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Imago Dei - uma reflexão sobre o quanto somos imagem de Deus

Lucas Estevam Figueiredo Carneiro

Resumo
A expressão latina Imago Dei, significa “imagem de Deus”, é uma das doutrinas da
fé reformada e é objeto de análise de diversos teólogos da história da igreja. Esse
artigo, busca fazer uma reflexão sobre o quanto a imagem de Deus no homem foi
afetada através do pecado, além questionar respeitosamente as conclusões
principais dos teólogos reformados em relação às consequências de sermos imagem
e semelhança divina, no que diz respeito à dignidade humana.

Palavras-chave: Imago Dei, imagem, semelhança, homem.

1. Conceito de Imago Dei

A origem do pensamento que dá início a doutrina da Imago Dei é a passagem


de Gn 1:26-27, que relata a criação da humanidade. Diferente dos animais, plantas e
todo tipo de ser vivo, o homem foi criado à imagem e semelhança de Deus. O
primeiro teólogo a pensar e refletir mais profundamente sobre essa passagem, foi
Irineu de Lion, que pensava que a semelhança a Deus foi perdida, mas continuamos
sendo sua imagem. A igreja durante a história refletiu e mudou sua interpretação
sobre esse texto algumas vezes, e acredito que a definição contemporânea de
Grudem resume muito bem esse conceito quando diz que “para os primeiros leitores,
Gênesis 1:26, ‘façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança’,
significava simplesmente: ‘façamos o homem como nós, para que nos represente’”.¹
Grudem foca sua interpretação no significado das palavras, e nos traz um
entendimento excelente e prático sobre a passagem.
Penso que conseguimos simplificar o entendimento de Gn 1:26 percebendo
os passos que Deus faz na criação do homem: 1) Deus revela seu plano: “Façamos
o homem”, diferente do relato do restante da criação, que segue a repetição de
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“Deus fez” cada uma das coisas, aqui percebemos a frase no plural, “façamos”. É
interessante como o autor de Gênesis destaca a participação da trindade no
planejamento da criação do homem. 2) Deus define como seria o homem: “à nossa
imagem, conforme a nossa semelhança”. O Senhor cria o homem baseado em si
mesmo, ou seja, em algum aspecto, o homem é parecido e conforme o próprio
Deus. 3) Deus define o propósito do homem: “Domine ele sobre os peixes do mar,
sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os
pequenos animais que se movem rente ao chão". Havia coisas definidas para o
homem realizar, e Deus as designa aqui. Dada a dificuldade de entender
exatamente o que significa sermos a imagem e semelhança de Deus, podemos ficar
com o entendimento mais simplificado de que Deus planejou criar o homem baseado
em si mesmo, essa foi sua vontade e ela foi executada, ainda sem definir as
implicações de sermos feitos desse jeito tão singular.

2. O quanto a imagem de Deus foi alterada no homem após o pecado?

A queda da humanidade, iniciada no pecado de Adão, trouxe consequências


drásticas para a humanidade, entre elas, a deformação da imagem de Deus na vida
das pessoas. Isso fica tão claro, pois não conseguimos identificar com exatidão o
que é a imagem de Deus em nossas vidas, se tivéssemos completamente a Imago
Dei em nós, saberíamos identificá-la sem muitas discussões e dificuldades. Grudem
vai dizer que a imagem e semelhança de Deus é evidenciada e “respondida ainda
no início de Gênesis, onde Deus dá a Noé a autoridade de estabelecer a pena de
morte para o homicídio logo depois da enchente; Deus diz: ‘Se alguém derramar o
sangue do homem, pelo homem se derramará o seu; porque Deus fez o homem
segundo a sua imagem’ (Gn 9:6)” .²
Se tomarmos a afirmação de Grudem como verdadeira, ainda assim
precisamos assumir que, provavelmente, todos os aspectos em que somos
semelhantes a Deus foram afetados de alguma maneira pelo pecado. Strong,
falando sobre as implicações do pecado nas pessoas, diz que “Em suma, o homem
não fez mais de Deus o fim de sua vida, mas escolheu a si mesmo. Enquanto reteve
o poder de autodeterminação nas coisas subordinadas, ele perdeu aquela liberdade
que consistia no poder de escolher Deus como seu objetivo final, e ficou acorrentado
por uma inclinação fundamental de sua vontade para o mal”.³ Observemos, por
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exemplo, um atributo de Deus que quase todos concordamos que temos em


semelhança a Ele, a comunicação. Podemos escolher olhar de uma maneira
positiva, e dizer que o homem produz belas canções, obras poéticas, de ficção,
aventura, ou ainda pensarmos sobre como é gostoso termos uma conversa profunda
com nossos amigos e irmãos, mas é fato também que a comunicação humana é
usada de forma completamente destrutiva. Com a nossa boca, proferimos palavras
que podem destruir emocionalmente as pessoas. Um fenômeno contemporâneo, o
cancelamento nas redes sociais, revela o desejo incontrolável que a sociedade tem
de comunicar ódio àqueles que erram em coisas definidas como inaceitáveis. Além
disso, temos obras musicais, filmes e peças teatrais que, embora lindas e elogiáveis
tecnicamente, tem um conteúdo completamente deplorável e depravado.
O texto de Gênesis 9:6, numa primeira leitura, de fato parece provar que
continuamos com a imagem de Deus, mesmo que afetada em nossas vidas, mas
essa é uma leitura muito humanista, em algum aspecto. O texto não nos mostra a
continuidade da imagem de Deus, apenas uma reafirmação de que o homem foi
criado à imagem de Deus, e que assassinar alguém que é conforme a imagem de
Deus, é uma ofensa ao próprio Deus, não necessariamente ao homem. Veja que a
pena para alguém que mata um homem, é ser morto também por outro homem. Ora,
este assassino também não é imagem de Deus? Veja como o texto não tem a ver
com a dignidade ou direitos do homem por ser semelhante a Deus, mas sim com a
ofensa ao próprio Deus, que é consumada ao tirar a vida de alguém que ele fez de
acordo consigo mesmo. Não quero chegar a conclusões ainda, porém, precisamos
levar em consideração a possibilidade da imagem de Deus nos homens ter sido
obliterada após a queda.

3. A relação da Imago Dei com dignidade do homem e direitos humanos

A maioria dos teólogos reformados conclui que a Imago Dei deve nos levar ao
entendimento de que todas as pessoas, mesmo que caídas, tem alguma parte da
imagem de Deus, e por isso devem ser tratadas com toda dignidade e respeito.
Grudem fala sobre isso quando diz que “Todo ser humano, por mais que a imagem
de Deus esteja maculada pelo pecado, pela doença, pela fraqueza, pelo
envelhecimento ou por qualquer outra deficiência, traz em si ainda a condição de
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existir à imagem de Deus e portanto precisa ser tratado com a dignidade e o respeito
devidos ao portador da imagem divina.⁴
Eu percebo muita influência do humanismo nesse pensamento, são
conclusões que nenhum texto bíblico indica ou apresenta claramente. O próprio
texto de Gn 9:6, “tira o direito” à vida do assassino, porque ofendeu a Deus, não
apenas por um ataque à vida humana. Tiago 3:9, mostra outra ofensa a Deus
também, dessa vez com a boca, ao almadiçoarmos homens, ao mesmo tempo que
bendizemos a Deus. Tiago mostra que precisamos proferir palavras boas a Deus e
também aos homens, pois essa é a vontade de Deus, e não porque os homens são
dignos disso necessariamente. Veja que o homem só é tratado com algum valor
devido a sua origem divina, isso não implica em conclusões que foquem totalmente
no bem estar da humanidade, mas em conclusões que vão em direção a vontade do
próprio Deus. Desagrada e ofende ao próprio Senhor os crimes cometidos à honra e
dignidade dos homens, 6 dos 10 mandamentos evidenciam isso claramente, e esse
deve ser o motivo que nos leva a tratar o próximo com dignidade, respeito e amor, e
não uma perspectiva antropocêntrica. Não quero negar o privilégio e grande honra
que temos por sermos feitos à imagem e semelhança de Deus, mas temo que isso
tem nos levado a conclusões precipitadas sobre nossa vida em sociedade. Há outros
textos que vão mostrar com maior clareza como deve ser o tratamento e a
convivência com o próximo, todos eles se baseiam inicialmente no amor a Deus.
Ninguém pode amar ao próximo sem amar a Deus antes. Só amo ao meu próximo,
pois Deus mandou fazermos assim, e só faço desse jeito, pois amo a Deus. Não
acordamos dispostos a fazer coisas boas aos outros se não temos um coração
transformado e inclinado a obedecer a vontade de Deus.

4. Conclusões (ou não)

Este artigo não pretende ser conclusivo sobre o assunto da Imago Dei, nem
deseja refutar todos os bons teólogos que pensam diferente dos argumentos
trazidos aqui, mas creio que as conclusões comuns ao tema, principalmente no
aspecto da dignidade humana, estão extrapolando o que o texto bíblico diz e indo
para suposições e desfechos que a bíblia não propõe. A dignidade humana é
considerada e citada na escritura, mas não de acordo com o pensamento majoritário
da igreja em relação a Imago Dei. Acredito que esse é um dos grandes erros da
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teologia sistemática. No anseio de entender todos os aspectos e perguntas que


fazemos para o texto bíblico, os teólogos sistemáticos, muitas vezes, não percebem
se o texto bíblico se propõe de fato a responder essas perguntas, e pecam nos
excessos de conclusões e interpretações que fogem da ideia original do autor
bíblico.

Referências

¹ Grudem, Wayne A. Teologia sistemática atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova,
1999, p. 364.
² Grudem, Wayne A. Teologia sistemática atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova,
1999, p. 365.
³ Strong, August H. Teologia sistemática Strong (ebook). Roquim Book Store, p.
1613.
⁴ Grudem, Wayne A. Teologia sistemática atual e exaustiva. São Paulo: Vida Nova,
1999, p. 371.

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