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LITERATURA E NOVAS TECNOLOGIAS E ALGUMAS

CONSIDERAÇÕES SOBRE O ENSINO

Tiago Hermano Breunig

A relação da literatura com a tecnologia data de seu aparecimento ou, ao menos, de sua
compreensão enquanto artefato da escrita. Afinal, a concepção de literatura participa de um
logocentrismo ou de um etnocentrismo que, como diria Jacques Derrida (2011, p. 3), “em todos os
tempos e lugares, comandou o conceito da escritura”, permanecendo uma concepção estreitamente
relacionada com a civilização europeia. A tecnologia da escrita, que a define ao menos
etimologicamente, bem como seus suportes materiais e seus processos de produção, circulação e
recepção sempre influenciaram ou impactaram, de algum modo, a literatura. O advento das novas
tecnologias (TIC, NTIC, DTIC) implica, da mesma maneira, transformações no campo ou no sistema
da literatura.

Hoje, os meios digitais nos impelem a repensar o meio em que a literatura e a leitura se
oferecem, transformando as relações entre autor e leitor, bem como as concepções de autoria e leitura.
Ainda em meados dos anos 1930, Walter Benjamin (1994, p. 166) observava que as tecnologias de
reprodutibilidade da arte afetam a unicidade das obras de arte, ou seja, a sua autenticidade, definida
pelo aqui e agora do original. Nesse sentido, e ao mesmo tempo que constata a historicidade do nosso
aparato sensorial, ou seja, que as transformações das tecnologias transformam nossa percepção,
Benjamin salienta que

a reprodução técnica da obra de arte representa um processo novo, que se vem


desenvolvendo na história intermitentemente, através de saltos separados por longos
intervalos, mas com intensidade crescente. Com a xilogravura, o desenho tornou-se
pela primeira vez tecnicamente reprodutível, muito antes que a imprensa prestasse o
mesmo serviço para a palavra escrita. Conhecemos as gigantescas transformações
provocadas pela imprensa – a reprodução técnica da escrita. Mas a imprensa
representa apenas um caso especial, embora de importância decisiva, de um processo
histórico mais amplo.

De fato, como afirma Benjamin, “conhecemos as gigantescas transformações provocadas pela


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imprensa”, como conhecemos as transformações sofridas pela literatura desde o advento do cinema
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e de novos meios de comunicação, como explicitam as vanguardas. E, com efeito, conforme a


“intensidade crescente” do desenvolvimento da reprodução e, consequentemente, das transformações
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na literatura e nas artes em geral, desde o ensaio de Benjamin, muito mais profundas que as alterações
de nossa percepção da literatura, das artes e das suas (re)produções provocadas pela imprensa foram
as transformações provocadas pela rede e pelas novas tecnologias, o que nos exige pensar as relações
entre a literatura e as novas tecnologias consolidadas em conceitos como literatura digital.

Se, como vimos, o advento das novas tecnologias (TIC, NTIC, DTIC) implica transformações
no campo ou no sistema da literatura, um exemplo de transformação na literatura provocado pelas
novas tecnologias consiste na literatura digital que, segundo Hayles (2009, p. 20),

não é aquela meramente ambientada em um espaço virtual ou que tenha sido


digitalizada; ela precisa ter sido desenvolvida em meio digital, ser um objeto digital
de primeira geração criado pelo uso do computador e (geralmente) lido em uma tela
de computador.

Para Dias (2012, p. 101), por sua vez, a literatura digital se caracteriza tanto por “promover
interatividade e romper com a linearidade dos textos” quanto por “utilizar em sua composição os
recursos oferecidos pela tecnologia”, tais como “sons, hiperlinks, imagens – em movimento ou não”.
A variedade da literatura da esfera ou suporte digital que, com a mediação das novas tecnologias,
expande a compreensão de leitura e escrita, inclui exemplos como poesia hipertextual, minicontos,
fanfictions, hipercontos, videopoesia, livro-jogo, entre outros que, em comum, apresentam uma nova
estruturação, denominada hipertextual.

Fig. 1: Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta
Compreendido como uma poesia audiovisual com aspecto de ensaio, o videopoema de Alberto Pucheu emprega imagens,
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sons e palavras para refletir sobre o campo da literatura.

O livro, como observa Jobim (2009, p. 62), consiste igualmente em uma tecnologia. Desde o
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rolo ao arquivo digital, argumenta, lidamos com tecnologias diferentes de processamento de texto,
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que, segundo o autor, se transformam de acordo com os modos de ler e de escrever. Nesse sentido,
Santos (2003, p. 21-22) constata que

o que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o meio
eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa
contaminar pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade
que foram, sempre, as do próprio texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no
livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de percursos e na
heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.).

Com efeito, a literatura e a leitura se relacionam com as transformações sofridas pela tecnologia
do livro. Como vimos, Hayles (2009) define a literatura digital como a literatura concebida no meio
digital, que produz outros modelos de literatura, caracterizados, muitas vezes, pelas diferentes formas
que o leitor os vivencia, como a “ficção de hipertexto” e a “ficção interativa”, a qual apresenta
elementos de jogo mais acentuados. Com o hipertexto, como acentua Eco (2003, p. 18), nasce “uma
escritura inventiva livre”, uma vez que se encontram na rede “programas com os quais se pode
escrever coletivamente, participando de narrativas cujo andamento pode ser modificado ao infinito.”

Fig. 2. To be continued
Concurso de escrita coletiva, com a colaboração de leitores, de um romance ilustrado na Internet, iniciado na Espanha em
janeiro de 2011.

No Brasil, uma literatura digital produzida com os aspectos do hipertexto, possibilitados pelas
novas tecnologias de informação e comunicação, descritos acima, como o uso de recursos oferecidos
pela tecnologia e a interatividade, se encontra disponibilizada na Internet para diferentes perfis de
leitores.
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Fig. 3: Ciberpoesia
Os hipertextos infantis de Capparelli e Gruszynski, autores de um livro impresso de poesia visual, incluem poesias visuais
e ciberpoemas, com os quais o leitor interage por meio de elementos visuais dispostos na tela.

Fig. 4: Revista digital Arteria 8


Organizada por Khouri e Nunes, a revista digital disponibiliza poemas envolvendo palavras, imagens e sons, com
diferentes possibilidades de interação pelo leitor, elaborados por poetas como Augusto e Haroldo de Campos, Pignatari,
Grünewald, Glauco Mattoso, Arnaldo Antunes, entre outros.

Se atualmente a literatura, especialmente a “ficção interativa”, a influenciada pelos jogos,


acentua a interatividade, os jogos, da mesma maneira, encontram na literatura uma fonte, a exemplo
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de Dear Esther, que explicita suas relações com a literatura:


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Fig. 5: Dear Esther

As referidas transformações e, especialmente, suas implicações para o leitor fundamentam,


muitas vezes, a argumentação a favor do emprego das novas tecnologias em sala de aula, baseadas
na necessidade de inclusão, seja digital, seja social. Assim, em relação ao papel da escola, o emprego
das novas tecnologias em sala de aula e, consequentemente, suas implicações para a literatura e a
leitura de literatura aparece como uma forma de aprofundar o processo de ensino e aprendizagem. De
acordo com Dias (2012, p. 102), por exemplo,

as possibilidades oferecidas por esses gêneros digitais contemporâneos, com uma


estrutura narrativa multilinear, além de ampliar a participação do leitor na produção
de sentidos, convidam o leitor a revisitar, ou a resgatar, a autonomia no processo de
criação da tessitura textual e, ainda, a interagir com o hipertexto. Esse processo vai
além da interação homem e máquina e é ampliado para a interação homem e
conteúdo, homem e narrativa, homem e hipertexto.

Novas tecnologias e ensino

Com a atual inserção das Tecnologias Digitais de Informação e Comunicação (TDIC) no


cotidiano, a apropriação das novas tecnologias aparece a um determinado olhar como uma função da
escola e um recurso para o processo de ensino e aprendizagem. Afinal, compreender as diferentes
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linguagens constitui um dos objetivos da escola, bem como desenvolver a leitura e a escrita nas mais
diferentes modalidades de seus usos sociais.
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Pierre Lévy (1999, p. 24), ao conceituar a cibercultura em que estamos imersos, compreende as
tecnologias como produto da sociedade e da cultura, da mesma maneira que a sociedade e a cultura
representam produtos da tecnologia, cujo uso intensivo pelos homens “constitui a humanidade
enquanto tal”. Em linhas gerais, a cibercultura consiste na cultura mediada pelas tecnologias digitais
em rede, em estreita relação com a comunicação e, por conseguinte, com a linguagem, constitutivas
da noção de cultura relacionada com a rede. O termo cibercultura, segundo o autor, define uma nova
forma de comunicação gerada pela interconexão de computadores ao redor do mundo.

Nesse sentido, conforme Lemos (2003), a cibercultura se caracteriza pela relação que se
estabelece com o aparecimento de novas formas sociais e das novas tecnologias digitais, resultante
da evolução da tecnologia moderna. Ambos os autores certamente concordariam que as novas
tecnologias de informação e comunicação trazem uma nova configuração cultural e social, que surge
a partir do que se compreende como os fundamentos primordiais da cibercultura: liberação do polo
de emissão, cocriação em rede e reconfiguração. Derivado da cibercultura, o ciberespaço se define,
por sua vez, como um lugar que oferece interatividade, construção de conhecimento e informação
colaborativos. Para Lévy (1999 apud BUSARELLO; BIEGING; ULBRICHT, 2015, p. 70),

ciberespaço é “o espaço de comunicação aberto pela interconexão mundial dos


computadores e das memórias dos computadores”. Esse espaço virtual, suporta
tecnologias intelectuais que amplificam, exteriorizam e modificam numerosas
funções cognitivas humanas: memória (banco de dados, hiperdocumentos, arquivos
digitais de todos os tipos), imaginação (simulações), percepção (sensores digitais,
telepresença, realidades virtuais), raciocínios (inteligência artificial, modelização de
fenômenos complexos).

Assim como reestruturam significativamente a sociedade e a literatura produzida em seu seio,


as novas tecnologias influenciam igualmente a educação de forma geral e, consequentemente, o
ensino de literatura. Como observa Pinto (2004, p. 2),

Há uma disseminação geral das tecnologias da informação e comunicação; elas estão


presentes e influenciam a vida social. Neste sentido não se pode negar o
relacionamento entre o conhecimento no campo da informática e os demais campos
do saber humano. Trata-se de uma nova forma de linguagem e de comunicação, um
novo código: a linguagem digital.

Com o seu advento, pois, a linguagem digital contamina a literatura, na medida em que o texto,
produzido ou reproduzido em outra esfera e em outro suporte, assume, como vimos, outro aspecto,
com maior interação e maior associação com outros meios, por exemplo, o que modifica a produção,
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a recepção e a circulação da literatura e, por conseguinte, o ensino de literatura, cujo conceito mesmo
se expande.
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Fig. 6: Movimento Literatura Digital


O movimento que se afirma como permanente em defesa da leitura e da literatura na era digital, defende uma literatura
que, pelos meios digitais, pode ter um papel fundamental para a educação e a sociedade, substituindo o conceito de livro
pelo conceito de obra, tal como o conhecemos por Umberto Eco.

A indissociabilidade entre o social, o cultural e a tecnologia, nas perspectivas descritas acima


acerca da cibercultura, redunda na compreensão do ciberespaço como potencialidade de infinitas
ações interativas de comunicação, de sociabilidade, de reconfiguração e de autorias, cuja linguagem
possui suas particularidades e requer, para a sua recepção e (re)produção, habilidade comunicativa
em sua esfera. Para tanto, e diante da relação entre a tecnologia e a educação que se depreende das
referidas perspectivas, a educação na era computacional se recontextualiza em torno da construção
do conhecimento por meio dos processamentos informacionais, interação, compartilhamento e
colaboração, atendendo aos interesses de uma demanda de plano internacional pelas relações entre a
tecnologia e a educação.

Mas, ao que nos parece, tais perspectivas dificilmente superam um otimismo demasiado com
as possibilidades oferecidas pela tecnologia, elevada a uma moderna mitologia, e ignoram, muitas
vezes, a lição de Benjamin (1994) ao entrever os riscos que a tecnologia pode oferecer a uma
sociedade insuficientemente madura, a uma sociedade cujo desenvolvimento humano não acompanha
o desenvolvimento da tecnologia, insistentemente corroborada por intelectuais como Adorno e
Horkheimer, por exemplo, e comprovada pela realidade social. Quando o uso do computador e das
novas tecnologias de informação e comunicação favorece a razão calculadora, o desenvolvimento da
tecnologia se converte em desenvolvimento da “maquinaria da dominação”, e de uma dominação
consentida no estado atual de desenvolvimento do capitalismo, que reduz os sujeitos a “objetos do
sistema administrativo, que preforma todos os setores da vida moderna, inclusive a linguagem e a
percepção”, como observam Adorno e Horkheimer (1985, p. 43), promovendo a degradação humana
em nome de um progresso que se revela, no final das contas, um regresso, tantas vezes criticada pela
literatura, inclusive a literatura digital.
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Fig. 7: Entre rinhas de cachorros e porcos abatidos


O primeiro folhetim pulp da Internet brasileira, de Ana Paula Maia, publicado posteriormente em livro impresso. Ao
abordar a animalização do homem pelo trabalho, as novelas de Ana Paula Maia retratam a degradação humana nas
sociedades capitalistas.

A escola e as novas tecnologias

Conforme a concepção de uma formação humana integral como projeto educacional, como
estipula a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), quanto maior a integração
proporcionada pela educação formal, escolar, maior a possibilidade de formação de cidadãos com
autonomia intelectual e capacidade de comunicação e de transformação da sociedade. Ao menos
assim assume a opinião comum, e com razão, mas o que garante que a integração pelas novas
tecnologias contribua para uma formação humana integral? Certamente não o uso da tecnologia em
si mesma.

Como separar o discurso da necessidade de uma formação para a tecnologia, de uma educação
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para a inclusão digital, dos interesses do mercado, seja pelo impacto no consumo, seja pela formação
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para o mercado de trabalho? As novas tecnologias promovem a prometida inclusão? Diante dos
interesses das grandes corporações e da inocuidade do Estado em defender os interesses da população
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e desenvolver um modelo com potencial de democratização, sobretudo por meio de uma construção
coletiva a partir da sociedade civil, a inclusão digital visa apenas ao consumo em detrimento da
cidadania e da democracia. Ademais, o acesso a uma literatura disponibilizada na rede depende do
acesso a recursos, desde os aparelhos aos aplicativos, que não se encontram sob propriedade de todos,
e os programas de ampliação da penetração são insuficientes para abrir as portas da biblioteca da
literatura digital.

A partir da concepção sociointeracionista de ensino, para a qual o processo de ensino e


aprendizagem deve ser significativo e ter uma finalidade, e corroborando a Declaração de Grünwald
Sobre a Educação para os Media, de 1982, e a Declaração de Alexandria, de 2005, que insistem no
direito a uma alfabetização para as novas tecnologias, os documentos oficias da educação brasileira
reiteram a necessidade de tal formação. Os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), por exemplo,
defendem que:

É indiscutível a necessidade crescente do uso de computadores pelos alunos como


instrumento de aprendizagem escolar, para que possam estar atualizados em relação
às novas tecnologias da informação e se instrumentalizarem para as demandas
sociais presentes e futuras (BRASIL, 1997, p. 67).

Para tanto, as Orientações Educacionais Complementares aos Parâmetros Curriculares


Nacionais (PCN+), ao sugerirem que o uso das tecnologias deve ser pensado como um instrumento
do processo de ensino e aprendizagem, consideram que:

Ter ou não acesso à informação processada e armazenada pelos meios tecnológicos,


especificamente o computador, pode se constituir em elemento de identidade ou de
discriminação na nova sociedade que se organiza, já que a informática encontra-se
presente na nossa vida cotidiana e inclui-la como componente curricular significa
preparar o estudante para o mundo tecnológico e científico, aproximando a escola
do mundo real e contextualizado (PCNEM, p. 186). Supõe-se, portanto, que os
currículos atuais devem prever o desenvolvimento de competências e habilidade
específicas da área de tecnologia – relacionadas principalmente às tecnologias de
informação e comunicação –, para obtenção, seleção e utilização de informações por
meio do computador. Paralelamente a esse processo, deve-se sensibilizar o aluno
para as alterações decorrentes da presença da tecnologia da informação e da
comunicação no cotidiano e no próprio processo de construção do conhecimento
(BRASIL, 2002, p. 208).

A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reitera o uso das novas tecnologias nas diferentes
etapas da educação, considerado relevante para a compreensão e atuação no mundo. E, assim como
os documentos anteriormente citados, a Base Nacional Comum Curricular insiste que o uso das
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tecnologias deve ser um instrumento que contribua para a aprendizagem:


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Numa perspectiva crítica, as tecnologias da informação e comunicação são


instrumentos de mediação da aprendizagem e as escolas, especialmente os
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professores, devem contribuir para que o estudante aprenda a obter, transmitir,


analisar e selecionar informações (BRASIL, 2015, p.50).

Afinal, a escola se encontra no seio de uma sociedade mediada pelos meios de comunicação
digital e tem um papel fundamental na formação para os meios de informação e comunicação que,
inclusive, alteram a percepção do mundo, bem como transformam as formas de interação, acentuando,
ainda, a reconfiguração das metodologias de ensino e das posições do professor e do aluno.

Um dos pilares da educação no Brasil, Paulo Freire, em sua concepção de um ensino para a
autonomia, concorda com o uso da tecnologia e dos meios de comunicação, mas em nome da
cidadania e da criticidade, considerando a impossibilidade de neutralidade nos processos de
comunicação. Assim, compreendidas como um recurso para autonomia, as novas tecnologias de
informação e comunicação certamente estimulam o processo de ensino e aprendizagem, desde que
dotado de criticidade e, para tanto, as garantias se depositam ainda no professor, o mediador de fato
em meio aos meios de comunicação e informação.

E a literatura, a despeito de um discurso humanizador que perdura nos discursos da educação,


como comprovam os documentos oficiais, contribui para uma formação cognitiva dotada de
criticidade, uma compreensão profunda da realidade e da linguagem que atua na intermediação com
a realidade, contribuição para a qual a literatura digital potencialmente oferece uma colaboração
fundamental, na medida em que o contato com os mecanismos de (re)produção e recepção que afetam
a percepção, condicionada pelos meios e suas respectivas tecnologias, explicita a mediação, podendo,
por meio do distanciamento ou estranhamento, atuar contra o condicionamento da percepção.

Do letramento ao eletramento ou multiletramentos

Se o letramentos e caracteriza como um desempenho cultural e social que, mais do que


dominaras linguagens e a capacidade de ler, requer a compreensão e a produção de textos nas mais
diversas situações, incluindo as novas linguagens produzidas no contexto das novas tecnologias,
reconfigurando os processos de produção, circulação e recepção, em geral mais interativos, o conceito
de letramentos e estende, assim, para o conceito de multiletramentos ou mesmo de e letramento, como
sugere Gregory Ulmer, ao se referir a diferentes habilidades de leitura, de acordo com os meios pelos
quais ela se realiza.
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De acordo com Rojo (2012), enquanto o conceito de letramento aponta para a variedade de
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atividades letradas, o conceito de multiletramentos aponta para dois tipos importantes de


multiplicidade presentes na sociedade atual: a multiplicidade cultural das populações e a
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multiplicidade dos sistemas de significação constitutivos dos textos por meio dos quais a sociedades
e informa e se comunica. Esses novos textos assumem o aspecto de hipertextos que se relacionam e
se efetivam hipermidiaticamente, ou seja, pela fusão de meios sem linearidade em um ambiente
computadorizado. Rojo (2012, p. 23) aponta alguns aspectos do hipertexto:

eles são interativos; mais que isso, eles são colaborativos; eles fraturam e
transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de
propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos (verbais ou não));
eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas).

O conceito de hipertexto implica a fragmentação e o abandono da linearidade que caracteriza a


leitura tradicional de livro impresso, bem como a capacidade de o texto armazenar informações. A
partir do suporte digital, o hipertexto adquire uma nova forma de estruturação textual que se
caracteriza por pontos de intersecção que ao serem acessados remetem a conexões que compõem um
percurso de leitura que salta de um ponto ao outro. Lemke (2010, p. 16) descreve o funcionamento
do hipertexto apontando para a hibridação de linguagens e meios, na medida em que os textos online
se tornam digitais (em oposição a imagens em bitmap), permitindo a indexação e referenciação com
outros textos. O texto, agora, conclui o autor, constitui simultaneamente um banco de dados.

Com relação aos multiletramentos, decorrentes do advento das novas tecnologias, e suas
implicações para o ensino e sua tarefa de inclusão, as Orientações curriculares para o ensino médio,
Linguagens, códigos e suas tecnologias postulam

que a escola que se pretende efetivamente inclusiva e aberta à diversidade não pode
ater-se ao letramento da letra, mas deve, isso sim, abrir-se para os múltiplos
letramentos, que, envolvendo uma enorme variação de mídias, constroem-se de
forma multissemiótica e híbrida – por exemplo, nos hipertextos na imprensa ou na
internet, por vídeos e filmes, etc. Reitera-se que essa postura é condição para
confrontar o aluno com práticas de linguagem que o levem a formar-se para o mundo
do trabalho e para a cidadania com respeito pelas diferenças no modo de agir e de
fazer sentido (BRASIL, 2006, p. 29).

Para tanto, o mesmo documento oficial sugere, a seguir,

que o aluno tome a língua escrita e oral, bem como outros sistemas semióticos, como
objeto de ensino/estudo/aprendizagem, numa abordagem que envolva ora ações
metalinguísticas (de descrição e reflexão sistemática sobre aspectos linguísticos), ora
ações epilinguísticas (de reflexão sobre o uso de um dado recurso linguístico, no
processo mesmo de enunciação e no interior da prática em que ele se dá), conforme
o propósito e a natureza da investigação empreendida pelo aluno e dos saberes a
serem construídos (BRASIL, 2006, p. 33).
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Como sabemos, os documentos oficiais insistem em um processo de ensino e aprendizagem


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pautado no emprego das mais diferentes formas de enunciados das mais diferentes esferas sociais,
visando a apropriação da variedade com que circulam socialmente e privilegiando, para tanto, os
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multiletramentos. Nesse sentido, a interatividade possibilitada pelo hipertexto se coaduna com a


referida concepção de ensino e aprendizagem. Uma vez que se espera da escola, compreendida como
um local de construção e socialização do saber, a criação das condições para que os alunos
desenvolvam sua autonomia, as novas tecnologias se oferecem como um recurso importante para o
processo de ensino e aprendizagem fundamentado na interação.

De acordo com os Parâmetros Curriculares Nacionais (1998), “interagir pela linguagem


significa realizar uma atividade discursiva”, de modo que o objeto de ensino se fundamenta, como
sabemos, em conceitos de Bakhtin, malgrado alguma confusão entre o discursivo e o textual nos
documentos oficiais:

Todo texto se organiza dentro de determinado gênero em função das intenções


comunicativas, como parte das condições de produção dos discursos, as quais geram
usos sociais que os determinam. Os gêneros são, portanto, determinados
historicamente, constituindo formas relativamente estáveis de enunciados,
disponíveis na cultura (BRASIL, 1998, p. 21).

Precisamente pela estabilidade relativa das formas de enunciados, historicamente determinados,


que organizam os textos, a literatura sofre transformações com as novas tecnologias, especialmente
em suas condições de produção, recepção e circulação (ou as contribuições conceituais bakhtinianas
em que se fundamenta a concepção interacionista de ensino e aprendizagem, eventualmente
deslocadas de sua concepção discursiva para uma acepção textual, simplesmente se tornaram
obsoletas para a literatura do presente). Atualmente, as novas tecnologias potencializam o surgimento
de novas organizações textuais, amparadas por diferentes tecnologias, meios e suportes, para textos
multimodais que alteram os modos de ler, promovendo o surgimento de uma nova literatura, dita
digital, a adaptação da literatura impressa para diferentes meios e linguagens, ou simplesmente a sua
reprodução em meio digital.

Supondo, por fim, que o universo digital inclua, de fato, os alunos, a escola e os professores
podem partir dos conhecimentos dos alunos para, assim, ampliar o conhecimento das diferentes
formas de linguagens permeadas pelas tecnologias, especialmente a literatura, tanto a tradicional
quanto a digital, de modo a promover a inclusão não apenas digital mas cultural. Afinal, como
antecipa Benjamin (1994, p. 174), diante da tecnologia “a mais emancipada que jamais existiu” que
“se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza” que, como constata,
o homem criou e não mais controla, “somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira”.
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E a arte, argumenta Benjamin priorizando o cinema, oferece a possibilidade de tal aprendizado, e um


dos papeis da literatura consiste precisamente em exercitar as novas percepções e reações exigidas
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pela tecnologia cuja função cresce cada vez mais em nossa vida cotidiana, mas no sentido, como
espera Benjamin, de fazer da tecnologia “o objeto das inervações humanas”.
Litteris.com: Literatura e suas relações com a Tecnologia da Informação Dílson César Devides (Org.)

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