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Diário de um degredado.

Abaixo, a reprodução editada do conteúdo extraído da relação histórica


anônima por nós intitulada “O diário de um degredado”, encontrada entre
manuscritos avulsos na livraria pública desta corte de S. M. o Imperador. Rio de
Janeiro, 1841.
“O gosto de fel e a dor intensa nas têmporas denunciam meu excesso etílico
na última noite. Meus dormitórios nunca tiveram esse cheiro de alcatrão misturado a
suor e maresia. Quando minha coragem permite-me abrir os olhos, o sol cega e
joga-me de volta ao piso imundo de pinho encardido onde meu estômago expurga
os últimos goles do vinho mais barato vindo da taverna mais hedionda de Lisboa.
Enfim, estou a bordo de uma nau, rumo a Calicute. Sou um degredado 1.
Chamo-me ... (Ilegível devido ao manuscrito danificado) ... filho de uma
família judaica de comerciantes vindos do leste europeu, assentados em Portugal há
quatro gerações. Com a perseguição da Coroa Portuguesa aos judeus, tornei-me
um marrano2 e tive que apelar ao comércio clandestino de especiarias para subsistir.
Há alguns dias eu era um negociante proeminente (no mercado negro) com um
futuro promissor em Lisboa e agora sou chutado como um cão sarnento, condenado
ao exílio nas Índias.
Estamos no início do mês de março do calendário cristão. À noite comemos
biscoito duro, carne salgada e vinho. Estimo em torno de duzentos homens nesta
embarcação. Ao início da noite, a maioria cai de cansaço ou pela bebida em
qualquer canto que esteja desocupado. O cheiro é insuportável e passaram-se
apenas alguns dias.
Pela manhã procuro um local com a privacidade suficiente pra fazer minha
oração. Ser um judeu dentre um mundo cristão é estar ilhado pelo ódio e intolerância
desde que o Rei Dom Manuel obrigou-nos a uma conversão forçada anos atrás.
Escondo-me, pois vejo o capitão mirando o horizonte como se vislumbrasse
seu paraíso católico. Ele é um homem enorme, um fidalgo com quase dois metros
de altura, calado e discreto que só conversa com o piloto de pele avermelhada.

1
Pessoa condenada à pena de degredo, desterro; exilado. N.E.
2
Dizia-se, na península Ibérica, do judeu ou mouro que, embora professando abertamente o
cristianismo para evitar perseguições, continuava ocultamente fiel à sua primitiva religião. N.E.
1
Os dias passam-se numa repetição interminável. O trabalho sob o sol, os
gritos, a comida intragável, as noites regadas a vinho e estupro dos grumetes 3.
O escorbuto4 começa a espalhar-se entre os homens. Suas gengivas
sangram, seus dentes soltam-se, suas peles enchem-se de feridas e hematomas.
Então um físico5 recomenda que faça-se um ensopado de ratazanas! _ É bom para
curar a ‘o mal de Luanda’. _ele recomenda.
Depois de quinze dias, ouço os homens comentando sobre o naufrágio de
uma das naus. Toda a sua tripulação perdeu-se no mar. O capitão com sua
expressão fria de sempre, parece não importar-se. _ “Avante!” _ele diz e toda a
maquinaria é acionada mar adiante, rumo às Índias. Calicute se torna cada vez mais
próxima!
(Ilegível devido ao manuscrito danificado) ... percebo que o padre chamado
Henrique começa a desconfiar das minhas fugas durante as missas diárias. Devo
manter as aparências.
Sou convocado ao trabalho. Por ser letrado, tornei-me assistente de um dos
escribas da esquadra, analisando cartas náuticas e transcrevendo os diários de
bordo da nau-capitânia6.
Agora posso dedicar-me calmamente a redigir essas linhas meio a monotonia
desta viagem e refletir sobre minha sina.
Não foi o comércio que manteve-me em Lisboa afinal. Conheci um mercador
genovês que tinha os contatos do contrabando de especiarias, Dom Giorgio di Pie
Monte. Ele prometeu-me que se o auxiliasse, os preços alcançados no submundo
render-me-iam uma verdadeira fortuna. Mas o autêntico tesouro de Dom Giorgio era
outro: sua jovem esposa Dona Lucia Helena, a mais bela flor do reino de Navarra.
Nossa atração foi imediata e nossa paixão foi fulminante. A luxúria e a cobiça
tomaram as rédeas da minha vida a ponto de não imaginar-me sem ela (ou sem o
dinheiro do seu marido, evidentemente).

3
Aprendizes de marinheiros encarregados da limpeza e de outros serviços subalternos e
excessivos. N.E.
4
Doença causada pela carência de vitamina C, caracterizada por hemorragias, queda dos
dentes e fraqueza progressiva, também conhecida como “peste das naus”, “peste do mar” e “mal de
Luanda”. N.E.
5
Médico. N.E.
6
Nau na qual viajava o capitão da esquadra. N.E.
2
Dona Lucia Helena, no calor de sua juventude queria pôr fim à vida do seu
pobre esposo, mas eu tinha planos mais astutos, que nos renderiam a liberdade e a
fortuna de forma segura.
Aos poucos, além de contador, comecei a negociar diretamente com os
genoveses e florentinos envolvidos no contrabando, em segredo de Dom Giorgio.
Melhorei o acordo de forma a beneficiar os contrabandistas, ganhando assim sua
confiança.
Montei meu esquema paralelo ao de Dom Giorgio, que cada vez mais
incumbia-me de conduzir seus negócios, assinando quaisquer documentos sem lê-
los (inclusive uma procuração irrestrita em meu nome). Expropriar os negócios do
velho foi fácil, mas como surrupiar-lhe a esposa? Como ter Dona Lucia Helena sem
que o nobre genovês nos perseguisse pelos quatro cantos do mundo? O homem
poderia estar falido mas ainda tinha contatos entre o oriente e o ocidente que
permitiram-no achar-nos quando quisesse.
Aí veio a oportunidade imperdível. As notícias de uma expedição rumo às
Índias cada vez mais corria de ouvido em ouvido. Não havia tempo a perder! Dona
Lucia Helena viajaria até Calicute para tratar-se de uma doença respiratória
(diagnosticada por um médico mouro, devidamente subornado para indicar o
tratamento) e por lá ficaria por tempo indeterminado, aguardando por mim.
Minha rede de contrabando estava toda montada. Dom Giorgio estava falido e
só viria a descobrir quando eu desaparecesse. Mas como fazê-lo sem levantar
suspeitas? Como impedir que eu fosse perseguido mesmo devastando sua vida?
Estudei a legislação e precisava cometer um crime grave com uma punição
específica: o degredo.
(Ilegível devido ao manuscrito danificado) ... assim não foi difícil assediar uma
das amigas de Lucia Helena, com seu apoio, naturalmente. As outras senhoras do
círculo social eram mulheres maduras, casadas com homens que se importavam
apenas com dinheiro, sem tempo para a luxúria. Essa, eu tinha de sobra, além de
juventude e dissimulação. O caso correu rápido, a denúncia, a instalação do
processo, o consolo do esposo desonrado mais ainda. Quando se tem dinheiro para
o suborno, a velocidade do tempo é determinada por cifras e zeros. A única real
concordância entre cristãos, judeus e muçulmanos é a de que justiça, moral e honra
tem seu preço a peso de ouro.

3
Dom Giorgio não escondeu sua frustração pelo meu crime (falso) mas, ainda
colaborou, devido a minha súplica, usando sua influência para que eu fosse
degredado a Calicute, onde supôs que eu teria alguma chance de sobrevivência
subserviente, mesmo que temporária, num caldeirão de hindus, muçulmanos e
cristãos. Agradeci ao velho genovês por tudo que fez por mim. Pessoalmente pela
tutelaria e pela indulgencia e em pensamento pela sua fortuna e pela sua jovem
esposa.
Uma esquadra partiu uma semana depois, numa segunda-feira e cá estou eu,
rumo a Calicute, a Dona Lucia Helena, a fortuna de Dom Giorgio e a felicidade
incondicional. Exatamente como planejado. Mas, a ansiedade só é aplacada quando
escrevo essas linhas bebendo o vinho barato dos marinheiros.
É Pessach7. Os homens estão inquietos. Começamos a ver alguns pássaros,
depois terra muito distante. A medida que aproximávamo-nos, vimos um grande
monte que os cristãos reverenciaram com religiosidade. O capitão finalmente deixou
sua cabine e agora olha fixamente para a terra firme, com um sinistro e leve sorriso.
Onde estava o porto de Calicute? O movimento de embarcações chegando e
saindo? A fumaça e o cheiro da comida? Os perfumes do oriente? Os mercadores?
Que lugar era esse?! Não havia nenhuma escala programada! O destino não era
rumo as Índias?!
As naus lançaram ancoras. Vamos a terra hoje pela manhã. Ontem houve
grande festa. Os homens cantaram, dançaram e beberam mais que de costume.
Avistamos algumas pessoas na praia, apontando pra nós. Estão armados, nus em
pelo e parecem selvagens! Começo a alarmar-me.
Quando tento alguma informação do que estaria ocorrendo sou tratado com
desprezo pelo escriba. Pergunto se estamos em Calicute. Ele gargalha e nada mais
diz.
(Ilegível devido ao manuscrito danificado) ... o outro degredado parece calmo
e sereno acatando a todas as ordens. Meu espírito no entanto encontra-se em total
pânico!
Os dias passam, uma cruz é erguida, uma missa é celebrada. O contato com
os nativos é amistoso. Eles não fazem-se compreender e vivem da caça e coleta

7
Páscoa judaica.
4
deste sítio. Ah, li os registros do escriba-mor, no dia 22 de abril eles batizaram esse
lugar de Terra de Vera Cruz.
A partida está marcada para o primeiro dia do mês de maio. Não vejo a hora
de ir-me embora desse ambiente bizarro. Lucia Helena, deve estar esperando-me.
Minha fortuna, meus negócios! Essa demora é intolerável!
Meu Deus, hoje foi o dia da partida! Todos foram-se, menos eu, outro
degredado de nome Afonso e dois grumetes que optaram por fugir dos constantes
abusos de sodomia. Mal tenho forças pra registrar esse relato. Tenho esvaído-me
em lágrimas e desespero. O capitão falou comigo pela primeira e última vez. Disse-
nos para aprender o idioma dos selvagens e estudar o lugar até a volta. Volta?
Quando? Ele nada mais disse e partiu, rumo a Calicute. Maldição!
Estamos num acampamento improvisado com alguns nativos. Comemos
frutos, peixe e dormimos ao relento. Olham-nos de maneira cada vez mais estranha.
Dão-nos uma bebida feita de uma raiz forte como o rum, oferecem-nos mulheres,
estudam-nos dia e noite. Não podemos mais sair.
Depois de uma dessas orgias, acordo meio a um espetáculo de horror e
barbárie. Um dos grumetes (sabiamente) enforcou-se enquanto o outro está sendo
devorado! Cozido como um animal, seu corpo foi mutilado e dividido, inclusive entre
mulheres e crianças. Afonso está desacordado e quando desperta fica prostrado em
estado de choque repetindo _ ‘Seremos os próximos’! _
À noite enquanto escrevo estas linhas Afonso foi levado. A festa, o canto, a
bebida é distribuída abundantemente. Pela manhã consigo ver ao longe, Afonso de
joelhos, atado como uma besta. Um nativo de aproxima com uma arma e golpeia-o
violentamente na cabeça. Ele cai sem vida. O teatro de horrores continua. Mutilação,
cozimento e um banquete nefasto.
Eles estão vindo em minha direção. Não tenho forças pra fugir ou revidar. Oh
meu Deus, perdão por tudo. Lucia Helena, eu (ilegível)...”

(Fim do relato)

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