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Rafael Arrivabene
Jogos como cibertextos
Objetivos de aprendizagem
Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados:
Introdução
Que o ramo dos jogos representa a maior indústria de entretenimento na
atualidade já é um fato bem estabelecido, vide as cifras movimentadas
em suas maiores produções e arrecadadas com suas vendas e o número
de jogadores em todo o mundo. A influência cultural dessa mídia, então,
é inegável. Mas que influência é essa? Como os jogos se encaixam como
obras culturais? Colocados ao lado das mídias clássicas como cinema,
teatro, literatura e artes plásticas, vemos que esta ainda é uma mídia nova,
imatura. Já existem, é verdade, obras clássicas nesse ramo, de grande
impacto e relevância cultural pelo que nos fazem sentir e pensar, mas
ainda parecem poucas.
Neste capítulo, você vai entender os jogos como cibertextos para
poder aplicar conhecimentos de outras áreas das ciências humanas, e
assim analisá-los como fenômenos culturais. Você verá como eles com-
portam discursos em cada um de seus aspectos, e principalmente que as
regras de interação — a característica definidora desta mídia — carregam
consigo um tipo específico de retórica, a retórica procedural. Por fim, verá
exemplos de como a semiótica pode ajudar a conduzir análises desses
cibertextos e como extrair significados mais profundos de cada jogo.
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Ludologia e narratologia
Os jogos nunca foram tão estudados na história das ciências quanto o são hoje
em dia. Muitas vezes subestimados como um elemento frívolo e secundário
na vida das pessoas, os jogos demoraram a ser compreendidos e valorizados
no meio acadêmico. Foi preciso que áreas já existentes e consolidadas os
acolhessem como objeto digno de estudo. Huizinga (2000), Fink (2016) e
Wittgenstein (1999) foram pioneiros ao relacionar o conceito de jogos com
outros conceitos da filosofia. Wittgenstein relacionou o jogo com sua percepção
sobre as estruturas da linguagem, que seria um dos campos a mais se interessar
pelo assunto, mesmo que de forma diferente.
Outras formas de entretenimento clássicas e melhor estabelecidas, como
teatro, literatura, cinema e televisão, já haviam superado há tempos essa
barreira, tendo desenvolvido seus próprios campos de pesquisa. A narrato-
logia, por exemplo, é uma vertente dos estudos literários e de texto que se
preocupa em pesquisar as estruturas dos textos e as narrativas que geram. À
medida que os jogos digitais começaram a mostrar seu potencial para criar
narrativas interativas, era de se imaginar que esta seria uma das áreas que se
interessariam por eles.
Uma das pioneiras nesse tipo de pesquisa foi a americana Janet Murray,
professora de literatura e autora do livro Hamlet no Holodeck: o futuro das
narrativas no ciberespaço, de 1997. O livro de Murray é um dos primeiros a de
fato a valorizar os jogos digitais como uma possível forma de arte e ao mesmo
tempo reconhecer que sua expressividade não se dá exatamente nos mesmos
modos ou pelos mesmos canais que outras formas conhecidas, como a televisão.
No mesmo ano, o norueguês Espen Aarseth publicava o livro Cibertexto:
perspectivas sobre a literatura ergódica. A obra, baseada em sua tese de dou-
torado, enfocava a influência que a tecnologia digital e a presença de regras e
mecânicas têm sobre a experiência literária das narrativas interativas. O autor
também ajudou a fundar o site Game Studies, um periódico digital voltado à
publicação de artigos acadêmicos sobre jogos e novas mídias.
O trabalho desses pioneiros foi de grande influência para diversos outros
pesquisadores. Um deles foi o uruguaio Gonzalo Frasca, que cursou seu
doutorado nos Estados Unidos sob orientação de Murray, culminando com
a tese “Videogames do oprimido”, em alusão ao trabalho de Boal na área do
teatro. Em seguida, Frasca obteve seu Ph.D. em Copenhagen com o trabalho
“Play the Message: Play, Games and Videogame Rhetoric”, sob orientação
Jogos como cibertextos 3
de Aarseth. Durante seus estudos, Frasca publicou alguns artigos muito in-
fluentes e foi um dos propositores do termo ludologia, e de sua emancipação
da narratologia como uma ciência própria.
Estes e outros autores ajudaram a consolidar os estudos dos jogos, que,
diferentemente da Teoria dos Jogos, é uma área acadêmica dedicada realmente
a pesquisar jogos e brincadeiras e todas as suas ramificações. Isso foi possível
pois eles conseguiram trazer os desenvolvimentos teóricos de outras ciências,
como literatura, linguística e comunicação, e efetivamente os adaptaram e os
desenvolveram no contexto dos jogos.
Quando Espen (1997) define jogos como cibertextos, ele está querendo
mostrar o que os diferem dos hipertextos, utilizados na Internet. Um hiper-
texto, como um site, é um tipo de texto capaz de conter ou se ligar a outros
textos, ou de se autorreferenciar. Isso faz com que sua leitura ou navegação
não seja linear ou longitudinal (você não precisa ler todo o conteúdo de uma
página para acessar o conteúdo dos links que ela possui). Em um hipertexto,
a leitura é não linear e transversal, efeito geralmente conseguido por meio de
tecnologias digitais como a linguagem HTML.
Jogos também possuem a mesma natureza não linear, mas vão um pouco
mais longe. Espen (1997) propõe o conceito de literatura ergódica para explicar
que jogos são textos que se apresentam como desafios. Uma coisa ergonômica
é algo que se adapta ou está adaptado à pessoa (ergon), trazendo conforto. Uma
coisa ergódica, pelo contrário, é algo que exige esforço não trivial das pessoas.
Qualquer ação, como respirar, por exemplo, sempre exige algum esforço, daí
a ideia de esforço não trivial. Nesse ponto, Espen explica que mesmo livros
impressos e outras mídias não digitais podem ser ergódicas. Livros-jogo, em que
você toma decisões e joga dados para conduzir os rumos de seu personagem,
ou então passatempos como palavras-cruzadas ou cifras exigem uma leitura
baseada em regras e não trivial, mas sem tecnologias digitais.
A diferença, então, é que os jogos digitais conseguem ser mais propriamente
cibernéticos (SALEN; ZIMMERMAN, 2012). Cibernético é um sistema que
possui um agente controlador, algo ou alguém que se vale de entradas e saídas
do sistema para retroalimentá-lo, alterando suas características e compor-
tamentos de forma cíclica (WIENER, 1954). Nesse sentido, a programação
dos cibertextos difere de um hipertexto convencional, pois ela é baseada em
uma série de casos condicionais e se vale dos inputs do usuário para alterar o
próprio texto. Sua navegação se baseia em regras e exige um tipo de esforço
diferente do que ler um livro ou assistir a um filme, por exemplo.
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Vale a pena esclarecer dois pontos sobre essa definição. Em primeiro lugar, o conceito
de texto deve ser entendido em um sentido mais amplo do que apenas a linguagem
verbal. Na linguística, um texto é um conjunto de signos que expressam uma ideia
de um autor e que podem ser interpretados por quem recebe a mensagem segundo
sua própria bagagem. Os estudos literários também há tempos se adaptaram para
incluir a análise de outras mídias narrativas, como o cinema e os quadrinhos. Dessa
perspectiva, o texto deve ser encarado como a narrativa construída pela obra, e
não como um conjunto de palavras a serem lidas. Em segundo lugar, a comparação
com hipertextos foi feita no final dos anos 1990, antes da chamada Web 2.0, que foi
marcada pela evolução das páginas online e pela linguagem HTML para permitir maior
interação com os usuários. Podemos dizer que, hoje em dia, todo site se baseia em
cibertextos, pois há diversos mecanismos controladores. Já o conceito de literatura
ergódica continua valendo.
Uma das teorias mais comumente utilizadas e úteis nesse tipo de análise é a semiótica.
Semiótica é o estudo dos “semeions”, ou significados. Ela estuda como utilizamos
signos para nos comunicar. Essa é uma área que se subdivide em algumas vertentes,
sendo as duas principais a semiótica peirceana, do filósofo Charles Sanders Peirce, e a
semiótica francesa, ou greimasiana, desenvolvida pelos filósofos Saussure e Greimas,
subsequentemente. A semiótica greimasiana entende o signo como um objeto de
dois níveis. Em um deles, o signo é analisado pelo jeito que ele se mostra, enquanto
no outro, mas profundo, é analisado pelo que ele expressa. Já a semiótica peirceana
entende que um signo é aquilo que se apresenta no lugar de algo que não está lá
(SANTAELLA, 2002). Ou seja, um signo é algo que remete a outro algo. Ele significa
(representa em signo) algum objeto ou conceito.
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“herói crepuscular grave”. Esse herói é fraco, se cansa e tropeça. Não há itens
de recuperação de vida; por isso, quando está em perigo, ele deve fugir e se
esconder. Sua força física é muito pequena comparada a de seus oponentes,
então ele deve observá-los a certa distância segura e planejar seu ataque.
O ataque exige que ele se aproxime e escale os monstros, entendendo suas
vulnerabilidades e padrões de comportamento. Nos momentos finais do jogo,
quando tudo se subverte, o jogador tem controle sobre suas ações, mas elas nem
são desejadas nem sequer eficazes, e o destino do protagonista é inevitável. O
significado subjacente à obra, na visão do referido autor, é de que Shadow of
the Colossus retrata uma busca obsessiva e solitária por um objetivo proibido,
perpetrada por um protagonista decadente preso em um ciclo inevitável de
aproximação e enfrentamentos com seus monstros.
Esses exemplos mostram como é possível fazer diferentes leituras de uma
mesma obra. Não há uma questão de certo ou errado; o que há são diferen-
tes maneiras de conduzir a análise, e a coerência entre essa condução e as
interpretações a que se chega. De qualquer forma, com relação aos jogos,
é interessante presar pela análise do jogo enquanto literatura ergódica e de
autoria procedural, e, portanto, considerar a influência das regras e gameplay
na geração de significado.
Como você pode ver, a análise de Latorre avança bastante ao identificar os
significados inerentes aos comportamentos que as regras do jogo estimulam.
Uma vastidão sem muitas possibilidades de interação ou objetivos estimula
o jogador a andar a esmo, o que traz um sentimento de solidão. Ter um único
objetivo por vez estimula um comportamento focado, que traz o sentimento
de obstinação ou obsessão. Ter força física e energia limitadas estimula um
comportamento cauteloso e defensivo, que traz a sensação de inferioridade
ou covardia, mas também de respeito pelo perigo. Ter controle de suas ações,
mas não ter a possibilidade de influenciar os rumos dos acontecimentos, traz
sentimento de impotência e inevitabilidade.
As escolhas feitas pelos criadores dos jogos reforçam cada sentimento que
eles querem transmitir com suas experiências. O discurso de cada jogo é, então,
uma combinação das referências e mensagens que eles transmitem em cada um
dos aspectos do jogo. O jogo nos fala alguma coisa maior e mais profunda do
que a sua mensagem explícita. Seus simbolismos e as relações de significados
que podemos interpretar faz com que nos atinjam de formas mais profundas,
e às vezes subconscientes. Como designers de jogos, devemos estar atentos
às mensagens que passamos e como podemos utilizar nossos conhecimentos
para enfatizar as mensagens que desejamos realmente transmitir.
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Retórica procedural
O game designer e pesquisador Ian Bogost (2008), professor e doutor pela
mesma universidade que Murray, estende o conceito de autoria procedural
dessa pesquisadora, unindo-o com a pesquisa de Frasca (2001), e desenvolve
o conceito de retórica procedural. Retórica é o conjunto de técnicas ou habi-
lidades de usar uma determinada linguagem de forma eficiente e persuasiva,
não necessariamente no sentido de ludibriar o ouvinte, mas simplesmente no
sentido de que a opinião ou intenção do autor seja considerada pelo público.
A retórica foi historicamente pesquisada em termos de linguagem verbal,
sobretudo oratória, e mais recentemente desenvolveram-se estudos sobre
retórica visual, para analisar filmes e propagandas. Bogost (2008) aproveita
esses estudos para definir as bases de um tipo de retórica baseado em proce-
dimentos e regras de interação.
A palavra “regra” vem do latim regula, que tem a mesma raiz que régis
(rei). Regula significa uma lei, um padrão de medida, uma régua ou uma
norma, que por sua vez vem do grego nomós, que possui os mesmos signifi-
cados, mas mais ligados às leis naturais (normais) do que às imposições ou
comandos de um regente. Assim, como você pode ver, as regras estão ligadas
a comportamentos, modos de ser ou de agir. Quando definimos as regras para
um jogo, definimos como as coisas daquele sistema se comportam e como os
jogadores devem agir.
É importante lembrar que jogadores agirão de determinadas maneiras por
um misto de imposição das regras e consequência delas, em uma dinâmica
algumas vezes imprevista. Conjuntos de regras estimulam comportamentos que
nem sempre refletem seu cumprimento direto e afirmativo. Pense nas diversas
formas de fraudes e sonegações de impostos. São exemplos de pessoas tentando
achar brechas nos procedimentos para evitar cumprir uma regra. A dinâmica
da lei-seca americana dos anos 1930 é um caso exemplar: foi proibida a venda
e consumo de bebidas alcoólicas para evitar que a população, desempregada
pela crise, se embriagasse. O efeito foi que a venda oficial parou de acontecer,
mas a venda clandestina cresceu vertiginosamente, dando origem e poder aos
grandes grupos mafiosos, mergulhando o país em uma onda de violência.
Isso mostra que sempre há uma interpretação das regras por parte de quem
as deve seguir. Elas geram significados de valor. Sempre consideramos se
esta ou aquela regra são justas ou não, qual é o procedimento mais fácil ou
eficaz, se o risco vale a recompensa, etc. Nesse sentido, a retórica procedural
consiste em expressar ideias utilizando regras e procedimentos para criar
essas percepções de valor.
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mexem por suas próprias forças e interesses, apesar da presença dele? Como
as noções de propriedade, posse e conhecimento são retratadas ou simuladas
no jogo? Se um jogo tem NPCs totalmente passivos às ações do jogador, ele
dará a impressão de que a vontade ou a missão daquele personagem é o que
mais importa.
O último ponto consiste em observar como determinadas regras gerais
sobre o gameplay influenciam comportamentos. Que tipo de sensações ou
interpretações elas trazem sobre os eventos retratados? Algumas estratégias
serão mais vantajosas que outras, mas o que o jogador aprende com elas? O
resultado final do jogo geralmente tem a ver com a noção de mérito, mas o que
caracteriza mérito ou merecimento dentro dessa mensagem? Existem graus de
sucesso? Quanto à relação de dificuldade ao longo do tempo, a mensagem que
ela parece transmitir é a ideia de tensão ou monotonia nas situações retratadas.
Em Papers Please, a atividade do protagonista é, à princípio, monótona e
cíclica, mas à medida que o jogo avança, o desafio progride em conjunto com
a narrativa, ajudando, de certa forma, a transmitir uma ideia de que mesmo
aquele trabalho monótono e repetitivo pode ser interessante.
A análise termina com uma síntese desses três conjuntos de regras, mon-
tando um breve resumo das ideias que o jogo transmite por intermédio de
suas regras. O produto final dessa análise depende, é claro, de seus objetivos.
Em geral, você poderá conduzir essa análise para observar a retórica em seu
próprio projeto de jogo ou utilizá-la para identificar as qualidades retóricas e
de discurso em um jogo de outra pessoa. Nesses casos, o produto da análise
é este resumo textual final. Mas também seria possível conduzir tais análises
para a construção direta de novas regras e melhorias no projeto. Esse tipo de
questionamento permitirá que você entenda como a retórica procedural está
estruturada e se ela reforça ou contraria as mensagens da superfície do jogo,
compostas pela narrativa e estética.
Flanagan e Nissenbaum (2017) consideram que game designers que se
envolvem e se preocupam com as mensagens que estão transmitindo nos
diversos níveis de leitura possíveis de sua obra estão agindo com boa cons-
ciência. Segundo as pesquisadoras, essa é uma maneira dos jogos atingirem
maturidade como mídia, passando a abordar temas mais sérios sem perder a
qualidade de entretenimento e se fixando nas características comunicativas e
mais fortes desta própria mídia, isto é, as características interativas.
Ao identificarmos os jogos como cibertextos, devemos passar a considerar
que os signos que o compõem são cibernéticos por natureza, ou seja, interati-
vos. E ao compreendermos a retórica procedural, podemos entender melhor o
discurso que está presente, isto é, os conhecimentos e pontos de vista sendo
14 Jogos como cibertextos
ROGERS, S. Level up: a guide to great game design. New York: Wiley, 2012.
SALEN, K.; ZIMMERMAN, E. Regras do jogo: fundamentos do design de jogos. São Paulo:
Blucher, 2012. 4 v.
SANTAELLA, L. Semiótica aplicada. São Paulo: Cengage Learning, 2002.
SOUZA JÚNIOR, P. C. A interatividade no jogo eletrônico Shadow of The Colossus.
Estudos Semióticos, v. 5, n. 2, p. 52–59, 2009. Disponível em: http://www.revistas.usp.
br/esse/article/view/49247. Acesso em: 23 set. 2019.
WIENER, N. Cibernética e sociedade: o uso humano de seres humanos. 4. ed. São Paulo:
Cultrix, 1954.
WITTGENSTEIN, L. Investigações filosóficas. São Paulo: Nova Cultural, 1999.
Leituras recomendadas
ANTHROPY, A. Rise of the videogame zinisters. New York: Seven Stories, 2012.
ARRIVABENE, R.; DANDOLINI, G. A. Sistemas de reputação: um caso de simulação social
em narrativas interativas. eRevista Logo, v. 6, n. 3, p. 33–50, 2017. Disponível em: http://
stat.entrever.incubadora.ufsc.br/index.php/eRevistaLOGO/article /view/5059/5101.
Acesso em: 23 set. 2019.
LATORRE, O. P. From chess to Starcraft: a comparative analysis of traditional games and
videogames. Comunicar, v. 19, n. 38, p. 121–128, 2012.