Você está na página 1de 10

1922 e o século XX

O evento da Semana de Arte Moderna, realizado no Teatro Municipal de São Paulo, na primeira
quinzena de fevereiro de 1922, representa até os dias atuais o maior movimento de força da história da
cultura brasileira. Podemos dizer que o que passa a ser chamado de Modernismo inaugura o século XX
no Brasil, na medida em que nesse tempo não apresentamos qualquer sinal efetivo de inserção nos pa-
râmetros inerentes à atividade cultural dos países desenvolvidos. Somos atrasados em tudo, nas rela-
ções sociais, com índices gritantes de analfabetismo e miséria; no desenvolvimento econômico, com a
monocultura cafeeira e o ruralismo determinando os rumos da política do país; nas manifestações cul-
turais, quando cada vez mais reforçamos o desejo de nossa elite culta como uma cópia do modelo eu-
ropeu. Enfim, essa cultura da reduplicação sem crítica acaba por situar nossa atividade cultural num
patamar de subserviência ao passado europeu já em desuso. Imaginemos que, com o advento da ace-
leração dos meios de comunicação e reprodução técnica, a arte e a cultura do início do século XX já não
obedecem aos valores de idealização do Romantismo; ainda assim, o Simbolismo reitera um sentido de
subjetividade que acaba por coincidir com o Cubismo e o Futurismo.
No Brasil, é de causar estranheza o fato de alguns de nossos artistas e intelectuais em viagem pela
Europa não terem dado importância aos acontecimentos da vanguarda. O fato é que o ano de 1922 re-
presenta o marco de um rompimento dos adeptos da estética moderna com o passado, sobretudo com
o Parnasianismo, sendo mais que isso, um basta à afirmação da linguagem culta como mantenedora de
um poder que se reveza em mãos de uma minoria. A Semana de Arte Moderna impressiona e causa es-
tranheza aos incautos. Nela destaca-se um núcleo de jovens idealistas, entre eles Mário de Andrade, poeta
que escandaliza a plateia ao declamar “Ode ao burguês”:

(ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo, Brasília: Martins, INL, 1972, p. 37.)

Eu insulto o burguês! O burguês-níquel,


o burguês-burguês!
A digestão benfeita de São Paulo!
O homem-curva! o homem-nádegas!
O homem que sendo francês, brasileiro, italiano,
é sempre cauteloso pouco a pouco!

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
72 | 1922 e o século XX

Eu insulto as aristocracias cautelosas!


Os barões lampeões! os condes Joões! os duques zurros!
que vivem dentro dos muros sem pulos;
e gemem sangues de alguns mil-réis fracos
para dizerem que as filhas da senhora falam o francês
e tocam o “Printemps” com as unhas!

Eu insulto o burguês-funesto!
O indigesto com toucinho dono das tradições!
Fora os que algarismam os amanhãs!
Olha a vida dos nossos setembros!
Fará Sol? Choverá? Arlequinal!
Mas a chuva dos rosais
o êxtase fará sempre Sol!

Morte à gordura!
Morte às adiposidades cerebrais!
Morte ao burguês-mensal!
ao burguês-cinema! ao burguês-tílburi!
Padaria Suíssa! Morte viva ao Adriano!
“ – Ai, filha, que te darei pelos teus anos?
– Um colar... – Conto e quinhentos!!!
Mas nós morreremos de fome!”

Come! Come-te a ti mesmo, oh! Gelatina pasma!


Oh! purée de batatas morais!
Oh! cabelos nas ventas! oh! carecas!
Ódio aos temperamentos regulares!
Ódio aos relógios musculares! Morte e infâmia!
Ódio à soma! Ódio aos secos e molhados!
Ódio aos sem desfalecimentos nem arrependimentos,
sempiternamente as mesmices convencionais!
De mãos nas costas! Marco eu o compasso! Eia!
Dois a dois! Primeira posição! Marcha!

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
1922 e o século XX | 73

Todos para a Central do meu rancor inebriante!


Ódio e insulto! Ódio e raiva! Ódio e mais ódio!
Morte ao burguês de giolhos,
Cheirando religião e que não crê em Deus!
Ódio vermelho! Ódio fecundo! Ódio cíclico!
Ódio fundamento, sem perdão!
Fora! Fu! Fora o bom burguês!...

Assim é que se apresenta o jovem professor do Conservatório Dramático e Musical, ainda um des-
conhecido no meio literário. Sob a vaia da assistência, que compra o ingresso a vinte mil-réis, o rapaz
insulta os donos do dinheiro na cidade que mais cresce no Brasil. Dias depois, o professor de piano é
preterido de dar suas aulas particulares, com o que contribui no orçamento familiar. As mães das alunas
lhe suspendem o acesso às classes, devido à repercussão escandalosa da Semana de Arte Moderna.
O conjunto de experiências que é empreendido tem por objetivo subverter as várias linguagens
para extrair a síntese de um país novo e o papel que se espera dele advir. As inovações em questão di-
zem respeito a uma nova geração de artistas, constituída por Anita Malfatti, Heitor Villa-Lobos, Victor
Brecheret, Di Cavalcanti, Mário de Andrade, Oswald de Andrade, Menotti del Picchia, Sérgio Milliet,
Guilherme de Almeida, Manuel Bandeira, Luís Aranha etc., todos eles responsáveis, em maior ou menor
grau, por uma tomada de posição.
O termo futurismo passa a expressar as extravagâncias, o barbarismo, os desvarios, significando
uma posição oposta a dos poetas Olavo Bilac, Vicente de Carvalho e Alberto de Oliveira. É nesse ambien-
te que pontifica a ação de um grupo da burguesia investido do desejo de renovar a situação da arte e
da cultura no país. O Modernismo é assim o ponto de convergência dessa tentativa de instauração do
novo, sem perder de vista nossa situação de país periférico, à margem das decisões do mundo desen-
volvido. Desse modo, a Semana de Arte Moderna é uma espécie de anticelebração, uma comemoração
ao avesso no ano do centenário da independência do Brasil. Imbuída desse sentido por uma estética da
reação, serve como ponta de lança à liberação que se faz necessária à viabilidade de uma cultura des-
colonizada, que preza antes de tudo pelo primitivo como parte integrante de um conjunto em que se
incluem os elementos da vanguarda, aplicados à situação brasileira. Sobre a abrangência das propos-
tas e questões abordadas pelo Modernismo, Mariza Veloso e Angélica Madeira (1999, p. 89-90) nos ofe-
recem pistas valiosas:
Realizada em São Paulo, em fevereiro de 1922, a Semana de Arte Moderna foi o resultado de um desejo coletivo de tor-
nar visíveis as novas ideias que inquietavam a intelligentsia brasileira. A dinâmica cultural, que antecedeu e se seguiu a
esse acontecimento emblemático, torna-se compreensível, se considerarmos os ideais daquela geração e sua capaci-
dade de formação de grupos, voltados para a ação coletiva. De fato, os criadores culturais daquele momento dedica-
ram-se a numerosas tarefas que exigiam esforço e solidariedade. Promover eventos e organizar instituições artísticas,
científicas e pedagógicas são atividades que confirmam o interesse e o empenho daqueles artistas e intelectuais em
conhecer e divulgar todas as manifestações da cultura brasileira.

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
74 | 1922 e o século XX

Muito mais que enfatizar uma zona de conflito entre o arcaico e o moderno, entre o antigo e o
novo, o Modernismo propõe um entendimento profundo acerca das questões brasileiras em sua gê-
nese. Ao lado disso, a pesquisa e a experiência nutrem-se de um legado cultural até então desprezado
como repertório da criação artística. Daí termos como resultado a música de Villa-Lobos, a pintura de
Tarsila do Amaral e a poesia de Mário de Andrade e Oswald de Andrade.
Forças contrárias politizam o discurso decorrente do Modernismo como representação de uma
novidade. A vida brasileira é impregnada pelos efeitos colaterais de uma atividade cultural que se ex-
pande por vários setores do pensamento. O Brasil se transforma. Ainda que a atividade da arte mo-
derna, num primeiro momento, não privilegie a atividade política, seus desdobramentos coincidem
com um período de profunda transformação da sociedade brasileira, nos governos Epitácio Pessoa,
Artur Bernardes e Washington Luís, quando têm lugar rebeliões militares como a Revolta do Forte de
Copacabana, em 1922, a Coluna Prestes, em 1926, ou o movimento conhecido como Tenentismo, que
manifesta a insatisfação das Forças Armadas com o governo e culmina na Revolução de Outubro, em
1930, quando tem início a Era Vargas, encerrando a República Velha. Além disso, tem lugar a polariza-
ção entre forças políticas antagônicas como o Comunismo e o Integralismo, que ganham corpo na so-
ciedade brasileira.

As contradições do Brasil
Ao tratar dos acontecimentos em torno do Modernismo, Raul Bopp discorre em seu livro Vida e
Morte da Antropofagia1 sobre um episódio envolvendo Oswald de Andrade num open house, quando
pede à cozinheira mulata que apresente ao grupo reunido a dança do “marimbondo”. Segundo Raul Bopp,
a mulher se contorce e se remexe dando a impressão de estar sendo picada pelo terrível inseto. Desse
modo, detectamos de que maneira o papa do Modernismo, que tem contato direto com a vanguarda eu-
ropeia, desperta seu interesse para uma vertente da cultura popular que remete a um Brasil profundo,
tendo na mulher descendente de ex-escravos a porta-voz de uma memória em vias de se perder.
O Modernismo é, assim, o primeiro movimento cultural a interessar-se de fato pelas matrizes ge-
nuínas de um Brasil que se dispersa na confusão da cultura urbana em ascensão, diluindo-se na oferta
de produtos culturais oferecidos à classe média consumidora. Vemos que a contribuição em torno da
cultura oficial se dispersa em subprodutos que, na visão dos modernistas, não expressam a síntese do
pensamento de construção de um Brasil moderno. Assim, a cultura urbana, irmã mais velha da cultura
de massa, não pode ser considerada como termo relevante. O interesse modernista volta-se para as cul-
turas em vias de serem descobertas, ou ainda, relegadas ao esquecimento sistemático em face de uma
ordem que privilegia elementos em trânsito no âmbito da produção artística.
Desse modo é que tem lugar, em 1924, a conhecida viagem de reconhecimento empreendida por
parte do grupo modernista – Tarsila do Amaral, Oswald de Andrade e Mário de Andrade – ao interior de
Minas Gerais, acompanhando o poeta francês Blaise Cendrars, em sua primeira visita ao Brasil. Trata-se
de promover o encontro da cultura modernista com os elementos arcaicos do Barroco mineiro, relega-
do ao passado colonial, mas agora revisitado como recuperação atemporal. É nessa viagem que Mário
de Andrade entra em contato com a música religiosa barroca que em Minas Gerais tem uma dimensão e
um significado definidor da atividade futura do pesquisador. Mais que tudo, o Brasil interessa ao visitante

1 BOPP, Raul. Vida e Morte da Antropofagia. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1977, p. 40.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
1922 e o século XX | 75

por sua condição de país onde o contato com a cultura primitiva não exclui o interesse de setores cul-
tos – no caso dos modernistas – pelos prodígios da técnica. Assim, esse deslumbramento corresponde
ao contato com uma espécie de exotismo já desaparecido na Europa. O Brasil, portanto, é um manan-
cial onde o primitivismo se pronuncia, seja na pintura de Tarsila do Amaral, seja na poesia de Raul Bopp
ou na música de Villa-Lobos. Esses artistas percebem o esgotamento das temáticas europeias, mesmo
quando adaptadas ao imaginário brasileiro. Abaporu, quadro de Tarsila do Amaral, é um exemplo da re-
lação com o jeito de trazer para o âmbito da pintura o imaginário e a lenda escondidos do público de
arte. Raul Bopp concebe Cobra Norato2 à luz do imaginário amazônico remetendo às lendas do povo.
Villa-Lobos, do mesmo modo, adentra a floresta brasileira em busca de uma originalidade perdida, inse-
rindo em sua música a originalidade do canto do uirapuru.
Esses encontros da arte moderna com a essência mais profunda e telúrica do Brasil só se dão em
face da promoção inusitada de um evento de ponta como o Modernismo. Vale salientar que esse encon-
tro do homem com a terra representa o legado mais genuíno que pode ser oferecido como reconheci-
mento do Brasil por seus artistas. O Modernismo é pródigo em inventariar as reentrâncias de um país
inexplorado. Ainda Oswald de Andrade satiriza e desconstrói o modelo narrativo tradicional utilizando-
-se da prosa cubista para relar o descompasso brasileiro em Memórias Sentimentais de João Miramar3,
de 1924. O Brasil é visto em suas contradições, simbolizado nas relações de atraso que se conflitam com
os ícones da cultura moderna. O Modernismo acentua um quadro das contradições brasileiras trazidas
à luz pela primeira vez. A forma eficaz e original de acesso da cultura à liberdade descolonizada ocor-
re a partir da multiplicidade de fatores que formam um conjunto. Podemos lembrar o “Manifesto da
Poesia Pau-Brasil” quando mais uma vez Oswald de Andrade contradiz os termos da cultura brasileira
ao confrontá-la às diversas influências que nos servem e nos constituem, configurando o que somos:
“O Carnaval no Rio é o acontecimento religioso da raça. Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
Bárbaro e nosso. A formação étnica rica. Riqueza vegetal. O minério. A cozinha. O vatapá, o ouro e a dan-
ça” (ANDRADE In: TELES, 1985, p. 326).
As contradições étnicas, sociais e culturais se harmonizam num país que busca seu caminho. A
religião, a culinária, o popular e o erudito. O Brasil congrega todas as possibilidades de contribuição.
Oswald de Andrade funciona como artista capaz de traduzir a presença da vanguarda na cultura patriar-
cal dos cafezais paulistas. A arte moderna adequa-se à possibilidade de parodiar as relações sociais que
remetem à exploração agrária e à escravidão como no exemplo do poema “A transação”:

(ANDRADE, Oswald de. Poesias Reunidas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972, p. 30.)

O fazendeiro criara filhos


Escravos escravas
Nos terrenos de pitangas e jabuticabas
Mas um dia trocou
O ouro da carne preta e musculosa
As gabirobas e os coqueiros
Os monjolos e os bois
Pelas terras imaginárias
Onde nasceria a lavoura verde do café

2 BOPP, Raul. Cobra Norato e Outros Poemas. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984.
3 ANDRADE, Oswald de. Memórias Sentimentais de João Miramar. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1972.
Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,
mais informações www.iesde.com.br
76 | 1922 e o século XX

Esses desencontros, que parecem até certo ponto inconciliáveis, encontram uma alternativa so-
lidificada na obra de Mário de Andrade, sem dúvida, o primeiro grande intelectual de sua geração a
entender o Modernismo pelo viés da cultura popular. Em uma de suas cartas a Carlos Drummond de
Andrade, sentencia seu amor e sua devoção à causa da cultura brasileira:
[...] Com a inteligência não pequena que Deus me deu e com os meus estudos, tenho a certeza de que eu poderia fa-
zer uma obra mais ou menos duradoura. Mas que me importa a eternidade entre os homens da Terra e a celebridade?
Mando-as à merda. Eu não amo o Brasil espiritualmente mais que a França ou a Cochinchina. Mas é no Brasil que me
acontece viver e agora só no Brasil eu penso e por ele tudo sacrifiquei. (ANDRADE, 1982, p. 6)

Essa carta, datada de 10 de novembro de 1924, demonstra desde logo o caminho a ser segui-
do. Mário de Andrade compreende a necessidade de entendimento sobre as coisas do Brasil a partir
do próprio país. Desse modo, publica em 1926 a coletânea de poemas intitulada Clã do Jabuti4, na qual
se aproveita da prosódia popular e dos ritmos musicais para aproximar-se da fala e da musicalidade do
homem comum. São interessantes os títulos de poemas como “Carnaval carioca”, “Sambinha”, “Moda
do Brigadeiro”, “Acalanto do seringueiro”, “Noturno de Belo Horizonte” e “Coco do Major”, em que o con-
ceito musical funde o noturno e o coco, o major e o seringueiro, o culto e o inculto numa forma de com-
preender o Brasil.
O Brasil é passado a limpo com ironia e irreverência. Mário de Andrade arrola em sua obra todos
os elementos possíveis à formação de uma nacionalidade crítica. É o caso de Macunaíma: o herói sem
nenhum caráter5, rapsódia que parodia a situação refratária correspondente ao lugar ocupado pelo ho-
mem brasileiro. Revelando as contradições de religião, raça e ideologia, o herói coloca em questão as
diferenças regionais. Macunaíma ainda participa na ordem direta do entendimento moderno do Brasil
na medida em que incorpora elementos da história como ficção, inserindo personagens como Ascenso
Ferreira e Manuel Bandeira, entre outros. Ainda representa a síntese de um Brasil que não se conhece. O
herói sem nenhum caráter percorre diversos pontos do país: São Paulo, Amazonas, Rio de Janeiro, Bahia,
Ceará, apresentando os contrastes brasileiros ao lado dos elementos da natureza em seu aspecto mági-
co. Mário de Andrade penetra o universo das tradições populares como forma de compreender a diver-
sidade brasileira e as implicações desta no conjunto das questões que sua obra suscita.

Cultura e pesquisa etnográfica


Passada a euforia do primeiro momento modernista, Mário de Andrade apresenta-se como fi-
gura exponencial capaz de traduzir melhor que a maioria de seus pares a vontade de dar ao Brasil
uma feição moderna, implicando, para tanto, o reconhecimento das matrizes originais de nossa cultu-
ra. Polígrafo e estudioso, percebe a importância de dotar o Brasil de uma cultura moderna que contem-
ple o repertório popular. Apesar de dominar diversos assuntos, Mário de Andrade não se furta a ouvir o
povo e sua aventura. Professor do Conservatório Dramático e Musical, sua paixão faz com que boa par-
te de sua obra seja perpassada pela música. Na verdade, o desejo irrealizado de ser um grande músico o
faz percorrer o folclore e a cultura popular em busca de uma originalidade musical formadora de nossa

4 ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. São Paulo, Brasília: Martins, INL, 1972.
5 ANDRADE, Mário de. Macunaíma: o herói sem nenhum caráter. Belo Horizonte: Itatiaia, 1986.

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
1922 e o século XX | 77

concepção de país. Não se trata de desvelar o lugar incomum da música popular ligada ao consumo do
público dos centros urbanos, com o advento do disco, e depois, do rádio. Mário de Andrade serve-se do
conceito de música nacional, ao contrário do que vem a ser a música popular em sua vertente moderna,
que nos acompanha até a atualidade. Desse modo, seu interesse recai sobre uma música circunscrita à
oralidade, sem nenhum registro impresso em partitura ou disco, que contemple a possibilidade de ser-
vir de tema à música de câmera. Assim como Villa-Lobos, que busca nas matas brasileiras, seja no canto
dos pássaros, seja no murmúrio das cachoeiras, ou no sopro do vento nas folhas do arvoredo o sentido
de nossa musicalidade mais recôndita, Mário de Andrade empreende duas grandes viagens através do
Brasil à procura do sentido de uma música.
E com esse propósito, viaja ao Norte e ao Nordeste do país. Na primeira viagem, o pesquisador
cede lugar ao cavaleiro que acompanha Dona Olívia Guedes Penteado e as jovens Mag e Dolur ao litoral
nordestino e ao Amazonas. Nesse tempo de longos percursos pelo mar e por estradas de terra o pesqui-
sador não se destaca, cedendo lugar ao turista. Pouco é o material etnográfico recolhido nessa primeira
viagem, de 1927. No ano seguinte, contudo, faz sua grande viagem de pesquisa ao Nordeste. Tendo visi-
tado vários estados, recolhe os rudimentos da música não impressa entre as diversas camadas da socie-
dade rural. Contando com a ajuda de amigos nordestinos, conhece cantadores e emboladores de coco,
cheganças e catimbós, visitando in loco regiões em torno dos centros urbanos e no interior. Numa des-
sas visitas, entra em contato com Chico Antônio, cantador de coco que lhe causa profunda impressão,
querendo parecer ser esta a grande síntese de tudo que procura:
[...] Que artista. A voz dele é quente e duma simpatia incomparável. A respiração dele é tão longa que mesmo depois da
embolada inda Chico Antônio sustenta a nota final enquanto o coro entra no refrão. O que faz com o ritmo não se diz!
Enquanto os três ganzás, único acompanhamento instrumental que aprecia, se movem interminavelmente ao compas-
so unário, “na pancada do ganzá”, Chico Antônio vai fraseando com uma força inventiva incomparável, tais sutilezas cer-
tas feitas que a notação erudita nem pense em grafar, se estrepa. (ANDRADE, 1976, p. 277)

O encantamento de Mário de Andrade com as coisas da cultura e seu gigantesco projeto de pen-
sar a cultura do Brasil, o levam a conceber a incorporação de todo esse material etnográfico registra-
do em partitura como manancial de pesquisa. O conjunto dessa pesquisa tem o objetivo de constituir
a obra Na Pancada do Ganzá, que não se realiza em seu tempo de vida. Por outro lado, esse material é
organizado postumamente por Oneyda Alvarenga, sua ex-aluna, e publicado com os títulos de Danças
Dramáticas do Brasil6 e Música de Feitiçaria no Brasil7, coletâneas de partituras. Nelas estão reunidos can-
tos religiosos, cantos de trabalho, pregões etc.
O desejo de aprofundar ainda mais sua pesquisa o leva a teorizar sobre música popular. Por seu
turno, seu espírito de educador e homem público o leva a ampliar o conhecimento sobre os vários sig-
nificados da cultura popular em seu papel formador. Assim, sua ambição em servir à causa pública o
faz assumir a direção do Departamento de Cultura de São Paulo, cargo que o obriga a abdicar proviso-
riamente de seus projetos pessoais. Não obstante o magnífico trabalho à frente do Departamento de
Cultura, por ocasião do Estado Novo, em 1937, Mário de Andrade é demitido quando uma equipe de
pesquisadores enviada ao nordeste interrompe o trabalho de pesquisa e a viagem que ele mesmo so-
nha em fazer novamente.

6 ANDRADE, Mário de. Danças Dramáticas do Brasil. Belo Horizonte, Brasília: Itatiaia., INL, 1983. 3 v.
7 ANDRADE, Mário de. Música de Feitiçaria no Brasil. Belo Horizonte, Brasília: Itatiaia, INL, 1983.

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
78 | 1922 e o século XX

Texto complementar
Literatura Nacional
(SODRÉ, 1964)

O ambiente que o Movimento Modernista encontrava era dos mais propícios ao irrompimento
de alguma coisa nova. Dominava-o ainda o Parnasianismo, com os poetas apegados ao soneto e os
prosadores ao dicionário, inteiramente distantes da vida e do mundo, trabalhando fora da realidade,
na complicada elaboração de obras a que o público concedia uma atenção superficial. Sobre essa
planície é que os novos, com estardalhaço, lançam as suas furiosas arremetidas, destruindo tudo na
paisagem e não perdoando pecado algum. A tarefa principal do movimento consistiria, sem dúvi-
da, em destruir o existente, o dominante, o consagrado, de vez que não era consagrado senão pelo
apreço de pares e dele apenas vivia. Arar o terreno parece ter sido o trabalho, de méritos hoje re-
conhecidos, do Modernismo, com a irreverência, o sarcasmo, até mesmo a pedrada dos seus inicia-
dores. O processo agitacionista era exercido por muitos dos que haviam feito o “serviço militar” das
letras, cometendo versos parnasianos e derramando-se na eloquência dominante. Mas havia tam-
bém muitos elementos novos, que se iniciavam como Movimento Modernista, autênticos valores
uns poucos, e uma enxurrada de falsos valores, como sempre acontece.
A grande dificuldade do movimento consistia em conciliar os antagonismos que provinham do
que representava como inequívoca manifestação peculiar ao meio brasileiro e do que recebia, como
influência das correntes literárias surgidas do pós-guerra na Europa. Nestas, existia o reflexo de uma
profunda desorientação proveniente da súbita ruptura com um passado muito próximo, eviden-
ciando-se em reformas meramente formais, em inúteis e difíceis jogos e malabarismos inócuos, que
disfarçava o desespero de uma classe condenada ao perecimento. No que existia de nitidamente
brasileiro, ao contrário, o que buscava afirmar-se era o novo, o que surgia com a força que cresce e
domina, aquilo que areja e vivifica e que, por isso mesmo, vai ao conteúdo das criações. As experi-
ências formalistas de origem europeia contribuíram fortemente para disfarçar um sentido nacional
do Movimento Modernista e enganaram a muitos sobre o seu alcance, inclusive a participantes. Por
outro lado, tal como no campo da política, propriamente, conjugaram-se no Modernismo valores
e tendências heterogêneas, circunstancialmente associadas e logo adiante colocadas outra vez em
divergência. Daí os grupos em que o movimento se repartiu e o individualismo de alguns de seus es-
critores, surpreendidos que as coisas não seguissem justamente o rumo que era o de seus desejos.
O que tem, até aqui, dificultado bastante a compreensão do Movimento Modernista não é o
fato de ser ainda recente, mas a ausência de enquadramento no conjunto da vida brasileira, e par-
ticularmente do desenvolvimento literário. E tal movimento não pode ser encarado senão como o
primeiro ato de um processo que continua o seu desenvolvimento, o pórtico, a abertura, uma espé-
cie de protofonia da ópera que só depois teria lugar. Vê-lo isoladamente é amputá-lo do que teve
de mais característico e importante e deixá-lo desligado de suas consequências que, como sempre
acontece, não só lhe assinalam a importância, mas definem a contribuição e a validade. Curto em
sua duração – entre o ano do centenário, 1922, quando ocorre a Semana de Arte Moderna, em São
Paulo, e o ano da revolução, 1930, quando tem início o pós-modernismo – o Movimento Modernista

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
1922 e o século XX | 79

parece um episódio destituído de sentido e de profundidade. Naquilo que mostrou em superfície,


teve muito de desencontrado, realmente, de circunstancial e, portanto, de desimportante. No que
correspondeu ao que havia de profundo no desenvolvimento literário brasileiro, anunciando uma
revolução que se concretizaria em seguida, seu papel foi de um indiscutível relevo. Mas deve ser en-
tendido e interpretado como episódio inicial de uma sequência. Episódio inicial cujo alcance pode
ser estimado no simples fato de corresponder, a rigor, ao lançamento da literatura brasileira, daí por
diante, autônoma, definida, caracterizada.
[...]
Como abertura, pois, é que deve ser julgado o movimento e apreciado o seu acervo e sua con-
tribuição. Nesse sentido, o balanço do Modernismo não foi ainda feito. A importância de herança
está muito mais nas perspectivas que abriu, e que o pós-modernismo exploraria a fundo, caracteri-
zando a literatura brasileira, do que naquilo que deixou como especificamente ligado ao agitacio-
nismo do decênio incompleto em que vigorou. Que aquelas perspectivas foram amplas e fecundas,
é verdade aceita sem contestação. Como todo movimento renovador, em fase de confusão social
e artística, teve também as suas falhas, as suas descaídas: a busca do pitoresco pelo pitoresco, uma
atenção muito voltada para as inovações muito mais do que para o conteúdo representativo e mar-
cante das obras, uma liberdade quase licenciosa nos recursos de expressão e particularmente no
verso, obscurecendo mais do que esclarecendo, um certo abuso de pedrada, necessário talvez, mas
inexpressivo em si mesmo. Deficiências que não diminuem a importância do papel que represen-
tou, e que seriam neutralizadas, quando adquirida a consciência, adiante, depurando-se o falso do
verdadeiro.
E nem foi tão reduzida quanto parece, em número e em grandeza, a sua galeria humana. Ainda
que tivesse sido, por absurdo, limitado ao aparecimento de um Mário de Andrade, teria importância.
No poeta paulista, realmente, o movimento denunciou o que tinha de mais consistente e profundo.
Mário de Andrade realizou a sua tarefa com uma nítida consciência artística e social, esta em parti-
cular no fim de sua existência. Escritor excelente, dominando vários instrumentos de expressão, e
em todos seguro, distinguiu o plano formal das inovações do plano em que elas atingiam o conteú-
do e davam sentido ao que era realmente novo. A tentativa que efetivou de aproximar a linguagem
falada da escrita, de elaborar uma língua literária, despojada de obediência formal a cânones ultra-
passados, pode ter sido infeliz em alguns pontos, mas teve seriedade e influência.

Estudos literários
1. O Modernismo brasileiro apoiou-se fortemente nos movimentos da vanguarda europeia, so-
bretudo o Futurismo, como forma declarada de rompimento com as tendências retrógradas do
Parnasianismo que ainda prevaleciam. Como isso se deu?

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br
80 | 1922 e o século XX

2. A Semana de Arte Moderna representa um escândalo pelo inusitado das questões que traz à tona
do debate cultural. Explique.

3. A chamada viagem de reconhecimento do Brasil, realizada pelos modernistas em companhia do


poeta francês Blaise Cendrars, objetiva o reconhecimento de um mundo primitivo. O que isso re-
presenta?

Este material é parte integrante do acervo do IESDE BRASIL S.A.,


mais informações www.iesde.com.br

Você também pode gostar