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Ascenção: Capítulo 1

Londres, 2021

São cinco da manhã e ainda estou deitado na cama. Como faço em todas as manhãs de
segunda-feira, demoro um pouco mais para me levantar, reflexos das poucas horas de
sono as quais tive direito de despor. Hoje tinha de fazer um esforço a mais para sair
daquela cama, seria meu primeiro dia de trabalho na multinacional Huff Armaments
Company. Não poderia perder tempo, levantei-me e olhei para as cortinas do meu
quarto, algumas frestas deixavam escapar fracos fios de luz que acertavam meu peito.
Abri. De imediato a penumbra se esvaiu. Pensei, hoje será um dia especial.
-Anime-se, Arthur, não deixe a preguiça matinal lhe vencer, seu franguinho!
Comecei a preparar meu café da manhã. Ovos mexidos com molho de tomate e
salsichas, para acompanhar, um café expresso feito por uma dessas máquinas de café
genéricas. O tempo estava nublado e frio, e o café da manhã contrastava bastante com o
ambiente gélido da minha casa. Escovei os dentes mais rápido que o usual, limpei o
rosto, penteei o cabelo e comecei a me vestir. Uma bota de cano curto, meias brancas de
algodão, calças de alfaiataria, camisa social, gravata de lã, sobretudo de gabardine,
relógio analógico e uma carteira de couro. Coloquei o mais rápido que consegui e me
direcionei à porta. Já eram seis horas, tinha de (que) me apressar ou perderia o tube1.
Peguei o guarda-chuva pendurado no cabide. Hoje poderia chover, pensei (ponderei)
enquanto esboçava um pequeno sorriso. Quase sempre chove em Londres. Saí pela
porta com pressa. Moro na rua 6 Shepherd´s Bush Pl, minha pequena casa é a 6º dentre
um conjunto de 19 casas feitas de tijolos. Fica a uns 2 (dois) minutos da Estação
ferroviária Shepherd´s Bush e é para lá que me dirijo. Saindo pela porta da frente, ando
dois passos e me vejo de frente para a via, mesmo ainda estando no meu pequeno
terraço delimitado por uma cerca branca.
-Hum... a mesma vista feia de sempre.
Minha residência ficava bem em frente da parte detrás da estação e seu fundo era o que
eu observava logo após sair todo santo dia. As paredes eram feitas de algum metal,
alumínio talvez, com um design em retângulos de vários formatos, também ali havia
uma escada, duas portas metálicas, câmeras de segurança e placas de aviso dizendo
“Proibido estacionar” e “Não vandalizar”. Uma vista desagradável, por isso os preços
das casas do conjunto eram tão baixos e o dos aluguéis também. O custo do meu aluguel
é de 715 libras mensais, o que acaba ou encaixando perfeitamente com o que um jovem
trabalhador como eu pode ria pagar. Esse foi um dos motivos para morar ali, não é nada
fácil encontrar um lugar barato bem no centro da zona 2 de Londres, mesmo que a custo
de uma bela vista.
Saí varando pelo terraço, abri a porta da cerca e segui correndo pela rua que dava para
uma área pública com algumas árvores e barreiras de metal que impossibilitavam a
passagem de carros.
1
Metrô.

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- Certo, certo, da estação Shepherd´s até Canada Water são uns 50 minutos, tenho de
fazer duas conexões durante o percurso e mudar da linha Central para a Jubilee... merda,
vou me atrasar.
Precisava bater meu ponto às 7 horas. Provavelmente, chegaria lá uns 15 minutos
atrasado - pensei enquanto chegava na entrada da estação procurando pelo Oyster2 em
minha carteira -. Já havia muita gente por lá. Era horário de pico, todos indo para os
seus trabalhos, nenhum deles deveria ter ânimo o suficiente para estar ali às seis da
manhã de uma segunda nublada e fria somente por amor ao trabalho.
- O dinheiro realmente faz coisas incríveis - sorri e suspirei.
Logo em seguida, fui em direção ao guichê para recarregar meu cartão.
Em nada me diferenciava daqueles pobres coitados, preciso de dinheiro para me manter vivo
dentro desta cidade onde tudo é caro. No entanto, não sou exclusivamente movido pelo
pagamento no fim do mês, escolhi trabalhar nas empresas Huff não só pelo bom salário ou pelo
prestígio de estar empregado na “maior empresa do mundo”. Não, minha escolha envolve coisas
muito mais antigas e profundas que dinheiro ou reconhecimento. Estou em busca de vingança.
-Ainda tenho 8 libras, vou conseguir pagar a ida de hoje. Melhor “encher o tanque” logo para
não ficar na pior mais cedo ou mais tarde. Creio que 85 libras devem servir para quase toda a
semana. -Digito rapidamente o valor necessário e aproximo o cartão do leitor para realizar a
transferência, quase que de forma automática-.
Sempre quis explodir essas máquinas de recarregamento, não sei bem o motivo, mas imagino
que seja por estarem tirando meu dinheiro, colocando-o em um cartão com um nome feio que
me dá direito de viajar por uma grande caixa metálica a qualquer lugar com prédios, carros e
pessoas, bem, basicamente coisas comuns que se encontram em cidades grandes. Tudo não
passa de um pensamento é claro, mas a vontade continua ali, existindo no meu subconsciente.
Acho que vou fazer isso quando estiver velho, já sem muitas perspectivas e objetivos, perto de
morrer talvez...aí vou explodir alguns desses caixas e ser preso, preso, mas realizado. -Pensei
enquanto me dirigia para a catraca com o cartão na mão, pronto para passá-lo no leitor dela
Saindo da catraca, desci os degraus da escada rolante driblando quem estava na minha frente,
quase chegando no final, um grande obstáculo estava a minha frente, era um senhor
muito...err...digamos que muito imponente que estava obstruindo a minha passagem. Me
imaginei escalando o homenzarrão a minha frente, pulando por cima de sua cabeça. No fim
esperei chegar ao fim da escada para recomeçar minha corrida.
Estando de fato na estação, vejo que o tube já está pronto para partir, ouço o fino som de aviso
das portas em preparo para si fecharem. Dou um último sprint em direção as que estavam na
minha frente, elas começam a si fechar, penso em brecar, hesito.
-Droga, droga, seja o que Deus quiser!
Salto como nunca havia saltado em minha vida, usando os dois pés para me impulsionar,
coloco toda minha força neles, nas pernas e joelhos também, era minha última aposta
desesperada, tinha de entrar naquele tube! Fechei os olhos e esperei o baque das portas em meu
corpo, já pressentindo que havia perdido minha aposta. Senti um contato brusco, mas eu estava
muito horizontal para ter batido nelas, senti o chão frio e sujo do tube.
Estava dentro do maldito vagão.
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Arfando e puxando ar pela boca, só consegui pensar em uma coisa.
Tenho de voltar a me exercitar logo...

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Dentro do transporte, algumas pessoas próximas ao local da minha queda, se espantaram com
minha repentina chegada e com sentido, não é todo dia que se vê um jovem saltando em direção
ao assoalho de um metrô. No momento em que a adrenalina sumiu, fiquei consciente ao meu
entorno e logo senti as os olhares assustados dos passageiros, junto de uma dor forte no joelho e
cotovelos. Levantei-me, procurei um canto para me assentar, minhas orelhas ferviam ao mesmo
tempo que meus batimentos diminuíam e minha respiração normalizava. Era um misto de alívio
com vergonha, como se eu tivesse mijado na cama e logo em seguida sido descoberto. Não
gostei da sensação. Procurei por um lugar para me sentar, havia apenas dois assentos, um de
frente para o outro, escolhi o que estava mais próximo de mim e me joguei em cima dele.
Definitivamente hoje é um dia especial, só não sei mais se é especialmente bom ou
ruim...
Depois de tudo que passei, torci para que fosse especialmente bom, mesmo que as
circunstâncias demonstrassem o contrário. Agora poderia descansar por um bom tempo, longos
50 minutos. comecei a observar o ambiente, a maioria dos que estavam no tube eram homens e
mulheres na faixa dos 40 anos, todos vestidos formalmente, havia também uma boa quantidade
de criança e adolescentes uniformizados com as vestimentas de suas respectivas escolas, dentre
eles, majoritariamente usavam um uniforme bastante familiar para mim, os garotos vestiam um
blazer azul-marinho de tom mais escuro que o habitual, formava o conjunto uma gravata
vermelha com listras finas em grená, camisa social branca e calça preta, para as garotas, quase a
mesma coisa, mudando apenas na presença da saia longa e preta e de meias brancas que iam até
o joelho. Nos blazers, havia a presença de um brasão costurado no lado esquerdo do peito. Era o
símbolo da família Cavendish, um escudo preto com borda branca de fundo, contendo nele uma
coroa dourada com joias vermelhas e duas lanças com bandeiras triangulares si entrecruzando
por trás da coroa, um da cor vermelha e outro de cor branca , ao redor do escudo, flores em
grená e branco faziam o trabalho de dar leveza ao brasão, na parte de cima e em baixo se
encontravam respectivamente, o torso e o capacete de uma armadura dourada com suas bordas
pintadas em grená, sendo uma pequena parte interior da armadura em vermelho e o sobrenome
que dava também o nome da escola dentro de um pergaminho branco.
Era a instituição de ensino mais antiga da Inglaterra, sendo iniciada como uma universidade em
1834. Tendo uma intima relação com a corte da época, os Cavendish eram nobres muito ricos
que fundaram seu clã em 1370 com o Sir Roger Cavendish como instaurador da família mais
influente da Inglaterra, eles não só tinham parentes dentro da família real inglesa, tanto que
conseguiram ascender ao poder na linhagem real por 100 anos antes da queda do absolutismo na
Inglaterra, como também em todas as cortes da Europa ocidental, usando de casamentos
arranjados para expandir sua influência pelo velho continente. O declínio dos mesmos veio com
a revolução inglesa, a partir de 1649, em simultâneo a inauguração da República
parlamentarista, tendo Oliver Cromwell como líder, os Cavendish perderam o controle dentro
do próprio país e ficaram fora do cenário político desde então, restando a eles cuidar da
instituição secular que ainda permanecia funcionando, ela era a sombra do passado imponente
dos Cavendish, e lá fora minha primeira escola.
-Arthur! Acorde filhinho, já são 6:30 da manhã e você ainda está na cama e...
Santo Deus! Faltam 30 minutos para a escola fechar os portões! Acorde logo
ou irá ficar do lado de fora no seu primeiro dia de escola, no frio, sozinho, sem

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abrigo e sem ninguém para lhe proteger! Você não quer passar por isso certo
querido?? -Disse ela em um tom brincalhão-.
-Pelo amor mãe, poxa, quanto exagero da sua parte, no máximo irão me
repreender por ter chegado tarde ou então vão me proibir de participar da aula
de tênis. -Respondi a ela entre bocejos e coçadas de olho-.

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Esta foi só um pequeno e pacífico trecho da manhã do meu primeiro dia de
aula em Cavendish, esse dia em específico é muito importante para minha
história de vida, então por favor, preste atenção pois, irei contar uma história
envolvendo a academia Cavendish, minha família, a família de outro garoto, o
garoto em si, minha babá, uma tragédia mortal e minhas aventuras e
desventuras (principalmente as desventuras) que irão ser consequência deste
dia fatídico, espero que não pegue no sono enquanto lê essa parte da minha
vida, seria bem rude na verdade...bom de qualquer forma, vamos ao que
interessa. MAS! Antes, vou lhe dar um contexto geral sobre mim e minha
família a vocês.
Nasci em Londres, no borough de Westminster, minha residência foi comprada
pelo meu pai como presente de casamento para minha mãe, adquirida das
mãos da princesa Diana, a casa de Spencer era um palacete que foi construído
por John Spencer, o primeiro conde de Spencer, em 1756. Seu interior era
muito luxuoso, projetado pelo arquiteto James Stuart, continha muitos traços
da arquitetura grega, com grandes pilares dentro e na faixada, abobadas,
esculturas nas paredes, colunas imponentes. Como também tinha traços
marcantes do estilo rococó a exemplo da quantidade absurda de janelas (nem
tão absurda assim pra um palacete enorme), paredes com cores em tom pastel
e um notável requinte na mobília, tapeçaria e objetos ornamentais, além de
um jardim enorme também. Como podem ver, nasci em berço de ouro, recebia
as melhores roupas, comidas, brinquedos, livros e tudo mais que uma criança
rica tem direito, ou seja, tudo que ela quisesse. Sempre me perguntei de onde
vinha essa infinidade de riqueza, certo dia, questionei meu pai sobre o
assunto. Ele estava lendo um jornal no escritório dele enquanto exalava
fumaça pela boca com um charuto entre os lábios.
-Sr. Papai, por acaso os senhor pode me responder uma pergunta ? – falei
enquanto tossia e abanava a mão para afastar aquela fumaça fedorenta.
Ele retirou o charuto da boca e o colocou no cinzeiro em um movimento lento,
dobrou o jornal e começou a abaná-lo na minha direção, provavelmente com o
intuito de dissipar aquela névoa de cheiro terrível, o que só fez minhas tosses
aumentarem.
-Pois não pequeno, diga o que deseja perguntar a mim.
-Bem...se não for muito rude, pode me dizer de onde vem o seu dinheiro
papai?
Ele pensou por um tempo, colocando os dedos entre as mãos.

-Essa é uma pergunta bem simples e sua resposta também é, eu faço dinheiro
enquanto cago!
-Espere um pouco, isso é impossível!

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-Não meu jovem, para mim não é.
-Diga-me a verdade pai, o senhor não pode soltar libras pelo bumbum!
Posso sim meu filho, acredite se quiser, eu, meu pai, o pai dele e o avô do pai
dele, todos cagavam dinheiro e se tivesse que apostar, diria que você também
deve conseguir.
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-Mas...isso não deveria ser realmente possível papai...
-É, não mesmo, mas nossa família é abençoada por essa dádiva, então não
fique duvidando da graça divina ou irá perdê-la quando mais precisar dela
meu querido filhote!
Acreditei nas palavras do meu pai por muito tempo, não me julgue, eu só
tinha 6 anos... depois que descobri como ele realmente fazia dinheiro aos
montes, me senti o ser mais burro do mundo. George Blackhill, meu pai, foi
presidente, cientista e inventor dentro da sua própria empresa, a Blackhill
Enterprise, uma multinacional que se destacava no desenvolvimento de
tecnologias em prol do desenvolvimento humano, nas áreas da saúde,
engenharia e comunicação. No passado, durante a primeira revolução
industrial, meu tataravô fundou uma fábrica de lã e foi passando de geração
em geração, durante essa passagem, já na segunda revolução industrial, a
fábrica foi deixando gradualmente de trabalhar com lã e foi adentrando no
mercado de artigos militares, fornecendo armas, pólvora e uniformes para
franceses e prussianos durante a guerra Franco-Prussiana, lucrando muito e
ganhando credibilidade no cenário. Dentre várias empresas que vinham
surgindo por conta da demanda que o imperialismo criava, muitas empresas
disputavam por contratos na europa, na Inglaterra, duas se destacavam das
demais, uma delas era a ascendente Blackhill Brothers, a outra, a tradicional
e confiável Huff Guns & Steel, que começara também durante a primeira
revolução, só que construindo as peças das máquinas a vapor que as fábricas
da época usavam, comumente abreviadas para BB e HG.
As Duas empresas participaram ativamente durante a primeira grande
guerra, segunda guerra mundial e guerra fria. Com o término da velha ordem
mundial, as duas empresas se modernizaram, no entanto, por caminhos
diferentes, A BB saiu do ramo bélico e migrou para o de tecnologia civil,
mudando o nome para Blackhill Enterprise, uma medida tomada pelo meu pai
logo após sua posse, ele não queria continuar o legado de seus antecessores
por achar que contribuía diretamente com as mortes de pessoas ao redor do
mundo, depois de alguns anos de turbulência, a Blackhill tornou-se a maior
do ramo. Já a HGS continuou seu legado, trocando de nome para Huff
Armaments Company, com o buraco deixado pela empresa do meu pai, eles
conquistaram o restante do mercado de armas e naturalmente se tornaram os
maiores do seu ramo, seu grande boom comercial veio com a entrada de
Magnus Huff na presidência, ele conseguiu contratos vantajosos com os
americanos durante a guerra contra o terrorismo, o que fez os lucros da
empresa triplicar em menos de 3 anos.
Dos anos 2000 até 2018 tudo corria aparentemente bem dentro da Blackhill
Enterprise, vários projetos estavam sendo realizados e economicamente
falando, o valor dela era equiparado ao PIB de algum pequeno e rico país,
como Mônaco, nesse período, foi inventado pela Blackhill o gerador de
partículas portátil, os automóveis e vias magnéticas, purificador portátil de

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água marinha e nano fibras que mimetizam tecidos orgânicos. No entanto, um
projeto visionário coordenado por George, que visava um objetivo utópico e
ficcional, marcou não só o início da derrocada de sua empresa e da sua vida
pessoal, como também uma mudança no cenário comercial global.

-Desde quando ser repreendido ou proibido é uma circunstância amena


garoto! Saia já da cama ou lhe faço sair sem tomar café, você disse que queria
ficar mais magro uns dias atrás, certo? Isso deve ser bom para você -Disse ela
em um tom passivo-agressivo que me fez ficar levemente irritado-.
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-Sim senhora..sim senhora...-Foi só o que consegui responder, minha mãe é
uma pessoa carinhosa e afável, entretanto, ela não tem tanta paciência para
coisas triviais como por exemplo, me acordar em uma segunda-feira nublada
para me preparar para um dia de escola, por isso acaba sempre sendo um
pouco rude comigo nesse aspecto.-
Levantei-me e fui em direção ao banheiro do meu quarto, o chão estava frio, o
mormaço da água quente na banheira recém preparada contrastava com a
gélida impressão vinda do piso, essa sensação me deu um fugaz prazer, que
logo foi substituída pelo toque da água na torneira.
Joguei água no meu rosto e tirei o pijama, dentro da banheira, me senti calmo
o suficiente para divagar sobre o que poderia me acontecer na escola, talvez
ficasse um pouco isolado nos primeiros dias, talvez encontrasse uma garota
bonita, talvez fizesse um amigo novo ou até tivesse que ficar na frente da sala
para me apresentar.
Todas as opções me atordoaram um pouco, acabei ficando tempo demais
naquela banheira, minhas mãos acabaram ficando enrugadas.

A Ascenção: Capítulo 2
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-Bom dia pai. Aqui está o relatório que o senhor solicitou do pessoal do departamento de
pesquisa.
-Magnus, me chame pelo meu nome, você não é mais uma criança Mattew...passe logo para cá
garoto, não faça seu velho levantar-se da cadeira só para pegar um pedaço de papel.
Mattew deu alguns passos tímidos em direção a poltrona de escritório do seu pai, sentiu-se
acuado ao mesmo tempo que uma curiosidade repentina em relação ao conteúdo do envelope
lhe fez perguntar:
-Do que se trata essa documentação?
-Por que isso lhe interessa?
-Por nada, só estou curioso, tem algo de errado em estar assim?
-Dependendo do objeto de curiosidade, sim.

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-Por acaso essa recepção atípica em relação aos novos funcionários tem ligação com esses
papéis?
-Se continuar falando Matt, acho que vou ter que te demitir seu, seu pirralho tagarela irritante.
Por mais que a resposta de Magnus lhe causasse mais dúvidas, achou melhor deixar o assunto
de lado.
-Certo, certo...quanto a questão dos novatos, está tudo pronto, as portas serão abertas daqui a 15
minutos, o auditório está pronto para recebê-los e a imprensa já está nos arredores do prédio.
-Bom, acho melhor começar a me arrumar então, lhe vejo daqui a 15 minutos.
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-Err...pai, lendo a lista de convidada-
-Porra garoto! Não me chame de pai dentro desta empresa, é Magnus, Sr. Magnus ou Presidente
Magnus. Aqui você não é meu filho, mas sim um trabalhador como qualquer um!
-Desculpe pa... digo, Sr. Magnus...não irá se repetir de novo.
- O que tem a droga da lista?!
-Eu...encontrei uma pessoa que nós dois conhecemos nela e...
-E?
Mattew tira a lista do bolso e entrega nas mãos de Magnus.
-E bem...veja o sobrenome. Parece ser o filho de George Blackhill.
-E daí?
-E daí? O senhor sabe o que esse sobrenome carrega. Por que está agindo com tanta
indiferença?
-Tenho problemas mais importantes do que me importar com o filho de um suicida Mattew, eu
sei que você e ele estudaram juntos, mas me poupe do seu sentimentalismo nostálgico, ficar
relembrando o passado só irá lhe prender a ele.
-Não é essa a questão! Não acha no mínimo suspeito, o filho do seu maior rival-
-Ex maior rival.
-...Ter escolhido trabalhar na sua empresa, mesmo com tudo que aconteceu?
-Não me importo com isso garoto, e mesmo que ele seja uma ameaça, no máximo ele pode
tentar realizar um atentado ou sei lá, um abaixo-assinado? -disse rindo de forma relaxada- Quer
que eu peça para o pessoal do T.I monitorarem o que o Blackhill Jr. Pesquisa no computador
dele? Acho que você só vai encontrar pornografia e livros didáticos, é só o que vocês jovem
pesquisam quando saem da escola e ficam ocupados com estágio, faculdade...esse tipo de coisa.
Magnus tira um maço de cigarro e um isqueiro de plasma prateado do bolso interno do paletó,
acende e se levanta, indo em direção ao seu filho.
-Essa conversa já durou o suficiente, vá se preparar para dar as boas-vindas para o seu amigo de
infância está bem?
Sem dizer nenhuma palavra, Mattew retirou-se do escritório e foi em direção aos elevadores.
Seu verme velho miserável! Nunca trocou mais de duas frases com o seu próprio filho e agora
quer me dar sermão e até fazer piada? -Seu rosto ficava vermelho e suas mãos cerradas com
força ficavam suadas, queria poder jogar fora aquela sensação, mas não podia, não no seu

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primeiro dia como gerente administrativo. Deveria compreender e seguir em frente, assim como
fizera durante toda sua infância, sentia-se uma bomba relógio retardando sua explosão o
máximo que podia, criando desculpas, obstáculos e deveres que lhe impediam de expressar sua
raiva, tristeza, orgulho e principalmente mágoa.
Entrou no elevador, não havia ninguém na cabina, estava no último andar do Huff Canada
Water, esse edifício fora reaberto a 6 meses atrás, logo depois de passar por uma grande reforma
para receber a os trabalhadores da Huff A.C., mas só agora pode receber pessoas, anteriormente
era um edifício residencial o qual George Blacklhill morou enquanto era estudante, foi
comprado por Magnus Huff em 2020 e agora faz parte da rede de locações dos Huff.

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Apertou o botão com o número 1 dentre os 24 que estavam dispostos na botoeira de pavimento
do elevador. Sentiu a respiração e os batimentos desaceleraram, tirou o paletó e o deixou sobre
o ombro, afrouxou a gravata e deu um grande suspiro.
Depois dessa merda de boas-vindas, acho que vou tomar uma cerveja pra desestressar...talvez
convide o Arthur, faz muito tempo que não o vejo e vamos trabalhar na mesma empresa então
tenho que resolver qualquer pendência com ele o mais rápido o possível.
Chegando no 1º andar, andou em direção ao auditório, ele ainda estava pouco cheio, apenas os
seguranças e faxineiros e organizadores circulavam pelo recinto. Tirou o celular do bolso para
ver as horas.
-Já devem estar abrindo as portas.
Saiu do auditório e se aproximou das vidraças na entrada do prédio, alguns funcionários já
estavam entre a empresa e alguns curiosos que queriam entrar para ver a inauguração. Depois de
alguns minutos, deixaram entrar aquela aglomeração de pessoas, os flashs das câmeras que já
faziam presença do lado de fora, agora aumentaram de forma frenética, caso algum epiléptico
estivesse nessa multidão, ele estaria em sérios apuros, pensou Mattew. Os ruídos antes distantes
e abafados, agora eram altos e confusos. Os seguranças faziam um caminho junto aos cones
balizadores indo em direção a entrada do auditório.
Mattew decidiu que entraria somente após encontrar Arthur ou se anunciassem que fechariam as
portas.
-Que coisa...vão sujar a entrada toda com esses sapatos molhados...Bem, melhor pegar um café
expresso, com a porta aberta assim o frio da rua vai entrar.
Andou vagarosamente para a cafeteria, estava vazia, seguiu para o caixa onde uma atendente
estava.
-Então o que vai querer hein?
-Bom dia Emília, vou querer o expresso.
-Ah! B-Bom dia Sr. Huff! Como posso lhe ajudar?
-Pode começar me chamando de Mattew.
-Claro, então, qual o seu pedido? Eu recomendo o café gelado com chocolate, é uma bebida
nova no cardápio!
-Obrigado pela sugestão, mas...pedir um café gelado durante uma chuva não me parece uma boa
ideia...
-Mas senho-

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-Mattew.
-Sim, claro, Mattew, é só tomar o café aqui na cafeteria, temos aquecedores mantendo uma
temperatura aprazível para os nossos clientes!
-Eu não posso, tenho que me encontrar com uma pessoa do lado de fora da cafeteria, então se
pudesse anotar meu pedid-
-Porque o senhor não pede para essa pessoa se encontrar com o senhor na cafeteria, assim os
dois tomam um café gelado no quentinho aconchegante da cafeteria Huff!
-Deus qual é seu problema? Pare de me chamar de senhor e anote logo a porcaria do expresso!
-O senhor usou o nome de Deus em vão.
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-M-Mas O quê? Do que você está falando garota??
-Êxodo capítulo 20, versículo 7, “Não tomarás em vão o nome do Senhor, o teu Deus-
-PELO AMOR DE DEUS, SÓ ME DÁ A PORRA DO CAFÉ EXPRESSO!!!
-Por favor senhor, mantenha o tom de voz baixo, estamos em um estabelecimento público e
existem normas de comportamento a serem seguidas. Então, vai ser pra beber agora ou pra
viagem?
Acho que hoje não vai ser um bom dia...

A Ascenção: Capítulo 3
11

Arthur já havia saído de casa e ido direto para a estação Green Park.
Daqui até a estação Mansion House serão no mínimo 23 minutos, acho que
vou chegar a tempo.
Depois de entrar no tube, Arthur pode finalmente descansar um pouco, no
entanto, estava estressado, não comeu todo o café da manhã por pressa e
estava nervoso com a escola, sentado no banco, batia o pé no assoalho
rapidamente, tentava pensar em outras coisas, não funcionava, parecia que
estava completamente imerso em nervosismo e desconforto, lutando para
conseguir um momento de paz dentro de si. Alongou as mãos e respirou e
inspirou lentamente, isso dissipou um pouco seus pensamentos irritantes.
Olhou ao seu redor para tentar se distrair, avistou um grupo de jovens usando
o mesmo uniforme que o seu conversando, alguns sentados, outros em pé.
Parece que meus colegas de turma já se conhecem, sorte a deles, fazer parte
de um grupo é essencial para sobreviver no ambiente escolar. Sempre
comparo eles com uma alcateia de lobos, independentemente do tipo de grupo,
essa comparação sempre funciona, veja bem, uma alcateia e dividida entre
alfa, betas e ômega, o alfa lidera o grupo, decide onde vão dormir e caçar, os
betas obedecem e admiram o alfa e o ômega é o fraco e excluído do grupo. No
caso desses estudantes, eu diria que o garoto sentado no banco do meio é o
alfa, ele aparenta ser o líder pela forma como conversa com os outros,
gesticulando bastante e usando um tom de voz moderado, quando ele fala,
todos o observam. Já os betas são os que estão ao seu redor, falando com um

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tom de voz mais alto, os dois que estão do lado do alfa, sentem que podem
elevar a voz por terem um laço de amizade mais forte com o líder que os
demais, os que estão em pé de frente para o trio sentado, estão falando menos
e escutando mais que os que estão sentados pois devem ter menos intimidade
com o alfa.
O Ômega, acredito que seja o que está ouvindo, observando e analisando de
longe os seus colegas de turma no metrô. Poderia ser considerado um sigma,
mas para tal, deveria antes sair de um grupo por não se encaixar e
amadurecer com isso, eu, no entanto, nunca encontrei um grupo para mim,
então, talvez eu nem me enquadre em nenhum desses nomes.
Finalmente chegando no seu destino, caminhou até a entrada da escola.
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-Bom dia meu jovem, seja bem-vindo a academia Cavendish.
-Bom dia senhor, onde posso encontrar alguma informação sobre minha sala?
-No teatro, os alunos estão se reunindo para receberem as boas-vindas, depois
da cerimônia devem lhe direcionar para a sua sala.
-E onde fica o teatro?
-Pegue a escada ou elevador até o terceiro andar, encontre um grande relógio
de pé alto feito de madeira e siga pelo corredor atrás dele, logo após isso, passe
pelos banheiros e pelo depósito e estará lá.
-Desculpe senhor, mas poderia repetir desde o início?
-Quer saber, só um momento jovem, EI! Você aí! Vem cá! -puxando pelo
colarinho de um estudante aleatório que ele fisgou com sua mão, trouxe-o
para nossa conversa- Leva esse garoto até o teatro está bem?
-Por que eu Velho Joseph?
-Poque eu estou lhe mandando!
-Ah...está bem, mas me solte logo.
Soltando o colarinho agora desarrumado, o porteiro da escola chamado
Joseph, deu dois tapas no ombro do pobre garoto, olhando em seguida para
mim.
-Agora vão os dois antes que fechem as portas do teatro!
Eu e o meu guia corremos o mais rápido que pudemos, fomos pela escada,
passamos pelo grande relógio de madeira e passamos pelo corredor quase sem
fôlego.
-Ah...ah...meu nome é Mattew, prazer em conhecê-lo...
Tomei fôlego antes de responder.
-Me chamo Arthur, é um prazer também...

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Esse expresso está bom...se aquela balconista irritante não tivesse me enchido
o saco, talvez ele estivesse com um gosto melhor.
Mattew olhava para as pessoas entrando apressadas pela entrada do prédio
indo em direção ao auditório, que nessa altura já deveria estar bem cheio.
Procurava por Arthur, mas não o havia encontrado, cogitou que talvez ele
tivesse entrado no auditório enquanto discutia com a atendente.
Levantou-se da mesa em que estava sentado e foi em direção a saída da
cafeteria.
-O que achou do nosso expresso senhor?
-Péssimo, parece ser feito em uma cafeteira velha.
-Realmente é feito em uma senhor.
-Pare de me chamar de senhor entendeu?
-Sim senhor.
-Foram 8,50 libras senhor.
Vou pedir pro meu pai demitir esse demônio
-Pode ficar com a droga do troco e olha, se você agir dessa maneira com todos
os clientes, seu rostinho bonitinho não vai te salvar de uma demissão, mais
cedo ou mais tarde vai perder o emprego, então, é bom mudar com essa sua
atitude espertinha e irritante entendeu?
-Sim senhor, vou levar seu conselho em consideração, muito obrigado e volte
sempre que estiver com fome ou sede!
-Até nunca mais.
Batendo a porta bruscamente, Mattew foi rapidamente em direção a um dos
organizadores que seguravam uma lista na mão na esperança de sanar sua
dúvida.
-Ei...pode me dizer se Arthur Blackhill já marcou presença nesta lista?
-Sim senhor Mattew. O senhor parece cansado, por acaso não quer se sentar
enquanto procuro o nome?
-Não eu-só procura a droga do nome logo!
-Sim senhor!!
O que deu nas pessoas hoje??
-Com licença, o senhor poderia me deixar apenas assinar meu nome? Eu
estou atrasado e-
-Olha aqui seu fura-fila, eu também estou bem ocupado aqui!
-Eu realmente não posso perder a minha primeira reunião de trabalho, se o
senhor pudesse apenas me deixar assinar, será muito rápido, você tem minha
palavra.
-Cacete! Me diz logo esse seu nome antes que eu tenha que arrancar ele de
você na base da ignorância!
-Arthur Blackhill, com h entre o t e u.

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-Pronto! Pronto! Satisfeito agora?
-Muito obrigado senhor, estou lhe devendo uma!
Arthur caminhou para longe indo em direção ao interior do auditório.
-Ok, já achou quem eu lhe pedi?
-Ele acabou de falar com o senhor.
-O quê? Aquele fura-fila não é quem eu-
-Droga.
-Senhor...o senhor não devia ir-
Mattew disparou para o interior do auditório, abrindo a porta abruptamente, o
que chamou a atenção das fileiras mais perto da mesma.
A apresentação acabara de começar, todos haviam sentado e as luzes estavam
apagadas.
Não vou encontrá-lo assim...talvez o organizador saiba em qual cadeira ele
esteja.
Voltou para a parte de fora.
-Ei! pode me dizer qual o número da cadeira daquele cara de antes?
-O senhor não sabe?
-Não sei o que??
-Não há um assento predeterminado para os convidados, eles estão dispostos
por ordem de chegada.
-Ah meu Deus...quem foi o desgraçado que ordenou que fosse assim!
-Bem, nós somos subordinados a gerência de administração e...
-E?
-Bem...o senhor é o gerente desse departamento então...foi o senhor quem
assinou a autorização para que fosse feito dessa maneira...
-Ahh..Acho que vou me matar...parece mais fácil que encontra-lo...
-O-O que? O que o senhor está dizendo??? Quer que eu chame uma
ambulância?? Por favor não faça isso senhor! Têm tantas coisas mais fáceis
que cometer “aquilo” senhor!!
-Por qual motivo um suicida precisaria de uma ambulância?
-E-Eu realmente não sei senhor...mas...é veja bem...Ah! Pense em como seu
pai vai ficar triste se o senhor fizer isso, isso pense nisso.
-Obrigado, mas trabalhar nessa hipótese só me faz querer mais ainda...
-M-Me desculpe senhor eu não quis-
-Olha...você pode me levar a sala de monitoramento?
-Posso sim senhor!

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-Ótimo, vamos, vou encontrar aquele idiota custe o que custar. Ah e mais uma
coisinha.
-O que senhor?!
-Nunca mais me chame de senhor.

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