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JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho
Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho
Rio Jequitinhonha
Foto: Lori Figueiró
Organização
Maria das Dores Pimentel Nogueira
VALE DO JEQUITINHONHA
Ocupação e Trabalho
©2013
Este livro foi publicado com recursos da Pró-Reitoria de Extensão da UFMG
11 Apresentação
Roberto Nascimento Rodrigues
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do Vale do Jequitinhonha, nada é tão simples assim. De fato, trata-se de
mais uma produção do Programa Polo de Integração da UFMG no Vale do
Jequitinhonha, coordenado por Maria das Dores Pimentel Nogueira, que
se insere numa linha a um só tempo tênue e instigante da diversidade
característica do Vale. Mas, desta feita, a coordenação de Marizinha re-
mete o leitor a uma viagem que vai além do horizonte circunscrito ao Vale
do Jequitinhonha, ao agregar textos que abordam temáticas universais
sobre ocupação e trabalho.
Tarefa tão difícil que a coordenadora brinda o leitor, logo de início,
com um relato apaixonante e revelador daquilo que de mais puro pare-
ce povoar corações e mentes da população do Jequitinhonha, que Maria
Aparecida de Moraes Silva tão singelamente denominou “Lições do Vale:
narrativa de uma pesquisadora”. Maria Aparecida diz ter aprendido lições
a partir dos depoimentos que coletou de mulheres residentes no Vale do
Jequitinhonha, sobre suas experiências enquanto migrantes sazonais em
busca de ocupação e trabalho nas atividades de colheita de cana no inte-
rior de São Paulo, para depois voltarem à região em condições de propiciar
o sustento de seus familiares. Ao destacar o universo do trabalho femini-
no em um ambiente marcadamente povoado por homens, com o intuito
de seguir os passos das mulheres “na busca do farol luminoso da justiça
social”, a autora descreve as lições que com elas aprendeu sobre questões
como o uso do tempo e relações de gênero, que lhes levaram a conjugar,
com maior frequência, verbos como dividir, somar e multiplicar.
Em seguida, Flávia Maria Galizoni e Eduardo Magalhães Ribeiro
também abordam o trabalho feminino, mas sob a ótica de mulheres que
exercem atividades produtivas na agricultura, no próprio Vale do Jequi-
tinhonha. O objetivo dos autores é analisar a representação do trabalho
da mulher para os membros da família em uma situação de forte migra-
ção sazonal masculina. A junção do foco desses dois primeiros artigos
parece apontar para o fato de que, a despeito da sobrerrepresentação
de estudos versando sobre o trabalho masculino, a inserção das mulhe-
res do Vale do Jequitinhonha em atividades produtivas, dentro ou fora
da região, constitui elemento importante, e constante, na formação da
renda familiar. A esse respeito, Flávia e Eduardo enfatizam que “o total
de trabalho de uma família é, quase sempre, a soma de várias jornadas:
masculina, feminina, infantil e de idosos”.
O texto de Juliana Biondi Guanais oferece ao leitor a oportunidade
de discutir a questão da migração sazonal de trabalhadores do Vale do
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Jequitinhonha em meio ao processo de mecanização das lavouras de
cana-de-açúcar, iniciado em meados dos anos 1980. A autora destaca
que tal reestruturação produtiva produziu modificações importantes na
atuação desses trabalhadores, uma vez que lhes impôs maior volume
de trabalho em regiões de mais difícil acesso, resultando em redução da
produtividade e, consequentemente, diminuição da renda. O resultado
geral, segundo a autora, é um processo de redução das oportunidades de
trabalho braçal, gradualmente substituído pela introdução de máquinas
colheitadeiras, aliado à absorção de trabalhadores mais qualificados, ge-
ralmente mais jovens, capazes de manusear máquinas e equipamentos.
Nos três artigos subsequentes, a abordagem deixa de considerar
especificamente a situação vivenciada no Vale do Jequitinhonha, embora
possa se enquadrar para uma análise circunscrita à região.
O tema central do estudo desenvolvido por Cândida da Costa em
“Trabalho escravo contemporâneo: grilhões modernos na vida dos traba-
lhadores e trabalhadoras” é uma discussão que pode ser remetida para
exemplificar o caso de outros universos de investigação, além do Vale
do Jequitinhonha. A partir da ideia do trabalho como direito humano, a
autora discorre sobre concepções teóricas que remetem a um conceito
particular de trabalho escravo ou forçado, abrangendo situações em que
o trabalhador “é ludibriado por falsas promessas de ótimas condições de
trabalho e salário». Antes de focalizar denúncias de casos específicos e
não totalmente documentados, a autora considera que o trabalho escravo
é um tipo de trabalho forçado, definido como obrigatório, compelido ou
subjugado, concluindo que “todo trabalho escravo é forçado, mas nem
todo trabalho forçado é escravo”.
Na sequência, Carlos Roberto Horta apresenta uma proposta de me-
todologias participativas com populações quilombolas, com ênfase na for-
mação política e geração de trabalho e renda, tendo como referência os
trabalhos desenvolvidos no âmbito do Núcleo de Estudos sobre o Trabalho
Humano da UFMG (NESTH/UFMG), apoiados nos princípios da pesquisa-
-ação-participativa. Na visão do autor, essa abordagem propicia um forta-
lecimento político das comunidades, permitindo vencer barreiras como a
descontinuidade de ações, reforçadas por questões culturais. As sete estra-
tégias propostas incluem entrevista qualitativa embasada na tradição oral;
questionário qualitativo dirigido a lideranças locais; questionário dirigido
ao grupo familiar; entrevista qualitativa para identificar as representações
que se organizam em torno da comunidade quilombola; encontro local com
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diferentes atores locais; estímulo às potencialidades e à organização de
subjetividade social; e encontro quilombola na sede municipal.
Já a dimensão formativa do trabalho, que constitui o tema central
do artigo de João Valdir Alves de Souza, tem como objetivos “explorar o
conceito de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, es-
colarização, instrução e ensino”, além de “fazer uma defesa da formação
pelo trabalho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil”. Nada
mais instigante e polêmico para fechar o conjunto de artigos que pode-
riam constituir um núcleo universal deste Vale do Jequitinhonha: Ocu-
pação e Trabalho. Logo na introdução do seu artigo, João Valdir adverte
que, “se tomarmos o trabalho como a ação humana sobre a natureza
para, sob determinadas relações sociais, produzir as condições da exis-
tência, é preciso distinguir os diferentes tipos de trabalho e destinar às
crianças apenas aquela porção do trabalho adequada a elas. E é preci-
so dizer com clareza que a campanha deve ser contra a exploração do
trabalho, sobretudo da exploração do trabalho infantil, e não contra o
trabalho, porque ele é constitutivo do humano”. Mais adequado, então,
é recomendar ao leitor uma leitura atenta, cuidadosa e sempre contex-
tualizada, mesmo quando o autor dedica parte da atenção ao que Marx
“certamente escreveria” sobre o assunto, em defesa do trabalho infantil,
mas contra a exploração do trabalho infantil.
Na retomada do foco para as especificidades do Vale do Jequitinho-
nha, os dois textos finais apresentam relatos de práticas inovadoras de
ocupação e trabalho na região. O primeiro deles descreve a trajetória de
criação e consolidação da Associação das Mulheres de Ponto dos Volan-
tes, que se dedicam a atividades de costura, além do desenvolvimento
de projetos sociais. A conclusão é que “o mundo está nas mãos de quem
tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um ‘tostão’ para
casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos
nossa independência”. O segundo destaca a atuação do Centro de Agri-
cultura Alternativa Vicente Nica (CAV), com base em uma metodologia
que deriva do cruzamento entre conhecimento científico e conhecimento
prático. Conclui-se que na aplicação dessa metodologia “cabe ao técni-
co(a) ouvir o(a) agricultor(a) e propor ações que tenham como referência
o potencial e a capacidade dos(as) próprios(as) agricultores(as) em suas
propriedades”. Nesse sentido, “a parceria com as universidades tem sido
muito interessante, pois, somando-se o conhecimento dos acadêmicos
com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um produto da
melhor qualidade”.
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Tem sido sempre assim: ao aliar o conhecimento acadêmico àquele
da população da região, o Programa Polo de Integração da UFMG no Vale
do Jequitinhonha invariavelmente desenvolve um produto da melhor
qualidade. É o caso deste Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho,
que apresenta uma coletânea de artigos capaz de propiciar ao leitor emo-
ção, conhecimento e inquietação em doses suficientes para convidá-lo a
juntar-se à equipe nesse processo de construção coletiva de um presente
melhor não apenas para a geração atual, mas também para a geração
futura da população que compõe o Vale do Jequitinhonha.
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Bordados da Associação Antônio Maria das Graças, Jenipapo de Minas.
Fotos: Lorí Figueiró
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Lições do Vale:
narrativa de uma pesquisadora
Maria Aparecida de Moraes Silva
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transporte, aquele não era um problema social e político relevante naquele
momento para o status quo.
Ao chegar ao barracão, deparei com muitas mulheres, homens e
crianças que estavam do lado de fora, aquecendo-se ao sol em razão do
frio intenso. De início, houve um constrangimento de ambas as partes.
Afinal, éramos estranhos entre nós mesmos. De meu lado, houve um
espanto e incredulidade diante do que via; do lado daquelas pessoas,
pairava no ar o questionamento acerca de minha presença, inicialmente,
pensada como se fosse alguém pertencente à fazenda. Passados aqueles
momentos de estranhamento mútuo e dúvidas, iniciamos a conversa.
Perguntei-lhes sobre as razões de estarem ali, de onde provinham, o que
faziam em suas terras e assim por diante. Paulatinamente, o estranha-
mento foi se dissipando e fui percebendo com maior nitidez a realida-
de daquelas vidas diante de mim. Não gravei nenhuma conversa. Ouvi
muitos relatos sobre o trabalho e, sobretudo, o sofrimento, por estarem
longe de suas terras. Contudo, o registro em meu caderno de campo foi
insuficiente para dar conta do indizível, do silêncio, das falas entrecor-
tadas por soluços, dos olhares dirigidos a lugar nenhum, da miséria dos
corpos, do encolhimento, da dor sentida pelos doentes e, mais ainda, da
saudade da “terra da gente”, “do lugar da gente”. A impressão registrada
era a de pessoas “exiladas”, fora de seus rincões, arrancadas de suas
raízes. Soltas, sem lugar de pertencimento.
O barracão enfeixava um quadro de miséria humana. Sua arqui-
tetura refletia o retrato da dominação, exploração, contrastante com a
arquitetura do haras, do outro lado do córrego, com seus belíssimos ca-
valos aureolados em vários concursos. Nos cinco “quartos”, divididos por
plásticos pretos, as sessenta pessoas ali estavam acomodadas, indepen-
dentemente do sexo, idade, estado civil e grau de parentesco. O critério da
divisão era tão somente o quantitativo. Os fogões a lenha – em número de
oito – situavam-se em frente aos “quartos”, imprimindo ao ambiente, em
virtude da fumaça, um aspecto lúgubre. Não havia água encanada nem
energia elétrica. A higiene corporal era feita no córrego, apesar do frio.
Duas frases ouvidas foram registradas em meu caderno de campo,
inúmeras vezes: “aqui não é o lugar da gente”; “aqui não é a terra da gen-
te”. Ao sair do barracão, no final daquela manhã domingueira, fui acome-
tida de muitas emoções; revolta diante da injustiça social experimentada
por aquelas pessoas; impotência diante do fato presenciado. A partir de
então, formulei um projeto de pesquisa para conhecer “a terra daquela
gente” e entender por que estavam na “terra que não era daquela gente”.
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Assim, cheguei ao Vale em 1988.1 De lá para cá, foram muitas andan-
ças. Palestras, textos escritos publicados em revistas e livros; muitas apre-
sentações em congressos nacionais e internacionais. Levei para incontáveis
cantos do país e de lugares estrangeiros as imagens e narrativas de homens,
mulheres e crianças da “terra da gente”;2 iniciei uma colaboração frutífera,
que já dura mais de 20 anos, com a Pastoral do Migrante; conheci inúmeros
pesquisadores que se debruçaram sobre a temática das migrações e das
sociedades camponesas. E mais ainda. Aprendi várias lições transmitidas
por camponesas, que, embora sendo ágrafas, tinham um conhecimento
ímpar advindo de suas experiências moldadas pela vida. Lições aprendidas
e, a partir de então, transmitidas a inúmeras gerações de estudantes. Lições
guardadas em minha memória como verdadeiros tesouros. Sobre algumas
delas, discorrerei, em seguida, sob a forma de narrativa.
Primeira lição:
Mulher é como engenho, roda sem parar
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que estava colhendo algumas espigas de milho seco. Vestia uma saia es-
cura e possuía os cabelos protegidos por um lenço branco, amarrado à
moda das demais camponesas do Vale. Após ouvir-me atentamente, iniciei
o preenchimento do questionário, cujas perguntas iniciais versavam sobre o
uso do tempo com horários bem definidos, segundo as distintas atividades.
O objetivo da noção do uso do tempo era voltado para a compreensão do
cotidiano laboral feminino, bem como a precisão da dupla jornada. De qual-
quer forma, o modelo tinha como base a vida das mulheres trabalhadoras
urbanas e também a divisão do tempo produtivo (fora da casa) e reprodutivo
(na casa). Assim, numa das colunas havia o registro de todos os horários da
jornada de trabalho, desde o momento do despertar até o deitar. Na outra
coluna, eram discriminadas as atividades, segundo os respectivos horários.
À medida que ia respondendo às perguntas, notei que minha depoen-
te não sabia me dizer com precisão a atividade que ela desenvolvia às seis
horas ou às seis e trinta minutos. Insistia em me dizer que fazia tudo ao
mesmo tempo: coava o café, cuidava das crianças e também das galinhas;
varria o terreiro e limpava a casa. Lavava a roupa; preparava o almoço e
depois ia para a roça com o sol a prumo. Guiava-se pelo sol. Não sabia ler
nem escrever. Não possuía relógio. Seu tempo era o tempo cíclico, e não
o linear da sociedade urbana e orientada por práticas capitalistas e do
assalariamento dos trabalhadores. Após alguns minutos de desconforto em
relação às perguntas, ela me disse:
Até aquele momento, não havia lhe dito nada sobre tempo dividido,
noção cara aos estudos dessa temática. Ela, por si mesma, com sua arguta
inteligência, havia chegado a essa conclusão. Com essa lição aprendi que
o modelo de questionário que tinha em mãos não era o mais adequado
para aquela realidade. Assim, deixei-o de lado e aprofundei a entrevista
com dona Maria. Aprendi o significado do “rodar sem parar como enge-
nho”: metáfora da jornada justaposta, do tempo não dividido, não recortado,
e das múltiplas atividades desenvolvidas ao mesmo tempo, sem a cisão do
espaço produtivo (roça) e do espaço reprodutivo (casa). Casa e roça, além
do quintal, formavam a simbiose espacial por onde ela “rodava sem parar”.
E mais ainda. A disposição das tarefas seguia o movimento da terra ao
redor do sol, de forma bastante precisa. O seu tempo não era o tempo
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cronológico do relógio, definido segundo as horas e os minutos, porém o da
manhã, do meio-dia, da tarde e o da noite.
Fui descobrindo pelo relato de minha depoente que, enquanto havia
uma jornada justaposta para as mulheres, elas rodavam sem parar, havia
uma jornada única para os homens; a divisão sexual do trabalho existia ape-
nas em relação aos homens, que concentravam suas atividades no trabalho
agrícola, e não para as mulheres. A pré-concepção da divisão sexual, no
nível do discurso, em que as mulheres só trabalhavam na roça como ajuda
ao trabalho do homem e por precisão, refletia as representações sociais ali
existentes. Outros depoimentos foram revelando ainda que as mulheres par-
ticipavam de todas as tarefas do processo de trabalho agrícola, ou seja, pre-
paravam a terra, plantavam, carpiam e colhiam. Não havia, para os diferentes
produtos, uma divisão, às vezes, concebida como natural, em que os homens
preparam a terra, as mulheres semeiam e “ajudam” na carpa e colheita.
Essas informações tornaram visível e real a participação das mulhe-
res em todas as fases do processo produtivo agrícola, desmistificando as
concepções de que o trabalho da roça é pesado e, portanto, é um traba-
lho dos homens e que as mulheres só trabalham quando há precisão.
Por outro lado, a real participação das mulheres no trabalho não lhes
conferia o mesmo estatuto que os homens. Ou seja, mesmo exercendo
o mesmo trabalho, elas não eram consideradas iguais aos homens.
Trabalho idêntico não significa igualdade social (no sentido dos gêne-
ros) entre homens e mulheres. O trabalho não é causa da diferenciação
entre homens e mulheres. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe
preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não apenas
a esfera do trabalho. Pude, então, perceber que, além dos atributos de
desqualificação de “ajuda”, “precisão” ao trabalho da mulher, presentes
no interior da unidade doméstica, a troca de dias, relação costumeira en-
tre as diferentes unidades domésticas, refletia igualmente os caracteres
diferenciadores entre homens e mulheres. Havia, na verdade, uma univer-
salização dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações
de gênero não são relações que dizem respeito apenas à esfera doméstica,
privada. E mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como
falsa consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras
ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as esferas e
são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de que refletem
o real e também o determinam.
Havia, além de uma divisão sexual rígida no tocante à troca de dias,
uma sobrevalorização do trabalho do homem em relação ao trabalho da
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mulher. Segundo os costumes vigentes, até então, um dia do trabalho do
homem equivalia a dois dias de trabalho da mulher. Portanto, o trabalho
da mulher “valia” a metade do trabalho do homem. Em algumas comuni-
dades, sequer os homens aceitavam trocar dias com as mulheres.
Enfim, a conversa com dona Maria foi puxando o fio das relações de
gênero ali existentes e muitas outras Marias me forneceram outras tantas
informações sobre o mundo do trabalho feminino no Vale, acentuando
e apontando as discriminações, bem como desmistificando o trabalho
feminino como leve ou meramente ajuda.
Segunda lição:
Não olhe para a colcha. Olhe para mim
22
Eu acho mais bonito a senhora olhar pra mim, me dar valor,
do que dar valor pra colcha. Por que o valor está na cabeça [...].
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Terceira lição:
Não moro sozinha. Moro com Deus
24
Certamente, os adivinhos que interrogavam o tempo para
saber o que ele ocultava em seu seio não o experimentavam
nem como vazio nem como homogêneo [...]. Sabe-se que era
proibido aos judeus investigar o futuro. Ao contrário, a Torá
e a prece se ensinam na rememoração. Para os discípulos,
a rememoração desencantava o futuro, ao qual sucumbiam
os que interrogavam os adivinhos. Mas nem por isso o fu-
turo se converteu para os judeus num tempo homogêneo e
vazio. Pois nele cada segundo era a porta estreita pela qual
podia penetrar o Messias, (BENJAMIN, 1987, p. 232).
Quarta lição:
A divisão da comida
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prevalecente nesse meio social é recortada pela solidariedade mecânica,
ao contrário daquela das sociedades complexas, onde predomina a soli-
dariedade orgânica. Essa lição, aprendi assim que iniciei meus estudos
de Ciências Sociais, ao tomar contato com a sociologia de Durkheim. Mas
não apenas isso. A comida preparada, resultante desse gesto de solida-
riedade a pessoas desconhecidas, num contexto de quase ausência abso-
luta de alimentos, revelou os sentimentos estruturantes da psicogênese
daquela mulher frutos do meio social ao qual pertencia. Solidariedade,
cooperação – palavras em desuso nas sociedades pós-modernas, domi-
nadas pelo egocentrismo e individualismo extremados – faziam parte das
práticas individuais e sociais e também da estruturação da personalidade
dos camponeses. Ali não vi nenhuma criança abandonada. Ainda que as
“fraquezas da terra e da gente” fossem reais e duras, o pouco ou o quase
nada era dividido, compartilhado.
Dona Francisca jamais soubera o que seu gesto provocou em mim.
A partir dele, passei a pertencer àquela “comunidade de destino”, segundo
as palavras de Ecléa Bosi. Ou seja, passei a enxergar o invisível, o não
dito, o escondido, sob o manto da migração. Em vez de ver somente o
trabalho, via os trabalhadores e trabalhadoras; em vez de refletir sobre a
migração e suas diferentes teorias, tentei compreender os migrantes em
suas buscas e esperanças. Tornei-me parceira de suas lutas por direi-
tos mínimos, como carteira assinada, transporte e moradia adequados,
salários melhores, e, mais ainda, por serem reconhecidos como traba-
lhadores, e não como “gente de fora”, como mercadoria barata, facilmen-
te descartada e substituível. Tornei-me uma pesquisadora interessada
não apenas na colheita de dados para futuras publicações, porém uma
pesquisadora imbuída da práxis, e do pensamento crítico que procura-
vam ir além dos muros do gueto universitário, buscando compreender
o mundo, mas também transformá-lo. Tentativa de pôr em prática uma
das teses centrais de Marx, na sua crítica ao pensamento dos filósofos
neo-hegelianos de seu tempo.
Doravante, além da parceria com a Pastoral dos Migrantes, já men-
cionada, participei de inúmeros eventos acadêmicos e não acadêmicos
sobre migrações e também de vários embates travados contra a superex-
ploração dos trabalhadores, mormente aqueles referentes às Audiências
Públicas, ocorridas em razão das mortes por exaustão no eito dos cana-
viais paulistas. Nesses encontros, novas parcerias foram se constituindo,
inter allia, com a Promotoria Pública de Campinas (PRT15) do estado de
São Paulo (SILVA, 2006).
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Agnes Heller afirmava que o acaso tem uma grande importância
para a história. Defendia a tese de que os acontecimentos históricos não
seguem uma linha reta. Os casuais, os que não são previstos também
são importantes para mudar o curso da história. O almoço na casa de
dona Francisca teve esse papel para a história de minha vida enquanto
pesquisadora e também em minhas práticas cotidianas. Dividir, somar,
multiplicar foram verbos mais conjugados por mim, a partir de então.
Quinta lição:
As Andorinhas. Nem cá. Nem lá
3 - As Andorinhas. Nem cá. Nem lá. Inicialmente, foi produzido um audiovisual, utilizando a tecnologia
do momento, sob a forma de slides, revelados em projetores. Em seguida, foi transformado em vídeo
(VHS) e atualmente foi reproduzido em DVD. Com o passar dos anos, esse material, que reúne mais
de 200 imagens, coletadas no Vale do Jequitinhonha e nos canaviais e cafezais de São Paulo, foi sendo
reproduzido segundo o avanço das técnicas visuais (SILVA, 2007).
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problemas de “cabeça”, “de incosto”. “Eles me tiraram pra fora porque eu
tinha este ‘incosto’. Meu marido, com isto, desgostou e arrumou outra e foi
embora pra São Paulo.”
Após deixar o hospital, foi morar no “terreno” do sogro, onde seguiu
trabalhando para sustentar os filhos e ele próprio, já que se achava doente
e impossibilitado para o trabalho. Descreveu esse tempo como sendo mar-
cado por muitas dificuldades, em virtude de a terra ser fraca e, portanto,
incapaz de garantir as mínimas condições de reprodutividade do trabalho.
A fraqueza da terra se aliava a sua própria fraqueza, constituindo uma
simbiose de despossessão e miséria.
Tinha dia que eu amanhecia assim [...]. Não tinha nada pra
dar para os meus filhos. Eles saíam pelos vizinhos, chega-
vam com um punhadinho de coisas. Outros davam um prato
de comida pra eles comerem. Muitas vezes, pra não morrer
de fome, eu saía pedindo. Eu pedia mandioca, ralava, pra
poder fazer um mingau pra dar para os meus filhos come-
rem. Lá na roça, pegava folha de batata e dava pra eles.
Mediante tal situação, ela se “destinou mesmo a sair pra fora”. Foi,
portanto, o quadro de extrema miséria que a forçou ao destino da saída.
Apesar da saúde debilitada, de “possuir um corpo fraco” (doente), ela era o
único membro da família que poderia vender a força de trabalho nas usi-
nas. Para não deixar os filhos morrerem de fome, migrou durante 14 anos,
“de lá para cá, de cá para lá, igualzinho a uma andorinha que parte em
busca de pão para meus filhos”. Tirava os seis meses na safra e, na parada
(entressafra), voltava para casa.
Inquirida a respeito de não levar os filhos consigo, ela disse: “A senho-
ra sabe o que é? Porque meu sogro não dava os meus filhos para mim [...].
Ele falava assim: você pode ir, eu olho os filhos para você. Eu não fico sem
os seus filhos”. Essa parte do seu discurso revela aspectos importantes das
relações de gênero. Pode-se inferir, por um lado, que a impedindo de levar
os filhos, o sogro estava, na verdade, forçando-a a não deixá-lo só para
morrer de fome, já que estava velho, incapaz de migrar e doente. Ficando
com os filhos dela, ele garantiria sua sobrevivência com o dinheiro enviado
por ela durante a safra e com o próprio trabalho dela no período da “pa-
rada”, mediante as funções assumidas na roça de subsistência. Ademais,
é possível perceber que as razões da migração não podem ser adstritas às
condições objetivas (SILVA, 2005). Uma teia de relações criadas e recriadas
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no cotidiano vai se consolidando, a partir da organização social de gênero
existente, que ratifica o poder masculino na pessoa do sogro, em virtude da
ausência do marido. É essa organização de gênero que define o seu destino.
Na realidade, para ela, teria sido mais fácil mudar-se definitivamente para
a região de Ribeirão Preto, uma vez que seus pais ali residiam. A guarda
forçada dos filhos remete aos valores presentes nas relações semióticas
entre os gêneros masculino e feminino.
Desta sorte, ser mãe não possui o mesmo significado de ser pai. Neste
caso, o pai abandonou os filhos, indo viver com outra mulher em São Paulo,
eximindo-se de qualquer função em relação à paternagem. Ao contrário, ela
assumiu a maternagem, apesar das condições impostas pelo sogro. Amor,
proteção e cuidado são elementos definidores do eu feminino, diferente-
mente do eu masculino, cujos referenciais são centrados num “ideal abs-
trato de perfeição”. O eu feminino está sempre referido ao ato de “cuidar de
outrem” (GILLIGAN, 1991). Ao representar-se como andorinha, que parte
para sustentar os filhos, enfeixa-se numa alegoria cujos elementos semi-
óticos são pautados não pelo biológico, mas pelo social. Ou seja, o ato de
criar, de cuidar dos filhos, de alimentar, é um ato social decorrente da
organização social de gênero, e não da fisiologia feminina.
Imbuída dessa representação, “destinou-se a sair” e foi forçada a vol-
tar sempre porque o sogro “não deu os filhos para ela”. O que houve foi
uma situação de apropriação dos seus filhos, única forma de garantir a sua
volta, e, ao mesmo tempo, garantir a sua própria sobrevivência. É no jogo
dessas relações que se entendem os diferentes papéis dos sujeitos desse
drama. Trata-se de papéis marcados por experiências diferenciadas. Expe-
riências definidas por um complexo de efeitos, hábitos, disposições, asso-
ciações e percepções significativas resultantes de uma interação semiótica
entre o eu e o mundo exterior (LAURETIS, 1987). Impregnada dessa experi-
ência de mulher e mãe, forçada a migrar, a deixar os filhos, o resultado foi
um sentimento de desmembramento.
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O (re)membramento só se tornava possível durante a “parada”, quando
regressava. Assim, viveu durante todo esse tempo presa pela rede do (des)
membramento-(re)membramento/safra-parada. Em cada um desses ciclos,
perdia, paulatinamente, o pouco que ainda restava de sua força de traba-
lho, até não possuir mais condições para migrar. “Quando eu chego aqui,
ninguém me conhece. Eu chego no couro e osso. Agora eu não aguento
mais. Meus nervos estão tudo esgotados. Não tenho mais forças.” As metá-
foras couro e osso representam não apenas o emagrecimento causado pelo
trabalho duro no corte da cana, como também o consumo do próprio corpo,
através de um processo definido pela superexploração da força de trabalho.
Perda das energias é o que restou para um corpo com nervos esgotados e
reduzido a couro e osso. Corpo diminuído. Corpo encolhido.
Todavia, foi graças a esse encolhimento, a essa morte paulatina
do corpo, que ela garantiu a vida dos filhos e do sogro. Para ela, se não
fosse São Paulo, seus filhos teriam morrido de fome. São Paulo configura-
-se como o lugar de trabalho, salário, portanto, o único meio de garantir
a sobrevivência. É um lugar supervalorizado, estando abaixo apenas de
Deus. No mundo dos homens, São Paulo não aparece como o lugar da
superexploração de sua força de trabalho, de sua redução a couro e osso.
Ao contrário. É para lá que Deus a destinou. São Paulo foi uma espécie
de travessia para chegar à outra margem do rio. Afirma no final do seu
depoimento que espera ter sorte no outro mundo, está esperando chegar o
outro mundo para Deus recebê-la, já que neste mundo ela somente sofreu
como Jesus. Como Ele, ela também carregou sua cruz.
O depoimento de dona Eletriz revela a antevisão de um destino social
de classe/gênero/etnia, em que, num primeiro momento, a ação do sujeito
é inoperante no sentido de conseguir alguma transformação. Porém, ela,
apesar de abandonada pelo marido, por ter “incosto”, ser “refém” do sogro,
portadora de “fraqueza”, logrou durante 14 anos sustentar seus filhos, além
do sogro, partindo e chegando, voando como uma andorinha, de lá para cá
e de cá para lá. A experiência, segundo Thompson (1981), é aquilo que cada
um traz, é, portanto, algo forjado durante a vida.
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das mais complexas maneiras [...] e, em seguida (muitas ve-
zes, mas nem sempre, através das estruturas de classe re-
sultantes), agem, por sua vez, sobre a situação determinada
(THOMPSON, 1981, p.182).
31
ofício, como algo que faz parte da vida, e não simplesmente como tarefa a
ser cumprida em virtude das exigências das instituições e agências finan-
ciadoras de pesquisa por meio de relatórios e publicações. Mills se referia
ao cientista social como artesão intelectual.
O ofício do artesão pressupõe a imersão na totalidade do processo de
trabalho. Concepção, escolha do material a ser trabalhado, das ferramentas
são indícios necessários do savoir faire, isto é, do métier do artesão, cujo
produto é pautado pela marca de seu criador e definido por sua qualidade.
Não se trata, portanto, de um trabalho alienado, fragmentado, medido pelo
quantitativo e pelas marcas da impessoalidade e generalidade. Nesse sen-
tido, há uma verdadeira fusão entre vida pessoal e intelectual, quando se
trata do ofício, particularmente do artesanato científico.
Tal como as artesãs da vida do Vale do Jequitinhonha, meu intento
nesta narrativa foi o de seguir seus passos na busca do farol luminoso da
justiça social.
Referências
32
SILVA, M. A. M. As andorinhas. Nem cá. Nem lá. DVD. 17’. São Carlos, 2007.
SILVA, M. A. M.; MELO, B. M. Partir e ficar. Dois mundos unidos pela traje-
tória dos migrantes. Revista Interdisciplinar da Mobilidade Humana (RE-
MHU), ano XVII, n. 33, p. 129-153, jul./dez. 2009. Disponível em: <http://
redecemis.phlnet.com.br>. Acesso em: 6 abr. 2013.
33
Mãe e filho na produção de garapa - Minas Novas (MG), 1989
Foto: Alain Brugier
1 - Uma primeira versão deste artigo foi publicada nos Anais da Sociedade Brasileira de Economia,
Administração e Sociologia Rural, 2004.
2 - Sobre método de observação participante, consultar Malinowski (1978).
37
Agricultura familiar e o espaço do trabalho feminino
38
suas atividades domésticas, porém, se comparado com as atividades mas-
culinas no roçado, plantar não era considerado trabalho. Neste sentido, a
qualificação do trabalho feminino era relacional, recebendo, muitas vezes,
uma dupla avaliação.
O significado de “ajuda” para o trabalho feminino também foi en-
contrado por Paulilo (1987) em comunidades rurais do Brejo Paraibano.
Em estudo sobre trabalho e relação de gênero na agricultura nessa região,
revelou que o trabalho era qualificado e remunerado a partir de quem o
desempenhava: “leve” se fossem mulheres ou crianças, “pesado” se fossem
homens. E essa qualificação pouco se relacionava com as características da
atividade desenvolvida, uma podia ser tão árdua e cansativa quanto a outra.
A diferença se expressava muito mais no campo da representação simbólica
do que no esforço desprendido e na tarefa desenvolvida.
Ribeiro (1993), pesquisando famílias agricultoras na Zona da Mata
mineira, também chegou a uma conclusão parecida; de acordo com ele, os
homens construíam uma parte de seu poder no trabalho. As tarefas mas-
culinas possuíam maior continuidade, podiam ser expressas num produto
final – construir uma cerca ou roçar um pasto, por exemplo –, e quase
sempre apresentavam equivalente monetário; já as atividades designadas
como femininas eram compostas de uma série de tarefas descontínuas:
fazer comida, limpar a casa, cuidar das criações pequenas, lavar roupa etc.
gastavam uma grande quantidade de esforços esparramados, que tinham
pouco equivalente em dinheiro.
Woortmann (1992) chamou a atenção para um fato importante
nos estudos sobre trabalho feminino na agricultura, indicando que, tal-
vez, houvesse um problema na formulação de questões de pesquisa: o(a)
pesquisador(a) reproduzia um “discurso público” do grupo pesquisado que
privilegiava o domínio masculino, deixando à margem o “discurso privado”
em que o domínio masculino interagia com o domínio feminino, estabele-
cendo relações de gênero e, às vezes, complementaridade entre os gêneros.3
Essa hierarquia simbólica na construção de gênero e na represen-
tação do trabalho feminino e masculino no mundo do trabalho rural se
expressou também nas construções de dados sobre esse universo. Aguiar
(1984) indicou a dificuldade estatística de captar a participação do traba-
lho feminino na agricultura. Segundo a autora, havia um vácuo de teo-
rias que concebessem o trabalho feminino realizado no espaço doméstico
3 - A autora afirma que: “O próprio discurso acadêmico, pois, relega ao silêncio o ponto de vista femi-
nino, mesmo quando as atividades das mulheres são cruciais para a reprodução social do grupo com
um todo” (WOORTMANN, 1992, p. 42).
39
como atividade produtiva. O conceito de chefe de domicílio escondia e
diluía as atividades femininas.
Os vários autores supracitados indicaram que divisão social e sexual
do trabalho está na raiz dos processos de diferenciação de gênero nas famí-
lias de agricultores. Assim, cabe entender as relações de trabalho tanto no
que diz respeito ao espaço interno da família – para dessa forma compre-
ender o papel da mulher e o do homem – quanto compreender o significado
que mulheres, homens e a sociedade envolvente atribuem ao que é trabalho
e a relação de poder que constroem a partir dessa definição.
4 - A área designada neste artigo por Alto Jequitinhonha corresponde à parte do Vale acima da foz
do rio Araçuaí e do rio Itacambiruçu, refere-se mais precisamente aos municípios de Turmalina,
Chapada do Norte, Berilo, Minas Novas, José Gonçalves de Minas, Leme do Prado, Botumirim,
Cristália e Grão Mogol.
5 - Sobre a tomada de terras no Alto Jequitinhonha ver Calixto (2006) e Ribeiro e Galizoni (2007).
40
produtivas muito específicas, grosso modo: lavoura nas águas e beneficiamen-
to da produção na seca. Nas águas a lavoura é voltada mais para as culturas
anuais: milho, feijão, mandioca, cana e o andu. Quando termina o tratamen-
to desses plantios – entre os meses de março e abril –, as famílias passam
a investir mais na produção de horta e no beneficiamento de produtos da
indústria doméstica rural, como rapadura, farinhas de milho e de mandioca.
Na agricultura familiar do Alto Jequitinhonha o sujeito é quase sem-
pre coletivo: a família, no interior da qual cada membro responde por
uma tarefa. Ao final, o conjunto de produtos e serviços é o resultado da
soma do esforço combinado que envolveu jornadas de homens, mulheres,
crianças e idosos.6
Para compreender a participação do trabalho feminino na lavoura da fa-
mília foi preciso compreender os trabalhos necessários para formar as roças.7
Nas etapas das lavouras o trabalho feminino estava distribuído ge-
ralmente da seguinte forma:
6 - Sobre a dinâmica familiar camponesa e suas especificidade, há uma longa e diversa bibliografia.
Ver principalmente: Chayanov (1974), Kautsky (1972), Garcia Jr., Heredia, Van der Ploeg (2008); sobre
este tema no Jequitinhonha, consultar Ribeiro e Galizoni (2000), Noronha (2003); Galizoni (2007) e
Ribeiro (2007).
7 - O trabalho feminino no Alto Jequitinhonha aparece em uma perspectiva distinta da encontrada em
boa parte da literatura sobre campesinato. Moura (1978), Woortmann (1995), Garcia Jr. (1983) e Seyfert
(1985) encontraram realidades diferentes.
41
nas tarefas de derrubar, roçar e colocar fogo; as mulheres arrumavam
camarada (diarista) para realizar esses trabalhos quando os homens
migravam, ou então elas mesmas faziam o serviço. Boa parte das vezes,
a concretização dessas tarefas ocorria com a combinação dessas duas
opções, porque não era sempre que a família tinha recurso para pagar
camarada, assim a mulher assumia a direção e efetivação desse traba-
lho. Também a colheita tornou-se uma atividade quase que exclusiva-
mente feminina, porque muitas vezes efetuada no período em que parte
dos homens viaja para o trabalho temporário em outras regiões de Minas
Gerais e do país.
As mulheres casadas e com filhos praticamente não migravam e as-
sumiam maiores responsabilidades no cuidado da lavoura, das criações
e na manutenção da família. Uma questão que se colocou era se a valori-
zação do trabalho feminino e sua atuação em áreas consideradas de pre-
ponderância masculina representavam alterações nas relações de poder
entre homens e mulheres.
Analisando a migração temporária de trabalhadores do Jequitinhonha,
Martins (1986) afirma que ela só era possível com o sobretrabalho de mu-
lheres e crianças que permanecem na terra realizando as atividades neces-
sárias para manutenção da lavoura familiar. Eigenheer (1980) apontou que,
em determinadas situações, quando havia redefinições das relações locais
de trabalho, também podiam ocorrer redefinições da divisão de trabalho no
interior da família e no significado do papel social entre homens e mulheres.
42
É importante observar que, quando havia filhas adultas, algumas au-
xiliavam a mãe e outras trabalhavam junto com o pai e os irmãos na lavou-
ra. Este foi o caso de Eva, lavradora do município de Turmalina. Quando
solteira, ela trabalhava direto com o pai na lavoura, e sua irmã auxiliava a
mãe nos afazeres em casa. Eva afirmou que cuidar somente da lavoura é um
serviço melhor, porque era um serviço só, concentrado, com começo, meio
e fim, do qual se via o resultado final materializado; enquanto o trabalho na
casa era “um tanto de serviços picados”, descontínuos: serviços miúdos que,
somados, representam uma gama imensa de atividades.
O relato de Josina, a seguir, também é esclarecedor do espaço concre-
to do trabalho da mulher na jornada da família:
43
pelos homens? Pela afirmação citada, percebe-se que como auxiliar ao do
homem, substituindo o camarada, ou em casos extremos igualando-se
aos homens, mas não como um trabalho independente. E as mulheres?
Como avaliam seus esforços na lavoura? Elas construíam uma identidade
mais positiva de seu trabalho na esfera familiar, mas muitas vezes encon-
traram dificuldades de afirmá-la externamente, como em casos de apo-
sentadoria rural. Muitas lavradoras, ao encaminharem seus processos de
aposentadoria, declaravam como profissão “doméstica”, e por isso tiveram
dificuldades de acesso ao benefício, o que demandou várias campanhas
dos Sindicatos de Trabalhadores Rurais da região para esclarecimento e
sensibilização das mulheres sobre seus direitos.
Havia uma avaliação contraditória do trabalho feminino na lavoura do
Alto Jequitinhonha. Por um lado era valorizado tanto na perspectiva dos
homens quanto das mulheres, considerado importante. Os homens afirma-
vam que preferiam se casar na região porque mulheres de outros lugares
não se adaptariam ao ritmo de trabalho de lá. Segundo um lavrador do
município de Chapada do Norte:
44
trabalho na roça parece indistinto entre homens e mulheres, com exceção
da destoca, no trabalho com foice e, em alguns casos, no colocar fogo.
Mas, mesmo esses serviços, quando era preciso, a mulher fazia – “a minha
filha também destoca” foi uma afirmação feita por vários lavradores.
O reconhecimento do trabalho feminino na lavoura não implicava
mudanças significativas nas relações entre homens e mulheres. Isso por-
que, simbolicamente e na prática, o trabalho masculino gerava produtos e
bens trocáveis e socializáveis, e o trabalho feminino, por ser fragmentado
e descontínuo – e por isso mesmo mais intenso –, gerava menos produ-
tos por unidade trabalhada (RIBEIRO, 1993). A qualificação do trabalho
feminino ou masculino não se fazia pelo tanto de esforço desprendido,
e sim pelo produto final. A identidade feminina ou masculina não era
construída somente pelo tipo de trabalho realizado, muitas vezes os traba-
lhos eram qualificados posteriormente, se fossem realizados por homens
ou mulheres, como indicou Paulilo (1987). Dessa forma, o trabalho femi-
nino na lavoura era reconhecido e considerado importante, mas, quando
confrontado com o trabalho temporário masculino realizado nas regiões
canavieiras do interior paulista, era considerado mais “leve”, porque reali-
zado em condições melhores que este. Dessa forma, havia uma redefinição
do trabalho feminino na unidade familiar, mas também havia uma res-
significação do trabalho masculino que enfrentava a dureza de trabalhar
fora, sem o conforto da família.
Apesar de as mulheres trabalharem na lavoura familiar, os agricul-
tores afirmavam que o “sustento vem de São Paulo”, ou seja, do trabalho
masculino realizado em outras regiões. Nesse sentido, o trabalho na lavoura
se tornava simbolicamente acessório na manutenção da família, assim como
o trabalho das mulheres. Apesar das reorganizações na divisão de traba-
lho familiar, o trabalho masculino era considerado preponderante. Quando
o homem não migrava ou, no correr do ciclo familiar, deixava de migrar,
seu trabalho era reavaliado na composição do trabalho familiar e, muitas
vezes, nessas situações, os trabalhos masculino e feminino eram significa-
dos como complementares, mas coordenados pelo homem.
A avaliação do trabalho feminino pelos membros da família lavra-
dora, no Alto Jequitinhonha, contava com uma dubiedade muito grande.
Como a mulher participava tanto das atividades domésticas quanto das
atividades produtivas na roça, sua jornada de trabalho combinava essas
duas esferas. O trabalho feminino continha aspectos contraditórios por-
que em parte era representado como cativo e em parte como espaço de
45
afirmação da identidade feminina. Cativo porque era sempre um trabalho
subordinado à família e ao marido. E família, nesse contexto, significava
um trabalhador coletivo. Por mais que a mulher trabalhasse, realizava
suas atividades num espaço simbólico e cultural marcado, onde seu papel
também era demarcado. Bison (1995), analisando mulheres migrantes do
Jequitinhonha em São Paulo, demonstrou claramente a força das relações
culturais: apesar de associarem o Jequitinhonha a trabalho intenso e
subordinação irrestrita à família, essas mulheres dificilmente rompiam
com seu lugar de origem, enviando mensalmente parte significativa de
seus salários, e quase sempre acalentavam a vontade de retornar.
O trabalho na lavoura representava a afirmação de uma identidade
positiva para as mulheres, abrindo um leque de atuação e participa-
ção públicas para elas: elas também trabalhavam e por isso podiam se
apropriar de alguns direitos construídos nessa sociedade por meio do
trabalho. Por exemplo, o acesso à terra. No Alto Jequitinhonha, posse
e domínio eram legitimados principalmente pelo trabalho que a família
realizava na terra. Como o direito sobre a terra era construído por meio
do trabalho, a mulher tinha possibilidade de ter acesso à terra porque
depositava trabalho sobre ela, realizando praticamente os mesmos servi-
ços que os homens. Mas, se a mulher no Alto Jequitinhonha tinha pos-
sibilidade de acesso à terra, este não era sem conflito. E a mulher, em
casos de demanda, levava desvantagens; a não ser quando era casada,
ou se, viúva ou solteira, tivesse filhos maiores que garantissem concre-
tamente o espaço de trabalho.
As mulheres lavradoras do Alto Jequitinhonha criaram, além de uma
trajetória constante de trabalho, possibilidades de organização. No período
pesquisado, boa parte dos sindicalizados em dia nos Sindicatos de Traba-
lhadores Rurais dessa região eram mulheres; a presença delas em asso-
ciações e outras organizações voltadas para a saúde, água e educação era
preponderante, inclusive ocupando cargos diretivos, antes mesmo que as
cotas femininas se tornassem praxe. Eram as mulheres que, permanecendo
na terra, reafirmavam as urdiduras familiares e mantinham canais impor-
tantes de organização comunitária.
O trabalho feminino na agricultura camponesa do Alto Jequitinhonha
estava envolvido em uma trama social complexa: impossível de ser abor-
dado por um só ângulo, impossível de ser analisado em separado, sem
compreender as relações familiares de produção. As lavradoras são sujeitos
singulares, que trazem em suas vidas e corpos a marca do trabalho.
46
Referências
47
MALINOWSKI, B. Argonautas do Pacífico Ocidental. 2. ed. São Paulo:
Abril Cultural, 1978.
48
RIBEIRO, E. M.; GALIZONI, F. M. Quatro histórias de terras perdidas –
modernização agrária e privatização de campos comuns em Minas Gerais.
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, v. 9, n. 2, 2007.
49
Antônio Raimundo Costa - Jenipapo de Minas (MG)
Foto: Lorí Figueiró
O processo de mecanização da agroindústria canavieira:
histórico, motivações e impactos sobre os
trabalhadores temporários
Juliana Biondi Guanais
1 - É importante assinalar que, com a atual expansão dessas usinas, estas vêm se alocando em outras
regiões, que não aquelas tradicionalmente utilizadas, como Mato Grosso, Rio de Janeiro, Goiás e Sul de
Minas Gerais, o que acaba por alterar a cartografia dos movimentos migratórios.
2 - A temática da migração foi bastante trabalhada em SILVA (1999) e MENEZES (2002).
51
Geralmente, essa força de trabalho é recrutada pelos “gatos”, os
responsáveis pela contratação dos trabalhadores em suas próprias regiões
de origem. Encontrando-se destituídos de meios reais de sobrevivência
em sua terra natal, e muitas vezes sem qualquer tipo de alternativa, os
trabalhadores veem-se obrigados a aceitar o trabalho no corte da cana
nas diferentes usinas do país por ser essa uma atividade que acaba por
assegurar sua renda e, consequentemente, a sobrevivência de si e de
suas famílias.
Em seus estudos sobre as migrações do campo para a cidade, Eunice
Durham (1984; 2004) pondera que tais deslocamentos não decorrem, em
geral, de uma situação anormal de fome ou miséria; ao contrário, para a
autora a migração aparece como uma resposta a condições normais de
existência. “O trabalhador abandona a zona rural quando percebe que
‘não pode melhorar de vida’, isto é, que a sua miséria é uma condição
permanente. Isto não quer dizer que calamidades naturais ou acidentes
não sejam fatores que precipitem a emigração” (DURHAM, 2004, p. 170).
Ou seja, na opinião da autora, na maioria das vezes, a migração é
impulsionada por uma situação desfavorável, que é vista como permanente
pelos próprios trabalhadores. Nas palavras da autora,
52
cortadores de cana dos dias de hoje também deixou sua região de origem em
busca de emprego, emprego esse que muito dificilmente é encontrado em sua
terra natal. Sem trabalho e sem remuneração, muitos trabalhadores buscam
serviço em outras regiões do país, e o trabalho no corte de cana aparece como
uma das alternativas. Assim, diante da necessidade de viver da venda de sua
força de trabalho, os trabalhadores rurais buscam o “mundo do emprego”,
que não está em seu universo local, mas em outra região. A alternativa para
tais pessoas é migrar, é “ir para o Sul” (GARCIA Jr., 1989, p. 202).3
Em seu estudo, Garcia Jr. (1989) demonstrou que o assalariamento
temporário nos centros urbanos (em geral no Sudeste do país) é visto
pelos próprios trabalhadores rurais como uma estratégia de reprodução
de sua condição camponesa. “Ir para o Sul”, como dizem os trabalhadores,
tornou-se uma possibilidade para eles desde o final dos anos 1940, uma
vez que o deslocamento dos homens da unidade doméstica permitia
reequilibrar o orçamento familiar em ano de “inverno ruim” (variações
adversas no clima e na produtividade do ciclo agrícola) ou quando
houvesse necessidade maior de dinheiro. “O trabalho remunerado, no Sul,
dos homens da unidade doméstica permitia obter a renda necessária para
fornecer a feira4 dos membros da unidade doméstica que permaneciam no
Norte” (GARCIA Jr., 1989, p. 151).
Além de significar uma remuneração regular que não depende das
flutuações do ciclo agrícola, para esses homens, o emprego no “Sul”
representa uma renda monetária superior aos rendimentos obtidos na
agricultura do “Norte” e, por isso, é muito valorizado. Assim, tanto para
3 - É importante dizer que há todo um debate em torno dos sentidos e dos significados da
migração, o qual infelizmente não poderá ser aqui reproduzido em função dos limites do presente
artigo. Entretanto, faz-se necessário pelo menos delinear alguns aspectos deste debate. Para
alguns pesquisadores (LOPES, 1971; SINGER, 1973; DURHAM, 1984), as migrações se resumem
à transferência de força de trabalho entre as regiões menos desenvolvidas – expulsoras – e as mais
desenvolvidas, onde atuam fatores de atração; ou entre setores arcaicos e modernos, de forma que
os agentes sociais aparecem como seres passivos de um processo determinado exteriormente pela
estrutura social, ou pelo processo de acumulação capitalista. Já para outros pesquisadores (GARCIA
Jr., 1989; MENEZES, 1985; 2002), as migrações não podem ser vistas somente como resultado
da inviabilidade das condições de existência dos camponeses, já que são parte integrante de suas
próprias práticas de reprodução. De acordo com essa segunda interpretação, os migrantes não são
agentes passivos dos fatores de “expulsão” ou “atração”, mas participam ativamente de um processo,
que não é exatamente o processo migratório, mas sim o de reprodução de suas condições de vida.
“Os migrantes rurais nordestinos não foram apenas reflexo de forças econômicas determinadas
externamente, embora estivessem imersos nelas. Eles também foram agentes do seu próprio
movimento e dessa forma, através de estratégias diversas, contribuíram na moldagem do processo
migratório” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 5).
4 - De acordo com o autor, as feiras são o espaço onde os indivíduos negociam e adquirem produtos
para o consumo da unidade doméstica a que pertencem. O consumo doméstico semanal está, portanto,
materializado nas feiras. Sobre a importância das feiras para a reprodução dos trabalhadores rurais
nordestinos, ver GARCIA (1984).
53
quem pensa em ficar no “Norte” como para quem pensa em mudar-se de
forma definitiva para o “Sul”, o assalariamento temporário no Sudeste
apresenta-se como uma fase necessária do ciclo de vida (GARCIA Jr., 1989).
Contudo, a despeito de ser vista pelos trabalhadores como uma
das únicas alternativas de sobrevivência, a migração não deixa de estar
associada a uma expectativa positiva relacionada com a possibilidade de
mudança de vida. A migração traz para os agentes sociais envolvidos com
ela a chance de “melhorar de vida”, de “viver com mais conforto”, e de
“ganhar mais”. Nas palavras de Silva e Menezes (2006),
5 - “O migrante não abandona a origem para se integrar no destino, ao contrário, a migração representa
um ponto de contato permanente entre um e outro local” (SILVA; MENEZES, 2006, p. 6).
6 - De acordo com Durham (1984, p. 210-211), “A migração e o projeto de ascensão social que a motiva
são, portanto, empreendimentos familiais [...] A possibilidade de ascensão de um membro da família
representa uma melhoria no nível de vida de todos, na medida em que se conserva a unidade do grupo
doméstico”.
54
crianças e os idosos nas comunidades de origem. A opção pela migração
de poucos membros do grupo familiar se dá pelas dificuldades e pelos
custos de transporte, moradia e manutenção nas regiões de destino, que
implicam altíssimos gastos para os trabalhadores. O mais comum é que
o marido migre primeiro, deixando a família com os demais parentes. Em
alguns casos, só depois de obter uma colocação relativamente estável e
minimamente rendosa é que aquele que migrou tem a oportunidade de
buscar o restante da família para residir consigo (DURHAM, 1984; 2004;
GARCIA Jr., 1989).7
No entanto, tanto na movimentação de indivíduos quanto de
famílias, a direção do deslocamento depende, em grande medida, da
tradição migratória do grupo de relações primárias original (DURHAM,
1984; 2004; MENEZES, 2002). Em geral, as pessoas migram para as
localidades onde tenham conterrâneos, amigos ou parentes, ou para
locais que lhes foram indicados por outros. De acordo com Durham
(1984), mesmo as migrações que implicam mudanças radicais de estilos
de vida “são efetuadas dentro de um universo de referência organizado
nos moldes da comunidade rural. Vai-se para onde está a família do
irmão do pai, os antigos vizinhos, os amigos de infância” (DURHAM,
1984, p. 135).
E a migração para o trabalho no corte da cana não é diferente. Em
muitos casos, aqueles que já atuaram alguma vez como cortadores de cana
indicam aos amigos as usinas em que trabalharam,8 os turmeiros que
os recrutaram, os locais de saída dos ônibus,9 etc. Formam-se redes de
informações e de solidariedade entre os migrantes, o que permite não só
a comunicação e a troca de informações entre eles, mas também o auxílio
mútuo (MENEZES, 2002; NOGUEIRA, 2010).
7 - Neste ponto, é importante mencionar que, no caso específico dos cortadores de cana, a migração da
família inteira é muito difícil de ocorrer. Isso porque aqueles homens que vão trabalhar como cortadores
de cana para as usinas e que levam suas esposas para residir consigo durante o período da safra são
obrigados a alugar casas nas cidades de destino, já que são impossibilitados de residir nos alojamentos
cedidos pelas usinas pelo fato de estarem acompanhados. Isso faz com que fique ainda mais caro se
manter nas cidades de destino, uma vez que não somente o aluguel, mas todos os gastos se multiplicam
pelo número de familiares que residem juntos.
8 - A esse respeito, escreveu Durham: “É frequente o fato de possuir parentes no local que determina
a escolha do destino. O migrante que abandona a zona rural [...] é levado a escolher baseado mais
na proximidade das relações sociais do que na proximidade física ou compatibilidade das atividades
econômicas que espera exercer. Quando o trabalhador rural se desloca à procura de emprego, segue
as rotas que foram seguidas por parentes e amigos antes dele” (DURHAM, 1984, p. 137).
9 - Os “locais de saída dos ônibus” são os lugares nas comunidades de origem em que os
trabalhadores que migrarão para o corte da cana se reúnem para partir em direção às cidades em
que vão trabalhar.
55
O processo de mecanização da agroindústria canavieira:
um breve histórico
56
Pensando em atender as exigências atuais de produtividade e
qualidade impostas pelo mercado, as empresas redefinem as suas
estratégias administrativas, isto é, investem seus esforços em duas
direções na gestão dos recursos humanos: de um lado, racionalizam o
uso de recursos introduzindo modificações nos processos de trabalho,
valendo-se, principalmente, de inovações tecnológicas poupadoras de força
de trabalho – a mecanização das atividades agrícolas e automatização
do controle dos processos em geral; de outro lado, procuram formar
um contingente de trabalhadores fixos, disciplinados, tecnicamente
qualificados e, sobretudo, “envolvidos” com a produção sucroalcooleira.
No caso específico do setor sucroalcooleiro nacional, as primeiras
atividades a se tornarem mecanizadas foram as de preparo do solo e o
plantio. Nestas, os efeitos da mecanização foram principalmente reduzir
o tempo de realização das atividades e o número de trabalhadores e
aumentar significativamente a intensidade do trabalho.10 A mecanização
do plantio fez com que tal atividade – no passado desempenhada por
homens auxiliados por animais – passasse a ser realizada a partir de uma
combinação entre força de trabalho humano e máquinas.
Em momento posterior – meados da década de 1960 – veio a
mecanização da colheita da cana, atividade que compreende três fases
interdependentes: o corte, o carregamento e o transporte da cana cortada
até a usina. Deve-se destacar que a mecanização da colheita se deu
lentamente e por partes, já que primeiramente ocorreu a mecanização do
carregamento e do transporte da cana colhida e só posteriormente se deu
a mecanização do corte, etapa central da colheita.
É importante dizer que o processo de mecanização do corte da
cana ocorreu por último em função das inúmeras limitações técnicas
apresentadas pelas máquinas colheitadeiras da época. Como sabemos,
desde sua introdução no Brasil (e até os dias de hoje), existem
limites técnicos intransponíveis para a mecanização do corte, tais
como a declividade e as falhas dos terrenos. Além disso, não se pode
esquecer também que a colheita mecanizada pressupunha uma série
de modificações por parte das usinas que iam desde o plantio até o
recebimento da cana, modificações essas que, para serem postas em
10 - Nas palavras de Alves (1991, p. 60), “As inovações mecânicas [...] afetam fortemente a redução do
tempo de trabalho, dado que elas agem tanto no sentido da redução do tempo de trabalho, quanto no
aumento da intensidade do trabalho. Quando as inovações mecânicas são aplicadas no plantio e na
colheita, elas reduzem o tempo de produção, porque abreviam o tempo em que o produto seria plantado
ou seria colhido unicamente com a força de trabalho”.
57
prática, exigiam vultosos investimentos que não eram acessíveis a todas
as empresas naquela época.
De acordo com Alves (1991), as primeiras máquinas colheitadeiras
introduzidas no Brasil datam do final da década de 1960. Entretanto,
a despeito de já apresentarem um rendimento superior ao obtido por
intermédio do corte manual da cana, essas máquinas ficavam restritas a
um número reduzido de produtores, os quais naquela época as utilizavam
somente no início da safra como forma de rebaixar os salários dos
cortadores de cana, bem como ameaçá-los e pressioná-los. Essas primeiras
máquinas ficaram conhecidas como “máquinas de vitrines” (GRAZIANO DA
SILVA, 1980), já que entravam em operação somente no início da safra e
em seguida eram substituídas pelos homens e postas “de volta na vitrine”.
As razões para esse primeiro estímulo à mecanização do corte da cana
são explicadas por Alves (1991). De acordo com ele,
58
Num primeiro momento, a partir de 1975, a mecanização da colheita
– incluindo-se aí, como já foi dito, a mecanização do corte – acabou sendo
impulsionada graças ao apoio de programas governamentais, tais como o
Proálcool, os quais incentivaram a expansão e o crescimento das lavouras
de cana. Em outras palavras, para que fosse possível expandir e aumentar
a produtividade dos canaviais era necessário introduzir as máquinas.
Não é difícil de imaginar que a introdução do corte mecânico gerou como
uma das consequências a substituição dos trabalhadores assalariados
pelas máquinas. Essas teriam de ser mais lucrativas, isto é, teriam de
compensar os gastos que até então os usineiros despediam com os salários
dos cortadores de cana.
Foi nesse contexto que surgiram novos fabricantes de máquinas
colheitadeiras que passaram a produzir variedades mais modernas, as
quais, por sua vez, elevaram ainda mais a performance das máquinas e
ampliaram as diferenças de custo do corte mecânico em relação ao ma-
nual11 (ALVES, 1991).
A melhoria da performance do maquinário não se deveu somente aos
avanços técnicos das máquinas, mas também à incorporação, por parte
das usinas, de toda uma infraestrutura de apoio à mecanização do cor-
te da cana. Sem essa infraestrutura – que envolveu novos equipamen-
tos e homens – não teria sido possível aumentar de forma tão significa-
tiva a produtividade das máquinas. Alves (1991) cita exemplos numéri-
cos: “Em 1980, verificou-se que o rendimento médio de uma colhedeira
de cana atinge 200 toneladas por dia em 10 horas de trabalho, substi-
tuindo aproximadamente 30 homens/dia,12 com produção superior a
6 toneladas/dia” (ALVES, 1991, p. 82).
Mas é preciso deixar claro que a mecanização da colheita não se deveu
somente aos incentivos de programas governamentais. Em sua tese de
doutorado, Francisco Alves (1991) deixou explícito que
11 - “Essas novas máquinas colheitadeiras de cana permitiram elevar a produtividade das máquinas
de 20 toneladas por hora em 1976 para 41 toneladas por hora em 1980 e 60 toneladas em 1987. Ao
mesmo tempo, a diferença de custo do corte mecânico, em relação ao manual, se elevou de 7,2% em
1976, observado por GRAZIANO DA SILVA, para 50%, em um caso observado em 1987...” (ALVES,
1991, p. 82).
12 - Nos dias de hoje, devido aos contínuos aprimoramentos técnicos direcionados à produção das
máquinas empregadas nos canaviais, estima-se que uma colheitadeira seja capaz de substituir o trabalho
de 90 cortadores de cana. Além de apresentarem índices de produtividade mais elevados dos que os
dos seres humanos, atualmente as máquinas oferecem a vantagem para os empregadores de poderem
trabalhar ininterruptamente, isto é, ao longo de 24 horas, fato que por si só faz com que a quantidade de
cana colhida supere em muito a que é colhida no decorrer da jornada dos trabalhadores rurais.
59
Através de entrevistas, realizadas com uma série de
usineiros da região de Ribeirão Preto, ficou claro que a
decisão de mecanizar o corte da cana não foi tomada
unicamente com base na viabilidade econômica da
mecanização, frente ao corte manual, numa comparação
entre custos de operação da máquina [...] versus
custo da mão de obra dos cortadores de cana. O que
foi revelado [...] é que a mecanização do corte foi
incentivada, a partir de 1984, devido às greves anuais
dos trabalhadores assalariados rurais da região, que,
ao paralisarem o corte, paralisavam também as usinas.
Nestas condições, a mecanização do corte de cana era,
segundo os usineiros, a forma de adquirirem maior poder
de barganha para negociar a pauta de reivindicações dos
trabalhadores, sem as unidades de produção paralisadas
(ALVES, 1991, p. 84).
60
têm canas menos eretas, terrenos mais íngremes, com mais declividade
e acidentes – para os assalariados rurais cortarem, o que acaba fazendo
com que eles tenham sua produtividade diária diminuída. 13 Como
recebem por produção, ou seja, têm seu salário atrelado à quantidade de
cana que conseguem cortar, quanto menor for sua produtividade, menor
também serão os salários recebidos. Em contrapartida, os melhores
talhões são deixados para as máquinas.
Em sua tese de doutorado, Alves (1991) assim resume os impactos
mais imediatos gerados a partir da introdução do corte mecanizado:
13 - Nunca é demais lembrar que, com a mecanização, sobram aos cortadores de cana somente as
áreas impróprias ao corte mecânico, que são as piores, o que acaba reduzindo a quantidade de cana
para cortar por dia.
61
mais presente no discurso dos usineiros. Nesse novo contexto, a busca
por uma imagem “ecologicamente correta” por parte das empresas ganha
ainda mais sentido. Nas palavras de Menezes et al. (2011),
14 - Isso porque, quando cortam “cana crua” – isto é, aquela cana que não foi queimada, e que por
isso mantém todas as suas folhas e a palha – não são raras as ocasiões em que os trabalhadores se
deparam no meio dos canaviais com cobras, ratos, escorpiões, insetos e outros tipos de animais que
podem vir a machucá-los. Diferentemente do que ocorre quando trabalham cortando cana queimada,
já que o fogo afugenta tais animais para fora dos canaviais, diminuindo, assim, o risco de acidentes
no decorrer da jornada de trabalho.
15 - “Este processo acaba interferindo diretamente na saúde da população, pois a combustão da palha
da cana libera poluentes e o principal dano é o prejuízo à qualidade do ar, e, consequentemente, da
saúde, pela excessiva emissão de monóxido de carbono e ozônio, trazendo, também, danos ao solo, às
plantas naturais e cultivadas, à fauna e à população” (MENEZES et al., 2011, p. 64).
62
Segundo recente reportagem, os focos de queimada
aumentam em mais de 1000% durante a safra na
região de Ribeirão Preto. Este fato provoca vários
danos à saúde das pessoas da cidade, sem contar que
há o crescimento de até 50% no número de pacientes
com problemas respiratórios [...] Os gases expelidos
pela fuligem da cana queimada são: o carbônico,
os nitrosos (sobretudo o monóxido e o dióxido de
nitrogênio) e os sulforosos (como o monóxido e o
dióxido de enxofre). Alguns desses gases vão para a
atmosfera e podem reagir com a água, gerando ácidos
nitrosos e sulforosos, que, com grande acumulação,
podem gerar chuva ácida, prejudicial ao meio ambiente
(SILVA, 2006, p. 112).
63
queimar, que é, justamente, a pretensão de se reforçar,
especialmente no mercado internacional, a imagem po-
sitiva do etanol como combustível renovável e menos
poluidor do que os derivados do petróleo (BACCARIN;
GEBARA, 2010, p. 23).
16 - Mas não podemos deixar de perceber que o número de desempregados em razão das máquinas
supera em muito o número de contratados para assumir os postos mais qualificados, uma vez que uma
máquina colheitadeira substitui em média 90 cortadores de cana e exige somente uma para dirigi-la e
operá-la. Nas palavras de Ramos (2008, p. 323), “Os empregos diretos, mantidos e/ou gerados por essa
ocupação qualificada na lavoura, mais os que estão sendo criados pela constituição de novas usinas
e destilarias, dificilmente serão suficientes para compensar a menor utilização de trabalho na lavoura
canavieira em decorrência daquela mecanização, mesmo em face dos ritmos estimados de crescimento
das produções envolvidas (cana, açúcar e álcool)”.
64
Isso porque muitos desses cursos – além de exigirem certo nível
de escolaridade muitas vezes inacessível à maioria dos trabalhadores
rurais – são realizados durante o horário de trabalho dos cortadores de
cana. Ou seja, para que possam frequentá-los, é preciso abrir mão de
seu trabalho nas usinas, fato impensável para os assalariados rurais,
que têm em seu emprego uma das únicas possibilidades de assegurar a
sua sobrevivência e a de sua família.
Mesmo no caso dos cursos de formação que são realizados no
período noturno, após a jornada de trabalho, a participação dos
cortadores de cana é pouquíssimo significativa, já que a enorme maioria
não tem ânimo nem condições físicas para fazer parte de qualquer
atividade formativa após um dia exaustivo de trabalho.
Considerações finais
65
etc., que muitas vezes se localizam na mesma cidade ou na mesma
região em que ficam as usinas de açúcar e álcool;
3) Uma parcela bastante significativa e cada dia maior de
trabalhadores desempregados em função da mecanização da colheita da
cana está buscando emprego em outros setores da economia, sobretudo
na construção civil. Como sabemos, tal setor está em plena expansão no
atual contexto em função das obras ligadas à Copa do Mundo de 2014, às
Olimpíadas de 2016 e ao PAC (Programa de Aceleração do Crescimento,
do governo federal), fato que fez com que se espalhassem pelo país
afora inúmeros canteiros de obras. Por terem pouca ou quase nenhuma
especialização e baixíssimo nível de escolaridade, muitos ex-cortadores de
cana veem na construção civil uma nova chance de emprego. Importante
ressaltar aqui que, da mesma forma que nas usinas de açúcar e álcool,
os empregos conseguidos na construção civil também são altamente
precários, desqualificados e insalubres, vide os inúmeros acidentes de
trabalho ocorridos nos canteiros de obras recentemente e as denúncias
feitas pelos próprios trabalhadores e por suas entidades de representação
acerca de suas condições de trabalho, moradia e de alimentação.
4) Por fim, uma parte pouco significativa e bastante minoritária
daqueles que perderam seus postos de trabalho para as máquinas busca
obter maior qualificação com vistas a conseguir concorrer às poucas
vagas criadas a partir da mecanização do setor sucroalcooleiro. Como
se viu, nesse contexto, uma pequena fração de ex-cortadores de cana –
em geral os mais jovens – procura os chamados “cursos de reciclagem”,
criados com o intuito de qualificar essa força de trabalho para ocupar os
novos postos criados.
Referências
66
ALVES, Francisco José da Costa. Políticas públicas compensatórias
para a mecanização do corte de cana crua: indo direto ao ponto. Ruris,
Campinas, n. 1, v. 3, 2009.
67
LOPES, Juarez Rubens Brandão. Sociedade industrial no Brasil. São
Paulo: Corpo e Alma do Brasil, 1971.
68
SINGER, Paul. Migrações internas: considerações teóricas sobre o seu
estudo. In:____. Economia política da urbanização. 3. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1973.
69
Acervo Cândida da Costa
70
Trabalho escravo contemporâneo:
grilhões modernos na vida dos
trabalhadores e trabalhadoras
Cândida da Costa
Introdução
71
Nesse aspecto, não há de se perder de vista que muitas das grandes
revoluções, com especial atenção para o mundo moderno, foram motivadas
pelas relações de trabalho, em confronto com o capital. E colocar em xeque
a infinitude da exploração dos capitalistas e a resistência da classe traba-
lhadora na busca por melhoria de suas condições de vida.
72
jurídico brasileiro, até o ano de 2003, quando então foi alterado pela Lei
n° 10.803/2003, o trabalho escravo ou forçado é considerado crime, nos
termos do art. 149 do Código Penal:
73
c) Violência física: além de sofrerem ameaças de lesão corporal, os traba-
lhadores são, efetivamente, submetidos a castigos físicos e alguns deles
são sumariamente assassinados, como exemplo àqueles que almejem
enfrentar o tomador dos serviços.
1 - Pessoa ligada a empresas agroexpoertadoras, cuja presença é muito frequente nas usinas de cana-
-de-açúcar, ou a algum empregado formal da usina que alicia os trabalhadores, em sua grande parte
agricultores, desempregados, com promessas de salários altos em outra região do país. Essa prática
está tipificada como crime no artigo 207 do Código Penal Brasileiro, que dispõe: “Aliciar trabalhadores,
com o fim de levá-los de uma para outra localidade do território nacional: Pena – detenção de 1 (um) a
3 (três) anos, e multa”.
74
Caracteriza-se como um tipo de trabalho forçado, este último definido como
um trabalho obrigatório, compelido ou subjugado, podendo-se afirmar que
todo trabalho escravo é forçado, mas nem todo trabalho forçado é escravo.2
2 - A Convenção 29 da OIT sobre Trabalho Forçado de 1930, que dispõe sobre a eliminação do trabalho
forçado ou obrigatório em todas as suas formas, admite algumas exceções de trabalho obrigatório, tais
como o serviço militar, o trabalho penitenciário adequadamente supervisionado e o trabalho obrigatório
em situações de emergência, como guerras, incêndios, terremotos, entre outros.
75
ilícitas, é tida pela Convenção n° 182 da OIT como uma das formas mais
cruéis de escravidão infantil.
A servidão por dívida distinguiu-se da escravidão tradicional apenas
porque a vítima está impedida de deixar a tarefa ou a terra onde traba-
lha até que sua dívida seja quitada. Tal servidão se caracteriza exata-
mente porque, apesar de todos os esforços, o trabalhador não consegue
quitá-la, por tratar-se de um endividamento contínuo e perene. Adicio-
nalmente, o débito é herdado pelos filhos do trabalhador endividado,
mantendo-os sob servidão.
76
líderes têm um Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) baixíssimo,
equiparando-se, respectivamente, apenas aos IDHs dos países São Tomé
e Príncipe e Ilhas Salomão.
A exploração da mão de obra escrava ocorre, predominantemente, em
regiões em que a agricultura está em desenvolvimento, sempre relacionada
com o agronegócio. Nas regiões de cultivo monocultor, extensivas e de ex-
portação se concentra o maior índice de trabalho escravo.
É relevante destacar que a obtenção desses dados só foi possível em
razão da atuação de inúmeros militantes da sociedade civil, que por anos
acompanham as violações de direitos desencadeadas pela existência de
trabalho escravo. O tema foi tratado de forma quase solitária pela Comis-
são Pastoral da Terra (CPT) e pela Confederação Nacional dos Trabalhado-
res na Agricultura (Contag), durante cerca de 30 anos. Essas entidades,
desde a década de 1970, denunciam, inclusive internacionalmente, as re-
correntes incidências da prática de trabalho forçado não só na Amazônia,
como em regiões industrializadas do Sul e Sudeste do país. As informações
estão presentes nos relatórios de conflito de terra divulgados pela CPT
desde sua criação (1975).
Foi a partir da pressão exercida pelas entidades que acompanhavam
e denunciavam os casos de trabalho escravo que, em 1995, o governo
brasileiro criou o Grupo para Erradicação do Trabalho Escravo. Essa me-
dida tornou-se um compromisso de Estado e a partir de 2003 passou a
ser implementada.
O Grupo de Fiscalização Móvel tem realizado um papel de suma
importância para o combate e a erradicação do trabalho escravo. Segundo
dados do Ministério do Trabalho e Emprego (MTE), de 1995 até 2005 foram
resgatados 17.235 trabalhadores escravos, entretanto, desse total, 12.463
trabalhadores foram libertados no período de 2003 a 2005. Registra-se
até 2008 a libertação de 32.783 trabalhadores, em 99 municípios brasi-
leiros. Há, porém, uma defasagem significativa entre o número de casos
denunciados pela CPT e os trabalhadores resgatados, pois entre 1990 e
2006 a CPT registrou denúncias sobre 133.656 trabalhadores escraviza-
dos, ou seja, um número quatro vezes superior àqueles que o Ministério do
Trabalho conseguiu alcançar.
Nos primeiros cinco anos de operações do Grupo Móvel (1995-2000),
não há registros de ressarcimento de direitos, enquanto nos cinco anos
seguintes foram pagos R$ 14.198.349,08 em indenizações aos trabalhadores
libertados (CPT, 2009).
77
Abrangência do fenômeno da escravidão contemporânea no
Brasil e predominância de setores econômicos
3 - PORTARIA INTERMINISTERIAL n.º 2, de 12 de maio de 2011. Art. 1º Manter, no âmbito do Ministé-
rio do Trabalho e Emprego - MTE, o Cadastro de Empregadores que tenham submetido trabalhadores
a condições análogas à de escravo, originalmente instituído pelas Portarias n.º 1.234/2003/MTE e
540/2004/ MTE; Art. 2º A inclusão do nome do infrator no Cadastro ocorrerá após decisão adminis-
trativa final relativa ao auto de infração, lavrado em decorrência de ação fiscal, em que tenha havido a
identificação de trabalhadores submetidos a condições análogas à de escravo.
78
contratadas novamente, nas mesmas condições, em outros locais com práti-
cas similares, formando um círculo vicioso que precisa ser quebrado.
Marca Zara:
denúncia de trabalho escravo, jornada exaustiva
e desrespeito aos direitos trabalhistas
Marca C&A:
terceirização e exploração de mão de obra de imigrantes ilegais
79
Marca Gregory:
jornada exaustiva, ambiente degradante de trabalho
e indícios de tráfico de pessoas
As Lojas Marisa:
subcontratação, tráfico de pessoas e servidão por dívida
80
A posição, os argumentos e o discurso das empresas
4 - O pacto foi criado em 2005, com 292 empresas signatárias. Desde então, 80 empresas foram ex-
cluídas da lista.
81
As Lojas Marisa recorreram à Justiça, obtendo vitória em primeira
instância. Para o Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo (TRT-SP),
como não havia vínculo de emprego entre a Marisa e os trabalhadores da
oficina, a responsabilidade não pode recair sobre a empresa. O fiscal de tra-
balho teria afrontado a legislação trabalhista, já que ele “extrapolou a sua
competência de fiscalização ao considerar a relação de terceirização como
se de emprego fosse”. Para os auditores fiscais, contudo, o que existe é a
simulação de contrato de fornecimento, uma vez que a empresa mantém a
ingerência sobre todos os processos que envolvem a produção.
Embora tenha contestado os critérios da inclusão de empresas no cadas-
tro do MTE (Lista Suja do Trabalho Escravo) e manifestem sua expectativa de
que o Supremo Tribunal Federal considere a lista inconstitucional, as Lojas
Marisa declararam que apoiam a Lista Suja e ratificam sua importância para
a erradicação do trabalho escravo no Brasil. Que discurso inconsistente é esse?
Não seria um discurso ambivalente para dialogar com os seus consumidores
e afastar a sua imagem de uma marca associada com o trabalho escravo?
As Lojas C&A, por sua vez, embora tenham recebido denúncias desde
2006, apenas em 2012 decidiram assinar Pacto Nacional pela Erradicação
do Trabalho Escravo.
No setor sucroalcooleiro, o Ministério Público do Trabalho de São Paulo
(MPT-SP) ajuizou em outubro de 2012 sete ações civis públicas solicitando a
cassação definitiva do “Selo de Responsabilidade – Empresa compromissada”,
concedido pelo governo federal a sete empresas que assinaram o Compro-
misso Nacional para Aperfeiçoar as Condições de Trabalho na Cana-de-Açú-
car, portanto, deveriam assegurar o cumprimento da legislação trabalhista.
O MPT aponta vários problemas na metodologia usada para concessão do
selo, como a falta de consulta aos órgãos de fiscalização e realização de au-
ditorias durante as entressafras, portanto, na ausência dos trabalhadores,
quando não podem ser constatadas as irregularidades trabalhistas.
82
trabalho a domicílio – somaram-se à existência de um mercado de tra-
balho informal, no qual se localiza 28,2% da força de trabalho brasileira
economicamente ativa (IBGE, 2009). Como traço marcante desse merca-
do, vale destacar que a precariedade coexiste com a ilegalidade (trabalho
escravo e trabalho infantil).
Se esse quadro desafia a ética do trabalho, mais desafiador ainda
é se defrontar com a morte por exaustão, quando os trabalhadores são
submetidos a jornadas exaustivas de trabalho e pagamento por produ-
tividade. Trata-se de superexploração de trabalho exercida pelas usinas
de cana-de-açúcar da região contra os trabalhadores rurais na região de
Ribeirão Preto (COSTA; NEVES, 2005; COSTA, 2008; COSTA; ARANTES,
2009), interior do estado de São Paulo (envolvendo, entre outras usinas,
a do grupo europeu Cosan e a Usina Maringá, do Brasil).
83
A situação reportada foi denunciada pela Pastoral do Migrante do
município de Guariba/SP e investigada pela Relatoria Nacional do Direito
Humano ao Trabalho/Plataforma Brasileira dos Direitos Humanos, Eco-
nômicos, Sociais e Culturais e Ambientais – Plataforma DHESCA Brasil,
sendo relacionadas tais mortes à exaustão pelo trabalho, destacando-se nas
diversas investigações realizadas:5
5 - Segundo relatório elaborado pela Relatoria Nacional para o Direito Humano ao Trabalho. Cf. COSTA;
NEVES, 2005, investigação realizada em Ribeirão Preto/SP e região e Missão de Seguimento e Monitora-
mento em 2006 e em 2008,no âmbito da Missão Internacional sobre os agrocombustíveis no Brasil, que
investigou os impactos das políticas públicas de incentivo aos agrocombustíveis sobre o desfrute dos direitos
humanos à alimentação, ao trabalho e ao meio ambiente, das comunidades campesinas e indígenas e dos
trabalhadores rurais no Brasil, realizada por FIAN Internacional – For theright to adequate food; MISEREOR
– Obra episcopal da Igreja Católica da Alemanha para a cooperação ao desenvolvimento; EED – Evangelis-
cher Entwicklungsdienst, Pão para o Mundo, ICCO – Organização Intereclesiástica para a cooperação ao
desenvolvimento e HEKS, com a participação de delegados, Rede de Pequenos Produtores da África Ocidental
(ROPPA), o Coletivo de Advogados José Alvear Restrepo e expertos independentes (www.dhescbrasil.org.br).
84
a) superexploração dos trabalhadores, ocasionada por pagamento por
produção, que leva os trabalhadores a produzir além de seus limites,
pela jornada de trabalho de 10 horas/dia, pelas metas de produção
fixadas em 10/12 toneladas por dia; pelos baixos salários, pela ter-
ceirização das atividades e pela não pesagem da produção, o que leva
os trabalhadores a não ter controle da real produção do seu trabalho
e da justeza do salário recebido;
b) deficiência na intermediação e fiscalização das relações de trabalho,
expressa na permanência de condições insalubres e periculosas no am-
biente de trabalho6 (ausência de condições para armazenamento da ali-
mentação, água inadequada, equipamentos de proteção individual em
número insuficiente ou em condições inadequadas, ausência de ambu-
lância e equipamentos de primeiros socorros) e no desrespeito à legis-
lação nacional e aos tratados internacionais de direitos humanos dos
quais o Brasil é signatário (aliciamento de trabalhadores por “gatos”,
intimidação dos trabalhadores, não emissão de Comunicação de Aciden-
te de Trabalho – CAT, não pagamento integral das verbas rescisórias);
6 - Os acidentes de trabalho nas usinas de açúcar e álcool ultrapassaram os da construção civil. Os dados
do Ministério da Previdência Social são de 2006 e indicam que nas usinas ocorreram 14.332 acidentes de
trabalho, contra 13.968 na construção civil (Folha Online, 5 de maio de 2008).
85
d) péssimas condições de moradia e alojamentos precários.
86
QUADRO 1
OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA
(2004 a 2007)
.
45 anos, natural de
10 José Mario Alves Gomes Desconhecida
Araçuaí (MG)
Hemorrágico pulmonar
55 anos, natural de
11 Antonio Ribeiro Lopes e cardiopatia dilatada
Berilo (MG)
descompensada
(continua)
87
QUADRO 1
OCORRÊNCIA DE MORTES NO SETOR SUCROALCOOLEEIRO PAULISTA
(2004 a 2007)
.
(conclusão)
Nome Idade Causa
Infarto do miocárdio
José Pereira Martins. Faleceu em março 51 anos, natural
17
de 2007. de Araçuaí (MG)
Púrpura
Edilson Jesus de Andrade. Faleceu em 28 anos, natural de
20 trombocitopênica
setembro de 2007, em Guariba Tapiramutá (BA)
idiopática
Fonte: Ir. Inês Facioli/Pastoral Migrante Guariba/São Paulo.8
8 - Os dados contidos no quadro correspondem ao levantamento feito pela Pastoral do Migrante de Guariba/
SP. O Hospital Regional de Teodoro Sampaio localiza-se em SP, assim como os municípios de Pradópolis e
Guariba. Embora monitore a situação dos trabalhadores migrantes, a Pastoral do Migrante de Guariba/SP
não colheu todas as informações in loco, recolhendo algumas a partir de denúncias na imprensa. Em alguns
casos, como os trabalhadores já chegaram mortos aos hospitais, a causa foi dada como desconhecida.
9 - Atualmente, tramita projeto de lei (PL 234/07 no Congresso Nacional, de autoria do deputado Federal
João Dado (PDT/SP) que define a atividade dos cortadores de cana como penosa, em geral, ou insalubre,
se for exercida sem os equipamentos de proteção adequados, proíbe horas extras e o pagamento de salário
por produção. A proposta acrescenta artigo à Lei do Trabalho Rural (Lei 5.889/73). A NR 17 não se aplica
ao trabalhador rural, mas aos digitadores (trabalho repetitivo). A Portaria MTE nº 86, de 3 de março de
2005, revogou a Portaria MTb nº 3.067, de 12 de abril de 1988, e institui a NR-311, para disciplinar as
condições de trabalho no meio rural, perdendo vigência as normas regulamentadoras rurais(NRRs).
88
literatura sociomédica como um quadro clínico extremo (ligado ao es-
tresse ocupacional) com morte súbita por patologia coronária isquêmica
ou cérebro-vascular.
Os estudos de Dal Rosso no Brasil (2006, p. 31) são elucidativos em
torno da questão, embora não restritos ao trabalho no setor sucroalcoo-
leiro, ao mostrar a relevância da jornada de trabalho sob várias perspec-
tivas: “interfere na possibilidade de usufruir ou não de mais tempo livre;
define a quantidade de tempo durante o qual as pessoas se dedicam a
atividades econômicas; estabelece relações diretas entre as condições de
saúde, o tipo e o tempo de trabalho executado”.
A morte dos trabalhadores pode ser associada à união entre jornada
exaustiva e intensificação do trabalho, forçada pelo pagamento por pro-
dutividade. O perigo dessa dupla associação é advertido por Dal Rosso
(2006, p. 32): “Intensificação do trabalho e alongamento da jornada são
condições que podem conviver juntas enquanto essa união não colocar em
risco a vida do trabalhador por excesso de envolvimento com o trabalho”.
89
entre 1996 e 2003, foram denunciados por esse crime, de acordo com a
Comissão Pastoral da Terra.
Há que se destacar ainda, enquanto obstáculo a ser enfrentado, a mo-
rosidade legislativa em torno da questão e nos indagar por que o Congresso
Nacional levou 15 anos para aprovar a Proposta de Emenda à Constituição
do Senado (PEC 438/01), em maio de 2012, que permite a expropriação de
imóveis rurais e urbanos onde a fiscalização encontrar exploração de tra-
balho escravo. Esses imóveis serão destinados à reforma agrária ou a pro-
gramas de habitação popular. Ainda assim, a votação só se tornou possível
remetendo para o futuro a discussão de uma lei que defina o que é condição
análoga à de escravo e os trâmites legais da expropriação.
Que sugestões poderiam ser dadas para enfrentar a questão, ou se
trata de tema insolúvel? Entende-se que o enfrentamento da situação
precisa ser tomado como questão de interesse de toda a sociedade, exi-
gindo medidas de âmbito nacional voltadas para a decisiva erradicação
do trabalho escravo no território brasileiro:
a) levantamento de dados sobre trabalho escravo a ser realizado em todo
o país, que propiciem um quadro preciso da natureza, incidência e
difusão do trabalho escravo no Brasil;
b) movimento de conscientização e de pressão por meio de um programa
de educação, mobilização e organização de trabalhadores escravizados;
c) aumento do valor das indenizações previstas na lei e das punições dos
aliciadores e proprietários de imóveis rurais e urbanos que se utilizam
de trabalho escravo;
d) aplicação de programas sociais como o Programa de Renda Mínima
e outros;
e) realização de uma reforma agrária que possibilite uma eficaz dis-
tribuição de terras na sociedade, com a desapropriação das proprie-
dades improdutivas e expropriação daquelas com incidência de tra-
balho escravo;
f) união de esforços para organizar os trabalhadores aliciados em vá-
rios níveis e elaborar programas de formação, reabilitação e proteção,
inclusive das testemunhas, contra os aliciadores e proprietários de
imóveis que usem mão de obra escrava;
g) aumento da concessão de empréstimos de bancos públicos para cul-
tivo da terra por parte de trabalhadores resgatados, garantindo-lhes a
posse da terra onde eram explorados e condições de trabalho dignas;
h) prisão, julgamento e punição de todos os responsáveis pelo crime de
trabalho escravo;
90
i) eliminação de todas as formas de exploração do trabalho infantil;
j) adoção de programa de qualificação e requalificação de trabalhadores
atingidos pela mecanização das usinas de açúcar.
Considerações finais
91
das condições e dos contratos de trabalho constatados, à luz da legislação
vigente e das normativas de convivência social, segundo o direito à vida e
ao trabalho. O próprio Legislativo brasileiro declarou não ter clareza sobre
o que é trabalho análogo à escravidão, apesar das definições da ONU, OIT
e do Código Penal brasileiro. Talvez os legisladores devessem perguntar
aos trabalhadores brasileiros que trabalham de sol a sol em condições
adversas de trabalho e com sua dignidade aviltada o que é preciso para
ser reconhecida tal situação – eles têm muito a nos dizer: com seus rostos
marcados pela desumanidade das condições em que são colocados em
suas terras de origem e nas quais são obrigados a trabalhar.
Para cada um deles e para cada uma delas, o trabalho como ativi-
dade de transformação do mundo, interligada com a dignidade humana e
de libertação dos trabalhadores, parece uma ideia cada vez mais distante.
Ou será que precisamos de mais cem anos para abolição da men-
talidade e prática escravagista no Brasil?
Referências
92
e revoga a Portaria MTE nº 540, de 19 de outubro de 2004. Diário Oficial
[da] República Federativa do Brasil, Poder Executivo, Brasília, DF, 13
maio 2011. Seção 1, p. 9.
COSTA, Cândida da; NEVES, Ciani Sueli das. Relatório da missão realizada
pela Relatoria nacional para o direito humano ao trabalho no período de
24 a 27 de outubro de 2005 na região de Ribeirão Preto/SP para apuração
de violações de direitos humanos de trabalhadores(as) canavieiros(as).
Rio de Janeiro: Plataforma DHESC Brasil, 2005.
93
INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE). Pesquisa
nacional por amostra de domicílio (PNAD – 2010). Brasília, 2010.
94
THENÓRIO, Iberê. MPT alerta para trabalho escravo em fornecedores da
C&A. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.br/.06/06/2006>.
Acesso em: 29 agosto 2012.
WROBLESKI, Stefano. Para AGU, Marisa deve ser incluída na “lista suja”
do trabalho escravo. Disponível em: <http://www.reporterbrasil.org.
br/2012/12/para-agu-marisa-deve-ser-incluida-na-quot-lista-suja-quot-
-do-trabalho-escravo/>. Acesso em: 02 outubro 2012.
95
Praça Teófilo Otoni - Serro (MG)
Foto: Delmo Vilela
96
Construção de metodologias participativas com
populações quilombolas: formação política e geração de
trabalho e renda – dilemas e perspectivas
Carlos Roberto Horta
97
Já a partir de 2004, o crescimento do número de projetos na área de
políticas públicas levou o Núcleo a se estruturar mais na pesquisa e na
extensão, para melhor desempenhar suas funções. O NESTH, que já havia
se consolidado como núcleo de pesquisa, criou, em 2005, o Observatório do
Trabalho da UFMG, para ser sua vertente mais conectada às atividades de
pesquisa e, em 2006, para desenvolver projetos especificamente de geração
de trabalho e renda e de inclusão cidadã, criou o Laboratório de Tecnologia
Social. Funcionando como dois braços, ambos passariam a ter uma perma-
nente interação, com vistas a produzir e a desenvolver métodos e a produzir
conhecimento comprometido com a questão do trabalho e da cidadania.
No caso do Observatório, havia uma urgência, vinda da realidade de
Minas Gerais, que é a maior província mineral do Brasil, e que tem a indús-
tria da mineração entre as que mais provocam destruição, tanto ambiental
quanto para a saúde dos seus trabalhadores e, mesmo, para a saúde da
comunidade nos municípios em que as mineradoras atuam. Além disso, era
preciso criar formas de organização, proteção dos trabalhadores e reconhe-
cimento/formalização da pequena produção mineral informal, problema que
atinge diversos países da América Latina.
Na área da indústria da mineração, o NESTH/Observatório do Tra-
balho desenvolveu alguns projetos inovadores, sempre contemplando os
garimpeiros e demais trabalhadores do setor, que, normalmente, vivem em
condições sub-humanas, enfrentando enormes desigualdades no campo da
cidadania, violência sustentada por empresas que utilizam métodos ilícitos
para disputar as áreas de garimpo, entre outros problemas.
Os trabalhos do NESTH nessa área tiveram início ainda em 1999, com
a elaboração de projetos que vieram a se concretizar somente após 2003.
É possível apontar, entre os projetos ligados à vida dos trabalhadores do setor
mineral, o Projeto COOPERMINAS como inovador, uma vez que a aplicação
de metodologias participativas trouxe para aqueles trabalhadores, em sete
municípios do estado de Minas Gerais, melhores condições de se organizarem
em associações e cooperativas e de interlocução com os poderes locais, além
de maior presença junto a órgãos governamentais ligados ao setor mineral,
como o Departamento Nacional de Produção Mineral (DNPM).
O projeto contou com a produção de conhecimento sobre as realidades
específicas de garimpeiros e de trabalhadores da extração de rochas das
localidades de Coronel Murta, Araçuaí, Itinga, Joaquim Felício, Mariana,
Catas Altas da Noruega e São Tomé das Letras, processo sempre parti-
cipativo e acompanhado pelos trabalhadores, seguido de reuniões com a
participação dos prefeitos e outras referências de poder e influência local
98
(vereadores, representantes de agências estaduais e federais ligadas ao setor
mineral ou outros de procedência daqueles trabalhadores, grande parte dos
quais se compõe de migrantes). Sobre esse projeto, foi produzido, além de
relatórios, um filme disponibilizado no site do NESTH.
Outro projeto desenvolvido no setor mineral, um dos maiores da expe-
riência do NESTH, foi a Implantação da Agenda 21 Mineral, que trabalhou
em seis municípios brasileiros: Tenente Ananias, no Rio Grande do Norte;
Pimenta Bueno, em Rondônia; Campos Verdes, em Goiás; Vila Pavão, no
Espírito Santo; e, em Minas Gerais, os municípios de Coromandel e Nova
Era. Em quatro desses municípios, o trabalho era ligado aos garimpeiros e,
nos estados de Rondônia e Espírito Santo, o projeto se realizou com traba-
lhadores da extração de argila e de rochas decorativas.
O trabalho se desenvolveu, primeiramente, com a produção de diag-
nósticos geológicos e, em seguida, com a elaboração de uma cartilha por
município, com esclarecimentos mais básicos sobre a questão da minera-
ção e seus impactos sociais e ambientais naquele município. Um terceiro
momento do trabalho foi a construção de outro diagnóstico, mais completo,
com a participação dos trabalhadores, contemplando, além da parte geoló-
gica, a questão econômica e socioambiental.
O quarto momento do projeto foi o da construção do Fórum Agenda 21
Mineral, em cada um dos seis municípios envolvidos, com representantes
de todos os setores de alguma forma envolvidos com a mineração, incluindo
representantes comunitários, associações, sindicatos, escolas e o poder pú-
blico local. O quinto momento constou da capacitação desses fóruns locais,
com a elaboração participativa de uma agenda que o fórum deveria cumprir.
Característica comum a todos esses trabalhos, a utilização de metodo-
logias participativas ganhou mais consistência nas formas de desenvolver a
construção de conhecimento das comunidades, dos grupos que eram iden-
tificados como destinatários de políticas específicas, já que o conhecimento
assim construído encontrava relação clara com o cotidiano dessas populações.
Nos últimos seis anos, projetos do NESTH passaram a incluir a questão
socioambiental enquanto decisiva e integrante da produção de políticas pelas
comunidades que são trabalhadas com essas metodologias. Um dos projetos
mais emblemáticos nessa área foi executado para a Prefeitura de Congonhas,
em Minas Gerais, numa parceria que envolveu o NESTH e a Universidade
Federal de São João del-Rei, por intermédio do seu Campus Alto Paraope-
ba. Trata-se da Implantação do Observatório Socioambiental de Congonhas.
Esse projeto seguiu etapas semelhantes àquelas desenvolvidas para a Agen-
da 21 Mineral, com alguns aperfeiçoamentos no que toca aos processos de
99
envolvimento da população e no maior alcance de meios de comunicação
disponíveis. O objetivo maior foi voltado para a construção coparticipada de
subjetividades políticas coletivas em um município seriamente impactado por
atividades de mineração e de siderurgia crescentes (o município de Congonhas
tem a perspectiva de dobrar o seu número de habitantes em 25 anos, devido
ao processo de aceleração do desenvolvimento econômico). Com a institucio-
nalização desse processo, apoiado em permanente monitoramento e renovação
coparticipada de informações, o objetivo será dotar a população de um instru-
mento para sua proteção e seu desenvolvimento na construção da cidadania.
Dois outros projetos envolvem qualificação e formação cidadã relacio-
nada com a questão ambiental: um deles se dirigiu aos trabalhadores da
agricultura familiar no município de Betim, contemplando três assentamen-
tos, e o outro vai capacitar para o trabalho em turismo um grupo de jovens
quilombolas da região de Conceição do Mato Dentro, fortemente atingida
pelas mineradoras. Essas comunidades quilombolas receberão qualificação
para a proteção ambiental e a autossustentabilidade, com o objetivo de for-
talecimento de sua identidade e de sua subjetividade política, para a prática
da cidadania, de forma integrada com a capacitação para geração de renda.
Trabalhar com as comunidades quilombolas, com os grupos de garim-
peiros, com trabalhadores informais e com aqueles que não conseguem ser
trabalhadores, os contingentes de excluídos, é algo que indica uma forte
mudança em relação ao foco inicial do NESTH, que era ligado às análises
do processo de trabalho na indústria, ao sindicalismo e à saúde do traba-
lhador. Na movimentação do foco de atenções e ações do grupo da UFMG,
passar a trabalhar com as fronteiras da exclusão, principalmente em se
tratando de um período de implantação de políticas neoliberais, aponta para
uma identificação e envolvimento das opções teóricas e metodológicas com
a efetiva história do cotidiano desses grupos.
A reestruturação produtiva, associada a um conjunto de políticas vol-
tadas para a proteção do capital financeiro e de todo um conjunto de refor-
mas neoliberais, expõe, entre outras consequências, a exclusão e a perda de
qualidade de vida das classes trabalhadoras e de vários setores populares
em geral (ANTUNES, 2006). Nesse contexto, o desenvolvimento de políticas
de inclusão, políticas de geração de trabalho (ainda que informal, como no
caso da economia solidária), passa a se tornar mais acessível e a constituir
metas que se concretizam em projetos e programas a serem executados.
As transformações ocorridas na economia, no contexto da hegemo-
nia neoliberal, resultam em mudanças que teriam, então, levado o núcleo a
acompanhar uma espécie de retrocesso na vida dos trabalhadores, envolvendo
100
a sua qualidade de vida, as suas condições de conquistarem cidadania, renda
digna, desenvolverem suas potencialidades e preservarem sua identidade,
principalmente em se tratando de trabalhadores e de populações tradicionais.
Essa transformação no foco de atenção das ações do núcleo significou que,
sem que ele deixasse de estar atento aos trabalhadores do setor formal e aos
movimentos sindicais, as suas ações passavam a incluir, necessariamente,
aqueles que não conseguiam ser trabalhadores. São setores que, certamente,
vivem dificuldades de acesso a uma cidadania completa, considerando que
ter os direitos da classe trabalhadora corresponde a ter um lugar de cidadão.
101
migrantes, não se discutem apenas os níveis de renda anteriores e posteriores
à migração sazonal, mas também aspectos do capital humano e social, possí-
veis qualificações obtidas na experiência migratória, por exemplo, elementos
que podem contribuir para consolidar tecnologias sociais de inclusão.
Assim, a pesquisa obteve informações que revelaram um quadro de
migrações sazonais que afeta decisivamente a vida das comunidades e a
sua própria condição de construírem sua subjetividade política coletiva,
suas associações, interlocutores em igualdade de condições, do poder pú-
blico, para garantirem a produção das políticas a que elas têm direito, por
dispositivo constitucional referente às populações indígenas e quilombolas.
No caso da migração para o corte da cana e para a colheita do café,
a análise das comunidades, voltada para as repercussões nessas áreas,
procura identificar em que medida a migração representa um empobreci-
mento ou enriquecimento para as sociedades locais, experimentando apli-
cação e ajuste de metodologias e tecnologias de inclusão social.
O que de fato se encontrou apresenta um panorama recorrente na
maioria das comunidades quilombolas daquelas regiões do estado: os mé-
todos de imersão possibilitaram registrar uma significativa maioria de
domicílios fechados entre os meses de maio e outubro/novembro, bem
como significativa queda na qualidade de vida para os moradores que
permanecem no local, na sua maioria, idosos, mulheres e crianças. A partir de
junho, até ao final de outubro, observou-se que diminui sensivelmente o rit-
mo do trabalho de organização e consolidação de ações que exigem decisões,
tanto da comunidade quanto das famílias, que evidenciam a ausência de seus
homens em condições de trabalhar e de decidir. Em seis das 15 comunidades
quilombolas do município de Chapada do Norte, por exemplo, foi necessário
encaminhar para órgãos governamentais a demanda por cestas básicas, uma
vez que havia sérios problemas de segurança alimentar naquelas comunida-
des. Ficou claro, para a pesquisa, que a remessa de dinheiro para as famílias
que permanecem na comunidade acontece de forma quase insignificante.
Entre os impactos mais visíveis das migrações, como já foi referido,
existe alguma descontinuidade nesse processo de organização da comuni-
dade para a defesa de seus interesses, com a ausência periódica de vários
dos seus moradores, que lotam caminhões e ônibus, criando rotas clan-
destinas, utilizando veículos sem condições adequadas para transporte de
passageiros, sobretudo a partir de maio e junho, com retorno de outubro
a dezembro, na maioria dos casos.
Há outros problemas que resultam das migrações: no retorno dos
trabalhadores, constam informações dos agentes de saúde, quando estes
102
existem nas comunidades, com registro de alta incidência de doenças se-
xualmente transmissíveis, incluindo um alarmante índice de contaminação
por HIV, em um dos povoados quilombolas do município de Chapada do
Norte, na região do Jequitinhonha. Mas o principal impacto se associa a
uma continuidade do processo de precarização e exclusão do trabalho e
dos trabalhadores, que atinge de forma pesada as comunidades tradicio-
nais (tanto quilombolas como indígenas), marcando uma sucessão de ca-
rências que tornam imprescindível a construção de tecnologias sociais de
inclusão produtiva que tenham suficiente maleabilidade para se adequa-
rem às características, às necessidades e aos desejos de cada comunidade
(HORTA; COSTA; ROLDAN, 2007).
Para se construírem dentro dessas exigências, os procedimentos
devem estar solidamente comprometidos com a construção participativa
da subjetividade social para uma projeção emancipatória (HERNANDEZ,
2005, p. 109-110). Elaborações conceituais voltadas para uma autotrans-
formação social participam desse processo e introduzem ações localizadas
de inclusão universitária para os jovens quilombolas, além de encaminhar
cursos de capacitação apoiados na identificação de demandas realizada
pelo projeto. Com as ações em processamento há relativamente pouco
tempo, é prematuro avaliar os resultados.
Outro ponto que pesa nessa busca de uma observação mais segura
é o caráter quase “piloto” desses projetos. As políticas públicas para essas
populações ainda não se articulam em uma estratégia de totalidade, ao mes-
mo tempo que a destinação de recursos para essas políticas não atende as
efetivas necessidades geradas por um processo que discrimina, há séculos,
as suas comunidades. Assim, um dos problemas da efetivação dos processos
de inclusão dessas populações passa a ser a descontinuidade, reforçada por
questões de ordem cultural, pelas questões de obstáculos articulados com a
política local e até pelas mudanças de prioridades em órgãos decisórios dis-
tantes do campo de trabalho. A experiência tem mostrado que uma forma de
enfrentar esses dilemas passa pelo fortalecimento político das comunidades.
É compreensível que uma comunidade, seja de moradores de uma
região seja de um extrato ocupacional caracterizado pela sazonalidade,
tenha uma probabilidade maior de envolvimento e comprometimento na
solução de seus problemas se tiver se envolvido na identificação e na dis-
cussão de alternativas sobre eles.
Nas comunidades quilombolas que foram trabalhadas pelo NESTH,
a utilização de metodologias participativas foi marca essencial da atua-
ção do núcleo.
103
Construção de metodologias participativas:
experiência e consolidação
104
processo que estabelece pautas, modula e reordena a ação
individual, grupal, como também nas diferentes escalas em
que se realiza o social. Isto enfatiza as possibilidades de
pensar os sujeitos em diferentes níveis do social-individual,
grupal, intergrupal, organizacional, interorganizacional etc.
– como atores com capacidade de ser agentes de mudança,
e não meros reservatórios que interiorizam a partir de uma
noção de reflexo o contexto onde se realizam (RODRIGUEZ;
CARRAL; RODRIGUEZ-MENA, 2010, p. 56-57).
105
relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida” (Art. 3º da Instrução
Normativa do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária – Incra).
Não se trata aqui de garantir o direito à terra, mas de, ao levar as carac-
terísticas apontadas tanto no Decreto 4887 quanto no Art. 3º da IN do Incra
em consideração, termos como horizonte um fortalecimento da identidade
étnica desses grupos, para que se situem com mais eficácia enquanto sujeitos
no processo de definição do que é melhor para eles enquanto política pública.
No que se refere, especificamente, à criação do instrumento orga-
nizado através do enfoque qualitativo, o que se busca é estabelecer um
conhecimento sobre as comunidades onde se realiza uma apreensão da
história da ocupação da terra, da organização social, dos aspectos cultu-
rais e religiosos, das relações interétnicas com seu histórico e eventuais
conflitos, do relacionamento do grupo com a realidade circundante, sua
autodefinição e da coletividade envolvente.
106
4º - Entrevista qualitativa para identificar as representações que se orga-
nizam em torno da comunidade quilombola, conhecendo um pouco mais
sobre as mentalidades dos diversos atores locais e posições político/ideológicas
sobre ações afirmativas de valorização da identidade étnica, captando opiniões
influentes no senso comum e na produção de políticas no município. Na lin-
guagem de Michel Foucault, seria a identificação do “regime local de produção
da verdade” sobre a comunidade quilombola. Aplicado aos representantes do
poder público (prefeituras, órgãos como EMATER – Empresa de Assistência
Técnica e Extensão Rural), comerciantes, fazendeiros do entorno das comu-
nidades, representantes de sindicatos rurais, diretores de escola/professores.
Tem o papel de termômetro da realidade político-econômica de cada municí-
pio, também fornecendo subsídios para a equipe elaborar as estratégias de
aproximação, montagem e condução do Encontro Local.
107
os vereadores, o prefeito, os órgãos de fomento, setores da administração
pública local e regional. Nos preparativos, terão sido envolvidas as autori-
dades municipais, que participam dando apoio ao transporte das pessoas,
alimentação, local para descanso, fornecimento de barracas para venda dos
produtos dos quilombolas etc. Ao final do evento, as comunidades apre-
sentam sua identidade cultural, por meio de danças, música e práticas de
suas tradições que elas mantêm.
Essa etapa da metodologia utilizada marca um processo de cons-
trução de cidadania e de fortalecimento de práticas, por meio dos quais
os quilombolas vão passando a ter mais autoconfiança ao se dirigirem
ao poder público local. Se, até relativamente poucos anos atrás, eles ti-
nham o hábito de falar com os políticos numa postura de mais humildade,
de quem estava a pedir favores, aqui eles passam a se sentir realmente
“patrões” dos políticos, que é algo integrante de uma realidade política e
social republicana (THIOLLENT, 1985, p. 90-95).
Nos projetos em que existe o objetivo de implantação de etapas volta-
das para a geração de trabalho e renda, é importante observar que, desde
o instrumento número 6, já se colocam as capacitações, nas oficinas volta-
das para o fortalecimento de vocações e práticas já integrantes da experiên-
cia, presente ou ancestral, nessas comunidades tradicionais. Parte-se, em
seguida, para a construção conjunta de redes de apoio e gestões junto ao
poder público, quando se faz necessária a sua participação, por exemplo,
na construção ou recuperação de espaços para produção, comercialização,
ou mesmo meios de escoamento da produção das comunidades.
As novas pesquisas e ações de formação desenvolvidas pelo NESTH,
se analisadas a partir das transformações no capitalismo que levaram ao
aprofundamento de processos de exclusão, apontam para a preocupação
de se produzir um conhecimento estrategicamente comprometido com as
classes trabalhadoras. Estratégico, no sentido de se recuperar ou se cons-
truir o direito de ser trabalhador, por exemplo. A mudança do foco de
atuação do núcleo acrescentou às suas práticas o objetivo de se implantar
um processo participativo nas ações que visem fortalecer a autoconstrução
do trabalhador enquanto portador de direitos e de acesso a bens sociais
e às políticas de inclusão.
Esses avanços de qualidade no que se refere à abrangência dos pro-
jetos, associando o mundo do trabalho com a questão ambiental e com a
qualidade da vida, abrem ainda novos espaços para o aperfeiçoamento de
práticas que consolidam a cultura da democracia.
108
Referências
109
Garimpo em Tenente Ananias (RN)
Foto: Regina Ribeiro
112
A dimensão formativa do trabalho
João Valdir Alves de Souza
Introdução
Nas últimas décadas tem sido feita uma intensa campanha contra
o trabalho infantil. Essa campanha tem sua razão de ser, pois está cada
vez mais claro que a consciência do nosso tempo se sente ferida a cada
denúncia de que crianças de todas as idades ainda são violentadas por
serem submetidas a exaustivas jornadas de trabalho, em atividades
nocivas até mesmo para os trabalhadores adultos.
O modo como essa campanha tem sido feita, contudo, corre o sério
risco de formar nas novas gerações um forte sentimento de aversão ao
trabalho. A ampla utilização de frases infelizes como “criança não pode
trabalhar, pois lugar de criança é na escola”, além de constituir uma
imagem da escola como lugar de não trabalho, entra em contradição
com o próprio Estatuto da Criança e do Adolescente, como se verá. As
consequências disso já são sentidas por toda parte: confundida com
um parque de diversões, a escola tem sido vista como lugar improdu-
tivo, onde se vai fazer de tudo, menos estudar. Porque estudar é algo
muito trabalhoso.
Este texto se propõe a dois objetivos: um deles é explorar o conceito
de formação, distinguindo-o de seus correlatos educação, escolarização,
instrução e ensino; o outro é fazer uma defesa da formação pelo tra-
balho, incluindo aí a defesa do trabalho infantojuvenil. A fim de evitar
sobressaltos entre aqueles que condenam o trabalho infantil, adianto
que será feita, também, uma discussão conceitual sobre o trabalho para
ressaltar que ele tanto pode formar quanto deformar. Se tomarmos o
trabalho como a ação humana sobre a natureza para, sob determinadas
relações sociais, produzir as condições da existência, é preciso distin-
guir os diferentes tipos de trabalho e destinar às crianças apenas aquela
porção do trabalho adequada a elas. E é preciso dizer com clareza que
a campanha deve ser contra a exploração do trabalho, sobretudo da
exploração do trabalho infantil, e não contra o trabalho, porque ele é
constitutivo do humano.
113
Algumas distinções necessárias
114
Formação é, então, como foi dito, um processo, e todo processo precisa
ser situado no tempo. Serão destacadas, aqui, duas dimensões do conceito:
uma na ordem social; a outra na ordem da personalidade.1 Uma diz respeito
à sociedade; a outra diz respeito ao indivíduo. Se cada sociedade tem uma
história, cada indivíduo que a constitui também tem a sua. Formação é,
pois, um conceito sócio-histórico.
Quando falamos em uma formação social qualquer, queremos desta-
car os elementos constitutivos da história de um povo, da sua organiza-
ção econômica, política, social e cultural. Se queremos destacar a formação
social de Minas Gerais, do Brasil ou da América Latina, temos de considerar
todos os elementos históricos que entraram em jogo na configuração de cada
uma dessas realidades, o que, a despeito das semelhanças que podem ser aí
observadas, faz de cada uma delas uma realidade muito distinta da outra.
Nesses três recortes vamos encontrar elementos culturais provenientes das
três grandes matrizes da nossa formação (ameríndia, europeia e africana),
mas não apenas cada uma dessas matrizes já é muito diversificada na ori-
gem, como o processo no qual se deu a fusão desses elementos no tempo, sob
condições objetivas muito diferentes, gerou produto cultural muito distinto.
Essa formação resultou, portanto, de todo o conjunto de fatores que consti-
tuiu a história geral e particular de cada uma dessas sociedades.
Se tomarmos o conceito de formação no âmbito da personalidade,
teremos algo muito semelhante tanto em relação ao processo quanto em
relação ao resultado. Nesse caso, no entanto, sobretudo no mundo mo-
derno, torna-se mais evidente o papel dos sistemas de ensino na formação
da personalidade, ao mesmo tempo em que se nota ampla confusão con-
ceitual, pois que formação, educação, instrução e ensino aparecem equi-
vocadamente como se fossem a mesma coisa. Torna-se, pois, necessário
esclarecer esses conceitos a fim de limpar o terreno e produzir uma visão
suficientemente clara para evitar confusões.
Observemos como o linguajar cotidiano produziu e reforça essa confusão.
Todo mundo se acostumou a chamar de formatura ao ritual de encerramento
de um percurso escolar. E, mesmo que se tenha claro que um curso de gra-
duação, nos dias atuais, permite apenas uma formação inicial, ninguém deixa
de festejar essa formatura e de associar efetivamente ao percurso feito uma
trajetória de formação. E quanto mais nos aproximamos do nosso tempo, mais
vemos atribuir-se à escola essa tarefa da formação, sobretudo quando se trata
de formação profissional. Mas a centralidade que a escola adquiriu no mundo
1 - Não será tratada, aqui, a dimensão do mundo natural, como o das formações rochosas, por exemplo.
115
moderno fez dela um espaço do qual se reivindica, também, a formação do
cidadão, a formação do caráter, a formação do senso ético e estético etc. Vem
daí a confusão entre formação, educação, escolarização, instrução e ensino.
Nem sempre, contudo, foi assim. Até o advento da escola de massa
ou, pelo menos, da universalização da escola fundamental, o que variou
de país para país, de estado para estado dentro de um mesmo país, ou de
município para município dentro de um mesmo estado, a formação não
estava associada aos processos de escolarização. O advento da escola para
todos, direito do cidadão e dever do Estado, sobretudo a partir do século
XIX, deslocou para a instituição escolar os processos de formação porque o
modo capitalista de produção necessitou de um novo trabalhador e de uma
nova personalidade ajustada às novas condições de trabalho.
Mas a escola moderna não se constituiu como uma instância politi-
camente neutra: ela estava intimamente associada ao projeto burguês de
sociedade que emergiu das revoluções burguesas que abalaram a Europa a
partir do século XVII. Foi nesse contexto que se constituiu, cada vez mais
intensivamente, a associação entre formação e educação e entre educação e
escola, a tal ponto de não fazermos distinção, hoje, nem mesmo nos debates
acadêmicos, entre educação e escolarização. Não há dúvida, contudo, de que
na maior parte das vezes que falamos em educação é de escola que se fala.
Ora, mas escola é lugar de instrução e ensino, não necessariamente
de educação. Entre o desejo de que a escola se constitua como instituição
educadora e a realidade concreta das práticas cotidianas vai considerável
distância. Como já foi discutido em outro texto (SOUZA, 2012), ensino é o
termo mais elementar entre todos esses em debate aqui. Ensino é o ato de
tornar possível uma aprendizagem. Em princípio, qualquer pessoa dotada
de alguma capacidade de discernimento é capaz de ensinar algo a alguém
e, se se pode haver aprendizagem sem ensino, não há ensino que não es-
teja orientado a um aprendiz. Daí a referência sempre a uma relação entre
ensino e aprendizagem. A escola moderna assumiu a tarefa de ensinar,
mediante processos específicos, em lugares adequados e profissionais for-
mados e treinados, aquilo que a vida doméstica já não mais comportava
em função das novas exigências do mundo moderno.
Ao ensino voltado para a realização de uma tarefa específica, uma
aplicação imediata ou uma instrumentalização para o trabalho dá-se o
nome de instrução. Instruir é dar uma utilidade prática ao ensino. Como
essa sociedade moderna começou a se desvincular, cada vez mais, do en-
sino desinteressado, do ensino que não estivesse voltado para uma prá-
tica concreta e uma aplicação imediata, ao processo de ensino realizado
116
nas escolas deu-se o nome de instrução. A instrução pública começou a
entrar na pauta dos governos e a se constituir cada vez mais como políti-
ca de Estado. Fica claro, portanto, que uma coisa é o ensino e a instrução
ministrados na instituição escolar, cujo conjunto de práticas pode ser inscrito
no vocábulo escolarização; educação, no entanto, é coisa de outra natureza,
pois que ela é uma prática social ou ação orientada por um valor (econômico,
político, social, ético, estético) assumido como relevante. Se a educação supõe
algum ensino e alguma instrução, ela vai muito além, pois, como apontam
vários autores, de Durkheim a Paulo Freire, passando por Antonio Gramsci,
Karl Mannheim e Hannah Arendt, ela nunca é neutra e sempre está assenta-
da em uma dimensão valorativa. Daí a positividade com que a educação tem
sido historicamente encarada. Leiamos Durkheim a esse respeito:
117
social (DURKHEIM, 2008, p. 53). Preparar para a vida social é formar as
novas gerações em conformidade com determinados ideais de vida e so-
ciedade. A dimensão formativa é o processo que constitui cada sociedade,
na semelhança pelo que é comum à espécie, na diferença pelas diversas
formas de educar. A escola assumiu essa tarefa no mundo moderno e
construiu modos próprios para formar cidadãos e trabalhadores. Por mais
importante que seja seu papel, contudo, em nenhum momento ela substi-
tuiu o trabalho no processo de formação humana.
118
Disse também à mulher: “multiplicarei os sofrimentos do
teu parto; darás à luz com dores, teus desejos te impelirão
para o teu marido e tu estarás sob o seu domínio”. E disse
em seguida ao homem: “porque ouviste a voz de tua mulher
e comeste do fruto da árvore que eu te havia proibido comer,
maldita seja a terra por tua causa. Tirarás dela com traba-
lhos penosos o teu sustento todos os dias de tua vida. Ela te
produzirá espinhos e abrolhos, e tu comerás a erva da terra.
Comerás o teu pão com o suor do teu rosto, até que voltes
à terra de que foste tirado; porque és pó, e em pó te hás de
tornar” (GÊNESIS 3, 16-20).
119
Assim como houve mudança semântica relativamente à palavra escola,
também houve significativa mudança em relação ao entendimento social
do que seja o trabalho. A principal contribuição para essa mudança vem
de João Calvino, teólogo protestante do século XVI, um dos grandes nomes
da Reforma religiosa operada na Europa de então e expandida para todo
o mundo. A principal referência para a compreensão dessa mudança é a
obra seminal de Max Weber, A ética protestante e o espírito do capitalismo,
de 1904. Nela, Weber se ocupa em explicar as mudanças mentais opera-
das por uma nova concepção teológica, que, em vez de ver o trabalho como
sofrimento e castigo, apontava a riqueza acumulada como recompensa pelo
esforço e labuta incessantes e o resultado desse processo como um indício
de manifestação da Graça divina. Para os calvinistas, o trabalho dignifica e
enobrece o homem. Ao trabalho, portanto, porque o ócio é o maior e o pior
de todos os pecados. Apesar de longa, vejamos a bem elaborada leitura feita
por Sérgio Paulo Rouanet sobre a questão.
120
está convencido de que essa doutrina, pregada nos púlpitos e
ensinada nos manuais piedosos, contribuiu para formar um
tipo de personalidade ajustada às exigências da acumulação
capitalista. Filtrada pelos sermões, a teologia transformou-se
em ética, que levou a uma organização racional caracterizada
pelo estrito planejamento de todas as atividades, pelo apro-
veitamento integral do tempo, pela dedicação incondicional
ao ofício, ao Beruf, e esse estilo de vida “racional” acabou se
convertendo num dos suportes mais importantes do proces-
so de racionalização. Foi por essa via que a Reforma, como
constelação ideal, veio a funcionar como um poderosíssimo
veículo de modernização (ROUANET, 1993, p. 123).
121
autores do seu tempo, para Marx, o trabalho é a categoria central tanto para
entender a vida em sociedade quanto para transformá-la.
Entendido por esse prisma, o trabalho não é expiação da culpa, nem
a manifestação da Graça divina; ele é a ação dos homens sobre a natureza
para, na relação com outros homens, produzir e reproduzir as condições
materiais e ideais da existência. Essa ação pode ser mais ou menos autô-
noma, o que se refere ao componente de controle que tem sobre ela aquele
que age. Ela é uma ação calculada, pensada, planejada, orientada por um
ideal. Na modernidade, o mundo social deixa de ser visto como desígnio
divino e passa a ser visto como produto da ação humana. Se ele é produto
da ação humana, é possível que o resultado seja decorrente de um projeto?
Se é, qual é o projeto que temos para o futuro e qual é a ação que devemos
realizar para que esse projeto se torne realidade?
Ao criticar o trabalho na sociedade burguesa, Marx não apenas apon-
tava os limites que o sistema impunha à realização dos trabalhadores, como
também destacava que, sob aquelas condições, o trabalho havia se tornado
fonte de alienação. Em vez de fator de libertação e afirmação do homem,
naquilo que há de mais elevado na sua humanidade, o trabalho nada mais
fazia do que submetê-lo a uma condição de inferioridade. Alienado do pro-
cesso de trabalho, o trabalhador perdia o controle sobre o que fazia e como
fazia; alienado do produto do seu trabalho, ele perdia a capacidade de apro-
priar-se do que produzia; em decorrência dessas formas de alienação, ele
estaria desprovido da sua própria condição humana, já que trabalhar para
reproduzir a espécie e as condições de reprodução da força de trabalho era
próprio dos animais, e não do homem livre (MARX, 1978).
Ainda que essa crítica fosse severa, Marx não via outra possibilidade
de superação da alienação senão pelo trabalho. O que deixava os trabalha-
dores em situação de desvantagem não era um dado da natureza, mas um
determinado conjunto de circunstâncias históricas. E se a vida não era re-
sultado de um desígnio divino, mas de formação histórica, a questão-chave
para Marx era apontar para o tipo de ação que expressasse um projeto, já
que esse homem em ação deveria se constituir como sujeito da sua própria
história. Se havia algo de fundamental na natureza humana era o fato de
que, diferentemente dos outros animais, o trabalho se manifestava como
produto da ação criativa. Ao fazer analogia entre o trabalho humano e o do
animal, Marx destaca a diferença crucial entre um e outro.
122
colméia. Mas o que distingue o pior arquiteto da melhor
abelha é que ele figura na mente sua construção antes de
transformá-la em realidade. No fim do processo do trabalho
aparece um resultado que já existia antes idealmente na
imaginação do trabalhador (MARX, 1985, p. 202).
123
o como fazer. A educação, nesse caso, é uma ação predominantemente de
natureza prática, uma vez que o aprendiz necessita aprender a dominar
todo o processo de produção, inclusive desenvolvendo novas ferramentas
que porventura venha a utilizar na fabricação do seu produto. É muito valo-
rizada a figura dos mestres de ofício, que são os guardiões dos saberes e dos
modos de praticá-los. Esses saberes, passados de geração a geração (não
por um movimento automático, mas pela ação de sábios educadores), refe-
rem-se tanto aos modos de transformar matéria-prima em produto quanto
aos valores, aos hábitos e aos costumes que são preservados pela tradição.
Predomina, portanto, uma educação informal, isto é, que não tem um tem-
po determinado para se realizar ou um currículo específico para orientar
a relação ensino-aprendizagem. Educa-se pela prática, entre praticantes,
num processo em que as relações domésticas, familiares e do grupo de pa-
rentesco costumam ser suficientes para formar o novo ser social.
Historicamente, contudo, à medida que mais artesãos aumentam a pro-
dução de mercadorias e os excedentes permitem ampliar o comércio, mu-
danças sucessivas vão acontecendo no modo de produzir. Alguns produtores
enriquecidos pelo comércio se fixam nas cidades nascentes e, em vez de
fazerem eles mesmos os produtos, passam a comprar as ferramentas, as ma-
térias-primas, os cômodos onde possam trabalhar e a pagar um salário em
troca do trabalho dos outros. Emerge e se constitui, dessa forma, o trabalho
parcelado, dividido, especializado, assalariado, e os burgueses – habitantes
dos burgos, as cidades – começam a comprar a força de trabalho – capacidade
física e intelectual – daqueles que não conseguem ter o seu próprio negócio.
O trabalhador livre, vendendo sua força de trabalho no mercado, foi uma
das condições fundamentais da existência do modo capitalista de produção,
porque a individuação é o componente básico do liberalismo econômico.
O trabalho parcelado, em que cada trabalhador cuida apenas de uma
etapa da fabricação do produto, é o elemento que constitui a divisão técnica
do trabalho. Para Marx, antes mesmo da maquinaria, o que revoluciona,
verdadeiramente, a produção de mercadorias é a adoção em larga escala do
trabalho parcelado, uma vez que os trabalhadores se especializam na reali-
zação de apenas parte do processo produtivo. A divisão técnica do trabalho,
por sua vez, produz significativas mudanças na educação, pois ela passa a
exigir do trabalhador uma aprendizagem ligada às atividades específicas que
ele vai realizar. Ainda que o aprendiz esteja ligado diretamente ao processo
produtivo, sua educação passa a exigir o desenvolvimento de habilidades
particulares e peculiares em função dessa nova organização do trabalho.
Essa é a fase de predomínio da manufatura, isto é, trabalho feito à mão ou
124
com a utilização de ferramentas simples. A escola começa a ser considerada
importante lugar da educação, onde todos não apenas devem ir aprender a
ler, escrever e contar, mas, sobretudo, formar uma nova sensibilidade rela-
tivamente a esse mundo novo da produção.
A manufatura revolucionou a produção ao modificar a forma de pro-
duzir mercadorias, isto é, pelo parcelamento das tarefas e entrega de cada
uma delas a um trabalhador especializado. Essas transformações se apro-
fundaram nos séculos seguintes, com a Revolução Industrial, que combi-
nou a mudança no modo de produzir com a introdução da maquinaria na
grande indústria. Além da divisão técnica do trabalho e do uso crescente
da maquinaria, a grande indústria submeteu o trabalhador à máquina e
ao dono dos meios de produção. Marx fez uma severa crítica a essa divisão
do trabalho porque ela não permite a todos os trabalhadores desenvolve-
rem suas potencialidades criativas. Ele atribuía grande importância tanto
ao trabalho manual quanto ao trabalho intelectual. O grande problema,
para ele, era que, na sociedade capitalista, aqueles que se ocupam do tra-
balho manual estão impedidos de se dedicarem ao trabalho intelectual.
Conforme analisa Carlos Lerena:
Não era pela escola, portanto, que Marx via a possibilidade de mu-
danças significativas. Se a escola burguesa era parte do aparato da supe-
restrutura do modo de produção capitalista, ela pouco ou nada poderia
fazer senão reproduzir a ideologia do sistema no qual está inserida. Aliás, a
escola havia se constituído como componente fundamental desse sistema.
Para Marx, portanto, a mudança do sistema não passa pela escola, mas
pela desestruturação do modo de produção capitalista. Seu desiderato era
a realização plena dos homens tanto naquilo que se refere às condições
materiais de existência quanto no que se refere à sua realização intelectual.
Para Marx, o homem educado é o homem livre e o homem livre é aquele que
prescinde da tutela ideológica, seja ela política ou religiosa.
Marx está entre os autores que fizeram severa denúncia da exploração
do trabalho infantil. Mas é certo que ele não aprovaria, caso presenciasse
125
nos dias atuais, a intensa campanha contra o trabalho infantil. Certamente
ele escreveria algo semelhante ao que escreveu sobre os trabalhadores que,
em protesto contra as condições de trabalho, quebravam as máquinas, na-
quele movimento que ficou conhecido como ludismo.2 Segundo Marx, esses
trabalhadores não sabiam distinguir a máquina em si dos usos que delas
eram feitos. Do mesmo modo, Marx diria, então, que a luta não é contra o
trabalho infantil, mas contra a exploração do trabalho infantil. Para Marx,
trabalho é toda ação humana que resulta do uso da capacidade física e in-
telectual para agir no mundo. O homem, como ser no mundo, se faz homem
pelo trabalho. E essa aprendizagem deve começar desde tenra idade. Ela é
parte constitutiva da formação do humano.
Em um livro bem documentado intitulado Educação, saber, produ-
ção em Marx e Engels, Maria Alice Nogueira faz ampla discussão sobre o
modo como esses autores trataram da relação entre educação e trabalho.
E o que ganha destaque na análise é como o trabalho constitui o elemento
fundamental da formação humana, ou, em outras palavras, trata-se da
análise da dimensão formativa do trabalho. Segundo a autora, o Relatório
Oficial do Congresso de Genebra, o primeiro da Associação Internacional dos
Trabalhadores, realizado em 1866, “constitui o único texto em que Marx
toma, explicitamente, a educação por assunto e tema central de reflexão”
(NOGUEIRA, 1990, p. 147).
Pode parecer estranho às mentalidades sensíveis do nosso tempo que
alguém faça de modo tão explícito a defesa do trabalho infantojuvenil. Essa
defesa, contudo, somente se sustenta se esse trabalho estiver associado à
dimensão formativa, como, aliás, está presente na legislação brasileira que
trata da defesa da infância. Ironicamente, há uma incrível semelhança entre
o texto de Marx e o que estabelece o Estatuto da Criança e do Adolescente
(Lei n.º 8.069, de 13 de julho de 1990). Ressalvados o recorte de classes
e a idade mínima de 9 anos recomendada para a entrada no mundo do
trabalho produtivo, é exatamente o que está nessa lei que Marx defendia.
Segundo ele:
2 - Liderados por Ned Ludd, na primeira metade do século XIX, trabalhadores ingleses quebravam má-
quinas em protesto porque viam na mecanização a fonte do desemprego e da miséria que acompanhava
a formação do capitalismo.
126
comer, é preciso trabalhar, e não somente com o nosso
cérebro mas também com as nossas mãos (Marx apud
NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).
127
por idade, e a cada uma dessas categorias deveria ser atribuído um tipo de
atividade em tempo rigorosamente controlado.
Assim como Freud, para quem “as massas são preguiçosas e pouco
inteligentes” (FREUD, 1974, p. 18), para Marx, a miséria não deixa muita
margem para uma boa utilização da capacidade intelectual e a luta con-
tra essa ignorância deve ser tratada como política de Estado. Isso não é
nenhuma novidade, porque desde a primeira Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão, a de 1789, considerava-se “que a ignorância, o es-
quecimento e o desprezo dos direitos do homem são as únicas causas das
desgraças públicas e da corrupção dos Governos”. Como foi dito, o homem
educado é o homem livre, e o homem livre é aquele que está livre da tutela
ideológica, seja ela política ou religiosa. Mas a educação não é um produto
da natureza, e sim um processo social, cuja construção depende do modo
como os homens estabelecem relações entre si. Diz Marx:
128
operárias não estarão fortalecendo o poder governamental.
Ao contrário, elas estarão transformando o poder dirigido
contra elas, em seu agente. O proletariado fará, então,
através de uma medida geral, aquilo que ele tentaria, em
vão, realizar através de uma profusão de esforços indivi-
duais (Marx apud NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).
A sociedade não pode permitir nem aos pais, nem aos pa-
trões, o emprego de crianças e adolescentes para o traba-
lho, a menos que se combine o trabalho produtivo com a
educação. Por educação nós entendemos três coisas:
1) educação mental;
2) educação corporal, tal qual é produzida pelos exercí-
cios ginásticos e militares;
3) educação tecnológica, compreendendo os princípios
gerais e científicos de todos os processos de produ-
ção e, ao mesmo tempo, iniciando as crianças e os
adolescentes no manejo dos instrumentos elemen-
tares de todos os ramos industriais (Marx apud
NOGUEIRA, 1990, p. 147-148).
129
Além desse entendimento de que a educação deve estar relacionada à
dimensão intelectual, corporal e tecnológica, Marx entendia também que a
cada fase do desenvolvimento da criança e do adolescente deveria corres-
ponder um tipo particular de ação educativa. Exatamente o que estabelece
o inciso II do Art. 63: a “atividade compatível com o desenvolvimento do
adolescente” é um princípio que deve ser obedecido pela formação técnico-
-profissional. Marx defendia, ainda, que crianças e adolescentes deveriam
ser protegidos das ocupações que pudessem trazer risco à sua saúde e às
condições normais de desenvolvimento. Segundo ele:
130
amplamente abordado por Miguel Arroyo em um sofisticado texto em que
analisa os elementos materiais da formação humana. Trata-se de texto
polêmico, em que o autor suspeita de muitas das mais importantes contri-
buições intelectuais sobre o tema em questão. Dentre essas contribuições
contestadas estão aquelas que se sustentam na “negatividade do trabalho”
(Harry Braverman, Edgar de Decca) e aquelas que veem algo educativo
apenas na resistência às manifestações deformadoras do trabalho (Michael
Aplle, Hennry, Henry Girroux e Paul Willis). Enquanto os primeiros veem
o trabalho moderno como um princípio destrutivo, deformador e antipe-
dagógico, os outros põem o educativo não no trabalho produtivo, mas sim
na resistência a ele. Sobre a negatividade do trabalho, Arroyo cita Edgar
de Decca, para quem, “de todas as utopias criadas a partir do século XVI,
nenhuma se realizou tão desgraçadamente como a sociedade do trabalho”
(ARROYO, 1991, p. 182).
Após criticar uns por pretenderem girar para trás a roda da história
e outros pelo romantismo com que pretendem ver a resistência ao capita-
lismo, Arroyo faz uma firme defesa da “positividade educativa do trabalho
moderno”, destacando os elementos materiais da formação humana.
131
Conclusão
132
Referências
BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é educação. 33. ed. São Paulo: Bra-
siliense, 1995.
133
NOGUEIRA, Maria Alice. Educação, saber, produção e m Marx e Engels.
São Paulo: Cortez: Autores Associados, 1990.
134
Práticas inovadoras de
ocupação e trabalho
Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho - Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG)
Fotos: Lori Figueiró
135
Seminário Vale do Jequitinhonha: Ocupação e Trabalho -
- Proex/UFMG 2012 - Belo Horizonte (MG)
Fotos: Lori Figueiró
Associação das Mulheres de Ponto dos Volantes:
boas práticas de organização de mulheres
137
contempladas pelo programa e conseguimos R$ 40 mil para a construção
da sede própria. Realizamos a construção, a inauguração e a prestação de
contas, além de conseguirmos adquirir mais maquinário, que atualmente
corresponde a dez máquinas.
Hoje, também desenvolvemos projetos sociais e participamos de con-
selhos, sempre dando nossa contribuição social. O mundo está nas mãos
de quem tem coragem e sabe esperar. Ninguém da equipe levou um “tostão”
para casa durante três anos. Agora, a associação é autônoma, conseguimos
nossa independência.
Fala: Roseane Borges dos Santos Andrade e Laudiana Barboza da Silva Borge
Transcrição: Caio Ribeiro Paranhos
138
Ocupação, trabalho e renda:
a experiência do Centro de Agricultura
Alternativa Vicente Nica (CAV)
139
Familiares Feirantes de Veredinha (Afave). Já em Chapada do Norte, a
Associação dos Agricultores(as) Familiares Feirantes (Afachap) é formada por
62 associados(as). O apoio dado pelo CAV às ações de Economia Popular
Solidária diz respeito à organização do espaço da feira livre e feirantes. Em
Veredinha, por exemplo, auxiliou na negociação com o poder público para
implantação do Ponto de Apoio para atendimento aos feirantes. Além disso,
auxilia na organização da infraestrutura das feiras, com a aquisição de saco-
linhas, forros de bancas, cestos, materiais de divulgação, gaiolas para fran-
gos, entre outros. Também orienta a emissão do Cartão do Produtor Rural.
O CAV mantém, pelo menos, mais quatro frentes de trabalho: 1) Acom-
panhamento técnico às propriedades; 2) Fundo Rotativo Solidário; 3) Apoio
à comercialização; 4) Programa de Aquisição de Alimentos (PAA) e Programa
Nacional de Alimentação Escolar (PNAE). O primeiro, acompanhamento téc-
nico às propriedades, envolve o planejamento anual e o acompanhamento
das atividades das associações de feirantes; a elaboração e o planejamento de
cronograma produtivo; e as visitas técnicas às propriedades. Com o avanço
tecnológico, esse trabalho vem tomando corpo no sentido da ocupação, tra-
balho e renda. É nesse campo que os (as) agricultores(as) vêm evoluindo cada
vez mais, tanto financeiramente como no conhecimento. No eixo da produ-
ção, acreditamos que é necessário ter o domínio da preservação do solo e da
água; no beneficiamento, é preciso ter qualidade para atender às exigências
do consumidor; na venda, os (as) produtores(as) têm de conhecer a política do
mercado globalizado, para uma efetiva ação local, visto que os concorrentes
estão em todos os lados. Mais uma estratégia na produção é a capacitação de
produtores(as) com vistas ao domínio dos arranjos produtivos.
Entre as ações que envolvem o Fundo Rotativo Solidário, o CAV atua
na orientação para a elaboração de projetos do fundo e, ainda, realiza vi-
sitas de avaliação e acompanhamento dos projetos aprovados. Em 2012,
foram apoiados 86 projetos em Turmalina, 58 em Veredinha e algumas
dezenas em Chapada do Norte; realizada a compra conjunta de 580.360
toneladas de esterco aviário. Já o apoio à comercialização envolve pesqui-
sa de mercado em Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte; assessoria
continuada às associações de feirantes; visitas às feiras livres aos sábados,
e apoio ao acesso a mercados institucionais, como o PAA e o PNAE, que
compõem a quarta frente de atuação do CAV.
Em relação ao PAA/PNAE, o CAV realizou o monitoramento do PAA
2012. No valor de 143.333,02, o projeto atendeu a 14 instituições e envol-
veu 32 agricultores. Além do apoio para a elaboração de propostas para o
140
PNAE, o CAV auxiliou na elaboração do PAA 2013, que visava atender a 31
instituições dos municípios de Turmalina e Veredinha e, aproximadamente,
70 associados.
O CAV, juntamente com os(as) agricultores(as) dos municípios de
Turmalina, Veredinha e Chapada do Norte, tem identificado um conjunto
significativo de desafios a serem enfrentados visando à efetiva “ocupa-
ção, trabalho e renda”. Entre eles, destacam-se: legislação imprópria ao (à)
agricultor(a) familiar, principalmente quando se trata da Indústria Domés-
tica Rural, porque tem o mesmo tratamento das grandes agroindústrias do
país; e o baixo nível de escolaridade e a falta de uma política educacional
adequada aos (às) moradores(as) do Vale.
Todavia, em quase duas décadas de atuação, o CAV tem identificado
que a formação de grupos de interesse, quer para o debate, quer para a
ação, contribui para efetivar a “ocupação, trabalho e renda”. Olericultura,
apicultura, fruticultura, piscicultura, entre outros, são exemplos de grupos
de interesse que podem ser implantados. A metodologia desenvolvida pelo
Centro de Agricultura Alternativa Vicente Nica, aprimorada a cada nova
ação, considera que as discussões e ações jamais devem ter um tratamento
generalizado, pois isso tira o foco e o interesse dos envolvidos.
Retomando o início deste texto, está claro que os bons resultados da
atuação do CAV em muito se deve ao cruzamento entre o conhecimento
científico e o conhecimento prático. Nesse sentido, a parceria com as uni-
versidades tem sido muito interessante, pois, somando-se o conhecimento
dos acadêmicos com o dos agricultores familiares, será disponibilizado um
produto da melhor qualidade.
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Rio Jequitinhonha
Foto: Lori Figueiró
Impresso em papel Off Set 90g/m²
Imprensa Universitária da UFMG
Primavera de 2013
O trabalho não é causa da diferenciação entre homens e mulheres no
Vale do Jequitinhonha. Ele apenas reflete essa diferenciação que lhe
preexiste, diferenciação que impregna todo o tecido social, e não
apenas a esfera do trabalho. Há, na verdade, uma universalização
dessa diferenciação. Por isso, é necessário frisar que as relações
de gênero não dizem respeito apenas à esfera doméstica, privada.
E, mais, não são relações que se prendem a uma ideologia como falsa
consciência existente apenas nas cabeças das pessoas, como meras
ideias. Muito ao contrário. São relações presentes em todas as
esferas e são imbuídas de elementos pensados e reais, no sentido de
que refletem o real e também o determinam.