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RELIGIOSIDADE AFRO-BRASILEIRA,
CINEMA E A DESCOLONIZAÇÃO DA
DOCÊNCIA
JOÃO AUGUSTO DOS REIS NETO (1)
MARIA JAQUELINE DE GRAMMONT (2)
Resumo Palabras clave: Pedagogía descolonial; Enseñanza
Este texto é um recorte de uma pesquisa realizada na
descolonizada; Exu; Formación del profesorado.
perspectiva histórico-crítica sobre experiências de
formação docente, a partir dos referenciais afro-latino-
americanos, envolvendo o cinema e a religiosidade afro-
Abstract
brasileira, por meio da figura do orixá Exu. Para a análise,
utilizamos alguns enunciados dos sujeitos da pesquisa This text is an excerpt from a research carried out in
antes e depois das exibições dos filmes, em uma the historical-critical perspective on teacher
perspectiva dialógica e exúlica. Neste processo, education experiences, based on Afro-Latin American
percebemos o deslocamento na compreensão dos references, involving the cinema and Afro-Brazilian
sujeitos em relação às religiões de matriz africana, antes religiosity, through the figure of the orisha Exu. For
calcadas na colonialidade, agora construídas em uma the analysis, we used some statements from the
perspectiva decolonial o que nos possibilita vislumbrar research subjects before and after the screenings of
uma formação docente descolonizada. the films, in a dialogic and exulic perspective. In this
Palavras-chave: Pedagogia decolonial; Docência process, we perceive the shift in the understanding of
descolonizada; Exu; Formação docente. the subjects in relation to religions of African origin,
previously based on coloniality, now built in a
Resumen decolonial perspective, which allows us to glimpse a
Este texto es un extracto de una investigación llevada a cabo decolonized teacher formation.
en la perspectiva histórico-crítica sobre las experiencias de Keywords: Decolonial pedagogy; Decolonized
formación docente, basada en referencias teaching; Exu; Teacher training.
afrolatinoamericanas, que involucra el cine y la religiosidad
afrobrasileña, a través de la figura del orisha Exu. Para el
análisis, utilizamos algunas declaraciones de los sujetos de
investigación antes y después de las proyecciones de las
películas, en una perspectiva dialógica y exulica. En este
proceso, percibimos el cambio en la comprensión de los temas
en relación con las religiones de origen africano, previamente
basadas en la colonialidad, ahora construidas en una (1) Mestre em Educação pela Universidade Federal de São
Para este trabalho, propusemos como O cinema para uma docência descolonizada
percurso teórico-metodológico a pesquisa Teixeira et al. (2014) destacam que o cinema
histórico-cultural (FREITAS, 2002). Esta pode provocar deslocamentos, nos fazendo
perspectiva compreende que os sujeitos estão rever aquilo que muitas vezes está posto. O
inscritos e localizados no tempo-espaço cinema é uma potência, ética e estética, para
histórico, por meio dos seus discursos, e por pensarmos uma pedagogia decolonial
isto só podem ser concebidos de modo sócio- comprometida com a emancipação, a
histórico (SOUZA & ALBUQUERQUE, 2012). democracia e a formação cultural dos
Assim, buscamos pensar os sujeitos fora das sujeitos. Pensando nisto, tomamos o cinema
dicotomias típicas do pensamento ocidental, desde uma perspectiva crítica, concebendo-o
inspirados por Exu, pela sua natureza como uma prática sociocultural (TURNER,
dinâmica, viva e dialógica. A partir de um 1997) que não se encerra nos “limites
recorte dos resultados da referida pesquisa, textuais” da linguagem cinematográfica.
selecionamos trechos de diálogos para Assim, sem perder de vista a dimensão
discutirmos as possibilidades de criação de artística do cinema, buscamos trazê-lo como
uma epistemologia e pedagogia decolonial algo que participa da formação humana, que
para formar professores/as. possui uma história, atravessamentos sociais
Considerando que tornar-se professor/a é um e ideológicos.
processo inacabado, articulando arte, vida e Neste processo não podemos perder de vista
responsabilidade, na perspectiva de Bakhtin os sujeitos espectadores, compreendendo-os
(2011), a pesquisa foi construída com não como meros receptores, mas
estudantes de duas licenciaturas da concebendo-os como ativos na produção de
Universidade Federal de São João Del Rei sentidos sobre a obra (BAKHTIN, 2006; STAM,
(História e Pedagogia) por meio de encontros 1992). Sujeitos históricos, sociais, marcados
chamados círculos dialógicos – construção pelas suas experiências na (con)vivência com
metodológica que é apresentada de forma seus outros que dão sentidos múltiplos à
detalhada na dissertação que originou este cada texto fílmico. A produção de (novos)
texto (AUTOR, 2019a). Os encontros foram sentidos sobre determinado texto fílmico se
realizados semanalmente e duravam cerca de dá no encontro dos sujeitos com a obra
duas horas; neste espaço os sujeitos (TURNER, 1997). A partir desta perspectiva, o
conheciam diferentes obras do cinema que significa pensar o cinema para a
brasileiro e discutiam temas das relações descolonização da docência? Significa pensar
étnico-raciais e das religiões de matriz em uma ação decolonial de fortalecimento de
africana. As falas foram organizadas em pedagogias anticoloniais, incluindo aí as
categorias e posteriormente analisadas. Para referências estéticas e audiovisuais que
este texto, então, trazemos parte dos buscamos apresentar aos nossos educandos.
resultados, discutindo como esse processo E, neste contexto, Exu é o signo da
contribuiu para a construção de uma descolonização. É matéria-prima da mudança
pedagogia decolonial. em nossos modos de pensar, sentir e ensinar.
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Trazemos Exu para pensarmos o cinema na próprias histórias, seus conhecimentos foram
formação docente como elemento importante interditados e isto reafirma o racismo e o
da construção de uma pedagogia decolonial. racismo epistêmico em nossas instituições.
Isto significa anunciar outras possibilidades Por isto mesmo é preciso pensar em um
de ser/formar professores/as. Neste encontro movimento, um ato responsável, de
com o cinema, Exu não é só “conteúdo- descolonização dos currículos, como se
personagem”, ao contrário, é a própria refere Gomes (2012). Contudo, o retorno de
narrativa, vai nos ensinando a ver, Exu é certo; é o som do nosso mundo
descolonizando nosso olhar, para pensarmos ressurgindo. Exu está lá na escola, na
na dimensão estética, que é fundamental para universidade mesmo que tentem o expulsar.
a formação de professores/as. Estamos, Exu está nas frestas, nas portas, nas soleiras,
então, diante de uma verdadeira encruzilhada, está no movimento e na ginga dos corpos e
lugar das possibilidades do devir, morada de mentes “rebeldes” que não se submetem à
Exu. lógica (colonial) da hierarquização. Ele está
nas práticas insurgentes, na abertura ao
No filme de hoje veremos Exu diálogo, nos esforços coletivos de criação de
O trauma da colonização, como se refere outros currículos, outros olhares e sentidos,
Kilomba (2010), deixou nossa sociedade por isso Exu é a nossa opção epistemológica
doente, concebendo como “errado” e/ou “do para a descolonização (AUTOR, 2019b). Foi
mal” tudo que não é euro-cristão branco, neste sentido que trouxemos o cinema para
como é o caso das religiões de matriz este processo.
africana. Araújo (2015) enuncia que Exu teve Exu estava lá nas telas, nos ensinando, rindo,
sua entrada, historicamente, interditada na brincando e, com isso, nos “descarregando”,
escola. Mas o que isto significa, na prática? dando cabo do carrego colonial (RUFINO,
Significa que há séculos a escola, em seus 2019) que contamina inclusive nossas
moldes ocidentais racistas, sob uma experiências estéticas e culturais. Exu, então,
racionalidade colonial, tem excluído várias veio nos encantar por meio de duas obras,
formas de ser, conhecer, saber, aprender e que foram (para este texto) analisadas: “Exu:
ensinar do processo educativo formal, além do bem e do mal” (2012), de Werner
cometendo um verdadeiro epistemicídio Bagetti e “A boca do mundo – Exu no
(CARNEIRO, 2005). Exu ficou de fora porque é candomblé” (2009) de Eliane Coster. Os dois
signo de uma cultura estigmatizada, mas de filmes apresentavam uma narrativa “desde de
resistência e que rompe com a narrativa dentro” da visão das religiões de matriz
unívoca sobre os modos diferentes de africana sobre Exu. Nos filmes os adeptos
existência e de nossa experiência social. das religiões dos orixás contavam sobre
Exu também foi deixado fora dos cursos de como enxergam e experenciam Exu em suas
formação docente. Os povos afro- múltiplas interpretações. De certo modo, o
pindorâmicos foram excluídos da nossa que pudemos ver ali era Exu se apresentando
história, não foram autorizados a contar suas a nós pela palavra do outro. Os sujeitos-
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Em outro encontro, ainda pensando na povoavam seus imaginários. Foi pelos filmes,
formação docente, os sujeitos foram cada um com inúmeras potências de sentido
indagados sobre o que mudou na sua visão a para pensarmos outras formas de ser/formar
partir de sua participação na pesquisa: professor, uma vez que compreendemos que
Milton: (...) estar aqui, passar por esse processo, é este processo é essencialmente plural,
pensar como isso vai influenciar em minha prática
dialógico e inacabado. Nas palavras de
enquanto professor. Como isso vai me influenciar na
forma de como me colocar perante uma sala de aula, Manoel Papai, de Mãe Beata e de tantos
qual tipo de vocabulário que eu vou usar e o que não outros sujeitos-personagens destas duas
usar. (...) A gente está nesse processo, mas ele é
contínuo e a gente vai se reconstruindo, desconstruindo, narrativas fílmicas, Exu foi nos ensinando
reconstruindo, aprendendo, reaprendendo, desfazendo... sobre as possibilidades de se educar, formar
As coisas estão em constante mudanças. Talvez o ponto
seja pensar em que isso tudo pode me afetar enquanto
professores e professoras. O que nos
professor, o que isso tudo pode mudar na minha prática. interessou neste processo foi perceber que ao
E também tentar fazer essas relações pensando sempre nos encontrarmos (e encantarmos) com estas
em melhorar a prática.
Conceição: É bom estar aqui sem ser por uma obrigação, obras, que tratavam de Exu, mas que diziam
sabe. Estar aqui porque a gente quer estar mesmo. Eu sobre identidade, cultura e resistência,
acho que isso foi o mais gostoso desse processo todo.
Eu mudei totalmente o meu pensamento, o modo de ver
estávamos, na prática, descolonizando
as coisas (e as religiões). A gente tem que parar de nossas mentes (FREIRE, 1977). Era o som do
julgar, procurar mais conhecer. mundo deles ruindo. Era a decolonialidade,
Este diálogo, sintetiza bem o que foi esse pensada como princípio de ação, como ato
processo de (des)construção acerca da responsável, no sentido empregado por
imagem de Exu, das religiões de matriz Bakhtin (2011), sendo experenciada na
africana, de modo geral e como este processo prática.
contribuiu para a formação dos sujeitos Foi ouvindo cada mãe-de-Santo, cada devoto
participantes. Assim, percebemos que é da religião dos orixás, que fomos nos
possível construirmos práticas e currículos apropriando das potências do pensamento
decoloniais que dialoguem efetivamente com afro-religioso na figura de Exu para
a liberdade, com a democracia e com a alegria pensarmos uma outra docência. Exu como
de ensinar e aprender. signo da resistência afro-brasileira, desafia as
epistemologias coloniais que inundam nosso
Considerações finais imaginário e repositórios de textos
Exu esteve conosco em todo este processo; acadêmicos, bem como nossas práticas em
ele mesmo personagem-veículo da narrativa, a salas de aula nos cursos de formação
palavra encarnada em cada discurso, estava docente. Portanto, pensar em Exu é pensar
ali em cada plano, em cada fala e gesto em rompimento e criação, movimentos que se
presentes nos filmes. Os sujeitos alongam dialeticamente na tensão neste
participantes da pesquisa puderam, por meio processo.
do cinema, no diálogo, recriar as imagens que Nos círculos dialógicos que tratamos de Exu
foi possível, por meio da palavra alheia,
“sentir” Exu nos deslocando, nos movendo.
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outro, a alteridade no processo educativo, BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei
dentre outras questões, nos ajudava a criar no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as
diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
outros olhares sobre o “tornar-se” professor. currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da
Além disso, neste processo, buscamos temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras
proporcionar o encontro dos sujeitos com um providências. Diário Oficial [da] República Federativa do
Brasil. Brasília, DF, 9 jan. 2003.
audiovisual distinto, com produções
independentes, realizadas fora dos grandes CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como
não-ser como fundamento do ser. Tese (Doutorado em
círculos de produção. Isto porque educação). Faculdade de Educação, Universidade de São
acreditamos que é preciso descolonizar o Paulo, São Paulo, 2005.
olhar. Neste sentido, ver Exu na grande tela,
DUSSEL, Enrique. Anti-meditaciones cartesianas: sobre el
foi um processo decisivo na formação destes origen del anti-discurso filosófico de la modernidad. Tabula
futuros/as educadores/as. Rasa, n. 9, p. 153-197, Jul/Dez 2008.
Os sujeitos que participaram deste processo FREIRE, Paulo. Cartas à Guiné-Bissau: registros de uma
abandonaram o lugar comum de preconceito, experiência em processo. 1° ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra,
1977.
de repulsa e passam a ter um olhar de
respeito e até mesmo de admiração para com FREITAS, Maria Teresa A. A abordagem sócio-histórica
estas culturas e sobre a figura de Exu. O como orientadora da pesquisa qualitativa. Cadernos de
Pesquisa (Fundação Carlos Chagas), v. 1, n.116, p. 21-40,
resultado deste processo é o deslocamento Jul/ 2002.
concreto dos sujeitos e o lançamento de um
GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e
processo inacabado que se alonga para além descolonização dos currículos. Currículo sem Fronteiras,
das fronteiras da universidade, dos currículos, v.12, n.1, p. 98-109, Jan/Abr 2012.
que, por certo, se materializa(rá) na práxis
KILOMBA, Grada. Plantation Memories: Episodes of
descolonizadas destes sujeitos. everyday racism. 2° ed. Münster: Unrast Verlag, 2010.