liga das Nações,
de 1926, sobre escravidão, seguida pela Convenção 29 da
OIT (1930), sobre trabalho forçado.

Em tal período, os maiores problemas eram a imposição de trabalho


forçado ou compulsório a populações indígenas durante o período colonial.
Já a Convenção 105 da OIT, de 1957, sobre a abolição do trabalho forçado,
na qual o Brasil figura como signatário, obriga os seus membros a suprimir
e não fazer uso de nenhuma forma de trabalho forçado ou obrigatório como
meio de coerção ou de educação política, seja como medida de disciplina no
trabalho, de discriminação, social, nacional ou religiosa, seja como método
de mobilização e utilização da mão de obra com fins de fomento econômico
ou ainda como castigo por haver participado de greves.
O princípio da proibição do trabalho forçado apoiou-se também no
Pacto Internacional de Direitos Civis e Políticos de 1966. Nas décadas de
1980 e 1990, ampliaram-se a conscientização e mobilização social em re-
lação às questões de gênero, por haver um grande número de mulheres
submetidas ao trabalho doméstico forçado e à exploração sexual.
A proibição do trabalho escravo é norma imperativa do Direito Inter-
nacional, reconhecida por toda a comunidade mundial. No ordenamento

72
jurídico brasileiro, até o ano de 2003, quando então foi alterado pela Lei
n° 10.803/2003, o trabalho escravo ou forçado é considerado crime, nos
termos do art. 149 do Código Penal:

Reduzir alguém a condição análoga à de escravo, quer


submetendo-o a trabalhos forçados ou a jornada exausti-
va, quer sujeitando-o a condições degradantes de trabalho,
quer restringindo, por qualquer meio, sua locomoção em
razão de dívida contraída com o empregador ou preposto.

Trata-se de redução de uma pessoa à condição análoga à de um escravo.


O trabalho escravo ou forçado, contudo, segundo o conceito adotado,
não será somente aquele para o qual o trabalhador não tenha se oferecido
espontaneamente, mas envolve situações em que este é ludibriado por
falsas promessas de ótimas condições de trabalho e salário. Essa situação,
inclusive, é a que mais se verifica atualmente, como é o caso de vários
trabalhadores rurais que, com promessas falaciosas, são induzidos a tra-
balhar em fazendas ou lavouras diversas e de trabalho de imigrantes que
caem na ilegalidade.

Caracterização e formas de coação de trabalhadores em


situação de trabalho escravo ou forçado

Para a caracterização do trabalho escravo ou forçado, leva-se em conta


que o trabalhador seja coagido a permanecer prestando serviços, impossi-
bilitando ou obstando, sobremaneira, o seu desligamento, geralmente em
locais distantes, que dificultam seu deslocamento. Essa coação poderá ser
de três ordens: moral, psicológica e física.
a) Coação moral: configura-se quando o tomador dos serviços, valendo-se
da pouca instrução e do elevado senso de honra pessoal dos trabalha-
dores, geralmente pessoas pobres e com baixo nível de escolaridade,
submete-os a elevadas dívidas, constituídas de maneira fraudulenta com
o objetivo de impossibilitar o desligamento do trabalhador.
b) Coação psicológica: quando o trabalhador é ameaçado de sofrer violência,
a fim de garantir sua permanência no trabalho, sendo comum a utiliza-
ção de empregados armados para exercerem essa coação e estabelecer
um clima de terror entre os trabalhadores. Materializa-se, ainda, sob a
forma de ameaça de abandono do trabalhador à sua própria sorte.

73
c) Violência física: além de sofrerem ameaças de lesão corporal, os traba-
lhadores são, efetivamente, submetidos a castigos físicos e alguns deles
são sumariamente assassinados, como exemplo àqueles que almejem
enfrentar o tomador dos serviços.

Formas degradantes de trabalho

O art. 149 do Código Penal possibilita identificarmos várias afrontas


à dignidade dos trabalhadores, tais como:

1- intermediação de mão de obra pelos chamados “gatos”;1


2- intermediação de mão de obra pelas chamadas “fraudoperativas” (de-
signação dada àquelas cooperativas de trabalho que fraudam as rela-
ções de trabalho);
3- utilização de trabalhadores, aliciados em outros municípios e estados,
pelos chamados “gatos”; submissão às condições precárias de trabalho
pela falta ou inadequado fornecimento de boa alimentação e água potável;
4- alojamentos sem as mínimas condições de habitação e falta de instala-
ções sanitárias;
5- falta de fornecimento gratuito de instrumentos para a prestação de
serviços;
6- ausência de fornecimento gratuito de equipamentos de proteção indivi-
dual (chapéu, botas, luvas, caneleiras etc.);
7- inexistência de fornecimento de materiais de primeiros socorros;
8- não utilização de transporte seguro e adequado aos trabalhadores;
9- não cumprimento da legislação trabalhista, desde o registro do contrato
na Carteira de Trabalho e Previdência Social (CTPS);
10- não realização de exames médicos admissionais e demissionais.

Há distinção entre o trabalho escravo e o degradante, já que, para o


primeiro, haverá a submissão por fraude, dívida, violência e ameaça que re-
sultem no cerceamento da sua liberdade. O trabalho escravo, pois, extrapola
a violação de direitos trabalhistas e restringe o direito à liberdade individual.

1 -   Pessoa ligada a empresas agroexpoertadoras, cuja presença é muito frequente nas usinas de cana-
-de-açúcar, ou a algum empregado formal da usina que alicia os trabalhadores, em sua grande parte
agricultores, desempregados, com promessas de salários altos em outra região do país. Essa prática
está tipificada como crime no artigo 207 do Código Penal Brasileiro, que dispõe: “Aliciar trabalhadores,
com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena – detenção de 1 (um) a
3 (três) anos, e multa”.

74
Caracteriza-se como um tipo de trabalho forçado, este último definido como
um trabalho obrigatório, compelido ou subjugado, podendo-se afirmar que
todo trabalho escravo é forçado, mas nem todo trabalho forçado é escravo.2

Formas contemporâneas de escravidão

Tendo como parâmetro a definição da Organização das Nações Uni-


das (ONU), a escravidão compreende hoje grande variedade de violações de
direitos humanos.
Além da escravidão tradicional e do tráfico de escravos, a escravidão
moderna abrange a venda de crianças, a exploração sexual infantil, a por-
nografia infantil, a exploração de crianças no trabalho, a mutilação sexual
de meninas, o uso de crianças em conflitos armados, a servidão por dívida,
o tráfico de pessoas e a venda de órgãos humanos, a exploração da prosti-
tuição e certas práticas de apartheid e regimes coloniais.
O trabalho infantil e sua consequente exploração é uma forma de
escravidão contemporânea, na medida em que as crianças são submetidas a
condições árduas e arriscadas de trabalho, carga horária excessiva e baixa
remuneração. A exploração do trabalho infantil, em geral, causa danos per-
manentes à saúde das crianças e priva-as do direito à educação e ao desen-
volvimento sadio e regular. Crianças submetidas a efetuar tarefa doméstica
são especialmente vulneráveis a abusos sexuais e físicos de toda ordem.
O tráfico de seres humanos inclui o recrutamento, o transporte clan-
destino, a exploração de mulheres como prostitutas e a exploração sexual
organizada de crianças de ambos os sexos em numerosos países, sendo um
dos mais dramáticos exemplos de escravidão contemporânea. Há denún-
cias, inclusive no Brasil, de vínculo entre prostituição e pornografia, parti-
cularmente envolvendo crianças para promoção e o crescimento do turismo,
atraindo estrangeiros em busca de crianças e adolescentes para exploração
sexual, oriunda em geral de famílias de baixa renda.
A venda de crianças transfigurada como a transferência de crianças,
de um lar pobre para um lar rico, pode mascarar uma situação de ganho
financeiro para os pais e intermediários e caracterizar comércio infantil
ilícito, de acordo com a ONU. A venda de crianças, travestida em adoções

2 -   A Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado de 1930, que dispõe sobre a eliminação do trabalho
forçado ou obrigatório em todas as suas formas, admite algumas exceções de trabalho obrigatório, tais
como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório
em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, entre outros.

75
ilícitas, é tida pela Convenção n° 182 da OIT como uma das formas mais
cruéis de escravidão infantil.
A servidão por dívida distinguiu-se da escravidão tradicional apenas
porque a vítima está impedida de deixar a tarefa ou a terra onde traba-
lha até que sua dívida seja quitada. Tal servidão se caracteriza exata-
mente porque, apesar de todos os esforços, o trabalhador não consegue
quitá-la, por tratar-se de um endividamento contínuo e perene. Adicio-
nalmente, o débito é herdado pelos filhos do trabalhador endividado,
mantendo-os sob servidão.

Incidência da escravidão de trabalhadores(as):


o fenômeno no mundo e no Brasil

O estudo intitulado Estimativa Global da OIT sobre Trabalho Forçado


2012 detalha as diferentes violações e a incidência nos setores da economia
em todo o mundo: 4,5 milhões (22%) de trabalhadores são vítimas de ex-
ploração sexual forçada e 14,2 milhões (68%) são vítimas de exploração do
trabalho forçado em atividades econômicas como agricultura, construção
civil, trabalho doméstico ou industrial.
A existência do trabalho escravo no Brasil apresenta-se como uma
afronta direta à Constituição Federal de 1988, que tem como um de seus
princípios a promoção da dignidade humana. Considerando-se que o Es-
tado brasileiro, conforme dispõe o parágrafo 2º do artigo 5º da Consti-
tuição Federal, é signatário de Tratados Internacionais de Direitos Hu-
manos, os quais, pelo referido parágrafo, estão revestidos de eficácia
constitucional, a constatação da existência de trabalhadores escravos
em nosso território significa também uma violação dos direitos humanos
reconhecidos pelo Estado brasileiro.
O perfil dos trabalhadores escravos é sempre o mesmo, na sua maior
parte, composto por homens desempregados, que saem de suas terras em
busca de um meio de subsistência para si e para seus familiares e termi-
nam por cair nas garras do “gato”, sempre pronto, à procura de presas
fáceis para serem escravizadas.
Os estados com maior índice de aliciamento e fornecimento de mão
de obra escrava estão localizados nas regiões Norte e Nordeste do país,
sendo Maranhão e Piauí, respectivamente, os maiores cenários desse
tipo de prática, seguidos do Pará, Tocantins e Mato Grosso. Os estados

76
líderes têm um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo,
equiparando-se, respectivamente, apenas aos IDHs dos países São Tomé
e Príncipe e Ilhas Salomão.
A exploração da mão de obra escrava ocorre, predominantemente, em
regiões em que a agricultura está em desenvolvimento, sempre relacionada
com o agronegócio. Nas regiões de cultivo monocultor, extensivas e de ex-
portação se concentra o maior índice de trabalho escravo.
É relevante destacar que a obtenção desses dados só foi possível em
razão da atuação de inúmeros militantes da sociedade civil, que por anos
acompanham as violações de direitos desencadeadas pela existência de
trabalho escravo. O tema foi tratado de forma quase solitária pela Comis-
são Pastoral da Terra (CPT) e pela Confederação Nacional dos Trabalhado-
res na Agricultura (Contag), durante cerca de 30 anos. Essas entidades,
desde a década de 1970, denunciam, inclusive internacionalmente, as re-
correntes incidências da prática de trabalho forçado não só na Amazônia,
como em regiões industrializadas do Sul e Sudeste do país. As informações
estão presentes nos relatórios de conflito de terra divulgados pela CPT
desde sua criação (1975).
Foi a partir da pressão exercida pelas entidades que acompanhavam
e denunciavam os casos de trabalho escravo que, em 1995, o governo
brasileiro criou o Grupo para Erradicação do Trabalho Escravo. Essa me-
dida tornou-se um compromisso de Estado e a partir de 2003 passou a
ser implementada.
O Grupo de Fiscalização Móvel tem realizado um papel de suma
importância para o combate e a erradicação do trabalho escravo. Segundo
dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de 1995 até 2005 foram
resgatados 17.235 trabalhadores escravos, entretanto, desse total, 12.463
trabalhadores foram libertados no período de 2003 a 2005. Registra-se
até 2008 a libertação de 32.783 trabalhadores, em 99 municípios brasi-
leiros. Há, porém, uma defasagem significativa entre o número de casos
denunciados pela CPT e os trabalhadores resgatados, pois entre 1990 e
2006 a CPT registrou denúncias sobre 133.656 trabalhadores escraviza-
dos, ou seja, um número quatro vezes superior àqueles que o Ministério do
Trabalho conseguiu alcançar.
Nos primeiros cinco anos de operações do Grupo Móvel (1995-2000),
não há registros de ressarcimento de direitos, enquanto nos cinco anos
seguintes foram pagos R$ 14.198.349,08 em indenizações aos trabalhadores
libertados (CPT, 2009).

77
Abrangência do fenômeno da escravidão contemporânea no
Brasil e predominância de setores econômicos

Entre 1995 e 2006, não ocorreram resgates de trabalhadores somen-


te em cinco estados: Roraima e Amapá, na Região Norte; e Pernambuco,
Alagoas e Sergipe, no Nordeste. Em todos os outros 21 estados brasileiros
e no Distrito Federal, mesmo os mais ricos, o fenômeno está presente.
O Atlas do Trabalho Escravo, lançado em 2009, permite entrever a ampli-
tude e concentração do fenômeno, levando em consideração as denúncias
da CPT, evidenciando que a Região Norte lidera (estado do Pará), seguida
pelo Nordeste (Oeste da Bahia), Centro-Oeste (Mato Grosso) e pela Região
Sudeste (Minas Gerais e São Paulo).
Em 2010, foram resgatados 2.617 trabalhadores que estavam sendo
explorados, de acordo com dados da Secretaria de Inspeção do Trabalho (SIT),
do MTE. O maior número de operações foi realizado no Pará, com a libertação
de 559 pessoas. Ao todo, foram 141 inspeções em todo o território nacional,
que resultaram no pagamento de indenizações no valor de R$ 8 milhões. 
No Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condições análogas à de escravo/MTE (Lista Suja do Trabalho Escravo),3
constaram 294 empresas em 2011 e 410 empresas em 2012, registrando-se
aumento do número de empresas em tal condição, não obstante as sanções
sofridas pelas empresas que incorrem em tal prática.
Ao se verificar por setor a predominância da prática da escravidão
contemporânea, o setor de agricultura se destaca, porém, outras atividades
também concorrem para a existência do fenômeno, do que se infere que a
mesma está disseminada na sociedade. São elas: pecuária, extração vege-
tal (madeira), produção de carvão vegetal, mineração, produção de tijolos/
construção civil; serviço de alimentação – restaurante; comércio, hotéis,
bordéis, serviços domésticos e confecção.
As denúncias dos trabalhadores que conseguem escapar são feitas nor-
malmente à CPT e às Superintendências Regionais do Trabalho. Entretanto,
a fuga não significa a redenção, pois, em razão da falta de oportunidades e
do baixo nível de especialização, é comum que essas pessoas acabem sendo

3 -   PORTARIA INTERMINISTERIAL n.º 2, de 12 de maio de 2011. Art. 1º Manter, no âmbito do Ministé-
rio do Trabalho e Emprego - MTE, o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condições análogas à de escravo, originalmente instituído pelas Portarias n.º 1.234/2003/MTE e
540/2004/ MTE; Art. 2º A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão adminis-
trativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a
identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.

78
contratadas novamente, nas mesmas condições, em outros locais com práti-
cas similares, formando um círculo vicioso que precisa ser quebrado.

Para não dizer que só falamos do trabalho escravo no setor


rural: visitando o setor de confecções/grifes

É interessante este alerta ao leitor: antes de comprar sua alimen-


tação, pergunte-se que empresa é essa; antes de comprar sua roupa: que
moda é essa? Algumas grandes confecções parecem gostar do trabalho
ilegal e da mão de obra escrava. O que suas práticas evidenciam?

Marca Zara:
denúncia de trabalho escravo, jornada exaustiva
e desrespeito aos direitos trabalhistas

A situação dos trabalhadores envolvidos na cadeia de produção da


marca de roupas Zara, integrante do grupo espanhol Inditex, um dos maio-
res do ramo têxtil, revelou uma série de condições irregulares. Foram en-
contrados 16 trabalhadores sul-americanos, de nacionalidade boliviana,
vivendo e trabalhando em semiescravidão. Sua jornada de trabalho era cum-
prida entre 16 a 20 horas por dia em uma casa, onde também viviam. Sua
remuneração era de R$ 2 por peça, as CTPS não estavam assinadas, sendo
que cada peça produzida era comercializada por R$ 139.

Marca C&A:
terceirização e exploração de mão de obra de imigrantes ilegais

O Ministério Público do Trabalho (MPT) da 2ª Região (Grande São


Paulo e Baixada Santista) alertou 80 fornecedores da rede de lojas C&A
(holandesa) sobre a possibilidade de estarem comprando confecções de
oficinas que exploram mão de obra de imigrantes ilegais latino-americanos
para a produção de roupas em 2005, já que suas etiquetas foram en-
contradas em tais oficinas. Em algumas dessas oficinas clandestinas, foi
constatado trabalho escravo, com jornada exaustiva de trabalho e contra-
tação ilegal de imigrantes.

79
Marca Gregory:
jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho
e indícios de tráfico de pessoas

Durante o lançamento da coleção outono-inverno 2012 da grife de


roupas femininas Gregory, uma equipe de fiscalização da Superintendên-
cia Regional do Trabalho (SRTE/SP) flagrou cerceamento de liberdade,
servidão por dívida, jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho
e indícios de tráfico de pessoas em uma oficina que produzia peças para a
marca, na Zona Norte da capital paulista. O conjunto de inspeções resul-
tou na libertação de 23 pessoas, de nacionalidade boliviana, que estavam
sendo submetidas a condições análogas à escravidão.

As Lojas Marisa:
subcontratação, tráfico de pessoas e servidão por dívida

As Lojas Marisa, uma das maiores do ramo de confecção, terceiriza


a produção de suas roupas e demais peças para várias oficinas. Uma das
oficinas contratadas pela Dranys, prestadora de serviços para as Lojas
Marisa, foi flagrada praticando trabalho escravo. A referida empresa teve
94,5% do seu faturamento entre janeiro de 2009 e fevereiro de 2010 resul-
tante de encomendas feitas pelas Lojas Marisa.
Na Indústria de Comércio e Roupas CSV Ltda., com sede na capital
paulista, a SRTE/SP, em 18 de fevereiro de 2010, encontrou 16 trabalha-
dores bolivianos produzindo em condições análogas às de escravos.
As irregularidades encontradas permitem configurar situação de
trabalho análogo à escravidão: a) não anotação em Carteira de Trabalho
e Previdência Social; b) servidão por dívida e tráfico de pessoas, pois
foram apreendidos cadernos com anotações que remetem diretamente
a cobranças ilegais de passagens da Bolívia para o Brasil, a “taxas” não
permitidas de despesas designadas com termos como “fronteira” e “do-
cumentos” – denunciando, segundo os auditores fiscais, “fortes indícios
de tráfico de pessoas” –, ao endividamento por meio de vales e a descon-
tos indevidos; c) jornada exaustiva de trabalho, com início às 7h e se
estendendo até as 21h.
Também foram detectados graves problemas no campo de saúde e
segurança do trabalho e condições inadequadas nos alojamentos.

80
A posição, os argumentos e o discurso das empresas

As empresas desconheciam a legislação internacional e nacional e fo-


ram ludibriadas pelas empresas terceirizadas, assim como os trabalhadores
são enganados pelos “gatos” e seus patrões? Certamente, estamos falan-
do de dois públicos diferentes. As empresas têm ao seu dispor assessoria
contábil e jurídica, ao contrário dos trabalhadores.
A grife espanhola Zara não aceitou o TAC (Termo de Ajuste de Condu-
ta) que o MPT/SP (Ministério Público do Trabalho) propôs para regulamen-
tar suas relações com as empresas terceirizadas nas quais foi detectada a
prática de trabalho análogo à escravidão, recusou-se a pagar em torno de
R$ 20 milhões por danos morais coletivos e não aceita o fim da terceirização
nem da quarteirização de empresas para prestação de serviços. Ao assinar o
TAC, após exigir redefinição de alguns termos, tornou-se signatária do Pacto
Nacional para Erradicação do Trabalho Escravo em 2011. Entretanto, para
sair da Lista Suja do MTE, contestou junto ao Poder Judiciário/Justiça do
Trabalho a constitucionalidade do Cadastro de Empregadores que tenham
submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo. Semelhante
posição foi adotada pelas Lojas Marisa, que contestam judicialmente os cri-
térios utilizados para inclusão das empresas na lista, os quais afrontariam
os princípios constitucionais da ampla defesa, do devido processo legal, da
presunção da inocência, obtendo sua exclusão da lista, ocorrida em 2010,
o que tem sido contestado pela Advocacia Geral da União. A atitude da em-
presa levou o comitê que administra o Pacto Nacional pela Erradicação do
Trabalho Escravo a suspendê-la, tal como ocorreu com a Zara, desde 2011.4
Ainda que a empresa não tenha controle direto sobre o processo de
produção, é inegável o seu poder econômico sobre a linha de produção, haja
vista que a empresa subcontratada (no caso, a Dranys) destinava 94,5% de
sua produção para as Lojas Marisa, já que este é o valor de financiamento
obtido das encomendas da referida loja. Por outro lado, as Lojas Marisa
determinavam desde a especificação dos produtos até o preço das peças, o
que demonstra o total controle que exerciam sobre o processo de produção.
Nota-se, aqui, o intrincado e complexo processo presente na cadeia produti-
va via rede de contratação e subcontratação atravessada pela precarização
das relações de trabalho.

4 -   O pacto foi criado em 2005, com 292 empresas signatárias. Desde então, 80 empresas foram ex-
cluídas da lista.

81
As Lojas Marisa recorreram à Justiça, obtendo vitória em primeira
instância. Para o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP),
como não havia vínculo de emprego entre a Marisa e os trabalhadores da
oficina, a responsabilidade não pode recair sobre a empresa. O fiscal de tra-
balho teria afrontado a legislação trabalhista, já que ele “extrapolou a sua
competência de fiscalização ao considerar a relação de terceirização como
se de emprego fosse”. Para os auditores fiscais, contudo, o que existe é a
simulação de contrato de fornecimento, uma vez que a empresa mantém a
ingerência sobre todos os processos que envolvem a produção.
Embora tenha contestado os critérios da inclusão de empresas no cadas-
tro do MTE (Lista Suja do Trabalho Escravo) e manifestem sua expectativa de
que o Supremo Tribunal Federal considere a lista inconstitucional, as Lojas
Marisa declararam que apoiam a Lista Suja e ratificam sua importância para
a erradicação do trabalho escravo no Brasil. Que discurso inconsistente é esse?
Não seria um discurso ambivalente para dialogar com os seus consumidores
e afastar a sua imagem de uma marca associada com o trabalho escravo?
As Lojas C&A, por sua vez, embora tenham recebido denúncias desde
2006, apenas em 2012 decidiram assinar Pacto Nacional pela Erradicação
do Trabalho Escravo.
No setor sucroalcooleiro, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo
(MPT-SP) ajuizou em outubro de 2012 sete ações civis públicas solicitando a
cassação definitiva do “Selo de Responsabilidade – Empresa compromissada”,
concedido pelo governo federal a sete empresas que assinaram o Compro-
misso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açú-
car, portanto, deveriam assegurar o cumprimento da legislação trabalhista.
O MPT aponta vários problemas na metodologia usada para concessão do
selo, como a falta de consulta aos órgãos de fiscalização e realização de au-
ditorias durante as entressafras, portanto, na ausência dos trabalhadores,
quando não podem ser constatadas as irregularidades trabalhistas.

Trabalho análogo à escravidão:


o Sudeste encontra-se com o Nordeste
O mercado de trabalho brasileiro modernizou-se sem se livrar da
pesada mentalidade escravagista que ainda faz permanecer no país moda-
lidades de trabalho escravo e de trabalho análogo à escravidão. As formas
de precarização do trabalho introduzidas pela reestruturação produtiva
– trabalho parcial, terceirização da mão de obra, trabalho temporário,

82
trabalho a domicílio – somaram-se à existência de um mercado de tra-
balho informal, no qual se localiza 28,2% da força de trabalho brasileira
economicamente ativa (IBGE, 2009). Como traço marcante desse merca-
do, vale destacar que a precariedade coexiste com a ilegalidade (trabalho
escravo e trabalho infantil).
Se esse quadro desafia a ética do trabalho, mais desafiador ainda
é se defrontar com a morte por exaustão, quando os trabalhadores são
submetidos a jornadas exaustivas de trabalho e pagamento por produ-
tividade. Trata-se de superexploração de trabalho exercida pelas usinas
de cana-de-açúcar da região contra os trabalhadores rurais na região de
Ribeirão Preto (COSTA; NEVES, 2005; COSTA, 2008; COSTA; ARANTES,
2009), interior do estado de São Paulo (envolvendo, entre outras usinas,
a do grupo europeu Cosan e a Usina Maringá, do Brasil).

Os trabalhadores no eito da cana


Fotos: Acervo Cândida da Costa

83
A situação reportada foi denunciada pela Pastoral do Migrante do
município de Guariba/SP e investigada pela Relatoria Nacional do Direito
Humano ao Trabalho/Plataforma Brasileira dos Direitos Humanos, Eco-
nômicos, Sociais e Culturais e Ambientais – Plataforma DHESCA Brasil,
sendo relacionadas tais mortes à exaustão pelo trabalho, destacando-se nas
diversas investigações realizadas:5

5 -   Segundo relatório elaborado pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho. Cf. COSTA;
NEVES, 2005, investigação realizada em Ribeirão Preto/SP e região e Missão de Seguimento e Monitora-
mento em 2006 e em 2008,no âmbito da Missão Internacional sobre os agrocombustíveis no Brasil, que
investigou os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos
humanos à alimentação, ao trabalho e ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos
trabalhadores rurais no Brasil, realizada por FIAN Internacional – For theright to adequate food; MISEREOR
– Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvolvimento; EED – Evangelis-
cher Entwicklungsdienst, Pão para o Mundo, ICCO – Organização Intereclesiástica para a cooperação ao
desenvolvimento e HEKS, com a participação de delegados, Rede de Pequenos Produtores da África Ocidental
(ROPPA), o Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo e expertos independentes (www.dhescbrasil.org.br).

84
a) superexploração dos trabalhadores, ocasionada por pagamento por
produção, que leva os trabalhadores a produzir além de seus limites,
pela jornada de trabalho de 10 horas/dia, pelas metas de produção
fixadas em 10/12 toneladas por dia; pelos baixos salários, pela ter-
ceirização das atividades e pela não pesagem da produção, o que leva
os trabalhadores a não ter controle da real produção do seu trabalho
e da justeza do salário recebido;
b) deficiência na intermediação e fiscalização das relações de trabalho,
expressa na permanência de condições insalubres e periculosas no am-
biente de trabalho6 (ausência de condições para armazenamento da ali-
mentação, água inadequada, equipamentos de proteção individual em
número insuficiente ou em condições inadequadas, ausência de ambu-
lância e equipamentos de primeiros socorros) e no desrespeito à legis-
lação nacional e aos tratados internacionais de direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário (aliciamento de trabalhadores por “gatos”,
intimidação dos trabalhadores, não emissão de Comunicação de Aciden-
te de Trabalho – CAT, não pagamento integral das verbas rescisórias);

Os (as) trabalhadores(as) mutilados(as) com danos à saúde


Fotos: Acervo Cândida da Costa

c) práticas antissindicais, expressa na política da empresa de ameaças aos


trabalhadores que denunciam irregularidades e na recusa em contratar
ex-dirigentes sindicais;

6 -   Os acidentes de trabalho nas usinas de açúcar e álcool ultrapassaram os da construção civil. Os dados
do Ministério da Previdência Social são de 2006 e indicam que nas usinas ocorreram 14.332 acidentes de
trabalho, contra 13.968 na construção civil (Folha Online, 5 de maio de 2008).

85
d) péssimas condições de moradia e alojamentos precários.

Diante do exposto, concluímos que o conjunto das condições a que


os trabalhadores estão submetidos concorre para que tanto as mortes
quanto a mutilação/agravos à saúde dos trabalhadores sejam recorrentes
(ver quadro 1 a seguir).7

7 -   Na legislação previdenciária brasileira, os acidentes de trabalho compreendem as lesões, as


doenças profissionais, as doenças do trabalho e os acidentes de trajeto, além de outras situações
previstas na legislação.

86
QUADRO 1
OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA
(2004 a 2007)
.

Nome Idade Causa

José Everaldo Galvão. Faleceu em abril de 38 anos, natural de Parada


1
2004, no hospital de Macatuba (SP). Araçuaí (MG) cardiorrespiratória

Moises Alves dos Santos. Faleceu em abril 33 anos, natural de Parada


2
de 2004, no hospital de Valparaíso (SP). Araçuaí (MG) cardiorrespiratória

Manoel Neto Pina. Faleceu em maio de 34 anos, natural de Parada


3
2004 no hospital de Catanduva (SP). Caturama (BA) cardiorrespiratória

Lindomar Rodrigues Pinto. Faleceu em 27 anos, natural de Parada


4
março de 2005, em Terra Roxa (SP). Mutans (BA) cardiorrespiratória

Ivanilde Veríssimo dos Santos. Faleceu em 33 anos, natural de


5 Pancreatite
julho de 2005, em Pradópolis Timbiras (MA)

Valdecy de Paiva Lima. Faleceu em julho


38 anos, natural de Acidente cerebral
6 de 2005, no Hospital São Francisco de
Codó (MA) hemorrágico
Ribeirão Preto (SP).

José Natalino Gomes Sales. Faleceu em 50 anos, natural de


7 Parada respiratória
agosto de 2005 no hospital de Batatais (SP). Berilo (MG)

Domício Diniz. Faleceu em setembro 55 anos, natural


8 de 2005, em trânsito para hospital de de Santana dos Desconhecida
Borborema (SP). Garrotes (PE)

Valdir Alves de Souza. Faleceu em outubro


9 43 anos Desconhecida
de 2005 em Valparaíso (SP).

45 anos, natural de
10 José Mario Alves Gomes Desconhecida
Araçuaí (MG)

Hemorrágico pulmonar
55 anos, natural de
11 Antonio Ribeiro Lopes e cardiopatia dilatada
Berilo (MG)
descompensada

Josefa Maria Barbosa Vasconcelos. Faleceu


12 em 13 de abril de 2006 no Hospital Regional 42 anos Desconhecida
de Teodoro Sampaio.

Juraci Santana. Faleceu em junho de 2006, 37 anos, natural de


13 Desconhecida
em Jaborandi (SP). Elesbão Veloso (PI)

14 Maria Neusa Borges, 54 anos Desconhecida

(continua)

87
QUADRO 1
OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA
(2004 a 2007)
.

(conclusão)
Nome Idade Causa

Celso Gonçalvez. Faleceu em julho de 2006


15 41 anos Desconhecida
em Taiaçu (SP).

Oscar Almeida. Faleceu em setembro de


16 48 anos Desconhecida
2006 em Itapira (SP).

Infarto do miocárdio
José Pereira Martins. Faleceu em março 51 anos, natural
17
de 2007. de Araçuaí (MG)

Lourenço Paulino de Souza. Faleceu em 20 anos, natural de


18 Desconhecida
abril de 2007. Axixá (TO)

José Dionísio de Souza. Faleceu em junho 33 anos, natural de


19 Desconhecida
de 2007. Salinas (MG)

Púrpura
Edilson Jesus de Andrade. Faleceu em 28 anos, natural de
20 trombocitopênica
setembro de 2007, em Guariba Tapiramutá (BA)
idiopática
Fonte: Ir. Inês Facioli/Pastoral Migrante Guariba/São Paulo.8

Observe-se que, entre os trabalhadores mortos, várias causas das


mortes foram associadas a parada cardiorrespiratória, acidente vascu-
lar e causas desconhecidas, atingindo trabalhadores de até 20 anos de
idade, de várias partes do Brasil, envolvidos no corte da cana-de-açúcar.
Destes, seis são oriundos do Vale do Jequitinhonha (MG).
Entretanto, inexiste legislação no Brasil sobre este tema.9 No Japão,
foram 10 anos para reconhecer a existência da morte súbita no trabalho,
ocasionada por sobrecarga de trabalho (karoshi), o qual é descrito na

8 -   Os dados contidos no quadro correspondem ao levantamento feito pela Pastoral do Migrante de Guariba/
SP. O Hospital Regional de Teodoro Sampaio localiza-se em SP, assim como os municípios de Pradópolis e
Guariba. Embora monitore a situação dos trabalhadores migrantes, a Pastoral do Migrante de Guariba/SP
não colheu todas as informações in loco, recolhendo algumas a partir de denúncias na imprensa. Em alguns
casos, como os trabalhadores já chegaram mortos aos hospitais, a causa foi dada como desconhecida.
9 -   Atualmente, tramita projeto de lei (PL 234/07 no Congresso Nacional, de autoria do deputado Federal
João Dado (PDT/SP) que define a atividade dos cortadores de cana como penosa, em geral, ou insalubre,
se for exercida sem os equipamentos de proteção adequados, proíbe horas extras e o pagamento de salário
por produção. A proposta acrescenta artigo à Lei do Trabalho Rural (Lei 5.889/73). A NR 17 não se aplica
ao trabalhador rural, mas aos digitadores (trabalho repetitivo). A Portaria MTE nº 86, de 3 de março de
2005, revogou a Portaria MTb nº 3.067, de 12 de abril de 1988, e institui a NR-311, para disciplinar as
condições de trabalho no meio rural, perdendo vigência as normas regulamentadoras rurais(NRRs).

88
literatura sociomédica como um quadro clínico extremo (ligado ao es-
tresse ocupacional) com morte súbita por patologia coronária isquêmica
ou cérebro-vascular.
Os estudos de Dal Rosso no Brasil (2006, p. 31) são elucidativos em
torno da questão, embora não restritos ao trabalho no setor sucroalcoo-
leiro, ao mostrar a relevância da jornada de trabalho sob várias perspec-
tivas: “interfere na possibilidade de usufruir ou não de mais tempo livre;
define a quantidade de tempo durante o qual as pessoas se dedicam a
atividades econômicas; estabelece relações diretas entre as condições de
saúde, o tipo e o tempo de trabalho executado”.
A morte dos trabalhadores pode ser associada à união entre jornada
exaustiva e intensificação do trabalho, forçada pelo pagamento por pro-
dutividade. O perigo dessa dupla associação é advertido por Dal Rosso
(2006, p. 32): “Intensificação do trabalho e alongamento da jornada são
condições que podem conviver juntas enquanto essa união não colocar em
risco a vida do trabalhador por excesso de envolvimento com o trabalho”.

Desafios, dificuldades e sugestões para erradicação


do trabalho escravo

Há muitos desafios que precisam ser superados, envolvendo o papel


do Estado, da sociedade e do Poder Judiciário, assim como do empresa-
riado. O Plano Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo prevê
várias ações integradas entre órgãos nacionais, o que já demonstra um
passo importante no sentido de envolver diversos setores do Estado e da
sociedade civil no combate e erradicação do trabalho escravo.
O Poder Judiciário brasileiro, frequentemente, não favorece os di-
reitos dos trabalhadores, já que predominam posturas conservadoras e
politicamente liberais entre juízes, o que figura como uma barreira na
erradicação do trabalho escravo. Embora os procuradores do Trabalho
denunciem a prática ilegal e sejam propostas as Ações Civis Públicas e
as denúncias criminais, significativo número de magistrados brasileiros
opta por desconhecer a existência do ilícito penal e trabalhista, absolven-
do os acusados. Esse cenário sedimenta a impunidade, tomando como
exemplo que, em 1999, 600 pessoas foram resgatadas e apenas dois
responsáveis foram presos. A sanção penal tem sido insuficiente. Me-
nos de 10% dos envolvidos em trabalho escravo no sul-sudeste do Pará,

89
entre 1996 e 2003, foram denunciados por esse crime, de acordo com a
Comissão Pastoral da Terra.
Há que se destacar ainda, enquanto obstáculo a ser enfrentado, a mo-
rosidade legislativa em torno da questão e nos indagar por que o Congresso
Nacional levou 15 anos para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição
do Senado (PEC 438/01), em maio de 2012, que permite a expropriação de
imóveis rurais e urbanos onde a fiscalização encontrar exploração de tra-
balho escravo. Esses imóveis serão destinados à reforma agrária ou a pro-
gramas de habitação popular. Ainda assim, a votação só se tornou possível
remetendo para o futuro a discussão de uma lei que defina o que é condição
análoga à de escravo e os trâmites legais da expropriação.
Que sugestões poderiam ser dadas para enfrentar a questão, ou se
trata de tema insolúvel? Entende-se que o enfrentamento da situação
precisa ser tomado como questão de interesse de toda a sociedade, exi-
gindo medidas de âmbito nacional voltadas para a decisiva erradicação
do trabalho escravo no território brasileiro:
a) levantamento de dados sobre trabalho escravo a ser realizado em todo
o país, que propiciem um quadro preciso da natureza, incidência e
difusão do trabalho escravo no Brasil;
b) movimento de conscientização e de pressão por meio de um programa
de educação, mobilização e organização de trabalhadores escravizados;
c) aumento do valor das indenizações previstas na lei e das punições dos
aliciadores e proprietários de imóveis rurais e urbanos que se utilizam
de trabalho escravo;
d) aplicação de programas sociais como o Programa de Renda Mínima
e outros;
e) realização de uma reforma agrária que possibilite uma eficaz dis-
tribuição de terras na sociedade, com a desapropriação das proprie-
dades improdutivas e expropriação daquelas com incidência de tra-
balho escravo;
f) união de esforços para organizar os trabalhadores aliciados em vá-
rios níveis e elaborar programas de formação, reabilitação e proteção,
inclusive das testemunhas, contra os aliciadores e proprietários de
imóveis que usem mão de obra escrava;
g) aumento da concessão de empréstimos de bancos públicos para cul-
tivo da terra por parte de trabalhadores resgatados, garantindo-lhes a
posse da terra onde eram explorados e condições de trabalho dignas;
h) prisão, julgamento e punição de todos os responsáveis pelo crime de
trabalho escravo;

90
i) eliminação de todas as formas de exploração do trabalho infantil;
j) adoção de programa de qualificação e requalificação de trabalhadores
atingidos pela mecanização das usinas de açúcar.

Considerações finais

A questão central a ser encarada é como enfrentar e desconstruir


mentalidades que não possibilitam a construção de uma cultura de res-
peito aos direitos humanos, demolir uma cultura escravagista que rein-
venta formas de plantar desigualdades entre os iguais perante a lei e de
como reposicionar-se em um mundo no qual a destituição dos direitos
sociais e o ataque frontal aos direitos dos trabalhadores firmam uma
cultura de precarização dos direitos que invade o imaginário social. Cada
vez mais, é necessário opor a esta tendência conservadora outra cultura
na qual a globalização de direitos ganhe centralidade.
Há um simulacro a ser desmascarado sobre as condições de traba-
lho, da qual tomamos exemplarmente o setor sucroalcooleiro, o que tam-
bém nos desafia a sofisticar o conceito de trabalho escravo contempo-
râneo. Capatazia, humilhação no trabalho, retenção de CTPS por safra,
selo social de qualidade: que modernidade é essa que consagra alianças
entre o padrão moderno e arcaico de desenvolvimento presente no agro-
negócio mundial, sob o signo da competitividade nacional e internacional
manchada pelo sangue, pela mutilação, por agravos de saúde e dor dos
trabalhadores e trabalhadoras? Esta não seria a mais moderna forma
de trabalho análogo à escravidão, escondendo sob a manta do trabalho
formal as modalidades mais antigas de escravização dos trabalhadores?
Questionamento por empresas dos critérios para existência do ca-
dastro de empresas que praticam trabalho escravo no Brasil, morosidade
e indiferença da Justiça brasileira, impunidade. Quanto tais questões
têm a nos dizer a respeito de uma mentalidade refratária aos direitos e
à justiça social?
Os consumidores brasileiros e do mundo inteiro têm o direito de ter
acesso à desconstrução do discurso ambivalente das empresas que prati-
cam trabalho escravo fora e dentro de seus países e atestam a qualidade
dos seus produtos dentro dos supermercados e adentram os seus lares.
Entrementes, as empresas contestam sua inclusão na Lista Suja do
Trabalho Escravo, alegando a inconstitucionalidade dos critérios de sua
inclusão, não obstante sejam translúcidas, a nosso ver, as irregularidades

91
das condições e dos contratos de trabalho constatados, à luz da legislação
vigente e das normativas de convivência social, segundo o direito à vida e
ao trabalho. O próprio Legislativo brasileiro declarou não ter clareza sobre
o que é trabalho análogo à escravidão, apesar das definições da ONU, OIT
e do Código Penal brasileiro. Talvez os legisladores devessem perguntar
aos trabalhadores brasileiros que trabalham de sol a sol em condições
adversas de trabalho e com sua dignidade aviltada o que é preciso para
ser reconhecida tal situação – eles têm muito a nos dizer: com seus rostos
marcados pela desumanidade das condições em que são colocados em
suas terras de origem e nas quais são obrigados a trabalhar.
Para cada um deles e para cada uma delas, o trabalho como ativi-
dade de transformação do mundo, interligada com a dignidade humana e
de libertação dos trabalhadores, parece uma ideia cada vez mais distante.
Ou será que precisamos de mais cem anos para abolição da men-
talidade e prática escravagista no Brasil?

Referências

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nado Federal, 1988.

BRASIL. Lei nº 8.213, de 24 de julho de 1991. Dispõe sobre os planos de


benefícios da Previdência Social e dá outras providências. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 ago. 1991. Disponí-
vel em: <http://www010.dataprev.gov.br/sislex/paginas/42/1991/8213.
HTM>. Acesso em: 4 dezembro 2011.

BRASIL. Lei no 10.803, de 11 de dezembro de 2003.Altera o art. 149 do


Decreto-Lei n o 2.848, de 7 de dezembro de 1940 - Código Penal, para
estabelecer penas ao crime nele tipificado e indicar as hipóteses em que
se configura condição análoga à de escravo. Disponível em: <https://
www.planalto.gov.br/ccivil_03/Leis/2003/L10.803.htm>. Acesso em:
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de 12 de maio de 2011. Enuncia regras sobre o Cadastro de Empregadores
que tenham submetido trabalhadores a condições análogas à de escravo

92
e revoga a Portaria MTE nº 540, de 19 de outubro de 2004. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13
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cional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açúcar.
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Cândida da Costa é doutora em Ciências Sociais e professora da


Universidade Federal do Maranhão. É autora de numerosos artigos
e possui vários livros publicados. Cursa atualmente o Pós-doutorado
na Universidade de Brasília (UnB), no Programa de Pós-Graduação
em Sociologia.

95
Praça Teófilo Otoni - Serro (MG)
Foto: Delmo Vilela

96
Construção de metodologias participativas com
populações quilombolas: formação política e geração de
trabalho e renda – dilemas e perspectivas
Carlos Roberto Horta

As políticas de inclusão produtiva que entraram no programa de


diversos setores do poder governamental no Brasil, a partir da segunda
metade dos anos 1990, procuraram responder, de início timidamente,
aos processos de exclusão, perda de oportunidades de absorção pelo
mercado de trabalho, desemprego, que decorriam da nova ordem econô-
mica e de suas consequências sobre a sociedade. A economia solidária
foi uma das alternativas, talvez a mais propalada entre as políticas de
inclusão laboral e de geração de renda que o governo encontrou, para
reduzir o impacto destrutivo que as políticas monetaristas trouxeram
para o trabalho da população.
Nessa área de atividades, geração de postos de trabalho, o Núcleo
de Estudos sobre o Trabalho Humano da Universidade Federal de Minas
Gerais (NESTH/UFMG) executou diversos projetos, mantendo sempre o
olhar crítico, no questionamento às políticas de governo que geram postos
de trabalho, mas não colocam os direitos dos trabalhadores, como o de se
aposentarem, de terem férias e mesmo o descanso semanal remunerado.
É desnecessário dizer que o adjetivo “humano” que integra o nome do nú-
cleo implica, necessariamente, a observância do direito dos trabalhadores a
terem direitos. Assim, é possível dizer que a economia solidária corre o risco
de produzir ou naturalizar a precarização, o trabalho desprovido de direitos,
uma vez que pode parecer um paliativo para o problema do desemprego,
mas cria um problema social, a médio e longo prazos, configurando um
dilema que tem repercussões concretas na vida da sociedade.
Diante disso, o NESTH procurou desenvolver, testar e aplicar técnicas
que encaminhassem os grupos apoiados pelos projetos a uma construção
de cooperativa que tivesse condições de se desenvolver e de permanecer
no mercado, mas tendo a marca da formação cidadã, ou formação política,
que propiciasse a autoconstrução enquanto sujeito político coletivo dessas
comunidades em fronteira de exclusão. A discussão desses princípios e
das técnicas de organização dos grupos fez com que o NESTH organizasse,
em 2008, um seminário internacional sobre a construção de direitos dos
trabalhadores da economia solidária.

97
Já a partir de 2004, o crescimento do número de projetos na área de
políticas públicas levou o Núcleo a se estruturar mais na pesquisa e na
extensão, para melhor desempenhar suas funções. O NESTH, que já havia
se consolidado como núcleo de pesquisa, criou, em 2005, o Observatório do
Trabalho da UFMG, para ser sua vertente mais conectada às atividades de
pesquisa e, em 2006, para desenvolver projetos especificamente de geração
de trabalho e renda e de inclusão cidadã, criou o Laboratório de Tecnologia
Social. Funcionando como dois braços, ambos passariam a ter uma perma-
nente interação, com vistas a produzir e a desenvolver métodos e a produzir
conhecimento comprometido com a questão do trabalho e da cidadania.
No caso do Observatório, havia uma urgência, vinda da realidade de
Minas Gerais, que é a maior província mineral do Brasil, e que tem a indús-
tria da mineração entre as que mais provocam destruição, tanto ambiental
quanto para a saúde dos seus trabalhadores e, mesmo, para a saúde da
comunidade nos municípios em que as mineradoras atuam. Além disso, era
preciso criar formas de organização, proteção dos trabalhadores e reconhe-
cimento/formalização da pequena produção mineral informal, problema que
atinge diversos países da América Latina.
Na área da indústria da mineração, o NESTH/Observatório do Tra-
balho desenvolveu alguns projetos inovadores, sempre contemplando os
garimpeiros e demais trabalhadores do setor, que, normalmente, vivem em
condições sub-humanas, enfrentando enormes desigualdades no campo da
cidadania, violência sustentada por empresas que utilizam métodos ilícitos
para disputar as áreas de garimpo, entre outros problemas.
Os trabalhos do NESTH nessa área tiveram início ainda em 1999, com
a elaboração de projetos que vieram a se concretizar somente após 2003.
É possível apontar, entre os projetos ligados à vida dos trabalhadores do setor
mineral, o Projeto COOPERMINAS como inovador, uma vez que a aplicação
de metodologias participativas trouxe para aqueles trabalhadores, em sete
municípios do estado de Minas Gerais, melhores condições de se organizarem
em associações e cooperativas e de interlocução com os poderes locais, além
de maior presença junto a órgãos governamentais ligados ao setor mineral,
como o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
O projeto contou com a produção de conhecimento sobre as realidades
específicas de garimpeiros e de trabalhadores da extração de rochas das
localidades de Coronel Murta, Araçuaí, Itinga, Joaquim Felício, Mariana,
Catas Altas da Noruega e São Tomé das Letras, processo sempre parti-
cipativo e acompanhado pelos trabalhadores, seguido de reuniões com a
participação dos prefeitos e outras referências de poder e influência local

98
(vereadores, representantes de agências estaduais e federais ligadas ao setor
mineral ou outros de procedência daqueles trabalhadores, grande parte dos
quais se compõe de migrantes). Sobre esse projeto, foi produzido, além de
relatórios, um filme disponibilizado no site do NESTH.
Outro projeto desenvolvido no setor mineral, um dos maiores da expe-
riência do NESTH, foi a Implantação da Agenda 21 Mineral, que trabalhou
em seis municípios brasileiros: Tenente Ananias, no Rio Grande do Norte;
Pimenta Bueno, em Rondônia; Campos Verdes, em Goiás; Vila Pavão, no
Espírito Santo; e, em Minas Gerais, os municípios de Coromandel e Nova
Era. Em quatro desses municípios, o trabalho era ligado aos garimpeiros e,
nos estados de Rondônia e Espírito Santo, o projeto se realizou com traba-
lhadores da extração de argila e de rochas decorativas.
O trabalho se desenvolveu, primeiramente, com a produção de diag-
nósticos geológicos e, em seguida, com a elaboração de uma cartilha por
município, com esclarecimentos mais básicos sobre a questão da minera-
ção e seus impactos sociais e ambientais naquele município. Um terceiro
momento do trabalho foi a construção de outro diagnóstico, mais completo,
com a participação dos trabalhadores, contemplando, além da parte geoló-
gica, a questão econômica e socioambiental.
O quarto momento do projeto foi o da construção do Fórum Agenda 21
Mineral, em cada um dos seis municípios envolvidos, com representantes
de todos os setores de alguma forma envolvidos com a mineração, incluindo
representantes comunitários, associações, sindicatos, escolas e o poder pú-
blico local. O quinto momento constou da capacitação desses fóruns locais,
com a elaboração participativa de uma agenda que o fórum deveria cumprir.
Característica comum a todos esses trabalhos, a utilização de metodo-
logias participativas ganhou mais consistência nas formas de desenvolver a
construção de conhecimento das comunidades, dos grupos que eram iden-
tificados como destinatários de políticas específicas, já que o conhecimento
assim construído encontrava relação clara com o cotidiano dessas populações.
Nos últimos seis anos, projetos do NESTH passaram a incluir a questão
socioambiental enquanto decisiva e integrante da produção de políticas pelas
comunidades que são trabalhadas com essas metodologias. Um dos projetos
mais emblemáticos nessa área foi executado para a Prefeitura de Congonhas,
em Minas Gerais, numa parceria que envolveu o NESTH e a Universidade
Federal de São João del-Rei, por intermédio do seu Campus Alto Paraope-
ba. Trata-se da Implantação do Observatório Socioambiental de Congonhas.
Esse projeto seguiu etapas semelhantes àquelas desenvolvidas para a Agen-
da 21 Mineral, com alguns aperfeiçoamentos no que toca aos processos de

99
envolvimento da população e no maior alcance de meios de comunicação
disponíveis. O objetivo maior foi voltado para a construção coparticipada de
subjetividades políticas coletivas em um município seriamente impactado por
atividades de mineração e de siderurgia crescentes (o município de Congonhas
tem a perspectiva de dobrar o seu número de habitantes em 25 anos, devido
ao processo de aceleração do desenvolvimento econômico). Com a institucio-
nalização desse processo, apoiado em permanente monitoramento e renovação
coparticipada de informações, o objetivo será dotar a população de um instru-
mento para sua proteção e seu desenvolvimento na construção da cidadania.
Dois outros projetos envolvem qualificação e formação cidadã relacio-
nada com a questão ambiental: um deles se dirigiu aos trabalhadores da
agricultura familiar no município de Betim, contemplando três assentamen-
tos, e o outro vai capacitar para o trabalho em turismo um grupo de jovens
quilombolas da região de Conceição do Mato Dentro, fortemente atingida
pelas mineradoras. Essas comunidades quilombolas receberão qualificação
para a proteção ambiental e a autossustentabilidade, com o objetivo de for-
talecimento de sua identidade e de sua subjetividade política, para a prática
da cidadania, de forma integrada com a capacitação para geração de renda.
Trabalhar com as comunidades quilombolas, com os grupos de garim-
peiros, com trabalhadores informais e com aqueles que não conseguem ser
trabalhadores, os contingentes de excluídos, é algo que indica uma forte
mudança em relação ao foco inicial do NESTH, que era ligado às análises
do processo de trabalho na indústria, ao sindicalismo e à saúde do traba-
lhador. Na movimentação do foco de atenções e ações do grupo da UFMG,
passar a trabalhar com as fronteiras da exclusão, principalmente em se
tratando de um período de implantação de políticas neoliberais, aponta para
uma identificação e envolvimento das opções teóricas e metodológicas com
a efetiva história do cotidiano desses grupos.
A reestruturação produtiva, associada a um conjunto de políticas vol-
tadas para a proteção do capital financeiro e de todo um conjunto de refor-
mas neoliberais, expõe, entre outras consequências, a exclusão e a perda de
qualidade de vida das classes trabalhadoras e de vários setores populares
em geral (ANTUNES, 2006). Nesse contexto, o desenvolvimento de políticas
de inclusão, políticas de geração de trabalho (ainda que informal, como no
caso da economia solidária), passa a se tornar mais acessível e a constituir
metas que se concretizam em projetos e programas a serem executados.
As transformações ocorridas na economia, no contexto da hegemo-
nia neoliberal, resultam em mudanças que teriam, então, levado o núcleo a
acompanhar uma espécie de retrocesso na vida dos trabalhadores, envolvendo

100
a sua qualidade de vida, as suas condições de conquistarem cidadania, renda
digna, desenvolverem suas potencialidades e preservarem sua identidade,
principalmente em se tratando de trabalhadores e de populações tradicionais.
Essa transformação no foco de atenção das ações do núcleo significou que,
sem que ele deixasse de estar atento aos trabalhadores do setor formal e aos
movimentos sindicais, as suas ações passavam a incluir, necessariamente,
aqueles que não conseguiam ser trabalhadores. São setores que, certamente,
vivem dificuldades de acesso a uma cidadania completa, considerando que
ter os direitos da classe trabalhadora corresponde a ter um lugar de cidadão.

Aprendendo mais com os quilombolas

Os projetos quilombolas que o NESTH começou a desenvolver em 2007


construíram procedimentos metodológicos específicos junto a essas popula-
ções dos povoados resultantes de uma abolição incompleta da escravidão no
Brasil. Como já foi dito antes, alguns pontos básicos dessas metodologias
já haviam sido experimentados pelo núcleo, em projetos ligados a outras
comunidades, como os povoados garimpeiros em Minas Gerais.
Nessa vertente metodológica, a preocupação maior tem sido a de
aperfeiçoar e consolidar, sempre buscando a inovação, os processos que
envolvem o comprometimento das populações na busca de enfrentar os
seus próprios problemas.
De 436 comunidades afrodescendentes quilombolas, cadastradas pelo
Centro de Documentação Elói Ferreira da Silva (CEDEFES) em 2008 no es-
tado de Minas Gerais, 228 se localizam nas regiões do Jequitinhonha e Norte
de Minas. Muitas dessas comunidades têm a sua vida afetada pela migração
sazonal, que significa a ida de grande quantidade de seus trabalhadores para
a lida na agricultura em outras regiões, a partir do mês de maio, com regresso
em outubro ou novembro. Ao procurar conhecer e acompanhar, com a utiliza-
ção de diferentes instrumentos metodológicos e a participação de pessoas das
comunidades quilombolas, a realidade dessas populações, o Observatório do
Trabalho da UFMG teve a oportunidade de confirmar alguns indicadores que
apontam decisivamente para a precarização que atinge não apenas o trabalho
e as relações de trabalho, mas se estende à qualidade e mesmo às condições
de vida. Como se trata de um projeto de políticas públicas, que visa à partici-
pação da comunidade na construção do conhecimento de suas condições de
existência, de suas vocações, projeções desejantes, possíveis construções de
cadeias produtivas e formas de inclusão laboral, ao se focalizar a questão dos

101
migrantes, não se discutem apenas os níveis de renda anteriores e posteriores
à migração sazonal, mas também aspectos do capital humano e social, possí-
veis qualificações obtidas na experiência migratória, por exemplo, elementos
que podem contribuir para consolidar tecnologias sociais de inclusão.
Assim, a pesquisa obteve informações que revelaram um quadro de
migrações sazonais que afeta decisivamente a vida das comunidades e a
sua própria condição de construírem sua subjetividade política coletiva,
suas associações, interlocutores em igualdade de condições, do poder pú-
blico, para garantirem a produção das políticas a que elas têm direito, por
dispositivo constitucional referente às populações indígenas e quilombolas.
No caso da migração para o corte da cana e para a colheita do café,
a análise das comunidades, voltada para as repercussões nessas áreas,
procura identificar em que medida a migração representa um empobreci-
mento ou enriquecimento para as sociedades locais, experimentando apli-
cação e ajuste de metodologias e tecnologias de inclusão social.
O que de fato se encontrou apresenta um panorama recorrente na
maioria das comunidades quilombolas daquelas regiões do estado: os mé-
todos de imersão possibilitaram registrar uma significativa maioria de
domicílios fechados entre os meses de maio e outubro/novembro, bem
como significativa queda na qualidade de vida para os moradores que
permanecem no local, na sua maioria, idosos, mulheres e crianças. A partir de
junho, até ao final de outubro, observou-se que diminui sensivelmente o rit-
mo do trabalho de organização e consolidação de ações que exigem decisões,
tanto da comunidade quanto das famílias, que evidenciam a ausência de seus
homens em condições de trabalhar e de decidir. Em seis das 15 comunidades
quilombolas do município de Chapada do Norte, por exemplo, foi necessário
encaminhar para órgãos governamentais a demanda por cestas básicas, uma
vez que havia sérios problemas de segurança alimentar naquelas comunida-
des. Ficou claro, para a pesquisa, que a remessa de dinheiro para as famílias
que permanecem na comunidade acontece de forma quase insignificante.
Entre os impactos mais visíveis das migrações, como já foi referido,
existe alguma descontinuidade nesse processo de organização da comuni-
dade para a defesa de seus interesses, com a ausência periódica de vários
dos seus moradores, que lotam caminhões e ônibus, criando rotas clan-
destinas, utilizando veículos sem condições adequadas para transporte de
passageiros, sobretudo a partir de maio e junho, com retorno de outubro
a dezembro, na maioria dos casos.
Há outros problemas que resultam das migrações: no retorno dos
trabalhadores, constam informações dos agentes de saúde, quando estes

102
existem nas comunidades, com registro de alta incidência de doenças se-
xualmente transmissíveis, incluindo um alarmante índice de contaminação
por HIV, em um dos povoados quilombolas do município de Chapada do
Norte, na região do Jequitinhonha. Mas o principal impacto se associa a
uma continuidade do processo de precarização e exclusão do trabalho e
dos trabalhadores, que atinge de forma pesada as comunidades tradicio-
nais (tanto quilombolas como indígenas), marcando uma sucessão de ca-
rências que tornam imprescindível a construção de tecnologias sociais de
inclusão produtiva que tenham suficiente maleabilidade para se adequa-
rem às características, às necessidades e aos desejos de cada comunidade
(HORTA; COSTA; ROLDAN, 2007).
Para se construírem dentro dessas exigências, os procedimentos
devem estar solidamente comprometidos com a construção participativa
da subjetividade social para uma projeção emancipatória (HERNANDEZ,
2005, p. 109-110). Elaborações conceituais voltadas para uma autotrans-
formação social participam desse processo e introduzem ações localizadas
de inclusão universitária para os jovens quilombolas, além de encaminhar
cursos de capacitação apoiados na identificação de demandas realizada
pelo projeto. Com as ações em processamento há relativamente pouco
tempo, é prematuro avaliar os resultados.
Outro ponto que pesa nessa busca de uma observação mais segura
é o caráter quase “piloto” desses projetos. As políticas públicas para essas
populações ainda não se articulam em uma estratégia de totalidade, ao mes-
mo tempo que a destinação de recursos para essas políticas não atende as
efetivas necessidades geradas por um processo que discrimina, há séculos,
as suas comunidades. Assim, um dos problemas da efetivação dos processos
de inclusão dessas populações passa a ser a descontinuidade, reforçada por
questões de ordem cultural, pelas questões de obstáculos articulados com a
política local e até pelas mudanças de prioridades em órgãos decisórios dis-
tantes do campo de trabalho. A experiência tem mostrado que uma forma de
enfrentar esses dilemas passa pelo fortalecimento político das comunidades.
É compreensível que uma comunidade, seja de moradores de uma
região seja de um extrato ocupacional caracterizado pela sazonalidade,
tenha uma probabilidade maior de envolvimento e comprometimento na
solução de seus problemas se tiver se envolvido na identificação e na dis-
cussão de alternativas sobre eles.
Nas comunidades quilombolas que foram trabalhadas pelo NESTH,
a utilização de metodologias participativas foi marca essencial da atua-
ção do núcleo.

103
Construção de metodologias participativas:
experiência e consolidação

A utilização e o aperfeiçoamento de metodologias participativas desen-


volvidas pelo Laboratório de Tecnologia Social do NESTH, junto a comuni-
dades garimpeiras, quilombolas e a populações urbanas de áreas afetadas
pela mineração, vêm passando por novos experimentos, sempre associados
aos elementos de realidade que surgem no decorrer dos projetos desenvol-
vidos junto a essas comunidades.
Neste relato de experiências, pretendemos descrever os processos
de aplicação e implementação de metodologias apoiadas nos princípios
da pesquisa-ação-participativa, que são utilizados também por outros
grupos de pesquisadores, a exemplo do Centro de Investigaciones Psico-
lógicas y Sociologicas de La Habana (CIPS), órgão ligado ao Ministério da
Ciência e Tecnologia de Cuba.
A experiência com metodologias participativas do NESTH avançou sen-
sivelmente, a partir de 2007, quando tiveram início os projetos do núcleo
com comunidades quilombolas. Esses projetos, na época contratados pelo
governo estadual, possibilitaram a criação e a aplicação de instrumentos
metodológicos específicos, voltados para o estímulo à autoconstrução de
uma subjetividade cidadã dessas comunidades.
A investigação-ação-participativa com essas comunidades partiu do
conhecimento delas sobre a sua própria realidade, com vistas a que elas
pudessem consolidar sua inclusão cidadã e ter influência efetiva e decisiva
nas questões que dizem respeito a sua vida, sua identidade e seu território.
A partir do planejamento das ações do primeiro projeto, “Quilombolas
de Minas Gerais: resgatando raízes”, iniciado em 2007, as primeiras idas
a campo sinalizaram rumo a uma construção multidisciplinar, participa-
tiva, no compromisso de que o trabalho da universidade pública fosse de
fato útil para essa parcela do nosso povo, historicamente marginalizada.
Buscou-se uma metodologia que, mais do que ser apenas um diagnóstico,
pudesse estimular o desenvolvimento de subjetividades e espaços de par-
ticipação comunitária para a transformação social.
É fundamental ressaltar que o objetivo estratégico da pesquisa-ação
é contribuir para o desenvolvimento da subjetividade social (subjetividade
cidadã, a necessária subjetividade política dos cidadãos em uma república)
das comunidades, para que elas próprias possam resolver seus problemas
e dar sustentabilidade às soluções obtidas. Subjetividade social, aqui, deve
ser entendida como

104
processo que estabelece pautas, modula e reordena a ação
individual, grupal, como também nas diferentes escalas em
que se realiza o social. Isto enfatiza as possibilidades de
pensar os sujeitos em diferentes níveis do social-individual,
grupal, intergrupal, organizacional, interorganizacional etc.
– como atores com capacidade de ser agentes de mudança,
e não meros reservatórios que interiorizam a partir de uma
noção de reflexo o contexto onde se realizam (RODRIGUEZ;
CARRAL; RODRIGUEZ-MENA, 2010, p. 56-57).

O trabalho se orientou pela construção dos seguintes instrumentos:

1º – Entrevista qualitativa embasada na tradição oral. Imersão no cam-


po e aproximação com a comunidade. “Assuntar”. “Café com prosa”,
“Escuta à beira do fogão de lenha”.
A abordagem antropológica exerce um papel fundamental, sempre que
qualquer trabalho envolva um universo com características particulares, e a
antropologia desenvolveu toda uma metodologia para tratamento do outro,
do diferente. Não cabe estabelecer uma longa digressão sobre a metodologia
antropológica, mas apontar o que é relevante para o universo em questão.
Trata-se de dar visibilidade a uma realidade, pois, até a década de 1970,
não era vista a existência de uma territorialidade negra. Para garantia dessa
visibilidade, a Constituição de 1988, em seu Artigo 68 do ADCT (Ato das
Disposições Constitucionais Transitórias), trata de reconhecer o direito à
terra aos grupos negros, considerados remanescentes de quilombos.
Coube à antropologia elaborar toda uma discussão teórica pautada na
noção de grupos étnicos e de identidade étnica, para o artigo ser ampliado,
não permanecendo apenas a visão histórica que remetia a uma ideia de
quilombo não mais correspondente à realidade existente. Essas caracterís-
ticas continuam em jogo, quando se trata de estabelecer políticas públicas
para as comunidades quilombolas.
Daí a necessidade desse instrumento, para que essas políticas públicas
não sejam tratadas e trabalhadas numa perspectiva genérica, como muitas
vezes acontece com as políticas públicas. Isto, porque, se as comunidades que
a partir do Decreto 4887, de 20 de novembro de 2003, têm o seu direito garan-
tido segundo critérios de autoatribuição, em realidade, apenas terão a proprie-
dade, após um longo processo, durante o qual essas comunidades deverão ser
visualizadas como grupos étnicos, “com trajetória histórica própria, dotados
de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra

105
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (Art. 3º da Instrução
Normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra).
Não se trata aqui de garantir o direito à terra, mas de, ao levar as carac-
terísticas apontadas tanto no Decreto 4887 quanto no Art. 3º da IN do Incra
em consideração, termos como horizonte um fortalecimento da identidade
étnica desses grupos, para que se situem com mais eficácia enquanto sujeitos
no processo de definição do que é melhor para eles enquanto política pública.
No que se refere, especificamente, à criação do instrumento orga-
nizado através do enfoque qualitativo, o que se busca é estabelecer um
conhecimento sobre as comunidades onde se realiza uma apreensão da
história da ocupação da terra, da organização social, dos aspectos cultu-
rais e religiosos, das relações interétnicas com seu histórico e eventuais
conflitos, do relacionamento do grupo com a realidade circundante, sua
autodefinição e da coletividade envolvente.

2º - Questionário qualitativo dirigido a quem faz a relação efetiva e afe-


tiva com o quilombo, quem busca documentação, liderança, porta-voz
da comunidade, professor(a) da escola, agente de saúde etc.
Ao se formularem as questões, é importante que o pesquisador já tenha
conhecimento advindo da observação e de informações colhidas anterior-
mente e já na situação de campo, bem como impressões suas.
As questões são abertas, e as pessoas devem sentir-se à vontade para
falar livremente. Elas devem abranger as seguintes áreas:
1. Histórico da ocupação; 2. Religião, locais sagrados, rituais; 3. Carac-
terísticas da linguagem cotidiana local; 4. Relações interétnicas; 5. Existência
de conflitos entre a comunidade e a cidade, a comunidade e os outros grupos:
“A pesquisa de campo é um aspecto essencial de qualquer abordagem da
pesquisa-ação. É necessário conhecer bem os contextos ambientais de toda
ação particular. Isso requer uma captação sistemática dos elementos pro-
blemáticos, dos atores implicados e dos desafios de transformação de dada
situação” (DIONNE, 2007, p. 69).

3º - Questionário dirigido ao grupo familiar, ao chefe do grupo doméstico.


Com base nas informações recolhidas nesses dois instrumentos, os
entrevistadores vão melhor preparados para conduzir a dinâmica de diálogo
com o poder público e a sociedade civil do município. Dessa forma, acre-
ditamos provocar/tornar mais transparentes os posicionamentos políticos
desses agentes para o planejamento e a implementação de políticas públicas
para as comunidades quilombolas.

106
4º - Entrevista qualitativa para identificar as representações que se orga-
nizam em torno da comunidade quilombola, conhecendo um pouco mais
sobre as mentalidades dos diversos atores locais e posições político/ideológicas
sobre ações afirmativas de valorização da identidade étnica, captando opiniões
influentes no senso comum e na produção de políticas no município. Na lin-
guagem de Michel Foucault, seria a identificação do “regime local de produção
da verdade” sobre a comunidade quilombola. Aplicado aos representantes do
poder público (prefeituras, órgãos como EMATER – Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural), comerciantes, fazendeiros do entorno das comu-
nidades, representantes de sindicatos rurais, diretores de escola/professores.
Tem o papel de termômetro da realidade político-econômica de cada municí-
pio, também fornecendo subsídios para a equipe elaborar as estratégias de
aproximação, montagem e condução do Encontro Local.

5º - Encontro Local – Reunião comunitária envolvendo os diferentes ato-


res locais em microarenas participativas, visando à validação das infor-
mações colhidas pelos instrumentos anteriores e à produção de enuncia-
dos coletivos que expressem as demandas das comunidades pesquisadas.
Realizada em espaços de referência das comunidades, como escolas, igrejas,
etc. A Microarena Participativa foi introduzida durante a pesquisa como recur-
so para explorar os limites e as potencialidades que se apresentaram a partir
da aplicação dos instrumentos anteriores. Seu pressuposto é a ampla mobili-
zação da comunidade que, por meio de visualização participativa, certifica as
demandas identificadas a partir da aplicação dos questionários e entrevistas.

6º - Estímulo às potencialidades e à organização da subjetividade social.


Série de encontros na comunidade, para realizar oficinas que reforcem
vocações presentes ou recuperem vocações interrompidas, no sentido de for-
talecimento da identidade. No decorrer dos encontros, o levantamento par-
ticipativo dos problemas e das necessidades identificados pela comunidade
constitui um dos focos de atenção da metodologia (COLECTIVO DE AUTORES,
2004). As reuniões incluem os diversos segmentos da comunidade, reforçando
a ideia da “união” para a solução dos problemas e a busca de aproximação
com as demais comunidades quilombolas do município. Nesses encontros,
organizam-se os preparativos para o sétimo instrumento metodológico.

7º - Encontro Quilombola na Sede Municipal.


Neste instrumento, organiza-se a ida das comunidades até a sede do
município, preferencialmente em praça pública, onde elas dialogarão com

107
os vereadores, o prefeito, os órgãos de fomento, setores da administração
pública local e regional. Nos preparativos, terão sido envolvidas as autori-
dades municipais, que participam dando apoio ao transporte das pessoas,
alimentação, local para descanso, fornecimento de barracas para venda dos
produtos dos quilombolas etc. Ao final do evento, as comunidades apre-
sentam sua identidade cultural, por meio de danças, música e práticas de
suas tradições que elas mantêm.
Essa etapa da metodologia utilizada marca um processo de cons-
trução de cidadania e de fortalecimento de práticas, por meio dos quais
os quilombolas vão passando a ter mais autoconfiança ao se dirigirem
ao poder público local. Se, até relativamente poucos anos atrás, eles ti-
nham o hábito de falar com os políticos numa postura de mais humildade,
de quem estava a pedir favores, aqui eles passam a se sentir realmente
“patrões” dos políticos, que é algo integrante de uma realidade política e
social republicana (THIOLLENT, 1985, p. 90-95).
Nos projetos em que existe o objetivo de implantação de etapas volta-
das para a geração de trabalho e renda, é importante observar que, desde
o instrumento número 6, já se colocam as capacitações, nas oficinas volta-
das para o fortalecimento de vocações e práticas já integrantes da experiên-
cia, presente ou ancestral, nessas comunidades tradicionais. Parte-se, em
seguida, para a construção conjunta de redes de apoio e gestões junto ao
poder público, quando se faz necessária a sua participação, por exemplo,
na construção ou recuperação de espaços para produção, comercialização,
ou mesmo meios de escoamento da produção das comunidades.
As novas pesquisas e ações de formação desenvolvidas pelo NESTH,
se analisadas a partir das transformações no capitalismo que levaram ao
aprofundamento de processos de exclusão, apontam para a preocupação
de se produzir um conhecimento estrategicamente comprometido com as
classes trabalhadoras. Estratégico, no sentido de se recuperar ou se cons-
truir o direito de ser trabalhador, por exemplo. A mudança do foco de
atuação do núcleo acrescentou às suas práticas o objetivo de se implantar
um processo participativo nas ações que visem fortalecer a autoconstrução
do trabalhador enquanto portador de direitos e de acesso a bens sociais
e às políticas de inclusão.
Esses avanços de qualidade no que se refere à abrangência dos pro-
jetos, associando o mundo do trabalho com a questão ambiental e com a
qualidade da vida, abrem ainda novos espaços para o aperfeiçoamento de
práticas que consolidam a cultura da democracia.

108
Referências

ANTUNES, Ricardo (Org.). Riqueza e miséria do trabalho no Brasil. São


Paulo: Boitempo, 2006.

COLECTIVO DE AUTORES. Compilador: GARCIA, Arnaldo Perez. Partici-


pacion Social em Cuba. La Habana: Centro de Investigaciones Psicológicas
y Sociologicas, 2004.

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Liber Livro, 2007.

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ción social: el desafio ético emancipatorio de la complejidad. La Habana:
Publicaciones Acuario, 2005.

HORTA, Carlos R; COSTA, Cândida; ROLDAN, Martha. Novas formas de


exploração do trabalho e inflexões do modelo de desenvolvimento: precari-
zação do trabalho e migração no século XXI. Revista Políticas Públicas,
São Luís, Universidade Federal do Maranhão, v. 11, n. 2, p. 55-82, 2007.

RODRIGUEZ, Carmen Lili; CARRAL, Roberto; RODRIGUEZ-MENA, Mario.


Apuntes para el estúdio de la subjetividad em el ambito laboral: cuadernos
del cips/2009 – experiências de investigación social em Cuba. La Habana:
Centro Felix Varela; Publicaciones Acuario, 2010.

THIOLLENT, Michel. Metodologia da pesquisa-ação. São Paulo: Cortez,


1985.

Carlos Roberto Horta é mestre em Ciência Política e doutorando em


Educação pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor
no Departamento de Ciência Política da mesma instituição, coautor dos
livros Globalização, Trabalho e Desemprego (Editora C/Arte, 2002) e
Cenários, transformações, desafios e perspectivas no mundo do trabalho
(EDUA, 2013). É coordenador do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho
Humano da UFMG e desenvolve projetos em comunidades tradicionais,
na área de geração de trabalho e renda e de inclusão cidadã.

109
Garimpo em Tenente Ananias (RN)
Foto: Regina Ribeiro

Quilombo do Barro Preto - Santa Maria do Itabira (MG)


Foto: Flávia Assis
Quilombo do Baú – Serro (MG)
Foto: Francis Costa

Fabricação de Tambores - Santa Maria do Itabira (MG)


Foto: Flávia Assis
Moagem de cana - Minas Novas (MG)
Foto: Clebson Souza

112
A dimensão formativa do trabalho
João Valdir Alves de Souza

Introdução

Nas últimas décadas tem sido feita uma intensa campanha contra
o trabalho infantil. Essa campanha tem sua razão de ser, pois está cada
vez mais claro que a consciência do nosso tempo se sente ferida a cada
denúncia de que crianças de todas as idades ainda são violentadas por
serem submetidas a exaustivas jornadas de trabalho, em atividades
nocivas até mesmo para os trabalhadores adultos.
O modo como essa campanha tem sido feita, contudo, corre o sério
risco de formar nas novas gerações um forte sentimento de aversão ao
trabalho. A ampla utilização de frases infelizes como “criança não pode
trabalhar, pois lugar de criança é na escola”, além de constituir uma
imagem da escola como lugar de não trabalho, entra em contradição
com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, como se verá. As
consequências disso já são sentidas por toda parte: confundida com
um parque de diversões, a escola tem sido vista como lugar improdu-
tivo, onde se vai fazer de tudo, menos estudar. Porque estudar é algo
muito trabalhoso.
Este texto se propõe a dois objetivos: um deles é explorar o conceito
de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, escolarização,
instrução e ensino; o outro é fazer uma defesa da formação pelo tra-
balho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil. A fim de evitar
sobressaltos entre aqueles que condenam o trabalho infantil, adianto
que será feita, também, uma discussão conceitual sobre o trabalho para
ressaltar que ele tanto pode formar quanto deformar. Se tomarmos o
trabalho como a ação humana sobre a natureza para, sob determinadas
relações sociais, produzir as condições da existência, é preciso distin-
guir os diferentes tipos de trabalho e destinar às crianças apenas aquela
porção do trabalho adequada a elas. E é preciso dizer com clareza que
a campanha deve ser contra a exploração do trabalho, sobretudo da
exploração do trabalho infantil, e não contra o trabalho, porque ele é
constitutivo do humano.

113
Algumas distinções necessárias

Comecemos pelo próprio conceito de formação. Formação é o processo


por meio do qual algo toma uma forma, seja material ou ideal, concreta ou
abstrata, do mundo natural ou do social. Pronunciada de modo aberto, a pa-
lavra forma /ó/ expressa o “modo sob o qual uma coisa existe ou se manifes-
ta” (Dicionário etimológico da língua portuguesa, p. 298). Vem daí o desejo de
se reformar algo cuja manifestação expressa uma forma indesejável. Pronun-
ciada de modo fechado, a palavra forma /ô/ expressa a estrutura sob a qual
algo deve ser submetido. A formação de que se tratará a seguir diz respeito
ao processo em que, pelo trabalho humano, algo ou alguém toma forma /ó/,
e não o processo pelo qual algo ou alguém é submetido a uma forma /ô/.
A Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, LDBEN 9394/96,
reconhece na diversidade da vida social as diversas possibilidades de for-
mação. Em seu primeiro artigo, ela diz que “A educação abrange os pro-
cessos formativos que se desenvolvem na vida familiar, na convivência
humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos mo-
vimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações
culturais”. A lei diz, ainda, que seu propósito é disciplinar a “educação
escolar, que se desenvolve, predominantemente, em instituições próprias”
e que “a educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à
prática social”. No entanto, por tratar-se de uma lei que regula a educa-
ção ministrada nas escolas, ela deixa indistinta a relação entre educação
e formação. Dizer que a “educação abrange os processos formativos” não
diz nem o que é educação nem o que são os processos formativos. Como
no discurso corrente já não se fazem as devidas distinções entre educação
e escolarização, instrução e ensino, esses vocábulos acabam por ser tra-
tados como sinônimos, o que traz confusão ao entendimento conceitual e
muitas dificuldades na ordem prática.
É claro que a educação está intimamente relacionada aos processos
de formação humana, assim como ensino e instrução são seus principais
elementos constitutivos e a escola, um importante lugar da sua realiza-
ção no mundo moderno. Mas, se o senso comum – e até mesmo os meios
acadêmicos – tem tratado tudo isso como sendo a mesma coisa, torna-se
necessário fazer as devidas distinções para que não se tome um conceito pelo
outro. Até mesmo a palavra educação parece ter adquirido um significado tão
amplamente reconhecível que já não nos parece ser necessário perguntar o
que ela é (SOUZA, 2012). Torna-se necessário, pois, distinguir esses termos
para que seja possível explicitar a dimensão formativa do trabalho.

114
Formação é, então, como foi dito, um processo, e todo processo precisa
ser situado no tempo. Serão destacadas, aqui, duas dimensões do conceito:
uma na ordem social; a outra na ordem da personalidade.1 Uma diz respeito
à sociedade; a outra diz respeito ao indivíduo. Se cada sociedade tem uma
história, cada indivíduo que a constitui também tem a sua. Formação é,
pois, um conceito sócio-histórico.
Quando falamos em uma formação social qualquer, queremos desta-
car os elementos constitutivos da história de um povo, da sua organiza-
ção econômica, política, social e cultural. Se queremos destacar a formação
social de Minas Gerais, do Brasil ou da América Latina, temos de considerar
todos os elementos históricos que entraram em jogo na configuração de cada
uma dessas realidades, o que, a despeito das semelhanças que podem ser aí
observadas, faz de cada uma delas uma realidade muito distinta da outra.
Nesses três recortes vamos encontrar elementos culturais provenientes das
três grandes matrizes da nossa formação (ameríndia, europeia e africana),
mas não apenas cada uma dessas matrizes já é muito diversificada na ori-
gem, como o processo no qual se deu a fusão desses elementos no tempo, sob
condições objetivas muito diferentes, gerou produto cultural muito distinto.
Essa formação resultou, portanto, de todo o conjunto de fatores que consti-
tuiu a história geral e particular de cada uma dessas sociedades.
Se tomarmos o conceito de formação no âmbito da personalidade,
teremos algo muito semelhante tanto em relação ao processo quanto em
relação ao resultado. Nesse caso, no entanto, sobretudo no mundo mo-
derno, torna-se mais evidente o papel dos sistemas de ensino na formação
da personalidade, ao mesmo tempo em que se nota ampla confusão con-
ceitual, pois que formação, educação, instrução e ensino aparecem equi-
vocadamente como se fossem a mesma coisa. Torna-se, pois, necessário
esclarecer esses conceitos a fim de limpar o terreno e produzir uma visão
suficientemente clara para evitar confusões.
Observemos como o linguajar cotidiano produziu e reforça essa confusão.
Todo mundo se acostumou a chamar de formatura ao ritual de encerramento
de um percurso escolar. E, mesmo que se tenha claro que um curso de gra-
duação, nos dias atuais, permite apenas uma formação inicial, ninguém deixa
de festejar essa formatura e de associar efetivamente ao percurso feito uma
trajetória de formação. E quanto mais nos aproximamos do nosso tempo, mais
vemos atribuir-se à escola essa tarefa da formação, sobretudo quando se trata
de formação profissional. Mas a centralidade que a escola adquiriu no mundo

1 -   Não será tratada, aqui, a dimensão do mundo natural, como o das formações rochosas, por exemplo.

115
moderno fez dela um espaço do qual se reivindica, também, a formação do
cidadão, a formação do caráter, a formação do senso ético e estético etc. Vem
daí a confusão entre formação, educação, escolarização, instrução e ensino.
Nem sempre, contudo, foi assim. Até o advento da escola de massa
ou, pelo menos, da universalização da escola fundamental, o que variou
de país para país, de estado para estado dentro de um mesmo país, ou de
município para município dentro de um mesmo estado, a formação não
estava associada aos processos de escolarização. O advento da escola para
todos, direito do cidadão e dever do Estado, sobretudo a partir do século
XIX, deslocou para a instituição escolar os processos de formação porque o
modo capitalista de produção necessitou de um novo trabalhador e de uma
nova personalidade ajustada às novas condições de trabalho.
Mas a escola moderna não se constituiu como uma instância politi-
camente neutra: ela estava intimamente associada ao projeto burguês de
sociedade que emergiu das revoluções burguesas que abalaram a Europa a
partir do século XVII. Foi nesse contexto que se constituiu, cada vez mais
intensivamente, a associação entre formação e educação e entre educação e
escola, a tal ponto de não fazermos distinção, hoje, nem mesmo nos debates
acadêmicos, entre educação e escolarização. Não há dúvida, contudo, de que
na maior parte das vezes que falamos em educação é de escola que se fala.
Ora, mas escola é lugar de instrução e ensino, não necessariamente
de educação. Entre o desejo de que a escola se constitua como instituição
educadora e a realidade concreta das práticas cotidianas vai considerável
distância. Como já foi discutido em outro texto (SOUZA, 2012), ensino é o
termo mais elementar entre todos esses em debate aqui. Ensino é o ato de
tornar possível uma aprendizagem. Em princípio, qualquer pessoa dotada
de alguma capacidade de discernimento é capaz de ensinar algo a alguém
e, se se pode haver aprendizagem sem ensino, não há ensino que não es-
teja orientado a um aprendiz. Daí a referência sempre a uma relação entre
ensino e aprendizagem. A escola moderna assumiu a tarefa de ensinar,
mediante processos específicos, em lugares adequados e profissionais for-
mados e treinados, aquilo que a vida doméstica já não mais comportava
em função das novas exigências do mundo moderno.
Ao ensino voltado para a realização de uma tarefa específica, uma
aplicação imediata ou uma instrumentalização para o trabalho dá-se o
nome de instrução. Instruir é dar uma utilidade prática ao ensino. Como
essa sociedade moderna começou a se desvincular, cada vez mais, do en-
sino desinteressado, do ensino que não estivesse voltado para uma prá-
tica concreta e uma aplicação imediata, ao processo de ensino realizado

116
nas escolas deu-se o nome de instrução. A instrução pública começou a
entrar na pauta dos governos e a se constituir cada vez mais como políti-
ca de Estado. Fica claro, portanto, que uma coisa é o ensino e a instrução
ministrados na instituição escolar, cujo conjunto de práticas pode ser inscrito
no vocábulo escolarização; educação, no entanto, é coisa de outra natureza,
pois que ela é uma prática social ou ação orientada por um valor (econômico,
político, social, ético, estético) assumido como relevante. Se a educação supõe
algum ensino e alguma instrução, ela vai muito além, pois, como apontam
vários autores, de Durkheim a Paulo Freire, passando por Antonio Gramsci,
Karl Mannheim e Hannah Arendt, ela nunca é neutra e sempre está assenta-
da em uma dimensão valorativa. Daí a positividade com que a educação tem
sido historicamente encarada. Leiamos Durkheim a esse respeito:

Se o ensino científico não pudesse ser justificado de outra


maneira, deveríamos resignar-nos a ver nele nada mais do
que uma espécie de ensino inferior, mais ou menos des-
provido de qualquer valor educativo. Não há dúvida, com
efeito, que um ensino só é educativo na medida em que
for de natureza a exercer sobre nós mesmos, sobre nosso
pensamento, uma ação moral, isto é, se ele mudar alguma
coisa no sistema de nossas idéias, nossas crenças, nossos
sentimentos (DURKHEIM, 1995, p. 314).

A educação é uma prática social que ocorre em todas as sociedades


que ora existem ou que tenham existido, com ou sem escolas, com ou sem
teorias pedagógicas, com ou sem sistemas de ensino (BRANDÃO, 1995).
Não é uma prática social qualquer, pois para a palavra educação devería-
mos reservar, como diz Durkheim, apenas aquela que deriva de uma ação
orientada por um valor e que esse valor não seja o produto de uma única
mente, ainda que brilhante, mas que expresse certos estados mentais de
uma determinada coletividade de sujeitos. O fato de se ter associado cada
vez mais educação à escola apenas diz respeito às novas exigências do
mundo moderno, cujas unidades domésticas (famílias, clãs, comunidades)
se revelaram insuficientes para garantir a educação de que ele necessita-
va. Essa prática social, contudo, é produto de uma ação orientada por um
valor, o que supõe que aquele que age o faz em nome dos mais elevados
ideais que uma determinada sociedade é capaz de elaborar.
A educação é, pois, uma ação. Durkheim diz que é a ação das gera-
ções adultas sobre aquelas que ainda não estão preparadas para a vida

117
social (DURKHEIM, 2008, p. 53). Preparar para a vida social é formar as
novas gerações em conformidade com determinados ideais de vida e so-
ciedade. A dimensão formativa é o processo que constitui cada sociedade,
na semelhança pelo que é comum à espécie, na diferença pelas diversas
formas de educar. A escola assumiu essa tarefa no mundo moderno e
construiu modos próprios para formar cidadãos e trabalhadores. Por mais
importante que seja seu papel, contudo, em nenhum momento ela substi-
tuiu o trabalho no processo de formação humana.

Trabalho e escola: “você trabalha ou estuda”?

Nosso vocabulário ainda está à espera de uma palavra que traduza


de modo mais adequado o que se faz efetivamente na escola. Essa contra-
posição que situa em lados opostos o “trabalho” e o “estudo” faz da escola
um lugar do não trabalho ou, no máximo, trabalha-se esporadicamente,
quando o professor pede para o aluno “fazer um trabalho”.
Não deixa de ser curioso como o senso comum criou historicamente
uma concepção de “estudo” como não trabalho. Mas a etimologia e um
pouco de história dos processos de formação social nos dão algumas boas
pistas para o entendimento da questão.
A palavra trabalho vem de trípãlíum, que era um equipamento utiliza-
do na colheita de cereais, composto por três paus, e que foi convertido em
instrumento de tortura. Trípãlíãre é o mesmo que torturar, isto é, submeter
alguém a um castigo físico. O sentido original da palavra “trabalho”, desde
tempos remotos, portanto, diz respeito ao sofrimento, à tortura e ao castigo.
Ir para o trípãlíum poderia ser tanto ocupar-se das atividades manuais quan-
to ser torturado por não cumprir as atividades determinadas como tarefa.
Essa noção de trabalho como sofrimento e castigo, no entanto, na
cultura ocidental, está ligada ao mito de origem, como marca da condena-
ção divina em algum momento após a criação. Todos conhecem o registro
religioso das nossas origens conforme aparece no Gênesis. Segundo esse
registro, Deus criou tudo o que existe no mundo, inclusive o homem e
a mulher que deveriam nele habitar. Ordenou, contudo, que deveriam
desfrutar do paraíso, mas não poderiam comer do fruto proibido. Não
conseguindo evitar a tentação, a mulher provou do fruto e dele fez provar
também o homem. Como decorrência dessa desobediência, Deus puniu
a todos e os condenou a ganhar o pão com o suor do rosto. Vejamos
a descrição bíblica.

118
Disse também à mulher: “multiplicarei os sofrimentos do
teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão
para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. E disse
em seguida ao homem: “porque ouviste a voz de tua mulher
e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer,
maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com traba-
lhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te
produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra.
Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes
à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de
tornar” (GÊNESIS 3, 16-20).

Mais que sofrimento e castigo, portanto, o trabalho aparece aí como


expiação da culpa, o preço pago pela desobediência às ordens do criador.
Esse mito de origem, tão extraordinariamente bem retratado no Gênesis
(gênese, gen, gene, geração, genética, origem), constitui um dos primeiros
registros do modo como a produção material da vida exige uma força exter-
na coagindo sobre nossas vontades individuais, cuja tendência natural é ao
ócio e não à ação. Como afirma Freud,

[...] expressando-o de modo sucinto, existem duas caracterís-


ticas humanas muito difundidas, responsáveis pelo fato de os
regulamentos da civilização só poderem ser mantidos através
de certo grau de coerção, a saber, que os homens não são es-
pontaneamente amantes do trabalho e que os argumentos não
têm valia alguma contra suas paixões (FREUD, 1974, p. 18).

Se o trabalho está associado a sofrimento e castigo, algo que não se


realiza sem fortes coerções externas, uma pressão da civilização e fonte de
mal-estar, a palavra “escola”, vulgarmente conhecida como “lugar de estu-
do”, tem sentido bem diferente. Originária do latim schõla, que por sua vez
deriva do grego skholé, escola significava “descanso, repouso, lazer, tempo
livre; estudo; ocupação de um homem com ócio, livre do trabalho servil, que
exerce profissão liberal” (HOUAISS, p. 1.206). Ainda que este autor traga a
informação de que, com a evolução semântica, o termo schõla deixou de ser
sinônimo de ócio e lazer, significando, isso sim, “que, deixando de parte as
demais ocupações, as crianças devem dar-se aos estudos próprios de homens
livres”, permaneceu nas expressões do linguajar cotidiano a oposição entre
trabalho e estudo. “Você trabalha ou estuda”? “Você trabalha e estuda”?

119
Assim como houve mudança semântica relativamente à palavra escola,
também houve significativa mudança em relação ao entendimento social
do que seja o trabalho. A principal contribuição para essa mudança vem
de João Calvino, teólogo protestante do século XVI, um dos grandes nomes
da Reforma religiosa operada na Europa de então e expandida para todo
o mundo. A principal referência para a compreensão dessa mudança é a
obra seminal de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo,
de 1904. Nela, Weber se ocupa em explicar as mudanças mentais opera-
das por uma nova concepção teológica, que, em vez de ver o trabalho como
sofrimento e castigo, apontava a riqueza acumulada como recompensa pelo
esforço e labuta incessantes e o resultado desse processo como um indício
de manifestação da Graça divina. Para os calvinistas, o trabalho dignifica e
enobrece o homem. Ao trabalho, portanto, porque o ócio é o maior e o pior
de todos os pecados. Apesar de longa, vejamos a bem elaborada leitura feita
por Sérgio Paulo Rouanet sobre a questão.

Não há quem não conheça hoje em dia a teoria weberiana


sobre o papel da Reforma protestante na gênese da moder-
nidade capitalista. Para Weber, como se recorda, existe uma
relação entre o ascetismo de algumas orientações protestan-
tes, como a dos puritanos ingleses, inspirados em Calvino, e
o aparecimento de uma ética econômica que favorece o traba-
lho, como forma de evitar as tentações mundanas, e estimula
a poupança, pois o luxo e o consumo ostensivo revelam uma
preocupação condenável com os bens materiais. O trabalho
incessante, necessário para evitar uma ociosidade culpada,
associado à extrema austeridade nos hábitos de consumo,
pode levar à riqueza. Esta não é um mal em si, pois o pecado
está na fruição dos bens terrestres, não em sua aquisição.
Ao contrário, a atividade aquisitiva, fundada no sacrifício e
impondo a renúncia ao prazer, não pode deixar de ser bem-
-vista por Deus. De resto, a riqueza tem um valor psicológico
importante: adepto da doutrina da predestinação, o empre-
sário calvinista não pode nunca saber se pertence ou não
ao número dos eleitos, e o trabalho intenso, abençoado pela
prosperidade, pode ser uma prova de ter sido escolhido pela
graça divina. Examinando não somente a teologia de Calvino
e Lutero, mas as recomendações pastorais contidas nos livros
de devoção da época, como os de Baxter e de Wesley, Weber

120
está convencido de que essa doutrina, pregada nos púlpitos e
ensinada nos manuais piedosos, contribuiu para formar um
tipo de personalidade ajustada às exigências da acumulação
capitalista. Filtrada pelos sermões, a teologia transformou-se
em ética, que levou a uma organização racional caracterizada
pelo estrito planejamento de todas as atividades, pelo apro-
veitamento integral do tempo, pela dedicação incondicional
ao ofício, ao Beruf, e esse estilo de vida “racional” acabou se
convertendo num dos suportes mais importantes do proces-
so de racionalização. Foi por essa via que a Reforma, como
constelação ideal, veio a funcionar como um poderosíssimo
veículo de modernização (ROUANET, 1993, p. 123).

Se adiantarmos três séculos em relação à época da Reforma, vamos


encontrar o modo capitalista de produção bastante consolidado, submetido
a intensos processos de modernização, e muitos autores se esforçando para
entender as novas formações sociais que se constituíram a partir das Revolu-
ções burguesas. Entre esses autores, além dos já citados Max Weber e Émile
Durkheim, está Karl Marx, o mais conhecido e notório crítico desse modo
de produção, mas, também, aquele em cuja obra o trabalho adquire maior
centralidade. Para Marx, a nobreza e a dignidade do trabalho, contudo, não
se assentam no argumento religioso de manifestação da Graça divina, mas
no fato de ele ser o elemento central da constituição do humano. Em outras
palavras, o homem se fez homem pelo trabalho.

Trabalho, educação e formação humana

Marx, é claro, fez uma crítica severa do trabalho sob o capitalismo.


O problema, no entanto, não está no trabalho em si, mas nas relações sociais
de produção que submetem os trabalhadores a brutal exploração. Era fácil
perceber que, sob o escravismo e a servidão, o trabalhador era explorado, no
primeiro caso porque ele não era sequer proprietário de si mesmo e no segun-
do porque estava ligado a um senhor por laços de servidão. Teoricamente, no
capitalismo, o trabalhador é livre para vender sua força de trabalho, mas é
exatamente por desvendar os mecanismos da mais-valia que Marx encontra
os argumentos para dizer que sob o capitalismo o trabalhador continuava
a ser explorado. Mas não havia, contudo, outra forma de superar essas re-
lações de exploração, senão pelo trabalho. E, assim como em muitos outros

121
autores do seu tempo, para Marx, o trabalho é a categoria central tanto para
entender a vida em sociedade quanto para transformá-la.
Entendido por esse prisma, o trabalho não é expiação da culpa, nem
a manifestação da Graça divina; ele é a ação dos homens sobre a natureza
para, na relação com outros homens, produzir e reproduzir as condições
materiais e ideais da existência. Essa ação pode ser mais ou menos autô-
noma, o que se refere ao componente de controle que tem sobre ela aquele
que age. Ela é uma ação calculada, pensada, planejada, orientada por um
ideal. Na modernidade, o mundo social deixa de ser visto como desígnio
divino e passa a ser visto como produto da ação humana. Se ele é produto
da ação humana, é possível que o resultado seja decorrente de um projeto?
Se é, qual é o projeto que temos para o futuro e qual é a ação que devemos
realizar para que esse projeto se torne realidade?
Ao criticar o trabalho na sociedade burguesa, Marx não apenas apon-
tava os limites que o sistema impunha à realização dos trabalhadores, como
também destacava que, sob aquelas condições, o trabalho havia se tornado
fonte de alienação. Em vez de fator de libertação e afirmação do homem,
naquilo que há de mais elevado na sua humanidade, o trabalho nada mais
fazia do que submetê-lo a uma condição de inferioridade. Alienado do pro-
cesso de trabalho, o trabalhador perdia o controle sobre o que fazia e como
fazia; alienado do produto do seu trabalho, ele perdia a capacidade de apro-
priar-se do que produzia; em decorrência dessas formas de alienação, ele
estaria desprovido da sua própria condição humana, já que trabalhar para
reproduzir a espécie e as condições de reprodução da força de trabalho era
próprio dos animais, e não do homem livre (MARX, 1978).
Ainda que essa crítica fosse severa, Marx não via outra possibilidade
de superação da alienação senão pelo trabalho. O que deixava os trabalha-
dores em situação de desvantagem não era um dado da natureza, mas um
determinado conjunto de circunstâncias históricas. E se a vida não era re-
sultado de um desígnio divino, mas de formação histórica, a questão-chave
para Marx era apontar para o tipo de ação que expressasse um projeto, já
que esse homem em ação deveria se constituir como sujeito da sua própria
história. Se havia algo de fundamental na natureza humana era o fato de
que, diferentemente dos outros animais, o trabalho se manifestava como
produto da ação criativa. Ao fazer analogia entre o trabalho humano e o do
animal, Marx destaca a diferença crucial entre um e outro.

Uma aranha executa operações semelhantes às do tecelão,


e a abelha supera mais de um arquiteto ao construir sua

122
colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que ele figura na mente sua construção antes de
transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho
aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador (MARX, 1985, p. 202).

É claro que os animais trabalham e tanto o castor que constrói


diques quanto os animais domésticos que estão a serviço do homem,
desde tempos imemoriais, realizam significativas mudanças no mundo
natural. Mas o primeiro só age em obediência ao que está inscrito no seu
código genético e os outros agem por condicionamento. Nada se compara
ao trabalho humano, em que os trabalhadores, mesmo submetidos a
condições deploráveis de trabalho, sempre têm a potencialidade da criação
e a capacidade de transmiti-la às novas gerações. Segundo Carlos Lerena

Marx colocou o trabalho e o mundo da produção no centro


de suas formulações, incluída a que faz da educação e da
escola. [...] Para Marx, não se trata de idealizar o trabalho,
mas de convertê-lo na chave de compreensão da realidade:
o homem chega a ser homem em virtude do desenrolar-se
de sua atividade no trabalho, isto é, graças à sua atividade
prática. Através dela produz a sociedade e se produz a si
mesmo (LERENA, 1991, p. 121).

Ao analisar as relações de trabalho, Marx destaca três momentos


fundamentais da sua organização: o artesanato, a manufatura e a grande
indústria (Cf. SOUZA, 2009). Nas sociedades onde predomina a produção
artesanal, a população vive praticamente em torno e em função da coleti-
vidade. A divisão do trabalho somente existe na sua forma mais primária,
separando caçadores e coletores, os que plantam e os que preparam a co-
mida, o trabalho masculino e o trabalho feminino etc. O artesão indepen-
dente, que faz seus produtos para levar ao mercado, é o responsável pela
fabricação deles. Ele prepara a matéria-prima, realiza todas as etapas da
fabricação e comercializa o produto na feira.
Não constava do projeto de sociedade de Marx o retorno da produção
ao artesanato e ele não nutria grande simpatia por esse processo produtivo.
No entanto, reconhecia no artesão alto grau de autonomia na realização do
trabalho, pelo menos enquanto não estivesse seu produto submetido ao
mercado capitalista. É o artesão quem decide o que fazer, o quando fazer e

123
o como fazer. A educação, nesse caso, é uma ação predominantemente de
natureza prática, uma vez que o aprendiz necessita aprender a dominar
todo o processo de produção, inclusive desenvolvendo novas ferramentas
que porventura venha a utilizar na fabricação do seu produto. É muito valo-
rizada a figura dos mestres de ofício, que são os guardiões dos saberes e dos
modos de praticá-los. Esses saberes, passados de geração a geração (não
por um movimento automático, mas pela ação de sábios educadores), refe-
rem-se tanto aos modos de transformar matéria-prima em produto quanto
aos valores, aos hábitos e aos costumes que são preservados pela tradição.
Predomina, portanto, uma educação informal, isto é, que não tem um tem-
po determinado para se realizar ou um currículo específico para orientar
a relação ensino-aprendizagem. Educa-se pela prática, entre praticantes,
num processo em que as relações domésticas, familiares e do grupo de pa-
rentesco costumam ser suficientes para formar o novo ser social.
Historicamente, contudo, à medida que mais artesãos aumentam a pro-
dução de mercadorias e os excedentes permitem ampliar o comércio, mu-
danças sucessivas vão acontecendo no modo de produzir. Alguns produtores
enriquecidos pelo comércio se fixam nas cidades nascentes e, em vez de
fazerem eles mesmos os produtos, passam a comprar as ferramentas, as ma-
térias-primas, os cômodos onde possam trabalhar e a pagar um salário em
troca do trabalho dos outros. Emerge e se constitui, dessa forma, o trabalho
parcelado, dividido, especializado, assalariado, e os burgueses – habitantes
dos burgos, as cidades – começam a comprar a força de trabalho – capacidade
física e intelectual – daqueles que não conseguem ter o seu próprio negócio.
O trabalhador livre, vendendo sua força de trabalho no mercado, foi uma
das condições fundamentais da existência do modo capitalista de produção,
porque a individuação é o componente básico do liberalismo econômico.
O trabalho parcelado, em que cada trabalhador cuida apenas de uma
etapa da fabricação do produto, é o elemento que constitui a divisão técnica
do trabalho. Para Marx, antes mesmo da maquinaria, o que revoluciona,
verdadeiramente, a produção de mercadorias é a adoção em larga escala do
trabalho parcelado, uma vez que os trabalhadores se especializam na reali-
zação de apenas parte do processo produtivo. A divisão técnica do trabalho,
por sua vez, produz significativas mudanças na educação, pois ela passa a
exigir do trabalhador uma aprendizagem ligada às atividades específicas que
ele vai realizar. Ainda que o aprendiz esteja ligado diretamente ao processo
produtivo, sua educação passa a exigir o desenvolvimento de habilidades
particulares e peculiares em função dessa nova organização do trabalho.
Essa é a fase de predomínio da manufatura, isto é, trabalho feito à mão ou

124
com a utilização de ferramentas simples. A escola começa a ser considerada
importante lugar da educação, onde todos não apenas devem ir aprender a
ler, escrever e contar, mas, sobretudo, formar uma nova sensibilidade rela-
tivamente a esse mundo novo da produção.
A manufatura revolucionou a produção ao modificar a forma de pro-
duzir mercadorias, isto é, pelo parcelamento das tarefas e entrega de cada
uma delas a um trabalhador especializado. Essas transformações se apro-
fundaram nos séculos seguintes, com a Revolução Industrial, que combi-
nou a mudança no modo de produzir com a introdução da maquinaria na
grande indústria. Além da divisão técnica do trabalho e do uso crescente
da maquinaria, a grande indústria submeteu o trabalhador à máquina e
ao dono dos meios de produção. Marx fez uma severa crítica a essa divisão
do trabalho porque ela não permite a todos os trabalhadores desenvolve-
rem suas potencialidades criativas. Ele atribuía grande importância tanto
ao trabalho manual quanto ao trabalho intelectual. O grande problema,
para ele, era que, na sociedade capitalista, aqueles que se ocupam do tra-
balho manual estão impedidos de se dedicarem ao trabalho intelectual.
Conforme analisa Carlos Lerena:

A escola reproduz a separação entre trabalhadores inte-


lectuais e trabalhadores manuais, assim como reproduz a
subordinação da ciência ao capital. Separado do trabalho
produtivo, o estudo, como operação de mero cultivo pessoal
e de passiva acumulação não pode fazer senão reproduzir a
cisão entre teoria e prática (LERENA, 1991, p. 131).

Não era pela escola, portanto, que Marx via a possibilidade de mu-
danças significativas. Se a escola burguesa era parte do aparato da supe-
restrutura do modo de produção capitalista, ela pouco ou nada poderia
fazer senão reproduzir a ideologia do sistema no qual está inserida. Aliás, a
escola havia se constituído como componente fundamental desse sistema.
Para Marx, portanto, a mudança do sistema não passa pela escola, mas
pela desestruturação do modo de produção capitalista. Seu desiderato era
a realização plena dos homens tanto naquilo que se refere às condições
materiais de existência quanto no que se refere à sua realização intelectual.
Para Marx, o homem educado é o homem livre e o homem livre é aquele que
prescinde da tutela ideológica, seja ela política ou religiosa.
Marx está entre os autores que fizeram severa denúncia da exploração
do trabalho infantil. Mas é certo que ele não aprovaria, caso presenciasse

125
nos dias atuais, a intensa campanha contra o trabalho infantil. Certamente
ele escreveria algo semelhante ao que escreveu sobre os trabalhadores que,
em protesto contra as condições de trabalho, quebravam as máquinas, na-
quele movimento que ficou conhecido como ludismo.2 Segundo Marx, esses
trabalhadores não sabiam distinguir a máquina em si dos usos que delas
eram feitos. Do mesmo modo, Marx diria, então, que a luta não é contra o
trabalho infantil, mas contra a exploração do trabalho infantil. Para Marx,
trabalho é toda ação humana que resulta do uso da capacidade física e in-
telectual para agir no mundo. O homem, como ser no mundo, se faz homem
pelo trabalho. E essa aprendizagem deve começar desde tenra idade. Ela é
parte constitutiva da formação do humano.
Em um livro bem documentado intitulado Educação, saber, produ-
ção em Marx e Engels, Maria Alice Nogueira faz ampla discussão sobre o
modo como esses autores trataram da relação entre educação e trabalho.
E o que ganha destaque na análise é como o trabalho constitui o elemento
fundamental da formação humana, ou, em outras palavras, trata-se da
análise da dimensão formativa do trabalho. Segundo a autora, o Relatório
Oficial do Congresso de Genebra, o primeiro da Associação Internacional dos
Trabalhadores, realizado em 1866, “constitui o único texto em que Marx
toma, explicitamente, a educação por assunto e tema central de reflexão”
(NOGUEIRA, 1990, p. 147).
Pode parecer estranho às mentalidades sensíveis do nosso tempo que
alguém faça de modo tão explícito a defesa do trabalho infantojuvenil. Essa
defesa, contudo, somente se sustenta se esse trabalho estiver associado à
dimensão formativa, como, aliás, está presente na legislação brasileira que
trata da defesa da infância. Ironicamente, há uma incrível semelhança entre
o texto de Marx e o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990). Ressalvados o recorte de classes
e a idade mínima de 9 anos recomendada para a entrada no mundo do
trabalho produtivo, é exatamente o que está nessa lei que Marx defendia.
Segundo ele:

Numa sociedade racional, qualquer criança, desde os nove


anos, deve ser um trabalhador produtivo, assim como
nenhum adulto, de posse de todas as suas faculdades,
pode-se isentar dessa lei geral da natureza. Se quisermos

2 -   Liderados por Ned Ludd, na primeira metade do século XIX, trabalhadores ingleses quebravam má-
quinas em protesto porque viam na mecanização a fonte do desemprego e da miséria que acompanhava
a formação do capitalismo.

126
comer, é preciso trabalhar, e não somente com o nosso
cérebro mas também com as nossas mãos (Marx apud
NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Marx considera adulta toda pessoa que completou 18 anos. O Estatuto


considera criança a pessoa “até doze anos de idade incompletos, e adoles-
cente aquela entre doze e dezoito anos de idade” (Lei n.º 8.069, Art. 2.º). No
Art. 60, o Estatuto afirma que “É proibido qualquer trabalho a menores de
quatorze anos, de idade, salvo na condição de aprendiz”. Não estabelece,
contudo, qual é a idade para começar a aprender pelo trabalho, mas o Art.
64 afirma que “Ao adolescente até quatorze anos de idade é assegurada
bolsa de aprendizagem” e o Art. 65, que ao “adolescente aprendiz maior de
quatorze anos são assegurados os direitos trabalhistas e previdenciários”.
Segundo Marx, não havia motivos para se ocupar das crianças e jo-
vens das classes abastadas, porque “se a burguesia e a aristocracia são
negligentes em seus deveres para com seus descendentes, é um problema
delas”. Sua preocupação era com as crianças e jovens das classes traba-
lhadoras, porque, além de socialmente desprotegidas, eram elas que preci-
savam dominar as ferramentas da transformação.

Seria desejável que as escolas elementares começassem a


instrução das crianças, antes da idade de nove anos. Mas,
no momento, só devemos pensar nas medidas absoluta-
mente necessárias para contra-arrestar as tendências de
um sistema social que degrada o operário, a ponto de tor-
ná-lo um mero instrumento para a acumulação do capital;
e que, fatalmente, transforma os pais em mercadores de
escravos que vendem os seus próprios filhos. O direito das
crianças e dos adultos deve ser defendido, uma vez que
eles não podem fazê-lo por si mesmos. É, portanto, dever
da sociedade agir em seu nome (Marx apud NOGUEIRA,
1990, p. 147-148).

Ora, o que pretende o Estatuto senão proteger as crianças e os ado-


lescentes das arbitrariedades tanto sociais quanto familiares? Essa lei es-
tabelece como limite entre crianças e adolescentes a idade de 12 anos. Algo
semelhante ao que Marx havia feito. Como não seria justo tratar a todas
da mesma maneira e inseri-las do mesmo modo no mundo do trabalho,
crianças e jovens de ambos os sexos foram divididas em três categorias,

127
por idade, e a cada uma dessas categorias deveria ser atribuído um tipo de
atividade em tempo rigorosamente controlado.

A primeira categoria compreende as crianças entre nove


e 12 anos, a segunda, as de 13 a 15 anos, e a terceira, os
jovens de 16 e 17 anos. Propomos que a utilização da pri-
meira categoria em qualquer tipo de trabalho, na fábrica ou
a domicílio, seja legalmente restrita a duas horas diárias; a
da segunda categoria a 4 horas, e a da terceira a seis horas.
Para a terceira categoria, deve haver uma interrupção, de
pelo menos uma hora, para refeição e recreação (Marx apud
NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Assim como Freud, para quem “as massas são preguiçosas e pouco
inteligentes” (FREUD, 1974, p. 18), para Marx, a miséria não deixa muita
margem para uma boa utilização da capacidade intelectual e a luta con-
tra essa ignorância deve ser tratada como política de Estado. Isso não é
nenhuma novidade, porque desde a primeira Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, a de 1789, considerava-se “que a ignorância, o es-
quecimento e o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das
desgraças públicas e da corrupção dos Governos”. Como foi dito, o homem
educado é o homem livre, e o homem livre é aquele que está livre da tutela
ideológica, seja ela política ou religiosa. Mas a educação não é um produto
da natureza, e sim um processo social, cuja construção depende do modo
como os homens estabelecem relações entre si. Diz Marx:

O trabalhador não age livremente. Frequentemente, ele é


muito ignorante para compreender qual é o verdadeiro in-
teresse do seu filho, ou as condições normais do desenvol-
vimento humano. No entanto, a parte mais esclarecida da
classe operária compreende plenamente que o futuro da
sua classe e, por conseguinte, da espécie humana, depen-
de da formação da geração operária que cresce. Ela com-
preende, antes de mais nada, que as crianças e os adoles-
centes devem ser preservados dos efeitos destruidores do
sistema atual. E isto só pode se realizar pela transferência
da razão social em força social; o que, nas circunstâncias
presentes, só pode ser feito através de leis gerais impos-
tas pelo poder do Estado. Ao imporem tais leis, as classes

128
operárias não estarão fortalecendo o poder governamental.
Ao contrário, elas estarão transformando o poder dirigido
contra elas, em seu agente. O proletariado fará, então,
através de uma medida geral, aquilo que ele tentaria, em
vão, realizar através de uma profusão de esforços indivi-
duais (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

Ao falar de educação, Marx dedicou poucas palavras à escola.


Sua concepção de educação passa necessariamente pelo modo como
analisa o trabalho, e é nele que estão efetivamente os elementos ma-
teriais da formação humana, conforme muito bem analisa Miguel Ar-
royo (1991). Marx não seria partidário de uma escola de tempo inte-
gral, a menos que parte desse tempo estivesse efetivamente ligada a
alguma atividade produtiva. Sua defesa é de que toda tarefa do pen-
samento desperta maior interesse e permite maior aprendizagem se
ele estiver ligado a uma atividade prático-concreta. Toda a sua discus-
são sobre educação passa necessariamente pela indissociável união
entre a dimensão prática do trabalho e o exercício intelectual leva-
do a efeito para a compreensão dos seus processos, numa palavra, a
praxis. A essa união entre prática e reflexão sobre a prática deveria se
somar a educação física como componente importantíssimo na formação
de um corpo física e intelectualmente saudável. Enquanto o Estatuto diz
que é “proibido qualquer trabalho a menores de quatorze anos de idade,
salvo na condição de aprendiz”, Marx dizia que isso era válido tanto para
crianças quanto para adolescentes.

A sociedade não pode permitir nem aos pais, nem aos pa-
trões, o emprego de crianças e adolescentes para o traba-
lho, a menos que se combine o trabalho produtivo com a
educação. Por educação nós entendemos três coisas:
1) educação mental;
2) educação corporal, tal qual é produzida pelos exercí-
cios ginásticos e militares;
3) educação tecnológica, compreendendo os princípios
gerais e científicos de todos os processos de produ-
ção e, ao mesmo tempo, iniciando as crianças e os
adolescentes no manejo dos instrumentos elemen-
tares de todos os ramos industriais (Marx apud
NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).

129
Além desse entendimento de que a educação deve estar relacionada à
dimensão intelectual, corporal e tecnológica, Marx entendia também que a
cada fase do desenvolvimento da criança e do adolescente deveria corres-
ponder um tipo particular de ação educativa. Exatamente o que estabelece
o inciso II do Art. 63: a “atividade compatível com o desenvolvimento do
adolescente” é um princípio que deve ser obedecido pela formação técnico-
-profissional. Marx defendia, ainda, que crianças e adolescentes deveriam
ser protegidos das ocupações que pudessem trazer risco à sua saúde e às
condições normais de desenvolvimento. Segundo ele:

À divisão das crianças e adolescentes em três categoriais, de


nove a 18 anos, deve corresponder uma marcha gradual e
progressiva em sua educação mental, física e tecnológica. [...]
Fica subentendido que o emprego de criança ou adoles-
cente, entre nove e 18 anos em qualquer tipo de tra-
balho noturno, ou em qualquer ramo industrial que
possa acarretar efeitos nocivos para a saúde, deve ser
severamente proibido pela lei (Marx apud NOGUEIRA,
1990, p. 147-148).

Comparemos agora com o que está estabelecido no Art. 67 do Estatuto:

Art. 67. Ao adolescente empregado, aprendiz, em regime


familiar de trabalho, aluno de escola técnica, assistido
em entidade governamental ou não-governamental, é ve-
dado trabalho:
I- noturno, realizado entre as vinte e duas horas de um dia
e as cinco horas do dia seguinte;
II- perigoso, insalubre ou penoso;
III- realizado em locais prejudiciais à sua formação e ao seu
desenvolvimento físico, psíquico, moral e social;
IV- realizado em horários e locais que não permitam a fre-
qüência à escola.

Grande parte da bibliografia sobre a educação em Marx e em outros


autores de filiação marxista centra-se nessa dimensão formativa do tra-
balho. Ele é o elemento-chave da transformação da realidade e se se quer
transformar o mundo é pelo trabalho que isso será feito. Esse é um tema

130
amplamente abordado por Miguel Arroyo em um sofisticado texto em que
analisa os elementos materiais da formação humana. Trata-se de texto
polêmico, em que o autor suspeita de muitas das mais importantes contri-
buições intelectuais sobre o tema em questão. Dentre essas contribuições
contestadas estão aquelas que se sustentam na “negatividade do trabalho”
(Harry Braverman, Edgar de Decca) e aquelas que veem algo educativo
apenas na resistência às manifestações deformadoras do trabalho (Michael
Aplle, Hennry, Henry Girroux e Paul Willis). Enquanto os primeiros veem
o trabalho moderno como um princípio destrutivo, deformador e antipe-
dagógico, os outros põem o educativo não no trabalho produtivo, mas sim
na resistência a ele. Sobre a negatividade do trabalho, Arroyo cita Edgar
de Decca, para quem, “de todas as utopias criadas a partir do século XVI,
nenhuma se realizou tão desgraçadamente como a sociedade do trabalho”
(ARROYO, 1991, p. 182).
Após criticar uns por pretenderem girar para trás a roda da história
e outros pelo romantismo com que pretendem ver a resistência ao capita-
lismo, Arroyo faz uma firme defesa da “positividade educativa do trabalho
moderno”, destacando os elementos materiais da formação humana.

A formação politécnica que os trabalhadores modernos


têm acumulado, o conhecimento das bases científicas e
tecnológicas da produção e a capacidade de trabalhar com
o cérebro e com as mãos, a onilateralidade que vêm de-
senvolvendo, têm vindo mais do trabalho e da inserção na
produção fabril que da escola. [...] Qualquer saudosismo
e qualquer caminho de volta às formas passadas de tra-
balho como o ideal do trabalho formador é utopia, como é
utopia sonhar em novos conteúdos politécnicos na escola,
ou no aumento das capacidades teóricas e práticas para
salvar o trabalhador da deformação da produção capitalista
(ARROYO, 1991, p. 209).

Isso não nos impede, é claro, de discutir o papel da escola e tentar


fazer dela um lugar atrativo e relevante para a educação dos nossos alu-
nos. Mas as próprias concepções de trabalho e escola (“você trabalha ou
estuda?”) que circulam no senso comum deixam claro o quanto a escola
está distante do grande ideal de reconstrução social que ela mesma aju-
dou a construir.

131
Conclusão

Em conclusão ao que foi discutido neste texto, quero destacar apenas


três aspectos.
O primeiro é que a distinção conceitual apontada anteriormente figura
tanto como um exercício de ordem teórica quanto de ordem prática. O prin-
cipal objetivo dessa distinção é destacar que a educação é uma prática social
revestida de uma dimensão valorativa, independentemente da natureza dos
valores que orientam a ação daqueles que reivindicam para si a tarefa de
educadores. Ela nunca é neutra e, por isso mesmo, tem sido cada vez mais
associada a uma positividade, pois que o mundo moderno tem sido visto
como projeto humano, e não como desígnio divino. Quanto mais se acentua
a dimensão de projeto e o entendimento de homem como sujeito da história,
mais a educação é vista como parte constitutiva desse projeto. Se a educação
é uma prática social, entendida como um conjunto de ações orientadas por
diferentes valores, a formação é o processo que põe em jogo os diversos atores.
O segundo é que, apesar de os processos de escolarização terem sido
apontados como os principais elementos constitutivos da formação, so-
bretudo profissional, não podemos desconsiderar que é o trabalho, como
expressão da ação humana sobre a natureza, seja ele manual seja ele inte-
lectual, o que nos constitui humanos. É o trabalho produtivo e criativo, que
se faz pela união da capacidade física e intelectual, como processo social
e histórico, que nos distingue de todas as outras espécies. Há trabalhos
que deformam. Para eles contamos com a capacidade intelectual de criar
máquinas para executá-los. Seria, contudo, ilusão achar que a luta por
transformação social não passe pelo trabalho.
O terceiro é que esse trabalho e seu valor na constituição do huma-
no deve ser aprendido desde tenra infância. Contrapor trabalho e escola e
dizer que “criança não pode trabalhar, pois lugar de criança é na escola”
não vai nos levar a lugar algum, a não ser construir uma imagem negativa
do trabalho e contribuir com isso para a formação de uma geração avessa
ao trabalho. Tem sido comum criticar as unidades domésticas por forjar
trabalhadores susceptíveis, desde cedo, à exploração nas ocupações insa-
lubres. Mas se o sujeito trabalhador formado nessa unidade doméstica tem
como destino essas ocupações insalubres, a luta não é contra a unidade
doméstica, mas contra a exploração do trabalhador nessas atividades.
A luta a ser travada não é contra o trabalho infantil, mas contra a explora-
ção do trabalho da criança.

132
Referências

ARROYO, Miguel G. Revendo os vínculos entre trabalho e educação:


elementos materiais da formação humana. In: SILVA, Tomaz Tadeu (Org.).
Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação humana.
Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

BÍBLIA SAGRADA. 175. ed. São Paulo: Editora Ave-Maria, 2007.

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 33. ed. São Paulo: Bra-
siliense, 1995.

BRASIL. Presidência da República. Casa Civil. Lei nº 9394, de 20 de de-


zembro de 1996. Estabelece as diretrizes e bases da educação nacional.
Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm>.
Acesso em: 23 mar. 2013.

CUNHA, Antonio Geraldo. Dicionário etimológico da língua portuguesa.


4. ed. Rio de Janeiro: Lexikon, 2010.

DURKHEIM, Émile. A evolução pedagógica. Porto Alegre: Artes Médi-


cas, 1995.

DURKHEIM, Émile. Educação e sociologia. Petrópolis: Vozes, 2008.

FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. Rio de Janeiro: Imago, 1974.

HOUAISS, Antonio. Dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro:


Objetiva, 2001.

LERENA, Carlos. Trabalho e formação em Marx. In: SILVA, Tomaz Tadeu


(Org.). Trabalho, educação e prática social: por uma teoria da formação
humana. Porto Alegre: Artes Médicas, 1991.

MARX, Karl. Manuscritos de París. México: Grijalbo, 1978.

MARX, Karl. O capital: crítica da economia política. São Paulo: Difel,


1985. v. 1.

133
NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção e m Marx e Engels.
São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990.

ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na modernidade: ensaios. São Paulo:


Companhia das Letras, 1993.

SOUZA, João Valdir Alves. Introdução à Sociologia da Educação. 2. ed.


Belo Horizonte: Autêntica, 2009.

SOUZA, João Valdir Alves. Educação. Presença Pedagógica, v. 18, n. 105,


p. 64-70, maio/jun. 2012.

WEBER, Max. A ética protestante e o espírito do capitalismo. 11. ed.


São Paulo: Pioneira, 1996.

João Valdir Alves de Souza é graduado em Ciências Sociais pela


Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), mestre em Educa-
ção pela mesma instituição e doutor em Educação pela PUC-SP.
É professor associado de Sociologia da Educação da Faculdade de
Educação da UFMG.

134
Práticas inovadoras de
ocupação e trabalho

Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho - Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG)
Fotos: Lori Figueiró

135
Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho -
- Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG)
Fotos: Lori Figueiró
Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes:
boas práticas de organização de mulheres

Resolvemos criar uma oficina de costura em Ponto dos Volantes. Mas


como criá-la, se todas as mulheres eram casadas, ninguém trabalhava fora e
não tínhamos uma renda para custear essa oficina? Foi então que obtivemos
ajuda das técnicas do Centro de Referência em Assistência Social (CRAS),
que redigiram um projeto de arte e cultura para pedir ajuda ao prefeito. Ele,
porém, informou sobre a impossibilidade de fornecer recursos sem que pres-
tássemos um serviço ao município. Recebemos, então, o adiantamento com a
responsabilidade de fundar a oficina de costura e confeccionar os uniformes de
alguns setores da prefeitura. Era essa a nossa forma de pagamento. Aceitamos
sem saber muito bem o que estávamos fazendo. Éramos 25 mulheres quan-
do assumimos o compromisso. A ideia surgiu em 2005, mas o dinheiro para
começarmos – R$ 5 mil – só veio dois anos depois. Com esse recurso, foram
compradas três máquinas semi-industriais. Coube à prefeitura pagar o aluguel
do galpão onde trabalhávamos. Tivemos, também, um curso de serigrafia que
durou dois dias e nos capacitou para confeccionar os uniformes. Foram seis
meses de trabalho sem remuneração até conseguirmos entregar os uniformes.
Todos elogiaram nosso trabalho e, em função disso, surgiram diversos
pedidos de uniformes, principalmente de lojas. Mas de repente as máquinas
estragaram, pois eram semi-industriais e não suportaram a carga de trabalho.
Nesse momento, de 25 mulheres, restaram apenas 11. Decidimos comprar
uma máquina industrial a prazo no valor de R$ 3 mil. Com o dinheiro dos
uniformes, conseguimos pagá-la. Toda a receita que tínhamos até então era
gasta com a própria produção, logo, não tínhamos lucro algum. Depois de
quase um ano e meio, só restavam sete mulheres na equipe.
O prefeito sugeriu que buscássemos a inserção no Programa de Comba-
te à Pobreza Rural (PCPR), por meio de um projeto para o financiamento da
construção da nossa sede. Quando decidimos tentar o programa, saiu mais
uma colega. A essa altura, éramos apenas seis. E os pedidos não paravam de
chegar. Como precisávamos, ainda, de um terreno para a futura sede, procu-
ramos alguém que o financiasse, para que pagássemos mês a mês, porque à
vista era impossível. Conseguimos com o dono de um depósito de materiais
de construção, que tinha interesse em nos vender material quando fôssemos
construir. Compramos o terreno sob esse compromisso. Pagamos R$ 3 mil
de entrada e R$ 12 mil em oito meses. Somente depois de três anos fomos

137
contempladas pelo programa e conseguimos R$ 40 mil para a construção
da sede própria. Realizamos a construção, a inauguração e a prestação de
contas, além de conseguirmos adquirir mais maquinário, que atualmente
corresponde a dez máquinas.
Hoje, também desenvolvemos projetos sociais e participamos de con-
selhos, sempre dando nossa contribuição social. O mundo está nas mãos
de quem tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um “tostão”
para casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos
nossa independência.

Fala: Roseane Borges dos Santos Andrade e Laudiana Barboza da Silva Borge
Transcrição: Caio Ribeiro Paranhos

138
Ocupação, trabalho e renda:
a experiência do Centro de Agricultura
Alternativa Vicente Nica (CAV)

O Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV), associação


sem fins lucrativos criada em 1994, pauta-se no interesse dos próprios agri-
cultores e agricultoras organizados no Sindicato dos Trabalhadores Rurais
de Turmalina, voltando-se para a discussão, formulação e realização de
atividades adaptadas às características sociais, econômicas e ambientais
da região. Tendo por base uma metodologia que envolve agricultores e agri-
cultoras enquanto sujeitos das ações, desde o planejamento até a avaliação,
a experiência que o CAV tem desenvolvido nos últimos anos – e que tem
dado bons resultados – deriva do cruzamento entre conhecimento científico
e conhecimento prático.
Esse método de trabalho tem caráter emancipador e sustentável e visa
construir condições favoráveis para que, paulatinamente, os agricultores
atendidos possam traçar seus próprios destinos de forma independente, com
a presença cada vez menor da entidade, que então poderá expandir suas
atividades até locais ainda não abrangidos. Nessa direção, cabe ao técnico(a)
ouvir o(a) agricultor(a) e propor ações que tenham como referência o potencial
e a capacidade dos(as) próprios(as) agricultores(a) em suas propriedades.
O CAV e as comunidades rurais construíram e vêm consolidando pro-
postas que agregam melhoria às condições de vida, com a necessária aten-
ção à conservação e ao uso sustentável dos recursos naturais do semiárido.
As iniciativas atualmente desenvolvidas voltam-se, também, ao incentivo
da produção de excedentes e a sua comercialização por meio do fomento
de canais que se apoiam na solidariedade e que valorizam modelos sus-
tentáveis de produção. Nesse sentido, fomenta ações de Economia Popular
Solidária a partir da participação em feiras livres nos municípios de Tur-
malina, Veredinha e Chapada do Norte. Uma vez que o CAV trabalha com
agricultores(as) familiares, considera fatores como a produção e a venda.
Ao resgatar a história, o Centro de Agricultura Alternativa percebeu que já
existiam estratégias sustentáveis, que são as feiras livres, um espaço de
venda e troca de produtos e saberes.
Na feira de Turmalina, participam os cerca de 170 integrantes da As-
sociação dos Agricultores(as) Familiares Feirantes de Turmalina (AFTUR).
Em Veredinha, participam 115 membros da Associação dos Agricultores(as)

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Familiares Feirantes de Veredinha (Afave). Já em Chapada do Norte, a
Associação dos Agricultores(as) Familiares Feirantes (Afachap) é formada por
62 associados(as). O apoio dado pelo CAV às ações de Economia Popular
Solidária diz respeito à organização do espaço da feira livre e feirantes. Em
Veredinha, por exemplo, auxiliou na negociação com o poder público para
implantação do Ponto de Apoio para atendimento aos feirantes. Além disso,
auxilia na organização da infraestrutura das feiras, com a aquisição de saco-
linhas, forros de bancas, cestos, materiais de divulgação, gaiolas para fran-
gos, entre outros. Também orienta a emissão do Cartão do Produtor Rural.
O CAV mantém, pelo menos, mais quatro frentes de trabalho: 1) Acom-
panhamento técnico às propriedades; 2) Fundo Rotativo Solidário; 3) Apoio
à comercialização; 4) Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro, acompanhamento téc-
nico às propriedades, envolve o planejamento anual e o acompanhamento
das atividades das associações de feirantes; a elaboração e o planejamento de
cronograma produtivo; e as visitas técnicas às propriedades. Com o avanço
tecnológico, esse trabalho vem tomando corpo no sentido da ocupação, tra-
balho e renda. É nesse campo que os (as) agricultores(as) vêm evoluindo cada
vez mais, tanto financeiramente como no conhecimento. No eixo da produ-
ção, acreditamos que é necessário ter o domínio da preservação do solo e da
água; no beneficiamento, é preciso ter qualidade para atender às exigências
do consumidor; na venda, os (as) produtores(as) têm de conhecer a política do
mercado globalizado, para uma efetiva ação local, visto que os concorrentes
estão em todos os lados. Mais uma estratégia na produção é a capacitação de
produtores(as) com vistas ao domínio dos arranjos produtivos.
Entre as ações que envolvem o Fundo Rotativo Solidário, o CAV atua
na orientação para a elaboração de projetos do fundo e, ainda, realiza vi-
sitas de avaliação e acompanhamento dos projetos aprovados. Em 2012,
foram apoiados 86 projetos em Turmalina, 58 em Veredinha e algumas
dezenas em Chapada do Norte; realizada a compra conjunta de 580.360
toneladas de esterco aviário. Já o apoio à comercialização envolve pesqui-
sa de mercado em Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte; assessoria
continuada às associações de feirantes; visitas às feiras livres aos sábados,
e apoio ao acesso a mercados institucionais, como o PAA e o PNAE, que
compõem a quarta frente de atuação do CAV.
Em relação ao PAA/PNAE, o CAV realizou o monitoramento do PAA
2012. No valor de 143.333,02, o projeto atendeu a 14 instituições e envol-
veu 32 agricultores. Além do apoio para a elaboração de propostas para o

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PNAE, o CAV auxiliou na elaboração do PAA 2013, que visava atender a 31
instituições dos municípios de Turmalina e Veredinha e, aproximadamente,
70 associados.
O CAV, juntamente com os(as) agricultores(as) dos municípios de
Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte, tem identificado um conjunto
significativo de desafios a serem enfrentados visando à efetiva “ocupa-
ção, trabalho e renda”. Entre eles, destacam-se: legislação imprópria ao (à)
agricultor(a) familiar, principalmente quando se trata da Indústria Domés-
tica Rural, porque tem o mesmo tratamento das grandes agroindústrias do
país; e o baixo nível de escolaridade e a falta de uma política educacional
adequada aos (às) moradores(as) do Vale.
Todavia, em quase duas décadas de atuação, o CAV tem identificado
que a formação de grupos de interesse, quer para o debate, quer para a
ação, contribui para efetivar a “ocupação, trabalho e renda”. Olericultura,
apicultura, fruticultura, piscicultura, entre outros, são exemplos de grupos
de interesse que podem ser implantados. A metodologia desenvolvida pelo
Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, aprimorada a cada nova
ação, considera que as discussões e ações jamais devem ter um tratamento
generalizado, pois isso tira o foco e o interesse dos envolvidos.
Retomando o início deste texto, está claro que os bons resultados da
atuação do CAV em muito se deve ao cruzamento entre o conhecimento
científico e o conhecimento prático. Nesse sentido, a parceria com as uni-
versidades tem sido muito interessante, pois, somando-se o conhecimento
dos acadêmicos com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um
produto da melhor qualidade.

Boaventura Soares de Castro


Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica (CAV)
Edição: Angela Zamin

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Rio Jequitinhonha
Foto: Lori Figueiró
Impresso em papel Off Set 90g/m²
Imprensa Universitária da UFMG
Primavera de 2013
O trabalho não é causa da diferenciação entre homens e mulheres no
Vale do Jequitinhonha. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe
preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não
apenas a esfera do trabalho. Há, na verdade, uma universalização
dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações
de gênero não dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada.
E, mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como falsa
consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras
ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as
esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de
que refletem o real e também o determinam.

Maria Aparecida de Moraes Silva

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