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A relação da literatura com a tecnologia data de seu aparecimento ou, ao menos, de sua
compreensão enquanto artefato da escrita. Afinal, a concepção de literatura participa de um
logocentrismo ou de um etnocentrismo que, como diria Jacques Derrida (2011, p. 3), “em todos os
tempos e lugares, comandou o conceito da escritura”, permanecendo uma concepção estreitamente
relacionada com a civilização europeia. A tecnologia da escrita, que a define ao menos
etimologicamente, bem como seus suportes materiais e seus processos de produção, circulação e
recepção sempre influenciaram ou impactaram, de algum modo, a literatura. O advento das novas
tecnologias (TIC, NTIC, DTIC) implica, da mesma maneira, transformações no campo ou no sistema
da literatura.
Hoje, os meios digitais nos impelem a repensar o meio em que a literatura e a leitura se
oferecem, transformando as relações entre autor e leitor, bem como as concepções de autoria e leitura.
Ainda em meados dos anos 1930, Walter Benjamin (1994, p. 166) observava que as tecnologias de
reprodutibilidade da arte afetam a unicidade das obras de arte, ou seja, a sua autenticidade, definida
pelo aqui e agora do original. Nesse sentido, e ao mesmo tempo que constata a historicidade do nosso
aparato sensorial, ou seja, que as transformações das tecnologias transformam nossa percepção,
Benjamin salienta que
imprensa”, como conhecemos as transformações sofridas pela literatura desde o advento do cinema
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na literatura e nas artes em geral, desde o ensaio de Benjamin, muito mais profundas que as alterações
de nossa percepção da literatura, das artes e das suas (re)produções provocadas pela imprensa foram
as transformações provocadas pela rede e pelas novas tecnologias, o que nos exige pensar as relações
entre a literatura e as novas tecnologias consolidadas em conceitos como literatura digital.
Se, como vimos, o advento das novas tecnologias (TIC, NTIC, DTIC) implica transformações
no campo ou no sistema da literatura, um exemplo de transformação na literatura provocado pelas
novas tecnologias consiste na literatura digital que, segundo Hayles (2009, p. 20),
Para Dias (2012, p. 101), por sua vez, a literatura digital se caracteriza tanto por “promover
interatividade e romper com a linearidade dos textos” quanto por “utilizar em sua composição os
recursos oferecidos pela tecnologia”, tais como “sons, hiperlinks, imagens – em movimento ou não”.
A variedade da literatura da esfera ou suporte digital que, com a mediação das novas tecnologias,
expande a compreensão de leitura e escrita, inclui exemplos como poesia hipertextual, minicontos,
fanfictions, hipercontos, videopoesia, livro-jogo, entre outros que, em comum, apresentam uma nova
estruturação, denominada hipertextual.
Fig. 1: Arranjo em busca de um paradigma para a relação entre o crítico literário e o poeta
Compreendido como uma poesia audiovisual com aspecto de ensaio, o videopoema de Alberto Pucheu emprega imagens,
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O livro, como observa Jobim (2009, p. 62), consiste igualmente em uma tecnologia. Desde o
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rolo ao arquivo digital, argumenta, lidamos com tecnologias diferentes de processamento de texto,
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que, segundo o autor, se transformam de acordo com os modos de ler e de escrever. Nesse sentido,
Santos (2003, p. 21-22) constata que
o que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o meio
eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa
contaminar pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade
que foram, sempre, as do próprio texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no
livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de percursos e na
heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.).
Com efeito, a literatura e a leitura se relacionam com as transformações sofridas pela tecnologia
do livro. Como vimos, Hayles (2009) define a literatura digital como a literatura concebida no meio
digital, que produz outros modelos de literatura, caracterizados, muitas vezes, pelas diferentes formas
que o leitor os vivencia, como a “ficção de hipertexto” e a “ficção interativa”, a qual apresenta
elementos de jogo mais acentuados. Com o hipertexto, como acentua Eco (2003, p. 18), nasce “uma
escritura inventiva livre”, uma vez que se encontram na rede “programas com os quais se pode
escrever coletivamente, participando de narrativas cujo andamento pode ser modificado ao infinito.”
Fig. 2. To be continued
Concurso de escrita coletiva, com a colaboração de leitores, de um romance ilustrado na Internet, iniciado na Espanha em
janeiro de 2011.
No Brasil, uma literatura digital produzida com os aspectos do hipertexto, possibilitados pelas
novas tecnologias de informação e comunicação, descritos acima, como o uso de recursos oferecidos
pela tecnologia e a interatividade, se encontra disponibilizada na Internet para diferentes perfis de
leitores.
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Literatura e novas tecnologias e algumas considerações sobre o ensino Tiago Hermano Breunig
Fig. 3: Ciberpoesia
Os hipertextos infantis de Capparelli e Gruszynski, autores de um livro impresso de poesia visual, incluem poesias visuais
e ciberpoemas, com os quais o leitor interage por meio de elementos visuais dispostos na tela.
linguagens constitui um dos objetivos da escola, bem como desenvolver a leitura e a escrita nas mais
diferentes modalidades de seus usos sociais.
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Literatura e novas tecnologias e algumas considerações sobre o ensino Tiago Hermano Breunig
Pierre Lévy (1999, p. 24), ao conceituar a cibercultura em que estamos imersos, compreende as
tecnologias como produto da sociedade e da cultura, da mesma maneira que a sociedade e a cultura
representam produtos da tecnologia, cujo uso intensivo pelos homens “constitui a humanidade
enquanto tal”. Em linhas gerais, a cibercultura consiste na cultura mediada pelas tecnologias digitais
em rede, em estreita relação com a comunicação e, por conseguinte, com a linguagem, constitutivas
da noção de cultura relacionada com a rede. O termo cibercultura, segundo o autor, define uma nova
forma de comunicação gerada pela interconexão de computadores ao redor do mundo.
Nesse sentido, conforme Lemos (2003), a cibercultura se caracteriza pela relação que se
estabelece com o aparecimento de novas formas sociais e das novas tecnologias digitais, resultante
da evolução da tecnologia moderna. Ambos os autores certamente concordariam que as novas
tecnologias de informação e comunicação trazem uma nova configuração cultural e social, que surge
a partir do que se compreende como os fundamentos primordiais da cibercultura: liberação do polo
de emissão, cocriação em rede e reconfiguração. Derivado da cibercultura, o ciberespaço se define,
por sua vez, como um lugar que oferece interatividade, construção de conhecimento e informação
colaborativos. Para Lévy (1999 apud BUSARELLO; BIEGING; ULBRICHT, 2015, p. 70),
Com o seu advento, pois, a linguagem digital contamina a literatura, na medida em que o texto,
produzido ou reproduzido em outra esfera e em outro suporte, assume, como vimos, outro aspecto,
com maior interação e maior associação com outros meios, por exemplo, o que modifica a produção,
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a recepção e a circulação da literatura e, por conseguinte, o ensino de literatura, cujo conceito mesmo
se expande.
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Mas, ao que nos parece, tais perspectivas dificilmente superam um otimismo demasiado com
as possibilidades oferecidas pela tecnologia, elevada a uma moderna mitologia, e ignoram, muitas
vezes, a lição de Benjamin (1994) ao entrever os riscos que a tecnologia pode oferecer a uma
sociedade insuficientemente madura, a uma sociedade cujo desenvolvimento humano não acompanha
o desenvolvimento da tecnologia, insistentemente corroborada por intelectuais como Adorno e
Horkheimer, por exemplo, e comprovada pela realidade social. Quando o uso do computador e das
novas tecnologias de informação e comunicação favorece a razão calculadora, o desenvolvimento da
tecnologia se converte em desenvolvimento da “maquinaria da dominação”, e de uma dominação
consentida no estado atual de desenvolvimento do capitalismo, que reduz os sujeitos a “objetos do
sistema administrativo, que preforma todos os setores da vida moderna, inclusive a linguagem e a
percepção”, como observam Adorno e Horkheimer (1985, p. 43), promovendo a degradação humana
em nome de um progresso que se revela, no final das contas, um regresso, tantas vezes criticada pela
literatura, inclusive a literatura digital.
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Literatura e novas tecnologias e algumas considerações sobre o ensino Tiago Hermano Breunig
Conforme a concepção de uma formação humana integral como projeto educacional, como
estipula a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB), quanto maior a integração
proporcionada pela educação formal, escolar, maior a possibilidade de formação de cidadãos com
autonomia intelectual e capacidade de comunicação e de transformação da sociedade. Ao menos
assim assume a opinião comum, e com razão, mas o que garante que a integração pelas novas
tecnologias contribua para uma formação humana integral? Certamente não o uso da tecnologia em
si mesma.
Como separar o discurso da necessidade de uma formação para a tecnologia, de uma educação
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para a inclusão digital, dos interesses do mercado, seja pelo impacto no consumo, seja pela formação
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para o mercado de trabalho? As novas tecnologias promovem a prometida inclusão? Diante dos
interesses das grandes corporações e da inocuidade do Estado em defender os interesses da população
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e desenvolver um modelo com potencial de democratização, sobretudo por meio de uma construção
coletiva a partir da sociedade civil, a inclusão digital visa apenas ao consumo em detrimento da
cidadania e da democracia. Ademais, o acesso a uma literatura disponibilizada na rede depende do
acesso a recursos, desde os aparelhos aos aplicativos, que não se encontram sob propriedade de todos,
e os programas de ampliação da penetração são insuficientes para abrir as portas da biblioteca da
literatura digital.
A Base Nacional Comum Curricular (BNCC) reitera o uso das novas tecnologias nas diferentes
etapas da educação, considerado relevante para a compreensão e atuação no mundo. E, assim como
os documentos anteriormente citados, a Base Nacional Comum Curricular insiste que o uso das
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Afinal, a escola se encontra no seio de uma sociedade mediada pelos meios de comunicação
digital e tem um papel fundamental na formação para os meios de informação e comunicação que,
inclusive, alteram a percepção do mundo, bem como transformam as formas de interação, acentuando,
ainda, a reconfiguração das metodologias de ensino e das posições do professor e do aluno.
Um dos pilares da educação no Brasil, Paulo Freire, em sua concepção de um ensino para a
autonomia, concorda com o uso da tecnologia e dos meios de comunicação, mas em nome da
cidadania e da criticidade, considerando a impossibilidade de neutralidade nos processos de
comunicação. Assim, compreendidas como um recurso para autonomia, as novas tecnologias de
informação e comunicação certamente estimulam o processo de ensino e aprendizagem, desde que
dotado de criticidade e, para tanto, as garantias se depositam ainda no professor, o mediador de fato
em meio aos meios de comunicação e informação.
De acordo com Rojo (2012), enquanto o conceito de letramento aponta para a variedade de
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multiplicidade dos sistemas de significação constitutivos dos textos por meio dos quais a sociedades
e informa e se comunica. Esses novos textos assumem o aspecto de hipertextos que se relacionam e
se efetivam hipermidiaticamente, ou seja, pela fusão de meios sem linearidade em um ambiente
computadorizado. Rojo (2012, p. 23) aponta alguns aspectos do hipertexto:
eles são interativos; mais que isso, eles são colaborativos; eles fraturam e
transgridem as relações de poder estabelecidas, em especial as relações de
propriedade (das máquinas, das ferramentas, das ideias, dos textos (verbais ou não));
eles são híbridos, fronteiriços, mestiços (de linguagens, modos, mídias e culturas).
Com relação aos multiletramentos, decorrentes do advento das novas tecnologias, e suas
implicações para o ensino e sua tarefa de inclusão, as Orientações curriculares para o ensino médio,
Linguagens, códigos e suas tecnologias postulam
que a escola que se pretende efetivamente inclusiva e aberta à diversidade não pode
ater-se ao letramento da letra, mas deve, isso sim, abrir-se para os múltiplos
letramentos, que, envolvendo uma enorme variação de mídias, constroem-se de
forma multissemiótica e híbrida – por exemplo, nos hipertextos na imprensa ou na
internet, por vídeos e filmes, etc. Reitera-se que essa postura é condição para
confrontar o aluno com práticas de linguagem que o levem a formar-se para o mundo
do trabalho e para a cidadania com respeito pelas diferenças no modo de agir e de
fazer sentido (BRASIL, 2006, p. 29).
que o aluno tome a língua escrita e oral, bem como outros sistemas semióticos, como
objeto de ensino/estudo/aprendizagem, numa abordagem que envolva ora ações
metalinguísticas (de descrição e reflexão sistemática sobre aspectos linguísticos), ora
ações epilinguísticas (de reflexão sobre o uso de um dado recurso linguístico, no
processo mesmo de enunciação e no interior da prática em que ele se dá), conforme
o propósito e a natureza da investigação empreendida pelo aluno e dos saberes a
serem construídos (BRASIL, 2006, p. 33).
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pautado no emprego das mais diferentes formas de enunciados das mais diferentes esferas sociais,
visando a apropriação da variedade com que circulam socialmente e privilegiando, para tanto, os
Literatura e novas tecnologias e algumas considerações sobre o ensino Tiago Hermano Breunig
Supondo, por fim, que o universo digital inclua, de fato, os alunos, a escola e os professores
podem partir dos conhecimentos dos alunos para, assim, ampliar o conhecimento das diferentes
formas de linguagens permeadas pelas tecnologias, especialmente a literatura, tanto a tradicional
quanto a digital, de modo a promover a inclusão não apenas digital mas cultural. Afinal, como
antecipa Benjamin (1994, p. 174), diante da tecnologia “a mais emancipada que jamais existiu” que
“se confronta com a sociedade moderna sob a forma de uma segunda natureza” que, como constata,
o homem criou e não mais controla, “somos obrigados a aprender, como outrora diante da primeira”.
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pela tecnologia cuja função cresce cada vez mais em nossa vida cotidiana, mas no sentido, como
espera Benjamin, de fazer da tecnologia “o objeto das inervações humanas”.
Litteris.com: Literatura e suas relações com a Tecnologia da Informação Dílson César Devides (Org.)
REFERÊNCIAS
BENJAMIN, W. A obra de arte na era de sua reprodutibilidade técnica. In: BENJAMIN, Walter.
Magia e técnica, arte e política: ensaios sobre literatura e história da cultura. 7. ed. São Paulo:
Brasiliense, 1994.
BRASIL. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília: MEC, 2015.
______. Parâmetros curriculares nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua
portuguesa. Brasília: MEC/SEF, 1998.
HAYLES, K. Literatura Eletrônica: novos horizontes para o literário. São Paulo: Global, 2009.
JOBIM, J. L. O texto no meio digital. Remate de males. Campinas, v. 29, n. 1, p.59-69, 2009.
LEMOS, A. Cibercultura. Alguns pontos para compreender a nossa época. In: LEMOS, A; CUNHA,
P. (orgs). Olhares sobre a cibercultura. Sulina: Porto Alegre, 2003. p. 11-23.
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LÉVY, P. Cibercultura. Trad. Carlos Irineu da Costa. São Paulo: 34, 1999.
SANTOS, A. L. Leituras de nós: ciberespaço e literatura. São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
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