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Covid-19, Sociedade de Risco e a importância

do Estado de Direito Ecológico e do consumo


sustentável para a superação da atual crise
sanitária

Covid-19, Risk Society and the importance of the


Ecological Rule of Law and sustainable
consumption to overcome the current health crisis

Carolina Medeiros Bahia


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC). Professora
Adjunta C, nível II, do Centro de Ciências Jurídicas da UFSC, atuando nos cursos de graduação,
mestrado acadêmico e mestrado profissional. Membro do Grupo de Pesquisa Direito Ambiental na
Sociedade de Risco (GPDA/UFSC-CNPq).
carolmbahia@hotmail.com

Melissa Ely Melo


Doutora em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), com estágio de
doutoramento na Universidade de Alicante – Espanha (PDSE – CAPES). Pesquisadora com
Pós-Doutorado na UFSC (PDJ - CNPq). Professora Adjunta do Centro de Ciências Jurídicas da
UFSC, atuando nos Cursos de Graduação e Mestrado Profissional (MPD). Membro do Grupo de
Pesquisa Direito Ambiental na Sociedade de Risco (GPDA/UFSC-CNPq) e do Observatório de
Justiça Ecológica (OJE/UFSC-CNPq).
melissa.melo@ufsc.br ou melymelo350@gmail.com

Áreas do Direito: Ambiental; Constitucional; Consumidor.

Resumo: Trata-se de pesquisa sociojurídica que parte da percepção de que a grande escalada
consumerista, verificada sobretudo após a Revolução Industrial, trouxe consigo décadas de
externalidades negativas a ponto de viver-se em nova fase, sob o ponto de vista geológico, a
do Antropoceno. Em sentido complementar de análise, sob o olhar sociológico
caracterizou-se também uma nova fase da Modernidade, a Sociedade de Risco, tal qual
mencionada por Beck (2002; 1998). Dentro desse contexto, investigou-se as relações
existentes entre os padrões de consumo contemporâneos, a ruptura dos limites biofísicos
planetários e a emergência de doenças zoonóticas, como a COVID 19, cujas consequências
marcam a sociedade contemporânea pelo fenômeno do “hiperconsumo”, bem como pelas
graves desigualdades e injustiças sociais e seus nefastos efeitos. Em um segundo momento,
discutiu-se a emergência de novo paradigma em termos de Estado, averiguando os pilares de
construção do Estado de Direito Ecológico, essencial à promoção de outras rupturas e
necessário ao surgimento de novo modelo de sociedade, não mais de “hiperconsumo”, mas
do “consumo sustentável”, cujo processo de construção é a temática enfrentada no último
tópico do artigo e estudado em suas vertentes fraca e forte, reconhecendo-se a urgência da
redução global do consumo de recursos, no sentido de buscar minimizar os impactos
alarmantes das consequências de viver-se no Antropoceno. O método de pesquisa foi o
indutivo, utilizando-se de procedimento monográfico e empregando, como técnica de
pesquisa, a pesquisa documental em fonte secundária e, também primária, consistentes na
coleta e análise de doutrina e documentos de política internacional e nacional acerca do
tema.

Palavras-chave: COVID-19; Sociedade de Risco; Estado de Direito Ecológico; Consumo


Sustentável.

Abstract: This socio-legal research, having the perception that the great consumerist
escalation, verified especially after the Industrial Revolution, brought with it decades of
negative externalities to the point of living in a new phase, from a geological point of view,
the Anthropocene. In a complementary sense of analysis, from a sociological perspective, a
new phase of Modernity was also characterized, the Risk Society, as mentioned by Beck
(2002; 1998). Within this context, this article investigates the relationships between
contemporary consumption patterns, the rupture of planetary biophysical limits and the
emerging of zoonotic diseases, such as COVID 19, and it consequences that happens to mark
contemporary society by the phenomenon of "hyperconsumption", as well as by serious
social inequalities and injustices and their disastrous effects. In a second topic, the
emergence of a new paradigm in terms of “Rule of Law” was discussed, investigating the
Ecological Rule of Law, and its pillars of construction, both essential to the promotion of
other ruptures and necessary for the emergence of a society, no longer characterized by the
“hyperconsumption ”, but by the “sustainable consumption”, whose construction process is
the subject of the last topic of the article and studied in its weak and strong aspects,
recognizing the urgency in reducing the global resource consumption, in order to minimize
the alarming impacts coming from the consequences of living in the Anthropocene. The
research method was the inductive, using a monographic procedure and employing, as a
research technique, documentary research in secondary and also primary sources, consistent
in the collection and analysis of doctrine and international and national policy documents on
the subject.

Keywords: COVID-19; Risk Society; the Ecological Rule of Law; sustainable consumption.

1. Introdução

O consumo, nas sociedades de massa atuais, é uma atividade essencial tanto para o alcance
dos desejos e necessidades individuais e coletivas quanto para o desenvolvimento da
economia, revelando-se como o grande motor do sistema capitalista.

Contudo, a grande escalada consumerista verificada sobretudo após a Revolução Industrial,


trouxe, como externalidades negativas, em todas as partes do globo terrestre, o
esgotamento de recursos naturais, a poluição do ar, de rios e de mares, a grande perda da
biodiversidade e o agravamento das mudanças climáticas, inaugurando, assim, uma nova era
geológica, denominada de Antropoceno e uma nova fase da Modernidade, a Sociedade de
Risco.

Embora o consumo, ao lado da produção seja responsável por profundas alterações nos
limites biofísicos planetários, indispensáveis para a capacidade de resiliência do planeta,
poucas reflexões têm sido feitas em torno dos custos ambientais e sociais produzidos pela
sociedade de massa e de hiperconsumo e a maior parte dos consumidores seguem
adquirindo produtos e serviços para o atendimento de necessidades cotidianamente
“fabricadas” sem considerar os impactos gerados por suas ações individuais.

O próprio movimento ambientalista subestimou por muito tempo a contribuição do


consumo para a crise ambiental atual, concentrando as suas críticas em torno da produção.
Isso ocorreu, em parte, porque o estilo de vida consumerista é apreciado e desejado pela
maioria da população mundial.

Em dezembro de 2019, toda a comunidade internacional ficou alarmada com o surgimento


de um novo vírus, com alta capacidade de transmissão, que levou à óbito mais de quatro mil
pessoas na China, país que primeiro sofreu os efeitos da COVID19.

Este vírus disseminou-se rapidamente por países asiáticos, como Coreia e Japão, chegando
com força na Europa, atingindo, em seguida, países do Oriente Médio e do continente
americano e alcançando também a Índia, até a epidemia ser enquadrada em 11 de março de
2020 como pandemia mundial pela OMS.

A grave crise sanitária mundial veio seguida por uma forte crise econômica, causando quedas
nas bolsas de valores, recessão, fechamento de empresas, grave aumento no número de
desempregados e expansão da pobreza em muitos países.

O presente artigo pretende analisar esta delicada e, muitas vezes, não tão evidente, relação
entre os padrões de consumo atuais, a ultrapassagem dos limites biofísicos planetários, a
Sociedade de Risco e a emergência de doenças zoonóticas, como a COVID 19, trazendo
reflexões sobre os problemas ambientais gerados pelos padrões atuais de consumo e
propondo a concretização do Estado de Direito Ecológico e a transição do hiperconsumo para
o consumo sustentável, como algumas possibilidades de ruptura.

A metodologia baseou-se no método indutivo, utilizando o procedimento monográfico e


empregando, como técnica de pesquisa, a pesquisa documental, consistente na coleta de
doutrina e documentos acerca do tema.

2. A pandemia do coronavírus como expressão do Antropoceno e sua análise a partir da


Teoria da Sociedade de Risco.
Segundo Leonardo Boff1, a pandemia da COVD 19 deve ser compreendida como uma
expressão do Antropoceno, a nova era geológica, inaugurada pelo Planeta Terra por conta
das intervenções antropogênicas iniciadas a partir da Revolução Industrial.

O período anterior, o Holoceno, que durou cerca de 11. 700 anos, apresentou um clima não
usualmente estável, que permitiu o desenvolvimento e florescimento das civilizações2. As
condições do Antropoceno, por sua vez, segundo especialistas, serão muito provavelmente
catastróficas para a resiliência das economias e sociedades humanas.

De fato, estudos científicos demonstram que as atividades humanas têm sobrecarregado


progressivamente o sistema terrestre e reduzido a sua capacidade de resiliência às
perturbações.

Segundo Kim e Bosselmann3, quatro dos sete limites planetários, que podem ser
quantificados a um nível global, já foram ultrapassados: as mudanças climáticas, a
integridade da biosfera, a mudança do sistema terrestre e os fluxos biogeoquímicos. Outros
limites encontram-se sob ameaça.

Nesse contexto, verifica-se que, infelizmente, a possibilidade de a humanidade enfrentar


outras terríveis pandemias, como a da COVID 19, não é nada remota, por conta do acelerado
processo de destruição de habitats selvagens e consequentes desequilíbrios ecológicos.

Segundo o relatório do Programa das Nações Unidas sobre questões emergentes de


preocupação ambiental de 2016, emergência de doenças zoonóticas está sempre associada
a distúrbios ambientais, pois a maioria delas se origina na vida selvagem e mudanças no
meio ambiente permitem a transmissão destas doenças do hospedeiro animal para o
hospedeiro humano. O avanço sobre ecossistemas naturais, através da exploração de
recursos, agricultura e assentamentos humanos, geram oportunidades para que patógenos
passem de animais selvagens para as pessoas, especialmente quando a resistência natural às
doenças, que é resultante de uma diversidade biológica rica, é perdida4.

1
BOFF, Leonardo. Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: Advertências da pandemia. Petrópolis:
Vozes, 2021.
2
KIM, Rakhyum; BOSSELMANN, Klaus. Operationalizing Sustentainable Development: Ecological Integrity as
a Grundnorm of International Law. Review of European Community & International Environmental Law,
24(2) 2015. p. 195
3
Ibid, p. 196
4
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP FRONTIERS REPORT 2016: Emerging Issues of
Environmental Concern. Disponível em:
https://www.unep.org/resources/frontiers-2016-emerging-issues-environmental-concern. Acesso em 24.
Ago. /2021
O documento ainda destaca que as mudanças climáticas são o principal fator da emergência
de doenças, pois elas influenciam nas condições ambientais que facilitam ou dificultam a
sobrevivência, reprodução, abundância e distribuição de patógenos, vetores e hospedeiros,
assim como a transmissão de doenças e a frequência de surtos, enfatizando que evidências
crescentes sugerem que surtos ou doenças epidêmicas podem se tornar mais frequentes se
as mudanças climáticas continuarem5.

Diante deste quadro, o relatório deixa claro que, além da necessidade de maiores
investimentos em vigilância e na ampliação da rápida capacidade de resposta às
necessidades urgentes, é fundamental que as medidas a serem adotadas pelos Estados
dirijam-se à raiz do problema: o fato de que as atividades humanas estão impondo um
estresse extremo aos ecossistemas e à sua capacidade de funcionar6.

Contudo, a ultrapassagem dos limites biofísicos planetários e os consequentes desequilíbrios


ecológicos e climáticos, que marcam a transição do Holoceno para o Antropoceno e
favorecem o aparecimento de zoonoses, apresentam uma tendência de agravamento na
nova etapa da Modernidade, definida por Ulrich Beck como Sociedade de Risco.

Essa Sociedade é caracterizada por riscos potencialmente globais, invisíveis, imperceptíveis


pela ciência e que apresentam efeitos projetados no tempo e, por isso, são impassíveis de
controle pelos instrumentos técnicos e jurídicos moldados até então.

Ela seria o produto da própria radicalização da produção industrial e dos avanços técnicos e
científicos, que geram também uma qualidade diversa de ameaças para o meio ambiente.

Segundo Beck7, a sociedade de risco é configurada a partir do momento em que as ameaças


produzidas pela sociedade escapam dos sistemas de segurança estabelecidos pelo cálculo de
riscos e neutralizam os requisitos de controle antes criados. Este processo de fuga ou
neutralização, a seu ver, tem assumido duas formas principais.

Primeiro, constata-se que as normas instituídas dentro da sociedade industrial, como o


cálculo dos riscos, o princípio da assegurabilidade e o conceito de prevenção de acidentes e

5
UNITED NATIONS ENVIRONMENT PROGRAMME. UNEP FRONTIERS REPORT 2016: Emerging Issues of
Environmental Concern. Disponível em:
https://www.unep.org/resources/frontiers-2016-emerging-issues-environmental-concern. Acesso em 24.
Ago. /2021
6
Ibid.
7
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores S.A., 2002. p. 120
desastres, podem falhar e a principal evidência disso é a inexistência de seguro privado para
as novas indústrias e tecnologias controvertidas surgidas nesta nova etapa8.

Segundo, verifica-se um descompasso entre o modelo de decisão traçado pela sociedade


industrial e a globalidade de suas consequências agregadas, pois enquanto as decisões
ligadas à dinâmica científica, técnico-econômica continuam sendo geridas no nível do
Estado-nação e da empresa individual, as novas ameaças convertem a todos em membros de
uma sociedade de risco global9.

Nota-se então que, além de não evitarem a destruição da natureza, as antigas rotinas de
decisão, controle e produção (com aplicações tanto no direito quanto na ciência, na indústria
e na política) também promovem a normalização simbólica desta degradação. Assim, para
Beck10, não há, propriamente, uma ruptura de normas, porque, agora, são as próprias
normas voltadas para o controle e a gestão dos riscos que normalizam a perda de espécie e a
poluição de rios ou lagos.

Outro elemento nuclear na Teoria da Sociedade de Risco é o conceito de irresponsabilidade


organizada. Segundo Beck11, a irresponsabilidade organizada estaria configurada na
contradição encontrada nas sociedades de risco, que, vivenciando uma degradação
ambiental crescente e uma expansão do direito e da regulação ambiental, ao mesmo tempo,
não conseguem responsabilizar nenhum indivíduo ou instituição por nada. Nestas
sociedades, todas estas instâncias e regulações podem desempenhar seu papel e todos os
acordos válidos podem ser respeitados, sem que isto gere qualquer tipo de segurança.

Para Beck12, a Sociedade de Risco também é caracterizada pelo que ele denomina de efeito
bumerangue, pois, embora os riscos da era tecnológica também sigam, em algumas
situações, a desigualdade de classes, dão origem a uma lógica de repartição totalmente
diferente, pois passam a afetar, mais cedo ou mais tarde, as pessoas geram ou se beneficiam
deles. Esta lógica termina por extinguir o esquema de classes, submetendo pobres e riscos às
mesmas ameaças.

Por isso, aprofundando a discussão em torno da globalidade das novas ameaças, Beck
ressalta que elas não respeitam território, pois as suas consequências são potencialmente

8
Ibid, p. 49.
9
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores S.A., 2002. p. 120.
p. 49-50.
10
Ibid. p. 50.
11
Ibid. p. 52.
12
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo. Barcelona: Ediciones Paidós Ibérica, 1998. p. 29.
transfronteiriças e não levam em conta as diferenças sociais, já que atravessam as trincheiras
do luxo e da riqueza, sem atribuir a ricos ou pobres qualquer privilégio.

A percepção da globalidade e da universalidade dos novos riscos, que ultrapassam as


fronteiras de classe, não impede, no entanto, o reconhecimento de que existem segmentos
que se beneficiam com a produção do risco e outros que tem a sua existência econômica e
seu bem-estar ameaçados de uma maneira mais importante13.

Como um risco típico da Sociedade de Risco, o vírus da COVID 19 pode ser compreendido
como um risco sanitário, marcado pela invisibilidade, que o torna inapreensível pelos
sentidos humanos, pelo alto grau de incerteza científica e também pelo seu caráter global.

De acordo com Estevão Bosco14, duas insuficiências nas ordens de enfrentamento se


destacam na atual pandemia. A primeira refere-se à falta de conhecimentos científicos
decorrente da novidade da doença, que dificulta o processo de percepção social desta
ameaça assim como a superação da crise sanitária. A segunda desenvolve-se no plano
gerencial e evidencia a urgência de uma integração global mais ampla, tanto na esfera
jurídica quanto política, uma vez que o trânsito internacional de pessoas e mercadorias torna
as ações sanitárias globalmente interdependentes.

A soma das duas insuficiências potencializa a condição de incerteza, tornando fluídas as


fronteiras culturais que definem as autoridades epistêmicas, além de tornar imperativa a
necessidade de coordenação de instituições e de atores estatais no enfrentamento da
pandemia em escala local-global15.

Enfocando o primeiro aspecto, Bosco16 evidencia que a crise da COVID-19 se soma


atualmente à crise das fontes legitimas de conhecimento que já estava em curso e que, neste
contexto, a autoridade epistêmica e o poder dela derivado distribuem-se na esfera pública e
essa distribuição tem mais a ver com o poder da disseminação da informação na era digital
do que com o conhecimento científico.

Nesta linha, o autor acrescenta que, como o risco da COVID-19 é invisível e global, a
percepção que temos dele toma corpo no interior de uma dinâmica de relações de definição

13
BECK, Ulrich. La sociedad del riesgo global. Madrid: Siglo Veintiuno de España Editores S.A., 2002. p. 120.
p. 97.
14
BOSCO, Estevão. Covid-19 e a reconfiguração de fronteiras sociais, culturais e políticas: reflexões dobre
corpo, conhecimento e poder. In: RIBEIRO, Wagner Costa (org.). Covid-19: passado, presente e futuro. São
Paulo: FFLCH/USP, 2020. p. 196.
15
Ibid, p. 202.
16
Ibid, p. 202.
que se manifestam como relações de dominação entre cientistas, políticos, jornalistas,
ativistas, religiosos e empresários17.

No atual cenário, parece imprescindível a concretização de uma governança global, com a


construção de um centro plural de decisão que, ao refletir sobre os problemas globais,
encontre também soluções globais para eles, para além das soberanias nacionais18.

Sobre o efeito bumerangue, fica cada vez mais evidente que, embora todos estejam
potencialmente expostos ao vírus, a ideia de democratização do vírus não se materializa na
prática, pois as oportunidades de evitar a exposição ao coronavírus assim como o acesso aos
tratamentos disponíveis não são igualitários, sendo certo que fatores socioeconômicos
influenciam o modo como as populações enfrentam esta grave crise sanitária19.

Deste modo, é imperativo reconhecer a existência de grupos que, como analisa Boaventura
de Souza Santos20, apresentam uma especial vulnerabilidade que se agrava com a
quarentena, como é o caso das mulheres, dos trabalhadores informais, das populações de
rua, moradores nas periferias pobres das cidades, internados em campos de internamento
para refugiados, dos deficientes e dos idosos.

Com essas considerações introdutórias, no sentido de caracterizar o cenário de risco em que


se está inserido, passa-se ao segundo tópico do artigo que possui o condão de discutir, ainda
que brevemente, o papel e modelo de Estado para enfrentamento da problemática
apresentada.

3. A urgência do Estado de Direito Ecológico

O novo paradigma científico designado de Antropoceno deixou evidente uma mudança


radical no status quo, haja vista que os seres humanos passaram a ser a principal fonte de
transformação do Planeta e, de acordo com Aragão21, essa mudança não pode deixar de lado

17
Ibid, p. 203.
18
BOFF, Leonardo. Covid-19: a Mãe Terra contra-ataca a Humanidade: Advertências da pandemia.
Petrópolis: Vozes, 2021. p.25.
19
MORENO; Arlinda B.; MATTA, Gustavo Côrrea. Covid-19 e o dia em que o Brasil tirou o bloco da rua:
acerca das narrativas de vulnerabilizados e grupos de risco. In: Matta, Gustavo Corrêa; REGO, Sérgio.
SOUTO, Ester Paiva; SEGATA, Jean (orgs.). Os impactos sociais da COVID-19 no Brasil: populações
vulnerabilizadas e repostas à pandemia. Rio de Janeiro: Observatório COVID-19; Editora Fiocruz, 2021. p.44.
20
SOUZA SANTOS, Boaventura de. A cruel pedagogia do vírus. Coimbra: Almedina, 2020. p.15.
21
ARAGÃO, Alexandra. O Estado de Direito Ecológico no Antropoceno e os limites do Planeta. In: LEITE, José
Rubens Morato; DINNEBIER, Flávia França. Estado de Direito Ecológico: Conceito, Conteúdo e Novas
Dimensões para a Proteção da Natureza. São Paulo; Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2017. p.
20-37.
as suas consequências jurídicas, razão pela qual devemos evitar futuras alterações negativas
e propiciar as mudanças institucionais e jurídicas essenciais à inversão das perspectivas.

Impõe-se, então, a concepção de outro modelo de Estado, que incorpore a construção de


direitos consagrados ao longo de séculos e que, para além, promova outras rupturas
necessárias para este enfrentamento. Assim, serão feitas algumas observações acerca do
Estado de Direito para evidenciar em que medida o Estado de Direito Ecológico pode e deve
avançar na proteção de direitos antes não reconhecidos.

O Estado de Direito pode ser compreendido como aquele que se submete às leis que edita,
que estabelece limites para o poder político. Em uma análise histórica observa-se a
existência de um nexo de interdependência genética e funcional entre o Estado de Direito e a
garantia dos direitos fundamentais, pois, se por um lado, o Estado de Direito precisa
assegurar os direitos fundamentais para ser considerado como tal, os direitos fundamentais
dependem do Estado de Direito para a sua concretização.

Desta forma, também é possível classificar o Estado em Estado de Direito Liberal ou Social a
depender da abrangência e do significado que nele se reserve aos direitos fundamentais, que
podem ser restringidos à sua dimensão individual ou conjugados com a exigência de
solidariedade.

Krell22 pondera que o Estado de Direito não significa um “modelo ideal único” que, por seu
turno, possa ser “importado” por democracias mais recentes no sentido de garantir tanto o
desenvolvimento socioeconômico, quanto o bem-estar geral. Partindo de suas próprias
categorias políticas e tradições culturais, o Estado de Direito irá exigir em cada contexto,
definição mais precisa de seu conteúdo material.

Nesta linha, a crise ambiental experimentada pela modernidade deu origem a uma nova
dimensão de direitos fundamentais, que passou a impor ao Estado de Direito o desafio de
introduzir dentre as suas funções prioritárias a da proteção do meio ambiente.

Por isso, depois de a humanidade ter vivenciado formas de Estado Liberal e de Estado de
Bem Estar Social, com a respectiva positivação dos direitos de primeira e de segunda
geração, apostou-se na consolidação do chamado Estado de Direito Ambiental, que seria, na

22
KRELL, Andreas J. O Estado Ambiental como Princípio Estrutural da Constituição Brasileira. In: LEITE, José
Rubens Morato; DINNEBIER, Flávia França Estado de Direito Ecológico: Conceito, Conteúdo e Novas
Dimensões para a Proteção da Natureza. São Paulo; Instituto O Direito por um Planeta Verde, 2017. p.
38-56.
visão de Ingo Sarlet e Tiago Fensterseifer, “[...] um Estado preocupado com as questões
ambientais e com o objetivo de proteção do meio ambiente” 23.

Segundo os autores, o Estado de Direito, na sua configuração tradicional, não foi capaz de
fazer frente às ameaças da sociedade contemporânea, sobretudo, porque a esfera pública
não se equipou adequadamente para o enfrentamento da nova escalada dos riscos e
incertezas24.

Neste quadro, caberia, então, ao Estado de Direito Ambiental, manter as conquistas dos
demais modelos de Estado em termos de proteção da dignidade humana, agregando a elas
uma dimensão ecológica, que garantiria “[...] a estabilização e prevenção do quadro de riscos
e degradação ecológica” 25.

Contudo, quase completando cinquenta anos da primeira Conferência das Nações Unidas
para o Meio Ambiente, em Estocolmo, e do processo de esverdeamento das Constituições
que se verificou em seguida, observa-se que, a despeito dos objetivos políticos adotados, dos
instrumentos econômicos e legais estabelecidos e das mudanças de atitude e esforços feitos,
os níveis de degradação do meio ambiente continuam a seguir uma tendência alarmante.

Ao discutir as causas do fracasso estatal na tutela do meio ambiente, Kloepfer26 observa que
a política para o meio ambiente precedente não disponibilizou um instrumental
suficientemente efetivo para a proteção ambiental, sendo necessário, então, traçar novos
caminhos para a política ambiental e promover uma “virada ecológica”. Já Bugge27 constata
que a tendência de destruição continua crescente por conta dos valores dominantes de
crescimento econômico e de consumo material que orientam a nossa civilização.

Já Leite e Silveira28 salientam que a lógica capitalista, muito presente nas sociedades
ocidentais, de perceber a natureza apenas como recurso e da busca pelo crescimento

23
SARLET, Ingo Wolfgang; FENSTERSEIFER, Tiago. Direito Constitucional Ambiental. São Paulo: Revista dos
Tribunais, 2011. p.97
24
Ibid, p.39
25
Ibid, p.42.
26
KLOEPFER, Michael. A caminho do Estado Ambiental? A transformação do sistema político e econômico
da República Federal de Alemanha através da proteção ambiental especialmente desde a perspectiva da
ciência jurídica. In: SARLET, Ingo. Estado Socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010.
27
BUGGE, Hans Christian. Twelve fundamental challenges in environmental law: an introduction to the
concept of rule of law for nature. In: Christina Voigt (Ed.). Rule of Law for Nature: new dimensions and ideas
in environmental law. New York: Cambridge University Press, 2013. p. 5.
28
LEITE, José Rubens Morato; SILVEIRA, Paula Galbiatti. A Ecologização do Estado de Direito: uma ruptura
ao Direito Ambiental e ao Antropocentrismo Vigentes. In: LEITE, José Rubens Morato (Coord.). A
Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p.
89-139. p. 138.
econômico ilimitado como objetivo do Estado de Direito, além de falhar, traz consequências
catastróficas.

Por isso, para uma mudança no quadro atual, é imperativo que se atribua a prioridade mais
elevada à proteção ambiental como objetivo político, e limitar o crescimento econômico e o
consumo no sentido tradicional, por meio da constituição de outro modelo de Estado – o
Estado de Direito Ecológico.

Especialmente em contextos de crise climática e sanitária, o florescer dos argumentos em


prol da ecologização do Estado e do Direito evidenciam a urgência da mudança de paradigma
e podem representar uma das últimas oportunidades postas à humanidade de manutenção
das bases naturais da vida, bem como estabelecer justiça ecológica tanto para as presentes
quanto para as futuras gerações29, conforme preconiza o art. 225, da Constituição Federal
Brasileira de 1988.

Na opinião de Kloepfer30, essa “virada ecológica” do Estado de Direito pressupõe a superação


do princípio egocêntrico de proteção do meio ambiente, evoluindo-se para um quadro em
que o reconhecimento de um dever de consideração ultrapasse o interesse próprio ou de
pessoas próximas, com a consequente garantia de direitos próprios à natureza.

Essa estratégia de atribuir um valor intrínseco para a natureza deve ser complementada pelo
reconhecimento da existência de limites biofísicos planetários que condicionam a capacidade
de resiliência do Planeta e a própria possibilidade de manutenção de um espaço ecológico
seguro, para a sobrevivência tanto dos seres humanos quanto não-humanos.

Como explicam Kim e Bosselmann31, o arcabouço dos limites planetários está fundamentado
na teoria da resiliência, que considera a Terra como um sistema complexo e adaptativo, que,
operando dentro de certos limites, apresenta a capacidade de absorver choques, mantendo
as suas funções. Todavia, quando esses limites são ultrapassados, o sistema já não consegue
preservar a sua identidade original, assumindo uma configuração diferente.

29
LEITE, José Rubens Morato; SILVEIRA, Paula Galbiatti. A Ecologização do Estado de Direito: uma ruptura
ao Direito Ambiental e ao Antropocentrismo Vigentes. In: LEITE, José Rubens Morato (Coord.). A
Ecologização do Direito Ambiental Vigente: rupturas necessárias. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2020. p.
89-139. p. 138.
30
KLOEPFER, Michael. A caminho do Estado Ambiental? A transformação do sistema político e econômico
da República Federal de Alemanha através da proteção ambiental especialmente desde a perspectiva da
ciência jurídica. In: SARLET, Ingo. Estado Socioambiental e direitos fundamentais. Porto Alegre: Livraria do
Advogado, 2010. p.195.
31
KIM, Rakhyum; BOSSELMANN, Klaus. Operationalizing Sustentainable Development: Ecological Integrity as
a Grundnorm of International Law. Review of European Community & International Environmental Law,
24(2) 2015. p. 196
Para os autores, o arcabouço dos limites planetários pode ser empregado para traçar as
fronteiras entre o Holoceno e o Antropoceno, assim como para delimitar o tipo e o nível de
atividades humanas que poderão ser admitidas para manter os limites dos processos e
subsistemas planetários32. Além disso, a maior parte dos limites planetários pode ser aferida
por meio do controle de variáveis como a quantidade de gás carbônico presente na
atmosfera e as taxas de extinção de espécies33.

A partir destas premissas, é possível visualizar que o Estado de Direito Ecológico passa a
demandar do Poder Público e dos particulares a adoção de deveres jurídicos mais rigorosos
para o controle destas variáveis e a consequente preservação da capacidade de resiliência do
sistema terrestre.

Atribuindo a mais elevada prioridade aos valores ambientais, respeitando os direitos


inerentes à natureza e impondo a todos os atores jurídicos obrigações de resultado, o Estado
de Direito Ecológico teria, então, melhores condições para combater a devastação causada
pela sociedade de risco, controlar as atividades que gerem riscos significativos para o meio
ambiente e manter os processos biofísicos planetários mais próximos das condições do
Holoceno. Porém, considerando que o meio ambiente já ultrapassou os limites que
garantiriam o funcionamento pleno dos ciclos ecológicos em diversas localizações, o Estado
Ecológico teria, num primeiro momento, a missão de desacelerar as mudanças do
Antropoceno.

Como tentativa de fazer frente a esta situação, buscando maior proteção social, ambiental e
ecológica, na Reunião da Comissão Mundial de Direito Ambiental (IUCN), ocorrida em abril
de 2016, no Rio de Janeiro, os pesquisadores mais renomados da área debateram os
fundamentos que devem lastrear a construção desse Estado ideal, concluindo que o Estado
de Direito Ecológico deveria ser entendido como um conjunto de direitos e deveres
processuais e substantivos que incorpora os princípios do desenvolvimento ecologicamente
sustentável no Estado de Direito.

Esse encontro deu origem à Declaração Mundial do Estado de Direito Ecológico, que se
assentou, dentre outras premissas, nas ideias de que o fortalecimento do Estado de Direito é
fundamental para proteger os valores ambientais, sociais e culturais e para alcançar o
desenvolvimento ecologicamente sustentável e de que, sem o Estado de Direito, não há

32
KIM, Rakhyum; BOSSELMANN, Klaus. Operationalizing Sustentainable Development: Ecological Integrity as
a Grundnorm of International Law. Review of European Community & International Environmental Law,
24(2) 2015. p. 196.
33
Ibid, p. 196.
Direito Ecológico e a aplicação dos direitos e obrigações legais, a governança ambiental, a
conservação e a proteção podem ser arbitrárias, subjetivas e imprevisíveis34.

A Declaração reconhece ainda que a construção de um Estado de Direito Ecológico e a


presença de instituições fortes são essenciais para responder às pressões ambientais
crescentes que ameaçam a integridade ecológica da Terra, de forma a respeitar os direitos
fundamentais e os princípios da justiça, seja ela social, ambiental ou ecológica35.

Constata-se, assim, a urgência do emergir de um novo paradigma em termos de Estado, isto


é, o Estado de Direito Ecológico para promover outras rupturas, tais como a construção de
novo modelo de sociedade, não mais de hiperconsumo para uma de consumo sustentável. É
o que se aprofundará no tópico a seguir.

4. A necessidade de transição do hiperconsumo e para o consumo sustentável

Fácil perceber que os desafios do Estado de Direito Ecológico, que demandam, dentre outras
coisas, que o aproveitamento dos recursos renováveis se atenha aos limites impostos pela
sua capacidade de regeneração, encontram-se em constante choque com a atuação das
sociedades de hiperconsumo atuais.

A realidade da pandemia da COVID 19 desnudou ainda mais a necessidade de uma revisão


dos padrões de consumo e dos imperativos que regem essas sociedades, exigindo de todos
os setores um compromisso forte com a sustentabilidade ecológica, evitando-se, com isso,
que novas crises sanitárias se sucedam e que a própria humanidade se extinga.

De fato, o tema consumo sustentável tem integrado a agenda internacional desde a década
de 70. Contudo, passou a assumir a uma maior centralidade nas discussões ambientais a
partir da Cúpula da Terra (Conferência do Rio de Janeiro sobre Meio Ambiente e
Desenvolvimento -1992).

Tanto a Declaração do Rio de Janeiro sobre o Meio Ambiente e Desenvolvimento quanto a


Agenda 21, produtos desta Conferência internacional, claramente conclamam o setor
público, o setor privado e a sociedade civil organizada a se engajarem em ações que
reestruturem o consumo em torno da sustentabilidade.

34
IUCN. World Declaration on the Environmetal Rule of Law. Disponível em: <
https://www.iucn.org/sites/dev/files/content/documents/english_world_declaration_on_the_environment
al_rule_of_law_final.pdf> Acesso em 24. Ago. 2021.
35
Ibid.
Nos termos do Princípio 8 da Declaração do Rio: “para alcançar o desenvolvimento
sustentável e uma qualidade de vida mais elevada para todos, os Estados devem reduzir e
eliminar os padrões insustentáveis de produção e consumo, e promover políticas
demográficas adequadas”.

Já o capítulo 4 da Agenda 21 trabalha e aprofunda este conceito, enfatizando que os padrões


insustentáveis de consumo e produção, especialmente nos países industrializados, são as
principais causas da deterioração do meio ambiente mundial e que estes padrões devem ser
levados em conta no plano internacional.

A Agenda 21 também chama a atenção para a distribuição injusta destes padrões, na medida
em que, enquanto os segmentos mais ricos das sociedades desfrutam de uma demanda
excessiva e de estilos de vida insustentáveis, os segmentos mais pobres não têm condições
de ver as suas necessidades humanas mais básicas, como alimentação, saúde, moradia e
educação, atendidas.

Outro ponto importante neste documento é a diferenciação das responsabilidades entre os


países desenvolvidos e em desenvolvimento no contexto da promoção dos padrões
sustentáveis de consumo, cabendo aos primeiros a liderança na obtenção destes padrões e
aos segundos procurar atingi-los em seu processo de crescimento, mas sem descurar do
atendimento das necessidades básicas dos pobres.

Em 1994, um Simpósio que debateu o tema, na cidade de Oslo definiu o consumo


sustentável como:

“O uso de serviços e produtos que responda às necessidades


básicas e traga uma melhor qualidade de vida para a população e,
ao mesmo tempo, minimize o uso de recursos naturais e materiais
tóxicos e as emissões de resíduos e poluentes durante o ciclo de
vida dos produtos ou serviços, de modo a não comprometer as
necessidades das gerações futuras”.

Essa definição estrutura ainda hoje o Programa de Consumo Sustentável da Comissão das
Nações Unidas para o Desenvolvimento Sustentável e passou a embasar incontáveis
encontros governamentais e não governamentais e documentos internacionais elaborados
desde então. De acordo com a sua concepção, o consumo sustentável deve buscar a
concretização de “[...] uma vida boa para todos dentro dos limites da capacidade planetária”
36
.

36
LOREK, Sylvia; FUCHS, Doris. Strong sustainable consumption governance: precondition for degrowth
path? Journal of Cleaner Production, n. 38, 2013, p. 26-43. p.37.
Em 2011, o Relatório “Pavimentando o caminho para o consumo e a produção sustentável”,
produto do Processo de Marrakech, coordenado pelo Programa das Nações Unidas para o
Meio Ambiente, conceituou o consumo sustentável de modo similar. Por fim, em 2015, o
documento “Transformando o nosso mundo: a Agenda 2030 para o Desenvolvimento
sustentável”, ao fixar os objetivos e metas para o desenvolvimento sustentável, descreveu
como décimo segundo objetivo “Assegurar padrões de produção e consumo sustentáveis”.

Dentre as metas estabelecidas, encontram-se: (a) o alcance da gestão sustentável e do uso


eficiente dos recursos naturais (até 2030); (b) a redução pela metade do desperdício de
alimentos per capita mundial (até 2030); (c) o alcance do manejo ambientalmente
sustentável dos produtos químicos e todos os resíduos, ao longo de todo o ciclo de vida deles
e a redução significativa da sua liberação para o ar, água e solo (até 2020); (d) a redução
substancial da geração de resíduos por meio da prevenção, redução, reciclagem e
reutilização (até 2030); e (e) garantia de que as pessoas, em todos os lugares, tenham
informação relevante e conscientização para o desenvolvimento sustentável e estilos de vida
em harmonia com a natureza (até 2030).

A Agenda 2030 também ressalta o objetivo de incentivar as empresas a adotar práticas


sustentáveis e integrar informações de sustentabilidade em seu ciclo de relatórios, de
promover práticas de compras públicas sustentáveis e de apoiar os países em
desenvolvimento a fortalecer suas capacidades cientificas e tecnológicas para mudar padrões
mais sustentáveis de produção e consumo.

Apesar deste intenso esforço, no plano internacional, para definir consumo sustentável e
inseri-lo, de modo definitivo, na agenda dos Estados, observa-se que ainda restam muitas
dúvidas em torno deste conceito, assim como questionamentos em torno das medidas
necessárias para a sua concretização.

Analisando o problema sob um ponto de vista individual, Wang37 observa que diversos
fatores podem contribuir para a adoção de comportamentos de consumo sustentável por
parte dos consumidores, como: a preocupação com a proteção do meio ambiente; a
percepção individual de que seu comportamento pode produzir uma melhoria na qualidade
ambiental; a governança ambiental. Neste sentido, o Poder Público não só pode como deve
implantar medidas como: criação de um sistema de recompensas e penalidades voltado para

37
WANG, Yan. Promoting sustainable consumption behaviors: the impacts of environmental atitudes and
governance in a cross-national contexto. Environment and Behavior, vol. 49 (10), 2017, p. 1128-1155. P.
1130-1131.
estimular comportamentos de consumo sustentável; educação para mudar atitudes e
fornecer conhecimento e informações e adoção de incentivos de mercado para estimular a
invenção, aplicação e difusão de tecnologias sustentáveis38.

As escolhas de consumo economicamente sustentáveis podem acarretar a redução dos níveis


do consumo material e, por isso, não há dúvidas de que a disseminação de padrões de
consumo economicamente sustentáveis é fundamental para que o Estado de Direito
Ecológico enfrente os desafios ecológicos atuais, inclusive os riscos sanitários.

Weng Lim39 observa que, a despeito de todo trabalho conduzido pela academia, por
comunidades empresariais, governos e organizações não governamentais para compreender
e alterar práticas insustentáveis, a noção de consumo sustentável ainda é doutrinariamente
problemática. Por conta desta ausência de consenso em torno do seu alcance e implicações,
Sylvia Lorek e Doris Fuchs40 compreendem que é possível detectar tanto uma versão fraca
quanto uma forte de consumo sustentável.

A versão fraca compreende que o consumo sustentável pode ser alcançado por meio do
incremento de eficiência oriundo das soluções tecnológicas e que essas soluções
tecnológicas se espalharão no mercado devido à demanda do consumidor41.

Essa visão dominou os contextos político e científico ao longo do tempo e pode ser
constatada nos discursos oficiais do Encontro Mundial sobre Desenvolvimento Sustentável de
Johanesburgo de 2002 e do Processo de Marrakech, por exemplo. Um dos principais
elementos desta abordagem é o encorajamento dos consumidores para exercerem os seus
papéis enquanto atores ativos no mercado e responsáveis pela compra de produtos verdes
ou mais sustentáveis42.

Contudo, se é certo que mudanças na demanda pelos consumidores podem gerar alterações
no mercado, a abordagem baseada em produtos com melhor desempenho tecnológico,
segundo as autoras43, é um passo necessário, mas não suficiente, para a concretização do
consumo sustentável.

38
Ibid, p. 1132-1133.
39
LIM, Weng Marc. Inside the sustainable consumption theorical toolbox: critical concepts for sustainability,
consumption, and marketing, Journal of Business Research, 78, 2017, p. 69-80. p. 69.
40
LOREK, Sylvia; FUCHS, Doris. Strong sustainable consumption governance: precondition for degrowth
path? Journal of Cleaner Production, n. 38, 2013, p. 26-43. p.37.
41
Ibid, p.37.
42
Ibid, p.37.
43
Ibid, p.38.
A versão forte, por sua vez, compreende que mudanças nos níveis e padrões de consumo são
indispensáveis para se atingir o consumo sustentável. Dessa forma, enfatiza-se a necessidade
da redução global do consumo de recursos ao invés do consumo individual baseado no
produto.

Esta perspectiva norteadora deita raízes na agenda do consumo sustentável desenvolvida na


Cúpula da Terra no Rio de Janeiro e vai além da visão do consumo como mera atividade
econômica que tem lugar no mercado, dando ênfase a contribuições não materiais que ele
pode trazer para a “vida boa” 44.

Desse modo, as pessoas são consideradas não apenas como consumidoras, mas, sobretudo,
como cidadãs, ao mesmo tempo em que se reconhece a inserção social das decisões de
consumo, se valoriza atividades como a troca entre vizinhos, o trabalho de subsistência ou
comunitário e se tenta incrementar o bem-estar humano através das estruturas sociais e
pelo modo como o tempo é usado, ao invés de enfatizar apenas as posses materiais45.

Para Sylvia Lorek e Doris Fuchs 46, o maior desafio da governança do consumo sustentável é a
realização efetiva do bem-estar humano. Isso obriga a considerar a qualidade dos serviços e
o grau em que eles atendem às necessidades humanas e implica em canalizar o uso de
recursos para os consumidores onde a utilidade marginal é mais alta, além de enfatizar a
necessidade de garantir que as reduções no consumo de material caiam para aqueles com a
menor utilidade marginal do consumo, os ricos47. Com essas últimas constatações encerra-se
o percurso teórico traçado ao longo do trabalho, não sem antes fazer-se as considerações
finais, a título conclusivo.

5. Considerações finais

Ao longo desse artigo, partiu-se da constatação de que a “Sociedade de Risco”, esta nova
etapa da Modernidade, consolidada após a Revolução Industrial, vem expondo a população
global a inúmeros e graves problemas que, em seu conjunto, inauguram o chamado
Antropoceno, nova era geológica. A Pandemia de COVID 19, de magnitude global, foi
apresentada como reflexo dessa problemática e o consumo como o grande motor dessa
sociedade capitalista.

44
Ibid, p.38.
45
Ibid, p.38.
46
Ibid, p.38.
47
Ibid, p.38.
Dividindo-se o texto em três tópicos, analisou-se em um primeiro momento, as relações
existentes entre os padrões de consumo atuais, a ruptura dos limites biofísicos planetários e
a emergência de doenças zoonóticas, como a COVID 19, buscando trazer reflexões acerca da
problemática ambiental causada pelos padrões contemporâneos de consumo que, por seu
turno, caracterizam a sociedade contemporânea como de hiperconsumo.

Já em um segundo tópico, estudou-se a configuração do Estado de Direito e a construção


teórica do Estado de Direito Ambiental, para demarcar a importância do reconhecimento dos
direitos e deveres fundamentais para a concretização de um novo modelo de Estado, o
Estado de Direito Ecológico que, apesar de utópico, pode ser capaz de impulsionar os
poderes públicos e incentivar a sociedade a criar e implementar metas que, muito embora
ainda não tenham sido alcançadas, propiciam nova perspectiva de uma realidade que precisa
ser modificada.

Nesse sentido, reafirmou-se a urgência do emergir do novo paradigma, o Estado de Direito


Ecológico, incorporando questões do Estado de Direito Ambiental e promovendo outras
rupturas, no sentido de construção de novo modelo de sociedade, não mais de
hiperconsumo, mas do consumo sustentável.

Este foi, portanto, a temática do último tópico do artigo, elo de ligação entre os demais, ao
longo do qual observou-se o processo de construção do conceito de “consumo sustentável”
nos documentos da política internacional e nacional atinentes à temática. E evidenciou-se
que, apesar de ainda não haver consenso em torno tanto do alcance quanto das implicações
desta nova forma social de consumo, foi possível detectar uma “versão fraca” e uma “versão
forte” do chamado consumo sustentável.

Por seu turno, a versão fraca aposta na eficiência das soluções tecnológicas para suprir a
demanda dos consumidores, percepção que preponderou no cenário político e científico e
que possui como elemento chave o protagonismo dos consumidores no exercício de seu
papel ativo no mercado, enquanto atores responsáveis pela compra de produtos
considerados mais sustentáveis.

Por outro lado, a versão forte, apesar de reconhecer a relevância das mudanças nos níveis e
padrões de consumo para se atingir o consumo sustentável, reconhece a necessidade de
redução global do consumo de recursos, ultrapassando a percepção mais limitada do
consumo individual baseado no produto.
Para que essas conclusões fossem atingidas, a metodologia utilizada foi a do método
indutivo, utilizando o procedimento monográfico e empregando, como técnica de pesquisa, a
pesquisa documental, consistente na coleta de doutrina e documentos acerca do tema.

6. Referências Bibliográficas

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