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ARTIGO ORIGINAL
FRANÇA, Stella Hadassa Ferreira. VIEIRA, Viviane Cristina. Reflexões sobre a prática social da
escrita em Fanfictions. Revista Científica Multidisciplinar Núcleo do Conhecimento. Ano 04,
Ed. 08, Vol. 03, pp. 05-17. Agosto de 2019. ISSN: 2448-0959, Link de
acesso: https://www.nucleodoconhecimento.com.br/letras/escrita-em-fanfictions
Contents
RESUMO
1. INTRODUÇÃO
2. O FENÔMENO FANFICTION E A CIBERCULTURA
3. A INTERTEXTUALIDADE EM FANFICTIONS
4. OS FANDOMS E A PRÁTICA SOCIAL DISCURSIVA
5. A PRESENÇA DA MULTIMODALIDADE NO FENÔMENO FANFICTION
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
REFERÊNCIAS
RESUMO
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Reflexões sobre a prática social da escrita em Fanfictions
1. INTRODUÇÃO
De acordo com Félix (2008), o surgimento dessa prática ocorreu nos séculos XVII e XVIII,
quando foram publicadas diferentes versões de obras como Orgulho e Preconceito, de Jane
Austen, e Dom Quixote de la Mancha, de Miguel de Cervantes.
No Brasil, o fenômeno fanfiction foi iniciado por intermédio das fanzines, revistas feitas por
fãs cujo conteúdo abrange determinado tema ou produto cultural. Essas revistas eram
vendidas em bancas de jornal ou enviadas por correspondência entre os fãs. Havia, então,
uma colaboração entre fãs para a produção de uma obra artística.
A interação entre os fãs, bem como a veiculação dessas obras, era consideravelmente
limitada, por ocorrer apenas no meio impresso. Depois do surgimento da internet, os
escritores de fanfictions encontraram o espaço ideal para a publicação e a formação de
comunidades com outros fãs.
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O sociólogo André Lemos (2003, p.11) define cibercultura como “a cultura contemporânea
marcada pelas tecnologias digitais”. Da efusão comunicativa possibilitada por essa cultura
digital, surgem novos gêneros e possibilidades discursivas. As relações sociais também se
reconfiguram com a formação de comunidades virtuais.
Uma das leis da cibercultura expostas pelo sociólogo denomina-se “Liberação do pólo da
emissão”, que consiste na emergência de vozes e discursos que, anteriormente, seriam
reprimidos pela seleção de informação feita pela mídia de massa. Cabe ressaltar que, em sua
condição de incubadora de instrumentos de comunicação, a internet não pode ser entendida
como uma mídia de massa, já que as práticas dos utilizadores não estão ligadas a uma só
ação, como ocorreria, por exemplo, com a televisão. Quando alguém diz que “está na
internet”, há uma variedade enorme de possibilidades para essa ação, sem que haja um
vínculo estreito entre o instrumento e a prática (LEMOS, 2003).
Nesse viés, cabe destacar o caso do website/aplicativo Wattpad, criado em 2006. Seu acesso
se dá tanto pelo computador quanto pelo celular, por meio de um aplicativo gratuito. Para
publicar um livro, o autor não possui mais a obrigatoriedade de submeter o trabalho a uma
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editora. A ideia principal do Wattpad é criar um espaço virtual para a auto publicação,
permitindo que o autor seja também o editor de suas obras.
Esse exemplo acentua ainda mais a questão da liberação do pólo da emissão. A internet
ampliou o espaço e a emergência de vozes em relação à leitura e à escrita, bem como
propiciou a utilização de uma grande diversidade de recursos multimodais.
3. A INTERTEXTUALIDADE EM FANFICTIONS
Koch & Elias (2008, p.86) afirmam que a intertextualidade “ocorre quando, em um texto,
está inserido outro texto (intertexto) anteriormente produzido, que faz parte da memória
social de uma coletividade”. Nesse sentido, entende-se que todo texto produzido em um
determinado contexto social possui intertextualidade, já que o indivíduo constitui seus
discursos com as experiências e vivências que acumula ao longo da vida. Ou seja, o discurso
é constituído sempre com base em diversos discursos anteriores.
Por ser um tipo de texto que possui como referência uma determinada obra ou produto
cultural, a fanfiction pode ser entendida como um discurso intertextual por excelência. Nesse
tipo de escrita, muitos elementos dialogam intimamente com os elementos presentes no
texto original. Os personagens, situações e ambientes nela descritos são inspirados em um
texto anterior, que por sua vez, também recebeu influência de muitos outros textos. Assim,
tanto a leitura quanto a escrita das fanfictions (ou fanfics, na forma abreviada da palavra)
dependem de discursos anteriores internalizados pelo leitor ou escritor da obra.
Em alguns casos, o criador de fanfiction opta por tomar como base mais de uma obra para
compor a trama de sua história. Esse tipo de fanfic, na qual diferentes universos ficcionais se
misturam, é denominado Crossover, do inglês, cruzamento. A Figura 1, a seguir, retirada do
site Nyah!Fanfiction, exemplifica bem a fanfic Crossover, na qual a intertextualidade se
apresenta de forma ainda mais acentuada:
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A autora dessa fanfiction utilizou duas obras como base para a criação de seu texto: os livros
ou filmes de Crônicas de Nárnia e de Harry Potter. Na imagem que serve como capa e
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chamariz para sua história, a autora já explicita essa junção de universos ficcionais ao unir as
fotos dos atores que interpretam, nos filmes, os protagonistas dessas duas obras. Assim,
essa escritora propõe uma obra repleta de intertextualidade, já que sua história contém
personagens e cenários de dois universos ficcionais diferentes.
Segundo Fairclough (2008), o discurso é o uso da linguagem como forma de prática social e
não como atividade puramente individual. O discurso, nesse sentido, contribui para
estabelecer relações sociais entre as pessoas. Um de seus efeitos é a construção de
identidades sociais.
Fandom é uma palavra advinda do inglês “Fan Kingdom”, que significa “Reino dos Fãs”. Os
fandoms são comunidades de fãs de determinada obra literária, televisiva ou
cinematográfica. Os fãs unem-se nos fandoms movidos por um interesse em comum:
comentar, produzir e discutir tudo o que for relacionado ao objeto de sua admiração.
No discurso dos fãs, há diversas marcas identitárias que permitem que eles se reconheçam
entre si. Isso resulta na criação de uma linguagem própria, que dificilmente será plenamente
compreendida por pessoas externas ao fandom.
A formação dessas comunidades na internet permite uma interação social globalizada, veloz
e dinâmica. Em todos os sites de fanfictions, há um espaço destinado a comentários sobre os
textos publicados. Os escritores recebem constantemente opiniões, sugestões e críticas
sobre seu trabalho. Assim, há um constante diálogo virtual não apenas entre os fãs, mas
entre leitor e escritor. O caráter interativo dessas relações acentua-se ainda mais nas
chamadas “fanfics interativas”, conforme as figuras a seguir ilustram:
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Nesse tipo de fanfiction interativa, o leitor participa da história informando alguns dados,
como nome, cor dos olhos, nome do melhor amigo, etc. Essas informações constarão na
narrativa como se o próprio leitor fosse o personagem principal, o que faz com que ele se
sinta parte integrante da história.
Essas imagens também exemplificam como as marcas identitárias dos fandoms são
reveladas. O termo “filha de Eva” só pode ser compreendido por aqueles que possuam
alguma familiaridade com o universo ficcional criado por C.S Lewis nos livros da série
Crônicas de Nárnia. Há termos e expressões que os fãs usam entre si e que servem para
afirmá-los como indivíduos integrantes de uma determinada comunidade.
Cabe ressaltar a visão de Kress e Van Leewen (2006), defensores da Teoria Multimodal do
Discurso. Segundo eles, as novas tecnologias geraram o surgimento de uma linguagem
híbrida, composta por palavras, imagens, cores, sons e movimentos. Logo, o uso da
linguagem multimodal tende a se tornar dominante.
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A Gramática do Design Visual (GDV), elaborada por esses dois autores, possibilita um estudo
amplo da linguagem em seus variados modos. Gualberto (2016, p. 65) faz um estudo
objetivo da GDV, começando por uma explicação sucinta: “Nessa teoria, eles [Kress e Van
Leewen] consideram as imagens como estruturas sintáticas passíveis de análises assim como
é feito na linguagem verbal.” Nesse sentido, os autores trabalham com a ideia de que as
imagens produzem sentidos que podem ser analisados no discurso.
A Gramática do Design Visual pode ser muito útil no estudo das fanfictions, já que um
aspecto de muita notoriedade em relação a essas obras ficcionais é o caráter multimodal que
carregam. Ramalho e Silva (2012, p.8) trazem a seguinte definição: “Consideramos como
multimodalidade discursiva a coexistência de sistemas de signos imagéticos e recursos
linguísticos gráficos que integram um mesmo espaço textual, de modo a demandar
operações cognitivas complexas no corpo da mensagem.”. No universo virtual das
fanfictions, o domínio da linguagem multimodal pode ser facilmente constatado. No site
Wattpad, os leitores têm acesso a um tipo de estante virtual, com a exposição das capas de
cada fanfic. A responsabilidade de chamar a atenção do leitor recai, majoritariamente, sobre
o trabalho imagético que o autor exerceu na divulgação de sua história. Como não há
exposição de sinopses da história, é a imagem que convida, pelo menos em um primeiro
momento, os leitores a se interessarem por determinada fanfiction.
Na Gramática do Design Visual, “busca-se descobrir como a imagem se coloca para seu
observador – de forma imponente, convidativa, distante, superior, formal, pessoal, entre
outras.” (GUALBERTO, 2016, p.67). No caso das fanfictions, a imagem da capa é criada,
geralmente, pelo próprio autor da história, e busca aproximar o leitor do universo ficcional
que será apresentado, convidando-o à leitura. Assim, os autores-internautas utilizam fotos e
imagens que sejam representativas do universo ficcional no qual a história se ambienta, a
fim de atrair os fãs de determinado produto cultural, a exemplo da Figura 3:
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A fusão de palavras, imagens, cores, som e movimento é constante nesse tipo de produção
textual. Um recurso muito utilizado nas fanfictions é o de expor fotos que mostrem os
atributos físicos dos personagens que compõem as obras, conforme se pode observar nas
imagens a seguir:
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Quando o internauta clica no nome do protagonista (“Tis”), imediatamente aparece uma foto
que mostra como o escritor imaginou que seria a constituição física desse personagem. Esse
recurso imagético pode poupar o escritor de fazer longas descrições sobre o cenário e os
personagens de sua história, além de passar uma ideia exata daquilo que foi imaginado por
ele. Por isso, essa prática multimodal é amplamente utilizada nos websites. Outro claro
exemplo da presença da multimodalidade em fanfictions é a junção de texto escrito e
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música. Muitos autores optam por indicar ao leitor a música que devem escutar enquanto
leem a história. Assim, o sentido do texto é complementado por uma trilha sonora que lhe
acrescenta ainda mais possibilidades semióticas.
Para divulgar suas obras e chamar a atenção dos leitores, alguns escritores de fanfic
empenham-se em fazer vídeos que servirão como uma espécie de “trailer” para a história
que será narrada. Esses vídeos geralmente são expostos na plataforma de vídeos que possui
maior popularidade entre os internautas: o Youtube.
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Dessa forma, a união entre texto escrito, imagem, som e movimento origina um discurso
totalmente inserido no campo da multimodalidade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
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sociedade. O fenômeno fanfiction, apesar de não ser muito estudado no Brasil, é uma prática
social do discurso em ascensão que possui teor semiótico muito rico. As possibilidades de
estudo da linguagem nessa área são múltiplas, e esse trabalho visou apresentar algumas das
possibilidades de análise discursiva relacionadas a esse tema. É evidente que, com a
reconfiguração da sociedade em uma cibercultura, o ambiente escolar também foi
profundamente afetado. As novas tecnologias fundem-se ao cotidiano dos estudantes e
geram desafios para os professores. O ensino escolar, atualmente, deve capacitar o aluno a
registrar ideias e conceitos nas diversas mídias que fazem parte do cotidiano do jovem. É
necessário que o aluno saiba expor ideias com o uso dos diversos suportes tecnológicos
(SILVA, 2013). Desta forma, o estudo da fanfiction como prática digital de leitura e escrita
pode ser uma excelente ferramenta escolar para promover letramentos e incentivar a
produção e leitura de textos, sejam eles visuais, sonoros ou escritos. Observa-se que o
ensino de língua portuguesa nas escolas ainda reflete, de forma geral, certo engessamento,
além de priorizar o ensino de gêneros textuais específicos, como as redações dissertativas.
Trazer para a sala de aula a possibilidade de trabalhar com a escrita de ficção, considerando
sua inserção no âmbito da intertextualidade, é algo que pode contribuir grandemente para
uma aprendizagem mais dinâmica, permitindo uma educação contextualizada com o modo
de vida dos estudantes. Assim, urge a necessidade de que o estudo das fanfictions seja
ampliado e inserido nas práticas sociais escolares. No vasto universo das ficções de fãs, há
ainda muitos aspectos a serem explorados.
REFERÊNCIAS
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KRESS, G.; VAN LEEUWEN, T. Reading images: The Grammar of Visual Design. London:
Routledge, 2006.
LEMOS, André; CUNHA, Paulo (orgs). Olhares sobre a Cibercultura. Sulina, Porto Alegre, 2003;
pp. 11-23.
SILVA, Denize Elena Garcia & RAMALHO, Viviane. Discurso, imagem e texto verbal: uma
perspectiva crítica da multimodalidade. Revista Latinoamericana de Estudios del Discurso, v.
(1), 2012, p. 7 – 29.
SILVA, Patricia Konder Lins e. A escola na era digital. In: Vivendo esse mundo digital:
impactos na sáude, na educação e nos comportamentos sociais. Porto Alegre: Artmed, 2013.
p 137-145.
VARGAS, Maria Lúcia Bandeira. O fenômeno fanfiction: novas leituras e escrituras em meio
eletrônico. Passo Fundo: Universidade de Passo Fundo, 2005.
VIEIRA, Josenia Antunes; PAGLIUCHI, Regina Célia da Silveira; MAGALHÃES, Célia Maria et al.
Olhares em análise de discurso crítica. Editora: Josenia Antunes Vieira. – Brasília: CEPADIC,
2009. Disponível em: www.cepadic.com, 2009.
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Funcional, Análise de Discurso Crítica, Semiótica Social. Josenia Vieira e Carminda Silvestre
(org.). Brasília: CEPADIC, 2015.
[1]
Mestranda em Linguística.
[2]
Orientadora- Doutorado em Lingüística; Mestrado em Lingüística; Graduação em
Letras/Português.
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