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Especial Novas mídias e o Ensino Superior

Jo g o s e a p ren diza d o

Narrativa transmídia e
a Educação: panorama
e perspectivas
A ‘GAMIFICAÇÃO’ SE DIFUNDE COMO CONVERGÊNCIA DE ESTRATÉGIAS DE GAME DESIGN
NO CAMPO EDUCACIONAL. OBJETIVO É TORNAR A REALIZAÇÃO DE DIVERSAS ATIVIDADES
MAIS PRAZEROSA E RECOMPENSADORA

João Carlos Massarolo


Professor associado do Departamento de Artes e Comunicação e do programa de pós-graduação
em Imagem e Som da Universidade Federal de São Carlos (PPGIS/UFSCar) Publicou A indústria
Audiovisual e Os Novos Arranjos da Economia Digital (2010) e Narrativa Transmídia: a arte de
construir Mundos (2011). Email: massarolo@terra.com.br

Dario Mesquita
Professor assistente do Departamento de Artes e Comunicação – DAC/UFSCar. Membro
pesquisador do Grupo de Estudos sobre Mídias Interativas em Imagem e Som (GEMInIS).
Email: dario.mirg@gmail.com

E
ste artigo concentra-se nas contribuições para desdobrar mundos de histórias a partir de
da narrativa transmídia para o “letramento uma narrativa canônica. Neste contexto, fan fic-
midiático”, dentro de um cenário que envolve tion são produzidas pelo processo de colabora-
a gamificação do campo educacional e no qual ção e interação, num ambiente de compartilha-
as novas gerações utilizam suas habilidades de mento de histórias, enquanto o aspecto lúdico
storytellers (contadores de histórias), adquiridas dos games concorre para a gamificação do cam-
pelo método de leitura crítica e escrita criativa, po educacional.

Introdução predominância das tecnologias computacionais


Na primeira internet, o conceito de “letramen- informativas e comunicativas (TICs), sobre as
to digital” era entendido no sentido de “inclusão
[1]
questões de conteúdo no campo educacional. As
digital”, servindo como uma espécie de portal de conexões, restritas aos espaços fixos, caracteriza-
acesso a dispositivos computacionais e conexões dos pelas salas de computadores, deixavam sem
à rede. Neste período, as transformações tecno- cobertura de dados para navegação lugares com
lógicas que convergiram para o campo da educa- significados históricos, políticos e culturais como,
ção e os novos modos de aprender eram media- por exemplo, as escolas e os centros educacionais.
dos por pontos que interligavam os computadores Como se pode notar, a noção de “letramen-
pessoais através dos cabos de rede, motivo da to digital” na perspectiva das TICs estimulava, a

[1] Letramento é a tradução do termo inglês literacy e seu significado transcende e engloba a noção de alfabetização.

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principio, o desenvolvimento de novas habilidades Os jogos representariam
de manuseio de ferramentas que permitissem o um dos melhores
acesso aos computadores, distribuídos a baixos sistemas de motivação
custos e para as camadas mais pobres da po- para resolução de
pulação, mas sem levar em consideração as de- problemas. Quando
mandas dos usuários por novos conteúdos. Se o incorporados à educação,
usuário quisesse, por exemplo, buscar novas for- potencializariam o
mas de interação social, ou mesmo, atualizar-se desempenho dos alunos
em relação a uma determinada obra narrativa de e tornariam a dinâmica
sua preferência, teria que buscar informações em do aprendizado mais
lugares distintos do ambiente digital. envolvente e colaborativa

E m contraste, o “letramento midiático”, propria-


mente dito, não compreende apenas o conhe-
cimento das TICs e o consumo de mídias, mas um a comunidade de fãs pode falar ou fazer. Neste
“conjunto de habilidades básicas e avançadas re- sentido, a produção dos fãs abrange tanto a inter-
lacionando aptidões individuais com práticas so- pretação textual quanto os comentários, análises,
ciais, cruzando a fronteira entre o conhecimento ensaios opinativos e boletins explicativos, perma-
formal e informal” (LIVINGSTONE, 2011, p.13). necendo aberta ao compartilhamento de arquivos
Neste aspecto, o letramento ocorre na sociedade e à pluralidade de opiniões. Essa postura acelera
em rede por meio das interfaces computacionais os processos de aprendizagem, fazendo com que
amigáveis e intuitivas, que demandam novas ha- a interação dos fãs com o texto canônico repre-
bilidades cognitivas e aptidões individuais para sente um percurso que transita da leitura crítica à
a prática de leitura e da escrita criativa. Na pri- escrita criativa, num processo de extensão lógica
meira internet, por exemplo, a instalação de um das interpretações textuais.
aplicativo era uma tarefa desconfortável, devido Mas a releitura que o fã realiza transcende os
às incompatibilidades entre os diferentes sistemas sentidos estabelecidos pelo texto, gerando novas
operacionais. Atualmente, as redes móveis de redes discursivas que transformam as comunida-
telecomunicações se desenvolvem ao redor das des de fãs num novo espaço de convivência so-
pessoas e das coisas, e os serviços de aplicativos cial e de trocas simbólicas. Desse modo, a cultura
se integraram definitivamente aos dispositivos mó- participatória realiza um movimento de baixo para
veis (Smartphones e Tablets, entre outros). Deste cima, denominado por Jenkins (2008) de “con-
modo, ao tornar possível a existência de espaços vergência alternativa”, na qual a força das comu-
hiperconectados e cercados por múltiplas telas, nidades de fãs se contrapõe ao modelo da “con-
a web 2.0 de caráter participativo, colaborativo e vergência coorporativa”, praticada pelos grandes
descentralizado, transformou os antigos leitores conglomerados de mídia. Por meio da interativi-
“passivos” de conteúdo gerado pelos grandes dade e a participação, fãs se apropriam e trans-
conglomerados de mídia em novos produtores de formam os conteúdos midiáticos, promovendo
conteúdos – que são disponibilizados em blogs, estratégias de letramento que permitem a cons-
sites, wikis, fóruns de discussão, redes sociais e trução colaborativa do conhecimento na socie-
as comunidades de fãs. dade em rede. Esse processo ocorre, em grande
O conteúdo midiático, uma vez que é remixa- parte, pela capacidade da autoria compartilhada
do, oferece uma realidade alternativa sobre o que de criar um modelo comunicacional na interação

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com o texto ficcional, que resulta em contrapartida universo diegético das ficções em diferentes dire-
numa “obra em andamento”. Ou seja, é produzido ções e plataformas de mídia, entre as quais: telas
um texto aberto, sujeito a múltiplos olhares, insti- de cinema, televisão, internet, HQs, videogames
tuindo a visão de um mundo quebrado em várias e dispositivos móveis de geolocalização. O mun-
partes, mas dotado de significados que transcen- do de histórias da narrativa transmídia promove a
dem o texto e que dialoga não somente com a obra imersão das audiências em novas formas de expe-
canônica, mas também com o contexto cultural da riências, nas quais as histórias mais significativas
comunidade de fãs no qual é produzido, como um reforçam a noção de pertencimento a um universo
trabalho em progresso, demandando interpreta- narrativo mais amplo. Assim, uma história ao ser
ções textuais que não se esgotam em si mesmas. desdobrada para outras mídias é compartilhada
Neste artigo busca-se discutir as contribui- por novas audiências.
ções da narrativa transmídia para o “letramento
midiático”, na perspectiva das práticas discursi-
vas que estimulam o leitor crítico a desenvolver
sua escrita criativa, envolvendo a expansão dos
A o estimular movimentos migratórios das au-
diências entre diversas plataformas, a narrati-
va transmídia oferece em cada mídia experiências
mundos possíveis contidos no texto original. Em de mundo que sejam únicas e exclusivas, desde
especifico, pretende-se analisar a importância da que esse mundo seja estruturado de forma coesa e
estrutura formal serializada da narrativa transmí- coerente. As jovens audiências já estão acostuma-
dia para a expansão e complementação das fan das a participar do processo criativo de construção
fiction em diferentes direções, assim como avaliar dos personagens e de suas histórias, se consti-
de que modo os aspectos lúdicos concorrem para tuindo no principal motivo da sua migração de
a gamificação do campo educacional. uma plataforma para outra. Essas características
transformam a narrativa transmídia na nova esté-
Leitura crítica e tica da cultura participatória, pois sua metodologia
escrita criativa pressupõe a interatividade e a colaboração.
A narrativa transmídia, entendida neste arti- No ambiente escolar, a migração dos jovens
go como a arte de construir mundos, expande o estudantes pelos espaços caracterizados pela
mobilidade, interatividade e a colaboração reforça
a emergência de uma nova cultura baseada na
participação dos alunos nos processos criativos
Os educadores Joey Lee das histórias. Neste sentido, a produção dos fãs,
e Jessica Hammer são ou fan fiction, que é feita de modo colaborativo no
cautelosos: as estratégias formato de textos ou de filmes e derivadas de obras
de game design são literárias, séries de TV, filmes, quadrinhos, video-
um complemento, um games, entre outras franquias de mídia, pode ser
recurso como qualquer considerada como uma expansão não autorizada
outro que pode ser usado do texto oficial em diferentes direções. A produção
em sala de aula, como de fan fiction reflete o desejo do leitor/espectador/
livros e filmes. Deve-se usuário de oferecer novas leituras e interpreta-
tomar cuidado para não ções às lacunas e brechas descobertas na intera-
tornar a gamificação ção com o material comercial. Ou seja, fan fiction
o principal aspecto da são escritas porque os fãs desejam “algo mais” da
aprendizagem obra original, como fez a escritora chilena Isabel

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Allende, que romanceou as aventuras de “El Zor- A enorme atração que
ro” (personagem de HQs, adaptada para série de os games exercem junto
TV). Já o fan film “Troops” (The Force Net, 1997) ao público jovem indica
de Kevin Rubio, faz uma fusão do universo de Star a necessidade de sua
Wars com a linguagem da série televisiva COPS [2], incorporação pedagógica
para mostrar a perspectiva do universo pelo olhar
das tropas imperiais, alem de preencher de forma
cômica alguns pontos obscuros na narrativa canô- natural dos arcos da história original” (McCARD-
nica da saga interestelar. LE, 2003, p.4).
A tendência de recontar uma mesma história O trabalho colaborativo permite os produtores
de diferentes modos, em diversos suportes, por de fan fiction acessarem o mundo ficcional, usan-
diferentes ângulos e de pontos de vista inusitados do suas habilidades para dar respostas críticas e/
não chega a ser uma novidade. Historicamente, ou criativas aos mais variados temas que podem
as iniciativas de autores amadores esbarraram na ser abordados nas plataformas midiáticas. Fan
questão dos direitos autorais, motivo pelo qual as fiction fazem uso dos recursos ficcionais para pro-
narrativas colaborativas engendradas nos proces- vocar indagações em torno de eventos-chave ou
sos comunicacionais dos fãs assumem a forma trechos críticos de diálogos, com o compromisso
épica, estruturada nos moldes das narrativas te- de lançar um novo olhar sobre a narrativa de fun-
levisivas de longa duração, com o objetivo de ex- do. Para Jenkins (2013, p. 20) as “histórias de fãs
pandir o alcance de interpretações potenciais da não são simplesmente extensões ou continuações
mitologia de uma obra. da série original”, constituindo-se num universo
próprio, dotado de uma lógica capaz de inserir de

N ormalmente, os fãs produzem suas histórias


com o intuito de preencher lacunas e incom-
pletudes de uma obra, reescrevendo o texto para
forma plausível a história paralela ao mundo ficcio-
nal da obra original. No entanto, por mais que res-
peitem os cânones, sempre existe a possibilidade
acrescentar novas informações sobre o que pode- de que alguma parte da releitura seja vista como
ria ter acontecido ou para adicionar novas cenas desrespeitosa pelos detentores dos direitos auto-
que forneçam uma compreensão adicional das rais, em relação a trechos da obra original. Nesse
situações ou, ainda, para corrigir cenas consi- caso, a obra será rejeitada em função dos interes-
deradas mal escritas, recriando situações vistas ses comerciais e dificilmente será acolhida pelo
como desagradáveis ou reconstituindo trechos cânone oficial, mas pode fazer parte do cânone
omitidos, ignorados ou esquecidos na obra canô- complementar, criado pelas comunidades de fãs
nica. Muitas vezes, acrescentam cenas faltantes e denominada “fânone”[3].
que mostram a reação esperada de uma perso- No artigo “Lendo criticamente e lendo criati-
nagem numa dada situação, ou cenas que foram vamente” (2012), o acadêmico norte-americano
excluídas pelo autor no texto original. Os produto- Henry Jenkins parte do principio de que a pro-
res de fan fiction referem-se “aos seus cânones dução de fan fiction é de vital importância para o
como suas Bíblias, e a maioria tenta permanecer “letramento midiático” contemporâneo, pois suas
tão fiel ao cânone quanto possível, para que outros técnicas conectam o ato de leitura crítica ao de
leitores vejam suas histórias como uma extensão escrita criativa. Tradicionalmente, o processo de

[2] Série televisiva criada por John Langley e Malcolm Barbour. Exibida pelo canal FOX desde 1989
[3] "Fanon" no original: "fan" (fã) + "canon" (cânone)..

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Na escola Learn to não é completamente desenvolvido na própria


Quest, se uma tarefa história.
não é bem-sucedida, isso Buracos: Elementos narrativos dos quais os
não implica em pontos leitores sentem falta e que são centrais à sua
negativos no histórico compreensão dos personagens.
escolar. Para compensá- Contradições: Dois ou mais elementos na
la, o aluno deve procurar narrativa (intencionais ou não) sugerindo
novas tarefas para possibilidades alternativas para os personagens.
aumentar seus pontos de Silêncios: Elementos que foram
experiência na disciplina sistematicamente excluídos da narrativa com
consequências ideológicas.
Potenciais: Projeções sobre o que poderia ter
acontecido além dos limites da narrativa.
ensino e a aprendizagem da leitura de textos nas (JENKINS, p. 16-18, 2012)
escolas busca somente a formação de um leitor
crítico[4] . Justamente por esse motivo, franquias A produção de fan fiction de uma jovem in-
de mídia buscam cooptar o maior número possível glesa, Heather Lawver, descrito por Jenkins[5], é
de leitores críticos, pois seu valor no mercado é um exemplo de como alguns desses elementos se
determinado, em grande parte, pela quantidade converteram numa referência do poder da cultura
de comunidades de fãs envolvidas na investigação participatória. Por questões de racismo, Heather
das intertextualidades existentes no texto. abandonou a escola ainda criança e mais tarde,
depois de ler Harry Potter e a Pedra Filosofal, des-

P ara Jenkins, a formação do leitor crítico é insu-


ficiente quando se trata de buscar um ponto
de partida para a escrita criativa e, consequen-
cobriu vários fandoms[6] da saga, o que mudou a
sua vida. O universo de J.K. Rowling é particular-
mente rico em detalhes, permitindo vários tipos
temente, o desenvolvimento da “capacidade de de acesso. As lacunas, contradições e silêncios
reescrever textos que não satisfazem nossos in- são pistas em potencial para exploração do mundo
teresses completamente” (2012, p. 13). Jenkins de histórias da saga como, por exemplo, as nar-
identifica cinco elementos presentes na leitura rativas não contadas sobre como as personagens
de uma história, que normalmente despertam o se tornaram do jeito que as conhecemos. Heather
interesse dos fãs. Esses elementos são centrais resolveu lançar as sementes do “jornal escolar” na
no universo da cultura participatória e também, internet para divulgar noticias da Hogwarts ficcio-
nas comunidades de fãs. São eles: sementes, nal. Os jovens foram convidados a participar des-
buracos, contradições, silêncios e potenciais. De se processo comunicacional de forma lúdica, por
acordo com o autor, esses elementos podem ser meio da criação de um perfil ficcional que permitia
caracterizados da seguinte forma: o acesso às noticiais do portal e, além disso, os
jovens acrescentaram informações de cunho pes-
Sementes: pedaços de informação introduzidos soal com o objetivo de reforçar a sua identificação
na narrativa para indicar um mundo maior que com as personagens do mundo ficcional. Desse

[4] No capitulo sobre "A inovação no seriado" (1989, p. 129-130), o acadêmico italiano Umberto Eco parte do pressuposto de que um texto é produzido e, ao
mesmo tempo, é constituído por um duplo "leitor modelo". O "leitor modelo de primeiro nível", ou o "leitor ingênuo", seria aquele que usa a obra como um
dispositivo semântico e é vítima das estratégias do autor. Por outro lado, o "leitor modelo de segundo nível", ou o "leitor crítico", seria aquele que avalia
a obra como um produto estético e analisa as estratégias postas em jogo, assim como suas variações, se constituído num leitor letrado e consciente das
intertextualidades existentes no texto.

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modo, crianças e jovens tiveram a oportunidade Esse processo estratégico é conhecido popular-
de explorar o mundo ficcional na perspectiva de mente como gamificação [7] .
uma personagem ficcional.
O projeto de Heather Lawver permitiu a pro- Gamificação
dução colaborativa de textos por meio de blogs e Nesse atual cenário em que novas trilhas são
outras plataformas, inovando a forma de narrar construídas pelas mídias, e a informação é inten-
e tornando o produto mais interessante e mais sificada na sua produção e difusão, novas expe-
atrativo. Esse projeto pedagógico envolveu a dis- riências lúdicas potencializam e reconfiguram a
tribuição de conteúdos por diversos dispositivos noção tradicional de jogo. A ideia de uma atividade
digitais, ampliando o universo dos estudantes e restrita em suas dimensões de espaço, tempo e
estimulando uma maior participação através das participação, que colocam o jogo como uma ação
redes sociais colaborativas. Nesse sentido, o pro- fora da vida diária, é expandida em seus limiares
jeto pedagógico funcionou como um espaço edu- com o auxílio de diversas plataformas midiáticas
cacional, permitindo que as regras e normas do usadas coordenadamente para transformar os es-
mundo ficcional fossem vivenciadas como um paços sociais de nosso dia-a-dia em playgrounds.
mundo real, tornando a participação ativa em uma Essa técnica vem ganhando espaço em diversos
série de atividades extracurriculares. setores, envolvendo desde projetos em ambientes
de trabalho – para aumentar a produtividade e en-

O utra forma de promover o letramento midiático


consiste no uso eficaz do potencial educativo
da linguagem dos games nas atividades regulares
gajamento dos funcionários –, à educação, numa
busca de renovar o modelo de ensino aprendiza-
gem para o atual cenário social permeado pelas
de ensino nas escolas. A enorme atração que os mídias digitais. A escola Learn to Quest[8], que
games exercem junto ao público jovem, principal- atende estudantes entre seis e doze anos, tem uma
mente pelo caráter lúdico de suas atividades e o grade curricular semelhante ao de muitas escolas
espaço sociocultural que ocupam, são elementos (matemática, geografia, ciências, história etc.),
indicadores da necessidade de sua incorporação mas o modo como elas são apreendidas foi refor-
pedagógica com o objetivo de explorar as habilida- mulado. Os alunos são engajados em atividades
des cognitivas, lúdicas e afetivas, que lhe são ine- lúdicas que envolvem a resolução de tarefas como
rentes. O potencial dos jogos advém da motivação uma quest de jogo – sendo algumas delas secre-
intrínseca ao ato de jogar, de avançar na explora- tas, espalhadas pela biblioteca e salas de aulas.
ção dos espaços e superar etapas, fases e desafios Essas tarefas geralmente demandam um trabalho
que resultam num processo de aprendizagem de em grupo, como forma de engajar os alunos cole-
natureza lúdica, motivada por uma história que se tivamente na resolução de problemas, e elas dão
desenrola de forma significativa e contínua. Nesse acesso a outros desafios que vão sendo desblo-
âmbito, vem se difundido nos últimos anos uma queados, dando um tom de suspense à atividade.
prática que foca convergir estratégias de game Quando uma tarefa é realizada corretamen-
design no campo educacional e da vida cotidiana, te, são conferidos pontos de experiência ao alu-
com o objetivo de tornar a realização de diversas no, que são acumulados e convertidos em níveis
atividades mais prazerosa e recompensadora. que evoluem a cada determinada quantia, o que

[5] "Porque Heather pode escrever". In.: Cultura da Convergência (2008, p. 227)
[6] Termo usado para Fan Kingdom, ou "reino dos fãs", e designa as comunidades de fãs .
[7] Neologismo traduzido de gamification.
[8] A primeira escola baseada em games no mundo foi inaugurada em 2009, na cidade de Nova York, com financiamento da Fundação MacArthur e da
Fundação Bill e Melinda Gates.

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proporciona uma clara sensação de progressão. com a finalidade de salvar a humanidade através do
Se uma tarefa não é bem-sucedida, isso não im- uso sustentável dos recursos naturais.
plica em pontos negativos no histórico escolar.
Para compensá-la, o aluno deve apenas procurar
por novas tarefas para aumentar seus pontos de
experiência na disciplina, que são contabilizados
E ssas experiências expõem algumas qualida-
des importantes da atividade lúdica. De acor-
do com McGonigal (2012), o ato de jogar não seria
e acessíveis através do banco de dados online oposto ao trabalho, mas sim à depressão, pois sua
da instituição. Como se percebe, há um enfoque atividade não causa stress negativo – que origina
maior nos resultados positivos da aprendizagem uma ansiedade destrutiva à autoestima. O jogo re-
que no desempenho dela. O foco está na expe- sulta de um stress positivo, ou eustress (derivada
riência de aprendizado num ambiente de en- da palavra eu, que em grego significa bem-estar),
gajamento e estímulos positivos, ou seja, uma experimentado quando não há o sentimento de
educação lúdica. Para os educadores Joey Lee e pessimismo na execução da ação, direcionando o
Jessica Hammer (2011), experiências como de foco da pessoa na busca de melhores resultados,
Learn to Quest são importantes porque o ensino como acontece na dinâmica de ensino da escola
escolar tradicional focaliza efeitos formais (notas, Learn to Quest. O eustress é uma sensação ligada
médias, aprovação, recuperação, reprovação), e a uma rede de sentimentos, como fiero, palavra
não os benefícios emocionais e sociais. A gamifi- italiana que significa orgulho, apropriada pelo
cação segue regras que ajudam nas experiências campo de game design para descrever a sensa-
que envolvam emocionalmente e cognitivamente ção do jogador ao superar uma adversidade. E por
o sujeito na construção de sua identidade e posi- fim, awe, emoção do sujeito que se reconhece
cionamento social diante de desafios cotidianos. como parte ativa de algo maior que ele mesmo,
geralmente associado à espiritualidade e ao dese-

E xperiências educativas como o projeto World


Without Oil [9] (2007), realizada em 32 semanas,
convidava as pessoa a se imaginarem em um mundo
jo de servir na sociedade, como ocorre no projeto
World Without Oil.
A gamificação seria uma forma de explorar es-
onde os recursos petrolíferos foram esgotados. Nes- sas qualidades psicológicas dos jogos para recom-
se cenário pós-apocalíptico, os participantes deve- pensar o sujeito com um trabalho mais satisfatório
riam trabalhar em grupo para buscar novas formas ao permitir que perceba diretamente o impacto de
de gerenciamento de recursos e compartilhar suas seu esforço, alimentando assim as expectativas de
experiências pessoais através de vídeos, imagens e resultados positivos, contribuindo para reforçar la-
textos postados na website do jogo – um portal agre- ços sociais com outras pessoas envolvidas em prol
gador de conteúdo. World Without Oil construiu a de um propósito em comum. McGonigal (2012)
partir dos relatos dos participantes um cenário fic- elenca os quatro principais elementos dos jogos,
tício e lúdico dessa realidade pós-apocalíptica. Um que podem ser facilmente assimilados a quaisquer
mundo que foi explorado por um amplo debate so- atividades: objetivo - uma meta a ser alcançada; re-
bre questões políticas, tecnológicas, ambientais e de gras - definição de meios para alcançar essa meta;
sustentabilidade em torno da temática proposta. A sistema de feedback - resposta que os jogadores
experiência permitiu a geração de um conhecimento obtêm do desempenho deles durante a atividade,
colaborativo, sob um jogo de interpretação de papéis informando assim o quanto falta para alcançar o

[9] Uma produção independente apresentada pelo Independent Television Service (ITVS), com financiamento da Corporation for Public Broadcasting
(http://www.worldwithoutoil.org).

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objetivo; e participação voluntária - o sujeito deve Para Lee e Hammer,
aceitar as regras impostas para entrar na atividade. experiências como a
A autora afirma que esses quatro elementos Learn to Quest são
podem ter pesos diferenciados, como no caso da importantes porque
escola Learn to Quest, em que o sistema de fee- o ensino escolar
dback tem uma importância maior que as regras, tradicional focaliza
que podem variar de uma atividade para outra. efeitos formais – notas,
Isso porque os jogadores não querem necessaria- médias, aprovação,
mente experimentar o sistema de jogo e seus parâ- recuperação, reprovação
metros bem definidos, mas aproveitar a experiên- – e não os benefícios
cia do jogo, em “explorar e aprender e aperfeiçoar emocionais e sociais
[...] eles genuinamente se importam com os re-
sultados de seus esforços” (MCGONIGAL, 2012,
p. 27) empreendidos na experiência lúdica e sua
imprevisibilidade. Através dessa dinâmica, os jo- de convergência midiática provocou mudanças
gos representariam um dos melhores sistemas de nesse paradigma e as novas plataformas de con-
motivação para resolução de problemas. Quando teúdo midiático se tornaram um ponto de referên-
incorporados à educação, eles potencializariam o cia do processo enriquecedor que é a produção de
desempenho dos alunos e tornariam a dinâmica conhecimento através de múltiplos suportes.
do aprendizado mais envolvente, recompensado-
ra e colaborativa. Apesar dos benefícios elencados
da gamificação como estratégia educacional, Joey
Lee e Jessica Hammer (2012) mostram-se cau-
A tualmente, a estratégia dos conglomerados
tradicionais consiste em transformar a inter-
net no veículo sinérgico das mídias. Essas mudan-
telosos, enquanto McGonigal (2012) é mais en- ças tornam necessário que as escolas ampliem e
tusiasta. Esses autores consideram as estratégias transformem suas grades curriculares para obte-
de game design como um complemento educati- rem uma maior participação dos estudantes. Nes-
vo, um recurso tal como qualquer outro que pode se cenário, não basta aprender a consumir mídias
ser usado em sala de aula (como os livros, filmes de uma forma adequada, se não estiver apto a se
etc.), e que se deve tomar cuidado para não tornar expressar. Na convergência midiática, as compe-
a gamificação como o principal aspecto da expe- tências culturais e habilidades envolvem um con-
riência de aprendizagem dos alunos. junto de práticas socioculturais relacionadas às
formas de uso da leitura crítica e da escrita criativa,
Considerações finais tendo em vista a produção de conteúdo midiático
A proposta pedagógica de Jenkins, de incen- para diferentes plataformas.
tivar a leitura critica dos conteúdos produzidos Por sua vez, a proposta de gamificação da vida
pelas mídias massivas, encontra respaldo na tra- prioriza o elemento lúdico dos games dentro de
dição cultural que remonta ao próprio surgimento um sistema de reforço positivo, agregando deste
dos meios de comunicação tradicionais e opera no modo aos atos cotidianos uma forma de motiva-
centro das divergências entre produtores e consu- ção advinda do prazer intrínseco do ato de jogar.
midores. Essa tradição informa ao leitor crítico das Nesse sentido, a noção de repetição (game over)
mídias massivas o modo de funcionamento das se mostra mais apta para o desenvolvimento das
empresas de comunicação e como a informação é habilidades cognitivas dos alunos do que um cur-
distribuída pelos canais convencionais. O processo rículo moldado pela necessidade de pontuar a

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Especial: Novas mídias e o Ensino Superior

vida escolar a partir dos critérios de game design. GALLO, P. & COELHO, M.G.P. Aquisição dos letramentos
Este artigo procurou analisar as práticas da pe- necessários à cultura da convergência: a narra-
dagogia informal que surgem na cultura participa- tiva transmídia na escola. (2011) Disponível em:
tória, com o objetivo de analisar as novas formas de <http://repositorio.unp.br/index.php/quipus/arti-
produção de conteúdo midiático. Uma das conclu- cle/view/59> Acesso em: 03 fev. 2013.
sões que emergem deste estudo pressupõe, entre JENKINS, H. Cultura da convergência. São Paulo, Edi-
outras coisas, que a convergência midiática esti- tora Aleph, 2008.
mula a construção colaborativa do conhecimento, __________ Lendo criticamente e lendo criativamente.
enquanto que a convergência alternativa, motivada In: Revista Matrizes, ECA/USP, São Paulo. V. 6, N.
pelos fãs, expande a fronteira entre o conhecimento 1-2 (2012).
formal e o informal. Nesse novo ecossistema midiá- LEE, J.; HAMMER, J. Gamification in Education: What,
tico, as formas de cultura participativa emergentes, How, Why Bother? (2011). Academic Exchange
aliadas às plataformas de conteúdo, conectam os Quarterly, 15(2). Disponível em: <http://www.gami-
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