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UNIVERSIDADE FEDERAL DE SANTA CATARINA

CENTRO DE COMUNICAÇÃO E EXPRESSÃO


DEPARTAMENTO DE JORNALISMO

RUBENS LOPES DE SOUZA

JORNALISMO LIBERTADOR: a estrutura e a dinâmica da revista


Pobres&Nojentas

Florianópolis
Novembro 2017

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RUBENS LOPES DE SOUZA

JORNALISMO LIBERTADOR: a estrutura e a dinâmica da revista


Pobres&Nojentas

Monografia de Trabalho de Conclusão de Curso


apresentada à disciplina de Projetos Experimentais,
ministrada pelo Prof. Dr. Fernando Crocomo no
segundo semestre de 2017.
Orientadora: Profa. Dra. Daiane Bertasso.

Florianópolis
Novembro 2017

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FICHA DO TCC – Trabalho de Conclusão de Curso – JORNALISMO
UFSC
ANO 2017
ALUNO Rubens Lopes de Souza
TÍTULO Jornalismo Libertador: a estrutura e a dinâmica na revista Pobres &
Nojentas
ORIENTADOR Profa. Daiane Bertasso
Impresso
MÍDIA Rádio
TV/Vídeo
Foto
Web site
Multimídia
X Pesquisa Científica
CATEGORIA Produto Comunicacional
Produto Institucional (assessoria de imprensa)
Produto Jornalístico (inteiro) Local da apuração:
Reportagem ( ) Florianópolis
livro-reportagem ( ) ( ) Santa Catarina
( ) Internacional
( ) Região Sul
País: Brasil
ÁREAS Jornalismo, Jornalismo Libertador, Filosofia da Libertação, Comunicação
comunitária, Marxismo.
RESUMO A presente monografia busca investigar as experiências do jornalismo
libertador presentes na revista Pobres&Nojentas, uma revista de gênero e
de classe. O estudo traz como base a reflexão elaborada pela jornalista
Elaine Tavares, editora e criadora da revista P&N, sobre um fazer
jornalístico inspirado na Filosofia da Libertação, teoria criada pelo filósofo
argentino Enrique Dussel. Dentro da perspectiva apontada, analiso o
jornalismo através da teoria marxista do jornalismo criada pelo teórico
Adelmo Genro Filho. Através desta pesquisa trago para discussão um fazer
jornalístico específico, comprometido em narrar a vida das gentes em suas
lutas diárias por vida boa e bonita, que leve em conta os conflitos de classe
e o posicionamento do jornalista diante dos fatos, sem imparcialidade. Para
isso, são analisadas algumas matérias publicadas na revista
Pobres&Nojentas, por meio do método materialista histórico dialético,
aliado à análise de conteúdo e entrevistas em profundidade. Através desta
pesquisa mostro como as experiências do jornalismo libertador estão
presentes na revista Pobres&Nojentas, e como essa prática se faz
necessária para narrar a realidade a partir de uma perspectiva
transformadora.

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AGRADECIMENTOS

in memoriam...
Dona Rita, minha vó, que me ajudou a vir ao mundo e saber de onde sou.

Ter vindo do interior de Minas Gerais e convivido com pessoas simples me ajudou a
escolher caminhar às margens, pelas estradas secundárias. Isso me ensinou a olhar o mundo como
ensinam os povos Navajos: ver que há beleza em todos os lados. O encontro com o jornalismo, a
melhor profissão do mundo, como dizia Garcia Márquez, foi então uma maneira de aprender a
narrar o mundo a partir dessa perspectiva: com as gentes e partilhando as belezas. Esse foi um
trajeto de comunhão com pessoas especiais. Por isso agradeço primeiro à minha mãe,
Edina Lopes da Silva, que na sua lida como boia-fria, conseguiu me dar condições para
estudar, me educar e me dar asas para ser livre.
Meu pai, Zé Trovão, que me ensinou a inventividade e a sorrir a despeito de tudo.
Tia Nicha e a minha família que sempre me apoiaram.
Paulo Renato Venuto, meu amigo de infância, irmão, camarada, “mano véi”, que é
companheiro de muitas aventuras e foi ponte quando vim para o Sul estudar jornalismo.
Elaine Tavares, por inspirar essa caminhada e ensinar que o jornalismo precisa ser
libertador. Agradeço também ao seu companheiro Pedro Duarte, que juntos me deram um lar e me
receberam com abraços e corações abertos.
Camila Duarte, pelo amor-compromisso.
Daiane Bertasso, minha orientadora que acreditou nesse trabalho e me deu uma ajuda
valiosa para compreender a linguagem científica.
Agradeço aos camaradas Glauco Marques, Nildo Ouriques, Raul Fitipaldi, Ricardo
Casarini, Osíris Duarte, Pepe Pereira, Cris Tupã, Maicon Claudio e às camaradas Débora
Daniel, Rosane Lima, Miriam Santini, Jussara Godoi, Beatriz Paiva por partilharem horizontes
e caminharem em busca de vida boa e bonita para todos.
À equipe da revista Pobres&Nojentas, pela inspiração.
Ao seo Getúlio e aos maestros do projeto Música no Rancho da Canoa, por ensinarem a ler
as “notinhas” e a pescar. Aos garçons do Bar do Zeca e a comunidade do Campeche.
Desejo que bons ventos levem esses agradecimentos a todas as pessoas que encontrei até
aqui e espero que os nossos passos se juntem em busca da terra sem males.

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“A gente tem que ter consciência de classe. Saber a que pertencemos e nunca, nunca se esquecer
disso.”
(Jussara Godoi)

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RESUMO

A presente monografia busca investigar as experiências do jornalismo libertador presentes na


revista Pobres&Nojentas, uma revista de gênero e de classe. O estudo traz como base a reflexão
elaborada pela jornalista Elaine Tavares, editora e criadora da revista P&N, sobre um fazer
jornalístico inspirado na Filosofia da Libertação, teoria criada pelo filósofo argentino Enrique
Dussel. Dentro da perspectiva apontada, analiso o jornalismo através da teoria marxista do
jornalismo criada pelo teórico Adelmo Genro Filho. Através desta pesquisa trago para discussão um
fazer jornalístico específico, comprometido em narrar a vida das gentes em suas lutas diárias por
vida boa e bonita, que leve em conta os conflitos de classe e o posicionamento do jornalista diante
dos fatos, sem imparcialidade. Para isso, são analisadas algumas matérias publicadas na revista
Pobres&Nojentas, por meio do método materialista histórico dialético, aliado à análise de conteúdo
e entrevistas em profundidade. Através desta pesquisa mostro como as experiências do jornalismo
libertador estão presentes na revista Pobres&Nojentas, e como essa prática se faz necessária para
narrar a realidade a partir de uma perspectiva transformadora.

Palavras-chave: Jornalismo libertador, revista Pobres&Nojentas, Teoria marxista do jornalismo,


Filosofia da Libertação, Marxismo.

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ABSTRACT

This monograph seeks to investigate the experiences of liberating journalism present in the
magazine Pobres&Nojentas, a magazine of gender and class. The study is based on a reflection
developed by the journalist Elaine Tavares, editor and creator of P&N magazine, about a
journalistic work inspired by the Philosophy of Liberation, a theory created by the Argentine
philosopher Enrique Dussel. From the perspective indicated, I analyze journalism through the
Marxist theory of journalism created by the theorist Adelmo Genro Filho. Through this research I
bring to the discussion a specific journalistic pratice, committed to narrating the life of the people in
their daily struggles for a good and beautiful life, that takes into account the class conflicts and the
position of the journalist before the facts, without impartiality. For this, some articles published in
the magazine Pobres&Nojentas are analyzed, through the materialistic dialectical historical method,
combined with a deep analysis of contened and interviews. Through this research I show how the
experiences of liberating journalism are present in the magazine Pobres&Nojentas, and how this
practice becomes necessary to narrate reality from a transforming perspective.

Keywords: Libertarian journalism, Pobres&Nojentas magazine, Marxist theory of journalism,


Philosophy of Liberation, Marxism.

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LISTA DE FIGURAS

Figura 1: Primeira edição da revista Pobres&Nojentas ............................................................. 31


Figura 2: Jussara com Júlia Dalri Eller em ato contra a reforma da Previdência, em 2003
........................................................................................................................................................... 45
Figura 3: Crianças Guarani da Aldeia Tekové Mareã ............................................................... 46
Figura 4: Isabel Gonzalez atende turistas na Praça de Maio ..................................................... 47
Figura 5: Campo de golfe no Costão do Santinho viria destruir o aquífero dos Ingleses ........ 48
Figura 6: Assis, o homem de luta lutou até o último dia de sua vida por uma universidade
sonhada ............................................................................................................................................ 50
Figura 7: A matéria publicada na P&N ajudou no projeto que se concretizou num livro ..... 51
Figura 8: A revista P&N cobriu as principais pautas da cidade, como a discussão do Plano
Diretor ............................................................................................................................................. 52
Figura 9: A discussão sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista foi destaque na capa
da P&N ............................................................................................................................................ 54
Figura 10: Jornalistas hondurenhos cobriram as marchas populares e denunciaram o golpe
militar .............................................................................................................................................. 57
Figura 11: Crônica deste pesquisador publicada em uma das edições da revista P&N .......... 62

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SUMÁRIO

INTRODUÇÃO .............................................................................................................................. 13

1 TEORIAS DO JORNALISMO .................................................................................................. 16

1.1 Sínteses das matrizes de pensamento acerca do fazer jornalístico ...................................... 16

1.2 A teoria Marxista do Jornalismo segundo Adelmo Genro Filho ......................................... 19

1.3 O Jornalismo libertador ........................................................................................................... 26

2 A REVISTA POBRES&NOJENTAS ......................................................................................... 31

2.1 História ...................................................................................................................................... 32

2.2 A proposta pelas margens ........................................................................................................ 37

3. ANÁLISE CRÍTICA DA POBRES&NOJENTAS ................................................................... 39

3.1 As reportagens .......................................................................................................................... 41

3.2 A proposta teórica .................................................................................................................... 53

3.3 Os resultados da ligação entre a teoria marxista do jornalismo e o jornalismo de libertação


........................................................................................................................................................... 55

CONSIDERAÇÕES FINAIS ......................................................................................................... 58

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ......................................................................................... 60

APÊNDICE A – Crônica: A Chuva das Flores ............................................................................ 62

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INTRODUÇÃO

Conheci o jornalismo através dos textos da revista Pobres&Nojentas (P&N). Morava


em Minas Gerais quando Paulo Renato Venuto, um amigo de infância, veio para Florianópolis
estudar música e me enviou alguns exemplares da revista que sua tia, Elaine Tavares,
publicava conjuntamente com outras jornalistas. Ali nos textos, as vidas das gentes se
mostravam: as histórias das comunidades que resistem ao progresso imposto pelo capitalismo,
a esperança das Mulheres da Chico em contar suas histórias (que se tornou um livro), a luta
por moradia em Florianópolis, a luta dos povos originários por seus territórios e a busca da
terra sem males, a América Latina, ou Abya Yala como chamam os primeiros povos que aqui
viviam, se descortinaram para mim. A realidade sendo narrada.
Foi aí que despertou em mim a vontade de estudar jornalismo e decidi vir para
Florianópolis fazer o vestibular na Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), no final
de 2008. Fui amorosamente recebido na casa da Elaine Tavares, do seu companheiro Pedro
Duarte e do meu amigo. Depois de três vestibulares entrei no curso de jornalismo em 2012
(ver Apêndice A).
Mais tarde, quando me enveredei pelas leituras sobre o jornalismo, descobri que as
matérias e reportagens publicadas na revista Pobres&Nojentas refletiam o que o repórter
Marcos Faerman (1979) enfatizava quando narrava suas histórias: o ser humano sufocado em
sua vontade de dizer.
A partir daí, fui buscar elementos que ajudassem a compreender melhor o jornalismo.
Conheci a teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho (2012) e o jornalismo
libertador proposto pela jornalista e criadora da P&N, Elaine Tavares (2004). Uma reflexão
sobre o fazer jornalístico que parte dos pressupostos da Filosofia da libertação, uma corrente
de pensamento que surge na América Latina, nos idos dos anos sessenta do século XX, tendo
como um dos seus mais importantes fundadores o filósofo argentino Enrique Dussel (1977).
É inspirada nessa realidade latino-americana e na vontade de narrar a histórias das
gentes que surge a revista Pobres & Nojenta. Nos textos estão descritos os conflitos de classe,
é pautada a questão de gênero e está intrínseco o posicionamento da/do jornalista diante dos
fatos. Há uma angulação na forma de narrar que não é panfletária e tampouco imparcial, mas
a partir do ponto de vista das pessoas oprimidas, marginalizadas, exploradas pelo sistema
capitalista, e que a despeito de sua condição seguem buscando vida boa e bonita para todos.
O encontro com a Pobres&Nojentas e essa perspectiva narrativa foram os elementos
que me fizeram escolher esse tema para escrever o presente trabalho de monografia. Minha

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intenção é refletir sobre o jornalismo e analisar o fazer jornalístico que considere os conflitos
de classe e o posicionamento do jornalista diante dos fatos, tendo como meio a revista
Pobres&Nojentas.
A revista Pobres&Nojentas é uma proposta que foge do jornalismo tradicional no
início dos anos 2000, quando então, imperava o jornalismo de celebridades – com ênfase em
revistas como a Caras – e é para se contrapor a isso que surge essa publicação.
No interior de Minas Gerais, onde a principal fonte de informação ainda continua
sendo o rádio, receber algumas edições da P&N mudou o rumo da minha própria existência.
Descobri que seria possível narrar a vida de um jeito que fugia do tradicionalmente
apreendido nas mídias comerciais. Assim, com essa revista embaixo do braço tomei o rumo
do sul e vim com o objetivo de estudar na Universidade Federal de Santa Catarina.
O jornalismo aparecia, então, como uma possibilidade concreta de narrativa capaz de
mostrar o mundo real, com suas mazelas e belezas. A proposta de que era possível um
“Jornalismo libertador” encontrou terreno fértil nas minhas próprias expectativas sobre como
escrever. Então, da revista para a busca do conhecimento no jornalismo foi um passo
necessário.
A proposta apresentada pela jornalista Elaine Tavares (2004) no seu livro “Jornalismo
nas Margens – Uma reflexão sobre a comunicação em comunidades empobrecidas” (2004)
aponta para a necessidade de o jornalismo se encontrar com a vida fora das salas acarpetadas.
É a narrativa das comunidades de periferia, dos sem-terra, dos sem-teto, dos sem-nada, dos
que não têm espaço para dizer a sua palavra. O jornalismo libertador não se pretende ser
aquele que “dá” voz aos que estão à margem, mas o que possibilita espaço onde essa voz, que
já existe, se expresse.
Assim, analisar o trabalho da Pobres&Nojentas possibilita o aprofundamento teórico
não apenas no campo do jornalismo libertador, mas na abordagem marxista do jornalismo
feita por Adelmo Genro Filho, que, na verdade, converge com o pensamento de Elaine
Tavares.
A relevância desse trabalho se dá na medida em que aproximamos essas duas
perspectivas teóricas, que, de fato, se interligam e completam uma forma de fazer o
jornalismo. Adelmo mostrando que a notícia precisa partir do singular ao universal e Tavares
mostrando que perspectiva dos jornalistas deve ser a de libertação.
Assim, essa pesquisa sobre o jornalismo praticado na experiência da Pobres &
Nojentas permite compreender como essas duas abordagens se completam desde uma

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compreensão que leve em consideração a questão de classe e o posicionamento do jornalista
diante dos fatos por meio da revista Pobres & Nojentas.
A partir do contexto exposto, a questão que a pesquisa busca responder é: Como a
teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho e o conceito de jornalismo libertador de
Elaine Tavares estão presentes no fazer jornalístico da revista Pobres&Nojentas? O objetivo
geral da pesquisa é a compreensão dessa questão central. A partir disso, os objetivos
específicos são: Conhecer a linha editorial e as opiniões das/dos jornalistas que escrevem na
revista; Identificar nas editorias, conteúdos e sujeitos que fizeram parte das edições da revista;
os elementos da linha editorial e se as teorias em estudo estão presentes; Analisar como as
perspectivas teóricas adotadas no estudo de caso da P&N podem contribuir para uma nova
práxis do jornalismo.
Para fazer a análise crítica da revista utilizo o método materialista histórico dialético,
analisando a estrutura e a dinâmica presentes na revista, utilizando a análise de conteúdo
jornalística para situar o objeto de estudo e entrevista em profundidade utilizada para
entrevistar as autoras da revista.
A presente monografia está divida em três capítulos: o primeiro, Teorias do
jornalismo, em que trago uma breve síntese das matrizes do pensamento acerca do jornalismo,
a teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho e sobre o jornalismo libertador
definido por Elaine Tavares; o segundo é sobre A revista Pobres&Nojentas, no qual faço uma
apresentação da revista, sua história e proposta, e suas editorias; no terceiro capítulo está a
Análise da Pobres&Nojentas, em que reflito sobre o fazer jornalístico que fundamenta a
revista através dos métodos descritos acima. Por último, nas considerações finais indico
sugestões sobre a prática jornalística e as possibilidades e potencialidades do jornalismo
libertador aliado à teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho.

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1. TEORIAS DO JORNALISMO
Neste capítulo faço uma síntese sobre as principais teorias do jornalismo, analisando
as matrizes funcionalistas, estruturalistas e construcionistas, partindo para a teoria marxista do
jornalismo de Adelmo Genro Filho (2012) até chegar ao jornalismo libertador, uma reflexão
sobre o jornalismo feito para e com as comunidades empobrecidas, da jornalista Elaine
Tavares (2004).
Adelmo Genro Filho, no seu livro O segredo da Pirâmide (2012), diz que o jornalismo
é fruto do capitalismo, mas carrega consigo potencialidades que podem ultrapassar esse modo
de produção. Ao constatar a insuficiência das teorias da comunicação para explicar a natureza
específica do jornalismo, Genro Filho (2012), notou que existe uma grande defasagem entre o
fazer jornalístico e as teorizações que se fazem em volta desse tema.
Ao notar essa defasagem o autor irá propor uma teoria marxista do jornalismo. Genro
Filho (2012) vê na notícia, matéria-prima do jornalismo diário, potencialidades que fogem ao
modelo tradicional do lead. Para ele a notícia não deve ser nem panfletária nem imparcial,
mas deve trazer informações que o leitor possa formar por conta própria sua opinião. Para isso
ele traz para o campo do jornalismo as três categorias particular, singular e universal,
utilizadas por Lucáks (1968 apud GENRO FILHO, 2012, p.162).
Para compreender melhor essa lacuna, trago nesse capítulo uma síntese histórica das
matrizes de pensamentos que explicam o jornalismo dentro de uma sociedade de classes e
algumas reflexões sobre o fazer jornalístico. Através dessas leituras pretendo discutir o
jornalismo libertador, um fazer específico inspirado na Filosofia da Libertação que vê no
jornalismo uma possibilidade transformadora da realidade. Com base nesses estudos analiso a
estrutura e a dinâmica da revista Pobres&Nojentas, para ver como o pensamento de Genro
Filho está presente no fazer jornalístico da publicação e onde sua teoria converge para o
jornalismo libertador.

1.1 Sínteses das matrizes de pensamento acerca do fazer jornalístico

Francisco Rüdiger no seu livro “Comunicação e teoria social moderna – introdução


aos Fundamentos da Publicística” (1995) sistematiza as perspectivas filosóficas, conceituais e
históricas do estudo da comunicação. Entre as investigações analisadas por Rüdiger (1995)
está a teoria funcionalista, que pode ser entendida como uma corrente de pensamento na qual
os processos de ação social se estruturam em sistemas que procuram reduzir as tensões do
mundo da vida e manter equilibrado o funcionamento da sociedade.

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Rüdiger (1995) analisa que conforme essa matriz, a comunicação deve ser vista como
fundamento do processo de interação social onde os sistemas sociais surgem em consequência
da necessidade das pessoas coordenarem seu comportamento e da necessidade de cooperação
social entre os homens.
Para a teoria funcionalista, as pessoas se comunicam no dia a dia com uma intenção,
cujo resultado é o cumprimento de determinadas funções necessárias à manutenção do
sistema social. Portanto, a comunicação seria um processo que busca minimizar as tensões e a
reduzir a complexidade dos problemas da interação social. Ou seja, manter o status quo.
Como já foi elencado acima, Genro Filho (2012) irá criticar esse caráter maniqueísta. No
próximo item isso será abordado com mais profundidade.
Essa teoria vai influenciar diversos estudos a respeito do fazer jornalístico. Nelson
Traquina, no livro “Teorias do jornalismo: porque as notícias são como são” (2004), traz
algumas reflexões embasadas na teoria funcionalista que buscam explicar elementos que
caracterizam fazeres específicos dentro do jornalismo como a teoria do espelho, a teoria da
ação pessoal ou a teoria do gatekeeper, a teoria organizacional, as teorias de ação política, as
teorias construcionistas, a teoria estruturalista e a teoria interacionista.
Para a teoria do espelho, as notícias são como são porque a realidade assim as
determina, tendo como ideia chave de que o jornalista é um “comunicador desinteressado”
(TRAQUINA, 2004, p. 148). Essa corrente do pensamento surge em meados do século XIX
com um novo jornalismo – o jornalismo de informação – no qual a separação entre “fatos” e
“opiniões” permeia o debate.
Outra reflexão feita desde este ponto de vista é sobre a teoria da ação pessoal ou a
teoria do gatekeeper que também esboça uma visão funcionalista. A teoria do gatekeeper
surge nos anos 1950 tendo como um dos fundadores David Manning White (1950 apud
TRAQUINA, 2004, p. 148).Traquina aponta que o termo gatekeeper refere-se à pessoa que
toma uma decisão numa sequência de decisões em conformidade com os interesses da
empresa jornalística. Dessa forma, trata-se de uma teoria que privilegia apenas uma
abordagem microssociológica, ignorando por completo quaisquer fatores macrossociológicos.
Traquina (2004) critica a teoria do gatekeeper por trazer igualmente uma concepção bem
limitada do trabalho jornalístico.
A teoria organizacional está focada na organização jornalística onde o jornalista acaba
por ser “socializado” na política editorial da organização através de uma sucessão sutil de
recompensa e punição. Segundo essa “teoria”, as notícias são o resultado de processos de
interação social que têm lugar dentro da empresa jornalística. Dentro desse ponto de vista o

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jornalismo é um negócio. Adelmo Genro Filho (2012) também irá constatar esse caráter
mercadológico da empresa jornalística. Ele aponta que o jornalismo é uma mercadoria, mas
não uma mercadoria qualquer. Sobre isso, também trataremos mais adiante.
Depois das teorias do gatekeeper e a organizacional que surgem nos anos 1950, vão
surgir as teorias de ação política, uma década depois. Naquele período, em diversos países, a
onda de protesto chega às universidades e surgem novos paradigmas. Traquina aponta que na
nova fase de investigação a relação entre o jornalismo e a sociedade conquista uma dimensão
central: o estudo do jornalismo debruça-se sobre as implicações políticas e sociais da
atividade jornalística, o papel social das notícias, e a capacidade do “Quarto Poder” em
corresponder às enormes expectativas em si depositadas pela própria teoria democrática.
Aqui podemos questionar, qual democracia seria essa? A democracia que busca preservar o
capitalismo e o “modo de vida dos países imperialistas”?
Outras reflexões surgidas nesse contexto foram as teorias de ação política, onde os
meios noticiosos são vistos de forma instrumentalista, ou seja, servem objetivamente certos
interesses políticos. Desde esse ponto de vista, as notícias são distorções sistemáticas que
servem aos interesses políticos de certos agentes sociais. Essa versão atribui aos jornalistas
um papel ativo. É criticada a versão da esquerda da teoria de ação política inserida numa
tradição marxista ortodoxa onde o fator econômico é determinante.
No contexto das investigações acadêmicas sobre o jornalismo surgidas nos anos 1970,
surge um novo paradigma: as notícias como construção social opondo-se ao conceito de
“distorção”. Traquina (2004) analisa que nos estudos que utilizam a perspectiva das notícias
como construção, a teoria do espelho é claramente rejeitada, busca compreender a dimensão
cultural das notícias, mas também não nega o status quo.
A teoria estruturalista, apresentada por Herman e Chomsky (1985 apud TRAQUINA,
2004, p.182), ao contrário da teoria de ação política reconhece a “autonomia relativa” dos
jornalistas em relação a um controle econômico direto. Trata-se de uma teoria crítica.
Traquina analisa que, segundo a teoria estruturalista, nunca há um processo de negociação
antes da definição principal. “Encarado com um espaço de reprodução da ideologia
dominante, o campo jornalístico perde o seu potencial como objeto, como recurso potencial
para todos os diversos agentes sociais” (TRAQUINA, 2004, p. 182). A discussão tal qual a
teoria estruturalista não vê saída do modo de produção capitalista.
Outro fator que reforça o status quo é a suposta objetividade ou imparcialidade que o
jornalista necessita ter ao narrar os fatos. Gaye Tuchman, em seu artigo A objetividade como
ritual estratégico: uma análise das noções de objectividade dos jornalistas (1971) sugere que

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a “objetividade” pode ser vista como um ritual estratégico, protegendo os jornalistas dos
riscos da sua profissão. Ela diz que os jornalistas necessitam de uma noção operativa de
objetividade para minimizar esses riscos, pois cada notícia acarreta perigos para o corpo
redatorial e para a organização jornalística. Por isso seria necessário criar estratégias de
trabalho que identificam as notícias como objetivas.
Tuchman (1971) cita que os jornalistas utilizam como estratégias que buscam a
objetividade os procedimentos noticiosos enquanto atributos formais de notícias e jornais, as
decisões baseadas nas relações interorganizacionais e o senso comum enquanto base de
avaliação do conteúdo noticioso. Mas analisa que “embora esses procedimentos possam
fornecer provas demonstráveis de uma tentativa de atingir a objetividade, não se pode dizer
que a consigam alcançar. [...] Em suma, existe uma clara discrepância entre os objetivos
procurados e os alcançados” (TUCHMAN, 1971, p. 89). Ela observa e critica o quanto este
“ritual estratégico” mascara o posicionamento dos jornalistas, como se eles fossem objetivos e
imparciais.
Por isso acredito que a teoria marxista do jornalismo proposta por Adelmo Genro
Filho (2012) pode ser um caminho para se pensar um fazer jornalístico que não seja
panfletário nem imparcial, mas que leve em conta a questão de classe e veja o fato em sua
totalidade, procurando pensar a realidade e atuar sobre ela. Ao atuar sobre a realidade, refletir
e transformá-la, ou seja, a práxis.

1.2 A teoria Marxista do Jornalismo segundo Adelmo Genro Filho

Até então foi muito debatida a questão da comunicação em si, ou a prática jornalística,
com maior foco nos aspectos funcionalistas, construcionistas e interacionistas. Para contrapor
a essas ideias o livro O segredo da Pirâmide – Para uma teoria marxista do jornalismo
(2012) de Adelmo Genro Filho é original ao trazer uma teoria marxista do jornalismo.
Como vimos no item anterior, Genro Filho (2012) analisa que há uma defasagem entre
a teoria e a prática no campo do jornalismo. Para ele as teorias pouco têm feito para lançar
pontes a práxis. Para Genro Filho (2012) o jornalismo não é uma atividade exclusiva do
jornal. O jornalismo é entendido como “uma forma de conhecimento que surge,
objetivamente, com base na indústria moderna, mas se torna indispensável ao aprofundamento
da relação entre o indivíduo e o gênero humano nas condições da sociedade futura” (GENRO
FILHO, 2012, p. 11). Por isso, seria possível um “jornalismo informativo antiburguês”.

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Otto Groth (1910/1965 apud GENRO FILHO, 2012, p. 13) foi o primeiro a tentar uma
teoria do jornalismo, enquanto ciência do jornalismo. Seu pensamento era weberiano e
entendia que “os periódicos são uma obra cultural produzida por sujeitos humanos dotados de
finalidades conscientes, como parte da totalidade das criações humanas” (GROTH,
1910/1965, apud GENRO FILHO, 2012, p. 13). Dentro dessa perspectiva, o periódico
comunica bens imateriais pertencentes ao mundo dos leitores, é um mediador, fica apenas no
abstrato.
Para Genro Filho (2012) é preciso definir a especificidades desses bens, conhecer o
tipo de conhecimento gerado por eles. Descobrir as ambiguidades do jornalismo na sociedade
de classe. Aqui o jornalismo é visto como fenômeno social, não como linguagem. O
jornalismo, no método marxista, não é reduzido à sua gênese nem nas formas de manifestação
da classe dominante, o jornalismo é um veículo de ideologias, mas há nele indícios de crítica
submetida.
O jornalismo nasce no contexto de expansão do capitalismo e do mundo, no qual as
pessoas buscam informações sobre esse mundo complexo e é isso que gera a necessidade de
uma informação diária. Para o funcionalismo apenas a determinação da correspondência entre
um fato considerado “verdadeiro” e aquilo que está conformado pelo entendimento do senso
comum seriam suficientes para narrar a “realidade”. Essa forma de conhecer seria apenas para
manter a sociedade nos eixos, pois não analisa a contradições inerentes ao capitalismo e dessa
forma não traz elementos para que o leitor possa formar sua própria opinião.
Genro Filho (2012) analisa que o positivismo, base teórica mais ampla do
funcionalismo, é o desenvolvimento sistematizado do “senso comum” reificado. “Quer dizer,
relações humanas historicamente determinadas aparecem como pura objetividade, como se
constituíssem uma realidade exterior aos sujeitos, isto é, reificadas” (GENRO FILHO, 2012,
p. 35).
Genro Filho (2012) defende que os próprios fatos não são objetivos, porque pertencem
à dimensão histórico-social, então não se trata de interferências emocionais no relato, mas da
própria ontologia do fato. Há fenômenos e a pluralidade de interpretações. Assim a essência
do fenômeno só pode ser apreendida na relação com a totalidade.
Genro Filho (2012) analisa que mesmo os funcionalistas já pensavam o jornalismo
como uma forma de conhecimento. Cita o ensaio de Robert Park (1940 apud GENRO
FILHO, 2012, p. 49), publicado nos Estados Unidos em 1940, no qual o autor inicia citando o
filósofo William James (1842-1910 apud GENRO FILHO, 2012, p. 49), para distinguir duas
formar de conhecimento: “o conhecimento de” e o “conhecimento acerca de”.

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Para Park (1940 apud GENRO FILHO, 2012, p. 50) a notícia só vive no presente, ela
informa e orienta. Ele a compara ao senso comum. Mas para Genro filho (2012), ainda que
fosse o senso comum não estaria livre das contradições políticas. Essa perspectiva parte de
uma visão positivista, que vê o conhecimento produzido pelo jornalismo como um mero
reflexo empírico e necessariamente acrítico, cuja função é somente integrar o “status quo”. Já
para Genro Filho (2012), “o conhecimento é visto como a dimensão simbólica do processo
global de apropriação coletiva da realidade repleta de contradições” (GENRO FILHO, 2012,
p. 54).
Genro Filho (2012) analisa que na esquerda também se pensa o jornalismo como um
fenômeno da ideologia sem autonomia epistemológica, o que ele não concorda. “Tais
concepções esbarram, em primeiro lugar, nas evidências de um mundo já universalmente
constituído, cujo complexo de mediações não parece passível de regressão” (GENRO FILHO,
2012, p. 58). Nessa perspectiva o jornalismo precisa tomar a história como processo de
autoprodução antológica e a política como dinâmica dos conflitos na práxis.
A “Teoria Geral dos Sistemas” usada por autores marxistas que não compreendem as
potencialidades da informação na relação social é alvo das críticas de Genro Filho (2012).
Eles vêm o jornalismo como uma forma de direção política. Não que o jornalismo seja neutro,
mas não pode ser visto só como controle do sistema. Contrapõe o todo marxista que é
dialético – está permeado por contradições que pode gerar a transformação. À medida que o
“sistema social” é uma totalidade em processo de totalização, ou seja, em processo de
autoconstrução. Para Genro Filho (2012) o que explica a realidade não é a totalidade
sistêmica, mas a práxis, por isso analisa que a “Teoria Geral dos Sistemas” serve à burguesia,
busca o controle, vale o qualitativo.
Analisando a Escola de Frankfurt, Genro Filho (2012) aponta que dentro dessa
tradição há a ideia de cultura como manipulação, dessa forma o jornalismo fica reduzido à sua
forma mercantil. Para ele, os autores dessa corrente (Adorno, Horkheimer, Marcuse,
Habermas e outros) eram críticos, mas não revolucionários. A dialética negativa de Adorno
(1978 apud GENRO FILHO, 2012, p.92) só vê o aspecto divergente entre o movimento da
razão e do real, objetiva, não vê possibilidades e contradições. “Ele busca desvendar o que
considera uma relação essencialmente corrosiva na produção mercantil com a arte e a cultura
no capitalismo moderno, pois considera esse mundo emergente como uma totalidade cindida”
(GENRO FILHO, 2012, p. 92).
Para esta corrente frankfurtiana, a indústria cultural daria a impressão de que as
pessoas não podem intervir, o jornalismo seria pura mercadoria e o consumidor apenas

21
reforçaria a ordem. Mas para Genro Filho (2012), a tecnologia não pode estar desvinculada
das relações sociais, pois estas tornam a cultura tradicional como padrão (GENRO FILHO,
2012, p. 100).
Para Genro Filho (2012), os capitalistas perceberam a real necessidade do jornalismo
(valor de uso) e usaram como fonte de lucro (valor de troca). Ciro Marcondes Filho (1984,
apud GENRO FILHO, 2012, p. 13), analisa que capitalismo e jornalismo “são pares gêmeos”.
Para Genro Filho, não seria apenas isso. Para ele, o capitalismo não é só para satisfazer a
burguesia, ele aparece como um momento histórico universal. “Certamente, o controle, a
manipulação e o engodo são partes integrantes do jornalismo burguês. Mas deduzir a
totalidade do fenômeno jornalístico, como objeto teórico [...] é entrar num beco sem saída”
(GENRO FILHO, 2012, p. 117). Assim, o capitalismo instaura uma necessidade e uma
possibilidade de informação.
O jornalista Nilson Lage (1979) afirma que: “Um jornalismo que fosse a um só tempo
objetivo, imparcial e verdadeiro excluiria toda outra forma de conhecimento, criando o objeto
mitológico da sabedoria absoluta” (LAGE, 1979 apud GENRO FILHO, 2012, 139). Há uma
complexa mediação, tanto objetiva como subjetiva, no processo de reprodução da
singularidade fenomênica dos fatos jornalísticos. Mas não avança, além disso.
Genro Filho (2012) analisa que Nilson Lage (1979) reconhece que o jornalismo, na
concepção moderna, não é sinônimo de manipulação e alienação. Ao contrário, oferece
amplas possibilidades de uma apreensão viva e crítica da realidade social. Mas critica a
análise de Nilson Lage por não ultrapassar os aspectos linguísticos e lógicos do fenômeno,
nos quais as ambiguidades e contradições ficam apenas assinaladas, já que ele não encontra
uma síntese teórica adequada, capaz de unir as ambiguidades e contradições numa totalidade
lógica abrangente. O que escrever, o que abordar, onde focar a notícia – tudo isso são escolhas
subjetivas já que a realidade distante é reconstituída enquanto singularidade.
Outro aspecto apontado por Genro Filho (2012) é como as técnicas funcionalistas vão
sendo usadas também nos países socialistas, a objetividade, o lead. Genro Filho (2012) chega
a defender o lead como um espaço onde aparece a totalidade empírica do fenômeno. “O
caráter pontual do lead, sintetizando as informações básicas geralmente no começo da notícia,
situa o fenômeno como uma totalidade empírica que estivesse se manifestando diretamente
aos sentidos do leitor, ouvinte ou telespectador” (GENRO FILHO, 2012, p. 146). É a
construção que vai do abstrato ao concreto com o real sendo reproduzido como singular –
significativo. Mas, ainda assim o lead não necessariamente precisa ficar no início da notícia,
como veremos mais adiante.

22
Podemos traçar um percurso histórico dos jornais até chegar no jornalismo
informativo com outro caráter de classe. Os primeiros jornais tratavam de questões mercantis,
traziam informações sobre a produção e os negócios. Os segundos tratavam de política. “O
jornalismo opinativo, de combate político aberto, que teve seu apogeu na primeira metade do
século XIX [...] é exatamente o momento histórico no qual vem à tona, de modo mais
evidente, a dimensão particular do fenômeno, isto é, seu caráter de classe” (GENRO FILHO,
2012, p. 149). A terceira fase dos jornais volta ao mercantil com um viés propagandístico. A
originalidade de Genro Filho (2012) está em reconhecer a possibilidade e a necessidade de um
jornalismo informativo com outro caráter de classe, que não seja propaganda. E para fazê-lo é
imprescindível compreendê-lo do ponto de vista teórico.
É a burguesia que inventa o jornalismo, mas o jornalismo não se esgota aí. Porque o
jornalismo possui uma especificidade como forma de conhecimento e sua universalidade
como fenômeno que ultrapassa as fronteiras da dominação burguesa. “A necessidade
burguesa do jornalismo aparece mediada por relações sociais novas, concretamente
constituídas, que fundamentam o surgimento desse fenômeno social” (GENRO FILHO, 2012,
p. 151).
Genro Filho (2012) analisa que as três fases da história do jornalismo permitem captar
três dimensões do fenômeno que compõem sua essência, ou seja, sua universalidade e
especificidade concreta. A primeira fase mostra a composição historicamente particular das
relações econômicas que colocariam a necessidade universal das informações jornalísticas
para toda a sociedade e não mais exclusivamente para os burgueses. A segunda fase mostra
que o jornalismo é também um instrumento de classe e de luta política. A terceira fase supera
as duas em função de uma necessidade social.
O valor de uso das informações sobre os mais variados aspectos da vida social
transforma-se em valor de troca. A propaganda perde o valor de uso e surge a necessidade do
jornalismo informativo. É a necessidade social do jornalismo que obriga o poder hegemônico
a criar o mito da imparcialidade. Na sociedade de classes essa universalidade exigida é
mediada por interesses particulares da classe dominante.
Genro Filho (2012) critica também a manipulação feita pela esquerda, que para ele é
um erro. Como exemplo cita atribuir a um fracasso econômico ou político o caráter de vitória
como uma evidente manipulação que despreza não só o bom senso como as evidências
objetivas de fato. O autor analisa que o jornalismo foi criado pela burguesia, é ideológico,
mas inaugura uma complexidade e uma dinâmica de ordem superior nas classes sociais. O
autor quer mostrar que o jornalismo está para além das classes.

23
O jornalismo objetivo burguês também usa o singular, mas como o senso comum, sem
levar em conta as dimensões do particular e do universal, é a singularidade reificada. Assim,
segundo Genro Filho (2012), a busca da “especificidade” na atividade jornalística limita-se a
uma receita técnica de fundo meramente empírico. Dessa forma, seguir as regras sem
conhecer, faz com que o jornalista seja usado pela ideologia burguesa e a da fragmentação
que ela proporciona. Nessa perspectiva, a totalidade é vista como soma das partes e a
realidade é imutável. Genro Filho (2012) critica essa visão por entender que a realidade é
construída nas relações sociais e a práxis não é um reflexo da realidade, ela é essa relação,
uma atividade mútua entre sujeito e objeto.
As categorias do singular, particular e universal, na teoria lukacsiana da arte,
interessaria, acima de tudo, pela transposição das categorias utilizadas para a elaboração de
uma teoria do jornalismo. Genro Filho (2012) diz que essas categorias expressam dimensões
reais da realidade e por isso podem dar conta de modalidades históricas do conhecimento
conforme as medições que estabelecem.
A singularidade se expressa na atmosfera cultural da imediaticidade compartilhada e a
particularidade é o mais abstrato no interior da cultura que por sua vez apresenta pressupostos
universais. O jornalismo se faz deliberadamente no singular recolhendo em si o particular e o
universal. A singularidade é o ponto de chegada, superando em parte o universal, mas que não
desaparece. Há uma relação dialética aí entre os conceitos que abarca diferentes aspectos da
realidade.
Genro Filho (2012) vai dizer que apesar do jornalismo ser condicionado
historicamente pelo capitalismo, possui potencialidade para ultrapassar este modo de
produção porque traz em si as contradições. Como já vimos, o jornalismo muda na segunda
metade do século XIX com as grandes transformações na imprensa, coincidindo com a
expansão mundial do capitalismo e o aparecimento de inovações tecnológicas ligadas direta e
indiretamente à reprodução e circulação das informações.
Nesse contexto nasce o jornalismo informativo, com uma ideia simplista de que “os
fatos são sagrados” e de que a opinião pertence a uma órbita autônoma, e veio a tornar-se a
expressão prosaica do que viria a ser a “ideologia” e a “objetividade”. Na América Latina
seguimos o modelo dos EUA – consolidado em 1930 – com o rádio – no repórter Esso.
Ligado à dependência informativa e à subordinação ao capitalismo mundial.
Genro Filho (2012) analisa que em função também de condições internas e não apenas
externas, o “conceito objetivo de notícia” acabaria se impondo. Portanto, não basta recusar
isso, há que pensar sobre isso e superar. Através da história da imprensa percebemos que

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foram os banqueiros e os mercadores os primeiros interessados em receber e utilizar os
jornais. Com a invenção da prensa por Gutemberg os jornais começam a se espalhar pela
Europa. “Embora tenham nascido, de fato, à sombra de interesse dos banqueiros e
mercadores, essas gazetas semanais que se espalharam pela Europa [...] já apontavam para
uma vocação emergente do jornalismo” (GENRO FILHO, 2012, p. 176).
Como a informação ainda era de difícil acesso a dimensão universal dos fatos era
pouco apreendida. Hoje a dimensão do universal está clara para quase todos por conta da
rapidez da informação. A cidadania é real, o que não existe é a igualdade que ela implica. Na
cidadania capitalista as relações são entre o capital e o trabalho. Portanto, de acordo com o
pensamento marxista superar isso não é destruir a cidadania, mas realizá-la sob a ótica da
classe trabalhadora. O jornalismo aparece aí como necessário para dar visibilidade a essa
cidadania potencial. Ele serve para fortalecer o status quo, ou não, pode também
problematizá-lo.
Genro filho vai apontar a potencialidade revolucionária do jornalismo. “O jornalismo
moderno possui não só um potencial crítico e revolucionário na luta contra o imperialismo e o
capitalismo, mas um ‘um potencial desalienador’ insubstituível para a construção de uma
sociedade de classe” (GENRO FILHO, 2012, p.188). Pois segundo o autor, no capitalismo, as
singularidades em que se manifestam os fenômenos sociais tendem, pela interpenetração e a
dinâmica de manifestações, a expressar cada vez com mais vigor e evidência as contradições
fundamentais da sociedade.
Genro Filho (2012) apresenta conceitos e elementos para a construção dos fatos
jornalísticos, na qual a própria realidade objetiva é, em certa medida, indeterminada. Nessa
perspectiva o conhecimento constitui-se como processo infinito. Ele aponta que no caso da
realidade histórico-social há outra questão que é o comprometimento político, tendo a práxis
como seu verdadeiro critério. Também diz que há uma transformação na relação sujeito-
objeto, onde um transforma o outro.
Uma analise importante na teoria de Genro Filho (2012) é sobre a história e os mitos
da pirâmide invertida, na qual a notícia caminha do “mais importante” para o “menos
importante”. Ele afirma que “o segredo da pirâmide é que ela está invertida, quando deveria
estar como as pirâmides seculares do velho Egito: em pé, assentada sobre sua base natural”
(GENRO FILHO, 2012, p. 201). Nessa ótica, o lead funciona como o princípio organizador
da singularidade, é o epicentro do singular. Mas não precisa estar no primeiro parágrafo como
já apontado anteriormente.

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Genro Filho (2012) aponta que o jornalismo não deve ser feito dentro da lógica da
manipulação. Porque é no processo do conhecimento que a realidade vai sendo integrada, já
que ela se mostra primeiro como caos, como algo desconhecido e imprevisível. Aponta que
nas sociedades de classe existe sempre um antagonismo político e ideológico tensionando o
sistema. Partindo dessa premissa é que se pode pensar a cultura em geral e o jornalismo em
particular como práxis, não apenas como manipulação e controle. A partir dessa análise irá
visualizar a realização do comunismo, sem o qual não pode ser pensada sem o pleno
desenvolvimento do jornalismo e seu aporte na transformação da realidade.

1.3 O Jornalismo libertador

A obra de Genro Filho, O Segredo da Pirâmide (2012), será fundamental para gestar o
jornalismo libertador. A partir dos pressupostos da teoria marxista do jornalismo, Elaine
Tavares (2004) irá refletir sobre o fazer jornalístico e propor uma reflexão inspirada na
Filosofia da Libertação sobre como fazer comunicação em comunidades empobrecidas. Um
dos resultados desse trabalho será a criação da revista Pobres&Nojentas.
O Jornalismo libertador é uma reflexão na qual a jornalista Elaine Tavares propõe
sobre o fazer jornalístico e que parte dos pressupostos da Filosofia da Libertação. Essa, uma
corrente de pensamento que surge na América Latina, nos idos dos anos 1960, tendo como um
dos seus mais importantes fundadores o filósofo argentino Enrique Dussel (1943). Ele “se
dispôs a pensar o mundo a partir do ponto de vista do oprimido, da vítima que está fora do
centro, fora da totalidade, e a produzir um discurso filosófico que nasce da realidade latino-
americana” (TAVARES, 2004, p.18). Foi esse trabalho que inspirou Tavares a apresentar esta
proposta que chama de Jornalismo libertador.
O teórico brasileiro Luiz Beltrão (1980 apud TAVARES, 2004, p.12) é um dos
primeiros a falar sobre um jornalismo feito nas e para as comunidades marginalizadas, no seu
livro chamado Folkcomunicação – a comunicação dos marginalizados. Segundo o teórico,
essa comunicação seria um processo artesanal e horizontal, semelhante aos tipos de
comunicação interpessoal, já que as mensagens são elaboradas, codificadas e transmitidas em
linguagens e canais familiares a uma audiência conhecida pelo comunicador, ainda que
dispersa.
Beltrão (1980 apud TAVARES, 2004, p. 12) levanta elementos e indagações
fundamentais para se começar a pensar a comunicação independente e autônoma, que pulula
nas comunidades. Também faz uma espécie de inventário de tudo o que se expressa nestas

26
comunidades ditas marginalizadas e que esse tipo de comunicação normalmente é tratado
como mera expressão de folclore ou cultura popular. Ele cita como exemplo os eventos
acontecidos no meio rural, tais como as festas religiosas, exposições, feiras, catiras, xaxados,
rodeios, e no meio urbano, o carnaval, os dias cívicos, as passeatas, os grafites, as legendas de
caminhão e as festas populares. Para Tavares (2004), tudo isso, longe de ser só cultura ou
folclore, é também uma maneira que a população encontra para se comunicar.
Na década de 1980 na América Latina e, consequentemente, no Brasil, existiam
experiências concretas de intervenção nesta realidade, muitas delas também pautadas na ideia
de libertação, visto que boa parte do continente estava sob ditadura militar. Comunicadores,
jornalistas e educadores populares passam a trabalhar nas comunidades com uma
comunicação popular, feita pelas, para e nas comunidades. Tavares (2004) aponta que essa é
uma comunicação de resistência que vai se espalhando como um rastro de pólvora por todo o
continente, fazendo frente a governos ditatoriais, ao poder instituído e à exclusão completa do
pobre dos meios tradicionais de comunicação.
Essas práticas são chamadas por Grinsberg (1987 apud TAVARES, 2004, p. 12) de
comunicação alternativa. Para ele, uma informação no meio alternativo deve contextualizar a
realidade para que a comunicação não seja confundida com propaganda e o receptor/receptora
não seja visto/a como um objeto. Nesse sentido, o meio alternativo deve surgir na práxis
social, quando se faz necessário para “gerar mensagens que encarnem concepções diferentes
ou opostas às difundidas pelos meios dominantes” (GRINSBERG, 1987, p. 24 apud
TAVARES, 2004, p. 13). Sempre dispostos a modificar em algum sentido a realidade.
“Achamos que para ser verdadeiramente alternativo, não basta que o meio esteja à margem
das redes de distribuição da grande imprensa, mas deve ostentar uma diferença qualitativa em
face dela” (GRINSBERG, 1987, p. 24 apud TAVARES, 2004, p. 13).
Carlos Hurtado (1992 apud TAVARES, p. 13) dá um sentido mais político ao que vai
chamar de comunicação popular. Para ele a comunicação popular deve existir para
transformar o mundo, num processo a partir da própria comunidade organizada. Assim, a
comunicação precisaria ser gestada na comunidade. “Na sua proposta, a comunicação feita
nas comunidades deveria ser algo mais do que a oposição ao controle dos meios. Seria uma
manifestação inequívoca contra o sistema total de dominação” (TAVARES, 2004, p. 14).
Pedro Gilberto Gomes (1990 apud TAVARES, p. 14) vai aprofundar essa discussão
no livro “O jornalismo alternativo no projeto popular”, e trazer outros autores que
contribuíram para pensar o jornalismo como fazer específico dentro dessa perspectiva. Dessa

27
discussão nasce a imprensa comunitária. Esse nome surge durante a década de 1970 a partir
do trabalho da igreja progressista e suas Comunidades Eclesiais de Base, as CEBs.
Segundo José Marques de Melo (1989 apud TAVARES, p. 15), contudo, só pode ser
considerada comunitária a imprensa que se estrutura e funciona como meio de comunicação
autêntico de uma comunidade. Segundo ele, isso significa dizer: produzida pela e para a
comunidade. Tavares (2004) acrescenta ainda que a imprensa comunitária, mais do que pela e
para, precisa se fazer com a comunidade. Esse fazer junto é o que vai garantir o
protagonismo da comunidade, sem que sejam necessários “heróis” de fora para garantir a voz
dos oprimidos. Eles mesmos falam com suas próprias vozes.
Toda esta discussão teórica a respeito do nome que deveria ter esse tipo de
comunicação feita junto aos empobrecidos levou Tavares (2004) à outra questão “nominal”. A
do significado de comunidade. Segundo o dicionário Aurélio significa qualidade do que é
comum, sociedade, lugar onde residem indivíduos agremiados, comuna. Mas, para ela, o
sentido se amplia. Uma problemática apontada pela autora é por que sempre quando se pensa
em localidades empobrecidas falamos em comunidade? E contextualiza que essa expressão se
origina das CEBs, trabalho de organização e evangelização popular iniciado pela igreja no
período do regime militar.

A partir da opção preferencial pelos pobres, a igreja progressista começa um


trabalho em que fé e política se dão as mãos num projeto emancipador. Nele, os
povos oprimidos nas cidades e nos campos, depois de todo um processo de
construção do que seja ser sujeito, se reconhecem como pessoas em luta, juntas.
Assim, comunidade passa a ter novo significado, quer dizer “lugar onde as pessoas
conspiram”, como diria Rubem Alves. Co-aspiram, respiram juntas na luta por
melhores dias, por justiça, por distribuição de riqueza (TAVARES, 2004, p. 15).

Para Tavares (2004), comunidade é o espaço onde as pessoas se encontram dentro da


cidade, lugar onde elas se acham, encontram suas raízes e se replantam. É um espaço
organizado no qual vibra uma vontade imensa de transformar a realidade de miséria, opressão,
desigualdade e injustiça. “Assim, para nós, jornalistas, estar em comunhão com estas
comunidades não significa unicamente uma opção de vida, mas uma nova maneira de
perceber o mundo, de ver o mundo onde estamos inseridos e de conceber o jornalismo”
(TAVARES, 2004, p. 16).
Para a autora, um jornalismo que se pretenda transformador e que trabalhe nessas
comunidades, precisa andar na margem, encontrar outras veredas que possam dar em outros
lugares que não no centro da sociedade que aí está construída, capitalista e opressora. “O
jornalismo feito nas margens quer outra sociedade, distribuição da riqueza, sujeitos cientes de

28
sua força e beleza. Então, não basta a ele ser comunitário ou popular. Precisa ser também
libertador” (TAVARES, 2004, p.16).
É na senda dessa discussão que surge a proposta que Tavares (2004) chama de
jornalismo libertador, uma reflexão sobre o fazer jornalístico que parte dos pressupostos da
Filosofia da Libertação. Na Filosofia da Libertação uma discussão de fundo é a questão do
ser. Historicamente, ao longo dos tempos, o mundo ocidental baseou-se no conceito helenista
(grego) do ser.
Para os gregos havia duas interpretações acerca do ser: O ser é, o não ser não é. Isso
significa que para os gregos, apenas aquilo que era igual a eles era considerado ser. O que
diferia em algum aspecto era o não-ser, o bárbaro, o diferente (escravos, mulheres, crianças,
gente de outras terras, outros costumes). “A Filosofia da Libertação vem trazer um novo
conceito para esse suposto grego, e para isso trabalha com a visão semita de homem e
mulher.” (TAVARES, 2004, p.19). Nessa filosofia o ser é, o não ser é real e segundo Tavares
(2004) essa mudança é radical porque se você vê algo que não é igual a você, mas não o nega,
está começando a entender o que seja efetivamente um processo libertador.
Na Filosofia da Libertação contrapõem-se dois conceitos básicos: o da totalidade e o
da exterioridade. “A totalidade é fechada, eterna repetição do mesmo, princípio justificador da
dominação, afirmação do ser como absoluto (gregos). Já a exterioridade aparece como uma
abertura possível ao outro, não absolutiza o ser, é princípio metafísico da alteridade”
(TAVARES, 2004, p. 19).
O jornalismo libertador, segundo Tavares, comunga dos pressupostos da Filosofia da
Libertação no que diz respeito à alteridade na medida em que é capaz de pensar o outro como
outro, diferente, mas real. “O jornalismo libertador trabalha com a ideia de que é preciso
contar as histórias dos oprimidos, dos deserdados, dos desvalidos, que é preciso narrar o
mundo do ponto de vista da realidade do outro, do que está fora do centro” (TAVARES,
2004, p. 20). Para isso, o jornalista precisa estar preparado para olhar o mundo com os olhos
da alteridade.
Existem três elementos que caracterizariam o jornalismo libertador. O primeiro seria
olhar o mundo a partir do ponto de vista local. “Analisar e refletir toda a realidade que cerca a
comunidade, desvelar seu contexto, saber como essa comunidade nasceu, quais são suas
referências, qual o papel que representa no todo municipal [...]” (TAVARES, 2004, p. 20).
O segundo elemento dessa teoria é o ser. No jornalismo libertador, a fonte é vista de
forma muito diferente da do conteúdo funcionalista. Ela não é objeto, é sujeito. Para Tavares
(2004) “o jornalismo libertador é aquele capaz de pensar o outro como outro, aberto à

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diferença, sem pré-conceitos, vendo o outro na sua multiplicidade, ficando face-a-face com
ele, dando-lhe nome e historicidade” (TAVARES, 2004, P. 21).
O terceiro elemento é o próprio jornalista que precisa se refazer-se. Para isso Tavares
(2004) diz que é preciso que o jornalista deixe para trás toda a casca construída sobre as bases
funcionalistas, objetivistas, impessoais. Para ela, trabalhar na perspectiva da libertação supõe
um homem e uma mulher diferentes, capazes de conspirar da beleza que é se comprometer, se
envolver, partilhar. Mas, salienta que isso não significa perder de vista a objetividade dos
fenômenos que são narrados, tal qual já ensinou Adelmo Genro Filho (2012).
Nesse sentido, o jornalista libertador precisa re-inventar o jornalismo no contexto do
seu tempo, sendo um ser poético, que vá para além do humano, que consiga enxergar o que há
de singular nos fatos, que ultrapasse a barreira da normose (a normalidade dos fatos), do
igual, e caminhar na vereda da ética. Ou seja, olhar o mundo com o olhar do amor-
compromisso e estabelecer uma relação intimista com os perdidos da história, os oprimidos.

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2. A REVISTA POBRES&NOJENTAS

A partir das teorias apresentadas no capítulo anterior, as quais realizam uma


interpretação sobre o jornalismo hegemônico, e também as perspectivas teóricas com as quais
trabalhamos nesse projeto – voltado ao jornalismo libertador, mostramos nesse capítulo o
objeto da nossa pesquisa: a revista Pobres&Nojentas.
A partir dessas reflexões do que seja o jornalismo libertador nasce a revista
Pobres&Nojentas, em 2006, com uma proposta bastante específica: narrar as vidas às
margem, tendo como perspectiva teórica a teoria marxista do jornalismo, de Adelmo Genro
Filho (2012), e o jornalismo de libertação, de Elaine Tavares (2004). A revista, editada em
Florianópolis (SC), iniciou com periodicidade trimestral, e o primeiro número circulou em
maio de 2006, e chegou a ter 30 edições. No formato 23,5 x 21 cm, com 28 páginas (incluindo
a capa e contracapa), conforme demonstrado na Figura 1.

Figura 1: Primeira edição da revista Pobres&Nojentas

A revista trouxe em suas 30 edições, além das reportagens, perfis, poemas, a coluna de
receitas As delícias de Su&eLi, agendas culturais, ensaios fotográficos, as histórias das
mulheres da América Latina narradas pelo jornalistas Raul Fitipaldi, artigos, agenda cultural e
colunas de opinião. Narrativas que mostraram a realidade da cidade de Florianópolis, fazendo
vínculo com as coisas que aconteciam no Brasil, na América Latina e no mundo (durante sua
publicação foram feitas matérias na Argentina, Bolívia, Honduras, Equador, Cuba e África).

31
Ali encontramos as lutas pelo Plano Diretor, a vida dos Guarani, a histórias das Mulheres
Latino-Americanas, a busca por vida boa e bonita para todos.
A revista surge numa conjuntura muito particular na América Latina. Naqueles anos,
do início do século XXI, apareciam com muita força vários governos progressistas em todo o
continente, em cujos países as comunidades empobrecidas foram sendo fortalecidas nas lutas
dos movimentos sociais, que caminhavam em sintonia com os governos. Um exemplo disso
foi a Venezuela que, sob o comando de Hugo Chávez, robusteceu a participação das
populações empobrecidas. Esse protagonismo popular que se levanta dá as condições
históricas para que uma revista como a P&N nasça e se fortaleça também. Esse contexto será
o cenário por onde transitam as narrativas da P&N, buscando trazer a tona essas realidades
que se constroem no dia a dia a partir de uma perspectiva de gênero, uma mirada feminina,
com foco na questão de classe.
Criada por mulheres jornalistas, fotógrafas, editoras, escritoras, a revista veio a ser
também uma experiência de resistência num meio de publicações majoritariamente composto
por homens. Não aprofundarei aqui esse tema por focar na relação do jornalismo libertador
com a perspectiva da teoria marxista do jornalismo elaborada por Adelmo Genro Filho (2012)
para ver como convergem essas reflexões, não sendo possível adentrar na vasta bibliografia
sobre questões de gênero. Mas, reconheço que a revista P&N teve um papel fundamental
nesse debate na cidade de Florianópolis durante suas publicações ao se contrapor ao modelo
hegemônico e machista dentro do jornalismo e ao narrar às vidas das mulheres – a partir do
olhar das mulheres - em busca de vida boa e bonita.
Minha intenção nesse trabalho é mostrar como as propostas de narrativa jornalística de
Genro Filho e Tavares podem caminhar juntas. Para isso, analiso algumas reportagens que
foram divulgadas na publicação que chegou a ter 30 edições impressas, depois sendo
transposta para a plataforma digital em forma de entrevistas audiovisuais. A revista sempre
pautou sua abordagem na narrativa da vida que se expressa às margens, nas comunidades de
periferia, nas lutas sociais, buscando trazer à luz temáticas que não são trabalhadas pela mídia
comercial. E além de dar foco na periferia, os textos procuraram sempre trabalhar no trânsito
entre o singular, o particular e o universal, o que determina o encontro desses dois pontos de
vista sobre o jornalismo – marxista e de libertação.

2.1 História

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Para obter as informações acerca da revista Pobres&Nojentas entrevistamos as
jornalistas Elaine Tavares e Miriam Santini, criadoras da revista. Utilizamos aqui o método de
entrevista em profundidade. Jorge Duarte (2015) explica que a entrevista em profundidade é
um recurso metodológico que busca, com base em teorias e pressupostos definidos pelo
investigador, recolher respostas a partir da experiência subjetiva de uma fonte, selecionada
por deter informações que se deseja conhecer. Adotamos, a partir desse método, o modelo de
entrevistas abertas tendo como tema central a história e a proposta da revista P&N. Segundo
Jorge Duarte (2015), a entrevista aberta é essencialmente exploratória e flexível, não havendo
sequência predeterminada de questões ou parâmetros de respostas.
A revista Pobres&Nojentas é criada em 2006, num contexto muito singular da história
brasileira. Naquele ano se encaminhava para o fim o primeiro mandato do então presidente
Luiz Inácio Lula da Silva, uma liderança do movimento dos trabalhadores. Os primeiros anos
de governo, que tinham sido aguardados com muita esperança pelas comunidades
empobrecidas, não apresentavam as mudanças estruturais esperadas e não fomentavam as
grandes lutas sindicais, sociais e populares do Brasil. Pelo contrário, o governo, cada vez mais
caminhava para uma proposta de conciliação de classe, domesticando inclusive as propostas
mais radicais de luta. Por conta disso se fazia necessário um pensamento crítico, que não
encontrava espaço na mídia comercial.
Na América Latina, nesse mesmo período, os governos progressistas estavam em
ascensão com propostas que buscavam estabelecer o diálogo com a luta dos trabalhadores,
avançando em reformas estruturais, pelo menos em alguns países. Hugo Chaves, na
Venezuela, é um bom exemplo disso. Ele consolida um governo de participação popular no
qual são criadas as famosas “missões”, estruturas organizativas comandadas pela população
nos bairros e comunidades. Também coloca em vigor – depois de longos debates públicos e
populares – a Lei Resort, uma lei que regulamenta a ação da mídia no país, buscando acabar
com os monopólios das grandes empresas de comunicação, fortalecendo os meios
independentes. Na Bolívia também é chegada a hora dos povos originários, que finalmente
elegem um presidente não apenas indígena, mas também de esquerda, que dará vida à
chamada “revolução cultural”. Com ele e com a força popular nasce o Estado Plurinacional,
que respeita as culturas originárias não apenas na sua cosmovisão, mas também na sua forma
de organizar a vida. São mudanças extraordinárias, que pedem uma nova narrativa também no
jornalismo.
Mas, apesar dessa conjuntura novidadeira e explosiva nos países latino-americanos
como Venezuela, Bolívia, Equador, Uruguai, Argentina e Nicarágua, no Brasil, tanto o

33
jornalismo comercial como o alternativo e popular se mostravam adormecidos, sem constituir
um espaço de reflexão crítica acerca dos problemas brasileiros na relação com os avanços
apresentados nos demais países. Algumas entidades ligadas à comunicação seguiam fazendo o
debate sobre a democratização da mídia, mas não avançavam. O governo continuava surdo
diante das propostas de uma lei de regulamentação ou de regulação dos meios comerciais. A
comunicação não aparecia como prioridade para o governo Lula. A jornalista Elaine Tavares
no artigo “Apontamentos sobre as leis de meios na América Latina” (TAVARES, 2014, ed.
825), publicado no site do Observatório da Imprensa, analisa as mudanças ocorridas no
campo da comunicação nos outros países da América do Sul e nota o atraso que há nos
debates feitos no Brasil:

Desgraçadamente, no período de ascenso dos governos populares na América do


Sul, o Brasil ficou para trás. Elegeu Lula – nascido do mundo popular/sindical – mas
ele não teve coragem de mexer com a questão comunicacional. Ao longo de mais de
10 anos de governo petista – incluída aí a presidente Dilma Rousseff –, as entidades
sindicais e populares ligadas ao mundo da comunicação, tais como a Federação
Nacional dos Jornalistas (Fenaj), O Fórum Nacional de Democratização da
Comunicação (FNDC) e o coletivo Intervozes, têm buscado uma interlocução com o
governo e com o legislativo no sentido de promover mudanças legais, de criar
regulação. Mas, essas iniciativas não têm tido muito sucesso. No que diz respeito às
Centrais de Trabalhadores, tampouco essas produziram algum trabalho mais forte no
sentido de discutir com seus filiados a democratização desse setor estratégico.

No campo da luta social, foi a reforma da previdência para os trabalhadores públicos


que conseguiu mobilizar algumas entidades sindicais em 2004 e 2005, mas apesar do grande
desmonte, a luta não conseguiu encontrar eco nos demais movimentos, que já adormeciam na
cooptação ou na esperança de que Lula salvaria o Brasil. Mas, em Florianópolis vicejava o
debate sobre o Plano Diretor, e isso movimentava toda a cidade em encontros e
movimentações. A jornalista Elaine Tavares acompanhou as discussões do Plano Diretor e
cobriu de forma intensa as manifestações ocorridas na cidade, publicando matérias e
reportagens no seu blog “palavras insurgentes”. Na matéria “Campeche se mantém unido e
mobilizado pelo Plano Diretor” (TAVARES, 24 de maio de 2011) é possível acompanhar
como surge esse movimento.

A batalha por um plano diretor com cara do povo daqui não é de hoje, vem desde o
início dos anos 80 do século passado. Naqueles dias, quando a cidade de
Florianópolis começou seu processo de inchaço, as lideranças locais, antenadas com
a realidade do município principiaram um movimento que buscava delimitar regras
para o bem-viver no bairro. Esse desejo se concretizou na organização dos surfistas
locais que, dispostos a preservar as ondas, acabaram por criar um movimento de
cuidado com o bairro que nunca mais parou. Nos anos 90, os surfistas, as
associações de moradores e outros tantos movimentos que passaram a se organizar
no bairro deram início a um processo de elaboração de Plano Diretor Comunitário e

34
Participativo. Esse trabalho culminou em 1997 quando, no Primeiro Seminário
Comunitário de Planejamento foi apresentado o Dossiê Campeche, com todas as
demandas levantadas pelos movimentos locais. A prefeitura, como sempre surda aos
interesses das pessoas, não levou em consideração as demandas da comunidade e,
em 1999, entrega à Câmara de Vereadores um projeto próprio. O Campeche não
desanimou, constituiu o seu Plano Diretor e no ano 2000 apresentou sua proposta
aos vereadores. Seria, então, o primeiro bairro da cidade a ter o seu próprio plano,
fruto de organização interna.

E foi numa dessas manifestações, depois de uma passeata no centro de Florianópolis,


que as jornalistas Elaine Tavares e Míriam Santini se encontram na padaria Brasília, na Praça
da Figueira, em Florianópolis, com Jussara Godoi, que ocupava o cargo de técnica-
administrativa na Universidade Federal de Santa Catarina. Nessa conversa Jussara Godoi
sugeriu às jornalistas que criassem uma revista para contar as histórias das gentes e das lutas
que não apareciam nos jornais nem na TV.
A proposta de Jussara começou a ser desenhada dentro da ideia da Companhia dos
Loucos, editora independente que já havia sido criada em 2003 pelas jornalistas Elaine
Tavares e Raquel Moysés. Em entrevista a este pesquisador a jornalista Elaine Tavares
comenta:

Criamos a editora para ajudar a divulgar os trabalhos de reportagem dos nossos


alunos, na Faculdade de Jornalismo da Univali, onde dávamos aulas. Diante de
tantos trabalhos bons e sem espaço nas editoras comerciais buscávamos ajuda para
transformá-los em livros. Editávamos e imprimíamos numa proposta cooperativa.
Nós duas pagávamos a impressão com recursos próprios e depois ajudávamos a
vender os livros para que ele mesmo se pagasse. Pelo menos quatro livros já tinham
sido feitos dessa maneira e percebemos que a revista poderia ser editada da mesma
forma. Decidimos que a nova revista poderia ser feita assim.

Aí veio a questão sobre como dar nome a essa revista. Naqueles dias havia uma
revista de celebridades e novos ricos que era o que todas no grupo consideravam uma
verdadeira excrecência: A Caras. Ela mostrava, como se fora jornalismo, a vida dos ricos e
famosos nos seus aspectos mais tolos. Então, já que a perspectiva do grupo era narrar vida das
pessoas comuns e suas lutas diárias por vida boa e bonita, fazendo assim a crítica ao
jornalismo de celebridades, o nome encontrado e aprovado foi o de Pobres&Nojentas. A
jornalista Míriam Santini explica o porquê do nome:

Era uma provocação. Dar luz aos empobrecidos e fomentar a criticidade. A palavra
“nojenta” que vem agregada ao nome, nesse caso, não tinha qualquer conotação de
sujeira ou coisa ruim. Era uma expressão bastante usada no Rio Grande do Sul, que
se refere a uma pessoa sem medo, desafiadora, que questiona o velho e busca criar o
novo. Era o nome perfeito.

35
É nesse contexto e com essa história que nasce a revista P&N, buscando se contrapor a
esse jornalismo de celebridades, sem criticidade, narrando a vida das pessoas comuns que são
as que, de fato, constroem o mundo nas suas lutas diárias. Partindo de uma reflexão sobre um
fazer jornalístico que levasse em conta a questão de classe e de gênero, baseada no jornalismo
libertador, proposta que já explicitamos no capítulo anterior.
A P&N marcou uma época na cidade de Florianópolis, desvelando as tramoias do
Plano Diretor, a especulação imobiliária e a luta das pessoas que não servem de pauta para os
meios de comunicação comercial. Mostrar essa narrativa e evidenciar que ela é possível
passou a ser de fundamental importância naquele momento em que o jornalismo apresentava
uma visível decadência, aparecendo muito mais como propaganda do que como narração da
vida.
Uma das reportagens que citaremos mais adiante como exemplo é sobre as mulheres
da comunidade Chico Mendes, que decidiram narrar suas vidas em um livro. Essas mulheres
queriam mostrar que não só os ricos e famosos têm vez no mundo das publicações. Outro
exemplo é a matéria sobre o campo de golfe no Costão do Santinho, uma proposta que viria
destruir todo o aquífero dos Ingleses e que só era comentada a “boca pequena” pelos
jornalistas e pela prefeitura. Nenhuma matéria saiu sobre o assunto, a não ser na Pobres. São
exemplos que mostram a importância de narrativas que retratem a vida da cidade. Elaine
Tavares comenta sobre o público alvo da revista e as dificuldades na publicação:

Por ser uma revista impressa a P&N chegava a um público que muito provavelmente
não tinha acesso à internet. Seu foco era a população das comunidades de periferia,
normalmente carentes de informação de qualidade. Era distribuída, gratuitamente,
no terminal central, de mão em mão, e nos sindicatos. Toda a produção era feita de
forma voluntária e os recursos para a impressão vinha das próprias jornalistas que
assinavam pela edição. O Sindiprev SC (Sindicato dos Trabalhadores da Previdência
Social) era uma das raras entidades que dava alguma uma ajuda de custo, variando
de 200 a 300 reais. Para ajudar no barateamento da impressão, sempre foi
fundamental a figura do “seu” Hélio, dono da gráfica, que se solidarizava e apontava
formas para que a publicação custasse menos, como a sugestão de acabar com a capa
colorida, que consumia muito dinheiro.

A P&N também foi uma espécie de sementeira para outros meios de comunicação
alternativos. Na época existiam poucos veículos, e poucos jornalistas, que se propunham a
fazer um jornalismo comprometido com as lutas dos trabalhadores na cidade de Florianópolis.
O trabalho realizado ao longo de anos aglutinou outros profissionais que, mais tarde, foram
buscando caminhos próprios, mas dentro da mesma proposta. Um caso é o do jornalista Raul
Fitipaldi, que atuou na Pobres e depois fundou o Portal Desacato, mais tarde consolidado na
Cooperativa de Trabalhadores. Anos depois, quando a Pobres passou do impresso apenas para

36
a internet, outros coletivos surgiram, trabalhando com os trabalhadores e com as pautas da
cidade. O grupo da Pobres foi decisivo para que esse jornalismo pudesse florescer.
Nesse sentido a revista Pobres&Nojentas também cumpriu um papel pedagógico nas
suas publicações porque mostra uma outra forma de se relacionar com o mundo. Por ser uma
revista marginal (no sentido de caminhar às margens) também não alcança um grande público
por ter uma impressão limitada por causa dos custos de impressão e distribuição em apenas
duas bancas: a da UFSC e a da Catedral, ou de mão em mão. Quando a revista completa três
anos de publicação a equipe lança um editorial comentando esse desafio (n° 11, jan/fev de
2008, p. 04):

Ocorre que a Pobres&Nojentas não é uma revista qualquer, feita para vender da
maneira fácil, como por exemplo a Caras ou a Tititi. Estas são revistas óbvias.
Caras é o retrato da superficialidade, já o diz seu nome, é a aparência, o fugaz. Titit
é o reino da fofoca, do boato, do maldizer, e assim por diante. O nome das revistas já
diz tudo. É óbvio, seguro, ululante. A Pobres&Nojentas, não. Ela é uma revista
difícil. Ela provoca, de cara, um estranhamento. A pessoa pode até achar que
entendeu a proposta pelo nome, mas se olhar a revista vai ver que é outra coisa. E aí
que ela se diferencia de todos esses títulos que aí estão. A P&N é um convite ao
pensar. É pedagógica desde o primeiro olhar. Ela requer do leitor um movimento de
mergulho, de busca, de deciframentos. Ela não é óbvia. E ela precisa ser conhecida
assim, devagar, tateando, como todas as coisas que realmente se conhece e, depois,
se ama.
Por isso que o nome Pobres&Nojentas não é “vendável”, não é “comercial”. Porque
a própria idéia da revista nasceu de uma outra forma de se relacionar com o mundo.
O pequeno feixe de papel que as pessoas compram não é só uma mercadoria, e seu
irrisório preço não expressa só seu valor de troca. A P&N está, para nós, dentro do
reino da “necessidade” e não do consumo ritual. As vidas que se revelam nas
páginas “nojentas” não são narradas para entreter. Elas se mostram ali
pedagogicamente. Cada história mostra como as gentes ditas comuns – de uma
América latina e um Brasil reais – vão construindo esse mundo, com suas lutas,
dores e alegrias. É como uma grande roda ancestral em volta da fogueira onde
contamos histórias para não esquecer de nossas belezas. Mulheres e homens que se
reconhecem sujeitos, que enfrentam a vida com garra e seguem rompendo auroras.
(p. 03)

A equipe que cria a P&N é um grupo de mulheres jornalistas, Míriam Santini de


Abreu (repórter e editora), Elaine Tavares (repórter e editora), Raquel Moisés (repórter),
Marcela Cornelli (repórter), Rosângela Bion de Assis (diagramadora), Sandra Verle (arte),
mas com o tempo também jornalistas homens passam a contribuir com ensaios fotográficos,
textos, diagramação, etc. Vão ajudar nessa empreitada o fotógrafo e jornalista Ricardo
Casarini, os jornalistas Osíris Duarte e Paulo Zembrunski e eu, Rubens Lopes, estudante de
jornalismo. Também houve a participação de Raul Fitipaldi, Celso Vicenzi e Moacir Loth.

2.2 A proposta pelas margens

37
A proposta de fazer uma revista contando a vida daqueles que andam pelas margens
vem do livro Jornalismo nas margens – uma reflexão sobre comunicação em comunidades
empobrecidas (2004), da jornalista Elaine Tavares. Como vimos no capítulo anterior, esse foi
um trabalho editado por Elaine Tavares, inspirado na Filosofia da Libertação, que tem como
um dos principais criadores o filósofo argentino Enrique Dussel (1977).
Nessa proposta, que ela chama de jornalismo libertador, trata-se de pensar o mundo a
partir do ponto de vista do oprimido, das vítimas do sistema que estão fora do centro, fora da
totalidade, e a produzir uma narrativa que nasce da realidade latino-americana, local. O
jornalismo libertador trabalha com a ideia que é preciso contar as histórias dos oprimidos, dos
deserdados, dos desvalidos, e que é preciso narrar o mundo do ponto de vista da realidade do
outro, do que está fora do centro. Ao realizar o encontro com aquele que é sujeito de sua
própria vida, o jornalista se compromete com sua história, sua dor, seus sonhos, sua vida, e,
na narrativa, busca transformar a singularidade daqueles sujeitos num debate que seja capaz
de chegar à universalidade, tal qual propôs Genro Filho (2012).
No jornalismo libertador, a ação do repórter e o seu olhar de amor e compromisso
sobre a realidade, muda tudo na forma de narrar. Mas isso não significa que o texto se realize
na forma panfletária. Pelo contrário. É o corpo a corpo com a vida. A descrição da realidade
que não encontra espaço na mídia comercial. E no trânsito entre o singular, particular e
universal, o jornalista vai oferecendo ao leitor uma forma de conhecimento, e não apenas uma
informação solta no ar. Contextualizando os fatos, o jornalismo libertador aparece como uma
nova práxis, descrevendo a vida, pensando sobre ela e atuando em uníssono numa proposta de
transformação. Parafraseando o filósofo alemão Karl Marx, com o jornalismo de libertação e
com a teoria de Genro Filho (2012), a narrativa jornalística não se presta a apenas informar
sobre algo, mas tem o objetivo de transformar a realidade. Assim atuava a equipe da
Pobres&Nojentas. Na margem, não mais pelos e dos trabalhadores, mas com eles e elas. Um
jornalismo comprometido com as comunidades.

38
3. ANÁLISE CRÍTICA DA POBRES&NOJENTAS

Nesse capítulo realizamos a análise das reportagens, considerando todo o trajeto


teórico já elaborado – no qual explicitamos as perspectivas teórico-metodológicas com as
quais trabalhamos – a fim de localizar na P&N a proposta de jornalismo libertador em
consonância com a teoria marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho.
Para fazer a análise da revista Pobres&Nojentas adotamos o método materialista
histórico dialético. Esse é o método usado pelo filósofo alemão Karl Marx (1818-1883) para
analisar a sociedade burguesa. Marx se dedicou a esse estudo por cerca de quarenta anos, de
meados da década de 1840 até sua morte e o início desse trabalho pode-se localizar nos
Manuscritos econômico-filosóficos de 1844, com seu auge nos materiais constitutivos d´O
capital (MARX, 1994 e 1968-1975 apud PAULO NETTO, 2011, p. 17).
Adotamos esse método por dialogar com os pilares epistemológicos que fundamentam
a proposta da revista Pobres&Nojentas: a teoria marxista do jornalismo proposta por Genro
Filho (2012), a Filosofia da Libertação, do filósofo Enrique Dussel (1977) e o jornalismo
libertador, uma reflexão sobre o jornalismo de Elaine Tavares (2004).
Para Marx, a teoria é uma modalidade peculiar de conhecimento, o conhecimento
teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua existência real e
efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações do pesquisador.

A teoria é, para Marx, a reprodução ideal do movimento real do objeto pelo sujeito
que pesquisa: pela teoria, o sujeito reproduz em seu pensamento a estrutura e a
dinâmica do objeto que pesquisa. E esta reprodução (que constitui propriamente o
conhecimento teórico) será tanto mais correta e verdadeira quanto mais fiel o sujeito
for ao objeto (PAULO NETTO, 2011, p. 21).

Importante ressaltar que o real, para Marx, significa o fenômeno na sua dupla
dimensão: aparência e essência. Nessa perspectiva, o objetivo do pesquisador, indo além da
aparência fenomênica, imediata e empírica, é justamente apreender a essência (ou seja:
estrutura e a dinâmica) do objeto. Porque o objeto de pesquisa tem uma existência objetiva,
que independe da consciência do pesquisador.

Alcançando a essência do objeto, isto é: capturando a sua estrutura e dinâmica, por


meio de procedimentos analíticos e operando sua análise, o pesquisador a reproduz
no plano do pensamento; mediante a pesquisa, viabilizada pelo método, o
pesquisador reproduz, no plano ideal, a essência do objeto que investigou. (PAULO
NETTO, 2011, p. 22).

39
Na concepção marxiana de teoria: a teoria é a reprodução, no plano do pensamento, do
movimento real do objeto de estudo. Nesse sentido, o papel do sujeito é essencialmente ativo:
“precisamente para apreender não a aparência ou a forma dada do objeto, mas a sua essência,
a sua estrutura e a sua dinâmica [...], o sujeito deve ser capaz de mobilizar um máximo de
conhecimentos, criticá-los, revisá-los e deve ser dotado de criatividade e imaginação”
(PAULO NETTO, 2011, p. 25).
Para isso, os instrumentos de pesquisa podem ser os mais variados, utilizando desde a
análise documental até as formas mais diversas de observação, recolha de dados,
quantificação etc. Nessa pesquisa, utilizaremos a análise de conteúdo em jornalismo e
entrevista em profundidade que serão elucidadas mais adiante. O objetivo é investigar como
as experiências do jornalismo libertador estão presentes na revista Pobres&Nojentas.
Partiremos da expressão fenomênica do processo, as reportagens em si, para a compreensão
do tipo de jornalismo que elas engendram, capaz de criar conhecimento. Mas, não um
conhecimento como mero “saber como”, e sim um conhecimento como práxis, ou seja, aquele
conhecimento que pensa o real e age sobre ele.
A sociedade burguesa analisada por Marx, assim como o jornalismo, é fruto do
capitalismo. Genro Filho (2012) vai dizer que apesar do jornalismo ser condicionado
historicamente pelo capitalismo, possui potencialidades para ultrapassar este modo de
produção porque traz em si as contradições. “Embora tenham nascido, de fato, à sombra de
interesse dos banqueiros e mercadores, essas gazetas semanais que se espalharam pela Europa
[...] já apontavam para uma vocação emergente do jornalismo” (GENRO FILHO, 2012, p.
176).
De acordo com o pensamento marxista, superar isso não é destruir a cidadania, mas
realizá-la sob a ótica da classe trabalhadora. O jornalismo aparece aí como necessário para dar
visibilidade a essa cidadania potencial. Ele serve para fortalecer o status quo, ou não, podendo
também problematizá-lo. Genro Filho (2012) aponta que: “O jornalismo moderno possui não
só um potencial crítico e revolucionário na luta contra o imperialismo e o capitalismo, mas
um ‘potencial desalienador’ insubstituível para a construção de uma sociedade de classe”
(GENRO FILHO, 2012, p.188).
Essa perspectiva crítica de Genro Filho (2012) converge com a proposta do jornalismo
libertador, no sentido que trabalha com a ideia de que “é preciso contar as histórias dos
oprimidos, dos deserdados, dos desvalidos, que é preciso narrar o mundo do ponto de vista da
realidade do outro, do que está fora do centro” (TAVARES, 2004, p. 20). Pois nas sociedades
de classe existe sempre um antagonismo político e ideológico tensionando o sistema. Partindo

40
dessa premissa é que se pode pensar a cultura em geral e o jornalismo em particular como
práxis, não apenas como manipulação e controle.
Nesse sentido, o jornalismo libertador dialoga com a teoria de Genro Filho (2012) ao
desvendar a realidade e suas contradições pensando seu fazer dentro da sociedade capitalista,
mas que vislumbre outra sociedade, em que haja a distribuição da riqueza e sujeitos cientes de
sua força e beleza. Por vislumbrar esse “potencial desalienador” do jornalismo é que surgiu a
revista Pobres&Nojentas amparada no jornalismo libertador. Contextualizando os fatos, o
jornalismo libertador aparece como uma nova práxis, descrevendo a vida, pensando sobre ela
e atuando em uníssono numa proposta de transformação. Parafraseando o filósofo alemão
Karl Marx, com o jornalismo de libertação e com a teoria de Genro Filho (2012), a narrativa
jornalística não se presta a apenas informar sobre algo, mas tem o objetivo de transformar a
realidade.

3.1 As reportagens

Para analisar as reportagens publicadas na revista Pobres&Nojentas utilizaremos a


análise de conteúdo em jornalismo, por ser utilizada para detectar tendências e modelos na
análise de critérios de noticiabilidade, enquadramentos e agendamentos. Heloiza Golbspan
Herscovitz (2010) afirma que quase tudo que medimos na análise de conteúdo jornalístico são
conceitos, ou seja, construções baseadas em observações indiretas e definições teóricas que
variam conforme a perspectiva de cada um. Por isso, especificamos nos capítulos anteriores
os pressupostos teóricos que fundamentam essa pesquisa no intuito de trazer à luz as
categorias que nos servirão para orientar a ler os editoriais em suas entrelinhas e buscar o
conteúdo latente e o sentido geral da publicação.
Os critérios e os procedimentos metodológicos que utilizamos para analisar o
conteúdo da revista Pobres&Nojentas, nosso objeto de estudo, foram feitos através das
seguintes perguntas geradoras: As experiências do jornalismo libertador estão presentes nos
textos da revista Pobres&Nojentas? Analisando os editoriais da revista é possível perceber
uma perspectiva de gênero e de classe na sua prática? As autoras e autores das publicações
refletem no seu fazer jornalístico os pressupostos teóricos apontados nessa pesquisa?
A partir desses questionamentos escolhemos sete reportagens da revista P&N
publicadas por diferentes autoras e autores durante o período que compreende as 30 edições
(ver Tabela 1) da publicação e três editoriais, com o intuito de perceber se há uma coerência
nos textos da revista. A escolha tem como objetivo analisar se a prática jornalística de quem

41
publica na revista parte da reflexão do jornalismo libertador e se as/os jornalistas pensam,
através da teoria marxista do jornalismo, proposta por Genro Filho (2012), o seu fazer, agindo
criticamente e não de forma automática. Nas entrevistas realizadas com as editoras, elas
deixam claro que esses eram os elementos que iluminavam suas práticas. Tanto Elaine quanto
Miriam guiavam-se pelos preceitos teóricos de Genro Filho, e Elaine aprofundava ainda mais
essa proposta na proposição do jornalismo libertador. Isso era consciente na hora de pensar as
pautas e na redação dos textos.
Tabela 1: Descrição das 30 edições da P&N analisadas, seus temas e editorias
Edição Temas abordados na capa Demais temas Editorias
da revista
Nº 01 – maio 2006 Luta sindical, povos América Latina, cultura, Editorial, Perfil, Crônica,
originários, Fórum Social receitas, gênero Poema, Ensaio Fotográfico, Saia
Mundial justa, Mulher
Nº 02 – julho 2006 Vida dos povos Guarani, América Latina, Meio Editorial, Perfil, Minicrônica,
Educação ambiente, saúde, gênero, Poema, Piores momentos,
humanidade, cultura, Natureza, Saúde, Saia justa
receitas
Nº 03 – set./out. Crise na Argentina, Projeto América Latina, música, Editorial, Perfil, Crônica,
2006 de música, Esporte viagem, saúde, gênero, Poema, Saúde, Poema, Tempo
Palestina, Livre, Ossos do Ofício
Nº 04 – nov./dez. Depressão, Economia América Latina, luta Editorial, Comunidade, Ossos
2006 Solidária, Movimento das popular, saúde, gênero do Ofício,Perfil, Crônica,
Mães da Praça de Maio - Poema, Saúde, Poema, Tempo
Argentina Livre
Nº 05 – jan./fev. Trabalhadoras, Benzedeiras, América Latina, saúde, Editorial, Saúde, Meio
2007 Animais reforma agrária, meio Ambiente, Crônica, Ossos do
ambiente, integração, Ofício, As delícias de Su&li,
saber popular, receita, Perfil, Tempo livre
cultura, gênero
Nº 06 – Moradia, Haiti, Poesia América Latina, gênero, Editorial, Crônica, Gênero
março/abril 2007 benzedura, entrevista, Humano, Poema, Ossos do
saúde, programação Ofício, Luta Popular, Entrevista,
cultural Saúde, Tempo livre
Nº 07 – Povos Originários América Latina, receitas, Editorial, América Latina, As
maio/junho 2007 gênero, México, delícias de Su&Li, Poema, Ossos
Florianópolis, do Ofício, Crônica, Tempo livre
comunicação, movimento
social
Nº 08 – Mobilidade, Palestina, UFSC América Latina, Palestina, Editorial, Crônica, Gênero
julho/agosto 2007 educação, receitas, Humano, Perfil, As delícias de
universidade, opinião Su&Li, Ossos do Ofício, Opinião,
Tempo livre
Nº 09 – set./out. Moradia, Teologia, América América Latina, receita, Editorial, Crônica, Saúde
2007 Latina, Saúde feminismo, leituras, Pública, Mulheres de Abya Yala,
pluralidades, Moradia, As Delícias de Su&Li,
América Latina, Feminismo,
Leituras
Nº 10 – nov./dez. Benzedeiras, Arte, América Latina, Santa Editorial, Croniportagem,
2007 Comunicação Catarina, Educação, Crônica, Educação, Entrevista,
entrevista, gênero, Mulheres, Comunicação,
resenha, receitas Resenha, As delícias de Su&Li,
Tempo Livre
Nº 11 – jan./fev. Especulação imobiliária América Latina, Literatura, Editorial, Literatura, Crônica,
2008 gênero, saúde, luta Saúde, Mulher, Luta Popular

42
popular, cidade, Entrevista, Tempo Livre
Nº 12 – Universidade, Poema América Latina, luta Editorial, Perfil, As delícias de
março/abril 2008 popular, receitas, viagem, Su&Li, Luta popular,
gênero Croniportagem, Viagem,
Gênero Humano, América
Latina, Crônica
Nº 13 – Comunidade, Mulheres da América Latina, educação, Editorial, Croniportagem,
maio/junho 2008 Chico cultura, literatura, gênero Crônica, Poesia, + um número

Nº 14 – julho/ América Latina, povos América Latina, Editorial, Crônica, Poesia, + um


agosto 2008 originários democracia, educação, número
cultura, gênero
Nº 15 – set./out. Saúde, privatização América Latina Cultura, Editorial, Crônica, + um
2008 EUA, gênero, literatura número, Artigo, Poesia
Nº 16 – jan./fev. Protestos América Latina, tortura, Editorial, Crônica, Su&li, + um
2009 Novembrada, número, Poesia, Pequeno Gesto
Nº 17 – março/abrl Moradia América Latina, literatura, Editorial, Crônica, As delícias de
2009 gênero, meio ambiente, Su&Li, Tempo Livre, Poesia,
cultura Vem mulher
Nº 18 – Jornalismo América Latina, Editorial, As delícias de Su&li,
maio/junho 2009 saneamento, maconha, Crônica, Tempo Livre, Poesia
comunicação, Colômbia,
receita, agenda cultural
Nº 19 – Reforma agrária América Latina, música, Editorial, As delícias de Su&Li,
julho/agosto 2009 saúde, meio ambiente, Crônica, Tempo Livre, Poesia
Honduras
Nº 20 – set./out. Povos originários América Latina, arte, Editorial, Crônica, As delícias de
2009 Santa Catarina, Amazônia, Su&Li, Crônica, Tempo Livre,
liberdade, agenda cultural Poesia
Nº 21 – jan./fev. Cuba, socialismo América Latina, Caribe, Editorial, Crônica, Poesia
2010 revolução
Nº 22 – Jornalismo, Honduras América Latina, mulheres Editorial, Crônica, As delícias de
março/abril 2010 em resistência, povos Su&Li, Tempo Livre, Poesia
originários, receitas,
cultura, agenda cultural
Nº 23 – Moradia América Latina, Editorial, Crônica, As delícias de
maio/junho 2010 mobilidade, Florianópolis, Su&Li, Tempo Livre, Poesia
Honduras,
Nº 24 – Mulheres, engenho de América Latina, povos Editorial, Crônica, Tempo Livre,
julho/agosto 2010 farinha originários, luta popular, As delícias de Su&Li, Poesia
gênero
Nº 25 – set./out Trabalhadores América Latina, saúde Editorial, Crônica, Tempo Livre,
2010 Poesia
Nº 26 – maio 2006 Revolução Mexicana América Latina Editorial, Crônica, Tempo Livre,
Poesia
Nº 27 – África, Fórum Social América Latina, Plano Editorial, Crônica, Tempo Livre,
março/abril 2011 Mundial Diretor Umas e outras, Poesia
Nº 28 – maio 2006 Florianópolis, especulação América Latina, Plano Editorial, Crônica, Tempo Livre,
imobiliária Diretor, cidade Umas e outras, Poesia
Nº 29 – maio 2006 Ocupação América Latina, moradia, Editorial, Saúde, Poema
saúde
Nº 30 – nov./dez. Plano Diretor América Latina, meio Editorial, Saúde, Poema
2013 ambiente, mobilidade
Fonte: autor

De acordo com o pensamento de Herscovitz (2010) sobre a análise de conteúdo


jornalística, recolhemos textos, símbolos e imagens impressas, gravadas ou veiculadas em

43
forma de revista a partir de uma amostra aleatória do objeto estudado com o objetivo de fazer
inferências sobre seus conteúdos e formatos submetendo-os aos pressupostos das teorias que
apresentamos nos capítulos 1 e 2 desta monografia. A partir daí fizemos a conexão entre
teoria, investigação e análise.
A revista Pobres&Nojentas se propôs a narrar a vidas de mulheres e homens, que
apesar de sua condição de classe financeiramente desfavorecida, se organizam em busca de
vida boa e bonita. Mulheres que lutam, que trabalham, que se movem na direção de outra
sociedade, na qual as riquezas serão repartidas. Com “o desafio editorial de bem aproveitar as
24 páginas de miolo da publicação para nelas narrar as histórias de mulheres e homens cujas
ações traçavam um caminho de transformação social que não era retratado na grande mídia”
(ABREU, 2015, p. 1). Por exemplo, olhando a edição Nº 1, de 2006, observei que o editorial
(p. 3) trata sobre a questão de gênero e a prática jornalística com uma perspectiva de classe.

Esta é mais do que uma simples revista. É um movimento, um caminhar. De gênero


porque entendemos que existe, sim, uma “mirada” feminina, que é ancestral e
poderosa. Nem melhor, nem pior, apenas desigual. E, nessa diferença, precisa se
expressar desde seu lugar, a partir da “mulheridade”. De classe, porque o olhar das
mulheres pobres, marginalizadas, oprimidas, é duplamente desigual e, mais do que
qualquer outro segmento, raramente tem onde se dizer. [...]
Pobres&Nojentas nasce em nós como uma filha, das tantas que não vieram ao
mundo, mas que vivem, em ebulição, dentro de nossos corpos, malucas por sair. É
gerada de um sonho. É uma resposta ao pseudo-vazio do espírito do tempo, à
religião do capital, ao insosso mercado mundial, ao medo, à desesperança.
Pobres&Nojentas é um mágico portal, feminino, feminista e humano, demasiado
humano! Se você cruzar, se perderá... Insha Allá. (p. 3).

Outro texto que retrata esse propósito, nessa mesma edição, é o perfil “Suave
aspereza”, escrito pela jornalista Elaine Tavares (n° 1, maio de 2006, p. 4-6). A matéria narra
a história de Jussara Godoi (Figura 2), técnica-administrativa da Universidade Federal de
Santa Catarina (UFSC) e através da singularidade da sua história podemos refletir sobre a
universalidade da vida de tantas mulheres que lutam pelo bem viver. No texto notamos que
está presente a proposta do jornalismo libertador de contar a história das pessoas comuns,
daqueles que constroem no dia-a-dia outra sociedade e que descobrem seu pertencimento no
mundo.
Não dá pra dizer com certeza, mas o jeito explosivo e a cabeça quente podem ser
heranças do lugar onde nasceu: Mormaço, distrito de Soledade, no Rio Grande do
Sul. Ela ri quando fala nisso. Jussara da Costa Godoi é uma mulher especial. Forjada
na vida mesma, é a sétima filha de uma lista de onze. Nascida na roça, desde cedo
aprendeu que não é muito fácil estar no mundo, e deve ser por isso que,
aparentemente, seja um pouco áspera no trato com as gentes. Mas, basta um
convívio de semanas, e se descobre o diamante. Capaz dos gestos mais sublimes, a
gaúcha criada no Paraná é um poço de ternura. Trabalhadora da Universidade
Federal de Santa Catarina, já esteve na direção do sindicato dos trabalhadores por

44
três gestões seguidas e atualmente está de olho nas contas, no Conselho Fiscal.
Detalhista, está sempre a cuidar e a proteger o patrimônio dos técnicos-
administrativos da UFSC (p. 4).

Figura 2: Jussara com Júlia Dalri Eller em ato contra a reforma da Previdência, em 2003

Míriam Santini de Abreu (2015) no artigo Croniportagem: vereda entre a crônica e a


reportagem no texto jornalístico explica que um dos gêneros narrativos adotadas nos textos da
revista P&N é a croniportagem, que “mistura elementos da crônica no âmbito da literatura,
posto que focaliza o cotidiano, e também da reportagem, no âmbito do jornalismo, visando a
profundidade e a análise dos fatos” (ABREU, p. 3). Essa proposta veio a se concretizar, em
fevereiro de 2008, quando a equipe da revista promoveu o “Primeiro Festival de
Croniportagem de Abya Yala”, com o objetivo de publicar textos enviados na revista
impressa e/ou blog da P&N (http:/pobresejonentas.blogspot.com) com a ideia de estimular a
produção desse formato de texto. Esse formato permeia as narrativas da P&N.
Outra característica do jornalismo libertador, como vimos acima, trata-se de pensar o
mundo a partir do ponto de vista do oprimido, das vítimas do sistema que estão fora do centro,
fora da totalidade, e a produzir uma narrativa que nasce da realidade latino-americana, local.
Esse aspecto está presente na croniportagem do jornalista Ricardo Casarini, “Que jamais se
acabe” (n° 2, julho de 2006, p. 5-7). A partir da sua narrativa, nós somos tomados pela
história do povo Guarani e sua resistência em busca da terra sem males. Os povos originários
raramente têm onde dizer suas histórias, muitas vezes quando são retratados nos grandes
meios de comunicação são vistos como um atraso ao progresso. Aqui suas vidas ganham
historicidade e contexto.

45
A cor da pele é vermelha, os olhos são negros e puxados, os cabelos, escuros e
grossos. Quem chega caminhando pela localidade de Conquista – Barra do Sul/SC,
de longe já vê as primeiras crianças à beira da estrada, com roupas bem simples,
artesanato colorido nas mãos. São os Guarani, da aldeia “Tekové Mareã” [Figura 3],
que na língua originária significa: “que jamais se acabe”.
A comunidade é uma das tantas espalhadas por Santa Catarina e nela vivem cerca de
trinta pessoas, a maioria formada por crianças e adolescentes. Estão sempre por ali,
brincando, correndo de um lado para outro e conversando em Guarani, sua língua
original, costume que o povo faz questão de preservar. Parecem estar sempre felizes,
apesar das inúmeras dificuldades que enfrentam no dia-a-dia. A principal delas é a
falta de alimentos, pois muitas das famílias literalmente não têm o que comer.
Sobrevivem apenas do básico: arroz e feijão. Vez ou outra conseguem algum vegetal
ou frutas. [...]
Os Guarani lá da Conquista, da Tekové Mareã, tal e qual tantos outros irmãos
perdidos pelo Brasil, não querem muito. Apenas o que lhes pertence por direito:
terra para viver, alimentos e dignidade, o sonho coletivo da Eko Porã – vida boa e
bonita para todos (p. 5-6).

Figura 3: Crianças Guarani da Aldeia Tekové Mareã - Foto: Ricardo Casarini

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Mencionamos nos capítulos anteriores que Genro Filho (2012) vê na notícia, matéria-
prima do jornalismo diário, potencialidades que fogem ao modelo tradicional do lead. Para
ele, a notícia não deve ser nem panfletária nem imparcial, mas deve trazer informações que o
leitor possa formar por conta própria sua opinião. O exemplo que citamos abaixo, na
croniportagem da jornalista Míriam Santini, “A longa noite da ditadura” (n° 3, set/out de
2006, p. 4-6), percebemos que o lead não está no primeiro parágrafo, mas aparece ao longo do
texto. Mas é a partir do contexto que o leitor é levado a conhecer a realidade do fato narrado
(Figura 4).

Figura 4: Isabel Gonzalez atende turistas na Praça de Maio – Foto: Míriam Santini

Tarde de março na Plaza de Mayo, no centro de Buenos Aires, Argentina. Uma


turista se aproxima da vendedora que oferece grãos de milho por um peso, pouco
menos de um real, embalados em compridos sacos plásticos:
- É pra comer?
- Sí, pero son para las palomas!
A venda de grãos para os visitantes atraírem as pombas ajuda Isabel Gonzales, 66
anos, a alimentar a família. Sentada num banquinho de madeira, a mulher, de rosto
redondo e lenço no pescoço combinando com o colete xadrez, se destaca entre as
dezenas de outros lenços brancos pintados no chão, simbolizando as mães que
perderam filhos ao longo da ditadura.
Em 24 de março, os argentinos foram às ruas para marcar os 30 anos do golpe de
Estado que instaurou um dos mais violentos regimes militares na América Latina
(1976 a 1983). Calcula-se que 30 mil pessoas desapareceram. Corpos de opositores

47
do regime eram jogados no ria da Prata em dois vôos semanais conhecidos como
“vôos da morte” (p. 4).

Outro exemplo é a matéria “Quem aí joga golfe?” (n° 11, jan./fev. de 2008, p. 14-16)
da jornalista Elaine Tavares (Figura 5), sobre o campo de golfe no Costão do Santinho, uma
proposta que viria destruir todo o aquífero dos Ingleses e que só era comentada a “boca
pequena” pelos jornalistas e pela prefeitura. Nenhuma matéria saiu sobre o assunto, a não ser
na P&N. Na matéria notamos os conflitos de classe e o posicionamento da jornalista diante
dos fatos, sem imparcialidade, mas sem ser panfletário. Essa perspectiva dialoga com a teoria
marxista de Genro Filho (2012), pois reconhece a possibilidade e a necessidade de um
jornalismo informativo com outro caráter de classe, que não seja a propaganda.

Figura 5: Campo de golfe no Costão do Santinho viria destruir o aquífero dos Ingleses

Na cidade de Florianópolis, Santa Catarina, uma comunidade da parte insular luta


para manter seus mananciais de água vivos e limpos. Tudo isso porque um grande
empresário local decidiu criar um campo de golfe na ilha. É, um lindo e verdinho
campo para a elite internacional e nacional “desestressar” nos finais de semana
tendo como pano de fundo a maravilhosa praia dos Ingleses. Até aí nada parece
demais, mas basta uma levantada no tapete para se descortinar um grande problema
para a cidade.
Um primeiro ponto é que o empreendimento foi liberado pelos órgãos ambientais da
cidade a partir de licenças falsas, conforme apurou a Operação Moeda Verde, uma
ação da Polícia Federal que levou para a cadeia – por pouco tempo, é claro – vários
empresários públicos acusados de corrupção e venda de licenças ambientais,

48
respectivamente. Entre esses empresários estava um dos donos do Costão Golf, que
tem como sócia uma grande empresa estrangeira.
Mas muito antes disso acontecer, o movimento comunitário dos Ingleses (bairro
onde fica a obra) e da cidade de Florianópolis já vinha denunciando a periculosidade
do empreendimento para os mananciais de água do lugar. A ilha de Santa Catarina
tem um sistema de abastecimento frágil. Grande parte da água consumida na cidade
vem de outro município, do Sistema de Pilões, Palhoça. Duas regiões da ilha
possuem um sistema de captação própria. O sul, que tira sua água da Lagoa do Peri,
e o Norte, que se abastece do aquífero dos Ingleses. Pois é justamente essa reserva
de água que durante o ano abastece mais de 50 mil pessoas (na temporada o número
pula para 150 mil) que está sob ameaça (p. 14-15).

A narrativa parte de uma singularidade – a construção do campo de golfe – e ao longo


do texto vai também apresentado a particularidade, concretizada na questão ambiental,
traduzindo ao longo de todo o texto a universalidade do tema, que é a defesa da cidade.
A revista P&N pauta suas matérias na perspectiva das pessoas comuns. Homens e
mulheres que buscam vida boa e bonita para todos e também procura partir da singularidade
do fato, atravessando as outras duas dimensões – do particular e do universal. Nas 30 edições
das revistas analisamos que os textos trazem majoritariamente mulheres como protagonistas
(por trazer uma mirada feminina), mas também não exclui a luta dos companheiros homens.
Como exemplo a croniportagem “Com Assis, pelos caminhos...” (n° 12, março/abril de 2008,
p. 14-17) da jornalista Raquel Moisés.

Nas horas mais alegres das duras batalhas do povo, das passeatas, das marchas, das
manifestações, ao nosso lado, sempre encontramos Assis. Olhos alagados pelo
assombro de fazer parte de momentos únicos da luta pela vida e pela justiça. Olhos
gotejantes pela alegria de estar caminhando com a juventude quando ela se levanta a
brada contra o inaceitável. Homem que se fez nas duras batalhas do cotidiano de
uma universidade que fragmenta, compartimenta, retalha o conhecimento universal,
Assis construiu um saber generoso que compartilhava e difundia com paixão. Quem
o conheceu, o ouviu falar repetidas vezes, “Sou puro...”, antes de iniciar seu dizer
sobre algo que o envolvia, indignava ou comovia... Ser puro, para Assis, significava
“ser verdadeiro”, mesmo quando errava, falhava avaliava com imprecisão (p. 14-
15).

Aqui também se observa a perspectiva adelmiana para narrar, procurando apresentar a


universalidade que se expressa nesse perfil. Não se trata só de falar de um trabalhador em
particular, e de sua luta singular, mas de refletir em tudo isso a batalha pela manutenção da
universidade pública, que é coisa do interesse geral.

49
Figura 6: Assis, o homem de luta lutou até o último dia de sua vida por uma universidade sonhada

Uma das características do jornalismo libertador é a comunicação que se faz com a


comunidade. Foi pensando nisso que a partir da matéria publicada na revista P&N “As
mulheres da Chico” (n° 13, maio/junho de 2008, p. 14-17), da jornalista Marcela Cornelli,
veio a se concretizar a criação de um livro que contasse a história de seis mulheres da
comunidade Chico Mendes, em Florianópolis. Localizada no bairro Monte Cristo, a
comunidade Chico Mendes é resultado de uma ocupação de terra realizada em 1990 por
diversas famílias, na sua grande maioria oriunda do interior de Santa Catarina. O livro
Mulheres da Chico (2008) editado pela Companhia dos Loucos, que também edita a revista
P&N, conta histórias de lutas, desafios, de momentos tristes e de alegria, de fantasias e de
desejos. A organização do livro foi feita pela educadora Sandra C. Ribes, com fotografias de
Sônia Vill e projeto gráfico e diagramação de Sandra Werle e Marcela Cornelli.

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Figura 7: A matéria publicada na P&N ajudou no projeto que se concretizou num livro

Seis mulheres e um destino. Uma delas não sabe ler nem escrever. Só uma
conseguiu concluir a 8ª série. As demais mal completaram as séries iniciais do
ensino fundamental. Todas de origem humilde, lutadoras e que, no espírito
Pobres&Nojentas de ser, fazem a diferença na comunidade em que vivem em
Florianópolis. [...] O trabalho de contar suas histórias de vida foi uma forma de
compartilharem experiências, de ajuda mútua, e elas não se importam com as
críticas que podem vir. Têm certeza de que serão pioneiras na comunidade e servirão
de exemplos de coragem para muitas outras mulheres (p. 14-17).

A reportagem, além de atuar na senda do jornalismo libertador, observa a proposta de


Genro Filho (2012), expressando as três dimensões da realidade: na história de cada uma das
mulheres, na condição de mulheres empobrecidas, e na luta dentro do sistema capitalista de
produção.
A edição número 30 foi a última impressa da Pobres&Nojentas, a matéria de capa traz
como tema a disputa do Plano Diretor da cidade de Florianópolis, como mostra a Figura 8.
Quem assina a croniportagem “Participação popular trancafiada pelo autoritarismo” (n° 30,
nov./dez. de 2013, p. 14-18) é a jornalista Míriam Santini, mostrando o autoritarismo por

51
parte do Executivo e do Legislativo, que atropela a participação popular e a tende aos
interesses privados para aumentar a especulação imobiliária. Aqui percebemos como a
estrutura da notícia reflete a teoria marxista do jornalismo, proposta por Genro Filho (2012),
na qual a notícia deve ser construída a partir de uma nova fórmula, não mais na lógica do
lead, do mais para o menos importante, e sim partir da singularidade do fato para, passando
pelo particular e almejando o universal, ou seja, a questão da ocupação urbana, do direito à
cidade e à cidadania em Florianópolis, assim como ocorre em diversas cidades brasileiras.

Figura 8: A revista P&N cobriu as principais pautas da cidade, como a discussão do Plano Diretor

Era primeira vez que Maria Clara Kauduinski Cardoso, 17 anos, acompanhava uma
sessão na Câmara Municipal de Florianópolis. Naquela noite de 27 de novembro os
vereadores votavam as emendas ao projeto do Plano Diretor. Ela saiu aos prantos da
galeria, tomada por aquele ódio sagrado, ódio são e bom, como escreveu o poeta
Cruz e Souza: ódio que é escudo “contra os vilões do Amor, que infamam tudo...”.
Maria Clara viu o desfecho de dois dias, 26 e 27, nos quais se decidiu, “cantando as
pedras” como em um bingo, nas mãos de quem fica aquela que foi tratada com uma
valiosa rifa: Florianópolis (p. 14).

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A P&N marcou uma época na cidade de Florianópolis, desvelando as tramoias do
Plano Diretor, a especulação imobiliária e a luta das pessoas que não servem de pauta para os
meios de comunicação comercial. Ajudou na criação de projetos, como livros e iniciativas nas
redes sociais e integrou o Fórum de Comunicação da Classe Trabalhadora, que reúne
jornalistas, dirigentes sindicais e representantes de movimentos sociais.
Inspirada no jornalismo libertador, a P&N pautava a ação do repórter e o seu olhar
com foco sobre a realidade no sentido da alteridade. Sem ser panfletária a narrativa. Pelo
contrário. É o corpo a corpo com a vida. A descrição da realidade que não encontra espaço na
mídia comercial. E no trânsito entre o singular, particular e universal, o jornalista oferece ao
leitor uma forma de conhecimento, como ensina Genro Filho (2012), e não apenas uma
informação solta no ar. Contextualizando os fatos, o jornalismo libertador aparece como uma
nova práxis, descrevendo a vida, pensando sobre ela e atuando em uníssono numa proposta de
transformação. Como demostramos acima, na narrativa jornalística não se presta a apenas
informar sobre algo, mas tem o objetivo de transformar a realidade.

3.2 A proposta teórica

Como analisamos nos capítulos anteriores a proposta teórica da revista


Pobres&Nojentas foi pensada a partir dos pilares epistemológicos da teoria marxista do
jornalismo de Genro Filho (2012) e do jornalismo libertador de Elaine Tavares (2004) . A
teoria marxista do jornalismo, de Adelmo Genro Filho (2012), vê no jornalismo uma função
transformadora, porque criadora de conhecimento e não apenas informativa. Para isso, a
notícia deve ser construída a partir de uma nova fórmula, não mais na lógica do lead, do mais
para o menos importante, e sim partir da singularidade do fato para, passando pelo particular,
expressar no texto o universal.
Na edição Nº 19, de 2009, observamos que a matéria de capa fala sobre a liberdade de
expressão como um direito humano universal, o texto parte de uma decisão do Supremo
Tribunal Federal que decidiu sobre a não obrigatoriedade do diploma de jornalista para
exercer a profissão. A partir de um fato gerado por uma decisão judicial a matéria evoca um
tema universal: o direito de se expressar e o diferencia da profissão do jornalista, que parte de
um conhecimento específico. A matéria ganhou capa, como mostra a Figura 9.

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Figura 9: A discussão sobre a obrigatoriedade do diploma de jornalista foi destaque na capa da P&N

O Decreto-Lei n. 972/69, que trata da nossa profissão e prevê o diploma, NÃO


impede a liberdade de expressão e manifestação de pensamento. A legislação até
permite a figura do colaborador, que não é necessariamente jornalista, mas pode
escrever no jornal e na revista e falar no rádio e na televisão para dar opiniões sobre
qualquer assunto.
Só que para falar sobre os fatos acontecem em todos os lugares, o jornalista não
pode se limitar a dar uma opinião, como fazem os colaboradores/colunistas. O
jornalista precisa ir até o local onde aconteceu o fato, ouvir as pessoas envolvidas
nele, ler sobre o assunto para melhor compreendê-lo e, aí sim, escrever o texto para
o jornal e mostrar as imagens na televisão, falando sobre o significado delas a partir
do que viu, ouviu e pesquisou (p. 1).

A Filosofia da Libertação, do filósofo Enrique Dussel (1977), inspira a proposta do


jornalismo libertador, uma reflexão sobre o fazer jornalístico feita por Elaine Tavares (2004)
no livro “Jornalismo nas Margens”, no qual o foco do jornalismo deve estar voltado para a
comunidade das vítimas do sistema, tal qual propõe Dussel (1977). Ou seja, “a narrativa deve
ser cristalizada no singular, evocando o universal, mas priorizando dar visibilidade à vida do
oprimido, saindo assim de uma forma de praticar jornalismo que se alimenta apenas ou
prioritariamente de fontes oficiais, se explicitando apenas como porta-voz delas” (ABREU,
2015).

54
Através do método materialista histórico dialético concluímos que essa matrizes
teóricas formam a estrutura e a dinâmica presentes na revista Pobres&Nojentas.
Compreendendo que para Marx, a teoria é uma modalidade peculiar de conhecimento, o
conhecimento teórico é o conhecimento do objeto tal como ele é em si mesmo, na sua
existência real e efetiva, independentemente dos desejos, das aspirações e das representações
do pesquisador.
Vale explicar que no positivismo o real é visto como um espelhamento da realidade, e
o que se vê é apenas o fenômeno. No método marxista, o real é entendido como um duplo
fenômeno: estrutura e essência, um não pode estar descolado do outro.
O jornalismo não será livre da subjetividade, esse aspecto que Genro Filho (2012)
mostra com bastante clareza ao criticar o modelo funcionalista que ao buscar uma
objetividade imediata e alienada em sua positividade reproduz a ideologia burguesa que
pressupõe. O autor também critica a ideologia normativa, “pretensamente científica, que vai
selecionar, manipulatoriamente, aqueles aspectos e momentos da imediaticidade que
confirmam a premissa ideológica estabelecida” (GENRO FILHO, p. 160). Perdendo com isso
as melhores potencialidades epistemológicas dessa forma de conhecimento.
O jornalismo libertador tem um lado bem claro, como todo o fazer jornalístico. Ele é
feito desde o mundo das vítimas enquanto que o jornalismo comercial (hegemônico) é feito a
partir do mundo da classe dominante. Mas, isso não significa que ele não tem objetividade ou
que ele é manipulador. O ponto de vista de onde ele parte – a subjetividade – da qual fala
Genro Filho (2012) – é o mundo das vítimas, mas ao escrever dentro da lógica adelmiana,
buscando as potencialidades críticas e desalienadoras mais específicas do jornalismo, foge da
propaganda, sendo forma de conhecimento, e conhecimento entendido como práxis.

3.3 Os resultados da ligação entre a teoria marxista do jornalismo e o jornalismo de


libertação

A teoria marxista do jornalismo proposta por Adelmo Genro Filho (2012) converge
para o jornalismo libertador ao propor um fazer jornalístico que não seja panfletário nem
imparcial, mas que leve em conta a questão de classe e veja o fato em sua totalidade,
procurando pensar a realidade e atuar sobre ela. Genro Filho (2012) vê no jornalismo
informativo um papel revolucionário como uma forma social de produção do conhecimento
que, embora condicionado historicamente pelo capitalismo, possui potencialidades para

55
ultrapassar esse modo de produção. Isso pode ser claramente percebido na análise das
reportagens que fizemos acima.
Nesse mesmo sentido o jornalismo libertador se propõe a pensar e a narrar o mundo a
partir do ponto de vista do oprimido, das vítimas do sistema que estão fora do centro, fora da
totalidade, e a produzir uma narrativa que nasce da realidade latino-americana, local, trazendo
para a notícia as categorias do singular, particular e universal. O jornalismo libertador
trabalha com a ideia que é preciso contar as histórias dos oprimidos, dos deserdados, dos
desvalidos, e que é preciso narrar o mundo do ponto de vista da realidade do outro, do que
está fora do centro. Ao realizar o encontro com aquele que é sujeito de sua própria vida, o
jornalista se compromete com sua história, sua dor, seus sonhos, sua vida, e, na narrativa,
busca transformar a singularidade daqueles sujeitos num debate que seja capaz de chegar à
universalidade, tal qual propôs Genro Filho (2012).
Um exemplo é a edição nº 22, de março/abril de 2010 que traz a matéria “Rony
Martínez, jornalista na resistência” (Figura 10). A matéria fala sobre o golpe de Estado que
depôs o presidente Manuel Zelaya, ocorrido em Honduras, país da América Central, em 2009.
Através do relato do jornalista hondurenho Rony Martínez, percebemos um posicionamento
contra as injustiças do golpe, sem ser panfletário.

Para Rony Martínez o golpe levado a cabo pelos militares em Honuras, no mês de
junho de 2009, fez nascer um novo país e um povo renovado. Ninguém poderia
imaginar que aquela gente, que andava calada desde as grandes greves bananeiras
dos anos 50, iria despertar com tanta força e com tamanha sede de transformação.
Ele mesmo, em seus pensamentos mais revolucionários, jamais sonhara com o que
aconteceu. [...]
“No dia do golpe, chegamos à rádio e ali estavam os militares. Não nos deixavam
entrar. Os demais veículos estavam no ar. Só nós estávamos impedidos. Então,
conversamos e os convencemos que iríamos dizer o que nos mandavam, que aquilo
era uma substituição constitucional. Mas, assim que entramos no ar passamos a dizer
ao povo de Honduras e ao mundo que aquilo era um golpe de estado. Como chamar
de constitucional o sequestro de um presidente, os tanques na rua, os militares por
toda a parte? Era um golpe e assim noticiamos. Durou apenas 10 minutos a
transmissão e nos cortaram” (p. 12).

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Figura 10: Jornalistas hondurenhos cobriram as marchas populares e denunciaram o golpe militar

A matéria mostra a fonte, o jornalista Rony Martínez, tornando-se sujeito de sua


própria vida, se comprometendo com sua história, vivendo a dor causada por um golpe em seu
país e a mudança na vida das pessoas. Existe a subjetividade do jornalista, mas o foco é a
descrição dos fatos, a informação sobre golpe, a necessidade de informar às pessoas sobre a
realidade.

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CONSIDERAÇÕES FINAIS

Escrever essa pesquisa foi uma tarefa instigante e desafiadora. Debruçar sobre a teoria
marxista do jornalismo de Adelmo Genro Filho (2012) permitiu-nos vislumbrar as
possibilidades e as potencialidades do jornalismo como uma forma de conhecimento, a práxis.
Um saber que o profissional da área precisa ter e se apropriar para que seja capaz de pensar
sobre a realidade e transformá-la. Vimos que essa teoria fundamenta a reflexão que Elaine
Tavares (2004) faz sobre a comunicação em comunidades empobrecidas, criando a teoria do
jornalismo libertador.
A partir dessas propostas teóricas é que surgiu a revista Pobres&Nojentas, conforme
descrevemos no segundo capítulo dessa monografia. A Pobres foi uma sementeira ao propor
uma narrativa com uma perspectiva de gênero e de classe, e motivou esse pesquisador a
seguir por essas estradas secundárias. Durante sua publicação, a P&N contou as histórias das
pessoas comuns e que constroem o mundo dia-a-dia. A fonte como sujeito e protagonista da
sua história.
Durante a análise das reportagens e dos textos da revista, pudemos observar o quanto
esse trabalho, que durou 10 anos como material impresso, foi importante para registrar não
apenas as grandes lutas realizadas na América Latina, mas principalmente as lutas na cidade
de Florianópolis, justamente num período de tempo em que a especulação imobiliária atingiu
níveis bastante elevados, o que provocou grandes batalhas na questão do Plano Diretor. A
Pobres, e sua proposta de jornalismo baseada em Dussel (1977) e Adelmo (2012), se
configura como um documento histórico dessas vidas que não costumam ser narradas pela
mídia comercial.
Através do método materialista histórico dialético, vimos que o a teoria marxista do
jornalismo fundamenta os pilares epistemológicos da revista e converge para o jornalismo
libertador. Com a análise de conteúdo jornalístico observamos como essas matrizes teóricas
estão presentes nos textos publicados e como isso reflete na prática das e dos jornalistas que
participaram da equipe da revista. Com o método de entrevista em profundidade pudemos
ouvir das próprias criadoras da revista os relatos de como surgiu essa proposta de
comunicação e jornalismo.
Tendo isso claro, a Pobres é um importante material de estudo para aqueles que
querem vivenciar um jornalismo diferenciado desse que conhecemos como hegemônico. Nas
suas páginas brota um texto que não teme o uso dos recursos literários, que se preocupa com o
aspecto formal do texto, que busca uma narrativa capaz de tocar o leitor, não na mera jogada

58
da sensação como propõe a chamada pós-modernidade, mas no sentido de apresentar um fato
envolvido no seu contexto histórico, levando o leitor a compreender melhor os motivos
daquela luta ou daquela situação. A Pobres não apenas “retrata” a realidade, ela a descreve
nas três dimensões da vida e produz conhecimento, tratando o leitor também como sujeito
capaz de estabelecer os nexos acerca da realidade na sua totalidade.
Nesse sentido, a revista que ora analisamos expressa ela mesma uma nova práxis,
sendo capaz de amalgamar duas teorias, que muito mais do que teorias do jornalismo, são
teorias sociais, que dizem respeito às relações sociais produzidas na sociedade capitalista. A
perspectiva teórica de Genro Filho (2012) – no campo do jornalismo – e a de Dussel (1977)
no campo da filosofia, aos serem casadas na perspectiva do jornalismo libertador proposto por
Elaine Tavares (2004), apontam outros caminhos para a prática jornalística que hoje aparecem
como vitais para a continuidade desse fazer. Na realidade atual, com as novas tecnologias
“transformando” quaisquer pessoas com um celular em produtor de conteúdo, é, sem dúvida,
essa perspectiva teórica a que mais se concretiza como necessária para mediar os fatos da
realidade junto aos leitores/espectadores/ouvintes. O jornalismo como a prática da “análise do
dia” é muito mais do que um celular apontado, gravando em tempo real. Ele precisa desvelar
o que está escondido por trás do fenômeno.
Assim, jornalistas como as/os que produziram a revista Pobres&Nojentas são os que
nos inspiram a seguir enveredando por essa profissão que Gabriel Garcia Marquez dizia ser
melhor profissão do mundo. Também acreditamos nisso que diz Marquez, pois o jornalismo,
como práxis – tal qual anuncia Genro Filho (2012) – nos aproxima do humano que somos e
das contradições inerentes ao mundo que vivemos. Com essas narrativas ampliamos nossos
horizontes e criamos possibilidades de criar um mundo onde possam conviver vários mundos.
A Eko Porã, dos Guarani, o bem viver dos povos andinos, Ubuntu dos povos africanos. Por
isso, pensar nessa perspectiva teórica de um fazer jornalístico que leve em conta a questão de
classe e de gênero é fundamental, pois significa romper com paradigmas que reforçam o
status quo bem como o jornalismo comercial e hegemônico que o sustenta. O jornalismo
praticado como forma de conhecimento, na perspectiva marxista, é avançar até outra
sociedade na qual as riquezas serão repartidas e o jornalismo será efetivamente libertador.
A Pobres é, nesse sentido, um sendero, um caminho, a prova concreta de que é
possível fazer jornalismo, mesmo em condições tão adversas. Nas suas páginas, a nova práxis
é uma esperança e uma realidade.

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REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ABREU, Míriam Santini de. A longa noite da ditadura. Revista Pobres & Nojentas.
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APÊNDICE A

Antes de enveredar pelos caminhos do jornalismo fui jardineiro. Trabalhei cinco anos na
floricultura Anjos Flores em João Pinheiro – Minas Gerais (Sant´Ana do Alegre, primeiro
nome da cidade e que adoto quando me perguntam de onde sou) e também entregava flores.
Escrevi minha primeira crônica para a revista Pobres&Nojentas (Figura 11) contando sobre
essa minha primeira profissão. Foi nela que conheci o Seo Zézinho, que me ensinou a plantar
belezas por onde caminho.

Figura 11: Crônica deste pesquisador publicada em uma das edições da revista P&N

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A chuva das flores

Ao Seo Zezinho, construtor de jardins...

22 de setembro de 2010. Primavera

Sempre que chega a primavera sou tomado pela nostalgia. Lá em Minas Gerais eu
trabalhava numa floricultura como entregador e era a estação das flores. Então, aconteceu um
fato me marcou, acredito que por toda vida. Foi a chuva das flores, bonito nome não? Mas é
simples assim: Quando termina o inverno e a grama já está seca e as folhas já voaram no ar
como cartas, ela vem. Primeiro, como uma chuva torrencial e as plantas parecem dizer o que o
avô do Rubem Alves, outro mineiro, contemplava: “Vejam como estão agradecidas!”.
Essa chuva tem um poder sobre mim. Fico a pensar nos dias em que levava flores em uma
bicicleta cargueira pelas ruas de Sant`Ana do Alegre. Uma mão com a flor e a outra com a
direção, e seguia sem titubear pelos morros e “banguelas”. O entregador de flores tem uma
sorte grande. Ele é o que apanha o primeiro sorriso no instante da surpresa transfigurada num
gesto de amor. Ou talvez isso só passasse pela minha cabeça, daí a nostalgia. Pois acontece
que têm pessoas que apenas cumprem com sua obrigação, como os carteiros de hoje em dia,
que na maioria das vezes entregam contas (ou “cheque especial”, diria minha vó) cartões de
crédito, planos de saúde, etc... O milagre é quando vem uma carta no meio de tanta
publicidade. As cartas levam palavras como gotas de chuvas para as plantas. Ah, se as pessoas
soubessem o quanto precisamos delas: as palavras.
Tempos sombrios, diriam os mais antigos, em que a obrigação do serviço nos priva de
descobrirmos as verdadeiras relações humanas no trabalho. No sistema capitalista, que visa o
lucro, as coisas funcionam assim. Eu trabalho como entregador. Tenho muitas entregas para
fazer, então, quanto mais rápido eu as fizer, mais tempo terei para outras funções, o que para o
neoliberalismo, outro comparsa do capitalismo, é uma mão na roda. Como eu sou um guri
com muito “sebo nas canelas” vou que é uma bala. E assim cumpro minha obrigação, embora
a patroa lembre a toda hora: “se demoras, têm outros tantos na espera para ocupar teu lugar”.
Acontece que um dia me deparei com uma situação que me fez pensar. Tinha eu um jardim
para fazer. É que eu, além de entregador de flores, aprendi o oficio de jardineiro, do qual me
orgulho muito! E lá fui eu na cargueira, com tesoura, podão, enxada, rastelo e outros
apetrechos de jardinagem. A dona da floricultura disse que teria uma pessoa a me ajudar no
trabalho. Ao chegar a casa vi uma bicicleta preta, marca monark, escorada no meio-fio. E,
sentado na calçada estava um senhor bastante curioso. Hoje, ele me lembraria àqueles
cubanos que passeiam pelo Malecon com a camisa estampada usando uma boina e fumando
um charuto.
Mas, vamos ao acontecido. Ele seria a pessoa a me ajudar no jardim. Ao me apresentar
descobri seu nome, Seo Zézinho. Na garupa da bicicleta, trazia uma tesoura já envernizada
pelo suor. Contanto sobre seu trabalho disse, com a dignidade que as pessoas simples têm,
que era jardineiro há quarenta anos e que já plantara muitas árvores na vida. Entramos na casa
para fazer o jardim, uma casa luxuosa, dessas que aparecem em revistas de decoração. O lote
continha uma infinidade de tapetinhos de grama, algumas fênix fazendo a decoração, ráfias, e
outras plantas de sombra e sol.
Então começamos a aparar a grama e o Seo Zézinho num compasso que lembrava um
samba lento ia com sua tesoura. O meio-dia já se aproximava e a barriga começava a roncar.
Trabalho braçal deixa o cabra com uma fome de ontem. Perguntei onde morava o Seo
Zézinho que respondeu, na calma mineira: na Água Limpa. Este é um dos bairros que fica no
morro da cidade, sé que se pode existir morro numa cidade do interior de Minas. Mas, é que
por lá moram as pessoas simples e trabalhadoras que vivem às margens da sociedade.

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De onde estávamos trabalhando até a casa do Seo Zézinho dava mais ou menos meia
hora de ida e vinda, e como tínhamos uma hora de almoço ele tinha que fazer o “quilo” (o
descanso depois do almoço) pedalando. Deve ser por isso que ele era tão magrinho. Uma hora
da tarde e estava lá o Seo Zézinho, pontual como esses relógios de igreja. Recomeçávamos a
labuta aparando grama na rapidez em que as vacas pastam no campo. Foi assim durante três
dias, os que trabalhamos juntos. Na paciência e determinação por cumprir sua profissão de
jardineiro Seo Zézinho me ensinou uma lição muito importante: que mesmo nesses tempos
sombrios a dignidade do homem brota como os calos nas mãos.
Simón Rodriguez dizia sobra a importância da educação que se aprende trabalhando
na terra. O sistema capitalista impera e como o império há de ruir e com ele toda a estrutura
que o sustenta, chegará o tempo em que as lanças se transformarão em arados e a terra será
trabalhada por mãos que cultivam e zelam pela vida boa e bonita para todos, a Eko Porã dos
Guarani, como diz a profecia.
Toda vez que a chuva das flores vem, minha dignidade se renova no solo fértil da
esperança de que encontraremos a terra sem males. E sigo lutando e construindo jardins,
assim como o Seo Zézinho.

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