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pecuária que ‘dá certo’, na qual a produção com alta tecnologia traz riquezas
e modernidade. Além disso, esse marketing é vendido como ‘salvação do país’,
pelo equilíbrio das contas públicas e pelo fornecimento de alimentos, madeira
e biocombustível para o mundo (Schlesinger, 2005; Oliveira, 2005). Porém,
ele tem trazido benefícios financeiros para poucos (grandes empresas) e gerado
impactos negativos na saúde e no ambiente que ultrapassam os limites dos des-
matamentos e das fazendas agropecuárias, os quais devem ser compreendidos
como expressão das relações capital-trabalho e das tecnologias empregadas,
visando a lucros imediatos e à máxima exploração dos bens naturais (Porto,
2000; Oliveira, 2005; Miranda et al., 2007).
Entretanto, o gerenciamento das situações de riscos à saúde-ambiente
tem sido considerado como um problema de aplicação de normas legais e de
conclusões relevantes da ciência quantitativa. A crença dos pesquisadores em
que a objetividade científica pode fornecer todas as evidências para a tomada
de decisão sobre questões de riscos à saúde tem-se modificado diante das si-
tuações de alta complexidade e incertezas geradas pelos processos produtivos do
mundo moderno. Tal situação tem levado a se buscarem práticas de vigilância
de enfoque qualitativo/participativo e aplicação do princípio da precaução
sobre os possíveis prejuízos de riscos ainda não explicados por relações de
causa-efeito e com possibilidades de agravos/danos futuros (Augusto, Florêncio
& Carneiro, 2001; Augusto & Freitas, 1988; Funtowich & De Marchi, 2000;
Tambellini & Câmara, 1998).
Na busca por modelos teóricos para se verificarem os impactos dos processos
produtivos, coloca-se o espaço social como uma categoria de análise, no sentido
de se compreenderem as transformações no ambiente social, inclusive as pro-
vocadas pela agroindústria. Esse objeto de estudo deve ser ampliado para além
da categoria trabalho, devendo incorporar elementos e formas processuais do
modo de produção e sua conexão aos processos históricos e ecológico-sociais
em que se situam, pois é dessa dinâmica de construção do espaço social que
emergem as situações de risco à saúde (Câmara et al., 2003; Tambellini &
Câmara, 1998; Mattos & Machado, 2002; Breilh, 2003).
Com essa abordagem ecológico-social se produziram trabalhos científicos
que analisaram o processo saúde-doença nos diferentes espaços e tempos –
como a diferenciação do perfil epidemiológico dos acidentes de trabalho ocor-
ridos na zona rural paulista (Teixeira & Freitas, 2003) ou na gaúcha (Faria et
al., 2000) ou o estudo de Wünsch Filho (1999), que correlacionou o produto
interno bruto (PIB) nacional com a incidência de acidentes de trabalho. Outros
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Metodologia
Para compreendermos o processo saúde-produção-doença, construímos um
estudo quali-quantitativo, focado nas relações do processo agrícola-florestal-
industrial, do seu volume de produção (e insumos), do perfil epidemiológico
de morbi-mortalidade e das práticas de vigilância à saúde.
Foram coletados e distribuídos dados numa série histórica (1998 a 2005)
do volume da produção agrícola, pecuária, madeira/lenha e insumos (agrotó-
xicos, fertilizante e calcário) utilizados no processo produtivo agropecuário de
Mato Grosso (IBGE, 2007; Seplan-MT, 2006; INPM, 2006; Indea-MT, 2006).
Pela complexidade da relação saúde-produção-doença, selecionou-se, através
de análise estatística de tendência, os agravos à saúde que tiveram importante
incremento naquele período, ou seja, os acidentes de trabalho, as intoxicações
por agrotóxicos, os acidentes com animais peçonhentos, as malformações
congênitas e as neoplasias. Eles também têm sido analisados como os mais
sensíveis às situações de riscos e/ou das condições de trabalho e que prova-
velmente foram ‘induzidos’ pelo processo produtivo do agronegócio, como
descritos na introdução deste capítulo. Os dados foram obtidos de registros
de morbi-mortalidade: 1) de internação hospitalar (Datasus, 2007); de morta-
lidade e morbidade por capítulo da Classificação Internacional de Doenças
(CID-10) e residência dos agravados (Datasus, 2007); 2) das Comunicações
de Acidentes de Trabalho (CATs), notificadas ao MPS (Brasil, 2007a); 3) das
Notificações de Agravos do Sinan-MT (2007); 4) dos dados demográficos do
IBGE (2007); e 5) dos dados de empregos registrados no MTE (Brasil, 2007b).
Os dados dos eventos de riscos à saúde humana, os volumes e tipos de
produção agrícola, pecuária e florestal, assim como de insumos agropecuários,
foram relacionados em suas séries históricas (1988-2005), implicando uma
matriz de produção agropecuária e de agravos à saúde dos trabalhadores e da
população do interior do estado e de Cuiabá/Várzea Grande. A relação entre
esses dados foi verificada em análise estatística de correlação de produção versus
eventos de riscos e por análise de séries temporais, referenciadas em Moretin
e Toloi (2004) e Draper e Smith (1998). Suas análises foram subsidiadas nos
estudos de Câmara et al. (2003), Medronho (2003), Rouquariol e Almeida
Filho (2003) e outros citados na seção inicial deste capítulo.
No complemento qualitativo da pesquisa, foram coletados dados de docu-
mentos de avaliações de vigilância em saúde da Secretaria de Estado de Saúde,
de vigilância à sanidade animal e vegetal do Instituto de Defesa Agropecuária
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1998 1999 2000 2001 2002 2003 2004 2005
Esforço produtivo (ha/hab.) 2,24 2,44 2,55 2,59 2,99 3,34 4,03 4,36
Esforço produtivo (boi/hab.) 9,99 10,10 10,48 10,79 11,81 12,88 13,33 13,55
Agrotóxico (litros/hab.) 19,03 20,76 21,69 22,02 25,40 28,35 34,24 37,03
Acidente de trabalho/1.000 trab. 17,27 17,17 17,73 16,09 16,89 17,56 18,79 18,46
Intoxicação por agrotóx./10.000 hab. 0,20 0,20 0,28 0,30 0,42 0,56 0,63 0,51
Acidentes por anim. peçon./10.000 hab. 0,36 0,62 0,81 1,12 2,78 3,58 3,14 3,48
Internação neoplasia /10.000 hab. 11,30 10,65 11,49 10,52 19,66 22,98 23,42 28,08
Óbitos neoplasia /10.000 hab. 3,44 4,18 4,27 4,14 4,52 4,98 5,00 5,06
Internação malformações/1.000 nasc. 6,57 6,93 6,85 7,26 19,57 21,70 20,73 15,87
Óbitos malformações/1.000 nasc. 3,50 3,61 4,34 3,73 3,93 3,85 4,52 4,07
Fontes: Datasus (2007), Indea-MT (2006), Brasil (2007a, 2007b), IBGE (2007), Sinan-MT (2007).
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Tabela 2 – Resumo das análises de regressão dos indicadores dos esforços produ-
tivos e demanda de agrotóxicos com os agravos e internações. Interior de Mato
Grosso – 1998-2005
R2
Por meio dos coeficientes de determinação (R2), a análise dos dados indi-
cou que existe uma correlação positiva significante entre as incidências dos
agravos (casos e óbitos) e internações hospitalares específicas com os ‘esforços
produtivos’ agropecuários e demanda de agrotóxicos no ‘interior’ do estado
de Mato Grosso no período analisado.
Quando se compararam os indicadores de agravos mostrados na Tabela 1
com os nacionais coletados nas mesmas fontes de dados, verificou-se que em
Mato Grosso, no período de 1998 a 2005, a mortalidade por neoplasia por
100.000 habitantes passou de 41,5 para 57,1 (em curva ascendente), com
aumento de 37%, enquanto no Brasil esse indicador aumentou 14%, de 68,4
para 78,6 (em curva ascendente). Nesse período, a mortalidade por 1.000
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Total de Acidentes Percen-
cidade Incidên- Mortali- Letali-
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Considerações Finais
Com base na análise de inter-relações criadas no espaço social do ‘interior
do estado’ de Mato Grosso, ou seja, a de produção-saúde-agravos e vigilância-
produção-controle social, mostra-se que essas ações complexas formaram uma
rede de processos críticos para a saúde-ambiente que promoveram os agravos
específicos e internações hospitalares analisados neste estudo e provavelmente
outros não investigados (danos ambientais).
O indicador de ‘esforço produtivo’, que relaciona o quantitativo de produ-
ção agropecuária ou florestal de uma região com a sua respectiva população que
contribui na execução das etapas da cadeia produtiva agroindustrial-florestal,
foi um importante instrumento de análise nesta pesquisa. Ele permitiu visua-
lizar a correlação produção-agravo e indicar que sua relação vai além dos traba-
lhadores, atingindo a população regional na qual se desenvolve o agronegócio.
Tal verificação nos indica que esse modelo de desenvolvimento econômico
deverá ser tratado como problema de saúde pública pelas implicações diretas
de seus agravos à saúde-ambiente e dos custos sanitários, previdenciários e
sociais que são arcados/financiados com recursos públicos.
Os desequilíbrios da relação de vigilância-produção-controle social nos
indicaram a dinâmica social e econômica imposta por esse setor do neolibe-
ralismo em Mato Grosso e que podem ser considerados como reflexos dos
seguintes fatores: 1) forças de poder político – originadas na desorganização
sindical dos trabalhadores e dos privilégios de políticas públicas concedidas
pelo Estado às instituições do agronegócio; 2) injustiça social – no sentido
de desigualdade de direitos humanos; e 3) injustiça ambiental – rápida ex-
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