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RESUMO
about the decolonial thought and the scholar curriculum; then, we 1 - DUSSEL, E. Europa,
discuss narratives in textbooks about this theme; after we bring modernidade e eurocentrismo.
the report of five Geography teachers of public schools in Rio In: LANDER, E. (org.) A
de Janeiro to comprehend how they handle with the approaches colonialidade do saber:
contained in textbooks; we conclude setting challenges to construct eurocentrismo e ciências
sociais. Buenos Aires: Consejo
an decolonial teaching.
Latinoamericano de Ciencias
Keywords: Geography Teaching; Coloniality of Knowledge; Sociales – CLACSO, 2005.
Textbooks. 2 - Com a Razão, o homem
pode colocar-se no centro do
universo, espaço antes ocupado
INTRODUÇÃO por Deus. É a razão que o
conduz à dominação, vista
Colonialidade e Modernida- na economia ou cultura mun- como legítima. Os racionais
de são fenômenos que se imbri- dial, ofuscado, sobretudo, pelos seriam superiores e avançados
cam, duas faces de uma mesma árabes (idem). Deste modo, a em relação àqueles que ainda
moeda, portanto a compreensão colonização europeia é o marco mantinham suas crenças
do primeiro não pode prescin- inicial da Modernidade e todos divinas. A compreensão do
dir de um debate sobre o se- os demais eventos são desdo- mundo não passa mais pela
gundo. De acordo com Dussel bramentos de um século e meio sintonia com o cosmos, mas
(2005)¹, há dois conceitos de deste processo. São seus resul- agora é apreendido pela razão.
Modernidade. O mais difundi- tados, não pontos de partida.
do é eurocêntrico, provinciano Com a expansão colonial eu-
e regional. A modernidade se- ropeia à América, além de um
ria a passagem da imaturidade domínio físico, econômico e
à emancipação por meio da ra- político, foi empreendida uma
zão², proporcionando um marco colonização das formas de pen-
para o desenvolvimento do ser samento, visando à legitimação
humano. Ocorrido durante o sé- da dominação sobre os corpos
culo XVIII, este processo teria dos colonizados. Estas marcas
como base a Reforma Inglesa, perduram até hoje, mesmo após
o Iluminismo e a Revolução a retirada de dispositivos ofi-
Francesa. Nesta perspectiva, ciais de dominação, denuncian-
todos os eventos propulsores da do que, embora o colonialismo
Modernidade teriam ocorrido tenha tido um fim, seus apara-
dentro das fronteiras europeias tos se mantêm sob a forma de
e se desenvolveriam indepen- colonialidade.
dentemente dos demais eventos Por colonialismo, compre-
ocorridos pelo mundo. endemos a estrutura de domina-
Na outra perspectiva apon- ção/exploração política e eco-
tada por Dussel (2005), da qual nômica do trabalho e recursos
compartilhamos, vemos a Mo- naturais de uma determinada
dernidade como fruto de um população sobre outra de iden-
processo em que mundo moder- tidade diferente, cujas sedes
no, seu “jeito de ser”, com seus centrais se encontram em ou-
Estados, exércitos, economia tra jurisdição territorial (QUI-
e filosofia é interpretada como JANO, 2010). Por sua vez, as
o “centro” da história global. colonialidades do poder e do Revista do Programa de Pós-Graduação
em Geografia e do Departamento de
Não fora possível uma narrati- saber se engendraram dentro Geografia da UFES
va nesta escala anteriormente desta perspectiva colonialista Outubro-Dezembro, 2018
a 1492, antes do avanço sobre e se mostram mais duradouras 104
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bora problemático ao se valer dos dois livros analisados, uma em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES
de um vocabulário que trans- menção, sequer, à população Outubro-Dezembro, 2018
negra. Desta maneira, ocultam ISSN 2175-3709
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todo o histórico dos negros formação territorial do Brasil
e suas influências para o que no século XIX. Percebemos
Revista do Programa de Pós-Graduação compreendemos hoje como ter- que as perspectivas expressadas
em Geografia e do Departamento de
Geografia da UFES ritório brasileiro. Aos indíge- nos livros didáticos compreen-
Outubro-Dezembro, 2018 nas, no livro Jornadas.Geo, há dem a formação do território
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apenas uma menção ao longo brasileiro de modo a confundi-
de todo o capítulo. Este silen- -lo com o delineamento de sua
ciamento produz nos estudantes fronteira. Compreendemos a
que terão acesso a este material origem da formação territorial
um déficit de representação, do Brasil de modo mais profun-
afinal, os europeus têm maior do e anterior, além de contínuo
espaço nos capítulos analisa- até os dias atuais. Encaramos
dos, sendo considerados mais o território como um resultado
importantes para o processo de das múltiplas relações de poder
formação territorial brasileira. introjetadas no espaço. Deste
A ocultação das populações modo, não se findou com o úl-
negras e indígenas nestas pá- timo recorte de fronteira nacio-
ginas dos livros lhes coloca em nal.
posição passiva na construção
do território brasileiro, de me-
ros espectadores, abordagem Os livros didáticos sob o olhar
passível de questionamentos e dos professores
rejeições. Temos claro que a análise
Tal desigualdade de repre- dos livros didáticos, apesar de
sentação vem reforçar padrões nos apresentar uma importante
eurocêntricos de poder e saber, dimensão do currículo formal,
demonstrando como a colonia- não rebate imediatamente nas
lidade permanece forte nos li- práticas cotidianas em sala de
vros didáticos de Geografia. É aula. Para ampliar nossa análi-
possível inferir a partir da lei- se, a fim de buscar e construir
tura destas reduzidas páginas caminhos para melhor compre-
sobre formação territorial do ender o ensino de Geografia, re-
Brasil que todo o espaço nacio- alizamos entrevistas com cinco
nal foi construído não apenas a professores desta disciplina, to-
partir das invasões europeias, dos pertencentes da rede públi-
apagando todo a geo-história ca do Rio de Janeiro acerca de
anterior, como exclusivamen- suas visões sobre os livros di-
te por europeus. Estas premis- dáticos desta disciplina, como
sas, se não confrontadas, além lidam com eles em suas práti-
de destoarem da realidade, cas cotidianas e com as ques-
têm o potencial de produzir tões referentes às populações
no educando negro, indígena e na abordagem da formação ter-
de classes populares, o apaga- ritorial do Brasil4. O perfil dos
4 - As entrevistas aqui mento das suas ancestralidades, professores é diverso, tanto em
referenciadas foram colhidas prestando um desserviço ao re- idade quanto em formação, ten-
no momento de pesquisa conhecimento e no empodera- do-se graduados nas três prin-
para a dissertação de mento destes grupos. cipais instituições públicas do
mestrado X, no Programa Ambos os livros analisados estado do Rio de Janeiro.
de Pós-Graduação em
concluem seus capítulos sobre Por questões de confiden-
Educação da Universidade Y.
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Victor Loback A formação territorial do Brasil nos livros didáticos de geografia: em busca de uma análise descolonial
Amélia Cristina Alves Bezerra Páginas 103 à 120
Victor Loback A formação territorial do Brasil nos livros didáticos de geografia: em busca de uma análise descolonial
Amélia Cristina Alves Bezerra Páginas 103 à 120
ritório brasileiro. Elas não contribuíram, Indagado como lida com os es-
elas formaram. (Professora C)
tereótipos que disse reconhecer
Percebemos nesta fala o uso
nos livros didáticos, afirma:
do conteúdo do livro didáti- Para ser sincero eu nunca parei para lidar.
co servindo na prática docente Você está falando, eu estou tentando bus-
car eu ter trabalhado de uma forma dife-
como contraponto ao que se renciada. Não, nunca busquei. Nunca se-
quer trabalhar. A professora uti- gui dessa forma. Até porque eu trabalho,
por exemplo, em uma comunidade que é
liza o material para denunciar a bem complicada. Ali é muito difícil. Eu
colonialidade impregnada nos não procuro estabelecer isso como obje-
to de estudo. Não sei se é erro meu, não
livros didáticos e tensioná-la, sei se é porque você já está com vinte e
não reproduzí-la. Assim, per- poucos anos (de profissão) e você vai na
dinâmica do negócio. (Professor D)
cebemos que o conteúdo im-
Este posicionamento, em-
presso nos livros didáticos não
bora busque justificativas que
determina as práticas, mas pode
dificultam o trabalho docente
também servir para sua des-
(o professor referia-se à vio-
construção, mesmo que o obje-
lência), não cumpre o papel de
tivo na sua confecção não tenha
um ensino voltado à antimar-
sido esse.
ginalização de grupos, povos
Apesar desta ressalva feita
ou culturas, à medida em que
pela Professora C, é possível
simplesmente reproduz o saber
notar o poderoso papel que as
expressado nos livros didáti-
imagens desempenham não
cos, sem tensionamento, ainda
apenas no imaginário dos es-
que reconheça a existência de
tudantes, como esperado, mas
estereótipos. Desta forma, não
também dos educadores. De
apenas os povos que participa-
acordo com o tom da maioria
ram da formação territorial do
das entrevistas, elas têm o cará-
Brasil são marginalizados do
ter de ilustrar o conteúdo, como
ensino, como os próprios estu-
se não fossem, as próprias,
dantes o são. Ao não terem os
parte integrante do conteúdo.
saberes dos seus povos, histo-
Apenas uma professora entre-
ricamente subalternizados, re-
vistada mencionou a análise à
conhecidos em sala de aula a
qualidade das imagens e o que
partir da negação dos estigmas
elas trazem. Os outros quatro
expressados nos livros didáti-
entrevistados apontaram, sim-
cos, promove-se a marginaliza-
plesmente, a existência ou não
ção dele mesmo. Além de uma
do material.
educação que negue a geo-his-
Os professores entrevista-
toricidade a negros e indígenas,
dos, de maneira unânime, afir-
seus efetivos desempenhos na
maram identificar estereótipos
construção do território bra-
e preconceitos na abordagem
sileiro, nega-se a própria va-
dos povos, lhes foi indagado a
lorização destas identidades,
maneira como lidam com o pro-
por conseguinte a valorização
blema em sala de aula. As es-
destes estudantes em sala de
tratégias utilizadas são as mais
aula. Não cabe apenas rechaçar
diversas. Quatro afirmaram ten-
ou denunciar, mas anunciar os
tar combater ou desconstruir,
papeis determinantes de outros Revista do Programa de Pós-Graduação
contudo, em direção contrária em Geografia e do Departamento de
povos silenciados para a forma-
às demais entrevistadas, temos Geografia da UFES
ção territorial do Brasil. Outubro-Dezembro, 2018
o depoimento do Professor D.
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Já a Professora E adota outra como demonstramos no pre-
estratégia: sente trabalho. Denunciar este
Eu lido desconstruindo. Eu faço muitas
Revista do Programa de Pós-Graduação perguntas que às vezes eles ficam pen-
padrão de poder eurocêntrico é
em Geografia e do Departamento de sando. Mas é assim mesmo? Você acha condição indispensável para o
Geografia da UFES que todo mundo é igual? (...) Quando eles
Outubro-Dezembro, 2018 são cruéis uns com os outros, quando um
anúncio de uma Geografia que
ISSN 2175-3709 chama o outro de paraíba, eu paro a aula. rompa com velhos estereótipos
“-Ah, você é da paraíba?” –“Não, profes-
sora, eu sou do Pará.” “Ah, do Pará! Mas
e com o silenciamento de povos
vocês sabem onde fica o Pará?” Aí muda que, ainda hoje, não sentam à
tudo. (Professora E)
mesa para a construção do nos-
Aproximando-se de uma so ensino formal.
perspectiva descolonial e visan- Uma Educação transforma-
do à desconstrução de estereóti- dora precisa reconhecer nosso
pos, a Professora C afirma: condicionamento por forças
O que eu tenho tentado fazer muito é jus-
tamente a mudança do eixo narrativo. Por moderno-coloniais da socieda-
exemplo: quando eu comecei a trabalhar
cartografia, a gente começou pela África.
de, mas negar a clausura das
(...) E quando a gente começa a proble- determinações. É possível um
matizar, a gente consegue identificar os
conflitos. (Professora C)
trabalho nas brechas, mais au-
Percebemos, a partir do des- tônomo e democrático, que
taque a estas três falas, como tensione e auxilie a desalojar
materiais didáticos semelhan- conceitos coloniais. Contudo,
tes podem suscitar práticas as brechas do ensino não se
distintas. Assim, embora seja abrem, mas são abertas, com
possível afirmar que os livros muito esforço por educadores
didáticos podem condicionar e educandos. Para cumprimen-
as atividades escolares, o papel to de tal fim, é fundamental re-
dos educadores é crucial para pensar o ensino acadêmico de
a Educação, afinal, somos nós, Geografia e em que medida ele
juntamente com os educandos, nos auxilia a tensionar as colo-
os realizadores deste currículo, nialidades do poder e do saber
havendo escolhas à reprodução vigentes.
ou tensionamento da coloniali- De acordo com os professo-
dade do poder e do saber. res entrevistados no presente
trabalho, há uma grave ausência
de abordagens que desconstru-
Buscando caminhos para a am estereótipos e preconceitos
conclusão acerca dos povos que formaram
Temos claro que uma abor- o território brasileiro nas disci-
dagem plenamente descolonial plinas acadêmicas cursadas por
encontrará grande dificuldade eles. Neste sentido, a tentativa
de tornar-se exequível, uma vez de uma prática docente descolo-
que nos conformamos intelec- nial na escola, ou simplesmente
tual e subjetivamente em bases que visa tensionar estereóti-
coloniais, inclusive no processo pos, dificulta-se sensivelmente
de formação dos professores. se construída a partir de uma
Apesar disso, é possível ten- Geografia acadêmica com ba-
sionar esta assimetria de poder ses coloniais ou sem tais pro-
que está impregnada no currí- blematizações. Maiores ainda
culo formal, nos livros didáti- são seus obstáculos quando se
cos e no ensino de Geografia, apoiam em livros que, da mes-
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Victor Loback A formação territorial do Brasil nos livros didáticos de geografia: em busca de uma análise descolonial
Amélia Cristina Alves Bezerra Páginas 103 à 120
Victor Loback A formação territorial do Brasil nos livros didáticos de geografia: em busca de uma análise descolonial
Amélia Cristina Alves Bezerra Páginas 103 à 120
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Secretaria de Educação Básica, 2013.
CASTRO-GÓMEZ, S. La hybris del punto cero: ciencia, raza
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CASTRO-GÓMES, S.; GROSFOGUEL, R. (Orgs.) El giro
decolonial: reflexiones para una diversidad epistémica más allá
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FARIA, V. C. L. Vozes e silenciamentos na formação territorial
do Brasil: Colonialidade do Saber e Ensino de Geografia. 2015.
140f. Dissertação (Mestrado em Educação) – Programa de Pós-
Graduação em Educação, Universidade Federal Fluminense,
Niterói, 2015.
FREIRE, P. Pedagogia do Oprimido. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 2005.
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